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Copyright © 2022 by Vladimir Borges de Silveira, Coletivo de Escritores Brasiguayos

Ore Rohai
Copyright do Texto © 2022 by Vladimir Borges de Silveira

Todos os direitos reservados.

Grafia conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

REVISÃO
Manoel Rodrigues
DIAGRAMAÇÃO
Henrique dos S. Mosciaro
CAPA
Henrique dos S. Mosciaro
Imagens da Capa
Canva

2022
Esta edição possui todos os direitos reservados a
Vladimir Borges de Silveira
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tumblr.com/vlad-bs
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Sumário

Morto, tenente.
Autor
Àqueles que foram perseguidos, torturados e mortos durante a ditadura militar de
1964. Vocês foram dados como terroristas na época e hoje são dados como
desaparecidos, mas jamais serão esquecidos.
Aviso ao leitor
A seguinte história apresenta violência gráfica, uso de arma branca
(faca), mutilação, sangue, e relatos históricos sobre tortura.
A intenção não é causar qualquer espécie de desconforto ao leitor,
pode interromper sua leitura caso sinta qualquer tipo de incômodo.
Morto, tenente.

Roberto Santos, um senhor de idade avançada, extremamente conhecido


pela comunidade local. Seus vizinhos o conheciam, sabiam que ele havia se
mudado para o interior há pouco mais de quarenta anos.

Aposentado do exército, sem filhos, sem esposa, sem familiares


próximos, mas um senhor cheio de vida e que amava conviver em
comunidade. Participava das missas da igreja matriz, fazia diversas ações
sociais em prol dos mais necessitados, era um cidadão exemplar.

O cidadão perfeito.

Roberto Santos foi encontrado morto, amarrado pelos pés e mãos em


uma barra de ferro na praça do centro da cidade. Tinha diversas marcas de
cortes, queimaduras na pele, seu rosto estava parcialmente destruído por
algo que parecia uma queimadura química.

Dois de seus dedos foram arrancados e estavam dentro de sua boca.


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Aquilo havia chocado a cidade completamente.

"Aquilo era um completo horror!", disse o dono da sapataria.

"Ravi, como podem ter feito isso com um senhor tão doce e
inocente?", disse uma de suas vizinhas.

Claro que era revoltante ver aquilo acontecendo, como poderiam ter
cometido uma atrocidade dessas? Até mesmo mordidas e arranhões de rato
em seu ânus foram encontradas, ele havia sido torturado e humilhado antes
de ser morto.

Ele foi encontrado sem dois dedos, seus dois dedos mindinhos.

Isso me fez lembrar da única coisa que tenho em casa de meu pai que
ele nos deixou depois de desaparecer: seus dedos. Eles chegaram em uma
caixa, no meio da noite. Minha mãe chorou muito naquele dia e desde então
soube que meu pai havia nos deixado.

No ano seguinte, seu Santos havia chegado à cidade. Mamãe nunca


deixou que eu me aproximasse de nosso vizinho, mas o tempo foi passando
e nós envelhecemos.

Mamãe faleceu há uns dez anos, e seu Santos estava sozinho. Assim
como eu estava, decidi então me aproximar.

Por muito tempo confiei nele, até duas semanas atrás quando
encontrei, em meio ao lixo, diversas pastas e cadernos com nomes de
pessoas que até então estavam dadas como desaparecidas.

Um único local estava presente: o assentamento.

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Levar à prefeitura, pedir para cavarem e se deparam com as ossadas.
Dentre elas uma estava sem os dedos mindinhos.

Diversas ossadas foram encontradas, em torno de quarenta a


cinquenta, e o IML estava realizando o procedimento de encontrar com base
na arcada dentária — isso quando era possível realizar esse tipo de análise,
já que os ossos estavam bem frágeis.

Eu, enquanto vizinho mais próximo de seu Santos, tinha a chave da


casa. Entrei naquele lugar, estava vazio, e inclusive havia uma conversa
paralela dizendo que sua residência iria se tornar um patrimônio da cidade.
Alguns moradores queriam que fosse um lugar que honrasse a vida de seu
Santos, eu precisei averiguar o estado da casa, eu queria saber se ela
atendia os requisitos da minha proposta para que ali fosse feita a construção
de um memorial das vítimas desconhecidas que haviam encontrado, há
duas semanas atrás, em valas na região rural da cidade.

A sala e a cozinha da casa eram comuns e sem graça. O banheiro da


casa também era bem apertado, além sem graça. Já o quarto de meu
vizinho estava uma bagunça, por mais que a polícia já tivesse feito a perícia,
ainda tinha bastante sangue no colchão da cama de casal.

Ainda me lembro dos gritos abafados pela mordaça que eu coloquei


nele. Alguns cortes usando um facão bem afiado, mas não profundos o
suficiente para que ele não perdesse sangue muito rápido.

Queria vê-lo sofrer. Queria que ele morresse da mesma forma que ele
matou todas aquelas pessoas que foram encontradas há duas semanas no
assentamento de um dos coronéis da polícia militar da cidade.

Eu conheci muitas histórias na minha família sobre o que meus pais


passaram quando a polícia prendeu eles, injustamente, diversas vezes.

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Minha mãe me contou de uma técnica de tortura que usavam, eles
colocavam um rato dentro de uma chaleira, colocavam o bico da chaleira na
bunda do preso e esquentavam, fazendo com que o pobre animal buscasse
sair pelo buraco da chaleira e entrasse na cavidade anal daquele que
estivesse detido para ser "interrogado".

Ela também me contou que meu pai desapareceu pouco antes de eu


nascer, ele foi levado para a polícia e nunca mais voltou. A década de
setenta foi um período bem conturbado no Brasil, mas foi a época que eu
nasci... em meio ao caos, então eu não poderia ser diferente do meio em
que convivi.

As manchas de sangue no chão também eram muito vívidas, quando


eu amarrei seus pulsos e o puxei até a sala de sua casa. O cheiro de carne
queimada por ácido muriático ainda era forte na sala, foi uma pena ter
dilacerado um rosto tão jovial quanto aquele...

O cheiro ainda marcante de ácido me incomoda, decido então sair e


tomar um pouco de ar, andar até a praça da igreja. Seu Roberto morava de
frente para a praça.

E me lembro bem de ter o levado até a praça, arrastando-o nas ruas


de pedra da cidade — me entristece ter sujado aquelas ruas com o sangue
de um assassino em série como aquele —, até chegar à praça da igreja
matriz. Durante a última reforma, a prefeitura instalou equipamentos para
que a população se exercitasse.

Nas barras de ferro que haviam sido instaladas ali com a intenção de
que se fizessem flexões, encontro um outro funcionamento para elas: servir
de pau de arara. Quando uma pessoa está viva, ela ainda resiste para que
não seja morta ou amarrada em uma posição desconfortável como aquela,
não tive outra escolha que não desacordá-lo.

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Batendo sua cabeça contra a estrutura de concreto que sustenta a
barra de ferro, uma mancha de sangue surge no concreto pintado de
branco. Eu preferia que fosse pintado de outra cor como azul ou verde, mas
vermelho deixa um tom especial naquele lugar. Traz uma certa vivacidade à
praça, que até então era monocromática.

Ao ver a forma como a barra de ferro levemente entortou com o peso


do corpo do Seu Roberto, lembro-me bem de tê-lo amarrado naquela barra
de ferro. Ele não conseguia se mexer direito, estava imóvel e indefeso.

— Não durma Seu Roberto — disse ao morto, dando-lhe alguns tapas


na cara para que acordasse. — Ah, aí está você! — ele havia despertado.

Gritava com todo ar que lhe restava nos pulmões, mas nada se
entendia por conta da mordaça que levava em sua boca.

— Não se preocupe, tenente. — Eu encosto o facão em seu pescoço.


— Você não precisa mais guardar seu segredinho sujo, eu já descobri tudo...

Passo a faca, cortando seu pescoço. Em questão de minutos, ele


estava engasgando no próprio sangue... ou apenas estava perdendo sangue
muito rápido e formando uma poça no chão da praça...

Não sei como ele morreu, mas sei que eu o matei.

Ante seu corpo, agora sem qualquer vida, ergo o facão novamente e
corto seus dois dedos mindinhos.

Tiro a mordaça de sua boca e coloco seus mindinhos ali dentro, e


tampo-a novamente com a mordaça.

Fico ali, analisando a praça quando escuto uma chamada em meu


telefone. Era da companhia de mudanças.

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— Suas coisas já foram colocadas dentro de sua nova casa, Seu Ravi
— diz o rapaz da mudança.

— Muito obrigado, jovem.

Entro em meu carro, e dou a partida. Olho para o facão


ensanguentado e sorrio, dirigindo em direção à outra cidade.

— Te vejo no inferno, tenente.

Finalmente te vinguei, pai.

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Autor

Sou filho do caos da mente de outro ser que é tão sombrio quanto eu, mas
que não se atreveu a vivenciar minha essência escura da forma que deveria.
Minha luta contra o mundo pauta-se em escrever suas injustiças em forma
de atrocidades que levantem uma reflexão moral acerca do que realmente é
correto.
Defunto escritor, Vladimir Borges de Silveira é aquele que assume,
escreve e assina todos os seus pensamentos sombrios na maior
naturalidade.
Em outubro de 2022 fundou junto a mais dois autores o Coletivo de
Escritores Brasiguayos Ore Rohai, com a intenção de trazer visibilidade a
autores brasiguayos.

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