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Halice FRS

ENIGMA
Segredos & Mentiras*

“Vigiai e orai para que não entreis em tentação;


o espírito na verdade está pronto, mas a carne é fraca”
Mateus 26: 41

*VERSÃO NOVA, NÃO PUBLICADA


Copyright © Halice FRS
Todos os direitos reservados. Proibida a tradução, distribuição ou cópia, integral ou parcial dessa
obra sem o consentimento por escrito da autora.
Criado no Brasil
***
Imagens da capa: CanStock Photo
Capa: Naty Cross
Agradeço a Deus pela inspiração. A todas as leitoras, amigas virtuais por seus comentários
inspiradores e críticas construtivas. À Cleide, Grazielle, Andréia e Joana, minhas “cobaias” iniciais.
À Cristina, Sônia e Patrícia todas as “irmãs” que formam nossa Irmandade.
À Josefa, Elaine, Barbara e Jackeline pelo suporte técnico, direto ou indireto. A Edivania pela
ajuda incondicional a qualquer hora.
À Nara, minha irmã por afinidade, pelas palavras animadoras nas horas necessárias Ao meu
marido por pacientemente me permitir dividir nosso tempo e me dedicar à escrita e ao meu pai pela
formação.

Dedico essa história a minha mãe, minha primeira incentivadora.


N/A: The Isle e Arte & Estilo são lugares fictícios, assim como Sin Bay, que serve de cenário para o romance entre um homem e uma
mulher. Ambos perdidos em suas mentiras, graves ou pueris, conscientes ou inconscientes.

Boa Leitura!
Índice
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Tradução das palavras italianas
Capítulo Um

A réstia de luz que entrava pela janela e rompia a escuridão do quarto, reincidia exatamente sobre
os corpos que se moviam sobre a cama estreita. O observador da cena sentia um latejar estranho e
bom em seu sexo ao espiar o momento íntimo. Era perturbador e, ainda assim, ele não conseguia
desviar seus olhos da imagem nem bloquear os sons guturais que lhe chegavam aos ouvidos. Os que
exprimiam a agonia da mulher se misturavam os urros do homem que investia com força contra ela.
Quem os via não entendia por que ela continuava com os braços estendido em direção à cabeceira
em vez de virar e se defender. Também não entendia o motivo de ela não retirar a venda que cobria
seus olhos. A mulher parecia não gostar, mas nunca o parava.
Tudo era sempre igual. E como em todas as outras vezes que os observou, o espião era consumido
pela raiva dirigida ao homem cujo rosto nunca via. E, também como sempre, nada fazia. Apenas
observava os seios da mulher vendada balançarem livres, e suas nádegas – a carne branca já rosada
pelos tapas fortes que recebia da mão vigorosa enquanto era usada. E, sim, excitava-se com a cena.
– Não de novo, Senhor! – Jonathan exclamou, sentando-se no catre.
O corpo suado tremia violentamente. Era dessa forma que invariavelmente despertava do sonho
recorrente: culpado e rijo. E como sempre, sabia o que devia fazer. Escorrendo para fora da cama
diminuta, seguiu até sua cômoda, despindo-se. Nu, da primeira gaveta retirou seu velho companheiro:
um pequeno chicote preto feito de tiras de couro entrançadas numa extremidade e pontas livres
noutra.
Caindo de joelhos ali mesmo, Jonathan golpeou as costas com toda força. Após o estalido, as tiras
finas atingiram sua pele causando a conhecida dor redentora, roubando o ar dos pulmões. Não devia
permitir que sua carne cedesse aos chamamentos mundanos, por isso castigava-a.
Não se recuperara do primeiro golpe, quando desferiu o segundo. Após a quinta fustigada,
Jonathan soube que daquela vez não conseguiria domar o desejo canal, ainda assim, repetiu os golpes
por mais três vezes. Ao término da autopunição, encontrava-se mais estimulado.
Cansado, com as costas em chamas, deixou-se cair ao chão. Rendido ao pecado, com a mão livre
envolveu sua porção rebelada, e procurou alívio paliativo para a fome vinda com as cenas
perturbadoras. Com o lábio inferior preso entre os dentes, de olhos fortemente fechados, questionou-
se pela enésima vez por quais motivos vontades terrenas lhe eram tão prazerosas.
Deu-se a única resposta, quando sensações inquietantes correram seu corpo ferido, enchendo-o de
ansiedade e renovada culpa, envolvendo-o com a satisfação extrema que o levou a liberar a prova de
sua fraqueza sobre o assoalho.
Os prazeres do mundo o agradavam porque ele era uma fraude.

O teto surgiu diante dos olhos despertos de Jonathan De Ciello e se tornou cada vez mais nítido à
medida que a luz de mais um dia entrava pela janela aberta de sua cela. Não. Não mais um dia... O
dia!
– Fiat lux! – murmurou para o vazio.
Sim, faça-se a luz no dia em que começaria a caminhada na vida que escolheu. Precisava mais do
que nunca de luz e paz, obediência e servidão, retidão e, acima de tudo, penitência. As dores ou a
ardência que sentia não eram suficientes para redimir sua alma dos pecados do seu corpo. Se não se
sentisse sujo naquele instante, cairia de joelhos e faria uma oração, um ato de contrição. Melhor seria
deixar para depois do banho – depois de verdadeiramente se arrepender – então faria um pequeno
ato. Teria tempo antes de sua partida.
–Johnny! Johnny! – ouviu a voz nervosa, em sua língua natal, vinda do outro lado da porta. – Não
está se sentindo bem? Quer que eu lhe traga alguma coisa?
Não, não se sentia bem, ele pensou após um suspiro cansado. Contudo não padecia de mal que seu
padrinho italiano pudesse curar com remédios. Ficaria bem tão logo se livrasse dos sonhos e não
reincidisse no erro. Jonathan sabia que conseguiria. Era uma questão de tempo, afinal, as imagens
demoraram a voltar daquela vez.
Havia se passado meses desde o último sonho.
– Responda o que há – o padrinho ordenou. – Ou quebro essa porta.
Suas costas doíam, era o que havia. Mas ainda não o bastante. Parecia que nada seria suficiente
para livrá-lo de seus pensamentos impuros. Com um suspiro resignado, Jonathan se levantou, fazendo
uma careta ao se mover. Com seu corpanzil de 1,85m meio curvado seguiu até a porta. Ao chegar a
ela já andava normalmente e, impassível, atendeu o único parente que sobrara em sua vida. Carlo,
irmão de seu pai.
– Estou bem, senhor – disse, recostando-se ao batente. Com seriedade no olhar o padrinho
avaliou-o de alto a baixo.
– Se está bem porque não desceu para o café? Sabe que horas são?
– Seis e meia? – arriscou o palpite.
– Isso foi há uma hora. Aqui não é um hotel. Você perdeu o desjejum.
– Não estou com fome – anunciou. Na verdade cogitava jejuar.
– Está ansioso, não é?
– Sim, mas acredito que seja normal.
– Evidente que sim – Carlo disse animador –, mas você se sairá bem. Está preparado!
– Diga-me mais uma vez como fui escolhido para comandar a paróquia da cidade de nome peculiar
– Jonathan perguntou dando-lhe as costas para se vestir.
– Conto – começou o padrinho com a voz subitamente endurecida – assim que me explicar porque
há sangue em sua roupa.
– Sabe o porquê – Jonathan exalou um suspiro derrotado com os olhos fechados.
– Certo. Então me diga para quê?
– Disciplina.
– Através da autoflagelação?... Tais práticas são inadmissíveis nos dias de hoje, não aprovadas
sequer pelo Vaticano. Por acaso agora é simpatizante de alguma prelazia?
– Não – Jonathan respondeu sem coragem de encarar o padrinho. Logo sentiu a mão em seu
ombro.
– Teve aquele sonho novamente não foi?
– Sim... – confirmou, afastando-se. – Mas não quero falar sobre isso.
– Sou seu confessor. Pode conversar o que quiser comigo. Livre-se da carga, Johnny.
– Agradeço – disse Jonathan ao finalmente se voltar –, mas como bem lembrou, já é tarde. Preciso
tomar banho, fazer minhas orações e terminar de arrumar minhas coisas.
Gostaria de ter acrescentado à lista uma última corrida pelos jardins, mas não teria tempo; e as
costas realmente incomodavam. Deveria ter lembrado que dirigiria por horas até o Maine.
– Está certo. Também preciso arrumar minha mala. Mas antes de qualquer coisa, vou esperar que
venha de seu banho. Querendo ou não, vou ver como está suas costas.
Jonathan sabia que, quanto àquele assunto, não adiantava argumentar com o padrinho. O melhor era
obedecer. Juntando suas coisas saiu para o corredor da abadia que os abrigava há dois anos, desde a
transferência de Carlo, seguiu para o banheiro comum localizado no andar que ocupava.
Seu banho foi breve. A água, assim como os atos de retirar ou vestir a roupa, causou-lhe
desconforto. De volta ao quarto se preparou para a aplicação do antisséptico providenciado pelo
padrinho. Para sua surpresa foi informado de que havia somente dois cortes distintos que logo não
passariam de cicatrizes como todas as outras, no mais, sua pele apresentava leves arranhões e
vergões.
Depois de encerrar o sermão e o cuidado Carlo o deixou. Não sem antes ameaçar confiscar seu
chicote tão logo o visse. Com um suspiro resignado, Jonathan se pôs de pé quando o tio fechou a
porta atrás de si. Precisava recolocar suas roupas para começar suas atividades.
Como partiria em poucas horas, usaria suas roupas de rua, pois não seria prático dirigir vestido
em uma batina. Optou por calça e camisa preta, finalizando com o colarinho clerical. Devidamente
arrumado, calçado e penteado, saiu para o corredor. Cumprimentou todos que encontrou pelo
caminho ao descer as escadas e até chegar à pequena capela.
Acomodado num dos bancos mais próximos ao altar, ajoelhou-se no genuflexório e recolheu-se em
oração. Por vezes seu estômago protestou pela falta de comida, contudo, Jonathan lhe deu pouca
importância. Estava decidido a jejuar como forma de penitência pelos atos cometidos na madrugada.
Perdeu-se no tempo até que sentiu uma mão pousar em seu ombro.
– Está quase na hora de partirmos – disse Carlo gentilmente.
Jonathan apenas lhe assentiu e finalizou suas orações. Logo se juntou ao padrinho que o esperava à
saída da capela.
– Pensei que quisesse sair antes do meio-dia.
– Ainda quero. – Muitos quilômetros separavam Washigton e o Maine. Em seus cálculos, saindo
por volta das 10h00, poderiam parar, dormir e chegar à baía do pecado pela manhã do dia seguinte.
Acompanhando-o, disse: – Apenas me distraí, mas já tenho tudo praticamente arrumado. Só preciso
organizar umas últimas coisas. Agradecer ao reitor pela acolhida, terminar de me despedir de todos,
então seguimos viagem.
Como Jonathan previu, as despedidas restantes foram breves. Os padres e a maior parte dos seus
amigos seminaristas já tinham lhe desejado boa sorte ao longo da manhã, durante os encontros pelos
corredores da abadia. O último que encontrou foi o reitor Ramiro, senhor sexagenário que
conversava com Carlo a portas fechadas.
Depois de autorizá-lo a entrar, com postura patriarcal lembrou-o da responsabilidade que
assumiria; de sua dedicação ao seu Deus e ao próximo. Depois de também expressar seus votos de
sabedoria, retidão e sorte, colocou-se à disposição caso precisasse de qualquer ajuda.
Jonathan agradeceu com indisfarçada ansiedade em partir enquanto ignorava uma leve
indisposição estomacal. Além da fome, o jovem padre se sentia receoso com o futuro, contudo queria
enfrentá-lo de uma vez.
Esteve se preparando para aquele momento pelos últimos oito anos de sua vida. Inicialmente em
Tivoli, sua cidade natal na querida Itália e depois ali mesmo, em Washington. No primeiro ano –
durante o Propedêutico – foram avaliadas suas qualidades como, saúde física e mental, inteligência.
Assim como suas qualidades morais; integridade, perseverança e coragem. Nos anos seguintes
estudou filosofia e frequentou a faculdade de Teologia.
As disciplinas aplicadas na faculdade atingiam as bases da fé dando-lhe fundamentalmente um
enfoque sistemático e moral. Jonathan estudou as Escrituras Sagradas, a estruturação da igreja.
Aprendeu hebraico, grego e latim; assim como a falar em público. As aulas que mais lhe agradavam
eram as de Psicologia Humana que o prepararam para o sacramento da confissão e para o
aconselhamento daqueles que fossem a ele quando se encontrassem em dificuldade ou perdidos na
desesperança. Seu padrinho tinha razão... Estava preparado!
Portanto, perguntou-se Jonathan enquanto manobrava seu jeep Wrangler pelo calçamento frontal da
abadia, por que ainda se sentia deslocado? Por que não compaetilhava do mesmo entusiasmo de seus
colegas, superiores e de seu tio?
Enquanto guiava, com Carlo ao lado, Jonathan passou a dizer a si mesmo que estar bem preparado
bastaria. Todo o resto viria com o tempo e, apesar de suas falhas evidenciadas nos sonhos, ele não
era uma fraude.
– Quer que eu vá olhando o mapa? – Carlo perguntou prestativo, tão logo o afilhado acessou a
autoestrada.
– Por favor – disse simplesmente.
Não diria a Carlo que, teoricamente, conhecia o caminho para o Maine de cor. Jonathan perdera a
conta de quantas vezes estudou aquele mapa. Desde que seu eterno tutor o comunicou que tinha sido
indicado para assumir a paróquia em uma cidade pequena. Na verdade uma vila autossuficiente, mas
ainda pertencente à Wells.
Pelo o que lhe fora dito, o povoado ganhou vida própria e assumiu ares de cidade, contudo ainda
não possuía unidades básicas como um posto médico ou policial. Este último, ao que parecia não era
necessário, pois a criminalidade do lugar era praticamente nula. Assim, descrita, a cidade parecia
ser agradável. Apenas o nome do lugar lhe instigava a curiosidade: Sin Bay.
– Por que a cidade foi batizada de baía do pecado? – Jonathan perguntou para distrair sua mente.
– Não sei – o padrinho respondeu em tom de escusa. – Não me ocorreu perguntar.
– É um nome bem estranho até mesmo para uma vila – comentou sem desviar os olhos da estrada.
– Também acho... Mas, independente do nome, o que importa é que o lugar parece ser aprazível e
tranquilo. Perfeito para sua iniciação. Acho que teve muita sorte.
– Sorte... – Jonathan repetiu como se saboreasse a palavra. De súbito indagou: – Por que mesmo
fui escolhido para essa paróquia?... Somente sorte?
– Bem, não acho que tenha sido somente sorte. Acho que sua dedicação aos estudos religiosos, sua
participação nas obras da abadia contaram a seu favor.
– Acho que sim – anuiu distraído. – Sorte mesmo foi deixá-lo seguir comigo. Achei que dessa vez
nos separaríamos.
– Teria gostado disso? – Carlo soou incerto. – De ser separado de mim?
– Sabe que não – Jonathan foi sincero, depois riu levemente. – Nem consigo me imaginar longe do
senhor. Eu ficaria completamente perdido, mas acreditei que agora acontecesse. Sempre ficarmos
juntos é que pode ser considerado boa sorte.
– Nesse caso não houve sorte alguma, apenas uma gentileza do reitor que permitiu que eu o
acompanhasse. Ele é um homem ligado à família e aprecia nosso parentesco. Esqueceu que antes de
ser seu padrinho, e tutor escolhido por seus pais, eu sou seu tio?
Como esqueceria? Carlo era seu único parente vivo. Ele, Jonathan, era filho único de um casal já
falecido – assim como seus avós. Como seu tio abraçou a vida sacerdotal, não possuía nem mesmo
primos carnais.
Bem, aquela era a informação que tinha de sua árvore genealogia. Informação, não lembrança.
Toda e qualquer recordação que ultrapassassem seus nove anos de idade lhe foi roubada em um
acidente automobilístico. Tudo o que viveu depois: tempos de escola, doenças, festas de aniversário,
Natais, passeios em família, puberdade, tudo, absolutamente tudo fora deixado nos escombros do
carro de seu pai.
Seu pai, Cassio De Ciello, irmão mais novo de Carlo, era a exceção nas poucas lembranças que
tinha. Jonathan simplesmente não se lembrava dele, apenas da mãe. Uma mulher bonita, com uma
expressão levemente sofrida, mas que sempre lhe dedicou muito amor. Era americana, natural de La
Harpe, Illinois. Ainda segundo Carlo, Jonathan soube que Norah se mudou para Tivoli depois que se
apaixonou por Cassio durante suas férias de verão. Casaram-se e desse amor ele nasceu.
Jonathan considerava uma lástima que sua família perfeita tivesse sido ceifada por um motorista
embriagado na Dei Parchi. Se pudesse considerar tal fatalidade uma bênção, seus pais ao menos
morreram instantaneamente. Ele, por sua vez, permaneceu preso entre as ferragens até que fosse
resgatado, com sinais vitais alarmantemente baixos. Jonathan permaneceu 25 dias em coma e, ao
despertar, descobriu que uma fratura na coluna dorsal roubara os movimentos das pernas
temporariamente, assim como o trauma cerebral levou anos de sua vida indefinidamente.
Sua mente tornara-se um livro desfalcado. Ou antes, um caderno com páginas novinhas nas quais
seu padrinho, pacientemente, reescreveu sua história nos anos de recuperação. Jonathan esteve
internado por quase um ano. Ficava sozinho na maioria das vezes, pois Carlo tinha suas obrigações a
cumprir em outra cidade e não podia estar com ele todos os dias. Durante essas visitas, o tutor
começou a saciar sua curiosidade à medida que suas dúvidas iam surgindo.
Apenas quando pôde ser transferido para o Hospital Central de Anagni – município que abrigava a
paróquia de seu tio – Jonathan passou a contar com sua presença todas as noites. Antes que
adormecessem, perdiam-se em longas conversas sobre sua vida esquecida. Por elas soube que
dominava o inglês, pois sua mãe – dona de casa dedicada – fazia questão que conversassem em sua
língua natal sempre que estavam sós. Soube ainda que o pai – piloto da Alitalia – não fora uma figura
constante por estar sempre encarregado de voos internacionais. Isso explicava a falta de recordações
paternas.
Talvez a falta das mesmas, associado à presença constante de seu padrinho durante os meses de
fisioterapia, tenha facilitado e alimentado o afeto que lhe tinha. Carlo esteve ao seu lado até que
recebesse alta e o abrigou em sua casa. Tratou-o até a pronta recuperação, zeloso, como talvez
nenhum pai o fosse. Jonathan não conseguia imaginar-se sem seu tio. Os primeiros anos de seminário
longe dele foram os mais solitários de sua vida. Poderia dizer, sem medo de exageros, que lhe devia
ser quem era, então, como Carlo poderia cogitar que gostaria de ser separado dele? Jamais
aconteceria.
– Não, não esqueci – disse Jonathan, terno. – Sabe bem o quanto é importante para mim.
– Sim, eu sei – Carlo anuiu. Após um minuto de silêncio constrangedor, perguntou: – Como estão
suas costas?
– Doendo menos do que deveria.
– Não devia falar assim – Carlo ralhou. – Como também devia parar de se machucar. Sabe muito
bem que isso não o leva a nada. Seus sonhos não vão sumir de uma hora para outra só porque se
flagela.
– Eu preciso ao menos tentar – Jonathan se justificou. – E o sonho demorou a vir dessa vez. Há
meses não o tinha.
– Então deveria ter entendido que, dessa vez, tenha sonhado movido pela ansiedade. Está
preparado, mas tudo lhe é novo e desconhecido. Não pode se castigar por isso.
Era um fato a ser considerado. Até mesmo Carlo andou estranho nos últimos dias. Mudanças
sempre eram incômodas, por isso Jonathan não as apreciava.
– Eu sei, mas... – Jonathan nunca concluiu. De súbito tonteou e a visão turvou, fazendo com que
perdesse o controle do jipe momentaneamente.
– O que foi isso? – Carlo se alarmou.
– Eu fiquei tonto por um segundo – Jonathan respondeu já a estacionar no acostamento para que
controlasse os tremores de suas mãos.
– Não se alimentou, não foi?
– Não.
– Eu sabia! – exclamou, repreensivo. – Por acaso não inventou de jejuar logo hoje, não é?
– Era esse meu plano. – Jonathan não via motivos para mentir.
– Não!... Acho que seu plano era nos matar, só pode!... Como acha que enfrentaria praticamente
dez horas de viagem estando com o estômago vazio?
Jonathan não poderia retrucar. Fora, no mínimo, irresponsável arriscando não só a sua vida e a do
padrinho como a de algum inocente que viesse a atingir pelo caminho. Exatamente como tinha
acontecido com seus pais.
– Perdoe-me – pediu arrependido por seu egoísmo. – Assim que avistar um posto eu paro para me
alimentar.
– Acho muito bom! – Carlo replicou ainda carrancudo.
Acreditando estar em condições de dirigir, Jonathan voltou para a estrada. Alguns metros à frente
olhou para o padrinho de soslaio. Não tinha o direito de arriscar a vida dele, que era toda sua
família. O homem forte e decidido ainda trazia as feições joviais e um corpo saudável e esguio.
Apenas alguns fios prateados espalhados ao longo dos cabelos aloirados denunciavam seus cinquenta
e cinco anos. Os traços de ambos eram semelhantes sem serem óbvios, contudo, um observador mais
atento notaria o parentesco entre eles. Amava Carlo como a um pai e era seu dever retribuir o zelo
que recebia há anos.
Ciente do fato, extremamente culpado por seu descuido, Jonathan guiou com cautela até chegar a
um posto. Estacionou em frente a loja de conveniência, mas se dirigiu à pequena lanchonete ao lado.
Escolheu um lanche leve entre as opções oferecidas. Um hambúrguer simples, sem maionese, e uma
garrafa de água mineral.
Alegando não estar com fome e a necessidade de movimentar as pernas, Carlo seguiu para a loja
de conveniência, deixando-o para que comesse em paz. Ao voltar trazia uma sacola grande, e não
esperou que o sobrinho o questionasse.
– Sei que esse lanche não era suficiente, mas não vou obrigá-lo a comer mais nada agora, pois
passaria mal novamente. Então comprei alguns biscoitos, sucos prontos e água. Para o caso de sentir
fome ou sede antes de pararmos.
– Bem pensado – falou, agradecido.
Tão logo terminou sua parca refeição e ambos utilizaram o fétido banheiro masculino do posto,
voltaram à estrada. Viajaram em silêncio. Livre do mal-estar, e com a estrada bem sinalizada, a
viagem seguiu tranquila. A parte incômoda era o fato de suas costas arderem, mas não se queixaria. A
irritação era necessária para mantê-lo desperto, consciente de seus erros. E não anulava a sensação
de liberdade que experimentava ao guiar pela autoestrada. Tudo corria como o esperado.
Quando Carlo despertava de algum cochilo a conversa fluía leve e divertida. Pararam somente ao
cair da noite num posto de apoio a caminhoneiros. Poucos levantaram as cabeças à sua passagem e
menos ainda lhes pediram a bênção.
Ao se acomodarem foram atendidos por uma moça falante, de cabelos negros, que usava uniforme
cor-de-rosa. Assim como na lanchonete do primeiro posto, o cardápio não oferecia muitas opções.
Escolheram o prato do dia e duas garrafas de água mineral. Enquanto esperavam Jonathan não pôde
deixar de notar os olharem de algumas garçonetes para ele. Estava habituado, mas ainda assim era
incômodo.
Todos deveriam saber que padres não nasciam com 60 anos. Em algum momento foram jovens.
Empertigando-se em sua cadeira, ignorou-as. Mal olhou para a moça que trouxe seu pedido. Tão logo
ela se retirou, Jonathan devotou toda sua atenção ao prato fumegante.
Bastou sentir o cheiro do guisado para descobrir o grau de sua fome. Talvez fosse a falta de
alimento que apurasse seu paladar, pois aquela mistura de legumes e carne bovina, fortemente
condimentada, pareceu-lhe a melhor das refeições. Caso não cometesse o pecado da gula, teria
repetido. Para quem cogitou jejuar, comeu como um glutão.
Jonathan agradeceu que seu padrinho não tivesse tecido nenhum comentário a respeito, deixando
claro que, para ele, o assunto estava esquecido. Ao término da refeição, Jonathan pagou a despesa,
indiferente ao olhar indagador e insistente da garçonete. Seguia rumo à porta, quando ouviu o
comentário lamurioso e sussurrado:
– Que desperdício!
Jonathan cogitou repreendê-la, mas achou por bem continuar a ignorá-la. Aquele flerte nem sempre
velado o afrontava. Antes que qualquer outra coisa era um padre e queria ser respeitado como tal,
mas não alardearia sua vocação à uma leiga estranha. Irritado, caminhou altivamente até deixar o
salão do restaurante.
– Não deveria dar tanta importância a isso – Carlo falou enquanto se encaminhavam ao jipe. –
Você ser jovem causa estranheza.
– Estranharem não é o problema, sim, a falta de respeito – retrucou secamente, ainda irritado pelo
comentário que considerava ofensivo.
– Apenas revele – Carlo insistiu. – Daqui à alguns anos estará livre desse problema.
– Acho pouco provável. Algumas delas também olham da mesma forma desrespeitosa para o
senhor. O que acontece com essas mulheres afinal?
– Como eu disse, releve. Você é jovem, Johnny... E saiba que possui alguma beleza.
Jonathan deixou o comentário passar ao avistar um caminhoneiro próximo ao seu jipe.
– Boa noite, senhor.
– Boa... – cumprimentou o caminheiro displicentemente. Ao se voltar e ver quem o abordava,
engasgou e mudou sua postura. – Boa noite, seu padre!... Posso ajudar?
– Por favor... Estamos indo para o Maine e como não quero dirigir à noite, gostaria de saber se
conhece algum lugar onde possamos pernoitar.
– Conheço, sim, senhor... A uns sessenta quilômetros daqui tem o motel da Molly... É simples,
mas...
O homem deixou a frase no ar, indicando que talvez a simplicidade não bastasse para dois padres.
Sorrindo-lhe condescendente, Jonathan assegurou:
– Simples é o suficiente para nós... Precisamos apenas de descanso. Obrigado!
– Então os senhores vão gostar – ele falou satisfeito. – Antes de ir, o senhor poderia me dar sua
bênção?
– Deus o abençoe e acompanhe!... Tenha uma boa viagem!
– Amém! – o caminhoneiro exclamou fazendo o sinal da cruz.
Ao deixá-lo, voltaram ao jipe e, com o tanque de gasolina abastecido, tio e sobrinho seguiram
viagem. Uma vez na estrada, Jonathan voltou ao assunto que o aborrecia.
– Prometo tentar relevar, mas acredite, será difícil. E não me venha com aquela conversa de
beleza...
– Tudo bem!... Não repetirei, mas é verdade então considere natural que algumas moças criem
certas... fantasias. Não temos como comandar a mente alheia, apenas a nossa. O importante é nunca
se envaidecer e jamais lhes dar atenção demasiada para que não confundam. As moças de hoje em
dia são diferentes das do meu tempo. Precisa habituar-se a isso, afinal, agora comandará uma
paróquia, estará mais exposto. Espero estar errado, mas esse tipo de assédio acontecerá.
– Aconteceu com o senhor? – Jonathan perguntou para tirar o foco de si.
– Como disse, as coisas eram diferentes no meu tempo. Estamos falando de trinta e um anos atrás.
As moças não eram tão atiradas, mas, sim... Algumas aventuravam um olhar mais demorado e
sugestivo ou se demoravam ao beijar minha mão.
– E era fácil relevar? – Jonathan não pôde deixar de notar o pigarrear nervoso antes que o
padrinho respondesse sinceramente:
– Não todas as vezes...
– E o que fez nas vezes que não conseguiu ser magnânimo. – Jonathan não dissimulou o leve
sarcasmo.
– Ameacei proibi-las de irem à igreja. Seria complicado para elas explicarem tal proibição aos
pais ou... aos maridos. E em um caso mais extremo ameacei excomungar uma jovem casada.
Sem que pudesse evitar Jonathan irrompeu em sonora gargalhada.
– Não é engraçado, Johnny! – Carlo o repreendeu.
– Perdoe-me padrinho – pediu ele, tentando se conter. – Mas não consigo imaginá-lo ameaçando
alguém dessa forma. Sempre é tão... benevolente.
– Sou, mas todos têm o seu limite. Quando indicar que não estava interessado não era o bastante,
eu precisava agir com maior rigor.
– Está bem! – Jonathan anuiu, sorrindo mansamente. – Diante disso, eu reafirmo minha promessa...
Vou tentar revelar possíveis avanços. Se não me fazer entender eu o chamo e o senhor ameaça a leiga
abusada.
– Só não vou chamar sua atenção porque estou gostando de vê-lo assim, descontraído, se não...
Jonathan riu da ameaça velada e logo foi seguido por seu padrinho. Ao encerrarem o riso, cada
qual se deixou envolver pelo clima leve, absortos em seus próprios pensamentos. O jovem padre
aproveitou para reafirmar a promessa, afinal, sua juventude ainda seria um problema por alguns anos.
A diferença era que com assédio de moças que deveria guiar seria imprescindível ser benevolente e
desencorajar prováveis avanços.
Reafirmava seu propósito quando avistou o letreiro chamativo do motel da Molly. Suspirou
aliviado. O dia ainda estava claro, mas não suportaria dirigir muito mais. O lugar era realmente
simples, porém limpo. Como não possuía garagem, o jipe ficou estacionado diante do quarto que
padrinho e afilhado dividiriam. Este possuía duas camas de solteiro, uma TV com a imagem
distorcida e um banheiro diminuto.
Por hierarquia, Carlo deveria ser o primeiro à usá-lo, porém cedeu a vez alegando que o sobrinho
dirigira sozinho todo o trajeto e precisava de repouso. Jonathan não se fez de rogado e seguiu ao
banheiro já munido de suas roupas de dormir.
Descobriu não haver água quente. Como não era dado a luxos, não se importou. Passado o choque
inicial, deixou-se ficar sob os pingos frios: a leve ardência em seus ferimentos lembrando-o da
madrugada passada. Jonathan esperava que os sonhos dessem uma trégua definitiva daquela vez, mas
não alimentava essa esperança. As imagens eram fortes e vívidas demais para simplesmente
desaparecerem de uma hora para outra.
Resignado, Jonathan ensaboou-se. Ao esfregar o apêndice flácido entre suas pernas, perguntou-se
porque este não permanecia daquela maneira definitivamente em vez de despertar e manchar sua
índole, conspurcar sua vocação.
Como tantas outras questões em sua vida, aquela ficaria sem resposta. Melhor finalizar seu banho.
Já a se enxugar, seus olhos pousaram sobre um grande espelho sobre a pia e lembrou as palavras do
tio. Jonathan não se considerava bonito nem tinha curiosidade acerca do próprio corpo. Contudo ao
ver seu reflexo, aproximou-se para examinar o próprio rosto.
A imagem na superfície envelhecida parecia comum. Talvez o que chamasse a atenção fossem seus
olhos azuis; nada mais. Decidindo que não possuía beleza alguma e que todas as moças que o
olhavam cobiçosamente eram cegas, carentes ou loucas, Jonathan quis ver o estrago causado em suas
costas.
Contorceu-se o máximo que pôde na tentativa de enxergar as cicatrizes e cortes. Infelizmente o
tempo agira realmente de forma implacável sobre o espelho e este era coberto de manchas largas que
em sua base tinham tomado todo o espaço de reflexo.
Jonathan não viu suas costas com nitidez.
Desistindo, e já esquecido de uma suposta beleza, Jonathan se vestiu e seguiu para o quarto.
Apenas deixou as roupas usadas em cima de sua mochila de viagem e se atirou sobre a primeira
cama que viu. Acordou seis horas depois – atordoado – com seu padrinho a chamá-lo, já vestido.
Sentando-se abruptamente, Jonathan olhou em volta. Demorou alguns segundos até que se
lembrasse de onde estavam.
– Que horas são? – perguntou já a seguir para o banheiro.
– Três horas – Carlo disse alto para que pudesse ouvi-lo através da porta que acabara de fechar.
– Por que não me acordou antes? – inquiriu Jonathan, atendendo à sua primeira necessidade
fisiológica do dia. – Sabia que eu queria sair cedo.
– Você estava exausto – o padrinho falou do quarto. – E não temos pressa. Não importa a hora
que chegarmos.
Jonathan não lhe retrucou. Não cumpriam horário, mas queria chegar pela manhã e, de preferência,
cedo. Voltou ao quarto com o rosto lavado e os dentes escovados, depois de uma última olhada para
si no espelho manchado. Vestiu-se rapidamente então saíram. Uma vez de volta à estrada pararam
apenas para abastecer quando o dia começava a clarear.
Comeram os biscoitos comprados por Carlo no dia anterior. O restante da viagem transcorreu
praticamente em silêncio. Com o caminho livre logo cruzaram a divisa do Maine. Chegaram a Wells
pouco mais de uma hora depois. E em menos de vinte minutos estava diante do arcebispo
responsável pela paróquia que cuidaria, colocando-se à disposição para assumir o posto.
– Então é o senhor que assumirá a paróquia de Sin Bay? – o idoso perguntou mais para si mesmo
que para Jonathan; avaliando-o, tão logo se apresentou e tomou-lhe a bênção. – Foi ordenado há
pouco, não é mesmo?
– Sim – Jonathan respondeu de pronto. – Há dois meses.
– Muito bem! – exclamou, olhando para Carlo. – E o senhor veio com a tarefa de auxiliá-lo?
– Sim, Vossa Eminência.
– Muito bem! Fui informado que chegariam hoje... Como foram de viagem? Desejam descansar?
Talvez nos acompanhar no almoço?
– Se Vossa Eminência não se incomodar, eu gostaria de seguir viagem – Jonathan falou
sinceramente. – Agora que estamos perto, estou ansioso para conhecer minha paróquia.
– Aprecio o ânimo dos jovens – o senhor lhe sorriu condescendente. – Vá em paz, meu filho. Que
Deus o ilumine em sua empreitada e o mantenha sempre no caminho da retidão, firme em sua fé e o
livre de toda e qualquer tentação que venha abalar sua vocação.
O jovem padre sentiu o rosto corar. Era como se aquele velho homem da igreja conhecesse suas
provações. Sentindo-se exposto, balbuciou:
– Amém!
Assim como o reitor Ramiro, o arcebispo Carter se colocou à disposição para o que fosse preciso.
Agradecido, depois de ouvir-lhe todas as recomendações, Jonathan voltou ao seu jipe na companhia
de Carlo e finalmente seguiu para a última etapa de seu caminho.
Em todo o percurso tentou bloquear as palavras de seu superior; o homem não tinha como saber
sobre seus deslizes ou a leve sensação de deslocamento que o incomodava algumas vezes. Dizia para
si mesmo que os votos foram os mesmos que diria à qualquer outro padre jovem, recém-ordenado.
Distraiu-se tanto que se surpreendeu ao chegar à cidade.
Sin Bay era de fato uma vila. Não possuía edifícios, apenas alguns sobrados. Em menos de cinco
minutos, Jonathan estava na praça central diante da igreja que administraria daquele dia em diante.
Era pequena, uma capela, mas pareceu-lhe linda à luz da manhã.
– Chegamos – Carlo murmurou ao seu lado.
– Sim... – Jonathan murmurou, distraído com os poucos pedestres que paravam para lhes
acompanhar a passagem.
– A casa deve ser aquela. – Carlo apontou para a casa vizinha ao muro que cercava as
dependências da igreja, na rua lateral.
Foram avisados para procurar pela senhora incumbida de cuidar da capela durante o tempo que ela
estivesse fechada. Ao estacionar e saltar do jipe, Jonathan experimentou a sensação de alívio por
estar em casa. Aproximando-se do portão, bateu palmas. Logo a senhora de rosto magro e flácido, de
olhar desconfiado, apareceu à janela.
– Pois não?
– Bom dia, senhora! Sou Jonathan De Ciello. Vim para assumir a igreja. Poderia me emprestar as
chaves?
– Novo padre?! – estranhou e deixou a janela. Em minutos ela caminhava até o portão; era pequena
e muito magra, e trazia estranheza no olhar. Ao aproximar-se, repetiu: – Novo padre?... Acho que não
ouvi direito, rapaz... Disse que você veio assumir nossa igreja? Tem certeza de que não é ele? –
Apontou para Carlo.
– Não, senhora. Este é Carlo De Ciello, meu padrinho. – Depois que Carlo murmurou um
cumprimento em inglês grosseiro e arrastado, Jonathan esclareceu: – Ele é padre, assim como eu,
contudo veio somente me auxiliar. O responsável por nossa igreja sou eu mesmo.
– Mas você, digo... Desculpe-me. O senhor é tão moço ainda!
– Sou, sim – Jonathan sorriu complacente ao comentário óbvio, há muito batido. A senhora
avaliou-o com descaramento próprio aos idosos. Talvez, chegando à conclusão de que um padre
novo seria melhor do que padre nenhum, sorriu cordialmente e estendeu a mão ossuda.
– Pois então seja bem-vindo, Sr. De Ciello. Eu me chamo Sarah Williams e estou ao seu dispor.
Espere enquanto vou buscar suas chaves.
Quando a Sra. Williams retornou a própria casa, Jonathan voltou ao seu jipe para descarregá-lo.
Não pôde deixar de notar que algumas pessoas se acercavam, olhando-os com curiosidade, porém
sem se aproximar. Jonathan lhes acenou amigavelmente antes de começar a retirar a pouca bagagem
que trouxeram. Sua mala era a mais pesada, justamente por isso fez questão de carregá-la para que
seu padrinho não reparasse naquele detalhe.
– Pensei que ela fosse mandá-lo de volta por ser novo demais – comentou Carlo, sério, em
italiano. – Custava já ter trazido a chave quando você anunciou quem era?
– Ela é apenas uma senhora zelosa. Não iria entregar as chaves à qualquer um.
– Está certo – o velho padre reconheceu uma nota de mau humor.
– O que há? – Jonathan perguntou ao depositar sua mala ao lado da porta principal da casa que
ocuparia.
– Acho estranho que fiquem nos olhando...
– Somos novidade, em uma cidade pequena. – Tentando melhor o humor do padrinho, acrescentou:
– Releve.
O tio não pôde retrucar, pois a Sarah Williams chegou com as chaves. E ao que tudo indicava, veio
recuperada do espanto com a juventude do padre, pois desandou a falar sobre a cidade.
– Ah, o senhor vai gostar daqui!... Esperávamos ansiosos que nos enviassem um novo padre.
Sempre fomos bons devotos – assegurou, sem dar tempo para qualquer comentário. – Infelizmente
nossa igrejinha precisa de reparos, o senhor vai ver... Tão logo se acomodem, eu os acompanho. Tem
uma passagem que liga a casa à sacristia.
– Sim, senhora – Jonathan anuiu.
– Não será necessário – Carlo disse ao mesmo tempo. Jonathan o olhou de soslaio e a senhora
continuou à falar enquanto seguiam pelo corredor com suas malas:
– Os senhores também vão amar a cidade... Ela é sempre muito calma, nada acontece por aqui.
– Conto com isso – o padrinho retrucou num sussurro intimista. Jonathan sorria da súbita carranca
de Carlo enquanto a senhora falava mais:
– O antigo padre ocupava esse quarto – indicou o primeiro. – Acho que o seu padrinho poderia
ficar naquele – sugeriu, indicando uma porta além. – Os senhores gostarão dessa casa... Ela costuma
ser fresca no verão e muito aconchegante no inverno.
Sem discutir, Carlo seguiu para o cômodo indicado restando a Jonathan ocupar o quarto do antigo
padre. Sarah o acompanhou, sempre falante.
– Como lhe dizia, nossa cidade é muito calma e todos são educados, cordiais... O senhor verá. É
realmente uma bênção viver num lugar tão aprazível como Sin Bay. Possuímos três praias
praticamente à nossa porta. Hoje em dia não as frequento mais, mas em minha juventude não saída de
lá...
Jonathan viu seu riso leve, mas sem registrá-lo na verdade. Novamente o nome peculiar lhe
despertou a curiosidade, mas o atraiu foi saber que disporia de três praias para sua usual corrida
matinal bem às portas de sua nova morada.
Aquele hábito era uma incógnita em sua vida, não se lembrava de onde e quando o adquirira,
apenas sentia que precisava de ação. Talvez esta tivesse nascido após a breve paralisia; não sabia.
Seja como for, para espanto de seus colegas ociosos, acostumou-se a se exercitar nos jardins
limitados da abadia sempre que conseguia algum tempo livre.
Saber que teria vastas extensões de areia ao seu dispor foi como receber a graça divina. Não era
merecedor, mas agradeceu-a mentalmente da mesma forma.
– Eh... Tenho certeza que será muito bom viver aqui – disse vagamente. – Agora, se puder me dar
licença, eu preciso me trocar.
– Ah, sim!... Vou esperá-lo na sala. Quando estiver pronto eu o levo até a igreja.
– Logo resolveremos isso, por ora... Por favor – pediu, indicando a porta.
Assim que se viu sozinho, Jonathan se despiu e, depois de retirar o que precisava de sua mala,
aprontou-se para sair. Ao chegar à sala encontrou o padrinho sendo vítima da falação da senhora
animada.
– Ah... Que bom que chegou! Podemos ir agora se...
– Obrigado, senhora, mas estou de saída. Padrinho, eu logo estarei de volta.
Sem esperar por respostas, ignorando o olhar curioso da Sra. Williams quando dispensou de
conhecer o interior da capela, Jonathan saiu depois de um aceno breve para ambos. Ao cruzar o
portão, viu que algumas pessoas ainda olhavam para a casa com curiosidade.
– Bom dia – cumprimentou a um senhor que avaliava seu Wrangler.
– Bom dia... Esse carro é seu? – perguntou sem rodeios.
– É, sim... Sou o novo padre.
– Ah! – o senhor admirou-se, porém não fez alusão à sua idade. – Que boa notícia!
– Fico feliz em saber que sente assim – retrucou impaciente. – Por favor, poderia me indicar a
direção da praia?
– Sim, senhor – respondeu prontamente, contudo sem pressa alguma. – Temos três... Uma logo
aqui à frente, depois das casas... Outra além do portinho e uma além da trilha, mas essa não é muito
frequentada. O pessoal não gosta de passar pelo meio do mato para chegar até ela, por isso é quase
sempre deserta.
– Como faço para chegar a essa? – Era perfeita!
– Senhor?... – o homem inquiriu como se ele não o tivesse entendido. – São dez minutos de
caminhada pelo meio do mato.
– Não tem problema – disse pausadamente. – Preciso de um pouco de tranquilidade depois da
longa viagem que fiz.
Ainda com a expressão incerta, o senhor indicou-lhe a direção. Agradecendo-o e cumprimentando
com a cabeça todos que estavam a sua porta, Jonathan se pôs a caminho. E se agradou de tudo que
viu.
As casas eram em sua maioria do mesmo estilo simples e despretensioso. Aparentavam ser
aconchegantes; frescas no verão e aquecidas no inverno, como descreveu sua falante vizinha. Os
cidadãos eram receptivos – não pôde deixar de reparar que havia mais mulheres do que homens nas
ruas – todos cordiais e educados. Naquele instante acreditou em Sarah Williams...
Apreciaria viver em Sin Bay!
Capítulo Dois

O dia estava lindo. Perfeito para o que a moça fazia naquele momento: absolutamente nada. Faith
Green queria apenas sentir o vento ameno tocar suas pernas e braços expostos. Precisava secar-se
antes de ir embora. Caso não tivesse perdido a hora para vir à praia já estaria de volta. Agora teria
de esperar até quase a hora do almoço. Sentia fome, mas não arriscaria ir para casa com as roupas
úmidas. Não queria receber outra bronca de sua mãe por ter nadado somente em peças íntimas caso
não conseguisse entrar escondida. Era realmente maçante ter de se comportar de acordo.
Certo, não custava nada atender a mãe e usar biquíni, mas daquela vez não fora à praia com
intenção de cair no mar. Porém, ao encontrá-lo sereno, com as ondas quebrando mansas na areia, não
teve como resistir ao chamado velado e, como sempre, nadou até a formação rochosa ao pé do
penhasco. Quando a maré estava baixa e o mar calmo como naquela manhã, era possível chegar até a
pedra grande que ficava há uns trinta e cinco metros da orla. As pedras menores à sua volta
formavam uma piscina natural.
Faith adorava permanecer nas águas plácidas enquanto mirava o limite além da baía. Muitas vezes
conseguia ver o barco de seu pai quando este estava ancorado próximo ao pequeno cais no outro
extremo da vila. Não o veria daquela vez, mas o passeio valeu a pena. Serviu para relaxar sua mente
e esgotar seu corpo. Apaziguou seu espírito.
Não sabia o motivo, mas desde que acordou se sentia expectante, inquieta. Como se algo grande
estivesse para acontecer. Ou talvez o sentimento fosse somente imaginação, fruto do tédio. Depois do
baile mensal na sede da cooperativa, nada de interessante tinha acontecido.
Qual a novidade afinal? Morava numa vila esquecida. Apesar do nome sugestivo, nada
interessante acontecia naquele pedaço de nada. Sempre as mesmas histórias, sempre os mesmos
rostos. As noites de quinta-feira não contavam então, se sua inquietação era alimentada pela falta de
novidades, estava fadada a suportá-la por tempo indeterminado, a morrer lenta e dolorosamente pelo
mais absoluto marasmo.
Com um suspiro, Faith sentou sobre a pedra e abraçou as pernas. Imediatamente seus olhos foram
atraídos para uma cena rara. Um homem se aproximava pela orla. Vinha correndo, exercitando-se. A
visão não era nítida, mas tinha certeza de que não o conhecia. Sem qualquer razão Faith sentiu um
calafrio percorrer sua coluna.
Não era medo por estar sozinha. Saberia se defender se fosse preciso. Acreditou ser somente
curiosidade afinal, acabara de pensar que nada acontecia e o desconhecido apareceu. Maluquice!
Provavelmente fosse apenas um hóspede de algum hotel de Wells. Realmente era raro, mas às
vezes alguns deles não se importavam de percorrer os doze quilômetros de rodovia e os três de
estrada vicinal para se aventurarem em outras praias. As três de Sin Bay, apesar de pequenas, eram
bonitas.
Sim, era isso, Faith determinou enquanto via o homem se aproximar. O conjunto da obra
proporcionava uma bela visão. O desconhecido possuía um corpo bem feito e os cabelos, um loiro
estranho. De onde ela estava ele pareceu bonito, mas Faith não poderia ter certeza.
Como o homem corria pela faixa de areia molhada e a maré ainda estava baixa, passou longe e não
olhou em sua direção. Faith continuou olhando-o pelas costas; eram largas. Os braços parcialmente
cobertos aparentavam ser fortes e as pernas escondidas pelo moletom cinza chumbo, longas.
Comparando-o mentalmente a Mason, Faith chegou à conclusão de que ele deveria ser mais alto do
que o irmão. Bom... Então, para ela, ele era bonito. Tinha predileção por homens altos. Pelo menos
todos com que tentou se relacionar o eram.
Enquanto via o homem se distanciar, Faith lamentou que fosse somente um visitante errante. Seria
realmente interessante se ele fosse algum novo morador ou algo do tipo. Novidade em Sin Bay?
Poderia esquecer. Com um suspiro desanimado, ela se deixou cair lentamente de costas sobre a
pedra, mais uma vez. O único instante de novidade tinha passado.
Agora era esperar que se secasse para voltar à monotonia de sempre. Novamente se deixou
envolver pela brisa mansa. Por estar sozinha, ergueu a barra do vestido até o alto de suas coxas,
acomodou-a na virilha. Depois estendeu os braços abertos, deixandos-os pendidos ao lado do corpo
e fechou os olhos para sentir a carícia do vento.
O sol estava particularmente agradável. Pena que poucos do local tinham o privilégio de
aproveitá-lo em plena manhã de quarta-feira. Pelo menos ela e o corredor solitário usufruíam os
prazeres proporcionados pelo astro.
Faith quase cochilava quando percebeu, ainda de olhos fechados, que o dia ensolarado tinha
subitamente escurecido. Ao abri-los para ver o que causou a mudança brusca na luminosidade, sentiu
o ar lhe faltar tamanho foi o susto ao se deparar com o desconhecido curvado sobre si, olhando-a
fixamente.
– Ei!... Perdeu alguma coisa aqui? – Ela se sentou de chofre já baixando o vestido para cobrir as
coxas. Caso suas pernas não estivessem trêmulas, teria se levantado.
– Perdonami – ele se afastou, visivelmente alarmado assim como ela, então repetiu na língua dela:
– Desculpe-me... Não era minha intenção assustá-la.
O sotaque italiano, aliado a um semblante que Faith somente poderia descrever como
perfeitamente imperfeito, teve o poder de romper suas defesas. Com ele tão perto, pôde ver que era
bonito, sem ser óbvio. O loiro estranho dos cabelos curtos se assemelhava a areia molhada. O rosto
era anguloso e marcado. Faith não soube determinar sua idade. O estrangeiro poderia ter 20 como ter
30 anos. Havia alguma coisa em seus olhos que ela não soube identificar.
Hipnotizada, perguntou se alguma vez o céu de Sin Bay ficara naquele incrível tom de azul que
iluminava as órbitas à sua frente; dificilmente.
– A senhorita está bem? – Recuperado do susto ele perguntou com aquele tom cantado, avaliando-
a.
– S-sim... – como a voz estava falha, Faith pigarreou e prosseguiu: – Sim, estou bem.
– Graças a Deus! Por um momento achei que tivesse passado mal e desmaiado ou coisa parecida.
– Não... Estava apenas me secando para ir para casa.
– Entendo... Mas não é perigoso ficar assim, sozinha?
– Não... Quase ninguém vem aqui.
– Eu vim – ele salientou e sorriu.
O maior e mais luminoso sorriso que Faith tinha visto em toda sua vida. Ela tentou decifrar a
intenção das palavras. Aquele homem não parecia ser perigoso, mas não poderia se fiar em sua
intuição ou na boa aparência do estrangeiro. Deveria haver estupradores e assassinos tão bonitos
quanto ele espalhados pelo mundo. Bom, não tinha chegado à conclusão alguma, mas não sentiu
medo. Sem retribuir o sorriso, pois seu rosto não respondia, apenas perguntou:
– E isso significa exatamente o quê? Que eu devo ter medo de você?
– Absolutamente – refutou ainda a sorrir, agravando sua paralisia. – Apenas salientei que, às
vezes, o quase acontece. E que, em vez de mim, outro com a índole não tão boa poderia tê-la visto
assim. Desprotegida e exposta.
Ao se calar o desconhecido indicou suas pernas com um gesto grandiloquente. Sentindo o rosto
corar, Faith se obrigou a parar de tremer e levantou. Ao fazê-lo confirmou suas deduções; ele era
mais alto que Mason. Seus olhos ficavam na altura do peito bem talhado, escondido sob a camiseta
branca. Um cordão se perdia pela gola, assim como alguns pelos escapavam pela mesma, na base do
pescoço.
Por um instante completamente insano, a moça desejou que a índole do desconhecido não fosse tão
boa quanto ele afirmava ser. Se ele a atacasse, ela não gritaria. Ao pensamento inédito e imprudente
seu rosto ardeu. Sentindo uma raiva súbita e infundada de si mesma, retrucou:
– Bom... Fique sabendo que venho nessa praia praticamente todos os dias. Todos daqui me
conhecem e me respeitam, assim como respeitam meu pai. Ninguém seria louco de me fazer algum
mal. – Enquanto falava, ela teve de manter a cabeça erguida. – E eu não estava exposta. Se um
homem não é capaz de ver um par de coxas sem pensar obscenidades isso não é problema meu.
– Está enganada... – ele disse sem se alterar. – Passa a ser problema seu quando o homem em
questão começar a desejar colocar tais obscenidades em prática.
Faith sentiu seu coração enregelar. Seria um recado? Seu discurso era válido para todos os
conhecidos, não para estranhos. Ao dar-se conta do fato, teve uma leve taquicardia. Não de medo,
sim de expectativa. Sem que pudesse evitar, seu olhar pousou na boca bem desenhada do homem à
sua frente. O sotaque italiano ainda brincava em sua mente quando retrucou mais uma vez:
– Sei me defender...
Faith realmente sabia. Seu irmão era fanático por lutas e lhe ensinou tudo que sabia sobre defesa
pessoal. Havia insistido com as irmãs para que aprendessem, mas apenas ela se interessou. Sempre
que Mason estava em casa, treinavam alguns golpes.
De repente, Faith se imaginou medindo forças com aquele homem. E novamente seu rosto corou.
Com certeza deixaria que ele vencesse. Quando ergueu os olhos, sobressaltou-se com a intensidade
que percebeu nos olhos azuis. Inconscientemente umedeceu os lábios e voltou a mirar a boca
máscula.
Podia sentir o formigamento nas solas dos pés, incitando-a para que erguesse o corpo, quando o
homem pigarreou e deu um passo atrás.
– Acredito que saiba – disse um tanto rouco. – E não quis aborrecê-la ou importuná-la. Scusami!
Sem mais palavras, deu-lhe as costas e se afastou a passos largos, correndo uma das mãos por seu
cabelo. Faith ainda abriu a boca para pedir que ficasse, mas voltou a fechá-la sem emitir som algum.
O que diria?
Pediria que ficasse? De preferência que fosse ele a ter os tais pensamentos obscenos? Louca era o
que era. Louca varrida, por desejar beijar ou ser atacada por um estranho. Loucura ou não, lamentou
o fato de que talvez nunca voltasse a vê-lo enquanto o observava correr em direção à trilha que
levava à cidade. Nem perguntou seu nome.
O italiano; esse seria seu codinome oficial sempre que se lembrasse daquele breve encontro.
Enquanto o via desaparecer de vista, Faith determinou que o usaria muitas vezes ainda, pois ele não
era o tipo de homem que fosse fácil de esquecer.
Em menos de cinco minutos, Faith tomou o mesmo caminho. Em seu íntimo pedia que o visse ainda
na rua principal quando passasse por ela à caminho de Wells. Se o italiano era realmente um turista
poderia ficar mais um pouco e conhecer a loja de iscas ou o mercado centenário do velho Baker. Se
acontecesse talvez o abordasse e se apresentasse. Poderia lhe oferecer carona...
– Claro! E, então, você acorda! – Faith bateu contra a própria testa. – Deixe de ser tonta garota!...
Era só um cara.
– Agora fala sozinha, Fay?
– Credo Tyler! – reagiu assustada à súbita aparição de seu amigo. Olhando-o com as sobrancelhas
unidas, falou rispidamente: – Não o ouvi se aproximar. Está me seguindo novamente, não está?
– A trilha é terreno livre – o rapaz retrucou dando de ombros.
– Livre uma ova! – resmungou antes de seguir seu caminho, afastando-se. – Já disse que não o
quero na minha cola o tempo todo. Largue do meu pé, Tyler Mills.
– Isso vale para todos os dias? – ele alteou a voz, pois não se moveu para acompanhá-la.
Faith não o respondeu. Tinham um acordo e invariavelmente Tyler não o cumpria, deixando-a
realmente irritada na maioria das vezes.
– Espero vê-lo somente amanhã, Ty! – ela disse sem olhar para trás. – Até lá... Se não tiver nada
para dizer, mantenha distância. – Antes de se calar a moça ouviu os passos dele atrás de si e se
recriminou. Evidente que o garoto não deixaria passar a deixa.
– Sabe que tenho algo a lhe dizer – ele a segurou pelo braço.
– Não precisa me tocar – advertiu, livrando-se com um puxão. – E se o que tem a dizer é o mesmo
de sempre, eu dispenso ouvir.
– Faith, até quando vai me tratar desse jeito?... Achei que gostasse de mim.
Ao ver a expressão sentida no rosto jovem do amigo seu coração de partiu. O rapaz era
inconveniente, mas a ajudava e não desejava machucá-lo. Na verdade, gostava dele. Não da forma
como Tyler almejava, mas gostava.
– Eu gosto, Ty... – disse num suspiro resignado. – Somos amigos desde que veio morar aqui, mas
você sabe que não vai passar disso. Então, por favor, não insista.
– A esperança é a última que morre! – Tyler se afastou e colocou as mãos nos bolsos da bermuda.
– Claro! – Faith revirou os olhos. – E enquanto ela agoniza vai matando nossa amizade. Vale a
pena?
– Não quero só sua amizade. Quero que volte a ser como era antes...
– Ai meu Deus! – ela lançou as mãos para o alto em sinal de derrota. Então se voltou para ele e
perguntou incrédula: – Que antes criatura?!
– Antes de crescermos... Éramos namorados, você esqueceu?
Faith sorriu desanimada. Aquele era o assunto de sempre. Não queria magoá-lo, mas ele não lhe
deixava alternativas.
– Não tem como esquecer o que nunca aconteceu. Isso que você chama de namoro era coisa de
criança... Nem sabíamos o que estávamos fazendo. Considerei aquela bolinação como... brincar de
médico. Você deveria fazer o mesmo e seguir sua vida.
– Criança curiosa é a porra! – ele retrucou irritando-se. – E aos onze ninguém é tão inocente. Se
brincamos de médico, com certeza você foi uma paciente bem desprendida.
Aquela foi a gota transbordante. Não ficaria com a gracinha entalada em sua garganta. Para ela,
nada do que fizeram foi sério. Apenas se tocaram intimamente duas vezes. Em uma delas tentaram se
beijar, mas Faith achou a coisa toda tão molhada e nojenta que o afastou de imediato. Nesse dia
quase foram descobertos por Spencer, pai de Tyler. Depois do susto, com medo de que o amigo
insistisse em depositar baba na sua boca, Faith acabou com as consultas.
Nunca mantiveram relações ou nada do tipo que justificasse aquelas palavras ou a obsessão.
Evidente que não eram tão inocentes, mas também não tinham total compreensão do que faziam. Para
ela foi mesmo brincadeira, por que Tyler não considerava o mesmo?
Irritada, determinou que se ele não entendia por bem entenderia por mal. Antes que a raiva se
estampasse em seu rosto, Faith ergueu uma sobrancelha e lhe sorriu maliciosamente.
– Eu era mesmo desprendida, não era? – perguntou lânguida, aproximando-se dele.
– Você ainda é! – Tyler afirmou, receoso. Faith alargou o sorriso.
– E você sempre foi um médico atencioso e prestativo.
A surpresa pela mudança súbita em seu humor ficou impressa no rosto de Tyler. O rapaz de
compleição forte ficou lívido, para no segundo seguinte corar violentamente. Satisfeita com a reação,
Faith se aproximou ainda mais, tocou-lhe o peito sobre a camiseta e sussurrou ao seu ouvido:
– Lembra-se dos exames clínicos?
– Se tivesse esquecido não estaria aqui – disse roucamente, após alguns segundos enquanto corria
as mãos pelos cabelos castanhos claros.
– Está certo... Você me venceu! E já que não esqueceu e está aqui, poderia verificar uma dorzinha
chata que senti enquanto nadava? Você deve ter visto que sai mancando da água, não foi?... Está me
observando desde então, não é?
– Você sabe que sim – ele admitiu ainda com a voz rouca. – Quase me aproximei para botar aquele
idiota para correr.
– Era só um turista... E hoje é seu dia de folga, relaxe! – ela pediu correndo a ponta do dedo em
círculos no peito forte antes de se afastar e levantar a perna juntamente com a barra do vestido até o
alto da coxa. – E então... Vai examinar ou não? Sabe que preciso estar em forma para amanhã.
Faith pensou que o amigo recuaria, pois permaneceu encarando-a sem nada dizer. Contudo, Tyler
baixou os olhos castanhos para a perna roliça antes de se abaixar diante da moça, colocando um
joelho no chão e permanecendo com o outro erguido para que ela pousasse o pé sobre ele.
Reprimindo um sorriso, Faith fez como esperado. E deliciada, viu a expressão quase devota com que
Tyler olhava para seu pé descalço e sujo de areia.
– É aqui que dói? – Tyler perguntou tocando seu tornozelo delicadamente.
– Começou aí, mas a dor subiu... – ela se lamuriou, erguendo o vestido ainda mais, deixando toda
coxa exposta diante dos olhos famintos do rapaz. Depois de indicar o limite da perna com sua
virilha, concluiu: – E se instalou bem aqui.
Tyler prendeu a respiração e olhou em volta, certificando-se de que ninguém os observava. Então
voltou a atenção para a perna da moça. Sem desviar o olhar, começou a subir a mão grande e morna
pela pele macia. Naquela manhã o toque dele lhe era indiferente; nem bom nem ruim. Como todos os
outros que a tocavam.
Justamente por isso não poderiam namorar. Gostava de Tyler, mas salvo raras exceções como
aquela, seus toques a irritavam. Não faria experiências com o rapaz assim como nunca entraria num
relacionamento sério onde não sentisse desejo ou derretesse nas mãos de seu parceiro.
Não acreditava que tal ligação viesse com o tempo. Ou acontecia desde o início ou nada feito. Seu
amigo – e leão de chácara – tinha de entender de uma vez por todas que eles jamais ficariam juntos.
Para ajudá-lo na compreensão, Faith deixou que ele subisse a mão até o meio no interior de sua
coxa. Ao perceber o total envolvimento de Tyler, ela moveu a perna e o empurrou de costas,
chutando-o com a sola do pé bem no meio do peito. Pego de surpresa, o rapaz caiu de mau jeito e não
se moveu um milímetro, vendo-a avançar e ameaçar pisar entre suas pernas, parando o pé numa
distância mínima antes de machucá-lo.
– Da próxima vez eu faço – ela ciciou enraivecida. – Juro que faço, Tyler!... Esmago ssuas bolas
de um jeito que você vai falar fino por dias se ousar comentar novamente aquelas idiotices que
fizemos no seu quarto. Cresça garoto! Arrume uma namorada e me esqueça.
– Não quero outra – Tyler anunciou ainda no chão.
– Não é problema meu – Faith retrucou, afastando-se. – E não venha atrás de mim. Pensando bem,
não venha nem hoje e nem nunca. Acho que será melhor para nós dois.
Sem esperar resposta, a moça seguiu seu caminho. Não olhou para trás, não sabia se Tyler a
acompanhava de longe, mas tinha uma vaga impressão de que sim. Certas coisas eram imutáveis;
assim como a lua girava em torno da terra ou sempre existiriam ocasos e pores do sol, Tyler sempre
a perseguiria.
E aquela não era a primeira briga que eles tinham, então ele não a obedeceria. Talvez fosse a
culpada por toda aquela situação. Quando a paixonite do Tyler ficou clara, Faith deveria ter dado um
basta na amizade, assim como não deveria ter aceitado que ele lhe ajudasse nas noites de quinta-
feira. Não era saudável que ele a visse daquela maneira. Agora, paciência!
Depois de dez minutos de trilha, chegou a casa de seus pais. Faith amava aquele lugar. A
construção era antiga; de madeira como todas as outras da região. O que a destacava era que seu
quintal praticamente terminava na areia da segunda praia de Sin Bay. Do quarto que dividia com a
irmã, Faith tinha uma bela vista para o mar. A varanda era sem dúvida seu local preferido da casa. A
moça poderia ficar por horas ali; lendo, desenhando, montando aulas ou simplesmente fazendo nada.
Aquela parte da casa era mais apreciada que seu atelier – um quartinho adaptado no andar inferior.
Foi para ela que Faith se dirigiu ao chegar. Não queria passar por sua mãe, pois seus cabelos
ainda não estavam totalmente secos. Enquanto firmava os pés na grade de madeira que sempre usava
para escalar até a parte da varanda que levava até seu quarto, ela se lembrou do motivo de não estar
seca. O italiano lhe tirara a paciência e depois Tyler. Não, pensou ao chegar à varanda, estava sendo
injusta: Tyler a tirou do sério. O estranho a deixou inquieta. Como acontecia naquele instante que
recordava os olhos azuis, o sotaque.
– Perdonami... – repetiu tentando reproduzir o som musical. – Scusami...
– Essa é nova! – ela ouviu a voz de Nicole. – Agora fala sozinha em outros idiomas?
– E desde quando é da conta de alguém se falo ou não sozinha? – Faith entrou no quarto com a cara
amarrada.
– Calma, maninha – pediu a irmã mais velha, que sentada diante da penteadeira, assistia sua
entrada através do espelho enquanto escovava os cabelos tão longos e escuros quanto os seus. Assim
que Faith parou próximo a ela, Nicole depositou a escova na bancada e se voltou com um sorriso nos
lábios.
– Não fique brava... Só achei engraçado.
– Ah... Está bem! – a moça exclamou retirando o vestido antes de ir para o banheiro. – Desculpe
meu mau humor. Já não era para estar na lanchonete?
– Grace pediu que hoje eu fosse mais tarde – Nicole explicou rapidamente, então perguntou
enquanto a seguia: – O que houve? Hoje o passeio não foi bom?
– Até que foi... – quando conheceu o italiano, Faith pensou. Depois de se despir e entrar no Box,
suspirou e concluiu: – Só que Ty apareceu.
– Está explicado! – Nicole revirou os olhos. – Nem vou repetir o que penso sobre isso.
– Eu agradeceria – Faith retrucou começando a lavar o cabelo. – Poupe-me de sua psicologia
barata.
– Vou poupar... Desisti de tentar entender essa relação doentia entre vocês dois... Além do mais,
tenho algo para contar.
– E o que seria? – ela perguntou pouco interessada, ignorando o comentário enquanto enxaguava os
fios; não havia relação alguma.
– Temos novidade na cidade. – Nicole respondeu animada, levando sua irmã a suspirar exasperada
enquanto se ensaboava. Após breve silêncio Faith debochou.
– Deixe-me adivinhar... O gato da senhora Stanley morreu? O senhor Brown não teve outra crise
de asma? Ah, não... Espere, espere... Billy está fazendo liquidação das poucas iscas que vende para
fazer concorrência ao Samuel?
– Rá-rá! – a irmã riu forçadamente, então falou ainda animada: – Nada disso! Você jamais
adivinharia.
Nicole segurou a toalha a espera de que a irmã finalizasse o banho para entregá-la. Um tanto
curiosa, Faith retirou a espuma de seu corpo e deixou o Box. Depois de se enrolar na toalha
estendida pela irmã, perguntou:
– Certo, eu não vou adivinhar, então conte qual é a grande novidade?
– Foi a Sra. Scott quem contou. Enviaram um novo padre para nós... Ele chegou essa manhã.
Tudo que Faith ouviu foi “enviaram mais um comedor de hóstia, bebedor de vinho, gordo e
bonachão”. Nada contra o eclesiástico, era realmente uma novidade onde nada acontecia, mas não
via qual motivo para entusiasmo. Era evidente que a diocese mandaria outro para assumir o lugar do
falecido padre Lewis. Demoraram na verdade. A pequena capela que os cidadãos de Sin Bay
pomposamente chamavam de igreja estava fechada há mais de dois meses.
– Jura que esse entusiasmo todo é por causa de um padre? – perguntou incrédula. Ao chegar ao
quarto se secou e, nua, foi escolher a roupa que usaria.
– Achei legal... Estava sentido falta das missas aos domingos – respondeu, dando de ombros.
Depois de se sentar em sua cama perguntou: – Quando você se tornou assim tão despudorada? A
porta da varanda está aberta.
– E daí? – Faith deu de ombros já vestindo a calcinha. – Não tem ninguém lá fora. E não mude de
assunto... Sei bem o nome dessa sua falta de missa.
– Não sei do que você está falando nem tenho tempo para descobrir – a irmã retrucou subitamente
irritada e apressada. – Tenho de correr. Estou muito, muito atrasada.
– Nick...
– Tchau, Faith!
Faith ainda permaneceu olhando em direção à porta após a saída intempestiva de Nicole. Não
deveria ter feito alusão a Peter. Fora um comentário infeliz, pois sabia o quanto a irmã sofria por ele.
Bom, o que estava dito, estava dito. Não tinha como voltar atrás então mais uma vez a moça deu de
ombros.
Antes de voltar a se vestir, olhou para a varanda. Esquecida da irmã, aproximou-se da porta e
olhou para além do limite das árvores que faziam divisa com a praia. Se seu eterno perseguidor
tivesse lhe desobedecido e estivesse ali, teria uma bela visão. Porém nada além do que ele via todas
as semanas. Com um sorriso sardônico, Faith fechou as cortinas da porta e terminou de se arrumar.
Talvez Nicole tivesse razão. Havia, sim, uma relação doentia entre ela e Tyler, pois seu momento
de irritação, como sempre, já tinha passado. E o que poderia fazer se era divertido perturbar o
pirralho?
Criar vergonha na cara e parar de fazê-lo, essa era sua resposta. De repente o rosto do
desconhecido lhe veio à mente. Com certeza não provocaria um homem como ele da mesma maneira.
A idade do estrangeiro poderia ser indefinida, mas seu rosto carregava as marcas de um homem
vivido. Não era como Tyler que aos 18 anos, mesmo sendo alto e musculoso, ainda trazia nas feições
traços juvenis.
Não, não provocaria o italiano; pensou. Mas bem que gostaria, a moça concluiu sonhadoramente.
Porém, como de sonhos não se vive, era melhor descer da nuvem e cuidar de sua vida. Pronta, Faith
juntou suas pastas de desenho e desceu.
Perdeu muito tempo naquela manhã e logo seria hora de ir para galeria de artes. Uma vez que não
concluíra a faculdade de contabilidade como seu pai desejava, era preciso ganhar a vida. Por
enquanto estava sendo divertido ensinar as crianças abastadas de Wells como lambuzar uma tela ou
transformar simples riscos em desenhos criativos, numa das salas da Arte & Estilo. Depois veria que
rumo daria à sua vida.
Ao entrar apressadamente na cozinha, sua mãe que finalizava o almoço olhou-a com censura.
– Saiu apressada e sem tomar café... E não pense que não a vi chegar, mocinha. O que lhe disse
sobre esses seus passeios e sobre nadar com roupas inadequadas?
– Não vai se repetir. – Foi a resposta vaga e ensaiada para as broncas leves como aquela. Faith
indicou o que Constance fazia para mudar de assunto: – Já posso me servir?
– Em um minuto – Constance anunciou, indo até o fogão para verificar a comida que fervia em suas
panelas. Depois de desligar o fogo, recostando-se na pia, cruzou os braços e disse, apaziguadora: –
Sinceramente não quero ser chata, Faith. Nem repetitiva, mas seu pai e seu irmão não estão aqui.
Somos somente nós três até semana que vem e não acho prudente você andar por aí sozinha e o que é
pior... Nadar seminua numa praia deserta.
Faith se enganara; não seria a bronca breve. Por um momento imaginou como a mãe reagiria se
soubesse que fazia algo realmente pior do que nadar seminua. Talvez tivesse uma síncope ao
descobrir que sua caçulinha não era tão inocente ou desprotegida como acreditava. Mirando o rosto
sério e mesmo assim amoroso, considerou ser melhor que Constance nunca descobrisse. Então
recorreu à resposta precisa e também ensaiada.
– Desculpe-me, mamãe. Não era mesmo minha intenção desobedecê-la, mas o mar estava tão
bonito... Tão calmo... Não resisti. Mas eu me certifiquei que não havia ninguém por perto e não me
demorei.
Faith arrematou o pedido de desculpas com um sorriso incerto em um rosto levemente culpado.
Constance lhe sorriu de volta e se aproximou para beijar-lhe o rosto.
– Está bem... Sei como gosta daquela praia... Apenas tome cuidado.
Faith não respondeu. Munindo-se de prato e talheres, foi até as panelas. Serviu-se e voltou à mesa.
Começou a comer imediatamente após presentear a mãe com mais um de seus sorrisos. Enquanto
devorava um naco do bife ouviu Constance dizer:
– Nicole já deve ter lhe dito que temos novidades.
– Sim, ela disse – respondeu tapando a boca, pois estava cheia.
– Bem... Seu pai não está, mas ainda assim estive pensando em convidar o novo padre para jantar
aqui amanhã.
– Por que isso? – Faith perguntou depois de mastigar e engolir seu bocado.
– Como, por quê?... Elliot é o líder comunitário. Nada mais natural que sua família, na ausência
dele, dê as boas vindas ao novo padre.
– Por que não dá as boas vindas hoje? Sabe que amanhã tenho compromisso. – Agora Faith tinha
algo contra o eclesiástico. Nem bem chegara e já se intrometia em sua vida.
– Não teria tempo para providenciar um jantar assim, em cima da hora. E hoje, ele com certeza
ainda se encontra cansado da viajem. Amanhã será perfeito. Você pode faltar em seu compromisso...
Não acho que vá fazer tanta diferença assim se perder uma noite em seu curso dança. Aliás... Quando
termina? Há quanto tempo mesmo você o frequenta?
– Seis meses – respondeu sem gostar do rumo da conversa. Definitivamente agora odiava o novo
padre. Aquela ideia estapafúrdia de sua mãe tinha colocado os holofotes sobre si e tudo por causa do
comedor de hóstia.
– É... – a mãe exclamou por fim. – Não gosto que chegue tarde todas as quintas, mas não é tanto
tempo assim. Enfim... Como disse, não fará diferença se não for amanhã. Quero-a em casa depois que
terminar sua aula.
– Estarei aqui. Agora me deixe ir... Já estou atrasada. – Perdera completamente o apetite.
Faith saiu sob os protestos da mãe por deixar o prato ainda cheio. Odiava. Odiava. Odiava o novo
padre. Assim que colocou a pick-up de seu pai em movimento, Faith liberou toda sorte de palavrões
que conseguiu se lembrar. Aquele padre filho de uma boa puta poderia receber as boas vindas em sua
casa ou no inferno, mas teria de fazê-lo sem sua companhia. Não estaria naquele jantar nem que lhe
pagassem o dobro, o triplo, do que costumava ganhar em sua aula de dança.
Capítulo Três

– Por onde andou? – Carlo perguntou em italiano, deixando sobre a cama as camisas pretas que
segurava quando Jonathan o encontrou no quarto que daquele dia em diante seria seu.
Como sempre o padrinho se ocupava com obrigações que lhe cabiam. Estava agora desfazendo
suas malas, tarefa que deveria ter sido sua prioridade tão logo visitasse a igreja. Era o que deveria
ter feito, ficado em casa, cuidando de seus afazeres.
Depois de expirar profundamente, Jonathan foi se sentar em sua nova cama, dizendo a verdade:
– Desculpe-me padrinho, mas não tinha como saber que moraria ao lado de uma praia e não
aproveitar para conhecê-la.
– Podia ao menos ter avisado que demoraria quando me deixou com a Sra. Williams. Sabe que não
domino bem o idioma. Quase tive que recorrer à mímica para pedir que me deixasse só. E também
não teria sido de todo mal conhecer primeiro a igreja que administrará a partir de hoje.
Jonathan reconheceu a repreensão velada no comentário óbvio. Não gostava que seu padrinho lhe
chamasse a atenção como se ainda tivesse oito anos de idade, porém daquela vez – como na maioria
das vezes – teve de reconhecer que ele estava certo. Contudo, para ele, antes de uma necessidade,
correr era uma forma de entrar em comunhão com seu Criador. E também precisava daquele tempo
sozinho para liberar todas as suas tensões.
– Desculpe-me – repetiu, abrangendo seu entorno. – Estava apenas ansioso com tudo isso.
– Entendo como deve estar se sentindo... Assim como deveria ter adivinhado que você não voltaria
logo de uma corrida. Depois que arrumarmos tudo, poderemos ir até a igreja, o que me diz?
– Digo que seria ótimo. Ainda não vou reabri-la, mas podemos conhecê-la.
– Perfeito! – Voltando a guardar as camisas, Carlo perguntou: – E então?... Foi bom, o passeio?
– Foi, sim, senhor... Apenas me exercitei – Jonathan respondeu evasivo antes de levantar. – Vou
tomar banho e já venho ajudá-lo na arrumação.
Sem esperar por resposta pegou a primeira toalha que avistou, roupas limpas e saiu à procura do
banheiro. Encontrou-o no final do corredor. Como todos os outros cômodos da casa, era pequeno,
estava limpo e pronto para o uso.
Já sob os pingos fracos e frios do chuveiro, Jonathan se ensaboou. Não tinha luxos, mas não se
agradou do odor do sabonete. Providenciaria outro quando fossem abastecer a dispensa...
De súbito Jonathan riu sem nenhum divertimento. A quem tentava enganar ao fazer listas mentais?
Por mais que tenha tentado bloquear a imagem da moça da praia, ela insistia em revisitar sua mente.
Para sua consternação, naquele instante ela estava presente mais do que quando se dirigia de volta à
nova morada. Não fora bom negócio ter cedido à curiosidade.
Enquanto corria, desligado de tudo à sua volta, chegou a acreditar que estaria sozinho na praia dita
deserta. Portanto ver a moça sentada sobre a pedra chamou sua atenção, mas não interromperia a
corrida nem mesmo para breves cumprimentos. Contudo, a imagem da figura solitária instalou-se e o
acompanhou pelo restante do percurso. Rendido, deu meia-volta. Qual não foi sua surpresa ao ver de
longe que ela estava estendida sobre a pedra. Naquele instante verdadeiramente se preocupou, afinal
também era seu dever zelar pela saúde de todos.
Porém, ao se acercar dela, sua preocupação de súbito se esvaiu. A moça solitária lhe pareceu
diáfana e etérea, como uma visão. Um anjo desprovido de asas em seu repouso. Todavia, o vestido
tom de pele moldava-se ao corpo feminino como uma segunda camada e roubava toda inocência da
cena. O tecido fino e úmido revelava com riqueza de detalhes as formas bem desenhadas. Nem
mesmo o rosto delicado ou os cabelos longos que se espalhavam pela lateral da pedra como uma
cascata de fios castanhos muito escuros devolviam-lhe a pureza...
Ela era um anjo de perdição!
Não era a moça mais bonita que ele já vira, mas algo a tornava diferente. Talvez a ambiguidade.
Mesmo que fosse a tormenta anunciada, inspirava proteção pela aparente fragilidade e abandono. Seu
senso cívico lhe disse para verificar se ela estava bem, mas a visão das pernas expostas o travou.
Era padre, não santo nem cego.
Já vira mulheres nuas antes nas revistas contrabandeadas por um ou outro seminarista – e também a
de seu sonho recorrente. Contudo, aquela era a primeira vez que verdadeiramente tinha um par de
coxas desnudas tão próximas. Prosseguindo sua inspeção, subiu o olhar pelo corpo estendido,
detendo-se nos seios. Estavam devidamente cobertos, mas os bicos despertos pareciam se sobrepujar
ao vestido e tiveram o poder de incitar sua imaginação.
Naquele instante, assim como quando esteve diante dela, foi relativamente fácil imaginá-la livre de
todos aqueles panos. Sem que Jonathan pudesse conter aconteceu o que valentemente tentou evitar na
praia e em todo caminho de volta ao bloquear a moça em sua cabeça. Seu corpo voluntarioso,
ignorante ao que ditava sua doutrina, tomou-se de lascívia. Nem mesmo a água fria sobre suas costas
acalmou a súbita queimação que o consumia.
Como pensara na praia, não era santo e nem tinha a pretensão de se comparar a um, mas era seu
dever renegar os prazeres da carne e ser fiel aos seus votos. Então, foi com o coração oprimido e a
mente tomada pela culpa, que Jonathan sentiu aquela parte excedente de seu corpo, ganhar vida e se
erguer de forma degradante. Aquele pulsar torturante nunca o perturbara longe de seu leito, apartado
dos sonhos infernais.
Não desejava se livrar do incômodo e conspurcar-se, pecando por ação ou pensamento em seu
primeiro dia na paróquia. Era inerente às suas funções que fosse forte e expulsasse em definitivo
aquelas imagens do corpo real e exposto que passeavam matreiramente por todas as partes de sua
cabeça. Ainda com os olhos fechados, Jonathan pediu em silêncio e com fervor, que aquela porção
emancipada de seu corpo voltasse ao repouso voluntariamente; se possível, em definitivo.
Seu rogar obstinado começava a surtir efeito, quando suas preces foram interrompidas por Carlo
que bateu à porta.
– Johnny! Você está bem?
– Estou. Saio em um minuto – respondeu apressadamente após pigarrear.
– Não demore. Tem uma senhora aqui que deseja falar-lhe.
– Serei breve – assegurou.
Quando teve certeza que seu padrinho se fora e que não entraria sem prévio aviso, Jonathan voltou
a respirar; porém com certa dificuldade. Aquele era claramente um sinal. Seu eterno tutor fora àquela
porta pela providência divina para mostrá-lo que estava no caminho certo. Situações como aquela
não deveriam se repetir, afinal não era um adolescente hormonal.
Irritava-se com os olhares cobiçosos que as mulheres lhe lançavam, mas nunca parou para pensar
na situação contrária. Jamais olhou para nenhuma delas senão como a uma irmã; sem interesse. Agora
via que seria preciso se policiar, pois morava em uma cidade litorânea. Se seu corpo reagisse a
todas as mulheres que visse em trajes sumários estaria perdido. Ao pensamento, irritado consigo
mesmo, Jonathan ignorou definitivamente o resquício de excitação e finalizou o banho.
Minutos depois, refeito do breve momento de provação e devidamente vestido em suas habituais
calças e camisa pretas, Jonathan seguiu para a sala. O som da voz feminina se misturava à de seu
padrinho. Quando se aproximou, ouviu a explicação preocupada:
– Eu a entendo, mas acho que não me expresso bem em Inglês... – então se desculpou em italiano.
– Imagine... Estou entendendo perfeitamente bem, Sr. De Ciello – afirmou a senhora ainda jovem,
sentada no pequeno sofá da sala. Assim que o viram, os dois se levantaram para recebê-lo. Sem se
ater a etiqueta, seu tio falou novamente em sua própria língua.
– Jonathan, essa é a Sra. Green. O marido é uma espécie de líder comunitário da vila e ela veio,
gentilmente, nos convidar para um jantar amanhã na casa dela.
Aquilo foi o que Carlo disse, mas Jonathan o conhecia a tempo suficiente para entender a
mensagem oculta: não aceite! Apenas lhe sorriu e, depois de agradecer a explicação, voltou-se para a
senhora com a mão estendida.
– Prazer em conhecê-la, Sra. Green.
– Sua bênção, padre – ela pediu se curvando, mas sem beijar sua mão. Ao endireitar o corpo,
afirmou enlevada. – O prazer é todo meu. Seja bem-vindo à nossa cidade!
– Obrigado! – Jonathan respondeu, indicando o sofá para que ela novamente se sentasse. – Então
veio nos fazer um convite? – Somente quando se sentou ao seu lado e se calou Jonathan percebeu que
a mulher o olhava com curiosidade. Franzindo o cenho, perguntou: – Algum problema, senhora?
– Perdoe-me!... – pediu visivelmente envergonhada. – É que o senhor é tão novo. Estava tentando
adivinhar quantos anos teria.
– Não era preciso adivinhar – Jonathan lhe sorriu complacente –, bastava perguntar-me. Tenho
vinte e seis anos.
– Realmente é novo. Tenho um filho dessa mesma idade, Mason. Ele está com meu marido em alto
mar. Voltam na semana que vem... – ela se interrompeu incerta, então concluiu: – Esse é o motivo de
minha visita. Elliot é o líder comunitário e se estivesse aqui iria desejar que o senhor recebesse as
boas vindas. Então, mesmo em sua ausência, gostaria de convidá-lo, juntamente com seu...
– Tio – Jonathan completou, ajudando-a.
– Isso... Seu tio. Para jantarem em minha casa amanhã à noite.
Jonathan não se furtou a um rápido olhar para Carlo. Este acenava negativamente com a cabeça de
forma disfarçada. Erguendo uma sobrancelha, Jonathan se voltou para a senhora e lhe sorriu.
– Nós adoraríamos. A que horas devemos estar em sua casa?
– O senhor escolhe a hora. Não quero atrapalhá-lo em nada.
– Então vamos deixar marcado para às sete, está bem assim?
– Está perfeito! – ela concordou com um sorriso. Subitamente seu rosto lhe pareceu familiar,
contudo Jonathan não soube determinar onde a tinha visto antes.
– Bom... – indicando o fim de sua visita, Constance se levantou. – Não quero tomar seu tempo.
Acredito que tenha muita coisa a fazer aqui. A igreja está fechada há mais de dois meses.
– Fui informado – ele afirmou, imitando-a. Ao ficar de pé diante dela, novamente teve a
impressão que já a conhecia. Porém logo afastou a impressão. Não tinha como conhecê-la de lugar
algum.
– Se precisar de qualquer ajuda é só avisar. Costumávamos fazer o mesmo pelo antigo padre. Que
Deus o tenha!
– Amém! – Jonathan repetiu automaticamente. – Se precisar de algo aviso amanhã em sua casa. Por
falar nisso, onde mora?
– Ah... Venha cá, por favor. – A esposa do líder comunitário pediu tomando sua mão sem
cerimônia para levá-lo , de onde apontou à esquerda. – Está vendo aquela casa de madeira?
– Qual delas? – Contendo um riso divertido, Jonathan comentou o óbvio: – Todas são de madeira.
– É verdade... – Ela lhe sorriu. – Deixe-me facilitar. Está vendo o telhado de um sobrado, além
das casas da praça?
Imediatamente Jonathan o viu. Da porta onde estavam se podia ver o telhado claro de um sobrado
distante. Pelos cálculos de Jonathan ele ficava próximo à praia.
– Sim... Eu o vejo.
– Pois é lá que moramos. Na última rua antes da praia. Nosso quintal é praticamente na areia... Se
seguir por aquela rua ali – indicou sempre apontando. – O senhor chegará nela em menos de dez
minutos de caminhada.
– Então está combinado – Jonathan afirmou após um pigarro. Lembrava-se daquela casa, pois
passou diante dela antes de pegar a trilha que o levou até à praia; até a moça da pedra. – Amanhã às
sete estaremos lá, não é padrinho?
– Sim. – Foi tudo que Carlo murmurou, lacônico.
– Que bom!... Então, até amanhã.
– Até... – após as despedidas, Jonathan fechou a posta e se voltou para Carlo.
– Por que teve de aceitar? – este indagou.
– Por que não aceitar um convite tão gentil? – o sobrinho rebateu. – Precisamos mesmo começar a
conhecer as pessoas com as quais iremos conviver a partir de hoje. Não sei o senhor, mas eu sinto
falta de uma boa comida caseira.
De onde veio aquilo afinal? O que ele se lembrava de comidas caseiras? Todas as suas lembranças
referentes à comida se resumiam a todas as refeições que fez no seminário onde passou os últimos
sete anos de sua vida. Não era verdade! Ele se lembra de quando era criança. Lembra-se de sua mãe
com os cabelos loiros presos num coque, o avental branco sobre o vestido, preparando bolos e
tortas, assim com as massas e os pães. Os panetones no Natal. Com certeza foi a isso que se referiu
tão prontamente.
Quando ergueu os olhos, encontrou o padrinho encarando-o, apreensivamente. Talvez, como ele,
Carlo estivesse à espera que dados sepultados em sua memória estivessem ressuscitando.
Infelizmente não era o caso. Por mais que tenha feito o comentário espontaneamente, não se lembrava
de nada entre sua infância e o presente momento; como sempre. Seu padrinho sabia como a falta de
lembranças o afetava então Jonathan lhe sorriu para tranquilizá-lo.
– Acho que essa veio do que me lembro... Nunca atinei, mas sinto falta da comida de minha mãe.
– Johnny, não...
– Está tudo bem... Não vou entrar em luto novamente. Talvez eu devesse ser agradecido, por não
guardar nenhum detalhe do que perdi. Talvez, mesmo as lembranças felizes fossem dolorosas, não é
mesmo?
– Não sei se é o caso de agradecer – Carlo se aproximou para abraçá-lo pelos ombros com um
dos braços. – Mas acredito que seja melhor assim. Sabe o que penso. Não deve se forçar a nada... Se
um dia tiver de lembrar, acontecerá.
– O senhor está certo. – Aproveitando que o padrinho estava perto, encarou-o e refez a pergunta: –
Agora é sério, por que não queria que eu aceitasse o convite?
– Bobagem minha. – Carlo se afastou e passou as mãos pelos cabelos. – É que acabamos de
chegar... Achei que teríamos tempo até que esses eventos sociais começassem.
O padre analisou seu tio. A explicação fora fraca e para piorar, ainda tinha todo o comportamento
estranho de antes da viagem, mas não iria pressioná-lo. Conhecia o padrinho há tempo suficiente para
saber que se ele tinha algum motivo para ser antissocial, não lhe diria.
– Ainda bem que é só isso. Não vá ficar com cara de poucos amigos em meu primeiro jantar de
boas-vindas como padre ordenado.
De súbito Carlo lhe sorriu, orgulhoso.
– E esse talvez seja o primeiro de muitos. Tenho certeza de que fará um bom trabalho aqui. Todos
gostarão de você.
– Assim seja! – retrucou Jonathan esperançoso. Até onde sabia, aquela sempre foi a vida que quis
para si. Agora que começou a vivê-la, tudo deveria sair a contento. – Bem, chega de conversa. É
quase meio dia e eu realmente gostaria de ver a igreja. Vamos agora?
Depois de assentir, Carlo se adiantou para pegar as chaves. Em silêncio, o tio o conduziu até a
igreja por um corredor de ligação entre as duas construções. A sacristia e o salão apresentavam um
leve odor de mofo, mas nada que as janelas abertas com maior frequência não resolvessem.
Sem dar muita atenção a sua volta, Jonathan foi abrir a porta principal. Para sua surpresa algumas
pessoas se encontravam diante dela. A primeira a se dirigir a ele foi uma mulher rondando os
quarenta anos de idade, cabelos castanhos claros muito curtos, vestida em um uniforme lilás.
– Bom dia, senhor.
– Bom dia – disse Jonathan, acenando para todos, então voltou a olhar a mulher que lhe estendia a
mão.
– Sou Grace Campbell.
– Prazer em conhecer, senhora.
– Senhorita – ela corrigiu rapidamente. – Mas pode me chamar de Grace.
– Senhorita – Jonathan repetiu respeitosamente
– Sou a dona da Blue Moon. Aquela lanchonete ali no final da praça – ela indicou a construção à
qual se referia depois de sorrir. – Desculpe a intromissão, mas, onde pretendem almoçar?
– Ainda não tinha pensado nisso, Grace. – Ao notar que ela olhava na direção de seu padrinho,
reviu sua falta: – Deixe-me apresentá-la. Esse é Carlo De Ciello. – Depois que os dois apertaram-se
as mãos silenciosamente, Jonathan concluiu: – Não repare ele ser de poucas palavras.
– Sem problemas. Agora... Deixe-me apresentar... – Antes que respondesse, Grace chamou um a
um dos que estavam na porta da igreja e os apresentou. Com certeza Jonathan decoraria os nomes
algum dia, mas naquele momento foi impossível. Apenas apertou todas as mãos educadamente e
abençoou à todos que pediram. Depois das apresentações iniciais Grace voltou a dizer: – Acredito
que ainda não tenham nada em casa, pois fomos pegos de surpresa... Se soubéssemos de sua chegada,
teríamos providenciado tudo. Então... Acho que seria ideal se eu mandasse algo de minha lanchonete.
Por conta da casa.
– Sendo assim, obrigado desde já. É muita atenção de sua parte.
– Não por isso. Vou pedir para Nicole trazer o almoço completo.
– Obrigado mais uma vez – disse polidamente.
– Disponha – Grace respondeu e se afastou. Alguns dos curiosos seguiram-lhe o exemplo, outros
esperaram por sua dispensa. Depois que foram embora Carlo indagou:
– Então desistiu definitivamente do jejum?
– Posso começar um no sábado pela manhã. – Talvez devesse mesmo fazê-lo, pensou ao se lembrar
da moça da praia.
– Nada disso! Já disse que não vai fazer jejum fora de hora em minha presença. Não o quero
doente, nem nada parecido. Olhe à sua volta. Temos muito que fazer aqui.
Como sugerido, olhou em volta. Realmente a pequena igreja precisaria e reformas. As evidentes
eram o verniz nos bancos e pintura das paredes. Desanimado, Jonathan constatou que se as paredes
estavam naquele estado, o telhado provavelmente precisaria de telhas novas. Seguindo até o altar
mor, verificou aliviado que pelo menos naquele trecho não precisaria mais que a limpeza habitual.
Realmente não teria tempo para comiserações. Também não desejava cair doente antes mesmo de
começar suas atividades presbiterianas.
– Está certo... Nada de jejum antes da hora.
Carlo pareceu ficar satisfeito e ver o padrinho contente também lhe alegrava. Sorrindo-lhe,
começou a enumerar todos os reparos que teriam que fazer na igrejinha. Fizeram uma pausa ao
ouvirem alguém chamar timidamente da porta.
– Entre – disse Jonathan. A moça vestida com um uniforme semelhante ao da dona da lanchonete,
aproximou-se a explicar:
– Vim trazer o almoço a pedido de Grace.
– Então você deve ser Nicole, estou certo?
– Sim, senhor – disse lhe entregando as sacolas com as embalagens. – Soube que já conheceu
minha mãe. Constance Green.
– Ah, sim... Irei até sua casa amanhã.
– Isso... Papai não está, mas mamãe fez questão de convidá-lo. Bom... Se ela não chamar mais
alguém seremos somente nós duas e Fay.
– Fay?
– Minha irmã caçula.
– Ah... – exclamou e assentiu; perguntara por puro reflexo, pois o nome nada lhe dizia.
– Bom... – ela começou, indicando a saída. – Vim somente entregar a comida.
– Transmita à Grace meu agradecimento.
– O farei.
Então se foi. Enquanto ela seguia em direção à porta Jonathan teve a mesma impressão de antes,
conhecia-a de algum lugar. Ficou intrigado por um momento, mas não pôde pensar muito a respeito,
pois, ao ver as portas abertas, alguns moradores se animaram a entrar e a puxar conversa. Com sua
visão periférica, Jonathan viu quando o padrinho sumiu em direção à porta que só poderia ser da
sacristia.
Sempre dissociável! Jonathan pensou com um sorriso condescendente.
As horas passaram corridas com o entra e sai na igrejinha. Jonathan se sentia cada vez mais a
vontade no tratamento de todos. Agora acreditava que nem tão cedo decoraria os nomes dos
moradores, mas não se incomodava com isso. O importante era que a comunidade se mostrou
receptiva a sua chegada, mesmo que estranhamente não tivessem conhecimento dela. Fosse como
fosse, o pároco se sentiu acolhido por todos. Como havia reparado antes, a maioria das pessoas que
o procurou eram mulheres.
Após um comentário seu, soube que essa superioridade feminina se dava em dias de atividade. A
comunidade era pesqueira, então boa parte dos homens da cidade estava em alto mar, como o marido
da Sra. Green. Ele deveria ter inferido, mas estava realmente ansioso com toda a novidade para fazer
associações óbvias. Ainda sobre a descoberta, imaginou como a cidade deveria ser movimentada
quando todos seus moradores estavam presentes. Sua primeira missa prometia ter pouca audiência,
mas em duas semanas previa que a pequena igreja estaria lotada.
Às sete horas daquele primeiro dia, Jonathan se encontrava exausto já que seu padrinho o deixou
sozinho para receber todos. Carlo reapareceu quando o salão da igreja estava vazio. Aproximou-se
com um caderno de notas onde colocou cada reparo que precisava ser feito. Juntos marcaram os mais
urgentes e tentaram achar soluções práticas. Resolveram que esperariam a primeira missa, assim
teriam uma ideia de quanto dinheiro arrecadariam, quando então fariam uma espécie de fundo de
obras.
Jonathan se mostrou disposto a usar parte de sua renda pessoal para ajudar na reforma. Ao
expressar seu desejo, Carlo se mostrou totalmente contra. Alertou-o para que não começasse a
confundir as responsabilidades. Se fosse gastar seu dinheiro nas obras da igreja logo seria o único a
mantê-la.
Jonathan não retrucou, pois achou a preocupação válida, porém não descartou a hipótese de
contribuir particularmente. Tinha dinheiro. Não o usava para nada, então que mal teria gastá-lo onde
era preciso? Sua mãe gostaria que usasse o que lhe deixou dessa maneira. Afinal, não era o próprio
tio que sempre lhe dizia o quanto Norah se orgulhava sempre que ele, ainda criança, lhe dizia desejar
seguir a vida eclesiástica?
Jonathan não fizera voto de pobreza, pelo menos não o voto extremo no qual se desfaria de seus
bens. Não possuía imóveis, mas os juros da herança materna lhe rendiam uma soma considerável
mensalmente. Se Carlo fazia objeção que usasse seus rendimentos, poderia muito bem começar a usar
sua côngrua como capital inicial de seu fundo de obras.
Resolvido, achou por bem não entrar em conflito com o padrinho. Então o tranquilizou
assegurando que ainda pensaria a respeito. Após a breve argumentação o restante da tarde passou
rapidamente. Naquele momento estava em seu pequeno quarto terminando de arrumar o que Carlo
começara. Este era mobiliado com uma cômoda, um guarda-roupa de mogno envelhecido, uma
cadeira e uma cama antiga, de ferro fundido.
Retirava as últimas peças de roupas de sua mala quando seus dedos esbarraram na velha caixa de
madeira. Seu coração deu um salto no peito. Tinha esquecido completamente que ela estava entre
suas coisas. Colocando as roupas sobre a cama, Jonathan a retirou e a depositou também sobre o
colchão. Não a abriu, mas permaneceu olhando as tramas da folha de carvalho que a cobria. Como
sempre desejou saber o que aquela caixa representava para ele. Ninguém sabia o que costumava
guardar em seu interior. Ele mesmo somente descobrira quando finalmente decidiu arrombá-la dias
depois de ter ficado com ela, aos 22 anos.
Distraidamente correu os dedos pelas letras gravadas na tampa: SADE. Não sabia o que
significavam, nem qual a ligação com o conteúdo da caixa. Conteúdo esse que, mesmo oculto,
deixava Jonathan abalado. Encontrou-a no sótão da casa que morou com seus pais quando resolveu
doá-la à caridade. Jonathan se lembrava como o fato tivesse ocorrido há dias, não há anos. O então
seminarista queria aproveitar a desocupação do imóvel para encontrar algo que lhe avivasse a
memória.
Mesmo que o tio tenha se mostrado terminantemente contrário à sua presença durante a retirada
dos móveis, Jonathan acabou por vencer a resistência e ir até a casa. Infelizmente o esforço em
convencer o padrinho se mostrou inútil. Nada na casa trouxe luz às trevas que eclipsavam vários
anos de sua vida. Resignado – afinal, segundo os médicos não lembrar era o esperado – desfez-se de
tudo, menos daquela caixa.
Não saberia explicar, mas ela o atraiu de tal maneira que não permitiu que Carlo se desfizesse dela
junto com o entulho empoeirado. Ao abri-la, já no seminário, simplesmente ficou fascinado. Dali,
Jonathan retirou apenas seu instrumento de autopunição. No mais, mesmo que os objetos
despertassem seu interesse e inquietação, nada lhe foi útil. Como forçara sua abertura, foi preciso
ocultar os objetos até que arrumasse a fechadura na marcenaria próxima ao seminário.
Desde que a levou de volta e reorganizou seu conteúdo, ele a mantinha trancada. Vez ou outra a
tirava de seu esconderijo e olhava demoradamente para todas as peças sem perder a esperança de
que, mesmo que fosse pouco provável, ela lhe trouxesse algo novo. Jamais aconteceu e, talvez,
jamais desvendasse o mistério que aquele objeto representava, porém simplesmente não conseguia
desfazer-se dele.
Carlo acreditava que continham seus livros. No que dependesse de Jonathan o tutor continuaria
pensando dessa forma. Como se atraído por seu pensamento, o padrinho bateu à porta.
– Johnny. Posso entrar?
– Sim – respondeu pondo-se de pé para voltar à arrumar sua roupa.
– Vim desejar boa noite. Por hoje chega para mim. Vou dormir.
– Está bem. – Sorriu-lhe. – Estava com vontade de caminhar pela praça, mas desisti. Também
estou cansado. Vou somente...
– Ainda guarda essa coisa velha? – Carlo cortou-o, mirando o objeto sobre a cama.
Jonathan seguiu seu olhar, receoso de que ele pedisse que a abrisse. Não tinha como explicá-la e
seu chicote também estava lá; não o revelaria. Era bem capaz que depois do assombro o padrinho
tentasse confiscar todas as coisas. Controlando a voz, respondeu:
– Ainda... É excelente para guardar meus livros e papéis velhos. Já lhe disse.
– Já disse – Carlo repetiu agora analisando seu rosto. Após alguns segundos de silêncio, despediu-
se: – Melhor me deitar de uma vez. Amanhã será outro dia cheio. E ainda temos um jantar de boas
vindas – completou de má vontade.
– Ao qual o senhor comparecerá sorridente e simpático como o bom italiano que é... E se
esforçará para conversar, mesmo que tenha de fazê-lo em libras.
– Certo... Amanhã você me atualiza em alguns sinais... Durma bem.
Carlo não saiu sem antes lançar um último olhar para a caixa. Jonathan tratou de trancar a porta.
Depois de retirar o cordão que sempre trazia em seu pescoço, sentou sobre a cama e levou a caixa ao
colo. Com a pequena chave, que dividia espaço com seu crucifixo, abriu-a. Retirou o velho chicote e
o deixou sobre a cama para depois colocá-lo na primeira gaveta da cômoda.
Voltando sua atenção à caixa, Jonathan correu os dedos pelo interior da tampa aveludada.
Perguntou-se mais uma vez, como seu plano de deixá-la nas mãos de Frederico antes de vir para os
Estados Unidos, funcionara. Sempre soube que o amigo jamais violaria o embrulho lacrado que
deixou para que ele lhe enviasse pelo correio. Seu temor tardio – e que depois de recebê-la se
mostrou desnecessário – era que fosse interceptado pelo caminho e que ele ou o remetente, tivesse
que explicar para quê um padre precisaria de um chicote, dois pares de algemas niqueladas e
dezesseis punhais.
Capítulo Quatro

– Aonde pensa que vai, mocinha? Esqueceu que teremos um jantar hoje à noite?
Não, ela não tinha esquecido, Faith pensou parando à saída do portão que lhe daria a liberdade.
Agora que fora pega em flagrante teria de dar meia volta e encarar a mãe. Procurando seu sorriso
mais inocente, a moça respirou fundo e se virou.
– Perdoe-me... Tinha esquecido completamente.
– Ah! – Constance desarmou-se. – Pensei que estivesse fugindo do compromisso logo cedo.
– Absolutamente. – Faith se aproximou. – Sempre a ajudo nos preparativos. Já começou?
– Nicole foi buscar o polvo e a lula. Quando ela os trouxer, quero que os limpe.
Que maravilha! Cheiraria à maresia até sua próxima encarnação, pensou Faith, contrariada.
Sabendo não ser capaz de dissimular o súbito mau humor, apenas seguiu até a cozinha. Tomou seu
café da manhã em silêncio, lamentando não só o fato de ter de ajudar à preparar o jantar como ter
perdido a oportunidade de ir à praia.
Perdida na raiva dirigida ao padre, esquecera-se do italiano, mas durante à noite, a imagem dele
voltou com força total. Sabia ser praticamente impossível encontrá-lo mais uma vez, mas alimentou a
esperança até que adormecesse. Sendo esse seu primeiro pensamento ao despertar.
E agora tinha de ficar em casa, droga!
Resignando-se ao seu destino, esperou pacientemente pela chegada da irmã, respondendo às
perguntas da mãe de forma educada e teatralmente entusiasmada. Tão logo Nicole depositou os
moluscos sobre a pia, ela iniciou a limpeza. O que a consolava era saber que não seria obrigada a
participar da reunião. Enquanto todos estivessem saboreando as iguarias de Constance, ela estaria se
divertindo. E fedendo!
Inferno! Definitivamente, aquele cheiro forte ficaria grudado em seu nariz e entranhado em seus
poros. O mínimo que esperava era que o padre se engasgasse com um dos anéis, pensou, reprimindo
um sorriso sardônico.
Após o pensamento maldoso, Faith distraiu-se, imaginando formas variadas de acidentes
domésticos que poderiam acontecer com o velho padre. O prazer íntimo e mordaz a acalentou durante
toda a manhã. Quando finalmente foi liberada por Constance era tarde demais para ir à praia, com
isso, subiu para o quarto e, na varanda, colocou seu material em ordem. Não precisaria deles naquele
dia, mas era preciso levá-lo consigo.
Vez ou outra seu olhar vagava para a extensão de areia. Seria perfeito caso o estrangeiro estivesse
de volta e dessa vez resolvesse correr em frente à sua casa. Se o improvável acontecesse, ela ainda
teria alguns minutos para abordá-lo. Talvez, dessa vez, pudesse colocar sua índole à prova. Sem
atinar, sorriu ao pensamento. Vá sonhando, disse à si mesma voltando à seriedade. O italiano não
viria desfilar diante de sua casa, conformou-se. Nunca mais o veria, era a verdade.
Depois de se despir, seguiu para um banho demorado no qual gastou metade do sabonete que tanto
apreciava. Ótimo!, zombou, agora cheirava à peixe guarnecido com flores. Com o humor no limite a
moça se arrumou para sair. Depois de vestir calças jeans e uma camiseta preta, calçou sandálias de
saltos médios e prendeu os cabelos em um rabo-de-cavalo. Estava pronta! Queria não ser preciso ter
de encontrar com a mãe, mas sabia ser impossível. Conhecia-a muito bem e sabia que não sairia sem
ouvir as últimas recomendações. Conformando-se com o inevitável, Faith desceu as escadas em
passos audíveis e foi até a cozinha.
– Já estou de saída... Assim que a aula terminar eu volto para casa.
– Está certo – disse Constance sem voltar-se. – Estarei esperando. Não se atrase.
Como a mãe não desviou a atenção do prato que preparava, não viu o sorriso travesso que se
desenhou no rosto da moça. Faith criaria um problema, mas preferia mil vezes enfrentar a fúria
contornável de sua mãe à ter de se sentar à mesa com o novo velho glutão da cidade. Quando
chegasse, ele já teria ido embora, graças ao bom Deus!

Dezoito horas, Jonathan pensou, lamentando a falta do repique do sino. Aquele era outro item
indispensável em sua extensa lista. Na verdade, um dos primordiais, mas não era o momento de
enumerar as necessidades de sua igreja. Ele teria pouco mais de quarenta minutos para se vestir e
seguir até a casa dos Greens. Não se dera conta de que a ansiedade que o perseguiu durante todo o
dia era provocada pela proximidade de seu primeiro evento social. Por sorte não estaria sozinho;
mesmo que o acompanhasse à contragosto, seu padrinho lhe passaria segurança.
Após terminar suas orações, benzeu-se e saiu a procura de Carlo. Para sua surpresa, o encontrou
praticamente arrumado para o jantar. Conhecendo-o, nada comentou, seguindo até seu quarto e depois
ao banheiro. Sob o chuveiro, identificou outro ponto que alimentou sua inquietação. Durante todo o
dia, negou-se a pensar sobre o assunto, mas não poderia mais ignorar o fato do quanto não encontrar
a moça da praia naquela manhã o decepcionou.
Gostaria de entender porque ela chamara tanto sua atenção. Talvez, se a visse uma vez mais, se
convencesse que havia sido somente o inusitado do primeiro encontro. Evidente que era apenas isso,
pensou satisfeito em não sentir as mesmas reações corporais ao se lembrar dela.
Com um suspiro, ordenou-se a esquecê-la e cuidou de se aprontar. Uma vez vestido, voltou ao
quarto. Encontrou o tio esperando-o, sentado em sua cama.
– Pensei que teria de chamá-lo novamente – disse sério, em sua língua natal. – Não vejo a
necessidade dessa demora toda para um banho simples.
Jonathan sabia que não tinha demorado, mas não estava com espírito para argumentações então
apenas se desculpou:
– Perdoe-me... Deve ser a ansiedade.
– Eu sabia que ainda era cedo... Acho que não se importariam se não comparecêssemos.
– Isso seria uma indelicadeza de nossa parte – retrucou educadamente enquanto penteava os
cabelos para trás. – Além do mais, a ansiedade é boa. Apenas expectativa pelo novo.
– Se é como diz... – o padrinho retrucou indiferente.
– É como digo – assegurou. – Assim que calçar meus sapatos nós podemos ir.
– Se não tem remédio...
Ignorando o desânimo de Carlo, Jonathan se levantou e o chamou para saírem. Seguiram em
silêncio à casa indicada por Constance. Falavam apenas com as poucas pessoas que encontraram
pelo caminho. Como no dia anterior, mulheres em sua maioria. Duas ou três pararam seu afazeres ou
caminhada para segui-los com olhares curiosos. A especulação era incômoda, mas Jonathan não se
importava com ela. Pelo menos não como Carlo que dava mostras visíveis de sua irritação crescente,
mesmo sem nada dizer.
Jonathan não conseguia entender o comportamento do tio; talvez nunca entendesse essa era a
verdade.
Ao se aproximar da casa dos Greens e ter sua ansiedade agravada, Jonathan esqueceu-se da
rabugice de Carlo. O padrinho era como era. A ele cabia cuidar da própria vida. Vida essa que a
partir daquela noite o colocaria em contato com alguns de seus futuros fiéis antes do dia decisivo. Ao
chegar ao portão baixo, hesitou, contudo o abriu e seguiu pelo caminho de pedras até a porta na
lateral da casa. Enquanto apertava a campainha sussurrou para o tio:
– Por mim, por favor, comporte-se e se lembre de não falar em italiano.
– Nunca fui mal-educado – Carlo retrucou. Jonathan não teve a chance de se desculpar, pois a
porta foi aberta pela dona da casa que seguiu até eles com um sorriso acolhedor iluminando o rosto
ainda jovem.
– Boa noite! Sejam bem-vindos à minha casa. Entrem.
Depois de cumprimentá-la, os dois homens a seguiram. Jonathan agradeceu o fato de somente ele
ter ouvido o gemido agoniado do padrinho quando encontraram a sala cheia. Ele próprio sentiu-se
atordoado com a quantidade de convidados para o jantar em sua homenagem. Acreditou que fossem
somente eles e os moradores da casa, não metade da cidade. Ou seria a cidade inteira? Considerou
olhando em volta.
– Venham – a sorridente anfitriã os chamou. – Deixe-me apresentá-los para todos.
Foi inevitável deixar escapar um lamento baixo que por sorte não pode ser ouvido. A dona da casa
os apresentou à todos os presentes. Iniciou por sua filha Nicole – que ele tivera o prazer de conhecer
– e seu noivo, Joseph. Durante as demais apresentações, Jonathan lembrou que alguns também já
eram conhecidos. Grace, que gentilmente lhes ofereceu o almoço nos dois dias em que estavam na
cidade. Reconheceu também dois homens morenos que somente agora decorou os nomes, Samuel
Bailey, dono do da loja de iscas e Billy Baker, dono de um mercado em frente à praça da igreja.
Como era comum na cidade, a maioria dos presentes era de mulheres. Senhoras, ou jovens, todas
prestativas e educadas, contudo, sem nada de especial que o fizesse guardar os nomes ou ocupações.
As únicas que conseguiram prender sua atenção foram a senhora Scott e sua filha. A mais velha por
sua aparência doentia e a jovem por ser a moça mais sorridente entre todas e ter olhos acintosamente
avaliadores. Jonathan sabia que ser seletivo não condizia com sua vocação, ainda assim, evitou olhá-
las durante toda a noite.
Apesar do atraso inexplicável para o início do jantar, para sua surpresa, este fora agradável.
Curioso foi perceber o olhar insistente do noivo de Nicole sobre si, assim como o furtivo que vez ou
outra a Sra. Green dirigia para a porta sempre que o som de algum veículo era ouvido. Ainda que a
anfitriã estivesse visivelmente tensa e Joseph o incomodasse, o clima permaneceu leve. Até mesmo
seu padrinho engrenou um assunto paralelo com a senhorita Campbell, onde a pobre mulher tentava
acompanhar o inglês sofrível do italiano.
Sim, tudo transcorreu a perfeição. Pequenos grupos se formaram, espalhados pela sala e, enquanto
comiam segurando o próprio prato, a conversa entre eles fluiu fácil. Porém foi com alívio que
Jonathan ouviu os primeiros convidados se despedir, logo depois de servida a sobremesa. Desejou
seguir-lhes o exemplo, contudo a dona da casa recusou veementemente que partisse quando ainda era
tão cedo, segundo ela. Sem desejar ser mal educado, ele a atendeu. Engrenado em uma conversa
animada com Grace, seu padrinho nem ao menos se deu conta de sua mal fadada tentativa de
despedida.
Sorrindo por ver o tio finalmente de bom humor, Jonathan se pôs a avaliar a sala; agora um pouco
mais vazia. As paredes eram cobertas de quadros, cenas marítimas predominavam. Combinavam com
o ambiente à beira mar. Com os ruídos das vozes também diminuídos, este podia ser ouvido com suas
ondas quebrando mansas na areia. Aquela casa trazia paz, Jonathan pensou enchendo os pulmões com
o ar levemente salgado. Antes que o soltasse, teve que fazer força sobre humana para não engasgar ao
descer os olhos sobre vários porta-retratos dispostos sobre a lareira.
Era ela, a moça da praia, bem ali, olhando em sua direção e sorrindo abraçada a um jovem rapaz.
Jonathan ainda tentava identificar as sensações estranhas que atravessaram seu peito, quando
Constance explicou, ao seu lado:
– Essa é Faith. Teria conhecido minha filha caçula hoje, mas algo a atrasou. Ela me garantiu que
viria.
Jonathan entendeu o estranho reconhecimento ao ver os rostos de Constance e Nicole: todas
traziam traços parecidos. Ansioso, Jonathan não conseguia entender porque seu coração dava saltos
incertos ou porque não conseguia desprender os olhos da cena íntima à sua frente. Limpando a
garganta com um pigarro, fez a pergunta que estranhamente o incomodava:
– Quem está na foto com ela?
– Mason... Também é meu filho. Falei-lhe dele ontem quando nos conhecemos, se lembra?... Vai
conhecê-lo tão logo volte do mar.
Sim, ele se lembrava; o rapaz que tinha a sua idade. O alívio por saber que ela estava abraçada ao
irmão era igualmente estranho e Jonathan não atinava qual sua origem. O que lhe importava se a moça
da praia estivesse nos braços de algum pretendente?
Novamente seu coração protestou ante a pergunta muda e dessa vez, seu olhar vagou para a porta
juntamente com o da Sra. Green, quando um carro passou próximo à casa. Ansiosos, ambos
esperaram que a porta principal fosse aberta e, quando nada aconteceu, como se tivessem
combinado, olharam-se. Ao notar a decepção no olhar materno, Jonathan temeu carregar em seus
próprios olhos o mesmo lamento delator, então os desviou. Após novo pigarro, comentou:
– Tenho certeza de que apreciarei conhecê-los. – Procurando outro foco, apontou uma foto com
uma menina sentada num balanço. – E essa... Quem é?
– Esta é a nossa Nick... Tinha cinco anos quando tiramos essa foto e...
O padre não a ouvia. Esforçava-se para não desviar os olhos para a foto ao lado e dizer a si
mesmo que a súbita vontade de ficar na casa, nada tinha a ver com a eminente chegada de certa moça
de cabelos escuros e feições angelicais. Evidente que Faith – Fay como a irmã a chamou na tarde
passada – não era seu foco principal e, sim, a curiosidade em saber mais sobre a família que tão
gentilmente o acolheu.
– Aceitaria uma xícara de café? – O oferecimento lhe trouxe de volta a sala.
– Sim, obrigado!
Quando a dona da casa se retirou, Jonathan voltou sua atenção às fotos sem receio, retendo o olhar
sobre todas que retratavam Faith. Ainda mantinha sua opinião. Ela não era a moça mais bonita que já
vira, porém a delicadeza dos traços finos, tornava-a única. Por sua postura nas fotos, percebia-se
claramente seu apego à família; principalmente ao irmão que por ter os cabelos e olhos em tom mais
claro, assim como traços mais severos não se assemelhava a ela.
Normal que não lhes conferisse qualquer parentesco e ficasse intrigado, afinal o rapaz aparecia em
variadas cenas ao lado da moça. Ainda a analisando, Jonathan também pôde ver nos olhos brilhantes
o espírito rebelde que a levou a enfrentar desafiadoramente um completo estranho.
– Aqui está – disse Constance ao seu lado. Quando tomou a xícara de suas mãos ela disse. – Café
brasileiro, o preferido de Elliot.
– Realmente, muito bom – elogiou ao provar a bebida quente.
– O senhor disse durante o jantar que fez uma lista de coisas que precisam ser consertadas na
igreja.
– Sim... – ele agradeceu pelo assunto que facilmente o distrairia. – Mas ainda estou organizando. A
igreja precisa de muitos reparos.
– E o senhor tem ideia de como vai conseguir o dinheiro para as melhorias?... Está pensando em
pedir para os comerciantes locais ou tentará com o que conseguir da arrecadação durante as missas?
– Acho que um pouco de tudo – ele respondeu devolvendo-lhe a xícara.
– A comunidade não dispõe de muitos recursos, mas acho que conseguirá juntar boa parte do
capital em algumas semanas. Quando Elliot chegar poderá ajudá-lo.
– Toda ajuda será bem-vinda – disse Jonathan, agradecido.
– Hum... Com licença – pediu a moça sorridente, aproximando-se. – Desculpem minha
intromissão, mas acho que o senhor poderia fazer um piquenique comunitário. O antigo padre sempre
recorria a eles quando precisava de algum dinheiro extra.
– Bem lembrado, Maggie – Constance elogiou, contudo olhando-a com o cenho franzido. – O
estranho é você comentar tais encontros... Nunca a vi em nenhum.
– O tempo corrido nunca me permitiu participar, mas lamentei todas as vezes.
Algo dizia a Jonathan que tempo era o último motivo pela falta, mas não cabia a ele comentar. De
toda forma, a ideia era realmente boa. Animando-se, perguntou para a anfitriã:
– Como eram esses encontros, exatamente?
– Ah... Cada senhora participante leva um bolo ou torta. Dispomos sobre uma grande mesa e os
pedaços são vendidos. Os homens providenciam as bebidas. Também costumamos fazer brincadeiras.
– Entendo – ele disse distraidamente. Talvez a ideia simplória não rendesse como esperavam, mas
valeria a pena se conseguisse aproximar ainda mais as pessoas de sua igreja. Uma missa com boa
audiência sempre trazia mais recursos.
– Se não me engano, uma jovem da cidade fica encarregada dos preparativos – Maggie comentou,
animada. – Eu ficaria feliz em ajudar.
– Não vamos limitar ainda mais o seu tempo. – Jonathan não desejava ter a garota com sorriso
perpétuo ao seu lado por dias à fio. – Ficarei feliz se conseguir participar dessa vez, mas não precisa
se preocupar com a organização. Tenho certeza de que posso encontrar alguém com maior
disponibilidade.
– Todas as vezes foi Nicole quem ajudou – Constance comentou, indicando a moça sentada ao lado
do noivo. Ao ouvir o próprio nome ela ergueu a cabeça e a um aceno de sua mãe veio até eles. –
Estamos cogitando a hipótese de fazermos um piquenique comunitário – explicou a senhora. – Acha
que poderia ajudar caso o padre resolva fazê-lo?
– Eu adoraria – disse animada pela primeira vez na noite. – Posso fazê-lo em todo tempo livre que
tiver.
– Não quero atrapalhá-la. – Jonathan preocupou-se.
– Imagine – ela retrucou. – Será um prazer ajudar... Avise-me tão logo se decida.
– Se não vou mesmo atrapalhá-la, já está decidido. Podemos começar amanhã mesmo.
– Perfeito! Amanhã pela manhã vou até a igreja então conversaremos.
– Bom... – Maggie começou, mal-humorada. – Já que está tudo resolvido, acho que podemos ir
embora... Vou chamar mamãe... Foi um prazer conhecê-lo, senhor – disse ao estender a mão. – Sra.
Green, obrigada pelo convite. O jantar estava maravilhoso.
Sem se deixar abater pela recusa, a moça seguiu até a mãe, acompanhada de Constance e, depois
que esta também se despediu de todos, se foi. Nicole voltou para o lado do noivo depois de
combinar o horário que iria até a igreja, deixando Jonathan novamente sozinho. Sem que pudesse
evitar seus olhos procuraram pelos olhos castanhos da moça das fotos.
Seria interessante se fosse ela a ajudá-lo; parecia-lhe que seria agradável tê-la por perto algumas
horas todos os dias. Pena que não a tivesse encontrado aquela noite. Teria sido o encerramento
perfeito para seu primeiro jantar.
O que estava pensando afinal? Sua condição não lhe permitia tais pensamentos licenciosos. Com
certeza o sono o deixava incoerente. O melhor que tinha a fazer era partir e descansar sua mente
perturbada. Felizmente seu tio não se recusou, então, confuso com a decepção irritante a corroê-lo,
Jonathan se despediu de todos e se foi.
Contando as pedras do calçamento, Jonathan seguiu para a casa ouvindo a narrativa de Carlo sobre
como a noite se revelara agradável. Gostaria de poder dizer o mesmo.
– O que há, Johnny? – o tio perguntou carinhosamente tão logo Jonathan trancou a porta atrás de si.
– Está calado desde que saímos da casa dos Greens.
– A noite foi mais cansativa do que imaginei – esquivou-se. – Amanhã tenho de levantar cedo. É
melhor irmos dormir... Boa noite!
Sem esperar resposta seguiu ao banheiro. Todo o tempo evitou olhar-se no pequeno espelho, e logo
partia para seu quarto. Atirou-se sobre a cama ainda vestido, tentando identificar o significado de sua
apatia. Não poderia ser por causa da moça, a bella Faith!
Sim, bela à sua maneira, contudo não era mais importante do que qualquer outra moça que
conhecesse. Não foram apresentados corretamente aquela noite, mas fatalmente a encontraria na praia
na manhã seguinte ou na missa de domingo. Não havia razão lógica para o imediatismo ou a
necessidade de vê-la.
Respirando profundamente, Jonathan obrigou-se a se trocar. Depois fez suas orações e se deitou a
fim de conciliar o sono. Quando este veio, foi permeado de sonhos disformes e inquietantes nos quais
não conseguia ver com nitidez o rosto parcialmente coberto de uma moça de cabelos castanhos.
Capítulo Cinco

– Tudo bem garota, qual é seu problema?


Faith somente ergueu os olhos e mirou o rosto excessivamente maquiado da mulher loira que a
inquiriu através do espelho iluminado.
– Nada que seja da sua conta, Úrsula – respondeu de mau humor.
– A estrelinha está mesmo nervosa, não é? – zombou a dançarina, afastando-se com as mãos
erguidas. – Melhor deixar a boneca quieta antes que me morda.
– Não costumo comer porcarias depois das onze.
Ainda pelo espelho Faith a viu se voltar para responder-lhe, contudo Kristina a deteve,
sussurrando-lhe para que se controlasse: Barry não gostava de confusões entre as suas meninas,
principalmente com a virgem. Mesmo que a encarasse desafiadoramente, a colega nada disse. Depois
de se soltar com um puxão no braço, Úrsula deu as costas para a apaziguadora e seguiu para sua
cadeira em frente ao espelho, no extremo oposto de onde Faith se encontrava.
Desinteressada da cena, a moça acomodou a peruca loira que usou em sua apresentação sobre o
suporte e começou a retirar automaticamente a maquiagem intacta que fizera há pouco mais de uma
hora. Todas à sua volta não mais existiam quando o assunto que lhe estragou o humor pela manhã, no
ensaio à tarde e durante a dança recente, voltou à sua mente.
Àquela hora o maldito jantar já deveria ter terminado. O comedor de hóstias já deveria estar
fazendo suas últimas orações e ela nada poderia fazer para mudar o fato de não ter comparecido,
como sua mãe ordenou. Não estava arrependida por faltar ao jantar, sua aula de dança fora rentável,
ainda assim estava irritada.
Bufando, exasperada, Faith baixou a mão que segurava o disco de algodão umedecido com
demaquilante sobre a bochecha para olhar em volta. Estava habituada àquele camarim, à companhia
das colegas que aprendeu a respeitar – com exceção de Úrsula – contudo nem mesmo vê-las brincar
ou conversar entre si a distraia aquela noite. Seria possível que estivesse enjoando de tudo aquilo?
Talvez sua inquietação nada tivesse a ver com o jantar de boas vindas ao novo padre e, sim, com sua
atividade na The Isle.
Atuava na casa noturna há seis meses, entretendo os homens com sua dança. Na verdade, o que os
atraia não era sua desenvoltura sobre o palco, mas a dúvida quanto à sua pureza. Ali, era conhecida
como a Virgem. Faith custava a crer que eles acreditassem em sua falta de experiência sexual quando
se apresentava seminua, retirando ainda as peças sumárias durante a execução de movimentos
eróticos. Mesmo depois de tanto tempo, ela ainda se surpreendia com a casa cheia nas noites de
quinta-feira.
As únicas vezes em que a plateia não ocupou a capacidade máxima da boate foram em suas
primeiras apresentações, principalmente na primeira, resultante de uma aposta com seus colegas de
faculdade em seu último dia de curso antes que o deixasse. Depois que Marco, um ex-ficante
ressentido, a desafiou a subir ao palco, dizendo que a filhinha provinciana de um pescador jamais
teria coragem de se expor, Faith não somente invadiu uma das apresentações, como improvisou um
strip-tease.
Inicialmente a stripper da vez – Úrsula – tentou expulsá-la juntamente com um dos seguranças, mas
depois da intervenção do dono do estabelecimento, ela levou sua apresentação até o fim. Mesmo
estando levemente embriagada, no começo sentiu certo receio, mas, animada com os incentivos
masculinos e impulsionada pelo olhar desafiador de Marco, Faith retirou peça por peça da roupa
corriqueira que usava, deixando restar somente a calcinha mínima de renda branca.
Antes de se sentir constrangida ou exposta, ela apreciou a sensação de liberdade e controle sobre
os presentes que a aplaudiam e atiravam notas e mais notas de vários valores sobre o palco. Sem se
importar com sua nudez parcial, a moça recolheu todas elas diante de uma dançarina veterana furiosa
e um patrão sorridente. Sem se importar com ambos, se pôs de pé, abraçada às notas e foi nesse
momento que sua fama aconteceu. Marco, enfurecido em uma crise de ciúmes tardia, gritou à plenos
pulmões para que sua voz fosse ouvida além da música alta:
– Quem poderia imaginar que uma virgem fosse tão vagabunda?
Talvez fosse fruto da imaginação de Faith, mas, a ela, sempre pareceu que a algazarra masculina se
reduziu a um burburinho incrédulo embalado ao som da música. Sem se envergonhar, ela retrucou:
– Virgem, sim, talvez vagabunda, mas ainda com bom gosto. Você seria o último homem que eu
procuraria para mudar minha condição. – Passados três segundos para a assimilação geral, todos
irromperam em uma sonora gargalhada. Ignorando-os, ainda acrescentou: – E não se esqueça de que
me deve cem dólares.
Dito isso ergueu o queixo e, sem se importar com as roupas deixadas no piso do palco, seguiu em
passos altivos em direção à coxia. Somente quando saiu das vistas de todos foi que seu corpo passou
a tremer. Não conseguiu ver quem estava à sua volta. O primeiro rosto foi o de uma moça igual a ela
– Kristina – que retirou o roupão que usava sobre um biquíni de lantejoulas para colocá-lo em seus
ombros, cobrindo-a. Essa mesma moça a guiou até o camarim e a fez esperar enquanto ia buscar suas
roupas.
Ao ver-se sozinha, abraçada ao montante adquirido em sua apresentação, Faith obrigou a sair do
torpor e contou o quanto ganhou: o equivalente a um mês de aula. Ainda olhava incrédula para as
notas, quando o dono da casa – um homem atarracado denunciado na idade pelo tom falso de acaju
dos cabelos –, sem bater, entrou no camarim e se apresentou.
Barry Reagin alegou ser um visionário e disse que diante da reação de seus clientes, via nela uma
lucrativa e inusitada atração. Talvez pela falta de modéstia pessoal, Faith não tenha simpatizado com
ele, contudo, ao ouvir a proposta ela disse a si mesma que não era preciso ser amiga dele para
conseguir um dinheiro que considerou fácil.
Seria experimental, Barry dissera. Se estivesse enganado Faith nada lhe deveria ou ele à ela e suas
portas sempre estariam abertas para que ela saísse quando bem quisesse. O acordo consistia em que
a moça poderia dançar quantas noites quisesse. Ela ficaria com o que conseguisse no palco, ele com
o que conseguisse na consumação e na portaria. Toda exigência que ele fazia era poder explorar sua
suposta virgindade. Faith pediu tempo para pensar, porém o adiamento era somente para tentar se
obrigar a desistir da ideia, pois em seu íntimo, sabia que aceitaria.
Não somente deu certo, como agora ela retinha a preferência dos frequentadores da casa. Era a
espinha entalada na garganta de Úrsula e a menina dos olhos de Barry, que aceitou suas
apresentações semanais, visto que realmente era uma moça de família.
– Ajudará a manter o clima – ele dissera.
Atualmente Faith sabia que boa parte da benevolência se devia ao fato de ele desejar intimamente
confirmar a veracidade de sua pureza. Por vezes fora preciso declinar de seus convites amorosos
enquanto que em outras, como camaradagem, aceitar acompanhá-lo em uma bebida antes de partir.
Não, Faith pensou enquanto olhava em volta. Às vezes as investidas de Barry e as picuinhas com
Úrsula eram cansativas, ainda assim tão cedo não enjoaria de sua dança. O problema era mesmo com
o maldito jantar e seu entrave que não a permitiu ir à praia pela manhã. E o pior: ela poderia
imaginar sua mãe se oferecendo para recepções constantes. Porcaria!
Não poderia se esquivar de todas elas. Já seria bem complicado encarar Constance na manhã
seguinte. Isso se não estiver esperando acordada...
– Padre filho da puta! – xingou baixinho, voltando a retirar a maquiagem.
– Faith? – a dançarina a chamou receosa.
– O que quer, Kris? – perguntou séria, olhando-a pelo reflexo.
– Só queria que me dissesse o que a preocupa antes que eu saia para meu programa. Talvez eu
pudesse ajudar.
Faith apenas resmungou “estou bem, vá tranquila” e se concentrou na tarefa de limpar o rosto de
todo vestígio da apresentação daquela noite. Quando finalmente saiu do papel de stripper e voltou a
ser a boa moça de família, Faith pegou sua bolsa e, despedindo-se automaticamente das colegas
ainda presentes no camarim, saiu para a noite.
Estava a poucos metros de alcançar a pick up, quando sentiu os passos atrás de si. Era tarde, mas
perceber a perseguição não a amedrontou. Após anos e anos, Faith era capaz de reconhecer as
pisadas furtivas sem nem ao menos se voltar. Sem reduzir a velocidade, disse alto o suficiente para
ser ouvida por seu eterno seguidor:
– Se não me falha a memória, eu o despedi.
– Não estou a seu serviço – Tyler retrucou. – Esse é um país livre e tenho uma identidade que me
permite frequentar aquela espelunca.
– Se não veio a serviço, pare de me seguir.
– Você é uma porra de uma convencida, Faith Green – ele escarneceu. – Não estou seguindo você,
só indo para a mesma direção.
– Ah, claro! – ela zombou e se virou para encará-lo ao chegar ao seu carro. – Esqueci as eternas
coincidências.
– Boa noite, Faith! Te vejo por aí... – disse sem retrucar-lhe, passando por ela sem dirigir um
único olhar.
A moça deu de ombros e se acomodou ao volante, rumo a Sin Bay, esquecida de Tyler. Somente
voltou a se lembrar dele quando os faróis do Ford Windstar iluminaram seu retrovisor.
Definitivamente certas coisas jamais mudariam. Sentindo-se reconfortada pela cena usual, Faith
guiou até a vila repassando mentalmente a desculpa que usaria com Constance.
Para seu alívio a casa estava às escuras. A tensão da expectativa arrefeceu, fazendo com que seu
corpo ficasse subitamente cansado. Precisava dormir e de preferência não sonhar. Era preciso se
recuperar para a tempestade que viria. Ao entrar na casa e confirmar que a mãe não a esperava
sentada no escuro, seguiu para o quarto. Calculava o peso de seus passos para não acordar a irmã,
quando Nick, de repente, acendeu a luz do abajur ao seu lado.
– Credo! – exclamou, levando a mão ao coração. – Quer me matar, sua maluca?
– Não. Apenas saber por onde andou. Mamãe está uma fera – disse Nicole, sentando-se para
acompanhá-la com olhar enquanto ocupava sua cama para retirar as sandálias. – E então... Não vai
me contar? – Nicole insistiu. – Por onde andou? O jantar atrasou por sua causa, sabia?
– Agora eu sei – retrucou Faith, erguendo-se para se trocar. E sabendo que a irmã não lhe daria
trégua, experimentou a mentira: – A pick up quebrou.
– Não veio ao jantar por causa disso?!... Mamãe vai surtar. Não vou querer estar na sua pele.
– Não se preocupe. Não vai estar – disse secamente, já vestindo a camisola de algodão. Ao deitar
e se cobrir, de súbito curiosa, perguntou: – E então... Como foi?
– Fora o atraso, tudo correu muito bem. Se você estivesse aqui teria conhecido os dois.
– Dois?!
– Sim... Vieram os dois italianos, tio e o sobrinho.
– Italianos?! – Faith interessou-se imediatamente. Antevia um fio de esperança surgindo. Antes que
pudesse especular, sua irmã se adiantou:
– Bom... Isso não deve ser de seu interesse uma vez que não se dignou sequer a avisar que não
poderia vir.
– Já disse que a caminhonete quebrou. Não tive culpa. Agora... Fale mais desses italianos.
– Não – Nicole negou veemente. – Está tarde. Amanhã mamãe lhe põe a par de tudo que
aconteceu... Boa noite!
Para que mesmo as pessoas precisavam de irmãs? Em momentos como aqueles elas eram
completamente inúteis, Faith pensou enraivecida enquanto imitava Nicole e se deitava. Não
acreditava em coincidências. Sabia que um dos italianos era o seu italiano da praia. Sobrinho do
padre, com certeza. Tal constatação agravou seu humor. Não deixaria de ir à boate, mas, agora,
lamentava ter perdido o jantar.
Na manhã seguinte Faith estava com o corpo dolorido após uma noite mal dormida. Irritada,
afastou as cobertas e seguiu para o banheiro. Quando voltou ao quarto, arrumou a cama sem capricho
algum, vestiu um short azul e camiseta branca e saiu para a varanda. Dessa vez tomaria todos os
cuidados para não ser descoberta pela mãe enquanto fugisse para a praia. Tinha certeza de que
encontraria o italiano. A curiosidade que a impulsionava era suficiente para encorajá-la a levar uma
bronca pior quando voltasse.
Uma vez na praia, sentou-se sobre a pedra e esperou impacientemente que o estrangeiro
aparecesse. Sua espera não durou mais do que vinte minutos, mas a ela pareceu uma eternidade.
Pondo-se de pé, Faith passou a caminhar, despretensiosamente em direção à água, fingindo não ver o
italiano, para que suas rotas se cruzassem.
O coração da moça batia aceleradamente. Nunca antes desejou tanto ver um homem pela segunda
vez como acontecia com aquele. Talvez fosse a voz melodiosa, o rosto anguloso, não sabia... Talvez
o desejo puro e simples fosse o de tê-lo perto.
– Buon giorno! – ela o ouviu dizer praticamente ao seu ouvido e então corrigir rapidamente. –
Digo... Bom dia!
– Oi... – foi tudo que conseguiu pronunciar.
Toda sua atenção estava voltada às próprias pernas que traiçoeiramente resolveram amolecer
depois do cumprimento inocente. Como se alguma coisa vinda daquele homem pudesse ser
considerada inocente, pensou virando-se para olhá-lo. Ao novo choque de seu coração depois de
encarar o rosto mais imperfeitamente belo que já vira, suas pernas novamente falharam, obrigando-a
a parar. O italiano imitou-a e se prostrou diante dela.
– Atrapalho sua caminhada? – ele perguntou, encarando-a.
– Não. – Odiando-se por ficar monossilábica diante dele, Faith pigarreou discretamente antes de
comentar: – Soube que esteve na minha casa ontem à noite, com o seu tio.
– Estive – ele confirmou. – Sua mãe gentilmente nos ofereceu um jantar. Delicioso, por sinal.
– Eu ajudei na preparação – apressou-se em salientar. O que acontecia com ela? Qual a
necessidade de impressioná-lo?
– Foi mesmo? – Depois de se mostrar surpreso, comentou com um sorriso torto: – Uma pena não
ter participado de um jantar que ajudou a preparar.
Sem conseguir desviar o olhar, Faith soube o motivo da inquietação. Precisava ficar com ele!
Precisava saber se o italiano ocultaria aqueles pedaços de céu quando suas bocas se tocassem. Era
isso! Precisava beijar aquela boca rosada que pronunciava todas as palavras de forma cantada e
pecaminosa. Sem apartar o olhar de seu mais novo objeto de desejo, disse:
– Realmente uma pena... Mas poderíamos corrigir algumas falhas, começando pelo seu nome. Da
última vez que nos vimos você foi embora sem se apresentar.
– Vero... – exclamou sem pensar. Não poderia dizer por que se afastou dela, então disse
simplesmente: – Estava com pressa, desculpe-me pela pouca educação. Sou Jonathan De Ciello.
– Tudo bem... Bem, acredito que já saiba, mas vale repetir... Faith Green, a caçula faltosa. –
Quando as mãos se uniram ela teve que juntar todas as suas forças para não se aproximar e roubar o
beijo que tanto ansiava provar.
– Eu realmente sabia – Jonathan confirmou divertido, desprendendo as mãos. – Agora preciso
voltar à minha corrida. Foi um prazer conhecê-la, Faith.
– Só Fay... É assim que os mais íntimos me chamam.
Cale a boca sua idiota! Ordenou-se, sentindo o rosto corar. O que estava fazendo?! Se o tivesse
beijado seria menos oferecida.
– Então será mesmo Faith – ele disse de súbito sério. – Acho que nos vemos depois.
Toma, estúpida! Podia sentir o distanciamento depois de seu comentário imbecil.
– Posso te fazer companhia? – perguntou, encobrindo o tom desesperado. Tentando consertar a
nova idiotice, acrescentou: – Estava indo na mesma direção.
Quando Jonathan a encarou, como se ponderasse se deveria aceitar que corresse com ele ou não,
Faith cogitou inventar um compromisso repentino que lhe permitisse desaparecer de sua frente, quem
sabe do país, quando o italiano respondeu:
– Evidente que sim.
Enquanto a moça tomava lugar ao seu lado e o acompanhava na corrida, Jonathan se perguntou se
fizera bem em aceitar sua companhia. Na verdade, não estava fazendo nada certo. Nem deveria ter
vindo à praia. Ainda mais que o motivo real fora o desejo de vê-la e não seu exercício habitual.
Tentava se enganar desde o início da corrida, mas, quando finalmente a viu e seu coração se agitou
como quando estava diante das fotos, aceitou a verdade.
Perceber que ela levantou da pedra no momento exato de sua aparição massageou seu ego. Teve
quase certeza de que ela também estava ali por sua causa. Sabia ser errado, mas adorou a sensação
que se apossou de seu corpo ao ouvir novamente a voz suave. Tudo ia bem até perceber – não
saberia explicar como – que o interesse da moça ia além do dele. A bella Faith estava claramente
flertando com ele.
Seria imperdoável de sua parte se deixasse tal interesse ganhar espaço, contudo não teve como
deixá-la. Com ela era diferente, e queria entender o que sentia. Era errado, mas queria desfrutar de
sua companhia, mesmo que ela agisse como uma adolescente oferecida.
Evitando olhá-la, Jonathan apreciou o silêncio da corrida. Sem palavras não havia meios de
seguirem por rotas inviáveis. Não avançavam nem recuavam naquilo que partilharam. Era pouco,
porém bom.
Permaneceram sem nada dizer por dez minutos até que a moça parasse abruptamente e se curvasse
com as mãos apoiadas sobre os joelhos, emitindo chiados agudos ao sorver o ar.
– Faith, che posso fare? – Jonathan perguntou preocupado, tocando-a levemente no ombro, sem se
dar conta que havia falado em sua língua natal de forma terna.
– O-o que... O que disse? – Faith perguntou arfante, sentindo o ombro nu arder sob os dedos de
Jonathan.
Percebendo sua falha também ao tocá-la, Jonathan afastou a mão e mudou a pergunta:
– Perguntei se está bem... Acho melhor se sentar.
– Estou bem – respondeu, lamentando por ele ter se afastado. Precisava ter um pouco mais daquele
formigamento quente e novo, mas, sabendo que ainda não o teria, endireitou o corpo para tranquilizá-
lo: – Não é necessário... Estou só com um pouco de falta de ar. Não sabia que estava tão fora de
forma.
Estava apenas com péssimo condicionamento físico, pensou Jonathan, avaliando-a. Quanto à
forma, nada tinha a acrescentar. Pequena – uma cabeça mais baixa que ele – a moça trazia as medidas
exatas. Não era sua intenção, mas foi inevitável descer os olhos para a cintura fina e depois vagar
para os seios que subiam e desciam à medida que ela respirava com dificuldade.
Ao perceber os contornos distintos que denunciavam a falta de uma peça íntima sob a camiseta
branca e suada, Jonathan fechou os olhos e moveu o rosto para o lado, maldizendo as reações de seu
corpo traiçoeiro. Sem dúvida era errado ficar perto dela. Colocando as mãos no bolso da calça para
ocultar seu excitamento, obrigou-se a encará-la antes de dizer roucamente:
– Eu não deveria ter corrido tão rápido. Deveria ter percebido que seu corpo delicado não
acompanharia o ritmo do meu. Perdonami.
– Já estou bem – assegurou, analisando-o, com as sobrancelhas unidas.
– Tem certeza?
– Tenho. Podemos prosseguir.
– Vamos apenas caminhar.
– É melhor... – ela lhe sorriu agradecida.
Mesmo sem entender a reação estranha de minutos atrás, Faith apreciou o novo período de silêncio
que se instalou entre eles. Ainda sentia o formigamento bom no ombro direito. Jonathan era diferente
dos outros. Sua proximidade a deixava mole, seu toque era agradável. Era um fato, precisava ter
mais, mas, ineditamente não sabia como abordá-lo.
Nunca se importou em cantar os carinhas que acreditou que valeriam a pena, e agora, com o
sobrinho do padre, estava travada. Por isso o silêncio era bom; temia disparar outra animosidade.
Olhando-o de esguelha notou que Jonathan tinha retirado as mãos dos bolsos, parecia menos tenso.
Certo, talvez agora conseguisse algum progresso, pensou. Respirando fundo, sentindo-se
completamente recuperada arriscou engrenar nova conversação.
– É engraçado como você às vezes diz palavras em sua língua natal em meio a minha.
Jonathan não compartilhava do pensamento divertido. Sempre que misturava os idiomas estava
nervoso, envergonhado ou, o pior de tudo, excitado como há poucos minutos. Nenhum desses
sentimentos poderia ser despertado por ela. Jamais! Como não achou uma explicação plausível, disse
apenas:
– Reflexo.
Quando percebeu que aquela era toda sua resposta, Faith arriscou olhá-lo de esguelha mais uma
vez, antes de tentar novamente:
– Jonathan é um nome inglês demais para um italiano.
– Poucas pessoas reparam... Ou comentam, mas você tem razão. Tenho esse nome porque minha
mãe era americana e me deu o nome de meu avô.
– Era?
– Sim... – Jonathan não precisava de mais para entender a pergunta. – Minha mãe morreu tem
algum tempo.
– Sinto muito! – ela refreou o desejo de tocá-lo no braço para confortá-lo. Usar uma mãe falecida
como forma de aproximação era o cúmulo do desespero. Já esgotara sua cota de idiotices
desesperadas por aquela manhã. E, independente de sua vontade de dar uns bons amassos com o
italiano, estava gostando de saber mais sobre ele.
– Não sinta! – Foi tudo o que ele disse sobre o assunto.
– Tudo bem. – Quando a moça anteviu que o silêncio tomaria espaço, comentou o óbvio: – Então
seu tio é padre...
– Sim – ele confirmou. Com certeza a mãe deve ter lhe contado.
– E você mora com ele?
– Moro... Nossa família se resume a nós dois então sempre ficamos juntos. Aonde ele vai, eu vou e
vice e versa.
– Nossa! – Faith se admirou. – Um padre pode ser assim tão desprendido, seguindo-o quando você
vai embora?
– Acho que nosso parentesco nos permite isso.
– Ah... – ela exclamou simplesmente. Acreditava que comandar uma paróquia demandasse certo
grau de comprometimento, mas se o sobrinho do padre lhe dizia que não, quem era ela para
contestar? Faith ainda pensava a respeito, tão distraída com a conversa, que nem percebeu a
aproximação de seu eterno perdigueiro.
– Bom dia, Faith! – Tyler a abordou sem desprender os olhos especuladores do rosto de Jonathan.
– Bom dia – ela respondeu a contragosto.
– Bom dia – disse Jonathan, educadamente, mesmo que o cumprimento não tenha sido extensivo a
ele.
– Preciso falar com você – Tyler se dirigiu a Faith, após alguns segundos desconfortantes. A
vontade da moça era mandá-lo ao inferno, mas não seria grosseira diante do italiano; queria
conquistá-lo, não afastá-lo de vez.
– Se não for urgente, conversamos depois. Agora estou ocupada, como pode ver. – Indicando o
homem ao seu lado, acrescentou: – Esse é Jonathan De Ciello. Estamos no meio de uma caminhada
então, se nos der licença, nós...
– Eu o conheço – Tyler retrucou, cortando-a. – O novo padre.
Faith riu divertida, contudo, antes que tentasse desfazer o mal-entendido, viu a verdade nos olhos
azuis. Imediatamente seu riso cessou e, tentando ocultar o choque, afastou-se um passo sem deixar de
encará-lo. A vergonha que ruborizou seu rosto era maior que o ressentimento de ter sido enganada.
Jonathan – o padre – foi o primeiro a desviar os olhos. Encarando o rapaz de cabelos loiros, sem
expressão especial no rosto anguloso, disse ao estender a mão:
– Mas eu ainda não o conheço.
– Tyler Mills – o rapaz se apresentou apertando a mão estendida com força desnecessária em um
gesto tipicamente infantil. Jonathan teria achado graça não fosse o desconforto pelo clima tenso que
se instalou entre ele, a moça e o acréscimo do garoto. – Amigo da Fay.
– Prazer em conhecer, Tyler. – Ele era um dos íntimos, Jonathan pensou contrafeito. Ao recolher a
mão, colocou as duas nos bolsos da calça e as apertou como se daquela forma pudesse conter a raiva
súbita e inédita que sentia. – Acho que podem conversar agora mesmo. Preciso voltar para casa.
Tenho compromisso daqui a pouco e não devo me atrasar. Se me derem licença... – Voltando-se para
encarar a moça, disse antes de partir: – Permesso!
Sem esperar resposta, Jonathan se foi.
– Padre mais esquisito – Tyler resmungou às suas costas, alto o suficiente para que fosse ouvido;
então encarou a moça à sua frente e disse somente para ela: – Não sei por que, mas não gosto dele.
Faith não o ouvia. Ainda em choque com a notícia perturbadora, seguia o homem que se afastava,
com o olhar vago. Padre!... Seu italiano, aquele homem lindo, que transpirava sensualidade e
sexualidade despretensiosas, porém óbvias, era o comedor de hóstias!
Não era novo demais para seguir a vida religiosa? Evidente que não, ponderou. Padres não
nasciam com 80 anos de idade. Algum tempo em suas vidas monótonas e castas eles foram jovens. E
para infortúnio de Faith, tinha de conhecer logo o mais desejável e dissimulado de todos.
– Idiota! – exclamou distraidamente ainda vendo Jonathan ganhar distância. – Não é pecado
mentir? Como pôde me enganar dessa maneira?
– O que eu fiz agora, Fay? – a voz de Tyler a despertou do ciclo vicioso de vergonha, raiva e
pesar. Obrigando-se a se esquecer do padre mentiroso, ela encarou o rapaz à sua frente.
– Você não fez nada... Estava apenas falando sozinha. – Sorrindo-lhe, acrescentou: – Na verdade,
está completamente desculpado por ontem.
O rapaz abriu seu melhor sorriso; era um garoto feliz por ter sido tirado do castigo.
– Prometo me comportar... Vou esperar pacientemente que veja o óbvio, aceite que me ama e volte
para mim.
– Não força, Ty – ela pediu voltando a andar. Tomou o caminho contrário ao de Jonathan; agora
uma sombra distante à beira d’água.
– Como sempre digo... A esperança é a última que morre.
– Como queira – ela retrucou séria. – A vida é sua, desperdice-a como quiser... Agora me diga, o
que queria conversar comigo?
– Na verdade era só uma desculpa para fazermos as pazes, como já aconteceu... Acho que
podemos apenas caminhar. O que me diz?
– Digo que seria ótimo! – seu desejo era recusar, contudo, sabia que precisava se distrair. A
companhia do amigo a ajudaria.
– Legal! – exclamou contente, colocando-se ao lado dela. – Será que seu guarda-costas poderia
dizer o quanto estava especialmente bonita ontem à noite? – De súbito, perguntou: – Ainda sou seu
segurança, não sou?
– Pelo que vi ontem, nunca deixou de ser, não é mesmo? – ela retrucou, provocando-o. – E pode
dizer o que quiser. Elogios nunca são demais. – Sem conseguir tirar a imagem de Jonathan da cabeça,
perguntou apenas para manter o assunto: – Do que mais gostou?
– Ah... Não gosto de te ver se expor daquela maneira diante de todos aqueles velhos tarados e
babões, mas devo admitir que quando se acaricia... Hummm!...
– Safado! – acusou contendo o impulso de olhar para trás e ver se Jonathan ainda podia ser visto.
– Não é minha culpa – Tyler deu de ombros.
– Tudo bem... A safada sou eu que permito que me veja daquela maneira.
Não podia repreendê-lo visto que era a verdadeira culpada. Quando Tyler descobriu-a seminua
sobre o palco da The Isle, deveria tê-lo proibido de retornar à casa noturna, não ter aceitado o
oferecimento idiota de protegê-la.
Apenas o fez por saber que seu perseguidor não a deixaria sozinha de todo jeito. Agora era tarde
até mesmo para arrependimentos. A verdade é que não estava com cabeça para as conversas bobas
que mantinha com Tyler.
Foi ingenuidade de sua parte acreditar que ele estaria à altura de distraí-la. Nada seria maior ou
mais importante do que a descoberta recente. Aquele que conseguia despertar seu corpo e desejava
ardentemente provar a boca, era padre. Acaso ele não percebeu seu interesse? Como pôde deixar que
acreditasse possuir alguma esperança?
Não seja injusta, demandou a si mesma. Quem poderia garantir que o mal-entendido não fosse
desfeito antes que se separassem caso Tyler não os tivesse interrompido? Talvez ele não tenha
mentido sobre seu tio; os dois poderiam ser padres. E, talvez, sempre que o sentiu distante, pensativo
ou arredio, tenha sido nas vezes que tenha notado que o olhava como se fosse um homem comum.
Seria indelicado de sua parte se a afastasse diretamente. Não. Dava para perceber que ele era
educado demais para fazê-la passar por tal constrangimento. Com certeza esperava o momento certo
para introduzir a verdade de forma casual onde ela se colocaria em seu lugar sem maiores danos.
Diante do óbvio, sua raiva se extinguiu por completo dando lugar a resignação sentida. Teria de
aceitar o imutável.
Jonathan De Ciello – o único homem capaz de fazer suas pernas tremerem e seu coração bater
acelerado – era o único que não poderia ter.
Capítulo Seis

Jonathan seguia a passos largos em direção à igreja. Desconhecia-se. Nunca antes sentiu seu peito
inflamado de raiva genuína como acontecia naquele momento. Era sua obrigação amar à todos, mas,
sinceramente, não conseguia. Repassar mentalmente a reação da moça, rever a imagem do sorriso
apagar-se para dar lugar ao horror nos olhos incrédulos diante da descoberta – como se ele portasse
alguma doença ruim – alimentava o que Jonathan acreditava ser o início de um ódio irreversível pelo
rapaz intrometido.
Não percebeu o engano de Faith sobre sua real condição até ouvir-lhe o riso divertido. Deveria ter
inferido quando a moça perguntou sobre Carlo, que para ela, era apenas o sobrinho do padre. Se
tivesse atinado com a confusão teria desfeito o mal-entendido, mas encontrava-se distraído demais
com as sensações que a proximidade proibida lhe trazia. Agora, sentia-se como um meliante pego em
flagrante.
Faith o desprezava àquela altura, imaginando que não tenha esclarecido a confusão por desejar
tirar algum proveito. Aquele bem poderia ser seu desejo oculto. Talvez o ódio sentido fosse por si
mesmo. Não deveria sentir tais coisas, mas sentia. Não deveria pensar na moça ou procurá-la, mas o
fazia, tanto que correu até a praia duas manhãs seguidas, não para se exercitar, mas para vê-la.
– Bom dia, senhor! – alguém disse a sua passagem pela praça.
Não respondeu ou se voltou.
– Johnny, o que há? – Carlo gritou às suas costas tão logo ele passou correndo ao seu lado, já no
pequeno jardim em frente à casa que ocupavam, sem cumprimentá-lo.
– Deixe-me em paz! – pediu entrando na casa e seguindo direto ao quarto.
Ao entrar, trancou a porta a chave. Abalado por perceber que estava certo quanto ao ódio ser
dirigido a si mesmo, sentou na beirada da cama, fechou os olhos e apertou o lençol entre os dedos,
fortemente.
– Johnny está me deixando preocupado – o padrinho disse batendo à porta. – O que aconteceu?
Lembrou-se de algo?
– Não me lembrei de nada – gritou. – Só quero que me deixe em paz!
– Johnny...
– Deixe-me em paz! – ordenou ainda mais alto.
Logo ouviu os passos de seu padrinho afastando-se da porta. Sua cabeça latejava, massacrando seu
corpo juntamente com o coração acelerado. Acertou em suas considerações. Burlou-se na esperança
secreta de se aproveitar da moça. Não tinha como negar. Por mais que se recriminasse ou se
flagelasse, apreciava os espasmos de adrenalina que, antes, só sentia durante as noites de sonhos
vis.
Era excitante notar os detalhes luxuriantes do corpo que ela fazia questão de expor. Ainda de olhos
fechados, Jonathan reviu a boca de sorriso luminoso, imaginou que o hálito fosse doce como o mel.
Lembrou-se das pernas esguias, roliças. Da cintura fina que caberia perfeitamente entre suas mãos
caso a apertasse. Recordou os seios arfantes de bicos eriçados que desafiavam o observador a tocá-
los sob a camiseta branca e úmida. Imediatamente seu corpo reacendeu e o culpado de todos seus
infortúnios pulsou vivamente.
Contrariado, Jonathan retirou a camiseta e foi até sua cômoda para pegar o chicote. Precisava se
punir pelos pensamentos cada vez mais impuros. Contudo, ao tocá-lo, antes mesmo de levantar o
braço para afoitar-se, sua mente traiçoeira – mergulhada em ódio e desejo febris – lhe mostrou a
moça nua sobre sua cama, pedindo com o olhar que usasse o instrumento nela.
E ela merecia, Jonathan pensou, perdendo-se na visão. Era tão culpada quanto ele próprio por
estar duro de forma irreversível. Por transformá-lo naquele completo estranho.
Sim, ela merecia ser castigada, mas ao se imaginar a descer sua mão em direção às nádegas cheias
e ver as tiras de couro lamber a carne alva, macia, sua ereção chegou ao limite e pulsou. Conhecia
seu corpo então, rendido, teve forças somente de voltar para a cama, segurando seu chicote. Ao
sentar-se – exatamente onde vira a moça –, Jonathan puxou o cós do moletom, despiu a razão de sua
vergonha e a prendeu em sua palma. Ao movê-la, deixou que todas as imagens armazenadas que
possuía de Faith vagassem por sua mente ensandecida.
Iria para o inferno, era um fato. Mas, antes, deixaria que todas as sensações perturbadoras que
sentiu na manhã de quarta-feira e naquela, completassem o ciclo por sua mente, coração e veias, e
impulsionassem-no a mover a mão com maior rigor até que explodisse em tremores orgásticos.
Caindo de costas sobre o colchão, Jonathan sequer deu-se ao trabalho de se sentir culpado. Jamais
se orgulharia de tal ato imoral que o lembrava do ser fraco e fraudulento que era, mas tinha
consciência de que, no momento, era a única medida eficaz a ser tomada. Permaneceu estendido
sobre a cama, seminu, deixando que sua pulsação voltasse ao normal.
Quem disse que depois da tempestade vinha a bonança? No seu caso veio o vazio. Contudo este
era acolhedor e encheu seu coração de esperança. Acreditando estar de volta do que considerou um
surto isolado, Jonathan respirou, aliviado. Talvez, Faith tenha sido a válvula de escape para um
corpo abalado e nada mais.
Quem sabe, agora que liberara toda a tensão que deixou acumular durante aqueles dias, nada
sentisse quando a visse novamente? Então ela voltaria a ser como todas as outras moças. Apenas
mais uma de sua paróquia.
Pegando-se a esse pensamento, Jonathan terminou de se despir e se pôs de pé, olhando em volta.
Fizera uma bagunça de sêmen e roupas largadas sobre o chão. Era preciso limpar tudo, sem deixar
nenhum resquício, antes de aprontar-se e pedir desculpas ao tio. Também era preciso lembrar que
logo Nicole chegaria para sua primeira reunião sobre o piquenique comunitário. Tinha muito a fazer
para perder tempo com atrações que cultivava em sua mente ociosa.
Não reincidiria no erro, pensou esfregando a camisa branca sobre as provas de sua fraqueza,
limpando como podia seu fruto derramado. O piso ficou manchado, seria preciso limpá-lo com água
e sabão, mas isso teria de esperar. Sabia que se demorasse demais, logo Carlo não lhe daria mais
ouvidos e voltaria a procurá-lo. O jeito seria deixar a porta trancada enquanto não pudesse apagar
todos os traços de sua explosão violenta.
Ao término do banho, confirmou sua teoria, pois, sem que pudesse evitar, pensou em Faith.
Contudo a imagem não lhe causou qualquer reação corporal, nada. Satisfeito, vestido, voltou ao
quarto somente para pegar as roupas sujas. Levou-as à lavandeira onde as deixou num balde com
água e sabão. Agora vinha o pior, desculpar-se. Ao retornar para o interior da casa, procurou por seu
padrinho. Encontrou-o na sala há poucos instantes vazia, já na companhia de Nicole. Quando entrou,
ambos olharam incertos em sua direção.
No olhar do padrinho, Jonathan podia vislumbrar a mágoa.
– Bom dia! – cumprimentou simplesmente, conversaria com ele depois.
– Bom dia! – Nicole respondeu indecisa antes de perguntar. – Se sente melhor?
– Por que a pergunta? – quis saber, aproximando-se.
– É que... algumas pessoas disseram que o viram correr para cá como se estivesse passando mal
ou algo do tipo... – explicou, movendo a mão sobre o ventre, inconscientemente. – E pelo que pude
entender de tudo que seu padrinho tentou explicar, o senhor realmente não se sentia bem, então... Se o
senhor não estiver em condições, posso voltar outra hora.
Jonathan olhava para a moça, abraçada ao caderno – tão parecida com a irmã –, agradecido por
não sentir nada especial e pela mente coletiva que criara uma versão para sua passagem
intempestiva. Um desarranjo intestinal era muito melhor do que a necessidade inexplicável de
agredir um moleque ou de fornicar com Faith quando fizera um voto de castidade há apenas dois
meses. Respirando profundamente, assegurou:
– Sim, estou bem melhor... – Olhando para o tio, completou: – Depois me desculpo com todos que
deixei de cumprimentar.
– Ah... Não será preciso! – Nicole disse, finalmente a relaxar. – Todos entendem que isso
acontece. O melhor é esquecer o ocorrido.
– Sábias palavras!
– Bem... – Carlo afastou-se. – Acho que vocês têm muito a tratar, então voltarei a cuidar de minhas
plantas... Se precisarem de mim é só chamar.
Sem esperar qualquer resposta ou olhar na direção do afilhado, Carlo saiu, deixando-os a sós.
Jonathan era o causador da frieza então não poderia reclamar. Sem nada que pudesse fazer quanto ao
padrinho, indicou o velho sofá a Nicole.
– Sente-se... E me conte mais detalhes sobre esses eventos.
A companhia agradável da irmã de Faith, assim como sua eficiência, fez com que o trabalho
rendesse. Todas as primeiras decisões foram tomadas, restando apenas serem colocadas em prática.
Ficou decidido que o piquenique seria no segundo sábado após o retorno de Elliot Green e demais
pescadores. Ou seja, teriam 15 dias para cuidarem dos preparativos. Segundo Nicole, tempo
suficiente para mobilizar os parcos comerciantes locais e as senhoras quituteiras.
– Basta o senhor fazer o anúncio durante a missa de domingo e todos ficarão avisados – ela
dissera.
Para ele qualquer resolução seria bem empregada. Após a saída da moça, Jonathan ainda
permaneceu sentado em sua sala por alguns minutos antes que fosse se juntar ao padrinho. Encontrou-
o ainda a cuidar das poucas plantas do jardim diminuto. Sabia que sua presença tinha sido notada,
mesmo que o tio não olhasse em sua direção.
– Eu gostaria de me desculpar pela forma como me dirigi ao senhor – disse, parando ao lado com
as mãos nos bolsos da calça preta.
– Vai me contar o motivo de tanto destempero? – Carlo perguntou, analisando a batata de uma
roseira. Chutando uma pedra imaginária, o padre mais novo respondeu:
– Não.
– Acha que pode voltar à acontecer? – inquiriu o tio, afofando a terra para depositar a planta.
– Sinceramente eu espero que não aconteça. Nunca alterei a voz para o senhor e nada justifica que
comece a partir de agora.
– Bom... – disse Carlo, finalmente encarando-o, sem levantar. – Saber que pensa assim me basta.
Não vou levar em conta sua grosseria e quero lembrá-lo que sempre serei seu confessor.
– Sei disso... Apenas não é o caso.
Pelo menos não o tipo de caso que conseguiria externar para o padre mais velho. Dificilmente
teria coragem de confessar que suas inquietações e fraquezas – despertadas durante os sonhos –
ganharam vida e encarnaram em uma moça daquela cidade de nome tão sugestivo. Preferiria mil
vezes realmente arrancar a parte rebelde de seu corpo à admitir tal abominação.
– Tudo bem! Se é como diz... – Carlo o trouxe de volta de seus pensamentos. Para encerrar o
assunto, perguntou: – O que me diz? Como está o jardim?
Jonathan olhou em volta com atenção e, reprimindo um riso nada encorajador diante da desordem
das plantas mal cuidadas por tanto tempo, respondeu:
– Está perfeito!

– Faith o que você tem? – Tyler perguntou irritado depois de um longo período em que a moça
ficou em silêncio. – Estou aqui, falando à horas, e você só me responde com hum-hum.
– Desculpe-me... Estou com um pouco de dor de cabeça – mentiu.
– Sei... – desconfiou. – Acho que essa dor de cabeça tem nome e ocupação: Jonathan, o padre.
– Tá maluco?! – ela exclamou ao levantar da pedra na qual sentaram e se pôs a andar.
– Maluco nada... Não sou cego. Estava vendo vocês dois de longe e...
– Quando vai parar com isso? – ela perguntou impacientando-se. – Não quero que me siga o tempo
todo, droga!... E pare de falar asneiras. O homem é padre!
– Você não sabia disso... Vi na cara dos dois quando eu disse. Ele estava enganando você?
– Cala a boca, Tyler... É claro que eu sabia, ele jantou na minha casa ontem... Você está vendo
coisas – acusou, apertando o passo.
– Estava vendo você toda derrubada para o lado dele. Conheço você, Srta. Green!
– Tyler, eu preciso ir embora... Minha mãe está me esperando e eu, sinceramente, não quero perder
minha paciência com você, então me deixe em paz!... Se quiser me seguir me siga, faça o que quiser...
Mas eu preferia que fosse para sua casa... Tchau!
Faith se afastou correndo. Não por se envergonhar ao ter suas intenções percebidas, mas por raiva
de si mesma por nunca ter conseguido colocar um fim às perseguições. Nunca teria privacidade com
Tyler na sua cola; droga!
Enquanto corria, sua cabeça dava voltas. Não mais culpava Jonathan pelo mal-entendido, mas
maldizia sua vocação. Como seria daquele momento em diante? Faith não sabia e tampouco teve
tempo de descobrir. Tão logo cruzou o portão, sua mãe gritou da sala.
– Venha já aqui, mocinha! – Com um gemido desanimado, Faith obedeceu. Constance a esperava
diante da janela, com as mãos na cintura e cara de poucos amigos. – E então?
– Me desculpe por ontem à noite, mamãe, mas a pick up quebrou.
– O que quebrou?
– A correia se partiu. – Sua mãe não entendia de carros, qualquer desculpa valeria, pensou.
Acreditando em suas palavras, mas ainda carrancuda, esta perguntou:
– E você não poderia ter avisado que não viria?... Eu atrasei o jantar por sua causa!
– Estava sem o meu celular... Esqueci desligado aqui em casa.
– Por isso Nicole não conseguiu achá-la – Constance elucidou. – Sabe que me preocupei, não
sabe?... Deveria ter encontrado uma forma de avisar.
– Já pedi desculpas – lembrou-a, lamuriosa.
– Ah, está certo!... O que passou, passou. Mas, se acontecer novamente, me avise – pediu,
desarmando-se. – E então?... Quer saber como foi o jantar?
– Nicole já me contou ontem à noite. – E tudo que precisava saber fora dito na praia, pensou. Em
voz alta pediu: – Agora posso subir? Queria descansar antes de sair.
– Não vai tomar seu café?
– Estou sem fome – disse, dirigindo à escada. – Depois eu tento comer algo no almoço.
Em seu quarto, Faith se atirou sobre a cama, esquecida da mãe. Rolou impaciente por não
conseguir apagar a lembrança de Jonathan. Emitia um gemido baixo, frustrado, toda vez que o
maldito formigamento voltava ao seu ombro e se espalhava por todo o corpo. E ardia quando
escutava uma ou outra palavra em italiano, cantada em seu ouvido.
Droga, droga, droga, Faith pensou ao se levantar e seguir até o banheiro. Não deveria ter parado
de sentir aquelas coisas ao saber a verdade? Entrando sob a água gelada, sem se despir, Faith
encostou a cabeça nos azulejos e deixou que os pingos grossos batessem em uma nuca. Precisava
esfriar a cabeça e o corpo. Contudo a técnica não surtia efeito. A roupa molhada aderida ao seu
corpo, somada às imagens e à voz de Jonathan, excitou-a.
– Faith! – Constance bateu à porta antes que pudesse se comprazer com as sensações sentidas.
– O quê? – perguntou com o coração aos saltos como se a mãe pudesse flagrar seus pensamentos.
– É Nicole. Precisamos levá-la ao hospital.
Nicole?! A menção da irmã machucada ou doente todo desejo se foi, fazendo com que Faith se
esquecesse do padre. Podia não saber para quê as irmãs serviam, mas amava a sua como a si mesma.
Mesmo sendo a ponta podre, por sua família, seria capaz de qualquer coisa, pensou retornando ao
quarto para se vestir às pressas.

Sem novos eventos sociais que requeressem sua presença, Jonathan se recolheu cedo aquela noite.
Bloqueando os acontecimentos da manhã, o padre dormiu o sono dos justos. Não sonhou ou rolou
pela pequena cama, e despertou descansado, pronto para mais um dia.
O sábado amanheceu ensolarado e, como não desejava mudar uma rotina já estabelecida, se
arrumou e partiu para a praia. Não criou expectativas em ver a moça sobre a pedra então não se
decepcionou por não encontrá-la. Correu ao longo da orla duas vezes até a completa exaustão antes
de voltar para casa – tomando o devido cuidado de cumprimentar todos que encontrou pelo caminho.
Satisfeito, viu o dia correr e findar cuidando dos últimos preparativos para sua primeira missa na
manhã seguinte. Quando finalmente caiu sobre sua cama depois de se despedir do tio e das orações
noturnas, Jonathan dormiu e não sonhou. A vida era fácil, o homem era quem a complicava. Esse foi
seu último pensamento ao dormir e o primeiro ao acordar.
Enfim o grande dia chegara. Quando entrou na pequena cozinha – agora abastecida com o básico –
Carlo preparava o desjejum. Jonathan tomou o café simples: uma xícara de café puro, um pedaço de
pão e uma fruta. Não trocaram mais do que três palavras, ambos ansiosos pelo início da missa. Antes
que começasse a sentir falta de seu exercicio diário, jonathan chamou o padrinho para ajudá-lo a se
vestir.
Na sacristia, recolhido em oração, na qual pedia calma e sabedoria, Jonathan vestiu sobre seu
corpo o amito e então a batina. Nem ao menos notou quando terminou de abotoar o restante dos trinta
e três botões, tão compenetrado estava.
Carlo, que o auxiliaria durante a missa, também se aprontou, porém sem sua ajuda. Tão logo estava
pronto o padre mais novo seguiu para a igreja afim de abri-la. Não se espantou ao ver a Sra.
Williams cuidando do altar, pois ficara acertado na tarde passada que ela cuidaria dos objetos que
usaria durante o rito.
Ainda faltava meia hora para o início dos trabalhos, mas alguns de seus futuros fiéis estavam na
praça à frente. Tão logo os cumprimentou com um aceno, todos vieram até ele, tomavam sua bênção e
entravam. Após a vigésima pessoa, Jonathan já se sentia mais à vontade. Estava preparado! Pronto
para assumir definitivamente a vocação que almejou desde sempre. Aquela era sua realidade e
somente esta deveria interessar.
O burburinho era alto no interior da capela, contudo silenciou por alguns segundos quando uma
pick up preta estacionou à sua frente e dela saíram Constance e Faith. Esta logo deu a volta para
ajudar a mãe e juntas descerem Nicole pelo lado do carona. Seus olhos pousaram sobre a Green
caçula no momento exato que reafirmava suas convicções. Jonathan não pôde deixar de considerar
que tenha sido uma peça pregada pelo acaso.
Fosse qual fosse o causador da coincidência, este alcançara seu objetivo. Como das outras vezes,
Jonathan não deixou de olhar a moça até que ela estivesse a cinco passos à sua frente. Nesse
momento – depois de ter reparado no vestido amarelo que Faith usava e nos cabelos escuros, presos
num rabo de cavalo – ele desviou o olhar para a irmã que vinha amparada por ela e a mãe. Nicole
tinha a perna esquerda engessada até o joelho, contudo, mesmo andando com dificuldade, não trazia
qualquer expressão de dor.
– Bom dia! – Jonathan as cumprimentou, correndo os olhos rapidamente pela Green mais velha e a
mais nova, antes de pousá-los em Nicole: – O que aconteceu?
– Eu caí quando deixava a loja do Billy... Fui falar com ele ao sair daqui – esclareceu em tom
divertido. – É bem a minha cara não ver caixas de tomates bem debaixo de meu nariz.
– Eu sinto muito – Jonathan lamentou.
– Ah... Tudo bem. – Nicole deu de ombros. – A boa notícia é que foi apenas uma luxação. Em
alguns dias esterei livre do gesso. A má é que não poderei cuidar dos preparativos para o
piquenique.
– Não se preocupe – ele pediu seriamente. – Se não acharmos alguém para substituí-la, nós
adiaremos.
– Já resolvemos isso – Nicole assegurou, sorridente. – Faith vai cuidar de tudo.
Ao ouvir o nome, o padre mirou o rosto da moça. Quando os olhos se encontraram esta ergueu uma
das sobracelhas e esboçou um sorriso torto, desafiador. E lá estavam elas! Todas as sensações que
jonathan acreditou estarem extintas, apossaram-se de seu íntimo e somaram-se à inquietação que o
assaltou quando a viu contornar a caminhonete. Contudo, não se renderia a elas. Ali, parado à porta
de sua igreja, na iminêncida de iniciar a vida que escolheu, Jonathan decidiu que não se acovardaria
diante das provações que o destino lhe impunha e retribuiu o sorriso.
– Tenho certeza de que Faith será uma substituta à sua altura.
A moça estava preparada para a recusa – baseada na forma abrupta como o padre a deixou na
praia, na companhia de Tyler – então foi com alívio que o ouviu aceitar a ajuda oferecida à irmã já
medicada e engessada quando esta comentou a necessidade de conseguir alguém que assumisse seu
posto.
– Evidente que serei – retrucou, sem falsa modestia. – Sua bênção padre.
Jonathan ergueu a mão por puro reflexo, mirando o rosto da moça com o cenho franzido. E foi em
choque que a viu segurá-la e se curvar para beijá-la. Quando os lábios macios tocaram seus dedos,
somente o espanto ante tal atitude o manteve firme quando calafrios correram seu corpo até
alcançarem todas as extremidades. Não era sua intenção ser grosseiro, contudo retirou a mão
bruscamente e, depois de pigarrear, abençoou as três antes de pedir:
– Entrem. Depois conversaremos sobre o piquenique.
– Também acho melhor – anuiu a Sra. Green, duramente, sem desprender os olhos da filha.
Jonathan ainda se recuperava quando as Scott o cumprimentaram.

– Tive uma ideia para o piquenique, senhor – Maggie anunciou, animada.

– Acho que teremos de adiar – ele avisou automaticamente.

– Por quê? – ela perguntou entristecida.

– Nicole se machucou e eu não se ainda faremos.

– Ah... Mas eu ouvi que Faith vai ajudá-lo. Bom, se ela não puder eu ainda estou disponível!

O padre encarou Maggie Scott. O que acontecia com as moças daquela cidade? Acaso não viam
que ele era padre não um possível pretendente? Contrariado por perceber que aquele assédio era o
único que o incomodava, Jonathan encerrou o assunto e pediu que entrassem. Terminou de receber a
todos ainda com a sensação perturbadora dos lábios de Faith em seus dedos. Sabia que nem que
lavasse a mão mil vezes esta desapareceria.

Resignando-se, deu meia-volta, bloqueando a moça em sua cabeça. Tinha uma missão à cumprir e
não deixaria que ela ou qualquer outra o distraísse. Depois, muito depois, veria o que fazer quanto ao
piquenique. Faith deixou claramente exposta suas reais intenções para com ele, talvez não fosse
sábio manter sua posição em enfrentar o desafio. Afinal era apenas humano, pensou. E sua carne era
muito fraca!
Capítulo Sete

Enquanto seguiam para o banco que sempre era ocupado pela família do líder comunitário,
Faith se deliciava com o visível embaraço do padre. Aquele era o troco por ele ter o poder de
amolecer suas pernas sempre que o via. Ainda reprimia um sorriso vitorioso quando a mãe perguntou
num sussurro:
– O que foi aquilo?
– Aquilo o quê? – Faith sussurrou de volta.
– Por que beijou a mão do padre?
– A senhora viu porque, não estou entendendo a pergunta... – retrucou inocentemente. – Acaso fiz
algo errado?
– Fez! – a mãe sibilou. – Não há a necessidade de tocá-lo. Não percebeu que o deixou
constrangido?
– Me desculpe, eu não sabia.
– Ah, tudo bem! Apenas não repita. – Após se acomodarem, Constance resmungou: – Você nunca
participou de uma missa de bom grado. Fez a primeira comunhão por imposição de seu pai. Não sabe
nem se comportar. Não vejo como possa ajudar, substituindo sua irmã.
– Festa é festa e eu vou apenas colocar em prática tudo que Nicole já determinou. Se eu fizer
alguma coisa errada, ela me corrige. Não é mesmo, Nick?
– Claro que sim – a irmã firmou distraidamente enquanto olhava em volta.
– Vocês é quem sabem – replicou a mãe, dando de ombros. Esquecendo-se das implicâncias de
Constance, Faith sussurrou ao ouvido da irmã:
– Ele não está aqui. Nem poderia, não é mesmo?
– Não sei do que você está falando – Nicole retrucou séria.
– Tudo bem, Nick! – Faith tomou a mão da irmã, apertou-a acolhedoramente e murmurou para que
a mãe não ouvisse: – Eu também sinto saudade.
A irmã nada disse, apenas olhou para ela com os olhos lacrimejantes antes de fechá-los e deitar a
cabeça em seu ombro.
– O que foi? – especulou a mãe, com as sobrancelhas unidas.
– Ela queria que Joe estivesse aqui – Faith explicou, passando o braço pelos ombros da irmã.
Acreditando na mentira, Constance passou a conversar com a senhora Scott que acabava de se sentar
no banco de trás com sua filha Maggie. A moça não se interessava por nenhuma delas, no momento a
dor da irmã era a sua dor. Amar era uma droga, isso é que era. Principalmente quando não se podia
ficar com que se ama.
Faith nutria verdadeira adoração pelo pai, mas considerava seu atraso cultural uma anomalia.
Entendia seu conservadorismo; sua opção política que o fazia um republicano fervoroso, mas
considerava praticamente inadmissível que em pleno século XXI ele fosse tão arcaico quanto às
relações pessoais. Somente por acreditar que Joseph Wilson era um bom partido, praticamente
obrigou a filha mais velha a assumir um noivado, quando este anunciou seu interesse. Submissa como
toda boa senhorita do século XVII deve ter sido, Nicole não se opôs. Faith sabia que boa parte dessa
aceitação resignada se dava ao fato de Peter Shaw ter se mudado da cidade.
E não mentira, sentia falta do rapaz. Ambos tinham a mesma idade e foram amigos desde que Faith
poderia se lembrar. A amizade não era extensiva a Nicole. Com ela o interesse sempre foi outro,
mesmo sendo quatro anos mais velha do que ele. Quando seu amigo mirrado finalmente a conquistou
e iniciaram um namorico secreto, a família Shaw se mudou de Sin Bay. Peter sempre vinha à cidade,
mas depois do noivado de Nicole as visitas ficaram espaçadas. Era ingenuidade de sua irmã
acreditar que ele estivesse presente naquela missa.
Idiotices dos apaixonados, Faith pensou. Por isso se apaixonar não estava nos seus planos. Ao
pensamento Faith ergueu os olhos e encontrou Jonathan no pulpito diante de si. Não ouviu o que ele
dizia, apenas levantou com todos os outros e o seguiu fazendo o sinal da cruz. No mais, acompanhou
seus gestos sem perder um único movimento, lutando para não permitir que seu queixo caísse sempre
que o considerava irresistível naquelas vestes eclesiasticas.
Sem que pudesse evitar começou a vislumbrar todas as formas possíveis e imagináveis de despí-lo
enquanto se beijassem. Sim, estava recuperada do choque em sabê-lo padre e a descoberta nada
mudara: ela o queria. E quem poderia culpá-la? O certo era não aceitarem homens como ele na
igreja. Tal absurdo devia ser proibido por lei como atentado violento contra a preservação e
manutenção da qualidade da espécie.
– Faith? O que há? – uma voz chamou a distância. Só então a moça percebeu que a voz estava ao
seu lado. Nicole a puxava pela mão, chamando sua atenção.
– O que foi? – perguntou aturdida.
A pronta resposta da irmã foi desnecessária. A missa tinha acabado e Jonathan desaparecido de
seu campo de visão. Todos os presentes se retiravam da pequena igreja, falando entre si
animadamente. Apenas ela e a irmã permaneciam sentadas; Nicole esperando que ela ajudasse a mãe
– já de pé – à levantá-la. Recompondo-se, Faith fez o esperado e logo as três seguiam para a saída.
Quando saiu à rua, nem o vento manso lhe aliviou o calor. Imaginava se deveria levar a irmã até em
casa e voltar com a desculpa de tratar dos preparativos do piquenique, quando foi abordada e
abraçada por sua futura cunhada.
– Faith!... Estava com saudades de você, amiga!
– Também senti sua falta, Helen! – disse ao retribuir o abraço.
– Ah, a faculdade está me matando! – reclamou Helen, num muxoxo. – Não tenho mais vida
social... Não nos vemos mais como antes... Sinto sua falta... Quando vai voltar?
– Acho que já passou da hora de voltar – Constance retrucou.
– Não sei, Helen – Faith respondeu sem dar ouvidos à mãe. – Sinceramente não me interessa ser
contadora.
– Não tem problema!... Podemos conversar sobre isso hoje à tarde. Resolvi que vou passar o dia
com minha futura família.
– Que ótimo!... – Faith exclamou sem real entusiasmo enquanto mirava a amiga equiparada é ela
em altura e com os cabelos tão escuros quanto o seu, porém mais curtos.
Sua mãe e irmã ficaram felizes. Gostavam de Helen como se já fizesse parte da família. Faith
também gostava. Ela era sua confidente e cúmplice sempre que precisava de algum álibi. Fora Tyler,
Helen era a única que sabia de sua vida dupla. Sim, gostava dela, mas alimentava a vontade de ir ter
com o padre. Agora teria de ficar em casa e fazer sala à amiga. Paciência!

– Todos já foram embora – Carlo anunciou ao entrar na sacristia quando Jonathan terminava de
guardar a alva e a estola que usara sobre sua batina.
– Que bom! – foi a resposta simples.
– E então... O que achou?
– Correu tudo como eu esperava – disse Jonathan, sério, seguindo para a porta.
– Para onde vai? – o padrinho inquiriu, franzindo o cenho.
– Para minha corrida. – Sem dar tempo para que Carlo dissesse qualquer coisa, Jonathan partiu
para seu quarto. Não foi seguido e, uma vez pronto, partiu rumo à praia. Ao chegar, correu até que se
sentisse esgotado então, quando o ar lhe faltava, sentou sobre a areia e fitou o mar a murmurar: –
Alguma coisa está errada!
Tinha de estar! Seria a única explicação para o desconforto visceral que sentiu durante toda a
celebração. Nos primeiros passos do missal acreditou que a inquietação fosse causada pela presença
de Faith, sentada no banco da frente. Bella em seu vestido amarelo, sem desviar os olhos
descaradamente adoradores de si, mas com o passar do tempo até mesmo ela desapareceu para ele.
Jonathan fez aquilo que fora preparado durante anos para fazer, como se fosse um autômato
programado, não um padre jovem, récem-ordenado, convicto de sua vocação, entusiasmado diante de
sua primeira assembléia.
Lá, de pé diante do pulpito, chamando a todos para rezar com ele, sentiu as vestes sagradas
queimarem sua pele como a lhe dizer que verdadeiramente era um impostor. Aquele não era o seu
lugar, pensou apertando a cabeça fortemente entre as mãos e fechando os olhos enquanto corria os
dedos pela cicatriz em seu couro cabeludo. Se ao menos pudesse se lembrar de toda sua vida.
Ter sua história contada por outra pessoa era uma droga. Há praticamente nove anos tinha de se
contentar com o relato de Carlo. Agora Jonathan sentia a necessidade de ser, ele mesmo, capaz de se
lembrar dos assuntos importantes. E no momento o desejo de ser padre – coisa que não sentia ser –
era o mais importante.
– Venha!... Venha!... – ordenou, batendo nas laterais da cabeça, ainda de olhos fechados.
Contudo, como sempre, nada aconteceu. Nenhuma mísera recordação, nem mesmo dos primeiros
dias que esteve no hospital, nada! Inconformado com a inutilidade de seu cérebro, olhou o mar à
frente. Mesmo que estivesse esgotado, ainda sentia o mesmo bolo compacto em seu estômago que o
acompanhou durante toda a missa como uma bomba prestes a explodir. Se pudesse, se lançaria nas
ondas e nadaria até desaparecer, mas não podia. Desaparecer era para os covardes e mesmo que
tivesse dúvidas sobre quem verdadeiramente era, sabia que não era um deles.
Fechando os olhos mais uma vez, Jonathan fez uma prece muda, jurando a si mesmo que
descobriria o erro. Voltaria à personagem que – segundo Carlo – ele mesmo escolhera para si, mas
dessa vez não se conformaria. Cumpriria suas obrigações, contudo, tão logo tivesse a chance, sairia à
caça de sua história sem nada dizer a Carlo. Suas aflições eram basicamente as mesmas e conhecia o
discurso de cor. Na melhor das hipóteses, o padrinho novamente lhe diria que era somente
insegurança ante o desconhecido. Na pior, mais fervorosa e irritante de todas, que esta era tentação
do demônio para tirá-lo da retidão.
E como se não bastasse esse turbilhão de emoções que o confudia, agora tinha Faith. Ao pensar na
moça seus dedos beijados fervilharam e a inquietação em seu peito estranhamente arrefeceu, como se
para mostrá-lo que ela era um problema menor. Sem dúvida era o mais agradável. Se as indicações
de seu corpo estivessem certas e vivesse uma vida equivocada, sua atração por ela era um delito
menor do que ter se tornado padre sem ter verdadeira vocação. Isso não significava que iria
conceder ao que a menina inconsequente lhe pedia com o olhar, afinal era padre. Contudo deixaria
que ela desse andamento ao que a irmã iniciou.
Na vida, nada acontecia por acaso, e mesmo que sua carne fosse fraca, se o destino quis que seus
caminhos se cruzassem, amém!

– Você o quê?! – Helen exclamou alarmada, maximizando os olhos.
– Fale baixo – Faith pediu, beliscando-lhe o braço.
– Ai, sua maluca! – A amiga afastou-se, esfregando o local dolorido. – Como não vou me espantar
com você dizendo que...
– Não repita! – Faith ordenou.
– ... quer pegar o padre?! – Helen completou num sussurro, sem se importar com o olhar
fulminante que recebia.
Estavam no quarto que Faith dividia com a irmã, sozinhas. Nicole descansava na sala juntamente
com a mãe, após o almoço. Faith sentia-se tão sufocada por não ter conseguido sair que considerou
boa ideia dividir sua angustia com a amiga. Agora tinha suas dúvidas enquanto a via andar de um
canto ao outro em seu quarto.
– Não vou participar disso. Fique avisada – advertiu a amiga, apontando-lhe o dedo.
– Não estou pedindo... – a moça retrucou, indiferente.
– Ah, tá! – Helen debochou sem parar de andar, nervosamente. – Você sempre me envolve. Até
carrego a fama de irresponsável por dois de seus erros. No último ano do colegial me fez jurar que
estava na biblioteca quando estava era se esfregando com o professor de biologia. Anos depois quis
dar um banho de língua no Marco... E, por favor – pediu com as mãos erguidas –, ainda não quero
saber o que isso significa... Quem ficou de plantão na porta do refeitório da faculdade? Euzinha... E o
que é pior, ouvindo o pobre fazer barulhos que até hoje tenho pesadelos. Isso tudo sem lembrar esse
seu fetiche de ficar pelada na frente dos outros. Você tem problema sabia?... Mas dessa vez eu estou
fora! Não tenho intenção de ir para o inferno.
– Ninguém vai para o inferno... Eu só quero dar uns beijinhos nele – Faith mininizou o interesse,
dando de ombros.
– Beijinhos num padre, sua maluca?!... Tanto homem por aí e você cisma com um padre?
– Eu sei o que Jonathan é, não precisa ficar repetindo – Faith pediu, séria.
– Jonathan?!... – admirou-se a amiga. – Já está íntima!... É Sr. De Ciello, sua herege.
– Deixe de frescura, Helen. E venha se sentar antes que caia lá na sala depois de cavar um buraco
no meio do meu quarto.
– A informação foi demais para mim – Helen explicou, indo se sentar ao lado da amiga sobre a
cama. – Você disse que se lembra, mas acho que não está entendendo... O. Homem. É. Padre!
– Só me interessa o homem... o resto é detalhe. E não se preocupe que não vou pedir sua ajuda
para nada. Só quis contar porque você é minha melhor amiga? – Faith arrematou a declaração com
um sorriso.
– Nem vem!... Posso ser sua melhor amiga, mas não vou visitar o senhor das trevas com você...
Preferia que não tivesse me contado – anunciou em tom resignado, então perguntou: – Não existe uma
lenda, acho que brasileira, onde dissem que mulher de padre é uma mula sem cabeça?... Então, a
mim, bastaria vê-la em quatro patas e ácefala, desfilando pela praça.
– Há-há! Muito engraçada... – Faith retrucou, começando a ficar de mau humor.
– Sério, Faith – Helen começou tocando a mão da amiga. – Desista disso. Agora não se trata de
amassos ou sacanagens comuns... Com padres não se brinca.
– Não é brincadeira, Helen... É só uma coisa que eu sinto que preciso fazer... Ele é diferente dos
outros.
– Evidente que é difente. Ele é padre! E você não precisa fazer nada... É capricho! Tudo bem que
ele é lindo. Seu irmão que não me escute, mas o padre Jonathan é um dos homens mais bonitos que já
vi. Ainda assim não está disponível e, no compromisso dele, não cabem amantes.
– Já disse que não quero nada disso... Juro que me contento com um beijo. Um beijinhozinho e o
deixo em paz.
– Tá vendo? Capricho puro e simples.
Não era capricho, Faith pensou irritada. Estava apenas tentando consertar o mal feito. Realmente
não devia ter contado nada. Ainda mais quando nem ela própria sabia o que queria. A única coisa
que tinha intenção era a de não se envolver, mas se o conquistasse, ficaria com ele enquanto valesse
a pena. Enquanto Jonathan a fizesse sentir as coisas que nenhum outro fora capaz. Somente por se
lembrar, seu corpo queimava.
Quando o viu pela manhã suas pernas amoleceram como aconteceu na praia e ela adorava aquela
sensação de leveza e agitação no estômago. Como explicar essas coisas a Helen sem que a amiga
viesse com a definição romantizada de que estava apaixonada? Se ouvisse tal disparate explodiria
com a amiga de vez. Decididamente não devia ter dito nada. O seu interesse no italiano era um
segredo seu e ninguém tinha nada a ver com isso.
– Acho que você tem razão, Helen – tentou encerrar o assunto. – Às vezes eu cismo com alguma
coisa ou alguém e fico sem medida.
– Ai meu Deus!... É pior do que eu imaginava! Se está concordando comigo é porque está decidida
a ir até o fim.
– Você me pegou! – Faith exclamou derrotada. – Então vamos apenas mudar o assunto?
– Tudo bem! – Helen concordou. – Só me prometa que não vai fazer nenhuma besteira.
– Prometo.
– Certo... – a amiga começou; depois de pensar por alguns minutos em que o silêncio se instalou
entre elas, comentou: – Ainda está passando Sherlock Holmes no cinema de Wells. O que acha de
irmos eu, você e Mason no próximo sábado?
– Acho ótimo... – disse Faith, tentando reestabelecer o clima leve entre elas. – Sempre foi meu
sonho servir de vela para meu irmão.
– Não seja chata... Até lá arrumamos uma companhia para você. Ou podemos chamar o Tyler... Ele
vai de todo jeito. Poderia ir com você e não seguindo você, só para variar.
Sem que a amiga pudesse esperar, Faith pegou o travesseiro às suas costas e a atingiu com toda
força na cabeça.
– Não se atreva a chamar o Ty – pediu, contendo o riso diante do assombro de Helen.
– Sua maluca!
Depois de gritar e fugir do ataque, Helen pegou o travesseiro de Nicole e tentou revidar. Ainda
tentaram se atingir algumas vezes até que o riso roubasse suas forças. Depois da brincadeira infantil
toda tensão do assunto anterior se foi. Quando mais tarde, a amiga anunciou que iria embora, Faith
realmente sentiu sua partida.
O restante da noite passou rápido. Nicole apenas fez sala ao noivo que tentava a todo custo levá-
la para a varanda. Enquanto isso, Faith e a mãe falaram com o Elliot pelo rádio. Depois de contarem
as novidades da vila – e de ouvirem sua surpresa com a chegada de um novo padre – ficaram
sabendo que na manhã de sexta-feira ele estaria de volta com os boxes do pesqueiro carregado em
toda sua capacidade, assim como todos os outros. Eram boas notícias.
Constance tinha recolhido quando Joseph foi embora, visivelmente inconformado com Faith que
não o deixou um segundo sequer a sós com sua noiva. A moça até simpatizava com ele, mas já que
sua irmã não estava feliz com o arranjo e não tinha coragem de dar um fim a ele, ajudaria no que
pudesse. Tão logo ouviu o portão sendo fechado, Faith ajudou a irmã a subir para o quarto. Depois
de acomodá-la na cama, já trocada, fez o mesmo e, sem sono, pediu mais informações sobre suas
ideias para o piquenique.
– Faremos o de sempre. Já conversei com Billy, ele vai fornecer os descartáveis e alguma bebida.
Não consegui falar com todas as senhoras, mas pelo que vi na missa de hoje, todas estão dispostas a
ajudar.
– Estão? – Faith perguntou por reflexo.
– Sim, você não ouviu? Praticamente todas disseram que farão seus bolos e tortas favoritos tão
logo o Sr. De Ciello expôs a ideia. – Faith não ouvira nada, mas não diria. Por sorte a irmã
prosseguiu: – Como combinamos, deixaremos uma lista na sacristia onde todas que forem participar
podem deixar seus nomes e o que levarão. Você precisa falar com Samuel para ver se ele arruma os
cavaletes e as madeiras que usamos como mesas para os doces e salgados... Ele sempre empresta,
então não será problema. Enfim, está tudo definido, só precisa colocar em prática.
– Só isso eu consigo fazer – Faith comentou, revirando os olhos. Nicole riu de sua careta e então,
de súbito voltou à seriedade e agradeceu:
– Obrigada por me ajudar.
– Imagina que eu ia deixar todos os seus preparativos se perderem e...
– Com Joe – ela explicou, interrompendo-a. – Ficando conosco... Sinceramente eu nem sei mais o
que conversar com ele.
– Se é assim tão ruim, devia terminar esse noivado. – Faith olhava a irmã com pesar. – Já pensou
como será depois que se casar?
– Penso nisso todos os dias – Nicole admitiu depois de um suspiro profundo. – Ele não é de todo
ruim... É bonito, tem um bom emprego na câmara... Papai gosta dele.
– Mas você não gosta. Se pudesse, estaria com outro. Por que não liga para Peter e conversa com
ele? Sei que já passou algum tempo, mas talvez...
– Peter foi embora, Faith! – Nicole exclamou embargada. – Por minha culpa... Quando vem à
cidade, mal fala comigo. Além do mais, nada mudou. Sabe que papai jamais concordaria com nosso
namoro. Ele acha um absurdo quando vê casais onde a mulher é mais velha. Por isso namoramos em
segredo, sabe disso.
– Apenas quatro anos! – lembrou com vontade de chacoalhar a irmã. – Entendo que naquela época
papai não aceitaria, mas hoje?... A diferença nem se nota.
– Você conhece a cabeça de Elliot Green... Para ele, Peter sempre será o garoto mirrado e eu sua
filha mais velha. Ele acredita em casais perfeitos. Joe combina comigo e Peter talvez combinasse
com você.
– Nem vem... – Faith protestou. – A cabeça de Elliot Green não me governa e Peter seria o último
homem com quem eu me casaria.
Ao comentário sua mente traiçoeira a colocou ao lado de um homem alto, com mais de 1,80 m de
altura, cabelos curtos cor de areia molhada e olhos azuis, como se fossem um casal. Ainda abanava a
cabeça para desfazer o pensamento fora de hora quando a irmã comentou, séria:
– Peter não é bom o bastante para você?
– Não! Peter é perfeito para você. E tão logo se resolvam, tenho certeza de que serão felizes
juntos... Papai não poderá fazer nada para mudar isso.
– Acho difícil, mas espero que esteja certa. – Nicole suspirou e finalmente se deitou, encerrando o
assunto. – Boa noite, Faith.
– Boa noite.
A moça não insistiu. Sabia o quanto a irmã sofria pelo amor perdido. Como prova, ouviu seu choro
baixo até que o sono a vencesse. Faith ainda demorou algumas horas para acompanhá-la. Seu sono
foi agitado, repletos de sonhos quentes onde o italiano sussurrava palavras doces em seu ouvido e a
tomava nos braços apaixonadamente, mostrando para ela que por baixo daquela batina agourenta,
existia um homem de verdade.
Capítulo Oito

Naquela manhã, Jonathan saiu para sua corrida antes do horário habitual, sem seus cuidados
habituais com a barba ou o banho. Tinha pressa mesmo que não acreditasse não ser capaz de fugir do
olhar inquiridor do tio por muito mais tempo. Logo o visível mau humor que utilizou como cerco
protetor na tarde passada, ruiria e Carlo o bordaria. Jonathan esperava apenas que fosse bem depois
que encontrasse o equilíbrio perdido durante a missa. Não saberia como expôr a sensação de estar
vivendo outra vida, sem que isso implicasse em estar, indiretamente insinuando que o tio mentia.
Afastando o pensamento inquietante, Jonathan rumou para a praia depois de cobrir-se com o capuz
do agasalho para ocultar-se – como um real fugitivo – agradecendo o fato de as ruas estarem
praticamente vazias. Encontrou apenas o velho Billy arrumando repolhos sobre uma bancada,
Samuel, enfileirando varas de pesca na pequena vitrine e Grace varrendo a calçada em frente à
lanchonete. Cumprimentou-os rapidamente, sem der-lhes chances de iniciar qualquer tipo de
conversação antes de enveredar pela rua que o levaria à mata próxima a casa dos Greens e então
para a praia deserta mais de trezentos metros além.
Quando chegou à faixa de areia e se preparava para alongar seus músculos, viu aquela que também
tentou manter fora de seu cerco. Jonathan não esperava vê-la, talvez por isso seu coração tenha
falhado uma batida no momento exato em que avistou a figura caminhando lentamente à beira mar.
Como se não tivesse controle sobre seus passos, Jonathan caminhou rapidamente em direção a Faith,
evidenciando que algo muito forte o ligava a ela.
Ao chegar mais perto, percebeu pelas roupas úmidas que ela nadara. Também notou o rabo de
cavalo que se movia de um lado ao outro, como o pêndulo de um relógio antigo. Indo e vindo, indo e
vindo. Fascinante!
– Bom dia! – cumprimentou, quando finalmente estava a um passo dela.
– Buon giorno, padre Jonathan – ela respondeu a sorrir. – Sua bênção.
Jonathan a abençoou, tomando o devido cuidado de não lhe estender a mão. Depois de retribuir o
sorriso, perguntou brandamente:
– Aprendeu meu cumprimento não foi?
– Eu aprendo rápido – ela comentou. – E gosto do som. Acho bonita a forma como o senhor fala.
A formalidade lembrou-o de sua posição. Portanto recriminou-se pela ambiguidade mundana que
conferiu à explicação simples da moça, julgando que ela quis dizer mais do que disse na verdade.
Intrigado com o rumo que sua mente tomou e, aproveitando o lembrete de sua posição eclesiástica,
prometeu para distrair-se:
– Então a cumprimentarei sempre dessa maneira... Buon giorno, Faith!
O sorriso da moça se alargou, antes que abaixasse a cabeça, satisfeita, e recomeçasse a andar.
Após alguns minutos de silêncio, onde caminhou ao lado dela como se fosse o natural a ser feito,
Jonathan a ouviu comentar:
– Não esperava ver o senhor aqui tão cedo.
Novamente a formalidade estalou na sua cabeça. Após um suspiro profundo, Jonathan retrucou:
– Também não esperava vê-la. É muito cedo... Deveria estar dormindo.
– Nesse horário geralmente estou mesmo – ela explicou. – Mas... Essa noite foi estranha. Não
dormi direito.
Sem que pudesse evitar o padre viu a moça a rolar pela cama, insone. Talvez depois de despertar
de um sono breve permeado de pesadelos tórridos e perturbadores, como por vezes acontecia com
ele. Abanando a cabeça discretamente para afastar a imagem, ele disse:
– Capisco!... Digo, eu entendo. É algo que queira dividir?
– Não! – Como se percebesse seu exagero, baixou a voz e atalhou: – Não foi nada, juro... Acho
que comi demais antes de deitar.
– Não precisa jurar. Acredito em você... Mas saiba que, se algum dia tiver qualquer assunto que a
aflija, pode conversar comigo.
Claro! Ela falaria que o motivo de ter caído da cama às cinco da manhã era ele. Narraria as coisas
que fizeram em seu sonho depois que retirou a bendita batina. Talvez devesse expor de uma vez as
maluquices que passavam por sua cabeça e ver no que dava, ponderou. Jonathan poderia lhe passar
sermão inflamado antes de excomungá-la ou...
Olhando para o rosto sério e altivo, centímetros acima do dela, Faith soube que dificilmente teria o
“ou”. Para ver o que aconteceria teria de ir aos poucos, evitando um ataque direto.
– Obrigada! – respondeu por fim. – Quando for preciso, eu o procuro. No momento basta uma boa
caminhada para que eu me sinta melhor. Quando voltar para casa, talvez tire um cochilo antes de ir
até a igreja.
– Se é como diz... – Jonathan franziu o cenho. – Mas algo me diz que o assunto é sério, afinal, não
bastou apenas uma caminhada.
– Como?!... – espantou-se.
– Você nadou. Está molhada ainda... Acho que precisava de mais ação para se cansar – ele disse,
indicando-lhe as roupas.
Jonathan entendia bem o conceito, ele próprio recorria à atividade física para exaurir o corpo na
esperança de esgotar também o espírito. Não a conhecia, mas acreditava ser esse o motivo do nado
durante o final da madrugada.
– Eu sempre nado – Faith respondeu prontamente, especulando se Jonathan possuía algum poder
telepático. – Caminhar é que é a novidade para mim.
– Assim como correr? – indagou com um sorriso.
Logo Jonathan se considerou um intrometido. Se a moça não queria lhe contar suas perturbações
ele não tinha nada que tentar adivinhá-las ou forçá-la a dizer. O melhor a fazer era refrear sua
curiosidade e mudar o rumo da conversa já que estava claro que seguiriam juntos na caminhada pela
areia.
– Assim como correr – ela concordou após alguns segundos e, como se compartilhasse do mesmo
desejo de mudança, retrucou: – Não é educado comentar minha limitação.
– Perdonami – pediu. Sem se dar conta da língua usada diante da ideia súbita e insana que lhe
ocorreu, sussurrou como que para si mesmo. – Aspetta un attimo...
– Eu não entendo... – a moça o interrompeu, desconcertada. – Desculpe.
– Eu é que peço desculpas... – novamente, sem medir as consequências de suas palavras ou no
quanto estas iriam contra de sua resolução anterior, explicou: – É que uma ideia me ocorreu... O que
acha de correr comigo todas as manhãs? Poderíamos começar com uma caminhada acelerada e
poucos metros de corrida até que conseguisse me acompanhar.
Faith quase engasgou. Ter um encontro diário com o padre, por sugestão dele, ia além de sua mais
ilusória imaginação. Não poderia deixar passar a chance de ficar a sós com ele, contudo, de repente,
deu-se conta de que nunca estariam sozinhos. Sem que pudesse evitar olhou por sobre o ombro, na
direção das árvores, e apertou os olhos na tentativa inútil de ver se alguém os espiava.
– Faith?! – Jonathan a chamou.
Ao olhá-la, Faith notou que tinha parado sem lhe dar qualquer resposta. Sem que pudesse evitar,
novamente olhou para a mata. Comumente a perseguição de Tyler a incomodava, mas naquele
momento, odiou-a. de toda forma, Jonathan não a convidara para rolarem na areia. Nem mesmo a
mente sacana de Tyler poderia ver maldade em algo tão inocente quanto correr.
– Se não for te atrapalhar... Por mim tudo bem! – disse por fim.
Ela deveria ter recusado, Jonathan pensou aflito. Seria o certo, mas como esperar o certo de uma
garota que classificou como inconsequente quando ele mesmo não o fazia? Ela agia de acordo com o
que vinha demonstrando desde que se conheceram. Faith estava sendo Faith. E ele? Estava sendo
quem?
Enquanto via um sorriso se formar nos lábios femininos, dizia a si mesmo que o Jonathan que ele
conhecia, era aquele que tentava ser racional e o alertava para se manter distante. Aquele outro
Jonathan, que o impulsionava até ela e não lhe permita se afastar ao ponto de procurar desculpas para
vê-la, era estranho a ele. E ao que parecia, o novo Jonathan começava a tomar maior espaço em seu
íntimo. Preocupante!
– Podemos começar agora? – ela perguntou esperançosa, tirando-o de seus pensamentos.
Nada daria maior prazer àquele novo homem, contudo, o Jonathan consciente se colocara diante do
outro. Não voltaria sua palavra atrás naquele momento para evitar constrangimentos desnecessários,
mas tentaria desfazer o mal feito tão logo tivesse a chance. Tentando não se deixar levar pelo
contentamento que via crescer juntamente com o sorriso de Faith, escusou-se:
– Agora infelizmente não será possível. – Afastando-se um passo, como se acreditasse estar perto
demais, completou: – Acabo de me lembrar de que tenho um compromisso com meu padrinho antes
da hora de encontrá-la para acertarmos os detalhes do piquenique. E de toda forma, não está vestida
adequadamente. Não deveria nem estar andando com essas roupas molhadas, quanto mais correr.
Mais tarde acertamos para amanhã ou depois.
– Tudo bem – Faith aquiesceu, juntando as sobrancelhas. Não sabia onde tinha errado, mas estava
claro que fizera alguma coisa inadequada. Somente isso explicaria a súbita partida.
– Será possível que sempre vamos nos despedir assim? – perguntou para si mesma. Não pode se
perder nas especulações, pois sua visão foi atraída pelo movimento furtivo atrás de um pequeno
abeto: Tyler!
Tão cedo? Espantou-se Faith. Não estava com paciência para ele então, fingindo não ter percebido
sua presença, seguiu pelo mesmo caminho tomado pelo padre, pedindo internamente que o rapaz não
a abordasse. Não queria macular a lembrança sonora do “ciao” quase inaudível, escutando o inglês
comum e irritante de seu perdigueiro compatriota.

– O que pensa que está fazendo?! – o padrinho inquiriu em sua língua natal, alarmado, quando
Jonathan entrou no quarto que ocupava. – Como pode andar por aí seminu?!
– Não estou assim despido – defendeu-se, indo até o guarda roupa pegar a camiseta que esquecera
de levar ao banheiro. Somente por esse motivo estava com a toalha jogada sobre os ombros, mas
usava sua habitual calça preta e estava abraçado à camisa que logo vestiria. Sabia que estavam
apenas os dois na pequena casa então o tio não precisava fazer aquele alarde. Ignorando o olhar
reprovador, jogou a toalha sobre a cama e terminou de se vestir.
– Onde esteve? – Carlo perguntou tão logo terminou de afivelar o cinto. Sem responder-lhe,
Jonathan caminhou até a cômoda para pentear os cabelos úmidos. Precisava ganhar tempo; pensar no
que diria no interrogatório que se seguiria.
– Jonathan, eu estou falando com você?... – vociferou o tio com tom autoritário. – Não se atreva a
me ignorar.
Era o fim! Sua defesa ruíra, restando dizer a verdade. Pelo menos a parte que considerava menos
afrontosa. Depois de depositar o pente sobre a cômoda, voltou-se para o padrinho.
– Perdoe-me – Jonathan respondeu também em italiano. – Não era minha intenção ser
desrespeitoso com o senhor.
– Se não tem a intenção, não faça. E me diga de uma vez o que o aflige desde que... Desde que
chegamos aqui – Carlo retrucou azedo. O padre sabia que o tio tinha razão. Estava agindo
estranhamente desde que chegaram àquela vila, ou melhor, desde que conheceu certa moça. Diante da
constatação, o restante lhe pareceu ser apenas consequência desse encontro. De repente, as palavras
lhe faltaram. O que diria quando nem mesmo sabia explicar o que se passava com ele? – Estou
esperando, Jonathan.
– Não sei o que dizer. – Foi sincero.
– Comece pelo começo – simplificou. – Identifique o bicho que o mordeu que eu lhe mostro a cura.
Jonathan estremeceu como a criança que um dia foi diante das palavras do padrinho. Era como se
Carlo, não só soubesse o nome e sobrenome do referido bicho, como também estivesse prestes a
esmagá-lo entre os dedos. Não poderia nem mesmo falar sobre Faith. Conhecia o padrinho e sabia
que seria absolvido prontamente ao passo que a moça seria eleita a única culpada por suas aflições.
Ainda procurava o que dizer, quando o próprio inquisidor lhe apresentou uma alternativa.
– Ou será que me enganei? – indagou, controlado. – Seu comportamento nada tem a ver com essa
cidade e, sim, com aqueles sonhos?
– Eu...
– Acertei, não foi?... Eu deveria saber que era isso. Você até cogitou jejuar antes de virmos para
cá. – Se não o corrigisse não estaria mentindo, considerou. E a explicação equivocada era tão
perturbadora quanto a realidade e também estaria de acordo com seu comportamento intempestivo.
Acalentando a esperança de encerrar o assunto antes mesmo que começasse, Jonathan permaneceu
calado e mirou o chão. Tomando seu silêncio como uma confirmação, Carlo falou brandamente: –
Johnny, quantas vezes eu devo dizer para não dar tanta importância a esses sonhos? Você não é
culpado por eles. Também não saberia dizer onde sua mente pode ter coletado tais imagens
mundanas, mas eu sei que não fez nada para obtê-las.
Jonathan não poderia confirmar ou negar sem que efetivamente induzisse o padrinho ao erro e
consequentemente, mentisse. Tudo que foi capaz de fazer foi permanecer de pé, em silêncio, até que o
tio resolvesse deixá-lo.
– Johnny, olhe para mim – ele pediu, tocando-o no ombro. Quando o jovem padre o encarou,
prosseguiu apaziguador: – Não se cobre demais... E não se afaste. Sabe que sempre poderá contar
comigo. Tente esquecer esses sonhos e viver sua vida em paz.
Jonathan apenas assentiu e logo foi deixado sozinho. No geral, o saldo da conversa que evitou fora
positivo. Saindo da apatia simulada, seguiu os passos do padrinho e foi à sacristia; já era hora de
começar a cuidar de suas obrigações. Como não tinha nada a ser feito na sala anexa à igreja, o padre
se dirigiu à porta que levava à lateral do altar no interior da capela. O silêncio não o preveniu para a
cena que se descortinou à frente de seus olhos.
Foi com admirado espanto que Jonathan encontrou praticamente a metade dos bancos ocupados. Já
estava acostumado com a superioridade feminina, mas estranhou que não houvesse um único homem
entre elas. Sem querer atrapalhar as orações, o padre seguiu em silêncio pela nave em direção à
porta principal, contudo, bastou que uma moça o cumprimentasse, para que todas as outras
interrompessem seus sussurros enlevados. Foi a mesma moça delatora que primeiramente se
aproximou com olhar incerto.
– Não sei se o senhor estabelecerá dias certos para a confissão, mas... Eu estive pensando se...
poderia me confessar agora.
– Poderia... – disse simplesmente. Jonathan não se sentia em condições de eximir pecadores de
suas faltas, mas não tinha uma desculpa plausível para adiar sua função. Depois de indicar-lhe o
confessionário, seguiu-a preparar-se para ouvi-la em nome de seu Criador e conceder-lhe o perdão
mesmo que não encontrasse um para si.

Faith atravessou a porta principal da igreja com o coração aos saltos, antecipando a moleza nas
pernas quando seus olhos pousassem no padre. Contudo, ao ver boa parte da capela ocupada por
mulheres ajoelhadas nos genuflexórios, sua ansiedade foi substituída pelo deboche.
– Bando de assanhadas! – sussurrou para si enquanto caminhava pela nave rumo à sacristia. Ao
entrar na pequena sala e avistar o padre compenetrado que folheava um grosso livro de registros, seu
coração enregelou. Ao que tudo indicava, sempre seria assim. Antes mesmo de anunciar sua
presença, Jonathan ergueu a cabeça para encará-la.
– Ciao, Faith... – ele cumprimentou sério demais. – Estava esperando você.
– Desculpe ter demorado – ela começou, avançando mesmo sem ser convidada a entrar. – Tive de
ajudar minha mãe com alguns afazeres de casa.
– Não tem problema – murmurou. – Estive ocupado boa parte da manhã.
– Eu vi – ela retrucou, contrariada. – Todas vieram se confessar?
– A maioria. – Foi a resposta lacônica e seca antes que Jonathan cruzasse as mãos sobre as
páginas do livro à sua frente. – Agora, o que ainda precisamos fazer? Acho que eu e sua irmã já
tínhamos resolvido tudo, não?
– Pelo que Nicole me passou, sim? – ela respondeu, estranhando que Jonathan não só mantivesse a
mesma postura rígida de quando a deixou, como demonstrasse certa frieza.
– Então, acredito que agora baste colocá-las em prática, não é mesmo? – indagou em tom
profissional, confirmando as impressões da moça. – Creio que não será necessário vir aqui. A menos
que precise de minha ajuda ou tenha algo a acrescentar.
– Acho que não preciso vir – ela concordou igualmente seca. – Na verdade, nem precisaria ter
vindo agora. Desculpe se o atrapalhei.
Girando nos calcanhares, Faith saiu da sacristia pisando duro, sentindo seu rosto arder. Jonathan
era louco! Bipolar! Somente isso explicaria a dualidade no tratamento que lhe dispensava. Uma hora
a abordava educadamente, convidava-a a correrem juntos, no outro, deixava-a de forma abrupta e
depois a tratava como se fosse um estorvo. E tudo sem qualquer motivo aparente.
Em sua saída apressada, a moça mal notou o padrinho do padre que cruzou seu caminho para
cumprimentá-la. Não via ninguém. Ressentida com o tratamento recebido, ela dizia a si mesma que
deveria seguir as palavras de Helen e esquecer a loucura de assediar o padre. Com um humor
daqueles, com certeza seu esforço seria em vão.

O novo homem ligado a Faith demorou bons trinta segundos até dominar o padre e se levantar para
segui-la. Precisava se desculpar pela grosseria velada antes que ela se fosse. No entanto, sua saída
apressada foi interrompida pela chegada de Carlo. Os dois praticamente se chocaram à porta da
sacristia.
– Aonde vai com tanta pressa? – perguntou Carlo, franzindo o cenho.
– Eu preciso trocar duas palavras com a... Srta. Green.
– Ela já foi embora – anunciou. O tio perscrutou-lhe o rosto aflito antes de voltar o olhar
inquiridor na direção que a moça tomou rumo à porta principal. Depois que voltou a encará-lo,
perguntou com visível desconfiança: – O que disse a ela para que saísse daquela maneira?
– De que maneira? – perguntou desentendido.
– Ela praticamente passou por cima de mim sem nem me ver. Chamou-lhe a atenção por algum
motivo?
– Não – respondeu rápido demais. – Apenas tratávamos do piquenique e eu me esqueci de pedir
uma coisa... Se me der licença, acho que ainda a alcanço.
– A Srta. Green já foi embora – Carlo repetiu enfaticamente. Jonathan conhecia aquele tom. Ele
pode ter deixado passar seu interesse na conversa anterior, contudo, naquele minuto, ficou claro que
a semente da desconfiança começava a germinar. Se somasse a saída abrupta da moça à sua aflição,
fatalmente chegaria à conclusões acertadas sobre sua postura dos últimos dias.
– Está bem! – Jonathan anuiu desinteressado. – Nem era tão importante assim. Posso esperar.
– Bem... – Carlo começou, indicando o interior da sacristia para que Jonathan entrasse e lhe desse
passagem. – Já que citou, eu gostaria de falar sobre esse piquenique.
– Fale – Jonathan o incentivou, indo se sentar na cadeira atrás da grande mesa de madeira
entalhada. Antes de dar-lhe sua atenção, fechou o livro de registros que olhava distraidamente antes
da chegada de Faith. – Então... O que quer conversar sobre o piquenique?
– Eu queria que o cancelasse.
– Posso saber por quê? – Foi a vez de Jonathan franzir o cenho enquanto tentava adivinhar os
motivos do tio.
– Acho desnecessário esse agrupamento de gente. Podemos conseguir o dinheiro para as obras
dessa capela somente com a doação dos comerciantes e as oferendas durante as missas.
– Quanto a isso não tenho dúvidas, mas o senhor tem de admitir que esse evento pode atrair mais
fiéis e com isso aumentar a participação. Consequentemente, as doações seriam mais satisfatórias.
– Não sei se gosto disso. Não me agrada que pense em aumentar a frequência somente para
conseguir mais doações.
– E quem está pensando somente nisso? Quero a igreja cheia para levar-lhes a palavra da qual fui
preparado para propagar, não arrancar-lhes dinheiro, se é isso que está pensando.
– Foi preparado? – Carlo enfatizou a palavra como se não tivesse ouvido todo o breve discurso
inflamado. – O que quer dizer com isso?
E lá estava o padrinho mirando seu afilhado com olhos avaliadores. Jonathan não queria enveredar
por aquele assunto tanto quanto não queria especulações à cerca de Faith, então desconversou com o
óbvio.
– Acaso os anos de teologia não me preparam para guiar os homens comuns até Deus? –
invertendo a posição de avaliado para avaliador, inquiriu: – O que acha que eu poderia estar
insinuando?... Qual o problema em minha afirmação?
– Eh... Nada – o padrinho retrucou desconcertado. – Eu é que estou nervoso com todas as
novidades. Não tenho o costume de participar desses eventos então não consigo ver a necessidade de
fazê-los. Mas estamos aqui agora e a paróquia está sob seu comando. Caso acredite ser o melhor a
ser feito, prossiga!... Mas ainda não vejo a necessidade de divulgação.
– Que espécie de divulgação? – O jovem padre tinha dificuldade de acompanhar o humor do
padrinho; ora autoritário, ora cordato.
– O piquenique contará somente com os moradores daqui ou vocês pretendem espalhar a notícia
pelas cidades vizinhas?
– Serão somente os locais... Não teríamos tempo hábil para organizar um evento com capacidade
para tantas pessoas.
– Melhor assim. – Foi o comentário intimista.
– Sinceramente não entendo essa sua relutância em socializar com outras pessoas.
– Não entende porque não há nada para ser entendido – retrucou o padrinho, pondo-se de pé
subitamente. – Acho que vou cuidar das minhas plantas. Estou pensando em cultivar algumas ervas
aromáticas. A senhorita Campbell acabou de me presentear com algumas sementes. – Seguindo para a
porta que levava à casa que moravam disse: – Espero que consiga resolver o assunto pendente com a
Srta. Green... E que ela volte mais calma.
Jonathan nada pôde retrucar, pois foi deixado sem mais comentários. Carlo o confundia às vezes. E
o fazia dizer coisas que nem ao menos deveria pensar, como o fato de realmente acreditar ter sido,
não só preparado, como programado para seguir o sacerdócio. Teria de tomar maior cuidado se não
desejava denunciar suas conjecturas ou fomentar a desconfiança do padrinho quanto aos motivos que
levaram a moça à sair da sacristia apressadamente.
Ao se lembrar de Faith, Jonathan recostou-se na velha cadeira, preocupado. Até mesmo sua porção
ponderada repudiava sua frieza. A moça poderia ser provocativa, mas, aquela manhã se comportou
com primor; cabendo a ele o avanço na relação conturbada que se anunciava. Não era culpa dela que
tenha ouvido a confissão de outras mulheres imaginando ser ela ajoelhada no compartimento anexo
ao seu, ansiando ser dela algum perfume que sentia mais acentuado, ou ouvir o timbre dela nas tantas
vozes que escutou durante relatos de faltas leves e até risíveis.
Foi justamente por sua presença involuntária no confessionário que reservou a ela certo rancor ao
sentir-lhe o cheiro real. E não somente a Faith, mas também a si mesmo, por ser uma criatura fraca,
tão suscetível ao chamado de um corpo jovem, cheiroso e, provavelmente, macio. Como não poderia
destilar seu veneno contra si, voltou-se contra ela.
Ao fechar os olhos, Jonathan ainda guardava a imagem da moça de pé, a poucos passos à entrada
da sacristia, com o caderno abraçado ao corpo – linda – com os cabelos presos em seu eterno rabo
de cavalo, usando um vestido lilás. O que está feito está feito, pensou resignado e em voz alta repetiu
em sua língua natal:
– Quello que è stato fatto è stato fatto. – E acrescentou na tentativa de convercer-se: – Talvez
tenha sido melhor assim.
Capítulo Nove

– Fay... Já terminei! – A menina de sete anos exibia sua obra prima com orgulho para uma
instrutora alheia à sua presença. A criança chamou novamente, agora ofendida com o descaso: –
Faith!
Somente então a moça focou o olhar na figura emburrada à sua frente. Carla, uma de suas
promessas do mundo artístico, chacoalhava a folha de papel sulfite contendo a pintura em guache
ainda recente, mirando-a com os pequenos olhos acusadores.
– Você não gostou não foi? Odiou! – concluiu, fazendo menção de rasgar o desenho.
– Imagina! – a moça exclamou, distraindo-se com o gênio forte da jovem aprendiz. Imediatamente
abriu um sorriso amistoso e segurou as mãos pequenas antes que danificassem o trabalho. – Ele está
lindo! – Inclinou-se n, segredou ao ouvido da pequena pintora: – Acredito que seja o mais bonito de
todos.
– Também acho... – animada pelo tom conspirador, Carla aproveitou as cabeças próximas e
sussurrou: – O da Bianca está horrível!... Ela não sabe pintar, Fay...
Rindo abertamente do comentário maldosamente precoce, Faith pediu que voltasse para seu lugar e
iniciasse outra obra de arte. Quando a menina a obedeceu, feliz em ser a preferida da instrutora de
artes, a moça olhou em volta. Apesar de vir de má vontade, às vezes, Faith gostava da ocupação.
Distraia-se com a algazarra das crianças, além de receber um salário satisfatório para fazer o que
mais gostava: desenhar e pintar.
A má vontade se dava pelas discordâncias do dia-a-dia, pelas pequenas brigas com a mãe e irmã
quando ela desejava sumir daquele fim de mundo no qual vivia, entretanto sempre eram esquecidas
tão logo estivesse diante de suas crianças.
Naquela tarde, contudo, a proximidade com seus futuros talentos não surtia o efeito desejado. Não
conseguia esquecer a forma como fora tratada pelo padre Jonathan. A ambiguidade do
comportamento do sacerdote a irritava, mas, depois de acalmada, nem assim conseguia deixar de
desejá-lo. A imagem de um padre altivo, à mesa, não saiu de sua cabeça durante todo o restante da
manhã em que visitou os poucos comerciantes de Sin Bay e a seguia até aquele momento.
Quando Carla a tirou do devaneio, estava justamente imaginando como ele ficaria lindo retratado
em uma tela. Com certeza seria a versão masculina da Mona Lisa, com o sorriso tão enigmático
quanto seu olhar penetrante e anil. Novamente presa na especulação artística, Faith imaginou que
talvez o italiano ficasse mais bem retratado como a versão masculina de “O nascimento de Vênus” de
Sandro Botticelli*. Seria algo como “O despertar de Apolo”.
Sim, nunca o vira sequer sem camiseta, mas sua visão aguçada sabia reconhecer todas as formas
ocultas e poderia dizer, sem sombra de dúvidas, que Jonathan De Ciello era um deus coberto com
roupas mortais. Pelo menos fisicamente, pois no que se referia à suas ações, ele era tão comum e
bipolar quanto qualquer frequentador dos consultórios psiquiátricos.
Obrigando-se a esquecer o padre, Faith se concentrou no aluno que se aproximava para exibir seu
trabalho. Ela não pode deixar de se perguntar se o menino não entendera a proposta de passar para o
papel o lugar onde viviam e tivesse acreditado que a pintura era para ser feita sobre ele próprio.
Finalmente se distraindo com suas crianças, Faith mal percebeu o passar das horas. Quando chegou
ao carro de seu pai, tudo o que desejava era correr para casa e tentar esquecer, definitivamente, a
forma como fora tratada.
– Oi, Fay – ela ouviu a voz de Tyler sussurrada em seu ouvido. Depois de respirar profundamente
se virou para encará-lo.
– Acaso agora monta acampamento ao redor de minha casa? – perguntou sem cumprimentá-lo.
– Como? – ele indagou, confuso.
– Não se faça de desentendido – ela sibilou, abrindo a porta da pick up, enraivecida. – Eu o vi
essa manhã.
– Essa é nova, pois eu não te vi – o rapaz retrucou enquanto segurava a porta para que ela não
entrasse.
– Agora vai começar a negar? – Faith bateu na mão que segurava a porta. – Vai me dizer que não
foi à praia essa manhã?
– Fui à praia, mas não te vi... Pensei até que você não tivesse ido – ele explicou.
Faith o encarou por um instante. Tyler era irritante e grudento, mas nunca negara suas perseguições.
Não tinha motivos lógicos para começar a fazê-lo. Talvez o movimento que acreditou ter visto tenha
sido fruto de sua imaginação, sugestionada pela presença sempre constante. Fosse como fosse, Tyler
não teria como saber que iria à praia antes das seis horas da manhã.
– Tudo bem! – disse por fim. – Acredito em você. Desculpe minha grosseria.
– Essa também é nova! – o rapaz exclamou. – O que está acontecendo com você? Nunca se
desculpa comigo... E a que horas foi à praia que não a vi?
– Sinceramente eu não queria brigar com você, Ty – ela falou após um suspiro cansado.
– Também não quero brigar com você, Fay. – O rapaz lhe acariciou o rosto, ternamente.
Incomodada com o toque, Faith se retesou, fazendo com que ele afastasse a mão. Depois de um
suspiro resignado, Tyler recuou um passo e lhe deu passagem para que entrasse no veículo.
– Melhor irmos embora. Não precisa me dar satisfação de sua vida, não é mesmo?
– Isso – ela replicou, antes de se acomodar ao volante.
– Tudo bem... – Tyler fechou a porta. – Mas pelo que vejo, serei obrigado a montar a porra do
acampamento.
Sem responder-lhe, a moça partiu, deixando o estacionamento ainda em tempo de ouvi-lo dizer
mais alguns palavrões por não esperá-lo. Logo a seguia como sempre, enquanto guiava rumo a Sin
Bay. Na tentativa de se distrair também da conversa com Tyler, Faith ligou o rádio e colocou numa
estação conhecida para ouvir as dez mais da programação. À certa altura, a sequência musical foi
interrompida para a notificação de que um dos criminosos mais perigosos do país tinha deixado a
prisão após oito anos de reclusão. Desinteressada, Faith não deu nenhuma importância.
Ao se separar de Tyler, a poucos metros da praça da cidade, a moça seguiu para casa fazendo
esforço para não olhar na direção da igreja. Após o jantar tranquilo na companhia da mãe e da irmã,
ainda se congratulava por sua força de vontade em não olhar para a construção. Já na sala, ria com o
bom humor de Nicole – típico dos dias em que o noivo não aparecia – que desfilava manca pela
casa, ridicularizando o gesso que a limitava enquanto recebia broncas inflamadas de sua mãe, sem se
abalar por nenhuma delas.
Ainda na companhia das duas, Faith assistiu a um filme romântico. Talvez por ter ido para a cama
influenciada pela temática da história que tenha sonhado novamente com o padre. Dessa vez, porém o
conteúdo não teve nenhuma conotação erótica, sendo talvez, o sonho mais açucarado do que o filme
assistido. Contudo a leveza das imagens criadas por sua mente fértil não impediu que ela rolasse pela
cama e acordasse no início da madrugada com o corpo em chamas, inflamado pelos beijos
apaixonados que recebeu de um Jonathan participativo.
Recusando-se a levantar fora de hora, Faith permaneceu em sua cama até que fosse vencida pelo
cansaço e conciliasse o sono. Quando desceu para o café da manhã – horas após seu horário habitual
que a atrasou até mesmo para sua ida à praia – já estava vestida para cuidar de suas funções de
organizadora de eventos. Apesar de entristecida por ter perdido a oportunidade de encontrar com
padre onde ele se mostrava mais acessível, não pôde deixar de rir do nome pomposo que se
autodenominou. Não era organizadora de nada, apenas uma pecadora em vias de descer ao inferno
com uma estrelinha dourada pelo empenho.
– Qual a graça? – a mãe perguntou, despertando-a do devaneio. Pega de surpresa, ela respondeu
rapidamente.
– Estava me lembrando de Nick desfilando ontem à noite.
– Isso não é engraçado. Sua irmã deveria estar repousando aquela perna, não brincando com
lesões sérias.
– Não se preocupe tanto, mamãe. Se estivesse doendo ela não brincaria. Nicole deixou de ser
criança há muito tempo – observou, revirando os olhos aos exageros de Constance.
– Às vezes eu tenho minhas dúvidas quanto à isso! – a mãe retrucou, indo até a pia para lavar a
pouca louça que usara antes de a filha caçula se juntar à ela. Como Faith nada comentou, prosseguiu:
– Não consigo entendê-la. Quando o noivo está aqui ela fica com cara de velório e quando não está
fica feliz como se todos os dias fossem dias de festa. Qualquer hora Joseph desiste diante de tanta má
vontade... Ele é um rapaz tão bom. Seu pai ficaria mortificado caso rompesse o compromisso.
– Ah... Deixe disso, Sra. Green! – Faith exclamou antes de ir ao auxílio da irmã mais velha. – Joe
ama Nicole desde que a viu e não vai deixá-la por causa de seu embaraço diante dele.
– Acha mesmo que é isso? Embaraço? – Constance retornou à mesa, baixando a voz. – Às vezes eu
acho que sua irmã não está feliz.
– E se ela estivesse infeliz – Faith testou. – A senhora a apoiaria caso resolvesse desmanchar o
noivado?
– Vire essa boca para lá! – a mãe pediu aflita. – Não brinque com isso. Como disse, seu pai
surtaria caso sua irmã deixasse passar um bom partido como Joseph.
Faith sabia muito bem qual seria a reação do pai. Era seu sonho deixar as filhas casadas e bem
estabelecidas na vida. E um jovem secretário, com ambições de seguir a carreira política era, talvez,
o melhor partido que ele poderia desejar para uma filha que já considerava velha demais para o
matrimônio. Elliot sempre comentava com orgulho o fato de sua avó ter casado com dezesseis anos e
ele próprio ter desposado Constance quando ela estava com dezenove.
É quando as mulheres estão aptas para cuidar do marido e gerar filhos, ele dizia. As mulheres de
hoje se preocupam demais em serem iguais aos homens e nessa ânsia acabam se perdendo nos
escritórios. Quando resolvem casar e ter seus filhos parecem mais suas avós do que mães. Tudo tem
o tempo certo para acontecer. Diante do discurso batido, Faith não tinha dúvidas que o pai
simplesmente enfartaria caso Nicole sequer esboçasse o desejo de se livrar de Joseph. O que
aguçava a curiosidade da moça no momento era saber como sua mãe agiria. Depois de dar um gole
no café preto que bebia, ela voltou à carga:
– Não perguntei sobre papai, quero saber o que a senhora faria.
– Eu ficaria do lado de seu pai – Constance respondeu sem nem pensar. – Amo meus filhos, mas é
com ele que vou ficar quando todos se forem então tenho que zelar para que tenha uma velhice
tranquila, sem aborrecimentos ou lembranças amargas.
– Entendo... – disse secamente.
– Não me julgue mocinha – a mãe pediu, enraivecida. – Fui criada para apoiar meu marido e é
assim que deve ser. Quando você formar sua família, me entenderá... A esposa tem de seguir as
determinações do marido... Tem sido assim desde que o mundo é mundo!
– Discordo! – Faith não se importou com o olhar reprovador que recebeu da mãe. – Foi assim
durante algum tempo, mas o mundo evoluiu e as pessoas também. Não espero que a senhora vá contra
as determinações do papai, mas também não acho certa essa sua forma submissa e devotada de segui-
lo. Se um dia eu formar uma família, quero seguir ao lado e não atrás do meu marido.
– Como assim “se”?!... – Constance perguntou alarmada dando mostras de que nem ao menos ouviu
o restante do discurso idealista demais para suas convicções. – Acaso acha que não se casará?
– No momento não acho nada –Faith respondeu, descontraída, na tentativa de apagar o incêndio
que se anunciava. – Foi só um comentário. Quando meu príncipe encantado aparecer começamos à
tratar dos preparativos para o grande dia, até lá... – Faith se interrompeu para dar um último gole no
café e comer o derradeiro naco de pão. Depois de engolir a massa mal mastigada, completou: – Até
lá é melhor eu cuidar da minha vida. Já estou atrasada para visitar as doceiras da vila.
– Não pense que vai...
– Tchau mamãe! – Faith a cortou dando-lhe um beijo ruidoso na bochecha antes de sair em
disparada para a escada. Tão logo escovou os dentes e pegou o caderno com as anotações de Nicole
juntamente com seu material usual, saiu do quarto sem acordar a irmã e fez o caminho contrário.
Agradecendo o fato da mãe não a estar esperando no pé da escada, saiu rumo a garagem. Tomaria
o devido cuidado de nem ao menos voltar para a casa no almoço. Comeria algo na lanchonete da
Grace antes de viajar para Wells. Melhor era esquecer o assunto ou logo colocaria luzes de neon
sobre a irmã e denunciaria a inconformidade com o compromisso.
Como na manhã passada, Faith desceu em frente à igreja e caminhou até ela já sentindo o leve
torpor de seus membros, preparando-se para o choque quando visse o padre. Contudo, mesmo que os
bancos estivessem tomados, não viu Jonathan em parte alguma. Sem saber se agradecia ou lamentava,
seguiu até a sacristia mais uma vez se preparando psicologicamente para o encontro. A sala mínima
estava vazia. Ante a nova decepção, determinou que devesse cuidar de visitar as senhoras da cidade
e tratou de procurar pela lista citada pela irmã; sua boa desculpa para estar ali, afinal, não sabia
quais casas deveria visitar.
Encontrou a lista sobre a mesa, deixada em um canto com uma caneta esferográfica acima. A moça
conhecia todos os nomes dispostos, então os anotou mentalmente antes de pegar a caneta e escrever
no mesmo papel.
Já peguei os nomes das senhoras que se dispuseram a fazer os bolos e tortas.
Irei até elas agora, se precisar de alguma coisa, amanhã procuro o senhor.
Faith

O recado era sucinto, mas cumpriria sua função de informar ao padre que ela estava cuidando de
sua festa mesmo ele sendo tão mal-agradecido. Enquanto deixava a igreja, dizia a si mesma que
talvez fosse melhor não tê-lo encontrado. Enganou-se até sua segunda visita, quando então, passou a
conversar com todas as senhoras das redondezas automaticamente, sentindo o coração fundo no peito
por não ter ouvido um mísero ciao.
– Está me ouvindo, Faith? – Piscando algumas vezes, a moça focou o olhar na mulher de meia
idade à sua frente.
– Perdão, senhora Doyle. O que disse?
– Disse que não vou fazer o bolo de chocolate que fiz das outras vezes. Sei que foi que escrevi na
lista, mas ontem encontrei uma receita especial na internet... Meu neto me deu um computador sabia?
– Não, não sabia, senhora Doyle – respondeu condescendente. – Que legal!
– Não é mesmo? – perguntou a senhora, animada. – E então, acha que tem algum problema se eu
mudar esse ano?
Faith duvidava que alguém ainda se lembrasse do bolo doado no último piquenique, mas não era
sua intenção magoar a mulher verdadeiramente preocupada.
– Problema algum – tranquilizou-a. – Se eu não encontrar alguém para fazer um bolo de chocolate,
eu mesma o farei. Não vamos privar as pessoas de provar sua nova receita.
– Obrigada, minha jovem!
Depois de recusar um novo convite para entrar, Faith retornou para a pick up. Era vergonhoso que
quicasse de casa em casa à bordo do veículo, mas não confiava em suas pernas para fazer o
percurso. Não queria admitir, mas, a todo momento, esperava que seus olhos caíssem sobre uma
figura vestida de preto a zanzar pelas mesmas ruas que ela. Maluquice. Mas simplesmente não
conseguia se desligar do pensamento recorrente. Ao meio-dia e meia, já tinha confirmado a doação
de todos os bolos e tortas que as respectivas quituteiras anotaram na lista. A última seria a dona da
lanchonete onde parava a caminhonete na porta.
– Bom dia, Faith! – Grace cumprimentou tão logo entrou. – Como está Nick? Ela está fazendo falta
aqui.
– Acredite, ela sente falta daqui também... Em dez dias ela se livra do gesso e volta.
– Tomara! – exclamou a mulher, colocando-se ao seu lado quando escolheu a mesa que ocuparia. –
Vai almoçar aqui?
– Vou!... Estou com pressa. O que tem hoje?
– Atendendo a um pedido de Samuel hoje fiz cação refogado, arroz e salada. É o que tenho!... Ou
se preferir, pode escolher um sanduiche.
De súbito, Faith se deu conta de que não estava com fome.
– Prefiro um sanduiche – disse somente para se precaver. – Um hambúrguer simples, sem
maionese. Para beber uma Coca-Cola, por favor.
– É para já, gracinha! – Grace se foi, deixando a moça a rir brandamente do tratamento que lhe
dispensava desde que era criança.
Faith tinha consciência de que, naquela vila parada no tempo, ela também estacionara. Para todos,
ainda era a mesma criança que corria pelas ruas quando voltava para casa, vinda da pequena escola
primária. O que pensariam dela se soubessem que a menina deles, não só se contorcia seminua sobre
um palco semanalmente, como agora cobiçava o padre da cidade?
– Eu seria queimada em praça pública e minhas cinzas lançadas à privada mais próxima, isso
sim... – murmurou intimista, divertida.
– Sempre fala sozinha? – Faith ouviu a voz cantada ao seu lado.
Antes de responder, fechou os olhos por alguns segundos na esperança de que seu coração se
aquietasse no peito. Como não aconteceu e a demora passava a ser injustificável, ela engoliu em
seco, ergueu a cabeça na direção do recém-chegado e retrucou, defensiva:
– Sempre que não tem alguém por perto para ouvir.
– Está em um local público. Sempre tem alguém que pode ouvi-la. – Foi a resposta amistosa.
Então, abrindo-lhe um sorriso conciliador, Jonathan pediu: – Desculpe-me a pouca educação... Buon
pomeriggio!
– Para o senhor também – respondeu ao deduzir que a tentativa de assassinato, lenta e indolor,
tenha sido o equivalente ao seu boa tarde. Então olhando-o de esguelha, perguntou: – O que ouviu?
– Algo como ser queimada em praça pública e ter as cinzas lançadas em local pouco usual –
respondeu Jonathan, ocultando um sorriso. – Só não consigo imaginar o que tenha feito para merecer
um destino nem mesmo dado às bruxas durante a inquisição.
– Falou um representante da instituição encarregada de dar o devido destino às livres pensadoras e
amantes das artes ocultas – debochou. E se arrependeu do comentário ao ver a diversão deixar os
olhos azuis e uma veia do queixo masculino se mover freneticamente.
Antes que pudesse se desculpar, Jonathan retrucou com severidade:
– Já reconhecemos nosso erro. O santo Papa João Paulo II pediu perdão em 2004 publicamente por
todos os excessos cometidos... Considero seu comentário não só maldoso, como antiquado e de
péssimo gosto.
– Ah... me perdoe! – desculpou-se alarmada ao notar que ele a deixaria intempestivamente como
sempre. Agora com razão. – Eu não quis ser grosseira... Juro! – Quando ele a olhou enviesado,
emendou com a verdade: – Estava apenas me defendendo do senhor. Ontem pela manhã não foi o que
se pode chamar de cavalheiro.
Ante o pedido de desculpas eloquente, Jonathan refreou o súbito mau humor pela menção mordaz a
um dos episódios mais vergonhosos para a igreja que ministrava. Percebendo a ansiedade nos olhos
castanhos seu gênio se acalmou. Não a encontrara cedo na praia e o breve instantes em que a viu
cruzar a nave da capela enquanto a deixava naquela manhã, não fora suficiente para aplacar a... falta
sentida?
Não, Jonathan pensou. Não acreditava que chegasse a tanto. Preferia crer que estivesse apenas
acostumado com sua presença todos os dias em sua vida. Era apegado à rotina e qualquer mudança o
aborrecia. Desde que chegara naquela cidade deixou de encontrá-la apenas um único dia. A tarde de
domingo não contava, então, não tê-la visto aquela manhã – ainda com seu convite sobre as corridas
diárias sendo válido – ia contra as situações que já considerava obrigatórias. Tanto que ele estendeu
sua corrida alguns minutos na esperança de ela aparecer tardiamente.
Como não aconteceu, voltou para casa com o peito oprimido e o gênio facilmente irritável.
Cumpriu suas obrigações de forma vaga, dessa vez nem sequer ouviu o que as penitentes lhe diziam.
Quando sentiu o perfume floral, espiou pela fresta da cortina do confessionário, dizendo a si mesmo
que procurava desculpas para distrair-se. Voltava a sua posição sobre o assento, quando a viu sair
apressadamente da sacristia. A imagem de uma Faith jovial e decidida, acompanhou-o durante todas
as confissões seguintes.
Quando finalmente anunciou a última penitência, saiu até a calçada fiando-se na esperança
improvável de que ainda pudesse vê-la. Ao completar a meia-volta por onde seu olhar alcançava no
perímetro da praça, seus olhos pousaram diretamente nos dos inquiridores do tio que ao que tudo
indicava, tentava manter uma conversa satisfatória com Samuel. O padrinho o encarou com o cenho
franzido antes de altear a voz num inglês carregado e inquiridor:
– Procurando por alguém, Johnny?
– Não – respondeu azedo, voltando ao interior da igreja e seguindo à sacristia. Lá, sobre a mesa,
encontrou o bilhete dela. Curto e direto, impessoal.
O que esperava depois da forma que a tratou? E antes até, o que esperava que a moça lhe
escrevesse mesmo que não a tivesse destratado? Estava perdendo completamente o senso, era a
verdade. Justamente por isso elevou seu pensamento durante o restante da manhã, tentando encontrar
um equilíbrio para os sentimentos novos que o visitavam e se convencer a ficar longe dela. Iludiu-se,
acreditando que conseguiria seu intento, até que certa pick up preta estacionasse diante da
lanchonete.
Estar na ali, parado ao lado de Faith, no meio do salão ocupado por mais três pessoas – curiosas
com o que acontecia na mesa próxima à delas – era a prova de que não haveria oração eficaz o
bastante para impedi-lo de ir até ela. E mesmo que aquele “senhor” pronunciado pela moça o
lembrasse de que não deveria estar ali, se pegou novamente sorrindo em sua direção antes de se
sentar à mesa sem se importar com os olhares que recebia.
– Tudo bem... Acho que também lhe devo um pedido de desculpas por ontem.
– Que tal começarmos de novo? – ela propôs amistosamente. – Boa tarde, senhor!... A sua bênção.
Jonathan percebeu que até mesmo o pedido inocente na voz suave começava a instigá-lo. Culpado
por seu pensamento lascivo, abençoou-a num sussurro antes de comentar aquilo que o atormentou
durante a primeira parte de seu dia:
– Não a vi na praia essa manhã.
– Perdi a hora – ela disse simplesmente. Em um súbito ataque de egocentrismo, Jonathan duvidou
das palavras e as considerou apenas desculpa para não encontrá-lo.
– Ou não desejava me ver? – perguntou sério antes que pudesse prever.
– Não! – Faith refutou rapidamente. Ela não identificou o tom masculino ou o motivo do palpitar
de seu próprio coração à pergunta inesperada. – Jamais faria isso. Dormi mal, de novo, mas em vez
de levantar cedo, permaneci deitada e acabei dormindo até tarde.
Jonathan deveria se contentar por saber que ela apenas perdera a hora, mas não pode deixar de se
ressentir por ter corrido sozinho enquanto ela dormia o sono dos justos. Não era justo!
– Va bene! – disse em voz alta, e corrigiu: – Está bem!
Faith mirava os olhos azuis, tentando decifrar o que eles diziam. Definitivamente era algo que não
condizia com as palavras serenas. Poderia ser maluquice, mas a ela parecia que o padre travava uma
luta interna.
O silêncio que se estabeleceu entre eles, terminou por se mostrar a prova irrefutável de que estava
certa. Acreditou que novamente seria deixada, quando Jonathan ergueu os olhos para a dona da
lanchonete que se aproximava com seu pedido, então disse apressadamente para distraí-lo:
– Já falei com todas as senhoras dispostas a doar as tortas e bolos para serem vendidos no
piquenique.
– Ah, sim? – perguntou ele, novamente olhando em sua direção.
– Sim – ela confirmou enquanto Grace depositava a coca e o prato com o sanduiche sobre a mesa.
– Só falta confirmar com ela – acrescentou, indicando a mulher com o olhar.
– Bom ver o senhor novamente – Grace falou, voltando-se para Jonathan. – Hoje não vi seu
padrinho.
– Ele está descansando. – Providencialmente, pensou, caso contrário não poderia estar ali.
– Me desculpe, Faith. – Grace pediu, voltando a atenção para a moça, depois de agradecer a
resposta do padre com um sorriso leve. – O que tem para falar comigo?
– É sobre o piquenique. Queria só confirmar se vai levar a... – ela se interrompeu para que a
mulher completasse; não sabia o que Grace levaria.
– Meu bolo de nozes?... Sim, levarei. Farei um maior esse ano.
– Beleza! – Faith exclamou consigo mesma antes de marcar um “X” ao lado do nome. – Ah...
Também quero saber se emprestará as mesas e cadeiras.
– Tudo que você precisar, gracinha – Grace assegurou apressadamente. – Agora preciso ir, estou
sozinha e tenho outro pedido para atender... Venha na quinta-feira à noite, estarei livre então
acertamos tudo.
– Eh... Na quinta não posso – Faith lamentou, subitamente sem coragem de olhar para Jonathan.
Sentia que ele a observava enquanto conversava com Grace e citar a noite de quinta-feira, a
desconcertou como se ele fosse adivinhar o que fazia durante sua avaliação nada velada.
– É verdade, eu me esqueci de suas aulas... Venha amanhã, então.
– Certo! Amanhã acertamos tudo.
Quando Grace se foi, Faith ainda não tinha coragem de encarar o padre nem tampouco conseguiu
comer. Sua garganta estava travada. Por isso, apenas bebericou sua Coca-Cola sem oferecê-la.
– Que tipo de aulas tem às quintas-feiras? – E lá estava a pergunta esperada. Depois de beber mais
um gole da bebida borbulhante e gelada, ela disse a resposta ensaiada:
– Tenho aulas de dança de salão... Comecei há uns seis meses. Helen, a noiva de meu irmão,
costumava ir comigo, mas desistiu então agora eu as faço sozinha.
Jonathan podia ver nos olhos castanhos – que a todo o momento desviavam dos seus – que ela
mentia sobre as tais aulas. De imediato não conseguiu atinar o que ela escondia, mas determinou que
descobriria. Ao analisar seu discreto desconforto, Jonathan deixou de considerá-la uma menina
perdida. Talvez estivesse enganado, mas Faith tinha plena consciência do que fazia e em seu favor,
possuía as armas para fazer bem feito; um rosto angelical aliado à sua compleição frágil. Contudo,
todos na cidade poderiam cair na sua história, menos ele.
– Seis meses de aulas de dança! – admirou-se de modo falso. – O que aprendeu até agora?
– Eh... Aprendi salsa, tango e...
Nervosa, ela questionou o por que de ele ser tão curioso. Logo travou ante ao olhar invasivo e
claramente desafiador que recebia. Não conseguia se lembrar de danças simples que com certeza
eram ensinadas em qualquer estúdio, desde o mais chinfrim até o mais sofisticado. Impacientando-se
com seu entrave e tentando ganhar tempo levou o canudo à boca e sorveu o líquido extremamente
gelado de uma só vez. Imediatamente seu cérebro reagiu ao que considerava uma agressão ao palato,
então sentiu a dor aguda no centro da testa, entre os olhos.

– Ai! – exclamou, largando o canudo e cobrindo o rosto com a mão direita, comprimindo-o na
tentativa de aquecer o local.

Jonathan ainda se comprazia com o embaraço, quando a moça levou a mão à face. Ele vira toda
ação. Sabia que ela sofria de dores intensas, mas a única imagem que sua mente registrou foi a boca
arfante e entreaberta, os olhos tampados. Em choque ante a visão e pela descarga de adrenalina que
correu sua coluna, Jonathan demorou bons segundos até esboçar alguma reação.

– Comprime la faccia... Aperte o local... Acho que ajuda!... – opinou tardiamente.

– Já está passando – ela garantiu. – Obrigada!

– Tem certeza? – inquiriu preocupado.

– Tenho...

– Se é como diz... – replicou e levantou apressadamente. – Faço votos para que melhore. Vim
somente saber como estavam indo os preparativos e dizer que pode ir à igreja quando desejar...
Agora preciso ir. Ciao!

E, mais uma vez, Jonathan se foi de forma abrupta. Daquela vez Faith não lamentou. Quando
conseguiu abrir os olhos, ainda pôde vê-lo cruzar a praça e seguir para a igreja. Talvez nunca o
entendesse, mas com certeza, sempre o admiraria. O padre era lindo e ficava ainda mais lindo
quando a encarava intensamente. Pena que os olhos azuis agora denunciassem a descrença quanto
suas supostas aulas, e carregassem a promessa de desmascará-la.
Capítulo Dez

Contrariando suas expectativas mais pessimistas, o restante do dia passou rapidamente. Logo,
depois de uma tarde agitada com seus alunos mirins, Faith guiava pela estrada que levava a Sin Bay.
Não ligou o rádio, impaciente com a possibilidade de ser descoberta. Jamais poderia acontecer. Não
conseguiria pontos a favor em sua conquista ainda que fosse apenas uma moça politicamente correta,
então poderia imaginar o que aconteceria caso o padre descobrisse a verdade.
– Fugiria de mim mais do que já o faz... – ela disse para o vazio. – E olha que eu nem disse nada...
Não fiz nada além de dar aquele beijinho mixuruca em seus dedos.
O padre bipolar a deixava confusa; ora receptivo, ora insociável. Contudo, pensou de mau humor,
se ele descobrisse sobre a boate, apenas um comportamento prevaleceria. Deveria tomar cuidado
com o que dizia. Enquanto se alertava, as luzes dos faróis de um carro reluziram em seu retrovisor.
Praguejando baixinho contra a claridade que a cegava, passou a guiar pela beirada da pista para ser
ultrapassada. Quanto o veículo se manteve a mesma distância, ela soube se tratar de Tyler. Com um
bufar exasperado, a moça moveu o retrovisor para que o brilho dos faróis do Windstar não mais a
incomodassem.
Como sempre ele se despediu perto da praça com duas buzinadas. Por puro hábito, Faith retribuiu
o cumprimento sonoro enquanto seguia para sua casa, rígida sobre o banco. Em sua casa, novamente
a noite foi agradável. Faith conseguiu se distrair durante o jantar com Constance e Nicole, quando
agradeceu aos céus pela mãe não voltar ao assunto interrompido pela manhã. Após a refeição, as três
mulheres se juntaram na sala para assistirem a um clássico do cinema.
– E o Vento Levou...? – Faith perguntou desanimada. – De novo?
– Ah, você sabe que gosto – Nicole retrucou divertida. – Se não quiser ver, boa noite!
– Faço o sacrifício por você – anuiu. Não desejava ir para o quarto onde teria horas ociosas para
remoer uma questão saturada e inquietante.
– Fiquem quietas! – Constance pediu. – Já vai começar.
– O-ba!... – Faith exclamou nada animada.
Depois de receber um tapa leve no braço, a moça se calou. Acomodando-se ao lado da irmã tentou
se concentrar no filme muitas vezes reprisado. Não era um de seus favoritos, mas serviu para ocupar
sua mente cansada. Faith se deu conta de como o constante estado de tensão a exauria quando se
pegou cochilando. Em uma das vezes que despertou, Scarlet já tinha perdido seu primeiro marido e
repudiava o luto que lhe era impingido. Sabendo qual cena seria a seguinte, Faith acomodou-se no
sofá para que não voltasse a dormir.
Uma ideia começava a se formar em sua cabeça e para confirmá-la precisava apenas rever o baile
que recolheria fundos em prol da causa dos confederados. E logo a cena chegou. Uma viúva no limite
de sua ansiedade aceita dançar com o galã depois de ele dar um lance considerável em um leilão
organizado às pressas, contrariando as regras de moral e bons costumes da época com seu gesto
ousado.
– É isso! – a moça exclamou, subitamente animada, assustando as duas mulheres.
– Credo! Está ficando maluca? – Nicole indagou.
– Desculpe. Eu me empolguei com uma ideia. Preciso apenas amadurecê-la.
– Então o faça quieta, quero ver o filme – pediu a mãe que foi prontamente atendida.

O padre andava em seu quarto, como um animal enjaulado. Não conseguia dormir, nem mesmo foi
capaz de terminar de ler seu breviário que jazia ainda aberto aos pés da cama. Aquela seria a
primeira vez que deitaria sem completar suas orações. Isso se dormisse! A imagem dos olhos
cobertos e da boca entreaberta não o deixou um único minuto desde que saiu da lanchonete. Interagir
com o padrinho – que vez ou outra lhe lançava um olhar perscrutador – e com as frequentadoras
assíduas de sua igreja fora uma tortura.
Não era normal. Ainda que não estivasse vivendo sua verdadeira vida, era um homem adulto,
ciente de suas obrigações. Nada justificava aquela atração que sempre o colocava em situações
contrárias às que sensatamente determinava, fazendo com que sempre deixasse a moça de forma
abrupta, fugindo como se fosse um animal acossado. Faith é somente uma mulher! Agoniado, Jonathan
foi até a cômoda e retirou seu chicote da primeira gaveta. Segurando-o com as duas mãos o encostou
contra o rosto e fechou os olhos com força.
Se acreditasse por um segundo que impingir dor ao seu corpo o ajudasse, afoitar-se-ia. Contudo,
não seria eficaz. E baseado em seu estranho relacionamento com a dor, acreditava que ferir-se talvez
somente piorasse a leve excitação despertada na lanchonete. Mais uma vez se pôs a andar pelo
quarto, agora açoitando a perna direita distraidamente.
Uma vez que não tirava a moça do pensamento desistiu de lutar e deixou que ela o invadisse de
vez. Analisando todos os detalhes do rosto inocente que sua mente projetava, Jonathan tentou
decifrar-lhe a alma. Que segredos uma criatura tão jovem poderia esconder que justificasse mentir
para todos? Não saberia dizer, mas como determinou, descobriria. Nem que fosse em confissão,
afinal, todas as outras vinham até ele; ela também viria.
Ao se lembrar de como a idealizou durante sua primeira ida ao confessionário, seu corpo fraco
pulsou. E quando novamente estalou o chicote nas próprias pernas, imaginando que aquele poderia
ser o castigo aplicado em vez de fazê-la rezar para expiar seus pecados, seu sexo protestou sua cota
de participação no corretivo nada cristão. Mas Jonathan não se rendaria a ele dessa vez. Atirando o
chicote ao chão, lançou-se sobre seu colchão. Rolou por ele até que o cansaço o tomasse e o lançasse
num sonho agitado.
Novamente o observador expiava pela fresta da porta. A mulher nua, ataca à cama, resmungava em
palavras ininteligíveis enquanto recebia vigorosas palmadas em suas nádegas brancas. A cena era
inquietante. De onde estava, ele não conseguia ver o rosto feminino, somente a lateral de seu corpo,
assim como a do homem de joelhos às costas dela. O gemido incontido de ambos causou um espasmo
de prazer no observador silencioso. E se agravou gradativamente à medida que via os corpos se
moverem em sincronia.
O homem maldoso, por vezes descia a grande mão espalmada contra a mulher também proferindo
palavras indecifráveis. O observador queria dizer a ela que se defendesse, mas estava envolvido
demais com aquele ato de selvageria para pronunciar uma única palavra. E então aconteceu. Em um
movimento rápido a mulher se moveu. Imediatamente os olhos vorazes do espião foram atraídos para
o rosto com os olhos vendados por uma tira de pano branco. O nariz fino e a boca entreaberta podiam
ser vistos, mas foi outro detalhe que o alarmou. O cabelo escuro e lustroso preso num rabo de
cavalo.
Imediatamente o observador quis invadir o quarto para defendê-la, mas ao olhar o sádico que a
maltratava seu choque foi ainda maior, paralisando-o. Não conhecia bem aquele homem viril, mas
começava a lhe ter algum respeito. Ainda mais quando ele apenas realizava sua própria vontade:
enterrar a prova pungente de seu desejo repetidas vezes naquele corpo provocador. Naquele
momento, a dualidade de sua personalidade foi confirmada. O Jonathan padre era o voyeur enquanto
aquele que resfolegava, fazendo a moça gritar ao possuí-la, puxando-a pelo rabo de cavalo, era o
Jonathan estranho; inegavelmente necessitado dela.
O padre não foi à praia naquela manhã. Após acordar durante a madruga, tomado por uma
excitação irreversível que novamente o obrigou a conspurcar-se para acalmar o corpo febril, decidiu
que sua atração ameaçava atingir proporções irreparáveis. Dominar seu subconsciente seria
impossível, todavia poderia controlar suas ações quando desperto. Se fosse preciso correria à tarde,
pois sabia que naquele período do dia não a encontraria a caçula dos Greens. Não poderia evitá-la
até o piquenique então sua ordem seria seguir pelo caminho da retidão e boa educação, contudo de
forma superficial e fria.
Ainda, como parte de seu novo plano, o padre se certificou de que o tio estivesse presente durante
o encontro que certamente se daria naquela manhã, pedindo-lhe que o ajudasse a avaliar as imagens
da capela a procura de danos para futuros reparos. E foi imbuído dessa determinação renovada que
viu Faith entrar em sua igreja horas depois de suas primeiras orações e poucas confissões do dia.
Depois de avistá-los no corredor esquerdo – onde ele se encontrava junto ao tio – a moça cruzou a
distância com seu andar saltitante que fazia o eterno rabo de cavalo oscilar de um lado ao outro até
estar à sua frente com um sorriso receoso no rosto angelical.
– Bom dia! – cumprimentou aos dois homens e então, se voltando para Jonathan pediu sem se
mover: – Sua bênção, padre.
– Deus a abençoe! – respondeu Jonathan, maldizendo-se por seu coração rebelde que ignorava
suas resoluções e pulava festeiro no peito ao reparar o quanto ela estava bonita naquele vestido
vermelho.
– Hoje é minha vez de dizer – ela começou, agora jovialmente. – Não o vi na praia essa manhã.
A Jonathan não passou despercebido o súbito interesse de Carlo. Sem se deixar abater pela
especulação dos olhos sagazes de seu padrinho, Jonathan disse simplesmente:
– Hoje foi minha vez de perder a hora. – E aproveitando para desfazer o mal feito da manhã de
segunda-feira, anunciou: – Na verdade, essas idas à praia pela manhã estão se mostrando
inconvenientes. Acreditei que pudesse dispensar um pouco do meu tempo, mas receio ter me
enganado.
– Isso significa que a proposta de corrermos juntos está descartada? – ela perguntou sem tom
especial.
Por sua visão periférica, Jonathan pôde ver que Carlo movia a cabeça de um ao outro conforme
falavam, de forma que agora, sua atenção estava totalmente voltada para seu rosto, indiscretamente
esperando por uma resposta.
– Ainda não pensei a respeito... Se conseguir reorganizar meu tempo livre, eu a comunico.
– Entendo! – Faith adotou um tom frio: – Bom... Acho que não devemos ocupar muito o seu tempo.
Vim apenas colocá-lo a par do andamento dos preparativos. Ontem saiu tão apressado da lanchonete
que mal conversamos.
Agora Jonathan podia sentir os olhos do padrinho queimando em sua direção. Talvez não tenha
sido boa ideia deixá-lo participar de um encontro que se mostrou tão delator. Já começava a se
preparar para as perguntas que indubitavelmente viriam, quando disse calmo.
– Tratar do piquenique é parte de minhas obrigações, não me atrapalha.
– Ótimo! – ela exclamou sem entusiasmo.
– Venha! Vamos para a sacristia. Lá poderemos ficar mais à vontade... Padrinho? – Jonathan se
voltou para Carlo. – O senhor vem?
– Não, não... – este respondeu, apressadamente. – Vou continuar com meu trabalho.
– O que o senhor está fazendo? – Faith perguntou curiosa em ver a imagem antiga nas mãos do
homem. Queria ganhar tempo antes de ficar sozinha com o padre. Estava preparada para enfrentar o
olhar inquiridor da tarde passada não para a frieza polida. Precisava encontrar o equilíbrio interno
antes de seguir para a sacristia.
– Estou avaliando o estado dessas imagens.
– Ah... – Agora ele tinha seu real interesse.
– Se não se importa, poderíamos... – Jonathan tentou chamá-la.
– Só um minuto – Faith pediu, sem desviar os olhos da imagem, então perguntou para Carlo: – E
como estão?
– Eu esperava que estivesse em pior estado – comentou o senhor, olhando para a imagem. – Não
estão tão ruins, mas ainda precisam de restauração.
– Se o senhor quiser, eu posso cuidar disso – ofereceu-se.
– Não, não pode! – Jonathan vetou de imediato. Quando a moça e o padrinho o olharam
inquiridores, emendou confuso: – Noi veramente apprecciamo, ma... – logo se interrompeu para em
seguida prosseguir: – Agradecemos seu oferecimento, mas já cuida do piquenique e tem todos seus
afazeres... Não queremos ocupá-la mais.
– Pois eu digo que se a senhorita sabe como restaurá-las, por mim tudo bem – Carlo o contrariou
em seu tom carregado. Antes que Jonathan pudesse retrucar, a moça se voltou ao homem mais velho e
pediu indicando a imagem de São Nicolau:
– Posso?
Feito o pedido entregou o caderno que segurava para Jonathan. Ao tomar a imagem das mãos
masculinas, sem se importar com o olhar obliquo do jovem padre, Faith analisou a peça com olhos
clínicos. Superficialmente a imagem antiga não apresentava grandes rachaduras ou desgaste natural
do tempo, contudo a uma primeira avaliação isso nada dizia sobre seu real estado de conservação.
Mesmo sabendo que ao iniciar o trabalho poderiam surgir várias imperfeições que lhe desmentisse e
lhe desse mais trabalho, anunciou seu veredito:
– Bom, se todas estiverem como esta não é nada que um pouco de gesso, pintura adequada e folhas
de ouro não resolvam.
– Por mim, está contratada! – Carlo sentenciou enquanto recebia a imagem de volta.
Como contratada?! Jonathan pensou em desespero atribuindo ao tio uma senilidade precoce; seria
a única explicação. Acreditava que ouviria um sermão reprovador, no entanto, seu padrinho a trazia
para perto em vez de afastá-la? Como ficaria o distanciamento cordato?
Não! Não! E não!... Aquela igreja estava sob sua responsabilidade; ele decidia o rumo de todos os
assuntos referentes a ela. Ele determinava quem lhes prestaria algum serviço. Ignorando as palavras
do padrinho, iniciou sua recusa:
– Eu ainda acho que não devemos...
– Como eu estava prestes a te dizer, Sr. De Ciello... – Faith o cortou, enfaticamente dirigindo-se a
Carlo. – Acho que posso levar as imagens e trabalhar em minha casa. Seria o melhor para todos. Até
porque o gesso lixado faz muita sujeira. E eu também preferiria assim, pois é preciso tranquilidade
para se fazer um trabalho tão delicado.
Jonathan refreou o desejo de responder-lhe. Não tinha motivos cabíveis para insistir na recusa uma
vez que a alternativa oferecida por ela não feria suas determinações. Quando falou, ainda com o
corpo trêmulo pela breve contrariedade, Jonathan tentou imprimir condescendência a sua voz.
– Va bene!... – Odiando-se por expor seu nervosismo diante do tio, prosseguiu: – Se não vai
atrapalhá-la, também não vejo problema algum.
– Ótimo! – exclamou satisfeita. – Começo logo após o piquenique, pois será quando terão
dinheiro para o material.
– E para pagar por seus serviços. – Jonathan não se furtou de retrucar enquanto estendia-lhe o
caderno de volta.
– O serviço será voluntário, afinal eu me ofereci – ela respondeu, erguendo o queixo levemente,
como se o desafiasse a contrariá-la.
– Que assim seja – retrucou, abreviando o enfrentamento diante de seu padrinho que já
ultrapassava os limites. Afável, o padre a convidou à seguirem até a sacristia. Caminharam mudos
lado a lado, cada um preso às suas próprias contrariedades, deixando Carlo a segui-los com o olhar
especulador. Quando já estavam acomodados à mesa, Jonathan se obrigou a esquecer-se das imagens
e perguntou em tom profissional: – O que deixamos de conversar ontem?
– Bom... – ela começou no mesmo tom, colocando o caderno da irmã sobre a mesa e apoiando o
braço direito sobre ele. – Como eu disse, todas as senhoras confirmaram suas doações. Quanto a isso
está tudo certo, mas quando passei em frente à loja do Samuel, ele me fez uma pergunta que não
soube responder. Ele queria saber se pode vender cerveja e doar o dinheiro... O que acha?
– Acredito que nos outros eventos o padre não permitisse a venda ou aceitasse dinheiro vindo de
bebidas alcoólicas, então acho melhor que não o faça.
– Então, a resposta é não. – Enquanto anotava, distraidamente puxou o cabelo preso por sobre o
ombro e passou a rolar sua ponta entre os dedos da mão livre. Demonstrando que não se deixaria
abalar com o tom sério, sem olhá-lo perguntou: – Mas poderemos ter ponche, não é?
Jonathan demorou alguns segundos para compreender a pergunta simples. Vê-la brincar com o
cabelo – quando a lembrança de seu sonho era ainda era tão vívida –, desconcentrou-o. Não pôde
evitar o desejo súbito de ser ele a tocar os fios escuros ou enroscá-los em sua mão. Talvez os
puxasse. Ao pensamento, a adrenalina correu seu corpo, despertando-o do devaneio. Quando Faith
ergueu os olhos em sua direção e imediatamente uniu as sobrancelhas inquiridoramente, Jonathan
retrucou com voz apressada e rouca:
– Tinha ponche nos outros encontros? – Ao se calar, pigarreou para clarear seu tom.
– Não saberia responder – a moça disse sinceramente com a voz suave, visivelmente reprimindo
um sorriso antes de acrescentar: – Nunca participei de nenhum deles.
– Nunca? – Jonathan se interessou pelas palavras tanto quanto se inquietou com o olhar
especulativo e o sorriso enigmático que recebia.
– Nenhuma vez – ela confirmou antes de acrescentar. – Nunca gostei desses eventos.
Faith revelou sua falta de dever cristão encarando-o com uma sobrancelha suspensa, ainda a
desafiá-lo. A evidente tentativa do padre de mantê-la afastada incutia nela o espírito da rebeldia. Foi
movida por esse mesmo sentimento amotinador que insistiu em ajudar com os santos deteriorados e
decidiu que observaria Jonathan atentamente para tentar entender suas atitudes contraditórias. Só não
imaginou que acontecesse tão cedo.
Analisando o rosto anguloso, com o maxilar travado enquanto uma veia delatora pulsava
rigidamente, Faith acreditou ter a resposta para a ambiguidade. Não era aleatório. O olhar fixo que
flagrou direcionado nos movimentos lentos que fazia com os dedos, assim como a voz
inexplicavelmente rouca, mostrou-lhe que havia um padrão. Poderia ser virgem, mas possuía certo
conhecimento quanto às preliminares para reconhecer quando um homem estava excitado.
Satisfeita, Faith descalçou uma das sapatilhas e esperou pela pergunta óbvia para comprovar
definitivamente a teoria sobre a ambiguidade do padre.
– Se nunca gostou, por que está ajudando agora? – ele indagou com a voz totalmente modificada
pela rouquidão. Ainda tomada pela rebeldia, mas com o coração aos saltos pela ousadia que estava
prestes a cometer, respondeu com a verdade:
– Porque agora tenho um bom motivo para ajudar. – Enquanto falava, estendeu o pé descalço sob a
mesa até tocar um dos calcanhares cobertos pela meia fina e subi-lo minimamente.
– Ma che cosa...? – ele nunca terminou a frase.
O contato fugaz também a eletrizou, mas nada a preparou para a reação de Jonathan. Faith pôde ver
os orbes azuis inteiramente quando as pálpebras masculinas atingiram a totalidade máxima antes que
o padre se levantasse de modo abrupto. Ele ainda se afastou um passo em direção à parede,
encarando-a completamente lívido. Acreditando ter ido longe demais, a moça falou no tom mais
inocente que conseguiu empregar:
– Me desculpe. Não era minha intenção esbarrar no senhor...
Como não era? Jonathan se perguntou, alarmado com as sensações que corriam suas veias depois
de ouvir a declaração descarada e ser tocado daquela forma nada fortuita no calcanhar direito. Nunca
acreditou que seu corpo reagisse tão prontamente à ela ou que seu coração pudesse pulsar tão rápido.
Se o padrinho por acaso entrasse e o visse naquele estado de total assombro não teria como esconder
o quanto a moça o afetava. Precisava ficar sozinho.
– É melhor que vá embora. – Foi o que conseguiu murmurar.
– Mas por quê? Eu já pedi desculpas... – Faith choramingou.
Com o coração ainda tamborilando frenético, Jonathan a encarou a procura de traços que lhe
indicasse ter imaginado o assédio no toque fugaz. A expressão inocente dos preocupados olhos
castnhos o confundia. Após um minuto, ainda trêmulo, porém um pouco mais calmo, Jonathan voltou a
cadeira ao lugar. Pigarreou e perguntou antes de formar seu julgamento:
– Qual seria o motivo para ajudar nas obras da igreja agora?
Se a reação de Jonathan não tivesse sido tão violenta, Faith talvez continuasse com seu ataque,
porém como ele esteve à beira de uma síncope a moça achou por bem dosar a ousadia.
– Ah... É algo que não tem nada a ver com a igreja – começou jovial, como se comentasse algo
banal. – Preciso de um favor de Nicole, então, nada mais natural do que, em troca, eu fazer um favor
a ela.
Imediatamente Jonathan soube que Faith mentia. Parecia ser tão natural a ela fazê-lo que por um
instante tentou lhe conferir a credibilidade, porém suas reações a traíram. Mais uma vez ela não pode
encará-lo durante toda explicação. Não havia erro algum, seu toque breve e eletrizante nada mais foi
do que um carinho premeditado.
Surpreso por se descobrir satisfeito com a constatação, Jonathan voltou a se sentar. Sempre soube
que os avanços viriam então não deveria ceder ao seu jogo e, sim, precaver-se para que seu espanto
não se tornasse motivo de diversão ou incentivo para que seguisse em frente.
– Entendo... – disse. – Faço votos para que sua irmã retribua a gentileza.
– Assim espero – ela fez coro. – Agora... Podemos prosseguir ou terei de ir embora apenas porque
esbarrei no senhor?
– Podemos prosseguir – ele respondeu, ignorando o complemento da indagação.
– Certo! – Aparentemente Jonathan comprara sua mentira. Melhor assim. Por enquanto. Logo
agiria novamente, mas sempre em doses homeopáticas. Satisfeita, acomodou-se melhor sobre a
cadeira e jogou o rabo de cavalo para trás antes de prosseguir: – Eu queria conversar com o senhor
sobre uma ideia que tive.
– Fale – liberou-a, agradecido por ela ter ocultado aquele monte de cabelo obsceno.
– Bom... Estive pensando em promover um leilão durante o piquenique.
– Um leilão?! – A ideia bizarra tomou sua atenção por completo. – O que ofereceríamos?
– Como todas as senhoras vão ajudar com a comida, estive pensando em pedir a colaboração
também das jovens. Elas poderiam oferecer algum tipo de serviço como cozinhar por um dia, levar
os cães de alguém para passear ou até cuidar do jardim para quem as arrematasse... O que acha?
Faith esperou ansiosamente pela resposta enquanto Jonathan deliberava consigo mesmo. Enquanto
tentava adivinhar o que ele lhe diria, esqueceu-se de seu assédio e se deu conta do quanto estava
envolvida com a função que herdou da irmã. Não mentiu quando disse que não gostava daquele tipo
de evento, mas agora desejava verdadeiramente colaborar e queria que aquele piquenique fosse
rentável e ajudasse o jovem padre.
– Bom... – ele começou após alguns minutos em silêncio. – Se as jovens da cidade aceitarem, eu
não vejo problema algum.
– Legal! – Faith animou-se. – Isso nos leva a outro detalhe.
– Qual? – Jonathan tentava não se perder no sorriso luminoso.
– Não acho a praça um bom local para o piquenique. Se vamos fazer o leilão precisamos de um
palco, mesmo que mínimo. Teríamos espaço para fazê-lo, mas as pessoas acabariam pisando nos
jardins e isso criaria um problema.
– O que sugere? – Interessado, reclinou-se sobre a mesa e pousou as mãos sobrepostas em seu
centro.
Animada pela conversa e pela proximidade que sugeria nova trégua, Faith também se reclinou,
porém por mais que fosse seu desejo tocá-lo, conteve-se. Tomando o devido cuidado de não esbarrar
em seus dedos longos, deixou sua mão pousada a centímetros das dele, apenas como uma promessa.
Satisfeita por vê-lo se contrair em antecipação, respondeu como se não tivesse reparado no
movimento contido:
– Ao lado da cooperativa tem um amplo jardim. E também tem a casa de Netty que poderia servir
como ponto de apoio. Caso chova, podemos nos abrigar no galpão da própria cooperativa. O que me
diz?
– Digo que gostaria de conhecer o local que sugere antes de dar minha resposta – disse ele,
levemente decepcionado que seus dedos não tenham se esbarrado. Alargando seu sorriso, Faith
propôs:
– Já que essa é sua condição, poderíamos ir agora. Se estiver bem para o senhor.
– Por mim, tudo bem – anuiu, afastando a cadeira para se levantar. Não pensou em conhecer o
local naquele exato momento, mas subitamente a ideia de sair com Faith o agradou. Mesmo que
aquele passeio fosse contrário ao que vinha pensando desde que despertou, que mal poderia haver?
Imediatamente a moça o imitou; contente pela possibilidade de ficar mais tempo com Jonathan. Já de
pé, ela pegou o caderno e seguiu até a porta.
– Podemos ir com a minha pick up.
– Non!
Jonathan contornou a mesa rapidamente para interceptá-la. Como a moça estava adiantada foi
preciso acelerar seus passos e segurar-lhe o braço para que não passasse à igreja. Faith parou e o
encarou aturdida antes de olhar para a mão que apertava firmemente sua carne. Ato contínuo Jonathan
a soltou, novamente abalado com o contato. Pigarreando para limpar a voz, policiou-se para falar em
inglês:
– Vamos sair pelos fundos. Pode ter alguém a minha espera na igreja, isso nos atrasaria.
Na verdade não queria encontrar com Carlo e receber seu olhar especulador enquanto saísse com a
moça. E também gostaria de poder dirigir. Ajudaria a distrair sua mente mesmo que o motivo de suas
perturbações estivesse ao seu lado. Enquanto ouviu a explicação, Faith tentou achar seu equilíbrio.
Jamais pularia como um gato escaldado ao toque inesperado, mas tinha de admitir que aquela seria a
reação adequada ao choque que sempre sentia. Seu braço ainda formigava quando anuiu:
– Está bem!... A cooperativa não é longe daqui, podemos ir a pé.
– Não será necessário. Venha! – Ao chamá-la, não se furtou de segurá-la mais uma vez para
indicar-lhe o caminho que os levaria até a casa anexa à sacristia.
Envolvida pela sensação prazerosa daquele contato novo e ininterrupto, Faith se deixou guiar para
a porta oposta a qual se encontrava. Depois de cruzarem um longo corredor, saíram para um pequeno
quintal que interligava as duas construções. Logo Jonathan fez com que passasse por outra porta,
levando-a através da casa que ocupava com o padrinho até que saíssem na entrada que existia na rua
ao lado da igreja.
Ao chegarem à calçada – ainda segurando-a pelo braço – Jonathan a levou até um jipe prata,
estacionado a alguns metros do portão pelo qual saíram. Demonstrando que sempre carregava as
chaves, ele as tirou do bolso da calça e destravou o veículo somente então, pouco antes de acomodá-
la no assento do carona, Jonathan a soltou, deixando a sensação de vazio onde os dedos longos e
macios haviam apertado.
Não era necessário que a segurasse por todo o percurso, mas intimamente Jonathan se regozijava
por tê-lo feito. A palma de sua mão confirmara a maciez da pele da moça; tão agradável ao toque que
não lhe pareceu errado prolongá-lo. Pessoas se tocavam sem qualquer intenção mundana, desde que
o mundo era mundo, não?
Enquanto manobrava o carro na direção que Faith indicou, Jonathan continuou sua autossugestão e
logo tentava burlar suas decisões e se apegava à variante que começou a desenvolver ainda quando
estava na sacristia: talvez pudessem manter um relacionamento amigável. Bastava se manter firme no
propósito e nunca ceder. Com o tempo a moça entenderia o óbvio; não estava disponível, então
poderiam construir uma bela amizade. Satisfeito com o novo arranjo que não o obrigaria a ficar na
defensiva, Jonathan sorriu consigo mesmo.
– La vita è più semplice se che non se crea problemi – murmurou distraidamente.
– O que disse? – Faith perguntou sem desviar os olhos de Jonathan, embalada pela voz cantada e
serena.
– Pensei em voz alta – reconheceu, olhando-a brevemente, então sorrindo por saber que ela não o
entenderia, mentiu: – Estava dizendo a mim mesmo que esse será um bom piquenique.
Capítulo Onze

Ainda envolvida pelo sorriso intimista que parecia iluminar o rosto anguloso, Faith desistiu de
acompanhar o humor do padre. Estava convicta de que o entendera, então somente aceitaria o que ele
estivesse disposto a dar. Jonathan apenas se defendia dela e estava claro que sempre se afastaria
quando se sentisse ameaçado. Contudo, mesmo fugindo com um animal assustado, ele era curioso e,
pouco a pouco, viria até ela. E se renderia um dia, pensou esperançosa.
– O que é engraçado? – Jonathan perguntou, indicando que também a observava ao flagrá-la rindo
satisfeita para as casas que passavam rápidas pela janela. Mais um ponto a seu favor, Faith pensou
agora sorrindo abertamente.
– Nada! – disse ao encará-lo. – Dias bonitos me deixam feliz!
– E hoje está um dia bonito – ele comentou, olhando para o céu a sua frente.
– Hoje está um dia perfeito! – ela corrigiu, olhando para ele. Quando Jonathan subitamente olhou
em sua direção e viu seu olhar enlevado, Faith pigarreou e apontou em frente. – Vire ali e estacione.
Atendendo-a, Jonathan contornou a esquina e estacionou ao lado de um grande galpão. Estavam
nos arredores da vila. O espaço à sua frente indicava que as casas de Sin Bay foram construídas
numa área em formato de meia lua e que agora eles estavam em uma de suas pontas. A rua não tinha
saída, somente a grande construção de um lado, o vasto jardim e uma casa isolada no canto oposto. A
floresta que se seguia além dava um toque bucólico e mágico ao local. Apesar do cheiro acentuado
de maresia, era perfeito.
– E então? – Faith perguntou, seguindo seu olhar através do para-brisa.
– É o lugar ideal! – ele disse antes de abrir a posta do jipe e sair. Faith saiu logo depois dele e se
pôs ao seu lado diante do veículo.
– Imaginei que gostaria... Não sei por que eu ou Nick não pensamos nisso antes. Não será nem
preciso emprestar as cadeiras e mesas da Grace. Podemos usar as da cooperativa. Estão todas aí no
galpão.
– Podemos ver? – Jonathan estava encantado pelo local.
– Vou pedir as chaves para Netty, a esposa de Harry Owen. Espere aqui.
Dito isso ela se precipitou em direção à casa de madeira com a pintura branca descascadas em
alguns pontos. Enquanto lhe seguia com o olhar, Jonathan tentou não se deixar abater pelo efeito que
um simples balançar de cabelo lhe provocava. Como resistiria? Ainda procurava a resposta quando a
viu sair da casa na companhia de outra mulher. Lembrou-se dela da missa, mas se o perguntassem não
conseguiria se lembrar do nome. O sabia agora, pois Faith o disse antes de deixá-lo então, quando as
duas se acercaram dele, cumprimentou seguro:
– Bom dia, Sra. Owen!
– O senhor se lembra! – a mulher comentou enlevada. – Bom dia para o senhor também, padre.
Sua bênção. – Depois de abençoá-la ouviu a mulher dizer. – Pode me chamar de Netty, como todos.
– Já estou com as chaves, vamos? – Faith o chamou.
– Vamos... – Jonathan indicou o caminho para que as duas fossem à sua frente, passando a observar
o terreno em volta.
Sem dúvida o piquenique seria mais bem acomodado naquele jardim de grama verde; bem
cuidada. Em poucas passadas estavam às portas do grande galpão. Depois de Faith as abrir, os três
entraram no espaço mal iluminado. Netty se encarregou de acender as luzes de três grandes
luminárias com lâmpadas fluorescentes que ficavam presas nas madeiras de sustentação do telhado.
Como a moça dissera, Jonathan pode ver as mesas e cadeiras dispostas a um canto. Notou também
as portas dos banheiros e no lado oposto o que lhe pareceu uma cozinha que podia ser vista através
da abertura na parede que formava um balcão. Imediatamente a curiosidade o tomou.
– Para que vocês usam esse espaço?
– Ah... – Netty começou a explicar. – Sempre que precisamos de um lugar para eventos como
casamentos, bailes de formaturas... Essas coisas.
– E também fazemos um baile mensal – Faith completou. – Quase toda a cidade vem... O antigo
padre vinha.
Seria um convite? Jonathan se perguntou encarando-a. Antes que pudesse retrucar, Netty exclamou
nostálgica:
– É verdade!... Padre Lewis era muito divertido, não era Faith?
– Não lembro bem – respondeu a moça, sustentando o olhar interrogativo do padre atual. Como se
lhe adivinhasse o pensamento, perguntou: – O senhor também é divertido?... Viria a um dos bailes?
– Não sei o que poderia fazer para ser considerado divertido – retrucou. – Mas não vejo
problemas em assistir a um dos bailes quando acontecerem.
– Pois então está oficialmente convidado – disse Netty, sem perceber a troca de olhares entre os
dois. – Faith, você gostaria de conferir as condições das cadeiras e das mesas enquanto eu vejo se
está tudo de acordo nos banheiros?
– Vou sim... – ela concordou, obrigando-se a desviar a atenção dos olhos azuis.
Também não saberia dizer o que o padre poderia fazer para considerá-lo divertido, pensou
enquanto se afastava. Talvez se ele decidisse como a tratar e mantivesse um único humor, já ajudasse.
Se bem que no momento não poderia reclamar de nada. Apesar dos breves momentos de tensão,
estavam se saindo muito bem.
Jonathan a seguiu naturalmente, como acontecia na praia. Gostaria de ter um humor melhor, pensou
enquanto caminhava lentamente. Não ter tantos questionamentos ou dois Jonathans completamente
diferentes dentro de si para administrar seria perfeito. Contudo, aquele ideal de leveza não era para
ele, determinou. Sua duplicidade era um fato e suas duas versões sempre brigariam na tentativa de
conviver satisfatoriamente ao lado da moça que agora mexia nas cadeiras, uma a uma, procurando
por algum dano.
Tentando ignorar a proximidade e o olhar vago, porém fixo que Jonathan lhe dirigia, Faith conferia
as cadeiras rapidamente. Pareciam estar em perfeito estado, porém teve tempo de confirmar. Quando
sentiu patas mínimas e espinhentas subirem rápidas por sua mão, ela simplesmente cegou para tudo
em volta e voou para o refugio mais próximo, abanando o braço e gritando à plenos pulmões:
– Barata! Barata! Barata!
Jonathan demorou alguns segundos até entender como Faith terminara em seus braços, com a
cabeça apertada em seu pescoço, implorando lamuriosamente:
– Mata! Mata! Mata!
Pego de surpresa, Jonathan não esboçou qualquer reação, apenas a segurou como pôde enquanto
ela comprimia o corpo leve, trêmulo e quente junto ao seu.
– O que houve? – Netty perguntou alarmada, vindo correndo dos banheiros.
– Uma barata, Netty! – a moça respondeu agoniada.
Tão rápido quanto fora para os braços de Jonathan, Faith saiu do seu colo e, como se ele fosse uma
coluna sólida que lhe ofereceria proteção contra o perigo iminente, imediatamente se colocou às suas
costas, ainda com um dos braços em seu pescoço. E assim, abraçada a ele, apontou com a mão livre
e violentamente trêmula para o motivo de seu pavor e implorou chorosa:
– Mata essa coisa, Netty... Por favor!
A cena seria cômica se não fosse trágica, Jonathan pensou completamente consciente do corpo
agarrado ao seu. O braço apertado em seu pescoço começava a sufocá-lo, contudo ele somente
registrava a respiração morna e entrecortada em sua nuca. Agora, como poderia controlar aquele
estranho que habitava nele quando tinha, não só confirmado a maciez da pele, como também sido
apresentado à quentura do corpo dela?
Jonathan pedia silenciosamente que a mulher matasse a maldita barata antes que seu corpo
expusesse a excitação agravada a cada vez que a moça, visivelmente fora de si, tentava escalar em
suas costas com as pernas nuas. Se acreditasse que conseguiria desprendê-la dele por um único
segundo, seria capaz de esmagar o bicho asqueroso com a mão.
– Pronto! – Netty anunciou quando finalmente conseguiu atingir o inseto. – Já matei! Faith, pode se
acalmar.
– Tem certeza? – ela perguntou descrente junto ao pescoço do padre, incitando-o
inconscientemente com seu hálito morno.
– Tenho – assegurou a senhora, olhando em sua direção, divertida. – Pode soltar o padre Jonathan
agora.
Tarde demais Faith se deu conta de onde tinha se refugiado. Imediatamente se afastou do padre
como se repelida por uma descarga elétrica, com o rosto tão vermelho quanto seu vestido. Quando
ele se voltou para encará-la, os olhos azuis – escurecidos como o céu anunciando tempestade –
agravaram sua vergonha. Com a voz tão trêmula quanto seu corpo, balbuciou:
– Me... me desculpe por isso. Estava fora de mim...
– Ho notato – ele retrucou pausada e roucamente antes de repetir: – Eu percebi.
– Imagina, Faith, não precisa se desculpar por isso – a mulher tentou acalmá-la, indicando que não
acontecera nada de mais durante o incidente, novamente alheia a intensidade com que se encaravam.
– Seu pavor a baratas é conhecido.
– O Sr. De Ciello não o conhecia – disse sem conseguir desviar os olhos dos dele.
– Acredite, não vou me esquecer – ele prometeu.
– Nossa! – Netty exclamou ainda inocente sobre o clima tenso. – Precisamos dedetizar o galpão
antes do piquenique. Vou pedir a Harry para cuidar disso ainda hoje.
– Faça isso – Jonathan pediu, finalmente desviando o olhar da moça trêmula. – Quanto antes
melhor.
– Farei. – Como se visse Faith pela primeira vez, Netty exclamou: – Nossa!... Você está branca
como uma folha de papel, menina. Incrível como uma barata tão pequena possa deixá-la nesse
estado... Acho melhor irmos para minha casa... Pode tomar um copo com água.
– Não, obrigada! Já está tarde e ainda preciso ir para Wells. – Ao declinar do oferecimento gentil,
Faith ergueu os olhos para Jonathan.
– Se é o que diz... Pode ir sossegada. Quando vier cuidar da decoração não encontrará nem uma
mosca aqui.
– Você fecha o galpão, Netty? – perguntou Faith, testando a firmeza das pernas ao seguir até a
porta.
– Fecho sim, pode ir em paz.
– Vejo você na missa, Netty? – Jonathan perguntou antes de seguir a moça.
– Com certeza, senhor padre. Até domingo.
– Até domingo... Foi um prazer revê-la.
Seguiram para o jipe em silêncio. Depois de acomodados Jonathan partiu. Mesmo que segurasse o
volante, suas mãos ainda tinham a impressão da curva dos joelhos da moça, assim como a da cintura
fina que foram gravadas em suas palmas. Na verdade, todo ele carregava as marcas de Faith que
durante seu pânico, enroscou-se a ele como uma serpente tentadora.
Idiota! Como podia ser tão instintiva? Faith se perguntou irritada. Tudo o que mais queria era se
atracar com o padre e quando o fazia nem mesmo se lembrava. Não guardou nada além da firmeza
do corpo, mas isso era pouco. Queria o cheiro, a temperatura... Mil vezes idiota! Agora, para ele, ela
não passaria da histérica descontrolada. E era o que era.
Inconformada com seu comportamento e inquieta com o silêncio, a moça começou a explicar,
nervosamente:
– Escute... Realmente me desculpe por... aquilo. É que eu... Eu simplesmente odeio baratas...
Abomino! – Como se percebesse ter dito algo errado, emendou: – Certo... Devemos amar todas as
coisas, mas...
– A benevolência que prego não é extensiva aos insetos asquerosos – Jonathan garantiu com a voz
em seu tom normal. – E não precisa se desculpar por sua fobia... Esta, por si só, justifica o
descontrole.
– Obrigada por compreender – agradeceu num sussurro.
Sim, ele compreendia. E tinha ganas de estapear-se por ter sido incapaz de ajudá-la, permitindo-se
apenas ser agarrado e se excitar com seu contato. Jonathan sabia que a inércia lhe custaria caro e,
antevendo as perturbações que lhe afligiriam, deixou que o silêncio recaísse sobre eles até que
praguejasse para si mesmo ao avistar o padrinho os esperando à entrada da casa.
– Inferno!
– O que houve? – Faith perguntou, olhando-o.
– Eu não deveria ter saído com você – respondeu sucintamente.
Evidente, pensou contrafeita. Agora Jonathan se fecharia em copas definitivamente. Não poderia
permitir! Faith se preparava para pedir desculpas mais uma vez, quando o jipe parou diante do muro
baixo e o tio do padre passou pelo portão com cara de poucos amigos.
– Pensei que fossem conversar na sacristia – falou antes mesmo que descessem do carro.
– Conversamos, mas precisamos sair, então...
– Então poderia ter me avisado – Carlo o cortou. – Dito, ao menos, para onde iriam. Talvez assim
eu soubesse o que responder quando a Sra. Williams veio até aqui preocupada por ter visto o padre
sair com a filha do líder comunitário.
– Desculpe-me. – Jonathan evitava olhar para Faith. – Acho que podemos ter essa conversa dentro
de casa, depois que a Srta. Green tiver ido embora.
– Acho que o assunto... – Carlo tentou insistir, contudo o afilhado o cortou firmemente.
– Seu assunto comigo não interessa a ela ou qualquer outro. Estamos na rua – lembrou-o.
– Está bem! – anuiu o padrinho. – Eu imagino que a jovem já esteja de partida, não?
– Eh... – Faith começou visivelmente desconcertada. – Já estava indo, sim... Até depois – disse ao
padre mais novo. Acenando um cumprimento tímido e mudo para Carlo, ela seguiu para frente da
igreja onde deixara a pick up, maldizendo cada velha fofoqueira que habitava aquele fim de mundo.
Por causa da língua grande de Sarah Williams, Jonathan receberia uma bronca do padrinho.
– Velha linguaruda! – Faith xingou enquanto manobrava.
Depois de conferir as horas, ela soube que não teria tempo de almoçar em casa. Se não quisesse
chegar atrasada em Wells teria de seguir viagem, imediatamente. Ótimo! Quanto antes distraísse sua
mente, melhor. Não se atrevia sequer a imaginar como seria caso fosse privada dos encontros
ocasionais entre ela e o italiano. Verdadeiramente lhe incomodava a possibilidade de Carlo assumir
o controle e enjaular o sobrinho para que nunca mais fossem vistos sozinhos e o “padre” não fosse
motivo de falatórios por andar com a “filha do líder comunitário”.
– Mil vezes, inferno! – ela sibilou, lembrando-se da blasfêmia proferida por Jonathan.

– Agora nós dois – Carlo anunciou em italiano ao fechar a porta atrás de si tão logo ele e Jonathan
entraram na casa. – Vai me dizer o que está acontecendo ou terei de perguntar à Srta. Green?
– Não está acontecendo nada que Faith soubesse lhe esclarecer – respondeu, desafiador.
Sentia seu peito inflamado, seu orgulho ferido por ter sido repreendido diante da moça, como se
fosse um moleque de dez anos. O padrinho não tinha o direito de rebaixá-lo daquela maneira.
– Faith?! – Carlo escarneceu. – Já está assim, tão íntimo?
– Trato muitas pessoas pelo primeiro nome – retrucou secamente.
– Ah, claro!... E é evidente que alguém com quem se encontra todas as manhãs não seria tratada
com formalidade.
– O senhor mesmo viu onde ela mora... Nós nos encontramos casualmente. Não há nada de errado
nisso.
– Há algo errado – enfatizou –, quando um começa a sentir a falta do outro. Há algo errado, quando
você propõe correrem juntos. Há algo errado, quando vai se encontrar com ela na lanchonete. E há
algo muito pior, quando você fica nervoso diante de uma jovem e começa a falar em nossa língua.
Jonathan queria retrucar, mas o padrinho não lhe dava chance. Em tom mais ameno, prosseguiu:
– Eu o conheço, Jonathan... Desde que você nasceu. Fui cego para ver, mas agora eu sei... Essa
garota mexe com você e não tente negar.
– Não preciso fazê-lo, pois não tenho o que negar – respondeu entre dentes, controlando-se, pois
sentia ganas de gritar com o padrinho como nunca fizera antes. – Se estava nervoso diante de Faith
foi porque não queria que ela restaurasse as imagens e o senhor me contrariou. Se acredita que sinto
algo por ela, por que não recusou a ajuda?
– Porque eu a quero sob minhas vistas – Carlo explicou em tom baixo e incisivo. – Notei que há
algo entre vocês dois e eu quero saber exatamente o que é para evitar aborrecimentos futuros. De
hoje em diante, quero ter o conhecimento de cada movimento, cada encontro, cada saída subitamente
necessária.
A promessa de invasão, elevou a irritação de Jonathan. Sempre respeitou o padrinho, mas não
admitiria intromissões na sua vida. Não o queria especulando sobre o que sentia por Faith quando ele
próprio não sabia como nomear o sentimento. E não se referia ao desejo carnal, pois este era
evidente, reconhecível e, mesmo que denegrisse sua posição no clero, de fácil solução.
O que Jonathan gostaria de entender era aquela falta que sentia dela quando estavam apartados e
que o fazia desejar ouvir-lhe a voz suave, ver-lhe o rosto de anjo, sentir-lhe o cheiro de flores. A
falta que agora sentiria do toque, do corpo colado ao seu como se ela fosse uma segunda pele. Como
poderia permitir que alguém – mesmo a pessoa que mais amava – tentasse elucidar mistérios que ele
próprio não desvendava?
Jonathan não se lembrava da vez que tinha discutido com o padrinho e não estava gostando de
fazê-lo, então, na tentativa de acalmar os ânimos e encerrar o assunto, indiferentemente assegurou:
– Faith é somente uma amiga.
– Você é padre! – Carlo bradou. Seu rosto adquiriu um tom avermelhado, indicando seu
nervosismo. – Padres não têm amigas, sim, amantes.
– Está louco?! – Foi a vez de Jonathan se alterar, lívido. – Não percebe o absurdo que está
dizendo?... Eu jamais faltaria o respeito com ela. Eu nunca...
– Antes de ser padre, você é homem, Johnny – Carlo retrucou, controlando-se para não gritar: –
Você é jovem e a Srta. Green uma moça bonita. Acredito que não faltaria ao respeito com ela, mas
eles não o conhecem como eu. – Dito isso, apontou enfaticamente em direção à porta. – O que acha
que todos nessa cidade pensarão se souberem desses encontros casuais numa praia deserta?
– A maldade está na mente de quem a imagina – rebateu. – Não estamos nos escondendo.
Jonathan começava a ficar cansado daquele assunto que o expunha.
– A maldade está em todo lugar, Johnny – disse o padrinho, alheio aos seus pensamentos. – E é
nosso dever dissipá-la, não fomentá-la.
– Não acontecerá – Jonathan garantiu, passando as mãos pelos cabelos. – Asseguro-lhe que não
está acontecendo nada entre mim e Faith. Apenas nos damos bem e é só. Corremos juntos numa praia
deserta, mas não inacessível às outras pessoas... Se qualquer um dessa cidade nos flagrar, não verá
nada mais do duas pessoas correndo, caminhando ou conversando.
Impaciente demais para se sentar, caminhou até a janela e prosseguiu, enquanto olhava para a rua.
– Se agora andamos juntos ou eu a procuro na lanchonete, é somente por termos um assunto em
comum. O acaso quis que ela assumisse o lugar da irmã na organização do piquenique, não nenhum
de nós.
Voltando sua atenção para o padrinho, sem se importar com a expressão contrariada, disse ainda:
– Eu não queria que ela assumisse a restauração, pois não queria sobrecarregá-la, mas já que
vocês decidiram não me ouvir, paciência! Eu não tenho nada a ver com isso tampouco... Se a quer
por perto para procurar pelo que não existe, o tempo é seu, desperdice-o como desejar.
– Jonathan! – Carlo o chamou em tom repreensivo.
Ignorando-o acrescentou:
– Asseguro-lhe que não sinto nada especial por ela... Como disse, apenas nos damos bem... E não
vou deixar de vê-la só porque uma das senhoras da cidade veio até aqui para saber onde fomos e o
senhor não soube responder. Assumo que esse foi meu único erro... Eu deveria ter avisado que
estávamos indo ver o galpão da cooperativa, assim poderia ter mantido a Sra. Williams bem
informada.
– Pois eu acredito que seria melhor que não a procurasse mais – o padrinho retorquiu. – Onde
você não vê nada demais, todos veem muita coisa. Pode assegurar convincentemente que não sente
nada especial por ela, mas eu vejo que há uma ligação entre vocês que, se não for cortada o quanto
antes, nos trará muitos aborrecimentos.
– Tal ligação não existe – retrucou sentindo uma súbita dor no peito ao imaginar qualquer coisa
que existisse entre ele e Faith sendo cortada.
– Se nada existe, não vejo motivos para a insistência. – Quando Jonathan ameaçou retrucar-lhe,
Carlo levantou a mão em um pedido mudo para que se mantivesse calado e então apelou para o tom
conciliador: – Escute! Não quero discutir com você nem tampouco irritá-lo, então vou simplificar...
Juntando as mãos em prece diante do rosto, Carlo arriscou:
– E se eu lhe implorasse, Johnny?... Se lhe pedisse, pelo amor que sente por mim, que não a visse
mais?... Pelo menos não em situações alheias aos assuntos de sua paróquia. Você me atenderia?
O padre procurou pelos olhos do padrinho tentando encontrar neles a força para dizer que sim,
pois, por mais que lhe doesse admitir, novamente ele tinha razão. Mesmo que estivessem em uma
grande cidade seria escandaloso um padre ser visto na companhia de uma moça vezes e vezes
seguidas. Imagine o caos que não seria naquela vila? Jonathan sabia desde aquela manhã – na
verdade sabia desde que a viu sobre a pedra – que o certo era se afastar.
Justamente por isso, e por chegar ao limite com seu sonho renovado determinou que seu
relacionamento com Faith fosse cordato e polido. E assim o seria, pois uma coisa era ele próprio
administrar sua vida. Decidir “se” ou “quando” estaria com Faith. Outra bem diferente – e
chocantemente angustiante – era ser obrigado a não fazê-lo. Decidido, respondeu com a voz rouca:
– Se o atendesse estaria assumindo uma culpa que não carrego.
E que Deus o perdoasse por mais uma vez mentir! Rogou antes de prosseguir sem desviar o olhar
do padrinho que começava a ficar cada vez mais pálido:
– O senhor é toda minha família. A pessoa que mais amo no mundo, mas não vejo como poderia
obedecê-lo sem corroborar com os pensamentos tacanhos de alguns moradores dessa cidade. Vou
continuar a ver Faith sempre que for necessário. Na praia, na lanchonete, aqui ou em qualquer outro
lugar... Mantendo a mesma conduta de sempre para que não sobrem margens para falatórios. Logo,
todos nessa cidade verão que não há nada a se especular.
– Lamento ouvir isso – Carlo murmurou derrotado. – Só me resta desejar que saiba o que está
fazendo e que se lembre de que não podemos chamar a atenção sobre nós. Apenas... Evite
escândalos.
– Não acontecerá! – Jonathan assegurou. Dando o assunto por encerrado, desencostou-se da janela
e cruzou a sala para tomar o caminho de seu quarto. – Se me der licença...
– Não vai almoçar? – o padrinho perguntou, franzindo o cenho.
– Perdi o apetite – declarou e sumiu no pequeno corredor. Ao entrar em seu quarto, Jonathan
passou a andar de um lado ao outro, irrequieto. Confirmar sua autonomia perante o padrinho não
trouxe o alívio que esperava. Pelo contrário, agora, sentia uma necessidade urgente de encontrar com
Faith apenas para confirmar que continuariam ligados naquele estranho relacionamento tenso, onde
ela avançava e ele recuava somente para retornar mais uma vez, como que atraído por um imã.
Aquilo era tudo que queria para se acalmar, pois diante da possibilidade de ter a moça cortada de
sua vida, percebeu que era daquele jeito que a queria. Perto do homem e longe do padre, entretanto,
presente. Ainda estava valendo a aproximação prudente, porém Jonathan não se furtaria de receber
os agrados que ela quisesse dar e que satisfariam o estranho que despertou em si. Infelizmente teria
que esperar até a manhã seguinte para dar início àquela amizade beneficiária. Isso se não a tivesse
espantado com seu tom indiferente ao declarar a inconveniência em ir à praia todas as manhãs.
Estúpido!
Capítulo Doze

–Faith!
– Credo, Tyler! – A moça levou a mão ao coração como se pudesse acalmá-lo do susto. – Isso lá é
jeito de chegar?
– Cheguei como sempre chego – defendeu-se o rapaz. – Não fiz de propósito.
Ela sabia. Esteve elétrica durante toda a tarde, por isso o sobressalto com a aproximação
inesperada. Não era de seu feitio, mas até mesmo seus alunos pagaram pela intromissão da Sra.
Williams que lhe azedou um humor que já não estava dos melhores. Justamente por se sentir ligada,
que voltou para Sin Bay tão logo as aulas terminaram, agradecendo o fato de Tyler ter faltado ao dia
de perseguição sem nem se importar com o motivo. Estava impaciente e não queria fazer do amigo
um bode expiatório.
Queria entrar em casa, tomar banho, tentar comer qualquer coisa e, se possível, dormir. Nem
mesmo passou na lanchonete de Grace para desobrigá-la do empréstimo das mesas e cadeiras,
optando por um telefonema breve – feito ainda enquanto vinha pela estrada – somente para não
deixar a patroa da irmã esperando por ela. Agora estava ali, diante da cerca baixa de sua casa, com a
pick up ligada, esperando que abrisse o portão e sendo obrigada a lidar com Tyler que, apesar do
tom defensivo, encarava-a com o cenho franzido.
– Tudo bem!... Não quis me assustar, então, o que quer?
– Posso saber para onde foi com o padre esquisito essa manhã? – perguntou diretamente depois de
cruzar os braços diante do peito largo. Então aquele seria o tom? Pois bem, pensou ela, imitando-o
para encará-lo de baixo para cima com as sobrancelhas unidas.
– Não, não pode! – respondeu curta e grosseiramente.
– Fay... – ele começou, desarmando-se.
– Fay, uma ova!... – explodiu, contudo sem alterar muito a voz para não chamar a atenção da mãe
ou dos vizinhos da casa mais próxima. – Quantas vezes eu vou ter de dizer que minha vida não é da
sua conta?
– Sua vida pode não ser da minha conta, mas a do padre é da conta de todos. Ele é uma figura
pública. Não pode ficar por aí, colocando garotas no seu carro e levando sabe-se lá para onde.
– Pois então vá perguntar para ele onde foi que me levou e não me aborreça – retrucou, fazendo
menção de seguir para a caminhonete.
– Eu não terminei de falar com você – Tyler anunciou, segurando-a pelo braço. Como sempre a
moça reagiu prontamente, soltando-o com um puxão violento.
– Quantas vezes também é preciso dizer para que não me toque?
– Coloco as mãos em você quantas vezes eu quiser – ciciou, avançando sobre ela, segurando-a
pelos braços. Antes que Faith pudesse reagir, Tyler maldosamente prosseguiu: – Todos os outros a
tocam... Por que eu, que sou seu amigo e guardo seu segredo, não posso? Se eu colocar dez dólares
no elástico de sua calcinha, você me trata com mais respeito?
Naquele instante Faith percebeu que não seria sábio brigar com ele. Acalmando-se, mesmo que as
mãos nos seus braços a irritassem, contemporizou, derrotada:
– Está certo, Tyler... Se acha que vai conseguir alguma coisa me machucando ou ameaçando, vá em
frente.
– Não quero machucar você, Fay. – Imediatamente o rapaz afrouxou o aperto, porém não a soltou.
– Nem te ameaçar. Seu segredo está seguro comigo, mas sabe que perco o controle quando fico com
ciúmes... Falo e faço coisas que não queria.
– Ciúmes, Ty?... Sério? – ela inquiriu incrédula. – De um padre?!
– De um cara como outro qualquer – ele corrigiu. – Eu vejo como ele te olha. E uma coisa é
caminhar com você na praia. Outra é te levar para onde não posso ver. Agora me diga... Para onde o
padre esquisito te levou?
– Quando você me soltar eu digo – Tyler a atendeu prontamente, afrouxando ainda mais as mãos,
mas não a libertando antes de corrê-las ao longo do braço da moça e levar as duas mãos pequenas
aos lábios para beijá-las, demoradamente.
– Desculpe se a machuquei – pediu e a soltou. Livre, ela ignorou o beijo molhado e esfregou os
braços para livrá-los da dor e da má impressão que os dedos de Tyler deixaram.
– Tudo bem... – murmurou. Encarando-o, considerou que não custava nada dizer aonde foi, mas em
seu íntimo sentia a rebeldia em ebulição, ordenando a ela que o mandasse ao inferno junto com a Sra.
Williams e todos que ele dizia terem o direito de se intrometer na vida do padre e, consequentemente,
na dela; faria melhor.
– Antes de dizer qualquer coisa eu quero que me dê sua palavra de honra que nunca mais vai
mencionar meu segredo. Jure pela saúde do seu pai.
– Porra, Faith! – explodiu. A moça não percebeu o brilho angustiado que cruzou os olhos do rapaz.
Apenas cruzou os braços e o encarou, indicando que esperaria o tempo que fosse preciso. Depois de
passar uma das mãos nervosamente pela testa, ele exclamou: – Está bem... Juro pela saúde do meu
pai. Agora conta.
– Amanhã – anunciou, encarando-o.
– Filha da puta! – Tyler vociferou rubro de raiva, segurando-a mais uma vez e a chacoalhando
levemente. – Conta logo Faith.
– Já disse que amanhã – falou inabalável. – É pegar ou largar.
Em resposta recebeu um esgar enfurecido. Sem uma única palavra, Tyler a deixou e caminhou
apressado para a mata ao lado da casa. Ineditamente Faith não sentiu o costumeiro prazer ao
provocá-lo, mas gostou de saber que ao menos durante aquela noite, seu amigo remoeria a
curiosidade por ter se atrevido a tocá-la e insinuar que poderia revelar seu segredo.

A cada passo dado, Jonathan dizia a si mesmo que era errado e arriscado o que fazia. Não deveria
estar seguindo o rapaz, mas simplesmente não se dominava. Na verdade, não se comandava desde
antes de sair de casa com a desculpa de que caminharia pela praça para manter contato com outros
moradores de Sin Bay afim de não ser acusado de favoritismo quando sua amizade com Faith se
tornasse pública.
O padrinho apenas lhe lançou um olhar enviesado, fingindo indiferença. Jonathan agradeceu o
silêncio, pois nada o demoveria. Estava decidido a esperar por ela próximo a sua casa somente vê-
la. Algo inocente que acalmasse a inquietação despertada pela discussão com o tio, contudo, jamais
poderia imaginar que fosse ter companhia, com as mesmas intenções.
Quando o rapaz passou próximo – sem vê-lo – de pronto o reconheceu como o delator que se
antecipou, contando a Faith sobre sua posição no clero. Desde então, sua raiva por ele aumentou e,
ao assistir a forma como abordou a moça, esta se transformou em ódio genuíno. A violência com a
qual a segurava, fez o sangue Jonathan correr mais rápido, incitando-o a apartá-los. Porém, não
deveria sequer estar ali, quanto mais se interpor entre eles.
Não foi preciso intervir. A calma de Faith indicava que estava habituada a lidar com situações
como aquela; eram íntimos! Não deveria, mas seu coração desavisado protestou imediatamente,
mesmo que se recusasse a tirar qualquer conclusão precipitada.
Ao finalmente soltá-la, Tyler veio em sua direção, fazendo com que se escondesse entre as
árvores. O rapaz passou a menos de um metro de si, esbravejando e atribuindo à Faith adjetivos nada
dignos. Jonathan sentiu seus músculos tremerem na ânsia de abordá-lo para lhe ensinar que não
deveria tratar uma mulher daquela maneira. Tal desejo o espantou. Mais uma vez, Jonathan não se
reconhecia, afinal, nunca agrediu alguém. Ainda assim, sem compreender-se, cerrou os punhos
fortemente imaginando que poderia socar o garoto em lugares que ele sabia ter maior sensibilidade e
que causariam maior dor.
De onde vinha aquele instinto violento? Como todas as outras perguntas sem resposta, Jonathan
não atinava sua natureza. E não teve tempo de pensar a respeito, pois novamente suas pernas
ganharam vida própria, fazendo-o seguir o rapaz. Acompanhou-o a uma distância segura, sem
desprender os olhos de suas costas. Enquanto caminhava cautelosamente, flexionava os dedos,
repetidas vezes, na esperança de expulsar a vontade de alcançar Tyler e dar-lhe o corretivo
adequado.
O desejo violento apenas passou quando Tyler chegou à praia. Parado ao final da trilha, sem se
importar que o garoto pudesse vê-lo, Jonathan o deixou ganhar distância, saboreando o gosto amargo
de dever não cumprido. E aquele era outro problema a ser solucionado. Sua função era promover a
paz, propagar a palavra e auxiliar nas reconciliações, pensou levando as mãos aos bolsos. E não
ansiar espancar o rapaz como se fosse um lutador de rua em vez do homem racional e culto que era.
Preso na analise das últimas reações, Jonathan deu meia volta e retornou à trilha. Quando passou
em frente à casa de Faith não se furtou um último olhar na direção da construção de madeira,
imaginando que talvez pudesse vê-la na janela. Não aconteceu, mas não era um problema. Já na rua
que o levaria à praça, Jonathan considerou que deveria estar preparado para o que viria; a
aproximação com a moça ainda lhe despertaria instintos desconhecidos, trazendo à tona aquele lado
obscuro que começava a ocupar cada vez mais espaço dentro de si. Deveria sufocá-lo e se preservar,
contudo, a curiosidade se sobrepunha a prudência.

– Papai quer o quê?
– Quer que eu convide o padre Jonathan para outro jantar – Constance repetiu, recolocando o
microfone em seu suporte junto ao rádio. Faith entendera, apenas queria ouvir uma segunda vez. Teria
outra chance de receber o padre na sua casa num jantar que agora faria questão de participar.
– E para quando pretende marcar? – inquiriu, ocultando a ansiedade.
– Estava pensando no sábado – respondeu a mãe, sem perceber o brilho de satisfação nos olhos
castanhos enquanto ia se sentar ao lado de sua outra filha.
Agora a moça acreditava que poderia explodir de felicidade. Seria perfeito! Assim como seria se
Elliot Green gostasse do novo padre. Se acreditasse na simpatia que sua filha caçula declarasse
sentir por ele, não admitiria que ninguém daquela vila de linguarudos olhasse com maus olhos para a
amizade.
– Eu sugiro que faça uma vistoria na pick up – Nicole gracejou sem olhá-la, como se tivesse feito
um comentário banal.
– E eu sugiro que tome cuidado com a outra perna – Faith retrucou, entrando no clima da
provocação. – Ou corre o risco de quebrá-la também caso tropece na própria língua.
De onde estava Nicole lhe dirigiu uma careta enfezada antes de estender-lhe a língua em um gesto
tipicamente infantil. Faith lhe retribuiu a ofensa antes que Constance exclamasse:
– O que aconteceu? Regrediram no tempo? – Voltando-se para Faith, que fora se sentar também ao
lado da irmã no grande sofá, acrescentou: – E Nick está certa. Não sugiro uma revisão, mas
aconselho que esteja aqui dessa vez.
– Não deixei de vir da outra vez por vontade própria – retrucou. – Apenas aconteceu. De toda
forma aos sábados nem vou à Wells, então não têm com que se preocuparem.
– Melhor assim – disse Constance. – E já que você o vê com maior frequência, acho que não se
importaria em fazer o convite.
– Sim, senhora – Faith concordou. – Eu farei o convite amanhã mesmo.
– Ótimo! – Para a filha mais velha pediu: – Você avisa ao Joe.
Os olhos de Faith imediatamente se voltaram para a irmã. Sorte que sua mãe vivesse alheia ao que
acontecia à sua volta, caso contrário teria notado a súbita mudança de humor. A moça se compadeceu
da tristeza da irmã; somente poderia imaginar o desagrado que sentia. Quando Nicole respondeu
animada, apenas Faith sabia que a dor que a jovialidade encobria.
– Aviso ainda hoje. Estou esperando um telefonema dele essa noite.
Sem nada dizer, Faith procurou pela mão da irmã e a apertou, indicando sua solidariedade. Em
retribuição recebeu um sorriso inexpressivo. Depois do breve momento tenso que somente as moças
Green vivenciaram, as três mulheres iniciaram uma conversa animada, onde decidiram o que seria
servido no jantar e quem convidariam daquela vez; ficando decidido que a reunião seria somente
para os da casa, o padre e seu padrinho.
As únicas exceções seriam Helen e Joseph, futuros membros da família Green. De todos Faith
dispensaria Carlo. Ela sentia que ele sabia de suas segundas intenções: preferia evitá-lo. Seja como
for, seria inútil remoer tal assunto e, para distrair-se, Faith aproveitou para expor as ideias que teve
na noite anterior. Contou-lhes também que estas foram aprovadas pelo padre e que os dois visitaram
o galpão da cooperativa aquela manhã, na companhia de Netty.
Faith achou melhor deixá-las a par de todos os seus passos para que estivessem informadas caso
alguma velha fofoqueira se adiantasse e aproveitasse o ensejo para incutir pré-conceitos sobre a
proximidade dela com o padre Jonathan.
– Gostei da ideia do leilão – disse Nicole, verdadeiramente animada. – Já pensou no que vai
oferecer?
– Pensei em cinco aulas de desenho para quem me arrematar.
– Ou você poderia dar cinco aulas de dança – sugeriu a mãe. – Poderia repassar o que está
aprendendo no seu curso.
– Disse bem mamãe – começou sem se abalar –, eu ainda estou aprendendo. E desenhar eu já
ensino, então é melhor e mais fácil para mim.
– É verdade – Constance concordou, indicando que não insistiria no assunto; olhando para Nicole,
perguntou: – E você? Vai participar?
– Ah... Vou, sim. Estou pensando em oferecer cuidar do jardim. Posso limpar os arbustos, cortar a
grama, qualquer coisa que me mantenha em movimento para compensar esses dias que estou proibida
de andar além do necessário. Ficar em casa é um tédio!
Faith sorria do desabafo da irmã, quando o telefone tocou. Sua mãe atendeu e bastou olhar para
Nicole para indicar se tratar de Joseph. Como não pretendia assistir as expressões faciais da irmã,
nem a alienação da mãe que não percebia o quanto manter aquele noivado era custoso para a filha,
Faith aproveitou a interrupção e subiu ao seu quarto.
Continuava acesa e depois de saber que receberia Jonathan novamente em sua casa, o estado de
inquietação apenas piorou. Sabendo que não conciliaria o sono, a moça foi até a varanda e se sentou
sobre o parapeito. A lua deixava seu brilho sobre as ondas que quebravam na areia. aquela cena
sempre a acalmava e ela esperava que naquela noite não fosse diferente. Precisa dormir, pois tinha
pressa do amanhã.
Capítulo Treze

– Por que não vai se deitar, Johnny?


– Porque estou sem sono – Jonathan respondeu, também em italiano, sem desviar o olhar da lua,
ignorando a aproximação de seu padrinho.
– Deite que ele virá. Ficar de pé ao lado da janela não vai ajudar em nada se está insone.
– Sei disso – retrucou simplesmente, ainda sem se mover. Após alguns segundos de silêncio o
padrinho palpitou:
– Será que não é fome?Não almoçou ou lanchou e durante a janta fora de hora, não comeu quase
nada. O macarrão que deixei está praticamente intocado.
– Se estivesse com fome eu comeria – disse ainda olhando o vazio. Depois de um suspiro
exasperado, Carlo diminuiu a distância entre eles e tocou-lhe o ombro.
– Não gosto de lhe ver assim... Por que não me conta o que o atormenta. Dou-lhe minha palavra de
que não o julgarei ou criticarei se me disser que é por causa da moça, e...
– Não vamos voltar a esse assunto, por favor. – Jonathan fechou os olhos.
– Não quero que se aborreça – Carlo aquiesceu. – Então não é por causa da Srta. Green, mas tem
que ter algum motivo para seu comportamento. Eu não enveredaria por suposições erradas se me
dissesse a verdade.
– Por que não posso me aborrecer? – Jonathan perguntou ao encará-lo de modo súbito. Pego de
surpresa com a pergunta fora do contexto, o tio piscou algumas vezes antes de dizer:
– Porque não há necessidade de nos alterarmos como aconteceu essa manhã.
– Tem certeza que é somente por isso? – inquiriu franzindo cenho, avaliando as expressões faciais
do padrinho.
– E por que mais seria, Johnny? – Carlo devolveu com outra pergunta, impassível. Novamente
fugindo do contexto que teria lógica para Carlo, Jonathan contou:
– Hoje senti vontade de bater em alguém.
– O quê?! – O padrinho engasgou, espantado. – Agrediu alguém?... Quem? Por quê? Jonathan, diga
alguma coisa!
– Não disse que bati em alguém e, sim, que tive vontade – respondeu, cruzando os braços sobre o
peito, encarando o padrinho que ainda se recuperava do susto.
– Certo. Mas me conte. Por que quis bater numa pessoa?... Quando foi isso? Agora à noite?
Quando saiu?
– Sim. Tive uma... contrariedade e meu primeiro desejo foi resolvê-la com uma agressão.
A violência inédita o assustava, mas Jonathan via nela a oportunidade de conseguir respostas. O
que o inquietava era descobrir que se estivesse trilhando o caminho correto, sua verdade perdida não
condizia com sua atual personalidade. E o que era pior: Carlo não só lhe mentiu durante anos, como
sabia que ele era verdadeiramente uma fraude.
– Jonathan... – seu tio murmurou em lamento, olhando-o como se não o conhecesse.
– Não me olhe assim – pediu. Talvez fosse ele a desconhecer o tio. – Já falei que não o fiz.
– Mas pensou em fazer. Vai me dizer o motivo?
– Não vem ao caso. É irrelevante diante da minha reação. E é por isso que estou sem sono...
Queria entender de onde veio a animosidade que senti.
– Você é humano, apenas isso – o padrinho simplificou.
– Não... – teimou. – Nem todos os humanos reagem da mesma forma diante de determinada
situação e a minha foi completamente contrária à minha índole e à minha posição. – Sem desviar os
olhos dos do padrinho, disse: – Gostaria que me dissesse por que agi assim.
– Como eu posso saber? – Carlo perguntou confuso, franzindo o cenho.
– Talvez ajudasse se me dissesse como eu era – sugeriu.
– Como assim, como era? – Carlo estranhou a pergunta. – Já disse milhões de vezes como você
era.
– Diga mais uma – pediu, incisivamente. O tio bufou exasperado antes de dizer:
– Você sempre foi um rapaz normal.
– Defina normal.
– Sempre foi educado... Respeitoso com seu pai, amoroso com sua mãe. Nunca arrumou confusão
na escola ou na rua onde morava. Mesmo criança, teve poucos amigos, mas interagia bem com eles.
Quando adolescente, era cordato, salvo um ou outro desentendimento próprio aos de sua idade. Mas
nada grave ou que merecesse severas repreensões. E até onde soube, nunca teve uma namorada, pois
expressou desde cedo o desejo de servir a Deus.
– Resumindo... Praticamente, sempre fui um santo – Jonathan comentou, encobrindo o sarcasmo
que o assomava.
Cada vez mais lhe parecia que o padrinho escondia algo importante sobre seu passado, contudo
não tinha como fazê-lo falar. Não via como ser possível ter sido aquele modelo de perfeição,
possuidor de uma conduta pacata e casta; irrepreensível, quando era perseguido por sonhos
apelativos demais para um virgem, que agora era visitado por tantas reações incongruentes a um
padre.
– Nunca disse que foi santo, Johnny – o tio falou docemente, atraindo-lhe a atenção. – Acredite,
entendo suas dúvidas, mas nada mais posso lhe dizer uma vez que realmente foi uma criança normal.
– Normal demais... – Jonathan murmurou para si mesmo, cansado.
– Normal na medida certa – o padrinho retrucou ainda amável. – Não crie problemas para si
mesmo Johnny, basta os que você já possui desde seu acidente. Como lhe disse, você está sob forte
pressão. Pode-se dizer que viveu enclausurado por anos e agora mantém contato direto com tantas
pessoas diferentes. Tudo é novo aqui. Não tente procurar por explicações em seu passado para o que
lhe acontece no presente.
– Talvez tenha razão, mas seria tão mais fácil se eu me lembrasse – Jonathan lamentou; envolvido
pelas palavras de Carlo.
– Evidente que seria, mas não adianta forçar sua memória. Acredito que um dia, quando menos
esperar, ela reacenderá e seu passado virá inteiro, assim não será preciso acreditar somente no que
lhe digo. Contudo, até que aconteça, tenha em mente que antes de ser padre, você é um homem jovem
e saudável, suscetível a qualquer reação quando estimulado. Se alguém o provocou na rua,
principalmente dizendo algo que não gostou de ouvir, nada mais natural que tenha desejado externar o
que sentia no momento.
Jonathan nada retrucou, apenas recebeu as colocações daquele homem que amava como a um pai.
Elas recaíram sobre seu espírito atormentado como água fresca em uma planta ressequida; salvando-
a. Aquela explicação era totalmente relevante, aceitável e menos fantasiosa que seus
questionamentos.
Ainda tinha os sonhos impróprios, mas não poderia persistir na crença de que tivesse sido um
delinquente juvenil. Se insistisse no caminho que seguia era a isto que chegaria. Seria reconfortante
aceitar as palavras do padrinho mais do que se imaginar um celerado ou acreditar que não conhecia o
caráter do homem que sempre esteve ao seu lado.
Carlo era seu porto seguro, sua única referência na vida. Se perdesse a confiança depositada nele,
perderia tudo. Depois de um breve ponderar, o afilhado procurou pelos olhos do padrinho. Neles
encontrou toda a dor por estarem presenciando sua angustia pessoal mais uma vez. Não era possível
que olhos tão sinceros escondessem uma alma mentirosa. Arrependido pelos pensamentos infames
que alimentou contra Carlo, Jonathan foi até ele e o abraçou com força.
– Perdoe-me! – pediu emocionado.
– Pelo o que, Johnny? – o padrinho inquiriu consolador retribuindo o abraço. – Por desejar saber
quem é ou tentar entender as emoções que sente?
– Por minha descrença – Jonathan respondeu, soltando-o. Seu eterno tutor lhe sorriu brandamente e
lhe deu três tapas breves e leves na bochecha direita; aquele era seu equivalente a um carinho.
– Não se martirize por isso, Johnny. Não sei se aguentaria melhor do que você se tivesse de ter
minha vida contada por outra pessoa. Na verdade, acho até que se sai muito bem – elogiou. – Agora
vá se deitar, por favor. Levantamos cedo e não quero que acorde cansado. Se desejar posso lhe levar
uma xícara de leite morno, vai ajudá-lo a dormir.
– Não quero nada, obrigado! Sinto-me melhor agora que conversamos.
– Sabe que sempre estarei aqui para você, Johnny – Carlo assegurou lhe sorrindo ternamente. –
Agora vá se deitar.
Jonathan o obedeceu sem mais palavras. Precisava mesmo dormir e de preferência não sonhar,
pois tinha que estar preparado para um novo dia em sua paróquia. Aquela era sua vida. A vida que
conhecia e que teria indefinidamente. No momento seria melhor vivê-la sem grandes questões. Tudo
acontecia em seu tempo certo. Também sempre acreditou no mesmo que Carlo; mais dia menos dia
seu passado viria límpido e inteiro em sua mente, então saberia qual era sua verdade.
Tão logo caiu sobre a cama, sua mente refrescada e seu corpo cederam ao cansaço fazendo com
que adormecesse. Contudo, contrariando o que desejou, teve sonhos perturbadores durante toda a
noite nos quais uma Faith envolvida num tecido vermelho e diáfano, abraçava-o com braços e pernas
enquanto afundava o rosto em seu pescoço para torturá-lo com o hálito morno. Mais uma vez, já pela
manhã, despertou rígido de desejo.
Aceitando que aquele seria seu estado constante, sentindo apenas certa irritação embaraçosa por
não comandar aquela parte emancipada de seu corpo, Jonathan levantou e seguiu às pressas para o
banho matinal onde poderia manter seu primeiro contato íntimo com certa moça de cabelos escuros.

– Moletom? – Nicole estranhou, ainda sonolenta. – Camiseta e tênis?... Aonde vai vestida assim?
– Ao cinema – Faith respondeu, terminando de prender o cabelo em seu eterno rabo de cavalo. –
Volte a dormir e sonhe que me esqueceu.
– Sério, Fay – a irmã se apoiou em um dos cotovelos. – Aonde vai?
– Caminhar na praia. Onde mais? – disse impaciente.
– Ah... É bom variar a modalidade às vezes. Assim mamãe não surta com você nadando pelada.
– Para seu governo, nunca nadei pelada, só de lingerie – corrigiu, indo para a sacada.
– Vai sair escondida? Por que não sai pela porta, como uma pessoa normal.
– Talvez eu não seja normal. Tchau Nick!
Dito isso saiu e fechou a porta do quarto sem esperar resposta. Enquanto descia, descobriu o
quanto fugir de tênis era trabalhoso, esperava apenas que usar aquele calçado feio e limitador não se
mostrasse ser pura perda de tempo. Ao chegar ao chão, cruzou o quintal e correu para a mata sem
encontrar obstáculos.
Enquanto seguia pela trilha tentava dizer a si mesma que nada tinha mudado. Carlo não proibiu o
sobrinho de vê-la e Jonathan, por sua vez, apenas disse que correr se tornara inconveniente num
daqueles momentos onde se refugiava em si mesmo.
Seguia tão distraída que se sobressaltou quando Tyler simplesmente se materializou em seu
caminho.
– Credo! – gritou alarmada, enraivecida. – Veio me perturbar logo cedo por causa de ontem à
noite, é isso?
– Bom dia, Fay. – Tyler ignorou a pergunta.
– Só se for para você – ela retrucou. Não queria que Jonathan os visse. – Se eu disser o que quer
saber você promete que larga do meu pé pelo menos por hoje?
– Já me enganou uma vez, espertinha, então não vou lhe prometer mais nada. Já sabe porque estou
aqui então vá de vez ao que interessa – demandou, cruzando os braços.
Merecia estar passando por aquilo, ela pensou. Se tivesse dito de uma vez onde foram, agora ele
estaria atrás de alguma árvore, sendo invisível. Assumindo seu erro, a moça bufou e disse.
– Ontem, eu e o Sr. De Ciello, fomos ao galpão da cooperativa porque eu dei a ideia de fazermos o
piquenique lá, satisfeito?
– Ouvi falarem de um piquenique que o padre esquisito está organizando.
– Quem está organizando sou eu, por isso saímos juntos. Está vendo... Não era nada demais como
essa sua mente suja imaginou.
– Tem de admitir que é difícil imaginar algo inocente quando você está envolvida.
– Não estou tão desesperada para me atirar para um padre – ciciou ofendida.
– Ah, não? – Tyler a mediu de alto a baixo. – Então por que está vestida como ele?
– Não estou vestida como ele. – Faith deu de ombros. – Só me vesti assim porque é melhor para
caminhar. Não é segredo para você que fazemos isso algumas manhãs, então não venha com aquela
história de ciúmes novamente.
– Está certo! – ele também deu de ombros. – Se é o que diz...
– É o que digo, agora podemos ir? – Tentando encobrir a ansiedade usou a desculpa: – Preciso ver
se o padre Jonathan já está na praia. Tenho um recado da minha mãe para ele.
– Podemos ir se quiser, mas o padre esquisito não passou por aqui, então acho pouco provável que
esteja na praia. Por que sua mãe não liga para ele?
Faith não arriscou responder, pois sua garganta subitamente se fechou ante a confirmação de seu
temor. O padre mais velho impôs sua autoridade. Toda sua produção ridícula fora em vão e, graças à
Sra. Williams, nunca mais estaria a sós com Jonathan; na praia ou em parte alguma. Ainda sem nada
dizer, lutando contra as lágrimas, Faith seguiu em frente.
– E então? Qual é o recado de sua mãe para o padreco? – Tyler a seguia sem perceber sua tristeza
evidente. Imitando uma voz feminina e fina, falou: – Tire esses olhos grandes de abutre agourento
de cima de minha preciosa filhinha... – Por fim exclamou com voz normal e debochada. – Como se
ele pudesse!
– Cale a boca, Tyler! – Faith pediu, embargada.
– O quê...? Você está chorando?! – ao perguntar ele se adiantou e broqueou-lhe a passagem.
– Droga! Sai da minha frente, garoto! – ela ordenou sem convicção alguma, pois as lágrimas que
tentava ocultar verteram sem que pudesse retê-las.
– Ei... Calma, Fay – ele pediu ao abraçá-la.
– Me deixe em paz, Tyler! – Faith tentou afastá-lo, sem sucesso. Aproveitando-se de seu momento
de fraqueja, o rapaz imprimiu certa força. Envolvida pelo abraço acolhedor, a moça deu vazão ao
choro, soluçando copiosamente com o rosto enterrado no peito amplo e sólido.
– Shhh... Calma Fay – Tyler repetiu o pedido, passando a acariciar seus cabelos, consolando-a. –
Foi alguma coisa que eu disse? Se foi, me desculpe... Eu sei que tenho a boca grande às vezes e falo
bobagem... Se quiser eu prometo que nunca mais faço piada do interesse do padreco por você.
Ao ouvir a promessa de um cuidado desnecessário, ela chorou ainda mais. Não havia interesse do
padre por ela, ou fosse lá o que ele sentisse que o deixava em constante estado de alerta. Não havia
mais as oportunidades de provocá-lo. Nunca mais sentiria o formigamento em sua pele caso ele a
tocasse. Não teria beijos... Não teria nada!
– Faith, você está me deixando preocupado – disse Tyler, ainda acariciando seus cabelos. – Não
me lembro de ter visto você chorar antes. Nem quando éramos crianças.
Ela queria atendê-lo, mas não conseguia. Era como se todo o choro acumulado durante anos
necessitasse ser extravasado. De repente, ainda abraçado a ela, Tyler riu. Antes que Faith se
ofendesse por ele ter encontrado alguma graça de seu sofrimento, ele perguntou, divertido:
– Lembra quando nós tentamos subir naquelas rochas lá do final da praia? Quando tínhamos o
quê?... Nove e sete anos?... Você se esborrachou na areia depois de cair, quando estava ainda na
segunda pedra. – Tyler riu novamente. – Tudo bem, não estava tão alto assim, mas você bateu o pé na
pedra de baixo e abriu um talho enorme no dedão. Nossa!... Eu nunca tinha visto tanto sangue em toda
minha vida!... Agora confesso que quase desmaiei só por imaginar a dor que você estava sentindo,
mas você... Se lembra o que me disse?
– Eu disse – ela começou depois de fungar e pigarrear, ainda com o rosto pressionado contra o
peito amplo – que você parecia uma menininha por gritar apavorado daquele jeito.
– Justamente... Eu era a menininha histérica e você lá... sem derramar uma única lágrima...
Preocupada se seu dedo ficaria defeituoso e a impedisse de usar os sapatos de salto preferidos de
sua mãe.
– Aquela era minha tragédia particular... – ela sorriu em meio às lagrimas ao se lembrar da
obsessão que sentia pelo par de sapatos que há muito tempo não existia. – E não perder um bocado
de sangue ou um corte idiota.
– E a dor, criatura?! – Tyler perguntou, ainda rindo, depois de afastá-la para olhá-la. – A dor devia
estar te matando!... Eu sentia em mim.
– Eu me lembro. – Faith riu. – Ainda escuto seus gritinhos... “Ai meu Deus!” – imitou-o, porém,
usando voz fininha. – “A Faith caiu”... “E agora?”... “Ah”... “Socorro”...
– Eu não gritei feito uma garotinha – ele negou, fazendo-se de ofendido.
– Gritou, sim! – Faith confirmou, socando-o levemente no peito, sorrindo abertamente.
– Assim está melhor! – Tyler disse, de súbito sério. – Essa é minha Faith!
A moça parou de sorrir, mas não voltou a chorar. Intimamente agradeceu pelo que ele fizera,
livrando-a de se esvair em lágrimas por um fato que não poderia mudar. Encarando-o, sorriu
ternamente.
– Obrigada!
– Ah, não... – Tyler tocou o rosto dela com as duas mãos para secar-lhe as lágrimas. – Nada de
agradecimentos “sentimentaloídes” depois de fazer aquela imitação ridícula e ofensiva.
Dito isso, ela lhe sorriu, ainda agradecida e não se importou quando Tyler, depois de enxugar-lhe o
rosto precariamente, aproximou o seu ao dela e a beijou demoradamente na testa.
– Scusami... Interrompo?
Ao ouvir a voz cantada, rouca e baixa, Faith desejou que o chão se abrisse sob seus pés e a
engolisse junto com Tyler, para que não fosse obrigada a encarar o recém-chegado depois de ele ter
assistido àquela demonstração de carinho.
Não aconteceu, e como Jonathan os encarava inquiridor, era preciso agradecer silenciosamente a
Tyler por estar segurando seu rosto, caso contrário, ela cairia. Estava entorpecida. Sentia apenas seu
coração que batia de forma tão violenta que temeu sofrer um infarto.
Cedo ou tarde aconteceria, era um fato! Jonathan a levava a extremos nunca antes visitados.
Quando finalmente as sensações primárias voltaram, Faith confirmou que Jonathan também
despertava sentimentos intensos em Tyler, pois as mãos que ainda a seguravam, exerciam uma leve
pressão, mesmo que não a machucasse. Saindo da inércia, ela as cobriu e as afastou gentilmente antes
de se voltar e procurar pelos olhos azuis.
– Não – respondeu por fim com a voz ainda embargada; imediatamente registrando a imagem do
padre parado a três metros de onde se encontravam, vestindo a habitual calça própria para corrida,
camiseta e, pela primeira vez, com os cabelos molhados. Estava lindo! – Não interrompe nada, não é
Tyler?
Faith o chamou na tentativa de despertar o rapaz de seu torpor. Piscando algumas vezes ele se
afastou um passo dela e respondeu sem desviar os olhos de Jonathan:
– É... Não interrompeu nada. – Voltando-se para Faith, sem se importar com a plateia, segurou-lhe
o rosto mais uma vez e perguntou, seriamente: – Tem certeza de que está bem?
– Tenho – respondeu, odiando ser obrigada a desviar seu olhar de Jonathan.
– Ótimo! – Tyler a soltou e anunciou: – Tenho umas coisas para resolver em casa... Preciso ir
agora. A gente se vê mais tarde.
– Tudo bem. – Foi tudo o que conseguiu dizer. – Tchau, Ty.
– Tchau, Fay – respondeu, indo na direção de Jonathan, encarando-o. – Tchau, padre.
– Ciao.
Com a saída do rapaz ficou o silêncio, velho conhecido de ambos. Contudo a ausência de palavras
era incômoda. Por alguns minutos nenhum dos dois sequer se moveu sem nunca desviarem o olhar.
Faith não sabia o que dizer, ao passo que Jonathan não sabia se desejava ter suas suspeitas da noite
anterior confirmadas. Quando o clima se tornou insustentável, coube a ele tentar amenizá-lo.
– Eu me atrasei.
– Percebi – ela respondeu automaticamente. – Eh... Vim arrumada.
– Percebi – ele comentou.
Na verdade, percebera muitas coisas. A primeira e mais perturbadora, foi descobrir que não
gostou nada de vê-la nos braços do rapaz. Que novamente sentiu ganas de socá-lo por ele se atrever a
beijá-la duas vezes seguidas mesmo que na testa. Que desejou ser ele a consolá-la no momento em
que notou o choro recente. Que ela ficava linda com os olhos vermelhos e a ponta do nariz rosada. E
que esperava – com todo o seu coração – que ela não fosse comprometida com o garoto da forma que
a cena sugeria.
– Acha que dá tempo de corrermos? – ela perguntou ainda meio entorpecida, indicando a praia
com o polegar, por sobre o ombro.
– Acho que hoje podemos somente caminhar – ele sugeriu, por fim, indo até ela.
– Seria perfeito...
– Mas, antes, falta uma coisa – Jonathan falou ao parar diante dela.
– O quê? – ela perguntou aturdida.
– Você não me tomou a bênção.
E novamente seu coração, ainda em recuperação, acelerou.
– Sua bênção... – tomou o devido cuidado de não citar sua posição no clero. Quando o padre a
abençoou e, ato contínuo, estendeu-lhe a mão, ela não soube o que fazer por cinco segundos inteiros.
Então, aproveitando a oportunidade oferecida, tomou os dedos longos entre os seus e os beijou,
demoradamente.
Ao ouvir a respiração masculina ser contida, seu corpo estremeceu em deleite. Quando soltou a
mão e ergueu os olhos, flagrou o momento exato em que Jonathan abria os dele, permitindo que visse
as íris azuis escurecidas; as pupilas dilatadas.
Jonathan tinha de se habituar àquelas pequenas concessões uma vez que decidira recebê-las,
contudo desejava que nunca acontecesse, pois lamentaria o dia que não mais sentisse aquele prazer
estimulante e ao mesmo tempo pacificador. Agora que sabia o que esperar, apreciou cada tremor de
prazer que os lábios macios, comprimidos em seus dedos, traziam ao seu corpo.
Também não gostaria de ser privado daquele olhar intenso que encontrou ao abrir os olhos – que
nem ao menos percebeu ter fechado – enquanto a sua metade necessitada dela apreciava o pulsar
breve e latejante naquela parte em seu corpo livre de qualquer comando.
Havia naqueles olhos castanhos um desafio constante – um pedido velado – que descobriu ter se
tornado dependente. E mesmo que sua metade consciente jamais pudesse atendê-los, de modo egoísta
os queria somente sobre si. Novamente sendo generoso, o padre resolveu atender a um súbito apelo
de sua parte interessada e, sem cerimônias, ergueu uma das mãos para tocar o rosto ainda molhado e
capturar com o polegar os restos de uma lágrima nos cílios inferiores.
E já que estava com a mão sobre a pele macia e úmida, Jonathan correu a palma pela bochecha
rosada até que chegasse ao queixo, na tentativa de secar a face da moça, sem perceber – ou querer
admitir – que lhe fazia um carinho.
Quando os olhos de Faith deixaram os seus para se fixarem em sua boca entreaberta e ela
umedeceu os próprios lábios com a ponta da língua, Jonathan soube que sua benevolência tinha ido
longe demais. Pigarreando para limpar a garganta obstruída, ele anunciou roucamente:
– Agora podemos ir.
Sem mais avisos, retirou a mão do rosto de Faith e se pôs a andar sem olhar para trás, como se
também fosse natural que Faith simplesmente o seguisse.
Capítulo Quatorze

Tantas sensações a estremeciam e muitas perguntas a inquietavam, que bons segundos se perderam
até que Faith conseguisse seguir o padre. Incrédula, considerou se seria impressão ter sido
acarinhada quando ele secou seu rosto. Também ansiava saber se teria recebido o tão desejado beijo
se não tivesse sido estúpida o bastante para quebrar o poderoso contato visual que mantinham. Nunca
saberia.
Fosse como fosse, Jonathan estava bem em frente; era o que importava. Passada a vergonha de ter
sido flagrada com Tyler, Faith agradecia o fato de o tio do padre não ter tanta influência. Sim, pois
alguma divergência existiu. Não seriam recebidos daquela forma autoritária caso ele não se opusesse
aos encontros. No entanto, ali estavam. Contrariando até mesmo as palavras de Jonathan quanto à
inconveniência das corridas matinais.
Se sua presença – mesmo com tantos empecilhos – não fosse o indício de uma aceitação, ela não
atinava o que seria. Por que chorou afinal?
Ao chegarem a faixa de areia, caminhavam em silêncio, contudo, daquela vez, a ausência de
palavras era boa, cúmplice. Talvez fosse o caso de mantê-lo, mas tinha uma curiosidade. Enquanto
caminhou diante dela, Jonathan reconheceu não ter lógica desejar exclusividade nas atenções da
moça uma vez que não lhe retribuiria os avanços nem tinha nada a oferecer. Ainda assim, já que
estava disposto a receber suas atenções, reservava-se ao direito de saber.
– Você e seu namorado brigaram?... Por isso chorou?
– Ty... Tyler não é meu namorado – esclareceu apressadamente. – É só meu amigo.
Jonathan não deu crédito a resposta trôpega. Um amigo não a trataria com a possessividade que
presenciou. Nem se acercaria dela protetoramente como “Ty” fizera quando os interrompeu durante o
momento de carinho.
– Então o rapaz não é seu namorado – disse, emparelhando-se a ela, sem olhá-la. – Mas alguma
coisa aconteceu, afinal você estava chorando... Pode me dizer por quê?
Olhando um ponto qualquer em frente, Faith se perguntou como explicaria o desespero que sentiu
ante a ideia de nunca mais tê-lo por perto? Se o fizesse, com certeza perderia a aceitação ainda tão
frágil.
– Saudade – ela falou de súbito. – Tyler só estava me consolando da saudade que sinto do meu pai.
Eu já deveria estar acostumada, mas sempre acontece. – Não era de todo uma mentira, a falta era
real.
A última declaração poderia ser verdadeira, Jonathan considerou.
– E, agora, está melhor? – perguntou solícito, olhando-a. – Conformou-se com a falta de seu pai?
– Sim, obrigada! – Faith aproveitou para também olhá-lo, perdendo-se nos olhos mais azuis do que
o mar ao lado. – Nem sei o que me deu, na verdade. Ele chega amanhã, então... Não precisava ter
feito uma cena.
– Tenho certeza de que seu amigo não se importou com a cena – retrucou sem pensar, movido por
algo próximo ao ressentimento.
– Ah... – jovialmente comentou. – Tyler é um chato. Agora vai me perturbar por causa daquilo.
De fato não tinha argumentos que negassem a chatice do rapaz, Jonathan pensou azedo. Na tentativa
de mudar o rumo do assunto que o aborrecia uma vez que não conseguiria respostas sinceras,
perguntou:
– Então Elliot Green chega mesmo amanhã?
– Sim... – Como se lhe corresse algo desagradável, acrescentou: – Amanhã não virei à praia e
provavelmente também não venha ao sábado. Acho que nossa corrida será novamente adiada até
segunda-feira.
– Parece que sim – Jonathan confirmou. Na esperança de convencê-la a vir antes ou depois da
chegada, perguntou: – A que horas seu pai chega amanhã?
– Nós nunca sabemos ao certo então eu costumo ir para o cais logo cedo. Gosto de estar lá para
recebê-los: meu pai e meu irmão – acrescentou rapidamente.
– Entendo. – Não havia como encontrá-la. Era conformar-se. – Fico feliz que sua saudade esteja
perto de ser aplacada. Já ouvi alguns comentários sobre seu pai... Todos dessa cidade lhe têm muito
respeito. Ele deve ser um homem correto e bom para ser tão querido e também receber tanto amor de
uma filha.
– Ah... Ele é. – Faith sorriu. – E já que estamos falando dele, tenho um convite a fazer em seu
nome.
– Um convite? – Jonathan se interessou.
– Sim, ele gostaria que o senhor fosse jantar novamente em nossa casa, no sábado à noite. Se não
for atrapalhá-lo.
Então a veria antes de domingo afinal, animou-se.
– Sábado está bom para mim.
Decidira ministrar missas também aos sábados, mas poderia pedir ao padrinho que assumisse a
primeira. Seria providencial, pois seria a desculpa ideal para não levá-lo à casa dos Greens. Com
sua vigilância declarada, e o que poderia ser o início de uma série de boicotes, não o queria por
perto quando tivesse a oportunidade de estar com a moça. Ainda mais estando decidido a aproveitar
cada toque falsamente descuidado, cada mínima atenção que ela lhe dispensasse.
– Na verdade, sábado será perfeito! – Previu, satisfeito com seu plano.
Faith jamais o contestaria. Somente a oportunidade de recebê-lo em sua casa já era considerada
perfeição.
– Então está combinado. Ah, sim... O convite vale para seu tio. – Para o acréscimo Faith não
demonstrou o mesmo entusiasmo.
– Agradeço em seu nome. Você estará lá dessa vez?
– Estarei – Faith respondeu de pronto.
– Sorte que esse jantar não seja novamente numa quinta, não?
– Sorte! – Faith pediu aos céus que ele parasse por ali. Ela acreditou mesmo que aquele assunto
nunca mais seria lembrado? Era uma ingênua idiota. Como prova Jonathan voltou à carga:
– Se fosse, você deixaria de ir para sua aula de dança dessa vez?
– Daquela vez eu não fui para a aula. – Incomodada com a extensão do assunto, usou a mentira
ensaiada: – Apenas não cheguei a tempo porque a pick up quebrou. A correia dentada se partiu.
O tom levemente trêmulo e inseguro de sua voz indicava ao padre que não poderia acreditar no que
dizia, mais uma vez, aguçando sua curiosidade.
– Conseguiu se lembrar de outras danças que aprendeu além da salsa e do tango?
– Não é preciso que eu me lembre. Eu sei o que aprendi... Só acho chato ficar falando sobre isso.
É apenas uma aula, como outra qualquer. – Para sair do assunto definitivamente, mudou o foco da
atenção para ele: – Porque se atrasou hoje? Achei que nem viria.
Jonathan também acreditou que não, pensou contrafeito ao se lembrar do imprevisto que o
retardou. Ainda preferia especular sobre as tais aulas, mas já que Faith não se mostrava propensa a
sanar sua curiosidade, lhe contaria o ocorrido aquela manhã.
– Meu padrinho me pediu para ajudá-la a trocar uma torneira em nossa cozinha, quando eu estava
prestes a sair.
– E o atraso foi por trocar uma torneira?! – Faith não desejava parecer incrédula, mas até mesmo
ela sabia que o serviço não levava mais do que cinco minutos, no máximo.
– Não pela troca, mas pelo o que aconteceu depois... Quando meu padrinho testava a nova torneira,
não me pergunte como, conseguiu a façanha de quebrar o cano que a prendia.
Isso explicava o cabelo molhado. Sem que pudesse evitar, Faith riu com a cena projetada em sua
mente dos dois italianos brigando com um cano partido enquanto este levava a melhor e lhes
esguichava água, molhando-os da cabeça aos pés.
– Acha engraçado? – Jonathan indagou franzindo o cenho.
– Ah... Desculpe, mas não seja tão sério – ela pediu, socando-o levemente no braço como tantas
vezes fazia com Tyler. Sem nem se dar conta da liberdade tomada, acrescentou ainda divertida. –
Tem de admitir que seja engraçado imaginar o bom banho que os dois tomaram.
Jonathan ainda não via nenhuma graça na tentativa embusteira do padrinho de impedi-lo de ir à
praia, mas lhe concedeu certa simpatia por ter sido a responsável pelo tratamento íntimo e
despreocupado que a moça lhe dispensou; como se fossem iguais. Sorrindo levemente ao se deixar
contagiar pelo bom humor dela, aquiesceu:
– Va bene!... Foi um pouco engraçado.
– Bom. – Faith se recuperou do riso ao considerar toda a ação. – Uma torneira quebrada não o
atrasaria, mas... Um cano estourado o ocuparia por quase toda manhã. Como fez para consertar tão
rápido?
– Não consertei – revelou. Aquela era a lógica de seu padrinho, contudo Jonathan não estava
inclinado a se deixar enrolar por ardis tão primários. – Não entendo nada de encanamentos. Depois
de fechar o registro e trocar de roupa, procurei por ajuda especializada.
– Kirk – Faith falou automaticamente.
– Sim... Samuel o indicou e eu o procurei. Só para o caso de não ocorrer novos acidentes eu pedi
que ele checasse todas as torneiras e então vim para cá.
– Que bom que veio! – Foi tudo o que ela conseguiu dizer ao sentir seu peito inflar. Não queria se
atribuir tanta importância, mas não conseguia refrear seu coração cada vez mais envaidecido ao
imaginar que Jonathan saíra em meio a uma crise doméstica somente para encontrá-la. Sim, era
aceita!
Quando o padre encontrou um sorriso luminoso que expressava o contentamento da moça por todo
o relato que ouvira, soube que tinha ido longe demais. E como sempre acontecia nos momentos que
considerava excessivamente impróprios, parou abruptamente e olhou em volta; muito incomodado.
– Sim... Foi muito bom ter vindo, mas agora eu preciso ir.
– Pode ir à vontade, senhor. – A hora da fuga até que demorou a chegar daquela vez, Faith pensou
sem se abalar, tentando apagar seu sorriso. – Eu ainda vou ficar um pouco mais.
– Vai à igreja ainda hoje? – Jonathan indagou com indiferente interesse. – Temos algum assunto a
tratar sobre o piquenique?
– Não! – Ao perceber a ansiedade velada nos olhos azuis, ainda envaidecida e segura de si, ela
imaginou que um pouco de afastamento não faria mal aos dois. – O que tenho a fazer não precisa de
sua participação. Acho que agora só nos encontraremos no sábado, às sete e meia.
– Até lá então... Tenha um bom dia!
– O senhor também... Ciao!
– Ciao! – ele repetiu olhando-a uma última vez antes de partir apressadamente. Enquanto o via se
afastar, Faith sentiu como se pudesse sapatear. Tudo estava correndo à perfeição. Por mais que
Jonathan não admitisse, estava claro que sentia sua falta.
– Não estendeu a mão para que eu beijasse? – perguntou-se baixinho. – Sim, ele estendeu. Não
aproveitou o contato tanto quanto eu? Evidente aproveitou.
Então Jonathan poderia correr o quanto quisesse e se esconder entre as paredes da igreja, Faith
pensou, satisfeita. Cedo ou tarde ela conseguiria o que desejava. Se não tivesse plena consciência de
que Ele consideraria uma afronta, faria uma prece em agradecimento.

Para Faith, aquela quinta foi uma das melhores que viveu nos últimos meses. Ainda que exaustivo,
o ensaio transcorreu animado. Durante seu curso faturou mais do que de costume, Úrsula lhe pareceu
menos cretina, Barry não a cantou e até mesmo Tyler não a abordou para aborrecê-la com perguntas
idiotas sobre o que tinha acontecido depois de sua partida.
Apenas a seguiu como sempre, mantendo distância até que chegassem à cidade e se separassem
após as duas buzinadas habituais. Pelo adiantado da hora a mãe e a irmã já dormiam e até mesmo
esse fato a agradou, pois não queria participar de conversas fiadas. Somente se trocar e dormir, no
dia seguinte veria seu pai e o irmão.
Aquela também foi a melhor noite de todas. Se ela sonhou não lembrou quando despertou animada,
antes das seis da manhã. Sentia um pouco por não ir à praia, mas aquele dia era de seu pai e do
irmão. Ansiosa em vê-los, trocou-se rapidamente. Na cozinha tomou apenas uma xícara de café
solúvel e saiu. Seguiu para o pequeno cais na pick up.
Ao passar em frente à igreja não se acanhou em olhar na sua direção. Estava fechada assim como a
casa anexa. Faith não saberia dizer se Jonathan ainda dormia, mas acreditava que não. Não conhecia
quais eram as obrigações matinais de um padre, mas imaginava que deveriam começar muito cedo.
– Tenha um bom dia, Jonathan! – murmurou ao dirigir seu último olhar para a casa.
Quando chegou ao cais que ficava a poucos metros além nos fundos da cooperativa, Faith viu que
o movimento era intenso. Os homens que não embarcavam já preparavam a grande balança e as
enormes caixas plásticas e gelo que usariam para pesar e armazenar a variedade de peixes e
moluscos, assim como as lagostas que os outros barcos trariam. Faith passou pelos trabalhadores,
cumprimentando-os um a um. Sem se importar com o cheiro forte de maresia, pulou sobre pilhas de
cordas e desviou de caixas até chegar à extremidade do portinho.
Daquele ponto, tomou a trilha de terra por entre poucas árvores que a levou até a elevação onde
seu pai mandara construir um banco de alvenaria para que ela o esperasse comodamente. Elliot
tomara a iniciativa quando a filha contava onze anos e já deixara claro que ficaria a sua espera todas
as vezes que voltasse de longas viagens, chovesse ou fizesse sol, exatamente daquele ponto por lhe
dar uma vasta visão do horizonte. O assento mereceu até ter uma dedicatória esculpida no cimento:
À minha pequena

que com seus olhos de anjo guarda meu retorno

Como das últimas vezes, ao se sentar e correr os dedos pelas palavras em baixo relevo, Faith
sentiu os olhos rasos d’água. Há muito não era pequena nem tampouco um anjo, mas sempre
guardaria o retorno de seu pai. Depois de secar uma lágrima que não chegou a cair, a moça se
recostou e mirou o horizonte. A vigília começara.
Daquela vez, porém, sua mente estava ocupada com seus assuntos corriqueiros e monótonos. Esta
era constantemente visitada por Jonathan e seu coração pela leve saudade que já sentia. Estava
segura quanto a deixá-lo sentir a sua falta, mas tinha de admitir que também sofreria com a mesma.
– É por uma boa causa – falou ao vento, distraída, mirando o mar.
– Claro que é – confirmou a voz feminina.
– O que está fazendo aqui?! – Faith se voltou, sobressaltada para Helen que sentou ao seu lado,
sorridente. – Não deveria estar na universidade?
– Bom dia para você também. E, sim, deveria. Mas estou com muitas saudades de Mason para me
concentrar em contas repetitivas e balancetes idiotas – banalizou suas obrigações curriculares,
depois, beliscando as próprias bochechas, explicou: – Quero ser a primeira a apertar e beijar aquele
peixinho ambulante.
– Peixinho é bondade sua – Faith retrucou à definição minimizada do cheiro forte que Mason
exalava sempre que chegava da pescaria.
– Eu não ligo. – Helen deu de ombros, sempre olhando o horizonte. – Se não fosse criar um
incidente burocrático com minha futura sogra, eu levaria meu peixinho fedido para casa e o colocaria
na minha banheira. É larga o bastante. Eu poderia lhe fazer companhia e limpar suas escamas com
carinho, dar comida adequada e...
– Wow... – Faith a cortou, fingindo estar chocada, apreciando a companhia agradável e inesperada.
– Me poupe dos detalhes picantes desse seu lado piscicultor. Não quero saber das peripécias
aquáticas entre você e meu irmão.
– Me desculpe. – Helen ergueu as mãos. – Não foi minha intenção chocar tão pura donzela.
– Muito obrigada! – Faith não se importou com a zombaria. – Eu ficaria traumatizada eternamente.
Nunca mais veria uma banheira com bons olhos.
– Sua chata! – a amiga exclamou, sorrindo. Então, com súbita seriedade, perguntou: – E eu Faith?...
Ainda posso olhar para uma igreja com bons olhos ou... Tem algum detalhe picante de seu lado
desvirtuador para me contar?
– Infelizmente, nada de concreto – falou, mirando os olhos ansiosos da amiga.
– Vou entender suas palavras como “ufa, o padre tem salvação”!
– Eu disse que não tinha nada concreto, não que não tinha nada a contar.
– Oh, Senhor! – Helen exclamou chocada. – Então... Já que me colocou a par dessa loucura, me
conte os detalhes inconsistentes.
– Bom... – Antes de prosseguir, Faith foi verificar a trilha para se certificar que não teria outros
ouvintes. De volta ao banco, continuou: – Talvez Jonathan ainda não saiba, mas acho que ele gosta de
mim.
– Piedade, Senhor!... – Helen clamou, olhando o céu. – A maluca não só se considera íntima como
agora é vidente. Como pode saber o que o padre sente?
– Ontem ele largou umas coisas que tinha que fazer na casa dele para vir me encontrar – Faith
retrucou, convencida. – Acho que ele sente minha falta.
Sem nada dizer, Helen espalmou a mão na testa da amiga e, depois de deixá-la lá por alguns
segundos, recolheu-a para anunciar seu diagnóstico:
– Certo, não está doente. Então me explique melhor, por favor.
Faith cruzou os braços e a encarou desafiadoramente.
– O que aconteceu com toda aquela conversa de não querer ir para as profundezas?
– Continuo firme no propósito. – Helen respondeu, solene. – Mas, já que dividiu comigo... Em
nome de nossa amizade incondicional, eu aceito correr algum risco de condenação eterna.
– Você está é se coçando de curiosidade para saber o que rola entre mim e o padre, confesse.
Helen a encarou como se pensasse a respeito, então explodiu, rendida.
– Ah... Está bem!... Eu confesso. Ainda espero que você desista, mas morri de curiosidade durante
toda a semana. Só não te liguei porque não me sobrou tempo. Aquela faculdade maldita me
consome... Agora conta!
Sem conter um sorriso divertido, não vitorioso, Faith se acomodou melhor sobre o banco e contou
à amiga tudo que aconteceu durante aquela semana. Desde os encontros na praia até seu vexame com
a barata, as variações de humor do padre, tudo... Concluiu com os acontecimentos da manhã passada,
quando ele lhe deu a mão para que beijasse.
– Então...? – perguntou por fim. – Ainda me considera uma vidente maluca?
– Maluca você sempre será, mas... – Helen a olhava, boquiaberta. – Tenho de reconhecer que algo
acontece entre vocês.
Satisfeita por ter alguém que dividisse as impressões, Faith também compartilhou com a amiga os
momentos de angustia que sentiu quando acreditou que ela e o padre não se encontrariam fora das
vistas de outras pessoas.
– E você chorou por causa disso? – Helen a encarava, incrédula.
– Pois é... Foi mais forte no que eu e quando vi, já estava aos prantos nos braços de Tyler. Foi
patético.
– Olhe... – a futura cunhada começou, com cautela. – Ainda não sei dizer qual que é a do padre,
mas, para mim, você já está caidinha.
– Caidinha?! Eu?!... – Faith se espantou. Refeita, pensou contrafeita que soube desde o início que
se contasse certas coisas que sentia, a amiga viria com aquele papo de apaixonada. – Não estou
caidinha coisa nenhuma.
– Admita, Faith... Ou me responda com sinceridade. Se o padre Jonathan não tivesse ido à praia
ontem, se suas suspeitas se confirmassem e nunca mais pudesse estar com ele... Como você estaria
hoje?
Miserável, soube sem nem refletir. Ainda sem nada dizer, Faith deixou suas análises sobre as
atitudes do padre e se voltou para seu próprio comportamento. Nunca antes nenhum homem despertou
tamanho interesse. Nenhum outro conseguiu acendê-la com um único toque. Nunca se sentiu ansiosa
ou com as pernas bambas... Ou seu coração saltou frenético pelo simples fato de vê-los. E o mais
revelador... Nunca chorou por eles. De repente, Faith soube que a amiga estava certa. Não estava
apenas caidinha. Ineditamente, estava apaixonada. E por um padre!
Estava era perdida.
– Ai, Helen!... – Faith levou a mão ao coração como se fosse acometida de um mal súbito,
alarmada. – Eu estou mesmo a fim do padre. O que eu faço agora?
– Está perguntando para mim?! – Helen encarou-a, incrédula. – Sempre me interessei por homens
normais e não por intocáveis. Meu coração é fraco, Faith. Não brinco com ele.
– E usando suas palavras, eu fui maluca o suficiente para expor o meu ao perigo – Faith falou
objetivamente, sem ocultar certo enfado ante ao óbvio.
– Desculpe se pareço fria, mas você entregou seu coração ao sacrifício. Padres não deixam de
serem padres. Alguns mais sem vergonha, mantêm amantes longe dos olhos da igreja, mas nunca, em
tempo algum, podem oferecer mais do que isso.
Helen não poderia ter aplicado maior exatidão na apresentação dos fatos, Faith pensou um tanto
contrafeita por saber que era daquela maneira exata que as coisas ocorriam. Não importava os quase
100 anos que separavam sua história da original, acaso tinha esquecido que vivia numa cidade
batizada com nome tão sugestivo, justamente por um caso como o seu?
Sem pensar, esquecida do aborrecimento que a assomava após as palavras desencorajadoras de
sua amiga, murmurou:
– Eu sou a Anabelle Flinn!
– Não diga bobagens – Helen ralhou. – O que está acontecendo com você é completamente
diferente.
– Não é não! – Faith teimou encarando a amiga com alarme nos olhos. – Uma mulher, um padre...
Tudo igual!
– Pare com isso, Faith! – Helen ordenou.
Não tinha como uma vez que vislumbrara a semelhança. Na história contada, o padre Jones –
ministro de uma das paróquias de Wells – seduziu a esposa do senhor Flinn. Apaixonado, roubou-a
de sua casa e a trouxe para junto das famílias de pescadores. Montou uma casa modesta na única rua
da vila isolada e semanalmente a visitava para seus encontros amorosos. Tão logo o arranjo foi
descoberto e se tornou um escândalo público, os moradores de Wells e cidades vizinhas, batizaram a
vila ainda em formação de Baía do Pecado. O nome pejorativo pegou e hoje a humilde cidade o
ostentava oficialmente.
– Não posso, Helen. Conheço a história... Por isso digo que sou a senhora Flinn da vez.
– Eu não vejo dessa forma – Helen retrucou inabalável –, mas se quer pensar que sim, o que vai
fazer?... Se conhece a história, sabe qual foi o destino da senhora roubada. O padre safadão montou
casa para ela e a visitava para satisfazer seus desejos nada santos... Acha que suportaria ser
colocada em segundo plano, ser amante e se tornar uma pária da sociedade? Talvez ter o mesmo fim
trágico, caso fossem descobertos?
Concubinato não era uma aspiração sonhada. Assim como comprometer-se nunca o fora. Tampouco
Faith se imaginou a afrontar o catolicismo. Não era devota, mas por ser simpatizante, conservava
algum respeito. Quando à opinião pública, não tinha cuidados, apenas lhe importava aquela das
pessoas que amava e não gostaria de magoar. Contudo, ao se colocar no lugar da senhora seduzida
por um padre – em sua versão Adam Jones tinha as mesmas características de Jonathan De Ciello –,
agradou-se da ideia.
Imaginou o jovem sacerdote a lhe oferecer refúgio numa cidade distante. Quando chegasse para as
visitas semanais, ele a deixaria com as pernas bambas antes de fazê-la a mulher mais feliz do mundo
ao despertar seu corpo como ninguém fora capaz. Diante daquele possível futuro libertador, no qual
poderia se perder nos olhos marinhos, sem reservas. E também nos braços de seu amante italiano que
cantaria as palavras indecifráveis diretamente em seu ouvido nos momentos íntimos, não encontrava
outra resposta senão a verdadeira.
– Por Jonathan, eu suportaria!
Capítulo Quinze

Helen bem que tentou demover a amiga de levar seu plano em frente uma vez que as chances de
sair chamuscada, ou até mesmo ser consumida inteiramente por brincar com fogo santo, aumentaram.
No entanto, Faith se mostrou irredutível. Uma vez que nomeara o que sentia e acreditava que, talvez,
nunca sentisse nada igual, não via como retroceder. Não quando tudo caminhava para o desfecho
satisfatório.
– E como ficam as noites de quinta? – Helen inquiriu. – Já que está apaixonada e decidida a
conquistar o padre, já pensou o que ele pensará quando souber?
– Ele não tem por que saber – Faith ciciou secamente. – E uma coisa não tem nada a ver com a
outra.
– Como não? Que Deus me perdoe pela falta de respeito, mas vamos supor que o padre
corresponda e vocês mantenham um caso... Acha que ele vai aceitar numa boa que você fique se
contorcendo pelada num palco?
– Certo! – Faith começava a se aborrecer. – Um assunto de cada vez... Eu ainda não estou com
Jonathan. Apesar de tudo que te contei, não sabemos se eu vou conseguir nada além desses pequenos
flertes quanto mais manter um caso... E não vou parar minha vida para fazer o tipo de garota
certinha, que não sou, por algo que talvez nem aconteça. Jonathan não é nada meu e como você bem
salientou, se um dia vier a ser, ele não pode me oferecer nada. Então não terá direito de opinar sobre
minha vida.
– O padre e a stripper... – Helen murmurou numa mescla de pesar e mofa. – Isso daria um bom
livro!
– Pois tem minha autorização para escrevê-lo, mas não de me perturbar com detalhes imutáveis do
enredo – retrucou ácida.
– Tudo bem! – Helen ergueu as mãos em sinal de rendição. – Mas depois não diga que eu não
avisei. Espero ter um bom final para essa história, se realmente acontecer. Porém o desfecho lógico é
o padre Jonathan pedir perdão, público e formal, até ser recebido novamente pela igreja e, você,
morrer afogada depois de se atirar do penhasco. O que me diz disso nova senhora Flinn?
– Digo que não é de minha natureza sofrer por antecipação e não vou começar agora... Conforme
as situações forem aparecendo, eu vejo como as resolvo. Por ora – pediu, voltando os olhos para o
mar e sentindo seu ânimo melhorar consideravelmente. – Vamos encerrar o assunto, pois meu pai e
seu peixinho fedorento estão vindo bem ali.
Helen seguiu o olhar da moça, ansiosamente e, depois de avistar os barcos ainda distantes, atendeu
ao pedido, refreando novos acréscimos. Sem desviar sua atenção das embarcações que se
aproximavam já seguidas pelos mexilhões e gaivotas, Faith ignorou por completo a companhia
inesperada e deixou que a saudade que sentia do pai e do irmão ganhasse força.
Quando o barco de Elliot Green estava próximo o suficiente para que seus tripulantes a vissem
com clareza, acenou freneticamente. Helen permaneceu parada, com a mão no coração e os olhos
rasos d’água.
– Venha.
Faith tomou a amiga pelo braço e fez com que corresse com ela, trilha abaixo, até o cais. Somente
então a soltou e seguiu para o atracadouro de madeira destinado ao pesqueiro Free Soul 1. Outras
mulheres esperavam seus maridos e filhos. Constance não estava entre elas, pois preferia ficar em
casa cuidando para que tudo estivesse perfeito na ocasião da chegada de seu marido exausto, a se
expor em demonstrações exacerbadas de afeto público.
– Como vão os preparativos para o piquenique? – Faith ouviu uma voz fina e arrastada ao seu
lado. Policiando-se para não demonstrar sua antipatia pela recém-chegada, voltou-se com um sorriso
morno no rosto frio até que seus olhos pousassem em Maggie.
– Muito bem, obrigada! E já que está interessada, quero saber se deseja me ajudar? – Certo, não
gostava dela, mas a garota era habilidosa e tinha bom gosto para decorações.
– Claro que sim! – Maggie animou-se. – Nos encontraremos na igreja?
– Mais uma – Helen escarneceu num murmúrio ao seu lado, sem desfazer o rosto saudoso ou
deixar de mirar os barcos. Faith apenas lhe lançou um breve olhar reprovador.
– O que ela disse? – Maggie olhava para Helen, com curiosidade.
– Ela disse que você é mais uma na minha lista de colaboradoras. E não, não nos encontraremos
na igreja. Estou pensando em marcarmos na Blue Moon, amanhã à tarde, pode ser?
– Pode, não é... – A animação se esvaiu. – A que horas?
Faith marcou para as duas da tarde. Contrariada com o interesse nada velado, viu-a se afastar para
se juntar à mãe. Reconheceu que não poderia nem mesmo retrucar à amiga, pois sabia não ser a única
a alimentar fantasias com o novo padre. Era incômodo, e logo se refez. Enquanto as outras o
desejavam, chegando a ficarem horas e horas de joelhos atrás dos bancos deteriorados da igrejinha,
ela era a única que lhe recebia a verdadeira atenção.
– É ele! – Helen falou ao seu lado com a voz embargada. – Meu Mason!
Faith o via. O irmão estava no convés do primeiro barco que cortava as cristas das ondas
mansamente. Depois de acenar-lhes, empregou sua atenção nas cordas, preparando-as para a
amarração. Não estava sujo, mas o cabelo crescido e a barba, acresciam-lhe anos e davam um ar
desmazelado. Ah, sim! Mason fedia a peixe passado, contudo nada disso importava.
A moça saudosa nem ao menos ouvia o burburinho à sua volta. Quando, finalmente, os barcos
começaram a ser alinhados aos pneus que revestiam a borda do atracadouro, Faith se dirigiu até o do
pai e esperou. Helen não se desgrudou dela um só minuto e tão logo Mason pulou para junto delas,
depois de atirar as cordas para que um dos ajudantes a prendesse, ela se atirou em seus braços e o
beijou sem se importar com que estava no portinho. Faith apenas sorriu e voltou sua atenção para o
homem que saiu da cabine tão logo desligou a embarcação.
– Papai... – murmurou intimamente. Fazendo o caminho inverso ao do irmão, saltou para o barco e
foi abraçá-lo ainda no convés.
– Oi, minha princesa! – Elliot a estreitou num abraço. O capitão também rescindia a suor e a
maresia, mas a moça não se importou.
– Bem-vindo de volta, pai! – Faith o beijou sobre a barba espessa.
– Obrigado!... Agora se afaste. Estou suado e não tomo um banho decente há dias.
– Sabe que não me ligo, mas vou deixar que o senhor termine suas coisas aqui. Depois quero
saber como foi tudo dessa vez.
– Eu sempre conto, não é? – ele perguntou divertido. – Apenas me diga como estão sua mãe e irmã.
Por que Nicole não está aqui? Já foi para a lanchonete?
– Não, Grace lhe deu licença. – O pai iria questioná-la, Faith não permitiu. – Nick está engessada,
mas não foi nada grave. Quando for para casa verá.
– Se é o que diz, vou acreditar. Também não posso conversar agora para saber detalhes. Acho
melhor você ir para casa. Eu vou logo em seguida... E pode levar seu irmão se quiser – disse,
olhando para o filho ainda abraçado à noiva. – Acho que Helen não vai desgrudar dele tão cedo. Eu
vistorio o descarregamento e a pesagem.
Depois de assentir, Faith o beijou e saltou de volta para o atracadouro para se juntar ao casal
apaixonado.
– Muito bem, D. Helen! Agora é a minha vez. – Sem cerimônia afastou-os. Ambos olharam-na
atordoados enquanto a moça tirava Helen do caminho para abraçar o irmão. – Senti sua falta.
– Também senti a sua. – Mason separou-se dela, porém segurou-a pelos ombros com um dos
braços e, com o braço livre, trouxe a noiva para junto de si e beijou-as. – Senti falta das duas.
– Tudo bem... Acho que já deu minha cota de peixe por hoje. – Faith fugiu do abraço para provocar
a amiga: – Já que sua noiva covarde só vai cuidar de suas escamas depois que mamãe te liberar,
vamos para casa. Papai já te dispensou e o sabonete de lá é tão perfumado quanto o de qualquer
outro lugar.
– Na verdade, o meu é melhor – Helen retrucou –, mas realmente ainda é cedo para me indispor
com minha sogra.
– Eu fico fora duas semanas e quando volto, as entendo menos ainda... – Mason olhou de uma a
outra.
– Não precisa entender, só fazer o que nós decidirmos... – Faith puxou-o pela mão.
– Espere... Vou pegar minhas coisas. – Depois de dar um beijo breve em sua noiva, Mason saltou
para o barco. Logo estava de volta com sua mochila de roupas usadas. O cheiro de suor e peixe
impregnou a pick up, e ainda não era um problema. O irmão estava de volta são e salvo, assim como
seu pai. Isso deixaria a moça satisfeita até a próxima pescaria em alto mar, quando então, a saudade e
a preocupação se fariam novamente presentes.

A manhã corria arrastada, incompleta. Jonathan chegara da praia há mais de duas horas e a
frustração por ter corrido sozinho ainda não se esvaíra. Convencera-se de que assim seria melhor,
mas, na prática, não gostou da falta que a moça lhe fez. Agora perambulava pela igreja a procura de
pequenos serviços para ocupar seu dia entre uma obrigação e outra, levemente aborrecido por saber
que não a veria cruzar a porta, abraçada ao caderno, vestida em algum vestido bonito, balançando
seu indefectível rabo de cavalo.
Também não ajudava que Carlo o boicotasse desde que chegou de sua corrida na manhã seguinte,
depois de deixá-lo sozinho com Kirk para resolver o problema com o cano. Jonathan sabia que boa
parte de sua inquietação também se dava pela falta de comunicação entre eles. O padrinho lhe
chamava para falar o necessário, e respondia com a mesma economia de palavras.
Tal atitude não o ajudava a abordar um assunto delicado. Estava decidido a ir sozinho ao jantar,
mas a cada olhar enviesado que flagrava, Jonathan acreditava que não conseguiria seu intento.
Apesar do distanciamento era evidente que Carlo não perderia a oportunidade de vigiá-lo. Contudo,
avaliando suas opções, reconhecia ser preferível a companhia indesejada a faltar ao compromisso.
Sua metade atraída pela moça não resistiria a tantos dias sem vê-la.
– Pensei que as idas à praia fossem para acalmá-lo, não deixá-lo irrequieto – disse Carlo, de
súbito, enquanto distraidamente folheava o lecionário.
– Não estou irrequieto – Jonathan rebateu, reposicionando um castiçal sobre o altar.
– Se tem alguma coisa a me dizer, diga – o padrinho pediu, mostrando-lhe o quanto o conhecia.
– Bom – Jonathan começou, retirando o castiçal do lugar mais uma vez. – Hoje os pescadores da
cidade estão voltando para suas casas.
– Sei disso... A senhorita Campbell comentou sua chegada, dias atrás.
– Pois bem. – Jonathan colocou o castiçal em seu lugar e foi até o padrinho para encará-lo. – Elliot
Green chega hoje e pediu a filha que nos convidasse para jantar em sua casa, amanhã, no início da
noite.
– E você aceitou? – Carlo não ocultou seu desagrado.
– O homem é o líder comunitário. Talvez a figura mais respeitada dessa vila de pescadores...
Como eu poderia recusar?
– Quanto a isso não posso contestar, mas seria bom que tais jantares não se repetissem. Ficaria
aborrecido se eu não fosse?
Em situações normais aquele era o comportamento esperado, mas visto o empenho em afastá-lo de
Faith, este perdia o sentido. Para Jonathan, não demonstrar seu contentamento ante o inesperado se
tornou tarefa fácil quando a incredulidade era dominante.
– E por que não iria? – indagou com estranheza.
– Sabe que não gosto desses encontros. Da última vez havia tantas pessoas que até agora estou
tonto. Prefiro ficar em nossa casa.
Jonathan acreditou que o espírito vigilante do padrinho seria maior do que seu desejo de reclusão,
e estava enganado. Providencialmente estaria desacompanhado, refletiu, refreando um sorriso de
satisfação genuína. De imediato Jonathan se recriminou, pois ser liberado para ir a um jantar onde
aproveitaria para saciar a saudade e receber mais atenções de certa moça, nada tinha a ver com
providência divina.
Sério, perdido em sua blasfêmia não verbalizada, Jonathan procurou se ater aos pontos importantes
da noite seguinte.
– De toda forma eu iria pedir para que ficasse. Como bem sabe, eu me comprometi a realizar uma
missa também aos sábados.
– Sim, eu sei... Estava aqui justamente pensando sobre isso. – Carlo sustentava seu olhar. – Por
isso me pediria para ficar? Para realizar a missa em seu lugar?
– Sim... – a voz saiu apagada, como nas poucas lembranças que guardava de sua infância, quando
se dirigia ao padrinho depois de algum mal feito cometido. – Faria isso por mim?
Carlo não desviou o olhar, deixando-o mais incomodado, a espera de um sermão reprovador e
acalorado. Contudo, as palavras do tio novamente lhe mostraram que estava enganado.
– Apenas dessa vez.
– Obrigado!
– Não me agradeça. – Como se fosse possível saber as intenções de Jonathan, Carlo acrescentou: –
E não me dê motivos para arrependimentos.
– Não há razão para acontecer tal coisa – Jonathan assegurou.
– Geralmente não há razão para as grandes catástrofes... – o padrinho contraditou, profético,
enquanto se afastava em direção à sacristia. – Ainda assim elas acontecem.
Quando Carlo sumiu porta adentro, Jonathan ainda permaneceu bons minutos olhando para a
passagem vazia. O que seria uma catástrofe? O interesse que notado entre ele e Faith? Caso fosse, o
tio se preocupava em demasia. Ele tinha tudo ordenado em sua mente e era apenas uma questão de
tempo para ter também o controle. Não haveria tormenta, pois não procurava romance, sim, paliativo
para acalmar aquele homem viril que tinha despertado em si.
Colocando as mãos nos bolsos, Jonathan correu os olhos pelos bancos descascados de sua igreja –
ineditamente vazios aquela manhã –, e suspirou profundamente. Mesmo com tudo ordenado e ciente
de que o distanciamento racional e emocional era o melhor caminho, até que uma parte sua deixasse
de ser dependente, preferia estar com Faith todos os dias. Por algum motivo alheio a ele, sabia que
mesmo sua igreja estando lotada, ainda estaria vazia, se ela não ocupasse seu lugar. Seria bom ficar
livre da tormenta?

– E então?... – Elliot, barbeado e de banho tomado, perguntou à esposa que o servia. – O novo
padre vem aqui em casa novamente?
– Sim... – Constance respondeu de pronto. – Confirmou para Faith que virá amanhã, às sete e meia,
como da outra vez.
– Confirmou para Faith? – Elliot olhou para a filha e novamente para a esposa que acabara de
ocupar seu lugar à mesa do almoço. – Pedi que você fizesse o convite em meu nome.
– Sim, papai... – Faith se adiantou. – Sabemos que pediu a mamãe, mas como eu o vejo
praticamente todos os dias. Achei que não teria nada de mais convidá-lo. Somos todos da mesma
família, não?
– Está certo! – anuiu. Depois de mastigar mais um punhado de comida, perguntou: – Por que o vê
todos os dias?
Faith esperava por aquela pergunta e nada melhor do que ser ela a expor os fatos, durante o
almoço familiar, na presença também de Helen. A sinceridade demonstraria não haver nada de
extraordinário em seus encontros com o novo padre. Como pensou, se Elliot não visse problema na
amizade, ninguém mais veria. Ou pelo menos não comentaria abertamente.
– Bom... Acho que nos esquecemos de lhe contar, mas... Lembra-se que comentamos sobre um
piquenique comunitário?
– Lembro – confirmou, voltando a comer.
– Pois bem... Maggie Scott deu a ideia e Nicole se ofereceu em ajudar, como sempre, mas logo no
primeiro dia ela se acidentou. Então... eu assumi seu lugar – explicou com leve ar indiferente. E mais
uma vez era somente esperar pela pergunta óbvia. Dessa vez, porém, ela veio de seu irmão,
igualmente asseado, que a olhava entre incrédulo e divertido.
– Você?!... Ajudando em obras da igreja? Essa é nova!
– Não vejo qual o problema – Helen retrucou em tom casual por solidariedade a amiga. – É uma
festa como outra qualquer.
– E é justamente assim que eu a encaro – Faith afirmou, aproveitando o ensejo. – Não vejo
problema algum em ajudar minha irmã, já que ela está incapacitada.
– Então não está ajudando por nenhum motivo cristão – o pai concluiu.
Não mesmo! Faith pensou.
– Num primeiro momento não era – disse –, mas começo a simpatizar com a causa. Como sabem,
frequentar missas nunca foi meu forte... E ainda não é, mas agora que estou indo à igreja todos os
dias e vendo as senhoras da cidade ajoelhadas atrás de bancos velhos e gastos. Ou a pintura
descascada pelas infiltrações, eu sinto que não custa ajudar a recuperar a capela de nossa cidade.
– Já é um começo. – Elliot bebeu um gole de seu suco de laranja. – Quem sabe assim seu interesse
não se volte para nossas obrigações religiosas?
– Bom... – a moça iniciou, inibindo um sorriso que desejava parecer acanhado. – Admito que já
está acontecendo... E, de toda forma, a única mudança será mesmo em meu interesse e na frequência,
pois sempre cumpri com minhas obrigações.
– Sei disso, mas gostaria que nas raras vezes que vai comigo à missa, não fosse com cara de
velório.
– Acho que até em velórios ela vai um pouco mais animada – comentou Mason que recebeu um
beliscão de sua noiva logo em seguida.
– Para seu governo – Faith disse séria para o irmão. – Gosto menos de ver gente morta do que ir à
missa... E como prova de que estou nutrindo certo apreço pela instituição, me ofereci também para
restaurar as imagens.
– Ah, sim? – Elliot se interessou. – Estou gostando de ouvir isso.
– Começarei depois do piquenique – Faith falou animada. – O serviço é leve... Elas não estão em
péssimo estado então será rápido.
– Certo! – exclamou Elliot, depositando os talheres sobre o prato e se recostando contra o
espaldar da cadeira. – Já que está ajudando o padre, me conte como ele é.
– Receio não ter muito a dizer... Para mim, padres são todos iguais. Devotados às suas igrejas e
aos seus fiéis. Quando estamos juntos conversamos sobre o piquenique... Na quarta-feira eu o levei
para conhecer o galpão da cooperativa, juntamente com Netty – acrescentou rapidamente, antes de
introduzir outro detalhe, desconhecido até mesmo por sua mãe. – Às vezes o encontro na praia pela
manhã. Ele costuma correr ou caminhar...
Nesse ponto Faith podia sentir todos os olhares em sua direção, mas se manteve firme em sua
narrativa como se o que dissesse não representasse nada especial para ela.
– Algumas vezes eu o acompanho, mas sempre conversamos sobre o piquenique ou o tempo... Ou
sobre o senhor.
– Sobre mim? – Elliot franziu o cenho. – O que conversam sobre mim?
– Ontem mesmo o padre Jonathan me dizia que acreditava que o senhor fosse um homem correto e
bom quando lhe contei que sempre o esperava no cais. Disse que já ouviu alguns comentários a seu
respeito na cidade e que todos lhe têm muito apreço.
Enquanto falava, Faith pode acompanhar o orgulho gradativamente iluminar as feições do pai.
Elliot Green gostava de ser ouvido e respeitado e saber que alguém, que nem ao menos o conhecia,
reconhecia sua importância em meia dúzia de conversas, o envaidecia.
– Amanhã o senhor vai conhecê-lo e pode fazer sua própria avaliação – arrematou.
– Acho que vou gostar dele – sentenciou como que para si mesmo e então, mudando o assunto
completamente, Elliot se voltou para Nicole que permaneceu calada durante todo o almoço. – E
como está Joe?... Ele virá amanhã, não?
– Virá, papai... – Nicole confirmou sem encará-lo. – Acho que às seis horas ele já esteja aqui, pois
deseja conversar com o senhor.
– E como está o noivado?
Faith olhava para a irmã, compadecida. Elliot não era tão fácil de enrolar como Constance,
justamente por isso sabia que Nick não o encarava. A caçula conseguia se sair melhor, pois tinha a
preferência do pai a seu favor. E também o conhecia como ninguém e jogava com sua vaidade como
fizera instantes atrás, com relação ao assunto “novo padre”.
– Muito bem! – a filha mais velha esboçou um sorriso, arriscou um breve olhar. – Gostaria que ele
pudesse vir todos os dias, mas ao menos conversamos ao telefone.
– Fico feliz em ouvir isso. Eu lhe disse que com o tempo passaria a gostar dele. Joseph é um bom
homem e tem um futuro brilhante... Tenho certeza de que será um bom marido também.
– Sim, ele será... – Nicole concordou sem muito entusiasmo, tentando sorrir para o pai. Este voltou
os olhos para o casal ao seu lado.
– Quanto a vocês dois nem preciso perguntar... Vi que tudo está bem. Arrisco em dizer que Helen
era a pessoa mais saudosa naquele porto.
– Pode apostar que eu era, Sr. Green – disse a noiva do irmão sem se deixar intimidar.
Helen confundia Faith. Nutria imenso respeito pela futura sogra, por vezes inexpressiva, que nunca
se opusera à escolha do filho. Ao passo que pelo futuro sogro, que apenas a tolerava, ela não baixava
sequer o olhar. Talvez essa fosse a razão. Se a amiga demonstrasse inferioridade, Elliot Green nem
mesmo a respeitasse. E Helen era digna de toda consideração.
Ela era como todos os jovens normais daquele país que desde cedo deixavam a casa dos pais e
seguiam suas vidas. Não poderia ser culpada por se apaixonar pelo filho do homem mais apegado
aos costumes de seus antepassados ou que este retribuísse o interesse por alguém parcialmente
independente como ela.
Sim, Helen agora morava sozinha, mas nunca perdeu o contato com os pais ou se deu pouco
respeito. Também não poderia ser condenada se estes resolveram sair daquela cidade perdida no
mapa. Ela apenas ficou para trás por acreditar que dia menos dia o objeto de seu desejo iria até ela,
como realmente aconteceu. Helen teve a coragem que Peter não teve, Faith considerou agora mirando
a irmã que olhava para além dos limites da janela distraidamente. Se o amigo tivesse metade da
coragem que sua amiga, todos naquela mesa estariam felizes.
– ... não é mesmo Faith? – o pai finalizou uma pergunta. Piscando algumas vezes, a moça olhou em
volta e viu que alguns dos olhares se dirigiam a ela. Esteve tão submersa em seus pensamentos que
não escutara toda a pergunta.
– Desculpe... Eu não ouvi, poderia repetir?
– Seu pai disse... – começou Constance. – Que agora só falta conseguir um bom partido para você.
– Para mim?!... – ela praticamente engasgou.
– Evidente – afirmou o pai. – Logo fará vinte e um anos. Parou a faculdade e vive de dar aulas
para as crianças em Wells. Não quero isso para você. Quero meus filhos estabelecidos na vida,
vivendo em paz com suas famílias... Se puderem ficar aqui perto de mim, melhor... Se não, como é o
caso de Nicole que irá morar em Wells, está bom também.
– Qual o problema com minha idade? – Faith uniu as sobrancelhas. – Mason tem vinte e seis,
Nicole vinte e quatro... Ainda tenho alguns anos livres antes de pensar em casamento.
– Mason é homem – o pai replicou, afável, porém firme. – Poderia casar aos quarenta e não estaria
velho para cumprir com suas obrigações matrimoniais, mas com as mulheres é diferente. Vocês têm o
tempo certo para tudo... Quanto mais cedo se casarem, melhor dispostas estarão a terem filhos,
cuidarem de seus maridos...
– Nem mesmo Nicole está velha para nada disso – Faith argumentou. – Imagine se eu estou! E hoje
em dia as mulheres se casam cada vez mais tarde. Muitas têm filhos aos trinta ou mais.
– E com o tempo se parecem avós dos mesmos – Elliot rebateu levemente aborrecido. – Todas as
mulheres de minha família se casaram cedo... Sua mãe não tinha chegado aos vinte quando me casei
com ela e não vou repetir o mesmo erro que cometi com sua irmã, esperando tanto tempo... Se não
tiver um namorado que queria me apresentar, eu arrumo um para você.
Se Faith não estivesse habituada a ser a boa atriz que era, teria ouvido o discurso inflamado do pai
com o queixo caído. Jamais lhe ocorreu que cedo ou tarde ele tentasse fazer com ela o mesmo que
fazia com a filha mais velha. Recuperando-se do choque, indiferente ao silêncio que se abateu sobre
a mesa, Faith disse a si mesma que aquilo era tudo que o pai poderia fazer: tentar. Apesar da
aparente submissão, ela não era exatamente um cordeiro esperando para ir ao abate. Ciente de sua
capacidade de persuasão, sorriu levemente para quebrar o clima tenso.
– Tudo bem. Seu desejo de igualdade é muito justo... Mas acho que dois casamentos já são
suficientes por esse ano. Até que Nick esteja casada eu acredito que já tenha encontrado um
namorado decente.
– Isso seria muito bom. – Elliot se mostrou satisfeito com a rendição da filha caçula. – Mas ainda
vale o que eu disse... Se não se interessar por ninguém, eu mesmo providencio esse homem decente
para você.
Capítulo Dezesseis

– Acho que seria bom organizarmos essa bagunça, não? – Faith tentava não perder a paciência com
as garotas, acomodadas à duas mesas dispostas lado a lado no salão da lanchonete, mas começava a
parecer impossível.
O falatório agravava a dor de cabeça ininterrupta que sentia desde o início da tarde anterior.
Perdera até mesmo o sono, mas não pela iminência absurda de seu pai lhe arranjar um marido, sim
por saber que o único que lhe interessaria jamais estaria disponível.
Cismou sobre aquela particularidade a madrugada inteira, tentando fixar as palavras de Helen em
sua cabeça. Uma vez que não existia futuro para a paixão recém- descoberta, deveria desistir e seguir
com sua vida. De preferência com o coração aberto às novas oportunidades. Contudo, não encontrou
forças para colocar tais decisões em prática. Não era como se estivesse perdidamente apaixonada,
mas não conseguia desistir. Tudo o que sentia ao estar com Jonathan pesaram mais do que qualquer
lógica ou sensatez.
Então, se fosse o caso de bater de frente com Elliot Green, ela o faria, mas não colocaria ninguém
naquela história improvável. Jamais se casaria com quem não amasse somente para agradar às ideias
tacanhas do pai. Se ao menos Jonathan fosse um homem livre, pensou, tudo seria mais fácil. Ah, sim!
Ajudaria se ele a quisesse da mesma forma, considerou, sarcástica.
– Tudo bem... – Maggie se levantou. – Pode ter assumido a organização do piquenique, mas não
vou ficar aqui recebendo ordens de você... Não gosto que falem comigo nesse tom.
– Também não gosto disso que você chama de cara e não estou reclamando por ter de olhá-la –
Faith retrucou mordaz. – Se não está satisfeita com meu tom diante da zona que estão fazendo quando
deveríamos estar decidindo quem faz o quê, pode voltar para suas bonecas.
– Ora, sua... – Maggie se armou para replicar, contudo Karen Nicholls, filha de um dos
pescadores, interrompeu-a:
– Já chega! Parem as duas... Temos apenas uma semana para decidirmos tudo e não deveríamos
estar falando de assuntos que nada tem a ver com o motivo que nos traz aqui. Desculpe, Faith, a gente
se empolgou. – Para Maggie disse: – Deixe de ser boba, ela estava só brincando, agora volte para
seu lugar... Precisamos de você.
Faith refreou o desejo de desdizer Karen e salientar que não precisava de Maggie para nada, mas
se conteve. Odiava o fato, mas a ajuda da feia era fundamental para que fizesse uma festa bonita para
Jonathan.
– Eu é que peço desculpas – pediu contida. – Preciso de todas, caso contrário não as teria
procurado ou ocupado justamente num sábado de sol lindo como esse. Estou com um pouco de dor de
cabeça, então... Se não falarem muito alto, eu prometo melhorar meu humor.
Depois do assentimento conjunto, Faith também assumiu seu lugar à mesa e, em tom ameno,
passaram a resolver os detalhes práticos do piquenique. Maggie, Karen e Maureen cuidariam de
juntar materiais para a decoração, que seria simples. No dia, todas ajudariam a enfeitar o jardim da
cooperativa.
Anne e Maria ficaram incumbidas de conseguir toalhas para todas as mesas, assumindo a
responsabilidade de lavá-las depois do evento e devolvê-las às suas respectivas donas. Resolveram
também quais seriam seus dotes que ofereceriam no leilão e Faith garantiu que conseguiria que Tyler
montasse o palco para o mesmo.
– Tudo mais pode falhar, mas, com certeza, teremos um palco – zombou Maggie. – Afinal, se Fay
vai pedir ao Ty, não há como ele não atendê-la...
– Não entendi a insinuação. – Desafiadora, Faith baixou a caneta e cruzou as mãos sobre o caderno
para encarar a moça.
– Ele faz tudo o que você pede... – insistiu Maggie, sustentando-lhe o olhar. – É como se fosse seu
cachorrinho, sempre a seguindo por aí. Pula Tyler, rola Tyler... – Como arremate, ele imitou o
resfolegar dos cachorros cansados, com a língua para fora.
– De novo não, meninas... – Karen pediu em tom cansado.
– E você morre de inveja, não é? – Faith perguntou, sem alterar-se, ignorando o pedido da amiga.
– Gostaria que ele fosse seu cachorrinho?
– Eu, não... Tenho horror a cachorro! – Maggie deu de ombros.
Maggie poderia desdenhar ou se assanhar para o lado de Jonathan, mas Faith sempre soube de seu
interesse por Tyler. Desmerecia-o não para afrontá-la, mas por despeito. Sem se importar com os
apelos de Karen ou o olhar atento de Grace, apoiada contra o balcão, Faith prosseguiu:
– Pois eu digo que você queria! Um cachorro grande, lindo, de pelos claros, correndo atrás de
você por aí... Pena que de onde saiu aquele não tenha como conseguir mais nenhum... Mas como a
boa desesperada por sexo que é, se não se importar com o gênero, eu posso tentar arrumar uma das
primas dele...
Ao terminar a provocação perfeita, Faith esperou pela explosão de Maggie, entretanto,
contrariando o esperado, esta ergueu os olhos brilhantes para algum ponto acima de sua cabeça e
ruborizou. Aturdida, a moça olhou por todos os rostos da mesa e flagrou basicamente a mesma
reação em todas. Quando, segundos depois, entendeu o motivo da paralisia grupal, sequer teve tempo
para a preparação.
– Buon pomeriggio per tutte! – Jonathan cantou às suas costas. – Boa tarde a todas!
– Boa tarde, padre Jonathan! – Todas suspiraram em uníssono enquanto os pelos de Faith se
eriçavam. Sorte estar sentada. Quando falou, sua voz saiu tardia e sumida.
– Boa tarde...
– Atrapalho? – ele perguntou, colocando uma das mãos no espaldar da cadeira que ela ocupava. E
mais uma vez os pelos de Faith se eriçaram ao resvalar dos dedos de Jonathan em suas costas.
– Não... – disse uma.
– De forma alguma – assegurou outra.
– Não atrapalha nada... – garantiu uma delas.
Faith não atinou quem disse o quê. Contava os segundos para ver Jonathan à noite, então não estava
preparada para encontrá-lo ali, depois de ter dito tamanha bobagem somente para irritar Maggie.
Agora odiava a garota pela vergonha que passou.
Quando finalmente teve coragem bastante, voltou-se e ergueu o olhar para encontrar o dele.
Jonathan tinha nos lábios um ar divertido, completamente destoante da seriedade em seus olhos,
agravando seu embaraço.
– Então? – perguntou-lhe, indecifrável. – Falavam sobre o piquenique ou sobre sua facilidade em
conseguir filhotes?
– As duas coisas – respondeu ela, tentando não se abalar. – Na verdade, já terminamos por hoje e
estávamos apenas jogando conversa fora. – Ainda sustentando-lhe o olhar, acrescentou: – Por que a
pergunta? Tem alguma coisa que queira acrescentar aos preparativos?... Aproveite que estão todas
aqui, à sua inteira disposição.
Imediatamente o coro de assentimento feminino foi ouvido, juntamente com olhares esperançosos,
cada uma à sua maneira ansiosa em atender aos pedidos do padre. Faith nem ao menos se aborreceu,
sabia que seria daquela forma.
Jonathan desejou conhecer uma forma de apagar o sorriso acintoso do rosto de Faith. Não a via há
ciquenta e cinco horas, sentiu sua falta durante os sessenta minutos de cada uma delas e em apenas
três minutos que estava em sua companhia já queria repreendê-la pela provocação.
Ou talvez não tenha sido intencional, Jonathan pensou creditando-lhe alguma inocência. Faith não
tinha como saber que não lhe agradava receber aqueles olhares lânguidos e sorrisos suspirantes. Era
mais fácil que ela estivesse apenas tentando mudar o foco da conversa.
– Não desejo acrescentar nada. – E, por sua metade saudosa, necessitada de sentir um pouco mais
da pele macia e morna, Jonathan apoiou as mãos nos ombros nus, próximo ao pescoço delgado e os
apertou. – Confio inteiramente em seu trabalho, Faith – assegurou. Então disse às outras: – E no bom
gosto de todas vocês. O que fizerem ficará perfeito. Perfetto!
Tão rápido quanto a segurou, Jonathan a soltou, deixando a sensação de vazio onde esteve suas
mãos grandes e quentes, e o todo o corpo dela em chamas.
– Então... – Faith começou após um pigarro. – Acho que por hoje é só... Obrigada a todas por
virem. Vocês têm meu telefone, se acontecer algum imprevisto é só ligar, caso contrário, nos veremos
no próximo sábado, às sete da manhã, para arrumarmos tudo.
Uma a uma as moças se levantaram, recolhendo as próprias anotações e conversando entre si. A
contragosto, despediram-se do padre e de Grace que lhes desobrigava de pagar pelo refrigerante
consumido. Faith foi a última a levantar. Quando confiava que suas pernas não a fariam passar por
um novo vexame. Já diante do padre, disse:
– Escute... Quanto ao que ouviu, eu...
– A mim não precisa dizer nada – Jonathan a cortou. – Mas deveria repensar suas respostas
malcriadas, principalmente quando elas envolvem pessoas que não estão presentes, referindo-se à
elas de forma degradante.
– Está me passando um sermão, padre? – indagou de mau humor, olhando-o de baixo para cima
com uma sobrancelha erguida.
– Estou. – Jonathan sustentava-lhe o olhar. Inclinando-se para ela, confidente acrescentou: – E se
os tempos fossem outros, até mesmo lhe aplicaria um corretivo para deixar de ser tão impertinente.
Instintivamente Faith deu um passo atrás, sentindo a verdade na transparência dos olhos azuis, em
cada palavra. Foi perturbador perceber que não se amedrontou, apenas se excitou, curiosa. E não
importava que ele defendesse quem o tratava por “padre esquisito”.
Pertinente era questionar-se quais corretivos que alguém como ele aplicaria. Quando sua fértil
imaginação ameaçou alcançar vôos preocupantes, Faith se afastou mais um passo e, sem respondê-lo,
se voltou para Grace que saía de trás do balcão para se juntar a eles.
– Tem certeza que não vai cobrar pelos refrigerantes? Não marquei o encontro aqui para te dar
prejuízo.
– Imagine, gracinha – disse Grace, espremendo seu queixo como se tivesse ainda dez anos de
idade. – Alguns copos de Coca-cola não me levarão à falência... Gostei de ajudar mais um pouco já
que não vai precisar mais de minhas cadeiras.
– Obrigada! – murmurou, desconcertada por ser tratada como criança diante de Jonathan, em
especial quando seu corpo ardia como a mulher que era. Procurando as íris celestes, viu que ele a
encarava intensamente, agravando seu estado. Depois de pigarrear, despediu-se: – Bom... Se o
senhor não tem mais nada à acrescentar, eu vou para casa... Ainda preciso ajudar minha mãe a
finalizar o jantar... Nos vemos às sete e meia?
– Certamente! – ele garantiu apenas.
– Até lá, então... Grace, obrigada mais uma vez.
Necessitada de ar, Faith saiu para a rua e marchou para casa sem olhar para trás. O padre era
maluco, só podia!... Ou maluca seria ela, com a mente suja que possuía? Jonathan foi claro. Falou
figurativamente, hipoteticamente, condicionalmente... E querendo dizer exatamente o que disse. Que
lhe castigaria. Como ela pôde atribuir conteudo impróprio à ameaça e se excitar? Simples. Era de
fato maluca!

De onde veio aquilo? Jonathan questionou, ainda em choque. Quanto ao sermão estava claro que o
aplicaria, afinal, não gostou de ouvir as palavras aviltantes que Faith usou para se referir a Tyler e às
suas primas, mas... ameaçá-la?! Não era de se admirar que a moça praticamente corresse para casa.
Na tentativa de ocultar seu alarme, Jonathan olhou para Grace e sorriu.
Sabia que ela, assim como os poucos fregueses ou as duas moças que ainda estavam do lado de
fora da lanchonete, nada ouvira. Contudo, os corpos deles dois falam por si. Se não se controlasse,
logo todos perceberiam a leve tensão que os atraia. Então, como poderia condená-los por
cochichassem ou ficarem curiosos como a Sra. Williams?
– Fiquei sabendo que seu padrinho irá ministrar a missa hoje – Grace comentou, recolhendo os
copos deixados pelas moças.
– Sim... Tenho um compromisso – ele respondeu, distraidamente.
– Eu sei.
– Como sabe?! – jonathan não quis ser ríspido, mas o tom simplesmente lhe escapou.
– Eh... – Sem jeito, Grace apontou para a porta como se a moça ainda estivesse ali. – Pensei que
fosse jantar na casa da Faith, afinal ela acabou de confirmar com o senhor. Se for outro compromisso,
eu não... Me desculpe a intromissão. Eu...
– Eu é que peço desculpas! – Jonathan ergueu as mãos. – Esse é mesmo meu compromisso. Só
estranhei que soubesse. Eu não... considerei intromissão de sua parte... Bom... Vim somente saber
como estavam os preparativo, então... eu acho...
– Fique à vontade, senhor. – Grace lhe sorriu. Jonathan apenas assentiu e seguiu para a porta.
Antes que saísse ainda a ouviu dizer: – Tenha um bom jantar!
Enquanto o padre rumava para sua casa ruminava a dúvida de que aquele fosse bom.
Capítulo Dezessete

Às sete horas Faith já estava pronta. Escolheu um vestido branco com detalhes de renda no busto,
que lhe cobria as coxas até pouco acima dos joelhos. Os cabelos estavam escovados e soltos. Seu
rosto estava limpo e os lábios, cobertos por um batom rosa pálido. No pescoço usou duas gotas de
seu perfume favorito.
Tentando não parecer ansiosa, deixou o quarto e desceu com similada distração. Nicole e Joseph
conversavam, sentados no sofá. Helen e Mason estavam no quintal. Seu pai, sentado à escrivaninha,
limpava seu rádio. Sua mãe, na cozinha, cuidava dos últimos detalhes da paella que seria servida no
jantar.
Depois de ter sua ajuda recusada por Constance, Faith voltou à sala, sentindo-se deslocada.
Parecia que os braços lhe sobravam, as mãos não tinham pouso fixo. As pernas impacientes
clamavam por serem amolecidas de vez para serem salvas da agonia da espera. O coração batia
numa velocidade imprópria e sua mente, a todo instante, pregava-lhe peças. A cada minuto acreditava
ter ouvido o ranger baixo do portão ou passos no caminho de cascalho que levava até a porta
principal. Ao verificar o relógio sobre a lareira viu que se passara apenas dez minutos.
Morreria de ansiedade antes do jantar e a culpa seria daquele padre irritantemente pontual;
decidido a perturbá-la com toques e palavras sussurradas. Poderia estar errada sobre o corretivo,
mas seus ombros ainda queimavam onde as mãos dele apertaram. Nem mesmo uma sessão de banho
demorado e íntimo livrou-a da sensação. E agora ele não vinha. Não vinha nunca!
Melhor se ocupar. Refreando o desejo de estalar os dedos – o que denuciaria sua impaciência –,
aproximou-se do pai e puxou conversa sobre a pescaria. O assunto tomaria horas se fosse preciso,
mas serviu bem até que ouvisse três toques firmes e breves à porta. Esteve tão distraída que nem o
ouviu chegar.
– Abra a porta, Faith – Elliot pediu, enquanto se levantava para receber seu convidado.
A moça invocou uma força que nem sabia ter para atendê-lo. Quando chegou ao seu destino,
odiando o vestido escolhido e recriminando-se por não ter usado um batom mais atraente, ela
inspirou profundamente e abriu a porta. Parada diante de Jonathan, Faith sentiu como se não o tivesse
encontrado mais cedo. Seu coração se encheu de contentamento enquanto seus olhos registravam cada
detalhe daquele homem bonito à sua frente.
– Buona sera, Faith – murmurou ele. Elevando a voz para que todos o ouvissem, repetiu: – Boa
noite!
– Boa noite! – Faith murmurou e ouviu o pai dizer, exatamente às suas costas: – Entre senhor, por
favor!
A moça lhe deu passagem, resistindo ao desejo de farejá-lo para sentir um pouco mais daquele
cheiro bom de sabonete que os homens exalavam ao sair do banho. Como fora tonta ao imaginar que
ele carregaria algum odor de perfume! Com certeza padres não se davam a esses luxos. De toda
forma, nenhuma fragrância lhe fazia falta, determinou apaixonada.
– Sou Elliot Green.
Faith viu o pai cumprimentar e estender a mão, avaliando Jonathan descaradamente.
– Jonathan De Ciello. – Este apertou a mão estendida.
– O novo padre. – Elliot ainda segurava a mão, analisando seu rosto. – Quando Constance me
disse que era jovem não imaginei que fosse tanto.
– Eu lhe disse que ele tinha a idade de nosso filho, querido – lembrou-o Constance, vindo da
cozinha para cumprimentar o recém-chegado. Por fim, Elliot soltou a mão de seu convidado,
deixando que ele seguisse para o meio da sala onde recebeu os cumprimentos de todos. Atraídos
pelo tom das vozes, Mason e Helen vieram do quintal. A moça, antes mesmo de falar com o padre,
procurou a amiga com os olhos, como se desejasse ver-lhe a reação. Faith, ainda se recuperando da
costumeira privação de sensibilidade, apenas lhe piscou.
– Prazer... Sou Mason Green – apresentou-se o irmão, antes de apertar a mão do padre.
– Eu o conheço por fotos. – Jonathan indicou os porta-retratos dispostos sobre a lareira.
– Nossa! Mas você... – Mason se corrigiu ao pigarrear do pai: – O senhor é muito novo!
– Sou, sim... – jonathan esboçou um sorriso, exprimindo sua tolerância ao comentário óbvio e
recorrente.
Após os cumprimentos, Elliot indicou o sofá a Jonathan enquanto Constance retornou à cozinha.
Tão logo o padre sentou, todos os outros se acomodaram nos espaços vagos. Apenas Mason
permaneceu de pé, recostado à lareira, abraçado a noiva. Nicole e Joseph se sentaram ao lado do
padre e Faith em uma poltrona diante dele. Antes de imitá-los o anfitrião ofereceu:
– Beberia algo, senhor? Um licor talvez.
– Não se preocupe, obrigado! – recusou educadamente. – Eu não bebo nada que contenha alcóol.
– Sendo assim, sinta-se à vontade para pedir o que quiser. Água. Suco... Faith pode servi-lo antes
que o jantar fique pronto.
– Estou bem assim, obrigado – tornou a recusar depois de correr os olhos rapidamente na direção
da moça. Elliot assentiu e foi ocupar a poltrona ao lado da filha, ficando também em frente ao padre.
– E então, senhor, o que está achando de nossa cidade? – Elliot perguntou, iniciando a conversa
com assuntos corriqueiros.
– É muito agradável – Jonathan respondeu em seu tom cantado. – Mas o que me atrai são as
pessoas daqui.
Faith sentiu seu coração saltar como se ele estivesse se referindo a ela ao mencionar o grupo.
– Ah, sim? – Elliot se interessou. – Então, o que acha das pessoas de Sin Bay?
– Não conheço muitos lugares, mas acredito que em poucos deva existir pessoas de hábitos tão
simples, tão cordiais entre si ou prestativas com o próximo. Não poderia desejar ser enviado a um
lugar melhor. Apenas sentia falta de alguns de vocês, mesmo sem conhecê-los... Agora essa falta será
suprida.
A cada palavra dita pelo padre, Faith podia sentir pela respiração pausada do pai, o quanto ele se
agradava dos elogios ao povo da cidade que ele tanto amava e tinha como sua. Ponto para Jonathan!
Gostaria de confirmar o contentamento em seu rosto, mas, eram raros os momento em que desviava o
olhar de Jonathan. Fazia-o apenas para se certificar de que ninguém a observava.
Em sua vigília, por vezes flagrava os olhos límpidos do padre desviarem em sua direção. Um
gesto tão rápido e desinteressado que nenhum dos presentes poderia adivinhar a perturbação que ela
lhe causava. Contente por ele estar agradando ao seu pai, e por atrair-lhe a atenção, Faith se moveu
na poltrona. Depois de jogar os cabelos para trás num gesto gracioso, cruzou as pernas. De imediato,
durante uma de suas respostas, os olhos de Jonathan correram para ela antes de mais uma vez focar o
rosto de seu interlocutor.
O que Faith pretendia? Embaraçá-lo? Já estava relativamente complicado manter o foco nas
perguntas de Elliot Green com ela sentada à sua frente, bella em seu vestido branco. Ingênuo,
agradeceu intimamente ao ser recebido e vê-la com os cabelos soltos, trajada de modo casto.
Imaginou que teria paz durante a noite, contudo, a promessa de tranquilidade durou até que reparasse
nos cachos castanhos que emolduravam o busto contido pelo corpete justo do vestido.
Toda pureza da peça se resumia à cor e ao corte. Talvez não impactasse se vestisse outra, em Faith
Green, este adquiria ares de pecado e incitavam a lúxuria com aquela renda branca malignamente
aplicada no contorno do decote; que parecia deslizar sobre a pele clara, como se a acariciasse a
cada subir e descer dos seios cheios.
Como se não bastasse, agora a diaba cruzava as pernas, deixando uma das coxas expostas para sua
apreciação. Ou condenação, pois não podia lhe dispensar a atenção desejada. Era obrigado a mirar o
pai, que o enchia de perguntas que agradecia intimamente por suas respostas fáceis.
Agradecia também por estar sozinho, pois fatalmente o padrinho já teria notado seu desconforto.
Se os demais não o percebiam, era somente por jamais imaginar que um padre, mesmo jovem,
sentisse tal desejo carnal. E, decididamente a moça lhe inspirava reações súbitas e desconhecidas.
Quando a ameaçou naquela tarde estava dominado pelo mesmo desejo de ação que o incitou a
agredir Tyler na noite de quarta-feira.
Entretanto, sua vontade de... bater em Faith nada tinha a ver com violência, sim, com paixão. Ao
olhá-la fixamente enquanto lhe chamava a atenção, imaginou-a sobre seu colo, a desferir tapas em
suas nádegas para que não fosse tão desrespeitosa. Como acontecia naquele momento, evidente que
se excitou com a cena.
Até aí, nada novo, afinal, há dias que fantasiava com Faith. O problema foi o desejo de que ela
soubesse e, efetivamente, ter externado sua vontade sem cerimônias. Agora, queria ir até ela para
obrigá-la a se recompor ou, talvez, deslizar a mão sobre a coxa roliça – que via por sua visão
periférica – e ocultá-la sob a barra do vestido. A um tremor mais acentuado, Jonathan acomodou-se
melhor sobre o sofá e se obrigou a desviar o olhar.
– De onde eu o conheço, senhor?
Jonathan demorou bons segundos até entender que a pergunta não tinha partido do pai de Faith, sim
do homem ao seu lado. Voltando-se para Joseph, respondeu sinceramente:
– Não saberia lhe dizer... – Analisando-o acrescentou: – Na verdade, tenho certeza de que nunca
nos vimos antes do primeiro jantar nesta casa.
– Eu não sei... O senhor me parece familiar – Joseph insistiu.
– Deve ser impressão sua, querido – disse Nicole, tocando sua mão.
– Pode ser... – Joseph não parecia convencido.
– Então, senhor... – Elliot retomou à palavra. – Conte-nos mais... Por que deixou a Itália?
– Bem, eu...
– Se não se importarem de conversar durante o jantar – Constance interrompeu da porta. – Podem
se acomodar à mesa... Faith, agora preciso que me ajude.
Obediente, a moça levantou antes dos demais e sumiu pela porta que levava à sala de jantar e à
cozinha. Jonathan descobriu, naquele momento, que os cabelos soltos que lhe cobriam as costas dela
como um manto profano, perturbar-lhe-ia durante seu sono da mesma forma de quando era amarrado.
Por estar suscetivel a ela, também registrou as ancas largas, envoltas no tecido leve e esvoaçante. Se
não tomasse cuidado, a moça seria,de fato, seu anjo de perdição.
Jonathan desejava apenas seguir o fluxo, no entanto, como era o convidado, foi colocado à frente
do grupo e encaminhado por Elliot até a cadeira que ocuparia. Aquela noite todos se sentariam à
mesa então foi acomodado ao lado direito do dono da casa, na sua frente tinha Mason com a noiva ao
lado. Ao lado desta se sentou Nicole, deixando a extremidade da mesa vaga – provavelmente para a
mãe – e na sua frente sentou-se o noivo.
Quando a cadeira ao lado sobrou sem dono, Jonathan sentiu seu peito palpitar. Faith ficaria perto
demais! Ansioso, esperou até que ela e a mãe entrassem cada uma trazendo uma terrina média, de
barro, contendo toda sorte de frutos do mar sobre um monte de arroz colorido.
– É paella – Faith anunciou casualmente ao sentar ao seu lado. – Ajudei mamãe a fazer, espero
que o senhor goste.
– Faith falou bem... – Elliot se mostrou consternado. – Deveríamos procurar saber os gostos do
senhor. Será que gostará dessa comida?... Nunca fui à Espanha, mesmo sendo a nação de meus pais,
mas, ainda assim, adoro sua culinária. Constance sabe preparar uma paella como ninguém – elogiou,
olhando diretamente a esposa. Esta lhe sorriu, agradecida.
– Tenho certeza de que vou gostar – Jonathan acalmou-o, tentando não se abalar com a presença ao
lado.
– Faith, sirva-os – disse a mãe. – Eu sirvo Joseph, Nick e Helen.
Faith assentiu, tomou o prato disposto na frente de Jonathan e o serviu antes do pai e do irmão: ele
era convidado. Quando todos estavam com os pratos servidos, Elliot propôs que o padre fizesse uma
oração.
Com a garganta seca pelo embaraço, Jonathan o atendeu, recitou palavras de agradecimento
mecanicamente, sentindo-se novamente um farsante por estar naquela casa – em parte – para permitir
que seu corpo fosse tomado pelo excitamento que uma de suas moradoras prontamente lhe
proporcionava. Não deveria estar ali! Não fazendo orações entre gente de bem enquanto seu corpo
vibrava apenas pela proximidade dela. Contudo, se lhe fosse oferecida a opção de partir, não a
aceitaria. A noite apenas começara e o homem em si desejava aproveitá-la até o fim.
– Então, senhor... Pode nos contar agora por que deixou a Itália?
Jonathan ergueu os olhos de seu prato e encarou o dono da casa, agradecendo que a conversação se
desse quando já se habituava a Faith, e os bocados que mastigava passassem facilmente pela garganta
meio obstruída. Depois de beber um gole de água, respondeu:
– Vim da Itália há poucos anos... Dois para ser exato. Iniciei minha formação religiosa em Tivoli.
Era meu desejo ter ficado até o fim, mas meu padrinho, que o senhor conhecerá em breve, foi enviado
para assumir uma paróquia em Washington e conseguiu que eu viesse com ele. Eu o ajudei
indiretamente nos primeiros dias, pois não domina muito bem o inglês. Ante a dificuldade ele foi
afastado depois de alguns meses. O problema é que eu já tinha retomado meus estudos e meu tio não
quis que eu os interrompesse. Com isso, acabamos ficando.
– Então, o senhor pensa em voltar um dia? – Mason entrou na conversa.
Antes que Jonathan respondesse, pôde sentir o movimento de Faith sobre a cadeira. Sem que
pudesse evitar, olhou em sua direção e flagrou o instante exato em que ela baixava os olhos para o
prato. Ato contínuo, ele encarou o rapaz à sua frente e disse seguro:
– Não!... Já me habituei ao seu país e não sou muito afeito a mudanças. – Ao se calar ouviu o
suspiro baixo de Faith que o levou à questionar se acaso ela temia sua partida. Não era certo, mas
não pôde evitar que seu coração se aquecesse. Em resposta à sua indagação, ela falou
despreocupada, dando atenção exagerada a um camarão que não se fixava em seu garfo:
– E à nossa cidade agradável?... O senhor já se habituou?
– Certamente que, sim – respondeu após alguns segundos. Dito isso não se furtou de olhá-la, pois
seria educado enquanto lhe dirigisse a palavra. Não era sua intenção, mas seus olhos foram atraídos
para o vale entre seus seios. Após um pigarro discreto, acrescentou: – Eu acharia aborrecido ter de
me mudar novamente.
– E também não estaria pensando em partir, tendo chegado há tão pouco tempo... – Elliot concluiu.
– Era o que eu estava pensando – disse Faith, brigando com outro camarão.
Ela não queria que ele fosse! Agora tinha certeza. Errado, muito errado. Sentia falta dela, queria-a
por perto sempre, mas Faith não deveria se apegar. Novamente com a garganta seca, Jonathan tomou
outro gole de água antes de voltar a atenção para o próprio prato. Juntou um bocado menor, pois seu
apetite sumiu. Continuaria a comer para não fazer desfeita à dona da casa é à Faith. De novo
cismava, se estivessem na praia fatalmente a deixaria, mas ali, diante de todos, não poderia levantar
e fugir.
Era um estúpido, pensou enraivecido. Nunca que sua ideia estapafúrdia de receber agrados daria
certo. E, de novo, como se adivinhasse seus pensamentos, Faith se moveu de leve. Apenas um leve
ruído do roçar de tecido no assento da cadeira o denunciou. Talvez Joseph também o tivesse ouvido,
mas Jonathan sabia que nenhum outro naquela mesa o percebeu por estarem falando entre si sobre a
sua chegada à cidade. E, então, quando menos esperava, o padre sentiu o pé da moça se encostar ao
seu.
Assim como Faith, Jonathan passou a dar maior atenção aos frutos do mar dispostos em seu prato
e, com a cabeça baixa, ousou olhá-la. Faith agora arrumava a comida sobre o garfo com a ajuda de
uma faca. Nada acontecia.
Quando Jonathan acreditou que não passara de um mero acidente, Faith moveu mais a perna e
encostou toda a parte inferior à dele. Imediatamente a raiva que sentia de si mesmo se dissipou e
assim, branda, se voltou contra ela. Como Faith ousava provocá-lo ali, à mesa? Quando não poderia
esboçar qualquer reação?
Certo, o padre poderia se indignar, mas o homem rendido obrigou-o a comprimir a perna
ligeiramente em direção à dela. Incentivada, sem nunca desviar a atenção do prato quase vazio, Faith
passou a mover o pé de forma que as partes unidas roçassem uma na outra, verticalmente.
Com aquela carícia lenta e pueril, o corpo de Jonathan passou a ser atacado por uma sequência
intermitente de doses de adrenalina que corriam por sua coluna e recaía sobre seu membro, como
delicados toques, ameaçando despertá-lo por completo.
– E como estão os preparativos para o piquenique do Sr. De Ciello?
Jonathan agradeceu que a pergunta tivesse sido dirigida a Faith. Ele não conseguiria prever como
sua voz soaria. Dona da situação, a moça falou sem maiores problemas:
– Ah... Já está tudo acertado, papai. Preciso apenas falar com Tyler para pedir que nos faça um
palco. No mais, é aguardar o dia.
Jonathan não gostou de ouvir o nome de o rapaz ser pronunciado por ela, mas nem mesmo o
desagrado arrefeceu sua excitação. Logo estaria verdadeiramente impossibilitado de se levantar
daquela cadeira. Era imperioso que ela parasse aquele roçar dissimulado e estimulante, contudo,
desejava mais. Quem veio auxiliá-lo foi Constance que, com seu pedido, livrou-o do dilema.
– Faith pegue outra garrafa de vinho, por favor.
A moça afastou a cadeira e se levantou prontamente. Talvez a reptadora nem ao menos sentisse o
mesmo que ele, somente o provocasse pelo prazer de saber que o abalava. De toda forma, se ela
também se excitou com aquele resvalar de pernas, era providencial que não fosse aparente. Ao tomar
outro gole d’água e discretamente secar uma gota de suor que ameaçou descer por sua testa,
considerou que se ocorresse o contrário, ele teria que inventar uma boa desculpa para permanecer
onde estava.
Faith passou direto pela cozinha e seguiu até a porta que levava ao quintal. Precisava de ar. Era
mil vezes maluca, pensou com o coração aos saltos. Onde estava com a cabeça? Nele, sempre nele!
Aquela foi sua vingança pela ameaça que a acendeu na lanchonete. Doce vingança que também a
atingiu, pois vibrava enquanto partes distintas latejavam de forma preocupante. Queria que
estivessem sozinhos e que ele correspondesse daquela maneira.
Com certeza iria querer mais do que aquele roçar de pernas, pensou voltando à cozinha para pegar
o vinho. De volta à sala evitou olhar para Jonathan. Caso seus olhos se encontrassem, tudo estaria
perdido.
– Sirva a quem desejar – a mãe pediu. – Tem certeza de que não quer uma taça, senhor?
– Absoluta... Eu não bebo, obrigada!
– Padre Lewis não dispensava uma meia taça de um bom vinho do Porto – Elliot comentou
aleatoriamente.
– Já ouvi algumas histórias sobre ele – Jonathan comentou vez ou outra acompanhando com o olhar
a moça que servia os copos como se não tivesse nenhum problema nisso. Mirando o anfitrião,
acrescentou: – Gostaria de tê-lo conhecido. Qual foi o motivo de sua morte?
– Nunca se soube ao certo. Velhice, talvez... Foi encontrado morto em sua cama.
– Que sua alma descanse em paz! – Jonathan exclamou por costume.
– Me desculpe – Joseph falou de sua cadeira, tão logo Faith retornou ao seu lugar, desviando a
atenção do padre que se empertigava com a proximidade. – Mas eu realmente tenho a impressão de
que o conheço.
– E eu lhe digo que é praticamente impossível – Jonathan retrucou, levemente irritado pela
interrupção de seus sentimentos. – Nunca estive nessa cidade antes.
– Talvez em Wells... – insistiu. – Ou em qualquer outra cidade vizinha.
– Não – Jonathan sentenciou. – Cheguei da Itália diretamente na capital de seu país e lá permaneci
até completar minha formação, ser ordenado e ser enviado para cá. Esta é a primeira paróquia que
assumo, então, como vê... Não há a mínima possibilidade de nós nos conhecermos.
– Como disse, é somente impressão, querido... – Nicole repetiu amável.
Aquela noite Faith dava mérito para a irmã. Nicole se portava muito bem diante de Elliot que,
talvez aborrecido pela insistência do futuro genro, disse:
– Se um dia se lembrar de onde pode ter visto alguém parecido com o padre Jonathan, nos conte
Joseph, mas no momento não o force a ter lembranças que não existem.
E lá estava o bom e velho Elliot Green, comandando sua casa e defendendo os que lhe agradava,
mesmo indo contra alguém de sua estima. Faith adorou a intromissão, era prova de que seu pai se
rendera ao novo padre. Muito bom!
– Me desculpe, Elliot... Não se repetirá... Me desculpe, senhor padre.
– Imagine... – disse, diplomático. – Não se desculpe por isso. Sei como é não se lembrar de coisas
que consideramos importantes... No seu lugar, eu também insistiria, apenas lamento não poder ajudá-
lo.
Depois do incidente a conversa fluiu fácil e amena. A certa altura, Elliot comentou:
– Estranhei que a diocese não nos tenha informado de sua chegada, senhor.
– Também achei estranho que não me esperassem, mas não imagino o que possa ter acontecido –
Jonathan respondeu sinceramente, não vendo nenhum problema no fato.
– A igreja precisa de muitos reparos? – Elliot perguntou, satisfeito com sua resposta.
– O telhado precisa de algumas telhas novas. As paredes de pintura, alguns bancos de conserto e
todos eles de verniz... E seria bom conseguir um sino.
– Então precisará arrecadar muito dinheiro nesse piquenique.
– O que conseguirmos será bem-vindo. Já estava decidido a ajudar com minhas reservas.
– O senhor vai usar dinheiro próprio?! – Elliot se admirou.
– E onde mais eu poderia usá-lo? Comprarei as tintas, mas se precisar de algo mais...
– Fico feliz em ouvir isso, senhor, e espero que consiga o suficiente.
– Mesmo que não arrecade o suficiente já ficarei feliz – Jonathan retrucou lhe sorrindo antes de
acrescentar em latim. – In benevolentia occurrit opus. A boa vontade supre a obra, senhor –
traduziu.
Elliot lhe sorriu encantado e então mudou e assunto, sem mais especulações sobre as intenções do
padre. Jonathan aproveitou para perguntar sobre a vida no mar o que deixou o capitão Green animado
com a oportunidade de contar suas vantagens sobre as pescarias que realizava. Faith ouvia os
comentários e perguntas do padre, completamente enlevada. Descobriu que ouvi-lo falando em latim
era tão ou mais perturbador do que em sua língua natal. Perfeito!
Estava de tal forma encantada que não o provocou novamente. Quieta, Faith apenas saboreou a
noite agradável onde tudo corria docemente, como desejado, assim como saboreou o pudim de claras
da mãe. Apesar das previsões da futura cunhada – que se manteve calada na maior parte do jantar –,
seu futuro parecia doce como a sobremesa. Estavam na sala, bebericando o café brasileiro, preferido
de Elliot, quando uma pitada de sal, caiu sobre tanta doçura.
– Faith comentou que o senhor costuma correr na praia às vezes – seu pai disse.
– Corro, sim... É um velho hábito.
– Ela também me disse que às vezes o acompanha.
– É verdade – Jonathan respondeu –, mas só nas caminhadas, sua filha me disse que prefere nadar.
– Sim, ela prefere – confirmou Elliot, olhando a filha com leve reprovação. – E o faz, mesmo
sabendo que eu não gosto. Para onde ela costuma ir é muito perigoso.
– O senhor sabe que só vou até lá quando a maré está baixa – Faith se defendeu.
– Mas pode subir de repente – o pai retrucou e prosseguiu: – Mas isso não vem ao caso. O que
quero dizer é... Sinceramente não vejo problemas com a amizade de vocês dois, mas não sei como os
outros dessa cidade a entenderia.
Imediatamente Faith depositou o conjunto de xícara e pires sobre a mesinha ao lado da poltrona
com medo de tilintá-los ou derrubá-los com o tremor que dominou suas mãos. Seu pai não faria o que
ela imaginava que estava prestes a fazer, pensou alarmada. Foi Jonathan quem tomou a iniciativa de
perguntar:
– Como assim, senhor?
– Ora... Eu o conheço há poucas horas, mas acho que posso dizer, sem medo de errar, que o senhor
é um homem íntegro, convicto da vida que escolheu para si e consciente de seus deveres com sua
igreja. No entanto, suas qualidades seriam as últimas coisas que o povo dessa cidade veria caso o
encontrassem correndo ou caminhando com minha filha na praia. O senhor é um homem jovem e...
– Corta essa, pai! – Mason tomou a liberdade de interrompê-lo. – Ninguém mais pensa dessa
maneira, até por que, quando alguém quer fazer coisa errada, a idade é o que menos conta.
– Também acho... – apoiou Helen, sem muita convicção.
– Senhor, eu... Eu não sei o que dizer. – Jonathan balbuciou, aturdido. Não pela proximidade da
verdade, mas pela possibilidade de ser proibido de estar com Faith.
– Está vendo só? – disse Constance preocupada. – Você o constrangeu!
Faith não se atreveu a falar. Conhecia seu pai tanto quanto ele a conhecia. Se intercedesse em favor
próprio, colocaria tudo a perder. Agora via que errara ao contar sobre seus encontros. Droga!
– Me perdoe, padre Jonathan – disse Elliot –, mas sou um homem de vida simples e, como disse,
realmente não vejo problema algum com essa amizade que surgiu entre vocês. Acredito que jamais
faltaria ao respeito com minha filha nem é minha intenção proibi-los de caminharem juntos...
– Então, qual é a questão? – Jonathan perguntou sem ponderar, encarando-o seriamente. Elliot,
depois de olhar para todos os rostos inquiridores de sua família, suspirou resignado:
– Quero apenas pedir que não seja rotineiro. Vocês poderiam alternar os dias ou variar os horários
algumas vezes... Seria muito aborrecido para mim se começasse a surgir comentários maldosos
envolvendo os dois. Entende o que quero dizer?
– Claramente – Jonathan respondeu, lacônico.
E bendita fosse a constante reclusão do padrinho. Se Carlo estivesse presente se refestelaria nas
palavras de Elliot Green. Contrariado, Jonathan evitou olhar para Faith que permanecia muda. Acaso
ela não se importava que não o visse mais durante as manhãs? Errou ao imaginar que ela se
envolvia? Praticamente toda sua família se pronunciou menos ela: a outra metade interessada. Ou
seria como imaginou à mesa; insinuava-se pelo simples prazer de provocá-lo? Parecia claro que sim.
– Scusami... – Sentindo uma dor fina e incômoda cruzar seu peito, Jonathan se levantou. – Acredito
que já tenha me estendido além da hora.
– Não vá ainda – Elliot pediu também se pondo de pé, ao que foi imitado por todos os outros. –
Não assim... Preciso que diga que me entendeu.
– Ah, não, por favor... – Jonathan falou dissimulando a contrariedade, dando um ar tranquilo ao
rosto. – Não pense que me aborreci com o que disse. Entendo perfeitamente sua preocupação e digo
que eu mesmo já deveria ter atinado com a possibilidade de alguma maledicência.
– Sendo assim, fique mais um pouco – pediu Constance, esperançosa.
– Realmente não posso, senhora. Preciso voltar para casa. Amanhã levanto cedo. – Para Elliot
acrescentou ainda em tom leve: – Fique tranquilo. Não me encontrarei com sua filha todas as
manhãs... Isso nem ao menos aconteceu esses dias. Não é mesmo? – perguntou incisivo diretamente a
ela que também estava de pé, calada.
– Sim... – Faith respondeu por fim, também olhando diretamente para ele. – Eu disse para meu pai
que foram algumas vezes, não todos os dias.
O olhar carregado de escusa e o tom incerto o desconcertou. Ela não era indiferente! Novamente, a
mesma dor fina e inexplicável correu seu coração, contudo ela não o feriu como aconteceu
anteriormente. Foi algo próximo ao alívio.
– Certo! – Elliot exclamou por fim. – Acho que foi apenas preocupação exagerada da minha parte,
mas gostaria que essas caminhas continuassem a não ser diárias.
– Não se preocupe... – Com sua irritação arrefecida, Jonathan se dirigiu a Elliot mais uma vez. E
então, na tentativa de indicar a Faith que nada mudara, lamentou sem realmente sentir: – Apenas
receio não poder trocar meus horários, mas certamente jamais existirão motivos para comentários,
maldosos ou não.
– Ah, assim espero! Eu gostei do senhor. Não gostaria que tivesse problemas por causa de
falatórios.
– Assim como eu também não desejo criar problemas para sua família – disse Jonathan, apertando-
lhe a mão. – Foi um prazer conhecê-lo, Sr. Green.
– Pode me chamar de Elliot – autorizou. – E saiba que sempre será bem-vindo aqui nesta casa.
– Muito obrigado, Elliot. Sra. Green – disse a Constance, estendendo-lhe a mão –, o jantar estava
divino. Obrigado mais uma vez.
Jonathan tomou o devido cuidado de apertar a mão de todos enquanto se despedia somente para no
final poder pegar na de Faith, contudo, quando estava prestes a fazê-lo, Elliot falou:
– Acompanhe-o até o portão.
– Sim, senhor – Faith assentiu e seguiu para a porta.
Talvez a concessão tenha sido para demonstrar que ele não se importava em deixá-los sozinhos. A
Jonathan pouco importava. Depois de se despedir de todos mais uma vez, seguiu-a pela saída e pelo
caminho de cascalhos até a cerca de madeira. A moça seguia com os ombros eretos, a cabeça
erguida. Ao chegar ao seu destino, apenas lhe deu passagem depois de abrir o portão.
– Me desculpe pelo o que houve – ela pediu num sussurro à passagem dele. – Imaginei que seria
melhor contar sobre nossos encontros, afinal não são secretos.
Jonathan se prostrou diante dela, já na calçada, e desviou os olhos na direção da casa. Não via
sombra alguma desenhada na cortina da janela da sala. Decididamente Elliot tentava se redimir.
Quando teve certeza de que não eram observados, procurou os olhos dela.
– Foi melhor que o fizesse – tranquilizou-a.
Após suas palavras veio o silêncio. Ele gostaria de lhe dizer algumas coisas, mas não sabia o quê.
Também gostaria de tocá-la, mas não imaginava como. De repente lhe ocorreu que ela não se
importaria como fizesse. Não apertara a perna na dele diante de todos? Sim, então, diga alguma
coisa! Demandou a si mesmo. “Faça alguma coisa!”.
– Boa noite, senhor... – ela se despediu por fim, voltando o rosto para olhar a mata ao lado de sua
casa e, sem deixar de olhar as árvores, prosseguiu: – É melhor não abusar da sorte. Sei que meu pai
não está olhando, mas ele sabe o tempo que leva para vir até aqui e voltar.
E então, depois de encará-lo brevemente, deu-lhe as costas e entrou. Quando Faith sumiu de vista,
Jonathan imitou-a e mirou a mata. De repente o entendimento iluminou sua mente somente para
escurecer seus olhos.
O pai não os vigiava, poderia contar-lhes os passos, mas ali, oculto pelas árvores poderia estar o
motivo maior da inquietação da moça. Alguém que a seguia como um cachorro segundo suas próprias
palavras. Que a interceptava de forma abrupta num dia e a consolava ternamente no outro.
Antes que a irritação se transformasse em raiva e esta em ódio, Jonathan argumentou consigo
mesmo que era inútil ocupar-se com aquele assunto. Com exceção ao breve contratempo no final do
jantar, tudo estava como deveria. No balanço geral, o saldo da noite fora positivo, então não deveria
corrompê-la alimentando ressentimentos. Foi àquela casa com dois propósitos, pensou ao finalmente
deixar a calçada. Foi para conhecer o líder comunitário da cidade e ter a dose de atenções que tanto
necessitava, cedidas com acréscimo por sua filha caçula.
Livre da consternação, Jonathan conseguiu admirar a noite, a lua. Enquanto caminhava revivia as
sensações que a perna nua despertou em seu corpo e se deixou envolver por elas. Valer-se-ia daquele
momento de ousadia da moça até que pudesse estar com ela na segunda-feira, pois sabia que a bella
Faith iria à praia. Com essa certeza chegou à casa. Seu padrinho já tinha se recolhido ao que
Jonathan o imitou tão logo higienizou sua boca, lavou o rosto e as mãos. Precisava dormir. O outro
homem que habitava nele estava satisfeito; na manhã seguinte era dia do padre cumprir seu papel.
Depois de muitas noites insones, agitadas e perturbadoras, Jonathan finalmente teve uma de sono
seguido e pacífico. Acordou sem desejo; tranquilo. Nem mesmo a iminência de sua segunda missa,
dessa vez com a audiência completa, abateu-lhe o espírito. Sim, ainda se sentia culpado, desleal à
sua vocação, mas não ao ponto de recriminar-se. Suas duas faces estavam equilibradas.
Acreditando que, mesmo agindo errado, tudo poderia dar certo, Jonathan deixou o quarto para se
juntar ao tio. Encontrou-o na cozinha, como no primeiro domingo. Esperou por suas perguntas, porém
estas não vieram. Jonathan se perguntou até quando duraria o boicote do padrinho daquela vez.
Contudo, quando se encontrava na sacristia, preparando-se para a missa, Jonathan notou algo errado
nas atitudes de Carlo. Desde que o cumprimentou não recebeu um olhar enviesado, um resmungo mal-
humorado o que significava não ser ele o problema.
– Vai me dizer o que está acontecendo? – perguntou ao terminar de aprontar-se.
– Estou ansioso por causa da missa.
Jonathan sabia que aquela não era a verdade, mas não insistiu. Não havia tempo. Não se quisesse
receber seus fiéis à porta como fizera na semana anterior. Aceitando a resposta, apenas disse:
– Não fique. Tudo correrá bem... Como tenho certeza que aconteceu ontem. Depois poderia me
contar como foi.
– Você sabe como foi. Noite de sábado, igreja vazia, meu inglês sofrível espantando as pessoas...
Agora me deixe terminar aqui e vá receber os que chegam.
Jonathan achou por bem não retrucar. Realmente não teria tempo e decifrar o silêncio do padrinho
levaria horas. Apenas algo era certo, a rispidez nada tinha a ver com ele. Sem mais palavras,
Jonathan saiu para a igreja. Viu que a Sra. Williams novamente cuidava da preparação do altar e que
alguns de seus bancos já estavam ocupados. Após cumprimentá-la, seguiu pelo corredor lateral,
também cumprimentando ou abençoando alguns pelo caminho até chegar à porta.
Não se passara dez minutos que assumira seu posto e já se encontrava ansioso, olhando a todo
instante para a rua do outro lado da praça. Nem ao menos registrava os nomes ou os rostos dos que
passaram por ele, apenas um importava. Passados mais cinco minutos Jonathan viu a família Green
apontar no início da rua, contudo Faith não estava entre eles. Logo Elliot, Constance e Mason o
cumprimentavam.
– Bom dia padre, sua bênção – disseram quase que a uma só voz.
Estava prestes a perguntar onde estavam as duas moças, quando seus olhos foram atraídos para a
pick up preta que se aproximava sem pressa. Como na semana passada, Faith estacionou bem à frente
da igreja. Mason se adiantou para ajudar Nicole a descer, somente então Jonathan se lembrou; a moça
não faria a irmã engessada caminhar. Contendo um sorriso aliviado, ele as recebeu.
– Bom dia, padre – disse Nicole, mas mal a ouviu.
– Bom dia, padre. Sua bênção – Faith cumprimentou. Aquela era a boca que ele esperou para ver
as palavras serem proferidas. Palavras essas que, mesmo não estendendo sua mão para que ela a
beijasse, faziam seus dedos formigarem e o corpo se aquecer.
A família reunida entrou na igreja depois que ele respondeu a todos. A passagem de Faith,
Jonathan também aproveitou para guardar-lhe o perfume floral: seu dia começara. Recebeu às outras
pessoas com um sorriso renovado, o peito leve.
Quando assumiu seu posto diante da audiência e a fez erguer convidando todos a fazerem o sinal
da cruz, Jonathan não se sentia incomodado como da primeira vez. Novamente realizou a missa
mecanicamente – como se fosse um dever a ser cumprido –, mas não se sentiu oprimido. Por vezes, o
padre se permitiu baixar os olhos para a moça ao lado de sua família e seus olhares se cruzavam. Via
neles uma admiração que o envaidecia e confortava.
Num desses instantes em que pregava como se estivesse conversando com Faith, ponderou consigo
que, talvez, a perturbação da primeira missa não tivesse ligação com ele ou com a legitimidade dúbia
de sua vocação, sim, com ela. Talvez, por estar perdido em meio ao turbilhão de sentimentos novos,
tenha se desesperado. Na ocasião não sabia o que esperar, não sabia como agir. Sentia-se culpado
por conspurcar seu corpo, contudo agora, ainda que a culpa existisse entendia que fazê-lo era
necessário. Aquele era o equilíbrio. E se aquele arranjo entre o homem e a moça dava tranquilidade
para o padre cumprir sua função, talvez não fosse de todo errado.
Ao final da missa, Jonathan não desapareceu pela porta da sacristia como da outra vez. Foi se
colocar à porta para se despedir dos que vinham lhe falar. Agora reconhecia os rostos, Netty lhe
apresentou o marido, Harry. E dessa vez Jonathan decorou os nomes dos filhos, Anne e Daniel.
Outras esposas – algumas frequentadoras assíduas – também lhe apresentaram seus maridos. Ele
apertava a mão de todos, satisfeito com a sensação de dever cumprido.
– Confesso que não esperava um sermão apaixonado, vindo de alguém tão jovem – disse Elliot ao
parar à sua frente, exibindo um sorriso satisfeito. – O senhor me surpreendeu e, com certeza, subiu
ainda mais no meu conceito. Disse-me ontem que não poderia ter sido enviado a uma cidade melhor,
pois eu lhe digo que nós não poderíamos ter desejado padre melhor...
– Obrigado! – agradeceu simplesmente. Jonathan gostaria de também se rasgar em elogios, mas,
depois do susto que o capitão lhe deu após o jantar, não lhe tinha tanta simpatia. Dele queria apenas o
exemplo que dava à família, então rapidamente apertou a mão estendida. Como esperado, um a um
imitou o gesto do pai então logo Jonathan teve sua palma comprimida pela mão de Faith.
– Até amanhã – ela disse, encarando-o por um instante.
– A domani – ele repetiu ininteligível.
O restante do dia passou fácil. Jonathan nem ao menos se importou com o ar circunspecto do
padrinho, deixando-o quieto, a cismar em seu canto. A noite não foi tranquila, sonhou com Faith e,
como sempre, acordou ardendo por ela, contudo não se aborreceu; era parte do arranjo. Vestido para
sua corrida – depois de ter tomado banho, acalmado seu corpo e feito suas orações matinais –
Jonathan seguiu para a cozinha.
– Vai para a praia? – o padrinho perguntou sem olhá-lo.
– Sabe que sim – ele respondeu, servindo-se de um copo com água, imaginando se naquela manhã
viria algum ardil para impedi-lo uma vez que estava claro que veria a moça. Porém, o padrinho não
só contrariou suas expectativas como o estarreceu ao indagar passivo:
– Pode ser perigoso ficarem em lugares desertos. Não haveria um local mais movimentado para
correrem?
– Mas aquela praia é ideal justamente por não ter ninguém. – Jonathan retrucou sem entendê-lo,
mas imaginando que a preocupação do tio fosse com o fato de ele ficar sozinho com Faith. – Não se
preocupe com nada. Tchau.
Já na rua, falou com quem o cumprimentou. Como previsto todos se habituaram em vê-lo passar
para sua corrida sem estar usando a costumeira roupa preta. Logo se acostumariam a vê-lo conversar
com a moça e tudo seria perfeito. Cheio daquele otimismo confortador, tomou a trilha do ponto onde
teria de passar em frente à casa dela. As cortinas estavam cerradas como sempre àquela hora da
manhã, mas Jonathan sabia que provavelmente Faith já estivesse à sua espera.
Até amanhã, ela dissera. Aquela era a confirmação do encontro. Porém, ele começou a correr
sozinho depois de alongar os músculos com os olhos cravados na trilha que pela qual acabara de
passar lentamente. E percorreu toda a extensão da faixa de areia – indo e vindo – sem que ela
aparecesse. A certa altura, Jonathan nem mesmo se importaria caso ela se juntasse a ele
acompanhada de Tyler, contudo, nem assim Faith foi à praia.
O que poderia ter acontecido? Questionou ao passar diante da casa dela na volta. As cortinas
estavam afastadas, mas ele não viu ninguém e como não poderia ficar parado na calçada, não esperou
para ver. Melhor seria ir para a igreja, com certeza Faith apareceria para tratar de algum assunto
referente ao piquenique. Não aconteceu. O dia perdeu um pouco do brilho, mas Jonathan se consolou,
acreditando que na manhã seguinte a veria.
A esperança não foi vã. Como esperado, encontrou-a, porém quando terminava sua corrida. Para
sua condenação, Faith usava um short curto e na parte superior do corpo, um biquíni mínimo que mais
revelava do que cobria os seios.
Ao admirar os montes fartos, engoliu seco, perguntando-se como Elliot permitia que ela saísse
daquela maneira. Apenas ele deveria vê-la de tal forma despida. Quando finalmente estava diante de
si, Jonathan imaginou como seria prazeroso caso ela lhe beijasse os dedos, exposta como estava.
Contudo não aconteceria. Nem ao menos haveria contato entre eles, pois ela vinha acompanhada pelo
irmão.
– Bom dia, padre – Mason cumprimentou jovialmente.
– Bom dia – disse aos dois.
– Oi – Faith lhe disse com um sorriso apagado, os olhos brilhando.
– O senhor já estava indo embora, não é mesmo? – o irmão perguntou, correndo os olhos por seu
rosto suado, a camiseta molhada.
– Já.
– Então não vamos te prender, não é mesmo, maninha? – perguntou a ela, trazendo-a para junto de
si para esmagá-la num abraço animado. – Hoje a maré está baixa e vamos apostar para ver quem
chega primeiro à piscina.
– Está certo! Não precisa me espremer – ela pediu, afastando-o. Sua seriedade destoando da
agitação do irmão.
– Vai à igreja hoje? – Jonathan perguntou sem se importar com Mason. Precisava vê-la direito.
– Hoje não.
Foi tudo que Jonathan ouviu e sentiu seu peito gelar. Queria interrogá-la para saber por que não
iria, o que acontecia, mas não o fez. Ele sabia o motivo do afastamento. Elliot Green poderia
desfazer-se em elogios, proclamar sua civilidade e compreensão acerca da amizade entre sua filha e
o novo padre, porém não deixaria de tentar afastá-los.
Jonathan subira no seu conceito, mas sempre seria um homem – seriamente comprometido – que
não poderia ser visto frequentemente com sua filha caçula. Entendia que a culpa não era dela, mas
não pôde evitar dirigir-lhe certo rancor.
– Certo – disse com leve rispidez. – Vejo-os por aí, então... Até logo.
Enquanto seguia pela trilha, pisando pesado, Jonathan experimentava uma raiva corrosiva
mesclada à sua excitação. Seu lado racional tentava argumentar, lembrando-o que o responsável por
estar longe dela era o pai, mas não se ouvia. Aquele lado que às vezes perdia o controle creditava a
Faith toda a culpa por ficar sem sua parte no arranjo.
Onde estava a mulher descarada que roçou a perna na dele em meio a um jantar familiar? Por que
não disse ao irmão que apostariam corrida em outra maré baixa? Por que não deixou a todos e foi à
praia sozinha? Seria assim até que todos voltassem para o mar?
– Se è così, mi sono perduto! – disse em voz alta e rouca. – Sim, estaria perdido!
Capítulo Dezoito

Depois daquela manhã o padre viu a moça todos os dias, mas era como se não a visse de fato.
Ainda na noite de terça-feira, coincidiu de estar a conversar com Samuel Bailey num dos extremos da
praça e avistar a pick up, vinda de Wells. Jonathan percebeu que um carro a seguia e, antes que
chegassem até ele, buzinou duas vezes antes de tomar outro caminho. A moça retribuiu o cumprimento
e prosseguiu até passar por eles – também buzinar em cumprimento – e desaparecer na rua que a
levaria até sua casa. Ele não precisou ver para saber quem a seguia.
– Tyler nunca se cansa – Samuel comentou, pesaroso, depois de acenar para a pick up.
– Perdão? – Jonathan murmurou aéreo, ainda a olhar o final da rua.
– Cometei que Tyler nunca se cansa de seguir a caçula de Elliot.
– Essa não é a primeira vez que comentam essa perseguição – falou Jonathan, sem temer a
indiscrição de comentar a vida alheia.
– Porque é notória e antiga – o moreno explicou ainda com pesar. – O garoto é caidinho por ela
desde que o pai veio para a cidade. Ty devia ter uns quatro anos... É coisa de criança, sabe?
– Acho que sei – ruminou a resposta, ciente de que não havia nenhuma nota de infantilidade na
forma como se tratavam agora.
– Pena que o tempo passou e ele não saiu dessa. Está claro que a menina é apenas sua amiga.
– Pobre rapaz. – Jonathan mascou as palavras com desagrado. Então uma questão lhe escapou: – O
que ele faz da vida? Digo... Estuda? Trabalha?
– Até onde sei Tyler terminou o colegial ano passado, mas não foi aceito em nenhuma
universidade. Ele vive de fazer bicos como mecânico para os moradores daqui e em uma oficina lá
de Wells. Acho que lá ele só vai para poder voltar com ela – acrescentou, apontando o final da rua,
indicando a moça.
– Entendo... E o pai dela não se opõe?
– Os pais são amigos e acho que não se deram conta que o interesse do rapaz é sincero. Ainda os
veem como duas crianças.
Uma criança desenvolvida e hormonal que espreita a outra e a segura possessivamente em um dia
para no outro abraçá-la como um homem abraça uma mulher. Não conhecia o pai de Tyler, mas o
colocava na mesma conta de Elliot Green, ambos cegos. Capaz que considerassem uma brincadeira
inofensiva caso flagrassem seus filhos aos beijos ou fornicando semidespidos num canto qualquer.
Azedo, repudiando a imagem que projetou em sua cabeça, Jonathan considerou que não deveria ter
tido acesso a tanta informação. Alegando, uma dor de cabeça persistente que ganhava força, Jonathan
se despediu de Samuel e partiu.
Naquela noite foi difícil conciliar o sono. Na manhã seguinte correu com a moça, contudo, tendo
Mason entre eles a monopolizar a conversa. Não trocaram mais do que dez palavras, frustrando
assim o desejo do padre de esclarecer algumas dúvidas levantadas após a conversa com o dono da
casa de iscas.
Na esperança de vê-la à noite, vagou pela praça até encontrar alguém para conversar e esperar.
Por volta das sete horas, como na noite anterior, a pick up surgiu, seguida pelo Windstar. Após as
duas buzinadas, separaram-se. A ansiedade da vigília se transformou em despeito.
De nada adiantava esperar quando tudo que via era dois carros, não a ela. Faith não tinha tempo
para procurá-lo, somente para seu amigo de infância. Assim como Samuel, a moça negara qualquer
envolvimento, mas naquela noite Jonathan acreditou que mantinham um caso secreto. Nem ao menos
conseguiu dormir.
Na quinta-feira pela manhã encontrou-a quando já estava de saída, com o irmão. Jonathan chegou à
casa com o humor pior que o do padrinho. Os diálogos eram breves, educados e só. Irritava-o ter de
ouvir confissões, aconselhar ou ter que olhar para alguém que não fosse ela.
Na noite da quinta-feira nem Faith ou Tyler passou pela praça no horário esperado e, quando
Jonathan se lembrou das benditas aulas de dança, enfureceu-se. Acreditou ter conseguido a
explicação para a mentira tão bravamente mantida. Aquele era o dia que eles se permitiam ficar
juntos, acobertados pela desculpa do curso semanal. Ao novamente imaginá-la com Tyler, daquela
vez sobre uma cama, o Jonathan estranho experimentou um ódio crescente e maligno que cegou até
mesmo sua porção benevolente.
Quando deu por si estava em seu quarto, furioso, andando de um lado ao outro, segurando seu
chicote pelas extremidades das correias, juntando e separando as mãos para que as tiras de couros se
separassem e ao se chocarem produzissem o estalido. Não sabia nem ao menos se tinha se despedido
decentemente da pessoa com que conversava, não se importava. Seu coração reclamava. Como ela
podia? Libertina!
E ele? Como ficava se também precisava dela? Cego, Jonathan desejou poder bater em alguém. De
preferência nela. Na Messalina dissimulada que o deixava naquele estado. E ao Tyler queria partir
ao meio por fazer com ela coisas que ele apenas poderia sonhar.

Faith chegou à sua casa, exausta, física e emocionalmente. Sentia falta de Jonathan que naquela
noite nem ao menos pôde ver na praça pelo adiantado da hora. Nunca imaginou que um dia
acontecesse, mas agora não via a hora de seu pai e o irmão voltarem para o mar. Deveria ter
imaginado que a rotina habitual de seu tempo em terra tomaria sua liberdade.
Não poderia simplesmente se negar de ir com o pai à cooperativa, visto que sempre o fizera de
bom grado. Também não poderia impedir que seu irmão a levasse à praia. Ainda mais com a maré
estando baixa, como na última terça-feira. Esperar que se aprontasse, tomou-lhe minutos preciosos e,
já na trilha, seu atraso fora agravado, pois Mason parava a todo momento para comentar algum
detalhe novo na paisagem antiga e imutável.
Sentia saudade de Jonathan e quando finalmente o viu ele já estava de saída e por algum motivo,
irritado. À noite, ao vê-lo na praça com Samuel, cumprimentou-o por reflexo, pois ele não a veria no
interior da cabine escura. E, mesmo que corressem juntos, por estarem com Mason, mantinham o
silêncio. Sentia-lhe a falta. Desejava mais, contudo tinha de atender ao pai que reclamava sua
companhia. Como não queria causar polêmicas que lançassem ainda mais o foco sobre si, ela o
atendia.
Ao que parecia, a saudade paterna era tamanha que naquela manhã teve de ficar à mesa do café até
que ele se desse por satisfeito com sua companhia e a liberasse para sair com o irmão. Novamente
encontrou com Jonathan quando ele deixava a praia. Seu coração se espremia ao vê-lo, porém diante
do irmão e de todos tinha que demonstrar que nada acontecia. Que não estava irritada e triste com
aquele distanciamento. Como não podia desabafar em casa, descontou nas colegas de palco. Com seu
humor azedo, conseguiu até mesmo ser grosseira com Kristina.
– Não quero saber o que o cara fez dessa vez... Pare de se vender pra esses escrotos que tudo
melhora – retrucou, rispidamente, quando a colega veio lhe contar sobre as esquisitices de um dos
clientes da noite anterior.
– A estrelinha está azeda hoje! – Úrsula exclamou e sua cadeira, retocando a maquiagem, pois logo
subiria ao palco. – Faturou pouco?
A moça não respondeu. Estava mais preocupada com a amiga.
– Ah... me desculpe, Kris... Evidente que me preocupo. Justamente por isso sempre te incentivo a
parar de se prostituir, mas entendo que é seu meio de vida e não tenho nada a ver com isso. Estou...
nervosa, mas não deveria descontar em você.
– É falta de macho! – Úrsula falou. – Reconheço os sintomas... Talvez esteja na hora de deixar de
ser “virgem”.
– Se é você que reconhece os sintomas eu não posso contestar, afinal, deve sofrer dessa falta
sempre... – Faith retrucou também sem mover de sua cadeira. – Pelo que me consta não tem um
macho há anos, só esses velhos babões que pagam mixaria para você fazer milagre com seus pintos
mortos.
– Posso ser milagreira, mas não sou uma santinha hipócrita como você – a loira se enfureceu e se
virou para ela. – Nem sei como podem acreditar nessa conversa fiada de que é virgem.
– Inacreditável seria se fosse alguém drogada, velha e caída como você a alegar o mesmo...
– Vadia! – Úrsula afastou a cadeira para avançar em sua direção. Faith também se pôs de pé,
pronta para acabar com aquela cara mal pintada e descarregar nela toda sua frustração. Contudo,
como sempre, todas as outras se colocaram entre elas para impedir a briga.
– Calma, garota. – Kristina a segurou.
– Deixem a santinha vir – Úrsula ordenou aos gritos.
– Ninguém vai brigar aqui hoje – disse uma das garotas, aumentando a voz além das delas. – Que
droga! Será assim sempre?... Qual é o problema com vocês?
As duas mulheres se encararam sem responder. Após alguns minutos, a dançarina mais velha livrou
o braço que uma moça segurava e voltou a sua cadeira.
– Não vou me sujar com essa vaca dissimulada.
Faith não respondeu. Apenas livrou também o seu braço e, depois de mais uma vez se desculpar
com Kristina, voltou ao seu lugar para terminar de retirar a maquiagem. Aparentemente, enquanto
frequentasse a casa noturna, teria seus desentendimentos com Úrsula, mas naquela noite não deveria
agredi-la nem mesmo verbalmente. A dançarina tinha razão. De certa forma padecia da falta citada
maldosamente. Ficar longe de Jonathan agravou a paixão que sentia por ele. Dormia mal, acordava
pior.
Não tinha ânimo nem mesmo para brigar com Tyler que, sempre que se encontravam, agora insistia
para saber o que ela e Jonathan conversaram depois que os deixou, pois tinha certeza que ela chorara
por causa dele. Como ela nunca respondia, o rapaz se mostrava cada vez mais inoportuno. Apenas
naquele aspecto era bom ter o pai por perto, pois com Elliot na cidade, o rapaz tendia a ser mais
discreto. Faith só não conseguia se livrar dele em Wells.
Aquela noite o amigo assistiu a apresentação com a expressão carregada. Geralmente se mantinha
distante do palco, mas daquela fez questão de ficar bem próximo, com os braços cruzados;
encarando-a. Apesar de ser comum, ela não gostava que ficassem naquele clima. Ele não era mal e
sempre a atendia, como Maggie maldosamente comentou. A prova era ter aceitado ajudar com a
montagem do palco para o leilão. Seria mais fácil admitir de uma vez o que ele já tinha adivinhado,
mas Faith não se sentia à vontade de falar sobre seus sentimentos recém-descobertos pelo padre para
mais alguém além de Helen.
Com um suspiro exasperado Faith depositou sua bolsa sobre uma cadeira de seu quarto e vagou
para o banheiro. Precisava de um banho morno e relaxante. Relembrar toda a semana, com seus
desencontros, desentendimentos e frustrações agravou sua tensão. Cinco minutos depois saiu debaixo
no jato d’água com os ombros ainda doloridos. Nada ajudaria. Novamente rolou na cama, e na manhã
de sexta-feira levantou resoluta. Não iria à praia, mas também não cederia às chantagens emocionais.
O piquenique seria no dia seguinte, então, nada mais justo do que ter uma última reunião com o maior
interessado.
– Bom dia! – cumprimentou a todos que estavam à mesa. Beijou a mãe, o pai. Bagunçou o cabelo
de Mason e beliscou a irmã antes de se sentar.
– Quanto bom humor! – Nicole comentou enquanto a moça se servia.
– E por que não estaria? – Faith perguntou. – O dia está lindo. Todos nós estamos aqui reunidos...
O que mais eu poderia querer?
– É verdade. – Constance sorriu contagiada.
– Faith, hoje ficarei com a pick up – anunciou o pai entre um gole e outro de café. – Eu e seu irmão
precisamos ir à Wells comprar algumas tintas para a pintura do barco. Aproveitaremos para levar
Nicole ao médico. Quero vê-la logo fora desse gesso.
– Tudo bem... Só me digam se chegarão a tempo ou se eu preciso ir de ônibus, à tarde.
– Se não se importar eu preferia não marcar horários para voltar... Quero escolher com calma e
ver onde encontro o melhor preço, essas coisas.
– Vou de ônibus, então...
– Mason pode buscá-la – a mãe opinou.
– Não precisa – Faith o desobrigou ao flagrar o olhar suplicante do irmão. – Passa um ônibus
quinze minutos depois do término da aula... Ficarei bem!
– Não quer ir conosco? – o pai ofereceu. – Pode fazer companhia a sua irmã.
– Não – disse decidida – Se pudesse eu até iria, mas o piquenique é amanhã e tenho de cuidar dos
últimos detalhes.
– Vai estar com o padre Jonathan? – Elliot perguntou despretensiosamente.
– Só se for estritamente necessário – ela respondeu no mesmo tom falsamente indiferente. – O que
tenho a tratar é com as meninas que ficaram encarregadas da decoração. Como eu disse, detalhes.
– Ah... Se o vir, dê-lhe os meus cumprimentos.
– Se o vir, darei – assegurou, dando atenção às panquecas que a mãe lhe serviu.
Após a saída de todos, Faith contou meia hora e então, depois de se despedir da mãe e pegar o
caderno de Nicole, rumou para a igreja. Havia tanto tempo que não fazia aquele caminho que suas
pernas tremiam desde a sua porta.
Enquanto cruzava a praça, seu coração pulsava tão forte que ela temia que este falhasse de vez. Ao
cruzar as portas da igreja acreditou por um segundo que fosse preciso se sentar, contudo se ordenou a
ser forte. Qualquer parada em seu caminho seria um minuto a mais longe de Jonathan.
Naquela manhã os bancos não estavam tão ocupados. Com os maridos e pais em casa as
assanhadas não tinham tempo para irem à igreja com a mesma frequência, ironizou. Enquanto seguia
para a sacristia, contudo, ela percebeu que acontecia o mesmo com ela e se permitiu sentir certa
simpatia por aquelas que também foram privadas de ver o padre.
Ao encontrá-lo, esqueceu-se de todas elas. Nada a preparou para o choque em vê-lo sozinho
depois de tanto tempo. Galvanizada, tudo que pode fazer foi tremer à entrada da sala, segurando o
caderno nem sabia como. Após incontáveis segundos, Jonathan ergueu os olhos em sua direção.
Impossível não notar as olheiras fundas no rosto abatido, assim como a sombra escura de uma barba
não feita. Como ele apenas a encarasse sem nada dizer, Faith obrigou as pernas a funcionarem e
finalmente entrou até parar diante da mesa.
– Bom dia! – Sua voz saiu num sussurro.
– Bom dia... – ele ciciou. Onde estava seu buon giorno? Questionou saudosa. Soube que não o
receberia quando Jonathan voltou à olhar para o livro à sua frente, perguntando friamente. – O que
deseja?
– Eu vim... – Tinha uma desculpa, mas esta lhe escapou. – Eu vim...
– Veio o quê, Faith? – Jonathan perguntou incisivo, encarando-a.
– Vim... Vim te ver – admitiu por fim. Por que não diria se aquela era a verdade? Sem desviar os
olhos dele, viu quando as sobrancelhas se uniram em sinal de estranheza.
– E por que faria isso? – Jonathan indagou, sério. – Qual a razão em vir me ver?
– Porque têm dias que não nos vemos...
– Estranho! – comentou, seco, assumindo um ar desentendido. – Com exceção à segunda-feira, nós
nos encontramos todos os dias.
– Sim, mas nós não... Não conversamos direito... – Por que ele não facilitava? Pensou
desconcertada.
– Então tem algo a conversar comigo, agora?
– Queria te pedir desculpas... – Ante o comportamento estranho e frio, a moça falou o que lhe veio
à cabeça. – Pelo constrangimento que meu pai o fez passar durante o jantar. Se soubesse que ele fosse
reagir daquela maneira, jamais teria dito sobre nossas caminhadas.
– Se bem me lembro, eu lhe disse na ocasião que não havia problema. Que fez bem em contar,
afinal... Como você mesma salientou, nossos encontros não são secretos.
– Sim, o senhor disse. – De súbito enfraquecida pelo desconforto, pediu: – Posso me sentar?
– Se for breve – ele ciciou indiferente.
Sem conseguir adivinhar o motivo de ser tratada daquela maneira, a moça perguntou sem pensar:
– Afinal qual é seu problema, Jonathan?
Ao se calar, Faith desejou ter mordido a língua e, quando os olhos azuis faiscaram em sua direção,
ela soube que teria sido melhor se o tivesse feito.
– Não me lembro do dia que lhe permiti tal intimidade – ele sibilou, taciturno.
– Senhor, eu...
– Mas eu lhe digo qual é meu problema – Jonathan a cortou e levantou para se aproximar. Sua
atitude contida, porém agressiva, tornava-o maior. Já ao seu lado, prosseguiu, acercando-se dela,
falando-lhe quase ao ouvido: – Meu problema é que não tenho tempo para gracinhas... Muito menos
para jogar conversa fora. Não tenho tempo para ficar à disposição de alguém que resolveu me
atormentar.
– Senhor, eu não...
– Vou perguntar apenas uma vez – rosnou à sua frente, cortando-a. – Você tem alguma coisa a tratar
comigo sobre o evento de amanhã? Falta alguma coisa?
– Acho... – ela começou novamente sem raciocínio. – Acho que não falta nada... As meninas estão
cuidando da decoração, todos os outros já confirmaram suas doações e Tyler já deu sua palavra de
que montará o palco, então...
– Então... – Novamente a interrompeu, baixo e mordaz. – Se já está tudo acertado com todos,
inclusive com seu amigo Tyler, você não tem nada a fazer aqui.
– Mas...
– Até amanhã, Srta. Green! – Jonathan lhe deu as costas não para voltar à mesa, mas para seguir
até a porta de acesso ao corredor que interligava a igreja à casa. Ao passar, fechou-a ruidosamente.
Depois da saída dele, Faith ainda permaneceu parada sem saber como se mover. Não entendia o
que tinha acontecido ali, somente sentia a dor em seu peito e os olhos queimando feito fogo. Percebeu
que chorava quando sentiu algo úmido e leve correr em seu colo. Jonathan fora grosseiro
desnecessária e inexplicavelmente. Foi preciso que se sentasse até que recuperasse a força das
pernas e contivesse todas as lágrimas.
Deveria estar acostumada, pois há muito tempo sabia que o padre era bipolar. Quando se curasse
de seu mau gênio viria sorridente, com aquela fala cantada, como se nada tivesse acontecido. Na
ocasião veria como o trataria, pensou se recuperando do torpor.
Não fizera nada que justificasse tal tratamento, portanto, não sofreria por ele. Deixando o caderno
sobre a mesa, Faith secou o rosto como podia. Passou as mãos pelos cabelos como se estivessem
bagunçados e se levantou. Nunca tinha chorado por homem algum. Chorou duas vezes por Jonathan
De Ciello, mas estava decidida a não deixar que acontecesse pela terceira vez.
Se ele era louco? Ela seria louca e meia!

Jonathan andava de um lado ao outro em seu quintal, sorvendo o ar aos bocados, tentando acalmar-
se. Agira corretamente, agora precisava ser forte. Sua dependência por Faith ameaçava fugir ao seu
controle. A prova era aquele sentimento daninho em seu peito. Aquele que desde a noite passada
sabia reconhecer e nomear. Padecia do mais puro e genuíno ciúme.
Deu-se conta que o ressentimento dirigido a ela não passava daquele sentimento vil e inoportuno,
quando, pouco mais da meia-noite, ouviu duas buzinadas ao longe. Mesmo sem terem sido
respondidas, ele sabia que Faith esteve com Tyler.
Confirmar que o casal esteve até àquela hora em um encontro secreto, feriu-o como jamais poderia
acontecer. Pensou arrogantemente durante o jantar com os Greens que ela não poderia se apegar, mas
quem estava muito mais do que apegado era ele. Reconhecer outro sentimento que também não tinha
permissão de sentir, fez com que percebesse que nunca conseguiria ter paz. Apenas se enganava ao
recolher os restos do todo que Tyler recebia.
E não era um moleque para se rebaixar a um. Justamente por isso – enquanto as malditas buzinadas
ecoavam na sua cabeça – que resolveu virar o jogo a seu favor. Se o pai da moça boicotava seus
encontros, iria ajudá-lo, fazendo a própria parte. Talvez estivesse ali a oportunidade de se livrar
daquela dor incômoda e persistente em seu peito antes que fosse tarde demais.
Não queria padecer ao ouvi-la dizer o nome do outro como há pouco, na sacristia. Não queria
perder noites de sono ou sonhar com ela como aconteceu nas primeiras horas daquela manhã. Quando
novamente possuiu a moça vendada, depois de açoitá-la. Não queria mais despertar dolorosamente
duro e conspurcar sua mão ungida.
O padre tinha dificuldade em controlar o homem que desejava voltar até ela e pedir desculpas.
Tinha de se acostumar a viver sem migalhas. Se convencer de que era somente o líder espiritual da
moça e de sua família, cumprir tão somente o seu papel e nada mais.

– O quê? Hoje não vai reclamar comigo? – Tyler perguntou quando a moça se aproximou, sorrindo.
– Hoje não! – ela disse animada. – Estive pensando se não gostaria de me levar para tomar alguma
coisa.
– O que disse? – inquiriu incrédulo.
– Em palavras mais compreensíveis para um pirralho como você, disse que quero que você me
leve para beber alguma coisa... Cerveja, refrigerante, água...
– Você nunca aceita meus convites – ele comentou, desconfiado.
– Estou aceitando um hoje, tardiamente... Tem problema? – Faith começou a se irritar. – Vai me
acusar também de estar tomando seu tempo?
– O quê?... – Tyler perguntou confuso. De súbito, exclamou: – Não!... Ah... Vamos, então.
– Bom menino! – Faith elogiou com um sorriso.
– Cadê a pick up? – Tyler perguntou quando começaram a caminhar.
– Está com meu pai... Vim de ônibus. – Numa longa e triste jornada, pensou entristecida.
– Ah... Está explicado! Está tão boazinha assim porque quer carona.
– Passa um ônibus para Sin Bay daqui a cinco minutos. – Indiferente, Faith consultou a hora em seu
celular. – Não preciso de você para me levar para casa. Se não quer sair...
– Não, Fay... Foi mal – Tyler se desculpou, alarmado. – Tem algum lugar que queira ir?
Sim, ir para a igreja, agarrar o padre e dizer ao idiota que estava apaixonada por ele. Como não
podia...
– Qualquer lugar está bem – disse. – Desde que tenha bebida... Minha garganta está seca.
– Então vou te levar num lugar legal – o rapaz anunciou, animado, os olhos claros brilhando.
– Ótimo... Preciso de lugares legais essa noite.

– Faith, acorda! – Alguém gritou ao seu lado. Ela tentou abrir os olhos, mas eles estavam pesados
e o esforço fez sua cabeça doer.
– Ai!... Para que gritar?... Para que essa luz na minha cara? Desliga isso, merda!
– Mamãe não gosta que fale palavrões e essa luz se chama sol... Esqueceu que dia é hoje?
– Vou lembrar, se você parar de gritar... – Ela voltou a se enrolar.
– Não estou gritando... – disse Nicole, puxando sua coberta. – Você está de ressaca.
Ressaca?! Agora a irmã tinha toda sua atenção. Abrindo os olhos lentamente, Faith se sentou sobre
a cama e olhou em volta. Sentia a boca seca, a língua grudada em seu palato e a cabeça maior do que
ela deveria ser; doía. Gradativamente se lembrou. Saíra com Tyler para beber. E pelo jeito, tinha
feito muito isso.
– Como vim parar em casa?
– Está perguntando para mim?... Eu nem vi você chegar. Só sei que foi tarde, pois eu subi bem
depois da meia-noite. Papai estava uma fera com você... Dizia a todo momento qual a razão de se ter
um celular quando não o deixava ligado.
– A bateria acabou no meio da tarde – explicou debilmente.
– Diga isso a ele e é bom ter uma boa desculpa... Ah, e se lembre de que hoje é o piquenique...
Você marcou com todos às sete e já são seis e meia.
Ah, o maldito piquenique! Se fosse do seu feitio deixar as coisas pela metade devolveria a
responsabilidade para Nicole. Como não era, pulou da cama e se arrastou até o banheiro. Estava com
a cara péssima, mas nada que um bom banho e analgésicos não resolvessem. Depois de arrumada,
desceu até a cozinha, sentia uma sede de naufrago. Enquanto bebia água diretamente da garrafa com a
porta da geladeira aberta, seu pai entrou.
– Ora, ora... Posso saber a que horas chegou, mocinha? – perguntou sem rodeios.
– Tarde... – ela disse, voltando-se para ele com ar consternado depois de guardar a garrafa e pegar
uma maçã. – Me desculpe por não ter avisado, mas me encontrei com algumas amigas do tempo de
faculdade e a conversa rendeu...
– E vocês foram beber – o capitão completou.
– Sim... Bebemos um pouco, e a hora passou sem que eu percebesse. Acabei perdendo o último
ônibus e tive de esperar até que alguma delas me trouxesse... Pode me perdoar?
– Ah... Tudo bem! – ele exclamou por fim. – Você é jovem. Tem todo o direito de se divertir, mas
da próxima vez, avise que vai demorar.
– Não terá próxima vez, prometo! – Ela se aproximou para beijá-lo.
– Não tem compromisso agora pela manhã?
– Tenho e já estava de partida – anunciou. Rolando a maça na mão, Faith saiu.
A claridade incomodou seus olhos, então, tão logo se refugiou no interior da cabine da pick up,
colocou os óculos de sol que ficava no porta-luvas. Guiou sem pressa, sua cabeça ainda esperando o
efeito da Aspirina, doía ao mais leve tombo dos pneus nas pedras do calçamento. Quando ela chegou
ao jardim da cooperativa todos já estavam em atividade. Satisfeita por não esperá-la, ela deixou a
caminhonete e seguiu até eles.
– Bom dia! – Até mesmo sua voz lhe incomodava. – Desculpem meu atraso.
– Tudo bem, Faith – disse Netty, aproximando-se depois que todos os presentes lhe
cumprimentaram. – Tyler avisou que você demoraria por isso comecei a organizar tudo por aqui... –
Como se estranhasse os óculos, perguntou preocupada: – Você está bem?
– Estou com um pouco de dor de cabeça... Logo passa.
Tão logo Netty a deixou, imediatamente ela olhou na direção de Tyler. Com um sorriso debochado,
ele lhe acenou depois de uma piscadela e voltou a martelar o que seria o palco. Estava sem camisa,
exibindo seu peito largo, todo cheio de si. De repente, algo na atitude dele perturbou a moça. Não se
lembrava do que tinha acontecido. Certificando-se de que sua aproximação não seria reparada, Faith
foi até ele.
– Bom dia, meu amor! – Tyler parou o que fazia e ergueu o corpo.
– Não sou seu amor – ela retrucou, rispidamente. – E que negócio é esse de ficar dando recados
em meu nome?
– Apenas disse a Netty o que sabia. – Ele deu de ombros. – Que você iria se atrasar... E se atrasou.
Qual o problema?
– O problema é que eu disse ao meu pai que saí com umas amigas... Como será se ele descobrir
que você sabia do estado que cheguei.
– Calma, Fay... Só disse que achava que você demoraria, pois te vi chegar tarde à cidade. – Então
lhe piscou novamente. – Não contei nosso segredo.
– Que segredo?! – alarmou-se.
– O mesmo que você não contou ao seu pai... Que saímos para beber... O que mais?
– Foi só isso, Ty?... Só bebemos? – indagou, preocupada. Não sentia nada estranho com ela, mas
como poderia saber que notaria a diferença caso eles... Nem se atrevia a pensar.
– Claro que foi só isso, amor – tranquilizou-a. Contudo, a moça não confiava nele. Sabia que o
amigo possuía um boa dose de tesão acumulado por ela e que poderia muito bem ter se aproveitado
de sua embriaguez. O sorriso convencido e a altivez desmentiam suas palavras.
– Você não se atreveria a transar comigo quando eu estava tão bêbada, não é mesmo Tyler? – Ao
fazer a pergunta olhou em volta para se certificar que ninguém os ouvia. Ele lhe seguiu o olhar e
então, encarando-a respondeu:
– Não estou tão desesperado... Mas se quer mesmo saber o que aconteceu ontem à noite no meu
carro, devo lhe dizer que você beija muito bem mesmo estando tão bêbada. Agora me deixe fazer
meu trabalho. Se esse palco fosse só para o padre esquisito eu deixaria um ou dois pregos faltando,
mas como você o usará, vou deixá-lo bem firme.
A moça não o ouvia. Sua mente somente renegava a verdade. Não poderia ter beijado Tyler!
Sentiu-se enjoada somente por imaginar, mas ela não teve tempo de adoecer. Logo começaram a lhe
requerer a atenção ao que ela tratou de atender para ocupar a cabeça. Depois de uma hora de
atividade, Faith já tinha se desculpado creditando a Jonathan a culpa de sua ação.
Se Jonathan não a tivesse maltratado não teria tomado a atitude desesperada de beber para tirá-lo
de sua cabeça. Com isso Tyler levara a melhor e, feliz, vez ou outra tomava a liberdade de lhe piscar.
O rapaz a exasperava, mas não tanto quanto Jonathan. Onde estava com a cabeça para se apaixonar
por ele. Justo por ele?! Não bastava ser inalcançável por sua vocação, tinha também que ser o mais
necessitado de cuidados psiquiátricos entre todos os homens na face da terra? Ela não estava só
apaixonada e perdida. Estava era fodida!
Capítulo Dezenove

Nas horas seguintes Faith se ocupou, ajudando a organizar os doces que Netty recebia em sua casa
e no planejamento da distribuição de mesas pelo gramado. Durante aquele tempo, remoeu sua raiva.
Tanto, que à chegada de Jonathan, por volta das nove horas, estava sob tal efeito da irritação que suas
pernas sequer falharam.
Retribuiu-lhe o aceno distante por mera educação, e para não despertar alheia, caso não o fizesse.
Ainda assim, a despeito de toda sua má vontade, passou a ser complicado se locomover pelo jardim.
Parecia que Jonathan estava em todo lugar. Queria ignorá-lo, mas vez ou outra, procurava-o
disfarçadamente. Pela primeira vez o via de calça jeans e camisa, não preta. Se não estivesse
fechada até o último botão nem um pedaço de pano branco pudesse ser visto em seu colarinho,
ninguém desconfiaria de sua posição no clero.
Inferno! Por que o padre duas caras tinha de ser tão bonito? Apesar do rosto sombreado pela
barba, aparentemente o humor estava melhorado. Ao menos para os outros, pensou azeda. Para todos
sorria, durante a conversa que parecia fluir fácil, circulava com desenvoltura. Apenas duas vezes
seus olhares se cruzaram e, em ambas as ocasiões, ele esboçou um sorriso. Faith não retribuiu,
virando o rosto distraidamente como se não tivesse reparado o gesto. E assim, o restante da manhã
seguiu.
Devido a quantidade de ajudantes, às onze e meia, a arrumação já estava praticamente concluída.
A maioria das pessoas já tinha ido embora. Apenas Tyler e Maggie estavam sobre o palco feito por
ele, Netty dentro de sua casa. Num ponto afastado do jardim, Harry e Joseph conversavam, enquanto
Jonathan perambulava pelo entorno. Faith reagrupava algumas mesas junto com a irmã. Em
determinado momento durante a tarefa, esta se chegou e comentou:
– Pensei que poderíamos conversar ontem, mas demorou a chegar.
– Tinha alguma coisa importante para me dizer? – Faith perguntou enquanto aproximava uma mesa
de outra para conseguir um espaço maior para os doces.
– Para contar, na verdade. Também pensei em fazer essa amanhã, mas acordou péssima e
atrasada... – falou receosa, olhando na direção do noivo. Faith inconscientemente imitou-a. Como
Jonathan estava um pouco além de Joseph e lhe flagrou o olhar, ela voltou a encarar a irmã.
– Sobre Joe?
– Não... Sobre o que aconteceu ontem lá em Wells.
– O que aconteceu? – Como era próprio aos devedores, Faith se pôs em alerta. Não era muito
esperto de sua parte se expor tão perto de casa.
– Nós nos encontramos com Peter... – Nicole sussurrou. Tomada por um alívio imediato por não
ser o foco do assunto, solidária à irmã, Faith comentou:
– Nossa, Nick...Imagino como deva ter ficado.
– Não foi muito agradável – admitiu, sem jeito. – Mas também não foi ruim.
Entendia o conceito, Faith pensou contrafeita, olhando para onde Jonathan estava; ele tinha sumido.
Instintiva, vasculhou o perímetro. Sem encontrá-lo, voltou sua atenção a Nicole.
– Ficou acordada até tarde só para me contar isso?
– Precisava falar para alguém... Eu sempre nego, mas você sabe que eu ainda gosto dele e fiquei
nervosa.
– Vai passar! – A moça esperava que seu comentário fosse verdadeiro, pois ela própria precisaria
que fosse assim. – Foi só um encontro casual, afinal... Peter não vem aqui há muito tempo. Logo tudo
voltará a ser como era antes. – Teatralmente olhou na direção de Joseph.
– Acho que não vai... Papai o convidou para vir ao piquenique.
– Papai convidou Peter para vir aqui?! – Faith estranhou. Elliot nunca hostilizou o adolescente
abertamente, suas famílias eram próximas, mas ele sempre tratou o garoto com frieza velada. Agora o
convidava para festas de igreja em sua cidade? Decididamente muito estranho. Vendo o rosto
consternado da irmã, inquiriu: – É por isso que está nervosa? Por que Peter vem ao piquenique?
– Estou nervosa porque não sei... Quando papai fez o convite eu fiquei tão... Tão... Nem sei
dizer!... – Nicole ela exclamou por fim, agitada. – Pedi licença e corri para o banheiro.
Se soubesse que não magoaria a irmã, Faith teria rido. Nicole era impagável. A moça não riria,
mas não refreou um gracejo:
– E agora está nervosa porque não sabe se deve se arrumar muito para Peter ou pouco para
Joseph?
– O assunto é sério Faith, não faça piada! – Nicole pediu carrancuda. – O que eu faço?
– Não sou a melhor pessoa para te dar conselhos, Nick. – Faith voltou a se ocupar das mesas. –
Sabe o que eu penso e se eu dissesse o que é para fazer, não faria... Era bem capaz de fugir para o
banheiro e só sair de lá quando o piquenique tivesse terminado.
– Não posso romper com Joe, Fay... E além do mais, talvez fosse em vão, pois Peter mal olhou pra
mim – contou entristecida. – Acho até que me cumprimentou por educação.
– Corta essa, Nick! – Faith impacientou-se com o exagero da irmã. – Mesmo que ele já tenha
superado o que sentia por você, não seria assim tão frio.
Não seria? Perguntou-se incontinenti. Acreditava que Jonathan não lhe era indiferente, no entanto,
mesmo que realmente sentisse algo, como a tratava na maioria das vezes? Lembrando-se da dor que
sentiu na manhã anterior, quando foi tratada com indiferente grosseria por alguém que gostava,
compadeceu-se da irmã. Apenas Nicole sabia o que sentia. Arrependida de seu pouco caso, Faith
corrigiu:
– Olhe... Não pense nisso agora, está bem... Sofrer com antecedência é a maior roubada! Aja como
se nada tivesse acontecido... Se ele não vier, não veio. Se Vier, nós veremos depois como fica...
Acha que pode fazer isso?
– Posso tentar... – Nicole esboçou um sorriso.
– Já é um começo e para te ajudar, vou ocupar sua cabeça – olhando em volta, perguntou: – O que
acha de ir ajudar Maggie com os enfeites? Pela cara do Tyler, ele está enlouquecido por ela não
decidir onde quer aquele monte de penduricalho de papel crepom.
– Está bem! – concordou com um sorriso incerto. – Acho que é só o que falta, não?
– Sim... Assim que terminar de arrumar essas mesas vou para casa me arrumar... Você vai com
Joseph?
– Vou, sim... – a irmã confirmou antes de se afastar.
– A gente se vê em casa então.
Nicole assentiu. Faith observou-a se afastar. Sabia como ela se sentia. Se pudesse, arrancaria a
angustia de seu peito. Nenhuma pessoa apaixonada deveria sentir tal incômodo. A irmã sem dúvida
não deveria. Era cordata em demasia, mas era boa filha. Merecia ser feliz, Faith pensou enquanto a
via se aproximava de Maggie.
A garota insuportável não decidia como decorava o palco entregue por Tyler, valendo-se de sua
ajuda. Este colaborava prestativo, mas vez ou outra olhava na direção de Faith. Como naquele exato
momento. Imediatamente ela baixou seus olhos e voltou a ajeitar a mesa. Não queria que Tyler
confundisse mais as coisas.
– Se a ideia é manter segredo, acho que não deveriam se olhar com tanta frequência – ela ouviu a
voz melodiosa, próximo ao ouvido. Nesse momento, apesar da raiva que nutria pelo padre, todos
seus pelos se eriçaram. Em segundos reagiu, pegando a toalha disposta sobre uma das mesas somente
para ocupar a mão, então se voltou.
– Não sei do que está falando, senhor – disse, encarando-o.
– Costumava me receber melhor – Jonathan comentou e, depois de perscrutar-lhe o rosto,
observou: – Está horrível... A noite não foi boa?
Por sua causa a noite foi péssima! Quis gritar.
Como estava sem os óculos, sabia que ele poderia ver seus olhos inchados. Contudo, Jonathan não
poderia tecer qualquer comentário sobre sua aparência. Com ele tão perto, confirmou a barba por
fazer e viu que ele ainda estava abatido, com olheiras. Jonathan também estava horrível, mas ela não
se comoveria. Ele se apresentava com a mesma expressão deplorável na última vez que o viu e ainda
assim passou por ela como rolo compressor.
– Costumava fazer muitas coisas que não faço mais... Se está dizendo isso por causa da bênção,
posso tomá-la por obrigação, mas nunca mais vou te tocar. – Ao se calar a moça viu o lampejo de
alguma coisa cruzar os olhos dele, mas não soube o quê.
– Não iria pedir por isso – retrucou também sério. – Não na frente de todos... Não na frente de seu
namorado que agora não tira os olhos daqui.
Tyler não era seu namorado, mas foi inevitável não procurar o amigo sobre o palco. Quando voltou
a encarar Jonathan, notou que seus olhos tinham assumido uma cor indefinida, escura. Raivosa.
Piscando algumas vezes, a moça respirou profundo e retrucou sem se importar com o que ele
pensasse:
– Ty não tem com que se preocupar... Afinal, estou só conversando com o padre. E se não tem nada
a me dizer além de dar conselhos dos quais eu não preciso, com licença. Não quero ser obrigada a
dizer, de forma não muito educada, que estão desperdiçando o meu tempo.
Sem mais, Faith estendeu a toalha de qualquer jeito sobre a mesa e se foi, deixando o padre para
trás. Rumou à casa de Netty para se despedir, com o coração pequeno no peito. Se Jonathan não a
queria por perto, que também se mantivesse longe. E não viesse tentá-la com aquela voz
apaziguadora de Tritão.
Jonathan reconhecia ter sido colocado em seu lugar. Em especial quando teve a confirmação
definitiva de que ela e o rapaz exibicionista estavam juntos. Daquela vez Faith não negou, nem
poderia. A forma como seus olhos correram para Tyler ao citá-lo era prova irrefutável do caso
secreto. Que a ele não dizia respeito, entoou para si. Assim como também não era da sua conta
descobrir por que não ouviu as buzinadas na noite anterior ou a aparência abatida da moça que
denunciava uma noite mal dormida.
Se gostava dela, deveria desejar vê-la feliz fosse com quem fosse. Cedo ou tarde se curaria da
atração, da provação. Ainda era cedo para dormir todas as noites e esquecer, mas tinha fé de que
conseguiria. Começaria deixando-a em paz. Logo o piquenique terminaria e não teria razão para
novos encontros. Passada a fase de abstinência tudo voltaria ao normal.
Talvez ajudasse mais se não fosse obrigado a vê-la com o garoto seminu, pensou irritado ao ver
que Tyler se desocupou da arrumação do palco e seguiu atrás da moça que marchava empertigada
para a casa de Netty Owen. No namoro secreto não incluía ser discreto?
Não é da sua conta, uma voz persistente dizia em sua cabeça. Dando de ombros, Jonathan saiu de
onde estava e foi se despedir de todos. Precisava se trocar e buscar o padrinho. Contudo, ao chegar
ao seu jipe, não conseguiu sair do lugar. Sentado onde estava, apoiou-se ao volante e permaneceu a
olhar o casal conversar de forma discreta, porém com os ânimos exaltados.
Tudo que Faith queria era se despedir de Netty e partir, mas o rapaz a impedia, perturbando-a há
quase dez minutos. Sua vontade era poder explodir, e era obrigada a manter as aparências. Rogava
silenciosamente para que todos se fossem ou que alguém a chamasse, mas nada acontecia. No limite
de sua paciência, perguntou:
– Quantas vezes eu vou ter de repetir que não tem nada acontecendo entre mim e o padre?
– Se for para enganar a si mesma eu não sei, mas se a intenção é me enganar, apenas admita – Tyler
sibilou.
A moça estava prestes a retrucar, quando viu a movimentação no jardim, por sua visão periférica.
Ao mover a cabeça notou Harry, Joseph e Nicole indo em direção à cooperativa e Maggie finalmente
indo embora; era sua chance de escapar.
– Veja!... Acho melhor dar carona a Maggie.
– Até parece! – Tyler a segurou. – Você nem gosta da garota. Deixe de ser falsa... E covarde.
– Não sou covarde – retrucou ao se soltar. – Só estou cansada de sua insistência. Já disse que não
tenho nada a falar sobre isso.
– Não sou cego, Faith. Vejo como se olham. Vejo como ele olha para você... E não adianta negar,
sei que chorou porque eu disse que o padre esquisito não estava na praia. Demorei a entender, mas
depois tudo fez sentido. Quando ele apareceu você esfriou comigo.
– Sempre sou fria com você, Tyler – ela replicou secamente. – E aqui não é o lugar para essa
conversa.
– Se importam tanto em nos ver conversar que não sobrou ninguém no jardim. Somos amigos de
infância e não vão reparar que converse comigo – disse sério. – Estranho é o padre cochichando
com você e ninguém parece se importar quando acontece. – Ao se aproximar, acrescentou: – E não
me venha com essa que sempre foi fria comigo, pois ontem estava bem quente.
– Eu nem me lembro do que aconteceu ontem, criatura. – Faith se controlava para não gritar. – Eu
estava bê-ba-da! Você não deveria ter me agarrado.
– Pois para seu governo – ele disse pausadamente –, você me agarrou.
– Eu não fiz isso!
– E tem mais... – Tyler não completou a frase, deixando-a curiosa.
– Tem mais o quê?... Vai inventar o que agora?
– Não preciso inventar, Fay... – Tyler disse com mesmo ar debochado de antes. – Você me beijou.
E se quer saber toda a verdade, eu não teria problemas em tirar sua virgindade mesmo estando
bêbada... Só não fodi com você no meu carro porque me chamou pelo nome dele.
Faith não sabia o que a chocava mais. Saber que tinha tomado a iniciativa ou saber que tinha,
realmente, dito o nome de Jonathan. Incrédula, perguntou num fio de voz depois de tomá-lo pelo
braço e o afastar da casa por temer que Netty os ouvisse:
– Eu disse o nome de quem, Tyler?
– Como de quem? Do padre esquisito! – Tyler praticamente cuspia a resposta amarga. – As
palavras exatas foram... Hummm, Jonathan, meu amor.
Aquilo não podia ter acontecido! Uma coisa era Tyler ter conhecimento de suas escapadas para a
boate, das quais bem tirava proveito. Outra bem diferente era saber de sua paixão proibida e que –
para ele – representava um risco. Tomada pelo pavor, Faith reagiu da única maneia possível.
Defendeu-se atacando. Baixando a voz ciciou:
– É mentira!... Está inventado!
– Como eu poderia inventar uma maluquice dessas? – Tyler perguntou impaciente.
– Não sei... Inventando!... Mas é mentira... Eu jamais faria isso!... Você se aproveitou de mim e
agora vem com essa conversa sem noção.
– Faith...
– Nada de Faith, Tyler! Enquanto insistir nesse assunto, não fale comigo.
Sem dar chance para que ele respondesse, ela o deixou. Não se despediu de Netty, cruzou o jardim
e se refugiou na pick up. Precisou de alguns minutos para se recuperar do choque e agradeceu que
Tyler não a tivesse seguido. Com as mãos um pouco mais firmes, por fim saiu. Em menos de um
minuto viu a imagem de meio jipe em seu retrovisor. Por puro reflexo girou o espelho mínimo para
vê-lo inteiro. O movimento brusco não só lhe completou a imagem, como lhe permitiu ver quem
estava ao volante.
– Beleza! Se Tyler viu isso agora vai deitar e rolar. O que esse padre maluco pensa que está
fazendo?! – murmurou.
Depois de alguns metros, sua vontade era frear para que ele batesse em sua traseira, mas logo
abandonou a infantilidade. Melhor ignorá-lo. Com esse pensamento ela acelerou ao que foi imitada
prontamente. Tentando manter a calma, evitando olhar o retrovisor, seguiu seu caminho como se
Jonathan não estivesse atrás de si. Logo chegariam à praça e se separariam, simples assim.
Como previsto, ao chegarem à igreja, Jonathan manobrou o carro para estacionar à entrada de sua
casa, mas não sem antes buzinar duas vezes. O queixo da moça caiu ao gesto. Então aquele era o
motivo de ele acreditar que Tyler e ela estavam juntos! Evidente que sim, afinal Jonathan os viu se
despedir daquela maneira por duas vezes.
A provocação fazia parte de um complô, com certeza. Os dois tiraram o dia para azucriná-la. O
que queriam dela afinal? Bom, Tyler ela sabia, mas, e Jonathan? O que ele esperava, seguindo-a
daquela maneira depois da forma que a tratou na sacristia?
– Quer saber? Não quero saber! Vou morrer louca sem nunca entender os homens... Então é melhor
desistir enquanto é tempo – falou para alguém inexistente. Ainda resmungando, chegou à sua casa e,
agradecendo por não encontrar ninguém na sala voou para o quarto. Seu desejo de ficar sozinha não
foi atendido, pois ao entrar, encontrou Helen a esperá-la.
– Constance disse que eu podia subir – disse a guisa de desculpa.
– Ah, tudo bem!... – Faith falou já a se despir; precisava de um banho. Sem se importar com a
amiga, seguiu para o banheiro e entrou no box para deixar a água batesse em sua cabeça. Se esta não
esfriasse, com certeza explodiria.
– Aconteceu alguma coisa, Fay?
– Aconteceu! – respondeu de olhos fechados sem sair debaixo d’água. – Não estava bom como
estava? Só os bichinhos sobre a Terra, povoando as matas e os mares?... Não! Deus teve de ter a
brilhante ideia de inventar um homem!
– E tem algum problema nisso? – a amiga perguntou em tom de riso.
– Não teria se Ele tivesse feito o serviço completo. De que adiantou criar um espécime bonito,
forte e capaz se lhe negou um cérebro que funcionasse direito? Depois que Adão nomeou os animais,
deu defeito... Irreversível!... De lá para cá todas as suas cópias saíram danificadas e só fizeram
piorar. – Quando Helen irrompeu numa gargalhada, Faith fechou o chuveiro de mau humor. – Não é
engraçado!
– Desculpe, Fay! – A futura cunhada tentava se conter. – Mas quando você desanda a falar
bobagens se torna impagável.
– Que seja! – retrucou, saindo do box para se secar; não adiantava descontar em Helen.
– Sério, Faith. O que aconteceu?
– O problema é o que não vai acontecer, Helen...
– Ah... Enfim o seu cérebro funciona! – ela exclamou ao compreender.
– Não tripudia – Faith pediu indo para o quarto para se vestir.
– Só não quero que você fique como está agora... Mason me contou que você chegou tarde. Não
viu quem te trouxe, mas sabe que chegou de carro e bêbada. Foi ele quem abriu a porta para você e te
colocou na cama... Disse que chegou logo depois dele.
Faith ficou em silêncio, olhando as roupas no armário sem vê-las, reprimindo o desejo de chorar.
Então era aquilo que sua paixão por Jonathan fazia com ela. Embriagava-se ao ponto de agarrar Tyler
e passava vergonha perante o irmão. Muita sorte seu pai não ter visto. Não era aquilo que queria para
si. Não foi daquele jeito que imaginou. E não seria assim! Depois de um suspiro profundo e de
engolir as lágrimas, tirou dois vestidos e mostrou à amiga.
– Qual dos dois?
– O cor-de-rosa – Helen escolheu, encarando-a. – Não vai me dizer mesmo o que aconteceu, não
é?
– Não tem porque me aborrecer duas vezes – falou calmamente. – E hoje é dia de festa, né?
– É.
– Então vamos aproveitar e nos divertir... – Abrindo um sorriso que não combinava com seu
espírito, anunciou. – E eu vou com o vestido azul... Esse rosa é muito Barbie girl.
– Sua chata! Já que a ideia é se divertir preciso te lembrar de nosso cinema hoje?
Devia, pois Faith não se lembrava, mas respondeu veemente:
– Claro que não. É só combinarmos a sessão. – Seria aquilo que faria. Iria se divertir, aquela tarde
e sempre que pudesse. De preferência longe de bebidas alcoólicas, de Tyler e de Jonathan. – Acha
que consegue fazer um milagre com essa minha cara de ressaca?
– Arranje-me uma boa base, corretivo e tudo o mais que tiver por aí que eu te mostro do que sou
capaz.

– Posso saber por que tem andado nervoso esses dias? – Jonathan perguntou ao padrinho que
circulava por seu quarto, impaciente, enquanto terminava de se vestir.
– Nada especial – respondeu no seu habitual italiano. – Só quero que esse piquenique acabe logo...
Não gosto de aglomeração.
– Não estará assim tão cheio. A cidade é pequena... Somente os moradores locais irão, não se
preocupe – pediu. Se havia alguém ali que deveria estar preocupado era ele mesmo. Até o presente
momento ainda não entendia a razão de esperar por Faith e depois segui-la. Enganava-se ao imaginar
que a protegia por Tyler se mostrar alterado, pensou aborrecido. E pela primeira vez se irritou ao ter
de se pentear, mirando-se no espelho mínimo que pendurou sobre a cômoda.
– Não poderíamos arrumar um espelho maior?
– Este está muito bom. Ninguém aqui precisa ficar se olhando – Carlo retrucou secamente. – E
então, vamos ou não para esse piquenique?
– Vamos – Jonathan respondeu, olhando-se uma última vez.
Havia um corte no queixo, feito ao se barbear e seu cabelo começava a perder o curte rente que
mantinha há anos, mas estava bem. Logo se espantou com seu pensamento. Desde quando sua
aparência importava? Desde quando muita coisa que não deveria ter importância passou a ser
essencial, essa era a resposta. Sempre correu por sentir que devia para estar bem, não por vaidade.
Mas depois de ter visto o namorado de Faith sem camisa, junto à raiva que sentia pelo rapaz,
alimentou uma comparação competitiva.
Há pouco analisou o próprio corpo durante o banho e se encheu de orgulho por se considerar
melhor do que o outro; mais bonito, mais forte, maior. Se um dia pudesse descarregar sua fúria sobre
ele, com certeza levaria a melhor. E nada daquilo deveria importar, mas importava. E era
perturbador saber que a vaidade e a soberba eram sentimentos nocivos que ele não deveria alimentar,
todos despertados pela moça.
Ao que parecia, teria muito mais a se recuperar do que apenas sua dependência dela. Quando
estivesse curado e arrependido, jejuaria por dias seguidos como penitência por todos os pecados
cometidos; com atos impuros e pensamentos lascivos.
– Vamos! – repetiu firmemente ao passar pelo tio.
Seguiram para o jardim da cooperativa cada qual imerso em seus próprios pensamentos. Daquela
vez não foi fácil estacionar, pois alguns carros fechavam a passagem. Jonathan deixou seu jipe há
uma quadra do local da festa para que seguissem à pé. Ao que parecia mesmo a cidade sendo pouco
mais que uma vila, o jardim estava tomado.
Jonathan pôde ouvir um resmungo baixo vindo do tio, o local estava cheio. Sem se importar com a
expressão contrafeita de Carlo, o padre o arrastou até a pequena turba barulhenta. Logo foram
cercados, cumprimentados. Ele abençoou tantas pessoas que perdera a conta, mas apenas uma lhe
interessava. Tentando ver além das cabeças espalhadas pelo jardim, Jonathan procurou-a. Sem
conseguir encontrá-la, seguiu até a dona da casa com Carlo em seu encalço.
– Oi, Netty – cumprimentou ao alcançá-la.
– Oi de novo, padre! – Ela estava animada. – Viu como está cheio?
– Vi. – Jonathan lhe sorriu, complacente; como ele não veria? – Os Green ainda não chegaram?
– Apenas Nicole e o noivo. O senhor desejava alguma coisa deles?
– Não... Apenas curiosidade – soou indiferente. Quando se voltou e encontrou o olhar do padrinho,
pôde ver seu desagrado. Esperou qualquer comentário, contudo este não veio. Nem Carlo pôde fazê-
lo depois, pois logo foram incluídos em rodas de conversas onde eles pouco se aprofundaram nos
assuntos. A Jonathan não passou despercebido que seu tio a todo instante olhava em seu redor e além,
para as árvores que cercavam o lugar, preocupado.
Gostaria de perguntar o motivo da vigilância insistente e estranha, mas conhecia-o o suficiente
para saber que tentaria descobrir em vão. Ainda cismava com o comportamento do padrinho, quando,
de repente, ele a viu. Sem que pudesse prever, seu coração saltou, trespassado por uma saudade
doída como se não a visse por longos anos. Faith vinha acompanhada dos pais. Via-lhe somente a
cabeça de cabelos escuros e soltos. Tanto melhor, considerou.
Quando pai, mãe e filha driblaram as rodas formadas pelo jardim e apareceram inteiros em seu
campo de visão, Jonathan a viu completamente. Faith trajava um vestido azul claro de tecido leve,
curto demais para uma festa cristã, mas que a deixava piú bella. Jonathan sabia que não deveria ficar
reparando, porém era inevitável. Sua parte convicta ainda não controlava totalmente aquele homem
desperto que era ligado a ela.
Portanto uma nova dor cruzou seu peito quando Faith lhe acenou a alguns passos – antes mesmo
que seus pais dissessem qualquer coisa – sem sorrir ou falar. Soube então que ela apenas cumpria a
etiqueta e, como lhe avisou à tarde, não o tocaria nunca mais.
– Sua bênção, padre – disseram Elliot e Constance quase que em uníssono.
– Deus os abençoe – disse antes de comentar. – Não imaginei que viessem tantas pessoas.
– Ah... Sempre alguém chama algum conhecido de Wells ou de outras cidades – Elliot explicou. –
Acredite. Nem está tão cheio. O baile mensal na cooperativa costuma juntar muito mais pessoas. –
Como se estranhasse algo, voltou-se para a filha. – Não vai falar com o padre?
– Já nos vimos hoje – disse ela após um pigarro, encarando-o – Não é mesmo, senhor? – Sem
esperar pela resposta, anunciou: – Vou ver como está tudo por aí, com licença.
A Jonathan coube engolir sua resposta e vê-la se afastar. Depois de sua saída, Elliot alertou-o da
necessidade de subir ao palco para fazer um discurso breve onde lembraria o motivo de todos
estarem reunidos ali. Disse ainda que seria interessante fazer uma oração, como o antigo padre fazia
em eventos parecidos. Naquele momento em que seu coração sofria com a indiferença da moça,
Jonathan não se sentia em condições morais de se dirigir a Deus, contudo era seu dever fazê-lo.
Resignado, subiu ao palco e chamou a atenção dos presentes.
– Boa noite a todos! – disse em seu tom mais alto. Quando a maioria olhou em sua direção,
prosseguiu: – Em primeiro lugar gostaria de agradecer a presença de todos em nosso piquenique.
Gostaria de agradecer também a doação dos bolos, tortas e bebidas que serão vendidas aqui, cuja
renda será usada na reforma da igreja. Agradeço também às moças da cidade pela decoração e
arrumação desse espaço e à senhorita Faith Green, que dedicou horas preciosas de seu tempo à
organização do evento. A todos, meus mais humildes e sinceros agradecimentos.
A menção de seu nome a moça o encarou e, por educação, como fizera mais cedo naquela mesma
tarde, acenou-lhe num gesto curto e frio antes de virar o rosto. Aquele tratamento o feria, mas não se
ressentia. Perturbado em sua luta interna, concluiu seu discurso:
– Agora convido todos a se juntarem a mim em oração não para rogar que esse encontro seja bem-
sucedido, mas para agradecer pela oportunidade de estarmos todos juntos e pedir que nossos laços se
reafirmem e fortaleçam.
Em momento algum Faith virou em sua direção. Enquanto recitava um Pai-Nosso, Jonathan pedia
perdão mentalmente por ter pensado que, se fosse possível, os únicos laços que desejava
fortalecidos eram os dele aos dela. Ao final da oração ensaiada, deixou o palco para se juntar a
Elliot e Constance. Depois de parabenizá-lo pelas palavras, os pais da moça entabularam uma
conversa animada sobre o próximo baile que teria na cooperativa.
Jonathan fazia um esforço sobre humano para acompanhar-lhes no assunto e na animação, contudo,
vez ou outra se pegava a procurar a caçula deles ao redor do jardim. Invariavelmente a encontrava
ziguezagueando pelo gramado, conversando com um e outro, animada; desmanchando-se em sorrisos
que nunca mais lhe daria. Era o certo, determinou. E nada mais justo que ela aproveitasse a festa. O
trabalho conjunto, organizado por Faith tinha tido bons resultados e, mesmo que não arrecadassem
muito dinheiro, valeria por vê-la contente.
Capítulo Vinte

Era complicado ignorá-lo, contudo Faith considerava que se saia bem. Assim como ela, agora ele
circulava entre as rodas sem se prender à elas. Às vezes, terminavam próximos, mas a Faith não
saberia dizer se Jonathan a olhava ou não, pois nunca virava em sua direção. Tão logo ouvia a voz
cantada, ela fugia para um grupo distante. Tinha olhado para ele, quando teve seu nome citado
durante o discurso, em tom agradecido e terno. Italiano falso e provocador!
Ignorando até mesmo a irmã – cuja expressão de melancolia mal disfarçada ameaçava denunciar à
sua própria – Faith agradeceu o refúgio encontrado junto ao grupo formado pelos jovens da cidade.
Era o mesmo que se aglomerava nos dias de baile. Karen com seu namorado Todd, Maureen e Greg,
Anne com seu irmão Daniel e Maggie. A moça nem ao menos se importou por ficar junto com a
garota, queria era se valer do clima leve e divertido que rondava entre eles. Não sentia fome ou sede,
apenas uma necessidade crescente de movimento e alegria.
Depois de dez minutos junto ao grupo, Faith conseguia rir com vontade, verdadeiramente animada
pelas piadas bobas e gracinhas que trocavam entre si. Logo, atraídos pela bagunça, seu irmão e
Helen juntaram-se ao grupo.
– Sabe o que seria divertido? – A cunhada chamou a atenção de todos.
– O quê? – Muitos deles perguntaram interessados.
– Se brincássemos como costumávamos fazer, lembram?
– Tinha até graça, Helen. – Mason disse – Era só o que faltava... A gente começar a correr pelo
jardim, brincando de pega-pega.
– Deixa de ser chato, Mason – Todd brincou, socando-o de leve no ombro. – Não me importaria de
brincar de pega-pega. De preferência lá pelos lados das árvores – completou, picando para a
namorada.
– Seus bobos! – Helen ralhou. – Não precisamos correr, mas poderíamos brincar de cabra-cega. O
que acham?
Após deliberarem entre si, todos chegaram à conclusão que valia a diversão. Anne correu até sua
casa e voltou trazendo uma echarpe branca.
– Foi tudo o que eu encontrei.
– Já serve. Agora quem será o primeiro? – Helen tomou o pano das mãos da moça e olhou em
volta. Cada um gritou um nome, mas o mais pronunciado foi o de Faith.
– Por que eu?! – Ela tentou se esquivar.
– É por sua causa que estamos aqui hoje – Daniel se pronunciou.
– Pois está muito enganado – ela rebateu. – Quem teve a ideia do piquenique foi Maggie. Vendem
os olhos dela.
– Ah, não... – Maggie também se esquivou. – Tenho agonia de ficar sem ver nada. E como foi você
quem organizou tudo, é a segunda responsável.
Sem querer estragar o clima alegre, que parecia ter contagiado até mesmo a garota que
considerava uma chata, Faith anuiu:
– Ah, está bem!
Depois de bater palmas animadamente, Helen se aproximou e cobriu seus olhos com a echarpe.
Conferiu se Faith não poderia enxergar por baixo do pano então a rodou, para desnorteá-la. Quando a
amiga a soltou, Faith sorria sentindo a cabeça levemente tonta e achando a brincadeira meio boba,
mas adorando por finalmente estar se divertir de verdade. Encontrando seu eixo, perdida no escuro,
ela apurou os ouvidos para adivinhar a posição daqueles que riam e gritavam à sua volta. Com as
mãos estendidas tentava agarrá-los; todos sempre lhe escapavam.
As risadas vindas do grupo de jovens chamaram a atenção de Jonathan. Dentre todas, a que se
destacava era a da moça. Ele sabia que não deveria ficar olhando. Por mais que lhe custasse,
agradecia por ela ajudá-lo, mantendo-se longe, porém foi impossível ignorá-la após o comentário
azedo da Sra. Williams:
– Esses jovens são tão barulhentos.
– Perdoe-lhes, hoje é dia de festa! – Uma vez pedido, Jonathan seguiu-lhe o olhar enfezado,
reprimindo um sorriso de escárnio pelo mau humor próprio aos idosos. Como sempre seus olhos
pousaram certeiros sobre a moça. Ao vê-la, seu peito sofreu um forte baque e o ar lhe faltou.
Com os braços estendidos para frente, Faith caminhava em várias direções, seguindo o som dos
risos de seus colegas. Estes se esquivavam toda vez que ela estava próxima o suficiente de algum
deles. Até aí, nada demais, pois fazia parte da brincadeira. Para Jonathan, o problema era que ela
caminhava às cegas, com uma tira de pano branco a cobrir-lhe os olhos. Faith estava vendada!
A visão ia de encontro às suas fantasias mais perturbadoras. Foi inevitável não relembrar a cena
inquietante de seus últimos sonhos, onde a via de olhos cobertos, atada às barras de ferro fundido de
sua cama. A visão o abalou ao ponto de liberar várias descargas de adrenalina, galvanizando-o. Sem
que percebesse apertou seu copo de ponche com força, amassando-o, derramando todo seu conteúdo.
– Ai meu Deus! – alarmou-se a Sra. Williams, dando um passo para o lado. Somente esse incidente
para trazê-lo de volta de suas fantasias. Segurando o que sobrou do copo plástico com a outra mão,
Jonathan abanou a que estava molhada para se livrar do excesso do líquido frio. Imediatamente
várias mulheres que estavam ao seu redor sacaram seus lenços e vieram em seu auxílio.
– Nossa... Esses copos são imprestáveis – dizia uma.
– Por isso não gosto de nada descartável – disse outra.
– Aqui senhor, deixe-me ajudá-lo – ofereceu outra já, tomando sua mão para limpá-la.
Jonathan não ouvia nem lhes dava audiência. Voltara de seu devaneio, mas não conseguia
desprender seus olhos da cena. Ele conhecia todos que participavam da brincadeira, menos o rapaz
moreno e bem apessoado, que agora se acercava de Faith; esquivando-se como os outros, mas perto
o suficiente para que cedo ou tarde se deixasse tocar.
Depois de alguns desvios, o grupo de jovens, como se tivessem um acordo mútuo, abriu espaço,
deixando apenas os dois no centro da roda, então Faith o encontrou. Primeiro tateou-lhe o peito
avantajado antes de subir as mãos pequenas por seu pescoço para enfim chegar ao rosto. A cada
toque o rapaz sorria satisfeito, ao passo que toda tranquilidade que Jonathan juntara até ali lhe era
roubada e seu coração, já dolorido, palpitava inquieto.
O que era aquilo afinal? Não estava decidido? Não era de sua conta que ela tateasse algum rapaz.
Era problema de Tyler! Tentando se convencer, continuou a observar a cena, sem dar importância às
mulheres tagarelas que ainda se ocupavam de sua mão. Como em câmera lenta, viu quando a moça
retirou a venda dos olhos e, depois de um breve hesitar, se atirou ao pescoço de um rapaz agora
totalmente sorridente e receptivo. Jonathan não pode deixar de reparar nas coxas torneadas que o
vestido mínimo revelou enquanto ela apertava outro, sem cerimônias.
Naquele momento Jonathan se obrigou a desviar os olhos. Primeiro, tal cena o desagradava,
segundo, a visão da pele clara de suas pernas fez com que se lembrasse da primeira vez que a viu na
praia e quando roçou uma delas em sua perna durante o jantar. Apesar da contrariedade, excitou-se.
– Grazie signoras. Foi somente ponche. Vou até a cozinha lavar a mão. Permesso, digo... Peço
licença – disse afavelmente para as três mulheres que brigavam pela limpeza de sua mão. Sem
esperar que retrucassem, seguiu em direção à casa de Netty pelo caminho que o obrigava a passar
pelo casal ainda abraçado. Enquanto se aproximava, o rapaz moreno colocou Faith no chão, porém
não a soltou.
– Quando chegou? – ouviu-a perguntar.
– Agora a pouco – respondeu ele, passando um braço por seus ombros. – Encontrei com seu pai
ontem em Wells e ele me falou sobre o piquenique. Não perderia por nada.
– Ah! – Ela se atirou novamente em seu pescoço. – Estava sentindo tanto a sua falta.
– Também sinto sua falta, Fay. – A declaração chegou clara aos ouvidos do padre. Revirando os
olhos, Jonathan apertou o passo; outro que era íntimo! Não queria ouvir mais nada. Não importava
saber quem sentia falta de quem, quem era o grandalhão desconhecido ou qual relacionamento
mantinham. Como pensou antes; aquele era um problema de Tyler, não seu.
– Que bom que veio Peter! – Ainda a ouviu dizer. – Tenho tanto a conversar com você.
Respirando fundo, Jonathan bloqueou todos os ruídos a sua volta até que finalmente chegasse a
casa. Ao entrar pela porta da cozinha, perguntou a um grupo que conversava animadoramente onde
era o banheiro. Depois que lhe indicaram o final do corredor, seguiu por ele até se trancar no
cômodo pequeno.
Assim que lavou as mãos, jogou água também em seu rosto; sentia a face quente. O colarinho
clerical o sufocava. Sabia ser errado sentir tais coisas, mas não conseguia evitar. Contudo precisava
ser forte. Era somente uma provação. Estava claro que confundia os sentimentos. Faith Green se
tornou uma amiga e ele seu mentor espiritual. Como tal, se importava e queria o melhor para ela;
nada mais do que isso.
Todo o protesto ciumento de seu peito, a saudade e o desejo nada mais eram do que confusão e a
pior de todas as provações, como determinou. Esclarecido seu incômodo, Jonathan molhou o rosto
mais uma vez e então o secou. Evitando olhar sua imagem transtornada no espelho, saiu.
Ao voltar para a área do piquenique não conseguiu evitar procurar Faith com o olhar; não a viu em
parte alguma. O grupo que antes brincava, tinha se dissipado e algumas de suas amigas estavam em
volta das mesas de guloseimas, outras ainda brincavam entre si em outra parte do jardim, mas nem
sinal da moça. Ou do grandalhão moreno. Não deveria lhe importar, sim, aos pais dela se a garota
sumia bem no meio de um evento organizado por ela. Então, porque conversavam com Harry e Netty
Owen em vez de vigiá-la?
Não. Era. Da. Sua. Conta, avisou-se pausadamente. Dando de ombros, seguiu até uma das mesas
de doces. Sua intenção era distrair-se, provando uma fatia do tão comentado bolo de nozes de Grace.
Aquilo era o que ele queria acreditar. Procurava as moedas que levara em seu bolso, quando a moça
responsável pela venda falou apressada:
– Nem pense nisso, padre. É só se servir...
– Obrigado! – agradeceu e apurou os ouvidos para ouvir a conversa do irmão de Faith e a noiva
que estavam próximos.
– Não vejo a hora de começarem o leilão – disse Helen, animada. – Você vai me arrematar?
– Vou – seu noivo confirmou, abraçando-a. – Preciso que costurem minhas meias.
– Muito engraçado. – Ela o socou no peito levemente. – Peça isso a Constance.
Jonathan se servia quando Grace se acercou.
– Me deixe te servir, senhor...
– Estou bem, obrigado! – retrucou, isolando-lhe a voz, depois que ouviu o nome de Faith ser
citado pelo casal.
– Ah... Será que Fay ainda vai nos acompanhar até Wells hoje à noite? – perguntou Helen
aparentemente preocupada. – Queria tanto ir ao cinema... E ela disse que iria.
– Bom, temos de ver se ela ainda vai quer ir agora que Peter está aqui.
– Você também é amigo dele, convide-o. Quem sabe assim esse rolo não se desenrole... – ela disse
cúmplice. – Sempre fui louca para saber qual é a deles dois, afinal? Faith me conta tudo, mas nunca
fala sobre ele.
– Tem certeza que não deseja que o sirva? – a voz de Grace se sobrepôs à deles.
– Somos amigos desde sempre – Jonathan ouviu o rapaz responder distraidamente, apesar da
intromissão. Disfarçando a impaciência, garantiu:
– Tenho, grazie. – Com um sorriso desajeitado ela se afastou. Nesse exato momento Mason
zombou da irmã:
– Mas acho que eles já namoraram... Se ele ainda morasse aqui acredito que hoje fossem amigos
com benefícios. – Incomodado com a definição e a falta de respeito fraterno, Jonathan pigarreou às
suas costas, levando-o a se voltar. – Ah... Não vi que o senhor estava aí.
– Tudo bem... Fiquem à vontade. – Jonathan lhes sorriu. Ou tentou sorrir; não sabia. Sem que
pudesse pensar a respeito do que diria, perguntou: – Viram Faith por aí? Queria falar-lhe um instante.
– Lamento, senhor – disse Helen, receosa. – Ela saiu com Peter, mas não sei dizer aonde foram.
– Está bem... Grazie. – Deixando a fatia de bolo intocada sobre a mesa, Jonathan se afastou do
casal, contrariado e foi se juntar aos pais da moça.
– Senhor... – disse Constance. – Estávamos comentando o sucesso do piquenique.
– Sim... – Ele olhou em volta. – E não para de chegar mais pessoas. Há pouco vi um rapaz que não
estava aqui antes...
– Saberia dizer quem, senhor? – perguntou Elliot. – Podemos lhe apresentar.
– Não o vejo agora – respondeu, fingindo procurar por alguém especial entre todas as pessoas.
Então despretensiosamente comentou. – Era um rapaz moreno... Estava conversando com sua filha
caçula.
– Deve estar falando de Peter Shaw – concluiu Constance, sorridente.
– Ah... – Elliot chamou sua atenção. – O senhor vai conhecê-lo. Fazemos questão. É um bom
rapaz... A família dele se mudou para York Harbor. Ele é amigo de infância de nossos filhos, em
especial de Faith. Sempre se deram bem. Encontrei-o ontem em Wells e o convidei para vir. Eles
deram uma saída rápida, mas logo estarão de volta.
E essa foi toda informação que conseguiu. Tamanha afinidade, aborreceu-o. De súbito, não via o
que ainda fazia ali. Depois de pedir licença, afastou-se e andou por entre os grupos animados no
jardim. Conversou com todos sem ouvir-lhes na verdade. Toda sua atenção estava voltada ao seu
entorno; para todos os pontos de aproximação possíveis.
Há alguns metros dali, Peter passou o braço pelos ombros de Faith, enquanto caminhavam rumo ao
cais.
– Tem certeza de que não tem problema sairmos durante a festa? – indagou.
– Certeza absoluta! – Estava feliz e, como não deixaria passar a oportunidade, completou: – Sabe
que o problema seria se saísse com Nick.
– Desse susto seu pai não morre. – Peter se retesou. – Ou o noivo dela.
– É... Acho que não morreriam mesmo. – Faith admitiu, recriminando a irmã mentalmente pela
covardia notória. Como não desejava estragar a alegria do reencontro, mudou de assunto: – O que
quer me mostrar aqui no cais?
– Aquilo! – O rapaz apontou para um pequeno veleiro branco, parado junto aos barcos de pesca.
– O quê? – ela exclamou. – Veio com ele?!
– Vim! – Peter respondeu, orgulhoso. – Não é uma beleza?
– Peter... Ele é lindo! – Faith se soltou do abraço e correu até a embarcação. Já estava a bordo
quando ele se juntou a ela. – Tem ele há muito tempo?
– Há algumas semanas – respondeu, acariciando distraidamente o mastro da vela mestra. – Ele tem
vinte e dois pés, é feito de fibra de vidro e sua mastreação é toda de alumínio.
– E a quilha? – Faith perguntou, aventurando-se para a cabine.
– É de chumbo. – Seguindo-a até o compartimento mínimo, Peter disse: – Cabem até quatro
pessoas aqui nessa cabine.
– Estou vendo! – ela respondeu, encantada. Cresceu naquele meio marítimo, então adorava
embarcações e a do amigo era verdadeiramente bonita. Depois de voltar ao convés e se sentar na
popa, congratulou-o: – Parabéns pela aquisição!
– Obrigado! – Peter foi se sentar ao lado dela. – Significou muito para mim, poder comprá-lo.
– Imagino que sim. Você sempre disse que um dia conseguiria.
– Sempre disse e nunca tive dinheiro – comentou seriamente. Faith o olhou intensamente, tentando
adivinhar seus pensamentos. Por fim falou:
– Bom... Ao que parece, dinheiro não é o problema.
– Não. Você sabe que meu pai se tornou sócio do estaleiro. Há um ano comprou a outra parte e
agora é o único dono. Estamos bem!
– Fico feliz em ouvir isso, Peter. – De fato ficava.
Não dava tanta importância ao dinheiro, mas sabia o quanto era necessário para algumas pessoas.
Entre todas as famílias de Sin Bay, a do amigo era a menos favorecida na época em que moraram na
cidade. Os Greens nunca lhes fez distinção, assim como vários outros, mas alguns não aprofundavam
a amizade. Faith, na qualidade de melhor amiga, sabia que Peter sempre creditou a responsabilidade
do fato à falta de posses dos pais.
Também sabia dos planos grandiosos de Peter. Entre eles a compra de uma embarcação.
Justamente por isso entendia o quanto era importante ele tê-la conseguido. Contudo, o rapaz não
parecia radiante como deveria estar. Ainda olhando para o rosto de expressão vaga, comentou:
– Nicole também ficará feliz de saber que conseguiu seu veleiro.
– Duvido muito – ele retrucou incrédulo. – Nós nos encontramos ontem... Depois de vários meses
e ela nem se dignou a olhar para mim.
– Acho que era por que nosso pai por perto – arriscou. – Talvez ainda reste algum resquício da
discrição que tinha quando namoraram escondido.
– É... Pode ser... – ele aquiesceu depois de deliberar sobre a hipótese. – Ela está feliz com aquele
carinha?
Faith considerou mentir, afinal devia lealdade à irmã, mas padecia com as dores de uma paixão
não correspondida então decidiu que, se ainda houvesse chance de ao menos Nicole ser feliz, agarrá-
la-ia com unhas e dentes. Sinceramente respondeu:
– Não!
Novo período de silêncio até que ele perguntasse ainda sério:
– Se não está feliz, por que continua com ele?
– Você conhece a Nick. – Foi tudo que ela pôde dizer; também não entendia a lógica da irmã.
– Sim... É uma covarde que deixa todos decidirem a vida dela – comentou rispidamente. – Aposto
que o carinha é bem de vida. Um bom partido, como seu pai sempre disse que queria para as filhas
dele.
– É... Joseph tem um bom emprego na Câmara de Wells. É secretário e, como alguns membros de
sua família, pretende seguir na vida política. Mas você sabe que Nicole não liga para essas coisas...
E não diria que ela é covarde – atenuou. – Prefiro vê-la como boa filha... Obediente ao pai.
– Na minha terra a gente chama de covardia mesmo – retrucou Peter, agora irritado. Depois de se
afastar e se pôr de pé, desabafou: – Isso é bem típico de sua irmã! Essa obediência ferrenha... Seu
pai a manda pular e ela o atende sem nem pergunta de qual altura.
Faith queria poder defender a irmã, já meio arrependida de ter entrado no assunto. Como não
poderia voltar atrás, replicou:
– Talvez se não tivesse desistido dela tudo fosse diferente.
– Eu não desisti dela. Ela quem desistiu de mim. Eu falei para contarmos para Elliot sobre nós...
Eu não poderia deixar de me mudar, mas viria vê-la. E ela não quis. Disse que poderíamos namorar
escondido como vínhamos fazendo... E daí eu pergunto, até quando seria isso?
– Não sei – ela disse compadecida do amigo, agora completamente arrependida por ter despertado
aquelas lembranças que pareciam magoá-lo.
– Pois eu te digo até quando... Eternamente, pois eu nunca vou ser mais velho do que ela. – Depois
de alguns segundos, completou, descrente: – Isso se esse era mesmo o motivo de não me assumir.
– Claro que era! – a moça afirmou, veemente. – O que mais seria?
– Não sei. – Peter deu de ombros. – O carinha com futuro promissor não a faz feliz, mas ela está
com ele, não é mesmo?
– Você acha que ela está com Joe por interesse? – Faith estarreceu-se.
– Pode ser.
– Não, não pode! – A moça se pôs de pé, pronta para defender a moral da irmã. – Ela pode ser
covarde, obediente ao extremo, mas nunca foi interesseira... E se quer saber a verdade, Nick ainda
está com Joe porque, para ela, tanto faz... Ele ou qualquer outro não faria diferença porque nenhum
deles é você.
Piscando diante da declaração irritada da moça, Peter perguntou por fim:
– Acha mesmo que ela gosta de mim tanto assim?
– Eu não acho, tenho certeza.
O rapaz novamente ficou em silêncio, considerando as palavras da moça.
– Se é verdade... Acha que existe alguma chance dela sentir ciúmes de mim?
– Claro que sim – ela disse, tentando acalmar o coração ainda inflamado. – Nicole quase pirou
quando soube que você estava namorando uma menina lá da sua cidade.
– Sério?! – Peter sorriu, convencido. – Desmanchamos tem um tempo – contou e, avaliando-a,
indagou: – Acha que ela sentira ciúmes de você?... Comigo?
– Como assim? – Faith escrutinou-lhe o rosto, com as sobrancelhas unidas.
– Bom... Você disse que ela não é feliz... E que ainda gosta de mim, e tudo mais... Então acho que
estou tento uma ideia, mas precisaria de sua ajuda.
Faith lhe acompanhou o raciocínio, recriminando-se por ser tão lenta. Aquela sempre foi a
resposta. Talvez o plano não funcionasse com Peter estando longe, mas ao lado, Nicole não
suportaria vê-la por muito tempo junto ao homem que amava. A ideia era perfeita em todos os
detalhes ainda não discutidos. Tinham a seu favor até mesmo a eterna rivalidade fraterna que existia
em todas as famílias. Sorrindo, cúmplice, afirmou:
– Se for o que estou pensando, pode contar comigo.
– Então toparia me ajudar a conseguir o impossível? Seria minha namorada? – ele perguntou
estendendo-lhe a mão.
– A mais apaixonada! – disse apertando a mão estendida.
Capítulo Vinte e Um

Por mais que não quisesse admitir Jonathan esperava expectante pelo reaparecimento da caçula
dos Greens e do grandalhão moreno. Nem que ela surgisse com as roupas amassadas ou carregando
algumas folhas que denunciassem sua fornicação na mata ao redor, queria-a sob suas vistas. Não
gostava de Tyler, mas até mesmo ele seria bem-vindo se aparecesse e saísse à caça de sua namorada
para trazê-la de volta. Suas intromissões não poderiam ocorrer somente com ele, Jonathan. Para seu
infortúnio, o mecânico eventual não pareceu.
Os minutos passavam por ele, cortando-o como pequenos punhais. Continuava a repetir que não
era de sua conta, mas cada vez menos se ouvia. Ás cinco horas em ponto, Constance subiu ao palco
montado no meio do jardim. Estava na hora de começar o bendito leilão inventado pela organizadora
da festa e ela ainda não tinha voltado. A primeira a se apresentar foi Karen Nicholls. A menina
tímida oferecera seus dotes culinários e garantiu cozinhar durante um dia inteiro para quem desse o
maior lance.
– Bem, meus amigos... – disse Constance. – Vamos começar com o lance mínimo de vinte dólares.
Alguém se interessaria em ter uma cozinheira de um dia inteiro por essa bagatela?
– Eu ofereço os vinte dólares – alguém gritou da plateia.
– Tenho vinte dólares... Alguém oferece mais? – ela perguntou para todos.
– Dou vinte e cinco dólares... – outra pessoa cobriu.
– Vinte e cinco dólares – Constance repetiu.
Jonathan assistia ao leilão de os braços cruzados. Àquela altura , desistira de flagrar a chegada da
moça, pois estava claro que o tal amigo não a devolveria ao evento. Ordenando-se para que a
deixasse de lado, Jonathan se concentrou na brincadeira. Em dado momento passou a achar certa
graça, pois o namorado de Karen começou a disputá-la com a mãe da mesma. Cada um cobria o
lance do outro até que, depois de uma piscadela entre mãe e filha, Todd ficou com o último lance e
arrematou os dotes culinários de sua namorada.
Se o rapaz tinha outras intenções, elas caíram por terra. Quando se aproximou de sua namorada
para acertarem o recebimento do prêmio, a senhora Nicholls gritou para ambos:
– Karen, não se esqueça de avisar que as refeições serão servidas em nossa casa.
Todos riram da expressão consternada de Todd e passaram a fazer piadas para perturbá-lo. Em
minutos o rapaz acompanhava-lhes o riso, abraçado à namorada. Jonathan olhou para o casal com
bons olhos a princípio. Logo, porém, começou a sentir a nova comichão em seu peito. Ele próprio
nunca teria momentos como aquele; de atenção e carinho mútuo. Como Faith deveria ter todas as
noites com Tyler. Como deveria estar tendo naquele exato momento com Peter. A safada traidora!
Pare agora, ordenou-se e voltou à atenção ao palco. Era a vez de Helen, que oferecia suporte
contábil a quem a arrematasse.
– Vamos começar também com o lance mínimo de vinte dólares. Nem adianta olhar feio para mim,
mocinha... Todos os lances iniciais terão o mesmo valor, nada que querer valorizar-se – advertiu a
futura sogra. A moça bufou, demonstrando sua inconformidade, divertindo a todos com sua
expressão.
– Ofereço quarenta dólares para ela costurar minhas meias – Mason gritou do meio de todos,
fazendo com que rissem ainda mais.
– Não é esse o combinado. Use seu dinheiro para comprar meias novas seu desleixado – Helen
retrucou contendo o riso.
– Se fizer isso não contribuo para as obras da igreja, oras... – ele arrematou como se explicasse o
óbvio.
Depois de outra leva de risos – com os quais Jonathan se deixou contagiar – os lances se seguiram
fáceis. Dessa vez o namorado não levou a melhor. Ele mesmo teria de costurar as meias, o padre
considerou, levemente divertido. Depois de Helen, arremataram a limpeza no jardim que Nicole
oferecia. As cinco aulas de piano de Maggie – que Jonathan duvidava que surtissem efeito. Mais seis
garotas passaram pelo palco. A descontração de todos teve o poder de distraí-lo até que Constance
aceitasse última oferta feita por Carlo pelo piquenique particular de Grace.
Seu espanto ante o arremate inusitado foi suplantado pela chegada de uma Faith afogueada junto ao
palco. Estava composta, mas seu rosto corado e suado era o retrato do pecado. Com o espírito
revoltado, Jonathan olhou em volta a procura daquele que a deixara naquele estado. Logo o avistou
atrás das pessoas que assistiam ao leilão. Jonathan prendeu a respiração ao ver o moreno também
com o rosto em chamas, a admirar a moça.
Decididamente não era de sua conta, mas ainda assim seu sangue corria rápido, tamanha era a
raiva sentida. Obrigando-se a desviar os olhos do grandalhão, voltou sua atenção à moça. Viu-a
conversar brevemente com a mãe. Jonathan esperava que Constance não a desculpasse pelo atraso
imperdoável.
Estava sendo infantil, sua porção sacerdotal disse ao leigo indócil que sofria enciumado. Entoando
como um hino murmurado que não era da sua conta, Jonathan assistiu a moça subir ao palco,
sorridente. Seu coração falhou ao capturar o olhar furtivo dela em sua direção. O contato durou
menos que um segundo e ainda assim teve o poder de inflamá-lo sob as vestes. Deixando-se aquecer
por aquele breve olhar, disse a si mesmo que apenas se preocupava por ser seu amigo. Nada além
disso, afinal, o grandalhão tinha jeito de ser um aproveitador; mesmo que a família dela dissesse o
contrário.
– Bom... – a voz de Constance chamou sua atenção. – Eu deveria deixar minha filha de fora, já que
não estava aqui desde o início. Mas, como ela se desculpou e nós não podemos abrir mão de
nenhuma contribuição para as obras da igreja, vou leiloar seus préstimos. – Faith sorriu para a mãe e
depois para alguém na multidão. Jonathan não precisava olhar para saber quem tinha a atenção dela.
Antes que cismasse até mesmo com isso, Constance prosseguiu: – Faith mudou seus serviços... Agora
resolveu oferecer um dia de limpeza na casa de quem a arrematar.
Eram cúmplices, Jonathan considerou ao ver o sorriso farto que ela dirigiu ao novo amigo. Boa
coisa não sairia dali, pensou contrafeito. Teve sua suspeita confirmada depois do primeiro lance de
Peter.
– Ofereço cinquenta dólares – ele gritou. Para a surpresa do padre, Constance sorriu com todos os
seus dentes.
Imediatamente Jonathan procurou Elliot com olhar. Com certeza o pai faria algo a respeito, afinal,
estava clara a má intenção do rapaz. Porém tudo que viu foi o líder comunitário sinalizar em sua
direção com o polegar em riste. Franzindo o cenho, Jonathan os ignorou e se concentrou no leilão.
– Ofereço sessenta dólares – disse outra voz.
– Temos sessenta dólares – Constance repetiu, procurando por quem dera o lance. Jonathan imitou-
a e seguiu a direção apontada pelas cabeças voltadas para trás. Como todos, viu ter sido Tyler.
Mesmo sendo o namorado secreto que se deitava com ela nas noites de quinta, e ter desejado que ele
aparecesse para tomar conta de Faith, Jonathan não o considerava uma boa escolha para ela.
– Setenta dólares – gritou Peter.
– Tenho setenta. – Constance voltou a lhe sorrir, encorajando-o.
– Oitenta... – cobriu o outro.
– Oitenta – Constance repetiu sem empolgação.
– Noventa. – A voz de Peter não trazia mais nenhuma nota de divertimento.
– Agora tenho noventa dólares! – ela ainda tentava animá-lo com um sorriso.
– Cem dólares... – disse Tyler sem se abalar.
– Cem?! – Constance inquiriu. – Tem certeza, Tyler?
– Porque não teria? – ele inquiriu altivamente. Dando de ombros, Constance repetiu:
– Tenho cem dólares.
Faith assistia à disputa visivelmente aborrecida pela intromissão e insistência do amante. Depois
da pergunta indiscreta e vexatória da Sra. Green, e do olhar fulminante da traidora, Jonathan sentiu
certa compaixão por ele. Ainda assim não queria que Faith ficasse um dia inteiro em sua casa, onde
arrumação seria a última coisa que faria.
– Cento e vinte dólares! – Peter ofereceu sério, com as mãos na cintura, desafiando Tyler com o
olhar.
As pessoas em volta riam e gritavam frases de incentivo ora para um, ora para o outro. A Jonathan
pouco importava que brigassem entre si, depois lhes chamaria a atenção se fosse o caso. O que lhe
incomodava – enraivecia, na verdade – era vê-los disputar Faith. Ainda repetia mentalmente que não
era de sua conta quando se ouviu dizer em alto e bom som:
– Ofereço duzentos dólares de minha reserva pessoal para que a Srta. Green limpe a igreja e a
casa paroquial.
Após instantes inquietante de silêncio, nos quais Jonathan pôde ouvir o próprio coração alarmado
por sua ação, todos explodiram em riso, assobios e aplausos. Faith olhava em sua direção incrédula.
Para sua salvação, os pais dela pareciam ter aprovado sua iniciativa. Bom, Constance aprovava e lhe
sorria enlevada. Elliot, mesmo acompanhando os aplausos, apresentava um olhar indulgente. A
leiloeira sequer deu a chance de Peter cobrir-lhe a oferta.
– Dou-lhe uma! Dou-lhe duas!. Dou-lhe três! – repetiu apressadamente, então disse a ele e a todos.
– Pois ela limpará, Sr. De Ciello... Os serviços de minha filha foram comprados por nosso estimado
padre que, além de se comprometer a comprar a tinta para a pintura da igreja com suas reservas,
agora fez essa oferta generosa.
A nova ovação, Jonathan lhes sorriu, desconcertado. Ao olhar em volta, soube que seu padrinho
partilhava da mesma dúvida, pois lhe encarava com o cenho franzido. Antes que pudesse decifrar sua
expressão, várias pessoas o cercaram para parabenizá-lo. Jonathan apertou tantas mãos que perdera a
conta, nem se lembrava dos rostos.
Parecia que somente recobrava a consciência quando seus olhos recaiam em Faith que, como o
grandalhão moreno, olhava-o fixadamente sempre que tinha a chance. A moça era expressiva.
Jonathan sabia por seu olhar que ela não aprovava sua interferência.
Paciência! Era para seu próprio bem.
– Nossa... – exclamou Constance, vindo para o seu lado. – A princípio não gostei dessa ideia de
leilão, mas devo admitir que foi divertido.
– Veramente... – concordou em sua própria língua, distraído.
– Estou exausta – ela continuou. –, mas está valendo a pena. Ainda não sabemos quanto o senhor
arrecadou, mas acho que conseguiu o que precisava para a reforma dos bancos e o conserto do
telhado. E ainda não acabou... Pelo jeito as pessoas ficarão por mais algumas horas.
– Parece que sim – respondeu-lhe automaticamente, preso ao olhar da moça que, divergindo do
comportamento adotado por toda tarde, não desviou os olhos até que chegasse diante dele. Quando,
expectante, Jonathan acreditou que finalmente lhe falaria, Faith, numa atitude indiferente, voltou-se
para a mãe.
– A senhora se importaria de ficar até o final para ajudar o Sr. De Ciello no que for preciso?
– Por que pergunta? – estranhou Constance. – Pretende ir embora?
– Gostaria – a moça respondeu como se ele não estivesse ao seu lado. – Já tinha combinado de
sair com Helen e Mason. Não pensei que esse evento fosse me tomar tanto tempo. Se não se importar,
gostaria de manter o compromisso... Agora que Peter está aqui, combinamos de ir juntos.
A mãe olhou na direção do rapaz. Jonathan desejou intimamente que Constance não permitisse e
obrigasse a filha a cumprir sua função até o fim, contudo, depois de sorrir-lhe, pediu:
– Veja se sua irmã e Joseph desejam acompanhá-los e pode ir sossegada. Sei que seu pai não vai
se opor... Só não voltem tarde.
– Obrigada, mamãe. Não se preocupe. – Olhando rapidamente para Jonathan, falou: – Senhor,
depois veja quando quer que eu limpe sua igreja. Prometo que no dia farei o possível para não
atrapalhar suas funções. Boa noite.
– Ciao. – Foi tudo que ele conseguiu dizer. Sua garganta estava obstruída. Jonathan nem mesmo
atinava como ainda respirava. Vê-la partir definitivamente na companhia dos irmãos e seus
respectivos pares, com o moreno apoiando o braço possessivamente em seus ombros o cegou e
ensurdeceu para tudo à sua volta. Nunca passaria! Jamais superaria, constatou.
– Linda, não é mesmo? – Jonathan nem precisou olhar para saber quem lhe dirigiu a pergunta
capciosa. Apenas se perguntou quando, exatamente, Constance se retirou, dando lugar a Tyler Mills.
– Sim... Está uma linda festa! – respondeu, voltando-se para o rapaz.
– Ah, sem dúvida que está – ele disse com um sorrisinho de canto de boca. – Mas me referia à
Faith. Ela é linda, não?
– Todas as criaturas feitas pelo criador são lindas e perfeitas – Jonathan disse sem se abalar com
as palavras; naquele dia, nada mais o abalaria além da frieza e distanciamento da moça citada.
– E o senhor, como um servo do Criador, enxerga muito mais beleza em suas criações, não é
mesmo?
– Evidente – Jonathan respondeu ainda inabalável. – Vejo beleza até em sua atitude estranhamente
hostil. Ela demonstra que é um rapaz de fibra, mesmo que faça observações pueris e inoportunas.
– Não use essas palavras bonitas e esse tom de missa comigo – Tyler pediu contrafeito. – Eu vejo
como olha para ela e te digo que não é como um padre.
– Cuidado com o que diz, rapaz. Não sei o que se passa em sua cabeça fantasiosa, mas não vou
aceitar que diga o que lhe vem à mente. Exijo que me tenha respeito – Jonathan o advertiu duramente,
porém sentido raiva de si mesmo por deixar transparecer seus pensamentos nada ortodoxos.
O padre não gostava de usar aquele tom com ninguém, pois ele também o inquietava, porém foi
inevitável. Como sempre acontecia, a firmeza em suas palavras associada ao timbre baixo e
ameaçador surtiu efeito. Tyler recuou um passo e desarmou a expressão desafiadora. Jonathan
aproveitou a guarda baixa para concluir:
– Faith é mesmo uma jovem bonita. Assim como todas as outras, mas não confunda minha
interferência no embate entre você e aquele rapaz com suas próprias intenções.
– Boa noite! – cumprimentou Carlo aproximando-se, olhando de um ao outro. – Algum problema
aqui?
– Não, senhor – Tyler respondeu. Para Jonathan, pediu: – Me desculpe o mau jeito. É que eu queria
aproveitar o dia com Faith para tentar me desculpar de uma coisa que fiz...
– Vamos nos esquecer desse episódio – Jonathan pediu, voltando ao seu tom normal, pouco
interessado nas brigas amorosas dos dois. – Se era somente isso, tente conversar com ela outro dia.
Agora se me der licença... Ainda preciso dar atenção a todos.
– Sim, senhor – Tyler afastou-se, dizendo sem convicção. – Boa noite, desculpe mesmo meu mau
jeito.
– Agora nós dois – o padrinho anunciou, pondo-se à sua frente, repreensivo. – O que pensa que
está fazendo?
– Por favor, agora não! – o afilhado pediu em voz baixa. – Em casa conversamos.
– Em casa coisa nenhuma! – o tio murmurou em italiano. – Que loucura foi essa de arrematar a
garota com seu próprio dinheiro?
– Era para usar o das doações? – Jonathan retrucou, irritado.
– Não seja malcriado comigo – vociferou. – O que pretende?
Impaciente e com o peito ainda a protestar, Jonathan perguntou no mesmo tom:
– O que o senhor pretende ao comprar um dia inteiro com a Srta. Campbell?
– Por quem me toma?... É evidente que não vou passar o dia com ela. Para seu governo, já a
liberei do passeio e disse que ela poderia tirar esse dia de folga, pois trabalha todos os dias na
lanchonete. Fui apenas cavalheiro. Ela é apenas uma boa amiga.
Jonathan reprimiu o desejo de lembrar-lhe que padres não tinham amigas, sim, amantes, mas se
conteve a tempo. Algumas pessoas próximas começavam a demonstrar certo interesse pela conversa
baixa e tensa, mantida em uma língua que não podiam entender. Respirando profundamente, tentou
argumentar:
– E eu apenas quis evitar uma briga... Estava claro que os dois rapazes levariam a disputa para o
lado pessoal. Foi somente isso.
Seguindo-lhe o olhar, o padrinho mudou a postura e aumentou a voz, em inglês:
– Tem razão... É melhor conversarmos quando estivermos em casa. – Então se afastou.
Ao ficar sozinho, Jonathan se sentiu exatamente como estava; sozinho. De súbito, o ambiente
aberto o sufocou. Não suportava mais ficar naquele jardim. Alegando um súbito mal-estar, procurou
por Constance e Netty para se despedir.
– Já vai tão cedo? – perguntou a dona da casa.
– Preciso, Netty... Acho que algo que comi não me fez bem... Meu estômago e minha cabeça
doem... Preciso descansar.
– Deseja que lhe prepare um chá? – ofereceu, prestativa.
– Não é preciso... Um pouco de repouso e ficarei bem. – Sorrindo-lhe para indicar que ficaria
verdadeiramente bem, falou: – Muito obrigado pela tarde maravilhosa!
– Agradeça a Faith – a mulher falou, sorridente. – Foi ela quem organizou tudo.
– Agradecerei.
A despedida dos pais da moça foi breve. Por ter assumido a responsabilidade que caberia à filha,
Constance o desobrigou de ficar até o final. Após tranquilizá-lo, liberou-o para que fosse descansar
em paz. Ele precisava se recuperar para a missa da manhã seguinte. Jonathan tinha esquecido
completamente de sua obrigação matinal. Não era preciso mais indicações de que aquela seria uma
longa noite, que antecederia um péssimo dia.

– E aí? – Peter sussurrou ao ouvido de Faith. – Acha que está funcionando?
– O quê? – ela perguntou em tom normal, surpresa com o murmúrio. Imediatamente vários “shhs” e
pedidos de silêncio foram ouvidos. Somente então ela se deu conta de que estava numa sala de
cinema iluminada somente pela imensa tela, sentada ao lado do amigo, com ele abraçando seu ombro
e ela segurando sua mão. Estava bem no meio de sua farsa e tudo o que fazia era pensar no padre.
Seria possível que ele nunca saísse de sua cabeça?
– Como “o quê”? – Peter novamente sussurrou. – Nick... Acha que ela mordeu nossa isca?
– Ainda é cedo para saber, mas acho que sim. – Ao falar a moça procurou a irmã com o olhar.
Nicole estava sentada a três poltronas da sua, com Joseph e Peter entre elas; rígida, a olhar as cenas
de ação, sem tocar no noivo de forma alguma. Este parecia não se importar, e prestava total atenção
ao filme. Às suas costas, pelos sons melados que ouvia, Faith sabia que a vontade de Helen em ver
Sherlock Holmes era pura balela.
Na verdade, Faith sentia inveja. Quisera ela poder estar da mesma forma com alguém que fosse
apaixonada; não apenas fingindo. Entristecida, olhou para o perfil de Peter que, satisfeito, voltou sua
atenção ao filme. Faith o analisou, pensando com seus botões que seria interessante se a brincadeira
se transformasse em realidade. Ele era um bom amigo; ficavam meses sem se encontrar ou trocar
ligações, mas quando estavam juntos a química era a mesma. Seus toques casuais, típico entre bons
amigos, não a exasperavam como os de Tyler.
Descendo os olhos para a boca bem desenhada, Faith se lembrou que tinha beijado seu
perseguidor. Na verdade não se lembrava, mas não duvidava da palavra dele. Era bem a cara dela se
embebedar e ver Jonathan em todos os lugares. Ou talvez não tenha visto, apenas tentado esquecê-lo
como deveria realmente fazer. Ainda olhando para a boca de Peter, ocorreu-lhe que talvez devesse
tentar novamente. Estando sóbria.
Amava Nicole, mas muito mais a si mesma. Se Peter conseguisse despertar nela um terço do que
Jonathan despertava somente por estar perto, transformaria a brincadeira em realidade. Nem que
fosse para namorá-lo à moda antiga até que tirasse o padre de sua cabeça. Assim, munida com a
necessidade de esquecer o italiano, ela se moveu na cadeira e, sem que Peter esperasse, cobriu-lhe a
boca com a sua.
O beijo roubado não passou de um espremer de lábios. Quando o amigo tentou introduzir a língua
em sua boca, Faith já tinha visto o suficiente. Assim como nenhum outro, o amigo nada lhe dizia. Ao
afastar-se dele, notou que a irmã os olhava, chocada. Assim como Peter.
– O que foi isso, Fay? – ele perguntou aturdido num sussurro.
– Agora minha irmã mordeu nossa isca e sabe que estamos juntos – respondeu calmamente,
voltando a se sentar corretamente na poltrona. Sem ver a cena à sua frente, confirmou estar perdida,
pois ninguém, jamais, substituiria o padre bipolar.
Capítulo Vinte e Dois

Ao final do filme Faith estava completamente arrependida de sua intempestividade. Depois de seu
beijo infeliz, o amigo pareceu se empolgar com a veracidade que ela trouxe ao acordo e passou a
fazer carinhos circulares em sua nuca. O toque não a incomodava, mas os considerava exagerados e
inúteis, pois Nicole não podia vê-los.
– Ela não pode nos ver Peter – disse a certa altura.
– Mas talvez Mason ou Helen possam – retrucou cúmplice. A ela coube permanecer quieta, sem
reclamar, afinal era a culpada. Sua irmã mal lhe dirigiu a palavra quando propôs irem à lanchonete
preferida de todos, antes de voltarem para Sin Bay.
– Joseph, eu estou com um pouco de dor de cabeça, poderia me levar para casa – pediu secamente.
Depois de se despedirem de todos o casal se foi.
– Eu topo – anunciou Helen, encarando a amiga com um sorriso que não disfarçava a forma séria
que a encarava.
– Então vamos.
Os dois casais seguiram a pé até a lanchonete, comentando as cenas do filme animadamente. Peter
em nenhum momento soltou a mão da moça. Mason, vez ou outra lhes lançava olhares inquiridores,
mas logo voltava sua atenção à noiva, como se fato novo não fosse de todo uma surpresa. Quando
chegaram ao seu destino, escolheram uma mesa reservada. Tão logo as amigas ficaram sozinhas,
depois dos rapazes as deixarem para buscar os lanches escolhidos, Helen pendeu a mão de Faith que
estava disposta sobre a mesa e perguntou:
– O que é isso?
– Isso o quê? – perguntou, desentendida.
– Pensei que estivesse interessada no padre. Tudo bem que não me contou o que aconteceu, mas
entendi que deseja esquecê-lo, mas daí à sair agarrando seu melhor amigo não me parece muito
inteligente.
– Medidas desesperadas, requerem atitudes desesperadas... – Faith se justificou. Helen era sua
amiga, assim como Peter, então considerava que devia lealdade aos dois e segredos eram segredos.
Assim como nunca tinha contado sobre o relacionamento de sua irmã com ele, não entregaria que seu
envolvimento não era real. A amiga a encarou por um minuto inteiro, então, dando de ombros, recitou
outra frase de efeito:
– Sua cabeça, sua sentença. Se acha que brincar com Peter vale a pena.
– Não estou brincando – ela retrucou séria. – Gosto de Peter... E sei que poderia vir a amá-lo.
– Não está mais aqui quem falou – disse erguendo as mãos em sinal de derrota. Mudando o
assunto, comentou: – O piquenique foi legal, não?
– Foi, e ainda bem que acabou! – Faith exclamou, mal-humorada. – Não quero falar sobre ele.
– Como não?... Estou a noite toda louca para saber como se sente depois que o padre te
arrematou... Essa sua aproximação me distraiu, mas agora minha curiosidade voltou com força
total... O que vai fazer?... Vai mesmo limpar a igreja e a casa paroquial?
– O padre Jonathan vai empregar dinheiro de sua reserva pessoal por esse serviço – disse
resignada. – E a ideia foi minha, não foi?... Não posso ser eu a correr de meu compromisso.
– Sinto muito que seja assim... – Tentando ser solidária, ofereceu: – Disse que não iria me meter,
mas se quiser, posso assumir o serviço por você.
Faith considerou por um momento. Seria uma boa alternativa que a livraria de se encontrar com o
padre e talvez, evitasse possíveis brigas, mas logo a descartou. Nunca foi covarde. E se a intenção
de Jonathan era realmente provocá-la, como acreditou desde que ouviu seu lance absurdo, não lhe
daria o gosto de fugir de sua responsabilidade.
– Obrigada, Helen. Mas isso é algo que preciso fazer.
– Então, boa sorte!... – a amiga lhe desejou, antes de sugerir que mudassem de assunto, pois os
meninos voltavam à mesa. Vieram animados, Mason a zombar de um Peter carrancudo por ter sido
delatado em pedir permissão para namorar a moça. Todos riram e passaram a comer, alternando
provocações entre si e novos comentários sobre o filme. Durantes as horas que se seguiram, Faith
descobriu que não prestara a mínima atenção nas aventuras de Sherlock e seu inseparável amigo
Watson. Sua mente esteve praticamente o tempo todo voltada para o lance idiota do padre.
Este não veio apenas atrapalhar os planos dela e Peter, mas deixá-la mais confusa. Ele a acusava
de querer perturbá-lo. Reclamava que desperdiçava seu tempo – tudo isso depois de retribuir aos
seus avanços pueris – e agora a obrigava a ir à igreja. Pois que assim fosse, pensou mordendo seu
sanduiche. Ele não perdia por esperar. Cumpriria sua tarefa sem reclamar, mas não lhe dirigia mais
do que meia dúzia de palavras.
– Faith?
– O quê? – perguntou distraidamente para ninguém em especial.
– Estou perguntando se posso ir à missa com você, amanhã. Fiquei curioso com aquele padre novo
que acabou com a nossa festa – Peter repetiu encarando-a. – Onde estava?
– Divaguei, me desculpe.
– Tudo bem... Mas e então?... Posso?
Faith considerou por um instante. Impossível não especular se a descoberta de que estava
comprometida com outro além de um namorado secreto irritasse Jonathan. Freando um sorriso
sardônico, considerou que talvez nem precisasse limpar a igreja afinal. Com certeza Jonathan a
liberaria por não desejar uma pecadora incorrigível por perto. Sim, Peter iria à missa, pensou
sorrindo para ele.

O padre não sabia o que mais o inquietava; se seu padrinho tenso ao seu lado ou ver o rapaz
moreno que ocupava o banco atrás da moça. As duas situações o aborreciam. Agradeceu aos céus
por seu padrinho não tê-lo crivado de perguntas – após voltarem do piquenique ou naquela manhã –,
somente para blasfemar por ser obrigado a assistir tal proximidade.
Aquela terceira missa era, sem dúvida, a pior de todas. Como se não bastasse ver o casal, ainda
havia todos os rostos da assembleia a encará-lo fixamente. Talvez fosse impressão gerada por sua
culpa, mas parecia que todos lhe depositavam maior atenção. Como se tentassem decifrar o porquê
do novo padre dispensar dinheiro do próprio bolso em um lance escandaloso.
Ao se despediu, liberando-os para que retornassem às suas obras, Jonathan respirou
profundamente aliviado. Demonstrando igual alívio, seu padrinho passou a organizar o púlpito.
Ignorando-o – mesmo incomodado com a presença de Peter – o padre foi até a porta para as
despedidas. Jonathan apertava todas as mãos sem prestar atenção aos rostos que, ao seu ver, ainda o
encaravam inquiridoramente.
No futuro, tentaria não se expor mais do que já fazia, contudo, no momento, dentre todos eles,
apenas um rosto importava; e procurava por ele. Aquele que há mais de duas semanas lhe
assombrava os sonhos e atormentava a alma. E logo Faith surgiu. Vinha atrás de todos de sua família,
seguida pelo moreno. Elliot esperou deliberadamente para que fossem os últimos a cumprimentar o
padre e, como da outra vez, parabenizou-o pela missa. Jonathan não lhe deu maior atenção até as
palavras seguintes o deixaram em alerta:
– Muito generoso de sua parte ter participado do leilão.
Jonathan o encarou, procurando em seu semblante por alguma insinuação que suas palavras
pudessem ocultar. Encontrou reprovação, talvez. Natural vinda de alguém que se mostrou contrário às
corridas na praia. E quem poderia culpar o capitão quando nem ele próprio entendia suas intenções?
Seja qual forem não seria nada nobre que pudesse ser expresso em palavras. Muito ciente desse fato,
Jonathan se valeu de uma posição irrepreensível e falou.
– Talvez tenha sido precipitado de minha parte, mas apenas quis evitar um desentendimento entre
os dois jovens. – Valendo-se de sua psicologia, repassou – Em meu lugar o que teria feito?
Peter nada falou ou se moveu, enquanto Elliot pareceu ponderar. Quando falou sua expressão
carregava todo o constrangimento por algum julgamento precipitado:
– Como já lhe falei sou um homem simples, senhor... Não teria sua presença de espírito para conter
qualquer desavença indiretamente e de forma tão eficaz. – Após um pigarro, prosseguiu: – Ainda
assim, considero generoso de sua parte.
– Fui apenas tocado pela providencia divina – Jonathan garantiu maldizendo-se pela nova
blasfêmia. –, pois dispensaria a mesma quantia particularmente.
– E eu achei maravilhoso! – exclamou Constance, pondo um fim ao assunto. – Ainda mais que
indiretamente livrou o jovem Mills de um constrangimento... Tenho certeza de que ele não possuía tal
quantia. Sinceramente não sei qual o problema com aquele garoto.
Jonathan sabia, mas não cabia a ele explicar. Muito menos participar de especulações sobre a
condição financeira dos moradores daquela vila. Cansado de toda aquela conversa, apenas sorriu
indulgente e baixou a cabeça num agradecimento mudo antes de voltar sua atenção àquela que
unicamente lhe interessava. Faith ouvia a tudo, impassível, parada ao lado do rapaz moreno que o
encarava com curiosidade. Antes que pudesse cumprimentá-la, Mason se adiantou:
– Eu achei divertido... E quero que saiba que estou disposto a ajudar no que puder. Basta avisar
que estarei aqui.
– Obrigado! – Jonathan agradeceu por reflexo, logo voltando seu olhar à moça. Desta feita ela lhe
dirigiu um cumprimento rápido, educado, e nada mais. A indiferença o magoava e, aquela manhã,
Jonathan a considerou exagerada. Decidido a reverter a situação para que pudesse ao menos terem
um relacionamento pacífico, perguntou amável:
– Ouviu quanto arrecadamos com o piquenique?
– Alto e claro – ela disse sem entonação especial. – A acústica de sua igreja é muito boa, senhor.
Elliot imediatamente olhou para a filha com o cenho franzido e se aproximou, provavelmente para
lhe chamar a atenção. Como não queria criar um novo incidente, Jonathan retrucou rapidamente:
– Uma coisa a menos para me preocupar durante os reparos, não é mesmo?
Faith apenas assobiou um “sim” e baixou o olhar. Naquele instante Jonathan quis estapear-se por
ter desencadeado todo aquele desentendimento e desejou estar sozinho com ela. Não exporia os
motivos que o levaram a tratá-la rudemente, mas talvez ajudasse se fizesse algo básico como pedir
desculpas.
– Sr. De Ciello – Elliot o chamou, roubando-lhe a atenção. – Quero que conheça Peter Shaw, o
rapaz que comentou e que salvou de uma briga.
Então Jonathan voltou os olhos para o rapaz moreno que veio até ele a esboçar um sorriso.
Inocente quanto aos pensamentos nada cristãos que o padre lhe dirigia, estendeu-lhe a mão.
– Muito prazer, padre. – Quando Jonathan a apertou, ele perguntou: – Então falou sobre mim?...
Espero que não tenha sido nada referente a uma possível briga com Mills. Posso garantir ao senhor
que não aconteceria... Ele desistiria, tenho certeza.
– Apenas não quis arriscar – explicou, flagrando um olhar furtivo da moça para si. – E não, não
comentei sobre isso. Só queria saber quem, era afinal nunca o vi por aqui.
– Ah... – o moreno falou jovialmente, já esquecido de uma rusga que para ele não teve a menor
importância. – Morei em Sin Bay e há meses não voltava, mas acho que agora me verá com maior
frequência.
Sorrindo com leve malícia, o rapaz se voltou e olhou significativamente para a moça. Jonathan
agradeceu que já tivesse lhe soltado a mão, pois temeu ser capaz de esmagá-la. A voz de Elliot veio
distraí-lo:
– Acha que poderia almoçar em nossa casa, senhor. Assim o conheceria melhor.
– Adoraria, mas não me sinto muito bem... Talvez outro dia.
– Ainda não se sente bem? – Constance se preocupou. – Acho que deve ser alguma virose que
chega à nossa cidade. Nicole também está indisposta desde ontem à noite e hoje cedo não tinha
melhorado, por isso não veio conosco.
–É possível – Jonathan concordou, notando naquele momento a falta da moça mais velha. –
Infelizmente teremos de deixar para outro dia.
– Nesse dia quero estar presente – disse Peter amigavelmente. – Nunca tinha visto um padre tão
novo.
Jonathan se absteve de externar uma resposta quando lhe veio o desejo mordaz de aconselhá-lo a
aproveitar que a apreciação da aberração era gratuita. Antes que liberasse as palavras grosseiras e
depreciativas, apenas assentiu em concordância indulgente. Para Faith perguntou:
– Quanto poderá vir cumprir sua parte do leilão?
– Se no sábado, estiver bem para o senhor... É o único dia de folga que tenho.
– Sábado está bem.
Na verdade não estava nada bem. A expectativa de uma semana sem vê-la não era das mais
animadoras, mas nada podia fazer. Após a partida de todos e de se despir das vestes litúrgicas,
Jonathan voltou para casa, acabrunhado com toda a conversa. Em menos de meia hora corria pela
praia, depois de ter percorrido outro trecho de trilha que não passava diante da casa da moça.
Não queria estar perto de nenhum lugar que ela estivesse com o rapaz musculoso. Aquele era outro
detalhe que o irritava; com ele não podia se comparar e sair vencedor. O tal Peter Shaw sobrepujava
em força e altura. Imaginá-lo com uma moça tão pequena e delicada como Faith revirava seu
estômago.
Como todas as desculpas que arranjava para si, o mantra que se repetiu na tarde passada já não
surtia efeito. Atormentado pela falta dela, reconheceu que era, sim, de sua conta qualquer coisa
referente a ela. Queria os sorrisos fáceis, os toques, a voz sem a nota de rancor. E, acima de tudo,
queria ser tratado como antes, sem a indiferença polida. Resumindo, queria a moça de volta em sua
vida.

– Bom... – Elliot olhava de Faith a Peter, sentados no sofá à sua frente. – Na verdade, não estou
surpreso, pois sempre acreditei que cedo ou tarde aconteceria, então... Não, não vejo problemas em
namorarem. Mas não quero muitas liberdades... Sabem que não sou afeito é certas modernidades.
– Eu diria que modernidade nenhuma – Mason retrucou debochado.
– Isso mesmo – confirmou Elliot, sem se abalar –, então não façam com que me arrependa.
– Posso ir para meu quarto agora? – Nicole pediu, colocando-se de pé, pálida.
– Claro – a mãe a liberou. – Não deveria ter descido...
– Apenas quis ser educada... – disse friamente. – Afinal, temos visita. Mas agora acho que algo
embrulhou meu estômago – explicou, encarando a irmã seriamente. – Vou me deitar antes que vomite.
– Não precisa dar tantos detalhes querida – Constance a alertou. – Depois do almoço levo algo
leve para você.
Sempre alheia ao que acontecia bem debaixo de seu nariz, Faith pensou compadecida da irmã.
Queria lhe contar a verdade, mas fazia parte do plano fazê-lo somente quando Nicole lhes indicasse
concretamente ainda era apaixonada por Peter, estando disposta a assumi-lo. E pelo visto ainda teria
que aguentar as alfinetadas da irmã. Paciência. No momento o que a intrigava era a permissão do pai.
– Peter, quanto tempo tem que não vem aqui? – este indagou, despretensioso.
– Muito tempo, Sr. Green! – ele respondeu com seu jeito exagerado.
– Faith, então por que não o leva para dar uma volta... Talvez ele queira ver a praia antes do
almoço.
Peter se mostrou animado, assim como ela. Precisava de ar, pois sufocava desde a missa e toda
aquela conversa, assim como a tristeza da irmã, somente a agravava. A moça reconhecia ter assumido
também algumas características bipolares, pois, queria e não queria estar perto do padre.
– Posso fazer uma pergunta? – Peter falou quando já estavam quase no final da trilha. Resgatada de
seus pensamentos, Faith se forçou a rir e respondeu:
– Você acabou de fazer.
– Engraçadinha... É sério – Peter a segurou pelo braço para detê-la. – Por que me beijou?
– Você sabe o porquê... Era para Nick acreditar na nossa história, só isso. Fiz mal?
– Sim e não! – falou ao soltá-la, voltando a andar. – Não, porque, pelo que parece, sua irmã está
furiosa e isso sempre é um bom sinal... E, sim, porque ele me deu o pensar essa noite.
– Pode parar, Peter Shaw. Não confunda as coisas...
– Não estou confundindo. Só pensei que eu deveria ter me apaixonado por você. Seria menos
complicado... Temos a mesma idade. Gostamos um do outro, combinamos... Seria mais fácil,
entende?... E não vou negar... achei bem agradável!
– Percebi quando tentou colocar essa sua língua grande em minha boca – ela retrucou, sem se
aborrecer, afinal pedira por aquilo. Nesse momento chegaram à faixa de areia. Detendo-o para
encará-lo, falou séria: – Acontece que está enganado... Combinamos. Realmente nos damos bem, mas
nada comigo é fácil... Complicação é meu sobrenome... Eu só o faria sofrer.
– E se tirássemos a prova? – o rapaz sugeriu.
– Deixe de ser safado, Peter! – Faith exclamou divertida com sua expressão ansiosa. – Não vou te
beijar de novo se é o que está propondo.
– Seria tipo... o melhor de dois – disse acompanhando-lhe o riso. – Ou de três.
Faith analisou seu rosto jovem. Peter era um rapaz bonito e seu bom humor o tornava apaixonante,
mas lhe era imune. Estava prestes a negar, quando avistou Jonathan numa corrida fora de hora,
aproximando-se pela beira d’água. Subitamente algo gritou em seu peito. Todo o desejo de
reconciliação se foi ao constatar a mentira quanto a estar doente.
Evidente que as tentativas de aproximação durante o piquenique foram meramente por educação;
ou por aparência. Ela ainda era considerada um estorvo. Ferida, desejou ser capaz de ferir. Mesmo
que suas atitudes não causassem sequer um arranhão no padre bipolar, ouviu-se dizer ao amigo:
– Melhor de dois então, mas saiba que isso não muda nada!
– Beleza! – Peter desceu o olhar para os lábios dela. Aproximou-se devagar, usando todos os
trejeitos piegas dos conquistadores inexperientes. Ajeitou-lhe uma mecha de cabelo que não estava
fora do lugar, acariciou-lhe o rosto com as costas dos dedos antes de erguer-lhe o queixo para então
se inclinar até que as bocas estivessem unidas. Como da primeira vez, moveram os lábios
ritmadamente, contudo, ela não se opôs à língua introduzida em sua boca, pedindo aos céus que
Jonathan os assistisse.
Era infundado, mas se comprazia imaginando que, talvez, assim como sua irmã, ele sentisse
ciúmes. Movida por esse desejo de magoar como era magoada, Faith se aproximou de Peter e passou
os braços por seu pescoço. Imediatamente ele abraçou sua cintura e intensificou o beijo. Durante
todo o tempo em que as línguas se moveram uma na outra, nenhum som foi emitido. Faith nada sentiu,
prazer ou asco. O beijo era indiferente e frio e, como começou, terminou. O amigo a largou e a
encarou, desajeitado, afastando-se para passar as mãos pelos cabelos negros nervosamente.
– Foi esquisito para você também? – perguntou por fim.
– Totalmente! – Faith disse, divertindo-se com o embaraço de um homem tão grande.
Para ela não era novidade a falta de sentimento durante beijos que nada lhe diziam. Olhando em
volta furtivamente, viu que Jonathan não estava em parte alguma. Ao que parecia, o esforço fora em
vão. Jonathan nem ao menos os viu. Droga!
– Vamos esquecer e nunca comentar? – Peter propôs, chamando-lhe a atenção.
– Não se comenta o que nunca aconteceu – tranquilizou-o, entristecida. – Mas não vai ficar todo
esquisito comigo, não é?
– Não tenho porque ficar já que nada aconteceu.
– Ótimo! – Tentando melhorar o próprio ânimo, sugeriu: – Então vamos ao nosso passeio. E
decidir nossa agenda... Quantas vezes nos veremos e quando você deve me ligar. Sempre em horários
que Nicole esteja em casa.
– Isso! – Peter a tomou pelo braço para indicar que nada tinha mudado.
E nada mudara, Faith lamentou. Como se Jonathan fosse roer os cotovelos por vê-la nos braços de
alguém. Idiota!

– A ideia agora é quebrar as portas? – Carlo perguntou tão logo o sobrinho entrou, batendo-a
fortemente atrás de si.
– Deixe-me em paz! – Jonathan sibilou seguindo para o quarto.
Depois de separar as roupas que usaria, foi ao banheiro. Tomou um banho demorado onde tentava
a todo custo apagar a imagem de Faith pendurada no pescoço do rapaz. Tão logo terminou, vestiu-se
com suas habituais roupas pretas, fixou o colarinho romano, tentou domar como podia seu cabelo
crescido, calçou-se e saiu.
Sem falar com o tio que assistia sua travessia pela sala com olhos inquiridores, deixou as roupas
suadas na lavandeira e marchou para a igreja. Ao chegar diante do altar mor, o padre caiu de joelhos
e rezou.
Pediu fervorosamente para que seu Criador o livrasse daquela dor, que o salvasse. Contrito,
reafirmou sua obediência e devoção a Ele a às Suas obras, mas, se fosse digno de receber perdão
que não mais alimentasse aqueles sentimentos massacrantes. Que esquecesse a moça leviana que se
deitava com um homem num dia e se derretia nos braços de outro dias depois. Jonathan nem mesmo
encontrava um nome que a denominasse. Nem era preciso, apenas queria força para evitá-la. Força
para liberá-la de sua faxina e da restauração das imagens.
Não queria vê-la em dias que não fosse necessário manter as aparências. Teria uma semana para
conseguir seu intento. Até sábado já seria capaz de tomar todas as providências para que seus
caminhos não se cruzassem. Começaria por parar de correr naquela praia. Iria à outra, no extremo
oposto. Não ficaria na praça à noite. Faria o que fosse preciso. O jovem padre estava tão
fervorosamente empenhado em sua oração determinada que se sobressaltou ao sentir uma mão em seu
ombro. Ao reconhecer o toque do padrinho, sua garganta secou e seus olhos umedeceram.
– Acho que já é hora de conversarmos – ouviu aquele que considerava como a um pai dizer em voz
terna, porém firme. Jonathan lhe voltou o rosto torturado, pensou em recusar, mas entendeu que não
teria escapatória. Necessitava de alívio para seu coração, por isso assentiu. Então Carlo perguntou
afável: – Como seu padrinho ou confessor?
– Confessor, mas não aqui – murmurou. Se o padrinho estranhou, nada comentou.
– Então termine suas orações... Estou esperando-o em casa.
O padre fez como o combinado. Depois de concluir suas preces, seguiu-o. O padrinho já o
esperava acomodada no sofá, com ar contrito. Jonathan se sentou ao seu lado e, sem olhá-lo,
começou em sua própria língua antes que lhe faltasse coragem.
– Abençoe-me padre, porque pequei... – e se calou.
– Sabe que pode me contar tudo que desejar – Carlo incentivou. – Não estou aqui para julgá-lo,
apenas ouvi-lo e se desejar, aconselhá-lo... E livrá-lo de seus pecados e...
– Conhece o mal que me aflige... Faith – Jonathan disse por fim, imediatamente o padre mais velho
se calou. – Desde que vim para essa cidade e a vi, não consigo tirá-la do pensamento. Nunca mais
tive um minuto de paz...
– Sabe nomear o que sente? – o padrinho perguntou sem encará-lo. Ambos miravam um ponto em
comum no assoalho de madeira.
– Eu a desejo – Jonathan admitiu rouco, com a garganta obstruída.
– Ama essa moça?
– Não! – negou veementemente. – Apenas a desejo. Sinto que necessito dela. Sonho com ela quase
todas as noites... – Após um pigarro embaraçado, prosseguiu: – Renego meus votos ao conspurcar
meu corpo praticamente todas as manhãs, pois acordo tomado pela luxúria.
O confessor se moveu sobre o sofá, talvez incomodado pelas palavras do jovem padre, mas nada
disse para não roubar a coragem do sobrinho.
– Penso nela durante todo o dia, todos os dias... Troco-me por menos que um mendigo, pois vivo
de suas migalhas, concedidas consciente ou inconscientemente. Um olhar, um sorriso, um toque...
Quando não a vejo é um dia a menos que vivi. Por ela duvidei de minha vocação... – depois de um
momento de hesitação, disse: – Duvidei de meu padrinho... Duvidei de quem sou...
Novamente o homem se moveu ao seu lado, mas nada disse.
– E agora... Como se não bastasse esse desejo que me tortura, por vezes sou tomado pela ira...
Anseio agredir os homens que se aproximam dela, que podem fazer com ela coisas que eu não
posso... Sinto ciúmes e também vaidade... Soberba, por me considerar melhor do que os outros que
ela escolhe...
– Tem certeza de que não a ama, meu filho? – Carlo indagou ansioso.
– Não a amo!... Quero estar com ela... fisicamente. E aí entram os sonhos que já conhece. Queria
tê-la da mesma forma degradante, contudo, entendo que é errado desejar tais coisas... Há dias que
não sou o mesmo... Não cumpro minhas obrigações corretamente por me considerar impuro e
indigno. Ontem me expus diante de todos porque não a queria com nenhum dos dois rapazes – admitiu
até para si mesmo. Após um longo período de silêncio, onde nenhum dos dois homens falou, Jonathan
concluiu:
– Há pouco a vi na praia, beijando um deles. Minha vontade era ir até eles e separá-los aos socos.
Desejei matá-lo e tomá-la a força caso resistisse a mim... Descobri abrigar um monstro em meu
íntimo e preciso domá-lo, expulsá-lo. Eu não quero mais sentir essas coisas. Quero me... Preciso me
livrar dessa atração que pouco a pouco me destrói. – Jonathan se calou emocionado por finalmente
ter dito em voz alta tudo que ia ao seu íntimo. Após minutos do mais completo silêncio, pediu: –
Ajude-me padre.
– Antes de qualquer coisa, me responda... Arrepende-se desses pensamentos, sentimentos e ações?
– Todos os dias! – admitiu. – Contudo, reincido em todos eles, pois sou fraco.
– Não é fraco! – o padrinho corrigiu. – Já lhe disse isso... É apenas humano e jovem... Um homem
saudável... Inexperiente diante das tentações do mundo e que teve o infortúnio de cruzar com uma
moça bonita... – Depois de um minuto em silêncio, perguntou: – Disse que ela lhe oferece migalhas
conscientemente, então, devo entender que ela o provoca?
– Sim, ela me provoca.
Carlo assentiu e especulou:
– Deseja que eu providencie uma transferência?
Jonathan se alarmou com o oferecimento feito claramente por seu eterno tutor, não por um
confessor imparcial. Procurou pela resposta em seu coração, pois sua mente saberia decidir de
pronto. Aquele caminho era o seguro a seguir; fácil e eficaz. Contudo, Jonathan não acreditava ser
capaz de viver carregando tal fuga covarde em seu passado. Precisava mostrar a si mesmo que era
forte o suficiente para superar aquela fase.
– Não – disse ao padrinho e pediu ao confessor: – Preciso apenas de um conselho, ajuda para
livrar minha alma dessa tentação insuportável.
– Se é assim que deseja... Que seja! – Carlo exclamou resignado. Assumindo seu papel de
confessor, replicou: – O Senhor é fiel e não permite que seus servos sejam tentados além de suas
forças. Se Ele permite que aconteça é porque sabe que é capaz de suportá-la, mas isso não quer dizer
que deva se considerar inabalável e arriscar-se. Então, eu o aconselho a não se aproximar da moça
sem a companhia de outras pessoas. Evitá-la definitivamente não é o ideal, pois se está assim
envolvido, longos períodos sem vê-la aumentaria a falta que sente dela. Quanto ao desejo do corpo,
aconselho que alimente seu espírito. Dedique mais tempo do seu dia para o recolhimento, a oração...
Ocupe-se com serviços comunitários e... Evite as idas à praia.
– Já estava decidido a isso, mas não vou deixar de correr, apenas mudar de local.
– Preferia que parasse com elas. – Novamente um conselho vindo do tutor. – É perigoso ficar
perambulando sozinho por aí.
– Não se preocupe – Jonathan disse sem saber o que realmente incomodava seu padrinho. – Ela
não vai à praia que correrei e se for, essa não é deserta... Não ficaremos sozinhos, então não há
perigo.
Ignorando o último comentário, Carlo continuou:
– Disse que sempre reincide no erro, mas está claro que se arrepende dos maus atos, então... Acho
que está preparado para redimir-se. Volte à igreja ou vá para seu quarto, faça um ato de contrição e
suas rezas habituais, mas preste atenção em cada palavra proferida para ver que não está sozinho. É
um homem passível de falha, mas que possui a força para superar todas as adversidades.
Apenas aquilo? Jonathan se perguntou incrédulo com tamanha liberalidade. Acabara de confessar
que usava sua mão ungida para se masturbar todos os dias, pensando numa mulher que desejava
possuir até mesmo pela força. Admitira que sentia vontade de agredir pessoas que mal conhecia, que
cometera vários pecados mortais... E seu confessor o mandava ao quarto como uma criança que
acabou de quebrar uma vidraça?
Foi inevitável se voltar para encará-lo. O afilhado encontrou o padrinho com os olhos cravados
em seu rosto com a expressão preocupava, avaliativa. Jonathan pensou em questionar a penitência
branda para faltas tão graves, mas desistiu. Sem uma palavra sobre os assuntos expostos, pediu a
bênção ao padre e se foi para a igreja.
Seu quarto estava por demais impregnado da moça por todos os sonhos que teve em sua cama, por
todas as satisfações incompletas e por seu chicote guardado na primeira gaveta da cômoda que, há
dias, perdera sua função punitiva; adquirindo forte apelo erótico.
Se Jonathan tivesse lançado um último olhar ao padrinho antes de cruzar a porta, teria visto que
este se pôs de joelhos e passou a pedir fervorosamente por sua alma.
Capítulo Vinte e Três

Na volta do portinho, onde se despediu de Peter, tudo o que Faith queria era subir ao quarto,
dormir e esquecer. Contudo teve de sanar a curiosidade sobre a real data do início daquele namoro;
se naquele dia ou ainda na adolescência. O capitão aproveitou ainda para reafirmar o quanto estava
feliz com a união, agora que o jovem Shaw era um bom partido. Segundo ele, melhor até do que
Joseph, pois gerenciava os negócios de família e não simplesmente aspirava cargos políticos que
talvez nunca viessem.
Faith lhe respondeu todas as perguntas até que um chamado no rádio lhe desse uma brecha. Alegou
cansaço pela agitação dos últimos dias, desculpou-se e correu para o quarto. Infelizmente, ao entrar,
descobriu que estava longe de conseguir a paz desejada. Nicole a esperava com expressão de poucos
amigos.
– Posso saber que palhaçada é essa entre você e Peter? – perguntou azeda.
– Não há palhaçada alguma – a moça começou. Desejando deitar e descansar ela cogitou revelar a
verdade, mas não considerou certo com o amigo. – Ontem, quando ele me levou para mostrar o
veleiro que comprou, acabamos nos beijando e descobrindo que gostamos um do outro.
– Mentira! – ela vociferou entre dentes, com certeza sem querer fazer uma cena que chamasse a
atenção de seus pais. – Você o está usando! Só porque papai lhe disse que lhe arranjaria um noivo.
Como pode?
A moça chegou à conclusão que aquela era um explicação plausível; mais do que tentar fazer a
irmã acreditar que estava subitamente apaixonada. Assumindo um ar indiferente, confirmou:
– É, você me pegou nessa! – acrescentou para provocá-la: – Ele é melhor que qualquer outro. É
agradável, um bom amigo. E o beijo não é nada mau...
– Safada! – a irmã sibilou. – Mimadinha de merda!... Eu exijo que acabe com isso agora. Se quer
usar alguém faça com aquele seu cachorro particular... Tyler cabe melhor nesse papel do que Peter...
Ele não merece isso.
– Está maluca? – Faith nem se importava com as ofensas ditadas pela raiva. – Sabe que não o
suporto. Mesmo que papai o aceitasse eu jamais ficaria com ele.
– Não suporta uma ova! Se não o suportasse já teria acabado com essa perseguição. Você gosta de
tê-lo por perto e agora, vendo do que é capaz, acredito que até fique se esfregando nele nessas suas
idas à praia, como a boa cadela no cio que é.
– Não vou responder para você, Nick – Faith anunciou, indo em direção ao banheiro. – Está
magoada, triste... Imagino que não deva ser fácil ver o amor da sua vida começando a se relacionar
com outra.
– Não com outra! – a moça corrigiu mordaz. – Mas com uma irmã vagabunda que num dia me
apoia e incentiva e no outro resolve que quer o amor da minha vida para ela e o que é pior... Por
puro capricho, proveito próprio... Mostrando bem a egoísta que sempre foi.
– Agora é que nunca a responderei – ela disse do limiar da porta do banheiro. – Não tenho
argumentos.
Quando a moça retornou ao quarto, minutos depois, após tomar um banho demorado não encontrou
a irmã. Agradeceu mentalmente ao fato e se lançou sobre os lençóis. Diferente do que imaginou,
conciliou o sono quase que imediatamente. Acordou horas depois, quando a tarde já tinha findado.
Ainda se espreguiçando, foi até a varanda admirar os últimos raios de sol. Obrigando-se a não
pensar em nada, entrou, trocou-se e desceu.
O jantar familiar foi um prova de resistência, pois Elliot voltou à carga, comentando a todo minuto
como estava satisfeito com o relacionamento das filhas. Quando estava prestes a terminar o pouco
que colocou em seu prato e se preparava para se refugiar novamente em seu quarto a mãe lhe pediu:
– Poderia levar um pouco da sopa que fiz para sua irmã ao padre Jonathan?
– Por que eu? – ela inquiriu, encobrindo o alarme.
– E por que não você? – o pai quis saber, encarando-a avaliativo. – Sua mãe precisa organizar a
cozinha e sua irmã está a espera de Joseph... Não deseja que seja eu a ir até a casa do padre, não é
mesmo?
– Me desculpe – ela pediu. – Apenas me expressei mal... Não quis dar a entender que não levaria,
era para perguntar por que levar sopa para ele?
– Porque o padre não veio almoçar em nossa casa hoje por estar doente. Já preparei a sopa
pensando nele, então quero que leve a sua parte.
Mesmo que Jonathan mentiroso não necessitasse da sopa de sua mãe, não tinha escapatória.
– Prepare tudo que eu levo – anuiu.
Faith seguiu até a casa de Jonathan a pé, contando os passos, acalmando o coração. Rogando aos
céus que a recebesse com a mesma educação dissimulada que facilitaria se acostumar a esses
encontros. Já que aquilo era tudo que lhe restava, o quanto antes acontecesse, melhor. Foi com a mão
trêmula que bateu à porta dele. Alguns minutos depois ouviu uma voz cantada, carregada com o
sotaque italiano, mas não de seu padre.
– Quem é?
– Faith Green, senhor... – ela falou alto para ser ouvida através da porta. – Minha mãe mandou um
pouco de sopa para o padre Jonathan.
Imediatamente ela ouviu a chave girar na fechadura. O tio do padre a encarou seriamente, mas sua
voz era amável.
– Foi muita gentileza de sua mãe. – Depois de tomar a vasilha das mãos da moça, pediu: –
Agradeça a ela pela atenção em nome de meu sobrinho. Boa noite!
A resposta da moça foi dita à porta. Faith permaneceu a olhar a madeira até entender que ele
praticamente a batera em sua cara. Sabia a resposta, mas ela nem ao menos teve a oportunidade de
atuar na mentira contada pelo jovem padre e perguntar se este estava melhor, nada. Conformando-se,
fez o caminho de volta. Era melhor assim.
Chegava à sua porta, ainda dizendo a si mesma que tudo estava como deveria, quando sua boca foi
tapada por uma mão grande e sua cintura envolvida por um braço forte que a ergueu no ar. Faith
esperneava, mas era em vão. Seu captor era alto e muito mais forte do que ela. Seus pés nunca
tocaram o chão até ele permitisse, já no meio da trilha que levava à praia. Ao ser libertada, Faith se
voltou para encarar aquele que a raptou.
– O que pretende, Tyler? – perguntou furiosa.
– Pretendo confirmar a porcaria está fazendo com o Peter.
– Como sempre, nada que seja de sua conta! – disse, tomando o caminho de volta à casa. Não deu
mais do que dois passos. O rapaz a pegou pelo braço e, conhecendo sua agilidade em se soltar, o
girou e a prendeu numa chave de braço, mantendo-a cativa. Indiferente às pisadas agressivas que
recebia sobre sua bota, sibilou:
– Para seu governo é da minha conta, sim... Fico aqui, como um filho da puta idiota esperando para
ficarmos juntos e você se engraça com qualquer um... Até com um padre, mas não comigo. Isso já
está me cansando, Faith.
– Não posso fazer nada a respeito – replicou, sentindo seu braço doer. – E você não é um filho da
puta idiota... É um filho da puta surdo. Também estou cansada de repetir que nunca vou ficar com
você. E mesmo que fosse possível, como poderia? Veja o que está fazendo comigo há dias... Está me
machucando! É esse tipo de amor que me tem?
Após um instante, o rapaz soltou-lhe o braço, mas não a liberou. Abraçou-a por trás, prendendo-a
fortemente pela cintura enquanto se emoldurava a ela para lhe dizer, junto ao ouvido:
– Me desculpe, Fay... Não é minha intenção te machucar, mas você me cega!... Quando te vi na
praia com aquele idiota, enlouqueci. Sei que é uma substituição, como tentou fazer comigo na noite
de sexta para esquecer o padre.
– Se for o caso continua não sendo da sua conta – ela disse, domando seu asco.
– É o caso! – enfatizou convicto. Apertando-a mais, cheirou-lhe os cabelos demoradamente. – Me
escolhe, Fay... Não me importo. Você me pegou de surpresa quando disse o nome dele, mas agora
estou preparado. Eu te ajudo a esquecer o padre esquisito. – dito isso, beijou-lhe a nuca. – Prometo
não me meter na sua vida... Não reclamo nem da boate. Apenas fique comigo – pediu e insinuou uma
das mãos pelo decote do vestido para apertar um dos seios fortemente, enquanto comprimia sua
dureza contra as nádegas dela. – Sinta isso. Eu te amo tanto, Fay...
– Acho que poderia dar certo – ela disse, após um gemido forçado.
– Jura? – o garoto perguntou esperançoso.
– E por que não? – ela inquiriu depois de cobrir a mão em seu seio e a incentivar no carinho.
Estimulado, o rapaz a soltou e a voltou para si. Faith não conseguia vê-lo com nitidez, mas o
conhecia o suficiente para saber sua altura. Então, sem dar-lhe a chance de abraçá-la, ergueu o joelho
com toda sua força e o acertou na ereção que a enojava. Imediatamente o rapaz caiu ao chão urrando
de dor.
– Desgraçada! – ele vociferou roucamente.
– Sinceramente não quero te magoar, Tyler. Nem te machucar, mas não me deixa alternativa... Hoje
você ultrapassou todos os limites e acredite, essa é a última vez que perdoo a ousadia.
E sabendo que logo ele teria condições de se levantar e segurá-la, Faith correu pela trilha que
conhecia de cor, o mais rápido que pôde até chegar à sua casa.
– O que aconteceu? – o pai perguntou preocupado ao vê-la entrar com o rosto suado, corado. Sua
mãe e a irmã olharam para ela.
– Lembrei que Peter ficou de me ligar – mentiu e rumou para a escada, antes de subir, disse à mãe.
– Não vi o padre Jonathan, mas o padrinho dele recebeu a sopa e a agradeceu em seu nome... Agora
boa noite a todos. Vou ler um livro até a hora de dormir. Nos veremos amanhã.
O pai ainda a deteve para pedir sua companhia no centro comunitário. Depois de se colocar à
disposição, se foi. Ao entrar em seu quarto o coração praticamente batia em sua garganta. Realmente
não queria ter machucado Tyler, mas ele não lhe deu alternativas. Parecia que tudo começava a fugir
de seu controle e entre todos que deveria zelar, o amigo que conhecia seus piores segredos era o
mais importante. Talvez devesse procurá-lo para pedir desculpas. Pensaria a respeito somente pela
manhã.
No momento, com o coração mais calmo, a moça se deixou levar pela lembrança do padre,
dividida entre o alívio e a decepção por não tê-lo visto. Desejou naquele momento ser uma feiticeira
capaz de adivinhar o futuro e até mesmo alterá-lo. Como não era, deveria esperar para ver como
seria sua semana e o dia de sábado. Até lá, tentaria se ocupar com toda sorte de serviços que seu pai
lhe desse no centro comunitário. Eles lhe povoariam a mente pelas manhãs assim como suas aulas
durante as tardes. No mais, somente se preocuparia com as noites insones e seus sonhos molhados.
Na casa anexa à igreja, minutos depois, Jonathan perguntou ao padrinho ao encontrá-lo na sala:
– Quem esteve aqui?
– Vieram lhe trazer um pouco de sopa... – Carlo respondeu sem erguer os olhos do hinário que
folheava. – A vasilha está sobre o fogão.
– Quem trouxe? – Jonathan olhou para a cozinha como se fosse possível ver o utensílio de onde
estava. Após alguns segundos de silêncio o tio respondeu lacônico:
– A caçula de Elliot Green.
– Ela disse alguma coisa? – Jonathan indagou sem pensar. – Perguntou por mim?
– Não. Apenas deixou a sopa enviada pela mãe e se foi... – Depois de erguer os olhos em sua
direção, perguntou: – Fez como lhe pedi?... Sente-se mais aliviado após a remissão de seus pecados?
Imediatamente Jonathan entendeu o recado velado e refreou sua curiosidade inadequada.
– Sinto-me melhor – mentiu.
– Então vá tomar sua sopa...
– Estou sem fome... Vou me recolher mais cedo. Amanhã é um novo dia!
– Que trás a oportunidade de seguir pelo caminho devido. Espero que aproveite.
– Aproveitarei – dito isso, Jonathan voltou para seu quarto. Ao se estender sobre a cama,
experimentava o leve sabor do arrependimento. Mentiu ao dizer que estava melhor, mas também não
se sentia de todo ruim. Era como se externar tudo que o afligia tivesse retirado um pouco do peso que
carregava em seu coração. Assim mais leve, acreditava que deveria ter guardado seu segredo para si.
Não deveria ter se desesperado ao ponto de entregar-se ao padrinho. Agora mesmo que seria
constantemente vigiado e cobrado. Sua vida se transformaria num inferno.
E suas previsões se mostraram verdadeiras, pois chegou à noite de sexta-feira sem ver Faith um
único dia. Não foi à praia onde se encontravam, então não sabia se ela o esperara. Duvidava que
tivesse acontecido baseado no tratamento que vinha recebendo dela e seu compromisso assumido.
Contudo, alimentava a esperança de que ela tenha ficado sobre a pedra, aguardando sua chegada. O
mais próximo de contato que teve com a moça foi ouvir, todas as noites, as buzinadas de Tyler e
infalivelmente as dela como resposta. Exatamente como acabara de acontecer.
Sua vontade era ir até a casa dela para fazer uma visita, mesmo que breve, e não podia. Ainda que
se rebelasse contra suas determinações, o padrinho não lhe permitiria. Carlo controlou-lhe todos os
passos durante aquela semana, prestando-se até mesmo o papel de acompanhante, pois ai com ele a
todas as corridas. Esperava de pé, sob o sol, até que regressarem à igreja. Em todos esses momentos
se mostrou tenso, olhava em seu entorno com expressão preocupada, como se eles fossem ser
abordados pelo próprio demônio. Parecia relaxar apenas quando ambos estavam em casa, na
segurança de suas paredes. Ainda assim ficava com o sobrinho todo o tempo.
Para Jonathan, apesar dos dias sem sobressaltos, a semana foi verdadeiramente um inferno. Nem
mesmo fazer orçamentos para as obras o distraiu. Pelo contrário, ao receber Elliot Green que veio
lhe oferecer a ajuda voluntária dos operários da cooperativa e alguns andaimes que usavam para os
reparos do galpão, sentiu-se sufocado pelo desejo constante de saber notícias da moça. Rogou
fervorosamente que ela irrompesse pela porta da sacristia, carregando seu caderno de anotações para
que o ajudasse na tarefa de encontrar os melhores preços para os reparos. Ou apenas o assistisse
trabalhar, ficasse perto.
Nada aconteceu e agora estava sobre sua cama, tentando conciliar o sono e superar a ansiedade
pelo dia seguinte. Como não tinham conversado, não sabia se ela cumpriria com sua parte do leilão.
Segundo sua mãe – que apareceu na manhã de quarta-feira para recuperar sua vasilha, a moça viria.
Jonathan ainda acreditou que o padrinho o obrigasse a liberá-la, mas Carlo não emitiu uma única
palavra sobre o assunto.
Então, baseado em suas próprias palavras, Jonathan deixou as coisas como estavam, pois não
deveria evitá-la para não agravar sua saudade. Como se fosse possível! Padecera desse mal todas as
horas. Nem ao menos sofria com as malditas buzinadas.
Quando a manhã o encontrou, Jonathan não tinha fechado os olhos um único minuto. Já estava de
pé, tomado banho e arrumado para enfrentar o que viesse. Ao chegar a sala, estranhou encontrar o
padrinho igualmente pronto, anunciando que iria sair.
– Aonde vai? – perguntou com o cenho franzido. – E tão cedo?
– Eh... Tenho algo para resolver em Wells – disse Carlo simplesmente, dirigindo-se para a porta.
– O que pode ter para resolver em Wells? E justamente hoje? – Jonathan estranhou mais ainda. Não
apreciava a vigilância constante, mas havia certo conforto na companhia e, naquela manhã em que
estava sensibilizado ao extremo, sentia que precisava de Carlo mais do que nos outros dias.
– É algo que preciso fazer – ele explicou superficialmente antes de afirmar: – Será breve. Talvez
volte no mesmo ônibus que for. Acredito que não tenha problemas com a moça... Sei que é forte e,
antes que sinta minha falta, estarei de volta. Agora não me retenha mais, Johnny. Quanto mais
demorar a sair, mais demoro a voltar. Fique com Deus!
E sem mais palavras ele se foi, deixando o afilhado desprotegido para enfrentar algum perigo
iminente. Dizendo a si mesmo para ser forte, pois Faith não era o mal encarnado, dirigiu-se a cozinha
e se obrigou a comer. Arrependia-se por não ter determinado a hora que ela viria e se recriminava
por pateticamente saltar na cadeira a cada ruído mais alto que ouvia do lado de fora de sua casa.
Às oito horas, já no limite de sua ansiedade, Jonathan a recebeu. Faith se vestia de modo decente,
com uma bermuda jeans que lhe cobria as coxas e uma camiseta que devia pertencer a outro dono,
talvez ao irmão. Os cabelos escuros estavam presos, mas para alívio do padre, enrolado num coque
no alto da cabeça. Ela não revelava nenhuma parte de seu corpo que pudesse tentá-lo, ainda assim
Jonathan a considerou desejável. Então, seu corpo completamente desestabilizado, reclamou sua falta
como se ela não estivesse diante de si.
– Bom dia, senhor – ela cumprimentou sem nota de frieza na voz doce e trêmula.
– Buon giorno!... – ele respondeu roucamente, dando-lhe passagem sem desprender o olhar do
rosto dela.
Jonathan não pôde deixar de reparar que a moça não lhe tomou a bênção, e não se ressentiu. Não
seria a mesma coisa sem que ela o tocasse. E, definitivamente, ela não deveria. Jonathan soube ao
segui-la sem desviar os olhos de sua nuca delgada enquanto ela ia até o meio da sala. Quando Faith
se voltou bruscamente e seus olhares se cruzaram, ambos permaneceram em silêncio por alguns
instantes.
– Eh... – ela começou desajeitada. – Onde vou encontrar o que preciso senhor?
– O que precisa para...? – ele deixou no ar, sem atinar com o que ela dizia. Estava realmente tão
linda, considerou saudoso.
– Para limpar sua casa – ela esclareceu, mirando-lhe a boca. – Como o combinado.
– Ah, sim!... – disse, piscando para focar a atenção na realidade. – Na área ao lado da cozinha.
Acho que lá tem tudo... Qualquer coisa é só me avisar que eu... providencio.
Novamente ambos ficaram em silêncio, cada um perdido em sua avaliação particular. Tentando
perceber alguma novidade no rosto do outro como se naquela semana em que não se viram algo
pudesse ter mudado. Quando a falta de palavras começou a pesar o clima em torno deles, coube à
moça quebrá-lo novamente.
– Se me der licença, preciso começar a fazer o serviço que comprou, senhor... Senão não termino
hoje.
Quando um sorriso incerto se desenhou no rosto feminino, imediatamente após suas palavras leves,
ditas sem nenhum rancor ou má vontade, o coração do padre se aqueceu. Era como se não tivessem
se desentendido, como se aquele período de dor e indiferença não tivesse existido.
Contudo, uma voz disse na mente de Jonathan que ele não deveria se deixar iludir; nada mudara.
Ele ainda era quem era e ela não deixou de ser a moça dividia por dois garotos. Depois de respirar
profundamente, ele assumiu a postura que lhe cabia, abandonando aquele ar aéreo própria aos
enamorados.
– Desculpe-me... Não quero retê-la além do necessário. Estarei na igreja e, qualquer coisa que
precise, não se preocupe em procurar-me... – Acrescentou educadamente com certo receio de
estragar a readquiria cordialidade: – Não irá me atrapalhar em nada.
– Combinado – ela disse simplesmente.
Ao ficar sozinha, Faith procurou pelo sofá antes que suas pernas falhassem. Já acomodada,
aproveitou para regular a respiração e os batimentos falhos de seu coração. Não imaginou que uma
semana longe fosse deixá-la daquela maneira. Depois de assegurar a segurança de seu segredo ao
fazer às pazes com um Tyler arrependido, chegou a acreditar que ficaria bem.
Ledo engano! Sentiu a falta do padre a cada hora, fazendo com que aquele reencontro anulasse
todos os seus sentidos básicos. Ao ser recebida não viu nada além do rosto dele, não sentiu outro
odor que não o do sabonete pós banho, não saboreou nada além da vontade de beijá-lo e sim,
desfaleceu mesmo que permanecesse consciente.
Contudo não poderia perder tempo até a pronta recuperação. Estava na casa dele e tinha trabalho a
fazer. E mesmo que não o visse muitas vezes – como a saída educada e distante sugeria – , estaria
perto dele em cada objeto seu que tocasse. Animada, Faith saiu à caça do que usaria. Infelizmente
encontrou todos os utensílios que necessitava e os produtos de limpeza; não seria preciso chamá-lo.
Resignada, fez como sua mãe. Rumou para os quartos para arrumá-los primeiro.
Começou varrendo o chão de madeira do último, especulando se aquele seria o de Jonathan.
Depois vasculhou o guarda roupa a procura de lençóis limpos. As roupas encontradas não lhe deram
indicação de a quem pertenciam, pois tio e sobrinho se vestiam da mesma forma, possuíam o mesmo
tipo físico. Decepcionada, pegou as roupas de cama e se pôs ao trabalho. Enquanto removia as
usadas, encontrou um fio de cabelo descolorado e reprimiu um sorriso ao descobrir que estava nos
aposentos de Carlo.
Como seria se tivesse rolado naquela cama acreditando ser a se seu padre? Credo!
Ainda sorria enquanto espanava os móveis. Como não era uma faxineira exemplar, determinou que
tinha encerrado e, carregando os lençóis e fronhas sujos, seguiu para o seguinte. O de Jonathan. Com
a certeza de onde entrava, cruzou a porta expectante após ter deixado as roupas usadas no corredor.
Depois de recostar a vassoura contra a parede, ela colocou as mãos que tremiam nos bolsos traseiros
e analisou tudo à sua volta.
A cama estava com a colcha amarrotada, como se ele tivesse se deitado sobre ela a noite inteira.
Havia uma muda de roupa preta displicentemente jogada sobre uma cadeira e sob a mesma, um par
de sapatos sociais da mesma cor. Ao ver-lhe o tamanho a moça sorriu com um pensamento obsceno.
Logo seu rosto ardeu. Estava ao lado da igreja, no quarto de um padre a comparar mentalmente o
tamanho de seu pênis ao número do pé.
Dando de ombros sorriu, afinal, se tivesse a chance faria coisa pior. Deixando que o divertimento
a contagiasse, ela voltou ao trabalho. Após cheirar as roupas sobre a cadeira e sentir seu cheiro de
sabonete e suor, levou-as ao corredor. De volta ao quarto, como não sabia onde colocar os sapatos,
ela os deixou também no corredor somente pelo tempo de varrer todo o chão e os colocou no mesmo
lugar.
A cama tomou-lhe um pouco do tempo. Parada ao seu lado, a moça não sabia se trocava os lençóis
ou não. Na verdade, o que queria mesmo era se deitar sobre a colcha. Qual o problema? Após um
minuto de deliberação, ela conferiu o corredor e ao voltar se atirou sobre o colchão, de bruços,
afundando o rosto na fronha branca para sentir o mesmo cheiro da camisa preta. Então se abraçou a
ele em concha, cheirando-o e se excitando com aquela proximidade paliativa.
– Deixe de ser tonta garota! – disse em voz alta ante a ideia de roubar a fronha. – Era só o que
faltava... Jonathan entrar aqui e te ver surrupiando suas coisas.
Rindo com a cena que projetou em sua mente, levantou. Sem retirar a colcha que bagunçou ou a
fronha que não roubaria, ela foi procurar peças limpas como da outra vez. A tarefa lhe tomou mais
tempo, pois passou a correr os dedos pelas camisas dispostas nos cabides. Jonathan possuía uma
jaqueta de couro caramelo e pouquíssimas peças comuns. Depois de cheirar praticamente todas, ela
se concentrou em sua procura.
Tateava pelos tecidos dispostos no fundo do guarda roupa, quando seus dedos bateram em algo
sólido. Descobriu ser uma caixa de madeira. Curiosa, puxou-a para fora e a analisou. Era pesada,
alguma coisa estava solta em seu interior e na tampa quatro letras formavam um nome: SADE.
O que seria? Especulou. Estava trancada então jamais saberia, pois perguntar ao dono estava fora
de cogitação. Apressada, a pôs no lugar determinada a voltar à faxina. Estava no quarto de Jonathan
praticamente o dobro do tempo que ficou no de Carlo. Não tardaria e ele chegaria à porta e a
flagraria fuçando suas coisas.
Dividida entre o temor e a excitação de que sua ideia se confirmasse, remexeu nos tecidos que
estavam sobre ela; eram apenas toalhas e algumas fronhas; nenhum lençol. A moça então se pôs de pé
e olhou em volta perguntando onde estariam. Decidiu procurar na cômoda.
– Minha Nossa Senhora... – sussurrou ao pousar os olhos sobre o objeto preto disposto sobre as
camisetas brancas de Jonathan, acomodadas na primeira gaveta. Fascinada, retirou o chicote de seu
lugar, segurando-o firmemente pela base. Correndo as correias sobre a mão livre até que elas
caíssem uma a uma e balançassem livre pelo ar. – Para que Jonathan quer um desses?
Imediatamente as cenas de um dos filmes preferidos de sua irmã lhe vieram à mente; quando um
monge extremamente branco e nu se açoita com algo do tipo. Faith concluiu que o padre possuía o
perfil perfeito para os adeptos a autopunição.
A ambiguidade, a seriedade extrema, o rosto expressivo e marcado que não indicava sua idade.
Jonathan possuía marcas de um homem mais velho ainda que fosse novo; um homem torturado. Diante
de tais fatos, enterneceu-se por ele, apaixonou-se mais. E excitou-se, pois a visão de um Jonathan nu
sempre a acenderia.
– O que pensa que está fazendo?! – O brado furioso veio da porta.
Antes que pensasse em como responderia àquilo, Jonathan já tirava o chicote de sua mão
bruscamente. Estava perdida! Daquela vez ele não passaria por ela como um rolo compressor. Seus
olhos inflamados lhe avisavam que seria aniquilada sumariamente.
Capítulo Vinte e Quatro

Para Faith foi inevitável calcular sua distância entre as duas possíveis rotas de fuga. Todas
inviáveis, pois a janela estava fechada e Jonathan bloqueava a porta. No rosto ele possuía uma
máscara indecifrável, contudo sua postura rígida e voz endurecida denunciavam que apenas uma
linha tênue a livrava de receber o corretivo uma vez citado por ter sido flagrada com aquele chicote
na mão.
– Quem lhe deu permissão de mexer nas minhas coisas? – ele inquiriu entre dentes.
– Eu não... – ela começou sem jeito, odiando que seu pensamento sobre um possível flagrante
tivesse se tornado realidade. – Eu só... Eu...
– Pensei que tivesse vindo limpar a casa, não bisbilhotar minhas gavetas – ele rosnou enquanto
enrolava o chicote em sua mão. A moça olhava para aquela tira de couro preto enrolada na mão do
padre e estremecia sem encontrar palavras que a justificassem. – Estou esperando!
Faith fixou o olhar às duas contas de granito azulado e se obrigou a falar.
– Eu juro... Juro que não estava bisbilhotando, senhor. Eu só... Estava procurando por lençóis
limpos e como não encontrei em seu guarda-roupa, vim...
– Mexeu em meu guarda-roupa?! – ele vociferou, cortando-a.
Com três passadas largas, marchou reto em direção ao móvel, obrigando-a a se afastar caso
contrário a derrubaria. Depois de escancarar a porta ainda entreaberta e conferir a caixa para se
certificar que continuava fechada, ele se voltou lentamente para encarar a intrometida. O olhar
amedrontado não apaziguava seu nervosismo.
Deveria ter atendido antes a vontade de vê-la em vez de perambular pela igreja, dizendo a si
mesmo que a deixasse fazer seu trabalho em paz. Se tivesse vindo antes, Faith não tocaria algo tão
particular. Reprimindo o desejo de sacudi-la para nem ao menos ousasse mentir, indagou duramente:
– Mexeu nessa caixa?
– Sim... – sussurrou após cogitar negar. Desistiu, pois era evidente que não convenceria. Ela era
grande demais para passar despercebida. – Mas sabe que não abri.
– Se descobriu que está trancada é porque tentou ver o que tem dentro dela – ele concluiu o óbvio.
– Como pode ser tão invasiva?
– Não sou invasiva – a moça se defendeu; a emoção do susto arrefecendo. – Apenas quis olhar.
Fiquei curiosa com o nome... O que é Sade?
Quisera saber responder, Jonathan pensou um pouco mais calmo, afinal, ela não tinha como
descobrir aqueles punhais. Mesmo passado o susto inicial, respondeu azedo:
– Non è da sua conta.
Certo! Merecia a resposta malcriada. Arrependida, a moça não conseguia desviar os olhos daquele
homem bravio enquanto mais uma vez o silêncio os cercava, como uma calmaria incômoda depois de
uma tempestade anunciada. Ainda abalada, Faith se dava conta de que estava diante de Jonathan, em
seu quarto, sozinhos, pois em tempo algum Carlo apareceu. As recomendações que se fez no último
domingo ainda eram válidas e depois daquele breve episódio ganharam força.
Deveria deixá-lo em paz, pois já estava claro que se abusasse da sorte, seria realmente aniquilada.
Não fisicamente, mas por palavras que causariam pior estrago. A droga toda, Faith concluiu, é que se
ela o deixasse em paz simplesmente não seria ela. Trêmula, porém decidida, a moça baixou os olhos
e eliminou o espaço entre eles.
– Perdoe-me, padre – murmurou. – Não deveria ter perguntado. Realmente não é da minha conta,
mas... o senhor me deixa desconexa. Veja como estou nervosa...
Num movimento brusco, antes que desistisse da ousadia suicida, ela tomou-lhe a mão livre e a
colocou sobre o peito. Por um segundo acreditou que ele recolhesse a mão e a expulsasse.
Precavendo-se, cobriu-a com as suas mãos e prendeu a palma onde estava.
Logo o temor se mostrou vão, pois Jonathan não se moveu um milímetro, custando a crer no que
Faith fizera. Todavia, sua surpresa era gradativamente substituída pela comichão em sua palma que
em toda sua extensão percebia detalhes perturbadores daqueles montes e vale onde se encontrava.
Jonathan podia sentir o coração feminino saltar rapidamente, mas o que mais perturbava eram as
ondulações não permanentes dos seios redondos dela, como aquela ponta diminuta que crescia sob
seu dedo médio. Alarmado, ele retirou a mão bruscamente e se voltou de costas para a moça,
embaraçado pelas reações imediatas de seu corpo. Era errado tocá-la quando precisava esquecê-la.
Deveria era dispensá-la da limpeza, valendo-se de sua bisbilhotice e mandá-la embora, mas não
conseguia. Por mais que o padrinho dissesse o contrário, ele era um homem fraco. Rendendo-se ao
fato, falou roucamente:
– Não quis assustá-la... Desculpe-me por ter me alterado.
– Tudo bem! Se eu flagrasse alguém mexendo nas minhas coisas também gritaria – ela o
tranquilizou suavemente, considerando ter conseguido uma pequena vitória por ainda estar naquele
quarto. Estimulada, levemente excitada depois do carinho mínimo que recebeu em seu seio, imaginou
que talvez devesse ousar mais. – Como expliquei, não era minha intenção bisbilhotar, mas quando vi
isso foi impossível não pegar...
Às palavras dela, Jonathan olhou para o chicote enrolado em sua mão. Novamente seu corpo
reagiu ao dar conta das vezes que se imaginou ou sonhou usando-o nela. E Faith estava ali, com ele,
os dois a sós. Não sabia bem o que pretendia, ainda assim, voltou-se para encará-la e disse:
– É apenas um chicote... Nunca viu um?
– Nunca tinha segurado um... – ela explicou, olhando para o objeto negro. Ainda sem saber muito
bem o que fazia em vez de mandá-la embora, Jonathan estendeu a mão e o ofereceu.
– Então pegue.
Faith olhou para o objeto oferecido e, sem nada dizer, o desenrolou da mão do padre. Seus dedos
se tocaram fazendo com que os pelos dela se eriçassem. Talvez devesse se contentar com aquela
segunda vitória, porém estava fascinada demais em ver que Jonathan finalmente interagia de forma
positiva. Queria mais. Enquanto acariciava as tiras do chicote, lembrou-se de sua dúvida então
perguntou sem receio:
– Por que tem isso?... O senhor o usa, digo... Em si mesmo?
Jonathan pigarreou para liberar a voz represada tamanha era a excitação ao vê-la manusear o
instrumento. Sequer cogitou mentir.
– Às vezes... Quando meu corpo é insubordinado.
Ao dar sua própria interpretação quanto a insubordinação de um corpo masculino, Faith
estremeceu e disse, sempre o encarando e a mover as tiras entre os dedos:
– E ele é sempre... insubordinado?
– Mais do que deveria... – respondeu Jonathan, ainda incapaz de mentir, colocando as mãos nos
bolsos para ocultar o enrijecimento que a conversa sugestiva e a visão dela alisando as tiras negras
provocavam. – Por isso ele precisa de corretivo.
Ao ouvir a palavra a moça novamente se lembrou da cena perturbadora da lanchonete e sem pensar
inquiriu:
– Era dessa forma que pensou me corrigir por ser impertinente?
Num breve instante de ponderação, Jonathan soube que o assunto impróprio há muito tinha passado
dos limites, contudo, não via meios de cortá-lo quando metade dele se comprazia com cada palavra.
– Se surtisse efeito, sì – ele falou ainda mais rouco em seu sotaque cantado. – Isso assusta você?
– Um pouco... – ela sussurrou e logo em seguida arriscou, indicando seu colo com os olhos. – Se
desejar, pode ver como a ideia me assusta...
Sem se importar com a excitação aparente, completamente fascinado pela oportunidade de voltar a
tocá-la, ele retirou as mãos dos bolsos e espalmou uma delas sobre o colo oferecido. Ela não o
segurou como antes, deixando que, sozinho, mantivesse a palma pousada no vão entre os seios.
Hipnotizado pela imobilidade da moça – agindo sem pensar –, com a mão livre Jonathan lhe cobriu
os olhos, deixando apenas o nariz e a boca à mostra.
Ante a visão, com o próprio coração aos saltos, passou a mover o dedo mínimo lentamente sobre
um mamilo, completamente rijo como aquela sua porção livre de comando. Os tecidos que prendiam
seu membro incomodavam e até mesmo nesse desconforto encontrava prazer. E foi ansiando sentir
mais daqueles espasmos deliciosamente agonizantes que, sem cerimônias, ele moveu a mão, cobriu o
seio inteiro e o apertou.
O suspiro entrecortado de Faith lhe roubou a atenção e, ao mirar a boca arfante, naquele momento
em que a tocava tão livremente, também lhe parecia certo que cobrisse os lábios rosados com os
seus.
Faith se obrigava a permanecer imóvel, mas há algum tempo não segurava o chicote. Este jazia aos
seus pés, pois ela perdera a sensibilidade das mãos. Suas pernas tremiam e seu sexo latejava,
estimulado pelo carinho nada cerimonioso que Jonathan fazia em seu seio. A muito custo ela reprimia
os gemidos que lhe vinham à garganta, pois imaginava que, ao liberá-los, sucumbisse de vez.
Apenas lamentava ser privada de sua visão. Porém não reclamaria da limitação que atenuava seu
pecado por ansiar se entregar a um padre, quando este lhe apresentava seus fetiches. Era confortador
saber que ele nutria desejos nada santos que fazia não parecer errado desejar ardentemente que
tomasse sua virgindade para si.
Ele correspondia a ela e não se importaria se resolvesse aplicar-lhe corretivos naquele instante;
em sua cama ou no chão, pouco importava! Precisava dele para aplacar aquela dor insuportável de
seu recanto mais íntimo. Queria sentir o gosto de sua boca, a potência dos músculos que adivinhava
as formas sob a camiseta úmida durante sua corrida. Queria sentir o cheiro de sabonete e suor
diretamente nele. E, acima de tudo, queria sentir a tão comentada dor que acompanha o
desvirginamento quando ele estivesse inteiro em seu corpo.
Respirando o ar aos bocados, Faith umedeceu os lábios. Desejava vê-lo, mas ainda não atrevia a
se mover. Contentava-se em apenas sentir a mão que acariciava seu peito, no momento com mais
vigor. Ao ouvir um gemido incontido, ela pôde sentir todo o enlevo que o envolvia. Naquele instante,
a moça se deu conta que aquela devia ser a primeira vez que ele fazia tal coisa, afinal, padres eram
virgens não eram? Ante a dedução ela se excitou mais.
Seria a primeira vez de ambos. Emocionada e, acreditando que não havia como ele recuar, propôs
roucamente enquanto segurava a barra da camiseta para erguê-la.
– Deseja sentir melhor? – E esse foi seu erro. O encanto foi quebrado. Tão logo se calou Jonathan
afastou as mãos de seu corpo e novamente lhe virou as costas antes de vociferar:
– Está maluca?
Faith, ainda atordoada e muito acesa, decidiu que não poderia deixar que ele parasse assim.
Jonathan também a queria então valeria a pena lutar. Movida pelo desespero por acreditar que talvez
nunca mais tivesse a mesma chance, confessou:
– Maluca por você. – Sem se importar com formalidades, acrescentou: – Sempre fui maluca por
você, Jonathan.
– Questo non è vero!
Uma mulher compartilhada não seria maluca por ele. Era um estúpido por se prestar ao papel de
acariciá-la devotadamente, mas sempre teria tempo para a salvação. Contudo, antes que se voltasse
para expulsá-la sem qualquer preâmbulo, sentiu os braços da messalina envolvê-lo pela cintura
enquanto ela pousava a cabeça no meio de suas espáduas.
– Não entendi o que disse então não fale nada... Só me escute, por favor...
– Não tem o que escutar – ao falar rudemente, também preso num ciúme ressentido, Jonathan lhe
segurou os pulsos para se desvencilhar dela, pois aquele abraço em suas costas o perturbava mais
que tocá-la. Quando conseguiu se soltar, voltou-se para encará-la ainda excitado, porém decidido. –
Eu disse que você não está falando a verdade – esclareceu. – E não se dê ao trabalho de mentir mais.
– Não estou mentindo! – ela afirmou, tentando se aproximar. – É sério...
– A única coisa séria em toda essa situação é que eu não deveria ter tocado em você. Ou antes
disso... Não deveria ter deixado você vir aqui. É melhor que vá embora.
– Vai me expulsar, de novo? – ela perguntou magoada com as palavras dele. – Vai gritar comigo e
me acusar de te perturbar e de tomar seu tempo?... É isso?
– É o certo – Jonathan disse sério, parcialmente recuperado. – Que você me perturba é um fato,
então não tem porque se ofender quando eu digo. E está claro também que não podemos ficar
próximos um do outro, por isso a mando embora.
– E eu não tenho vergonha na cara porque sempre volto... – Enchendo de coragem, acrescentou: –
Assim como você também não tem.
Com a respiração entrecortada, involuntariamente ele desceu os olhos para a boca igualmente
arfante da moça. Ambos estavam exaltados. A tensão era sentida no ar. Jonathan queria esbravejar e
contradizê-la, exigindo respeito, mas não poderia. Ele, verdadeiramente, não tinha vergonha, ou amor
a si mesmo, nada!
Por mais que tenha sido forte durante a semana bastou vê-la e sentir seu perfume para sucumbir. E
daquela vez, mais do que todas as outras. Era também um homem desgraçado, pois mesmo sabendo
que deveria encerrar a conversa de vez, somente conseguia desejar provar aqueles lábios trêmulos e
rosados. Ao dar um passo em frente, ainda sem saber ao certo o que faria, apenas tendo consciência
que talvez enterrasse de vez sua dignidade, Jonathan ouviu chamarem seu nome.
– Sr. De Ciello... Está aí?
– É a Sra. Williams – Faith murmurou contrafeita com a interrupção.
– Eu sei – ele disse sério, com o cenho franzido. – Ela não pode nos achar aqui.
– Não estamos fazendo nada... – ela retrucou dando de ombros.
– E nunca faremos! – Jonathan sibilou intimista antes de rumar para a porta. – Vou ver o que ela
deseja... E não saia daqui.
Contrariada, Faith ainda ouviu a senhora intrometida chamá-lo mais uma vez. Notou por seu tom
que ela estava alarmada. Imediatamente foi tomada pela curiosidade, mas achou melhor obedecer ao
padre. Já tinha ido longe demais para ainda aparecer na sala, com o rosto corado como deveria estar
somente para ouvir uma conversa que não lhe dizia respeito.
O que lhe importava, pensou, era que Jonathan tinha dito com todas as letras que ela o perturbava.
Como mulher e não somente por lhe ocupar o tempo, como acreditou. Comprazia-se com a revelação,
quando Jonathan voltou, trazendo a expressão carregada.
– Preciso ir a Wells, imediatamente... – informou apressado.
– O que aconteceu? – Faith preocupou-se.
– Mesmo que soubesse explicar não teria tempo, então apenas escute. A Sra. Williams a viu
entrando essa manhã e como sabia da limpeza não precisei dar-lhe maiores explicações... O que
quero que faça é o seguinte... Deixe tudo como está, vá para sua casa e esqueça o que aconteceu aqui,
está bem?... Prometo não ser grosseiro com você, mas preciso que fique distante, então... Per favore,
apenas esqueça. Vou sair agora, mas a Sra. Williams fechará a porta à sua saída. Ciao, Faith! – então
ele se foi, sem mais uma única palavra.
Esquecer? Agora era impossível!... Antes de serem interrompidos teve a nítida impressão de que
finalmente teria seu beijo. Estava sensibilizada. Até mesmo o tom nervoso e apressado que ele usou
para se dirigir a ela, excitou-a. Queria mais, muito mais!... Então esquecer e se afastar agora que
tinha certeza de que era correspondida, não era uma opção. Dar-lhe-ia o tempo que quisesse até que
se rendesse, mas jamais o deixaria.
– Faith! – Sarah Williams a chamou do corredor, tirando-a de suas resoluções. A moça apressou-se
em ir até ela, pois o chicote que os levou a tudo aquilo ainda estava no chão.
– Estou aqui – disse, aparecendo na porta do quarto. A senhora parou onde estava e a olhando com
curiosidade.
– O Sr. De Ciello me pediu que a acompanhasse até a porta, então...
– Me desculpe, mas não posso deixar meu serviço pela metade... – disse resoluta, enquanto
estendia a mão para pegar a vassoura. – Quando terminar eu a chamo e a senhora fecha a porta.
A mulher pareceu ponderar por um instante, então respondeu.
– Está bem... Vou fechar a igreja e ir para minha casa, depois você me chama, está bem?
– Combinado! – Faith respondeu satisfeita, então lhe ocorreu perguntar antes que mulher se fosse.
– Senhora... Poderia me dizer por que o padre Jonathan saiu tão apressado?
– Não sei ao certo! – disse assumindo uma expressão preocupada. – Apenas atendi o telefonema lá
na sacristia e vim chamá-lo... Só sei que era da polícia e que alguma coisa aconteceu com o senhor
Carlo. Pela reação do padre, acho que é grave. Agora me deixe ir... Quando terminar me chame.
– Está bem! – ela disse sem notar. Agora estava preocupada com o tio de Jonathan. O que poderia
ter acontecido para que a polícia entrasse em contato com seu sobrinho? Teria que esperar pela volta
do pároco para saber.
Livre de sua excitação depois daquela notícia, Faith voltou à arrumação do quarto. Como não
encontrou os lençóis limpos, decidiu alisar a colcha e afofar o travesseiro que amassou. Arrumou a
bagunça deixada por ela e o padre dentro do guarda-roupa, guardou o chicote depois de alisá-lo por
mais alguns minutos, pensando que seria interessante ser castigada sempre que seu corpo fosse
insubordinado.
Imediatamente abandonou a ideia. Poderia ser excitante para ela, mas não tinha nada de luxuriante
em afoitar-se. Se ainda fosse se basear no filme, Jonathan deveria se machucar seriamente com
aquele chicote. Certo, pensou, talvez estivesse influenciada pela notícia de um possível acidente
envolvendo o tio, por isso maximizava as ações do padre. Ele não se machucaria de verdade, talvez
até tivesse dito aquelas coisas somente para assustá-la. Fosse como fosse, não poderia ficar ali o dia
inteiro.
Como a casa era pequena e organizada, Faith não demorou mais do que algumas poucas horas
para limpá-la. Deixou a cozinha e a área por último. Quando terminou seu serviço, cogitou preparar
café e um bolo para deixar como forma de desculpas pelo episódio no quarto, porém logo abandonou
a ideia. Não sabia quanto tempo Jonathan demoraria a voltar, então o melhor que tinha a fazer era ir
embora. Não se furtou de deixar um bilhete sobre a mesa da cozinha antes de sair a procura da Sra.
Williams.
Já em sua rua, a preocupação foi substituída pela curiosidade ao avistar um Fusion preto
estacionado à sua porta. Não sabia de quem poderia ser nem encontrou ninguém em sua casa que lhe
indicasse. Seu pai e seu irmão não estavam assim como Nicole então o jeito foi sair à caça da mãe.
Encontrou Constance estendendo as últimas peças roupas que lavou naquela manhã.
– Oi! – disse, aproximando-se.
– Oi... – disse a mãe, voltando-se para o cesto no qual retirou outra peça. – Pensei que fosse
demorar mais lá na igreja.
– Não cheguei a limpar a igreja... O padre Jonathan teve de sair às pressas e pediu que eu deixasse
tudo como estava. Apenas organizei as coisas na casa e vim embora... A Sra. Williams fechou tudo
por lá.
– O padre saiu às pressas? – ela perguntou deixando a roupa no cesto. – O que aconteceu?
– Ele não me disse, mas a Sra. Williams me contou que atendeu o telefonema da polícia de Wells...
Sei que foi alguma coisa que aconteceu ao tio dele.
– Nossa! – ela exclamou alarmada. – O que pode ter sido?
– Só saberemos quando o padre voltar... E se nos contar, afinal... Talvez não seja da nossa conta.
– Mas vocês são amigos, não são? – a mãe perguntou, esperançosa.
Mais uma vez Faith achou admirável aquela capacidade de Constance em não notar o mundo em
volta. Até mesmo seu pai pressentiu o perigo que a proximidade dos dois poderia representar; menos
sua mãe. Bom, Faith pensou condescendente, se sua mãe era feliz daquela maneira, que fosse. Sem
querer criar falsas expectativas, disse:
– Sim, acho que somos amigos, mas não vou perguntar nada que ele não queria me contar.
– Está bem... De toda forma, se a polícia está envolvida, deve ser grave... Ele não terá como
esconder.
– Pode ser... – Faith retrucou distraída. O comentário da mãe ia de encontro às suas preocupações.
Infelizmente nada poderia fazer para ajudar Jonathan. Tudo que lhe restava era pedir para que a
gravidade não fosse irreversível. Conhecia-o há pouco tempo, mas o padre já deixara clara a
importância do padrinho em sua vida.
– Bom... – disse sua mãe chamando-lhe a atenção. – O jeito é esperarmos. Agora, me diga, por que
não nos avisou que Peter viria hoje?
– Ele está aqui?! – surpreendeu-se; nada fora combinado. – Então era ele o dono daquele carro
bonito?
– Sim... E ele chegou tem mais de uma hora. Saiu com seu pai. Acho que foram ao cais ver o
barco... Ainda nem servi o almoço.
Faith sabia como sua mãe não gostava de atrasos, principalmente na hora do almoço e jantar.
Aquele era todo o drama doméstico que conhecia.
– Não se preocupe com isso, mamãe... Tenho certeza de que logo eles estarão aqui. Um dia que
atrase o almoço não é problema.
– Certo! – retrucou a mãe, sem convicção. – Vá tomar banho para esperar a volta de seu namorado,
assim pelo menos não agrava o atraso.
– Sim, senhora – anuiu, obediente. Ao se retirar, já estava esquecida de almoços atrasados e
namorados de mentira. Somente pensava em Jonathan. Como ele estaria?

O padre seguia pelos corredores Hospital Central de Wells, consternado. O odor de éter e limpeza
que sempre lhe lembravam de sua internação não o abalavam naquele início de tarde. Toda sua
atenção era voltada para as placas indicativas que o levariam até o setor das CTIs onde estaria seu
padrinho, contrariando as palavras do investigador que tranquilizou-o ao contar sobre o assalto
sofrido.
Souber ter encontrado o lugar certo ao encontrar dois policiais sentados num dos bancos ao lado
da porta. Tão logo perceberam sua aproximação, se colocaram de pé para recebê-lo.
– O que houve? – Jonathan perguntou preocupado, tentando passar pelos dois homens para se
aproximar dos vidros que permitiam ver quem estava nos leitos isolados.
– Pelo o que vejo é o Sr. De Ciello? – disse um dos policiais, ignorando a identificação que lhe
deram na portaria, indicando apenas o colarinho clerical. – Sobrinho da vítima.
– Sim, sou eu... – confirmou Jonathan, com os olhos postos no tio. Vê-lo ligado aos tantos
aparelhos, oprimiu-lhe o coração. Sua vontade era invadir aquele quarto para resgatá-lo.
– Sr. De Ciello? – o policial chamou em tom firme. – Acalme-se. Seu tio está bem.
– Onde está o médico responsável? – Jonathan perguntou sem ouvir-lhe. – Ou a enfermeira?...
Quero saber como ele está.
– Logo virão falar com o senhor, agora preciso que me escute.
– Tudo bem! – disse, obrigando-se a prestar atenção. – Pode falar...
– Não sou o médico, mas posso lhe assegurar que ele está bem. Não sabemos o que aconteceu com
seu tio, mas... Ele se envolveu numa briga. Estava muito machucado... Teve duas costelas fraturadas,
está com escoriações e... O agressor ou oponente lhe desferiu um tiro.
– Um tiro?! – Se parecia extraordinário imaginar seu padrinho envolvido em uma luta, idealizá-lo
baleado era praticamente impossível. – Onde?
– Como disse não precisa se alarmar, senhor. Agora ele passa bem.
– Mas ele está em uma ala de terapia intensiva! – Jonathan retrucou.
– É procedimento padrão, senhor... – o policial explicou, pacientemente. – Seu tio acaba de vir de
uma cirurgia onde retiraram o projétil que se alojou em seu ombro. Pelo o que o médico informou, à
noite ele já poderá ir para o quarto.
O padre nada disse; apenas se voltou para o vidro a fim de olhar o padrinho inerte sobre o leito.
Logo o policial que tentou acalmá-lo, se colocou ao seu lado.
– Sr. De Ciello... Eu o esperei porque preciso lhe fazer algumas perguntas. Deixe eu me apresentar
corretamente, sou o investigador Haddock e este é meu parceiro, Brice.
Jonathan cumprimentou com um aceno de cabeça o segundo homem, indicado. Então, com um
suspiro resignado olhou para o homem ao seu lado.
– Pode perguntar à vontade...
– Bem... Encontramos seu tio desacordado, às margens da rodovia há poucos quilômetros da
entrada da cidade então não temos nenhuma indicação que nos leve a esclarecer o que aconteceu.
Descartamos a hipótese de assalto, pois seu tio está com sua carteira, documentos, dinheiro, celular...
Aparentemente nada foi levado.
– Celular? – Jonathan estranhou. – Nunca soube que meu padrinho tivesse um celular.
– Pois saiba que tem. – o inspetor confirmou. – Ao que parece ele não o utiliza com frequência,
pois nós o verificamos e tudo que encontramos foi o telefone de sua paróquia na lista e uma chamada
efetuada para um lugar chamado Blue Moon; depois que eu entrei em contato com o senhor eu tomei a
liberdade de verificar esse outro número. Com exceção desses dois, não há mais números
registrados, absolutamente nada.
Por que seu padrinho tinha telefonado para a lanchonete de Grace em um celular que ele nem ao
menos sabia que existia?
– Senhor? – o homem o chamou.
– Sim? – Jonathan falou, disperso.
– Perguntei se o senhor tem conhecimento de algum desafeto de seu tio. Se ele tem algum inimigo?
– Carlo?! – Parecia que falavam de outra pessoa. – Não. Digo com certeza que ele não tem
inimigos. Moramos em Sin Bay há pouco mais de duas semanas, antes disso estávamos em
Washington.
– Então acho que teremos que esperar até que seu tio acorde para sabermos o que aconteceu...
Quero entender, pois nunca soube de ataque a padres nessa cidade. – Depois de vasculhar o bolso do
casaco que usava sobre sua farda, lhe estendeu um cartão. – Tão logo ele esteja em condições de
contar alguma coisa entre em contato comigo, por favor.
– Farei isso – Jonathan assegurou, olhando o cartão sem vê-lo na verdade, então disse para si
mesmo. – Também quero entender.
Capítulo Vinte e Cinco

O padre conferiu o grande relógio fixado na parede azul claro do corredor. Em cinco minutos
completaria seis horas que Carlo tinha sido levado para o quarto, e em tempo algum recobrou a
consciência. Ainda assim, Jonathan estava relativamente calmo. O médico responsável pela operação
assegurara que o quadro do paciente era estável. Jonathan apenas não relaxava por completo por não
calar seus questionamentos.
Queria saber como o tio possuía um aparelho celular sem que ele nunca tivesse tomado
conhecimento. Ou ainda, entender porque telefonou para Grace e não Samuel, Billy ou qualquer outro
comerciante de Sin Bay. E o que ele estaria fazendo na estrada para Wells e não na cidade para onde
disse que iria resolver algo que precisava fazer. Não tinha como elucidar sozinho. Seria preciso
esperar pela recuperação do padrinho para que dissesse algo esclarecedor.
E enquanto esperava – completamente desperto depois de tomar seu sexto copinho de café –
Jonathan também não desligava do problema que deixou em Sin Bay. Queria apagar de seus ouvidos
a declaração mentirosa. Por mais que sua mão formigasse com a lembrança do seio ou sua boca
ansiasse provar o mamilo que despertou, não deveria tocá-la uma terceira vez. Era um padre e
deveria se portar como tal. E exigir respeito para que Faith não acusasse de não ter vergonha na cara,
por exemplo.
Com um suspiro profundo, Jonathan passou as mãos pelos cabelos crescidos na tentativa de
expulsar os pensamentos inquietantes e levantou. Depois de dar uma volta completa pelos corredores
do andar, voltou para junto do padrinho; para a cadeira que deixara ao lado da cama, perto da
cabeceira. Como das outras vezes, impressionou-se com a quantidade de machucados espalhados
pela face de Carlo. Fora os arranhões, um dos olhos estava enegrecido por um grande hematoma e o
lábio inferior inchado onde fora cortado. A Jonathan era praticamente impossível idealizar o
padrinho envolvido numa luta corporal, sem um motivo aparente.
Correndo uma das mãos pela cama até alcançar a dele, Jonathan a apertou e passou a rogar que
logo se recuperasse. Queria-o de volta, mesmo que demorasse a esclarecer o ocorrido. Queria-o
lúcido para ter plena certeza de que estava realmente fora de perigo. Preso em sua prece muda e
devotada, Jonathan foi vencido pelo cansaço e terminou por adormecer com a cabeça sobre o
colchão, ainda a segurar-lhe a mão. Acordou com o lamento distante de seu eterno tutor que logo se
transformou em uma súplica lamuriosa.
– Meu pequenino... Não o meu pequenino...
Imediatamente Jonathan se pôs se pé. Carlo delirava, tendo a expressão inquieta e sofrida. Sem
nada que pudesse fazer para ajudá-lo, Jonathan saiu a procura de uma enfermeira.
– Ele está com febre – a mulher anunciou em tom indiferente depois de verificar que tudo o mais
estava normal. – A medicação está correta, mas vou ministrar um antitérmico.
– Está bem – disse num sussurro sem desprender os olhos do padrinho que agora lamentava de
forma inaudível.
– Não se preocupe padre – ela disse um pouco mais afável. – Seu tio ficará bem. É que a cirurgia
está recente. É normal que ele tenha um pouco de febre. Agora me deixe providenciar o antitérmico.
– Por favor – Jonathan disse apenas. Tão logo a enfermeira deixou o quarto, Jonathan se colocou
ao lado do tio. Ele ainda estava agitado, mas não se movia. Apenas seu rosto expressava sua
inquietação. Por vezes Jonathan o ouvia chamar por aquele pequeno desconhecido. Quem seria?
– Pronto!... Aqui está! – anunciou a enfermeira ao entrar no quarto. Depois de medicar o paciente,
depositou a seringa sobre a bandeja que trouxe e então se voltou para Jonathan com um copinho em
uma das mãos e um copo com água na outra. – Tome padre, esse é para o senhor. Pode tomar sem
medo... É só para que possa relaxar um pouquinho. A noite será longa e não será de muita ajuda se
surtar toda vez que seu tio esboçar qualquer reação.
Jonathan olhou para o copinho com certa má vontade. Imediatamente lembrou seu tempo de
internação onde era obrigado a ingerir vários comprimidos todos os dias. Contudo, sabia que a
enfermeira tinha razão. Não estava preparado psicologicamente para ser um bom acompanhante.
Resignado, tomou o copinho da mão da mulher o virou o comprimido diretamente em sua garganta,
para logo em seguida tomar um longo gole de água.
– Obrigado!
Quando a enfermeira se foi, Jonathan ignorou a cadeira ao lado padrinho e foi se acomodar em
uma poltrona grande, disposta ao lado da janela. Sentado ali, poderia observar o tio até o calmante
surtisse efeito.

– Tem certeza de que gostou da surpresa? – Peter perguntou pela terceira vez naquela noite.
– Tenho – Faith respondeu como nas duas primeiras vezes. – Mas poderia ter me avisado que
viria. Eu poderia encher os ouvidos de Nicole com minha expectativa.
– Faremos isso da próxima vez – ele assegurou, segurando-lhe a mão por cima da mesa.
Estavam na Blue Moon. Peter considerou uma boa ideia levá-la para passear, pois tinha saudades
da namorada, como disse a todos na casa da moça, mas ela sabia que ele queria apenas um pretexto
para não assistir a suposta cunhada abraçada ao noivo sobre o sofá.
A moça sugeriu que ficassem na varanda ou fossem passear na praia, mas o namorado preferia ir
mais longe. Solidária Faith o atendeu, contudo não conseguia desprender os olhos da igreja. Mal
prestava atenção na conversa que mantinham, tamanha era sua preocupação. Imaginou que Jonathan
voltaria logo de Wells, mas já se passara mais de dez horas de sua saída. Não ter como conseguir
informações a massacrava. A impotência a impacientava.
– Fay, o que você tem hoje? – Peter perguntou, seguindo-lhe o olhar além da praça; encarando-a
acrescentou: – Espera ver alguém?
– Ninguém – mentiu. – Estou aqui imaginando se Nicole está pensando na gente?
– Se está, nunca saberemos – ele retrucou num lamento.
Sua mentira valeu, pois imediatamente o amigo esqueceu-se dela e passou a falar de Nicole.
Resignada, tentou se prender ao assunto, mas vez ou outro seus olhos corriam para o outro lado da
praça. Outra que parecia agitada era a dona do estabelecimento. Faith já contara três copos
quebrados aquela noite. Sem mencionar os pedidos trocados da mesa ao lado da sua e a reclamação
de seu Peter pelo lanche pedido ter vindo com o hambúrguer praticamente cru.
– Merda! – Faith a ouviu exclamar ao quebrar o quarto copo.
– Com licença, Peter. Vou ver o que está acontecendo com Grace. Um minutinho, eu prometo!
– Aproveite e veja se acabou o gás... Isso aqui está mesmo cru. – Ele ergueu uma fatia de pão para
olhar o hambúrguer com desgosto. Sem dar-lhe atenção, Faith foi até a patroa da irmã que juntava os
cacos num canto atrás do balcão, arrumando-os sobre os outros com a ajuda de uma vassoura.
– Eh... – Faith começou, apoiando-se no balcão. – Tudo bem por aqui?
– Parece que está bem? – Grace retrucou sem encará-la, juntando os cacos apressadamente.
– Ei, calma Grace... Só vim ver como você está?... – Faith falou em tom conciliatório. – Quer que
eu te ajude?
– Não, obrigada! – disse rispidamente, então, depois de olhá-la, mais calma prosseguiu: – Me
desculpe, Faith. Não quis ser grosseira com você. É que...
– Pode falar... Por que está tão nervosa? – perguntou, de fato preocupada. Grace a encarou,
considerando a questão, então falou, gesticulando para o salão:
– Ah... Não estou acostumada a esse movimento nas noites de sábado. Geralmente o povo vai para
Wells, para o cinema, bares ou lanchonetes de lá... Aqui sempre fica às moscas, mas hoje... Parece
que todos resolveram aparecer.
– Mas isso é bom, não é? – Faith não entendia a lógica. Assim como não entendia o nervosismo,
afinal a lanchonete nem estava cheia, apenas cinco mesas eram ocupadas e já vira Grace dar conta de
muito mais, satisfeitíssima com o movimento.
– Seria... Em outro dia... Não hoje! – disse em tom cansado. – Hoje eu só queria sumir.
– Está me deixando preocupada. – Faith se alarmou com a declaração. Sem cerimônias deu a volta
no balcão e se colocou ao lado da mulher. – Diz para mim o que aconteceu hoje para que te deixou
nesse estado.
Novamente Grace a avaliou, e disse por fim:
– Eu não posso. Obrigada por se preocupar, mas volte para seu namorado. Você ainda é muito
jovem para entender as complicações da vida. – Depois de dar-lhe um tapinha amistoso no rosto,
pediu: – E diga para Peter que vou mandar outro sanduíche. O gás acabou de voltar.
Dando o assunto por encerrado, a mulher voltou para a cozinha. Faith ainda cogitou segui-la, mas
respeitou seu silêncio. Dava para ver por sua expressão o quanto estava sofrida. A moça se sentia da
mesma forma e se conhecia o bastante para saber que quando estava assim não gostava de dividir
com ninguém. Apenas Helen – e por vezes Tyler – se aventurava a furar o cerco por não temer os
possíveis danos.
Mas essa coragem vinha da solidez da amizade, coisa que não possuía por Grace então, melhor
deixá-la ruminar o que a atormentava; até que passasse.
– E então? – Peter perguntou assim que Faith se acomodou na cadeira. – Descobriu o que ela tem?
– Está sendo um dia ruim, só isso – Faith respondeu vagamente, mirando o prato vazio. – Ela pediu
para avisar que vai te mandar outro sanduiche, mas nem deveria, afinal, o cliente insatisfeito devorou
o hambúrguer cru sem pestanejar.
– Eu estava com fome – Peter se defendeu como se tivesse sido pego em falta grave. Faith se
permitiu sorrir de sua expressão e tentou mudar seu próprio clima. Como Grace salientou, era muito
nova para tentar entender as complicações da vida. E como não poderia ajudar a patroa da irmã ou
Jonathan o melhor a fazer era aproveitar o restante da noite.
– Quando você não está com fome? – Sorriu para o amigo.
– Quando estou dormindo – ele respondeu prontamente. – Eu acho...
– Bobo! – exclamou divertida, depois tentou puxar um assunto que prendesse sua atenção. – E
então... Não me disse o que foi fazer com meu pai lá no portinho.
– Ah... Seu pai foi me mostrar as mudanças que quer fazer no Free Soul 1.
– É... O velho capitão quer fazer algumas melhorias. E o que você achou?
– Não é nada demais... Só retocar a pintura e trocar o madeiramento com sinais de apodrecimento.
Trabalho de duas ou três semanas, no máximo. Eu disse àaele que se quiser pode levar o pesqueiro
para o estaleiro do meu pai.
– Jura?! – ela perguntou interessada. – Eu nunca estive lá... O que meu pai achou do oferecimento?
– Elliot falou que já tinha comprado a tinta e que não queria dar trabalho, mas eu disse que não era
trabalho algum, afinal... Agora somos da mesma família. – Depois de piscar matreiramente para
Faith, prosseguiu: – E sério... O trabalho é pouco, faço numa boa.
– Então ele aceitou?
– Aceitou... Ficou de levar o barco para York Harbor nessa segunda-feira.
Imediatamente Faith olhou para a igreja. Estava dividida entre o desejo de ir com o pai e ficar
para ver se poderia ajudar Jonathan de alguma maneira. O problema era não ter certeza de como
Jonathan a receberia. Se ele seguisse o próprio padrão, o reencontro não seria dos melhores.
Baseada nessa certeza ela se decidiu.
– Então vou com ele... Assim conheço seu estaleiro e mato Nicole do coração.
– Pelo o que vejo eu arrumei a melhor das aliadas. Você não tem dó de sua vítima!
– É só assim que se ganha, meu amigo... Só assim que se ganha!

– Senhor? – Jonathan ouviu a voz distante. – Senhor padre?
Ao novo chamado, ele se sentou ereto na poltrona. Demorou alguns segundos até se lembrar onde
se encontrava. Com a boca seca e a cabeça a latejar, ele focou sua atenção na enfermeira à sua frente.
– Sim? Aconteceu alguma coisa? – falou roucamente, ainda com sono. Antes que ela respondesse,
Jonathan se pôs de pé para olhar o tio. Seu torpor se foi ao vê-lo desperto.
– Nada aconteceu, senhor – ela disse em tom de desculpas. – Seu tio está acordado há algum tempo
e pediu que eu o chamasse. Acho que ele teme que o senhor fique com torcicolo por estar dormindo
numa péssima posição. Desculpe-me.
– Tudo bem! – ele a tranquilizou, aproximando-se do padrinho que o olhava de uma forma
estranha.
– Oi – Jonathan disse em italiano tão logo se colocou ao seu lado sem se importar que a enfermeira
não o pudesse entender. – Como se sente?
– Como se tivesse sido atropelado – Carlo respondeu em tom baixo. Quando a enfermeira se foi
ele perguntou: – O que faz aqui?
– O que faço aqui?!... – indagou estupefato. – Onde mais eu estaria?
– Em Sin Bay... Se preparando para sua missa. – Foi a resposta simples.
– Eu não o deixaria aqui, assim como não conseguiria ministrar a missa. – De toda forma tinha
esquecido que estavam no domingo, mas não importava.
Como o padrinho esperava que tivesse cabeça para fazer o que quer que fosse, com ele internado,
horas depois de ter sido espancado e baleado?
– Agradeço a preocupação, mas pelo o que vejo estou sendo bem cuidado e eu não iria à parte
alguma – observou Carlo, seriamente. – Você deve entender que suas obrigações com sua paróquia
vêm em primeiro lugar.
Jonathan ficou perdeu o chão. Estava naquele hospital há horas, mal se alimentara, dormira sentado
numa poltrona para agora ser repreendido? E sequer poderia retrucar. Contudo, apesar de o tio estar
certo, esperava ao menos um pouco de reconhecimento.
– Sei de minhas obrigações e que fiquei em falta com elas hoje, mas tenho certeza de que Deus
perdoará a falha de um sobrinho extremamente preocupado com seu único parente.
Carlo sustentou seu olhar um minuto, então voltou o rosto para o lado oposto.
– Não era para você estar aqui, Johnny – disse embargado. – Sei que abomina hospitais e... Não
queria que me visse assim.
– Sim, abomino até mesmo o cheiro desse lugar, mas é aqui que você está e minha obrigação é
ficar ao seu lado como esteve do meu. E não vejo qual o problema de lhe ver assim. Não procurou
por isso... Atacaram-no covardemente. Não há vergonha alguma em ser uma vítima da violência.
– Sim – Carlo voltou a encará-lo. – Fui uma vítima... Ainda assim não queria que me visse
machucado. Devo estar horrível.
– Digamos que... Se o senhor saísse na rua esta noite, assustaria algumas pessoas – Jonathan
comentou, recuperado do ressentimento pela bronca recebida. O padrinho ameaçou sorrir, mas
imediatamente abandonou a ideia, assumindo uma expressão de dor. – Desculpe-me. Não deveria ter
dito tamanha bobagem.
– Tudo bem, Johnny! – murmurou. Depois daquele instante nenhum dos dois encontrou mais
palavras para serem ditas. Jonathan sentia a necessidade crescente de interrogar seu tio, mas não via
como. Logo a enfermeira voltou e, depois de fazer a assepsia do paciente e medicá-lo, se foi
deixando-os novamente no mais completo silêncio.
– Não vai me perguntar o que aconteceu? – Carlo indagou conhecedor de seu tutelado.
– Estava esperando pelo melhor momento – Jonathan admitiu.
– Agora é um bom momento. – Carlo indicou a cadeira ao lado da cama. Com Jonathan
acomodado, falou: – Fui abordado por um homem assim que desci do ônibus. Ele anunciou o assalto,
mostrou que estava armado e me fez segui-lo por vários quarteirões até os limites da cidade. Depois
me levou além, beirando a estrada... Em determinado ponto me obrigou a entrar no meio do mato.
Disse que ali seria seguro retirar meus pertences sem chamar a atenção.
Jonathan ouvia em silêncio, a narrativa do tio esclarecia, mas criava novas perguntas, afinal, nada
lhe foi tirado. Acreditando que logo tudo se explicaria, Jonathan permaneceu calado.
– Foi nesse momento que me desesperei – Carlo prosseguiu. – Se ele estivesse somente atrás de
minha carteira a teria tirado muito antes então acreditei que, além de roubado, seria morto.
Jonathan estremeceu diante da possibilidade, mas ainda permaneceu calado.
– Sei de todas as recomendações para não se reagir aos assaltos, mas simplesmente não pensei.
Quando vi estava em luta com o assaltante. Você sabe que nunca briguei com ninguém, mas meu medo
de deu forças e em nossa luta nos aproximamos da estrada... Depois disso não me lembro de mais
nada, só de ter despertado aqui e ver você dormindo na poltrona. Foi o médico que me informou do
ferimento à bala e da cirurgia pela qual passei... Acho que o covarde percebeu que eu não o deixaria
escapar e me acertou.
– Provavelmente – Jonathan disse por fim; agora com duas únicas perguntas a lhe martelar na
cabeça. – Mas ele fugiu sem levar nada. O senhor foi encontrado com sua carteira intocada... Nem
seu celular foi levado.
– Desculpe-me por não lhe falar sobre isto... – Carlo pediu desconcertado.
– O problema não é omitir que possui um celular, sim... Qual a necessidade dele? Sempre disse
que essas invenções não eram coisas de Deus, que alimentavam o consumismo. Como agora o senhor
tem um celular?... E como eu disse, para que precisa de um?
– Comprei-o em um momento de fraqueza... Em uma daquelas lojinhas de conveniência que
encontramos pelo meio do caminho até aqui. Ele estava guardado até ontem. Tirei-o da caixa para
trazê-lo comigo, caso precisasse lhe telefonar. Quando voltasse para casa eu lhe mostraria...
– E por que ligou para Grace? – Jonathan perguntou ainda decidindo se acreditava ou não.
– Não liguei para ela – o padrinho negou veemente, antes de esclarecer: – Não sei mexer nesses
aparelhos e o levei para a senhorita Campbell me explicar algumas coisas... E ela o testou, agora me
lembro. – Assumindo um ar cansado, pediu: – Não fique chateado comigo... Se desejar eu me desfaço
dele.
– Não será necessário – Jonathan assegurou. – De tanto que o senhor falou, eu terminei por não
gostar dessas coisas, mas não tenho nada contra elas, então tudo bem... E ele pode mesmo ser útil da
próxima vez que saia sem minha companhia.
– Se é o que acha, está bem para mim – Carlo disse por fim; resignado. Ao encará-lo, Jonathan
determinou que o padrinho lhe dizia a verdade, afinal não tinha motivos para mentir. Ele esteve
sozinho em uma das lojas de conveniência; conversava mais com Grace que com qualquer outra
pessoa. Sua história fazia todo o sentido. Restava agora acionar a polícia.
– Acha que está em condições de prestar depoimento? – perguntou Jonathan, ao se levantar.
– Prestar depoimento?! – Carlo perguntou alarmado. – Por quê?
– Como, por quê? – Jonathan estranhou. – O senhor foi vítima de uma tentativa de assassinato. Foi
encontrado por dois policias e eles querem saber o que aconteceu. Eu os vi aqui ontem e...
– Você os viu?! – Carlo o cortou, agitado. – O que lhe disseram?
– Não muito. – Jonathan encarava o padrinho com o cenho franzido. – Eles não poderiam saber o
que aconteceu, pois o senhor estava desacordado. Um deles me deu seu cartão e pediu que o
chamasse tão logo o senhor estivesse em condições de depor... Acha que pode fazê-lo?
– Ainda não. – Carlo fechou os olhos. – Minha cabeça está doendo... Talvez mais tarde.
– Mas seria rápido e quanto mais cedo o senhor depor, mais rápido eles podem sair à caça desse
marginal. – Jonathan não entendia.
– Já disse que agora não – retrucou em seu tom autoritário. – Minha cabeça dói... Acho melhor
chamar a enfermeira.
Jonathan pensou em replicar, mas ao olhá-lo atentamente recostado contra os travesseiros; de olhos
fechados e machucado, seu coração arrefeceu. Não deveria forçá-lo. De toda forma, o relato de seu
padrinho não deixava muitas pistas para a seguir.
Sem nada dizer, o padre foi até a porta e sinalizou para que enfermeira daquele turno viesse
atender seu tio. Antes que ela chegasse, Carlo falou:
– Quero que vá para casa.
– Eu não vou deixá-lo e...
– Não perguntei, Johnny... Disse que quero que vá para casa e de preferência só volte amanhã. Eu
estou bem aqui e não será nada prático se você ficar todo torto de tanto dormir nessa poltrona. Vá
cuidar de suas obrigações.
– Se é assim que deseja – aquiesceu, secamente. – Vou, mas volto ainda hoje. E não adianta
reclamar. Não sou mais uma criança e posso muito bem decidir onde quero dormir. Vou apenas para
tomar banho, trocar de roupa, descansar, enfim... Fazer o que for preciso e depois eu volto.
– Faça como quiser – o padrinho retrucou. Assim que a enfermeira chegou à porta, Jonathan se
aprontou para sair. Antes que o fizesse, Carlo pediu: – Deixe o cartão do policial. Mais tarde, se eu
me sentir melhor, peço para alguém chamá-lo.
Sem uma única palavra Jonathan voltou até o padrinho e deixou o cartão sobre móvel ao lado de
sua cabeceira. Depois, sentindo um daqueles desejos irrefreáveis de demonstrar o quanto alguém é
querido, curvou-se sobre ele o beijou na testa.
– Fique com Deus, padrinho! – Então se foi.
Faith estava na praça quando o jipe de Jonathan dobrou a esquina. Depois que se recuperou do
choque, seu primeiro impulso foi correr até ele, mas não o fez. Não por receio de ser mandada
embora, mas porque não estava sozinha. Assim como ela, várias outras pessoas – inclusive seus pais
– formavam pequenos grupos à porta da igreja e discutiam entre si o que poderia ter acontecido para
que tivessem ficado sem missa aquela manhã.
A Sra. Williams se incumbiu de informar-lhes que o padre saíra na manhã passada e que não
voltara desde então. Contou-lhes ainda sobre o telefonema da polícia e sobre um possível acidente
envolvendo Carlo De Ciello. Ante as notícias preocupantes e de uma capela com as portas cerradas,
todos mergulharam nas especulações. Então, nada mais natural que tivessem o mesmo pensamento
dela e, sem cerimônias, cercassem o jipe do padre tão logo ele o estacionou.
Faith seguiu o fluxo, e parou há alguns metros da balbúrdia, em um ponto onde podia ver Jonathan
com clareza, mesmo que não o ouvisse.
Jonathan estava horrível! Com os cabelos em desalinho, a barba por fazer, o rosto abatido e as
mesmas olheiras que carregava na semana anterior estavam de volta, roubando um pouco da beleza
de seus olhos azuis. Ao término de sua avaliação, Faith se compadeceu. Sua vontade era afastar
aquelas pessoas mexeriqueiras, à tapas se fosse preciso. Como não podia, apenas assistiu-o explicar,
pacientemente, o ocorrido a todos; mesmo que sua expressão comedida denunciasse a vontade de
entrar.
Por duas vezes seus olhares se cruzaram e, divergindo das anteriores, não se desviaram de
imediato. E havia tanta intensidade que a moça perdia a sensibilidade de suas pernas, o vozerio
silenciava. Era como se só existissem os dois.
Maluquice, Faith pensou depois que seus olhos se separaram após o segundo contato. Jonathan não
voltou a olhá-la e como a moça não o ouvia, apenas esperou que todos se dessem por satisfeitos.
Alguns mais desprendidos abraçaram-no sem reservas, outros, apertaram-lhe a mão, fazendo
recomendações mudas a Faith.
Quando o grupo maciço dispersou e ela cogitou se aproximar, Jonathan se despediu de todos com
um gesto expansivo e entrou. Com o coração apertado, ela permaneceu parada, esperando que seus
pais se aproximassem. Elliot contou em poucas palavras todo o drama doméstico do padre,
concluindo por dizer que dentro em breve Carlo estaria de volta.
Constance contou ainda que o padre pediu desculpas a todos por tê-los deixado sem a missa
dominical, ao que foi prontamente perdoado e liberado das futuras, caso seu tio precisasse de toda
sua atenção.
– Bom! – começou Elliot em voz alta para aqueles que ainda estavam na praça. – Não há mais
nada a fazer aqui... Vamos deixar o padre descansar. Cada qual pode cuidar da própria vida, não?
E quem iria contra ele? Ninguém. Logo os grupos remanescentes deixaram a praça. Elliot foi o
último a deixar o local, certificando-se de que todos lhe atenderiam. Faith acompanhou aos pais,
sentindo-se amarrada. Sua vontade era dar meia volta e ir bater na porta do padre, mas também não
podia. E seu pai estava certo, Jonathan precisava de repouso e se não a desejasse por perto, procurá-
lo somente o desgastaria mais. Deveria esperar até ter a oportunidade de estar com ele. Até lá,
pediria pela pronta recuperação do tio ferido, quieta em seu canto.
Capítulo Vinte e Seis

Jonathan acordou desnorteado, no escuro. Como no hospital, demorou algum tempo até que se
situasse. Os números luminosos do relógio de cabeceira, indicavam 21h05. Contrariando suas
expectativas, dormira praticamente todo o dia. Ao entrar na casa, acreditou que demoraria a conciliar
o sono e, por alguns minutos, imaginou que Faith fosse bater à sua porta. Com isso permaneceu em
seu sofá, expectante. Aquela parecia o tipo de atitude que a moça voluntariosa tomaria, contudo, tão
logo se lembrou de suas últimas palavras a ela, desconsiderou a hipótese.
Dizendo a si mesmo que aquele incômodo no peito não era decepção, atirou-se sobre a cama
vestido apenas em suas roupas de baixo e caiu num sono profundo logo em seguida. Agora, já refeito
do cansaço e dos efeitos de uma noite mal dormida, sentia-se disposto, com fome e com sede. Ao
levantar, desconfortável por estar despido, decidiu que passaria pela lanchonete de Grace antes de
voltar para Wells.
Estava limpo, mas tomou outro banho frio. Como sempre, levou suas roupas para o banheiro para
já sair arrumado. Imediatamente percebeu o asseio do cômodo; não que ele normalmente fosse sujo,
mas percebia o toque feminino nos detalhes. Duas toalhas de rosto estavam dobradas no suporte, um
sabonete novo substituiu o usado na saboneteira da pia. Faith colocara ainda três das rosinhas do
jardim que Carlo adotou em um copo com água num dos cantos da janela.
Não seria preciso conferir toda a casa para saber que a moça desobedeceu-o, cumprindo sua parte
no serviço que leiloou. Prova de que a moça era voluntariosa e sempre faria o que bem entendesse.
Era preciso ter todo cuidado, pois, mesmo que não tenha ido bater à sua porta após sua chegada, ela
não se manteria distante. Nem esqueceria o ocorrido em seu quarto, como ele tampouco. Resignando-
se, Jonathan finalizou o banho e se vestiu. Depois de voltar ao quarto para domar os cabelos e se
calçar, seguiu para a cozinha.
Sim, Faith limpara toda a casa. Naquele cômodo não deixou nenhum toque especial, somente um
bilhete sobre a mesa.

Desculpe por não te atender, mas achei bobagem não terminar o serviço começado. Depois agendamos a limpeza da igreja
(se ainda quiser que eu faça).

Bom, espero que esteja tudo bem com seu tio. Se precisar de alguma coisa é só avisar... Sempre estarei aqui pelo senhor.
Ciao... bjus Faith.

Sempre estarei aqui pelo senhor. Ciao, bjus Faith, Jonathan repassou as frases mentalmente. Ela
não foi até ele, mas com aquele bilhete, aqueceu seu peito. E novamente despertou as sensações que
o cansaço sufocou.
Bjus! Não era a grafia correta, mas Jonathan sabia o que significava e nem mesmo simbolicamente
poderia se imaginar a receber os beijos dela. Com um suspiro exasperado, dobrou o bilhete e o
colocou no bolso da calça, indo apressado até a sala. Depois de pegar sua carteira e as chaves do
jipe, saiu.
Era hora de comer alguma coisa e partir. Enquanto cruzava a praça, especulava quais as chances
de encontrar a moça na Blue Moon. Eram boas, mas não aquela noite, descobriu ao entrar e ver a
lanchonete praticamente vazia. Apenas um casal ocupava uma das mesas. Grace estava debruçada
sobre o balcão com expressão vaga, mas abriu um sorriso de alegria sincera e foi recebê-lo logo em
seguida.
– Sua bênção, padre – disse, aproximando-se. – Soube de seu padrinho... Como ele está?
– Ele está bem... – assegurou ao se acomodar. Jonathan podia sentir a preocupação no tom da voz.
Sabia do apreço que tinham um pelo outro, então procurou acalmá-la: – Passou por uma cirurgia, mas
está no quarto... Essa manhã já estava tão bem que até me deu uma bronca por não ter vindo celebrar
a missa.
Ao vê-la sorrir, Jonathan se congratulou por conseguir seu objetivo. Por instantes cogitou
confirmar a história do celular, mas desistiu por considerar traição duvidar da palavra dada.
– Fico feliz em saber disso. O seu tio é um bom amigo. Sabe disso, não?
– Sim, eu sei. – Jonathan lhe sorriu. – Bom, vim até aqui apenas para comer um lanche rápido...
Preciso voltar para o hospital.
– Ah, nada de lanches para o senhor... Vou trazer um pouco do que preparei para meu jantar. E nem
se atreva a perguntar quanto me deve, hein?
Ao padre coube esperar, pois a mulher saiu decidida sem nem lhe dar a oportunidade de agradecer
ou recusar a gentileza. Não precisou aguardar muito tempo; logo Grace estava de volta e colocava à
sua frente um prato cheio com vários pedaços de frango frito sobre porções generosas de arroz,
ervilha e batatas.
– Mas aqui tem...
– O suficiente! – Grace o cortou carinhosamente. – Agora vou buscar um copo de refrigerante para
ajudar a comida a descer. Bom apetite senhor.
Na verdade a quantidade de comida o assustou apenas até a primeira garfada. Ao prová-la,
descobriu estar com mais fome do que imaginava. Quando Grace retornou com a bebida ele já
consumira um terço da refeição.
– Hummm... Estou gostando de ver – ela elogiou como se ele fosse uma criança. – Se continuar
assim sou até capaz de lhe dar um pedaço de torta.
Jonathan lhe sorriu complacente com o tratamento incomum. Não era de sua conta, mas se
perguntou como uma mulher bonita e atenciosa permanecia solteira. Estava claro que ela seria uma
boa esposa, boa mãe; naquele momento o tratava como uma. Ao menos lhe parecia que sim, pois não
tinha muitas lembranças da sua; apenas trechos soltos, desconexos.
De súbito a falta de recordações e o tratamento de Grace o emocionaram. Contudo, logo tratou de
se recuperar naquela nostalgia vazia onde sentia falta do que não sabia ter vivido. Depois de engolir
o bocado que mastigava – que desceu arranhando sua garganta obstruída, ele disse:
– Assim vai acabar me estragando. Se eu for merecedor, venho receber meu prêmio outro dia está
bem assim?
– Combinado – ela exclamou satisfeita. – Agora vou deixar que coma em paz. Qualquer coisa é só
chamar...
Dito isso foi atender a outra mesa que acabava de ser ocupada por quatro jovens. Jonathan os
reconheceu do piquenique; alguns estavam com Faith naquela brincadeira perturbadora dos olhos
vendados. Depois de responder-lhes ao cumprimento, voltou sua atenção à refeição. Precisava
terminá-la o quanto antes para ir até seu padrinho. Não deveria distrair-se com seu fetiche pela moça
ou pelo tratamento carinhoso de Grace. Aquela noite, assim como nos dias seguintes, apenas quem
ele tinha de concreto em sua vida deveria ter importância.
O caminho até Wells acabou se mostrando uma prova de resistência mental, pois a estrada escura e
silenciosa lhe incitava a divagar sobre coisas que preferia esquecer, e Jonathan passou pelo teste
com louvor. Conseguiu bloquear qualquer pensamento inquietante até estar com o padrinho. Quando
chegou ao hospital, Carlo dormia, mas foi informado de que ele passara bem o dia e que se
recuperava rapidamente. Caso continuasse a reagir bem, e não voltasse a ter febre, logo teria alta.
Aquelas eram ótimas notícias.
O padre soube também que os investigadores estiveram no hospital a pedido de seu tio. Jonathan
lamentou, pois gostaria de ter estado presente. Também teria que esperar para saber como fora o
depoimento, pois o paciente dormiria a noite toda sendo acordado somente para receber sua
medicação. Subitamente lhe ocorreu que talvez pudesse ir ao distrito policial para falar pessoalmente
com Haddock.
Animado com a possibilidade, foi à caça do cartão deixado pelo policial. Não o encontrou sobre o
móvel ou parte alguma. Imaginou que talvez estivesse com a enfermeira que fez a ligação e foi até o
balcão onde costumavam ficar.
– Boa noite! – cumprimentou ao se aproximar.
– Boa noite... Padre – a moça respondeu com certa decepção na voz. Jonathan, sem se incomodar,
ignorou o olhar especulativo que sempre seguia àquele tom de voz e perguntou:
– Por acaso saberia me dizer quem de vocês chamou os investigadores para vir tomar o
depoimento de meu tio?
– Por acaso fui eu – disse ela, satisfeita em ser a pessoa procurada. – O que deseja saber?
– Se guardou o cartão... Gostaria de entrar em contato com eles.
– Ah, lamento, mas o devolvi ao seu tio. Peça para ele amanhã.
– Farei isso. Obrigado! – Jonathan voltou para o quarto e se preparou para a noite, que seria longa.
Ao ver o repouso plácido de seu padrinho, arrependeu-se por não tê-lo obedecido. Sua presença não
faria a menos diferença. Paciência! Já que estava ali, ficaria. Ficar acordado em Wells ou em Sin
Bay daria no mesmo. Nas duas opções, cedo ou tarde, voltaria a ruminar suas mazelas que naquela
noite variariam entre Faith e sua falta de lembranças maternas. Ao recordar a moça, colocou a mão
no bolso e apertou seu bilhete.

– Anda logo, Faith – Elliot chamou do pé da escada. – Não temos o dia todo e você não está indo a
um encontro. Está acompanhando seu pai a levar o barco para alguns reparos.
– Já vou – ela gritou, sem sair da frente do espelho. Pena que àquela hora sua irmã já estivesse na
lanchonete. Poderia provocá-la para se distrair da leve decepção por não ter sido procurada. Não
queria se aproveitar da situação, somente ajudar, mas claro que Jonathan não precisava dela.
– Bom... – ela disse para seu reflexo no espelho. – Nada de padres por hoje. Se o tio está bem, ele
está bem também. E se Jonathan está bem... Você também está! – depois de se lançar um beijo, saiu
do quarto, rindo ao se considerar uma idiota apaixonada.
– O que é engraçado? – perguntou o pai.
– Nada!... Só estou animada com o passeio. Faz tempo que não saio de barco com o senhor.
– É verdade. Agora vá se despedir de sua mãe para sairmos... Estou esperando na caminhonete.
Faith fez como o ordenado e, depois de se despedir da mãe se juntou ao pai. Conversaram
aminadamente até o pequeno cais. Encontraram-se com Mason que auxiliava outros donos de barcos
com em seus pequenos reparos. Tão logo se despediram, Elliot a ajudou a embarcar e assumiu seu
lugar na cabine. Faith seguiu ao seu lado.
Por vezes ai até o convés para receber o vento salgado no rosto, mas logo voltava para junto do
pai que, sério, comandava a direção do leme, margeando a costa. Em menos aproximaram-se do
estaleiro. Peter os recebeu no atracadouro. Vestia uma bermuda que parecia ter sido cortada com uma
faca cega, estava sem camisa. Faith não pôde deixar de reparar como ele era bonito e bem feito de
corpo. Sem dúvida era mais forte do que Jonathan, mas nem toda aquela massa corpórea a atraia
como seu padre menos favorecido.
– Até que enfim! – o moreno exclamou quando ela lhe jogou a corda para que ele prendesse a
embarcação. – Pensei que não viessem mais.
– Sempre exagerado... – retrucou divertida.
– Culpa da sua namorada. Acho que ela pensou que hoje já fosse o casamento – troçou o pai indo
se juntar a ela no convés. O casal trocou um olhar significativo, como se dissessem um ao outro que
deveria estar preparados para aquele tipo de especulação de alguém tão conservador quanto Elliot
Green.
– Bom, então é melhor eu me preparar para criar raízes no altar – Peter gracejou, depois de piscar
para ela discretamente. Faith lhe lançou um olhar reprovador. Não deveria ir tão longe alimentando
as esperanças de seu pai, mas o rapaz deu de ombros e estendeu a mão para que ela viesse à terra.
– Não se preocupe filho, eu cuido para que ela não o deixe esperando.
Filho?! Faith repetiu mentalmente, incrédula.
– Está satisfeito? – Faith perguntou entre dentes tão logo Peter a abraçou.
– Temos de seguir o roteiro – ele disse antes de beijá-la de leve como qualquer namorado
respeitador faria diante de um pai zeloso. Ao ser solta, Faith pôde ver o olhar de contentamento que
o pai lhes dirigia; nada bom! A moça imaginou que seria melhor a irmã reagir logo ou aquela
brincadeira acabaria indo longe demais.
– Venham! – chamou o moreno, pegando-a pela mão. – Vou lhes mostrar o estaleiro e depois vamos
ao escritório, meu pai os espera.
A moça se deixou levar pelas instalações, mas não conseguiu mais focar sua atenção. Toda ela era
dirigida ao pai que olhava para os barcos em suas diferentes fases de construção, enlevado. Tirava
dúvidas, palpitava, sempre tratando Peter como se realmente já fosse da família. Decididamente,
nada bom!

– Jogou fora?! – Jonathan olhou para o padrinho, incrédulo. – Como se desfez do cartão que o
investigador deixou?
– Não preciso dele para nada – Carlo respondeu tranquilamente. – Eles estiveram aqui, tomaram
meu depoimento... Como eu não soube descrever meu agressor eles me disseram que seria
praticamente impossível procurar por um suspeito. Que provavelmente o caso seria arquivado. Nada
mais podemos fazer, Johnny.
– Como assim? – Jonathan não podia acreditar no que ouvia. – Eles podem tentar encontrar alguma
testemunha, refazer seus passos... E como o senhor não se lembra? Disse que caminhou com o homem
até os limites da cidade.
– Mas eu não me lembro. Não sou bom fisionomista. E estava nervoso... O que esperava? Que eu
ficasse decorando cada detalhe do rosto de um assaltante?
– Não, mas, ainda assim...
– Deixe como está, Johnny – Carlo pediu, recostando-se no travesseiro. – Vamos agradecer que o
pior não aconteceu e seguir com nossas vidas.
– Ainda acho que...
– Por favor, Jonathan! – Carlo exclamou firmemente. – É tão difícil assim aceitar que nada pode
ser feito?
– Desculpe-me, mas eu não me conformo com isso... O senhor quase foi morto!
– Justamente. Eu quase fui morto... E já me conformei, faça o mesmo.
O padre bufou exasperado. Não gostava de contrariar o tio, mas naquela manhã estava difícil
aceitar seus argumentos. Sempre se poderia fazer alguma coisa. Carlo estava abalado com o
ocorrido, talvez estivesse com medo. Isso Jonathan podia entender, mas nenhuma das hipóteses era
suficientemente forte para justificar ficarem de braços cruzados. Jonathan cogitava procurar os
investigadores diretamente no distrito policial, quando Carlo falou em tom cansado:
– Eu estou falando sério, Johnny... Por favor, deixe como está. Não me faça ficar preocupado por
causa desse assunto. Tenho certeza de que se aparecer algum dado novo eles mesmo nos procurarão...
Por ora, vamos apenas esquecer.
Ao olhar para sua expressão abatida, Jonathan resolveu atendê-lo. Não aceitava, mas o atenderia,
e rogaria para que os investigadores fossem bem-sucedidos na procura quase cega; que logo os
procurasse com alguma novidade.
– Certo – anuiu. – Vamos deixar como está.
– Obrigado! – Carlo fechou os olhos. – Agora, por mais que eu esteja agradecido pela companhia
durante a noite, acho que deveria ir para casa. Não deve deixar suas obrigações em segundo plano.
Daquela vez Jonathan não cogitou contrariá-lo. Carlo estava bem, recuperando-se a olhos vistos.
Segundo o médico, se tudo corresse bem, na quarta-feira teria alta.
– É isso mesmo que farei, mas à noite eu volto.
– Como queira... Agora, vá.
Jonathan ainda decidia se ia até o padrinho, para beijá-lo como na manhã passada, quando ouviu
duas batidas leves na porta aberta. Antes que se voltasse para o recém-chegado, flagrou o espanto
nos olhos de Carlo ao vê-lo.
– Senhores, bom dia! – o investigador Haddock cumprimentou ao entrar.
– Bom dia! – disseram em uníssono.
– Desculpe incomodá-los, mas... Eu trouxe algumas fotos e gostaria que o Sr. De Ciello desse uma
olhada.
Jonathan se encheu de esperança. Antes que seu padrinho dissesse qualquer coisa assegurou:
– Ele olhará as fotos.
– Já disse que não me lembro de meu agressor, mas se insiste em caçar alguém sem rosto... – Carlo
falou entediado.
– Na verdade... – começou Haddock, aproximando-se. Jonathan fez o mesmo, colocando-se ao
lado do tio para ter a mesma visão que ele ao ter as fotos apresentadas. – Se reconhecer esses
homens, nossas buscas terminam.
– Homens?! – Carlo inquiriu, recebendo o envelope. – Eu disse que fui abordado por um homem,
não mais...
– Apenas veja as fotos, senhor... – o investigador pediu educadamente.
Quando Haddock retirou o conteúdo do envelope, Jonathan entendeu o que quis dizer. As buscas
estariam terminadas porque aqueles homens estavam mortos. Imediatamente Jonathan encarou o
investigador que não desprendia os olhos do rosto de seu tio, este ainda analisava as fotos, uma a
uma, atenciosamente.
– Então, senhor? – Haddock perguntou sem nunca deixar de encará-lo. – Reconhece esses homens.
– Nunca os vi – disse após respirar pesadamente, confirmando seu enfado, a estender as fotos
recolocadas no envelope. – Não foi nenhum desses dois que tentou me matar. O que aconteceu a eles?
– Provavelmente esse será outro caso sem solução. Eles foram encontrados mortos essa madrugada
por um andarilho que procurava um lugar para acampar. Estavam sem documentos, também não têm
digitais... Vamos analisar as arcadas dentárias, mas não estou muito animado. Alguém que se dá ao
trabalho de eliminar as digitais, com certeza não se deixaria ser descoberto por um detalhe desses.
Enfim... Como estavam perto do ponto que o encontramos, eu pensei...
– Que eles pudessem ter alguma relação com meu caso? – indagou Carlo. Ao assentir de Haddock,
prosseguiu: – Bom, gostaria de poder dizer que foi algum deles, mas não posso mentir. Não
reconheço qualquer um dos dois.
Jonathan conhecia o padrinho, aquela indiferença era usada geralmente quando ele tentava ocular
qualquer outro sentimento. Algo estava errado ali, mas não o desmentiria.
– É realmente uma pena – disse o homem, recolhendo o envelope. – Desculpe-me por tomar seu
tempo, padre.
– De forma alguma... – Carlo soou compreensivo. – Sempre que precisar estarei à disposição.
– Obrigado. – Haddock se encaminhando para a porta. – Tenham um bom dia, senhores. Estimo
suas melhoras, padre.
– Obrigado!
– Um bom dia para o senhor também – Jonathan disse tardiamente sem deixar de olhar o padrinho.
Após a saída do investigador, perguntou em italiano: – Por que mentiu?
– O que está dizendo? – Carlo perguntou rispidamente. – De onde tirou que estou mentindo?
– Pela sua atitude... Por seu tom... Acho que conhecia um daqueles dois.
– E o que mais?... Vai dizer que eu os matei também?
– Claro que não, eu só...
– Pois então deixe de procurar coisas onde elas não existem – pediu Carlo, comedido. – Não sei a
qual tom se refere, mas eu estou cansado desse assunto. Não quero ter de ficar sendo visitado pela
polícia, ainda mais quando nada posso acrescentar... Não menti. Não reconheci nenhum dos dois. –
Cansado acrescentou: – E essa conversa está me dando dor de cabeça.
– Desculpe-me – Jonathan pediu meio culpado.
Não queria aborrecê-lo, mas não estava convencido. Talvez o padrinho tenha reconhecido seu
agressor e mantido silêncio por temer ser arrolado em algum processo. Se seu atacante já estava
morto, a justiça divina fora feita. E se o padrinho ia contra seus valores era bem provável que
estivesse certo. – Sinceramente, me perdoe. Acho que estou nervoso com tudo isso. É melhor deixá-
lo descansar, vou voltar para casa, mas à noite volto.
– Sem querer ser mal-agradecido. – Carlo falou. – Digo-lhe que virá à toa. Está vendo que estou
bem... Bastava vir amanhã à noite assim, se eu realmente receber alta na quarta-feira pela manhã,
poderemos ir embora.
O padre ponderou por alguns minutos. Cada minuto que passava naquele hospital era uma tortura.
Tudo ali lembrava seu longo período de internação depois do acidente que lhe roubou a memória.
Vinha por preocupação, mas mais ainda pelo senso de dever. Contudo, se o maior interessado o
dispensava...
– Combinado – disse por fim. – Voltarei somente amanhã à noite.
– Muito bem. – Carlo se mostrou satisfeito. – Agora vá de uma vez.
Tão logo se despediu Jonathan se foi. Enquanto dirigia de volta à Sin Bay experimentava uma
espécie de alívio por não ter de voltar à noite. Como sempre tentava se enganar, negando que o
desprendimento nada tinha a ver com o tempo que passava distante de certa moça.
Daquela vez, ao chegar à Sin Bay não foi abordado por uma legião de fiéis, somente pela Sra.
Williams e por duas das frequentadoras assíduas de seu confessionário; isso fez com que pensasse
em estipular quais dias ouviria as confissões, assim não teria de fazê-lo todos os dias da semana.
Maldoso, imaginou que nem se estivesse em Sodoma ou Gomorra teria tantas almas pecadoras para
absolver.
Depois de pacientemente colocar sua fiéis a par do estado de saúde do tio, ele pôde entrar em sua
casa. Tomou banho com os olhos postos nas rosinhas da janela e, como sempre, vestiu-se pensando
em que as deixou ali. Com toda agitação daqueles dias e as noites mal dormidas não sonhou com ela,
mas tal fato não apaziguou o desejo que sentia; apenas o adormeceu.
E, valendo-se desse entorpecimento, Jonathan ignorou sua cama e seguiu para a igreja a fim de
cuidar de suas obrigações. Acabou se ocupando por todo o dia com quem veio não rezar, mas saber
de Carlo. Poucos se contentavam com notícias simples. Justamente por isso, no final da tarde o
padre, cansado pela repetição dos detalhes, pediu desculpas aos que ainda estavam na igreja e
fechou as portas.
Não era certo, mas, como Carlo por vezes salientava, ele era antes de tudo um homem e estava em
seu limite. Naquela segunda-feira não viu a moça, apenas sua irmã que explicou ter ido a mando de
Grace. Enquanto lhe falava de Carlo, podia ver os mesmos traços daquela que o interessava, mas
isso não bastou. Jonathan amargou a falta sentida até que se recolhesse, com o dia ainda claro.
Como o bom viciado que era, esperou até ouvir as duas sequências de buzinadas. Somente então
mergulhou num sono profundo, embalado por sua satisfação momentânea. Não sonhou, e amanheceu
rígido desejo por Faith. Este agravado, pois agora havia a lembrança dos toques que ocorreram ali,
bem no meio de seu quarto.
Confirmando a acusação de Faith, por não ter vergonha, Jonathan se pôs de pé e rumou para o
banheiro munido de suas roupas de corrida. Sob o jato d’água fria, ficou imóvel até que aquela parte
desperta se rendesse, esmorecesse e aquietasse. Com o desejo mitigado, finalizou o banho e se
aprontou. E, como realmente não possuía muita vergonha, rumou para a praia que sempre correu.
Com um pouco de sorte, a moça com menos vergonha do que ele, estaria por lá.
Capítulo Vinte e Sete

Naquela manhã, ao passar pela frente da casa dos Greens, pela primeira vez, Jonathan encontrou
com uma de suas moradoras.
– Bom dia, Nicole! – cumprimentou.
– Bom dia padre, sua bênção!
– Já está indo para a lanchonete? – perguntou o óbvio somente para puxar assunto ao notar o
quanto ela parecia abatida.
– Estou... Sempre vou nesse horário, mas nunca o encontrei por aqui.
– Ainda não tenho um horário definido. Procuro vir pela manhã, às vezes mais cedo, outras mais
tarde...
– Entendo – ela disse sem muito ânimo. – Bom... Não quero te atrapalhar. Boa corrida.
– Espere... – Jonathan a deteve para se arrepender no segundo seguinte. Como era tarde para
recuar, perguntou: – Seu irmão e sua irmã, foram ou vão correr também?
– Mason teve que ir para o porto com meu pai... E, talvez, Faith já deva estar na praia uma hora
dessas... – Era inexpressiva, tinha os olhos baixos. Jonathan ocultou seu contentamento por saber que
Faith estaria sozinha e se preocupou com Nicole quando percebeu certo rancor ao citar a irmã
caçula.
– Desculpe-me se estiver sendo invasivo, mas... Você está com algum problema? – perguntou
afável. Ao ver os olhos dela marejarem, ele soube ter acertado em seu julgamento. Nicole não estava
abatida à toa; algo lhe atormentava o coração. Naquele instante Jonathan deixou seu instinto que o
guiava até Faith de lado e se revestiu do sacerdote que sempre seria.
– Sabe que pode contar comigo, não sabe? – disse carinhosamente. – Se desejar dividir, eu estou à
disposição... – Sorrindo brandamente, acrescentou: – Sou um bom ouvinte.
– Preciso mesmo conversar com alguém – Nicole reconheceu com os olhos rasos d’água –, mas o
que tenho a dizer só pode ser feito em confissão.
– Como queira... Apareça na igreja à hora que desejar.
– Posso ir essa manhã? – indagou, esperançosa.
– A hora que desejar – ele reafirmou. – Estarei esperando.
– Então irei lá pelas dez horas, durante a minha pausa.
– Estamos combinados. Agora vá, não quero que se atrase.
– Obrigada, senhor... – Nicole esboçou um sorriso e seguiu seu caminho.
Jonathan permaneceu a olhar Nicole ganhar distância antes de seguir para a trilha. Era a hora de ter
com a irmã caçula, finalmente sozinha. Não por ansiar tomar mais liberdades, mas para aplacar a
falta das conversas que mantinham, dizia a si mesmo. Expectante Jonathan chegou à praia, mas, para
sua decepção, não viu Faith em parte alguma. Somente então se lembrou das palavras exatas de sua
irmã. Ouvira um talvez.
Movido pela esperança, rogando para que ela ainda viesse, Jonathan alongou os músculos e
iniciou sua corrida. Foi até uma ponta da praia e fez o caminho de volta, decidido a seguir até a outra
extremidade. Passara pela trilha e nada da moça. Faltavam alguns passos para chegar ao limite da
faixa de areia, quando ele se deparou com um pedaço de pano azul largado ao chão.
Ao se aproximar viu se tratar ser um vestido. Nunca o vira, mas sabia ser dela. De imediato olhou
em volta, à sua procura. Não a encontrou e, ao mirar o mar, recordou que ela preferia nadar. Evidente
que era o que fazia, de roupa íntima. Ansioso ante a possibilidade de vê-la tão despida, molhada,
Jonathan passou a observar o mar, tentando encontrá-la.
– Se vai ficar plantado ao lado da roupa dela até que volte, devo te dizer que Fay vai demorar.
Ao ouvir a voz do garoto, o sangue de Jonathan ferveu, expulsando todo e qualquer desejo que
pudesse sentir. Controlando-se para modular sua voz, encarou-o e disse secamente:
– Não entendi o que disse.
– É que às vezes eu falo muito rápido e como o senhor é estrangeiro... Vou repetir devagar. – Tyler
passou a falar pausadamente, destacando cada palavra. – Não adianta ficar aqui esperando que Faith
volte. Quando ela vai para a piscina, fica por lá horas e horas. Tenho certeza de que o senhor tem
mais o que fazer na sua igreja do que esperar uma mulher seminua sair da água.
– Não adianta, rapaz – Jonathan retrucou, controlando-se para não atender ao seu segundo maior
desejo. – Seu problema não é a velocidade da fala ou sua dicção. É a dificuldade de ordenar suas
ideias e expressá-las em frases coerentes. Ou talvez seja somente sua incapacidade de pensar.
– Hummm... – Tyler o mediu de alto a baixo. – O padre abandonou o tom de missa, o papo furado...
Agora vai me ofender por notar o óbvio?
– Óbvio aqui é que você não passa de um moleque que só diz bobagens. Não estou esperando
ninguém. Então não me aborreça com suas suposições distorcidas e infundadas. Agora, se me der
licença...
Antes que mais afrontas viessem, Jonathan se foi, a passos largos. Odiava-o! E se odiava por sua
transparência que lhe permitia ser decifrado por um garoto. Ou talvez seu desejo não fosse óbvio,
apenas notório ao namorado. Pouco importava; tudo o que não precisava era de um pirralho
seguindo-lhe os passos. Analisando-o e espreitando-o como fazia com Faith.
– Inferno! – praguejou em voz alta.

Naquela manhã a água do mar represada pelas pedras estava particularmente agradável. Deveria
ser um bálsamo para o corpo e a mente, mas não o era. Faith sentia o coração aflito pela falta de
contato com Jonathan. Desde a manhã de sábado que não conversavam. Tinha notícias de Carlo
através de terceiros. E pelos relatos da irmã, estes nunca dirigidos a ela. Em momento algum teve a
chance de expressar sua solidariedade.
Sentia-se inútil e sozinha. Helen dedicava seu pouco tempo livre ao noivo, portanto não tinha
sequer alguém para compartilhar sua inquietação. Comentar tais assuntos com Tyler estava fora de
cogitação. Restava-lhe esperar que aqueles dias passassem e que Carlo voltasse, quando, talvez, tudo
voltasse a ser como antes: o padre avançando e recuando, ela se insinuando e sendo afastada.
Insatisfatório, mas ao menos estariam juntos. Definitivamente a paixão a deixara idiota, ela pensou
contrafeita, mergulhando a cabeça na água na tentativa de esfriá-la antes de transpôs as pedras para
se lançar ao mar. Resignada, nadou de volta à praia.
Antes de atingir a areia pôde ver seu seguidor sentado junto ao seu vestido. Que maravilha! Tudo
que desejava naquela manhã era a oportunidade única de ser perturbada por Tyler. Se não fosse
receber uma bronca homérica de sua mãe, nadaria paralelamente às ondas e sairia da água já na
direção da trilha, somente para não cruzar com o amigo. Infelizmente não podia; droga!
– Oi, gata! – ele cumprimentou quando ela já se aproximava, caminhando.
– Pensei que a gente já tinha passado dessa fase? Sabe que não sou sua gata – ela retrucou de mau
humor ao sair da água. Depois de chegar até seu vestido, abaixou-se para pegá-lo, contudo, antes que
o alcançasse, este foi capturado pelo rapaz que em seguida se afastou. – Me devolva isso, Tyler.
Hoje eu não estou com saco para gracinhas.
– Certo! – ele parou a uma distância segura, rolando o vestido entre as mãos. – Eu te devolvo se
me disser a verdade.
– Tudo bem... – concordou enfadada. – O que é agora?
– O mesmo dos últimos dias – disse, mirando o vestido, mas sem perder a atenção dela. – Quero
saber se tinha marcado de se encontrar com o padre esquisito aqui.
– Não, Tyler... – negou, cansada. – Não marquei nada com ninguém! Não tenho porque marcar
encontros com o padre. Será que dá para esquecer o que eu falei quando estava podre de bêbada
durante aquele beijo idiota?... Esse assunto já deu!
– Desculpe... – Perguntei porque ele ficou parado aqui um tempão. Então eu pensei...
– Jonat... O padre Jonathan esteve aqui?! – ela se corrigiu.
– É... – ele disse indiferente. – Mas eu o coloquei para correr.
– Eu não acredito nisso, Tyler! – Faith exasperou-se. – Não basta me azucrinar, agora vai
infernizar o padre da cidade?!... Você é incrível, sabia?
Assim como era incrível a capacidade que Jonathan e ela tinham de se desencontrarem. Se
soubesse que ele estava na cidade não teria ido até as pedras. Agora, tudo poderia ser pior,
dependendo do que o garoto dissera. Incrédula, Faith viu Tyler dar de ombros ao retrucar:
– Ele que me excomungue ou que vá se queixar ao bispo. Da minha parte não vou deixar que nada
aconteça entre vocês.
– Certo, Ty!... Me proteja e me guarde o quanto quiser, está bem?. Assim poderá ver que tudo não
passou de um mal-entendido ditado pelo álcool... Tanto que estou com Peter.
– Ah, tá... O bonitão! – debochou. Logo mudou o tom e a encarou seriamente. – Não é legal ver
vocês dois juntos, mas sei que não gosta dele. Você é expressiva demais... Se não bastassem os
mínimos movimentos de desagrado que faz com o rosto toda vez que algum homem te toca, ainda me
sobra seu olhar. Você se basta Faith Green, e olha a todos como se não fossem nada para você...
Vagamente indiferente. Mas quando olha para ele, seus olhos brilham.
– Deixe de falar tanta merda, Tyler – ela pediu sem convicção.
– Será mesmo que estou falando tanta merda, Fay? – Tyler cruzou os braços e sustentou-lhe o olhar,
desafiadoramente. – Deveria ter visto sua cara quando eu disse que o esquisito esteve aqui... E seus
olhos? Estão brilhando nesse minuto só porque estamos falando dele.
De súbito, Faith se sentiu nua. Despida até a alma. Ao que parecia, nem foi preciso dizer um nome
durante o beijo, pois seu corpo falava por si. Evidente que seria uma questão de tempo até que o
rapaz descobrisse seu sentimento. Tyler sempre esteve perto, assistia seu desagrado em primeira
mão. Jamais poderia enganá-lo. Da mesma forma que jamais poderia admitir, então, respirou fundo e
replicou:
– Está falando merda, sim!... E das grandes... Agora, pode me devolver minha roupa, por favor...
Estou começando a sentir frio.
– Tsc, tsc, tsc... – recriminou-a, movendo a cabeça negativamente. – Sem ofensas?!... Sem
respostas malcriadas?!... A coisa é pior do que eu pensava!
– Tyler, minha roupa – ela pediu, estendendo a mão, ignorando-o. Frustrava-a não encontrar
convicção. Estava sendo invadida e não tinha defesa. A nova incapacidade, somada à falta sentida,
sensibilizou-a e, sem que pudesse evitar, seus olhos se encheram d’água. Que ótimo! Agora choraria,
pensou irritada. – Tyler, me entregue logo a porra da roupa! – gritou.
– Tome! – ele estendeu o vestido. – Não se preocupe. Agora não vou mais te chatear com isso... Só
queria que você admitisse... E como já me deu a resposta...
Faith recuperou o vestido bruscamente. Enquanto o enfiava pela cabeça, lágrimas de derrota
rolavam por seu rosto; sua garganta estava fechada. Morreria entalada com o desejo de mandá-lo
para a puta que o pariu.
– Pode acreditar, Fay... Não vou te chatear agora que entendi o que sente. Mas se vale o toque de
um amigo, amigo mesmo! Não do cara que te ama mais do que tudo no mundo... Sai fora dessa! Já
que não aceitou minha oferta, prefiro ver você com o bonitão ou com qualquer idiota que baba por
você na boate, porque sei que ao menos teria uma chance de ser feliz. Mas, amar um padre?... Até um
minuto atrás eu achava que era só safadeza, não amor... Alimentar esse sentimento é burrice, Fay...
Todo mundo dessa cidade sabe como essas histórias terminam e eu não suportaria te ver sofrer.
– Já terminou? – perguntou embargada, sem encará-lo.
– Já.
– Então tenha um bom dia!
Naquele momento Faith precisava colocar a maior distância entre eles. Enquanto se afastava uma
das palavras ditas por Tyler gritava em sua cabeça: AMOR. O amigo estava certo. Não era a paixão
que a impulsionava até Jonathan; era o mais puro e sublime amor. A droga toda era que seu
sentimento desvendado, lançava-a ao chão. Sabia bem o que a esperava caso conseguisse o que
queria, mas, ouvir de outra pessoa, tornava tudo real. Era como se, verdadeiramente, seu afeto
estivesse fadado ao mesmo beco ser saída que abreviou a vida de Anabelle Flinn.
Faith fez todo o caminho de volta com o coração fundo no peito. Ao chegar, correu escada acima
sem dar tempo de a mãe lhe barrar o caminho. Agradeceu aos céus que a irmã estivesse na Blue
Moon, pois caso contrário, acabaria revelando seu segredo com Peter. Ninguém deveria se sentir
miserável! Enquanto se banhava, tomou a decisão de procurar por Jonathan.
Tal vontade a impulsionou para fora do banho. Não sabia o que diria, como seria recebida. Eles
poderiam ficar só se olhando, presos num daqueles tantos momentos de silêncio incômodo que os
cercavam... Ela não se importaria. Quando terminou de se aprontar, saiu do quarto e correu para a
escada, desceu os degraus de dois em dois. Queria sair o quanto antes, porém sua passagem foi
barrada pelo pai, parado à porta de entrada. Ao vê-la apressada, comentou satisfeito:
– Ah... Achei que tivesse se esquecido de nosso compromisso. Já ia sair sem você, pois não a vi
voltar da praia.
– Compromisso... – ela repetiu num murmúrio; aturdida. Elliot não a ouviu e passou o braço por
seu ombro para levá-la até a pick up. Faith não se lembrava de compromisso nenhum, mas se
perguntasse, teria de explicar aonde ia com tanta pressa. Já no carro, quando o pai contornou a praça
e ela viu a porta da igreja aberta, assim como o jipe do padre estacionado diante da casa anexa, foi
preciso segurar as lágrimas.
– Obrigado por ir comigo tratar da venda do pescado – disso Elliot, obrigando-a a dar-lhe
atenção.
Agora se lembrava! Ainda em York Harbor, seu pai dissera que daquele mês em diante talvez
passassem a vender uma parte dos peixes e lagostas para um dos restaurantes de Wells e que os
responsáveis pelo estabelecimento iriam à Sin Bay para conhecer as instalações da cooperativa e do
frigorífico. Dissera ainda que, se tudo corresse a contento, assinariam um contrato inicial de
experiência. Foi nesse ponto que o pai pediu que o acompanhasse, ao que ela cedeu por desejar
ocupar seu tempo ocioso. Estava tento apenas o que desejou!

Pela primeira vez, desde o dia que abrira a igreja, Jonathan se recusou a ouvir confissões. Não
tinha cabeça, nem espírito para aturar pecados insignificantes. Sem se importar com os olhares
implorativos, determinou que as receberia em seu confessionário somente às quartas e aos sábados;
pela manhã e à tarde. Naquele dia abriria exceção apenas para Nicole. Até mesmo ela Jonathan
esperou sem muito ânimo. Apenas resignado, afinal, fora oferecimento seu.
Em sua falta de vergonha na cara, apenas uma lhe interessava. Naquela manhã, mais do que antes,
pois sem que pudesse evitar, sentia a competitividade brotar em seu íntimo após a breve
argumentação com Tyler. Jonathan nem ao menos tentou combatê-la, deixando que esta crescesse
como o ódio que sentia pelo rapaz. Queria poder esmagá-lo!
Os passos vindos da nave central chamaram a atenção do padre, tirando-o de seu devaneio
enraivecido. Definitivamente aquele não era o espírito de um confessor, mas não poderia fugir de
suas obrigações. Baseando-se nesse senso de dever, Jonathan tentou focar sua atenção na moça que
se aproximava, timidamente. Tão parecida com Faith, e tão diferente.
– Desculpe meu atraso – ela disse à guisa de cumprimento. – Eu não viria, mas acabei mudando de
ideia... Agora tenho somente vinte minutos para minha confissão.
– Então é melhor começarmos logo – disse, lamentando que ela não tivesse seguido seu primeiro
desejo. Tomando a liberdade de tocá-la, Jonathan a conduziu até a cabine de madeira escura disposta
em um dos corredores da pequena igreja. Tão logo os dois se acomodaram, esperou que Nicole
começasse. Após breve hesitação, ela falou já embargada:
– Abençoe-me padre porque pequei... Porque peco... Todos os dias!
Como era possível? Para Jonathan, aquele parecia o início de um relato que caberia à perfeição na
boca de outra Green. Acreditava ter se enganado e que a moça talvez sofresse à toa como a maioria
das que passavam pelo confessionário, o padre a ouviu dizer:
– Eu odeio minha irmã! Eu a amava, padre. Sempre a considerei minha amiga, mas ela me traiu. –
Nicole conseguiu total atenção de seu confessor. Jonathan pôde ouvir seu choro manso. Queria saber
mais sobre aquela traição mencionada, então, tentando encobrir sua ansiedade, perguntou:
– Como sua irmã a traiu?
– Ela está com o homem que amo...
Com Joseph? Jonathan se perguntou alarmado. Não era verdade! Sentindo sua garganta fechada e,
impacientando-se por ela se calar para chorar baixinho, indagou:
– Sua irmã está se encontrando com seu noivo?
– Antes fosse! – ela murmurou lamuriosa. Jonathan entendeu menos ainda. Sem que fosse preciso
perguntar, ela explicou: – Esse é outro pecado que carrego. Não amo meu futuro marido... Estou com
ele por ser uma filha idiota que não tem coragem de contrariar o pai e aceita tudo o que ele determina
ser o certo. Nunca disse isso a ninguém, mas tenho medo que ele me negue o pouco amor que me dá,
caso o contrarie. Mason é o primogênito... E homem... Sempre será amado sem fazer o mínimo
esforço. Faith é a caçula e de longe a preferida de nosso pai. Ela sabe disso e o enrola, o seduz...
Tal qual faz com ele, Jonathan pensou contrafeito pouco interessado nos traumas familiares da
moça. Queria saber da traição.
– Faith é uma boa filha, mas na maioria das vezes sua obediência e aceitação são pura fachada...
Ela sempre dá um jeito das coisas acontecerem como ela quer e não como nosso pai determina. É por
isso que eu não aceito o que ela está fazendo com Peter... O senhor o conheceu no piquenique – ela
acrescentou. Jonathan lembrava muito bem do grandalhão moreno, por motivos que preferia esquecer.
Então Nicole o amava? Agora tudo começava a fazer sentido.
– Se ao menos ela gostasse dele – a moça chorosa prosseguia. – Mas ela apenas o usa... A
descarada admitiu para mim.
– Como ela o usa? – perguntou Jonathan, interessado. Não era certo usar a moça para satisfazer sua
curiosidade mundana durante uma confissão, mas já não se importava. Dentre todas as coisas que
fazia de errado, aquela, talvez, fosse a falta menos grave.
– Nosso pai também quer que ela se case com quem considere um bom marido.
Casar espocou na mente do padre. Imediatamente viu Faith de joelho diante de si, a sorrir
enlevada para seu futuro marido. Jonathan experimentava uma súbita falta de ar na qual seu colarinho
romano o sufocava.
– Ele avisou que, se ela não encontrasse alguém que gostasse, ele próprio o faria. Dias depois esse
namoro começou. Papai está feliz com o relacionamento... – Após um engasgo, disse: – Acredito que
Peter também. Todos gostam, por que com ele seria diferente?
– Por que seria? – Jonathan murmurou enquanto era atacado por uma leve taquicardia.
– É por isso que eu não aceito! – Nicole alteou a voz. – Enquanto Faith o usa para enrolar nosso
pai, ela brinca com os sentimentos dele... Então eu a odeio!... Odeio!
– Acalme-se! – O pedido na verdade era feito a ambos. Jonathan também precisava se acalmar
para ordenar os pensamentos.
– Eu não sei o que fazer... Por favor, me ajude – implorou antes de irromper num choro sentido.
Jonathan deixou que chorasse enquanto procurava uma linha de raciocínio coerente. Não deveria ter
se surpreendido com a confissão de Nicole, pois sempre soube que o ar angelical de sua irmã era
pura fachada, contudo, no fundo, esperava que Faith não fosse tão dissimulada.
– Onde Tyler se encaixa nessa história? – ouviu-se perguntar. Deveria ter mordido a língua, ele se
recriminou no segundo seguinte. Contudo a moça, presa em seu ciclo de autocomiseração, comentou:
– O senhor também já percebeu, não é?... Todos percebem, acho que só mamãe e papai que não.
São dois cegos.
Jonathan ouviu a moça fungar e pigarrear, então, aproveitando a oportunidade de destilar um pouco
do veneno que a consumia, transformou sua magoa em um relato maldoso.
– Ele é louco por minha irmã desde que eles eram crianças. Faith mantém uma relação doentia com
o pobre. Alimenta a própria vaidade com o assédio diário dele... Ela o atrai e o rejeita ao seu bel
prazer. Às vezes eu acho que estão juntos e que ela o afasta para manter a fachada. E se minha
impressão estiver certa, nosso pai jamais aceitaria que eles namorassem, pois Tyler é... pobre.
– Entendo... – sussurrou Jonathan. Agora tudo, de fato, fazia sentido. Faith amava Tyler, usava
Peter e provavelmente se divertia com a perturbação que causava no padre, a messalina!
Expor o que sentia pareceu acalmá-la, pois Nicole perguntou claramente recuperada:
– O que eu faço padre?
No momento, a Jonathan importava o que ele faria, mas se obrigou a cumprir seu papel.
– Em primeiro lugar, quero saber se você se arrepende desse sentimento nocivo que carrega em
seu peito contra sua irmã.
– Claro que sim, afinal, ela é minha irmã. Por isso sofro... O problema é que não consigo evitar.
Têm dias que não suporto ouvir a voz dela!... Até cogitei acelerar meu casamento só para sair dessa
cidade, ir para o mais longe possível.
– Como meu dever é aconselhá-la, vou fazê-lo mesmo que você não concorde com o que vou dizer
– o padre começou, amável. – Não dirige seu ódio apenas à sua irmã. Ressente-se consigo, por não
ter coragem de enfrentar seu pai, deixando-se ser obrigada a casar com quem não ama.
– Mas...
– Por favor – ele pediu, cortando-a gentilmente. – Apenas escute... Antes de nutrir esse sentimento,
você deveria se impor perante seu pai. E entenda, não estou dizendo que deva ser desobediente, não
é isso. Mas, você é adulta. Se gosta desse Peter como confessou, não deveria desposar alguém que
não ama. Quando deseja adiantar seu casamento para se afastar de sua irmã, você comete o mesmo
erro do qual a acusa. Está usando seu noivo da mesma maneira.
– Meu pai não aceitaria que eu namorasse Peter – ela murmurou. – O senhor não o conhece!
– Posso não conhecê-lo, mas acredito que ele a ame. Se mais ou menos do que aos seus irmãos,
não saberia dizer, mas a ama. E, antes de desejar vê-la casada com um bom homem, ele quer vê-la
feliz... Alguma vez disse a ele que não estava satisfeita com esse noivado?
– Não é assim tão fácil – retrucou Nicole.
– Quão maravilhoso seria o mundo caso tudo nos fosse fácil, não é mesmo? – Como ela não lhe
respondeu, prosseguiu: – Os obstáculos se colocam diante de nós para que possamos transpô-los...
Em vez almejar fugir dos problemas, tente solucioná-los. Com tranquilidade e sabedoria... Antes de
tudo, acalme seu coração. Entenda que sua irmã, de maneira torta e desleal, apenas tenta ir contra
imposições que não aceita. Você sabe o que não admite, então não copie, mas ao menos lhe siga o
exemplo e arrisque. – Completamente imbuído de seus preceitos, prosseguiu: – Não sei se seu
casamento se dará aqui, mas, se for, eu ficaria muito feliz de abençoar uma união onde o sentimento
reinante fosse o amor, não o dever.
– Eu não sei como fazer... – Nicole novamente chorava.
– Tenho certeza de que encontrará uma maneira – Jonathan a encorajou. – Diante do que me disse,
não tenho como determinar uma penitência.
Realmente não teria! A confissão se transformou num interrogatório particular, perdendo todo o
teor apaziguador e redentor. Sem contar que a moça estava mais torturada do que arrependida.
Portanto, Jonathan pediu que ela fizesse duas orações, pedindo alívio para seu coração aflito e
tranquilidade para tomar as decisões certas. Disse ainda que a moça poderia procurá-lo quando
desejasse. Sempre estaria disponível para ouvi-la, aconselhá-la e, em último caso, disposto a
interceder por ela junto ao pai.
– Não será preciso – Nicole assegurou. – Vou pensar em tudo que o senhor me disse. Por vir aqui
já me sinto bem melhor... Obrigada por me ouvir.
– Não me agradeça por isso. Agora vá!... Não quero atrasá-la e acredito que seus vinte minutos já
devam ter se passado.
– Minha nossa! – alarmou-se. – Já passei de minha hora! Desculpe, padre, mas eu preciso correr...
Posso fazer minhas orações depois?
– Pode. Quando terminar seu expediente, volte e as faça aqui.
– Obrigada! – Nicole deixou o confessionário, mas, antes que saísse, disse apressadamente: –
Ah... Estimo as melhoras de seu tio... Tchau, padre.
Jonathan ainda viu a moça se benzer antes de deixar a igreja; vazia, uma vez que espantara as
pecadoras de plantão. Ao expirar profundamente, ele rogou que o ar resfriasse seu cérebro. Sentia-se
levemente tonto com tudo que ouvira sobre Faith.
O novo problema é que a moça leviana não diminuiu aos seus olhos. Agora, não somente a
conhecia mais, como se enciumava mais. Era sufocante imaginá-la ajoelhada aos seus pés, num
vestido branco, casando com outro; amado ou usado.
Irritado, o padre deixou a igreja aberta, seguiu até a sacristia, retirou o colarinho branco e abriu a
camisa por completo. Contudo, nada disso adiantou. Jonathan sabia que as reações de seu corpo eram
o reflexo de sua luta interna entre desejo e dever, paixão e ódio. Somente quando se rendesse a um
deles teria o ar de volta.
Capítulo Vinte e Oito

Terça-feira passou arrastada, rarefeita. Por sorte pouquíssimas pessoas foram procurá-lo e todas
somente para saber notícias de seu tio. No final da tarde, Jonathan fechou as portas da igreja e foi
com certo alívio que partiu para Wells. Levava roupas limpas para o padrinho e um livro de salmos
que pretendia ler à noite, caso não conciliasse o sono. Naquele início de noite, guiar o relaxava. O ar
que entrava pelas janelas de seu Wrangler pareciam finalmente alcançar seus pulmões.
Jonathan decidira não sofrer por antecipação. Do presente dia até um improvável futuro onde
estaria casando Faith, teria muitos outros. Para superar seu conflito, bastaria tempo e paciência.
Como zombaria do destino, provando que nunca seria tão simples, seu jipe cruzou com a pick up dela
na autoestrada deserta. O prazer em vê-la, mesmo que brevemente, foi roubado pelo olhar invasivo,
acusador e odioso do ocupante do carro que a seguia. Por todo o restante do percurso, Jonathan
apertou o volante com força, imaginando que ali pudesse ser o pescoço do moleque indolente.
Quando chegou ao hospital, a calma aparente se esvaíra. Sua inquietação não passou despercebida
ao tio que, ao que parecia, estava recuperado. Sim, suas costelas ainda mereciam atenção e seu rosto
estava coberto de hematomas, mas o corte feito durante a cirurgia cicatrizava bem e ele apresentava
uma disposição animadora.
– O que há Johnny? – Carlo perguntou horas depois da chegada do sobrinho, quando este voltou ao
quarto com outro copinho de café.
– Queria poder levá-lo embora – mentiu.
– É certo que receberei alta amanhã logo cedo, então se acalme... Em algumas horas iremos
embora. Também não aguento mais esse lugar.
Jonathan lhe sorriu com simpatia, recriminando-se pela mentira. Não diria nem em confissão que
experimentava uma boa dose de despeito, temperada com o ódio mais corrosivo. Nem mesmo saber
que a moça esteve no hospital, à procura de informações, arrefecia sua ira. Tyler era uma espinha
entalada em sua garganta.
Como esperado, Jonathan dormiu mal. Foi com alívio que recebeu o médico logo na primeira hora
da manhã. Dadas as últimas recomendações e agendada a retirada dos pontos para a semana seguinte,
seu padrinho foi liberado.
Jonathan ajudou-o a se vestir e o amparou até o jipe. Por fim, livres do hospital, tio e sobrinho
guardavam seu próprio silêncio. Este fora quebrado quando Jonathan – já a guiar pela estrada –
pediu a Carlo que mostrasse onde o ataque acontecera. Depois de indicar três pontos diferentes, o
senhor alegou não lembrar, deixando que o silêncio novamente os envolvesse.
Ao chegarem à casa, Jonathan se aborreceu. Esperava por aquilo, mas não imaginou que sua porta
estivesse tomada pelos curiosos. Foi preciso usar um tom mais rígido com todos que se acercavam
de seu padrinho. Alguns olharam-no magoados, porém Jonathan não se importou. Precisava zelar
pela recuperação de Carlo e aquela agitação, associada à necessidade popular de contato físico, não
lhe fariam bem.
Tão logo colocou o tio na segurança de seu quintal, Jonathan desculpou-se e, depois de dizer que
os atenderia e responderia ao que quisessem saber depois que abrisse a igreja, conduziu Carlo à
casa. Queria deitá-lo, mas sua sugestão foi prontamente recusada.
– Por favor, deixe-me ficar aqui... – pediu ao sentar pesadamente no sofá. – Já fiquei muito tempo
deitado naquele hospital. Sabe como é ruim...
– Sim, eu sei – Jonathan respondeu. – Mas só um pouco. O médico recomendou repouso absoluto e
se eu der chance, é bem capaz que corra para cuidar do jardim.
– Por falar nisso, cuidou de minhas plantas?
Cuidou tanto que Faith até teve a chance de desfalcar a roseira. A lembrança o alertou para que
tirasse as rosinhas murchas da janela para que Carlo não as visse.
– Sinceramente não me lembrei – disse. – Mas sei que a Sra. Williams as regou na sua ausência e
continuará a fazê-lo, ouviu bem?
– Sim, senhor – o padrinho concordou. – Mas por pouco tempo.
– Está bem!... – Jonathan olhou em volta sem saber o que fazer, nunca cuidou de alguém. – Está
com fome?
– Ainda não, obrigado! – O padrinho se recostou. – Quero apenas ficar aqui. Vá cuidar de seus
afazeres. Se precisar de você, eu o chamo.
– Está certo... – Jonathan ainda hesitou, antes de deixá-lo. Chegara o dia de retribuir todo cuidado
de seu padrinho, e não sabia como fazê-lo. Enquanto trocava de roupa, decidiu que chamaria a Sra.
Williams para ajudá-lo, pois claramente precisaria da ajuda de uma mulher.
Ao fazê-lo, sua vizinha se mostrou satisfeita com a oportunidade de colaborar. Depois de feito o
arranjo, Jonathan seguiu para sua igreja para abri-la. Lembrou que estavam na quarta-feira, quando
seus bancos foram rapidamente tomados pela legião de pecadoras. Ao cumprir seu dever, esteve
ocupado até pouco depois do meio-dia.
Aquela foi outra manhã que não viu Faith. A moça não estava entre todos que o esperavam na
calçada, nem fora até a igreja. A saudade o corroia, porém Jonathan conseguiu manter o foco. Depois
de comer um pouco da refeição preparada pela Sra. Williams, Jonathan obrigou o padrinho a se
recolher e voltou para segunda rodada de confissões.
Por sorte, foram apenas duas, deixando-o com a tarde praticamente livre. Jonathan cogitou correr,
mas descartou a ideia. Por mais que seu corpo reclamasse pela falta da ação, ele não tinha ânimo
para a atividade física. E, em vez de cuidar do corpo, tentou acalmar a alma. Boa parte daquela
tarde, recolheu-se em oração. Por volta das 17h00, foi interrompido pela Sra. Williams que entrou na
sacristia alarmada, um tanto aborrecida.
– Senhor, padre! Desculpe-me se o atrapalho, mas o senhor precisa fazer alguma coisa.
– O que aconteceu? – De imediato Jonathan se pôs de pé.
– É seu padrinho... Nunca vi alguém mais teimoso.
– O que ele fez? – Jonathan inquiriu, já rumando para a casa.
– Ele está lá no meio do jardim... Foi cuidar das plantas. Eu vi da minha casa e fui lá dizer a ele
que fosse se deitar, mas ele não me ouviu e ainda brigou comigo, me acusando de ter arrancado as
rosas dele... Eu nunca toque naquela roseira!
Faith!
Jonathan sabia da fixação que o padrinho tinha por plantas, não poderia ter deixado que ele visse o
arranjo improvisado pela moça. Em todo caso, aquele não era o caso de desobedecer às ordens
médicas e ou lançar ao trabalho. Quando o encontrou, Carlo estava regando a bendita roseira.
– Não acredito nisso! – Jonathan exclamou em italiano, sem se importar com a senhora que o
seguia. – O que pensa que está fazendo?!
– Alguém tinha de cuidar delas. – Carlo disse simplesmente. – Fico fora por cinco dias e vocês as
massacram... Sorte que não mataram as mudas de ervas.
– Que importa as plantas? O senhor não pode pegar peso. Deixe esse regador aí e entre.
– Esse é meu braço bom – retrucou o tio. – Já termino num segundo.
– Agora! – Jonathan demandou.
O padrinho lhe lançou um olhar desafiador, contudo, depois de um resmungo baixo, deixou o
regador no chão e seguiu para casa. Jonathan o seguiu de perto, acompanhado pela senhora que
prestava atenção à conversa; mesmo sem entender uma única palavra. Quando Carlo fez menção de
se sentar no sofá, Jonathan não permitiu.
– Chega de ficar na sala... Vá para o quarto.
– Agora você manda em mim, é isso?
– Pelo o que vejo, enquanto não se livrar dos pontos e o médico não o liberar para fazer esforço,
acho que terei de mandar, sim... Agora, por favor, vá se deitar.
– Depois que você me disser quem massacrou minha roseira... A Sra. Williams jurou que não foi
ela.
– Foi Faith – disse sem preâmbulos. Não poderia mentir.
– O quê?! – Carlo engasgou. – Quando ela...? O que ela...? Jonathan?!
– Calma... Ela veio aqui no sábado, esqueceu?... Para fazer a limpeza que eu arrematei no leilão.
– Ah!... O bendito leilão!
– Sim... Eu tive que sair às pressas para ir ao hospital. Se estivesse aqui não deixaria que ela
tocasse na roseira... Agora que respondi, pode ir se deitar?
– Eu vou, mas não vou esquecer. Essa menina já está se metendo demais em nossas vidas. Não a
quero aqui... E não sei como ficaram seus encontros com ela esses dias que estive internado, mas, tão
logo me recupere, vou voltar a monitorá-lo. Não vou deixar que ela abale sua vocação, nem permitir
que anos de sua vida sejam jogados fora por causa de uma...
– Padrinho! – Jonathan o cortou. – Saiba que não tive tempo livre nem mesmo para correr, então
não diga nada de que venha a se arrepender e... Não estamos sozinhos.
– Ela não entende nossas palavras – Carlo retrucou.
– Mas entende nomes e eu disse o da senhorita antes que o senhor explodisse. Não se esqueça de
que eu lhe disse como me sinto em confissão, então não me exponha.
– Perdoe-me. – Carlo parecia de fato arrependido. – É que tenho planos para você, Johnny... Não
quero que cuide de paróquias em cidades pequenas. Você é capaz de alçar voos mais altos. Podemos
voltar para a Itália e, quem sabe, daqui a alguns anos você tenha a chance de ser indicado e ordenado
bispo... Esse sempre foi seu desejo também, não se lembra?... Sua mãe ficaria orgulhosa.
Jonathan não gostava de ser lembrado de desejos que não guardava na memória, assim como ouvir
sobre sua mãe naquele momento. Se lutava com todas as suas forças para se manter fiel àquela
paróquia, como o padrinho poderia querer que ele se ocupasse com um possível bispado? Um que só
viria depois de anos e anos de dedicação à vida eclesiástica onde seu comportamento tinha de ser
reconhecidamente digno e idôneo?
– Sim, ela ficaria orgulhosa... Mas como nunca estará aqui para ver, é melhor eu cuidar do que
tenho no momento. Agradeço a preocupação, mas agora quem precisa de monitoramento é o senhor. –
Falando em inglês, pediu, cansado: – Agora vá para seu quarto, por favor.
O padrinho finalmente o obedeceu. Tão logo sumiu no corredor, a Sra. Williams falou às suas
costas:
– Ele ficou mesmo furioso porque a menina tirou as rosas, não foi?... Eu vi quando ela as colheu,
mas não quis dizer.
– Meu padrinho sempre cuidou de plantas... E não gosta que ninguém mexa nelas. Faith não sabia –
desculpou-a, aliviado pela senhora ter deduzido que o esbravejar de seu tio tenha sido pelas rosas.
Ao ficar sozinho, Jonathan resolveu cerrar as portas. O dia fora extenuante. Ansiava por um bom
banho, um prato de comida e cama. Foi preciso esperar que duas pessoas deixassem a igreja para
fechá-la. O banho desejado foi breve. Ao terminar de se vestir – com uma calça jeans e uma de suas
camisetas de corrida –, finalmente retirou as rosas da janela. A lembrança da visita de Faith na
manhã de sábado, não mais existia.
Livre das flores, Jonathan esquentou a comida preparada por sua vizinha e dividiu em duas
porções. Sozinho comeu seu tanto antes de levar a parte do tio. Encontrou-o dormindo e não o
acordou. Permaneceu em sua cama depois de levar o prato de volta a cozinha. Quando faltavam cinco
minutos para completar uma hora de descanso, voltou ao quarto do tio.
Carlo ainda dormia, mas algo em sua face chamou a atenção do jovem padre. Ele estava suado
demais. Aproximando-se, Jonathan conferiu sua temperatura, tocando-lhe a testa. O tio ardia em
febre. Como estava medicado, Jonathan resolveu fazer compressas com água fria na tentativa de
abaixar a temperatura.
Todas às vezes que retirou a toalha que usava, esta estava quente demais. Jonathan sabia ser
reflexo do esforço físico e emocional. Parecia incrível como Faith estava presente em todos os
momentos de sua vida; vividamente nos piores. Jonathan gostaria de ser forte e aceitar o
oferecimento do padrinho, conseguir uma transferência ou talvez o de voltarem para a Itália.
– Meu pequenino... – Carlo murmurou, tirando-o de seus pensamentos. – Meu pequeno...
Jonathan tinha esquecido o chamamento. Nunca o ouvira, nem sabia quem poderia ser aquele que
seu tio chamava em agonia. Compadecendo-se, murmurou:
– Shhhh... Estou aqui... Estou aqui...
– Meu pequenino... – voltou a sussurrar, porém calmo.
Não, não era o tal pequenino, mas Carlo. Era o que bastava, Jonathan pensou enquanto trocava a
toalha quente de sua testa. Em tempo algum vira o padrinho fragilizado. Seu rosto machucado parecia
pior, coberto pelo suor. Por fim, quando a febre cedeu, Jonathan se sentou ali mesmo, no chão.
Movido pelo afeto, segurou a mão do tio, muito consciente de que ele era tudo o que tinha no
mundo. De repente, Jonathan tomou consciência da amplitude do ocorrido. Se o tiro tivesse se
deslocado apenas alguns centímetros, Carlo não estaria ali. Àquela altura estaria sozinho e tal
pensamento, encheu-o de pavor.

– Ah... Cadê minha casa? – Faith choramingou ao volante, considerando a estrada longa demais.
Ansiava cruzar com o jipe de Jonathan, mesmo sabendo que não aconteceria. Na tarde anterior,
quando esteve no hospital para obter informações, soube que Carlo teria alta pela manhã. Àquela
hora os padres já estariam em casa e somente os veria no dia seguinte, caso o pai não a ocupasse.
Conformada com a espera, Faith acelerou, ignorando Tyler que se mantinha firme em sua promessa
de não citar o padre. Estavam em paz, ainda assim agradeceu intimamente quando chegaram à cidade
e ele seguiu seu caminho. Antes de entrar na rua que a levaria até sua casa, Faith olhou a igreja.
Estava fechada, como sempre àquela hora.
Com certeza Jonathan descansava, merecidamente. Agora, apenas algumas horas a separava dele.
Entrou em casa já expectante, contando os minutos para o encontro. O jantar com a família não foi
diferente, contudo, ao término da refeição na qual o tema foi justamente o ocorrido com o tio do
padre, ela descobriu não ser preciso esperar, como acreditou.
– Faith – chamou-a Constance, quando depositava seus talheres sobre a mesa. – Eu preparei uma
sopa para o senhor Carlo e gostaria que você a levasse.
– Sim, senhora – anuiu séria, calando um grito eufórico na garganta.
– Mas não demore – recomendou seu pai ao levantar para ir se sentar diante de seu rádio. – Logo
não será mais horário de bater na porta dos outros – resmungou. – Sua mãe só inventa!
Naquele minuto Faith agradecia todas as invenções maternas fora de hora. Com medo de o pai
cismar e proibi-la de sair, perguntou:
– Cadê a sopa?
– Na caçarola sobre o fogão – indicou a mãe. – Vá agora. Nicole me ajuda com a louça.
Como se fosse possível ser barrada, Faith apenas assentiu e fez como pedido. Não voltou pela
sala, anunciou sua saída mesmo da cozinha. As calçadas estavam vazias àquela hora comum às
refeições. A noite estava clara, mas o céu dava mostras de que logo escureceria.
Enquanto caminhava, Faith tentava contabilizar quantas borboletas povoavam seu estômago. Eram
muitas e estavam tão agitadas que parecia ter anos que não fazia aquele caminho. Bateu à porta
evitando lembrar quando esta foi fechada na sua cara. Não aconteceria daquela vez. Talvez não
acontecesse nada, pensou ao não ser atendida. Considerando estranho, bateu de novo. Ao não obter
resposta, testou a maçaneta. Estava destrancada e, vagarosamente, a moça a empurrou.
– Oi... – chamou com cautela. Nada. Uma vez que estava dentro, foi à cozinha para deixar a
caçarola sobre a mesa. De volta à sala, apurou os ouvidos, e não escutou som algum. O certo seria ir
embora, mas simplesmente não conseguiria, então chamou baixinho: – Padre Jonathan!
Era realmente estranho que não estivessem, então, depois de chamar mais uma vez, Faith se
aventurou pelo corredor. Pé ante pé seguiu até os quartos. Encontrou o de Jonathan vazio, com isso
seguiu ao de Carlo, pedindo aos céus que o padre não a recriminasse pela invasão. Logo viu que não
aconteceria. Jonathan estava ao lado do padrinho, sentado no chão, com os braços sobre a beirada do
colchão e a cabeça repousada sobre eles.
Enquanto o observava, Faith reparou que ele segurava uma das mãos do tio. A cena quebrou seu
coração. Queria saber como Jonathan estava, conversar. Ele sempre se mostrava forte, mas,
adormecido aos pés da cama, era o retrato da fragilidade. Faith se dividia entre acordá-lo ou deixá-
lo velar o sono do tio, quando ele se moveu.
Sequer teve tempo de recuar antes que Jonathan despertasse e olhasse diretamente para ela. Sem
jeito por ter sido pega vigiando um momento particular, Faith acenou de modo tímido e saiu em
direção à sala. Era melhor ir embora, pois não queria ser acusada de bisbilhotice.
– Faith, espere – Jonathan pediu e segurou-lhe o braço ao alcançá-la já no meio do corredor. Como
sempre acontecia naqueles breves contatos, todos seus pelos se eriçaram antes que ele a soltasse
bruscamente.
– Me desculpe por invadir sua casa – pediu a guisa de explicação. – Vim trazer um pouco de sopa
feita por minha mãe. Não queria te acordar.
– Agradeço por isso – disse ele, gentilmente. – Se ficasse naquela posição por mais tempo, ficaria
travado.
– Como ele está? – Faith perguntou, esboçando um sorriso incerto.
– Se recuperando – Jonathan respondeu, mirando-a fixamente. – Teve febre há pouco, por isso eu
estava lá. Mas já passou.
– Sinto muito pelo o que aconteceu – disse, pesarosa, fugindo do olhar intenso somente para
descobrir como o padre ficava bonito vestido em roupas normais, tendo os pés descalços. Não podia
evitar a análise imprópria, então considerou melhor sair antes que sua mente divagasse e
colecionasse imagens para mais uma noite de sonhos inquietantes.
Alheio aos pensamentos dela, Jonathan fez com que Faith seguisse pelo corredor, mantendo a mão
pousada em seu ombro. Na sala, ele a conduziu até o pequeno sofá e se sentou ao lado da moça tão
logo a acomodou.
– Não consigo entender porque fizeram isso com ele – Jonathan comentou sem que Faith nada
perguntasse.
– Eu soube. Nunca imaginei que tal animosidade acontecesse em Wells... – comentou, solidária.
Finalmente conversava com Jonathan! – Seu tio não disse nada novo?
– Não. – Consternado, acrescentou: – E não tem nada que se possa fazer.
Ciente de que sofreria as consequências, temendo ser repelida, Faith tocou as mãos que ele
mantinha postas sobre as coxas.
– Não fique assim... – Quanto notou que não seria afastada, apertou-lhe os dedos para confortá-lo.
– Seu padrinho é um homem forte. Logo estará recuperado.
– Ele é toda minha família – Jonathan declarou, invertendo a posição das mãos, segurando a dela.
– Eu ficaria sem rumo se o perdesse.
Faith estranhou o embargado na voz. Incrédula, ergueu o olhar das mãos entrelaçadas e viu
lágrimas furtivas que umedeciam os olhos baixos. O inusitado de ver um homem chorando, partiu seu
coração já sensibilizado. Então, sufocando seu receio, aproximou-se para abraçá-lo. Quando
Jonathan retribuiu o abraço e liberou o choro contido, Faith se desnorteou. Nunca em sua vida
precisou consolar um homem. Não sabia o que dizer ou fazer. Passado um minuto de inércia, ocorreu-
lhe acariciar os cabelos claros, enquanto dizia carinhosamente:
– Não precisa sofrer mais... Apenas agradeça por não ter sido pior.
Logo Faith tentava ignorar os calafrios que a proximidade provocava.
– Eu agradeço – respondeu ele, com o rosto afundado na curva do pescoço feminino. – Assim
como agradeço que tenha ido ao hospital, e vindo aqui.
– Queria ter certeza de que seu tio estava bem – explicou, meio ressabia, pois não era para ele
saber. Contudo, como sua invasão não o aborreceu, disse sinceramente: – E agora vim ver como você
estava.
– Sei disso. – Ao falar, a boca masculina roçou sua pele sensível. Faith mordeu os lábios para
calar algum som vexatório, então contou:
– Queria ter vindo antes, mas... estive ocupada ajudando meu pai na cooperativa e... também não
sabia como seria recebida.
– Podia vir sem medo. Prometi que não seria grosseiro.
Mais uma vez a boca dele roçou em seu pescoço, causando-lhe um arrepio. Talvez fosse hora de se
afastar, Faith considerou. Porém ao se mover, Jonathan a apertou mais. Aquilo aconteceu ou
imaginou?
Com o coração aos saltos, Faith permaneceu imóvel até que Jonathan confirmasse o gesto,
repetindo-o. Dessa vez, ao apertá-la, Jonathan comprimiu a boca contra sua pele, num longo beijo,
provando que o toque suave não fora fruto de uma mente apaixonada. Faith adorou a iniciativa, mas,
inquestionavelmente, era hora de ir embora. Ela sabia como aquilo terminaria.
– Eh... Acho que agora eu...
– Seu cheiro é tão bom! – Jonathan roçou a ponta do nariz ao longo do pescoço molhado por suas
próprias lágrimas. Faith permaneceu estática entre aqueles braços fortes, decidindo que valeria uma
expulsão. – Sua pele é tão macia... Os dias passam e eu não consigo esquecê-la.
Como assim?!... Além de ter confirmado que ela o perturbava, agora Jonathan – o padre bipolar –
confessava que não a tirava da cabeça? Definitivamente tal revelação valeria qualquer expulsão, mas
não pôde pensar muito a respeito ao sentir a boca terna beijar a base de seu pescoço.
Inconscientemente Faith inclinou a cabeça, dando aos lábios dele uma área maior de atuação. Logo
a boca estava em sua orelha, chupando-lhe o lóbulo lentamente, tornando-a muito consciente do calor
abaixo do ventre que há muito a umedecia.
Se Jonathan nunca esteve com outra mulher, onde poderia ter aprendido a fazer tais coisas?
Sinceramente Faith não queria saber. Fosse onde fosse, ele passara com louvor. Teve a certeza
quando a língua deixou sua orelha e traçou um caminho de fogo até sua clavícula. Ainda paralisada,
Faith sentiu uma mão quente tocar seu ombro. Precisamente na alça de seu vestido para baixá-la.
Aquilo estava acontecendo? Estava, respondeu-se em choque. E talvez Jonathan tenha desejado
fazê-lo desde a manhã em seu quarto, pois baixou a malha até que deixasse seu seio exposto.
Estarrecida com o que acontecia naquele sofá, Faith sentiu seu mamilo ser eriçado por dedos
delicados enquanto a boca morna descia lentamente, distribuindo beijos por seu colo. Tinha a
respiração suspensa, quando seu seio foi amparado e os lábios roçaram o bico desperto.
– Oh... – Foi inevitável conter o gemido.
Agora uma parte distinta de seu corpo se contraia e pulsava dolorosamente sempre que ele rolava
o mamilo com a língua, estimulando-o. A tortura não teve longa duração, logo Jonathan o abocanhou
praticamente inteiro e gemeu baixo ao chupá-lo, como se pudesse se alimentar dela. Faith queimava,
e ainda não se atrevia a se mover, temerosa de que Jonathan parasse com o sugar ritmado caso
mudasse de posição. E apesar de o momento ser impróprio, estava ali para ele.
Jonathan poderia fazer com ela o que bem entendesse!
Como se lesse seu pensamento, um Jonathan compenetrado baixou a alça restante, deixando todo o
dorso exposto antes de liberar um gemido gutural e provar-lhe o outro seio com a mesma fome.
Quando o desejo se tornou insuportável, foi impossível não se mover.
Instintiva, Faith afastou as pernas. Ao seu movimento, Jonathan segurou o interior de sua coxa e
apertou com força. Surpresa, ela as apartou mais. Imediatamente a mão decidida avançou sob a barra
do vestido. Ao ter sexo tocado sobre a calcinha, Faith acreditou que desfaleceria.
Jonathan ainda provava um seio, quando seus dedos invadiram o elástico da peça e a tocaram
diretamente, certeiros, sobre o ponto que lhe dava maior prazer. E mesmo que ansiasse por tal
avanço, surpresa e trêmula, ao ser estocada com habilidade, murmurou:
– Misericórdia!
Extremamente excitada, com a iminência do gozo a varrer o medo, Faith moveu o quadril na
direção da mão provocadora. Como se contentá-la fosse o objetivo, Jonathan a acariciou sem receio,
sempre a provar um seio. Faith esqueceu onde estava. Queria era se render à mistura luxuriante de
prazer e dor para morrer feliz. Alucinada, sem temer que ele parasse, correu a mão por toda extensão
da coxa firme até tocá-lo intimamente.
– Oh, senhor!... – choramingou ao descobri-lo duro sob o jeans. Então o encanto se desfez.
Jonathan se afastou como que repelido por uma descarga elétrica, indo o mais longe possível para se
voltar de costas.
– Perdonami, per favore!...
– Como?! – Faith assobiou confusa, ofegante.
– Perdoe-me... – ele repetiu ainda sem se voltar. – Fui um animal! Não mereço perdão!
– Jonathan, não... – ela balbuciou com o coração aos saltos, tentando entender por que ele se
afastou daquela forma.
– Poderia se cobrir? – pediu rouco, porém energicamente.
Antes de obedecê-lo, a moça olhou para o próprio corpo. As coxas à mostra e o vestido arriado,
assim como a pele marcada em volta de suas auréolas seriam a prova de que não tinha delirado
depois que ele – mais uma vez – a mandasse embora. Resignada, muito excitada, e frustrada pela
brusca interrupção, Faith se recompôs, erguendo as alças de seu vestido lentamente com as mãos
trêmulas.
– Pronto! – anunciou para que ele a encarasse. – Estou coberta.
– Diga a sua mãe que agradeço a atenção... – recomendou Jonathan, sem se virar ou comentar o
ocorrido. – Poderia me deixar agora?
Aquilo não era certo, Faith pensou contrariada. Sem hesitar levantou e foi até ele.
– Acho que deveríamos conversar, não? – perguntou, tocando seu ombro. Mais uma vez Jonathan
se afastou como se repelido por alguma força poderosa, sem encará-la.
– Per favore! – suplicou. – Não torne pior do que já está. Não há desculpas para o que fiz, então...
Apenas tente me perdoar e me deixe.
Sentindo o peso da rejeição, Faith recolheu a mão que ficara erguida depois que ele fugiu de seu
toque. Então era aquilo mesmo? Prometia-lhe o céu e depois a atirava ao inferno, sem encará-la, sem
explicações?
Engolindo seu orgulho ferido, ela também lhe deu as costas e saiu, sem despedidas.
Ao ouvir a porta ser aberta, Jonathan a olhou em tempo de ver a moça sair e fechá-la sem olhá-lo.
Era melhor daquela forma. Teria morrido se flagrasse seu olhar carregado de desejo ou rancor como
das outras vezes que praticamente a expulsou de sua presença. Ou talvez não morresse, sim se
rendesse e a chamasse de volta.
Como se pudesse!
Em que pensava para fazer o que fez? Sabia onde estava. Estava nela! E agora Faith tinha se
instalado definitivamente em sua cabeça, em sua língua; agravou sua fixação. Como se não bastassem
todos os sentimentos que Faith despertava, vê-la solidária no momento em que se sentia sozinho, foi
fator máximo para que chegasse ao limite da permissividade. E a partir de agora, para sempre
precisaria de mais.
Capítulo Vinte e Nove

Provando o sabor de Faith nos dedos, a satisfação mecânica veio violenta, incompleta. Ofegante e
trêmulo, Jonathan permaneceu sob o chuveiro até que seu corpo se acalmasse. Minutos depois iniciou
o banho. Lavou-se inteiro, agitado apenas pela adrenalina. Contudo, tal situação não era irreversível,
então, enquanto ensaboava aquele apêndice corruptor – agora flácido –, evitou se lembrar do prazer
poderoso que sentiu quando a moça o tocou.
Agradecia sua pronta reação, pois o contato licencioso o privou de qualquer discernimento,
tornando-o muito apto a fornicar com Faith no sofá de sua sala, com o padrinho convalescente no
quarto próximo. Ela poderia não ter diminuído aos seus olhos, mas jamais poderia se deixar dominar
pela moça experiente, compartilhada, lembrando-se que era apenas mais um. Era o capricho de uma
menina mimada, ansiosa em conquistar o homem inacessível, nada mais.
Por fim o arrependimento veio, forte e veloz, acompanhado de um ressentimento daninho. Este
trouxe também a vergonha. Talvez a diaba estivesse naquele momento rindo-se dele, da rendição
fácil, de sua inexperiência.
Tomado por uma fúria intensa, Jonathan socou o azulejo. Socou uma segunda vez e uma terceira.
Não repetiu, pois seus ossos doíam. Aqueles golpes deveriam ser desferidos em sua própria cabeça
para ver se expulsava dela aquele homem fraco e carente que, se não bastasse ser viciado em uma
messalina, agora expunha a figura pública ao ridículo.
Como poderia olhar-se no espelho? Como olharia para ela? Temeu ver-lhe o rancor, mas o que não
suportaria era perceber nos olhos castanhos qualquer nota vitoriosa pela confirmação de que ele, um
padre, não tinha vergonha na cara. Relutava e a expulsava somente para se render no minuto seguinte.
Jonathan não via como poderia conviver com aquela desonra.
Talvez fosse a hora de pensar na transferência. Como poderia assistir Faith desfilar abertamente
com um rapaz e secretamente com outro enquanto se comprazia por ter conseguido os carinhos pueris
de um homem mais velho, ainda virgem? Inferno! Praguejou silenciosamente ao desligar o chuveiro.
Humilhado e enciumado, Jonathan deixou o box passou a se enxugar vigorosamente, ignorando a mão
dolorida. Era tarde para lamentar.
– Quid factum est factum! – murmurou em latim. – O que está feito está feito!
Instintivo, cheirou a mão que a tocou, e enfureceu-se mais. Como podia ser tão dependente ao
ponto de, nem mesmo diante de todas as verdades massacrantes, não se colocar em seu lugar? Como
ainda procurava por evidências de sua desgraça?
Desprezando-se, Jonathan recolocou o jeans, passou a toalha usada sobre os ombros, recolheu as
outras peças, juntou-as à sua insignificância e deixou o banheiro.
Ao passar pelo quarto do padrinho, entrou e tocou-lhe a testa. A febre cedera e Carlo dormia
tranquilamente. Depois de fazer um carinho leve na franja quase grisalha, Jonathan deixou que
repousasse em paz. Colocaria as roupas usadas na lavandeira antes de se recolher. Não dormiria,
mas era preciso descansar seu corpo. Todos precisavam dele, principalmente seu padrinho, então não
podia se dar ao luxo de esmorecer por conta de seu descontrole irracional nos braços de uma
libertina.
Ressentido, ainda a cismar, Jonathan chegou à sala. Seguia tão distraído que seu coração quase
parou ao encontrar a causadora de seus infortúnios a esperá-lo, de pé, bem no meio do cômodo. O
receio de encará-la se foi, pois simplesmente não conseguia desviar os olhos do rosto falsamente
angelical.
Em choque, viu-a se recuperar do próprio susto e analisá-lo com olhos especulativos. Jonathan
considerou que a toalha sobre seus ombros talvez o tornasse uma figura risível. Mais do que já
deveria ser, pensou acidamente. Tomado por uma vaidade rancorosa que aniquilou seu embaraço,
livrou-se do pano úmido e, com as roupas que carregava, deixou que caíssem ao chão.
Odiava se sentir nu, mas queria que Faith o olhasse.
Talvez não tivesse comparação com o grandalhão moreno que ela usava, mas Jonathan sabia ser
maior e mais forte do que o moleque indolente que a moça amava. Sim, ele era inexperiente, virgem,
mas era um homem e, por seu orgulho ferido, queria ser visto como tal.
– Eu... – Faith balbuciou. – Você não... Não fechou a porta... E eu...
– E você...? – ele a encorajou, encarando-a com uma sobrancelha erguida.
Minha nossa senhora! Como poderia juntar duas frases coerentes vendo o padre vestido daquela
maneira? Faith especulou. Já seria um problema enfrentá-lo com ele estando vestido! Como seria
agora que tinha todo aquele peito musculoso, coberto inteiramente por tantos pelos mínimos, bem
diante de seus olhos?
Até mesmo aquele cordão que Jonathan sempre trazia ao pescoço, que agora ela via carregar um
crucifixo e uma chave, roubava-lhe o raciocínio. E para piorar, sentia aquele cheiro de sabonete pós-
banho.
– Você...? – ele repetiu com aquela voz que também roubava o juízo da moça. – Faith?
Certo! Ela pensou, piscando algumas vezes. Ao começar, o resto viria.
– Eu voltei para te dizer que não acho certo o que fez – disparou a um só fôlego.
Jonathan franziu o cenho. Escutara direito? Ela não considerava certo o que ele fizera? Piada!
Depois de levá-lo ao limite ela se tornara uma donzela imaculada.
– Não acha certo o que fiz? – ele retrucou debochado. – E o que você faz? Sempre que tem
oportunidade me provoca. Beija minha mão ao tomar a bênção de forma, no mínimo, indecente...
Roça sua perna na minha e se atira sobre mim apenas para me torturar enquanto supostamente foge
de uma barata.
– Não fingi ter medo daquela coisa nojenta só para me atirar em você. – Faith finalmente conseguia
pensar com clareza. – Quanto às outras coisas não tenho defesa, mas não pode reclamar, pois gostou
de tudo o que fiz...
– Também não tenho defesa quanto à isso, mas em momento algum fui atrás de você para cobrar-
lhe nada – replicou seriamente. – Então não me recrimine por reagir aos seus avanços... Acho que já
percebeu que, antes de ser padre, sou homem.
Como não perceber? E resolveu desobedecê-lo não para reclamar de sua reação, sim, a falta de
conclusão. Já estava cansada daquela brincadeira de gato e rato. Jonathan poderia expulsá-la
novamente, mas, agora que estava na rua há tempo demais, não iria embora sem dizer os motivos de
sua queixa.
– Desculpe a falta de respeito, mas se eu visse em você somente um comedor de hóstias eu jamais
faria tais avanços – assegurou. Obrigando suas pernas trêmulas a se moverem, caminhou até ele. – Se
o faço, é porque, desde o primeiro dia que te vi, eu sei que é homem e apenas ele me interessa.
A aproximação despreocupada assim como a objetividade das palavras desrespeitosas, desarmou-
o. Sentia-se mais exposto, mais fraco. E ela não parou por ali.
– Sei que não sabe dessas coisas, então voltei para dizer que não é certo acender uma garota como
fez e depois mandar que vá embora. Acho que tenho direito à reparação.
Faith não era só mimada e caprichosa, era maluca! Por qual reparação ela procurava em sua sala,
ao lado de um enfermo? Acreditava mesmo que ele iria contra seus preceitos somente porque ela não
queria permanecer acesa?
Estupefato, Jonathan sentiu uma raiva crescente que o impulsionava a passar-lhe um sermão antes
de mandá-la embora.
Estava prestes a fazê-lo, quando, sem cerimônias, Faith acariciou seu peito. A reação imediata de
seu corpo, travou-o. Sua inércia indicou aceitação, pois, ato contínuo, Faith se aproximou mais e
beijou-o logo abaixo da clavícula. Elevando-se nas pontas dos pés, ela correu o nariz por seu
pescoço, cheirando-o como fizera com ela.
– Seu cheiro também é muito bom... – disse a roçar a boca em sua pele.
Todas as sensações despertadas nas vezes que teve os dedos comprimidos demoradamente pelos
lábios dela eram nada se comparadas às que percorriam seu corpo depois daqueles toques ousados.
A nova e poderosa onda de excitação afugentou toda a raiva. Poderia se arrepender, lamentar ou se
recriminar, depois. Naquele momento somente o corpo junto ao seu importava.
Inflamado, aquiesceu. A mimada podia usá-lo à vontade, afinal, há muito que estava desgraçado.
– Serpente senza vergogna! – sibilou.
Sim, ela era uma serpente sem vergonha que sabia como envolvê-lo. Tomá-la em realidade não
seria menos condenável do que todas às vezes que a teve em pensamento, auxiliado por sua mão
purificada.
Sem dar-se tempo de pensar, Jonathan a segurou pelo braço, acima do cotovelo, e sem muito
cuidado a arrastou até seu quarto. Faith se deixou levar, em silêncio. Ao entrarem, Jonathan trancou a
porta. Na sequência, derrubou a moça em sua cama e se deixou cair sobre ela.
Sem receio, sem restrições, com a boca a formigar em expectativa, ele procurou a dela. Para quem
nunca tinha beijado, a sensação foi de reencontro ante ao pronto encaixar dos lábios famintos. O
mover compassado lhe pareceu tão certo. E, quando ouviu o gemido abafado e teve os braços em
volta de seu pescoço, Jonathan soube que não havia outro lugar no mundo onde desejasse estar.
Considerava tudo perfeito, e Faith lhe mostrou que havia mais ao abrir a boca e tocar seus lábios
com a ponta da língua. Sem saber ao certo o que fazia, imitou-a e, antes que percebesse seus próprios
avanços, explorava-lhe a boca, acomodando-se melhor sobre o corpo macio.
Ao ter a boca requerida, Faith se policiava para não alimentar falsas esperanças, apenas
aproveitava tudo que lhe era oferecido. Nem lhe importava que o italiano dissesse coisas que ela não
entendia, somente que finalmente tinha seu primeiro beijo.
O beijo! Que começou afoito, num cadenciado mover de lábios. Que reacendeu o questionamento
de onde um padre poderia ter aprendido a fazer tais coisas, pois bastou abrir a boca para que
Jonathan a enlouquecesse com um tantálico chupar de sua língua. Decididamente não queria saber a
origem de tal destreza, considerou, se acomodando sob o corpo pesado. Com um gemido, Jonathan
também se acomodou e, ao sentir o membro enrijecido, Faith emitiu seu próprio lamento, sendo esse
sufocado pela ávida boca masculina.
Confiando que não seria rejeitada, Faith passou a acariciar as costas largas. Imediatamente sentiu
ondulações sob sua palma. Sua estranheza durou segundos. Sabia que as imperfeições eram
cicatrizes. Jonathan não mentira, afinal. De fato se punia. Seu coração foi tomado pela ternura e senso
de proteção: ele não deveria sofrer!
Toda sua benevolência foi esquecida ao ter a boca liberta e seu pescoço explorado. Logo Jonathan
desceu os beijos por seu colo, à caça de um seio.
Expectante, desejando ser provada da mesma forma voraz, Faith o ajudou; descendo as alças do
vestido. Ato contínuo a boca masculina a atendeu, provando-a ainda sedenta. Foi preciso morder os
lábios para não emitir um gemido delator. Caminhava para o paraíso e nem ao menos podia expressar
seu contentamento.
Não importava! Alcançaria o céu calada se fosse preciso. Contudo, não era tarefa fácil. Faith
precisou travar a boca quando sentiu uma das mãos de Jonathan procurar a barra de seu vestido para
erguê-lo. Quando ele espalmou seu ventre sabia o que viria, mas nem toda preparação bastou para a
descarga de adrenalina que correu seu corpo, quando ele insinuou a mão além do elástico da calcinha
e mais uma vez tocou seu ponto mais íntimo.
– Jonathan... – deixou escapar antes que sua boca fosse novamente provada enquanto ele a
estimulava com precisão magistral.
Experimentar a doçura da boca macia, roubou o resto de seu juízo. Agora, tudo que importava a
Jonathan era provar aquele corpo quente e macio que serpenteava de fato sob o seu, provocando a
ereção, retida pela calça.
Como algo tão sublime podia ser errado? Não entendia, e pensaria nas injustiças morais, depois.
Naquele momento queria se concentrar no pontinho mínimo que rola em seus dedos, e provar mais
dos lábios de Faith.
A satisfação mecânica veio súbita e intensa, levando-a a estremecer violentamente agarrada a
Jonathan. Ele poderia ser inexperiente, mas soube o que proporcionou a ela. Tal entendimento o
enlouqueceu, tornando urgente se colocar dentro dela. Faith ainda estremecia quando Jonathan ergueu
o corpo, ansioso por se despir.
E agora vinha a morte sumária, Faith pensou ao vê-lo se livrar da calça e expor a prova orgulhosa
de sua hombridade, entorpecida pelos espasmos que ainda a percorriam. Enquanto se preparava para
recebê-lo, considerou que deveria alertá-lo quanto à sua virgindade, contudo desistiu. Jonathan era
igualmente virgem então não havia motivos para refreá-lo quando finalmente estava prestes a fazer
dela sua mulher.
Lamentando a penumbra que não lhe permitia vê-lo nitidamente, Faith o esperou, expectante,
preparando-se para não gritar ao ser possuída pela primeira vez. Então batidas rápidas e distantes
sobre algo de madeira chamaram sua atenção. Imediatamente Jonathan se ajoelhou ao lado da cama e
lhe cobriu a boca.
– Shhh... Per favore, non parle niente... – pediu ele, roucamente, então se corrigiu. – Fique quieta,
por favor. – Faith assentiu. Não era sua intenção sequer se mover. Jonathan liberou sua boca e
sussurrou: – Deve ser meu padrinho... Logo ele voltará a dormir se acreditar que eu também estou...
– Está bem... – ela murmurou, cúmplice, e ergueu cabeça para capturar a boca que estava próxima
a sua.
Não queria correr o risco de ele desistir depois daquela breve interrupção. Soube que aquele não
era o intento quando Jonathan gemeu levemente e retribuiu seu beijo. Contudo, novamente ouviram as
batidas, dessa vez mais fortes. Ambos perceberam o engano ao mesmo tempo. Estas não vinham do
quarto ao lado, sim, da porta principal.
– É meu pai! – Faith exclamou, afastando-o para se levantar. Não fugia à regra e sua intuição lhe
dizia ser Elliot à sua procura. – Ele vai me matar!
Jonathan nada comentou. A moça ouviu mais do que vi ele se abaixar para pegar a calça e vesti-la
às pressas, como também uma gaveta ser aberta e logo em seguida fechada.
– Calmati... Non ti preoccupare... – ele cochichou depois de voltar até ela e beijar-lhe o alto da
cabeça. Então seguiu até a porta para destrancá-la e sair rapidamente, descalço, descabelado, porém
decentemente vestido.
Faith não entendeu uma única palavra, mas pelo tom manso o pelos carinhos, acreditou que o
italiano tentava acalmá-la. Como se fosse possível, Faith pensou alarmada. O capitão Elliot Green
arrancaria o couro dela e então aniquilaria Jonathan. Àquele pensamento temeu mais por ele do que
por si mesma.
Ser encontrada naquele quarto seria o fim do padre. Este seria denunciado por assedio, atentado
violento ao pudor e tudo o mais que seu pai pudesse alegar. Ela, mesmo que fosse esfolada viva, logo
teria o perdão e a vida seguiria. Não poderia deixar que nada acontecesse ao homem que amava.
O susto o desestimulou, contudo Jonathan precisou parar no corredor para que seu corpo ainda
desperto se acalmasse. As batidas, cada vez mais nervosas contra a madeira de sua porta ajudaram
no processo, então, apenas tentando atenuar alguma expressão facial que o denunciasse, chegou até a
porta.
– Quem é? – perguntou sem abri-la.
– Boa noite, senhor... Sou eu, Elliot. Desculpe incomodá-lo, mas estou procurando por minha filha.
Faith.
Evidente que estava! Jonathan pensou contrafeito antes de abrir a porta. Aproveitando seu
desagrado pela interrupção, perguntou seriamente:
– Aconteceu alguma coisa a ela? Precisa que eu o ajude à procurá-la? – Sua pergunta pareceu
desnortear o líder comunitário.
– Não... – este começou, incerto. – É que... Ela veio lhe trazer um pouco de sopa então eu pensei...
– Que ela ainda estivesse aqui?! – Jonathan se mostrou incrédulo.
– Bom... É... Como são amigos, eu pensei que ela poderia ter ficado aqui ajudando com seu tio.
Jonathan pensou que aquela seria uma boa desculpa caso a moça não aparecesse com o rosto
afogueado ou com a roupa amassada como deveria estar. Melhor despistá-lo para que fosse embora.
Depois veria como tiraria Faith de sua casa.
– Não ficou... Meu padrinho está dormindo e eu mesmo já estava me preparando para fazer o
mesmo, como pode ver... – disse, indicando seus pés descalços. – Mas agora o senhor me deixou
preocupado, será que aconteceu alguma coisa?
– Não! – Elliot disse rapidamente. – Ela deve ter voltado para casa e eu não a vi... Desculpe ter o
incomodado senhor.
– Tem certeza de que não quer minha ajuda? Posso...
– Não, padre... – o capitão recusou se afastando. – Não precisa... Realmente me desculpe vir
incomodá-lo... Tenha uma boa noite e... Estimo melhoras para seu padrinho.
– Obrigado! – Jonathan agradeceu, vendo-o sair para a calçada.
Antes de fechar a porta, viu Elliot parar e colocar as mãos na cintura, olhando de um lado ao outro
da rua, como se decidisse para onde iria em seguida. Agora via sua inconsequência. Mais dois
minutos e tudo estaria perdido.
Se Elliot Green fosse tão invasivo quanto sua caçula, seria uma questão de tempo descobrir a porta
destrancada e, então, seguir os sons sugestivos, talvez um ranger de móveis que o guiasse ao quarto
onde descobriria – um padre – fornicando com sua filha.
E todos aqueles detalhes delatores poderiam facilmente ter sido percebidos por alguém que nem
precisaria invadir a casa. Seu padrinho apenas dormia. Se tivesse despertado pelas vozes
sussurradas, também encontraria seu aspirante a bispo, quebrando seu voto de castidade
prazerosamente nas dobras quentes da moça.
Felizmente, Elliot – enviado pela providência divina – bateu em sua porta antes que o mal
irreparável fosse feito. Pena não ter sido em tempo de não comprometer seu coração. Se antes suas
chances de recuperação eram mínimas, no presente momento, eram nulas.
Jonathan sabia que depois do que aconteceu aquela noite, estaria irremediavelmente ligado à Faith.
E tal dependência seria sua ruína. Talvez ela fosse maluca por ele, mas amava outro. E, reconheceu
enciumado, era o melhor.
O que pensou antes ainda valia. Faith, ou qualquer outra, jamais poderia se apegar a ele, pois
também não era livre. E seu relacionamento – que colocava à prova com ações impudicas, ideias
obscenas e, por muito pouco, não traiu com um ato concupiscente – era indissolúvel. Jamais teria
nada à oferecer a uma mulher. Principalmente a uma que era sua tormenta anunciada.
Com a verdade a lhe pesar nos ombros, Jonathan se arrastou até seu quarto. Antes de abrir a porta
respirou fundo, pedindo força e sabedoria para reparar aquela situação. Precisava explicar a Faith
que eles, jamais, poderiam voltar a perder o controle daquela maneira. Ao expelir o ar, entrou. E
descobriu seu quarto vazio.
Capítulo Trinta

A vantagem de se escalar varandas era que janelas de casas térreas, nunca representariam perigo.
O único obstáculo de sua fuga, foi passar pelo quintal dos Nicholls onde teve de contar com o pronto
reconhecimento do pastor alemão que criavam. Por sorte, sempre foram bons amigos, se não, estaria
encrencada para sempre. Agora, pensou Faith enquanto seguia pela rua atrás da igreja, era preciso
encontrar um bom álibi.
Antes de aparecer na praça, ela olhou cautelosamente em todas as direções. Não queria ficar se
aventurando pelas ruas e correr o risco de esbarrar com o pai, então, contando que era merecedora
de alguma sorte, correu até a Blue Moon.
– Grace, eu preciso de sua ajuda – falou ao encontrá-la a recolher os cardápios.
– O que houve? – Grace perguntou, preocupada.
– Meu pai está atrás de mim. Eu estava com Tyler e ele quase nos viu – mentiu.
– Com Tyler? – ela estranhou. – Mas você não está namorando Peter?
– Estou, mas... – Não querendo estender o assunto atalhou: – É uma longa história. Por favor, não
me faça contar agora.
– Entendo dessas histórias – disse Grace, solidária. – Justamente por isso que eu prefiro ficar
sozinha. Os homens só complicam a nossa vida.
– Sei disso – Faith retrucou, impaciente. – Quero que saiba que não estávamos fazendo nada
demais... Só conversando mesmo, mas você conhece meu pai... Ele sabe de nossa amizade, mas os
ânimos estavam meio exaltados...
– Sei como é.
– Pois bem... Preciso de um álibi. Acha que pode me ajudar? Diga que eu estava aqui – pediu
esperançosa.
Ela merecia a ajuda. Deixou de ser de Jonathan e, se o conhecia bem, agora viria a fase que ele se
fecharia como uma ostra. E se dessa vez sua bipolaridade fosse equivalente ao que fizeram, ela
poderia se preparar para dias e dias de mau humor e grosserias.
– Digo sim, gracinha... Sempre que precisar.
– Obrigada, Grace! – ela agradeceu com um sorriso. – Mas não vou te ocupar. É melhor eu ir
embora... Depois você apenas confirma para ele ou para Nick. Já deveria ter voltado para casa... Sai
apenas para levar um pouco de sopa para o tio do padre e...
– Esteve na casa do padre? – Grace perguntou repentinamente, cortando-a.
– Estive – confirmou, cautelosamente, em alerta. Poderia ser impressão de sua mente devedora,
mas lhe pareceu que a mulher demonstrou um interesse exagerado.
– Ah... Não vá embora ainda... Venha aqui. – Grace a pegou pelo braço e a levou aos bancos do
balcão. – Sente-se... Vou te servir um pouco de Coca-cola, daí você me conta como estão as coisas
por lá... Talvez dê tempo de seu pai vir te procurar aqui.
Faith não retrucou. Na verdade, descansar suas pernas bambas seria providencial. E não teria
problema em conversar com Grace cujo único interesse era especular sobre o tio do padre. Ao se
acomodar diante do balcão, a dona da lanchonete apareceu com o refrigerante e o colocou à sua
frente. Somente quando deu o primeiro gole ela descobriu que estava com sede.
– E então? – Grace começou. – Como está tudo? O Sr. De Ciello está mesmo bem?
– Bom... Eu não o vi, mas... O padre Jonathan me disse que o tio está bem, sim.
– Só isso? – ela perguntou desanimada. Faith conseguiu achar alguma graça ao imaginar se teria
seu refrigerante tomado de volta já que suas informações eram insatisfatórias. Contendo o riso, tentou
ser específica:
– Bom... Ele me disse também que o tio teve febre, mas que tinha passado logo, por isso ele estava
dormindo tão cedo.
– Então ele teve febre... – ela murmurou para si mesma. – Coitadinho!
– É sim... – concordou Faith, antes de dar outro gole no refrigerante.
– Não deve estar sendo fácil para ter de cuidar de um enfermo, não é mesmo?
– Não deve – voltou a concordar, pensando que nunca cogitou comentar tais coisas com Jonathan.
Não tiveram tempo. – Mas acho que ele dá um jeito... E de toda forma, é por pouco tempo... Acho
que o senhor Carlo se recupera logo.
– Tomara... – Grace retrucou esperançosa.
– Por que não vai lhe fazer uma visita? – Faith perguntou, repentinamente.
– Ah, não!... Acho que não ficaria bem. Não soube de qualquer outra pessoa que tenha ido.
– Eu acho que não teria nada demais – disse Faith dando de ombros.
– Pensa assim porque nasceu uma amizade entre você e o padre Jonathan durante os preparativos
para o piquenique. Ninguém repara... Mas para mim, ficaria estranho!
Ai, ai... Bela amizade a dela com o padre! Pensou resignada. Depois daquela noite deveria ficar
feliz se conseguisse um “bom dia” em inglês, acenado de longe. Realmente uma merda que seu pai
tenha ido atrapalhá-los quando as coisas finalmente esquentaram entre eles.
Ao lembrar os beijos e os toques, sentiu seu rosto arder. Jonathan era... maravilhoso!
– Encontrei você. – Ela ouviu a voz do pai, vinda da porta. – O que está fazendo aqui?
– Boa noite, Elliot – Grace cumprimentou repreensiva.
– Ah... Boa noite, Grace!... Desculpe o mau jeito, mas é que estou feito louco atrás dessa mocinha
aqui.
– A culpa foi minha – Grace se adiantou em dizer. – Eu a vi atravessando a praça. Imaginei se ela
estaria vindo da casa do padre, então a chamei... Acabou que um assunto foi levando a outro e a
outro... Nem vimos a hora passar.
– Tudo bem... – ele retrucou sério. – Mas acho que agora já podemos ir, não?
– Sim! – Faith desceu do banco para acompanhá-lo. – Grace, obrigada pelo refrigerante! E pense
no que te falei. Ainda acho que não teria nada demais... Boa noite!
– Boa noite! – Grace retribuiu, desanimada. – Vou pensar.
– Poderia ter avisado que ficaria aqui – Elliot, ralhou já na calçada. – Por sua causa, passei um
carão diante do padre!
– Mesmo? – Faith se conteve para não rir ao imaginar o embaraço de seu pai. Era um castigo
merecido pela interrupção. – Como disse Grace, não vimos a hora passar.
– E pela tagarelice de vocês, tirei o padre Jonathan da cama – Elliot falou azedo.
Literalmente, Faith pensou entristecida, pois seu raciocínio perdeu todo o teor cômico. Com a
aparição, seu pai a tirou da cama do padre por um longo período, pois tão cedo não teria uma nova
chance. Até que Jonathan voltasse a baixar a guarda, Carlo estaria recuperado e vigilante.
No final das contas a noite terminou sendo uma merda, assim como seriam os próximos dias.
Agora que tinha uma prévia – com bônus e extras – de tudo que poderia sentir nos braços de
Jonathan, seria obrigada a ficar semanas, quiçá meses, sem conseguir um mísero beijinho.

A manhã de quinta-feira encontrou Faith insone. A moça rolou por sua cama a noite inteira,
dividida entre a euforia do pouco que teve e a apreensão pelo o que ainda viria. Toda vez que se
lembrava da língua masculina na sua, do corpo grande e pesado deitado sobre os seu, estremecia.
– Nossa! – Nicole resmungou à certa altura. – Se não segue dormir deveria ao menos deixar que os
outros o façam.
– Está reclamando de quê? – Faith retrucou. – Ressonou a noite inteira.
– Mas ainda é cedo. Eu poderia dormir um pouco mais – a irmã respondeu simplesmente. Mais
uma vez estranhando a mudança repentina, a moça perguntou receosa:
– Estamos de bem?
– Temos de ficar não é mesmo? – retrucou. Faith não gostou do tom resignado.
– Não sei... – disse para provocá-la. – Talvez, se já me perdoou por estar com Peter.
– Quero que ele seja feliz. Se você o fizer feliz, está tudo bem para mim – ela assegurou após
alguns minutos em silêncio. Naquele instante Faith soube que o plano de Peter não corria riscos;
Nicole ainda sentia, estava apenas tentando se enganar.
– Farei, pode deixar. Peter é especial e...
– Bom – Nicole a cortou, deixando a cama. – Já que me acordou, vou começar meu dia mais cedo.
Sem esperar que retrucasse, Nicole se dirigiu ao banheiro. No minuto seguinte a moça já tinha se
esquecido do drama da irmã. O seu era verdadeiramente preocupante. Quando Nicole voltou ao
quarto, não puxou nenhum assunto. Uma vez sozinha, Faith refez seus passos. Seu banho foi breve.
Depois de vestir shorts e camiseta, prendeu seu cabelo num rabo de cavalo. Pronta, desceu para a
sala. Com seu pai em casa ela evitava escapar pela varanda. Iria à praia nem que fosse somente para
espairecer, nadar... Qualquer coisa que ocupasse sua cabeça e a preparasse para seu encontro com
Jonathan.
– Bom dia – cumprimentou ao entrar na cozinha. Constance se encontrava diante da pia,
terminando os preparativos para o café da manhã e sua irmã, sentada à mesa, folheava uma revista
antiga.
– Mas o que aconteceu essa manhã? – perguntou a mãe, voltando-se para encará-la. – Primeiro é
Nicole quem cai da cama, agora você?
– Na verdade, foi ela que me tirou da cama a essa hora – a irmã explicou. – Por mim, eu ainda
estaria dormindo.
– Acordar cedo faz bem à saúde – a moça retrucou, indiferente. – Vou aproveitar e caminhar um
pouco pela praia.
– Seu irmão e seu pai logo vão descer para o café, acho melhor esperá-los – a mãe alertou. –
Elliot não gostou de seu sumiço ontem à noite.
– Não sumi – Faith se defendeu. – Só me distrai, conversando com a Grace. Ele viu.
– Mesmo assim, não deveria aborrecê-lo.
– Não vou demorar, prometo! Qualquer coisa peça ao Mason para me chamar. Mas será mesmo só
uma volta.
Que ela esperava ser capaz de acalmá-la. Faith se consolava, dizendo mentalmente que àquela
hora sequer encontraria com Tyler. Teria a praia inteiramente para si. Seguia de tal forma distraída,
que não percebeu a trilha. A cada passo procurava por maneiras que a ajudassem a abordar Jonathan
para, ao menos, explicar porque saiu de seu quarto sem se despedir. Não que o motivo não fosse
óbvio, mas sentia que era seu dever salientá-lo.
– Droga! – disse em voz alta para extravasar sua crescente frustração por saber que não teria a
chance. – O que eu quero é estar perto, isso sim... Eu só...
Faith estacou, assim como se calou tão logo deu dois passos pela areia macia e notou a presença
de Jonathan. Ele estava a alguns metros, sentado sobre sua pedra preferida, olhando o mar. Ela não
precisava ouvir da boca dele para saber que estava ali para vê-la.
Jonathan usava sua costumeira roupa preta, indicando sem palavras que não tinha ido à praia para
sua corrida habitual. A cena deu a Faith a real dimensão do que a esperava. Respirando
profundamente, ela obrigou suas pernas trêmulas a seguirem até ele.
– Buon giorno – Jonathan disse em sua voz cantada quando chegou ao seu lado, sem desviar os
olhos do mar. – Estava esperando por você.
Desde antes do raiar do dia, para ser exato. Pedindo que seu padrinho não precisasse de seu
auxílio enquanto estivesse ausente e que ela aparecesse, sozinha. Ao que parecia possuía certo
crédito, pois a razão de sua insônia e de sua angustia estava ali, ao seu lado, tão fresca e desejável
como na noite anterior.
Sabia que sim, pois sentia o perfume, e registrou as roupas que usava durante a única olhada que
lhe dirigiu ao chegar. Não se atrevia a fazê-lo uma segunda vez. Não quando reconhecia que não teria
forças para resistir.
A moça tinha razão, ele não tinha vergonha e gostava de seus avanços, mas não voltaria a
ultrapassar limites, nem mesmo os inaceitáveis. Durante a longa noite, na qual tentou administrar as
impressões deixadas por ela em sua boca e em suas costas marcadas, Jonathan avaliou sua vida.
Repensou suas atitudes e sua vocação até aceitar o óbvio, repetido mil vezes: não tinha espaço para
mulheres em sua vida.
Não tinha espaço para Faith!
– Bom... – ela começou desajeitada, com o coração aos saltos, indo se sentar ao lado dele no
espaço vago sobre a pedra. – Que bom que veio! Precisamos mesmo conversar e...
– Scusami... – ele a interrompeu gentilmente, ainda sem olhá-la. – Desculpe-me, mas... Não vim
para conversarmos. Pelo menos não da forma que você possa estar imaginando.
– Acredite. Não estou imaginando nada – admitiu, tendo o coração a bater acelerado.
Sabia que estava prestes a ser afastada e que, daquela vez, seria muito mais complicado romper as
barreiras que Jonathan ergueria em torno de si mesmo, então tentava ao menos aproveitar aquela
última proximidade.
– Va bene... – ele murmurou, juntando forças para falar sobre coisas que deveriam ser alheias a
ele. – Eh... Como bem sabe, não entendo desses assuntos... Não o que normalmente se fala depois
de... quando se... – Jonathan não conseguiria falar, era humilhante demais.
– Não precisa dizer nada – ela veio em seu auxílio. Ser liberado de iniciar suas explicações,
encorajou-o a falar, não a encará-la.
– Pode não ser preciso, mas sinto que devo – retrucou. Faith poderia estar habituada a ser tratada
com descaso por outros, assim como ele poderia não ter experiência no trato com as mulheres, mas
sua educação não lhe permitiria quase manter relações sexuais com uma delas, mesmo a mais
libertina, e não se desculpar depois.
– Eu é que preciso explicar porque deixei seu quarto sem me despedir.
Jonathan reprimiu um riso sarcástico. O que ela esperava? Uma despedida típica como as dos
outros encontros? Controlando seu humor subitamente azedo, disse:
– Também não é preciso explicar. Não deveria nem ao menos estar no meu quarto.
– Mas estive – Faith falou, tentando conter seus tremores, aquela não era a hora de fraquejar. – E
fizemos todas aquelas coisas e o certo seria ter me despedido direito, mas tive medo que meu pai me
visse e sobrasse para você.
Então ela partiu para protegê-lo? Fazia sentido e reparava seu orgulho. Era fato que a mandaria
embora, contudo, quando não a encontrou, sentiu seu peito vazio como o quarto. Após o choque, foi
inevitável não especular se Faith tinha sido sincera quanto a ser louca por ele ou se zombava de sua
inexperiência. A preocupação da moça era reconfortadora, mas nada mudava.
– Sobraria para nós dois – ele comentou, aproveitando-se de suas próprias palavras.
– Mas você tem mais a perder.
O padre respirou profundamente e, por fim, encarou-a. Já estava decidido quanto ao que dizer, mas
ouvir a verdade murmurada pela boca que, naquele instante, desejava ardentemente beijar, foi
determinante para mantê-lo focado.
Ignorando a súbita opressão em seu peito, retrucou seriamente:
– Pena que tenha se lembrado disso somente agora.
– Jonathan, eu...
– É meu senhor – ele a cortou, enfático, depois de fechar os olhos e voltar o rosto para frente. –
Para você, assim como para todos é sempre senhor... O que aconteceu entre nós nos últimos dias lhe
deu a impressão errada de que possuirmos alguma intimidade, mas não temos.
– Ah, não?!... – desafiou-o. – Não foi o que me pareceu... E eu acho que depois do que aconteceu
na sua casa temos, sim, alguma intimidade. Até porque, não permito que qualquer um me toque
daquela maneira.
Não qualquer um, Jonathan pensou ainda mais azedo, somente a trinca que lhe interessava! Preso
ao sigilo da confissão, nem ao menos poderia replicar a declaração falsamente ofendida. Decidido a
encerrar aquela conversa que não os levaria para lugar algum, e também a deixar definitivamente de
fazer parte dos jogos da moça, falou:
– Va bene!... Se tivemos alguma, esta acabou. Não lhe dou permissão para se dirigir a mim
informalmente.
– Escute... – ela pediu, tocando sua mão disposta sobre a pedra.
– Também não tem permissão para me tocar – Jonathan ciciou, recolhendo a mão de modo abrupto,
maldizendo seu corpo traiçoeiro que sempre reagia ao dela de pronto. – Foi isso que vim dizer...
Sinto que é minha obrigação depois da forma animalesca como me comportei. Devo-lhe um pedido
de desculpas e a promessa de que nunca mais se repetirá.
– Não me deve nada – ela exalou num suspiro sentido.
– E reafirmo... – ele prosseguiu, sem ouvi-la. – Não admito que me toque ou se insinue de qualquer
maneira. O ideal seria que não nos encontrássemos por algum tempo, mas sei que não podemos nos
afastar, pois soaria estranho aos que nos cercam e acreditam em nossa amizade. Portanto, por favor...
Facilite nossa convivência.
– Como? – ela ainda murmurava, como se as palavras lhe custassem a sair.
– Colocando, definitivamente, um ponto final nas provocações... Lembrando, como bem disse, que
eu tenho muito mais a perder se sua brincadeira prosseguir e alguém perceber ou... se irmos longe
demais.
Tais palavras é que eram demais! Como ele poderia ser tão cego? Mesmo que ainda tentasse se
recuperar da rejeição que lhe roubou a voz, Faith se obrigou a defender-se. Encontrando força em sua
ânsia de explicar o que sentia, ela se levantou e se prostrou diante dele.
– E quem está brincando? – Quando ele ergueu os olhos azuis para seu rosto, ela prosseguiu: –
Realmente não vê?... Eu gosto de você. De verdade.
Ainda mudo, Jonathan levantou, obrigando-a a recuar dois passos para lhe dar espaço. Para Faith,
ele pareceu maior, imponente, com aquelas roupas negras e aquela tira branca no colarinho – bem na
altura de seus olhos – que lembrava sua inacessibilidade. Assim como lhe pareceu ameaçador ao
encará-la com expressão carregada e dizer duramente:
– Se é como diz, é melhor deixar de gostar. Eu não vim para essa cidade a passeio, menina. Não
sou um de seus coleguinhas e tampouco estou disponível para flertes ou para me ocupar com assuntos
menores. Reconheço meu erro ao deixar que fosse longe demais, mas já basta! Esqueça o que
aconteceu ontem à noite. Eu já esqueci. E nunca mais repita a bobagem que acabou de dizer... Tenha
sempre em mente quem eu sou e se mantenha no seu lugar. Quando se lembrar do respeito que me
deve, não teremos mais problemas.
– Se já disse tudo o que queria... – Faith fazia uma força sobre humana para manter a voz estável. –
Não perca mais seu tempo com assuntos menores.
– Entendeu tudo o que eu disse? – Jonathan perguntou com voz mais branda.
– Claramente.
Jonathan ainda a olhou por um minuto inteiro antes de despedir-se:
– Ciao Faith!
– Tchau senhor padre.
A partida de Jonathan, Faith tomou a direção contrária. Naquele momento precisava colocar a
maior distância entre eles para que ele não ouvisse o choro que ameaçava irromper a qualquer
instante. Sim, queria afastar-se, mas suas pernas falharam após poucos passos, fazendo com que
caísse de joelhos. Sufocava, abraçada ao próprio corpo. O choro iminente estava preso em sua
garganta, retido pela a raiva que sentia.
Como Jonathan podia ser tão prepotente? Era certo que passaria por aquilo e acreditava estar
preparada, mas... Tratá-la como criança? Dizer que esquecera o que para ela foi um dos momentos
mais marcantes de toda sua vida? Mostrar o quanto a achava insignificante ao pedir que
permanecesse em seu lugar?
Não estava pronta para tamanha indiferença mesmo mascarada pela boa educação. Faith preferia
que ele não tivesse ido procurá-la na praia. Que esperasse por ela em sua maldita igreja onde
poderia destilar sua excelência eclesiástica de modo breve, sem a crueldade que a magoou e
desperdiçou seu precioso tempo.
Sim, perdera seu tempo, pois ela sabia que Jonathan não esqueceu porcaria nenhuma. Ele poderia
relutar, ser cego o quanto quisesse, mas estava mais do que claro que não lhe era indiferente. Se não
nutria sentimentos por ela, paciência, mas a desejava como o homem viril que revelou ser. Para
Faith, era um bom começo e motivo suficiente para não se manter no seu lugar. A droga toda era
confirmar que a briga para conquistar-lhe o coração por vezes a feriria dolorosamente. Se não o
amasse, desistiria sem arrependimentos e seguiria em frente.
– A merda toda é que amo esse italiano burro – murmurou para si. E então chorou.
Ao alcançar o limite da trilha, Jonathan refreou o impulso de olhar para a moça. Quanto antes
dominasse o homem dependente dela, melhor. Finalmente o sacerdote assumira o comando e fizera o
certo, e não poderia fraquejar. Tudo que dissera para ela, valia para ele próprio. Por essa razão fora
ao encontro vestido com suas roupas habituais, como um lembrete de sua posição, a ambos. Agora
que estava feito, pensou já na trilha, era seguir com sua vida, focado em suas obrigações para com a
comunidade e sua igreja; e deixar que ela seguisse a dela.
Perdido em seus pensamentos, padecendo de uma dor fina e estranha no peito, Jonathan mal
percebeu o caminho de volta da mesma forma que não o notou na ida. E assim, vendo o mundo à sua
volta como um borrão, cumprimentando pessoas sem rosto ou nome, logo estava em sua casa. Logo
soube que seu crédito não foi extensivo a todos seus pedidos. Seu padrinho estava acordado e o
esperava sentado no sofá com cara de poucos amigos.
– Onde esteve todo esse tempo?
– Que todo o tempo? – Jonathan rebateu, precisava saber desde quando o tio estava de pé.
– O senhor sabe muito bem. Tempo demais... Onde esteve?
– Sai para caminhar – disse após um pigarro. Era um mentiroso. O padrinho o analisou
demoradamente então, assentiu, como se aceitasse sua explicação.
– Fiquei preocupado. Chamei-o e você não estava. Poderia ao menos ter me avisado que sairia.
– Não tinha porque acordá-lo, pois não era minha intenção demorar – disse em tom de escusa. – O
que queria de mim?
– Apenas água.
Evidente, Jonathan pensou culpado. O tio teve febre na noite anterior. Teria sido atencioso de sua
parte se tivesse deixado ao menos um copo com água ao lado de sua cabeceira. Sim teria, caso
tivesse cabeça para algo mais que não fosse certa moça.
– Quem esteve aqui ontem à noite? – o tio o trouxe ao presente. Jonathan o encarou e, talvez por
conhecê-lo, soube que seria perda de tempo tentar desconversar.
– Faith veio trazer-lhe um pouco de sopa a pedido da mãe.
– Faith – Carlo repetiu o nome como quem nomeia uma doença ruim. Sustentando-lhe o olhar,
disse: – Como ela tem se comportado? Continua a provocá-lo?
– Não – mentiu prontamente.
– E quanto a você? – inquiriu avaliativo. – Como se sente? Ainda nutre algum... interesse por ela?
Ao responder àquela questão era preciso cautela. Uma negativa veemente o desmentiria por si só.
Depois de respirar profundamente, admitiu:
– Um pouco, mas está passando. Acho que esses dias em que me dividi, indo para Wells, ajudaram
a me distrair e rever minhas atitudes. Não tenho sonhado com ela e não a desejo como antes.
– Fico feliz em ouvir isso – Carlo declarou ainda medindo-o. – Esse é o Jonathan que conheço.
Custei a crer que colocaria tudo a perder por causa de uma mulher. Justo você, que sempre repudiou
o assédio feminino. Temi que essa fase durasse por muito tempo, mas, graças ao bom Deus, você
voltou recobrou a razão.
– Recobrei – Jonathan disse, pedindo internamente para que não fraquejasse em sua decisão.
– Se é como diz, acho que deveria deixar transparecer que está se recuperando.
– O que quer dizer? – Jonathan olhou inquiridoramente para o tio.
– Olhe para você, Johnny – Carlo o indicou. – Seu cabelo está crescido, sua barba por fazer... Isso
sem mencionar sua expressão abatida, as olheiras horríveis. Nunca o vi tão desleixado.
Instintivamente Jonathan passou as mãos pelos cabelos. Os fios estavam realmente crescidos.
Sempre os manteve bem cortados. Antes de conhecer e se viciar em Faith. Antes de perder seu sono e
a razão, incitado por um desejo que prometia consumi-lo por muitos dias. Mais agora, depois de
potencializado pelas experiências vividas.
– Aproveite que está saindo ileso dessa provação e se dedique mais às suas tarefas – o tio
aconselhou. – Como estão os preparativos para a reforma?
– Começarão na segunda-feira – Jonathan respondeu vagamente, pensando que ileso não era
exatamente como deixava aquele breve e intenso relacionamento com Faith.
– Ótimo! – o padrinho se animou. – Fico verdadeiramente feliz com tudo que me diz. Vejo que não
tive porque me preocupar afinal... Tudo não passou mesmo de uma provação. Você não trairia sua
própria decisão ou renegaria uma vocação descoberta ainda quando era apenas um menino, por isso
tenho orgulho de você!
– Obrigado! – murmurou. O jovem padre se sentia culpado por não ter aquela convicção
inabalável descrita pelo padrinho; por não merecer o sentimento que alardeava sentir por ele. Depois
de pigarrear para limpar sua garganta, perguntou: – Está com fome? Vou preparar-lhe o café da
manhã e depois sair a procura de alguém que cuide de meu cabelo. Como sempre, o senhor está
certo. Já é hora de demonstrar que a má fase ficou para trás.
Sem esperar resposta Jonathan foi para a cozinha. Ignorando a caçarola com a sopa – trazida por
alguém que o fez quase quebrar seus votos –, Jonathan tratou de juntar tudo o que precisaria para o
desjejum de seu tio convalescente. Durante todo tempo, procurou ocupar sua mente até que fosse hora
de sair para abandonar de vez o desmazelo.

– Ei... Esqueceu da vida? – Faith ouviu a voz do irmão enquanto este se aproximava. Por sorte,
toda sua raiva e frustração tinham se esvaído com o choro compulsivo. Não queria que Mason a
visse em um momento de descontrole. Seus olhos ainda úmidos seriam mais fáceis de explicar,
justamente por isso não temeu ou tentou encobrir sua voz trêmula.
– Não, não esqueci... Já ia voltar.
– O que há, Fay? – Mason perguntou, preocupado, sentando ao seu lado sobre a areia. – Esteve
chorando?
– Um pouco – disse laconicamente.
– Um pouco?... Seu rosto está marcado e seus olhos, vermelhos... Olhe para mim. – Quando ela o
atendeu, ele perguntou ternamente: – Sério Fay, o que há com você? Tenho te sentido estranha desde
que cheguei... Não é a mesma menina alegre que deixei, semanas atrás.
– São tantas coisas que não saberia explicar. Ultimamente tenho pensado em minha vida... Se fiz
bem em deixar a faculdade... Às vezes me desespera não saber que rumo tomar.
– Entendo... Você está num daqueles questionamentos existenciais.
– Isso.
– E lá é preciso chorar por causa disso? – Mason se aproximou para abraçá-la pelos ombros. –
Todos se fazem as mesmas perguntas maninha, mas não choram por não terem a resposta.
– É que eu sou uma boba – disse, prevendo que voltaria a chorar, comovida com o carinho do
irmão ao consolá-la em sua mentira descarada.
– Ah... Quanto a isso eu concordo. É mesmo muito boba. – Talvez na tentativa de distraí-la,
provocou: – É uma franguinha fraca que não saberia o que fazer se eu a derrubasse agora.
Dito isso, tentou derrubá-la na areia. Antes de sua ação a moça se preparou para o ataque e
conseguiu fugir antes que ele a segurasse.
– Você que é um bobo, Mason – ela disse já de pé, recuperada, sorrindo. – Por que não vai atacar
aquela sua namorada nanica?
– Ei!... Não fale da minha garota – ordenou, falsamente ofendido antes de levantar para atacá-la.
Após um grito alarmado, igualmente falso, Faith correu para a trilha.
O irmão a alcançou algumas vezes e tentou prendê-la, mas a moça se livrava de seus ataques,
sempre rindo. Seguiram assim, provocando-se mutuamente, durante todo o percurso. Quando
entraram pela porta da cozinha, Faith tinha o rosto afogueado e suado, tão corado que encobria seu
choro recente.
– O que é isso? – Elliot baixou o jornal sobre a mesa para encará-los com expressão severa. –
Voltaram a ter cinco anos por acaso?
– Desculpe – disseram em uníssono, sem sentirem na verdade.
– Tudo Bem... Mas se comportem, não são mais crianças para ficarem correndo por aí.
– Sim, senhor. – Mason piscou para a irmã.
– Faith – Elliot a chamou. – Vou precisar da pick up hoje.
De imediato a moça se lembrou de sua apresentação, mas não poderia alardear a necessidade de ir
para a cidade com o veículo. Sem deixar transparecer sua consternação, foi lavar as mãos antes de
voltar à mesa.
– Tudo bem, pai... Eu vou e volto de ônibus.
– Posso buscá-la se quiser – ele se ofereceu. – Onde é mesmo seu curso de dança?
– Em um pequeno estúdio – disse sua explicação ensaiada. – Mas não precisa se dar ao trabalho.
Sério! O último ônibus passa em menos de meia hora depois do término da aula.
– Tem certeza? – inquiriu preocupado.
– Tenho sim, obrigada! – Sorrindo-lhe, passou a se servir.
O choro pareceu abrir seu apetite. Estava magoada, mas nada que não tivesse conserto. Talvez
devesse ficar em seu lugar, porém, a droga toda era ser irremediavelmente apaixonada por um
italiano obtuso, por vezes tão grosseiro quanto gentil, absurdamente gostoso e irritantemente
escorregadio. Ao pensamento, ela freou o riso, já esquecida do que faria à noite e do passa fora que
levou na praia.
Era filha de pescador, pensou decidida. Sabia que existiam várias maneiras de segurar um bom
peixe.
Capítulo Trinta e Um

– Você o quê?! – o grito de Helen ecoou em seu ouvido. Faith lamentou não tê-lo previsto antes de
afastar o celular, reflexiva. Com o parelho ainda longe, ouviu-a dizer: – Não desligue! Estou saindo
da sala e já, já você me explica essa loucura.
Faith não respondeu. Acomodada sobre sua cama, apenas esperou pacientemente. Em momentos
como aquele, precisava da futura cunhada. Tinha de verbalizar.
– Pronto, sua maluca – Helen voltou a falar. – Agora repita.
– Deixe de frescura, Helen. Você me entendeu muito bem, senão não teria surtado...
– Eu não entendi, não. Você não pode ter ido para a cama do padre.
– Mas eu fui – Faith confirmou. Enquanto falava sentia que reafirmava a ação para si. – E levada
por ele.
– Minha Nossa Senhora! Você conseguiu enlouquecer o padre! – Helen comentou incrédula,
então acrescentou, curiosa: – Agora vocês dois não são mais...
– Virgens? – Faith completou com a palavra que a amiga titubeou em proferir.
– Isso! Você é a pior, Faith! Uma virgem que faz um homem quebrar seu voto de castidade...
Espero que ao menos tenham se prevenido. Já pensou ficar grávida de um padre?
– Não tivemos tempo de pensar nessas coisas, Helen. Nós...
– O quê?! – a amiga gritou mais uma vez, alarmada. – Você é mesmo maluca! Onde está agora?
Em casa? Espero que esteja a caminho de Wells para providenciar a pílula do dia seguinte. Se não
conseguir por conta própria, tenho certeza de que uma de suas colegas da...
– Respire, Helen – Faith a interrompeu. – Não precisa se preocupar.
– Como não? Você acaba de me dizer que fez sexo sem preservativos com o último homem que
poderia e não quer que eu me preocupe?... O padre Jonathan podia ser inexperiente, mas tenho
certeza que seus filhotinhos são bem espertos... Nenhum deles usa batina e estão todos flertando com
seu óvulo nesse momento. Isso se um deles já não estiver fazendo a dancinha da vitória.
Sem que pudesse se conter, a moça irrompeu em sonora gargalhada. Aquele era um dos motivos
que apreciava as conversas com Helen, sua capacidade de diverti-la em meio ao caos.
– Pare de rir agora mesmo Faith! – a amiga pediu ofendida. – Já pensou na reação de seus pais?
– Você entendeu errado – ela a tranquilizou, esforçando-se para segurar o riso. – Nós demos um
bom amasso que quase terminou em sexo sem prevenção... Quase, ouviu bem? Não precisa se
preocupar, nada aconteceu.
– E você me diz isso com esse tom de lamento? – A interlocutora parecia ter se acalmado.
– Eu estive tão perto, Helen... – Faith choramingou. – Sabe o que sinto! Sou apaixonada e ontem
tive a prova concreta de que ele sente alguma coisa por mim... Você precisava ver... Jonathan foi não
carinhoso. Teria sido perfeito se meu pai não tivesse atrapalhado.
– Pode parar por aí... Está ouvindo sandices que me conta? Como assim eu deveria ver? Está
maluca?
– Você me entendeu, mas esquece – Faith pediu já séria. – Preciso de você, amiga... Estou que não
caibo em mim. E para piorar, essa manhã Jonathan me pediu para que esquecesse.
– Não posso te ajudar, Faith – ela disse no mesmo tom. – Sabe o que penso e se quer ouvir
novamente, acho que deveria fazer como o padre Jonathan pediu. Pelo visto ele pode até sentir
alguma coisa, mas já fez sua escolha, parar enquanto ainda é tempo. Respeite.
– Eu preciso dele, Helen! – afirmou, sentindo que logo voltaria a chorar. – Preciso mais do que
qualquer outra coisa que já tenha precisado na minha vida.
– Se é assim esse é mais um motivo para respeitar seu pedido – Helen falou carinhosamente. –
Quando gostamos de alguém, temos de levar em conta sua vontade. Não só a nossa.
– Mas eu sei que ele sente o mesmo por mim.
– Sente o quê, Faith? – perguntou duramente. – Atração? Tesão? Tudo bem, o padre teve a mesma
reação de um homem normal, diante de uma mulher bonita que o tenta a cada cinco minutos. E
daí?... Isso não prova nada. Te levar para a cama dele não significa que também seja apaixonado,
só que te deseja... Não consegue ver que isso é muito pouco para o padre colocar a perder tudo
aquilo que acredita e prega?
Sem conseguir refrear novas lágrimas, Faith teve de reconhecer a verdade nas palavras da amiga.
Ainda assim não via meios de desistir. Como Tyler sempre dizia, a esperança era a última a morrer.
Ninguém era conhecedor absoluto do comportamento humano nem poderia assegurar que atração não
se transformasse em amor.
– Talvez você tenha razão. – Não queria contrariá-la. – Vou pensar a respeito.
– Vai continuar tentando o padre, senão, não seria você. Não pense que me comove com essa
sua voz embargada. Só espero que da próxima vez tenha mais cuidado e se previna.
Helen poderia não apoiá-la, mas a conhecia. E estava certa quanto à prevenção. Se tivesse feito
amor com o padre, verdadeiramente estaria desesperada com a possibilidade de uma gravidez fora
de hora. Mas não indesejada, pensou apaixonada, descendo os olhos ainda úmidos para seu ventre
plano. Naquele instante, reconheceu certo desequilíbrio. Mal conseguira alguns beijos do homem que
acabou de dispensá-la e pensava com carinho em gestações improváveis.
– Bom... – Helen prosseguiu. – Espero que até lá já tenha conseguido algum juízo.
– Acredite, eu o tenho juízo – Faith assegurou mesmo que no momento sua sanidade estivesse em
xeque.
– Certo!... Não vamos discutir o sexo dos anjos agora, pois quero ver se ainda consigo pegar
nem que seja o finalzinho de minha aula. Sabe que não aprovo o que está fazendo, mas sou sua
amiga... Qualquer coisa que precisar, me procure.
– Obrigada, Helen! Já me ajudou. Eu precisava contar a alguém.
– Bom saber disso... Agora preciso desligar.
– Também preciso me trocar; hoje é dia de ensaio.
– E ainda tem isso! Sério, Fay, até que eu me torne sua cunhada de verdade, estarei com cabelos
brancos e a culpa será sua.
– Amigas são para essas coisas!
Depois da despedida, Faith atirou seu celular sobre o colchão e se deixou cair sobre o mesmo.
Queria ser capaz de atender ao pedido de Jonathan, contudo, mesmo hipoteticamente, a opção a
angustiava. Entendia que ele pendesse para sua vocação num primeiro momento, mas não poderia
deixá-lo ir sem lutar.

– Faith! – Kristina se alarmou ao vê-la cair sentada. Ajudando-a a se levantar, perguntou
preocupada: – Machucou?
– Não – assegurou, quando já estava de pé. – Eu me desconcentrei.
– A estrelinha está nervosinha hoje – Úrsula debochou, parando ao lado das duas. – Essa é a
terceira vez que cai. Se não está em condições de ensaiar, libere para quem precisa trabalhar.
– Quando meu tempo de ensaio terminar, eu libero – Faith retrucou, desanimada até mesmo para
sustentar as eternas disputas com a dançarina mais velha. Sem desejar embates verbais, falou sem
tom especial: – Estou quase no fim, então, se me der licença...
Ao lhe virar as costas, Úrsula segurou seu braço, detendo-a.
– Escute aqui... – Ela não terminou a frase, pois, antes que pudesse prever, a moça se voltou e
segurou-a pelo dedo indicador, torcendo-o com força para trás, provocando um grito de dor em sua
captora que logo a soltou. – Ai sua maluca!... Você quebrou meu dedo!
– Não quebrei porcaria nenhuma, mas se me tocar de novo... – Faith sibilou, deixando a ameaça no
ar.
– Meninas, não briguem... – a colega pediu, sem conseguir qualquer atenção. As duas mediam-se
de alto a baixo, como se ela não estivesse entre seus corpos.
– Qual é o seu problema afinal? – Faith perguntou por sobre o ombro de Kristina.
– O meu problema é você! – a loira vociferou. – Que desde o primeiro dia não faz nada mais do
que brincar, tomando nosso tempo quando todas as outras trabalham a sério aqui.
– Ah, entendi! – Faith não desejava brigar, mas não toleraria ser provocada sem revidar. – Sinto
muito por roubar um pouco do tempo que se esforça para continuar a ser coisa nenhuma.
– Vaca! – Úrsula gritou antes de emburrar Kristina para o lado e avançar sobre Faith. Esta a
recebeu preparada e, aproveitando a força com que Úrsula se precipitou, segurou-a pelos braços
estendidos e a derrubou no piso do palco. Ato contínuo montou sobre o dorso da mulher caída.
Prendendo-a pelos punhos, Faith sibilou entre os dentes:
– Vaca é a senhora sua mãe... Antes de sonhar em partir para cima de mim, lembre que posso
deixar uma ou duas marcas nesse seu rosto de puta velha... Então me deixe em paz! Eu não falo com
você, você não fala comigo. Está bem assim?
Antes que tivesse sua resposta, Faith foi içada por um braço forte que a prendeu pela cintura.
Quando foi depositada no chão e Úrsula já se encontrava de pé, encarando-a com os olhos injetados,
deu-se deu conta que um dos seguranças veio intervir, evidentemente a mando de Barry que lhes
encarava com seriedade, ao lado do balcão. O dono da casa noturna sinalizou para que as duas
seguissem-no antes de caminhar para o corredor que levava à sua sala.
Talvez, como forma preventiva, o mesmo segurança as acompanhou todo o percurso, não deixando
que se aproximassem. Depois de praticamente empurrá-las para o interior da sala, fechou a porta sem
entrar.
– Qual das duas vai me explicar o que foi aquilo que vi em meu palco? – Barry encarava as duas,
sentado atrás de sua mesa cheia de papéis. – Sabem que não admito brigas aqui.
Faith podia sentir a tensão vinda da mulher ao lado. Sabia que naquele momento nada tinha a ver
com a contenda recente, sim por estar diante de seu chefe. Era conhecida sua intolerância quanto a
desentendimentos. Barry invariavelmente dispensava funcionárias com tendências irritadiças.
Nunca o temera. Apenas respeitava a regra por não ter motivos reais para desavenças. Úrsula era a
exceção, ainda assim, mesmo que sempre lhe respondesse, nunca foi sua intenção agredi-la. O fizera
em legítima defesa e, sendo sincera, estava arrependida. A dançarina mais velha poderia ser
despeitada, mas tinha razão... Ela não fazia nada mais do que brincar.
– A culpa foi minha – disse por fim. Não tinha nada a perder. Barry correu seus olhos de águia
velha para seu rosto, inquiridor.
– Sua? – Incrédulo acrescentou: – Pelo que soube Úrsula sempre a provoca, talvez hoje tenha
chegado ao seu limite.
Faith pôde ouvir um soluço contido da dançarina. Não devia nada a ela, não a suportava, mas
entendia que aquele era o local de trabalho dela, não seu.
– Sim... Ela me irrita às vezes, mas nada que nos obrigue a brigar... Hoje eu a provoquei e quando
veio tomar satisfações, eu me excedi e revidei... Como disse, a culpa é minha.
– Isso é verdade? – ele indagou diretamente à Úrsula que, tesa ao lado de Faith, não desviou seu
olhar do homem à sua frente um único segundo.
– Sim... – ela exalou prontamente. Após alguns instantes em que as encarou, Barry a liberou.
– Volte para seu ensaio, Úrsula. E, no futuro, evite tomar satisfações. Se tiver alguma queixa sobre
alguma colega, faça-a diretamente a mim. Eu resolvo os problemas entre minhas meninas.
– Sim, sr. Reagin... – ela murmurou, obediente.
Sem dirigir a Faith um único olhar, Úrsula se encaminhou para a porta e saiu. Como não fora
dispensada, Faith esperou até que Barry dissesse algo. Sem pressa em fazê-lo, o dono da casa
noturna levantou de sua cadeira e, depois de contornar a mesa, recostou-se à ela. Depois de cruzar os
braços sobre o peito, sustentando o olhar da moça, pergunto:
– Por que a defendeu?... Não ouvi o que diziam, mas vi toda ação.
– Não sabia – disse sinceramente. Em sua cabeça tinha espaço para um único assunto. O mesmo
que a tornava dispersa e cega a tudo em seu entorno: Jonathan.
– Pois eu a estou observando desde que chegou. Está distraída. Caiu algumas vezes e vi quando
Úrsula foi te provocar. Sei que ela implica com você e nunca tomei partido porque nunca achei
necessário, afinal, ciúme entre mulheres bonitas é absolutamente normal... Mas não vou tolerar que
partam para agressões.
– Bom... Se estava vendo, sabe que não a defendi. Tudo bem que ela tenha provocado, mas eu
realmente a agredi.
– Apenas se defendeu. Sabe que eu poderia tê-la dispensado, não sabe?
– Não quero que dispense ninguém por minha causa – Faith pediu séria. – Se alguém tiver de sair,
serei eu.
– Você não pode sair! É minha estrela! – Barry exclamou alarmado, endireitando o corpo. Pela
primeira vez Faith se sentiu incomodada com as palavras. Gostava de suas idas à boate, mas estas
eram somente um passatempo. Gostaria de ter seu direito de sair quando desejasse, intacto. Tentando
não chocá-lo, disse:
– Agradeço a consideração, mas sabe que cedo ou tarde deixarei de vir, não?
– Que seja tarde, então... – ele pediu, aproximando-se. – Não se preocupe que não vou dispensar
ninguém... Apenas não fale em deixar de vir, por favor.
E lá estavam os olhos indisfarçadamente cobiçosos sobre seu corpo mal coberto. Reconhecer o
desejo masculino beirava ao asco caso não viessem de seu italiano. Forçando-se a não se mover com
a proximidade, disse:
– Tudo bem!... Nada de falar em não vir. Posso voltar ao meu ensaio agora?
– Acho que deveria relaxar para à noite. Apesar dos tombos não tem o que melhorar... Como
sempre, enlouquecerá a todos. – Rouco, adicionou: – Posso me basear por mim.
Desanimada, a moça constatou que aquela seria uma das tantas tentativas de aproximação
indesejada. Ignorando o último comentário, concordo:
– Vou aceitar sua ideia e descansar um pouco... Também preciso escolher o que usarei, se me der
licença... – Ao lhe dar as costas, Barry segurou-a pela mão, contendo-a.
– Espere!... Pode descansar aqui. Posso ceder meu sofá por alguns minutos, talvez uma hora... Se
desejar eu posso pedir para uma das meninas que venha servir algo que a relaxe.
– Sabe que não bebo antes da apresentação – lembrou-o, contendo o impulso de recolher a mão. –
De toda forma, agradeço... Devo voltar para junto das meninas.
– Tem certeza? – Barry indagou num sussurro enquanto acariciava-lhe o dorso da mão com seu
polegar. – Uma bebidinha não lhe fará mal algum... Ajuda com a tensão. Sei que está nervosa por
algum motivo... Se não quer ocupar nenhuma menina eu mesmo posso te servir.
Não seria fácil se livrar, pensou levemente irritada. Restava-lhe apenas duas opções e iria pela
mais simples, que não a obrigaria a tomar atitudes drásticas. Abrindo seu melhor sorriso, desferiu
alguns tapinhas amistosos na mão que desejava afastar da sua.
– Agradeço mesmo a atenção, Sr. Reagin.
– Barry – ele corrigiu encantado.
– Barry... – ela repetiu num sussurro. – Agradeço a atenção, mas preciso ir... Aceito sua bebida
antes de sair, combinado assim?
Faith ainda pôde ver a indecisão brincar no olhar falsamente acolhedor. Sabia que a deferência se
dava pura e simplesmente por Barry também entender que ela não era uma de suas garotas e por
esperar que seu assédio fosse aceito. Provando-lhe que estava disposto a esperar, aquiesceu:
– Combinado.
Ainda sorrindo, Faith livrou a mão do aperto incômodo e partiu. Ao fechar a porta atrás de si,
bufou exasperada. Como se não bastasse todos os rolos nos quais estava metida, ainda tinha aquele
velho babão para administrar. Esfregando a mão tocada em seu jeans, seguiu para o salão onde
algumas meninas arrumavam as mesas e outras ensaiavam sobre o palco. Ignorando Úrsula que
estava entre elas, rumou para o camarim. Desejava ficar sozinha, contudo sua amiga não parecia
disposta a colaborar.
– Você demorou – Kristina exclamou tão logo a moça se acomodou na cadeira diante do espelho. –
O que ele ainda queria com você?
– Nada demais... – Faith mirava o próprio rosto no espelho. – Somente saber o que tenho.
– Então estou com ele, pois também queria saber. Nunca te vi cair durante a execução de uma
sequência no mastro... Sua cabeça está nas nuvens há dias – ela comentou. Faith desviou os olhos de
seu rosto e focou no da amiga; tão semelhante ao seu. Distraída, como se aquele rosto fosse a outra
face de si mesma, murmurou:
– O que faria se alguém que gosta de você, te pedisse para se afastar?
– Depende. Eu também gosto desse alguém? – a dançarina perguntou, receosa.
– Gosta muito – Faith disse sinceramente.
– Bom... Nesse caso, eu pensaria com meus botões sobre os motivos que levou esse alguém a me
pedir que ficasse longe. Se ele também é interessado, deve ter sido difícil pedir tal coisa. Então
suponho que seja por algo grande... E se eu chegasse à conclusão de que o pedido é válido, eu me
afastaria.
– Mas você gosta dessa pessoa, de verdade... Quer muito ficar com ela.
– Mais um motivo para atender – a dançarina falou brandamente. – Quando eu gosto de alguém, a
necessidade dessa pessoa vem sempre em primeiro lugar. Se ela gosta de mim, como eu acho que
gosta, vai sentir minha falta e correr atrás.
Faith tentou visualizar Jonathan na cena descrita, sem sucesso. Daquela vez, ele lhe pareceu muito
seguro em seu pedido. Poderia dar-lhe o tempo que desejasse, mas ele não viria procurá-la como das
outras vezes. E ela sentia que, caso o atendesse, poderia perder o tanto que conquistou até o
momento.
– Acredite em mim – pediu Kristina, chamando-a de volta de seus pensamentos. – Às vezes a
distância opera milagres. Ele vai te procurar.
Faith voltou a encarar Kristina. A semelhança entre as duas era incrível, então a moça ainda
imaginou conversar com sua metade. Uma metade ponderada, com vasta experiência sobre o
comportamento masculino.
– Preciso de um milagre – murmurou.
– Então faça o que tem de fazer!
Não seria fácil, Faith pensou resignada. Contudo aquele era o mesmo conselho que recebeu cedo
de sua melhor amiga. Melhorado na verdade, pois nas palavras de Helen deveria se afastar e desistir.
A dançarina a incentivava a ser paciente. Seria inédito, mas seria exatamente o que faria, rogando
por um milagre.
No final da noite, depois de trocada e ansiosa em partir, Faith cogitou forjar um súbito
esquecimento e escapar de seu compromisso com Barry, contudo apenas adiaria para a semana
seguinte. Conformada, seguiu discretamente para o salão e se misturou aos clientes. Encontrou o dono
do estabelecimento a esperá-la ao lado do balcão. Ao vê-la, ele abriu seu melhor sorriso e estendeu
a mão para que a segurasse. Com um pigarro incomodado, ela o atendeu e se deixou ser puxada para
perto. Valendo-se do som alto, Barry a aproximou o suficiente para segredar-lhe ao ouvido:
– Como sempre, esteve magnífica!
– Obrigada! – Faith agradeceu e se afastou antes de adiantar as coisas, pedindo ao barman: – Uma
dose de gim, por favor.
– Puro? – Barry estranhou. – Vai pegar a estrada, não?
– Não vim de carro – disse e logo se arrependeu.
– Posso te levar? – Barry se ofereceu, esperançoso.
– Ela já tem um chofer para essa noite. – Uma terceira voz entrou na conversa. Faith não se
lembrava de outra vez que agradeceu a aparição de Tyler.
– E você é quem? – Barry indagou, medindo Tyler de alto a baixo. A moça conhecia o amigo o
suficiente para não deixá-lo responder então se adiantou nas apresentações simples: Tyler Mills,
amigo. Barry Reagin, dono da boate. Então acrescentou:
– Tyler vai me levar para casa, mesmo assim, obrigada pelo oferecimento.
Aparentemente sua interferência não surtiria o efeito desejado. O dono da casa noturna continuava
a medir o garoto, agora com indisfarçado aborrecimento.
– Tem idade para estar aqui, Tyler Mills? – Barry inquiriu, com o cenho franzido.
– Acho que deveria se preocupar mais com a idade das moças que ficam peladas no seu palco do
que com a dos clientes.
Apesar da iluminação multicolorida, a moça viu o vermelho tingir o rosto de Barry. Imediatamente
interveio para evitar novo atrito. Deixando sua bebida intocada, afastou-se do balcão, puxando Tyler
pelo braço para desfazer sua atitude desafiadora. Colocando-o às suas costas, pediu a Barry:
– Desculpe-o, por favor. Tyler não aprova que eu venha, então não mede as palavras...
O homem ainda o encarava com as narinas dilatadas, contudo, após alguns segundos, encarou a
moça e desfez a expressão enraivecida.
– Tudo bem!... E não posso tirar-lhe a razão, não é mesmo?
– Bom... Acho que é melhor irmos embora. Obrigada pelo drink... Até quinta, Barry.
– Até quinta! – retrucou, girando para o balcão, dando a conversa por encerrada.
Antes que Tyler considerasse boa ideia prosseguir com as provocações, Faith o arrastou para fora
do salão, agradecendo intimamente por sua interferência que abreviou o encontro indesejado. Ainda
assim, tão logo chegaram ao estacionamento, repreendeu-o.
– Não deveria ter dito aquilo.
– Se tem alguma coisa errada aqui é essa sua ideia idiota de ficar pelada na frente desse bando de
babões – o rapaz replicou, abrindo a porta do Windstar para que ela entrasse.
– Sério – Faith começou quando ele se acomodou ao volante. – Não estou com cabeça para
discussões hoje.
– Sua falta de cabeça tem a ver com o fato de o padre esquisito ter saído da praia como se o diabo
estivesse em seus calcanhares ou com você ter ficado toda chorosa sentada na areia?
– Evidente que você viu isso, não?
– Evidente que sim... Mas não quis me meter. Depois que Mason chegou, eu fui embora. –
Olhando-a de esguelha, perguntou: – Vai me dizer o que aconteceu?
– É melhor você continuar a não se meter.– ela retrucou simplesmente. Não queria tocar naquele
assunto justamente com Tyler, mas algo na forma com que ele descreveu o comportamento de
Jonathan lhe renovou a esperança de conseguir seu milagre.
– É... – Tyler replicou, despeitado. – Talvez seja mesmo melhor não me envolver. Não quero ficar
enjoado caso você me diga que está dando mole para um padre.
Faith achou por bem não retrucar. E olhando pela janela, arrependeu-se de não ter dado um único e
sufocante gole na bebida descartada sobre o balcão. O torpor seria bem-vindo naquele instante em
que se dava conta de que ficaria dias longe do padre. A moça esperava apenas que o sacrifício
valesse a pena.
Capítulo Trinta e Dois

Exasperado, Jonathan descartou o grande livro com os registros de batismos ao lado. Tentava se
inteirar da rotina do padre anterior, mas não conseguia o mínimo de concentração. De tempos em
tempos, sua mente se dividia entre o ocorrido em seu quarto e o encontro na praia. Nas duas cenas, a
imagem de Faith lhe provocava um calafrio distinto e trazia uma nova culpa; todas contraditórias.
Por não voltar à praia, há três dias não via Faith. Sentia-lhe a falta. Esta agravada ao não tê-la
entre os fiéis que lotaram os bancos de sua igreja aquela manhã. Estava preparado para os encontros
nas missas dominicais de forma que a ausência, logo na primeira delas, causou-lhe uma decepção
inesperada, inquietante.

Impaciente, Jonathan se pôs de pé e passou a andar pela sacristia, ainda cismava com sua
dependência, quando duas batidas leves à porta chamaram sua atenção. Ao se voltar, deparou-se com
Elliot e Constance Green. Por um segundo seu coração se negou uma batida ao antever o rosto da
caçula a lhes seguir, contudo, ao perceber que estavam sozinhos, este voltou a bater aceleradamente.

– Boa tarde! – Elliot começou ao entrar sem ser convidado. – Viemos fazer uma visita ao seu tio.

O jovem padre cogitou vetar-lhes, e descartou a infantilidade. Uma vez que Faith cumpria sua
parte no pedido, deveria fazer a sua e conviver pacificamente com todos. Após sorrir, informou:

– Meu padrinho está na casa.


– Então é melhor darmos a volta... – disse Constance, encaminhando-se para a saída.
– Não é necessário. Venham por aqui. – Jonathan os chamou. Enquanto os guiava pelo corredor que
os levaria até a casa, explicou. – Ele está no quarto... Vocês podem esperar na sala. Logo ele virá.
– Não queremos incomodar... – Elliot falou, incerto.
– Não incomodam. Ele precisa mesmo sair do quarto, assim como se distrair. Levarei somente um
minuto, esperem. – Depois de lhes dar passagem e indicar o sofá, Jonathan seguiu rumo ao corredor.
Encontrou seu tio deitado sobre a cama a mirar o teto, pensativo. Após uma batida na porta aberta,
anunciou: – O senhor tem visitas.
– Quem? – indagou, laconicamente.
– O senhor e a senhora Green.
– Os pais da Faith – Carlo disse o óbvio, com desgosto aparente. Jonathan nada comentou. Depois
de um suspiro, explicou também o que era evidente:

– Eles vieram ver como o senhor está.


– Você poderia ter dito que estou bem e pronto – o padre mais velho resmungou, voltando o rosto
para encarar o afilhado. – Não queria estreitar os laços justamente com eles.
– Deixe de bobagens – Jonathan pediu seriamente. – Eles nada têm a ver com o que aconteceu
entre mim e a filha.

– Não repita isso! Nada aconteceu entre vocês dois – o padrinho ralhou, sentando-se na cama com
certa dificuldade. Jonathan não poderia responder àquilo então pediu apenas:

– Desculpe-me, não repetirei, mas o que disse é válido. Os pais da moça não têm culpa de nada.

– Se tivessem educado a filha como se deve ela não ficaria por aí, agindo feito uma...

– Carlo! – Jonathan interrompeu bruscamente. O padrinho o encarou com o cenho franzido por um
instante antes de suavizar o semblante e falar sentido:

– Nunca me chamou assim... Não com esse tom. O que está acontecendo, Johnny?

Aquela era uma das tantas perguntas que ficariam sem resposta, pois Jonathan não sabia o que
tinha acontecido. Agora, mais do que nunca, queria ter conhecimento próprio de sua vida. Queria
saber quando se perdeu no caminho, pois não poderia ser somente culpa do assédio de Faith. Fosse
como fosse, aquele não era o momento para especulações e jamais poderia permitir que o padrinho
se referisse a ela de forma vilipendiosa.

– Desculpe-me... Apenas não use palavras depreciativas para a moça – disse brandamente,
aproximando-se para ajudá-lo a levantar.

– Faço isso – o tio resmungou de mau humor. – Não sou nenhum inválido, afinal...

Jonathan nada disse, apenas afastou as mãos e deixou que o padrinho se levantasse por sua própria
conta. Tão logo Carlo calçou seus sapatos, passou por seu afilhado, resmungando:

– Não entendo essa mania de visitar convalescentes... O próprio nome infere que a pessoa precisa
de descanso.

– Vou me lembrar disso quando o encontrar a cuidar das plantas – Jonathan retrucou, achando certa
graça na carranca do tio. Ao chegarem à sala, Carlo desanuviou seu semblante e cumprimentou suas
visitas. O casal Green se levantou para aperta-lhe a mão.

– Sr. De Ciello... Foi realmente uma lástima o que aconteceu. Como se sente hoje?

– Estou me recuperando. Obrigado por se preocuparem.

– Como não nos preocuparíamos? Isso que aconteceu foi abominável. Fico feliz que nada mais
grave tenha acontecido.
– Realmente foi um susto e tanto – Jonathan comentou, sem desviar os olhos do rosto de seu tio.

– Sim, mas não quero que fiquem pensando nisso... Já passou. – Carlo pediu.

– O senhor tem razão – Elliot emendou. Então, se dirigiu ao padre mais novo. – Pronto para o
início das obras?
– Sim – assegurou. Na verdade, a ansiava como forma de distração certa.
– Que bom... – Constance exclamou. – E com o dinheiro arrecadado será possível fazer todos os
reparos?
– Infelizmente não uma reforma completa, mas os mais urgentes, sim... – Jonathan respondeu
verdadeiramente satisfeito. – Desde a troca de telhas danificadas até a pintura das paredes e o verniz
nos bancos.
– Ah! – Elliot exclamou ao se lembrar de algo; logo comentou: – Por falar em pintura, nossa filha
nos contou que vai restaurar as imagens da capela.
– Disgraziata – Carlo resmungou, contrariado.
– O que ele disse? – Constance perguntou a Jonathan, interessada.
– Eh... Às vezes meu tio se atrapalha com as palavras – o jovem padre explicou, encarando-o de
modo repreensivo. – Mas ele não disse nada especial, só uma exclamação italiana por ter se
esquecido. O que ele quis dizer foi que Elliot fez bem em nos lembrar.
– Precisamente – o padrinho murmurou. – Peça que ela venha buscar as imagens amanhã. Ela
poderá restaurá-las durante a reforma.
– Farei isso senhor. Faith...
– Se me dão licença... – Jonathan interrompeu Elliot, tentando manter a voz estável. – Preciso
voltar para a sacristia. O que decidirem estará bem para mim... Se não os vir mais hoje, dê minhas
lembranças aos seus filhos.
Sem esperar resposta Jonathan se precipitou para a porta que o levaria de volta à igreja. Sim,
aquela era uma fuga.

– O que há, Fay? – Peter perguntou, segurando a mão disposta sobre a mesa. – Parece que está no
mundo da lua.
– Desculpe... – Ela tentou sorrir para o amigo. – Mas eu avisei que não seria boa companhia. Só
aceitei vir aqui por causa da Nicole.
– Justamente por isso, eu agradeceria se você se mostrasse um pouco mais apaixonada – ele
retrucou, olhando para a moça citada que, disfarçadamente, os observava por trás do balcão da Blue
Moon.
– Desculpe, meu amorzinho – disse Faith, resignada. Antes que o amigo pudesse reagir, pegou a
colher disposta na grande taça de sorvete e, depois de servir uma quantidade considerável, ofereceu:
– Sorvete na boca?
Sem se deixar abater, o amigo separou os lábios para receber a sobremesa. Depois de capturar o
sorvete, sorriu para Faith.
– Isso foi interessante... Que tal um beijinho?
– Não sei se eu faria tantas demonstrações de carinho em público, caso a gente namorasse de
verdade – Faith comentou, incomodada com a possibilidade de beijá-lo na frente de tantas pessoas,
tentando convencer a si mesma que sua reserva não era por estar tão perto da igreja.
– Tudo bem, hoje você realmente não está no papel – Peter anuiu, contudo, sorrindo, pediu: – Mas
ao menos continue com o sorvete. Nick está te fuzilando, com o rosto tão vermelho que talvez venha
aqui te estapear.
Ao comentário Faith foi obrigada a rir. Disfarçadamente, procurou a irmã com os olhos. Logo
constatou que o amigo tinha razão. E uma vez que se propôs a ajudar, reclinou-se sobre a mesa e
ofereceu seus lábios. Aproveitando a deixa, Peter a beijou de leve.
– Grace. – Ambos ouviram a voz trêmula de Nicole. – Depois explico, mas preciso sair...
Antes que a dona da lanchonete a liberasse, a funcionária retirou o avental e seguiu rumo à porta,
sem nunca olhar para trás. De onde estavam, Peter e Faith lhes acompanharam a saída. Se Faith achou
alguma graça na saída intempestiva, esta morreu de imediato ao flagrar a figura vestida em preto que
se dirigiu à igreja e sumiu em seu interior. Com coração enregelado, ela se perguntou quais as
chances de Jonathan ter presenciado toda encenação.
– Juro que eu pensei que ela viesse tomar satisfações – Peter comentou, ainda divertido, sem
perceber a mudança de humor de sua amiga.
– Nicole não é assim – Faith comentou automaticamente, sua cabeça ocupada em apaziguar as
sensações incômodas que reviravam seu estômago.
– Infelizmente – o amigo lamentou. – Eu queria que ela tomasse alguma atitude logo. Enquanto a
provocamos, ela continua com aquele...
Quando o moreno se interrompeu, Faith se obrigou a dar-lhe atenção. Deveria ocupar sua mente
com romances menos complicados. Com um suspiro cansado, Faith tomou a mão do amigo e apertou,
encorajadora.
– Não se preocupe com Joe... Acredito que nós nos beijamos mais em nosso namoro de mentira do
que eles no noivado de verdade. Nicole mal o suporta.
– Vou acreditar no que diz – ele retrucou, contrafeito. Antes que pudesse lhe dizer qualquer outra
coisa, Grace se aproximou para perguntar diretamente à moça:
– O que houve com sua irmã?
– Não sei – respondeu. – Vi o mesmo que você.
– E não vai atrás dela? – indagou incrédula. – Não ficou preocupada?
– Se fosse algo que necessitasse de ajuda, ela teria vindo até mim... Acho que logo ela volta não se
preocupe.
– Está bem – Grace falou. Repentinamente olhou dela a Peter e sorriu antes de pedir: – Posso
roubar sua namorada um instante?
– Sim... Mas devolva logo. Ainda temos de ir ao cinema.
Reprimindo um muxoxo desanimado, pois não estava com ânimo para passeios longos com
namorados de mentira, Faith se pôs de pé e seguiu Grace até o balcão. Ao pararem, a mulher
segredou:
– Estive pensando sobre o que me disse na quarta à noite.
– Ah, sim? – Faith comentou como se recordasse algo mais do que seu quase desvirginamento. Não
desejava parecer indelicada com alguém que lhe serviu de álibi tão prontamente. Como
invariavelmente fazia ao não se lembrar de assuntos importantes, deixou que a interessada lhe
colocasse a par sem notar seu esquecimento. – E daí?
– Daí que decidi fazer como me disse e ir visitar o Sr. De Ciello – refrescou-lhe a memória. Ao
nome, seu coração sofreu uma breve parada até que entendesse que Grace se referia ao tio, não ao
sobrinho. Imediatamente toda a conversa sobre o tema lhe veio à mente.
– Se é o que deseja, vá... Não vejo nada demais – encorajou-a.
– Sim, mas eu queria que me retribuísse o favor – a dona da lanchonete falou, esperançosa. – Não
conseguiria ir sozinha. Uma coisa é cumprimentá-lo ou trocar sementes no portão. Outra bem
diferente é entrar na casa dele. Como você é amiga do padre, pensei que poderia ir comigo.
Visitar Carlo – o tio carrancudo – na casa em que morava com Jonathan? Fugira de tal
compromisso quando seus pais a convidaram naquela tarde. Parecia uma peça do destino que fosse
chamada uma segunda vez. Jonathan tinha de vir a ela, não o contrário.
– Grace, eu...
– Por favor, Faith... O que custa me acompanhar? – Grace pediu, implorativa. Para todos os efeitos
era amiga do padre. Não havia como recusar.
– Quando deseja ir? – perguntou conformada.
– Terça-feira eu posso arrumar algum tempo pela manhã. Poderíamos combinar às oito horas?...
Será muito cedo?
Faith sabia que não. Pelo menos para Jonathan que, à essa hora, muitas vezes já voltava de sua
corrida na praia. Com certeza seu tio possuía os mesmo hábitos ainda que não corresse.
– Terça às oito horas estarei aqui – confirmou.
– Obrigada, agora volte para seu amor – Grace ordenou com um sorriso cúmplice, sem saber que
aquilo era tudo o que Faith mais queria.

Horas depois, ao ser deixada diante de seu portão, Faith agradecia por seu amigo ter o poder de
distraí-la durante a sessão de cinema da qual não pôde fugir. Com o espírito mais leve, entrou em
casa para se juntar à família. Mason, como sempre, estava em Wells com Helen. Nicole,
presenteando-a com educada indiferença, conversava com seu noivo ao passo que Elliot e Constance
se encontravam na cozinha; ele à estudar uma carta náutica, ela a organizar a louça utilizada.
– Boa noite! – a moça cumprimentou ao se juntar a eles.
– Boa noite – disseram em uníssono, então somente sua mãe prosseguiu: – Como foi o filme?
– Interessante – ela disse, sem muito entusiasmo.
– Peter a devolveu cedo – Elliot comentou, deixando a carta de lado.
– Amanhã ele trabalha cedo – explicou Faith, indo se servir de um pouco de suco de laranja.
Verdadeiramente não era sua intenção consciente fazê-lo, mas se ouviu perguntar: – Como foi a visita
ao Sr. De Ciello?
– Muito boa! Ele é uma pessoa encantadora – sua mãe respondeu prontamente. Faith duvidava, mas
não contrariaria a opinião superficial de Constance. Enquanto bebericava seu suco, policiou-se para
não perguntar diretamente por Jonathan. Tal cuidado foi desnecessário, pois logo seu pai comentou:
– O padre Jonathan que me pareceu um pouco abatido, mas não quis perguntar se estava doente. Se
fosse o caso ele nos diria.
– Abatido? – Faith indagou sem pensar.
– Sim... – o pai confirmou como se, a partir de seu comentário murmurado, entendesse que ela
desejava prolongar a conversa. – Já o vi mais animado. Principalmente com a reforma da igreja.
– Talvez seja isso – ela atalhou. – Preocupação antecipada com as obras. Qualquer reparo é
sempre um transtorno.
– Pode ser – pai concordou duvidoso e avisou: – Ficou acertado com o Sr. De Ciello que você
comece o reparo das imagens ainda amanhã.
A moça precisou de toda sua concentração para não cuspir o suco que acabava de colocar na boca.
Ao engoli-lo, pigarreou e tossiu levemente. Esqueceu-se completamente de seu oferecimento.
Deveria mesmo ser peça do destino que insistia em colocá-la na igreja, quando estava decidida a
ficar algum tempo afastada.
– Amanhã vou ajudar o senhor centro comunitário – o lembrou.
– Está dispensada. O que tem a fazer é mais importante, não? Pareceu que estava gostando do
serviço quando me contou. Acaso mudou de ideia?
– De forma alguma. Só não queria atrapalhar – defendeu-se.
– Não irá... Não terá muito o que fazer, afinal todos vão ajudar na reforma.
– Então amanhã inicio a restauração – ela confirmou com um sorriso brando. – Agora se me derem
licença, vou subir...
Tão logo foi dispensada, a moça rumou para seu quarto. Ao encontrar a sala vazia, soube que a
visita de seu pretenso futuro cunhado tinha terminado. Particularmente Faith desejava que fosse a
última, que sua irmã mordesse a isca de Peter e a desobrigasse do logro. Infelizmente a moça
conhecia Nicole o suficiente para saber que não seria assim tão fácil.
Ao chegar ao quarto, seguiu até o banheiro para fazer a assepsia bucal e lavar o rosto para se
livrar dos restos da maquiagem leve que usava. Quando a irmã mais velha se juntou a ela, já se
encontrava deitada. Sem nada dizer, Faith a observou se trocar e entrar sob os lençóis.
– Você está bem? – arriscou perguntar.
– Tenho de estar, não? – Nicole perguntou sem entonação especial. – Tudo sempre está perfeito na
família perfeita.
– Não sei nada sobre perfeição... Nem de você. Hoje saiu correndo da lanchonete. Já se desculpou
com Grace?
– Sim... Assim que saiu com seu namorado eu voltei.
– Olha... Eu não...
– Tudo bem, Faith... – Nicole exalou derrotada. – Eu disse que o que importa é que você fizesse
Peter feliz, mas te ver com ele está me matando. O que fazem é mesmo necessário?
– Não é... E gostaria que me desculpasse – disse sinceramente; não gostava de ver a irmã sofrer,
pois agora sabia bem o que ela sentia ao ficar afastada de quem amava. Com um suspiro, arriscou: –
Nick... Se me disser duas palavras... Se me pedir, eu saio de cena. Desmancho meu namoro com
Peter se isso a faz infeliz.
– Deixe como está Faith – a irmã pediu. – Não posso interferir na vida de Peter quando não sei o
que quero fazer... O padre Jonathan disse que eu deveria expor o que sinto ao papai. Que deveria
terminar meu noivado...
– Você falou com o padre?! – Faith se sentou, subitamente sem ar.
– Sim. Eu precisava falar com alguém neutro e quem melhor do que um padre? – Nicole admitiu
sem reservas. Qualquer outro seria melhor, Faith pensou alarmada, perguntando-se o quanto a irmã
teria dito. E quando.
– Pode me dizer o que falou?... Independente de aprovar meu namoro ou estar... sentida comigo,
ainda sou sua irmã e sempre vou estar aqui para você.
– Eu deveria saber disso, Faith... – a irmã comentou ao também se sentar. – Mas eu estava com
tanta raiva de você que... achei melhor aceitar o oferecimento do padre e me confessar.
– Então foi o padre quem te deu a ideia?
– Não da confissão. Ele apenas se ofereceu para me ouvir, mas eu me senti mais segura me
confessando. Então combinei em ir à igreja na quarta-feira pela manhã, logo depois que nos
encontramos aqui na porta de casa, quando ele estava indo para sua corrida.
– Entendo... – a moça murmurou. A cabeça fervilhando. Jonathan também se oferecera para ouvi-
la, ao que recusou veementemente, pois ele era o tema central de seus infortúnios. Ao que tudo
indicava, o italiano apenas exercia sua função de padre, nada mais. Então porque algo lhe soprava ao
ouvido, dizendo que aquela confissão da irmã não fora benéfica para ela? Sem pensar, repetiu a
pergunta: – Vai me contar o que disse?
– A verdade do momento... Que a odiava por estar com alguém que amo.
Era aquilo que precisava ouvir para concluir seu plano com Peter, mas tudo que lhe vinha à mente
era a provável curiosidade do padre acerca de seu namoro.
– E o padre me condenou por isso?
– Não – a irmã respondeu alheia ao seu real interesse. – O Sr. De Ciello disse apenas que você
estava tentando se prevenir das imposições de papai, mesmo que de forma desleal.
A moça não sabia o que pensar. Era muita informação para uma única noite. Ainda sem perceber,
indagou:
– Então o Sr. De Ciello sabe detalhes de meu namoro com Peter?
– E sabe sobre Tyler... – Faith pôde notar o tom de escusa na voz da irmã. – Não sei por que ele
me perguntou, mas estava com tanta raiva que acabei contando.
Tentando disfarçar a súbita fraqueza, Faith se deitou e mirou o teto. Seu coração acelerava e ora
praticamente parava ao imaginar tudo o que Jonathan poderia estar pensando dela naquele momento.
Não era de admirar que não acreditasse, quando lhe disse que gostava dele. Como poderia?
Fechando os olhos, perguntou:
– E o que disse exatamente.
– Contei a ele minha teoria.
Ótimo! Nicole dissera que o rapaz era apaixonado pela irmã que, por sua vez, o maltratava por
apreciar seu assédio devotado, mas que no fundo, nutria algum sentimento. Inferno! Agora lhe parecia
que os muros erguidos pelo padre eram intransponíveis e, de fato, somente um milagre a ajudaria.
Mil vezes inferno!
– Bom – ela exalou por fim. – Ao menos serviu para alguma coisa, não? Você mudou seu
tratamento comigo depois de conversar com o padre, não foi?
– Foi, sim... As palavras dele me deram o que pensar. Às vezes acho que devesse conversar com
papai e tentar desmanchar esse noivado.
Com tudo o que ouviu pesando em seus ombros, Faith comentou repentinamente mordaz:
– Então pense com carinho e tome as rédeas de sua vida, Nick... Depois disputamos Peter no
palitinho.
– Não teve graça – Nicole retrucou séria.
Nada naquela conversa tinha graça. Agora Faith creditava maior valor às palavras de Helen. Ao
que tudo indicava, Jonathan apenas se rendeu à ela por ter as reações normais de um homem
provocado por uma mulher promíscua. Ela fora cega, patética. Em momento algum houve sentimento!
Ante a verdade, não via como poderia encará-lo tão cedo.
– Nicole, você se importaria de me fazer um mega favor amanhã?... Prometo que faço qualquer
coisa em troca.
Capítulo Trinta e Três

Analisando as olheiras acentuadas no pequeno espelho sobre a pia do banheiro, Jonathan maldisse
a presença de seu fantasma noturno que lhe fez companhia até o raiar do dia. Custava a crer que
tivesse se rendido aos encantos de uma messalina capaz de trair e enganar a todos enquanto ainda
afrontava a irmã. Ainda mais inacreditável era a falta que ela lhe fazia, apesar de tudo, Jonathan
pensou.
De volta ao quarto, como todos os dias desde a quinta-feira, quando deixou de ir à praia, lançou-se
ao chão e iniciou uma série de flexões.
Como muitas coisas sobre si mesmo, não entendeu a substituição que subitamente lhe ocorreu, mas
apreciava o subir e descer de seu corpo tanto quanto apreciava correr. Seus braços ainda doíam pelo
esforço ininterrupto e diário, contudo Jonathan os flexionava até a completa exaustão. Enquanto se
exercitava, não pensava na cobra tentadora. Aquela manhã, até onde contou, fez quase duzentas
flexões.
Perdera a conta quando, involuntariamente, a presença invasora tomou sua mente ao lembrar as
palavras de seu tio, na noite anterior.
– Amanhã Faith virá buscar as imagens... – Carlo dissera de má vontade ao chegar à casa. – Foi o
que ficou combinado com o pai.
– Ouvi antes de sair – Jonathan retrucara, tomando o caminho do corredor; precisava de um banho
que o fizesse esquecer do casal que flagrou na lanchonete.
– Espero que não tenha uma recaída.
Tais palavras fizeram com que girasse nos calcanhares e retornasse à sala.
– Agradeceria se parasse com esse tipo de comentário.
– E eu agradeceria muito mais se parasse de ser tão sensível a essa moça. Alega ter perdido o
interesse, mas eu vejo como fica à simples menção do nome dela.
– Então pare de dizê-lo.
Ao entrar em seu quarto, refreou o desejo de bater a porta. Realmente não deveria ser tão
suscetível a ela, mas não tinha como evitar. Nem antes ou naquele exato momento, quando deixava o
chão, tendo os braços e costas doloridos.
Às sete horas, Jonathan já se encontrava em sua igreja, com as orações matinais concluídas, a
espera dos primeiros trabalhadores. Todos locais, deixando-o à vontade com o conhecimento geral.
– Bom dia, padre! – disse Carl ao entrar na igreja, depois de estacionar um pequeno caminhão às
suas portas. – Trouxe os andaimes. Quando der o sinal verde, começamos.
– Pois já o tem. – Jonathan estava ansioso com o início dos trabalhos.
– Então com sua licença, senhor... – O grande homem pediu, antes de sair, porém se voltou e
avisou. – Alguns dos rapazes ficarão aqui para iniciar os reparos nos bancos... Será barulhento.
– Não tem importância – tranquilizou-o com um sorriso.
Talvez o martelar e serrar incessante ocupasse os espaços vagos em sua cabeça traiçoeira, pensou
enquanto seguia Carl até a entrada da igreja para olhar em direção à rua que levava a trilha da praia.
Com as mãos nos bolsos de sua calça, Jonathan ficou a observar os homens descarregarem as
grandes armações e recostá-las contra a parede lateral da pequena igreja.
Pela agilidade empregada, poderia supor que realmente eram experientes no trabalho que
executariam. Manteve-se tão absorto na ação que teve um leve sobressalto ao ouvir a voz feminina
atrás de si.
– Bom dia, Sr. De Ciello!
Antes mesmo que se voltasse, tentava identificar e administrar a decepção por não ser a moça
certa.
– Bom dia, Nicole!
– Sua bênção padre!
Ao abençoá-la, ele sentiu seus dedos reclamarem um contato que não mais teriam. Respirando
profundamente, indagou logo em seguida:
– O que faz aqui tão cedo? Acaso veio para conversarmos?... Se foi para isso, hoje eu...
– Não, senhor. Sei que hoje os trabalhos começam – ela o interrompeu apressadamente. – E não
preciso mais te perturbar com minhas lamúrias. Já me ajudou o suficiente.
– De verdade? – Jonathan nutria certa dúvida, afinal ela alegou amar aquele a quem sua irmã
languidamente alimentou, bem diante de seus olhos. E dos dele, pensou contrafeito.
– De verdade – ela confirmou. – Acho que vou fazer como me disse e conversar com meu pai.
Estou juntando coragem... De toda forma, o que mais me atormentava era o sentimento ruim por
minha irmã e esse já passou.
– Passou? – indagou com o cenho franzido.
– Bom... – Nicole se mostrou receosa. – O que digo aqui ainda fica sob o segredo da confissão?
– Fica – Jonathan a tranquilizou, queria saber o que se passava.
– Bom... Então reafirmo que passou, sim. É incômodo, mas vejo como Peter este feliz ao lado de
minha irmã. E é isso que me importa. Quero vê-lo sempre contente. Somente... vê-lo. Nesses últimos
dias tenho estado perto de Peter mais vezes do que nos últimos meses.
Como padre, ele deveria entender e enaltecer tal amor desapegado. Com seu conhecimento de
psicologia, ele acreditava que a moça precisava de ajuda para trabalhar sua total falta de amor
próprio. Como homem, sua vontade era sacudi-la para livrá-la de tal torpor. O conceito daquela
conformidade lhe parecia absurdo, porém não era de sua conta. Na verdade, apenas uma coisa
importava.
– Se encontrou paz nesse pensamento, faço votos para que tenha coragem de conversar com seu pai
o quanto antes. – Mudando o peso de seu corpo em suas pernas, perguntou: – Se não veio para
conversar, o que deseja?
– Vim buscar as imagens que Faith precisa restaurar – disse por fim.
Com a explicação, o coração desavisado do padre involuntariamente enregelou. Faith não viria!
– Pensei que sua irmã viesse fazê-lo – comentou, reflexivo. Precisava ouvir mesmo que soubesse a
resposta. – O que houve?
– Não saberia dizer, senhor. Ontem ela me pediu para fazer esse favor... E sem questionar. Me
desculpe.
De fato o motivo era conhecido. Faith apenas fazia o que ele pedira. O que ordenou, na verdade.
Então não deveria se sentir traído por ela não comparecer num compromisso que nem sequer
marcara.
– Sua irmã fez alguma recomendação?... Disse quanto precisaria para o material?
– Não disse – Nicole comentou levemente consternada. – Mas se não pediu deve ser porque não
precisa de nada... Ela tem tanta coisa naquele atelier.
O padre ainda recordava de seu comentário na ocasião do acordo entre ela e seu tio. Que deixaria
para depois do piquenique porque teriam dinheiro para o material que utilizaria. Se Faith não lhe
mandou qualquer recado, poderia supor que não dava a devida atenção ao trabalho que executaria,
deduziu contrariado. Tentando modular sua voz, disse:
– Mesmo que tenha tudo, não acho certo... Venha, vou enviar algum dinheiro e você entrega a ela.
Nicole assentiu e o seguiu até a sacristia. Após contornar a grande mesa, Jonathan se sentou em sua
cadeira e, depois de destrancar a primeira gaveta, separou algumas notas que considerou ser o
suficiente para gesso, tintas e as desconhecidas folhas de ouro. Colocou o montante em um envelope
e o entregou a Nicole.
– Diga a sua irmã que se for preciso mais basta me avisar. – “Pessoalmente”, soprou-lhe sua parte
saudosa. – Ela disse qual imagem deveria levar?
– Faith pediu que levasse todas, mas hoje meu pai saiu cedo com a pick up, então levarei apenas
uma... Depois ela vem buscar o restante... Ou eu volto. Enfim...
Sem que pudesse evitar, Jonathan sentiu uma raiva inexplicável crescer em seu íntimo. Deveria
agradecer pela pronta obediência, contudo, começava a odiá-la. Sabendo-se incapaz de proferir uma
única palavra que não soasse rouca ou incerta, Jonathan apenas levantou e foi até o salão principal
da igreja. Rumou decidido até a imagem que a moça tinha analisado e a pegou sem muito esforço.
Depois de pigarrear algumas vezes, estendeu-a para Nicole.
– Leve essa. Depois veremos o que fazer com as outras.
A moça tão parecida com a irmã caçula, porém sem ter sobre ele efeito algum, tomou a imagem de
suas mãos e, depois de abraçá-la protetoramente, despediu-se e partiu. Jonathan ainda ficou a vê-la
sumir na rua que a levaria para casa, para junto de Faith.
– Bom dia, senhor! – ouviu um rapaz dizer ao seu lado. Também não lhe notou a aproximação. –
Elliot nos mandou para ver os bancos.
O padre desceu o olhar sobre os três homens à sua frente, depois de cumprimentá-los
mecanicamente, fez com que entrassem e os deixou a cuidar de seu serviço. Minutos depois de se
refugiar na sacristia, pôde ouvir a primeira martelada.
Após alguns minutos não ouvia nada além de seus próprios pensamentos. Até mesmo quando o
padrinho se juntou a ele, não lhe ouvia. Tudo que conseguia era se questionar sobre a possibilidade
cada vez mais palpável de nem ao menos conversar com Faith, como tanto sua parte consciente
desejou.
Para agravar a briga interna entre suas metades, quando voltou para a sacristia depois de ter saído
por apenas alguns minutos, Jonathan descobriu sobre sua mesa o envelope que mandou por Nicole.
Ao abri-lo, teve a impressão de que Faith nem ao menos contou o dinheiro enviado. Ao ler o bilhete
anexo, não soube decifrar se estava certo.

Agradeço a ajuda de custo, mas era desnecessária. Descobri que os materiais que possuo serão suficientes. Quando a
imagem estiver pronta peço a alguém para levá-la. Se possível mande todas as outras de uma só vez, assim não será preciso
perturbá-lo. Sem mais, obrigada. Faith

Depositando o bilhete sobre a mesa, Jonathan pegou o envelope e seguiu até a porta. De fato,
ficou fora por míseros minutos, talvez ainda a visse enquanto cruzasse a praça. Não iria aceitar mais
favores! Ela estava prestando um serviço à igreja e, como todos os outros, receberia ao menos o
material.
Já na calçada, não a viu em parte alguma. Somente então lembrou que Faith provavelmente tivesse
seguido viagem para suas aulas em Wells. Olhava para o envelope, ordenando a si mesmo que
deixasse de desculpas esfarrapadas que o colocassem diante dela, quando um dos trabalhadores se
aproximou, apontando para o mesmo.
– Senhor, eu que deixei isso sobre sua mesa. Aconteceu alguma coisa?
– Não, obrigado – respondeu-lhe alheio. Faith nem ao mesmo entrou.
Na manhã seguinte, depois de mais uma noite insone, Jonathan pensou ao terminar sua série de
flexões, que a droga toda era a inquietação que o certo trazia. Nunca conseguia mais do que poucos
minutos de trégua antes que a imagem persistente da moça viesse atormentá-lo.
Já em seu quarto, após o banho, entoou palavras de encorajamento para o novo dia. Dizendo que
seria diferente mesmo que começasse exatamente como todos os outros.
– Bom dia, padrinho, sua bênção – Jonathan cumprimentou ao entrar na cozinha. – Como se sente
hoje?
– Estou bem, obrigado – o padre mais velho respondeu, indo se sentar à mesa posta para o
desjejum.
Após se juntar ao tio e analisá-lo, Jonathan comentou:
– Está diferente hoje. Parece... animado.
– Impressão sua – refutou, sem desviar os olhos do pão que cortava. – Estou como todos os dias.
Você que parece observador hoje... Resolveu sair de sua apatia?
– Não estou apático – negou, servindo-se de café puro.
– Não é o que me parece... Até gostaria dessa barba se soubesse que pretende criá-la, porém sei
não passa de desleixo e tremo por imaginar o motivo.
– Perdoe-me pelo pecado imperdoável da preguiça – Jonathan replicou, tentando encobrir certo
deboche. – Amanhã me barbeio.
– Preferia que fosse hoje – o padrinho falou sério.
– Mas será amanhã – o afilhado insistiu, pondo-se de pé. – Preciso fazer minhas orações antes de
abrir a igreja. Ficará bem?
– Tenho estado todos esses dias... Logo a babá que me arrumou estará aqui.
– Então, com licença.
Depois de um último gole no café nem mesmo adoçado, Jonathan se retirou. Fez como anunciou,
porém recitou suas preces habituais sem prestar atenção às palavras proferidas. Às 7h30 as portas da
capela estavam abertas à espera dos trabalhadores.
Antes das 8h00 todos cuidavam de seus afazeres, deixando o interior da igreja mergulhado no
reconfortante som de madeira sendo trabalhada, telhas sendo retiradas e recolocadas, gritos, ordens e
risadas até que viesse o silêncio íntimo e estritamente reservado à mente do padre. Quando os sons
invadiram sua esfera particular, Jonathan fixou os olhos no relógio disposto em uma das paredes.
Esteve desligado por quase uma hora.
De imediato se levantou e voltou à sua casa. Precisava de água fresca que o ajudasse a digerir a
novidade de permanecer estático por 42 minutos, preso às imagens de uma mulher.

Faith se remexeu sobre o sofá, mais uma vez. Apesar de, educadamente, ser deixada de fora da
conversa que fluía fácil entre a dona da lanchonete e o tio do padre, ela não se sentia confortável
naquela sala que lhe trazia tantas recordações. Em especial quando recebia olhares furtivos e
invariavelmente indiscretos do padre mais velho.
Também não ajudava saber que Jonathan estava tão perto. Ela sabia que fatalmente o veria quando
fosse servir de companhia a Grace, contudo não contou com a demora que a deixava ansiosa e tensa.
Como Jonathan nunca chegava, Faith passou a sinalizar para Grace, indicando que deveriam ir
embora.
Era solenemente ignorada. Nunca imaginou que pudesse existir tamanha variedade de ervas e
plantas medicinais para que os dois trocassem tantas informações. Certa altura, impaciente, Faith
levantou.
– Sr. De Ciello, se importa que eu vá tomar um pouco de água?
– Fique à vontade. – Foi a resposta seca e breve. Como se recordasse de algo que lhe parecia
agradável, mudou o tom e pediu: – Se importaria de preparar um pouco de café? Esperava a Sra.
Williams para pedir, mas ela não chega nunca.
– Não me importo – assegurou Faith, prestativa.
Qualquer serviço seria preferível a ouvir as maravilhas curativas da alfavaca. Exasperada, ainda
rolava os olhos quando adentrou apressadamente na cozinha. Ao ver o homem que amava, vestido de
preto, parado junto à pia, não pode conter sua surpresa. Talvez sua entrada abrupta, juntamente com
seu grito baixo e incontido, tenha assustado Jonathan, não saberia.
Toda ação se deu em parcos segundos. Mal pôde registrar o assombro nos olhos azuis quando
ouviu o som de vidro sendo quebrado e, então, a conhecida blasfêmia em italiano.
– Inferno!
– Ai meu Deus! – ela murmurou preocupada ao ver o que tinha quebrado.
Jonathan acabara de espatifar um copo com a mão esquerda. Ao ver o sangue que tingia a palma
pálida, Faith se aproximou e, sem se importar se seria repelida ou não, segurou-lhe o pulso e tentou
colocá-lo sob a torneira ainda aberta. Não conseguiu movê-la um milímetro. O braço de Jonathan
estava travado junto ao corpo enquanto o sangue lhe cobria a mão cada vez mais.
– Deixa eu lavar sua mão – ela pediu. – Precisamos ver esse corte.
Quando não obteve resposta, Faith ergueu o rosto para encará-lo. Jonathan mirava a palma
ensanguentada, com olhos fixos, congelados. Era perturbador. Ela se perguntou quais as chances de o
italiano ter alguma aversão ao próprio sangue. Seria destoante para um homem daquele tamanho,
contudo não incomum. Fosse como fosse, não tinham tempo para entraves de pavor. Ele continuava a
perder sangue, que agora gotejava dentro da pia.
– Senhor, temos de lavar sua mão. Rápido! – ela chamou e puxou a mão com maior firmeza.
Como se despertasse de alguma espécie de transe, Jonathan livrou seu pulso com brusquidão, ao
que foi prontamente capturado por uma mão pequena e decidida.
– Deixe de bobagem, senhor. Não vou te morder. – Ao falar finalmente conseguiu colocar a mão de
Jonathan sob a água. Lavado, o corte não se mostrou extenso, porém parecia ser fundo. Depois de
verificar que não havia cacos no local, Faith desligou a torneira e saiu à caça de um pano de pratos.
Ao avistar a peça desejada, pegou-a e enrolou na palma ferida. – Segure firme e venha, vou te levar
onde possam tratá-lo.
– Non è necessario – Jonathan disse roucamente, afastando-se.
– Certo! Acho que isso foi uma recusa, então peço que deixe de bobagens. Esse corte precisa de
pontos. Eu te levo... – De súbito perguntou: – Devemos avisar seu tio?
Muitas informações para assimilar em curto espaço de tempo, Jonathan pensou enquanto mirava o
rosto incerto. A primeira providência seria entender aquele martelar frenético de seu coração ante a
presença dela. Chocou-se tanto ao vê-la que o resultado estava ali, latejando em sua palma.
Aquela era outra novidade digna de nota. Por mais que olhasse para aquele rosto de anjo, ainda
conseguia ver o líquido vermelho que cobriu sua mão e o paralizou. A visão causou-lhe tal horror
que simplesmente não pôde se mover. Não fosse a insistência de Faith, talvez ainda estivesse
travado.
– Senhor... – ela chamou, despertando-o uma segunda vez. – Vamos avisar seu tio?
– Não – disse decidido.
Não entendia o que ela fazia em sua casa, aparentando tanta familiaridade e desenvoltura, assim
como não sabia se pontos seriam necessários para fechar seu corte, contudo, sentia que precisava
acompanhá-la. E se queria ser levado, tudo o que não poderia fazer era avisar ao padrinho que estava
prestes a sair com a caçula de Elliot Green. Não seria segredo, pois sua igreja estava lotada de
amigos e trabalhadores do capitão e líder comunitário então apenas evitaria um desentendimento
imediato.
Contornando a mesa, Jonathan foi até a geladeira e pegou sobre ela um bloquinho de notas. Depois
de escrever resumidamente o ocorrido e avisar pelo mesmo que seria levado ao hospital de Wells
para receber o devido cuidado em seu corte, deixou o bilhete sobre a mesa e chamou pela moça –
ainda com o coração aos pulos.
– Podemos ir agora.
– Venha – ela disse, tomando a dianteira antes de rumar pelo caminho que os levaria à igreja.
Provando que o tamborilhar anterior era nada, o coração do jovem padre acelerou mais enquanto a
seguia. Enquanto sentia perfume floral, via o corpo curvílineo e o famigerado rabo de cavalo. Ao ter
seus olhos ofuscados pela claridade da manhã, Jonathan se deu conta de que cruzou a nave central
sem nem ao menos percebê-la. Já na calçada, alguns dos trabalhadores interromperam seus afazeres
para especular sobre o pano enrolado em sua mão.
– O padre Jonathan conseguiu abrir um corte na palma da mão – Faith explicou a ninguém em
especial, banalizando o ocorrido com a intenção de não alarmá-los. – Vou levá-lo para que Spencer
dê uma olhada, mas acredito não ser nada sério.
Jonathan estranhou a menção de um nome, porém apenas confirmou e continuou a segui-la. Quando
a moça marchou para a rua lateral que os levaria para a entrada de sua casa, ele olhou em volta,
aturdido.
– Para onde vamos afinal? Pensei que fosse me levar ao hospital.
– Te levar para Wells por um corte na mão? – ela indagou, contendo um sorriso. – Spencer mora
perto e te conserta rapidinho.
– Spencer? – Jonathan inquiriu ainda mais confuso. – Não me lembro de ninguém com esse nome.
Ele mora nessa rua?
– Não – ela respondeu ao parar ao lado do jipe. – Spencer mora nos arredores, mas não perto o
suficiente para irmos ir à pé. – Então ela lhe estendeu a mão.
– O quê...? – jonathan indagou vagamente ao entender sua intenção. Olhando em volta, perguntou: –
Cadê sua pick up?
– Papai está com ela esses dias, então me dê as chaves. Sei que estão aí com o senhor.
Jonathan olhou para seu Wrangler e mais uma vez para a moça. Não sabia de onde vinha aquela
reserva, mas se sentia incomodado por alguém guiar seu carro. Era irracional, uma vez que não
deveria ser apegado a bens materiais, mas a ideia não lhe agradava. Ante a sua demora, Faith bufou
impaciente e moveu a mão.
– Não temos tempo para crises machistas, senhor. Sei dirigir muito bem. Não vou quebrar seu
carro, nem ralar a calota ou arranhar a embreagem... Se quiser, nem mexo nos retrovisores. Agora,
poderia me entregar as chaves, por favor?
Mesmo contrariado foi obrigado a lhe dar razão, contudo não teve tempo de dizer. Antes que
pudesse prever, Faith se colocou às costas e, sem cerimônia, capturou as chaves no fundo de seu
bolso. Ainda se recuperava do choque que o galvanizou, quando ela chamou, já acomodada ao
volante:
– Venha, senhor. Não temos toda a manhã.
Em silêncio, Jonathan contornou seu jipe e se acomodou no assento do carona. A sensação de ser
conduzido era estranha, contudo mínima se comparada ao eletrizar provocado pela proximidade da
mão pequena à parte dele que mais ansiava por ela.
Como poderia esquecê-la, pensou enquanto a assistia manobrar seu jipe. Faith ficava ainda mais
bella ao segurar o volante com segurança e desenvoltura. Resignado, ele entendia que nem ao menos
voltara ao zero, pois em momento algum a esqueceu.
– O que estava fazendo em minha casa? – perguntou intempestivamente.
Finalmente Jonathan falava, Faith pensou aliviada. Começava a ser desconfortável dirigir sob
aquela vigilância silenciosa e insistente. Reacomodando-se sobre o assento, respondeu após um
breve pigarro, contando que fazia companhia a Grace para que esta não visitasse o amigo sozinha.
Então, olhando-o rapidamente, acrescentou:
– Acredite! Eu tentei me livrar do compromisso, mas não tive como. Não era minha intenção te
desobedecer, senhor.
– Não a proibi de ir à minha casa – disse novamente rouco. – Tampouco a proibi de ir à igreja...
Não precisa deixar de frequentar a missa pelo que aconteceu.
– O senhor disse para que eu me mantivesse no meu lugar e é o que estou fazendo. Nunca fui de
missas. Invariavelmente as frequentava por obrigação, então... uma vez que fui liberada, não tenho
motivos para fazê-lo.
– Talvez devesse aproveitar que começou e continuar – ele arriscou. – Quem sabe não se descobre
a apreciar nossas reuniões semanais.
– Estou melhor como estou – Faith replicou, levemente aborrecida com o tom pastoral,
completamente destoante da rouquidão evidente. – Não tem de salvar minha alma, senhor. Essa
ovelha desgarrada já está perdida há muito tempo.
– O que me pede é impossível – Jonathan redarguiu brandamente. – É minha obrigação tentar
salvar a todos. Mesmo as ovelhas perdidas mais resistentes.
A situação era tanto surreal quanto tragicômica, levando Faith a reprimir um sorriso sardônico.
Estava ao lado do homem que desejava desesperadamente ter sobre uma cama – ou qualquer outro
lugar, pois não seria exigente – enquanto ele tentava catequizá-la. Sem que pudesse conter, sua
irritação chegou ao limite tolerável.
Ao olhá-lo de esguelha e flagar o olhar expectante, replicou seriamente:
– Estamos só nós dois aqui então vou ser franca. Não fui à sua igreja esses dias atrás de salvação
para minha alma. E uma vez que o que procurava parece ser realmente impossível de conseguir, não
tenho motivos para voltar. Aproveite que recordei quem é o senhor e o respeito que lhe devo para me
deixar quieta no lugar ao qual pertenço.
E a qual lugar qualquer um dos dois pertencia? Jonathan especulou, cansado. Esperava um dia
saber, porém, como ainda não era o caso, concedeu-lhe a razão. Deveria deixá-la quieta, assim como
se envergonhar por usar sua posição eclesiástica para atrai-la quando era obedecido; mesmo que ela
ainda deixasse clara suas reais intenções.
Capítulo Trinta e Quatro

Jonathan nunca questionou a restrição quanto a manter relacionamentos amorosos para membros do
clero, contudo, nos últimos dias a considerava descabida e ineficaz. No seu caso, a ineficiência se
dava por ser impossível dedicar todo o seu tempo à oração e à pregação, quando boa parte dele era
destinada à moça ao seu lado. Desejava ser livre para responder a altura. Como não o era,
conformou-se e falou em tom de escusa:
– Não era minha intenção ser grosseiro quando falei sobre ficar em seu lugar. Perdoe-me se
pareceu que quis rebaixá-la ou algo do tipo.
– Não me senti rebaixada, senhor – Faith assegurou sem olhá-lo. O discreto friccionar dos dedos
sobre o volante era o único indicador de seu nervosismo. – Apenas entendi que a posição que ocupa
o coloca acima de todos e que não devo estender minha mão até onde não alcanço.
Mais uma vez Jonathan ficou sem resposta. Confirmar sua superioridade sobre os leigos incorreria
em soberba e negá-la, daria margem à livre interpretação, incentivando-a. E deveria se precaver,
pois talvez Faith não tivesse se dado conta, mas sua mão pecadora não estava tão distante que não
pudesse atingi-lo.
– Se realmente entendeu que há coisas que não se deve fazer, não vejo o motivo para não
convivermos pacificamente.
– Mas estamos convivendo pacificamente, não? Até me deixou dirigir seu carro – ela troçou. A
tentativa de mudar o rumo da conversa era evidente e como ele mesmo se sentia incomodado,
concordou.
– Parece que sim.
– E como está sua mão? O sangue estancou?
A pergunta o remeteu à outra imagem que, juntamente com a chegada de Faith, o abalou. Olhando
para a mão enrolada, temeu livrar-se do pano e travar. Sem se dar conta que falava, murmurou:
– Non lo so...
Faith não entendeu todas as palavras, mas deduziu a resposta negativa. Todavia, o que mais lhe
chamou a atenção foi o tom de lamento e o olhar fixo para a mão coberta pelo pano. Verdadeiramente
preocupada com sua reação ante ao corte exposto, perguntou:
– O senhor tem aversão à sangue?
– Não me lembro – admitiu, pensativo. A moça deixou a resposta estranha e pouco reveladora
passar, pois se aproximava do destino desejado.
– Bom... Seja como for, logo Spencer dará um jeito.
– Não me lembro de ter conhecido alguém com esse nome – Jonathan comentou, agradecido por
mais uma vez poder mudar o tema que colocava suas perturbações em foco.
– Não conheceu – Faith respondeu, receosa, enquanto estacionava o jipe diante da casa modesta,
ladeada por outras duas com a mesma simplicidade, todas à orla da floresta. – Spencer é amigo de
papai, mas não vai muito à vila.
– Entendo – Jonathan murmurou antes de saltar do jipe e olhar em volta. Algumas crianças que
brincavam diante de uma das casas, pararam sua algazarra para cumprimentar Faith e acenar para
ele, mesmo com desconfiança. Quando a moça se juntou a ele, indagou, analisando a casa de
madeira, criticamente. – E ele é o quê?... O médico da vila?
– Não... Mas nos socorre nessas pequenas emergências. Spencer serviu como uma espécie de
enfermeiro quando atuou na guerra do Golfo. Assim que se mudou para a cidade e contou sua
história, muitos começaram a procurá-lo. Hoje é natural todos da vila correrem para cá. Venha! Não
se preocupe. Ele fará um serviço tão bom e limpo quanto qualquer enfermeiro num hospital.
Intimamente Jonathan se arrependia de estar ali para ser tratado por alguém que cada vez mais lhe
parecia ser um curandeiro. No entanto, como estavam às portas da casa, nada disse. Depois de
acessarem a pequena varanda, Faith afastou a tela de proteção para bater vigorosamente à porta.
– Spencer – chamou. – Sou eu, Faith... Preciso que você dê uma olhada num ferimento.
– Faith? – ouviram uma voz cansada, vinda do interior da casa. – Está ferida?
– Eu, não – ela explicou rapidamente. – Um... amigo.
O padre ainda analisava as possíveis implicações contidas naquela apresentação, quando a porta
foi aberta para revelar um homem pálido, com cabelo grisalho, de pé com ajuda de uma muleta, de
expressão tão cansada quanto sua voz. Jonathan foi tomado pelo incômodo e se arrependeu
completamente por ter ido até aquela parte desconhecida de Sin Bay. Antes de ser apresentado,
também foi igualmente medido e analisado.
– Spencer, este é Jonathan De Ciello, o novo padre de Sin Bay... Sr. De Ciello, este é Spencer
Mills, nosso enfermeiro de plantão.
– Prazer em conhecê-lo Sr. De Ciello – Spencer Mills lhe estendeu a mão.
Imediatamente a semelhança reveladora foi confirmada. Spencer só poderia ser pai do namorado
secreto. Sendo visitado por uma violenta onda de má vontade, Jonathan imaginou que Faith poderia
muito bem tê-lo apresentado como sendo seu sogro.
– O prazer é meu, senhor Mills – disse educadamente.
– Entrem – o homem convidou, voltando para o interior da casa modesta.
Faith o seguiu, sentindo a presença de Jonathan às suas costas. Algo no tom usado ao dizer o nome
de Spencer, indicava seu descontentamento. Em seu delírio, especulava se seria ciúme. Loucura!
Alheio aos pensamentos da dupla que o seguia, Spencer os levou ao canto da sala utilizado para
fazer os curativos e pequenas suturas. Ao lado de uma cama que fazia as vezes de maca, havia uma
luminária e um armário com os materiais que utilizaria. Após pedir que o padre se acomodasse,
acendeu a luz fluorecente e saiu, para lavar as mãos.
Ao ficarem a sós, Jonathan perguntou o que já sabia:
– Esse senhor é pai de seu amigo Tyler?
– É, sim – Faith confirmou, tentando obter respostas nas palavras sugestivas.
– O que houve com a perna? Lembrança da guerra?
– Sim... Spencer foi mandado de volta meses depois do início da invasão, quando foi ferido... Ele
pode te contar melhor, pois só sei a história repassada... Nem era nascida quando aconteceu.
– Não era nascida, assim como meu Tyler... – disse Spencer enquanto ainda vinha pelo corredor.
Quando estava ao lado da moça, beijou-a paternalmente no alto da cabeça antes de dizer ao padre: –
Conheço essa menina desde os seis anos. Sempre foi meio traquinas, mas compensava sendo
atenciosa e prestativa. Ela fez bem em trazê-lo, senhor. Aora deixe-me ver esse machucado.
Maliciando sobre a evolução da traquinagem para a licenciosidade, Jonathan retirou o pano da
mão ferida e, evitando olhá-la, estendeu-a. Spencer a estudou clinicamente. Enquanto ele mirava a
palma, o jovem padre passou a perscrutar-lhe o rosto. A semelhança com o rapaz era perturbadora,
mas o que lhe chamou a atenção foi sua tez abatida. Quando ouviu a voz preocupada de Faith, soube
não ter sido o único a reparar.
– Spencer, é impressão minha ou você está doente?... Já estava achando sua voz cansada e agora,
vendo-o sob a luz...
– Agora eu estou bem – o senhor assegurou. – Mas há alguns dias estive realmente mal.
– E deveria estar descançando, não de pé – ouviram dizer o recém-chegado.
– Não exagere, Ty – o pai pediu ao filho com um sorriso acolhedor. – Sabe que estou mesmo bem.
– O senhor é quem sabe – Tyler retrucou, dando de ombros Como se só então enxergasse as visitas,
cumprimentou: – Bom dia, Fay... Bom dia, padre.
– Bom dia – responderam quase em uníssono; o cumprimento de Faith soando com pesar e o de
Jonathan mal passando de um esgar inintelegível. Sem demonstrar interesse pelo homem ferido ou
pelo serviço que lhe era prestado, Tyler perguntou ao pai:
– Posso roubar a Fay um pouquinho?
– Fique à vontade – Spencer falou. – Mas não sumam... Isso não levará mais do que quinze minutos
e tenho certeza de que o Sr. De Ciello terá pressa em partir. Afinal, deve ter muito o que fazer em sua
igreja.
Tyler assegurou que ficariam na varanda e chamou pela moça, rumando para a porta. Antes de
segui-lo, Faith lançou um olhar incerto na direção de Jonathan. Irrequieta com a intensidade do olhar
cerúleo, baixou os olhos e saiu. Não queria deixá-lo sozinho, mas no momento se sentia em divida
com o amigo de infãncia. Quando Tyler cruzou a soleira e fez menção de seguir caminho, lembrou-o:
– Disse ao seu pai que ficaríamos na varanda... E não posso ir para longe. Preciso levar o Sr. De
Ciello de volta.
– Que seja! – rapaz exclamou de má vontade, voltando para se sentar em uma das cadeiras da
varanda. Com Faith já ao seu lado, encarou-a seriamente, contudo nada disse. Transcorridos alguns
minutos tensos, disse, sério: – É sobre esse padre esquisito mesmo que quero falar. Por que o trouxe
aqui? Sabe que não gosto dele.
– Desculpe – ela refreou um súbito mau humor, causado pelo suspense desnecessário e pelo tom
empregado. – Mas, diante de uma emergência, o que você gosta ou não, pouco conta. O Sr. De Ciello
precisava de ajuda.
– Devia ter ido a Wells.
– Por que não me contou que Spencer esteve mal? – Faith ignorou o comentário infantil e perguntou
com um suspiro cansado.
– Porque você não se importa.
– Está maluco?... É claro que me importo. Com vocês dois. Posso não correspoder como espera,
mas você é importante para mim, Ty. E nossas pequenas desavenças nada têm a ver com seu pai...
Todos gostamos dele. Meu pai soube?
– Meu pai não quis incomodar – Tyler desarmou-se – E também não foi nada novo. Apenas
problemas com a pressão e a glicemia. Ele desobedece as recomendações e come o que não deve,
daí fica mal.
– Foi por causa dele que não estava me esperando na saída da galeria dias atrás, não foi?
– Foi – admitiu e acrescenteou. – E por causa dele que também a deixei sozinha com o padre
esquisito na manhã seguinte, lá na praia.
A moça imediatamente se lembrou de quando o fez jurar pela saúde do pai. Como raramente
acontecia, teve um vislumbre do quanto muitas vezes era cruel no trato com amigo de infância. Sendo
tomada por um remorso tardio, novamente ignorou o comentário.
– Devia ter me avisado... E ao meu pai também. Quem sabe um amigo não coloque um pouco de
juízo na cabeça de Spencer.
– Pode ser... – o rapaz concordou, olhando-a de soslaio, então mudou de assunto: – Por falar em
amigos que dão juízo, quando vai deixar de ir àquela espelunca de The Isle?
– Qualquer dia, Ty – ela retrucou incomodada. Jonathan estava muito perto.
– Qualquer dia não é uma boa data – ele replicou sem se importar com o evidente incômodo da
moça. – Não gosto de te ver lá, Fay... Muito menos quando aquele velho babão fica dando em cima
de você.
– Por favor, Tyler...
– Se gosta de mim como diz, pare, por favor – ele pediu, segurando-lhe as mãos.
– Sabe que não te dou liberdade para se meter na minha vida – Faith retrucou, séria.
– Eu te amo, Fay, e isso me dá o direito. Não aguento ver você se rebaixar daquela maneira.
– Não te dá direito coisa nenhuma. – Com um puxão Faith recolheu as mãos e se pôs de pé. Sua
voz mal passava de um sibilar baixo para que não chamasse a atenção dos homens no interior da
casa. – Se não aguenta, deixe de ir, oras.
– Sabe que não posso – disse Tyler já de pé. – Não vou te deixar sozinha naquele lugar.
– Eu me virava bem antes de você me descobrir e não tinha de ficar ouvindo sua ladainha.
– E é claro que não gosta, não é? – imitou-a no tom baixo e irritadiço. – A única ladainha que te
importa é do padre esquisito.
– Disse que não ia mais tocar nesse assunto – lembrou-o antes de lançar um olhar aflito em direção
à porta. Somente naquele instante se deu conta que não a fechou ao passar, apenas a tela de proteção.
– O que é? – ele perguntou depois de seguir-lhe o olhar. – Tem medo do padreco ouvir? Não se
preocupe, ele vai gostar. Não sei por que não têm ido à praia, mas sei que ainda tem interesse em
você... Basta ver como te olha, o hipócrita!
– Acho que nossa conversa termina aqui, Tyler. Agora me dê licença.
Sem esperar, a moça voltou para junto de Jonathan. Descobriu-o sozinho, a olhar o corte
parcialmente costurado. Ainda ansiosa com a briga recente, a moça rogou para que o fato de ele não
olhá-la nada tivesse a ver com sua saída. Assistindo a análise minuciosa que Jonathan fazia na
própria palma, Faith tentou se acalmar.
Tyler entrou quase em seguida e, depois de bater a porta, seguiu para o corredor que o levaria aos
quarto, sem dirigir uma única palavra a nenhum dos dois. Faith ainda olhava na direção, quando
Spencer surgiu, vindo no sentido contrário. Ao se aproximar da cama, falou primeiramente com seu
paciente:
– Desculpe-me por deixá-lo. Agora me dê sua mão. – Quando Jonathan o atendeu, sem nada
comentar, Spencer olhou para Faith rapidamente. – Se desentereram de novo?
– Não – negou sem convicção alguma.
Enquanto o pai do rapaz sorria complacente sem dar importanta às desavenças, Jonathan por fim a
encarou. Ao perceber haver certo rancor nos olhos escurecidos, Faith estremeceu. Antes de temê-lo,
controlou-se para não sorrir. A expressão de jonathan se assemelhava a de Tyler, quando sentia
ciúmes. Sustentando o olhar enraivecido, ela cada vez mais se convencia de que não estava longe da
verdade. Não era loucura, afinal!
– Vocês não têm jeito... – Spencer comentou intimamente, ainda sorrindo. – Para mim, sempre foi
certo que se acertassem um dia. Nem pude acreditar quando Ty me contou sobre seu namoro com o
Shaw.
Nesse momento Jonathan desviou os olhos dos dela para depositar toda sua atenção ao arremate do
último ponto dado em sua palma. Tentando não se deixar levar pelas aparências, mesmo evidentes,
ela confirmou o comentário:
– Pois é, estou com Peter... Eu e Tyler somos apenas amigos, sabe disso. Praticamente irmãos, por
isso brigamos mesmo nos gostando tanto.
– Se é como diz... – Spencer replicou enquanto cobria com esparadrapo o ferimento já fechado
com gaze. – Seja como for, sabe que eu faria gosto se namorassem.
– Sei, sim... – ela respondeu sem desviar o olhar do rosto de Jonathan que no momento carregava
uma expressão de calculada indiferença. Se aquela não fosse sua confirmação, nada mais seria.
Animada com a possibilidade de ter seu milagre, acrescentou:
– Mas o futuro a Deus pertence! – Voltou-se para Jonathan, perguntou: – Não é isso, senhor padre?
– Precisamente. – Foi a resposta seca.
– Então vamos aguardar pelo o que o futuro nos reserva, não é mesmo? – Spencer indagou,
sorrindo amigavelmente, sempre alheio ao clima à sua volta. Dirigindo-se exclusivamente ao padre,
recomendou: – Mantenha o ferimento sempre limpo e seco. E volte no final da semana que vem para
que eu possa retirar os pontos.
– Combinado – Jonathan disse se pondo de pé. – Bom, obrigada senhor Mills. Quanto lhe devo
pelo trabalho?
– Absolutamente nada – disse levemente ofendido. – Faço por gosto. E pode me chamar de
Spencer.
– Então muito obrigado, Spencer – agradeceu, entendendo a mão. Para a moça, mal contendo sua
ansiedade, chamou: – Vamos?
Faith assentiu, antes de se voltar para Spencer e abraçá-lo.
– Obrigada mais uma vez. Até breve.
– Tchau, Fay... Diga a Elliot que venha para uma visita – recomendou ao se afastar.
– Antes de partir ele virá, não se preocupe. Se não o fez ainda é porque não teve tempo. Tem todos
os pequenos problemas da comunidade, a cooperativa e a reforma de seu barco.
– Realmente está muito ocupado. Qualquer coisa peço a Tyler que me leve até sua casa.
– Faça isso. Papai iria adorar – ela o encorajou, ignorando o discreto pigarro do padre ao seu
lado. Voltando-se para ele anunciou: – Podemos ir, senhor.
– Ótimo!
Jonathan contornou o jipe e se acomodou no assento do carona. Não fosse a anestesia aplicada no
ferimento, teria suportado a dor e assumido a direção de seu carro. Estava verdadeiramente
agradecido ao homem que se mostrou competente em seu serviço, mas desejava sair daquela parte da
vila o quanto antes. A cada minuto ficava insustentável manter as aparências, pois sua mente dava
voltas, repassando as palavras sussuradas que ouvira.
Não fora certo, mas, ao ser deixado sozinho, não resistou à curiosidade e espreitou a porta para
escutar o que diziam em vozes baixas, íntimas. Nunca costumava ser invasivo, entretanto, uma vez
que a moça lhe despertava sensações contraditórias, tinha todo o direito de saber tudo ao seu
respeito. O problema foi não antever que o conteúdo da conversa iria inquietá-lo e intrigá-lo ainda
mais. Exasperado com as declarações, quebrou o silêncio, na tentativa de calar sua mente.
– Gostei de Spencer.
– Todos gostam.
Olhando pela janela, Jonathan passou a mão sã pelos cabelos, nervoso. Converas fiadas não o
ajudariam, então cuspiu o que o entalava:
– Sempre se desentende com seu... amigo?
– Sempre que ele me enche a paciência – ela disse, sem olhá-lo.
– Então acontece com frequência, pois essa não é a primeira vez que os vejo exaltados.
– Acredito que a irritação faça parte de relacionamentos onde um não retribui o sentimento com a
mesma intensidade que o outro espera. – Faith foi didática.
A irritação também se fazia presente entre eles dois, Jonathan reconheceu, contrafeito.
– E quem não corresponde quem? – perguntou sério, afinal ouviu os dois se declararem. Faith
pareceu pensar nos segundos que demorou a dizer ainda sem se voltar:
– Eu não correspondo. Sempre soube que Ty gosta de mim e nunca fiz nada a respeito. Talvez por
gostar muito dele, mas não da mesma maneira. Posso dizer que o amo, mas é mesmo como um irmão.
A resposta não trouxe quietude ao peito do jovem padre. Queria que ela o olhasse, somente assim
saberia se dizia a verdade, quando a tensão demonstrada indicava que mentia. E tambem havia as
palavras do rapaz gotejando em sua cabeça. Ninguém insistia sem encorajamentos. Ao pensamento,
lembrou-se das palavras de Nicole.
– E seu namorado não se importa? – perguntou sem deixar de olhá-la. Para sua surpresa ela lhe
devolveu outra pergunta depois de encará-lo rapidamente.
– Se o senhor não fosse padre, e tivesse uma namorada na mesma situação, se importaria?
Nunca namorou, logo, não tinha parâmetros. Contudo sabia que o ressentimento sentido toda vez
que a sabia na companhia de outros homens, era o sentimento citado em sua forma primitiva.
Ocultando seu azedume, falou:
– Essa pergunta é totalmente inadequada. Não costumo dispensar tempo com deduções sobre
determinado comportamente diante de fatos que jamais ocorrerão.
– Então me desculpe a ousadia – ela disse sem parecer sentir. – E, não, Peter não se importa com
quem converso ou... se me interesso por outra pessoa.
Não era ingênuo para ignorar o real teor do comentário. Talvez devesse se congratular por instigá-
la quando, há menos de uma hora, Faith se mostrava disposta a deixá-lo em paz. Estúpido!
Não a olhava, resistindo à tentação de tecer mais comentários descabidos antes que a conversa
tomasse caminhos perigosos, quando a ouviu propor:
– Acho que seria melhor mudarmos de assunto.
– Acho que seria melhor contemplarmos o silêncio – retrucou, soturnamente.
Boa escolha, Faith pensou e assentiu. Não poderia sair se declarando só porque Jonathan mal
ocultava seu ciúme. Ainda era preciso lhe dar espaço para que admitisse o óbvio e viesse a ela.
Permaneceram absortos, cada qual em seu próprio pensamento, até chegarem à única praça de Sin
Bay. Tão logo estacionou o jipe no exato local de onde o tirou, Faith retirou a chave da ignição e a
estendeu a Jonathan, sorrindo com resignação.
– Está entregue e, como anunciado, não te mordi.
– Obrigado, por ajudar! – Sem receber as chaves, Jonathan deixou gracejo mentiroso passar. Era
constantemente mordido por ela.
– Faria o mesmo por qualquer um, senhor. – Como se desejasse fazer exatamente o oposto,
anunciou sua partida: – Bom, tenho de correr. Ainda preciso me preparar para ir a Wells. Não posso
perder o ônibus.
– Se quiser, pode ficar com meu jipe enquanto seu pai ocupa a pick up. – Jonathan se ouviu fazer o
oferecimento descabido. – Ele fica parado por dias e você provou que dirige bem.
Faith o olhou demoradamente então desviou os olhos para algum ponto além de seu rosto antes de
novamente encará-lo. Com um respirar cansado, declinou ao oferecimento.
– Obrigada pela confiança, mas não seria conveniente, senhor. Assim como ficarmos sentados aqui
mais do que o normal – disse a olhar para o mesmo ponto de antes.
Discretamente Jonathan se voltou na mesma direção. Deparou-se com alguns dos trabalhadores a
relancear olhares para seu jipe. Aborrecido, liberando uma imprecação inaudível, Jonathan abriu a
porta e saltou. Faith seguiu-lhe o exemplo e, ao contornar a frente do veículo, acenou, sorrindente,
para quem os assistia como que para quebrar o clima intimista da conversa estendida no interior do
carro.
Ainda mais irritado por não dominar seus sentimentos diante de tal sorriso falsamente
despretensioso, Jonathan a viu se voltar para lhe entregar a chave do jipe.
– Aqui está, senhor. Estimo as melhoras – disse como despedida, acenou e fez menção de partir,
contudo recuou e, encarando-o, segredou: – Sabe?... Por um tempo pensei que o entendia e vi que me
enganei... Tentei novamente, sem sucesso... Talvez fosse o caso de arriscar uma terceira vez, mas
hoje percebi que a falta de compreensão não está em mim. Quem precisa te entender e o senhor.
Ao se afastar, recomendou alto o bastante para que os curiosos a ouvissem:
– Cuide bem dessa mão e... tenha um bom dia, padre.
Capítulo Trinta e Cinco

Jonathan permaneceu paralisado pelas derradeiras palavras de Faith. Fora chocante ouvir dela a
verdade a ser cumprida, pois era fato que, além de se compreender, deveria se conhecer. Contudo,
nunca esperou que alguém tão jovem pudesse lhe desvendar a alma. Tal feito somente foi possível
por sempre se desnudar diante dela. De que adiantava assumir ares superiores quando bastava tê-la
perto para se trocar por um bisbilhoteiro ressentido, com o pretenso direito de saber ou cobrar?
Nada admirável que a confundisse com sua própria confusão. Enquanto via Faith se afastar, a
abanar seu rabo de cavalo acintoso, considerou que conhecer-se fosse a chave para ter todas as
respostas e pudesse finalmente viver em paz sem ela... Ou com ela?
– Está melhor, senhor? – perguntou um dos trabalhadores, livrando-o do assombro ao último
pensamento.
– Sim, estou. Obrigado! – disse áereo. O homem demonstrou que daria continuidadde à conversa,
porém ambos tinham o que fazer. – Se me der licença.
– Tem toda, senhor. – Ouviu já à entrada da igreja.
Jonathan atravessou a nave central sem perceber o som de madeira sendo trabalhada. Apenas
ouvia seu próprio pensamento. Chegando à sacristia, cogitou se ocupar, contudo tinha plena
consciência de que não conseguiria empregar sua atenção a nada que não fosse a conversa recente ou
sua conclusão conseguinte. Impaciente, tomou o caminho de sua casa. Acreditou que encontraria o
padrinho a esperá-lo com um sermão preparado por ter saído com Faith, porém, para sua surpresa, a
sala estava deserta.
Tanto melhor, pensou. Todavia, no segundo seguinte se recriminou. Carlo ainda se recuperava e
talvez estivesse indisposto. Além de confuso, tornava-se egoísta. Preocupado, rumou para o
corredor. Subitamente estacou ao ouvir vozes sussurradas virem do quarto do padrinho. Parado onde
estava, sem voltar a ouvir um único som, acreditou ter imaginado as vozes, ainda mais quando uma
delas era feminina.
Jonathan não esperou um minuto inteiro antes de caminhar, cauteloso, até a porta fechada do quarto
de Carlo. Ouviu apenas silêncio. Ridicularizava sua impressão de haver uma mulher à portas
fechadas com seu tio, quando a ouviu nítida.
– Eu não deveria ter vindo aqui. Alguém poderia ter aparecido.
Grace Campbell? O nome espocou nas paredes de seu cérebro. Com a surpresa, todas as suas
perturbações foram esquecidas. Incrédulo, Jonathan colocou a mão na maçaneta. Estava prestes a
girá-la, porém a voz tranquilizadora de Carlo o deteve.
– A Sra. Williams me avisou que só viria à tarde e como você me disse, Jonathan foi até Wells.
Ninguém além deles dois vem aqui.
Paralisado junto a porta, Jonathan procurava em sua mente por muitos motivos irrelevantes que
colocassem Grace naquele quarto, contudo apenas um lhe ocorria, insólito para sequer ser cogitado.
Ainda repassava mentalmente todas as razões lógicas para refutar tal absurdo, quando Grace
retrucou, preocupada:
– Ainda assim não acho certo. De que adiantaria todo o cuidado que sempre tivemos para sermos
flagrados em atitude tão suspeita?
Caso fosse possível restar alguma dúvida quanto ao que aconteceu naquele quarto, tal
possibilidade se esvaiu. E também ficou claro que a libertinagem não se dava pela primeira vez.
Ainda sem saber como proceder, Jonathan se manteve junto à porta.
– Acho que está certa. É melhor que se vá então – Carlo disse em tom resignado. Nesse momento
Jonathan saiu de sua inércia. Não para confrontá-los, sim se esconder em seu quarto como se fosse
ele o infrator.
– E agora – Grace indagou já no corredor –, como saio?
– Vou levá-la pelo corredor que leva à igreja. Não se lembrarão de tê-la visto entrar, mas caberá a
dúvida e chamará mesmo a atenção do que sair sozinha de minha casa.
As últimas palavras chegaram de muito longe aos ouvidos de Jonathan. Provavelmente já ditas
quando acessavam a sala. Suando frio, sabendo apenas que não queria ser visto pelo padrinho,
deixou o quarto e cautelosamente seguiu os passos dos... O que eram? Ele não conseguia sequer
imaginar a denominação aos dois embusteiros.
Vendo o caminho livre, Jonathan rumou a passos largos até a saída. Girava a maçaneta que o
libertaria da cena inimaginável, quando ouviu atrás de si:
– Já está de volta? – Sem responder, apenas acalmando um eriçar involutário, Jonathan se voltou e
encarou o tio. Ainda não sabia o que diria, então nada falou. Carlo perscrutava-lhe o rosto,
levemente lívido, mas impassível em sua expressão. – Ou estava saindo?
– Como poderia estar saindo? – obrigou-se a dizer.
– Não sei... – Carlo ainda o estudava. – Está estranho...
– Minha mão dói – retrucou rapidamente.
– Entendo... – falou o tio, chegando mais perto. – O que houve afinal?
– Foi um acidente – começou, sentindo um estranho turbilhão se formar em seu estômago enquanto
mirava o rosto daquele que, na verdade, não conhecia de todo. – Cortei minha mão e Faith me
ajudou. – Jonathan sentiu um prazer viperino em citar o nome.
– Muito atencioso da parte dela – Carlo comentou cautelosamente. – E ela o levou a Wells? Pensei
que fosse demorar mais para ser atendido.
– Não chegamos a ir até lá – explicou. – Faith me levou até a casa de um antigo enfermeiro que
sempre cuida desses pequenos acidentes.
– Acho que já ouvi falar dele... Talvez pela Sra. Williams – disse Carlo, alheio antes de
acrescentar: – Mas acha que foi seguro?
Parecia verdadeiramente preocupado, mas Jonathan não tinha mais como saber, tinha?
– O serviço foi limpo – assegurou secamente mesmo que não fosse sua intenção. Algo em seu
estômago realmente incomodava. – E como disse, o corte dói então vou me recolher por alguns
minutos. Será que poderia continuar a supervisionar os trabalhadores?
– Poderia – Carlo aquiesceu. – Descanse o quanto quiser. – Antes que o afilhado se fosse,
perguntou: – Faith lhe disse que a senhorita Campbell esteve aqui, não?
Ouvir o nome da moça, livre da usual entonação depreciativa, revoltou-o, mas ainda manteve seu
desagrado oculto pela mesma indiferença estudada de seu tio.
– Faith me disse. O que tem isso demais?
– Nada... – O velho padre deu de ombros. – Só queria lhe dizer que ela se ofereceu para nos trazer
o almoço já que a Sra. Williams não virá prepará-lo.
– Agradeça-lhe por mim e deixe minha parte na cozinha. Por ora, estou sem fome... Com licença.
Sem esperar a liberação, que veio muito depois de ter passado pelo padrinho, Jonathan se trancou
em seu quarto. Impaciente, vagou de um lado ao outro, tentando digerir a novidade. Carlo e Grace,
juntos!
Seu tio leiloou seu piquenique particular e deu-lhe o dia de folga. Para que nenhum outro o fizesse,
como ele próprio, quando arrematou a faxina da moça? O padrinho era sempre intratável com todos,
menos com a dona da lanchonete. A afinidade fora sentida já no primeiro jantar na casa dos Greens.
Tudo coincidência ou...
Jonathan subitamente estacou. Seria possível que sua ida para Sin Bay tivesse sido sorrateiramente
tramada por Carlo junto aos seus amigos bem colocados na diocese com o propósito particular de se
juntar a uma antiga...? Ele ainda não conseguia nomear o que estava escrito em tinta permanente bem
no meio de sua testa.
Fora estúpido em não ver. Acaso não fora o próprio padrinho quem o alertou que padres não
tinham amigas? Como justamente ele teria uma tão íntima? Por esse motivo o número dela constava
num celular secreto. Ao juntar todos os pontos, aquilo que revirava seu estômago ganhou força,
obrigando-o a urrar de revolta extrema.
– Hipócrita! – bradou.
Seu padrinho, aquele perante o qual se sentia diminuído por não lhe seguir o exemplo de retidão e
sobriedade, era tão hipócrita quantos tantos outros. Igual ou pior do que sacerdotes pederastas e
pedófilos, que infestavam as sacristias, pois estes, talvez enganassem apenas a si próprios; ou aos
leigos ignorantes que sequer sonhariam com o fogo infernal que os faziam arder sob suas batinas.
No dia do juízo todos seriam julgados, mas, até lá, não ludibriariam um ente dito querido com sua
perfídia. Ente esse que era consumido pelo mesmo fogo abrasador. Que se martirizava por se
considerar uma fraude e era obrigado a sufocar o que sentia diante de olhos reprovadores e palavras
restritivas. Carlo não tinha o direito de lhe negar uma saída, quando ele mesmo se valia dela.
Jonathan ainda não sabia o que faria em relação ao seu padrinho, mas soube imediatamente o que
faria por si. Havia todo o seu senso de dever e seus votos – sua maldita consciência que lhe cobraria
ações futuras –, mas na verdade não era menos pérfido que Carlo. E já que também seria julgado
pelos erros que seu tio indigno não possuía moral para absolver após sua confissão, valer-se-ia dos
mesmos métodos.
Tinha alguém à sua disposição para livrá-lo da agonia. Alguém da mesma cepa apodrecida; tão
amoral quanto todos os envolvidos naquela trama. Alguém muito bem disposta a ser o que Grace
Campbell era para o velho padre...
– Una amante!
A palavra libertadora, trouxe um sorriso aos lábios de Jonathan. Sim... Se tantos tinham o melhor
dos dois mundos, ele também o teria. Já estava irremediavelmente conspurcado para se privar do que
há muito desejava. Lidaria com seu tio farsante, depois... Conhecer-se-ia, depois... E de preferência
entre os braços e pernas da caçula perdida dos Greens. No momento, pouco lhe importava que
fizesse parte de uma lista e se deixaria usar como ela bem o quisesse. Seria uma troca prazerosa sem
compromissos.
Tomada a decisão, as paredes de seu quarto o sufocaram. Nem ao menos sentia o leve latejar em
sua mão. Precisava de movimento. Enquanto voltava à igreja, avaliava quanta dor poderia ter sido
evitada se tivesse sabido antes, mas recuperaria o tempo perdido. Agora não via o momento de
colocar sua decisão em prática.
Ao estar com Faith, a obrigaria a tomar-lhe a bênção. Talvez afagasse seus cabelos enquanto os
lábios macios estivessem em seus dedos para demonstrar que as provocações seriam
correspondidas. Ante a expectativa, seu corpo galvanizou-se.
Ao acessar a igreja, sentiu um leve desconforto. Como se toda instituição que representava o
condenasse, mas se manteve firme no propósito. O que não é visto não é sentido. Desde que fosse tão
dissimulado quanto aquele que lhe cobrava boa conduta e ocultasse sua concupiscência sob a fachada
de sacerdote exemplar, não mais rolaria em sua cama ou se satisfaria mecanicamente. Seria o arranjo
perfeito para todos.
– Sente-se melhor? – Carlo perguntou, encarando-o, assim que o viu entrar no salão.
– Perfeitamente – disse apenas.
– Seu almoço está sobre o fogão caso tenha fome.
– Obrigado, mas continuo sem apetite. – Encarando o padrinho, liberou-o. – Pode ir descansar...
Ainda não deve se exceder.
– Farei isso... Até mais tarde.
– Até.
Jonathan o seguiu com o olhar até que desaparecesse na porta da sacristia. Se não tivesse ouvido
as vozes, jamais acreditaria na maledicência de quem visse alertá-lo. O velho padre seguiu
alquebrado, cabisbaixo; a imagem da convalescência. Tal desfaçatez só se era adquirida com anos de
prática, mas, daquele dia em diante, não mais o enganariam.
Ainda saboreando o gosto amargo da decepção, Jonathan se voltou ao trabalhador e puxou um
assunto qualquer. Era preciso distrair-se. Naquele dia não mais veria Faith e nem tinha perspectiva
de quando estariam juntos novamente. Àquela hora ela já teria ido para Wells. Teria de ser paciente.
Ou criar suas próprias oportunidades?

O caminho de volta a Sin Bay fora feito em silêncio no interior do velho Windstar. Faith deveria
recusar as caronas noturnas, mas simplesmente não se animava a esperar pelo ônibus, quando o
amigo se encontrava à disposição. Queria chegar à sua casa, quando poderia tentar se distrair durante
o jantar familiar antes de se recolher em seu quarto. Onde, mais uma noite, iria dormir sem entender
as atitudes do padre bipolar.
– Pode me deixar aqui, Ty? – ela pediu antes de chegarem a uma quadra da praça.
– Agora o padre esquisito não pode nos ver juntos? – o rapaz indagou de má vontade.
– De novo não, Ty, por favor – pediu cansada. – Quero apenas andar um pouco até minha casa.
– Está bem então – Tyler aquiesceu, já estacionando o carro. – Vamos nos ver amanhã?
Reprimindo um sorriso debochado, ela saltou e, depois de fechar a porta, disse pela janela:
– Mais fácil seria perguntar se não nos veremos amanhã. Obrigada pela carona, Tyler.
– Disponha sempre, Fay – ele falou e partiu.
Endireitando os ombros, Faith aspirou o ar da noite antes de se colocar a caminho de casa. Passou
muito rígida pela igreja, não querendo correr o risco de ver o padre depois das coisas que lhe disse.
Não se arrependia, mas talvez devesse ter ficado calada para não distanciá-los mais.
Precisava que acontecesse o posto. Tanto que, antes de entrar em sua casa, acreditou que seus
ouvidos estivessem lhe pregando uma peça. Contudo, ao se deparar com sua família reunida na sala
diante do visitante que somente via os ombros cobertos pela roupa preta e os cabelos cor de areia,
soube que não se tratava de ilusão.
O padre estava na sua casa!
– Até que enfim chegou, Faith! – exclamou Constance. Nesse momento todos olharam para ela.
Jonathan, inclusive, que se voltou devagar e apoiou o braço no espaldar do sofá.
– Boa noite – ele disse, mas ela ouviu claramente o cumprimento em outra língua, mesmo que o
Jonathan a encarasse muito sério.
– Boa – ouviu-se murmurar enquanto forçava suas pernas a levá-la até as escadas. Não entendia o
que acontecia ali. Parecia que esperavam por ela e lhe ocorreu que Jonathan tivesse finalmente a
delatado. Talvez sua ousadia matutina tivesse sido a gota que faltava para transbordar a paciência do
padre. Precisava ganhar tempo. – Vou deixar minhas coisas no quarto e já volto – anunciou a todos.
– Não demore – disse seu pai. – Estávamos apenas lhe esperando.
– Sim, senhor – ela exalou antes de subir dignamente. Já no quarto cogitou escapulir pela varanda.
Não que temesse uma reprimenda do pai ou receber a condenação de toda sua família. Apenas não
estava disposta a ser repreendida perante seu acusador. Ou talvez, a visita nada tivesse a ver com
ela. Como saberia se não se arriscasse?
– Faith? – Ela teve um sobressalto ao ouvir a voz da irmã que abria a porta do quarto.
– O quê?
– Por que a demora? Papai pediu que viesse te apressar.
– Mas eu acabei de subir... – exclamou incomodada com a urgência. Estava perdida!
– Sério! O que há com você? – Nicole a encarou incrédula. – Está aqui há dez minutos. Disse que
só viria deixar suas coisas. Sabe que mamãe odeia atrasar as refeições.
– Estão me esperando para o jantar? – indagou cautelosa.
– E para o que mais seria? – Nicole a avaliou.
Tudo aquilo era muito estranho, mas ela desistiu de entender sozinha. Fugas estavam fora de
cogitação então apenas sinalizou para que a irmã seguisse à sua frente, sem respondê-la. Nicole
ainda lhe lançou um olhar inquiridor, porém logo deixou o quarto. Faith seguiu-a um tanto afastada
até chegarem à sala de jantar onde todos já ocupavam seus lugares.
– O que houve? – Elliot indagou com seriedade.
– Eu... – Ver o lugar vago ao lado do padre que não desprendia os olhos de seu rosto, turvou-lhe os
pensamentos. Não encontrava uma desculpa plausível, então se valeu de uma já rotineira, que
agradaria ao pai. – Estava falando com Peter.
Ao se calar, correu os olhos para Jonathan. Pôde ver um brilho escurecido cruzar os límpidos
olhos azuis antes de desviar os seus. Não se atreveu a encarar a irmã que sabia de sua mentira.
– Entendo. Faz muito bem em dar atenção ao seu namorado, agora vá ajudar sua mãe – disse Elliot
mais brando. Sem nada acrescentar, odiando-se por se sentir acovardada ante a visita inesperada,
Faith atendeu ao pai.
– O que o padre faz aqui? – perguntou a Constance, sem rodeios.
– Seu pai o convidou para o jantar. Parece que estavam conversavam na praça e o padre Jonathan
perguntou sobre a cooperativa. Você sabe como seu pai adora falar sobre como ela mudou a vida de
todos aqui... Não tiveram como encerrar a conversa. Estão nela desde que chegaram – arrematou com
um sorriso.
Tudo muito estranho, Faith pensou longe de se sentir tranquila. Não sabia o que entender com
aquela aproximação.
– Papai me mandou te ajudar – informou, sem desligar de suas dúvidas. – O que faço?
Constance lhe pediu que levasse duas vasilhas e, depois de pegar as outras, seguiu-a até a sala.
Faith depositou o purê de batatas e a carne refogada sobre a mesa antes de assumir seu lugar.
Jonathan sequer a olhava. Conversava com Elliot ainda sobre a cooperativa e mesmo sem lhe
dispensar atenção, fazia-a estremecer.
Como Jonathan não se voltou ao se sentar, Faith acreditou que ele somente seguia sua própria
determinação em manter as aparências. Não estava em sua casa por qualquer motivo especial. Talvez
não tenha conseguido fugir do convite súbito de seu pai. Chegar à tal conclusão tranquilizou-a, mas
não de todo. Estava segura, porém ao lado do homem que amava.
– Já que estão todos à mesa – disse Elliot –, poderia fazer a oração, senhor?
Ainda sem dispensar atenção a Faith, Jonathan fez um breve agradecimento pela reunião familiar e
pelo alimento, estranhamente à vontade a despeito da última vez que esteve àquela mesa. Depois que
decidira ter Faith para si, a maior parte de suas contestações e distúrbios formam instantaneamente
atenuados. Sentia-se leve, a flutuar ao sabor das ondas depois de nadar arduamente contra a maré.
Talvez a falsidade estivesse no sangue dos De Ciello e se sentisse bem por finalmente ser o que
era. Sendo assim, ao terminar sua oração, para Jonathan pareceu natural arrumar o guardanapo sobre
o colo e, no processo trabalhoso de deixá-lo bem estendido, correr a mão ferida ao longo da coxa
roliça da moça ao seu lado.
A colher que Faith segurava para pegar o purê escorregou de suas mãos no momento exato que
sentiu o carinho na perna que seu vestido deixava exposta. O que fora aquilo?
– Faith?! – seu pai ralhou, encarando-a com o cenho franzido, após o acidente ruidoso. Todos
olharam em sua direção interrogativamente. Inclusive o homem ao seu lado.
– Peguei a colher de mau jeito – disse em tom de escusa, evitando olhar para Jonathan ou qualquer
outro em especial. Trêmula, dirigiu-se ao padre: – Me passe seu prato, senhor...
– Tome mais cuidado – a mãe recomendou enquanto Jonathan lhe dizia:
– Vou dispensar o purê se não se importa, mas aceito a carne. – Como ela mesma fizera em outra
ocasião, recostou sua perna à dela. – Parece-me apetitosa...
Faith respirou profundamente, apenas deixando que os calafrios de prazer corressem seu corpo,
sem nada entender. O que tinha acontecido? Não que não estivesse gostando, mas aquele não parecia
ser ele. Quando Jonathan decretou o fim do afastamento e começou a se valer de duplo sentido para
provocá-la?
– E está, senhor – Elliot assegurou. – Minha esposa é uma excelente cozinheira.
– Obrigada, querido – ela agradeceu, envaidecida.
Faith mal os ouvia. Tentava servir a Jonathan enquanto Nicole servia ao pai. A moça apenas
percebia todos à sua volta, muito consciente da perna colada na sua. Ao depositar o prato diante de
Jonathan, seus olhares se cruzaram por um breve instante, porém o bastante para que ela visse o olhar
de mar escurecido, e revolto. Voltando a atenção ao próprio prato, dispôs o mínimo de comida, pois
tinha certeza de que nem mesmo o pouco lhe desceria pela garganta.
Jonathan relutava em não sorrir ante o evidente embaraço daquela que sempre teve o poder de
deixá-lo da mesma forma. Havia um prazer malfazejo em fazê-la provar do próprio veneno.
– E orgulho-me em dizer que ela soube educar nossas meninas... Nick e Faith serão tão boas donas
de casa quanto a mãe – Elliot prosseguiu, alheio ao contato de pernas sob sua mesa.
– Tenho certeza de que serão – Jonathan retrucou, após engolir um bocado de comida. Depois de
elogiar o sabor da carne à cozinheira, perguntou: – Deve estar igualmente orgulhoso por todos os
seus filhos estarem encaminhados e comprometidos.
– Orgulhoso, sim, mas somente ficarei tranquilo quando cada qual estiver em seu devido lar.
– E todos ficarão aqui em Sin Bay? – indagou, tendo de modular sua voz ao sentir o pé de Faith
sobre o seu. Ela finalmente reagia!
Decididamente não o entendia nem sabia onde queria chegar com aquela conversa, mas se ele
estava na fase da aproximação – mesmo que antes de um novo recuo – ela aproveitaria.
– Apenas Mason, pois é pescador como eu. Planejo dar-lhe um barco próprio assim receberá parte
do lucro, não apenas receberá como meu funcionário. Nicole vai para Wells, pois é onde seu marido
trabalha. Agora, Faith, eu ainda não sei... – disse incerto. – Seu namoro está recente, mas pelo o que
vejo, caminha para algo sério.
– É mesmo?
Faith olhou diretamente para a irmã, mas a pergunta fora feita pelo homem ao seu lado. A dor
contida na expressão de Nicole a incomodava. Não sabia o que tinha trazido Jonathan de volta – se
real interesse como Kristina disse que aconteceria ou por tesão como sugeria Helen. Não tinha como
saber se o comentário do pai o afetava. Então, foi apenas pela irmã que falou:
– Como disse, papai... Começamos agora. Ainda é cedo para pensarmos nessas coisas.
– Seja como for – Jonathan prosseguiu –, longe ou perto, o importante é que todos sejam felizes...
Acredita que seus filhos o serão?
– Como já lhe disse, sou um homem simples, mas também sou prático... Não acredito que a
felicidade bata à porta de uma casa com mesa vazia. Prefiro ver minhas filhas bem cuidadas por
homens que as respeitem e as protejam. Felicidade vem com o tempo.
– Louvável, mas acredito que não ficaria satisfeito vendo qualquer um de seus filhos presos em
casamentos infelizes, mesmo que seus cônjuges nada lhes deixasse faltar – Jonathan retrucou,
ignorando o olhar suplicante de Nicole e muito satisfeito com o carinho excitante que recebia em seu
tornozelo.
– Todos parecem satisfeitos com seus pares, senhor – o dono da casa replicou, sério. – E não
entendo como chegamos a essa conversa... Acaso alguém foi se queixar em sua igreja?
– Em absoluto – Jonathan negou veemente. Não se sentia um mentiroso, afinal Nicole estava sob a
proteção do sigilo. – Também não sei como viemos parar aqui... Apenas puxei um assunto qualquer.
Desculpe-me se o aborreci.
Todos mergulharam em um silêncio pesado após o incidente, mas Jonathan não se importou.
Acreditava ter conhecido o capitão Green um pouco mais e até entendia o receio de Nicole em
enfrentá-lo, como também entendia os embustes de Faith. Seu pai jamais admitiria que ela ficasse
com Tyler por sua precária condição financeira. Particularmente gostava que fosse assim. Estava
decidido a fazer dela sua amante, mas não se animava a dividi-la.
Como Elliot, Faith não entendeu o que levou Jonathan ao tema. Apenas podia supor que fora na
tentativa de ajudar sua irmã de alguma maneira. Ele não conhecia o velho capitão!
Faith esperava que Nicole reagisse, mas tinha plena consciência de que sair vitoriosa lhe
custariam vários aborrecimentos, muitas brigas que talvez resultassem em rompimento familiar.
Assim como ela mesma, quando se recusasse a casar com alguém do agrado de seu pai para viver um
romance secreto com um padre.
Seria isso que Jonathan lhe propunha ao disfarçadamente apertar sua coxa sempre que tinha a
chance?
– Ah! – Elliot exclamou, chamando a atenção de todos. – Sei que o senhor está certo, mas
simplesmente não consigo ver de outra forma. Bom... Talvez... Se algum deles não estiver feliz eu
pudesse entender.
Imediatamente Faith encarou a irmã. Aquela era sua deixa, mas pôde ver nos olhos castanhos um
misto de esperança e, ainda, medo. Não poderia culpá-la. Aquele talvez minava boa parte de
qualquer rebeldia.
– Eu sugiro que mudemos de assunto – disse Constance. – Poderíamos voltar ao baile na
cooperativa.
– Lamento que o piquenique tenha atrapalhado de alguma forma – Jonathan comentou, aceitando a
dica e afastando sua perna da de Faith, pois sua crescente excitação ameaçava se tornar evidente. O
recado fora dado.
– Não atrapalhou – ela apressou-se em dizer. – Desculpe-me se foi essa a impressão que dei
anteriormente. Apenas quis dizer que ficaria apertado fazermos já nesse final de semana como teria
de ser... Mas o piquenique já foi uma reunião de todos que é o motivo principal de nos reunirmos
mensalmente.
Faith esteve tão envolvida que nem ao menos se lembrava do baile. E também não deu importância
às palavras da mãe ao se sentir deixada, depois que Jonathan se afastou.
– Então quando será? – ele perguntou, novamente contendo um sorriso ao ouvir um suspiro baixo,
vindo da moça ao seu lado.
– No primeiro sábado do próximo mês – Constance informou.
– Estou curioso em conhecê-los.
A dona de casa sorriu satisfeita e todos voltaram a comer em silêncio. Faith, ao contrário do que
imaginou, conseguiu ingerir tudo que colocou em seu prato. Nicole foi quem perdeu o apetite,
deixando quase tudo do pouco que se serviu. Jonathan pecou pela gula, pois repetiu o bocado de
carne após mais uma vez elogiar a cozinheira.
Todos já estavam acomodados na sala, a tomar o indefectível café brasileiro, quando Elliot
comentou:
– Eu me esqueci de perguntar sobre o que achou de Spencer Mills, senhor.
– Não demorei muito em sua casa, mas o achei interessante. Uma alma caridosa.
– Spencer a tem – Elliot retrucou. – Estou em falta com ele. É um de meus melhores amigos.
– Assim como o filho dele parece ser dos seus... – Jonathan acrescentou.
– Tyler é mais amigo de Faith... São como irmãos. Se gostam e se odeiam, se pode entender o que
eu digo.
Jonathan deveria vir com manual de instruções, Faith pensou, alarmada. Como não conseguira
informações por ela, vinha obtê-las através de seu pai?
– Sim, eu entendo. – Jonathan maldosamente considerou se naquele relacionamento cabia uma
conotação incestuosa. Subitamente raivoso ante a cegueira paterna, voltou-se à messalina ardilosa
que desejava ardentemente trazer para sua vida de forma tão pecaminosa quanto uma ligação entre
irmãos. – Eu gostaria de ver como anda a restauração da imagem – disse.
Instintivamente Faith correu os olhos para seu pai, já expectante por imaginar Jonathan em seu
pequeno atelier. Aquela nova postura, totalmente inesperada e contraditória, até mesmo para os
padrões bipolares, deixava-a nervosa. Era interessante, mas estranho não dominar a situação.
– Se a artista não se opor – o capitão os liberou – podem ir... Nesse meio tempo vou tentar contato
com alguns barcos que ainda estão no mar. Nicole pode ir com vocês – acrescentou.
Ansiosa, Faith agradeceu a companhia. Jonathan invadia sua área de segurança sem nem pedir
licença. Logo concluiu que era exatamente daquela forma que ele devesse ter se sentido das
primeiras vezes que o provocou; ela merecia.
– Bom, a artista não se importa. Vamos? – chamou, colocando-se de pé.
Jonathan e Nicole seguiram seu exemplo. Ela com cara de poucos amigos, ele claramente
reprimindo um sorriso. Ou assim pareceu. Como esperado, Jonathan ocupou boa parte de seu
modesto atelier. Ainda nervosa pela proximidade, Faith explicou diante da imagem.
– Não se assuste... Está assim toda remendada, mas quando eu pintar ficará como nova.
– Confio no seu trabalho – Jonathan retrucou, dando pouca importância ao santo livre de qualquer
tinta. Não queria encarar os olhos incolores que, com certeza, o reprovariam. Muito firme em seu
propósito, voltou sua atenção aos quadros que via nas paredes. Muitos deles parecidos com os que
enfeitavam a sala principal. – São todos seus?
– Sim... Todos – disse ela, seguindo seu o olhar.
– Eh... – Nicole chamou-lhes a atenção. – Eu poderia falar com o senhor amanhã à tarde? –
indagou para Jonathan.
– Evidente que sim – ele disse, aborrecido com a interrupção assim como estava com sua
presença.
– Então está combinado. Eu...
– Nick – Constance chamou da casa. – Seu celular está tocando...
– Eu já volto... – disse antes de sair não muito animada.
Instintivamente Faith a seguiu, pesarosa. Com certeza era um chamado de Joseph. Ao ver Nicole
entrar na sala, ela se voltou, exalando um suspiro sentido. Ao se deparar com Jonathan exatamente ao
seu lado, todo pesar se foi. Antes de ser prontamente capturada pela nuca e levada de encontro ao
peito sólido, ainda pôde ver o brilho escurecido e revoltoso nos olhos azuis. Então a boca masculina
estava na sua, a língua apressada forçando passagem por seus lábios que, sem demora, renderam-se.
Esquecida de onde estavam, Faith o abraçou. Estava saudosa daquela boca e recebia de bom grado
o abraço muito forte que ameaçava sufocá-la. Ainda não entendia, mas pouco lhe importava o que
acontecera entre a manhã e a noite que tivesse feito tudo mudar daquela forma. Apenas queria mais.
Jonathan, por sua vez, segurava-a firmemente pela nuca para que não escapasse, ignorando a dor
da mão ferida. Faith correspondia como esperado, então arriscou ousar e a atraiu para si, apertando-
lhe a nádega com a mão livre. Sentir os contornos do corpo delicado em toda sua extensão,
demandava esforço extremo para não liberar seus gemidos ou endurecer por completo.
– Faith! – a irmã chamou já no corredor, obrigando-os a se separarem bruscamente. Faith ainda
tentava domar o rubor e Jonathan já se posicionara diante de seus quadros, com as mãos nos bolsos,
quando Nicole assomou no limiar com um celular a mão. – O seu também tocou, Fay, mas parou
enquanto eu vinha... O que houve? – indagou ao reparar o desconcerto da irmã.
– Eu... – a moça começou após um pigarro, incapaz de olhar na direção do padre.
– Ela não aceita críticas – Jonathan veio em seu auxílio. – Disse-lhe que não gostei desse quadro e
ela ficou assim...
– Essa é a minha irmã caçula! – Nicole comentou cúmplice. – Todos têm de gostar de tudo
referente a ela.
– Ah, fique quieta Nick – Faith exclamou, tomando o celular da mão entendida para olhar o visor
enquanto se acalmava do beijo roubado e do quase flagrante. – Era o Peter.
Ainda que seu ciúme em relação ao moreno não fosse nada se comparado ao outro, Jonathan não
gostou de ouvir o nome nos lábios que acabara de beijar. Todavia, deveria habituar-se; seria de suma
importância para manter as aparências do tipo de relação que desejava manter com ela.
Aparentemente o rapaz ausente causou mal estar em todos os presentes, pois Jonathan se mostrou
satisfeito com a breve excursão ao atelier e Nicole aproveitou o ensejo para anunciar que subiria.
A Faith restou segui-los, lutando com as próprias pernas que nem bem se recuperaram do beijo,
novamente falhavam enquanto Jonathan, que seguia às suas costas, acariciava-lhe a nuca sem se
importar com Nicole bem diante deles.
O padre endoidou! Faith determinou. O corte em sua mão, de alguma forma, deve ter afetado um
parafuso de seu cérebro bipolar.
Faith gostava da mudança, mas ainda estava assustada com aquele ataque contínuo e sorrateiro.
Pela primeira vez depois do beijo roubado em seu atelier, ela o olhou diretamente, já na sala.
Jonathan tinha o rosto impassível, seus olhos estavam límpidos como nos momentos de calmaria. E
foi com a voz muito segura que anunciou sua partida.
– Agradeço a todos pela noite agradável e inesperada. Mas agora devo voltar para casa... Meu tio
ainda precisa de meus cuidados.
Faith sequer se lembrava de Carlo. Cogitou pedir informações, porém desistiu. Sabia que estava
bem e, no momento, o que mais a interessava era saber se seu pai a mandaria acompanhar Jonathan
até o portão.
– Eu fico feliz que tenha aceitado um convite assim, fora de hora – disse Elliot. – Agora venha,
vou acompanhá-lo...
Decepcionada, Faith fez coro com a irmã e a mãe durante a despedida e, conformando-se, viu
Jonathan sair com seu pai.
– Vou para meu quarto – Nicole anunciou. – Boa noite!
– Boa noite! – as duas mulheres responderam em uníssono. Faith queria seguir-lhe o exemplo, mas
não se animava a ficar perto da irmã quando seria preciso ligar para Peter. Tão logo esta saiu de seu
campo de visão, Faith se voltou para a mãe. – Precisa de ajuda na cozinha?
– Não querida – respondeu amável. – Arrumo tudo rapidinho.
– Então vou voltar ao meu atelier... Ainda está cedo.
Ouviu a concordância da mãe quando já cruzava a porta. Fazer o caminho de volta trouxe nova
moleza às suas pernas. Era como se Jonathan a seguisse e acarinhasse seu pescoço. Breves calafrios
corriam por sua coluna ao cruzar a porta do pequeno estúdio. Ainda sem acreditar no que acontecera
ali, ela parou no lugar exato onde foi beijada e tocou os lábios. De olhos fechados reviveu todas as
sensações contraditórias; medo e excitação.
O toque de seu celular lhe trouxe de volta ao presente. A contragosto o atendeu.
– Fale, Peter.
– Nossa! – ele exclamou. – Senti o frio daqui... O que há, Fay?
– Estou cansada – disse a verdade.
– Muito trabalho com as crianças?
– Muito trabalho lidar com pessoas complicadas – ela murmurou. – Já é bem ruim lidar com
minhas próprias esquisitices...
– Você está estranha – ele observou, preocupado. – É algo que queira dividir?
– É algo que eu preciso pensar... – Ao reconhecer que o amigo não entenderia nada de sua
conversa desconexa, disse: Me desculpe por não estar sendo a namorada ideal.
– Não tem de se desculpar. Eu só liguei por causa de nosso acordo. Nicole está por perto?
– Não, Peter... Ela já foi se deitar.
– Não estamos tendo muito avanço, não é mesmo? – Peter assumiu o mesmo tom derrotista.
– Ao que parece, meu amigo, nosso peixe não curte minhocas. – Como não queria entristecê-lo,
afinal o comentário não era de todo verdade, atalhou: – Mas sabemos que arrisca na direção do
anzol, então, nada de desânimo.
– Está certo – ele murmurou, nada convencido. – Boa noite, Fay!
– Boa noite! – ela exalou, duvidando que fosse.
Seria boa no tocante à recordação do beijo de Jonathan e dos toques furtivos que recebera durante
o jantar. No entanto, Faith antevia horas e horas de insônia incômoda que a faria rolar na cama,
tentando inutilmente entender o que de fato acontecera em sua casa.
Capítulo Trinta e Seis

Faith despertou alarmada. Como previsto, rolou na cama a maior parte da noite, cedendo ao sono
já no final da madrugada. Justificável que acordasse muito além do horário habitual. Não teria tempo
de ir à praia e, decididamente, não desperdiçaria seu pouco tempo com a restauração da imagem.
Como determinou antes de deitar, iria até Jonathan. Se não conseguia elucidar o ocorrido por si só,
perguntaria ao único que poderia explicá-lo.
De banho tomado, arrumada e bem disposta, seguiu para a cozinha. Descobriu-se sozinha em casa.
Nick estaria na lanchonete, seu pai e irmão no cais ou na cooperativa e sua mãe, talvez tivesse ido às
compras. Na verdade, não importava. Tanto melhor sair sem ter de dar satisfações. Após engolir uma
torrada com mel e tomar um pequeno gole de café morno, saiu atrás de entendimento.
A atividade ao redor da pequena igreja era intensa. Toda a lateral esquerda estava tomada pelos
andaimes, no qual alguns dos trabalhadores da cooperativa faziam um revezamento entre telhas
quebradas e sãs. Agradecendo que Jonathan não estivesse coordenando os trabalhos, cumprimentou
os conhecidos e entrou.
Sua intenção era seguir até a sacristia, onde comumente Jonathan se encontrava. Porém ao ver duas
moças ocuparem os poucos bancos que ainda não tinham sido lixados, soube onde ele estaria. Era dia
de confissão. Impaciente demais para esperar sentada como todas as outras, ela caminhou até a
lateral onde parte dos bancos era restaurada, na tentativa de se distrai até que pudesse conversar com
o confessor.
Alheio à presença em sua igreja, o jovem padre ouvia mais um dos tantos relatos inconsistentes. Se
fosse possível, organizaria uma confissão conjunta e, sem ouvi-las, passaria uma penitência branda e
absorveria a todas de uma só vez. Estava intolerante e faltoso com seu compromisso, mas
simplesmente não conseguia se desligar da visita feita à casa de Elliot Green.
Sua boca ainda trazia a impressão do beijo roubado, assim como suas mãos guardavam a quentura
convidativa da coxa delicada, a maciez de uma nádega. Queria estar com Faith para saber o que
pensava sobre suas ações, quando então poderia confirmar sua predisposição a um novo
relacionamento secreto.
– Perdoe-me padre porque pequei – a voz que ansiou ouvir soou ao seu lado.
– Faith! – Jonathan não se lembrava de ter liberado a garota anterior ou a penitência dada e, para
agravar sua falta de atenção, não se importava. Acreditou que a moça o procurasse, mas não em seu
confessionário. Aquecido pela grata surpresa, cumprimentou-a mansamente: – Buon giorno, Faith!...
Como passou a noite?
– Não muito bem, na verdade – disse sinceramente. – Gostaria de saber o que foi aquilo ontem à
noite. O que aconteceu com o que me disse na praia?
– Apenas jantei em sua casa. E me lembro de ter dito ontem pela manhã que não precisava estar
tão afastada. – Jonathan se divertiu ao notar a ansiedade.
– Entendi que me queria por perto como uma de suas ovelhas, mas quero crer que não beija todas.
– Conhece a resposta para esse comentário – retrucou com severidade. Não admitiria ser julgado a
partir da libertinagem pessoal. – E não creio que meu confessionário seja o lugar para tratar desses
assuntos.
– Por favor, não se zangue comigo – ela pediu num murmúrio, aproximando-se da tela de madeira
que os separava. Tudo que não desejava era que Jonathan voltasse a se fechar. Ele sempre parecia
outro à luz do dia. – Me desculpe. Não foi o que quis dizer... Eu só preciso saber o que mudou entre
nós, senhor.
Jonathan apreciou a submissão, o tom sussurrado muito perto de seu ouvido e mais ainda do cheiro
floral que vinha dela e causava uma revolução sob suas vestes. Contudo, ainda não era seu desejo se
expor em demasia.
– Antes de responder – disse após uma ideia súbita –, estaria disposta a se confessar?
– Dificilmente me arrependo do que faço – Faith retrucou de pronto. Não mentia, apenas se
ajoelhou ao lado do confessionário por ver chegar mais duas fiéis com o mesmo propósito. – Não sei
o que poderia dizer.
– Diga qualquer coisa, sem receio, pois seja o que for ficará em sigilo – apreciando a
oportunidade de saber mais sobre ela sem ter de recorrer a terceiros, acrescentou: – Dê-me algo que
me faça conhecê-la melhor e às pessoas que a cercam. Poderia começar por seu namorado... Ele
realmente não se importa com essa forma liberal de relacionamento?
– Não, Peter não se importa – ela disse.
– E segundo me disse ontem, não nutre sentimentos por... Tyler. – O nome lhe amargava a boca.
– Não nutro – assegurou, decidida.
– Ficaria ofendida se eu dissesse que não acredito?
– Acho que não... – Faith murmurou. Sabia que a descrença era por próprio mérito. Comprovando
seu pensamento ele disse:
– Fica difícil acreditar quando se encontram todos os dias. Se seu namorado morasse na cidade,
não aprovaria.
– O senhor não aprova. – Não foi uma pergunta.
– Não estou em posição de aprovar ou desaprovar coisa alguma. – Era igualmente amargo externar
a verdade. Queria exercer tal poder sobre ela.
– É complicado explicar nossa... relação. – Faith desejou fazê-lo entender, sem se delatar. – Tyler
sabe coisas sobre mim que me... obrigam a deixar que fique por perto.
– Ele a chantageia? – Jonathan inquiriu, rouco, inconscientemente cerrando os punhos.
– Não! Eu apenas prefiro que fique perto – ela se apressou em dizer. A declaração não o acalmou
nem o convenceu, apenas aumentou sua curiosidade sobre aquela incômoda ligação.
– Conte-me o que ele sabe – pediu sem pensar; ainda tenso.
Faith considerou por um momento. Fazer como pedido seria arriscado, afinal Jonathan tinha
encerrado a especulação sobre as noites de quinta-feira, mas, se estavam para dar o passo indicado
na noite anterior, seria sábio prepará-lo. Com cautela, disse:
– Bem... Ele sabe sobre um trabalho que faço além das aulas...
– E que trabalho seria esse? – Jonathan indagou, refreando sua imaginação.
– O problema não é bem o trabalho – ela corrigiu, já arrependida –, sim, o local onde o faço. –
Como Jonathan nada retrucou, ela prosseguiu: – Todas às quintas eu vou a uma casa noturna.
Jonathan se lembrou do quanto Tyler se mostrou aborrecido com as idas dela ao The Isle. Evidente
que o nome sugestivo fosse de uma casa noturna. E, baseando-se no sentimento dispensado a ela por
seu rival, mesmo domando sua imaginação, apenas uma ocupação lhe ocorreu. Antes que filtrasse o
que diria, incrédulo, disparou:
– Você se prostitui?
– Não! Não é nada disso! – Faith se exaltou, maldizendo sua inépcia ao iniciar o assunto
prematuramente. Deveria ter confirmado a razão da mudança antes de se delatar. Por um instante
cogitou dizer toda verdade, mas considerou que Jonathan não aceitaria seu strip-tease da mesma
forma que abominaria a venda de seu corpo. – É apenas um bico... Eu... Eu sirvo mesas.
– Uma vez por semana? – Jonathan não acreditava.
– Cubro uma folga – ela mentiu, odiando-se, contudo não faria diferente. Era preciso para não
perder o mínimo que ele lhe oferecia. – Só isso, mas Tyler sabe que meus pais não aprovariam.
A contragosto Jonathan concordou com o rapaz. Nem conhecia o local e já o repudiava. Não a
queria num antro noturno. Infelizmente, nada poderia fazer. Apenas tinha a certeza de que, por mais
que a desejasse, não se envolveria com uma prostituta. Rogava para que ela estivesse lhe dizendo a
verdade ao menos quanto àquilo. Queria poder olhar em seus olhos, talvez assim acreditasse no que
lhe dizia.
– Fiz como me pediu – ela falou, despertando-o. – Falei sobre mim e agora sabe que as aulas de
dança não existem. Então me diga... O que aconteceu ontem? O que devo entender?
Sim, ela o atendera, mesmo que de forma sinuosa e incompleta. Agora deveria cumprir com sua
parte.
– Deve entender que, mesmo sendo errado, gostei de beijá-la. E senti sua falta nesses dias em que
não a vi. Talvez me contentasse em tê-la por perto, mas você não veio hora alguma... Para completar,
ontem pela manhã me disse aquelas coisas. Sei que quer estar comigo e cheguei à conclusão que
também quero estar com você.
O corpo feminino, trêmulo de ansiedade, simplesmente planou. Jonathan dissera que queria estar
com ela! Não sabia por quanto tempo duraria a rendição ou até onde esta os levaria, então, com mãos
e lábios próximos à madeira, suplicou:
– Sim, por favor... Eu quero muito estar com o senhor. Como faremos?
Aquelas palavras o inflamaram e varreram qualquer receio que ela tivesse lhe incutido. Se fosse
possível, ele a puxaria para seu colo, ali mesmo em seu confessionário e lhe mostraria o que fazia
com sua porção indomada. Como não podia, Jonathan apenas a imitou, aproximando-se da trama de
madeira. Com a boca próxima à dela, como se a pudesse beijar, e uma mão posta exatamente na
altura de uma das palmas femininas, disse:
– Ainda não sei, mia cara. Estarmos juntos não é coisa que se faça intempestivamente como na
semana passada. Há que se ter cuidado para não chamarmos a atenção.
– O senhor tem razão! – ela murmurou, contendo sua euforia. Estava acontecendo! Esperaria o
quanto fosse preciso. – Sentirei sua falta até que seja seguro.
– Também sentirei sua falta, bella mia. Agora é melhor encerrarmos esse assunto. Já nos
estendemos demais.
– Está bem... – ela anuiu, preparando-se para levantar e se manter em linha reta ao andar.
– Mas não vá embora – ele recomendou. – Fique aqui em frente, onde eu possa vê-la, e ao menos
finja rezar já que não poderia livrá-la sem sua penitência.
– Sim, senhor!
Rapidamente Faith beijou a madeira e se foi, deixando o som do beijo breve a brincar em seu
ouvido e a claridade de sua súbita partida entrar pela trama mínima que os separou. Jonathan abriu
um pouco a cortina que o ocultava, o suficiente para vê-la se ajoelhar e, depois de se benzer contrita
– como a boa herege que era –, fingir descaradamente que rezava. E ela nunca lhe pareceu tão
mundanamente desejável.
Jonathan ouviu as lamúrias seguintes sem nunca desprender os olhos daquela fenda estreita que o
permitia ver sua amante. Já a considerava como tal uma vez que novamente a beijou e expôs suas
intenções. Para tê-la em sua vida, bastava apenas aplacar o desejo abrasador que os consumia. Ânsia
que o tornou incapaz de julgar qualquer pecado, fazendo-o adotar a penitência padrão de um terço
completo para todas que se ajoelharam ao seu lado.
Nenhuma falta seria maior que a dele. Naquele momento Jonathan entendeu a benevolência de
Carlo na ocasião de sua confissão e lhe depositou um pouco de simpatia.
Ao deixar o confessionário, Faith já tinha partido. Jonathan se arrependeu de não ter, ao menos,
tratado um encontro, mesmo recatado e público. Ainda que sentisse por sua falha, ele não dispensou
um minuto de seu tempo com lamúrias. Sentia-se revigorado pela ansiedade ante ao novo.
Finalmente daria início ao seu romance com a pecadora que há semanas não lhe dava paz. Com
Faith, Jonathan esperava acalmar seu corpo pulsante e sua mente perturbada, assim como encontrar o
equilíbrio para desmarcar Carlo. Esperava também ser capaz de lidar com seu ciúme e com todos os
detalhes inquietantes que ainda viesse a conhecer das duas únicas pessoas importantes em sua vida.

**********

*Nascimento de Vênus - é uma pintura de Sandro Botticelli em têmpera sobre tela e mede 172,5 cm de altura por 278,5 cm de
largura. Representa a deusa Vênus emergindo do mar como mulher adulta, conforme descrito na mitologia romana. A obra está exposta
na Galleria degli Uffizi, em Florença, na Itália.
Tradução das palavras italianas

Buon giorno – Bom dia

Buon pomeriggio – Boa tarde


Buona sera – Boa noite (chegada)

Buonanotte – Boa noite (partida)

Permesso – Com licença


Perfetto – Perfeito

A domani – Até amanhã

Va bene – Está bem

Maledetto – Maldito

Disgraziata – Infeliz

Grazie – Obrigado

Scusami – Desculpe-me

Ora – Agora

Dio Santo – Santo Deus

Che posso fare? – O que posso fazer?

Quello que è stato fatto è stato fatto – O que está feito está feito,

Noi veramente appreciamo, ma ... – Verdadeiramente apreciamos, mas...

La vita è più semplice se non se crea problemi. – A vida é fácil se não se cria problemas.

Ho notato – Percebi

Se è così, sono perduto! – Se assim for, estou perdido!

Questo non è vero! – Isso não é verdade!

Non parle niente – Não fale nada

Calmati... Non ti preoccupare – Acalme-se... Não se preocupe

Non lo so... – Eu não sei

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