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Poucos conheceram a fundo a pessoa do “Pato n'Água”, apitador do

cordão Vai Vai, grupo carnavalesco criado às margens do não tão caudaloso
"córgo" da Saracura, no nunca por demais assaz louvado bairro do Bexiga. È
vero...
O "Da Lagoa" era uma figura estranhíssima, solitária no meio de uma
multidão, mais alto que a média dos negros do Brasil, - com quase 2 metros de
altura - talvez por uma ascendência Masai ou Zulu, vai saber! A sua presença,
apenas a sua presença, metia medo. Acho que ele nunca riu ou sorriu na vida,
e nem chorou. E ele era bravo, meu Deus, como era bravo! Eu nunca vi ou
soube de alguém de tão maus bofes como ele, juro por Deus, quero morrer
cego se estiver mentindo e olha que eu não costumo exagerar em minhas
afirmações, já disse isso mais de dez milhões de vezes!
Oswaldinho da Cuíca, misto de policial e sambista, figura importante do
burocratizado carnaval de nossa Paulicéia, certa vez disse:
- "... Eu nunca falei com o Pato... Quando eu o via vindo na calçada,
atravessava a rua e ia prá outra... Toda vez que eu via ele, alguém estava
sendo espancado... Não dava prá "bater uma caixa" com ele, não tinha diálogo
(e nem monólogo, não tinha nada, a fera era caladona).”
A primeira lembrança que eu tenho do Pato é uma lembrança boa,
embora tudo tenha começado de maneira assustadora, para não dizer
apavorante. Vou contar...
Acho que tinha eu meus 5 anos quando minha mãe, a D. Zezé, colocou
um “Getulinho” em minha negra mãozinha (o “Getulinho” era uma moedinha de
20 centavos de Cruzeiro que nos anos 40 estava substituindo a moeda de 200
réis) e disse:
- "... Vai lá no 'seu' Marciglio e compra dois dentes de alho. Vai logo que
eu preciso fazer o arroz e não dá prá desperdiçar o carvão... Vai logo... Corre...
Corre...” - (é verdade, “dois dentes de alho!” Não havia dinheiro para uma
cabeça)
O empório do 'seu' Marciglio ficava na Rua Ruy Barbosa, esquina com
Rua Fortaleza e tinha portas para as duas ruas; era um lugar escuro, frio.
Vendia de tudo, desde querosene a agulhas e linhas; de bacalhau à mortadela
italiana cortada à faca em grossas lascas e fatias; de arroz, feijão a granel a
veneno para rato, uma festa!
Naquele dia havia um pessoal encostado ao balcão bebendo cerveja e
cachaça, fazendo "dispesa di barcão", no dizer dos vagolinos da época.
Reconheci alguns: Nêgo Testa, Tininho, Vando, Liquinho, Boca de Barro,
Jamico, Bilico e a fera Pato n'Água. Bebiam em silêncio como se estivessem
cumprindo um ritual, enchiam a caveira metodicamente. Eu, que não era bobo
nem nada, fui para a outra ponta do balcão:
- “'Seu' Marciglio, me dá dois dentes de alho, por favor?”
- “Fala prá sua mamma que 'io' no vendo mais alho aos poucos. Tem
que levar uma cabeça...”.
- “Mas eu só tenho duzentorréis...”
- “Intó num leva, caspite...”
Foi aí que a coisa pegou no breu. Com seu andar gingado de urubu
malandro, o Pato veio até onde eu estava, colocou uma mão que pesava uma
tonelada em meu ombro, encarou o velho comerciante e boquejou, com voz de
trovão, um vinco nada simpático na testa:
- "Argum pobrema co neguinho? Qualé o parangolé, intaiâno?".
- “Ele quer comprar alho, mas não tem dinnaro, 'seu' Pato...”.
- "Num tem pobrema, vende assim mesmo, e vende uma cabeça...
Duzentos réis dá e sobra prá pagar... Vai lá moleque, ele vai vendê procê! Óia
aqui, 'seu' Marciglio, imbruia um pacotinho de rebuçados tamém! 'Cê' gosta de
doce, num gosta?”
- “Gosto...”.
- “'Qué' leva mais arguma coisa, um guaraná, uma 'manzibir'?”
- “Não senhor... Brigado”.
E foi assim que minha mãe conseguiu temperar o arroz naquele dia...
Mas confesso que fiquei com medo, se não molhei nem borrei minha calça,
agradeço a Nossa Senhora Achiropita que segurou minha barra...
O 'seu' Marciglio? Bem, nem eu nem ele nunca comentamos o
acontecido; e ele também não cobrou o extra, embora o risco de infarto agudo
de seu miocárdio deva ter aumentado alguns pontos a partir daquele dia...
Uma história sobre o 'Da Lagoa': Futebol, batuque comendo solto à
margem do campo do Éden Liberdade que ficava entre a Avenida Brigadeiro
Luiz Antônio e a Rua Vergueiro. O Boca Junior do Bexiga vai cumprir mais uma
partida "amistosa" contra seu maior rival, o Éden Liberdade. As margens do
campo estão lotadas de torcedores,cavalarianos da Força Pública - dezenas
deles - fazem o policiamento. É um domingo de festa que vai terminar mal,
infelizmente.
Um gol do Éden, gozação, insultos. Pato n'Água se irrita e invade o
campo seguido por dezenas de torcedores. O tempo fecha. Pauladas, rabos de
arraia, bandas, cabeçadas sem grampear, gente com o 'zinco' na mão,
negaças. Os policiais à cavalo vão para cima do Pato em um galope
desenfreado, espadas desembainhadas. Pato 'fica pequeno' (se agacha,
desvia), o golpe de espada não o atinge.
O “meganha” retorna, vem rápido, vai empinar o cavalo sobre o Pato.
Não teve tempo! Pato n'Água dá uma voadora e derruba cavalo e cavaleiro
com espada e tudo. Lógico que o jogo não teve prosseguimento... Foi uma
correria total; naquele tempo existia uma mata que começava na Rua Paraíso e
se estendia até a Rua Condessa de São Joaquim, uma mata fechada e em seu
interior corria o riacho do Itororó, hoje, tudo aquilo, toda aquela exuberância,
transformou-se na Avenida 23 de Maio. Por ali o pessoal fugiu, tanto os
libertinos quanto os bexiguentos...
Derrubar um cavalo com uma voadora, meu Deus...
Durante anos, o Pato n'Água comandou o batuque do cordão da Vai Vai,
mudou de agremiação algumas vezes à medida que ia envelhecendo, mas
sempre voltava para o Bexiga, nem que fosse para assistir aos ensaios na
Saracura. O gênio irascível o acompanhou até o fim da vida; violento, morreu
violentamente em uma época de esquadrões de extermínio, esquadrões da
morte, de violência política da ditadura.
Pato n'Água foi o fundador não-oficial da Gaviões da Fiel, fazia parte do
corpo de segurança pessoal do presidente do Corinthians (não, não era o
Matheus, mas não vou citar o nome do cara...), que, diga-se de passagem,
andou tomando umas bordoadas do próprio guarda-costas... (- “...que é prá
deixá de sê forgado... Nóis qué titro!..”).
Sua morte nunca foi muito bem explicada: foi abordado por uma viatura
da Rota e no dia seguinte seu corpo foi encontrado em uma lagoa em Suzano,
simples assim.
Naquele dia o Pato estava endinheirado, recebera o FGTS do
Corinthians. Seus préstimos foram dispensados após o presidente ter recebido
alguns “catufes” da fera. Se tem dinheiro, "vamos às mulheres", malandragem!
Moeda é redonda que é prá rolar!
Geraldo Filme esteve com ele durante todo o dia e boa parte da noite
antes de sua morte... Uma vez lhe perguntei o que, verdadeiramente, tinha
acontecido, mas o grande sambista desconversou... Achei melhor não insistir;
muitas coisas estranhas aconteciam naqueles anos de chumbo de Fleurys, de
DOPS de DOI-Codis...
Pato n'Água, a cara do Bexiga dos anos 40 até os 60... Parece que
ainda escuto aquela voz de trombone:
-"Que qui tá me oiando? Vai querê tira retrato, seu estácio
embandeirado?”.
Melhor correr!...
Autor(a): Joaquim Ignácio de Souza Netto

PATO N'ÁGUA - UM SAMBISTA DO POVO MORTO EM 1969 - O MELHOR


MESTRE DE BATERIA É MEMÓRIA VIVA NA HISTÓRIA DO SAMBA
PAULISTA - TEM QUE SER LEMBRADO SEMPRE!!

1969, ano em que o General Garrastazu Médici assume a Presidência


da República, como terceiro Presidente da República Militar(Ditadura Militar). A
polícia repressora ditava todas as diretrizes contra a população que se
manifestava contra o regime. Torturas, assassinatos, exílios, prisões arbitrárias,
eram os maiores enredos deste regime cruel e sanguinário.
Neste mediar de tempo em alguns Estados da federação, instituiu-se o
famoso e temível esquadrão da morte, polícia que aplicava a pena de morte
sem qualquer julgamento prévio.
Lembro-me bem de uma reportagem que eu li, ainda na infância, de um
suposto bandido negro executado nas imediações de Guarulhos, cidade
próxima à capital. Manchete ( BANDIDO MORTO PELO ESQUADRÃO DA
MORTE!).
Com toda a turbulência que se abateu sobre os brasileiros, o Pais nunca
deixou de ser o País do carnaval, do samba e do futebol e, aqui em São Paulo,
entre Jovem Guarda e bossa nova, os bambas do samba, já acostumados
historicamente com a repressão policial que violentamente tentava acabar com
as manifestações culturais negras, davam chutes na ditadura e mandavam o
batuque para frente.
Dentro desta turma dos bambas do samba, emergiram grandes nomes e
notáveis como Dionísio Barbosa, fundador do grupo da Barra Funda, Madrinha
Eunice, fundadora da Escola de Samba, Lava Pés, Pé Rachado e Pato N'Água,
fundadores da Escola de Samba Vai Vai, Carlão do Peruche, Geraldão da
Barra Funda dentre outros.
No Samba Paulista, um nome tornou-se legendário e lendário. Era um exímio
jogador de tiririca(Capoeira).Dançava samba na aba do chapéu. Um mestre de
bateria impecável. Mestre do apito como ele mesmo gostava de ser chamado.
Era o diretor de bateria da Escola de Samba Vai Vai, escola que ajudou a
fundar no Bexiga. Também era chefe da torcida uniformizada do Corinthians.
" Segundo narração de Plinio Marcos, o mestre de bateria resolveu tirar o dia
para visitar as cabrochas, as suas cabrochas no extremo da zona leste.
Contratou um taxista para ficar à sua disposição o dia inteiro. O taxista,
desconfiado, talvez por ser Pato N'Água negro, ligou para a polícia. O mestre
de bateria durante o seu trajeto visitava uma comadre, para tomar um
cafezinho, visitava outra também, e, assim sucessivamente ia matando a
saudade das suas cabrochas. (Ou será que já era uma despedida?)
No dia seguinte Pato N'Água foi encontrado boiando em uma lagoa em
Suzano. Não foi de susto, porque Pato N'Água era corajoso! Não foi afogado,
porque nadava como um pato N'Água. O que se sabe é que foi crivado de
balas! O que aconteceu ninguém sabe! Defunto não fala.
A notícia chegou ao Bexiga e às comunidades do samba fazendo estrago
como uma bomba, na hora da Ave Maria! O Povo do samba chorou! E o
Geraldão da Barra Funda, o Geraldo Filme, chorou junto com o samba"
Silêncio No Bexiga" Uma verdadeira exéquia para o amigo Walter Gomes de
Oliveira, o Pato N'Água, como diz um dos versos do samba: Sambista de rua
morre sem glória....E Pato N'Água , um mestre de bateria que era impecável no
apito, é muito pouco lembrado pelos anais do samba, exceto pelos seus
amigos sambistas e parentes. mas mestre Pato N'Água, está sim na história do
samba. Na história do samba Paulista. Um marco do carnaval! Um marco da
história da cultura brasileira e da história! Talvez seja apenas um número.
Dizem que foi uma vítima do ESQUADRÃO DA MORTE EM PLENA
DITADURA MILITAR.(Fato não comprovado com documentos: São apenas
suposições e especulações) citadas em vários escritos sobre o assunto. O que
foi verdadeiro é que o Pato foi assassinado e o carnaval paulistano perdeu o
seu grande mestre de bateria.

"Texto tirado do artigo A História do Samba de São Paulo,publicado nesta


página"

Pra contar o final da história, Plínio Marcos, em um texto que saiu no dia 13 de
fevereiro de 1977 na Folha de S. Paulo: "O que se sabe é que a notícia chegou
no Bexiga à tardinha, na hora da Ave-Maria, e logo correu pelos estreitos,
escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. E por todas as
quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo e as pragas botam
os ovos, o povão chorou a morte do sambista Pato Nágua. E o Geraldão da
Barra Funda, legítimo poeta do povo, chorou por todos num bonito samba
chamado Silêncio no Bexiga".

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