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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL

CAMPUS CHAPECÓ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

ENILSON SILVA GONÇALVES

A CRÍTICA DE MARX À TEORIA DE ESTADO ÉTICO HEGELIANO


COMO SENDO UMA ANTINOMIA SEM SOLUÇÃO

CHAPECÓ
2023
ENILSON SILVA GONÇALVES

A CRÍTICA DE MARX À TEORIA DE ESTADO ÉTICO HEGELIANO


COMO SENDO UMA ANTINOMIA SEM SOLUÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS), como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Ediovani Antònio Gaboardi

CHAPECÓ
2023
ENILSON SILVA GONÇALVES

A CRÍTICA DE MARX À TEORIA DE ESTADO ÉTICO HEGELIANO


COMO SENDO UMA ANTINOMIA SEM SOLUÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS), como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Filosofia.

.
Esta dissertação foi defendida e aprovada pela banca em: xx/xx/2023

BANCA EXAMINADORA

__________________________________
Prof. Dr. Ediovani Antônio Gaboardi – UFFS
Orientador

__________________________________
Prof. Dr. Danilo Enrico Martuscelli – UFO
Avaliador

__________________________________
Prof. Dr. Clovis Brondani – UFFS
Avaliador
Dedico este trabalho a Fernanda Xavier Theis minha esposa
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu professor orientador Prof. Dr. Ediovani Antônio Gaboardi pelas
horas dedicadas na elaboração deste trabalho, pela paciência nos diversos momentos
em que deixei de acreditar em mim.

Agradeço a minha família, especialmente aos meus filhos Pedro e Joaquim e a


minha neta Rafaela, pela compreensão nos muitos momentos de ausência.

À CAPES e à Pós-Graduação da UFFS pela Bolsa de Estudos do Programa de


Mestrado.

Ao Departamento de Filosofia e ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia


da UFFS pelos diversos apoios institucionais.
RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar a crítica à noção hegeliana de Estado


desenvolvida por Marx no manuscrito Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Marx critica
especialmente o conceito de Estado, presente no §261 da Filosofia do Direito de Hegel. Marx
acusa o Estado hegeliano de ser uma antinomia sem solução. Este trabalho propõe que a sua
argumentação tem raízes na própria dialética hegeliana. Coloca-se em diálogo as visões de
Althusser e Lukács, mostrando que, não obstante as polêmicas, é possível identificar um
jovem Marx já apropriando-se do referencial teórico de Hegel, mas afastando-se de seu
idealismo. Em Hegel, o Estado tem a pretensão de superar as contradições entre os interesses
privados presentes na sociedade civil burguesa em vista da realização dos interesses comuns.
Para o autor, as contradições são fenomênicas, quer dizer, são decorrentes de uma
consideração estática do objeto. Elas estão na forma e não na essência do que é o Estado. Para
Hegel, na essência processual do Estado as contradições são suprassumidas, uma vez que
existiria uma unidade, uma disposição da sociedade civil burguesa em pôr o Estado como
mediador dos conflitos. Nesse sentido, o Estado seria imanente à sociedade civil. Marx, por
outro lado, defende que Hegel não é capaz de demostrar essa unidade fundamental. Para ele,
não há essa tendência de compatibilizar os interesses da sociedade civil é de subordiná-la ao
interesse universal. Logo, para Marx, Hegel apresenta um bom diagnóstico do Estado
moderno, ao defini-lo como resultado do conflito de interesses da sociedade civil, mas erra ao
propor que ele é capaz de resolver esses conflitos. Para ele, o Estado permanece como uma
“antinomia sem solução”, e a suprassunção, que Hegel afirma ser realizada pelo Estado, nada
mais é do que uma mistificação decorrente de seu idealismo, que substitui a análise do real
pelo recurso à sua lógica categorial. Em especial, o trabalho pretende mostrar que essa
conclusão crítica de Marx, em que ele rompe com o idealismo de Hegel, baseia-se na própria
ruptura de Hegel em relação o pensamento moderno. Assim, em sua Crítica à Filosofia do
Direito de Hegel, Marx “atualiza” a dialética, rompendo com o idealismo político e filosófico
de Hegel e propondo uma filosofia interessada em dar conta da realidade, em oposição ao
desenvolvimento teórico mistificado proposto por Hegel.

Palavras-chave: Marx; Hegel; Filosofia do Direito; Estado; crítica.


ABSTRACT

The objective of this work is to present the critique of Hegelian notion of the State developed
by Marx in the manuscript Critique of Hegel's Philosophy of Right. Marx specifically
critiques the concept of the State presented in §261 of Hegel's Philosophy of Right. Marx
accuses the Hegelian State of being an unsolvable antinomy. This work proposes that his
argumentation has roots in Hegelian dialectics itself. It engages in a dialogue between the
views of Althusser and Lukács, showing that, despite their controversies, it is possible to
identify a young Marx already appropriating Hegel's theoretical framework but moving away
from his idealism. In Hegel, the State aims to overcome the contradictions between private
interests present in bourgeois civil society in order to achieve common interests. For the
author, these contradictions are phenomenal, meaning they arise from a static consideration of
the object. They exist in the form, not in the essence, of what the State is. For Hegel, in the
procedural essence of the State, contradictions are superseded, as there would be a unity, a
disposition of bourgeois civil society to put the State as a mediator of conflicts. In this sense,
the State would be immanent to civil society. Marx, on the other hand, argues that Hegel is
unable to demonstrate this fundamental unity. For him, there is no such tendency to reconcile
the interests of civil society and subordinate it to universal interest. Therefore, for Marx,
Hegel presents a good diagnosis of the modern State by defining it as a result of the conflict
of interests in civil society, but he errs in proposing that it is capable of resolving these
conflicts. For him, the State remains an "unsolvable antinomy," and the supersession that
Hegel claims the State achieves is nothing more than a mystification arising from his
idealism, which substitutes the analysis of the real for the use of his categorical logic. In
particular, the work intends to show that Marx's critical conclusion, in which he breaks with
Hegel's idealism, is based on Hegel's own rupture with modern thought. Thus, in his Critique
of Hegel's Philosophy of Right, Marx "updates" dialectics, breaking with Hegel's political and
philosophical idealism and proposing a philosophy interested in accounting for reality, in
opposition to the mystified theoretical development proposed by Hegel.

Keywords: Marx; Hegel; Philosophy of Law; State; Critique.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

FD Filosofia do Direito
FE Fenomenologia do Espírito
CL Ciência da Lógica
ECF Enciclopédia das Ciências Filosóficas
CRP Crítica da Razão Pura
SCB Sociedade Civil Burguesa
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11

2 A RUPTURA EPISTEMOLÓGICA DE HEGEL........................................................ 28

3 A IDEIA DO ESTADO ÉTICO DE HEGEL................................................................ 48

3.1 O conceito de Estado em Hegel ................................................................................................... 48

3.2 Hegel e a crítica ao contratualismo ............................................................................................. 54

4 CRÍTICA DE MARX À TEORIA DE ESTADO ÉTICO HEGELIANO.................. 65

4.1 A Gênese e a Essência da Crítica de 1843 .................................................................................. 65


4.1.1 Fundamentos filosóficos da Crítica de 1843.................................................................................................. 69

4.2 O Estado ético, uma antinomia sem solução .............................................................................. 74

5 CONCLUSÃO.................................................................................................................. 95

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 99
1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo central abordar a crítica à noção hegeliana de
Estado desenvolvida por Marx no manuscrito Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
Partiremos da análise da sua crítica ao conceito de Estado de Hegel, presente no §261 da
Filosofia do Direito, segundo a qual o conceito de Estado ético é uma antinomia sem
solução. Tomaremos essa afirmação para examinar como Marx desenvolveu sua objeção à
teoria de Estado de Hegel. Situaremos o contexto teórico em que Marx está inserido nos
debates metafísicos, epistemológicos e éticos com os jovens hegelianos do século XIX.
Também desenvolveremos uma análise que mostra como o sistema dialético hegeliano foi
apropriado por ele quando escreveu a sua crítica à teoria de Estado ético em 1843.
A crítica ao §261 é uma genuína formulação de Marx, pois ela possui fundamentos
dialéticos que sustentam a sua objeção ao Estado ético. Examinaremos que a sua
argumentação tem raízes na própria dialética hegeliana. Desta forma, se faz necessário
compreender a dialética não apenas enquanto o método da investigação filosófica, mas como
o modo através do qual Marx, ao se apropriar dela, desenvolve sua “atualização”. Verificamos
que esse modo crítico de apropriação do sistema de Hegel, por Marx, é um elemento da
essência da construção da sua crítica teórica ao Estado ético.
Marx, já no seu trabalho de doutorado, Distinção entre a filosofia da natureza de
Demócrito e a de Epicuro, apresenta elementos daquilo que estamos chamando de
“atualização” ou de apropriação crítica da dialética de Hegel. Esse texto pode ser trazido à
tona, num primeiro momento, uma vez que ele nos permite ilustrar a trajetória do
desenvolvimento intelectual e teórico de Marx, além de nos ajudar a entender o ambiente em
que Marx enfrenta os debates filosóficos. É possível identificar, nesse texto, que há um
processo em curso de assimilação e de afastamento, engendrando sua ruptura com a filosofia
idealista de Hegel na formação de uma identidade filosófica própria. Sendo assim, a sua
crítica ao Estado ético não só estaria dentro desse contexto dos debates filosóficos da época,
mas marcaria o começo da sua afirmação como um filósofo dialético que já refutava o
idealismo de Hegel na sua Crítica de 1843.
A tese de doutorado de Marx marca a distinção de Demócrito relativamente a Epicuro.
Demócrito, para Marx, é um materialista mecânico e determinista que não apresentou nenhum
espaço para a autoconsciência ou para a liberdade, uma vez que ele rejeitava o papel da
contingência como uma condição material. Ao abordar esta questão, Marx dá um passo para
além da Filosofia da História de Hegel, a qual estabelecia um mesmo status para os pré-
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socráticos, Demócrito e Epicuro, equiparando ambos como sendo uma representação do


declínio prosaico da pólis grega. Epicuro, na tese de Marx, é apresentado como um
materialista, em que sua ideia, por exemplo, acerca da justaposição dos átomos, poderia
corresponder de modo análogo, na filosofia social dele, às formas das relações sociais. Marx,
já na sua tese de doutorado, tinha necessidade de desenvolver sua filosofia para a ação social,
como uma filosofia política, como veremos que defende Lukács.
Nessa linha proposta por Lukács, Marx, já nessa época, preparava os argumentos para
rejeitar as formulações de uma filosofia política conservadora e idealista de Hegel. Marx é um
filósofo que procurará desenvolver profundamente uma dialética da prática como algo que é
originado a partir da própria lógica interna do sistema de pensamento hegeliano, no entanto,
não como uma mera adaptação superficial ou como uma transposição mecânica ou mística de
um método a ser aplicado. Veremos amiúde que Marx desenvolve sua argumentação da
crítica ao conceito de Estado ético por meio da análise e apropriando-se de categorias
dialéticas como: abstração, negação, contradição e alienação. O seu método dialético será
desenvolvido tanto na apropriação das categorias que têm sua gênese em Hegel, quanto em
uma nova estrutura epistemológica própria enquanto um método de análise do mundo em
movimento na direção de apresentar uma nova forma de pensar o conhecimento como sendo
capaz de não apenas diagnosticar o mundo moderno, como também de transformar as relações
sociais. A consequência desse modo de construção argumentativa de Marx será a maneira
crítica como ele pensa as categorias da dialética de Hegel. Ele se propõe a desenvolver uma
nova forma de pensar a dialética, sendo o que possibilita a Marx desenvolver mais tarde a sua
filosofia social como uma nova ideia de pensar a esfera política, o que já se faz presente na
crítica de 1843.
O foco da nossa pesquisa é a obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1843,
um texto inacabado, em que Marx faz comentários, observações e críticas à obra Linhas
Fundamentais do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio, de
Hegel. Essa obra de Marx não se apresenta de forma tão ordenada, uma vez que sua análise
não caminha das premissas aos resultados, devido ao fato de ela consistir de comentários a
cada um dos parágrafos do texto de Hegel, começando no §261 e terminando no §313.
A parte da obra de Hegel analisada por Marx trata sobre o conceito de Estado, e a sua
crítica é destinada à compreensão das relações entre as esferas da eticidade hegeliana: família,
sociedade civil e o Estado.
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A Filosofia do Direito de Hegel foi publicada em primeira edição em 1821. Essa obra
tem uma importância inestimável para a filosofia política e representa o principal estudo de
Hegel acerca da sociedade burguesa e do entendimento do que é o Estado moderno. Levar-se-
á em conta aqui, também, alguns trechos da Fenomenologia do Espírito. Estes textos de
Hegel nos ajudarão a expandir a análise para além dos parágrafos da crítica de Marx. O
resgate pontual de trechos da FE de Hegel contribuirá para o que aspiramos sustentar e
justificar: que Marx apropriou-se do método dialético para desenvolver sua crítica ao Estado
ético enquanto uma ruptura ao idealismo de Hegel.
A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel é uma das obras de juventude de Marx.
Sua interpretação teórica até hoje é bastante controversa. Há, contudo, um interesse muito
particular na interpretação dessas obras do jovem Marx, pois os estudos estão debruçados em
compreender o que poderíamos chamar de escritos diretamente filosóficos de Marx.
A proposta do trabalho tem como guia uma leitura filosófica de Marx, que visa
compreender a relação entre Marx e Hegel em seus aspectos ontológicos, epistemológicos e
éticos, mostrando que há similaridades nas duas construções e mesmo no desenvolvimento de
suas críticas: Hegel em sua crítica ao Estado contratualista; e Marx em sua crítica ao Estado
ético hegeliano. Isso mostra a importância do retorno aos escritos de juventude de Marx, em
especial, à Crítica de 1843. Logo, o objetivo desta pesquisa é compreender as interconexões
entre a dialética hegeliana e as categorias filosóficas em jogo no escrito de 1843 de Marx,
para verificar se a dialética hegeliana está em essência nas bases da crítica de Marx à filosofia
política de Hegel, ou não.
A análise da apropriação da dialética de Hegel, por Marx, pavimenta o caminho
teórico desta pesquisa, a saber, o da desconstrução da concepção do Estado ético. Veremos
que esse caminho é constituído com as similaridades metodológicas entre os filósofos, tanto
na base filosófica, quanto nos instrumentos metodológicos e teóricos. Encontraremos aspectos
metodológicos que aproximam a refutação de Hegel à teoria do Estado contratualista com o
modo como Marx fundamenta a crítica segundo a qual o Estado ético hegeliano é uma
antinomia sem solução.
Analisaremos como a apropriação de categorias da dialética hegeliana aparece de
forma clara no desenvolvimento dos argumentos que fundamentam a crítica à teoria de Estado
de Hegel, no manuscrito de 1843. Em especial, veremos como Marx se apropria da noção de
Aufhebung, suprassunção, para afirmar que o Estado ético não é o resultado de uma
suprassunção, mas sim é uma antinomia sem solução, presente na relação entre a família e a
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sociedade civil burguesa com o Estado. Este é um aspecto central da crítica de Marx ao
conceito de Estado ético.
A metacategoria, Aufhebung, suprassunção, está na essência da crítica de Marx, uma
vez que ela é o operador lógico da dialética hegeliana que define o conceito de Estado ético
como a síntese da superação das contradições presentes nas relações entre as esferas da
eticidade, tal como Hegel apresenta na Filosofia do Direito. É por meio da suprassunção,
Aufhebung, que Hegel fundamenta, sustenta e engendra sua teoria do Estado ético. Portanto, o
que propomos é um exame mais amiúde sobre o que consiste a oposição de Marx a Hegel,
quando Marx afirma que a relação entre as esferas da eticidade hegeliana, o Estado e a
sociedade civil burguesa, é uma contradição. Para Marx, o que há é apenas uma pretensa
suprassunção dos antagonismos reais da sociedade civil burguesa na esfera política do Estado
moderno. Para ela, as contradições não são realmente superadas, como pensava Hegel.
Marx considera que essa síntese das contradições, a suprassunção, é apenas uma
separação lógica do conceito de Estado que, segundo ele, se efetiva apenas como uma ideia
formal e meramente “aparente”, uma vez que o Estado permaneceria dependente das relações
sociais e sujeito aos distintos interesses vigentes na vida social burguesa, seja na esfera da
família, seja na esfera da sociedade civil burguesa. Verifica-se que, já no manuscrito de 1843,
Marx considerava o Estado como o reflexo dos antagonismos da vida social.
A interpretação proposta na pesquisa visa mostrar que Marx, ao se apropriar de modo
crítico do método dialético de Hegel, já estaria fundamentando a sua ruptura com idealismo
do sistema hegeliano. Marx, dessa maneira, criou as condições para uma continuidade do
desenvolvimento do pensar filosófico por meio da dialética, que está expressa na refutação do
conteúdo do conceito de Estado ético.
Na tarefa investigativa de captar e entender a essência dos conceitos e das categorias
da dialética de Hegel, encontraremos a essência dos argumentos da crítica ao conceito de
Estado ético, quando analisarmos categorias como abstração, negação, alienação e a distinção
entre contradição e Aufhebung. Por meio do exame de como Marx se apropria dessas
categorias e conceitos é que aspiramos desenvolver o nosso plano de argumentação da
pesquisa a fim de demonstrar como Marx conclui que o conceito de Estado ético é uma
antinomia sem solução.
A análise dessas categorias da dialética hegeliana nos ajudará a entender não só o que
compõe a ruptura epistemológica hegeliana em relação ao pensamento anterior, mas também
como essa ruptura de Hegel influenciou o pensamento crítico do jovem Marx. Propomos uma
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interpretação segundo a qual Marx foi herdeiro do sistema de pensamento de Hegel, de tal
forma que ele se apropria das categorias dialéticas para desenvolvê-las, atualizando-as. Sendo
assim, o estudo das categorias mencionadas colabora para compreendermos a ruptura que
ocorreu em Hegel e influenciou no desenvolvimento teórico de Marx.
O método e o conteúdo da ruptura de Hegel em relação à filosofia de sua época é um
discurso filosófico inovador, que busca apresentar as coisas não só em sua aparência, mas em
sua essência, em si e para si, e como elas estão dispostas no mundo. Essa nova epistemologia
repercute com muita força no pensamento ético e político até hoje. Portanto, recuperar a
essência da ideia de ruptura epistemológica hegeliana nos permitirá examinar como as
categorias da dialética não só influenciaram o espectro filosófico das teorias políticas na
modernidade e até os tempos atuais, mas também constituíram, de modo implícito e explícito,
as formulações de Marx na Crítica de 1843. Assim, verificaremos em que medida a dialética
de Hegel, constituída em sua ruptura com o pensamento moderno, engendrará os argumentos
que fundamentam a tese marxiana segundo a qual o Estado ético é uma antinomia sem
solução.
As categorias da dialética instrumentalizam o modo pelo qual Marx compreende a
ideia hegeliana de que a sociedade civil burguesa é abstrata. A sociedade civil burguesa é
abstrata, pois seus momentos são postos como independentes. A categoria da abstração
explica a ideia de sociedade civil, enquanto a categoria da negação se faz pela
interdependência das relações sociais, no reconhecimento das consciências nas esferas da
eticidade. Hegel trata o indivíduo como eu singular, como um eu que participa de um grupo, o
qual é parte de uma particularidade que pertence à universalidade. Esse indivíduo submete-se
à unidade que resulta da suprassunção, representada pelo Estado.
Em Hegel, a unidade no Estado é produto da distinção da tridimensionalidade das
esferas da eticidade. A subordinação e dependência diante do Estado, das esferas da família e
da sociedade civil burguesa, é o que garante a liberdade concreta que se efetiva como Estado
ético, pois é resultado da superação das categorias da abstração e da negação. No entanto,
para Marx, o Estado é a contradição e não a suprassunção (Aufhebung), enquanto síntese
dessas categorias (abstração e negação).
Essa objeção de Marx está no centro de sua crítica ao Estado ético de Hegel, em que o
Estado é concebido enquanto esfera decisiva e determinante da ação humana. Para Hegel, não
é o Estado, efetivamente, um “produto da sociedade civil”, ou fruto da ação social, mas o
produto da suprassunção dessas esferas, em acordo com as determinações de suas categorias
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lógicas. Já na crítica de Marx ao conceito de Estado, constataremos o engendramento de uma


nova filosofia social e política que apresenta o Estado como sendo resultado indissociável das
contradições. O manuscrito de 1843 marca, precisamente, uma etapa filosófica e política do
desenvolvimento e do afastamento do pensamento de Marx quanto à concepção da totalidade
do idealismo de Hegel.
O desenvolvimento dessas noções por Marx está na base do desdobramento do seu
pensamento filosófico, em que se dá sua ruptura com o idealismo hegeliano. Será necessário,
portanto, contextualizar as apropriações de Hegel, por Marx, entendendo-as enquanto
apropriações que levam, ao mesmo tempo, a uma ruptura histórica, a qual gera uma nova
forma de pensar o conhecimento genuinamente filosófico. Mas essa ruptura marxiana em
relação a Hegel tem sua gênese na própria ruptura epistemológica de Hegel com a tradição da
teoria do conhecimento moderna, sobretudo com Kant.
Portanto, nosso objetivo será entender como as categorias que operaram na elaboração
da ideia de eticidade hegeliana também constituem a objeção de Marx ao conceito de Estado
de Hegel. Para isso, investigaremos o modo como Hegel desenvolve a sua ruptura
epistemológica com a filosofia kantiana. Esse passo será essencial para efetuarmos uma
análise filosófica da forma como Marx se apropria da dialética hegeliana, especialmente das
categorias da abstração e de negação, ao longo de sua argumentação na Crítica de 1843.
A ruptura de Hegel representa um novo entendimento de como se conhece o mundo. É
uma nova teoria do conhecimento, a qual deve ser pensada como uma ruptura epistemológica
profunda no modo de pensar da filosofia moderna, um novo modo de se conhecer as coisas e
de se pensar a história humana. Pretendemos demonstrar que essa ruptura epistemológica,
realizada por Hegel, está na base do desenvolvimento da crítica de Marx.
A análise visa identificar em que medida podemos considerar que há uma
interconexão teórica significativa entre a ideia de ruptura hegeliana e o pensamento filosófico
que se desenvolvia até aquele momento, e como ela se faz presente nos escritos do jovem
Marx. A tarefa de resgatar as categorias filosóficas tem um objetivo específico neste trabalho,
a saber, mostrar em que medida o próprio sistema de Hegel colaborou para a formulação da
crítica ao Estado ético. Ou seja, verificar que elementos dessa ruptura de Hegel para com o
pensamento moderno se fazem presentes como fontes motrizes no desenvolvimento filosófico
de Marx sob a forma crítica que nega o próprio sistema de pensamento de Hegel.
A dialética hegeliana é uma complexa formulação de conteúdo filosófico. Em
especial, nos interessa exibir a “força” filosófica desse pensamento no modo através do qual
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Hegel utilizou a dialética na produção da sua contraposição a Kant. A profundidade do


pensamento de Hegel, em seu modo de conhecer o mundo por meio das categorias da
dialética, foi a fonte filosófica que engendrou a sua teoria ética na Filosofia do Direito.
É na Fenomenologia do Espírito que encontramos o modo com que Hegel elabora o
seu pensamento epistemológico. Ele parte da ideia de consciências que se desenvolvem como
capazes de conhecer o mundo. Será no movimento das consciências e no modo como elas se
percebem e se reconhecem nos seus conflitos em movimento no mundo que se faz a passagem
dos momentos do Espírito subjetivo em direção ao Espírito objetivo, que se efetiva enquanto
Eticidade.
Ao seguir essa linha argumentativa, pretendemos verificar se a ruptura de Marx está
amalgamada em essência no método dialético hegeliano, sobretudo se as categorias de
alienação e de imanência estão presentes tanto na compreensão de Marx do que é o Estado
ético, quanto na sua refutação, no §261 da FD.
Dessa forma, este estudo visa revisitar o debate acerca da questão de se a noção de
ruptura marxiana em relação ao idealismo hegeliano estaria, ou não, na base do próprio
desenvolvimento da dialética de Marx. E ainda, se essa ruptura teria surgido como um
primeiro momento teórico, por Marx, já na crítica à noção de Estado apresentada na FD por
Hegel, em particular no §261, ao afirmar que o conceito de Estado ético hegeliano resulta
numa antinomia sem solução.
A leitura que propomos visa demonstrar que Marx, ao apropriar-se da argumentação
dialética resultante da ruptura epistemológica de Hegel, estaria criando as condições para o
desenvolvimento do conteúdo da sua crítica à teoria de Estado de Hegel, no texto da Crítica
de 1843. Um dos objetivos específicos é saber se Marx já estaria comprometido e realizando
sua ruptura com o idealismo, porém sem refutar a dialética.
Para compreender melhor essa questão, pretendemos apresentar as similaridades
metodológicas entre os filósofos na produção dos argumentos críticos: Hegel, na sua crítica ao
Estado contratualista, e Marx, à ideia de Estado ético; embora as conclusões sobre o conceito
de Estado sejam distintas. A hipótese é que estamos diante de uma formulação teórica em que
Marx estaria refutando a visão de racionalidade do idealismo de Hegel, mas na essência
estaria, de modo implícito, desenvolvendo uma “atualização” do sistema de pensamento
dialético.
A compreensão da noção de ruptura epistemológica não visa apenas demonstrar que
há uma proximidade com o pensamento hegeliano nas formulações teóricas de Marx, mas
18

também que o método dialético de conhecer o mundo está na construção argumentativa da sua
objeção à teoria de Estado ético de Hegel. Especificamente, a consequência filosófica dessa
apropriação das categorias de Hegel está expressa na forma e no conteúdo da argumentação
de Marx quando ele afirma que o Estado é uma “antinomia sem solução”.
Por conseguinte, Marx estaria atualizando o sistema de pensamento de Hegel na sua
raiz filosófica por meio do rompimento com a ideia de racionalidade idealista de Hegel. Por
mais paradoxal que possa parecer, a dialética fornece, de modo indissociável, o conteúdo e o
método de sua crítica ao Estado ético.
Ao apropriar-se do sistema dialético hegeliano é como se ele, Marx, reorganizasse esse
sistema filosófico com o objetivo, ainda que implícito, de mantê-lo válido. Logo, a leitura
proposta tenta mostrar que há uma ruptura de Marx com o idealismo de Hegel sem ser um
ataque propriamente à dialética.
Essa interpretação baseia-se na concepção segundo a qual há uma complementaridade
teórica entre a dialética de Hegel e a crítica de Marx. Portanto, a tese é que há uma ruptura e
uma continuidade da dialética, por parte de Marx, ao desenvolver sua crítica. Essa ruptura
produz a cada momento de sua história novas condições epistemológicas, normas, verdades e
princípios de refutação a partir daquilo que é apreendido. Assim, pretendemos mostrar que há,
na crítica de Marx, um processo, ou melhor, um novo desenvolvimento teórico e prático.
Vamos admitir que a crítica ao §261 da FD é um primeiro instante da ruptura de Marx,
quando ele afirma que o conceito de Estado ético é uma antinomia sem solução. E a ruptura
de Marx com o idealismo teria como gênese a ruptura epistemológica de Hegel. Nesse
sentido, o sistema hegeliano seria na essência a condição necessária para Marx chegar a sua
refutação ao idealismo e à formulação do materialismo dialético posteriormente.
Assim, Marx, na argumentação crítica do §261, estaria utilizando-se desse modo
inovador de conhecer o mundo, a saber, a própria dialética de Hegel apropriada por ele. Ela
estaria sendo expressa aí enquanto síntese “atualizada” na forma de crítica à ideia política do
Estado ético hegeliano.
Desse modo, é válido supor que Marx, ao apropriar-se da dialética, a compreende
como algo em transformação. Ou seja, é possível interpretar que, para Marx, a ruptura
epistemológica hegeliana estaria ainda incompleta, pois, por exemplo, os conceitos de
alienação e de contradição não estariam completamente efetivados na ideia de que Estado
ético hegeliano é o resultado da suprassunção.
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Nesse sentido, Marx estaria dando seguimento e completando a ruptura


epistemológica de Hegel, quando desenvolve a sua crítica ao Estado ético. Ou então, o
resultado da sua ruptura com o idealismo filosófico de Hegel seria uma forma de atualização
da dialética. Essas duas perspectivas complementares são abordadas neste trabalho ao
investigarmos o porquê do Estado ético hegeliano ser uma antinomia sem solução, conforme
afirma Marx.
Outra relação importante em jogo é a de Marx com Feuerbach. Notaremos que,
embora haja a influência de Feuerbach no escrito de 1843, esse texto não constitui um
abandono de Hegel e uma adesão a Feuerbach, pois coloca Marx distante de ser
feuerbachiano. Inclusive a ideia de dialética de Hegel será reconhecida e reafirmada pelo
próprio Marx na sua maturidade e está documentada numa das passagens mais famosas de
Marx maduro, no posfácio à 2ª edição do livro primeiro d’O Capital:

A mistificação que a dialética atravessa nas mãos de Hegel não proíbe totalmente
que ele tenha sido o inicial a demonstrar, de modo vasto e consciente, as suas
maneiras globais de movimento. Nele, ela está voltada para baixo. É preciso desvirá-
la, a fim de encontrar o cerne racional no interior do invólucro místico. (MARX,
2013, p.91)

Marx elogia e reconhece Hegel como sendo o primeiro a apresentar a dialética como
uma nova forma de conhecer o mundo. No entanto, nessa mesma passagem ele expõe a sua
crítica direta ao sistema de Hegel, o que podemos denominar como a síntese da sua ruptura
com a dialética idealista: a denúncia de que ela se encontrava invertida. Embora essa seja uma
elaboração posterior ao manuscrito de 1843, essa afirmação nos coloca a verdadeira dimensão
da noção de ruptura em Marx. Se inferirmos qualquer tipo de simplificação na diferença entre
o jovem Marx e Marx maduro, corremos um risco muito comum, o de produzir distorções na
interpretação do pensamento teórico de Marx, as quais têm consequências de grandes
proporções para a vida política. Portanto, o que pretendemos, ao recuperar essa polêmica, é
examinar a influência teórica de Hegel nas formulações de Marx, concebendo o
desenvolvimento de seu pensamento de forma não linear. Objetivo de trazer esse olhar para a
pesquisa é o de saber como Marx, ao assimilar a dialética hegeliana, como observamos na
passagem d’O Capital, construiu, por meio da apropriação do sistema de pensamento de
Hegel, uma nova e distinta concepção filosófica da dialética. Mas, ao mesmo tempo, mostrar
que esse modo de pensamento dialético se fez presente desde os seus primeiros escritos, como
examinaremos mais adiante, na sua objeção à ideia de racionalidade de Hegel.
20

Em Hegel, a ideia de racionalidade é um dos pilares do conceito de Estado ético. Cabe


ressaltar que o conceito de racionalidade é um conceito que marca com muita intensidade os
debates filosóficos em todo o período da modernidade. Marx trabalhará o conceito de
racionalidade de modo profundo no manuscrito de 1843. O foco da nossa análise está
centrado em dois aspectos presentes no modo como esse conceito é abordado por Marx. Em
primeiro lugar, buscaremos entender como a ideia de racionalidade, enquanto base da
operação das categorias da dialética, está presente tanto na formulação do conceito de Estado
ético em Hegel, quanto na construção da objeção de Marx ao §261 da Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel. Em segundo lugar, tentaremos discutir de que forma o conceito de
alienação é utilizado por Marx para desenvolver um conceito de racionalidade que, ao mesmo
tempo, se filia a Hegel, mas que também rompe com seu idealismo.
Verificaremos que a categoria de alienação ocupa um espaço de destaque no
manuscrito de 1843, na elaboração e na sustentação da sua crítica à ideia de Estado de Hegel.
Marx entende por alienação, na interpretação do §261 da FD, as ideias coletivas, a
“consciência genérica” de um ser social, o qual é percebido e que se percebe, ou não, na sua
relação com a ideia de dependência e de subordinação, que se faz presente no conceito de
Estado hegeliano. Dessa forma, poderemos ver, adicionalmente, que a alienação é uma
categoria decisiva para a interpretação da Crítica de 1843, e que está diretamente ligada à
ideia de emancipação humana.
Alienação e emancipação estão no fundamento da elaboração de Marx como causa e
consequência da afirmação do porquê o Estado ético é uma antinomia sem solução. Interessa
destacar o exame da categoria de alienação, pois ela nos possibilita regressar à relação entre
ser e pensamento na íntima união. A ideia de alienação é parte do resgate e do que estamos
denominando de “atualização” da dialética hegeliana, pois esse problema já estava presente
no desenvolvimento das figuras da consciência, que foram desenvolvidas por Hegel na FE.
Logo, a categoria de alienação está na base da problemática da concepção histórica do
que é o Estado na interpretação que propõe Marx. O Estado, nesse escrito, aparece, para
Marx, como um construto humano “factível” no sentido materialista da identidade entre razão
humana e realidade histórica.
O que Marx fez não foi apenas definir e caracterizar a alienação. Ele também não
tratou esse fenômeno de um ponto de vista individual, subjetivo. Pelo contrário, determinou-o
a partir das suas raízes filosóficas, nas relações sociais, na sociedade civil burguesa e na
21

história. Conferiu-lhe uma fundamentação que tentaremos apresentar a partir do que está
expresso no texto da Crítica de 1843.
A alienação é um aspecto central desse texto e de toda a sua teoria, pois não só não
evanesceu, como se desenvolveu, como demonstram as mais diversas teorias marxistas na
contemporaneidade que tentam explicar o estranhamento do homem diante do mundo.
Veremos que Marx, na sua formação intelectual, apresenta formulações filosóficas e
teóricas que são resultados do modo com que ele se apropriou da dialética hegeliana. Para
tanto, examinaremos em especial outra categoria da dialética, a negação. Nesse caso, ela nos
ajudará a mostrar que no núcleo da Crítica de 1843 já se fazia presente, ainda que de modo
subjacente, a ruptura de Marx com o idealismo de Hegel.
Embora haja muitas polêmicas acerca da existência ou não da diferença entre um
jovem Marx idealista versus um Marx maduro materialista, a proposta da pesquisa é tratar
esse tema de um modo mais amplo. O trabalho visa reunir elementos teóricos que consigam
responder o problema da interpretação do idealismo ou não do Jovem Marx. Propomos
interpretar essa polêmica através de uma perspectiva holística da formação intelectual de
Marx, apoiando-se no modo como ele aborda criticamente o pensamento de seu mestre Hegel.
Pretendemos responder à questão: o jovem Marx está num processo de afastamento da
influência idealista da filosofia hegeliana, ou não? Este trabalho cogita responder a esse
questionamento, por meio de um diálogo entre posições distintas de dois pensadores:
Althusser e Lukács.
Veremos que Lukács compreende esse período da produção teórica de Marx como um
processo de engendramento do materialismo dialético, como uma disposição crítica da teoria
de Marx. Na passagem a seguir, Lukács nos ajuda a interpretar o que constituí, o que é e como
se engendrou a filosofia de Marx, a partir de seu afastamento em relação ao pensamento de
Hegel e de Feuerbach.
Esse é um dos pontos que merece atenção e que será analisado nos capítulos seguintes,
ainda que Lukács não aborde a problemática dos elementos idealistas que constituem a
Crítica de 1843 e que resultam no distanciamento qualitativo relativamente ao marxismo em
sua totalidade teórica.
Outro aspecto que trabalharemos e que ajuda a encontrar as interconexões entre os
elementos metodológicos e filosóficos da relação entre Marx e Hegel, subjacentes à refutação
do Estado ético hegeliano, será o modo como Hegel elabora a refutação ao contratualismo no
§258 da sua obra, Filosofia do Direito. Essa análise nos ajudará a encontrar, no método
22

dialético que Hegel usa na elaboração da sua crítica ao contratualismo, um aspecto


metodológico que é comum também a Marx, na sua argumentação crítica a Hegel, ainda que
os resultados, em termos éticos e políticos, sejam distintos.
Vamos nos ater em especial ao §258 da FD, no modo como Hegel conduziu a crítica
ao Estado contratualista. Verificar-se-á que ele não desenvolve apenas argumentos críticos a
Rousseau. Ele reconhece, no filósofo suíço, o conceito de vontade geral e lhe faz um elogio,
apropriando-se da essência do ideal de vontade, como veremos no capítulo 2. A apresentação
dessa passagem visa estabelecer um paralelo metodológico entre a construção da crítica de
Hegel ao contratualismo e o modo como Marx fundamenta a crítica teórica ao conceito
hegeliano de Estado.
Ao analisar a objeção à ideia de Estado de Rousseau, verificaremos como as categorias
e os elementos filosóficos do sistema hegeliano operam na composição do conceito de Estado
ético. Examinaremos de que maneira o sistema dialético hegeliano, ao compor a crítica ao
conceito de Estado do contratualismo, engendrou o conceito de Estado ético. Tentaremos
compreender sobre que bases filosóficas Hegel funda a sua ideia ética na FD.
A teoria ética de Hegel é apresentada no momento em que as consciências se
desenvolvem, no Espírito objetivo, como a síntese de uma teoria social, a Eticidade. O
conceito de Estado ético hegeliano é resultado de uma suprassunção (aufhebung). É uma
teoria que tem uma natureza descritiva e normativa no mundo que se faz efetivo, em que o
Estado justamente suprassume aspectos das esferas da Eticidade. A teoria de Estado hegeliana
é uma síntese mais elevada, não apenas em relação a sua teoria ética moral, mas ela compõe a
totalidade do desenvolvimento teórico de Hegel em relação ao seu método filosófico diante de
todo o seu sistema. Portanto, a estratégia de recuperar a crítica de Hegel ao contratualismo e
de relacioná-la à sua construção argumentativa que resultará na noção de Estado insere-se
nessa compreensão dialética do método, que ele propõe ser o único possível para conhecer as
coisas no mundo. A crítica ao contratualismo é, em certa medida, a continuidade do ideal de
ruptura epistemológica, que agora é transposto para o pensamento ético. É o desenvolvimento
das figuras do Espírito subjetivo da FE, a partir das quais Hegel fundamenta a crítica o Estado
contratualista de Rousseau. Essas são pilastras teóricas que engendraram o seu conceito de
Estado ético.
Como afirmado, verificaremos, em especial, que o modo como Hegel conduz sua
crítica a Rousseau irá nos fornecer elementos filosóficos para estabelecermos pontos de
23

comparação e similaridades metodológicas no desenvolvimento dos argumentos da Crítica


de 1843 de Marx ao Estado ético hegeliano.
Sendo assim, resgatar estes trechos da filosofia de Hegel tem o intuito de mostrar que
a crítica de Marx teria em sua essência o método que ele construiu através da apropriação da
dialética de Hegel. Desse modo, há mais que uma proximidade intelectual, típica da relação
entre professor e aluno, entre os dois filósofos. O que está presente nessa identificação é um
modo de se pensar e de fazer filosofia. Tanto a ruptura epistemológica de Hegel com a
tradição filosófica moderna, quanto a sua refutação do conceito de Estado contratualista estão
inseridas nesse modo dialético de fazer filosofia, e Marx segue esse mesmo caminho.
Esta proposta de interpretação, sobre o modo como ocorre a apropriação, por parte de
Marx, do sistema de Hegel, nos auxiliará a demonstrar como a sua crítica foi construída. Por
exemplo, nos ajuda a delinear melhor as ideias de contradição e de suprassunção, que se
fazem presentes na construção da ideia de eticidade hegeliana e na crítica marxiana a ela.
Tentaremos entender em que dimensão a dialética hegeliana está presente nesse escrito
de juventude de Marx, a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Essa influência seria uma
simples incorporação teórica do pensamento de Hegel nas obras do jovem Marx, de tal forma
que haveria uma continuidade da dialética de Hegel? Uma resposta afirmativa a essa questão
nos levaria a concluir que Marx estaria ainda infectado pelo vírus do idealismo alemão, e que
não haveria traços de uma ruptura com o sistema de pensamento de Hegel.
No entanto, tentaremos demonstrar que a apropriação da dialética de Hegel marca uma
continuidade descontínua, uma ruptura em relação ao sistema hegeliano. Ou seja, sob uma
forma crítica, Marx, na obra de 1843, daria início ao seu rompimento com o idealismo,
enquanto concomitantemente estaria “atualizando” a dialética. Pois, se, por um lado, temos a
apropriação da dialética hegeliana na Crítica de 1843 ao conceito de Estado ético; por outro
lado, demonstraremos que Marx, ao concluir que o Estado ético é uma antinomia sem
solução, marca uma descontinuidade na forma de pensar a filosofia, pois, na sua essência, ele
estaria desenvolvendo uma ruptura em relação ao idealismo de Hegel. Logo, a obra de Marx
de 1843 marcaria a relação de continuidade e ruptura que há entre Hegel e Marx.
Esta interpretação que propomos desse manuscrito da juventude de Marx também
sugere uma compreensão mais filosófica das obras do Marx Maduro. Nossa tentativa é afastar
as interpretações que possam reduzir a teoria de Marx ao economicismo e a um materialismo
dialético vulgar, limitando-a aos aspectos críticos às relações sociais e ao reducionismo
teórico marxista. Essas interpretações reduziram em boa medida as análises dos escritos de
24

Marx à crítica ao modo de produção capitalista ou ainda à defesa da ideologia determinista do


socialismo.
Um dos objetivos específicos da pesquisa é mostrar que, no texto de 1843, estava em
curso uma produção teórica de Marx que já se apresentava como uma nova filosofia social
prática, como uma teoria filosófica da ação. Nos capítulos seguintes, trabalharemos esse
objetivo, apresentando a relevância dos escritos de juventude de Marx para a história da
filosofia e mostrando toda a sua força teórica.
Voltando ao debate entre György Lukács e o Louis Althusser, sobre a origem e o
desenvolvimento da teoria de Marx nos seus escritos de juventude, cabe ressaltar que
encontraremos distintos entendimentos, e algumas conclusões diametralmente opostas entre
eles, sobretudo em relação à influência do sistema de Hegel na obra de 1843.
Faz-se necessário aqui registrar que há outros teóricos, comentadores que analisaram
os escritos de juventude de Marx, mas a nossa intenção não é desenvolver nenhuma revisão
bibliográfica completa sobre esse debate. Portanto, iremos nos limitar a uma breve síntese das
ideias e argumentos centrais de Lukács e de Althusser com a finalidade de refletir onde cada
um avança no conhecimento do manuscrito e onde um ou o outro possa ter ficado na metade
do caminho, ou ainda ter se equivocado, especificamente na interpretação da Crítica de 1843.
No seu ensaio, O Jovem Marx e Outros Escritos de Filosofia, Lukács defende que,
desde sua estreia na filosofia, através da tese de doutoramento sobre Epicuro, Marx já estaria
capacitado para dar passos maiores que os limites colocados pela filosofia hegeliana. Em
contraposição a essa interpretação, Althusser nega que exista uma ligação entre a Crítica de
1843 e as obras de maturidade de Marx. Será necessário analisar se esse argumento está certo
quanto a isto.
Essa objeção de Althusser é apresentada e desenvolvida no seu livro, Por Marx, em
que ele formula a interpretação segundo a qual não haveria unidade nas obras de Marx. Essa
tendência teórica, entretanto, não responde à questão, colocada por ele mesmo, a respeito da
problemática inerente às obras de Marx. Essa é uma objeção incontornável para Althusser.
No entanto, todo cuidado na interpretação desses dois comentadores de Marx ainda
será insuficiente, uma vez que centrar-se nessa polêmica pode nos afastar do objeto do
trabalho e nos conduzir para uma interpretação simplificada e mecânica da ruptura de Marx
com o idealismo. Em vista disso, optamos por tentar elucidar essa questão, sobre se há uma
ruptura ou não no jovem Marx, analisando a própria Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel. Essa questão estará presente, portanto, como um subtexto, isto é, de forma implícita à
25

análise que estamos propondo, especialmente no desenvolvimento da hipótese que


defendemos, segundo a qual Marx promove uma atualização da dialética hegeliana.
Pretendemos estudar a Crítica de 1843 e determinar seu estatuto teórico, no sentido de
verificar em que medida ela estabelece os primeiros parâmetros de uma ruptura com o
idealismo de Hegel. Isso será relevante também para fornecer uma melhor perspectiva sobre
sua conexão com os desdobramentos da teoria marxista até os dias atuais. Através da
compreensão dessa obra do jovem Marx, é possível refletir sobre a correlação teórica das
primeiras produções de Marx com as obras do Marx “maduro”.
Apenas a título de exemplo dessa possibilidade, no manuscrito de 1843, já aparece um
Marx interessado e comprometido com uma realidade histórica concreta, o Estado. E o
primeiro momento de formulação parte da sua afirmação de que o Estado ético é uma
antinomia sem solução. Essa afirmação pode ser interpretada como uma espécie de antessala
da teoria de classes de Marx. Essa teoria estaria em processo de germinação na crítica ao
Estado como uma antinomia sem solução. Deste modo, observaremos que a Crítica de 1843
pode ser interpretada como um passo significativo em direção ao Marx materialista.
A análise da apropriação da dialética de Hegel é o ponto de partida da compreensão
filosófica da teoria de Marx. Essa análise nos permitirá explicar não só como se dá essa
aproximação ao sistema de Hegel, mas também explicar as limitações da influência do
sistema no próprio desenvolvimento da teoria materialista de Marx.
Nesse sentido, buscaremos evidenciar como as categorias dialéticas estão presentes na
crítica marxiana à teoria de Estado de Hegel. Elas nos permitirão explicar não só como se dá a
aproximação de Marx da teoria filosófica de Hegel, mas também quais são as limitações dessa
influência do sistema hegeliano sobre Marx. Buscaremos evidenciar que a Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel é o germe da formulação marxiana de uma filosofia política.
Esse debate sobre o afastamento e a ruptura em relação ao idealismo hegeliano está
ligado à querela marxista sobre o momento em que o marxismo surgiu. Conduziremos uma
breve explanação dos argumentos centrais que estão presentes nos escritos de Althusser e
Lukács. Verificar-se-á primeiro se há influências do idealismo de Hegel nos escritos de
juventude de Marx, e, caso existam, qual é a dimensão dessa influência na Crítica de 1843.
As conclusões a respeito das interpretações desses dois intelectuais marxistas acerca do jovem
Marx nos permite compreender a real dimensão da formulação teórica presente na crítica
marxiana ao §261 da FD.
26

Para abordar a proximidade e o distanciamento de Marx em relação a Hegel,


abordaremos a crítica hegeliana ao contratualismo. A ideia central é analisar a forma com a
qual Hegel refuta a teoria de Estado de Rousseau no §258 da FD. A partir disso, poderemos
verificar se é possível estabelecer um paralelo metodológico entre a crítica de Hegel ao
contratualismo e a crítica de Marx ao Estado hegeliano.
Examinaremos se Hegel, ao determinar o predomínio do Estado sobre a sociedade
civil e a família, julga que existe uma identidade entre Estado e sociedade civil burguesa. Essa
identidade resultaria da ideia de suprassunção, Aufhebung, pois os interesses particulares se
efetivariam apenas enquanto tornados universais, no Estado. Desse modo, no universal estaria
expressa a superação da diversidade social e das cisões entre as esferas da eticidade.
A sociedade civil burguesa, portanto, para Hegel, se efetivaria na medida em que a
realização de sua essência conteria sua tendência natural de constituir o Estado. Hegel define
o Estado ético como sendo o fim imanente das esferas da eticidade, em que cada uma delas (a
família e a sociedade civil) está subordinada a ele.
Veremos como é construída, na Crítica de 1843, a objeção de Marx a esse argumento
do Estado como um fim imanente. Essa objeção de Marx consiste no argumento segundo ao
qual a existe uma contradição sem solução na essência do Estado. Marx mostra-se contrário à
ideia de um fim último, o Estado, que superaria todas as contradições, como Hegel busca
sustentar. Em Marx, será apresentada a ideia do Estado ético como um conceito idealista
mistificador, alheio a uma abordagem adequada do real.
Hegel concebe a contrariedade entre o Estado ético e a sociedade civil burguesa como
apenas fenomênica. Para ele, não há uma contradição fundamental. Hegel apresenta um
conceito filosófico próprio da modernidade, o de sociedade civil burguesa. Ele pressupõe, em
sua análise, a economia capitalista, em que cada ser humano tem a responsabilidade de
realizar a sua própria liberdade e de buscar uma vida completa. Nesse sentido, o Estado
moderno, diferente daquele de outras épocas, teria capacidade de garantir a realização das
vontades de todos, em vista da liberdade, do bem-estar e da realização de cada um. A ideia de
suprassunção hegeliana é apresentada nesse contexto histórico de novas relações sociais e
políticas que se estabelecem, não obstante os conflitos de interesse que são inerentes a elas e
formam a própria natureza da sociedade civil burguesa.
Para Hegel, o Estado ético é a capacidade de organizar e gerenciar os distintos
interesses das esferas particulares e singulares da esfera da sociedade civil burguesa, assim
como as necessidades privadas da família. Decorre disso que o Estado ético é o resultado do
27

movimento de suspensão, elevação e superação de tais interesses das esferas da família e da


sociedade civil burguesa, que passariam a estar submetidos ao interesse universal.
As categorias de unidade e de imanência são fundamentais para a concepção hegeliana
de Estado ético, e são construídas a partir da FE, que também abordaremos brevemente.
Marx, contudo, defende que Hegel não consegue demonstrar a unidade fundamental
entre Estado e sociedade civil. Para ele, é falso que exista uma tendência, na sociedade civil,
de compatibilização dos interesses e de subordinação ao interesse universal. E Marx mostra
que esse diagnóstico está presente, de algum modo, no próprio Hegel.
O legado filosófico de Marx que pretendemos recuperar diz respeito à sua contribuição
no desenvolvimento da crítica e da atualização da dialética idealista de Hegel. A crítica de
Marx se dirige ao modo como Hegel aborda as construções sociais e políticas da ideia de
Estado ético, fundamentado em sua continuidade e ruptura com a racionalidade moderna.
A Crítica à Filosofia do direito de Hegel constitui-se no marco inaugural de uma
nova perspectiva de filosofia social, que está comprometida com a transformação da
realidade. Marx atualiza a dialética, rompendo com idealismo político e filosófico de Hegel.
2 A RUPTURA EPISTEMOLÓGICA DE HEGEL

A ruptura epistemológica que Hegel propõe não só é uma complexa e inovadora forma
de pensar os conceitos filosóficos com novas categorias, sobre o modo de conhecer o mundo,
mas uma nova maneira de pensar a liberdade. Logo, o desenvolvimento, por parte de Hegel,
de uma nova forma de conhecer o mundo, trouxe consigo uma nova teoria ética que
diagnostica os desafios das novas manifestações da subjetividade humana, trazidas pelas
novas formas de organização e pelas novas relações da vida ética e política da modernidade.
A ruptura epistemológica de Hegel marca um novo modo de conhecer o mundo e de
pensar a metafísica. A Fenomenologia do Espírito é a obra que nos fornece uma rica
reflexão teórica, que mostra como se engendrou esse rompimento epistemológico de Hegel
com as ideias de autonomia, subjetividade e liberdade da teoria kantiana. O aspecto central
que recuperaremos dessa obra Hegel diz respeito ao modo como que ele desenvolveu o
sistema dialético e elaborou a ideia segundo a qual as consciências se desenvolvem em si e
para si, configurando assim uma nova teoria do conhecimento.
A Fenomenologia do Espírito é uma obra que apresenta categorias centrais na
compreensão do porquê Hegel está rompendo com o pensamento filosófico moderno. Mas,
antes de entrarmos nas análises filosóficas propriamente ditas dessa obra, cabe conduzir uma
breve contextualização.
A FE fora concluída quando da vitória de Napoleão sobre os exércitos alemães. E há
um relato admirável desse fato histórico descrito por Hegel na carta a Niethammer, de 13 de
outubro de 1806, sobre como que ele, Hegel, está escrevendo a sua obra em meio aos sons das
batalhas. Isso faz lembrar que a compreensão da Fenomenologia do Espírito envolve
compreender o resultado de transformações significativas no modo de vida nas sociedades
capitalistas, que então se afirmavam, com repercussões importantes nas relações sociais e
políticas da época. A FE pressupõe esse substrato histórico, necessário para entender a
ruptura e a crítica de Hegel ao pensamento metafísico moderno, e significa justamente uma
tentativa de conhecer o mundo que se estabelecia. Logo, o projeto filosófico de Hegel é o de
tornar possível conhecer as coisas que se efetivam e se movimentam, numa sociedade em
transformação no começo do século XIX, agitada pelas invasões napoleônicas e pela
afirmação e expansão do modo de produção capitalista. Hegel está vivendo num mundo que
está num processo histórico de profundas mudanças em diversas áreas do conhecimento, cujo
legado filosófico, econômico e político, aliás, se faz presente até hoje.
29

Hegel absorve essas mudanças e, nos seus escritos de Iena, propõe uma nova teoria do
conhecimento. Ele apropria-se da tradição crítica kantiana para engendrar uma nova teoria do
conhecer a coisa em si mesma, num movimento em que essas consciências se reconhecem no
outro, em contraposição crítica à coisa em si de Kant, que era incognoscível. Sendo assim, a
ideia hegeliana de uma nova teoria do conhecimento é uma mudança radical da noção de
subjetividade, em contraposição à lógica analítica do conhecimento, aristotélica e kantiana,
desenvolvida pela filosofia ocidental até aquele momento.
Diante do contexto histórico de transformações políticas e sociais e da afirmação de
um novo modo de vida, Hegel apresenta uma dinâmica autêntica de pensar o conhecimento
sob a ótica do desenvolvimento da consciência para compreender o mundo e os desafios
postos pela sociedade capitalista moderna aos indivíduos.
Outro aspecto relevante é que Fenomenologia do Espírito é uma obra que impacta
não só pelo seu conteúdo inovador, instigante e autêntico, mas também pelo fato de Hegel
levar até as últimas consequências o seu método, inclusive no processo de elaboração, no
modo como que a escreve. A escrita da FE já se faz enquanto um dos elementos
metodológicos implicados no modo como são pensadas as categorias da dialética. Logo, a
forma de organizar os argumentos por meio da escrita na FE compõe, de forma indissociável,
a ruptura epistemológica, estabelecendo um método inovador de pensar a filosofia na
modernidade.
No entanto, o que nos interessará resgatar na Fenomenologia do Espírito é que Hegel
vai além da investigação das experiências da formação da consciência. Ele irá transcender,
começando pela forma mais primitiva de consciência, a certeza sensível, e vai chegar à
racionalidade dialético-especulativa. Este será o caminho percorrido pela consciência que se
transforma em diversas figuras. Ele é um método, que se apresenta como dialético e imanente,
compreendendo o todo, universal e absoluto. Hegel apresenta esse novo método como forma
de olhar a epistemologia, ou seja, as categorias que dão racionalidade ao conhecimento
enquanto formação do saber em seu movimento de compreensão do mundo.
Na recuperação da essência da ruptura epistemológica hegeliana com a filosofia
kantiana, temos alguns suportes teóricos significativos para entender e interpretar melhor a
influência de Hegel em Marx. A ruptura de Hegel com Kant está na base do pensamento
hegeliano e no modo pelo qual posteriormente Marx irá desenvolver a sua teoria. A ruptura
epistemológica hegeliana, apresentada na FE, tem influência na filosofia política de Hegel e
30

também impacta no modo como Marx se apropria criticamente dela, assim como reverbera no
restante de sua produção teórica.
Paradoxalmente, Hegel dá prosseguimento à tradição da filosofia crítica do idealismo
alemão ao desenvolver, na Fenomenologia do Espírito, uma ruptura epistemológica com a
filosofia moderna. Ele apresenta um novo projeto teórico para a filosofia, a saber, a ideia de
desenvolvimento do espírito.
Estamos diante de um paradoxo, pois por um lado ele segue o desenvolvimento do
idealismo, como mais uma de suas várias “escolas filosóficas”. Mas, por outro lado, ele se
diferencia delas estabelecendo uma nova forma de compreender a subjetividade e de conhecer
as coisas em sua forma e conteúdo.
Nesse contexto, a noção de identidade dialética se sobressai, porque a verdade, para
Hegel, surge após um processo e não de modo a priori. O pensamento de Hegel é processual,
é o método que se desenvolve na construção do conceito. Assim, podemos dizer que dialética
eleva-se ao estatuto de método no contexto da teoria de conhecimento. A revelação da
verdade, no pensamento hegeliano, se efetiva enquanto desenvolvimento das consciências nas
passagens dos Espíritos subjetivo e objetivo em direção ao Espírito absoluto.
A visão de Hegel sobre o conhecimento tem implicações em sua compreensão política,
que equivale ao desenvolvimento da consciência em direção à liberdade. Esse
desenvolvimento começa na filosofia do Espírito subjetivo, no modo de conhecer o mundo e
de pensar a essência humana.
A ideia de essência humana de Hegel pode ser entendida como a preeminência da
sociedade como um complexo de determinações do ser no mundo. Hegel apresenta uma nova
forma de compreender e de desenvolver as consciências, sob a perspectiva ética desse
indivíduo inserido na modernidade. Um indivíduo que está diante de novas formas sociais e
políticas, adquiridas em decorrência desses novos modos de comportamento. Há uma inédita
carga subjetiva em jogo ao entender a vida e as suas relações nas esferas éticas do mundo
capitalista, então em seu início. Logo, será por meio da dialética que Hegel desvenda esse
novo momento de pensar a individualidade. Uma subjetividade que altera a forma de
conhecer o mundo, por conseguinte, transforma a essência humana que, segundo o filósofo, se
desenvolve enquanto processo, na história.
A ruptura epistemológica de Hegel é um novo modo de pensar e conhecer as coisas.
Esse modo de conhecer altera a compreensão teórica sobre a subjetividade humana, que se
tinha pela filosofia moderna até então. Com Hegel, a subjetividade passa a ser compreendida
31

a partir de um novo método, a saber, a dialética, que compreende o movimento das


consciências na luta pelo seu reconhecimento. Ele, deste modo, na FE, fundamenta sua teoria
sobre as consciências com novos conceitos, por meio do seu sistema dialético.
Encontramos, na Fenomenologia do Espírito, a produção dessas novas formulações
filosóficas como o seu conceito de dialética. A ruptura de Hegel é profunda, pois ele refuta o
dualismo e fundamenta seu idealismo absoluto. Ele desenvolve a sua teoria filosófica de
conhecimento, baseado no entendimento dialético do movimento das consciências. Hegel
considera que, com o surgimento do Espírito no mundo e com o desenvolvimento das
autoconsciências individuais interconectadas com o seu reconhecimento ético e social, se
estabelece um novo modo de conhecer as coisas.
Hegel apresenta o significado da ideia de reconhecimento das consciências na FE. A
compreensão do movimento das consciências ajuda a pensar a objetividade, especialmente o
novo processo social e político capitalista em curso. É a partir disso que Hegel engendra a sua
teoria ética sobre o Estado na FD.
A ruptura realizada por Hegel traz consequências para a filosofia prática, o Espírito
objetivo, com a formação da ideia de Eticidade. Logo, a ruptura epistemológica não diz
respeito apenas ao conteúdo teórico. Hegel propõe uma relação imanente entre forma e
conteúdo e entre teoria e prática que interfere de forma ampla no fazer filosofia, no conhecer
as coisas no mundo e no próprio agir.
Essa ideia é uma contraposição ao conceito kantiano de autonomia moral, que parte
da sua teoria subjetiva do conhecer o mundo e dos limites da racionalidade, de não se ter
acesso à coisa em si. A ética de Kant conduz não a uma moralidade de comando austero e
externo, mas sim a uma ética de autoestima e respeito. Uma posição que pode ser descrita
como um procedimento de autonomia, a saber, o seu imperativo categórico. Ele pensa o Eu
como uma simples forma do dever agir moral. Por outro lado, a ideia de conhecer de Hegel
parte de uma noção de sujeito que se efetiva no mundo. Essa ruptura de Hegel com a filosofia
kantiana tem consequências significativas no modo e no conteúdo da apropriação do
pensamento hegeliano por Marx. A relação intrínseca entre forma e conteúdo e dualidade
entre essência e aparência estão presentes na formulação do seu sistema filosófico e social.
Verificaremos que Hegel se opõe a Kant, uma vez que este separa as condições e as
categorias que compõem a subjetividade dos elementos que fazem parte do objeto. Segundo
Hegel, a formulação kantiana restringe a Razão ao Entendimento. Recorremos ao adendo ao
§45 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio para compreender esse ponto.
32

A diferença entre entendimento e razão foi posta em evidência, com precisão,


primeiro por Kant; e estabelecida de forma que o entendimento tem por objeto o
finito e o condicionado, enquanto a razão, o infinito e o incondicionado. Embora se
deva reconhecer já como um resultado muito importante da filosofia kantiana que
tenha posto em vigência a finitude do conhecimento-do-entendimento que repousa
simplesmente na experiência, e designado seu conteúdo como fenômeno, não se
pode ficar nesse resultado negativo, e reduzir o incondicionado da razão
simplesmente à identidade abstrata consigo, excludente da diferença. Quando a
razão, dessa maneira, é considerada simplesmente como o [ato de] ultrapassar o
finito e condicionado do entendimento, de fato é rebaixada assim a algo finito e
condicionado: porque o verdadeiramente infinito não é um simples além do finito,
mas o contém em si mesmo como suprassumido. (HEGEL, 1995, p.114-5, §45).

Hegel, nessa passagem, se refere à figura do Entendimento como contida na Razão,


que, por sua vez, se faz por meio de uma identidade absoluta, o que servirá de fundamento
para a noção hegeliana de imanência. Já Kant restringia o Entendimento à experiência e
afirmava a Razão como uma instância que vai além dessa condição. Entretanto, para Hegel,
isso significa limitar a Razão ao entendimento, ao defini-la simplesmente como aquilo que
está ao lado dele. A Razão, para Hegel, é infinita, no sentido de suprassumir toda a limitação
típica do Entendimento.
Em Hegel, Razão e Entendimento deixam de ser faculdades e passam a ser momentos
da dialética. Nesse sentido, eles estão presentes no próprio desenvolvimento da consciência.
Hegel recupera a ideia de Razão de Kant e a compreende como uma identidade do sujeito e do
objeto, na medida em que, em sua infinitude, ela suprassume todas as oposições do
Entendimento.
Uma das tarefas centrais do idealismo alemão foi a de criar uma filosofia racional e
crítica. A ideia de Razão foi desenvolvida por Kant e por Hegel numa perspectiva que visava
encontrar uma resposta às tensões entre razão e liberdade. Tanto Kant, quanto Hegel
confiavam que, para alcançar uma verdadeira racionalidade na sociedade moderna, era preciso
lançar mão de um expediente: a crítica da Razão e do modo como se conhece o mundo. Esse
era um debate essencial ao Iluminismo, que se refletia no próprio modo de vida social, ético e
político, em todo o período da modernidade.
A crítica de Hegel à teoria de conhecimento de Kant consiste em mostrar que Kant
estaria limitado à dicotomia sujeito-objeto, pois ele compreende que há uma contradição
intransponível entre eles. Logo, para Hegel, o filósofo que escrevera a Crítica da Razão
Pura desenvolveu uma compreensão teórica circunscrita e, por conseguinte, uma
epistemologia submetida ao pensamento dualista. Essa nova forma, proposta por Hegel, de
33

pensar a Razão e o Entendimento trará consequências para a sua teoria ética e para a definição
de liberdade.

Mas a efetividade, tanto universal quanto particular, que a observação anteriormente


encontrava fora do indivíduo, é aqui a sua efetividade, seu corpo congênito. É
justamente nesse corpo que incide a expressão pertencente ao seu agir. Na
consideração psicológica deveriam estar relacionadas entre si a efetividade em si e
para si essente, e a individualidade determinada. Mas aqui a individualidade
determinada total é objeto da observação, e cada lado de sua oposição é, por sua vez,
esse todo. Ao todo exterior pertence, pois, não apenas o ser originário, o corpo
congênito, mas igualmente sua formação; e essa pertence à atividade do interior. O
corpo é a unidade do ser não-formado e do ser formado, e é efetividade do indivíduo
penetrada pelo ser-para-si. (HEGEL, 2002, p.222, §311).

Hegel apresenta nessa passagem da FE como ele compreende o Entendimento. O


Entendimento, que está citado no seu texto acima como a “observação” como uma figura
distinta da consciência, que também está expressa nesse parágrafo como o local, “é aqui a sua
efetividade”. Esse é o modo como Hegel sustenta sua crítica à teoria de conhecimento de
Kant. Ele aponta que a ideia de reduzir a Razão ao Entendimento, apresentada por Kant,
limita o desenvolvimento das consciências e a possibilidade de conhecer o mundo.
Hegel não exclui o Entendimento, porém o coloca como um momento capaz de
conduzir no caminho para a Razão. Além disso, ao contrário de Kant, não há mais uma
separação entre a razão teórica e a razão prática.
Sendo assim, encontramos uma significativa distinção entre Kant e Hegel. Kant
apresenta a Razão como um momento do Entendimento. Hegel desenvolve seu argumento
sobre a Razão como um processo que se caracteriza pela amplitude, por estar inserida num
conjunto de mediações, que formam os momentos da totalidade no tempo através da história.
Esse é um processo que se faz em seu próprio ser em movimento, que é Espírito, que se
determinou em uma determinada época, em uma civilização ou até mesmo em toda a espécie
humana.
A ruptura epistemológica de Hegel estaria dando prosseguimento ao projeto iniciado
por Kant na Crítica da Razão Pura. Na visão de Hegel, a crítica epistemológica estaria
incompleta, uma vez que, para Kant, as condições e determinações dos conceitos para o
sujeito que pensa não permitem conhecer a constituição dos próprios seres. É diante disso que
Hegel desenvolverá uma ruptura epistemológica com o pensamento filosófico moderno. É por
dentro do pensamento kantiano, na apropriação dialética das categorias do Entendimento e na
34

compreensão das antinomias da razão desenvolvidas por Kant na Crítica da razão pura, que
Hegel desenvolve sua visão sobre o conhecimento.
Em Kant, os limites do conhecimento se apresentam como a necessidade de um modo
de conhecer transcendental, de uma filosofia crítica. Hegel tem clareza de que, mesmo que
conservasse a essência crítica desse pensamento transcendental kantiano, não poderia limitar-
se ao dualismo sujeito/objeto e à segregação entre fenômeno e coisa em si. Hegel reconhece
em Kant que, mesmo que haja uma incompletude em criticar a razão com o seu idealismo
transcendental, sua teoria do conhecimento havia dado passos largos para a compreensão do
mundo. Hegel sabe que os debates filosóficos entre as correntes empiristas e racionalistas
eram intensos e que a síntese kantiana representava um avanço para a compreensão filosófica
do conhecimento. Assim, para ela era necessário ir além de Kant, justamente reconhecendo os
avanços para a compreensão do conhecimento que ele havia ensejado.
Portanto, Hegel estaria atualizando a construção da ideia da dedução transcendental
dos conceitos do entendimento ao recuperar e desenvolver a ideia de movimento das
consciências não apenas como uma certeza do sujeito em si, mas como consciência para si
que se reconhece no mundo. Para Hegel, o pensamento não experimenta o mundo apenas
como objeto/fenômeno que provém de algo externo, mas mormente enquanto constituinte do
seu reconhecimento como autoconsciência. A extensão disso se mostra na ruptura
epistemológica. A ontologia hegeliana marca um novo modo de pensar o real, que é imanente
a ele e que não está mais como observador exterior. Essa noção de imanência está presente no
§261 da FD para justificar o conceito de Estado ético.
Pois, o real em Hegel compreende a ideia de processo, como o desenvolvimento do
Espírito na história. As figuras da consciência formam em cada um dos instantes, nessa
realidade objetiva, a saber, na história, um momento do Espírito. O ser move-se na passagem
do Espírito como algo indissociável a ele. Ele se faz, conhece o mundo e se reconhece, de
modo uno e não como algo distinto.
A compreensão dessa ruptura de Hegel é central para compreendermos como Marx a
absorve e a desenvolve dialeticamente em sua crítica. Pois, assim como pensa Hegel, Marx
resgata as experiências da consciência para construir sua ética e sua política, na tentativa de
compreender o mundo.
Hegel formula um pensamento que pensa a si mesmo, mediado por toda realidade
objetiva possível. Em Hegel, o cogito, o Eu penso, tem em sua essência, seu conteúdo e sua
35

forma, o próprio ser que pensa. Logo, o pensar não é meio para pensar alguma coisa, mas é o
ser que se pensa a si próprio. O conteúdo do pensamento é o processo da ação do Eu.
Mas no que consiste essa compreensão segundo a qual as consciências conhecem o
mundo ao se reconhecerem enquanto consciência de si na realidade objetiva, na história? Uma
das respostas é que está subjacente, nesse movimento de reconhecimento das consciências, a
ideia de imanência em Hegel. Formando uma unidade, a síntese da diversidade empírica do
mundo nada mais é do que o conteúdo desse reconhecer-se das consciências de forma
imanente. O Eu penso, em Hegel, é desenvolvido até determinar-se enquanto movimento
imanente do próprio real.
A racionalidade em Hegel apresenta-se imanente às coisas, de modo que são
apresentadas no conceito. Há uma indissociável relação entre pensamento e ser: tudo aquilo
que pode ser pensado é ser, e tudo que “é” pode ser pensado. A racionalidade e a ideia de
imanência, em Hegel, consistem em mostrar que a realidade é pensável e que o pensamento
“é” enquanto pensando a realidade.
O real, para Hegel não se reduz ao existente imediato. “Wirklichkeit” é a efetividade, a
realidade em movimento que não está limitada ao que está dado. A racionalidade, para Hegel,
se apresenta na ação realizada, na que está se realizando e na que poderá ser realizada. A
realidade é o movimento da ação humana. Logo, decorre das relações objetivas do mundo
sublunar, decorrentes das condições subjetivas dos indivíduos nas relações entre si. Essas
condições que formam a realidade provêm do processo histórico da humanidade.
Nesse ponto, Hegel se distingue frontalmente de Kant. Este delimitou as categorias
que compõe a subjetividade colocando-as de um lado, enquanto os elementos pertencentes ao
objeto se apresentam no outro lado. Para Hegel, na autoconsciência, na unidade dialética entre
o ser e o seu pensamento, não há mais uma separação entre subjetividade e objeto. Assim, a
Razão encontra sua raiz ontológica na identidade entre sujeito e objeto.
No entanto, esse desenvolvimento do movimento das consciências que se reconhecem
conhecendo o mundo pode ser mais bem explicado pela passagem do capítulo V da FE, em
que Hegel mostra o movimento da consciência em direção à autoconsciência, ao
reconhecimento.

A consciência-de-si agora captou o conceito de si, que antes era só o nosso a seu
respeito - o conceito de ser, na certeza de si mesma, toda a realidade. Daqui em
diante tem por fim e essência, a interpenetração movente do universal - dons e
capacidades - e da individualidade. Os momentos singulares de sua implementação e
interpenetração - antes da unidade na qual confluíram - são os fins considerados até
aqui. Eles desvaneceram, como abstrações e quimeras que pertencem às primeiras
36

figuras fátuas da consciência-de-si espiritual, e que só têm sua verdade no ser que
pretendem o coração, a presunção e os discursos; e não, na razão. Agora a razão,
certa de sua realidade em si e para si, já não busca produzir-se como fim, em
oposição à efetividade imediatamente essente, mas tem por objeto de sua
consciência a categoria como tal. (HEGEL, 2002, p.275, §394).

É na ação, e por meio dela, que o ser consciente se efetiva na singularidade no


indivíduo. Sendo assim, a razão se faz presente na consciência de si, uma vez que é ela
essência da própria ação do indivíduo. A consciência de si é o reconhecimento de se pode
conhecer como o todo mediatizado que se move por si e para si enquanto sua essência. Esse
movimento da consciência de si é sua própria essência, que é simultâneo e indissociável desse
(ser) indivíduo que age. Para Hegel, ser e pensar constituem uma unidade ontológica, não é
uma operação lógica em si no ato de pensar. Pelo contrário, esse ser, com pensamentos, pensa
a si e em si, por meio de uma linguagem, que é social e histórica.
Forma e do conteúdo manifestam-se no Espírito como a unidade, a efetividade. O
Espírito é seu próprio conteúdo, que por sua vez é idêntico à sua forma: “forma e conteúdo
são assim, no espírito, idênticos entre si” (HEGEL, 1995, v. III, p. 25, § 383, adendo).
A ideia de filosofia da história de Hegel consiste em compreender o Espírito no seu
movimento que se desenvolve e retorna a si. A Histórica do Mundo, para Hegel, se apresenta
no movimento das consciências, no reconhecer-se na racionalidade enquanto Espírito que se
efetiva livre. A liberdade, portanto, para Hegel será a essência a partir da qual é possível
conhecer o mundo. Pois, a História mundial é a manifestação do Espírito em seu retorno a si
mesmo.
Para Hegel,

O absoluto é o espírito: esta suprema definição do absoluto. Encontra essa definição


e conceber seu sentido e conteúdo, pode-se dizer que foi essa tendência absoluta de
toda cultura e filosofia; nesse ponto insistiu toda a religião e ciência, só a partir
dessa insistência pode se conceber a história mundial. A palavra e a representação
do espírito cedo se encontraram; e o conteúdo da religião cristã é dar a conhecer
Deus como espírito. O que aqui é dado à representação, e o que é em si a essência, a
tarefa da filosofia é apreendê-lo em seu elemento próprio, no conceito. Essa tarefa
não é resolvida de modo verdadeiro e imanente enquanto o conceito de liberdade
não são seu objeto e sua alma. (HEGEL, 1995, p.26, §384, adendo).

O absoluto, buscado na religião, é na verdade o Espírito. Ele é a unidade completa


entre o conceito e a efetividade, enquanto síntese da racionalidade. Desse modo, o Espírito se
faz efetivo no mundo, na História mundial.
É nesse contexto que a ideia de consciência tem centralidade no desenvolvimento da
ruptura epistemológica em Hegel. A consciência é o modo pelo qual o Espírito se desenvolve
37

enquanto efetividade. O indivíduo é um todo histórico, pois o movimento em Hegel é


“absoluto”.
A consciência é semovente e indissociável das relações da individualidade e das
relações associativas, da tridimensionalidade na eticidade do Espírito objetivo: singularidade,
particularidade e universalidade. Ele se torna indivíduo a partir da ação, do agir consciente no
mundo, na efetividade (Wirklichkeit), que se move e se desenvolve de modo indissociável nas
relações históricas e objetivas.
Para Hegel a Aufhebung se desenvolve nos momentos do lógico: as faculdades
discursivas do “entendimento”, a “razão negativa ou dialética” e a “razão positiva” ou
“especulação”, conforme explicado no § 79 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas.
A ideia de absoluto é exposta com o que é suprassumido, ou seja, o que lhe antecede e
foi negado, mas é conservado em um ponto de vista mais elevado, efetivo, real. E, para Hegel,
na esfera objetiva, o Estado é a realização da ideia absoluta:

O Estado é a realização da Liberdade, do objetivo final absoluto, e existe por si


mesmo. Todo o valor que tem o homem, toda a sua realidade espiritual, ele só a tem
através do Estado. Sua realidade espiritual é a presença consciente para ele de sua
própria essência, a presença da Razão, de seu objetivo, a realidade imediata presente
em si e para si. Só assim ele tem plena consciência, assim ele compartilha da moral,
da vida legal e moral do Estado, pois a Verdade é a união da vontade universal com
a vontade particular. (HEGEL, 2001, p. 90).

Essa passagem apresenta didaticamente como o sistema de Hegel está presente na


formulação teórica da sua ética. Como a sua teoria de Estado é resultado da transição dos
momentos do entendimento e da razão negativa ou dialética para a razão positiva ou
especulação, em que se negam e se suprassumem, a metafísica hegeliana evitará a
fragmentação. Ela levará sempre a um componente totalizador, de modo que só nesse
movimento cada parte do seu sistema ganhará determinação.

A afirmação desse ponto de vista é, com efeito, que não são o verdadeiro nem a
ideia como um pensamento meramente subjetivo, nem simplesmente um ser para si.
O ser só para si, um ser que não é da ideia, é o ser sensível, finito, do mundo. Com
isso afirma-se que a ideia só é verdadeira por mediação do ser; e, inversamente, que
o ser só o é por mediação da ideia. A proposição do saber imediato não quer, com
razão, a imediatez vazia, indeterminada: o ser abstrato ou pura unidade para si; mas
sim a unidade da ideia com o ser. Porém, é carência-de-pensamento não ver que a
unidade das determinações diferentes não é a simples unidade pura e mediata, isto é,
totalmente indeterminada e vazia; mas que está justamente posto nela, que é uma das
determinações só tem verdade mediatizada pela outra; ou, caso se prefira, que cada
uma só é mediatizada com a verdade por meio da outra. A imediatez está contida na
determinação da mediação que é, é por isso mostrado como um fato, contra o qual o
entendimento, conforme o princípio próprio do saber imediato, nada pode ter a
38

objetar. E só o entendimento abstrato, ordinário, que toma as determinações de


imediatez e de mediação, cada uma por si, como absolutas; e acredita ter nelas algo
fixo para a distinção. Assim produz para si a dificuldade insuperável de reuni-las —
uma dificuldade que, como se mostrou, tanto não existe no fato como desvanece no
conceito especulativo. (HEGEL, 1995, p. 149, §70)

Esta é uma ideia importante para a compreensão do conceito hegeliano de Estado.


Hegel desenvolve a ideia de um Estado que resulta da suprassunção das relações humanas nas
esferas da eticidade em direção ao absoluto. É assim que o Estado ético que se efetiva
enquanto universal.
Esse movimento caracteriza-se por pensar-se não como uma abstração vazia, mas
como um pensar que interconecta e relaciona seus conteúdos, em direção à concretude, que
observamos na sua filosofia política enquanto Estado ético. Cada esfera da eticidade contém
uma totalidade de determinações. Para Hegel, é na esfera do Estado que se dá verdadeira
manifestação objetiva do absoluto.
A Fenomenologia do Espírito traz a consciência ao conceito da ciência, ou ao saber
puro, novo pensar científico desenvolvido e proposto por Hegel. A consciência, em Hegel
será um procedimento que se move, que se nega, se conserva e se eleva, se faz no mundo, a
Aufhebung. Portanto, a ideia de suprassunção não é apenas um método, é a forma como a
consciência se move como uma condição necessária da lógica de Hegel de forma e de
conteúdo para a afirmação da sua metafísica do presente real.
Compreender o conceito de suprassunção é o que possibilita entender a teoria de
Hegel de forma encadeada, totalizante e não linear.
Já a compreensão dialética de Marx é uma atualização crítica que está na base da
ruptura com o idealismo do sistema de Hegel. Marx afirma que a filosofia hegeliana é uma
inconsequência idealista, que ele chama de “a mística das ideias”.
O Estado, como uma abstração, é uma figura sem substância. Em vista disso, Hegel
defende que o monarca seja a encarnação do Estado na realidade concreta. No §280, no qual
Hegel escreve:

Nessa sua abstração, esse si mesmo último da vontade do Estado é simples e, por
isso, é singularidade imediata; com isso, em seu conceito mesmo reside a
determinação da naturalidade; por isso o monarca é essencialmente enquanto esse
indivíduo, abstraído de todo outro conteúdo, e esse indivíduo, de modo imediato,
natural, pelo nascimento natural, é determinado à dignidade de monarca. (HEGEL,
2010, p.266).

Nos comentários de Marx ao §280, ele fundamenta sua crítica na ideia de que
39

A diferença peculiar que ele indica é, portanto, tão peculiar que suprime toda
analogia e põe a magia no lugar da “natureza da vontade em geral”. Em primeiro
lugar, a conversão do fim representado em existência é, aqui, imediata, mágica. Em
segundo lugar, eis o sujeito: a pura autodeterminação da vontade, o Conceito
simples mesmo; é a essência da vontade, como Sujeito místico, que determina; não é
um querer real, individual, consciente; é a abstração da vontade, que se transforma
numa existência natural; a Ideia pura, que se encarna em um indivíduo. (MARX,
2005, p.54).

Como se pode ver, para Marx, Hegel converte a vontade de um indivíduo singular em
uma vontade mágica. O monarca deixa de ser um indivíduo qualquer e passa a ser a
encarnação do Estado. Ele passa a ser a própria encarnação da vontade de um povo.
Segundo Lukács, em O Jovem Marx, o ponto de partida do pensamento de Marx foi a
filosofia hegeliana. “Sua formação filosófica propriamente dita, contudo, teve início apenas
com o aprendizado da filosofia hegeliana. Somente então é que ele começa a existir para a
história universal.” (LUKÁCS, 2009, p. 123).
Em sua tese de doutorado, Marx reavaliou Demócrito e Epicuro, estabelecendo uma
diferença entre ambos. Depois, nos artigos da Gazeta Renana, as divergências com Hegel se
ampliaram. O conservadorismo hegeliano, para ele, não representava uma acomodação moral.
Baseava-se em um erro de princípio dessa filosofia, seu idealismo objetivo. Esse idealismo
inverte sujeito e objeto e está na base da inversão hegeliana entre Estado e sociedade civil. O
que está em essência nessa passagem, para Marx, é uma inversão da relação entre produtor e
produzido, entre condição e condicionado. O objeto dessa inversão, segundo as observações
de Marx, feitas ao parágrafo §279 da FD, consiste que

Hegel transforma todos os atributos do monarca constitucional na Europa atual em


autodeterminações absolutas da vontade. Ele não diz: a vontade do monarca é a
decisão última, mas a decisão última da vontade é ... o monarca. A primeira frase é
empírica. A segunda distorce o fato empírico em um axioma metafísico. (MARX,
2005, p.45).

A inversão produz, segundo Marx, um deslocamento do fato empírico, tornando-o um


axioma metafísico, ou seja, Hegel torna o sensível uma abstração, que se converte em
existência no mundo como sendo natural. A decisão do monarca, que seria um atributo seu,
torna-se sujeito real, e o monarca real torna-se apenas a sua manifestação. Hegel transforma
em atributo o que é sujeito, e este em predicado. Não se trata mais da vontade real de um
sujeito real, mas da vontade enquanto sujeito. E a inversão reside para Marx no fato de que,
na especulação hegeliana, apresentada no §279 da FD;
40

A existência dos predicados é o sujeito: portanto, o sujeito é a existência da


subjetividade etc. Hegel autonomiza os predicados, os objetos, mas ele os
autonomiza separados de sua autonomia real, de seu sujeito. Posteriormente, o
sujeito real aparece como resultado, ao passo que se deve partir do sujeito real e
considerar sua objetivação. A Substância mística se torna sujeito real e o sujeito real
aparece como um outro, como um momento da Substância mística. Precisamente
porque Hegel parte dos predicados, das determinações universais, em vez de partir
do ente real (υποχειμενον, sujeito), e como é preciso haver um suporte para essa
determinação, a Ideia mística se torna esse suporte. Este é o dualismo: Hegel não
considera o universal como a essência efetiva do realmente finito, isto é, do
existente, do determinado, ou, ainda, não considera o ente real como o verdadeiro
sujeito do infinito. (MARX, 2005, p.44).

Há uma ausência, segundo Marx, que se verifica no fato de Hegel partir do universal,
ou seja, Hegel parte da determinação geral abstrata de um absoluto em lugar de partir do ser
real. Para tanto, a sua teoria de Estado necessitaria de um fundamento para essas
determinações, que no caso é a ideia mística. Marx critica esse procedimento de Hegel, pois
“em vez de concebê-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza os predicados e
logo os transforma, de forma mística, em seus sujeitos.” (MARX, 2005, p.44).
Hegel desenvolve, no seu sistema, a ideia de imanência. A ideia de imanente está
diretamente relacionada com a ideia de absoluto, como apresentamos anteriormente no texto.
Essas duas noções são centrais para a definição do que é o Estado ético, apresentadas no §261
da FD: “ele é seu fim imanente e possui seu vigor na unidade de seu fim último universal e do
interesse particular dos indivíduos”. E ainda, para Hegel, a ideia de Estado: “é a ideia
universal enquanto gênero e potência absoluta, contra os Estados individuais, o espírito em
que se dá sua efetividade no processo da história mundial.” (HEGEL, 2010, p.234).
Na passagem da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, no §213, Hegel fornece um
caminho para entender o que é ideia, que é um termo central do seu sistema de pensamento.
Hegel afirma:

A ideia é o verdadeiro em si e para si, a unidade absoluta do conceito e da


objetividade. Seu conteúdo ideal não é outro que o conceito em suas determinações,
seu conteúdo real é somente a exposição do conceito, que ele se dá na forma de um
ser-aí exterior; e estando essa figura excluída na idealidade do conceito, na sua
potência, assim se conserva na ideia. (HEGEL, 1995, p.348, §213).

A ideia, portanto, é a síntese da unidade objetiva das categorias da dialética que


justificam as noções de imanência e de absoluto. É possível afirmar que esse é o modo através
do qual Hegel sedimenta o desenvolvimento do seu pensamento ético na Filosofia do Direito,
que se desenvolveu e se expressou no conceito de “Eticidade”.
41

Desse modo, a ideia é a unidade que se volta para estender as categorias do


conhecimento especulativo a distintos momentos. Ela está presente na passagem de uma
categoria a outra, em diferentes aspectos do real, na passagem ao espírito objetivo, em que se
encontra com a moralidade, o direito abstrato e se efetiva na Eticidade.
É a ideia hegeliana que sedimenta o conceito de vir-a-ser, pois está interligada, de
forma indissociável, à noção de Aufhebung. A ideia, em Hegel, é a representação do que se
suprassume.
Em Hegel, o ser e o não ser não são a mesma coisa; mas, ao considerá-los em
movimento, apresentam-se em um sentido mais elevado. Assim, o conteúdo e a forma se
suprassumem, se engendram e novos conteúdos e formas se constituem.
Esse é um ponto importante para compreendermos o sistema dialético de Hegel como
uma ruptura epistemológica com a filosofia desenvolvida na modernidade. A noção de
Aufhebung se apresenta como uma espécie de “operador” filosófico ou como uma
metacategoria, que não só dá sentido dialético à relação entre as categorias, mas que se
interconecta com todo o desenvolvimento do seu sistema de pensamento, desde o movimento
das consciências nas passagens do Espírito subjetivo ao absoluto, mas sobretudo fundamenta
a ideia da eticidade, em que o Estado é imanente e absoluto. A noção de ideia em Hegel não
pode ser tomada como um sinônimo de pensar ou uma simples operação de um cálculo
racional subjetivo do entendimento. Ideia, em Hegel, é algo objetivo, que se faz efetiva no
mundo diante das suas contradições.
Então, falar em ruptura de Marx com idealismo hegeliano é bastante complexo. Isso
que nos motivou a detalhar um pouco melhor a noção de Aufhebung e a sua relação com os
conceitos de imanência e de absoluto. Essa noção não só fundamentada a ruptura de Hegel
com a teoria sobre o conhecer da época, mas também sua teoria de Estado ético.
Examinaremos como essa noção, em conjunto com as categorias do sistema hegeliano,
compõe o núcleo central da objeção de Marx a Hegel, seja enquanto método, seja enquanto
objeto da crítica.
A Aufhebung, a suprassunção, assim como as categorias de abstração e de negação,
impactam na formulação da ética de Hegel, sua teoria de Estado. As categorias lógicas
hegelianas fazem com que o seu sistema filosófico não se aplique como um resultado
geométrico ou um método de simples aplicação de inferências subjetivas baseadas em
determinações metafísicas. Ao contrário, Hegel, com a Aufhebung, está interessado em
42

conhecer o mundo por meio do reconhecimento das consciências, ou seja, como processo que
se nega, se conserva e se engendra enquanto novo projeto científico.
Em síntese, na noção dialética hegeliana, a Aufhebung é um momento próprio do real,
que se expressa na categoria da negação, mas a ultrapassa, pois o que é negado não é
eliminado, a saber, toda a filosofia até aquele momento.
Desse modo, o entendimento da Aufhebung será uma noção essencial para desnudar os
argumentos hegelianos na sua contraposição ao Estado contratualista moderno, como
analisaremos no capítulo adiante. Hegel mostra que a teoria contratualista tomava como base
a dissociação entre indivíduo e sociedade, não reconhecendo as dimensões da singularidade
(família), da particularidade (sociedade civil burguesa) e da universalidade (Estado), tal como
ele concebe. Assim, o que está em jogo é compreender em que sentido o Estado ético
hegeliano (isto é, o Estado na perspectiva da teoria da eticidade hegeliana) suprassume o
Estado contratualista da época moderna.
O contratualismo, segundo Hegel, lida como uma lógica binária: indivíduo-lei,
indivíduo-poder, indivíduo-natureza e indivíduo-sociedade. Desse modo, justificam a
necessidade do Estado. O conceito de Aufhebung irá conduzir as formulações e fundamentar a
teoria de Estado ético, “Importa então conhecer, na aparência do temporal e passageiro, a
substância, que é imanente, e o eterno, que está presente.” (HEGEL, 2010, p.32).
Logo, entender a dimensão da noção de suprassunção é uma das principais tarefas
para mostrar como os argumentos de Marx apontam para a teoria de Estado moderno de
Hegel como uma contradição incontornável.
Daremos destaque, na trajetória das formulações da lógica do sistema de Hegel e no
desenvolvimento da base argumentativa da sua teoria ética da Eticidade, ao modo como a
noção de Aufhebung relaciona os elementos filosóficos do sistema dialético, em especial as
noções de negação e da abstração, que compõem a teoria de Estado de Hegel. Essas categorias
serão apropriados por Marx em seus argumentos críticos.
É a noção de suprassunção que encadeia forma e conteúdo, tanto na formulação do
conceito de Estado em Hegel, quanto na objeção de Marx no §261. Suprassunção é a conexão
lógica compreendida por Marx, para, no seu argumento crítico, mostrar que a racionalidade
do Estado ético hegeliano é uma antinomia sem solução. Marx se apropria, compreende e
utiliza, de modo indireto, a noção de Aufhebung para formular uma crítica à teoria de Estado
de Hegel.
43

Portanto, há uma apropriação dialética genuína no método proposto por Marx. A sua
crítica ao §261 da FD seria um o método dialético em que ele suprassume a abstração do
conceito de sociedade civil burguesa e a ideia de negação dessa relação entre sociedade civil e
Estado. No entanto, Marx apresenta um novo argumento central: de que uma há uma
contradição é insolúvel na relação entre sociedade civil e o Estado. E será por compreender o
resultado da apropriação da noção de suprassunção, oriunda do sistema de hegeliano,
enquanto método teórico, que Marx irá mostrar que a noção de Estado de Hegel não satisfaz
as condições de uma teoria ética do Estado moderno que garanta a liberdade.
Para Hegel, o mundo objetivo não está dispensado da contradição. Isso é apresentado
na obra Ciência da Lógica. Na doutrina do ser, ele afirma que “isto é ternura demais para
com o mundo: afastar dele a contradição, pelo contrário transferi-la ao espírito, à razão, deixá-
la subsistir, não dissolvida” (HEGEL, 2016, p.254). Para Hegel, há contradições reais, e a tal
perda de ternura é a defesa de uma natureza real da contradição.
O mundo, para ele, é algo em movimento imanente que se dissolve e se constitui como
a expressão da contradição. A contradição é a atualização da realidade, de tal forma que a
totalidade dissolve a identidade das partes. Então, a soma das partes dissolvidas é novamente
totalizada, uma vez que o todo produz propriedades que suas partes não têm de maneira
isolada. É da natureza da realidade ir além de si e negar a sua negação. É da natureza da
realidade tornar possível algo como ser outro em outra forma.
Sendo assim, a noção de contradição hegeliana é a forma que o objeto na realidade se
efetiva indissociavelmente na atualização da totalidade, cujos objetos são reais e estão
dispostos como ideia no mundo.
A contradição opera no desenvolvimento dos distintos momentos da realização do
espírito, e a sua consequência é destituir o mundo como um espaço estável de experiências.
Hegel apresenta, no §445 1 da Fenomenologia do Espírito, que

A consciência de si experimenta, assim, em seu ato, tanto a contradição daquelas


potências em que a substância se divide, e sua mútua destruição, como, também, a
contradição entre seu saber sobre a eticidade da sua ação, e o que é ético em si e para
si; e, aí, encontra sua própria ruína. De fato, porém, a substância ética, mediante esse
movimento, veio a ser a consciência de si efetiva; ou seja, este Si se tornou algo em
si e para si essente. (HEGEL, 2002, p.307).

1
Numeração dos parágrafos foi introduzida pela edição brasileira. A edição alemã não tem numeração de
parágrafos.
44

Há uma relação efetiva de superação entre a Ideia de Estado ético e a teoria de Estado
contratualista a ser suprassumida pelo conceito. No §449 da Fenomenologia do Espírito,
Hegel mostra como a consciência de si, por meio das contradições, se dissolve e se constitui
no Estado ético, quando afirma que

[...], com efeito, o poder ético do Estado tem, como movimento do agir consciente
de si, sua oposição na essência simples e imediata da eticidade. Como
universalidade efetiva, o poder do Estado é uma força [voltada] contra o ser para si
individual; e como efetividade em geral encontra ainda um outro que ele [mesmo]
na essência interior. (HEGEL, 2002, p.309).

Veremos mais adiante que a construção da teoria de Estado ético hegeliano utiliza
parte da refutação da concepção contratualista de Estado, sem reduzi-la ou restringi-la aos
argumentos da refutação ou da análise da teoria contratual, para estabelecer outra essência
teórica. Hegel irá apropriar-se da noção de vontade para conservá-la e elevá-la no
desenvolvimento de uma teoria que, ao se suprassumir, como, por exemplo, na ideia de
interesse comum, se estabelece e se efetiva em uma nova teoria de Estado que supera aquela
ideia de vontade do Estado contratual em Rousseau.
Veremos que, para entender a crítica de Marx à Hegel, se faz necessário compreender
a teoria do desenvolvimento da autodeterminação de Hegel, por exemplo, não apenas para
criticá-la, mas para vermos que Marx a entende e a explica nas glosas do texto de 1843. Marx
mostra como a vontade livre, na visão de Hegel, tem relação interna e imanente com o Estado,
o que, segundo ele, resulta num conceito teleológico de Estado ético, usado por Hegel para
construir sua argumentação em torno do Estado.
A ruptura epistemológica do sistema hegeliano com a filosofia kantiana foi profunda e
estabeleceu novos critérios teóricos para se pensar o Eu. Os avanços teóricos no campo da
ideia do Eu imanente de Hegel caminham junto com a ideia de reconhecimento das
consciências, que será recuperada na forma crítica em Marx para compreender a relação do
Estado com o indivíduo, desenvolvendo a categoria de alienação, como veremos nos capítulos
finais.
O pensador contemporâneo Axel Honneth, no seu livro Sofrimento de
indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel, marca o quanto
pensar o Eu foi significativo para a teoria ética hegeliana. O seu modo de pensar não
investigou as condições para se conhecer o mundo, mas sobretudo defendeu que é possível
conhecê-lo. Essa forma de pensar o Eu está diretamente relacionada com outro conceito
relevante para a ideia de Estado ético em Hegel, o conceito de vontade, já que ela determinou
45

a ideia de reconhecimento das consciências. Veremos que essa noção de reconhecimento tem
significativo interesse e desdobramentos na formulação de Marx sobre alienação:

Hegel pode finalmente resumir a objeção que havia levantado contra o modelo
optativo de autodeterminação em uma fórmula segundo a qual o material da decisão
refletida da vontade sempre deve ser considerado como contingente e, nesse sentido,
como “heterônomo”: “o conteúdo dessa autodeterminação”, tal como escreve em sua
própria terminologia, permanece, por essa razão, também algo simplesmente “finito”
(§ 14). Enquanto a limitação do modelo negativo de “vontade livre” residia no fato
de a autodeterminação individual poder ser descrita somente como exclusão de todas
as inclinações ou metas de ação particulares, para Hegel o defeito desse segundo
modelo, o optativo, reside em ter de representar o ato de autodeterminação
incondicionalmente como uma escolha refletida entre inclinações ou impulsos da
ação por sua vez indisponíveis - e a consequência de uma tal determinação
imperfeita da liberdade é, assim como Hegel não se cansara de repetir, o dualismo
kantiano entre dever e inclinação, entre a lei moral ideal e a natureza meramente
externa do impulso. Ao contrário, o autor da Filosofia do direito quer - e isso não
pode mais surpreender - chegar a um modelo complexo de “vontade livre” por meio
do qual na própria vontade, assim como no material da autodeterminação individual,
aquele vestígio de heteronomia é compreendido, porque pode ser pensado agora
como resultado da liberdade. Esse conceito exigente deve ser possível se se
considera a vontade uma relação reflexiva em si, de acordo com a qual ela pode
influir sobre si mesma enquanto vontade. (HONNETH, 2007, p.59).

O reconhecimento das consciências está presente no modo de conhecer e dizer o


mundo e impactará em toda a apropriação e na própria formação do pensamento crítico de
Marx mais tarde. As consequências teóricas da compreensão dialética da ideia de vontade
constituí a base do conceito de liberdade para Hegel. Já o Eu é um todo epistemológico
decorrente da sua ruptura com a teoria do conhecimento moderna, mas que é sobretudo uma
nova determinação de conhecer o mundo, um modo ético e político, uma vez que o Eu, para
ele, só pode ser pensado como o resultado de uma atividade social. Assim, o Eu, pensando por
Hegel, incluiu uma vontade que não pode ser tomada como uma manifestação da
subjetividade.

A vontade finita enquanto eu infinito (§ 5), que somente se reflete dentro de si e


apenas está junto de si mesma segundo o aspecto da forma, encontra-se acima do
conteúdo, dos diferentes impulsos, assim como das outras espécies singulares de sua
efetivação e de sua satisfação [;] ao mesmo tempo, enquanto apenas formalmente
infinito, ele está ligado a esse conteúdo como às determinações de sua natureza e de
sua efetividade externa [;] todavia, como indeterminado, não está ligado a esse ou
àquele conteúdo.(HEGEL, 2010, p.64, §14).

O Eu compõe ontologicamente a vontade em Hegel. Mas, não se trata de um Eu


enquanto vontade no sentido a priori, ou como uma operação subjetiva, aniquilando o mundo
social. O Eu em Hegel compõe a vontade no sentido que se faz enquanto a vontade, que
determinará o Eu ético, que se realiza, ou melhor, se efetiva na Eticidade; membro da família,
da sociedade civil burguesa e tendo a expressão da sua liberdade concreta representada no
46

Estado ético. Portanto, o Eu, para Hegel, está em movimento e vem a ser na ação dos
momentos do desenvolvimento das vontades, no reconhecimento das consciências no mundo.
Para ele, o eu só se efetiva de modo imanente no Estado. Portanto, a expressão do indivíduo,
posto com a sua consciência, está no conceito de vontade de Hegel, que tem seus fundamentos
teóricos numa ideia que perpassa todos os momentos do Espírito até se constituir enquanto
essência imanente e absoluta, como expressão da liberdade no Estado ético.
No entanto, cabe observar que Hegel não está absolutizando a imanência do sujeito no
movimento dialético da liberdade entre identidade do si mesmo e uma alteridade no vazio da
indiferença do outro em si que não se efetiva. Em Hegel, a formação do Estado supõe a
interessação entre os indivíduos concretos, mediados pelas instituições sociais. Essa interação
não é externa aos indivíduos. Pelo contrário, determina sua identidade e seu lugar na
totalidade ética que surge, como ele apresenta no §260 da FD:

O Estado é a efetividade da liberdade concreta; mas a liberdade concreta consiste em


que a singularidade da pessoa e seus interesses particulares tenham tanto seu
desenvolvimento completo e o reconhecimento de seu direito para si (no sistema da
família e da sociedade civil-burguesa), corno, em parte, passem por si mesmos ao
interesse do universal, em parte, com seu saber e seu querer, reconheçam-no corno
seu próprio espírito substancial e são ativos para ele como seu fim último. (HEGEL,
2010, p.235, §260).

O processo da efetividade da liberdade concreta que é o Estado. No Estado, o


indivíduo tem seus interesses tanto reconhecidos quanto desenvolvidos para converterem-se
em interesses universais.
Em Hegel, na razão suprassumem-se a segmentação do entendimento, tal como Kant
propunha. Hegel propõe analisar o movimento do Espírito presente no agir individual, nos
distintos momentos da ação consciente, na qual se efetiva a liberdade. Para ele, é na ação que
o indivíduo, em um todo ético, se constitui enquanto livre.
Sendo assim, Hegel suprassume a oposição kantiana insuperável entre sujeito e objeto,
uma vez que a consciência agora se transforma e se apresenta enquanto una, pelas
diversidades das próprias determinações. Ela é uma efetividade que se faz tanto na esfera
individual quanto na sociedade civil burguesa, sendo o resultado da sua própria trajetória nos
diferentes momentos na história.
O pensamento é algo em movimento, que transforma a si mesmo e a realidade social
dos seres humanos. O ato das consciências reconhecer-se é uma práxis, é uma atividade de se
conhecer conscientemente no tempo, na história. A ação consciente conhece o mundo, a
realidade que se move, e se transforma pela sua própria negação; isto é, se modifica e se
47

transforma pela ação humana. A consciência particular conhece e a si mesma por meio das
contradições na eticidade, na sociedade civil burguesa, como singular e efetiva enquanto
liberdade no universal, no Estado ético.
Já encontramos diversos pontos de proximidade entre as duas teorias, a de Hegel e a
de Marx. Como dissemos, nossa pretensão é compreender a crítica de Marx como uma
atualização da dialética presente na teoria política de Hegel. Marx apropriou-se das categorias
do sistema hegeliano nas suas análises e objeções, e assumiu o método dialético no
desenvolvimento da sua teoria. Marx compreende a dialética da ruptura epistemológica
transformadora do pensamento de Hegel e a transforma em instrumento argumentativo em sua
crítica. Observaremos, no último capítulo dessa pesquisa, que ele, ao apropriar-se, conserva
determinadas categorias na sua análise, para negá-las e as apresentar de outro modo, a saber,
como crítica à teoria de Estado de Hegel, especificamente em sua ruptura com o idealismo.
A relação da ética com a ruptura epistemológica foi profunda ao pensar as relações
sociais da vida moderna, intrínsecas à sociedade civil burguesa enquanto uma abstração.
Veremos o porquê o conceito de vontade apresentado na crítica de Hegel a Rousseau nos
ajudará a instrumentalizar teoricamente a passagem das contradições da sociedade civil
burguesa ao momento absoluto da Eticidade hegeliana, o Estado ético. Essa passagem e a
ruptura epistemológica de Hegel nos fornecem os elementos filosóficos para o entendimento
da crítica de Marx à ideia de Eticidade.
3 A IDEIA DO ESTADO ÉTICO DE HEGEL

3.1 O conceito de Estado em Hegel

O Estado é o que se efetiva como resultado do processo de movimento das


consciências de si. É o espaço do interesse público em que essas consciências se
desenvolveram ao longo da história e que, nesse instante, reconhecem-se como pertencentes
ao Estado. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel apresenta as sucessivas etapas na formação
da liberdade humana. A liberdade do indivíduo depende do modo como o reconhecimento das
consciências de si as constitui livres no mundo. O reconhecimento do indivíduo na condição
de ser livre se faz na figura jurídica, como sujeito moral, como indivíduo na Eticidade, o qual
é membro da família, da sociedade civil burguesa, e sujeito que efetiva a sua liberdade no
Estado.
Desse modo, o Estado hegeliano é aquele que assegura a liberdade individual como
uma condição indissociável, inalienável do ser que pensa, deseja e age.
Na passagem do §594 da Fenomenologia do Espírito, Hegel (2002, p.407) apresenta
o quanto é necessária a transformação das consciências na formação do Estado ético, ao dizer
que a “vontade universal é o seu puro saber e querer; e a consciência é a vontade universal,
como seu saber e querer”.
A liberdade concreta é a liberdade individual que se afirma como sendo aquela
liberdade individual que começa concomitantemente com a liberdade do outro como ser
particular que se realiza no universal.
Para Hegel, a noção de liberdade concreta é aquela que se concretiza nos três níveis:
singular (família), particular (sociedade civil burguesa) e universal (Estado), suprassumindo-
se. Para ele, há uma relação indissociável de interdependência entre os três níveis da
realização da liberdade, uma Aufhebung.
O Estado é o poder superior, universal e, ao mesmo tempo, fim imanente dos
interesses singulares e particulares, tal como é apresentado no §261 da Filosofia do Direito:

O Estado é, de uma parte, uma necessidade exterior e seu poder superior, cuja
natureza de suas leis, assim como seus interesses estão subordinados e são
dependentes dela; mas, de outra parte, ele é o seu fim imanente e possui seu vigor na
unidade de seu fim último universal e do interesse particular dos em que eles têm
obrigações, para com ele, na medida em que eles têm, ao mesmo tempo, direitos
(§155). (HEGEL, 2010, p.236).
49

A liberdade se realiza em três níveis e por meio de direitos e de obrigações em uma


relação de contrapartida entre os níveis. O Estado é o espaço da representação universal da
política na qual a liberdade individual é garantida na medida em que se move em direção de e
sob a distinção entre direitos e deveres dos indivíduos que desnaturalizam o mundo.
A liberdade, para Hegel, é a universalidade vinculada à consciência de si, presente
imediatamente à consciência de si, e que agora passará à dimensão da ação sociopolítica. O
filósofo apresenta, no §582 da Fenomenologia do Espírito, a liberdade como absoluta, ao
dizer que:

[...] é o mesmo que antes já apareceria: que o ser-para-si não se mostrava como
substância dos demais momentos, de modo que o útil não fosse imediatamente outra
coisa que o Si da consciência, e que ela assim estivesse em sua posse. No entanto, já
aconteceu em si essa revogação da forma da objetividade do útil; e dessa revolução
interior surge [agora] a revolução efetiva na efetividade - a nova figura da
consciência, a liberdade absoluta. (HEGEL, 2002, p. 401).

As consciências de si se formam em uma compreensão de complementariedade da


noção de direitos e deveres. Há um interesse mútuo entre direitos e obrigações nos múltiplos
fatores que efetivam a liberdade como a expressão do Estado ético. Há uma
tridimensionalidade singular, particular e universal que faz com que as consciências de si
percorram o caminho do seu reconhecimento e se efetivem como sendo livres no Estado.
Hegel refuta a ideia de que o Estado seja um instrumento de cerceamento necessário
de uma imposição arbitrária por meio do uso necessário da violência.
A refutação hegeliana ao contratualismo sustenta a ideia de que, se tomarmos a
propriedade como uma forma direta da vontade do indivíduo, tornamos a liberdade objetiva
para si no objeto desejado (objeto do contrato); logo, o direito à propriedade aplicar-se-ia
sobre ela mesma e, desse modo, não haveria mais a distinção entre direitos pessoais e direitos
sobre as coisas.
Hegel critica a essência da teoria de Estado contratualista como um modelo de Estado
moderno, em que o Estado é o meio para a realização dos interesses privados. Na ideia de
estado contratualista, a lei é instituída pelo legislador e tem por objetivo desnaturalizar o
homem, fazendo-o passar dos seus interesses privados singulares para a compreensão do bem
comum universal. Hobbes apresenta a necessidade do Estado normativo, uma vez que há um
interesse universal por meio do contrato, a saber, o de garantir a autopreservação da vida de
um modo coercitivo. Enquanto, para Locke, o Estado é o meio para garantir a segurança e a
propriedade privada, inclusive dos corpos. No entanto, será Rousseau quem chamará atenção
50

de Hegel. O Estado contratualista, para o filósofo suíço, é a recuperação da liberdade. Para


ele, a maneira de se buscar a liberdade perdida no estado de natureza seria por meio do
Estado. Hegel e Rousseau têm em comum que a essa recuperação da liberdade está
condicionada à ideia de vontade geral. Hegel absorve o propósito rousseauniano de pensar a
liberdade. Contudo, ele “atualiza” o conceito de vontade e a apresenta enquanto uma
determinação abstrata e como o substrato da teoria da tridimensionalidade das dimensões da
Eticidade, como observa o professor Marco Müller:

Momento em que apresenta as três concepções de vontade, quais sejam: a


universalidade, a particularidade e a individualidade. E passa a apresentar o que
denominou de ‘conceito abstrato de vontade’. Destaca-se que o termo ‘abstrato’
deve ser entendido no sentido de que o conceito especulativo é apresentado em sua
estrutura interna e independente do desenvolvimento de sua determinação plena, e
não no sentido de uma representação abstrata do entendimento. (MÜLLER, 2003,
p.47).

Por universalidade, Hegel entende o momento em que no §5 da Filosofia do Direito:

A vontade contém o elemento da pura indeterminidade ou da pura reflexão do eu


dentro de si, na qual está dissolvida toda a restrição, todo conteúdo imediatamente
aí-presente pela natureza, pelas carências, pelos desejos e impulsos, ou dados e
determinados pelo que quer que seja; a infinitude irrestrita da abstração absoluta ou
universalidade, o puro pensamento de si mesmo. (HEGEL, 2010, p.57).

No Estado contratualista, o indivíduo constitui o Estado por meio da sua vontade. Na


teoria contratual, a relação direta entre indivíduo e Estado é uma relação direta entre a
singularidade e o universal.
Os contratualistas desconsideram, em suas teorias de Estado, o espaço das
particularidades, como a expressão das liberdades individuais. A teoria contratual, ao
desconsiderar as particularidades, está ignorando o conjunto de singularidades organizadas em
interesses gerais, coletivos, mas ainda não universais. As particularidades se manifestam por
meio de interesses de estamentos, corporações, sindicatos, grupos étnicos, etc.; São o que
Hegel chama de interesses particulares, mas não universais e tampouco são interesses
pessoais, reflexo da singularidade.
De modo que, para Hegel, o contratualismo realiza uma ligação direta entre a noção de
universalidade do Estado e a noção de singularidade dos indivíduos. Isso faz com que ele
converta o Estado em uma universalidade tão abstrata, tão universalista, que não se efetiva em
nenhuma realidade concreta e, por conseguinte, não garante a liberdade universal e concreta
dos indivíduos.
51

A desconsideração das particularidades, como elementos centrais da formação do


Estado moderno, e a noção de universalidade, tomada como idêntica à noção de
singularidade, tornam o Estado uma realidade imediata (Realität), de modo que o Estado
nunca será uma realidade efetiva (Wirklichkeit). Isso faz com que o Estado contratualista seja
ontologicamente incapaz de garantir a efetividade da liberdade concreta.
O Estado ético hegeliano representa a realização dos interesses particulares e
singulares para garantir a liberdade concreta. É o Estado que possibilita a realização da
liberdade do indivíduo na condição de família e de representação econômica da sociedade
civil burguesa. Isso pode-se realizar mediante uma consciência de si como universal no
Estado. A liberdade concreta é compreendida como a equivalência da determinação mútua da
relação entre os elementos da singularidade, da particularidade e da universalidade.
O Estado ético é o resultado de uma suprassunção no princípio de subjetividade, de
forma que a singularidade e a particularidade se produzem na universalidade. A liberdade
concreta é o processo engendrado no movimento das consciências de si e para si, que garante,
assim, a conversão da suprassunção da universalidade, que contempla tanto a singularidade,
quanto a particularidade sob a forma de unidade substancial do Estado ético. Nesse sentido,
Hegel afirma, no §260 da Filosofia do Direito, que

... os princípios dos Estados Modernos têm esse vigor e essa profundidade
prodigiosos de deixar o princípio da subjetividade complementar-se até o extremo
autônomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, o reduz para a unidade
substancial e, assim, mantém essa nele mesmo. (HEGEL, 2010, p.235).

Em relação à vontade, no ato do contrato, seria apenas uma vontade comum, e não
uma vontade substancial, como a visada em sua concepção de Eticidade, em geral, e na sua
teoria de Estado.
Para Hegel, é necessário entender como as vontades livres se realizam. Diante disso, é
possível verificar como a sua refutação e o modo como ele se contrapõe à teoria de Estado
contratual engendraram as condições para formulação de uma nova teoria de Estado. Veja
que, no §13 da Filosofia do Direito (2010, p.64), Hegel apresenta a vontade com uma
condição imanente, e depois será apresentada essa condição como sendo a realização do
Estado ético como decorrência da vontade desse fim universal e imanente, no §261 da
Filosofia do Direito:

Na vontade, o universal tem ao mesmo tempo essencialmente a significação do que


é meu, enquanto singularidade, e na vontade imediata, quer dizer, formal, enquanto
52

singularidade abstrata, que ainda não está preenchida com sua livre universalidade.
Por isso é na vontade que começa a finitude própria da inteligência e é somente pelo
fato de que a vontade se eleva de novo ao pensamento e dá a seus fins a
universalidade imanente que ela suprassume a diferença da forma e do conteúdo e se
faz vontade objetiva, infinita. Por isso compreendem pouca coisa da natureza do
pensar e do querer aqueles que opinam que o homem seria infinito na vontade em
geral, mas que seria delimitado no pensamento ou mesmo na razão. Na medida em
que pensar e querer são ainda diferenciados, é antes o inverso que é verdade, e a
razão pensante é, enquanto vontade, o de resolver-se pela finitude. (HEGEL, 2010,
p.63).

A noção de vontade da teoria contratualista de Rousseau é apropriada por Hegel, de


modo que podemos verificar que sua teoria de Estado não é uma simplificada contraposição,
mas sim o resultado de uma suprassunção que nega, conserva e eleva a noção de Estado a
outra instância. Hegel apropria-se do mundo de seu tempo, como consequência da operação
do seu sistema filosófico, por meio de suas categorias lógicas. Assim, o que está em jogo é
compreender em que sentido o Estado ético hegeliano é pensado (isto é, o Estado na
perspectiva da teoria da eticidade hegeliana), como sendo uma teoria que suprassume o
Estado contratualista da época moderna.
A ideia de Estado ético formulado por Hegel não é um deve ser, mas sim uma
realidade efetiva da ideia ética, da vontade livre substancial. Há uma similaridade na ideia de
vontade geral de Rousseau, o que para Hegel é a condição essencial para justificar o fim
imanente do Estado ético. Pois, a vontade livre é o que se faz no mundo enquanto a realidade
racional da liberdade concreta, portanto, autodeterminação moral e uma vida ética
apresentam-se inseparáveis.
Em contrapartida, o sujeito que quer a vontade livre em e para si age conscientemente
sob as regras morais e as instituições sociais criadas ao longo do processo histórico-cultural
da humanidade, portanto presente no Espírito Objetivo. Ele age nas instituições sociais,
enquanto expressão e realização do conceito de liberdade – da vontade que se autodetermina.
Hegel, no §486 da Fenomenologia do Espírito, afirma:

Portanto, esse espírito não constrói para si apenas um mundo, mas um mundo duplo,
separado e oposto. O mundo do espírito ético é sua própria presença; e por isso cada
potência dele está nessa unidade, e na medida em que as duas potências se
distinguem está em equilíbrio com o todo. Nada tem [ali] a significação de um
negativo da consciência-de-si; mesmo o espírito que partiu está presente no sangue
dos parentes, no Si da família; e a potência universal do Governo é à vontade, o Si
do povo. Aqui, porém o presente significa apenas uma efetividade puramente
objetiva, que tem sua consciência além. Cada momento singular, como essência,
recebe de um Outro essa consciência, e com isto a efetividade; e na medida em que é
efetivo, sua essência é algo outro que sua efetividade. Não há nada que tenha um
espírito nele mesmo fundado e imanente, mas [tudo] está fora de si em um estranho:
o equilíbrio do todo não é a unidade em si mesma permanente, ou a placidez dessa
unidade em si mesma retornada, senão que repousa na alienação do [seu] oposto.
53

Por conseguinte, o todo, como cada momento singular, é uma realidade alienada de
si mesma; ele se rompe em um reino onde a consciência-de-si é efetiva, como
também seu objeto; e em outro reino, o da pura consciência, que [está] além do
primeiro, não tem presença efetiva, mas reside na fé. (HEGEL, 2002, p.337).

Portanto, Estado ético hegeliano é aquele que surge da negação parcial da teoria
contratualista, no sentido de não ser apenas uma reformulação do conceito de vontade geral de
Rousseau, na medida em que o Estado ético suprassume o contrato: nega, mas também
conserva e eleva na forma de consciência que se reconhece enquanto livre.
O Estado aparece como a consequência da construção da ideia de vontade geral que
Hegel absorve e suprassume de Rousseau, para apresenta-la no seu conceito de Estado ético
como uma vontade livre. Hegel apropria-se da ideia de vontade de Rousseau na essência. N’O
Contrato social, Rousseau afirma:

Todas as cláusulas se reduzem claramente a uma só, a saber, a alienação total de


cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Primeiramente,
dando-se por inteiro, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para
todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa aos outros. Além disso, como a
alienação se faz sem reservas, a união é tão perfeita quanto possível, e nenhum
associado tem algo a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos particulares,
como não haveria nenhum superior comum capaz de decidir entre eles e o público,
cada qual sendo em algum ponto seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo em todos; o
estado de natureza subsistiria e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou
vã. (ROUSSEAU, 1999, p. 24).

Nessa passagem, Rousseau apresenta elementos que constituem a afirmação de Hegel


(2010, p.235), no §260 da Filosofia do Direito, de que “o Estado é a efetividade da liberdade
concreta”. Esta em jogo uma concepção exigente de indivíduo: sua alienação no que tange à
sua vontade livre. É uma concepção de que o Estado não é uma instituição externa, mas sim
constitutiva tanto da individualidade, quanto da sociedade civil burguesa, tal como ele
apresenta a ideia liberdade no §142 da terceira parte da Filosofia do Direito,

A Eticidade é a ideia da liberdade, enquanto bem-vivente, que tem, na


autoconsciência, seu saber, seu querer e, pelo agir dessa, sua efetividade, assim
como essa tem, no ser ético, seu fundamento sendo em si e para si e seu fim motor, -
[a eticidade é] o conceito da liberdade que se tornou mundo presente e natureza da
autoconsciência. (HEGEL, 2010, p.167, §142)

A noção de contradição hegeliana fundamenta a refutação ao contratualismo, uma vez


que na crítica de Hegel se suprassumem as esferas das Eticidade e se apresentam como o
método e o conteúdo teórico e prático na própria apropriação da teoria contratualista de
Estado. Hegel está apresentando uma crítica à essência do contratualismo de um modo que o
54

resultado é a construção de uma nova ideia e teoria de Estado. Ao negar a teoria


contratualista, ele engendra o seu conceito de Estado ético.

3.2 Hegel e a crítica ao contratualismo

O objetivo aqui é desdobrar e compreender a leitura que Hegel faz sobre Rousseau e
em especial examinar a noção de vontade geral, pois esse conceito é o fundamento do
argumento de Hegel sobre a incapacidade do contratualismo de fundamentar e garantir a
liberdade individual no Estado contratualista. Outra tarefa será a de compreender como Hegel
trata as três dimensões da Eticidade, sobretudo a relação entre sociedade civil burguesa e o
Estado no §258 da obra Filosofia do Direito, para refutar a teoria contratualista de Estado.
Sendo assim, objetivo central deste capítulo é entender, primeiramente, o elogio que
Hegel faz ao filósofo suíço no sentido de ele ter fundamentado o Estado no princípio da
autonomia da vontade geral. Em um segundo momento, pretende-se compreender a crítica
feita a Rousseau, a qual reside na noção de vontade geral e na ideia de interesse comum,
sendo uma vontade de singulares e não uma vontade universal em si e para si, uma vontade
compreendida juridicamente, embora seja interessante observar que a ideia contratualista de
Rousseau não é a da vontade individual que tende a interesse particulares, como é a dos
liberais.
Hegel refuta o Estado contratualista por entender a inconsequência de fundar um
direito de ordem pública no privado, priorizando sempre o último e enaltecendo mais o
indivíduo atômico do que o seu dever como cidadão, suas obrigações como cidadão
esclarecido.
O anticontratualismo hegeliano se faz presente em matéria de direito público, mas ele
é contratualista no âmbito do direito privado. Há um delineamento da fronteira que separa o
direito privado do direito público, o qual provoca uma inversão lógica na fundamentação do
ordenamento político na noção de universalidade. Esse é o centro do argumento de refutação
de Hegel que servirá de base para formulação da sua ideia de Estado ético.
Segundo Hegel, a doutrina estatal contratualista parte do pressuposto, falso, de que as
partes se submetem voluntariamente aos resultados, através de um verdadeiro acordo, tal
como no direito privado. A sujeição das partes é o exato contraponto do poder estatal; o
problema do contratualismo em pensar o Estado está no fato de que a noção de
individualidade não é suprassumida. E ela não se faz internamente universal, ela não quer o
universal como resultado de sua reflexão. Ela permanece, sobretudo, no particular das
55

vontades, na busca por vantagens. Ela baseia-se na universalidade da pessoa jurídica, mas não
na universalidade do cidadão. Por isso não é concreta. É abstrata e, deste modo, define o
“direito abstrato” na Filosofia do Direito.

A palavra-chave da filosofia política hegeliana não é a resignação frente ao ser, mas


a sua transformação com o fim de verificar a verdade do que está nascendo. No que
se refere à vontade individual, isso se expressa através de uma racionalidade e de
uma infinitude que não aceitam o aspecto limitado próprio de uma imediatez que se
conformaria com uma existência precária, não livre. (ROSENFIELD, 1983, p. 66).

O Estado compõe a terceira parte da Eticidade. No §258 da Filosofia do Direito,


Hegel (2010, p.230) expõe o conceito de Estado como a expressão mais elaborada da sua
teoria da Eticidade. O Estado é apresentado em três sentidos: o interno, que são os aspectos da
constituição – o aspecto objetivo nas instituições e o aspecto subjetivo na disposição de ânimo
político –; o externo, que se dá na relação entre Estados; e, por fim, os modelos de Estado na
história, no mundo; nos mundos assim denominados pelo filósofo: oriental, greco-romano e
germânico-cristão. O conceito de Estado hegeliano não é um conceito puramente normativo; a
Ideia de Estado transcende a ordem de um dever ser.
Veremos que a noção de vontade em Rousseau é uma peça-chave para a compreensão
de uma teoria de Estado enquanto um racional ético universal. Para isso, Hegel faz a distinção
entre as noções de vontade particular e geral para determinar a forma como constrói sua teoria
de Estado.
Um aspecto importante para a análise de Hegel que devemos dar atenção é que
Rousseau afirma que as relações humanas não são reguladas por princípios normativos
naturais. Para o filósofo suíço, a sucessão de fatos e de eventos e as formas das organizações
sociais ao longo da história foram e ainda são desiguais; a subjugação e a dominação entre
povos e entre indivíduos são a demonstração disso.
Rousseau também é contrário à ideia de submissão. Que razão teria a vontade
individual para deixar de exercer o seu direito de vontade própria e de se realizar em
detrimento de outra vontade? O cerne da ideia de vontade, para Rousseau, é que ela não pode
ser tomada como uma submissão a outra vontade. Essa não subordinação de uma vontade a
permite compreender a vontade como uma representação do interesse comum.
Podemos constatar que há muita diferença teórica entre a vontade de todos e a vontade
geral. Esta olha apenas o interesse comum, a outra olha o interesse privado e é só uma soma
de vontades particulares. Como afirma Rousseau,
56

Via de regra, há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta se
refere somente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse
privado, nada mais sendo que uma soma das vontades particulares. Quando, porém,
se retiram dessas mesmas vontades os mais e os menos que se destroem
mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral. (ROUSSEAU, 1999,
p.37)

Na determinação da vontade particular, para Rousseau, o homem deixa uma condição


natural para se efetivar em uma condição política. Essa condição política da vontade é o que
interessa a Hegel. De modo que, a vontade geral não se confunde com a vontade de todos os
cidadãos. Ela tende à igualdade, evita a dependência pessoal e restabelece a igualdade natural
pelo direito. Caso contrário, ela seria uma forma irracional que em nada modificaria a história
de dominação do homem. O direito passa a determinar qual a natureza dessa vontade para
legitimar o direito político.
O Estado ou poder político, para Rousseau, é o produto das vontades dos indivíduos
livres que estabelecem direitos e deveres a todas as vontades expressas por meio da relação do
contrato;
A primeira e mais importante consequência dos princípios até aqui estabelecidos é
que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado, segundo o objetivo de sua
instituição, que é o bem comum, porque, se a oposição dos interesses particulares
tornou necessário o estabelecimento das sociedades, é o acordo desses interesses que
a tornou possível. (ROUSSEAU, 1999, p. 33)

A vontade geral é sempre a vontade de cada um dos cidadãos, expressando a vontade


da totalidade e não de algumas vontades particulares. Só ela, segundo Rousseau, tem
condições de assegurar a harmonia e a coerência interna na sociedade democrática.
Sendo assim, o contrato é pensado a partir da vontade dos indivíduos para a sua
realização no Estado, na condição de ser uma abstração da noção de vontade geral enquanto
efetivação do Estado. Pois, o contrato permite aos indivíduos instaurarem a racionalidade,
segundo o filósofo, uma vez que ela nunca foi plenamente exercida nas relações humanas.
A associação da vontade geral com o bem comum é feita no capítulo a respeito da
inalienabilidade da soberania, de modo que a vontade geral é apresentada como um elemento
capaz de conduzir “[...] o Estado em conformidade com o objetivo de sua instituição, que é o
bem comum.” O conceito de soberania é, a seguir, definido como “o exercício da vontade
geral” o qual, por conseguinte, deve dirigir-se apenas ao que concerne ao bem comum,
encontrando aí os seus próprios limites. A vontade geral é assim diferenciada da vontade
57

particular, que, “[...] por sua própria natureza, para suas preferências, enquanto a vontade
geral propende à igualdade.” (ROUSSEAU, 1999, p. 34).
Para Hegel, a “vontade geral”, defendida por Rousseau, é arbitrariamente soberana e
absoluta, sendo que os indivíduos são subordinados ao Estado. Ele considera a sociedade civil
como uma pessoa coletiva.
Para compreender toda a extensão e a consequência do conceito de vontade geral, da
teoria de Rousseau, tanto na refutação de Hegel ao contratualismo, quanto na formulação
teórica do Estado ético hegeliano, teremos que entender a ideia de interesse comum. Por que
um indivíduo é livre, mesmo quando submetido a uma autoridade política? A resposta é:
porque o indivíduo obedece às leis às quais ele próprio deu seu consentimento. É nesse ponto
que repousa a questão da autonomia, isto é, o indivíduo é livre, porque obedece a uma
vontade que é a sua própria vontade.
Logo, a vontade geral é o objeto de interesse comum de todos os cidadãos. O que
constitui a essência da vontade geral em Rousseau é a ideia de interesse comum; que, para ele,
não se trata de um interesse de todos, como a soma de interesses particulares, mas sim de um
modo que totalize qualitativamente os interesses de todos e de cada um coletivamente.
O interesse comum fundamenta substancialmente o conceito de vontade geral. Este é
um conceito que pode ser compreendido como a vontade de um coletivo político que visa o
Bem. A vontade geral expressaria sua busca distributiva e não agregativa de pactuar os
interesses individuais ao interesse comum. Mas, cabe destacar que o interesse comum tem na
sua essência a conservação da independência dos indivíduos, na medida em que interconecta a
formulação de uma lei geral exclusiva para a realização de um Bem que caracteriza a
igualdade e a justiça.
É nesse mesmo sentido que é estabelecido o interesse comum como sendo capaz de
fazer a distinção entre vontade geral e vontade de todos. Rousseau se refere ao interesse
comum como sendo capaz fundar uma vontade universal, enquanto a vontade de todos
representa apenas a reunião dos interesses privados, nada mais sendo do que a soma das
vontades particulares.
O conteúdo do conceito de vontade geral é a noção de Bem em Rousseau. A ideia de
Bem rousseauniana pode ser interpretada à luz das ideias platônica de uma teoria de justiça;
uma noção de Bem tomada como uma abstração. O conceito de Bem em Platão diz respeito a
uma Forma ou Ideia imutável, primordial, pura e indeterminada, o que faz com que ela possa
58

ser a entidade que ilumina os seres particulares. Essa compreensão abstrata da Forma de
Platão parece ser o núcleo da Ideia de Bem de Rousseau.
O filósofo suíço sedimenta a sua teoria de uma justiça virtuosa, que organiza e
representa o modo como os seres humanos vivem em sociedade, por meio de uma noção
coletiva qualitativa, capaz de orientar a decisão. Será o interesse comum puro o que deve
compor as características particulares sem ser um cálculo aritmético de interesses. Portanto, a
ideia de Bem de Rousseau é pensada como uma expressão do interesse comum. Essa ideia de
Bem de Rousseau admite, assim como em Platão, uma abstração que apresenta um modo de
agir em direção à ideia de Bem. O interesse comum é uma abstração que está presente
enquanto essência na ideia de vontade geral.
Portanto, essa noção abstrata de Bem que compõe o interesse comum e que explica o
que é vontade geral em Rousseau justifica o seu conceito de contrato, ao explicar as relações
entre as liberdades individuais e o modo coletivo das organizações sociais se articularem no
âmbito do direito privado. “Importa, pois, para se chegar ao verdadeiro enunciado da vontade
geral, que não haja sociedade parcial no Estado e que cada cidadão só venha a opinar de
acordo com seu próprio ponto de vista” (ROUSSEAU, 1999, p. 38). Ou seja, uma opinião
capaz de representar a coletividade. Todavia, embora pareça bastante simples compreender o
que está sendo proposto por Rousseau, não é claro o que exatamente é a vontade geral ou
como esse conceito pode ser acessado pelos cidadãos que precisam, para se manter livres,
coordenar suas vontades particulares com a vontade geral.
Rousseau acreditava que o homem é naturalmente bom e atribuiu a corrupção do ser
humano à vida em sociedade. Essa é uma dificuldade concreta para se poder representar a
vontade geral como sendo a expressão da maioria. Pois, certas diretrizes sociais afastariam o
homem de sua essência verdadeira. Para ele, a liberdade natural do ser humano e a sua origem
foram perdidas ao longo da história na constituição da sociedade política.

Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da


humanidade, e até aos próprios deveres. Não há nenhuma reparação possível para
quem renuncia a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza do homem, e
subtrair toda liberdade a sua vontade é subtrair toda moralidade a suas ações.
(ROUSSEAU, 1999, p.37).

Hegel se interessa por essa ideia de vontade que expressa um interesse comum como
uma vontade política universal geradora do contrato. Além disso, para Rousseau, o Estado é
pensado sob a lógica das relações sociais, e isso constitui um genuíno interesse de Hegel na
elaboração da sua ética.
59

Esse interesse de Hegel na teoria de Estado de Rousseau se deve ao fato de ela ser uma
teoria de contratual que não parte de suposições abstratas que estariam supostamente na
origem da organização coletiva humana. Além disso, Rousseau não justifica Estado como
sendo decorrente de uma necessidade coercitiva relacionada à organização da vida social e
política na modernidade. Em Rousseau, o Estado contratualista nasce enquanto resultado da
expressão da vontade geral. Não há necessariamente um poder maior como origem do
contrato. Não há um soberano que obrigue o indivíduo a efetuar esse contrato.
O conceito de vontade de Rousseau apropriada por Hegel é aquela que compreende
que não será através de qualquer tipo de lei que se imporá a obrigação, a obediência ou a
representação do pacto social do contrato.
A vontade expressa, de modo indispensável, a condição geral para que a lei seja
legitimada e aceita coletivamente, e o acordo será resultado formal dessa noção de vontade
geral de Rousseau que não se constitui pela união das vontades. Portanto, há uma clara
necessidade de legitimar o contrato, e a noção de interesse comum é o instrumento para
alcançar essa legitimidade. “Então, não é pela relação coercitiva da força que se estabelece o
direito, só se está obrigado a obedecer aos poderes que são legítimos.” (ROUSSEAU, 2017, p.
37).
A noção de vontade geral, da qual Hegel se apropria, é encontrada tanto no Discurso
sobre a economia política (1755) quanto no Contrato social (1762). Rousseau afirma que a
vontade geral apresenta uma tendência a conservar o interesse comum de todas as partes. A
“origem” das leis consiste em pensar a justiça como a norma do justo e injusto para todos os
indivíduos que compõe o Estado.
Embora não haja uma noção de vontade universal tal como a que Hegel apresenta, no
entanto, a noção de vontade geral de Rousseau é compreendida como a realização da
cidadania das sociedades. A vontade geral aparece para legitimar o contrato social, nas formas
de governo, como expressão das votações e onde se tem virtudes cívicas e uma cidadania
forte, diz o filósofo suíço.
A perspectiva rousseauniana fundamenta o Estado contratualista como sendo a
garantia da liberdade de cada um, que resulta do poder da razão e da vontade individual. Este
será um aspecto filosófico duramente contestado por Hegel. No parágrafo §258 da Filosofia
do Direito, Hegel apresenta uma crítica a Rousseau, pois, para ele, essa forma de conceber a
vontade e a própria razão, como centradas exclusivamente no indivíduo, teria conduzido aos
60

“horrores” do período jacobino. Ele próprio responsabiliza Rousseau, na Filosofia do Direito,


pelos desdobramentos da Revolução Francesa.
A crítica que Hegel faz a Rousseau está focada em aspectos ético-políticos, de
natureza filosófica. Não está no horizonte do filósofo uma crítica ideológica, na medida em
que se recusa a adotar uma posição conservadora. Ele não faz coro político-ideológico com os
adeptos do Congresso de Viena 2, que não reconheciam os avanços da Revolução Francesa.
Hegel responsabiliza Rousseau pelos desdobramentos da Revolução Francesa, por tornar a
noção de tábula rasa de todas as instituições a base de valores e princípios. Para Hegel, a
noção cético-filosófica de Rousseau teria conduzido a experiência revolucionária ao resultado
de um Estado opressor.
No entanto, é importante frisar que Hegel reconhece o esforço de Rousseau e faz-lhe
um elogio, já que ele considera que o filósofo suíço ocupa um lugar especial entre os teóricos
contratualistas, uma vez que ele pensou o fundamento do Estado com base na vontade, como
podemos ver nesta passagem do §258 da Filosofia do Direito:

A consideração filosófica apenas trata do interno de tudo isso, do conceito pensado.


No que diz respeito à investigação desse conceito, Rousseau teve o mérito de ter
estabelecido como princípio do Estado um princípio que não apenas segundo sua
forma (como algo do impulso da sociabilidade, da autoridade divina), porém
segundo o conteúdo é pensamento, e de fato é o próprio pensar, a saber, a vontade.
(HEGEL, 1998, §258, p. 231).

Já em outros teóricos contratualistas, Hegel não vê a mesma preocupação. Por


exemplo, na teoria do contrato social de Hobbes, que visa centralmente a segurança dos
indivíduos. E nem na teoria de Locke, na qual o contrato é um meio para garantir
essencialmente o direito às propriedades.
A teoria contratual de Rousseau interessa a Hegel, pois ela apresenta o Estado como a
integração entre indivíduos, reunidos pelo interesse comum, que decidem compartilhar
diretrizes a serem seguidas por meio de um acordo expresso de forma política.

2 Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E, principalmente, por que falar isto em um momento
no qual o estado prussiano estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela Restauração
anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da Revolução Francesa? Lembremos como não
foram poucos aqueles que viram, na Filosofia do direito, a prova maior da adesão de Hegel à Restauração
(exemplo maior aqui é o livro de Rudolf Haym, Hegel e seu tempo). No entanto, devemos salientar um ponto
fundamental. Não houve filósofo de seu tempo mais claramente comprometido em elevar a Revolução Francesa
a acontecimento decisivo da modernidade do que Hegel. Como disse um bom comentador, Domenico Losurdo:
“Não existe revolução na história da humanidade que não tenha sido apoiada e celebrada por esse filósofo que
também tem fama de ser um incurável homem da ordem”. (SAFLATE, 2011, p.153).
61

Por isso, Hegel vai se apropriar da noção de vontade geral, ao mesmo tempo em que
faz a crítica a Rousseau. Pois, segundo a perspectiva hegeliana, essa noção de vontade é
insuficiente, uma vez que acaba reduzindo-a à vontade singular e não elevando-a à vontade
universal. Não é uma vontade em si e para si. Dando continuidade ao parágrafo 258, citado
anteriormente, Hegel diz:

Visto que ele aprendeu a vontade somente na forma determinada da vontade singular
(como posteriormente também Fichte) e a vontade universal não enquanto o racional
da vontade em si e para si, porém apenas enquanto o coletivo, que provém dessa
vontade singular enquanto consciente: assim a união dos singulares no Estado torna-
se um contrato […]. (HEGEL, 1998, §258, p. 231).

Mas, Hegel reconhece em Rousseau a iniciativa de fundar o Estado sobre as bases da


vontade geral. O elogio que Hegel faz a Rousseau é por ele basear os fundamentos do Estado
nos princípios da autonomia da vontade.
No entanto, o Estado, para Hegel, deve ser em essência compreendido como
realização da ideia universal. Essa ideia, com sua origem na apropriação da noção de interesse
comum de Rousseau, na qual a vontade geral, como vimos anteriormente, tem justamente a
capacidade de compreender o interesse comum como uma abstração das singularidades, foi
que possibilitou a Hegel apresentar o conflito de interesse singulares e particulares com o
universal e fundar a sua teoria de Estado. O interesse comum, em Hegel, é resultado da
Aufhebung, da suprassunção dos interesses da sociedade civil burguesa no agir ético e político
que se expressa universalmente no Estado. A vontade, em Hegel, agora se faz efetiva de modo
qualitativo e universal, pois ele se apropria da noção rousseauniana de vontade, segundo a
qual ela não expressa uma mera soma das vontades individuais. Hegel expressa isso na sua
teoria de Estado ético.
Em Rousseau o interesse comum situa-se na vontade geral, que parte do indivíduo
singular, em que há uma sujeição da vontade individual a uma vontade superior, vista em
escala macro no Estado. Este, por sua vez, é fruto de uma convenção realizada entre
indivíduos e representada por meio do contrato. Hegel discute essa questão no parágrafo 29 da
FD, enquanto aborda o tema do Direito:

[...] A definição mencionada do direito contém o parecer principalmente difundido


desde Rousseau, segundo o qual o que deve ser o fundamento substancial e o
primeiro não é a vontade enquanto vontade sendo em si e para si, enquanto vontade
racional, o espírito não é enquanto espírito verdadeiro, mas como indivíduo
particular, enquanto vontade do indivíduo singular em seu arbítrio próprio. Segundo
esse princípio, uma vez admitido, o racional apenas pode manifestar-se enquanto
delimitando essa liberdade, assim como não pode manifestar-se como o que é
62

racional de modo imanente, mas somente como um universal exterior, formal.


(HEGEL, 1998, §29 p.72).

O interesse comum é abstraído do conceito de vontade geral de Rousseau e compõe o


conceito de Estado ético hegeliano suprasssumido, sob a forma de um ato da vontade
substancial, como o próprio Hegel indica no §258 da FD. O Estado é sempre compreendido
como a liberdade realizada enquanto ideia. Ele é a realização plena do conceito, pois;

Cada vontade é soberana do seu próprio arbítrio e, em consequência, a troca de


mercadorias repousa sobre o livre-arbítrio de cada um (uma relação contingente,
exterior e dependente da particularidade) e sobre uma vontade comum somente na
sua imediaticidade e que não logrou ainda produzir seu movimento
de reconhecimento. (ROSENFIELD, 1983, p. 85).

A noção de vontade geral é entendida como sendo uma abstração que se suprassume e
é incorporada na teoria de Estado de Hegel. A apropriação de Rousseau por Hegel tem
consequência direta na noção de interesse comum, embora em Hegel tenha-se tornado menos
abstrato do que no conceito de vontade geral.
Como vimos, o conceito de vontade geral está ligado à ideia do que Rousseau entende
por Bem ou interesse comum, ou mesmo como ele delineou os conceitos de justiça e de
equidade. A vontade geral é tributária da noção de Bem, por conseguinte da forma do
interesse comum que se relaciona com um ideal de justiça e de equidade em Rousseau. Pois, a
ideia de vontade geral é um projeto filosófico político rousseauniano pensado a partir de uma
ideia de Bem como um conceito abstrato que se constitui como forma de interesse comum.
Hegel constrói a crítica mais geral ao contratualismo e dialoga com o pensamento
ético de Rousseau. Hegel, ao se apropriar-se da noção de vontade geral de Rousseau,
desenvolve a ideia de vontade como uma abstração no centro da sua formulação teórica do
conceito de Estado ético. Essa formulação é importante, pois ela se encontra dialeticamente na
crítica à teoria de Estado contratual.
Hegel considera a teoria contratualista de Rousseau uma teoria estanque e limitada
para garantir a liberdade dos indivíduos, sendo por vezes capaz de promover “justiçamentos”,
como foi o caso desse período da Revolução Francesa. A liberdade formal, compreendida
pelos contratualistas, e a liberdade substancial não são em si termos contraditórios para Hegel,
pois a liberdade teria em si uma dupla determinação. Uma diz respeito ao conteúdo da
liberdade, à sua objetividade, à coisa mesma. A outra diz respeito à forma da liberdade, na
qual o sujeito se reconhece ativo. A exigência da liberdade é que o sujeito tenha
conhecimento de si e cumpra a própria tarefa, sendo seu interesse que a coisa se realize.
63

Hegel, com isso, mostra que essa relação entre o interesse comum e a garantia das
liberdades individuais ainda é insuficiente para garantir a liberdade e fundamentar uma teoria
de Estado que seja a expressão efetiva da liberdade.
Para Hegel, os contratualistas, em especial Rousseau, foram bem sucedidos ao
explicarem como as relações entre arbítrios estipulam a transferência de objetos de uma
vontade para a outra. Porém, não conseguiram alcançar o conceito de Estado como resultado
do desenvolvimento de uma vontade autorreflexiva, que não vê a liberdade do outro como um
limite para a própria liberdade, mas vê a liberdade do outro como uma base para a realização
efetiva da própria liberdade, como substancial em si mesma. A lógica do direito abstrato não é
a mesma lógica do Estado ético hegeliano.
Hegel usa a categoria da negação como um operador lógico capaz de demonstrar a
insuficiência da teoria de Estado contratualista. O conceito de vontade geral, apropriada da
teoria contratualista de Rousseau, é o fundamento da análise, da crítica e da refutação da
teoria contratualista. Mas, como dissemos, essa teoria permanece de modo indissociável na
construção da sua teoria de Estado ético. Hegel apropria-se e depois nega a vontade geral
enquanto uma abstração da noção de interesse comum formal; pois, para Hegel, ela não
garante a liberdade substancial. O contrato entre indivíduos singulares, celebrado pelos
teóricos liberais, não existe, não se efetiva; pois a liberdade contratual é limitada, de um lado,
pela exigência das leis representadas pelo Estado e, de outro, pelos interesses particulares
representados pela sociedade civil burguesa.
Essa é uma questão importante, como veremos mais adiante, para Marx desenvolver a
compreensão de que o Estado ético do Hegel é uma antinomia sem solução. Pois, sem essa
compreensão do anticontratualismo de Hegel, Marx o compreenderia apenas como um
antiliberal, pelo fato de afirmar a irrealidade da hipótese do contrato originário. Mas, como
vimos, Hegel contesta essa noção, considerando indevida apenas a extensão, à esfera do
direito público, de um instituto que é do direito privado. Portanto, sem Hegel e a sua polêmica
anticontratualista não seria possível compreendermos a via que leva de Hegel a Marx.
De modo que, elementos da dialética do sistema hegeliano, provenientes da sua
ruptura epistemológica, compõem indissociavelmente a formulação do conceito de Estado
Ético em Hegel. E mais, sem eles, a crítica de Marx à ideia de Estado em Hegel não passa de
uma glosa panfletária e política descontextualizada. O sistema dialético hegeliano e sua
ruptura constituem-se diretamente na sua crítica ao contratualismo na forma de desmitificar a
ideia de liberdade mistificada na representação do Estado como um contrato. E veremos que
64

Marx procura justamente desmistificar o que foi desmitificado por Hegel, ao afirmar que a
teoria de Hegel é uma antinomia sem solução.
Estamos seguindo o fio que nos possibilita encontrar as saídas do labirinto filosófico
da relação entre Marx e Hegel para fundamentar a síntese da crítica teórica de que o Estado é
uma antinomia se solução para Marx. Aqui apresentamos a refutação de Hegel ao
contratualismo. Reconstruímos o conceito de Estado ético para verificar que elementos o
compõem. O objetivo é compreender o que há de contraditório, similar e dialético entre Hegel
e Marx na Crítica de 1843. Ou seja, entender o modo como Marx se apropria teoria de Estado
ético para negá-lo.
A crítica de Hegel ao contratualismo e a sua apropriação da noção de vontade geral
estabelecem a fundação teórica do Estado ético. Hegel, na sua teoria de Estado, visa
desmitificar a relação mistificada e insuficiente para garantir a efetividade da liberdade. Na
sequência deste trabalho, vamos verificar que o método de construção da teoria de Estado,
adotado por Hegel, e, sobretudo, a sua crítica ao contratualismo, estão explícitas e implícitas
na construção da crítica de Marx ao idealismo hegeliano presente na FD.
4 CRÍTICA DE MARX À TEORIA DE ESTADO ÉTICO HEGELIANO

4.1 A Gênese e a Essência da Crítica de 1843

Althusser caracteriza os escritos de 1843 de Marx como a filosofia do homem ou


humanismo (ALTHUSSER, 2015, p.11). Sua interpretação é uma variação do marxismo,
que ressalta a descontinuidade sobre qualquer forma de continuidade. Para ele, a ruptura
materialista de Marx com relação a Hegel seria feita por Marx apenas em 1845, quando ele
escreve o texto Ideologia alemã, que seria o momento do início de uma nova ciência, sem
precedentes.
Essa interpretação separa a produção de Marx das noções filosóficas que, como
vimos, estão presentes de modo indelével na produção teórica de Marx. Marx não se tornou
apenas em 1845 um materialista. Os escritos de juventude de Marx apresentam questões
essenciais da ruptura com o idealismo da tradição filosófica alemã.
A crítica de Althusser ao texto de 1843, entretanto, apresenta Marx com um
feuerbachiano:

Certamente os temas da reflexão de Marx ultrapassam as preocupações imediatas de


Feuerbach, mas a problemática e os esquemas teóricos são os mesmos. Marx
verdadeiramente só “liquidou”, para retornar sua expressão, essa problemática em
1845. A ideologia alemã é o primeiro texto que marca a ruptura consciente e
definitiva com a filosofia e a influência de Feuerbach. (ALTHUSSER, 2015, p.35).

Essa interpretação de Althusser não alcança a complexidade da forma crítica e


transformadora com que Marx se apropria do pensamento de Feuerbach e de Hegel nas suas
formulações teóricas. Althusser define o jovem Marx como um feuerbachiano ao apresentar a
categoria de “problemática”. E como já vimos nos primeiros capítulos, quando abordamos o
modo com que Marx se apropria da dialética de Hegel, “problema” não é uma categoria
dialética, pois não existe uma relação indissociável entre forma e conteúdo e entre um sistema
e outro, mesmo que seja do mesmo filósofo. Esse sistema filosófico, que apresenta
“problema” como uma categoria, uni logicamente uma filosofia, que teria supostamente
surgido como homogênea, abstratamente, enquanto resultado imediato do pensamento de
outra. Decorre disso, que a teoria de história da filosofia viria a se constituir numa sequência
de problemas bastante diferentes umas das outras.
Então, como que este jovem Marx poderia ser um feuerbachiano? Primeira questão: se
há um conteúdo político complementarmente diverso do sistema de Feuerbach, com é
66

possível Marx ter seguido essa filosofia? Será justamente o inverso do que Althusser
interpreta do texto de 1843, é o que mostramos nos capítulos anteriores de que Marx
transcende o idealismo de Feuerbach. Feuerbach apresenta um hipotético em que pressupõe
logicamente um “homem genérico” abstraído do mundo e da sociedade. Marx apresenta um
sujeito no mundo não como uma simples transformação da consciência na tal inversão como
Feuerbach, mas como uma transformação dessa consciência no mundo do homem real.

Com efeito, se Marx rompeu com Feuerbach, é preciso considerar, ao menos em


seus pressupostos filosóficos últimos, a crítica de Hegel que se encontra na maior
parte dos escritos de juventude de Marx corno uma crítica insuficiente, até mesmo
falseada, na medida em que é feita de um ponto de vista feuerbachiano, ou seja, de
um ponto de vista que Marx rejeitou ulteriormente. (ALTHUSSER, 2015, p.37).

A interpretação apresentada por Althusser revela muitas razões para não ser aceita, a
começar por ele idealizar o sistema de pensamento de Marx, apresentando-o como um sistema
homogêneo e deduzindo-o de Feuerbach. Marx é um dialético e, como tal, atualiza a dialética
na crítica a Hegel, ao contrário do ponto de vista althusseriano. A interpretação de Althusser
limita a perspectiva sobre o desenvolvimento de um pensamento filosófico autônomo,
impondo-lhe a necessidade de continuidade e excluindo a possibilidade descontinuidades e
contradições enquanto condições constituidoras.
O que mostramos, ao recuperar o pensamento de Hegel nos primeiros capítulos deste
trabalho, o modo com ele rompe com a forma metafísica da filosofia moderna e o modo
como que ele desenvolve sua crítica ao contratualismo. A intenção foi mostrar como Marx
chega a sua crítica ao idealismo ao dizer que o Estado ético de Hegel é uma antinomia sem
solução. Mas isso prepara não só a crítica à teoria hegeliana de Estado. Marx tem aí também
as bases para afirmar que o Estado é a representação de uma classe, o que ele afirmaria
posteriormente. Essa formulação encontra-se a léguas de distância da interpretação de
Althusser de um Marx idealista. Marx é herdeiro de um modo de pensar filosofia. Logo, não
se trata de uma aproximação com o marxismo, mas sim de uma análise do próprio texto de
1843 e de como Marx rompe com a tradição idealista, identificando que o Estado ético não
pode ser o fim último da efetivação da liberdade humana.
Por conseguinte, quando analisamos o texto com os pressupostos das categorias
marxistas pré-estabelecidas, distorcemos e não captamos a essência do que estava em debate
na formulação marxiana segundo a qual o Estado ético hegeliano, e talvez não só ele, mas
toda forma de Estado, é uma anatomia sem solução e que a essência da existência do Estado
é a não garantia da liberdade dos homens e a alienação. A crítica de Marx à passagem do
67

§261 é a essência da formulação de que o Estado é o comitê de uma determinada classe, ou


seja, o estado nunca irá garantir a liberdade concreta tal como Hegel afirmou no §260 da FD.
Portanto, é um erro interpretar o jovem Marx como um idealista, uma vez que essa
interpretação está contaminada pelo olhar do marxismo maduro, que identifica contradições
no jovem Marx, e não se desenvolve a partir de uma análise da crítica de Marx à teoria que
ele confrontava naquele momento histórico. Por conseguinte, do fato do Manuscrito de 1843
não corresponder satisfatoriamente ao que, segundo Althusser, deveria ser uma teoria
materialista, histórica e dialética, não se segue que esse texto seja idealista. É apenas a partir
da comparação com a produção teórica posterior de Marx que Althusser pode segmentar a
teoria marxista em fases. Portanto, não há futuro do pretérito, esse é um argumento que
tergiversa, por ser antidialético.
Importante relembrar que observamos, em capítulos anteriores, que foi a ruptura de
Hegel que possibilitou uma nova compreensão da teoria do conhecimento na qual o Eu se
conhece e conhece as coisas no mundo. O sistema dialético de Hegel dá um passo
significativo na teoria do conhecimento como instrumento capaz de transformar o mundo.
Pois, para a dialética, o Ser é complexo e se expressa no mundo em movimento, e a
complexidade desse Ser, que agora pode conhecer o mundo na história, pode também
transformá-lo. Sendo assim, o pensamento não é algo metafísico conformado às suas
categorias. Ele compõe o mundo enquanto manifestação do ser social e se desenvolverá a
partir das e nas contradições do modo de conhecer o mundo. Essa perspectiva surge com
Hegel e se desenvolver com Marx e o marxismo.
Não é preciso negar ou diminuir a influência de Feuerbach nos textos de1843, uma
vez que ela está circunscrita ao fundamento da crítica à inversão idealista de Hegel entre
sujeito e predicado. Marx tem a compreensão de que a formulações teóricas não tem um
início formal, mas que há viradas qualitativas decorrentes da acumulação histórica do
pensamento humano. Essa noção sugere similaridade a diversos conceitos hegelianos que
estão presentes na crítica de Marx, assim como argumentos que são de Feuerbach.
A antropologia filosófica de Feuerbach apresenta o homem isolado, naturalizado e
abstrato. Há, na filosofia de Feuerbach, uma insuficiente e precária base teórica para
sustentar a crítica ao Estado ético enquanto acusação de que há nele uma antinomia. Desse
modo, há mais do próprio Hegel na crítica de Marx do que há de Feuerbach. Assim, não se
pode concluir que Marx seja um feuerbachiano em 1843.
68

O materialismo, assim como o humanismo, tem relevância na formulação de Marx.


No entanto, seria um engano teórico ter como foco da interpretação do texto de 1843 a
influência de Feuerbach.
Marx afirma em carta a Arnold Ruge em março de 1843:

Minha intenção era criticar a religião a partir da crítica das condições políticas e
não estas últimas a partir da crítica da religião. Isso porque a religião, em si
destituída de conteúdo, vive não do céu, mas da terra; e, com a dissolução da
realidade invertida da qual ela é a teoria, a religião desaparece por si mesmo.
(MARX apud LUKÁCS, 2009, p.134-135).

O aspecto importante dessa passagem consiste no fato de que Marx, na Crítica de


1843, apresenta a filosofia política como o centro determinante das sua argumentação. A
análise do Estado se encontra relacionada à alienação do sujeito político. Para Marx, a
natureza contraditória do Estado não garante a liberdade dos homens, como é apresentado
tanto na teoria de Estado contratualista quanto nas teoria de Estado ético de Hegel. O
materialismo abstrato de Feuerbach, por sua vez, não dá conta dessas formulações políticas:

Os aforismo de Feuerbach só não me convenceu na medida em que ele se refere


excessivamente à natureza e muito pouco à política e não obstante essa é única
aliança que pode se fazer com que a filosofia atual se torne uma verdade (…).
Contudo, vai ocorrer o mesmo que ocorreu no século XVI, quando a toda uma série
de entusiastas da natureza seguiu-se uma série de entusiastas do estado. (MARX
apud LUKÁCS, 2009, p.143).

Essa crítica política, que aparece em uma carta de Marx a Ruge de 1843, transcende
ao conceitos de Estado, seja ele contratualista ou hegeliano. Marx está apresentando não uma
crítica só aos conceitos, mas à essência do Estado real. Marx critica Hegel ao refutar a ideia
mistificadora de que o Estado, por meio de uma suprassunção, conseguiria conciliar, num
único interesse comum, os interesses incontornáveis que alienam o homem de si e
consequentemente da política.
Ao construir sua refutação ao idealismo, Marx aprofunda seu entendimento sobre o
sistema dialético atualizando-o enquanto método para compreender o mundo. Marx se
apropria e nega as categorias hegelianas enquanto premissas na sua crítica ao Estado ético.
Mas, para Marx, não só o Estado de Hegel é uma antinomia sem solução. Para ele, na
existência do Estado em geral há uma incontornável e indissociável relação contraditória
entre os interesses particulares e os interesses comuns. Marx, com isso, visa a superação
dessa teoria e a elaboração de uma compreensão mais abrangente para pensar a liberdade
humana. Pois, na rejeição de Marx, está contida a crítica de Hegel ao contratualismo, e há
69

uma formulação ainda mais contundente e radical contra a ideia da existência de um Estado,
já que a liberdade humana só poderia ser expressa livremente, enquanto uma manifestação
política de modo consciente e direto.

4.1.1 Fundamentos filosóficos da Crítica de 1843

A análise proposta pela pesquisa, de que Marx estaria atualizando o sistema hegeliano,
é um modo de interpretar que nos permite verificar em que medida o método dialético do
sistema de pensar de Hegel está na raiz da crítica de Marx à teoria de Estado ético.
O projeto teórico de Marx se realiza como um sistema capaz de não só descrever o
mundo, mas de ser também uma teoria capaz de transformá-lo. Isso consiste em afirmar que é
uma teoria que se realiza enquanto negação da negação da teoria de Estado de Hegel; que, por
sua vez, nega o contratualismo para afirmar o Estado ético. Marx propõe, à luz de Hegel, um
modo complexo de pensar as categorias e os conceitos. O resultado da apropriação da lógica
de Hegel será a sua ruptura com idealismo alemão e a formulação de uma filosofia social sob
uma nova forma de pensar o real. Marx está desenvolvendo uma atualização materialista da
dialética de Hegel e de categorias como contradição, negação e abstração. A atualização seria
o resultado de uma apropriação do método dialético de Hegel. Há uma suprassunção do
pensamento hegeliano na gênese da ruptura de Marx com idealismo alemão. Pois, o sistema
dialético hegeliano é a fonte filosófica de Marx na formulação da sua crítica ao Estado ético e
posteriormente na construção do materialismo histórico. Logo, optamos por não entender que
a relação entre Marx e Hegel se forme por linhas teóricas paralelas e contraditórias que apenas
se negariam. A análise do §261 da FD é central na nossa análise, permitindo-nos ultrapassar a
caracterização de uma ruptura de Marx com a ordem lógica de Hegel de modo mecânico,
como uma simples contraposição entre idealismo alemão e materialismo dialético.
A crítica de Marx à teoria de Estado de Hegel marca um importante momento para o
desenvolvimento do seu pensamento. Em 1843, Marx, ao dizer que o Estado ético hegeliano é
uma antinomia sem solução, começa a sedimentar seu caminho para uma nova formulação da
dialética que refuta o idealismo hegeliano e apresenta um novo sistema filosófico social. No
entanto, é preciso compreender a ruptura de Marx dentro tradição crítica desenvolvida pelo
idealismo alemão. Esse é um aspecto central para afastar qualquer tipo de simplificações ou
periodizações esquemáticas da ruptura de Marx com o idealismo de Hegel. A apropriação que
funda o materialismo dialético de Marx é a do sistema de pensamento de Hegel. A ruptura de
70

Marx tem como resultado a descontinuidade com a sua ruptura com o idealismo alemão.
Porém, se estabelece de forma contínua como uma atualização da dialética hegeliana.
O resultado do desenvolvimento da apropriação do sistema dialético hegeliano é a
negação da teoria do Estado ético, pois, para Marx, Hegel partiria de uma premissa filosófica
falsa, a saber, a tese segundo a qual a categoria de ideia por ele definida seria ao mesmo
tempo real, e não da essência real das novas relações sociais de mundo capitalista, no qual os
homens reais se organizam. Marx pretende entender justamente essa realidade concreta. O
objeto filosófico de Marx, nesse momento, é alcançar, por meio de sua crítica, uma teoria
filosófica social realista.
Para Marx, as categorias do sistema hegeliano são tanto objeto da crítica à teoria de
Estado de Hegel, como a noção de suprassunção, quanto fundamentos filosóficos nos
elementos argumentativos da crítica de Marx ao §261. Nessa crítica, como dissermos, Marx
acusa o Estado ético de ser uma antinomia sem solução; e, para isso, ele utiliza as categorias
de abstração e negação e a ideia de imanência. A compreensão dessa relação é central na
crítica apresentada por Marx à teoria de Estado ético como sendo uma antinomia sem solução.
Sendo assim, devemos estabelecer quais os parâmetros metodológicos da construção
da crítica de Hegel ao Estado contratualista que podemos constatar na crítica de Marx à teoria
de Estado de Hegel. Com base nisso, podemos traçar a caracterização do conteúdo dessas
similaridades entre essas duas linhas dialéticas. A busca pela fundamentação filosófica da
crítica de Marx nos permite identificar as diferenças teóricas entre os sistemas idealista e
materialista e, por conseguinte, verificar se há ou não uma ruptura entre Marx e o idealismo
de Hegel já presente nos escritos de 1843.
Por outro lado, essa investigação nos afasta de simplificações na análise da crítica de
Marx a Hegel, pois, na análise comparativa entre os filósofos, ao resgatar a essência da
dialética, percebemos toda a complexidade das teorias de ambos. Portanto, o objetivo deste
capítulo é verificar como e quais pontos dessas duas linhas filosóficas se cruzam, como as
categorias do sistema hegeliano aparecem na forma de refutação explícita nas glosas do texto
de Marx, e que, ao mesmo tempo, são usadas por ele dialeticamente na construção de seus
argumentos na crítica ao §261 da FD. Verificar-se-á que as categorias do sistema hegeliano
constituem-se indissociavelmente na crítica de Marx, aparecendo tanto de forma expressa
como no método da construção dos argumentos. As ideias de vontade, efetividade,
racionalidade são formulações desenvolvidas por Hegel e estão no §261 da FD e justificam a
noção de imanência. As noções de negação e abstração, oriundas dos momentos da lógica
71

hegeliana, constituem o modo de fundamentar os argumentos de refutação da ideia de Estado


ético em Marx. Para ele, interessava compreender porque e como Hegel pôde justificar,
através da noção filosófica de imanência, um diagnóstico da sociedade Moderna e
desenvolver a sua teoria ética de Estado. Teoria esta que Marx descreve como sendo uma
antinomia sem solução.
A ruptura filosófica hegeliana o leva a pensar o ser cognoscente, o Eu no mundo, o ser
que conhece a si e se reconhece enquanto livre no mundo. O Eu na ética hegeliana estará
representada no Estado, como expressão da vontade livre, como sendo o resultado da
suprassunção das relações sociais nas esferas da família e da sociedade civil burguesa.
A conexão entre o sistema dialético hegeliano e sua teoria ética forma o método e a
fundamentação teórica da ruptura de Hegel com a epistemologia moderna. Será sobre essa
base teórica que os argumentos da Crítica de Marx ao pensamento idealista de Hegel se
constituem.
Diante dessas observações, o objeto de análise é o Marx no momento em que ele
escreve a Crítica de 1843, em que tem no seu horizonte filosófico desmitificar a ideia de
racionalidade apreendida da tradição do idealismo alemão. Marx visa desenvolver uma
filosofia realista, que “desconstrua” o mundo das abstrações e apresentar uma nova forma de
conhecer o mundo que dissolva a mistificação idealista. Marx, desse modo, pode ser
interpretado com um filósofo que visa querer dar prosseguimento ou completar a ideia de
ruptura epistemológica hegeliana. No entanto, seu projeto dá início a uma abordagem realista
a partir de 1843, pela crítica filosófica, no intuito de construir um diagnóstico de época das
raízes filosóficas da natureza do desenvolvimento sociológico e econômico do capitalismo e
assim construir seu projeto teórico que visa alcançar as coisas como elas são, os homens reais.
A ideia de imanência está presente na crítica de Marx quando ele afirma que Hegel
não demonstra a unidade essencial da sociedade civil burguesa em um interesse geral e, tão
pouco, que a essência interna do Estado esteja associada de modo indissociável aos interesses
particulares, que se transformariam num interesse universal.
Os conceitos do sistema de Hegel conectam e fundamentam filosoficamente a crítica
de Marx à ideia de Eticidade de Hegel. A proposta é pensar as categorias filosóficas de Hegel
como uma atualização da dialética em direção ao materialismo histórico. E veremos que Marx
reconhece a importância da dialética hegeliana, ao pôr a materialidade como origem do
movimento histórico que constitui o mundo. Esse é um ponto essencial para compreendermos
a apropriação por Marx da dialética de Hegel.
72

Aliás, chama a atenção na leitura do livro Marx-Hegel, O porão de uma filosofia


Social, de Hans-Georg Flickinger (1986), que Marx pensa o sistema teórico hegeliano para
além de seus limites objetivos, ou seja, de sua capacidade de compreender a realidade. E isso
encontra-se presente já na sua tese de doutorado, visando superar as dificuldades de
interpretação, inclusive dele, Marx. Cito: “Isto significa, para ele, a aceitação da força
conceitual da filosofia hegeliana, a qual não fora capaz, entretanto, de dar conta das condições
objetivas e de adaptar-se à realidade.” (FLICKINGER, 1986, p. 29).
Pode-se observar que Marx tem, na filosofia, um meio capaz de ultrapassar as
barreiras ideológicas e resgatar uma nova metodologia na dialética como fonte de uma teoria
que se faz como instrumento crítico da realidade, como uma nova filosofia social da práxis.
Isso está na sua tese de doutorado, Diferença entre as Filosofias da Natureza em
Demócrito e Epicuro, em ele apresenta essa ideia:

Só que a práxis da filosofia é teórica. É a crítica que mede a existência individual


pela essência e realidade específica pela ideia. Só que, em essência mais íntima, essa
realização imediata da filosofia está marcada por contradições, e essa essência toma
forma no fenômeno e lhe imprime um selo. (MARX, 2018, p.57).

Uma filosofia social da práxis humana é o caminho que nos permite acompanhar o
raciocínio de Marx de recuperar a originalidade do sistema e da dialética de Hegel. Atualizá-
lo não como o encadeamento das inferências lógicas argumentativas analíticas de um
universal necessário do qual se seguem, satisfeitas todas as premissas, conclusões em formas
válidas de conhecimento. Uma vez fosse assim, a dialética estaria ainda na esfera do
entendimento e não da razão especulativa, como propôs Hegel.
É por meio da formulação dialética de Hegel que Marx parte para a compreensão
sobre o Estado ético hegeliano para depois formular a sua crítica. Pode parecer um paradoxo
desenvolver a crítica com as mesmas categorias que formulou seu objeto, mas isso representa
a plena apropriação dialética enquanto método e conteúdo de análise.
O universal de Hegel está de modo imanente no Estado ético, e Marx refuta essa
definição de Hegel e afirma a ideia de imanência como sendo uma antinomia. Verificaremos
que Marx precisa das categorias de Hegel para desconstruir as relações supostamente
imanentes entre as esferas da eticidade no Estado.
A ideia de imanência deve ser pensada na teoria de Estado Hegel como uma extensão
do seu sistema de pensamento, pois, ao inaugurar e estruturar uma nova lógica, que rompeu
com a noção de contradição analítica estabelecida, foi preciso pensar novas categorias
filosóficas. Hegel elabora a sua teoria filosófica para justificar a sua teoria sobre o Estado
73

moderno. As categorias da filosofia analítica de Kant eram insuficientes para validar uma
teoria social e política como a que Hegel estava propondo. A teoria ética hegeliana não podia
mais ser pensada analiticamente, mas sim dialeticamente.
Conforme o próprio Marx fundamenta na sua tese de doutorado, a dialética do
conhecimento de Hegel está nas coisas que estão em movimento. Portanto, sujeitas às ideias
de mudança e de contradição, através das quais o desenvolvimento das consciências se faz
enquanto expressão de transformações que se efetivam e se reconhecem como sendo
consciência de si na história.
Desse modo, a teoria do conhecimento de Hegel se difere significativamente do
pensamento epistemológico moderno. Ela rompe com a centralidade do conhecer, que estava
sustentada na ideia limitadora do sujeito cognoscente; que, diante das limitações de uma
metafísica que visava afastar todas as incertezas, tinha com resultado a incognoscividade das
coisas em si.
Então, o itinerário argumentativo a ser descoberto diz respeito a como as próprias
categorias dessa nova forma de conhecer o mundo, proposta por Hegel, constituem e
sustentam a formulação da crítica de Marx ao §261 da Filosofia do Direito.
Observe que Marx, nos comentários à obra de Hegel, na Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel, afirma serem as categorias hegelianas a essência filosófica da teoria de
Estado de Hegel. Portanto, isso reforça a necessidade de estudar o sistema do Hegel. O Estado
ético hegeliano é resultado e parte integrante do seu sistema filosófico. E Marx reconhece
isso, de forma explícita, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em relação ao
procedimento teórico de Hegel, como sendo esse um instrumento valioso, capaz de justificar
os aspectos da racionalidade da sua ideia de Estado ético.
Ir, então, de Hegel à Marx será, por assim dizer, infletir sobre as categorias lógicas e
as referências utilizadas por Hegel ao longo de toda a obra da Filosofia do Direito para
explicar e fundamentar a sua ideia de Estado, assim como precisou Marx fazer, na sua Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel, para construir os argumentos da sua crítica. O conceito
lógico que Hegel elabora para fundamentar a ideia de Estado ético é o conceito de Aufhebung,
apresentado por Hegel já na Fenomenologia do Espírito, no §113 da edição brasileira; “O
suprassumir apresenta sua dupla significação verdadeira que vimos no negativo: é ao mesmo
tempo, um negar e um conservar. O nada, como nada disto, conserva a imediatez e é, ele
próprio, sensível; porém, é uma imediatez universal”. (HEGEL, 2002, p.96)
74

A ideia de suprassunção, Aufhebung, é essencial para a fundamentação lógica


hegeliana na sua teoria de Estado, constituindo uma condição estruturalmente necessária nas
diferentes instâncias do lógico real. A “realidade efetiva” (Wirklichkeit) para Hegel não é uma
“realidade” (Realität), ou seu ser aí (Dasein), como devir, é a ideia da efetividade. É um
conceito sem o qual não é possível compreender por que o Estado ético é o real racional e o
racional real em Hegel, ou seja, é o conceito que opera no sistema filosófico hegeliano, na
base da sustentação da argumentação teórica da sua teoria de Estado ético.
Hegel apresenta um conceito que pode até ser interpretado como um operador
metodológico central apenas, Aufhebung, para o cumprimento de um sistema orgânico de
pensamento que se desenvolve progressivamente, que consiste em passagens sucessivas de
momentos do Espírito, nos quais o que vem depois conserva, nega e eleva-se em relação ao
que veio antes. No entanto, devemos compreender Aufhebung, na filosofia de Hegel, como
um nível superior, como um processo do real e constante de superação do que veio no tempo
anterior. Aufhebung é a supressão dos elementos pretéritos, uma vez que seu objetivo é
construir-se mediado por intermédio de todos os elementos guardados e conservados do nível
superior de determinação que estão na realidade. Pertille (2011, p.58) afirma que; “Aufhebung
está presente em cada um desses momentos, assim como perpassa e caracteriza todo o
movimento lógico, ampliando-o em direção ao real”.

4.2 O Estado ético, uma antinomia sem solução

A crítica de Marx a Hegel se apresenta de dois modos: um, em relação à forma


idealista de conceber as coisas; outro, em relação à abordagem contemplativa de se pensar
filosoficamente no mundo. Essa duas formas são apresentadas na Crítica de 1843 de Marx ao
§261 da FD.
A dialética idealista de Hegel apresenta as totalidades dos momentos da consciência
que se movem na história como consciência universal, ou melhor, como momentos da
liberdade humana. Como analisamos em capítulos anteriores, a dialética hegeliana apresenta a
efetivação das consciências e da liberdade na história enquanto uma figura da vontade,
enquanto para Marx a dialética se desenvolve como método e conteúdo nas contradições do
mundo real na condição social de poder transformá-lo.
Para compreender como Marx desenvolveu o seu argumento, veremos que Lukács
mostra haver uma dupla face na argumentação de Hegel ao analisar o §260 da FD:
75

Esta dupla face adquire a máxima evidência quando voltamos a atenção para a
definição hegeliana de Estado: “O estamento, enquanto particularidade que se tomou
objetiva, por uma parte, divide-se, assim, segundo o conceito, em suas diferenças
universais. Mas, por outra parte, a que estamento particular o indivíduo pertence,
nisso têm sua influência o natural, o nascimento e as circunstâncias, mas a
determinação última e essencial reside na opinião subjetiva e no arbítrio particular,
que se dá nessa esfera seu direito, seu mérito e sua honra, de modo que o que nela
ocorre por uma necessidade interna é, ao mesmo tempo, mediado pelo arbítrio e tem,
para a consciência subjetiva, a figura de ser a obra de sua vontade.”(HEGEL,2010,
p.201) Pode-se ver aqui, claramente, como Hegel concebe um importante papel a
momentos concretos da estratificação das classes na sociedade burguesa; assim,
antes de mais nada, ao momento do acaso no pertencer a uma classe, a propósito do
qual deve certamente surpreender o fato de que ele lhe atribua uma exclusividade
que jamais existiu na realidade. (LUKÁCS, 1978, p.57)

Lukács chama a atenção para a dupla face da abordagem de Hegel em relação ao


pertencimento do indivíduo a um estamento da sociedade civil: por um lado, é natural,
depende das contingências do nascimento; por outro, depende de seu arbítrio e de seu mérito.
Marx abordará também esse ponto, explorando a ideia mistificada de Estado, que surge daí. E
a raiz da questão é o idealismo de Hegel, que substitui a ação social humana concreta pela
“astúcia da razão”, que age de maneira teleológica sobre a história:

Quando em Hegel o espírito do mundo se torna o artífice e demiurgo da história,


verifica-se uma generalização mistificatória daquilo que era, no trabalho humano, a
real compreensão de sua essência concreta. A ambiguidade da “astúcia da razão”
hegeliana [...] indica que seu senso da realidade foge do misticismo desenfreado que
disto deriva, desta teologia cósmica que transcende o homem, mas indica também
que ele não está em condições de compreender a dialética real que, a partir das
aspirações particulares dos homens singulares e dos grupos, desenvolve a
universalidade das modificações históricas das formações sociais que se sucedem.
(LUKÁCS, 1978, p.48).

Lukács reconhece que Hegel foge de um “misticismo desenfreado”. Entretanto, assim


como reconheceu Marx, sua abordagem idealista impede que ele reconheça a dialética como
um processo concreto que se desenvolve a partir dos homens e de suas organizações sociais.
Em Hegel, o governante é posto como uma síntese entre a universalidade, a
deliberação que se submete a lei universal e a capacidade de autodeterminação:

O poder do príncipe contém ele mesmo dentro de si os três momentos da totalidade


(§ 272), a universalidade da constituição e das leis, a deliberação enquanto
vinculação do particular com o universal e o momento da decisão última, enquanto
autodeterminação, na qual retoma todo o resto e da qual tira o começo da
efetividade. Esse autodeterminar absoluto constitui o princípio diferenciado do
poder do príncipe enquanto tal, o qual é o primeiro a ser desenvolvido. (HEGEL,
2010, p.260).
76

No entanto, essa síntese hegeliana está sob uma forma mistificada de pensar o
universal, o Estado. Pois, visa justificar a liberdade concreta do Estado, na figura do monarca,
como sendo capaz de representar a racionalidade. Isso porque, o monarca seria o resultado de
uma dialética universal que partiria dos interesses particulares da sociedade civil burguesa e
da família. Lukács mostra que Hegel estaria construindo um argumento formal para justificar
a necessidade racional do Estado:

Desaparece aqui qualquer real dialética de universal, particular e singular,


substituída por uma pseudodialética formalista e enganosa. E ela se transforma em
pura caricatura quando Hegel, o que decorre necessariamente destes falsos
pressupostos — busca deduzir “de modo puramente especulativo”' a pessoa do
monarca. (LUKÁCS, 1978, p.62).

É uma racionalidade mistificadora de Hegel, uma vez que a unidade espontânea entre
os interesses particulares e o interesse geral é abandonada, e os interesses particulares se
expressam de modo dominante. Hegel responderia a essa questão afirmando que o interesse
geral é a racionalidade pública do bem comum expresso no e pelo Estado ético. No entanto, a
ideia do Estado ético ser a efetividade da liberdade concreta humana só pode ser viável
subordinando os interesses particulares à racionalidade no Estado. Logo, a tal liberdade
concreta é, na verdade, é uma liberdade formal baseada concretamente apenas em uma
imposição.

O Estado é a efetividade da liberdade concreta; mas a liberdade concreta consiste em


que a singularidade da pessoa e seus interesses particulares tenham tanto seu
desenvolvimento completo e o reconhecimento de seu direito para si (no sistema da
família e da sociedade civil-burguesa), corno, em parte, passem por si mesmos ao
interesse do universal, em parte, com seu saber e seu querer, reconheçam-no como
seu próprio espírito substancial e são ativos para ele como seu fim último, isso de
modo que nem o universal valha e possa ser consumado sem o interesse, o saber e o
querer particulares, nem os indivíduos vivam meramente para esses últimos,
enquanto pessoas privadas, sem os querer, ao mesmo tempo, no e para o universal e
sem que tenham uma atividade eficaz consciente desse fim. (HEGEL, 2010, p.235-6,
§260).

A ideia de que os interesses particulares de reconhecer o interesse universal se realiza


por subordinação, e a unidade real não existe. Em Hegel, o interesse comum é um universal
formal, consequência de uma operação que, para ser racional não abstrata, terá que ser
particular. Logo, o Estado ético é uma determinação da razão universal que subordina a
liberdade de modo formal e não concreto.

Hegel, pode-se dizer, teria de conceber a “sociedade civil”, assim como “família”,
como determinação de cada indivíduo do Estado, do mesmo modo, portanto, as
77

ulteriores “qualidades estatais” como determinação do indivíduo do Estado em


geral. Mas não é o mesmo indivíduo que desenvolve uma nova determinação da sua
essência social. É a essência da vontade quem desenvolve suas determinações
pretensamente a partir de si mesma. As presentemente diversas e separadas
existências empíricas do Estado são consideradas encarnação imediata de uma
dessas determinações. Como o universal como tal é tornado independente, ele é
imediatamente confundido com a existência empírica e, logo a seguir, o finito é
tomado de maneira acrítica pela expressão da Ideia. (MARX, 2010a, p.61).

Entretanto, o surpreendente é que Marx reconhece que Hegel pensou uma nova teoria
do Estado moderno quando ele construiu a sua refutação a teoria contratualista. Hegel
desenvolveu a noção de direito abstrato como uma das formas de reconhecer a necessidade do
Estado para representar o todo social.

A propriedade, o contrato, o matrimônio, a sociedade civil, aparecem, aqui (Hegel


desenvolve de modo bastante correto estas formas abstratas de Estado, mas ele crê
desenvolver a ideia de Estado), como modos de existência particulares ao lado do
Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se relaciona como
forma organizadora, com entendimento que determina, limita, ora afirma, ora nega,
sem ter em si nenhum conteúdo. (MARX, 2010a, p.50).

Marx considera correto o diagnóstico hegeliano da essência do que é o Estado


moderno. O problema filosófico que mostra a ruptura de Marx com idealismo hegeliano é
outro. Hegel explicou o Estado por meio de categorias da racionalidade. O diagnóstico dele
apresentava a existência de conflitos entre os interesses particulares e os interesses comuns,
mas estes estariam resolvidos por uma operação da abstração da racionalidade, a Aufhebung,
uma síntese que se põe como imanente à sociedade civil e, por isso mesmo, real, expressa
enquanto Estado ético. Marx, na Crítica de 1843, defende que existem realidades irracionais.
Portanto, os conflitos entre interesses particulares e o interesse comum estão distantes de
constituírem uma formalidade ou um problema fenomênico, diante de um Estado harmonioso
que os suprassumem. Trata-se, para Marx, da essência do que é o Estado moderno.
Por este motivo, a refutação de Hegel ao contratualismo e o diagnóstico das
contradições estão presentes, de modo indelével, na construção da crítica de Marx à teoria
hegeliana de Estado. Marx se apropria do diagnóstico teórico da FD. A teoria de Hegel
constituí, para Marx, mais do que uma formulação cujo objeto seria dar conta de sepultar os
resquícios do Estado semifeudal. Para ele, a Filosofia do Direito desnuda as contradições da
sociedade moderna, em que se busca fundamentar as garantias à liberdade individual e, ao
mesmo tempo, justificar a necessidade da universalidade política, representada no Estado
moderno emergente.
78

Nos Estados modernos, assim como na filosofia do direito de Hegel, a realidade


consciente, verdadeira, do assunto universal, é apenas formal, ou apenas o formal é
assunto universal real. Não se deve condenar Hegel porque ele descreve a essência
do Estado moderno como ela é, mas porque ele toma aquilo que é pela essência do
Estado. Que o racional é real, isso se revela precisamente em contradição com a
realidade irracional, que, por toda parte, é o oposto do que afirma ser e afirma ser o
oposto do que é. Em vez de demonstrar que o “assunto universal” existe para si,
subjetivamente, e que, com isso, existe realmente como tal, e que ele tem também a
forma do assunto universal, Hegel demonstra apenas que a ausência de forma é a sua
subjetividade, e que uma forma sem conteúdo tem de ser disforme. A forma que o
assunto universal assume em um Estado que não seja o Estado do assunto universal
pode ser, apenas, uma não-forma, uma forma que engana a si mesma, que contradiz
a si mesma, uma forma aparente, que se mostrará como uma tal aparência. (MARX,
2010a, p.82).

É importante recuperar essa passagem, uma vez que ela ilustra não apenas a crítica de
Marx à teoria do Estado ético de Hegel. Ela mostra que Marx estaria apresentando um
diagnóstico do Estado moderno que é decorrente da sua apropriação tanto da crítica de Hegel
ao contratualismo, quanto da própria teoria de Estado de Hegel. É um diagnóstico político e
social de um Estado existente que tem, enquanto sua essência real, a forma de uma antinomia
sem solução.
Marx apresenta uma clara distinção entre o Estado irracional e o Estado racional. Essa
questão está no centro da crítica de Marx ao Estado ético hegeliano. O Estado racional é
aquele que se efetiva nas determinações das esferas da eticidade, suprassumindo as
contradições formalmente. Mas, para Marx, o Estado é uma representação política do que é
existente. O Estado moderno, para ele, é irracional, na medida em que a essência de seu ser no
mundo é contraditória.
Marx tem em vista atualizar o conceito de homem efetivo real. A noção hegeliana de
suprassunção das contradições da sociedade civil burguesa é um modo de pensar o homem
efetivo e suas relações sociais de modo abstrato. Marx mostra que pensar esse homem
abstrato desconecta a teoria ética de Hegel do projeto de pensar o fim da alienação real, uma
vez que este homem efetivo hegeliano é uma abstração distorcida, baseada em interesses
particulares da sociedade civil burguesa.
Assim, a questão da alienação torna visível a crítica de Marx à inversão da relação
entre racional e real. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel parece não estar interessado no
fim efetivo da alienação, mas sim em compreender teoricamente o mundo alienado, já que os
homens reais, enquanto tais, estão alienados e não podem conhecer o mundo. A antinomia
descrita por Marx no §261 da FD está enraizada na categoria da alienação de Hegel. E, como
79

vimos, essa categoria foi criada por Hegel em sua ruptura epistemológica com a teoria do
conhecimento moderna.

Essa superação do objeto da consciência não se deve tomar como algo unilateral, em
que o objeto se mostrasse como retornado ao Si; mas, de modo mais determinado,
em que o objeto como tal se mostrasse ao Si como evanescente. Melhor ainda,
[toma-se de modo] que é a extrusão da consciência-de-si que põe a coisidade, e que
essa extrusão não tem só a significação negativa, mas a positiva; não só para nós ou
em si, mas para ela mesma. (HEGEL, 2002, p.530).

Como vemos, a consciência de si pensa a sua forma objetiva externa de modo que
forma outra de si mesma. Ela se põe como objeto dela mesma no outro. Há uma suprassunção
da consciência objetiva da representação do mundo. Hegel representa assim,
simultaneamente, a consciência apropriando-se do mundo e de si, porém apenas em
pensamentos. Logo, a alienação e sua superação são compreendidas por Hegel como dizendo
respeito apenas à consciência e não como algo objetivo que independe do movimento das
consciências. A suprassunção, na FE, aparece como uma metacategoria do pensamento, pois
a realidade não é alterada.
Marx considera que essa noção de consciência de Hegel leva a uma compreensão de
que o Estado, em sua essência racional, seria algo alienado do homem. O Estado ético
hegeliano, em sua efetividade, seria uma representação racional alienada do homem e
resultado apenas de sua própria essência. Ou seja, para Marx, o Estado hegeliano seria uma
mistificação da ideia de Estado como uma necessidade externa ao indivíduo.

Que “as leis do direito privado” dependem “do caráter determinado do Estado”, que
elas se modificam segundo ele, é algo que está subsumido na relação da
“necessidade externa”, precisamente porque “sociedade civil e família”, em seu
verdadeiro, quer dizer, autônomo e pleno desenvolvimento, são pressupostas ao
Estado como “esferas” particulares. “Subordinação” e “dependência” são as
expressões para uma identidade “externa”, forçada e aparente, para cuja expressão
lógica Hegel utiliza, corretamente, a “necessidade externa”. (MARX, 2010a, p. 28).

A negação da negação, em Hegel, não será a essência das coisas ou a essência real do
Estado que negaria a sua essência aparente de uma suprassunção das contradições dos
interesses particulares da sociedade civil burguesa na efetivação dos interesses comuns do
Estado ético. Para Marx, é preciso negar essa essência abstrata de superação aparente das
antinomias, que aliena as consciências, por apresentar a necessidade externa do Estado com
identidade que é apenas formal e em que identidade não se compõe enquanto algo real.
80

Por isso, Marx refuta esse argumento de Hegel, pois, sem a negação da imanência, o
que há é a confirmação do Estado como essência da família e da sociedade civil, alienando o
homem da e na política, que passa a ser regida por esse Estado místico hegeliano. O que
existe é alienação da não da liberdade concreta, diferente do que Hegel afirma no §260 da FD.
O Estado não é o fim último da liberdade humana, pois ele não é a síntese de uma
suprassunção dos interesses particulares em universais. Logo, o Estado ético hegeliano não
soluciona a essência contraditória do Estado. Ele não é capaz de subordinar os interesses
singulares e particulares e muito menos é um fim último imanente, capaz de expressar a
liberdade humana.
Para Marx, é preciso compreender e transformar a essência aparente do mundo,
diagnosticada por Hegel, em essência real. Desse modo, por fim, é preciso superar a alienação
desse homem frente as suas relações sociais e políticas, para que ele consiga transforma a sua
consciência de si e sua realidade e assim efetive a liberdade no mundo. Para Marx, a noção de
suprassunção de Hegel se apresenta como uma teoria da justificação da alienação, por
permitir que a realidade alienada permaneça alienada. Em Hegel, a alienação é o modo com
que consciência de si sabe que existe, mas não como uma alienação real, posta na relação
entre essa consciência e o mundo. Logo, a alienação hegeliana permanece ensimesmada, já
que essa consciência não pode romper com a alienação, porque não há uma suprassunção das
contradições entre os interesses presentes no mundo real. Portanto, em Hegel não há o fim da
alienação real.
As relações presentes na sociedade civil burguesa são de dependência interna. Além
disso, ela mantém uma relação de subordinação essencial ao Estado ético. A ideia de
dependência, em Hegel, é derivada do sistema idealista hegeliano, em que há uma
determinação da matéria pela ideia.

Hegel conhece a separação da sociedade civil e do Estado político, mas ele quer que
no interior do Estado seja expressa a sua própria unidade, e, em verdade, isso deve
ser realizado de maneira que os estamentos da sociedade civil constituam, ao mesmo
tempo, como tais, o elemento estamental da sociedade legislativa. (MARX, 2010,
p.91).

Hegel autonomiza o Estado frente à sociedade civil e o coloca como polo dominante.
E é a esse Estado autonomizado, a essa esfera que é, ao contrário da família e da sociedade
civil, portadora da autoconsciência, que é atribuído o papel de conter as tendências
dissolventes da sociedade civil, o papel de subsumir os interesses particulares ao interesse
81

geral, de elevar tais interesses ao interesse comum. É o representante do todo, do interesse


universal.
Essa ideia deriva da visão política do pensamento moderno, em que se buscam formas
de submeter o interesses particular a um interesse comum, com vimos em Rousseau. “A era
moderna, a civilização, comete o erro inverso. Ela separa do homem o seu ser objetivo, como
um ser apenas exterior, material. Ela não toma o conteúdo do homem como sua verdadeira
realidade.” (MARX, 2005, p.98). Transforma a alienação do interesse geral próprio do Estado
político, seja ele contratual ou o Estado ético hegeliano, em uma busca por teorias que, no
interior da forma alienada, visam pensar a solução política.
Marx, por sua vez, propõe a dissolução da forma alienada no mundo. O modo
hegeliano de suprassumir as contradições formando uma unidade imanente apresenta-se, na
prática, enquanto uma justaposição na forma de uma unidade mística, provinda de um cálculo
formal hipotético de algo que é justamente o oposto. O que há é uma contradição real e
definitiva presente nas relações entre a família, sociedade civil e Estado. Na verdade, embora
Hegel tenha elaborado uma razão absoluta que suprassume a divisão entre as esferas da
eticidade, ele demonstra, no §261 da FD, que não reconhece essa divisão:

[...] seus [do Estado] interesses estão subordinados e são dependentes dela [da
sociedade civil]; mas, de outra parte, ele é seu fim imanente e possui seu vigor na
unidade de seu fim último universal e do interesse particular dos indivíduos, no fato
de que eles têm obrigações para com ele, na medida em que eles têm, ao mesmo
tempo, direitos. (HEGEL, 2010, p.236).

Hegel não reconhece haver uma separação entre o modo de vida civil e a constituição
das relações políticas expressas no Estado. Hegel impõe um modo de pensar que percebe a
forma independente dos elementos que constituem o Estado como uma cisão na efetividade
que é, na verdade, a própria intransponilidade da propriedade privada. Os indivíduos estão
contidos no Estado, e ele é seu fim imanente, porque o Estado realiza os interesses
particulares dos indivíduos ao pôr-se como seu fim último universal.

O erro principal de Hegel reside no fato de que ele assuma a contradição do


fenômeno como unidade no ser, na Ideia, quando essa contradição tem sua razão em
algo mais profundo, a saber, numa contradição essencial, como, por exemplo, aqui,
no fato de que a contradição do poder legislativo em si é somente a contradição do
Estado político consigo mesmo, portanto, da sociedade civil consigo mesma.
(MARX, 2010a, p.107).
82

Hegel compreende satisfatoriamente que, no Estado moderno, a liberdade individual


nasce como condição para o individualismo. Uma liberdade de cada um na busca por
ultrapassar o outro, numa superação individual competitiva que é degenerativa para a
sociedade civil burguesa, na medida em que se sobrepõe ao interesse comum. Portanto, o erro
de Hegel, segundo Marx, foi propor que, para evitar essa sobreposição, seria suficiente uma
forma de Estado que contradiz a essência do fundamento do Estado. Hegel leu David Ricardo
e Adam Smith. Portanto, compreendia a necessidade de limitar a propriedade privada. É por
isso que Marx considera que Hegel está iludido com uma argumentação formal como que se
ele pudesse compatibilizar os elementos que na verdade compõem uma contradição de
essência. O legado hegeliano não é ter formulado efetivamente as contradições do Estado
moderno, mas é o de ter mostrado, no seu diagnóstico, a ilusão do Estado moderno em si. Na
Crítica de 1843, Marx afirma que o Estado é o interesse da propriedade privada sob a forma
mistificada, formal, como interesse comum. A ilusão referida por Marx do Estado é de não ser
determinado pela propriedade privada.

Ele o isola da família e da sociedade, ele o conduz à sua autonomização abstrata.


Qual é, então, o poder do Estado político sobre a propriedade privada? O próprio
poder da propriedade privada, sua essência trazida à existência. O que resta ao
Estado político, em oposição a essa essência? A ilusão de que ele determina, onde
ele é determinado. Ele rompe, é verdade, a vontade da família e da sociedade, mas
apenas para dar existência à vontade da propriedade privada, que é sem a vontade da
família e da sociedade e para reconhecer essa existência como a suprema existência
do Estado político, como a suprema existência ética. (MARX, 2010a, p.116).

A propriedade privada, em Hegel, revela a alienação absoluta na forma de uma síntese


do processo social e político sob um modo consciente do indivíduo e como sendo a
comprovação da alienação no Estado moderno como uma forma alegórica.
Marx, ao contrário de Hegel, não considera a propriedade privada como um direito
natural, mas como uma condição histórica que é um resultado social, a posse. A propriedade
privada é apresentada como direito somente na relação jurídica da posse, como Marx
apresenta:

O verdadeiro fundamento da propriedade privada, a posse, é um fato, um fato


inexplicável, não um direito. É somente por meio das determinações jurídicas,
conferidas pela sociedade à posse de fato, que esta última adquire a qualidade de
posse jurídica, a propriedade privada. (MARX, 2010a, p.125).
83

Mesmo que a posse da propriedade privada pudesse não ser explicada, ela não pode
ser tomada como um fato natural. Essa desmitificação da propriedade privada por Marx, na
Crítica de 1843, demonstra como ele engendra a sua ruptura com idealismo de Hegel.
Para Marx, Hegel é consciência do poder da propriedade privada sobre a organização
da sociedade civil em estamentos. Consequentemente, ele também estaria consciente da
influência que ela exerce sobre o próprio Estado. Entretanto, Hegel tenta solucionar esse
problema fazendo o Estado, que supostamente representaria os interesses comuns, interferir
na própria organização das corporações, através das chamadas “eleições mistas”:

Sobre a relação das corporações, comunas, com o governo, nós aprendemos,


primeiramente, que sua administração (a ocupação de sua magistratura) depende,
“em geral, de uma mistura de eleição pública desses interessados e de uma
confirmação e determinação superiores”. A eleição mista dos administradores da
comuna e da corporação seria, portanto, a primeira relação entre a sociedade civil e
o Estado ou poder governamental, a sua primeira identidade (§ 288). Esta identidade
é, segundo o próprio Hegel, muito superficial, um mixtum compositum, uma
“mistura”. Essa identidade é tanto superficial quanto aguda a oposição. “Na medida
em que estas questões” (a saber, da comuna, da corporação, etc.) “são, por um lado,
a propriedade privada e o interesse dessas esferas particulares e que, segundo este
lado, sua autoridade repousa na confiança de seus colegas de estamento e
concidadãos e que, por outro lado, esses círculos têm de ser subordinados aos mais
altos interesses do Estado”, isto resulta na referida “eleição mista”. (MARX, 2010a,
p.67–68).

Para Hegel, como apresenta Marx, nas eleições mistas dos administradores das
corporações, haveria o estabelecimento de um primeiro nível da identidade entre sociedade
civil e Estado. Os administradores representariam os interesses privados, mas precisariam da
confirmação do Estado, enquanto representante dos interesses comuns. Mas, para Marx, “é
desnecessário ressaltar que a solução desta oposição por meio da eleição mista é uma mera
acomodação, uma transação, uma confissão do dualismo não resolvido, ela mesma um
dualismo, uma ‘mistura’ ” (2010a, p. 68). Ou seja, o “mixtum compositum” resultante, muito
diferente de resolver o problema, é a confissão de sua insolubilidade.
Em 1843, na análise material e social do diagnóstico do Estado, Marx discute o modo
como a sociedade civil burguesa se organiza. Ele apresenta os primeiros elementos teóricos
para a desmitificação da propriedade privada, que é o embrião do desenvolvimento da sua
crítica posterior à economia política. Essa desmitificação está fundamentada na denúncia da
posse da propriedade enquanto condição social assegurada pelos próprios interesses dos
indivíduos no Estado ético, na forma de um interesse comum. Marx quer mostrar que, na
verdade, esse não é um interesse comum, mas apenas o direito de uma parte dos seres
humanos, a saber, os que tem a posse da propriedade privada e que pretendem garanti-la
84

através do Estado, por meios das leis. Portanto, a antinomia que Marx diz existir no §261 da
FD se desnuda com toda a sua realidade, uma vez que o Estado se apresenta não como a
forma política da universalidade de toda a sociedade, mas como a expressão da garantia legal
direcionada aos interesses particulares.
A noção de unidade, em Hegel, apresenta o Estado ético como sendo capaz de
conduzir a sociedade civil. Será por meio de uma abstração transcendente, a Aufhebung, que
as contradições entre os interesses particulares da sociedade civil burguesa, para Hegel, são
resolvidas em uma síntese mais elevada que estabeleceria o interesse comum, representado
como uma vontade universal, que é o Estado ético.
Para Hegel, o Estado, como resultado da suprassunção dos interesses e das
necessidades da esfera do particular em um interesse geral, universal, pode, de modo real,
suprimir as contradições expressas no modo de vida político da sociedade civil burguesa.
Importante verificar a complexidade dessa formulação de Hegel. Ele próprio reconhece que a
unidade ou a sua concepção do absoluto não exclui a possiblidade de qualquer contradição ao
absoluto. Ele admite que há contradições, mas elas são aparentes, havendo, quanto à essência,
uma unidade imanente.
As contradições entre a sociedade civil e o Estado, identificadas por Hegel, são
aparentes porque ele faz uma consideração estática de seu objeto. Essa “imagem” não revela o
movimento contraditório e a incompatibilidade da relação entre os interesses particulares e o
interesse universal do Estado ético. Portanto, para Marx, o que está na base é uma unidade
formal mistificada da realidade. O institucionalismo hegeliano se faz forte para conduzir e
justificar a sua teoria de Estado, que se afirmaria como uma tendência de a sociedade civil
levar ao Estado, e de o Estado relacionar-se imparcialmente com a sociedade civil.
Marx opõe-se a essa visão de Hegel, pois considera que o movimento da matéria tem
um propósito que se realiza na práxis, no real. Essa interpretação deve ser considerada
fundamental para a compreensão, tanto de sua crítica ao idealismo racionalista do Estado
ético, quanto de sua formulação de uma teoria filosófica do materialismo histórico. A
suprassunção da teoria de Hegel toma forma a partir da Crítica à Filosofia do Direito de
Hegel, pois essa lógica abstrata de Hegel não expressa o movimento dialético da relação entre
a sociedade civil burguesa e o Estado.
Em síntese, para Marx, os argumentos de Hegel são de essência metafísica e não mais
dialética. Para ele, as categorias hegelianas que formam a ideia de Estado ético são
determinação lógico-metafísica. “O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa
85

da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração
da lógica.” (MARX, 2010a, p.39). O Estado, em Hegel, tornou-se um operador lógico-
metafísico, capaz de deduzir-se, pois passa a ser uma relação lógica e não da própria filosofia
do direito, segundo a crítica de Marx.
Hegel, desse modo, estaria propondo uma teoria de Estado que deve satisfazer as
exigências normativas impostas pelos padrões de reconhecimento recíproco das consciências
nas esferas da família e da sociedade civil burguesa. A crítica de Marx apresenta a teoria de
Hegel como uma filosofia social da autorrealização dos indivíduos; estruturada em direitos,
liberdades e deveres, tal como os “liberais”, mas que não é abstratamente deduzida de um
Estado natural ou de uma liberdade negativa, e sim efetivada num contexto ético
intersubjetivo compartilhado na história. Esta compreensão decorre da ruptura epistemológica
de Hegel do modo de entender a subjetividade como foi elaborada por ele na FE, e que já
abordamos em capítulos anteriores.
Como vimos, Hegel desenvolveu uma crítica ao contratualismo e elaborou um outro
conceito de Estado. Para isso, valeu-se das ideias de unidade e de imanência, pensadas na FE.
Elas estão na base da formulação segundo a qual é pela supremacia da universalidade do
Estado que ele se efetiva na história, subordinando os interesses e as relações das
particularidades à universalidade. Ele propõe que a liberdade se efetiva como concreta na
ideia de Estado ético. Para ele, a essência do Estado consiste nos seguintes pontos:

a) uma efetividade imediata, e é o Estado individual enquanto organismo que está


em relação consigo, - constituição ou direito estatal interno;
b) ela passa à relação do Estado singular com outros Estados, - direito estatal
externo;
c) ela é a ideia universal enquanto gênero e potência absoluta, contra os Estados
individuais, o espírito em que se dá sua efetividade no processo da história mundial.
(HEGEL, 2010, p. 234, §258).

Ou seja, o Estado, enquanto realizador da ideia da liberdade, constitui-se, em primeiro


lugar, como instituição individual, suprassumindo as liberdades parciais da família e da
sociedade civil burguesa. Em segundo lugar, põe-se como Estado soberano diante dos outros
Estados. E, em terceiro lugar, enquanto realização plena da liberdade, põe-se para além dos
Estados individuais, percorrendo a essência da história mundial.
Há, segundo Hegel, uma relação de suprassunção entre a família, a sociedade civil e o
Estado. Neste, eles formam uma unidade que possibilita a realização dos fins da totalidade das
86

particularidades. A liberdade de cada um em promover os seus interesses individuais se


limitaria pela liberdade dos outros indivíduos de poder fazer o mesmo.
O interesse comum, para Hegel, torna-se efetivo devido à sua imanência a todo
interesse presente na sociedade civil. Na Filosofia do Direito, Hegel afirma: “O Estado é a
efetividade da liberdade concreta” (HEGEL, 2010a, p. 235, §260). Isto é, todas as formas de
liberdade encontram-se realizadas apenas na figura do Estado.
Hegel, que se fundamenta na ideia de imanência, define o Estado ético com o fim
último na FD. Nas suas palavras,

o Estado é a efetividade da liberdade concreta; mas a liberdade concreta consiste em


que a singularidade da pessoa e seus interesses particulares tenham tanto seu
desenvolvimento completo e o reconhecimento de seu direito para si (no sistema da
família e da sociedade civil-burguesa) como, em parte, passem por si mesmos ao
interesse do universal, em parte, com seu saber e seu querer, reconheçam-no como
seu próprio espírito substancial e são ativos para ele como seu fim último, isso de
modo que nem o universal valha e possa ser consumado sem o interesse, o saber e o
querer particulares, nem os indivíduos vivam meramente para esses últimos,
enquanto pessoas privadas, sem os querer, ao mesmo tempo, no e para o universal e
sem que tenham uma atividade eficaz consciente desse fim. (HEGEL, 2010, p. 235,
§260).

O argumento de Hegel é que a realização completa da liberdade individual só é


possível no Estado. Este é, portanto, o fim último imanente aos próprios indivíduos, na
medida em que são livres. Ou seja, só é possível ser efetivamente livre no Estado. Então, os
interesses particulares são, ao mesmo tempo, interesses pelo universal, como seu fim último.
O Estado, na Filosofia do Direito de Hegel, aparece como o resultado do
desenvolvimento do Espírito subjetivo apresentado por Hegel na Fenomenologia do
Espírito. Na Filosofia do Direito, Hegel apresenta o processo em que as consciências se
efetivam e se reconhecem no mundo e se completam na Eticidade enquanto o
desenvolvimento do Espírito Objetivo. Portanto, em Hegel há uma progressão conceitual que
parte do indivíduo, do sujeito moral, do direito abstrato, da família e da sociedade civil
burguesa. É nessa relação indissociável entre as principais figuras ascendentes suprassumidas
que se dá a passagem da efetivação da liberdade individual subjetiva para a efetivação da
liberdade política e social, no que Hegel chama de Eticidade. O resultado da efetivação plena
da Eticidade é o Estado ético que se produz e se mostra como o processo do verdadeiro
fundamento dessas figuras anteriores da vontade, de forma livre.
O Estado moderno, para Hegel, é o modo como a Eticidade se efetiva como um fim
imanente que torna possível, às consciências livres, alcançarem a “felicidade” e sua liberdade
87

plena, ou seja, é a esfera que efetiva a subjetividade humana, que se apresenta na história em
ato, mas que está em potência nas relações sociais do modo de vida capitalista, como ele
mesmo aborda no §261 da FD. A subjetividade se torna um componente essencial para
compreender a essência do Estado ético hegeliano, que se realiza enquanto universal. O
Estado, então, para Hegel será o resultado da suprassunção, Aufhebung, dessas vontades
livres, ou seja, será a expressão da subjetividade humana suprassumida, que se reconhece
enquanto livre num “objetivo final” interno, e que se efetiva de um modo externo, a saber, no
Estado.
Hegel apresenta, na FD, como essa subjetividade presente na sociedade civil burguesa
se realiza no Estado:

O fim da corporação, enquanto fim delimitado e finito, tem sua verdade [...] no fim
universal em si e para si e na efetividade absoluta desse; esfera da sociedade civil-
burguesa passa, por isso, Estado. A cidade e o campo, - aquela, a sede da indústria
burguesa, da reflexão que se eleva e se isola dentro de si [;] esse, a sede da eticidade
que repousa sobre a natureza, - os indivíduos que medeiam sua autoconservação em
relação com outras pessoas jurídicas e a família constituem, de maneira geral, os
dois momentos, ainda ideais, a partir dos quais o Estado surge como seu fundamento
verdadeiro. - Esse desenvolvimento da eticidade imediata mediante cisão da
sociedade civil-burguesa até o Estado, o qual se mostra como seu verdadeiro
fundamento, e apenas tal desenvolvimento é a demonstração científica do conceito
de Estado. (HEGEL, 2010, p.228-229, §256).

Percebe-se, pela leitura do texto de Hegel, que, nessa nova condição social e política,
expressa pela sociedade civil burguesa, a subjetividade é conservada e transformada, na
modernidade, em constitutiva do fim último, a saber, do Estado ético. Os interesses dessa
subjetividade estão expressos no Estado ético hegeliano como sendo uma espécie de
recuperação da ideia da esfera da política da pólis grega, do espaço da realização da
coletividade do interesse público. Assim é o Estado moderno para Hegel: a unidade da ideia
de universal capaz de expressar o bem comum da política de modo a representar
indissociavelmente esse novo modo de vida que surge decorrente do capitalismo, a expressão
humana subjetiva presente nas esferas da família e da sociedade civil burguesa.
Desse modo, a noção de fim último em Hegel está diretamente vinculada com o
conceito de efetivação enquanto ideia na sua estrutura lógico-conceitual, na sua teoria de
Estado como sendo o seu fim imanente nos modos de vida na sociedade civil burguesa que se
reconhecem e atuam nas esferas da subjetividade moderna em relação à família e à sociedade
civil burguesa, e, em geral, nas dimensões do direito privado, como “uma necessidade
exterior” como sendo uma potência superior - um poder coercitivo -, mas que é,
88

simultaneamente, “seu fim imanente”, pois o Estado se institui e se organiza como o espaço
de convergência e da unificação dos interesses particulares dos indivíduos singulares e do
interesse universal (FD, §261, 2010).
Dessa forma, em Hegel há uma plena reciprocidade de conteúdos entre direitos e
deveres, tanto dos indivíduos organizados na sociedade civil, quanto destes na relação com o
Estado. É, portanto, um sistema integrado do Estado, que parte das esferas sociais distintas,
enquanto modos de vida distintos, e as integram, mediante o pressuposto segundo o qual, em
essência, elas estariam contempladas, de forma imanente, na efetivação do fim último, o
Estado. Assim, a aparente contradição entras as esferas da família e da sociedade civil em
relação ao Estado estaria suprimida. Por intermédio da ideia hegeliana de imanência, o Estado
se constituiria em resultado da suprassunção dos próprios processos de desenvolvimento
social nas esferas singulares e particulares, efetivando-se como universal.
Essa ideia de imanência está na base da relação que fundamentaria a realização do
reconhecimento das consciências como livres. No entanto, agora não mais sob a forma do
Espírito subjetivo, como na Fenomenologia do Espírito, mas enquanto consciências que se
fazem no mundo como modos efetivos e concretos de liberdade, no caso, no Estado enquanto
espírito objetivo.
O Estado moderno em Hegel, portanto, será o resultado da suprassunção das
“incompatibilidades” entre as esferas da família e da sociedade civil burguesa. O Estado ético
é a realização mais alta das liberdades individuais finitas, é o universal concreto. A Eticidade
se efetiva no Estado enquanto a esfera que suprassume os interesses singulares (da família) e
particulares (da sociedade civil burguesa). Hegel defende que é no Estado que o indivíduo
singular, com seus interesses particulares representados na sociedade civil burguesa, se
desenvolve plenamente. E mais, é o espaço político em que essas vontades podem ser
reconhecidas no seu pleno direito, de modo a se efetivarem, ao mesmo tempo em que, em
contrapartida, reconhecem o Estado como seu “fim último”.
O Estado ético hegeliano, portanto, se efetiva enquanto a soberania interna, por
princípio, da unidade das instituições. Essa unidade é o que garante o reconhecimento
recíproco dos indivíduos, perpassando as liberdades individuais de cada um “o seu espírito
substancial”.

O princípio dos Estados modernos tem este vigor e esta profundidade de deixar o
princípio da subjetividade completar-se até o extremo autônomo da particularidade
pessoal e, ao mesmo tempo, de reconduzi-lo à unidade substancial e, assim, de
89

manter essa unidade no princípio mesmo da subjetividade. (HEGEL, 2010, p.236,


§261).

Para Hegel, o Estado consiste na noção de unidade gerada do resultado do processo


político e social da maior liberdade dos indivíduos. Trata-se de uma unidade diferente daquela
que estava posta na ideia de unidade da antiguidade. É uma unidade diferenciada, pois
corresponde à realização da razão, das ideias historicamente desenvolvidas, cuja essência é a
liberdade real dos homens. Hegel concebe a sociedade e o Estado moderno capitalista como a
realização da razão na história, como a sobreposição constante e subjetiva à realização
daquilo que é pensado, e que não se confunde com o que é pensando pelos indivíduos. No
entanto, esse processo incide no desenvolvimento objetivo do pensamento que, ao fim e ao
cabo, pressupõe a ideia de Espírito absoluto hegeliano, na realidade sob a forma do Estado
ético. Essa formulação do processo de engendramento e de transição dos Espíritos — do
Subjetivo em direção ao Objetivo, e do Objetivo para o Absoluto —; esse processo compõe a
ideia fundamental do sistema filosófico de Hegel, em que a unidade histórica é o germe do
pensamento hegeliano presente na ruptura epistemológica com Kant.
A noção de unidade é central para o Estado moderno, que passa a ter de conviver com
a necessidade de afirmação da liberdade subjetiva singular e com o interesse universal
expresso no Estado. Hegel, assim, assume a ideia do Estado como fim último da política,
enquanto a esfera ética comum. Há, desse modo, o estabelecimento de uma ideia de
comunidade, em que ocorre a subordinação e a dependência em relação ao Estado. O Estado
passa a ser entendido como a esfera da realização ética e política. Porém, é importante
ressaltar que essa forma de comunidade política nunca se efetiva para Hegel como sendo uma
unidade imediata, mas sim como uma unidade que se realiza por meio de instituições.
Pode-se afirmar que, para Hegel, haveria um progresso da sociedade moderna, pelo
desenvolvimento e manifestação progressiva da essência do Estado, da vida ética, a partir da
sociedade civil. Nele, a realidade de uma vida plena se efetivava a cada homem, começando
pela realização natural da família, passando pelas formas sociais específicas do capitalismo,
no mundo trabalho, e culminando na afirmação do cidadão e da cidadania no Estado, o que se
tornaria um fato universal efetivo na história.
Nesse sentido, há uma diferença significativa entre Hegel e Marx que resulta,
seguramente, da discrepância entre suas visões teóricas acerca do processo histórico que está
diretamente relacionado à consolidação e à expansão do modo de produção capitalista e à
progressiva concentração da política na esfera do Estado. Hegel, como vimos, é otimista em
90

relação a esses processos. Já Marx acredita que o está em marcha é uma teoria política, social
e econômica contraditória, de tal forma que as forças sociais tornaram-se inconciliável no
Estado.
De certa forma, Marx interpreta a sociedade moderna capitalista de forma contrária à
Hegel. Para ele, o homem está dominado pelo mundo que ele mesmo criou, e a sociedade
moderna capitalista passa a ser um obstáculo à realização da essência da vida livre.
Marx busca desmitificar a deia de o Estado hegeliano ser o fim último da liberdade
humana, em que ela se tornaria concreta. Hegel apropriou-se da noção de vontade de
Rousseau e a utilizou para desenvolver sua teoria de que a liberdade se realiza enquanto um
fim último no Estado ético. Ele compartilha do argumento de que a vontade visa a justiça, em
que o interesse comum e o bem de estar de cada uma das partes se fazem na coletividade,
enquanto uma unidade que se efetiva no fim último que é o Estado. Essa é uma ideia de
vontade que é assumida e desenvolvida por Hegel a partir de Rousseau.

O organismo político é assim também um ser moral dotado de vontade; e essa


vontade geral, que tende sempre à preservação e ao bem-estar do conjunto e de todas
as partes, e que é a fonte das leis, consiste na regra do que é justo e injusto, para
todos os membros do Estado, com respeito a eles mesmos e ao próprio Estado.
(ROUSSEAU, 2003 p.7)

Assim, para Hegel é evidente que a liberdade de cada um e a de todos se realiza no


Estado. É dessa noção de vontade que Hegel se apropria e atualiza na sua teoria ética. Logo, a
ideia de unidade de Hegel é uma noção republicana influenciada por Rousseau, que parte da
noção de interesse geral. Portanto, não é liberal, em que a satisfação do interesse geral decorre
da mera satisfação do interesse individual. A unidade do Estado hegeliano, assim como em
Rousseau, se realiza por meio do Estado.
Na “sociedade moderna”, segundo Hegel, há um maior grau de reconhecimento do
interesse particular. A subjetividade necessita ser compreendida e incorporada nas novas
relações sociais e políticas para que a liberdade se efetive no Estado como fim último. Na
teoria ética de Hegel, o homem privado, organizado na sociedade civil burguesa, deverá
sacrificar e subordinar a sua subjetividade e seus interesses em nome do interesse público, nas
tarefas públicas institucionalizadas e representadas pelo Estado ético. Hegel escreve, no §261
da FD, que o Estado representa uma “necessidade externa” que “subordina” e do qual a
sociedade civil burguesa e a família “dependem” internamente. Isto no que se refere à própria
natureza interna da sociedade civil, a interiorização da racionalidade, do direito, que,
91

conforme Hegel, tem sua gênese no próprio Estado moderno. Esse Estado se faz no mundo
enquanto essência da representação de uma sociedade unívoca, uma vez que é a pilastra que
sustenta e que torna possível a recuperação de uma concepção ética que afasta a sociedade
civil burguesa de seus interesses particulares e a ergue à esfera do interesse universal.
Marx, na Crítica de 1843, afirma que a noção hegeliana de imanência cria uma
equivocada ideia de identidade entre o sistema dos interesses particulares da sociedade civil
burguesa e o sistema de interesse universal, o Estado ético.
Marx procura mostrar que a noção de unidade interna dos interesses particulares e
universais resulta na alienação da individualidade e do mundo. Assim, critica duramente as
pretensões do projeto ético de Hegel de postular o Estado como sendo a efetividade plena da
liberdade humana.

Ele se relaciona com seus interesses e leis como “potência superior”. Tais
“interesses” e “leis” apresentam-se como seus “subordinados”. Eles vivem na
“dependência” do Estado. Precisamente porque “subordinação” e “dependência” são
relações externas, que restringem e se contrapõem à essência autônoma, é a relação
da “família” e da “sociedade civil” com o Estado aquela da “necessidade externa”,
de uma necessidade que vai contra a essência interna da coisa. Que “as leis do
direito privado” dependem “do caráter determinado do Estado”, que elas se
modificam segundo ele, é algo que está subsumido na relação da “necessidade
externa”, precisamente porque “sociedade civil e família”, em seu verdadeiro, quer
dizer, autônomo e pleno desenvolvimento, são pressupostas ao Estado como
“esferas” particulares. “Subordinação” e “dependência” são as expressões para uma
identidade “externa”, forçada e aparente, para cuja expressão lógica Hegel utiliza,
corretamente, a “necessidade externa”. Na “subordinação” e na “dependência”,
Hegel continuou a desenvolver o lado da identidade discrepante, o lado da alienação
no interior da unidade. (MARX, 2005, p.28).

Marx pretende demonstrar que a sociedade moderna e o Estado são expressões


contraditórias da realidade. Ele aponta os erros que permitiram que a filosofia hegeliana
fizesse a passagem desse conjunto de contradições para a unidade no Estado. Para Marx, há
uma inversão entre sujeito e objeto na filosofia de Hegel. Ao inverso do que diz Hegel, é a
sociedade civil e não o Estado o polo dominante. Marx defende que a sociedade civil
burguesa é o que produz continuamente o Estado, e não o contrário.
Marx aborda essa questão da unidade dos interesses seguindo a lógica hegeliana sobre
a liberdade. Ele apresenta que

A unidade do fim último geral do Estado e dos interesses particulares dos indivíduos
deve consistir em que seus deveres para com o Estado e seus direitos em relação a
ele sejam idênticos. (Assim, por exemplo, o dever de respeitar a propriedade
coincide com o direito sobre ela. (MARX, 2005, p.28).
92

O problema de Marx parece ser o mesmo de Hegel: quer saber o que pode ser
universal na comunidade dos homens, uma vez que ele quer pensar a sociedade civil burguesa
tal como Hegel. No entanto, a sociedade civil burguesa, para Hegel, é a expressão da
universalidade no Estado, enquanto para Marx não é.

Mas Hegel confunde, aqui, o Estado como totalidade da existência de um povo com
o Estado político. Esse particular não é o “particular no”, mas “fora do Estado”, quer
dizer, fora do Estado político. Ele não apenas não é “o particular, real no Estado”,
como é também a “irrealidade do Estado”. Hegel quer demonstrar que os estamentos
da sociedade civil são os estamentos políticos e, para provar isso, supõe que os
estamentos da sociedade civil sejam a “particularização do Estado político”, isto é,
que a sociedade civil seja a sociedade política. A expressão “o particular no Estado”
só pode significar, aqui, “a particularização do Estado”. Hegel, por uma má
consciência, escolhe a expressão indeterminada. Não só ele mesmo desenvolveu o
contrário, mas ele mesmo o confirma ainda nesse parágrafo, ao qualificar a
sociedade civil como “estamento privado”. Muito prudente é, também, a
determinação de que o particular “liga-se” ao universal. Ligar é coisa que pode ser
feita com as coisas mais heterogêneas. Não se trata aqui, porém, de uma transição
gradual, mas de uma transubstanciação, e é inútil não querer ver este abismo que é
transposto e demonstrado por meio da própria transposição.

O indivíduo, que na sociedade civil burguesa deve perseguir o seu interesse particular,
deve, no Estado, buscar o interesse de todos. Marx diz que essa “transubstanciação” não tem
sentido. Hegel identifica que há uma oposição entre a vida política e a vida social, mas
pretende resolver essa condição por meio de unidade. A unidade substancial que Hegel
diagnostica é, em Marx, o antagonismo central da sociedade moderna. Na Crítica de 1843,
ele apresenta que há uma total incompatibilidade nessa transposição do conteúdo particular e
alienado da vida social para o conteúdo genérico político, por meio do Estado, de modo que
são inconciliáveis as concepções subjetivas desses indivíduos e seus interesses particulares
com uma noção de totalidade; pois o particular, segundo Marx, encontra-se fora do Estado. E
assim, a “ ‘vontade substancial evidente, nítida para si mesma’, se transforma numa vontade
obscura, fragmentada” (MARX, 2005, p.118).
Sendo assim, na abordagem de Hegel, segundo Marx, o problema perderia uma
dimensão objetiva, pois o objeto, a saber, a real natureza do Estado moderno, passa a ser uma
consequência da ideia de como os indivíduos tem seus interesses garantidos. Essa abordagem
nos leva a negligenciar a natureza objetiva das relações sociais e a explicá-las a partir das
vontades. Ao invés disso, Marx propõe uma análise política da realidade no intuito de
identificar os tipos de relações que fundam materialmente o Estado burguês.
Marx pensa o indivíduo como um sujeito histórico, que resulta da atividade social dos
homens, atividade essa pensada, já nesse texto de 1843, como expressão de todo o povo. Com
93

isso, Marx nega o idealismo da filosofia hegeliana. Para Marx, na Crítica de 1843, a falta
dessa perspectiva concreta sobre a realidade humana é causa da idealização da sociedade
moderna por Hegel. É, segundo ele, o idealismo na sua forma objetiva, na construção de uma
filosofia social e política para justificar o Estado moderno burguês.
O que é importante observar é que, ao deslocar o problema da compreensão do Estado
para a compreensão da sociedade civil burguesa, Marx está colocando um conjunto de
questões que não pode ser resolvido a partir de uma ótica puramente teórico-política ou
jurídico-política. Por exemplo, o procedimento de Marx faz surgir perguntas como as
seguintes: a compreensão da sociedade civil burguesa pode abrir a via para a compreensão do
que seja o Estado? Se a sociedade civil burguesa é o reino do particular, do domínio do
mercado, onde cada individualidade se transubstancializa no Estado, como garantir a vontade
como expressão universal?

Vimos que os estamentos formam, em comum com o poder governamental, o termo


médio entre o princípio monárquico e o povo, entre a vontade do Estado, como uma
vontade empírica, e esta mesma vontade do Estado, como muitas vontades
empíricas, entre a singularidade empírica e a universalidade empírica. Hegel devia
determinar a vontade soberana como singularidade empírica, assim como
determinou a vontade da sociedade civil como universalidade empírica; mas ele não
exprime a oposição em toda a sua agudeza. (MARX, 2005, p. 100)

Em Hegel, a sociedade civil burguesa é dependente do Estado, o que significa dizer


que há uma dependência interna, essencial e ontológica; pois os costumes da esfera da família
e os direitos e obrigação da sociedade civil burguesa dependem do Estado e estão todos
subordinados a ele. Essa dependência interna está na teoria de Hegel como uma operação
abstrata inteiramente no campo do idealismo, pois nesse caso a determinação da matéria é
dada pela ideia.

Que a ideia da dependência, particularmente das leis do direito privado, em relação


ao caráter determinado do Estado, e a concepção filosófica de que a parte deve ser
considerada somente em relação com o todo, já o havia visualizado [...]
principalmente Montesquieu etc. (HEGEL, 2010, p. 236, §261).

Hegel, desse modo, autonomiza o Estado frente à sociedade civil burguesa. E


subordina, pois, o Estado autonomizado é a esfera que, ao contrário da família e da sociedade
civil burguesa, é o portador da autoconsciência com a atribuição de conter as tendências
dissolventes da sociedade civil, suprassumido os interesses particulares ao interesse geral, de
elevar tais interesses ao interesse comum. O Estado é o representante do todo, do interesse
94

universal para Hegel. A consequência prática da crítica de Marx será o imperativo de


modificar este Estado ético hegeliano pela transformação da sociedade civil burguesa que ele
expressa.
5 CONCLUSÃO

Através da análise crítica dos textos de Hegel, em especial do §261 da Filosofia do


Direito, pudemos ver como Marx não só compreende, mas também se apropria do sistema
dialético hegeliano e engendra sua ruptura com o idealismo alemão.
A sua crítica à teoria do Estado ético é que Hegel apresenta o Estado como sendo a
consciência estabelecida da razão humana em si que medeia os seres humanos. Marx refuta a
concepção segundo a qual o Estado é um pressuposto da representação dos interesses comuns,
que se engendra nas esferas da eticidade em direção à efetivação da ideia de um fim último
em si. Marx ressalta que o conceito de Estado em Hegel é uma antinomia sem solução, pois
Hegel não consegue resolver, na realidade, como os interesses particulares podem, ao mesmo
tempo, serem autônomos e dependentes frente aos interesses comuns, universais, do Estado.
A crítica de Marx se dirije à autonomia da esfera política e à efetivação da liberdade
enquanto forma abstrata, suprassumida no Estado. É uma crítica que estabelece um horizonte
político que transcende a emancipação ético-política.
Nem ao conceito de imanência consegue resolver o problema de compatibilizar a ideia
de uma instituição superior que subordina e submete a liberdade humana a sua efetivação real.
Hegel recorre à ideia de um fim imanente para por fim às inconciliáveis contradições entre os
interesses particulares. Eles seriam suprassumidos pelo fim último, como se fosse possível
retirar da política os conflitos de interesse.
Marx conclui que o conceito de política, no conceito de Estado de Hegel, está em
segundo plano. O que importa é uma ordem lógica universal que suprassume os conflitos
políticos, justificando-se a partir de sua essência como fim último da efetivação Espírito na
eticidade.

§ 262. A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de
seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude, para ser, a partir da
idealidade delas, Espírito real e infinito para si, divide, por conseguinte, nessas
esferas, a matéria dessa sua realidade, os indivíduos como a multidão, de maneira
que, no singular, essa divisão aparece mediada pelas circunstâncias, pelo arbítrio e
pela escolha própria de sua determinação. Se traduzirmos essa frase em prosa,
teremos: O que serve de mediação para a relação entre o Estado, a família e a
sociedade civil são as “circunstâncias, o arbítrio e a escolha própria da
determinação”. A razão do Estado nada tem a ver, portanto, com a divisão da
matéria do Estado em família e sociedade civil. O Estado provém delas de um modo
inconsciente e arbitrário. Família e sociedade civil aparecem como o escuro fundo
natural donde se acende a luz do Estado. Sob a matéria do Estado estão as funções
do Estado, bem entendido, família e sociedade civil, na medida em que elas formam
partes do Estado, em que participam do Estado como tal. (MARX, 2010a, p.29)
96

Sendo assim, o Estado ético, para Hegel, estaria desprovido de realidade, e as


antinomias presentes nas relações inerentes à família e à sociedade civil estariam solucionadas
apenas por uma abstração formal, retirada da ordem lógica universal arbitrária. Marx mostra
que esse argumento é um modo mistificador de justificar a necessidade do Estado, que
transforma as relações sociais e os conflitos das esferas da eticidade por meio de uma
mediação arbitrária. Ou seja, Marx propõe que se perca a ilusão de que o Estado pode ser
capaz de garantir a liberdade concreta aos seres humanos, tal qual Hegel formula no §261 da
FD.

A relação real é: “que a divisão” da matéria do Estado é, “no singular, mediada pelas
circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação”. Esse fato,
essa relação real é expressa, pela especulação, como manifestação, fenômeno. Essas
circunstâncias, esse arbítrio, essa escolha da determinação, essa mediação real são
tão somente a manifestação de uma mediação que a Ideia real executa nela mesma e
que se passa por detrás das cortinas. A realidade não é expressa como ela mesma,
mas sim como outra realidade. (MARX, 2010a, p.29)

Logo, aos olhos de Marx, a tese de Hegel é uma mistificação; porque, ao diagnosticar
que o Estado, enquanto uma instituição real, resulta das contradições da sociedade civil,
Hegel está admitindo que ele é contraditório em sua essência. O Estado moderno é a forma
real que medeia e representa as contradições entre os interesses presentes na sociedade civil
burguesa. Desse modo, o Estado, para Marx, é, em sua essência, a representação do limite
histórico da liberdade dos seres humanos.

A liberdade subjetiva aparece em Hegel como liberdade formal (é certamente


importante que aquilo que é livre também seja feito livremente, que a liberdade não
reine como instinto natural, inconsciente, da sociedade) precisamente porque ele não
apresentou a liberdade objetiva como realização, como atividade da liberdade
subjetiva. Porque ele deu ao conteúdo presumido ou real da liberdade um portador
místico, o sujeito real da liberdade recebe um significado formal. A separação do em
si e do para si, da substância e do sujeito, é misticismo abstrato. (MARX, 2010a,
p.80)

Pensar o Estado como a representação das contradições históricas que limitam a


liberdade humana apresenta-se com uma atualização da dialética, não só como uma forma de
conhecer o mundo e de pensar as relações sociais. Marx atualiza e desenvolve a dialética
como um movimento real das contradições, ao analisar a forma social e política das
organizações humanas reais. Em Marx, o Estado está posto entre as contradições do modo
vida real da modernidade.
97

Para Marx, o Estado ético hegeliano é uma “antinomia sem solução”, pois é a
existência de duas realidades contraditórias e incompatíveis que compõem a essência do
Estado moderno: a exterioridade do Estado em relação à família e à sociedade civil, e ao
mesmo tempo o fato de ele justificar-se como o fim imanente delas.

Hegel fala aqui, portanto, da dependência interna ou da determinação (Bestimmung)


essencial do direito privado, etc. pelo Estado; mas, ao mesmo tempo, ele subsume
essa dependência na relação da “necessidade externa” e a contrapõe, como o outro
lado, à outra relação, em que família e sociedade civil se comportam em relação ao
Estado como seu “fim imanente”. (MARX, 2010a, p.28)

A ideia de imanência, como alvo da crítica de Marx, decorre do fato de Hegel não
demonstrar a unidade essencial entre a sociedade civil burguesa e os interesses gerais e, tão
pouco, que a essência interna do Estado esteja associada, de modo indissociáveis, aos
interesses particulares, que se transformariam assim num interesse universal.
Marx, no seu manuscrito de 1843, ao mostrar que o Estado hegeliano é uma
antinomia sem solução, por ser uma contradição incontornável e real, recupera a necessidade
de pensar a liberdade humana como uma relação social que ultrapassa a necessidade do
Estado. A sua ruptura com o idealismo hegeliano ganha uma dimensão política: a necessidade
de desenvolver uma teoria filosófica social capaz de pensar a liberdade como imanente e
indissociável das relações sociais, ambientais, políticas, e não mais submetida ou determinada
pela garantia dos interesses particulares da propriedade privada.

o Estado aparece, no ápice, como propriedade privada, enquanto a propriedade


privada deveria aparecer, aqui, como propriedade do Estado. Em vez de fazer da
propriedade privada uma qualidade do cidadão do Estado, Hegel faz da qualidade de
cidadão do Estado, da existência do Estado e da disposição do Estado uma qualidade
da propriedade privada. (MARX, 2010a, p.127)

Como se pode ver, a crítica marxiana de 1843 estabelece uma importante formulação
que mais tarde será desenvolvida por ele, através dos conceitos de luta de classes e de
materialismo histórico: o estado como comitê da classe dominante. Marx, ao apresentar O
Estado ético de Hegel como sendo uma antinomia sem solução, rompe com o idealismo
hegeliano. Ao diagnosticar que a essência real do Estado é uma contradição não formal, mas
real e sem solução, Marx não faz apenas uma crítica idealista ao idealismo. Ele apresenta as
condições necessárias e suficientes para uma atualização materialista da dialética.
Portanto, é nesse contexto que começa a aparecer a tese segundo a qual não haverá
como alcançar a desalienação e a liberdade humana enquanto o Estado não for extinto. Esse
98

debate tem grande relevância para o entendimento da política e do papel do Estado e das
liberdades individuais na contemporaneidade.
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