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V.S
1° edição
DADOS DE COPYRIGHT
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada com acesso livre na internet com o
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
exclusivo de compra futura.
É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou
quaisquer usos comerciais do presente conteúdo.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes
são produtos da imaginação do autor ou são usados ficticiamente.
Qualquer semelhança com eventos reais, locais, organizações ou pessoas,
vivas ou mortas, é mera coincidência.
Sumário
PARTE 1 7
2 8
3 11
4 14
5 17
6 18
7 21
8 24
9 28
PARTE 2 32
2 35
3 41
4 43
5 45
6 50
PARTE 3 57
2 59
3 63
4 64
5 67
6 71
7 75
8 76
PARTE 4 78
2 81
3 85
4 88
PARTE 5 93
POSFÁCIO 96
PARTE 1
DE MANHÃ, ACORDEI chorando. Ultimamente, tem sido sempre assim. Já
nem sei mais se meu pranto é tristeza. Acho que meus sentimentos se foram com
as lágrimas. Fiquei na cama sem ânimo até que minha mãe entrou e me mandou
levantar.
Não estava nevando, mas a estrada estava coberta de gelo. Metade dos
carros que vimos tinham correntes nos pneus. Meu pai dirigia, enquanto o pai de
Aki estava ao lado dele. A mãe de Aki e eu estávamos atrás. Os homens na frente
não paravam de falar sobre a neve. Chegaríamos ao aeroporto? O avião decolaria
no horário? A mãe de Aki e eu mal falamos. Eu olhava pela janela a paisagem
passando. Os campos dos dois lados da estrada estavam cobertos de neve até
onde a vista alcançava. Raios de sol cortavam as nuvens, iluminando uma
cordilheira distante. A mãe de Aki segurava a pequena urna com as cinzas em
seu colo.
A neve ficava mais profunda à medida que nos aproximávamos do topo da
colina. Meu pai parou o carro, e o pai de Aki saiu para colocar correntes nos
pneus. Para passar o tempo, fui dar um curto passeio.
Do outro lado da área do estacionamento, havia um bosque de árvores. A
neve intocada cobria a vegetação rasteira, enquanto a neve que se acumulava
nas copas das árvores caia no chão com um som seco. Quando olhei para trás,
além da balaustrada, vi o oceano de inverno. Estava calmo e suave,
completamente azul. Não importa para onde eu olhasse, minhas memórias me
consumiram. Apenas guardei esses sentimentos e virei de costas para o oceano.
A neve na floresta era profunda. Havia galhos quebrados e alguns troncos,
semelhantes a tocos meio enterrados, que dificultavam a caminhada. De repente,
em algum lugar do bosque, um pássaro soltou um pio agudo e voou. Parei e
fiquei à escuta de outros barulhos, mas estava tão silencioso, era como se não
houvesse mais ninguém no mundo. Ao fechar os olhos, pude ouvir as correntes
dos carros na estrada próxima, como som de sinos. Comecei a não saber onde
estava ou quem eu era. Então ouvi meu pai me chamando.
Depois que passamos pela colina, o resto da viagem foi tranquila. Chegamos
ao aeroporto a tempo, fizemos o check-in e fomos para o portão de embarque.
— Obrigado por tudo, — disse meus pais aos pais de Aki.
— Nós quem deveríamos estar agradecendo — respondeu o pai de Aki,
sorrindo. — Tenho certeza que Aki está muito feliz por Sakutaro ter vindo
conosco.
Olhei para a pequena urna nas mãos da mãe de Aki. Aquela urna, em sua
bolsa de brocado... Aki estava realmente lá?
Depois que o avião decolou, adormeci e tive um sonho. Era sobre Aki
quando ela ainda era saudável, e no sonho ela sorria, aquele sorriso tímido dela.
Ela me chamou: "Saku-chan". Sua voz permaneceu em meus ouvidos. Desejei
que o sonho fosse real e que esta realidade não fosse um sonho. Mas não foi
esse o caso. E era por isso que, sempre que acordava, sempre estava chorando.
Não foi porque eu estava triste. Quando você acorda depois de um sonho feliz
para a realidade, há um abismo que você precisa encarar, e não é possível
atravessá-lo sem derramar lágrimas. Não importa quantas vezes faça isso.
1
https://en.wikipedia.org/wiki/National_Diet muito provável que se refira a essa organização.
Depois do dia no hospital, Aki e eu nos víamos muito como representantes
de classe. Mas embora estivéssemos muitas vezes juntos, eu realmente não
pensava nela como uma garota. Talvez fosse porque estávamos muito próximos
que eu não percebi o quão atraente ela era. Ela era muito fofa, na verdade, com
uma boa personalidade e muito inteligente também. Ela tinha muitos admiradores
entre os rapazes da turma. E antes que eu percebesse, estava sentindo a
inimizade deles. Quando jogávamos basquete ou futebol no ginásio, alguém
sempre batia em mim de propósito ou me chutava nas canelas. Ficou bem claro
que alguns caras queriam isso comigo, mas no começo eu não entendi o que
estava acontecendo. Achei que esses caras me odiavam por algum motivo, o que
realmente me incomodou.
Um dia, porém, aconteceu algo que me esclareceu tudo. No segundo
período, cada turma do segundo ano teve de apresentar uma peça de teatro para
o Festival Cultural. A votação do bloco das garotas levou a melhor, e a nossa
turma acabou por se apaixonar por Romeu e Julieta. Aki foi escolhida para
Julieta, graças ao apoio unânime das outras garotas. O Romeu, seguindo a regra
não escrita de que as coisas que ninguém quer fazer cabe ao representante da
turma, foi para mim.
As garotas assumiram a liderança e os ensaios avançaram. A cena da janela,
onde Julieta diz: "Ó Romeu, Romeu! Por que és tu Romeu? Renegue teu pai e
recuse seu nome! Ou, se não quiser, apenas jura meu amor" foi engraçado
porque Aki, séria por natureza, interpretou isso tão sinceramente. E a parte em
que a diretora, fazendo uma aparição especial como Enfermeira, tinha que dizer:
"Agora, pela minha virgindade aos doze anos, mandei que ela viesse",
exatamente como está no roteiro, sempre fazia todo mundo cair na gargalhada.
Na cena matinal no quarto de Julieta, onde Romeu sussurra "Mais luz e luz - mais
escuridão e escuridão nossas desgraças" e vai embora, tivemos que nos beijar.
Julieta, não querendo que ele vá, e Romeu, querendo ficar, se entreolham e se
beijam na grade da varanda.
Um dia, dois caras da nossa turma bloquearam meu caminho de repente.
— Não fique se achando perto da Hirose, entendeu? — disse um.
— Só porque você tira boas notas não faz de você um manda chuva, —
disse o outro.
— Do que você está falando? — perguntei.
— Cale-se. — Um deles me deu um soco no estômago.
Foi mais uma ameaça do que qualquer coisa, e eu me preparei, então não
doeu muito. Talvez isso os tenha satisfeito, porque eles jogaram os ombros para
trás e foram embora. Em vez da humilhação que esperava, senti alegria.
Quando você adiciona a quantidade certa de ácido a uma solução de
fenolftaleína que é vermelha devido à reação com uma base, ela é neutralizada e
fica transparente. Da mesma forma, o mundo ficou perfeitamente claro: aqueles
caras estavam com ciúmes de mim.
☆
Quanto a Aki, objeto de tudo isso, corriam rumores de que ela tinha um
namorado que estava no último ano do ensino médio. Eu não sabia se era
verdade e nunca ouvi isso diretamente de Aki. Eu simplesmente ouvia as garotas
da classe conversando sobre isso às vezes, dizendo que ele era alto e bonito e
jogava vôlei. Dê um tempo, pensei, homens de verdade praticam kendo. Kendô!
Neste momento, a Aki tinha o hábito de ouvir rádio enquanto estudava. Eu
até sabia qual era o seu programa preferido. Basicamente, os rapazes e as moças
– nenhum deles propriamente inteligentes – enviavam cartões-postais para o
programa e ficavam entusiasmados se o DJ, que falava rápido, os lesse em voz
alta. Pela primeira vez na minha vida, escrevi um cartão-postal a pedir uma
música, não me perguntem porquê. Talvez tenha sido por causa do cara do
ensino médio, ou por todos os problemas que sofri por causa dela. Mas, acima de
tudo, embora ainda não tivesse consciência disso, era o prenúncio do meu amor
por ela.
Na véspera de Natal, o programa apresentaria a horrível "hora especial de
pedido da Noite Santa para os amantes". Naturalmente, eu poderia presumir que
a competição seria acirrada. Para ter certeza absoluta de que meu cartão postal
seria lido no ar, tive que escrever algo que realmente os prendesse.
E agora vamos ao nosso próximo cartão-postal. Isto é de Romeu, da quarta
turma, segundo ano.
"Hoje gostaria de escrever sobre minha colega de classe, A.H. Ela é uma
garota quieta com cabelo comprido. Seu rosto é como uma versão frágil de
'Nausicaä do Vale do Vento'. Ela tem uma personalidade brilhante e foi
representante de classe por muito tempo. Para o Festival Cultural de novembro,
nossa turma apresentou Romeu e Julieta. Ela deveria interpretar Julieta e eu
deveria interpretar Romeu. Mas logo depois que começamos os ensaios, ela ficou
doente e faltou muito às aulas. Então tivemos que conseguir uma substituta, e eu
atuei em Romeu e Julieta com outra garota. Depois descobrimos que A.H. tinha
leucemia. Ela ainda está no hospital recebendo tratamento. Segundo meus
colegas que a visitaram, todo o seu cabelo comprido caiu e ela perdeu tanto peso
que mal dá para reconhecê-la. Ela provavelmente vai passar a véspera de Natal
na cama do hospital. Talvez ela esteja ouvindo esse programa no rádio. Então,
para A.H., que não pôde interpretar Julieta no Festival Cultural, por favor, toque
'Tonight' de West Side Story'."
— O que foi aquilo? — Aki disse no dia seguinte, me cercando na escola. —
Aquele pedido de ontem, foi você, não foi?
— Do que você está falando?
— Ah, para de fingir que não sabe. Romeu da quarta turma, segundo ano,
lembra. Leucemia? Todo o meu cabelo tinha caído e eu perdi tanto peso que você
mal conseguia me reconhecer? Como você pôde mentir assim?
— Ei, eu disse algumas coisas legais.
— Uma frágil Nausicaä, então. — Ela suspirou. — Olha, Matsumoto. Eu não
me importo com o que você escreve sobre mim. Mas realmente existem pessoas
com leucemia por aí, entende? Mesmo que seja uma piada, usar alguém assim
para chamar a atenção não é certo. Eu realmente odeio isso.
Apesar de me sentir incomodado com o seu tom presunçoso, gostei da raiva
de Aki. Uma sensação de frescura, como uma brisa, espalhou-se por mim.
Além de um novo sentimento em relação a Aki, trazia consigo uma sensação
de satisfação comigo mesmo. Pela primeira vez, estava a vendo como uma
garota.
4
AKI E EU estávamos em turmas diferentes no terceiro ano do ensino
fundamental. Ainda éramos representantes de classe, então uma vez por semana
nos víamos nas reuniões extracurriculares. Além disso, no final do primeiro
semestre, ela começou a estudar na biblioteca de vez em quando. Assim que as
férias de verão começaram, ela veio todos os dias. Depois que o torneio da
cidade acabou, eu não praticava mais kendo, então passei a dedicar mais tempo
ao trabalho assalariado. Também comecei a estudar para o vestibular, passando
as manhãs na sala de leitura climatizada da biblioteca. Nos encontrávamos muito
e, quando isso acontecia, estudávamos juntos ou tomávamos sorvete e
conversávamos nos intervalos.
— De alguma forma eu não sinto nenhuma pressão, sabe? — Eu disse. —
Estamos de férias e não consigo estudar.
— Não é que tenha que se esforçar tanto assim. Você vai passar com
certeza.
— Essa não é a questão, sabe. Eu li uma coisa em uma revista científica
outro dia que por volta do ano 2000, um asteroide vai colidir com a Terra e
bagunçar totalmente o ecossistema.
— É sério? — Aki disse enquanto tomava seu sorvete.
— O que quis dizer com "É sério?" — eu continuei, a dizer em tom sério — A
camada de ozônio está cheia de buracos, as florestas tropicais estão diminuindo...
Quando você e eu fomos avós, a Terra poderá não ser mais capaz de sustentar a
vida.
— Que incrível.
— Você não parece muito impressionado, na verdade.
— Desculpe — disse ela. — É difícil sentir que realmente está acontecendo.
Parece real para você?
— Bem, se você me perguntar assim...
— Não, né?
— Tudo bem, mas isso não vem ao caso. Vai acontecer de qualquer
maneira.
— Então tudo bem, por que se preocupar com isso?
Tive a sensação de que ela poderia estar certa.
— Não faz sentido se preocupar com algo tão distante.
— Na verdade, faltam cerca de dez anos.
— Teremos vinte e cinco anos, não é? — Aki disse. Com um olhar distante,
ela acrescentou: — Mas quem sabe o que acontecerá com qualquer um de nós
antes disso?
De repente, lembrei das hortênsias no Castelo da Colina. Devem ter
florescido duas vezes desde o nosso passeio daquele dia, mas não tínhamos ido
vê-las juntos. Com a escola e tudo o que estava acontecendo, eu havia esquecido
delas. Imaginei que a Aki também tivesse se esquecido. E, apesar de toda a
minha conversa sobre a queda de asteroides e a destruição da camada de ozônio,
tinha a sensação de que, no início do verão do ano 2000, as hortênsias iriam
florescer no Castelo da Colina. E não haveria razão para nos apressarmos a
vê-las, porque poderíamos fazê-lo quando quiséssemos.
Foi assim que se passaram as férias de verão. Eu me deprimi com o futuro
do ambiente terrestre enquanto memorizava coisas como "375 d.C., Grande
Invasão Bárbara" e "1642, Cromwell e a Guerra Civil Inglesa". Resolvia equações
simultâneas e problemas de funções quadráticas. Fui pescar com o meu pai de
vez em quando, comprei alguns CDs novos e falei com a Aki enquanto
tomávamos sorvete.
— Saku-chan.
Quando Aki me chamou assim do nada, engoli rapidamente o sorvete que
tinha acabado de colocar na boca.
— O que quer dizer com isso?
— É assim que sua mãe te chama, Matsumoto. — Aki sorriu.
— Você não é minha mãe.
— Sim, mas eu decidi. Vou te chamar de 'Saku-chan' de agora em diante.
— Pode me fazer um favor? Não faça coisas assim sem me perguntar.
— Eu já me decidi.
Foi assim que a Aki decidiu tudo para mim, a ponto de que eu não sabia
mais quem eu era.
Naquela época, eu não achava que a doença de Aki fosse muito grave. A
morte era algo que acontecia com pessoas idosas, não conosco. Claro, às vezes
ficávamos doentes. Pegamos uma gripe ou quebramos um braço. Mas a morte
era algo completamente diferente, algo distante no futuro, que vinha depois de
você ter vivido por décadas. Era uma estrada branca que se estendia em frente,
desaparecendo em uma luz deslumbrante muito, muito distante. Você não sabia o
que havia além dela. Alguns diziam que era o nada, mas nenhum ser humano o
tinha visto de fato.
— Gostaria de ter ido, — sussurrou Aki.
Eu a havia trazido uma boneca de madeira esculpida por um artista
aborígine como presente de nossa viagem de formatura. Ela me agradeceu e
colocou a boneca em seu colo.
— Eu quase nunca peguei um resfriado. Desde que eu era pequena. E
agora, depois de tudo ficar doente.
— Podemos ir de novo, quando você quiser, — eu disse. — Cairns fica a
apenas sete horas de avião. É como ir a Tóquio no trem-bala.
— Isso é verdade. — Aki ainda parecia triste. — Eu só queria poder ter ido
com todo mundo.
Peguei alguns lanches em uma sacola de loja de conveniência. Seus
favoritos, pudim de creme e biscoitos de chocolate.
— Quer um pouco?
— Obrigado.
Comemos o pudim em silêncio. Depois que terminamos o pudim, comemos
os biscoitos. Se eu parasse de mastigar e prestasse atenção, ouviria o som da Aki
mordendo o biscoito. Crek, Crek, Crek, Crek – quase como se ela estivesse me
comendo.
— Podemos ir para lá em nossa lua de mel, — eu disse depois de um tempo.
Aki, que estava sentada com um olhar vazio, virou-se para mim com um
olhar questionador.
— Para a Austrália. Podemos ir para lá em nossa lua de mel.
— Sim, — disse ela, como se seu coração não estivesse realmente nisso.
Então, voltando a si, ela perguntou: — Quem?
— 'Quem?' Você e eu, certo?
— Você e eu? — Ela riu alto.
— Você tem outra pessoa em mente?
— Não, — disse ela, e parou de rir. — Mas é estranho.
— Estranho, como?
— Vamos para nossa lua de mel.
— Em que parte?
— O que você quer dizer com isso?
— Ir para a Austrália? Ou vai se casar?
Aki pensou por um tempo e disse:
— Vou me casar, eu acho.
— O que há de tão estranho nisso?
— Eu não sei.
Peguei um biscoito da caixa. A camada de chocolate na parte superior havia
começado a derreter. O clima ainda estava muito quente.
— Você tem razão, é estranho.
— Não é?
— Sim. Você e eu, recém-casados.
— Faz você rir, não é?
— Sim. É como dizer, adivinhe? A Madonna é realmente virgem.
— O que isso significa?
— Eu não sei.
A conversa foi interrompida ali. Continuamos mordiscando biscoitos, como
se estivéssemos mordiscando o tempo. Crocante, crocante, crocante, crocante...
Tudo parecia ter acontecido há muito, muito tempo.
2
O VERÃO ESTAVA SE APROXIMANDO, e os dias estavam ficando mais
longos. Fazíamos muitos desvios no caminho da escola para casa para aproveitar
ao máximo a luz do dia até tão tarde. O cheiro de folhas novas estava por toda
parte. Nós nos encontrávamos no santuário e caminhávamos ao longo do aterro,
rio acima. A margem do rio estava repleta de grama que brotava durante o verão,
e os peixes pulavam na superfície da água. Ao anoitecer, ouvíamos rãs. E de vez
em quando, quando não havia ninguém por perto, nós nos beijávamos, apenas
tocando levemente nossos lábios. Eu adorava aqueles beijos roubados. Sentia
como se o mundo tivesse me dado uma fruta e eu estivesse pegando sua parte
mais deliciosa.
Naquele dia, também, subimos o rio e voltamos ao santuário. Sentados nos
degraus de pedra, planejamos um passeio para as férias de maio. Aki queria ir ao
zoológico, mas nossa cidade não tinha um. O zoológico mais próximo ficava na
capital da região, onde fica o aeroporto. Isso ficava a cerca de duas horas de
trem, uma viagem de ida e volta de quatro horas. Pensei que ir à praia ou às
montanhas em algum lugar mais próximo seria bom o suficiente, mas Aki havia
decidido pelo zoológico e já estava fazendo planos. Ela disse que, se saíssemos
cedo, teríamos cinco horas lá.
— Vamos levar nosso próprio almoço, — disse ela. — Vou fazer um para
você também, Saku-chan. Assim, economizamos dinheiro.
— Obrigado. Então, resta apenas a passagem do trem.
— Você acha que podemos fazer isso?
Eu tinha dinheiro, economizado com meu trabalho na biblioteca. Tudo o que
tive de fazer foi deixar de comprar alguns CDs que eu queria.
— E quanto à sua família?
— Família?
— O que você vai dizer a eles?
— Que vou para o zoológico com você. É isso que estamos fazendo, certo?
Foi, mas não vi a necessidade de ser tão explícito. Isso fez com que a coisa
toda parecesse um passeio de escola primária.
— A palavra explícita vem do latim para desdobrado ou exposto. Você sabia
disso?
Ela estreitou os olhos.
— O que está planejando?
— Nada. Eu só queria saber como seus pais me veem.
— O que você quer dizer com isso?
— Você acha que eles me veem como o futuro marido da filha deles?
— Como se isso sequer passasse pela cabeça deles — riu Aki.
— Por que não?
— Por que não? Temos apenas dezesseis anos.
— Então, arredondando isso, temos vinte.
— Que tipo de matemática é essa?
Olhei para suas canelas, que ficavam para fora da saia. Na luz fraca do
crepúsculo, o branco de suas meias era deslumbrante.
— Eu só quero me apressar e me casar.
— Eu também, — disse ela timidamente.
— Porque quero que fiquemos juntos para sempre.
— Sim.
— Se nós dois nos sentimos assim, então por que isso não é possível?
— Por que isso, porque aquilo?
Ignorando sua pergunta, continuei:
— Porque o casamento é a união de dois indivíduos independentes e que
consentem. Então, o que acontece com as pessoas que não podem se tornar
independentes? Por exemplo se estiverem doentes ou algo assim. Elas não
deveriam ter permissão para casar?"
— Lá vamos nós de novo, — disse Aki com um suspiro.
— O que você acha que significa ser independente?
Ela pensou um pouco.
— Trabalhar e ganhar dinheiro sozinha, eu acho.
— Então, o que significa ganhar dinheiro?
— Eu não sei.
— Significa desempenhar seu papel na sociedade de acordo com suas
capacidades. A recompensa por fazer isso é o dinheiro. Portanto, se alguém tem
o talento de se apaixonar, por que não deveria dar total alcance a essa
capacidade e ser pago por isso?
— Acho que tem que ser algo que ajude a sociedade em geral.
— Não consigo pensar em nada que ajude mais a sociedade em geral do
que estar apaixonado por alguém.
— Na verdade, estou planejando me casar com alguém que diz coisas como
essas como se fossem perfeitamente razoáveis.
— Veja, a maioria das pessoas passa a vida pensando apenas em si mesma,
certo? — Continuei. — Desde que estejam comendo bem e comprando as coisas
que querem, não se importam com mais ninguém. Mas quando você se apaixona
por alguém, essa pessoa se torna mais importante para você do que você
mesmo. Se tivéssemos apenas um pouco de comida, eu daria a minha para você.
Se não tivéssemos muito dinheiro, eu lhe daria o que você quisesse e não
compraria nada para mim. Se algo tivesse um gosto bom para você, isso seria
suficiente para mim. Porque se você estiver feliz, eu também estarei feliz. É isso
que significa amar alguém. O que poderia ser mais importante do que isso?
Nada. Acho que alguém que descobriu a capacidade de amar fez uma descoberta
maior do que qualquer outra coisa pela qual alguém já ganhou um Prêmio Nobel.
E se as pessoas não entenderem isso, ou não quiserem entender, então a raça
humana pode ir para o inferno. Vá se chocar em outro planeta ou algo assim. E
quanto mais cedo, melhor"
— Saku-chan, — disse Aki, tentando me acalmar.
— As pessoas que pensam que são melhores do que as outras só porque
são um pouco mais inteligentes são idiotas. Elas podem passar a vida inteira
estudando, eu digo. Ganhar dinheiro é a mesma coisa. As pessoas que são boas
em ganhar dinheiro devem simplesmente ir em frente e ganhar dinheiro todos os
dias. E depois deveriam usar esse dinheiro para cuidar de nós.
— Saku-chan.
Depois da segunda vez que ela chamou meu nome, finalmente me calei. O
rosto de Aki, com aquele sorriso levemente tímido, olhou para o meu. Ela inclinou
um pouco a cabeça e disse:
— Que tal um beijo?
No dia em que cheguei ao hospital, encontrei Aki dormindo. Sua mãe, que
sempre a acompanhava, estava ausente. De costas para a janela, Aki dormia com
os olhos fechados. O rosto dela estava muito pálido devido à anemia. As cortinas
de cor creme estavam fechadas, evitando que a luz externa a incomodasse. A luz
do sol que penetrava pelas cortinas banhava o quarto com um brilho suave, como
asas de borboleta. A luz incidia sobre o rosto de Aki, criando uma sombra sutil.
Sentindo que estava presenciando algo único, continuei olhando para Aki
enquanto ela dormia. De repente, fui tomado pela ansiedade de que, de dentro
daquele sono tranquilo, uma morte silenciosa surgisse, como uma semente
papoula flutuando no ar. Era como quando eu fazia um desenho ao ar livre na
aula de artes: eu olhava para o papel branco sob o sol forte até que ele
parecesse estar coberto de pequenas manchas pretas.
— Aki.
Chamei seu nome várias vezes. Até que ela se mexeu um pouco. Movia a
cabeça de um lado para o outro, como se estivesse se livrando de algo. O que
quer que estivesse cobrindo seu rosto se desfez, camada por camada. A vida
voltou, fraca a princípio, e então, como o gorjeio de um pássaro, seus olhos se
abriram.
— Saku-chan, — ela sussurrou surpresa.
— Como você se sente?
— Dormi um pouco, então estou bem melhor.
Ela se sentou e tirou o cardigã de onde estava pendurado no encosto de
uma cadeira. Ela o vestiu sobre o pijama.
— Eu estava me sentindo muito triste esta manhã, — disse ela. Seus olhos
tinham um traço de desolação. — Pensando em morrer e coisas assim. Estava
imaginando o que aconteceria comigo se eu descobrisse que teria de me despedir
de você para sempre.
— Que bobagem. Isso não é algo em que você deveria estar pensando.
— Acho que sim. — Ela suspirou e disse: — Acho que estou perdendo a
coragem ou algo assim.
— É ruim ficar aqui sozinha aqui no hospital?
— Sim. — Ela fez um pequeno aceno de cabeça.
O silêncio parecia pesado quando paramos de falar.
— Não consigo nem imaginar o que significa eu partir deste mundo — disse
Aki, como se estivesse falando consigo mesma. — É uma sensação estranha
pensar que sua vida vai acabar em algum momento. É natural que isso aconteça,
é claro, mas geralmente você vive sua vida sem pensar em coisas assim.
— Você precisa pensar mais em coisas boas. Por exemplo: quando você
estiver curada.
— Tipo, nos casar? — sua pergunta interrompeu a conversa.
— Acho que vou usar o enxaguante bucal, — disse eu, e finalmente
consegui fazer com que ela sorrisse.
Pesquisei tudo o que podia sobre a Austrália. Li guias, liguei para agências
de viagens e solicitei Fax de centros de informações sobre viagens. Aki e eu
revisamos nosso plano sempre que seus pais não estavam por perto.
— Reservei passagens para nós no dia 17 de dezembro, — eu disse. — Meu
aniversário?
— Sim, achei que poderia ser um dia de sorte para ela. — Ela sorriu e me
agradeceu com uma voz fraca.
— É um voo noturno, — expliquei. — Enfim, teremos que sair daqui no início
da noite. Será bem na hora em que estiverem servindo o jantar, então deve ser
fácil escapar. Pegamos um táxi até a estação e, quando estivermos no trem,
estaremos livres.
Aki fechou os olhos e parecia estar imaginando a cena em sua mente.
— Passaremos a noite no avião e chegaremos a Cairns no início da manhã.
Encontraremos um lugar para descansar e depois vamos pegar um voo doméstico
para Uluru. A cidade também tem hotéis do tipo lodge, então acho que podemos
nos hospedar por um preço baixo. Se você não tiver vontade de voltar, podemos
ficar lá o tempo que quiser.
— Estou começando a achar que podemos realmente fazer isso, — disse ela,
abrindo os olhos.
— É claro que podemos. Prometi a você que faríamos isso.
Usei o cartão de meu avô para sacar dinheiro e paguei as passagens aéreas
na agência de viagens. Ao mesmo tempo, comprei um seguro de viagem.
Comprar as passagens em dólares australianos foi mais trabalhoso do que eu
imaginava, a maioria dos bancos não fazia câmbio. Liguei para todos os bancos
da cidade até finalmente encontrar um onde eu pudesse comprar.
Havia um último obstáculo, mas era crucial. De alguma forma, tive que tirar
o passaporte de Aki da casa dela.
— Não posso pedir para que seus pais tragam o passaporte para nós.
— Se eu tivesse um irmão ou irmã, poderíamos perguntar a eles. — Como
eu, Aki era filha única.
Ela disse que seu passaporte estava na gaveta da escrivaninha. Podíamos
contar com ele lá, já que ela quase nunca o usava. Eu já tinha ido à casa da Aki
várias vezes, e, se eu pudesse entrar, seria fácil tirar o passaporte. O problema
era que não conseguimos inventar uma desculpa plausível para uma visita.
— Acho que vou ter que roubá-lo, então, — eu disse.
— Sim, acho que não temos escolha.
— Então, como faço para entrar lá sem ser descoberto?
— Vou desenhar uma planta da casa para você.
Ela desenhou uma planta baixa em um caderno e me orientou sobre como
realizar o roubo.
— Sabe, parece que estou sempre fazendo coisas assim — disse eu,
lembrando-me do dia que fui ao cemitério.
— Sinto muito, — disse ela.
— E eu costumava ser um jovem tão íntegro.
O ano virou, e os dias que eu e Aki passamos juntos foram jogados fora
junto com os calendários. Passei a primeira semana do ano novo na sala de estar,
assistindo à TV. Quase não saí de casa, nem mesmo para a tradicional visita ao
santuário de Ano Novo. Na TV, havia celebridades com roupas elegantes,
cantando músicas e jogando jogos. Eu não reconhecia seus rostos nem seus
nomes. Era uma televisão em cores, mas tudo o que eu via eram tons de cinza. A
multidão de pessoas torcendo e rindo era apenas preto e branco. Por fim, a cena
não fazia sentido algum.
Viver cada dia era como suicídio e ressurreição, repetidamente. Todas as
noites, antes de dormir, eu desejava nunca mais acordar. Não em um mundo sem
Aki. Mas quando a manhã chegava, eu sempre acordava em um mundo frio, vazio
e sem Aki. Como Cristo, eu seria ressuscitado. Eu fazia minhas refeições e
conversava com as pessoas. Se chovesse, eu usava um guarda-chuva e secava
minhas roupas se elas ficassem molhadas. Mas nada disso tinha significado. Era
como o barulho de teclas de piano tocadas ao acaso.
Tive um sonho recorrente, no qual Aki e eu estávamos em um barco,
flutuando em um mar tranquilo. Ela estava falando sobre o horizonte, dizendo
que provavelmente era assim chamado desde uma época em que se acreditava
que a Terra era plana e que o oceano corria pela borda como uma cachoeira.
Respondi que, mesmo que o oceano descesse como uma cachoeira, a borda da
Terra era muito distante, muito além de onde um barco poderia ir, portanto,
poderia muito bem não existir. Enquanto conversávamos, olhei para trás e vi o
mar apenas alguns metros de distância, com quantidades colossais de água
sendo sugadas furiosamente para baixo, sem nenhum som.
Instigando Aki a ir à minha frente, pulei na água e comecei a nadar na
direção oposta à da cascata. Uma forte correnteza puxou a água que parecia tão
calma do barco. Lutamos contra ela, batendo os braços e as pernas. Depois de
nadar com força por algum tempo, a força da correnteza diminui e percebi que
havia escapado. Mas quando olhei ao meu lado, Aki não estava lá.
Ouvi um grito e olhei para trás. Aki estava sendo sugada em direção à
cachoeira. Atingida pelo fluxo furioso de água, seu corpo girava como um pião.
Gritando, ela batia na superfície com as mãos, enquanto atrás dela a água a
puxava. A perfeita ausência de som fazia o mar parecer ainda mais cruel.
Comecei a nadar de volta, mas sabia que era tarde demais. Sempre chego tarde
demais, pensei.
A voz de Aki chegou até mim de longe. Gritei seu nome várias vezes. Mas a
correnteza estava engolindo suas mãos, seu rosto, seu cabelo espalhado na água.
A última coisa que vi foram seus olhos, arregalados de terror, antes de ser sugada
pela água azul e sumir de vista.
O vazio permaneceu comigo mesmo quando as aulas recomeçaram. Meus
colegas de classe não tinham muita diversão ou consolo. Eu podia fingir que
gostava de conversar com eles, mas para mim, nossas conversas não
significavam nada. As palavras que eu dizia mal pareciam reais. Eu me sentia
falso na frente de meus amigos, e a voz que eu usava não parecia a minha. A
presença deles se tornou um fardo, então comecei a evitar lugares com pessoas.
Eu havia perdido a sensação de existir junto com os outros. Eu me sentia como a
única pessoa no mundo.
Quando chegava em casa, pegava livros de referência e planilhas e
estudava. Eu podia ficar imerso por horas. Resolver problemas difíceis de cálculo
e procurar palavras em inglês no dicionário não era nem um pouco doloroso,
porque não havia espaço para emoções. Era mais fácil do que a maioria das
coisas, mas mesmo assim, de vez em quando, algo me pegava desprevenido. Eu
poderia estar lendo uma passagem em inglês e me deparar com a frase "raining
cats and dogs" (chovendo cães e gatos) e me lembrar de um dia em que Aki e eu
tínhamos saído para caminhar sob uma chuva torrencial. Ela foi a única que
trouxe um guarda-chuva. Nós dois nos escondemos embaixo dele e caminhamos
pela trilha que sempre fazíamos. Nós dois estávamos encharcados quando
chegamos à casa dela. Aki pegou uma toalha para mim, mas eu disse que iria me
molhar de novo e fui para casa com o guarda-chuva dela. Toda vez que uma
lembrança como essa voltava, meu coração ardia como uma pele queimada pelo
sol no verão.
Todos os dias pareciam separados do dia anterior. O tempo havia parado de
fluir para mim. A sensação de que algo era duradouro, ou que poderia crescer e
mudar, havia se perdido para mim. Viver significava existir de momento a
momento. Eu não conseguia enxergar o futuro, e o passado estava repleto de
memórias que me cortavam se eu as tocasse. Sangrando, eu as pegava e olhava
para elas. Eu dizia a mim mesmo que o sangue acabaria coagulando e
cicatrizaria. E eu me perguntava se, quando isso acontecesse, eu seria capaz de
tocar minhas lembranças de Aki e não sentir nada.
2
Um dia, eu estava assistindo a um programa de variedades na TV na casa
do meu avô. Um autor famoso entrou em cena e começou a falar sobre o mundo
após a morte. Os seres humanos existem como uma fusão de carne e
consciência, disse ele. Quando morremos, nos livramos de nossas vestes de
carne. E então a consciência sai da pessoa morta como uma borboleta de sua
crisálida e vai para o outro mundo, onde os entes queridos, que já morreram,
esperam. Ele disse que o mundo após a morte nos envia todos os tipos de sinais,
mas nos acostumamos demais com o pensamento racionalista para percebê-los.
Precisamos estar alertas para não perder esses sinais, disse ele. Isso
simplesmente não me pareceu certo.
— O que você acha, vovô? — perguntei quando o show terminou. — Você
acha que o mundo após a morte existe? Algum lugar onde você pode se reunir
com as pessoas que ama?
— Seria bom se isso acontecesse, — respondeu ele, com os olhos ainda
fixos na televisão.
— Bem, não acho que seja.
— Isso seria triste, não seria?
— Se alguém morrer, ele permanece morto e você nunca mais poderá vê-lo
novamente. Todo mundo sabe disso.
Meu avô parecia preocupado.
— Você é muito pessimista, Saku.
— Fico pensando nisso o tempo todo, porque as pessoas inventaram coisas
como o céu e o outro mundo.
— Por que eles fizeram isso?
— Porque alguém que eles amavam morreu, é por isso.
— Ah.
— As pessoas inventaram o céu e o mundo após a morte porque muitas
pessoas com quem se importavam morreram. Quero dizer, quem morre é sempre
a outra pessoa, não você, certo? Então, os que ficaram para trás tiveram essas
ideias como uma forma de salvar os que morreram. Mas acho que tudo isso é
uma besteira. O céu e o outro mundo são apenas concepções humanas, só isso.
Meu avô pegou o controle remoto da mesa e desligou a TV.
— Morrer em nosso mundo é uma coisa difícil, não é, Sakutaro? — disse ele.
— Não há nada depois, você não renasce nem nada... A morte é simplesmente
um vazio, nada mais. Isso é terrivelmente difícil de contemplar, não é?
— Mas é assim que as coisas são, então que escolha temos?
— Acho que essa é uma maneira de ver as coisas.
— Quando leio sobre cristãos e pessoas dizendo que a morte é linda e que
não há nada a temer, isso realmente me irrita. É estúpido e arrogante. A morte
não é bela. É horrível e vazia, só isso. E não há nada que você possa fazer a
respeito.
Meu avô ficou olhando para o teto por um tempo. Ele continuou olhando
para cima quando finalmente falou:
— Diz-se que Confúcio não discutia o Céu, mas quando um discípulo favorito
morreu, ele chorou: "Ai de mim, o Céu está me destruindo!" e lamentou-o
excessivamente. E diz que Kukai, que pregava o nirvana, também chorou, apesar
de si mesmo, com a morte de um de seus discípulos". — Ele se virou para mim e
perguntou:
— Por que é tão doloroso perder alguém que você ama?"
Quando não respondi, meu avô continuou.
— Acho que é porque você já ama essa pessoa. Não é a separação ou a
ausência em si que é triste. Você a ama, e é por isso que dizer adeus parte seu
coração. É por isso que você procura lembranças da pessoa e nunca deixa de
lamentar por ela. Então, a tristeza e o luto não são nada mais do que uma faceta
de seu amor? Apenas uma expressão dos sentimentos que você tem por aquela
pessoa?
— Eu não sei.
— Bem, pense no que significa a morte de alguém. Se for alguém que você
nunca conheceu ou com quem nunca se importou, isso não significa nada para
você, certo? Isso nem sequer conta como uma ausência. É somente porque você
não quer que a pessoa se vá que você percebe quando ela se vai. Você a ama,
então a ausência dela se torna um problema para você. Você a ama e, por isso, o
fato dela não estar presente faz com que você sofra. E é por isso que o luto
sempre nos leva à mesma conclusão: é difícil nos separarmos, mas um dia
estaremos juntos novamente.
— Você acha que pode ficar junto com aquela mulher?
— Quando você fala sobre estarmos juntos, Sakutaro, você quer dizer como
dois seres humanos?
Eu não respondi.
— Se acreditarmos que não há nada além do que pode ser visto, ou seja, o
que tem forma física, isso não torna a vida incrivelmente monótona? — disse
meu avô. — Não, acho que a pessoa que eu amava nunca mais aparecerá na
minha frente com a mesma forma que eu conhecia antes. Mas ela e eu sempre
estivemos juntos. Nos últimos cinquenta anos, nunca houve um momento em
que não estivéssemos juntos.
— Mas isso está apenas em sua mente. É uma crença.
— É claro que é uma crença. O que há de errado nisso? Considere qualquer
ramo da ciência, é apenas um conjunto de crenças. Qualquer coisa que os seres
humanos façam usando suas mentes envolve crença, não pode ser de outra
forma. É apenas uma questão de quão fortes são essas crenças. Os cientistas
tentam provar o que acreditam usando telescópios, microscópios e coisas do
gênero. Mas nós não somos cientistas, então não vejo por que não podemos usar
outra coisa. Como o amor, por exemplo.
— O que você acabou de dizer?
— Amor, eu disse. Amor. Você não sabe o que é amor?
— Claro que sim, mas ouvir você dizer isso, vovô, faz com que pareça outra
coisa.
— Isso porque o amor de que estou falando, Sakutaro, e o que passa por
amor neste mundo, são tão parecidos quanto giz e queijo.
Eu achava que isso era apenas uma bobagem de velho. Depois que Aki
morreu, a simpatia e as condolências dos adultos parecem falsas e vazias para
mim. Se algo não parecia real para mim, eu não conseguia aceitar. Não conseguia
aceitar nenhuma lógica que não correspondesse ao único sentimento real que eu
tinha: o de que ela havia partido.
— No final, ela não pediu para me ver, — eu disse, expressando o
pensamento que vinha me atormentando desde então. — Parecia até que ela não
queria me ver. Por que você acha que isso aconteceu?
— Então, nenhum de nós pôde estar presente quando a mulher que
amávamos morreu.
— Mas por que ela não me quis com ela até o fim?
— Sabe, Sakutaro, — disse meu avô. — As pessoas se despedem de todos
os tipos, mas, estranhamente, você e eu acabamos tendo experiências
semelhantes. Nenhum de nós pôde passar a vida com a mulher que amávamos
ou estar presente quando ela morreu. Acredite, eu sei pelo que você está
passando. Mas mesmo assim, Saku, acho que a vida é uma coisa boa. Acho que é
uma coisa linda. Isso pode não combinar com o que você sente agora, mas é o
que eu sinto. Tenho uma sensação muito real de que a vida é bela.
Ele parecia estar absorvido pelo que acabara de dizer. Depois, virou-se para
mim e perguntou:
— O que você acha que a beleza realmente é?
— Passo, — disse eu, de forma concisa.
— Há coisas que se tornam realidade na vida e coisas que não se tornam, —
disse ele. — As coisas que realmente acontecem, as pessoas esquecem logo
depois. Mas as coisas que nunca se realizam ficam em nossos corações para
sempre. Estou falando de coisas chamadas sonhos e anseios. Acho que são
nossos sentimentos por eles que sustentam a beleza da vida. Todas as coisas que
não aconteceram se tornaram realidade, como beleza.
Peguei o controle remoto e liguei a TV. Como se estivessem cansados de
todas as extravagâncias do Ano Novo, todos os programas pareciam monótonos e
sem vida.
— Se eu ficar passando os canais assim, tenho a sensação de que a Aki
pode aparecer, — eu disse, usando o controle remoto para mudar os canais um
após o outro. — E então, se pudéssemos conversar, seria bom.
— Como um item mágico de algum personagem de mangá?
— Acho que sim.
— Mas eu não sei. Se um item como esse fosse inventado para nos permitir
conversar com pessoas que morreram, talvez nos tornasse pessoas piores.
— Pessoas piores?
— Quando você pensa em alguém que morreu, Sakutaro, isso não faz você
se sentir mais puro, de alguma forma?
Fiquei em silêncio.
— Não se pode ser egoísta ou calculista em relação a alguém que está
morto, nem desejar mal a essa pessoa. Parece que é assim que somos feitos.
Veja os sentimentos que você tem pela Aki, Sakutaro. Tristeza, arrependimento,
compaixão... Para você, agora, isso é difícil de suportar. Mas não são sentimentos
ruins, nem um só. Cada um deles o nutrirá à medida que você envelhecer. Por
que a morte das pessoas que amamos nos torna pessoas melhores? Acho que
pode ser porque a morte é estritamente separada da vida. Os mortos não
aceitam nenhuma abertura do lado dos vivos. E é por isso que a morte de uma
pessoa pode nos nutrir como seres humanos.
— Acho que você está apenas tentando fazer com que eu me sinta melhor.
— Não, não é disso que se trata. — Ele sorriu. — Eu gostaria de fazer você
se sentir melhor, mas isso não é possível. Ninguém pode fazer você se sentir
melhor, Sakutaro. Isso é algo que você terá de superar sozinho.
— Como você superou isso, vovô?
— Decidi pensar em como teria sido do outro jeito.
Meu avô apertou os olhos, como se estivesse olhando para longe.
— Como teria sido se eu tivesse morrido primeiro. Se isso tivesse
acontecido, ela teria que sentir a dor que eu estava sentindo. E não consigo
imaginá-la fazendo algo como roubar meu túmulo para pegar minhas cinzas. Por
um lado, não sei se algum dos netos dela é tão compreensivo quanto você,
Sakutaro. E quando pensei nisso dessa forma, senti que, ao ser deixado para
trás, pude assumir o sofrimento dela. Dessa forma, não precisei fazê-la passar
pela dor de me perder.
— Hmm…
— É a mesma coisa para você, Sakutaro. Você está sofrendo por causa dela.
Como ela está morta, ela não pode lamentar o que aconteceu com ela. Então,
você está sofrendo por ela, no lugar dela. E ao fazer isso, Sakutaro, talvez você
esteja vivendo por ela.
Eu pensei sobre isso.
— Ainda soa como palavras.
— Tudo bem, — disse meu avô, dando uma risadinha. — Afinal, é isso que é
pensar. Não há nada no mundo que possa ser completamente pensado. Mesmo
que você ache que já esgotou um assunto, depois de um tempo você começa a
sentir que não esgotou. E então você pode pensar mais um pouco sobre o
assunto. Eventualmente, seus pensamentos se tornam realidade. É assim que
funciona.
Paramos de conversar e ouvimos os sons do lado de fora. O vento começou
a soprar, e fortes rajadas sacudiam as janelas voltadas para a varanda, como se
quisesse arrancá-las.
— Vá para a Austrália, — disse meu avô. — Vá dar uma olhada no deserto e
os cangurus com ela.
— Os pais dela querem espalhar suas cinzas por lá.
— Bem, há vários tipos de maneiras de enterrar os mortos.
— Quando ela ainda estava saudável, contei a ela sobre ir com você para
roubar as cinzas.
— Você fez isso?
— Nós até abrimos a caixa e olhamos as cinzas juntos.
Olhei para ele para ver sua reação. Meu avô permaneceu imóvel, com os
braços cruzados e os olhos fechados.
— Isso o incomoda?
Ele abriu os olhos lentamente e sorriu.
— Eu dei isso para você guardar, Sakutaro, então faça o que quiser com
isso.
— Depois de olharmos as cinzas, nos beijamos pela primeira vez. Não sei
por quê. Não planejamos nem nada, simplesmente aconteceu.
Meu avô ficou em silêncio por um tempo.
— É uma bela história, — disse ele.
Sim, mas agora a garota que eu beijei é apenas cinzas.
3
O OUTBACK CONCEDIDO aos aborígenes era um deserto estéril, e o
Território do Norte era uma terra de penhascos e arbustos. Nosso Land Cruiser
sacudia violentamente na trilha empoeirada e cheia de sulcos, que seguia o leito
de um rio. Vimos uma estação de retransmissão telegráfica construída em pedra
e, além dela, havia uma planície sem casas e com vegetação esparsa. Passamos
por alguns campos plantados com melões. A estrada se estendia em frente, sem
fim à vista. A pavimentação havia acabado logo depois que saímos da cidade, e
mal conseguimos enxergar atrás de nós por causa das enormes nuvens de poeira
que o carro levantava. Depois de um tempo, os campos desapareceram e
passamos por uma fazenda. Havia manadas de gado em ambos os lados da
estrada. O gado morto era deixado no pasto, e seus corpos, inchados pelo calor,
estavam cobertos de corvos.
Chegamos a uma cidade pequena, como um lugar que se vê em um filme
de faroeste. Estava quente e empoeirado. Havia um restaurante estilo pub ao
lado do posto de gasolina, então decidimos parar para comer e descansar. Do
lado de dentro da porta, alguns homens estavam jogando dardos. O interior era
sombrio. Motoristas de caminhão e trabalhadores da construção civil, todos com
tatuagens nos braços parecidos com os de Popeye, bebiam cervejas com suas
tortas de carne. As pernas peludas que se projetavam em seus shorts eram
quase tão grossas quanto minha cintura.
— O nome da Aki foi tirado de Hakuaki, o período Cretáceo? — Perguntei à
mãe de Aki, que estava sentada ao meu lado, olhando fixamente para ela.
Sem pensar, ela se virou para mim:
— Ah, sim. Meu marido inventou isso. Por que você pergunta?
— Eu sempre achei que era Aki, como na estação, desde que a conheci. E
ela nunca usava kanji quando escrevia seu nome. Ela sempre assinava suas
cartas para mim foneticamente em katakana.
— Ela é uma preguiçosa, aquela garota — disse a mãe de Aki. — Até mesmo
o kanji para Hiro em Hirose é, na verdade, este aqui.
Ela usou o dedo para escrever a versão mais complicada do caractere kanji
na palma da mão.
— Se você escrever o nome completo dela usando kanji, serão muitos
traços. Por isso, ela sempre usou a versão simplificada de Hiro e Katakana para
seu primeiro nome. Acho que ela adquiriu esse hábito na escola primária.
O pai de Aki havia estendido um mapa no balcão e estava olhando para ele
com o guia que havíamos contratado em Cairns.
— Cerca de cinquenta quilômetros ao sul daqui há um lugar que é um local
sagrado para os aborígenes — explicou o guia em japonês fluente. Ele havia
morado no Japão há um tempo. — É proibido entrar nele, mas obtive uma
permissão especial.
— Podemos ir até lá de carro? — perguntou o pai de Aki.
— Provavelmente teremos que caminhar até o último trecho.
— Será que vou conseguir? — disse a mãe de Aki.
O guia sorriu. — Então você vai espalhar as cinzas de sua filha lá?
— Não é estranho? — respondeu a mãe de Aki. — Logo antes de morrer, ela
ficava repetindo isso várias vezes, como se estivesse delirando. Acho que ela
estava um pouco confusa, mas mesmo assim, isso me irritou. Sentimos que
temos que lhe conceder esse último desejo. É tanto para nós mesmos quanto
para ela. Não queremos nenhum arrependimento.
Olhei pela janela. Um aborígine de meia-idade barbudo estava sentado à
sombra de uma acácia, bebendo vinho embrulhado por saco de papel marrom.
Pequenos grupos de jovens negros usando chapéus de cowboy passavam por ele.
Mesmo aqui na Austrália, eu não conseguia entender que Aki havia morrido.
Sempre tive a sensação de que ela estava em algum lugar, que eu a veria de
relance.
Um garçom colocou um hambúrguer enorme e uma garrafa de Coca-Cola na
minha frente. Como era absurdo comer coisas o tempo todo quando eu não tinha
o menor apetite.
Uma planície marrom se estendia diante de nós até onde a vista alcançava.
Quase não havia árvores em lugar algum, apenas algumas ervas daninhas que se
agarravam à terra ressecada. No topo de uma colina, podíamos ver uma
plantação de eucaliptos. Aqui e ali havia enormes rochas que teriam sido movidas
em uma erupção vulcânica. Não havia quase nenhum sinal de vida animal. O guia
nos disse que, durante o calor do dia, os animais descansavam em buracos e
embaixo de pedras. A pavimentação já havia terminado há muito tempo, e as
rodas do carro ocasionalmente começavam a girar na terra vermelha e macia.
Passamos por várias carcaças de canguru, uma das quais já não passava de uma
pele achatada ao lado da estrada. Quando olhei para trás, ela estava coberta de
poeira.
Depois de cerca de uma hora na estrada, chegamos a um bosque
exuberante com um pequeno rio correndo em frente. Havia pouca água nele, e
de seu leito brotava um eucalipto claro. Um trailer estava estacionado na margem
e duas famílias estavam fazendo um churrasco, sentadas no chão e bebendo
cerveja. Nosso guia saiu do carro e foi até eles. Ele lhes perguntou algo com uma
voz alegre, e eles apontaram para o rio, segurando seus pratos de plásticos.
— Dizem que fica do outro lado deste rio, — ele voltou e disse ao pai de Aki,
que estava sentado no banco do motorista. — Eu o guiarei.
Ele entrou na água sem tirar os sapatos de trekking2 e dirigiu o Land Cruiser
para uma seção rasa onde o leito do rio era firme. As famílias que faziam
piquenique observavam nosso progresso. Quando o carro conseguiu atravessar o
rio, nosso guia voltou para o banco do passageiro.
— Vamos lá, então.
Uma trilha de areia se estendia pelo bosque escuro. O pai de Aki dirigiu o
carro cautelosamente em meio à luz fraca. Estava começando a anoitecer. O céu
pálido aparecia através de pequenos espaços entre as árvores.
— Ainda não tenho uma compreensão muito boa desse negócio de sonhar,
— disse o pai de Aki.
— Bem, sonhar tem vários significados, — respondeu o guia. — Um deles é
o ancestral mítico de uma tribo. Por exemplo, se o sonho de uma tribo é o
canguru, o canguru é seu ancestral.
— Falando de Wallaby, você quer dizer o animal? — perguntou a mãe de
Aki.
2
O tênis para trekking é muito mais leve e flexível do que a bota. Por isso, ele é indicado para trilhas em
terrenos pouco acidentados, além de caminhadas mais curtas e corridas de montanha.
— Não, nesse caso, o canguru é o sonhador, ou seja, seu ancestral mítico.
Esse ancestral criou o animal e sua tribo. Portanto, eles e os animais são
descendentes do mesmo ancestral.
— Então a tribo Wallaby e os cangurus são irmãos?
— Sim. E é por isso que a tribo Wallaby não pode matar e comer cangurus.
Eles estariam matando e comendo seus próprios irmãos.
— Fascinante, — disse o pai de Aki, parecendo impressionado. — Então é
isso que é totemismo.
— Depois, há os sonhos pessoais, — continuou o guia.
— O que é isso? — perguntou o pai de Aki.
— Algo que é visto ou sonhado pela mãe no nascimento de alguém,
geralmente um animal ou uma planta, compartilhará a alma dessa pessoa e será
seu sonho pessoal. Esses sonhos nunca são contados, mas permanecem como o
objeto secreto de adoração de cada pessoa.
— Portanto, cada tribo tem um sonho e cada indivíduo tem um sonho
pessoal.
— É isso mesmo.
Tornou-se difícil distinguir as formas dos objetos. A paisagem perdeu sua
profundidade, ou melhor, perdeu totalmente a perspectiva. Coisas que deveriam
estar distantes pareciam próximas, enquanto coisas que deveriam estar próximas
pareciam tão distantes que nunca as alcançaremos.
— Dizem que os aborígines enterram seus mortos duas vezes, — continuou
nosso guia. — Na primeira vez, eles os enterram no chão, como nós fazemos.
Então, depois de dois ou três meses, eles desenterraram os restos mortais e
recolheram os ossos. Eles arrumam os ossos em um pedaço de casca de árvore
exatamente como eram quando a pessoa estava viva, da cabeça até os dedos dos
pés. E então colocam isso dentro de um tronco oco.
— Por que será que eles fazem isso? — disse a mãe de Aki.
— Acredita-se que o primeiro sepultamento é para a carne e o segundo
sepultamento é para os ossos.
— Estou entendendo. Isso faz sentido, — disse o pai de Aki.
— Por fim, os ossos são lavados pela chuva e retornam à terra. Todo o
sangue e o suor do corpo da pessoa morta se infiltram de volta na terra e se
dirigem a uma fonte subterrânea sagrada. A alma segue para lá, onde vive como
um espírito.
As árvores ficavam mais próximas umas das outras à medida que
avançávamos. Quando não podíamos mais dirigir entre elas, saímos do carro. O
bosque havia se transformado em um matagal, com galhos finos e retorcidos em
uma confusão entre nós. Por ela passava uma trilha estreita. Tudo o que
ouvíamos eram nossos próprios passos. De vez em quando, algo se movia nos
arbustos próximos, mas nunca vimos nenhum animal.
Passamos por um grupo de plantas com espinhos longos e afiados, como se
fossem porcos-espinhos gigantes, e chegamos a um pasto marrom-dourado. Aqui
não havia nenhum tipo de ponto de referência. Além de um único bosque de
eucaliptos, tudo o que podíamos ver era a vasta planície seca e gramada.
Ninguém falava. O céu ainda estava claro. Parecia que estávamos caminhando há
horas, mas talvez não tenha sido mais do que trinta minutos. Meus lábios
estavam rachando com o ar seco. Eu queria poder beber água gelada, mas, ao
mesmo tempo, minha sede parecia ser problema de outra pessoa.
Por fim, o solo abaixo de nós se transformou em areia e rocha. Havia uma
enorme rocha redonda com algo parecido com uma palmeira sagu crescendo ao
lado dela. Um grande pássaro marrom circulava no alto do céu. Subimos uma
encosta íngreme e quebradiça para chegar a um platô. As poucas árvores
estavam sem folhas, com suas cascas cinzentas enrugadas como a pele de uma
mulher idosa. Um pássaro que eu não conhecia piava. Um lagarto rastejava sobre
a rocha seca.
— Aqui deve estar bom, — disse nosso guia.
— É este o lugar? — perguntou a mãe de Aki, como se isso não fosse
exatamente o que ela esperava.
— Toda essa área é.
— Vamos fazer isso, então — disse o pai de Aki.
— Faça você, — disse a mãe dela, e empurrou a urna para o marido.
— Por que nós três não fazemos isso?
O pó branco parecia frio em minha palma. Eu não conseguia entender o que
era. Talvez minha mente pudesse, mas meu coração recusava a compreensão. Se
eu o absorvesse, eu me desintegraria. Como uma pétala de flor congelada, com
um estalar de dedos, meu coração se despedaçará.
— Adeus, Aki, — ouvi sua mãe dizer.
Soltei as cinzas de minhas mãos. Levadas pelo vento, elas se dispersaram e
se espalharam pelo deserto vermelho. A mãe de Aki estava chorando. Seu marido
colocou o braço em volta do ombro dela e os dois começaram a voltar lentamente
pelo caminho. Eu não conseguia me mexer. Sentia que o que havia sido soprado
para a terra vermelha eram fragmentos de mim mesmo, como se eu tivesse sido
espalhado ali, sem esperança de ser reunido novamente.
— Vamos? — perguntou o guia. — Vai escurecer em pouco tempo. Você não
vai querer ficar no deserto à noite.
4
QUANDO VOLTEI da Austrália, já era quase primavera. Depois que os
exames finais terminaram, as aulas eram como aqueles jogos de beisebol em que
o campeonato da liga já está decidido. Comecei a olhar muito para o céu no
caminho de ida e volta para a escola e entre minhas aulas chatas. Às vezes, eu
passava muito tempo olhando para o céu, imaginando se ela estava lá em cima.
Na última luz do inverno e na suave luz do sol da primavera, em tudo o que vinha
do céu, eu sentia a presença de Aki. De vez em quando, enquanto eu olhava para
cima, nuvens se formavam do nada e passavam por cima de mim. Toda vez que
as nuvens iam e vinham, eu podia sentir a mudança da estação.
Em um domingo quente, em meados de março, Oki me levou até a ilha.
Quando expliquei por que eu queria ir, ele concordou de bom grado em pilotar o
barco. Depois que atracaram no píer, caminhei sozinho pela praia. Oki me
esperou ao lado do barco. A água estava fria e clara. O sol agradável brilhava nas
ondas que lavavam os seixos na praia. Um caranguejo da mesma cor das pedras
se arrastava ao longo das águas rasas e depois fugia para águas mais profundas.
As anêmonas-do-mar estendiam suas garras brilhantemente coloridas entre as
pedras, e minúsculos caracóis-do-mar se agarravam às pedras maiores. Eu
parecia notar apenas pequenas coisas.
Mais para o interior, onde as ondas não chegavam, muitas flores de
trepadeira rosa estavam desabrochando. Acima delas, uma única borboleta
branca esvoaçava. Eu me lembrava de ter visto um par de borboletas rabo de
andorinha atrás do hotel quando estávamos aqui no verão anterior. Os eventos
daquela noite correram em minha cabeça como feixes de luz deslumbrantes.
Cada lembrança daquela noite, por menor que fosse, era preciosa, e cada uma
delas brilhava tão intensamente que não parecia possível que tivessem realmente
acontecido.
Um passo acima da margem, havia um aterro que se estendia até o
penhasco atrás. Nele havia uma antiga figura de pedra da divindade Jizo. Fiquei
imaginando quem poderia tê-la colocado ali e por quê. Talvez alguém tivesse
morrido no mar e ela estivesse guardando o espírito dessa pessoa? A divindade
não havia recebido um santuário para a abrigar e estava exposta aos elementos.
É claro que também não havia oferendas de flores ou moedas. O ar salgado que
soprava do mar havia desgastado os olhos e a boca da divindade. Tudo o que
restou foi seu nariz, uma pequena protuberância no centro do rosto. As feições
suavizadas da divindade o faziam parecer muito gentil.
Sentei-me em um cascalho seco perto do Jizo3 e fiquei olhando para o mar,
uma faixa de azul como o traço largo de um pincel. Raios de sol insistiam em
brilhar sobre a estátua. A vegetação do promontório que se estendia à minha
esquerda estava banhada pela luz do sol, e eu podia ver claramente cada um dos
galhos dos pinheiros. Era tão bonito que parecia um desperdício vê-lo sozinho, e
eu queria que Aki pudesse vê-lo comigo. Parecia que eu passava todos os dias da
minha vida assim, desejando coisas que nunca aconteceriam.
Chamei seu nome com suavidade. Somente meus lábios, de todos os que
existiam no mundo, tinham a permissão para chamar seu nome. Mas imaginar
seu rosto levou alguns instantes e, cada vez que eu tentava, parecia demorar
mais. Depois de algum tempo, lembrar o rosto dela poderia ser como achar uma
única foto em um álbum antigo. Será que a memória de Aki se desgastaria em
minha mente, como aquela divindade à beira-mar sem características, de modo
que, finalmente, depois de muitos anos, tudo o que restaria dela seria seu nome?
Será que seu nome, que por tanto tempo acreditei erroneamente significar
"outono", seria a única coisa que restaria dela?
Deitei-me no cascalho e fechei os olhos. A parte interna de minhas
pálpebras estava vermelha e brilhante, exatamente como no verão passado,
quando nadamos nesse mar. Era uma sensação estranha, pensar que o sangue
vermelho estava fluindo através de mim agora, como naquela época.
Devo ter adormecido. Quando me dei conta, alguém estava chamando meu
nome. Abri meus olhos. Oki estava olhando para o meu rosto.
— O que aconteceu? — Perguntei, sentando-me.
3
Jizō, ou Ojizō-sama, é uma das divindades budistas mais queridas no Japão. Suas estátuas podem ser
encontradas por todo o país: em estradas.
— É isso que eu quero saber, — disse ele. — Você estava demorando, então
achei melhor vir te procurar.
Oki se sentou ao meu lado e ficamos olhando para o mar juntos. O vento
trazia um cheiro forte de sal. O sol havia contornado o promontório à nossa
esquerda e estava quase diretamente sobre o mar à nossa frente.
— Continuo sentindo que ela ainda está por perto, — eu disse. — Aqui, ali...
em toda parte. Onde quer que eu esteja, ela está lá. Você acha que é uma
ilusão?
— Olha... não sei, — murmurou Oki.
— Acho que a maioria das pessoas faria isso.
Nós dois ficamos em silêncio. Oki pegou uma pequena pedra e a jogou na
água. Ele fez isso mais algumas vezes.
— Você já sonhou que estava voando? — perguntei.
Ele olhou para mim como se não tivesse entendido o que eu queria dizer.
— Você quer dizer, como em um avião ou algo assim?
— Não, você mesmo está voando. Sabe, como o Ultraman.
— Desde que seja um sonho, — disse ele, abrindo um sorriso, — sonhe o
que quiser. Isso é problema seu.
— Sim, mas você nunca tem sonhos como esse? Onde acontecem coisas
que não são possíveis na vida real?
— Acho que não.
Ele pegou outra pedra e a jogou em direção ao mar. A pedra fez um som
abafado quando atingiu a praia antes de cair na água.
— Então, o que é essa história de sonhar que você está voando?
— Você não pode fazer isso na vida real, certo? — eu disse. — Logicamente,
isso não pode acontecer, certo?
— Sim — disse ele lentamente.
— Mas no sonho, você está fazendo isso. Você está realmente voando. Isso
não é possível na vida real, mas quando você está sonhando, não parece ser
assim. Você não está voando pelo ar e pensando 'este é um sonho irracional'. E
mesmo que estivesse pensando isso, você está fazendo isso. Está olhando para
baixo, para as cidades e outras coisas, e pode realmente sentir que está voando.
Isso não é uma ilusão.
— Sim, mas é um sonho.
— É isso mesmo, é um sonho.
— Então, o que você está dizendo?
— Aki morreu. Seu corpo foi cremado e transformado em cinzas. Espalhei
essas cinzas, com minhas próprias mãos, pelo deserto. E mesmo assim, ela está
aqui. Ela está aqui. Não é uma ilusão. É um sentimento real, e não posso fazer
nada a respeito. Não posso negar que ela está aqui. Mesmo que eu não possa
provar, minha sensação de que ela está por perto é um fato.
Quando parei de falar, Oki estava olhando para mim com pena.
— Será que estou sonhando?
☆
Quando estávamos voltando para o píer, vi uma pedra brilhante na beira da
água. Quando a peguei, vi que não era uma pedra, mas um pedaço de vidro que
havia sido trazido pelas ondas até que suas bordas ficassem completamente lisas.
Na água, o pedaço de vidro parecia uma joia verde. Coloquei-o no bolso do meu
paletó.
— Você não quer ir até o hotel? — perguntou Oki quando chegamos perto
do píer. — Lá tem lembranças para você, certo?
Por um segundo, senti como se o interior do meu peito estivesse congelado.
Em vez de responder, dei um suspiro profundo. Oki não disse mais nada.
Tirei um pequeno frasco de vidro transparente do bolso do meu paletó. O
que tinha dentro era branco e parecido com areia.
— Estas são as cinzas dela.
— Você vai jogá-las aqui?" — perguntou Oki, inquieto.
— Não tenho certeza.
Eu tinha a intenção de espalhar as cinzas de Aki no mar. Essa foi a razão
pela qual pedi a Oki para me trazer aqui. Mas...
— Não sei, parece um desperdício. Não que carregá-los por aí esteja me
fazendo bem.
— Fique com ela, se não tiver certeza, — disse Oki. — Se você as espalhar e
se arrepender, será tarde demais. Assim que você descobrir como se sente,
poderá fazer isso. Eu o trarei aqui novamente, quando você quiser.
A maré estava baixando. O barco havia se afastado muito do píer. O mar
estava calmo e tão azul que poderia fazer você chorar.
— Você já ouviu o Hirose cantar? — Oki perguntou de repente. — Sabe
quando, no ensino fundamental, eles nos davam aqueles testes de canto na aula
de música? Quando nos fazia cantar todas aquelas músicas idiotas? Bem, quando
a Hirose tinha que cantar, sua voz era tão baixa que não dava para ouvir nada. Eu
estava na primeira fila e não conseguia nem saber qual era a música.
— Certa vez, alguém gritou: 'Não estou ouvindo você!' no meio da conversa.
— Sim, é isso mesmo. E então a voz dela ficou ainda mais baixa, e o rosto
dela ficou bem vermelho, de um jeito que você sentia pena dela, e ela cantou o
resto olhando para baixo.
— Você se lembra de tudo isso, não é?
— Não, não, não é isso, — disse Oki, confuso. — Eu não gostava dela nem
nada. Quero dizer, é claro que eu gostava dela, mas não do jeito que você
gostava. Você sabe.
Eu também estava pensando em Aki cantando. Não durante a aula de
música, mas na noite em que ficamos no hotel da ilha. Eu tinha saído para pegar
algo no quarto enquanto fazíamos o jantar. Quando voltei, Aki estava cortando
legumes e cantando em voz baixa. Parei na porta da cozinha e a escutei. Sua voz
era tão baixa que eu mal conseguia entender a melodia, muito menos a letra,
mas seu canto era feliz. Isso me fez pensar que em casa, quando ela estava
cozinhando, ela sempre cantava assim. Se eu a chamasse, ela pararia, então
fiquei na porta e apenas a escutei.
— Acho que vou me agarrar a isso, afinal de contas.
Coloquei o frasco de volta no bolso e me levantei.
— Tudo bem, — disse Oki e assentiu, parecendo um pouco aliviado.
Em meu bolso, algo frio tocou minha mão. Quando o tirei, vi que era o
pedaço de vidro que eu havia pegado antes. A superfície havia se tornado branca
e turva. Tão bonito e parecido com uma pedra preciosa na água, agora era
apenas um pedaço de vidro. Eu o joguei em direção ao mar com toda a força que
pude. Ele traçou um arco limpo no ar e caiu na água com um pequeno respingo.
— Você quer voltar, garoto apaixonado?
O amante se virou.
— Sim, sim, capitão.
PARTE 5
AS ÁRVORES E OS arbustos de Castelo da Colina estavam cheios e verdes. A
torre havia sido restaurada, e a tinta de suas paredes se destacava de forma
brilhante. Subimos a trilha a partir do portão norte. Os bosques densos que antes
a envolviam estavam limpos. Uma estrutura totalmente nova, um museu
folclórico, estava lá.
Da torre do castelo, era possível ver toda a cidade. A leste, havia montanhas
e, a oeste, o mar. Com todo o desenvolvimento dos últimos dez anos, a cidade
havia se estendido até a baía. O mar parecia muito menor para mim agora.
— Que vista linda, — disse ela.
— Não há muito o que ver na cidade, — eu disse. Parecia um pouco
defensivo sem querer. — Nunca sei o que mostrar a alguém que trago aqui.
— Isso não é diferente de qualquer outro lugar. Quantas cidades estão
cheias de pontos turísticos? E eu realmente gostei daquele templo. Gostaria de
ter conhecido seu avô antes de ele morrer.
— Acho que você e ele podem ter se dado bem.
Nós dois voltamos nossos olhares para a vista da baía. O cabo que cercava o
mar e as ilhas também estavam pontilhados com a flor rosa pálida das cerejeiras
silvestres.
— Eu meio que pensei que você estava inventando, — admitiu ela. — Quero
dizer, era perfeito demais... romântico demais. Mas hoje, depois de ver o túmulo
e tudo mais, acho que tenho que acreditar em você.
— Pode ser uma mentira elaborada.
Ela me lançou um olhar malicioso.
— Sim, pode ser. Pode ser perigoso acreditar cem por cento nisso. E isso
vale para tudo a seu respeito.
— Às vezes, eu mesmo não tenho certeza se as coisas aconteceram como
eu me lembro. Se são um sonho ou a realidade. Mesmo que eu conhecesse
alguém muito bem, se essa pessoa morrer e passar muito tempo, começo a me
perguntar se ela realmente existiu.
A trilha no lado sul não era tão desenvolvida quanto a trilha do lado norte.
Ainda era muito íngreme e estreito, e não encontramos quase ninguém nela. Os
degraus de pedra com musgo crescendo sobre eles e a terra vermelha exposta
não haviam mudado nada. Depois de um tempo de descida, encontrei o grupo
espesso de arbustos que estava procurando.
— O que é isso?
— Hortênsias.
Ela olhou para o arbusto e olhou para mim como se dissesse: "As hortênsias
são tão incomuns assim?"
— Mas elas não vão florescer tão cedo, — eu disse e comecei a andar
novamente. No fundo do meu coração, havia um leve tremor.
— Essa parte não mudou muito, eu — disse um pouco mais adiante.
— Você vinha muito aqui? — ela perguntou.
— Não, só uma vez.
Comecei a rir.
— Parecia que você vinha aqui o tempo todo.
— Sinto que sim, mas foi só uma vez.
De volta ao carro, dirigi em direção à escola do ensino fundamental. Violas
enchiam majestosamente os canteiros de flores em frente ao portão. Era quase o
final de março.
— Esta é a minha antiga escola de ensino fundamental, — expliquei.
— Sério? — Ela baixou a janela. — Vamos entrar.
O prédio tinha uma aparência monótona e pobre. A parede de blocos de
concreto, escurecidas pela chuva, inclinava-se em direção à estrada. Estava quase
anoitecendo, e o local estava silencioso. Era o feriado de primavera e o campo,
onde as crianças estavam sempre no meio do treino de beisebol ou futebol,
também estava vazio.
Entramos por um portão lateral.
— Este lugar está realmente se deteriorando. — Minha voz parecia distante.
— Não me lembro da última vez que vim a uma escola de ensino
fundamental! — disse ela e pulou em direção às barras, deixando-me para trás.
Foi aqui que tudo começou, tentei dizer a mim mesmo. Foi aqui que conheci
a Aki. Parecia que tinha sido há décadas, como se fosse algo que tivesse
acontecido em outra época, em um mundo distante. Me senti como Rip Van
Winkle, olhei ao meu redor e vi que as cerejeiras estavam em plena floração.
Naquela época, eu nunca tinha olhado para as flores de cerejeira. Eu havia me
formado sem nunca perceber que havia cerejeiras. Mas elas eram tão bonitas.
No fundo do meu coração, um buraco tão pequeno quanto uma picada de
alfinete se abriu e, como um buraco negro, engoliu tudo – as cerejeiras, a escola,
todo o tempo que havia passado. Enquanto eu era sugado para um passado que
parecia tão distante, a voz de Aki voltou para mim.
— Eu adorava limpar as carteiras quando tínhamos que limpar a sala de
aula. Eu lia tudo o que as pessoas tinham escrito. Havia coisas antigas deixadas
por pessoas que haviam se formado anos antes, e corações e flechas onde as
pessoas haviam gravado os nomes de suas paixões. Eu desejava não ter que
apagar alguns deles…
Ela falou bem perto do meu ouvido, com aquela voz tímida que eu adorava.
Para onde ela tinha ido? Toda a doçura, as coisas belas, boas e frágeis que
formaram a pessoa chamada Aki, para onde foram? Será que estavam viajando
sob as estrelas brilhantes, como um trem em um campo nevado à noite?
Correndo sem parar em um curso não mensurável pelos padrões deste mundo?
Às vezes, em uma manhã, algo que você havia perdido há muito tempo
aparece inesperadamente no lugar onde você o havia colocado. Ela parecia
exatamente como antes, porém, era mais nova do que quando a perdeu. Seria
como se alguém o tivesse guardado cuidadosamente para você. Será que um dia
o espírito da Aki voltaria para cá dessa forma?
Tirei um pequeno frasco de vidro do bolso do meu paletó. Eu pretendia
carregá-lo comigo pelo resto da minha vida, mas certamente não precisava fazer
isso. Neste mundo, há começos e fins. Aki estava em ambos. Tive a sensação de
que isso era suficiente.
Olhando para um canto do campo, vi uma jovem tentando com todas as
suas forças alcançar o topo de um poste de escalada. Em sua saia, ela envolvia o
poste com as pernas e colocava uma mão sobre a outra, levantando o corpo um
pouco de cada vez. Eu a observava no crepúsculo cada vez mais profundo. Logo
ela se perderia de vista, entre as árvores e os brinquedos do playground no
escuro. Era uma vez, eu havia observado Aki daqui. À luz do sol forte, ela havia
subido em um poste no canto do campo. Mas eu não sabia mais se essa era uma
lembrança real.
Um vento soprou, espalhando flores de cerejeira aos meus pés. Olhei para o
frasco de vidro em minha mão. Um leve receio passou por mim – será que eu me
arrependeria disso? Talvez sim. Mas agora eu estava dentro de um lindo turbilhão
de pétalas.
Lentamente, retirei a tampa do frasco. E então, não pensei mais. Com a
boca aberta do frasco virada para o céu, espalhei com um único movimento sobre
o azul. Cinzas brancas dançavam no crepúsculo como neve de primavera. Outra
rajada de vento espalhou mais pétalas de flores. As cinzas de Aki se tornaram
parte do turbilhão e desapareceram de vista.
Posfácio
Socrates In Love é o título que originalmente dei a este romance, mas por
várias razões ele foi publicado com um título diferente no Japão. A frase
"Sócrates in love" em si, no entanto, não é uma criação original minha, mas
aparece em "What Is Philosophy?" de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em seu
trabalho, os autores afirmam que o amor é uma forma de violência que força
você a pensar. Esse foi meu ponto de partida para desenvolver o personagem
Sakutaro, o protagonista deste romance.