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Dissertações 157

limita apenas à filosofia grega, mas traduz um modelo cosmológico


amplamente difundido em todo o mundo antigo. No que respeita à dou-
trina estóica, este conceito é retomado e aprofundado através de aspectos
relevantes: o significado etimológico das três Moiras (lat. Parcas), as
"cruéis tecedeiras", símbolo da predestinação e da fatalidade, que se
estende ao conjunto da realidade humana, os vários significados do termo
heimarmene, usualmente traduzido por destino, sua relação com os fenó-
menos divinatórios e oraculares, bem como a sua acepção estritamente
naturalista, remetendo para os conceitos-chave de dinamismo, necessida-
de física e princípio de solidariedade universal.
As práticas divinatórias representam um facto cultural inegavelmen-
te instituído no mundo antigo, assente nalgumas premissas essenciais:
existe um logos divino que dirige, no mundo, o curso dos acontecimen-
tos, o seu poder estende-se também à humanidade, a quem revela o seu
desígnio e as coisas presentes, passadas e futuras. Com a defesa da adivi-
nhação os Estóicos tiveram por fim provar estes dois aspectos, aparente-
mente contraditórios, da sua doutrina: a existência da providência divina,
que se revela ao homem por meio de certos sinais prenunciadores, junta-
mente com a fatalidade do destino no mundo físico e humano.
Um último capítulo sublinha, por fim, a importância do conhecimen-
to do helenismo nas suas várias vertentes, histórica, cultural, religiosa,
com vista ao correcto enquadramento e compreensão dos problemas sus-
citados pelas filosofias deste período. O significado do movimento prota-
gonizado pelos Cínicos e a importância das restantes escolas socráticas
menores na caracterização das filosofías helenísticas, as origens do cepti-
cismo e o seu modelo de imperturbabilidade e indiferença face ao mundo
exterior, as novas formas cultuais - o culto da Fortuna e a astrologia -
introduzidas pela abertura e alargamento do mundo grego ao Oriente, a
concepção do Universo segundo Epicuro, e- a finalidade "terapêutica" da
sua filosofia, representam assim, ao lado das concepções estóicas antes
examinadas, outros tópicos fundamentais desta dissertação.

ANA ISABEL GAMA E SILVA, O conceito de Justiça Poética em Martha


Nussbaum. Dissertação de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte,
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2006. Orientadora:
Adriana Veríssimo Serrão.

A presente dissertação de mestrado assenta na leitura crítica de uma


obra de Martha Nussbaum de 1995, intitulada Poetic Justice, onde a auto-
ra procede a uma crítica social que apesar de se centrar na sociedade ame-
ricana parece igualmente válida para as sociedades liberais ocidentais. O
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seu alvo preferencial é a racionalidade marcadamente utilitarista que tem


vindo a dominar a razão de Estado nas diferentes esferas de deliberação.
Acatando o diagnóstico que Walt Whitman faz enquanto poeta do mal
social, Martha Nussbaum reconhece que falta um ingrediente essencial de
humanidade na lógica racionalista dominante que podia ser denominado
de visão poética do mundo. Se entendermos como Heidegger que a intui-
ção poética de artistas e escritores é a que melhor capta a essência das
coisas, podemos ver nas obras de arte e na literatura um contributo valio-
so para nos ensinar a olhar o mundo de modo mais verdadeiro.
Neste livro, o pensamento de Martha Nussbaum está investido de um
dinamismo reformador que a leva da crítica do utilitarismo à proposta
empenhada de uma alternativa viável para a racionalidade pública. Lança
assim as bases do que poderia surgir como um novo iluminismo, em que
a razão iluminada pela luz da imaginação poética seria capaz de um pen-
samento verdadeiro sobre o mundo e sobre a vida, propiciador de esco-
lhas e decisões adequadas à construção da sociedade justa a que todos
aspiramos. A literatura assume no projecto de reforma de Martha Nuss-
baum um papel central enquanto meio privilegiado de fazer trabalhar a
imaginação e de cultivar a humanidade.
Não devemos porém esquecer que é a filosofia que fornece os fun-
damentos desse projecto e define o enfoque das estratégias a seguir. A
esse respeito o posicionamento ético da autora que se filia explicitamente
na teoria moral de Kant e Aristóteles é a meu ver basilar e é à luz das
exigências colocadas por estes autores que deve ser entendida a relevân-
cia da literatura no panorama da discussão ética actual. O conceito de
pessoa kantiano dá-nos a medida da inviolabilidade do direito à realiza-
ção pessoal de todo o ser humano. Essa realização é desejável na medida
em que permite a passagem da condição animal à existência humana pro-
priamente dita e toma-se um dever de todos contribuir para que ela se
realize sem impedimentos. Ninguém - nem mesmo o Estado - tem legi-
timidade para interferir com os fins racionais de outro ser humano salva-
guardando-se assim o princípio que defende a sacralidade dos direitos
humanos. Se a ética kantiana reforça a dimensão da racionalidade e da
liberdade interior da pessoa humana, isto é, da autonomia, a ética aristoté-
lica dá-nos conta da imersão do ser racional no mundo para quem a feli-
cidade é um bem frágil que tem de ser negociado passo a passo com as
condições favoráveis ou desfavoráveis da existência. Essa negociação
exige prudência - no sentido de raciocínio prático - e visa o bem maior a
que ao ser humano pode aspirar que é a felicidade - eudaimonia - enten-
dida no sentido de realização pessoal e florescimento da pessoa. O con-
ceito de pessoa dá a medida do bem ético e da justiça social servindo de
fundamento simultaneamente ao comportamento moral do indivíduo e às
práticas da governação dos políticos.
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É a partir destes pressupostos que Martha Nussbaum desenvolve a


sua argumentação, quer contra o utilitarismo, quer a favor da integração
da literatura na formação ética de cidadãos e governantes. Contribuir para
a criação das condições propícias ao cultivo dos valores da pessoa em
todas as esferas do meio social e promover a consciência cívica e moral
que levam ao respeito desses valores é a principal preocupação da autora
que reflecte a partir da filosofia procurando fornecer os instrumentos
conceptuais capazes de estruturar a política e actuação dos poderes
governamentais. É à luz dessa preocupação, e por perceber que as condi-
ções sociais exigidas não foram criadas, que a autora critica o utilitarismo
que tem vindo a dominar a teoria da decisão política, especialmente na
esfera da economia que tem por tarefa assegurar níveis de qualidade de
vida dignos para que os cidadãos possam prosperar.
Nesta dissertação procurou explicitar-se a tese central de Poetic Jus-
tice, a saber, que a imaginação literária é um ingrediente essencial na
educação para a humanidade e para a justiça, seguindo de perto o fio da
argumentação da autora. O texto divide-se em cinco capítulos para além
da introdução e da conclusão abordando a seu tumo a crítica ao utilita-
rismo assente em quatro pontos fundamentais particularmente perversos,
o contraste entre a construção científica e a construção literária do mundo
onde é valorizado o papel da imaginação criadora na produção de uma
cosmovisão rica e próxima do real, a teoria cognitiva das emoções que as
reabilita como formas humanas de entender o nexo do mundo onde nos
encontramos imersos, a figura do espectador judicioso e do seu par literá-
rio como modelos de racionalidade pública ao mesmo tempo isenta e
preocupada, e por fim a aplicação desse novo modelo de racionalidade
aplicado ao direito jurisprudencial sob a figura de três casos reais.
Referindo brevemente o essencial de cada capítulo podemos come-
çar por reter os principais aspectos da crítica à lógica utilitarista que
domina os modelos económicos e que é atacada em quatro pontos cru-
ciais: a comensurabilidade que dá conta da abordagem matemática da
realidade e reduz qualidades singulares a dados quantificáveis passíveis
de serem medidos. A agregação que a partir da recolha de dados quanti-
ficados os agrega e dilui numa massa informe de informação para calcu-
lar médias e percentagens. A maximização que reconhece como única
norma de comportamento a maximização da utilidade seja ela qual for.
Por fim as escolhas exógenas atribuídas do exterior aos indivíduos que
esvaziados da dimensão interior da deliberação são vistos como meras
localizações de utilidades e preferências.
Martha Nussbaum questiona a imagem que estes modelos simplifi-
cadores elaboram do ser humano ao esvaziá-los do seu universo interior e
ao destituí-los de toda a singularidade e princípio autónomo de escolha.
Questiona além disso a veracidade de uma construção tão simplificada e
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abstracta da realidade e sugere que, enquanto norma de racionalidade


científica, o utilitarismo nos dá uma visão empobrecedora do mundo
humano ao mesmo tempo que encerra uma lógica sacrificial que se traduz
em mecanismos de exclusão que atentam contra a dignidade da pessoa
humana violando um direito intocável.
Contrastando com os modelos matemáticos, a construção literária da
realidade social e humana parece mais verdadeira e mais informada, for-
necendo um ponto de apoio mais seguro para a acção política. O romance
Hard Times de Charles Dickens serve de enquadramento ao argumento
da autora a favor do papel da imaginação literária numa construção gene-
rosa e realista do mundo mostrando tanto pela trama da sua história como
pelo efeito que a sua leitura provoca no leitor como a educação pode for-
mar ou deformar o espírito consoante estimula ou reprime o uso da ima-
ginação criadora.
Thomas Gradgrind, que parece representar uma caricatura maldosa
do espírito utilitarista, encontra no entanto o seu duplo real em Richard
Posner com quem a autora tem vindo a manter um continuado debate e a
quem dedica este seu livro. Em passagens citadas pela autora este opo-
nente real consegue criar um efeito de estranheza semelhante ao inspirado
por Gradgrind através da visão desumanizada que dá das pessoas que
reduz a máquinas esvaziadas de qualquer dimensão interior. Sissy Jupe é,
por contraste, a personagem que encarna a nova racionalidade iluminada
pela imaginação empática e benevolente. As suas intervenções aparente-
mente desadequadas mostram uma inteligência dos mistérios da vida e da
alma humana que nos cativam a atenção e nos levam a olhar o mundo de
um modo reconfortantemente humano. O mesmo não se pode dizer de
Bitzer, o aluno exemplar da escola de Gradgrind, que nos repugna pela
frieza do seu egoísmo e falta de empatia.
A forma como dois tipos distintos de educação fazem trabalhar a
imaginação de forma diferente, levando-a a projectar diferentes visões do
mundo e da realidade humana, é evidenciada por Martha Nussbaum que
desenvolve com base nisso uma proposta de educação para a moralidade
e para a cidadania responsável através da leitura. No quadro desse pro-
grama educativo, elege o romance realista como género literário mais
fecundo para a aprendizagem moral, mas sublinha também a importância
da literatura infantil no desenvolvimento da imaginação das crianças pois
cria-lhes o hábito de perscrutar o mistério daquilo que lhes é dado ver,
levando-as a adivinhar a interioridade que se abriga no seres humanos e
animais com que deparam na vida.
A imaginação literária favorece a identificação empática que leva ao
respeito pela pessoa do outro e ao reconhecimento da humanidade do
outro como um bem que deve ser cuidado, visto tratar-se de um ser que
sente e sonha como nós. Ao ajudar a posicionarmo-nos no lugar do outro
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através da identificação a que convidam as suas personagens, a literatura


cumpre uma função ética fundamental. Pela estrutura da sua narrativa e
pela sedução da sua linguagem a literatura leva o leitor a sair de si para
partilhar a vida de seres diferentes de si alargando a sua compreensão
sobre o que significa ser humano.
Este poder de sedução da literatura foi no entanto visto por Platão
como o seu maior perigo pois ao apelar às emoções e não à razão, pode-
mos ser levados a identificar-nos com personagens que não servem de
modelo ético. Ao propor a literatura como meio de educação para a mora-
lidade Martha Nussbaum terá de provar contra Platão que as emoções são
guias fiáveis capazes de iluminar a razão nas decisões que presidem à
acção e terá de responder a três objecções clássicas contra as emoções:
que são mecanismos de resposta irracionais, que são baseadas em juízos
sempre falsos e que não são imparciais. A autora desenvolve uma teoria
cognitiva das emoções onde defende que elas contêm em si um juízo de
valor sobre os objectos e as situações com que deparamos no mundo não
sendo nem irracionais nem desajustadas da realidade e tendo a virtude de
romper a indiferença relativamente àquilo que nos rodeia.
As emoções humanizam aos juízos de razão mantendo-os focaliza-
dos em aspectos directamente relacionados com o bem-estar e a felicida-
de dos indivíduos. Fornecem, desse modo, os elementos necessários para
a inserção do pensamento no mundo. As emoções não são infalíveis e
para prevenir os excessos e as respostas desajustadas, as emoções devem
ser devidamente filtradas. Será a própria posição do leitor - ao mesmo
tempo imerso, pela identificação empática, e exterior ao drama, por não o
estar a sofrer directamente - que vai fornecer esse filtro, à semelhança da
figura do espectador judicioso em Adam Smith que num mundo onde
cada um é movido pela prossecução do seu próprio interesse pessoal
assegura um ponto de vista simultaneamente isento e implicado que se
institui como modelo de racionalidade pública.
Martha Nussbaum entende a literatura como um modo próprio de
reflexão moral a ser reconhecido pela filosofia e integrado no quadro
mais sistemático da teoria ética. A este respeito devemos considerar a
desconfiança de alguns críticos que apontam a falta de rigor moral e até
científico de certos autores o que põe em risco o projecto de Nussbaum.
A autora vai porém buscar a Wayne Booth um mecanismo capaz de
resolver em parte este problema. A "co-dução" é um raciocínio prático
comparativo que se exerce em cooperação com outros leitores e onde as
intuições de cada um relativamente ao romance submetido à discussão
serão sujeitas à crítica e ao confronto com as teorias éticas dominantes.
E a figura da imparcialidade do espectador judicioso e do seu homó-
logo leitor judicioso que vai permitir a Martha Nussbaum desenvolver o
seu conceito de justiça poética. Ao aplicar-se ao juiz no tribunal, este
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modelo de sensibilidade e raciocínio permitem as decisões mais justas e


acertadas do ponto de vista simultaneamente jurídico e humano. Uma
justiça baseada na aplicação mecânica da lei é uma justiça desumanizada.
O sentimento empático é necessário e desejável dentro dos limites que lhe
traçou Adam Smith e dentro do quadro da lei estipulada nas instituições
legais. Tomando este modelo de imparcialidade como referência é-nos
dado compreender a força e a dimensão da figura do poeta juiz de Whit¬
man. O poeta surge como um juiz especialmente apto a entender a reali-
dade humana e a julgar com toda a justiça. A justiça poética diz respeito a
um sentido da justiça iluminado pelo sentimento de empatia e humanidade.
Através da instituição da prática alargada da leitura Martha Nuss¬
baum pretende ajudar a cultivar a imaginação empática e a alargar a
compreensão do outro necessária à construção de uma sociedade mais
justa tanto do ponto de vista social como jurídico.

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