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MARY ÂNGELA FIGUEIREDO GERALDES

UMA VISÃO SEMIÓTICA DOS VALORES DA CULTURA CAIPIRA


MANIFESTADOS NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAIZ

MOGI DAS CRUZES


2007
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MARY ÂNGELA FIGUEIREDO GERALDES

UMA VISÃO SEMIÓTICA DOS VALORES DA CULTURA CAIPIRA


MANIFESTADOS NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAIZ

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Semiótica, Tecnologias da Informação e
Educação, da Universidade Braz Cubas, para
obtenção do título de Mestre em Semiótica,
Tecnologias da Informação e Educação.

Área de concentração: Tecnologias da Informação,


Semiótica e Educação.
Orientador: Prof. Dr. Cidmar Teodoro Pais.

MOGI DAS CRUZES


2007
UMA VISÃO SEMIÓTICA DOS VALORES DA CULTURA CAIPIRA
MANIFESTADOS NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAIZ.

Mary Ângela Figueiredo Geraldes

Banca examinadora

Prof. Dr. Cidmar Teodoro Pais (orientador)

Instituição: Universidade Braz Cubas. Assinatura: _________________________

Prof(ª). Dr(ª). ______________________________________________________

Instituição _____________________Assinatura:___________________________

Prof(ª). Dr(ª). ______________________________________________________

Instituição _____________________Assinatura:___________________________

Trabalho apresentado e __________________ em __ de ________ de 2007.


Dedicatória

A memória de meu pai, Francisco Manoel


Geraldes, exemplo de amor à família, empenho
no trabalho, perseverança, integridade,
coragem, ética e honradez.
Agradecimentos

Ao professor Dr. Cidmar Teodoro Pais, que se fez estimado orientador


desde a entrevista, quando entusiasticamente observou a possibilidade de um
desdobramento de Semiótica das Culturas a partir da análise da literatura caipira.
Digníssimo mestre que contagiava com seu eloqüente humor, afirmando que a
Semiótica é virótica. A vasta experiência do privilegiado discípulo de Greimas e
seu vocabulário rico e elevado mesclado à maneira clara e sucinta despertavam
em cada aluno o interesse pela ciência. Com paciência apontava as falhas na
pesquisa, e com sabedoria aguçava nossa curiosidade e gosto pelo exercício
semiótico.

Impossível esquecer a atenção, dedicação e total apoio da Prof. Dra.


Rosália Maria Prados; o estímulo à leitura acadêmica e a postura ética da Prof.
Dra. Sônia Maria Alvarez; a maternal eficiência didático-pedagógica da Prof. Dra.
Rosemary Roggero; a gentileza das críticas pertinentes e o desafio amoroso da
Prof. Dra. Lucy Bonini, e a produtiva cobrança do Prof. Dr. Carlos Alberto Oliveira.
Todos contribuíram para meu crescimento científico e intelectual.

Ao desvelo de minha mãe, mulher forte, equilibrada e calma, cuja


companhia foi lenitivo em momentos de dor e dificuldade. À valorosa torcida de
meus irmãos Marilúcia, Marco Antônio, Mary Elaine, Rosangela, Elisabeth e
Antônio Carlos e à vibração dos meus parentes e amigos.

Ao meu filho Laércio, que me instigou ao crescimento intelectual,


exortando-me a voltar a estudar, ao alegre e contagiante entusiasmo do meu filho
Bruno, ao orgulhoso incentivo da minha filha Catarina e meu genro Giulianno.

Ao meu marido, Valdoir Rigo da Silva, que, orgulhosa e apaixonadamente


caipira, ensinou-me a apreciar a beleza literária presente nas letras de músicas de
raiz, mostrando-se um grande companheiro também durante minha pesquisa.

Graças ao Deus, Todo-poderoso, que derramou sobre mim bênçãos como


a convivência com pessoas preciosamente especiais e uma vida abundante com
saúde e oportunidades de trabalho e estudo. Porque eu pude, na alegria da
pesquisa, desenvolver a consciência de que os valores devem ser preservados,
louvores e glórias ao Criador!
RESUMO

GERALDES, Mary Ângela Figueiredo. Visão Semiótica dos valores da cultura


caipira manifestados nas letras de músicas de raiz. 2007. 221 f. Dissertação
de Mestrado. Universidade Braz Cubas. Mogi das cruzes, São Paulo, 2007.

Este trabalho trata de uma investigação semiótica sobre valores da cultura caipira,
presentes na letra da música de raiz. Analisamos textos da literatura caipira,
imbuídos de saudosismo, sentimentalismo, valores e ideologias que, como em
todo discurso produzido em linguagem verbal, carregam a ideologia da cultura a
qual pertence. O atual processo de globalização conduz ao apagamento cultural,
sendo assim, faz-se necessária a reflexão sobre a cultura local, visando à
valorização de nossa cultura popular, fator que favorece o reconhecimento de
nossa identidade. O discurso caipira que analisamos parece traduzir a
consciência desse apagamento. Com o interesse em valorizar a poética caipira,
que durante décadas tem sido preservada pela memória coletiva, fundamentamos
nossa pesquisa em modelos da etno-semiótica, segundo Pais (1993), que
incorporam, sustentam e caracterizam uma identidade cultural. Observamos os
conceitos atuais de cultura, os efeitos do atual processo de globalização e
estudamos a formação do povo caipira, para procedermos à análise de sua
produção cultural. Na análise sêmica observa-se a tensão dialética entre
contrários como a cultura caipira e outras culturas; a tradição e a modernidade; o
sujeito urbano e o caipira; o presente e o passado, confirmando que as isotopias
temáticas são reiteradas em muitas letras. Utilizamos esquemas canônicos para
estudar as relações actanciais, ainda que todo texto admita mais de uma leitura,
fazemos apenas algumas possíveis leituras. Detectamos características do
discurso etno-literário, como a documentalidade e a ficcionalidade e
particularidades literárias como a abundância de recursos estilísticos. Portadora
de verdades gerais e universais, a Literatura caipira é preservada pela memória
coletiva e transmitida de uma geração a outra. Percebemos que o discurso
manifestado nas canções analisadas sustenta aspectos dos sistemas de valores e
dos sistemas de crenças que integram o imaginário coletivo da comunidade
paulista.

Palavras-chave: identidade cultural; valores, poética caipira.


ABSTRACT

This work deals with a semiotic inquiry about values of the “caipira” culture,
present in the lyrics of “root” music. We analyzed texts of the Brazilian country
literature, with nostalgia, sentimentalism, values and ideology, which, like in every
speech produced in verbal communication, holds the cultural ideology to which
they are from. Current globalization process compels to the cultural eradication,
therefore, it is necessary to think about local culture, aiming the increase in value
of our popular culture, factor that favors recognition of our identity. The Brazilian
country speech we analyzed seems to translate the consciousness of this
extinguishment. With concerns in valuing the Brazilian country poetics, which for
decades has been preserved by the collective memory, our search was based on
models of the ethnic-semiotics, which according to Pais (1993), incorporate,
support and characterize a cultural identity. We observed the current cultural
concepts, the effects of present globalization process and we studied the
formation of the Brazilian country people, then we analyzed the subsequent
cultural manifestation. In semic analyses we notice a dialectic tension between the
opposites such as the “caipira” culture and others cultures; the tradition and
modernity; the urban and country subjects; the present day and the past,
confirming that isotopic themes are reiterated in many lyrics. We have made use
of canonical schemes to study the actant relations, still the entire text allows more
than one interpretation and it only takes us a couple of readings. We detect
characteristics of ethnic-literary speech, such as the documentality and the
fictionality and literary individuality as the abundance of stylistic resources. Bearer
of general and universal truths, the Brazilian Literature is preserved by the
collective memory and transmitted from generation to generation. We realize that
the speech showed in the analyzed songs supports aspects of the values and
beliefs systems, which integrate the collective imaginary of the country community
in São Paulo.

Keywords: cultural identity; values; “caipira” poetry.


ÍNDICE DAS FIGURAS

Figura 1 Octógono: Discursos etno-literários 17


Figura 2 Octógono: Unidade léxica etno-literária 17
Figura 3 Octógono: Identidade x Alteridade 19
Figura 4 Enunciado narrativo de Jeitão de caboclo 76
Figura 5 Esquema canônico de Jeitão de Caboclo 78
Figura 6 Octógono: Roça x Cidade 78
Figura 7 Enunciado narrativo de Meu reino encantado 82
Figura 8 Esquema Canônico de Meu Reino Encantado 83
Figura 9 Octógono: Roça x Cidade 83
Figura 10 Enunciado narrativo de Cabocla Tereza 88
Figura 11 Esquema canônico de Cabocla Tereza (sujeito dotô) 11
Figura 12 Esquema canônico de Cabocla Tereza (sujeito caboclo) 89
Figura 13 Octógono: Fidelidade x Traição 90
Figura 14 Enunciado narrativo de Mágoa de boiadeiro 93
Figura 15 Esquema canônico de Mágoa de boiadeiro 94
Figura 16 Octógono: Tradição x Progresso 95
Figura 17 Enunciado narrativo de Tristeza do Jeca 97
Figura 18 Esquema canônico de Tristeza do Jeca 98
Figura 19 Octógono: Roça x Cidade 99
Figura 20 Enunciado narrativo de Caboclo na cidade 102
Figura 21 Esquema Canônico de Cabolco na cidade 102
Figura 22 Octógono: Campo x Cidade 103
Figura 23 Enunciado narrativo de Saudade de minha terra 106
Figura 24 Esquema canônico de Saudade de minha terra 106
Figura 25 Octógono: Viver no campo x viver na cidade 107
SUMÁRIO

Introdução 10
1. A construção semiótica do mundo caipira. 15
1.1. Aspectos conceituais 15
1.2. A cultura e a questão da diversidade cultural 24
1.3. A mundialização e o risco de apagamento cultural. 31
1.4. A formação da cultura caipira 35
2. Produção cultural caipira 42
2.1. Intérpretes e compositores 49
2.2. O estilo caipira 51
2.3. A desconstrução do discurso caipira 54
3. Leituras semióticas de músicas de raiz: valores da cultura caipira. 73
3.1. Jeitão de caboclo 75
3.2. Meu reino encantado 80
3.3. Cabocla Tereza 85
3.4. Mágoa de Boiadeiro 91
3.5. Tristeza do Jeca 96
3.6. Caboclo na cidade 100
3.7. Saudade de minha terra 104
Considerações finais 108
Referências Bibliográficas 110
Anexos
I. Índice das letras das músicas de raiz 116
II. Letras das músicas de raiz. 120
10

INTRODUÇÃO

Quem não sabe encontrar, nos rastros dos que nos antecederam,
os sinais para a continuidade de sua tarefa, torna-se indigno de pertencer
ao quadro daqueles capazes de lançar sinais para outros caminhantes.
(RODRIGUES, D. 2003)

O trabalho Uma visão semiótica dos valores da cultura caipira


manifestados nas letras da música raiz é uma investigação semiótica sobre os
usos, costumes e principalmente valores da cultura caipira. Essa investigação se
justifica porque vivemos um processo de globalização onde ocorre o apagamento
da identidade cultural e antes que certos valores e marcas culturais caiam no
esquecimento é preciso resgatar e atribuir-lhes o lugar legítimo no contexto
cultural brasileiro. Vivendo em um país de proporções continentais e tendo sido
formados pela miscigenação de múltiplas culturas, torna-se mister refletir sobre
nossa verdadeira identidade.
São inúmeras as diferenças urbanas e rurais que se acentuaram
especificamente no último século. Assim como são diversas as diferenças que se
estabelecem com as aceleradas transformações sócio-econômicas que se
efetivam em escala mundial. Deparamo-nos com muitos tipos de conflitos gerados
pelo deslocamento do homem do campo; pelas discrepâncias existentes no
espaço urbano; a partir do materialismo impingido por uma sociedade de
consumo; por incríveis avanços tecnológicos que não são suficientes para evitar
os desastres ecológicos que se evidenciam por todo o mundo. As manchetes
apresentam cientistas em busca de megasoluções para megaproblemas, porém o
caos inevitável é anunciado. Fala-se em violência, infração ética e legal, crises
morais de grandes proporções, ausência de consciência ecológica. Fica evidente
a urgência do resgate de valores éticos e morais.
Alguns grupos sociais orgulhosamente ostentam suas tradições e outros
deixam de conhecer ou divulgar a própria cultura. Sabemos que nossas raízes
nos constituem, contudo questionamos: o quanto de caipira ainda há em nós? O
que fica da cultura popular? As acentuadas diferenças entre música de raiz e
música de consumo exigem nossa atenção. Somos manipulados pela mídia,
sofremos a aculturação, a assimilação, a americanização e, muitas vezes,
olvidamos nossas raízes. Aceitamos novos ritmos musicais, estrangeiros ou não,
11

e já que a mídia não propicia a divulgação, preconceituosamente nos esquivamos


de ouvir o que é genuinamente nosso.
A vida urbana na capital de São Paulo nos ofereceu durante décadas a
oportunidade de presenciar a divulgação de variadas formas de manifestações
artísticas, especialmente através das músicas. Acompanhamos a transição do
gosto considerado velha guarda (valsas, tangos, boleros, sambas-canção) para
os ritmos apreciados pela jovem guarda (bossa nova, MPB, e especialmente o
estrangeirismo do qual o rock, tornou-se o ritmo mais difundido).
Vivendo como se pertencêssemos exclusivamente à outra cultura, tornava-
se comum a perda de contato com a cultura caipira, pois quase não havia
divulgação do que era oriundo dela. Entretanto, bastou apenas romper um
preconceito, pois uma audição mais atenciosa da música de raiz, levou-nos a
identificar e apreciar características como o saudosismo, o bucolismo, o
exacerbado sentimentalismo, que marcaram certos movimentos literários, e estão
presentes em textos altamente líricos de autores descompromissados com
quaisquer movimentos estéticos literários, mas que magistralmente manifestam
em seu discurso a visão de mundo de uma cultura que parece estar se apagando.
Encontramos as raízes e a identidade do povo paulista registradas em
versos de canções, que demonstram, algumas vezes, certo domínio da norma
culta e, outras vezes, a simplicidade na utilização de expressões típicas da
linguagem coloquial e regionalista. Traçamos como objetivo dessa pesquisa a
observação e análise de peculiaridades, singularidades, modos de ser e estilos de
vida, quase um estado de espírito que tem marcado a vida de uma boa parcela da
população paulista e que estão manifestadas no discurso que chamamos de
“literatura caipira".
É nossa intenção entender o significado do discurso caipira. Através da
análise do discurso poético, buscamos identificar valores da cultura caipira, que
durante décadas tem sido preservado pela memória popular. Entendemos que a
reflexão sobre o processo de formação da cultura caipira e o possível risco de
apagamento cultural; o conhecimento da cultura que fundamenta nossas raízes,
em um momento de profunda assimilação de outras culturas; assim como o
estudo e valorização da literatura caipira propiciam a percepção da riqueza de
nossa diversidade cultural e favorecem o reconhecimento de nossa identidade
12

Inicialmente, voltamos nossa atenção para aspectos conceituais da


Semiótica, utilizada como o fundamento teórico que sustenta esta investigação.
Definimos a linha de pesquisa e os autores em que nossa análise está embasada.
Consideramos a necessidade de uma abordagem pluridiscplinar, para
processarmos a desconstrução do discurso manifestado nas letras de músicas de
raiz, e alcançarmos o que Pais (1993) chama de “mundo semioticamente
construído”. Abordamos a relação entre linguagem e cultura, percorremos
conceitos de semiótica literária, segundo Bertrand (2003) e modelos semióticos,
segundo Pais (1993) que incorporam, sustentam e caracterizam uma identidade
cultural, visando a uma modesta colaboração na elaboração de uma Semiótica
das Culturas.
Discorremos sobre as diversas e modernas concepções de cultura;
ponderamos a riqueza da pluralidade cultural que constitui o povo brasileiro e
refletimos sobre a importância do resgate e valoração de nossa identidade.
Atentamos para a declaração de Ribeiro, D. (2002: 454) Somos povos novos
ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo
que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito
mais bela e desafiante.
Abordamos o processo de mundialização e o risco de apagamento cultural
preconizado por Pais (2004a); as marcantes transformações sócio-econômico-
culturais e as conseqüências da industrialização, bem como do incremento da
propaganda e da comunicação, que ocorreram no século XX. Entendemos que o
global não prescinde do local; que nosso passado, nossa história, nossa cultura
nos constitui.
Candido (1997) afirma que a sociedade caipira se formou durante a
expansão paulista, principalmente em seus momentos derradeiros, no século
XVIII. Entender a formação histórica desse povo e analisar o apagamento cultural
decorrente do processo de globalização de que nos fala Pais (2004a) são
subsídios imprescindíveis para uma pesquisa semiótica que favorecerá a
cuidadosa preservação de valores que são universais. Assim, apresentamos
algumas informações sobre o status da cultura caipira, percorrendo de forma
sumária o processo histórico de formação do povo caipira, a partir da
miscigenação de diversas culturas. Visamos, dessa forma, ao entendimento do
13

paradoxal conceito, que se tem hoje, sobre o caipira e ao conhecimento do nosso


passado para a compreensão do momento presente.
Fundamentados nos conceitos semióticos; alicerçados nas modernas
concepções de cultura e conscientes de que a pluralidade cultural, índice de
enriquecimento, requer o reconhecimento da identidade de um povo; cientes das
transformações geradas pelo processo de globalização e dotados do
entendimento da formação histórica do povo caipira; iniciamos nosso estudo da
literatura caipira. Assim, partimos da investigação sobre a produção cultural
caipira e apresentamos um breve histórico da produção da música de raiz.
Atentamos para as primeiras gravações, observando as tendências, os diversos
ritmos e o estabelecimento das modas de viola. Observamos o processo de
divulgação da música de raiz, desde os primeiros sucessos; as transformações e
exigências do mercado fonográfico e a distinção entre a música caipira e o
sertanejo comercial.
Ciente da importância de resguardar e valorizar o tesouro literário que
repousa nas letras poéticas da música de raiz, expressão genuína da sociedade
rural, elencamos alguns dos mais eminentes intérpretes e destacamos alguns dos
melhores poetas, compositores das letras analisadas. De forma panorâmica
observamos a relação entre o estilo literário caipira e conceitos da teoria literária
propostos por Discini (2004) e Gumbrecht (2005), na intenção de sustentarmos a
produção caipira como Literatura, embora popular, revestida de recursos e
características que a enriquecem e que justificam seu estudo.
Utilizamos o método qualitativo através da seleção de textos da literatura
caipira que são desprezados pela mídia, que valoriza o estrangeirismo e não abre
espaço para divulgação da produção cultural do caipira, pois esta foge ao modelo
impingido pela atual sociedade de mercado. Selecionamos cento e duas letras,
apresentadas integramente em anexo, e procedemos à desconstrução do
discurso etno-literário, observando as características documentais e ficcionais,
destacando: mecanismos de valorização do texto literário, como o saudosismo, o
sentimentalismo, a religiosidade, o bucolismo; recursos expressivos de estilo
como a metaforização e a prosopopéia entre outros; características como a
temporalidade, a espacialidade e a actorialização. Notamos a presença dos
valores cultivados pelos caipiras, tais como: a família, a sociabilização, a
espiritualidade, a hospitalidade, a moral e os bons costumes.
14

Procedemos à análise semiótica de sete letras de músicas de raiz: “Jeitão


de caboclo”, de Valdemar Reis e Liu; “Meu reino encantado”, de Valdemar Reis e
Vicente P. Machado; “Mágoa de boiadeiro”, de Nonô Basílio e Índio Vago;
“Cabocla Tereza”, de João Pacífico e Raul Torres; “Tristeza do Jeca”, de Angelino
de Oliveira; “Caboclo na cidade”, de Nhô Chico e Dino Franco; “Saudade da
minha terra” de Goiá e Belmonte. A semiótica literária permitiu-nos estudar as
estruturas narrativa, discursiva e profunda e num enfoque da Semiótica das
Culturas examinamos microssistemas de valores sustentados no discurso
manifestado na literatura caipira.
15

1. A CONSTRUÇÃO SEMIÓTICA DO MUNDO CAIPIRA.

1.1. ASPECTOS CONCEITUAIS.

...la reélaboration du monde sémiotiquent construit, les


changements et la permanence de l’imaginaire colletif, du savoir partagé
sur le monde. (PAIS, 2002: 232)

A Semiótica estuda a realidade cultural de uma comunidade que, conforme


Lopes (1995) é a fonte produtora das ideologias e, na medida em que estuda os
sistemas sígnicos de modelização do mundo, a Semiótica se constitui a ciência
das ideologias. Simões (2002) observa que adentrar os umbrais da semiótica
resulta em reeducar a percepção do mundo. Segundo ela, devemos entender a
semiótica como uma ciência que nos ajuda a “ver” por intermédio da exploração
de todos os nossos sentidos.
Processos semióticos, sistemas semióticos e seus discursos
dialeticamente articulados, são espacialmente delimitados e historicamente
determinados, segundo Pais (1999). Os diferentes processos semióticos
produzem e reiteram recortes culturais compatíveis, sistemas de valores e visões
de mundo coerentes; e constituem, em conjunto, a macrossemiótica de uma
cultura.
Pais (1993) expõe de maneira sucinta as relações entre cognição e
semiose, aspectos que analisa no quadro do percurso gerativo da enunciação de
codificação e decodificação. Apresenta-nos como os modelos mentais
(conceptus) e recortes culturais (designata), coerentes e compatíveis entre si,
tornam-se significação, efetivam-se transcodificação, na intertextualidade ou na
interdiscursividade, na contínua reelaboração do mundo semioticamente
construído. Para o autor o único lugar possível da semiose é o processo
discursivo.
As significações só podem existir no interior de uma semiótica-objeto, no
âmbito da macrossemiótica, não são transcodificáveis. A enunciação de
codificação se desencadeia no patamar da conceptualização, com a produção
dos modelos mentais (conceptus) e recortes culturais,(designata), como
dissemos, e essa produção reiniciada e reiterada em cada enunciação conduz a
construção de um metassistema conceptual disponível para atualização
16

semiótica. Os modelos mentais e os recortes culturais funcionam como objetos do


mundo semioticamente construído de uma cultura e sociedade.
Durante o percurso gerativo de significação, concomitantemente à
armazenagem e recuperação ocorrem a produção, a acumulação e transformação
do saber sobre o mundo. Deve haver cooperação entre o sujeito enunciador e o
sujeito enunciatário para que ocorram, articuladamente, a produção cognitiva e a
produção de significação, conforme Pais (1999). Para a produção da significação
e da informação, da construção e permanente reconstrução das “visões de
mundo”, segundo Pais (1993), ocorre a exigência de intensa cooperação entre
ciências (Lingüística, Semântica cognitiva, Semiótica, Antropologia, as Ciências
da Comunicação, Sociologia, etc.).
Pais e Barbosa (2003) declaram que a tipologia dos discursos e os
universos de discursos é uma das questões relevantes da semiótica. Os autores
observam a distinção entre discurso (processo discursivo de produção) e texto
(produto, enunciado). Lembram que os estudos de semiótica literária são os mais
antigos, os primeiros trabalhos eram voltados para a etno-semiótica, porém em
decorrência do avanço das teorias semióticas e lingüísticas tem ocorrido profunda
renovação do estudo dos discursos etno-literários.
A sociossemiótica, ainda conforme os referidos pesquisadores, estuda
discursos sociais não literários, como os discursos científico, tecnológico,
jornalístico, político, etc., cujo critério de valoração é a veridicção e a eficácia, por
outro lado temos os discursos literários que apresentam a verossimilhança
(mymésis) e são vistos como ficcionais, constituem geralmente metáforas da vida
e têm como elemento determinante de sua eficácia a função estética, discursos
inseridos num contexto lingüístico e sociocultural pertencente à macrossemiótica
de uma cultura. Estruturas de poder próprias, mecanismos de veridicção
específicos, processos de manipulação peculiares, são algumas das
características dos discursos sociais não-literários, cujo critério de valorização
social é a eficácia. Já os discursos literários são tidos como ficcionais, constituem
metáforas da vida e o critério de sua valorização social é a função estética.
Os autores afirmam que os critérios de classificação dos discursos e dos
universos de discursos permitem abranger muitos aspectos de uma tipologia
discursiva, contudo não são suficientes para examinar os discursos etno-literários,
17

nos quais falta verossimilhança, há um efeito de sentido de atemporalidade, e


remetem a um não-lugar.

Tensão dialética
Discursos etno-literários

Documentais Ficcionais

Discursos sociais Discursos


Não-literários Literários

~ ficcionais ~ documentais


Figura 1 Octógono: Discursos etno-literários

O modelo de Pais e Barbosa (2003), apresentado na figura 1, expõe a


tensão dialética conformadora dos discursos etno-literários, que são ouvidos
como fábulas e como veridictórios, portadores de verdades gerais e universais,
são preservados pela memória coletiva e transmitidos de uma geração a outra,
fazem parte da tradição popular e sustentam aspectos dos sistemas de valores e
dos sistemas de crenças que integram o imaginário coletivo de uma comunidade.

Unidade léxica etno-literária

Vocábulo termo

Língua Linguagem
Geral de especialidade

~termo ~ vocábulo


Figura 2 Octógono: Unidade léxica etno-literária
18

Pais e Barbosa (2003), na figura 2, apresentam a tensão dialética da


unidade léxica, mostram que as unidades lexicais dos discursos etno-literários
têm características específicas: são vocábulos metassemióticos de um lado e, de
outro, quase termos técnicos. É preciso estar familiarizado, conhecer o sistema de
valores da cultura em questão para poder compreendê-los bem. Conforme os
autores os discursos etno-literários apresentam uma função estética, uma função
didática e uma função mítica. Ainda esclarecem que os discursos etno-literários,
por sua riqueza, complexidade e diversidade, são patrimônio cultural, sustentam,
incorporam e caracterizam uma identidade cultural.
A estrutura do quadrado semiótico, cuja origem é Aristotélica, aponta o
modo de estruturação dos microuniversos semânticos. O quadrado desenvolve os
termos que formam o eixo semântico da categoria e se apresenta, como uma
rede de relações abstrata. Suas grandes relações constitutivas são cinco:
contradição, contrariedade, subcontrariedade, complementaridade, hierarquia.
Pode apresentar “dêixis” positiva e negativa, que é o nome dado ao agrupamento
dos termos complementares. A partir da análise sêmica obtém-se a organização
da forma do conteúdo.
Pais (2002) leva-nos a ver a tensão dialética existente entre tradição/
modernidade (que qualifica as sociedades dinâmicas, o progresso); tradição/ não
modernidade (em que se enquadram as sociedades arcaicas); modernidade/ não
tradição (ausência de consciência histórica, sociedades em desenvolvimento) e a
combinatória não modernidade / não tradição (sociedades excluídas do processo
histórico mundial). O autor apresenta essa tensão dialética a partir da aceitação
de que a consciência histórica e a memória social são condições do
desenvolvimento científico, técnico, econômico e social de sociedades mais livres
e democráticas. O semioticista observa ainda que no Brasil, o interesse na
preservação de monumentos históricos e de antigas tradições pertence a uma
minoria de intelectuais, o que atesta nosso status de desenvolvimento. Pais (apud
BATISTA, 2003) reflete sobre as relações de dominação e essas reflexões
permitiram-lhe estudar o dinamismo no percurso histórico da cultura.
Uma das questões mais importantes da semiótica é a Semiótica das
Culturas, que adota uma abordagem pluridisciplinar numa perspectiva
epistemológica, na tentativa de entender o atual sistema e a possibilidade de
reescritura de nossa identidade cultural. Batista (2003) observa que a Semiótica
19

das Culturas adota a concepção antropológica do termo, ou seja, a descrição do


conjunto de ideologias, de sistemas de valores próprios do individuo ou da
sociedade.
A inserção social se dá no equilíbrio da relação dialética entre sua
identidade e os outros. Toda a antonímia que envolve aspectos da cultura caipira
e reflete a dificuldade de reconhecimento de nossa identidade cultural pode ser
sintetizada no octógono de Pais (2001) sobre Identidade X Alteridade:

Inserção social

(Eu) Cultura caipira Outras culturas (outro)

Identidade Alteridade

~ outras culturas ~ cultura caipira


Exclusão

Figura 3 Octógono: Identidade x Alteridade

A riqueza da cultura humana é imensa, contudo a identidade cultural


brasileira tem sido desprezada. A sociedade brasileira valoriza o estrangeirismo
que tem o poder, busca identificação com a aristocracia e tem grande dificuldade
em reconhecer a própria identidade cultural. Uma sociedade conhece sua
identidade em relação a outras culturas. Pais (1993) acentua a importância do
levantamento de características relevantes do processo histórico da cultura e da
elaboração de uma tipologia semiótica das culturas. Todo falante de um grupo
pensa o mundo como o grupo o vê. A língua traz em si um sistema de valores e o
discurso produzido em linguagem verbal carrega a ideologia da cultura a qual
pertence. Essa ideologia é introjetada pelos indivíduos dessa cultura, assim,
através da semântica profunda, podemos identificar microssistemas de valores.
20

A cultura caipira, hoje em processo de apagamento, sustenta um sistema


de valores e de crenças. Sempre fomos uma sociedade excludente, nosso
modelo sempre foi o de fora. Não basta que os antropólogos estudem o processo
de aculturação, é necessária a busca de nossas raízes, de nossa história, de
nossos valores. Através da análise semiótica do discurso caipira detectam-se
valores e conflitos. Refletindo o contexto sócio-histórico em que está inserido, o
discurso analisado exemplifica um saber compartilhado sobre o mundo, e, no
plano da significação, uma “visão do mundo”, o seu “mundo semioticamente
construído”, conforme esclarece Pais (2004b).
Percebemos o riquíssimo manancial para um projeto de investigação
semiótica que é o discurso manifestado através da música raiz. Ousamos fazer
um breve estudo da axiologia da cultura caipira, através do estudo de
metamodelos que permitem examinar certos aspectos do processo histórico, no
âmbito de uma abordagem sociossemiótica e da Semiótica das Culturas, assim,
fundamentando-nos no percurso gerativo da enunciação de codificação e de
decodificação.
Entre os textos analisados encontramos exemplos riquíssimos para uma
semiótica da canção, pois utilizam recursos como cadência, modulação e
entoativos melódicos que facilitam ao ouvinte a conversão intersemiótica do
sistema da canção, conforme Tatit (1999), que afirma que quando o componente
lingüístico se compatibiliza com o perfil melódico, ocorre perfeita integração entre
melodia e letra. Contudo, nosso foco aqui não é a interação entre letra e melodia.
Entendemos que há diversas possibilidades de análise de um discurso e que a
noção de discurso ultrapassa amplamente os limites do texto, porém calcaremos
nossa análise exclusivamente na letra.
O universo está repleto de mensagens que transitam ininterruptamente em
vários níveis e camadas que se superpõem, cruzam, separam, reencontram-se,
dentre as quais a linguagem verbal é apenas uma entre muitas outras, afirma
Santaella (1996: 316). Propomos o exercício semiótico: o do sentido que o signo
suscita, que ele articula e que o atravessa, para isso perseguimos o objeto da
semiótica: explicitar as estruturas significantes que modelam o discurso social e
individual.
Analisar semioticamente o discurso caipira é quase um desafio que
fazemos sustentados pela teoria dos signos e do sentido, cujas raízes estão na
21

teoria da linguagem filiada a Saussure, com postulados estruturais e concepção


da língua como instituição social, também conhecida como escola de Paris, a
chamada Semiótica Greimasiana, da qual Pais, privilegiado discípulo, foi o
primeiro divulgador no Brasil. Alguns textos da poética caipira deixam
transparecer o homem natural, no sentido defendido por Rousseau (1993), o
indivíduo que cultiva valores, preserva a natureza, valoriza a família, cultiva
religiosidade e defende sua honra. Pais (1999: 14) afirma:
A estrutura, o funcionamento e a produção dos processos
semióticos permitem construir modelos que procuram dar conta do que é
semelhante nas diversas comunidades humanas, em função da chamada
natureza humana, como se dizia na Antiguidade.

Ricœur (apud BERTRAND, 2003: 23) afirma: a questão essencial não é


mais encontrar, por trás do texto, a intenção perdida, mas desdobrar, de certo
modo, diante do texto, o mundo que ele abre e descobre. Há pluralidade nas
leituras e o leitor é considerado o centro do discurso. É o leitor quem constrói,
interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou rejeita as significações. Fabbri (apud
BERTRAND, 2003) observa que o signo é a parte emersa do iceberg do sentido.
Na busca pelo significado estudamos o percurso global que simula a geração de
sentido, baseados na semiótica greimasiana, observando as quatro dimensões
que se articulam de maneira específica no texto literário: a narrativa, a passional,
a figurativa e a enunciativa.
Há significado presente em discursos individuais, que ocorreram em
textos, letras de músicas, produção significante e transcultural de uma sociedade
que modela o discurso. Entendemos que a literatura caipira também fixa, isola e
valoriza identidades. Conforme Pais (1999), o processo de produção de
conhecimento e semiose podem ser explicados numa concepção mais ampla,
quando examinados no percurso gerativo da enunciação.
A estrutura discursiva, a narrativa e a profunda compõem os três níveis de
estrutura de um texto. Assim na estrutura discursiva, ou superficial, temos os
significados mais concretos e diversificados, nela se instalam o narrador, o
personagem, o cenário, o tempo e as ações concretas. Os valores, a que os
sujeitos visam, são definidos na estrutura intermediária, chamada de estrutura
narrativa. Os significados abstratos que se opõem entre si e permitem que se
perceba a unidade do texto são detectados na estrutura profunda. Existe a
necessidade de se esclarecer os três procedimentos básicos da enunciação: a
22

temporalização, a espacialização e a actorialização. Referentes a isso


encontramos elementos lingüísticos dêiticos, cuja interpretação diz respeito à
situação de enunciação, e anafóricos, cuja compreensão se processa em função
de marcos temporais e espaciais.
A estrutura narrativa está ancorada nos enunciados. Entre várias possíveis
leituras, podemos observar em uma análise a relação entre actantes regida por
predicados. Bertrand (2003) propõe galgar um degrau na abstração e formular
uma estrutura funcional, capaz de apresentar uma estrutura da narrativa. Nas
formas canônicas em que as estruturas se desdobram em seqüências, vemos que
o sujeito é reconstituído a partir dos traços que deixa no discurso. Temos uma
seqüência de figuras apresentada pela sucessão de substantivos e adjetivos que
formam uma narrativa e nos dá a impressão da realidade. Existe coerência
discursiva, há a isotopia comum que tece uma ligação entre cada figura. Para
Bertrand (2003: 55) o texto é aquilo que a leitura atualiza e o que a análise
constrói.
Barros (2005: 16) afirma que a sintaxe narrativa deve ser pensada como
um espetáculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para isso
é necessário determinar os participantes e o papel que representam na história
simulada. A peça-chave do teatro semiótico é o actante. A análise e descrição das
relações actanciais tornam possível a reconstrução do sentido. A partir da
redução do modelo proppiano, Bertrand (2003) reconhece três pares de
categorias actanciais: sujeito/ objeto, destinador/ destinatário e adjuvante/
oponente. A estrutura elementar da ação é modelizada pelo programa narrativo. A
organização da narrativa é evidenciada no esquema canônico. Um mesmo papel
pode ser ocupado por vários atores diferentes ou por um ator coletivo, ou pode
ser ampliado, ou amputado.
O posicionamento de estruturas narrativas convocadas para o efeito de
uma dramatização excessiva possibilita a patemização do objeto literário.
Lembramos que Bertrand (2003) define patema como uma unidade semântica do
domínio passional. O objeto das semióticas das paixões é a modulação dos
estados dos sujeitos ao qual o domínio da dimensão patêmica diz respeito,
consoante Greimas (2002), que também declara que a modalização dos
predicados, aspectual e modal, junto às escansões e aos níveis das ações,
introduz uma reconsideração do cognitivo, constitutivamente, o plano tímico e
23

passional. Lembramos que no plano tímico encontramos uma vertente positiva, a


euforia; ou uma vertente negativa, a disforia e algumas vezes uma vertente neutra
que caracteriza a indiferença, ou seja, a aforia.
As paixões complexas prevêem a explicação de todo um percurso
passional, seu estado inicial é de espera, de acordo com Greimas (apud
BARROS, 2005) e as paixões simples decorrem da modalização pelo querer-ser.
O passional é focalizado no centro do programa narrativo e o espaço passional é
feito de tensões e aspectualizações, e se dispõe de acordo com as
transformações narrativas. Postula-se a necessidade de uma grade de leitura que
permita o reconhecimento dos objetos representados no quadro chamado
figurativo.
A figuratividade não é uma simples ornamentação das coisas, ela é esta
tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças ou
por causa de sua imperfeição, como que uma possibilidade de além (do) sentido,
segundo Greimas (2002: 74), que também observa a possibilidade de
ressemantização dos objetos gastos que nos rodeiam e das relações
intersubjetivas esgotadas.
Para Prados (2000), é através da figurativização e da tematização,
presentes em todos os textos, que podemos concretizar a análise da estrutura
narrativa e seus investimentos semânticos. À estrutura semântica e narrativa do
enunciado, soma-se a dimensão discursiva por meio das estratégias de
enunciação (debreagem e embreagem) a que se refere Greimas (2002). Quando
o discurso é subjetivo, efeito da desembreagem enunciativa, o texto é
apresentado em primeira pessoa. A descrição da relação subjetiva e espaço
temporal permite dar conta da dircursivização da vida interior do sujeito, valendo-
se das cenas figurativas das recordações. A temporalidade traz sua contribuição
sígnica e favorece o exercício semiótico.
Todo enunciado está submetido à orientação de um ponto de vista, modo
de presença do enunciador no discurso e a maneira pela qual dispõe, orienta ou
organiza o conteúdo. Sempre existe um observador que comanda a disposição do
discurso ou da representação. O observador, às vezes se instala no texto, tem
papel cognitivo, às vezes, o observador pode ser apenas espectador. O
observador é identificado por meio de sua atividade perceptiva. O funcionamento
geral do discurso permite traçar o perfil cognitivo do enunciador.
24

Fiorin (2005) menciona um tipo de leitor, que é construído pelo texto que é
chamado a participar de seus valores. Bertrand (2003: 24) observa que:
O leitor não é mais aquela instância abstrata e universal,
simplesmente pressuposta pelo advento de uma significação textual já
existente, que se costuma chamar “receptor” ou destinatário da
comunicação: ele é também, e, sobretudo, um “centro do discurso”, que
constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou rejeita as significações.

Destarte, valendo-nos, ao longo de nossa pesquisa, dos conceitos


semióticos supracitados, apresentamos ao leitor “uma” visão dos valores da
cultura caipira. Pretendemos contextualizar histórica e socialmente o discurso
analisado e entender a formação dessa cultura objetivando a reelaboração do
mundo semioticamente construído de que nos fala Pais (2002). Preliminarmente
ponderamos o conceito de cultura e a questão da diversidade do patrimônio etno-
cultural brasileiro.

1.2. A CULTURA E A QUESTÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL

O universo cultural e semiótico de uma comunidade confere-lhe a


identidade cultural e, simultaneamente, a consciência histórica de sua
continuidade e permanência. (PAIS, 2004: 2)

A cultura é o objeto de estudo da Antropologia cultural ou etnologia.


Mattelart (2005) conceitua cultura como o saber, as crenças, as artes, as leis, os
costumes ou toda outra faculdade ou hábito adquirido por um membro de uma
sociedade; sustenta-se nos estudos de Mauss, Boas, Spencer, Durkheim, Cooley
e Tarde, precursores da antropologia, que também percebem que não existe uma
civilização humana, porém civilizações diferentes.
Tomazi (1997) apresenta três concepções de cultura que estão sempre
presentes: Cultura-valor, o sentido mais antigo, a idéia de cultivar o espírito, quem
tem uma cultura artística, clássica ou científica; Cultura alma-coletiva, sinônimo de
civilização, todos têm uma cultura que gera uma identidade cultural; Cultura
mercadoria corresponde à cultura de massa, bens, pessoas, teorias, ideologias,
tudo que está disponível no mercado. Desde sua constituição, o capitalismo foi
penetrando em quase todos os países e com o desenvolvimento do comércio, da
indústria e dos meios de comunicação em massa, a cultura capitalista se
mundializou.
25

Segundo Mamberti (2005) o sentido moderno de cultura é o conjunto de


expressões do espírito ou gênero humano e das expressões singulares da
humanidade. O secretário menciona a discriminação que as culturas populares
sempre sofreram, embora detentoras de rico acervo cultural. O que liga o passado
ao presente e lança perspectiva para o futuro, segundo Pinto (2003), ainda é a
produção cultural, elaborada e voltada para os problemas da própria sociedade.
Todos os povos e grupos sociais produzem cultura e consequentemente,
todos os indivíduos que os integram possuem cultura e geralmente interagem
com outros grupos sociais, carregam elementos de todos eles. O modo de
pensar, agir e sentir das pessoas ou grupos faz com que se identifiquem e se
diferenciem no seu modo de viver, expressando isso na produção de bens
materiais, idéias, valores, costumes e hábitos. Para Canclini (2006, p. 201),
cultura é o
resultado de uma seleção e de uma combinação, sempre
renovada, de suas fontes. É produto de uma encenação, na qual se
escolhe e se adapta o que vai ser representado, de acordo com o que os
receptores podem escutar, ver e compreender. As representações
culturais são sempre re-apresentações, teatro, simulacro.

Bosi (1992) comenta a relação dupla de proximidade e distância com suas


raízes que o trabalhador de bens simbólicos vive. Além do desconhecimento dos
intelectuais sobre o campo de estudos, há, por vezes, um exagerado entusiasmo
de quem valoriza o assunto, oportunamente em benefício próprio e ainda é
comum a deturpação das manifestações da chamada cultura popular, segundo
Pasta Jr. (1992). Consequentemente ocorre o recalcamento do popular, a
negação de sua especificidade ou particularidade ou ainda a anacronização. De
certa forma é a inferiorização das formas populares, ou a incapacidade de
transcendência das manifestações culturais populares que aparece
momentaneamente até que ocorra seu desaparecimento.
A teoria da cultura embasada em Lukács, Gramsci, Horkheimer e Adorno
tem mostrado o convívio das contradições: mal e bem; religioso e profano;
tradicional e moderno e são encarados como fenômenos que vincam toda a
cultura popular. Assim, Bosi (apud MOTA: 2002) comenta o quanto foi precário o
consumo da cultura popular, pois marginalizadas, abaixo do limiar da escrita e do
código erudito, não houve espaço para que se contasse, por exemplo, sobre a
vida sertaneja. Aponta assim o reduzido espaço de intersecção entre a cultura
26

popular e o código culto, escrito. Bosi afirma que a cultura popular, não tem seu
fulcro na escrita.
A literatura vive a temporalidade, com características específicas, a cultura
do povo não é sustentada pela escrita, já a do intelectual vai além da literatura. A
expectativa desse intelectual, contudo, é traída pelas manifestações culturais
populares, na festa, confundem-se produção e produto. Pasta Jr. (1992) afirma
que a limitação em relação ao reconhecimento das chamadas artes do povo,
ocorre a partir de um aprisionamento do intelectual, que não atenta para as
determinações socioculturais de seu próprio aparato teórico, não consegue
reconhecer uma alteridade válida no popular e conserva uma concepção idealista
da linguagem.
O tempo da cultura popular é cíclico, declara Bosi (1992: 11). O
fundamento da cultura popular é o retorno de situações e atos que a memória
grupal reforça e atribui valor, e o enraizamento dessa cultura é a condição
material de sobrevivência das práticas populares. O homem pode conviver com
sua cultura e os meios de comunicação de massa, sem destruir aquilo que está
no mais profundo de suas raízes, ao mesmo tempo universal como patrimônio
humano. Isso se dá através de festas populares em que ocorre a identificação do
evento com os festeiros e os convidados.
Para Luyten (1992), nas manifestações folclóricas encontra-se uma das
melhores formas de buscar a identidade cultural de um povo. Essa identidade
pode ser representada por fenômenos como danças, cantorias e versos
populares. Grandes estudiosos, como Mário de Andrade, Amadeu Amaral, Alceu
Maynard de Araújo, tentaram chamar a atenção para uma das regiões culturais
tradicionais mais ricas do Brasil, que em conseqüência de ser destacado pólo
industrial, além de importante centro agropecuário, tornou-se elitista. Em relação
à cultura popular brasileira, São Paulo tem muito a oferecer. Ainda conforme
Luyten, Amadeu Amaral já apontava a obra de poetas rústicos como patrimônio
cultural e declarava que os atos a que a poesia de roça se entrelaçava deviam ser
observados para que se pudesse compreendê-la.
Magalhães (1997) define “bem cultural” como a soma, a variedade e a
diversidade de componentes de uma nação. A fisionomia de uma cultura é criada
após o conhecimento da realidade desta cultura em seus diversos momentos.
Braudel (1989: 19) registra o alerta de Wilhelm Mommsen, historiador alemão: é
27

hoje dever do homem não deixar que a civilização destrua a cultura. Para isso é
necessário aprendermos o que podemos fazer, o que estamos nos tornando e o
que somos, o que segundo Bosi (1992) é a tarefa prioritária das ciências humanas
no Brasil.
A vida social brasileira é marcada pela diversidade. Vivemos em um país
que desconhece a si mesmo, diante da notável heterogeneidade de sua
composição populacional. A concepção de uma cultura uniforme, de um Brasil
sem diferenças, formado originalmente por três raças: o índio, o branco e o negro;
gerou práticas cultural e historicamente arraigadas. Diante da homogeneização
que se tentou impor, houve mecanismos de resistência, a compreensão desse
processo traduz-se por valoração da herança cultural que o povo brasileiro
carrega. O reconhecimento de nossa diversidade cultural conduz a valorização
das diversas culturas presentes em nossa nação e condiciona a uma atitude de
respeito.
Mamberti (2005), afirma que o direito à construção individual e coletiva das
identidades através das expressões culturais é elemento fundamental da
promoção de uma cultura de paz, pois, segundo a Declaração Universal de
Diversidade Cultural, as condições de criação e difusão das expressões culturais;
direito à educação e formação de qualidade que respeite a identidade cultural e a
possibilidade de exercer as próprias práticas culturais são algumas garantias a
que os grupos e os indivíduos têm direito.
Em outubro de 2001, durante a 31ª Conferência Geral da UNESCO, foi
feita a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, que, em seu artigo
primeiro, eleva a diversidade cultural à posição de patrimônio comum da
humanidade, pois é vital como a biodiversidade para os seres humanos. A
hegemonia de uma visão de mundo é resultado de uma engrenagem de relações
desiguais.
O que há de específico na identidade humana é mantido pela cultura, e a
diversidade cultural é um dos mais preciosos tesouros da humanidade. A
desintegração de uma cultura é uma perda, porém a assimilação de uma cultura
deve ser considerada enriquecimento. Morin (2003) declara que a ética da
compreensão planetária deve ser objeto da educação do futuro e aponta como
duplo imperativo antropológico salvar a diversidade humana e salvar a unidade
28

humana. A riqueza consiste em que a mundialização cultural não é


homogeneizadora. As culturas devem apreender umas com as outras.
Braudel (1989: 31) declara que as civilizações, as sociedades mais
brilhantes, pressupõem, dentro dos seus próprios limites, a existência de culturas,
de sociedades elementares. Atento ao diálogo entre a cidade e o campo, observa
que o desenvolvimento não atinge por igual todas as regiões e denomina as
sociedades primitivas de ilhas de subdesenvolvimento. Borges (2002) explica que
tolerância implica em respeito ao outro, como expressão da diversidade e
aceitação de suas características e diferenças, não significa aderir aos valores do
outro. O princípio maior adotado pela ONU, que objetiva preservar a paz e
promover a cooperação internacional, é o respeito a todas as culturas. A
UNESCO (Organização das Nações para a Educação, a Ciência e a Cultura), tem
como objetivo aprofundar a compreensão e o respeito mútuos entre os povos da
terra por meio de realizações culturais.
Bosi (1992) constata a pluralidade do nosso patrimônio cultural e declara
que a admissão da pluralidade da cultura brasileira é um passo decisivo para
compreendê-la. A hipótese de uma cultura unitária, coesa, poderia sugerir a
expressão de uma identidade nacional. Porém, casamentos de outras culturas
que conformaram nosso cotidiano material e moral, apontam o caráter plural da
nossa. Há diversos ritmos das culturas no Brasil, desde a das classes pobres,
iletradas, até a cultura erudita, cada qual com sua história específica, seu tempo
histórico, seu ritmo próprio.
O hibridismo da cultura brasileira pode ser entendido com Canclini (2006),
que explica que hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições, mas pode
ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na interculturalidade.
Os processos de hibridismo são variados e incessantes, levar em conta estudos
sobre o hibridismo cultural permite-nos perceber que identidade não é um
conjunto de traços fixos ou a essência de uma etnia. Assim não devemos
relativizar a noção de identidade.
O interesse nos valores da cultura caipira não é uma questão de
estabelecer uma identidade pura. As identidades não são locais, autocontidas,
aistóricas ou opostas a globalização. Ter uma identidade seria, antes de mais
nada, ter um país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é
compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou
29

intercambiável. Lembremos que em tempos de globalização, a intensificação da


interculturalidade favorece intercâmbios, misturas maiores e mais diversificadas
do que em outros tempos e o estudo dos processos culturais serve para conhecer
formas de situar-se em meio à heterogeneidade (CANCLINI, p. 26).
É importante, segundo o estudioso argentino, importar-se não apenas com
o que se extingue, mas com as transformações culturais. Ele observa que a
modernização redimensiona a arte e o folclore; a modernidade é a etapa histórica,
a modernização é um processo sócio-econômico que vai construindo a
modernidade e os modernismos, ou seja, os projetos culturais que renovam as
práticas simbólicas com um sentido experimental ou crítico.
Pinsky (1993: 70) afirma que ser nacional é identificar-se com..., fazer parte
de..., ser diferente de... Chamou-lhe a atenção ter ouvido expressões como:
“brasileiro é assim mesmo” e vivemos em um “paiseco de terceiro mundo”. O que
levou o autor a questionar: Somos todos corruptos? Brasileiro é assim como?
Muitos pensadores procuraram explicar a identidade do povo brasileiro.
Acreditamos que a valoração da cultura popular, o entendimento de que a cultura
brasileira é plural, mas não caótica, como nos mostra Bosi (1992), juntamente
com a realização de práticas pedagógicas que contemplem a inserção de valores
culturais, podem propiciar condições para respondermos à indagação: ... afinal o
que somos nós, brasileiros?, registrada por Bosi, na redação do prefácio a Leite
(1992: 8).
Corbisier, diretor executivo do ISEB em 1955 e 1956 (apud MOTA, 2002:
58), declara: O que somos, ou melhor, o que estamos sendo como nação, não é,
apenas, uma resultante do que fomos, mas do que pretendemos e queremos ser.
O interesse em medir a profundidade das raízes ideológicas, da consciência
nacional que sustêm os ideários de tantos homens de pensamento é apresentado
por Mota (2002), que também comenta que a cultura brasileira se reduzia a uma
cultura de palavras e os intelectuais brasileiros não pensavam, apenas liam.
Assim ele propunha que fosse instalada uma implicação dialética articulada entre
setores pedagógicos, culturais e industriais que levaria à autoconsciência da
cultura e decorrente disso nos tornaríamos os interpretes lúcidos do destino
nacional.
Mário de Andrade (apud MOTA, 2002) lembrava que o caipira paulista
tinha mais sensibilidade para um conjunto de violas que, respeitadas as
30

proporções, equivaleria à orquestra de câmara, do que para o samba urbano, este


muito distante de qualquer tipo de música erudita. Mota (2002) questiona como
reage este caboclo diante do impacto maciço da televisão e rádio sem
contrapartida equivalente; declara que é necessária a investigação do público dos
cantadores de modinhas e registra a necessidade de investigar o estilo nacional,
bem como estudar a evolução deste estilo.
Analisando o aprofundamento de uma consciência nacional e as
interpretações da cultura brasileira, a respeito da obra de Ferreira Gullar, Mota
(2002) afirma que embora a temática do nacionalismo e da cultura popular esteja
presente, podemos perceber um relativo posicionamento em relação à
problemática da ideologia da cultura nacional, do subdesenvolvimento, e do
destino da cultura numa sociedade de massas. Segundo o pesquisador, Gullar,
vendo a arte como reflexo da realidade objetiva, questiona o nacionalismo, e
preocupado em estabelecer um ponto de referência para a definição de uma
cultura brasileira, questiona o que seria a vanguarda em um país subdesenvolvido
e num país desenvolvido, então afirma que a verdadeira atitude internacionalista é
clamar em países subdesenvolvidos, pelo estudo e conhecimento de sua própria
realidade.
Para Adorno e Horkheirmer, segundo Mattelart (2005), a indústria cultural
(livro, imprensa, disco, rádio, televisão, cinema, novos produtos e suportes
audiovisuais, fotografia, reprodução de obra de arte, publicidade), transforma o
ato cultural em mercadoria, dissolvendo os traços de autenticidade. A cultura
tradicional deve moldar-se aos padrões mínimos de exposição à mídia. Por isso a
importância de reconciliar os saberes e a sociedade e valorizar a diversidade. As
culturas dos grupos sociais e das sociedades encontram a própria expressão na
multiplicidade da diversidade cultural.
No século XX, especificamente a partir das décadas de 50 e 60, observa-
se uma série de fenômenos que promovem o achatamento de valores causado
pelo sofisticado e acelerado processo de industrialização. Uma das
conseqüências foi a perda ou diminuição de caracteres próprios das culturas e
aceitação de valores mais universais. Identificar nossas raízes culturais e valorizar
nossa diversidade pressupõe conhecimento do contexto situacional e histórico em
que vivemos. Nessa perspectiva, propomos, uma reflexão sobre a questão da
atual globalização.
31

1.3. A MUNDIALIZAÇÃO E O RISCO DE APAGAMENTO CULTURAL.

O verdadeiro desenvolvimento de uma nação baseia-se em dar


continuidade àqueles componentes que lhe são próprios, aos indicadores
de sua identidade. (MAGALHÃES, 1997: 46)

O início do século XXI assiste à violenta ruptura de padrões éticos e


morais. As desigualdades e exclusões sociais são acentuadas aceleradamente
pela globalização. Nas palavras de Dowbor (1999: 73), perdemos as referências
sociais, os espelhos da formação da nossa identidade. A tradição é esquecida ou
deixada em segundo plano. Sem história, sem memória, sem tradição o homem
se desvaloriza como “ser humano”, se coisifica. A grave ameaça dos processos
de globalização, que de tempos em tempos paira sobre as comunidades
humanas, segundo Pais (2004a, 3) conduz em sua lógica ao apagamento da
diversidade lingüística e cultural, ao apagamento da identidade cultural, dos
valores, da ética, dos usos e costumes das incontáveis comunidades humanas.
Canclini (2006, 37 e 38) confirma: A recomposição, revalorização e
desvalorização de culturas locais na globalização acentuam, e às vezes alteram,
alguns processos de hibridação. O pesquisador argentino define globalização
como processo de abertura dos mercados e dos repertórios simbólicos nacionais,
como intensificação de intercâmbios.
As grandes mudanças no panorama sócio-econômico do país, no decorrer
do século XX, provocaram um êxodo rural. Com a crise do café a vida das
pequenas cidades do interior paulista se deteriora, conformando o que Ribeiro,
D.(2002) chama de “cidades mortas”. Dowbor (1999: 66), comenta:
Há pouco mais de meio século o país era esmagadoramente rural
e em pouco mais de uma geração, de forma intensa e caótica tornamo-
nos um país de quase 80% de população urbana, fato provocado mais
pela expulsão do campo do que pela atração das cidades.

As migrações internas que se intensificaram com a marcha da


urbanização, foi um processo que levou anos, na Europa e EUA. Ocorreu em
poucos anos em vários países do terceiro mundo, mas o Brasil é o caso mais
típico pela dimensão e rapidez do êxodo rural, sendo São Paulo um exemplo
clássico de urbanização acelerada. Vastas regiões rurais começam a expulsar,
em massa, excedentes demográficos (ISTOÉ, 2000: 160). O padrão de
32

industrialização da época é extensivo. A expansão urbana vai suprir a demanda


da construção de rodovias, de edificação vertical, são os peões de obras.
Notamos no século XX, especificamente em sua 2ª metade, o processo de
globalização que se estabelece conduz à crescente integração das economias e
das sociedades de vários países, especialmente no que se refere à produção de
serviços e mercadorias, à difusão de informações e aos mercados financeiros.
Não é necessário discutir a modernização, são inúmeros os aspectos positivos,
há, no entanto, dois lados em uma mesma moeda. Decorrente do
desenvolvimento tecnológico que se tem alcançado e a despeito das inúmeras
vantagens que esse progresso outorga, constatamos, em oposição a isso, o que
Dowbor (1999: 72) chamou de dramática marginalização de dois terços da
humanidade neste processo de modernização desigual.
Conforme Ianni (2001), as desigualdades sociais, econômicas, políticas e
culturais, geradas ou agravadas pela globalização, favorecem o acirramento do
racismo e o aumento dos conflitos sociais. As condições de vida e o trabalho no
campo foram revolucionados e o mundo agrário transformado pelas inovações
tecnológicas. A engenharia genética, a biotecnologia, revoluciona as formas de
trabalho e produção no campo. A cidade não só se impõe sobre o campo,
subordinando-o, como, em muitas situações, o dissolve.
Hoje, estão sendo questionadas as noções de modernização, progresso e
desenvolvimento. O fluxo dos investimentos internacionais em detrimento do bem-
estar do homem busca a maximização dos lucros. Terminamos o século XX com
o comprometimento de executar planos para erradicar a pobreza e satisfazer as
necessidades básicas da população. A reprodução econômica já não é
suficientemente abrangente para refletir os problemas que vivemos.
O objetivo central do desenvolvimento deveria ser o homem e a economia,
apenas um meio. No entanto, a economia se unificou na medida em que
desarticulou a sociedade. A atual sociedade de mercado, utilizando novas
tecnologias num desenvolvimento econômico acelerado, contrasta com a lentidão
das transformações institucionais. A tecnologia, como aceleradora do tempo,
corrobora a necessidade do sentido de identidade para o ser humano.
Também Lander (2001) afirma que as desigualdades sociais são
aceleradamente acentuadas pelos atuais processos de globalização. Consideram-
se interferências que distorcem o livre funcionamento do mercado as políticas
33

com o propósito de gerar emprego na zona rural, a preocupação com a segurança


alimentar, a necessidade de preservação de algumas formas tradicionais de vida
ou da paisagem rural.
O desenvolvimento econômico, ainda segundo Lander (2001), é
questionável quando, à medida que se acumulam bens produzidos, têm-se a
riqueza natural diminuída e o aumento da miséria criada pelo homem. Vivemos o
grande desafio de reverter o modelo hegemônico que nos é imposto e que
ameaça destruir as condições de vida no país. Questiona-se como conter a
crescente patologização e criminalidade da dissidência, ou impedir a
concentração do poder político e econômico, em escala planetária, nas mãos da
minoria. Conforme Ribeiro, D. (2002), presenciamos uma deterioração urbana que
requer uma reforma tão urgente como a agrária.
O avanço tecnológico tem impacto sensível em organizações sociais,
mudanças e progressos e concorrem para o sustento de lutas sociais e políticas
que rearticulam as visões de mundo. Essas se formam através das práticas
sociais em que estamos inseridos. Entretanto, somos moldados pelas classes
dominantes. Kehl (1996) reflete sobre o poder da mídia e o ser que ela produz. A
mídia incita ao narcisismo, ao consumismo. Através de uma propaganda elevada
à categoria de espetáculo, lança apelos, os mais diversos, no sentido de fazer do
telespectador um consumidor eficiente e assíduo de modos de vida, de
concepção de mundo, num processo contínuo de aculturação e assimilação. O
homem, tornando-se alienado e egocêntrico, deixa de questionar a perda de
valores éticos.
A TV é um padrão universal de nossa cultura e a sociedade de mercado
atua nos universais. Chomsky (2002) nos adverte sobre o poder da mídia ao
manipular a opinião pública e fabricar consenso. Vemos, hoje, um caipira
fabricado pela mídia, americanizado, esteriotipado, distante de suas raízes,
cedendo ao apelo de consumismo e moldado ao estilo country. Modelado pela
publicidade o homem moderno valoriza o presente e esquece suas tradições. A
mídia o induz a criar sua fantasia de liberdade.
Kehl (op. cit.: 135) observa que cabe a psicanálise apelar ao desequilíbrio
da história e nos devolver à dimensão de seres de cultura. A sociedade, o mundo
e a maneira de viver estão mudando e esta mudança afeta a juventude atual.
Percebemos a necessidade, apontada por Braudel (1989: 7) de se iniciar a
34

juventude nos problemas atuais da economia e da sociedade, nos grandes


conflitos culturais do mundo, na pluralidade das civilizações.
Para Penteado (2000), a participação dos indivíduos na cultura é sempre
seletiva. A estrutura e a organização social, em nossa sociedade, são
estabelecidas a partir da participação no mercado de trabalho que constitui um
eixo importante a partir do qual nossos acessos culturais se processam.
Nossa localização numa determinada classe social é definida a partir do
trabalho e das condições e possibilidades econômicas decorrentes dele. A cultura
popular, ou folclore, produção de conhecimento das classes menos favorecidas
financeiramente e até com ausência de escolaridade, tem seus acessos
dificultados ou barrados, pelas formas de expressão e divulgação peculiares
geradas pela inacessibilidade econômica aos grandes meios de comunicação
provocando o apagamento cultural.
Correa (2002) afirma que o global não deve ser universal, o ideal seria um
local que se globaliza sem perder sua identidade. Todas as culturas nos
compõem e o homem é o sedimento dos valores. Tendo em vista a formação que
ao longo de séculos ocorreu, os processos de aculturação e assimilação em
decorrência do processo de globalização, do uso de modernos recursos de
comunicação, do aumento da densidade demográfica, percebemos que o homem
do campo e o da cidade encontram-se aproximados no espaço geográfico e
social, participando de um universo que desvenda dolorosamente as
discrepâncias econômicas e culturais, segundo Candido (1997: 223) que afirma
que a voz mais fraca e menos ouvida, no diálogo em que se empenham todas as
vozes da nossa sociedade, é a do caipira.
É necessário promover o desesquecimento das nossas tradições, como
nos fala Kehl (1996). Assim como somos incitados por BOSI, E. (1979) à luta
pelo velho, pois eles não têm armas e dele jorra a essência da cultura, é
igualmente necessário o resgate da memória de nossos velhos caipiras, o
empenho na valorização da história, do passado, de nossas tradições, de nossas
raízes, destarte evitamos o apagamento cultural.
Pinsky (1993: 70) afirma:
“Um povo, que toma consciência de sua identidade, busca afirmar
sua nacionalidade por meio de expressões culturais, práticas cotidianas e
manifestações razoáveis de civismo. Esse conjunto de elementos tem por
função estabelecer ou estreitar o sentimento dos membros de um grupo
35

nacional, uns com os outros, e marcar o distanciamento deste grupo em


relação a outros”.

Hoje, diante do verdadeiro bombardeio de aculturação decorrente da


mundialização, tem-se a impressão da perda da identidade cultural Entretanto, o
apagamento cultural preconizado não ocorre efetivamente, pois ficamos
marcados pela soma das experiências vividas e isso nos constitui. A cultura
some, mas fica incorporada, já que constitui uma sociedade.
Atualmente há um resgate do rural pelo homem urbano, uma das
evidências disso é a franca ascensão do ecoturismo, do turismo rural. A
publicidade explora a liberdade e a segurança propostas pela vida no campo. As
práticas culturais são reelaboradas no presente, muitos saberes e fazeres da
gente simples do interior permanecem vivos, apesar da modernização e
aceleração dos ritmos da vida. Essas práticas se preservam e se renovam como
elementos que compõem a memória cultural e a identidade de pessoas e grupos
sociais.
Entendemos que a proficuidade das referidas ações requer o
conhecimento do processo de acaipiramento ou acaipiração que integrou ao
universo da cultura rústica, segundo Candido (1997), num conjunto bastante
homogêneo, diversos tipos étnicos. Apresentamos a seguir uma breve descrição
do processo de formação da cultura que examinamos.

1.4. A FORMAÇÃO DA CULTURA CAIPIRA

A história, na verdade das coisas, se passa nos quadros sociais,


como eventos que o povo recorda e a seu modo explica. (RIBEIRO, D.,
2002, p.269)

Exigindo constantes retornos à realidade concreta, a história não prescinde


de quaisquer ciências sociais como: geografia, demografia, economia, sociologia,
antropologia, psicologia..., e tem como ambição a melhor compreensão do mundo
e uma explicação mais clara dos dias atuais pelos dias que os precederam.
Braudel (1989: 8) afirma que a história é o ingrediente sem o qual nenhuma
consciência nacional é viável. Destaca a existência de civilizações ao longo da
história e lembra a relação que existe entre civilização e espaço, terras, relevo,
clima, vegetação, espécies de animais, vantagens dadas ou adquiridas, e as
36

conseqüências e reflexos para o homem, a agricultura, a pecuária, alimentação, a


habitação, o vestuário.
A presença da sombra do negro ou do indígena, na alma e no corpo de
todo brasileiro é apontada por Freire (1998) que observa que entre todas as
sociedades da América, a sociedade brasileira foi a que se formou com maior
troca de valores culturais. O modo de vida do brasileiro foi criado na mistura do
branco e do negro do interior dos casarões coloniais, num processo de equilíbrio
de antagonismos, alteravam as relações sociais e culturais.
O entendimento da formação da cultura caipira requer nossa atenção na
formação sociocultural de nosso povo, levando em conta o princípio da
colonização do Brasil, a fixação no planalto paulista, as primeiras bandeiras que
objetivavam o aprisionamento dos indígenas e a busca de pedras ou metais
preciosos, as expedições fluviais e os caminhos dos tropeiros. O invasor
português, os índios silvícolas e negros africanos confluíram para a miscigenação
e aculturação, e formaram o povo brasileiro a partir de suas tradições dispares e
também da imigração de europeus, árabes e japoneses, respeitando-se as
adaptações regionais, segundo informa Ribeiro, D. (2002).
O antropólogo alerta que neste país continente, são tantos os “Brasis”, que
se torna imprescindível delimitar nossa área de estudo para entender a que povo
brasileiro referimo-nos aqui. A área cultural caipira, ponto de encontro para uma
pluralidade de culturas e etnias, compreende toda a área florestal e campos
naturais do Centro-Sul do país, desde São Paulo, Espírito Santo, Estado do Rio
de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se ainda
sobre áreas vizinhas do Paraná (RIBEIRO, D., 2002: 383), que se transformou
numa vasta região ocupada por uma população extremamente dispersa e
desarticulada.
Braudel (1989: 26) lembra que área cultural é, na linguagem dos
antropólogos, um espaço no interior do qual é dominante a associação de certos
traços culturais. Vemos em nossa formação, imaginários plurais e múltiplos
modos de produzir cultura, são conforme Ribeiro, D. (2002), traços culturais
marcantes e antagônicos, civilizados e selvagens, num processo de aculturação e
assimilação. O comportamento do caipira, seu modo rude de agir, a
desnecessidade de trabalhar arduamente, ou a anomia que caracterizava bom
37

número deles são justificados por Holanda (2004) que fala da transitoriedade,
oriunda dos costumes indígenas.
Ribeiro, D. (2002) nos informa que havia enormes disponibilidades de mão-
de-obra desocupada e de terras virgens despovoadas e desprovidas de qualquer
valor que os mais abonados obtinham por concessão e os mais pobres ocupavam
como posseiros. Instalou-se, assim, uma economia natural de subsistência. Nada
vendiam, nada compravam. Os povoamentos eram dispersos. Havia a
participação coletiva de trabalho e lazer. As populações rarefeitas contavam para
o convívio diário apenas com os membros da família. Faziam mutirão para a
execução das tarefas mais pesadas e era não só uma forma de associação para
o trabalho, mas também uma oportunidade de lazer festivo, sendo assim, a
convivência era amena.
A pobreza, que caracterizou o início da formação econômica da região
conhecida como área cultural caipira, deve-se ao fato de que não havia nela
núcleos açucareiros, nem escravos, nem construções imponentes. Ribeiro, D.
(2002) afirma que os colonizadores dessa região viviam em casebres de taipa ou
adobe, cobertos de palha. Cultivavam mandioca, feijão, milho, abóbora e
tubérculos, pescavam e caçavam. Usavam roupas simples, tecidas de algodão
grosseiro, andavam descalços ou usavam alpercatas. Essa pobreza justificava o
caráter aventureiro e era o resultado das regressões sociais.
Ainda segundo o antropólogo, a economia se fortalece no século XVIII com
o cultivo da cana-de-açúcar e, posteriormente, do café e do algodão. Após a
exploração da mão-de-obra escrava, assistimos à transição do trabalho escravo
para o trabalho livre e à vinda em massa dos imigrantes. Além do surgimento de
pequenos povoados e cidades, o desenvolvimento econômico trouxe melhorias
como a instalação das ferrovias pelo interior.
Na segunda metade do século XIX, São Paulo começa a transformar-se
em uma metrópole multicultural. Toda a história transcorrida entre o século XVI e
o século XX testifica a formação das diversas classes sociais: a elite, as camadas
pobres e livres, os escravos, seus descendentes e os imigrantes. O telégrafo e o
telefone favoreceram a comunicação; o cinema e a propaganda divulgaram novas
visões de mundo e os primeiros automóveis e aeroplanos, promoveram profundas
mudanças no cenário urbano no final do século XIX, conforme Pinto (2003).
38

O século XX foi marcado por profundas transformações sócio-econômicas,


houve grande êxodo rural, e as periferias das grandes cidades tornaram-se
inchadas por trabalhadores rurais, expulsos do campo pelas duras condições de
vida, e na cidade, segundo Pais (2002), eles se tornaram espécies de exilados em
seu próprio país. Pelo início do século a população caipira preenchia suas
condições mínimas de sobrevivência. Os que se desprendiam do convívio social,
penetrando sós nos sertões mais ermos, eram ameaçados de cair em anomia. A
vida rural caipira equilibrava trabalho continuado e lazer. O trabalho era intenso,
mas não disciplinado. Assim o caipira foi condicionado a um horizonte
culturalmente limitado de aspiração que o fez parecer desambicioso e
imprevidente, ocioso e vadio, de acordo com Candido (1997).
Segundo os pensamentos de alguns explicadores do Brasil, destacados
por Leite (1992), o povo brasileiro foi classificado como: apático, sem iniciativa,
desequilibrado, supersticioso, mórbido, resignado, incapaz, desorganizado no
trabalho, cheio de crendices, aventureiro, sensual, cobiçoso, cordial, generoso,
sem iniciativa, indeciso, sem firmeza, independente, hospitaleiro, ordeiro, pacífico,
paciente, resignado, dócil, longânimo, desinteressado, lamurioso, abatido física e
moralmente, insensível, triste, aventureiro, cordial, individualista, inquieto, ansioso
por prosperidade e riqueza fácil, a afetivo, irracional, religioso, sóbrio, reservado,
hospitaleiro, místico, altruísta, intuitivo, o apego ao passado europeu e português,
desconfiado, hipocondríaco, vaidoso, imaturo emocionalmente, etc.
Caipira é uma palavra originária da língua tupi. A origem estaria no termo
"caápora", que junta caá = mato e pora = habitante, morador, conforme Cascudo
(2001), que define caipira como homem ou mulher de pouca instrução que não
mora em centros urbanos, é o trabalhador rural. É também chamado de caboclo,
jeca, matuto, roceiro, tabaréu, caiçara, sertanejo, dependendo da região onde
habita. O caipira camponês, meeiro, tem sua cultura analisada por meio de sua
música, dança, festas, culinária, religiosidade, crendices, vestimentas, objetos de
uso caseiro, enfim, sua maneira de viver em comunidade, seus usos e costumes.
O estereótipo criado pela sociedade capitalista revela um sujeito atrasado,
simples, que fala errado e se veste mal.
Constatamos a existência do paradoxo que envolve a visão pejorativa do
caipira atrasado, analfabeto, doente e inculto e a valorização de hábitos e
costumes modestos, humildes e éticos. É comum observarmos o termo “caipira”
39

empregado para designar a inferioridade das práticas culturais rurais em contraste


com práticas urbanas e modernas. Preconceituosamente, referem-se ao caipira
como se ele fosse sempre analfabeto ou de pouco estudo. Para Candido (1997:
21) caipira é um modo de ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial. O jeito de ser
caipira foi moldado ao longo do processo histórico de formação do povo e sofre
bruscas influências das grandes mudanças sócio-econômicas que ocorreram no
último século.
Yatsuda (1992) apresenta referências ao caboclo, na literatura que vão de
um extremo a outro: Saint-Hilaire utiliza adjetivos depreciativos como: sujo,
impolido, estúpido, violento e preguiçoso; Augusto Emílio-Zaluar também
classifica o caboclo como preguiçoso e inerte; Visconde de Taunay em
“Inocência” destaca valores como a hospitalidade, a honra, a fidelidade à palavra
dada e a moral familiar; Monteiro Lobato, em “Urupês”, considera o caipira
incapaz de evolução, avesso ao progresso, porém, mais tarde, em “Zé Brasil”,
enfoca o caipira como vítima e identifica as injustiças sociais como causa da sua
preguiça doentia; em Cornélio Pires o caboclo é definido como tímido, mas
também jocoso, desconfiado, trabalhador, vítima do sistema social. Encontra o
equilíbrio com Valdomiro Silveira que diante da necessidade de uma literatura
social, consciente de que literatura regional vai além de documentar a realidade e
dotado de aguda percepção, apresenta a dimensão humana do caboclo.
Embora o termo caipira seja pejorativamente decodificado, encontram-se
esforços em sentido contrário, como afirma Yatsuda (1992), que exemplifica isso
com a referência a Sílvio Romero que aponta um antagonismo secular: a cidade e
a roça, os dois grandes termos da antinomia brasileira. Com o incremento da
industrialização, e a chamada ideologia da modernização o caboclo é visto como
um entrave para o desenvolvimento. Contrapõem-se o dinâmico, trabalhador,
participante de uma civilização superior, cuja linguagem é instrumento de
elaboração de alta literatura, ao indivíduo preguiçoso, idiotizado, de fala rude, cuja
linguagem apresenta-se inadequada à literatura. Entretanto, reconhecemos a
veracidade das observações (CANDIDO, 1967: 141):
No período de 1900-1920, o caboclo passou por um processo de
idealização, no plano sociológico. [...] O mulato e o negro são
definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração e
exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à
elaboração da cultura.
40

Rousseau (1993), em “Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens”, valoriza a vida próxima à natureza onde se
encontra a saúde do corpo e a liberdade de espírito e especialmente a
simplicidade dos primeiros tempos, quando os homens eram virtuosos. Nesse
discurso, critica a sociedade burguesa que elaborou uma mitologia baseada no
progresso, no cosmopolitismo, no bem-estar geral e no desenvolvimento das
luzes do saber. O filósofo percebe que o ideal seria que se respeitasse à
singularidade e nos exorta a procurar conhecer o homem natural. O conhecimento
do processo de formação do povo caipira favorece-nos a compreensão de hábitos
e costumes do homem simples do campo e gera o respeito que propicia a
preservação de nossa cultura popular.
Os estudos de comunidades brasileiras dão uma idéia do tipo de vida de
determinadas populações. Ao comentar os estudos em que Antonio Candido
focaliza um grupo caipira do interior de São Paulo e afirma que as mudanças na
cultura caipira é o seu fim, Leite (1992) aponta o trabalho do sociólogo como uma
explicação objetiva da origem de uma situação e suas atuais tensões, do amplo
processo de ajustamento do caipira. A concepção de cultura de Antonio Candido
como instrumento de modernização, de emparelhamento do Brasil com outros
centros de irradiação de cultura, é ressaltada por Mota (2002). Segundo ele, o
cotidiano popular é mal traduzido e às vezes nem traduzido em uma sociedade de
classes desequilibrada como a brasileira em que a linguagem universal do poder
é regida pelos códigos dominantes.
Morin (apud PENA-VEJA; ALMEIDA; PETRAGLIA, orgs, 2003: 135 e 136)
cita o processo psico-afetivo usual: “o que se despreza não merece ser estudado
ou pensado.” e comenta que as pessoas se limitam a condenar em vez de
analisar. Informa-nos, porém, sobre setores da “intelligentsia” em que existe uma
preocupação com a educação popular, movimento que tende a reconhecer a
canção como uma arte, como portadora de riquezas humanas e estéticas. O autor
fala ainda que a música remete-nos a uma psico-sócio-musicologia que implicaria
uma músico-semiologia.
É característica humana valer-se de comparação e classificação das
coisas, porém, ao atribuir juízos de valor, a tendência é desprezar o outro.
Quando ocorre o sentimento de superioridade de uma cultura em relação à outra,
preconceituosamente menosprezando ou desrespeitando aquilo que mal se
41

conhece temos o que se chama de etnocentrismo. No entanto, é por meio da


consciência das diferenças em relações às outras culturas se dá a noção de
identidade de um povo.
Procuramos nos despir do preconceito, imbuídos de respeito e conscientes
das características e diferenças enriquecedoras da literatura caipira para elaborar
“uma” visão semiótica dos valores da cultura caipira manifestados nas letras de
músicas de raiz.
42

2. PRODUÇÃO CULTURAL CAIPIRA

A música caipira tem a cara do Brasil. A um só tempo alegre e


triste, maliciosa e ingênua, respeitosa e irreverente, é uma das mais ricas
expressões de nossa canção popular. (RIBEIRO, J. H., 2006)

Candido (1967) explica que, primeiramente, o valor de uma obra literária


era vinculado ao fato dela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e depois
passou e ser definido a partir de operações formais, independente de qualquer
condicionamento, mesmo social. Posteriormente, percebeu-se que a obra
considerada literária só pode ser entendida se fundirmos texto e contexto, numa
interpretação dialeticamente íntegra. A sociologia não pretende explicar o
fenômeno literário, suas orientações não devem ser usadas como instrumento de
orientação de interpretação do fato literário, porém pode esclarecer alguns
aspectos. O sociólogo ainda alerta sobre a importância da relação entre produção
cultural e a repercussão dessa obra, pois sociologicamente, a obra só está
acabada no momento em que repercute e atua, pois a arte é um sistema
simbólico de comunicação inter-humana.
Lembramos que o Modernismo, movimento literário em consonância com o
movimento internacional de renovação de idéias, também propunha uma literatura
que exprimisse a sociedade. Candido (1967, p.157) observa:
A inteligência tomou finalmente consciência da presença das
massas como elemento construtivo da sociedade, isto, não apenas pelo
desenvolvimento de sugestões de ordem sociológica, folclórica, literária,
mas, sobretudo porque as novas condições da vida política e econômica
pressupunham cada vez mais o advento das camadas populares. Pode-se
dizer que houve um processo de convergência, segundo o qual a
consciência popular amadurecia, ao mesmo tempo em que os intelectuais
se iam tornando cientes dela.

Durante as primeiras décadas do século XX eram divulgados textos


literários de autores renomados que compunham a Academia Brasileira de Letras:
Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Alphonsus de Guimaraens, Graça Aranha,
Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. Evidentemente, eram obras
que primavam pela beleza, elegância de uma linguagem voltada para uma
camada social afeita ao padrão da língua culta. A cultura caipira foi sabiamente
retratada, por exemplo, através da Pintura por Almeida Júnior, contudo a literatura
caipira era desprezada. Candido (1967) menciona o estabelecimento de uma
43

“competição”, no plano literário, com os grupos que representavam o sistema


oficial:
Houve um desrecalque, por meio do qual as componentes
cuidadosamente abafadas, ou laboriosamente deformadas (é o caso de
literatura sertaneja) pela ideologia tradicional, foram trazidas à tona da
consciência artística. (CANDIDO, 1967: p. 188)

A sociedade rural expressou, através da música de raiz, sua consciência


coletiva, a sua maneira de ser, sua visão de mundo. A literatura caipira, farto
campo para análise semiótica, possui textos altamente poéticos e imbuídos de
exacerbado sentimentalismo, que carregam a memória de sua temporalidade
específica, por fazerem parte de um mesmo conjunto de signos sempre presentes
e ativos que os re-atualiza.
Encontramos, nos textos analisados, referências à vida pacata dos
pequenos povoados e à organização familiar; índices de valorização da natureza;
menção ao trabalho e ao trabalhador rural; registros de hábitos religiosos, do
comportamento social e de características de tipos específicos como o boiadeiro,
o carreiro, o andante, o roceiro ou o tropeiro. Candido (1967, p. 151) declara
sobre nossa evolução literária que a verdadeira poesia só se realiza no Brasil,
quando sentimos, na sua mensagem, uma certa presença dos homens, das
coisas, dos lugares do país.
Há presença de significação em tudo que compõe uma canção, que é a
música acompanhada de letra. Existe significado na harmonia dos sons, na
intensidade desses, nos timbres, nos ritmos. A música, desde as sociedades
primitivas, sempre teve seu papel de destaque e é importante índice de identidade
de um grupo social conforme Wisnik (1992: 118) que se refere à música como
pulsão sonora que carrega uma rede de significações políticas.
A música popular se opõe a música folclórica, pois esta tem autor
desconhecido, é geralmente transmitida oralmente de geração a geração, já
aquela tem sua divulgação feita por meios gráficos, ou através de discos ou fitas e
tem autores conhecidos. Essa manifestação popular, resultante da síntese de
músicas indígenas e canções portuguesas, surge no século XVIII, acompanhada
por instrumentos de sopro como flautas, apitos, maracás, bate-pés; de batuques
africanos em tambores, marimbas, atabaques e palmas, geralmente
acompanhadas de viola. Na cultura rural, a viola cavada num tronco de árvore,
44

com cordas feitas de tripas de animais, e depois de arame, foi sacramenta como
seu instrumento-base.
Em fins do século XIX as modinhas oscilavam entre temas da atualidade
(do qual um grande representante foi Catulo da Paixão Cearense) e velhas
composições românticas musicadas. Poucas vezes a música do povo chegou a
ser impressa até início do século XX. Inicialmente a modinha se estruturava em
um espírito lamuriento e sentimental, depois passa a adotar temas mais
engraçados ou regionais. Desde 1926 na toada Tristezas do Jeca, de Angelino de
Oliveira, o estilo roceiro paulista, utilizando a viola como principal instrumento
invade a cidade trazendo a novidade das duplas caipiras. A expressão moda de
viola aparece pela primeira vez em um disco comercial em 1929, lançado para a
venda em todo o Brasil.
É interessante observar que, na década de 20, o café ocupa 75% das
exportações brasileiras e a população rural é de 70%. O analfabetismo explica o
grande sucesso do cinema que se torna a diversão urbana mais importante.
Nesta época começa a radiodifusão no Brasil e ocorre a proliferação de
emissoras de rádio. Porém o alto custo dos aparelhos receptores na década de
30 restringe sua utilização à população de maior poder aquisitivo, além disso, sem
eletricidade não era possível a expansão. Parcela da população se reunia em
torno do aparelho de recepção de um vizinho ou amigo. Justifica-se a aceitação
do rádio e seu sucesso como meio de lazer e instrumento da propaganda, pois o
analfabetismo, ainda na década de 40 era enorme, cerca de 60%. Nessa época,
São Paulo já era o estado mais densamente povoado e também o principal centro
econômico e financeiro do país. Observa-se uma antinomia derivada do
desenvolvimento da nova cultura de massa.
Mário de Andrade viajou pelo interior paulista, nos anos 30 e observou, em
suas pesquisas, que no médio-Tietê cururu era desafio improvisado, uma espécie
de "combate poético" entre violeiros-cantadores, iniciado com saudações aos
santos. É um ritmo que ainda resiste em cidades como Piracicaba, Sorocaba,
Tietê, Conchas e Itapetininga – a chamada região cururueira do estado.
O catira ou cateretê surgiu de uma dança indígena, o caateretê, também
adotada nos cultos católicos dos primórdios da colonização, especialmente na
região de São Paulo e Minas Gerais. Com solos de viola e coro, acompanhados
de sapateado e palmeado, começa com uma moda de viola, entremeada por
45

solos, e evolui para uma coreografia simples, mas bastante rítmica. O clímax, no
final, é o "recortado", com viola, coro, palmeados, sapateados e muita animação.
O catira é o coração de festas populares como as Folias de Reis e as de São
Gonçalo, ainda hoje, particularmente expressivas no interior mineiro. O fandango,
de origem uruguaia, nasceu como dança vigorosa de tropeiros. Sofreu
modificações nas diversas regiões em que chegou e ainda é cultivado no litoral
paranaense e em alguns outros núcleos por todo o país.
Entre tantos ritmos e estilos formados a partir das toadas, cantigas, viras,
canas-verdes, valsinhas e modinhas, trazidos pelos europeus, a moda de viola se
transformou na melhor expressão da música caipira. Com uma estrutura que
permite solos de viola e longos versos intercalados por refrões, com letras
quilométricas contando fatos históricos e acontecimentos marcantes da vida das
comunidades, ela ganhou vida independente do catira e seduziu grandes
compositores. A viola caipira é a alma da música sertaneja, conforme Marcondes
(Apud NESTROVSKI 2002) que qualifica seu som como portentoso. Houve
diversas fases da música que nasceu na roça e hoje, bastante modificada,
embala multidões de norte a sul do país.
As primeiras duplas caipiras de São Paulo a gravarem, modas de viola e
outros gêneros caipiras, foram trazidas do interior por Cornélio Pires que esbarra
na dificuldade de aceitação pelas gravadoras e acaba por financiar os discos
gravados sob sua orientação e ainda se encarrega pessoalmente da venda. A
partir de 1929, a fábrica americana Victor lança a Turma Caipira e assim a música
da área rural de São Paulo se transforma realmente em música popular urbana.
Na década de 30, conforme Pinto (2003), a cultura brasileira passa a ter
interpretações modernas nas obras de Caio Prado Júnior, Gilberto Freire e Sérgio
Buarque de Holanda, entre outros. Nesse período se desenvolve a indústria do
disco. É ainda na mesma década que aparece Raul Torres, um dos mais
completos estilizadores da moda de viola e surgem os sucessos de João Pacífico,
este considerado um dos pioneiros do rádio brasileiro, foi responsável, juntamente
com Raul Torres pela criação do gênero "Toada Histórica", o famoso "falar e
cantar" que imortalizou "Chico Mulato" e "Cabocla Tereza", músicas essas que
enfrentaram dificuldades técnicas no início, pois, como as músicas duravam mais
de 3 minutos, não caberiam jamais em apenas um lado do disco. Nessa época a
música caipira representava 40% do mercado fonográfico brasileiro.
46

A dupla Alvarenga e Ranchinho surge no rádio em 1937 e a partir dos anos


40 destacaram-se Tonico e Tinoco. Muitas duplas, especialmente do interior de
São Paulo, tiveram espaço nobre nas gravadoras e emissoras de rádio. Nessa
época, o filão caipira abrigou as guarânias de Cascatinha e Inhana e as
rancheiras mexicanas de Pedro Bento e Zé da Estrada. Com o despontar do rádio
na década de 30 e na de 50 o aparecimento da televisão, as modinhas puderam
ser ouvidas com freqüência e eram classificadas como canção, canção sertaneja,
valsa-canção etc.
Na década de 50, surge também, além da televisão em preto e branco,
outra inovação: a difusão do radio transistor, que trouxe importantes
conseqüências socioculturais. Com o desenvolvimento dos meios de transportes
melhorou a distribuição de jornais e revistas. Destacavam-se na música
indivíduos ou grupos que pertenciam à elite cultural ou eram favorecidos pela
mídia.
Nesse momento, meados da década de 50, o mercado da música popular
brasileira enfrentava, nos grandes centros, a estrondosa concorrência de
numerosos gêneros estrangeiros, impostos maciçamente pelos trustes
internacionais do disco. Ocorre o processo de desnacionalização da música
popular. A música brasileira conta com boleros, samba-canções, ritmos
nordestinos, baladas românticas, marchinhas carnavalescas, a bossa-nova e a
influência estrangeira com o jazz e o rock. Um rasqueado estilo paraguaio
denominado guarânia é considerado por alguns uma influência negativa no
campo das modas de viola da região centro-oeste e presumidamente responsável
pela deturpação e empobrecimento musical das modas de viola produzidas por
compositores profissionais. Com a invasão da bossa-nova e dos novos ritmos
estrangeiros, a música inspirada em ritmos rurais brasileiros contava com poucas
oportunidades.
À medida que o país se urbanizou e precisou da mão de obra barata do
povo do interior, levas de artistas caipiras e nordestinos também chegaram a São
Paulo e ao Rio de Janeiro para disputar seus palcos e estúdios. Assim,
emboladas e cocos se misturaram a maxixes, guarânias, rasqueados, chamamés,
boleros, baladas e rancheiras – e a tudo o que se ouvia no rádio nos anos 50 e
nas fronteiras do país. Todas essas matrizes sonoras formaram, com os gêneros
47

caipiras tradicionais, o que passou a ser conhecido, na terminologia do mercado


fonográfico, como música "sertaneja”.
O rock, a MPB dos festivais e a country music americana começaram a
ganhar espaço a partir dos anos 60. Entre 60 e 70, o mundo sertanejo agitou-se
com o aparecimento de Sérgio Reis, saído da jovem guarda, e Renato Teixeira,
dos festivais da TV Record. Exatamente em 1960 um genial violeiro do norte de
Minas, Tião Carreiro, inventava o pagode caipira, mistura de samba e calango de
roda. Os anos 60, 70 foram dramáticos para a história cultural do país, quando
ocorre o estrangulamento da cultura brasileira. A cultura popular sucumbia à
americanização, ao estrangeirismo.
Wisnik (1992) analisa o momento político em que projetos populistas de
alianças de classes contracenavam com o desenvolvimento, o que favoreceu o
desdobramento de músicas regionais, rural, baseada na toada e na moda-de-
viola. O Rio de Janeiro, considerada capital da música e de uma nação musical,
divulgava a MPB e a música intelectualizada. O movimento tropicalista veio
denunciar o antagonismo entre o artesanal e o industrial, o acústico e o elétrico, o
urbano e o rural, a arte e a mercadoria.
A dupla mineira Pena Branca e Xavantinho adequando sucessos da MPB à
linguagem das violas, e Almir Sater, violeiro sofisticado, que passeava entre as
modas de viola e os blues, surgiram nos anos 80. A guinada para a country
music, com a adoção de instrumentos eletrificados e a formação de grandes
bandas deu-se a partir do mega-sucesso da dupla Chitãozinho e Xororó, em
1982. Outras duplas de sucesso, cada vez mais direcionadas para o romantismo
pop herdado da jovem guarda, seguiram-se a eles.
A convivência de dois segmentos musicais originários dos gêneros rurais
marcou os anos 90: o sertanejo-pop, voltado para grandes mercados
internacionais, e os novos-caipiras - músicos saídos das universidades, dispostos
a retrabalhar a música de "raiz". Estes criaram um circuito de gravadoras
independentes e apresentações em teatros, entre São Paulo e Belo Horizonte. Os
detonadores desse movimento foram Renato Teixeira e Almir Sater. Os mineiros:
Roberto Corrêa, Ivan Vilela, Pereira da Viola, Chico Lobo, e o paulista Miltinho
Edilberto estão entre os nomes mais expressivos dessa nova geração de
instrumentistas-compositores.
48

A música caipira é desde o nascedouro uma síntese, uma mescla, uma


hibridação de ritmos e estilos, conforme Ribeiro, J. H. (2006: 244 e 249), que
verifica a existência de três correntes: a suburbana (representada pelos “jovens
sertanejos”); a urbana (composta por artistas da chamada “viola erudita”); e a
rural (o grupo raiz do inhame). Esta última, segundo o jornalista, fragilizada pelo
desprezo da mídia, por preconceito da sociedade e por ter seu assunto acabando:
carro de boi, boiada, tropeiro, ranchinho, baile na roça, enfim a vida rural isenta de
consumismo e vitalizada por valores que hoje estão esquecidos.
Verano (2002, p.244) indaga:
Que espaço pode ter hoje uma música que despreze os símbolos
urbanos, preferindo falar de coisas simples como “o galo cantou”, “arruda
cheirosa”, “carro de boi” e “chuva no teiado”? Mais: o que tem a dizer uma
música rural num país que se crê industrial, que tem a palavra “caipira”
como sinônimo de algo de fora de moda, “jeca”?

Helena Meireles foi uma violeira, cantora e compositora brasileira,


reconhecida mundialmente por seu talento como tocadora de viola. Analfabeta e
autodidata aprendeu a tocar viola e violão sozinha, por volta dos oito anos de
idade, na Fazenda Jararaca, onde vivia, ouvindo viola tocada pelos convidados
nas reuniões musicais promovidas pelo avô, que era paraguaio. Só foi descoberta
pela mídia brasileira, depois de premiada pela revista norte-americana Guitar
Player, é uma das mais importantes representantes da música de “raiz”, de
acordo com Schwartz (Apud NESTROVSKI, 2002).
O universo musical brasileiro tem a música caipira apenas como uma parte
dele. A riqueza de nossa literatura popular requer estudo e atenção. Urge o
reconhecimento de nosso patrimônio cultural pelos próprios brasileiros. Há
valores da cultura caipira, registrados nas letras de músicas de raiz, que devem
ser resgatados. Ribeiro, J. H. (2006: 244) registra:
Dada a ameaça de extinção, é cada vez mais importante – e
urgente – resgatar e resguardar o tesouro constituído pelo repertório da
música caipira como um valor estético e cultural reconhecido e avalizado
pelo mais rigoroso dos críticos: o tempo.

Assim, entendemos que mais do que nunca, este é o momento para se


estudar as relações culturais como um instrumento geopolítico, defendendo
filosoficamente a identidade nacional. Falar de preservação de bens culturais,
qualquer que seja o sentido da expressão, pressupõe sempre uma continuidade,
uma disponibilidade permanente, em função precisamente da alimentação da
49

identidade cultural, que implica em semelhança a si próprio, condição de vida


psíquica e social.

2.1. INTÉRPRETES E COMPOSITORES

Gente fria, sem paixões, sem intensidade emocional, não faz


poesia grande. (CANDIDO, 1996)

A riqueza do momento cultural em que vivemos leva-nos a valorizar as


diferentes vertentes da música popular, que é o maior patrimônio da nossa
cultura, e, ao repousarmos nosso olhar sobre a música caipira percebemos seu
revigorante papel na identidade do país. Nestrovsky (2002) afirma que a música
caipira guarda um sentido perpetuamente relevante e uma das nossas mais ricas
reservas de afeto, humor e sabedoria.
Foram muitas as duplas que interpretaram músicas de raiz, cujo sucesso e
aceitação do público implicaram no registro de seus nomes na história da música
caipira: Raul Torres e Florêncio; Alvarenga e Ranchinho; Jararaca e Ratinho;
Tonico e Tinoco; Cascatinha e Inhana; Nonô e Naná; Silveira e Barrinha; Zé
Carreiro e Carreirinho; Serrinha e Caboclinho; Pedro Bento e Zé da estrada;
Palmeira e Biá; Zé Fortuna e Pitangueira; Zico e Zeca; Liu e Léu; Craveiro e
Cravinho; Moreno e Moreninho; Luizinho e Limeira; Tião Carreiro e Carreirinho;
depois Tião Carreiro fez dupla com Pardinho e posteriormente com Paraíso;
Leôncio e Leonel; Sulino e Marrueiro; Vieira e Vieirinha; Zico e Zeca; Jacó e
Jacozinho; Zilo e Zalo; Tibagi e Miltinho; Tião do Carro e Pagodinho; Peão
Carreiro e Zé Paulo; Nestor e Nestorzinho; Lourenço e Lourival; Zé Tapera e
Teodoro; Teodoro e Sampaio; Tupi e Tapuã; Priminho e Maninho; Zé Mulato e
Cassiano; Belmonte e Amaraí; Mococa e Paraíso; Nenete e Dorinho; Duduca e
Dalvan; Dino Franco e Mouraí; Carlos César e Cristiano; Irmãs Galvãs; Léo
Canhoto e Robertinho; Duo Glacial; Irmãos Divino; Zé do Rancho e Zé do Pinho;
Pena Branca e Xavantinho; João Mineiro e Marciano; João Mulato e Douradinho;
Chitãozinho e Chororó; Cacique e Pajé; Otávio Augusto e Gabriel e inúmeras
outras duplas. Destacou-se ainda o Trio Parada Dura.
Alguns cantores faziam solo, como João Pacífico; Sérgio Reis; Almir Sater;
Rolando Boldrin; Renato Teixeira e a professora de folclore Inezita Barroso,
admitida na ordem do Ipiranga no grau de comendador, considerada madrinha de
50

muitos artistas e definida Ribeiro, J. H. (2006: 164) como artista multifacetada,


excelente cantora e baluarte da música caipira. Salientamos que a esmagadora
maioria dos cantores é composta por homens, todavia entendemos que todos,
homens, mulheres, em duplas, trios ou em solo, contribuíram de maneira
inestimável para a divulgação e continuidade da legítima expressão puramente
caipira.
Entretanto, o grande mérito deve ser atribuído aos compositores, poetas
genuínos cuja sensibilidade permitiu a elaboração de verdadeiras obras primas da
literatura caipira. Citamos alguns eminentes: João Pacífico; Raul Torres;
Florêncio; Serrinha; Athos Campos; Capitão Furtado (Ariovaldo Pires); Capitão
Barduíno (Pedro Anestori Marigliani); Teddy Vieira, Ado Benatti; Angelino de
Oliveira; Mário Zan; Arlindo Pinto; Tião do Carro; Silveira; Barrinha; Tião Carreiro;
Zé Batuta; Nhô Chico; Craveiro; Liu; Goiá; Nenete; Piraci; Valdemar Reis; Muibo
Cury; Mário de Andrade; Ary Kerney; Dino Franco; Anacleto Rosa; Tonico;
Lourival dos Santos; Sulino; Arlindo Pinto; Nhô Chico; Dino Franco; José Milton
Faleiros; Índio Vago; Mouraí; Lamartine Babo; Ary Barroso; Zé Batuta; Luizinho;
Zé Paioça; Luiz de Castro; Paraíso; Zé Fortuna; Pitangueira; Nonô Basílio;
Vicente P. Machado; Laureano; José Caetano Erba; Tupi; Tapuã; Carreirinho;
Moacir dos Santos; Zé Bétio; Cacique; Geraldino; José Russo; Zé Matão;
Belmonte; Vieira; Adauto Santos; Palmeira; Jacozinho; Luiz de Castro; Luiz Carlos
Paraná; Joel de Almeida; Rolando Boldrin; Léo Canhoto; Zilo, Renato Teixeira;
Carlos César; Creone; entre muitos outros.
É curioso notar entre os autores citados o grande expoente da literatura
brasileira, Mário de Andrade, que além de ativo participante na Semana de Arte
Moderna, foi Professor de História da música no Conservatório Dramático e
Musical; Presidente da Sociedade de Etnografia e Folclore, Pesquisador do
Patrimônio Histórico e Cultural Nacional; Diretor do Departamento Municipal de
Cultura; entre tantas outras atribuições. Vale mencionar que Mário de Andrade é
considerado um dos maiores intelectuais que o país já teve.
Guilherme de Almeida, o primeiro modernista a entrar para a Academia
Brasileira de Letras, considerado por Manuel Bandeira um habilidoso artista do
verso, foi quem reconheceu um incrível potencial poético no auxiliar de lava-
pratos, João Batista da Silva, cujo jeito calmo e tranqüilo motivou seu nome
artístico: João Pacífico. Angelino de Oliveira, escrivão de polícia e dentista prático,
51

foi autor do hino do caipira, Tristeza do Jeca, uma das primeiras gravações de
música de raiz. Thompson (2004) considera Lamartine Babo, o mais versátil de
todos os compositores do começo do século XX, pois compôs valsas, músicas
religiosas, operetas, marchinhas carnavalescas e a imortal “Rancho fundo” que,
segundo ela, became one of the great standards of Brazilian popular music.
Notamos que a veia poética caipira não escolhe classe sócio-cultural para
se manisfestar, pois encontramos, entre os citados, pessoas de tremenda
bagagem cultural e elevado status social e tantas outras que se definem como o
poeta autor de “Mágoa de boiadeiro”: Não sou poeta, sou apenas um caipira...
Nossa reverência a todos de maneira geral e com especial delicadeza aos
humildes poetas caipiras, cuja magnitude das obras e a contundente beleza dos
versos os colocam em posição de igualdade com os grandes escritores da
Literatura caipira.

2.2. O ESTILO CAIPIRA.

O estilo é o homem, se pensarmos na imagem de um sujeito que,


depreendida dos textos, supõe saberes, quereres, poderes e deveres
ditados por valores e crenças sociais: um eu fundado no diálogo com o
outro. (DISCINI, 2004: 7)

A historiografia literária propõe o estudo e descrição de escolas literárias. A


Literatura tem caráter de comunicação compacta, estuda um sistema articulado
de obras e autores. Como a Literatura tem sempre um enquadramento histórico,
estuda as obras pelo valor e pela função. Gumbrecht (2005) afirma que a intenção
da crítica literária é antes crítica do que historiográfica. A porosidade específica
dos textos literários implica uma abertura a se adaptar em diferentes condições de
leitura.
Gumbrecht (2005) explica que historizar é certa satisfação intelectual, é
realizar condição de assimetria entre passado e futuro. Identificar a temporalidade
expressa através da voz autoral permite-nos perceber um duplo viés social e
individual, a tradição localista, o nomadismo cultural e contemplar a interioridade
do enunciador. Nossa consciência se constitui temporalmente.
A temporalidade é agente inevitável de transformação automática. O
passado é potencialmente um registro útil para se prever o futuro, aberto a ser
52

formado. A temporalidade depende da espacialidade. É perceptível o pensamento


binário: a subjetividade está para a temporalidade como a presença está para a
espacialidade. Assim, a interpretação do mundo produz um saber novo. Através
do discurso manifestado nas letras de músicas de raiz temos uma inundação do
presente com coisas do passado.
Nos textos da Literatura caipira é possível observar a historicidade
imanente no texto, podemos entrever a dialética história e cultura. Como
sabemos, o que determina o caráter histórico da Literatura é a inovação. Notamos
que a Literatura caipira, como manifestação popular foge ao padrão proposto
pelos movimentos literários, no entanto, é possível detectar características
marcantes como uma visão dionísica, a postura emocional, subjetiva e idealista.
A valoração da literatura caipira remete a Discini (2004) que observa que
tudo tem estilo. As letras de músicas de raiz apresentam o contato do homem
com a terra, com a natureza; ora reflexo da realidade, ora vista através da
imaginação criadora do autor. A análise de textos no estilo caipira pressupõe a
observação da recorrência no modo de ver, sentir, captar ou reconstruir a
realidade. Nas palavras de Discini, (2004: 40) Recorrência de um fazer saber, de
um fazer crer, de um fazer fazer, de um fazer ser.
A imagem vem das palavras, que nos permitem reconstruir a paisagem
rural, os hábitos e costumes da gente simples do campo. A construção da
linguagem surpreende pela diversidade das formas e também da adjetivação
abundante. Discini (2004; 64) afirma:
Falar em estilo é falar em conteúdo e expressão, bem como na
relação de pressuposição entre eles, e entendendo o plano de conteúdo
como o subsolo móvel da significação, nos níveis fundamental, narrativo e
discursivo, em que se (re)constroem valores e respectivas relações com
sujeitos.

Para entender um estilo é preciso depreender o autor implícito, o sujeito


que reorganiza figurativamente o mundo a seu modo. Estilo é efeito de sentido e,
portanto, uma construção do discurso. Para entender, distinguir e aceitar o estilo
caipira é necessário refletirmos sobre a afirmação de Discini (2004) no fragmento
a seguir:
O ator da enunciação de uma totalidade de discursos, para
construir um estilo, pauta seu modo de ser, não só por estados
passionais, como por estados passionais em transformação e,
principalmente, por uma orientação passional que, difusa em uma
totalidade, diz respeito a um sentir, sofrer e perceber contínuos, advindos
de um determinado “julgamento” sobre o mundo; esse mundo, que
53

impregna o sujeito e que é reconstruído por ele, para que ele, sujeito,
também se construa na totalidade de seus discursos. (DISCINI, 2004, p.
74)
A rima, recurso usado para obter certos efeitos especiais de sonoridade do
verso, tem como principal função criar a recorrência de um som marcante. Já a
alternância de sons, a cadência regular definida por um compasso é chamada
ritmo, elemento essencial à expressão estética nas artes da palavra, é o que nos
fere imediatamente a atenção e distingue um verso de outro. Para Candido (1996:
44), o ritmo é a alma, a razão de ser do movimento sonoro, o esqueleto que
ampara todo o significado.
No entanto, não pautamos nosso estudo nos recursos sonoros, que são
abundantes na literatura caipira, ou em efeitos aliterativos, ou musicais.
Tampouco vamos nos deter na metrificação ou tonicidade, embora aceitemos a
definição de Candido (1996) que todo poema é basicamente uma estrutura
sonora. Realmente há diversas possibilidades de desdobramento dessa pesquisa,
entretanto pousaremos nosso olhar nos aspectos literários que nos permitam
identificar características do discurso etno-literário que a produção cultural caipira
representa.
Interessa-nos a relação subjetiva entre o poeta e o mundo. O modo poético
de apreensão do mundo passa pela sensibilidade intuitiva. O poeta expressa
sensações, impressões e emoções em textos sintéticos e condensados. As
figuras fazem parte intrínseca de nossos mecanismos cognitivos, pois
raciocinamos muito mais por analogias. O poeta fala do mundo e expressa seus
sentimentos por imagens e figuras, fala alegoricamente e utiliza um modo
metonímico de fazer referência ao mundo.
Bertrand (apud ROCHA, 2006) considera as figuras, que por sua vez,
estariam na superfície de um todo de fundo temático. O texto literário tem a
propriedade de jogar com as distorções da figuratividade, ou seja, contrapõe-se
ao mundo natural e suas figuras pré-construídas, como o estereótipo, compondo
mundos outros, nos quais as figuras concretizam outras possibilidades semântico-
sensoriais para o real proposto.
A função da ficcionalidade como atributo da literatura mudou. Hoje a
ficcionalidade é diferente e se recupera na retrospectiva histórica. Hoje a prosódia
também é enfatizada pela crítica literária, há percepção da variedade prosódica.
Há potencialidade da literatura não só no mundo acadêmico. A exemplo do que
54

Batista (2001) encontrou no romance oral, notamos que o discurso caipira


também se caracteriza pela riqueza variacional, pela linguagem popular, pela
forma dialogada ou dramatizada.
Além da variação lingüística de uma região para outra, chamada diatópica,
existente nos estados que compõem o universo caipira, podemos observar
também as variações de pronúncia e de vocabulário entre o falar do paulista da
grande São Paulo e do interior. A consideração feio ou errado é fruto de um
julgamento social. Nossa atenção não se deterá apenas no léxico, porém
podemos observar a característica especifica das unidades léxicas etno-literárias
apontadas por Pais (2003) a cujo octógono descritivo já nos referimos.
A linguagem do poema se forma de palavras em seu sentido próprio e de
palavras em seu sentido figurado, sendo estas de sentido figurado espontâneo,
corrente e de sentido figurado voluntário, elaborado, declara Candido (1996: 98).
De acordo com ele, o valor semântico das palavras escolhidas pode produzir um
efeito expressivo. Pudemos constatar a veracidade dessa afirmação na
decodificação da linguagem utilizada no discurso caipira, conforme apresentamos
a seguir, em uma desconstrução cuja intencionalidade é destacar a valoração da
Literatura caipira.

2.3. A DESCONSTRUÇÃO DO DISCURSO CAIPIRA.

A figuratividade não é uma simples ornamentação das coisas, ela


é esta tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar
entrever, graças ou por causa de sua imperfeição, como que uma
possibilidade de além (do) sentido. (GREIMAS, 2002: 74)

Algumas das composições poéticas escolhidas para formar o corpus de


nosso trabalho são de autores pouco conhecidos, sem ambição comercial ou
preocupação estética, outras composições foram assinadas por nomes
consagrados. Sabemos que todo texto é marcado pelas condições do momento
histórico em que está inserido e, como já vimos, o caipira foi condenado à
urbanização e gradativamente perdeu seu espaço rural. Há diversos textos que
reproduzem o contexto histórico e situacional sobre os quais discorremos na
primeira parte deste trabalho. Nos textos estudados, registram-se detalhes de
55

relações interpessoais, o funcionamento da sociedade rural, as mudanças que


ocorreram nessa sociedade e ainda explicitam-se os pensamentos, os desejos e
inquietações do povo caipira.
No estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de
vida, Candido (1997) aponta o êxodo rural como fator de separação entre o
indivíduo e a família, criando instabilidade e ameaçando a estrutura familiar.
Segundo o sociólogo, a família era para o caipira a única instituição educativa,
desde cedo os filhos acompanhavam os pais e aprendiam com a experiência
destes. “Nelore valente”, de Sulino e Dino Franco, faz referência a aprendizagem
que ocorria desde cedo: Na fazenda que eu nasci, vovô era retireiro. Bem criança
eu aprendi a prender o gado leiteiro.
A hereditariedade da profissão é evidente no texto “O último dos
carreiros”, de Zé Betio: Meu avô era carreiro, o meu pai também já foi. A herança
deles carrego no velho carro de boi. Eu vou cumprir esta sina de uma longa
geração, embora os tempos mudaram, mas mantenho a tradição. A consciência
de que os tempos mudaram permite que finalize: Quando eu for pra eternidade,
este carro vai parar. A profissão de carreiro, não tenho pra quem deixar.
O respeito e a valoração do relacionamento pai e filho transparecem no
texto de João Pacífico, “História de um prego”: Meu filho, corre, vem sentar aqui
comigo. Sou teu pai, sou teu amigo, eu quero te aconselhar. “Meu velho pai”, de
Léo Canhoto, apresenta a adoração de um filho pelo pai: Não tenha medo, meu
velhinho adorado, estarei sempre ao seu lado, não lhe deixarei jamais. Eu sou o
sangue do seu sangue, papaizinho, não vou lhe deixar sozinho, não tenha medo,
meu pai.
Em “O Carro e a Faculdade”, de Sulino e Zé Fortuna, encontramos o
reconhecimento do esforço e do trabalho do pai que lhe garantiu as condições de
conquistar o diploma. Um doutor formado tem em cima da mesa do escritório a
miniatura de um carro de boi e quando lhe perguntam o por quê, ele responde: foi
com o carro, nas estradas a rodar que meu pai ganhou dinheiro, pra mim poder
estudar. Enquanto ele carreava passando dificuldades as lições eu decorava lá
nos bancos da faculdade.
A preocupação na valorização da convivência familiar é apontada em
“Couro de boi”, de Teddy Vieira e Palmeira: Sentindo o peso dos anos, sem podê
mais trabalhar, o velho pião estradeiro com seu filho foi morar. O rapaz era
56

casado e a muié deu de implicá: Cê manda o véio embora se não quiser que eu
vá. O rapaz, coração duro, com o velhinho foi falar. Este poema nos sensibiliza
para questões como a dependência dos idosos e a ingratidão, a frieza e a falta de
amor caracteristicas marcantes em alguns homens.
A inversão de valores, na relação entre pais e filhos, torna-se motivo de
grande escândalo para os velhos. Antigamente o filho devia obediência ao pai
pela vida toda, de acordo com Candido (1997: 247), Os pais governavam os filhos
com o olhar até ficarem homens. Podemos citar em “A vaca foi pro brejo”, texto de
Tião Carreiro e Lourival dos Santos, a consciência dessa inversão de valores, da
desarmonia familiar e da falta de respeito que caracteriza as famílias modernas:
Mundo velho tá perdido, já não endireita mais, os filhos de hoje em dia já não
obedece os pais. [...] manda a mãe calar a boca, coitada fica quietinha, o pai é um
zero a esquerda...
Candido (1997) explica que em questão matrimonial a vontade do pai era
decisiva, sobretudo para as mulheres e que as mais afoitas viam como única
solução a fuga e depois o casamento na polícia. Outras vezes, a fuga poupava o
gasto do ato civil. O texto “Goiano Valente”, de Nenete e Piracy, relata a aventura
de roubar a moça, o risco, o medo e termina com a fala do pai: Eu acho melhor
assim, casando fugido é menor a despesa. “Empreitada perigosa”, de Moacyr dos
Santos e Jacozinho, é outra narrativa que testifica o costume de roubar a mulher
amada: Eu vou roubar uma moça de um ninho de serpentes. Ela quer casar
comigo, a família não consente. Já me mandaram um recado, tão armado até os
dentes. Vai chover bala no mundo se nós topar frente a frente [...] Mas se tudo der
certinho, a menina tem que vir.
“Véio marrudo”, de Lourival dos Santos, apresenta a preocupação em ter a
filha raptada: Tem um sujeito por aí anda dizendo que tá querendo minha casa
derrubá. Ele falou que quebra porta e janela, quebra tranca e tramela, minha filha
vai levar. Na minha casa gosto de muito respeito, vou mostrar para o sujeito as
volta que o mundo dá. Em “Mineiro de Monte Belo”, de Serrinha e Lourival dos
Santos, encontramos mais uma referência ao rapto: Casamento é coisa boa, dois
unidos por um elo. Eu estou apaixonado e agora me revelo. Ela tem dois irmãos
bravos, que eu amanso e depois trelo. Amanhã eu levo ela, antes meu cavalo eu
selo. A viagem é perigosa, eu arrisco e não cancelo.
57

Apesar de desde cedo os meninos ajudarem os pais na lavoura, apenas


quando apresentam certo vigor físico, aos treze ou quatorze anos, recebem o
peso total do serviço, como homens formados, comenta Candido (1997). Esse
costume é registrado nos primeiros versos de “Ladrão de terra” de Teddy Vieira e
Moacir dos Santos: “Tinha eu catorze anos, quando deixei meu estado, papai era
sitiante, trabalhador e honrado [...] por esse mundão de Deus, eu dei murro no
pesado.
“Boiada”, texto de Zé Paioça, aponta os efeitos da necessidade de deixar a
família em busca de trabalho: Saí de casa menino, deixei chorando meus pais.
Cresci no mundo sozinho e não voltei nunca mais. O enunciador continua
divagando nas suposições que faz sobre os pais e os irmãos. Outra referência ao
afastamento da família aparece em “Passagem da minha vida”, de Pardinho e
Carreiro: Vivi lá até os quinze anos, montando em boi e jogando o laço. Tirei o
diploma do quarto ano, meu pai me dando muitos repassos. Depois vim prá
Araçatuba, fui pegando mais desembaraço.
Mas o destino é traiçoero e me deixô na solidão. Foi s'imbora pra cidade,
me deixou triste sodade, neste pobre coração. O trecho da letra “Pé de ipê”, de
autoria de Tonico, permite-nos refletir sobre o sofrimento causado pelo êxodo
rural. O sujeito lamenta sua solidão causada pela ida da mulher amada para a
cidade. Ocorrência incomum, uma mulher deixar a vida na roça, a não ser que
fosse para acompanhar a família. Normalmente quem ficava era a família, os pais,
a mulher, a prometida, pois os homens, principalmente os jovens, partiam em
busca de opções de trabalho.
O primeiro e o último verso do texto de Carlos Colla, Maurício Duboc e
Chororó, “Fogão de lenha”, evidencia a privação da convivência familiar bem
como o reconhecimento de sua importância: Espere minha mãe, estou voltando
[...] Eu sempre tive tudo e tudo está aí. Percebemos os mesmos indícios de apego
à família na nostálgica “Caminheiro”, de Nair de Castro e Jack: Caminheiro diga
pra mãe [...] eu pegando meu diploma, vou trazer ela pra cá, mas se eu for mal
nos estudos vou deixar tudo e volto pra lá. É notório que a ausência do lar
materno ocorre por necessidade. Paraíso e Caetano Erba registram essa
necessidade em “Mala amarela”: Beijei o seu rosto e disse na hora: o mundo lá
fora me espera paizão.
58

O belíssimo poema “Rolinha cabocla”, de Raul Torres e João Pacífico,


descreve magistralmente a rotina diária da vida na roça: De tarde eu volto da roça
e descarrego os cargueiros. Eu solto a tropa no pasto, prendo o baio no potreiro.
Boto milho pras galinhas, boto milho no chiqueiro, aparto todo meu gado [...]
depois de todo o trabalho, eu volto prá descansar e na soleira da porta eu sento
prá cachimbar... Os afazeres cotidianos da vida no campo também são
registrados em “Meu reino encantado”, de Valdemar Reis e Vicente P. Machado;
“Jeitão de caboclo”, de Valdemar Reis e Liu; e “Caboclo na cidade”, de Nhô Chico
e Dino Franco, objeto de nossa análise profunda, a que daremos sequência mais
adiante.
A discrepância econômica e social, presente em diversos textos da
literatura analisada, é a mesma a que se refere Candido (1997), também está
evidenciada no texto “O rico e o pobre”, de autoria de Moacir dos Santos e Sulino,
no qual os contrastes revestidos de humor apontam a consciência da situação:
cadeia é só pra pobre, nela não entra bacana. Os contrastes se acentuam em
relação à vida na roça, sempre com valoração positiva e a vida na cidade, em que
se enfocam aspectos negativos.
O acentuado contraste entre a vida na roça e na cidade também é
denunciado em “O caipirão”, letra de Tião do Carro e Zé Batuta. Ali eu tinha
fartura, um lavourão de batata. [...] Hoje eu moro na cidade, mas a vida não tem
graça. [...] Aqui eu vejo miséria, bagunça e muita arruaça. A vida no campo
recebe uma valorização positiva e a vida na cidade recebe uma valorização
negativa, o discurso apresenta o sujeito não integrado à cidade.
A percepção da antinomia cidade/ campo, propõe a supervalorização da
vida no campo. O bucolismo se evidencia de maneira ímpar em “Manto
estrelado”, de Dino Franco tudo se passa nesse mundo deslumbrante dos
tesouros verdejantes que tem nome de sertão. É igualmente evidente em
“Franguinho na panela”, composição de Moacir dos Santos e Paraíso: O recanto
onde eu moro é uma linda passarela. O carijó canta cedo bem pertinho da janela.
Com aguçada sensibilidade poética, Dino Franco e José Fortuna, compuseram
“Cheiro de relva”, texto em que o bucolismo, característica mais marcante, aponta
a perfeita harmonia entre o ser humano e a natureza: Cheiro de relva traz do
campo a brisa mansa, que nos faz sentir criança, a embalar milhões de ninhos.
59

Luiz de Castro e Tião Carreiro exemplificam a utopia que é a vida na roça,


em “Encanto da natureza”: Tu que não tiveste a felicidade, deixa a cidade e vem
conhecê meu sertão querido, meu reino encantado, meu berço adorado que me
viu nascê. [...] Este pedacinho de chão encantado foi abençoado por Nosso
Senhor. que nunca nos deixa faltá no sertão saúde, união, a paz e o amor. Em
“Lá onde eu moro”, de Luiz de Castro, após descrever o recanto cheio de tanta
beleza, exalta a natureza e finaliza: Por nada troco meu pedacinho de terra,
minha casa ao pé da serra, meu campo vestido em flor! Chão abençoado, recanto
dos passarinhos, onde eu moro é um ninho de paz, ternura e amor!
Ribeiro, D. (2002) faz referência à disputa que havia por terras de melhor
qualidade, utilizáveis para lavouras comerciais. O antropólogo afirma que os
cartórios se ativavam para promover o desalojamento de antigos posseiros. Mais
uma vez vamos observar o texto “Ladrão de terra” que registra o conflito: Eu
entrei no tabelião. Quase que também caía na unha dos gavião porque o dono do
cartório protegia os embruião. Me falou que o fazendeiro tinha rios de dinheiro prá
gastar nesta questão. Outro texto que menciona essa disputa é “O mineiro e o
italiano”, de Teddy Vieira e Nélson Gomes: O mineiro e o italiano viviam as barras
dos tribunais em uma demanda de terra que não deixava os dois em paz. Só de
pensar na derrota o pobre caboclo não dormia mais.
Candido (1996) chama de recorrência a repetição de palavras, de frases e
de versos. São homofonias, utilizadas como recurso estilístico em várias letras.
Tomamos como exemplo “Aparecida do Norte”, de Anacleto Rosa Junior e
Tonico, que além de utilizar a recorrência de frases testifica a religiosidade do
povo caipira: Todo meado do ano enquanto não chega a morte, vou fazer minha
visita na Aparecida do Norte. Falo com Fé: Na Aparecida do Norte, todo meado
do ano enquanto não chega a morte. A preocupação com a espiritualidade é traço
marcante da literatura popular, que percebemos em “Pitoco” de Teddy Vieira, Nhô
Bentico e Abílio Vitor: Era um domingo de mês, no dia de Santa Inês, tinha festa
no arraiá, minha mãe e a criançada saimu pela estrada na capela pra rezar.
“Relógio quebrado”, de Teddy Vieira e José Russo, igualmente apresenta essa
característica: Na hora dele deitar fazia suas oração.
A sensibilidade poética de João Pacífico e Raul Torres em “Pingo d’água”
apresenta o traço marcante que é a religiosidade: Eu fiz promessa prá que Deus
mandasse chuva, prá crescê a minha roça e vingá a prantação. “Franguinho na
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panela”, de Moacir dos Santos e Paraíso, aponta o forte indício da fé do caipira:


Se eu morrer Deus dá jeito, pois a vida é muito bela. Não vai faltar no ranchinho,
prá mulher e pros filhinho, um franguinho na panela. Fica clara a dependência de
um Ser que tudo controla e a proclamação dessa fé. Encontramos o
reconhecimento da existência de um Ser criador em outro poema de Dino Franco,
já citado, “Manto estrelado”: E como é lindo a gente ver o céu aberto, o sertão
sendo coberto de esplendor que é todo seu. Tudo surgindo com requinte de
beleza a mostrar que a natureza só podia vir de Deus.
O conto, típico da prosa, frequentemente é utilizado pela literatura caipira
em forma de poesia. Podemos citar um conto, bastante conhecido, em que a
espiritualidade e a fé são temas centrais, trata-se de “O milagre do ladrão”, de Léo
Canhoto e Zilo. É a história de uma criança que vivia em uma cadeira de rodas.
Sua mãe, todas as noites alimentava sua fé e dizia que o Senhor um dia viria
curá-lo. Certa noite, ao ver um ladrão entrando pela janela, o inocente, cheio de
fé, andou até ele, ajoelhou-se agradecido a seus pés. Ao receber um beijo do
inocente aquele homem de remorso estremeceu. Saiu andando com os olhos
rasos d'água, aquela cena toda ele compreendeu. A consciência lhe doeu naquele
instante, foi se afastando parecendo uma visão. O inocente no momento foi
curado, sem perceber que era o milagre de um ladrão.
O gosto pelo mistério também é acentuado “A moça e o carro de boi”,
Carlos César, Creone e Zé Fortuna, que narra o grande apego demonstrado pelos
bois ao trato de uma moça, sem cujo grito eles não saiam para carrear. Quando
ela adoece, precisa vir à janela para que eles saiam para o cumprimento da rotina
diária. Misteriosamente, sem necessidade de grito ou força, eles levaram seu
corpo para a última morada. Após a morte da jovem, os bois vão morrendo aos
poucos. O refrão enfatiza o místico: Esse mistério ninguém sabe se não foi a voz
da moça do além chamando os bois. “Disco voador” é um poema de Palmera que
pondera a existência de seres de outros planetas que pudessem nos ajudar:
Tomara que seja verdade que exista mesmo disco voador, que seja um povo
inteligente pra trazer pra gente a paz e o amor.
O isolamento deve ser entendido, segundo Candido (1997) como
fenômeno referente ao grupo de vizinhança, não à família. A anomia, o gosto pelo
ermo, que Holanda (2004) menciona, estão presentes em “Chitãozinho e
chororó”, de Serrinha e Athos Campos: Eu moro lá no deserto, sem vizinho eu
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vivo só. Em “Rolinha cabocla”: eu vivo só nesse rancho, sem carinho de mulher.
“No Rancho fundo” de Lamartine Babo, também faz referência ao isolamento. No
rancho fundo, bem pra lá do fim do mundo, onde a dor e a saudade contam
coisas da cidade. Ribeiro, D. (2002) menciona que o caipira foi compelido a se
transferir para as áreas mais remotas e observa que isso lhe deu condições de
manter suas formas de adaptação e de vida. O poema de Nhô Chico, Tião
Carreiro e Craveiro, “Moradia”, aborda o fenômeno: Eu moro lá num recanto onde
ninguém me amola. Numa casa ao pé da serra mora eu e a viola.
Por outro lado podemos encontrar índices de sociabilização em várias
letras de músicas de raiz. Ribeiro, D. (2002) registra que os mutirões eram
comuns e que ao fim dos trabalhos era comum oferecer uma festa com música e
pinga. Nas festas religiosas, promovidas em culto a santos poderosos, havia
missas, leilões e bailes. Tonico e Francisco Ribeiro são autores do conhecido
texto “Chico Mineiro” que conta a viagem de dois boiadeiros: Viajamos muitos
dias, prá chegar em Ouro Fino, aonde passamo a noite, numa festa do divino. A
festa tava tão boa... Porém, ocorre o assassinato de um deles e posteriormente o
outro descobre que a forte amizade que os unia se justificava, pois eram irmãos
legítimos. O clímax da narrativa ocorre em uma festa religiosa.
Outra festa, palco de tragédia, foi a de São João da Freguesia. Em volta da
fogueira a comunidade se reunia para ouvir os violeiros e dançar, hábito de
sociabilidade registrado por Raul Torres e João Pacífico em “Chico Mulato”. O
desfecho da narrativa é triste, de madrugada, Chico Mulato, o festeiro, cantador,
vai ao encontro do rival, seu irmão. “Catimbau”, de Carreirinho e Teddy Vieira, é
uma história extremamente trágica. O moço que teve a cabeça decepada durante
o rodeio, é uma narrativa cujo clímax ocorre em uma festa de São João. O gosto
pelo trágico é uma característica que se repete em diversos poemas: “Menino da
porteira”, de Teddy Vieira e Luizinho; “Boi fumaça”, de Sulino e Moacir dos
Santos; “Preto inocente”, de Teddy Vieira, Campão e Bento Palmiro; “Ferreirinha”,
de Carreirinho, Isaltino Gonçalves e Pedro L. De Oliveira; “Cabocla Tereza”, de
João Pacífico e Raul Torres; etc.
Entretanto, como analisa Ribeiro, J. H. (2006), o universo do criador caipira
não se limita à angústia e ao sofrimento: tragédia, dor, morte e traição. São
muitas as letras que apresentam o humor como principal característica. Na
comparação entre “O homem e a espingarda”, de Zé Mulato e Cassiano,
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encontramos: E dos sessenta em diante, danou com os arrei' pro mato. Arma não
atira mais e se atirar é boato. Espingarda enferrujada, só aponta pro sapato. Virou
peça de museu, esse mundo é mesmo ingrato. “Horóscopo”, de Alvarenga e
Ranchinho, apresenta com humor a inadequação do casamento em cada mês do
ano e termina: Quem chegou inté dezembro, vivendo sempre solteiro, não vai
estragar no fim, a sorte de um ano inteiro.
“Moda da pinga”, de Laureano, mostra a bem humorada consciência do
pinguço: Cada vez que eu caio, caio diferente, ameaço pra trás e caio pra frente.
Caio devagar, caio de repente, vou de currupio, vou diretamente, mas sendo de
pinga eu caio contente, oi lá! “Romance de Uma Caveira”, de Alvarenga,
Ranchinho e Chiquinho Sales, conta a história de duas caveiras que se amavam e
um dia, ao chegar um cadáver novo, a caveira se apaixonou por ele e abandonou
o amor antigo. O texto termina com a ocorrência do impossível, a morte de quem
já estava morto: O caveiro tomou uma bebedeira e matou-se de um modo
romanesco, por causa dessa ingrata caveira que trocou ele por um defunto fresco.
“Baldrana macia”, de Anacleto Rosa Jr. e Arlindo Pinto, apresenta a história
de um homem que enfeita sua besta e resolve dar um passeio em Tupã. Quando
entra na cidade, por onde passa, chama a atenção. Percebe, entre as pessoas
que o olhavam, uma moça e supõe que ela o admire. Encoraja-se e se dirige a
ela, porém a jovem esclarece: Se é por causa que eu olhei, você está muito
enganado, foi da besta que eu gostei. O humor se justifica pelo final
surpreendente.
Era comum a realização de campeonatos entre violeiros e a consequente
valorização do cantador. Ser bom cantador era motivo de orgulho. Um exemplo
da valoração desses eventos sociais pode ser visto em “Peito Sadio” de Raul
Torres e Rubens Fonseca: Às quatro horas da manhã, a família recebe convite
para participar de um campeonato, do outro lado do rio: É convite prá nóis ir na
festa, vai haver um grande desafio. É grande a alegria e ninguém mais dorme. Os
vizinhos (vovô e titio) são chamados, índice da importância do evento e talvez da
participação de mais pessoas da família para formarem os grupos musicais.
Segundo o texto, os mais fracos somem quando chegam os cantadores que
apresentam grande repertório, pois em três noites seguidas não repetem as
modas, terminando vitoriosos.
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A valorização do cantador ou violeiro é freqüente. “Amanheceu, peguei a


viola” de Renato Teixeira exemplifica: Sou cantador e tudo nesse mundo vale pra
que eu cante e possa praticar. A minha arte sapateia as cordas, esse povo gosta
de me ouvir cantar. O poema “Chitãozinho e Chororó” também registra o gosto
que o caipira tem de cantar: Quando sei de uma notícia que outro canta melhor,
meu coração dá um balanço fica meio banzaró. Devemos lembrar que o
entretenimento do caipira eram as poucas reuniões, que mesmo quando
religiosas, se enriqueciam com os cantadores, os violeiros, os catireiros.
“Pescador e Catireiro” de Cacique e Carreirinho faz referência a isso: Eu sou
grande pescador, também gosto de um catira. Quando eu entro num pagode, não
tem quem não se admira. No repique da viola, contente o povo delira. Se a
tristeza está na festa, eu chego, ela se retira. Bato palma e bato o pé, até as moça
suspira.
O poema de Tonico e Piraci, “Viola Cabocla”, aponta a viola como meio de
entretenimento do caipira: Viola cabocla feita de pinheiro, que leva a alegria por
sertão inteiro, trazendo a saudade dos que já morreu, na noite de lua que sai no
terreiro, consolando a mágoa do triste violeiro... “Vide vida marvada”, de Rolando
Boldrin aponta a viola sendo mais do que entretenimento: É que a viola fala alto
no meu peito humano e toda moda é um remédio pros meus desengano.
A questão dos hábitos alimentares já foi pesquisada por Candido (1997)
que cita o costume de conservar a carne de porco em banha por mais de trinta
dias em lata de banha. O texto “O caipirão”, de Tião do Carro e Zé Batuta,
discorrendo sobre a fartura que caracterizava a vida na roça, registra: Porco
gemia na faca, gordura estufava a lata. O sociólogo observa que a alimentação
cárnea era tema freqüente em histórias contadas pelos caipiras. Ele afirma que a
comunidade caipira comia galinha com parcimônia. A literatura caipira dá conta
disso em “O rico e o pobre”: Quando pobre come frango, surpresa pra muita
gente, ou o pobre tá de cama, ou o frango tá doente. O mesmo texto aponta o uso
escasso da carne pela população caipira: Pastel de rico tem carne, do pobre é só
vento e massa.
Candido (1997) afirma que o roceiro, não sendo vadio, tem sempre o que
comer. O sociólogo, em seu estudo sobre o caipira paulista, descreve a variedade
dos pratos caipiras e a abundância de hortaliças e frutas. O texto “Leitão à
pururuca”, de Muniz Teixeira e Lourenço aponta a abastança e a auto-suficiência
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da vida na roça: Com mistura prá visita minha mulher não preocupa, tem
franguinho com angú e um delicioso tutu com leitão à pururuca. Quem for passear
lá em casa encontra muita fartura, tem milho, arroz e feijão, legumes, fruta e
verdura, terreiro cheio de frango, leitoada no mangueiro e uma vaquinha mansa
pra ter leite prás crianças e o meu queijinho caseiro.
Casa de caboclo, de Nono Basílio, faz referência à alimentação
mencionando o agradável hábito do cafezinho para as visitas: O cafezinho com
bolinho não demora, conforme a hora também fica pra jantar. O poema também é
notório exemplo de hospitalidade: O que eu tenho realmente é muito pouco, mas
felizmente dá pra mim e mais alguém. Graças a Deus é uma casa abençoada, na
minha mesa sempre tem o que comer e por ventura se alguém pedir pousada,
esteja certo que hospedo com prazer. A hospitalidade caipira também é lembrada
no poema de Luís de Castro, “Lá onde eu moro”: A minha casa não é lá muito
bonita, mas quem me fizer visita, eu recebo de coração.
Um tema bastante abordado é o amor aos animais. Em “Pitoco”, o
narrador/ personagem descreve a familiaridade que tinha com o cachorrinho, e,
com a morte deste, observa: Neste mundo que é tão louco, em que os amigos
são pouco, depois que morreu Pitoco, nunca mais tive outro igual. “Burro Picaço”,
de Anacleto Rosa Jr., aponta a valorização da criação: Eu já vi burro ligeiro, mas
igual esse inda não. Enjeitei cinco pacote do fio do meu patrão. Gosto muito de
dinheiro, cinco mil cruzeiro não leva o machão. Prá falar mesmo a verdade não
existe riqueza que compre o burrão. “Moda da mula preta”, de Raul Torres, indica-
nos que alguns animais tinham valor inestimável: Pro mulão de qualidade, quatro
milhões enjeitei, pra dizer mesmo a verdade, nem satisfação eu dei.
Lourival dos Santos e Moacir dos Santos são autores de “Cavalo enxuto”,
história que justifica a valorização de um animal responsável pela conquista da
mulher amada. Situação absolutamente incomum, uma moça caipira namorar dois
homens. A disputa é feita entre o caipira a cavalo e o fazendeiro rico e moderno
que utiliza um carro para tentar chegar primeiro à porteira da fazenda da moça.
Porém enfrenta obstáculos da estrada. Já o caipira, no lombo do cavalo Enxuto,
pega um atalho e vence a aposta, indo para os braços da donzela. Os versos a
seguir dão conta do reconhecimento do valor do animal: O progresso é coisa boa,
reconheço e não discuto, mas aqui no meu sertão, meu cavalo é absoluto. Foi
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Deus e a natureza que criou este produto. Esta vitória foi minha e do meu cavalo
Enxuto.
“Boi soberano”, de Carreirinho, Isaltino Gonçalves e Pedro Lopes de
Oliveira, conta a história de um boiadeiro que comprou uma boiada em que havia
um boi que tinha fama de ser violento, chamava-se Soberano. Em passagem pela
cidade de Barretos, houve um estouro da boiada e um menino que brincava na
rua, corria risco de morte. O boi Soberano parou em cima da criança e rebatia
com os chifres os bois que passavam. O texto termina com o reconhecimento da
valorização do animal: Quando passou a boiada, o boi foi se arretirando. Veio o
pai dessa criança e me comprou o Soberano. - Esse boi salvou meu filho,
ninguém mata o Soberano.
“O vai e vem do carreiro”, belíssima poesia de Carlos César se apodera do
amor pelos animais e pela lida rural e denomina os animais que compõem o carro
de boi: Seis bois puxando o carro triste do seu coração: é a Saudade
emparelhada com a Lembrança, o Amor, a Esperança, Desespero e Solidão. A
exaltação da sensibilidade emocional, ou sentimentalismo, é também uma
característica acentuada no discurso caipira, como percebemos no texto poético
“No mourão da porteira”, de João Pacífico e Raul Torres: Uma sodade é dor que
não consola, quanto mais dói a gente quer lembrar.
O saudosismo é uma das características mais marcantes da literatura
caipira. O lamurioso texto de Nonô Basílio e Índio Vago, “Mágoa de boiadeiro”,
exprime de maneira inequívoca essa saudade. No belíssimo texto de Tião do
Carro e Caetano Erba, “Mãe de Carvão”, encontramos uma prosopopéia desse
sentimento: Montado no lombo da velha saudade, deixei a cidade, voltei pro
sertão. Goiá e Zacaria Mourão são autores do poema “Pé de cedro”, onde a
saudade remete àquele tempo querido que não volta nunca mais. Candido (1997)
observa que o saudosismo se manifesta, sobretudo, nos mais velhos que tiveram
contato com a vida tradicional do caipira e podem comparar o passado e o
presente. O saudosismo remete à terra natal, ao convívio familiar, ao ser amado,
ao exercício da profissão, à lida no campo, enfim aos valores que pertencem a um
passado.
Quem não sentiu o ar puro das campinas e nunca ouviu um berrante em
surdina, não viu a lua deitado sobre um baixeiro, não sabe amigos, como é bom
ser boiadeiro. Os versos que valorizam a vida de boiadeiro foram extraídos do
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poema de Sulino e Teddy Vieira: “A volta do boiadeiro”. Um sonho louco, retornei


à mocidade e ruminando a saudade, até alta madrugada. Juro por Deus que
chorei naquele instante, quando ouvi som de berrante despertando a peonada,
são versos versos de Dino Franco e Índio Vago, em “Velho pouso de boiada”,
indicam o saudosismo referente à vida de boiadeiro.
A saudade é tema presente em “Tropas e boiadas”, de Tony Damito e
Carlos César: Vai, vai, vai. Vai, saudade antiga, vai buscar. Quero rever, tropas e
boiadas a passar! A valorização do passado e o saudosismo da vida de boiadeiro.
Como o reminiscente texto de Adauto Santos, “Triste Berrante”: Ali, passava boi,
passava boiada. Tinha uma palmeira na beira da estrada, onde foi gravado muito
coração. [...] Mas mesmo vendo a gente, carros passando, meus olhos estão
enxergando uma boiada a passar. De Goiá e Nenete, o poema “Recordação”,
também aborda a saudade e remete à terra natal: Amargurado pela dor de uma
saudade, fui ver de novo o recanto onde nasci, onde passei minha bela mocidade,
voltei chorando com a tristeza que senti.
O belíssimo texto de Tião Carreiro e Zé Matão, “Saudade”, faz referência à
ausência do ser amado: Saudade palavra rica, que martiriza e fica dentro de um
coração. A felicidade morta, que a saudade conforta, trazidade de uma paixão.
Saudade eu tenho que alguém, uma saudade que vem de uma distância sem fim.
Será que ela também, na falta de um outro alguém, sente saudades de mim?
“Amor e saudade”, de Dino Franco e José Milton Faleiros, aponta certo
conformismo com impossibilidade de realização do amor: Mas no mundo tudo
passa, a sorte é predestinada... O marcante sentimentalismo de Meu coração tá
pisado, primeiro verso do poema de Tonico, Priminho e Maninho, “Moreninha
linda”, remete ao sofrimento conseqüente da supervalorização do amor. É triste a
saudade longe de você; verso que finaliza o refrão desse poema confirma: a
tristeza aparece frequentemente no lirismo melancólico dos textos, como uma
conseqüência do exacerbado saudosismo.
Candido (1996: 70) afirma que o povo, como é fácil verificar, sobretudo no
campo, tem inclinação acentuada para a linguagem metafórica, principalmente
sob a forma de comparação. A metaforização é recurso expressivo, bastante
utilizado em “A vaca foi pro Brejo”, de Tião Carreiro e Lourival dos Santos: metade
da mocidade é um bando de serpentes, o pai é um trem fora da linha. Em “Manto
estrelado”, de Dino Franco, um texto de extrema beleza e incomparável
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sensibilidade poética, temos: O firmamento, de azul todo enfeitado, é um vestido


salpicado de brilhantes ao luar. Raul Torres e João Pacífico, em “Cobra
venenosa”, desenvolvem um texto em que a metáfora é a essência. Após
detalhada descrição do perigo de várias cobras venenosas, afirma que a cabocla
por quem foi picado, aquela que traz veneno nos olhos e ataca no coração, é a
cobra mais venenosa.
Zé Fortuna e Paraíso, em “Canga do tempo” finalizam o poema
metaforicamente: Todos temos nossa canga, mas nós não vemos, puxando a
pesada carga da solidão, até que o carro da vida um dia pára, no lamaçal sem
saída do coração. “Flor do Cafezal”, de Luiz Carlos Paraná, utiliza a metáfora para
apontar também a identificação do personagem e de seu estado de espírito com a
natureza: Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal. Era florada, lindo véu de
branca renda se estendeu sobre a fazenda, igual a um manto nupcial. E de mãos
dadas fomos juntos pela estrada, toda branca e pefumada, fina flor do cafezal.
À linguagem metafórica, às vezes, são acrescentados outros recursos
estilísticos como a metonímia, baseado em uma estreita relação de sentido ocorre
a substituição de um termo por outro. Temos como exemplo o riquíssimo texto de
João Pacífico, “A história de um prego”: Naquele prego pendurei muito cansaço,
muito suor do mormaço e poeira do estradão. E quantas vezes minhas mágoas
eu pendurei, sentimentos eu guardei, prá não magoar teu coração.
A relação espaço/personagem pode atingir um acentuado grau de
intensidade. O espaço participa ativamente da narrativa de “Rancho fundo” de
Lamartine Babo: Os passarinhos internaram-se nos ninhos, de tão triste esta
tristeza, enche de trevas a natureza. O ambiente como definidor do estado de
alma fica evidente em “Paineira velha”, de Zé Fortuna. Se estou contente você
floresce, quando padeço suas flores caem.
É comum o emprego de palavras que condizem com o ambiente
psicológico e social, como nos mostram os versos de Chico Mulato: Tapera de
beira de estrada, que vive assim descoberta, por dentro não tem mais nada, por
isso ficou deserta. O sentimentalismo propicia a identificação espaço/
personagem, como encontramos em “Terra tombada”, de Carlos César e Zé
Fortuna: Terra tombada, solo sagrado, chão quente, esperando que a semente
venha lhe cobrir de flor. Também minh' alma, ansiosa espera confiante que em
meu peito você plante a semente do amor.
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“Destinos iguais”, de Ariovaldo Pires e Laureano, acentua a identificação


com a natureza, quando o homem que observava com alegria dois canarinhos
gorjeando, vê um malvado gavião que rapta a companheira da avezinha.
Percebe, então, o mesmo sofrimento que ele carrega: Chorei, pois, que nem
saudade, daquela felicidade que o destino me roubou. O meu viver solitário é tal e
quar deste canário que perdeu o seu amô. A identificação se assemelha a que
ocorre em “João de Barro”, poema de Muibo Cury e Teddy Vieira, o passarinho
que sendo traído, aprisiona, para matar sua companheira. Embora o sentimento
de traição seja o mesmo, o homem agiu diferentemente: Que semelhança entre o
nosso fadário, só que eu fiz o contrário do que o João de Barro fez. Nosso Senhor
me deu força nesta hora, a ingrata eu pus pra fora, onde anda eu não sei.
A personificação, ou prosopopéia, também é recurso estilístico bastante
usado, apresenta animais ou objetos que possuem qualidades ou agem como
seres humanos. “A enxada e a caneta”, de Teddy Vieira e Capitão Barduíno,
conta que a caneta foi passear lá no sertão e desenvolve o diálogo entre ela e a
enxada, apontando a humildade desta e a arrogância daquela: Certa vez, uma
caneta foi passear lá no sertão, encontrou-se com uma enxada, fazendo a
plantação. A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudação, mas a caneta soberba
não quis pegar sua mão e ainda por desaforo lhe passou uma repreensão.
Enquanto critica a soberba e a arrogância, valoriza a humildade e a educação,
que independe de status cultural ou sócio-econômico.
No poético “Mãe de carvão”, Tião do Carro e Caetano Erba fazem uso da
personificação: O angico encorpado me olhou do espigão e ainda A linda roseira,
de rosas vermelhas, puxava a orelha do filho fujão. Edward de Marchi, em “Dona
Saudade”, também utiliza esse recurso poético: Com sinceridade, a dona
Saudade não tem mesmo jeito, da desilusão do meu coração quer tirar proveito.
Pelos meus caminhos colheu gravetinhos de um amor desfeito e devagarinho ela
fez seu ninho dentro do meu peito. Igualmente Zé Paioça, faz uso da figura, no
significativo poema “Boiada”: A lua me beija o rosto, sereno me faz carinho. O
vento faz serenata, aonde eu durmo sozinho. As estrelas são meus guardas,
posso dormir sossegado e quando elas vão embora, o sol vem juntar meu gado.
Outro exemplo de extrema sensibilidade na utilização de recursos
estilisticos como a prosopopéia é encontrado em “Manto estrelado”, de Dino
Franco: Os pirilampos com ciúmes das estrelas vão tentando convencê-las que
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são estrelas do chão. As lindas flores, qual noturnas namoradas, vão se abrindo
perfumadas, transbordantes de amor. Mas, logo adiante, quando o sol romper o
dia, vão dizer que só queriam se arrumar pro beija-flor.
Em “Goiano valente”, de Nenete e Piracy, percebe-se uma sugestão do
processo de animalização, implícito na comparação: Até parecia ser uma
serpente, [...] vinha que nem boi bravo. Em “Mineiro de Monte Belo”, de Serrinha
e Lourival dos Santos: Quando eu entro no catira, os meus pés são dois martelo,
a metáfora utilizada para os pés sugere reificação, fenômeno onde o que é vivo
se comporta como morto, ou seja, quando se atribuem qualificações e eventos
peculiares dos inanimados a seres humanos. O mesmo fenômeno é encontrado
em “É fogo”, de Lourival dos Santos e Zé Batuta: Ele virou parafuso, eu virei
chave de fenda. Fiz ele passa espremido que nem cana na moenda. Nesse dia fui
tesoura, entrei gostoso na renda.
Encontramos algumas expressões hiperbólicas, no texto de Tião Carreiro e
Lourival dos Santos, “A vaca foi pro brejo”: pobre pai e pobre mãe, morrendo de
trabalhar, deixa o couro no serviço pra fazer filho estudar. Lourival dos santos,
Piraci e Tião carreiro são compositores de “Rio de lágrimas”: O rio de Piracicaba
vai jogar água pra fora, quando chegar a água dos olhos de alguém que chora. Lá
na rua onde eu moro só existe uma nascente, a nascente dos meus olhos já
formou água corrente. Pertinho da minha casa já formou uma lagoa com lágrima
dos meus olhos por causa de uma pessoa.
Muitas vezes, a figurativização utilizada na letra ecoa no arranjo, e o timbre
característico do instrumento citado concorre para uma figurativização sincrética,
segundo Dietrich (2005), que afirma ser muito freqüente a citação do instrumento
musical nas letras de músicas populares, diretamente (viola, violão), ou por
intermédio de metáforas, adjetivos ou apelidos (meu pinho). A identificação do
instrumento com o enunciador está presente em “Viola está chorando”, de Joel
Marques: Lembro das noites de canções e poesia, noite adentro a gente ia e eu
cantava só pra ela. Meu canto é triste desde que ela foi embora, pois até minha
viola chora de saudade dela. Viola está chorando, chorando está meu coração,
meu desespero meu sufoco, desabavam pouco a pouco na magia da canção.
Mário de Andrade e Ary Kerney são os compositores de “Viola quebrada”, texto
que também apresenta a identificação do personagem do instrumento: Minha
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viola gemeu, meu coração estremeceu. Minha viola quebrou, meu coração me
deixou.
Em “Porta do Mundo”, belo poema de Peão Carreiro e Zé Paulo, os versos:
O som da viola bateu no meu peito doeu, meu irmão, indicam a dependência que
o cantador tem do instrumento, também revelada nos versos do poema “Viola,
minha viola”, de Américo Jacomino, Viola, minha viola, de jacaranda e canela, na
alegria ou na tristeza, eu vivo abraçado nela. Minha, viola vivida, eu ganho a vida
com ela.
Há textos que se apresentam como pequenos contos, fábulas ou apólogos,
com fundo moralizantes em que se pretende valorizar princípios éticos. É o caso
de “Água no leite”, de Zé Fortuna e Paraíso, história do homem avarento que
misturava água ao leite para aumentar seu lucro e um macaco, vendo tudo, joga o
dinheiro acumulado ilicitamente no rio. É interessante que um ser irracional é
usado para tecer a critica ao comportamento humano.
O texto de Teddy Vieira e Tião Carreiro, “Caboclo no Cassino”, apresenta
um caipira incomum, o esperto e trapaceiro, que mente, mas acaba se dando mal.
O caboclo se arruma com o terninho de linho engomado, vai ao cassino, faz uma
despesa grande, passa por filho de um grande fazendeiro para fazer farol para a
menina. Como a carteira estava gorda, mas era só de papel, vai parar no xadrez.
O verso: Isto serve de exemplo, expressa a preocupação moralizante.
Existe a preocupação em preservar os valores éticos e morais. “Prato do
dia” texto de Geraldino, apresenta uma situação peculiar, o caipira proprietário de
uma pensão a beira da estrada, tem a filha como garçonete que ouve gracejos
inadequados de um viajante. O pai preocupado em preservar a moral e a honra
da família resolve o conflito: serve uma franga temperada e crua. Foi chegando o
velho e dizendo: vim trazer o pedido que fez. Quando o cara tentou recusar já se
viu na mira de um schimitt inglês. O negócio foi limpar o prato, quando o
proprietário lhe disse cortês: Nós estamos de portas abertas, pra servir à moda
que pede o freguês. Fica claro também o conflito entre o forasteiro e o
personagem local.
Os valores do caipira merecem ser investigados. Há registros preciosos do
que realmente tem importância para o homem do campo ou aquele que, marcado
pela cultura caipira, ainda preserva a ética, a moral, a família, a espiritualidade, a
natureza, o trabalho. O poema “Chitãozinho e Chororó”, de Serrinha e Athos
71

Campos, aponta a valorização da casa do caboclo: Eu não troco meu ranchinho


marradinho de cipó, por uma casa na cidade, nem que seja bangalô.
Quando em “Caminheiro”, poema de Jack e Nair de Castro, o rapaz manda
recado pra mãe, pede que ela cuide bem do que é dele: o cavalo, o cachorro, um
galo índio brigador, a velha espingarda e o violão. Percebemos que para o caipira
os valores são mais sentimentais. É o que vemos em “Berrante de ouro”, de
Carlos César e Zé Fortuna, Vê, ali está o meu berrante no mourão de ipê. Vou
cuidar melhor, porque foi ele que me deu você. O berrante é tão valioso, pois foi
instrumento de trabalho do boiadeiro, berranteiro. Ao vê-lo passar, ela sorria, até
que um dia a união se realizou, o que justifica a valorização sentimental.
No texto “Colcha de retalhos”, de Raul Torres, percebe-se igualmente que
a valoração não é uma questão monetária. Aquela colcha de retalhos que tu
fizeste, juntando pedaço em pedaço foi costurada, serviu para nosso abrigo em
nossa pobreza, aquela colcha de retalhos está bem guardada. Em “Lenço
perdido”, de Wilfrido Alves de Lima, fica clara a valorização sentimental: Que vale
um lenço perdido, ai, ai, ainda que esteja bordado, pois o amor só tem sentido, ai,
ai, pra quem ama sendo amado.
A busca de todo o ser humano que é a felicidade e a paz é motivo de
reflexão quando em “Buscando a felicidade”, de Tupi e Tapuã, o sujeito admite:
Dinheiro quanto dinheiro que até a conta perdi, o que mais eu precisava ainda
não consegui. “Cavalo Preto” de Anacleto Rosa Jr., registra: Deus me deu este
destino e muita felicidade, quando eu passo com meu Preto eu deixo um rastro de
saudade. O destino mencionado é o de não ter família, muitas vezes viajar o dia
inteiro, e ter apenas um cachorro, um couro de uma novilha, um laço de doze
braça, uma capa grande que lhe serve de cobertor, e dois pelegos grandes, um
usado como colchão, outro como travesseiro. Percebe-se que o conceito de
felicidade do caipira não está associado à abastança.
O texto poético de Paraíso e José Caetano Erba, “Saco de ouro”, exprime
o quanto as lembranças são preciosamente valiosas, pois o enunciador relaciona
seus guardados: uma bota velha, um chapéu, uma bainha de couro, um facão, um
par de esporas, um arreio, um laço, um punhal, um rabo de tatu, uma guaiaca, um
pavio de lampião, um pelego sem pelo, um cachimbo, um estribo esquerdo, a
nota fiscal da primeira sela que comprou, o recibo do primeiro ordenado que
faturou. O enunciador se refere a tudo isso como tralha, que significa traste,
72

objeto sem valor, inútil, que atrapalha. Entretanto, no texto a tralha se constitui em
relíquia, pois para o sujeito, a representação do passado e a recordação da vida
que levou têm valor de ouro. O saco é relíquia com meus apetrechos, não vendo
e não deixo ninguém pôr a mão. Nos trancos da vida eu agüentei o taco e o ouro
do saco é a recordação.
Percebemos que o conteúdo sócio histórico envolve os textos da Literatura
caipira e que os valores dessa cultura, inequivocamente registrados nas letras de
músicas de raiz, podem ser detectados a partir da análise semiótica a que
procederemos.
73

3. LEITURAS SEMIÓTICAS DE MÚSICAS DE RAIZ: VALORES DA CULTURA


CAIPIRA.

A literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para


formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas
brasileiros. (CANDIDO, 1967: 155)

A visão de mundo da cultura caipira, o sistema de valores e crenças, o


imaginário coletivo e o saber compartilhado sobre o mundo são identificados na
análise semiótica através dos recortes culturais. A diversidade lingüística, cultural,
social e histórica é a verdadeira riqueza do homem e através de seus discursos
conhecemos sua memória social, sua consciência histórica, observa Pais (2005:
143) que declara:
O sujeito semiótico enunciador/enunciatário do discurso possui
uma competência lingüística, semiótica, sociocultural e um saber sobre o
mundo, resultantes dos discursos anteriores por ele codificados ou
decodificados, ou seja, do seu processo histórico individual e/ou coletivo.

Levando em conta a complexidade cultural do povo brasileiro, as


transformações das relações entre tradição, modernização socioeconômica e o
modernismo cultural, como propõe Canclini (2006), entendemos a importância da
proposição de Pais (1998; 2005; 2006) de contínuo desenvolvimento de uma
ciência da interpretação, a Semiótica das Culturas, que examine processos de
inserção cultural; que tenha por objeto as culturas humanas e sua diversidade;
que tome as isotopias conceptuais como instrumentos e critérios valiosos para
sua constituição.
A seleção das letras das músicas de raiz, cuja íntegra é apresentada em
anexo, atende ao interesse de estudo do processo histórico da cultura caipira e
sua contribuição para o enriquecimento de nossa diversidade cultural, num
enfoque da Semiótica das Culturas, alicerçados na afirmação de Pais (2005: 154)
a história da humanidade corresponde ao processo histórico da cultura, ou antes,
das culturas.
Na intenção de detectar os valores da cultura caipira, entender suas
crenças, conhecer sua visão de mundo, valemo-nos do quadrado semiótico -
modelo lógico que apresenta as relações em oposições de contradição,
contrariedade e complementaridade - em que temos a estrutura elementar onde
74

está inserida a identidade semântica. Encontramos a lógica dialética, na


necessária coexistência de termos contrários, já que um só termo não significa.
A relação entre dois termos-objetos manifesta a dupla natureza de
conjunção e de disjunção. Na estrutura narrativa percebemos um sujeito caipira
em relação de oposição ao sujeito urbano, o mesmo ator representando papéis
actanciais diferentes. A justificativa da dramaticidade presente nos textos é
explicada no conflito entre o caipira e seu antisujeito, evidenciando o choque com
a urbanidade. Alguns textos apresentam um sujeito adulto que constrói um
cenário resgatando a infância, o campo, a família, as atividades rurais cotidianas;
um sujeito que lamenta o êxodo rural e sua condição na cidade; outros textos nos
mostram um sujeito dominado pela dor, pela paixão, pela ausência da mulher com
quem formaria a família.
Distinguimos a vida no campo em relação de contraste com a vida na
cidade; a tradição em oposição à modernidade; o local em oposição ao global; a
cultura caipira em relação de oposição por contraste com outras culturas. Nas
relações intersubjetivas observamos o espaço e suas aspectualizações. O espaço
em que o sujeito caipira está, seu espaço de origem ou o que ele quer.
Entendemos que a contribuição da temporalidade é indiscutível em textos
enfaticamente saudosistas.
Para apresentarmos uma análise, não apenas baseada em conceitos
literários, mas sustentada por princípios da semântica estrutural, escolhemos
textos que apresentam considerada coesão e cujas estruturas narrativas e
argumentativas, alimentadas pelo uso abundante de isotopias semânticas
permitem-nos afirmar que são índices preciosos para a percepção dos valores
subjacentes no discurso caipira e o devido apreço da música de raiz.
75

3.1. JEITÃO DE CABOCLO

Se eu pudesse voltar aos bons tempos de criança,


Reviver a juventude com muita perseverança,
Morar de novo no sítio, na casa de alvenaria,
Ver os pássaros cantando, quando vem rompendo o dia.
Eu voltaria a rever o pé de manjericão,
A curruira morando lá no oco do mourão,
Os bezerros do piquete e nossas vacas leiteiras,
O papai tirando leite, bem cedinho, na mangueira.

Eu voltaria a rever o ribeirão Taquari,


Com suas águas bem claras, onde eu pesquei lambari.
O nosso carro de boi , o monjolo e a moenda,
As vacas Maria-Preta, Tirolesa e a Prenda.
Na varanda tábua grande, cheia de queijo curado
E mamãe assando pão no forno de lenha ao lado.
Nossa reserva de mato, linda floresta fechada,
As trilhas fundas do gado retalhando a invernada.

Queria rever o sol, com seus raios florescentes,


Sumindo atrás da serra, roubando o dia da gente.
O pé de dama-da-noite, junto ao mastro de São João
Que até hoje perfumam a minha imaginação.
O caso é que eu não posso, fazer o tempo voltar,
Sou um cocão sem chumaço, que já não pode cantar.
Hoje eu vivo na cidade, perdendo as forças aos poucos,
Mas não consigo perder o meu jeitão de caboclo.
76

Imbuído de sentimentalismo o texto altamente saudosista é uma


composição de Valdemar Reis, policial militar e Lincoln Paulino da Costa, o Liu,
que em parceria com o irmão, Léu, formam a consagrada dupla caipira que com
tanto sentimento interpretam a belíssima produção poética “Jeitão de Caboclo”,
cuja primeira gravação ocorreu em 1989. Características como ficcionalidade e
documentalidade, próprias do discurso etno-literário são evidentes no texto, bem
como a manifestação do inconsciente coletivo da comunidade caipira.
Partindo dos conceitos básicos da semiótica narrativa, calcados em
Bertrand (2003), aos quais já nos referimos na primeira parte dessa dissertação,
temos, ancorada na enunciação, a análise semiótica do discurso em que o sujeito
é o centro das investigações. Percebemos que o sujeito passional experimenta a
saudade; o sujeito da enunciação ocupa o lugar do narrador. A inexorabilidade do
tempo e a irremediável saudade presentes no texto corroboram para a
apresentação do sujeito em estado disjuntivo com o Objeto de Valor. Estão
presentes no texto modalidades virtualizantes volitivas e factivas. Como todo
texto, é uma narrativa e toda narrativa apresenta um sujeito em busca de um
objeto de valor. O enunciado narrativo apresenta a relação entre o actante Sujeito
(S) e o actante Objeto (O/ OV). Encontramos um enunciado de estado disjuntivo:

EN = (S ∪ O)

Peão A vida no campo


EN = Sujeito Objeto de valor

Figura 4 Enunciado narrativo de Jeitão de caboclo

O discurso subjetivo é efeito da desembreagem enunciativa, o texto é


apresentado em primeira pessoa. A descrição da relação subjetiva e espaço
temporal permite dar conta da discursivização da vida interior do sujeito, valendo-
se das cenas figurativas das recordações. Lembramos a observação de Greimas
(2002) sobre a possibilidade de ressemantização dos objetos gastos que nos
rodeiam e das relações intersubjetivas esgotadas.
Percebemos a contribuição sígnica obtida pela análise da temporalidade.
O primeiro verso do texto analisado apresenta uma suposição, com a utilização
do verbo no pretérito imperfeito do subjuntivo: Se eu pudesse, o que permite ao
77

enunciador encarrilhar hipóteses de voltar, reviver, morar e ver. A possibilidade de


“voltar” propicia a condição de rever as cenas cotidianas da vida na roça, que é
descrita em detalhes, num lirismo nostálgico, numa visão extremamente
saudosista. Observa-se nesse discurso saudosista o apego à terra, à casa
paterna, ao convívio familiar; a valorização da natureza; a lida rural, o trabalho do
homem, da mulher e a possibilidade de subsistência. A utilização do verbo no
presente do indicativo: hoje eu vivo na cidade, acentua o contraste passado x
presente, campo x cidade.
A ancoragem espacial identifica o bucolismo que envolvia a casa do sítio, a
exuberância da natureza e a fartura que caracterizava a vida na roça. É descrito
um ambiente agradável em harmonia com a natureza, onde há uma linda floresta,
um ribeirão de águas bem claras, pássaros cantando e flores, que lembradas,
perfumam a imaginação. A casa denota certo status, não é um simples ranchinho
de pau-a-pique, é de alvenaria e fica em um sítio, denominação para pequeno
estabelecimento agrícola, porém suficientemente grande para abrigar a família, a
criação e prover a sustentabilidade. Na representação dos afazeres cotidianos da
vida na roça há evidência da abastança: O papai tirando leite, bem cedinho na
mangueira. [...] Na varanda tábua grande, cheia de queijo curado e a mamãe
assando pão, no forno de lenha ao lado.
O discurso deixa transparecer o salutar hábito de acordar cedo: Ver os
pássaros cantando, quando vem rompendo o dia, também registrado por Candido
(1997: 123): para o caipira o despertar é geralmente às cinco horas. A pesca
como alternativa de lazer: o ribeirão Taquari, com suas águas bem claras, onde
eu pesquei lambari. A citação dos nomes das vacas: Maria Preta, Tirolesa e a
Prenda, denota afetividade com os animais. A consciência ecológica é registrada
em: Nossa reserva de mato, linda floresta fechada. Encontramos um índice da
religiosidade, que marca o povo brasileiro, na referência ao mastro de São João.
Na reconstrução do discurso podemos destacar no percurso narrativo um
Destinador, a Saudade, que instala um Destinatário/ Sujeito, que tem que
conquistar a competência fundamental de poder fazer: voltar aos bons tempos de
criança..., morar de novo no sítio... A impossibilidade de efetivação do poder-fazer
é mantida pela realidade e apenas a imaginação permite essa realização. As
isotopias presentes no texto asseguram o desenvolvimento semântico e garantem
a coerência do discurso.
78

Toda a utopia, que se estende por vinte versos e se encerra com a palavra
imaginação, é abruptamente cortada com a constatação dessa impossibilidade:
“O caso é que eu não posso fazer o tempo voltar”. O discurso analisado
apresenta o léxico específico que pode favorecer a semiose, como exemplo a
expressão metafórica “sou um cocão sem chumaço, que já não pode cantar”
índice da categoria tímica disfórica que reforça o conceito de disjunção e define o
discurso.

Destinatário/ Caboclo Destinador/ Saudade

Adjuvante/ imaginação
Sujeito/ caboclo Obj. Valor/ Vida na
roça
Oponente/ realidade

Figura 5 Esquema canônico de Jeitão de Caboclo

O esquema canônico pode representar uma das leituras possíveis do


discurso analisado.

Tensão dialética

Viver na roça Viver na cidade

Revitalização Perda das forças

Ñ viver na cidade Ñ viver na roça

Figura 6 Octógono Roça x Cidade

Uma das leituras autorizadas pelo discurso, observada no modelo dialético


acima, mostra a tensão dialética existente entre o poder fazer, que seria resgatar
79

a vida na roça, e o não poder fazer, a impossibilidade de viver na roça e ter que
viver na cidade. Evidentemente, um quadrado semiótico não é suficiente para
apresentar todas as tensões que existem no texto.
Encontramos valores da cultura caipira formalizados a partir da lógica das
modalidades transfrásticas, de acordo com os princípios de Pais (1993). O
octógono apresentado propõe uma reflexão sobre a ideologia da cultura caipira
que valoriza a natureza, a família e a vida no campo e retrata o caipira despojado
de sua querência, de suas raízes por questões sociológicas. Através das
reminiscências ocorre a valorização do passado, onde o enunciador aponta a
abastança, a vida plena, equilibrada e a consequente felicidade. Se houvesse a
possibilidade de voltar a viver na roça, ocorreria a revitalização. No presente e na
constatação da realidade, o enunciador sugere certo conformismo frente à
impossibilidade de realização de um viver ideal. Constata-se que o homem do
campo não se adapta à cidade e aos poucos perde suas forças, porém carrega
em si a essência de sua cultura.
80

3.2. MEU REINO ENCANTADO

Eu nasci num recanto feliz,


Bem distante da povoação,
Foi ali que eu vivi muitos anos
Com papai mamãe e os irmãos.
Nossa casa era uma casa grande
Na encosta de um espigão,
Um cercado pra guardar bezerro
E ao lado um grande mangueirão.

No quintal tinha um forno de lenha


E um pomar onde as aves cantava,
Um coberto pra guardar o pilão
E as traias que papai usava.
De manhã eu ia no paiol
Um espiga de milho eu pegava,
Debuiava e jogava no chão,
Num instante as galinhas juntava.

Nosso carro de boi conservado,


Quatro juntas de bois de primeira,
Quatro cangas, dezesseis canzis,
Encostados no pé da figueira.
Todo sábado eu ia na vila
Fazer compras para semana inteira.
O papai ia gritando com os bois,
Eu na frente ia abrindo as porteiras.

Nosso sítio que era pequeno,


Pelas grandes fazendas cercado,
Precisamos vender a propriedade
Para um grande criador de gado.
E partimos pra a cidade grande,
A saudade partiu ao meu lado,
A lavoura virou colonião
E acabou-se meu reino encantado.

Hoje ali só existe três coisas


Que o tempo ainda não deu fim,
A tapera velha desabada
E a figueira acenando pra mim.
E por último, marcou saudade
De um tempo bom que já se foi,
Esquecido embaixo da figueira,
Nosso velho carro de boi.
81

A análise da letra da música raiz “Meu reino encantado”, composição de


Valdemar Reis e Vicente F. Machado, gravada nos anos 80, aponta um discurso
imbuído de saudosismo, sentimentalismo, que sustenta aspectos dos sistemas de
valores e dos sistemas de crenças que integram o imaginário coletivo da
comunidade paulista.
Candido (1997) menciona o costume dos meninos ajudarem desde cedo
nos afazeres cotidianos, o texto ratifica a menção do sociólogo e apresenta
algumas atividades da vida rural, mesmo para uma criança, já que o passadismo
sugere a infância: Foi ali que vivi muitos anos, com papai, mamãe e os irmãos.
[...] De manhã eu ia no paiol, uma espiga de milho eu pegava, debuiava e jogava
no chão, num instante as galinhas juntavam. [...] Todo sábado eu ia na vila, fazer
compras pra semana inteira, o papai ia gritando com os bois e eu na frente
abrindo a porteira.
O sujeito da enunciação simulada ocupa o lugar do narrador. É um sujeito
passional, que experimenta a saudade; um sujeito do fazer, que se constrói na
ação. Inicialmente apresentando uma regressão através das reminiscências de
um lugar bucólico, o recanto feliz; da convivência com a família; da lida da vida
rural; enfim da vida boa, tranqüila e farta que tinha na roça, encontramos o sujeito
em estado de conjunção com o Objeto de valor.
Uma situação inicial, um acontecimento perturbador, um agravamento, e a
situação final, perfazem a estrutura funcional contemplada pela semiótica
narrativa. A temporalização favorece a armação lógica dos enunciados. As três
primeiras estrofes apontam na estrutura funcional a situação inicial em estado
conjuntivo, o sujeito em conjunção com a harmoniosa e feliz vida na roça: a
convivência com os pais e os irmãos, o que denota a valorização da família; a
casa grande; criação de gado e galinhas; o forno de lenha; o pomar; o carro de
boi; a possibilidade de fazer compras semanalmente, sugestão de abastança.
As lembranças e a valorização da vida simples da roça se fazem presentes
em todo o texto saudosista que resgata hábitos da vida no campo, recria a
memória social, caracterizando uma identidade cultural. Revela-se um processo
histórico registrado por Ribeiro, D. (2002: 391):
O golpe derradeiro na vida do caipira tradicional, que acaba por
marginalizá-lo definitivamente, se dá com a ampliação do mercado urbano
de carne, que torna viável a exploração das áreas mais remotas e de
terras pobres ou ricas para a criação de gado. [...] com o plantio de capim
e a desincorporação automática da área do sistema antes prevalecente.
82

O acontecimento perturbador advém da necessidade de venda da pequena


propriedade: Precisamos vender a propriedade para um grande criador de gado.
O agravamento surge com a necessária mudança para a cidade grande,
registrada na quarta estrofe, e o desaparecimento do sítio que foi substituído por
pastagens: E partimos pra a cidade grande, a saudade partiu ao meu lado. A
lavoura virou colonião e acabou-se meu reino encantado. Observamos que
colonião é espécie de capim, adequado para a alimentação do gado. O estado
disjuntivo é impingido pela necessidade de vender a propriedade e a partida para
a cidade grande.

EN = (S ∪ O)

EN = Sujeito Objeto de valor


Caboclo Vida no campo

Figura 7 Enunciado narrativo de Meu reino encantado

O desfecho ocorre com a constatação da realidade inexorável e a situação


final de irremediável saudade de um tempo bom que já se foi. Há nas três
primeiras estrofes traços eufóricos e as duas últimas apresentam traços
disfóricos. Ocorrem isotopias figurativas: o sujeito nasceu em um recanto feliz,
bem distante da povoação; a casa grande do passado, denotando conforto e
acomodação adequada para a família, pela ação do tempo transforma-se em uma
tapera velha desabada; a bucólica referência ao pomar onde as aves cantava;
nosso sítio que era pequeno, pelas grandes fazendas cercado, também se
contrapõe à cidade grande para onde eles partiram; o carro de boi conservado,
quatro juntas de boi de primeira, termina velho e esquecido embaixo da figueira.
Encontramos um discurso subjetivo, embreado no sujeito enunciador, que
apresenta descrição da relação subjetiva e espaço temporal. Instala a categoria
da primeira pessoa do singular, alternando-a com a primeira pessoa do plural, o
que denota a generalização do evento vivido por tantos emigrantes rurais. Além
dos dêiticos espaciais: foi ali que vivi... , distante da povoação...; instalam-se
dêiticos temporais: hoje ali só existem..., um tempo bom que já se foi... As
diversas embreagens permitem dar conta da discursivização da vida interior,
valendo-se das cenas figurativas das recordações.
83

Destinatário Destinador/ Saudade


Pequeno proprietário rural

Adjuvante
Condições financeiras
Sujeito Objeto de valor
Pequeno proprietário rural Vida no campo
Oponente
Dificuldade econômica
Transformações sócio-econômicas

Figura 8 Esquema canônico de Meu reino encantado

O esquema canônico acima nos apresenta uma das possíveis leituras: a


saudade é o destinador que instala o destinatário/ pequeno proprietário rural
como um sujeito em busca do objeto de Valor que é a vida no campo. As
condições financeiras poderiam favorecer, porém prevalece o estado disjuntivo,
pois a dificuldade econômica e as transformações sociais são oponentes para que
sujeito conquiste seu objeto de valor.

Tensão dialética

Vida na roça Vida na cidade

Integração/ adaptação Marginalização do caipira

Ñ dificuldade econômica Ñ condições financeiras

Figura 9 Octógono: Roça x cidade

Na reflexão proposta pelo octógono da figura 9, percebemos um querer


viver na roça contrapondo-se a um dever viver na cidade. O discurso etno-literário
analisado aqui é altamente significativo e contribui para a compreensão do
84

processo histórico da cultura caipira. A falta de recursos para continuar vivendo


na roça e a necessidade de viver na cidade conduzem o homem do campo a uma
situação de marginalização. Pais (2002) comenta que o êxodo rural ocorre e leva
o homem, expulso do campo pelas difíceis condições, a uma situação de
inadaptabilidade à cidade. A adaptação do homem, a estabilidade, a possibilidade
da inserção social, dependeria da ausência de dificuldades econômicas e a
possibilidade da continuidade da vida na roça.
As quatro estrofes que relatam a situação inicial, o acontecimento
perturbador e o agravamento utilizam os verbos no pretérito perfeito e imperfeito
do indicativo. A situação final, na última estrofe, embora utilize um verbo no
presente do indicativo: Hoje ali só existem três coisas; e o gerúndio sugira um
presente contínuo: e a figueira acenando pra mim, termina reforçando o
passadismo com outros verbos novamente no pretérito: E por último marcou
saudade de um tempo bom que já se foi, esquecido embaixo da figueira nosso
velho carro de boi. Entendemos que a temporalidade favoreceu o exercício
semiótico.
O discurso caipira manifestado na letra da canção “Meu reino encantado”,
como todo discurso, foi ideologicamente marcado, apresenta um sistema de
valores e gera o sentido de verdade, resgata a memória social e apresenta a
consciência histórica.
85

3.3. CABOCLA TEREZA

Lá no alto da montanha, Há tempo eu fiz um ranchinho


Numa casa bem estranha Pra minha cabocla morar,
Toda feita de sapé, Pois era ali nosso ninho,
Parei uma noite o cavalo Bem longe desse lugar.
Pra mode de dois estalo No alto lá da montanha,
Que ouvi lá dentro bate. Perto da luz do luar,
Apeei com muito jeito, Vivi um ano feliz,
Ouvi um gemido perfeito Sem nunca isso esperar.
E uma voz cheia de dor:
- Vancê Teresa descansa, E muito tempo passou
Jurei de fazer vingança Pensando em ser tão feliz,
Pra mode do meu amor. Mas a Tereza, doto,
Por uma réstia da janela Felicidade não quis.
De uma luzinha amarela Pus meus sonhos nesse olhar,
De um lampião quase apagando, Paguei caro meu amor,
Vi uma cabocla no chão Por mordi de outro caboclo,
E um cabra tinha na mão Meu rancho ela abandonou.
Uma arma alumiando.
Virei meu cavalo a galope, Senti meu sangue ferver,
Risquei de espora e chicote, Jurei a Tereza matar,
Sangrei a anca do tar, O meu alazão arriei
Desci a montanha abaixo, E ela fui procurar.
Galopeando meu macho, Agora já me vinguei,
O seu dotô fui chamar. É esse o fim de um amor,
Vortemo lá pra montanha, Essa cabocla eu matei,
Naquela casinha estranha, É a minha história dotô.
Eu e mais seu doto,
Topemo um cabra assustado
Que chamando nóis prum lado
A sua história contô:
86

João Batista da Silva, mais conhecido por João Pacífico, é um dos maiores
compositores da música brasileira, autor de quase 1.400 músicas, entre elas do
clássico da literatura caipira: “Cabocla Tereza”, gravada em 1936. Criador da
chamada “toada histórica”, que a canção analisada tão bem exemplifica, que
conta uma história através de um texto iniciando com um elemento descritivo na
forma de um declamado.
A primeira gravação de Cabocla Tereza foi feita por Raul Torres (proseado)
e Florêncio (parte cantada), até hoje ainda é uma canção que continua sendo
gravada. Sem dúvida alguma, uma das composições mais conhecidas do
cancioneiro nacional, é a história de um sujeito enciumado e possessivo que
acaba matando a amada porque ela "felicidade não quis".
A análise das estruturas “patêmicas”, relativa à dimensão dos sentimentos,
das emoções e das paixões, permite-nos entender a modulação dos estados de
alma do sujeito, como já vimos conforme Bertrand (2003). É o objeto da semiótica
das paixões que utiliza dois modelos: o quadrado semiótico e o percurso gerativo
da teoria. O modo de existência do Objeto de valor é descrito pela modalização
do ser. O sujeito Teresa devia ser a esposa fiel para com o caboclo e manter-se
no ninho que ele construíra, devia não ser uma mulher que abandona o lar e trai o
marido. Quanto ao sujeito caboclo, percebemos um querer ser o homem amado
por Teresa e um querer não ser o homem rejeitado por ela.
Para evitar emitir qualquer juízo de valores, é interessante observarmos as
afirmações de Cândido (1997) que discorre sobre a vida familiar do caboclo e nos
informa que em geral prevaleciam uniões por ajuste entre os pais. O sociólogo
informa que sem companheira o homem não tinha satisfação do sexo, nem auxílio
na lavoura, nem alimentação regular. Os homens eram irascíveis, valentes e
rudes. As mulheres casavam-se entre quinze e dezesseis anos. Para elas, a vida
de casada era de sacrifício, pois lhes competia todo serviço da casa, além de
atribuições culinárias; arranjo doméstico; fazer roupas, farinha; pilar cereais e
ainda tinha que trabalhar na roça ao lado do marido. De modo geral, as moças
apresentavam sinais dolorosos de provações físicas a que eram submetidas. Já
para o homem o casamento só trazia vantagens, entretanto a manutenção da
honra era inquestionável.
Não se trata de defender nenhuma das partes, nem o caboclo, o marido
desprezado, que se tornou assassino, nem Tereza, a mulher que não quis a
87

felicidade nos moldes do marido e acabou assassinada. Podemos, entretanto,


procurar entender e pressupor alguns motivos para o ocorrido. Ratificamos que o
discurso analisado é um discurso etno-literário, que é ouvido como fábula e como
veridictório, de acordo com Pais e Barbosa (2003) e agrega aspectos
documentais e ficcionais. Nele encontramos registros de valores da cultura
caipira.
Podemos observar no texto, entre várias possíveis leituras, a relação entre
actantes regida por predicados. Lembramos a proposta de Bertrand (2003) de
galgar um degrau na abstração e formular uma estrutura funcional, capaz de
apresentar uma estrutura da narrativa, ancorada nos enunciados. Levamos
também em conta o conceito de figuratividade que está enraizado mais
profundamente na teoria do sentido. É a instalação do tempo, espaço, objetos,
valores através de uma imagem que se tem do mundo. Consideramos figurativo,
tudo que se liga à percepção do mundo exterior. Observamos que o espaço
participa ativamente da narrativa, e as isotopias temáticas reiteram-se ao longo de
todo o texto.
Como observamos, há duas partes distintas no texto em questão. Na
primeira parte, declamada, o caboclo que passava pela região ouve um ruído, um
gemido, constata o crime e vai chamar uma autoridade “o seu dotô”. O espaço
passional é feito de tensões e aspectualizações, e se dispõe de acordo com as
transformações narrativas. Ocorrem isotopias figurativas: ruídos vindos de uma
casa bem estranha, à noite, o gemido perfeito e uma voz cheia de dor. O sujeito,
narrador/ personagem, que se inclui na narrativa como testemunha, vê uma
cabocla no chão, uma arma alumiando na mão de um homem. O drama tem lugar
em um ambiente cuja iluminação era precária: uma luzinha amarela de um
lampião quase apagando. O sujeito/ testemunha decide buscar o seu dotô,
provavelmente um delegado que ouve a história.
Na segunda parte, que é cantada, o caboclo traído faz a confissão e a
justificativa do ato criminoso. Temos um sujeito da enunciação que ocupa o lugar
do narrador, é o narrador-personagem. Outras isotopias podem ser apontadas
como o uso da metáfora ninho para designar o ranchinho, que sugere certo
romantismo por parte do caboclo. A expressão bem longe desse lugar remete ao
ermo, a solidão que caracterizava a vida na roça, o gosto pela anomia que
Holanda (2004) identifica.
88

Observamos a estruturação funcional da narrativa com a situação inicial: o


ranchinho pronto para a vida do casal; o acontecimento perturbador: quando
Teresa abandona o rancho; o agravamento: com o juramento de matar a ex-
companheira; a luta: quando o caboclo traído encontra Tereza e pode efetivar a
vingança e a situação final: com o assassinato, a consumação de um ato
consciente que reflete o fim de um amor. O texto começa com o sujeito em estado
de conjunção com o objeto de valor e termina disforicamente com o enunciado
elementar apresentado a seguir:

EN = (S ∪ O)
Caboclo A vida com Teresa
EN = Sujeito Objeto de valor

Figura 10 Enunciado narrativo de Cabocla Tereza

Identificamos no texto Cabocla Teresa os enunciados narrativos que


apresentam a relação entre o actante Sujeito (S) e o actante Objeto (O/ Ov). O
destinador promove o universo dos valores em função dos quais a ação é
avaliada. Temos um sujeito passional, que experimenta a esperança e
expectativa de viver sempre ao lado da mulher amada; um sujeito do fazer que se
constrói na ação: faz um ranchinho, pensando em ser feliz; é abandonado e jura
matar a mulher; após procurá-la efetiva a vingança.

Destinatário Destinador/ Crime


Dotô

Adjuvante
Testemunho in loco
Sujeito Objeto de valor
Esclarecimento dos fatos
Oponente
Falta de provas ou a fuga do assassino

Figura 11 Esquema canônico de Cabocla Tereza (sujeito dotô)


89

Percebemos que o desequilíbrio da narrativa ocorre após o inesperado:


Tereza ter abandonado o lar. O conflito reside na inexistência de reciprocidade do
amor. A busca de diferentes valores é a mola propulsora para o desenrolar da
narrativa. Assim, o crime é o Destinador para Instalar o Destinatário/ dotô,
presumidamente um delegado em busca de um objeto de valor, que seria o
esclarecimento dos fatos, representados no esquema canônico da figura 11.
Pensando a sintaxe narrativa, como a simulação do fazer do homem que
transforma o mundo, determinamos os participantes da narrativa e o papel que
eles representam na história. Sugerimos outras leituras, como:

Destinatário Destinador
Caboclo Orgulho ferido/ Rejeição
Adjuvante
Ter encontrado Tereza
Sujeito Objeto de valor/ Vingança

Oponente
Não encontrar Tereza

Figura 12 Esquema canônico de Cabocla Tereza (sujeito caboclo)

Apontamos o sentimento de rejeição como Destinador que instaura no


Destinatário/ Sujeito, o caboclo, um querer fazer, a vingança, através do
assassinato de Teresa. Notemos que o sangue ferver precede o juramento de
matar a cabocla. Entre os adjuvantes concorrem: o lugar isolado (lá no alto da
montanha), o uso da arma e a fragilidade da mulher e principalmente tê-la
encontrado. Podemos hipotetizar o oponente para a realização do homicídio:
outro caboclo que a defendesse, ou ainda, que ela não fosse encontrada, já que
ele confessa que, com a intenção de matá-la, arreou o alazão e foi procurá-la.
Como afirmamos anteriormente, para o caipira a questão da honra era de
suma importância. Assim a violência, ou até mesmo um homicídio poderia ser o
meio para sustentar a honra do marido abandonado. Os termos contrários que
coexistem na lógica dialética possibilitam identificar o percurso narrativo, porém,
mais uma vez, salientamos que um quadrado semiótico não é suficiente para
90

apresentar todas as tensões que existem no texto, assim propomos uma das
possíveis leituras:

Tensão dialética

Fidelidade Traição

Felicidade Infelicidade

~ Traição ~ Fidelidade

Figura 13 Octógono: Fidelidade x Traição

Podemos afirmar que há valores da cultura caipira presentes nesse


discurso que funciona como registro de hábitos, costumes, fatos, situações e
aspirações que permanecem na história e no patrimônio espiritual da comunidade
paulista.
91

3.4. MÁGOA DE BOIADEIRO

Antigamente O meu cavalo


Nem em sonho existia Relinchando pasto afora
Tanta ponte sobre os rios E por certo também chora
Nem asfalto nas estradas. Na mais triste solidão,
A gente usava Meu par de esporas,
Quatro ou cinco sinuelos, Meu chapéu de aba larga,
Prá trazer o pantaneiro Uma bruaca de carga,
No rodeio da boiada. Um berrante e um facão.
Mas hoje em dia, O velho basto,
tudo é muito diferente, O sinete e o apero,
Com o progresso nossa gente O meu laço e o cargueiro,
Nem sequer faz uma idéia, O meu lenço e o gibão.
Que entre outros Ainda resta
Fui peão de boiadeiro, Ppor este A guaiaca sem dinheiro,
Chão brasileiro, Deste pobre boiadeiro,
Os heróis da epopéia. Que perdeu a profissão.

Tenho saudade Não sou poeta,


De rever nas currutelas, Sou apenas um caipira
As mocinhas, nas janelas, E o tema que me inspira
Acenando uma flor. É a fibra de peão.
Por tudo isso Quase chorando,
Eu lamento e confesso Imbuído nesta mágoa,
Que a marcha do progresso Rabisquei estas palavras
É a minha grande dor. E saiu esta canção.
Cada jamanta Canção que fala
Que eu vejo carregada, Da saudade das pousadas,
Transportando uma boiada, Que já fiz com a peonada,
Me aperta o coração. Junto ao fogo de um galpão.
E quando olho Saudade louca
Minha traia pendurada, De ouvir o som manhoso,
De tristeza dou risada, De um berrante preguiçoso,
Pra não chorar de paixão. Nos confins do meu sertão
92

O belíssimo texto saudosista foi composto por Nonô Basílio e Índio Vago,
que sem se saberem poetas se apropriam magistralmente do tema que nos
propicia valioso resgate dos hábitos, costumes, anseios, mágoas e léxico
específico do boiadeiro. A primeira gravação é feita no disco que coleta as
melhores canções apresentadas no 1º Festival de música sertaneja, em 1967. É
música tema do filme que leva o mesmo nome, dirigido por Jeremias Moreira
Filho em 1977.
Neste poema encontramos recursos como cadência, modulação e um
entoativo melódico que facilitam ao ouvinte a conversão intersemiótica do sistema
da canção, tão valorizados por Tatit (1999). A perfeita integração entre melodia e
letra é claramente perceptível, sobretudo na interpretação de Pedro Bento e Zé da
Estrada. Entretanto, já esclarecemos anteriormente que nosso foco aqui não é a
interação entre letra e melodia. Certamente uma semiótica da canção, nos moldes
de Tatit (1999) bem como o estudo do poema baseado em Candido (1996) é uma
proposta instigante e desafiadora para futuras investigações.
Voltemo-nos para o discurso, cuja noção, como sabemos, ultrapassa
amplamente os limites do texto, neste caso, o discurso etno-literário, por mesclar
o ficcional com o documental. O léxico, ponto de confluência do conteúdo com a
expressão, não deve ser descartado para a análise de um estilo, conforme Discini
(2004: 21) que o considera:
subsídio para o reconhecimento da organização das figuras “do
mundo” que, enfeixadas em núcleos, fazem mais visíveis, mais audíveis,
mais acessíveis, enfim, idéias e ponto de vista intrínseco a uma
totalidade.

Na identificação do estilo caipira presente no discurso analisado,


atentamos para o léxico específico que favorece a semiose: Sinuelos (cavalo ou
boi que serve como guia), pantaneiro (designação de espécie de gado), rodeio
(ato de reunir o gado), currutelas (povoados, vilarejos), espora (haste de metal
terminada por uma ponta de roseta que o cavaleiro prende no tacão do calçado,
para picar o cavalo e apressar-lhe o passo), bruaca (mala de couro cru, para a
cavalgadura transportar objetos), berrante (buzina de chifre, usada pelos
boiadeiros), basto (arreio, espécie de sela), sinete (pequeno sino), cargueiro (que
transporta carga), gibão (vestidura masculina que cobre do pescoço até um pouco
abaixo da cintura), guaiaca (cinto largo de couro com pequenos bolsos). São
93

unidades léxicas, hoje pouco conhecidas, termos específicos do universo cultural


do boiadeiro, em desuso como a profissão.
Num enfoque da semiótica narrativa, temos no discurso em questão, em
um passado cada vez mais distante, quando não havia tantas pontes sobre os
rios, nem asfalto nas estradas, a situação inicial da estrutura funcional, com a
necessária intervenção do peão para o transporte da boiada. Analisando a
relação entre o actante Sujeito e o actante Objeto, encontramos o sujeito da
enunciação simulada, sujeito passional que experimenta a saudade, ocupando o
lugar do narrador. O desequilíbrio e o agravamento advêm com o progresso,
quando os pecuaristas passaram a valer-se de caminhões para o transporte da
boiada. A situação final é determinada pelo saudosismo nostálgico em que o
sujeito encontra-se em estado disjuntivo com o Objeto de Valor.

EN = (S ∪ O)
Peão A vida de peão

EN = Sujeito Objeto de valor

Figura 14 Enunciado Narrativo de Mágoa de boiadeiro.

Encontramos um discurso subjetivo, embreado no sujeito enunciador.


Valendo-se das cenas figurativas das recordações, ocorre a descrição da relação
subjetiva e espaço temporal. São isotopias figurativas: os peões, considerados os
heróis da epopéia; as jamantas carregadas, símbolos da desnecessidade dos
peões boiadeiros; a tralha pendurada por não estar mais em uso; a guaiaca sem
dinheiro, reflexo da dificuldade econômica que adveio com a nova situação; a
irremediável saudade das pousadas que já fez com a peonada, atividade tão
corriqueira antigamente e a saudade louca de ouvir o som manhoso de um
berrante preguiçoso, também desnecessário agora devido às transformações na
lida do gado, na maneira de transportar a boiada. Instalam-se dêiticos espaciais:
“chão brasileiro, as currutelas, as pousadas junto ao fogo de um galpão, os
confins do sertão”; dêiticos temporais: “antigamente...”, “mas hoje em dia...”,
confirmando o antagonismo presente/ passado.

As três categorias actanciais reconhecidas por Bertrand (2003) a partir da


redução do modelo proppiano: sujeito / objeto, destinador / destinatário e
94

adjuvante / oponente, possibilitam o estudo da semiótica literária. A análise e


descrição das relações actanciais tornam possível a reconstrução do sentido. As
lembranças da vida de peão, sustentadas pelos objetos-relíquias, ocupam o papel
de Destinador que instauram o Destinatário, ex-peão de boiadeiro, como Sujeito
em busca de um Objeto de Valor: a (antiga) vida de peão.

Destinatário Destinador

Ex-peão de boiadeiro Lembranças

Adjuvante / A ausência do progresso

Sujeito Objeto de valor

Ex-peão de boiadeiro Vida de peão

Oponente / O progresso

Figura 15 Esquema canônico de Mágoa de boiadeiro.

Seria adjuvante a ausência do progresso, porém prevalece o


oponente, confirmando o estado disjuntivo, pois o progresso traz pontes sobre os
rios, asfalto nas estradas e jamantas que carregam o gado. Corroborando a
desnecessidade do boiadeiro. Observamos que para o peão de boiadeiro, no
discurso em questão, a manutenção de meios tradicionais para o transporte da
boiada e a inexistência do progresso poderia favorecer-lhe a continuidade do
emprego, da rotina a que estava acostumado e a conseqüente felicidade.
Observando-se a lógica das modalidades transfrásticas, como esclarece
Pais (1993), percebemos a possibilidade de formalização de alguns valores. O
pesar do boiadeiro, todo seu ressentimento, reside na extinção da profissão, na
impossibilidade da lida de gado, nos padrões em que ele passara toda a vida.
Percebe-se a valorização da liberdade da vida de boiadeiro, dos afazeres
rotineiros e a importância do reconhecimento da profissão. A irreversibilidade da
situação promovida pelo progresso justifica a infelicidade. O modelo dialético
apresentado permite-nos a identificação do percurso narrativo, em uma das
leituras autorizadas pelo discurso, apesar da insuficiência de um quadrado
95

semiótico para apresentar todas as tensões existentes no discurso, como já


mencionamos.

Tensão dialética

Tradição Progresso

Felicidade Infelicidade

Ñ progresso Ñ tradição

Figura 16 Octógono: Tradição x Progresso

O discurso etno-literário analisado na letra da canção “Mágoa de


boiadeiro”, marcado ideologicamente, apresenta um sistema de valores, registra
hábitos, costumes, situações e lembranças de um passado resgatado pela
memória social e cultural, que permanecem na história e pertencem ao patrimônio
cultural da comunidade paulista.
96

3.5. TRISTEZA DO JECA

Nestes versos tão singelo,


Minha bela, meu amor,
Pra você quero contar
O meu sofrer, a minha dor.
Eu sou que’nem sabiá,
Quando canta é só tristeza,
Desde o galho onde ele está.

Nesta viola (refrão)


Eu canto e gemo de verdade,
Cada toada representa uma saudade.

Eu nasci
Naquela serra,
Num ranchinho beira-chão,
Tudo cheio de buraco
Adonde a lua faz clarão.
Quando chega a madrugada,
Lá no mato a passarada
Principia um baruião.

Refrão

Vou pará com minha viola


Já não posso mais cantar,
Pois o jeca quando canta
Tem vontade de chorar.
O choro que vai caindo,
Devagar vai se sumindo,
Como as águas vão pro mar...

Refrão
97

Composta em 1918, por Angelino de Oliveira (1888 – 1964), que além de


ter cursado farmácia e odontologia, era destacado músico, atuante em bandas e
celebrações religiosas. Presente na paisagem sonora há quase cem anos,
"Tristeza do Jeca", foi considerada o verdadeiro "Hino do Caipira", atravessou
fronteiras, tendo sido gravada em diversos países europeus. Em 1922, foi editada
e gravada pela primeira vez, na forma instrumental. Antes do boom da música
caipira, em 1929, com as gravações pioneiras de Cornélio Pires, que propicia a
entrada de autênticos caipiras no cenário da indústria cultural, ocorre a gravação,
em 1926 na voz de Patrício Teixeira, entretanto explode como indiscutível
sucesso na interpretação do cantor Paraguassu, em 1937
O convívio conflitante, no plano da ética, dos usos e costumes é resultado
da migração de indivíduos que buscam sobrevivência, melhores condições de
vida e procuram a inserção no mercado de trabalho, conforme analisou Pais
(1998) ao se propor a estudar aspectos da identidade cultural brasileira, face ao
processo da globalização. “Tristeza do Jeca” é um discurso etno-literário, cuja
analise semiótica nos permite perceber marcas ideológicas e entender a visão de
mundo do caipira.
O discurso é subjetivo, embreado no sujeito enunciador, que apresenta
descrição da relação subjetiva e espaço temporal. Instala a categoria da primeira
pessoa do singular, ao utilizar cenas figurativas das recordações da terra natal. O
sujeito da enunciação é passional, experimenta a saudade e ocupando o lugar do
narrador. Temos aí, um texto poético, impregnado de notável lirismo nostálgico e
profundo saudosismo, que apresenta um enunciado narrativo disfórico,
constatado na relação de disjunção entre o actante Sujeito (S) e o actante Objeto
(O/ OV).

EN = (S ∪ O)
Jeca A vida na roça
EN = Sujeito Objeto de valor

Figura 17 Enunciado narrativo de Tristeza do Jeca

Instalam-se dêiticos espaciais: naquela serra; num ranchinho beira-chão; lá


no mato... Estão presentes: evidências da simplicidade da vida na roça; o gosto
pelo ermo; a identificação do sujeito com a natureza, na figura do sabiá; a
98

necessidade de falar da cultura que constitui o caipira e de resgatar o passado


através das lembranças, o que conduz a tristeza. O saudosismo e a irremediável
realidade são motivos de dor e sofrimento. Observamos a contribuição sígnica da
temporalidade: o tempo verbal é o presente: Nestes versos tão singelo, minha
bela, meu amor. Prá você quero contar o meu sofrer, a minha dor. As
reminiscências evocam o passado: Eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-
chão, tudo cheio de buraco adonde a lua faz clarão.
Podemos reconstruir o discurso e assim destacar, no percurso narrativo
representado pelo esquema canônico a seguir, um Destinador, a Saudade da
terra natal, da vida na roça, que instala um Destinatário/ Sujeito, o caboclo,
espécie de exilado na urbanidade, que tem que conquistar a competência
fundamental do poder-fazer-saber, falando à sua amada sobre sua origem. As
lembranças nostálgicas são adjuvantes para ele conte os motivos do seu
sofrimento, porém o choro causado pela tristeza o impede de falar de sua origem:

Destinatário/ Caboclo Destinador/ Saudade da roça

Adjuvante/ lembranças
Sujeito/ caboclo Obj. Valor/ Falar da sua origem

Oponente/ tristeza, choro

Figura 18 Esquema canônico de Tristeza do Jeca.

Entre as diversas leituras que o texto possibilita, podemos observar a


estrutura fundamental do texto analisado definida pela oposição semântica entre
presente (vida na cidade) e passado (vida na roça), que indica a primeira
condição de narratividade. A análise sêmica possibilita observarmos a tensão
dialética entre contrários como a cultura caipira e outras culturas; o campo e a
cidade; o presente e o passado. A identificação do sujeito com o sabiá,
componente da natureza, índice do bucolismo valorizado pelo enunciador: Eu sou
que’nem sabiá, quando canta é só tristeza, desde o galho onde ele está, denota a
inadaptabilidade do caipira fora do mundo rural, gerando infelicidade. A lembrança
e menção da terra natal e da natureza harmoniosa e a valorização da vida
99

simples e humilde na roça sugerem a apreciação do viver naquela serra que é


condição para a felicidade do caipira, como entendemos no octógono a seguir:

Tensão dialética

Viver na roça Viver na cidade

Felicidade Infelicidade

~ Viver na cidade ~ Viver na roça

Figura 19 Octógono: Roça x Cidade.

Percebemos na análise semiótica desse discurso que o presente, o viver


na cidade e a modernidade parecem gerar no homem do campo a insatisfação, a
nostalgia e a infelicidade, enquanto o passado, resgatado pelas lembranças,
confere a comunidade sua memória social, cultural, histórica; a condição de
valorização do patrimônio cultural e cria condições de desenvolver a consciência
da própria identidade cultural
100

3.6. CABOCLO NA CIDADE

Seu moço, eu já fui roceiro Minha filha Sebastiana,


No triângulo mineiro, Que sempre foi tão bacana,
Onde eu tinha o meu ranchinho. Me dá pena da coitada,
Eu tinha uma vida boa Namorou um cabeludo
Com a Isabel minha patroa Que dizia ter de tudo,
E quatro barrigudinhos. Mas foi ver não tinha nada.
Eu tinha dois bois carreiros, Se mandou para outras bandas,
Muito porco no chiqueiro Ninguém sabe onde ele anda
E um cavalo bão, arriado. E a filha está abandonada.
Espingarda, cartucheira, Como dói meu coração,
Quatorze vacas leiteiras Ver a sua situação,
E um arrozal no banhado. Nem solteira e nem casada.
Na cidade eu só ia Até mesmo a minha velha,
A cada quinze ou vinte dia Já está mudando de idéia,
Para vender queijo na feira. tem que ver como passeia.
E no mais tava folgado. Vai tomar banho de praia
Todo dia era feriado, Está usando mini-saia
Pescava a semana inteira. E arrancando a sombrancelha.
Muita gente assim me diz, Nem comigo se incomoda,
Que não tem mesmo raíz, Quer saber de andar na moda,
Essa tal felicidade. Com as unhas toda vermelhas.
Então aconteceu isso, Depois que ficou madura,
Resolvi vender o sítio Começou a usar pintura,
E vir morar na cidade. Credo em cruz que coisa feia.
Já faz mais de doze anos Voltar prá Minas Gerais
Que eu aqui estou morando. Sei que agora não dá mais,
Como eu vivo arrependido! Acabou o meu dinheiro.
Não me dou com essa gente, Que saudade da palhoça,
Tudo aqui é diferente, Eu sonho com a minha roça
Vivo muito aborrecido. No triângulo mineiro.
Não ganho nem pra comer, Não sei como se deu isso,
Já não sei o que fazer, Quando eu vendi o sítio
Estou ficando quase louco. Para vir morar na cidade.
É só luxo e vaidade, Seu moço, naquele dia,
Penso até que a cidade Eu vendi minha família
Não é lugar de caboclo. E a minha felicidade!
101

O secular antagonismo entre a cidade e a roça, os dois grandes termos da


antinomia brasileira aparecem no texto “Caboclo na cidade”, de Nhô Chico e Dino
Franco, gravado em 1982.
A longa narrativa, que se estende por setenta e dois versos, conta a
história do caboclo que se ilude com a possibilidade de melhores condições de
vida e resolve vender o sítio para morar na cidade. Nos vinte e quatro versos
iniciais, o narrador-personagem alude à vida boa na roça, a abastança, ao status
e felicidade em que vivia no passado. A partir do vigésimo quinto verso expõe seu
arrependimento e relaciona diversos motivos do seu aborrecimento. Não ocorre
sua inserção na sociedade urbana, sofre dificuldades financeiras e se sente
excluído: Penso até que a cidade não é lugar de caboclo.
Os hábitos, os costumes e valores da urbanidade são questionados, pois
as transformações marcam sua família: a filha acaba envolvida em um
relacionamento não estável e a esposa altera seus hábitos e até modifica sua
maneira de se vestir. A vida na roça, só é possível em sonho, pois existe a
dificuldade financeira. O caipira lastima sua sorte e se declara infeliz na cidade. A
irrefutável inadaptabilidade do caipira fica registrada no seu arrependimento e
insatisfação: Como eu vivo arrependido! Não me dou com essa gente, tudo aqui é
diferente, vivo muito aborrecido. O texto sustenta-se na consciência das
discrepâncias econômicas e sociais para apresentar a impossibilidade do retorno
ao campo: Voltar pra Minas Gerais, sei que agora não dá mais, acabou o meu
dinheiro.
Ocorrem isotopias figurativas: o ranchinho no triângulo mineiro (certamente
o uso do diminutivo é afetivo, pois há criação e plantação o que prenuncia
espaço); a vida boa com a patroa e os filhos; condição de subsistência (bois
carreiros, porcos, vacas leiteiras, a plantação). Lembra a possibilidade de decidir
quando trabalhar, as parcas idas à cidade e a sensação de liberdade: e no mais
tava folgado, todo dia era feriado, pescava a semana inteira. Segundo Ribeiro, D.
(2002: 385) a vida rural caipira equilibrava satisfatoriamente quadras de trabalho
continuado e de lazer. O ritmo de vida do caipira o condiciona a um horizonte
culturalmente limitado de aspirações que o faz parecer desambicioso e
imprevidente, ocioso e vadio.
A situação inicial apresentada nos primeiros versos contempla a
harmoniosa vida no campo, aponta o equilíbrio, o sujeito em conjunção com o
102

objeto de valor. O acontecimento perturbador advém da venda no sítio. O


desajuste na vida familiar é relatado a seguir e então temos a constatação da
situação irremediável que finaliza a narrativa com o sujeito em estado disjuntivo:

EN = (S ∪ O)

Caboclo A vida no campo


EN = Sujeito Objeto de valor

Figura 20 Enunciado narrativo de Caboclo na cidade.

A irreversibilidade da situação econômico-social, a dificuldade ou


impossibilidade de adaptação à vida urbana, as mudanças de hábitos, costumes e
valores da família favorecem o estabelecimento da Saudade, como Destinador,
que instala um Destinatário/ o caboclo, como um Sujeito em estado disjuntivo com
seu Objeto de valor, a vida no campo. As condições financeiras seriam o
adjuvante e a dificuldade econômica é o oponente para a conjunção com o Objeto
de valor.

Destinatário Destinador
Caboclo Saudade
Adjuvante
Condições financeiras
Sujeito Objeto de valor
Caboclo Vida no campo
Oponente
Dificuldade econômica
Figura 21 Esquema canônico de Caboclo na cidade.

Identificamos microssistemas de valores nessa análise em que o falante do


grupo, o caipira, pensa o mundo como o grupo vê. É o que ocorre com enorme
quantidade de migrantes rurais que se iludem com a possibilidade de melhores
condições de vida. O discurso na linguagem verbal, carregado de ideologia da
cultura a qual pertence, introjetada pelos indivíduos dessa cultura, exemplifica o
sistema de valores e crenças que compõem o imaginário coletivo da comunidade
caipira. Fica evidente a importância do levantamento de características relevantes
103

do processo histórico da cultura e da elaboração de uma tipologia semiótica das


culturas, apontada por Pais (1993).

Tensão dialética

Vida na roça Vida na cidade grande

Fartura e realização Necessidade e Frustração.

Ñ viver na cidade grande Ñ viver na roça


Figura 22 Octógono: Campo x Cidade.

O viver na roça sugere uma vida tranquila, farta, harmoniosa e feliz, que
proporciona a realização do caipira; o querer “voltar prá Minas Gerais, onde o
caboclo tinha seu ranchinho, e não poder gera insatisfação, infelicidade, enquanto
na cidade, tudo é diferente, ele passa necessidade: Não ganho nem prá comer, já
não sei o que fazer, estou ficando quase louco. É só luxo e vaidade, penso até
que a cidade não é lugar de caboclo, evidência da inadaptabilidade do caipira.
Encontramos o registro de hábitos, costumes, fatos, situações, anseios e
aspirações que permanecem na história e na memória da comunidade paulista. O
discurso etno-literário, manifestado na letra de “Caboclo na cidade”, é revelador
da cultura caipira e deve ser entendido como parte do nosso patrimônio cultural.
104

3.7. SAUDADE DA MINHA TERRA

De que me adianta viver na cidade, Que saudade imensa do campo e do mato


Se a felicidade não me acompanhar. Do manso regato que corta a campina.
Adeus, paulistinha do meu coração. Aos domingos ia passear de canoa
Lá pro meu sertão, eu quero voltar. Nas lindas lagoas de águas cristalinas.
Ver a madrugada, quando a passarada Que doce lembrança daquelas festanças
Fazendo alvorada, começa a cantar. Onde tinham danças e lindas meninas.
Com satisfação, arreio o burrão Eu vivo hoje em dia sem ter alegria,
Cortando estradão, saio a galopar O mundo judia, mas também ensina.
E vou escutando o gado berrando Estou contrariado, mas não derrotado,
Sabiá cantando no jequitibá. Eu sou bem guiado pelas mãos divinas.
Por nossa senhora, meu sertão querido, Pra minha mãezinha, já telegrafei
Vivo arrependido por ter te deixado. Que já me cansei de tanto sofrer.
Esta nova vida aqui na cidade, Nesta madrugada, estarei de partida
De tanta saudade, eu tenho chorando. Pra terra querida que me viu nascer.
Aqui tem alguém, diz que me quer bem, Já ouço sonhando o galo cantando,
Mas não me convém, eu tenho pensado. O nhambu piando no escurecer.
Eu fico com pena, mas esta morena A lua prateada clareando a estrada,
Não sabe o sistema que eu fui criado. A relva molhada desde o anoitecer.
Tô aqui cantando, de longe escutando Eu preciso ir pra ver tudo ali,
Alguém está chorando, com rádio ligado. Foi lá que nasci, lá quero morrer
105

Um texto que apresenta de forma marcante o saudosismo da terra natal é


“Saudade de minha terra”, de Belmonte e Goiá. O tremendo sucesso que eclodiu
no final da década de 60, com a primeira gravação em 1967, certamente se deve
à identificação de grande parcela da população paulistana com a mensagem do
texto: De que me adianta viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar.
Adeus, paulistinha do meu coração, lá pro meu sertão, eu quero voltar. [...] Eu
preciso ir, pra ver tudo ali, foi lá que nasci, lá quero morrer.
A produção e recuperação de significado, num processo de construção
segundo a semiótica, são efetivadas, como vimos nas análises que antecedem a
esta, em cooperação entre o enunciador e o enunciatário. A semiótica permite-
nos perceber a incessante construção e reconstrução da visão de mundo, dos
sistemas de valores e de crença. Existe um jogo semiósico entre o sujeito e o
mundo. A intencionalidade do interpretante é inegável, uma atividade subjetiva
promove a geração de sentido, porém, devemos lembrar que o sentido é possível
em muitas direções. O poeta fala do mundo e expressa seus sentimentos por
imagens e figuras que fazem parte intrínseca de nossos mecanismos cognitivos,
pois raciocinamos muito mais por analogias.
A expressão da consciência coletiva da sociedade urbana que anseia pela
vida rural, o que para muitos é verdadeira utopia, para outros tantos seria a
possibilidade de inserção social. Através de notável lirismo nostálgico, o
enunciador procura agudizar a consciência da inadaptabilidade do homem do
campo à cidade. A contribuição sígnica trazida pela temporalidade é observada
ao longo do texto que inicia com a constatação dessa inadaptabilidade e a certeza
de que a felicidade está na vida no campo. Ao declarar que quer voltar para o
sertão: Lá pro meu sertão eu quero voltar, o enunciador, divagando nas
lembranças, presentifica suas ações, na possibilidade de: ver a madrugada
quando a passarada fazendo alvorada começa a cantar, com satisfação, arreio o
burrão, cortando o estradão saio a galopar. A saudade é tão grande e a certeza e
determinação da volta são tão intensas que o sujeito antevê a vida que almeja,
por isso os verbos no presente do indicativo.
Há contundente sugestão de bucolismo em: que saudade imensa do
campo e do mato, do manso regato que corta as campinas. O enunciador declara
o arrependimento de ter deixado o sertão: Por nossa senhora, meu sertão
querido, vivo arrependido por ter deixado. Esta nova vida aqui na cidade, de tanta
106

saudade, eu tenho chorando. Recorda as oportunidades de lazer: Aos domingos


ia passear de canoa, nas lindas lagoas de águas cristalinas, e as oportunidades
de sociabilização: Que doce lembrança daquelas festanças onde tinham danças e
lindas meninas. A religiosidade é exemplificada em: Eu sou bem guiado pelas
mãos divinas.
Eu vivo hoje em dia, sem ter alegria, complementa a idéia contida nos dois
primeiros versos e ratifica a inadaptabilidade do caipira à urbanidade. O discurso
subjetivo apresenta um sujeito enunciador em estado de disjunção com o objeto
de valor, contudo a mudança de estado é declarada iminente: Nesta madrugada,
estarei de partida prá terra querida que me viu nascer.

EN = (S ∪ O)

Caipira Viver no campo


EN = Sujeito Objeto de valor

Figura 23 Enunciado narrativo de Saudade da minha terra.

Encontramos a Saudade no papel de Destinador, que instala um


Destinatário, o caboclo, como Sujeito em busca do Objeto de Valor, a vida rural,
que lhe trará a realização e a conseqüente felicidade. Voltar para o sertão é mais
do que se desvencilhar da saudade, implica em ter alegria, felicidade, desfrutar da
natureza, conviver com a família, e voltar a ter hábitos que na cidade seria
impossível. A possibilidade da volta é o Adjuvante para a concretização do
querer-fazer e o oponente seria a impossibilidade da volta.

Destinatário Destinador
Caboclo Saudade
Adjuvante
Possibilidade de voltar para o sertão
Sujeito Objeto de valor
Caboclo Vida rural
Oponente
Impossibilidade da volta

Figura 24 Esquema canônico de Saudade da minha terra.


107

As isotopias temáticas são reiteradas nos textos reminiscentes da literatura


caipira e podemos, entre tantas leituras refletir sobre o antagonismo cidade x
campo.

Tensão dialética

Viver no campo Viver na cidade

Felicidade Infelicidade

~ Viver na cidade ~ Viver no campo

Figura 25 Octógono: Viver no campo e Viver na cidade.

Entendemos a proposição de Pais (2005) de, na percepção dos valores e


saberes compartilhados, possibilitada pela Semiótica das Culturas, reconhecermos
a riqueza do homem em sua diversidade lingüística, cultural, social e histórica.
Hábitos, costumes, anseios e valores da cultura caipira são manifestados no
discurso analisado. Nele percebemos a manifestação do inconsciente coletivo.
Como já vimos em análises anteriores, o homem do campo traz em si a essência
de sua cultura. A análise semiótica propõe uma reflexão sobre a ideologia da
cultura caipira, e nos convida a pensar o sujeito urbano em oposição ao caipira,
pesar as características da realidade urbana e rural, valorizar a literatura caipira e
nos confere a consciência de nossa identidade cultural.
108

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do discurso caipira que reconstrói a história sob a ótica do


homem humilde do campo, possibilita o resgate de valores da nossa cultura e o
reconhecimento da identidade cultural brasileira, que é amplamente desconhecida
e tantas vezes desprezada. Nesse trabalho, detectamos microssistemas de
valores e a axiologia presente na visão de mundo da comunidade caipira. A
reflexão e consciência histórica nos levaram a conhecer a profundidade
emocional e psicológica do caipira e entender o universo individual e familiar.
Percebemos que certas características psicológicas aliadas às condições de vida
de um povo determinam o tipo de desenvolvimento social e histórico.
Constatamos a pertinência dos discursos analisados ao universo de
discursos etno-literários, que sustentam, incorporam e caracterizam uma
identidade cultural. Notamos a recorrência no modo de ver, sentir ou reconstruir a
realidade. Encontramos uma sensibilidade intuitiva acentuada em emoções
expressas pelos poetas que demonstram estreita relação subjetiva com o mundo.
Buscamos o entendimento da axiologia da cultura caipira através da análise
semiótica e por considerarmos a necessidade de uma abordagem pluridisciplinar
utilizamos conceitos da História, Antropologia, Sociologia, que confirmaram a
documentalidade; e conceitos da Lingüística, Estilística e Teoria e Historiografia
Literária, que ratificam a ficcionalidade, características do discurso etno-literário.
O conhecimento de diversos conceitos de cultura e a percepção da
pluralidade cultural brasileira incrementam a valoração da cultura caipira como
índice da riqueza do patrimônio cultural brasileiro, que mesmo em face a um
processo de mundialização mantém características peculiares. Entendemos a
História como ingrediente ímpar para viabilizar a consciência e identidade
nacional, valendo-se de aspectos geográficos, sociais, econômicos para o
entendimento da formação da cultura caipira.
A Semiótica das Culturas propicia condições de reflexões sobre os valores
da cultura caipira e oferece subsídios para a compreensão dos valores cultivados
pela sociedade atual. Foram analisadas referências a lugares; conceitos de vida;
os hábitos e costumes da gente simples da roça; manifestações da emoção do
povo brasileiro, certas dimensões sociais, aspectos da religiosidade e misticismo,
registrados nas letras de músicas de raiz. Percebemos o apreço à família, ao lar,
109

ao trabalho, à terra natal, à natureza, à princípios éticos e morais. O discurso


caipira sustenta aspectos dos sistemas de valores e dos sistemas de crença que
integram o imaginário coletivo da comunidade paulista.
A ressemantização do mundo rural e da condição de inadaptabilidade do
caipira ao meio urbano foi possibilitada pelo conhecimento do contexto histórico e
situacional e pela compreensão da irreversibilidade da mundialização. Essa
pesquisa favoreceu o reconhecimento e valorização da literatura e cultura caipira,
coisas do nosso povo. Percebemos que o discurso caipira é enriquecido pelo uso
abundante de isotopias figurativas, que se articulam coerentemente formando
uma rede que aponta para o tema. Encontramos farta utilização de recursos
estilísticos como a metaforização e a personificação entre outros.
Pela beleza e inúmeras características, a Literatura caipira merece ser
objeto de um dos possíveis desdobramentos dessa pesquisa. O caráter preliminar
de nossas investigações sugere ainda o reconhecimento da importância de uma
análise mais profunda dos elementos fundamentais da comunicação artística:
autor, obra e público. Outro desdobramento interessante seria a possibilidade de
desenvolver a semiótica de diversas canções caipiras, como as modas de viola,
cateretê, recortado, pagode, etc.
Aperceber-se da riqueza da pluralidade cultural que conforma o povo
brasileiro e valer-se dos recursos de que já dispomos na Educação ou repensá-la
objetivando a valoração de cada brasileiro, como cidadão verdadeiramente rico
pela cultura que o constitui e por sua diversidade lingüística, social e histórica
propicia o contínuo resgate de nossa memória social e conduz a valorização de
nossa identidade cultural.
110

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116

ANEXOS
I. Índice das letras de músicas de raiz

1. A enxada e a caneta 120


2. Água No Leite (O leiteiro e macaco) 121
3. A história de um prego 122
4. Amanheceu, peguei a viola 123
5. A Moça do Carro de Boi 124
6. Amor e Saudade 125
7. Aparecida do Norte 126
8. A Vaca foi pro Brejo 127
9. A Volta Do Boiadeiro 128
10. Baldrama Macia 129
11. Berrante de ouro 130
12. Boiada 131
13. Boi Soberano 132
14. Burro Picaço 133
15. Buscando a Felicidade 134
16. Cabocla Tereza 135
17. Caboclo na cidade 136
18. Caboclo no cassino 137
19. Caminheiro 138
20. Canga do tempo 139
21. Casa de caboclo 140
22. Catimbau 141
23. Cavalo enxuto 142
24. Cavalo Preto 143
25. Cheiro de Relva 144
26. Chico Mineiro 145
27. Chico Mulato 146
28. Chitãozinho e Chororó 147
29. Cobra Venenosa 148
30. Colcha de retalhos 149
31. Couro de boi 150
117

32. Destinos iguais 151


33. Disco voador 152
34. Dona saudade 153
35. É fogo 154
36. Empreitada perigosa 155
37 Encanto Da Natureza 156
38 Ferreirinha 157
39. Flor do Cafezal 158
40. Fogão de lenha 159
41. Franguinho na Panela 160
42. Goiano valente 161
43. Horóscopo 162
44. Jeitão de caboclo 163
45. João de Barro 164
46. Ladrão de terra 165
47. Lá onde eu moro 166
48. Leitão à pururuca 167
49. Lenço perdido 168
50. Mãe de carvão 169
51. Mágoa de boiadeiro 170
52. Mala Amarela 171
53. Manto estrelado 172
54. Meu reino encantado 173
55. Meu Velho Pai 174
56. Mineiro de Monte Belo 175
57. Moda da Mula Preta 176
58. Moda da pinga 177
59. Moradia 178
60. Moreninha linda 179
61. Nelore valente 180
62. No mourão da porteira 181
63. No rancho fundo 182
64. O caipírão 183
65. O Carro e a Faculdade 184
118

66. O homem e a espingarda 185


67. O Vai e vem do Carreiro 186
68. O menino da porteira 187
69. O Milagre do Ladrão 188
70. O mineiro e o italiano 189
71. O rico e o pobre 190
72. O último dos carreiros 191
73. Paineira Velha 192
74. Passagem de minha vida 193
75. Pé de cedro 194
76. Pé de ipê 195
77. Peito Sadio 196
78. Pescador e Catireiro 197
79. Pingo d’água 198
80. Pitoco 199
81. Porta do Mundo 200
82. Prato do Dia 201
83. Preto inocente 202
84. Recordação 203
85. Relógio Quebrado 204
86. Rio de Lágrimas 205
87. Rolinha Cabocla 206
88. Romance de Uma Caveira 207
89. Saco de Ouro 208
90. Saudade 209
91. Saudade de minha terra 210
92. Terra tombada 211
93. Triste berrante 212
94. Tristeza do Jeca 213
95. Tropas e boiadas 214
96. Véio marrudo 215
97. Velho pouso da boiada 216
98. Vide vida marvada 217
99. Viola Cabocla 218
119

100. Viola está chorando 219


101. Viola, minha viola 220
102. Viola quebrada 221
120

II. Letras das músicas de raiz.


A enxada e a caneta
Teddy Vieira e Capitão Barduíno

“Certa vez, uma caneta foi passear lá no sertão,


Encontrou-se com uma enxada, fazendo a plantação.
A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudação,
Mas a caneta soberba não quis pegar sua mão
E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão.”

Disse a caneta pra enxada: - não vem perto de mim, não.


Você está suja de terra, de terra suja do chão.
Sabe com quem está falando? Veja sua posição.
E não se esqueça a distância da nossa separação.

Eu sou a caneta soberba que escreve nos tabelião,


Eu escrevo pros governos as leis da constituição.
Escrevi em papel de linho, pros ricaço e pros barão.
Só ando na mão dos mestres, dos homens de posição.

A enxada respondeu: - de fato eu vivo no chão,


Pra poder dar o que comer e vestir o seu patrão.
Eu vim no mundo primeiro, quase no tempo de Adão.
Se não fosse o meu sustento não havia instrução.

Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração.


A tua alta nobreza não passa de pretensão.
Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não.
É a palavra bonita que se chama.... educação!
121

Água No Leite (O Leiteiro e o Macaco)


Zé Fortuna e Paraíso

Um leiteiro ganacioso Mas um dia, o macaco,


Enganava a freguesia, Escondido, lhe seguiu.
Misturava água no leite Pegou o saco de dinheiro
E para o povo vendia. E jogou dentro do rio,
Enriquecendo depressa, Voltou de novo pro mato
Dizia fazendo graça: E foi pensando consigo:
- Não há nada nesse mundo “Tenho vergonha do homem
Que o homem queira e não faça. Por se parecer comigo.
Enquanto eu puxar do balde O homem é bicho tratante
Água do poço à vontade, E vê no seu semelhante
Não falta leite na praça. O seu maior inimigo.

O dinheiro do seu roubo Leiteiro, desesperado,


Era num saco guardado Dentro do rio se atirou,
E muito bem escondido, Mas, do maldito dinheiro,
Para não ser encontrado. Nem um centavo salvou.
Mas, ele tinha um macaco Sentou na beira do rio
Que observava a trapaça, E chorando assim falou:
Parece que ele dizia, Quis ficar rico depressa
Espiando da vidraça: E mais pobre hoje sou.
- Eu estou envergonhado Que destino foi o meu,
Por saber que no passado Tudo que a água me deu,
Nós fomos da mesma raça. A mesma água levou.
122

A história de um prego
João Pacífico

Meu filho, corre, E quantas vezes


Vem sentar aqui comigo. Minhas mágoas pendurei,
Sou teu pai, sou teu amigo, Sentimentos eu guardei,
Eu quero te aconselhar. Prá não magoar teu coração.

Vê na parede De agora em diante,


Aquele prego ali pregado, Vou tirar dele meu laço
Ele sabe o meu passado, O arreio do Picasso
Mas eu quero é te contar. E as esporas eu vou guardar

Naquele prego Naquele prego


Já pendurei o meu laço, Pendure uma sacola
O arreio do Picasso, Cheia de livro da escola
Meu cavalo de estimação. E vontade de estudar

E um par de esporas Quando amanhã


Que custou muito dinheiro. Você estiver aqui sentado
Um chapéu de boiadeiro, Lembrando o nosso passado,
Que eu lidava no sertão. Olhando o prego pioneiro

Naquele prego Quero que seja


Pendurei muito cansaço, Um doutor bem afamado
Muito suor do mormaço Mas diga em alto brado:
E poeira do estradão. Sou filho de um boiadeiro
123

Amanheceu, peguei a viola


Renato Teixeira

Amanheceu, peguei a viola


Botei na sacola e fui viajar (bis)

Sou cantador e tudo nesse mundo


Vale pra que eu cante e possa praticar
A minha arte sapateia as cordas
Esse povo gosta de me ouvir cantar

Ao meio dia eu tava em Mato Grosso,


Do Sul ou do Norte, não sei explicar.
Só sei dizer que foi de tardezinha
Eu já estava cantando em Belém do Pará.

Em Porto Alegre, um tal de coronel


Pediu que eu musicasse uns versos que ele fez
Para uma "china" que pela poesia,
Nem lá em Pequim se vê tanta altivez.

Parei em Minas pra trocar as cordas


E segui direto para o Ceará.
E no caminho eu fui pensando é linda
Essa grande aventura de poder cantar.

Chegou a noite e me pegou cantando


Lá em um bailão, no norte do Paraná
Dai prá frente ninguém mais se espante
O resto da noitada eu não posso contar
124

A Moça do Carro de Boi


Carlos César, Creone e Zé Fortuna

Velho carreiro ao parar de carrear,


Pra sua filha o comando ele entregou
E aqueles bois se acostumaram com a moça,
De tal maneira que jamais ele encalhou.
Podia estar no lamaçal mais perigoso,
Bastava ela dar apenas um sinal
Pra se ouvir gemer cocão dentro do barro
E os bois tirando o carro, do terrivel pantanal.
Somente a moça a boiada obedecia,
Sem o seu grito, o velho carro não saia.
Um dia, a moça adoeceu e aqueles bois,
Outro carreiro não queriam respeitar.
Era preciso que ela viesse à janela,
E desse ordens pra boiada caminhar
Até que um dia sem ouvir a voz da moça,
puxaram o carro passos lentos pela estrada
Porque levavam o seu corpo no caixão,
Qual uma flor de estimação pra sua última morada.
Esse mistério ninguém sabe se não foi,
A voz da moça, do além, tocando os bois.
Daquele dia tudo se modificou,
Tanta tristeza tomou conta do lugar.
O velho carro que era dela silenciou
E a boiada nunca mais quis carrear.
De sentimento por perder a companheira,
Foram morrendo um a um pelos currais.
Quem somos nós pra entender tamanha dor,
Como cabe tanto amor nos corações dos animais.
Esse mistério ninguém sabe se não foi,
A voz da moça, do além, tocando os bois
125

Amor e Saudade
Dino Franco e José Milton Faleiros

Eu passei na sua terra, já era de madrugada


As luzes da sua rua estavam quase apagadas.
Fiquei horas recordando a nossa vida passada,
Do tempo do nosso amor que se acabou tudo em nada.

A sua casinha triste estava toda fechada


E no varal do alpendre, umas roupas penduradas.
Conheci no meio delas sua blusa amarelada.
Aumentou minha saudade, êta vida amargurada!

Do tempo que nós se amava, eu fiz muitas caminhadas.


Chegava na sua casa, mesmo sendo hora avançada .
Você, de casaco preto, vinha toda enamorada,
Ali nós dois se abraçava sem que ninguém visse nada.

Mas no mundo tudo passa, a sorte é predestinada,


Você se casou com outro, eu segui minha jornada.
Deixei você me acenando, lá na curva da estrada,
Adeus cabocla faceira, rosa branca perfumada.
126

Aparecida do Norte
Anacleto Rosas Jr. e Tonico

Já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte


E graças a Nossa Senhora não lastimo mais a sorte.
Falo com Fé: - Não lastimo mais a sorte,
Já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte.

Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte


E beijei os pés da Santa da Aparecida do Norte.
Falo com Fé: - Da Aparecida do Norte
Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte.

Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte.


Tenho fé em Nossa Senhora da Aparecida do Norte.
Falo com Fé: Da Aparecida do Norte
Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte.

Padroeira do Brasil, Aparecida do Norte.


Eu também sou brasileiro, sou caboclo de suporte.
Falo com Fé: Sou caboclo de suporte,
Padroeira do Brasil, Aparecida do Norte.

Todo meado do ano enquanto não chega a morte


Vou fazer minha visita na Aparecida do Norte.
Falo com Fé: Na Aparecida do Norte,
Todo meado do ano enquanto não chega a morte.
127

A Vaca foi pro Brejo


Tião Carreiro e Lourival dos Santos

Mundo velho está perdido O pai é um zero à esquerda,


Já não endireita mais. É um trem fora da linha.
Os filhos de hoje em dia Cantando agora eu falo,
Já não obedece os pais. Terreiro que não tem galo
É o começo do fim, Quem canta é frango e franguinha.
Já estou vendo sinais: Pra ver a filha formada,
Metade da mocidade Um grande amigo meu,
Está virando marginais. O pão que o diabo amassou
É um bando de serpente O pobre homem comeu.
Os mocinhos vão na frente, Quando a filha se formou,
As mocinhas vão atrás. Foi só desgosto que deu.
Pobre pai e pobre mãe, Ela disse assim pro pai:
Morrendo de trabalhar, "Quem vai embora sou eu"
Deixa o couro no serviço Pobre pai banhado em pranto,
Pra fazer filho estudar. O seu desgosto foi tanto
Compra carro a prestação Que o pobre velho morreu.
Para o filho passear. Meu mestre é Deus nas alturas.
Os filhos vivem rodando O mundo é meu colégio.
Fazendo pneu cantar. Eu sei criticar cantando,
Ouvi um filho dizer Deus me deu o privilégio.
O meu pai tem que gemer, Mato a cobra e mostro o pau.
Não mandei ninguém casar. Eu mato e não apedrejo.
O filho parece rei, Dragão de sete cabeças
Filha parece rainha, Também mato e não aleijo.
Eles que mandam na casa Estamos no fim do respeito,
E ninguém tira farinha. Mundo velho não tem jeito,
Manda a mãe calar a boca, A vaca já foi pro brejo.
Coitada fica quietinha.
128

A Volta Do Boiadeiro
Sulino e Teddy Vieira

Por que voltei, vocês vão saber agora.


Por que voltei, se sorrindo eu fui embora.
Por que voltei, se deixei meu par de espora.
E o meu cavalo esqueci no campo afora.

Voltei trazendo no peito a dor da saudade


Do velho Pingo, meu amigo de verdade.
Voltei de novo pra cantar, lá nas pousadas,
As velhas modas com vocês companheirada.

Há muito tempo, vocês devem estar lembrados,


Por um alguém, eu parti enfeitiçado,
Um boiadeiro, que jamais foi dominado,
Por essa ingrata acabou sendo enganado.

Voltei pra pôr minha bota empoeirada,


Ouvir o galo anunciando a madrugada.
Quero abraçar o meu cachorro campeiro,
Ouvir ao longe o berro dos pantaneiros.

Se estou chorando com franqueza é que eu digo,


Não é por ela, ao passado já não ligo.
Igual a ave que retorna ao ninho antigo,
Choro de alegre por rever velhos amigos.

Quem não sentiu o ar puro das campinas


E nunca ouviu um berrante em surdina,
Não viu a lua deitado sobre um baixeiro,
Não sabe amigos, como é bom ser boiadeiro.
129

Baldrama Macia
Anacleto Rosa Junior e Arlindo Pinto

Comprei um caco chapeado Eu já vi moça bonita,


E uma baldrana macia, Mas não vi mulher assim.
Um cochinil dos branco Pra onde eu me virava
Pra minha besta Ruzia. Via ela olhar pra mim.
Um peitoral de argolinha, E eu vendo aquela flor
Uma estrela que brilha. Parecida com jasmim,
Fui dar um passeio em Tupã, Eu falei comigo mesmo:
Só pra ver o que acontecia. “Vou levar pro meu jardim”.

E, quando entrei na cidade, Eu andei mais um pouquinho


Com a besta toda enfeitada, E da besta me apeei
O povo todo da rua E chegando perto dela
Parava em pé na calçada. Lindas coisas eu falei.
As mulheres que passavam Ela então me respondeu:
Olhavam admiradas, - Se é por causa que eu olhei,
No meio delas vi uma Você esta muito enganado,
Que me prendeu numa olhada Foi da besta que eu gostei.
130

Berrante de ouro
Carlos César e Zé fortuna

Nesta casinha junto ao estradão,


Faz muito tempo que eu parei aqui.
Vem minha velha, vamos recordar
Quantas boiadas eu já conduzi.
Fui berranteiro e ao me ver passar
Você sorria me acenando a mão.
Até que um dia eu aqui fiquei
Preso nos laços de seu coração.

Vê, ali está, o meu berrante no mourão de ipê.


Vou cuidar melhor, porque foi ele que me deu você.

Naquele tempo que tão longe vai


O meu berrante repicando além.
É triste choro vindo do sertão
E ao lembrar fico a chorar também.
Não é de ouro meu berrante, não,
Mas para mim ele tem mais valor,
Porque foi ele que me deu você,
E foi você quem me deu tanto amor.

Vê, ali está, o meu berrante no mourão de ipê.


Vou cuidar melhor, porque foi ele que me deu você.
131

Boiada
Zé Paioça

Boiada, triste boiada, na estrada cheia de pó.


Boiada, o meu coração também caminha tão só.
Levando, junto à saudade, velha esperança guardada.
Vai carregando a tristeza, a passo lento na estrada.

A lua me beija o rosto, sereno me faz carinho,


O vento faz serenata, aonde eu durmo sozinho.
As estrelas são meus guardas, posso dormir sossegado
E quando elas vão embora, o sol vem juntar meu gado.

Saí de casa menino, deixei chorando meus pais,


Cresci no mundo sozinho e não voltei nunca mais.
A irmã deve estar casada, a mãe que nunca me esquece,
Meu pai decerto está velho, o irmão já nem me conhece.

Às vezes, na despedida, eu tenho que disfarçar,


Quando uma lágrima rola, caindo do meu olhar.
A poeira vai levantando, no céu formando um letreiro,
Se espalham em letras de pó, lembrança de um boiadeiro.
132

Boi Soberano
Adauto Ezequiel (Carreirinho), Isaltino Gonçalves e Pedro L. de Oliveira.

Me alembro e tenho saudade do tempo que vai ficando.


Do tempo de boiadeiro que eu vivia viajando.
Eu nunca tinha tristeza, vivia sempre cantando,
Mês e mês cortando estrada, no meu cavalo Rua.
Sempre lidando com gado, desde a idade de 15 anos.
Não me esqueço de um transporte, seiscentos bois cuiabanos,
No meio tinha um boi preto, por nome de Soberano.
Na hora da despedida, o fazendeiro foi falando:
- Cuidado com esse boi que nas guampas é leviano.
Esse boi é criminoso já me fez diversos danos.
Toquemos pela estrada, naquilo sempre pensando.
Na cidade de Barretos, na hora que eu fui chegando,
A boiada estourou. Ai, só via gente gritando.
Foi mesmo uma tirania. Na frente ia o Soberano.
O comércio da cidade as portas foram fechando.
Na rua tinha um menino, decerto estava brincando.
Quando ele viu que morria de susto foi desmaiando.
Coitadinho debruçou, na frente do Soberano.
O Soberano parou aí, em cima ficou bufando.
Rebatendo com o chifre, os bois que vinham passando.
Naquilo o pai da criança de longe vinha gritando:
Se esse boi matar meu filho eu mato quem vai tocando.
Quando viu o filho vivo e o boi por ele velando,
Caiu de joelho por terra e para Deus foi implorando,
Salvai meu anjo da guarda desse momento tirano.
Quando passou a boiada, o boi foi se arretirando
Veio o pai dessa criança e me comprou o Soberano.
“Esse boi salvou meu filho ninguém mata o Soberano”.
133

Burro Picaço
Anacleto Rosa Junior

Comprei um burro picaço Tosei a crina do burro


De três ano mais ou meno No sistema meia-lua.
Na hora de dá o recibo Prá cortar uma légua e meia,
O tropeiro foi dizendo: Meu criminoso nem sua.
Cuidado com esse macho Pra varar uma canteira,
Esse bicho tem fama Passar uma porteira,
De ser perigoso Corrida ele avua.
Por ter matado peão Sai fogo de todo lado
O nome do burro No passo picado,
Ficou criminoso. Na pedra da lua.
Joguei o lombo no burro Eu já vi burro ligeiro,
O macho se estremeceu Mas igual esse inda não.
Apertei a barrigueira Enjeitei cinco pacote
O meu burro se encoieu Do fio do meu patrão.
Sentei em riba do couro Gosto muito de dinheiro,
O povo de perto, Cinco mil cruzeiro
De medo correu Não leva o machão,
Mas qual o quê, minha gente Pra falar mesmo a verdade
Pagão que me agüente Não existe riqueza
Inda não nasceu Que compre o burrão.
134

Buscando a Felicidade
Tupi e Tapuã

Buscando a felicidade,
A minha infância perdi.
Já se foi a mocidade,
Tenho que parar aqui.
Só me resta agora a vida,
Que um dia irá também.
Se a felicidade existe,
A minha está com alguém.
Já cansei de procurar, já cansei.
Já fiz de tudo e por quê?
Será que na vida inteira,
Não fiz por te merecer?

Amores, já não sei quantos


Na minha vida passou.
A paz que tanto procuro,
Minha alma não encontrou.
Dinheiro, quanto dinheiro,
Que até a conta perdi.
O que eu mais precisava,
Ainda não consegui.
Já cansei de procurar, já cansei.
Já fiz de tudo e por quê?
Será que na vida inteira,
Não fiz por te merecer?
Será que na vida inteira,
Não fiz por te merecer?
135

Cabocla Teresa

João Pacífico e Raul Torres

Lá no alto da montanha Há tempos eu fiz um ranchinho


Numa casa bem estranha Pra minha cabocla morar
Toda feita de sapé Pois era ali nosso ninho
Parei uma noite o cavalo Bem longe desse lugar
Pra mode de dois estalo No alto lá da montanha
Que ouvi lá dentro bate Perto da luz do luar
Apeei com muito jeito Vivi um ano feliz
Ouvi um gemido perfeito Sem nunca isso esperar
E uma voz cheia de dor
Vancê Teresa descansa E muito tempo passou
Jurei de fazer vingança Pensando em ser tão feliz
Pra mode do meu amor Mas a Tereza, doto,
Por uma réstia da janela Felicidade não quis
De uma luzinha amarela Pus meus sonhos nesse olhar
De um lampião quase apagando Paguei caro meu amor
Vi uma cabocla no chão Por mode de outro caboclo
E um cabra tinha na mão Meu rancho ela abandonou
Uma arma alumiando
Virei meu cavalo a galope Senti meu sangue ferver
Risquei de espora e chicote Jurei a Tereza matar
Sangrei a anca do tar O meu alazão arriei
Desci a montanha abaixo E ela fui procurar
Galopeando meu macho Agora já me vinguei
O seu dotô fui chamar É esse o fim de um amor
Vortemo lá pra montanha Essa cabocla eu matei
Naquela casinha estranha É a minha história dotô.
Eu e mais seu dotô
Topemo um cabra assustado
Que chamando nóis prum lado
A sua história contô:
136

Caboclo na cidade
Nhô Chico e Dino Franco

Seu moço, eu já fui roceiro Até mesmo a minha velha,


No triângulo mineiro, Já está mudando de idéia,
Onde eu tinha o meu ranchinho. tem que ver como passeia.
Eu tinha uma vida boa Vai tomar banho de praia
Com a Isabel minha patroa Está usando mini-saia
E quatro barrigudinhos. E arrancando a sombrancelha.
Eu tinha dois bois carreiros, Nem comigo se incomoda,
Muito porco no chiqueiro Quer saber de andar na moda,
E um cavalo bão, arriado. Com as unhas todas vermelhas.
Espingarda, cartucheira, Depois que ficou madura,
Quatorze vacas leiteiras Começou a usar pintura,
E um arrozal no banhado. Credo em cruz que coisa feia.
Na cidade eu só ia Minha filha Sebastiana,
A cada quinze ou vinte dia Que sempre foi tão bacana,
Para vender queijo na feira. Me dá pena da coitada,
E no mais tava folgado. Namorou um cabeludo
Todo dia era feriado, Que dizia Ter de tudo,
Pescava a semana inteira. Mas foi ver não tinha nada.
Muita gente assim me diz, Se mandou para outras bandas,
Que não tem mesmo raíz, Ninguém sabe onde ele anda
Essa tal felicidade. E a filha está abandonada.
Então aconteceu isso, Como dói meu coração,
Resolvi vender o sítio Ver a sua situação,
E vir morar na cidade. Nem solteira, e nem casada.
Já faz mais de doze anos Voltar prá Minas Gerais
Que eu aqui estou morando. Sei que agora não dá mais,
Como eu vivo arrependido! Acabou o meu dinheiro.
Não me dou com essa gente, Que saudade da palhoça,
Tudo aqui é diferente, Eu sonho com a minha roça
Vivo muito aborrecido. No triângulo mineiro.
Não ganho nem pra comer, Não sei como se deu isso,
Já não sei o que fazer. Quando eu vendi o sítio
Estou ficando quase louco. Para vir morar na cidade.
É só luxo e vaidade, Seu moço, naquele dia,
Penso até que a cidade Eu vendi minha família
Não é lugar de caboclo. E a minha felicidade.
137

Caboclo no cassino
Teddy Vieira e Tião Carreiro

Pus o meu terninho branco Tava c'uma gaita grossa


De linho engomado, Tinha dinheiro a granel.
Meu sapato de verniz A carteira tava gorda,
Que eu comprei fiado. Mas era só de papel.
Dentro da argibera
Pus argum trocado Veio a conta para mim,
E fui pro cassino Era uma bagatela.
Diverti um bocado. A despesa era três conto
Que eu fiz co'a Gabriela.
Encontrei uma morena, Saí doido do salão,
Queimadinha pelo sór, Pois sartei pela janela
Fui entrando co'a conversa, E cai em cima dum guarda
Fui fazendo o meu farór: Que tava de sentinela.
O meu pai é fazendeiro
Conhecido por major, Por causa da Gabriela
Da conversa de malandro, No xadrez passei calor.
Eu sabia ela de cor. Isto serve de exemplo
Pra esses conquistador,
Mandei vim bebida fina. Não tendo nenhum tostão,
Fui bancando o coroné, Qué bancá o seu doutor.
E pois a gaja pensava Caboclo tendo dinheiro,
Qu'eu era papai Noé, Pra ele não farta amor.
138

Caminheiro
Jack e Nair de Castro

Caminheiro que lá vai indo


Pro rumo da minha terra,
Por favor faça parada
Na casa branca da serra.
Ali mora uma velhinha
Chorando o filho seu.
Esta velha é minha mãe
E o seu filho sou eu.
Ô ..... caminheiro, leva este recado meu.

Por favor, diga pra mãe


Zelar bem do que é meu,
Cuida bem do meu cavalo
Que o finado pai me deu.
O meu cachorro campeiro,
Meu galo indio brigador,
Minha velha espingarda
E o violão chorador.
Ô..... caminheiro, me faça este favor.

Caminheiro, diga pra mãe


Para não se preocupar.
Se Deus quiser, este ano
Eu consigo me formar.
Eu pegando meu diploma,
Vou trazer ela para cá,
Mas se eu for mal no estudos,
Vou deixar tudo e volto para lá.
Ô.... caminheiro, não esqueça de avisar.
139

Canga do tempo
Zé Fortuna e Paraíso

Com a canga de madeira os bois carregam


A carga no velho carro em seu vai e vem.
Com a canga do meu destino eu carrego a vida
E vida carrega as dores que o mundo tem.

As dores vêm de meus sonhos despedaçados,


Estrada esburacada que em mim ficou,
Por onde puxei meu carro de amor desfeito,
Até que a canga do tempo me calejou.

Todos temos nossa canga, mas nós não vemos,


Puxando a pesada carga da solidão,
Até que o carro da vida um dia pára
No lamaçal sem saída do coração.

Canga de madeira forte foi desgastando,


Pelas estradas batidas desses sertões.
A canga do meu destino é bem mais dura
Porque foi feita por muitas ingratidões.

Sobras de amores ficaram pelos barrancos,


Recordações se perderam nos areiões,
Ficou o pó da saudade no cabeçalho,
No choro das minhas mágoas, nos seus topões.

Todos temos nossa canga, mas nós não vemos,


Puxando a pesada carga da solidão,
Até que o carro da vida um dia pára
No lamaçal sem saída do coração.
140

Casa de caboclo
Nonô Basílio

A minha casa, que é casa de caboclo,


Não tem conforto como outras casas têm.
O que eu tenho realmente é muito pouco,
Mas felizmente dá pra mim e mais alguém.
Graças a Deus é uma casa abençoada,
Na minha mesa sempre tem o que comer
E por ventura se alguém pedir pousada,
Esteja certo que hospedo com prazer.

Eu não invejo quem tem casa mais bonita,


Nem menosprezo um ranchinho beira chão,
O que importa é achar em casa rica,
Ou num casebre um bondoso coração.
E quem procura uma casa de caboclo,
Não é preciso ficar rouco de chamar,
É o bastante dar sinal que está chegando,
Já vem alguém e vai mandando a gente entrar.

Quem não conhece uma casa de caboclo,


Não faça pouco, vá lá em casa passeá,
O cafezinho com bolinho não demora,
Conforme a hora também fica pra jantar.
Casinha simples, encostada ao pé da serra,
Se é amigo, não repare onde eu moro,
Vai ver de perto o meu céu aqui na terra
E conhecer as criancinhas que eu adoro.
141

Catimbau
Carreirinho e Teddy Vieira

Estive lendo no romance, Chamaram então Catimbau,


De um casal de namorado Mas ele não atendeu
De Rosinha e Catimbau, Rosinha disse: "Meu bem,
Dois jovens apaixonados. Vá fazer o pedido meu."
Rosinha, família rica, Catimbau é corajoso,
Catimbau era um coitado, Mas nessa hora tremeu,
Capataz de uma fazenda, Depois deu um sorriso amargo
Mas trabalhador honrado. Pra Rosinha respondeu
Lá domava burro bravo, "Eu vou laçar esse touro
No laço era respeitado, Pra te mostrar quem sou eu,
Um caboclo destemido, Mas depois eu quero o beijo
Por tudo era admirado. Que você me prometeu."
Catimbau encontrou Rosinha Catimbau mais que depressa
Lá no alto do espigão, No seu bragado montou,
Por se ver os dois sozinhos, Chegou a espora no macho
Quis se aproveitar da ocasião. E a laçada aprontou,
Catimbau pediu um beijo, A laçada foi certeira
Rosinha disse que não. Que o povo se admirou,
Ela bem estava querendo, Catimbau foi infeliz,
Ras não deu demonstração. O bragado se atrapalhou.
De tanto que ele insistiu, O laço fez um volta,
Ela deu uma decisão, No seu pescoço enrolou,
Vamos deixar para outro dia, Com o pialo que o boi deu,
Para as festas de São João. Sua cabeça decepou.
Passaram esses cinco meses, Trouxeram a cabeça dele,
Chegou o esperado dia. Rosinha nela pegou,
Rosinha estava mais linda, Chorando desesperada
Como uma flor parecia. Desse jeito ela falou:
A festa estava animada, "Catimbau prometi um beijo,
Todos com grande alegria, Receba, agora te dou."
Quando o pai de Rosa veio Na boca do seu amado
Perguntando quem queria Tristemente ela beijou.
Mostrar ciência no laço, Este é fim de uma estória
Pra laçar o boi Ventania Dando provas que se amou
E os vaqueiros amedrontados, Rosinha e Catimbau,
Todos eles se escondiam. Que a morte separou.
142

Cavalo Enxuto
Lourival dos Santos e Moacir dos Santos

Eu tenho um vizinho rico, Pulei em cima da sela.


Fazendeiro endinheirado, Ele funcionou o motor,
Não anda mais a cavalo, Fechou as quatro janelas.
Só compra carro importado. Chamei o macho na espora,
Eu conservo a minha tropa Bem por baixo das costela.
E o meu cavalo ensinado.
O fazendeiro moderno Eu entrei pelo atalho,
Só me chama de quadrado. Pulando cerca e pinguela.
Namoramo a mesma moça Quando terminou o asfalto,
Vejam só o resultado. Ele entrou numa esparrela,
Numa estrada boiadeira,
Um dia a moça falou: Toda cheia de cancela.
Pra não haver discussão, Cheguei no portão primeiro,
Vamos fazer uma aposta, Dei um beijo na donzela.
A corrida da paixão. Quando o grã-fino chegou
Grã-fino corre no carro, Eu já estava nos braços dela.
Você no seu alazão.
Eu vou pra minha fazenda, O progresso é coisa boa,
Esperar lá no portão. Reconheço e não discuto.
Quem dos dois chegar primeiro Mas aqui no meu sertão
Vai ganhar meu coração. Meu cavalo é absoluto.
Foi Deus e a natureza
Ele calibrou os pneus, Que criou este produto.
Apertou bem as ruelas, Esta vitória foi minha
Eu ferrei o meu cavalo E do meu cavalo Enxuto.
Que tem asa nas canelas. A menina hoje vive
O grã-fino entrou no carro, Nos braços deste matuto.
143

Cavalo Preto
Anacleto Rosa Jr.

Tenho meu cavalo Preto, Tenho uma capa gaúcha


Por nome de Ventania, Que eu troquei num boi carreiro,
Um laço de doze braça, Tenho dois pelegos grandes
O couro de uma novilha. Que é pura lã de carneiro,
Tenho um cachorro bragato Um me serve de colchão,
Que é pra minha companhia. O outro de travesseiro.
Sou um cabra folgado. Com minha capa gaúcha
Ah, eu não tenho familía. Eu me cubro o corpo inteiro.

Quando monto meu cavalo Adeus que eu já vou partindo,


Eu viajo o dia inteiro. Vou pousar noutra cidade.
Vou de um estado para outro, Depois de amanhã bem cedo
Eu não tenho paradeiro. Quero estar em Piedade.
Quem quiser ser meu patrão, Deus me deu este destino
Que ofereça mais dinheiro. E muita felicidade.
Eu sou muito conhecido Quando eu passo com o meu preto
No triangulo mineiro. Deixo um rastro de saudade.
144

Cheiro de Relva
Dino Franco e José Fortuna

Como é bonito estender-se no verão


As cortinas do sertão na varanda das manhãs.
Deixar entrar pedaços de madrugada,
E sobre a colcha azulada
Dorme calma a lua irmã.
Cheiro de relva
Traz do campo a brisa mansa,
Que nos faz sentir criança,
A embalar milhões de ninhos.
A relva esconde as florzinhas orvalhadas
Quase sempre abandonadas
Nas encostas dos caminhos.
A juriti, madrugadeira da floresta
Com seu canto abre a festa,
Revoando toda a selva.
O rio manso, caudaloso se agita,
Parecendo achar bonita
A terra cheia de relva.
O sol vermelho se esquenta e aparece,
O vergel todo agradece
Pelos ninhos que abrigou.
Botões de ouro se desprendem dos seus galhos,
São as gotas de orvalho
De uma noite que passou.
145

Chico Mineiro
Tonico e Francisco Ribeiro

Fizemos a última viajem,


Foi lá pro sertão de Goiás.
Fui eu e o Chico Mineiro,
Também foi o capataz.

Viajamo muitos dias


Pra chegar em Ouro Fino.
Aonde passamos a noite
Numa festa do divino.

A festa tava tão boa,


Mas antes não tivesse ido,
O Chico foi baleado
Por um homem desconhecido.

Larguei de comprar boiada,


Mataram meu companheiro.
Acabou o som da viola,
Acabou-se o Chico Mineiro.

Depois daquela tragédia,


Fiquei mais aborrecido.
Não sabia da nossa amizade,
Por que nós dois era unido.

Quando eu vi seus documentos,


Me apertou o coração.
Em saber que o Chico Mineiro
Era meu legitimo irmão.
146

Chico Mulato
Raul Torres e João Pacífico

Na volta daquela estrada, Ficou tão triste o sertão.


Bem em frente uma encruzilhada, Por causa de Terezinha,
Todo ano a gente via Essa tal de caboclinha,
Lá no meio do terreiro, Nunca mais teve São João.
A imagem do padroeiro,
São João da Freguesia. Tapera de beira da estrada
Do lado tinha a fogueira. Que vive assim descoberta.
Em redor, a noite inteira, Por dentro não tem mais nada,
Tinha caboclo violeiro. Por isso ficou deserta.
E uma tal de Terezinha Morava Chico Mulato,
Cabocla bem bonitinha O maió dos cantadô,
Sambava nesse terreiro. Mas quando Chico foi embora,
Era noite de São João, Na vila ninguém sambou.
Estava tudo no serão, Morava Chico Mulato,
Estava Romão, o cantador. O maió dos cantadô.
Quando foi de madrugada, A causa dessa tristeza,
Saiu com Tereza pra estrada, Sabida em todo lugar,
Talvez, confessar seu amor. Foi a cabocla Tereza,
Chico Mulato era o festeiro, Com outro ela foi morar.
Caboclo bom, violeiro, E o Chico, acabrunhado,
Sentiu frio seu coração. Largou então de cantar.
Rancou da cinta o punhal Vivia triste e calado,
E foi os dois encontrar, Querendo só se matar.
Era o rival, seu irmão. E o Chico, acabrunhado,
Hoje, na volta daquela estrada, Largou então de cantar.
Em frente àquela encruzilhada,
147

Chitãozinho e Chororó
Serrinha e Athos Campos

Eu não troco o meu ranchinho, No areião faz caracó.


Marradinho de cipó, Só me alegra quando pia,
Pruma casa na cidade, Lá praqueles cafundó
Nem que seja bangaló. É o inhambuchitão e o chororó,
Eu moro lá no deserto, É o inhambuchitão e o chororó.
Sem vizinho eu vivo só. Quando sei de uma notícia,
Só me alegra quando pia, Que outro canta melhor,
Lá praqueles cafundó Meu coração dá um balanço,
É o inhambuchitão e o chororó, Fica meio banzaró.
É o inhambuchitão e o chororó. Suspiro sai do meu peito
Quando rompe a madrugada, Que nem bala Juveló.
Canta o galo carijó. Só me alegra quando pia,
Pia triste a coruja, Lá praqueles cafundó
Na cumieira do paió. É o inhambuchitão e o chororó,
Quando chega o entardecer, É o inhambuchitão e o chororó.
Pia triste o jaó. Eu faço minhas caçadas,
Só me alegra quando pia, Bem antes que sai o sol,
Lá praqueles cafundó Espingarda de cartucho,
É o inhambuchitão e o chororó, Patrona de tiracó.
É o inhambuchitão e o chororó. Tenho buzina e cachorro
Não me dou com a terra roxa, Pra fazer forrobodó,
Com a seca larga pó, Só me alegra quando pia,
Na baixada do areião, Lá praqueles cafundó
Eu sinto um prazer maior. É o inhambuchitão e o chororó,
Ver que a rolinha no andar É o inhambuchitão e o chororó.
148

Cobra Venenosa
Raul Torres e João Pacífico

Ocê talvez não conhece Um dia, só por maldade,


O veneno que as cobras têm, E ainda trago o veneno,
Pois elas quando dá o bote, Na cicatriz da saudade.
Balança o guizo também.
A cascavel, traiçoeira, Já vai fazer quase um ano
Quando ela quer se vingar, Que eu deixei o meu sertão,
Balança o guizo contente Por um veneno do olhos
Na hora dela pegar. Que atingiu o meu coração.
A urutu é perigosa,
De ruim não se manifesta, Uma cabocla do mato,
É cobra tão venenosa Que tanto mal tem me feito,
Que traz uma cruz na testa. Uma olhada me deu,
Jaracuçu, Deus nos livre, Foi um veneno perfeito.
Quando ele chega a picar,
Deixa o sinal de seus dentes Esta cobra venenosa,
E a cicatriz no lugar. Cobra em forma de gente,
Mas eu lhe digo a verdade, Talvez a mais perigosa,
por cobra eu já fui picado, Pode matar de repente.
Por cascavel, caninana
E urutu este malvado, Procurei tantos remédios,
De todas já me livrei. Andei por toda cidade,
Desse veneno amargura Mas qual o que não existe
Existe um contra-veneno Nada que cure a saudade.
Por isso tudo se cura.
Mas tem uma cobra do mato, Agora vou repetir
Cabocla lá do sertão, A história mais dolorosa,
Que traz veneno nos olhos Essa cabocla do mato
E ataca no coração. É a cobra mais venenosa.
Dessa uma vez fui picado,
149

Colcha de retalhos
Raul Torres

Aquela colcha de retalhos que tu fizeste,


Juntando pedaço em pedaço foi costurada,
Serviu para nosso abrigo em nossa pobreza,
Aquela colcha de retalhos está bem guardada.

Agora na vida rica que estas vivendo,


Terás como agasalho colcha de cetim,
Mas quando chegar o frio no teu corpo enfermo,
Tu hás de lembrar da colcha e também de mim.

Eu sei que hoje não te lembras dos dias amargos,


Que junto de mim fizeste um lindo trabalho,
E nessa sua vida alegre tens o que queres,
Eu sei que esqueceste agora a colcha de retalhos.

Agora na vida rica que estas vivendo,


Terás como agasalho colcha de cetim,
Mas quando chegar o frio no teu corpo enfermo,
Tu hás de lembrar da colcha e também de mim.
150

Couro de boi
Teddy Vieira e Palmeira

Conheço um velho ditado Correu atrás do avô,


Que é do tempo do zagais, Seu paletó sacudiu,
Diz que um pai trata dez filho, Metade daquele couro,
Dez filho não trata um pai. Chorando ele pediu.
Sentindo o peso dos anos,
Sem podê mais trabalhar, O velhinho comovido,
O velho pião estradeiro Pra não vê o neto chorando,
Com seu filho foi morar. Partiu o couro no meio
O rapaz era casado E pro netinho foi dando.
E a muié deu de implicá: O menino chegou em casa,
Cê manda o véio embora Seu pai foi lhe perguntando,
Se não quiser que eu vá. Pra que você quer esse couro,
O rapaz coração duro, Que seu avo ia levando.
Com o velhinho foi falar.
Disse o menino ao pai,
Para o senhor se mudar, Um dia vou me casar,
Meu pai eu vim lhe pedir, O senhor vai ficar velho
Hoje, aqui da minha casa, E comigo vem morar.
O senhor tem que sair. Pode ser que aconteça
Leve esse couro de boi, De nós não se combinar,
Que eu acabei de curtir, Essa metade de couro
Pra lhe servir de coberta, Vou dá pro senhor levar.
Adonde o senhor dormir.

O pobre véio calado,


Pegou o couro e saiu,
Seu neto de oito anos,
Que aquela cena assistiu,
151

Destinos iguais
Ariowaldo Pires - Laureano

Já foi no morrê do dia, Depois mais, veio vortando,


Quando eu vi com alegria Muito triste soluçando,
Dois canarinho gorjeá. Num gorjeá cheio de dô.
Com bicada de ternura
O casal trocava jura Dos óio do canarinho
De eternamente se amá. Eu vi moiado os cantinho,
De chorá pelo seu bem.
De repente, da gaiada Uma dor foi me apertando
Aonde tava posada E meus óio foi piscando,
As avezinha do amô, Sem querê chorei também.
Surgiu um gavião marvado,
Passando o bico encurvado, Chorei pois que nem saudade
Na canarinha e levô. Daquela felicidade
Que o destino me roubou.
O canarinho, coitado, O meu viver solitário
Avuô desesperado É tal e quar deste canário
Perseguindo o marfeitô, Que perdeu o seu amô.
152

Disco voador
Palmeira

Tomara que seja verdade


Que exista mesmo disco voador.
Que seja um povo inteligente
Prá trazer pra gente a paz e o amor!
Se for pro bem da humanidade,
Que felicidade esta intervenção.
Aqui na terra só se pensa em guerra,
Matar o vizinho é nossa intenção.
Se Deus, que é todo poderoso,
Fez este colosso suspenso no ar,
Por que não pode ter criado
Um mundo afastado da terra e do mar?
Tem gente que não acredita
Acha que é mito os mistérios profundos.
Quem tem um filho pode ter mais filhos,
O Senhor também pode ter outros mundos.
Os homens de nosso planeta
Dão a impressão que já não têm mais crença,
Ao invés de fabricar remédio
Pra curar o tédio e outras doenças,
Inventam armas de hidrogênio,
Usam o seu gênio fabricando bombas.
Mas não se esqueça que por mais que cresça,
Que perante Deus qualquer gigante Tomba.
O nosso mundo é um espelho
Que reflete sempre a realidade.
Quem planta vinha colhe uva e
Quem planta chuva colhe tempestade.
No tempo que Jesus vivia,
Ele disse um dia e não foi a esmo
Que neste mundo que a maldade infesta
Tudo que não presta morre por si mesmo!
153

Dona Saudade
Edward de Marchi

Com sinceridade, Não tem mesmo jeito.


A dona Saudade Da desilusão
Não tem mesmo jeito. Do meu coração
Da desilusão Quer tirar proveito
Do meu coração Pelos meus caminhos
Quer tirar proveito. Colheu gravetinhos
Pelos meus caminhos De um amor desfeito
Colheu gravetinhos E devagarinho
De um amor desfeito Ela fez seu ninho
E devagarinho Dentro do meu peito.
Ela fez seu ninho Ó dona saudade
Dentro do meu peito. Tenha piedade,
Ó dona Saudade, Não me aperte tanto.
Tenha piedade, Deixe este caboclo
Não me aperte tanto. Viver mais um pouco
Deixe este caboclo Nem que seja em pranto.
Viver mais um pouco, Quero ver aquela
Nem que seja em pranto. Flor pura e bela
Quero ver aquela Perder seu encanto.
Flor pura e bela Seu choro, ela canta,
Perder seu encanto. Quero que esta santa
Seu choro ela canta, Chore, quando eu canto.
Quero que esta santa Seu choro, ela canta,
Chore quando eu canto.
Com sinceridade,
A dona Saudade
154

É fogo
Lourival dos Santos e Zé Batuta

Uma vez fiz um brinquedo Nesse dia fui tesoura


No terreiro de uma venda Entrei gostoso na renda
Topei um cara marrudo Quem tiver amor na vida
Capataz de uma fazenda Que do meu lado não penda
Nesse dia eu dei pancada Uma donzela me vendo
Que nem ferreiro na tenda Da janela da vivenda
Nasci na zona da mata - Papai corra aqui depressa
Valentão pra mim é lenda Vem ver que briga tremenda.
Eu disse assim pro sujeito Tô brigando e tô falando
A camisa nós emenda Pra'aquela bonita prenda:
Meu aço tá na cintura - Pra vida não tô ligando
Não é pra cortar merenda Não quero que me defenda
Minha faca corta e fura Se eu daqui sair com vida
Mandei fazer de encomenda A polícia que me prenda
Os taio que eu dou com ela Se eu morrer nesse combate
Não tem doutor que remenda Não quero que vela acenda.
Ele virou parafuso Pra quem lê um pingo é letra
Eu virei chave de fenda Espero que me compreenda
Fiz ele passa espremido Quem tá no braço da viola
Que nem cana na moenda Foi quem venceu a contenda
155

Empreitada perigosa
Moacyr dos Santos e Jacozinho

Já derrubamos o mato, A empreitada é perigosa.


Terminou a derrubada. Sei que vou correr perigo.
Agora, preste atenção, É por isso que eu não quero
Meus "amigo e camarada", Nenhum de "vocês" comigo.
Não posso levar "vocês" Eu vou roubar uma moça
Pra minha nova empreitada. De um ninho de serpentes.
Vou pagar tudo que devo Ela quer casar comigo
E sair de madrugada. A família não consente.
A minha nova empreitada Já me mandaram um recado,
Não tem mato e nem espinho. “Tão" armado até os dentes.
Ferramentas não preciso, Vai chover bala no mundo,
Guarde tudo num cantinho. Se "nóis" topar frente a frente.
Preciso de um cavalo, Adeus, adeus preto velho,
Bem ligeiro e bem mansinho. Zé Maria e Serafim.
Preciso de muitas balas Adeus, adeus Paraíba,
E um "colte" cavalinho. Mineirinho e "Seu" Joaquim.
Eu nada tenho a perder, Se eu não voltar amanhã,
Pra minha vida eu não ligo, Pode até rezar pra mim.
Mesmo assim eu peço a Deus Mas se tudo der certinho
Que me livre do inimigo. A menina tem que vim.
156

Encanto Da Natureza
Luiz de Castro e Tião Carreiro

Tu que não tiveste a felicidade,


deixa a cidade e vem conhecê
meu sertão querido, meu reino encantado,
meu berço adorado que me viu nascê.
Venha o mais depressa, não fique pensando,
estou te esperando para te mostrá.
Vou mostrar o lindo rio de águas claras,
as belezas raras do nosso luar.

Quando a lua nasce por detrás da mata,


fica cor da prata a imensidão.
Então fico horas e horas olhando,
a lua banhando lá no ribeirão.
Muitos não se importam com este luar,
nem lembram de olhar o luar da serra.
Mas estes não vivem, são seres humanos
que estão vegetando em cima da terra.

Quando a lua esconde, logo rompe a aurora,


vou dizer agora do amanhecê.
Raios vermelhado risca horizonte,
o sol lá no monte começa a nasce.
Lá na mata canta toda a passarada
e lá na paiada pia o chororó.
O rei do terreiro abre a garganta,
bate asa e canta em cima do paió.

Quando o sol esquenta cantam cigarras,


em grande algazarra na beira da estrada.
Lindas borboletas de variadas cores
vão beijar as flores já desabrochada.
Este pedacinho de chão encantado
foi abençoado por Nosso Senhor.
Que nunca nos deixa fartá no sertão
saúde, união, a paz e o amor.
157

Ferreirinha
Adauto Ezequiel (Carreirinho), Isaltino Gonçalves e Pedro L. De Oliveira

Eu tinha um companheiro por nome de Ferreirinha.


Nós lidava com a boiada desde nós rapazinho.
Fomos buscar um boi bravo no campo de Espraiadinho,
Era vinte e dois quilômetros da cidade de Pradinho.
Nós chegamo no tal campo cada um seguiu prum lado.
Ferreirinha foi num potro redondão muito cismado.
Já era de tardezinha e eu já estava bem cansado,
Não encontrava o Ferreirinha e nem o tal boi arribado.
Naquilo avistei o potro que vinha vindo assustado.
Sem arreio e sem ninguém fui ver o que tinha se dado.
Encontrei o Ferreirinha numa restinga deitado,
Tinha caído do potro e andou pelo campo arrastado.
Quando vi meu companheiro, meu coração se desfez.
Apeei do meu cavalo com tamanha rapidez.
Chamava ele por nome, chamei duas ou três vez
E notei que estava morto pela sua palidez.
Pra deixar meu companheiro é coisa que eu não fazia.
Deixar naquele deserto alguma onça comia.
Tava ali só eu e ele e Deus em nossa companhia.
Veio muitos pensamentos só um é que resolvia.
Pra levar meu companheiro, vejam quanto eu padeci:
Amarrei ele pro peito e numa árvore suspendi.
Cheguei meu cavalo embaixo e na garupa desci
E com o cabo do cabresto eu amarrei ele em mim.
Eu saí pelo tal campo, tão triste, tão amolado.
Era um frio do mês de junho, seu corpo estava gelado.
Já era uma meia-noite, quando eu cheguei no povoado.
Deixei na porta da igreja e fui chamar o delegado.
A morte deste rapaz, mais do que eu ninguém sentiu.
Deixei de lidar com gado, minha inclinação sumiu.
Quando lembro essa passagem, franqueza me dá arrepio.
Parece que a friagem das costa 'inda não saiu.
158

Flor do Cafezal
Luiz Carlos Paraná

Meu cafezal em flor, quanta flor, meu cafezal.


Meu cafezal em flor, quanta flor, meu cafezal.
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal.
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal.
Era florada, lindo véu de branca renda
Se estendeu sobre a fazenda, igual a um manto nupcial.
E de mãos dadas fomos juntos pela estrada
Toda branca e pefumada, fina flor do cafezal.
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal.
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal.
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal.
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal.
Passa-se a noite vem o sol ardente bruto,
Morre a flor e nasce o fruto no lugar de cada flor.
Passa-se o tempo em que a vida é todo encanto,
Morre o amor e nasce o pranto, fruto amargo de uma dor.
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal.
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal.
159

Fogão de lenha
Carlos Colla, Maurício Duboc e Chororó

Espere, minha mãe, estou voltando.


Que falta faz pra mim um beijo seu,
Orvalho da manhã cobrindo as flores
E um raio de luar que era tão meu.
O sonho de grandeza, ó mãe querida,
Um dia separou vocês e eu.
Queria tanto ser alguém na vida
E apenas sou mais um que se perdeu.
• Pegue a viola e a sanfona que eu tocava
Deixe um bule de café em cima do fogão
Fogão de lenha
E uma rede na varanda
Arrume tudo mãe querida o seu filho vai voltar
Mãe eu lembro tanto a nossa casa
E as coisas que falou quando eu saí
Lembro do meu pai que ficou triste
E nunca mais cantou depois que eu parti
Hoje eu já sei ó mãe querida
As lições da vida eu aprendi
O que eu vim procurar aqui distante
Eu sempre tive tudo e tudo está aí
• Refrão
Espere minha mãe estou voltando...
160

Franguinho na Panela
Moacyr dos Santos e Paraíso

No recanto onde moro Quando eu fico sem serviço


É uma linda passarela. A tristeza me atropela,
O carijó canta cedo Eu pego um bico pra fora,
Bem pertinho da janela. Deixo cedo a corruptela.
Eu levanto quando bate Eu levo meu viradinho,
O sininho da capela, É um fundinho de tigela.
E lá vou eu pro roçado, É só farinha com ovo,
Tenho Deus de sentinela. Da gema bem amarela.
Tem dia que meu almoço É esse o meu almoço,
É um pão com mortadela, Que desce seco na goela.
Mas lá no meu ranchinho, Mas lá no meu ranchinho,
A mulher e os filhinhos A mulher e os filhinhos
Têm franguinho na panela Tem franguinho na panela.

Eu tenho um burrinho preto Minha mulher é um doce


Bão de arado e bão de sela. E diz que sou o doce dela.
Pro leitinho das crianças Ela faz tudo pra mim,
A vaquinha Cinderela. Tudo o que eu faço é pra ela.
Galinhada no terreiro, Não vestimo lã nem linho,
Papagaio tagarela. É no algodão e na flanela.
Eu ando de quarquê jeito É assim a nossa vida
De butina ou de chinela. Que levamos na cautela.
Na roça se a fome aperta, Se eu morrer, Deus dá um jeito,
Vou apertando a fivela, Pois a vida é muito bela.
Mas lá no meu ranchinho, Não vai faltar no ranchinho,
A mulher e os filhinhos Pra mulher e os filhinhos
Têm franguinho na panela. Um franguinho na panela.
161

Goiano Valente
Nenete e Piracy

Arriei meu burro preto que tinha o nome de Cigano,


Eu sai cortando estrada de madrugada fazendo plano,
Eu já tinha combinado pra ir roubar a filha de um goiano,
Levei meu 30 na cinta do cabo branco e um palmo de cano.

O goiano era um perigo que dava medo a toda gente,


Não enjeitava bate fundo, era mesmo um homem valente,
Não tinha medo de nada até parecia ser uma serpente,
Eu tinha toda certeza que seria mesmo um tempo quente.

Eu cheguei na casa dela de madrugada estava garoando,


Ela me beijou sorrindo de alegria estava chorando,
Joguei meu bem na garupa e com aquela flor voltei galopando,
A gente da minha casa preocupada estava me esperando.

O goiano quando soube, bateu em cima me procurando,


Trazendo uma baita lapiana e pela estrada vinha riscando,
Logo vieram avisar para ter cuidado com o tal goiano,
Que vinha que nem boi bravo que até a sua sombra vinha insultando.

Quando avistei o goiano eu fiquei firme na minha defesa,


Ele paro em minha frente e até tremia de tanta bravesa,
Chegou pra bem perto de mim e foi falando com delicadesa,
Eu acho melhor assim, casando fugido é menor a despesa.
162

Horóscopo
Alvarenga e Ranchinho

Quem ainda não casou Não se case no mês de julho


Não se case em janeiro Esse mês é perigoso
Que a desgraça desse mês Criança do mês de julho
Se arrepete o ano inteiro Nasce tudo revoltoso
Não se case em fevereiro Agosto mês do desgosto
Fevereiro é mês faiado Principalmente para quem ama
Quem se casa nesse mês Quem nasce no mês de agosto
Os fios nascem pelado Sempre faz pipi na cama

Não se case no mês de março Quem casa em setembro


Nem que seja por decreto Precisa ter muita sorte
Criança do mês de março Que as crianças mal dá as caras
Nasce tudo analfabeto Querem independência ou morte
Não se case no mês de abril Em outubro seu Colombo
Nem que seja pra ter gozo Descobriu um mundo novo
Quem se casa nesse mês Quem nasce no mês de outubro
Nasce os fios mentiroso Acaba botando ovo

Cuidado com o mês de maio Em novembro seu Deodoro


Não se case nem a muque Provou que tinha tutano
Criança do mês de maio As crianças de novembro
Já vem dançando batuque Já nasce republicano
Criança do mês de junho Quem chegou inté dezembro
Nasce tudo com mau cheiro Vivendo sempre solteiro
Já nasce soltando bomba Não vai estragar no fim
Desde o berço é fogueiro a sorte de um ano inteiro
163

Jeitão de caboclo
Valdemar Reis e Liu

Se eu pudesse voltar aos bons tempos de criança


Reviver a juventude com muita perseverança
Morar de novo no sítio na casa de alvenaria
Ver os pássaros cantando quando vem rompendo o dia
Eu voltaria a rever o pé de manjericão
A curruira morando, lá no oco do mourão
Os bezerros do piquete e nossas vacas leiteiras
O papai tirando leite bem cedinho na mangueira

Eu voltaria a rever o ribeirão Taquari


Com suas águas bem claras, onde eu pesquei lambari
O nosso carro de boi , o monjolo e a moenda,
As vacas Maria-Preta, Tirolesa e a Prenda
Na varanda tábua grande cheia de queijo curado
E mamãe assando pão no forno de lenha ao lado
Nossa reserva de mato, linda floresta fechada
As trilhas fundas do gado retalhando a invernada

Queria rever o sol com seus raios florescentes


Sumindo atrás da serra, roubando o dia da gente
O pé de dama-da-noite, junto ao mastro de São João
Que até hoje perfumam a minha imaginação.
O caso é que eu não posso, fazer o tempo voltar
Sou um cocão sem chumaço, que já não pode cantar
Hoje eu vivo na cidade, perdendo as forças aos poucos
Mas não consigo perder o meu jeitão de caboclo.
164

João de Barro
Muibo Cury e Teddy Vieira

O João de Barro pra ser feliz como eu


Certo dia resolveu arranjar uma companheira
Num vai e vem com o barro da biquinha
Ele fez sua casinha lá no galho da paineira

Toda manhã o pedreiro da floresta


Cantava fazendo festa pra'quela que tanto amava
Mas quando ele ia buscar um raminho
Para construir seu ninho seu amor lhe enganava

Mas neste mundo o malfeito é descoberto


João de Barro viu de perto sua esperança perdida
Cego de dor trancou a porta da morada
Deixando lá sua amada presa pro resto da vida

Que semelhança entre o nosso fadário


Só que eu fiz o contrário do que o João de Barro fez
Nosso Senhor me deu força nesta hora
A ingrata eu pus pra fora, onde anda eu não sei.
165

Ladrão de terra
Teddy Vieira e Moacir dos Santos
Tinha eu quatorze anos Pra gastar nesta questão
Quando deixei meu estado Respondi no pé da letra
Meu pai era sitiante Não tenho nenhum tostão
Trabalhador e honrado Meu dinheiro é dois revólver
Por esse mundão de Deus E bala no cinturão
Eu dei murro no pesado Se aqui não tiver justiça
Quando a sorte me ajudava Para minha proteção
Os meus planos foi cortado Vou mandar os trapaceiros
Triste notícia chegava Pra sete palmo de chão
Meu destino transformava Embora saia uma guerra
Eu fiquei um revoltado Vou matar ladrão de terra
O pai tinha falecido Dentro da minha razão
Na carta vinha dizendo Negar terra prum caboclo ai ai
A terra que ele deixou É negar pão pros nossos filhos ai ai
Minha mãe acabou perdendo Negar terra prum caboclo ai ai
Para um grande fazendeiro É tirar o Brasil dos trilhos ai ai
Que abusava dos pequenos Nóis tava de onde a onze
Meu sangue ferveu nas veias Na parada neste dia
Quando eu fiquei sabendo Os pobres são carta abaixo
Que pra tirar terra minha E os ricos são as manilhas
Lograram minha mãezinha Foi uma chuva de bala
Pra roubar nosso terreno Só capanga que corria
Eu voltei pra minha terra Foi pela primeira vez
Foi com dor no coração Que dinheiro não valia
Procurando meus direitos O barulho acabou cedo
Eu entrei no tabelião Me entregaram foi de medo
Quase que também caía Terra que me pertencia
na unha dos gavião Na cerca de minha terra ai ai
Porque o dono do cartório Em mexer ninguém imagina ai ai
Protegia os embruião Os arames são de balas ai ai
Me falou que o fazendeiro E os morão de carabina ai ai
Tinha rios de dinheiro
166

Lá onde eu moro
Luís de Castro

Lá onde eu moro,é um recanto encoberto,


Mas parece um céu aberto, cheio de tanta beleza!
Lá onde eu moro, minha vida é mais vida,
A paisagem colorida pela própria natureza!

Lá onde eu moro, quem desejar conhecer,


Eu ensino com prazer, com toda satisfação!
A minha casa não é lá muito bonita,
Mais quem me fizer visita, eu recebo de coração!

Lá onde eu moro, é cercado de arvoredo,


O sol se esconde mais cedo, demora surgir o luar.
Constantemente, corre água cristalina
Lá no alto da colina, como é lindo a gente olhar!

Lá onde eu moro, a gente não fica triste,


Tristeza lá não existe, embora seja um recanto!
Lá onde eu moro, é mesmo um paraíso
Nos lábios só tem sorriso, nos olhos não se vê pranto.

Lá onde eu moro, quando é de madrugada,


Gorjeia a passarada, prenúncio de um novo dia:
O chororó pia triste na queimada,
Ao longe, lá na invernada, a codorninha assobia.

Por nada troco meu pedacinho de terra,


Minha casa ao pé da serra, meu campo vestido em flor!
Chão abençoado, recanto dos passarinhos-
Onde eu moro é um ninho de paz, ternura e amor!
167

Leitão à pururuca
Muniz Teixeira e Lourenço

Lá na roça onde moro Com mistura pra visita


Supermercado não tem Minha mulher não preocupa
Só tem na beira da estrada Tem franguinho com angú
Um pequenino armazém E um delicioso tutu
Porém la colho de tudo Com leitão à pururuca
Não esquento a minha cuca
Falo com toda franqueza Meu cafezal é pequeno
Em casa a minha despesa Mas dá boa produção
É só o sal e o açúcar Colho de tudo "pro" gasto
No meu pedaço de chão
Com mistura prá visita A despesa que eu tenho
minha mulher não preocupa É pouca não me assusta
Tem franguinho com angú Na vendinha do Seu Lau
E um delicioso tutu Só compro o açúcar e o sal
Com leitão à pururuca No mais, nem sei quanto custa

Quem for passear lá em casa Com mistura pra visita


Encontra muita fartura Minha mulher não preocupa
Tem milho, arroz e feijão Tem franguinho com angú
Legumes, fruta e verdura E um delicioso tutu
Terreiro cheio de frango Com leitão à pururuca
Leitoada no mangueiro
E uma vaquinha mansa
Pra ter leite "pras" crianças
E o meu queijinho caseiro
168

Lenço perdido
Wilfrido Alves de Lima

Na macega do meu campo, ai, ai,


Quem achar um lencinho é meu,
Bordado nos quatro cantos, ai, ai,
Que foi meu bem quem me deu.
Não foi ontem, nem agora ai, ai,
Me deu no tempo passado,
Aquela mão cor de rosa, ai, ai,
De ouro fez o bordado!

Minha esperança procura, ai, ai,


O lenço do meu apego,
Dia claro e noite escura, ai, ai,
Quem ama não tem sossego.
Só o meu lenço era o arminho, ai, ai,
Ás vezes eu cismo e penso:
Que a perdiz fez o seu ninho, ai, ai,
No arminho do meu lenço.

Que vale um lenço perdido, ai, ai,


Ainda que esteja bordado,
Pois o amor só tem sentido, ai, ai,
Pra quem ama sendo amado.
Se ele sumisse na poeira, ai, ai,
Seus restos agora são:
Um vazio na algibeira, ai, ai,
E um vazio no coração.
169

Mãe de carvão
Tião do carro e Caetano Erba

Montado no lombo da louca saudade,


Deixei a cidade voltei pro sertão.
Fui ver minha casa, na velha fazenda,
O rancho, a moenda, o velho galpão.
Cheguei de mansinho, olhando pros lados,
Meus olhos molhados, de tanta emoção
Passei a cerquinha de arame farpado,
O angico encorpado me olhou do espigão.
Na porta do rancho, bem rente a soleira,
Esbarrei na roseira, levei um arranhão.
A linda roseira de rosas vermelhas
Puxava a orelha do filho fujão.
Passei a saleta e fui pra cozinha,
No canto ainda tinha o velho fogão.
Olhei pra parede, meus olhos pararam
E meus pés ficaram pregados no chão.
Revi na parede um rosto traçado
Que a tempos passados eu fiz de carvão.
O tempo e a chuva molhou o reboque
Que fez o retoque com tal perfeição.
Me fez eu criança, envolto na manta
No colo da santa, seguro em suas mãos.
Seus olhos estavam radiantes de brilho,
Segurando o filho e dando a benção.
Fechei os meus olhos rezei para ela,
Pintada na tela da minha ilusão.
Mãezinha querida, meu grande tesouro,
Você é de ouro e não de carvão.
No mundo onde ando, de loucas estradas,
Eu sei não sou nada sem sua proteção.
170

Mágoa de boiadeiro
Nonô Basílio e Índio Vago

Antigamente O meu cavalo


Nem em sonho existia Relinchando pasto afora
Tanta ponte sobre os rios E por certo também chora
Nem asfalto nas estradas. Na mais triste solidão,
A gente usava Meu par de esporas,
Quatro ou cinco sinuelos, Meu chapéu de aba larga,
Prá trazer o pantaneiro Uma bruaca de carga,
No rodeio da boiada. Um berrante e um facão.
Mas hoje em dia, O velho basto,
tudo é muito diferente, O sinete e o apero,
Com o progresso nossa gente O meu laço e o cargueiro,
Nem sequer faz uma idéia, O meu lenço e o gibão.
Que entre outros Ainda resta
Fui peão de boiadeiro, Ppor este A guaiaca sem dinheiro,
Chão brasileiro, Deste pobre boiadeiro,
Os heróis da epopéia. Que perdeu a profissão.

Tenho saudade Não sou poeta,


De rever nas currutelas, Sou apenas um caipira
As mocinhas, nas janelas, E o tema que me inspira
Acenando uma flor. É a fibra de peão.
Por tudo isso Quase chorando,
Eu lamento e confesso Imbuído nesta mágoa,
Que a marcha do progresso Rabisquei estas palavras
É a minha grande dor. E saiu esta canção.
Cada jamanta Canção que fala
Que eu vejo carregada, Da saudade das pousadas,
Transportando uma boiada, Que já fiz com a peonada,
Me aperta o coração. Junto ao fogo de um galpão.
E quando olho Saudade louca
Minha traia pendurada, De ouvir o som manhoso,
De tristeza dou risada, De um berrante preguiçoso,
Pra não chorar de paixão. Nos confins do meu sertão

.
171

Mala Amarela
Paraíso e José Caetano Erba

Era quatro e meia Me disse também


Passava um pouquinho, De um jeito cortês:
Um fosco clarinho É a primeira vez
Pasgava o varjão, Que deixo o sertão.
Era o trem noturno Pedi seu conselho
Que vinha pontando, E ele me disse:
E logo parando Seu moço a velhice
Na velha estação. É dura demais,
Meu corpo tremia Eu sou bem mais velho
Meus olhos molhavam, E posso aconselhar,
O meu pai do lado É duro ficar
E a mala no chão. distante dos pais.
Beijei o seu rosto Eu nunca esqueci
E disse na hora: O que o velho falou,
O mundo lá fora O tempo passou
Me espera paizão. E pra casa eu voltei,
Entrei no vagão Quem fica distante
Corri pra janela, Jamais se conforma,
E a mala amarela Lá na plataforma
Do velho eu catei. Meus pais avistei.
O trem deu partida Desci comovido
Soqueou bruscamente, Abracei ele e ela.
E ali novamente E a mala amarela,
Sua mão eu beijei. Meu filho, eu não vi.
Um pouco pra diante Meu pai acredite
Vi minha casinha, Na fala de um homem,
E minha mãezinha Pra não passar fome
De pé no portão. A mala eu vendi.
Ela não me viu Que pena, que pena,
E do trem na corrida, Era minha lembrança,
Ouvi as latidas Que eu trouxe de herança
Do velho Sultão. Do seu avó,
Um certo senhor, Mas deixa pra lá
Da poltrona vizinha, Eu vou me esquecer,
Dizia que vinha A herança é você
Do Paranazão E você já voltou.
172

Manto estrelado
Dino Franco

A luz da noite quando desce sobre o campo


Mais parece abrir o manto de estrelas a brilhar
O firmamento de azul todo enfeitado
É um vestido salpicado de brilhantes ao luar
E como é lindo a gente ver o céu aberto
O sertão sendo coberto de esplendor que é todo seu
Tudo surgindo com requinte de beleza
A mostrar que a natureza só podia vir de Deus
Aqui em baixo todo campo orvalhado
Faz um céu do outro lado em perfeita imitação
Os pirilampos com ciúmes das estrelas
Vão tentando convencê-las que são estrelas do chão
As lindas flores qual noturnas namoradas
Vão abrindo perfumadas transbordantes de amor
Mas, logo adiante, quando o sol romper o dia
Vão dizer que só queriam se arrumar pro beija-flor
Clareando o dia é o sol quem prevalece
Desde a hora que amanhece até o novo entardecer
As borboletas cores vivas revoando
São matizes adornando nossos rios a correr
Tudo se passa nesse mundo deslumbrante
Dos tesouros verdejantes que tem nome de sertão
Onde o caboclo a cada estrela que aparece
Canta verso de uma prece que lhe sai do coração
Sertão, Sertão berço que me viu nascer
Sertão, Sertão, cantarei até morrer
173

Meu reino encantado


Valdemar Reis e Vicente P. Machado

Eu nasci num recanto feliz Todo sabado eu ia na vila


Bem distante da povoação Fazer compras para semana inteira
Foi ali que eu vivi muitos anos O papai ia gritando com os bois
Com papai mamãe e os irmãos Eu na frente ia abrindo as porteiras.
Nossa casa era uma casa grande
Na encosta de um espigão Nosso sítio que era pequeno
Um cercado pra guardar bezerro Pelas grandes fazendas cercado
E ao lado um grande mangueirão Precisamos vender a propriedade
Para um grande criador de gado
No quintal tinha um forno de lenha E partimos pra a cidade grande
E um pomar onde as aves cantava A saudade partiu ao meu lado
Um coberto pra guardar o pilão A lavoura virou colonião
E as traias que papai usava E acabou-se meu reino encantado
De manhã eu ia no paiol
Um espiga de milho eu pegava Hoje ali só existe tres coisas
Debuiava e jogava no chão Que o tempo ainda não deu fim
Num instante as galinhas juntava A tapera velha desabada
E a figueira acenando pra mim
Nosso carro de boi conservado E por ultimo marcou saudade
Quatro juntas de bois de primeira De um tempo bom que já se foi
Quatro cangas, dezesseis cansis Esquecido embaixo da figueira
Encostados no pé da figueira Nosso velho carro de boi. .
174

Meu Velho Pai


Léo canhoto

Meu velho pai, preste atenção no que lhe digo:


Meu pobre papai querido enxugue as lágrimas do rosto.
Por que papai que você chora tão sozinho?
Me conta meu papaizinho o que lhe causa desgosto?
Estou notando que você está cansado,
Meu pobre velho adorado, é seu filho que está falando.
Quero saber qual é a tristeza que existe,
Não quero ver você triste, por que é que está chorando?
Quando lhe vejo, tão tristonho desse jeito,
Sinto estremecer meu peito, ao pulsar meu coração.
Meu pobre pai, você sofreu pra me criar,
Agora eu vou lhe cuidar, esta é minha obrigação.
Não tenha medo, meu velhinho adorado,
Estarei sempre ao seu lado, não lhe deixarei jamais.
Eu sou o sangue do seu sangue Papaizinho.
Não vou lhe deixar sozinho, não tenha medo meu pai.
Você sofreu quando eu era ainda criança,
A sua grande esperança era me ver homem formado.
Eu fiquei grande, estou seguindo o meu caminho
E você ficou velhinho, mas estou sempre ao seu lado.
Meu pobre pai, seus passos longos silenciaram,
Seus cabelos branquiaram, seu olhar se escureceu.
A sua voz quase que não se ouve mais.
Não tenha medo meu pai, quem cuida de você sou eu.
Meu papaizinho, não precisa mais chorar,
Saiba que não vou deixar, você sozinho, abandonado.
Eu sou seu guia, sou seu tempo, sou seus passos,
Sou sua luz e sou seus braços, sou seu filho idolatrado
175

Mineiro de Monte Belo


Serrinha e Lourival dos Santos

A beirada do telhado é morada do cuitelo.


Sanhaço tem penas verdes, mora no pé de marmelo,
No galho da laranjeira, sabiá peito amarelo,
No braço dessa viola, mineiro de Monte Belo.
Quando eu entro no catira, os meus pés são dois martelo.
A onça mora no mato, só sai pra pegar o vitelo.
Os pés de moça bonita moram dentro do chinelo.
O rei e a rainha moram dentro do castelo.
Minha voz mora no peito, por isso eu me acautelo.
Eu não canto no sereno, pela minha voz eu zelo.
Casamento é coisa boa, dois unidos por um elo.
Eu estou apaixonado e agora me revelo.
Ela tem dois irmãos bravos, que eu amanso e depois trelo.
Amanhã eu levo ela, antes meu cavalo eu selo
A viagem é perigosa, eu arrisco e não cancelo.
Na guaiaca vai a faca, muita bala e o Parabelo.
Se eu perder no ferro frio, pro pau de fogo eu apelo,
Meu dedo não tem juízo, no gatilho quando eu relo.
Caboclo do sangue quente, é na bala que eu gelo.
Mineira vamos simbora, que eu venço qualquer duelo.
176

Moda da Mula Preta


Raul Torres

Eu tenho uma mula preta,


Tem sete palmos de altura.
A mula é descanelada, tem uma linda figura.
Tira fogo na calçada no rampão da ferradura.
Com morena delicada, na garupa faz figura,
A mula fica enjoada, pisa só de andadura.
Ensino na criação, vejo quanto ela regula.
O defeito do mulão, se eu contar ninguém calcula,
Moça feia e marmanjão na garupa a mula pula.
Chega a fazer cerração todo pulo desta mula.
Cara muda de feição, sendo preto fica fula.
Eu fui passear na cidade, só numa volta que dei,
A mula deixou saudade no lugar onde passei.
Pro mulão de qualidade, quatro milhões enjeitei.
Pra dizer a verdade, nem satisfação eu dei,
Fui dizendo boa tarde pra minha casa voltei.
Soltei a mula no pasto, veja o que me aconteceu,
Uma cobra venenosa, a minha mula mordeu.
Com o veneno desta cobra a mula nem se mexeu.
Só durou umas quatro horas depois a mula morreu.
Acabou-se a mula preta que tanto gosto me deu.
177

Moda da Pinga
Laureano

Co'a marvada pinga Pego o garrafão


É que eu me atrapaio. E já balanceio
Eu entro na venda Que é pra mor de vê
E já dô meus taio. Se tá mesmo cheio.
Pego no copo Num bebo de vez
E dali num saio, Porque acho feio,
Ali mesmo eu bebo, No primeiro gorpe
Ali mesmo eu caio. Chego inté no meio,
Só pra carregá No segundo trago
É que eu dô trabaio. Oi lá! É que eu desvazeio. Oi lá!
Venho da cidade, Eu bebo da pinga
Já venho cantando, Porque gosto dela.
Trago um garrafão Eu bebo da branca,
Que venho chupando. Bebo da amarela.
Venho pros caminho, Bebo no copo,
Venho trupicando, Bebo na tigela.
Chifrando os barranco, Bebo temperada
Venho cambeteando Com cravo e canela.
E no lugar que eu caio, Seja quarqué tempo
Já fico roncando. Oi lá! Vai pinga na goela. Oi lá!
O marido me disse, Eu fui numa festa
Ele me falo: Lá no rio Tietê.
Largue de bebê, Eu lá fui chegando
Peço pro favor. No amanhecê,
Prosa de home, Já me deram pinga
Nunca dei valor. Pra mim bebê,
Bebo com o sor quente Já me deram pinga
Pra esfriá o calô Pra mim bebê, tava sem fervê
E bebo de noite Eu bebi demais
Que é pra fazer suado. Oi lá! E fiquei mamada.
Cada vez que eu caio, Eu cai no chão
Caio diferente, E fiquei deitada.
Meaço pra trás Aí eu fui pra casa
E caio pra frente. De braços dado,
Caio devagar, Ai de braço dado
Caio de repente, Ai com dois sordado,
Vou de currupio, Ai, muito obrigado!
Vou diretamente,
Mas sendo de pinga
Eu caio contente. Oi lá!
178

Moradia
Nhô Chico, Tião Carreiro e Craveiro

Eu moro lá num recanto onde ninguém me amola.


Numa casa ao pé da serra, mora eu e a viola.
O Sapo mora no Brejo, o Sabiá na Gaiola.
Minha voz mora no peito e meus versos na cachola.

Tatu mora no buraco, aranha mora na telha.


O Anel mora no dedo, o brinco mora na orelha.
Coração mora no peito, o sangue mora na veia.
Gente boa mora em casa, criminoso na cadeia.

Porco mora no chiqueiro, o boi mora na invernada.


Pescador mora no rancho, boiadeiro na estrada.
Boêmio mora na rua, sereno na madrugada.
A Lua mora no céu e o vento não tem morada.

A perdiz mora no campo, o bem-te-vi no sertão.


Baleia mora no mar, lambari no ribeirão.
Rato mora no Paiol, o morcego no porão.
Eu moro nos braços dela e ela em meu coração.

Palhaço mora no circo, a rima na poesia.


O Uirapuru lá na mata, na festa mora a alegria.
O rico mora no centro, pobre na periferia.
Num casebre em Nazareth, morou a virgem Maria.
179

Moreninha linda
Tonico, Priminho e Maninho

Meu coração tá pisado


Como a flor que murcha e cai,
Pisado pelo desprezo
Do amor quando desfaz.
Deixando a triste lembrança,
Adeus para nunca mais.

Moreninha linda
Do meu bem querer,
É triste a saudade
Longe de você.

Moreninha linda
Do meu bem querer,
É triste a saudade
Longe de você.

O amor nasce sozinho,


Não é preciso plantar.
A paixão nasce no peito,
Falsidade no oiar
Você nasceu para outro
Eu nasci prá te amar.

Eu tenho meu canarinho


Que canta quando me vê.
Eu canto por ter tristeza,
Canário por padecê
Da saudade da floresta,
Eu, saudade de você.
180

Nelore valente
Sulino e Dino Franco

Na fazenda que eu nasci, Como uma chaga de espinhos.


Vovô era retireiro Mas há sempre alguém no mundo,
Bem criança eu aprendi Que nos dá algum carinho
A prender o gado leiteiro E sem grande sacrifício,
Um dia de manha cedo, Vovô arrumou serviço
Vejam só que desespero, Ali no sítio vizinho.
Tinha um bezerro doente, Em pouco tempo o bezerro,
E a ordem do fazendeiro! Já era um boi herado,
Mate já esse animal, Bonito forte e troncudo,
E desinfete o mangueiro! Mansinho e muito ensinado.
Se essa doença espalhar, Automóvel do atoleiro,
Poderá contaminar Ele tirava aos punhados.
O meu rebanho inteiro. Por isso na redondeza,
Eu notei que o meu avô, Ficou bastante afamado.
Ficou bastante abatido, Até que um dia, à noitinha,
Por ter que sacrificar Um homem desesperado
O animal recém nascido. Gritou pedindo socorro,
Nas lágrimas dos seus olhos, Seu carro caiu no morro,
Eu entendi seu pedido Seu filho estava prensado.
Pus o bichinho nos braços, O carro da ribanceira,
Levei pra casa escondido O boi conseguiu tirar.
Com ervas e benzimentos, O menino estava vivo,
Seu caso foi resolvido Seu pai disse a soluçar:
Com carinho eu lhe tratava, Qualquer que seja a quantia,
E o leite que o patrão dava. Esse boi eu vou comprar.
Com ele era dividido Eu disse: ele não tem preço,
Quando fazendeiro soube, A razão vou explicar.
Chamou o meu avozinho. A bondade do vovô
Disse: você foi teimoso, Veio seu filho salvar.
Não matando o bezerrinho. Esse Nelore Valente
Vai deixar minha fazenda, É o bezerrinho doente
Amanhã logo cedinho. Que o senhor mandou matar
Aquilo feriu vovô,
181

No mourão da porteira
João Pacífico e Raul Torres

Lá no mourão esquerdo da porteira


Onde encontrei vancê prá despedir.
Tem uma lembrança minha derradeira
É um versinho que eu mesmo escrevi.
Vancê, eu sei, passa esbarrando nele
E a porteira bate pra avisar.
Vancê não lembra que sinal é aquele
E nem sequer se alembra de oiá.
E aqui, tão longe, eu pego na viola
E aqueles versos começo a cantar.
Uma sodade é dor que não consola,
Quanto mais dói a gente quer lembrar.
Vancê também não sabe o que é sodade,
Uma lembrança vancê nunca sentiu,
Pois esquecer as vez tenho vontade,
Essa vontade o meu peito feriu.
No dia que doer seu coração
De uma sodade que tanto eu senti,
Vancê chorando passa no mourão
E lê os versos que eu nele escrevi.
182

No rancho fundo
Lamartine Babo e Ary Barroso

No rancho fundo,
Bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade,
No rancho fundo,
De olhar triste e profundo,
Um moreno conta as mágoas,
Tendo os olhos rasos d'água.
Pobre moreno
Que, de tarde, no sereno
Espera a lua no terreiro,
Tendo o cigarro por companheiro.
Sem um aceno
Ele pega da viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal deste moreno.
No rancho fundo,
Bem pra lá do fim do mundo
Nunca mais houve alegria,
Nem de noite, nem de dia.
Os arvoredos
Já não contam mais segredos
E a última palmeira
Já morreu na cordilheira.
Os passarinhos
Internaram-se nos ninhos,
De tão triste esta tristeza,
Enche de trevas a natureza.
Tudo por quê?
Só por causa do moreno
Que era grande, hoje é pequeno
Pra uma casa de sapê.
183

“O caipirão”
Tião do carro e Zé Batuta

Quando eu era sitiante Todo final de semana,


Lá no alto da cascata, Eu ia na pagodeira.
Eu tinha um burrão ligeiro, Com a morena mais bonita
Não precisava chibata. Eu sambava a noite inteira.
As ferraduras batiam Eu parecia um cuitelo,
Que nem pica-pau na mata. Num jardim só de roseira.
Ali eu tinha fartura, Na viola que eu tocava
Um lavourão de batata. Não usava braçadeira.
Porco gemia na faca, Em todas festas de reis
Gordura estufava a lata. Eu fui mestre de bandeira.

Toda tarde eu escutava Hoje moro na cidade,


O coachar do sapo entanha Mas a vida não tem graça.
No ronco da cachoeira, Não é como aquele tempo
O monjolinho na manhã. Que eu mostrava a minha raça.
No dia que eu não caçava, Aqui eu vejo miséria
Eu ia fazer barganha. Bagunça e muita arruaça.
Só à noite que eu voltava Lá na roça eu bebia
Naquela boca de entranha. Pinga fresca na cabaça.
Eu jantava escutando Eu já fui caipira rico.
Onça urrar na montanha Hoje, sou um bobo na praça.
184

O Carro e a Faculdade
Sulino e Zé Fortuna

Eu tenho em meu escritório, Sobre a folha rabiscada,


Em cima da minha mesa, Eu vejo os rastros que os bois
A miniatura de um carro, Deixavam pelas estradas.
Que a todos causam surpresa. Fechando os olhos parece,
Muitos já me perguntaram, Que vejo estrada sem fim
O motivo porque foi, E um velho carro de boi,
Que eu sendo um doutor formado, Cantando dentro de mim.
Gosto de um carro de boi. Em meus ouvidos ficaram,
Respondi foi com o carro, Os gemidos de um cocão
Nas estradas a rodar, E o grito de um carreiro,
Que meu pai ganhou dinheiro, Ecoando no grotão.
Pra mim poder estudar. Se tenho as mãos macias,
Enquanto ele carreava, Eu devo tudo a meu pai,
Passando dificuldade, Que teve as mãos calejadas,
As lições eu decorava, No tempo que longe vai.
Lá nos bancos da faculdade. Cada viagem que fazia,
Naquelas manhãs de inverno,
"Aohhh, meus amigos, Era um pingo do meu pranto,
Essa é a história Nas folhas do meu caderno.
De um filho que reconheceu Meu pai deixou essa terra,
O trabalho de seu pai" Mas cumpriu sua missão.
Carreando ele colocou,
Entre nossas duas vidas, Um diploma em minhas mãos.
Existe comparação, Por isso guardo esse carro,
Hoje eu seguro a caneta, Com carinho e muito amor,
Como se fosse um ferrão. É a lembrança do carreiro
Nos riscos de minha escrita, Que de mim fez um doutor.
185

O Homem e a espingarda
Zé Mulato e Cassiano

Analisando direito E dos quarenta aos sessenta,


Nossa vida é uma piada. Arma tem que ser tratada.
Só quem não tem bom humor, Atira uma vez ou outra,
Não acha a vida engraçada. Se for bem lubrificada.
Por eu ter cabeça fria Por cada tiro ela passa
Não andar fazendo nada, Um tempão dependurada.
Qu'eu fiz a comparação Dá um tiro e fáia dez,
Do homem com a espingarda. A mola tá relaxada.

Dos vinte até os trinta E dos sessenta em diante


Nossa vida é muito boa, Danou com os arrei' pro mato.
A espingarda anda armada Arma não atira mais
E o atirador caçoa. E se atirar é boato.
Sortimento tá sobrando Espingarda enferrujada
Muitas vez atira à toa. Só aponta pro sapato.
É só triscar no gatilho Virou peça de museu,
Que a língua de fogo avoa. Esse mundo é mesmo ingrato.

Dos trinta até os quarenta, Depois desta triste fase


Pode prestar atenção, Só piora todo dia.
O atirador tem cuidado Óia a arma tem na parede
Arma é de estimação. Só ferrugem e maresia.
Não atira em qualquer bicho, Quem deu tiro e matou onça,
Nem joga chumbo no chão. Já não assusta cotia.
Só atira em caça boa, Nunca mais irá caçar
Pra não perder munição. Lá no capão da furquia.
186

O Vai e vem do Carreiro


Carlos César

Carreiro vai, carreiro vem,


Beirando matas, cordilheiras, campos e espigões.
Na estrada azul, nos matagais,
Lhe acompanham os passarinhos vindos dos sertões.
No peito seu, eu sei que tem,
Seis bois puxando o carro triste do seu coração;
É a Saudade emparelhada com a Lembrança,
O Amor, a Esperança, Desespero e Solidão.
Carreiro vai, carreiro vem,
Rodando só pelo sertão cantando assim
Carreiro vai, carreiro vem,
Na sua estrada de paixão que não tem fim
Carreiro vai, carreiro vem,
Para bem longe do filhinho que ficou no lar.
Bem cedo sai, e à tarde vem,
Deitar nos braços de Chiquinha sempre a lhe esperar.
Solta seus bois, lá no curral,
Quando no morro surge o claro raio de luar
Pega na viola pra cantar sua poesia,
Quando fora a brisa fria, vem com ele duetar
Carreiro vai, carreiro vem,
Rodando só pelo sertão cantando assim
Carreiro vai, carreiro vem,
Na sua estrada de paixão que não tem fim.
No vai e vem, que o mundo dá,
Vai o seu rastro rabiscando pedras e areiões.
Dois riscos só, deixam o pó,
E o orvalho tremulando sobre mil botões.
Igual ao sol, passa por nós,
E à tarde deita no poente para repousar
Solta a boiada de estrelas cintilantes,
Ruminando lá distante, pelos campos do luar
Carreiro vai, carreiro vem,
Rodando só pelo sertão cantando assim
187

O menino da porteira
Teddy Vieira e Luizinho

Toda vez que eu viajava Apiei do meu cavalo


Pela estrada de ouro fino, Num ranchinho beira chão,
De longe eu avistava Vi uma muié chorando
A figura de um menino, Quis sabê qual a razão.
Que corria abri a porteira Boiadeiro veio tarde,
Depois vinha me pedindo: Veja a cruz no estradão,
Toque o berrante seu moço Quem matou o meu filhinho
Que é pra mim ficá ouvindo. Foi um boi sem coração.

Quando a boiada passava Lá pra banda de Ouro Fino


Que a porteira ia fechando Levando o gado selvagem,
Eu jogava uma moeda, Quando eu passo na porteira
Ele saia pulando. Até vejo sua imagem
Obrigado, boiadeiro O seu rangido tão triste
Que Deus vá lhe acompanhando. Mais parece uma mensagem
Prá aquele sertão afora Daquele rosto trigueiro
Meu berrante ia tocando. Desejando-me boa viagem

No caminho desta vida A cruzinha do estradão


Muito espinho encontrei, Do pensamento não sai.
Mais nenhum calou mais fundo Eu já fiz um juramento
Do que isso que eu passei. Que eu não esqueço jamais.
Na minha viagem de volta Nem que o meu gado estoure
Quarqué coisa eu cismei, Que eu precise ir atrás,
Vendo a porteira fechada Nesse pedaço de chão
O menino não avistei. Berrante eu não toco mais.
188

O Milagre do Ladrão
Léo Canhoto e Zilo

Um inocente com seis anos de idade,


Triste vivia por não poder caminhar.
Sempre sentado numa cadeira de rodas,
Olhava triste seus amiguinhos brincar.
Sua mãezinha muito pobre lhe dizia,
Todas as noites na hora de se deitar,
Filho querido você vai ficar curado,
Nosso Senhor um dia vem pra lhe curar.
O inocente todo cheio de esperança,
Pra sua mãe dizia cheio de fé:
Se é verdade que Jesus vem me curar,
Quero saber então que jeito que ele é.
Sua mãezinha entre soluços respondia,
Com o seu rosto todo banhado em pranto:
Nosso Senhor é um velhinho muito pobre,
Barba comprida e cabelos muito branco.
Em uma noite muito fria e chuvosa,
De tempestade e de grande escuridão,
Pela janela do quarto do menino,
Naquele instante foi entrando um ladrão.
O inocente vendo aquele homem barbudo,
Já levantou-se, foi tão grande a sua fé.
Pensou que Deus tinha ido lhe curar,
Saiu andando e ajoelhou-se aos seus pés.
"Senhor do céu, eu lhe agradeço imensamente.
Mamãe falou que você viria me curar, muito obrigado.
Fiquei bom, já estou andando,
Com meus amigos amanhã posso brincar.
Não vá embora, fica um pouco mais comigo,
Todas as noite mamãe me ensina rezar.
Senta comigo, minha cama é bem grandinha.
Teu rosto lindo eu agora vou beijar".
Ao receber aquele beijo inocente,
Aquele homem de remorso estremeceu,
Saiu andando com os olhos rasos d'água,
Aquela cena toda ele compreendeu.
A consciência lhe doeu naquele instante,
Foi se afastando parecendo uma visão.
O inocente no momento foi curado,
Sem perceber que era o milagre de um ladrão..
189

O mineiro e o italiano
Teddy Vieira e Nélson Gomes

O mineiro e o italiano viviam as barras dos tribunais,


Em uma demanda de terra que não deixava os dois em paz.
Só de pensar na derrota o pobre caboclo não dormia mais.
O italiano roncava: nem que eu gaste alguns capitais,
Quero ver esse mineiro voltar de a pé prá Minas Gerais.
Voltar de a pé pro mineiro seria feio pros seus parentes.
Apelou para o advogado fale pro juiz pra ter dó da gente.
Diga que nós somos pobres que meus filhinhos vivem doentes.
Um palmo de terra a mais para o italiano é indiferente.
Se o juiz me ajudar a ganhar lhe dou uma leitoa de presente.
Retrucou o advogado: o senhor não sabe o que esta falando,
Não caia nessa besteira, se não nós vamos entrar pro cano.
Esse juiz é uma fera, caboclo sério e de tutano,
Paulista da velha guarda, família de 400 anos.
Mandar leitoa para ele dar a vitória pro italiano.
Porém, chegou o grande dia que o tribunal deu o veredicto.
Mineiro ganhou a demanda, o advogado achou esquisito.
Mineiro disse ao doutor: eu fiz conforme lhe havia dito.
Respondeu o advogado: que o juiz vendeu e eu não acredito.
Jogo meu diploma fora se nesse angu não tiver mosquito.
De fato, falou o mineiro, nem mesmo eu tô acreditando,
Ver meus filhinhos de a pé, meu coração vivia sangrando.
Peguei uma leitoa gorda, foi Deus do céu que me deu esse plano.
Numa cidade vizinha para o juiz eu fui despachando.
Só não mandei no meu nome, mandei no nome do italiano.
190

O rico e o pobre
Moacir dos Santos e Sulino

Mulher de rico é madame, Pobre bebe de desgosto,


Mulher de pobre é fulana. Rico bebe de contente.
O rico nunca vai preso, Só na hora que tropeça
Pobre está sempre em cana. É que pobre vai pra frente.
Cadeia é só pra pobre, Pobre nasce pra lutar,
Nela não entra bacana Rico nasce inteligente.
Bóia de pobre é pesada, Quando pobre come frango,
Ceia de rico é leviana. Surpresa pra muita gente,
Almoço de rico é frango, Ou o pobre tá de cama,
De pobre é pão com banana. Ou o frango tá doente.

Vida de rico é alegre, O rico segue o luxo


Vida de pobre é sem graça. Do nosso mundo moderno.
Rolo de rico é negócio, Tem sempre bom guarda roupa,
Rolo de pobre é trapaça. Pro verão e pro inverno.
Pastel de rico tem carne, O pobre anda na tanga,
Do pobre é só vento e massa. Não tem sapato nem terno.
Bagunça de rico é festa, Mas o consolo do pobre
Festa de pobre é ruaça. É pensar do pai eterno
Coberta de rico é lã, Leva ele para o céu,
Do pobre é fogo e cachaça. E o rico para o inferno.
191

O último dos carreiros


Zé Bétio

Com minha junta de bois Meu carro já carcomido


Eu pego o rumo da estrada. Simboliza um passado.
Reconheço que sou velho, Os seus cocôes rangem tristes,
Estou no fim da jornada. Protestam muito magoados,
Soberbo, vou resistindo, Do progresso que destrói
O transporte da pesada. Nossa estrada carreteira,
Somente o implacável tempo O asfalto vai apagando
Vai forçar minha parada. Todo o encanto da poeira.

Eee boi, eee boi Eee boi, eee boi

Meu avô era carreiro, Enquanto existir estrada


O meu pai também já foi, Que o carro possa rodar,
A herança deles carrego, Sou o último dos carreiros
No velho carro de boi. Bravo herói a candear.
Eu vou cumprir esta sina, Quando eu for pra eternidade
De uma longa geração, Este carro vai parar.
Embora os tempos mudaram, A profissão de carreiro
Mantenho a tradição. Não tenho pra quem deixar.

Eee boi, eee boi Eee boi, eee boi


192

Paineira Velha
Zé Fortuna

Paineira velha, abandonadam


Lá na estrada de meu sertão, Paineira velha daqueles tempos
Tem uma história, o meu passado, Já se passaram muitos janeiros.
Que está guardada no meu Ainda és tão boa, tua sombra amiga,
coração. Hoje é pousada dos boiadeiros.
Ti conheci, eras pequena, Já não existe aquele tempo
Em meio ao mato onde nasceu. O meu ranchinho cipó cobriu.
Todas as tardes eu te regava, E a sua casca cresceu de novo
Assim depressa você cresceu. O nome dela também sumiu.

Paineira velha, na sua sombra, Paineira velha, fiel amiga,


Com minha amada fui tão feliz, Nossos destinos são sempre iguais.
Colhendo as flores que você dava Se estou contente, você florece,
Mas o destino assim não quis. Quando eu padeço, suas flores caem.
E numa tarde você murchou Nascemos juntos, paineira velha,
E o canarinho emudeceu. Vamos morrer nesta união.
E no seu tronco só encontrei E dos seus galhos, quero uma cruz,
O nome dela e um adeus. De sua madeira, quero caixão.
193

Passagem de minha vida


Pardinho e Carreiro

Na serra onde eu nasci E sem destino fiz como os pássaros,


A gente só escuta Que quando dá uma tempestade
O cantar dos pássaros. Ele perde o ninho e vaga no espaço.
As cigarras canta naquela sombra, Eu tenho essa inclinação
Nas tardes, em dia que tem mormaço. Que hei de viver com a viola no braço.
É um lugar tão montanhoso Conheço o nosso Brasil inteiro,
Que o sol demora a surgir no espaço. De avião, de carro e trem de aço,
Mas se de lá mudar meus parentes Antes não ganhava nada,
Nem a passeio por lá eu passo. Hoje no bolso é dinheiro aos maço.
Vivi lá até os quinze anos, Eu levo a minha vida folgada,
Montando em boi e jogando o laço. Tudo o que eu quero, eu faço e desfaço.
Tirei o diploma do quarto ano Hoje a sorte me acompanha,
Meu pai me dando muitos repasso. Eu deixo saudade em lugar que eu passo.
Depois vim pra Araçatuba As morenas chora na despedida,
Fui pegando mais desembaraço. Chega até soluçar nos meus braços.
Com meus colegas de vez em quando Certos caras vendo isso,
Uma serenata eu o meu disfarço De despeitado tem feito ameaço.
Em casa, eu era o caçula, Sabe que eu tenho peito de bronze,
Levava a vida de um ricaço. Braço de ferro e punho de aço.
Depois a minha mãe faleceu.
Sofri também diversos fracassos.
Arribei por outras terras
194

Pé de cedro
Goiá e Zacaria Mourão

Foi no belo Mato Grosso, Projetada sobre mim,


A vinte anos atrás, No meu último repouso
Naquele tempo querido Na cidade de Coxim".
Que não volta nunca mais.
Hoje volto arrependido
Nas matas onde eu caçava Para o meu antigo lar.
Um pequeno arbusto achei, Abatido e comovido,
Levando pra minha casa Com vontade de chorar.
No meu quintal o plantei.
Vim rever meu pé de cedro
Era um belo pé de cedro, Que está grande como o quê.
Pequenino em formação, Mas é menor que a saudade
Sepultei suas raízes Que hoje eu sinto de você.
Na terra fofa do chão.
Cresceu como minha mágoa.
Um dia parti pra longe, Cresceu numa coisa rara.
Amei e também sofri, Mas é menor que a saudade
Vinte anos se passaram Que até hoje nos separa.
Em que distante vivi.
A terra ficou molhada
"Ó Virgem Santa Sagrada, Do pranto que derramei.
Uma prece eu vou fazer: Que saudade, pé de cedro,
Junto ao meu pé de cedro, Do tempo em que te plantei.
É que desejo morrer. Que saudade, pé de cedro,
Quero sua sombra amiga Do tempo em que te plantei.
195

Pé de ipê
Tonico

Eu bem sei que adivinhava Pertinho da incruziada


Quando, às veiz, eu te chamava Debaixo de um pé de ipê
Da muié sem coração
Minha voiz, assim queixosa Mas o destino é traiçoero
Vancê era a mais formosa E me deixô na solidão
Das caboclas do sertão Foi s'imbora pra cidade
Minha voiz assim queixosa Me deixou triste sodade
Vancê era a mais formosa Neste pobre coração
Das caboclas do sertão Foi s'imbora pra cidade
Me deixô triste sodade
Certa veiz, tive um desejo Nesta pobre coração
De prová o mer de um beijo
Da boquinha de vancê Quando eu passo a incruziada
Lá no trio da baixada Ainda avisto o pé de ipê
Pertinho da incruziada Ainda canta um passarinho
Debaixo de um pé de ipê Me faiz alembrá sozinho
Lá no trio da baixada Aquele dia com vancê (bis)
196

Peito Sadio
Raul Torres e Rubens Ferreira

Foi às quatro horas da manhã, Por enquanto no chão não caiu.


Meu cachorro de guarda latiu, Quando nóis cheguemo no catira,
Levantei para ver o que era, Os mais fraco na hora sumiu.
E vesti meu casaco de frio. Só cantemo moda de campeão
Então vi que chegou um E os tal que era bom
mensageiro, Nem sequer reagiu...
Amuntado num burro turdio, Perguntei para o dono da festa:
Apiou e me disse bom dia Onde foi que o senhor conseguiu,
E o bolso da baldrana ele abriu. Esses tal violeiro famoso,
Uma carta o rapaz me entregou Que as moda de nóis engoliu?
E de novo amuntou O festeiro ficou pesativo,
E na estrada sumiu. E mordeu no cigarro e cuspiu,
Dei a carta pro meu irmão ler, Vocês são dois caboclo batuta,
Ele leu e me olhando sorriu, Quem falou pode crer não mentiu.
É convite pra nós ir na festa, Teve algum que canta experimentou
Vai haver um grande desafio. Mas o peito faio e a voz não saiu
O meu pai já correu no vizinho, As viola nóis faz de encomenda,
Foi chamar o vovô e o titio, Nosso peito e tratado e sadio,
Nóis cheguemo a pular de contente, Já cantemo três noite seguida
Lá em casa ninguém mais dormiu. E às moda nóis não repetiu.
Prá quebrar aqueles campeonato, Quem repete é relógio de igreja
Nem com sindicato, E o triste cantar do tiziu.
Ninguém conseguiu. E agora com essa vitória,
Violeiro que mandou o convite, Inda mais nossa fama subiu.
Mora lá do outro lado do rio. E vocêis não deve discutir,
Eles pensa que nóis não vai lá, Se viemos aqui ,
Mas nóis semo caboclo de brio. Foi vocês quem pediu.
A peteca aqui do nosso lado,
197

Pescador e Catireiro
Cacique e Carreirinho

Comprei uma mata virgem Eu sou grande pescador


Do coronel Bento Lira também gosto de um catira
Fiz um rancho de barrote Quando eu entro num pagode
Amarrei com cipó cambira Não tem quem não se admira
Fiz na beira da lagoa No repique da viola
Só pra pescar traíra Contente o povo delira
Eu não me incomodo Se a tristeza está na festa
Que me chamem de caipira Eu chego ela se retira
No lugar que índio canta Bato palma e bato o pé
Muita gente admira Até as moça suspira
Canoa fiz de paineira Muita gente não conhece
Varejão de guaruvira O canto da corruíra
A poita pesa uma arroba Nem o sabe o gosto que tem
Dois remos de sucupira A pinga com sucupira
Se jogo a tarrafa n' água Morando lá na cidade
Sozinho um homem não tira Não se come cambuquira
Capivara é bicho arisco, É por isso que eu gosto
Quando cai na minha mira Do sistema do caipira
Puxo o arco e jogo a flecha Pode até ficar de fogo
Lá no barranco revira Ele não conta mentira
198

Pingo d’água
João Pacífico e Raul Torres

Eu fiz promessa prá que Deus mandasse chuva


Prá crescê a minha roça e vingá a prantação.
Pois veio a seca e matô o meu cafezá,
Matou tudo o meu arroz e secou o meu argodão.
Nesta colheita, meu carro ficou parado,
Minha boiada carreira quase morre sem pastar.
Eu fiz promessa que o primeiro pingo d’água
Eu moiava a frô da santa e dava em frente do altá.
Eu isperei uma sumana, um mês inteiro.
A roça tava tão seca, dava pena a gente vê.
Oiava o céu, cada nuvem que passava,
Eu da santa me alembrava, prá promessa não esquecê.
Em pouco tempo a roça ficou viçosa,
A criação já pastava, floresceu meu cafezá.
Fui na capela e levei treis pingo d’água,
Um foi o pingo d’água, dois caiu do meu oiá.
199

Pitoco
Teddy Vieira, Nhô Bentico e Abílio Vitor

"Pitoco era um cachorrinho Era um domingo de mês,


Que eu ganhei do meu padrinho O dia de Santa Inês,
Numa noite de Natal. Era festa no arraiá.
Era esperto, muito ativo, Minha mãe e as criançada
Tinha dois olhos bem vivo, Todos de roupa trocada
Saltando pra cá e pra lá. Saimu pela estrada
Bem cedo me alevantava, Na capela pra rezar.
Pitoco quem me acordava,
Com os Latido sem parar. Eu fugi por um caminho,
Me fazia tanta festa, Com Pitoco e o Bodoquinho.
Lambia na minha testa, De repente eu fiquei fria,
Queria inté me beijar. Gritei por Virgem Maria,
Nos domingo, bem cedinho, Uma urutu na rudia
Pegava meu bodoquinho Deu bote pra me pegar.
E os pelote no borná.
Pitoco corria na frente, Pitoco saltou na frente,
Dando sarto de contente, Repicou toda serpente,
Rolando nos capinzá. Mas não pode escapar.
Pitoco latia, latia, Na hora que ele morria,
Mostrando tanta alegria, Parece que até se ria
Sem nada poder cismar. Da minha patifaria
Eu tacava um pelote, De eu não poder lhe salvar.
Fazendo virar cambote,
Um pobre de um sabiá. Coitado morreu latindo,
Aquele divertimento Com seus olhinhos tão lindo.
De grande contentamento, Neste mundo que é tão louco,
Ia inté o sol entrar. em que os amigos são pouco,
E hoje dói minha conciência Depois que morreu Pitoco,
Pra mode a desobediencia". Nunca mais tive outro igual.
200

Porta do Mundo
Peão Carreiro / Zé Paulo

O som da viola bateu


No meu peito doeu, meu irmão.
Assim eu me fiz cantador,
Sem nenhum professor aprendi a lição.
São coisas divinas do mundo,
Que vem num segundo a sorte mudar,
Trazendo pra dentro da gente
As coisas que a mente vai longe buscar.
Em versos se fala e canta,
O mal se espanta e a gente é feliz.
No mundo das rimas e trovas
Eu sempre dei prova das coisas que fiz.
Por muitos lugares passei,
Mas nunca pisei em falso no chão.
Cantando interpreto a poesia,
Levando alegria aonde há solidão.
O destino é o meu calendário,
O meu dicionário é a inspiração.
A porta do mundo é aberta,
Minha alma desperta,
Buscando a canção.
Com minha viola no peito,
Meus versos são feitos pro mundo cantar,
É a luta de um velho talento,
Menino por dentro sem nunca cansar.
201

Prato do Dia
Geraldino

Sobre as margens de uma estrada,


Uma simples pensão existia,
A comida era tipo caseira
E o frango caipira era o prato do dia.
Proprietário homem de respeito
Ali trabalhava com sua família.
Cozinheira era sua esposa
E a garçonete era uma das filhas.
Foi chegando naquela pensão
Um viajante já fora de hora,
Foi dizendo para a garçonete:
Me traga um frango, vou jantar agora.
Eu estou bastante atrasado,
Terminando eu já vou embora.
Ela então respondeu num sorriso:
Mamãe tá de pé pode crer não demora
Quando ela foi servir a mesa,
Delicada e com muito bom jeito,
Me desculpe, mas trouxe uma franga,
Talvez não esteja cozida direito.
O viajante foi lhe respondendo
Prá mim franga crua também eu aceito
Sendo uma igual a você
Seja qualquer hora também não enjeito.
Foi saindo de cabeça baixa,
Prá queixar ao seu pai a mocinha.
Minha filha mate outra franga,
Pode temperar, porém não cozinha.
Vou levar essa franga na mesa,
Se bem que comigo a conversa é curtinha,
É a coisa que mais eu detesto
Ver homem barbado fazendo gracinha.
Foi chegando o velho e dizendo
Vim trazer o pedido que fez.
Quando o cara tentou recusar
Já se viu na mira de um schimitt inglês
O negócio foi limpar o prato,
Quando o proprietário lhe disse cortês:
Nós estamos de portas abertas,
Pra servir à moda que pede o freguês
202

Preto inocente
Teddy Vieira, Campão e Bento Palmiro

Quando eu soube desse fato pelo rádio anunciado


Que um tal preto fugido, morreu por haver roubado,
As façanhas que ele fez, me deixou muito amolado,
Por alembrar que os pretos sempre são os mais visados.
Mas, diante da verdade, eu vi que estava enganado.
Vou contar o causo direito do modo que se passou,
Porque o pai de Suzana num criminoso virou,
Na hora que deu o tiro foi que a Suzana gritou:
Oh papai por que fez isso? O senhor nem me consultou.
Se eu ainda estou com vida é o preto que me salvou.
No mato eu tava lenhando, logo pegou escurecer,
O caminho que eu voltava eu não podia mais ver,
Naquilo avistei o preto, de susto, peguei tremer.
Mocinha não tenha medo, escutei ele dizer.
Eu sou preto só na cor, mal nenhum vou lhe fazer.
Eu tava muito cansada, o meu corpo não agüentou.
Fui sentar debaixo dum toco, uma cobra me picou.
O preto rancou da faca, o meu pé ele sangrou,
O veneno da serpente com a boca ele tirou.
Pra salvar a minha vida, com a morte ele brincou
e aqui nessa cabana ele trouxe eu carregando
E, que nem um sentinela, na porta ficou vigiando.
Lá fora, na mata escura, as feras tava uivando,
Abatido pelo sono coitado foi cochilando,
Veio o senhor de surpresa e a vida foi lhe tirando.
Com as palavras de Suzana o seu pai pegou chorar.
Fosse coisa que eu pudesse de novo a vida eu lhe dar.
Com o sangue desse inocente, minha honra eu fui manchar.
Este chão que ele pisava, eu não mereço pisar.
Sei que vou ser condenado, só Deus pode me livrar.
203

Recordação
Goiá/ Nenete

Amargurado pela dor de uma saudade,


Fui ver de novo o recanto onde nasci,
Onde passei minha bela mocidade,
Voltei chorando com a tristeza que senti.
Vi a campina que eu brincava com maninho
E a palmeira que meu velho pai plantou.
Chorei demais com saudade do velhinho
Que Deus do céu há muitos anos já levou.

E onde estão meus estimados companheiros,


Se foram tantos janeiros, desde que deixei meus pais.
Adeus lagoa poço verde da esperança,
Meu tempinho de criança que não volta nunca mais.

Meu pé de cedro desfolhado já sem vida,


Final amargo de uma rósea esperança.
Do monjolinho quero ouvir suas batidas
A embalar a minha alma de criança.
Manso regato que brotava lá na serra,
Saudosa fonte que alegrava o meu viver.
Adeus paisagem céu azul da minha terra,
Rincão querido, hei de amar-te até morrer.
204

Relógio Quebrado
Teddy Vieira e José Russo

Vou contar de uma passagem na vida de dois irmãos


Que viviam discutindo a respeito a religião
Já que era o mais velho tinha sua devoção
Na hora de ele ir deitar fazia a sua oração.
O seu irmão Dorvalino falava dando risada
Deixe de falar sozinho isso não lhe adianta nada
É melhor você dormir pra acordar de madrugada
Eu não vou perder o sono pra escutar conversa fiada.

Se você não acredita, não lhe obrigo a creditar


Mas que existe outro mundo pra você quero provar
Se um dia eu morrer primeiro e minha alma se salvar
Vou fazer-lhe uma surpresa que você não vai gostar.
Um dia José foi embora e pro seu irmão falou
Fique com este relógio lembrança de nosso avô
E nunca mais se encontraram e os anos se passou
O relógio desmanchado na parede ali ficou!

Certa noite o Dorvalino acordou meio assustado


Ouvindo aquelas batidas devagar bem compassado
Contou doze badaladas seu corpo ficou arrepiado
Meia noite que marcava no seu relógio quebrado.
Passou a noite nervoso com o que lhe aconteceu,
No outro dia bem cedinho telegrama recebeu
Abriu pra ver o que era, seu corpo estremeceu
Dizia que a meia noite, seu irmão José morreu!
205

Rio de lágrimas
Lourival dos Santos, Piraci e Tião Carreiro

O rio de Piracicaba vai jogar água pra fora


Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora

Lá na rua onde eu moro só existe uma nascente


A nascente dos meus olhos já formou água corrente
Pertinho da minha casa já formou uma lagoa
com a lagrima dos meus olhos por causa de uma pessoa

O rio de Piracicaba vai jogar água pra fora


Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora

Eu quero apanhar uma rosa, minha mão já não alcança


eu choro desesperado igualzinho a uma criança
duvido alguém que não chore pela dor de uma saudade
quero ver quem que não chora quando amar de verdade

O rio de Piracicaba vai jogar água pra fora


Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora
Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora
Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora
206

Rolinha Cabocla
Raul Torres e João Pacífico

De tarde eu volto da roça É a derradeira a passar,


E descarrego os cargueiros. Deixando o ninho já feito
Eu solto a tropa no pasto, Pra noutro ninho ir pousar.
Prendo o baio no potreiro.
Boto milho pras galinhas, Se essa rolinha cabocla,
Boto milho no chiqueiro. Que passa por meu caminho,
Aparto todo meu gado, Bem sabe que nesse rancho
Todo meu gado leiteiro. Vive um caboclo sozinho.
Rolinha, se tu quiseres,
Depois de todo trabalho Eu te darei meus carinhos,
Eu volto pra descançar Um é pouco e dois é bom
E na soleira da porta Pra viver dentro de um ninho.
Eu sento pra cachimbar.
Ali eu vou me entretendo Se tu, rolinha malvada,
Vendo as rolinhas voltar, Soubesse a vida cruel,
Pois moram todas comigo Que eu vivo só nesse rancho,
Nas árvores do meu quintal. Sem carinho de mulher.
Rolinha em forma de gente,
Neste bando de rolinhas Que passa por meu sertão,
Só uma não quer ficar. Hás de cair no laço
É uma rolinha arisca Que eu fiz no meu coração.
Que muito me faz penar.
Esta rolinha que eu digo
207

Romance de Uma Caveira


Alvarenga, Ranchinho e Chiquinho Sales

Eram duas caveiras que se amavam


E à meia-noite se encontravam.
Pelo cemitério os dois passeavam
E juras de amor então trocavam.
Sentados os dois em riba da lousa fria,
A caveira apaixonada assim dizia:
Que pelo caveiro de amor morria
E ele de amores por ela vivia.
Ao longe uma coruja cantava alegre
Por ver os dois caveiros assim felizes.
E quando se beijavam então funebres
A coruja batendo palma, pedia bis
Mas um dia, chegou de pé junto,
Um cadáver novo de um defunto
E a caveira pr'ele se apaixonou
E o caveiro antigo abandonou.
O caveiro tomou uma bebedeira
E matou-se de um modo romanesco,
Por causa dessa ingrata caveira
Que trocou ele por um defunto fresco.
208

Saco de Ouro
Paraíso e José Caetano Erba

Num saco de estopa, com embira amarrado,


Eu trago guardado a minha paixão:
Uma bota velha, chapéu cor de ouro,
Bainha de couro e um velho facão.
Tenho um par de espora, um arreio e um laço,
Um punhal de aço e rabo de tatu,
Tenho uma guaiaca ainda perfeita
Caprichada e feita só de couro cru.
Do lampião quebrado, só resta o pavio.
Pra lembrar do frio eu também guardei
Um pelego branco que perdeu o pêlo,
Apesar do zelo com que eu cuidei.
Também o cachimbo de canudo longo,
Quantos pernilongos com ele espantei.
Um estribo esquerdo, que guardei com jeito,
Porque o direito na cerca eu quebrei.
A nota fiscal, já toda amarela,
Da primeira sela que eu mesmo comprei.
Lá em soledade, na casa da cinta,
Duzentos e trinta, na hora paguei.
Também o recibo, já todo amassado,
Primeiro ordenado que eu faturei.
É a minha tralha num saco amarrado,
Num canto escostado, que eu sempre guardei.
Pra mim representa um belo passado,
A lida de gado que eu sempre gostei.
Assim enfrentando o trabalho duro
Eu fiz meu futuro, sem violar a lei.
O saco é relíquia com meus apetrechos,
Não vendo e não deixo ninguém pôr a mão.
Nos trancos da vida agüentei o taco
E o ouro do saco é a recordação.
209

Saudade
Tião Carreiro e Zé Matão

Saudade palavra rica,


Que martiriza e fica
Dentro de um coração.
A felicidade morta,
Que a saudade conforta,
Trazidade de uma paixão.
Saudade eu tenho que alguém,
Uma saudade que vem
De uma distância sem fim.
Será que ela também,
Na falta de um outro alguém,
Sente saudades de mim?

Eu vivo sempre pensando,


Meus olhos vivem chorando,
Não tenho felicidade.
Estou morrendo aos poucos
E o que me deixa mais louco
É a maldita saudade.
210

Saudade de minha terra


Goiá e Belmonte

De que me adianta viver na cidade, Que saudade imensa do campo e do mato


Se a felicidade não me acompanhar. Do manso regato que corta a campina.
Adeus, paulistinha do meu coração. Aos domingos ia passear de canoa
Lá pro meu sertão, eu quero voltar. Nas lindas lagoas de águas cristalinas.
Ver a madrugada, quando a passarada Que doce lembrança daquelas festanças
Fazendo alvorada, começa a cantar. Onde tinham danças e lindas meninas.
Com satisfação, arreio o burrão Eu vivo hoje em dia sem ter alegria,
Cortando estradão, saio a galopar O mundo judia, mas também ensina.
E vou escutando o gado berrando Estou contrariado, mas não derrotado,
Sabiá cantando no jequitibá. Eu sou bem guiado pelas mãos divinas.
Por nossa senhora, meu sertão querido, Pra minha mãezinha, já telegrafei
Vivo arrependido por ter te deixado. Que já me cansei de tanto sofrer.
Esta nova vida aqui na cidade, Nesta madrugada, estarei de partida
De tanta saudade, eu tenho chorando. Pra terra querida que me viu nascer.
Aqui tem alguém, diz que me quer bem, Já ouço sonhando o galo cantando,
Mas não me convém, eu tenho pensado. O nhambu piando no escurecer.
Eu fico com pena, mas esta morena A lua prateada clareando a estrada,
Não sabe o sistema que eu fui criado. A relva molhada desde o anoitecer.
Tô aqui cantando, de longe escutando Eu preciso ir pra ver tudo ali,
Alguém está chorando, com rádio ligado. Foi lá que nasci, lá quero morrer
211

Terra Tombada
Carlos Cezar e José Fortuna

É calor de mês de agosto. Ansiosa espera confiante


É meado de estação. Que em meu peito você plante
Vejo sobras de queimada A semente do amor.
E fumaça no espigão. Terra tombada é criança,
Lavrador tombando terra, Deitada num berço verde,
Dá de longe a impressão Com a boca aberta pedindo
De losângulos cor de sangue Para o céu matar-lhe a sede.
Desenhados pelo chão. Lá na fonte, ao pé da serra,
Terra tombada É o seio do sertão.
É promessa de um futuro A água, leite da terra,
Que se espelha, Alimenta a plantação.
No quarto verde dos campos O vermelho se faz verde.
A grande cama vermelha, Vem o botão, vem a flor.
Onde o parto das sementes Depois da flor, a semente,
Faz brotar de suas covas O pão do trabalhador.
O fruto da natureza, Debaixo das folhas mortas,
Cheirando a criança nova. A terra dorme segura,
Terra tombada, Pois nos dará para o ano
Solo sagrado, chão quente, Novo parto de fartura.
Esperando que a semente
Venha lhe cobrir de flor.
Também minh' alma,
212

Triste Berrante
Adauto Santos

Já vai bem longe esse tempo, bem sei.


Tão longe que até penso que eu sonhei.
Que lindo quando a gente ouvia distante
O som daquele triste berrante.

E um boidadeiro a gritar: Eiá!


E eu ficava alí na beira da estrada
Vendo a caminhar a boiada,
Até o último boi passar.

Ali, passava boi, passava boiada,


Tinha uma palmeira
Na beira da estrada,
Onde foi gravado muito coração.

Mas sempre foi assim


E sempre será.
O novo vem e o velho tem que parar.
O progresso cobriu a poeira da estrada,
E esse tudo que é o meu nada.
Hoje, tenho que acatar e chorar,
Mas mesmo vendo a gente, carros passando,
Meus olhos estão enxergando
Uma boiada a passar.
213

Tristeza do Jeca
Angelino de Oliveira

Nestes versos tão singelo,


Minha bela, meu amo.
Pra você quero contá
O meu sofrer, a minha dô.
Eu sou que’nem sabiá,
Quando canta é só tristeza
Desde o galho onde ele está.
Nesta viola
Eu canto e gemo de verdade.
Cada toada representa uma saudade.

Eu nasci
Naquela serra,
Num ranchinho beira-chão.
Tudo cheio de buraco
Adonde a lua faz clarão.
Quando chega a madrugada,
Lá no mato a passarada
Principia um baruião.
Nesta viola
Eu canto e gemo de verdade.
Cada toada representa uma saudade.

Vou pará com a minha viola,


Já não posso mais cantá.
Pois o Jeca quando canta
Tem vontade de chorá.
O choro que vai caindo
Devagar vai se sumindo,
Como as águas vão pro mar...
214

Tropas E Boiadas
Tony Damito e Carlos César

Eu conheci no porto dos peões,


Um bom vaqueiro, velho e traquejado.
Com ele eu aprendi muitas lições
Daquele tempo em que reinava o gado.
Eu não sabia o que era um berrante,
Desconhecia uma vaquejada,
Porque eu era um principiante,
Neste negócio de tocar boiada.

Vai, vai, vai, vai, saudade antiga, vai buscar,


Quero rever, tropas e boiadas a passar!

Ele contou-me das suas andanças


E das festanças na sua chegada.
Moças bonitas vinham à janela,
Pra ver passar a sua peonada.
Falou também do caso da pintada,
Atocaiada dentro do grotão,
Quando se deu o estouro da boiada,
Onde perdeu o seu amigo e irmão.

Caro menino, eu posso ser seu pai,


Você começa sua vida agora,
Mas amanhã, quando voce crescer,
Irá lembrar também da minha história.
História essa que está escrita
Em uma página empoeirada,
Você agora é parte do meu livro,
Que se intitula, “Tropas e Boiadas”.
215

Véio marrudo
Lourival dos Santos

Tem um sujeito por aí anda dizendo


Está querendo minha casa derrubar.
Ele falou que quebra porta e janela,
Quebra tranca e tramela,
Minha filha vai levar.
Na minha casa gosto de muito respeito,
Vou mostrar para o sujeito
A volta que o mundo dá.
E nesse dia vou fazer tremer o mundo.
O vagabundo na chibata vou cortar.
Esse malandro comigo vai dar pinote,
Na tala do meu chicote
Seu topete vou quebrar.
Na minha casa gosto de muito respeito,
Vou mostrar para o sujeito
A volta que o mundo dá.
Esse sujeito vai topar parada dura.
Só amargura comigo vai encontrar.
Esse malandro tá no mato sem cachorro,
Ele vai pedir socorro,
Moleza eu não vou dar.
Na minha casa gosto de muito respeito,
Vou mostrar para o sujeito
A volta que o mundo dá.
A minha filha é um tesouro adorado.
Esse arrogado com ela não vai casar.
Eu sou marrudo, desaforo eu não aceito,
Em casa de homem direito,
Malandro não pode entrar.
Na minha casa gosto de muito respeito,
Vou mostrar para o sujeito
A volta que o mundo dá.
216

Velho pouso da boiada


Dino Franco e Índio Vago

Numa tardinha fui andando por aí,


Coincidiu que eu descobri pedacinhos de saudade.
Tudo igualzinho a um retrato descorado,
Num cenário amarrotado pelo avanço da cidade.
A figueirona com seu tronco já ferido,
Pelo golpe desferido de um machado sem amor,
Condenada, sem direito a julgamento.
Vai tombar, qualquer momento, pelas mãos de um malfeitor.

Memorizando minha vida já passada,


Recordei, naquele instante, um velho pouso de boiada.

E ali mesmo encontrei só um pedaço,


Do que um dia foi um laço de um habilidoso peão.
E da baldrana, as pequenas margaridas,
Igual estrelas caídas, espalhadas pelo chão.
E do lombilho, tropecei num velho caco,
O farrapo de um guanaco, que um dia foi chapéu.
Sons de viola explodiam pelo ar,
Parecendo anunciar um fandango lá no céu.

Memorizando minha vida já passada,


Recordei, naquele instante, um velho pouso de boiada.

Resto de cerca que já foi de algum potreiro,


A armação de um cargueiro e uma trempe enferrujada.
E num palanque, velho tronco de ipê, a inscrição que a gente lê:
Velho pouso de boiada.
Um sonho louco, retornei à mocidade,
E ruminando a saudade até alta madrugada.
Juro por Deus que chorei naquele instante,
Quando ouvi som de berrante despertando a peonada.
217

Vide vida marvada


Rolando Boldrin

Corre um boato aqui donde eu moro


Que as mágoa que eu choro são mal ponteada,
Que no capim mascado do meu boi
A baba sempre foi santa e purificada.
Diz que eu rumino desde menininho
Fraco e mirradinho a ração da estrada.
Vou mastigando o mundo e ruminando
E assim vou tocando essa vida marvada.

É que a viola fala alto no meu peito humano


E toda moda é um remédio pros meus desengano.
É que a viola fala alto no meu peito, mano
E toda mágoa é um mistério fora desse plano.
Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver,
Chega lá em casa pruma visitinha,
Que no verso e no reverso da vida inteirinha
Há de encontrar-me no cateretê.

Tem um ditado, dito como certo


Que cavalo esperto não espanta a boiada.
E quem refuga o mundo resmungando
Passará berrando essa vida marvada.
Cumpadi meu que inveieceu cantando
Diz que ruminando dá pra ser feliz.
Por isso eu vagueio ponteando
E assim procurando minha flor-de-liz.
218

Viola cabocla
Tonico e Piraci

Viola cabocla não era lembrada,


Veio pra cidade sem ser convidada,
Juntou com os vaqueiros trazendo a boiada,
Com cheiro de mato e o pó da estrada,
Fez grande sucesso com a disparada...

Viola cabocla feita de pinheiro,


Que leva a alegria por sertão inteiro,
Trazendo a saudade dos que já morreu,
Na noite de lua que sai no terreiro,
Consolando a mágoa do triste violeiro...

Viola de pinho é bem brasileira,


Sua melodia atravessou fronteira,
Mostrando a beleza pra terra estrangeira,
Do nosso sertão é a mensageira,
É o verde amarelo da nossa bandeira...

Viola de pinho seu timbre não faia,


Criado no mato como a samambaia,
Veio pra cidade de chapéu de paia,
Mostrou teu valor vencendo a batalha,
Voltou pra sertão trazendo a medalha...
219

Viola está chorando


Joel Marques

Trago no peito uma saudade tão doída,


Tão cruel, tão atrevida, que eu não posso controlar.
No pensamento aquela flor maravilhosa,
Flor morena e formosa, que se foi pra não voltar.

Lembro das noites de canções e poesia,


Noite adentro a gente ia e eu cantava só pra ela.
Meu canto é triste desde que ela foi embora,
Pois até minha viola chora de saudade dela.

Viola está chorando,


Chorando está meu coração.
Meu desespero, meu sufoco,
Desabafo pouco a pouco na magia da canção.

Preso nas garras dessa dor tão impulsiva,


Feito um barco a deriva, vou vivendo por viver.
Viver sem ela e não ter sol nem ter abrigo
É bem mais que um castigo é pior do que morrer.

Solto meu grito, meu apelo, meu lamento.


Vai meu canto, vai no vento, vai até aonde ela está,
E pede a ela que devolva minha vida,
Tô num beco sem saída, pede a ela pra voltar.
220

Viola, Minha Viola


Américo Jacomino

Viola, minha viola, Não aprendi a fazer guerra,


Cavalete de pau preto, Na escola de cantoria.
Corro com você nos braços Fazer guerra é muito fácil,
De joelho me prometo. Quero ver fazer poesia.
Viola, minha viola, Com está viola divina,
De jacaranda e canela, Um pedido vou fazer:
Na alegria ou na tristeza, Para Deus matar a morte,
Eu vivo abraçado nela. Pro cantador não morrer.
Minha, viola vivida, Enquanto existir viola,
Eu ganho a vida com ela. Cantador tem que viver.

No quadro da santa ceia Até o ano 2000,


Doze apóstolos tem. Se uma viola só existir,
A viola não é santa Garanto vai ser a minha,
Mas tem doze cordas também. Que não paro de tinir.
Doze meses tem o ano, Um cantador sem viola,
Doze horas tem o dia, Na carreira nada tem,
Doze horas tem a noite Essa viola divina,
E está noite é de alegria. Das mãos de Deus é que fez.
Está viola divina, Quem não gosta de viola,
Já me deu o que eu queria. Não gosta de Deus também.
221

Viola Quebrada
Ary Kerney e Mário de Andrade

Quando da brisa, no açoite, a flor da noite se acurvou,


Fui encontra com a Maróca, meu amor.
Eu senti n'alma um golpe duro,
Quando ao muro já no escuro,
Meu olhar andou buscando a cara dela e não achou.

Minha viola gemeu,


Meu coração estremeceu,
Minha viola quebrou,
Meu coração me deixou.

Minha Maróca resolveu prá gosto seu me abandonar,


Porque o fadista nunca sabe trabalhar,
Isto é besteira pois da flor
Que brilha e cheira a noite inteira,
Vem depois a fruta que dá gosto de saborear.

Minha viola gemeu,


Meu coração estremeceu,
Minha viola quebrou,
Meu coração me deixou.

Por causa dela sou um rapaz muito capaz de trabalhar


E todos os dias, todas as noites, capinar.
Eu sei carpir porque minh'alma está arada e loteada,
Capinada com as foiçadas desta luz do seu olhar.
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