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As filhas da noite: a alienação como espetáculo sociometabólico do Capital

Autor: Rafael Teles de Paiva.

Introdução
O objetivo deste ensaio se insere na necessária retomada das discussões acerca da alienação e
sua completa transformação histórico-geracional à medida que os métodos utilizados pelo
sistema capitalista são aperfeiçoados e a luta, por parte das forças proletárias, com o objetivo
de transcender a autoalienação do trabalho tornam-se cada vez mais individualistas e
divisionistas. Tal separatismo das lutas deve-se à influência de correntes que se atrelam ao
movimento de crise da modernidade e abandonam toda forma de crítica estrutural à sociedade,
em virtude de discussões que separam o homem de sua natureza, tanto essencial como
ambiental.

Este ensaio visa também, no bojo da teoria da alienação em Marx, discorrer sobre tal processo
de exploração da essência produtiva humana, no que tange ao espetáculo, aos meios de
comunicação, que fomentam uma consciência de massa, crédula e profundamente banalizada,
como único objetivo de servir aos desígnios do Capital em processo de autovalorização. O
espetáculo surge como movimento para a manutenção do sistema orgânico de reprodução
sociometabólica. Sobre tal movimento sistemático, o filósofo húngaro István Mészáros disserta
resumidamente na introdução à última edição de seu livro “O Poder da Ideologia”:

“Assim, a época da crise estrutural do sistema do capital, ao contrário das crises conjunturais do
capitalismo antes enfrentadas e mais facilmente superadas, traz consigo as consequências mais radicais
para o nosso presente e futuro. Assim, diante do fato de que está em jogo nada menos do que a viabilidade
continuada (ou não) das forças sistêmicas hoje dominantes, mas crescentemente destrutivas, somente uma
mudança verdadeiramente fundamental resolverá a crescente crise estrutural de reprodução
sociometabólica. E é assim porque o sistema do capital em si não é apenas a reunião de um conjunto de
entidades materiais, organizadas e, sempre que as condições o exijam, reorganizadas com sucesso numa
ordem adequada pelos recursos combinados da ‘racionalidade instrumental’ e da ‘ética protestante do
trabalho’, como é geral e erroneamente entendido. Pelo contrário, é um sistema orgânico de reprodução
sociometabólica, dotado de lógica própria e de um conjunto objetivo de imperativos, que subordina a si –
para o melhor e para o pior, conforme as alterações das circunstâncias históricas - todas as áreas da
atividade humana, desde os processos econômicos mais básicos até os domínios intelectuais e culturais
mais dedicados e sofisticados.” (MÉSZÁROS, 2004, p. 16).1

1
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. 1 ed. (Boitempo). Tradução: Paulo César
Castanheira. São Paulo, SP: Boitempo, 2004. p. 16 (os grifos são meus).
Seguindo a análise de Mészáros sobre a crise estrutural do capital, que reproduz uma lógica
sociometabólica dominante em todos os aspectos da atividade e intelectualidade humanas, o
espetáculo, enquanto forma mais concreta da alienação, insere-se no mesmo contexto, visto
que a construção do consumo alienado do conteúdo disposto “sobre a mesa” dos meios de
comunicação de massa, desenvolve uma só racionalidade: a que se situa exteriormente à
relação de produção da consciência natural do homem, e passa a animalizá-lo, extraindo toda
sua essência universal.

Portanto, considera-se a redação deste ensaio um movimento de contracorrente aos


recentemente estabelecidos métodos de análise da sociedade que, em vez de construir uma
lógica social contrária ao sistema e promover uma mudança estrutural sólida, perde-se
propositalmente em devaneios abstratos e divisionistas da racionalidade humana, tendo como
principais representantes os arautos da crise intelectual do capitalismo: os pensadores da
corrente pós-moderna de pensamento social.

Nessa perspectiva, serão utilizados exemplos da mitologia greco-romana para contextualizar,


de forma a valorizar o caráter artístico das velhas explicações de mundo, e realizando uma
lógica atual, que desenvolva uma crítica contemporânea, ao projeto sociometabólico do capital,
tendo a alienação (nesse ensaio) como protagonista, comandada pelas instituições: as filhas da
noite, também chamadas de moiras (ou parcas), que tecem e cortam o fio da vida. O destino,
decidido através das engrenagens da “Roda da Fortuna” do capital, desenvolvendo uma lógica
própria, que retira o caráter essencial do trabalho humano, e abstrai das necessidades humanas
a essência produtiva que relaciona homem-natureza e o difere dos animais, como ressalta Marx
nos Manuscritos de 18442, e transforma em “trabalho mortificado” (ver o capítulo III deste
ensaio).

Por fim, o que se espera do presente artigo, é sua utilização como objeto de discussão futura,
desde rodas de conversa no seio academia, grupos de estudos, e principalmente nas escolas e
nas ruas, visando aquele que é o objetivo principal e revolucionário: transcender a
autoalienação do trabalho, superar o capitalismo. E a sociedade apenas superará tal sistema,
quando retomar à crítica estrutural e universal do Capital, e não se perder em ilusões
interpretativas e individualistas do pensamento contemporâneo. Porque, como Marx discorre
na Tese de número 11 sobre Feuerbach:

2
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. 1 ed. Tradução: Jesus Ranieri. São
Paulo, SP: Boitempo, 2004. p. 85.
“Os filósofos apenas interpretam o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo.” (MARX,
2007, p. 539).3

I
O espetáculo da noite
Nix encobre a consciência mortal com sua vasta escuridão, e reserva a todos o destino da
incerteza. Suas filhas, Cloto (a que fia), Láquesis (a que sorteia) e Átropos (a que corta),
determinam a forma ceifeira da vida. A tragicomédia da alma se manifesta, ante o público que
a vislumbra, na espetacularização do modo de vida societário, no decorrer da transformação
histórico-geracional da natureza espacial, refletindo sobre a própria natureza humana.

O espetáculo da noite é, partindo de uma reflexão mitológica, a manifestação do “não-saber”,


uma forma que se traduz na totalização alienada dos indivíduos. O destino é escrito num livro
de notas, o “Livro da Vida”, e cerrado com um corte lúgubre do fio da vida. As três irmãs,
filhas da mais completa escuridão, não possuem controle sobre a elaboração da forma
destinada, a sorte é lançada sobre aqueles que nascem. O que cabe a elas é a administração das
leis do acaso. Uma “metafísica do poder”.

As Moiras (ou parcas) são seres que possuem um discurso jurídico superior aos deuses, são as
formas da “justiça divina”, determinam inexoravelmente o destino de cada alma mortal e
imortal. A sorte é lançada, mas não cegamente. Apesar de se considerar que a “roda da fortuna”
é, como o próprio nome já diz, inevitável e levada sempre ao acaso. Mas tal forma fortuita é
influenciada. Portanto, há (mesmo que indiretamente) uma atribuição pré-discursiva ao
destino. Algo que pré-determina o processo de fiação. É a partir desse ponto, que o espetáculo
se dá por iniciado.

O ser, enquanto dotado de consciência, é encoberto pela escuridão que aliena suas funções
individuais, autônomas, e o impede de construir seu destino, de inscrever e influenciar sua
fortuna. Ele está fadado ao tear. A influência fiandeira é inscrita por uma “força superior”, que
é concreta na visão míope do indivíduo produtivo, mas abstrata no que se refere a sua
significação sistêmica. Essa “força” não é metafísica, mas reproduz as leis do destino no mundo
dos vivos. É a instituição.

3
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 1 ed. Tradução: Rubens Enderle.
São Paulo, SP: Boitempo, 2007. p. 539.
O destino não mais se classifica enquanto atributo do ser, mas como um poder que é
administrado pela “Nix sistemática”, que dá luz às fiandeiras sociais, que concentram suas
habilidades na fabricação de “destinos pré-elaborados”, e as manifestam nos oráculos
espetaculares da vida humana. O sujeito assiste o seu destino como uma tragicomédia, mas não
possui direito de reescrevê-la. O espetáculo traduz-se na “morte do eu”4.

A morte do indivíduo, enquanto concretude de sua subjetividade e racionalidade objetiva, parte


de um invólucro institucional desenvolvido a partir do processo de produção do Capital, bem
como sua acumulação e autovalorização. A alienação concretiza-se no “espetáculo", como bem
ressaltou Debord (1997)5, e que é também analisada a partir da teoria frankfurtiana da Indústria
Cultural. Adorno, em “Televisão como ideologia”, analisa de forma a categorizar a Televisão
(e seus programas) como desenvolvedora de um processo dogmático do agir humano. A partir
de uma análise categórica de um programa televisivo, o frankfurtiano constrói uma linha de
pensamento que faz da produção televisiva a reprodução de uma docilidade para o consumo,
que pode ser substituída pelo termo “alienação” (ou “massificação”), sem perder o sentido.

Nessa visão adorniana, a produção social do dogma é traduzida numa espécie de “normalização
dramática”. Toma-se, como exemplo, o seguinte trecho do ensaio:

“Uma jovem professora é a heroína de uma série cômica televisiva que chegou a ser premiada por
uma associação de docentes. Ela não apenas é mal paga, como também deve pagar as multas previstas pelo
regulamento estabelecido pelo diretor da escola, (...). Falta-lhe dinheiro, portanto, e ela passa fome. A
comicidade aparente do programa está no fato de que ela usa pequenas artimanhas para fazer que todo e
qualquer conhecido a convide para jantar, sempre sem sucesso (a propósito, parece que a indústria cultural
vê graça na simples menção à comida). (...) A heroína sustenta um ânimo tão alegre e tanta superioridade
moral que seus afortunados atributos funcionam como compensações por seu destino miserável. Cada
palavra que ela pronuncia é uma piada. Ao espectador, a comédia dá a entender: se você tem um bom
humor, temperamento leve, esperteza e charme, não precisa se inquietar com seu salário de fome;
ninguém pode tirar sua personalidade. (ADORNO, 2020, p. 224-25. O grifo é meu). 6

O dogma do Capital midiático, reproduzido na televisão e refletido na produção de uma crença


normalizadora por parte da massa de trabalhadores é, redundantemente, essa normalização

4
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 9 ed. Tradução: Dante Moreira
Leite. São Paulo, SP: Perspectiva. 2019, 320 p.

5
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1 ed. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio
de Janeiro, RJ: Contraponto, 1997. p. 24.
6
ADORNO, Theodor W. “Televisão como ideologia”, In: ADORNO, Theodor W. Indústria
cultural. 1 ed. São Paulo, SP: Editora Unesp, 2020. p. 224-25 (o grifo é meu).
como produção em série para a criação de uma pseudoconsciência popular. A alienação está
na distorção histórica da situação da classe trabalhadora, tal como Marx ressalta na “Ideologia
Alemã”: “mas, quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a
ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração total a
ela”7.

A televisão, retomando o mito grego, é o oráculo institucional das “moiras” da sociedade


capitalista, que representam, de forma alegórica, a imagem mais pura do capitalista
institucional, que tanto abstrai o indivíduo de seu destino, a partir dos oráculos das massas, mas
que se abstraem a sua própria história. Possuem uma espécie de “superioridade mística” que é
apenas superficial, pois dependem da “roda da fortuna” para existir. Sua função orgânica
depende única e somente do movimento horário do mecanismo do destino. Dessa forma, não
há controle, mas sim uma imagem abstrata da dominação sobre o ser humano. Os “mortais” do
sistema (a maioria da população global) sofre com a alienação ante sua própria produção, e é
condicionada a viver numa falsa harmonia das coisas, tal como o exemplo de Adorno reflete.

O espetáculo, como sendo a concretude da autoalienação do trabalho, ou seja, o


processo de abstração essencial do indivíduo, tanto sobre sua identidade enquanto homem,
como sua natureza ambiental, seu semelhante e do próprio “gênero” humano, produz ao que
Debord analisa (e Foucault incrementa em “Vigiar e Punir”), o processo de docilização dos
corpos para a satisfação (gozo) daqueles que administram as instituições. O gozo do Outro
nasce do processo de acumulação da riqueza consciente do trabalhador.

Nesse contexto, o processo de “sociometabolismo” do Capital, trabalhado por Mészáros em


suas obras principais (especialmente “A teoria da alienação em Marx”, “O poder da Ideologia”,
“Para Além do Capital”, e sua obra póstuma, lançada em 2021, “Para Além do Leviatã”), é a
total disposição lógico-estrutural das formas de dominação concernentes ao processo de
produção e acumulação capitalista, que constituem a “nutrição” orgânica do sistema capitalista.

É preciso frisar, que a constante necessidade da produção ideológica do Capital, a exemplo do


que fora analisado até o presente momento deste ensaio, ou seja, a espetacularização dócil para
a produção (e reprodução) de “corpos úteis”, deve-se ao fato de que o Capitalismo é, por si só,
um sistema que, desde seu primeiro movimento pulmonar, sofreu uma espécie de Acidente

7
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 1 ed. Tradução: Rubens Enderle.
São Paulo, SP: Boitempo, 2007. p. 87.
Vascular Cerebral, cuja resposta imunológica foi imediata: a coercitividade institucional, a
partir da criação de uma “docilidade-utilidade” panóptica.

II
A produção da banalidade panóptica
Como aponta o cientista político César Benjamin, em seu ensaio sobre “Marx e a
Transformação Social", a produção da vida social, com a modernidade, de acordo com a análise
marxiana do desenvolvimento das relações de troca e acumulação do Capital, é reorganizada
pelo sistema mercantil à sua imagem e semelhança (sistema D – M (FT + T + MP) - M – D',
traduzido em “Dinheiro - Mercadoria (Força de Trabalho + Terra + Meios de Produção) -
Mercadoria – Dinheiro acrescido de Capital). A abstração da consciência humana toma forma
com a modernidade, quando a essência natural do homem é apropriada à lógica do Capital.

Partindo da perspectiva marxiana, portanto, a lógica sociometabólica do Capital trabalhada em


Mészáros, é a forma que tende à abstração do ser para a autovalorização do próprio Capital. A
ampliação das formas significantes da alienação, a exemplo de sua forma concreta: o
espetáculo, é o meio mais eficaz para a continuidade da razão capitalista de controle social.
Prosseguindo a análise de Marx, incorporada no ensaio de Benjamin, a terceira característica
necessária para a ampliação da acumulação do Capital é:

“(c) será compelida a criar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as
“necessidades do estômago” são limitadas, esses novos bens e novas necessidades, criados para dar
sustentação a uma acumulação ilimitada, serão, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia,
que também é ilimitada.” (BENJAMIN, 2009).

Esse item é fundamental para compreender o processo de produção da banalização do sujeito


ante a institucionalização do poder capitalista, quanto levar-se em consideração
abstracionismos intelectuais de pensadores do poder, principalmente porque a forma do poder
estruturada no contexto histórico-social que vivemos só existe pois é perpassada pela lógica da
mercadoria para acumulação, concentração e centralização da riqueza abstrata – o Capital.
Levando em consideração o item acima explicitado, as necessidades “fantásticas” do abstrato
mercadológico é, por exemplo, a produção industrial da cultura e a reprodução do consumo
alienado.

Nota-se isso num parágrafo de “A Sociedade do Espetáculo”:

“O movimento da banalização que, sob a diversão furta-cor do espetáculo, domina mundialmente


a sociedade moderna, domina-a também em cada ponto em que o consumo desenvolvido das
mercadorias multiplicou-se na aparência os papeis e os objetos a escolher. A sobrevivência da
religião e da família - a qual continua sendo a principal forma da herança do poder de classe –, e,
por isso, da repressão moral que elas garantem, pode combinar-se como uma só coisa com a
afirmação redundante do gozo deste mundo, sendo este mundo produzido justamente apenas como
pseudogozo que contém em si a repressão. À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta
puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do
momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento desta
matéria-prima.” (DEBORD, 1997, p. 39-40)8

À luz dessas considerações, é possível ter como principal função do sistema Capitalista a
transformação da vida social em mercadoria para acumulação do Capital, levando a uma
produção dominante da ação e consciência como mercadorias. Voltando ao que Adorno
apresentou no excerto de “Televisão como Ideologia”, os papeis desempenhados pela
personagem, bem como sua maneira tragicômica de perceber sua própria desgraça, é
reproduzida nos oráculos da modernidade como um produto a ser consumido.

A produção panóptica, se assemelha ao processo de docilização em Foucault 9: quando a forma


produtiva da alienação se concretiza numa espécie de “anatomia” prisional do agir
comunicativo, ou seja, toda forma inconsciente trazida pelos meios de comunicação como
mercadoria da “ação humana” é refletida no aprisionamento padronizado do indivíduo, ou seja,
na forma totalizante da autoalienação do trabalho. Uma “prisão internalizada” na
individualidade, para o controle de sua consciência natural e a admissão de um agir padrão,
mortificado, estranho a ele, traduzido na perda total da essência subjetiva e da alteridade
produzida naturalmente. A vigilância televisiva, que é resultado do mesmo processo de
produção da mercadoria espetacular, conduz o trabalhador a uma docilidade alienada, estranha
a ele, invertendo a relação trabalho-vontade consciente, para uma relação que “faz de sua
atividade vital, da sua aparência, apenas um meio para sua existência”10, citando Marx.

III
O destino dos “mortais” e a falácia pós-moderna

8
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1 ed. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio
de Janeiro, RJ: Contraponto, 1997. p. 39-40.
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 42 ed. Tradução: Raquel
Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 133-219.
10
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. 1 ed. Tradução: Jesus Ranieri. São
Paulo, SP: Boitempo, 2004. p. 85.
O processo de fiação, sorteio e corte do fio a que se destina a vida, deve-se a uma única
máquina, criada pelos Deuses e que se sobrepõe a sua própria sorte: a roda da fortuna. Não é o
objetivo deste ensaio realizar uma análise parnasiana de tal artifício mítico, como uma análise
da forma “idílica” da vida. Isso dependeria de um trabalho típico de críticos idealistas da
literatura, que se motivam apenas a uma análise pautada no moralismo e percepção da natureza,
bem como a análise da solidão e melancolia literárias. Tal tarefa fora desempenhada pelo jovem
Lukács e seu “anticapitalismo idealista” no início do século XX. O objetivo desse ensaio é
realizar uma crítica estrutural do capitalismo a partir da análise da forma concreta da alienação:
o espetáculo.

Como tal aspecto fora analisado (de forma demasiadamente resumida) nos dois capítulos que
antecedem a esse, o “mais sensato” deveria ser uma conclusão rápida e sucinta sobre o que fora
analisado até o presente momento. Entretanto, um ponto singular resta para cerrar tal reflexão:
o destino. Aquilo que, de certo modo, é a manifestação cristalizada da função social das irmãs
do destino. A fabricação, a escolha e o corte são desempenhadas unicamente por cada moira.
A Roda da Fortuna, manifesta duas funções: uma imediata, que é o sofrimento ou a bonança
passageiros, e uma a eterno prazo: a morte. Tudo é confinado no acaso da fortuna.

Se os deuses são tão poderosos, detentores da gigantesca riqueza sobre-humana, por quê estão
sujeitos a Roda da Fortuna, algo que fora criado por eles? Os homens rezam para tais
divindades, visando trazer uma espécie de alento para suas vidas. Soldados rezam para o Deus
da Guerra trazê-los boa-sorte numa batalha, mas ainda assim, continuam sujeitos ao destino de
tal máquina. Os oráculos não realizam desejos, mostram uma parcela destino, o homem ou
divindade é que tentam transformá-lo de acordo com seu desejo imediato. A mudança no ciclo
da fortuna, recai a uma transformação em um capítulo posterior da vida de tal indivíduo. O
homem grego depende sempre da sorte de um tear. Tudo aquilo que produz não reflete em
substância existencial. Sua vida é sujeita a uma relação de trabalho que lhe é exterior. O destino
do mortal é, independente de quaisquer tentativas de influência, alienado a ele. Sua existência
depende inteiramente de um sistema mecânico que é, por sua vez, exterior a sua capacidade.

O que difere o mito da realidade são as maneiras pelas quais o destino se manifesta. O
maquinário da fortuna só existe porque possui uma utilidade universal, social, mas que deixa
de ser apenas um reles aspecto de uma utilidade superficial para se tornar um fator determinante
da vida social. Na realidade, isto é, na sociedade capitalista, a lógica transforma-se. Não se
manifesta concretamente um mecanismo que decide o destino de cada indivíduo, isso é tomado
a partir de uma riqueza abstrata, na qual os homens (burgueses e proletários) estão sujeitos: o
Capital. A situação social da burguesia difere-se totalmente da situação social do proletariado,
mas ambas estão sujeitas ao “destino cíclico” do capitalismo. São engrenagens sujeitas ao
grande sistema de acumulação do Capital.

Obviamente, a forma pela qual a alienação se manifesta na burguesia, é infinitamente inferior


à abstração estranha da vida social dos trabalhadores, mas ambas possuem condições que as
põem em igual destino no curso da autovalorização do Capital. O foco deste ensaio é, como
fora já explicitado, compreender o movimento da alienação sobre o proletariado.

Para que o ensaio prossiga até sua conclusão, é absolutamente necessário retomar ao
pensamento de Marx sobre a Teoria da Alienação nos Manuscritos de Paris. Percebe-se que a
análise da “mortificação do trabalho” e, concomitantemente, a mortificação do trabalhador,
tomando a ideia do trabalho alienado ser uma espécie de “autossacrifício” 11, é um contraponto
clássico à ideia de Goffman sobre a “mortificação do eu", tratada anteriormente no capítulo I.
A mortificação goffmaniana é absolutamente particularista, e que não atende ao caráter
universal do trabalho. O “eu-mortificado” é universal, a alienação não ocorre apenas no campo
das instituições que corporificam o homem enquanto ser social. A exteriorização do indivíduo
ocorre em todo o processo de abstração do trabalho desempenhado por ele, visando a
acumulação capitalista. É absolutamente necessário discordar de toda visão não-universalista
da mortificação do eu.

A análise que não admite a relação homem-natureza como movimento universal, e realiza uma
espécie de “divisionismo social” com base em teorias que possuem uma carapaça totalizante
(utilizando até mesmo um discurso “revolucionário” como fachada), mas um organismo
interno totalmente individualizado e dissociado da realidade da exploração do trabalho humano
sobre a ordem sociometabólica do capital, configura-se num dos maiores problemas da
modernidade em crise, que é a criação de uma epistemologia intrinsecamente favorável ao
processo de autoalienação do gênero humano, como se o corpo fosse dissociado do ser,
enquanto ser social.

O leitor pode considerar que os autores deste curto ensaio entraram numa seara diferente da
abordada no título, na introdução e nos capítulos anteriores, mas a crítica a tais correntes de
pensamento (muitas das quais, oriundas da dimensão pós-moderna do maio de 68), é

8
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. 1 ed. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo,
SP: Boitempo, 2004. p. 83.
absolutamente necessária. Se é o objetivo deste ensaio é realizar uma crítica ao processo
totalizante da alienação sobre o proletariado, pois apenas uma crítica que mantenha as relações
homem (trabalhador)-natureza, enquanto ontológicas, será absolutamente essencial para
retomar os trabalhos, seja na academia, seja em demais campos de sociabilização, no que diz
respeito ao que o filósofo húngaro István Mészáros em “A Teoria da Alienação em Marx”
ressalta:

“O ponto decisivo é que, em nossa época, tornou-se historicamente possível - e também cada vez
mais necessário - enfrentar as questões cotidianas que se colocam aos movimentos socialistas em todo
mundo dentro das perspectivas que lhes são apropriadas: enquanto direta e indiretamente relacionadas com
a tarefa fundamental da ‘transcendência positiva da autoalienação do trabalho’.” (MÉSZÁROS, 2016, p.
26).12

Nessa perspectiva, transcender (Aufhebung, no sentido marxiano) o processo de autoalienação


do trabalho, ou seja, a relação do “trabalhador com sua própria atividade enquanto atividade
alheia”13, como enfoque primordial e revolucionário no campo do movimento operário (e, no
caso dos autores desse ensaio, na academia), é um dos pontos fundamentais para a emancipação
da ordem de reprodução sociometabólica do capital, em termos de pensamento social.

Levando em consideração tudo o que fora abordado até aqui, a conclusão deve ser lançada:
como os revolucionários, na posição de intelectuais do proletariado, desenvolverão uma crítica
radical aos pensadores populares do “anticapitalismo neutro”, propagado pela pós-
modernidade - “nem capitalista, nem socialista”, como querem atribuir, numa perspectiva que
generaliza toda e qualquer forma de binarismo, e que aliena a consciência crítica do
trabalhador, nutrindo as formas de dominação sociometabólicas institucionalizadas pelo
Capital, e mortificando assim o destino (numa perspectiva epistemológica) do proletariado –,
com o objetivo de emancipar a sociedade do sistema de reprodução sociometabólica do capital,
sob a lógica mortificadora da alienação?

A tarefa primeira, no que tange aos intelectuais revolucionários, é responder ativamente essa
pergunta, ou seja, combater ao máximo toda e qualquer corrente oriunda de um pensamento
divisionista e que não promove nenhuma mudança estrutural, seguindo ao processo de
“mercantilização da revolta”, como anteriormente fora citado por Debord, e assim desenvolver

12
MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. 1 ed. Tradução: Nélio Schneider.
São Paulo, SP: Boitempo, 2016. p. 26
13
Idem, p. 20.
os caminhos para a emancipação humana dos meios de exploração da força de trabalho,
transcender a autoalienação do trabalho e superar o capitalismo.

Conclusão

Visando encerrar o presente ensaio, é necessário que o leitor realize uma reflexão sobre três
fatores dos que foram tratados aqui e que correspondem ao processo de autoalienação como
“espetáculo” sociometabólico do Capital. Em primeiro lugar, o interlocutor precisa considerar
que toda forma de reprodução da lógica Capitalista na sociedade moderna para o consumo da
massa dos trabalhadores continuar “absolutamente influenciável e crédula”, como diz Freud 14,
parte de um gigantesco projeto de alienação da consciência essencialmente produtiva do ser
humano, em relação universalmente associada à natureza socialmente situada. A alienação se
concretiza no processo de espetacularização da comunicabilidade humana, ante o advento dos
meios de comunicação e educação do ser em relação à sociedade.

Em seguida, no mesmo “espetáculo” da autoalienação, surge o processo de banalização da


sociedade, que está intrinsecamente associado à massificação e a construção de uma
consciência exterior ao indivíduo, cujas funções tornam-se funções puramente animais, no que
tange às suas necessidades conscientes. Por fim, o destino da “Roda da Fortuna” do
Capitalismo é a mortificação completa da relação homem-natureza, para um trabalho
completamente exteriorizado de suas funções humanamente sociais.

Na mesma linha de crítica, é absolutamente necessário a toda classe trabalhadora e, em


especial, a que está inserida no plano da intelectualidade orgânica, desprender-se dos
“preciosismos intelectuais” e tentativas de abandono das discussões visando transcender
positivamente a autoalienação do trabalho, e retomar às análises críticas, objetivando uma
superação estrutural, objetiva e socialmente organizada, do sistema cíclico de autovalorização
do Capital. O objetivo deve ser inteiramente e indissociavelmente revolucionário.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural. 1 ed. São Paulo, SP: Editora Unesp, 2020. 288 p.;

BENJAMIN, César. “Marx e a transformação social” In: Seminário REFORMA OU


REVOLUÇÃO? Para além do capitalismo neoliberal: concepções, atores e estratégias,

14
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. 1 ed. Tradução: Renato Zwick.
Porto Alegre, RS: L&PM Editores, 2013. p. 50.
2004. 20 p. disponível em: http://resistir.info/brasil/cesar_benjamin_set04.html. Acesso em:
22/01/2022.;

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. 34 ed. Tradução: David Jardim. Rio de
Janeiro, RJ: Ediouro, 2006. 320 p.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1 ed. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro, RJ: Contraponto, 1997. 240 p.;

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 42 ed. Tradução: Raquel


Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 304 p.;

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. 1 ed. Tradução: Renato Zwick.
Porto Alegre, RS: L&PM Editores, 2013. 176 p;

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 9 ed. Tradução: Dante Moreira Leite.
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HOMERO. Ilíada. 1 ed. Tradução: Frederico Lourenço. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2013. 720 p.;

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 1 ed. Tradução: Rubens Enderle. São
Paulo, SP: Boitempo, 2007. 616 p.;

___________. Manuscritos econômico-filosóficos. 1 ed. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo,


SP: Boitempo, 2004. 192 p.;

MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. 1 ed. Tradução: Nélio Schneider. São
Paulo, SP: Boitempo, 2016. 296 p.

_________________. O poder da ideologia. 1 ed. (Boitempo). Tradução: Paulo César


Castanheira. São Paulo, SP: Boitempo, 2004. 568 p.

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