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CRÍTICA

m arxista
4ESENHAS Balanço do debate:
a transição do
feudalismo
ao capitalismo
Eduardo Barros Mariutti, São Paulo,
Editora Hucitec, 2004, 243 pp.

ANGELA LAZAGNA*

O livro Balanço do debate: a tran- Na última parte, o autor discute a in-


sição do feudalismo ao capitalismo traz a terpretação de Robert Brenner da aná-
público a dissertação de mestrado de lise marxiana do materialismo históri-
Eduardo Mariutti, uma pesquisa reali- co e da transição. Privilegiarei, nessa re-
zada no Instituto de Economia da Uni- senha, a discussão relativa ao debate
camp. Como o próprio título denota, o Dobb/Sweezy sobre a transição.
autor nos apresenta um balanço do de-
bate sobre a transição do feudalismo ao I.
capitalismo que foi travado na década
de 50, principalmente por Maurice Dobb caracteriza o modo de pro-
Dobb e Paul Sweezy. dução feudal pela relação de apropria-
Os capítulos estão dispostos em ção do excedente por parte do senhor
três partes. Na primeira, o autor apre- feudal em relação ao produtor direto,
senta as teses sobre a transição defendi- que tem a posse dos meios de produção
das por Dobb e Sweezy e realiza uma e pode produzir para a sua subsistên-
comparação entre ambos. Na segunda cia; porém, devido aos laços da servi-
parte, o autor apreende o chamado de- dão, ele deve repassar o excedente da
bate Brenner, que ocorreu na década de produção para o seu superior imediato.
70, a partir da polêmica Dobb/Sweezy. Devido a esta relação de propriedade –

*Mestre em Sociologia pela Unicamp. E- mail: angela_lazagna@yahoo.com.br.

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a de os produtores diretos não estarem prósperos (que se tranformaram em pe-
separados dos meios de produção –, os quenos e médios produtores), de semi-
senhores feudais, para se apropriarem proletários (camponeses pobres) e dos
do excedente produzido, apelam a dis- grandes mercadores que somente se in-
positivos extra-econômicos fundados na teressavam pela disparidade de preços
violência e na tradição para coagir os do mercado e se aliavam aos senhores
produtores diretos. feudais, cujos rendimentos estavam pre-
Segundo Dobb, foram as contra- judicados. Para Dobb, a razão central
dições internas do modo de produção da dissolução do modo de produção
feudal, centradas no antagonismo en- feudal “…encontra-se na revolta dos
tre senhores feudais e servos, que leva- pequenos e médios produtores contra a
ram à sua dissolução. A crescente ne- exploração feudal, (...) [o que] acabou
cessidade dos senhores feudais por maio- resultando em sua independência parcial”.
res rendimentos os levou a intensificar Conseqüentemente, houve a transforma-
a exploração sobre os servos, fato que ção da apropriação do excedente, ou seja,
acentuou a luta de classes e determinou, os produtores imediatos foram separa-
a longo prazo, a dissolução da econo- dos dos meios de produção transfor-
mia feudal. mando-se em trabalhadores livres para
Neste sentido, o comércio e a venderem sua força de trabalho, carac-
emergência das cidades não foram os terística central do modo de produção
fatores decisivos no declínio do feuda- capitalista.
lismo, pois estão restritos aos limites do Dobb define o período de transi-
modo de produção feudal; o comércio ção que se estende dos séculos XIV ao
ocorre enquanto troca de excedente, e XVI como feudal (o Estado Absolutis-
não como ocorre no modo de produ- ta era feudal), mas num estágio avan-
ção capitalista, enquanto realização da çado de desintegração, quando as rela-
mais-valia. O dinheiro, na economia ções capitalistas ainda eram incapazes
feudal, configura-se apenas como inter- de se tornar dominates.
mediário da troca, não se transforman- Já Sweezy, ao se contrapor à tese
do em capital. defendida por Dobb, afirma que a prin-
Mas Dobb não dispensa a influên- cipal característica da economia feudal
cia destes fatores sobre a transição. Nesse é a de produzir valores de uso. Assim, o
sentido, a emergência das cidades in- desenvolvimento das relações de troca
centivou a fuga dos camponeses, fato no seio de uma sociedade produtora de
que prejudicou os senhores feudais no valores de uso foi o principal fator de
que diz respeito aos seus rendimentos. sua desestabilização.
Já a existência do comércio contribuiu O comércio à longa distância ope-
para o processo de diferenciação social, rou como uma força externa às mar-
por meio da formação de camponeses gens da sociedade feudal da seguinte

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maneira: o desenvolvimento do comér- de transição predominaria em Grundrisse
cio intensificou as forças produtivas e e O capital, quando a transição dar-se-ia
promoveu uma organização racional da pela “reprodução conflituosa da estrutura
sociedade e o aprimoramento da divi- feudal”, ou seja, derivaria da luta entre
são do trabalho. Decorreu daí uma as classes do modo de produção feudal.
maior produtividade que minou as re- Para Mariutti, existem em Marx uma
lações servis de produção (os servos tendência dominante e uma tendência
abandonaram suas terras procurando subordinada de transição, porém elas se
melhores condições de trabalho) e gra- localizam dentro de um único conceito
dualmente as formas de trabalho livre e de materialismo histórico. Tal ambigüi-
assalariado se estabeleceram. Assim, o dade perpassaria a polêmica Dobb/
valor de troca se desenvolve devido ao Sweezy.
comércio. Ao contrário de Dobb, Sweezy Em suas Considerações finais,
denomina o período de transição do Mariutti explicita que o debate Dobb/
modo de produção feudal ao modo de Sweezy surgiu de outro iniciado em 1940
produção capitalista como um “sistema sobre a natureza da Revolução Inglesa
de produção pré-capitalista de merca- de 1640, decorrente de um estudo de
dorias”, pois os elementos predominan- Christopher Hill. A discussão perpassou
tes não eram feudais e nem capitalistas, dois argumentos: 1. A Revolução de
propondo a coexistência de diversas clas- 1640 foi burguesa (houve a tomada do
ses dominantes. Estado pela burguesia e a conseqüente
consolidação do capitalismo); 2. A Re-
II. volução de 1640 não foi burguesa, e sim
uma contra-revolução, pois a burguesia
Mariutti critica a interpretação de assumira momentaneamente o controle
Brenner das obras de Marx. Para Brenner, do Estado para conter a investida da aris-
existiriam em Marx dois modelos de tocracia em declínio.
transição e, portanto, duas versões exclu- O que fica claro na leitura do li-
dentes do materialismo histórico. Um vro é que Dobb se alinha ao primeiro
modelo estaria presente em seus primei- argumento e Sweezy ao segundo. Ma-
ros escritos, principalmente em A ideo- riutti tende a privilegiar a interpretação
logia alemã, quando o processo de tran- de Dobb da transição.
sição do feudalismo ao capitalismo dar- Mariutti intenta se esquivar de
se-ia pelo primado do desenvolvimento uma interpretação economicista ou não
das forças produtivas em conexão com o marxista da transição. Entretanto, ele não
grau de divisão do trabalho. A luta de consegue resolver a dicotomia “causas in-
classes não seria a causa da transição, ternas/causas externas” que teria ocasio-
apesar de a burguesia ser encarada como nado a dissolução do modo de produ-
classe revolucionária. Já o outro modelo ção feudal. Para tentar apontar uma reso-

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lução dessa dicotomia, apoiar-me-ei em ce vinculada às relações de produção
uma tese de suma importânica sobre a anteriores, ou seja, em defasagem em
transição desenvolvida por Etiene Balibar relação ao político. A transição só ocor-
no texto “Conceitos fundamentais do re se se restabelecer a correspondência,
materialismo histórico”, que compõe um ou seja, se a economia se ajustar às rela-
dos capítulos da obra organizada por ções políticas do novo Estado.
Louis Althusser, Para ler O capital. A partir da interpretação balibariana
Balibar indica o papel do político das teses defendidas por Dobb e Sweezy,
na transição, defendendo a tese da ante- pode-se dizer que a contradição que oca-
cipação do político em relação à econo- siona a transição do modo de produção
mia como uma das etapas da transição feudal ao modo de produção capitalista é
de um modo de produção ao outro. interna e derivada, ou seja, o desenvolvi-
Desse modo, ao analisar um determina- mento das forças produtivas do modo de
do modo de produção, Balibar aponta a produção feudal gerou elementos contra-
necessidade de correspondência entre a ditórios que criaram condições para o sur-
estrutura econômica e a jurídico-políti- gimento dos elementos que compõem o
ca. Sem essa correspondência, a repro- modo de produção capitalista. Assim, a
dução do modo de produção não pode Revolução Inglesa de 1640 foi necessária
ocorrer. Balibar defende que a transição para que o Estado absolutista (feudal) se
não é ocasionada pela contradição entre transformasse em Estado capitalista, para
forças produtivas e relações de produção, a viabilização da substituição do trabalho
que nega o papel da revolução política compulsório pelo trabalho livre, condição
na transição. A contradição, para Balibar, sine qua non para o desenvolvimento das
é “derivada e não originária”, ou seja, não forças produtivas capitalistas em detrimen-
está presente na estrutura, mas nos efei- to das forças produtivas feudais, ou seja,
tos da estrutura. A reprodução amplia- para o desenvolvimento do mercado de
da, isto é, a dinâmica do modo de pro- compra e venda de força de trabalho e,
dução é que gera elementos contraditó- portanto, para o desenvolvimento do pró-
rios que poderão gerar os elementos do prio modo de produção capitalista. Para
futuro modo de produção. finalizar essa análise, pode-se dizer que as
Neste sentido, a transição só ocor- classes sociais que dirigiram o processo re-
re quando existir uma relação de não- volucionário tiveram como causa de sua
correspondência entre a estrutura econô- formação o processo de desenvolvimento
mica e a jurídico-política. A antecipa- (feudal) do comércio, das cidades e da ma-
ção do político se dá porque o desen- nufatura, o que caracterizou os últimos
volvimento das forças produtivas abre séculos do feudalismo. Ressaltamos, as-
as possibilidades para isso e, assim, o sim, que o desenvolvimento das forças
Estado pode mudar a natureza de sua produtivas criou condições derivadas para
política. Porém, a economia permane- a possibilidade dessa transição.

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LAZAGNA, Angela. Resenha de: MARIUTTI; Eduardo Barros. Balanço do debate: a
transição do feudalismo ao capitalismo. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004, 243p. Crítica
Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.20, 2005, p.182-185.

Palavras-chave:Feudalismo; Capitalismo; Anos 50.

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