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WILFRED OWEN
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William Shakespeare
(Henrique V, III Ato, III Cena: Ante
as portas de Harfleur)
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* GROFAZ — Grösster Feldherr aller
Zeiten — O Maior Líder Militar de
Todos os Tempos. (N. do T.)
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O TRABALHO É O MAIOR
PRIVILÉGIO E BENEFÍCIO
DO ESTADO SOCIALISTA
13
— Reunir! Em frente! Por aqui! —
gritou o Velho, ordenando à 2ª Seção
para juntar-se a ele.
Lançamo-nos num abrigo sob uma
comprida rampa.
— Vamos marchar por aqui —
explicou o Velho. — Preparem as
cargas. Esses suínos fizeram barricadas
lá dentro e estão usando os prisioneiros
como cobertura.
Um longo e gorgolejante grito o
interrompeu. Era uma mulher. Gritava
indubitavelmente desesperada, como se
estivesse agonizando sob terrível
tortura.
— Deus nos proteja! — gritou
Barcelona, espantado. — O que é que
estarão fazendo com ela?
— Espetando com ferro quente. Era
o que os padres costumavam fazer nos
velhos tempos. — disse Porta,
calmamente, estalando os dedos.
Os gritos ficaram abafados, como se
a mulher tivesse sido amordaçada.
— Vamos ver o que é isso — disse o
Velho, com severidade.
Com um ágil salto ele subiu a
encosta, correu por ela com o corpo
todo abaixado, seguido por Gregor e o
Legionário, este com a caixa de
munições cheia de explosivos. Tiny
jogou para cima da rampa três ou quatro
caixas pesadas.
— Você também, professor — disse
ele, jogando-o também, depois das
caixas. — Deus que tenha pena de você,
seu magricela desgraçado, se tentar cair
fora! Eu junto você com as cargas e
mando-o direitinho para os braços do
bundudo Ivan!
— Por que razão o senhor sempre
implica comigo? — queixou-se o
professor. Tentou arrastar uma das
caixas, mas não conseguiu.
— Fique calado! Quando eu estiver
falando e quando eu estiver pensando —
disse Tiny, interrompendo-o. — Pegue
essa picareta aí e vá cavar um buraco
para a pólvora, seu vagabundo. Quando
eu te largar um dia, ou você já estará
morto ou será o melhor soldado do
Exército alemão e voltará, em passo de
ganso, para aquela sua escolinha da
aldeia.
— Vamos com isso! — gritou o
Velho, impaciente. — Cinco metros
entre as cargas. Heide, você liga os
cabos.
— A explosão deixa comigo —
gritou Tiny, sempre pronto para uma
coisa dessas.
Nós trabalhamos intensamente na
meia hora seguinte.
— Vocês já pensaram na espessura
dessas paredes? — perguntou
Barcelona.
— São mais grossas do que as da
fortaleza de Brest-Litovsk e não se
poderia chamá-las exatamente de
decorativas.
— Não diga besteira! — ralhou o
Velho, irritado.
Ele empurrou Tiny pelo ombro. O
atlético rapaz estava querendo meter
uma carga tríplice em um dos buracos.
— Tem de sobra — disse Tiny,
defendendo-se e apontando para as
caixas de munição cheias. — Além do
mais, o que a gente usa não deve trazer
de volta.
— Você quer é ir pelos ares com
isso, parece — disse o Velho, em tom
repreensivo. — Não estamos juntando
ali balinhas de chupar, você sabe. Um
perigo danado!
— Tudo pronto — gritou Heide,
empertigando-se para o Velho.
— Deixa comigo! — falou Tiny
animadamente, correndo para a
aparelhagem de disparo, à qual Gregor
estava ligando os últimos cabos. —
Segurem-se como puderem, meus filhos,
que lá vai mecha — disse ele, rindo
como uma criança!
Pegou com as duas mãos a haste do
disparador e a pressionou para baixo
com todo o peso do seu corpo. A
explosão clareou toda a rampa.
Sentimos sobre o corpo o efeito da
tremenda onda de choque. A fortíssima
pressão por ela exercida fez-nos expelir
todo o ar dos pulmões. Um muro de
pouco menos de um metro de altura
desfez-se em uma chuva de pedras e
entulho. O paredão de fora pareceu
balançar por momentos e depois
desabou fragorosamente. Duas enormes
chaminés ao lado da casa de
aquecimento caíram sobre a ala das
mulheres. Os desabamentos pareciam
continuar para sempre e a espessa
nuvem de pó sobre os edifícios não
parava de crescer.
Houve um momento de absoluto
silêncio. As chamas subiam de todos os
lados, espalhando-se com terrível
rapidez. Davam a impressão de um
tapete de fogo sendo desenrolado por
um insano. Os paredões caiam e grandes
pedaços de material desagregado
espalhavam-se pelo chão.
— Vocês estão malucos! — gritou
um 3º sargento de engenharia, vermelho
de raiva. — Que diabo! Não ficou um
rato vivo lá dentro. Se eu fosse vocês eu
ia embora daqui. Isto está me
aborrecendo!
— Jesus e Maria! — gritou Tiny,
caindo de joelhos. — Isso é que eu
chamo um estouro! A maldita gaiola
acabou! Mais um pouco e ela estaria
pronta para receber outra leva de
escravos. A Associação de Ajuda aos
Prisioneiros nos dará uma medalha de
gratidão por este trabalho! Por Deus,
que explosãozinha legal!
Albert ficou de pé, com o rosto
quase cinzento, e levantou o braço acima
da cabeça, com o punho fechado.
— Frente Vermelha! — gritou como
um idiota.
— Vamos embora — ordenou o
Velho, levantando-se. A metralhadora
estava em suas mãos, pronta para
funcionar.
A seção de lança-chamas tomou a
dianteira. Onde houvesse abertura de
fogo eles mandavam um jato de chamas.
Enfiei-me, juntamente com Porta, no
mais próximo posto defensivo e corri
com a minha lanterna elétrica tudo em
volta ali dentro. Por toda parte corpos
carbonizados estirados pelo chão,
descarnados. mãos postas à frente como
se protegendo, muitos deles reduzidos a
verdadeiras múmias. O lança-chamas os
havia matado com uma feroz série de
jatos. Os que não tinham sido atingidos
diretamente pareciam comparativamente
grandes, ao lado das pequenas múmias
que o foram.
— A guerra quanto mais cruel mais
rápida e. E o que estão dizendo os
pôsteres de propaganda — disse Porta.
— Mas isso é uma mentira, como tudo o
mais nesta guerra. Esta agora é a mais
cruel de todas e parece que vai ser um
inferno de longa duração.
Em um comprido e estreito pátio,
situado entre dois altos edifícios escuros
de fuligem, haviam montes de corpos.
— Tiro na nuca, todos — disse
Barcelona, virando alguns com o cano
da metralhadora.
— Não é verdade — contestou
Gregor, inclinando-se para olhar mais
de perto um corpo em andrajos.
— E a pura verdade — confirmou
Porta, por sua vez. — Os rapazes da
OGPU quiseram se ver livres dos
incrédulos, quando nós, libertadores,
batíamos à porta. Não é preciso ter
frequentado uma escola de detetives da
Polícia Criminal para ver o que
aconteceu aqui. Uma bolinha na nuca!
Um buraquinho atrás e um rombo
enorme na cara.
Ouviram-se tiros para o outro lado
do edifício.
— É pessoal nosso — explicou o
pequeno Legionário, com um gesto de
indiferença. — Tropas Especiais SD.
Estão eliminando todos os comissários.
Paramos por um momento e
espiamos por entre dois caminhões
incendiados. O prolongado tiroteio
parecia durar uma eternidade, mas na
realidade estava terminado em poucos
segundos. O corpo magro do comissário
saltava de um lado para outro numa
chuva de balas. Primeiro elevou-se no
ar, depois caiu ao chão. Ainda fremia,
mesmo quando a vida já o abandonara
completamente. Um jovem oficial das
tropas de assalto, o quepe com o
emblema da caveira cobrindo
acafajestadamente um olho, acercou-se
do corpo e apontou a sua P-38 para a
cabeça. Deu-lhe três tiros, deixando o
rosto como uma massa irreconhecível.
Os prisioneiros, que se inclinavam
para fora das janelas da lavanderia,
aplaudiram, batendo palmas, loucos de
entusiasmo. O próximo foi puxado para
fora de um estreito corredor. Era um
homem maduro, cabelos brancos, de
uniforme cáqui, com as ombreiras
verdes da OGPU. Com o terror
estampado nos olhos, ele ficou de pé
contra a parede. Uma saraivada de balas
o mandou ao chão. Os prisioneiros
aplaudiram e assoviaram quando um
grupo de homens e mulheres, uns sem
uniforme e outros semiuniformizados foi
empurrado para fora da lavanderia.
— Venham cá! Venham cá! — gritou,
raivoso e impaciente, o jovem oficial
SD. — Vamos acabar com isso rápido!
A golpes de coronha e a pontapés,
eles foram trazidos para o saguão.
Olhavam, apatetados, os assassinos,
que traziam no quepe o emblema da
morte.
— Fogo! — comandou o oficial SD.
As metralhadoras cantaram a sua
canção de morte O som ecoou entre os
edifícios da prisão. Um longo e terrível
matraquear de metralhadora veio de uma
janela no último andar. O oficial das
tropas de assalto caiu ao chão. A
esquadra de execução foi atirada para
trás, retorcendo-se na neve que aos
poucos ia se avermelhando. A
metralhadora girou, deixando sulcos nas
paredes da lavanderia, quebrando
vidraças. Os prisioneiros foram
enxotados das janelas, com os rostos
desfigurados.
Descemos abrigados, e rastejamos
rapidamente para fora. Aquilo não era
da nossa conta.
As chamas faziam loucas figurações
nos edifícios cobertos de fuligem da
prisão. Quando passávamos pelos
extensos depósitos fomos paralisados
pelo fogo .concentrado de armas
automáticas. Gritos penetrantes de terror
vieram da casa de banhos, que era
isolada.
— Vamos dar uma espiada lá —
disse o Velho — Primeiro você e o Sven
— disse a Porta, atirando-nos uma bolsa
com granadas.
Corremos para a casa de banhos,
passando entre um grupo de arvores
reduzidas a troncos quebrados. Um vulto
levantou-se ã minha frente.
Instintivamente apertei o gatilho e
uma rajada da minha metralhadora
quebrou-lhe a espinha. Ele saiu rolando,
braços e pernas estremecendo.
O meu parceiro aplicou um pontapé
na porta, que se abriu com estrepito.
Um oficial pequeno e gordo ficou
olhando espantado para nos e, confuso,
tentou alcançar a Kalashnikov, que se
achava em cima de uma mesa a sua
frente. Uma bala de pistola atravessou-
lhe a garganta, fazendo com que o
pescoço fosse para trás, batendo contra
a parede. O quepe com a faixa azul
rolou pelo chão e foi bater suavemente
contra um monte de garrafas vazias.
Descarreguei a minha metralhadora
com uma rajada longa e concentrada
sobre uma passagem ao longo da qual eu
sentia, mais do que via, formas escuras
vindo em nossa direção. A primeira bala
da Schmeisser atingiu o comandante na
boca. Ele caiu sem um gemido. Nossas
metralhadoras pareciam ter
enlouquecido. Dois soldados com
capotes que iam até o tornozelo foram
levantados no ar e jogados contra a
parede. Escorregaram por ela e
desabaram no chão, ali ficando
estrebuchantes e dando a impressão de
um monte de frangalhos ensanguentados.
Granadas de mão rodopiavam num
cômodo escuro. Encostamo-nos à parede
e varremo-lo com rajadas de
metralhadora. Os gritos foram pouco a
pouco extinguindo-se e dando lugar ao
matraquear atordoante.
— Continuem — comandou o Velho,
agarrando a Kalashnikov de um dos
russos mortos.
Uma prolongada e uivante saraivada
de projéteis de metralhadora foi atirada
contra nós. Albert deu um salto no ar,
soltou um terrível grito de guerra e
arremessou uma poderosa granada de
mão. Um fragor de trovoada veio da
extremidade do corredor, onde se elevou
um clarão de cegar, e três corpos
deformados jaziam no piso.
— Que diabo, homem! — gritou ele,
pondo as mãos nos ouvidos. — Será
mesmo que eu tinha medo? — Olhou em
torno, com uma expressão de desânimo,
deixou-se cair vagarosamente no chão
coberto de restos humanos dilacerados e
vidros partidos e resmungou: — Quero
que esse podre Exército alemão vá para
o inferno!
— É isso mesmo. Pode-se até
admitir que você tenha se metido no
exército errado, não é? — disse Porta,
rindo e pegando as granadas de mão.
O incêndio, que ninguém combatia,
já consumira quase toda a asa norte da
prisão das mulheres. Chegamos bem
perto das ruínas ardentes com toda a
precaução. Parecia que tudo ia cair
sobre nossa cabeça, a qualquer
momento.
Fileiras completas de corpos
pendiam por toda parte na ala das
mulheres, como guirlandas macabras
balançando-se e rodando ao sabor das
correntes de vento.
— O dever, como de hábito, a
despeito das dificuldades — disse
Porta. — A execução foi feita cinco
minutos antes da hora de fechar —
acrescentou, lançando contra o vento
uma solene cusparada.
— Eles devem ter vindo caminhando
e trazendo seus trapos imundos e
ensanguentados — disse Gregor. —
Agora aí estão, balançando-se. Que
adiantava protestar? O melhor mesmo
será a gente ir caminhando e deixar que
alguém fique pensando e comentando
sobre quem teria sido encarregado da
tarefa.
Vive-se mais assim, e a vida na
verdade já é tão curta.
O combate estava no fim. Podia-se
ouvir, vindo do bloco principal, o ruído
de armas automáticas e os estampidos
das granadas de mão, quebrados de vez
em quando pelo troar de um morteiro.
Mas isso não era conosco e sim com a
infantaria e os engenheiros. Sentamo-nos
no chão do bloco da cozinha, juntamente
com um grupo de prisioneiros, e
conversamos sobre métodos de
interrogatório. Um rapazinho de 16 anos,
trazido preso diretamente da escola e
acusado de propaganda
contrarrevolucionária, perdera um olho
durante o interrogatório. Contou sua
história em poucas palavras. Olhamos
em silêncio para o seu rosto. Estava
sensivelmente envelhecido para a sua
idade. Dos olhos minava pus. Nas
prisões de trânsito não existia
assistência médica. Um homem já idoso
nos mostrou tristemente os dedos dos
pés, todos quebrados.
— Há coisas piores — disse uma
mulher que levara um tiro na rótula e
nunca mais poderia andar normalmente.
— Temos de acabar com os
carcereiros. Com todos eles — disse
Tiny, revoltado, brincando com a sua
espingarda de três canos.
— É o que estão fazendo — afirmou
Porta, apontando com o dedo para o
pátio, do qual no cessavam de vir o
ruído de metralhadoras e gritos de
desespero.
A genebra que Porta trouxera do
armário do comandante era suave e nos
aqueceu extraordinariamente. Um
carcereiro muito gordo, que apanhara o
apelido de Anjo do Inferno porque se
tornara amigo dos prisioneiros, sentou-
se numa cadeira, de costas para nós, e
começou a cantar:
A planície é varrida por uma
imensa nevada, E atrás dela vagueia a
minha doce namorada.
P. Caputo
Siegfried Sassoon
ENTRADA TERMINANTEMENTE
PROIBIDA PARA PESSOAS NÃO
AUTORIZADAS
Como de hábito. ele estava
absolutamente convencido de ser pessoa
autorizada. E foi entrando sem a menor
cerimônia.
A palavra “terminantemente” estava
sublinhada. Ele coçou uma orelha,
depois mandou um pontapé na porta, que
se abriu ruidosamente, e foi entrando.
Achou-se em um grande e
elegantemente mobiliado gabinete, que
faria morrer de inveja até mesmo um
general prussiano nascido em berço
aristocrático.
— Que diabo você quer? —
perguntou o mecânico-chefe Wolf,
considerado no Exército o imperador
não coroado dos suprimentos e
equipamentos.
Ele se achava de pé, em frente a um
enorme espelho, admirando a própria
imagem refletida.
— Não percebe que estou me
aprontando para sair? — perguntou, sem
um pingo de cordialidade, despejando
quase meio vidro de água-de-colônia
sobre os cabelos pretos brilhantes.
Depois abriu os lábios e ficou
apreciando embevecido os seus ricos
dentes de ouro.
— Escuta: como é que entrou aqui?
— perguntou, visivelmente contrariado.
— Não viu o aviso “Entrada
Terminantemente Proibida”?
— Como entrei? — respondeu Porta
com um sorriso moleque.
— Pela porta, claro. Que outra
maneira podia ser? Para que está
botando em cima esse “Sonho de
Prostituta”? Vai atrás de alguma russa
por ai?
— É para não cheirar feito você,
cabeça de merda — respondeu
rispidamente Wolf.
— Você é um cara de bela aparência
— disse Porta, lisonjeiramente e
tentando estalar os dedos, sem
conseguir.
— Bem, que você esperava? —
reagiu Wolf, com angélica
superioridade. — Não deve esperar que
um mecânico-chefe como eu ande por aí
mais parecendo um bunda-suja como
vocês, escória da sociedade, não é?
— Exatamente minha opinião —
respondeu Porta com um sorriso de
absoluta falsidade, escondendo seu
verdadeiro juízo. Sua sincera opinião
era a de todo mundo, para quem Wolf
não passava de uma respeitável
cavalgadura. — Você é de uma
elegância fora do comum. Sua água de
rosas chega a perfumar o ambiente a
cinco quilômetros, contra o vento.
Ninguém acredita que você possa ter
alguma dúvida sobre o seu próprio
valor.
— Você tem razão — respondeu
Wolf, que não escondia seu orgulho pela
óbvia admiração de Porta. — Se se quer
chegar às alturas, bafejado pela fortuna,
a gente tem de levar consigo uma aura
de respeito. Não se consegue nada
andando por aí como você anda. Você
mais parece um sujeito que passa o
tempo empurrando tambores de óleo.
Desse jeito não vai muito longe. Você
tem que entender que o que vale mesmo
é ter classe. Se tiver classe, aí os idiotas
vão até beijar sua bunda!
— Não posso negar — disse Porta,
em tom de bajulação. — Todos dizem
que o mecânico-chefe Wolf é realmente
um bonito homem.
— Eu estou bem sabendo disso —
respondeu Wolf, envaidecido e virando
a cabeça para se ver sob outro ângulo.
— Estamos tendo dificuldades —
disse Porta, mostrando-se preocupado,
mas na verdade procurando tirar
vantagem.
— Quê? — perguntou Wolf. —
Aqueles comedores de merda não vão
comprar entradas?
— Não é isso — explicou Porta. —
Todos compraram, mas agora
começaram a vendê-las no câmbio negro
para as divisões vizinhas, lucrando à
nossa custa.
— Então ponha mais lugares —
respondeu Wolf, com indiferença e
fazendo um gesto de reprovação. — E
você precisava vir me aborrecer com
um troço desses?
— Quem está fazendo toda essa
confusão é o Velho Perna de Couro —
disse Porta. — Era só ele deixar a gente
usar aquele pequeno espaço onde guarda
os seus tratores. São tratores dos
comunistas russos. É o único lugar onde
podemos acomodar o nosso pessoal.
— Vamos pensar — disse Wolf,
pegando um charuto e cheirando-o,
como um armador grego que começou a
vida lã de baixo.
— Experimente um — ofereceu a
Porta.
Cada um acendeu o charuto do outro,
exalaram grandes nuvens de fumaça e
puseram-se a pensar. Ambos eram
homens de negócio e olhavam a guerra
como uma espécie de empreendimento
de alto risco. Para eles, linhas de frente
e inimigos não existiam.
Eram muito mais sócios em negócios
“difíceis” — Se alguém pensasse que
eles iriam deixar passar uma
oportunidade estaria redondamente
enganado. Para aqueles dois, tudo tinha
um preço, fosse de que modo fosse.
— Que tal um Enzian? — propôs
Porta, apontando para uma grande
garrafa de vinho sobre uma mesa
francesa ali ao lado do capacete pessoal
de Wolf, com a águia de prata. — Um
pouco dessa bebidinha faz a gente
pensar melhor.
Ele levantou-se e tomou um trago
diretamente na garrafa.
— Você nunca vai aprender boas
maneiras — reclamou Wolf. — Nem
mesmo ficando rico.
De cara amarrada, apanhou em um
armário dois pequenos cálices.
— Não tem menor? — perguntou
Porta, ironicamente.
— Infelizmente não — respondeu
Wolf, fingindo não compreender.
Os três primeiros cálices foram
engolidos rapidamente.
— Como ia dizendo — começou
Porta — vai ser realmente uma grande
luta. Nosso pessoal de publicidade já
chegou à cidade para isso. Cada
individuo em todo o Corpo de Exército
já comprou sua entrada, de modo que a
casa estará inteiramente lotada com a
vinda deles. Mas lotada mesmo! E
dinheiro no duro! E não somente navios
de madeira do Exército. Mas esse
bobalhão do Perna de Couro é a
estupidez em pessoa. Um sujeito
quadrado, que quer se manter dentro da
lei. Esta sempre me dizendo que é
responsável pela observância do
Regulamento de Defesa do Exército. —
E Porta prosseguia sua análise: — E
desse tipo de gente tão amarrada que
nunca usa uma privada diferente sem
telefonar para o QG a fim de saber se
isso é permitido. Não faz muito tempo
que sua unidade ficou sem nada para
beber e sem poder tomar banho e
escovar os dentes porque não havia
recebido permissão por escrito para
abrir as torneiras! A pior coisa que se
diz dele é que dá ouvidos às outras
pessoas, acredita em tudo que elas lhe
dizem. Eu fico danado da vida quando o
vejo dar de ombros e fazer uma cara de
porco premiado que não pode dar seus
roncos à vontade.
Porta inclinou-se para a frente, seus
olhos tomando também um aspecto
porcino. E continuou: — Por que você
não bota aqueles seus chineses para
diverti-lo um pouco? Podia ser até que
ele passasse a compreender que os
amigos são para as ocasiões,
descobrindo alguém a quem devesse um
favor. Não suporto essas pessoas que
estão sempre no mundo da lua e não
aceitam a vida como ela é.
— Vou procurar ter um entendimento
com ele — prometeu Wolf, com os olhos
brilhando. — Levamos os rapazes
conosco. Eles podem dizer a ele o que
os chineses e os negros são capazes de
fazer com as pessoas de quem não
gostam. Vamos começar com Albert
soprando em cima dele.
Juntamente com Tiny, Albert e
Gregor, Wolf e Porta caminharam, de
peito elevado, pelo enorme depósito de
material bélico ocupado por todo tipo
de peças de artilharia pesada. Os
canhões se alinhavam, lado a lado, ao
longo das paredes, com os tubos em
ângulos de elevação que os faziam ficar
voltados para as claraboias.
Os obscuros, com seus tubos curtos
e grossos, ocupavam o espaço
intermediário.
O oficial do material bélico Kunze,
apelidado Velho Perna de Couro, estava
sentado à sua secretária, gordo e
grandalhão e literalmente pingando
poder e autoridade. Mantinha uma dura
expressão de nazista compenetrado.
— Que desejam? — perguntou,
tentando impor respeito, sem sucesso.
— Eu imagino que o que ouvi não
passe de boato. mas será verdade que
você se recusa a tirar daqui toda essa
sua merda? — perguntou Wolf, iniciando
a conversa, lançando uma fumaceira na
orelha do homem. — Ou não ouvi
direito?
Kunze passou a mão gorda pela
cabeça totalmente calva e lançou sobre
Wolf um olhar enfurecido.
— Só quero dizer uma coisa —
respondeu, com uma voz sibilante e
raivosa.
— Nem você nem Porta nem
ninguém pode vir aqui para me dizer o
que devo fazer. Vocês não têm nenhum
negócio a tratar aqui. Tudo aqui é meu.
Lembrem-se disso!
Porta bateu palmas, aplaudindo, e
virou-se todo, num tremendo ataque de
riso.
— Deixa disso, seu caga–regras
convencido! Você não é dono de um só
pedacinho deste arsenal. Você não é
dono nem dos pregos das suas botas! O
Exército emprestou tudo a você. Tudo
isto é do Exército. O Exército é dono até
de você mesmo, e quem é o Exército? Se
deseja saber, o Exército somos nós!
— Vou dar parte de você ao QG do
Corpo! — ameaçou Kunze, furioso,
levantando-se arquejante e com visível
dificuldade. — Aí é que vamos ver o
que o QG tem a dizer. Ele é duro como
aço Krupp.
— A gente dá uma mijada no seu QG
— reagiu Wolf, rindo com ar superior,
metendo o dedo no peito de Kunze. —
Você vai fazer exatamente o que
dissermos. Senão alguma coisa
desagradável pode acontecer.
— Solta os cachorros nele — disse
Tiny, maldosamente.
Gregor espalhou pela mesa alguns
vultosos desenhos.
— Isto é o que sugerimos — disse
ele com ares de promotor, apontando
para os planos.
— Não concordo com isso — disse
Kunze com sua voz de falsete, caindo
pesadamente em sua cadeira, bastante
humilhado.
— Você não tem que concordar
coisa nenhuma — declarou Porta. —
Você vai fazer exclusivamente o que
mandarmos. Todos estes canhões têm
que sair daqui.
Percorreu minuciosamente com o
olhar através das pequenas janelas e sua
atenção foi atraída para Lobo de Pau,
chefe do pelotão de serviços especiais
de Kunze. Ele servira três anos no
interior, em Torgau, por negligência no
manejo de armas de fogo. Ele e um
amigo, oriundo da Escola de
Suboficiais, entraram no Banco
Dresdener, em Bielefeld, para arrancar
um empréstimo rapidíssimo.
Na hora estavam de armas na mão.
Em lugar do empréstimo deram a eles
quatro anos de cadeia, rebaixaram-nos
para trabalhadores especiais e os
declararam “incapacitados
definitivamente para transportar armas”.
— Venha cá, delinquente — ordenou
Porta, acenando superiormente para
Lobo de Pau.
— Não seja besta, seu caipira —
reagiu Lobo de Pau, indignado.
Ele continuou onde estava,
provocadoramente, e Porta teve de ir até
ele.
— Ouça bem, tartaruga — começou
Porta. — Queremos cadeiras ao longo
de todas estas paredes, e tudo, vou
repetir, tudo muito caprichado e posto
no lugar até o meio-dia de sábado. —
Fez uma pausa e continuou, quase
solenemente, com uma voz baixa e
ameaçadora: — É a hora em que chegam
os espectadores e não será um bando
muito paciente.
— Que que você está pensando? —
perguntou Lobo de Pau, cuspindo
desdenhosamente no chão impecável de
cimento. — Hoje é quarta-feira —
continuou ele, contando nos dedos. —
Só três dias para sábado!
— Conte também as noites e assim
temos seis dias — disse Porta. — Haja
o que houver, as acomodações têm de
estar prontas ao meio-dia de sábado,
quando começará a maior luta de boxe
da história. Senão, você estará lá na
frente varrendo minas, antes de saber o
que o feriu. E isso é um pouco mais
perigoso do que valsar com uma russa
magricela e muito usada, que é o que
você faz agora.
— Que que Kunze diz a isso? —
perguntou Lobo de Pau, cautelosamente,
olhando para o pequeno gabinete, de
onde se ouviam vozes. O tom agudo
lamentoso da voz do encarregado do
material bélico Kunze era abafado pelo
vozeirão rude do mecânico-chefe Wolf.
— Quem está ligando para o que ele
diz? — respondeu Porta, abrindo
desmesuradamente a boca para desancar
Lobo de Pau com o seu rico repertório
de adjetivos próprios do Exército. —
Seu lenhador de uma figa, faça o que lhe
digo! Reúna o seu grupo de comedores
de merda e removedores de bosta. Junte
alguma ferramenta e movimente o
traseiro. E depressa com isso, pois
posso perder a tramontana e endurecer
de uma vez!
— Estou vendo que você não
conhece o nosso Senhor Kunze —
alertou Lobo de Pau. — É bom saber
que ele tem seus pistolões. E que
pistolões! Mais importantes do que você
possa imaginar! Acabar com a raça de
um 1º sargento como você não é nada
para Kunze. Ele quebrou as costas de um
tenente-coronel que veio aqui tentando
mijar em cima de nós.
— Cale essa boca! — gritou Porta
furioso — e cumpra as minhas ordens.
De outro modo você vai saber logo
quais são os meus pistolões!
O mecânico-chefe Wolf entrou
pomposamente no saguão do material
bélico, encantado com o tinir de suas
esporas não regulamentares. Ele
levantava os pés como um galo de briga
e batia com eles no chão fortemente,
para que o som ecoasse entre as vigas
de aço que sustentavam o enorme
telhado. Havia canhões por toda parte,
camuflados em marrom e verde, tratores
de artilharia, caminhões do último tipo,
carros de munição, veículos de meia
lagarta e lagarta inteira. Tudo alinhado
em longas e perfeitas fileiras. Wolf
cuspiu desdenhosamente em um canhão
antiaéreo de 80 mm e acendeu um
charuto brasileiro, esfregando o fósforo
num cartaz que dizia: cerimônia,
cumprimentando. de passagem, o gato
favorito do mecânico-chefe Wolf, que
fora promovido a 2º tenente e estava
sentadinho, lambendo-se todo, no
radiador de um veículo do Exército. Ele
foi andando por um longo e estreito
corredor e parou do lado de fora de uma
porta pesada, na qual se via um cartaz
branco:
TERMINANTEMENTE PROIBIDO
FUMAR
23
— Por que que aquele carneiro-guia
está ali de pé coçando os ovos? —
perguntou, apontando na direção do
Lobo de Pau com o seu bastão de oficial
inglês. — Não tem nada que fazer?
— Uma besta! — disse Porta. —
Estúpido como uma vaca!
Kunze veio correndo do seu pequeno
gabinete, as pernas rangendo como uma
fábrica de arreios e suando de nervoso.
— Saiam do meu barracão de
armamento! — silvou ele furiosamente,
quase deixando cair a dentadura postiça.
— Eu acho, você sabe bem, que é
melhor obedecer às ordens — disse
Porta, com os olhos fuzilando Kunze. E
ajuntou, em atitude feroz e ameaçadora:
— Este barracão tem de ser esvaziado
como boceta de prostituta aspirada em
manhã de Natal.
— Mas, mas ouça — gemeu Kunze,
desolado, os dentes postiços
chocalhando. — Eu não posso botar este
armamento em qualquer lugar. Sabe
quanto um desses canhões custou ao
povo alemão?
Eles são caríssimos. E vão ser
indispensáveis quando começar a grande
ofensiva de que estão tratando agora no
QG do Führer. E de qualquer modo eles
não são meus. Pertencem ao Quarto
Exército Blindado! — Então está tudo
muito bem! — trovejou o mecânico-
chefe Wolf, para terminar. — Nós somos
o Quarto Exército Blindado!
O Quarto Exército Blindado somos
nós!
— Que quer dizer com isso? —
resmungou Kunze, perplexo, olhando
boquiaberto para Porta e depois para
Wolf e voltando novamente a Porta.
Eles se mantinham como
verdadeiros prussianos, fazendo
mesuras como dois marechais de campo.
— O que eu digo — respondeu Porta
com um sorriso superior — é que nós
somos o Quarto Exército Blindado! —
bateu no nariz de Kunze com o seu livro
de pagamentos. — Diz aqui, preto no
branco, que nós pertencemos ao Quarto
Blindado. Então, como você mesmo já
disse, esta sucata é toda nossa e nós
queremos ela fora daqui, seu zelador de
meia tigela! E se não andar direitinho —
continuou Porta — você pode ser
afastado e tomar conhecimento dos
chineses do mecânico-chefe Wolf. Eles
adorariam jogar com você. Mas você
não iria gostar do tipo de jogo que eles
praticam.
— Está me ameaçando? —
perguntou Kunze, fazendo uma
malograda tentativa de fingir que ainda
era ele que tomava as decisões.
— Você é bastante sagaz — ironizou
Porta. — As pessoas que tiveram as
pernas arrancadas, como você, em geral
perdem um pouco do cérebro. Sai pelos
buracos das coxas.
— Os canhões vão ficar onde estão
— disse Kunze, com severidade. dando
pancadinhas com a régua numa das
pernas artificiais fornecidas pelo
Exército. — E eu estou lhe dizendo,
Sargento Porta. Não venha entrando no
meu depósito com toda essa empáfia. Eu
sou um servidor militar, veja bem! Não
um piolho como você, que qualquer
cachorro vagabundo pode mijar em
cima. — E arrematou, batendo
orgulhosamente nas suas estreitas
ombreiras verdes: — Eu sou um oficial,
ouviu?
— Sagrada Agni! — respondeu
Porta, rindo com arrogância. — Domar
um cara como você é mais fácil do que
arrancar pelos da bunda de uma vaca
russa capenga.
— Não admito isso! — gritou
Kunze, insultado. — Você tem de falar
comigo de maneira educada.
— Você há de compreender que nós
temos de tirar esses canhões para fora
— interveio Wolf, tentando uma
aproximação diplomática, porém
deixando transparecer uma falsa
camaradagem. — Seja sensato, Bernt.
Tire essa máscara governamental e volte
ao normal. Estamos promovendo uma
luta de boxe que o mundo nunca viu
igual. O pessoal já pagou os lugares.
Não podemos pedir que se equilibrem
em cima dos tubos dos canhões. Diga:
podemos? Sentando-se assim eles se
pareceriam com um bando de periquitos
chilreando e vendo um papagaio
trepando numa lhama vadia.
— Não é que eu não queira cooperar
— respondeu Kunze, ofegante — mas
não vai dar certo. Mal a gente tenha
posto para fora o primeiro canhão, o
serviço de informações russo já vai
saber de tudo. E quem vai pagar o pato?
Eu, Mestre do Material Bélico de
Campanha Kunze! Eu é que vou parar
numa corte marcial e quem sabe
fuzilado! Vocês não desejam que isso
aconteça, não é?
— Na verdade isso não nos
preocupa — respondeu Porta, sem se
comover. — O que queremos é estes
troços fora daqui para podermos
aprontar as nossas lutas.
— Já estou cansado desta conversa
fiada — rosnou Wolf, num súbito acesso
de raiva. — Este monte de merda tem de
ser deslocado para que a gente possa se
organizar. — Lançou uma grossa nuvem
de fumaça sobre Kunze. que começou a
tossir e protestar.
— Se não quer engolir suas pernas
postiças ou ficar sem orelhas, você deve
botar esses canhões para fora daqui o
mais depressa possível.
— Seja sensato — disse Kunze
quase chorando, torcendo a régua nas
mãos. — Que que você diria se eu lhe
pedisse para retirar todos os seus
caminhões?
— Não diria nada — respondeu
Wolf com um riso. — Apenas mandaria
meus chineses cortar você em
pedacinhos o tempo que quisessem. E
olhe que eles não se cansam facilmente.
— Pois veja — disse Kunze com ar
de vitória. — Mantenho a minha
posição, com chinês ou sem chinês. Os
canhões ficam comigo, dentro do
barracão, que é um lugar agradável e
seco.
— Ponha o nariz para fora — gritou
Wolf, já sem paciência e agitando o seu
bastão inglês, bastante irritado. — Lá
fora é seco como o deserto de Gobi,
onde água é coisa que só conhecem por
ouvir falar. O sol dos comunistas está
brilhando, dando até a impressão de que
pensa estar sobre um país capitalista
altamente desenvolvido. Seria bom para
os seus canhões que tomassem um pouco
de ar.
Dentro da cabeça de Kunze, tomada
por uma dor intensa, tudo começava a
entrar em completa confusão, e o ponto
central localizava-se numa espécie de
nó atrás da testa. Ele abriu a boca e deu
um grito. mas não adiantou. Então
começou a bater com a cabeça num
casco de granada que estava pendurado,
oscilante, num arame. Isso adiantou de
certo modo. Ele desandou a dar uma
série de ordens absolutamente confusas.
— Os espectadores vão se sentar ali
— disse Porta em altas vozes,
apontando para o espaço tomado por 35
pesados obuseiros.
— Deem o fora, vocês aí, mexam-se
— gritou ele, dirigindo-se a um grupo de
soldados sentados no reparo de um
canhão, tomando cerveja, como se não
tivessem nada com aquilo tudo. —
Vamos .botar esse rebotalho militar para
fora daqui. A civilização está chegando.
Preparem-se para receber a cultura
ocidental, como disse um camponês
russo quando os libertadores queimaram
sua casa.
— Aqui você não dá ordens! —
gritou um trabalhador, que mais parecia
um gorila adulto, com uma cabeça
excessivamente grande para o corpo. —
Daqui não vai sair coisa nenhuma. Isto é
um depósito de canhões, e o que está
aqui vai continuar aqui, a menos que se
receba ordem por escrito, selada e em
quatro vias.
— Jesus e Maria, vamos ficar aqui
ouvindo essa merda? — vociferou Tiny,
já agitando os braços. — Esse homem
está completamente maluco, com um
ataque agudo de complexo de
superioridade. Me deixe dar-lhe um
pouco de senso com um bom chute no
traseiro!
— Espere um pouco! — disse Porta,
agarrando Tiny, que já avançava para o
homem. — Esses trabalhadores ainda
não perceberam que não quero
complicações. Prefiro a linha reta.
— Isto aqui é um abrigo para
canhões — insistiu o gorila — e não um
campo de esportes para idiotas! Se quer
lutar, vá lutar no monte de lixo lá fora!
— Nenhum sacana de trabalhador
me fala assim duas vezes — gritou Tiny,
tomado de ódio. Em seguida, aplicou um
pontapé no estômago do homem,
fazendo-o vergar-se com um grunhido,
segurou-o pelos cabelos e amassou-lhe
o rosto contra uma superfície muito
dura. O grupo de trabalhadores começou
a se movimentar, particularmente depois
que Tiny jogou um deles de ponta-
cabeça pela janela, em cima de um
monte de lixo coberto de moscas.
O primeiro dos obuseiros começou a
rolar em direção ao ar livre. Kunze
andava em círculos, como uma galinha
tonta.
— Cuide deles! Cuide deles! —
gaguejava ele, nervosamente, — Ponha
eles em linha, caprichado, e separe por
calibres, senão nunca mais vamos poder
reuni-los. depois de tudo.
Quando um canhão de 105 mm cano
longo resvalou e caiu no rio que ali
passava, Kunze mergulhou, desesperado,
numa pilha de granadas.
— Não leve isto tão a sério — disse
Porta, confortando-o e passando-lhe um
cachorro-quente. — Que é um canhão,
quando estamos para perder a guerra?
Nos três dias seguintes, só se ouvia
ali o som de martelos e serrotes. De
tempos em tempos a Comissão da Luta
reunia-se na oficina do mecânico-chefe
Wolf, onde serviam “maçãs celestes” e
pastelaria judia, acompanhadas de
“champanha dos pobres”, isto é,
Slivovitz misturada com cerveja.
— Quem vai ser o vencedor? —
perguntou Tiny, metendo um enorme
pedaço de “maçã celeste” na boca ainda
maior.
— Claro que o vencedor —
respondeu Porta, com a boca cheia de
pastel judeu.
— Por quê? — perguntou Tiny, rindo
astutamente. — Quando David e eu
promovíamos lutas para os aficionados,
lá na Hein Hoyer Strasse, muito antes de
começar a luta nós já sabíamos o
vencedor.
— Então foi isso que você quis dizer
— respondeu rindo Porta. — Está tudo
combinado. O pessoal vai fazer tudo
direitinho, de modo que quem sairá
vencedor seremos nós mesmos. Vamos
nadar em dinheiro.
— E se formos apanhados? —
perguntou Albert, franzindo a testa. —
Aí só há um jeito. Para os russos, o mais
depressa possível.
— Nós aqui não somos africanos
comedores de bananas — ironizou Wolf.
— Teremos seis lutas antes da principal,
filho, e nessas seis, o sinal de partida
será um leve estalido do chicote. Na
principal, campeonato de peso-pesado
entre o campeão soviético e o alemão,
nós vamos para a cabeça.
— E a Grande Alemanha será a
vencedora, naturalmente — disse Heide,
com patriótica autoconfiança, sorrindo o
sorriso gostoso do vencedor.
— Não, meu caro, isso é justamente
o que a Grande Alemanha não vai fazer
— respondeu Porta rindo, batendo com
o cotovelo nas costelas de Wolf e
revelando assim uma conspiração entre
os dois. — Todos os tolos que se
deixarem levar por uma completa
euforia germânica, reforçada pela
presença de suásticas e molhos de
saladas, estarão dando força à velha
Alemanha para vencer a luta, e todo o
dinheiro que juntos vão aplicar estará na
dependência do comportamento do
alemão.
— E vão perder tudo — disse Wolf,
emocionado — porque o brutamontes
soviético vai nocautear o nobre
representante da superior raça
germânica.
— Vocês não têm medo de que haja
problemas? — perguntou o Velho,
preocupado.
— Nem um pouco — respondeu
Porta, os olhos brilhando. — Os únicos
a ter problemas serão os caras que vão
confiar no alemão. Quando as seis
primeiras lutas terminarem, eles vão dar
urras de vitória e o seu complexo de
superioridade chegará a tal ponto que
quando for a hora do choque principal
eles empenharão o cu para poderem
apostar, convencidos da invencibilidade
dos alemães.
Wolf, em sua euforia, deu tamanha
martelada na mesa que a “maçã celeste”
balançou no prato, derramando geleia
em seu charuto.
— Vão ficar umas feras — disse o
Velho, sombrio — e depois vai haver
encrenca, com E maiúsculo.
— Mas aí já estaremos longe —
disse Albert com um riso que lhe tomou
toda a cara.
— Como teremos certeza de que os
lutadores não vão topar e, portanto,
deixar mal a gente? — perguntou
Barcelona, que já nasceu desconfiado.
— Alguém pode ter posto na cabeça
deles que isso não vale a pena.
— Pode ser — admitiu Porta. —
Seria até interessante ficarmos
prevenidos contra isso, para estarmos
em segurança. Mas como?
— jaulas! — disse Tiny, com a boca
cheia de geleia.
— Jaulas? — perguntou Porta,
intrigado.
— Jaulas de macaco — respondeu
Tiny, rindo abertamente. — Jaulas
puxadas para cima até quase o forro. Um
cara de uma loja de artigos para
animais, em Paljma, tem um porção
delas. Agora mesmo ele está com uma
ocupada por uma pantera negra, uma
fera de olhos amarelados. Um cara com
ela correndo atrás é até mesmo capaz de
quebrar o recorde mundial de corrida de
Jesus Owens.
— Nada de panteras! — protestou o
Velho, agitado. — É uma ordem!
Panteras, não!
— Por que não? — perguntou Porta,
intrigado. — A gente pode se divertir à
beça com um bichinho como esse.
— Você deve estar louco —
interveio Barcelona, colocando-se a
favor do Velho. — Já pensou no que
esses bichos comem?
— Comem gente — admitiu Tiny,
brincalhão. — Conheço muita gente que
não me importava de dar à pantera negra
para alimentá-la.
— Tempestade num copo d'água —
observou o jovem Legionário, friamente.
— Por que não comprar a jaula sem
a pantera?
— O cara tem também jaulas para
execução, iguais à que usaram para o
judeu Süss — explicou Tiny. — O
sujeito leva uma laçada em volta do
pescoço, fica de pé no chão da jaula e a
corda é amarrada lá em cima. Aí
desprendem o chão e ele vai caindo até
que a corda estica toda, ele leva aquela
puxada violenta e fica de pescoço
quebrado.
— Não vejo como nós pudéssemos
usar isso — disse Porta, esforçando-se
para compreender. — Não queremos
executar os lutadores.
— Às vezes você emburrece —
replicou Tiny com impaciência. — Não
se vai passar corda nenhuma no pescoço
deles. A gente apenas pendura as jaulas
com eles dentro. Assim ninguém pode
falar com eles e passar a perna na gente.
Logo que soe o gongo, nós abrimos o
fundo das jaulas, os dois merdas caem
no ringue e começam a pancadaria.
— Pode ser uma boa ideia —
admitiu Porta. — Uma novidade em
matéria de luta: dois pesos-pesados
caindo do céu!
O mecânico-chefe Wolf pegou um
charuto e fez funcionar o acendedor
dourado com um discreto estalido.
Manteve o charuto entre o polegar e o
indicador da mão esquerda e deu
algumas boas tragadas, soltando depois
a fumaça sobre a mesa.
— Vamos comprar a jaula com
pantera e tudo — disse ele, com
determinação — mas só no caso de se
conseguir uma outra inteiramente igual.
Botamos o alemão numa jaula, o russo
na outra.
— E que fazemos com a pantera? —
perguntou o Velho, pensando com temor
em outros animais que o Número 2
pegara à força.
— Certamente a gente encontra um
uso para ela — respondeu Porta rindo e
pegando um dos charutos de Wolf sem
consultá-lo.
— Não quero ela dentro do tanque
— disse o Velho, resoluto, percebendo,
muito tarde, que praticamente já havia
cedido.
— Não, não é possível. Só se tirar a
metade da torre — interveio Tiny, rindo
ruidosamente. — Eu vi o bicho. Mesmo
sendo ainda filhote, que não sabe
morder direito, quando aprender vai ser
fogo na roupa.
Já era bastante tarde quando
paramos e fomos ver a tal casa dos
animais.
Tiny se apaixonou por um velho
gorila que imitava toda espécie de
gargalhada e bebia cerveja feito gente.
Mas o dono não o vendia de jeito algum.
Ele o considerava como um membro da
família, quase um irmão.
— Para que vão querer as jaulas? —
perguntou o homem, intrigado, quando o
negócio foi fechado e começamos a
levar as jaulas para fora.
— Vamos iniciar um tráfico de
escravos — disse Porta baixinho, ao
ouvido dele — mas não diga a ninguém.
— Mas agora? — espantou-se o
vendedor de bichos, arregalando os
olhos. — E isso dá dinheiro?
Que bicho mais esquisito, pensou
Porta, espiando pela grade da jaula da
pantera. Pernas compridas demais e pés
enormes.
— Esta ainda é filhote — observou
o dono. — Não tem mais de oito meses.
— No entanto parece que não se
importaria se pudesse mastigar minha
mão — disse Porta, dando um pulo para
trás enquanto uma garra peluda, com
unhas que pareciam facas recurvadas,
batia contra as grades.
— Não tenha medo — acudiu o
dono. acalmando-o. — Ela é muito fácil
de ser levada. Ponha um pedaço de
carne em sua frente e ela. esquece tudo o
mais.
Ainda tem um pouco de medo de
gente, mas é só esperar alguns meses. A
pantera negra é conhecida como
atacando sempre qualquer coisa ou
qualquer pessoa que esteja por perto. E
mais perigosa do que dez homens da
Gestapo armados de metralhadora.
Por volta da meia-noite, gritos e
roncos altos se faziam ouvir no caminho
para o barracão. Cabeças curiosas
espreitaram das portas, mas não por
muito tempo. As portas se fecharam
precipitadamente quando Tiny apareceu
trazendo a jaula com a pantera lá dentro
fazendo o diabo.
Praguejando em altas vozes, ele
arrastou e empurrou a jaula para dentro
da sala de Wolf, desarrumando móveis,
caixas e sacos e finalmente levando-a
para um compartimento vazio, ali atrás.
Pegou um pernil inteiro que estava
pendurado num gancho e empurrou pelas
grades da jaula. Depois trancou a porta.
— Um bicho desses pode realmente
ser um sucesso — disse Porta, com
admiração, ao mesmo tempo que tratava
dos inúmeros e profundos arranhões no
corpo de Tiny. — E por enquanto ela
está levando tudo apenas na brincadeira.
Eu quero ver é quando ela crescer e
perceber para que lhe deram dentes e
unhas afiadas.
— No momento não é tão perigosa
— disse Tiny, esforçando-se para abrir
um olho que o último ataque da pantera
fechara completamente.
— Só vai trazer problemas — disse
o Velho, contrariado. — O Coronel
Hinka vai dar pulos quando souber de
tudo. Desde que tivemos aquele urso ele
proibiu animais de qualquer espécie.
Antes de sairmos, Tiny jogou dentro
da jaula um bom pedaço de carne
partida. A pantera acompanhava seus
movimentos com .olhos cobiçosos. Duas
enormes patas apanharam a carne no ar e
de uma só bocada ela sumiu goela
abaixo.
— Jesus! — gritou Tiny, encantado.
— Viu? Imagina quando lhe dermos
gente!
A última prancha ainda não estava
pregada quando os aficionados
começaram a se amontoar no barracão.
O ambiente era. De animação. Os
maníacos do esporte começaram a
discutir entre si ou com outras pessoas
que não podiam estar menos
interessadas do que eles. Os patriotas
alemães gritavam “Heil”! O pessoal da
Renânia assoviava com os dedos
enfiados na boca, à moda dos franceses.
Uma unidade da Polícia Militar, sem
o provocante capacete de aço, fazia os
maiores esforços para manter a multidão
em ordem. Mas o pau comeu quando um
2º tenente do Tirol empurrou uma
salsicha coberta de ketchup e mostarda
na cara de um policial e chamou-o de
“turbulento suíno prussiano”.
A confusão melhorou um pouco
quando soou o gongo e começou o
primeiro assalto da primeira luta. Era
entre um macilento e pequeno búlgaro e
um mal-encarado e duro alemão da
Westphalia. A luta terminou no segundo
assalto. Venceu o alemão, por nocaute
previamente decidido por Porta e Wolf.
Quando terminaram o segundo e o
terceiro combates, com a vitória das
cores nacionais, parecia que a ruidosa
euforia patriótica não terminaria mais. E
quando a quarta luta deu também
Alemanha, eles deliraram e começaram
a cantar as canções patrióticas clássicas
Deutschland, Deutschland Über alles e
Wacht am Rhein. Abraçavam-se,
tomavam posição de sentido e gritavam;
“Alemanha eterna!”
— Deve ter sido assim quando
voltaram da França em 1871 — disse o
Velho. — Deus nos proteja. Eles estão
empedernidos, pasmosamente loucos!
A quinta luta foi entre um grego,
Konstantino, que era o campeão dos
meio-pesados de sua aldeia, e um
austríaco de Salzburgo chamado
Rudolph, que parecia fazer jus ao nome.
— Quer rezar antes de morrer? —
perguntou o grego com um riso perverso.
— Você não pode aceitar isso —
vociferou o 1º Tesoureiro Saul, do QG
do Corpo.
— Achata ele! — gritou o italiano
Alpinos lá da última fila, esquecido de
que os gregos eram os seus tradicionais
inimigos.
Com um rosnar animalesco, o
austríaco avançou para o grego e
martelou-o com o punho fechado, logo
abaixo da cintura. Um perigosíssimo
golpe baixo que deveria pôr um lutador
fora de combate imediatamente. O grego
pareceu não sentir absolutamente nada.
Ele acertou uma marrada no rosto de
Rudolph, outra falta grave. Ao mesmo
tempo deu-lhe uma rasteira, e esta falta
pôs o juiz em cena com uma feroz
gesticulação. O grego ainda tentou dar
no outro uma esquerda, uma direita e um
hook, antes que o austríaco se
levantasse. A multidão exigia a
continuação da luta, o que acabou sendo
feito. O austríaco venceu por nocaute no
18º assalto.
— Isso faz com que essa desgraçada
guerra mundial valha a pena — gritou
Albert, juntando-se ao júbilo ruidoso da
multidão deliciada, a despeito do fato de
que ele não costumava ir muito com
austríacos.
— Espere então pela luta principal
— disse Wolf, acendendo um charuto
brasileiro com a habitual classe.
O barracão do material bélico
estava com uma lotação três vezes maior
do que a que ele poderia comportar,
fossem quais fossem os cálculos. Todos
vinham de longe e de diferentes partes,
gastando-se nas conduções uma enorme
quantidade de petróleo, muito
necessário nas operações de guerra. Os
homens sentavam-se em vigas altas,
abaixo do teto, equilibrando-se como
galinhas em poleiro. E continuavam
chegando. Os apostadores empurravam-
se, apertavam-se, quase sem fôlego,
disputando a entrada no pequeno espaço
em que Porta e Wolf registravam as
apostas. Através da pequena abertura,
eles só viam mãos que lhes passavam
dinheiro, mãos agarrando os
comprovantes das apostas feitas. Eram
mãos de todos os feitios e tamanhos.
Mãos gordas, mãos magras, mãos
pálidas, mãos morenas, mãos limpas,
mãos sujas.
Todos os olhos estavam pregados
nas duas jaulas que pendiam,
balançando, lá do alto, sob o teto.
Ouviu-se um burburinho, parecendo
interminável, quando as portas do fundo
das jaulas se abriram e os dois lutadores
caíram de quase uns quatro metros sobre
o tablado, com uma pancada seca.
O russo caucasiano foi o primeiro a
ficar de pé e levantou sobre a cabeça um
par de punhos que mais pareciam
clavas. O alemão, peludo como um
macaco, deu volta pelo ringue com as
mãos caídas abaixo dos joelhos. Parecia
mesmo um macaco gingando para um e
outro lado, com os nós dos dedos
voltados para o chão. Ele rosnou alto
seu desafio: o russo caucasiano ia ser
nocauteado antes do fim do primeiro
assalto.
A boca do caucasiano abriu-se
completamente num riso animalesco. Ele
passou a mão espalmada contra a
garganta e, sem palavras, mostrou a
todos o que pretendia fazer com o
alemão. Um frenético rumor levantou-se
do meio da massa. Várias filas de
cadeiras quebraram-se sob a ação
conjunta dos pés dos espectadores.
O gongo soou e os dois monstros
partiram um contra o outro, babando e
espumando. Os punhos de ferro
martelaram os músculos retesados dos
estômagos e estouraram sobre cabeças
igualmente duras, Um uppercut caiu em
cheio. Era para arrancar a cabeça de
qualquer homem normal, mas pareceu
não causar efeito algum no que o
recebeu.
— Gongo do inferno! — resmungou
Barcelona, nervosamente. — Esses dois
idiotas sabem quem deve vencer, não
sabem? Do jeito que vão, parece que
estão querendo um duplo suicídio.
— Calma — disse Wolf rindo,
completamente tranquilo. — Eles não
são burros a ponto de não saberem o que
é melhor para eles. No último minuto é
que o brutamontes de Leipzig cai de uma
vez. Tínhamos de dar ao pessoal alguma
coisa pela grana que gastou ou eles
começariam a imaginar coisas e aí podia
acontecer um troço.
Nos dois primeiros assaltos parecia
que o caucasiano não estava querendo
ser atingido muitas vezes. Combatia
defensivamente e entrava em clinches
para evitar os ataques esmagadores do
alemão. Mas então subitamente, no
terceiro assalto, ele tomou a ofensiva,
avançou e acertou dois socos
fulminantes no estômago do alemão.
A massa prendeu a respiração por
alguns segundos. Aqueles golpes teriam
derrubado um cavalo. Mas o lutador de
Leipzig apenas se sacudiu, como um
cachorro molhado, e riu maldosamente.
Sua esquerda atacou, enquanto o
adversário o perseguia de perto. O soco
foi cair em cheio no nariz do russo, com
um som abafado e impressionante. Eles
passaram a rodear um ao outro,
cuspindo e respirando ruidosamente
pelo nariz. Um murro atingiu a fronte do
alemão, abrindo-lhe o supercílio. O
sangue correu-lhe pelo rosto. Os lábios
incharam. O rosto parecia paralisado
parcialmente.
— Santa Maria! — suspirou Gregor,
os olhos arregalados. — É o mesmo que
esmurrar um touro com as mãos nuas.
— Um touro não aguentaria isso! —
disse Porta, metendo, pensativo, os
dentes numa salsicha que arrancara das
mãos de um bávaro empolgado pela
cena de violência inaudita.
O caucasiano começou a procurar
um impacto no rosto do outro, mas isso
não preocupou o alemão. Ele se
esquivava bem, fazendo com que os
socos passagem rente ao alto da cabeça,
e reagia com uma perigosa esquerda.
Tudo indicava que ele pretendia abrir a
guarda do nisso com a sua esquerda, e
alguns hooks acertaram em cheio. Para
estupefação da assistência, o caucasiano
limitou-se a dar um grunhido,
continuando sua dança em torno do
ringue.
— Mata ele! Acaba com essa fera
miserável! — berravam os fiéis
partidários do alemão, batendo seus
capacetes de aço estanhado uns contra
os outros. — Esmaga ele no chão de
onde veio!
O 6º Regimento de Cavalaria da
Westphalia virava-se contra o 5º
Regimento Blindado prussiano,
berrando em uníssono: — Miseráveis
comedores de salsicha! Porcos!
A batalha oral entre os dois
regimentos variava de intensidade de um
a outro lado no grande depósito de
material de artilharia. O barulho podia
ser ouvido a quilômetros de distância.
Os bávaros do 8º Blindado e o 116º
de Infantaria tomaram partido e
empenharam-se alegremente na briga.
Policiais, com os cassetetes em riste,
surgiram aos montes pelas diversas
entradas e malhavam
indiscriminadamente as cabeças da
multidão exaltada.
— Morra a Alemanha! — berrava
Tiny como um fanático, trepado em um
barril de cerveja.
— Ei! Você aí, canibal! — gritou um
bávaro, arremessando sobre Albert uma
caixa vazia que o jogou para fora da
mesa na qual estava sentado.
— Seu porcaria! — rosnou Tiny,
levantando um dos policiais acima de
sua cabeça.
— Você está preso! — gritava o
policial, desesperado, dando pontapés
no ar, um dos quais foi alcançar um
sargento que ficou como se sua cabeça
tivesse sido ensopada de mostarda e
ketchup.
— Em nome do Führer ordeno que
me largue!
— Ordem ouvida e obedecida —
gritou Tiny, arremessando o policial
sobre dois bávaros, que caíram para trás
e saíram escorregando para baixo do
estrado, só se vendo os seus pés
agitando-se freneticamente.
Por fim os PM conseguiram acalmar
suficientemente a multidão para que a
luta pudesse prosseguir. Eles então
retiraram-se e mantiveram-se de
sobreaviso atrás da igreja, onde
apelaram a Deus. para que não fossem
novamente obrigados a entrar naquele
barracão.
— Esse tipo de espetáculo esportivo
não devia ser permitido — disse o
comandante deles, um major já idoso, ao
que todos os homens deram ampla
aprovação com um expressivo gesto de
cabeça.
A luta prosseguiu e era como se os
dois pesados contendores tivessem
enlouquecido de uma vez. Dali por
diante passaram a mostrar um completo
desrespeito às regras do jogo. O alemão
avançou para o caucasiano e deu-lhe um
pontapé no estômago. Em resposta o
alemão levou uma dentada no queixo.
O sangue jorrou sobre o rosto de
ambos os lutadores.
— Jesus e Maria — gritou Tiny,
muito agitado, batendo num barril de
cerveja. — Estão se comendo um ao
outro.
O juiz, um iugoslavo com cara de
rato, tentou separar os dois boxeadores.
De repente ele achou-se imprensado
entre duas sanguinárias montanhas de
músculos. Pareceu que ia ser triturado.
Mas deu um jeito de se livrar e correu
cambaleante para as cordas, onde ficou
pendurado, com os braços caídos para
fora, até que dois assistentes médicos o
levaram ao oficial médico.
Um novo juiz entrou em cena. Falou
seriamente com os dois boxeadores,
agitando o dedo na cara de ambos. Eles
pareciam mostrar que no íntimo o que
gostariam mesmo de fazer era jogá-lo
para tora do ringue contra a massa de
espectadores.
No terceiro assalto, o caucasiano
acertou um soco abaixo da orelha do
alemão. do que resultou ele cambalear e
procurar o clinch. O juiz avançou para
lá, mas antes que pudesse gritar
“Separa!” o alemão havia quebrado o
clinch e partira para o caucasiano com
um ataque que só teve igual na história
do boxe na luta Carnera-Sharkey em
1933.
Houve um silêncio de morte entre a
multidão durante alguns segundos. Em
seguida um barulho infernal tomou conta
do ambiente. Cada espectador batia nas
costas do companheiro ao lado e
berrava de satisfação. Se o vizinho não
concordava, então o pessoal todo
virava-se contra ele, pronto para
esmurrá-lo.
— Hurra! — gritavam os loucos
aficionados nas cadeiras ao lado do
ringue.
O caucasiano baixou a cabeça como
um búfalo prestes a atacar e mandou um
tremendo murro, com toda a sua terrível
força, na região dos rins do alemão. Os
amantes do bom esporte protestaram
naturalmente em altos brados.
O terrível punho esquerdo do
alemão agiu novamente. Mas quando
atingiu o alvo ele soltou um curto grito.
A mão sofrera com o impacto. O ruído
da fratura pôde ser ouvido à volta do
ringue. Um arrepio de horror percorreu
os que perceberam a coisa.
Agora não havia mais dúvida de que
os boxeadores haviam esquecido toda a
combinação que porventura tivesse sido
feita. Eles se atacavam mutuamente
como animais selvagens. Intentos
assassinos estavam expressos em cada
osso do seu corpo. O mecânico-chefe
Wolf mostrou-se nervoso. Tiny e Porta
tiveram de contê-lo à força para que ele
não invadisse o ringue com uma
metralhadora, lembrando-lhe o acordo
que haviam feito.
O rumor da multidão ameaçava
levantar o teto do barracão do material
bélico. Ele devia estar sendo ouvido no
outro lado da frente, a 80 quilômetros
dali.
Os lutadores já não eram mais seres
humanos civilizados. Haviam se tornado
inteiramente irracionais. Seus gritos
teriam feito Tarzan morrer de inveja.
— Nós devíamos ter dado a esse
cara do Cáucaso um par de ferraduras
para ele pôr dentro das luvas —
resmungou Tiny, meio preocupado. —
Assim ele teria certeza de amassar a
cara desse alemão desgraçado.
— Que inferno! — praguejou Porta,
deprimido. — Se esse danado do
alemão nocautear o caucasiano,
estaremos arruinados.
— Ele prometeu — resmungou
Gregor, desanimado. — Ele prometeu
perder.
Alemão safado, mentiroso, como
sempre. Que decepção!
— Jesus! — exclamou o Velho,
aterrorizado, quando o alemão desferiu
um violentíssimo soco que levantou do
chão o caucasiano e lançou-o contra as
cordas.
— Eu corto fora as tetas de tua mãe
e mijo no teu túmulo! Ah! seu alemão de
merda — rosnou Tiny, sacudindo o
punho na direção do lutador germânico.
— Vamos cortar a cabeça doida dele
— propôs Albert, pálido — e mandar
embrulhar para a mulher.
Gregor juntou as mãos e fez uma
oração silenciosa, enquanto o alemão
afundava o punho no plexo solar do
caucasiano. O golpe foi seguido de um
terrível uppercut que pareceu separar a
cabeça do homem dos seus ombros.
— Homem nascido de mulher e
criado à imagem de Deus — gaguejou
Albert, metendo o rosto entre as mãos.
— Não aguento olhar para você, homem.
— Merda, estamos fritos! Pobres
como quando começamos! — murmurou
Barcelona.
— Não podemos permitir isso —
vociferou Wolf, agitado, mascando o
charuto. — Pobre, pobre como o diabo!
Quando se é pobre mijam em cima. É
ser burro, muito burro!
Cadeiras quebravam-se com as
batidas dos pés em cima delas. A massa
gritava, excitada. Os homens abraçaram-
se uns aos outros, esquecendo as
diferenças, quando o alemão disparou
um gancho de esquerda, seguido de um
de direita fulminante, com todo o peso
do corpo reforçando-o, indo abater
sobre o ombro do russo.
— Está tudo acabado — disse
Gregor, em desespero. — Agora vamos
ter mesmo é de viver do dinheirinho
mirrado do Adolf.
Mas eis que a sorte da luta pareceu
mudar, melhorando a situação do
caucasiano. A mão esquerda do alemão
não dava mais nada. Não podia aguentar
a parada. Já estava com o dobro do seu
tamanho normal, de tão inchada. Ele
empregava, tanto quanto possível, a mão
direita e protegia a esquerda. O
caucasiano mudou sua tática. Agora
atacava a garganta do alemão.
— Macanudo! — gritou Barcelona,
alegremente. — Ele vai acabar com esse
alemão de merda.
Porta abriu a boca para dizer alguma
coisa mas calou-se, atraído pelo que se
passava no ringue. O caucasiano atacava
o alemão, que se limitava a evitar o
vendaval de murros rebentando em cima
dele, vindo de todos os ângulos. Ele foi
atirado contra as cordas. Um murro
estourou-lhe na fonte e ele caiu sobre um
joelho. O sangue espirrou do seu nariz.
Estava banhado em sangue. Ao levantar-
se, um vigoroso pontapé jogou-o na
lona.
— Amassa ele! Arranca as tripas
dele! — berrava Tiny com seu vozeirão
de baixo e entupido de cerveja.
O novo juiz avançou, agitando os
braços, mas o que arranjou foi colocar-
se no ponto de destino de um tremendo
pontapé que o mandou voando sobre as
cordas. Os assistentes médicos o
carregaram para o posto de primeiros
socorros atrás da lixeira, onde ainda se
achava o seu colega, em tratamento para
recuperar a respiração normal. Não era
mais uma luta de boxe. Descambara para
uma briga de morte, na qual valia
qualquer sujeira, que o mais violento
filme americano jamais mostrara. Aos
roncos eles entraram novamente em
clinch e caíram ao chão. E rolaram por
todo o ringue, como feixes de músculos
entrelaçados.
O caucasiano soltou um grito de
angústia quando os dentes do alemão
penetraram nos seus testículos.
— Esse cara não vai dar mais nada
— rosnou Porta, desferindo um chute
num barril de cerveja vazio, que rolou
para o meio da área dos espectadores
sem assento, derrubando-os como no
jogo de boliche.
Com um pontapé para cima, seguido
de um murro que se abateu sobre o
pescoço do alemão, o caucasiano
recuperou totalmente os movimentos e
ficou de pé. Por sua vez o alemão já
voltara à forma. Ele deu uma corrida,
aproximando-se do adversário a uma
velocidade que deixaria no chinelo o
campeão mundial da especialidade. E
então mergulhou uma direita bem no
fundo da região media do caucasiano. O
russo respondeu com outra direita, que
pareceu deixar o alemão vergado,
seguida de uma sibilante esquerda que o
teria mandado diretamente para as
regiões celestiais, se acertasse.
Com exceção dos aficionados do
verdadeiro boxe, que não estavam
gostando, a massa fremia ferozmente.
Quebravam-se cadeiras, botas batiam
furiosamente no chão.
— Arranca as orelhas dele! —
gritavam dos lugares mais baixos.
— Jesus e Maria, é a melhor luta
que já vi em toda a minha vida —
gritava Tiny, feliz da vida.
Uma bota descomunal desabou em
cima do joelho do alemão. Ele deu um
berro e caiu. com ambas as mãos
apertando o lugar atingido.
— Vou amassar você! — gritou ele,
já de pé mas com o rosto torcido de dor.
— Faça suas orações, russo do
inferno! Vou te mandar para o cemitério!
Em sua raiva ele parecia ter
esquecido completamente que devia
perder a luta no assalto final.
— Mata ele! — gritava Porta,
agitado, enquanto os dois lutadores,
cada um agarrando o outro, moviam-se
em volta do ringue, empregando, como
se costuma dizer, “tudo a que tinha
direito” em matéria de sujeira.
Os entusiastas do boxe protestavam
veementemente. Não queriam, como
diziam, ver uma boa luta de boxe
transformada em briga de rua. Mas todos
os outros que, como Tiny e Porta,
achavam nunca ter presenciado uma
exibição de boxe tão maravilhosa,
batiam-lhes na cabeça com o que
tivessem à mão.
A luta prosseguia. O barulho
assemelhava-se ao de uma incursão
aérea sobre uma grande cidade
industrial. De repente parou. Era como
se tivéssemos chegado ao tranquilo
vórtice de um tufão. Houve um silêncio
sepulcral. O alemão levantou o
caucasiano, manteve-o por um momento
sobre sua cabeça e arremessou-o à lona.
Ele ali ficou, imóvel.
O 8º Regimento Blindado, em peso,
levantou-se e começou a cantar
solenemente Wacht am Rheín.
— Ah! esses miseráveis patriotas!
— exclamou Porta. — Não estão
sabendo da missa a metade. Não deviam
cantar Wacht AM Rheín e sim Wacht an
der Volga.
O russo já estava de pé novamente e
a luta entrava na fase final. Os patriotas
alemães chegaram ao clímax do seu
entusiasmo quando o seu ídolo preparou
a esquerda para o golpe decisivo. Mas o
caucasiano atacou novamente, como uma
doninha a uma pobre galinha
adormecida.
Ele o chutou no pulso e depois
arriou os dois punhos sobre sua cabeça.
O esqueleto inteiro do alemão soltou
sons de coisas quebradas. A boca do
alemão abriu-se num grito de agonia e
ele inclinou-se para a frente. O terrível
golpe que se seguiu, dado pela mão
direita do caucasiano, atirou-o no ar. Ele
quase deu uma cambalhota e de maneira
inteiramente inexplicável caiu de pé. E
então despejou a mão direita no rosto do
caucasiano. Na raiva se esqueceu da
mão esquerda fraturada e mergulhou-a
com toda a sua força no plexo solar do
adversário.
— Oh! Não! — resmungou Wolf,
vendo seus lucros ameaçarem fugir.
Porta começou a pensar em planos
desesperados de fuga para os russos. Se
o caucasiano perdesse, como parecia
agora bastante provável, não haveria
possibilidade alguma de eles poderem
pagar aos vencedores.
24
Mas o russo não estava ainda
liquidado. Ele pulou sobre o alemão,
que se virou, com a velocidade do raio,
uns 80 graus e desferiu tremendo
pontapé contra os testículos do outro,
errando, porém, o alvo. O caucasiano
esquivou-se e tentou uma arriscada
manobra visando a quebrar o pescoço
do adversário. O alemão percebeu e deu
um pulo alto para o lado. Dali ele
avançou furiosamente e meteu uma
direita no ombro do russo. Este soltou
um urro de vitória ao ver o caminho
inteiramente aberto para a garganta do
alemão. A cabeça deste virou para trás
duas vezes. Era como se tivesse sido
separada da espinha. Com um grito, ele
caiu de joelhos, cuspiu e grunhiu e ficou
com o rosto em brasa.
Lentamente foi tombando para um
lado e pôs para fora tudo o que tinha no
estômago. Com grande dificuldade
conseguiu ajoelhar-se, cuspindo uma
grande quantidade de sangue. Com a
ajuda das cordas conseguiu pôr-se
novamente de pé.
— Agora esse alemão de merda está
mesmo liquidado — rosnou Tiny,
deliciado. — Só falta o vizinho lhe dar
mais um e pronto!
Mas Tiny se enganara. O alemão não
estava liquidado. Depois que os seus
segundos lhe derramaram em cima
alguns jarros d’água, ele retornou mais
uma vez, martelando o caucasiano como
um alce enlouquecido que foi afastado
das fêmeas. O caucasiano despejou-lhe
tremendo murro na garganta, pegando em
cheio a laringe. O alemão foi atirado
para trás contra as cordas, amassando a
sua banqueta e uma jarra d'água.
O caucasiano percorreu o ringue
com as mãos acima da cabeça. De vez
em quando dava um chute no alemão,
que jazia esticado no ringue como se
fora crucificado.
A multidão delirou. Um 2º tenente
bávaro correu em direção às cadeiras
próximas ao ringue, girando um saco
sobre a cabeça.
No que viu o mecânico-chefe Wolf,
com o seu uniforme bem talhado. ele lhe
jogou em cima, bem no rosto, o saco,
que se abriu, espalhando pelo ar tomates
amassados, sabugos de milho, pedaços
de pato assado e muitas outras coisas.
Um gordo 3º sargento do Serviço
Aéreo de Suprimento veio gritando do
lado das cadeiras baratas com uma bota
puxada pelo cordão e caída atrás dele.
Queria seu dinheiro de volta. A luta
tinha sido uma farsa, reclamava.
Porta fazia o sinal da vitória com o
dedo médio e o indicador.
— O que está feito está feito! —
gritou ele, enfiando os dedos nos olhos
do insistente 3º sargento.
— Viva a Grande Alemanha! —
gritou um 1º sargento do 8º Regimento
Blindado e derramou um balde grande e
preto na cabeça de um inspetor da
Polícia Militar. O conteúdo malcheiroso
respingou em seu próprio rosto.
— Bom Deus Todo-Poderoso! —
gritou Porta, pulando para um lado. — O
que está aí dentro pode matar uma
pessoa mais depressa do que uma
farmácia inteira.
Logo depois os bávaros começaram
a usar como mísseis os talharins e
chouriços que tinham trazido para seu
lanche. Em poucos minutos o barracão
apresentava o aspecto de uma cozinha
de campanha destruída. Um enorme
sanduíche de queijo com cebola
arrebentou-se como uma granada, contra
a parede, pertinho do Velho.
Um pedaço de linguiça desceu
voando sobre nós. Porta desviou-se e
ele foi bater no rosto de Tiny com uma
pancada forte.
Porta virou-se para ver de onde
tinha vindo e levou com um grande peixe
na nuca. A cabeça do peixe separou-se e
foi entrar na boca aberta de Gregor,
quase asfixiando-o.
Porta correu atrás de um pequeno
artilheiro para dar-lhe um chute, porém
errou o alvo e caiu de costas. O
artilheiro apanhou um salame e
esfregou-o na cara de Porta, que se pôs
de pé, passou-lhe uma rasteira e fô-lo
sair cambaleando.
Tiny salvou Albert no exato
momento de ser estrangulado por dois
sujeitos da Renânia.
— A pantera! — gritou Porta. —
Alguém deve soltá-la. Ela vai mostrar a
essa gente o que é bom!
Com um incessante roncar de meter
medo, a pantera foi trazida por Tiny para
dentro do barracão. A fera sentiu o
cheiro de alimento. Seu rabo começou a
agitar-se de um lado para outro. E ela
mostrava as compridas presas.
— Jesus Cristo! — gritou Tiny, numa
ansiosa expectativa. — Começou a
insana! Vai lá, Ulrich, pode pegar eles
todos!
— Velho nas mais das vezes é
melhor quando morto — gritou Porta, ao
tempo em que atirava uma prancha sobre
um idoso subtenente das Oficinas
Divisionárias.
A pantera soltou um rugido atroador
e preparou-se para pular.
— Nããão! — berrou um sargento
artilheiro, aterrorizado, agitando uma
garrafa quebrada, acima da cabeça,
estatelado, com olhos rolando, diante da
boca aberta da pantera e suas pernas
arriaram. Ela acocorou-se sobre a parte
traseira e ficou medindo a distância para
o longo balcão que estava atulhado de
salame, salsicha, peixe, linguiça e
chucrute.
Dois vivos policiais, com o
emblema da meia-lua no peito, pararam
horrorizados quando a pantera se lançou
no ar como uma flecha negra, caiu sobre
o balcão com uma pancada surda e
escorregou na massa de comidas
espalhadas. Ela começou a comer como
se se estivesse preparando para dez
anos de jejum. Um dos policiais atirou
fora o capacete e mergulhou para o chão
num monte de linguiça, O outro, cujo
apelido era Quebra-Ovos, isso por
causa do seu método favorito de
interrogar, ficou estatelado, com olhos
rolando, diante da boca aberta da
pantera e sentindo o calor do seu bafo.
Tremendo de medo, ele rolou para trás
do balcão e se meteu à força sob uma
prateleira onde normalmente só haveria
espaço para uma criança de dez anos e
nunca para um homenzarrão de uns cem
quilos.
Ulrich olhava para baixo com
curiosidade. Estaria imaginando se ela
própria caberia debaixo daquela
prateleira.
— Meu Führer, me salva! — gritava
Quebra-Ovos, completamente indefeso.
Os olhos amarelados da pantera
luziam na meia claridade. Com um
rugido de alegria, ela esticou uma pata
enorme e começou a “acariciar”
arteiramente o aterrorizado Quebra-
Ovos, que já não .aguentava mais.
— Ela vai me devorar! — berrava
ele.
Com um ganido prolongado e
profundo, quase choramingando, ele
rolou para fora da prateleira e rastejou
rapidamente pelo chão imundo,
escorregando na grossa camada de
restos de comida que o cobria.
Mas Ulrich imaginou que o que o
homem queria era brincar. E então, feliz
da vida, deu um pulo acrobático e foi
cair, com todo o seu peso brutal, nas
costas do aterrorizado policial, dando-
lhe ainda uma “pancadinha” amiga com
a pata. O policial deu um prolongado
grito de terror e virou-se de costas,
agitando os braços e as pernas. Ulrich
estava se divertindo um bocado. Mordia
o pé do policial, com espírito
brincalhão, dava-lhe tapinhas no ombro.
A túnica do uniforme dele já era um
frangalho. O homem espiou para dentro
da boca aberta de Ulrich e lá estavam as
terríveis presas. Foi a última coisa que
ele viu neste mundo.
— Colapso — disse o médico que
examinou o corpo.
— Duas vodcas grandes e uma
garrafa de vinho tinto para rebatê-las —
disse Porta, em atitude de provocação,
quando chegou ruidosamente ao
Natascha’s.
— Você não tem crédito aqui —
gritou a dona da casa, Ana, apelidada
isca, defendendo as garrafas.
— Crédito? — respondeu Porta com
uma risada e tirando do bolso um
punhado de notas. — Eu posso até
comprar o estabelecimento, se você
quiser.
Os olhos de Ana esbugalharam-se e
ela passou a se mostrar bastante
amistosa.
— Quer conhecer o meu gatinho? —
perguntou a Tiny, enchendo-lhe
liberalmente o copo.
— Não estou interessado —
respondeu Tiny, torcendo o nariz. —
Certamente todo encarquilhado e com
cara de velho.
— Não quero confusões por aqui! —
alertou Tambor, que era em verdade um
2º sargento da Segurança, escalado para
o bordel a fim de manter a ordem ali. O
apelido de Tambor era devido a ele
tocar tambor antes da guerra, no clube
noturno O Lobo Amarelo, de Leipzig.
— Você bem que podia ficar calado
— disse o Velho, com um soluço bem
dentro do seu copo de vodca.
Tambor ficou todo vermelho e
protestou veementemente.
— Já lhe disse para calar a boca! —
repetiu o Velho, desdenhosamente. — Eu
sou um primeiro-sargento, uma estrela
mais do que você!
— Que que isto tem a ver com
estrelas? — gritou Tambor, com uma voz
efeminada. — Vocês todos vão proceder
como eu disser.
— Será que ele já teve relações
sexuais com a própria mãe? — disse
Porta, rindo ruidosamente.
— Mandaram-no para a guerra
porque a irmã tinha medo dele —
acrescentou Tiny, rindo-se a valer da
própria graça.
— Agora vamos todos ficar
bonzinhos uns com os outros -—
interveio Ana. — Seria muito
desagradável ter de pô-los fora daqui.
— Por que não experimenta? Agora,
já! — gritou Barcelona, jogando uma
cadeira no chão em atitude de desafio,
na frente de Tambor.
— Como é que você ficou preto
assim? — perguntou Boneca do
Danúbio, uma garota vinda extraditada
da Romênia, insinuando-se para Albert.
— Ele é preto porque é um negro
prussiano — explicou Tiny, com os
lábios quase fechados, a maneira de
Humphrey Bogart.
Tiny era fanático admirador de
Humphrey e dava a vida para imitá-lo,
Uma vez levaram na frente de batalha
um filme no qual Bogart empurrava duas
senhoras de cadeiras de rodas por uma
escada abaixo e depois cortava a
garganta delas. Ele se entusiasmou tanto
com esse filme que ficou por ali e o
assistiu mais três vezes. No dia seguinte
ficou três horas numa fila para garantir o
primeiro lugar na distribuição das
entradas.
–— Você é uma coisinha adorável
— disse Tiny, carinhosamente,
postando-se como um idiota na frente de
uma rapariga alta e elegante sentada
numa banqueta do bar, exibindo um par
de pernas memorável. Tiny inclinou-se
para ela e disse, num moderado rugido
de leão, que pensava ser um sussurro:
— Gostaria muito de sentir você
pertinho. E você podia brincar um pouco
comigo.
— Fazendo-se de engraçado? —
respondeu ela com voz áspera, pondo
nos lábios vermelhos quase um metro de
cigarreira.
Tiny lastimou-se, sem perder o
humor, e correu um dedo não muito
limpo para cima e para baixo na perna
nua.
— Não vá muito longe agora,
grandalhão — reagiu ela, sensualmente,
batendo-lhe na mão. — Não sou fã de
Frankenstein nem dos seus descendentes.
Lembre-se disso, soldado!
— Primeiro-sargento, me faça o
favor — corrigiu Tiny. — A espinha
dorsal do Exercito. Não se esqueça
disso, minha senhora.
— A extremidade de baixo, não é?
— respondeu ela, sorrindo
ironicamente, doce como açúcar.
— Como posso saber? — rosnou
Tiny, disfarçando.
Ele riu baixo, satisfeito, beliscou-lhe
o peito e lhe deu uma palmada nas
costas. Ela soltou um gritinho de dor.
Porta dissera a ele que quando as
mulheres se defendem é porque querem
justamente o contrario.
— A senhora e eu vamos jogar um
joguinho legal — insistiu Tiny,
explicando-se melhor com o gesto
universal para o tal “joguinho”.
— Nunca entro em casa de macaco
— respondeu ela, empurrando-o pelo
peito com ambas as mãos.
— Que quer dizer com macaco? —
perguntou ele rindo. — Uma vez que a
gente enrosque as pernas um no outro,
você nem se lembra mais de macacos.
— Arrastou-a com firmeza para a pista
de dança, onde o trio havia iniciado com
um número musical excitantemente
animado.
— Ai, meus pés! — resmungou a
mulher.
— Fique em cima dos meus —
sugeriu ele. — E o melhor meio de
aprender a dançar. Sabe, eu aprendi no
Lausen, em Hamburgo.
— Aposto que as ambulâncias
estavam de prontidão lá fora — caçoou
ela.
— Não, no Lausen não é permitido
brigar — explicou Tiny, agressivamente.
— Você quer se referir ao Lanterna
Vermelha, na Davidstrasse. Todas as
noites uma dentadura voa de lá.
Ela deu um grito agudo quando Tiny
executou um passo que ele pensou ser de
tango e deu nela um pontapé acima do
joelho com a sua descomunal bota
ferrada.
— Onde é que está o cavalo que me
escoiceou? — ironizou a mulher,
esfregando a perna dolorida.
— Podemos subir? — sugeriu Tiny
com um riso expressivo.
— Para quê? — perguntou ela,
procurando livrar-se das mãos que a
agarravam.
— Não fique protelando isso por
mais tempo — disse ele
ameaçadoramente, fazendo-a rodar em
volta de si e tentando um ,passo em que
ela girava como um pião, tal como ele
vira dançarinos profissionais executar
em filmes.
A mulher resmungou alto quando deu
com a cabeça numa cadeira.
— Como é? Não se vai la para cima
para uma rodada valendo tudo? —
perguntou Albert, que passou dançando
com uma garota cuja altura não passava
do seu umbigo.
— Não vamos demorar —
respondeu Tiny, fazendo sua
companheira rodar tanto que acabou
caindo e batendo com a testa no chão.
Ela nem cogitou de lhe pedir auxílio.
Porta passou dançando com tanta
rapidez que os dois foram sugados no
vácuo deixado.
— Que foi isso? — perguntou ela,
dirigindo-se a Porta.
Ele parecia um furacão sobre a pista
de dança, volteando desabaladamente
com uma respeitável matrona conhecida
como Petúnia, a Porca, por causa da
gordura descomunal e da semelhança da
boca com um focinho de porco.
— Não estou mais com vontade de
dançar — disse a rapariga, dirigindo-se
ao bar. De propósito ela foi sentar-se no
outro lado do balcão para ficar longe de
Tiny, e pediu três aspirinas.
— De onde você é? — rosnou Tiny,
do outro extremo.
— Moscou — respondeu, friamente.
— Muitas prostitutas por lá? —
perguntou Tiny.
— Suíno — respondeu ela, de cara
amarrada.
— Como é, vocês dois não querem
ir lã em cima bebericar conosco e juntar
nossas coisas? — perguntou Porta, sem
rebuço, ao passar acompanhado pela sua
matrona suave e gorducha.
— Vocês dois serão por acaso os
precursores da cultura germânica? —
perguntou a rapariga alta, com um riso
de escárnio.
— Você agora acertou na mosca —
respondeu Tiny com orgulho, enchendo o
peito com tal exagero que as costuras do
uniforme já ameaçavam despregar. —
Com o tempo vocês vão aprender
conosco a não limpar a bunda com areia,
como fazem agora. Vão passar a usar
papel. como nos ocidentais, Agora
vamos parar com esse papo e subir as
escadas para mostrarmos a vocês como
é que um povo culto dá suas trepadas.
— Você não vai oferecer uma
biritinha para a sua pequena? —
perguntou Petúnia a Porta, com um
sorriso de falsidade.
— Rum da Crimeia com laranja —
pediu ele, batendo delicadamente no
balcão.
O boato de que tínhamos dinheiro
correu rápido. Muito dinheiro. De
repente vimo-nos cercados de mulheres
interesseiras. Duas raparigas que no
momento dançavam urna com a outra
lançaram sobre Wolf uns olhos ternos,
convidativos e ambiciosos. Ele se
colocara meio sentado meio deitado
numa banqueta especial do bar, com
encosto móvel.
— Você parece querer mais alguma
coisa do que simplesmente beber —
disse melosamente uma das raparigas,
esfregando o corpo, como uma gata,
para cima e para baixo num lado dele.
— Acho que não estarei errando se
pensar que você quer trepar.
— É isso por acaso o que chamam
de cantada na União Soviética? —
perguntou Wolf, rindo e enfiando um
dedo entre as coxas dela. — Ué! Está
ficando careca? — perguntou, surpreso,
levantando-lhe a saia.
— Fiz a barba, queridinho, um efeito
especial. Normalmente custa dez por
cento a mais, mas você é tão bonito que
não vou cobrar extra. Quinhentos pela
noite. Que acha? À francesa, à alemã, à
sueca, tudo! Mas à japonesa é mais
duzentos.
— É o último preço? — perguntou
Wolf, metendo mais a mão para
examiná-la melhor.
Acabaram concordando em 400 e
assim desapareceram pela porta com a
placa PARTICULAR.
Alguns minutos mais tarde Wolf
botou a cabeça para fora da porta e
assobiou chamando seus cachorros. E
eles lá se foram atrás dele, latindo,
felizes da vida.
— Será que os cachorros também
vão trepar nela? — perguntou Tiny,
bocejando.
— É bem provável — disse Porta.
— Wolf é terrivelmente atencioso com
animais.
Alguém começou a meter a mão
magra, com unhas pintadas de verde,
pelo meio das coxas de Gregor, e ali
ficou esfregando-as. A mão ia abrindo
caminho por dentro das calças, de
maneira tal que revelava longa prática
no assunto.
— Eu podia afiar a sua espada. Você
teria a sensação de estar flutuando no
céu — disse ela, seduzindo-o. — Sou
boa na Cama!
Gregor dava risadinhas, deliciado.
— Então vamos subir e resolver
isso.
— Primeiro uma dancinha para
esquentar — disse ela com um risinho,
puxando-o para a pista de dança.
Logo depois os dois desapareceram
pela porta marcada PARTICULAR.
Albert, que ainda conservava certa
timidez, cacarejou ,como um papagaio
embriagado quando uma rapariga de
olhos oblíquos e negros e positivamente
profissionais pegou sua mão e dirigiu-a
delicadamente para o meio das coxas
dela.
— Você é maravilhoso, meu negro
querido — suspirou ela, torcendo os
quadris e esfregando-se contra a mão
dele. — Venha comigo, soldadinho —
disse ela. — Vamos trepar, de modo que
você não saia por aí e leve um tiro
desses malvados do Exercito Vermelho
sem ter dado uma boa trepada antes.
Você é o meu primeiro canibal —
continuou ela, já atravessando a sala em
direção a porta assinalada
PARTICULAR. — Vou me entregar a
você pela metade do preço, mas você
promete não me devorar, que não sou
comida.
Mal voltávamos ao bar quando um
repentino rugido de animal, seguido de
outros, fez parar a música e calar os
presentes.
— Ulrich! — gritou Porta,
amedrontado, largando Petúnia, que caiu
ao chão com um ruído surdo.
— Oh, diabo! — resmungou
Barcelona, esvaziando de um trago um
copo de Krazisom, uma bebida que se
pode tomar quando não se tem o paladar
apurado para bebidas nobres e se esta
com o sentido do olfato reduzido ao
mínimo.
Albert, que saboreava o seu prato
predileto, peixe ligeiramente ácido,
quase se esqueceu da comida ao dar
com o comprido e negro feixe de
músculos e nervos encurvado à altura da
porta, aprontando-se para saltar.
O engraxate mongol, que caprichava
no polimento das botas de montar de
Wolf, feitas a mão por Rosseli, de
Roma, desmatou após duas profundas
inspirações quando olhou dentro dos
olhos da pantera e ela perversamente
rangeu os dentes.
De trás da porta marcada
PARTICULAR vinham pungentes gritos
de terror. Todos olharam para cima,
esquecendo momentaneamente a pantera.
— Assassino! Assassino! — gritava
a garota alta e esbelta, correndo, com
Tiny em sua perseguição, aos berros.
Ele estava completamente nu e agitando
no ar uma cadeira.
— Pare aí, seu veado nojento! Vou
arrancar essa piroca inútil — berrava
Tiny, fora de si, de raiva.
— Pobre coitado! — gritou o
Legionário, rindo gostosamente. — Foi
arranjar um travesti.
— Toma! — rosnou Tiny, atirando a
cadeira atrás do aterrorizado travesti. —
Quinhentos mangos, ele cobrou, e só
para sustentar essa vergonheira!
25
O travesti estava tão apavorado que
nem notou a pantera agachada e
rosnando na porta. Passou por ela como
uma bala e bateu a porta atrás de si,
apertando o rabo da pantera, que estava
no caminho. Ela lançou no ar um uivo de
dor que fez o salão esvaziar-se em
segundos e ficou rodando e urrando
ferozmente na porta. Com o pelo todo
eriçado nas costas, a fera estirou os
músculos, preparando-se para a ação.
De um salto magistral alcançou o bar.
Sua respiração quente sobre a nuca
da Boneca do Danúbio fê-la cair, dando
um grito estranho e metendo o rosto,
exageradamente pintado, numa travessa
de peixe quente. As pessoas que se
achavam de pé no bar atiravam nela tudo
o que tinham à mão. Um leitãozinho
assado entrou pela goela da pantera de
uma só vez. Ulrich passeou ao longo do
bar e esticou uma pata negra na direção
de um prato de macarrão e rim. De
passagem, ela deu no Carlo das
Granadas, do depósito de munições, um
tapa no ombro que fez a sua dentadura,
fornecida pelo Exército, voar longe. Ele
desabou como um castelo de cartas
exposto a vento forte.
O oficial das SS Gernert, da Divisão
T das Forças de Assalto, conhecido pela
sua brutalidade, empurrou o seu prato de
leitão assado para longe dele quando a
pantera veio em sua direção com as
patas abertas. Ele só teve tempo de dar
um grito antes de a pantera vir
pesadamente sobre ele, ficando ali
caído, sem sentidos. A pantera farejou
demoradamente o corpo inerte e depois
atacou os restos do leitão, fazendo um
barulho tão grande com a boca que
qualquer pessoa poderia pensar que o
oficial estava sendo comido.
— Vai haver complicação — disse o
Velho, com um mau pressentimento.
— Seria melhor levá-la para fora
daqui — opinou Barcelona, atirando
para Ulrich um coelho acabado de ser
morto.
O animal deitara-se num largo divã,
depois de ter provocado o esvaziamento
completo do bordel.
— Ela não vai para lugar nenhum —
disse Porta, zangado. — Vai ficar É
aqui!
— Diabo, cara, ela vai nos trazer
incalculáveis problemas — gritou
aborrecido o Velho.
— Os problemas são de vocês —
interveio o mecânico-chefe Wolf. — Eu
nunca vi uma pantera em toda a minha
vida. E na verdade eu nunca nem ouvi
falar de pantera. Anote isto, se é seu
desejo.
— Seu merda nojento — reagiu
Porta, com desdém. — Acho que não
conheço ninguém tão traiçoeiro e falso
como você. Nem mesmo os chineses
aceitariam de você fogos de artifício,
caso tivesse algum.
— Não quero ver minha seção
transformada em jardim zoológico —
gritou o Velho, dando um murro na mesa.
— A pantera Ulrich fica na Seção
Dois — disse Porta, com um gesto
brusco, apontando para o Velho com um
dedo sujo. — Senão, a pantera e eu
vamos embora, e isso você teria de
lamentar.
— Eu dou parte! — gritou o Velho,
furioso.
— Não me faça morrer de rir —
respondeu Porta. — Isso é justamente o
que você não vai fazer. Você sabe bem o
que acontecerá se descobrirem quem é o
responsável por toda essa história da
pantera. Vão cair em cima dele por tudo
o que possa ser, desde exposição ilegal
a assassino e alta traição, ou lá o que
quiserem chamar. Vai ser executado
umas quinze vezes, fora algumas penas
de morte por causa das dúvidas. Ele e a
pantera vão ser dependurados lado a
lado, com o vento agitando os seus
cabelos, um lindo quadro!
Logo no dia seguinte o telefone do
Quartel-General começou a chamar
insistentemente.
— O quê? Você está dizendo uma
pantera? — perguntou o funcionário
chefe, o Subtenente do Estado-Maior
Weingut, vagamente.
— Uma pantera preta, bolas —
gritou o funcionário divisionário,
excitado.
— Você está maluco — disse
Weingut, com um riso curto. — Todas as
nossas Panteras são amarelas ou
cinzentas e têm um motor Maibach na
parte de trás.
— Você não perde por esperar. Vai
ter esse riso idiota tirado de sua cara —
ameaçou o funcionário divisionário,
secamente. — O General von
Hühnersdoif está danado da vida, fulo
de raiva.
Nossa estação telefônica está
congestionada com as chamadas sobre
queixas a respeito de Panteras. Antes de
sabermos o que está se passando. o
marechal de campo virá aqui
pessoalmente para ver o que há.
— Não estou entendendo o que a sua
queixa tem a ver conosco — respondeu
Weingut, despreocupado. — Nossas
Panteras estão onde devem estar. As
únicas pessoas que podem ter queixas a
respeito delas estão lá do outro lado, o
lado do inimigo, e não acredito que
queixas assinadas por Ivan tenham muito
valor.
— Você tem aí uma pantera negra,
que anda fazendo mal ao coração das
pessoas e até lesões cerebrais. O
general exige uma investigação. Uma
completa investigação. Tome nota. meu
caro amigo estúpido como um porco.
— Por que você não se gruda ao
médico e tira essas coisas da cabeça?
— respondeu Weingut em tom paternal.
— Aqui no Vigésimo Sétimo Regimento
Blindado não tem ninguém tão pobre de
espírito que vá ficar andando por ai com
um troço tão perigoso como uma pantera
negra, Você sabe que elas comem gente,
ou não sabe?
Meia hora depois, quem estava ao
telefone era o ajudante divisionário.
— Que negócio é esse de vocês
terem aí uma pantera negra? —
perguntou ele ao ajudante do Regimento,
um jovem tenente sem experiência
alguma, recém-chegado do depósito. —
Aqui na Divisão estão correndo os mais
absurdos boatos.
— Que cor é a Pantera? —
perguntou o ajudante regimental,
ingenuamente. — Aqui não tem nenhuma
Pantera negra.
— Diabo, homem, não estou falando
de tanques — tornou o divisionário,
chiando como motor superaquecido. —
Trata-se de uma espécie de gato, grande,
enorme, um verdadeiro gato selvagem,
que come policiais aos montes. Você
pode imaginar o oficial comandante do
batalhão da Polícia Militar metido numa
camisa de força, no hospício, depois de
um encontro com a sua maldita pantera
negra?
— Mas, senhor, eu posso assegurar
que nós não temos nenhuma pantera
negra — explicou, num lamento, o
ajudante regimental, servilmente. — Os
únicos animais que existem aqui são
dois cachorrões de caça pertencentes ao
mecânico-chefe Wolf, que estão
perfeitamente legalizados, com licença
do oficial comandante.
— Exploradores de animais — disse
o ajudante divisionário, sem outra
alternativa. — Espere por um inferno de
confusão a esse respeito. Dos corpos já
estão chegando rumores de agitação, e a
população civil da área está toda
reclamando.
— Senhor, não estou entendendo
patavina disso tudo — respondeu o
ajudante regimental, completamente no
ar. — Não sei de nada a respeito de
panteras negras no Regimento Blindado.
Em tudo isso deve haver um lamentável
engano. Por que não consulta o Corpo
Veterinário?
— Você será atendido — respondeu
rindo maliciosamente o ajudante
divisionário e pondo o fone no gancho.
O Tenente-Coronel Hinka estava
fazendo a barba quando o telefone de
linha direta começou a soar
ininterruptamente.
— Hinka — atendeu ele, secamente.
— Hühnersdorf! Que diabo está
acontecendo em seu regimento? —
começou o general de divisão, sem
qualquer espécie de um polido introito.
— O que está acontecendo? —
repetiu Hinka, com certo nervosismo.
— Você é o comandante, não é? Se
você não souber o que se passa quem
diabo vai saber? Mas eu posso informar
a você que o seu pessoal está brincando
com um tipo de animal carnívoro e
amedrontando toda a gente na sua área.
A metade dos meus policiais está no
hospício por causa disso. Se você me
diz que não sabe nada a esse respeito,
Coronel Hinka, então devo dizer-lhe que
você é a única pessoa em todo o Quarto
Exército Blindado que ignora o fato! O
marechal de campo em pessoa está
exigindo um completo esclarecimento do
assunto, dentro de uma hora!
— Tudo isso está me soando como
uma piada maluca, general — respondeu
Hinka, bastante sincero. — Que espécie
de animal carnívoro é essa?
— Já não lhe disse? — rosnou o
general, espumando de raiva. — E uma
pantera, em nome de todos os infernos!
Uma pantera negra chamada Ulrich!
Hinka fechou os olhos e praguejou
consigo mesmo. Já não tinha dúvida
sobre onde encontrar a pantera negra,
Ulrich, e sobre os seus cúmplices
humanos.
Inspirou profundamente duas vezes e
limpou raivosamente a espuma do rosto.
— Dentro de uma hora o senhor
receberá um relatório — disse ele.
— Assim espero, para sua
tranquilidade — sibilou o general. —
Este caso é mais sério do que você
pensa. O marechal de campo quer a
pantera morta a tiros e os culpados
defronte de uma corte marcial. Danem-
se, coronel, a pena tem de ser rigorosa.
Quero o seu relatório dentro de sessenta
minutos!
— Capitão Soost! — chamou Hinka,
com uma voz que ressoou em todo o
Regimento. — Capitão Soost! — repetiu
ele impacientemente, jogando com um
gesto brusco a toalha para um canto.
— Pronto, coronel! — gaguejou
aterrorizado o ajudante, batendo os
calcanhares.
— Procure o diabo desse Porta e
traga-o aqui! — ordenou Hinka.
indignado.
— Porta? — perguntou o ajudante,
que nunca soubera de alguém com esse
nome.
— Diabo, homem! — vociferou
Hinka. — Você não entende nada? É o
Primeiro-Sargento Porta, em nome do
inferno. Número cinco da Segunda
Seção da Quinta Companhia, O patife
tem de se apresentar a mim agora, já,
trazendo com ele uma pantera negra
chamada Ulrich!
O ajudante embarcou num Kübel,
firmemente convencido de que fora cair
dentro de um regimento inteiramente
constituído de malucos.
— Para onde, capitão? — perguntou
o motorista, com um riso aberto, com o
pé para baixo e para cima no acelerador.
— Vamos prender um primeiro-
sargento chamado Ulrich e uma pantera
de nome Porta — gaguejou o ajudante,
inteiramente confuso, acendendo um
cigarro com mão trêmula.
— Então é a Quinta Companhia,
senhor — disse rindo o 1º Sargento
Helmer, partindo como um foguete.
— Dirija com cuidado —
repreendeu o capitão, ajeitando
nervosamente a túnica do uniforme.
— É exatamente o que estou
fazendo, senhor — disse rindo o
Sargento Helmer. Começou a abrir,
contra a norma regulamentar, um grande
embrulho de sanduíche quando pararam
na frente do posto de comando da 5?
Companhia.
O 1º Sargento do Estado-Maior
Hoffmann estava sentado, com seus
ombros largos e sua autoconfiança, atrás
de uma grande secretária que herdara de
um antigo comissário político. Aquela
hora ele ainda usava os seus chinelos
russos de levantar. Bateu continência e
se colocou numa posição que lhe
permitisse esconder do ajudante os seus
sofisticados chinelos vermelhos.
— De ordem do oficial comandante
eu venho prender uma pantera — disse o
ajudante, procurando dar à voz um tom
de severidade. — O nome dela é Ulrich
— acrescentou, depois de um longo e
penoso silêncio.
— Muito bem, senhor — resmungou
Hoffmann, já antevendo problemas de
inacreditáveis dimensões. — Sargento
Müller! — gritou para o mensageiro da
Companhia.
O sargento estava na sala do
arquivo, ao lado, tão perto que bastaria
um sussurro para chamá-lo, sendo
desnecessário gritar.
— Tome jeito, dorminhoco, acorde.
Número dois, diga ao Sargento Porta e à
pantera Ulrich para se apresentarem a
mim imediatamente. Entendeu? Se voltar
sem eles, vai se ver comigo. Vai logo
enfrentar os vizinhos, onde uma morte
heroica está esperando por covardes
como você.
Mais de uma hora se passou até que
Porta aparecesse. Ele entrou na reserva
da Companhia como um furacão e bateu
três vezes os calcanhares: duas para o
ajudante e uma para Hoffmam.
Fez a saudação nazista e disse um
ressoante “Heil” a frente de um retrato
de Hitler, que tomara o lugar de um de
Stalin.
— Chega! — avisou Hoffmann,
lançando-lhe um olhar tão duro que
poderia fazê-lo engolir os dentes.
— Não me é permitido saudar o
Führer? — perguntou Porta, com fingida
surpresa.
— Idiota — rosnou Hoffmann —
não quando ele estiver pendurado aí.
— Então onde é que ele devia ficar
pendurado? — perguntou Porta com um
sorriso.
— Considere-se preso! — rosnou o
ajudante, com voz trêmula. — Você está
preso! — repetiu, apontando
acusatoriamente para Porta.
— Preso? — perguntou Porta, sem
se alterar. — Eu? Por que, senhor?
— Por andar por aí com uma
pantera, ameaçando a vida das pessoas
— gritou o ajudante, que começava a
perder o controle de si mesmo.
— Não é mais permitido a gente ter
animais domésticos no Exército alemão?
— perguntou Porta, candidamente,
batendo três vezes os calcanhares
novamente e fazendo menção de saudar
outra vez o retrato de Hitler, porém
percebendo um olhar fulminante de
Hoffmann e desistindo a tempo.
— Pantera não é animal doméstico
— disse o ajudante, seco.
— Perdão, senhor capitão — tornou
Porta, em sua usual maneira caipira de
falar. — Existe uma grande variedade de
animais de estimação. O Imperador da
Abissínia, por exemplo, tem leões como
animais domésticos, senhor, e na Índia
eles possuem elefantes. Então por que
não posso ter uma pequenina e doce
panterinha comigo?
— Você está preso! — voltou a
gritar o ajudante, com o rosto em brasa.
— Você explicará tudo sobre o seu
animal doméstico a uma corte marcial.
Você e sua pantera vão prestar contas a
um pelotão de execução! Você arruinou
o moral de metade da Wehrmacht!
— Muito bem, senhor — respondeu
Porta, voltando resignadamente os olhos
para o céu. — Com sua licença, senhor,
devo dizer que na qualidade de soldado
alemão eu estou certo, de acordo com o
parágrafo duzentos e nove, subparágrafo
cinco, do Regulamento do Exército, que
diz: Prisão e detenção de pessoal
militar. Resistir a qualquer ordem de
prisão em desacordo com o Código
Penal Militar do Exército da Grande
Alemanha. Peço ao ajudante para
comunicar que o Primeiro-Sargento
Joseph Porta se nega à prisão pelo fato
de que a acusação não tem fundamento.
— Você ficou completa e
absolutamente fora do seu juízo, homem
— reagiu o ajudante, espumando de
raiva e perdendo completamente o
controle de seus nervos. — Não se
atreva a me ensinar a mim, um oficial!
Sabe bem o que está dizendo, sargento?
— Com sua licença, senhor, o
Primeiro-Sargento Porta sabe
perfeitamente o que está dizendo.
— Cale a boca! — cacarejou o
ajudante, histericamente, com os dedos
batendo nervosamente no coldre
amarelo da pistola, como se estivesse
pensando em atirar em Porta.
— Toca para o Regimento! —
ordenou ao 1º Sargento Helmer, ao
voltar para o Kübel, juntamente com
Porta.
Helmer, que saboreava uma perna de
peru e um pedaço de pão com geleia,
fingiu não ouvir a ordem e ficou olhando
tranquilamente para a perna de peru,
antes de dar outra bocada.
— Está surdo? Não ouviu minha
ordem? — berrou o ajudante, louco de
raiva.
— Que ordem? — perguntou
Helmer, com a boca cheia.
O ajudante acabou perdendo o
restinho de controle emocional que
ainda tinha e despejou uma enxurrada de
ordens e ameaças indecifráveis, para o
indisfarçável contentamento de Porta e
Helmer. Por trás da lambuzada janela da
reserva da Companhia podia-se ver to
rosto gordo e de feições suínas de
Hoffmann.
— Com sua licença, senhor —
perguntou Porta em voz alta –— eu sou
um primeiro-sargento alemão livre ou
um primeiro-sargento alemão preso?
— Você está preso — vociferou o
ajudante, fora de si, sem se preocupar
em entender por que razão a pergunta
tinha sido feita.
Helmer prestou continência e
desembarcou do Kübel, levando as
chaves.
— Onde é que vai, homem? —
rosnou o ajudante.
Helmer repetiu a continência,
batendo os calcanhares com tanta força
que levantou lama à sua volta.
— Com sua licença, senhor, de
acordo com o Regulamento do Exército
os prisioneiros só podem ser conduzidos
por pessoal devidamente autorizado. Só
quem tenha prestado um juramento
especial pode ser mandado executar
serviços dessa natureza, senhor!
— Então vá a pé para o QG —
ordenou o ajudante, secamente. — Me
passe as chaves e os documentos do
veículo.
— Com sua licença, senhor, não
posso passar a outro a responsabilidade
deste veículo sem ordem escrita do
comando do Regimento — respondeu
Helmer, com nova continência. — Mas
se o senhor ajudante puser o Sargento
Porta para fora do veículo ou declarar
que ele foi liberado, aí então eu posso
levar o senhor ajudante de volta ao QG.
Depois de pensar sobre o assunto
alguns segundos, o ajudante declarou
Porta livre temporariamente. E ia se
sentando novamente no seu lugar no
Kübel quando uma coisa comprida e
negra passou por ele e caiu com
estrépito no banco traseiro. Era Ulrich,
que tornara a encontrar Porta e agora se
ajeitava orgulhosamente ao lado dele. O
ajudante tonteou, caiu para o lado e
mergulhou com um gorgolejo na lama
junto ao Kübel.
— Estará morto? — perguntou
Helmer com indiferença, esticando o
pescoço.
— Puxa vida, rapaz, daqui a pouco
você não vai fazer outra coisa senão
contar os ataques de coração que seu
gato anda causando.
— Vamos levantá-lo — disse Porta
— e levá-lo para o QG. O comandante
quer conversar com Ulrich e comigo.
Houve enorme susto e confusão no
quartel assim que Porta e Ulrich
entraram no gabinete do comando. Três
funcionários tiveram um distúrbio
nervoso quando a pantera lhes mostrou
as compridas presas.
— Por que diabo você vive fazendo
essas coisas, Porta? — perguntou o
Tenente-Coronel Hinka com voz
tranquila, porém ameaçadora, quando
Porta bateu os calcanhares em frente à
mesa dos mapas. — Você sabe o que o
livro dos bichos diz a respeito dessa
fera que você comprou? Um animal
assassino.
Mata qualquer coisa viva que lhe
chegue ao alcance. E mata porque gosta
de matar!
— Com sua licença, senhor, o livro
está cheio de mentiras, do princípio ao
fim. Ulrich é mansa como um cordeiro.
Só é brincalhona.
— Eu não desejo ter mais problemas
com você, Porta. A pantera tem de ir
embora! E se não for embora
imediatamente, quem vai é você, mas
para a frente de uma corte marcial.
Como vou conseguir salvar sua pele
desta vez eu não posso nem pensar, mas,
tome nota de minhas palavras, esta é a
última vez que vou procurar ajudá-lo.
Minha paciência chegou ao fim. Saia
daqui e tenha a bondade de levar esse
monstro negro com você!
Porta bateu novamente os
calcanhares, fez a continência e se
retirou, levando a pantera.
— A propósito, para onde foi
Ulrich? — perguntou Helmer a Porta.
encontrando-se com ele um belo dia
no posto de suprimentos de Charkov,
onde estávamos recebendo novos
tanques Tigre.
— Emigrou para a Suécia —
respondeu tristemente Porta. — Já
estava cheia da ditadura alemã.
— Para a Suécia? — perguntou
Helmer, boquiaberto. — Uma pantera
não pode ir assim tão facilmente para a
Suécia.
— Bem se vê que você não conhece
os macetes de que ela é capaz —
respondeu Porta. — Ela tomou um trem-
hospital daqui para Libau. De lá ela
viajou a bordo de um barco sueco. E a
esta hora deve estar provavelmente
passeando por Estocolmo, apreciando as
vitrines. E aposto que até já comprou
uma nova capa de pele, com pintas, para
pôr em lugar da sua preta, muito
manjada. Se a Gestapo ainda estiver
atrás dela, um disfarcezinho não ficaria
mal.
Se é necessário economizar tempo
— e quase sempre é –
então jogamos mil, ou três mil,
bombas sobre uma cidade que
está nos atrasando e deixamos
apenas um monte de destroços para
trás.
Não podemos permitir-nos ter pena
da população civil.
Nossa missão é tocar para a frente
e destruir o inimigo tão depressa
quanto possível.
Guerra é guerra, uma coisa
impiedosa.
General Bradley
Um bando de gansos atravessa a
praça poeirenta, grasnando no seu
andar gingado. Esticam os pescoços e
batem as asas. Paz e quietude
impregnam o ambiente.
— Este buraco está deserto — diz o
comandante da seção.
— Espere um pouco — intervém o
chefe do tanque. — Com Ivan nunca se
sabe.
Os quatro tanques da seção
estiveram esperando, preparados para
atacar. durante uma hora. Há alguma
coisa pairando no ambiente da aldeia
de que eles não estão gostando, mas o
único sinal de vida, no decurso daquela
hora, foi o grasnar dos gansos.
— Vamos ter de entrar lá — diz o
comandante da seção, fazendo um sinal
para os outros três tanques. — Mas
vamos entrar passando pelo rio. A
ponte pode estar minada, e quem
deseja ir para o céu no topo de uma
onda de choque?
Os tanques atravessam o rio com os
motores roncando, sobem pela margem
oposta, derrubando algumas cabanas
de barro, e param no meio da praça da
aldeia.
Os gansos grasnam. Um valente
ganso macho avança contra os tanques,
grasnando e batendo as asas. Tudo está
tranquilo. Nenhum som no ar calmo.
— Motoristas e artilheiros da torre
permaneçam nos postos — ordena o
comandante da seção. — O resto
desembarca. Vamos pegar os gansos.
As torres se abrem. Com acessos de
riso, as guarnições dos ,tanques pulam
para o chão e correm a toda atrás dos
gansos assustados. Um dos homens
acaba de agarrar um ganso e neste
momento uma metralhadora abre fogo,
espalhando balas por toda a praça.
Em instantes o lugar se assemelha
à área de um matadouro. Os ,homens
dos tanques se lançam às tantas no
meio dos gansos assustados. Dois
deles, seriamente feridos, tentam
arrastar-se para trás, em direção aos
seus veículos.
Os soldados russos saem correndo
das cabanas. As granadas explodem, as
escotilhas fecham-se com fragor.
Canhões atroam, metralhadoras
matraqueiam.
Cargas explosivas são jogadas
entre as lagartas dos tanques,
imobilizando-as. Minas são atiradas
debaixo das torres. No espaço de
alguns minutos, os quatro tanques
constituem o centro de um explosivo e
infernal mar de chamas.
Pouco depois os tanques destruídos
são encontrados por um regimento
blindado de vanguarda. Breve
intermezzo num belicoso dia de verão.
26
Os tigres