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CAMPUS CHAPECÓ
CHAPECÓ
2023
ENILSON SILVA GONÇALVES
CHAPECÓ
2023
ENILSON SILVA GONÇALVES
.
Esta dissertação foi defendida e aprovada pela banca em: xx/xx/2023
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Prof. Dr. Ediovani Antônio Gaboardi – UFFS
Orientador
__________________________________
Prof. Dr. Danilo Enrico Martuscelli – UFO
Avaliador
__________________________________
Prof. Dr. Clovis Brondani – UFFS
Avaliador
Dedico este trabalho a Fernanda Xavier Theis minha esposa
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu professor orientador Prof. Dr. Ediovani Antônio Gaboardi pelas
horas dedicadas na elaboração deste trabalho, pela paciência nos diversos momentos
em que deixei de acreditar em mim.
The objective of this work is to present the critique of Hegelian notion of the State developed
by Marx in the manuscript Critique of Hegel's Philosophy of Right. Marx specifically
critiques the concept of the State presented in §261 of Hegel's Philosophy of Right. Marx
accuses the Hegelian State of being an unsolvable antinomy. This work proposes that his
argumentation has roots in Hegelian dialectics itself. It engages in a dialogue between the
views of Althusser and Lukács, showing that, despite their controversies, it is possible to
identify a young Marx already appropriating Hegel's theoretical framework but moving away
from his idealism. In Hegel, the State aims to overcome the contradictions between private
interests present in bourgeois civil society in order to achieve common interests. For the
author, these contradictions are phenomenal, meaning they arise from a static consideration of
the object. They exist in the form, not in the essence, of what the State is. For Hegel, in the
procedural essence of the State, contradictions are superseded, as there would be a unity, a
disposition of bourgeois civil society to put the State as a mediator of conflicts. In this sense,
the State would be immanent to civil society. Marx, on the other hand, argues that Hegel is
unable to demonstrate this fundamental unity. For him, there is no such tendency to reconcile
the interests of civil society and subordinate it to universal interest. Therefore, for Marx,
Hegel presents a good diagnosis of the modern State by defining it as a result of the conflict
of interests in civil society, but he errs in proposing that it is capable of resolving these
conflicts. For him, the State remains an "unsolvable antinomy," and the supersession that
Hegel claims the State achieves is nothing more than a mystification arising from his
idealism, which substitutes the analysis of the real for the use of his categorical logic. In
particular, the work intends to show that Marx's critical conclusion, in which he breaks with
Hegel's idealism, is based on Hegel's own rupture with modern thought. Thus, in his Critique
of Hegel's Philosophy of Right, Marx "updates" dialectics, breaking with Hegel's political and
philosophical idealism and proposing a philosophy interested in accounting for reality, in
opposition to the mystified theoretical development proposed by Hegel.
FD Filosofia do Direito
FE Fenomenologia do Espírito
CL Ciência da Lógica
ECF Enciclopédia das Ciências Filosóficas
CRP Crítica da Razão Pura
SCB Sociedade Civil Burguesa
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
5 CONCLUSÃO.................................................................................................................. 95
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 99
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo central abordar a crítica à noção hegeliana de
Estado desenvolvida por Marx no manuscrito Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
Partiremos da análise da sua crítica ao conceito de Estado de Hegel, presente no §261 da
Filosofia do Direito, segundo a qual o conceito de Estado ético é uma antinomia sem
solução. Tomaremos essa afirmação para examinar como Marx desenvolveu sua objeção à
teoria de Estado de Hegel. Situaremos o contexto teórico em que Marx está inserido nos
debates metafísicos, epistemológicos e éticos com os jovens hegelianos do século XIX.
Também desenvolveremos uma análise que mostra como o sistema dialético hegeliano foi
apropriado por ele quando escreveu a sua crítica à teoria de Estado ético em 1843.
A crítica ao §261 é uma genuína formulação de Marx, pois ela possui fundamentos
dialéticos que sustentam a sua objeção ao Estado ético. Examinaremos que a sua
argumentação tem raízes na própria dialética hegeliana. Desta forma, se faz necessário
compreender a dialética não apenas enquanto o método da investigação filosófica, mas como
o modo através do qual Marx, ao se apropriar dela, desenvolve sua “atualização”. Verificamos
que esse modo crítico de apropriação do sistema de Hegel, por Marx, é um elemento da
essência da construção da sua crítica teórica ao Estado ético.
Marx, já no seu trabalho de doutorado, Distinção entre a filosofia da natureza de
Demócrito e a de Epicuro, apresenta elementos daquilo que estamos chamando de
“atualização” ou de apropriação crítica da dialética de Hegel. Esse texto pode ser trazido à
tona, num primeiro momento, uma vez que ele nos permite ilustrar a trajetória do
desenvolvimento intelectual e teórico de Marx, além de nos ajudar a entender o ambiente em
que Marx enfrenta os debates filosóficos. É possível identificar, nesse texto, que há um
processo em curso de assimilação e de afastamento, engendrando sua ruptura com a filosofia
idealista de Hegel na formação de uma identidade filosófica própria. Sendo assim, a sua
crítica ao Estado ético não só estaria dentro desse contexto dos debates filosóficos da época,
mas marcaria o começo da sua afirmação como um filósofo dialético que já refutava o
idealismo de Hegel na sua Crítica de 1843.
A tese de doutorado de Marx marca a distinção de Demócrito relativamente a Epicuro.
Demócrito, para Marx, é um materialista mecânico e determinista que não apresentou nenhum
espaço para a autoconsciência ou para a liberdade, uma vez que ele rejeitava o papel da
contingência como uma condição material. Ao abordar esta questão, Marx dá um passo para
além da Filosofia da História de Hegel, a qual estabelecia um mesmo status para os pré-
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A Filosofia do Direito de Hegel foi publicada em primeira edição em 1821. Essa obra
tem uma importância inestimável para a filosofia política e representa o principal estudo de
Hegel acerca da sociedade burguesa e do entendimento do que é o Estado moderno. Levar-se-
á em conta aqui, também, alguns trechos da Fenomenologia do Espírito. Estes textos de
Hegel nos ajudarão a expandir a análise para além dos parágrafos da crítica de Marx. O
resgate pontual de trechos da FE de Hegel contribuirá para o que aspiramos sustentar e
justificar: que Marx apropriou-se do método dialético para desenvolver sua crítica ao Estado
ético enquanto uma ruptura ao idealismo de Hegel.
A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel é uma das obras de juventude de Marx.
Sua interpretação teórica até hoje é bastante controversa. Há, contudo, um interesse muito
particular na interpretação dessas obras do jovem Marx, pois os estudos estão debruçados em
compreender o que poderíamos chamar de escritos diretamente filosóficos de Marx.
A proposta do trabalho tem como guia uma leitura filosófica de Marx, que visa
compreender a relação entre Marx e Hegel em seus aspectos ontológicos, epistemológicos e
éticos, mostrando que há similaridades nas duas construções e mesmo no desenvolvimento de
suas críticas: Hegel em sua crítica ao Estado contratualista; e Marx em sua crítica ao Estado
ético hegeliano. Isso mostra a importância do retorno aos escritos de juventude de Marx, em
especial, à Crítica de 1843. Logo, o objetivo desta pesquisa é compreender as interconexões
entre a dialética hegeliana e as categorias filosóficas em jogo no escrito de 1843 de Marx,
para verificar se a dialética hegeliana está em essência nas bases da crítica de Marx à filosofia
política de Hegel, ou não.
A análise da apropriação da dialética de Hegel, por Marx, pavimenta o caminho
teórico desta pesquisa, a saber, o da desconstrução da concepção do Estado ético. Veremos
que esse caminho é constituído com as similaridades metodológicas entre os filósofos, tanto
na base filosófica, quanto nos instrumentos metodológicos e teóricos. Encontraremos aspectos
metodológicos que aproximam a refutação de Hegel à teoria do Estado contratualista com o
modo como Marx fundamenta a crítica segundo a qual o Estado ético hegeliano é uma
antinomia sem solução.
Analisaremos como a apropriação de categorias da dialética hegeliana aparece de
forma clara no desenvolvimento dos argumentos que fundamentam a crítica à teoria de Estado
de Hegel, no manuscrito de 1843. Em especial, veremos como Marx se apropria da noção de
Aufhebung, suprassunção, para afirmar que o Estado ético não é o resultado de uma
suprassunção, mas sim é uma antinomia sem solução, presente na relação entre a família e a
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sociedade civil burguesa com o Estado. Este é um aspecto central da crítica de Marx ao
conceito de Estado ético.
A metacategoria, Aufhebung, suprassunção, está na essência da crítica de Marx, uma
vez que ela é o operador lógico da dialética hegeliana que define o conceito de Estado ético
como a síntese da superação das contradições presentes nas relações entre as esferas da
eticidade, tal como Hegel apresenta na Filosofia do Direito. É por meio da suprassunção,
Aufhebung, que Hegel fundamenta, sustenta e engendra sua teoria do Estado ético. Portanto, o
que propomos é um exame mais amiúde sobre o que consiste a oposição de Marx a Hegel,
quando Marx afirma que a relação entre as esferas da eticidade hegeliana, o Estado e a
sociedade civil burguesa, é uma contradição. Para Marx, o que há é apenas uma pretensa
suprassunção dos antagonismos reais da sociedade civil burguesa na esfera política do Estado
moderno. Para ela, as contradições não são realmente superadas, como pensava Hegel.
Marx considera que essa síntese das contradições, a suprassunção, é apenas uma
separação lógica do conceito de Estado que, segundo ele, se efetiva apenas como uma ideia
formal e meramente “aparente”, uma vez que o Estado permaneceria dependente das relações
sociais e sujeito aos distintos interesses vigentes na vida social burguesa, seja na esfera da
família, seja na esfera da sociedade civil burguesa. Verifica-se que, já no manuscrito de 1843,
Marx considerava o Estado como o reflexo dos antagonismos da vida social.
A interpretação proposta na pesquisa visa mostrar que Marx, ao se apropriar de modo
crítico do método dialético de Hegel, já estaria fundamentando a sua ruptura com idealismo
do sistema hegeliano. Marx, dessa maneira, criou as condições para uma continuidade do
desenvolvimento do pensar filosófico por meio da dialética, que está expressa na refutação do
conteúdo do conceito de Estado ético.
Na tarefa investigativa de captar e entender a essência dos conceitos e das categorias
da dialética de Hegel, encontraremos a essência dos argumentos da crítica ao conceito de
Estado ético, quando analisarmos categorias como abstração, negação, alienação e a distinção
entre contradição e Aufhebung. Por meio do exame de como Marx se apropria dessas
categorias e conceitos é que aspiramos desenvolver o nosso plano de argumentação da
pesquisa a fim de demonstrar como Marx conclui que o conceito de Estado ético é uma
antinomia sem solução.
A análise dessas categorias da dialética hegeliana nos ajudará a entender não só o que
compõe a ruptura epistemológica hegeliana em relação ao pensamento anterior, mas também
como essa ruptura de Hegel influenciou o pensamento crítico do jovem Marx. Propomos uma
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interpretação segundo a qual Marx foi herdeiro do sistema de pensamento de Hegel, de tal
forma que ele se apropria das categorias dialéticas para desenvolvê-las, atualizando-as. Sendo
assim, o estudo das categorias mencionadas colabora para compreendermos a ruptura que
ocorreu em Hegel e influenciou no desenvolvimento teórico de Marx.
O método e o conteúdo da ruptura de Hegel em relação à filosofia de sua época é um
discurso filosófico inovador, que busca apresentar as coisas não só em sua aparência, mas em
sua essência, em si e para si, e como elas estão dispostas no mundo. Essa nova epistemologia
repercute com muita força no pensamento ético e político até hoje. Portanto, recuperar a
essência da ideia de ruptura epistemológica hegeliana nos permitirá examinar como as
categorias da dialética não só influenciaram o espectro filosófico das teorias políticas na
modernidade e até os tempos atuais, mas também constituíram, de modo implícito e explícito,
as formulações de Marx na Crítica de 1843. Assim, verificaremos em que medida a dialética
de Hegel, constituída em sua ruptura com o pensamento moderno, engendrará os argumentos
que fundamentam a tese marxiana segundo a qual o Estado ético é uma antinomia sem
solução.
As categorias da dialética instrumentalizam o modo pelo qual Marx compreende a
ideia hegeliana de que a sociedade civil burguesa é abstrata. A sociedade civil burguesa é
abstrata, pois seus momentos são postos como independentes. A categoria da abstração
explica a ideia de sociedade civil, enquanto a categoria da negação se faz pela
interdependência das relações sociais, no reconhecimento das consciências nas esferas da
eticidade. Hegel trata o indivíduo como eu singular, como um eu que participa de um grupo, o
qual é parte de uma particularidade que pertence à universalidade. Esse indivíduo submete-se
à unidade que resulta da suprassunção, representada pelo Estado.
Em Hegel, a unidade no Estado é produto da distinção da tridimensionalidade das
esferas da eticidade. A subordinação e dependência diante do Estado, das esferas da família e
da sociedade civil burguesa, é o que garante a liberdade concreta que se efetiva como Estado
ético, pois é resultado da superação das categorias da abstração e da negação. No entanto,
para Marx, o Estado é a contradição e não a suprassunção (Aufhebung), enquanto síntese
dessas categorias (abstração e negação).
Essa objeção de Marx está no centro de sua crítica ao Estado ético de Hegel, em que o
Estado é concebido enquanto esfera decisiva e determinante da ação humana. Para Hegel, não
é o Estado, efetivamente, um “produto da sociedade civil”, ou fruto da ação social, mas o
produto da suprassunção dessas esferas, em acordo com as determinações de suas categorias
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também que o método dialético de conhecer o mundo está na construção argumentativa da sua
objeção à teoria de Estado ético de Hegel. Especificamente, a consequência filosófica dessa
apropriação das categorias de Hegel está expressa na forma e no conteúdo da argumentação
de Marx quando ele afirma que o Estado é uma “antinomia sem solução”.
Por conseguinte, Marx estaria atualizando o sistema de pensamento de Hegel na sua
raiz filosófica por meio do rompimento com a ideia de racionalidade idealista de Hegel. Por
mais paradoxal que possa parecer, a dialética fornece, de modo indissociável, o conteúdo e o
método de sua crítica ao Estado ético.
Ao apropriar-se do sistema dialético hegeliano é como se ele, Marx, reorganizasse esse
sistema filosófico com o objetivo, ainda que implícito, de mantê-lo válido. Logo, a leitura
proposta tenta mostrar que há uma ruptura de Marx com o idealismo de Hegel sem ser um
ataque propriamente à dialética.
Essa interpretação baseia-se na concepção segundo a qual há uma complementaridade
teórica entre a dialética de Hegel e a crítica de Marx. Portanto, a tese é que há uma ruptura e
uma continuidade da dialética, por parte de Marx, ao desenvolver sua crítica. Essa ruptura
produz a cada momento de sua história novas condições epistemológicas, normas, verdades e
princípios de refutação a partir daquilo que é apreendido. Assim, pretendemos mostrar que há,
na crítica de Marx, um processo, ou melhor, um novo desenvolvimento teórico e prático.
Vamos admitir que a crítica ao §261 da FD é um primeiro instante da ruptura de Marx,
quando ele afirma que o conceito de Estado ético é uma antinomia sem solução. E a ruptura
de Marx com o idealismo teria como gênese a ruptura epistemológica de Hegel. Nesse
sentido, o sistema hegeliano seria na essência a condição necessária para Marx chegar a sua
refutação ao idealismo e à formulação do materialismo dialético posteriormente.
Assim, Marx, na argumentação crítica do §261, estaria utilizando-se desse modo
inovador de conhecer o mundo, a saber, a própria dialética de Hegel apropriada por ele. Ela
estaria sendo expressa aí enquanto síntese “atualizada” na forma de crítica à ideia política do
Estado ético hegeliano.
Desse modo, é válido supor que Marx, ao apropriar-se da dialética, a compreende
como algo em transformação. Ou seja, é possível interpretar que, para Marx, a ruptura
epistemológica hegeliana estaria ainda incompleta, pois, por exemplo, os conceitos de
alienação e de contradição não estariam completamente efetivados na ideia de que Estado
ético hegeliano é o resultado da suprassunção.
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A mistificação que a dialética atravessa nas mãos de Hegel não proíbe totalmente
que ele tenha sido o inicial a demonstrar, de modo vasto e consciente, as suas
maneiras globais de movimento. Nele, ela está voltada para baixo. É preciso desvirá-
la, a fim de encontrar o cerne racional no interior do invólucro místico. (MARX,
2013, p.91)
Marx elogia e reconhece Hegel como sendo o primeiro a apresentar a dialética como
uma nova forma de conhecer o mundo. No entanto, nessa mesma passagem ele expõe a sua
crítica direta ao sistema de Hegel, o que podemos denominar como a síntese da sua ruptura
com a dialética idealista: a denúncia de que ela se encontrava invertida. Embora essa seja uma
elaboração posterior ao manuscrito de 1843, essa afirmação nos coloca a verdadeira dimensão
da noção de ruptura em Marx. Se inferirmos qualquer tipo de simplificação na diferença entre
o jovem Marx e Marx maduro, corremos um risco muito comum, o de produzir distorções na
interpretação do pensamento teórico de Marx, as quais têm consequências de grandes
proporções para a vida política. Portanto, o que pretendemos, ao recuperar essa polêmica, é
examinar a influência teórica de Hegel nas formulações de Marx, concebendo o
desenvolvimento de seu pensamento de forma não linear. Objetivo de trazer esse olhar para a
pesquisa é o de saber como Marx, ao assimilar a dialética hegeliana, como observamos na
passagem d’O Capital, construiu, por meio da apropriação do sistema de pensamento de
Hegel, uma nova e distinta concepção filosófica da dialética. Mas, ao mesmo tempo, mostrar
que esse modo de pensamento dialético se fez presente desde os seus primeiros escritos, como
examinaremos mais adiante, na sua objeção à ideia de racionalidade de Hegel.
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história. Conferiu-lhe uma fundamentação que tentaremos apresentar a partir do que está
expresso no texto da Crítica de 1843.
A alienação é um aspecto central desse texto e de toda a sua teoria, pois não só não
evanesceu, como se desenvolveu, como demonstram as mais diversas teorias marxistas na
contemporaneidade que tentam explicar o estranhamento do homem diante do mundo.
Veremos que Marx, na sua formação intelectual, apresenta formulações filosóficas e
teóricas que são resultados do modo com que ele se apropriou da dialética hegeliana. Para
tanto, examinaremos em especial outra categoria da dialética, a negação. Nesse caso, ela nos
ajudará a mostrar que no núcleo da Crítica de 1843 já se fazia presente, ainda que de modo
subjacente, a ruptura de Marx com o idealismo de Hegel.
Embora haja muitas polêmicas acerca da existência ou não da diferença entre um
jovem Marx idealista versus um Marx maduro materialista, a proposta da pesquisa é tratar
esse tema de um modo mais amplo. O trabalho visa reunir elementos teóricos que consigam
responder o problema da interpretação do idealismo ou não do Jovem Marx. Propomos
interpretar essa polêmica através de uma perspectiva holística da formação intelectual de
Marx, apoiando-se no modo como ele aborda criticamente o pensamento de seu mestre Hegel.
Pretendemos responder à questão: o jovem Marx está num processo de afastamento da
influência idealista da filosofia hegeliana, ou não? Este trabalho cogita responder a esse
questionamento, por meio de um diálogo entre posições distintas de dois pensadores:
Althusser e Lukács.
Veremos que Lukács compreende esse período da produção teórica de Marx como um
processo de engendramento do materialismo dialético, como uma disposição crítica da teoria
de Marx. Na passagem a seguir, Lukács nos ajuda a interpretar o que constituí, o que é e como
se engendrou a filosofia de Marx, a partir de seu afastamento em relação ao pensamento de
Hegel e de Feuerbach.
Esse é um dos pontos que merece atenção e que será analisado nos capítulos seguintes,
ainda que Lukács não aborde a problemática dos elementos idealistas que constituem a
Crítica de 1843 e que resultam no distanciamento qualitativo relativamente ao marxismo em
sua totalidade teórica.
Outro aspecto que trabalharemos e que ajuda a encontrar as interconexões entre os
elementos metodológicos e filosóficos da relação entre Marx e Hegel, subjacentes à refutação
do Estado ético hegeliano, será o modo como Hegel elabora a refutação ao contratualismo no
§258 da sua obra, Filosofia do Direito. Essa análise nos ajudará a encontrar, no método
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A ruptura epistemológica que Hegel propõe não só é uma complexa e inovadora forma
de pensar os conceitos filosóficos com novas categorias, sobre o modo de conhecer o mundo,
mas uma nova maneira de pensar a liberdade. Logo, o desenvolvimento, por parte de Hegel,
de uma nova forma de conhecer o mundo, trouxe consigo uma nova teoria ética que
diagnostica os desafios das novas manifestações da subjetividade humana, trazidas pelas
novas formas de organização e pelas novas relações da vida ética e política da modernidade.
A ruptura epistemológica de Hegel marca um novo modo de conhecer o mundo e de
pensar a metafísica. A Fenomenologia do Espírito é a obra que nos fornece uma rica
reflexão teórica, que mostra como se engendrou esse rompimento epistemológico de Hegel
com as ideias de autonomia, subjetividade e liberdade da teoria kantiana. O aspecto central
que recuperaremos dessa obra Hegel diz respeito ao modo como que ele desenvolveu o
sistema dialético e elaborou a ideia segundo a qual as consciências se desenvolvem em si e
para si, configurando assim uma nova teoria do conhecimento.
A Fenomenologia do Espírito é uma obra que apresenta categorias centrais na
compreensão do porquê Hegel está rompendo com o pensamento filosófico moderno. Mas,
antes de entrarmos nas análises filosóficas propriamente ditas dessa obra, cabe conduzir uma
breve contextualização.
A FE fora concluída quando da vitória de Napoleão sobre os exércitos alemães. E há
um relato admirável desse fato histórico descrito por Hegel na carta a Niethammer, de 13 de
outubro de 1806, sobre como que ele, Hegel, está escrevendo a sua obra em meio aos sons das
batalhas. Isso faz lembrar que a compreensão da Fenomenologia do Espírito envolve
compreender o resultado de transformações significativas no modo de vida nas sociedades
capitalistas, que então se afirmavam, com repercussões importantes nas relações sociais e
políticas da época. A FE pressupõe esse substrato histórico, necessário para entender a
ruptura e a crítica de Hegel ao pensamento metafísico moderno, e significa justamente uma
tentativa de conhecer o mundo que se estabelecia. Logo, o projeto filosófico de Hegel é o de
tornar possível conhecer as coisas que se efetivam e se movimentam, numa sociedade em
transformação no começo do século XIX, agitada pelas invasões napoleônicas e pela
afirmação e expansão do modo de produção capitalista. Hegel está vivendo num mundo que
está num processo histórico de profundas mudanças em diversas áreas do conhecimento, cujo
legado filosófico, econômico e político, aliás, se faz presente até hoje.
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Hegel absorve essas mudanças e, nos seus escritos de Iena, propõe uma nova teoria do
conhecimento. Ele apropria-se da tradição crítica kantiana para engendrar uma nova teoria do
conhecer a coisa em si mesma, num movimento em que essas consciências se reconhecem no
outro, em contraposição crítica à coisa em si de Kant, que era incognoscível. Sendo assim, a
ideia hegeliana de uma nova teoria do conhecimento é uma mudança radical da noção de
subjetividade, em contraposição à lógica analítica do conhecimento, aristotélica e kantiana,
desenvolvida pela filosofia ocidental até aquele momento.
Diante do contexto histórico de transformações políticas e sociais e da afirmação de
um novo modo de vida, Hegel apresenta uma dinâmica autêntica de pensar o conhecimento
sob a ótica do desenvolvimento da consciência para compreender o mundo e os desafios
postos pela sociedade capitalista moderna aos indivíduos.
Outro aspecto relevante é que Fenomenologia do Espírito é uma obra que impacta
não só pelo seu conteúdo inovador, instigante e autêntico, mas também pelo fato de Hegel
levar até as últimas consequências o seu método, inclusive no processo de elaboração, no
modo como que a escreve. A escrita da FE já se faz enquanto um dos elementos
metodológicos implicados no modo como são pensadas as categorias da dialética. Logo, a
forma de organizar os argumentos por meio da escrita na FE compõe, de forma indissociável,
a ruptura epistemológica, estabelecendo um método inovador de pensar a filosofia na
modernidade.
No entanto, o que nos interessará resgatar na Fenomenologia do Espírito é que Hegel
vai além da investigação das experiências da formação da consciência. Ele irá transcender,
começando pela forma mais primitiva de consciência, a certeza sensível, e vai chegar à
racionalidade dialético-especulativa. Este será o caminho percorrido pela consciência que se
transforma em diversas figuras. Ele é um método, que se apresenta como dialético e imanente,
compreendendo o todo, universal e absoluto. Hegel apresenta esse novo método como forma
de olhar a epistemologia, ou seja, as categorias que dão racionalidade ao conhecimento
enquanto formação do saber em seu movimento de compreensão do mundo.
Na recuperação da essência da ruptura epistemológica hegeliana com a filosofia
kantiana, temos alguns suportes teóricos significativos para entender e interpretar melhor a
influência de Hegel em Marx. A ruptura de Hegel com Kant está na base do pensamento
hegeliano e no modo pelo qual posteriormente Marx irá desenvolver a sua teoria. A ruptura
epistemológica hegeliana, apresentada na FE, tem influência na filosofia política de Hegel e
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também impacta no modo como Marx se apropria criticamente dela, assim como reverbera no
restante de sua produção teórica.
Paradoxalmente, Hegel dá prosseguimento à tradição da filosofia crítica do idealismo
alemão ao desenvolver, na Fenomenologia do Espírito, uma ruptura epistemológica com a
filosofia moderna. Ele apresenta um novo projeto teórico para a filosofia, a saber, a ideia de
desenvolvimento do espírito.
Estamos diante de um paradoxo, pois por um lado ele segue o desenvolvimento do
idealismo, como mais uma de suas várias “escolas filosóficas”. Mas, por outro lado, ele se
diferencia delas estabelecendo uma nova forma de compreender a subjetividade e de conhecer
as coisas em sua forma e conteúdo.
Nesse contexto, a noção de identidade dialética se sobressai, porque a verdade, para
Hegel, surge após um processo e não de modo a priori. O pensamento de Hegel é processual,
é o método que se desenvolve na construção do conceito. Assim, podemos dizer que dialética
eleva-se ao estatuto de método no contexto da teoria de conhecimento. A revelação da
verdade, no pensamento hegeliano, se efetiva enquanto desenvolvimento das consciências nas
passagens dos Espíritos subjetivo e objetivo em direção ao Espírito absoluto.
A visão de Hegel sobre o conhecimento tem implicações em sua compreensão política,
que equivale ao desenvolvimento da consciência em direção à liberdade. Esse
desenvolvimento começa na filosofia do Espírito subjetivo, no modo de conhecer o mundo e
de pensar a essência humana.
A ideia de essência humana de Hegel pode ser entendida como a preeminência da
sociedade como um complexo de determinações do ser no mundo. Hegel apresenta uma nova
forma de compreender e de desenvolver as consciências, sob a perspectiva ética desse
indivíduo inserido na modernidade. Um indivíduo que está diante de novas formas sociais e
políticas, adquiridas em decorrência desses novos modos de comportamento. Há uma inédita
carga subjetiva em jogo ao entender a vida e as suas relações nas esferas éticas do mundo
capitalista, então em seu início. Logo, será por meio da dialética que Hegel desvenda esse
novo momento de pensar a individualidade. Uma subjetividade que altera a forma de
conhecer o mundo, por conseguinte, transforma a essência humana que, segundo o filósofo, se
desenvolve enquanto processo, na história.
A ruptura epistemológica de Hegel é um novo modo de pensar e conhecer as coisas.
Esse modo de conhecer altera a compreensão teórica sobre a subjetividade humana, que se
tinha pela filosofia moderna até então. Com Hegel, a subjetividade passa a ser compreendida
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pensar a Razão e o Entendimento trará consequências para a sua teoria ética e para a definição
de liberdade.
compreensão das antinomias da razão desenvolvidas por Kant na Crítica da razão pura, que
Hegel desenvolve sua visão sobre o conhecimento.
Em Kant, os limites do conhecimento se apresentam como a necessidade de um modo
de conhecer transcendental, de uma filosofia crítica. Hegel tem clareza de que, mesmo que
conservasse a essência crítica desse pensamento transcendental kantiano, não poderia limitar-
se ao dualismo sujeito/objeto e à segregação entre fenômeno e coisa em si. Hegel reconhece
em Kant que, mesmo que haja uma incompletude em criticar a razão com o seu idealismo
transcendental, sua teoria do conhecimento havia dado passos largos para a compreensão do
mundo. Hegel sabe que os debates filosóficos entre as correntes empiristas e racionalistas
eram intensos e que a síntese kantiana representava um avanço para a compreensão filosófica
do conhecimento. Assim, para ela era necessário ir além de Kant, justamente reconhecendo os
avanços para a compreensão do conhecimento que ele havia ensejado.
Portanto, Hegel estaria atualizando a construção da ideia da dedução transcendental
dos conceitos do entendimento ao recuperar e desenvolver a ideia de movimento das
consciências não apenas como uma certeza do sujeito em si, mas como consciência para si
que se reconhece no mundo. Para Hegel, o pensamento não experimenta o mundo apenas
como objeto/fenômeno que provém de algo externo, mas mormente enquanto constituinte do
seu reconhecimento como autoconsciência. A extensão disso se mostra na ruptura
epistemológica. A ontologia hegeliana marca um novo modo de pensar o real, que é imanente
a ele e que não está mais como observador exterior. Essa noção de imanência está presente no
§261 da FD para justificar o conceito de Estado ético.
Pois, o real em Hegel compreende a ideia de processo, como o desenvolvimento do
Espírito na história. As figuras da consciência formam em cada um dos instantes, nessa
realidade objetiva, a saber, na história, um momento do Espírito. O ser move-se na passagem
do Espírito como algo indissociável a ele. Ele se faz, conhece o mundo e se reconhece, de
modo uno e não como algo distinto.
A compreensão dessa ruptura de Hegel é central para compreendermos como Marx a
absorve e a desenvolve dialeticamente em sua crítica. Pois, assim como pensa Hegel, Marx
resgata as experiências da consciência para construir sua ética e sua política, na tentativa de
compreender o mundo.
Hegel formula um pensamento que pensa a si mesmo, mediado por toda realidade
objetiva possível. Em Hegel, o cogito, o Eu penso, tem em sua essência, seu conteúdo e sua
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forma, o próprio ser que pensa. Logo, o pensar não é meio para pensar alguma coisa, mas é o
ser que se pensa a si próprio. O conteúdo do pensamento é o processo da ação do Eu.
Mas no que consiste essa compreensão segundo a qual as consciências conhecem o
mundo ao se reconhecerem enquanto consciência de si na realidade objetiva, na história? Uma
das respostas é que está subjacente, nesse movimento de reconhecimento das consciências, a
ideia de imanência em Hegel. Formando uma unidade, a síntese da diversidade empírica do
mundo nada mais é do que o conteúdo desse reconhecer-se das consciências de forma
imanente. O Eu penso, em Hegel, é desenvolvido até determinar-se enquanto movimento
imanente do próprio real.
A racionalidade em Hegel apresenta-se imanente às coisas, de modo que são
apresentadas no conceito. Há uma indissociável relação entre pensamento e ser: tudo aquilo
que pode ser pensado é ser, e tudo que “é” pode ser pensado. A racionalidade e a ideia de
imanência, em Hegel, consistem em mostrar que a realidade é pensável e que o pensamento
“é” enquanto pensando a realidade.
O real, para Hegel não se reduz ao existente imediato. “Wirklichkeit” é a efetividade, a
realidade em movimento que não está limitada ao que está dado. A racionalidade, para Hegel,
se apresenta na ação realizada, na que está se realizando e na que poderá ser realizada. A
realidade é o movimento da ação humana. Logo, decorre das relações objetivas do mundo
sublunar, decorrentes das condições subjetivas dos indivíduos nas relações entre si. Essas
condições que formam a realidade provêm do processo histórico da humanidade.
Nesse ponto, Hegel se distingue frontalmente de Kant. Este delimitou as categorias
que compõe a subjetividade colocando-as de um lado, enquanto os elementos pertencentes ao
objeto se apresentam no outro lado. Para Hegel, na autoconsciência, na unidade dialética entre
o ser e o seu pensamento, não há mais uma separação entre subjetividade e objeto. Assim, a
Razão encontra sua raiz ontológica na identidade entre sujeito e objeto.
No entanto, esse desenvolvimento do movimento das consciências que se reconhecem
conhecendo o mundo pode ser mais bem explicado pela passagem do capítulo V da FE, em
que Hegel mostra o movimento da consciência em direção à autoconsciência, ao
reconhecimento.
A consciência-de-si agora captou o conceito de si, que antes era só o nosso a seu
respeito - o conceito de ser, na certeza de si mesma, toda a realidade. Daqui em
diante tem por fim e essência, a interpenetração movente do universal - dons e
capacidades - e da individualidade. Os momentos singulares de sua implementação e
interpenetração - antes da unidade na qual confluíram - são os fins considerados até
aqui. Eles desvaneceram, como abstrações e quimeras que pertencem às primeiras
36
figuras fátuas da consciência-de-si espiritual, e que só têm sua verdade no ser que
pretendem o coração, a presunção e os discursos; e não, na razão. Agora a razão,
certa de sua realidade em si e para si, já não busca produzir-se como fim, em
oposição à efetividade imediatamente essente, mas tem por objeto de sua
consciência a categoria como tal. (HEGEL, 2002, p.275, §394).
A afirmação desse ponto de vista é, com efeito, que não são o verdadeiro nem a
ideia como um pensamento meramente subjetivo, nem simplesmente um ser para si.
O ser só para si, um ser que não é da ideia, é o ser sensível, finito, do mundo. Com
isso afirma-se que a ideia só é verdadeira por mediação do ser; e, inversamente, que
o ser só o é por mediação da ideia. A proposição do saber imediato não quer, com
razão, a imediatez vazia, indeterminada: o ser abstrato ou pura unidade para si; mas
sim a unidade da ideia com o ser. Porém, é carência-de-pensamento não ver que a
unidade das determinações diferentes não é a simples unidade pura e mediata, isto é,
totalmente indeterminada e vazia; mas que está justamente posto nela, que é uma das
determinações só tem verdade mediatizada pela outra; ou, caso se prefira, que cada
uma só é mediatizada com a verdade por meio da outra. A imediatez está contida na
determinação da mediação que é, é por isso mostrado como um fato, contra o qual o
entendimento, conforme o princípio próprio do saber imediato, nada pode ter a
38
Nessa sua abstração, esse si mesmo último da vontade do Estado é simples e, por
isso, é singularidade imediata; com isso, em seu conceito mesmo reside a
determinação da naturalidade; por isso o monarca é essencialmente enquanto esse
indivíduo, abstraído de todo outro conteúdo, e esse indivíduo, de modo imediato,
natural, pelo nascimento natural, é determinado à dignidade de monarca. (HEGEL,
2010, p.266).
Nos comentários de Marx ao §280, ele fundamenta sua crítica na ideia de que
39
A diferença peculiar que ele indica é, portanto, tão peculiar que suprime toda
analogia e põe a magia no lugar da “natureza da vontade em geral”. Em primeiro
lugar, a conversão do fim representado em existência é, aqui, imediata, mágica. Em
segundo lugar, eis o sujeito: a pura autodeterminação da vontade, o Conceito
simples mesmo; é a essência da vontade, como Sujeito místico, que determina; não é
um querer real, individual, consciente; é a abstração da vontade, que se transforma
numa existência natural; a Ideia pura, que se encarna em um indivíduo. (MARX,
2005, p.54).
Como se pode ver, para Marx, Hegel converte a vontade de um indivíduo singular em
uma vontade mágica. O monarca deixa de ser um indivíduo qualquer e passa a ser a
encarnação do Estado. Ele passa a ser a própria encarnação da vontade de um povo.
Segundo Lukács, em O Jovem Marx, o ponto de partida do pensamento de Marx foi a
filosofia hegeliana. “Sua formação filosófica propriamente dita, contudo, teve início apenas
com o aprendizado da filosofia hegeliana. Somente então é que ele começa a existir para a
história universal.” (LUKÁCS, 2009, p. 123).
Em sua tese de doutorado, Marx reavaliou Demócrito e Epicuro, estabelecendo uma
diferença entre ambos. Depois, nos artigos da Gazeta Renana, as divergências com Hegel se
ampliaram. O conservadorismo hegeliano, para ele, não representava uma acomodação moral.
Baseava-se em um erro de princípio dessa filosofia, seu idealismo objetivo. Esse idealismo
inverte sujeito e objeto e está na base da inversão hegeliana entre Estado e sociedade civil. O
que está em essência nessa passagem, para Marx, é uma inversão da relação entre produtor e
produzido, entre condição e condicionado. O objeto dessa inversão, segundo as observações
de Marx, feitas ao parágrafo §279 da FD, consiste que
Há uma ausência, segundo Marx, que se verifica no fato de Hegel partir do universal,
ou seja, Hegel parte da determinação geral abstrata de um absoluto em lugar de partir do ser
real. Para tanto, a sua teoria de Estado necessitaria de um fundamento para essas
determinações, que no caso é a ideia mística. Marx critica esse procedimento de Hegel, pois
“em vez de concebê-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza os predicados e
logo os transforma, de forma mística, em seus sujeitos.” (MARX, 2005, p.44).
Hegel desenvolve, no seu sistema, a ideia de imanência. A ideia de imanente está
diretamente relacionada com a ideia de absoluto, como apresentamos anteriormente no texto.
Essas duas noções são centrais para a definição do que é o Estado ético, apresentadas no §261
da FD: “ele é seu fim imanente e possui seu vigor na unidade de seu fim último universal e do
interesse particular dos indivíduos”. E ainda, para Hegel, a ideia de Estado: “é a ideia
universal enquanto gênero e potência absoluta, contra os Estados individuais, o espírito em
que se dá sua efetividade no processo da história mundial.” (HEGEL, 2010, p.234).
Na passagem da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, no §213, Hegel fornece um
caminho para entender o que é ideia, que é um termo central do seu sistema de pensamento.
Hegel afirma:
conhecer o mundo por meio do reconhecimento das consciências, ou seja, como processo que
se nega, se conserva e se engendra enquanto novo projeto científico.
Em síntese, na noção dialética hegeliana, a Aufhebung é um momento próprio do real,
que se expressa na categoria da negação, mas a ultrapassa, pois o que é negado não é
eliminado, a saber, toda a filosofia até aquele momento.
Desse modo, o entendimento da Aufhebung será uma noção essencial para desnudar os
argumentos hegelianos na sua contraposição ao Estado contratualista moderno, como
analisaremos no capítulo adiante. Hegel mostra que a teoria contratualista tomava como base
a dissociação entre indivíduo e sociedade, não reconhecendo as dimensões da singularidade
(família), da particularidade (sociedade civil burguesa) e da universalidade (Estado), tal como
ele concebe. Assim, o que está em jogo é compreender em que sentido o Estado ético
hegeliano (isto é, o Estado na perspectiva da teoria da eticidade hegeliana) suprassume o
Estado contratualista da época moderna.
O contratualismo, segundo Hegel, lida como uma lógica binária: indivíduo-lei,
indivíduo-poder, indivíduo-natureza e indivíduo-sociedade. Desse modo, justificam a
necessidade do Estado. O conceito de Aufhebung irá conduzir as formulações e fundamentar a
teoria de Estado ético, “Importa então conhecer, na aparência do temporal e passageiro, a
substância, que é imanente, e o eterno, que está presente.” (HEGEL, 2010, p.32).
Logo, entender a dimensão da noção de suprassunção é uma das principais tarefas
para mostrar como os argumentos de Marx apontam para a teoria de Estado moderno de
Hegel como uma contradição incontornável.
Daremos destaque, na trajetória das formulações da lógica do sistema de Hegel e no
desenvolvimento da base argumentativa da sua teoria ética da Eticidade, ao modo como a
noção de Aufhebung relaciona os elementos filosóficos do sistema dialético, em especial as
noções de negação e da abstração, que compõem a teoria de Estado de Hegel. Essas categorias
serão apropriados por Marx em seus argumentos críticos.
É a noção de suprassunção que encadeia forma e conteúdo, tanto na formulação do
conceito de Estado em Hegel, quanto na objeção de Marx no §261. Suprassunção é a conexão
lógica compreendida por Marx, para, no seu argumento crítico, mostrar que a racionalidade
do Estado ético hegeliano é uma antinomia sem solução. Marx se apropria, compreende e
utiliza, de modo indireto, a noção de Aufhebung para formular uma crítica à teoria de Estado
de Hegel.
43
Portanto, há uma apropriação dialética genuína no método proposto por Marx. A sua
crítica ao §261 da FD seria um o método dialético em que ele suprassume a abstração do
conceito de sociedade civil burguesa e a ideia de negação dessa relação entre sociedade civil e
Estado. No entanto, Marx apresenta um novo argumento central: de que uma há uma
contradição é insolúvel na relação entre sociedade civil e o Estado. E será por compreender o
resultado da apropriação da noção de suprassunção, oriunda do sistema de hegeliano,
enquanto método teórico, que Marx irá mostrar que a noção de Estado de Hegel não satisfaz
as condições de uma teoria ética do Estado moderno que garanta a liberdade.
Para Hegel, o mundo objetivo não está dispensado da contradição. Isso é apresentado
na obra Ciência da Lógica. Na doutrina do ser, ele afirma que “isto é ternura demais para
com o mundo: afastar dele a contradição, pelo contrário transferi-la ao espírito, à razão, deixá-
la subsistir, não dissolvida” (HEGEL, 2016, p.254). Para Hegel, há contradições reais, e a tal
perda de ternura é a defesa de uma natureza real da contradição.
O mundo, para ele, é algo em movimento imanente que se dissolve e se constitui como
a expressão da contradição. A contradição é a atualização da realidade, de tal forma que a
totalidade dissolve a identidade das partes. Então, a soma das partes dissolvidas é novamente
totalizada, uma vez que o todo produz propriedades que suas partes não têm de maneira
isolada. É da natureza da realidade ir além de si e negar a sua negação. É da natureza da
realidade tornar possível algo como ser outro em outra forma.
Sendo assim, a noção de contradição hegeliana é a forma que o objeto na realidade se
efetiva indissociavelmente na atualização da totalidade, cujos objetos são reais e estão
dispostos como ideia no mundo.
A contradição opera no desenvolvimento dos distintos momentos da realização do
espírito, e a sua consequência é destituir o mundo como um espaço estável de experiências.
Hegel apresenta, no §445 1 da Fenomenologia do Espírito, que
1
Numeração dos parágrafos foi introduzida pela edição brasileira. A edição alemã não tem numeração de
parágrafos.
44
Há uma relação efetiva de superação entre a Ideia de Estado ético e a teoria de Estado
contratualista a ser suprassumida pelo conceito. No §449 da Fenomenologia do Espírito,
Hegel mostra como a consciência de si, por meio das contradições, se dissolve e se constitui
no Estado ético, quando afirma que
[...], com efeito, o poder ético do Estado tem, como movimento do agir consciente
de si, sua oposição na essência simples e imediata da eticidade. Como
universalidade efetiva, o poder do Estado é uma força [voltada] contra o ser para si
individual; e como efetividade em geral encontra ainda um outro que ele [mesmo]
na essência interior. (HEGEL, 2002, p.309).
Veremos mais adiante que a construção da teoria de Estado ético hegeliano utiliza
parte da refutação da concepção contratualista de Estado, sem reduzi-la ou restringi-la aos
argumentos da refutação ou da análise da teoria contratual, para estabelecer outra essência
teórica. Hegel irá apropriar-se da noção de vontade para conservá-la e elevá-la no
desenvolvimento de uma teoria que, ao se suprassumir, como, por exemplo, na ideia de
interesse comum, se estabelece e se efetiva em uma nova teoria de Estado que supera aquela
ideia de vontade do Estado contratual em Rousseau.
Veremos que, para entender a crítica de Marx à Hegel, se faz necessário compreender
a teoria do desenvolvimento da autodeterminação de Hegel, por exemplo, não apenas para
criticá-la, mas para vermos que Marx a entende e a explica nas glosas do texto de 1843. Marx
mostra como a vontade livre, na visão de Hegel, tem relação interna e imanente com o Estado,
o que, segundo ele, resulta num conceito teleológico de Estado ético, usado por Hegel para
construir sua argumentação em torno do Estado.
A ruptura epistemológica do sistema hegeliano com a filosofia kantiana foi profunda e
estabeleceu novos critérios teóricos para se pensar o Eu. Os avanços teóricos no campo da
ideia do Eu imanente de Hegel caminham junto com a ideia de reconhecimento das
consciências, que será recuperada na forma crítica em Marx para compreender a relação do
Estado com o indivíduo, desenvolvendo a categoria de alienação, como veremos nos capítulos
finais.
O pensador contemporâneo Axel Honneth, no seu livro Sofrimento de
indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel, marca o quanto
pensar o Eu foi significativo para a teoria ética hegeliana. O seu modo de pensar não
investigou as condições para se conhecer o mundo, mas sobretudo defendeu que é possível
conhecê-lo. Essa forma de pensar o Eu está diretamente relacionada com outro conceito
relevante para a ideia de Estado ético em Hegel, o conceito de vontade, já que ela determinou
45
a ideia de reconhecimento das consciências. Veremos que essa noção de reconhecimento tem
significativo interesse e desdobramentos na formulação de Marx sobre alienação:
Hegel pode finalmente resumir a objeção que havia levantado contra o modelo
optativo de autodeterminação em uma fórmula segundo a qual o material da decisão
refletida da vontade sempre deve ser considerado como contingente e, nesse sentido,
como “heterônomo”: “o conteúdo dessa autodeterminação”, tal como escreve em sua
própria terminologia, permanece, por essa razão, também algo simplesmente “finito”
(§ 14). Enquanto a limitação do modelo negativo de “vontade livre” residia no fato
de a autodeterminação individual poder ser descrita somente como exclusão de todas
as inclinações ou metas de ação particulares, para Hegel o defeito desse segundo
modelo, o optativo, reside em ter de representar o ato de autodeterminação
incondicionalmente como uma escolha refletida entre inclinações ou impulsos da
ação por sua vez indisponíveis - e a consequência de uma tal determinação
imperfeita da liberdade é, assim como Hegel não se cansara de repetir, o dualismo
kantiano entre dever e inclinação, entre a lei moral ideal e a natureza meramente
externa do impulso. Ao contrário, o autor da Filosofia do direito quer - e isso não
pode mais surpreender - chegar a um modelo complexo de “vontade livre” por meio
do qual na própria vontade, assim como no material da autodeterminação individual,
aquele vestígio de heteronomia é compreendido, porque pode ser pensado agora
como resultado da liberdade. Esse conceito exigente deve ser possível se se
considera a vontade uma relação reflexiva em si, de acordo com a qual ela pode
influir sobre si mesma enquanto vontade. (HONNETH, 2007, p.59).
Estado ético. Portanto, o Eu, para Hegel, está em movimento e vem a ser na ação dos
momentos do desenvolvimento das vontades, no reconhecimento das consciências no mundo.
Para ele, o eu só se efetiva de modo imanente no Estado. Portanto, a expressão do indivíduo,
posto com a sua consciência, está no conceito de vontade de Hegel, que tem seus fundamentos
teóricos numa ideia que perpassa todos os momentos do Espírito até se constituir enquanto
essência imanente e absoluta, como expressão da liberdade no Estado ético.
No entanto, cabe observar que Hegel não está absolutizando a imanência do sujeito no
movimento dialético da liberdade entre identidade do si mesmo e uma alteridade no vazio da
indiferença do outro em si que não se efetiva. Em Hegel, a formação do Estado supõe a
interessação entre os indivíduos concretos, mediados pelas instituições sociais. Essa interação
não é externa aos indivíduos. Pelo contrário, determina sua identidade e seu lugar na
totalidade ética que surge, como ele apresenta no §260 da FD:
transforma pela ação humana. A consciência particular conhece e a si mesma por meio das
contradições na eticidade, na sociedade civil burguesa, como singular e efetiva enquanto
liberdade no universal, no Estado ético.
Já encontramos diversos pontos de proximidade entre as duas teorias, a de Hegel e a
de Marx. Como dissemos, nossa pretensão é compreender a crítica de Marx como uma
atualização da dialética presente na teoria política de Hegel. Marx apropriou-se das categorias
do sistema hegeliano nas suas análises e objeções, e assumiu o método dialético no
desenvolvimento da sua teoria. Marx compreende a dialética da ruptura epistemológica
transformadora do pensamento de Hegel e a transforma em instrumento argumentativo em sua
crítica. Observaremos, no último capítulo dessa pesquisa, que ele, ao apropriar-se, conserva
determinadas categorias na sua análise, para negá-las e as apresentar de outro modo, a saber,
como crítica à teoria de Estado de Hegel, especificamente em sua ruptura com o idealismo.
A relação da ética com a ruptura epistemológica foi profunda ao pensar as relações
sociais da vida moderna, intrínsecas à sociedade civil burguesa enquanto uma abstração.
Veremos o porquê o conceito de vontade apresentado na crítica de Hegel a Rousseau nos
ajudará a instrumentalizar teoricamente a passagem das contradições da sociedade civil
burguesa ao momento absoluto da Eticidade hegeliana, o Estado ético. Essa passagem e a
ruptura epistemológica de Hegel nos fornecem os elementos filosóficos para o entendimento
da crítica de Marx à ideia de Eticidade.
3 A IDEIA DO ESTADO ÉTICO DE HEGEL
O Estado é, de uma parte, uma necessidade exterior e seu poder superior, cuja
natureza de suas leis, assim como seus interesses estão subordinados e são
dependentes dela; mas, de outra parte, ele é o seu fim imanente e possui seu vigor na
unidade de seu fim último universal e do interesse particular dos em que eles têm
obrigações, para com ele, na medida em que eles têm, ao mesmo tempo, direitos
(§155). (HEGEL, 2010, p.236).
49
[...] é o mesmo que antes já apareceria: que o ser-para-si não se mostrava como
substância dos demais momentos, de modo que o útil não fosse imediatamente outra
coisa que o Si da consciência, e que ela assim estivesse em sua posse. No entanto, já
aconteceu em si essa revogação da forma da objetividade do útil; e dessa revolução
interior surge [agora] a revolução efetiva na efetividade - a nova figura da
consciência, a liberdade absoluta. (HEGEL, 2002, p. 401).
... os princípios dos Estados Modernos têm esse vigor e essa profundidade
prodigiosos de deixar o princípio da subjetividade complementar-se até o extremo
autônomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, o reduz para a unidade
substancial e, assim, mantém essa nele mesmo. (HEGEL, 2010, p.235).
Em relação à vontade, no ato do contrato, seria apenas uma vontade comum, e não
uma vontade substancial, como a visada em sua concepção de Eticidade, em geral, e na sua
teoria de Estado.
Para Hegel, é necessário entender como as vontades livres se realizam. Diante disso, é
possível verificar como a sua refutação e o modo como ele se contrapõe à teoria de Estado
contratual engendraram as condições para formulação de uma nova teoria de Estado. Veja
que, no §13 da Filosofia do Direito (2010, p.64), Hegel apresenta a vontade com uma
condição imanente, e depois será apresentada essa condição como sendo a realização do
Estado ético como decorrência da vontade desse fim universal e imanente, no §261 da
Filosofia do Direito:
singularidade abstrata, que ainda não está preenchida com sua livre universalidade.
Por isso é na vontade que começa a finitude própria da inteligência e é somente pelo
fato de que a vontade se eleva de novo ao pensamento e dá a seus fins a
universalidade imanente que ela suprassume a diferença da forma e do conteúdo e se
faz vontade objetiva, infinita. Por isso compreendem pouca coisa da natureza do
pensar e do querer aqueles que opinam que o homem seria infinito na vontade em
geral, mas que seria delimitado no pensamento ou mesmo na razão. Na medida em
que pensar e querer são ainda diferenciados, é antes o inverso que é verdade, e a
razão pensante é, enquanto vontade, o de resolver-se pela finitude. (HEGEL, 2010,
p.63).
Portanto, esse espírito não constrói para si apenas um mundo, mas um mundo duplo,
separado e oposto. O mundo do espírito ético é sua própria presença; e por isso cada
potência dele está nessa unidade, e na medida em que as duas potências se
distinguem está em equilíbrio com o todo. Nada tem [ali] a significação de um
negativo da consciência-de-si; mesmo o espírito que partiu está presente no sangue
dos parentes, no Si da família; e a potência universal do Governo é à vontade, o Si
do povo. Aqui, porém o presente significa apenas uma efetividade puramente
objetiva, que tem sua consciência além. Cada momento singular, como essência,
recebe de um Outro essa consciência, e com isto a efetividade; e na medida em que é
efetivo, sua essência é algo outro que sua efetividade. Não há nada que tenha um
espírito nele mesmo fundado e imanente, mas [tudo] está fora de si em um estranho:
o equilíbrio do todo não é a unidade em si mesma permanente, ou a placidez dessa
unidade em si mesma retornada, senão que repousa na alienação do [seu] oposto.
53
Por conseguinte, o todo, como cada momento singular, é uma realidade alienada de
si mesma; ele se rompe em um reino onde a consciência-de-si é efetiva, como
também seu objeto; e em outro reino, o da pura consciência, que [está] além do
primeiro, não tem presença efetiva, mas reside na fé. (HEGEL, 2002, p.337).
Portanto, Estado ético hegeliano é aquele que surge da negação parcial da teoria
contratualista, no sentido de não ser apenas uma reformulação do conceito de vontade geral de
Rousseau, na medida em que o Estado ético suprassume o contrato: nega, mas também
conserva e eleva na forma de consciência que se reconhece enquanto livre.
O Estado aparece como a consequência da construção da ideia de vontade geral que
Hegel absorve e suprassume de Rousseau, para apresenta-la no seu conceito de Estado ético
como uma vontade livre. Hegel apropria-se da ideia de vontade de Rousseau na essência. N’O
Contrato social, Rousseau afirma:
O objetivo aqui é desdobrar e compreender a leitura que Hegel faz sobre Rousseau e
em especial examinar a noção de vontade geral, pois esse conceito é o fundamento do
argumento de Hegel sobre a incapacidade do contratualismo de fundamentar e garantir a
liberdade individual no Estado contratualista. Outra tarefa será a de compreender como Hegel
trata as três dimensões da Eticidade, sobretudo a relação entre sociedade civil burguesa e o
Estado no §258 da obra Filosofia do Direito, para refutar a teoria contratualista de Estado.
Sendo assim, objetivo central deste capítulo é entender, primeiramente, o elogio que
Hegel faz ao filósofo suíço no sentido de ele ter fundamentado o Estado no princípio da
autonomia da vontade geral. Em um segundo momento, pretende-se compreender a crítica
feita a Rousseau, a qual reside na noção de vontade geral e na ideia de interesse comum,
sendo uma vontade de singulares e não uma vontade universal em si e para si, uma vontade
compreendida juridicamente, embora seja interessante observar que a ideia contratualista de
Rousseau não é a da vontade individual que tende a interesse particulares, como é a dos
liberais.
Hegel refuta o Estado contratualista por entender a inconsequência de fundar um
direito de ordem pública no privado, priorizando sempre o último e enaltecendo mais o
indivíduo atômico do que o seu dever como cidadão, suas obrigações como cidadão
esclarecido.
O anticontratualismo hegeliano se faz presente em matéria de direito público, mas ele
é contratualista no âmbito do direito privado. Há um delineamento da fronteira que separa o
direito privado do direito público, o qual provoca uma inversão lógica na fundamentação do
ordenamento político na noção de universalidade. Esse é o centro do argumento de refutação
de Hegel que servirá de base para formulação da sua ideia de Estado ético.
Segundo Hegel, a doutrina estatal contratualista parte do pressuposto, falso, de que as
partes se submetem voluntariamente aos resultados, através de um verdadeiro acordo, tal
como no direito privado. A sujeição das partes é o exato contraponto do poder estatal; o
problema do contratualismo em pensar o Estado está no fato de que a noção de
individualidade não é suprassumida. E ela não se faz internamente universal, ela não quer o
universal como resultado de sua reflexão. Ela permanece, sobretudo, no particular das
55
vontades, na busca por vantagens. Ela baseia-se na universalidade da pessoa jurídica, mas não
na universalidade do cidadão. Por isso não é concreta. É abstrata e, deste modo, define o
“direito abstrato” na Filosofia do Direito.
Via de regra, há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta se
refere somente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse
privado, nada mais sendo que uma soma das vontades particulares. Quando, porém,
se retiram dessas mesmas vontades os mais e os menos que se destroem
mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral. (ROUSSEAU, 1999,
p.37)
particular, que, “[...] por sua própria natureza, para suas preferências, enquanto a vontade
geral propende à igualdade.” (ROUSSEAU, 1999, p. 34).
Para Hegel, a “vontade geral”, defendida por Rousseau, é arbitrariamente soberana e
absoluta, sendo que os indivíduos são subordinados ao Estado. Ele considera a sociedade civil
como uma pessoa coletiva.
Para compreender toda a extensão e a consequência do conceito de vontade geral, da
teoria de Rousseau, tanto na refutação de Hegel ao contratualismo, quanto na formulação
teórica do Estado ético hegeliano, teremos que entender a ideia de interesse comum. Por que
um indivíduo é livre, mesmo quando submetido a uma autoridade política? A resposta é:
porque o indivíduo obedece às leis às quais ele próprio deu seu consentimento. É nesse ponto
que repousa a questão da autonomia, isto é, o indivíduo é livre, porque obedece a uma
vontade que é a sua própria vontade.
Logo, a vontade geral é o objeto de interesse comum de todos os cidadãos. O que
constitui a essência da vontade geral em Rousseau é a ideia de interesse comum; que, para ele,
não se trata de um interesse de todos, como a soma de interesses particulares, mas sim de um
modo que totalize qualitativamente os interesses de todos e de cada um coletivamente.
O interesse comum fundamenta substancialmente o conceito de vontade geral. Este é
um conceito que pode ser compreendido como a vontade de um coletivo político que visa o
Bem. A vontade geral expressaria sua busca distributiva e não agregativa de pactuar os
interesses individuais ao interesse comum. Mas, cabe destacar que o interesse comum tem na
sua essência a conservação da independência dos indivíduos, na medida em que interconecta a
formulação de uma lei geral exclusiva para a realização de um Bem que caracteriza a
igualdade e a justiça.
É nesse mesmo sentido que é estabelecido o interesse comum como sendo capaz de
fazer a distinção entre vontade geral e vontade de todos. Rousseau se refere ao interesse
comum como sendo capaz fundar uma vontade universal, enquanto a vontade de todos
representa apenas a reunião dos interesses privados, nada mais sendo do que a soma das
vontades particulares.
O conteúdo do conceito de vontade geral é a noção de Bem em Rousseau. A ideia de
Bem rousseauniana pode ser interpretada à luz das ideias platônica de uma teoria de justiça;
uma noção de Bem tomada como uma abstração. O conceito de Bem em Platão diz respeito a
uma Forma ou Ideia imutável, primordial, pura e indeterminada, o que faz com que ela possa
58
ser a entidade que ilumina os seres particulares. Essa compreensão abstrata da Forma de
Platão parece ser o núcleo da Ideia de Bem de Rousseau.
O filósofo suíço sedimenta a sua teoria de uma justiça virtuosa, que organiza e
representa o modo como os seres humanos vivem em sociedade, por meio de uma noção
coletiva qualitativa, capaz de orientar a decisão. Será o interesse comum puro o que deve
compor as características particulares sem ser um cálculo aritmético de interesses. Portanto, a
ideia de Bem de Rousseau é pensada como uma expressão do interesse comum. Essa ideia de
Bem de Rousseau admite, assim como em Platão, uma abstração que apresenta um modo de
agir em direção à ideia de Bem. O interesse comum é uma abstração que está presente
enquanto essência na ideia de vontade geral.
Portanto, essa noção abstrata de Bem que compõe o interesse comum e que explica o
que é vontade geral em Rousseau justifica o seu conceito de contrato, ao explicar as relações
entre as liberdades individuais e o modo coletivo das organizações sociais se articularem no
âmbito do direito privado. “Importa, pois, para se chegar ao verdadeiro enunciado da vontade
geral, que não haja sociedade parcial no Estado e que cada cidadão só venha a opinar de
acordo com seu próprio ponto de vista” (ROUSSEAU, 1999, p. 38). Ou seja, uma opinião
capaz de representar a coletividade. Todavia, embora pareça bastante simples compreender o
que está sendo proposto por Rousseau, não é claro o que exatamente é a vontade geral ou
como esse conceito pode ser acessado pelos cidadãos que precisam, para se manter livres,
coordenar suas vontades particulares com a vontade geral.
Rousseau acreditava que o homem é naturalmente bom e atribuiu a corrupção do ser
humano à vida em sociedade. Essa é uma dificuldade concreta para se poder representar a
vontade geral como sendo a expressão da maioria. Pois, certas diretrizes sociais afastariam o
homem de sua essência verdadeira. Para ele, a liberdade natural do ser humano e a sua origem
foram perdidas ao longo da história na constituição da sociedade política.
Hegel se interessa por essa ideia de vontade que expressa um interesse comum como
uma vontade política universal geradora do contrato. Além disso, para Rousseau, o Estado é
pensado sob a lógica das relações sociais, e isso constitui um genuíno interesse de Hegel na
elaboração da sua ética.
59
Esse interesse de Hegel na teoria de Estado de Rousseau se deve ao fato de ela ser uma
teoria de contratual que não parte de suposições abstratas que estariam supostamente na
origem da organização coletiva humana. Além disso, Rousseau não justifica Estado como
sendo decorrente de uma necessidade coercitiva relacionada à organização da vida social e
política na modernidade. Em Rousseau, o Estado contratualista nasce enquanto resultado da
expressão da vontade geral. Não há necessariamente um poder maior como origem do
contrato. Não há um soberano que obrigue o indivíduo a efetuar esse contrato.
O conceito de vontade de Rousseau apropriada por Hegel é aquela que compreende
que não será através de qualquer tipo de lei que se imporá a obrigação, a obediência ou a
representação do pacto social do contrato.
A vontade expressa, de modo indispensável, a condição geral para que a lei seja
legitimada e aceita coletivamente, e o acordo será resultado formal dessa noção de vontade
geral de Rousseau que não se constitui pela união das vontades. Portanto, há uma clara
necessidade de legitimar o contrato, e a noção de interesse comum é o instrumento para
alcançar essa legitimidade. “Então, não é pela relação coercitiva da força que se estabelece o
direito, só se está obrigado a obedecer aos poderes que são legítimos.” (ROUSSEAU, 2017, p.
37).
A noção de vontade geral, da qual Hegel se apropria, é encontrada tanto no Discurso
sobre a economia política (1755) quanto no Contrato social (1762). Rousseau afirma que a
vontade geral apresenta uma tendência a conservar o interesse comum de todas as partes. A
“origem” das leis consiste em pensar a justiça como a norma do justo e injusto para todos os
indivíduos que compõe o Estado.
Embora não haja uma noção de vontade universal tal como a que Hegel apresenta, no
entanto, a noção de vontade geral de Rousseau é compreendida como a realização da
cidadania das sociedades. A vontade geral aparece para legitimar o contrato social, nas formas
de governo, como expressão das votações e onde se tem virtudes cívicas e uma cidadania
forte, diz o filósofo suíço.
A perspectiva rousseauniana fundamenta o Estado contratualista como sendo a
garantia da liberdade de cada um, que resulta do poder da razão e da vontade individual. Este
será um aspecto filosófico duramente contestado por Hegel. No parágrafo §258 da Filosofia
do Direito, Hegel apresenta uma crítica a Rousseau, pois, para ele, essa forma de conceber a
vontade e a própria razão, como centradas exclusivamente no indivíduo, teria conduzido aos
60
2 Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E, principalmente, por que falar isto em um momento
no qual o estado prussiano estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela Restauração
anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da Revolução Francesa? Lembremos como não
foram poucos aqueles que viram, na Filosofia do direito, a prova maior da adesão de Hegel à Restauração
(exemplo maior aqui é o livro de Rudolf Haym, Hegel e seu tempo). No entanto, devemos salientar um ponto
fundamental. Não houve filósofo de seu tempo mais claramente comprometido em elevar a Revolução Francesa
a acontecimento decisivo da modernidade do que Hegel. Como disse um bom comentador, Domenico Losurdo:
“Não existe revolução na história da humanidade que não tenha sido apoiada e celebrada por esse filósofo que
também tem fama de ser um incurável homem da ordem”. (SAFLATE, 2011, p.153).
61
Por isso, Hegel vai se apropriar da noção de vontade geral, ao mesmo tempo em que
faz a crítica a Rousseau. Pois, segundo a perspectiva hegeliana, essa noção de vontade é
insuficiente, uma vez que acaba reduzindo-a à vontade singular e não elevando-a à vontade
universal. Não é uma vontade em si e para si. Dando continuidade ao parágrafo 258, citado
anteriormente, Hegel diz:
Visto que ele aprendeu a vontade somente na forma determinada da vontade singular
(como posteriormente também Fichte) e a vontade universal não enquanto o racional
da vontade em si e para si, porém apenas enquanto o coletivo, que provém dessa
vontade singular enquanto consciente: assim a união dos singulares no Estado torna-
se um contrato […]. (HEGEL, 1998, §258, p. 231).
A noção de vontade geral é entendida como sendo uma abstração que se suprassume e
é incorporada na teoria de Estado de Hegel. A apropriação de Rousseau por Hegel tem
consequência direta na noção de interesse comum, embora em Hegel tenha-se tornado menos
abstrato do que no conceito de vontade geral.
Como vimos, o conceito de vontade geral está ligado à ideia do que Rousseau entende
por Bem ou interesse comum, ou mesmo como ele delineou os conceitos de justiça e de
equidade. A vontade geral é tributária da noção de Bem, por conseguinte da forma do
interesse comum que se relaciona com um ideal de justiça e de equidade em Rousseau. Pois, a
ideia de vontade geral é um projeto filosófico político rousseauniano pensado a partir de uma
ideia de Bem como um conceito abstrato que se constitui como forma de interesse comum.
Hegel constrói a crítica mais geral ao contratualismo e dialoga com o pensamento
ético de Rousseau. Hegel, ao se apropriar-se da noção de vontade geral de Rousseau,
desenvolve a ideia de vontade como uma abstração no centro da sua formulação teórica do
conceito de Estado ético. Essa formulação é importante, pois ela se encontra dialeticamente na
crítica à teoria de Estado contratual.
Hegel considera a teoria contratualista de Rousseau uma teoria estanque e limitada
para garantir a liberdade dos indivíduos, sendo por vezes capaz de promover “justiçamentos”,
como foi o caso desse período da Revolução Francesa. A liberdade formal, compreendida
pelos contratualistas, e a liberdade substancial não são em si termos contraditórios para Hegel,
pois a liberdade teria em si uma dupla determinação. Uma diz respeito ao conteúdo da
liberdade, à sua objetividade, à coisa mesma. A outra diz respeito à forma da liberdade, na
qual o sujeito se reconhece ativo. A exigência da liberdade é que o sujeito tenha
conhecimento de si e cumpra a própria tarefa, sendo seu interesse que a coisa se realize.
63
Hegel, com isso, mostra que essa relação entre o interesse comum e a garantia das
liberdades individuais ainda é insuficiente para garantir a liberdade e fundamentar uma teoria
de Estado que seja a expressão efetiva da liberdade.
Para Hegel, os contratualistas, em especial Rousseau, foram bem sucedidos ao
explicarem como as relações entre arbítrios estipulam a transferência de objetos de uma
vontade para a outra. Porém, não conseguiram alcançar o conceito de Estado como resultado
do desenvolvimento de uma vontade autorreflexiva, que não vê a liberdade do outro como um
limite para a própria liberdade, mas vê a liberdade do outro como uma base para a realização
efetiva da própria liberdade, como substancial em si mesma. A lógica do direito abstrato não é
a mesma lógica do Estado ético hegeliano.
Hegel usa a categoria da negação como um operador lógico capaz de demonstrar a
insuficiência da teoria de Estado contratualista. O conceito de vontade geral, apropriada da
teoria contratualista de Rousseau, é o fundamento da análise, da crítica e da refutação da
teoria contratualista. Mas, como dissemos, essa teoria permanece de modo indissociável na
construção da sua teoria de Estado ético. Hegel apropria-se e depois nega a vontade geral
enquanto uma abstração da noção de interesse comum formal; pois, para Hegel, ela não
garante a liberdade substancial. O contrato entre indivíduos singulares, celebrado pelos
teóricos liberais, não existe, não se efetiva; pois a liberdade contratual é limitada, de um lado,
pela exigência das leis representadas pelo Estado e, de outro, pelos interesses particulares
representados pela sociedade civil burguesa.
Essa é uma questão importante, como veremos mais adiante, para Marx desenvolver a
compreensão de que o Estado ético do Hegel é uma antinomia sem solução. Pois, sem essa
compreensão do anticontratualismo de Hegel, Marx o compreenderia apenas como um
antiliberal, pelo fato de afirmar a irrealidade da hipótese do contrato originário. Mas, como
vimos, Hegel contesta essa noção, considerando indevida apenas a extensão, à esfera do
direito público, de um instituto que é do direito privado. Portanto, sem Hegel e a sua polêmica
anticontratualista não seria possível compreendermos a via que leva de Hegel a Marx.
De modo que, elementos da dialética do sistema hegeliano, provenientes da sua
ruptura epistemológica, compõem indissociavelmente a formulação do conceito de Estado
Ético em Hegel. E mais, sem eles, a crítica de Marx à ideia de Estado em Hegel não passa de
uma glosa panfletária e política descontextualizada. O sistema dialético hegeliano e sua
ruptura constituem-se diretamente na sua crítica ao contratualismo na forma de desmitificar a
ideia de liberdade mistificada na representação do Estado como um contrato. E veremos que
64
Marx procura justamente desmistificar o que foi desmitificado por Hegel, ao afirmar que a
teoria de Hegel é uma antinomia sem solução.
Estamos seguindo o fio que nos possibilita encontrar as saídas do labirinto filosófico
da relação entre Marx e Hegel para fundamentar a síntese da crítica teórica de que o Estado é
uma antinomia se solução para Marx. Aqui apresentamos a refutação de Hegel ao
contratualismo. Reconstruímos o conceito de Estado ético para verificar que elementos o
compõem. O objetivo é compreender o que há de contraditório, similar e dialético entre Hegel
e Marx na Crítica de 1843. Ou seja, entender o modo como Marx se apropria teoria de Estado
ético para negá-lo.
A crítica de Hegel ao contratualismo e a sua apropriação da noção de vontade geral
estabelecem a fundação teórica do Estado ético. Hegel, na sua teoria de Estado, visa
desmitificar a relação mistificada e insuficiente para garantir a efetividade da liberdade. Na
sequência deste trabalho, vamos verificar que o método de construção da teoria de Estado,
adotado por Hegel, e, sobretudo, a sua crítica ao contratualismo, estão explícitas e implícitas
na construção da crítica de Marx ao idealismo hegeliano presente na FD.
4 CRÍTICA DE MARX À TEORIA DE ESTADO ÉTICO HEGELIANO
possível Marx ter seguido essa filosofia? Será justamente o inverso do que Althusser
interpreta do texto de 1843, é o que mostramos nos capítulos anteriores de que Marx
transcende o idealismo de Feuerbach. Feuerbach apresenta um hipotético em que pressupõe
logicamente um “homem genérico” abstraído do mundo e da sociedade. Marx apresenta um
sujeito no mundo não como uma simples transformação da consciência na tal inversão como
Feuerbach, mas como uma transformação dessa consciência no mundo do homem real.
A interpretação apresentada por Althusser revela muitas razões para não ser aceita, a
começar por ele idealizar o sistema de pensamento de Marx, apresentando-o como um sistema
homogêneo e deduzindo-o de Feuerbach. Marx é um dialético e, como tal, atualiza a dialética
na crítica a Hegel, ao contrário do ponto de vista althusseriano. A interpretação de Althusser
limita a perspectiva sobre o desenvolvimento de um pensamento filosófico autônomo,
impondo-lhe a necessidade de continuidade e excluindo a possibilidade descontinuidades e
contradições enquanto condições constituidoras.
O que mostramos, ao recuperar o pensamento de Hegel nos primeiros capítulos deste
trabalho, o modo com ele rompe com a forma metafísica da filosofia moderna e o modo
como que ele desenvolve sua crítica ao contratualismo. A intenção foi mostrar como Marx
chega a sua crítica ao idealismo ao dizer que o Estado ético de Hegel é uma antinomia sem
solução. Mas isso prepara não só a crítica à teoria hegeliana de Estado. Marx tem aí também
as bases para afirmar que o Estado é a representação de uma classe, o que ele afirmaria
posteriormente. Essa formulação encontra-se a léguas de distância da interpretação de
Althusser de um Marx idealista. Marx é herdeiro de um modo de pensar filosofia. Logo, não
se trata de uma aproximação com o marxismo, mas sim de uma análise do próprio texto de
1843 e de como Marx rompe com a tradição idealista, identificando que o Estado ético não
pode ser o fim último da efetivação da liberdade humana.
Por conseguinte, quando analisamos o texto com os pressupostos das categorias
marxistas pré-estabelecidas, distorcemos e não captamos a essência do que estava em debate
na formulação marxiana segundo a qual o Estado ético hegeliano, e talvez não só ele, mas
toda forma de Estado, é uma anatomia sem solução e que a essência da existência do Estado
é a não garantia da liberdade dos homens e a alienação. A crítica de Marx à passagem do
67
Minha intenção era criticar a religião a partir da crítica das condições políticas e
não estas últimas a partir da crítica da religião. Isso porque a religião, em si
destituída de conteúdo, vive não do céu, mas da terra; e, com a dissolução da
realidade invertida da qual ela é a teoria, a religião desaparece por si mesmo.
(MARX apud LUKÁCS, 2009, p.134-135).
Essa crítica política, que aparece em uma carta de Marx a Ruge de 1843, transcende
ao conceitos de Estado, seja ele contratualista ou hegeliano. Marx está apresentando não uma
crítica só aos conceitos, mas à essência do Estado real. Marx critica Hegel ao refutar a ideia
mistificadora de que o Estado, por meio de uma suprassunção, conseguiria conciliar, num
único interesse comum, os interesses incontornáveis que alienam o homem de si e
consequentemente da política.
Ao construir sua refutação ao idealismo, Marx aprofunda seu entendimento sobre o
sistema dialético atualizando-o enquanto método para compreender o mundo. Marx se
apropria e nega as categorias hegelianas enquanto premissas na sua crítica ao Estado ético.
Mas, para Marx, não só o Estado de Hegel é uma antinomia sem solução. Para ele, na
existência do Estado em geral há uma incontornável e indissociável relação contraditória
entre os interesses particulares e os interesses comuns. Marx, com isso, visa a superação
dessa teoria e a elaboração de uma compreensão mais abrangente para pensar a liberdade
humana. Pois, na rejeição de Marx, está contida a crítica de Hegel ao contratualismo, e há
69
uma formulação ainda mais contundente e radical contra a ideia da existência de um Estado,
já que a liberdade humana só poderia ser expressa livremente, enquanto uma manifestação
política de modo consciente e direto.
A análise proposta pela pesquisa, de que Marx estaria atualizando o sistema hegeliano,
é um modo de interpretar que nos permite verificar em que medida o método dialético do
sistema de pensar de Hegel está na raiz da crítica de Marx à teoria de Estado ético.
O projeto teórico de Marx se realiza como um sistema capaz de não só descrever o
mundo, mas de ser também uma teoria capaz de transformá-lo. Isso consiste em afirmar que é
uma teoria que se realiza enquanto negação da negação da teoria de Estado de Hegel; que, por
sua vez, nega o contratualismo para afirmar o Estado ético. Marx propõe, à luz de Hegel, um
modo complexo de pensar as categorias e os conceitos. O resultado da apropriação da lógica
de Hegel será a sua ruptura com idealismo alemão e a formulação de uma filosofia social sob
uma nova forma de pensar o real. Marx está desenvolvendo uma atualização materialista da
dialética de Hegel e de categorias como contradição, negação e abstração. A atualização seria
o resultado de uma apropriação do método dialético de Hegel. Há uma suprassunção do
pensamento hegeliano na gênese da ruptura de Marx com idealismo alemão. Pois, o sistema
dialético hegeliano é a fonte filosófica de Marx na formulação da sua crítica ao Estado ético e
posteriormente na construção do materialismo histórico. Logo, optamos por não entender que
a relação entre Marx e Hegel se forme por linhas teóricas paralelas e contraditórias que apenas
se negariam. A análise do §261 da FD é central na nossa análise, permitindo-nos ultrapassar a
caracterização de uma ruptura de Marx com a ordem lógica de Hegel de modo mecânico,
como uma simples contraposição entre idealismo alemão e materialismo dialético.
A crítica de Marx à teoria de Estado de Hegel marca um importante momento para o
desenvolvimento do seu pensamento. Em 1843, Marx, ao dizer que o Estado ético hegeliano é
uma antinomia sem solução, começa a sedimentar seu caminho para uma nova formulação da
dialética que refuta o idealismo hegeliano e apresenta um novo sistema filosófico social. No
entanto, é preciso compreender a ruptura de Marx dentro tradição crítica desenvolvida pelo
idealismo alemão. Esse é um aspecto central para afastar qualquer tipo de simplificações ou
periodizações esquemáticas da ruptura de Marx com o idealismo de Hegel. A apropriação que
funda o materialismo dialético de Marx é a do sistema de pensamento de Hegel. A ruptura de
70
Marx tem como resultado a descontinuidade com a sua ruptura com o idealismo alemão.
Porém, se estabelece de forma contínua como uma atualização da dialética hegeliana.
O resultado do desenvolvimento da apropriação do sistema dialético hegeliano é a
negação da teoria do Estado ético, pois, para Marx, Hegel partiria de uma premissa filosófica
falsa, a saber, a tese segundo a qual a categoria de ideia por ele definida seria ao mesmo
tempo real, e não da essência real das novas relações sociais de mundo capitalista, no qual os
homens reais se organizam. Marx pretende entender justamente essa realidade concreta. O
objeto filosófico de Marx, nesse momento, é alcançar, por meio de sua crítica, uma teoria
filosófica social realista.
Para Marx, as categorias do sistema hegeliano são tanto objeto da crítica à teoria de
Estado de Hegel, como a noção de suprassunção, quanto fundamentos filosóficos nos
elementos argumentativos da crítica de Marx ao §261. Nessa crítica, como dissermos, Marx
acusa o Estado ético de ser uma antinomia sem solução; e, para isso, ele utiliza as categorias
de abstração e negação e a ideia de imanência. A compreensão dessa relação é central na
crítica apresentada por Marx à teoria de Estado ético como sendo uma antinomia sem solução.
Sendo assim, devemos estabelecer quais os parâmetros metodológicos da construção
da crítica de Hegel ao Estado contratualista que podemos constatar na crítica de Marx à teoria
de Estado de Hegel. Com base nisso, podemos traçar a caracterização do conteúdo dessas
similaridades entre essas duas linhas dialéticas. A busca pela fundamentação filosófica da
crítica de Marx nos permite identificar as diferenças teóricas entre os sistemas idealista e
materialista e, por conseguinte, verificar se há ou não uma ruptura entre Marx e o idealismo
de Hegel já presente nos escritos de 1843.
Por outro lado, essa investigação nos afasta de simplificações na análise da crítica de
Marx a Hegel, pois, na análise comparativa entre os filósofos, ao resgatar a essência da
dialética, percebemos toda a complexidade das teorias de ambos. Portanto, o objetivo deste
capítulo é verificar como e quais pontos dessas duas linhas filosóficas se cruzam, como as
categorias do sistema hegeliano aparecem na forma de refutação explícita nas glosas do texto
de Marx, e que, ao mesmo tempo, são usadas por ele dialeticamente na construção de seus
argumentos na crítica ao §261 da FD. Verificar-se-á que as categorias do sistema hegeliano
constituem-se indissociavelmente na crítica de Marx, aparecendo tanto de forma expressa
como no método da construção dos argumentos. As ideias de vontade, efetividade,
racionalidade são formulações desenvolvidas por Hegel e estão no §261 da FD e justificam a
noção de imanência. As noções de negação e abstração, oriundas dos momentos da lógica
71
Uma filosofia social da práxis humana é o caminho que nos permite acompanhar o
raciocínio de Marx de recuperar a originalidade do sistema e da dialética de Hegel. Atualizá-
lo não como o encadeamento das inferências lógicas argumentativas analíticas de um
universal necessário do qual se seguem, satisfeitas todas as premissas, conclusões em formas
válidas de conhecimento. Uma vez fosse assim, a dialética estaria ainda na esfera do
entendimento e não da razão especulativa, como propôs Hegel.
É por meio da formulação dialética de Hegel que Marx parte para a compreensão
sobre o Estado ético hegeliano para depois formular a sua crítica. Pode parecer um paradoxo
desenvolver a crítica com as mesmas categorias que formulou seu objeto, mas isso representa
a plena apropriação dialética enquanto método e conteúdo de análise.
O universal de Hegel está de modo imanente no Estado ético, e Marx refuta essa
definição de Hegel e afirma a ideia de imanência como sendo uma antinomia. Verificaremos
que Marx precisa das categorias de Hegel para desconstruir as relações supostamente
imanentes entre as esferas da eticidade no Estado.
A ideia de imanência deve ser pensada na teoria de Estado Hegel como uma extensão
do seu sistema de pensamento, pois, ao inaugurar e estruturar uma nova lógica, que rompeu
com a noção de contradição analítica estabelecida, foi preciso pensar novas categorias
filosóficas. Hegel elabora a sua teoria filosófica para justificar a sua teoria sobre o Estado
73
moderno. As categorias da filosofia analítica de Kant eram insuficientes para validar uma
teoria social e política como a que Hegel estava propondo. A teoria ética hegeliana não podia
mais ser pensada analiticamente, mas sim dialeticamente.
Conforme o próprio Marx fundamenta na sua tese de doutorado, a dialética do
conhecimento de Hegel está nas coisas que estão em movimento. Portanto, sujeitas às ideias
de mudança e de contradição, através das quais o desenvolvimento das consciências se faz
enquanto expressão de transformações que se efetivam e se reconhecem como sendo
consciência de si na história.
Desse modo, a teoria do conhecimento de Hegel se difere significativamente do
pensamento epistemológico moderno. Ela rompe com a centralidade do conhecer, que estava
sustentada na ideia limitadora do sujeito cognoscente; que, diante das limitações de uma
metafísica que visava afastar todas as incertezas, tinha com resultado a incognoscividade das
coisas em si.
Então, o itinerário argumentativo a ser descoberto diz respeito a como as próprias
categorias dessa nova forma de conhecer o mundo, proposta por Hegel, constituem e
sustentam a formulação da crítica de Marx ao §261 da Filosofia do Direito.
Observe que Marx, nos comentários à obra de Hegel, na Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel, afirma serem as categorias hegelianas a essência filosófica da teoria de
Estado de Hegel. Portanto, isso reforça a necessidade de estudar o sistema do Hegel. O Estado
ético hegeliano é resultado e parte integrante do seu sistema filosófico. E Marx reconhece
isso, de forma explícita, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em relação ao
procedimento teórico de Hegel, como sendo esse um instrumento valioso, capaz de justificar
os aspectos da racionalidade da sua ideia de Estado ético.
Ir, então, de Hegel à Marx será, por assim dizer, infletir sobre as categorias lógicas e
as referências utilizadas por Hegel ao longo de toda a obra da Filosofia do Direito para
explicar e fundamentar a sua ideia de Estado, assim como precisou Marx fazer, na sua Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel, para construir os argumentos da sua crítica. O conceito
lógico que Hegel elabora para fundamentar a ideia de Estado ético é o conceito de Aufhebung,
apresentado por Hegel já na Fenomenologia do Espírito, no §113 da edição brasileira; “O
suprassumir apresenta sua dupla significação verdadeira que vimos no negativo: é ao mesmo
tempo, um negar e um conservar. O nada, como nada disto, conserva a imediatez e é, ele
próprio, sensível; porém, é uma imediatez universal”. (HEGEL, 2002, p.96)
74
Esta dupla face adquire a máxima evidência quando voltamos a atenção para a
definição hegeliana de Estado: “O estamento, enquanto particularidade que se tomou
objetiva, por uma parte, divide-se, assim, segundo o conceito, em suas diferenças
universais. Mas, por outra parte, a que estamento particular o indivíduo pertence,
nisso têm sua influência o natural, o nascimento e as circunstâncias, mas a
determinação última e essencial reside na opinião subjetiva e no arbítrio particular,
que se dá nessa esfera seu direito, seu mérito e sua honra, de modo que o que nela
ocorre por uma necessidade interna é, ao mesmo tempo, mediado pelo arbítrio e tem,
para a consciência subjetiva, a figura de ser a obra de sua vontade.”(HEGEL,2010,
p.201) Pode-se ver aqui, claramente, como Hegel concebe um importante papel a
momentos concretos da estratificação das classes na sociedade burguesa; assim,
antes de mais nada, ao momento do acaso no pertencer a uma classe, a propósito do
qual deve certamente surpreender o fato de que ele lhe atribua uma exclusividade
que jamais existiu na realidade. (LUKÁCS, 1978, p.57)
No entanto, essa síntese hegeliana está sob uma forma mistificada de pensar o
universal, o Estado. Pois, visa justificar a liberdade concreta do Estado, na figura do monarca,
como sendo capaz de representar a racionalidade. Isso porque, o monarca seria o resultado de
uma dialética universal que partiria dos interesses particulares da sociedade civil burguesa e
da família. Lukács mostra que Hegel estaria construindo um argumento formal para justificar
a necessidade racional do Estado:
É uma racionalidade mistificadora de Hegel, uma vez que a unidade espontânea entre
os interesses particulares e o interesse geral é abandonada, e os interesses particulares se
expressam de modo dominante. Hegel responderia a essa questão afirmando que o interesse
geral é a racionalidade pública do bem comum expresso no e pelo Estado ético. No entanto, a
ideia do Estado ético ser a efetividade da liberdade concreta humana só pode ser viável
subordinando os interesses particulares à racionalidade no Estado. Logo, a tal liberdade
concreta é, na verdade, é uma liberdade formal baseada concretamente apenas em uma
imposição.
Hegel, pode-se dizer, teria de conceber a “sociedade civil”, assim como “família”,
como determinação de cada indivíduo do Estado, do mesmo modo, portanto, as
77
Entretanto, o surpreendente é que Marx reconhece que Hegel pensou uma nova teoria
do Estado moderno quando ele construiu a sua refutação a teoria contratualista. Hegel
desenvolveu a noção de direito abstrato como uma das formas de reconhecer a necessidade do
Estado para representar o todo social.
É importante recuperar essa passagem, uma vez que ela ilustra não apenas a crítica de
Marx à teoria do Estado ético de Hegel. Ela mostra que Marx estaria apresentando um
diagnóstico do Estado moderno que é decorrente da sua apropriação tanto da crítica de Hegel
ao contratualismo, quanto da própria teoria de Estado de Hegel. É um diagnóstico político e
social de um Estado existente que tem, enquanto sua essência real, a forma de uma antinomia
sem solução.
Marx apresenta uma clara distinção entre o Estado irracional e o Estado racional. Essa
questão está no centro da crítica de Marx ao Estado ético hegeliano. O Estado racional é
aquele que se efetiva nas determinações das esferas da eticidade, suprassumindo as
contradições formalmente. Mas, para Marx, o Estado é uma representação política do que é
existente. O Estado moderno, para ele, é irracional, na medida em que a essência de seu ser no
mundo é contraditória.
Marx tem em vista atualizar o conceito de homem efetivo real. A noção hegeliana de
suprassunção das contradições da sociedade civil burguesa é um modo de pensar o homem
efetivo e suas relações sociais de modo abstrato. Marx mostra que pensar esse homem
abstrato desconecta a teoria ética de Hegel do projeto de pensar o fim da alienação real, uma
vez que este homem efetivo hegeliano é uma abstração distorcida, baseada em interesses
particulares da sociedade civil burguesa.
Assim, a questão da alienação torna visível a crítica de Marx à inversão da relação
entre racional e real. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel parece não estar interessado no
fim efetivo da alienação, mas sim em compreender teoricamente o mundo alienado, já que os
homens reais, enquanto tais, estão alienados e não podem conhecer o mundo. A antinomia
descrita por Marx no §261 da FD está enraizada na categoria da alienação de Hegel. E, como
79
vimos, essa categoria foi criada por Hegel em sua ruptura epistemológica com a teoria do
conhecimento moderna.
Essa superação do objeto da consciência não se deve tomar como algo unilateral, em
que o objeto se mostrasse como retornado ao Si; mas, de modo mais determinado,
em que o objeto como tal se mostrasse ao Si como evanescente. Melhor ainda,
[toma-se de modo] que é a extrusão da consciência-de-si que põe a coisidade, e que
essa extrusão não tem só a significação negativa, mas a positiva; não só para nós ou
em si, mas para ela mesma. (HEGEL, 2002, p.530).
Como vemos, a consciência de si pensa a sua forma objetiva externa de modo que
forma outra de si mesma. Ela se põe como objeto dela mesma no outro. Há uma suprassunção
da consciência objetiva da representação do mundo. Hegel representa assim,
simultaneamente, a consciência apropriando-se do mundo e de si, porém apenas em
pensamentos. Logo, a alienação e sua superação são compreendidas por Hegel como dizendo
respeito apenas à consciência e não como algo objetivo que independe do movimento das
consciências. A suprassunção, na FE, aparece como uma metacategoria do pensamento, pois
a realidade não é alterada.
Marx considera que essa noção de consciência de Hegel leva a uma compreensão de
que o Estado, em sua essência racional, seria algo alienado do homem. O Estado ético
hegeliano, em sua efetividade, seria uma representação racional alienada do homem e
resultado apenas de sua própria essência. Ou seja, para Marx, o Estado hegeliano seria uma
mistificação da ideia de Estado como uma necessidade externa ao indivíduo.
Que “as leis do direito privado” dependem “do caráter determinado do Estado”, que
elas se modificam segundo ele, é algo que está subsumido na relação da
“necessidade externa”, precisamente porque “sociedade civil e família”, em seu
verdadeiro, quer dizer, autônomo e pleno desenvolvimento, são pressupostas ao
Estado como “esferas” particulares. “Subordinação” e “dependência” são as
expressões para uma identidade “externa”, forçada e aparente, para cuja expressão
lógica Hegel utiliza, corretamente, a “necessidade externa”. (MARX, 2010a, p. 28).
A negação da negação, em Hegel, não será a essência das coisas ou a essência real do
Estado que negaria a sua essência aparente de uma suprassunção das contradições dos
interesses particulares da sociedade civil burguesa na efetivação dos interesses comuns do
Estado ético. Para Marx, é preciso negar essa essência abstrata de superação aparente das
antinomias, que aliena as consciências, por apresentar a necessidade externa do Estado com
identidade que é apenas formal e em que identidade não se compõe enquanto algo real.
80
Por isso, Marx refuta esse argumento de Hegel, pois, sem a negação da imanência, o
que há é a confirmação do Estado como essência da família e da sociedade civil, alienando o
homem da e na política, que passa a ser regida por esse Estado místico hegeliano. O que
existe é alienação da não da liberdade concreta, diferente do que Hegel afirma no §260 da FD.
O Estado não é o fim último da liberdade humana, pois ele não é a síntese de uma
suprassunção dos interesses particulares em universais. Logo, o Estado ético hegeliano não
soluciona a essência contraditória do Estado. Ele não é capaz de subordinar os interesses
singulares e particulares e muito menos é um fim último imanente, capaz de expressar a
liberdade humana.
Para Marx, é preciso compreender e transformar a essência aparente do mundo,
diagnosticada por Hegel, em essência real. Desse modo, por fim, é preciso superar a alienação
desse homem frente as suas relações sociais e políticas, para que ele consiga transforma a sua
consciência de si e sua realidade e assim efetive a liberdade no mundo. Para Marx, a noção de
suprassunção de Hegel se apresenta como uma teoria da justificação da alienação, por
permitir que a realidade alienada permaneça alienada. Em Hegel, a alienação é o modo com
que consciência de si sabe que existe, mas não como uma alienação real, posta na relação
entre essa consciência e o mundo. Logo, a alienação hegeliana permanece ensimesmada, já
que essa consciência não pode romper com a alienação, porque não há uma suprassunção das
contradições entre os interesses presentes no mundo real. Portanto, em Hegel não há o fim da
alienação real.
As relações presentes na sociedade civil burguesa são de dependência interna. Além
disso, ela mantém uma relação de subordinação essencial ao Estado ético. A ideia de
dependência, em Hegel, é derivada do sistema idealista hegeliano, em que há uma
determinação da matéria pela ideia.
Hegel conhece a separação da sociedade civil e do Estado político, mas ele quer que
no interior do Estado seja expressa a sua própria unidade, e, em verdade, isso deve
ser realizado de maneira que os estamentos da sociedade civil constituam, ao mesmo
tempo, como tais, o elemento estamental da sociedade legislativa. (MARX, 2010,
p.91).
Hegel autonomiza o Estado frente à sociedade civil e o coloca como polo dominante.
E é a esse Estado autonomizado, a essa esfera que é, ao contrário da família e da sociedade
civil, portadora da autoconsciência, que é atribuído o papel de conter as tendências
dissolventes da sociedade civil, o papel de subsumir os interesses particulares ao interesse
81
[...] seus [do Estado] interesses estão subordinados e são dependentes dela [da
sociedade civil]; mas, de outra parte, ele é seu fim imanente e possui seu vigor na
unidade de seu fim último universal e do interesse particular dos indivíduos, no fato
de que eles têm obrigações para com ele, na medida em que eles têm, ao mesmo
tempo, direitos. (HEGEL, 2010, p.236).
Hegel não reconhece haver uma separação entre o modo de vida civil e a constituição
das relações políticas expressas no Estado. Hegel impõe um modo de pensar que percebe a
forma independente dos elementos que constituem o Estado como uma cisão na efetividade
que é, na verdade, a própria intransponilidade da propriedade privada. Os indivíduos estão
contidos no Estado, e ele é seu fim imanente, porque o Estado realiza os interesses
particulares dos indivíduos ao pôr-se como seu fim último universal.
Mesmo que a posse da propriedade privada pudesse não ser explicada, ela não pode
ser tomada como um fato natural. Essa desmitificação da propriedade privada por Marx, na
Crítica de 1843, demonstra como ele engendra a sua ruptura com idealismo de Hegel.
Para Marx, Hegel é consciência do poder da propriedade privada sobre a organização
da sociedade civil em estamentos. Consequentemente, ele também estaria consciente da
influência que ela exerce sobre o próprio Estado. Entretanto, Hegel tenta solucionar esse
problema fazendo o Estado, que supostamente representaria os interesses comuns, interferir
na própria organização das corporações, através das chamadas “eleições mistas”:
Para Hegel, como apresenta Marx, nas eleições mistas dos administradores das
corporações, haveria o estabelecimento de um primeiro nível da identidade entre sociedade
civil e Estado. Os administradores representariam os interesses privados, mas precisariam da
confirmação do Estado, enquanto representante dos interesses comuns. Mas, para Marx, “é
desnecessário ressaltar que a solução desta oposição por meio da eleição mista é uma mera
acomodação, uma transação, uma confissão do dualismo não resolvido, ela mesma um
dualismo, uma ‘mistura’ ” (2010a, p. 68). Ou seja, o “mixtum compositum” resultante, muito
diferente de resolver o problema, é a confissão de sua insolubilidade.
Em 1843, na análise material e social do diagnóstico do Estado, Marx discute o modo
como a sociedade civil burguesa se organiza. Ele apresenta os primeiros elementos teóricos
para a desmitificação da propriedade privada, que é o embrião do desenvolvimento da sua
crítica posterior à economia política. Essa desmitificação está fundamentada na denúncia da
posse da propriedade enquanto condição social assegurada pelos próprios interesses dos
indivíduos no Estado ético, na forma de um interesse comum. Marx quer mostrar que, na
verdade, esse não é um interesse comum, mas apenas o direito de uma parte dos seres
humanos, a saber, os que tem a posse da propriedade privada e que pretendem garanti-la
84
através do Estado, por meios das leis. Portanto, a antinomia que Marx diz existir no §261 da
FD se desnuda com toda a sua realidade, uma vez que o Estado se apresenta não como a
forma política da universalidade de toda a sociedade, mas como a expressão da garantia legal
direcionada aos interesses particulares.
A noção de unidade, em Hegel, apresenta o Estado ético como sendo capaz de
conduzir a sociedade civil. Será por meio de uma abstração transcendente, a Aufhebung, que
as contradições entre os interesses particulares da sociedade civil burguesa, para Hegel, são
resolvidas em uma síntese mais elevada que estabeleceria o interesse comum, representado
como uma vontade universal, que é o Estado ético.
Para Hegel, o Estado, como resultado da suprassunção dos interesses e das
necessidades da esfera do particular em um interesse geral, universal, pode, de modo real,
suprimir as contradições expressas no modo de vida político da sociedade civil burguesa.
Importante verificar a complexidade dessa formulação de Hegel. Ele próprio reconhece que a
unidade ou a sua concepção do absoluto não exclui a possiblidade de qualquer contradição ao
absoluto. Ele admite que há contradições, mas elas são aparentes, havendo, quanto à essência,
uma unidade imanente.
As contradições entre a sociedade civil e o Estado, identificadas por Hegel, são
aparentes porque ele faz uma consideração estática de seu objeto. Essa “imagem” não revela o
movimento contraditório e a incompatibilidade da relação entre os interesses particulares e o
interesse universal do Estado ético. Portanto, para Marx, o que está na base é uma unidade
formal mistificada da realidade. O institucionalismo hegeliano se faz forte para conduzir e
justificar a sua teoria de Estado, que se afirmaria como uma tendência de a sociedade civil
levar ao Estado, e de o Estado relacionar-se imparcialmente com a sociedade civil.
Marx opõe-se a essa visão de Hegel, pois considera que o movimento da matéria tem
um propósito que se realiza na práxis, no real. Essa interpretação deve ser considerada
fundamental para a compreensão, tanto de sua crítica ao idealismo racionalista do Estado
ético, quanto de sua formulação de uma teoria filosófica do materialismo histórico. A
suprassunção da teoria de Hegel toma forma a partir da Crítica à Filosofia do Direito de
Hegel, pois essa lógica abstrata de Hegel não expressa o movimento dialético da relação entre
a sociedade civil burguesa e o Estado.
Em síntese, para Marx, os argumentos de Hegel são de essência metafísica e não mais
dialética. Para ele, as categorias hegelianas que formam a ideia de Estado ético são
determinação lógico-metafísica. “O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa
85
da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração
da lógica.” (MARX, 2010a, p.39). O Estado, em Hegel, tornou-se um operador lógico-
metafísico, capaz de deduzir-se, pois passa a ser uma relação lógica e não da própria filosofia
do direito, segundo a crítica de Marx.
Hegel, desse modo, estaria propondo uma teoria de Estado que deve satisfazer as
exigências normativas impostas pelos padrões de reconhecimento recíproco das consciências
nas esferas da família e da sociedade civil burguesa. A crítica de Marx apresenta a teoria de
Hegel como uma filosofia social da autorrealização dos indivíduos; estruturada em direitos,
liberdades e deveres, tal como os “liberais”, mas que não é abstratamente deduzida de um
Estado natural ou de uma liberdade negativa, e sim efetivada num contexto ético
intersubjetivo compartilhado na história. Esta compreensão decorre da ruptura epistemológica
de Hegel do modo de entender a subjetividade como foi elaborada por ele na FE, e que já
abordamos em capítulos anteriores.
Como vimos, Hegel desenvolveu uma crítica ao contratualismo e elaborou um outro
conceito de Estado. Para isso, valeu-se das ideias de unidade e de imanência, pensadas na FE.
Elas estão na base da formulação segundo a qual é pela supremacia da universalidade do
Estado que ele se efetiva na história, subordinando os interesses e as relações das
particularidades à universalidade. Ele propõe que a liberdade se efetiva como concreta na
ideia de Estado ético. Para ele, a essência do Estado consiste nos seguintes pontos:
plena, ou seja, é a esfera que efetiva a subjetividade humana, que se apresenta na história em
ato, mas que está em potência nas relações sociais do modo de vida capitalista, como ele
mesmo aborda no §261 da FD. A subjetividade se torna um componente essencial para
compreender a essência do Estado ético hegeliano, que se realiza enquanto universal. O
Estado, então, para Hegel será o resultado da suprassunção, Aufhebung, dessas vontades
livres, ou seja, será a expressão da subjetividade humana suprassumida, que se reconhece
enquanto livre num “objetivo final” interno, e que se efetiva de um modo externo, a saber, no
Estado.
Hegel apresenta, na FD, como essa subjetividade presente na sociedade civil burguesa
se realiza no Estado:
O fim da corporação, enquanto fim delimitado e finito, tem sua verdade [...] no fim
universal em si e para si e na efetividade absoluta desse; esfera da sociedade civil-
burguesa passa, por isso, Estado. A cidade e o campo, - aquela, a sede da indústria
burguesa, da reflexão que se eleva e se isola dentro de si [;] esse, a sede da eticidade
que repousa sobre a natureza, - os indivíduos que medeiam sua autoconservação em
relação com outras pessoas jurídicas e a família constituem, de maneira geral, os
dois momentos, ainda ideais, a partir dos quais o Estado surge como seu fundamento
verdadeiro. - Esse desenvolvimento da eticidade imediata mediante cisão da
sociedade civil-burguesa até o Estado, o qual se mostra como seu verdadeiro
fundamento, e apenas tal desenvolvimento é a demonstração científica do conceito
de Estado. (HEGEL, 2010, p.228-229, §256).
Percebe-se, pela leitura do texto de Hegel, que, nessa nova condição social e política,
expressa pela sociedade civil burguesa, a subjetividade é conservada e transformada, na
modernidade, em constitutiva do fim último, a saber, do Estado ético. Os interesses dessa
subjetividade estão expressos no Estado ético hegeliano como sendo uma espécie de
recuperação da ideia da esfera da política da pólis grega, do espaço da realização da
coletividade do interesse público. Assim é o Estado moderno para Hegel: a unidade da ideia
de universal capaz de expressar o bem comum da política de modo a representar
indissociavelmente esse novo modo de vida que surge decorrente do capitalismo, a expressão
humana subjetiva presente nas esferas da família e da sociedade civil burguesa.
Desse modo, a noção de fim último em Hegel está diretamente vinculada com o
conceito de efetivação enquanto ideia na sua estrutura lógico-conceitual, na sua teoria de
Estado como sendo o seu fim imanente nos modos de vida na sociedade civil burguesa que se
reconhecem e atuam nas esferas da subjetividade moderna em relação à família e à sociedade
civil burguesa, e, em geral, nas dimensões do direito privado, como “uma necessidade
exterior” como sendo uma potência superior - um poder coercitivo -, mas que é,
88
simultaneamente, “seu fim imanente”, pois o Estado se institui e se organiza como o espaço
de convergência e da unificação dos interesses particulares dos indivíduos singulares e do
interesse universal (FD, §261, 2010).
Dessa forma, em Hegel há uma plena reciprocidade de conteúdos entre direitos e
deveres, tanto dos indivíduos organizados na sociedade civil, quanto destes na relação com o
Estado. É, portanto, um sistema integrado do Estado, que parte das esferas sociais distintas,
enquanto modos de vida distintos, e as integram, mediante o pressuposto segundo o qual, em
essência, elas estariam contempladas, de forma imanente, na efetivação do fim último, o
Estado. Assim, a aparente contradição entras as esferas da família e da sociedade civil em
relação ao Estado estaria suprimida. Por intermédio da ideia hegeliana de imanência, o Estado
se constituiria em resultado da suprassunção dos próprios processos de desenvolvimento
social nas esferas singulares e particulares, efetivando-se como universal.
Essa ideia de imanência está na base da relação que fundamentaria a realização do
reconhecimento das consciências como livres. No entanto, agora não mais sob a forma do
Espírito subjetivo, como na Fenomenologia do Espírito, mas enquanto consciências que se
fazem no mundo como modos efetivos e concretos de liberdade, no caso, no Estado enquanto
espírito objetivo.
O Estado moderno em Hegel, portanto, será o resultado da suprassunção das
“incompatibilidades” entre as esferas da família e da sociedade civil burguesa. O Estado ético
é a realização mais alta das liberdades individuais finitas, é o universal concreto. A Eticidade
se efetiva no Estado enquanto a esfera que suprassume os interesses singulares (da família) e
particulares (da sociedade civil burguesa). Hegel defende que é no Estado que o indivíduo
singular, com seus interesses particulares representados na sociedade civil burguesa, se
desenvolve plenamente. E mais, é o espaço político em que essas vontades podem ser
reconhecidas no seu pleno direito, de modo a se efetivarem, ao mesmo tempo em que, em
contrapartida, reconhecem o Estado como seu “fim último”.
O Estado ético hegeliano, portanto, se efetiva enquanto a soberania interna, por
princípio, da unidade das instituições. Essa unidade é o que garante o reconhecimento
recíproco dos indivíduos, perpassando as liberdades individuais de cada um “o seu espírito
substancial”.
O princípio dos Estados modernos tem este vigor e esta profundidade de deixar o
princípio da subjetividade completar-se até o extremo autônomo da particularidade
pessoal e, ao mesmo tempo, de reconduzi-lo à unidade substancial e, assim, de
89
relação a esses processos. Já Marx acredita que o está em marcha é uma teoria política, social
e econômica contraditória, de tal forma que as forças sociais tornaram-se inconciliável no
Estado.
De certa forma, Marx interpreta a sociedade moderna capitalista de forma contrária à
Hegel. Para ele, o homem está dominado pelo mundo que ele mesmo criou, e a sociedade
moderna capitalista passa a ser um obstáculo à realização da essência da vida livre.
Marx busca desmitificar a deia de o Estado hegeliano ser o fim último da liberdade
humana, em que ela se tornaria concreta. Hegel apropriou-se da noção de vontade de
Rousseau e a utilizou para desenvolver sua teoria de que a liberdade se realiza enquanto um
fim último no Estado ético. Ele compartilha do argumento de que a vontade visa a justiça, em
que o interesse comum e o bem de estar de cada uma das partes se fazem na coletividade,
enquanto uma unidade que se efetiva no fim último que é o Estado. Essa é uma ideia de
vontade que é assumida e desenvolvida por Hegel a partir de Rousseau.
conforme Hegel, tem sua gênese no próprio Estado moderno. Esse Estado se faz no mundo
enquanto essência da representação de uma sociedade unívoca, uma vez que é a pilastra que
sustenta e que torna possível a recuperação de uma concepção ética que afasta a sociedade
civil burguesa de seus interesses particulares e a ergue à esfera do interesse universal.
Marx, na Crítica de 1843, afirma que a noção hegeliana de imanência cria uma
equivocada ideia de identidade entre o sistema dos interesses particulares da sociedade civil
burguesa e o sistema de interesse universal, o Estado ético.
Marx procura mostrar que a noção de unidade interna dos interesses particulares e
universais resulta na alienação da individualidade e do mundo. Assim, critica duramente as
pretensões do projeto ético de Hegel de postular o Estado como sendo a efetividade plena da
liberdade humana.
Ele se relaciona com seus interesses e leis como “potência superior”. Tais
“interesses” e “leis” apresentam-se como seus “subordinados”. Eles vivem na
“dependência” do Estado. Precisamente porque “subordinação” e “dependência” são
relações externas, que restringem e se contrapõem à essência autônoma, é a relação
da “família” e da “sociedade civil” com o Estado aquela da “necessidade externa”,
de uma necessidade que vai contra a essência interna da coisa. Que “as leis do
direito privado” dependem “do caráter determinado do Estado”, que elas se
modificam segundo ele, é algo que está subsumido na relação da “necessidade
externa”, precisamente porque “sociedade civil e família”, em seu verdadeiro, quer
dizer, autônomo e pleno desenvolvimento, são pressupostas ao Estado como
“esferas” particulares. “Subordinação” e “dependência” são as expressões para uma
identidade “externa”, forçada e aparente, para cuja expressão lógica Hegel utiliza,
corretamente, a “necessidade externa”. Na “subordinação” e na “dependência”,
Hegel continuou a desenvolver o lado da identidade discrepante, o lado da alienação
no interior da unidade. (MARX, 2005, p.28).
A unidade do fim último geral do Estado e dos interesses particulares dos indivíduos
deve consistir em que seus deveres para com o Estado e seus direitos em relação a
ele sejam idênticos. (Assim, por exemplo, o dever de respeitar a propriedade
coincide com o direito sobre ela. (MARX, 2005, p.28).
92
O problema de Marx parece ser o mesmo de Hegel: quer saber o que pode ser
universal na comunidade dos homens, uma vez que ele quer pensar a sociedade civil burguesa
tal como Hegel. No entanto, a sociedade civil burguesa, para Hegel, é a expressão da
universalidade no Estado, enquanto para Marx não é.
Mas Hegel confunde, aqui, o Estado como totalidade da existência de um povo com
o Estado político. Esse particular não é o “particular no”, mas “fora do Estado”, quer
dizer, fora do Estado político. Ele não apenas não é “o particular, real no Estado”,
como é também a “irrealidade do Estado”. Hegel quer demonstrar que os estamentos
da sociedade civil são os estamentos políticos e, para provar isso, supõe que os
estamentos da sociedade civil sejam a “particularização do Estado político”, isto é,
que a sociedade civil seja a sociedade política. A expressão “o particular no Estado”
só pode significar, aqui, “a particularização do Estado”. Hegel, por uma má
consciência, escolhe a expressão indeterminada. Não só ele mesmo desenvolveu o
contrário, mas ele mesmo o confirma ainda nesse parágrafo, ao qualificar a
sociedade civil como “estamento privado”. Muito prudente é, também, a
determinação de que o particular “liga-se” ao universal. Ligar é coisa que pode ser
feita com as coisas mais heterogêneas. Não se trata aqui, porém, de uma transição
gradual, mas de uma transubstanciação, e é inútil não querer ver este abismo que é
transposto e demonstrado por meio da própria transposição.
O indivíduo, que na sociedade civil burguesa deve perseguir o seu interesse particular,
deve, no Estado, buscar o interesse de todos. Marx diz que essa “transubstanciação” não tem
sentido. Hegel identifica que há uma oposição entre a vida política e a vida social, mas
pretende resolver essa condição por meio de unidade. A unidade substancial que Hegel
diagnostica é, em Marx, o antagonismo central da sociedade moderna. Na Crítica de 1843,
ele apresenta que há uma total incompatibilidade nessa transposição do conteúdo particular e
alienado da vida social para o conteúdo genérico político, por meio do Estado, de modo que
são inconciliáveis as concepções subjetivas desses indivíduos e seus interesses particulares
com uma noção de totalidade; pois o particular, segundo Marx, encontra-se fora do Estado. E
assim, a “ ‘vontade substancial evidente, nítida para si mesma’, se transforma numa vontade
obscura, fragmentada” (MARX, 2005, p.118).
Sendo assim, na abordagem de Hegel, segundo Marx, o problema perderia uma
dimensão objetiva, pois o objeto, a saber, a real natureza do Estado moderno, passa a ser uma
consequência da ideia de como os indivíduos tem seus interesses garantidos. Essa abordagem
nos leva a negligenciar a natureza objetiva das relações sociais e a explicá-las a partir das
vontades. Ao invés disso, Marx propõe uma análise política da realidade no intuito de
identificar os tipos de relações que fundam materialmente o Estado burguês.
Marx pensa o indivíduo como um sujeito histórico, que resulta da atividade social dos
homens, atividade essa pensada, já nesse texto de 1843, como expressão de todo o povo. Com
93
isso, Marx nega o idealismo da filosofia hegeliana. Para Marx, na Crítica de 1843, a falta
dessa perspectiva concreta sobre a realidade humana é causa da idealização da sociedade
moderna por Hegel. É, segundo ele, o idealismo na sua forma objetiva, na construção de uma
filosofia social e política para justificar o Estado moderno burguês.
O que é importante observar é que, ao deslocar o problema da compreensão do Estado
para a compreensão da sociedade civil burguesa, Marx está colocando um conjunto de
questões que não pode ser resolvido a partir de uma ótica puramente teórico-política ou
jurídico-política. Por exemplo, o procedimento de Marx faz surgir perguntas como as
seguintes: a compreensão da sociedade civil burguesa pode abrir a via para a compreensão do
que seja o Estado? Se a sociedade civil burguesa é o reino do particular, do domínio do
mercado, onde cada individualidade se transubstancializa no Estado, como garantir a vontade
como expressão universal?
§ 262. A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de
seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude, para ser, a partir da
idealidade delas, Espírito real e infinito para si, divide, por conseguinte, nessas
esferas, a matéria dessa sua realidade, os indivíduos como a multidão, de maneira
que, no singular, essa divisão aparece mediada pelas circunstâncias, pelo arbítrio e
pela escolha própria de sua determinação. Se traduzirmos essa frase em prosa,
teremos: O que serve de mediação para a relação entre o Estado, a família e a
sociedade civil são as “circunstâncias, o arbítrio e a escolha própria da
determinação”. A razão do Estado nada tem a ver, portanto, com a divisão da
matéria do Estado em família e sociedade civil. O Estado provém delas de um modo
inconsciente e arbitrário. Família e sociedade civil aparecem como o escuro fundo
natural donde se acende a luz do Estado. Sob a matéria do Estado estão as funções
do Estado, bem entendido, família e sociedade civil, na medida em que elas formam
partes do Estado, em que participam do Estado como tal. (MARX, 2010a, p.29)
96
A relação real é: “que a divisão” da matéria do Estado é, “no singular, mediada pelas
circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação”. Esse fato,
essa relação real é expressa, pela especulação, como manifestação, fenômeno. Essas
circunstâncias, esse arbítrio, essa escolha da determinação, essa mediação real são
tão somente a manifestação de uma mediação que a Ideia real executa nela mesma e
que se passa por detrás das cortinas. A realidade não é expressa como ela mesma,
mas sim como outra realidade. (MARX, 2010a, p.29)
Logo, aos olhos de Marx, a tese de Hegel é uma mistificação; porque, ao diagnosticar
que o Estado, enquanto uma instituição real, resulta das contradições da sociedade civil,
Hegel está admitindo que ele é contraditório em sua essência. O Estado moderno é a forma
real que medeia e representa as contradições entre os interesses presentes na sociedade civil
burguesa. Desse modo, o Estado, para Marx, é, em sua essência, a representação do limite
histórico da liberdade dos seres humanos.
Para Marx, o Estado ético hegeliano é uma “antinomia sem solução”, pois é a
existência de duas realidades contraditórias e incompatíveis que compõem a essência do
Estado moderno: a exterioridade do Estado em relação à família e à sociedade civil, e ao
mesmo tempo o fato de ele justificar-se como o fim imanente delas.
A ideia de imanência, como alvo da crítica de Marx, decorre do fato de Hegel não
demonstrar a unidade essencial entre a sociedade civil burguesa e os interesses gerais e, tão
pouco, que a essência interna do Estado esteja associada, de modo indissociáveis, aos
interesses particulares, que se transformariam assim num interesse universal.
Marx, no seu manuscrito de 1843, ao mostrar que o Estado hegeliano é uma
antinomia sem solução, por ser uma contradição incontornável e real, recupera a necessidade
de pensar a liberdade humana como uma relação social que ultrapassa a necessidade do
Estado. A sua ruptura com o idealismo hegeliano ganha uma dimensão política: a necessidade
de desenvolver uma teoria filosófica social capaz de pensar a liberdade como imanente e
indissociável das relações sociais, ambientais, políticas, e não mais submetida ou determinada
pela garantia dos interesses particulares da propriedade privada.
Como se pode ver, a crítica marxiana de 1843 estabelece uma importante formulação
que mais tarde será desenvolvida por ele, através dos conceitos de luta de classes e de
materialismo histórico: o estado como comitê da classe dominante. Marx, ao apresentar O
Estado ético de Hegel como sendo uma antinomia sem solução, rompe com o idealismo
hegeliano. Ao diagnosticar que a essência real do Estado é uma contradição não formal, mas
real e sem solução, Marx não faz apenas uma crítica idealista ao idealismo. Ele apresenta as
condições necessárias e suficientes para uma atualização materialista da dialética.
Portanto, é nesse contexto que começa a aparecer a tese segundo a qual não haverá
como alcançar a desalienação e a liberdade humana enquanto o Estado não for extinto. Esse
98
debate tem grande relevância para o entendimento da política e do papel do Estado e das
liberdades individuais na contemporaneidade.
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