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Sobre a importância dos clássicos da Sociologia

Introdução do livro: FARGANIS, J. Leituras em Teoria Social, SP: McGraw Hill – Ebook
disponível na biblioteca da PUC-Minas
A tradição clássica representa aquelas obras que vieram a ser consideradas basilares
na disciplina da sociologia. Em geral, são considerados excelentes exemplos do tipo de
trabalho no qual as pessoas que se dizem sociólogas deveriam se envolver; e, por
serem exemplares, continuam servindo como fonte de ideias e hipóteses sobre (e de
orientações para) a realidade social. Em sua maioria, essas obras tendem a abordar um
amplo leque de problemas emergentes da transição de uma sociedade agrária para
uma sociedade industrial.
De modo geral, os textos clássicos nos compelem a perguntar o que queremos dizer
com o termo sociedade. Todos nós consideramos ponto pacífico que sabemos o que é
sociedade; no entanto, se fizer uma pausa, o leitor vai refletir e pensar. A sociedade
nada mais é do que um conjunto de indivíduos? Como esses indivíduos diferentes são
reunidos para conseguir cooperar e se entender? A sociedade tem uma existência fora
de nós, ou a sociedade está em nós, em nossa consciência e, em caso afirmativo, como
foi parar lá? Se, como alguns defendem, a sociedade é um sistema coletivo de crenças
comumente compartilhadas e regras de comportamento combinadas, quem fabrica as
crenças e as regras, e elas interessam a todos ou apenas às elites dominantes? Marx e
Durkheim enfrentam essas perguntas e chegam a respostas muito diferentes. Mas,
apesar das suas diferenças, eles estão preocupados com questões fundamentais que
definem a iniciativa sociológica, e o leitor é convidado a meditar sobre esses assuntos
com a orientação qualificada de algumas das mentes mais brilhantes na teoria social.
Auguste Comte (1798-1857), muitas vezes citado como o primeiro a usar a palavra
sociologia para se referir à nova disciplina, procurava usar evidências históricas para
estabelecer as leis do desenvolvimento social. Foi menos rigoroso e sistemático em sua
pesquisa do que aqueles que o seguiram e, por esse motivo, pode ser visto como
protossociólogo. As influências contraditórias que moldaram a sua obra são evidentes,
por um lado, em seu compromisso com a ciência e o progresso e, por outro, em seu
ponto de vista de que o individualismo era “a doença do mundo ocidental”. Deve-se
recordar que os pensadores do Iluminismo endossaram a opinião de que o progresso
científico e os direitos individuais faziam parte de uma ordem social democrática
emergente. Foi o Contrailuminismo que condenou a ideia de individualismo e ofereceu
a noção de que a sociedade e suas instituições são fundamentais e moldam o
comportamento dos indivíduos. Comte recorre ao Iluminismo para suas opiniões sobre
ciência e progresso e lança mão do Contrailuminismo para seus pontos de vista sobre a
relação do indivíduo com a sociedade. A teoria de Comte sobre a sociedade baseia-se
em sua convicção de que a abordagem científica, ou o positivismo, era o método mais
adequado para compreender a ordem social e a mudança social. Por positivismo,
Comte queria dizer o estudo da sociedade com base em observação sensorial,
comparação histórica e experimentação na busca de leis universais, em vez de confiar
em princípios morais abstratos sobre a natureza humana e a justiça social. Comte
representa um ponto de vista que desdenha a desorganização da política democrática
e conduz a um endosso do governo por uma elite de conhecimento. Ao contrário dos
reis-filósofos de Platão, os governantes da sociedade moderna seriam reis-sociólogos,
gente com conhecimento técnico sobre as operações da sociedade e as suas
consequências. Hoje nos referimos a esse tipo de pensamento como tecnocrático, e,
portanto, para nós, Comte é o primeiro tecnocrata.
Em geral, Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-
1920) são considerados a “santíssima trindade” da tradição clássica. Embora existam
importantes semelhanças conceituais entre eles, existem consideráveis diferenças
metodológicas e processuais, algumas das quais já foram comentadas; não obstante,
os significativos pontos de contraste nos textos seguintes estarão nos seus
pressupostos morais muitas vezes inconciliáveis, o que lhes proporciona perspectivas
críticas sobre a modernidade, e nas diferentes maneiras com que eles empreendem a
iniciativa sociológica.
Marx e Comte mostravam semelhanças meramente superficiais em suas abordagens.
Ambos estão interessados em uma ciência da sociedade, ambos encaram a história
como a fonte de dados empíricos e ambos tendem a pensar em termos de estágios de
desenvolvimento histórico e no valor preditivo das suas teorias sociais. Porém, Marx é
um pensador dialético, em contraste com o positivismo de Comte; por isso, Marx
percebe o desenvolvimento social como consequência de classes em conflito, agindo
para moldar uma sociedade futura. O raciocínio dialético tenta capturar o caráter
dinâmico da realidade social, encarando a mudança como fruto da evolução histórica
de forças de oposição. Nesse caso, refere-se à capacidade de uma classe de recusar,
desafiar e derrubar a dominação da outra e criar mudanças revolucionárias. Em vez
dos tecnocratas de Comte, cuja previsão lhes permite acesso privilegiado ao curso
futuro do desenvolvimento social, Marx evoca um proletariado ativo e politicamente
consciente, cuja opressão coletiva compele a agir em nome de sua própria libertação
e, assim, alterar profundamente as circunstâncias sociais, econômicas e políticas de
sua existência. O cerne da teoria de Marx da sociedade industrial é a visão moral do
ser humano como essencialmente livre e do capitalismo como modo de produção que
escraviza as pessoas por meio de arranjos institucionais que definem a relação entre
trabalho assalariado e capital. Marx observou o desenvolvimento do capitalismo e viu
nele um sistema que legitimava a exploração de uma classe por outra. Procurou expor
a verdadeira natureza dessa relação ao desafiar as noções aceitas de propriedade
privada e de liberdade individual. Marx projetou uma destruição revolucionária do
capitalismo como etapa necessária ao desenvolvimento emancipatório da
humanidade.
Não menos sincero e profundamente perturbado pelo advento da sociedade industrial
moderna, Durkheim analisou que o problema central da modernidade consistia na
desagregação daquelas crenças morais compartilhadas que se desenvolvem como
resultado de um compromisso mútuo com ideais e valores mútuos pelos membros de
uma comunidade. Para Durkheim, a condição da modernidade caracteriza-se pela
desagregação de laços e vínculos comunais, na medida em que os indivíduos são
obrigados a viver em um ambiente social caracterizado como anômico, isto é, sem
normas e sem leis. As semelhanças com as opiniões conservadoras do
Contrailuminismo devem ser observadas, embora Durkheim não buscasse retornar à
velha ordem. O termo anomia literalmente significa sem lei, e, na visão de Durkheim,
essa condição generalizada da modernidade literalmente destrói os indivíduos que
devem existir dentro dela, pois essas condições são responsáveis por aumentos na
taxa de suicídio. Enquanto Marx encara regulamentações e regras da sociedade
capitalista como um conjunto de manifestações de interesse de classe e dominação e
defende sua destruição a fim de libertar o proletariado da dominação, Durkheim
argumenta que regulamentações e regras legítimas são características necessárias e
essenciais da vida social. As pessoas precisam de ideais para acreditar e precisam de
regras para orientar sua vida social. A regulamentação moral e a integração social são
aspectos positivos de uma sociedade saudável, na qual os indivíduos possam prosperar
como membros de uma comunidade. Durkheim enfrentou as características
destrutivas da anomia e o crescimento do individualismo na sociedade moderna. O
“culto do indivíduo” foi sua tentativa de conciliar a tendência central da modernidade
rumo ao individualismo com a visão de que o consenso moral está ameaçado por
fragmentação, extrema diferenciação e individualização.
A maior parte da discordância entre Marx e Durkheim recai em seus pressupostos
morais sobre a relação do indivíduo com a sociedade. A visão emancipatória de Marx
precede suas análises empíricas e fornece a base para sua teoria. Marx questiona a
legitimidade de qualquer comunidade, ideais ou instituições que toleram, sustentam
ou justificam a desigualdade, ou seja, a dominação de uma classe sobre a outra. Marx
afirma que, com a destruição da propriedade privada, a igualdade de todos pode ser
assegurada pelo comunismo, à medida que todos os membros se tornam participantes
iguais na vida social, política e econômica da comunidade. Por sua vez, Durkheim
rejeita essa concepção igualitária, considerando-a utópica e impossível de concretizar.
Argumenta que certas desigualdades são naturais e não podem ser erradicadas. É
possível reformar as instituições no intuito de adequá-las mais fielmente aos ideais
igualitários estabelecidos pela sociedade. Assim, Durkheim favorece políticas que
promovam a igualdade de oportunidades, pois elas permitem que os talentos e as
habilidades naturais dos indivíduos sejam julgados independentemente de raça,
gênero e etnia. Portanto, se as instituições da sociedade forem leais a esse princípio de
justiça, os indivíduos se identificarão com a comunidade, compartilhando os ideais e o
consenso moral comunitários, e julgarão os seus resultados como justos e legítimos.
Em contrapartida, se as instituições econômicas favorecerem os privilegiados e se
aventurarem na formação de classes e no conflito de classe, os ideais de aglutinação
da comunidade serão rompidos. Alternativamente, se as políticas econômicas
favorecerem o menos privilegiado pela tentativa de igualar os resultados, a sociedade
corre o risco de perder o apoio da maioria dos seus membros que acredita que as
recompensas devam ser conferidas aos que demonstram capacidade. Por conseguinte,
Durkheim recomenda reformas sociais e econômicas que equalizem as condições e
forneçam credibilidade aos ideais sociais de igualdade de oportunidade, porque essas
reformas fomentariam a integração e a aceitação das normas reguladoras como
legítimas. Para Durkheim, em nítido contraste com Marx, é possível que a comunidade
tenha desigualdade, contanto que essa desigualdade decorra de méritos e conquistas.
A teoria de Marx pretende libertar o povo do mesmíssimo sistema que Durkheim
deseja reformar e legitimar. Embora ambos os teóricos estejam analisando e
interpretando o capitalismo industrial, eles o fazem a partir das diferentes
perspectivas formadas a partir dos pressupostos morais que eles defendem sobre o
indivíduo e a sociedade. Os pontos de vista de Durkheim sobre o método sociológico
são claramente modelados com base nas ciências naturais, e parte de seu trabalho
reflete um compromisso com a análise estatística e com a sistemática coleta de dados
que o torna exemplar para a sociologia científica. Durkheim é meticuloso ao elaborar
sua argumentação, impecável ao usar a análise lógica e preciso ao organizar as
evidências que conduzem às suas generalizações. O estudo de Durkheim Suicídio é
considerado um modelo de como deve ser conduzida uma análise sociológica, e sua
obra As regras do método sociológico é amplamente reconhecida como uma relevante
contribuição para a metodologia das ciências sociais. A teoria da ação de Max Weber
foca o indivíduo como agente social, e sua metodologia verstehende (interpretativa)
nos convida a explorar o significado subjetivo da ação do ponto de vista do agente. A
esse respeito, o trabalho de Weber parece estar em conflito com as inclinações mais
sistemáticas e positivistas da metodologia de Durkheim e a abordagem dialética
adotada por Karl Marx. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber
argumenta que as crenças religiosas podem ter consequências econômicas profundas
e até mesmo revolucionárias, pois as ideias não são simplesmente consequências
epifenomenais dos modos econômicos de produção. Nesse estudo, Weber revela
como a crença nos princípios do calvinismo levou a mudanças nas atitudes dos crentes
em relação ao trabalho que se tornaram um fator importante no surgimento do
capitalismo. Em oposição à visão racional de Marx da história como desenvolvimento
ordenado que conduz a parâmetros logicamente determinados, ou telos, a percepção
de Weber considera que a história é incerta e acidental e que a ação humana muitas
vezes envolve resultados imprevistos e inesperados. Weber parece dizer, embora com
certa hesitação, que o capitalismo foi a consequência imprevista das crenças
protestantes e não uma transição programática e racional do feudalismo, conforme
descrito por Marx. “Classe, status, partido” centra-se nas perspectivas de Weber sobre
o poder na sociedade moderna, em contraste com a noção de Marx sobre classe
dominante. Weber parece compartilhar a definição de Marx sobre as classes, mas nega
a singular importância que Marx atribui a elas. Em vez de considerar as classes e a
consciência de classes como um desenvolvimento necessário no capitalismo, Weber
encara os grupos de status como comunidades naturais com impacto mais direto e
imediato sobre a consciência e as ações dos indivíduos. Além disso, a análise de Weber
desafia a visão marxista de que há uma única avenida de poder na sociedade e de que
a classe econômica dominante é a classe governante. A posição da classe econômica, a
honra do status e a liderança persuasiva de um partido são maneiras distintas para se
chegar ao poder. Talvez se sobreponham, mas não são idênticas e nem sempre são
encontradas juntas no mesmo indivíduo. Os ensaios de Weber sobre metodologia
fornecem uma excelente discussão da problemática em torno da ideia da objetividade
e detalham suas contribuições para um método distintamente sociológico. Weber
emprega uma metodologia interpretativa, lançando mão de modelos racionais ou tipos
ideais para desenvolver temas ou generalizações a partir do exame minucioso dos
dados históricos. Ele aborda as informações históricas do ponto de vista de um
sociólogo; a partir desses ricos dados empíricos, extrai observações sobre classe,
status, partido, religião e modernidade. As diferenças entre a abordagem de Weber e
o método dialético de Marx sinalizam um conflito insolúvel e duradouro sobre a
relação entre pensamento e ação, entre razão e realidade. Para Marx, o objeto da
análise social é mudar o mundo; para Weber, é suficiente tentar compreendê-lo. E
embora Marx acredite que sua metodologia dialética revele as forças de mudança
revolucionária, Weber afirma que o pensamento racional é limitado e as prescrições
para a mudança são a província de políticos e não de cientistas sociais. Weber defende
que é possível a objetividade nas ciências sociais, embora apenas sob condições
cuidadosamente definidas. Ele reconhece a influência dos valores morais na pesquisa
social, mas afirma que esses valores entram em conjunturas específicas e não devem
influenciar os resultados da pesquisa. Os analistas sociais que defendem valores
radicalmente diferentes devem ser capazes de concordar com os fatos, mesmo que
suas interpretações sobre significado e importância sejam diferentes. Por conseguinte,
Weber acredita que é impossível conduzir pesquisas sociais sem reconhecer o papel
exercido pelos valores. Weber não defende a eliminação dos valores da pesquisa e
considera isso uma clara impossibilidade. No entanto, esse reconhecimento não
precisa levar à visão de que todas as pesquisas são contaminadas pela subjetividade e,
portanto, são anticientíficas. A posição de Weber é mais sutil e mais complexa. Embora
reconhecendo o papel dos valores, ele delimita seu impacto e se recusa a submeter o
discurso racional às arbitrárias reivindicações de poder.

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