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Dedicatória
Citações
Prólogo: Contágio
Highway to Hell
Fuga
O Ano Novo
Estrada Velha
Dia de Treino
O Pulso Ainda Pulsa
Instruções oficiais
Quebrada
Homem Morto
Sangue, suor e lágrimas
O bem, o mal e além
Sacrifício
Para Kika, minha motivação para ser sempre o meu melhor.
Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também
um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para
você.
- Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal
Gustavo acordou em sua antiga cama na casa de seus pais. Assim que soube que
eles estariam viajando durante o fim do ano, teve a ideia de chamar seus amigos
para passar o réveillon em Santos, desfrutando o conforto daquela casa de trezentos
metros quadrados a alguns quarteirões da praia. Até aquele momento eram as férias
perfeitas, tanto para ele e seus amigos, quanto para seus pais, em algum país da
Europa, sem saber dos planos do filho.
Colocou-se de pé e abriu a cortina da janela, deixando a luz da tarde iluminar o
quarto. Pela posição do sol já passava das três da tarde. O inconfundível cheiro de
bacon vindo da churrasqueira despertou seus sentidos como nenhum despertador
poderia fazer. Desceu ao andar térreo, na área externa aos fundos da casa, e viu
Diego, Chuaza e Hulk sentados à mesa, esperando mais um parceiro para jogar
truco, enquanto Zé preparava as carnes. Pegou e abriu a latinha de cerveja mais
gelada que encontrou no freezer e ficou por ali, falando bobagens com seus
amigos, comendo, bebendo e jogando.
O dia passou num instante. Eram mais de dez horas da noite quando eles saíram
de casa para ir à praia ver a tradicional queima de fogos de virada de ano. Na rua,
uma procissão interminável de pessoas indo na mesma direção, cada grupo com
seu isopor ou sacola térmica, alguns levando fogos de artifício, rojões ou
bombinhas.
Na praia, no mesmo local onde jogaram rúgbi na noite anterior, seguiram
caminhando em direção ao mar, até ficarem mais perto da água. A praia de Santos
tinha uma ampla faixa de areia, com cem metros entre o jardim e a água, mas a
multidão que se aglomerava ali para ver o espetáculo preenchia todo o espaço
disponível.
Para Gustavo era sempre especial ver a praia tão cheia durante a noite, todos
vestidos de branco e celebrando. Era como se naquela única noite do ano ele
tivesse algo em comum com todas as pessoas naquele lugar. A família que estava à
direita de seu grupo não era um bando de estranhos barulhentos incomodando, mas
uma família aguardando a queima de fogos à meia noite. O rapaz à sua frente não
ficou bravo quando Diego abriu um espumante e a rolha caiu na cabeça de sua
noiva. Era noite de réveillon. Todos riram do acidente e continuaram se divertindo.
Diego não estava tão empolgado quanto os demais. Sua frustração consigo
mesmo crescia cada vez que via Desihee nos braços de seu amigo. Para sua
infelicidade, esta passou a ser uma cena cada vez mais comum. Os dois não
estavam mais preocupados em esconder seu relacionamento do grupo, ficavam o
tempo todo abraçados na frente de Diego, sem saber o quanto isto o incomodava.
Quando estavam na praia, aguardando a queima de fogos, os dois começaram a se
beijar. Aquilo era demais para ele. Virou as costas e afastou-se de todos,
caminhando em direção à água.
Parado ali, olhando os navios que flutuavam no mar escuro, Diego ouviu
alguém tossindo insistentemente ao seu lado. Ao virar-se, viu um velho sentado em
uma cadeira de praia, com aparência nada saudável. Ele mantinha as mãos sobre a
cabeça, como quem sofre de uma fortíssima enxaqueca, enquanto resmungava algo
inaudível. Sua camisa exibia pequenas manchas de sangue sobre seu peito e
barriga.
— Senhor — disse Diego, agachando-se ao seu lado –, você está bem?
Percebendo o quão imbecil fora sua pergunta, Diego se corrigiu: — Tem uma
ambulância ali no canal. Quer que eu te acompanhe até lá?
O velho resmungava algo que Diego ainda não conseguia compreender.
Chegando mais perto, pôde discernir algumas palavras: — Barulho dos infernos...
não calam a boca.
— Senhor?
O velho ergueu a cabeça e olhou para Diego como se somente então tivesse
percebido de sua presença. O rapaz recuou assustado ao notar seus olhos. As
escleróticas, parte branca ao redor das íris, estavam completamente vermelhas,
como se estivessem cobertas de sangue pisado.
— Vamos comigo até a ambulância? — disse o rapaz, contendo o pavor que
sentia do olhar demoníaco do velho. — Você não tá legal.
— Não te conheço, moleque! — o senhor gritou — Por que todo mundo não
cala a boca?
— Eu só quero te ajudar — disse Diego. — Qual o seu nome?
O homem ficou em silêncio por alguns segundos e desfez sua expressão de
poucos amigos, então respondeu.
— Me desculpe, rapaz — disse o senhor. Agora sua voz estava fraca e ele
parecia confuso — Meu nome é Otávio Monteiro. Minha cabeça... O barulho...
Sem conseguir concluir o que queria dizer, Monteiro despejou um jato de
vômito na areia, atingindo o pé do rapaz. Então curvou-se para frente e caiu da
cadeira, desmaiado.
Diego levantou-se sem saber se gritava de nojo pelo estado do seu pé ou se
fazia algo pelo velho. Virou-se para trás e viu seus amigos. Para sua sorte, Hulk
estava olhando em sua direção. Diego sinalizou para que ele viesse ajudar. Quando
seu amigo chegou, ele explicou a situação. Em seguida, Hulk pegou o senhor no
colo e os dois o levaram até a ambulância, sem tempo de avisar aos demais.
No dia seguinte ao réveillon, Gilberto saiu do seu quarto por volta das 8 da
manhã. Era mais tarde do que ele costumava começar o dia, mas precisou das horas
extras de sono para se recuperar da noite anterior. Foi até o restaurante do hotel
buscar café da manhã para sua esposa e filha. O serviço de quarto estava pago,
porém não se acostumava com a ideia de alguém lhe servindo o tempo todo.
Preferia fazer as coisas por si próprio.
Chegando de volta ao quarto, viu que Monique insistia em dormir, mesmo com
a claridade entrando pela fresta da cortina que ele tinha aberto antes de sair.
Sentou-se na cama ao seu lado e observou-a por um tempo. Tentou absorver o
máximo daquele momento. Os dois costumavam ter uma rotina tão corrida que ele
não se lembrava da última vez em que tinha parado para admirar sua esposa
dormindo. Num movimento suave, Gilberto ajustou os cabelos de Monique por trás
da orelha, revelando em rosto um sorriso preguiçoso.
Gilberto chamou a filha no quarto ao lado e sentaram-se à mesa para tomar o
café da manhã. Como sempre, as duas riram da forma como ele saboreava seu café,
como se fosse uma experiência única. Ele tentou explicar sobre o café colombiano
que estava tomando e como as papilas gustativas localizadas em diferentes pontos
da língua sentem diferentes notas de amargor e doçura, mas desistiu assim que sua
filha mergulhou uma bolacha de maisena no café dela. Continuaram trocando
provocações de brincadeira e comendo croissants até que o celular de Monique
tocou. Ela levantou-se e foi até a varanda para atender a ligação.
Um longo silêncio tomou conta do quarto até que Monique voltou para a mesa
com o semblante sério demais para um dia de férias.
— Minha irmã está no hospital — explicou. — Preciso voltar a São Paulo.
— Nossa, mãe. O que houve com a tia Jacque? Ela estava tão bem no Natal.
— Não sei, é alguma virose. Começou com dor no corpo e febre ontem e hoje
está com uma dor de cabeça muito forte. Não está falando coisa com coisa. Vou ao
hospital tentar ajudar de alguma forma.
Gilberto e Rita levantaram-se da mesa e foram arrumar suas malas às pressas,
então Monique disse: — Mon amour, você não precisa ir... Eu consigo cuidar de
tudo por lá. Sei que seu compromisso aqui é importante. — disse, referindo-se a
um encontro que Gilberto tinha marcado para aquele dia com seu irmão em Santos.
— Tem certeza, Môn? Posso desmarcar e ir contigo, não é nada demais.
— Você não vê o Pietro há uns cinco anos — disse Monique. — Pegue uma
carona com ele amanhã e nos encontraremos em São Paulo. Com sorte não tem
nada demais com Jacqueline. Qualquer coisa, eu te ligo.
Rita ficaria empolgada por finalmente poder subir para São Paulo, se não fosse
a situação com Jacqueline. A garota odiava hospitais, mas amava sua tia e faria
questão de ir com sua mãe visitá-la.
Assim que Monique e Rita saíram do hotel, Gilberto começou a arrumar suas
coisas para sair também. Apesar da situação de sua cunhada, Monique estava certa.
Ele gostaria muito de rever seu irmão. Além disso, Pietro parecia preocupado ao
telefone quando ligou para marcar o encontro.
Após pagar uma pequena fortuna para que um taxista o levasse de Guarujá a
Santos, Gilberto apreciava um chope no Heinz, um tradicional bar alemão em uma
travessa do canal três. Estava em uma mesa na área externa do bar, separada da
calçada apenas por uma mureta.
Estava terminando de beber sua segunda tulipa de chope quando viu Pietro
estacionar um Corolla e vir caminhando em direção ao bar.
O professor levantou-se e recebeu Pietro com um forte abraço e dois
indelicados tapas nas costas, tornando desnecessário qualquer comentário sobre
quanto sentira saudades de seu irmão.
Pietro era um senhor alto, com marcantes feições de descendente de italianos.
Seu rosto possuía uma expressão séria e seu corte de cabelo curto, ao estilo militar,
estava escondido por uma boina escura. Os dois sentaram à mesa e Pietro
perguntou pela esposa e filha de Gilberto, que explicou a situação de sua cunhada.
Gilberto, por sua vez, perguntou ao irmão sobre seu trabalho: — E como vai a vida
na ilha misteriosa?
Pietro abaixou a cabeça, balançando-a de um lado para o outro enquanto
deixava escapar uma gargalhada.
— Acho que chegou a hora de me aposentar, Gil.
— Que bom... — respondeu Gilberto, com ar de deboche — Na sua idade não
deve ser fácil manter um emprego de segurança, tendo que andar por aí de bengala
e fraldas geriátricas.
Pietro não usava bengala ou precisava de fraldas. Na verdade, contava com uma
ótima forma física para um homem de cinquenta e cinco anos. O professor nunca
compreendera por que, depois de servir o exército até os quarenta e cinco anos,
tendo chegado ao posto de major, seu irmão abandonara tudo para abrir uma firma
de segurança particular. Mais estranho ainda era ele assinar um contrato de
prestação de serviços para uma empresa em uma ilha, na qual passava ao menos
onze meses por ano gerenciando a segurança do local. O caçula nunca antes tomara
seu irmão por um homem ganancioso, mas a única conclusão lógica a que chegara
era que ele estava “enchendo o rabo de dinheiro”. Pietro não podia nem mesmo
revelar qual era a empresa e onde a tal ilha ficava situada, devido ao contrato de
confidencialidade.
Agora ele estava ali, de volta, e Gilberto não pôde conter sua curiosidade de
saber o que exatamente aquela empresa fazia, ou o que havia lá de tão importante,
que precisasse da proteção de um veterano com décadas de experiência militar.
— Então, você finalmente vai me dizer onde estava trabalhando?
— Sabe que não posso falar sobre isso — respondeu Pietro, desviando o olhar
por um segundo –, mas tenho algo ainda mais interessante para você.
Pietro abriu sua mochila, retirando dela alguns papéis. Ele fez menção de
entregar a Gilberto, porém, quando seu irmão ia pegá-los, Pietro puxou os
documentos de volta, num movimento rápido com o pulso. Falando baixo, evitando
que o casal sentado à mesa ao lado ou qualquer outra pessoa os ouvisse, Pietro
disse: — Gil, o que vou te mostrar é confidencial — Pietro avaliava a reação no
rosto de seu irmão a cada palavra, refletindo se mostrar aquilo a ele era mesmo
sensato. — Eu não te mostraria isso se tivesse outra escolha, mas preciso de sua
ajuda para confirmar o que estes relatórios dizem, para decidirmos o que fazer com
esta informação.
Pietro finalmente esticou seu braço, oferecendo a pilha de papéis ao seu irmão,
que olhava em seus olhos intrigado, tentando adivinhar o que todo aquele suspense
podia significar. Gilberto pegou os papéis e começou a analisá-los, enquanto seu
irmão tomava um chope, chacoalhando a perna esquerda compulsivamente
embaixo da mesa.
Os dois ficaram sem dizer nada por alguns minutos, envoltos pelo som das
conversas nas outras mesas e os carros passando na rua, enquanto Gilberto lia os
documentos. Assim que compreendeu do que se tratava, o irmão mais novo
rompeu o silêncio: — Você está louco? — questionou Gilberto, quase gritando. —
Por que está com isto? Mais importante, por que você trouxe isto aqui para mim?
— Gilberto, eu preciso da sua ajuda para entender isso. — Pietro disse — Não
posso entrar em detalhes de como consegui este arquivo, mas sem entender
exatamente do que se trata não sei o que fazer com esta informação.
— O que você vai fazer?! — Gilberto estava perturbado, temendo o potencial
do que tinha acabado de ler. — Pietro, não sei qual a sua expectativa andando por
aí com esse tipo de informação numa mochila, mas os donos dessa... pesquisa...
parecem ser do tipo que levam espionagem industrial muito a sério. Você está me
colocando em risco só por me mostrar estes malditos documentos.
— Gilberto, acredite em mim, estou ciente da seriedade...
Pietro não pôde completar a frase, pois naquele momento houve uma
estrondosa batida de carro na esquina do bar. Puderam ouvir o som do impacto dos
veículos, vidros sendo estilhaçados e se espalhando pelo chão da rua, a poucos
metros dali.
Por cima da mureta do bar Gilberto pôde ver os carros batidos. Imaginando que
aquelas pessoas precisavam de ajuda, levantou-se e correu até a saída.
Na rua, uma van dava marcha ré, afastando-se do carro em que acabara de
colidir. O motorista engatou a primeira marcha e foi embora, abandonando os
passageiros do veículo batido sem prestar socorro. O carro tinha a lateral
contorcida pelo impacto, motorista e passageiro estavam desacordados. A cada
passo que Gilberto dava em direção ao veículo, mais o rapaz ensanguentado ao
volante lhe parecia familiar.
Já era noite quando Jorge e Carlinhos saíram de Santos pela Rodovia Anchieta.
Optaram por esta estrada, ao invés da Rodovia dos Imigrantes, porque ela possuía
mais opções de fuga caso fossem perseguidos pela polícia.
Jorge dirigia uma moto de 125 cilindradas e mais de quinze anos de uso intenso,
a julgar por sua aparência surrada. Nem nos seus melhores dias teria sido um
veículo indicado para subir a serra. Nas condições em que estava, a lata velha era
uma garantia de que os sessenta e poucos quilômetros que tinham pela frente
seriam exaustivos. Eles tiveram pressa para sair de perto da delegacia, portanto não
puderam passar o tempo necessário buscando a moto ideal para roubar. As únicas
opções que encontraram nos arredores da delegacia foram essa velharia e uma
Kawasaki modelo Ninja, de 300 cilindradas, cor verde-limão. Carlinhos bem que
tentou convencê-lo de que a Ninja era a melhor escolha, mas ambos sabiam que
tipo de atenção eles atrairiam numa moto de mais de vinte mil reais, além da cor
não ser nem um pouco discreta.
Enquanto ziguezagueava pelo trânsito intenso que se formava na serra, Jorge
pensava em sua esposa e em como fariam para criar seu filho que estava para
nascer, agora que ele era foragido da polícia. Talvez eles não tenham registro do
que eu fiz, com toda a confusão que rolou na delegacia.
Para ele a prioridade era poder estar com sua família. No resto, daria um jeito,
como sempre fizera. Tinha uma grana guardada que usaria no que sua esposa
precisasse para o parto e os primeiros meses da vida do seu filho. E arranjou uma
casa com um de seus primos, onde poderiam morar. Era um barraco em
Paraisópolis, nada diferente do que eles estavam acostumados. Trabalho também
não faltaria. Tem muito trouxa dando sopa na capital também, pensou.
Apesar da facilidade de conseguir dinheiro com roubos de carros e afins, Jorge
pensava em parar, voltar a dar aulas de Muay Thai ou trabalhar em alguma oficina
de automóveis. Tinha certeza que isso proporcionaria mais segurança para criar
uma criança, no entanto o incidente na delegacia de Santos diminuiu muito suas
esperanças de que fosse mais que um sonho impossível.
À medida que Jorge pilotava a motocicleta, Carlinhos passava seu tempo
pensando em como poderia ter convencido Jorge a pegar a moto Ninja verde-
limão. Tentou calcular onde já poderiam estar se não estivessem subindo a serra a
quarenta quilômetros por hora neste ferro-velho, chegando à conclusão de que já
poderiam ter ido e voltado da capital pelo menos uma vez naquele tempo. Voltou à
realidade ao reparar que o trânsito de carros e ônibus estava parado a alguns
quilômetros. Jorge cortava caminho entre os veículos imóveis e passava à
esquerda, no espaço entre os carros e o abismo da serra, protegidos apenas por uma
baixa mureta, porém alguns carros ficavam muito à esquerda e forçavam ele a
voltar à faixa do meio, entre duas fileiras de carros.
Num momento em que eles estavam na faixa do meio, passando pelo corredor
formado entre um ônibus amarelo e alguns carros à sua esquerda, o ônibus avançou
de repente, batendo no veículo à frente e empurrando-o. Jorge acelerou o máximo
que pôde e tentou passar pelo acidente antes que o veículo fosse arrastado até o
carro à sua esquerda, pois se isso acontecesse teria que parar e dar a volta,
perdendo tempo por causa do congestionamento.
Carlinhos, assistindo à tentativa desesperada de Jorge, apertou forte o ferro da
moto onde se segurava e gritou feito uma criança em uma final de copa do mundo
durante uma cobrança de pênalti aos quarenta e sete minutos do segundo tempo. O
carro da frente era empurrado pela força do ônibus, diminuindo cada vez mais o
espaço em que a moto teria para passar.
André tamborilava os dedos no volante do carro, num ritmo dessincronizado
com a música gospel que saía pelos alto-falantes do veículo. Passava da meia noite
no relógio do painel e sua cabeça estava longe, após levar mais de duas horas de
viagem para percorrer cerca de vinte quilômetros de Santos até Cubatão, ainda no
início da Rodovia Anchieta, praticamente intransitável. Como já estavam ali, não
havia o que fazer além de seguir em frente, conforme o fluxo os permitia.
Seus filhos Talita e Pedro, a garota de dez e o menino de oito anos de idade,
dormiam exaustos no banco de trás, após dias brincando, nadando e tomando sol
nas praias da Baixada Santista. Sua esposa Letícia murmurava a letra de Tu És
Minha Cura, que tocava no som do carro. A praia parecia ter feito bem a ela.
Exibia uma cor mais saudável que na semana anterior, quando concluiu a última de
uma série de sessões de quimioterapia. Letícia lutava há seis meses contra o câncer
de pulmão. No seu caso, era inoperável e no estágio em que se encontrava contava
apenas com soluções paliativas para melhorar sua qualidade de vida. Ela, no
entanto, tinha plena fé em Deus de que tudo daria certo e que de alguma forma não
perderia esta luta.
Pastor André, como era chamado por seus fiéis, pregava o evangelho cristão em
uma igreja na zona oeste de São Paulo, região onde morava com sua família. Tinha
pouco mais de cinquenta anos de idade e era um homem culto, tendo se formado
em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sempre fora devoto
à sua fé, embora naqueles últimos meses não tivesse certeza de qual deveria ser o
papel da crença em sua vida. Isso o afetava profundamente, fazendo com que ele se
afastasse da igreja por algumas semanas para passar mais tempo com sua família e
refletir sobre seu caminho.
Desligou o motor do carro porque estava parado no mesmo lugar há dez
minutos e soltou seu cinto de segurança. Caminhando pela pista, tentou ver o que
acontecia adiante, mas a intensa neblina que pairava sobre a rodovia limitava sua
visão. Avistou um homem sentado sobre o capô do Corolla que estava à sua frente
e resolveu falar com ele: — Boa noite, irmão. Sabe o que está havendo? Nunca vi
um trânsito desses.
Gilberto, que levantava seu celular o mais alto que podia tentando conseguir
sinal, olhou para o senhor que estava ao lado do carro. Mesmo sem ter ouvido bem
o que ele dissera, presumiu qual era a pergunta e respondeu: — Ano novo,
neblina... o inferno na Terra — dramatizou o professor, cansado de repassar em sua
cabeça as cenas vividas naquele dia. — Suponho que o senhor também não tenha
ligado o rádio ou a tevê hoje antes de sair de casa?
— Está ruim assim, é? — questionou o pastor, surpreso pelo exagero do homem
que agora lhe parecia um tanto excêntrico.
O professor permitiu-se sorrir por um segundo. Colocou-se de pé no capô do
carro e subiu até o teto, tentando capturar sinal no celular para avisar sua esposa
que demoraria mais que o planejado para chegar ao hospital, enquanto respondia
ao pastor: — Está pior. Muito pior.
André não entendeu muito bem o que aquilo queria dizer. Olhou outra vez para
a estrada à frente, sem enxergar nenhum movimento em seu limitado campo de
visão. Mais parecia um estacionamento de carros enfileirados na serra. Mesmo
para ele, sobrevivente de uma das cidades com os piores índices de trânsito do país,
era uma situação desesperadora, pois estava com duas crianças no carro e não tinha
ideia de quanto tempo ficariam presos ali.
— Uma epidemia está se espalhando na Baixada Santista, aparentemente —
Gilberto tentou explicar, sem desviar sua atenção do aparelho em suas mãos. — O
pessoal da rádio já chamou isso de Superraiva e Febre Vermelha, mas ninguém
sabe ao certo o que é... só sabem que as pessoas infectadas ficam agressivas e já
houve algumas mortes.
— Misericórdia! — espantou-se André. — Eu nem tinha ouvido falar desta tal
Febre e tem gente morrendo? A rádio só pode estar exagerando...
— Eu não acho que esteja... e pelo jeito muita gente não quis arriscar — disse
Gilberto, fazendo um gesto com o queixo, indicando a interminável fila de carros
parados na rodovia. — Nós estamos esperando mais notícias sobre o trânsito.
Parece que estamos presos aqui.
— Bom, obrigado pelas informações — agradeceu André. — Também vou
tentar ouvir o que estão falando na rádio.
O pastor voltou ao seu carro, preocupado. Todos os anos ouvia histórias de
congestionamentos de dez, doze horas para voltar da Baixada Santista a São Paulo,
um percurso de setenta quilômetros. Entretanto, isso sempre ocorria com os que
saíam da praia no domingo após a virada de ano, não logo no dia primeiro, quando
as pessoas ainda estavam aproveitando o feriado de sol. Concluiu que mesmo que a
tal Febre Vermelha não fosse tão séria quanto aquele homem tinha feito parecer,
seu efeito no trânsito era inegável.
Inquieto, Pietro girou a chave na ignição do carro que tinha alugado em Santos,
desligando o motor. O trânsito era preocupante porque que cada minuto que
passavam ali era um minuto mais tarde que eles chegariam a São Paulo,
aumentando exponencialmente as dificuldades que enfrentariam dentro da cidade,
tentando chegar ao hospital. Sabia que uma epidemia de grandes proporções
poderia causar o inferno na Terra, não só pelos terríveis sintomas daquela doença,
mas principalmente pelos efeitos caóticos da reação da população.
Em direção à capital paulista em um momento de crise, Pietro não conseguiu
evitar de lembrar-se do caos que se instaurou por lá em maio de 2006, quando uma
facção criminosa coordenou mais de duzentos ataques terroristas pela cidade,
deixando noventa mortos e uma São Paulo num pânico que acabou contagiando
todo o país.
Levando em consideração a velocidade de propagação da doença e a completa
ignorância das autoridades sobre o assunto, o ex-militar tentava imaginar o quão
pior seria desta vez.
O trânsito ficaria cada vez pior, com as pessoas querendo fugir dos grandes
centros ou refugiar-se na casa de parentes. Serviços públicos de transporte, ônibus
e metrô estariam em situação ainda mais caótica.
Os hospitais logo estariam saturados de infectados com a Febre, vítimas de
acidentes de carro ou outras eventualidades do caos.
A polícia teria milhares de ocorrências diárias para lidar, tanto de infectados
agressivos, como furtos ou outras barbáries que ocorrem em momentos em que os
criminosos sentem que ficarão impunes com qualquer crime.
Todos os serviços à população, públicos e privados, estariam comprometidos.
Cada gari, operador de caixa de supermercado e atendente de banco teria extrema
dificuldade e riscos para chegar ao local de trabalho, além de estar suscetível à
contaminação, o que faria com que muitos ficassem em casa. Com o passar do
tempo, lixo se acumularia nas ruas, pessoas ficariam desabastecidas de comida ou
tentariam resgatar suas economias no banco, sem ter nenhum destes serviços
disponíveis. A própria polícia, corpo de bombeiros e outros serviços de emergência
teriam seu contingente reduzido, vítimas da Febre Vermelha.
Não sabia se todos estes problemas se iniciariam em breve, em alguns dias ou
semanas, mas quanto mais o tempo se passava, tinha a certeza de que a situação
tendia a piorar.
Pelo retrovisor Pietro viu Gustavo deitado no banco de trás, com os olhos
abertos e olhando para o nada. Por um tempo, servindo ao Exército Brasileiro,
comandou um pelotão no Haiti. Lá ele tinha lidado com vários casos de civis e
militares afetados pela morte de pessoas próximas, pelos confrontos violentos com
os terroristas locais ou mesmo pela devastação causada pelo grande terremoto que
abalou Porto Príncipe. O ex-militar aprendera que cada um lidava de seu próprio
jeito com a morte, seja com um choro compulsivo, surtos de fúria ou o mesmo
silêncio semicatatônico demonstrado por Gustavo. Apenas uma coisa era certa: não
era algo que se superaria às pressas, fosse por superação própria, pelo conforto de
um ombro amigo ou mesmo por um chacoalhão de um capitão enérgico. O luto
deveria seguir seu curso, pelo tempo necessário. A preocupação de Pietro era que,
se todas as suas expectativas pessimistas quanto à capital se concretizassem, não
poderiam carregar o fardo que esse rapaz tinha se tornado.
Minutos depois, Pietro estava com Gustavo à beira da rodovia, sinalizando para
que Gilberto se apressasse. Não tinha sido fácil tirar o jovem do carro. Ele estava
em absoluto silêncio, sem responder a qualquer pergunta. O ex-militar, sem tempo
ou paciência para sutilezas, puxou-o para fora do carro dizendo que ele deveria
cooperar e segui-lo com as próprias pernas, ou seria deixado para trás. Ele
obedeceu em silêncio, mantendo seu olhar vazio enquanto o fazia.
Gilberto ajudava a família atrás deles a descarregar alguma coisa do carro,
quase fazendo com que Pietro tivesse que voltar para buscá-lo também. Passado
algum tempo, Gilberto foi até seu irmão levando uma grande sacola térmica. André
o seguia puxando uma mala com uma mão e seu filho com a outra. A esposa vinha
logo atrás com sua filha e mais uma mochila.
Seguiram em frente por uns cem metros, tentando acompanhar o ritmo de
Pietro, até que ele considerou que estivessem fora da zona de perigo imediato e
parou. Contou rápido em quantas pessoas estavam. Para sua surpresa, os dois da
motocicleta também os tinham seguido.
— Cheguem mais perto, precisamos de um plano — Pietro disse e fez uma
pausa, aguardando até todos se aproximarem, para então continuar. — É quase uma
da manhã e se formos seguir pela Anchieta vamos passar por milhares de carros e
ônibus parados. Não tinha pensado nisto antes, mas com esta epidemia em Santos,
temos várias pessoas infectadas presas neste congestionamento com a gente —
Pietro percebeu o nervosismo de todos crescendo. Engoliu em seco e continuou. —
Temos duas opções. A primeira é entrar na mata e se esconder em algum lugar por
esta noite, esperando amanhecer para termos melhor visibilidade antes de seguir
viagem.
Pietro avaliou a reação de todos antes de continuar. Todos tensos e calados,
passando seus olhares pelos veículos estacionados, amedrontados pela ameaça que
podia surpreendê-los de qualquer um daqueles carros, vans ou ônibus. Ninguém
em sã consciência gostaria de passar a noite ali, e o ex-militar contava com esta
reação.
— A outra opção é caminharmos por mais alguns quilômetros e procurar a
próxima saída da rodovia — continuou. — Acho que não falta muito para a saída
de Cubatão. Não sei como está a situação por lá, mas ao menos não estaremos
expostos como estamos aqui. Podemos encontrar algum hotel ou lugar para passar
a noite.
— Desculpe me intrometer, capitão — Jorge interrompeu-o com sua voz grave
–, mas se vocês estão indo pra São Paulo queremos ir com vocês. Faltam uns 300
metros pra entrada de Cubatão, e de lá podemos seguir pela Estrada Velha. Ela faz
um “U” e volta na Anchieta em São Bernardo — explicou Jorge, desenhando o
“U” no ar com sua mão direita. — O trânsito deve estar assim por causa de algum
acidente aqui na Anchieta e a situação pode estar melhor lá na frente.
Pietro interessou-se pelo plano deste homem, apesar de não confiar nem um
pouco nele. Reparara na forma suspeita como ele e seu amigo lidaram com o
incidente da motocicleta. Sabia que ambos estavam armados, apesar dos revólveres
permanecerem ocultos por baixo das camisetas nas suas cinturas. Deveria manter-
se atento aos dois o tempo todo, mas aquela era a melhor estratégia a seguir.
— Com certeza é melhor que ficar aqui ou passar a noite na mata — assentiu
Gilberto.
André pensou em discordar ou recusar-se a largar seu carro e seus pertences
assim, no meio da estrada. Mas olhou para sua esposa e filhos, vendo o medo em
seus rostos e o quanto contavam com ele para guiá-los. Por mais que doesse se
desfazer de seus bens daquele jeito, a segurança da sua família sempre seria sua
prioridade.
Por fim, todos concordaram e seguiram caminhando à beira da Mata Atlântica.
Todos com os olhos atentos à frente. Cada vulto revelado através da neblina
aumentava o pavor que sentiam, temendo o que poderiam encontrar pela noite.
4 - Estrada Velha Em um dia qualquer, Cubatão deveria estar deserta no
horário em que o grupo de Pietro passou por ali. Mas aquela não era uma
madrugada qualquer.
Ao longo da viagem viram passar quatro viaturas policiais, uma ambulância e
três caminhões de bombeiros com suas sirenes ligadas, todos indo em direção ao
sul, onde fumaça preta subia ao céu entre a neblina, indicando um incêndio de
proporções preocupantes. Inúmeras vezes depararam-se com carros cruzando as
avenidas em velocidade acima do permitido ou no farol vermelho, mas não havia
quem se importasse com as grosseiras infrações das leis do trânsito.
Ninguém do grupo falava nada, mas era de senso comum entre eles que a praga
já afetava Cubatão e eles não estavam mais seguros ali do que na rodovia de onde
vieram.
O grupo levou pouco mais de duas horas para cruzar a cidade e chegar à entrada
da Rodovia Caminhos do Mar, também conhecida como Estrada Velha de Santos.
O ex-militar esperava ter percorrido o percurso de quatro quilômetros em uma hora
ou menos, contudo foram atrasados por diversas paradas para descanso, água e
comida, já que estavam num grupo com crianças, uma mulher doente e um rapaz
em estado semicatatônico. Apesar de compreender as boas intenções de seu irmão
ao ajudar estas pessoas, Pietro não deixaria sua missão ser comprometida por
qualquer ato de altruísmo irracional e irresponsável. Se chegasse a um impasse e
tivesse que escolher entre proteger estas pessoas ou chegar com suas informações e
seu irmão a São Paulo, o pastor, sua família, os caiçaras e o próprio Gustavo teriam
que contar cada qual com a sua sorte para sobreviver.
Jorge conhecia a Estrada Velha de Santos, pois visitou o lugar anos antes com
sua esposa, Marlene. Lembrava que durante o dia a estrada era agradável, com
diversos monumentos históricos, fauna e flora conservados dentro de uma reserva
florestal. À noite, sem iluminação e com a neblina pesada, a estrada tinha um
aspecto nada acolhedor. Além disso, o lugar ficava aberto para visitação somente
durante o dia, sendo cercado por grades e portões no período noturno, além de
guaritas indicando que o lugar possuía vigilância, evitando a entrada de intrusos.
Mesmo considerando tudo isso, esta era a melhor opção para seguir viagem.
Ao se aproximar da entrada não encontraram os vigias que deveriam estar
guardando o local. Encostaram-se no portão, investigando o lado de dentro da área
restrita, sem notar nenhum movimento por ali. Ficaram felizes pela própria sorte,
sem saber das desgraças que proporcionaram aquele pequeno alívio.
O vigia noturno tinha ficado preso no mesmo congestionamento em que eles
estiveram, na Rodovia Anchieta. O pobre senhor continuou por horas em seu carro,
até tornar-se vítima de um grupo de cubatenses infectados atraídos da cidade para a
rodovia pelos sons dos automóveis e suas buzinas.
Com o atraso do segurança noturno, seu jovem colega, responsável pelo turno
diurno, ficou no posto esperando-o por horas, até ter que abandoná-lo ao receber
uma ligação. Sua mãe, desesperada, gritava ao telefone, dizendo que estava
trancada em seu apartamento e que seu vizinho maluco estava tentando arrombar a
porta da cozinha. A senhora não mencionou ao telefone que, antes de conseguir
trancar-se, foi mordida pelo tal vizinho. Ao chegar para resgatá-la, o jovem vigia
foi recebido a dentadas por sua mãe.
Pietro sugeriu que passassem por cima do portão, com cerca de dois metros e
meio de altura e arame farpado instalado em seu topo. Ele tirou sua mochila das
costas e vasculhou dentro dela, buscando seu kit de sobrevivência. Retirou um
alicate do kit, trepou no portão e começou a cortar o arame farpado.Viu André se
aproximando dele, deixando Letícia com as crianças, um pouco afastadas do grupo.
— Pietro, acho não devemos seguir com vocês — disse o pastor. — Se
entrarmos aí, o que fazemos depois? Sabe-se lá quantos quilômetros de subida tem
esta estrada. Não temos condições...
— Senhor, eu realmente acho que vocês não estarão seguros aqui fora — disse
Pietro, honestamente preocupado com a segurança deles, apesar de não ser sua
prioridade –, mas você é quem decide o que achar melhor para o senhor e sua
família.
Enquanto terminava de cortar o arame farpado, pensando se deveria esforçar-se
mais para convencer André a segui-los, Pietro viu um vulto saindo de trás de uma
árvore. A luz de um poste revelou que era um homem. Ele tinha a barba cheia e
desgrenhada, pés descalços e corpo sujo como o chão em que pisava. Seu andar
cambaleante poderia ser vestígio de uma bebedeira da noite anterior, mas, mesmo
sob iluminação precária, Pietro sabia que seus olhos estavam vermelhos demais
para uma simples ressaca. Os poucos dentes que o sujeito tinha estavam expostos,
com a boca aberta e salivante de ansiedade para alcançar Letícia ou uma das
crianças, as presas mais próximas dele.
Pietro pulou do portão, sacou sua arma e atirou duas vezes, num movimento tão
rápido que somente Jorge e Carlinhos, mais atentos que os demais, perceberam o
que estava acontecendo antes que o mendigo estivesse caído no chão, com sangue
escorrendo dos buracos de bala em seu peito.
As crianças gritaram de susto e esconderam-se atrás de Letícia. Pegos de
surpresa, todos ficaram sem saber o que dizer por alguns segundos, até que
Gilberto aproximou-se de André e afirmou: — Não é seguro aqui. Precisamos ir a
São Paulo e este caminho é o mais isolado de tudo o que está acontecendo.
Pietro virou-se para o portão, guardando sua Glock no coldre para terminar de
cortar o arame farpado. Então disse: — Se houver algum destes malditos perto
daqui, eles ouviram os disparos e estão vindo para cá agora. Quem quiser vir
conosco, vamos passar por cima do portão. Sejam rápidos!
Um a um foram passando por cima do portão, pelo vão onde Pietro cortara o
arame farpado. Gilberto foi o primeiro a passar para ajudar os outros a descer do
outro lado. Letícia e as crianças tiveram alguma dificuldade, mas com o auxílio dos
demais eles conseguiram.
Jorge, o mais alto e forte do grupo, deixou Pietro subir antes, ficando ele por
último.
Quando o ex-militar estava em cima do portão, virou-se para puxar Jorge e viu
uma mulher seminua a cinco metros de distância dele, cambaleando em sua direção
com os seios expostos.
— Atrás de você! — alertou Pietro, fazendo Jorge virar-se bem a tempo de
aplicar um chute frontal na barriga descoberta da mulher, empurrando-a para longe
e fazendo-a rolar no chão.
Mais seis suspeitos se aproximavam do portão, um pouco mais distantes que a
mulher caída. Jorge fez menção de sacar seu revólver quando Pietro gritou: —
Sobe agora! Eu dou cobertura!
Jorge pendurou-se no braço esquerdo de Pietro, usando suas pernas para
impulsionar-se na grade e chegar ao topo do portão. Pietro, prensando firme o
portão entre as pernas e usando a mão livre para mirar sua arma, disparou um tiro
no peito de uma mulher que estava próxima demais e ameaçava alcançar as pernas
de Jorge. O tiro fez com que ela cambaleasse para trás. Não parecia morta, nem
mesmo caída. Apenas interrompeu seu ataque por tempo suficiente para que Jorge
se jogasse para frente, caindo com Pietro do outro lado. A altura da queda os teria
machucado se Gilberto, Carlinhos e André não estivessem do outro lado para
amortecer sua queda. Todos os cinco caíram no chão, rolando ou arrastando-se
como podiam para longe do portão e das garras dos infectados que tentavam
alcançá-los através da grade.
— Puta merda! — exclamou Jorge — Valeu, meu irmão! Eu tava fodido se não
fosse por ti.
Pietro respondeu com um simples aceno de cabeça e, estendendo a mão para
Jorge, ajudou-o a levantar.
Os infectados balançavam o portão com violência enquanto tentavam
inutilmente alcançar os sobreviventes. Alguns deles gritavam como loucos, outros
emitiam gemidos graves e aterrorizantes. Nem os mais corajosos do grupo
conseguiam sentir-se seguros com aqueles seres tão próximos, mesmo separados
por uma pesada grade de metal. Letícia afastou as crianças dali, tentando acalmá-
las.
André contou seis infectados aglomerados do lado de fora e mais uma dúzia se
aproximando. Seu conflito interno quanto às suas crenças aumentava a cada
encontro com uma destas criaturas demoníacas. Antes da epidemia estava com
dificuldades em aceitar a indiferença de Deus ao sofrimento da sua esposa doente.
Agora, transformar seus filhos em algo tão maligno, capaz de provocar tanto
sofrimento aos seus irmãos... parecia ser crueldade divina, digna do Antigo
Testamento.
O pastor segurou a mão de sua mulher, olhou-a nos olhos e disse que faria de
tudo para garantir a segurança dela e das crianças. Letícia beijou sua mão,
confiante de que tudo se resolveria. Afinal, seu marido era o homem mais
iluminado que ela conheceu na vida. Tinha fé, ele encontraria o caminho.
Mais de trinta metros à frente do portão, Gustavo estava sentado nos degraus de
uma construção de madeira, parecida com um chalé. Os demais tiveram de usar as
lanternas e telas dos seus celulares para iluminar o caminho, pois não havia postes
ou qualquer outro tipo de iluminação do lado de dentro do portão.
À frente do chalé depararam-se com uma placa grande e branca:
Rancho da
Maioridade
Centro de Apoio
3.600m ao Visitante
(Cubatão)
<——————>
Ao ver a placa que indicava a distância até o Rancho da Maioridade, Jorge disse
que aquele seria um lugar onde poderiam descansar.
Uma legenda na parte inferior da placa indicava que a estrada tinha 9200
metros. Pietro calculou que o grupo demoraria cerca de cinco horas para percorrer
aquela distância, mais que o dobro do que ele e seu irmão levariam sozinhos.
Encontraram um bebedouro do lado de fora do centro de apoio ao visitante e
usaram-no para matar a sede e reabastecer as garrafas nas mochilas de André e
Pietro. Fizeram isso com pressa, pois ainda não se sentiam confortáveis estando tão
próximos do portão, com cerca de vinte infectados tentando derrubá-lo. Gustavo
era o único que não parecia afetado pela presença daqueles monstros. Ele
continuava sentado nos degraus, fitando-os ao portão com o mesmo olhar vazio
que trazia em seu rosto desde o incidente com Bia.
Letícia questionou o que estava acontecendo com aquelas pessoas, deixando-as
daquele jeito, mas foi interrompida por Pietro.
— Não temos tempo para isso agora. Precisamos nos afastar o mais rápido
possível deste portão — Pietro ajustava a alça da sua mochila, passando os olhos
por todos do grupo e certificando-se de que estavam prontos para partir. — É
fundamental chegarmos ao fim desta estrada até o amanhecer.
Pietro ouviu suspiros e resmungos indistintos, porém ninguém se contrapôs.
Passava das duas da manhã, ele sabia que não chegariam ao fim da estrada a pé
antes das sete horas, mas precisava apressá-los o máximo possível. A situação
caótica que encontraram em Cubatão poderia se alastrar pela capital, o que
dificultaria sua missão.
Gustavo caminhava sozinho, logo atrás de Pietro e Gilberto, os desbravadores
do grupo. Tentava distrair-se de suas lembranças recentes, prestando atenção aos
sons da floresta, mas mesmo o canto de um milhão de cigarras e bacuraus não
seriam o suficiente para abafar os dois disparos que tiraram a vida de Beatriz e
ecoavam em sua cabeça. Após reviver inúmeras vezes a cena em sua mente,
Gustavo começou a questionar-se sobre qual momento ele realmente perdera Bia.
Pensou nos olhos vermelhos e a ira da garota quando ela tentou atacá-lo dentro do
carro. Naquele momento, não era mais a garota doce que ele conhecia. A conclusão
que mais fazia sentido para ele era que desde o momento em seu amigo infectado
mordera seu tornozelo, a garota que ele conheceu por alguns anos e amou por uma
noite se perdeu para sempre.
Chegaram a uma construção antiga que parecia uma casa, feita de pedras claras
e decorada com azulejos brancos e azuis. Acima do telhado da construção havia
um painel de azulejos, no qual estava desenhado um grande emblema, com uma
coroa dourada adornada com ramos verdes. A placa na estrada sinalizava que
aquele era o Rancho da Maioridade, construído em 1922, em homenagem a Dom
Pedro II e, originalmente, utilizado como ponto de descanso durante a viagem entre
São Paulo e Santos. Naquela noite o Rancho serviria para seu antigo propósito
mais uma vez.
— Sei que estão todos cansados, mas só podemos descansar um pouco — disse
Pietro. — Deitem, estiquem as pernas, façam o que têm que fazer e sairemos em
vinte minutos.
Acomodaram-se numa varanda aos fundos da construção, com vista para a
Mata Atlântica. Alguns deles sentaram-se em um grande banco de pedra, outros
deitaram no chão. Cada um tentando livrar-se das dores da longa caminhada.
Mesmo Jorge e Gilberto, os mais atléticos do grupo, estavam cansados. E o
esforço exigia ainda mais do despreparo físico de Letícia, das crianças e de
Carlinhos, que, além do tornozelo torcido, tinha a capacidade pulmonar
comprometida após mais de uma década como fumante compulsivo.
Além do cansaço, a fome começava a tornar-se um problema entre os
sobreviventes, até que Letícia abriu uma de suas mochilas, revelando uma sacola
com mais de uma dúzia de sanduíches que ela tinha preparado para sua família
comer durante a viagem. Felizmente para todos, a dona de casa contava com o
hábito de exagerar nas porções dos lanchinhos preparados para viagens, o que
proporcionou alimento ao grupo essa noite.
Todos agradeceram à Letícia e sua família ao serem servidos, ansiosos para
devorar seus sanduíches de frios.
— Algum de vocês teve contato com pessoas infectadas antes? — Gilberto
perguntou, enquanto comia seu lanche. — Estou tentando entender o que está
havendo, como acontece o contágio e por que os infectados ficam tão violentos.
— A gente viu três — Carlinhos respondeu por reflexo, fazendo uma pausa ao
perceber que ser transparente sobre seus antecedentes criminais não seria prudente.
— A gente estava em uma loja. Três caras tentavam entrar de qualquer jeito. O
dono tava tentando bloquear a entrada e levou uma mordida no braço. Os caras só
pararam depois de levarem três ou quatro pipocos cada um.
Jorge ficou aliviado por Carlinhos ter omitido a verdade sobre estarem detidos
na delegacia quando tudo começou. Lembrou-se de um ditado que sua mãe
costumava dizer: “É melhor ficar quieto e deixar as pessoas achando que você é
burro, do que abrir o bico e acabar com a dúvida”. Neste momento, a mesma lógica
se aplicava às suspeitas do grupo sobre sua índole. Ele podia ver a forma como os
outros os olhavam, com cautela e receio, mas confirmar que tinham motivo para tal
só pioraria as coisas.
Carlinhos contou também sobre como viu várias pessoas sendo pisoteadas no
meio da confusão, alertando os demais de que os infectados não seriam sua única
preocupação ao chegarem a São Paulo.
Todos refletiam sobre os acontecimentos em silêncio quando foram
surpreendidos pela voz rouca de Gustavo: — Uma mordida... uma mordida e você
está infectado.
Gilberto colocou a mão em seu ombro, demonstrando empatia com a sua
situação.
— Sabemos que você passou por muita coisa hoje, Gustavo. Você não precisa
nos contar se não estiver pronto.
— Foi em algum momento do ano novo que meus amigos devem ter sido
infectados — continuou o rapaz, apesar do conselho do seu professor. — Eu não vi
ninguém sendo mordido nem nada do tipo, mas tinha um senhor passando mal na
praia e meus amigos o levaram até a enfermaria. Mais tarde, eles disseram pra
gente que o velho tinha cuspido neles e mordido um enfermeiro. Talvez essa não
fosse a história inteira, vai saber. O que sei é que, quando acordei no dia seguinte,
tinham assassinado cinco amigos nossos dentro da casa onde a gente estava. O que
eles fizeram com os corpos... — Gustavo vinha falando com firmeza, mas
estremeceu neste ponto e fez uma pausa, retomando a história com um tom de
pavor — o corpo do Zé estava no chão da cozinha, com a barriga rasgada por
mordidas, todo revirado. Dava pra ver que ele tinha tentado fugir, só que depois de
ser encurralado na cozinha, o filho da puta pegou, bateu com a cabeça dele no chão
até rachar, abriu a barriga dele como um animal e comeu a carne dele. Carne,
órgãos, tudo. Quem faz uma coisa dessas?! Eu não tô falando de um psicopata que
fugiu de um hospício ou alguém deste tipo. Era um amigo meu da faculdade que
estava jogando truco a tarde e de madrugada fez uma coisa dessas.
Gustavo parou, fazendo uma pausa mais longa e tentando se recompor. As
pessoas mal conseguiam olhar para ele, aterrorizados com a história. Letícia se
retirou com as crianças, evitando expor seus filhos ainda mais à grotesca realidade
que enfrentavam.
— No rádio eles falaram em bactéria, vírus e outros tipos de doença —
continuou Gustavo. — O que quer que seja, eu tenho certeza de duas coisas:
primeiro, isso afeta o cérebro de alguma forma. Aqueles não eram meus amigos e
aquela coisa que me atacou no carro não era a Bia. Segundo, a contaminação
acontece pela mordida. Bia foi mordida quatro horas antes de ficar violenta
daquele jeito. Ela ficou com dor de cabeça, enjoo e outros sintomas antes de se
transformar naquela... coisa.
Gustavo tinha os punhos e dentes cerrados com força. Seu professor colocou
outra vez a mão em seu ombro. O rapaz começou a chorar, com a cabeça entre os
joelhos, e voltou a ficar em silêncio.
— Sinto muito pelo que aconteceu, Gustavo — disse Gilberto. — Bia era uma
pessoa muito querida por todos.
Gilberto fez um sinal para Pietro, chamando-o para conversar. Levantaram-se e
casualmente se afastaram do restante do grupo.
— Você deveria entregar estes documentos às autoridades, Pietro — disse
Gilberto, seguindo seu hábito de ser seco e direto quando o assunto era sério.
— Eu sei disso — concordou seu irmão. — Assim que conseguir falar com
algum dos meus contatos, tenho certeza que virão até nós buscar o pen drive
pessoalmente.
— Precisamos encontrar Monique e Rita. Elas devem estar em casa, na zona
oeste, ou no hospital, no centro — disse Gilberto, preocupado. — Não deve estar
fácil chegar até nenhum destes lugares com tudo isso que está acontecendo.
— Eu estou contigo, Gil. Vamos encontrar as duas antes de qualquer coisa.
Pietro não disse em voz alta, mas torcia para que estivessem no hospital. Apesar
dos riscos de estar num lugar com tantas pessoas infectadas, lá seria o local ideal
para serem resgatados por um helicóptero do Exército Brasileiro, o que ele
pretendia negociar em troca pelas informações sobre o vírus.
O restante da caminhada não foi tão difícil quanto tinham previsto, apesar de
ser exaustivo subir todo o ziguezague da Serra do Mar a pé. Letícia precisou de
ajuda para carregar as crianças, que não aguentavam mais andar. André e Gustavo
revezaram-se carregando Talita nas costas, de cavalinho, enquanto Jorge,
empolgado pela ideia de ser pai, criou certa afeição pelo garoto Pedro e levou-o
consigo pela maior parte do caminho.
A julgar pelas aparências e armas que carregavam ocultas, Pietro tinha certeza
que Jorge e Carlinhos estavam cometendo ou prestes a cometer algum delito
quando toda aquela desgraça começou, portanto surpreendeu-se ao ver Jorge
conversando com uma criança de oito anos sobre o canto dos “bichinhos da
floresta” e outros sons que ouviam. Ainda não podia confiar neles, mas ao menos
estavam ocupados com a criança, permitindo que Pietro planejasse seus próximos
passos sem se preocupar em levar um tiro pelas costas.
— Gil, — disse Pietro, certificando-se que não seriam ouvidos pelos demais –,
tome cuidado com esses dois. Eu sei que temos um objetivo em comum, mas eles
não são confiáveis.
Gilberto ofegava, caminhando sobre o asfalto iluminado pela luz de uma
lanterna de Pietro. Tomou fôlego, olhou para seu irmão e perguntou: — E você,
Pietro? Posso confiar em você?
— Porra, Gil! Que pergunta é essa?
— Você tem informações importantes sobre o vírus e diz que quer entregar para
as autoridades: ótimo! Mas como posso confiar no que diz se não sei quais são seus
motivos? Você tem segredos demais, irmão.
Pietro sabia que era a hora de revelar ao menos uma parte da verdade para seu
irmão. No fundo ele nunca ficou à vontade guardando tantos segredos de Gilberto.
Seu irmão merecia saber a verdade — ou ao menos uma porção dela.
— O que você quer saber, Gil?
Sem pestanejar, Gilberto começou a listar as perguntas que estavam em sua
cabeça desde a conversa que tiveram em Santos: — Eu quero saber que diabos de
pesquisa faziam naquela ilha, Pietro. Qual era seu trabalho de verdade e por que
saiu de lá bem quando tudo isso começou a acontecer? Antes de tudo, Pietro, me
explique por que diabos você deu baixa do exército, algo que foi sempre tão
importante para ti. Pior ainda, para trabalhar numa merda duma ilha longe de tudo
e de todos? Aquele papinho de que estavam te pagando uma fortuna não me
convenceu.
— Eu nunca saí do exército, Gil — Pietro respondeu. — A SYS é a divisão de
Pesquisa e Desenvolvimento de uma companhia chinesa. Uma companhia que tem
um acordo secreto com o alto escalão do Exército Brasileiro para pesquisar e
desenvolver armas biológicas nas Ilhas Trindade e Martins Vaz. Não era meu papel
questionar a atuação da empresa ou o acordo que o exército fez com eles, mas
assumir a identidade de um experiente gestor de pessoal e sistemas de segurança e
gerenciar a segurança da ilha, ao mesmo tempo em que coletava informações sobre
o andamento da pesquisa e avisar meu superior no Exército se algo parecesse...
errado. O problema é que, de repente, tudo deu muito errado, muito rápido... as
coisas pareciam normais, até que o vírus se espalhou pela ilha de um dia para o
outro, infectando quase todo mundo. Os infectados já tinham matado quase todos
os sobreviventes quando eu consegui fugir com um dos pesquisadores em uma
lancha. A ilha fica a 1.200 quilômetros do continente, então ficamos sem
combustível, mas fomos resgatados em alto mar por um navio cargueiro.
Pietro fez uma pausa para que Gilberto digerisse a informação. Seu irmão
perguntou: — O cargueiro que bateu em Praia Grande?
— Sim — disse Pietro. — Descobri da pior forma possível que o pesquisador
que fugiu comigo estava infectado. Ele acabou infectando ou matando todos os
tripulantes do navio. Eu passei uns dias escondido. Assim que pude, peguei um
bote e fugi, mas estávamos muito longe da costa. Ao chegar em Santos sofria de
desidratação e insolação. Passei dias no hospital e só depois pude te encontrar.
Gilberto ficou um tempo em silêncio, repassando a história em sua cabeça.
Após anos sendo mantido no escuro sobre as atividades de seu irmão, a verdade era
demais para digerir de uma vez só.
— Ilha Trindade e Martim Vaz? — perguntou Gilberto.
— Um arquipélago perto de Vitória, no Espírito Santo. Oficialmente é um posto
do exército para observação meteorológica, mas eles transformaram num centro de
pesquisas em parceria com os chineses.
— E por que não levar essa informação ao seu superior?
— Eu suspeito que ele esteja comprometido. Estou em contato com outro
major, que é confiável e vai nos ajudar a colocar estas informações nas mãos
certas.
— E onde eu entro nessa história? Por que você me envolveu nisso?
— Se um major do Exército, responsável por toda esta operação está
comprometido, nós perdemos todas as informações que tínhamos sobre este vírus.
O pessoal que trabalhava com ele também não é confiável. Você e Monique têm
conhecimentos que podem nos ajudar a lidar com isso. Confie em mim, a melhor
coisa para você e sua família é que os militares precisem da sua ajuda numa hora
dessas. Vocês estarão mais seguros com eles, além de nos ajudar a superar isso
tudo.
Gilberto abaixou a cabeça e continuou caminhando. Estava satisfeito com a
honestidade de seu irmão, mas a verdade trazia com ela uma responsabilidade além
do que o professor estava preparado para lidar. Seus esforços estavam focados em
garantir a segurança de sua família. Não podia ter uma responsabilidade com o
resto do mundo enquanto as duas estivessem em perigo.
— Continue tentando resolver as coisas com o seu major, Pietro. Eu preciso
encontrar minha mulher e minha filha. — Gilberto suspirou, então concluiu. — Só
depois disso vou te ajudar com essa merda em que vocês nos meteram.
Cerca de cinco quilômetros depois do último descanso, onde ouviram a história
de Gustavo, o grupo chegou a uma placa que indicava que a “Casa de Visitas do
Alto da Serra” estava logo à frente. Viram a tal casa alguns metros adiante. Uma
construção antiga, reformada e pintada recentemente.
Chegaram ao lugar e subiram uma escadaria que terminava em uma ampla
varanda. Como a casa estava trancada e as janelas fechadas, abrigaram-se ali
mesmo.
— Vou seguir até o final da estrada para ver como está a situação — Pietro
anunciou, tentando omitir o quanto ele próprio estava cansado. Alguns anos antes
esta viagem teria sido muito mais fácil, mas sua idade atual não era compatível
com o esforço físico que estava fazendo. — Gilberto, você vem comigo?
Ele concordou, levantando-se do banco em que tinha acabado de sentar-se, sem
reclamar. Jorge pôs-se de pé logo em seguida, dizendo: — Eu também vou. Vocês
podem precisar de ajuda — Jorge virou-se para Carlinhos, apontando para a perna
dele. — Vocês por acaso não têm um anti-inflamatório ou algo do tipo? Meu amigo
aqui torceu o tornozelo no acidente com a moto.
Letícia disse que tinha o remédio em algum lugar e começou a vasculhar em
sua bolsa. Pietro, Gilberto e Jorge saíram em direção à estrada.
Desde criança, Zezé adotou aquele apelido. Odiava seu nome de registro,
Ezequiel. Odiava esse nome bíblico, velho e que lembrava constantemente de
como sua mãe o batizou na esperança de que ele seguisse os passos de seu
trabalhador e honesto avô. Ao menos, decepcionara somente metade das suas
expectativas: sempre fora um homem dedicado ao trabalho desonesto.
Sentado à mesa com seus parceiros, comendo um farto x-bacon e uma porção
de fritas, Zezé finalmente podia ouvir seus pensamentos. Todas as mortes que
presenciara, todo o caos que se escalava e prometia calamidades de proporções
nunca antes vistas e todo o sofrimento à sua volta não apresentavam qualquer
relevância para ele. Com a adrenalina baixando e seu apetite saciado, Zezé
retomava seu foco e as ideias se apresentavam em sua mente. Ideias de como
aproveitar a situação a seu favor.
Zezé pegou o copo de papel e sugou longos e ininterruptos goles de refrigerante
pelo canudo colorido até acabar com o líquido. Repousou o copo sobre a mesa e
disse: — Sabem, é uma merda o que aconteceu com os manos da nossa quebrada,
mas nós ainda estamos aqui. Mesmo depois de comer a merda que o diabo
amassou nos últimos anos, repassando o pó do Don pra ganhar uma mixaria,
enquanto ele ficava no palácio dele enchendo o cu de dinheiro, nós ainda estamos
aqui, tão me entendendo? Nós ainda estamos aqui.
Casca e Edu assentiram, concordando com o inesperado desabafo do chefe.
— As coisas serão diferentes agora. Com tudo o que está acontecendo, Don não
vai vir atrás da gente.
— Não sei, Zezé — disse Edu. — Ele não vai deixar passar alguém devendo
tanta grana pra ele. O Don não perdoa.
— Mano, o Don não vai viver por tempo suficiente pra vir atrás da gente, com
essa merda toda que tá rolando. Se tiver muita sorte e sobreviver, a maioria do
pessoal dele não vai ter tanta sorte. E por que a gente se preocuparia com o Don
sem o exército dele?
Casca e Edu deram de ombros, sem ter o que responder. Foi o suficiente para
que Zezé se desse por satisfeito e continuasse seu raciocínio: — Sabem o que
reparei no caminho pra cá? — Zezé falava enquanto abria sua mochila e buscava
algo dentro dela. — Ao mesmo tempo em que a gente fugia daqueles desgraçados
que estavam fazendo um banquete na nossa comunidade, a gente rodou mais de
vinte quilômetros em um carro todo fodido, lavado com o sangue dos filhos da
puta que a gente atropelou. Tem um braço decepado pendurado na porra do para-
choques e ninguém parou a gente. Nem um puto de um PM, CET... Ninguém!
Zezé fez uma pausa para garantir que os dois estavam seguindo seu raciocínio.
Ele retirou da mochila um saquinho transparente, com cinquenta gramas de
cocaína. Com a boca, rasgou o canto da embalagem e despejou uma porção do pó
branco sobre a mesa.
— A polícia tá ocupada demais com os loucos que estão por aí, comendo uns
aos outros. — Com a ponta da unha do dedo mindinho, Zezé alinhou uma
carreirinha, debruçou-se sobre a mesa e inspirou o pó de uma só vez. — A
CIDADE É NOSSA, PORRA!
Um funcionário da lanchonete estava esvaziando uma lixeira perto da mesa dos
três, e Zezé fixou os olhos sobre o rapaz no mesmo instante em que ele olhava de
volta. O filho da puta do faxineiro tá me encarando, pensou.
Zezé colocou sua mão novamente dentro da mochila, desta vez retirando dela
uma pistola-metralhadora automática, modelo Mini-Uzi. Levantou-se de sua mesa
e caminhou em direção ao rapaz, que largara o saco de lixo no chão e olhava para
os lados, de súbito sem lembrar onde ficava a saída mais próxima.
Sem dizer uma palavra, Zezé ergueu sua arma e disparou uma rajada de cinco
tiros contra o peito do infeliz, morto antes mesmo de cair no chão. Com a arma ao
lado do corpo, Zezé caminhou devagar até o caixa.
Casca e Edu se entreolharam, compreendendo o significado de “a cidade é
nossa”. Eles eram os filhos da puta mais sádicos do bairro, armados até os dentes e
sem ninguém que pudesse pará-los. Sem precisar se segurar ou ter medo das
consequências de seus atos, eles se levantaram, decididos a fazer o que lhes desse
na telha dali em diante.
Casca foi até uma mesa do outro lado do salão, onde estavam os únicos clientes
da lanchonete àquela hora da madrugada. O casal se assustara com os tiros da Uzi,
mas tiveram medo de tentar fugir e serem baleados, então ficaram ali. Casca
chegou esculachando a moça com tapas e xingamentos, ordenando que
entregassem suas carteiras. O homem tentou impedir a agressão e recebeu um soco
no rosto, fraturando seu osso malar.
Desde que chegaram ali, Edu estava de olho em uma das funcionárias da
lanchonete, dona de um corpo atraente. Quando Zezé disparou sua arma, Edu viu
ela se esconder em um dos banheiros. Com um sorriso de orelha a orelha, levantou-
se e a seguiu, pensando uma lista das perversidades que faria com ela antes de
cortar sua garganta.
Zezé estava encostado no balcão, com sua arma apoiada sobre a caixa
registradora e a satisfação estampada no rosto. Olhou para trás e viu seus amigos se
divertindo. Voltou sua atenção aos funcionários do outro lado do balcão e disse,
com a maior naturalidade do mundo: — Eu quero um milk shake de chocolate e
todo o dinheiro dos caixas. As suas carteiras também.
No caminho até a lanchonete, Jorge viu pelo menos meia dúzia de incidentes
em que pessoas precisavam de ajuda — uma padaria sendo assaltada, pessoas
atacadas na rua e barracos pegando fogo no meio da favela –, mas não reduziu a
velocidade de sua moto em nenhum momento.
Sabia que estava se arriscando, indo com sua esposa grávida ao resgate de sua
cunhada, para somente depois encontrar o grupo que lhe providenciaria refúgio,
porém não podia negar ajuda ao seu cunhado neste momento — Jorge devia ao
menos isso, após tudo o que Edmir fez para lhe ajudar — e não tinha outra
alternativa quanto à Marlene. Deixá-la esperando em casa seria ainda menos
seguro que rodar com ele pelas ruas de Paraisópolis ao Morumbi.
Jorge identificou a lanchonete ao ler os grandes números em sua fachada: 25 17.
Quando ia subir na calçada com a moto para entrar no estacionamento da
lanchonete, um Kadett preto veio no sentido oposto, saindo em alta velocidade e
cantando pneu. O som do carro tocava música num volume tão alto que fazia
vibrar suas janelas fechadas.
Pego de surpresa, quase não percebeu as escrachadas manchas de sangue no
capô do veículo que passou ao seu lado. Ao dar-se conta deste detalhe, olhou para
trás, mas o Kadett já estava longe, descendo a avenida.
Jorge estacionou a moto roubada que dirigia e perguntou se Marlene estava
bem. Ela assentiu com a cabeça, perturbada com tudo o que viram pelo caminho.
Edmir os alcançava em sua moto, com Carlinhos na garupa.
Edmir largou seu capacete no chão do estacionamento e correu em direção à
porta lateral da lanchonete, deixando que Carlinhos estacionasse a moto.
Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver os rastros da carnificina. Um
homem caído em frente à porta tinha o rosto tão desfigurado que era impossível
identificar uma cabeça, mas apenas uma massa disforme de carne e ossos acima
dos ombros. Cadê a Jussara?!, desesperava-se Edmir. Mais à frente, uma moça
estava debruçada sobre a mesa ensopada em seu próprio sangue, ao lado de um dos
funcionários, caído ao chão com diversos buracos de bala espalhados pelo peito.
Edmir nunca tinha visto um morto antes, exceto por um ou outro velório ao
longo de sua vida, mas em todas as ocasiões os defuntos estavam limpos,
costurados, maquiados e serenos como anjos de Deus. Estas pessoas aqui tinham
expressões de terror e desespero em seus rostos, com a exceção do homem caído
aos seus pés, que era incapaz de exibir qualquer expressão que não fosse a imitação
grotesca de uma massa de pão feita com fermento demais, posto em uma assadeira
muito pequena.
Em qualquer outra ocasião, o panorama brutal da carnificina e sanguinolência
deixariam Edmir em estado de choque, mas ele sentia algo mais forte que repulsa
ou instinto de autopreservação. Sua esposa deveria estar ali, talvez ferida e
precisando de ajuda. Precisava encontrá-la!
— Jussara! — gritou, passando sua perna sobre o cadáver no chão e disparando
em direção à cozinha.
Jorge, Marlene e Carlinhos chegaram ao interior da lanchonete e viram todo o
registro da chacina que houvera ali ao mesmo tempo em que ouviram o choro de
dor e desespero.
Na cozinha, os três se depararam com Edmir agachado sobre Jussara, chorando.
Tentava acordá-la, inutilmente. Ela tinha um buraco de bala na testa, assassinada a
sangue-frio.
Jorge não conseguia compreender. Jussara estava saudável ao sair de casa e seu
corpo não aparentava nenhuma mordida, não podia ter se transformado em um
daqueles monstros. Por que alguém faria uma atrocidade dessas com alguém que
não está infectado?
Pelo mesmo motivo que as pessoas sempre fizeram esse tipo de merda uns com
os outros, antes de existir qualquer Superraiva ou Febre Vermelha, Jorge
respondeu a si mesmo. A polícia estava correndo atrás dos infectados, tentando
conter a situação incontrolável e deixando as ruas livres para todo o tipo de
maníacos que quisesse expressar sua verdadeira aptidão.
— Eles assaltaram a lanchonete. — Carlinhos constatou, apontando para as
caixas registradoras com as gavetas abertas e vazias.
Edmir não parecia dar atenção a nada além do corpo envolto em seus braços.
Jorge chamou sua esposa para o outro lado do balcão e disse: — Má, eu sei que ela
era sua amiga e que o que eu vou dizer agora é a última coisa que seu irmão vai
querer ouvir, mas... a gente precisa ir embora daqui. A gente precisa sair deste
bairro agora!
— Jó! Como você pode falar uma coisa destas? A Jussara está morta! O que a
gente faz com ela?
— Amor, a gente não pode fazer nada por ela. Você viu a situação lá na rua.
Isso está se espalhando rápido e cada segundo aqui é um risco pra você e o bebê.
Eu não posso deixar nada acontecer com vocês.
Marlene pôs a cabeça entre as mãos e fechou os olhos, soterrada pelo turbilhão
de emoções que sentia: perda, medo, raiva, desespero e, subitamente, desconfiança.
A história se conectou em sua mente e, outra vez, foi tomada pela desconfiança de
seu marido. Ela amava-o incondicionalmente, mas não era cega. Sabia que ele
estava fugindo da polícia, e toda esta pressa para ir embora deste local podia muito
bem ser por causa da possibilidade de uma viatura policial aparecer ali a qualquer
momento.
Percebendo o familiar semblante de sua esposa desconfiada, Jorge se antecipou:
— Má, você não sabe pelo que passamos em Santos. Isso está fora de controle e
temos uma chance de buscar um lugar seguro. Confie em mim.
— Como eu posso confiar em você, Jorge? — desabafou. — Um foragido da
polícia! Você está com mais segredos de mim do que antes da gente casar. E já era
ruim naquela época!
— Marlene, eu tenho meus defeitos, mas não pense por um instante que eu me
colocaria acima da sua segurança... Eu me entregaria pra polícia agora, se isso
fosse garantir que você e nosso bebê estivessem seguros.
Marlene desatou a chorar e abraçou seu marido. Sabia que ele faria de tudo por
ela, e não conseguia amá-lo menos, apesar de todos os seus defeitos. Estava
decidida a seguir com ele e seu plano.
Carlinhos se aproximou dos dois, preocupado.
— Desculpem interromper, mas temos um problema.
— O que foi agora? — perguntou Jorge.
— O Edmir, ele tá ligando pra polícia — respondeu Carlinhos.
— Merda!
Jorge foi até a cozinha e viu Edmir sentado no chão, com o corpo de Jussara em
seu colo e o telefone celular na orelha, aguardando ser atendido.
— Edmir, me desculpe, mas a gente precisa sair daqui agora.
O homem de luto olhou para Jorge, enfurecido, mas não respondeu. Jorge
insistiu: — Meu irmão, você viu como as coisas estão lá na rua. Daqui a pouco
aqueles loucos chegam até aqui. A gente precisa ir pra um lugar seguro.
— Eu não sou seu irmão e vocês podem ir! — Edmir respondeu por entre os
dentes. — Eu vou cuidar da minha esposa, consolar a mãe e as irmãs dela. Vocês
vão embora!
— Edmir — disse Marlene –, não é seguro aqui...
— VÃO EMBORA! — gritou Edmir, abaixou a cabeça e voltou a chorar.
Marlene ajoelhou-se ao lado de seu irmão e o abraçou. Ele largou o celular no
chão, retribuiu o gesto e disse em seu ouvido: — Tenho coisas que preciso fazer.
Vocês podem ir embora, eu vou ficar bem.
— A gente ajuda — disse Jorge. — Podemos colocar ela em um dos carros do
estacionamento. Fica mais fácil pra levá-la onde você quiser.
Edmir ficou em silêncio por um tempo, olhando para o cadáver de sua esposa.
Então levantou-se e disse aos dois: — Podem ajudar?
Jorge e Carlinhos se entreolharam, então se posicionaram para levantar o corpo
de Jussara.
Marlene se afastou por um instante e Jorge se agachou para pegar os braços da
falecida, quando foi surpreendido por Edmir, que tomou a arma de sua cintura e
apontou-a em sua direção.
— Desculpe, irmã! — disse Edmir, com o rosto umedecido pelas lágrimas. —
Eu não tenho mais nada.
Edmir encostou o cano da arma contra sua própria cabeça e puxou o gatilho,
espirrando sangue e pedaços de cérebro sobre a máquina de milk shake.
9 - Homem Morto
Gilberto ainda estava acordado quando o sol nasceu, iluminando o depósito nos
fundos do bar por uma pequena janela de vidro fosco. O professor conseguiu
cochilar por algumas horas, vencido pelo cansaço acumulado durante os últimos
dias, mas acordou com a ligação de Jorge e não conseguira voltar a dormir.
Pietro também se mostrava desperto. Sentado ao seu lado, escrevia em um
pequeno caderno preto. Ao perceber que seu irmão acordara, guardou o caderno
em sua mochila e aproximou-se silencioso, como quem está prestes a contar um
segredo.
— Eu consegui contato com Alexandre, meu antigo companheiro do Exército.
— Pietro sussurrava para que somente seu irmão ouvisse, apesar do entusiasmo
com a notícia. — Por sorte nossa, ele está envolvido em alguma missão do
Exército relacionada à ameaça desta doença e ficou interessado nas informações
que temos. Ele entrará em contato no final do dia com um plano de extração.
— Isso é ótimo, Pietro! — entusiasmou-se Gilberto. — O hospital é o lugar
ideal para aguardarmos uma extração. Só precisamos de um plano para entrar lá.
— Estou pensando nisso — respondeu seu irmão. — Não será uma tarefa fácil
com todos estes malditos nas ruas. Vamos ver como está a situação lá fora.
No andar de cima acharam uma janela onde podiam ver a rua. Não havia
infectados ali por perto, uma preocupação a menos.
André e sua família tinham passado a noite no sótão. O pastor mexia numa
pequena televisão, que ele manteve em volume baixo, evitando chamar a atenção
de qualquer ser do lado de fora do Boteco do Heitor.
Passava pelos canais disponíveis, buscando notícias sobre a epidemia. O fato de
haver tantos canais seguindo com a programação normal, como desenhos ou
programas de agropecuária, fez com que ele suspirasse irritado, mas logo
conseguiu encontrar um noticiário que mencionava a doença. Abaixo do repórter
sensacionalista que fazia acusações de negligência das autoridades, uma legenda
dizia: A seguir: pronunciamento oficial do Governador do Estado de São Paulo.
André correu até a beira da escada e emitiu um discreto pssst, chamando a
atenção de Heitor, Marcelo e Gustavo, que ainda estavam no andar de baixo, e fez
um sinal para que eles subissem e ouvissem as notícias. Todos sentaram-se no chão
à frente do aparelho, enquanto o apresentador dizia:
O comunicado a seguir é um pronunciamento oficial do governador do Estado
de São Paulo, frente aos recentes acontecimentos no litoral do Estado e
proximidades, incluindo a capital paulista.
Logo em seguida, a familiar voz do Governador fez-se ouvir dentro do bar e de
todas as casas, veículos e estabelecimentos comerciais de São Paulo que tinham
um aparelho de televisão ou de rádio ligados em qualquer sintonia.
Maria Rita foi a primeira de seu quarto a acordar, assim que alguém abriu a
porta. Ela imediatamente sacou uma faca de arremesso que deixara sob seu
travesseiro e preparou-se para usá-la. Ao ver que o intruso era seu tio, relaxou o
braço e sorriu envergonhada.
Gilberto e Monique acordaram com o barulho da garota se movimentando sobre
o lençol, mas ela já tinha ocultado a faca antes que eles a notassem e dessem outro
sermão sobre os perigos de portar este tipo de arma, como tinham feito na noite
anterior. Vocês me falando sobre facas? Merda, deixa eu dar uma aula de Biologia
pra vocês e ficamos quites, pensava a garota, contendo a vontade de rir.
— Estão acordados? — perguntou Pietro, sem esperar uma resposta honesta. —
Precisamos partir. O helicóptero está chegando.
Gilberto sentou-se, esfregando os olhos enquanto dizia: — Isso é ótimo.
— Temos como levar mais pessoas do hospital? — perguntou Monique,
também levantando-se.
— Não — respondeu seu cunhado. — Já foi difícil convencer o major a levar
vocês e nosso grupo.
Ao ver que Monique ainda buscava alguma solução para o que não tinha jeito,
ele complementou: — Major Alexandre coordena um centro de pesquisas, não um
refúgio. A essa altura, tenho certeza de que o Exército está organizando refúgios
para os sobreviventes em São Paulo. Se estas pessoas segurarem as pontas por aqui
por mais uns dias, haverá uma operação de resgate.
Monique convenceu-se de que era o único jeito, por mais egoísta que se
sentisse, estando prestes a fugir em um helicóptero enquanto outros ficariam para
trás.
— Precisamos de você, mon chéri — disse Pietro, usando as únicas palavras em
francês que ele conhecia, a forma que ele chamava sua cunhada desde que seu
irmão os apresentou. — Sabe-se lá quando vão conseguir encontrar algum
imunologista no meio deste caos. Você pode ajudar a resolver isso tudo.
Gustavo não precisou ir muito longe para encontrar Pietro. Assim que abriu a
porta da escadaria D no quarto andar, ouviu a gritaria do outro lado do corredor.
Correu até lá com os dois soldados e encontrou Pietro e meia dúzia de homens
tentando fechar a porta da outra escadaria. Braços e pernas de ao menos cinco
mordedores bloqueavam o fechamento da porta.
O rapaz ergueu sua arma e disparou um tiro pelo vão da porta, acertando a
cabeça de um dos malditos que tentavam entrar. Os soldados o imitaram e
começaram a atirar. Os malditos que eram abatidos caiam atrás da porta, criando
um bloqueio aos outros que vinham de trás deles.
Ao matar todos os que estavam logo atrás da porta, foram necessários somente
dois homens empurrando-a para mantê-la inerte, pressionada contra os mortos que
impediam seu fechamento. Gemidos e murmúrios ecoavam pela escadaria em uma
melodia mórbida e constante.
— Precisamos eliminar todos os que estão na escadaria e refazer a barricada. A
porta não é uma defesa segura — disse Pietro, dirigindo-se aos homens fardados.
— Tomem posição!
Os soldados ergueram seus fuzis, controlando o terror inspirado por aquelas
criaturas. Gustavo estava entre os dois, com sua pistola em riste. Sob o comando de
Pietro, os homens que seguravam a porta se afastaram, deixando-a ser aberta
lentamente e os corpos empilhados atrás dela caírem dentro do corredor.
Os gemidos da escadaria foram sobrepostos por um rugido gutural e feroz, um
comando bárbaro de guerra. O primeiro infectado a passar pela porta foi um ex-
médico do hospital. Gustavo notou no estetoscópio ainda pendurado em seu
pescoço, quando uma bala de fuzil entrou por seu olho esquerdo e explodiu a parte
detrás de seu crânio.
Gustavo usou toda a sua munição para derrubar dois deles. Quando percebeu
que seu pente estava vazio, virou as costas para o combate e saiu correndo pelo
corredor. Aquela missão estava nas mãos dos soldados agora. Estava na hora dele
ir atrás de sua própria missão, a qual fora o verdadeiro motivo para que ele abrisse
mão da segurança do helicóptero e corresse em direção ao perigo: devia encontrar
a família do pastor e convencê-los a ir embora daquele hospital.
Pietro e os homens que estavam segurando a porta entraram em um quarto logo
à frente da escadaria — criando um refúgio, caso a quantidade de infectados
avançando superasse seu poder de fogo. O capitão posicionou-se na entrada, com
sua arma erguida e ajudando a atirar contra os invasores.
Os soldados e Pietro revezavam-se a cada invasor que passava pela porta,
abatendo-os um a um, fazendo com que os corpos se empilhassem na frente da
entrada. A contagem já passava de vinte corpos quando Pietro gritou: —
Precisamos avançar! Eles não vão parar de subir.
Os soldados avançaram, caminhando sobre os corpos ao chão e atirando contra
os homens, mulheres e crianças que subiam as escadas tentando alcançá-los. A
barricada destruída e os corpos dos mordedores abatidos estreitavam a passagem,
limitando o acesso dos invasores e dando vantagem aos soldados, possibilitando
que eles avançassem e conquistassem o espaço até a barricada.
Pietro e dois civis da equipe do Mauro carregaram os corpos dos mordedores
abatidos até a escadaria, empilhando-os sobre as passagens abertas pelos invasores.
Os malditos que tentavam passar pelas brechas da barricada eram abatidos pelos
soldados e seus corpos somavam-se à barreira contra os infectados que vinham
atrás. Finalmente, a defesa estava forte o suficiente para impedir o avanço de
qualquer invasor por um bom tempo.
Doutor Mauro agradeceu a Pietro com um simples aceno com a cabeça. Mesmo
sabendo que a intenção daquelas pessoas era abandoná-los à própria sorte, seria
eternamente grato pela ajuda.
Antes que alguém pudesse perguntar quem eram os homens fardados, Pietro e
os soldados se retiraram, deixando o grupo de sobreviventes trabalhar no reforço
de suas defesas.
Gustavo corria pelos corredores do quarto andar. Tinha pouco tempo para
encontrá-los, mas sua maior preocupação era em como convencê-los. Pietro já
tinha tentado, sem sucesso, fazê-los mudar de ideia, mas Gustavo gostava daquelas
pessoas e não desistiria tão facilmente. Não podia deixá-los ali sem saber que tinha
feito de tudo para levá-los para a segurança.
O caminho estava deserto, com todos os quartos abandonados. Chegou a pensar
que estava indo na direção errada, mas ouviu os gritos vindos do final do corredor,
indicando que ele estava no caminho certo — e que alguém estava em perigo.
Não sabia se encontraria seus amigos ali. Da última vez que os viu, eles
estavam acomodados em um quarto do terceiro andar, mas aquele era o único lugar
para onde eles poderiam ter fugido. Talvez fossem André, Letícia e seus filhos que
gritavam em desespero.
Chegando à outra extremidade do prédio, Gustavo entendeu o que acontecia.
Todos os sobreviventes que não estavam lutando nas escadarias estavam ali,
encurralados no fim do corredor por meia dúzia de infectados. Os sobreviventes
somavam mais de quinze pessoas, mas sua maioria era de crianças ou idosos,
nenhum deles preparado para lidar com aquilo.
Gustavo ficou aliviado e aflito ao ver a família do pastor entre os sobreviventes.
Aliviado por saber que eles não estavam no andar debaixo, o que significaria morte
certa, mas a situação ali também não era nada favorável.
André colocava-se à frente de sua família, ameaçando os infectados com uma
barra de ferro. Os malditos não avançavam contra ele e os outros sobreviventes
porque estavam ocupados devorando uma família que jazia morta no chão do
corredor. Mas eles bloqueavam o caminho para que qualquer um fugisse dali.
Gustavo sentiu-se um imbecil por ter gastado toda sua munição na escadaria.
Não tinha como lutar contra seis infectados, mas precisava tirá-los dali. Se ele
conseguisse atraí-los em sua direção, a família do pastor e os outros sobreviventes
teriam acesso a um dos quartos, podendo refugiar-se até que a ajuda chegasse.
— Ei! — Gustavo gritou — Aqui, seus putos!
Como provocação, Gustavo arremessou sua pistola contra as costas de um dos
infectados. O mordedor virou-se de frente para o rapaz e se levantou, imitado pelos
outros cinco malditos.
— Isso, seus putos. Venham me pegar! — Gustavo gritou, virou-se e começou a
correr.
Bastou o rapaz virar de costas para que o bando de infectados avançasse contra
ele, quase alcançando-o nos primeiros passos. Nos metros seguintes, Gustavo
ganhou distância deles, mas ainda assim não tinha a menor ideia do que fazer
assim que o corredor acabasse.
Foi então que ele viu Rita caminhando em sua direção. A garota trazia uma faca
de arremesso em cada mão e fez um sinal com a cabeça para que ele saísse da sua
frente.
No instante em que Gustavo jogou seu corpo contra a parede do corredor, Rita
arremessou as duas facas sequencialmente.
Fomp! Fomp!
Os baques secos ecoaram pelo corredor assim que as facas atingiram o peito de
cada um dos dois infectados que vinham à frente do bando. Ambos tiveram
perfurações em seus esternos e os corações foram dilacerados pelos projéteis da
garota, causando mortes quase instantâneas.
Ela sacou os facões Wushu de suas costas e caminhou em direção aos malditos.
Mesmo sem ter os olhos vermelhos, seu olhar enfurecido era mais amedrontador
que o de qualquer um dos coitados.
Os quatro remanescentes do bando corriam no mesmo ritmo, portanto
enfrentariam a garota ao mesmo tempo. Rita sabia que não tinha como atacar os
quatro ao mesmo tempo sem ficar exposta ao ataque de um deles, o que podia
significar seu fim. Mas não se importava. Queria matar a maior quantidade de
malditos que pudesse.
Quando ergueu seus facões, pronta para lançar-se contra os infectados, BAM!
Um disparo logo atrás dela ecoou pelo corredor e o maldito à sua direita teve
sua cabeça empurrada para trás pelo impacto de uma bala de revólver. Pouco
tempo depois, outro disparo foi feito e o desgraçado à sua esquerda caía, com um
tiro no peito.
Com um golpe firme, Rita cravou um facão na cabeça de um dos infectados e
largou sua arma ali, presa na testa do infeliz que caía ao chão.
O último dos malditos tentou atacá-la, mas ela esquivou-se e golpeou seu joelho
com o facão, decepando a parte inferior de sua perna. Com um empurrão, Rita
derrubou o perneta sem dificuldades.
Ao olhar para trás, viu seu pai com um revólver fumegante. A garota enfureceu-
se ainda mais. Seu pai tinha roubado sua chance de destruir dois destes putos.
Olhou para o infeliz deitado no chão, perdendo cada vez mais sangue pelo
buraco onde costumava ficar seu joelho. Colocou-se de pé sobre ele, com o facão
erguido sobre sua cabeça, e começou a golpeá-lo com toda a sua fúria.
Golpeou o maldito até ter decepado todos os seus membros e separar a cabeça
do corpo, depois começou a chorar. Seu pai veio ao seu encontro e tirou a arma da
sua mão. A garota desabou em seus braços.
— Acabou, filha. Vamos embora daqui.
Gustavo deixou Gilberto subir com sua filha ao heliponto e foi buscar André,
que estava escondido com sua família e outros sobreviventes no último quarto do
corredor. Ao abrir a porta do quarto deparou-se com o pastor pronto para golpeá-lo
com uma barra de ferro.
— André, sou eu! — disse Gustavo, protegendo o rosto com as mãos vazias.
— Gustavo! — gritou Talita.
— Que susto, rapaz — disse o pastor, que de imediato abaixou sua arma e
abraçou Gustavo. — Você nos salvou lá fora!
— Eu tive ajuda. O que importa é que agora o corredor está livre — disse
Gustavo, olhando para os demais sobreviventes que estavam no quarto. — Vocês
podem ir, não tem mais perigo.
Após ouvir mais alguns agradecimentos e elogios, os outros sobreviventes
saíram do quarto e deixaram Gustavo falar com André e sua família.
— Pensei ter ouvido um helicóptero por aqui — comentou o pastor. — Você
ficou pra trás?
— Não, eles estão esperando lá em cima. Voltamos pra ajudar contra a invasão
— explicou Gustavo. — Vocês precisam vir conosco. Este lugar não é seguro.
— Não precisa pedir duas vezes — disse André. — Vamos com vocês.
Pedro correu para abraçar seu salvador, que gentilmente retribuiu o gesto.
— Obrigada, Gustavo — disse Letícia, enquanto caminhavam pelo corredor. —
Você é um anjo. Tenho certeza disso.
Retribuiu as palavras com um sorriso. Apesar de tudo o que passara nos últimos
dias, Gustavo não se lembrava de alguma vez na vida ter se sentido tão bem por
algo que ele tivesse feito.
Já passava das seis horas da manhã quando tenente Salvador recebeu notícias de
seus soldados, dizendo que estavam a caminho. O tenente ligou o helicóptero. As
hélices começavam a girar, ganhando velocidade a cada rotação.
Ao ver Gilberto e Rita subindo a rampa do heliponto, Monique desceu da
aeronave e correu até eles. Abraçou sua filha, apertando-a com força por um bom
tempo.
Assim que os três tomaram seus lugares no helicóptero, tenente Salvador
questionou Gilberto sobre Pietro.
— Meu irmão e os soldados estavam logo atrás de mim — respondeu Gilberto.
— Devem chegar logo.
Gilberto lembrou-se do que Pietro lhe disse antes de voltar para dentro do
hospital: “entregue o pen drive aos militares e fique com o meu diário. Leia o que
escrevi o quanto antes.”
A mochila estava no chão do helicóptero, aos pés de Monique. Gilberto a pegou
e abriu o zíper. Encontrou o pen drive e um caderno preto, o diário que vira com
seu irmão várias vezes durante os últimos dias.
Com o caderno em mãos, uma movimentação do lado de fora do helicóptero
chamou sua atenção. Gustavo chegou ao heliponto, seguido pelo pastor e sua
família. Finalmente as coisas estavam dando certo.
Ao abrir o diário, uma folha solta caiu em seu colo. Gilberto imaginou que seu
irmão deixara alguma mensagem ali, para que fosse lida antes de qualquer outra
coisa. Ao desdobrar o papel, leu:
Os militares sabiam sobre o vírus.
Não confie em ninguém, só no major Alexandre.
Todo o alívio que Gilberto sentia com a chegada dos militares sumiu, dando
lugar a dúvidas e preocupações. Se não podiam confiar em seus salvadores, como
fariam? O único consolo era que seu irmão estaria com ele. Pietro saberia o que
fazer.
Pouco depois, os dois soldados surgiram marchando sobre a rampa. Pietro vinha
logo atrás, buscando fôlego para caminhar até o helicóptero.
Ao chegar à aeronave, um dos soldados entrou e o outro ficou do lado de fora.
Pietro os alcançou, prestes a embarcar, mas os soldados ergueram seus rifles,
apontando-os na direção de Pietro: — Alto! — gritou o soldado ao lado de fora.
Pietro estancou, sem que nenhum dos sobreviventes entendesse o que estava
acontecendo.
— Não podemos embarcar ninguém infectado. Entregue o pen drive!
Gilberto não queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Compreendera
apenas algumas palavras que o soldado dizia em meio ao ruído das hélices, mas a
situação era clara, mesmo sem ouvir a conversa.
Quando seu irmão fez menção de descer do helicóptero para intervir, Pietro
ergueu a palma de sua mão, indicando para que ele parasse. Gilberto reparou que
Pietro não expressava somente cansaço, mas também uma dor profunda. Num
movimento cauteloso, o capitão ergueu sua camisa verde-oliva, revelando uma
ferida aberta em sua costela. Uma marca de mordida.
Pietro tinha sido mordido durante o combate com os infectados na escadaria,
antes mesmo que Gustavo e os soldados chegassem até ele.
— Não! — gritou Gilberto, se levantando de seu banco. Pietro reforçou seu
sinal para que ele parasse.
Monique segurou sua filha. Ambas choravam, mas Monique mantinha os
braços em volta de Rita, certificando-se de que ela não sairia do helicóptero.
A porta da escadaria se abriu e alguns sobreviventes do hospital começaram a
subir a rampa, ouvindo o som das hélices. O soldado que estava do lado de fora do
helicóptero sacudiu seu rifle na direção de Pietro e repetiu: — O pen drive. Agora!
Pietro sorriu ao ver todas as pessoas que tinha conseguido resgatar. Além de sua
família, olhou para Gustavo, Jorge, Marlene, William e a família do pastor. Apesar
de conhecê-los a poucos dias, se importava com cada um deles. Vê-los a salvo do
inferno daquela cidade lhe trazia um pouco de paz.
— Agradeça ao major por mim, soldado — disse o capitão, jogando um pen
drive para ele.
Confuso ao ver o pen drive nas mãos do militar, Gilberto abriu a mochila e
enfiou sua mão dentro, vasculhando. Não, ele não estava louco... estava tudo ali. O
diário e o pen drive. Lembrou-se do bilhete que estava lá dentro:“Não confie em
ninguém, só no major Alexandre”. Pietro não correria o risco de entregar estas
informações à pessoa errada, então confiou que Gilberto as entregaria diretamente
ao major. O que os soldados tinham em mãos era apenas uma distração.
A aeronave decolou. Gilberto olhava pela janela, acenando para seu irmão uma
última vez. Pietro e o hospital se distanciavam, ficando quase imperceptíveis em
meio a destruição que consumia a cidade lá embaixo. Monique e sua filha o
abraçaram.
— Gil, o seu irmão... eu sinto muito...
Perder seu irmão daquela forma era horrível, mas Gilberto conteve suas
emoções. Sua família precisava dele agora mais do que nunca.
— Ele fez isso para ficarmos seguros, Môn — ele disse, mantendo as duas
apertadas em seus braços. — Nós vamos para um lugar seguro e vamos achar uma
cura para isso... era o que Pietro queria.
O helicóptero seguiu em direção a Campinas, levando os onze sobreviventes ao
centro de pesquisas militar.