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Terror e Miséria do Terceiro Reich

De Bertolt Brecht

Ano letivo 2023/2024

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1 - COMUNIDADE DO POVO

Ali vem das SS os oficiais


De paleio, cerveja e tudo o mais
Estão cansados e cheios
Que a povo seja poderoso
Temido, obediente, decoroso
São os seus profundos enseios

Noite de 30 de Janeiro de 1933. Dois Oficiais das SS cambaleiam rua abaixo.

O PRIMEIRO- Agora 'tamos por cima. Imponente, o desfile d'archotes. 'inda ontem falido,
hoje já na Chançalaria do Reich. Ontem abutre falido, hoj' águia do Império.

Vertem águas.

O SEGUNDO - E agora vem aí a C'munidade do Povo. Eu cá conto c'uma elevação espiritual


do povo alemão, ao maior nível de todos.

O PRIMEIRO - Mas primeiro tem que se fazer sair o ser alemão do meio dessa chusma de
seres inferiores. Mas afinal que zona é esta? Nã tem bandeiras.

O SEGUNDO- Purdemo-nos.

O PRIMEIRO- Uma javardice de sítio.

O SEGUNDO - Bairro de criminosos.

O PRIMEIRO- P'rece-te qu'isto aqui é perigoso?

O SEGUNDO- Um camarada do povo que se preze nã vive em barracas destas.

O PRIMEIRO- E tam'ém não há luz em lado nenhum!

O SEGUNDO- Não ‘tão em casa.

O PRIMEIRO- Os irmãos 'tão. P'rece-te que foram ver de perto o nascimento do Terceiro
Reich? Vamos, com a retaguarda protegida.

Poem-se de novo em movimento, hesitantes o primeiro atras do segundo.

O PRIMEIRO- Isto na' é a zona onde passa o canal?


O SEGUNDO- Nã’ sei

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O PRIMEIRO- Ali à esquina desmantelámos cá um ninho de marxistas! D'ziam qu'era uma
associação de jovens católicos. Tudo mentira! Nenhum deles usava cabeção.

O SEGUNDO -P'rece-te qu'ele consegue fazer a C'munidade do Povo?

O PRIMEIRO - Ele consegue tudo!

Pára, como que petrificado, e escuta. Algures abriu-se uma janela.

O SEGUNDO - Qu'é que se passa?

Destrava a pistola de serviço. Um Homem Velho assoma, em camisa de noite, à janela e


chama baixinho: "Emma, és tu?"

O SEGUNDO- Sã' eles!

Corre de um lado para o outro como um louco e começa a disparar em todas as direcções.

PRIMEIRO- Socorro!

Por detrás duma janela, em frente à que está aberta e onde o Homem Velho se mantém,
ouve-se o grito medonho de alguém que foi atingido.

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2- A traição

Ali vêm os traidores, de mansinho


Cavaram cova funda ao vizinho
Sabem que todos os conhecem, afinal.
Mas não será que a rua esquece?
Dormem mal: ainda não chegou, parece,
O Dia do Juízo Final.

Habitação pequeno-burguesa. Uma Mulher e um Homem estão junto à porta, à escuta. Estão
muito pálidos.

A MULHER- Já foram para baixo.

O MARIDO - Ainda não.

A MULHER- Partiram o corrimão. Ele já estava inconsciente quando o arrastaram para fora
de casa.

O MARIDO - Mas eu só disse que as emissões de rádio da Rússia não vinham daqui.

A MULHER- Não foi só isso o que tu disseste.

O MARIDO- Não disse mais que isso.

A MULHER- Não olhes assim para mim. É bem feito o que lhe aconteceu a ele. Quem é que
os manda ser comunistas?

O MARIDO- Mas não era preciso terem-lhe rasgado o casaco. Não vivemos tão à larga como
isso.

A MULHER- O casaco não tem importância nenhuma.

O MARIDO- Não era preciso terem-lho rasgado.

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4- Serviço ao povo

Vem depois os guardas destacados


Os bufos e carniceiros encartados
A servir o Povo com dedicação.
Eles oprimem e torturam
Eles chicoteiam e perfuram
O seu preço é meio tostão.
E pouco cobram pela função.

Campo de concentração. Pequeno pátio entre paredes de barracões. Antes de a cena se


iluminar, ouve-se alguém a ser chicoteado. Depois, vê-se um Homem das SS a chicotear um
prisioneiro. Um Oficial das SS está a fumar ao fundo, de costas para o chicoteamento.
Depois vai-se embora.

O HOMEM DAS SS cansado, senta-se num barril: Continua a trabalhar.

O Prisioneiro levanta-se do chão e começa, com movimentos nervosos, a limpar a fossa.

O HOMEM DAS SS- Por que é que tu, grande porco, não dizes que não, quando te
perguntam se és comunista? Tu levas porrada e eu não gozo a minha saída, estafado como
estou. Por que é que não mandam o Klapproth fazer isto? Ele até se diverte. Se o filho da puta
volta, põe-se à escuta tu pegas no chicote e dás us chicotadas no chão, entendido?

PRISIONEIRO- Sim, chefe

O HOMEM DAS SS- E isto é só porque eu estou farto de malbar em vocês, seus cabrões,
entendido?

O PRISIONEIRO- Sim, chefe.

O HOMEM DAS SS Atenção!

Nos bastidores ouvem-se passos e o Homem das SS aponta para o chicote O Prisioneiro
pega-lhe e bate com ele no chio Como o barulho não é convincente, o Homem das SS aponta,
com indolência, para um cesto ali perto e o Prisioneiro chicoteou o cesto. Os passos nos
bastidores param. O Homem das SS levanta-se depressa e, com nervosismo, arranca o
chicote das mãos do Prisioneiro e bate-lhe.

O PRISIONEIRO em voz baixa: Na barriga não.

O Homem das SS bate-lhe no rabo. Oficial das SS dá uma espreitadela.

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O OFICIAL DAS SS- Bate-lhe na barriga.

O Homem das SS chicoteia o Prisioneiro na barriga.

9- O Bufo

São os Senhores Professores que ali vêm


Os putos de Hitler passam a instrutores
E ensinam-nos a entrar na linha.
Cada aluno um bufo. Nenhum tem de saber
O que no céu é na terra pode acontecer
Mas sim o que disse a vizinha.

Depois vêm as queridas crianças


Falam com os carrascos das matanças
E levam-nos ao seu próprio lar.
Apontam-lhe os progenitores
Chama-lhes estes traidores.
Levam-nos presos sem hesitar.

A MULHER- Tu hoje estás tão nervoso. Aconteceu alguma coisa na escola?

O MARIDO- O que é que queres que tenha acontecido na escola? E faz o favor de não
estares constantemente a dizer que eu estou tão nervoso, isso é que me deixa nervoso.

A MULHER- Não devíamos estar sempre a discutir, Karl. Dantes..

O MARIDO- Dessa já estava à espera! Dantes! Não queria dantes nem quero hoje que a
imaginação do meu filho seja envenenada.

A MULHER - E onde é que ele foi?

O MARIDO- E como é que eu vou saber!

A MULHER - Viste-o sair?

O MARIDO- Não.

A MULHER- Não percebo onde é que ele possa ter ido.

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Chama Klaus-Heinrich! Sai a correr da sala. Ouve-se a chamar. Regressa.

A MULHER- Ele saiu mesmo!

O MARIDO- E por que é que que não havia de sair?

A MULHER- É que está a chover a potes!

O MARIDO- Por que é que ficas tão nervosa só porque o rapaz saiu?

A MULHER- Do que é que ainda agora estávamos a falar?

O MARIDO- E o que é que uma coisa tem a ver com a outra?

A MULHER- Ultimamente, tu andas tão descontrolado!

O MARIDO- Não ando nada descontrolado ultimamente, mas mesmo que andasse, o que é
que isso tem a ver com o facto de o miúdo ter saído?

A MULHER- Ora, sabes muito bem que eles ouvem as conversas.

O MARIDO- E então?

A MULHER- E então. E se ele se põe a contá-las por aí? Sabes bem o que lhes andam agora
sempre a meter na cabeça, lá na Juventude Hitleriana. Exigem-lhes diretamente que relatem
tudo. É tão estranho que se tenha ido embora sem dizer nada.

O MARIDO - Disparate.

A MULHER - Não viste quando é que ele saiu?

O MARIDO - Esteve ali um bom bocado colado à janela.

A MULHER - Queria era saber o que é que ele ainda ouviu .

O MARIDO - Ele sabe muito bem o que é que acontece quando se denuncia uma pessoa.

A MULHER - E aquele miúdo, aquele de que os Schmulkes nos contaram? Parece que o pai
ainda está no campo de concentração. Se ao menos soubéssemos quanto tempo é que ele
ainda ficou aqui na sala.

O MARIDO - Isso é tudo um disparate!

Vai apressadamente à outra sala e chama pelo rapaz.

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A MULHER- Eu não consigo perceber como é que ele saiu sem dizer sequer uma palavra.
Nem parece dele.

O MARIDO- Se calhar está em casa de algum colega da escola....

A MULHER- Nesse caso, só pode estar em casa dos Mummermanns. Vou telefonar-lhes.

Telefona.

O MARIDO- Acho que isto não passa de falso alarme.

A MULHER ao telefone - Fala a mulher do professor efectivo Furcke. Bom dia, minha
Senhora. O Klaus-Heinrich por acaso está aí? – Não? Não faço ideia onde esteja o miúdo.
Diga-me uma coisa, minha Senhora, a sede da Juventude Hitleriana está aberta ao domingo à
tarde? – Sim? – Muito obrigada, vou perguntar para lá.

Desliga. Os dois sentam-se em silêncio.

O MARIDO- O que é que ele poderá ter ouvido?

A MULHER- Falaste no jornal. Não devias ter dito aquilo sobre a Casa Castanha. Ele tem
uma sensibilidade tão nacionalista.

O MARIDO- O que disse sobre a Casa Castanha?

A MULHER - Com certeza que te lembras! Que lá também nem tudo é muito limpo.

O MARIDO- Isso não pode ser entendido como um ataque, tudo é muito limpo ou, como eu
disse, moderadamente, nem tudo é tão limpo quanto isso, até é bastante diferente, e isto é
mais um comentário divertido de tipo popularucho, por assim dizer, em linguagem comum,
com isto eu não quis dizer mais do que que li como isso, o que é diferente, na ver na Casa
provavelmente algumas coisas nem sempre, e nem em todas as circunstâncias, correm como
o Führer quer. Aliás exprime deste modo intencionalmente uma probabilidade, pois
lembro-me muito bem de ter dito "diz-se" que coisas lá nem todas são absolutamente num
sentido moderado limpas, diz-se que são!!! Não posso afirmar que haja lá uma coisa que não
seja limpa, não tenho provas disso. Onde há pessoas há imperfeições. Não quis dizer mais do
que isto e, mesmo assim, duma forma moderada. E além do mais, o Führer em pessoa, em
dada ocasião, também formulou críticas nesse sentido, e aliás de uma maneira muitíssimo
mais dura.

A MULHER- Não te compreendo! Comigo não precisas de falar dessa maneira.

O MARIDO- Quem me dera não precisar! Não sei lá muito bem os disparates que tu própria
podes dizer por aí, sobre aquilo que talvez se possa ter dito aqui em casa, no calor da

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discussão. É óbvio que estou bem longe de te estar a acusar de qualquer afirmação frívola,
lançada contra o teu marido, tal como não me passa pela cabeça, nem por um instante, que o
miúdo faça qualquer coisa contra o seu próprio pai. Mas há uma enorme diferença entre fazer
mal e saber que se está a fazer mal.

A MULHER- Agora cala-te com isso! Toma antes cuidado com a língua! Tenho estado a dar
voltas à cabeça este tempo todo para me lembrar se disseste aquilo de não se poder viver na
Alemanha de Hitler antes ou depois do que disseste sobre a Casa Castanha.

O MARIDO- Eu não disse nada disso.

A MULHER- Já te estás a portar como se eu fosse da polícia! O que me está a dar cabo da
cabeça é aquilo que o miúdo pode ter ouvido.

O MARIDO- A expressão "a Alemanha de Hitler" não faz, de todo, parte do meu
vocabulário.

A MULHER- E aquilo do vigilante do quarteirão, e aquilo de que os jornais estão cheios de


mentiras, e aquilo que há bocado disseste sobre a defesa anti-aérea, o miúdo não ouve uma
única coisa positiva! Isto não é nada bom para um espírito juvenil que, assim, só fica
desmoralizado, ao passo que o Führer está sempre a sublinhar que a Juventude da Alemanha
é o futuro da Alemanha. Na verdade, o miúdo não é nada do género de ir a correr até lá e
denunciar uma pessoa. Estou-me a sentir mal.

O MARIDO- Mas lá vingativo ele é.

A MULHER- Mas do que é que ele se havia de vingar?

O MARIDO - Sabe-se lá, há sempre qualquer coisa! Talvez por eu lhe ter tirado o sapo.

A MULHER - Mas isso já foi há uma semana.

O MARIDO- Mas é o tipo de coisas que ele não esquece.

A MULHER- E, também, por que é que lho tiraste?

O MARIDO- Porque ele não apanhava moscas para lhe dar. Estava a deixá-lo morrer à fome.

A MULHER- Mas ele tem realmente muito para fazer.

O MARIDO- O sapo é que não tem culpa nenhuma disso.

A MULHER- Mas ele nunca mais falou do assunto e ainda há bocado lhe dei dez pfennig.
Tem tudo o que quer.

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O HOMEM - Pois, é suborno.

A MULHER- Que queres dizer com isso?

O MARIDO- Eles vão logo dizer que nós tentamos suborná-lo para ele não abrir a boca.

A MULHER - O que é que achas que eles te podiam fazer?

O MARIDO- Ora, tudo! Não há limites! Meu Deus do Céu! E ser -se professor. Educador da
juventude! Medo deles, é o que eu tenho!

A MULHER- Mas há alguma coisa contra ti?

O MARIDO- Há sempre qualquer coisa contra seja quem for. Todos são suspeitos. Basta que
exista a suspeita, que uma pessoa seja suspeita.

A MULHER- Mas uma criança não é uma testemunha fiável. Uma criança não sabe, de
facto, o que diz.

O MARIDO - Isso dizes tu. Mas desde quando é que eles precisam de uma testemunha seja
para o que for?

A MULHER- Não podemos pôr-nos a imaginar aquilo que tu poderias ter querido dizer com
aqueles comentários? Quero dizer, ele interpretou-te mal.

O MARIDO- Mas o que é que eu posso ter dito? Já nem me lembro. A culpa disto tudo é da
maldita chuva! Uma pessoa fica de mau humor. Ao fim e ao cabo, eu sou a última pessoa a
ter alguma coisa a dizer contra o desenvolvimento espiritual que o povo alemão está a viver
hoje em dia. Eu já previa isto tudo nos finais de 1932.

A MULHER- Karl, não temos tempo para estarmos agora a falar sobre isso. Temos de afinar
muito bem todos os pormenores e já. Não podemos perder um minuto.

O MARIDO- Não consigo imaginar o Klaus-Heinrich a fazer uma coisa dessas.

A MULHER- Portanto, primeiro aquilo da Casa Castanha e das javardices.

O MARIDO- Eu não disse uma única palavra sobre javardices!

A MULHER - Disseste que o jornal estava cheio de javardices e que querias cancelar a
assinatura.

O MARIDO- Pois, acerca do jornal! Mas não da Casa Castanha!

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A MULHER -Não podias ter dito que desaprovavas essas javardices lá nas sacristias? E que
achavas ser bem possível que essas pessoas que hoje estão em tribunal tivessem sido as
mesmas que, em tempos, inventaram aquelas histórias horríveis sobre a Casa Castanha e
sobre o facto de as coisas lá não serem todas lá muito limpas? E que elas, já naquela altura,
deviam mas era varrer à frente da sua própria porta? E, sobretudo, tu disseste ao miúdo, larga
o rádio e pega antes no jornal, porque és da opinião que a Juventude do Terceiro Reich deve
ver com clareza o que se passa à sua volta?

O MARIDO- Isso não serve de nada.

A MULHER- Karl, tu agora não podes baixar a cabeça! Tens de ser forte, como o Führer
está sempre a...

O MARIDO- Não é possível eu sentar-me no banco dos réus do tribunal e, no banco das
testemunhas, está alguém da minha própria carne a testemunhar contra mim.

A MULHER - Não vejas as coisas assim dessa maneira.

O MARIDO- Darmo-nos com os Klimbtschs foi uma grande leviandade.

A MULHER- Mas a ele ainda não lhe aconteceu nada.

O MARIDO- Pois, mas já há a ameaça de uma inspeção.

A MULHER Se toda a gente, sobre quem já alguma vez houve ameaça de uma inspeção,
ficasse desesperada!

O MARIDO- Achas que o vigilante do quarteirão tem alguma coisa contra nós?

A MULHER - Queres dizer, se lhe forem perguntar alguma coisa?

O MARIDO- Quando fez anos, nós demos-lhe uma caixa de charutos dinheiro do Ano Novo
também foi bastante. Os Gauffs, aqui do lado, deram-lhe quinze marcos!

A MULHER - Esses, em 32, ainda liam o Vorwärts, e em Maio de 33 ainda penduraram à


janela a bandeira preta, branca e vermelha!

O telefone toca.

O MARIDO- O telefone!

A MULHER- Achas que atenda?

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O HOMEM- Não sei.

A MULHER- Quem poderá ser?

O MARIDO- Espera. Se tocar mais uma vez, podes ir atender.

Esperam. O telefone não volta a tocar.

O MARIDO- Isto assim já não é vida!

A MULHER- Karl!!

O MARIDO- Um Judas, é isso o que é o filho que tu me deste! Está sentado à mesa a ouvir,
enquanto come a sopa que lhe pomos à frente, e regista tudo o que os progenitores dizem, o
bufo!

A MULHER - Não digas uma coisa dessas!

Pausa.

A MULHER - Achas que devíamos fazer alguns preparativos?

O MARIDO -Tu achas que eles estão já a vir aí?

A MULHER- Não é bem possível?

O MARIDO- Talvez eu devesse pôr a minha Cruz de Ferro?

A MULHER- Com certeza, Karl!

Ele vai buscá-la e colocá-a, com as mãos a tremer.

A MULHER - Mas na escola não há mesmo nada contra ti?

O MARIDO - Como é que eu hei-de saber? Estou disposto a ensinar tudo o que eles quiserem
que se ensine, mas o que é que eles querem que se ensine? Se ao menos eu soubesse! Sei lá
como é que eles querem que Bismarck tenha sido! Se levam tanto tempo a publicar os novos
manuais! Não podes dar mais dez marcos à criada? Essa também está sempre à escuta.

A MULHER diz que sim com a cabeça - E a fotografia do Hitler, secalhar devíamos
pendurá-la por cima da tua secretária? Fica melhor.

O MARIDO - Sim, pendura-a lá.

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A Mulher vai pendurar a fotografia.

O MARIDO - Mas se depois o miúdo disser que nós a mudámos de sítio, isso é capaz de
revelar o nosso sentimento de culpa.

A Mulher volta a pendurar a fotografia onde antes estava.

O MARIDO- Não ouviste a porta abrir?

A MULHER -Não ouvi nada

O MARIDO -Eu ouvi!

A MULHER - Karl!

Ela abraça-o.

O MARIDO -Não percas a calma. Mete-me alguma roupa na mala.

Ouve-se a porta de entrada a abrir. O Marido e a Mulher ficam lado a lado, imóveis, a um
canto da sala. A porta abre-se e entra o rapaz, com um saco na mão. – Pausa.

O RAPAZ - O que é que vocês têm?

A MULHER- Onde é que tu te meteste?

O rapaz aponta para o saco com o chocolate.

A MULHER- Foste só comprar chocolate?

O RAPAZ - O que é que eu havia de ir fazer? Claro.

Atravessa a sala a mastigar e sai. Os Pais seguem-no com os olhos, inquirindo.

O MARIDO- Achas que ele está a dizer a verdade?

A Mulher encolhe os ombros.

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12 - A Hora do Trabalhador

Vêm os órgãos de propaganda


E para apregoar que o Povo manda
Enfiam-lhe o microfone na mão.
Mas como o Povo não é de fiar
Afiam as garras para calar
Quem não respeite o refrão.

Escritório do Diretor de uma fábrica. Um Locutor da rádio, de microfone na mão, entrevista


um Operário de Meia Idade, um Operário Velho e uma Operária. Ao fundo, um senhor do
Escritório e um Homem Robusto num uniforme das SA.

O LOCUTOR - Aqui estamos, no meio da agitação das engrenagens e das correias de


transmissão, rodeados de diligentes e infatigáveis camaradas que dão o seu contributo para
que a nossa querida Pátria tenha de tudo que necessita. Esta manhã estamos na Fiação Fuchs,
S.A; E por muito que o trabalho seja pesado e que retese cada músculo, contudo à nossa volta
só vemos rostos bastante alegres e satisfeitos. Mas deixemos que os nossos camaradas falem
por si próprios. Para o Trabalhador Velho: Você está na fábrica há vinte e um anos, Senhor…

O TRABALHADOR VELHO - Sedelmaier.

O LOCUTOR - Senhor Sedelmaier. Ora, Senhor Sedelmaier, por que razão é que vemos aqui
tantos rostos tão simpáticos e infatigáveis?

O TRABALHADOR VELHO depois de refletir um pouco - É que eles estão sempre a dizer
piadas.

O LOCUTOR - Ah. E assim, com piadas divertidas, o trabalho torna-se mais leve, é? O
Nacional-Socialismo não conhece qualquer espécie de pessimismo hostil à vida, quer você
dizer. Dantes as coisas eram diferentes, não eram?

O TRABALHADOR VELHO - Eram.

O LOCUTOR - No tempo da República de Weimar, o trabalhador não tinha motivos para rir,
quer você dizer. Dantes, o lema era: trabalhar para quê!

O TRABALHADOR VELHO - Pois, também há alguns que dizem isso.

O LOCUTOR - Como diz? Ah, sim, está a referir-se aos refilões, que há sempre aqui e ali,
mas que são cada vez menos porque compreendem que isso não ajuda nada, pelo contrário,
no Terceiro Reich tudo progride desde que voltou a haver uma mão firme. É o que também
você para a Trabalhadora queria dizer, Menina…

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A TRABALHADORA - Schmidt.

O LOCUTOR - Menina Schmidt. Em qual destas nossas máquinas gigantescas de aço é que
você trabalha?

A TRABALHADORA de cor - E temos também o trabalho de decoração do local de


trabalho, que nos dá muita alegria. O retrato do Führer conseguiu-se com donativos
voluntários e temos muito orgulho nisso. Assim como nos pés de gerânio, que dão um toque
de cor ao cinzento do local de trabalho, uma ideia da Menina Kinze.

O LOCUTOR - Quer dizer então que decorar o local de trabalho com flores, essas adoráveis
filhas dos campos? E de resto, houve muitas coisas que mudaram na fábrica, desde que o
destino da Alemanha mudou de rumo?

O SENHOR DO ESCRITÓRIO sussurrando - Balneários.

A TRABALHADORA - Os balneários foram uma ideia do Senhor Diretor Bäuschle, dele


mesmo, e nós gostaríamos de lhe apresentar os nossos agradecimentos do fundo do coração.
Quem quiser pode lavar-se nos belos balneários, se não houver gente a mais e empurrões.

O LOCUTOR - Pois, todos querem ser os primeiros, é? Há sempre uma alegre confusão?

A OPERÁRIA - Só há seis torneiras para 552. Há sempre briga. E muitos não têm vergonha
nenhuma.

O LOCUTOR - Mas tudo se passa na maior das harmonias. E agora aqui o Senhor – como é o
seu nome? – quer dizer-nos qualquer coisa.

O TRABALHADOR - Mahn.

O LOCUTOR - Portanto, Mahn. Senhor Mahn. Então diga lá, como é que as muitas
inovações introduzidas na Fábrica, Senhor Mahn, se repercutiram no espírito dos colegas de
trabalho?

O TRABALHADOR - Que quer dizer com isso?

O LOCUTOR - Pois, se vocês estão contentes por todas as engrenagens estarem de novo em
movimento e todas as mãos terem trabalho?

O TRABALHADOR - Sim senhor.

O LOCUTOR - E o facto de cada um poder levar para casa o envelope com o salário é uma
coisa que também não convém esquecer.

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O TRABALHADOR - Pois não.

O LOCUTOR - Nem sempre foi assim. No tempo do reviralho, muitos camaradas tinham de
percorrer o amargo caminho até à Assistência Social. E contentarem-se com uma esmola.

O TRABALHADOR - 18 marcos e 50. Sem descontos.

O LOCUTOR ri de forma forçada- Hahaha! Essa é muito boa! Não havia muito para
descontar.

O TRABALHADOR - Não, agora há mais.

O Senhor do Escritório avança, nervoso, assim como o Homem Robusto com o uniforme das
SA.

O LOCUTOR - Pois, e assim todos têm acesso ao pão e ao trabalho no Terceiro Reich, tem
toda a razão, Senhor – como era o seu nome? Não há engrenagens paradas, não há braços a
enferrujar na Alemanha de Adolfo Hitler. Afasta o Trabalhador, com brutalidade, do
microfone. Em alegre cooperação, os trabalhadores intelectuais e os trabalhadores braçais
avançam para a reconstrução da nossa querida Pátria Alemã. Heil Hitler!

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13 - O CAIXÃO

Vêm com caixões de zinco


Onde escondem com afinco
Um homem que eliminaram.
Ele não se deu por vencido
Lutou pelo que lhe era devido
Na luta de classes feroz que travaram.

Habitação operária. Uma Mulher com duas Crianças. Um Trabalhador Jovem e a sua
Mulher, que estão de visita. A Mulher chora. Ouvem-se passos nas escada. A porta está
aberta.

A MULHER - Ele só disse que pagavam salários de fome. E é verdade. A mais velha está
doente dos pulmões e não temos dinheiro para comprar leite. Não lhe podem ter feito mal.

Homens das SA entram com um caixão grande e colocam-no no chão.

O HOMEM DAS SA - Agora não se ponha para aí com tragédias. Uma inflamação pulmonar
qualquer um pode apanhar. Tem aí os papéis. Tudo em ordem. E veja se não faz nenhum
disparate.

Os Homens das SA saem.

UM FILHO - Mãe, o pai está aí dentro?

O TRABALHADOR aproximando-se do caixão - É de zinco.

O FILHO - Não o podemos abrir?

O TRABALHADOR enraivecido - Claro que podemos. Onde é que tens a caixa das
ferramentas?

Procura ferramentas. A jovem Mulher tenta detê-lo.

A MULHER NOVA - Não o abras, Hans! Ainda te vêm buscar também.

O TRABALHADOR - Quero ver o que lhe fizeram. Eles têm medo que se veja. Senão não o
traziam num caixão de zinco. Deixa-me!

A MULHER NOVA - Não te deixo, não. Não os ouviste?

O TRABALHADOR - Podíamos ao menos vê-lo ainda, não?

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A MULHER dá as mãos aos Filhos e aproxima-se do caixão de zinco - Ainda tenho um
irmão que eles podem vir buscar. O caixão pode ficar fechado. Não precisamos de o ver. Não
o vamos esquecer.

18 - SOCORRO DE INVERNO

Os do Socorro d’ Inverno por fim


Vêm com bandeiras e som de clarim
À caça dos pobres e esfomeados.
Arracam-lhes trapos e comida
Para distribuir em seguida
Por outros pobres desgraçados.

As mãos que matam um irmão


Calam a lamentação
Com esmolas como convém
As esmolas assim são dadas
Ficam nas goelas atravessadas
E o Heil Hitler também.

À casa de uma Mulher Idosa, que está sentada à mesa com a Filha, dois Homens das SA
trazem um pacote do Socorro de Inverno.

O PRIMEIRO HOMEM DAS SA - Aqui tem. avózinha, que lhe manda o Führer.

O SEGUNDO HOMEM DAS SA - Para que não diga que ele não se preocupa consigo.

A MULHER IDOSA - Muito obrigada, muito obrigada. Batatas, Erna. E uma camisola de lã.
E maçãs.

O PRIMEIRO HOMEM DAS SA - E uma carta do Führer, com uma coisa lá dentro. Abra lá!

A MULHER IDOSA abre a carta - Cinco marcos! E agora, o que é que tens a dizer, Erna?

OS DOIS HOMENS DAS SA - Socorro de Inverno!

A MULHER IDOSA - Tem de aceitar uma maçãzinha, Jovem, e você também. Por terem
trazido isto e por terem subido as escadas. Não tenho mais nada. E eu também vou comer já
uma.

Dá uma dentada numa maçã. Todos comem maçãs, excepto a Mulher Nova.

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A MULHER IDOSA - Come uma também, Erna, não fiques com essa cara! Já estás a ver que
as coisas não são como o teu marido diz.

O PRIMEIRO HOMEM DAS SA - O que é que ele diz?

A MULHER NOVA - Ele não diz nada. É a velhota a dizer disparates.

A MULHER IDOSA - Não, são só coisas que ele diz à toa, nada de mal, sabe, o mesmo que
toda a gente diz por aí. Que os preços subiram um bocadinho nos últimos tempos. Aponta
com a maçã para a Filha. E ela realmente fez as contas no livro das despesas da casa e
concluiu que, este ano, gastou mais 123 marcos em comida do que no ano passado. Não foi,
Erna? Ela vê que os Homens das SA parecem ter levado isto a mal. Mas isto também só
acontece porque se está a arranjar cada vez mais armamento, não é? O que é que foi? Eu
disse alguma coisa?

O PRIMEIRO HOMEM DAS SA - Onde é que a jovem senhora guarda, então, o livro das
despesas da casa?

O SEGUNDO HOMEM DAS SA - E a quem é que mostra o livro das despesas da casa?

A MULHER NOVA - É só da casa. Não o mostro a ninguém.

A MULHER IDOSA - Mas o Senhor não pode levar a mal que ela tenha um livro das
despesas da casa, não é verdade?

O PRIMEIRO HOMEM DAS SA - E que ela ande por aí a espalhar barbaridades, também
não podemos levar mal, é?

O SEGUNDO HOMEM DAS SA - E eu também não a ouvi, quando nós entrámos, a dizer
Heil Hitler bem alto e a bom som, tu ouviste?

A MULHER IDOSA - Mas ela gritou Heil Hitler e eu também grito. Heil Hitler!

O SEGUNDO HOMEM DAS SA - Isto é mas é um belo ninho de marxistas, onde viemos
parar, Albert. Temos de ver mais de perto esse livro das despesas da casa, venha já daí
connosco e leve-nos ao sítio onde mora. Agarra a Mulher Nova pelo braço.

A MULHER IDOSA - Mas ela está de três meses! Não podem… Não se faz! Se até
trouxeram o saco e aceitaram maçãs, Erna! Ela disse mesmo Heil Hitler, o que é que eu faço
agora, Heil Hitler! Heil Hitler!

Cospe a maçã. Os Homens das SA levam a Filha.

A MULHER IDOSA continuando a cuspir: Heil Hitler!

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