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Folhas de Outono escrita por Mylanessa [ Comentários ]

Capítulo 3
Capítulo II — Daniel

A luz amarelada incidia sobre seu corpo e sentia como se flutuasse. Abaixo de si a relva
fazia cócegas em seus braços e costas. Estava deitado, os olhos contra o céu, sugando todo o
azul de sua imensidão. Vestia uma túnica do mais puro branco. O tecido escorregava macio
sobre pele e deslizava por entre as pernas; foi quando descobriu que não vestia nada além
da túnica. O vento rugiu com força e a sensação da roupa dançando em seu corpo causou-
lhe arrepios. A brisa fresca o tentava. Invadi-o com seus dedos zéfiros e zombeteiros. Daniel
ria, e o riso era cristalino e caloroso. Perdido na própria graça, ele pediu ao vento que
parasse com essas brincadeiras, pois sua barriga doía como se o estômago não pudesse
mais aguentar. Mas o dono da brisa mostrou-se teimoso e torturou-o ainda mais com seus
gracejos. Daniel então desistiu de lutar; fechou seus olhos, o sorriso ainda persistindo no
rosto. Deixou-se enfeitiçar. Quando voltou a abri-los o céu parecia mais próximo, prestes a
esmagá-lo. Até respirar parecia difícil. Algo gelado começou a crescer a sua volta, mas ouvia
o som de bolhas estourando como faz a sopa dentro de um caldeirão sobre chamas. O vento
então fugiu em redemoinhos, uivando tristemente, deixando apenas o rastro de seu eco
lamurioso para trás.

O garoto ergueu o pescoço e viu a túnica ser engolida por carmim; levantou as mãos e nelas
havia sangue. A viscosidade em vermelho vivo escorria pegajosa e brilhante por entre seus
dedos. Ele gritou, mas não conseguia ouvir o som da própria voz. Expulsou outro grito,
desta vez com mais vontade, mas algo — ou alguém — pressionava sua garganta com garras
invisíveis. “Quem está aí? Não consigo ver ninguém! Quem é você, mostre seu rosto!” Não
chegou a obter resposta. Debatendo-se inutilmente, começou a afundar na poça pastosa de
sangue. A poça fria de sangue que fervia. Fechou os olhos outra vez, mas ao tornar a abri-
los... era o rosto da irmã.

— Deus do céu, Dan! — Olivia tinha as mãos em forma de concha segurando seu rosto e
uma expressão apreensiva que o perfurava. — Está ofegante e banhado em suor. Vou
chamar a mamãe para trazer compressas e avisar ao Sr. Mitchell que as aulas devem ser
adiadas.

Daniel segurou a irmã pelo pulso antes de permitir que ela lhe escapasse.

— Não faça isso! Foi só um sonho, um pesadelo estúpido, estou bem!

Ele piscou rapidamente, sentindo o suor umedecer seus cílios. Fazia um calor desumano
dentro do quarto e o pijama grudado contra sua pele parecia cozinhá-la. Olivia apalpou-o
nervosamente na testa e bochechas enquanto o peito do garoto subia e descia até
finalmente assentar o fôlego.

— Está frio — ela disse, constatando a temperatura, embora isso não parecesse convencê-la
por completo. — Você disse pesadelo, que tipo de pesadelo foi esse?

Daniel tomou ar antes de falar.

— Bem, no começo não era... parecia um sonho comum — ele descobriu que de repente não
queria entrar em detalhes sobre essa parte. — Mas, hmm, depois tudo mudou e então fui
engolido por uma poça de sangue.

A irmã se afastou, pensativa. Estudou-o com pupilas inquietas, indo e vindo, indo e vindo,
como se na espera que uma calamidade abatesse o caçula em questão de segundos. Daniel
agitou-se impacientemente e afastou as cobertas, ignorando a vigília de Olivia. Encostou os
pés no chão à procura dos chinelos e caminhou até o outro lado do quarto. O calor era
insuportável, a sensação era de estar confinado numa estufa.

Arreganhou então as cortinas e abriu os trincos da janela deixando a manhã se alastrar


pelo cômodo. Lá fora gordas poças d’água encharcavam a grama e o céu era um infinito
lençol cor de gelo. Não me lembro de ter ouvido chuva alguma cair..., pensou ele, recebendo
no rosto o hálito frio da brisa matinal. Ficou ali até se refrescar por completo.

— Dan! Não é saudável sair de cama direto para a friagem. — Olivia bradou, pondo-se de
pé. — Vamos, seu banho vai esfriar.

— Liv — começou ele. — Se não se importa, hoje gostaria de ter o meu banho sozinho, por
favor. — Daniel não via sinais de que ela fosse concordar. Pelo contrário, Olivia postava-se
admirada, mas ao mesmo tempo ofendida com seu tom e palavras. — Na verdade... de agora
em diante eu prefiro fazer isso sozinho, todas as manhãs. Avise a mamãe que já estou
crescido, ela não é cega. É um absurdo que minha irmã mais velha tenha que me assistir
durante minha privacidade.

— Mas Dan...

— Sabe que é verdade.

— Deixe que a mamãe apenas confirme se está mesmo bem...

— Liv, eu estou bem! — disse ele, enfático. — Olhe para mim, pesadelos não matam
ninguém. Consigo cuidar de mim mesmo. Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, eu
chamo por você, pela mamãe ou qualquer outra pessoa.

Recolhendo-se a mudez, Olivia deixou o quarto atendendo à decisão do caçula. Daniel não
ficou feliz sendo duro daquela forma com a irmã, mas também não se sentia melhor sendo
socorrido feito um estúpido bebê de colo. Cedo ou tarde terão de compreender. Meninos da
minha idade já são quase homens, alguns até se casam e engravidam suas esposas... embora
isso seja um tanto extremo, não deixa de ser verdade. Não podem continuar me tratando
como se não enxergassem isso. Correu para a porta e girou a chave no trinco, respirando
aliviado o cheiro da liberdade.

Despiu-se e mergulhou na água quente, deixando os poros serem afagados pelo calor.
Demorou-se no banho, enquanto a mente tecia pensamentos involuntariamente. Saltou de
um em um, inconsciente da movimentação e do curso que o guiava. Mas antes que pudesse
concluí-los ou retomar com integridade os anteriores, já estava imerso em uma nova teia,
novos mundos, novas vozes. Talvez eu devesse começar um diário. Pensamentos são
importantes, mas não posso confiar na memória para me lembrar de todos eles. Não acho que
o papai se zangaria se eu pedisse um no meu próximo aniversário. Agora que vou estudar, é
mais do que natural que eu tenha onde fazer minhas anotações. Até Olivia tem um diário!
Embora não me deixe vê-lo, às vezes lê para mim quando sente a necessidade de compartilhar
algo.

Ao contrário da irmã, Daniel não se considerava uma pessoa franca e de coração aberto.
Embora a maioria das pessoas que o conhecia discordasse. Emma dizia que sua sinceridade
era o tipo de coisa natural de todas as crianças, de falar impensado, sem conhecer o real
peso das palavras. Mas Daniel não perdera a virtude com o passar dos anos. Entretanto, não
deixava de se sentir intrigado com o julgamento alheio, quando na verdade, tudo o que
fazia era apontar o que estava na superfície, ao alcance dos olhos de qualquer um. Por
baixo dela, por baixo da sua superfície, repousava um mundo único, um elixir de ideias e
sentimentos nunca ditos; perguntas e reflexões que o perseguiram por tanto tempo, que
vieram a se tornar suas fiéis companheiras, ou melhor, inseparáveis amigas. Se o papai
concordar em me dar um diário, quero um que tenha cadeado. E para mantê-lo seguro,
mandarei fazer uma corrente com sua chave e jamais me separarei dela.

A janela no fim do quarto estremeceu com a corrente de ar vigorosa que a atravessou.


Daniel mergulhou na água morna para evitá-la, mas ainda assim foi assaltado pelos
calafrios. Sua pele arrepiou-se, já que o banho não estava mais tão quente como antes.
Também senti coisa parecida ontem, mas não foi o vento. Deu por si arriscando-se dentro da
melindrosa memória da tarde anterior. As mãos do professor seguravam forte ao redor de
sua cintura para ajudá-lo a descer do cavalo; e depois estavam tão próximos... Nunca antes
um estranho lhe pareceu tão próximo assim. Vinte e sete anos. Nem tão novo e nem tão
velho. Ele também gosta de animais, assim como eu. Chris o detesta. Mas Chris ultimamente
tem detestado a tudo e a todos. Tem sorte de ainda tolerar a si mesmo... E mamãe, bem,
mamãe acha que está com tanta sorte que já deve estar pensando nos preparativos para o
casamento do Sr. Mitchell e Olivia antes do Natal. Chris deve estar ainda mais furioso por
isso. E eu... eu não tenho o que pensar sobre isso. O Sr. Mitchell é um homem gentil, Olivia é
esperta e ambos são adultos e inteligentes.

A água balançava em volta do seu corpo e passou a esfriar mais depressa. Mas dentro dele,
o estômago fervilhava; transformara-se num território conquistado por enxames de
abelhas. E agora, de alguma forma, elas procuravam a saída. A sensação evoluiu para
pequenos espasmos, ondas palpitantes que brincavam com seus sentidos. Queria expulsá-
las, mas também queria consumi-las. Era impossível descobrir se era algo bom ou ruim; ou
se os dois ao mesmo tempo. Deitou as costas contra a banheira e escorreu as mãos pelo
tórax como se não fossem suas, como se o investigassem. O banho quase-frio o embalava,
mas àquela altura não chegava a incomodar. O sonho, é como no sonho. As pontas dos dedos
desceram e exploraram aquele ponto mais sensível de si. Mas o pudor não o deixou ir muito
além. Não sem um incentivo mais forte do que ele.

Parou o que estava prestes a fazer e levantou da banheira num salto. Sua cabeça girou por
alguns segundos, mas sacudi-la ajudou a colocá-la nos eixos novamente. Alcançou o roupão
e ficou embrulhado dentro dele, seguro dentro do casulo de tecido. Sentou-se na beirada da
cama e ali ficou, esperando até que o corpo voltasse ao estado normal. Tinha os olhos
assustados, presos a um ponto fixo qualquer. Quando se acalmou, ergueu a barra do
roupão, olhou para baixo e pôde suspirar aliviado. Pensei que fosse ficar daquele jeito para
sempre!

Tratou de se apressar, pois se atrasara tanto, que as horas se tornaram suas inimigas.
Arrumou-se e desceu as escadas correndo. Benjamin devia estar a sua espera na biblioteca.

—xxx—

Estava contente por conseguir escapar da mãe e da irmã. Mas sabia que cedo ou tarde
deveria explicações pelo seu comportamento com Olivia mais cedo. A não ser que ela não
diga nada à mamãe, mas não posso contar com isso. Não tinha ideia de onde a irmã poderia
estar, a não ser que estivesse com a mãe. E naquele horário Emma ocupava-se de
acompanhar as criadas no preparo do almoço. Seu desjejum estava na mesa, mas devorou-o
apenas pela metade. Tinha pressa e pouca fome naquela manhã; por isso logo deixou a
mesa. Ao passo que caminhava corredor adentro em direção à biblioteca, encontrou a porta
do escritório de seu pai aberta e foi convidado a entrar.

— Papai? O que quer?

— Chegue mais perto, por favor, me deixe te ver, rapaz.

Daniel contornou a mesa e postou-se diante do pai. Havia ternura em seus olhos e sorriso.
Não estavam acostumados a compartilhar momentos de intimidade, então o garoto não
precisou se preocupar em disfarçar o embaraço que sentia. Percival afagou seus cabelos e
beijou-lhe na testa.

— Estou orgulhoso. Está finalmente se transformando num homem. E olhe só para você,
quase não há mais vestígios daquele aspecto enfermiço de outrora. O crescimento lhe fez
bem. Só precisa de um pouco de sol para corar essa pele e deixá-la com a aparência
saudável.

— Não gosto do sol, papai. Nunca gostei, o senhor sabe. Me deixa tonto.

— Ah, havia me esquecido disso — o Sr. Darlington sorriu. — Mas, chamei você aqui para
lhe desejar boa sorte. Conversei com Benjamin ainda há pouco e ele está ansioso. É um bom
homem afinal. Me alivia saber que fiz a escolha certa. Não concorda, meu filho?

— Sim. Mas Chris discorda — disse de imediato. — Ontem no bosque pensei que tivesse
mudado de ideia, mas eu não acredito. Se o senhor estivesse lá concordaria comigo.

Percival ergueu as sobrancelhas, virou-se de frente para sua mesa, as mãos juntas e a
expressão franzida. Ele também reparou, o papai sabe. Daniel não soube ler por trás dos
olhos do pai. Mas sabia que seja lá qual fosse sua opinião sobre o comportamento de
Christopher, aquilo o preocupava. Isso é parte do seu mundo, não posso ir a fundo, a não ser
que me diga.

— Daniel, sobre seu irmão... — começou o homem, falando em tom de cautela. — Eu


realmente não sei o que se passa na mente dele, mas é indiscutível a sua mudança desde o
ingresso na universidade. Às vezes penso se foi boa ideia deixar que Chris realizasse esse
luxo de estudar Direito... Ele é meu primogênito, deveria tê-lo mantido perto de mim.

— Não é culpa sua, de ninguém. Se não fosse a universidade seria outra coisa.

O pai analisou e considerou a hipótese. Depois meneou a cabeça para os lados concordando
com o caçula.
— De toda maneira, ainda tenho você. Quando se tornar um adulto completo será tão forte
e sadio quanto o seu irmão. Mas com um pouco mais de prudência, espero. — Percival riu,
divertindo-se com o próprio conselho. — Christopher não tem interesse em manter esse
lugar de pé depois que eu partir. Você herdará esta casa e todos os meus negócios.
Encontrará uma boa esposa e juntos tomarão conta desse patrimônio. É por isso que quero
que leve seus estudos a sério.

Daniel sentiu o estômago repuxar. Nunca antes ouvira o pai falar sobre herança. Também
nunca havia pensado em se casar — na verdade tudo isso sempre lhe pareceu tão distante,
que há muito se conformara com o fato de que mulher alguma baixaria os olhos para um
homem nas suas condições. Certamente não poderia lhe dar filhos saudáveis, ou manter
dignamente uma casa. Era tudo parte de uma realidade paralela à que sempre viveu. Nunca
cobiçara esses sonhos, tampouco o entristecia a impossibilidade de alcançá-los. Logo, não
soube bem como digerir toda a informação que o pai lhe atirara de forma tão repentina.
Chris sabe disso? Mesmo que tenha passado a desprezar o campo depois de viver na cidade,
ficará furioso! Ele ainda é o filho mais velho, o herdeiro por direito!

— Nunca pensei nessas coisas, papai. É estranho que de repente eu precise ter essas
preocupações. Não entendo nada da contabilidade da fazenda. Eu seria um completo
desastre, com certeza.

— Não disse que precisa se preocupar agora. A única coisa que deve se preocupar é com
seus estudos. Acalme-se, tudo virá a seu tempo. Agora vá, antes que Benjamin o castigue
pelo atraso.

—xxx—

Seu pai havia cedido um espaço ao fundo da biblioteca para que Ben se organizasse. Era
próximo a uma das janelas, o que tornava o lugar fresco e aconchegante. Ali havia uma
mesa e algumas estantes que o Sr. Mitchell tratara de preencher com seus próprios livros.
Quando Daniel entrou no lugar seus passos foram abafados pelos tapetes. Benjamin parecia
concentrado em alguma espécie de leitura ou trabalho. Tinha a testa apoiada numa mão e o
tronco emborcado sobre um livro. Não havia notado a presença de Daniel até que este lhe
chamasse atenção com um pigarro. O professor despertou num salto, pondo-se a ajeitar os
óculos nervosamente. A movimentação fez com que um esbarrão acidental derrubasse uma
pilha de livros de cima mesa. Não estava lendo, estava dormindo.

— Desculpe. Não foi minha intenção. — Daniel disse, adiantando-se para apanhar os objetos
caídos. Ben tentou impedi-lo, mas o garoto já estava de joelhos; e apesar de continuar
insistindo, juntou-se a ele. — O senhor não deve ter tido muito tempo para por todos esses
livros no lugar, não é?

— É verdade, ainda não. Mas é uma das coisas que pretendo fazer à tarde.

— Pronto. Aí está. — Daniel preparava para se levantar, quando a mão alheia tocou seu
cotovelo, servindo de apoio. — Sr. Mitchell, quando estiver longe dos meus pais e dos meus
irmãos, não há a necessidade desse tipo de coisa. Estou bem.

— Desculpe... eu não quis causar nenhum constrangimento... — Benjamin balançava a


cabeça, rindo de um jeito que demonstrava que jeito era algo que ele não tinha para lidar
com situações embaraçosas.

Daniel lembrou-se do dia anterior e isso o fez sorrir também.

— Não, por favor, professor, não foi uma reprimenda. Estava apenas te livrando de uma
preocupação desnecessária. Sei que tenho uma condição especial, mas não estou doente,
não agora. Certo?

Benjamin não deu uma resposta de imediato. Inclinou o pescoço na direção da porta com
uma expressão de culpa no rosto. Algo em sua movimentação fez Daniel acreditar que o
homem torcia para que ninguém tivesse presenciado ou escutado aquela cena. Após esse
silêncio que pareceu constatar que nada havia ao redor da biblioteca, Benjamin ajeitou seus
óculos e balançou a cabeça para o garoto.

— Sim, certo. Se te faz se sentir mais a vontade, que seja. — Benjamin sorriu e voltou para
detrás de sua mesa. — Pode se sentar aqui, por favor? — disse, puxando uma cadeira ao seu
lado. — Me perdoe pela falta de um quadro negro, mas seu pai já providenciou um por
encomenda. Enquanto isso vamos nos adiantar com matérias que não exigem seu uso.

— Como literatura, por exemplo. — Daniel disse, tomando o lugar indicado.

— Sim, literatura. Matemática e os números podem esperar. De toda maneira, nunca foram
meus preferidos. — O professor esfregou as mãos, parecendo bastante animado. — Então,
com o que acha que deveríamos começar, Daniel? Quero saber pelo quê se interessa.

— Gosto de ciência — respondeu, sem titubear. — Também tenho muito gosto pela
literatura. Basicamente passo a maior parte do tempo lendo, desde romances antigos, novos
e até folhetins. Mas prefiro a natureza e os animais, os menores de preferência. Tenho uma
coleção de insetos, todos eles seguramente guardados e catalogados. Se quiser eu poderia
mostrá-los para o senhor qualquer outro dia.

Só quando terminou de falar, foi que Daniel percebeu que havia tornado seu discurso mais
entusiasmado do que gostaria. Envergonhara-se de mostrar muito sentimento nas palavras.
Detestaria que Mitchell pensasse que fosse um menino bobo qualquer. Não se deixava
deslumbrar com facilidade, era bem verdade. Mas diante daquele homem, um homem de
sabedoria, sentia a necessidade de lhe falar sobre tudo o que conhecia, que gostava... até
mesmo sobre seus segredos mais íntimos que jamais exprimira para outra pessoa. O Sr.
Mitchell os entenderia. Tinha sede de libertar suas ideias e pensamentos com quem pudesse
não somente decifrar palavras encadeadas uma a outra, mas dar a elas sentido, significado,
e, sobretudo, reconhecimento.

— Certamente que sim, adoraria conhecer sua coleção. — Benjamin respondera. —


Podemos deixar para quando dermos início às aulas de ciências. O que acha de
começarmos com literatura? Já leu Goethe, Daniel?

— Não, senhor. Sei que seus livros tiveram e ainda têm muita fama entre os jovens. Chris
ganhou um exemplar, mas acabou dando-o a mim. Disse que é sentimentalismo barato, e
que não se venderia a modismos. Mas nunca cheguei a ler. Não ainda.

— Entendo — disse o professor, com uma ruga enorme vincada na testa. — Pois será com
Goethe que iremos iniciar nossos estudos com literatura. Afinal, um bom leitor tenta
compreender o que move e influencia as pessoas de seu tempo. É um estudo ainda mais
proveitoso quando unido ao raciocínio crítico da História.

Benjamin inclinou-se para apanhar um livro da estante ao lado. Quando Daniel o pegou,
pôde ler Os sofrimentos do jovem Werther em alto revelo sobre uma capa de tecido azul. Era
o mesmo que Chris havia lhe dado, mas o volume daquele novo parecia maior. Daniel
apanhou e passou as páginas rapidamente. Logo descobriu que se tratava não apenas da
edição traduzida, como também continha o texto original, em alemão. Salvo algumas
pouquíssimas palavras soltas, Daniel não sabia nada daquela língua. Sempre teve vontade
de aprender o alemão e francês para poder ler seus livros favoritos em idioma materno.
Olivia até tentou, durante um tempo, ensiná-lo a língua de Napoleão, mas os estudos
naufragaram por falta de material decente.

Benjamin então começou a lhe falar sobre a obra de Goethe que tinha em mãos. Quanto
mais Daniel ouvia, mais sua curiosidade se aguçava. Eram concepções completamente
contrárias às de Christopher sobre a literatura daquela época. Gostaria que Chris pudesse
ouvi-lo também... Pode ser que não mude de opinião, mas ao menos passaria a respeitar o Sr.
Mitchell acima de seus preconceitos particulares.

De pé, o professor falava com emoção e admiração da escrita de Goethe e sua maneira de
traduzir e realçar os sofrimentos de um ser amaldiçoado por uma paixão impossível.
Quando Benjamin conectou a essência da obra ao “mal do século” de que tanto se ouvia a
falar nos jornais, Daniel atentou-se ainda mais. É claro que já lera e ouvira sobre os casos
recorrentes de suicídios que abateu dezenas de rapazes há pouco menos de uma década
atrás. Era muito criança quando o assunto ocupava as manchetes principais; mas logo que o
estardalhaço passou, correu a conversa de que os suicídios não passavam de falatório da
imprensa que queria apenas vender jornais. Mas agora Daniel sabia definitivamente em
quê acreditar.

— ... Sentimentalismo, Daniel. Melancolia e pessimismo. A literatura atual está contaminada


pelo espírito romântico em seu estado mais livre, trágico, insolente e descomedido. O
mundo parece ter despertado e reconhecido as próprias desilusões. Descobrimos que a
razão não nos basta, a razão nos limita. Estamos saturados dos ensinamentos de Descartes,
Leibniz... e quem dirá Platão, seu precursor! O valor do que é universal não nos satisfaz. Foi
preciso romper o tradicionalismo, combater o tédio e declarar guerra contra as normas de
criação! Abriu-se o caminho para o devaneio, a imaginação e a ascensão das dúvidas, pois
só assim seria possível atingir o genuíno e redescobrir o real. E para isso o homem foi
buscar fuga em seu nível mais vivo de consciência, os sentimentos, a dor. Não são as
fortunas terrenas, a genialidade da mente ou o desejo de tê-las que nos mantêm vivos. É a
dor, Daniel. Quanto mais nos embriagamos de vida, mais nos descobrimos verdadeiramente
sozinhos. Os poetas e escritores do Romantismo denunciam a vida. A vida é um sonho ruim,
e a dor é a única coisa essencial; é o que nos faz despertar da distopia. A dor justifica tudo.

Os olhos de Daniel dançavam ligeiros enquanto acompanhavam as palavras do professor.


Era como se despencasse do alto de um desfiladeiro com mais velocidade a cada frase dita.
Quando a voz do homem cessou seu coração pareceu pousar levemente sob um cobertor de
plumas. Naquele exato instante Daniel admirou-o como jamais admirara qualquer outra
pessoa em sua existência. Mexeu as pernas impaciente. Queria sair correndo para devorar
com ânsia cada linha do livro de Goethe. Só queria estar diante de Benjamin quando
pudessem discutir aquela obra de igual para igual. Não apenas Werther, mas as demais
outras do Romantismo que de agora em diante pretendia ler. Queria falar sobre elas e seus
significados com a mesma paixão e honestidade que aquele homem conseguia transmitir.

— Essa foi, provavelmente, não, decididamente, a coisa mais fascinante que já tive o prazer
de ouvir. Professor, Mitchell, permita-me dizer que o senhor é extraordinário! — Os lábios
do garoto moveram-se hesitantes, mas o elogio escapou com firmeza. — Tudo o que disse
pareceu como se estivesse espiando dentro da minha própria mente. Mas eu jamais seria
capaz de discursar como o senhor, jamais saberia usar as palavras dessa maneira.

Daniel sentiu um pouco de pena do modo como Benjamin se embaraçara por completo com
seu cumprimento. O rosto do professor ganhou um bocado de cor e de repente não lhe
parecia muito diferente de um garoto desorientado qualquer. Ele tem vinte e sete anos, o
jovem Darlington repetiu para si mesmo, vinte e sete anos. Tencionou a pedir desculpas,
mas não queria soar estúpido, muito menos diminuir a sinceridade do seu reconhecimento
pelo professor. Mas ficou bastante feliz quando foi ele quem voltou a falar, livrando-o
assim, da inquietação daquele silêncio.
— Isso foi inesperado. Mas não posso ceder ao capricho de aceitar seus elogios, quando
nada do que disse me pertence. — Benjamin sentou-se e ajeitou os óculos. — De todo modo,
se servir como agradecimento, há diversas leituras que posso recomendar, já que disse ter
se sentido tão próximo dessas ideias.

Quis dizer que não concordava totalmente com aquilo, mas Daniel ficou calado. Posso saber
de muitas coisas, mas levaria anos e anos até que conseguisse falar sobre elas de um jeito tão
fascinante. Apesar da necessidade de verbalizar seus reais sentimentos, permanecer calado
soou-lhe uma escolha bastante sensata. Havia demonstrado muita exaltação para uma
manhã e aquela era a hora de finalmente se conter.

Ao seu lado, o professor empilhava alguns livros, enquanto balbuciava consigo coisas que
Daniel não conseguia entender. Quando terminou, empurrou-os na sua direção. Mas deixou
claro que antes de se aprofundar naquelas leituras, primeiro esperava que Daniel lesse a
obra de Goethe para as discussões das próximas aulas.

— Antes eu lamentava ter tempo demais e pouca coisa para fazê-lo passar mais depressa,
mas agora gostaria que as horas fossem mais longas. — O garoto disse, passando a ponta do
dedo sobre os títulos na lateral da pilha de livros. — Tudo que sei não passa de um grão de
areia, só hoje o senhor me fez perceber isso.

Benjamin sorriu-lhe com brandura.

— Teremos quanto tempo julgar suficiente. Considere-me a sua disposição.

Foi a vez de Daniel sentir seu rosto engolido por rubor e acanhamento. Se dependesse de
sua vontade, atormentaria o professor dia e noite para continuar a ouvi-lo falar
incessantemente. São tantas as perguntas que gostaria de fazer... Há tanto para ser
aprendido e discutido!

Aquela primeira aula o deixou com os sentimentos agitados e bastante ansiosos. Mas
quando Benjamin entregou-lhe os horários das aulas, parte de si foi atingida por um balde
de água fria. Nas terças teria a manhã preenchida por Educação Cívica e Moral da Pátria e
nas quintas Noções Elementares de Lógica. Nas quartas, porém, teria História Antiga e nas
sextas, finalmente, Ciências Naturais. Aos sábados as manhãs e tardes se dividiam entre
Língua Francesa e História da Arte.

Antes que tivesse a chance de fazer qualquer pergunta, uma criada bateu à porta
anunciando o almoço. Benjamin recebeu a notícia com enorme disposição. Mas Daniel não
tinha lá tanta fome assim. Apesar disso forçou-se a ficar na mesa até o fim da refeição. O Sr.
Mitchell tinha o hábito de repetir o prato, portanto, o garoto o imitou, como pretexto para
estar em sua companhia por mais tempo. Emma pareceu imensamente contente pela
decisão do caçula em alimentar-se melhor. Percival não tinha opinião formada sobre
aquilo. Christopher e Olivia não tinham como notar a mudança repentina de hábito do
irmão menor, pois haviam saído cedo para almoçar com os Channon, mediante convite dos
próprios.

Após uma pausa para a sesta, Daniel e Benjamin retornaram para a biblioteca, onde deram
seguimento às discussões anteriores. Quando o professor o dispensou às três da tarde, o
jovem Darlington amaldiçoou o relógio com todas as forças. Mas despediu-se cordialmente
e subiu para o quarto, onde permaneceu até o jantar, imerso na leitura de Goethe.

Notas finais do capítulo


Fiz algumas pesquisas antes de escrever esse capítulo. Então, para aqueles que acharam
estranho ou ilógico esse despertar tardio de puberdade (aos quinze anos) e a maneira
ingênua como o Daniel lida com isso, saibam que no século XIX era comum os meninos
atingirem a maturidade sexual na faixa dos 16~17. Bom, mas digo isso no sentido do
desenvolvimento natural, não estou falando de influências externas que dão incentivo à
uma puberdade prematura. Ainda fui um pouco "adiantada" em colocar 15, mas o
personagem está prestes a completar 16 (spoilers, rs), então está na faixa do aceitável,
acredito eu.

O "Mal do Século" mencionado nesse capítulo, diz respeito a um momento específico do


século XIX, onde o sentimentalismo influenciou os jovens de maneira bem notável. O
Romantismo e Ultra-Romantismo (movimento artístico e cultural da época) foi marcado por
uma fuga às convenções daquele tempo, e isso foi bastante evidente da literatura. Quando
relacionei o "Mal do Século" com Goethe foi mais sobre a maneira como o livro "Os
Sofrimentos do Jovem Werther" agiu sobre os jovens nessa época. Eles chegavam até a
imitar as roupas do personagem Werther, tinha virado modismo, vulgarmente falando. E
realmente houve uma apoteose de suicídios que DIZIAM terem sido motivados por esse
livro. Enfim...Só para esclarecer isso também.

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