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Contents

Dedicatória
Citações
Prólogo: Contágio
Highway to Hell
Fuga
O Ano Novo
Estrada Velha
Dia de Treino
O Pulso Ainda Pulsa
Instruções oficiais
Quebrada
Homem Morto
Sangue, suor e lágrimas
O bem, o mal e além
Sacrifício
Para Kika, minha motivação para ser sempre o meu melhor.
Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também
um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para
você.
- Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal

Peste bubônica, câncer, pneumonia


Raiva, rubéola, tuberculose e anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe e leucemia...
E o pulso ainda pulsa.
E o pulso ainda pulsa.
- O Pulso, Titãs

Guerra, crianças, está apenas a um tiro de distância.


- Gimme Shelter, Rolling Stones
Prólogo: Contágio Cadeira desconfortável, filha da p..., pensava Fábio,
prestes a levantar-se para arremessar seu assento contra a parede, quando seu nome
foi chamado pela recepcionista do consultório.
— Senhor Fábio Vélez.
Em outra ocasião, o sargento da Polícia Militar do Estado de São Paulo
destinaria alguns segundos para apreciar o decote da loira de vinte e poucos anos
que o chamava. Mas não estava com humor para seios ou sorrisos naquele dia dos
infernos. Seu corpo doía, sua cabeça latejava e, mesmo tendo usado meio tubo de
desodorante antes de sair de casa, suava como um porco.
Vélez levantou-se e caminhou em direção à moça. Ela disse que o doutor iria
recebê-lo e indicou o corredor que levava ao consultório.
Apesar do mal-estar e suspeita de estar infectado por alguma virose, o sargento
não quis faltar à consulta com este doutor. Por ordens do tenente responsável pelo
45º batalhão da Polícia Militar, a unidade de Praia Grande em que Fábio estava
alocado, era mandatório que ele se consultasse e fosse avaliado por um psicólogo
credenciado pela corporação. “Aquela cena de crime seria o suficiente para tirar o
sono de qualquer um, Vélez.”, dissera seu tenente. “Além disso, você foi obrigado
a puxar o gatilho e matar aquele homem... E quando um policial faz isso, ele tem
que passar por acompanhamento psicológico. Procedimento padrão, sargento.”
— Merda de procedimento padrão... — resmungou Fábio enquanto caminhava
pelo corredor até a sala do doutor.
A sala tinha um aspecto clássico e antiquado, combinando com o jeito de se
vestir e a idade avançada do senhor que o aguardava.
— Sargento Vélez, sou o Doutor Monteiro.
— Doutor — disse Vélez, complementando seu cumprimento com um leve
aceno de cabeça.
Doutor Monteiro estendeu o braço, indicando uma sóbria cadeira de couro
marrom. Fábio sentou-se e enxugou suas mãos suadas no jeans da calça.
— Eu imagino que estar aqui seja desconfortável para o senhor, — disse o
psicólogo — mas, como seu superior deve ter lhe explicado, este é um
procedimento padrão e visa seu próprio bem-estar.
— Claro, doutor — respondeu Fábio, enxugando o suor da testa em um lenço
branco que trazia no bolso.
— O senhor não parece bem, tenente. Tem certeza que deseja fazer isso hoje?
Fábio não estava com paciência para lidar com aquilo, mas, sendo sincero
consigo mesmo, sabia que nunca teria paciência para sentar na frente de um
desconhecido e falar sobre seus sentimentos. Ainda mais quando seus sentimentos
não tinham nada de errado. Não era como se ele tivesse matado uma criança
inocente. O meliante tinha intenção de matá-lo e teria satisfeito seu desejo se Fábio
não tivesse puxado o gatilho.
— Sim, doutor — disse o sargento. — É só um mal-estar. Vamos resolver isso
logo.
— Para começarmos, por que o senhor não me conta o que houve no dia do
incidente do navio? — disse o doutor — Desde o princípio, como se eu não
soubesse de nada.
Após respirar fundo, Fábio repassou o discurso ensaiado em sua cabeça. Não
queria que aquele velho anotasse em sua avaliação que ele estava reprimindo seus
sentimentos ou qualquer outra baboseira de psicólogo, pois o resultado deste
relatório poderia recomendar que ele ficasse fora de atividades nas ruas ou até
mesmo suspenso da corporação. Ser policial era sua vida, então esforçou-se para
contar a história da melhor forma possível.
— Bom, o acidente do navio aconteceu três dias atrás... Era Natal, mas eu
estava na patrulha com o cabo Silveira, fazendo ronda pela Avenida Castelo
Branco... — ao notar a expressão de dúvida no rosto do doutor, Fábio lembrou-se
de que estava em um consultório em Santos, cidade vizinha à sua. O doutor
provavelmente não tinha a menor ideia de qual era a tal avenida, então refraseou:
— Estávamos fazendo a ronda pela avenida da orla em Praia Grande quando vi um
navio cargueiro vindo em direção à praia. Comentei com meu parceiro. Achamos
aquilo muito estranho, porque a rota de navios é em direção ou saindo de Santos,
nunca vindo em direção à nossa cidade. Parei o carro e ficamos ali, tentando
entender o que estava acontecendo, enquanto o navio se aproximava das rochas da
Ponta de Itaipu.
Fábio pigarreou, com catarro em sua garganta. Ao menos não teria que explicar
ao santista o que era a Ponta de Itaipu, uma porção de sua cidade que se estendia
dois quilômetros mar adentro ao leste da praia. Era visível aos moradores de
Santos, que ficava do outro lado da Ponta.
— A gente ouve relatos de oficiais que prestaram assistência após desastres de
avião, incêndios ou qualquer outra coisa deste porte e eles dizem que tudo acontece
tão rápido que você só pode agir por impulso e coragem. Com o navio não foi
assim. Eu percebi que ia dar merda, tive tempo de ligar para a central, ir e voltar
até a beira do mar tentando ter uma visão melhor do que estava acontecendo, e até
tirei uma foto com o celular para mandar ao meu superior mostrando a gravidade
da situação. Deve ter levado uns cinco minutos até o navio bater nas pedras. Foi
algo que eu nunca imaginei que fosse ver na vida... — tomou fôlego, como se
estivesse repassando a cena em sua cabeça, e continuou — Aquele monstro de
mais de cem mil toneladas, com a frente saindo de dentro do mar e jogando pedras,
areia e ferro para todos os lados.
— Eu vi o vídeo no jornal — comentou o doutor. — Foi uma cena incrível.
— Enfim, — continuou Fábio — o navio encalhou ali, com a frente embicada
no meio das pedras e mato da Ponta de Itaipu. Logo recebemos um chamado no
rádio, avisando que uma equipe de socorristas de lancha estava indo para lá e eles
precisavam de alguém da PM para acompanhar, então nos voluntariamos. Ainda
bem que aqueles socorristas não foram lá sozinhos, ou a história teria sido muito
diferente.
Fábio interrompeu sua história, tossindo enquanto tapava sua boca com o lenço
úmido de suor e catarro.
— Chegando lá, percebemos como o navio estava fodido. Ele tinha avançado
uns dez metros pra dentro das pedras e da selva, com a proa fincada no solo. Tenho
certeza de que vão demorar anos pra tirar aquele monstro de lá. — Apesar do mal-
estar, Fábio sempre se empolgava contando aquela história, sem dúvida a mais
incrível que ele tinha vivenciado — Enfim, o metal da casca dele estava retorcido,
deixando algumas aberturas por onde poderíamos entrar, mas eu não tinha intenção
de fazer isso. Naquele momento, o pessoal da central estava louco discutindo
procedimentos, já eu acreditava que entrar num lugar tão instável era trabalho pros
bombeiros.
— Mas você entrou no navio... — disse o doutor.
— Sim. Eu e Silveira ficamos perto do navio, avaliando a situação e garantindo
que nenhum dos socorristas se aproximasse demais. O navio estava meio tombado
de lado. A gente tinha medo que ele virasse de vez e esmagasse alguém. Foi então
que ouvimos um grito vindo de dentro dele. Um grito de dor, sabe? Era um indício
de alguém ferido ou em perigo lá dentro... Era nosso dever investigar.
Doutor Monteiro assentiu.
— Quando eu e o cabo entramos, estava escuro lá dentro, então tivemos que
usar nossas lanternas. Acho que estávamos em algum compartimento de carga,
porque tinha caixas pra todos os lados e muita poeira. Já não ouvíamos ninguém
gritar, mas sabíamos que os gritos tinham vindo da parte de cima do navio, então
encontramos uma escada e subimos. Deu uma trabalheira do cão subir aquela
escada, com o navio inclinado daquele jeito... Enfim, lá em cima tinha um
corredor, bem mais limpo e iluminado que o andar debaixo. Parecia um hotel, de
tão organizado. — Fábio fez uma pausa e tossiu, parecendo que ia expelir os
pulmões para fora, tão fortes eram suas tosses.
Acho que esse não será o único doutor que verei hoje, pensou Fábio
considerando ir ao hospital após terminar sua avaliação com o psicólogo.
— Gripe fora de época, Vélez? — perguntou o doutor, aparentando estar
desconfortável com as tosses e aparência de Vélez.
— Bobagem, vou passar na farmácia saindo daqui e amanhã estarei melhor.
— Então continue. O que vocês encontraram no corredor?
— Logo no primeiro quarto que encontramos, havia um homem caído sobre
uma poça de sangue — revelou Fábio. — Entrei no quarto e verifiquei que ele
estava morto. O pescoço dele estava rasgado e litros de sangue escorriam pelo
chão, mas peguei seu pulso pra confirmar se estava morto. Martelam tanto esses
procedimentos em nossa cabeça que a gente faz por impulso, sabe? Enfim,
constatei não só que ele estava morto, mas que seu corpo estava frio. Aquele
cadáver devia estar ali há horas, não era o homem que ouvimos gritar. Saímos de lá
e decidimos passar de quarto em quarto, procurando alguém vivo.
— Você não achou que seria mais prudente esperar o reforço chegar? —
perguntou o doutor.
— Claro, a gente estava se cagando de medo! — respondeu Fábio, desviando de
seu discurso ensaiado. — Doutor, estou acostumado a lidar com vagabundo que dá
tiro em pai de família por causa de dez reais pra comprar crack. Já lidei com
homem bêbado que espancou a esposa por ciúmes. O que aquele sádico fez com as
vítimas não está nos treinamentos da corporação. Encontramos oito corpos no total.
Todos mutilados e largados pra apodrecer sobre o próprio sangue, como bichos
atropelados na beira da estrada.
Fábio fez uma nova pausa para tossir. Sua cabeça doía a cada movimento, uma
dor profunda atrás dos olhos. Além disso, a boca estava seca e seu estômago
embrulhado, tentando devolver seu almoço. Respirou fundo e conteve sua náusea
para terminar o que fora fazer ali. Não queria causar uma cena e prejudicar sua
avaliação.
— Sabe como é, doutor, a gente sabe que estes loucos existem. Só não esperava
encontrar um deles ali, no meio de uma situação que já era louca demais.
— Compreendo — comentou o doutor, tentando manter suas palavras neutras e
não influenciar o relato de seu paciente.
— Mas tínhamos que seguir até o fim. Alguém podia estar ferido e precisando
de nossa ajuda — disse Fábio. — Quase no fim do corredor, vimos um homem por
trás de uma porta meio aberta mais à frente. Ele estava coberto de sangue,
rosnando que nem um animal. Assim que a gente mandou parar e erguer as mãos,
ele saiu do quarto e começou a correr em nossa direção. Não tive opção... o cara
estava louco.
Fábio interrompeu sua história. A náusea voltava com intensidade insuportável.
Um súbito refluxo subiu do estômago, passou pela garganta e projetou-se para fora
da boca, espalhando-se pelo carpete do chão do consultório e tingindo-o de
vermelho. Em meio à tontura e à vergonha,o tenente ficou ali sentado, com a
cabeça entre os joelhos e sem saber o que dizer.
— Tenente, o senhor precisa de um médico — disse Doutor Monteiro.
— Está tudo bem — Fábio respondeu, tentando lembrar se comeu molho de
tomate, bebeu vinho ou ingeriu qualquer outra coisa com esse tom avermelhado, ou
se era possível ter vomitado sangue.
Porra, Fábio. Vomitar na porra do carpete do velho? Quem tem carpete no
chão hoje em dia, cacete? — pensou, entorpecido. Subitamente sua vergonha
transformava-se em raiva. Todo mundo vai rir. Todo mundo na corporação vai
cascar o bico com o palhaço que vomitou no carpete do velho. Sem perceber, o
tenente tinha seus punhos e dentes cerrados, com os músculos contraídos como
alguém que está prestes a entrar em uma briga.
Fábio tentou se acalmar, balançando a cabeça e relaxando seus braços. O
psicólogo colocou a mão debaixo de seu braço, sobre sua camisa polo encharcada
de suor, ajudando-o a ficar de pé.
— Tenente, seus olhos... — disse o doutor. — Tem alguma coisa errada.
Fábio não pôde ouvir mais nada. Assim que ficou de pé, viu a sala escurecer. Suas
pernas ficaram moles e ele foi ao chão.
1 - Highway to Hell
Era uma bela manhã de sol na Praia de Pernambuco, no Guarujá, véspera de
ano novo. A maioria das pessoas discordava de Gilberto quando ele dizia que
aquela era a melhor praia de São Paulo, mas existia uma harmonia entre a areia
branca, o verde da Ilha do Mar Casado e o azul do mar que despertavam sua
nostalgia, especialmente ao comer um pastel em uma das tradicionais barraquinhas.
Tudo isso fazia deste o seu lugar favorito para passar o fim de ano.
Professor Gilberto Giovannini, ou Doutor Beakman como seus alunos
costumavam chamá-lo, estava sentado numa cadeira de praia à sombra de um
guarda-sol, quando resolveu que era hora de pegar outra cerveja do seu cooler. Não
se tratava de qualquer cerveja, mas uma Lager produzida na República Tcheca,
com o marcante sabor e aroma de lúpulo Saaz das cervejas produzidas naquela
região, suas favoritas.
— Pai, você sabe que eles vendem cerveja nas barraquinhas aqui na praia, né?
— perguntou Maria Rita para provocá-lo.
— Filha, estou na minha praia favorita, com as duas mulheres mais belas de
toda a Baixada Santista. Não vou estragar o momento com uma cerveja barata.
Maria Rita e sua mãe, Monique, riram do esnobismo simulado de Gilberto e da
forma apaixonada como ele começou a discursar sobre cada uma das cervejas
artesanais que estavam em seu cooler. Sabiam o quanto este tempo em família era
precioso para ele. Durante o ano, entre as aulas de Neurofisiologia que ministrava
na USP, pesquisas e construção da tese para seu segundo pós-doutorado, ele ainda
conseguia tempo para buscar sua filha nos treinos de kung fu, ajudá-la com os
estudos e jantar com a família, mas esse era todo o lazer que conseguia ter.
Ocasionalmente, corria no campus da universidade e, raramente, arranjava um
tempinho para degustar suas estimadas cervejas artesanais com algum amigo, mas
fora isso, focava-se no trabalho.
Na verdade, toda a família Giovannini tinha uma rotina intensa. Monique
também trabalhava na Universidade de São Paulo, mas na área de pesquisas. Era
responsável por diversos projetos em Imunologia na Universidade, sendo sua
principal responsabilidade liderar a equipe de pesquisa e desenvolvimento anual da
vacina da gripe. Por se tratar de uma doença causada por mais de um tipo de vírus
mutável, os antígenos da vacina eram atualizados todos os anos de acordo com
amostras coletadas da população no ano anterior. Um trabalho meticuloso e de
responsabilidade enorme, no entanto Monique ficava satisfeita ao pensar no
impacto que seu trabalho causava na qualidade de vida das pessoas.
Com toda a correria do ano que se findava, estas duas semanas na Baixada
Santista eram o que os Giovannini precisavam antes de entrar no ano seguinte, que
presumiam ainda mais conturbado que o anterior.
Rita distraiu-se mexendo em seu celular, trocando mensagens com seu
namorado. Por mais que simpatizasse com o descanso de seus pais, a garota de
dezessete anos estava com a cabeça do outro lado da Serra do Mar. Júlio estudava
em sua classe no colégio e treinava na mesma academia que ela. Os dois
namoravam há uns três meses, e passar suas férias longe dele estava sendo uma
tortura. Agora que tinha acabado o colegial, as provas de vestibular que estava
prestes a fazer deveriam ser sua maior preocupação, mas não eram. Sua mente não
conseguia pensar em outra coisa que não fosse arranjar uma desculpa para fugir
daquelas férias, subir a Serra e passar a próxima semana grudada em seu
namorado.
— Marie, vamos caminhar? — perguntou Monique com seu carregado sotaque
francês. Ela morava no Brasil há mais de vinte anos, mas nunca conseguira se
livrar do R típico da sua língua materna.
Tenho escolha?, a garota pensou em responder, começando a ficar inquieta com
a falta de soluções para conseguir o que queria. Ao invés de responder, resolveu
somente acenar com a cabeça e levantar-se, ajustando seu biquíni.
Maria Rita tinha cabelos longos, castanhos e ondulados. Um pouco mais alta
que sua mãe, que tinha um metro e setenta de altura, e estava no auge da sua forma
física. Treinava kung fu diariamente, fazia musculação pelo menos três vezes por
semana e corria provas de até quinze quilômetros sem grandes dificuldades.
Porém, nada disso a deixava menos desconfortável ao andar em público vestindo
um biquíni. Não importava o quanto os outros tirassem sarro ou a tentassem
convencer, ela sempre usava shorts, canga ou algo menos revelador que suas
roupas íntimas quando estava na praia. Hábito que não herdara de sua mãe, que aos
quarenta e três anos de idade nunca tivera problemas em exibir suas finas pernas
brancas. Monique tinha a pele alva, com algumas sardas no rosto e nas costas.
Usava um biquíni azul e um "chapéu de madame", como sua filha chamava.
Caminharam até o mar e seguiram beirando a água no sentido da Ilha do Mar
Casado, localizada ao final da praia, cerca de um quilômetro de onde estavam. Rita
sabia que sua mãe iria falar sobre amenidades e florear a conversa por um tempo,
até chegar à pergunta que queria fazer. Decidiu conter seu impulso de falar o que
pensava, pois poderia precisar de sua mãe de bom humor se fosse contar com sua
autorização para voltar para São Paulo antes do dia combinado.
Após um pouco de conversa, veio uma pergunta que tirou Rita de seu estado de
respostas automáticas.
— Marie, tenho percebido você muito envolvida com suas outras atividades
ultimamente. O dia do seu vestibular já está chegando. Você se sente preparada?
— Pô, claro que estou — respondeu a garota, incomodada pela pergunta. —
Estudei o ano inteiro pra isso, não precisa nem falar, né?
— Só estou dizendo que vejo você se dedicando menos a isso ultimamente.
Além de todos os seus treinos, agora também seu namorado...
— Ah, pode parar, mãe! — interrompeu a garota, alternando seu humor de
entediada para furiosa em segundos. — Vai usar isso agora como desculpa pra
criticar o Júlio? Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu me mato de estudar
o ano inteiro, continuo me matando e tenho que ficar ouvindo merda?
— Marie, você é uma mulher falando com a sua mãe — disse Monique,
mantendo sua finesse mesmo diante da demonstração gratuita de rebeldia de sua
filha. — Pare de falar como un grossier, pois não foi assim que te eduquei.
Questiono sua divisão de tempo e prioridades, não o Júlio. Se você me perguntasse,
eu diria que você não está em um momento para assumir relacionamento, ainda
mais um garoto que mal saiu das fraldas. Com certeza isso já é um peso para você
agora, imagine quando você estiver na faculdade. Se isso não atrapalhasse seus
estudos, seria assunto seu.
A garota bufava de raiva ao dar meia volta, deixando sua mãe falando sozinha.
Começou a caminhar de volta ao seu guarda-sol, numa mistura de revolta com as
críticas recebidas e absoluta frustração dos seus planos de voltar para São Paulo.
Monique preferiu continuar caminhando na direção oposta e esfriar a cabeça.

A Mata Atlântica passava ao lado do carro em movimento, indiferente ao olhar


de Gustavo. O rapaz viajava em pensamentos distantes, sentado no banco de
passageiros enquanto descia a Serra do Mar com seus amigos a caminho de Santos.
Apesar de ter acabado de concluir o penúltimo semestre da faculdade de
Biomedicina, ele não estava cansado. Sempre teve inteligência suficiente para
compensar sua falta de dedicação aos estudos. Já Beatriz, que dirigia o carro,
passara as duas últimas semanas dormindo menos de quatro horas por noite,
antecipando seus trabalhos no estágio e tese de conclusão de curso para poder
aproveitar uma semana de férias.
Como era de costume em viagens com amigos, Gustavo tomou todas as
precauções para não ser considerado um candidato a motorista. Chegou ao ponto
de encontro calçando chinelos, mencionou que estava com a vista cansada, bocejou
enquanto conversavam e dirigiu-se ao banco de passageiros assim que entraram no
carro. Não que ele não gostasse de dirigir, mas a ideia de fazer algo que exigisse
algum esforço e concentração, quando havia quatro outras pessoas capazes de fazê-
lo, nem passava por sua cabeça.
Apesar de sua notável repulsa por fazer qualquer tipo de esforço, Gustavo era
muito estimado por seus amigos. A capacidade de influenciar a todos com seu
carisma era impressionante, considerando que ele só usava este dom para
convencer os amigos a sair para beber até às cinco horas da manhã no meio de
semanas de prova, roubar uma placa de sinalização da universidade — daquelas
que avisam os motoristas do risco de animais na pista — ou outras coisas ainda
menos responsáveis e produtivas. Gustavo sempre conseguia o que queria, e seu
desejo era sempre o mesmo: divertir-se.
Quando mais novo, Gustavo passava a maior parte de seu tempo jogando RPG,
jogos de computador, lendo gibis e qualquer outra atividade que o tornava um
exemplar nerd. Ao contrário do estereótipo, isso não fez dele uma pessoa
antissocial. Os jogos e desenhos que ele tanto gostava eram assunto em comum
com pessoas que se tornaram grandes amigos, além de serem uma das influências
mais fortes em sua formação.
Além dos hobbies nerds, Gustavo gostava de andar de skate. Enquanto morava
em Santos com seus pais, a prática acabou se tornando válvula de escape às
constantes críticas de seu pai ao seu desleixo nos estudos, mesmo ele sendo
aprovado em todos os testes do colégio, curso de inglês e simulados de vestibular.
“Você nunca vai saber o seu potencial enquanto se contentar em ser mediano,
Gustavo.”, dizia seu pai, nem sempre de forma tão polida. Assim que terminou o
Ensino Médio, conseguiu uma vaga na Universidade de São Paulo, uma das mais
prestigiadas e concorridas universidades públicas do país. Apesar da qualidade do
curso, o maior motivador para optar pela USP foi a oportunidade de morar longe
dos pais, sem deixar de ser sustentado por eles, pois se tratava de um curso de
período integral. Ele sempre gostou da área de saúde e Biologia, mas não tinha a
menor ideia do que fazer da vida. Escolheu Biomedicina por ser o curso que mais
se encaixava com suas aptidões.
Desde que começara a faculdade, sua rotina e prioridades mudaram bastante. Os
jogos e gibis deram lugar aos botecos, festas universitárias e qualquer outro motivo
para beber com os amigos. Esta rotina vinha se repetindo há três anos e meio, mas
passou a não satisfazê-lo mais. As festas continuavam boas, porém a falta de um
propósito maior que curtir a vida entre uma ressaca e outra começava a deixá-lo
inquieto. Tudo culpa do Doutor Beakman, pensava Gustavo, lembrando-se de um
sermão de quarenta minutos que um professor, o qual segundo os alunos parecia o
ator de "O mundo de Beakman", passou durante uma de suas aulas. Ele questionou
os alunos, embora olhasse para Gustavo na maior parte do tempo, sobre o que eles
estavam fazendo naquela sala de aula, na universidade e na vida deles, se não
sabiam onde queriam chegar. Apesar da sua revolta e rejeição inicial, o sermão
surtiu algum efeito. Mudanças reais, no entanto, não acontecem de forma rápida ou
natural com pessoas tão acomodadas e teimosas quanto ele.
Seu momento de reflexão foi interrompido quando Bia aumentou o volume do
rádio do carro para ouvir uma notícia que chamou sua atenção: ...e milhares de
pessoas vieram à Baixada Santista só pra ver esta cena única. Tem gente do país
inteiro vindo conferir e tirar uma selfie com o navio de mais de cento e cinquenta
mil toneladas que chocou-se contra a Ponta de Itaipu...
— Puta merda — resmungou Zé no banco de trás –, vai ser osso chegar em
Santos hoje.
— A entrada de Praia Grande é depois de Santos, Zé — disse Gustavo. —
Talvez a gente não pegue tanto trânsito assim.
Continuaram ouvindo o radialista por um tempo, sem conseguir nenhuma
informação relevante quanto ao trânsito.
— Mas e aí — interrompeu Gustavo –, o que a gente vai fazer quando chegar
lá?
— Bora pra praia! — exclamou Diego.— É pra isso que a gente está descendo a
serra, né?
— A gente vai chegar lá umas dez horas da noite — lembrou Bia, que estava
pronta para deitar em qualquer canto na casa dos pais do Gustavo e acordar na hora
do almoço do dia seguinte.
— Vai estar de noite, vovó — disse Diego –, mas a gente leva as brejas, violão
e começa bem as férias.
— Bom — disse Gustavo, com o típico sorriso de canto de boca de quem
conseguiu o que quer –, não precisamos esperar chegar lá pra começar. Acho que
as brejas do cooler já gelaram. Seu energético também, Bia.
Beatriz abriu seu energético ao som de Highway to Hell, cantada pelo falecido
vocalista da banda australiana AC/DC, Bon Scott, e por três jovens extremamente
desafinados, Diego, Zé e Desihee, que balançavam suas latas de cerveja no banco
de trás do seu Ford Ka. Ela trocou um olhar com Gustavo e ambos começaram a
rir. Naquele momento, deixou todo seu estresse e preocupações de lado para
começar suas merecidas férias. Gustavo tinha aquele poder sobre ela. Não
importava quão ansiosa estivesse com seu trabalho de conclusão de curso, estágio,
provas ou o que fosse, ele sabia criar uma situação para que ela se descontraísse e
aproveitasse o momento. As preocupações podiam esperar sua volta a São Paulo.
Gustavo passou seus olhos pela garota. Seus longos cabelos ondulados e olhos
negros, corpo atlético e perfume adocicado, lembrando baunilha, estavam
constantemente em seus pensamentos nos últimos meses. Apesar de se conhecerem
desde o início da faculdade, algo novo surgia entre os dois, e ele achava que aquela
viagem seria uma ótima oportunidade para descobrir o que era.
Chegando em Santos, decidiram não passar pela casa onde iam ficar, pois
tinham certeza que se vissem um sofá, uma cama ou qualquer outra superfície
confortável ficariam com preguiça de sair. Foram direto para a Avenida da Praia,
onde potentes luzes brancas dos holofotes iluminavam o Jardim da Praia, que
enfeitava e coloria toda a extensão da orla. Resolveram ficar próximos a uma
pracinha, na qual durante o dia costumava acontecer uma movimentada feirinha
hippie.
Àquela hora, entretanto, o lugar estava quase deserto, exceto por alguns
boêmios espalhados entre o jardim e a praia. Uns jogavam futebol, outros estavam
aglomerados em torno de isopores de cerveja e alguns, mais afastados da
iluminação, conversavam descontraídos dividindo um cigarro, envoltos por uma
fumaça esbranquiçada e suspeita.
No total, o grupo de Gustavo somava dez pessoas. Além dos que vieram com
Bia, Chuaza, Hulk, Ká, Gabi e Ju viajaram em outro carro.
Chuaza, apelidado assim graças a sua semelhança física com o ex-governador
da Califórnia e rei da Aquilônia, Arnold Schwarzenegger, e O Incrível Hulk foram
os primeiros a pisar na areia, com uma bola de rúgbi em mãos. Os dois eram
titulares no time da BIO-USP e sempre puxavam o pessoal para jogar
amistosamente.
— Bora jogar, Gustavão. Aqui na areia não machuca quando eu te derrubar! —
provocou Hulk, jogando a bola para Gustavo.
— A areia é macia, mas o ogro que cai em cima de mim pesa uns duzentos
quilos — respondeu rindo, enquanto falhava em segurar a bola arremessada pelo
amigo, deixando-a cair na areia.
Dividiram-se em dois times de quatro pessoas, já que Zé e Desihee tinham ido
"dar um rolê", o que todos entenderam como "ir para um banquinho a alguns
metros dali e ficar se pegando". Jogaram por cerca de cinco minutos, até que as
meninas perderam interesse e ficaram de lado, conversando. Os rapazes se
divertiram por mais uns dez minutos até que Gustavo, percebendo que aquilo não o
ajudaria em sua missão-Bia, fingiu uma contusão no tornozelo e disse que a única
cura seria beber uma “breja” e ouvir um pouco de Nirvana.
Diego de imediato abandonou o jogo e foi até o carro buscar seu violão. Jogar
tinha sido divertido a princípio, mas não via motivos para continuar como figurante
no duelo entre Hulk e Chuaza, os maiores e mais fortes do grupo. Com o violão na
mão as atenções se voltavam para ele. Não era um grande músico, mas com a
plateia embriagada e os clássicos simples do Nirvana e Legião Urbana, tornava-se
um rockstar.
Era assim que Desihee o chamava: Rockstar. Diego sentiu uma ponta de
decepção ao lembrar que ela não estaria ali enquanto ele tocava, mas não se
permitia ter ciúmes de seu amigo. Ele e Zé dividiam um apartamento em São
Paulo, perto da universidade, na qual estudavam na mesma classe. Zé era seu
amigo desde pequeno, e ele estava em algumas das melhores lembranças de sua
infância, pedalando em suas bicicletas pelos bairros de Indaiatuba, onde cresceram.
A culpa não era de Zé se Diego era lento demais e nunca buscou saber se o que
sentia por Desihee era correspondido.
Mesmo com pensamentos nobres, percebeu que estalava seus dedos
compulsivamente, exprimindo a raiva que tentava reprimir. Diego relaxou seus
punhos e sacudiu-os ao lado do corpo, como alguém que tenta secar as mãos na
falta de toalha ou papel. Quisera que seus problemas fossem tão levianos quanto
uma mão molhada, ou que os sentimentos ruins que o atormentavam tão fáceis de
se livrar quanto água em suas mãos. Por fim, abriu o porta-malas do carro, pegou
seu violão e voltou seus pensamentos ao repertório de músicas que iria tocar.
Momentos depois, Gustavo conversava com Bia, enquanto o pessoal se
empolgava cantando About a Girl, com Diego ao violão. Os dois falaram sobre
seus gostos musicais, os professores que mais odiavam na faculdade, na escola,
sobre suas infâncias e outros assuntos que normalmente deixariam Gustavo
entediado, mas com aquela garota tudo era interessante e de alguma forma se
conectava com ele. As horas passaram despercebidas. Ao final da noite, Bia deitou
no colo de Gustavo e dormiu, ao mesmo tempo em que ele e o pessoal beberam e
cantaram até o sol nascer, para então irem para a casa.

Gustavo acordou em sua antiga cama na casa de seus pais. Assim que soube que
eles estariam viajando durante o fim do ano, teve a ideia de chamar seus amigos
para passar o réveillon em Santos, desfrutando o conforto daquela casa de trezentos
metros quadrados a alguns quarteirões da praia. Até aquele momento eram as férias
perfeitas, tanto para ele e seus amigos, quanto para seus pais, em algum país da
Europa, sem saber dos planos do filho.
Colocou-se de pé e abriu a cortina da janela, deixando a luz da tarde iluminar o
quarto. Pela posição do sol já passava das três da tarde. O inconfundível cheiro de
bacon vindo da churrasqueira despertou seus sentidos como nenhum despertador
poderia fazer. Desceu ao andar térreo, na área externa aos fundos da casa, e viu
Diego, Chuaza e Hulk sentados à mesa, esperando mais um parceiro para jogar
truco, enquanto Zé preparava as carnes. Pegou e abriu a latinha de cerveja mais
gelada que encontrou no freezer e ficou por ali, falando bobagens com seus
amigos, comendo, bebendo e jogando.
O dia passou num instante. Eram mais de dez horas da noite quando eles saíram
de casa para ir à praia ver a tradicional queima de fogos de virada de ano. Na rua,
uma procissão interminável de pessoas indo na mesma direção, cada grupo com
seu isopor ou sacola térmica, alguns levando fogos de artifício, rojões ou
bombinhas.
Na praia, no mesmo local onde jogaram rúgbi na noite anterior, seguiram
caminhando em direção ao mar, até ficarem mais perto da água. A praia de Santos
tinha uma ampla faixa de areia, com cem metros entre o jardim e a água, mas a
multidão que se aglomerava ali para ver o espetáculo preenchia todo o espaço
disponível.
Para Gustavo era sempre especial ver a praia tão cheia durante a noite, todos
vestidos de branco e celebrando. Era como se naquela única noite do ano ele
tivesse algo em comum com todas as pessoas naquele lugar. A família que estava à
direita de seu grupo não era um bando de estranhos barulhentos incomodando, mas
uma família aguardando a queima de fogos à meia noite. O rapaz à sua frente não
ficou bravo quando Diego abriu um espumante e a rolha caiu na cabeça de sua
noiva. Era noite de réveillon. Todos riram do acidente e continuaram se divertindo.
Diego não estava tão empolgado quanto os demais. Sua frustração consigo
mesmo crescia cada vez que via Desihee nos braços de seu amigo. Para sua
infelicidade, esta passou a ser uma cena cada vez mais comum. Os dois não
estavam mais preocupados em esconder seu relacionamento do grupo, ficavam o
tempo todo abraçados na frente de Diego, sem saber o quanto isto o incomodava.
Quando estavam na praia, aguardando a queima de fogos, os dois começaram a se
beijar. Aquilo era demais para ele. Virou as costas e afastou-se de todos,
caminhando em direção à água.
Parado ali, olhando os navios que flutuavam no mar escuro, Diego ouviu
alguém tossindo insistentemente ao seu lado. Ao virar-se, viu um velho sentado em
uma cadeira de praia, com aparência nada saudável. Ele mantinha as mãos sobre a
cabeça, como quem sofre de uma fortíssima enxaqueca, enquanto resmungava algo
inaudível. Sua camisa exibia pequenas manchas de sangue sobre seu peito e
barriga.
— Senhor — disse Diego, agachando-se ao seu lado –, você está bem?
Percebendo o quão imbecil fora sua pergunta, Diego se corrigiu: — Tem uma
ambulância ali no canal. Quer que eu te acompanhe até lá?
O velho resmungava algo que Diego ainda não conseguia compreender.
Chegando mais perto, pôde discernir algumas palavras: — Barulho dos infernos...
não calam a boca.
— Senhor?
O velho ergueu a cabeça e olhou para Diego como se somente então tivesse
percebido de sua presença. O rapaz recuou assustado ao notar seus olhos. As
escleróticas, parte branca ao redor das íris, estavam completamente vermelhas,
como se estivessem cobertas de sangue pisado.
— Vamos comigo até a ambulância? — disse o rapaz, contendo o pavor que
sentia do olhar demoníaco do velho. — Você não tá legal.
— Não te conheço, moleque! — o senhor gritou — Por que todo mundo não
cala a boca?
— Eu só quero te ajudar — disse Diego. — Qual o seu nome?
O homem ficou em silêncio por alguns segundos e desfez sua expressão de
poucos amigos, então respondeu.
— Me desculpe, rapaz — disse o senhor. Agora sua voz estava fraca e ele
parecia confuso — Meu nome é Otávio Monteiro. Minha cabeça... O barulho...
Sem conseguir concluir o que queria dizer, Monteiro despejou um jato de
vômito na areia, atingindo o pé do rapaz. Então curvou-se para frente e caiu da
cadeira, desmaiado.
Diego levantou-se sem saber se gritava de nojo pelo estado do seu pé ou se
fazia algo pelo velho. Virou-se para trás e viu seus amigos. Para sua sorte, Hulk
estava olhando em sua direção. Diego sinalizou para que ele viesse ajudar. Quando
seu amigo chegou, ele explicou a situação. Em seguida, Hulk pegou o senhor no
colo e os dois o levaram até a ambulância, sem tempo de avisar aos demais.

Depois de um dia repleto de flertes e indiretas, Gustavo aproveitou um


momento em que Bia não estava conversando com as outras meninas para chamá-
la para dar uma volta antes da queima de fogos. A garota pegou uma garrafa de
espumante e foram em direção à ponta da praia.
Conversavam sobre os prédios tortos da avenida da praia, e Bia não entendia
como eles ainda estavam de pé. Deram risada quando Gustavo comentou que podia
dizer o mesmo de Chuaza, que já estava “torto de bêbado”. Ela ria, assim como
riria de qualquer tentativa de piada que ele fizesse naquele momento.
Bia disse nunca ter passado o ano novo ali e era mais bonito do que imaginava.
Gus respondeu com um sorriso, enquanto paravam em cima da ponte do canal
quatro, a qual, assim como outros seis canais de Santos, cruzava a cidade até a
praia, desembocando no mar. Ele buscava formas de quebrar o silêncio, pensou em
alguma coisa para dizer sobre isso, mas imaginou o quão ridículo ele iria soar
explicando o sistema de saneamento da cidade. Ficaram um pouco em silêncio,
observando os barcos flutuar no mar noturno.
Após tomar outro gole do espumante moscatel, Gustavo se entorpeceu
novamente com o cheiro adocicado de baunilha vindo do pescoço da garota. Podia
ouvir a frequência acelerada dos batimentos de seu próprio coração, ao mesmo
tempo em que era assolado por uma confusão de pensamentos se embaralhando em
sua cabeça. Bia fixou os olhos sobre os seus e ele soube que a hora era esta.
Segurou a garota pela cintura e a beijou. Todas as confusões, dúvidas e ansiedades
sumiram de sua mente. Estava em outro mundo.
A queima de fogos se iniciou à meia noite. Os dois perderam os primeiros
minutos dos fogos, sem conseguir desgrudar um do outro. Depois ficaram algum
tempo olhando o espetáculo. Bia apoiava a cabeça em seu ombro, enquanto a
sincronia das explosões e cores liberadas pelos cartuchos de pólvora e metais
criavam diversas formas no céu. Ainda assim os dois não conseguiam ficar mais
que alguns segundos olhando para cima sem perder o interesse pelos fogos de
artifício e voltar a se beijar.
Tomados pelas emoções do momento, demoraram a notar uma confusão à
esquerda da ponte. Quando se deram conta dos gritos, puderam ver um senhor
deitado no chão a alguns metros deles, sendo segurado por quatro rapazes fortes,
dois deles com sangue nas roupas e o que pareciam ser marcas de mordidas nos
braços. O senhor estava ensandecido, gritando palavras sem sentido e espumando
pela boca. Quando a aglomeração de pessoas começou a crescer, o casal achou
melhor voltar para onde estavam seus amigos.
Chegaram no momento em que Diego preparava uma dose de vodca "na
tampinha", como eles tinham aprendido a fazer nas festas da faculdade. Assim que
entornou sua dose, Diego entregou a garrafa para Gustavo e continuou contando
sua história: — ... e o cara ficou maluco! Começou a se debater e gritar e mandar
todo mundo calar a boca. Insano!
— Aí o cara da ambulância deu uma injeção nele — continuou Hulk, ainda
agitado com os acontecimentos, porém dando risada. — Mas antes de apagar o
velho mordeu o braço dele. Tirou um naco do braço do coitado do enfermeiro.
— Puta merda — Chuaza comentou, sarcástico. — E vocês estão de boa ou o
Drácula pegou vocês também?
— Não fode, Chuaza — respondeu Diego, enquanto todos davam risada. — A
parada foi sinistra.
O grupo ria da história dos dois, em parte pelo aparente exagero deles ao
contarem o ocorrido, mas também por não querer se preocupar com nada naquele
momento.
— Já que vocês sobreviveram ao vovô Hannibal, vamos beber! — concluiu
Gustavo e tomou uma dose na tampinha da garrafa de vodca.
Todos continuaram se divertindo, bebendo e, de tempos em tempos, tirando
sarro da história dos dois. A noite foi épica. Voltaram para casa quando já era dia.

No dia seguinte ao réveillon, Gilberto saiu do seu quarto por volta das 8 da
manhã. Era mais tarde do que ele costumava começar o dia, mas precisou das horas
extras de sono para se recuperar da noite anterior. Foi até o restaurante do hotel
buscar café da manhã para sua esposa e filha. O serviço de quarto estava pago,
porém não se acostumava com a ideia de alguém lhe servindo o tempo todo.
Preferia fazer as coisas por si próprio.
Chegando de volta ao quarto, viu que Monique insistia em dormir, mesmo com
a claridade entrando pela fresta da cortina que ele tinha aberto antes de sair.
Sentou-se na cama ao seu lado e observou-a por um tempo. Tentou absorver o
máximo daquele momento. Os dois costumavam ter uma rotina tão corrida que ele
não se lembrava da última vez em que tinha parado para admirar sua esposa
dormindo. Num movimento suave, Gilberto ajustou os cabelos de Monique por trás
da orelha, revelando em rosto um sorriso preguiçoso.
Gilberto chamou a filha no quarto ao lado e sentaram-se à mesa para tomar o
café da manhã. Como sempre, as duas riram da forma como ele saboreava seu café,
como se fosse uma experiência única. Ele tentou explicar sobre o café colombiano
que estava tomando e como as papilas gustativas localizadas em diferentes pontos
da língua sentem diferentes notas de amargor e doçura, mas desistiu assim que sua
filha mergulhou uma bolacha de maisena no café dela. Continuaram trocando
provocações de brincadeira e comendo croissants até que o celular de Monique
tocou. Ela levantou-se e foi até a varanda para atender a ligação.
Um longo silêncio tomou conta do quarto até que Monique voltou para a mesa
com o semblante sério demais para um dia de férias.
— Minha irmã está no hospital — explicou. — Preciso voltar a São Paulo.
— Nossa, mãe. O que houve com a tia Jacque? Ela estava tão bem no Natal.
— Não sei, é alguma virose. Começou com dor no corpo e febre ontem e hoje
está com uma dor de cabeça muito forte. Não está falando coisa com coisa. Vou ao
hospital tentar ajudar de alguma forma.
Gilberto e Rita levantaram-se da mesa e foram arrumar suas malas às pressas,
então Monique disse: — Mon amour, você não precisa ir... Eu consigo cuidar de
tudo por lá. Sei que seu compromisso aqui é importante. — disse, referindo-se a
um encontro que Gilberto tinha marcado para aquele dia com seu irmão em Santos.
— Tem certeza, Môn? Posso desmarcar e ir contigo, não é nada demais.
— Você não vê o Pietro há uns cinco anos — disse Monique. — Pegue uma
carona com ele amanhã e nos encontraremos em São Paulo. Com sorte não tem
nada demais com Jacqueline. Qualquer coisa, eu te ligo.
Rita ficaria empolgada por finalmente poder subir para São Paulo, se não fosse
a situação com Jacqueline. A garota odiava hospitais, mas amava sua tia e faria
questão de ir com sua mãe visitá-la.
Assim que Monique e Rita saíram do hotel, Gilberto começou a arrumar suas
coisas para sair também. Apesar da situação de sua cunhada, Monique estava certa.
Ele gostaria muito de rever seu irmão. Além disso, Pietro parecia preocupado ao
telefone quando ligou para marcar o encontro.
Após pagar uma pequena fortuna para que um taxista o levasse de Guarujá a
Santos, Gilberto apreciava um chope no Heinz, um tradicional bar alemão em uma
travessa do canal três. Estava em uma mesa na área externa do bar, separada da
calçada apenas por uma mureta.
Estava terminando de beber sua segunda tulipa de chope quando viu Pietro
estacionar um Corolla e vir caminhando em direção ao bar.
O professor levantou-se e recebeu Pietro com um forte abraço e dois
indelicados tapas nas costas, tornando desnecessário qualquer comentário sobre
quanto sentira saudades de seu irmão.
Pietro era um senhor alto, com marcantes feições de descendente de italianos.
Seu rosto possuía uma expressão séria e seu corte de cabelo curto, ao estilo militar,
estava escondido por uma boina escura. Os dois sentaram à mesa e Pietro
perguntou pela esposa e filha de Gilberto, que explicou a situação de sua cunhada.
Gilberto, por sua vez, perguntou ao irmão sobre seu trabalho: — E como vai a vida
na ilha misteriosa?
Pietro abaixou a cabeça, balançando-a de um lado para o outro enquanto
deixava escapar uma gargalhada.
— Acho que chegou a hora de me aposentar, Gil.
— Que bom... — respondeu Gilberto, com ar de deboche — Na sua idade não
deve ser fácil manter um emprego de segurança, tendo que andar por aí de bengala
e fraldas geriátricas.
Pietro não usava bengala ou precisava de fraldas. Na verdade, contava com uma
ótima forma física para um homem de cinquenta e cinco anos. O professor nunca
compreendera por que, depois de servir o exército até os quarenta e cinco anos,
tendo chegado ao posto de major, seu irmão abandonara tudo para abrir uma firma
de segurança particular. Mais estranho ainda era ele assinar um contrato de
prestação de serviços para uma empresa em uma ilha, na qual passava ao menos
onze meses por ano gerenciando a segurança do local. O caçula nunca antes tomara
seu irmão por um homem ganancioso, mas a única conclusão lógica a que chegara
era que ele estava “enchendo o rabo de dinheiro”. Pietro não podia nem mesmo
revelar qual era a empresa e onde a tal ilha ficava situada, devido ao contrato de
confidencialidade.
Agora ele estava ali, de volta, e Gilberto não pôde conter sua curiosidade de
saber o que exatamente aquela empresa fazia, ou o que havia lá de tão importante,
que precisasse da proteção de um veterano com décadas de experiência militar.
— Então, você finalmente vai me dizer onde estava trabalhando?
— Sabe que não posso falar sobre isso — respondeu Pietro, desviando o olhar
por um segundo –, mas tenho algo ainda mais interessante para você.
Pietro abriu sua mochila, retirando dela alguns papéis. Ele fez menção de
entregar a Gilberto, porém, quando seu irmão ia pegá-los, Pietro puxou os
documentos de volta, num movimento rápido com o pulso. Falando baixo, evitando
que o casal sentado à mesa ao lado ou qualquer outra pessoa os ouvisse, Pietro
disse: — Gil, o que vou te mostrar é confidencial — Pietro avaliava a reação no
rosto de seu irmão a cada palavra, refletindo se mostrar aquilo a ele era mesmo
sensato. — Eu não te mostraria isso se tivesse outra escolha, mas preciso de sua
ajuda para confirmar o que estes relatórios dizem, para decidirmos o que fazer com
esta informação.
Pietro finalmente esticou seu braço, oferecendo a pilha de papéis ao seu irmão,
que olhava em seus olhos intrigado, tentando adivinhar o que todo aquele suspense
podia significar. Gilberto pegou os papéis e começou a analisá-los, enquanto seu
irmão tomava um chope, chacoalhando a perna esquerda compulsivamente
embaixo da mesa.
Os dois ficaram sem dizer nada por alguns minutos, envoltos pelo som das
conversas nas outras mesas e os carros passando na rua, enquanto Gilberto lia os
documentos. Assim que compreendeu do que se tratava, o irmão mais novo
rompeu o silêncio: — Você está louco? — questionou Gilberto, quase gritando. —
Por que está com isto? Mais importante, por que você trouxe isto aqui para mim?
— Gilberto, eu preciso da sua ajuda para entender isso. — Pietro disse — Não
posso entrar em detalhes de como consegui este arquivo, mas sem entender
exatamente do que se trata não sei o que fazer com esta informação.
— O que você vai fazer?! — Gilberto estava perturbado, temendo o potencial
do que tinha acabado de ler. — Pietro, não sei qual a sua expectativa andando por
aí com esse tipo de informação numa mochila, mas os donos dessa... pesquisa...
parecem ser do tipo que levam espionagem industrial muito a sério. Você está me
colocando em risco só por me mostrar estes malditos documentos.
— Gilberto, acredite em mim, estou ciente da seriedade...
Pietro não pôde completar a frase, pois naquele momento houve uma
estrondosa batida de carro na esquina do bar. Puderam ouvir o som do impacto dos
veículos, vidros sendo estilhaçados e se espalhando pelo chão da rua, a poucos
metros dali.
Por cima da mureta do bar Gilberto pôde ver os carros batidos. Imaginando que
aquelas pessoas precisavam de ajuda, levantou-se e correu até a saída.
Na rua, uma van dava marcha ré, afastando-se do carro em que acabara de
colidir. O motorista engatou a primeira marcha e foi embora, abandonando os
passageiros do veículo batido sem prestar socorro. O carro tinha a lateral
contorcida pelo impacto, motorista e passageiro estavam desacordados. A cada
passo que Gilberto dava em direção ao veículo, mais o rapaz ensanguentado ao
volante lhe parecia familiar.

Gustavo acordou com sede. A cortina blackout e o barulho contínuo do ar


condicionado separavam seu quarto do resto do mundo, fazendo com que ele se
perguntasse se lá fora era dia ou noite. A pergunta perdeu relevância quando olhou
para a direita e viu Bia em seus braços. Continuou deitado e tentou recordar-se da
noite anterior. Lembrava da praia, de ter ficado com Bia, dos fogos... as coisas se
embaralhavam bastante. Lembrou-se da história de Diego e Hulk com o velho na
ambulância e de como ficaram tirando sarro dos dois. Depois disso, sua memória
pulava para o momento em que estava subindo para o segundo andar da casa dos
seus pais com Bia. A sensação de descontrole que sentira enquanto a beijava e
tirava seu vestido branco. Essa era sem dúvida a parte mais interessante.
Não desfez o sorriso bobo de satisfação de seu rosto nem mesmo enquanto
tomava um gole d'água de uma garrafa que ficara no criado-mudo. Com seu
movimento Bia despertou, também com um sorriso de canto de boca.
— Bom dia, Gus.
— O dia não podia ser melhor — respondeu, beijando-a.
— Estou com sede. Tem alguma coisa aí?
— Acabou — disse, balançando a garrafa vazia. — Vou buscar alguma coisa da
cozinha pra a gente comer e trago um suco.
A garota sorriu e voltou a fechar os olhos. Gustavo levantou-se e vestiu suas
roupas da noite anterior, para não ficar só de cuecas enquanto andava pela casa.
Não encontrou seus chinelos, portanto calçou o primeiro par de tênis que achou e
saiu.
Ainda sonolento, ouvia o leve ranger dos tacos de madeira sob seus pés
enquanto caminhava pelo corredor e depois pela escada, descendo ao andar térreo.
Notou uma cadeira caída assim que entrou na sala de jantar. Ao observar o
ambiente, despertou de sua sonolência com a situação caótica que encontrou. O
pós-réveillon deve ter sido melhor do que eu lembrava. Todas as seis cadeiras
caídas pelo chão, a mesa tinha sido arrastada para fora do lugar e o tapete
embolado nas beiradas. Uma zona. Agradeceu mentalmente por ter contratado uma
diarista que daria uma geral na casa antes de seus pais voltarem.
Atravessou a sala até a porta da cozinha, mas ao girar a maçaneta percebeu que
ela havia sido trancada e não havia chave na fechadura, ao menos daquele lado da
porta. Por que algum idiota trancaria essa merda pela cozinha? Ou trancou por
aqui e levou a chave no bolso?, perguntou-se, irritado com a situação da casa. Teria
que dar a volta por fora da casa para chegar até a outra porta da cozinha.
Saindo para a lateral esquerda da casa, sentiu o cheiro carbonizado que vinha da
churrasqueira. Os caras deixaram carne queimando a noite toda, deduziu. O
cenário ali era um pouco pior do que encontrara na sala de jantar. Cadeiras e mesa
reviradas, o baralho de truco ensopado em cerveja estava espalhado no chão junto a
latinhas e restos de churrasco. Gustavo começou a ficar indignado com o desleixo
de seus amigos. Preocupou-se com a possibilidade da diarista recusar-se a fazer o
serviço quando visse o tamanho do problema.
Ao entrar na cozinha seu corpo congelou. Havia sangue por todos os lados,
tingindo do porcelanato branco do chão aos azulejos portugueses das paredes e
também respingado em alguns pontos no teto. As diversas formas e tonalidades de
vermelho pelos quatro cantos da cozinha formavam um quadro macabro, pintado
com o sangue e as entranhas de Zé, que estava ali, estendido imóvel no chão,
iluminado pela luz da geladeira aberta.
Assim que despertou do choque inicial, a primeira reação de Gustavo foi dar
dois passos em direção ao seu amigo para checar se ele estava respirando. Assim
que voltou a raciocinar de verdade cessou seus movimentos. Metade do crânio de
Zé havia sido despedaçado e seu conteúdo espalhado pelo chão da cozinha. Não
precisava confirmar a falta de respiração ou batimentos cardíacos para saber que
ele estava morto. O corpo estava virado com a face para cima, revelando o terror
perpétuo em seus olhos arregalados. Sua barriga estava brutalmente rasgada do
umbigo até o púbis, com os intestinos puxados para fora do corpo e espalhados
pelo piso.
Pontos coloridos começaram a embaçar a vista de Gustavo, fazendo-o perceber
que sua pressão arterial estava baixando repentinamente. Tentou segurar-se numa
mesa, mas seus pés escorregaram na viscosidade do porcelanato ensanguentado,
caindo de joelhos. Tentou evitar, mas vomitou sobre o sangue de seu amigo morto.
Dentre o turbilhão de perguntas que ribombavam em seus pensamentos, cogitou a
possibilidade de que o assassino ainda estivesse por ali. Gustavo respirava pela
boca, agora mais seca do que nunca, e não conseguia tirar seus olhos do corpo no
chão. Apoiou-se na mesa ao seu lado e colocou-se de pé. Na mesma mesa havia
uma faca de cozinha. Pegou-a, pensando em proteger-se. Precisava chamar a
polícia, mas primeiro iria garantir que ele e Bia estivessem a salvo.
Viu que a chave da porta da cozinha estava ali, na fechadura. Imaginou que
talvez o próprio Zé, tentando se defender do assassino, havia trancado. Evitando
pensar ainda mais na morte de seu amigo, destrancou a porta e abriu-a.
Movimentou-se fazendo o mínimo de barulho possível, com a faca em sua mão
direita e tentando ouvir qualquer som que pudesse indicar a presença de alguém
por perto. Subiu as escadas com cautela, degrau a degrau. Ouviu ruídos distantes,
vindos de um dos quartos de visitas. Assim que chegou ao corredor no andar de
cima, identificou que o barulho vinha do quarto ao fim do corredor, onde as
meninas deveriam estar dormindo.
A porta estava entreaberta, permitindo a propagação dos sons que Gustavo tinha
ouvido ao pé da escada, mas agora podia ouvi-los com mais clareza.
Algo irracional impulsionava-o para frente, independente de seu juízo ou sua
vontade. Se tivesse dado ouvidos à sua intuição sugerindo o que poderia estar
fazendo os ruídos que vinham do quarto, teria ordenado às suas pernas que
parassem. Se prestasse atenção ao seu bom senso gritando que Zé poderia não ser o
único a encontrar aquele destino mórbido, teria impedido sua mão de tocar a
maçaneta à sua frente.
Abriu lentamente a porta com sua mão esquerda. A única iluminação vinha de
uma janela do outro lado do corredor, pois as cortinas do quarto estavam fechadas.
Da penumbra de dentro do cômodo identificou o vulto de um homem ajoelhado de
costas para a porta.
Gustavo ficou parado na posição em que estava: braço esquerdo estendido,
segurando a porta aberta, faca na mão direita e olhos arregalados. O homem à sua
frente era Diego, coberto de sangue da cabeça aos pés. Ele estava debruçado sobre
Desihee, mastigando seu abdômen.
Gustavo ficou parado ali por quantos segundos? Dez, trinta... sessenta? Sua
mente estava tão acelerada que não conseguia calcular o tempo que se passava,
mas não pôde evitar contar quantas vezes ouvira o asqueroso som que saía da boca
de Diego cada vez que ele mastigava carne ou músculo da sua amada Desihee.
Chomp!, Gustavo ouviu novamente, contando em silêncio: seis...
Mais do que o ato grotesco, era a calma e naturalidade de Diego que deixaram
Gustavo atônito.
Chomp!
Sete...
Além de Diego e Desihee, Gustavo identificou as outras três garotas, Karen,
Gabi e Ju, todas deitadas inertes, com ferimentos fatais em suas cabeças. Sem saber
que estava sendo observado, Diego continuava sua refeição.
Chomp!
Oito...
Gustavo viu aquele que um dia fora seu amigo forçar a mão pelo ferimento do
abdômen da garota e remexer suas entranhas como quem procura por algo em uma
sacola muito funda. Mão, punhoe metade do antebraço de Diego estavam dentro da
barriga da garota morta. Em seguida, ele puxou o intestino grosso para fora,
fazendo-o escorregar pela ferida aberta e cair no chão com um som molhado.
Gustavo despertou do choque daquela cena asquerosa dando um passo para trás,
decidido a voltar ao seu quarto e garantir que ele e Bia estivessem seguros. A
polícia que resolva essa merda. Não fazia sentido arriscar-se agora que sabia que
suas amigas estavam mortas. Deu outro passo para trás decidido a trancar-se em
seu quarto e esperar que a cavalaria resolvesse a situação, quando ouviu os tacos de
madeira rangerem sob seus pés. O som também chegou aos ouvidos de seu amigo,
pois ele interrompeu o que estava fazendo e virou-se, revelando sua face doentia.
Seus olhos eram vermelhos como o sangue que cobria seu corpo. Seu rosto
expressava puro ódio.
— Que porra é essa, Diego? — gritou Gustavo, com lágrimas de raiva e
indignação umedecendo suas bochechas. — O que você fez?
Diego levantou-se, mantendo seu corpo curvado para frente, ameaçador. Sua
respiração parecia acelerada, fazendo com que uma espuma avermelhada de saliva
e sangue se formasse nos cantos da boca.
Gustavo não tinha dúvidas de que seu amigo estava louco.
— Fomee... — vociferou Diego, incapaz de produzir uma frase completa.
Gustavo fez menção de virar-se, mas Diego foi mais rápido e saltou para cima
dele, empurrando-o com força contra a parede do corredor e tentando estrangulá-lo
com as duas mãos. Gustavo esfaqueou a barriga dele, mas as mãos não se
afrouxaram em torno de seu pescoço. Diego não demonstrava nenhum sinal de dor
ou mesmo preocupação com a sua própria integridade física. Pelo contrário,
aumentou a pressão na traqueia de Gustavo. Faltando segundos para que a asfixia o
deixasse inconsciente, Gustavo puxou a faca da barriga de Diego derramando uma
mistura de sangue e outros fluidos no chão, e usou toda sua força para fincar a
lâmina em sua têmpora.
Ainda tentando recuperar seu fôlego, Gustavo assistiu a queda do corpo sem
vida deste que fora um de seus melhores amigos, com a faca ainda cravada em sua
orelha.
Olhou mais uma vez para dentro do quarto. Karen, Gabi e Ju. Todas estavam
mortas. Viu um martelo ensanguentado no chão e concluiu ter sido utilizado para
matá-las eficientemente. O destino de Desihee tinha sido bem diferente. Ela estava
completamente mutilada, como Zé estava na cozinha. Gustavo não conseguia
entender o que levara Diego a fazer isso. Seu amigo sempre tinha sido um cara
calmo, na dele. Aquilo não estava certo.
O rapaz voltou ao seu quarto e trancou a porta atrás de si. Bia estava sentada na
cama vestindo uma de suas antigas camisetas de bandas de rock, que ficava larga e
meiga na garota.
— O que houve? — perguntou Bia, surpreendida com o sangue nas roupas do
Gustavo. Com o ar condicionado ligado ela não ouviu nada do que houve no
corredor.
Gustavo não respondeu, dirigindo-se ao criado-mudo onde estava seu celular.
Ao tentar fazer uma ligação, percebeu que não havia sinal da operadora. Pegou o
celular de Bia, verificando que este funcionava. Entregou o telefone à garota
pedindo que ela inserisse a senha para desbloquear o aparelho.
— O que houve? — perguntou a garota outra vez, um tom acima da pergunta
anterior.
Gustavo, sem saber por onde começar, explicou:
— Aconteceu alguma coisa... o Diego enlouqueceu e... a gente precisa da
polícia. Destrava o celular. — disse Gustavo, falando pausadamente, repensando
cada palavra, tentando não desesperar a garota com descrições de canibalismo e o
horror que presenciara naquela manhã.
— Como é que é?! — gritou a garota, incrédula e preocupada ao mesmo tempo.
— O celular, Bia... — disse cansado, estendendo-lhe a mão. — Precisamos da
polícia.
Bia desbloqueou o celular e entregou a ele. Gustavo ligava para a polícia e
esperava ser atendido, a garota continuava a interrogá-lo, quando uma forte
pancada na porta os surpreendeu. Antes que pensassem no que fazer ou
indagassem quem era do outro lado, a batida se repetiu com ainda mais força,
arrancando um suspiro de Bia.
A porta chacoalhava com as consecutivas pancadas do outro lado. O urro
raivoso de um homem foi ouvido pelos dois, que inconscientemente encolhiam-se
mais e mais a cada soco e chute desferido contra a porta.
— Hulk? — perguntou Bia, reconhecendo a voz de quem gritava do outro lado.
Gustavo olhou para os lados procurando algo para se defender, mas lembrou-se
que sua faca ficara do lado de fora do quarto, fincada no crânio de Diego. Passou
os olhos por cima do criado-mudo, cômoda e mesmo pelo chão. Não havia nada de
útil contra o iminente ataque que sofreriam em breve.
— Gus, o taco! — lembrou Bia, percebendo o que ele estava procurando.
Porra, o taco!, pensou, indignado por não ter se lembrado do taco de beisebol
que enfeitava a parede atrás da cama, em um suporte ornamental digno da mais
nobre katana japonesa. A garota tinha visto aquilo pela primeira vez na noite
anterior, mas mesmo assim lembrou-se mais rápido do que ele. Subiu na cama e
pegou sua arma no momento em que as batidas na porta cessaram.
O silêncio durou tempo suficiente para os dois se entreolharem, esperançosos
de que Hulk tivesse desistido de entrar ali. Suas esperanças duraram dois, talvez
três segundos. Antes que pudessem falar qualquer coisa, a porta do quarto abriu-se
com um estrondo, lançando lascas de madeira e ferro da fechadura arrombada e
batendo contra a parede. Hulk, após projetar-se com todo seu peso contra a porta,
agora estava ali dentro do quarto de frente para os dois.
Descalço e sem camisa, seu amigo encarou-os com seus olhos vermelhos e
postura ofensiva, como um jogador de rúgbi prestes a lançar-se sobre seu
adversário. Com seus músculos enrijecidos daquela forma, o rapaz fez Gustavo
recordar-se de Lou Ferrigno, o fisiculturista e ator da antiga série do Incrível Hulk.
Contudo, além da falta da tintura verde pelo corpo, não se lembrava do Hulk ter
sangue escorrendo pelos cantos dos olhos e espumar pela boca como um animal
raivoso, como era o caso do seu amigo. Gustavo firmou seus punhos no cabo do
taco de beisebol e preparou-se.
Tudo aconteceu muito rápido. Sem cerimônia, Hulk avançou contra Bia.
Gustavo pulou da cama e investiu toda sua força numa tacada, que atingiu o braço
esquerdo do brutamontes. O som abafado da madeira chocando-se contra o
cotovelo do gigante foi seguido por um grito, que não parecia expressar dor, mas
somente raiva. Mesmo com seu braço esquerdo balançando de forma que indicava
uma grave fratura, Hulk virou-se e, usando o outro braço, desferiu um potente soco
direto no maxilar de Gustavo, arremessando-o para trás. Caiu sentado à frente do
armário, desacordado.
Gustavo pôde ver flashes do que sucedeu ao seu nocaute. No primeiro momento
em que abriu os olhos, teve dificuldade em distinguir as formas que enxergava,
mas pôde ver o vulto enorme de Hulk agachado de costas à sua frente, puxando Bia
debaixo da cama pelos cabelos. Não conseguiu se levantar, gritar ou fazer qualquer
coisa antes de fechar os olhos involuntariamente. Ao abri-los pela segunda vez, Bia
engatinhava em sua direção, enquanto Hulk estava engalfinhado com outro homem
enorme. Hulk e Chuaza, dois ex-companheiros do time de rúgbi da USP, trocando
socos numa luta de vida ou morte.
Bia tentou acordar Gustavo, colocando-o sentado e chacoalhando seus ombros,
balançando sua cabeça para frente e para trás. No momento em que sua visão se
desembaralhou, finalmente desperto, Gustavo viu Hulk surpreender Chuaza com
uma cabeçada no nariz e em seguida pular, usando o seu peso para cair sobre ele na
cama.
Foi Bia quem tomou a iniciativa. A garota pegou o taco de beisebol e partiu na
direção de Hulk. Usando toda sua força numa tacada, atingiu as costelas dele, que
rolou para o lado esquerdo, saindo de cima de sua presa e ficando de frente para
Bia. Seus dentes expostos estavam vermelhos, a mesma cor que agora tingia o
lençol branco da cama. Chuaza tinha a mão sobre seu pescoço, de onde fluía uma
quantidade assustadora de sangue. O agressor tentou se levantar, mas Bia atacou-o,
atingindo sua testa e derrubando-o desmaiado aos pés da cama.
Gustavo e Bia se aproximaram de Chuaza, que, perdendo as forças, deixou sua
mão escorregar do pescoço ao seu peito, revelando sua traqueia e musculatura
dilaceradas. Num jato escarlate, sangue foi expelido da ferida alcançando quase um
metro de altura e assustando os dois. A cena fez com que Gustavo lembrasse da
aula de Anatomia em que seu professor disse que uma artéria rompida pode
projetar sangue a até impressionantes cinco metros de distância. Até este dia
macabro ele nunca imaginou que veria tal demonstração ao vivo.
Em pouco tempo, enquanto os dois estavam em choque e sem saber o que fazer,
Chuaza teve uma parada respiratória e morreu.
Ficaram em silêncio, com perguntas e mais perguntas bombardeando suas
mentes. Gustavo foi até a porta checar o corredor, temendo que mais algum
monstro viesse daquela direção. Bia foi ver Chuaza, tentando lembrar-se do que
aprendera em um breve treinamento de primeiros socorros que fizera. Infelizmente,
seu curso não cobrira o procedimento para ressuscitar uma vítima com hemorragia
severa e parada respiratória, devido a afogamento no próprio sangue.
Isso não pode estar acontecendo, pensava Bia. Não faz o menor sentido...
Aquele não era o Hulk. Ele estava com a gente ontem, fazendo piadas... o melhor
amigo de Chuaza. Como poderia fazer isso?
Bia virou de costas para a cama tentando compreender o que estava se
passando, então sentiu a mão quente e viscosa de Hulk enlaçando seu tornozelo,
puxando-a com força. No momento em que exclamou um espontâneo Ah!, devido
ao susto, a garota sentiu a excruciante dor causada pelos dentes que rasgavam sua
panturrilha. Sua exclamação se estendeu em um Aaargh! choroso e desesperado,
enquanto caía de joelhos, vencida pela força de Hulk e a dor que tomava conta de
seu corpo.
Ao ouvir o grito de Bia e ver aquela cena, Gustavo deu três passos largos e
chutou a cabeça de Hulk com o bico de seu tênis, como um goleiro de futebol
cobrando um tiro de meta. O agressor ficou atordoado, afrouxando sua mordida e o
aperto no tornozelo de Bia o suficiente para que ela se afastasse. Gustavo alcançou
o taco de beisebol e golpeou a cabeça de Hulk firme e repetidamente, até que seus
braços estivessem cansados demais para continuar.
Hulk estava morto, agora Gustavo tinha certeza disso. Morto como Chuaza,
Diego, Desihee, Karen, Gabi, Ju e Zé.
Bia chorava, encolhida no chão em frente ao armário. Gustavo foi até ela e
colocou a mão sobre seu ombro. A garota o puxou e eles se abraçaram. Nenhum
dos dois entendia o que estava acontecendo, mas sabiam que precisavam um do
outro.
Gustavo pegou o celular da Bia, que estava no chão, e a ligação de emergência
estava no modo de espera. Decidiu desligar e tentar ligar para cada um dos
números de emergência que conhecia, mas todas as tentativas foram direcionadas
para uma fila de espera que parecia interminável.
— Precisamos cuidar da sua perna — disse. — Vou fazer um curativo e então te
levo pro hospital, tá?
— Tá — Bia respondeu, contendo o choro.
— Bia, vai ficar tudo bem! — disse Gustavo, tentando parecer mais confiante
do que estava. O corte era profundo e parecia ter rompido o tendão, mas o
ferimento da garota era uma de suas menores preocupações naquele momento.
Após Gustavo fazer os primeiros socorros na garota foram de carro até um
pequeno hospital próximo. Quase chegando lá notaram um tumulto na rua, onde o
trânsito estava quase parado. Gustavo decidiu estacionar o veículo em frente a um
portão ao lado direito da rua, em uma esquina a dois quarteirões do hospital. Se
passassem dali não conseguiriam mais escapar do congestionamento. Pediu que
Bia esperasse, então saiu do carro e caminhou em direção à entrada para avaliar a
situação.
Após passar por uma série de carros abandonados no meio da rua, Gustavo
pôde ver muita gente tentando acesso pela entrada de emergências do hospital,
superlotada. Outras pessoas estavam concentradas na entrada principal, de pé,
sentados ou deitados pelo chão, em um aglomerado de gente que nem da maneira
mais caótica se assemelhava a uma fila. Muitos gritavam implorando por algum
medicamento, cada um exigindo ser atendido com prioridade, outros gritavam
pedindo informações sobre parentes internados.
Apesar da dor na panturrilha ferida, Bia sentia-se enjoada e precisava de ar.
Desceu do carro para a calçada logo depois que Gustavo se afastou do veículo.
Encostou a testa em uma árvore, tentando se recuperar, mas precisou agachar e
vomitar. Pensou que talvez se sentisse assim por causa do estresse, da quantidade
de sangue que viu naquele dia ou mesmo por uma possível concussão causada
quando Hulk a derrubou, fazendo-a bater a cabeça na madeira da cama.
Gustavo voltou ao carro e viu Bia encostada em uma árvore, passando mal.
Correu até ela e ajudou-a a ficar de pé.
— Tá foda lá na frente, Bia — disse. — Mas esse hospital é minúsculo. Vamos
pra Santa Casa que vai ser mais rápido que ficar esperando aqui na fila.
Entraram no carro e começaram a enfrentar o maior trânsito das suas vidas,
mesmo os dois sendo moradores de São Paulo. Carros abandonados no meio da rua
eram empurrados para dar passagem para as filas de veículos que se formavam.
Perderam meia hora para percorrer quatro quarteirões, até o momento que Bia
reclamou que sua cabeça doía muito.
— Bia, você passou por muito estresse e levou uma pancada forte na cabeça —
disse Gustavo. — Segura as pontas aí que a gente vai chegar no hospital rapidinho.
Gustavo se arriscou por ruas menores, desviando de parte do trânsito, mas isso
não os ajudara muito. Estavam a mais de duas horas no carro e tinham percorrido
pouco mais de dez quadras.
Bia afundou-se no banco de passageiro e virou seu rosto para a janela à sua
direita. Pensou em sua mãe, lembrando-se de uma das várias conversas em que foi
questionada sobre sua escolha de viajar com os amigos ao invés de voltar para
Sorocaba e passar o fim de ano com a família. A garota já tinha chorado tanto que
não percebeu que entre suas lágrimas escorriam dois filetes de sangue, descendo de
seus olhos vermelhos ao queixo.
A garota virou-se para frente e curvou seu corpo, colocando a cabeça entre as
mãos. Gustavo olhou-a, ouvindo seu choro, sem saber o que fazer para ajudá-la. A
cabeça dela deve estar explodindo pra ela estar desse jeito, pensava. Tinham saído
da zona de trânsito ruim, então Gustavo acelerava o tanto que podia pelas ruas
estreitas. Queria chegar logo ao hospital e achar alguém que resolvesse seus
problemas. A garota tirou as mãos do rosto e jogou o pescoço trás, batendo as
costas e cabeça com força no banco, seu corpo rígido como se estivesse
convulsionando. Gustavo virou-se para ela, assustado, notando seus olhos
vermelhos fixos em sua direção, avaliando-o.
Como se uma farta dose de éter tivesse sido aplicada direto em sua medula,
sentiu sua espinha gelar de dentro para fora. Mais por instinto que experiência,
Gustavo sabia o que ela era agora, do que ela era capaz de fazer. Podia ver em seus
olhos escarlates. Depois de Diego e Hulk, a presença maligna ao seu lado era
inconfundível, mesmo camuflada pelo doce perfume de baunilha que ele tanto
gostava.
Bia, ou o monstro que agora tomava conta de seu corpo, tentou avançar sobre
ele, sendo contida pelo cinto de segurança. Gustavo esquivou-se como pôde de
suas mãos, que tentavam arranhar seus olhos ou agarrar o que pudesse. O sinal
vermelho a sua frente passou despercebido, assim como a van que vinha na outra
rua do cruzamento, aproximando-se em alta velocidade. A van atingiu o Ford Ka
em cheio, jogando a cabeça de Gustavo contra a coluna lateral do veículo. Então
tudo escureceu.
2 - Fuga
Jorge tomou um gole d'água e voltou ao banco da cela de detenção provisória.
Encarcerado na sétima delegacia de polícia de Santos, não conseguia se conformar
com a absurda falta de profissionalismo que o levara àquela situação: sem dúvidas
de que seria indiciado sem direito a fiança, pois já tinha sido fichado antes. Para
completar a cagada, tudo aquilo estava acontecendo quando sua esposa Marlene
estava grávida de seis meses.
Saiu de casa naquela tarde com uma missão simples: roubar um veículo de
fuga, com motor dois ponto zero ou superior, em boas condições, de cor não muito
chamativa e levar até a garagem do Celso, na favela México 70. Para isso tinha um
pagamento prometido de dois mil reais, sendo que quinhentos ficariam com
Carlinhos, seu comparsa.
A princípio tudo ocorreu de forma tranquila e sem imprevistos. Viram um
playboy estacionando seu carro em uma rua pouco movimentada, provavelmente
indo ao cinema que ficava ali perto, e Jorge o surpreendeu com uma coronhada na
nuca. A força que Jorge aplicou e o peso de seu revólver fizeram o rapaz cair
desacordado, com a chave de seu Honda Civic na mão. Se soubesse que seria tão
fácil não teria levado Carlinhos para dividir o serviço e o pagamento.
— Tu dirige enquanto eu fico de olho nos bota — disse ao seu comparsa após
apanhar a chave e entrar pela porta de passageiro do carro.
Enquanto Carlinhos dirigia, Jorge ligou para Celso e avisou que chegariam em
quarenta minutos. Não quiseram arriscar o percurso pela avenida da praia, então
foram por dentro do bairro do Gonzaga, evitando chamar atenção. Seguiram por
uma região residencial, com alguns restaurantes, escolas e lojinhas de bairro, mas
todo o comércio estava fechado durante o feriado.
Estavam parados num semáforo quando o carro desligou silenciosamente. Com
o braço para fora da janela, Jorge começou a tamborilar seus dedos na lataria do
carro, impaciente, enquanto Carlinhos tentava apertar o botão de partida do veículo
uma, duas, três vezes, sem receber qualquer resposta do automóvel.
— Puta merda, Carlinhos! — explodiu Jorge. — Tu não viu a porra da gasolina
acabando?
Jorge xingava-o mentalmente, à medida que observava Carlinhos trocar a
posição do câmbio automático e apertar o botão de partida novamente. A cada
tentativa falha ele tirava as mãos do câmbio e tentava em outra posição, como se
fosse uma simpatia milagrosa que iria fazer o veículo voltar à vida.
Parados em um carro sem combustível a duzentos metros de uma delegacia de
polícia. A sorte não estava ao lado deles naquele dia de ano novo.
Dentre os veículos parados no semáforo atrás do Civic em pane seca estava uma
viatura que voltava de uma ronda pelo bairro. O policial tinha saído do carro e
caminhava calmamente em direção ao veículo parado com a intenção de verificar
qual era o problema e prestar assistência. Ambos sabiam como seria o desfecho
daquela situação. Tinham seus trinta e poucos anos de idade, sendo que Jorge era
um homem forte, lutador de Muay Thai com mais de um metro e noventa de altura,
barba por fazer e roupas populares demais para quem dirige um carro daqueles,
enquanto Carlinhos era um sujeito mirrado, de pele avermelhada do sol da praia,
cabelo raspado, cavanhaque, postura e trejeitos típicos de quem nunca trabalhou
honestamente na vida. Ao avistar os dois dentro do carro o policial levaria a mão
ao coldre ao lado direito de sua cintura e pediria para que saíssem do veículo.
Haviam passado por situações parecidas incontáveis vezes, a maioria delas sem
serem culpados de nada, e sempre foram tratados como suspeitos.
Num ato sincronizado, Carlinhos e Jorge abriram suas portas e puseram-se a
correr, cada um para um sentido da rua à frente do carro. Assim que subiu na
calçada Jorge tirou sua camiseta, discretamente embrulhou nela sua arma e jogou-a
em uma caçamba de entulho para dificultar as futuras acusações de posse de arma
ilegal e agressão a playboy otário. Olhou para trás e viu o policial perseguindo-o
enquanto se comunicava pelo rádio. Deve estar pedindo pra alguém pegar o puto
do Carlinhos, pensou.
Jorge estava certo. Carlinhos não conseguiu percorrer nem um quarteirão antes
de ser interceptado por dois policiais militares. De qualquer forma, o destino de
Jorge não foi muito diferente. Ao ganhar distância do policial que o perseguia
pulou o portão de um condomínio, tentando despistá-lo, mas foi surpreendido pelo
porteiro do prédio que puxou sua perna e derrubou-o de cima do portão. Ao tentar
se levantar viu que o homem apontava uma arma para ele, não teve o que fazer.
Esperou o policial vir prendê-lo.
Enquanto relembrava os fatos que o levaram até ali, à cela da delegacia, um
policial se aproximou do lado de fora da grade e chamou: — Senhor Jorge Galdino
de Jesus. Se aproxime das grades para colocar as algemas. Vou levá-lo ao escrivão.
Ao ouvir seu nome Jorge levantou-se, passando um olhar intimidador pelos
companheiros de cela para garantir que ninguém pensasse em fazer alguma graça
com seu nome ou a situação. Aprendera desde moleque que era mais fácil fazer os
outros lhe respeitarem pelo seu tamanho e sua cara de mau, do que ser amigável e
depois ter que conquistar o respeito por meio de hematomas e ossos quebrados.
Com as mãos algemadas à frente do corpo, Jorge passou por um corredor com
várias portas numeradas até chegar a de número seis. Um constante burburinho de
pessoas discutindo vinha da recepção da delegacia, na outra ponta do corredor. O
homem que o escoltava demonstrou pressa ao abrir a porta.
— Vão falar contigo em breve — disse o policial, sinalizando para que entrasse.
Jorge obedeceu, então o homem fechou a porta e trancou-a, deixando-o sozinho.
Jorge já tinha visitado algumas salas de interrogatório, mas nunca naquela
delegacia. Era como as típicas salas de filmes americanos, com uma mesa
retangular, uma cadeira de cada lado e nenhum conforto. A ansiedade que ele
sentia também não ajudava sua situação. Mais de meia hora se passou sem que
percebesse qualquer sinal do que se passava do lado de fora, exceto pelo barulho
de pessoas discutindo, que parecia se intensificar cada vez mais.
Esperou mais trinta minutos pelo delegado, um policial, seu advogado ou quem
quer que fosse que deveria falar com ele, mas ninguém chegava. Ao ouvir uma voz
abafada chamar seu nome pensou que fosse sua imaginação confundindo o som da
confusão na recepção da delegacia. Continuou olhando para as algemas e
lamentando sua situação.
Finalmente ouviu o som da porta sendo destrancada e aberta. Para sua surpresa,
a figura atrás da porta era Carlinhos, com uma arma na mão e um sorriso de
moleque que está aprontando algo que não devia.
— Que porra é essa, Carlinhos? Cê tá louco?
— Que bom ver você também, meu irmão — respondeu Carlinhos. — Vamos
embora desse inferno que o bicho tá pegando lá na frente.
— Como assim, cara?! Esse lugar só tem uma saída e pra chegar lá a gente vai
cruzar com pelo menos uns dez botas.
— Improvisa, meu irmão. A casa tá caindo lá na frente e acho que a gente tem
uma chance de passar despercebido — tentava explicar o homem franzino, quando
ouviram dois tiros sendo disparados na recepção. — Tá ouvindo, meu irmão? A
coisa tá feia mesmo.
— Ainda assim, meu velho, não dá. A gente não vai passar de boa sem pelo
menos um bota nos ver e passar fogo sem dar nem bom dia.
— Eu tenho um plano — disse Carlinhos, com um sorriso de canto de boca. —
Chega aí.
Saíram da sala de interrogação número seis e foram caminhando até a de
número dois, que estava com a porta entreaberta. Num canto da sala um policial
estava desacordado, sentado no chão, com uma mancha de sangue na parede onde
sua cabeça estava encostada. Jorge suspirou, balançando a cabeça.
— Nem vem, Jorjão. O cara deu brecha e eu fiz o que precisava fazer —
justificou-se Carlinhos, sabendo que Jorge reprovava aquele tipo de atitude.
— Meu velho, tu meteu a gente nessa confusão e só está piorando. Agredir um
bota e fugir da delegacia? Cê tá louco? A gente pega cadeia de verdade e bastante
tempo por uma merda dessa.
— Só se eles pegarem a gente — argumentava Carlinhos, revirando os bolsos
do policial. — Seis meses ou sessenta anos, eu não vou em cana, meu irmão.
Vamos resolver essa parada aqui e agora.
Carlinhos tirou um molho de chaves do bolso do policial. Jorge relutava, mas
estava de acordo com seu comparsa. Não queria perder o nascimento e os
primeiros anos de vida da sua filha por estar na cadeia. Se tinha alguma chance de
dar certo, valia a pena tentar. Só teria que garantir que Carlinhos não acabasse
matando alguém no meio do caminho.
Foram de volta à cela provisória, na qual Carlinhos começou a testar as chaves
até que uma funcionou. Jorge, entendendo qual era o plano, tomou a frente da
situação.
— A gente ganhou na loteria, molecada — disse Jorge, olhando para os sete
criminosos que estavam encarcerados ali. — O bicho tá pegando lá na frente e essa
é a chance que a gente tem pra vazar daqui, se for todo mundo junto.
Os homens se entreolharam, avaliando a situação. Mais ruídos distantes de
gritaria e dois disparos de pistola foram ouvidos, reforçando o que Jorge acabara de
dizer. Um a um os criminosos se levantaram e saíram pela porta de ferro, seduzidos
pela possibilidade de fugirem dali.
Ao fim do corredor que levava à recepção, um policial militar fardado
bloqueava uma porta, apoiando suas costas contra ela, enquanto pessoas
desesperadas tentavam arrombá-la do outro lado. Em uma mão ele segurava um
revólver, a outra pressionava seu pescoço, prensando um ferimento que sangrava
abundantemente.
Ao ver os detentos se aproximando o policial ergueu sua arma. Ele parecia
querer dizer alguma coisa, porém ficava cada vez mais pálido e concentrava-se em
manter sua ferida estancada.
— Você não parece bem, parceiro — Carlinhos disse com seu sotaque caiçara,
por trás dos outros fugitivos e fora da linha de tiro do policial. — Por que não dá a
arma pra gente e vai se cuidar?
As batidas do outro lado da porta cessaram. As pessoas que estavam ali
pareciam ter desistido de entrar por aquela porta e seguido para outro lado da
delegacia.
O policial ferido desencostou-se da porta, pondo-se de pé com sua arma ainda
apontada aos fugitivos. Seu rosto ficou ainda mais branco, seus olhos reviraram-se
e ele desabou no chão.
Um dos fugitivos pegou a arma da mão do homem desacordado e os demais
arrastaram o corpo para fora do caminho.
— A gente precisa ajudar o bota. Ele tá sangrando — dizia Jorge, quando
Carlinhos abriu a porta que dava acesso à recepção, revelando um cenário digno de
um filme de guerra. Dezenas de mortos e feridos estavam espalhados pelo chão.
— Você vai querer ajudar todos eles também, Madre Tereza? — Carlinhos
perguntou. — Bora, a gente tem que sair daqui.
Os fugitivos foram até a recepção da delegacia. Tudo indicava que uma
verdadeira turba tinha passado por ali, deixando uma série de corpos pisoteados
pelo caminho. Mais de uma centena de pessoas tinha cruzado o recinto e os
policiais não tiveram a menor chance de contê-los. Como não conseguiram seguir
para a ala das salas de interrogação e da cela de detenção, os invasores seguiram
para a outra ala da delegacia, onde ficava a sala do delegado e os vestiários.
Além da quantidade de corpos jogados pelo chão, Jorge ficou impressionado
com a quantidade de sangue no local. Havia pelo menos uma dúzia de corpos ali,
mas alguns deles não pareciam ter sido pisoteados na confusão. Notou uma
senhora com o pescoço rasgado logo abaixo da orelha, e seu sangue escorria pelo
chão da delegacia. O corpo de um homem gordo estava próximo dela e tinha um
buraco de tiro na cabeça e sangue por toda sua boca e peito, sugerindo que ele
tinha mordido a senhora antes de ser abatido.
Dois policiais ainda estavam na recepção, mas não repararam na tentativa de
fuga dos detentos. Os dois lutavam contra três indivíduos que tentavam forçar a
entrada pela janela da frente da delegacia.
— Bora, cambada! — gritou Carlinhos, com a arma em punho. — Hora de sair
daqui.
Um dos fugitivos tentou abrir a porta da frente, mas ela estava trancada. A
única possível saída seria a janela na qual ocorria a batalha entre os policiais e os
invasores. Naquele momento, olhando com mais atenção aos que tentavam entrar
pela janela, Carlinhos e Jorge sentiram pavor daquelas pessoas. Olhos vermelhos,
pele pálida, salivando e emitindo grunhidos ferozes. Foi quando um deles mordeu
o antebraço de um dos policiais, forte o suficiente para arrancar um pedaço. O
outro policial disparou dois tiros, um no braço e outro no ombro do agressor, o que
não fez com que ele parasse de puxar e morder o braço do seu parceiro. Gritos de
dor e raiva do policial ferido ecoavam pela recepção da delegacia, enquanto os
fugitivos estavam congelados, assistindo aquela batalha bizarra.
— Atira pra matar! — gritou o policial ferido. — Esses filhos da puta não
param por nada!
O outro policial encostou sua arma na cabeça do agressor e disparou, fazendo
seu corpo amolecer e tombar de lado. Na sequência, fez o mesmo com os outros
dois que continuavam tentando entrar ou agarrá-los pelos braços. Um tiro para
cada um.
Vendo-se livre da ameaça daqueles loucos, o policial virou-se para trás e deu de
frente com uma arma apontada para a sua testa.
— Solta o ferro e deita — ordenou Carlinhos.
O policial obedeceu. Imediatamente um dos fugitivos pegou sua arma e pulou a
janela, sendo seguido pelos demais. Carlinhos saiu por último, sem deixar de
apontar a arma para o policial de dentro.
Após a fuga dos detentos, o policial levantou-se e fechou a janela, trancando-a e
dizendo ao seu parceiro ferido: — Estamos a salvo agora.
Do lado de fora, Jorge e Carlinhos decidiram ir buscar a arma que Jorge tinha
descartado em uma caçamba de entulho a uma quadra dali. Cada um dos outros
fugitivos partiu para seu caminho, tentando a sorte por conta própria.
— Preciso ligar pra Marlene antes de qualquer coisa — disse Jorge ao passarem
por um telefone público.
— Cara, agiliza — respondeu Carlinhos, olhando por cima do ombro para
checar se não estavam sendo seguidos. — A gente tá muito perto da delegacia.
Jorge ligou a cobrar para o celular da Marlene. Por cinco vezes o telefone tocou
até que alguém atendesse do outro lado.
— Marlene?
— Oi, Jorge. É a Jussara — respondeu a cunhada de Marlene, que morava em
São Paulo e a estava acompanhando durante um check-up.
— O que houve? Cadê a Marlene? — perguntou Jorge.
— Calma, grandão. Ela está fazendo um exame agora e não pode falar. Eu aviso
que você ligou, tá? — disse Jussara, pronta para encerrar a ligação.
— Calma, não desliga. Fala pra ela me esperar aí que eu vou ter que subir pra
São Paulo — Jorge manteve um tom sério e pausado. — Diz pra ela não voltar pra
Santos, tá bom?
— Vixe... Tá bom, eu aviso. Vai pegar o ônibus agora? Os exames devem
demorar umas duas horas.
— Jussara, se eu demorar, ela pode ficar aí com vocês até eu chegar? Não estou
com celular, mas eu ligo pra vocês. É muito importante que ela fique por aí e não
venha pra Santos.
— Tá tudo bem, Jorge? — perguntou Jussara. — O que houve?
— Uns rolos, mas vai ficar tudo bem. Só faz o que eu falei, por favor?
— Tudo bem, mas não mete a Marlene em confusão, hein?
Quando Jorge desligou o telefone Carlinhos já estava voltando da caçamba e lhe
entregou sua arma embrulhada na camiseta que ele tinha jogado fora. Jorge trocou
a camiseta que tinham lhe dado na delegacia pela sua, colocou a arma na cintura e
disse: — Cara, eu preciso ir pra São Paulo. A Marlene está lá fazendo uns exames
e, na boa, é mais seguro a gente se esconder por lá.
— De jeito nenhum, mano! — exaltou-se Carlinhos, fazendo com que sua voz
ficasse ainda mais aguda que o normal. — Os botas vão estar tudo atrás da gente. É
melhor a gente se esconder por aqui, na garagem do Celso ou outro lugar lá na
quebrada.
— Cara, parece que tu não tava comigo lá na delegacia. Que porra foi aquela?
Aqueles malucos tentando morder todo mundo? — Jorge estava visivelmente
perturbado, levando as mãos à cabeça e gesticulando. — Tem alguma coisa errada
aqui e eu quero ficar longe. Além disso, tu viu a galera que entrou correndo lá? A
polícia tá ocupada demais pra se preocupar com a gente. Vamos vazar agora que
quando eles forem nos procurar a gente tá longe.
— Mano, se os botas vierem atrás é melhor a gente estar na nossa quebrada. Tu
só tá preocupado com a tua mina e vai foder com a gente.
Jorge jogou-se para cima de Carlinhos, levantando-o pela camiseta e prensando-
o contra uma banca de jornal fechada. A porta da banca sacudiu, ribombando um
estrondoso som metálico.
— Minha mina tá grávida, porra! É claro que eu tô pensando nela! — Jorge
falava com os dentes cerrados, num tom baixo e ameaçador. — Mas mesmo se não
pensasse, é mais seguro agora ficar longe dessa merda que você fez. Se quiser ficar
aqui pra ser pego, fica. Só não se esquece de que foi você quem fez merda e é mais
garantido se a gente fugir juntos.
Jorge soltou a camiseta de Carlinhos e começou a caminhar em direção à
Avenida Ana Costa.
Os dois eram amigos de infância, desde o dia em que Carlinhos pulou no
pescoço de um garoto que espancava o pequeno Jorge no colégio. Naquela época,
Carlinhos ainda era mais alto que Jorge, por ser dois anos mais velho. Vinte anos
depois, era pouco provável que Jorge precisasse da ajuda de Carlinhos em uma
briga, mas ainda assim os dois eram inseparáveis. Não só nos pequenos furtos e
crimes que cometiam com frequência. Eles se tratavam como irmãos, inclusive nas
constantes brigas e desavenças que irmãos costumam ter.
Jorge não tinha percorrido mais de meio quarteirão quando seu quase irmão o
alcançou. Carlinhos caminhou em silêncio ao seu lado por um tempo e então disse:
— A gente vai precisar de uma moto... e eu preciso de um cigarro.

Gilberto se aproximava do Ford Ka batido. Seus pensamentos e preocupações


sobre a recente conversa que tivera com seu irmão foram sobrepostos pela súbita
adrenalina gerada pelo acidente e a possibilidade de que aquelas pessoas
precisassem da sua ajuda.
No momento em que repararam uma fumaça branca subindo pelas frestas entre
o capô e lataria do carro, Pietro gritou: — Precisamos tirá-los de dentro do carro!
Gilberto compreendeu a preocupação de seu irmão, a chama do motor logo se
tornaria mais intensa, com risco de explodir. Correu até a porta do motorista,
surpreendendo-se ao reconhecer seu aluno Gustavo ao volante. Sangue escorria de
um corte em sua testa, mas ele parecia bem. Ao colocar a cabeça para dentro do
veículo o professor reconheceu também sua aluna Beatriz, desacordada e
gravemente ferida no banco de passageiro, sendo auxiliada por Pietro.
— Gustavo, você está bem? — perguntou o professor, colocando as mãos nos
ombros do seu aluno.
Atordoado com a batida, o rapaz passou alguns segundos tentando entender o
que seu professor estava fazendo ali. Seus pensamentos se embaralhavam, sua
visão estava embaçada e as palavras que saíam da boca do Doutor Beakman
pareciam viajar por quilômetros antes de chegar aos seus ouvidos. Encostou sua
cabeça no banco do carro e fechou seus olhos com força, tentando fazer parar a
tontura que sentia enquanto Gilberto abria a porta e soltava seu cinto de segurança.
— Fique calmo, Gustavo. Você deve ter batido a cabeça— disse seu professor
tentando acalmá-lo, apesar da pressa de tirá-lo dali. A intensidade com que a
fumaça saía do capô do carro aumentava, tomando aos poucos um tom mais
acinzentado.
Gilberto ajudou seu aluno a sair do carro. Estava colocando-o sentado na
calçada no momento em que o fogo começou a subir pela lataria da frente do carro.
Um pequeno grupo de pessoas se aglomerava em torno deles, assim como outra
aglomeração se formava na calçada do outro lado da rua, para onde Pietro havia
levado Beatriz. O professor não conseguia enxergar os dois, pois o vento soprava a
fumaça preta em sua direção, bloqueando o campo de visão e fazendo seus olhos
arderem.
Na outra calçada Pietro recuava em passos lentos e instintivos, sendo o primeiro
a perceber que havia algo de errado com a garota que se levantava. Pouco antes,
quando foi prestar assistência à Bia, a porta do veículo estava tão contorcida pela
batida que se soltou do veículo. A garota que ele retirara do carro em chamas e
carregara em seus braços até a calçada tinha o ombro direito severamente
deslocado, um profundo corte na coxa direita e todo o rosto coberto de sangue e
fragmentos do vidro que se estilhaçou com o choque contra a van. De forma
assustadora, a mesma garota agora se levantava. Apesar de alguma dificuldade em
colocar-se de pé, ela não demonstrava nenhum vestígio de dor ou instinto de
autopreservação aos ferimentos.
— Gustavo... — murmurou a garota numa voz rouca e intimidadora, parecia
procurar pelo rapaz. Sangue e saliva escorriam da sua boca até seu queixo,
pingando na calçada. — Fome...
Pietro afastou-se lentamente, recuando sem virar as costas à Bia. Uma senhora
de mais de setenta anos de idade, que até então assistia àquela cena sem se
intrometer, ficou preocupada com o estado da garota e aproximou-se, dizendo: —
Calma, menina. Você se vai se machuc...
A senhorinha foi interrompida pelo ataque impetuoso de Bia, que avançou
sobre sua presa idosa. Surpreendida, ela não ofereceu resistência ao ter sua
bochecha esquerda rasgada e arrancada de sua face numa só mordida.
Após despertar de um breve estado de choque, Pietro sacou sua pistola Glock
21 do coldre, que estava discretamente oculto por baixo da camisa verde oliva que
vestia sobre sua camiseta branca. No momento em que tirava a trava de segurança
da sua arma Gustavo surgiu, correndo ofegante por entre a fumaça do veículo em
chamas, colocando-se entre Pietro e Bia.
— Saia da frente, rapaz! — ordenou o militar, entre os gritos desesperados da
senhora com o rosto desfigurado. Bia tinha perdido o interesse nela, deixando-a
cair de joelhos no chão.
— Me ajuda a imobilizar ela, cara! — Gustavo tentou convencê-lo, incerto de
que aquela seria a melhor opção, mas certo de que não deixaria aquele homem
atirar em Bia — Isso não precisa ser assim.
Pietro puxou o ferrolho da arma, colocando uma bala na agulha e deixando-a
pronta para a ação antes de dar o ultimato para o rapaz: — Saia da frente agora!
Gustavo não pretendia obedecer, mas tampouco teve tempo para isso. Sem que
ele visse, Bia saltou em suas costas tentando pendurar-se e mordê-lo, mas ele girou
seu corpo e caiu de costas no chão, de frente para ela. A garota ensandecida
começou a esmurrar o rosto do rapaz, que ainda estava atordoado com a queda e
não conseguiu se defender. Usando seu único braço bom, ela deu um soco e uma
forte cotovelada na boca do rapaz, e então dois estouros consecutivos ecoaram pela
rua. O sangue escorreu dos dois buracos de bala no centro do peito de Bia, que
tombou ao lado esquerdo, morta.
Os tiros disparados por Pietro provocaram gritos e correria entre os que estavam
assistindo à cena. Um senhor fez menção de partir para cima do atirador, mas a
frieza com que o ex-militar olhou para ele, ainda com a arma em mãos, o fez
desistir de qualquer atitude heroica.
Gus sentia-se grogue novamente, mas esforçou-se para continuar acordado.
Nunca antes tinha visto uma arma ser disparada. Não ao vivo e pessoalmente. Por
outro lado, jamais viu alguém comer carne humana, o que já havia se tornado uma
cena banal naquele dia macabro. Aquele filho da puta tinha matado Bia! Apesar da
raiva que sentia, compreendia que Beatriz teria acabado com a sua vida se aquele
homem não a tivesse impedido. Porém, isso não reduzia o choque de Gustavo ao
vê-la morta.
— Precisamos sair daqui agora! — Pietro disse a Gilberto.
Gilberto estava espantado com a reação fria de seu irmão após tirar a vida
daquela garota. Pietro, tentando demonstrar ao seu irmão que aquilo fora
necessário, virou-se para Gustavo e disse: — Jovem, ela foi a primeira que você
encontrou?
Sentado no chão e olhando para o cadáver de Bia, Gustavo continuou chorando,
sem dar atenção à pergunta.
— Gustavo — disse o professor. — O nome dele é Gustavo.
— Gustavo! — repetiu Pietro, colocando a mão no ombro do rapaz. — Ela foi a
primeira pessoa que você viu neste estado? Agressiva, tentando morder ou atacar
outras pessoas?
Gus parou por um momento, surpreendido pela pergunta. Apesar da frieza,
aquele homem parecia entender sobre o que ele tinha passado naquele dia horrível.
— Não. Mais dois amigos estavam assim. Um deles mordeu Bia — disse
Gustavo, colocando a mão sobre o corpo da garota. — Todos mortos agora.
Pietro virou-se e deu dois passos em direção a Gilberto, então falou em voz
baixa: — Isto não são mais letras e números em um papel, Gilberto. Isto é uma
epidemia. Nós temos que sair de Santos antes que seja tarde demais.
Gilberto baixou seus olhos para o corpo da garota, refletindo.
— Ele vem conosco — respondeu Gilberto.
Apesar de estar desconsolado pela morte de Bia, Gustavo não se contrapôs à
ideia de ir com os dois. Após tudo o que enfrentou naquele dia, deixar outra pessoa
decidir o que ele iria fazer foi como retirar um enorme peso das suas costas.
Gilberto ajudou seu aluno a se levantar e levou-o até o carro de Pietro, que estava
estacionado perto dali.
Algumas das pessoas que acompanhavam os acontecimentos protestaram
quando eles começaram a se afastar do local, mas a arma na mão de Pietro foi o
suficiente para intimidá-los a não se intrometer.
3 - O Ano Novo
A companhia responsável pela Rodovia dos Imigrantes estimou que mais de um
milhão e quinhentos mil veículos deixaram a capital às vésperas do feriado em
direção à Baixada Santista — quase um carro cheio de turistas para cada habitante
da região. Apesar disso, Monique imaginava que o maior fluxo de carros voltando
à capital deveria ocorrer ao final do dia ou na manhã seguinte, quando os banhistas
cansassem da praia. Para a surpresa da Doutora Giovannini, parecia que todos os
paulistanos quiseram voltar no mesmo horário que ela, fazendo com que o trajeto
de cem quilômetros fosse percorrido em quase cinco horas.
Assim que chegaram ao estacionamento do hospital notaram a situação caótica
do lugar. Os manobristas levavam os veículos em alta velocidade e voltavam
correndo para buscar outro. Mesmo assim a enorme fila de carros só crescia,
começando a travar o trânsito na rua lateral do prédio.
Quase uma hora depois chegaram à recepção do hospital. Não era o maior
centro médico da cidade, mas tinha ótima reputação pela qualidade dos seus
serviços e um prédio moderno, ocupando um quarteirão inteiro no bairro do
Pacaembu. Apesar das qualidades, Monique começava a odiar o lugar pelo tumulto
no cadastro de visitantes. A fila era gigantesca e os ânimos estavam exaltados.
Como Jacqueline estava na unidade de tratamento intensivo, Monique conseguiu
burlar uma boa parte da fila, tendo prioridade no atendimento e conseguiu entrar
com sua filha após algum tempo.
Andando pelo corredor que levava à UTI, no primeiro andar acima do térreo do
prédio, Rita buscava formas de desviar sua atenção do cheiro estéril de hospital. A
garota tentava pensar em outra coisa, focar em algo à sua volta ou puxar conversa
com sua mãe, mas seu olfato tornava a lembrá-la da essência de álcool,
desinfetantes ou outra mescla de aromas trazendo memórias olfativas que a garota
preferia manter esquecidas.
Não que o cheiro fosse particularmente mais forte ou diferente de outros
hospitais — não era este o problema. Quando Rita tinha dez anos sua avó sofrera
um acidente vascular cerebral que a deixou internada em um hospital, respirando e
se alimentando com a ajuda de aparelhos. A garota ajudou a cuidar dela por meses,
indo ao hospital todos os dias após suas aulas até que uma infecção hospitalar
terminou com o sofrimento da mãe de Gilberto. Com o tempo a garota aprendeu a
lidar com a perda, porém a repulsa que passou a sentir por hospitais,
inconscientemente vinculada àquele aroma, perpetuou-se em suas piores memórias.
Chegando à porta do quarto no qual Jacqueline estava internada, um enfermeiro
entregou-lhes máscaras descartáveis, solicitando que mantivessem seus rostos
protegidos o tempo todo.
Monique era pesquisadora em imunologia, uma das mais conceituadas do país.
Seu vasto conhecimento de virologia subjugava seu otimismo, enumerando uma
série de doenças que poderiam justificar os sintomas de sua irmã, todas elas com
alta taxa de mortalidade.
Ao entrar no quarto, o pessimismo de Monique ficou ainda pior. Nunca tinha
visto sua irmã tão pálida quanto agora. Sobre um lençol encharcado de suor, Jacque
estava deitada com as mãos em forma de conchas, protegendo seus olhos da
claridade. Ela moveu suas mãos delicadamente, olhando para as duas que entravam
em seu quarto. Ao mesmo tempo em que ela as reconheceu, Monique e Rita
puderam ver seus profundos olhos vermelhos. Jacqueline abriu um sorriso cansado
e estendeu a mão esquerda para sua irmã.
— Soeur... Marie... que bom que vocês vieram. — Jacque disse devagar, com
seu sotaque francês floreando a voz enfraquecida pela doença.
— Claro que viemos, Jacque. Viemos correndo assim que soubemos —
respondeu Monique, uma mão segurando a de sua irmã e a outra sobre o ombro de
Rita. — Assim que você melhorar da febre te levamos para casa. Você fica com a
gente o tempo que precisar.
Conversaram por alguns minutos, mas Jacqueline estava indisposta e reclamou
que sua cabeça doía demais. Monique foi até o corredor, buscando um médico para
atendê-la. Não foi uma tarefa fácil, mas em alguns minutos conseguiu trazer uma
plantonista ao quarto de Jacqueline.
— A cabeça dela dói muito, doutora — disse Monique. — Consegue aumentar
a dosagem dos remédios para diminuir a dor?
A médica leu o prontuário de Jacqueline, sacou uma caneta, rabiscou algo no
papel sobre a prancheta e disse: — Ela já está tomando a dosagem máxima
indicada de Tramal. A única alternativa é trocar por morfina. A enfermeira fará
isso em breve.
— E o que ela tem? O que está causando estes sintomas? — perguntou
Monique.
— Estamos com um surto de virose, mas não sabemos mais detalhes sobre o
vírus — disse a médica. — Tudo o que podemos fazer é tratar os sintomas dela até
que isso passe.
— Soro e morfina?! Isso é tudo o que vocês podem fazer?
— E paracetamol para a febre — respondeu a doutora, devolvendo a prancheta
aos pés da cama de Jacqueline. — Me desculpe, preciso atender outras pessoas. A
enfermeira já vem trocar os medicamentos.
Monique estava furiosa com as respostas vagas da médica, mas o que ela dizia
fazia sentido. Se havia uma virose desconhecida, a saída era tratar os sintomas
mais críticos: dor, febre e desidratação. No entanto, não era fácil aceitar
diagnóstico e tratamentos tão genéricos quando a paciente em questão era sua
própria irmã.
Em alguns minutos a enfermeira entrou no quarto e trocou os medicamentos
receitados pela médica. Monique questionou-a sobre o tal surto de virose, mas a
enfermeira fez o possível para esquivar-se das perguntas sem dar nenhuma resposta
direta. Todos os funcionários do hospital agiam com pressa e evitavam comentar
sobre o que estava acontecendo, deixando Monique cada vez mais irritada.
A enfermeira mal saiu do quarto e Jacqueline caiu em sono profundo, induzida
pela morfina. As duas ficaram ao seu lado por algum tempo até que Monique
sugeriu: — Vamos comer alguma coisa, filha? Ela está estável e a gente ainda não
almoçou.
Rita pensava nisso antes de Monique falar, mas estava aflita demais para dizer
qualquer coisa. Concordou com sua mãe e saíram do quarto.
Caminhando até o elevador puderam observar a situação caótica em que se
encontravam os corredores do hospital. Enfermeiros e médicos passavam correndo,
alguns arrastando carrinhos de equipamentos cirúrgicos e medicamentos, outros
com pacientes em macas. Visitantes chorando ou brigando com funcionários dentro
e fora dos quartos, ansiosos por familiares internados ali. Todos com suas máscaras
descartáveis, alguns com manchas de sangue pelas roupas. As duas apressaram o
passo até as escadas, após concordarem que era melhor não usar o elevador numa
situação tão tumultuada quanto aquela.
Quando já estavam sentadas na cafeteria, no quarto andar do hospital, Monique
pediu por um sanduíche natural e Rita por um hambúrguer de micro-ondas. As
duas ficaram sentadas sem falar nada enquanto comiam seus lanches, até que
Monique disse: — Acho melhor você ir para casa e descansar, enquanto eu fico
aqui com a minha irmã. Amanhã cedo você volta com uma muda de roupas limpas
e minha nécessaire, está bem?
— Tem certeza que não quer que eu fique? — perguntou a garota. — Posso
ajudar com o que precisarem.
— Tudo bem, Marie. Só preciso que traga minhas coisas amanhã. Sua tia deve
melhorar logo, então vamos todas para casa.
— Beleza. Amanhã cedo venho ficar com vocês. Eu trouxe o carregador do
meu celular que estava no carro. Acho melhor deixar contigo, assim a gente
consegue se falar — disse a garota, entregando o cabo para sua mãe.
Monique lhe deu dinheiro para que ela fosse e voltasse de táxi, em seguida se
despediram.
Tudo o que Rita queria era chegar em sua cama e dormir, mas enquanto estava
no carro ela trocou algumas mensagens pelo celular com seu namorado.
Combinaram que se encontrariam bem cedo na manhã seguinte na academia de
kung fu. Teriam um campeonato em breve e ele a lembrou que precisavam praticar
muito até lá. Rita calculou que teria tempo para treinar um pouco e ainda assim
chegar cedo ao hospital com a muda de roupas de sua mãe.

Marlene estava com dificuldades em encontrar uma posição confortável no sofá


que não era o seu, na sala da casa do seu irmão. Sua coluna doía, seus pés inchados
a incomodavam e ela não conseguia passar mais de meia hora sem ir ao banheiro.
Ao contrário do que todos lhe disseram, o último trimestre da gravidez estava
sendo o mais difícil, mas ela tinha certeza de que tudo seria compensado quando
tivesse o bebê em seus braços pela primeira vez.
Foi até a cozinha e perguntou se Jussara precisava de ajuda ao preparar o jantar
ou ao menos servindo a mesa, mas foi prontamente rejeitada.
— Vai descansar um pouco, Má — foi a resposta de Jussara.
Marlene tinha dificuldade em fazer os outros entenderem que seu incômodo não
passaria com descanso, contudo poderia esquecer as dores se tivesse alguma
distração. Contrariando sua cunhada, pegou a toalha no armário e começou a
preparar a mesa.
Jussara checou o estrogonofe na panela. Estava cheirando muito bem.
Adicionou o creme de leite e champignons na hora em que desligou o fogo, coisa
que aprendeu com a sua mãe: deixar os cogumelos cozinharem somente no
finalzinho do preparo dava uma consistência muito melhor ao prato final. Levou a
panela à mesa de jantar e viu Marlene chorando enquanto distribuía os talheres,
então perguntou: — O que foi, Má? O que você tem?
— Desculpa, Ju... — disse Marlene, entre soluços. — Besteira de mulher
grávida.
— Imagina. Me fala o que você tem? Você parece chateada.
— É bobagem, amiga — disse Marlene, enxugando as lágrimas com as costas
das mãos. — Estou preocupada com o Jorge. Depois que ele ligou hoje cedo, não
deu mais notícias. Eu sei que meu marido tem os rolos dele, mas às vezes isso é
perigoso... sei lá. Fico preocupada.
— Não deve ser nada, Má. Ele falou que ia vir pra cá e já deve estar chegando.
O Jorge é um homem bom — Jussara disse, soando menos sincera do que gostaria.
— Eu sei — disse Marlene, sentando-se numa cadeira –, mas não sei se consigo
aguentar isso de novo, sabe? Como vai ser quando nosso filho nascer? Eu só queria
que ele voltasse a dar as aulas de luta ou arranjasse qualquer emprego honesto que
nem meu irmão, ter uma vida mais tranquila...
Ouviram alguém parando com um carro na frente da casa e, em seguida,
destrancando o portão. Jussara olhou por entre a cortina e avisou que era Edmir.
Marlene enxugou as lágrimas novamente e tentou desfazer sua cara de choro.
Apesar de tudo, estava feliz por rever seu irmão depois de tanto tempo.
Edmir abriu a porta e entrou em casa com um largo sorriso.
— Minha esposa favorita, minha irmã favorita e estrogonofe, minha comida
favorita. O ano começou bem! — brincou Edmir, logo antes de dar um beijo em
sua esposa e um abraço em sua irmã.
Conversaram bastante durante o jantar, o que ajudou a distrair Marlene. Edmir
fez questão de dizer que sua irmã e seu cunhado eram bem-vindos para ficar em
sua casa o tempo que quisessem, inclusive que já estava quase garantido um
trabalho para Jorge na oficina de um amigo dele. Só faltava os dois conversarem.
Depois do jantar, Jussara certificou-se de que sua cunhada tinha tudo o que
precisava no quarto de visitas e foi para o quarto com seu marido. Edmir era
motorista de Kombi e fazia entregas durante o dia para uma distribuidora de
produtos alimentícios, ao passo que ela trabalhava no turno da noite em uma
lanchonete no Morumbi, que funcionava vinte e quatro horas por dia. Ambos
trabalhavam muito e ganhavam pouco, mas era o suficiente para sustentar sua casa
dignamente, com razoável estabilidade e carteira registrada. Estavam felizes com o
que tinham.
Marlene foi para o quarto de visitas tentar dormir um pouco, ainda incomodada
com sua incessante dor nas costas e a preocupação com seu marido.

Já era noite quando Jorge e Carlinhos saíram de Santos pela Rodovia Anchieta.
Optaram por esta estrada, ao invés da Rodovia dos Imigrantes, porque ela possuía
mais opções de fuga caso fossem perseguidos pela polícia.
Jorge dirigia uma moto de 125 cilindradas e mais de quinze anos de uso intenso,
a julgar por sua aparência surrada. Nem nos seus melhores dias teria sido um
veículo indicado para subir a serra. Nas condições em que estava, a lata velha era
uma garantia de que os sessenta e poucos quilômetros que tinham pela frente
seriam exaustivos. Eles tiveram pressa para sair de perto da delegacia, portanto não
puderam passar o tempo necessário buscando a moto ideal para roubar. As únicas
opções que encontraram nos arredores da delegacia foram essa velharia e uma
Kawasaki modelo Ninja, de 300 cilindradas, cor verde-limão. Carlinhos bem que
tentou convencê-lo de que a Ninja era a melhor escolha, mas ambos sabiam que
tipo de atenção eles atrairiam numa moto de mais de vinte mil reais, além da cor
não ser nem um pouco discreta.
Enquanto ziguezagueava pelo trânsito intenso que se formava na serra, Jorge
pensava em sua esposa e em como fariam para criar seu filho que estava para
nascer, agora que ele era foragido da polícia. Talvez eles não tenham registro do
que eu fiz, com toda a confusão que rolou na delegacia.
Para ele a prioridade era poder estar com sua família. No resto, daria um jeito,
como sempre fizera. Tinha uma grana guardada que usaria no que sua esposa
precisasse para o parto e os primeiros meses da vida do seu filho. E arranjou uma
casa com um de seus primos, onde poderiam morar. Era um barraco em
Paraisópolis, nada diferente do que eles estavam acostumados. Trabalho também
não faltaria. Tem muito trouxa dando sopa na capital também, pensou.
Apesar da facilidade de conseguir dinheiro com roubos de carros e afins, Jorge
pensava em parar, voltar a dar aulas de Muay Thai ou trabalhar em alguma oficina
de automóveis. Tinha certeza que isso proporcionaria mais segurança para criar
uma criança, no entanto o incidente na delegacia de Santos diminuiu muito suas
esperanças de que fosse mais que um sonho impossível.
À medida que Jorge pilotava a motocicleta, Carlinhos passava seu tempo
pensando em como poderia ter convencido Jorge a pegar a moto Ninja verde-
limão. Tentou calcular onde já poderiam estar se não estivessem subindo a serra a
quarenta quilômetros por hora neste ferro-velho, chegando à conclusão de que já
poderiam ter ido e voltado da capital pelo menos uma vez naquele tempo. Voltou à
realidade ao reparar que o trânsito de carros e ônibus estava parado a alguns
quilômetros. Jorge cortava caminho entre os veículos imóveis e passava à
esquerda, no espaço entre os carros e o abismo da serra, protegidos apenas por uma
baixa mureta, porém alguns carros ficavam muito à esquerda e forçavam ele a
voltar à faixa do meio, entre duas fileiras de carros.
Num momento em que eles estavam na faixa do meio, passando pelo corredor
formado entre um ônibus amarelo e alguns carros à sua esquerda, o ônibus avançou
de repente, batendo no veículo à frente e empurrando-o. Jorge acelerou o máximo
que pôde e tentou passar pelo acidente antes que o veículo fosse arrastado até o
carro à sua esquerda, pois se isso acontecesse teria que parar e dar a volta,
perdendo tempo por causa do congestionamento.
Carlinhos, assistindo à tentativa desesperada de Jorge, apertou forte o ferro da
moto onde se segurava e gritou feito uma criança em uma final de copa do mundo
durante uma cobrança de pênalti aos quarenta e sete minutos do segundo tempo. O
carro da frente era empurrado pela força do ônibus, diminuindo cada vez mais o
espaço em que a moto teria para passar.
André tamborilava os dedos no volante do carro, num ritmo dessincronizado
com a música gospel que saía pelos alto-falantes do veículo. Passava da meia noite
no relógio do painel e sua cabeça estava longe, após levar mais de duas horas de
viagem para percorrer cerca de vinte quilômetros de Santos até Cubatão, ainda no
início da Rodovia Anchieta, praticamente intransitável. Como já estavam ali, não
havia o que fazer além de seguir em frente, conforme o fluxo os permitia.
Seus filhos Talita e Pedro, a garota de dez e o menino de oito anos de idade,
dormiam exaustos no banco de trás, após dias brincando, nadando e tomando sol
nas praias da Baixada Santista. Sua esposa Letícia murmurava a letra de Tu És
Minha Cura, que tocava no som do carro. A praia parecia ter feito bem a ela.
Exibia uma cor mais saudável que na semana anterior, quando concluiu a última de
uma série de sessões de quimioterapia. Letícia lutava há seis meses contra o câncer
de pulmão. No seu caso, era inoperável e no estágio em que se encontrava contava
apenas com soluções paliativas para melhorar sua qualidade de vida. Ela, no
entanto, tinha plena fé em Deus de que tudo daria certo e que de alguma forma não
perderia esta luta.
Pastor André, como era chamado por seus fiéis, pregava o evangelho cristão em
uma igreja na zona oeste de São Paulo, região onde morava com sua família. Tinha
pouco mais de cinquenta anos de idade e era um homem culto, tendo se formado
em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sempre fora devoto
à sua fé, embora naqueles últimos meses não tivesse certeza de qual deveria ser o
papel da crença em sua vida. Isso o afetava profundamente, fazendo com que ele se
afastasse da igreja por algumas semanas para passar mais tempo com sua família e
refletir sobre seu caminho.
Desligou o motor do carro porque estava parado no mesmo lugar há dez
minutos e soltou seu cinto de segurança. Caminhando pela pista, tentou ver o que
acontecia adiante, mas a intensa neblina que pairava sobre a rodovia limitava sua
visão. Avistou um homem sentado sobre o capô do Corolla que estava à sua frente
e resolveu falar com ele: — Boa noite, irmão. Sabe o que está havendo? Nunca vi
um trânsito desses.
Gilberto, que levantava seu celular o mais alto que podia tentando conseguir
sinal, olhou para o senhor que estava ao lado do carro. Mesmo sem ter ouvido bem
o que ele dissera, presumiu qual era a pergunta e respondeu: — Ano novo,
neblina... o inferno na Terra — dramatizou o professor, cansado de repassar em sua
cabeça as cenas vividas naquele dia. — Suponho que o senhor também não tenha
ligado o rádio ou a tevê hoje antes de sair de casa?
— Está ruim assim, é? — questionou o pastor, surpreso pelo exagero do homem
que agora lhe parecia um tanto excêntrico.
O professor permitiu-se sorrir por um segundo. Colocou-se de pé no capô do
carro e subiu até o teto, tentando capturar sinal no celular para avisar sua esposa
que demoraria mais que o planejado para chegar ao hospital, enquanto respondia
ao pastor: — Está pior. Muito pior.
André não entendeu muito bem o que aquilo queria dizer. Olhou outra vez para
a estrada à frente, sem enxergar nenhum movimento em seu limitado campo de
visão. Mais parecia um estacionamento de carros enfileirados na serra. Mesmo
para ele, sobrevivente de uma das cidades com os piores índices de trânsito do país,
era uma situação desesperadora, pois estava com duas crianças no carro e não tinha
ideia de quanto tempo ficariam presos ali.
— Uma epidemia está se espalhando na Baixada Santista, aparentemente —
Gilberto tentou explicar, sem desviar sua atenção do aparelho em suas mãos. — O
pessoal da rádio já chamou isso de Superraiva e Febre Vermelha, mas ninguém
sabe ao certo o que é... só sabem que as pessoas infectadas ficam agressivas e já
houve algumas mortes.
— Misericórdia! — espantou-se André. — Eu nem tinha ouvido falar desta tal
Febre e tem gente morrendo? A rádio só pode estar exagerando...
— Eu não acho que esteja... e pelo jeito muita gente não quis arriscar — disse
Gilberto, fazendo um gesto com o queixo, indicando a interminável fila de carros
parados na rodovia. — Nós estamos esperando mais notícias sobre o trânsito.
Parece que estamos presos aqui.
— Bom, obrigado pelas informações — agradeceu André. — Também vou
tentar ouvir o que estão falando na rádio.
O pastor voltou ao seu carro, preocupado. Todos os anos ouvia histórias de
congestionamentos de dez, doze horas para voltar da Baixada Santista a São Paulo,
um percurso de setenta quilômetros. Entretanto, isso sempre ocorria com os que
saíam da praia no domingo após a virada de ano, não logo no dia primeiro, quando
as pessoas ainda estavam aproveitando o feriado de sol. Concluiu que mesmo que a
tal Febre Vermelha não fosse tão séria quanto aquele homem tinha feito parecer,
seu efeito no trânsito era inegável.

Inquieto, Pietro girou a chave na ignição do carro que tinha alugado em Santos,
desligando o motor. O trânsito era preocupante porque que cada minuto que
passavam ali era um minuto mais tarde que eles chegariam a São Paulo,
aumentando exponencialmente as dificuldades que enfrentariam dentro da cidade,
tentando chegar ao hospital. Sabia que uma epidemia de grandes proporções
poderia causar o inferno na Terra, não só pelos terríveis sintomas daquela doença,
mas principalmente pelos efeitos caóticos da reação da população.
Em direção à capital paulista em um momento de crise, Pietro não conseguiu
evitar de lembrar-se do caos que se instaurou por lá em maio de 2006, quando uma
facção criminosa coordenou mais de duzentos ataques terroristas pela cidade,
deixando noventa mortos e uma São Paulo num pânico que acabou contagiando
todo o país.
Levando em consideração a velocidade de propagação da doença e a completa
ignorância das autoridades sobre o assunto, o ex-militar tentava imaginar o quão
pior seria desta vez.
O trânsito ficaria cada vez pior, com as pessoas querendo fugir dos grandes
centros ou refugiar-se na casa de parentes. Serviços públicos de transporte, ônibus
e metrô estariam em situação ainda mais caótica.
Os hospitais logo estariam saturados de infectados com a Febre, vítimas de
acidentes de carro ou outras eventualidades do caos.
A polícia teria milhares de ocorrências diárias para lidar, tanto de infectados
agressivos, como furtos ou outras barbáries que ocorrem em momentos em que os
criminosos sentem que ficarão impunes com qualquer crime.
Todos os serviços à população, públicos e privados, estariam comprometidos.
Cada gari, operador de caixa de supermercado e atendente de banco teria extrema
dificuldade e riscos para chegar ao local de trabalho, além de estar suscetível à
contaminação, o que faria com que muitos ficassem em casa. Com o passar do
tempo, lixo se acumularia nas ruas, pessoas ficariam desabastecidas de comida ou
tentariam resgatar suas economias no banco, sem ter nenhum destes serviços
disponíveis. A própria polícia, corpo de bombeiros e outros serviços de emergência
teriam seu contingente reduzido, vítimas da Febre Vermelha.
Não sabia se todos estes problemas se iniciariam em breve, em alguns dias ou
semanas, mas quanto mais o tempo se passava, tinha a certeza de que a situação
tendia a piorar.
Pelo retrovisor Pietro viu Gustavo deitado no banco de trás, com os olhos
abertos e olhando para o nada. Por um tempo, servindo ao Exército Brasileiro,
comandou um pelotão no Haiti. Lá ele tinha lidado com vários casos de civis e
militares afetados pela morte de pessoas próximas, pelos confrontos violentos com
os terroristas locais ou mesmo pela devastação causada pelo grande terremoto que
abalou Porto Príncipe. O ex-militar aprendera que cada um lidava de seu próprio
jeito com a morte, seja com um choro compulsivo, surtos de fúria ou o mesmo
silêncio semicatatônico demonstrado por Gustavo. Apenas uma coisa era certa: não
era algo que se superaria às pressas, fosse por superação própria, pelo conforto de
um ombro amigo ou mesmo por um chacoalhão de um capitão enérgico. O luto
deveria seguir seu curso, pelo tempo necessário. A preocupação de Pietro era que,
se todas as suas expectativas pessimistas quanto à capital se concretizassem, não
poderiam carregar o fardo que esse rapaz tinha se tornado.

Sentado no banco do motorista, André mudou o som do carro do leitor de CDs


para a rádio AM, sintonizando uma estação na qual o radialista divulgava
informações sensacionalistas sobre a suposta epidemia da Febre Vermelha. Os
sintomas mencionados iam desde dores de cabeça e conjuntivite, à insanidade e
sede de sangue, tornando aquilo difícil de acreditar para André e sua esposa.
— Isso é alguma piada de mau gosto dessa rádio? — perguntou Letícia,
incrédula.
— Parece que há um surto de alguma doença lá na Baixada — disse André. —
O homem do carro da frente estava me explicando, mas duvido que um décimo do
que estão dizendo seja verdade. Fique tranquila. Minha maior preocupação é esse
trânsito, provavelmente cheio de gente fugindo dessa tal “epidemia” — disse
André, gesticulando as aspas com os dedos indicadores e médios das duas mãos.
— Deus amado, acho que você está certo, querido, mas deixe o volume baixo
pra não acordar as crianças. Não quero que elas fiquem assustadas.
André reduzia o volume do rádio quando um tranco chacoalhou o carro. Um
ônibus, que estava parado logo atrás deles aquele tempo todo, tinha batido na sua
traseira e continuava acelerando, empurrando devagar o veículo que estava com o
freio de mão acionado. As crianças acordaram, assustadas com o baque e o barulho
dos pneus travados arrastando no asfalto. O pastor socou o volante do carro,
soando a buzina, mas o ônibus não parava de acelerar. O para-choque do seu carro
encostou no Corolla à frente, fazendo com que Gilberto, agachado no teto do
veículo, perdesse o equilíbrio e rolasse para o capô e depois ao chão. O ônibus
continuava acelerando e empurrando os dois veículos. André se desesperou e abriu
sua porta. Inesperadamenteouviu uma freada de motocicleta seguida de uma batida,
esta ao seu lado.
A moto tinha deslizado com a roda traseira para a esquerda e bateu a roda da
frente na porta entreaberta do carro, fazendo com que ela tombasse de lado no chão
e arremessasse Jorge e Carlinhos para frente. Graças aos reflexos de Jorge e à fraca
potência da motocicleta, eles não caíram com muita força, mas rolaram alguns
metros pelo asfalto.
Ao levantar-se Jorge percebeu que não tinha se machucado. Carlinhos já estava
de pé, mancando por causa de uma leve torção no tornozelo.
— Paulistano filho de uma puta! — Carlinhos gritava, iniciando o que seria
uma longa lista de xingamentos. De imediato Jorge aproximou-se dele e colocou a
palma da mão em seu peito, olhando em seus olhos, repreendendo-o em silêncio. A
mensagem “não chame atenção para nós” foi compreendida sem que Jorge
pronunciasse uma palavra.
Após algum tempo, o ônibus parou de acelerar e empurrar os veículos para
frente.
André saiu de seu carro e desculpou-se com os rapazes da motocicleta caída.
Sua esposa tentava acalmar as crianças dentro do veículo. Gilberto, após recuperar-
se do susto e levantar-se, foi até André ver se podia ajudar de alguma forma.
O pastor virou-se para o homem que se aproximava, pronto para desculpar-se
por ter batido involuntariamente atrás do Corolla, porém foi surpreendido pela
expressão de terror nos olhos de Gilberto. Ele não olhava diretamente para André,
mas para trás dele.
— O que houve, irmão? — questionou o pastor, colocando a mão no ombro de
Gilberto.
As palavras que Gilberto processava em sua mente para descrever o que estava
vendo se perdiam no caminho até sua boca, então ele levantou seu dedo indicador
direito, apontando a cabine do motorista do ônibus.
André, Jorge e Carlinhos seguiram o gesto do professor com os olhos,
encontrando na cabine do ônibus o que interpretaram como um aglomerado de
pessoas espremidas em volta do motorista. Entretanto, não era uma simples
aglomeração de passageiros impacientes invadindo a cabine, buscando
informações sobre o trânsito ou a previsão de quando chegariam à capital. Mais de
dez pessoas estavam ali, disputando algo entre si a empurrões e cotoveladas. Ao
aproximarem-se do ônibus em passos lentos, André, Jorge e Carlinhos
identificaram fartas manchas de sangue lambuzando o interior do para-brisa.
Indiferente aos espectadores do lado de fora do ônibus, em meio ao amontoado de
gente, um homem forte levantou-se, derrubando uma criança que estava montada
em suas costas puxando seus cabelos. Ele pendia seu corpo para trás, fazendo força
para puxar algo com ambos os braços, como se disputasse um cabo de guerra em
meio ao aglomerado. Em um último puxão o homem venceu sua disputa, erguendo
e afastando dos demais uma perna humana, que havia sido separada do corpo de
seu antigo dono. Ele afastou-se e começou a devorar seu troféu, faminto e
indiferente à guerra que continuava acontecendo ao seu lado, onde mais de uma
dezena de homens, mulheres e crianças disputavam pelos demais membros do
motorista da viação Expresso Brasileiro.
Apesar de aterrorizados com a brutalidade, Jorge e Carlinhos haviam
presenciado algo parecido com aquela cena na delegacia. Começaram a recuar,
afastando-se do ônibus. Sabiam que precisavam sair dali o quanto antes, ao
contrário de André, que continuava paralisado. Em décadas de servidão à vida
religiosa nunca tinha presenciado algo que personificasse tão intensamente a
presença demoníaca que sentia neste ônibus.
Dentro da cabine, a criança jogada no chão pelo brutamontes levantou-se,
encarando André. O pastor olhou de volta para o garoto que parecia ser somente
um pouco mais novo que seu filho, que ainda chorava dentro do carro. Aquele
garoto, porém, não chorava. Seus cabelos loiros estavam escurecidos pelo sangue
que o cobria, deixando-os pegajosos e grudados em sua face. Seu rosto, um dia
adoravelmente corado e saudável, tinha agora um tom pálido e mórbido,
contrastando com o vermelho profundo de seus olhos. Apesar de não poder ouvi-
lo, possuía a sensação de que ele rosnava, tomando uma posição agressiva, como
um felino prestes a atacar. E, inesperadamente, foi o que ele fez, avançando contra
o para-brisa do ônibus, causando um TUM! seco ao chocar-se contra o vidro.
André deu um pulo para trás, assustado.
Em seguida, recompôs-se e deu um passo em direção ao ônibus, pensando em
como poderia ajudar aquelas pessoas, no instante em que uma mão pousou sobre
seu ombro, segurando-o.
— A gente precisa sair daqui agora! — disse Gilberto. — Você e a sua família
deveriam sair também.
Pietro saiu do carro e juntou-se a eles. Alertado pela cena que se passava na
cabine do ônibus, o ex-militar repousava sua mão sobre a arma oculta debaixo de
sua camisa verde oliva, pronto a reagir se fosse necessário.
— O que está acontecendo? — perguntou Pietro.
— A gente precisa sair daqui — respondeu Gilberto. — Estamos presos neste
trânsito com um ônibus cheio de infectados. Cedo ou tarde eles vão sair dali.
Pietro suspirou, olhando apreensivo para o homem grande dentro do ônibus,
que devorava uma perna humana. Virou-se para trás, observando a rodovia. Sabia
que precisavam fazer alguma coisa, mas o carro não os levaria para lugar nenhum
neste congestionamento.
— Vou acordar o rapaz e nós vamos sair daqui a pé — Pietro disse ao seu
irmão.— Pegue somente o que precisar da sua mala e vamos.
Ao ouvir aquele homem falando de infectados, Jorge lembrou-se dos loucos que
tentaram invadir a delegacia em Santos, compreendendo com assombro que aquilo
não tinha sido um caso isolado, mas uma epidemia. Olhou para o grupo de pessoas
presas no ônibus, disputando por um pedaço do defunto do motorista, e pensou em
como aqueles dois policiais armados sofreram ao lidar com apenas três infectados.
Calculou que suas chances não seriam boas se ficassem ali, com mais de dez
infectados prestes a escapar do ônibus. Alguém conseguiria abrir a porta ou
quebrar o para-brisa, liberando todos estes monstros para a rodovia. Virou-se para
o lado procurando Carlinhos, mas não o encontrou ali. Seu comparsa estava
agachado ao lado da motocicleta caída. Jorge caminhou até ele e perguntou: —
Ainda dá pro gasto ou já era?
— Já era. A roda tá toda torta e rasgou o pneu — respondeu Carlinhos,
levantando-se. — Fodeu, meu irmão.

Minutos depois, Pietro estava com Gustavo à beira da rodovia, sinalizando para
que Gilberto se apressasse. Não tinha sido fácil tirar o jovem do carro. Ele estava
em absoluto silêncio, sem responder a qualquer pergunta. O ex-militar, sem tempo
ou paciência para sutilezas, puxou-o para fora do carro dizendo que ele deveria
cooperar e segui-lo com as próprias pernas, ou seria deixado para trás. Ele
obedeceu em silêncio, mantendo seu olhar vazio enquanto o fazia.
Gilberto ajudava a família atrás deles a descarregar alguma coisa do carro,
quase fazendo com que Pietro tivesse que voltar para buscá-lo também. Passado
algum tempo, Gilberto foi até seu irmão levando uma grande sacola térmica. André
o seguia puxando uma mala com uma mão e seu filho com a outra. A esposa vinha
logo atrás com sua filha e mais uma mochila.
Seguiram em frente por uns cem metros, tentando acompanhar o ritmo de
Pietro, até que ele considerou que estivessem fora da zona de perigo imediato e
parou. Contou rápido em quantas pessoas estavam. Para sua surpresa, os dois da
motocicleta também os tinham seguido.
— Cheguem mais perto, precisamos de um plano — Pietro disse e fez uma
pausa, aguardando até todos se aproximarem, para então continuar. — É quase uma
da manhã e se formos seguir pela Anchieta vamos passar por milhares de carros e
ônibus parados. Não tinha pensado nisto antes, mas com esta epidemia em Santos,
temos várias pessoas infectadas presas neste congestionamento com a gente —
Pietro percebeu o nervosismo de todos crescendo. Engoliu em seco e continuou. —
Temos duas opções. A primeira é entrar na mata e se esconder em algum lugar por
esta noite, esperando amanhecer para termos melhor visibilidade antes de seguir
viagem.
Pietro avaliou a reação de todos antes de continuar. Todos tensos e calados,
passando seus olhares pelos veículos estacionados, amedrontados pela ameaça que
podia surpreendê-los de qualquer um daqueles carros, vans ou ônibus. Ninguém
em sã consciência gostaria de passar a noite ali, e o ex-militar contava com esta
reação.
— A outra opção é caminharmos por mais alguns quilômetros e procurar a
próxima saída da rodovia — continuou. — Acho que não falta muito para a saída
de Cubatão. Não sei como está a situação por lá, mas ao menos não estaremos
expostos como estamos aqui. Podemos encontrar algum hotel ou lugar para passar
a noite.
— Desculpe me intrometer, capitão — Jorge interrompeu-o com sua voz grave
–, mas se vocês estão indo pra São Paulo queremos ir com vocês. Faltam uns 300
metros pra entrada de Cubatão, e de lá podemos seguir pela Estrada Velha. Ela faz
um “U” e volta na Anchieta em São Bernardo — explicou Jorge, desenhando o
“U” no ar com sua mão direita. — O trânsito deve estar assim por causa de algum
acidente aqui na Anchieta e a situação pode estar melhor lá na frente.
Pietro interessou-se pelo plano deste homem, apesar de não confiar nem um
pouco nele. Reparara na forma suspeita como ele e seu amigo lidaram com o
incidente da motocicleta. Sabia que ambos estavam armados, apesar dos revólveres
permanecerem ocultos por baixo das camisetas nas suas cinturas. Deveria manter-
se atento aos dois o tempo todo, mas aquela era a melhor estratégia a seguir.
— Com certeza é melhor que ficar aqui ou passar a noite na mata — assentiu
Gilberto.
André pensou em discordar ou recusar-se a largar seu carro e seus pertences
assim, no meio da estrada. Mas olhou para sua esposa e filhos, vendo o medo em
seus rostos e o quanto contavam com ele para guiá-los. Por mais que doesse se
desfazer de seus bens daquele jeito, a segurança da sua família sempre seria sua
prioridade.
Por fim, todos concordaram e seguiram caminhando à beira da Mata Atlântica.
Todos com os olhos atentos à frente. Cada vulto revelado através da neblina
aumentava o pavor que sentiam, temendo o que poderiam encontrar pela noite.
4 - Estrada Velha Em um dia qualquer, Cubatão deveria estar deserta no
horário em que o grupo de Pietro passou por ali. Mas aquela não era uma
madrugada qualquer.
Ao longo da viagem viram passar quatro viaturas policiais, uma ambulância e
três caminhões de bombeiros com suas sirenes ligadas, todos indo em direção ao
sul, onde fumaça preta subia ao céu entre a neblina, indicando um incêndio de
proporções preocupantes. Inúmeras vezes depararam-se com carros cruzando as
avenidas em velocidade acima do permitido ou no farol vermelho, mas não havia
quem se importasse com as grosseiras infrações das leis do trânsito.
Ninguém do grupo falava nada, mas era de senso comum entre eles que a praga
já afetava Cubatão e eles não estavam mais seguros ali do que na rodovia de onde
vieram.
O grupo levou pouco mais de duas horas para cruzar a cidade e chegar à entrada
da Rodovia Caminhos do Mar, também conhecida como Estrada Velha de Santos.
O ex-militar esperava ter percorrido o percurso de quatro quilômetros em uma hora
ou menos, contudo foram atrasados por diversas paradas para descanso, água e
comida, já que estavam num grupo com crianças, uma mulher doente e um rapaz
em estado semicatatônico. Apesar de compreender as boas intenções de seu irmão
ao ajudar estas pessoas, Pietro não deixaria sua missão ser comprometida por
qualquer ato de altruísmo irracional e irresponsável. Se chegasse a um impasse e
tivesse que escolher entre proteger estas pessoas ou chegar com suas informações e
seu irmão a São Paulo, o pastor, sua família, os caiçaras e o próprio Gustavo teriam
que contar cada qual com a sua sorte para sobreviver.
Jorge conhecia a Estrada Velha de Santos, pois visitou o lugar anos antes com
sua esposa, Marlene. Lembrava que durante o dia a estrada era agradável, com
diversos monumentos históricos, fauna e flora conservados dentro de uma reserva
florestal. À noite, sem iluminação e com a neblina pesada, a estrada tinha um
aspecto nada acolhedor. Além disso, o lugar ficava aberto para visitação somente
durante o dia, sendo cercado por grades e portões no período noturno, além de
guaritas indicando que o lugar possuía vigilância, evitando a entrada de intrusos.
Mesmo considerando tudo isso, esta era a melhor opção para seguir viagem.
Ao se aproximar da entrada não encontraram os vigias que deveriam estar
guardando o local. Encostaram-se no portão, investigando o lado de dentro da área
restrita, sem notar nenhum movimento por ali. Ficaram felizes pela própria sorte,
sem saber das desgraças que proporcionaram aquele pequeno alívio.
O vigia noturno tinha ficado preso no mesmo congestionamento em que eles
estiveram, na Rodovia Anchieta. O pobre senhor continuou por horas em seu carro,
até tornar-se vítima de um grupo de cubatenses infectados atraídos da cidade para a
rodovia pelos sons dos automóveis e suas buzinas.
Com o atraso do segurança noturno, seu jovem colega, responsável pelo turno
diurno, ficou no posto esperando-o por horas, até ter que abandoná-lo ao receber
uma ligação. Sua mãe, desesperada, gritava ao telefone, dizendo que estava
trancada em seu apartamento e que seu vizinho maluco estava tentando arrombar a
porta da cozinha. A senhora não mencionou ao telefone que, antes de conseguir
trancar-se, foi mordida pelo tal vizinho. Ao chegar para resgatá-la, o jovem vigia
foi recebido a dentadas por sua mãe.
Pietro sugeriu que passassem por cima do portão, com cerca de dois metros e
meio de altura e arame farpado instalado em seu topo. Ele tirou sua mochila das
costas e vasculhou dentro dela, buscando seu kit de sobrevivência. Retirou um
alicate do kit, trepou no portão e começou a cortar o arame farpado.Viu André se
aproximando dele, deixando Letícia com as crianças, um pouco afastadas do grupo.
— Pietro, acho não devemos seguir com vocês — disse o pastor. — Se
entrarmos aí, o que fazemos depois? Sabe-se lá quantos quilômetros de subida tem
esta estrada. Não temos condições...
— Senhor, eu realmente acho que vocês não estarão seguros aqui fora — disse
Pietro, honestamente preocupado com a segurança deles, apesar de não ser sua
prioridade –, mas você é quem decide o que achar melhor para o senhor e sua
família.
Enquanto terminava de cortar o arame farpado, pensando se deveria esforçar-se
mais para convencer André a segui-los, Pietro viu um vulto saindo de trás de uma
árvore. A luz de um poste revelou que era um homem. Ele tinha a barba cheia e
desgrenhada, pés descalços e corpo sujo como o chão em que pisava. Seu andar
cambaleante poderia ser vestígio de uma bebedeira da noite anterior, mas, mesmo
sob iluminação precária, Pietro sabia que seus olhos estavam vermelhos demais
para uma simples ressaca. Os poucos dentes que o sujeito tinha estavam expostos,
com a boca aberta e salivante de ansiedade para alcançar Letícia ou uma das
crianças, as presas mais próximas dele.
Pietro pulou do portão, sacou sua arma e atirou duas vezes, num movimento tão
rápido que somente Jorge e Carlinhos, mais atentos que os demais, perceberam o
que estava acontecendo antes que o mendigo estivesse caído no chão, com sangue
escorrendo dos buracos de bala em seu peito.
As crianças gritaram de susto e esconderam-se atrás de Letícia. Pegos de
surpresa, todos ficaram sem saber o que dizer por alguns segundos, até que
Gilberto aproximou-se de André e afirmou: — Não é seguro aqui. Precisamos ir a
São Paulo e este caminho é o mais isolado de tudo o que está acontecendo.
Pietro virou-se para o portão, guardando sua Glock no coldre para terminar de
cortar o arame farpado. Então disse: — Se houver algum destes malditos perto
daqui, eles ouviram os disparos e estão vindo para cá agora. Quem quiser vir
conosco, vamos passar por cima do portão. Sejam rápidos!
Um a um foram passando por cima do portão, pelo vão onde Pietro cortara o
arame farpado. Gilberto foi o primeiro a passar para ajudar os outros a descer do
outro lado. Letícia e as crianças tiveram alguma dificuldade, mas com o auxílio dos
demais eles conseguiram.
Jorge, o mais alto e forte do grupo, deixou Pietro subir antes, ficando ele por
último.
Quando o ex-militar estava em cima do portão, virou-se para puxar Jorge e viu
uma mulher seminua a cinco metros de distância dele, cambaleando em sua direção
com os seios expostos.
— Atrás de você! — alertou Pietro, fazendo Jorge virar-se bem a tempo de
aplicar um chute frontal na barriga descoberta da mulher, empurrando-a para longe
e fazendo-a rolar no chão.
Mais seis suspeitos se aproximavam do portão, um pouco mais distantes que a
mulher caída. Jorge fez menção de sacar seu revólver quando Pietro gritou: —
Sobe agora! Eu dou cobertura!
Jorge pendurou-se no braço esquerdo de Pietro, usando suas pernas para
impulsionar-se na grade e chegar ao topo do portão. Pietro, prensando firme o
portão entre as pernas e usando a mão livre para mirar sua arma, disparou um tiro
no peito de uma mulher que estava próxima demais e ameaçava alcançar as pernas
de Jorge. O tiro fez com que ela cambaleasse para trás. Não parecia morta, nem
mesmo caída. Apenas interrompeu seu ataque por tempo suficiente para que Jorge
se jogasse para frente, caindo com Pietro do outro lado. A altura da queda os teria
machucado se Gilberto, Carlinhos e André não estivessem do outro lado para
amortecer sua queda. Todos os cinco caíram no chão, rolando ou arrastando-se
como podiam para longe do portão e das garras dos infectados que tentavam
alcançá-los através da grade.
— Puta merda! — exclamou Jorge — Valeu, meu irmão! Eu tava fodido se não
fosse por ti.
Pietro respondeu com um simples aceno de cabeça e, estendendo a mão para
Jorge, ajudou-o a levantar.
Os infectados balançavam o portão com violência enquanto tentavam
inutilmente alcançar os sobreviventes. Alguns deles gritavam como loucos, outros
emitiam gemidos graves e aterrorizantes. Nem os mais corajosos do grupo
conseguiam sentir-se seguros com aqueles seres tão próximos, mesmo separados
por uma pesada grade de metal. Letícia afastou as crianças dali, tentando acalmá-
las.
André contou seis infectados aglomerados do lado de fora e mais uma dúzia se
aproximando. Seu conflito interno quanto às suas crenças aumentava a cada
encontro com uma destas criaturas demoníacas. Antes da epidemia estava com
dificuldades em aceitar a indiferença de Deus ao sofrimento da sua esposa doente.
Agora, transformar seus filhos em algo tão maligno, capaz de provocar tanto
sofrimento aos seus irmãos... parecia ser crueldade divina, digna do Antigo
Testamento.
O pastor segurou a mão de sua mulher, olhou-a nos olhos e disse que faria de
tudo para garantir a segurança dela e das crianças. Letícia beijou sua mão,
confiante de que tudo se resolveria. Afinal, seu marido era o homem mais
iluminado que ela conheceu na vida. Tinha fé, ele encontraria o caminho.
Mais de trinta metros à frente do portão, Gustavo estava sentado nos degraus de
uma construção de madeira, parecida com um chalé. Os demais tiveram de usar as
lanternas e telas dos seus celulares para iluminar o caminho, pois não havia postes
ou qualquer outro tipo de iluminação do lado de dentro do portão.
À frente do chalé depararam-se com uma placa grande e branca:

Rancho da
Maioridade
Centro de Apoio
3.600m ao Visitante
(Cubatão)
<——————>

Ao ver a placa que indicava a distância até o Rancho da Maioridade, Jorge disse
que aquele seria um lugar onde poderiam descansar.
Uma legenda na parte inferior da placa indicava que a estrada tinha 9200
metros. Pietro calculou que o grupo demoraria cerca de cinco horas para percorrer
aquela distância, mais que o dobro do que ele e seu irmão levariam sozinhos.
Encontraram um bebedouro do lado de fora do centro de apoio ao visitante e
usaram-no para matar a sede e reabastecer as garrafas nas mochilas de André e
Pietro. Fizeram isso com pressa, pois ainda não se sentiam confortáveis estando tão
próximos do portão, com cerca de vinte infectados tentando derrubá-lo. Gustavo
era o único que não parecia afetado pela presença daqueles monstros. Ele
continuava sentado nos degraus, fitando-os ao portão com o mesmo olhar vazio
que trazia em seu rosto desde o incidente com Bia.
Letícia questionou o que estava acontecendo com aquelas pessoas, deixando-as
daquele jeito, mas foi interrompida por Pietro.
— Não temos tempo para isso agora. Precisamos nos afastar o mais rápido
possível deste portão — Pietro ajustava a alça da sua mochila, passando os olhos
por todos do grupo e certificando-se de que estavam prontos para partir. — É
fundamental chegarmos ao fim desta estrada até o amanhecer.
Pietro ouviu suspiros e resmungos indistintos, porém ninguém se contrapôs.
Passava das duas da manhã, ele sabia que não chegariam ao fim da estrada a pé
antes das sete horas, mas precisava apressá-los o máximo possível. A situação
caótica que encontraram em Cubatão poderia se alastrar pela capital, o que
dificultaria sua missão.
Gustavo caminhava sozinho, logo atrás de Pietro e Gilberto, os desbravadores
do grupo. Tentava distrair-se de suas lembranças recentes, prestando atenção aos
sons da floresta, mas mesmo o canto de um milhão de cigarras e bacuraus não
seriam o suficiente para abafar os dois disparos que tiraram a vida de Beatriz e
ecoavam em sua cabeça. Após reviver inúmeras vezes a cena em sua mente,
Gustavo começou a questionar-se sobre qual momento ele realmente perdera Bia.
Pensou nos olhos vermelhos e a ira da garota quando ela tentou atacá-lo dentro do
carro. Naquele momento, não era mais a garota doce que ele conhecia. A conclusão
que mais fazia sentido para ele era que desde o momento em seu amigo infectado
mordera seu tornozelo, a garota que ele conheceu por alguns anos e amou por uma
noite se perdeu para sempre.
Chegaram a uma construção antiga que parecia uma casa, feita de pedras claras
e decorada com azulejos brancos e azuis. Acima do telhado da construção havia
um painel de azulejos, no qual estava desenhado um grande emblema, com uma
coroa dourada adornada com ramos verdes. A placa na estrada sinalizava que
aquele era o Rancho da Maioridade, construído em 1922, em homenagem a Dom
Pedro II e, originalmente, utilizado como ponto de descanso durante a viagem entre
São Paulo e Santos. Naquela noite o Rancho serviria para seu antigo propósito
mais uma vez.
— Sei que estão todos cansados, mas só podemos descansar um pouco — disse
Pietro. — Deitem, estiquem as pernas, façam o que têm que fazer e sairemos em
vinte minutos.
Acomodaram-se numa varanda aos fundos da construção, com vista para a
Mata Atlântica. Alguns deles sentaram-se em um grande banco de pedra, outros
deitaram no chão. Cada um tentando livrar-se das dores da longa caminhada.
Mesmo Jorge e Gilberto, os mais atléticos do grupo, estavam cansados. E o
esforço exigia ainda mais do despreparo físico de Letícia, das crianças e de
Carlinhos, que, além do tornozelo torcido, tinha a capacidade pulmonar
comprometida após mais de uma década como fumante compulsivo.
Além do cansaço, a fome começava a tornar-se um problema entre os
sobreviventes, até que Letícia abriu uma de suas mochilas, revelando uma sacola
com mais de uma dúzia de sanduíches que ela tinha preparado para sua família
comer durante a viagem. Felizmente para todos, a dona de casa contava com o
hábito de exagerar nas porções dos lanchinhos preparados para viagens, o que
proporcionou alimento ao grupo essa noite.
Todos agradeceram à Letícia e sua família ao serem servidos, ansiosos para
devorar seus sanduíches de frios.
— Algum de vocês teve contato com pessoas infectadas antes? — Gilberto
perguntou, enquanto comia seu lanche. — Estou tentando entender o que está
havendo, como acontece o contágio e por que os infectados ficam tão violentos.
— A gente viu três — Carlinhos respondeu por reflexo, fazendo uma pausa ao
perceber que ser transparente sobre seus antecedentes criminais não seria prudente.
— A gente estava em uma loja. Três caras tentavam entrar de qualquer jeito. O
dono tava tentando bloquear a entrada e levou uma mordida no braço. Os caras só
pararam depois de levarem três ou quatro pipocos cada um.
Jorge ficou aliviado por Carlinhos ter omitido a verdade sobre estarem detidos
na delegacia quando tudo começou. Lembrou-se de um ditado que sua mãe
costumava dizer: “É melhor ficar quieto e deixar as pessoas achando que você é
burro, do que abrir o bico e acabar com a dúvida”. Neste momento, a mesma lógica
se aplicava às suspeitas do grupo sobre sua índole. Ele podia ver a forma como os
outros os olhavam, com cautela e receio, mas confirmar que tinham motivo para tal
só pioraria as coisas.
Carlinhos contou também sobre como viu várias pessoas sendo pisoteadas no
meio da confusão, alertando os demais de que os infectados não seriam sua única
preocupação ao chegarem a São Paulo.
Todos refletiam sobre os acontecimentos em silêncio quando foram
surpreendidos pela voz rouca de Gustavo: — Uma mordida... uma mordida e você
está infectado.
Gilberto colocou a mão em seu ombro, demonstrando empatia com a sua
situação.
— Sabemos que você passou por muita coisa hoje, Gustavo. Você não precisa
nos contar se não estiver pronto.
— Foi em algum momento do ano novo que meus amigos devem ter sido
infectados — continuou o rapaz, apesar do conselho do seu professor. — Eu não vi
ninguém sendo mordido nem nada do tipo, mas tinha um senhor passando mal na
praia e meus amigos o levaram até a enfermaria. Mais tarde, eles disseram pra
gente que o velho tinha cuspido neles e mordido um enfermeiro. Talvez essa não
fosse a história inteira, vai saber. O que sei é que, quando acordei no dia seguinte,
tinham assassinado cinco amigos nossos dentro da casa onde a gente estava. O que
eles fizeram com os corpos... — Gustavo vinha falando com firmeza, mas
estremeceu neste ponto e fez uma pausa, retomando a história com um tom de
pavor — o corpo do Zé estava no chão da cozinha, com a barriga rasgada por
mordidas, todo revirado. Dava pra ver que ele tinha tentado fugir, só que depois de
ser encurralado na cozinha, o filho da puta pegou, bateu com a cabeça dele no chão
até rachar, abriu a barriga dele como um animal e comeu a carne dele. Carne,
órgãos, tudo. Quem faz uma coisa dessas?! Eu não tô falando de um psicopata que
fugiu de um hospício ou alguém deste tipo. Era um amigo meu da faculdade que
estava jogando truco a tarde e de madrugada fez uma coisa dessas.
Gustavo parou, fazendo uma pausa mais longa e tentando se recompor. As
pessoas mal conseguiam olhar para ele, aterrorizados com a história. Letícia se
retirou com as crianças, evitando expor seus filhos ainda mais à grotesca realidade
que enfrentavam.
— No rádio eles falaram em bactéria, vírus e outros tipos de doença —
continuou Gustavo. — O que quer que seja, eu tenho certeza de duas coisas:
primeiro, isso afeta o cérebro de alguma forma. Aqueles não eram meus amigos e
aquela coisa que me atacou no carro não era a Bia. Segundo, a contaminação
acontece pela mordida. Bia foi mordida quatro horas antes de ficar violenta
daquele jeito. Ela ficou com dor de cabeça, enjoo e outros sintomas antes de se
transformar naquela... coisa.
Gustavo tinha os punhos e dentes cerrados com força. Seu professor colocou
outra vez a mão em seu ombro. O rapaz começou a chorar, com a cabeça entre os
joelhos, e voltou a ficar em silêncio.
— Sinto muito pelo que aconteceu, Gustavo — disse Gilberto. — Bia era uma
pessoa muito querida por todos.
Gilberto fez um sinal para Pietro, chamando-o para conversar. Levantaram-se e
casualmente se afastaram do restante do grupo.
— Você deveria entregar estes documentos às autoridades, Pietro — disse
Gilberto, seguindo seu hábito de ser seco e direto quando o assunto era sério.
— Eu sei disso — concordou seu irmão. — Assim que conseguir falar com
algum dos meus contatos, tenho certeza que virão até nós buscar o pen drive
pessoalmente.
— Precisamos encontrar Monique e Rita. Elas devem estar em casa, na zona
oeste, ou no hospital, no centro — disse Gilberto, preocupado. — Não deve estar
fácil chegar até nenhum destes lugares com tudo isso que está acontecendo.
— Eu estou contigo, Gil. Vamos encontrar as duas antes de qualquer coisa.
Pietro não disse em voz alta, mas torcia para que estivessem no hospital. Apesar
dos riscos de estar num lugar com tantas pessoas infectadas, lá seria o local ideal
para serem resgatados por um helicóptero do Exército Brasileiro, o que ele
pretendia negociar em troca pelas informações sobre o vírus.
O restante da caminhada não foi tão difícil quanto tinham previsto, apesar de
ser exaustivo subir todo o ziguezague da Serra do Mar a pé. Letícia precisou de
ajuda para carregar as crianças, que não aguentavam mais andar. André e Gustavo
revezaram-se carregando Talita nas costas, de cavalinho, enquanto Jorge,
empolgado pela ideia de ser pai, criou certa afeição pelo garoto Pedro e levou-o
consigo pela maior parte do caminho.
A julgar pelas aparências e armas que carregavam ocultas, Pietro tinha certeza
que Jorge e Carlinhos estavam cometendo ou prestes a cometer algum delito
quando toda aquela desgraça começou, portanto surpreendeu-se ao ver Jorge
conversando com uma criança de oito anos sobre o canto dos “bichinhos da
floresta” e outros sons que ouviam. Ainda não podia confiar neles, mas ao menos
estavam ocupados com a criança, permitindo que Pietro planejasse seus próximos
passos sem se preocupar em levar um tiro pelas costas.
— Gil, — disse Pietro, certificando-se que não seriam ouvidos pelos demais –,
tome cuidado com esses dois. Eu sei que temos um objetivo em comum, mas eles
não são confiáveis.
Gilberto ofegava, caminhando sobre o asfalto iluminado pela luz de uma
lanterna de Pietro. Tomou fôlego, olhou para seu irmão e perguntou: — E você,
Pietro? Posso confiar em você?
— Porra, Gil! Que pergunta é essa?
— Você tem informações importantes sobre o vírus e diz que quer entregar para
as autoridades: ótimo! Mas como posso confiar no que diz se não sei quais são seus
motivos? Você tem segredos demais, irmão.
Pietro sabia que era a hora de revelar ao menos uma parte da verdade para seu
irmão. No fundo ele nunca ficou à vontade guardando tantos segredos de Gilberto.
Seu irmão merecia saber a verdade — ou ao menos uma porção dela.
— O que você quer saber, Gil?
Sem pestanejar, Gilberto começou a listar as perguntas que estavam em sua
cabeça desde a conversa que tiveram em Santos: — Eu quero saber que diabos de
pesquisa faziam naquela ilha, Pietro. Qual era seu trabalho de verdade e por que
saiu de lá bem quando tudo isso começou a acontecer? Antes de tudo, Pietro, me
explique por que diabos você deu baixa do exército, algo que foi sempre tão
importante para ti. Pior ainda, para trabalhar numa merda duma ilha longe de tudo
e de todos? Aquele papinho de que estavam te pagando uma fortuna não me
convenceu.
— Eu nunca saí do exército, Gil — Pietro respondeu. — A SYS é a divisão de
Pesquisa e Desenvolvimento de uma companhia chinesa. Uma companhia que tem
um acordo secreto com o alto escalão do Exército Brasileiro para pesquisar e
desenvolver armas biológicas nas Ilhas Trindade e Martins Vaz. Não era meu papel
questionar a atuação da empresa ou o acordo que o exército fez com eles, mas
assumir a identidade de um experiente gestor de pessoal e sistemas de segurança e
gerenciar a segurança da ilha, ao mesmo tempo em que coletava informações sobre
o andamento da pesquisa e avisar meu superior no Exército se algo parecesse...
errado. O problema é que, de repente, tudo deu muito errado, muito rápido... as
coisas pareciam normais, até que o vírus se espalhou pela ilha de um dia para o
outro, infectando quase todo mundo. Os infectados já tinham matado quase todos
os sobreviventes quando eu consegui fugir com um dos pesquisadores em uma
lancha. A ilha fica a 1.200 quilômetros do continente, então ficamos sem
combustível, mas fomos resgatados em alto mar por um navio cargueiro.
Pietro fez uma pausa para que Gilberto digerisse a informação. Seu irmão
perguntou: — O cargueiro que bateu em Praia Grande?
— Sim — disse Pietro. — Descobri da pior forma possível que o pesquisador
que fugiu comigo estava infectado. Ele acabou infectando ou matando todos os
tripulantes do navio. Eu passei uns dias escondido. Assim que pude, peguei um
bote e fugi, mas estávamos muito longe da costa. Ao chegar em Santos sofria de
desidratação e insolação. Passei dias no hospital e só depois pude te encontrar.
Gilberto ficou um tempo em silêncio, repassando a história em sua cabeça.
Após anos sendo mantido no escuro sobre as atividades de seu irmão, a verdade era
demais para digerir de uma vez só.
— Ilha Trindade e Martim Vaz? — perguntou Gilberto.
— Um arquipélago perto de Vitória, no Espírito Santo. Oficialmente é um posto
do exército para observação meteorológica, mas eles transformaram num centro de
pesquisas em parceria com os chineses.
— E por que não levar essa informação ao seu superior?
— Eu suspeito que ele esteja comprometido. Estou em contato com outro
major, que é confiável e vai nos ajudar a colocar estas informações nas mãos
certas.
— E onde eu entro nessa história? Por que você me envolveu nisso?
— Se um major do Exército, responsável por toda esta operação está
comprometido, nós perdemos todas as informações que tínhamos sobre este vírus.
O pessoal que trabalhava com ele também não é confiável. Você e Monique têm
conhecimentos que podem nos ajudar a lidar com isso. Confie em mim, a melhor
coisa para você e sua família é que os militares precisem da sua ajuda numa hora
dessas. Vocês estarão mais seguros com eles, além de nos ajudar a superar isso
tudo.
Gilberto abaixou a cabeça e continuou caminhando. Estava satisfeito com a
honestidade de seu irmão, mas a verdade trazia com ela uma responsabilidade além
do que o professor estava preparado para lidar. Seus esforços estavam focados em
garantir a segurança de sua família. Não podia ter uma responsabilidade com o
resto do mundo enquanto as duas estivessem em perigo.
— Continue tentando resolver as coisas com o seu major, Pietro. Eu preciso
encontrar minha mulher e minha filha. — Gilberto suspirou, então concluiu. — Só
depois disso vou te ajudar com essa merda em que vocês nos meteram.
Cerca de cinco quilômetros depois do último descanso, onde ouviram a história
de Gustavo, o grupo chegou a uma placa que indicava que a “Casa de Visitas do
Alto da Serra” estava logo à frente. Viram a tal casa alguns metros adiante. Uma
construção antiga, reformada e pintada recentemente.
Chegaram ao lugar e subiram uma escadaria que terminava em uma ampla
varanda. Como a casa estava trancada e as janelas fechadas, abrigaram-se ali
mesmo.
— Vou seguir até o final da estrada para ver como está a situação — Pietro
anunciou, tentando omitir o quanto ele próprio estava cansado. Alguns anos antes
esta viagem teria sido muito mais fácil, mas sua idade atual não era compatível
com o esforço físico que estava fazendo. — Gilberto, você vem comigo?
Ele concordou, levantando-se do banco em que tinha acabado de sentar-se, sem
reclamar. Jorge pôs-se de pé logo em seguida, dizendo: — Eu também vou. Vocês
podem precisar de ajuda — Jorge virou-se para Carlinhos, apontando para a perna
dele. — Vocês por acaso não têm um anti-inflamatório ou algo do tipo? Meu amigo
aqui torceu o tornozelo no acidente com a moto.
Letícia disse que tinha o remédio em algum lugar e começou a vasculhar em
sua bolsa. Pietro, Gilberto e Jorge saíram em direção à estrada.

O sol já tinha nascido e os três caminhavam em direção à saída da Estrada


Velha de Santos, no momento em que Gilberto finalmente conseguiu completar
uma ligação para sua esposa.
— Monique, está me ouvindo? — perguntava Gilberto, quase gritando ao
telefone.
— Oi, Gil! Estou te ouvindo, finalmente! — a voz da sua esposa respondeu do
outro lado da linha.
— Estamos quase em São Paulo. Onde você está? Está tudo bem com você e
Rita?
— Eu estou no hospital, com a minha irmã — Monique deixava transparecer
cansaço em sua voz. — Ela não está bem... tem tantos doentes chegando aqui...
eles tiveram que fechar as portas e não deixam mais ninguém entrar, só familiares
dos pacientes.
— E Maria Rita? — perguntou Gilberto.
— Ela foi para casa descansar e me trazer umas mudas de roupa. Deve voltar ao
hospital daqui a umas horas.
— Está bem — Gilberto fez uma pausa, refletindo sobre qual seria o plano mais
seguro para as duas. — Pietro e eu vamos ao hospital. Fique aí e não desgrude de
Rita quando encontrá-la.
Gilberto nunca sentira tamanha impotência como neste momento. A
possibilidade de algo dar errado no hospital e as duas não poderem contar com sua
ajuda era aterrorizante.
— Môn, tome cuidado com a sua irmã e os outros pacientes. Se ela começar a
ficar violenta... Alô?
A ligação foi cortada durante a última frase por perda de sinal, deixando
Gilberto incerto se sua esposa entendera o que ele queria dizer sobre o estado da
sua cunhada. O professor concluiu que se Monique tinha passado a noite toda no
hospital, já devia estar ciente do comportamento agressivo dos infectados, portanto
deixaria suas emoções de lado e tomaria cuidado com sua própria irmã. Esperava
que sua esposa mantivesse sua racionalidade naquele momento, caso o destino de
Jacqueline fosse se tornar mais um monstro.
Continuando a caminhada, Jorge perguntou a Gilberto: — Então você está indo
encontrar sua esposa? Onde ela está?
— Num hospital no Pacaembu — respondeu Gilberto, ofegante. — Vamos
direto para lá e depois decidimos o que fazer. Minha filha também está lá.
— Não me leve a mal, doutor, mas não parece ser um lugar seguro. Um prédio
cheio de doentes... pelo que entendi, mais cedo ou mais tarde os doentes tentam
matar todo mundo.
— Os médicos já devem ter pensado nisso a uma altura dessas, ou eu não teria
conseguido falar com a minha esposa — Gilberto afirmou, tentando convencer a si
mesmo de seu raciocínio. — Eles devem estar tomando medidas preventivas,
amarrando os doentes às camas ou sedando-os. Além disso, eles pararam de
receber novos pacientes, então em breve as ruas é que estarão cheias de infectados
a solta, enquanto o hospital estará fechado e relativamente seguro. Precisamos
chegar lá antes que seja impossível entrar.
— É... faz sentido. Tomara que dê tudo certo pra vocês.
— Vocês não vêm conosco? — perguntou Gilberto.
— Minha esposa grávida está me esperando em Paraisópolis — respondeu
Jorge. — Com essa demora pra subir a serra e a bosta do celular sem sinal, ela
deve achar que estou num puteiro ou coisa pior.
Gilberto riu alto, pego de surpresa pelo humor desse homem de aparência bruta
e cara de poucos amigos.
— Bom — continuou Jorge –, mesmo que for pra apanhar dela, meu destino é
Paraisópolis. Chegando lá vejo como está a situação e penso no que fazer.
— Você está certo. Prioridades.
O professor parou sua frase pela metade ao avistar uma pequena construção ao
lado da estrada. Consistia de uma garagem simples com três paredes, aberta à
frente. O feixe de luz da lanterna revelou um Pálio azul-marinho, uma motocicleta
e um barco pequeno sobre uma carroceria para transporte.
Nenhum dos três disse nada de imediato, mas seus semblantes mudaram de
cansaço e desesperança para alívio e otimismo. Ao chegarem ao lugar viram uma
inscrição na parede que indicava que estavam no “Depósito dos Barcos”.
— Bom, não precisamos de barcos, mas poderíamos usar um carro e uma moto
— constatou Jorge, sorrindo.
— Nós não podemos levar isto! — relutou Gilberto. — Não nos pertence!
— Irmão, a situação exige. — argumentou Pietro, sem demonstrar qualquer
preocupação com as implicações legais do que estavam prestes a fazer.
Gilberto não estava confortável com isso, pensando que o dono dos veículos
também poderia se encontrar em uma situação de emergência, porém deixou-se
convencer devido à urgência de encontrar sua esposa e filha.
— Assim que as coisas melhorarem a gente devolve — disse Gilberto.
Pietro tentou abrir a porta do carro, confirmando que ele estava destrancado.
Começou a revirar o interior do veículo. Disse a seu irmão: — A chave não está
aqui.
— Merda! — reclamou Gilberto. — Como a gente vai...
Foi interrompido pelo som da motocicleta sendo ligada, o que chamou a
atenção dos dois irmãos.
Jorge exibia um largo sorriso sentado sobre a motocicleta ligada, com a
proteção do farol removida e a fiação exposta. Ele fizera uma ligação direta na
moto em pouco mais de um minuto, no mesmo tempo em que os outros dois
procuravam as chaves.
Impressionado, Pietro perguntou: — Pode nos ajudar com o carro, amigo?
— Claro, pode deixar — respondeu Jorge, saindo de cima da moto ligada.
Em menos de cinco minutos os motores dos dois veículos roncavam,
sobrepondo-se ao som das cigarras e bacuraus da Mata Atlântica. Os três desceram
a estrada para buscar os demais na Casa de Visitas do Alto da Serra.

Apesar do tornozelo inchado e dolorido, Carlinhos foi o primeiro a ouvir o som


dos motores e se levantar. Não aguentaria mais um minuto daquele pirralho do
Pedro, cantando pela milésima vez a música de algum filme idiota da Disney,
perguntando se seu pé estava inchado porque iria “ficar preto e cair” ou qualquer
outra forma de irritação e perda de tempo. Ter filhos definitivamente não estava em
seus planos, tampouco gostaria de ser babá de filho dos outros, como tinha sido o
caso naquela noite.
O Pálio e a moto pararam em frente à escada pela qual os demais sobreviventes
do grupo desciam. Gilberto saiu do carro e foi até Jorge, entregando-lhe um cartão
e dizendo: — Caso as coisas também não estejam bem lá em Paraisópolis, esse é
meu número de celular e o endereço do hospital.
Jorge ficou um pouco desconcertado, sem saber bem o que responder, até que
disse: — Obrigado. Acho que vamos ficar bem, mas obrigado.
Carlinhos segurava-se no corrimão da escadaria, descendo aos saltos com seu
pé bom.
— Papai Noel está atrasado, mas veio! — brincou o homem franzino, em um
pequeno lapso do seu estado de mau humor. — Se você disser que também achou
um maço de cigarros, eu te dou um beijo na boca.
Jorge sorriu e balançou a cabeça negativamente. Guardou o cartão de Gilberto
em seu bolso. Acenou seu adeus ao garoto Pedro e demais companheiros de
viagem e partiu com Carlinhos na garupa da moto.
O restante do grupo espremeu-se dentro do Pálio e seguiu a caminho da capital.
5 - Dia de Treino
Rita acordou ao som de seu despertador às sete horas da manhã. Ainda
sonolenta, caminhava em direção ao banheiro quando topou com o dedo do pé na
quina da porta. Xingou seu pé, a porta e o mundo todo por alguns minutos.
— Quando vai acabar essa merda de ano dos infernos? — resmungou, com os
olhos lacrimejando.
Flexionou seu dedo e constatou que ao menos ele não estava quebrado. A dor
despertou-a por completo, mas aos poucos a raiva pela dor que sentia foi se
transformando em tristeza, lembrando-se do estado de sua tia e as cenas
presenciadas no hospital. Mancou até o banheiro, tomou um banho rápido e
preparou-se para o treino.
Na garagem de casa montou em sua bicicleta e partiu em direção à academia,
vestindo um ifu — uma espécie de quimono preto com abotoaduras brancas na
parte frontal, que era o uniforme utilizado em apresentações e competições de kung
fu. Não precisava usar o ifu em todos os treinos, mas gostava de usá-lo nos
momentos importantes, como o primeiro treino do ano ou exames de troca de
faixa.
Notou que a rua estava deserta demais para uma segunda-feira. A rua de sua
casa, sempre abarrotada de carros dos moradores da região saindo para o trabalho,
agora estava vazia. O comércio também parecia abandonado. Rita passou
pedalando em frente a uma banca de jornal aberta, com várias revistas e doces
espalhados pelo chão, sem ninguém dentro. Sentiu um calafrio percorrer sua
espinha, mas seguiu seu caminho sem diminuir o ritmo da bicicleta.
A academia ficava a algumas quadras de sua casa. Ao chegar encontrou o lugar
tão deserto quanto o restante de seu bairro. A porta estava fechada, então esperou
até Júlio chegar. Ela adorava ver seu namorado também vestido com o ifu, pois ele
ficava parecendo um personagem de um antigo filme chinês. Era alto, com quase
um metro e noventa de altura, magro e de cabelos pretos e compridos, que cobriam
o lado direito de seu rosto. Os dois se abraçaram e se beijaram antes de dizer
qualquer coisa.
— Belo bronzeado, tomatinho — provocou Júlio, notando o rosto vermelho da
garota, queimado pelo sol no Guarujá.
— Ha, ha... Muito engraçado! — respondeu a garota, involuntariamente ficando
ainda mais vermelha.
Falaram sobre o que fizeram nos dias que passaram longe um do outro,
enquanto Júlio destrancava a porta. Ele era ajudante do mestre e um dos alunos
mais antigos, frequentando os treinos desde criança. Possuía as chaves do lugar
para o caso de o professor não comparecer ou se atrasar por algum motivo, o que
era um acontecimento raro, mas não seria motivo para deixarem de treinar.
A academia ficava numa construção de dois andares, sendo que o andar térreo
era ocupado por uma loja de suplementos alimentares. O único acesso da rua se
dava por uma porta de ferro que levava a uma pequena sala, onde havia um
pequeno espaço para os alunos deixarem suas motos ou bicicletas e uma escada
que levava ao andar de cima. Lá o ambiente era inspirado em templos chineses de
wushu, com tons de vermelho e preto, quadros com inscrições em mandarim e
desenhos tradicionais de guerreiros chineses. Um espaço de musculação simples,
dois vestiários e a área de treino, separada do restante do ambiente por uma cerca
de madeira de um metro de altura. A área de treinamento tinha o chão forrado por
tatame, coberto por uma lona preta de bordas vermelhas. O pé direito era alto, mas
vigas de madeira passavam a dois metros e meio do chão, com correntes
penduradas, utilizadas para suportar os sacos de pancada e equipamentos de
alongamento, que mais pareciam instrumentos de tortura da idade média. De um
lado do tatame toda a parede era coberta por espelhos, servindo para avaliar e
corrigir movimentos dos alunos durante os treinos. A outra parede estava coberta
de ponta a ponta por suportes com armas brancas de todos os tipos e tamanhos.
Bastões, espadas, lanças, machados, nunchakus e quase todo tipo de armamento
Shaolin existente, alguns feitos para treino e outros de materiais efetivamente
marciais, utilizados nas performances artísticas, competições ou simplesmente
como ornamentos da academia.
— A gente pode ir treinando enquanto os outros não chegam — sugeriu Júlio,
já na área de treinamento, olhando nos olhos da garota.
Rita retribuia o olhar, com outra ideia em mente. Estava apaixonada, um
sentimento novo e imprevisível. O kung fu, o vestibular e qualquer outra coisa que
um dia fora importante para a garota, perdia sua importância quando estava perto
dele.
— Ou a gente pode fazer outra coisa — sugeriu Rita, provocativa, mordendo os
lábios de seu namorado e desabotoando a parte de cima de seu ifu.
Algum tempo depois ouviram o som metálico da porta do andar debaixo sendo
fechada em uma forte batida. Ofegantes e satisfeitos, levantaram-se do tatame e
ajeitaram seus uniformes, sorrindo.
— Mestre! — alguém gritou no andar debaixo. — Desce aqui com as chaves,
rápido!
Reconheceram a voz fina e arranhada de Rafa, um aluno de 14 anos que
treinava com eles havia alguns meses. Júlio pegou as chaves e desceu correndo,
seguido por Rita, ambos contagiados pelo desespero nos berros do garoto.
— Júlio, tranca essa merda, pelo amor de Deus! — gritava, visivelmente
perturbado e com muito sangue escorrendo em seu braço esquerdo, ferido na altura
do tríceps.
— O que houve, Rafa? — perguntou Rita. Júlio trancava a porta de ferro.
— Estava vindo pra cá e vi uma velha passando mal no ponto de ônibus —
explicou o garoto. — Fui ajudar e a filha da puta me mordeu!
Dois segundos de silêncio se passaram até que Júlio começou a rir
descontrolado. Rita esboçou um sorriso, mas estava preocupada com o ferimento.
— Você não está entendendo, cara — continuou, com a mão direita sobre seu
ferimento e gemendo de dor –, ela estava insana! Tive que socar a cara dela e só
consegui me soltar quando ela arrancou um pedaço do meu braço! — tirou a mão
de seu ferimento, mostrando que realmente a senhora rasgou pele, carne e músculo
do seu braço.
— Puta merda, Rafa! — disse Júlio, arrependido de ter dado risada da história
do garoto. — Sobe com a gente que vamos cuidar disso... depois te levamos pro
hospital.
Viraram as costas e uma batida forte na porta de ferro assustou a todos. Uma
mulher começou a gritar feroz do lado de fora e a chutar a porta.
— Que mulher louca! — exclamou Júlio, surpreso ao confirmar a veracidade da
história. Porém notando a apreensão nos olhos do amigo, tentou acalmá-lo. — fica
tranquilo que uma velhinha não vai passar por esta porta nem fodendo.
A garota abriu uma portinhola que ficava na porta, à altura dos olhos, revelando
uma mulher de cerca de sessenta anos de idade, suja de sangue da boca para baixo
e com os olhos mais vermelhos que Rita já tinha visto na vida. A mulher colocou
os dedos pelo vão da portinhola e tentou forçar o braço para o lado de dentro, mas
o espaço não era suficiente para passar sua mão inteira.
— A gente vai chamar a polícia, velha louca! — gritou Rita. A senhora
continuava a gritar e chutar a porta.
Subiram as escadas e pegaram um kit de primeiros socorros no armário do
mestre. O garoto lavou a ferida, Júlio passou alguns produtos para desinfetar o
ferimento e Rita ligou para a polícia em seu celular. A intensidade das batidas na
porta aumentava enquanto Júlio colocava uma gaze e atava a ferida.
— Só faltava essa — disse a garota. — O 190 está ocupado.
A gritaria do lado de fora se intensificou, não só da senhora que atacou Rafa,
mas de várias pessoas que se juntaram a ela.
Quando Rita foi até a escada para ver o que estava acontecendo, era tarde
demais. As dobradiças da porta estavam quase todas danificadas e a porta
inclinava-se mais a cada baque que recebia.
— Júlio, a porta vai cair! — gritou a garota.
Confiando na urgência da voz de sua namorada e pensando rapidamente, o
rapaz correu até a área de treino, pegou duas lanças e voltou ao pé da escada,
entregando uma para Rita. Eram lanças do tipo “flor de pera”, com cabo de
madeira de dois metros de comprimento, terminando em uma afiada seta de metal
na ponta, onde fitas vermelhas ornamentais pendiam e dançavam conforme os
movimentos da arma. Os dois trocaram um olhar e assentiram com a cabeça,
simultâneos e sem dizer uma palavra.
As dobradiças da porta cederam, dando espaço suficiente para um braço passar
pela lateral. Mais alguns segundos empurrando e a porta cedeu, caindo ao chão
junto com a senhora que a estava empurrando. Atrás dela, mais de uma dezena de
pessoas que também chutavam e empurravam a porta entraram correndo,
pisoteando a senhora e a porta.
— Filhos da puta! Parem! — bradou Júlio, tentando parecer intimidador com
sua lança apontada para o grupo que avançava escada acima.
As palavras não surtiram efeito sobre aquele bando de loucos. Não havia ajuda
a caminho e fugir não era uma opção. No momento em que viram a ferocidade nos
rostos dos invasores, ele e Rita souberam que não teriam outra opção que não fosse
lutar.
Olhos vermelhos, bocas espumando de sede de sangue e braços erguidos, os
predadores avançavam escada acima.
Júlio fixou sua posição no topo da escada. Sabia que não poderia hesitar. Matar
ou morrer, pensou. Treinara movimentos com a lança milhares de vezes antes de
chegar à faixa preta. Mão esquerda à frente e direita atrás, ambas na altura da
cintura. Deveria mirar seu alvo com a mão da frente e forçar o golpe com a de trás,
como uma tacada numa partida de sinuca, e puxar a lança de volta para aplicar um
novo golpe. Rugiu como um selvagem ao fincar a lança com perfeição na barriga
do homem de meia idade que subia a escada à frente do resto do bando, perfurando
pele e órgãos do infeliz como se estivesse fincando o cabo de um guarda-sol na
areia macia da praia.
O moribundo Urgh! emitido por aquele homem fez com que Júlio
compreendesse que tinha acabado de matar alguém desarmado. Apesar de estar
insano e que possivelmente rasgaria sua jugular se tivesse a oportunidade, o
homem estava desarmado e não tivera a menor chance contra sua lança.
Mas não havia tempo a perder. Outros invasores subiam as escadas e se
aproximavam. Júlio puxou sua lança, mas foi surpreendido pelo moribundo à sua
frente. Os treinos com oponentes imaginários não o prepararam para como, na
tentativa de puxar a lança de volta, seu adversário poderia segurá-la e puxá-la para
si, mas foi exatamente isso que aconteceu. O homem agarrou a lança com as duas
mãos e começou a puxá-la, como uma criança que disputa um cabo de guerra,
enquanto o encarava com ira irradiando de seu olhar vermelho e sangue escuro
escorrendo de sua boca. Após alguns instantes em choque, o rapaz recuperou-se da
cena grotesca e aplicou toda sua força ao empurrar a ponta da lança para baixo e
para frente, usando a lança como alavanca, derrubando o homem de joelhos e
destruindo seus órgãos internos. Júlio soltou sua arma e aplicou um chute frontal
no ombro do invasor, derrubando-o para trás e sobre os que tentavam subir a
escada, fazendo-os cair escada abaixo.
Rita entregou-lhe sua lança, considerando que ele era mais forte e mais
habilidoso com aquela arma, e correu para pegar espadas, facões ou talvez um
bastão. Focava seus pensamentos em decidir qual arma seria mais eficaz para
defender-se, evitando pensar no que tinha acabado de acontecer.
Dois jovens, um rapaz e uma garota, conseguiram segurar-se no corrimão da
escada e não rolaram até o primeiro andar junto dos demais. Rapidamente os dois
avançavam escada acima. Júlio preparou-se e investiu contra a garota a sua frente,
aplicando um golpe lateral com a ponta da lança em seu rosto, cortando
profundamente sua face, da orelha até a boca, deixando seus dentes
ensanguentados à mostra. Após recuperar seu equilíbrio, ela continuou avançando,
como se nada tivesse acontecido, fazendo com que Júlio recuasse dois degraus,
tropeçasse e caísse sentado no topo da escada. Ainda no chão, ele puxou sua lança
e fincou-a na barriga da garota, que caiu para trás e rolou escada abaixo com a
lança presa a seu corpo. Júlio levantou-se e recuou. O garoto de olhos vermelhos
estava quase alcançando o segundo andar, e Júlio estava desarmado. Os demais
invasores subiam e não tardariam a alcançá-lo também. Júlio virou-se e correu para
o tatame do outro lado do salão, onde Rita tinha acabado de armar-se com dois
facões wushu afiados. Os facões eram quase do tamanho de espadas, com lâminas
de um metro de comprimento, largas e ligeiramente curvadas, com fitas vermelhas
penduradas nos cabos. Rafa olhava pela janela para a rua, como se avaliasse a
possibilidade de fugir por ali.
— Vamos ter que segurar eles aqui — disse Júlio. — Rafa, precisamos da sua
ajuda também. Pega as shurikens e fica atrás da gente.
Júlio pegou sua arma favorita, a Pá Shaolin, também conhecida como Pá de
Monge. A arma consistia em uma pá de lâmina afiada em uma ponta, com um
longo cabo de madeira e lâmina em formato de meia lua, similar a uma foice, na
outra extremidade, sendo que os dois lados podiam ser utilizados para ataque.
Como Júlio era um dos principais competidores em nível nacional com esta arma,
seu mestre comprara uma “original” para ele, feita de material resistente e com
corte, como a arma marcial utilizada séculos antes pelos monges chineses da
dinastia Ching. Nos treinos diários treinava com uma réplica sem corte, mas
quando estava sozinho na academia e queria se empolgar com uma verdadeira
arma marcial, o rapaz pegava sua Pá Shaolin, colocava seus fones de ouvido
tocando Slipknot, e praticava sozinho. Em nenhum de seus sonhos, ou pesadelos,
usara esta arma em uma pessoa de verdade, ou o que quer que fossem aqueles
demônios que subiam a escada e cruzavam a academia com dificuldade,
tropeçando nos equipamentos de musculação.
— Manda ver, Rafa! — gritou Rita.
Rafa suava frio e tremia ao arremessar a primeira shuriken, ou estrela ninja, e
acertou no ombro de um dos invasores, sem surtir muito efeito. Respirou fundo e
lançou a segunda, errando seu alvo. O primeiro deles pulou a cerca que separava o
tatame da área de musculação e Rafa desesperou-se, largando as estrelas no chão e
recuando em direção à janela.
— Fica tranquilo, Rafa. A gente segura eles — disse Júlio, tentando tranquilizá-
lo.
Um garoto de roupa ensanguentada e feições demoníacas foi o primeiro maldito
a passar pela área de musculação. Furioso enquanto encarava sua presa, pulou o
cercado de madeira que o separava do tatame. Júlio fechou os olhos por um
segundo, repassando a introdução da música Wait and Bleed em sua cabeça. O
mundo desapareceu da mente do rapaz, onde agora só havia ele, sua arma e seu
inimigo.
Num movimento rápido e firme, Júlio projetou a Pá de seis quilos frontalmente
contra o pescoço do garoto. Durante o golpe, a velocidade da lâmina passou de
zero a quinze metros por segundo em apenas trinta centésimos de segundo,
resultando em uma pressão de quatorze quilogramas por centímetro quadrado do
fio da lâmina contra o pescoço do infeliz. Seria o suficiente para ceifar o tronco de
um eucalipto jovem. O corpo decapitado caiu e escorregou pelo tatame aos pés de
Júlio, enquanto a cabeça foi projetada na direção oposta, rodopiando no ar e
quicando duas vezes no chão, até repousar encostada na cerca de madeira.
Uma dúzia dos malditos já tinham subido as escadas e passava pelos
equipamentos de musculação. Júlio voltou para o lado de Rita, que estava em
posição de combate com um facão em cada mão.
Foi então que o verdadeiro combate começou. A luta de suas vidas. Júlio
avançava de forma metódica, golpeando com sua pá uma vez na altura do joelho de
seu oponente e em seguida na altura do pescoço ou cabeça, repetindo isso diversas
vezes e matando eficientemente.
Rita girava os facões ao lado de seu corpo com agilidade. As fitas que giravam
com suas armas criavam dois arcos vermelhos no ar. O primeiro homem que
avançou contra ela não teve a menor chance. Um golpe e ela decepou seu braço
direito, em seguida o outro. No terceiro golpe cravou seu facão no crânio do
infeliz. Com um chute frontal empurrou o corpo desmembrado e desfalecido e
puxou sua arma de volta, espalhando sangue, pedaços de ossos e massa encefálica
pela lona preta do chão. Antes que pudesse respirar, mais três deles corriam em sua
direção. Uma senhora, aparentemente a que tinha atacado Rafa, um homem e um
garoto. O mais novo não devia ter mais que dez anos, o que tornava seu olhar
assassino ainda mais assustador. Rita avançou na direção do garoto, que também
corria até ela, e aplicou um chute lateral em sua têmpora, fazendo com que ele
caísse, inconsciente. De imediato após o chute, Rita girou seu tronco de lado para
atacar a mulher que estava à sua direita, passando o facão em seu pescoço e
fazendo sangue jorrar de sua artéria rasgada. A mulher, a cada momento mais
pálida, manteve os braços erguidos e tentou avançar contra a garota, mas perdeu a
consciência antes de alcançá-la e caiu ao chão, sobre a poça de seu próprio sangue.
O homem vinha do outro lado, agora às costas de Rita. Ela girou seu corpo para
golpeá-lo, mas não foi rápida o suficiente. Seu oponente avançara com velocidade
e conseguiu agarrá-la ainda de lado, levando-a ao chão e fazendo com que ela
largasse suas armas.
Ao ouvir o baque seco dos dois caindo, seguido de um gemido de Rita, Júlio
virou-se e foi ajudá-la. A garota lutava para manter a boca daquele monstro longe
de si, no momento em que Júlio posicionou-se sobre os dois, levantou a pá à frente
de seu corpo e fincou-a na nuca do desgraçado. Tomou o cuidado de aplicar força o
suficiente para inutilizá-lo, sem correr o risco de machucar Rita.
Debaixo do cadáver de seu agressor Rita viu Júlio ser surpreendido por um
brutamontes pulando em sua direção e derrubando-o. Mais seis malditos vieram na
sequência, todos amontoando-se sobre rapaz.
Rita juntou todas as suas forças para empurrar o corpo inerte de cima do si,
rolando-o para o lado. Rastejou desesperada, escorregando no tatame lambuzado
de sangue na busca por suas armas, ouvindo os gritos desesperados de seu
namorado. Já armada, avançou contra os sete monstros que estavam agachados
sobre Júlio e começou a esquartejá-los brutalmente com os dois facões. Em menos
de um minuto decapitou dois deles e eliminou os outros cinco com golpes precisos
na cabeça e pescoço.
Finalmente, quando todos os invasores estavam mortos, ela pôde ver o estado
de Júlio. Os malditos tinham arrancadoa dentadas partes de seus braços e pernas, e
uma mordida em seu pescoço havia rasgado sua traqueia, de onde seu sangue fluía
em jorros cada vez menos abundantes. A garota, coberta de sangue da cabeça aos
pés, largou suas armas e ajoelhou-se ao seu lado, chorando aos prantos, sem saber
o que fazer.
Seu namorado agonizava enquanto se afogava no próprio sangue, até que seu
sofrimento cessou. Sem últimas palavras e sem um último beijo, Maria Rita ficou
ajoelhada ao seu lado. Júlio estava morto.
Rita não tinha noção de quanto tempo ficou ali, parada ao lado do corpo de
Júlio. Primeiro ela ficou desconsolada e perdida com a morte do seu namorado.
Depois, tentou compreender o que poderia levar pessoas a agirem daquele jeito,
completamente ensandecidas, como animais selvagens ou como os zumbis dos
filmes apocalípticos que ela gostava de assistir. Após toda a matança que
acontecera ali, permitiu-se considerar aquela possibilidade. Por um instante parecia
fazer sentido. Isto é, até onde mortos-vivos invadindo a academia, tentando comê-
la viva e matando seu namorado podia fazer sentido.
Olhou para o corpo imóvel de Júlio considerando a possibilidade de realmente
estar acontecendo um apocalipse zumbi. Não posso permitir que o Júlio se
transforme naquilo!, pensou, pegando suas armas e colocando-se de pé. Naquele
momento, Rita ergueu os olhos e viu seu reflexo no espelho da parede. Coberta de
sangue seco, segurando facões ensanguentados e prestes a decapitar o cadáver do
seu namorado. A garota voltou a chorar, largando suas armas e sentando-se
novamente no chão.
Após mais algum tempo chorando sobre o cadáver, uma preocupação súbita
tomou sua atenção. Não sabia o que houve com Rafa. Rita levantou-se e gritou seu
nome, olhando por todos os cantos da academia. Não houve resposta. Procurou
também entre os mortos, sem encontrá-lo. O medroso deve ter fugido no meio da
luta, pensou, sem conseguir evitar colocar a culpa do ocorrido no garoto por atrair
os malditos até a academia.
Tentando obter informações sobre o que estava acontecendo, a garota ligou a
tevê que ficava na área de musculação. Imagens aéreas, gravadas de helicóptero,
mostravam a cidade de Santos. Rita reconheceu que estavam filmando a Igreja do
Embaré, pois ela tinha passado em frente a ela dias antes com seus pais. Agora as
imagens da televisão mostravam milhares de pessoas se aglomerando em volta da
igreja, tentando arrombar suas portas ou quebrar as janelas, da mesma forma como
os malditos tinham tentado invadir a academia: “Infectados pela Febre Vermelha
aterrorizam a cidade de Santos”, dizia a legenda na parte inferior da tela.
Forçando-se a processar estas informações o mais rápido possível, uma palavra
destacou-se em sua mente: “Infectados”. Olhou para suas mãos sujas de sangue,
depois para sua roupa preta coberta de sangue já ressecado. Sangue infectado.
Despiu-se por completo e correu em direção ao vestiário, prendendo a respiração o
tanto quanto podia, então entrou no banho e ligou o chuveiro. A água quente e a
espuma do sabão desgrudavam aos poucos a substância vermelha que estava
impregnada em sua pele. Chorou tentando entender o que estava acontecendo,
desejando que seu pai estivesse ali para ajudá-la.
A garota vestiu-se com a única roupa que encontrou no armário da academia,
outro ifu preto com abotoaduras brancas, reservas que o mestre tinha estocado para
vender aos novos alunos. Usou um lenço preto para cobrir a boca, como uma
bandana de rosto, tentando proteger-se do que quer que estivesse infectando as
pessoas. Pegou seu celular e tentou ligar para seu pai, mas caiu direto na caixa
postal. Ele deve estar na serra, sem sinal. Em seguida ligou para sua mãe. Ela
atendeu antes de soar o segundo toque.
— Filha, tudo bem? Onde você está?
— Estou bem, mãe — mentiu a garota. — Você está no hospital? Tudo bem por
aí?
— Estou com sua tia... chegou muita gente com esta doença, parece que tiveram
que suspender a admissão de novos pacientes, mas o hospital está um caos. Acho
melhor...
A ligação ficou muda por alguns segundos e depois caiu. Rita chamou
inutilmente o nome da sua mãe. Tentou refazer a ligação, mas não foi possível.
Imaginou que muitas pessoas deveriam estar na região do hospital usando seus
celulares ou algum problema do tipo. Ou talvez o cara que cuida do sinal dos
celulares está ocupado comendo o cérebro de alguém.
Maria Rita precisava ajudar sua mãe. Se o hospital estava cheio de infectados,
quanto tempo demoraria para eles levantarem de suas macas e correrem atrás dos
médicos, enfermeiros e de sua mãe? A garota não tinha respostas para quase
nenhuma das perguntas que passavam por sua cabeça, mas uma sensação de
urgência crescia em seu peito, deixando-a mais inquieta a cada segundo. Com
certeza de que sua mãe não sairia do hospital enquanto sua tia ainda estivesse
internada lá, a única opção era ir até elas. Pegou a mochila do seu mestre que
ficava no armário e esvaziou-a. Colocou dentro dela o kit de primeiros socorros,
mais roupas limpas e foi buscar armamentos. Os facões ficaram em bainhas presas
às suas costas, mas também pegou nunchakus, uma espada média, porretes, as
shurikens que o Rafa tinha largado no chão e diversas facas de arremesso, uma de
suas armas favoritas.
Prestes a descer as escadas, olhou uma última vez para Júlio. Apesar de sentir-
se mal por deixá-lo ali, não havia tempo para sentimentalismo. Qualquer segundo
perdido poderia custar caro demais e ela não permitiria que sua mãe ou qualquer
outra pessoa com quem ela se importava morresse dessa forma. Desceu ao andar
térreo, onde pegou sua bicicleta e saiu da academia.
Ao passar pela porta Rita ouviu um rosnado à sua esquerda. Virou-se, e lá
estava Rafa estirado na calçada, encarando-a com seus olhos ensanguentados. Seu
amigo rastejava com as pernas contorcidas em ângulos desumanos, enquanto
espumava pelos cantos da boca e esticava um dos braços, prestes a agarrá-la.
Rita recuou dois passos, ainda encarando aquele par de olhos vermelhos.
Sentiu-se dominar pela fúria que pulsava em suas veias e enrijecia todo o seu
corpo. Sacou o facão das suas costas e retribuiu o rosnado animalesco ao maldito.
Em sua mente não havia espaço para tristeza pelo amigo perdido, apenas raiva pelo
monstro que tomou seu lugar. Com um movimento rápido e impiedoso, cravou a
lâmina na cabeça do infeliz.
“Um filho da puta a menos”, pensou enquanto subia em sua bicicleta e
começava a pedalar.
6 - O Pulso Ainda Pulsa
Doutor William Ishida estava deitado em uma das camas na sala de descanso do
hospital onde trabalhava. Após mais de dezoito horas de plantão, atendendo
pacientes durante o caos do primeiro surto da Febre Vermelha, conseguiu se afastar
por alguns minutos e fechar seus olhos.
Mesmo exausto, William não dormiu durante seu descanso. Desde a morte de
sua mãe, seis meses antes do início da praga, o cardiologista não pregava os olhos
sem ajuda de drogas. Às lícitas ele tinha fácil acesso dentro do hospital, apesar da
burocracia forçá-lo a forjar uma prescrição que não fosse feita para ele próprio. Já
seus medicamentos herbáceos e ilegais, pegava com um jovem que morava em seu
prédio, com mais facilidade e comodidade que os comprimidos de tarja preta. Mas
em algumas noites nem mesmo o maior baseado do mundo era forte o suficiente
para distraí-lo de seus pensamentos mórbidos e fazê-lo dormir.
Olhando para o teto escuro William remoía ainda mais o remorso que sentia por
tudo o que dissera e não dissera para sua mãe. Lidando com a morte todos os dias,
ele imaginava que estaria mais preparado ao ocorrer uma fatalidade com alguém
próximo de si, mas não foi o caso. Seu pai era uma figura ausente, tendo
abandonado sua mãe antes que ele nascesse, e seus amigos eram poucos e cada vez
mais distantes, espalhados pelo Brasil depois da graduação em Medicina.
Aos trinta e dois anos de idade William era uma pessoa solitária e o
relacionamento com sua mãe era o único laço afetivo realmente importante em sua
vida, que agora não existia mais. Um aneurisma levou-a rápido como um
interruptor sendo desligado, e agora William estava sozinho.
Eu posso acabar com isso hoje, pensava o doutor. Com duas cartelas de
diazepam, toda essa merda termina hoje.
Diazepam era um sedativo indicado no tratamento de convulsões, espasmos
musculares e insônia. Definitivamente não era a forma mais fácil de cometer
suicídio, mas se William realmente fosse acabar com a própria vida, gostaria de ter
um barato e espairecer sua mente ao partir. Se a estoquista do hospital desse falta
do remédio, o que poderiam fazer? Cassar seu registro no CRM? William não se
importaria se tirassem o título de doutor de seu defunto e o jogassem em uma cela
de prisão, desde que sua mente estivesse livre de todo tormento.
Quinze dos vinte minutos de intervalo do doutor tinham passado, mas não havia
nada de interessante no teto do quarto e ele decidiu que não passaria mais um
segundo ali. Levantou-se e saiu da sala de descanso, caminhando até o quadro de
pacientes para verificar a quem deveria dar as más notícias nesta manhã maldita.
Após atualizar sua agenda com as visitas que deveria fazer, William certificou-
se que sua máscara e demais equipamentos de segurança estavam bem colocados e
caminhou até o quarto do primeiro paciente. O prontuário do indivíduo dizia:

Nome: Maximiliano Bosco Sexo: Masculino


Idade:43 anos Data de admissão: 01/jan, 23:47
Evolução:
Aprox. 15:00 de 01/jan: Suor excessivo Aprox. 19:00 de 01/jan: Cansaço
Aprox. 23:00 de 01/jan: Enjoo / Vômitos 3:12 de 02/jan: Dores Musculares 9:17
de 02/jan: Olhos doloridos e avermelhados 9:17 de 02/jan: Febre 40º
Diagnóstico: Febre Vermelha

O prontuário se estendia por mais algumas páginas, com informações sobre o


histórico de doenças do paciente, assim como os medicamentos que ele estava
tomando: soro, tramal e paracetamol. Pela expressão de dor no rosto do paciente,
William teria que aumentar a dosagem dos medicamentos, porém em breve ele
apresentaria o sétimo sintoma, dor de cabeça excessiva, e imploraria por um pouco
de morfina.
— Solicitei que aumentem a dosagem de seus medicamentos, Maximiliano. Vai
diminuir seu desconforto, mas te deixará um pouco sonolento durante as próximas
horas.
— E quando eu vou ficar melhor, doutor? — perguntou o homem deitado.
— Espero que seja em breve. Ainda não sabemos muito sobre esta doença, mas
temos que controlar os seus sintomas até que seu corpo a elimine por completo.
Apesar do discurso vago e generalista que todos os médicos repetiam aos
pacientes naquele estágio da Febre Vermelha, Doutor Ishida sabia que o
prognóstico realista era desanimador. A única boa notícia era que o pobre Max
estaria com as veias carregadas de morfina quando atingisse o estágio final da
doença.
Quando ele apresentasse dor de cabeça excessiva, a instrução do corpo médico
do hospital era não economizar sedativos, deixando o paciente dopado antes de
tornar-se agressivo. Além disso, os pacientes em estágio avançado da Febre
Vermelha deviam ser amarrados às camas, mas Maximiliano ainda tinha algumas
horas de sofrimento até chegar a este ponto.
Avaliando seu prontuário William viu que ele tinha passado os últimos dias em
Santos, tendo voltado à capital no dia primeiro de janeiro pela manhã, horas antes
de apresentar os primeiros sintomas. Aquele parecia ser o ponto comum entre
todos os pacientes, com exceção de um rapaz que trabalhava em uma lanchonete
no Terminal Rodoviário do Jabaquara, onde os ônibus de todo o litoral paulista
chegavam à capital. Ainda não havia estudos sobre a infecciosidade da doença,
mas pelo que William observara era altamente contagiosa. Se aquele rapaz doente
trabalhara o dia todo em uma rodoviária movimentada, em pouquíssimo tempo
teriam milhares de infectados sendo levados aos hospitais da capital. Talvez alguns
deles estivessem em São Paulo só de passagem e estavam agora levando a doença
para outras cidades.
A esposa do paciente também estava no quarto e começou a bombardear doutor
Ishida com perguntas, até ele responder que tinha que atender outras pessoas, que
ela podia fazer falar sobre aquilo com as enfermeiras e se retirou, pedindo
desculpas. Com somente duas horas de plantão pela frente, pretendia ajudar o
máximo de pacientes que podia, para somente então ir à farmácia buscar sua
encomenda.
William continuou seu plantão, encontrando vários casos como o de Max.
Alguns nos estágios iniciais, outros já apresentando vermelhidão nos olhos e
sintomas avançados, mas foi quando Doutor Ishida estava quase terminando seu
plantão que encontrou seu primeiro paciente já no estágio agressivo da doença.
Ainda não tinha visto ninguém em tal condição. Constatou que era tão horrível
quanto lhe haviam descrito. A boca espumando e a fúria do doente ao tentar soltar-
se de suas amarras eram impressionantes, porém nada era mais assustador do que
os profundos olhos vermelhos que se fixaram no médico assim que ele entrou no
quarto, como se fosse um suculento pedaço de carne à frente de um cão faminto.
William certificou-se de que os equipamentos de segurança estavam bem
colocados e só então pegou o prontuário do paciente.
Por se tratar de um homem grande e forte, era de se esperar que ele tivesse
resistido mais a doença, atrasando a progressão dos sintomas, mas não foi o que
aconteceu. Ele tinha apresentado os mesmos seis sintomas de Max, no entanto
todos se desenvolveram dentro de um intervalo de duas horas, e na hora seguinte
apresentara os últimos seis sintomas: dor de cabeça excessiva, perda parcial do
controle cognitivo, salivação, fome excessiva, perda total do controle cognitivo e
comportamento agressivo.
De súbito William notou o motivo de sua rápida progressão de sintomas. O
paciente tinha um grande curativo na panturrilha direita, sugerindo que ele tinha
sido mordido por alguém infectado.
Àquela altura da epidemia boa parte das instruções que os médicos possuíam
para lidar com a doença eram baseadas em suposições, pois ninguém tinha real
conhecimento sobre com o que estavam lidando. Uma das suposições era de a
transmissão da doença ocorrer pelas vias aéreas, como o vírus da gripe, e por saliva
contaminada em contato com a corrente sanguínea, como o vírus da raiva. No
primeiro caso a doença demorava cerca de três dias para atingir seu estágio final, já
uma mordida poderia deixá-lo insano em três ou quatro horas, como o caso do
brutamontes que se debatia na cama à frente de William.
O doutor apertou um botão ao lado da cama, tomando cuidado para que o
paciente não o alcançasse. Em pouco tempo uma enfermeira entrou no quarto,
perguntando se o médico precisava de alguma coisa.
— Rebeca — disse William, lendo o nome na identificação da enfermeira –, por
favor, administre cinco miligramas de midazolam ao paciente.
— Nossa, ele não estava assim da última vez que o vi! — disse a jovem
enfermeira. — Deve ter acontecido agora a pouco.
William estava em um canto do quarto analisando o prontuário do paciente e
tentando entender mais sobre aquele vírus, enquanto a enfermeira preparava a dose
do potente sedativo e o paciente continuava a se debater na cama. Midazolam,
pensou o doutor, para que tomar uma dúzia de comprimidos de diazepam, se posso
conseguir algo bem mais forte e injetável? Uma ampola será mais do que o
suficiente.
Rebeca estava virada de costas para a cama programando a bomba de infusão
que liberaria o sedativo no cateter do braço do paciente, no instante em que ele
arrebentou o suporte que prendia uma de suas amarras à cama, deixando seu braço
direito livre. Usando este braço, o infectado agarrou os cabelos da enfermeira, que
gritou em desespero. O brutamontes puxou-a para a cama sobre si e cravou os
dentes em seu pescoço.
William deixou cair o prontuário, sem reagir. O infectado rasgou a jugular de
Rebeca de tal forma que o sangue arterial jorrou sobre a enfermeira e o paciente,
encharcando a cama e escorrendo para o chão.
Entre engasgos espasmódicos, Rebeca chorava, implorando por ajuda. William
ficou estancado ali, sem conseguir se mover, ao passo que os médicos e
enfermeiros que estavam próximos ao quarto entraram correndo e tiraram Rebeca
das mãos de seu agressor.
Rebeca foi salva das mãos do paciente, que foi devidamente sedado. Sua
hemorragia foi contida e sua ferida tratada. Apesar disso, seria mantida em
observação pelo iminente risco de ter sido contaminada.
Já William levou mais de meia hora para se acalmar do susto. A ferocidade
daquele homem foi aterrorizante e o grito da enfermeira não saía de sua cabeça.
Queria ter ajudado, mas seus pés não se mexeram a tempo. Ela já estava perdida
assim que o maldito a mordeu, não importava o que eu fizesse, racionalizava o
doutor, sem ousar repetir este pensamento em voz alta para os seus colegas. Não
queria que sua imagem frente aos colegas do hospital ficasse ainda pior, caso
tentasse se explicar.
— Você está bem, Doutor Ishida? — perguntou Doutor Mauro Dias,
aproximando-se do jovem médico.
Doutor Mauro era um veterano do hospital e responsável pela UTI e corpo
médico do hospital, enquanto Doutor Ishida tinha terminado a pouco sua
especialização em cardiologia, com trinta e dois anos de idade.
— Sim — respondeu William –, foi só um susto, Doutor Mauro. Se o senhor
não se importa, acho que vou para casa. Meu plantão acabou dez minutos atrás.
— Doutor Ishida, imagino que esta experiência tenha sido um tremendo trauma.
Tenho certeza de que está cansado após um plantão na atual situação do hospital.
Mas esta crise é pior que qualquer coisa que já enfrentamos. Precisamos de uma
ajuda extra de todos para lidar com isso. Podemos contar com você?
William abaixou sua cabeça e suspirou, evitando contato visual com Mauro.
— Eu realmente não estou em condições de ajudar ninguém, doutor.
Especialmente depois do que aconteceu.
— É exatamente por causa de incidentes como este que precisamos de você,
Doutor Ishida. Muitos médicos faltaram ao plantão, presos em atendimentos em
outros hospitais, no trânsito ou sabe-se lá onde. Enfermeiros estão indo embora
com medo dos pacientes. Nós precisamos de todos com quem pudermos contar.
— Desculpe, doutor — disse William, levantando-se de sua cadeira. — Você
não vai poder contar comigo hoje.
William virou as costas e partiu. Antes de sair do prédio, fez uma rápida parada
na farmácia do hospital.
Chegando ao subsolo, onde ficava a garagem de funcionários, William
estranhou as luzes estarem apagadas. De qualquer forma, caminhou até seu carro e
entrou pelo lado do motorista. Colocou o saco de papel que tinha em mãos no
banco do passageiro, evitando pensar se usaria aquilo ou não. Por hora seria alívio
o suficiente poder sair dali.
Quando fora até a farmácia, não havia ninguém para atendê-lo — ou para
impedi-lo.William simplesmente invadiu o estoque de remédios e pegou tudo o que
queria: duas ampolas de 50 miligramas de midazolam e duas cartelas de diazepam.
Se decidisse acabar com sua vida, não faltariam opções de como fazê-lo.
Girou a chave na ignição, ligando o carro e, consequentemente, o rádio, que
estava em modo de espera. Das caixas de som de dentro do veículo a voz mórbida
de Arnaldo Antunes repetia: ... e o pulso ainda pulsa.
E o pulso ainda pulsa...
Indiferente ao humor negro do radialista que selecionou aquela música, William
desligou o som, engatou a primeira marcha e partiu em direção à rampa de saída,
ignorando alguns vultos que se movimentavam nos cantos escuros da garagem.
Acelerou com pressa de chegar em casa, acender um baseado e esquecer o que
houve naquele dia. Subindo a rampa que o levaria à saída do hospital, fazia uma
curva acentuada à direita até que a iluminação vinda da rua revelou uma criança
parada no meio da passagem. Sem tempo para freiar, ele esterçou o volante para
evitar o atropelamento. Afinal, uma coisa que aceleraria sua decisão de ingerir todo
seu estoque de sedativos seria atropelar uma criança neste dia maldito.
No instante seguinte William estava com a cabeça enfiada no air bag, atordoado
pelo impacto que amassara toda a frente do carro. O motor desligou com a batida,
danificado pelo impacto. Olhou para os lados procurando a criança que causou seu
acidente e encontrou-a encostada na janela do lado direito. Seu rosto estava
ensanguentado, deixando William em dúvida se tinha de fato atropelado a garota
ou não, mas logo ficou evidente que o sangue da garota vinha de um ferimento na
orelha da coitada, possivelmente uma mordida. Ela tinha os olhos vermelhos, como
o brutamontes que atacou a enfermeira Rebeca, e batia suas mãozinhas
insistentemente na janela do carro, tentando entrar no veículo.
William tentou girar a chave na ignição, mas o motor não emitiu nenhuma
resposta. Prestes a abrir sua porta, avistou cinco dos vultos que se mexiam na
escuridão da garagem. Eram homens e mulheres com feridas e dentes expostos,
claramente mal intencionados ao se aproximarem do carro do médico. William
certificou-se de que as portas estavam trancadas e olhou de volta para a garotinha.
Mais três homens vinham por trás dela, juntando-se ao grupo que agora
chacoalhava o carro de um lado para o outro, aterrorizando o médico.
Enquanto o medo tomava conta de seu corpo, a cena da enfermeira gritando ao
ser mutilada pelo infectado que a mordeu não saía de sua cabeça. Faria qualquer
coisa para que aquele não fosse seu destino.
A sacola da farmácia estava caída abaixo do porta-luvas. William pegou-a e
conferiu os medicamentos que estavam ali dentro, pronto para antecipar seus
planos.
Rita pedalava pela Praça Pan Americana. Da academia de kung fu até onde sua
mãe estava, seriam sete quilômetros de pedaladas, mas seguia com cautela, apesar
da pressa para chegar ao hospital.
A praça era enorme e, ao contrário do cenário desértico presenciado nos
arredores de sua casa nessa manhã, as vias estavam lotadas de carros, ônibus e
motocicletas, na maior parte do tempo parados no trânsito intenso. As manobras
que os motoristas faziam para fugir do congestionamento, mudando de faixas
repentinamente, representavam um risco constante à segurança da ciclista que
trafegava entre os veículos e subia na calçada se necessário. Apesar de tudo, este
risco era secundário e quase irrelevante considerando a principal ameaça que Rita
via nas pessoas possivelmente infectadas que trafegavam naqueles automóveis.
Não permitiria ser pega de surpresa por qualquer louco que pulasse de um carro,
tentando agarrar seu pescoço. Analisava cada veículo em seu campo de visão com
frieza, passando longe daqueles em que suspeitava de alguém com sintomas
aparentes da doença ou onde via qualquer atitude estranha.
Apesar do trânsito e sua constante preocupação com possíveis infectados, Rita
cruzou a maior parte de seu trajeto sem problemas. Ela já estava a algumas quadras
do hospital quando encontrou um grupo de infectados.
Pedalando pela avenida, Maria Rita pôde vê-los de longe. Cerca de dez
indivíduos, aparentemente infectados e agressivos, tentavam entrar em um ônibus
vermelho parado no trânsito com as portas fechadas e cheio de passageiros,
olhando assustados e indefesos pelas janelas. A garota estava tão emputecida com
os malditos que seria capaz de enfrentar todos os dez ali mesmo, usando as armas
com as quais tivera anos de treinamento. Mas fazer isso custaria tempo de sua
missão de chegar no hospital. Enquanto ela lutasse para salvar as pessoas do
ônibus, sua mãe poderia estar em apuros e precisando de ajuda, além do risco de
algo dar errado e ela ser infectada, sucumbindo à doença e deixando sua mãe
desprotegida. Decidiu passar com sua bicicleta do outro lado da avenida, sem
chamar a atenção dos infectados, que já estavam abrindo à força as portas do
ônibus. Rita evitou olhar a cena, no entanto nunca esqueceria os gritos que ouviu
ao pedalar na direção oposta. Gritos dos que precisaram e não puderam contar com
sua ajuda.
Entrando em uma rua estreita e íngreme na lateral do hospital, a garota viu
diversos carros abandonados e com as portas abertas. Ficou imaginando se os
donos desses carros os abandonaram às pressas no meio do trânsito parado, quem
sabe na esperança de levar seus familiares infectados ao hospital ou talvez fugir
daqueles que os estivessem perseguindo. Qualquer uma das possibilidades
representava problemas para a garota, pois certamente os passageiros das centenas
de veículos abandonados na rua tinham ido ao hospital, sem dúvidas superlotado.
A subida era muito íngreme para continuar pedalando. Rita desceu da bicicleta
e foi empurrando-a ao lado do corpo. Passou em frente de uma entrada de
funcionários do hospital, mas imaginou que precisaria de um crachá de acesso e
que não seria fácil consegui-lo. Seguiu até uma avenida ao final da rua, onde ficava
a entrada principal do hospital.
Chegando à esquina a garota ouviu sons de tiros de revólver a sua direita e
escondeu-se atrás de uma árvore. Olhando para a origem dos disparos viu um
condomínio de luxo com seus portões eletrônicos derrubados e dezenas de
infectados avançando contra os funcionários. Os funcionários recuavam, sendo que
alguns deles estavam armados e atiravam contra os invasores. A garota olhou para
a esquerda, onde viu a entrada do hospital tomada por centenas de pessoas.
Homens, mulheres e crianças se desesperavam tentando arrombar a porta do
hospital, bloqueada por dentro, ao passo que infectados avançavam contra eles,
atacando e mutilando vítimas indiscriminadamente.
Maria Rita recuou para a rua de onde veio e apoiou suas costas no muro do
hospital, com a respiraçao acelerada. Ponderou sobre a situação e concluiu que
nunca conseguiria passar por aquelas pessoas. Além dos infectados, todos os outros
desesperados por abrigo lutariam com todas as forças para passar na frente dela.
Decidiu voltar e tentar a entrada de funcionários.
Ao chegar lá, a cancela para entrada de carros estava fechada, mas não havia
ninguém na guarita fazendo a segurança do lugar. Rita deixou a bicicleta do lado
de fora, abaixou-se e passou pelo bloqueio da entrada. Depois da guarita surgiram
dois caminhos: uma rampa para carros, rumo ao estacionamento subterrâneo, e
uma porta de acesso, conduzindo para dentro do prédio. Foi até a porta, mas ela era
feita de um material resistente e só podia ser aberta via crachá magnético de
identificação, que ela não possuía. Vamos por baixo, então.
Logo no início da rampa um carro estava bloqueando quase toda a passagem,
virado de frente para a parede onde havia batido. Manchas de sangue nas janelas e
lataria indicavam que o carro fora cercado por infectados, mas não os via por ali.
Rita deu a volta nele e continuou descendo. O caminho ficava mais escuro. Quase
chegando no andar do estacionamento escorregou em algo úmido e por pouco não
foi ao chão. Sangue, muito sangue encharcava o concreto. Maria Rita certificou-se
que sua bandana estava bem presa ao rosto, evitando respirar o que quer que fosse
que estava infectando aquelas pessoas, e sacou um facão da bainha presa às suas
costas. Continuou andando e investigando onde aquele rastro de sangue levava, e
foi neste momento que notou os vultos em um dos cantos do estacionamento.
Cerca de vinte pessoas, pelo que ela pode contar, todos de cócoras ou de quatro no
chão, alimentando-se de dezenas de cadáveres e pessoas à beira da morte,
mutiladas e agonizando, de onde sangue fluía, juntando-se à grande poça vermelha
que lavava o piso do estacionamento. Logo atrás do bando identificou a catraca de
acesso de funcionários.
Maria Rita sabia que não teria chances se lutasse com todos ao mesmo tempo,
então decidiu atacá-los de longe. Sacou uma das facas de arremesso de sua
mochila, mirou e lançou contra o primeiro maldito, a uns cinco metros dela. O
infeliz não teve tempo nem de cuspir o pedaço de fígado que mastigava. O projétil
fincou-se em sua têmpora direita e ele perdeu os sentidos, caindo sobre seu
almoço. Na sequência, todos os seres pálidos que banqueteavam no chão do
estacionamento pararam o que estavam fazendo e olharam para o infectado
atingido. Rosnados e grunhidos de agitação ecoaram pelo subsolo e todos se
levantaram, confirmando o que a garota temia: não eram absolutamente burros e
individualistas, mas agiam em bando. De imediato arremessou uma segunda faca
em outro alvo, acertando no meio do peito de um adolescente de uns quinze anos
que usava boné de aba reta, porém ele não caiu. A garota não ficou para ver a
reação dele. Arremessou sua mochila sobre o capô de um carro, longe da poça de
sangue, e correu em direção à rampa, pronta para testar mais uma teoria pensada
durante sua pedalada até o hospital.
Avançou cinco metros rampa acima, parou e preparou-se para o combate, com
os dois facões em mãos. Sua teoria parecia estar correta. Os infectados, além de
serem extremamente agressivos, pareciam não ter pleno controle de suas funções
motoras. Os mais rápidos deles correram atrás de Rita com a mesma agilidade de
uma pessoa normal, outros trotavam de forma desajeitada e alguns eram ainda mais
lentos, arrastando os pés pelo chão, o que fazia com que eles se distanciassem uns
dos outros ao perseguir a garota. Se ela conseguisse enfrentar um, dois ou até três
malditos por vez, poderia derrotar centenas deles sem levar uma mordida. E era
isso que pretendia fazer.
Os três primeiros eram tipos atléticos e chegaram rápido até ela, que usou sua
destreza para compensar a força superior destes que a atacavam. Com dois golpes
certeiros com seus facões, rachou os crânios dos dois primeiros atacantes, levando-
os ao chão. Aproveitando o movimento circular que fez com seu torso para o
segundo golpe com o facão, aplicou um chute traseiro, ou coice, no terceiro
atacante, desequilibrando e derrubando-o, ganhando tempo para correr mais cinco
metros rampa acima e mantendo seus atacantes distanciados uns dos outros antes
de retomar o combate.
A inclinação da rampa aumentava a discrepância da agilidade dos infectados,
distanciando ainda mais cada um deles. O carro batido que bloqueava a passagem
também ajudou a não se deixar cercar pelos malditos. A luta levou alguns minutos
e exigiu muito do preparo físico da garota, mas Rita continuou recuando aos
poucos e conseguiu dar cabo do último infectado daquele grupo já atrás da cancela
de veículos, quase na calçada da rua.
Rita estava exausta e tentava recuperar o fôlego enquanto caminhava de volta à
rampa quando foi surpreendida pelo som de uma porta se abrindo às suas costas.
Sacou um facão, virando seu corpo cento e oitenta graus e deparando-se com um
rapaz oriental parado na porta da guarita. Ele vestia um jaleco branco e tinha as
mãos erguidas sobre a cabeça.
— Calma, garota, — disse o rapaz. — Eu... eu não sou um deles.
Ela guardou seu facão e avaliou o homem, olhando-o de cima a baixo. O
covarde não tinha mexido um dedo para ajudá-la enquanto lutava por sua vida e
agora vinha lhe pedindo calma? Caminhou em sua direção e puxou uma faca do
cinto de sua calça. O homem retraiu-se e encostou as costas na guarita, assustado.
Maria Rita olhava em seus olhos e levantou a faca até seu pescoço. Ele tremia
descontrolado até que, num movimento sutil, a garota usou a faca para cortar o
cordão que pendurava o crachá em seu pescoço.
Rita olhou para o crachá em suas mãos, onde havia a foto do homem e uma
inscrição abaixo: “Dr. William Ishida, Cardiologista”
— William — disse a garota, sem mudar seu semblante sério, com notável
desprezo –, o que você estava fazendo ali dentro?
— Eu bati meu carro na rampa — William disse, apontando seu dedo trêmulo
para o veículo. — Meu plantão tinha acabado e eu tentei ir embora, mas umas
pessoas apareceram correndo. Tive que bater para não atropelar ninguém. Foi aí
que vi os olhos vermelhos deles, todos tentando entrar no carro... Consegui fugir
pelo teto solar, corri para a guarita e me tranquei — o homem baixou seus olhos e
falou mais baixo, como se falasse consigo mesmo. — Não sei quanto tempo fiquei
lá dentro. Não sei para onde eu poderia fugir.
— Eu acho que a melhor opção agora é ir de volta pro hospital e esperar essa
coisa se resolver — falou a garota, pensando que talvez pudesse usar sua ajuda. —
Além disso, tenho certeza que precisam de você lá dentro.
William olhou para baixo, para a rua e de volta à garota. Se realmente fosse
terminar com sua vida, queria fazer isso em um lugar tranquilo, não escondido dos
infectados, com medo de ser dilacerado a qualquer momento. Sua tentativa
frustrada de ir para casa provou que as chances de encontrar um lugar seguro eram
maiores ali dentro que em qualquer outro lugar. Decidiu se juntar à garota vestida
de monge chinês.
— Vamos. É perigoso ficar aqui fora.
Descendo a rampa, William se assustou com a quantidade de corpos espalhados
pelo concreto. Não levou muito tempo para perceber que as lacerações dos
cadáveres tinham sido feitas por lâminas compridas, como as dos facões que a
garota carregava nas costas. Preocupou-se com o estado mental de alguém capaz
de agir e falar tão calmamente quanto ela logo após cometer tamanha brutalidade,
mas tinha certeza de que estaria mais seguro com ela ao seu lado.
Maria Rita pegou sua mochila e foi até os corpos amontoados perto do acesso
de funcionários, pisando com cuidado na poça de sangue, controlando sua
respiração para o mínimo necessário. Notou que o médico também cobriu o nariz
com um lenço, evitando respirar o ar pútrido do subsolo e indicando que estava
certa em suas preocupações de contaminação. A garota sabia que era possível ter se
contaminado durante seus combates na academia e no estacionamento, porém não
havia tempo, ou propósito, para desesperar-se neste momento, então seguiu em
direção à catraca de acesso subterrâneo ao hospital.
Dentre os mortos que estavam à frente do acesso, Rita identificou médicos,
funcionários da limpeza e homens de terno preto, provavelmente seguranças. Já
estava quase na catraca quando tropeçou em algo. Era uma mão amputada, ainda
segurando uma pistola Beretta preta ensopada de sangue. A garota se agachava
para pegá-la. William segurou-a pelo ombro.
— Não faça isso! — interrompeu-a — Ainda não sabemos ao certo como é
feito o contágio, mas sangue e fluidos corporais parecem ser a forma mais rápida
de virar um deles.
A garota parou por uns segundos para ponderar os riscos e decidiu deixar a
arma ali. De qualquer forma, sentia-se mais segura com as armas brancas do que
com uma arma de fogo. Como dizia o velho ditado Shaolin, Rita pensou, facão não
fica sem munição.
Em seguida passou o crachá do doutor no leitor magnético, onde uma luz LED
mudou da cor vermelha para verde, sinalizando que a passagem estava liberada. Os
dois passaram juntos pelo pequeno espaço da catraca, pois o crachá só permitia um
acesso. Tinha certeza de que os crachás das vítimas no chão estariam embebidos
em sangue, portanto não se deu o trabalho de procurar.
Dentro do hall dos elevadores e escadaria, Rita tentava lembrar o número do
quarto da sua tia, quando seu celular vibrou. Era a sua mãe.
— Mãe, finalmente consigo falar com você! — falou a garota ao atender a
ligação, aliviada.
— Que bom, Marie — Monique também parecia aliviada, apesar do cansaço
em sua voz — O sinal do celular está péssimo. Onde você está?
— Já estou no hospital. Vocês ainda estão no terceiro andar? Como a Jacque
está?
— Sim, estou aqui. — respondeu Monique, transparecendo um pouco de
preocupação na voz por ter sua filha neste ambiente caótico. — Quarto 326. Você
consegue chegar? Aqui dentro parece mais seguro. Está uma loucura lá fora! —
comentou Monique, que não via outra opção além de se fecharem dentro do
hospital e esperar as coisas se estabilizarem.
— Estou indo! Fique no quarto que eu te encontro aí.
Rita e William subiram pelas escadas. A garota sugeriu que era melhor não
arriscarem pegar o elevador, pois poderiam ficar encurralados caso aqueles
malditos de olhos vermelhos estivessem do outro lado da porta.
Quando chegaram ao terceiro andar Rita respirava com dificuldade e sentia uma
dor aguda no baço. Mesmo com todo o seu preparo físico, os combates que tivera
neste dia, seguidos de três lances de escada, foram demais para a garota.
Ao abrir a porta corta-fogo da escadaria no terceiro andar, depararam-se com
um homem de terno preto, máscara e luvas cirúrgicas. O homem assustou-se e
sacou um revólver de sua cintura.
— Calma — disse William, levantando os braços –, não estamos infectados.
O homem bufou numa mistura de alívio por não serem infectados à sua frente e
raiva pelo incompetente que não lacrou a porra da escadaria.
— Digão! — gritou o homem nervoso — Você ainda não bloqueou a escadaria
de funcionários. Quer matar todo mundo, cacete?!
Ele guardou sua arma, passando a ignorar a presença de Rita e William, e
continuou andando apressado pelo corredor, dando ordens ao tal Digão para que
ele juntasse dois homens e preparasse barricadas em todos os acessos.
William guiou Maria Rita até o corredor que levava ao quarto 326, o que não
demorou muito. Monique esperava na porta e correu ao seu encontro assim que viu
sua filha. As duas se abraçaram em silêncio por alguns segundos, até que Monique
falou: — Que bom que você veio, Marie. Está tudo bem?
Rita, que desde que saíra da academia conseguira conter todo e qualquer
sentimento que não fosse a raiva que sentia dos monstros, deixou-se sucumbir no
conforto dos braços de sua mãe, largando suas armas no chão e chorando
descontrolada.
— Eles pegaram o Júlio, mãe! — disse a garota, entre soluços. — Ele morreu...
o Júlio morreu.
Monique ficou algum tempo ali, acalmando sua filha. As manchas de sangue
nas roupas e pele de Maria Rita despertaram sua preocupação. Apesar de saber que
a única forma de contágio com cem por cento de infecciosidade era contato de
fluidos infectados com a corrente sanguínea — e que, felizmente, Rita não tinha
sido mordida — ela achou melhor pedir que sua filha tomasse banho no vestiário
do andar.
Monique sabia que higiene não ajudaria se sua filha já estivesse infectada, o que
era uma forte possibilidade após toda a exposição que tivera aos doentes. Naquele
momento de crise e ignorância quanto ao tratamento e imunização contra a doença,
o vasto conhecimento da Doutora Giovannini só tinha uma utilidade: reforçar as
preocupações maternais e sua sensação de impotência.
7 - Instruções Oficiais
Dentro do Pálio superlotado, Gilberto tentava encontrar uma posição que não
machucasse seus joelhos, mas esta parecia ser uma causa perdida. Seu banco estava
puxado para frente, amenizando o aperto das cinco pessoas que se espremiam na
parte de trás do carro. Pietro dirigia.
O rádio permanecia sintonizado em uma estação de notícias sobre o trânsito e as
informações que ouviam não podiam ser mais desanimadoras. O radialista
informava que a Avenida dos Bandeirantes — o único caminho para chegar de
carro ao hospital — estava completamente engarrafada e deveria ser evitada. Pietro
sugeriu que seria melhor ir até a estação de metrô mais próxima, abandonar o
veículo e seguir viagem de metrô. Seu irmão estava ponderando as opções ao ouvir
algo inesperado no rádio. Aumentou o volume. O radialista finalizou suas notícias
sobre o trânsito às pressas, anunciando: ...agora vamos interromper as notícias
sobre o trânsito na capital para dar cobertura à importante coletiva de imprensa
com o Secretário Estadual de Saúde de São Paulo sobre os recentes
acontecimentos no litoral do Estado.
O rádio passou então a transmitir o áudio da sala da coletiva de imprensa, no
qual podia-se ouvir o burburinho de diversos jornalistas ansiosos pelo
pronunciamento do Secretário. Durante seu tempo como Secretário Estadual de
Saúde, aquele senhor tinha lidado com graves surtos de dengue, reduzido o número
de novos casos registrados de AIDS e feito uma campanha agressiva contra o que
nomeou de Epidemia do Crack, combatendo as causas de consumo da droga que se
espalhava pelos centros da capital. Apesar de sua vasta experiência, nada se
comparava à devastadora epidemia da Febre Vermelha que surgira no litoral
paulista e se espalhava pelo Estado. Todos fizeram silêncio assim que o Secretário
subiu ao palanque, e ele começou: Cidadãos do Estado de São Paulo, é grave a
situação pela qual estamos passando. O Governador do Estado de São Paulo
decretou há pouco estado de emergência nas cidades da Baixada Santista devido
ao surto do vírus recém-descoberto da Febre Vermelha. Este é um vírus nunca
visto antes, mas já temos os melhores pesquisadores do país estudando-o, focados
em desenvolver tratamentos e possivelmente uma vacina, com urgência.
Enquanto trabalhamos nisso, peço a vocês que mantenham a calma e sigam as
instruções elaboradas pela CCD, a Coordenadoria de Controle de Doenças. A
colaboração da população será fundamental para controlarmos a disseminação e
minimizar a taxa de mortalidade deste vírus.
As instruções oficiais são:
1. evite lugares movimentados ou com grande concentração de pessoas;
2. lave as mãos e braços com frequência e evite contato direto com os doentes ou
objetos utilizados por eles;
3. caso um familiar ou conhecido esteja apresentando um dos sintomas — suor
excessivo, cansaço, enjoo, vômito, dores musculares, vermelhidão nos olhos,
dor de cabeça muito forte, fome insaciável ou mudança súbita de
humor/agressividade — encaminhe-o a um hospital imediatamente;
4. caso você esteja com um familiar ou outra pessoa no estágio agressivo da
doença, mantenha-se seguro e avise as autoridades pelo telefone 190.
Estamos com um efetivo reforçado de ambulâncias para levar cada pessoa
infectada ao hospital mais próximo da sua localização;
5. aguardem novas instruções oficiais pelos nossos meios de comunicação: rádio
e televisão.
Gilberto diminuiu o volume do som ao ser anunciado o fim da coletiva de
imprensa do Secretário. O professor não podia acreditar como um homem tão
experiente como o Secretário da Saúde da porra do Estado de São Paulo podia ser
arrogante ao ponto de subestimar este vírus.
— “Evite lugares movimentados”? — repetiu Gilberto, indignado. — Eu não
me sentiria seguro nem se estivesse trancado no porão do Palácio do Governador!
Esse cara está de brincadeira!
Pietro não estava acostumado a ver Gilberto irritado daquela forma, exceto ao
ter absoluta certeza do que ele estava falando. Seu irmão nunca se envolvia em
discussões sobre política, futebol ou qualquer outro assunto polêmico, mas se
alguém lhe falasse alguma bobagem sobre cervejas gourmet ou algo relacionado à
Biologia, podia se preparar para um longo sermão. Uma vez Pietro tivera que
aguentar uma aula de meia hora sobre porquê tomar cerveja de boa qualidade
“estupidamente gelada” era o mesmo que jogar seu dinheiro no lixo. Lembrava que
era algo sobre as papilas gustativas perderem a sensibilidade quando submetidas a
temperaturas muito baixas. Com isso, Pietro sabia que seu irmão estava engajado
com o assunto da Febre Vermelha, o que seria fundamental para a missão que
tinham pela frente.
Chegaram à estação de metrô São Judas e tiveram uma breve discussão sobre
irem ao hospital usando metrô, ônibus ou seguirem de carro. Eles levaram quatro
horas para ir da Estrada Velha até ali e já passava de uma da tarde. Não era viável
seguir de carro e ônibus também não seria eficiente com as ruas nessas condições.
A melhor alternativa ainda era o metrô, apesar da preocupação que todos sentiam
ao lembrar da primeira instrução do Secretário da Saúde: “evitem lugares
movimentados ou com grande concentração de pessoas”. Ainda assim, teriam que
arriscar.
Pietro parou o carro sobre a calçada e todos desceram. Se alguém os estivesse
observando, seria engraçado vê-los um a um saindo pela porta do Pálio, como um
fusquinha de circo. Mas ninguém tinha tempo para isso. Os paulistanos andavam
apressados — mais que o habitual — e com semblantes preocupados, muitos deles
em direção à estação de metrô.
— Nós vamos juntos até o metrô Clínicas — André dizia para Gilberto e Pietro,
enquanto caminhavam –, depois disso cada um segue seu caminho... Letícia?
O pastor notou que sua esposa não estava ao seu lado. Olhou para os lados e a
encontrou em frente a uma barraquinha de churros com sua filha.
Gilberto e Pietro pararam, assistindo André discutindo com a esposa, dizendo
que eles podiam ser infectados se ficassem se expondo às outras pessoas desta
forma, mas ela dizia que as crianças estavam com fome e não tinham o que fazer.
Porém, outra coisa chamou a atenção do professor: o vendedor de churros,
provavelmente preocupado com a Febre Vermelha, usava uma máscara hospitalar e
luvas. Ir até a Estação das Clínicas de metrô era uma viagem longa e o risco de
cruzarem com pessoas infectadas era gigantesco. Ele precisava de qualquer
proteção que conseguisse. Foi até a barraquinha.
— Senhor — Gilberto disse ao vendedor –, preciso de máscaras e luvas como
as suas. Você tem mais algumas para vender?
— Como é que é, doutor? — perguntou o senhor, sem entender a pergunta em
meio ao barulho da rua.
Gilberto, que sempre fazia alguma piada quando acertavam seu título de
“doutor” sem saber, desta vez deixou passar a oportunidade. Ele sacou duas notas
de cinquenta reais que tinha em sua carteira e mostrou ao vendedor.
— Preciso de dez máscaras e dez pares de luvas como as suas.
— Claro, deixa eu pegar aqui — respondeu o vendedor, de súbito dotado de
uma audição impecável, capaz de compreendê-lo com perfeição.
Demoraram mais de meia hora para conseguir embarcar no trem da estação São
Judas, mas tudo ocorreu conforme esperado. Chegaram à estação Paraíso, onde
tiveram que sair da linha azul para embarcar na linha verde, e a situação estava
caótica. Não era incomum a estação Paraíso estar lotada em dias normais, assim
como toda forma de transporte público de São Paulo, no entanto não havia nada de
normal no segundo dia daquele ano. As pessoas se amontoavam de tal forma na
área de embarque que as escadas rolantes que levavam à plataforma subterrânea
tiveram de ser desligadas, evitando que os cidadãos fossem empurrados num efeito
dominó em direção aos trilhos. Como os vagões dos trens já chegavam cheios à
estação, a quantidade de pessoas que conseguia embarcar a cada passagem era
muito inferior a que chegava à estação, piorando cada vez mais a superlotação na
área de embarque.
Pietro aguardava na plataforma com o resto do grupo e sua tensão só não era
maior graças à sabedoria de seu irmão ao comprar aquelas máscaras e luvas, o que
diminuía o risco de serem infectados. Porém, ainda podiam ser infectados por
mordidas, mortos por pisoteamento, tiros ou outras fatalidades que não pareciam
improváveis no cenário em que se encontravam. Com a superlotação daquele lugar
e limitadas possibilidades de fuga, o militar sentia-se segurando uma granada sem
o pino de segurança, sem saber quando ia explodir. Qualquer infectado que se
tornasse agressivo ali dentro, um louco tentando aproveitar-se da situação caótica
para furtar alguém ou qualquer outro evento que adicionasse tumulto à situação,
seria catastrófico. Apesar das preocupações, Pietro tinha certeza de que o caminho
subterrâneo era mais seguro que percorrer toda a distância até o hospital a pé.
Gastaram mais de uma hora para chegar perto dos trilhos, onde poderiam tentar
a sorte quando o trem parasse. Estavam tão focados em abrir caminho até a área de
embarque, que não perceberam um senhor de sessenta e poucos anos passando mal
logo à frente deles.
O senhorzinho tinha pouco mais de um metro e meio de altura, estava com a
camisa molhada por baixo de seu casaco, suando de febre e sentindo a maior dor de
cabeça da sua vida. A dor latejante em seu ombro também era forte, mas ao menos
escapara com vida do ataque que sofrera na rua horas antes, no qual um mendigo
avançou sobre ele sem motivo algum, mordendo seu ombro direito. Durante as
duas últimas horas só conseguiu pensar em seu neto, que o esperava na casa dos
pais para irem juntos ao parque infantil inaugurado em um shopping. A
concentração de pessoas era tão grande que ele estava praticamente encostado na
mulher à sua frente. Essa vaca tinha que passar esse perfume de açúcar pra pegar
o metrô?, xingou mentalmente o senhorzinho, enjoado com o perfume adocicado
da mulher. Seus pensamentos estavam embaralhados, o que ele associou à alta
febre que sentia. Tinha certeza de que, se tivesse um termômetro, confirmaria que
sua temperatura corporal estava acima dos 40º C. Sentia uma vontade quase
incontrolável de empurrar a vaca à sua frente e derrubá-la no vão do trem. A cena
não parava de repetir em sua cabeça: a mulher indefesa caindo sobre os trilhos
segundos antes do trem passar por cima do seu tórax, explodindo-a como um
tomate podre. Depois que o trem fizesse seu estrago, ele pularia atrás dela. Talvez
sobrasse uma perna ou um braço inteiro lá embaixo para ele pegar e roer até o
osso. Ela parecia macia, a mulher. Sua carne aparentava ser tão quente e macia...
Gustavo foi o primeiro a perceber o que estava acontecendo, mas não havia
muito o que ele pudesse fazer. Por cima do ombro de Letícia viu aquele pequeno
senhor olhando para trás com seu os olhos vermelhos como sangue. Instantes
depois, o senhorzinho saltou sobre as costas da mulher que estava à sua frente e
mordeu seu pescoço.
O grito da mulher foi tão alto, estridente e carregado de dor, que silenciou toda
a estação de metrô por um breve momento, antes que o pânico se instaurasse e
tomasse conta das pessoas que aguardavam o trem. Pessoas corriam na direção
oposta do homem que atacava aquela mulher, mas, quando André e Letícia
puxaram seus filhos para fazer o mesmo, depararam-se com Pietro mantendo sua
posição com a mão sobre a arma oculta por baixo de sua camisa.
— Essa é a nossa chance de embarcar — disse Pietro, sem tirar os olhos do
infectado. — Não vamos fugir agora.
Quando o tumulto à frente de Pietro se desfez, desobstruindo sua linha de tiro
contra o agressor da mulher, já era tarde demais para salvá-la. A coitada estava
deitada de bruços no chão e o sangue se esvaía pela ferida em seu pescoço. O
agressor estava de pé sobre ela, pisando em sua nuca e olhando para todos os lados
buscando sua próxima vítima.
Gilberto olhou à esquerda e viu o trem se aproximando. O vácuo de pessoas que
se formou redor do senhorzinho assassino era espaço suficiente para que os
integrantes do grupo de Santos pudessem passar e entrar no trem que chegava.
— Deem a volta nele e entrem, vamos! — ordenou Pietro, mantendo o duelo de
olhares ferozes com o monstro a sua frente. — Se ele reagir, eu atiro.
Pietro continuou parado, olhando para o senhor franzino que rosnava feroz,
defendendo sua presa abatida. Em guarda, podia sentir a linha imaginária que
demarcava o território da criatura. Se alguém ousasse se aproximar demais do
homem e sua presa, seria atacado, forçando Pietro a disparar com sua Glock e
causar um tumulto ainda maior, correndo o risco de envolverem a segurança do
metrô e suspenderem as atividades do trem até que a polícia intervisse.
Gilberto, Gustavo, André, Letícia e seus filhos passaram em volta do homem
apressadamente, tomando cuidado para seguir as instruções de Pietro. O professor
segurava a porta do trem, garantindo que ela não fechasse e separasse o grupo
antes que todos estivessem do lado de dentro.
Pietro caminhava de lado para embarcar sem tirar os olhos do homem até algo
mais importante chamar sua atenção. Um grande alvoroço se formou em meio à
plataforma, entre as pessoas que fugiam do homem infectado e outras que não
tinham visto o incidente e queriam desesperadamente entrar no trem. Como Pietro
estava de costas para as escadas, não tinha percebido a magnitude da confusão até
o momento em que pisou dentro do trem, ficando de frente para as pessoas que se
empurravam e brigavam entre si para seguir em direção à porta aberta.
Gilberto liberou a porta, que se fechou. A manada de homens e mulheres
estourou em direção à porta fechada do trem, derrubando e pisoteando quem
tentava ir em sentido contrário. O próprio senhor infectado foi atropelado pela
multidão após atracar-se com o primeiro infeliz que se aproximou de seu território.
O trem começou a se mover, mas as pessoas continuaram batendo na porta e
tentando abri-la. Pietro só tirou a mão de sua arma quando o metrô saiu da
plataforma, entrando na escuridão do túnel subterrâneo.
Jorge e Carlinhos chegaram ao bairro de Paraisópolis por volta do meio dia. A
estrada e a cidade estavam movimentadas, mas aquele trecho do percurso foi
tranquilo em comparação ao começo da serra. A Honda XRE preta e com motor de
300 cilindradas que “emprestaram” dos guardas da reserva florestal também
facilitou a viagem. Aquela moto era um avião se comparada com a lata velha que
tinham roubado em Santos e abandonado na Rodovia Anchieta.
Ao aproximar-se da casa de seu cunhado, Jorge parou a moto na rua, alguns
metros antes do portão. Apesar de achar pouco provável que a polícia se desse ao
trabalho de buscar a motocicleta furtada num lugar desses, Jorge preferiu prevenir
e evitar se incriminar caso tivesse o azar de um policial encontrá-la.
Caminharam até o portão e tocaram a campainha. Era uma casa humilde, mas
com amplo espaço para Edmir e Jussara criarem os filhos que pretendiam ter um
dia. O portão era feito de uma grade metálica e a casa era cinza por fora, sem
pintura. Edmir tinha comprado a tinta para pintar tudo por conta própria, mas vivia
reclamando da falta de tempo e disposição para fazê-lo. Jorge ouviu seu cunhado
rindo de alguma coisa na cozinha, atrás de uma janela aberta na lateral direita da
casa. Tocou a campainha e esperou até que Jussara apareceu na porta da frente.
— Jorge! — exclamou a mulher, caminhando pela garagem até eles —
Finalmente você chegou.
Enquanto Jussara abria o portão, Marlene já estava na porta da frente, ansiosa
para rever seu marido. A mulher grávida passou o dia todo apreensiva, pois não
paravam de noticiar coisas horríveis sobre os acontecimentos em Santos desde a
manhã passada, sem que conseguisse contato com Jorge pelo celular para saber se
ele estava chegando a São Paulo.
Assim que o portão foi aberto Jorge foi direto abraçar sua esposa. Ela tentava
demonstrar que estava brava com ele, contraindo os lábios e desviando seu olhar,
mas ele sabia que ela também estava feliz em revê-lo. Abraçou-a com força,
tomando cuidado para não apertar demais o filho em sua barriga, e ela retribuiu o
gesto. Após alguns segundos Marlene começou a chorar, soluçando.
— Você tem noção de como fiquei preocupada? — perguntou a mulher.
Jussara, querendo dar um pouco de privacidade aos dois, fez um sinal para
Carlinhos e os dois entraram na casa, deixando o casal a sós na garagem.
— Está tudo bem, Má — disse Jorge, com sua voz grave. — Desculpe por não
ter ligado, mas perdi meu celular.
— Caramba, Jorge! — desabafou Jussara. — Com tudo isso que está
acontecendo, você me perde o celular?
Jorge franziu as sobrancelhas, demonstrando que não estava certo do que ela
queria dizer com “tudo isso que está acontecendo”, afinal ela podia estar falando da
gravidez, das consultas no hospital em São Paulo, dos seus trabalhos suspeitos em
Santos ou...
— Você não viu o que está acontecendo lá embaixo?! — espantou-se a mulher.
— O mundo está acabando e eu não tenho como saber se você está lá no meio ou
se está bem, Jó!
Passou a ter certeza de que ela se referia aos malucos-infectados-zumbis-
canibais que, imaginava, teriam destruído metade de Santos a uma hora dessas.
— Meu amor, quando eu vi o que estava acontecendo fiz o que podia pra falar
contigo, mas só consegui falar com a Jussara. Disse pra vocês ficarem aqui que eu
ia subir... e subi.
Marlene deixou de lado suas preocupações e o abraçou novamente, mais forte.
Fosse o que fosse que ele estivesse fazendo antes, não era importante agora. Os três
estavam juntos e em segurança, longe de toda aquela loucura que acontecia em
Santos.

Talita estava assustada. Depois de tudo o que vivenciou na Serra do Mar e na


estação de trens, a menina só não caia em total desespero porque sentia o dever de
cuidar de seu irmão, o pequeno Pedro. Sua mãe fazia o que podia para protegê-los,
puxando-os para perto do seu corpo e evitando que eles vissem o que estava
acontecendo ao redor. Ainda assim, os relatos e comentários que a garota ouvia dos
outros passageiros eram assustadores.
Na primeira parada após a estação em que eles embarcaram, o trem parou, mas
não abriu as portas. A paciência das pessoas do lado de fora foi se esgotando com o
passar do tempo em que ficaram estacionados ali. Começaram a bater nos vidros
das portas e janelas, tentando abrir o vagão à força. Talita ouviu alguém
comentando sobre um homem ter caído nos trilhos à frente do trem, mas ela
tampou os ouvidos. Não queria escutar o resto da história. Assim que as pessoas do
lado de fora ficaram ainda mais violentas, chutando e atirando objetos contra os
vagões, o trem entrou em movimento, deixando-os para trás. Talita pressionou seu
rosto contra as costelas de sua mãe, evitando ver o que acontecia fora do vagão,
mas sua imaginação não podia ser ignorada. Numa cena talvez mais grotesca do
que a realidade, a menina imaginou o trem saindo da estação e deixando para trás
um rastro de sangue e partes do corpo destroçado do pobre homem caído nos
trilhos.
Apesar de não acreditar no anúncio vindo dos alto-falantes do trem, que disse
que “por problemas técnicos, não será possível o desembarque nas estações
Trianon Masp e Consolação”, não fez questão de saber o verdadeiro motivo de não
terem parado.
Seu pai pretendia seguir com sua família por mais duas estações, mas este plano
foi frustrado por um novo anúncio pelos alto-falantes que informou a todos que
aquela seria a parada final daquele trem e que todos deveriam desembarcar, sem
dar maiores explicações. Antes que André e Letícia pudessem discutir suas opções,
foram empurrados para fora do vagão quando as portas se abriram, junto da
multidão que se apressava em direção às escadas rolantes.
Pedro chorava descontrolado, soluçando por detrás da máscara hospitalar no
momento em que sua mãe puxou-o pelo braço pela plataforma da Estação das
Clínicas. Pararam na escada rolante.Talita virou-se para seu irmão e puxou sua
máscara para baixo, deixando ver seu rosto.
— Calma, Pedrinho. Logo mais a gente chega em casa e eu preparo um
Toddynho pra você. Podemos assistir o desenho que você quiser, combinado?
Desde que ele era um bebê, a garota tinha o dom de acalmar seu irmão. Aos
poucos seu choro escandaloso foi reduzido a suspiros e soluços.
— Não é melhor a gente seguir com eles, querido? — Letícia perguntou ao seu
marido.
André já pensava nesta possibilidade antes mesmo de serem forçados a sair do
trem. Por pior que tivesse sido a última noite, talvez nem estivessem vivos sem a
ajuda destas pessoas. Eles pareciam saber o que estavam fazendo e tinham um
plano de ir a um lugar seguro, o que não parecia ser algo fácil de encontrar nesta
situação.
— É a única alternativa. Estamos longe de casa e as ruas não são seguras —
disse o pastor, pegando a mão de seu filho e subindo pela escada rolante.
Eram aproximadamente seis horas da tarde quando chegaram ao topo das
escadas da estação de metrô das Clínicas. A Avenida Doutor Arnaldo estava à
esquerda do grupo e tinha suas oito faixas abarrotadas de carros e ônibus parados,
alguns deles desligados e com as portas abertas, abandonados. Havia um grande
hospital à direita do grupo, não muito distante.
Felizmente para eles não era o hospital aonde queriam chegar, pois a situação
ali era crítica. Um grupo de policiais tentava controlar um tumulto entre doentes e
seus familiares com os funcionários do hospital, em sua maioria seguranças
armados. Gilberto identificou de longe ao menos três focos de conflito físico, onde
parecia haver infectados atacando pessoas inocentes. Antes que qualquer um do
grupo pensasse no que deveriam fazer, viram bombas de efeito moral sendo
lançadas pelos policiais. Uma fumaça branca se espalhou pela calçada,
desencadeando o pânico e a correria entre os conflitantes, com exceção dos
infectados, que não pareciam se importar com os efeitos do gás lacrimogêneo.
Continuavam a atacar pessoas, mutilando e se alimentando à vontade.
— Rápido, vamos dar a volta no quarteirão — disse Pietro, optando pelo
caminho mais longo para passar longe do campo de guerra.
Ninguém contestou. Andaram apressados, percorrendo seis quarteirões sem
encontrar maiores ameaças até chegarem à rua lateral do hospital.
O sol começava a se pôr, deixando um tom avermelhado no céu. Tinham uma
longa subida até a rua da entrada principal e estavam cansados da exaustiva
jornada da noite anterior, portanto caminhavam mais devagar neste trecho. Alguns
metros à frente avistaram uma entrada que parecia ser destinada aos funcionários
do hospital. Antes de chegarem lá, viram um homem virar esquina adiante, há uns
cinquenta metros do grupo.
Era um homem forte, vestindo um macacão de mecânico ensanguentado, com
todo o lado direito de seu rosto dilacerado por mordidas e seu olho direito caído
fora da órbita, pendurado pelo nervo óptico e balançando conforme andava. Pouco
após o avistarem, o grupo também foi percebido por ele, sem dar-lhes tempo de
pensar se deveriam se esconder, lutar ou correr em retirada. O homem rugiu feroz e
começou a trotar na direção deles. Momentos depois, outros infectados viraram a
esquina, atraídos pelo rugido emitido pelo primeiro homem, e também dispararam
em sua direção.
Se corressem até a entrada lateral, Pietro calculou, chegariam poucos segundos
antes do grupo de infectados vindos da direção oposta, favorecidos pela inclinação
da rua. Não sabia se a entrada lateral estaria aberta, bloqueada ou mesmo se
encontrariam mais infectados ali, deixando-os cercados e sem chances de
sobrevivência. Optando pela estratégia mais segura, virou-se ao seu grupo e disse:
— Temos que fugir! Vamos buscar abrigo na rua debaixo.
Pietro certificou-se de expressar urgência, mas sem transparecer pânico na voz.
Ao observar seus companheiros, notou o desespero em seus olhares, especialmente
da família de André. Resolveu olhar para as crianças e dizer: — Eles são mais
lentos e mais burros que a gente. Vamos ficar juntos que vai dar tudo certo.
Letícia estava pálida. Ainda sofria com os efeitos da quimioterapia,
amplificados pela privação de sono, esforço físico e estresse a que fora submetida
no dia e na noite anterior. Respirava fundo, repassando em sua mente um dos
versos bíblicos que se tornara seu mantra nesses tempos de dificuldades: “...em
toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou
passando necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece.” André pegou Pedro
no colo e Gustavo deixou que Talita subisse em suas costas, de cavalinho. Todos
correram em retirada.
Ao chegarem à rua de baixo, viraram à direita e continuaram correndo. Pietro
olhou para trás e viu que estavam ganhando distância dos infectados. Sacou sua
arma, apontou e disparou um tiro na direção do bando, acertando o macacão do
mecânico na altura da coxa, derrubando-o à frente dos demais e ganhando mais
tempo para o grupo fugir.
Continuaram correndo até avistarem um boteco de bairro com as luzes acesas e
seis infectados tentando forçar a entrada. Uma porta sanfonada de ferro, que descia
do teto até o chão da entrada do estabelecimento, estava deslocada das corrediças
laterais, deixando espaço para que os intrusos passassem suas mãos e puxassem
violentamente a porta, deslocando-a ainda mais e abrindo passagem aos poucos.
Pietro tomou a frente do grupo, correndo em direção ao bar. Ao aproximar-se
dos invasores, fez sinal para que os demais parassem atrás dele. Mais próximo da
entrada pôde ver sobreviventes do lado de dentro lutando para puxar a porta de
volta, vencidos pela força física e incansável perseverança dos que estavam do lado
de fora.
O capitão apontou sua arma e disparou o primeiro tiro, acertando as costas de
um dos infectados. O homem atingido caiu para frente, fraquejando nas pernas,
mas ainda assim agarrado à porta e tentando puxá-la.
Os demais pararam o que estavam fazendo e viraram para trás, mostrando os
dentes serrados e sujos de sangue, como um bando de lobos que tiveram sua
refeição interrompida. Pietro disparou o segundo tiro na testa de uma mulher de
meia idade com roupas de academia, fazendo-a desfalecer instantaneamente. Com
isso, todos os outros infectados vieram contra o grupo. Pietro atirava em um atrás
do outro, sempre mirando no que estava mais próximo de alcançá-los, enquanto
Gilberto, André e os demais recuavam em passos lentos, indefesos e com medo do
que poderia acontecer se Pietro não desse conta de tantos infectados.
O último dos agressores, uma senhora de sessenta anos, alcançou Pietro antes
que ele pudesse disparar. O experiente combatente deu um rápido passo à direita e
aplicou-lhe um chute frontal na costela, fazendo-a rolar pelo chão. Pietro caminhou
em sua direção e, quando ela tentava se levantar, pisou em seu peito, fazendo-a
bater com força a parte de trás da cabeça no chão e desmaiar. Todos já respiravam
com certo alívio quando Pietro apontou sua arma e disparou um tiro certeiro na
testa da senhora desmaiada.
Gilberto correu em sua direção e sussurrou:
— Isso não era necessário, Pietro! Ela estava desmaiada.
Pietro trocava o pente vazio de sua Glock por um carregado, sem desviar o
olhar de sua arma.
— Isso era extremamente necessário... — com a arma recarregada Pietro puxou
o ferrolho, deixando uma bala na agulha. — Ela ia acordar e tentar abrir a porta de
novo, chamando mais atenção para nós.
Três infectados viravam a esquina. Eram aqueles que os seguiam desde a
entrada do hospital, mas não eram todo o bando. Os outros devem ter se
dispersado, pensou Pietro.
— Rápido — um homem gritou de dentro do bar –, entrem!
Enquanto os demais buscavam abrigo no bar, Pietro eliminou um a um os
infectados que se aproximavam. Não podia deixar aqueles malditos trancados para
fora — iam ficar batendo na porta e chamando mais atenção do que precisavam.
Com a rua novamente silenciosa, o capitão caminhou em direção ao boteco. A
porta deslocada foi totalmente aberta e revelou um homem corpulento, com um
boné que escondia seu rosto na penumbra, e um garoto de quinze anos de idade ao
seu lado, aparentando estar quase tão assustado quanto o pequeno Pedro.
— Venham! — disse o homem de dentro do bar. — Ajudem a fechar a desgraça
dessa porta.
Assim que todos estavam no bar, Pietro, Gilberto e André ajudaram o homem a
colocar a porta no lugar e fechá-la. O homem trancou-a com um grande cadeado e
levantou-se, olhando para o grupo e revelando seu rosto cansado, com um
desajeitado cavanhaque.
— Meu nome é Heitor. — disse o homem corpulento, passando o olhar pelos
integrantes do grupo e, em seguida, apontando para o garoto que estava com ele.
— Esse aqui é meu filho, Marcelo. Obrigado pela ajuda lá fora. Vocês são bem-
vindos aqui enquanto precisarem.
— Obrigado, Heitor — disse Pietro, estendendo a mão e cumprimentando-o. —
Meu nome é Pietro. Eu e meus amigos estamos exaustos e precisamos de um lugar
para passar a noite. Tem certeza que este lugar é seguro?
O homem ajeitou seu boné, revelando a total ausência de cabelos debaixo dele.
— Acho que sim, considerando a situação... — disse Heitor. — Estávamos
escondidos aqui a tarde toda, mas meu filho derrubou umas panelas e estes animais
vieram chutando e tentando derrubar nossa porta. Bem, eles quase conseguiram. Se
muitos deles se juntarem, eles conseguem derrubar qualquer coisa.
— Talvez se apagássemos as luzes... — Gilberto começava a sugerir até ser
interrompido por Heitor.
— Claro, claro. Dá pra ficar nos depósitos, lá nos fundos, passando por aquela
porta, ou subindo aquela escada — disse o homem, apontando a uma porta e uma
escada nos fundos do pequeno bar. — Podem ir enquanto eu verifico mais uma vez
esta porta e apago tudo por aqui. Fiquem à vontade se quiserem comer ou beber
algo, sem fazer barulho ou acender as luzes.
O grupo se dividiu entre o depósito térreo e o sótão, ambos igualmente
pequenos e abarrotados de caixas de alimentos e bebidas. Os infectados que os
tinham seguido desde o hospital agora vagavam pela rua, procurando-os. Os
sobreviventes estavam tão exaustos que mesmo que tivessem que dormir numa
cama de pregos, ouvindo os gemidos e grunhidos dos malditos, estariam
agradecidos por ter um abrigo pela noite.
8 - Quebrada
Zezé dirigia seu Kadett preto, subindo a Avenida Giovanni Gronchi em alta
velocidade. O equipamento de som de quatro mil reais que equipava o carro seguia
desligado. Dois passageiros e ele, os únicos sobreviventes de sua gangue, tentavam
se recompor da fuga do massacre em Osasco.
— Que merda foi aquela, mano? — perguntou Casca, rompendo o silêncio com
a voz grave que combinava com sua aparência carrancuda e intimidadora. —
Quem eram aqueles filhos da puta?
— Mano — disse Edu, sentado no banco de passageiro –, é essa treta que estão
falando por aí, Superraiva ou sei lá que bosta de doença. Deixa o cara loucão, que
nem os filhos da puta que invadiram nossa quebrada.
— Não só a nossa quebrada, Edu — interrompeu Zezé –, toda a comunidade foi
tomada. Tinha mais de cem daqueles filhos da puta, correndo pra tudo o que é lado
e matando geral.
— Puta merda — disse Casca –, eles pegaram todo mundo.
— Foda-se todo mundo, porra! — irritou-se Edu. — A merda é que o caipira
ficou com a grana e todo nosso pó.
— Quase todo. — disse Zezé, repousando sua mão direita sobre a mochila em
seu colo. — Não é o suficiente pra levantar a grana que precisamos pra pagar o
Don, mas vamos pensar em algo...
Zezé diminuiu a velocidade do carro e embicou em uma entrada à direita, numa
lanchonete vinte e quatro horas.
— Que que você está fazendo, mano? — perguntou Edu.
— A gente precisa parar e pensar — resmungou Zezé.
— Porra, a gente tá fugindo dos filhos da puta e você quer comer um x-
burguer?
— A gente já fugiu daqueles filhos da puta, Edu — respondeu Zezé –, e eu tô
com fome.

De pé sobre o parapeito à beira da Estrada Velha de Santos, Jorge encarava a


escuridão do abismo àsua frente. Atrás de si, a Serra do Mar estava silenciosa,
exceto pelo suave som da seda do cigarro sendo incinerada.
— ...uma segunda chance, meu irmãozinho — disse Carlinhos, expelindo a
fumaça de seu pulmão. — O que parece o fim do mundo pra eles é um prêmio de
loteria pra gente.
Contudo, Jorge não parecia se importar com a epifania de seu amigo. Toda sua
atenção se voltava ao abismo que encarava. O silêncio da mata foi gradualmente
substituído por um ruído indecifrável, como se uma mudança de ventos trouxesse
ecos distantes e, até então, imperceptíveis.
— Você sabe o que tem que fazer, não sabe, meu irmãozinho? — perguntou
Carlinhos, colocando-se ao seu lado sobre o parapeito da beira da estrada. —
Quando chegar o momento em que for tudo ou nada, nós ou eles, você sabe o que
fazer?
Ao olhar para o lado, Jorge não encontrou seu amigo. A silhueta de Carlinhos
desaparecia em meio à escuridão da queda.
Agora os ecos pareciam vir de baixo. O murmúrio constante dos malditos. Eles
eram muitos e pareciam mais próximos.
Olhou uma última vez para o abismo, questionando o que poderia estar lá
embaixo, fitando-o de volta. Aos poucos percebeu que as mesmas trevas do fundo
do abismo começavam a envolvê-lo também.

Jorge acordou com a sensação de estar caindo. Assustado, sentou-se na cama e


passou algum tempo tentando controlar sua respiração acelerada, na busca por
compreender seu sonho, até sons de sirenes o chamarem de volta à realidade.
Viaturas de polícia pareciam estar a no máximo dois quarteirões da casa de seu
cunhado.
Levantou-se silencioso, tomando cuidado para não acordar sua esposa. Saiu
pela porta do quarto e foi até a sala, onde encontrou Carlinhos olhando pela janela
da frente.
— O que tá pegando, meu irmão? — perguntou Jorge.
— Lembra quando a gente achou que tava de boa aqui, longe de tudo o que
aconteceu na serra? — perguntou Carlinhos, tentando esconder seu medo com
ironia. — A gente errou feio.
Quando Jorge aproximou-se da janela, a primeira coisa que chamou sua atenção
foi uma grande torre de fumaça que subia ao céu, longe de Paraisópolis, mas de
magnitude impressionante. Como estavam em uma região alta do bairro, ele pôde
ver algumas viaturas de polícia e ambulâncias passando apressadas pelas ruas de
baixo, com suas sirenes ligadas.
— Cara, falei pra ti que na nossa quebrada a gente ia estar mais seguro —
desabafou Carlinhos, coçando a cabeça nervoso.— Celso deve ter transformado a
oficina numa fortaleza anti-zumbi numa altura dessas.
— Fortaleza anti-zumbi? Cê tá louco, mano? — Jorge achava aquela ideia
ridícula, apesar de ser inegável que Celso tinha homens e poder de fogo suficiente
para travar uma verdadeira guerra. — Não dá pra segurar as pontas contra esses
filhos da puta por muito tempo no meio da favela. Se isso é contagioso do jeito que
tão falando, imagina o tanto de maluco que tá em volta da oficina numa hora
dessas. Isso sem contar os nóias que vão aproveitar a falta de polícia pra tocar o
terror.
— Se for assim, a gente tá ainda pior aqui no meio de Paraisópolis —
raciocinou Carlinhos –, dois otários armados de trinta e oito pra defender uma casa
no meio da porra da favela. Tá ligado a terra de ninguém que vai virar isso aqui?
Jorge pensou por um momento. De forma excepcionalmente irritante, Carlinhos
estava certo. Não estavam seguros ali.
— A gente tem que fortificar a casa ou vazar daqui — sugeriu Carlinhos. — Só
não sei pra onde a gente pode ir.
— O hospital! — lembrou Jorge. — O doutor disse que a mulher dele está num
hospital, que os funcionários trancaram tudo e transformaram em um lugar seguro.
Além disso, aqueles caras sabem o que tá acontecendo. É a melhor opção.
Carlinhos não demonstrou estar totalmente convencido de que era uma boa
ideia, mas não tinha nada melhor a propor.
Edmir saiu do quarto procurando pelos dois. Ao vê-los parados na sala escura,
ligou a luz e disse: — Jussara está lá fora! — a urgência em sua voz deixava
explícita sua preocupação. — Ela está no turno da noite na lanchonete. Não
consigo falar com ela de jeito nenhum... Que diabos está acontecendo?!
— Olha, eu acho que a gente não tá seguro aqui... — dizia Jorge quando sua
esposa abriu a porta do quarto. — Antes de qualquer coisa, vamos buscar Jussara
na lanchonete. Depois a gente decide pra onde ir, mas vamos todos juntos!
Foram vestir suas roupas e se preparar para sair. Enquanto explicava a situação
a Marlene, Jorge vestiu-se com roupas limpas que seu cunhado emprestou. Por
sorte, Edmir tinha uma camiseta que era muito grande para ele, portanto ficava só
um pouco justa no tórax de Jorge. Calçou seus tênis, pegou o telefone e discou o
número do cartão que Gilberto lhe dera.
Após quatro toques, ouviu uma voz sonolenta do outro lado da ligação: — Alô?
— Bom dia, Doutor Soneca! — disse Jorge — Eu liguei numa má hora?
— Quem está falando? — respondeu Gilberto automaticamente, ao verificar e
não reconhecer o número de quem ligara. — Jorge?!
— Bingo! — Jorge riu, tentando esconder sua ansiedade — Queria saber como
está o tratamento no hospital-hotel cinco estrelas em que vocês se hospedaram.
— As coisas estão um pouco complicadas por aqui, meu amigo. Há muitos
infectados na frente do hospital. Nos refugiamos em um bar para passar a noite e
vamos tentar novamente pela manhã — explicou Gilberto –, mas o hospital
continua seguro. Consegui falar com minha esposa e está tudo bem.
— Firmeza — respondeu Jorge. — Passa o endereço de onde estão, que vamos
até vocês. Podemos nos ajudar.

Desde criança, Zezé adotou aquele apelido. Odiava seu nome de registro,
Ezequiel. Odiava esse nome bíblico, velho e que lembrava constantemente de
como sua mãe o batizou na esperança de que ele seguisse os passos de seu
trabalhador e honesto avô. Ao menos, decepcionara somente metade das suas
expectativas: sempre fora um homem dedicado ao trabalho desonesto.
Sentado à mesa com seus parceiros, comendo um farto x-bacon e uma porção
de fritas, Zezé finalmente podia ouvir seus pensamentos. Todas as mortes que
presenciara, todo o caos que se escalava e prometia calamidades de proporções
nunca antes vistas e todo o sofrimento à sua volta não apresentavam qualquer
relevância para ele. Com a adrenalina baixando e seu apetite saciado, Zezé
retomava seu foco e as ideias se apresentavam em sua mente. Ideias de como
aproveitar a situação a seu favor.
Zezé pegou o copo de papel e sugou longos e ininterruptos goles de refrigerante
pelo canudo colorido até acabar com o líquido. Repousou o copo sobre a mesa e
disse: — Sabem, é uma merda o que aconteceu com os manos da nossa quebrada,
mas nós ainda estamos aqui. Mesmo depois de comer a merda que o diabo
amassou nos últimos anos, repassando o pó do Don pra ganhar uma mixaria,
enquanto ele ficava no palácio dele enchendo o cu de dinheiro, nós ainda estamos
aqui, tão me entendendo? Nós ainda estamos aqui.
Casca e Edu assentiram, concordando com o inesperado desabafo do chefe.
— As coisas serão diferentes agora. Com tudo o que está acontecendo, Don não
vai vir atrás da gente.
— Não sei, Zezé — disse Edu. — Ele não vai deixar passar alguém devendo
tanta grana pra ele. O Don não perdoa.
— Mano, o Don não vai viver por tempo suficiente pra vir atrás da gente, com
essa merda toda que tá rolando. Se tiver muita sorte e sobreviver, a maioria do
pessoal dele não vai ter tanta sorte. E por que a gente se preocuparia com o Don
sem o exército dele?
Casca e Edu deram de ombros, sem ter o que responder. Foi o suficiente para
que Zezé se desse por satisfeito e continuasse seu raciocínio: — Sabem o que
reparei no caminho pra cá? — Zezé falava enquanto abria sua mochila e buscava
algo dentro dela. — Ao mesmo tempo em que a gente fugia daqueles desgraçados
que estavam fazendo um banquete na nossa comunidade, a gente rodou mais de
vinte quilômetros em um carro todo fodido, lavado com o sangue dos filhos da
puta que a gente atropelou. Tem um braço decepado pendurado na porra do para-
choques e ninguém parou a gente. Nem um puto de um PM, CET... Ninguém!
Zezé fez uma pausa para garantir que os dois estavam seguindo seu raciocínio.
Ele retirou da mochila um saquinho transparente, com cinquenta gramas de
cocaína. Com a boca, rasgou o canto da embalagem e despejou uma porção do pó
branco sobre a mesa.
— A polícia tá ocupada demais com os loucos que estão por aí, comendo uns
aos outros. — Com a ponta da unha do dedo mindinho, Zezé alinhou uma
carreirinha, debruçou-se sobre a mesa e inspirou o pó de uma só vez. — A
CIDADE É NOSSA, PORRA!
Um funcionário da lanchonete estava esvaziando uma lixeira perto da mesa dos
três, e Zezé fixou os olhos sobre o rapaz no mesmo instante em que ele olhava de
volta. O filho da puta do faxineiro tá me encarando, pensou.
Zezé colocou sua mão novamente dentro da mochila, desta vez retirando dela
uma pistola-metralhadora automática, modelo Mini-Uzi. Levantou-se de sua mesa
e caminhou em direção ao rapaz, que largara o saco de lixo no chão e olhava para
os lados, de súbito sem lembrar onde ficava a saída mais próxima.
Sem dizer uma palavra, Zezé ergueu sua arma e disparou uma rajada de cinco
tiros contra o peito do infeliz, morto antes mesmo de cair no chão. Com a arma ao
lado do corpo, Zezé caminhou devagar até o caixa.
Casca e Edu se entreolharam, compreendendo o significado de “a cidade é
nossa”. Eles eram os filhos da puta mais sádicos do bairro, armados até os dentes e
sem ninguém que pudesse pará-los. Sem precisar se segurar ou ter medo das
consequências de seus atos, eles se levantaram, decididos a fazer o que lhes desse
na telha dali em diante.
Casca foi até uma mesa do outro lado do salão, onde estavam os únicos clientes
da lanchonete àquela hora da madrugada. O casal se assustara com os tiros da Uzi,
mas tiveram medo de tentar fugir e serem baleados, então ficaram ali. Casca
chegou esculachando a moça com tapas e xingamentos, ordenando que
entregassem suas carteiras. O homem tentou impedir a agressão e recebeu um soco
no rosto, fraturando seu osso malar.
Desde que chegaram ali, Edu estava de olho em uma das funcionárias da
lanchonete, dona de um corpo atraente. Quando Zezé disparou sua arma, Edu viu
ela se esconder em um dos banheiros. Com um sorriso de orelha a orelha, levantou-
se e a seguiu, pensando uma lista das perversidades que faria com ela antes de
cortar sua garganta.
Zezé estava encostado no balcão, com sua arma apoiada sobre a caixa
registradora e a satisfação estampada no rosto. Olhou para trás e viu seus amigos se
divertindo. Voltou sua atenção aos funcionários do outro lado do balcão e disse,
com a maior naturalidade do mundo: — Eu quero um milk shake de chocolate e
todo o dinheiro dos caixas. As suas carteiras também.

No caminho até a lanchonete, Jorge viu pelo menos meia dúzia de incidentes
em que pessoas precisavam de ajuda — uma padaria sendo assaltada, pessoas
atacadas na rua e barracos pegando fogo no meio da favela –, mas não reduziu a
velocidade de sua moto em nenhum momento.
Sabia que estava se arriscando, indo com sua esposa grávida ao resgate de sua
cunhada, para somente depois encontrar o grupo que lhe providenciaria refúgio,
porém não podia negar ajuda ao seu cunhado neste momento — Jorge devia ao
menos isso, após tudo o que Edmir fez para lhe ajudar — e não tinha outra
alternativa quanto à Marlene. Deixá-la esperando em casa seria ainda menos
seguro que rodar com ele pelas ruas de Paraisópolis ao Morumbi.
Jorge identificou a lanchonete ao ler os grandes números em sua fachada: 25 17.
Quando ia subir na calçada com a moto para entrar no estacionamento da
lanchonete, um Kadett preto veio no sentido oposto, saindo em alta velocidade e
cantando pneu. O som do carro tocava música num volume tão alto que fazia
vibrar suas janelas fechadas.
Pego de surpresa, quase não percebeu as escrachadas manchas de sangue no
capô do veículo que passou ao seu lado. Ao dar-se conta deste detalhe, olhou para
trás, mas o Kadett já estava longe, descendo a avenida.
Jorge estacionou a moto roubada que dirigia e perguntou se Marlene estava
bem. Ela assentiu com a cabeça, perturbada com tudo o que viram pelo caminho.
Edmir os alcançava em sua moto, com Carlinhos na garupa.
Edmir largou seu capacete no chão do estacionamento e correu em direção à
porta lateral da lanchonete, deixando que Carlinhos estacionasse a moto.
Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver os rastros da carnificina. Um
homem caído em frente à porta tinha o rosto tão desfigurado que era impossível
identificar uma cabeça, mas apenas uma massa disforme de carne e ossos acima
dos ombros. Cadê a Jussara?!, desesperava-se Edmir. Mais à frente, uma moça
estava debruçada sobre a mesa ensopada em seu próprio sangue, ao lado de um dos
funcionários, caído ao chão com diversos buracos de bala espalhados pelo peito.
Edmir nunca tinha visto um morto antes, exceto por um ou outro velório ao
longo de sua vida, mas em todas as ocasiões os defuntos estavam limpos,
costurados, maquiados e serenos como anjos de Deus. Estas pessoas aqui tinham
expressões de terror e desespero em seus rostos, com a exceção do homem caído
aos seus pés, que era incapaz de exibir qualquer expressão que não fosse a imitação
grotesca de uma massa de pão feita com fermento demais, posto em uma assadeira
muito pequena.
Em qualquer outra ocasião, o panorama brutal da carnificina e sanguinolência
deixariam Edmir em estado de choque, mas ele sentia algo mais forte que repulsa
ou instinto de autopreservação. Sua esposa deveria estar ali, talvez ferida e
precisando de ajuda. Precisava encontrá-la!
— Jussara! — gritou, passando sua perna sobre o cadáver no chão e disparando
em direção à cozinha.
Jorge, Marlene e Carlinhos chegaram ao interior da lanchonete e viram todo o
registro da chacina que houvera ali ao mesmo tempo em que ouviram o choro de
dor e desespero.
Na cozinha, os três se depararam com Edmir agachado sobre Jussara, chorando.
Tentava acordá-la, inutilmente. Ela tinha um buraco de bala na testa, assassinada a
sangue-frio.
Jorge não conseguia compreender. Jussara estava saudável ao sair de casa e seu
corpo não aparentava nenhuma mordida, não podia ter se transformado em um
daqueles monstros. Por que alguém faria uma atrocidade dessas com alguém que
não está infectado?
Pelo mesmo motivo que as pessoas sempre fizeram esse tipo de merda uns com
os outros, antes de existir qualquer Superraiva ou Febre Vermelha, Jorge
respondeu a si mesmo. A polícia estava correndo atrás dos infectados, tentando
conter a situação incontrolável e deixando as ruas livres para todo o tipo de
maníacos que quisesse expressar sua verdadeira aptidão.
— Eles assaltaram a lanchonete. — Carlinhos constatou, apontando para as
caixas registradoras com as gavetas abertas e vazias.
Edmir não parecia dar atenção a nada além do corpo envolto em seus braços.
Jorge chamou sua esposa para o outro lado do balcão e disse: — Má, eu sei que ela
era sua amiga e que o que eu vou dizer agora é a última coisa que seu irmão vai
querer ouvir, mas... a gente precisa ir embora daqui. A gente precisa sair deste
bairro agora!
— Jó! Como você pode falar uma coisa destas? A Jussara está morta! O que a
gente faz com ela?
— Amor, a gente não pode fazer nada por ela. Você viu a situação lá na rua.
Isso está se espalhando rápido e cada segundo aqui é um risco pra você e o bebê.
Eu não posso deixar nada acontecer com vocês.
Marlene pôs a cabeça entre as mãos e fechou os olhos, soterrada pelo turbilhão
de emoções que sentia: perda, medo, raiva, desespero e, subitamente, desconfiança.
A história se conectou em sua mente e, outra vez, foi tomada pela desconfiança de
seu marido. Ela amava-o incondicionalmente, mas não era cega. Sabia que ele
estava fugindo da polícia, e toda esta pressa para ir embora deste local podia muito
bem ser por causa da possibilidade de uma viatura policial aparecer ali a qualquer
momento.
Percebendo o familiar semblante de sua esposa desconfiada, Jorge se antecipou:
— Má, você não sabe pelo que passamos em Santos. Isso está fora de controle e
temos uma chance de buscar um lugar seguro. Confie em mim.
— Como eu posso confiar em você, Jorge? — desabafou. — Um foragido da
polícia! Você está com mais segredos de mim do que antes da gente casar. E já era
ruim naquela época!
— Marlene, eu tenho meus defeitos, mas não pense por um instante que eu me
colocaria acima da sua segurança... Eu me entregaria pra polícia agora, se isso
fosse garantir que você e nosso bebê estivessem seguros.
Marlene desatou a chorar e abraçou seu marido. Sabia que ele faria de tudo por
ela, e não conseguia amá-lo menos, apesar de todos os seus defeitos. Estava
decidida a seguir com ele e seu plano.
Carlinhos se aproximou dos dois, preocupado.
— Desculpem interromper, mas temos um problema.
— O que foi agora? — perguntou Jorge.
— O Edmir, ele tá ligando pra polícia — respondeu Carlinhos.
— Merda!
Jorge foi até a cozinha e viu Edmir sentado no chão, com o corpo de Jussara em
seu colo e o telefone celular na orelha, aguardando ser atendido.
— Edmir, me desculpe, mas a gente precisa sair daqui agora.
O homem de luto olhou para Jorge, enfurecido, mas não respondeu. Jorge
insistiu: — Meu irmão, você viu como as coisas estão lá na rua. Daqui a pouco
aqueles loucos chegam até aqui. A gente precisa ir pra um lugar seguro.
— Eu não sou seu irmão e vocês podem ir! — Edmir respondeu por entre os
dentes. — Eu vou cuidar da minha esposa, consolar a mãe e as irmãs dela. Vocês
vão embora!
— Edmir — disse Marlene –, não é seguro aqui...
— VÃO EMBORA! — gritou Edmir, abaixou a cabeça e voltou a chorar.
Marlene ajoelhou-se ao lado de seu irmão e o abraçou. Ele largou o celular no
chão, retribuiu o gesto e disse em seu ouvido: — Tenho coisas que preciso fazer.
Vocês podem ir embora, eu vou ficar bem.
— A gente ajuda — disse Jorge. — Podemos colocar ela em um dos carros do
estacionamento. Fica mais fácil pra levá-la onde você quiser.
Edmir ficou em silêncio por um tempo, olhando para o cadáver de sua esposa.
Então levantou-se e disse aos dois: — Podem ajudar?
Jorge e Carlinhos se entreolharam, então se posicionaram para levantar o corpo
de Jussara.
Marlene se afastou por um instante e Jorge se agachou para pegar os braços da
falecida, quando foi surpreendido por Edmir, que tomou a arma de sua cintura e
apontou-a em sua direção.
— Desculpe, irmã! — disse Edmir, com o rosto umedecido pelas lágrimas. —
Eu não tenho mais nada.
Edmir encostou o cano da arma contra sua própria cabeça e puxou o gatilho,
espirrando sangue e pedaços de cérebro sobre a máquina de milk shake.
9 - Homem Morto
Gilberto ainda estava acordado quando o sol nasceu, iluminando o depósito nos
fundos do bar por uma pequena janela de vidro fosco. O professor conseguiu
cochilar por algumas horas, vencido pelo cansaço acumulado durante os últimos
dias, mas acordou com a ligação de Jorge e não conseguira voltar a dormir.
Pietro também se mostrava desperto. Sentado ao seu lado, escrevia em um
pequeno caderno preto. Ao perceber que seu irmão acordara, guardou o caderno
em sua mochila e aproximou-se silencioso, como quem está prestes a contar um
segredo.
— Eu consegui contato com Alexandre, meu antigo companheiro do Exército.
— Pietro sussurrava para que somente seu irmão ouvisse, apesar do entusiasmo
com a notícia. — Por sorte nossa, ele está envolvido em alguma missão do
Exército relacionada à ameaça desta doença e ficou interessado nas informações
que temos. Ele entrará em contato no final do dia com um plano de extração.
— Isso é ótimo, Pietro! — entusiasmou-se Gilberto. — O hospital é o lugar
ideal para aguardarmos uma extração. Só precisamos de um plano para entrar lá.
— Estou pensando nisso — respondeu seu irmão. — Não será uma tarefa fácil
com todos estes malditos nas ruas. Vamos ver como está a situação lá fora.
No andar de cima acharam uma janela onde podiam ver a rua. Não havia
infectados ali por perto, uma preocupação a menos.
André e sua família tinham passado a noite no sótão. O pastor mexia numa
pequena televisão, que ele manteve em volume baixo, evitando chamar a atenção
de qualquer ser do lado de fora do Boteco do Heitor.
Passava pelos canais disponíveis, buscando notícias sobre a epidemia. O fato de
haver tantos canais seguindo com a programação normal, como desenhos ou
programas de agropecuária, fez com que ele suspirasse irritado, mas logo
conseguiu encontrar um noticiário que mencionava a doença. Abaixo do repórter
sensacionalista que fazia acusações de negligência das autoridades, uma legenda
dizia: A seguir: pronunciamento oficial do Governador do Estado de São Paulo.
André correu até a beira da escada e emitiu um discreto pssst, chamando a
atenção de Heitor, Marcelo e Gustavo, que ainda estavam no andar de baixo, e fez
um sinal para que eles subissem e ouvissem as notícias. Todos sentaram-se no chão
à frente do aparelho, enquanto o apresentador dizia:
O comunicado a seguir é um pronunciamento oficial do governador do Estado
de São Paulo, frente aos recentes acontecimentos no litoral do Estado e
proximidades, incluindo a capital paulista.
Logo em seguida, a familiar voz do Governador fez-se ouvir dentro do bar e de
todas as casas, veículos e estabelecimentos comerciais de São Paulo que tinham
um aparelho de televisão ou de rádio ligados em qualquer sintonia.

Cidadãos do Estado de São Paulo, é com grande pesar que decretei na


madrugada de hoje, dia 3 de janeiro, estado de emergência em todas as cidades do
Estado de São Paulo e solicitei a intervenção do Exército Brasileiro para nos
ajudar neste momento de crise.
Como é de conhecimento de todos, o recém-descoberto vírus da Febre
Vermelha vem se espalhando do litoral paulista para as proximidades, incluindo o
ABC Paulista e a capital. Até o momento, não sabemos onde este vírus surgiu ou
como ele chegou ao território brasileiro. O que sabemos é que este vírus é
extremamente contagioso e cem por cento dos infectados que sobrevivem à febre e
outros sintomas iniciais da doença atingem seu estágio final, tornando-se violentos
e perigosos para suas famílias e à comunidade.
Por isso, solicitamos auxílio do Exército Brasileiro para criar e
operacionalizar Centros de Cuidados Especiais, CCEs, para onde todas as
pessoas infectadas ou com sintomas suspeitos devem ser transportadas pelos
oficiais do Exército. Os familiares ou vizinhos que virem qualquer pessoa com
sintomas suspeitos, devem imediatamente entrar em contato pelo telefone 190 para
solicitar o transporte da pessoa infectada ao CCE mais próximo.
A Coordenadoria de Controle de Doenças está trabalhando em parceria com o
Exército Brasileiro, e eles desenvolveram uma lista de instruções, que devem ser
seguidas por todos os cidadãos do Estado de São Paulo. Por favor, ouçam com
atenção às orientações do Doutor Ricardo Amorim, especialista em imunologia
que está liderando o grupo de pesquisas sobre o vírus. A colaboração de todos é
essencial para que possamos controlar a disseminação desta doença e minimizar
os riscos a você, sua família e toda a população do Estado de São Paulo.

Em seguida, Doutor Ricardo Amorim assumiu o microfone para listar as


instruções oficiais:
É essencial que todos os cidadãos sigam as instruções a seguir para que
possamos lidar com esta situação. Ouçam com atenção e caso precisem de auxílio,
procurem a autoridade local ou entrem em contato pelos telefones de emergência.
1. PERMANEÇA EM SUA CASA até o final desta crise. Todos os serviços
públicos não essenciais ao controle da epidemia estão suspensos. Racione
seus suprimentos e evitem sair.
2. EVITE CONTATO com sangue, saliva ou secreções e evite compartilhar o
mesmo ambiente de pessoas com sintomas suspeitos.
3. Caso algum familiar apresente os sintomas da doença, é fundamental ISOLÁ-
LO DAS PESSOAS SAUDÁVEIS E CHAMAR AS AUTORIDADES PELO
TELEFONE 190, para encaminhamento ao CCE mais próximo da sua
localidade. Caso suspeite de sintomas em outros residentes de sua região,
avise as autoridades.
4. NÃO TRANSPORTE familiares ou outras pessoas infectadas pelo vírus ao
hospital. Mantenha-os isolados e acione as autoridades para encaminhamento
ao CCE.
5. AGUARDEM NOVAS INSTRUÇÕES oficiais pelos meios de comunicação
padrão: rádio e televisão. Panfletos com estas instruções e informações
oficiais sobre os sintomas da doença e formas de contágio estão sendo
distribuídos.

Em seguida, o comunicado começou a ser reproduzido novamente, como uma


gravação. Gilberto e os demais ouviram as palavras do Governador pela segunda
vez, assim como as instruções do Doutor Ricardo Amorim. O professor pegou um
pequeno bloco de notas e caneta de seu bolso e fez algumas anotações sobre as
recomendações do Exército. Quando terminou, guardou tudo e disse: —
Infelizmente ficar em casa não é uma opção, senhor Governador.
Todos riram de Gilberto, ainda que estivessem preocupados com a falta de um
plano para sair dali e com a constante sensação de insegurança.
Gustavo mexia nas caixas do sótão, procurando algo que pudesse usar como
arma. Acidentalmente derrubou uma pequena escada que estava encostada na
parede. Gilberto esticou-se e a segurou centímetros antes que ela batesse no chão e
fizesse barulho o suficiente para avisar todos os infectados do quarteirão que eles
estavam ali.
Gustavo estava prestes a pedir desculpas, porém notou o sorriso no rosto de seu
professor e perguntou: — O que foi?
— É disso que a gente precisa, rapaz — respondeu Gilberto, olhando para a
escada como se fosse a primeira vez que visse um objeto desses na vida. — Se a
entrada do térreo está lotada, a gente entra pelo segundo andar com uma escada. Se
conseguirmos um veículo para encostar perto de alguma janela... Talvez um
veículo reforçado que os infectados não consigam subir ou virar...
— Que nem um caminhão de bombeiros? — perguntou Gustavo.
— Sim, mas não lembro de ter visto nenhum desses por aqui — disse Gilberto.
— Seria muita sorte nossa.
— Podemos usar uma ambulância — sugeriu Pietro, contagiado pela ideia. —
Tem várias abandonadas pela rua. A gente só precisa arranjar um jeito seguro de
colocar a escada em cima dela para não ficarmos expostos na hora de subir.
Por mais ousado que fosse o plano, era o único que parecia ter alguma chance
de dar certo. Discutiram outras possibilidades, desde ideias simples, tal qual correr
até a entrada e vencê-los na velocidade, a planos mais elaborados, como atraí-los
com barulhos em uma esquina, dar a volta no quarteirão e entrar, mas a falta de
segurança fazia-os voltar à ideia da escada.
— A oficina do Davi fica um quarteirão pra baixo nesta rua — revelou Heitor.
— Quando estava vindo pra cá ontem pela manhã, correndo daqueles diabos, vi
que ela estava aberta, abandonada. Lembro disso porque conheço o seu Davi, e ele
nunca deixaria sua oficina desse jeito. Acho que alguma coisa ruim aconteceu com
o coitado. — Heitor fez uma pausa, lutando para suprimir as memórias das
diversas vezes em que Davi veio até seu bar. — Ele tem uma escada que deve ser
comprida o suficiente. Usava pra manutenção das luzes na oficina.
— Sinto muito pelo seu amigo — disse Pietro, tentando não ser insensível –,
mas isso vai ajudar muito! Podemos abrir um buraco no teto de uma ambulância e
estaremos prontos. Algum de vocês entende algo de funilaria?
Ninguém respondeu até Gilberto comentar: — Jorge disse que viria para cá. Ele
deve ter algum conhecimento, certamente mais que qualquer um de nós. Vou ligar
para ele e perguntar se está chegando.
A conversa entre Gilberto e Jorge foi breve, pois eles já estavam perto do bar.
Gilberto pediu que fossem silenciosos ao se aproximar e que se encontrariam na
porta.
Pietro disse que partiriam em breve, então instruiu que todos se preparassem
com o mínimo de bagagem possível e que cada adulto deveria levar consigo
alguma coisa que pudesse usar como arma de combate corpo a corpo, de
preferência algo como o pé de cabra que Heitor tinha em mãos ou um taco de
madeira.
Em alguns minutos todos estavam preparados quando ouviram a motocicleta de
Jorge se aproximando pelo lado de fora. Heitor abriu a porta fazendo o mínimo de
barulho possível e saíram apressados.
Gilberto cumprimentou os três, notando os semblantes abatidos de Jorge e sua
esposa. Imaginou que fosse algo relacionado com as pessoas com quem eles iriam
se refugiar, pois algo devia ter dado errado. Como não tinham tempo para
conversar, evitou fazer qualquer pergunta e foi direto ao assunto que importava.
— Precisamos achar uma ambulância e levar até a oficina, naquela quadra —
Gilberto explicou para Jorge, apontando a direção onde iriam. — Você me ajuda?
— Vamos! — concordou Jorge, descendo da motocicleta. — Carlinhos, tu vai
com Marlene pra oficina?
Carlinhos concordou e assumiu a direção da motocicleta. Marlene subiu na
garupa, sua barriga enorme encostada nas costas magras dele. Desceram a rua com
o motor desligado, minimizando o barulho. Pietro, Heitor e os demais os seguiam
atentos, armados com paus e barras de ferro, avançavam em direção à oficina.
A rua em que estavam parecia abandonada e tranquila, mas era frequente o som
de helicópteros e sirenes nas proximidades.
Carlinhos e Marlene foram à frente com a moto, sendo os primeiros a chegar à
oficina e encontrar os infectados. O portão estava aberto, como Heitor dissera, mas
com as luzes apagadas só puderam identificar três vultos em um canto do grande
galpão que era a oficina. Mesmo com a motocicleta desligada, um dos infectados
percebeu que eles estavam se aproximando e emitiu um rosnado, alertando os
demais. Carlinhos ligou a moto, já que não havia mais motivo para ser discreto,
deu meia volta e foi para o meio da rua, atrás do restante do grupo.
O pânico começou a tomar conta dos sobreviventes até que Pietro sacou sua
arma e disse: — Eles são só três e a gente precisa desta oficina. Fiquem calmos,
vamos resolver isso.
Carlinhos desceu da moto e também sacou sua arma, pronto para atirar.
— Não atire neles dentro da oficina! — Pietro disse a Carlinhos. — A gente
não quer ficar trabalhando em cima de sangue infectado.
De dentro do estabelecimento, dois homens e uma mulher começaram a correr
em direção ao grupo. Os primeiros tiros de Carlinhos e Pietro foram certeiros,
derrubando os homens que saíram na frente, mas a infectada não correu em linha
reta na direção do grupo. Ela estava dando a volta pelos carros estacionados e indo
em direção à Marlene, o que dificultava a mira de Pietro e Carlinhos, fazendo-os
desperdiçar quatro balas tentando acertá-la, sem sucesso.
Gustavo, armado com um taco de madeira, posicionou-se entre Marlene e a
infectada que se aproximava. Os cabelos negros da mulher que corria em sua
direção lembrou-o de Bia, fazendo com que ele pensasse novamente em tudo o que
perdera em Santos. Se esforçava para não ser distraído pelas memórias naquele
momento, mas não conseguia. As lembranças de Diego, Zé, Chuaza, Hulk e as
meninas que morreram na casa de Santos o assombravam, no entanto nada era pior
do que lembrar de tudo o que aconteceu com Bia. Ela se transformando naquela
coisa, tentando atacá-lo, o acidente de carro e depois vê-la morrendo na calçada,
sacrificada como um animal doente. Gustavo fechou seus olhos e baixou a guarda,
esperando a criatura pegá-lo e acabar com esse pesadelo.
Um tiro certeiro de Glock alvejou a têmpora da criatura, derrubando-a aos pés
de Gustavo. Pietro suspirou, relaxando sua postura ao baixar sua arma e sinalizar
para que todos entrassem na oficina.
Enquanto os outros entravam, o capitão aproximou-se do jovem e disse: — Não
posso imaginar o que esteja passando pela sua cabeça depois de tudo o que
aconteceu, garoto, mas você precisa superar isso. A gente depende um do outro
agora. Um momento de distração pode custar a vida de alguém.

Enquanto os outros desciam a rua, Jorge e Gilberto iam em direção a uma


ambulância que avistaram na esquina de cima. Os dois caminharam rapidamente,
porém mantendo a cautela. Olhavam em todas as portas, janelas e cantos escuros
pelo caminho, temendo encontrar um deles.
Ao chegar à ambulância, a porta estava aberta com a chave ainda no contato.
Era um veículo alto e pesado, exatamente o que precisavam para executar o plano
de Gilberto. Porém, um TUM! inesperado na parte de trás da ambulância chamou a
atenção dos dois, desfazendo o sorriso por trás da máscara hospitalar de Gilberto.
Com a repetição de barulhos de batidas nas paredes do interior do veículo, ficou
claro aos dois que havia alguém preso ali dentro. A falta de gritos de socorro e a
violência das pancadas deixavam claro que não se tratava de alguém são.
Jorge retirou a chave do contato e eles se afastaram do veículo para decidir o
que fazer.
— Bom, esta ambulância está contaminada, com certeza — disse Gilberto. —
Vamos ter que procurar por outra.
Jorge bufou e respondeu:
— Onde diabos a gente vai achar outra?! Esta aqui está quase na esquina, dá pra
empurrar aquele carro e chegar até a oficina sem problemas. — Jorge demonstrava
seu plano com as mãos enquanto o descrevia. — A gente limpa o carro depois.
Certeza que tem coisa lá dentro pra esterilizar tudo.
Gilberto refletiu sobre o assunto e teve que concordar com o plano de Jorge. A
rua estava um caos e, mesmo que encontrassem uma ambulância com as chaves no
contato e totalmente esterilizada, nunca conseguiriam deslocá-la até a oficina por
entre os outros veículos. Não sem gastar tempo precioso e chamar a atenção de
qualquer um que estivesse nas redondezas.
— Abre a porta que eu dou cabo do mordedor — disse Jorge, erguendo o pé-de-
cabra sobre seu ombro.
Gilberto ainda não estava confortável em lidar com os infectados daquela
forma. Apesar da hostilidade e o perigo que eles representavam, acreditava que
eram apenas pessoas com algum tipo de problema neurológico, talvez temporário
ou curável. Mas, naquele momento, a única alternativa viável para conseguir voltar
para sua esposa e sua filha era matar o infeliz.
— Toma, use isto! — disse Gilberto, entregando uma máscara hospitalar e um
par de luvas para Jorge. — E tome cuidado com o sangue.
Jorge vestiu o kit de proteção e posicionou-se alguns metros atrás da
ambulância. Gilberto abriu a porta e escondeu-se na lateral do veículo.
Um homem de meia idade, com metade do rosto rasgado por mordidas, estava
de pé à beira do alto degrau entre a parte de trás da ambulância e o asfalto. Assim
que seus olhos vermelhos pousaram em Jorge, o infectado cerrou seus dentes,
rosnando furioso e preparando-se para avançar em sua direção.
Jorge deu um passo para trás, com o pé-de-cabra erguido sobre sua cabeça, e
viu o infectado cair da ambulância e bater com o peito no chão. Aquela era sua
chance e Jorge não a desperdiçou. Deu dois passos para frente e desceu a barra de
ferro contra a cabeça do infeliz, rachando-a no meio.
Gilberto foi até o carro da frente, que bloqueava o caminho da ambulância. Pela
janela aberta o professor soltou o freio de mão, esterçou o volante para a esquerda
e empurrou até a calçada.
Jorge fechou a porta de trás da ambulância e foi até a cabine da frente. Após
abrir todas as janelas e ligar o ventilador na potência máxima, guiou o veículo pelo
estreito espaço que Gilberto tinha providenciado no canto da rua. O professor
entrou pela porta de passageiro e foram até a oficina.
— Desculpe por perguntar — disse Gilberto –, mas as coisas em Paraisópolis
estão tão ruins quanto aqui?
Jorge suspirou, transparecendo sua frustração com os acontecimentos recentes,
respondeu: — Sim, talvez piores. Perdemos o irmão e a cunhada da minha esposa.
O pior é que não foram os infectados que os mataram. Foram os malditos que
estavam se aproveitando da falta de polícia pra tocar o terror por lá.
— Nossa... Não imaginava que estivesse tão ruim. Sinto muito, Jorge.
Os dois seguiram em silêncio até a oficina, de onde viram dezenas de infectados
subindo a rua em sua direção, atraídos pelos sons dos tiros disparados por
Carlinhos e Pietro. Entraram com a ambulância pelo portão da frente, que foi
fechado logo em seguida, isolando o grupo dos perigos do lado de fora.
Todos receberam tarefas para fazer, lideradas por Jorge, que tinha experiência
naquele tipo de trabalho, e Pietro, em quem todos pareciam confiar naturalmente.
Marcelo, o filho do dono do bar, vasculhava prateleiras num canto da oficina,
verificando as ferramentas que tinham à disposição, mal prestando atenção ao que
os outros faziam.
Até acordar nessa manhã, o garoto ainda tinha esperanças de que tudo fosse
apenas um pesadelo, mas os monstros continuavam lá fora, com seus olhos
vermelhos, andar cambaleante e a raiva incontrolável que os fazia atacar qualquer
um que estivesse ao alcance.
O garoto ainda não conseguia aceitar a realidade que estava vivenciando. Os
malditos tinham pego sua mãe. Quando tudo começou, seu pai não tivera tempo de
lhe explicar o que estava acontecendo, só tiveram tempo de correr para a garagem
da casa e fugir. Marcelo lembrava que após fugirem e conseguirem trancar-se no
bar do seu pai, a primeira coisa que seu pai fez foi ir até o balcão, servir-se de um
farto copo de uísque e dizer: “Eles a pegaram, filho. Ela estava do lado de fora,
eles a pegaram e ela está morta.”
O restante do grupo estava reunido do lado de fora da ambulância. Gilberto e
Gustavo encarregavam-se de esterilizar todo o interior do veículo com álcool e
outros produtos que encontraram lá dentro. Pietro, Jorge e Heitor discutiam os
detalhes do trabalho que teriam para adaptar a escada retrátil no topo do veículo.
— A gente não pode correr o risco desta porra escorregar! — disse Heitor. —
Os malditos vão estar balançando o carro o tempo todo. Não dá pra segurar uma
escada de cinco metros lá no meio e esperar que tudo dê certo.
— Beleza, chefe, a gente deixa ela presa no teto, que nem um carro de
bombeiros — respondeu Jorge.
— Não podemos sair daqui com ela esticada — comentou Pietro –, ou vamos
bater num fio de alta tensão. Com ela presa no teto, vai ser inviável esticá-la ao
chegarmos.
Em meio à discussão, foram surpreendidos por gritos vindos do outro lado da
oficina. À princípio, Marcelo parecia estar praguejando por um motivo qualquer ao
gritar “filho da puta!”, mas em seguida ouviram seu longo e estridente grito de dor.
— Aaaargh!
Heitor correu na direção dos gritos desesperados de seu filho. Assim que o
alcançou, tentou puxar o maldito que estava sobre ele, pensando de onde diabos
aquele homem tinha saído, mas o desgraçado já estava com os dentes cravados no
antebraço do garoto e custou alguns segundos forçá-lo a soltar sua presa.
O infectado caiu de barriga para cima aos pés de Heitor, que reconheceu o
maldito que mordera seu filho. Era Davi, o dono da oficina. Heitor olhou a parede
ao seu lado, onde diversas ferramentas estavam penduradas de forma organizada,
então pegou a maior chave inglesa ao seu alcance e desceu-a com tanta violência
contra o crânio do desgraçado que não foi necessário dar um segundo golpe.
Heitor jogou-se de joelhos no chão ao lado de seu filho, deixando a chave
inglesa cair, tilintando no chão de concreto. O pai se desesperou ao ver a
quantidade de sangue que escorria do braço do garoto.
Ao ver aquela cena, Gilberto foi o primeiro a reagir, correndo até a ambulância
para buscar um kit de primeiros socorros. Marcelo chorava e soluçava ao explicar
ao seu pai o que tinha acontecido: — Eu fui ver se tinha alguma coisa útil na
despensa, e quando abri a porta vi o seu Davi parado lá dentro. — o choro e
soluços do garoto partiam o coração do seu pai e os demais que assistiam, sem
saber o que fazer. — Ele pulou em cima de mim antes que eu entendesse o que
estava acontecendo. Desculpe, pai...
— Calma, Marcelo! — respondeu o pai, enxugando as lágrimas do seu filho. —
Não peça desculpas. Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Após vestir um kit de máscara e luvas hospitalares com rapidez, Gilberto foi até
Marcelo e começou a limpar seu ferimento, despejando uma garrafa de soro
fisiológico sobre o corte. Apesar da aparência assustadora do rasgo no antebraço
do garoto, seria possível fechá-lo com uns quinze ou vinte pontos, mas isso era
irrelevante àquela altura. Gilberto não tinha dúvidas de que a mordida tinha
contaminado o filho de Heitor.
Marcelo chorava e soluçava descontrolado enquanto Gilberto limpava sua
ferida. O professor não tinha nenhuma palavra de conforto que poderia dizer ao
garoto. Afinal, o que se diz para um moleque de quinze anos que está com as horas
contadas?
Após limpar a ferida, Gilberto aplicou uma quantidade exagerada de
antisséptico, tingindo todo o braço com uma coloração amarelada, e preparou um
curativo apertado com uma gaze, minimizando o sangramento. Heitor, Marlene e
Letícia acompanhavam o que Gilberto fazia. Os outros voltaram aos trabalhos na
ambulância, dando um pouco de espaço ao garoto e seu pai.
— Cara, ele precisa de pontos neste corte! — disse Heitor para Gilberto.
— Desculpe, amigo, isso é o melhor que eu posso fazer. — respondeu Gilberto,
medindo suas palavras. — Vai ajudar bastante com o sangramento até a gente
chegar ao hospital. Lá eles podem avaliar o estado dele e fazer um curativo
decente, além de dar antibióticos e o que mais ele precisar.
Gilberto estava preocupado com a instabilidade emocional de Heitor e como ele
reagiria ao que estava por vir. O professor e a maioria dos que estavam ali tinham
certeza de que o garoto estava infectado e os preparativos para entrarem no
hospital demorariam umas boas horas, o que pela experiência de Gilberto era
tempo de sobra para Marcelo estar espumando, de olhos vermelhos e pulando no
pescoço de alguém.
Preocupado com o risco de manter uma pessoa infectada no mesmo ambiente
que os demais, Gilberto levantou-se e ajudou Marcelo a ficar de pé. O garoto já
havia parado de chorar, agora apenas soluçava e mantinha um olhar distante,
pensativo.
— Eu vou me transformar em um deles, não vou? — perguntou, olhando em
direção à rua.
— A gente limpou bem a ferida logo depois que você foi mordido, acho que as
suas chances são muito boas. — por trás da sua máscara hospitalar, Gilberto
respirou fundo antes de dizer o que precisava ser dito para Marcelo e seu pai, então
prosseguiu. — A verdade é que não sabemos como isso funciona, garoto. Eu
espero que você fique bem, mas precisamos que você fique afastado da gente, ali
no canto.
Heitor fez menção de protestar. Gilberto entregou-lhe dois kits de luvas e
máscaras, como o que ele estava usando.
— Eu estou tentando ajudar, mas não podemos correr nenhum risco — disse
Gilberto.
Após pegar os kits, o dono de bar resmungou alguma coisa indecifrável, virou-
se e foi com seu filho até o canto oposto da oficina. Quem esse filho da puta pensa
que é?, pensava Heitor, sentindo que estavam tratando seu filho como um leproso.
Eles não sabem nada sobre a doença. Ele pode nem estar doente. Meu filho não
está doente. Ele largou as máscaras e luvas em um canto, acendeu um cigarro e
ficou ali, fazendo companhia ao garoto.
Horas se passaram enquanto os homens trabalhavam na ambulância. Ninguém
tinha pensado na dificuldade que teriam em remover a sirene, iluminação interna e
fiações do teto da ambulância, o que tomou cerca de três horas. André encontrou a
escada que Heitor tinha mencionado. Mostrou aos demais e calcularam que o
comprimento dela, quando colocada sobre o veículo, seria suficiente para alcançar
o segundo andar do hospital.
Jorge começou a cerrar o buraco onde ficaria a escada. Ao encostar a serra
elétrica no teto do veículo, faíscas voavam para todos os lados, dentro e fora da
ambulância. O som da rotação do aparelho e do atrito com a lataria era agudo,
como uma broca de dentista, mas num volume proporcional ao seu tamanho.
Trabalhava o mais rápido possível, preocupado com a atenção que aquele barulho
todo poderia atrair do lado de fora da oficina.
Dentro da ambulância, Gilberto, Pietro e Gustavo seguravam o teto enquanto
Jorge o serrava. O som ininterrupto da lataria do veículo sendo serrada
impossibilitava que qualquer um dos quatro ouvisse outra coisa enquanto Jorge
trabalhava.
Letícia foi a primeira a ver o garoto cambaleando na direção de seu filho. Seu
instinto foi puxar Pedro para trás de si, colocando-se entre Marcelo e sua presa.
Sangue vazava pelo curativo e pingava da ponta de seus dedos, enquanto ele
caminhava com os braços erguidos e assustadora determinação. Uma única e
constante vogal “A” saía rouca do fundo de sua garganta.
Envolvido com as atividades na ambulância, Gilberto não notou a rápida
progressão dos sintomas de Marcelo. Em menos tempo do que ele havia previsto, o
garoto se tornara um risco a todos. Agora Letícia lutava pela vida de seus filhos e a
sua própria, protegendo-se atrás de uma pilastra enquanto o mordedor tentava
alcançá-la.
— Jorge! — Marlene gritava, tentando inutilmente chamar seu marido. André e
Carlinhos, que vigiavam a rua pelas janelas da oficina, ouviram os gritos e
correram para socorrer Letícia.
O santista estava mais próximo da mulher do pastor e seria o primeiro a
alcançá-la, mas foi surpreendido por Heitor, que lançou-se sobre ele como um
defensor maior em uma partida de futebol americano. O barman troglodita caiu
sobre Carlinhos, prensando-o contra o chão de concreto.
— Você não vai machucar o meu filho! Ninguém encosta no meu filho! —
gritava Heitor, espumando pela boca enquanto esmurrava Carlinhos.
O pastor passou pelos dois que lutavam no chão, correndo em direção ao garoto
que atacava sua família. Instantes depois, agarrou a camiseta de Marcelo e girou
seu corpo para o lado, arremessando-o contra uma mesa cheia de ferramentas.
André olhou para sua esposa, confirmando que ela e seus filhos estavam bem,
então virou de costas para eles, com os braços abertos para protegê-los e encarando
o demônio que se recuperava da queda e lentamente colocava-se de pé.
A rotação da serra elétrica foi ficando cada vez mais lenta, até parar. Assim que
o barulho da serra cessou, os quatro que trabalhavam na ambulância ouviram a
gritaria de Marlene. Pietro foi ajudar. Gilberto e Gustavo auxiliavam Jorge a descer
do veículo.
Marcelo já estava de pé e pronto para avançar sobre a família do pastor
novamente. Pietro entendeu o que estava acontecendo. Atirador experiente, parou,
sacou sua arma e disparou dois tiros no peito do infectado, sem hesitar. O garoto
recuou com o impacto das balas e caiu de costas sobre a mesa, de onde nunca mais
levantaria.
O eco dos tiros de Pietro encheram o amplo espaço da oficina, sendo
interrompido pelo grito de Heitor.
— Nãããããão!
Sem mais uma palavra, o homem saiu de cima de Carlinhos e disparou com seu
corpo truculento em direção a Pietro, que ainda tinha a arma erguida. Heitor urrava
com fúria similar a dos infectados enquanto percorria os trinta metros até ele. O
capitão estava prestes a atirar contra o homem descontrolado, então Jorge chegou
por trás dele colocou a mão sobre seu braço, sinalizando para que baixasse a arma
e preparando-se para agir.
Quando Heitor chegou perto o suficiente, Jorge projetou-se em sua direção
como uma pedra lançada pela forquilha de um estilingue. Em dois passos largos
ficou cara a cara com o brutamontes, enquanto flexionava seus joelhos e abaixava
seu tronco. Os músculos contraídos das suas coxas e panturrilhas expandiram com
força e velocidade, impulsionando seu corpo para cima ao mesmo tempo em que
ele colocava as mãos ao redor da cabeça de seu adversário e puxava-o para baixo,
aplicando uma joelhada voadora em seu queixo.
Crack!, estalou o maxilar de Heitor.
Após receber o golpe de Muay Thai, Heitor foi ao chão como um grande
boneco inanimado de articulações frouxas, desacordado e com a mandíbula
fraturada.
— Merda! — disse Pietro, caminhando até o homem desmaiado. — Ele vai dar
trabalho quando acordar.
— Melhor amarrar esse cara! — disse Carlinhos, que tinha o rosto machucado
em vários pontos pelos repetidos socos de Heitor. — Ajudem a colocar ele lá no
canto que eu amarro ele.
Jorge buscou um carrinho de mão na despensa. Levantaram o homem, que
chegou a roncar algumas vezes enquanto era movimentado, e o colocaram sobre o
carrinho. Carlinhos, que estava começando a apresentar uma coloração azulada
abaixo do olho esquerdo, empurrou-o até um canto da oficina.
Pietro voltou ao trabalho na ambulância, junto de Jorge, Gilberto e Gustavo.
André estava com sua família, tentando acalmá-los após o trauma recente. Marlene
também estava com eles e ajudava a distrair Pedro e Talita, ainda mais assustados
que os demais.
Finalmente Carlinhos estava sozinho com o filho da puta responsável pela dor
latente que sentia em todo o corpo, especialmente em sua cabeça. Utilizou um
conjunto de abraçadeiras plásticas, do tipo zip tie, para amarrar as mãos e pés de
Heitor.
Carlinhos acendeu um cigarro, saboreando o momento e refletindo sobre a
melhor forma de vingar-se do infeliz. Olhou para trás, certificando-se que ninguém
os estava observando, e sacou o revólver trinta e oito de sua cintura. Com o cigarro
pendendo no canto da sua boca, encostou o cano do revólver embaixo do queixo
fraturado de Heitor e sussurrou: — Se a gente tivesse na minha quebrada, te
passava fogo agora, seu cuzão.
Mas o maldito estava desmaiado. Qual seria a punição se ele nem mesmo
soubesse que fora ele quem o matara. Além disso, atirar num homem inconsciente
e amarrado teria repercussões com Jorge e o restante do grupo. Carlinhos poderia
tentar livrar-se da culpa, dizendo “Ele tentou me matar! Foi legítima defesa!”, mas
não estava certo de que acreditariam nele. Foi então que uma ideia melhor passou
por sua cabeça, trazendo de volta um largo sorriso ao seu rosto escoriado.
— Tu me derrubou e me socou quando eu tava no chão, seu puto. — Carlinhos
sussurrou ao homem desacordado, expelindo fumaça de cigarro em seu rosto a
cada palavra. — Tu vai ganhar muito mais do que um tiro nesta cabeça de jaca.

Estava quase tudo pronto para saírem quando Carlinhos aproximou-se da


ambulância. Os homens pararam o serviço e juntaram-se para discutir a situação.
— Ele acordou? — Pietro perguntou.
— Não! — respondeu Carlinhos. — Ele tá amarrado, mas a gente tem um
problema.
— Cacete, o que houve? — perguntou Jorge.
— Ele tá com uma marca no braço. O moleque mordeu ele.
Uns suspiraram, outros praguejaram, demonstrando suas frustrações, mas no
fundo estavam de certa forma aliviados por quão simples aquilo tornava a decisão
que teriam que tomar. Abandonar um homem que estava furioso porque acabara de
perder o filho seria uma atitude desumana, mas se este homem estivesse infectado
e representasse um risco iminente à saúde e segurança de todos, não teriam outra
alternativa que não fosse deixá-lo para trás.
Sem dizer uma palavra, Pietro caminhou até Heitor, sendo seguido pelos
demais.
Heitor tinha um pano enfiado dentro da boca. Ao reparar que Pietro estava
prestes a fazer uma pergunta, provavelmente questionar a necessidade de
amordaçar o homem, Carlinhos explicou: — A gente não quer ele gritando e
chamando mais atenção dos mordedores, né?
Carlinhos levantou a manga da camiseta do homem, revelando uma marca de
mordida perto do ombro dele. Não era um corte profundo, mas o suficiente para
manchar a roupa dele com um pouco de sangue.
— Teremos que partir sem ele — disse Pietro. — Vamos terminar o que
precisamos fazer e dar o fora daqui.
Enquanto Pietro, Jorge e os demais voltavam ao trabalho, Gilberto ficou
observando o homem desacordado, pensativo. Apesar de concordar que não
poderiam levá-lo, o professor estava perturbado com a ideia de largar aquele
homem ali, indefeso contra os infectados que invadiriam a oficina assim que eles
abrissem a porta da frente. Sem falar nada, pegou o carrinho de mão onde Heitor
estava deitado e empurrou até a sala onde tinham encontrado o dono da oficina
infectado.
Pelo menos assim ele estará seguro até que a febre termine sua transformação,
pensou Gilberto, fechando a porta da despensa.
Esforçava-se para não pensar em Heitor como um pai que acabara de perder a
esposa e o filho, pois isso tornaria sua atitude monstruosa. Só conseguiu abandoná-
lo ali quando convenceu a si mesmo de que aquela doença era definitiva. Heitor era
um homem morto.
Concluida a adaptação do veículo para a missão que tinham pela frente, Pietro,
Jorge e Carlinhos colocaram mais de trezentos quilos de barras de ferro e outros
objetos dentro da ambulância. Somado ao peso dos nove integrantes do grupo,
aquilo deveria forçar a suspensão do veículo e deixá-lo mais difícil de tombar de
lado, caso os mordedores os cercassem.
Estavam prontos para sair.
10 - Sangue, Suor e Lágrimas Na ala leste do terceiro andar do
hospital havia um homem deitado em uma maca, preso por amarras em seus pulsos
e tornozelos. Um prontuário amassado sob seus pés indicava seu nome: Bruno M.
dos Santos. Marcas de mordidas em seus braços tornavam óbvio o seu diagnóstico.
Bruno acordava, grogue pelas medicações circulando em suas veias, quando
alguém começou a empurrar sua maca. Olhou para cima e viu alguém vestindo um
traje completo de quarentena: botas de borracha, capa impermeável dos pés à
cabeça, máscara hospitalar, luvas de silicone e óculos vedados hermeticamente.
Mesmo dopado, Bruno sentiu suas bochechas ficando quentes e um turbilhão de
xingamentos inundaram sua mente. Começou a se debater, tentando livrar-se de
suas amarras e falar alguma coisa, mas tudo o que saía da sua boca eram rugidos de
fúria.
Assim que o homem começou a se encapetar sobre a maca, Rita parou de
empurrá-lo e disse por trás de sua máscara: — William, pensei que você já tivesse
cuidado deste aqui.
A garota suspirou entediada, sacou uma faca do seu cinto e perfurou o olho de
Bruno. A lâmina deslizou pelo globo ocular até o cérebro do homem infectado,
acabando em poucos segundos com seu sofrimento. Ela limpou a lâmina de sua
faca com um pano embebido em álcool gel e guardou-a, para então voltar a
empurrar a maca em direção ao final do corredor.
Monique não viu a cena. Após tudo o que ela teve que tolerar naquele
hospital,ver sua filha matando um infectado teria sido a gota d’água para que ela
tivesse uma crise nervosa. Apesar de estar feliz por tê-la de volta e sem sintomas
aparentes de infecção, Doutora Giovannini estava extremamente contrariada em
deixar sua filha participar de uma tarefa tão mórbida, grotesca e, em sua opinião,
desnecessária.
Antes de Maria Rita chegar ao hospital, com o caos tomando conta do andar
térreo e se espalhando pelas UTIs do primeiro andar, os sobreviventes estavam
refugiados no terceiro piso do prédio. Jacqueline já havia sido diagnosticada com a
Febre Vermelha e atingido o estágio agressivo da doença, forçando Monique a
consentir com sua transferência ao segundo piso, onde mantinham os casos
avançados. Ela então se envolveu com a organização do hospital, já que sua filha
estava a caminho e precisaria de um ambiente seguro para que sobrevivessem
àquele inferno juntas. Ela acabou se juntando ao Doutor Mauro e dois outros
médicos na liderança do grupo de cerca de trinta sobreviventes, organizando a
montagem de barricadas nas escadas de acesso aos andares inferiores, inspeção dos
sobreviventes para detectar indivíduos com sintomas de infecção e outras ações de
contingência.
Tudo parecia estar sob controle, consideradas as circunstâncias, então o
próximo passo foi conseguir alimentos para todas aquelas pessoas. Monique, os
três médicos e um grupo de seguranças do hospital subiram ao quarto andar, em
direção à cafeteria, na esperança de encontrar alguma coisa. Após percorrer os
corredores abandonados do quarto andar, chegaram à cafeteria e encontraram um
farto estoque de comida congelada, bolachas e bebidas. Monique e os médicos mal
tiveram tempo de comemorar o sucesso da missão. Foram surpreendidos pelos
seguranças, que os renderam com suas armas de fogo e disseram que eles, os
seguranças, assumiriam o controle do quarto andar dali por diante, ficando em
posse de todo o estoque de alimentos. Durante uma discussão acalorada sobre
divisão dos suprimentos, os seguranças abriram fogo contra o grupo de Monique,
matando os dois médicos amigos de Mauro. “Nós somos os chefes do Hospital
agora!”, disse Lúcio, que aparentava ser o líder daquele grupo e mantinha seu
revólver apontado para Monique e Mauro, “Vocês ficam no terceiro andar, se
livram de todos os mordedores que estão nas macas e garantem que as barricadas
estão segurando os infectados lá embaixo. No final do dia, se não tiver nenhum
infectado no terceiro andar, vocês ganham algo para comer.”
Monique não sabia que era possível odiar alguém tanto quanto ela odiava
aqueles traidores. Eles não só mataram dois homens que estavam tentando fazer o
bem, mas também forçaram os demais a ficarem em um andar repleto de infectados
e cuidarem das barricadas sem nenhuma arma de fogo, expondo-os ao risco de
infecção ou pior. Além disso, tomaram posse de toda a comida, sendo que havia
mais de trinta sobreviventes famintos no andar de baixo.
Assim que Monique contou aos demais sobre o ocorrido, houve uma série de
protestos e lamentações, mas, no fim, não havia outra coisa a fazer que não fosse
seguir com as exigências dos traidores. Dividiram-se em grupos e cada um deles
ficou responsável por limpar uma parte dos quartos. Monique, Rita e William
ficaram responsáveis por cinco quartos na ala leste do andar.
Um por um, William certificava-se de que os pacientes amarrados às camas e
macas dos quartos estavam infectados. Se o paciente estivesse acordado, qualquer
reação agressiva ou falta de capacidade cognitiva confirmava sua condição. Nos
pacientes dopados, o doutor erguia suas pálpebras e checava a vermelhidão de seus
olhos. A cada confirmação, ele inseria um bisturi na têmpora direita do infectado,
findando sua vida.
William tentava se convencer de que não estava assassinando aquelas pessoas,
repetindo mentalmente o conceito de eutanásia ativa: facultar a morte sem
sofrimento a um indivíduo cujo estado de doença é crônico, incurável, associado a
imenso sofrimento físico ou psíquico. Apesar de estar executando algo muito
alinhado com este conceito, a falta de consentimento dos infectados, de seus
familiares, do corpo diretivo do hospital ou de qualquer outra pessoa responsável,
tornava inaceitável a sua própria mentira. Por fim, conseguiu algum conforto na
ideia de que o fazia por não ter outra alternativa. Matava aquelas pessoas porque
morreria se não o fizesse. Os chefes não pareciam estar de brincadeira ao dizerem
que haveria consequências se o terceiro andar não estivesse livre de mordedores até
o fim do dia. De certa forma, era quase como se não fosse ele quem estivesse
assassinando estas pessoas. Quase.
Maria Rita, por outro lado, não tinha problema algum em se desfazer dos
mordedores o mais rápido possível. Ela odiava os sociopatas que se intitularam
chefes do hospital, mas, já que os malditos estavam armados e seria suicídio ir
contra eles, a garota concordava que deveriam se livrar dos infectados que ainda
estavam no terceiro andar, onde seriam forçadas a ficar e sobreviver. Monique
pedira a William que ele executasse os infectados para que elas duas despejassem
os corpos pela janela. A garota sabia que sua mãe queria poupá-la de ter que fazer
algo tão desumano, mas ela já não sentia qualquer tipo de empatia pelos demônios
de olhos vermelhos. Era como se eles fossem de uma espécie completamente
diferente da sua. Uma espécie que rasgaria sua garganta se tivesse a chance, assim
como fizeram com Júlio e tantos outros.
O corredor da ala leste terminava em um grande vitral, que antes cobria a
parede do chão ao teto, mas agora estava estilhaçado, deixando aquela ala exposta
ao ambiente externo. Sons invadiam o hospital por aquele canto aberto: sirenes,
gritos, tiros de revólver, hélices de helicópteros e todo o tumulto das ruas vinham
dali e se propagavam pelos corredores da ala leste.
À beira do precipício onde o corredor terminava, Rita empurrou a maca de
Bruno dos Santos com indiferença. Lá embaixo, dezenas de macas e corpos
espatifados pelo impacto com o chão de concreto,. Uma quantidade assustadora de
mordedores vivos aglomerava-se ali embaixo, atraídos pela chuva de corpos. Para
surpresa de Rita, Monique e William, os infectados não atacavam os corpos
arremessados do terceiro andar. Doutor Ishida sugeriu que eles não se alimentavam
de seres mortos devido ao instinto de não comer algo que poderia estar podre ou
contaminado de alguma forma. Monique sugeriu uma teoria diferente: — Suspeito
que eles reconheçam os outros infectados como seus semelhantes. Sei que parece
impossível, considerando que eles estão num estado de insanidade, mas este é um
instinto básico na maioria dos animais.
Tinham terminado o serviço. Estavam prontos para voltar aos demais quando o
celular de Monique tocou. Ao atender, a voz de Gilberto respondeu do outro lado:
— Oi, Môn! Nós estamos prontos para entrar no hospital. Como estão as coisas aí?
— Gil! — respondeu Monique. — Estamos bem, mon amour. Temos que nos
preocupar com alguns seguranças que acham que são donos do hospital, mas
estamos bem.
— Que droga. Como se não bastasse essa doença maldita... — apesar da
preocupação, não havia o que Gilberto pudesse fazer até que estivessem juntos.
Agilizou a conversa. — Estamos indo com uma ambulância pelo lado leste do
hospital, onde o terreno é mais alto. De lá a gente consegue alcançar o segundo
andar. Pela frente ou do outro lado, só alcançaríamos o primeiro andar, então seria
mais difícil chegar até vocês, certo?
— Sim! — respondeu Monique — O primeiro andar é da UTI e está cheio de
infectados. O segundo andar também está contaminado, mas não tão cheio como o
primeiro.
— Ok. Por onde é mais fácil subirmos do segundo ao terceiro andar? As
escadas estão bloqueadas? — perguntou Gilberto.
Monique já tinha discutido as opções com William e sua filha após o último
contato de Gilberto, então disse: — Vocês devem entrar por uma das janelas dos
quartos ao leste. Dali, caminhem até a escadaria D e subam ao terceiro andar.
Vocês vão encontrar infectados no caminho com certeza, mas tentem não fazer
muito barulho. Eles são atraídos pelo som.
Gilberto deixou escapar um riso de nervosismo. Aquela não seria uma tarefa
fácil.
Monique o ignorou e continuou falando.
— A gente te espera na escadaria, desfazendo o bloqueio. Pelo que vimos hoje
cedo, não tem nenhum infectado nas escadas.
— Ótimo! — concordou Gilberto, apesar da preocupação com os riscos que
iriam correr. — Amo vocês, Môn. Tudo vai ficar melhor quando estivermos juntos
de novo.
Após se despedirem, Gilberto ficou ainda mais convencido de que precisavam
fugir de São Paulo com os militares. Uma vez que estivessem dentro do hospital,
estariam relativamente seguros, mas não era uma situação sustentável. Com a
proporção que aquela epidemia estava tomando, a cidade mais populosa do país
não parecia ser um bom lugar para se refugiar.

Pietro sentou-se no banco de motorista da ambulância. Apesar de insistir que


seu irmão fosse com ele na frente, Gilberto fez questão de ficar no compartimento
traseiro do veículo para que pudesse ajudar os demais a saírem pelo teto solar
improvisado ao chegarem ao hospital. Além disso, concordaram que Jorge seria
um melhor copiloto, considerando as dificuldades que poderiam encontrar no
trajeto.
O portão da oficina chacoalhava, ressonando um chiado metálico intenso com
os socos e chutes que recebia do lado externo. Os disparos que mataram Marcelo
atraíram os infectados mais próximos da oficina, que tentavam entrar à força. Com
o passar do tempo, o barulho que eles faziam atraía ainda mais mordedores, que se
juntavam na tentativa de invasão.
Gilberto, Gustavo, Marlene, Carlinhos e André com sua família se acomodaram
na parte de trás da ambulância. Jorge caminhou até uma das extremidades do
portão de ferro, posicionando-se na frente de um botão na parede, conectado ao
motor elétrico que ergueria o portão até o teto. Com um cigarro aceso no canto da
boca, Pietro girou a chave de ignição do veículo, engatou a primeira marcha e
aproximou-a da saída.
Por um breve momento, a ideia de que a vida daquelas dez pessoas
dependeriam do bom funcionamento de um transporte assombrou os pensamentos
do militar. Ao parar a ambulância, ele puxou o freio de mão e pisou fundo no
acelerador, sentindo os 127 cavalos de potência do motor puxando as rodas
tracionadas no concreto. Após dar o último trago em seu cigarro, mentalizou que o
carro era apenas uma ferramenta. As vidas daquelas pessoas estavam em suas mãos
agora. Este era um pensamento que deixaria a maioria das pessoas em pânico, mas
não este capitão do Exército Brasileiro. Esta era sua missão e Pietro estava pronto
para executá-la. Arremessou o cigarro pela janela e sinalizou para que Jorge abrisse
a passagem.
Assim que o portão começou a subir, Jorge correu e entrou na ambulância. A
quantidade de pés que viram pelo vão abaixo da grade de ferro era preocupante. O
motor lento abria a passagem e mais infectados eram atraídos pela movimentação e
barulho, aglomerando-se em frente à oficina. No instante em que Jorge fechou a
porta do veículo, alguns mordedores passavam agachados pelo vão da entrada.
Ninguém contava com a presença de tantos infectados ali, logo no ponto de
partida da missão, mas Pietro não hesitou. Assim que a abertura ultrapassou a
altura da ambulância, ele desengatou o freio de mão e pisou no acelerador, fazendo
soar o estridente som de fricção entre os pneus e a tinta acrílica do concreto.
No compartimento traseiro da ambulância, André e Letícia abraçavam seus
filhos, tentando protegê-los dos horrores visíveis pelo para-brisas. Os mordedores
por si só eram figuras dignas de pesadelos para qualquer marmanjo, com seus
rostos dilacerados e feições ferozes, mas estarem dentro de um veículo que
atropelava dezenas deles era algo bizarro demais para uma criança vivenciar. O
próprio Gilberto teve dificuldades de manter em seu estômago as barrinhas de
cereais que almoçou, tendo que fechar seus olhos e pensar em sua família e no
propósito disso tudo para desviar o foco do horror à sua volta.
Ao primeiro choque do veículo com os infectados, Pietro agradeceu a Jorge
pela ideia de instalar duas barras de ferro à frente do veículo, formando um para-
choques improvisado em forma de seta. “Que nem o caminhão limpa-neve. Sabe,
aquele que tem nos filmes?”, Jorge explicara, simulando uma seta com as mãos ao
discutirem ideias para a adaptação da ambulância. A gambiarra foi simples de
instalar e minimizava o impacto dos infectados contra o para-brisas, diminuindo
também a quantidade deles que eram forçados para baixo do veículo, pois o
“limpa-neve” empurrava-os para as laterais.
— O senhor deveria patentear esta maravilha quando sairmos desta. — brincou
Pietro após passarem pelo aglomerado de infectados e entrarem à esquerda na rua.
— Eu pagaria uma grana para ter um destes no meu carro.
Jorge riu por um segundo, então olhou para trás e viu sua mulher, com as mãos
sobre sua enorme barriga e preocupação estampada em seu rosto. Não podia
imaginar como estava sendo difícil para ela — grávida, tendo que enfrentar todos
estes perigos logo após a perda do irmão –, mas tentou confortá-la: — Vai dar tudo
certo, Má.
Jorge virou-se para frente e avistou o prédio do hospital a três quarteirões. Na
esquina seguinte, a rua estava abarrotada de veículos abandonados. Seria dificílimo
passar por ali com uma motocicleta, mas com uma ambulância era impossível.
A oficina de onde saíram ficava ao norte do hospital. Para chegar à lateral leste,
deveriam entrar à esquerda em alguma rua e pegar a primeira à direita. Eles tinham
revisado juntos todos os possíveis caminhos alternativos, e este era o mais seguro,
pois esta lateral do hospital não possuía nenhuma entrada de pacientes, o que fazia
com que fosse mais provável que estivesse livre de carros abandonados.
Pietro colocou o plano em execução, e, a princípio, ocorreu tudo bem. Com
exceção de alguns esparsos infectados andarilhos, não encontraram obstáculos na
primeira rua. Enquanto não pararmos a ambulância, estaremos seguros, pensava o
militar.
Ao virar a segunda esquina, a situação era bem diferente da rua anterior. A fila
de carros da entrada norte do hospital dobrava a esquina e se estendia por toda a
lateral leste que teriam de percorrer.
— Vamos pela calçada. — sugeriu Jorge, apontando para a lateral do hospital,
onde havia uma calçada larga o suficiente para passarem com a ambulância até o
gramado abaixo das janelas do edifício.
Os veículos abandonados formavam uma fila em toda a rua, mas a calçada era
ampla e estava praticamente desocupada. Para chegar até lá, teriam que empurrar
ao menos um veículo para fora da fileira que bloqueava o acesso à calçada.
Jorge abriu sua porta e desceu num pulo da ambulância, antes que os infectados
os cercassem. Com a máscara cobrindo seu rosto e seu pé-de-cabra em mãos,
correu até uma Tucson na esquina e arrebentou sua janela com a barra de ferro.
Colocou seu braço dentro do veículo e soltou o freio de mão.
Calculou que, se empurrassem a Tucson para frente, talvez teriam espaço
suficiente para passar por trás com a ambulância. Tinha de ser o suficiente, pois
não havia mais nada que podia fazer antes que os malditos infectados o
alcançassem.
Um deles estava próximo demais. Jorge virou-se e deu um golpe com a ponta
curva do pé-de-cabra, fincando-a no crânio do desgraçado, que caiu morto aos seus
pés.
Ao tentar puxar sua arma de volta, percebeu que estava presa. Tentou puxar
com mais força, mas suas mãos estavam suadas e escorregavam sobre o ferro liso.
Mais de uma dúzia de mordedores o rodeavam, prestes a bloquear seu caminho de
volta. Jorge abandonou sua arma e correu para a ambulância.
Dois infectados estavam em seu caminho até a porta de passageiros, deixando
Jorge sem reação por um instante. Carlinhos surgiu sobre o teto da ambulância e
chamou seu nome: — Jorge! Sobe aqui.
Ele correu até a outra lateral da ambulância. Carlinhos atirava contra dois
infectados mais próximos. Com ajuda de seu amigo, Jorge escalou o veículo e
voltou à segurança de seu interior.
Neste momento, dezenas de mordedores já rodeavam a ambulância no ritmo
torpe dos infectados, mas os disparos da arma de Carlinhos agitou-os ainda mais e
chamou a atenção de todos os malditos em cada canto do quarteirão.
Pietro não perdeu tempo e pisou no acelerador, encostando o “limpa-neve” na
Tucson e empurrando-a. Antes de surtir qualquer efeito no carro da frente, os
parafusos que fixavam o tão aclamado “limpa-neve” à ambulância rasgaram a
lataria onde estavam presos. As duas barras de ferro tilintaram ao caírem no chão.
Ele forçou mais o acelerador e conseguiu empurrar o outro veículo para frente. Ao
acionar a marcha ré, ouviu o baque seco de um infectado sendo atingido pela
traseira da ambulância, mas ninguém se interessou em olhar o estrago que
causaram ao infeliz. Meia dúzia dos malditos surgiu das laterais e da frente da
ambulância e se aglomeraram sobre o capô, socando inutilmente a lataria do
veículo, ao passo que o motorista engatava a primeira marcha.
Com o arranque do veículo para frente, seis infectados que estavam à sua frente
caíram de costas no chão, sobre a guia da calçada. Sem hesitação, Pietro continuou
acelerando e bateu com as rodas dianteiras contra os corpos dos infectados,
prensando-os. Para sua surpresa, o veículo não passou dali. Ele mantinha o pedal
do acelerador pressionado, sentia a rotação do motor funcionando, mas não saíam
do lugar. Pietro estava tão surpreso e frustrado pela inércia da ambulância, que não
percebeu o som aquoso vindo das rodas, nem o sangue que espirrava de baixo para
cima, traçando finas linhas vermelhas em ambas as janelas laterais do automóvel.
— A gente atolou! — gritou Jorge — Dá ré!
Num primeiro momento, Pietro não entendeu como eles poderiam estar
atolados no asfalto, mas então ele compreendeu a situação. A tração frontal da
ambulância fazia com que suas rodas dianteiras patinassem nas entranhas dos
infectados, faltando tração para subir o meio fio da calçada.
Dezenas de mordedores se aproximavam, mas Pietro conseguiu deslocar o
veículo para trás e então projetá-lo para frente bruscamente. O baque contra a guia
foi forte, devido à aceleração que o motorista aplicou e o exagerado peso que eles
carregavam, danificando o eixo frontal. Dane-se..., pensou Pietro, ...só faltam
cinquenta metros.
Com dificuldades de manter a ambulância andando em linha reta, Pietro guiou o
carro pela calçada em ziguezague, numa trajetória quase tão imprevisível quanto o
cambalear dos infectados que os perseguiam.
O hospital era um edifício aberto, sem muros em volta do jardim que ocupava o
recuo entre a calçada e o prédio. A ambulância saiu da calçada e passou sobre a
grama, mantendo sua velocidade, lançando seus passageiros uns sobre os outros
com a súbita mudança de direção e gerando uma série de xingamentos ao
motorista, a maioria vindos da boca de Carlinhos. Fazendo uma trajetória elíptica
com o veículo, Pietro parou a ambulância com o para-choques a um metro de
distância da parede do hospital, em frente a uma janela aberta no segundo andar.
— Vai, Carlinhos! — gritou Pietro, puxando o freio de mão.
Carlinhos, o homem mais leve e ágil do grupo, subiu no banco onde estava
sentado, apoiou os braços no teto solar improvisado e passou para o lado de fora do
veículo, ficando de pé sobre o teto da ambulância. André o ajudou a esticar a
escada retrátil e encaixá-la nos buracos feitos na lataria do veículo.
Todos dentro da ambulância estavam tensos, mas houve grande comemoração
quando a escada alcançou o parapeito de uma das janelas do hospital. O plano
tinha funcionado até ali, agora teriam que subir.
No interior do veículo, sons de batidas na lataria começaram a se intensificar
em frequência e força, chacoalhando-o de um lado ao outro. Pietro saiu do banco
do motorista, passou ao compartimento traseiro e pediu a ajuda de seu irmão para
subir ao teto da ambulância. Após usar as mãos de Gilberto como apoio para sua
subida, o capitão pôde ver o tamanho do risco que corriam ali, virou-se para dentro
do veículo e gritou: — Rápido, me dê uma barra de ferro! — Pietro expressava
urgência de todas as maneiras possíveis, voz, expressão facial e gesticulações. Ao
receber a arma de seu irmão, ordenou: — Agora subam aqui! Preciso de ajuda.
André e sua família tentavam se distrair, orando abraçados em um pequeno
círculo. O pai das crianças tinha iniciado a oração, mas já não estava tão
concentrado na atividade quanto sua esposa e filhos, que recitavam os versos do
Pai Nosso com um fervor capaz de isolá-los de todo o restante do mundo. A
atenção de André estava voltada aos gritos, rugidos e rosnados que ouvia através
da lataria do veículo. Se faltava um sinal de que Deus nos tinha abandonado, esta
praga está aqui pra isso, pensava o pastor, balançando o corpo para frente e para
trás conforme a ambulância era sacudida pelos mordedores. Como podem os
homens enfrentarem tamanho mal, quando o próprio Deus se omite? O pastor
tinha sido capaz de oprimir este tipo de pensamento ao descobrirem o primeiro
tumor de Letícia, assim como durante as três primeiras séries de quimioterapia,
sem melhoras em seu quadro geral. Ele não era somente um homem de fé, ele era o
disseminador da palavra de Deus e fez tudo o que pôde para honrar sua vocação
naqueles tempos difíceis, mas agora aquela parecia ser uma causa perdida. Quando
a epidemia começou, seu espírito já havia sido quebrado. A praga que deveria ser
um novo teste à sua fé, não despertou nenhum sentimento além de raiva e
ressentimento.
Mais de vinte infectados fechavam o cerco em volta da ambulância, socando,
chutando e empurrando-a com a violência de um bando de cães selvagens que
tiveram seu território invadido. Mas não estavam lidando com cães, e nenhum
desses malditos comportava-se como um selvagem até serem infectados e
transformados pelo maldito vírus. A Febre Vermelha foi capaz de transformar até
mesmo a mais simpática e dócil das pessoas em um assassino canibal.
Thamy era o nome bordado no bolso do seu uniforme, uma das pessoas mais
queridas que qualquer um poderia conhecer. Aos trinta anos, cursava faculdade
pela manhã e trabalhava o resto do dia em uma lanchonete. Todo mundo a
conhecia pelo bom humor e sua mania de desenhar sorrisos na espuma dos cafés
que servia, utilizando chocolate derretido e um estêncil. Mas essa figura doce não
existia mais. Tudo o que ela sentia agora era ódio, e uma vontade incontrolável de
agarrar aquele velho à sua frente e devorar sua perna. A última coisa que viu foi o
velho golpeando sua cabeça, e então sua história e seus planos para o futuro
terminavam ali, na ponta fria de uma barra de ferro. A ira que a dominava enfim
cessou, e Thamy não sentiu mais nada.
Com as mãos quase no topo da escada e a cabeça centímetros abaixo do
parapeito da janela aberta, Carlinhos foi tomado por um intenso frio na barriga. Era
a mesma sensação que tinha antes de roubar um carro, fugir da polícia ou aplicar
um golpe em alguém, mas muito mais forte. Ao olhar para dentro do quarto,
poderia ser surpreendido por um bando de infectados sedentos por sangue, ou
mesmo uma pessoa armada que não quisesse um intruso em sua janela. Tudo
estaria acabado para ele. Colocou a mão na sua cintura e sacou o trinta e oito
roubado do policial em Santos. Com a outra mão, certificou-se que a máscara
estava bem presa ao rosto, protegendo-o do maldito vírus. Finalmente, subiu o
último degrau da escada e olhou para o interior do prédio.
Com a situação ao redor da ambulância relativamente sob controle, Pietro olhou
para cima e viu Carlinhos sacar seu revólver. Assim que o caiçara olhou para
dentro do prédio, Pietro percebeu que algo estava errado. Notou que, ao chegar ao
topo da escada, a primeira reação de Carlinhos foi levantar sua arma e apontar para
dentro da janela, mantendo-a erguida enquanto se apoiava no parapeito com a mão
esquerda e entrava no prédio. O capitão olhou ao redor, certificando-se de que
Jorge e Gilberto controlavam a situação em volta do veículo, então olhou
novamente para cima. Nenhum sinal de Carlinhos, que estava fora do campo de
visão sem indicar aos demais se deveriam subir ou o que diabos estava
acontecendo, como tinham combinado que ele faria. Quase um minuto depois,
Carlinhos colocou a cabeça e o braço para fora da janela e sinalizou para que Pietro
subisse.
O grupo tinha avaliado com cuidado e definido a ordem em que eles subiriam
pela escada antes mesmo de saírem da oficina. Como Pietro estaria dirigindo a
ambulância, Carlinhos deveria ser o primeiro a subir, pois ele era leve e ágil,
qualidades importantes para escalar uma escada instável daquela altura. Carlinhos
então seguraria a escada e Pietro subiria, dando mais força para segurarem a escada
pela janela. Seria a vez de Marlene, amparada por Jorge logo abaixo, depois
Letícia, as crianças e André, então Gustavo e Gilberto.
— Jorge, assim que eu estiver segurando a escada lá de cima, vocês sobem.
Sejam rápidos! — disse Pietro, preocupado com a multidão de infectados que
caminhava em direção à ambulância, vinda de ambos os lados da rua.
Apesar de não ser jovem como o caiçara, Pietro subiu a escada com agilidade.
Dispensou a ajuda de Carlinhos e colocou-se para dentro do quarto. Ao verificar o
local, a primeira coisa que chamou sua atenção foi a grande mancha vermelha no
lençol que cobria a cama no centro do quarto. Pietro já estava com sua mão direita
sobre a Glock, ao notar que o corpo por baixo do lençol estava imóvel.
— Está morto? — Pietro perguntou.
— O presunto já tava aí quando eu cheguei — respondeu Carlinhos. — Só botei
o lençol pra não assustar as crianças.
Pietro certificou-se de que a máscara cobria seu rosto. A presença do defunto ali
era um risco à saúde de todos, mas não tinham tempo para livrar-se dele. Foi até a
janela e segurou a escada de um lado, enquanto Carlinhos segurava do outro.
Sinalizaram para que Jorge e sua esposa subissem.
Quando Marlene estava posicionando seu pé no primeiro degrau, um jovem
infectado deu um salto, impulsionando-se nos ombros de outro e conseguiu
pendurar-se na escada, logo à frente da mulher grávida. Por reflexo, Jorge colocou
seus braços ao redor de sua esposa e puxou-a para trás, afastando-a do perigo.
Logo em seguida, Gilberto quebrou o braço do rapaz ao meio usando uma barra de
ferro. Na mesma velocidade com a qual o infectado subiu até a escada, ele caiu,
sendo pisoteado pelos demais que tentavam aproximar-se da ambulância.
Marlene posicionou-se outra vez à frente da escada e começou a subida, com
seu marido poucos degraus abaixo, pronto para apoiá-la. Não era uma tarefa fácil
subir uma escada tão comprida no estágio avançado de sua gravidez, mas ela
conseguiu. Com a ajuda de Pietro e Carlinhos, ela passou pela janela e adentrou o
quarto, seguida por seu marido.
A ambulância balançava com ainda mais intensidade. As lanternas já estavam
quebradas, a lataria completamente amassada pelos punhos dos infectados. Ao
observar o desespero das pessoas que tentavam a qualquer custo abrir a
ambulância, Talita lembrou-se da vez em que se esqueceu de alimentar seu
cachorro, Darwin, quando iam passar o sábado na casa de uma tia. Darwin era um
cachorro pequeno, mas ele conseguiu abrir a porta do armário da cozinha, puxar o
saco de ração, que tinha o dobro do peso dele, e estraçalhá-lo com as patas e
dentes. Tudo para saciar sua fome.
— Eu posso subir sozinha, pai — disse Talita. — Você sobe com o Pedro e eu
vou sozinha.
— Você vem comigo, Talita! — ordenou André. — Isso não é hora pra discutir.
Vendo que a garota estava prestes a começar a chorar, André complementou: —
Gustavo vai cuidar de seu irmão, e eles estarão logo atrás de nós. Ele é um bom
rapaz.
Letícia estava tonta e fraca devido à má alimentação, estresse e exaustivo
esforço físico durante os últimos dias, tudo o que não era recomendado para sua
condição. Apesar disso, seguia determinada em frente com sua família até que
estivessem todos em segurança. Em meio a todo o mal e sofrimento que agora
tomava conta do mundo, o fato de eles terem um plano que poderia levá-los à
segurança enchia-a de esperança e renovava sua fé. Neste momento, com seu corpo
enfraquecido e o raciocínio enevoado, fé era o único combustível que a
impulsionava escada acima.
Logo abaixo de Letícia, vinha André com sua filha de dez anos pendurada em
suas costas. A garota envolvia-o com seus pequenos braços e pernas, como um
bicho preguiça agarrado a uma árvore.
Quando Letícia chegou à janela do hospital e André estava na metade do
caminho, Gustavo começou a subir. O filho do pastor ia pendurado em suas costas
como uma mochila, agarrando-o com força. André chegou ao topo e Pietro puxou a
garota para dentro. Em seguida, o pastor também passou pela janela.
Gustavo aproximava-se do último degrau, para então entregar Pedro ao seu pai,
mas sentiu a escada balançar. O rapaz segurou-se como pôde à escada, e o garoto
às suas costas, apavorado pela altura em que estavam balançando.
Olhou para baixo e viu seu professor tentando equilibrar-se sobre a ambulância,
que tombava lentamente para o lado. Gilberto não conseguia mais alcançar a
escada, que agora tinha se desprendido da ambulância e estava pendurada somente
pelos braços de Pietro e Jorge, segurando-a do lado de fora da janela. Gustavo viu
o desespero nos olhos de seu professor quando ele olhou uma última vez para cima
antes de jogar-se dentro da ambulância.
Demonstrando a reação mais rápida, Gustavo subiu os últimos degraus da
escada, entregou o garoto ao seu pai e gritou: — Capitão, rápido, a arma!
Pietro arregalou seus olhos para o rapaz, que gesticulava para que ele lhe
entregasse sua Glock. Ouviram o som da ambulância tombando no gramado.
— Agora, porra! — ordenou Gustavo.
O capitão entregou–a. O rapaz começou a descer a escada com uma agilidade
impressionante. Em segundos, Gustavo estava pendurado pelos braços ao final da
escada, a alguns metros da lateral da ambulância e a poucos centímetros das
cabeças dos infectados. Gustavo balançava suas pernas, ao mesmo tempo que
Pietro e Carlinhos balançavam a escada pelo topo, fazendo um movimento
pendular, até que Gustavo estivesse próximo o suficiente da ambulância para
soltar-se e cair sobre sua porta lateral, que estava virada para cima. Após mais de
uma década praticando seu equilíbrio sobre um skate, conseguiu manter-se em pé
sem grande esforço.
O veículo tombado era mais baixo que em sua posição habitual, mas ainda
assim era mais alto que os mordedores, fazendo com que eles ainda tivessem
dificuldades para subir na ambulância.
Gustavo caminhou sobre a lataria até o outro lado do veículo, confirmando que
os mordedores ainda não tinham conseguido invadi-lo. Gilberto fizera uma
barricada improvisada que bloqueava parcialmente a passagem do teto, utilizando
uma maca da ambulância e algumas barras de ferro. Gustavo apontou a arma para
uma garota que já tinha metade do seu corpo dentro do veículo e disparou duas
vezes, atingindo suas costas. A garota se contorceu de forma a indicar que o
ferimento seria suficiente para cessar seus ataques. Depois mirou no próximo
infeliz que tentava entrar na ambulância e atirou. E no próximo. E no seguinte
também.
Lembrava-se de ter ouvido o capitão dizer que a arma tinha capacidade para
treze balas. Contou seus disparos e guardou três para depois. Abriu a porta lateral,
que agora ficava em cima da ambulância, e viu Gilberto numa posição que seria
cômica, se não fosse o desespero em seus olhos ao travar uma luta por sua vida.
Ele usava as duas mãos para segurar as alças que ficavam presas ao teto e parede
do veículo, com a coluna curvada e as duas pernas abertas em meio espacate,
prensando a maca contra o vão do teto solar, impedindo que os malditos
invadissem a ambulância.
— Professor, venha! — gritou Gustavo.
— Se eu sair daqui, eles vão entrar! — respondeu Gilberto, ofegante.
— Caralho... — resmungou o rapaz.
Gustavo desceu ao interior da ambulância, pegou uma barra de ferro e começou
a agredir os infectados pelo vão entre a maca e o teto solar. Após algumas
repetições do movimento, sentiu a intensidade com a qual eles forçavam a entrada
diminuir. O rapaz puxou os braços de seu professor e disse: — É agora ou nunca,
Beakman.
Gilberto colocou-se de pé o mais rápido que pôde, enquanto Gustavo saía de
dentro do veículo com agilidade impressionante e os mordedores arrastavam-se
pelo teto solar, passando por cima da maca. O rapaz ajudava seu professor a subir
pela porta da ambulância, mas notou um dos malditos se levantando dentro do
veículo e agarrando o tornozelo de Gilberto, que já estava com o resto do corpo do
lado de fora. O infectado vestia um boné de aba reta, do tipo que Gus repudiara por
toda sua vida. Assim que ele avançou, Gustavo encostou a arma na testa do infeliz
e disparou. A bala atravessou o crânio do mordedor e fez o boné voar de sua
cabeça. Gilberto agradeceu com um aceno e colocou-se de pé.
Pietro e Jorge viram os dois saindo da ambulância e começaram a balançar a
escada, tentando deixá-la ao alcance de Gustavo. Assim que ele alcançou o objeto
de alumínio, virou para Gilberto e disse: — Sobe junto. Não dá tempo pra ir um de
cada vez.
Gustavo colocou a arma na cintura e segurou o último degrau da escada,
enquanto Gilberto segurava o penúltimo. Involuntariamente, ambos respiraram
fundo, tomando coragem. Num movimento sincronizado, viraram seus rostos para
a porta da ambulância ao ouvir um grito de raiva lá dentro. Uma mulher olhava
para eles, usando os braços para puxar-se para cima. Mais dois infectados tinham
entrado no veículo e colocavam-se de pé, deixando claro que era hora de saírem
dali.
Gustavo e Gilberto levantaram seus pés, sendo impulsionados para frente no
mesmo movimento pendular que trouxera o rapaz até ali, deixando-os abaixo da
janela onde estavam os demais.
Ainda sem acreditar que tinham conseguido escapar com vida, subiram a escada
e entraram no hospital. A horda de mordedores ao redor da ambulâcia pulava e
tentava alcançá-los, num impulso tão involuntário e sem propósito quanto o peixe
que tenta mordiscar um dedo atrás do vidro do aquário.
Estavam todos dentro do quarto, em volta da cama coberta pelo lençol
manchado de sangue que ocultava um cadáver. Ninguém parecia confortável com
sua presença ali, tampouco fazia algo a respeito.
— Estão todos bem? — perguntou Gilberto, tentando retomar o fôlego.
— Graças ao nosso herói aqui! — Pietro colocou as mãos nos ombros de
Gustavo, balançando-o e fazendo sua cabeça pender para frente e para trás.
— Obrigado, Gustavo! — disse Gilberto, retomando o fôlego. — Eu... Você
salvou minha vida. Obrigado.
Satisfeito com sua coragem e por não ter morrido em sua missão quase suicida,
Gustavo sorria, tímido.
Pietro sabia da necessidade de reconhecer aquela vitória, mas era necessário
voltar as atenções à arriscada missão pela frente, mantendo o grupo focado.
— Todos vocês fizeram muito bem — disse o capitão, controlando o volume de
sua voz –, mas é hora de seguirmos com o plano. Não temos tempo para descanso.
Precisamos passar pelo corredor e subir um andar pela escadaria D. Só lá em cima
estaremos em segurança.
Em um momento de silêncio, em que todos pensavam nas palavras de Pietro e
tomavam coragem para seguir em frente, um inesperado grito abafado de dor
irrompeu por detrás das paredes: — Aaaaaarghh! Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaarghhhh!
Até mesmo Pietro pareceu aterrorizado com os gritos. O homem que gritava
parecia estar sendo torturado ou assassinado de forma cruelmente dolorosa.
— Carlinhos, venha comigo — comandou Pietro, baixando ainda mais o
volume de sua voz.
Pietro pegou sua Glock e a recarregou. Encaixou-a de volta em seu coldre e
segurou uma barra de ferro em sua mão direita. Carlinhos vinha logo atrás dele,
segurando um martelo com as duas mãos e o revólver repousando em sua cintura.
O militar abriu a porta com cautela e observou a situação.
O corredor parecia deserto, apesar de indícios claros do tumulto que havia
ocorrido ali. Macas tombadas de lado, manchas de sangue seco pelas paredes e
diversos equipamentos e materiais médicos espalhados pelo chão. Os gritos
diminuíram de intensidade, dando lugar a um gemido abafado, mas Pietro tinha
certeza de que era a mesma pessoa e que o som vinha de um quarto a poucos
metros dali, na mesma direção em que a escadaria deveria estar.
Pietro adentrou o corredor, fazendo um sinal para que Carlinhos o seguisse.
Mantendo a postura levemente curvada, dando passos rápidos e silenciosos, o
capitão foi até a porta do quarto de onde vinham os gritos, agora reduzidos a um
som espasmódico e molhado, como engasgos de alguém se afogando.
Parado ao lado da porta aberta, com as costas contra a parede, Pietro podia
ouvir sons de deglutição, mastigação e outras profanidades que imaginava que
estavam ocorrendo ali dentro. Alguns metros à frente, viu uma porta de escadaria,
do tipo “corta-fogo”, com uma letra D pintada na parede acima. A escadaria,
pensou. Teriam que passar pelo maldito quarto para chegar ao andar de cima.
Pietro respirou fundo e olhou para dentro do quarto 212.
Ao menos trinta mordedores estavam lá dentro, disputando um pedaço de um
pobre coitado amarrado à cama. A traqueia tinha sido dilacerada, assim como seus
braços, pernas, tronco e todo pedaço de carne que os malditos puderam cravar os
dentes.
Assim que recuperou-se do choque inicial, Pietro alcançou a maçaneta da porta
e, ao puxá-la, os olhos vermelhos de um dos malditos se cruzaram com os seus.
Fechou a porta rapidamente.
— Rápido... — Pietro sussurrou para Carlinhos, enquanto segurava a maçaneta
da porta, puxando-a para cima — Leve todos para a escada. Sem barulho!
Ambos estavam surpresos com a falta de reação dos mordedores. Esperavam
correria e ataques furiosos à porta fechada, mas nada ouviram além dos sons
abafados do festival gastronômico grotesco do quarto 212.
Apesar da falta de retaliação por parte dos mordedores, Pietro continuou
segurando a maçaneta enquanto Carlinhos foi até o quarto e voltou com o grupo,
que seguiu o mais silencioso possível em direção à escadaria D, cerca de vinte
metros à frente.
Pedro e Talita tinham seus rostos enterrados contra os corpos de seus pais. Eram
carregados pelo corredor, levando mais tempo que Pietro gostaria. Marlene,
grávida, também não se movia com tanta velocidade, mais de uma vez recebendo
gestos do capitão para que acelerasse o passo.
Quando o grupo já estava na metade do caminho, Pietro sentiu peso sendo
colocado na maçaneta do outro lado da porta, forçando-a para baixo. Ele
intensificou sua força no sentido contrário, mantendo-a firmemente fechada. Em
seguida, um grito de raiva foi proferido do lado de dentro do quarto, seguido por
agitação e gritos dos outros infectados trancados ali.
— Corram! — gritou Pietro, abandonando o tom de sussurro.
O grupo acelerou o passo até chegar à escadaria. Carlinhos foi o primeiro a
chegar, mas, com medo do que encontraria do outro lado, deixou que Gustavo
abrisse a porta. Não havia ninguém na escadaria, ao menos neste andar. Os dois
entraram e foram seguidos pelos demais.
Socos e chutes eram proferidos contra a porta do 212, mas Pietro segurava com
firmeza. Foi então que ele viu aquilo que mais temia desde que decidiu fechar
aquela maldita porta.
Ao final do corredor, cerca de trinta metros depois da escadaria D, uma
enfermeira saiu de um dos quartos. Seus trajes verdes estavam quase inteiramente
tingidos de vermelho, manchados pelo mesmo líquido escarlate que escorria de sua
boca. Ela inclinou sua cabeça de lado ao observar os intrusos passando livres por
seu território. Seu rugido furioso ressoou por todo o corredor, despertando o mais
primal instinto de medo em sua nova presa: Pietro. Ele largou sua barra de ferro,
largou a maçaneta da porta e pôs-se a correr.
Sem a opção de correr para trás, pois ficaria cercado, Pietro correu na direção
da escadaria, que estava entre ele e a enfermeira. A mordedora corria com a
agilidade de uma atleta, diferente da maioria dos infectados, que tinham alguma
escoriação ou falta de coordenação motora. Pietro sacou sua arma, e quando já
estava em frente à porta, parou, mirou e disparou dois tiros contra a mulher.
A enfermeira teve o lado direito de seu corpo empurrado para trás com os
impactos dos tiros, fazendo seu tronco girar parcialmente, com ferimentos de bala
no ombro e no seio, mas isso não fez com que ela caísse ou parasse de correr.
Apesar do curto espaço de tempo em que isso se sucedeu, Pietro não se
desesperou nem se deixou superar pela persistência da maldita. Usando peso, força
e a velocidade da infectada a seu favor, ele levantou seu pé direito e aplicou uma
benção, ou chute frontal, no peito dela. A velocidade com que ela corria na direção
do pé de Pietro causou tamanho impacto em sua caixa torácica que a mulher ficou
suspensa no ar por um instante, como se estivesse colada à sola do coturno preto,
suspensa sob o chão por um milésimo de segundo, antes de cair de costas no piso e
perder seu fôlego — para sempre.
A porta do 212 foi aberta por dentro. Mordedores ensandecidos eram cuspidos
para fora do quarto como se fossem vespas saindo de uma colmeia golpeada por
um garoto inconsequente.
Pietro encostou o cano de sua arma na maçaneta da porta metálica que separava
o corredor das escadas e apertou o gatilho, disparando um projétil que despedaçou
o puxador do lado do corredor. Aquilo não os seguraria para sempre, mas ao menos
ganhariam alguns segundos. Apressou-se para o outro lado da porta e fechou-se
com o restante do grupo.
Seu irmão e os demais já estavam no andar de cima, onde uma barricada
bloqueava parcialmente as escadas, com apenas um pequeno vão que tinha sido
aberto para que os sobreviventes passassem. Pietro, que já era um senhor de
cinquenta e cinco anos, subiu os últimos degraus com grande dificuldade e uma dor
no baço digna de quem acabou de correr uma maratona.
Passando pelas tralhas que bloqueavam a passagem, Pietro viu seu irmão
abraçado com Monique e Maria Rita. A visão dos três chorando de alegria
enquanto se apertavam e beijavam fez com que ele esquecesse toda a dor e
cansaço.
Pietro escondeu suas lágrimas ao ajudar Jorge e Gustavo a montar a barricada
novamente.
11 - O Bem, O Mal e Além Digão tinha meia torta de frango à sua
frente, enquanto divagava em pensamentos distantes. Os outros conversavam sobre
algo sem importância e fartavam-se em frituras e salgados diversos. Não sabiam
quanto tempo ficariam ali, portanto o líder dos seguranças, Lúcio, decidira que
comeriam somente alimentos perecíveis nos primeiros dias.
Pensava em sua família em Guarulhos. Da última vez que conseguiu falar com
sua mãe, eles ainda não tinham percebido nada anormal: nenhuma epidemia,
nenhum par de olhos vermelhos ou pessoas com sede de sangue. Isso há mais de
dois dias, não tiveram nenhum contato desde então. Meu pai vai dar cabo de
qualquer raivoso que tentar chegar perto de casa... com certeza, pensava rindo
sozinho ao lembrar do contraste entre a figura carrancuda de seu pai e a pessoa
gentil que ele era com os mais chegados. Sua atenção voltou para a conversa dos
outros seguranças quando ouviu Lúcio dizer: — A gente precisa subir barricadas
nas escadarias do nosso andar. Bloquear o acesso.
— Os raivosos já estão presos no segundo andar — disse Roger, constatando o
óbvio.
Era comum os funcionários de hospitais chamarem os infectados de raivosos
por causa de boatos que se espalharam entre profissionais de saúde no início da
epidemia, dizendo que estavam lidando com um vírus de Superraiva. Estes boatos
surgiram devido às semelhanças com sintomas apresentados em animais infectados
com raiva comum e a similaridade na forma de contágio. Esta hipótese foi
descartada pelos pesquisadores e o novo vírus foi nomeado Febre Vermelha,
devido aos sintomas de febre e os olhos vermelhos nos infectados, além da
propagação de violência e mortes que a epidemia causava na sociedade. Mesmo
assim, a denominação “raivosos” continuou sendo utilizada para se referir aos
enfermos em estágio agressivo, assim como outros os chamavam de mordedores,
malditos, demônios ou simplesmente infectados.
— Não estou preocupado com os raivosos agora, Roger. Minha preocupação é o
pessoal do Maurão — disse Lúcio, se referindo aos sobreviventes que estavam sob
a liderança do Doutor Mauro Dias, único sobrevivente do corpo diretivo do
hospital. — A gente vai liberar uma mixaria de comida pra eles calarem a boca,
mas quando cortarmos essa mamata eles vão ficar putos.
Digão sentiu um familiar desconforto ao ouvir sobre distribuição, ou falta de
distribuição, de comida. Ele tinha sido voto vencido quando discutiram o plano de
tomar posse dos alimentos da cafeteria, ao invés de distribui-los igualmente.
Apesar de não estar confortável com a forma como lidavam com a situação, Digão
não fez nada a respeito. A decisão do grupo foi tomada e ele sabia que era melhor
estar do lado dos vencedores do que estar com os demais, passando fome. Sua
prioridade era sobreviver até que algum tipo de resgate chegasse e possibilitasse
seu retorno para casa. Só precisava abafar a inconveniente voz de sua consciência
até isso acontecer.
— A gente podia ficar no terraço do heliponto. — sugeriu Galvão — Lá só tem
uma escadaria. É mais seguro.
Lúcio suspirava, balançando a cabeça em reprovação à ideia antes mesmo que
Galvão terminasse de falar. Assim que o colega concluiu o raciocínio, Lúcio
respondeu: — E se chover, seu narigudo? A gente fica debaixo desta sua napa
gigante pra se esconder da chuva e não molhar a porra da comida toda?
Todos gargalharam, exceto Thales, um sujeito extremamente reservado e o mais
velho dos cinco seguranças, com quarenta anos de idade. Digão nunca ouviu
aquele homem se pronunciar a menos que fosse uma obrigação formal ou algo
crucial. Na manhã anterior, ao lutarem lado a lado contra os infectados, as únicas
palavras que ouviu da boca de Thales foram “me dê cobertura” e “corra”. Em
ambas ocasiões, Digão respondeu: “Sim, senhor”.
— O heliponto é uma boa área de recuo — comentou Lúcio, após refletir um
pouco. — Se formos pegos de surpresa pelo Maurão ou pelos raivosos, recuaremos
pra lá. Mas, por enquanto, vamos focar nossos esforços em construir uma barricada
nas escadarias pro terceiro andar.
Lúcio ficou um instante em silêncio, tentando estimar quanto tempo a atividade
levaria e o tempo que teria até que um dos imbecis do terceiro andar viesse encher
o seu saco, então disse: — Em umas quatro horas a gente consegue fechar as
quatro escadas. Galvão e Thales, no final da tarde preciso que vocês vão ao
segundo andar pra “fiscalizar” o trabalho que eles fizeram na limpeza do andar —
Lúcio explicou, gesticulando as aspas ironicamente –, só pra enrolar eles até a
gente terminar o que precisamos fazer aqui. Beleza?
Os dois assentiram. Nenhum deles achou má ideia livrar-se da tarefa braçal de
preparar os bloqueios nas escadas. Lúcio apontou para uma mochila que estava em
um canto da cafeteria e complementou: — Se não entregarmos comida pra eles,
podemos ter problemas. Levem aquela mochila com algumas barrinhas de cereal
quando forem descer. Ninguém gosta desta bosta mesmo...
Todos, com a exceção de Thales, riram novamente.
Assim que cada um terminou sua refeição, eles começaram o trabalho nas
escadas, iniciando pela escadaria A, do lado oeste. Se tivessem escolhido começar
pela escadaria D, ao leste, teriam visto a ambulância de Pietro e Gilberto se
aproximando do hospital ou ouvido os tiros que foram disparados daquele lado do
prédio.
O grupo estava reunido em um quarto no terceiro andar do hospital. Gustavo
assistia ao reencontro da família de Gilberto. Após perder Bia e seus amigos em
um único dia, ele não acreditava que uma família poderia sobreviver inteira àquela
praga e à violência que ela trazia. Presenciar o reencontro da família Giovannini,
sendo ele um dos responsáveis pelo acontecimento, trazia ao rapaz um sentimento
reconfortante.
A expressão de felicidade no rosto de Maria Rita fez Gustavo pensar em seus
pais. Sabia que eles estavam na Europa, fazendo um tour pelas rotas de vinho na
França, Itália ou algum outro roteiro que ele não fizera questão de memorizar
quando sua mãe lhe disse. A forma como ela contava seus planos nos mínimos
detalhes sempre fazia com que Gustavo não prestasse atenção em detalhe algum do
que ela estava dizendo, nem mesmo o nome do país onde ela estaria. Agora ele não
conseguia contato com nenhum deles, sem saber onde estavam ou quando
voltavam. Puta que o pariu. Não voltem pra cá agora, por favor, pensava o rapaz,
instantes antes de se questionar se a situação estava melhor onde quer que eles
estivessem. Pensava no quão assustadora era a velocidade que aquela doença se
espalhava e na quantidade de gringos que vinham para o Brasil passar o ano novo,
retornando aos seus países nos primeiros dias do ano. Será possível que alguém
levou este inferno pra outros lugares do mundo? Já devem ter cancelado os voos
do Brasil pra outros países, mas será que isso é suficiente?
André aproximou-se de Pietro, deixando sua esposa cuidando das crianças em
um canto próximo à porta, e disse: — Pietro, nós agradecemos muito sua ajuda até
aqui. Devo a minha vida e minha família a você — o pastor olhava pela janela
enquanto falava –, mas agora que finalmente encontramos um lugar seguro, quero
manter minha família em segurança.
Apesar da tentativa de André em ser discreto, todos prestavam atenção na
conversa. Pietro sabia que outros podiam compartilhar as preocupações deste
homem. Direcionou sua resposta a todos.
— Eu sei que passamos pelo inferno nos últimos dias e, na verdade, temos
muita sorte de termos sobrevivido — disse Pietro. — O problema é que ainda não
estamos seguros aqui. Mesmo depois que resolvermos a situação com os
seguranças do andar de cima, não estaremos seguros. Vocês sabem do que estou
falando, vocês viram como os malditos viraram a ambulância lá embaixo. As
barricadas não vão segurá-los para sempre. A comida desse lugar não vai durar
para sempre.
— O governo vai resolver a situação de alguma forma! — exaltou-se André. —
Eu sei que você quer sair por aí e salvar o mundo ou sei lá o quê, mas eu tenho
duas crianças e minha esposa pra cuidar e não posso correr esse risco.
— Droga, André! Vocês estão correndo um risco maior ficando aqui! — disse
Pietro.
O pastor esticou sua mão direita e esperou, até que o militar desistiu de
convencê-lo e retribuiu o gesto, apertando sua mão.
— Muito obrigado, amigo. — disse André, sacudindo a mão de Pietro —
Estaremos no quarto ao lado se precisarem de alguma coisa.
Letícia despediu-se de Marlene e fez um gesto aos demais, sendo imitada por
Talita. Pedro abraçou Gustavo, que retribuiu o gesto e resmungou: — A gente se vê
por aí, velhinho.
Após a saída da família de André, seguiu-se um longo silêncio dentro do quarto,
até que Pietro começou a falar: — Confiem em mim quando eu digo: precisamos
nos mexer. Com a velocidade com que esta doença se espalha, uma cidade
populosa como São Paulo é o último lugar onde eu gostaria de estar.
Assim que fez uma pausa, Pietro pôde sentir a tensão crescendo em cada um
dos que escutavam seu breve discurso. Deu alguns segundos para que todos
compreendessem o risco que corriam ali e continuou: — Meus contatos do
Exército enviarão um helicóptero amanhã ao nascer do sol, para resgatar um grupo
pequeno de civis, ou seja, nós. — apesar de não ser esta a principal função do
helicóptero que iria ao hospital, Pietro não estava mentindo sobre o resgate. Major
Alexandre, seu antigo companheiro de serviço militar, havia concedido esta
condição em troca das informações que Pietro tinha em seu pen drive. — Cada um
de vocês é livre para decidir o que é melhor para si, mas, se decidirem vir comigo,
terão que seguir as minhas instruções. Estão de acordo?
Todos pareciam concordar, até que Jorge perguntou: — Essa base militar, como
ela é?
— Eu não entrei em detalhes na conversa com o Major — disse Pietro –, mas é
o centro de pesquisas que eles montaram para solucionar a situação da epidemia.
Imagino que seja em uma universidade ou laboratório, com a segurança reforçada
pelos militares e estocada com suprimentos e o que mais for necessário.
Jorge olhou para sua esposa, sentada em uma poltrona, com as mãos sobre sua
enorme barriga de grávida.Virou-se para Pietro e expôs sua preocupação: — Não
sabemos quanto tempo teremos que ficar lá. Se vamos sair do hospital, preciso ter
certeza de que teremos condições de cuidar da minha esposa.
Pietro estava de pé com as mãos na cintura e ficou algum tempo olhando para o
chão, tentando formular uma solução para aquilo, até que William levantou sua
mão e disse: — Eu não sou obstetra, mas sei o necessário para acompanhar a
gravidez da sua esposa e até mesmo realizar o parto, se é esta sua preocupação. Só
acho prudente levarmos alguns equipamentos e medicamentos daqui, porque eles
não devem ter isto em um centro de pesquisas.
Jorge pensou um pouco, ponderando suas opções. No final das contas, sua
escolha se resumia a ter ou não fé de que o governo resolveria a situação antes de
que a comida do hospital se esgotasse, e fé nas autoridades não era seu forte.
— Firmeza, doutor. — concordou Jorge — A gente leva tudo o que você
precisar.
Todos, com exceção da família de André, estavam de acordo com o plano de
Pietro. Monique levantou-se e disse: — Nós temos outro problema. Os seguranças
do hospital tomaram posse da cafeteria e toda a comida do hospital.
— A gente vai vazar amanhã cedo — disse Carlinhos.
— Acho que temos comida o bastante pra passar um dia — complementou
Jorge.
— Todas estas pessoas estão sem comida! — disse Monique, apontando para a
parede, na direção onde mais de trinta sobreviventes trabalhavam na limpeza dos
outros quartos. — Se isso não é motivo o suficiente para fazermos alguma coisa, os
seguranças armados estão no andar de cima, no caminho do heliponto. Acha que
eles vão deixar a gente passar, ainda mais se ouvirem o helicóptero chegando?
Carlinhos e Jorge suspiraram simultaneamente, pegos de surpresa por mais esta
adversidade.
— Monique está certa. — disse Pietro — É de interesse de todos que a situação
com estes seguranças seja resolvida. Monique, diga o que houve desde que você
chegou e explique os detalhes da situação. Precisamos de um plano.

O sol começava a se pôr no horizonte quando Galvão e Thales passavam pela


porta da escadaria do terceiro andar. O corredor estava deserto, exceto por dois
homens que os esperavam.
— Doutor Mauro Dias — disse Galvão –, como estão os trabalhos por aqui?
Conseguiram tirar o lixo?
— Todos os infectados foram movidos — respondeu o médico. — Vocês
trouxeram nossos alimentos?
— Calma lá, apressado! — debochou Galvão. — Primeiro vamos inspecionar
quarto por quarto e garantir que vocês não esconderam nada debaixo do tapete.
— Onde estão os outros? — perguntou Thales, com sua voz grave e inesperada.
— Pedimos que eles ficassem nos quartos enquanto falamos com vocês —
respondeu Pietro. — A fome deixou muitos com os ânimos exaltados. Queremos
resolver isso o mais rápido possível e sem nenhum problema.
— Eu não lembro de você, Doutor... — dizia Galvão, procurando uma
identificação no jaleco de Pietro.
— Pietro, mas não sou doutor. O jaleco é só para diminuir o risco de
contaminação.
Galvão deu as costas e começou a caminhar até o primeiro quarto a ser
inspecionado, resmungando: — Velho fresco.
A inspeção foi feita de forma desnecessariamente demorada, deixando claro
para Pietro e Mauro que eles estavam tentando ganhar tempo por algum motivo.
Cada um dos quartos do andar foi aberto e inspecionado pelos dois seguranças
armados em movimentos cautelosos, quase teatrais. Alguns dos quartos tinham
sobreviventes hospedados, então Galvão pedia que eles olhassem em seus olhos,
para que ele desse seu diagnóstico, dizendo se a pessoa estava infectada ou não.
Nenhum dos trinta e dois sobreviventes apresentava olhos vermelhos, portanto
Galvão deu-se por satisfeito.
O processo inteiro demorou cerca de duas horas para ser concluído. Pela janela
ao final do corredor da ala leste, já se via o céu escuro quando eles verificaram o
último quarto, onde estavam Jorge e sua esposa.
— Ok — disse Doutor Mauro, quando já estavam de volta no corredor –, vocês
confirmaram que não há infectados neste andar. Agora podem nos dar o que é
nosso?
Thales e Galvão trocaram olhares, com ar de deboche. Galvão disse: — Claro,
está aqui.
Ele tirou a mochila do ombro e jogou no chão, aos pés do doutor.
— Isso é alguma piada? — questionou Doutor Mauro ao abrir a mochila e
encontrar duas caixinhas de barras de cereais. — Isso não é o suficiente para
alimentar a todos. Vocês têm um estoque de comida lá em cima!
— Fique agradecido por ter alguma coisa pra comer hoje, doutor — disse
Galvão. — Se preferir, fiquei sabendo que abriu um restaurante japa muito bom na
esquina de baixo do hospital.
Doutor Mauro olhava para as barrinhas que tinha nas mãos, finalmente
convencido de que o plano de Pietro era necessário.
Galvão deleitava-se com a frustração do doutor à sua frente quando ouviu um
Click! às suas costas, o som inconfundível de um revólver sendo engatilhado. Logo
em seguida, ouviu uma voz arranhada com sotaque caiçara dizendo: — Fica
pianinho os dois e larga os cano.
Os dois viraram-se rápido e viram a figura esguia de Carlinhos, segurando seu
trinta e oito virado de lado, como um gangster saído de um filme americano,
apontado para o peito de Thales. De imediato, os dois seguranças sacaram e
apontaram suas armas para o caiçara, aumentando a tensão entre os três.
— Cêis acha que eu não dou conta de dois? — disse Carlinhos — Abaixa os
cano, porra!
— Você é só um, magrelo! — disse Galvão, surpreso com a audácia do infeliz,
mas sem deixar-se intimidar.
— Conta de novo, seu puto! — disse Carlinhos, fazendo um gesto com a cabeça
que apontava para trás dos dois seguranças.
Antes que Galvão e Thales olhassem para trás, ouviram o Click! Click! de duas
armas sendo engatilhadas atrás deles. Pietro apontava sua pistola Glock 21 para
Thales. Jorge, que tinha saído do quarto para o corredor, estava com seu revólver
calibre trinta e oito apontado para Galvão.
Houve um longo momento de tensão em que ninguém pronunciou uma palavra
ou se moveu, até que os chefes se renderam, erguendo as mãos com os dedos fora
dos gatilhos.
— Armas no chão! — ordenou Pietro. — Devagar.
Os dois ficaram de frente para Pietro e Jorge. Devagar, abaixaram-se, colocaram
suas armas no chão e levantaram-se outra vez.
A situação parecia controlada, porém Galvão foi surpreendido por Carlinhos
com uma coronhada na nuca. O impacto do cabo do revólver contra a parte
posterior da cabeça do segurança empurrou-o para frente, e ele já estava desmaiado
quando seu nariz atingiu o chão e foi fraturado, emitindo um sonoro Crack!.
Thales abaixou-se em direção a sua arma, mas não teve a menor chance de
sucesso em pegá-la. Pietro continuou apontando sua arma para ele. Jorge abaixou-
se e golpeou a cabeça do segurança com o cano de sua arma, nocauteando-o.
— Quem é o magrelo agora, seu puto? — vociferou Carlinhos, posicionando-se
com um pé sobre as costas de Galvão e aproximando o trinta e oito de sua cabeça.
— Carlinhos, não! — disse Jorge, quase gritando. Carlinhos olhou para ele,
tirando o dedo do gatilho. Depois explicou: — Os caras vão ouvir no andar de
cima, porra! Vamos amarrar eles aqui e deixar com o doutor.
Mauro, que não estava acostumado com esse tipo de violência, assentiu a
contragosto, pois não havia outra opção. Carlinhos sacou as abraçadeiras zip tie
que pegou da oficina e começou a imobilizar os dois.
Aos poucos, todos os sobreviventes saíram de seus quartos. A família de
Gilberto, Gustavo e Marlene juntaram-se ao grupo. De forma natural, tomaram
uma posição de liderança dentre os sobreviventes no hospital.
— Quantos seguranças você disse que estavam lá em cima, Monique? —
perguntou Gustavo.
— Eram cinco — respondeu Monique, olhando para os dois caídos no chão.
Gus pegou a pistola de um dos seguranças do chão, olhou para Pietro e
perguntou: — Vamos resolver essa parada agora?
Pietro estava surpreso com a iniciativa do jovem, mas ainda assim achava que
ele não estava preparado para uma missão deste tipo. Respondeu: — Não acho que
seja uma boa ideia você mexendo com isso, Gustavo.
Gustavo apertou um botão na lateral da pistola, soltando o pente em sua mão.
Constatou que ainda tinha sete balas. Colocou o pente de volta e puxou o ferrolho,
deixando uma bala na agulha. Ele tinha visto filmes o suficiente para manusear
uma arma. A ideia de realmente apontar e atirar contra uma pessoa ainda era
assustadora, mas deixaria para pensar nisso quando fosse necessário.
— Eu, você, o grandão e o magrelo. Sem ofensas, Carlinhos — Gustavo disse, e
voltou seu olhar para Pietro. — Ainda falta mais uma pessoa que saiba usar uma
arma. Beakman?
Antes que Gilberto pudesse se pronunciar, Pietro disse: — Meu irmão não tem
experiência com armas de fogo.
A habilidade de Gilberto com uma pistola era a menor das preocupações de
Pietro. Ele simplesmente não estava pronto para separar seu irmão de sua família,
especialmente para uma missão tão arriscada.
O capitão não subestimava o risco que correriam ao passar pelas escadas, pois
sabia o quão perigoso podia ser ameaçar tirar do trono alguém que recentemente
tinha provado algum tipo de poder. Nenhuma de suas missões nas favelas do Haiti
tinham sido resolvidas à base da diplomacia, e ele não esperava que fosse diferente
com os auto-entitulados chefes do hospital.
Enquanto isso, Monique fuzilava sua filha com um olhar repreensivo, por ter
percebido que a garota estava considerando se oferecer para a missão. Rita estava
prestes a ignorar sua mãe e falar alguma coisa, quando um dos outros
sobreviventes deu um passo à frente, sinalizando que era um voluntário.
— Qual o seu nome, senhor? — perguntou Pietro.
— Roberto — respondeu o homem de quarenta e cinco anos, que usava um
boné de caminhoneiro e roupas largas demais para seu corpo magro e comprido. —
Eu sei atirar, se é o que vocês precisam, e está mais do que na hora de resolvermos
isso.
— Ótimo, Roberto! — disse Pietro, entregando-lhe uma arma e passando seu
olhar por cada um dos voluntários. — Nossa equipe está completa. Vamos!
Pietro, Gustavo, Jorge, Carlinhos e Roberto entraram na escadaria D, a mais
próxima de onde estavam. O capitão ia à frente do grupo quando, para a surpresa
de todos, encontraram uma barricada bloqueando o acesso para o quarto andar.
Pietro fez um sinal para que voltassem em silêncio. Assim que saíram da escadaria,
Pietro fechou a porta atrás de si e falou: — Era por isso que os filhos da puta
estavam tentando ganhar tempo. Querem prender a gente aqui embaixo.
Cada um usou seu xingamento de preferência. Gustavo disse: — Eles não
devem ter terminado o serviço. Ainda tem dois deles aqui embaixo.
Concordando com o rapaz, Pietro guiou o grupo até a escadaria B, de onde os
dois seguranças tinham vindo. Roberto avisou que esta era a escadaria que saía ao
lado da cafeteria. A simples menção daquele lugar fez seu estômago roncar de
fome. Ele não comia nada há quase vinte e quatro horas.
Entraram na escadaria B. O cheiro que vinha dos andares de baixo era ainda
pior que o sentido nos corredores do terceiro andar. Pessoas mortas pelos
mordedores há mais de três dias ainda estavam nos andares inferiores, apodrecendo
como animais atropelados à beira de uma estrada. Meia dúzia de infectados
tentavam forçar passagem pela barricada entre o segundo e terceiro andar,
inutilmente. O cheiro deles também não era nada agradável. O odor do sangue
apodrecido em suas roupas se misturava à catinga de fezes e urina que enchiam
suas calças e escorriam por suas pernas.
Subiram a escada para o quarto andar com as armas em mãos. Encontraram
macas, poltronas e uma cama do hospital posicionadas nos degraus do topo da
escadaria, bloqueando parcialmente a passagem. Os seguranças já estavam quase
concluindo a barricada, mas provavelmente tinham ido buscar mais objetos para
terminar o serviço assim que seus amigos voltassem do andar de baixo.
Pietro posicionou-se atrás da porta de acesso ao corredor, tentando ouvir o que
se passava do outro lado. Silêncio. Abriu a porta com velocidade, sem fazer
barulho e apontando sua arma para o corredor. Estava vazio. Agora, com a porta
aberta, pôde ouvir sons de móveis sendo arrastados dentro de um quarto próximo.
Sinalizou para que os demais o seguissem até lá rapidamente.
Ao espiar dentro do quarto que estava com a porta aberta, o capitão viu dois
homens arrastando uma cama hospitalar sem colchão. Num movimento rápido e
coordenado, Pietro, Jorge e Gustavo entraram no quarto, com suas armas apontadas
para Lúcio e Digão. Ao verem que estavam em menor número e com armas
apontadas às suas cabeças, soltaram a cama e ergueram as mãos.
— Só tem dois aqui — disse Pietro. — Cadê o terceiro?
— Que terceiro? — perguntou Lúcio.
Pietro sabia que eles não iam colaborar. Mesmo que usasse de ameaças ou
violência, esses homens acreditavam que o amigo deles era a única chance que eles
tinham para sobreviver, portanto não revelariam onde ele estava.
— Jorge, dá uma geral neles — disse Pietro.
Jorge caminhou até os dois, ainda com sua arma em mãos e posicionou-se atrás
de Digão, inspecionando-o. Encontrou uma pistola em sua cintura e uma faca
amarrada na canela. Lúcio e Digão continuavam imóveis e com as mãos erguidas,
pensando no que fazer para sair desta situação, quando ouviram um tiro sendo
disparado no corredor. Todos focaram suas atenções na porta. Ao ouvir um
segundo tiro sendo disparado fora do quarto, Lúcio pegou uma pistola do seu
colete e virou-se para Jorge.
BAM!
O tiro disparado de dentro do quarto acertou Lúcio no ombro direito, fazendo-o
derrubar sua arma. Pietro olhava surpreso para a arma fumegante de Gustavo.
— O próximo vai na cabeça, seu merda! — disse Gustavo.
Do lado de fora do quarto Roberto jazia imóvel no chão. O primeiro tiro
disparado do outro lado do corredor atingira sua orelha direita e a bala ainda estava
alojada em algum lugar de seu cérebro morto. Carlinhos caminhava em direção ao
fim do corredor, com uma mão segurando sua arma e a outra sobre o ferimento em
sua barriga. O filho da puta tinha disparado uns cinco tiros, acertando um na
cabeça de Roberto e um em seu bucho, antes que Carlinhos conseguisse atingi-lo.
— Uuuurgh! — Roger gemeu, deitado no chão, encolhido e com as mãos sobre
o ferimento em seu peito. Abriu os olhos e viu aquele homem magrelo, de cabeça
raspada e cavanhaque à sua frente, com o rosto branco como o teto acima dele. —
Pode pegar a comida — Roger murmurou, enquanto o homem erguia seu revólver.
BAM!
Carlinhos disparou um tiro em sua testa, sem qualquer interesse no que aquele
puto tinha a dizer.
Jorge saiu do quarto e avaliou a situação no corredor, vendo o exato momento
em que Carlinhos desabou ao lado do segurança morto. Correu até seu amigo
caído, desesperando-se com sua palidez mórbida.
— Vai ficar tudo bem, meu irmão — disse Jorge, pensando se era melhor
carregar seu amigo até o andar de baixo ou trazer William até ele. — A gente tá
numa porra de um hospital. Vamos cuidar de ti e vai ficar tudo bem.
Carlinhos sofria com a dor terrível em suas entranhas, mas juntou suas forças e
disse: — Cuida da tua família, irmão. Cada um cuida dos seus, lembra?
Jorge pensava no que dizer para tranquilizar seu amigo, quando ele começou a
soluçar e cuspir sangue em uma convulsão violenta. Segurou sua cabeça, sem saber
o que fazer, até que ele parou de se debater. Seu peito não se mexia, porque já não
respirava mais. Sangue escuro escorria do canto de sua boca. Carlinhos estava
morto.
Dentro do quarto, Pietro e Gustavo controlavam os dois seguranças rendidos.
— Vamos lá — Pietro disse–, mãos na cabeça e barriga no chão.
Lúcio obedeceu. Digão continuava de joelhos, com as mãos na nuca.
— Vocês não precisam fazer isso, cara. A comida é toda de vocês. A gente sai
do hospital. — secreção escorria de seu nariz, descendo até seu queixo. Lágrimas
umedeciam todo seu rosto, refletindo a luz branca do quarto de hospital. — Não
mata a gente, cara, por favor!
Pietro colocou a sola do pé em suas costas e forçou-o até o chão, ao lado de
Lúcio.
— É o que vocês merecem: um tiro na nuca de cada um! — disse Pietro.
Gustavo olhou para ele, sem saber se era uma ameaça vazia ou se ele estava
falando sério. Pietro olhou de volta para o jovem, dando uma piscadela que
sinalizava que ele não tinha intenção de executar ninguém ali.
— Ele que quis pegar toda a comida! — disse Digão, com a sola do coturno em
suas costas e a cara sendo esfregada no chão. — Eu não devia ter ido junto, mas
não podia ir contra eles!
Nem Gustavo nem Pietro viram Jorge entrando no quarto. Ninguém notou como
ele carregava uma arma em cada mão e os dedos nos gatilhos ao se aproximar dos
dois seguranças. Quando o viram em frente aos seguranças, era tarde demais.
— Jorge, você... — dizia Pietro, quando Jorge atirou com as duas armas ao
mesmo tempo, alvejando o crânio dos dois homens que estavam deitados de bruços
e desarmados.
O juiz e carrasco não fez distinção entre mandante e comandado. Uma bala para
cada um, sem jurisprudência, atenuantes ou direito a defesa.
Em silêncio, Jorge baixou as armas e guardou-as em sua cintura, dando as
costas a Pietro, Gustavo e aos mortos daquele quarto. Caminhou pelo corredor até
o corpo de Carlinhos e sentou-se no chão, vasculhando os bolsos da calça do
defunto. Encontrou o que procurava: um maço vermelho e um isqueiro bic.
Carlinhos era o fumante da dupla e ele era o cara saudável, mas isso não importava
agora. Colocou um cigarro na boca, acendeu e fumou, pela primeira vez na vida.
12 - Sacrifício
Eram quase cinco horas da manhã quando tenente Salvador saiu de seu
dormitório, caminhando apressado pelos corredores do centro de pesquisas militar
até a sala do major Alexandre.
Sua mãe lhe dera o nome de Diogo, mas desde os dezoito anos de idade, quando
entrou para o Exército, tornou-se conhecido como Salvador. No início, era
chamado assim devido ao seu forte sotaque soteropolitano, mas o fato de ele ter
trabalhado por anos em missões de resgate aéreo fizeram com que o apelido
ganhasse um novo significado e se perpetuasse. Agora quase ninguém lembrava de
seu nome de registro.
Salvador bateu três vezes na porta fechada e esperou.
— Entre! — ordenou a voz do outro lado.
O tenente abriu a porta, deparando-se com o major sentado atrás de uma mesa
impecavelmente organizada, concentrado em digitar algo no teclado de seu
notebook.
Major Alexandre era um homem alto e forte. Seu cabelo estava sempre aparado
curto, no estilo militar, e seu rosto não tinha nenhum vestígio de barba. Quem o
conhecia sabia que seus cuidados com a aparência não visavam estética, mas sim a
pura e simples praticidade.
Num movimento firme, o tenente juntou seus pés e ergueu sua mão direita à
cabeça, prestando continência.
— À vontade, tenente — disse o major. — Sente-se, por favor.
Salvador baixou o braço, caminhou até a cadeira à frente da mesa e sentou-se.
Ficou em silêncio até que o major terminasse o que estava fazendo e lhe dirigisse a
palavra.
— Tenente Salvador — disse, fechando seu notebook e voltando seu olhar ao
tenente –, você tem uma nova missão de alta importância e urgência, portanto
espero que tenha recuperado suas energias durante seu descanso.
Apesar do semblante sério do major, Salvador o conhecia o suficiente para
reconhecer seu sarcasmo. O tenente estava há quatro horas no centro de pesquisas,
desde que retornara com o helicóptero carregado de suprimentos do quartel de
Piracicaba, no interior de São Paulo. Com o tempo de pouso, alimentação e higiene
pessoal, Salvador tivera menos de três horas de sono.
Para o major estar demonstrando algum tipo de humor, mesmo que fosse
sarcasmo, algo de bom deveria estar acontecendo em meio ao inferno que viviam
durante os últimos dias.
— Sim, senhor — respondeu o tenente. — Estou pronto.
— Ótimo. Um grupo de sobreviventes, liderado pelo capitão do Exército Pietro
Giovannini, está refugiado em um hospital em São Paulo. Eles estão em posse de
informações essenciais para o desenvolvimento de uma cura para o vírus.
Alexandre abriu uma gaveta da mesa, pegou um envelope marrom e entregou a
Salvador.
— Esta é sua prioridade — disse o major –, ir até o hospital e trazer um pen
drive que contém estas informações sobre o vírus ao Centro de Pesquisas.
Ao perceber que o major fizera uma pausa, aguardando uma confirmação de
que ele compreendia que era um prioridade número um, Salvador respondeu: —
Sim, senhor.
— As coisas estão cada vez mais complicadas na capital, e não sabemos quanto
tempo levará para retomarmos o controle da situação. Sua missão secundária é
resgatar Pietro e o grupo de sobreviventes, desde que esta missão não comprometa
a execução da primeira.
— Sim, senhor — respondeu o tenente.
— É fundamental que não deixe que qualquer pessoa infectada entre no
helicóptero. Qualquer sobrevivente com um ferimento suspeito ou sintomas da
Febre Vermelha deve ser impedido de embarcar a qualquer custo. Os cabos Batista
e Sousa serão seus ajudantes e estão prontos para partir imediatamente.
— Sim, senhor major — disse o tenente, levantando-se e prestando continência.
Em menos de cinco minutos tenente Salvador estava com os cabos Batista e
Sousa, levantando voo no helicóptero.

Às cinco horas e dez minutos da manhã, Gustavo acordou com um celular


tocando. Tinha ido dormir tão exausto na noite anterior que agora não tinha a
menor ideia de onde estava ou como chegara ali.
Lembrava-se dos momentos de tensão que passaram com os seguranças do
quarto andar, então seu cérebro associou a memória de seu professor de Química
Orgânica explicando como o corpo era capaz de balancear adrenalina — gerada em
momentos de tensão — com altas doses de acetilcolina, um neurotransmissor
responsável por reduzir a frequência cardíaca e estimular um sono mais profundo.
O rapaz sem dúvida tivera uma dose cavalar de adrenalina despejada em suas veias
na noite anterior, explicando o porquê do sono pesado logo em seguida.
Ao conseguir parar de divagar em memórias antigas e abrir seus olhos, viu que
estava em uma cama de hospital. No mesmo quarto estava William, sentado em um
sofá, e Pietro, já de pé e falando com alguém pelo celular. Ouviu-o dizer algo sobre
o helicóptero, fazendo com que Gustavo acordasse de vez e sentasse na cama.
— Deu certo? — perguntou o rapaz assim que Pietro guardou o aparelho no
bolso.
— A princípio, sim — respondeu Pietro, pegando um caderno preto que estava
sobre a poltrona e guardando-o em sua mochila.
Vendo aquilo, Gustavo pensou em perguntar se o capitão já estava acordado
quando o telefone tocou, escrevendo em seu caderno, mas Pietro não deu tempo
para perguntas.
— O helicóptero chegará em vinte e sete minutos. Vamos buscar os outros e
subir ao quinto andar discretamente. Não queremos que o grupo do Mauro saiba o
que estamos fazendo.
Por um momento o rapaz não sabia em qual andar estavam, mas então lembrou-
se de ter ido dormir no quarto andar, logo após ter comido alguma coisa na
cafeteria enquanto Doutor Mauro distribuía os alimentos.
— Só para confirmar — disse William, — tem lugar para mim nesse
helicóptero?
— Claro! — respondeu Pietro — Você é o parteiro.
Apesar do tom de piada, esta era a função de William agora. Ele não tinha
nenhum desejo de autopreservação antes de conhecer estas pessoas, mas agora
possuía um propósito: vidas que dependiam dele.
E eu achando que semana de provas era a pior coisa do mundo, pensou
Gustavo ao pegar a pistola de cima do criado-mudo.

Maria Rita foi a primeira de seu quarto a acordar, assim que alguém abriu a
porta. Ela imediatamente sacou uma faca de arremesso que deixara sob seu
travesseiro e preparou-se para usá-la. Ao ver que o intruso era seu tio, relaxou o
braço e sorriu envergonhada.
Gilberto e Monique acordaram com o barulho da garota se movimentando sobre
o lençol, mas ela já tinha ocultado a faca antes que eles a notassem e dessem outro
sermão sobre os perigos de portar este tipo de arma, como tinham feito na noite
anterior. Vocês me falando sobre facas? Merda, deixa eu dar uma aula de Biologia
pra vocês e ficamos quites, pensava a garota, contendo a vontade de rir.
— Estão acordados? — perguntou Pietro, sem esperar uma resposta honesta. —
Precisamos partir. O helicóptero está chegando.
Gilberto sentou-se, esfregando os olhos enquanto dizia: — Isso é ótimo.
— Temos como levar mais pessoas do hospital? — perguntou Monique,
também levantando-se.
— Não — respondeu seu cunhado. — Já foi difícil convencer o major a levar
vocês e nosso grupo.
Ao ver que Monique ainda buscava alguma solução para o que não tinha jeito,
ele complementou: — Major Alexandre coordena um centro de pesquisas, não um
refúgio. A essa altura, tenho certeza de que o Exército está organizando refúgios
para os sobreviventes em São Paulo. Se estas pessoas segurarem as pontas por aqui
por mais uns dias, haverá uma operação de resgate.
Monique convenceu-se de que era o único jeito, por mais egoísta que se
sentisse, estando prestes a fugir em um helicóptero enquanto outros ficariam para
trás.
— Precisamos de você, mon chéri — disse Pietro, usando as únicas palavras em
francês que ele conhecia, a forma que ele chamava sua cunhada desde que seu
irmão os apresentou. — Sabe-se lá quando vão conseguir encontrar algum
imunologista no meio deste caos. Você pode ajudar a resolver isso tudo.

Seguindo as instruções de Pietro, os integrantes do grupo foram um de cada vez


até a escadaria, evitando chamar a atenção dos demais habitantes do hospital. Às
cinco horas e vinte minutos da manhã, oito sobreviventes estavam agrupados na
escada: Pietro, Gustavo, os Giovannini, William, Jorge e Marlene. André e sua
família não estavam ali, mantendo a decisão de permanecer no hospital.
Pietro foi à frente, guiando o grupo até o último andar da escadaria. Ao abrirem
a porta de acesso ao heliponto, foram recebidos pela escuridão no exterior do
hospital.
— O sol vai nascer em alguns minutos — disse Pietro –, talvez antes do
helicóptero chegar.
— As luzes da rua não deveriam estar ligadas? — perguntou Maria Rita, já ao
lado de fora da escadaria.
Observaram ao redor do prédio, e toda a região do hospital tinha as luzes
apagadas, indicando que o bairro estava sem energia. Antes que alguém
perguntasse, William explicou: — O hospital tem geradores a gasolina no subsolo.
Eles são ligados automaticamente ao cair a energia.
— Quanto tempo dura o combustível dos geradores? — perguntou Monique.
— Sem reabastecer o combustível e com o hospital lotado, duraria uns dois dias
— disse William. — Do jeito que está, se economizarem, deve durar semanas.
Talvez um mês.
Passando pela porta da escadaria, caminharam por uma rampa de acesso ao
heliponto, que era utilizada por equipes de resgate para transportar pessoas em
macas quando o hospital ainda era um hospital, e não um refúgio de sobreviventes
do fim dos tempos.
Todos já estavam na plataforma com um grande círculo pintado em branco no
chão, com a letra “H” no meio, quando ouviram um homem gritar da porta da
escadaria: — O que vocês estão fazendo aqui? Precisamos de ajuda!
Mauro tinha o rosto coberto por uma máscara hospitalar. Seu jaleco estava
manchado de vermelho, respingos de sangue fresco e infectado. Ele segurava uma
barra de ferro ensanguentada, que tinha um bisturi preso por fita adesiva em sua
ponta.
O sol começava a nascer, dando um tom amarelo avermelhado às poucas
nuvens que pairavam no céu.
— O que houve? — perguntou Monique.
— Os infectados — disse Mauro, se aproximando. — Eles começaram a se
juntar depois do tiroteio de ontem e estão destruindo a barricada da escadaria B.
Fui procurar ajuda e vi vocês subindo as escadas. O que vocês...
Doutor Mauro foi interrompido pelo som do helicóptero que se aproximava.
— Doutor, a gente está indo embora — disse Pietro. — Desculpe, mas não
podemos levar todo mundo.
— Eu não quero ir com vocês — respondeu Mauro. — Aquelas pessoas
dependem de mim... e precisamos de ajuda! Nossa munição acabou e eles não
param de subir as escadas!
— Merda! — resmungou Pietro.
— Pietro — disse Monique, aproximando-se de seu cunhado –, precisamos
ajudar.
— Merda, merda, merda!
O helicóptero estava alinhado ao H pintado no chão da plataforma, cinquenta
metros acima de Monique e dos outros, começando sua descida vertical.
Pietro entregou sua mochila a Gilberto e sussurrou algo em seu ouvido. Seu
irmão olhou em seus olhos e acenou positivamente com a cabeça. O capitão
despediu-se do professor com um aperto de mão, agradecendo-o, e desceu a rampa
com o Doutor Mauro, entrando novamente pela porta da escadaria.
Assim que o helicóptero pousou, dois soldados desceram pela lateral da
aeronave e se aproximaram de Gilberto.
— Onde está Pietro? — perguntou um dos soldados, tendo que gritar para ser
ouvido em meio ao ruído das hélices da aeronave.
— Ele voltou ao prédio! — Gilberto gritou de volta — Há um grupo de
sobreviventes lá dentro e os infectados estão tentando invadir.
— Onde está o pen drive? — perguntou o soldado.
— Está com Pietro — mentiu Gilberto. — Ele pediu para vocês descerem e
ajudarem a garantir a segurança dos sobreviventes. Depois disso podemos ir
embora.
O soldado virou-se de costas para Gilberto, nervoso com a situação. Aquilo não
estava nos planos, mas suas prioridades eram claras: localizar o pen drive e levá-lo
ao Centro de Pesquisas. A missão estaria comprometida se Pietro morresse lá
embaixo e o prédio fosse tomado pelos infectados. Explicou a situação a seu
superior imediato, tenente Salvador.
— A gente precisa da porra do pen drive — respondeu o tenente, pelo
comunicador que cada um dos soldados tinha no ouvido –, mas lembrem-se do
protocolo. Ninguém volta ao CP se estiver infectado. Coloquem suas máscaras e
não sejam mordidos!
Os dois soldados marchavam com seus fuzis em mãos até a escadaria, quando
Gustavo ultrapassou-os, gritando por entre o ruído das hélices do helicóptero: —
Vamos! Eu mostro o caminho pra vocês.
Gustavo estava disposto a fazer tudo o que pudesse para ajudar Pietro e as
pessoas do hospital, inclusive arriscar sua própria vida, mas sua real motivação
para voltar àquele inferno era outra. Ainda tinha esperanças de convencer André a
fugir dali com sua família.
O rapaz entrou pela porta da escadaria, sendo seguido pelos soldados.
— Vamos, subam! — gritou tenente Salvador, acenando para que os demais
sobreviventes entrassem no helicóptero.
Jorge, Marlene e William obedeceram, mas, assim que Monique apoiou suas
mãos na aeronave, percebeu que sua filha não estava ao seu lado.
Rita tinha se afastado de seus pais e do helicóptero, recuando de costas à beira
da rampa de acesso. Quando viu seus pais olhando para si, desconfiados, ela gritou:
— Eu preciso fazer alguma coisa! — seu sangue parecia ferver em suas veias,
deixando seu busto e rosto avermelhados com a ira que crescia em seu peito. —
Aqueles filhos da puta mataram o Júlio e vão ter que pagar!
— Marie, volte aqui agora! — gritou Monique, inutilmente. Sua filha se virava
e corria em direção à escadaria.
Gilberto segurou sua esposa pelo braço, impedindo-a de correr atrás de Rita.
Ele se aproximou de seu ouvido e sussurrou: — Preciso que você fique aqui com o
pen drive — Gilberto entregou-lhe a mochila de Pietro. — Se algo der errado e não
voltarmos, isso precisa chegar às mãos do major.
Monique, desesperada para que Gilberto fosse atrás de sua filha, consentiu. Sem
tempo para se despedir, Gilberto se afastou do helicóptero, gritando.
— Fique aqui! Eu resolvo isso.
Depois que o professor entrou no edifício, Jorge ajudou Monique a subir no
helicóptero. Sentou-se à porta da aeronave e acendeu o último cigarro do maço que
tinha pego de Carlinhos. Ele sabia que podia ajudar, descendo as escadas e lutando
lado a lado com seus companheiros sobreviventes, mas sua família já estava ali, em
segurança. Se tinha aprendido algo nos últimos dias, era que cada um deveria
cuidar de si e de sua família. Se arriscar pelos outros era um erro que não voltaria a
cometer.
Encolhida sobre o banco do helicóptero, Monique chorava como não fazia há
anos. Mesmo quando descobrira que o prognóstico de sua irmã era irreversível e
fatal, Monique não ficou no estado em que se encontrava agora. A inevitabilidade
da morte de Jacqueline lhe causara uma tristeza enorme, mas a impotência frente
ao que poderia acontecer com sua filha era aterrorizante.
Por diversas vezes, Monique pensou em largar o pen drive ali e correr para
socorrer sua filha, mas, em um momento de lucidez, compreendera que não podia
simplesmente entregar as informações ao tenente. Se o fizesse, os militares não
teriam motivos para esperar que eles retornassem do hospital e poderiam muito
bem abandoná-los ali. Também não confiava o suficiente em Jorge e Marlene para
deixar a vida de todos em suas mãos, especialmente depois dos rumores sobre
como ele lidou com os seguranças na noite anterior.
Chorando e roendo suas unhas compulsivamente, Monique usava toda sua força
de vontade para fazer o que parecia impossível para qualquer mãe em sua situação:
ela esperou.

Gustavo não precisou ir muito longe para encontrar Pietro. Assim que abriu a
porta da escadaria D no quarto andar, ouviu a gritaria do outro lado do corredor.
Correu até lá com os dois soldados e encontrou Pietro e meia dúzia de homens
tentando fechar a porta da outra escadaria. Braços e pernas de ao menos cinco
mordedores bloqueavam o fechamento da porta.
O rapaz ergueu sua arma e disparou um tiro pelo vão da porta, acertando a
cabeça de um dos malditos que tentavam entrar. Os soldados o imitaram e
começaram a atirar. Os malditos que eram abatidos caiam atrás da porta, criando
um bloqueio aos outros que vinham de trás deles.
Ao matar todos os que estavam logo atrás da porta, foram necessários somente
dois homens empurrando-a para mantê-la inerte, pressionada contra os mortos que
impediam seu fechamento. Gemidos e murmúrios ecoavam pela escadaria em uma
melodia mórbida e constante.
— Precisamos eliminar todos os que estão na escadaria e refazer a barricada. A
porta não é uma defesa segura — disse Pietro, dirigindo-se aos homens fardados.
— Tomem posição!
Os soldados ergueram seus fuzis, controlando o terror inspirado por aquelas
criaturas. Gustavo estava entre os dois, com sua pistola em riste. Sob o comando de
Pietro, os homens que seguravam a porta se afastaram, deixando-a ser aberta
lentamente e os corpos empilhados atrás dela caírem dentro do corredor.
Os gemidos da escadaria foram sobrepostos por um rugido gutural e feroz, um
comando bárbaro de guerra. O primeiro infectado a passar pela porta foi um ex-
médico do hospital. Gustavo notou no estetoscópio ainda pendurado em seu
pescoço, quando uma bala de fuzil entrou por seu olho esquerdo e explodiu a parte
detrás de seu crânio.
Gustavo usou toda a sua munição para derrubar dois deles. Quando percebeu
que seu pente estava vazio, virou as costas para o combate e saiu correndo pelo
corredor. Aquela missão estava nas mãos dos soldados agora. Estava na hora dele
ir atrás de sua própria missão, a qual fora o verdadeiro motivo para que ele abrisse
mão da segurança do helicóptero e corresse em direção ao perigo: devia encontrar
a família do pastor e convencê-los a ir embora daquele hospital.
Pietro e os homens que estavam segurando a porta entraram em um quarto logo
à frente da escadaria — criando um refúgio, caso a quantidade de infectados
avançando superasse seu poder de fogo. O capitão posicionou-se na entrada, com
sua arma erguida e ajudando a atirar contra os invasores.
Os soldados e Pietro revezavam-se a cada invasor que passava pela porta,
abatendo-os um a um, fazendo com que os corpos se empilhassem na frente da
entrada. A contagem já passava de vinte corpos quando Pietro gritou: —
Precisamos avançar! Eles não vão parar de subir.
Os soldados avançaram, caminhando sobre os corpos ao chão e atirando contra
os homens, mulheres e crianças que subiam as escadas tentando alcançá-los. A
barricada destruída e os corpos dos mordedores abatidos estreitavam a passagem,
limitando o acesso dos invasores e dando vantagem aos soldados, possibilitando
que eles avançassem e conquistassem o espaço até a barricada.
Pietro e dois civis da equipe do Mauro carregaram os corpos dos mordedores
abatidos até a escadaria, empilhando-os sobre as passagens abertas pelos invasores.
Os malditos que tentavam passar pelas brechas da barricada eram abatidos pelos
soldados e seus corpos somavam-se à barreira contra os infectados que vinham
atrás. Finalmente, a defesa estava forte o suficiente para impedir o avanço de
qualquer invasor por um bom tempo.
Doutor Mauro agradeceu a Pietro com um simples aceno com a cabeça. Mesmo
sabendo que a intenção daquelas pessoas era abandoná-los à própria sorte, seria
eternamente grato pela ajuda.
Antes que alguém pudesse perguntar quem eram os homens fardados, Pietro e
os soldados se retiraram, deixando o grupo de sobreviventes trabalhar no reforço
de suas defesas.
Gustavo corria pelos corredores do quarto andar. Tinha pouco tempo para
encontrá-los, mas sua maior preocupação era em como convencê-los. Pietro já
tinha tentado, sem sucesso, fazê-los mudar de ideia, mas Gustavo gostava daquelas
pessoas e não desistiria tão facilmente. Não podia deixá-los ali sem saber que tinha
feito de tudo para levá-los para a segurança.
O caminho estava deserto, com todos os quartos abandonados. Chegou a pensar
que estava indo na direção errada, mas ouviu os gritos vindos do final do corredor,
indicando que ele estava no caminho certo — e que alguém estava em perigo.
Não sabia se encontraria seus amigos ali. Da última vez que os viu, eles
estavam acomodados em um quarto do terceiro andar, mas aquele era o único lugar
para onde eles poderiam ter fugido. Talvez fossem André, Letícia e seus filhos que
gritavam em desespero.
Chegando à outra extremidade do prédio, Gustavo entendeu o que acontecia.
Todos os sobreviventes que não estavam lutando nas escadarias estavam ali,
encurralados no fim do corredor por meia dúzia de infectados. Os sobreviventes
somavam mais de quinze pessoas, mas sua maioria era de crianças ou idosos,
nenhum deles preparado para lidar com aquilo.
Gustavo ficou aliviado e aflito ao ver a família do pastor entre os sobreviventes.
Aliviado por saber que eles não estavam no andar debaixo, o que significaria morte
certa, mas a situação ali também não era nada favorável.
André colocava-se à frente de sua família, ameaçando os infectados com uma
barra de ferro. Os malditos não avançavam contra ele e os outros sobreviventes
porque estavam ocupados devorando uma família que jazia morta no chão do
corredor. Mas eles bloqueavam o caminho para que qualquer um fugisse dali.
Gustavo sentiu-se um imbecil por ter gastado toda sua munição na escadaria.
Não tinha como lutar contra seis infectados, mas precisava tirá-los dali. Se ele
conseguisse atraí-los em sua direção, a família do pastor e os outros sobreviventes
teriam acesso a um dos quartos, podendo refugiar-se até que a ajuda chegasse.
— Ei! — Gustavo gritou — Aqui, seus putos!
Como provocação, Gustavo arremessou sua pistola contra as costas de um dos
infectados. O mordedor virou-se de frente para o rapaz e se levantou, imitado pelos
outros cinco malditos.
— Isso, seus putos. Venham me pegar! — Gustavo gritou, virou-se e começou a
correr.
Bastou o rapaz virar de costas para que o bando de infectados avançasse contra
ele, quase alcançando-o nos primeiros passos. Nos metros seguintes, Gustavo
ganhou distância deles, mas ainda assim não tinha a menor ideia do que fazer
assim que o corredor acabasse.
Foi então que ele viu Rita caminhando em sua direção. A garota trazia uma faca
de arremesso em cada mão e fez um sinal com a cabeça para que ele saísse da sua
frente.
No instante em que Gustavo jogou seu corpo contra a parede do corredor, Rita
arremessou as duas facas sequencialmente.
Fomp! Fomp!
Os baques secos ecoaram pelo corredor assim que as facas atingiram o peito de
cada um dos dois infectados que vinham à frente do bando. Ambos tiveram
perfurações em seus esternos e os corações foram dilacerados pelos projéteis da
garota, causando mortes quase instantâneas.
Ela sacou os facões Wushu de suas costas e caminhou em direção aos malditos.
Mesmo sem ter os olhos vermelhos, seu olhar enfurecido era mais amedrontador
que o de qualquer um dos coitados.
Os quatro remanescentes do bando corriam no mesmo ritmo, portanto
enfrentariam a garota ao mesmo tempo. Rita sabia que não tinha como atacar os
quatro ao mesmo tempo sem ficar exposta ao ataque de um deles, o que podia
significar seu fim. Mas não se importava. Queria matar a maior quantidade de
malditos que pudesse.
Quando ergueu seus facões, pronta para lançar-se contra os infectados, BAM!
Um disparo logo atrás dela ecoou pelo corredor e o maldito à sua direita teve
sua cabeça empurrada para trás pelo impacto de uma bala de revólver. Pouco
tempo depois, outro disparo foi feito e o desgraçado à sua esquerda caía, com um
tiro no peito.
Com um golpe firme, Rita cravou um facão na cabeça de um dos infectados e
largou sua arma ali, presa na testa do infeliz que caía ao chão.
O último dos malditos tentou atacá-la, mas ela esquivou-se e golpeou seu joelho
com o facão, decepando a parte inferior de sua perna. Com um empurrão, Rita
derrubou o perneta sem dificuldades.
Ao olhar para trás, viu seu pai com um revólver fumegante. A garota enfureceu-
se ainda mais. Seu pai tinha roubado sua chance de destruir dois destes putos.
Olhou para o infeliz deitado no chão, perdendo cada vez mais sangue pelo
buraco onde costumava ficar seu joelho. Colocou-se de pé sobre ele, com o facão
erguido sobre sua cabeça, e começou a golpeá-lo com toda a sua fúria.
Golpeou o maldito até ter decepado todos os seus membros e separar a cabeça
do corpo, depois começou a chorar. Seu pai veio ao seu encontro e tirou a arma da
sua mão. A garota desabou em seus braços.
— Acabou, filha. Vamos embora daqui.
Gustavo deixou Gilberto subir com sua filha ao heliponto e foi buscar André,
que estava escondido com sua família e outros sobreviventes no último quarto do
corredor. Ao abrir a porta do quarto deparou-se com o pastor pronto para golpeá-lo
com uma barra de ferro.
— André, sou eu! — disse Gustavo, protegendo o rosto com as mãos vazias.
— Gustavo! — gritou Talita.
— Que susto, rapaz — disse o pastor, que de imediato abaixou sua arma e
abraçou Gustavo. — Você nos salvou lá fora!
— Eu tive ajuda. O que importa é que agora o corredor está livre — disse
Gustavo, olhando para os demais sobreviventes que estavam no quarto. — Vocês
podem ir, não tem mais perigo.
Após ouvir mais alguns agradecimentos e elogios, os outros sobreviventes
saíram do quarto e deixaram Gustavo falar com André e sua família.
— Pensei ter ouvido um helicóptero por aqui — comentou o pastor. — Você
ficou pra trás?
— Não, eles estão esperando lá em cima. Voltamos pra ajudar contra a invasão
— explicou Gustavo. — Vocês precisam vir conosco. Este lugar não é seguro.
— Não precisa pedir duas vezes — disse André. — Vamos com vocês.
Pedro correu para abraçar seu salvador, que gentilmente retribuiu o gesto.
— Obrigada, Gustavo — disse Letícia, enquanto caminhavam pelo corredor. —
Você é um anjo. Tenho certeza disso.
Retribuiu as palavras com um sorriso. Apesar de tudo o que passara nos últimos
dias, Gustavo não se lembrava de alguma vez na vida ter se sentido tão bem por
algo que ele tivesse feito.

Já passava das seis horas da manhã quando tenente Salvador recebeu notícias de
seus soldados, dizendo que estavam a caminho. O tenente ligou o helicóptero. As
hélices começavam a girar, ganhando velocidade a cada rotação.
Ao ver Gilberto e Rita subindo a rampa do heliponto, Monique desceu da
aeronave e correu até eles. Abraçou sua filha, apertando-a com força por um bom
tempo.
Assim que os três tomaram seus lugares no helicóptero, tenente Salvador
questionou Gilberto sobre Pietro.
— Meu irmão e os soldados estavam logo atrás de mim — respondeu Gilberto.
— Devem chegar logo.
Gilberto lembrou-se do que Pietro lhe disse antes de voltar para dentro do
hospital: “entregue o pen drive aos militares e fique com o meu diário. Leia o que
escrevi o quanto antes.”
A mochila estava no chão do helicóptero, aos pés de Monique. Gilberto a pegou
e abriu o zíper. Encontrou o pen drive e um caderno preto, o diário que vira com
seu irmão várias vezes durante os últimos dias.
Com o caderno em mãos, uma movimentação do lado de fora do helicóptero
chamou sua atenção. Gustavo chegou ao heliponto, seguido pelo pastor e sua
família. Finalmente as coisas estavam dando certo.
Ao abrir o diário, uma folha solta caiu em seu colo. Gilberto imaginou que seu
irmão deixara alguma mensagem ali, para que fosse lida antes de qualquer outra
coisa. Ao desdobrar o papel, leu:
Os militares sabiam sobre o vírus.
Não confie em ninguém, só no major Alexandre.

Todo o alívio que Gilberto sentia com a chegada dos militares sumiu, dando
lugar a dúvidas e preocupações. Se não podiam confiar em seus salvadores, como
fariam? O único consolo era que seu irmão estaria com ele. Pietro saberia o que
fazer.
Pouco depois, os dois soldados surgiram marchando sobre a rampa. Pietro vinha
logo atrás, buscando fôlego para caminhar até o helicóptero.
Ao chegar à aeronave, um dos soldados entrou e o outro ficou do lado de fora.
Pietro os alcançou, prestes a embarcar, mas os soldados ergueram seus rifles,
apontando-os na direção de Pietro: — Alto! — gritou o soldado ao lado de fora.
Pietro estancou, sem que nenhum dos sobreviventes entendesse o que estava
acontecendo.
— Não podemos embarcar ninguém infectado. Entregue o pen drive!
Gilberto não queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Compreendera
apenas algumas palavras que o soldado dizia em meio ao ruído das hélices, mas a
situação era clara, mesmo sem ouvir a conversa.
Quando seu irmão fez menção de descer do helicóptero para intervir, Pietro
ergueu a palma de sua mão, indicando para que ele parasse. Gilberto reparou que
Pietro não expressava somente cansaço, mas também uma dor profunda. Num
movimento cauteloso, o capitão ergueu sua camisa verde-oliva, revelando uma
ferida aberta em sua costela. Uma marca de mordida.
Pietro tinha sido mordido durante o combate com os infectados na escadaria,
antes mesmo que Gustavo e os soldados chegassem até ele.
— Não! — gritou Gilberto, se levantando de seu banco. Pietro reforçou seu
sinal para que ele parasse.
Monique segurou sua filha. Ambas choravam, mas Monique mantinha os
braços em volta de Rita, certificando-se de que ela não sairia do helicóptero.
A porta da escadaria se abriu e alguns sobreviventes do hospital começaram a
subir a rampa, ouvindo o som das hélices. O soldado que estava do lado de fora do
helicóptero sacudiu seu rifle na direção de Pietro e repetiu: — O pen drive. Agora!
Pietro sorriu ao ver todas as pessoas que tinha conseguido resgatar. Além de sua
família, olhou para Gustavo, Jorge, Marlene, William e a família do pastor. Apesar
de conhecê-los a poucos dias, se importava com cada um deles. Vê-los a salvo do
inferno daquela cidade lhe trazia um pouco de paz.
— Agradeça ao major por mim, soldado — disse o capitão, jogando um pen
drive para ele.
Confuso ao ver o pen drive nas mãos do militar, Gilberto abriu a mochila e
enfiou sua mão dentro, vasculhando. Não, ele não estava louco... estava tudo ali. O
diário e o pen drive. Lembrou-se do bilhete que estava lá dentro:“Não confie em
ninguém, só no major Alexandre”. Pietro não correria o risco de entregar estas
informações à pessoa errada, então confiou que Gilberto as entregaria diretamente
ao major. O que os soldados tinham em mãos era apenas uma distração.
A aeronave decolou. Gilberto olhava pela janela, acenando para seu irmão uma
última vez. Pietro e o hospital se distanciavam, ficando quase imperceptíveis em
meio a destruição que consumia a cidade lá embaixo. Monique e sua filha o
abraçaram.
— Gil, o seu irmão... eu sinto muito...
Perder seu irmão daquela forma era horrível, mas Gilberto conteve suas
emoções. Sua família precisava dele agora mais do que nunca.
— Ele fez isso para ficarmos seguros, Môn — ele disse, mantendo as duas
apertadas em seus braços. — Nós vamos para um lugar seguro e vamos achar uma
cura para isso... era o que Pietro queria.
O helicóptero seguiu em direção a Campinas, levando os onze sobreviventes ao
centro de pesquisas militar.

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