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Kyoichi Katayama

Um grito de amor do centro do mundo


Capa por: Kazui, Kazumi

Traduzido por
V.S

1° edição
DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada com acesso livre na internet com o
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
exclusivo de compra futura.
É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou
quaisquer usos comerciais do presente conteúdo.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes
são produtos da imaginação do autor ou são usados ficticiamente.
Qualquer semelhança com eventos reais, locais, organizações ou pessoas,
vivas ou mortas, é mera coincidência.
Sumário

PARTE 1 7
2 8
3 11
4 14
5 17
6 18
7 21
8 24
9 28
PARTE 2 32
2 35
3 41
4 43
5 45
6 50
PARTE 3 57
2 59
3 63
4 64
5 67
6 71
7 75
8 76
PARTE 4 78
2 81
3 85
4 88
PARTE 5 93
POSFÁCIO 96
PARTE 1
DE MANHÃ, ACORDEI chorando. Ultimamente, tem sido sempre assim. Já
nem sei mais se meu pranto é tristeza. Acho que meus sentimentos se foram com
as lágrimas. Fiquei na cama sem ânimo até que minha mãe entrou e me mandou
levantar.
Não estava nevando, mas a estrada estava coberta de gelo. Metade dos
carros que vimos tinham correntes nos pneus. Meu pai dirigia, enquanto o pai de
Aki estava ao lado dele. A mãe de Aki e eu estávamos atrás. Os homens na frente
não paravam de falar sobre a neve. Chegaríamos ao aeroporto? O avião decolaria
no horário? A mãe de Aki e eu mal falamos. Eu olhava pela janela a paisagem
passando. Os campos dos dois lados da estrada estavam cobertos de neve até
onde a vista alcançava. Raios de sol cortavam as nuvens, iluminando uma
cordilheira distante. A mãe de Aki segurava a pequena urna com as cinzas em
seu colo.
A neve ficava mais profunda à medida que nos aproximávamos do topo da
colina. Meu pai parou o carro, e o pai de Aki saiu para colocar correntes nos
pneus. Para passar o tempo, fui dar um curto passeio.
Do outro lado da área do estacionamento, havia um bosque de árvores. A
neve intocada cobria a vegetação rasteira, enquanto a neve que se acumulava
nas copas das árvores caia no chão com um som seco. Quando olhei para trás,
além da balaustrada, vi o oceano de inverno. Estava calmo e suave,
completamente azul. Não importa para onde eu olhasse, minhas memórias me
consumiram. Apenas guardei esses sentimentos e virei de costas para o oceano.
A neve na floresta era profunda. Havia galhos quebrados e alguns troncos,
semelhantes a tocos meio enterrados, que dificultavam a caminhada. De repente,
em algum lugar do bosque, um pássaro soltou um pio agudo e voou. Parei e
fiquei à escuta de outros barulhos, mas estava tão silencioso, era como se não
houvesse mais ninguém no mundo. Ao fechar os olhos, pude ouvir as correntes
dos carros na estrada próxima, como som de sinos. Comecei a não saber onde
estava ou quem eu era. Então ouvi meu pai me chamando.
Depois que passamos pela colina, o resto da viagem foi tranquila. Chegamos
ao aeroporto a tempo, fizemos o check-in e fomos para o portão de embarque.
— Obrigado por tudo, — disse meus pais aos pais de Aki.
— Nós quem deveríamos estar agradecendo — respondeu o pai de Aki,
sorrindo. — Tenho certeza que Aki está muito feliz por Sakutaro ter vindo
conosco.
Olhei para a pequena urna nas mãos da mãe de Aki. Aquela urna, em sua
bolsa de brocado... Aki estava realmente lá?
Depois que o avião decolou, adormeci e tive um sonho. Era sobre Aki
quando ela ainda era saudável, e no sonho ela sorria, aquele sorriso tímido dela.
Ela me chamou: "Saku-chan". Sua voz permaneceu em meus ouvidos. Desejei
que o sonho fosse real e que esta realidade não fosse um sonho. Mas não foi
esse o caso. E era por isso que, sempre que acordava, sempre estava chorando.
Não foi porque eu estava triste. Quando você acorda depois de um sonho feliz
para a realidade, há um abismo que você precisa encarar, e não é possível
atravessá-lo sem derramar lágrimas. Não importa quantas vezes faça isso.

O lugar de onde partimos estava completamente coberto por neve, mas o


lugar onde pousamos estava sobre o escaldante sol de verão: Cairns, uma bela
cidade tropical às margens do Oceano Pacífico. Palmeiras e vegetação tropical
inundavam com o seu verde em torno dos hotéis luxuosos de frente para a baía.
Grandes e pequenos navios de cruzeiro esperavam no cais. O táxi que nos leva ao
nosso hotel segue pela margem, onde turistas passeiam e apreciam o pôr do sol.
— É como o Havaí, — disse a mãe de Aki.
Para mim, o lugar estava amaldiçoado. Nada havia mudado em relação a
esses quatro meses atrás, exceto as estações do ano. A Austrália passou do início
da primavera para o meio do verão. Apenas isso. Era tudo o que tinha
acontecido.
Íamos passar a noite em um hotel e pegar um voo matinal no dia seguinte.
Quase não havia diferença de fuso horário, então a hora em que saímos do Japão
simplesmente continuou a passar. Depois de jantar, deitei-me na cama do hotel e
fiquei olhando para o teto. E disse a mim mesmo que Aki não estava aqui.
Quando cheguei a Cairns, há quatro meses, Aki não estava aqui também.
Nossa turma veio para a viagem de formatura do ensino médio e a deixou no
Japão. Tínhamos voado de uma cidade japonesa perto da Austrália, para uma
cidade australiana que ficava perto do Japão. Esse era o único caminho sem
escalas e, por esse estranho motivo, esta cidade entrou na minha vida. Eu pensei
que era um lugar lindo. Tudo era estranho, novo e interessante, porque tudo que
eu olhava, Aki estava descobrindo comigo, através de mim. Mas agora,
independentemente do que eu olhasse, não sentia nada. O que eu deveria ver
aqui?
Foi isso que significou para Aki partir, o que significou perdê-la. Eu não tinha
mais nada para olhar, fosse na Austrália ou no Alasca, no Mediterrâneo ou na
Antártica. Não importa onde eu fosse, seria a mesma coisa: nenhuma paisagem
poderia me emocionar, nada bonito poderia me agradar. A pessoa que me deu a
capacidade de ver, conhecer e sentir – a vontade de viver – havia desaparecido.
Ela não estava mais comigo.
Quatro meses. Tudo aconteceu numa simples transição de uma estação para
outra. Durante esse tempo, uma garota havia desaparecido deste mundo. Se
pensasse nela como uma pessoa entre seis bilhões, não significava nada. Eu não
estava lá com as seis bilhões de pessoas. Eu estava em um lugar onde uma
morte havia apagado todas as emoções. Era onde eu estava. Não vi nada, nem
senti nada. Mas era onde eu realmente estava? Se não, onde eu estava?
2
A PRIMEIRA VEZ QUE AKI E eu estivemos juntos na mesma turma foi no
nosso segundo ano do ensino médio. Até então, eu nunca havia a conhecido, mas
por acaso acabamos na mesma turma, de nove, e por acaso nossa professora nos
nomeou representantes de classe, dos homens e das mulheres.
Como representantes de turma, nossa primeira tarefa foi ir ao hospital
visitar um colega chamado Oki, que quebrou a perna no primeiro dia de aula. No
caminho compramos biscoitos e flores com o dinheiro que nossa professora havia
dado a nós e dos colegas de turma.
Oki estava deitado de costas na cama, com a perna engessada. Eu não
sabia quase nada sobre ele, então fiquei quieto enquanto Aki, que estava na
mesma turma que ele no ano anterior, falava. Olhei pela janela do quarto andar
para a cidade. Uma floricultura, uma feira de frutas, uma doceria e outros
comércios formavam um pequeno distrito comercial ao longo do trajeto do
ônibus. Além disso, eu consegui ver a Colina do Castelo. Sua torre branca
aparecia por trás das árvores, que brilhavam como folhas novas.
— Ei, Matsumoto. — Oki de repente virou-se para mim. — Seu primeiro
nome é Sakutaro, certo?
— Sim. — Afastei-me da janela.
— Deve te deixar maluco, não é? — ele disse.
— O que me deixa louco?
— Quero dizer, é por causa de Sakutaro Hagiwara, certo?
Eu não respondi.
— Sabe qual é o meu primeiro nome?
— Sim. Ryunosuke.
— Por causa de Ryunosuke Akutagawa.
Eu entendi o que Oki queria dizer.
— Deveria ser ilegal dar nome de autores famosos aos seus filhos, — disse
ele, balançando a cabeça. Ele parecia satisfeito consigo mesmo.
— Na verdade, foi meu avô, — eu disse.
— Seu avô escolheu seu nome?
— Sim.
— Seria um muito obrigado, certo?
— Ei, "Ryunosuke" não é tão ruim assim. Poderia ter sido pior.
— Ruim, como?
— E se eles tivessem colocado seu nome de Kinnosuke?
— Kinnosuke? Por quê?
— Esse é o verdadeiro primeiro nome de Soseki.
— É? Eu não sabia disso.
— Pense nisso. Se o livro favorito dos seus pais fosse Kokoro, você se
chamaria Kinnosuke Oki agora.
— De jeito nenhum, — disse ele, rindo. — Qual é, ninguém colocaria o
nome do seu filho de Kinnosuke.
— Ei, suponha. Suponha que seu nome fosse Kinnosuke Oki. Você seria
motivo de chacota na escola.
A expressão de Oki enrijeceu.
Eu continuei: — Você culparia seus pais, fugiria de casa e se tornaria um
lutador profissional.
— Um lutador profissional? Como assim?
— O que mais faria se você se chamasse Kinnosuke?
— Sim, tem razão!
Aki colocou as flores que havíamos trazido em um vaso. Oki e eu abrimos a
caixa de biscoitos e comemos enquanto conversávamos sobre nosso país tão
literário.
— Ei, não demorem a voltar, tá bom? — gritou Oki quando estávamos
saindo. — É chato ficar deitado aqui o dia todo.
— Não se preocupe. Todos os colegas da turma vão começar a se revezar
para contar o que você está perdendo.
— Eu poderia viver sem isso.
— Sasaki disse que passaria por aqui para ajudá-lo a estudar, — disse Aki,
referindo-se à garota mais fofa da classe.
— Patinho sortudo, hein, Oki — eu disse.
— Sim, sim. Tudo bem, — disse ele, rindo de seu trocadilho estúpido.

No caminho de volta do hospital, perguntei à Aki se queria subir a Colina do


Castelo. Era muito tarde para chegar a tempo às atividades do clube na escola,
mas muito cedo para embora para casa. Ela disse que sim.
Dois caminhos subiam a colina, um no lado norte e outro no lado sul. O
lado norte era o acesso principal. Subimos pelo trilho do lado sul, que a maior
parte das pessoas nunca usava por ser muito íngreme e estreito. A meio da
subida havia um parque onde os dois caminhos se encontravam. Subimos
devagar, sem falar muito.
— Você gosta de rock, não é, Matsumoto? — Aki perguntou, eu olhei para
ela.
— Como você sabia?
— Eu vi você trocando CDs com seus amigos.
— E você, Hirose?
— Eu sempre me confundo com essa subida.
— O quê, rock?
— Sim. Meu cérebro fica igual aqueles feijões que servem junto ao curry no
almoço.
— Hm.
— E você está no clube de kendo, certo?
— Sim.
— Você não tem treino hoje?
— Eu disse ao treinador que não poderia ir.
Aki pensou um pouco e então disse: — Meio estranho. Um cara que pratica
kendo e que gosta de rock. As duas coisas não combinam.
— Por que não? No kendo, quando você bate na proteção facial de um cara,
é uma sensação boa. Ouvir rock é assim.
— Então você não se sente bem na maior parte do tempo?
— E você?
— Não sei o que você quer dizer com 'é uma sensação boa'.
Eu também não sabia.
Como éramos apenas dois colegas do ensino fundamental, mantivemos uma
distância razoável um do outro. Mesmo assim, um leve e doce aroma, talvez do
shampoo ou do condicionador dela, veio na minha direção. Era uma grande
diferença em relação ao cheiro de um protetor facial suado. Talvez, se vivêssemos
com este cheiro, e deixássemos de ouvir rock ou bater nas pessoas com uma
espada de bambu.
As bordas dos degraus estavam desgastadas e tinham enormes manchas de
musgo crescendo nelas. A terra em volta dos degraus, era argila vermelha que
tinha um aspecto úmido durante todo o ano. Aki parou de repente.
— Hortênsias.
Entre o trilho e o precipício à sua direita, havia um grupo espesso de
hortênsias. Os arbustos estavam cobertos de flores pequenas do tamanho de
moedas de dez ienes.
— Eu adoro hortênsias — disse ela com um olhar sonhador. — Vamos voltar
aqui juntos quando florescer.
— Claro — eu disse. E então acrescentei um pouco apressadamente: —
Estamos quase no topo.
3
A MINHA CASA ficava no terreno da biblioteca pública. Era um prédio
vitoriano branco de dois andares e parecia algo do apogeu da ocidentalização,
cem anos atrás. Na verdade, a casa havia sido considerada um marco histórico e
quem morava lá não poderia fazer reparos sem permissão. "Marco histórico",
pode parecer especial, mas não havia nada de especial em morar lá. Na verdade,
meu avô declarou que não era confortável para um homem idoso e se mudou
para seu próprio apartamento. Uma casa que não é confortável para um velho
não é confortável para ninguém. Mas meu pai era excêntrico nesse aspecto e
minha mãe concordou. Para o filho deles, era simplesmente irritante.
Eu não sabia exatamente o que nos trouxe aqui. Além da excentricidade do
meu pai, provavelmente tinha algo a ver com o fato de minha mãe trabalhar na
biblioteca. Ou talvez meu avô, que era membro da Diet1 ou algo assim há muito
tempo, tenha mexido alguns pauzinhos. De qualquer forma, eu não estava
particularmente interessado no nosso passado desagradável em relação a esta
casa, então nunca me preocupei em perguntar. A casa e a biblioteca, no ponto
mais próximo, ficavam a apenas três metros de distância. Portanto, se alguém
estivesse lendo um livro perto da janela, eu poderia olhar por cima do ombro, do
meu quarto no segundo andar. Bem, quase.
Na época em que entrei no ensino fundamental, comecei a ajudar minha
mãe na biblioteca quando não praticava kendo. Nas tardes movimentadas de
sábado, domingo e feriados, eu escaneava códigos de barras no balcão de
empréstimo ou empilhava os livros devolvidos em um carrinho e os levava para as
pilhas. É claro que, como não fiz isso estritamente por devoção filial, fui pago
pelos meus serviços. A maior parte do dinheiro foi para CDs.

1
https://en.wikipedia.org/wiki/National_Diet muito provável que se refira a essa organização.
Depois do dia no hospital, Aki e eu nos víamos muito como representantes
de classe. Mas embora estivéssemos muitas vezes juntos, eu realmente não
pensava nela como uma garota. Talvez fosse porque estávamos muito próximos
que eu não percebi o quão atraente ela era. Ela era muito fofa, na verdade, com
uma boa personalidade e muito inteligente também. Ela tinha muitos admiradores
entre os rapazes da turma. E antes que eu percebesse, estava sentindo a
inimizade deles. Quando jogávamos basquete ou futebol no ginásio, alguém
sempre batia em mim de propósito ou me chutava nas canelas. Ficou bem claro
que alguns caras queriam isso comigo, mas no começo eu não entendi o que
estava acontecendo. Achei que esses caras me odiavam por algum motivo, o que
realmente me incomodou.
Um dia, porém, aconteceu algo que me esclareceu tudo. No segundo
período, cada turma do segundo ano teve de apresentar uma peça de teatro para
o Festival Cultural. A votação do bloco das garotas levou a melhor, e a nossa
turma acabou por se apaixonar por Romeu e Julieta. Aki foi escolhida para
Julieta, graças ao apoio unânime das outras garotas. O Romeu, seguindo a regra
não escrita de que as coisas que ninguém quer fazer cabe ao representante da
turma, foi para mim.
As garotas assumiram a liderança e os ensaios avançaram. A cena da janela,
onde Julieta diz: "Ó Romeu, Romeu! Por que és tu Romeu? Renegue teu pai e
recuse seu nome! Ou, se não quiser, apenas jura meu amor" foi engraçado
porque Aki, séria por natureza, interpretou isso tão sinceramente. E a parte em
que a diretora, fazendo uma aparição especial como Enfermeira, tinha que dizer:
"Agora, pela minha virgindade aos doze anos, mandei que ela viesse",
exatamente como está no roteiro, sempre fazia todo mundo cair na gargalhada.
Na cena matinal no quarto de Julieta, onde Romeu sussurra "Mais luz e luz - mais
escuridão e escuridão nossas desgraças" e vai embora, tivemos que nos beijar.
Julieta, não querendo que ele vá, e Romeu, querendo ficar, se entreolham e se
beijam na grade da varanda.
Um dia, dois caras da nossa turma bloquearam meu caminho de repente.
— Não fique se achando perto da Hirose, entendeu? — disse um.
— Só porque você tira boas notas não faz de você um manda chuva, —
disse o outro.
— Do que você está falando? — perguntei.
— Cale-se. — Um deles me deu um soco no estômago.
Foi mais uma ameaça do que qualquer coisa, e eu me preparei, então não
doeu muito. Talvez isso os tenha satisfeito, porque eles jogaram os ombros para
trás e foram embora. Em vez da humilhação que esperava, senti alegria.
Quando você adiciona a quantidade certa de ácido a uma solução de
fenolftaleína que é vermelha devido à reação com uma base, ela é neutralizada e
fica transparente. Da mesma forma, o mundo ficou perfeitamente claro: aqueles
caras estavam com ciúmes de mim.


Quanto a Aki, objeto de tudo isso, corriam rumores de que ela tinha um
namorado que estava no último ano do ensino médio. Eu não sabia se era
verdade e nunca ouvi isso diretamente de Aki. Eu simplesmente ouvia as garotas
da classe conversando sobre isso às vezes, dizendo que ele era alto e bonito e
jogava vôlei. Dê um tempo, pensei, homens de verdade praticam kendo. Kendô!
Neste momento, a Aki tinha o hábito de ouvir rádio enquanto estudava. Eu
até sabia qual era o seu programa preferido. Basicamente, os rapazes e as moças
– nenhum deles propriamente inteligentes – enviavam cartões-postais para o
programa e ficavam entusiasmados se o DJ, que falava rápido, os lesse em voz
alta. Pela primeira vez na minha vida, escrevi um cartão-postal a pedir uma
música, não me perguntem porquê. Talvez tenha sido por causa do cara do
ensino médio, ou por todos os problemas que sofri por causa dela. Mas, acima de
tudo, embora ainda não tivesse consciência disso, era o prenúncio do meu amor
por ela.
Na véspera de Natal, o programa apresentaria a horrível "hora especial de
pedido da Noite Santa para os amantes". Naturalmente, eu poderia presumir que
a competição seria acirrada. Para ter certeza absoluta de que meu cartão postal
seria lido no ar, tive que escrever algo que realmente os prendesse.
E agora vamos ao nosso próximo cartão-postal. Isto é de Romeu, da quarta
turma, segundo ano.
"Hoje gostaria de escrever sobre minha colega de classe, A.H. Ela é uma
garota quieta com cabelo comprido. Seu rosto é como uma versão frágil de
'Nausicaä do Vale do Vento'. Ela tem uma personalidade brilhante e foi
representante de classe por muito tempo. Para o Festival Cultural de novembro,
nossa turma apresentou Romeu e Julieta. Ela deveria interpretar Julieta e eu
deveria interpretar Romeu. Mas logo depois que começamos os ensaios, ela ficou
doente e faltou muito às aulas. Então tivemos que conseguir uma substituta, e eu
atuei em Romeu e Julieta com outra garota. Depois descobrimos que A.H. tinha
leucemia. Ela ainda está no hospital recebendo tratamento. Segundo meus
colegas que a visitaram, todo o seu cabelo comprido caiu e ela perdeu tanto peso
que mal dá para reconhecê-la. Ela provavelmente vai passar a véspera de Natal
na cama do hospital. Talvez ela esteja ouvindo esse programa no rádio. Então,
para A.H., que não pôde interpretar Julieta no Festival Cultural, por favor, toque
'Tonight' de West Side Story'."
— O que foi aquilo? — Aki disse no dia seguinte, me cercando na escola. —
Aquele pedido de ontem, foi você, não foi?
— Do que você está falando?
— Ah, para de fingir que não sabe. Romeu da quarta turma, segundo ano,
lembra. Leucemia? Todo o meu cabelo tinha caído e eu perdi tanto peso que você
mal conseguia me reconhecer? Como você pôde mentir assim?
— Ei, eu disse algumas coisas legais.
— Uma frágil Nausicaä, então. — Ela suspirou. — Olha, Matsumoto. Eu não
me importo com o que você escreve sobre mim. Mas realmente existem pessoas
com leucemia por aí, entende? Mesmo que seja uma piada, usar alguém assim
para chamar a atenção não é certo. Eu realmente odeio isso.
Apesar de me sentir incomodado com o seu tom presunçoso, gostei da raiva
de Aki. Uma sensação de frescura, como uma brisa, espalhou-se por mim.
Além de um novo sentimento em relação a Aki, trazia consigo uma sensação
de satisfação comigo mesmo. Pela primeira vez, estava a vendo como uma
garota.
4
AKI E EU estávamos em turmas diferentes no terceiro ano do ensino
fundamental. Ainda éramos representantes de classe, então uma vez por semana
nos víamos nas reuniões extracurriculares. Além disso, no final do primeiro
semestre, ela começou a estudar na biblioteca de vez em quando. Assim que as
férias de verão começaram, ela veio todos os dias. Depois que o torneio da
cidade acabou, eu não praticava mais kendo, então passei a dedicar mais tempo
ao trabalho assalariado. Também comecei a estudar para o vestibular, passando
as manhãs na sala de leitura climatizada da biblioteca. Nos encontrávamos muito
e, quando isso acontecia, estudávamos juntos ou tomávamos sorvete e
conversávamos nos intervalos.
— De alguma forma eu não sinto nenhuma pressão, sabe? — Eu disse. —
Estamos de férias e não consigo estudar.
— Não é que tenha que se esforçar tanto assim. Você vai passar com
certeza.
— Essa não é a questão, sabe. Eu li uma coisa em uma revista científica
outro dia que por volta do ano 2000, um asteroide vai colidir com a Terra e
bagunçar totalmente o ecossistema.
— É sério? — Aki disse enquanto tomava seu sorvete.
— O que quis dizer com "É sério?" — eu continuei, a dizer em tom sério — A
camada de ozônio está cheia de buracos, as florestas tropicais estão diminuindo...
Quando você e eu fomos avós, a Terra poderá não ser mais capaz de sustentar a
vida.
— Que incrível.
— Você não parece muito impressionado, na verdade.
— Desculpe — disse ela. — É difícil sentir que realmente está acontecendo.
Parece real para você?
— Bem, se você me perguntar assim...
— Não, né?
— Tudo bem, mas isso não vem ao caso. Vai acontecer de qualquer
maneira.
— Então tudo bem, por que se preocupar com isso?
Tive a sensação de que ela poderia estar certa.
— Não faz sentido se preocupar com algo tão distante.
— Na verdade, faltam cerca de dez anos.
— Teremos vinte e cinco anos, não é? — Aki disse. Com um olhar distante,
ela acrescentou: — Mas quem sabe o que acontecerá com qualquer um de nós
antes disso?
De repente, lembrei das hortênsias no Castelo da Colina. Devem ter
florescido duas vezes desde o nosso passeio daquele dia, mas não tínhamos ido
vê-las juntos. Com a escola e tudo o que estava acontecendo, eu havia esquecido
delas. Imaginei que a Aki também tivesse se esquecido. E, apesar de toda a
minha conversa sobre a queda de asteroides e a destruição da camada de ozônio,
tinha a sensação de que, no início do verão do ano 2000, as hortênsias iriam
florescer no Castelo da Colina. E não haveria razão para nos apressarmos a
vê-las, porque poderíamos fazê-lo quando quiséssemos.
Foi assim que se passaram as férias de verão. Eu me deprimi com o futuro
do ambiente terrestre enquanto memorizava coisas como "375 d.C., Grande
Invasão Bárbara" e "1642, Cromwell e a Guerra Civil Inglesa". Resolvia equações
simultâneas e problemas de funções quadráticas. Fui pescar com o meu pai de
vez em quando, comprei alguns CDs novos e falei com a Aki enquanto
tomávamos sorvete.
— Saku-chan.
Quando Aki me chamou assim do nada, engoli rapidamente o sorvete que
tinha acabado de colocar na boca.
— O que quer dizer com isso?
— É assim que sua mãe te chama, Matsumoto. — Aki sorriu.
— Você não é minha mãe.
— Sim, mas eu decidi. Vou te chamar de 'Saku-chan' de agora em diante.
— Pode me fazer um favor? Não faça coisas assim sem me perguntar.
— Eu já me decidi.
Foi assim que a Aki decidiu tudo para mim, a ponto de que eu não sabia
mais quem eu era.

Em algum momento do segundo período, ela apareceu na minha frente na


hora do almoço.
— Aqui, — ela disse, colocando um caderno na minha mesa.
— O que é isso?
— Um diário em conjunto.
— Hã?
— Você não sabe o que é isso, não é, Saku-chan?
Olhei em volta e disse: — Não me chame assim quando estivermos na
escola, certo?
— Seus pais não tinham um, Saku-chan?
Ela estava me ouvindo?
— Veja, um diário conjunto é onde um menino e uma menina escrevem
coisas que aconteceram durante o dia, ou coisas que eles pensaram ou sentiram,
e eles trocam entre si.
— Isso parece ser muito chato. Arranje alguém de sua classe para fazer isso
com você.
— Você não faz isso com qualquer um.
Aki parecia um pouco irritada.
— Mas você tem que sentar e escrever essas coisas, certo?
Com uma caneta ou algo assim.
— Sim, ou lápis de cor.
— Você não pode simplesmente usar o telefone?
Aparentemente, não. Aki juntou as mãos atrás das costas e ficou olhando
para mim e para o caderno. Quando comecei a abri-lo, ela me deteve
apressadamente.
— Leia-o depois que você chegar em casa. Essa é a regra com diários
conjuntos.
A primeira página era uma auto apresentação. Aki havia escrito sua data de
nascimento, seu signo astrológico, seu tipo sanguíneo, seus hobbies, comidas
favoritas, cores favoritas e uma análise de sua personalidade. Na página
seguinte, havia uma foto de uma garota, aparentemente ela mesma, desenhada
a lápis de cor com a palavra "segredo" nos três lugares que indicavam os
tamanhos de seus seios, cintura e quadril. "Que incrível. Demais", sussurrei para
mim mesmo, com o caderno ainda aberto em meu colo.

A professora da sala de aula de Aki morreu no Natal do nosso terceiro ano


do ensino fundamental. Ela parecia bem em nossa excursão escolar no final do
primeiro período, mas parou de ir à escola a partir do segundo período. Aki me
disse que ela estava doente. Aparentemente, câncer. Ela tinha apenas 50 anos.
Seu funeral foi no primeiro dia das férias de inverno, e todos da turma de
Aki, bem como todos os representantes de classe do terceiro ano, compareceram.
Os alunos não cabiam todos no salão principal de velório, então ficamos do lado
de fora. Era um dia extremamente frio, e os cânticos dos monges pareciam não
ter fim. Nós nos amontoamos do lado de fora, empurrando uns aos outros em um
esforço para não morrermos de frio.
Finalmente, os rituais fúnebres terminaram e chegou a hora de todos
prestarem suas últimas homenagens. O diretor e alguns outros fizeram os
elogios. Um deles foi Aki. Paramos de nos acotovelar e ficamos parados, ouvindo.
Ela falou com calma, sem se engasgar. O que ouvimos, é claro, não foi sua voz
natural, mas o que estava passando pelos alto-falantes. Embora o som estivesse
distorcido, percebi imediatamente que a voz era da Aki. Só que, por estar tingida
de tristeza, parecia mais madura do que o normal, como se ela tivesse deixado o
resto de nós para trás, infantil para sempre, e estivesse seguindo em frente
sozinha. Isso me fez sentir um pouco solitário.
Movido por algo parecido com desespero, olhei para as fileiras de cabeças à
minha frente, olhando para um lado e para o outro, procurando por Aki.
Finalmente, ela apareceu. Ela estava olhando para baixo enquanto lia seu
discurso em frente a um microfone de pé na entrada do salão principal. Fui
tomado por uma sensação de despertar. Vestida com o uniforme escolar que eu
conhecia tão bem, ela parecia uma pessoa diferente. Definitivamente era a Aki,
mas algo nela havia mudado. Não ouvi quase nada de sua fala. Eu simplesmente
não conseguia tirar meus olhos dela.
— Você sempre pode contar com a Hirose, — disse uma pessoa que estava
perto de mim.
— Sim, ela não parece, mas tem coragem, — alguém respondeu.
Naquele momento, um raio de luz atravessou as nuvens espessas que
estavam sobre sua cabeça. Ele iluminou Aki, que ainda estava lendo, e fez com
que sua figura de pé emergisse claramente da sombra do salão escuro. Essa era
a Aki que eu conhecia: a Aki que trocava aquele diário bobo comigo, a Aki que
me chamava de "Saku-chan" como se fôssemos amigos de infância. Ela, cuja
proximidade constante a tornava quase transparente para mim, estava ali, uma
garota que estava se tornando uma mulher. Era como se um cristal de rocha que
eu havia deixado em minha mesa tivesse, só de olhar para ele de um ângulo
diferente, começado a irradiar um lindo brilho.
Fui tomado por um impulso de correr. A alegria inundou meu corpo e, pela
primeira vez, percebi que eu era um dos muitos meninos que carregava uma
tocha para a Aki. Entendi o ciúme que meus colegas de classe tinham
demonstrado por mim. Não apenas isso, mas agora eu estava com ciúmes de
mim mesmo, por estar tão facilmente perto da Aki e por passar tanto tempo com
ela sem pensar duas vezes. Eu estava cheio de um ciúme que fazia meu coração
se apertar.
5
A ESCOLA PRIMÁRIA TERMINOU, o ensino médio começou e nós dois
estávamos mais uma vez na mesma classe. Naquela época, eu não podia negar
meus sentimentos pela Aki. Estar apaixonado por ela era tão evidente quanto eu
ser eu mesmo. Se alguém tivesse dito: "Você tem uma queda pela Hirose, não
é?" Tenho certeza de que eu teria respondido: "Bem, obviamente". Além da sala
de aula, não havia lugares fixos nas aulas, então juntamos nossas carteiras e
sentávamos lado a lado. No entanto, agora que estávamos no último ano do
ensino médio, ninguém nos provocava ou parecia ter ciúmes da nossa
proximidade. Nós dois, como um casal, nos tornamos parte do ambiente da sala
de aula, como o quadro negro e o vaso de flores. Quando muito, eram os
professores que se intrometiam com a pergunta ocasional: "Nossa, mas vocês
são bem próximos!" Eu sorria e respondia: "Sim, somos", enquanto desejava que
eles cuidassem da própria vida deles.
Começamos a ler o clássico conto popular Taketori Monogatari em abril, no
início do ano letivo, e agora estávamos no clímax da história. Para evitar que os
mensageiros da Lua levassem a Princesa Brilhante de volta, o imperador cercou a
mansão do velho com soldados. Mas a princesa é levada, e tudo o que resta ao
imperador é uma carta e o elixir da vida. O imperador, no entanto, não quer a
vida eterna em um mundo onde a princesa se foi. Assim, ele ordena que o elixir
seja queimado no topo da montanha mais alta do país, mais próxima da Lua.
Essa é a passagem que conta como o Monte Fuji, que significa "Imortal", recebeu
esse nome. Depois disso, a história termina.
Enquanto o professor explicava o contexto da obra, Aki mantinha os olhos
no texto e parecia estar refletindo sobre a história. Sua franja caia para frente,
tocando a ponta do nariz. Sua orelha estava meio escondida pelo cabelo, e seus
lábios estavam levemente franzidos. Cada parte dela era formada por linhas sutis
que nunca poderiam ser desenhadas por uma mão humana e, enquanto eu a
olhava, fiquei maravilhado com a forma como todas essas partes convergem para
formar essa garota que eu conhecia como Aki. E essa linda pessoa estava
apaixonada por mim!
De repente, tive uma certeza terrível de que, não importa quanto tempo eu
vivesse, nunca poderia esperar uma felicidade maior do que a que tinha agora. E
tudo o que pude fazer foi tentar preservar essa felicidade para sempre. Se cada
pessoa no mundo recebe uma quantidade fixa de felicidade, então talvez eu
estivesse tentando desperdiçar o valor de toda a minha vida naquele único
momento. Algum dia, os mensageiros da Lua a levariam embora, e tudo o que
me restaria seria um tempo tão infinito quanto a imortalidade.
Saí de meus pensamentos e vi Aki olhando para mim. Eu devia estar com
uma aparência séria, porque o sorriso que se formava em seu rosto desapareceu.
— Aconteceu algo?
Balancei a cabeça.
— Nada.
Todos os dias, depois da escola, íamos para casa juntos. Andávamos o mais
devagar possível, às vezes pegando desvios. Mesmo assim, sempre chegamos ao
local onde nos separamos em pouco tempo. Era estranho. Se eu fizesse o mesmo
caminho sozinho, era entediante e demorava uma eternidade. No entanto,
andando por ali, conversando com Aki. Eu desejava que isso nunca acabasse, e o
peso da minha bolsa, cheia de livros, não me incomodava nem um pouco. Talvez
nossas vidas também sejam assim, pensei muitos anos depois. Uma vida vivida
sozinha simplesmente parece longa e entediante. Mas uma vida compartilhada
com alguém que você ama chega ao ponto de se separar em pouco tempo.
6
MEU AVÔ FICOU em nossa casa por pouco tempo depois que minha avó
morreu, antes de se mudar para seu próprio apartamento. Ele vinha de uma
família de agricultores que, até a época do meu bisavô, possuía muitas terras.
Mas as famílias antigas foram arruinadas com as reformas agrícolas, e meu avô,
sem nada para herdar, foi para Tóquio tentar a sorte nos negócios. Ele aproveitou
o caos dos anos pós-guerra e ganhou dinheiro, que usou para abrir uma fábrica
de processamento de alimentos em sua terra natal. Ele tinha trinta e poucos
anos. Casou-se com minha avó e meu pai nasceu. Como minha mãe contou, a
empresa cresceu de forma constante durante as décadas de 1950 e 60, e a
família desfrutou de um estilo de vida abastado. Depois que meu pai se formou
no ensino médio, meu avô entrou para a política, entregando a empresa que
havia construído do zero a um de seus funcionários. Ele foi eleito para a Diet,
onde permaneceu por dez anos, e a maior parte de sua fortuna foi investida em
fundos de campanha. Quando minha avó morreu, ele não tinha praticamente
nada além de sua casa. Ele deixou a política logo depois e agora está vivendo
sozinho em uma aposentadoria confortável.
No ensino fundamental, comecei a visitá-lo de vez em quando, achando que
estava prestando um serviço de caridade. Eu falava sobre o que estava
acontecendo na escola ou me juntava a ele em frente à TV com uma cerveja para
assistir ao sumô. Às vezes, meu avô me contava histórias de sua juventude. Foi
assim que fiquei sabendo que ele havia se apaixonado por alguém quando tinha
dezessete ou dezoito anos, alguém com quem ele queria se casar, mas não podia.
— Os pulmões dela estavam doentes, — disse ele, bebendo seu Bordeaux
tinto como de costume.
— Hoje em dia, a tuberculose pode ser curada com medicamentos, mas
naquela época o melhor que se podia fazer era comer bem e ficar na cama em
algum lugar com ar bom e limpo. Naquela época, as mulheres tinham de ser
muito fortes, ou não eram consideradas aptas para o casamento. Não havia
aparelhos elétricos, lembre-se. Cozinhar e lavar roupa eram trabalhos
extremamente árduos, mais difíceis do que se possa imaginar. Além disso, os
jovens da minha geração esperavam lutar pelo nosso país na guerra. Dar nossas
vidas. Eu não era exceção. Portanto, embora estivéssemos apaixonados, não
poderíamos nos casar. Nós dois sabíamos disso. Foi um momento difícil.
— Então, o que aconteceu?
— Fui convocado para o exército e passei vários anos no serviço militar, —
continuou meu avô. — Eu achava que nunca mais nos veríamos. Achei que ela
morreria enquanto eu estivesse fora, e também achei que não voltaria vivo.
Então, logo antes de nos separarmos, prometemos um ao outro que, pelo menos
no próximo mundo, estaríamos juntos. — Meu avô parou de falar por um
momento e deixou seu olhar vagar. — Mas o destino é uma coisa irônica, e
quando a guerra acabou, nós dois tínhamos sobrevivido. Quando você acha que
não tem futuro, é estranho como você pode se tornar puro; mas quando você se
encontra vivo, você começa a ter desejos novamente. Eu queria me casar com
ela, não importava o que acontecesse. E foi por isso que tentei ganhar dinheiro.
Se ao menos eu tivesse dinheiro, não importava se ela tivesse tuberculose ou
qualquer outra coisa; eu poderia ficar com ela e cuidar dela.
— E é por isso que você foi para Tóquio?
Meu avô assentiu com a cabeça.
— Tóquio estava queimada, um deserto. Havia uma inflação terrível e quase
não havia comida. Era quase uma anarquia. As pessoas andavam por aí com um
olhar assassino. Eu não era diferente. Estava desesperado para ganhar dinheiro.
Fiz todo tipo de coisa sem vergonha. Nunca matei ninguém, mas, fora isso, fiz
praticamente tudo. Mas, se você não soubesse, enquanto eu estava trabalhando
como escravo, eles desenvolveram um medicamento maravilhoso para a
tuberculose. Chama-se estreptomicina.
— Já ouvi falar.
— Então ela foi curada.
— Ela foi curada?
— Foi bom que ela tenha se curado. Mas, uma vez saudável, ela poderia se
casar. E, é claro, os pais dela queriam casá-la antes que ela melhorasse.
— Mas e quanto a você?
— Eu não atendia aos requisitos deles.
— Por que não?
— Eu estava envolvido em negócios obscuros. Cheguei até a ser preso. Os
pais dela pareciam saber disso.
— Mas tudo isso foi para que você pudesse ficar com ela.
— Do meu ponto de vista, sim. Mas não foi assim que eles viram a situação.
Eles queriam um marido respeitável para sua filha. Acho que o homem que
encontraram era um professor de escola primária.
— Isso é loucura.
— Foi assim que aconteceu. — Ele riu sutilmente. — Pode parecer besteira
hoje em dia, mas naquela época os filhos não podiam ir contra a vontade dos
pais. Ela era de uma família antiga e estava doente há muito tempo. Ela era um
fardo para seus pais. Rejeitar o homem que eles haviam escolhido para ela e
dizer que queria se casar com outra pessoa era algo que ela simplesmente não
podia fazer.
— Então, o que aconteceu?
— Ela se casou. Eu me casei com sua avó e tivemos seu pai. Devo dizer que
ele é um osso duro de roer.
— Sim, mas você a superou?
— Achei que sim. E acho que ela também se sentia assim. Nós
simplesmente não fomos feitos para ficar juntos. Nesta vida.
— Mas você realmente não superou, não é? Superou-a?
Meu avô estreitou os olhos e olhou diretamente em meu rosto. Depois de
um longo momento, ele disse: — Vou lhe contar o resto da história em outra
ocasião. Quando você for um pouco mais velho, Saku.
Quando meu avô sentiu vontade de me contar o resto da história, eu já
estava no último ano do ensino médio. As férias de verão do meu primeiro ano
haviam acabado de terminar e o segundo período havia começado. Um dia,
depois da escola, fui até o apartamento do meu avô. Sentamos em frente à
televisão com uma cerveja, assistindo ao sumô.
— Que tal ficar para o jantar? — disse meu avô, quando o sumô acabou.
— Não, obrigado. Mamãe está me esperando em casa.
O jantar na casa do meu avô consistia principalmente de comida enlatada -
carne com milho, sardinha ou ensopado de carne. Até mesmo os vegetais eram
aspargos enlatados, e a refeição era finalizada com sopa de missô instantânea.
Era isso que meu avô comia todos os dias. De vez em quando, minha mãe vinha
cozinhar para ele, ou ele ia comer em nossa casa, mas basicamente meu avô
vivia de comida enlatada. Ele dizia que os idosos não deveriam se preocupar
tanto com a nutrição, mas sim em comer a mesma coisa na mesma hora todos os
dias.
— Eu estava pensando que poderíamos pedir enguia hoje, — disse ele
quando me levantei para sair.
— Por quê?
— Como assim, porquê? Não conheço nenhuma lei que diga que você não
pode comer enguia.
Meu avô fez um pedido por telefone, duas enguias grelhadas com arroz.
Enquanto esperávamos, tomamos outra cerveja em frente à TV. Como de
costume, ele abriu uma garrafa de vinho. Ele a deixava por trinta minutos a uma
hora e começava a beber depois do jantar. Seu hábito de tomar meia garrafa de
Bordeaux todos os dias era algo que ele já tinha quando morava em nossa casa.
— Tenho um favor de lhe pedir hoje, Saku, — disse meu avô em tom sério.
— Um favor? — Atraído pela enguia para ficar, eu agora me perguntava
qual seria o preço.
— Sim. Bem, é uma longa história.
Meu avô trouxe algumas sardinhas em óleo da cozinha – enlatadas, é claro.
Comemos as sardinhas com nossa cerveja e depois chegou à enguia grelhada.
Nós a comemos e bebemos o consomê de fígado de enguia que a acompanhava,
e meu avô ainda não havia terminado sua história. Começamos a beber vinho.
Nesse ritmo, aos vinte anos, quando eu pudesse consumir álcool, seria um
alcoólatra completo. Eu devia ter uma tolerância alta, pois não me sentia bêbado.
É difícil acreditar que eu era filho de um homem que se sentia mal depois de
comer uma fatia de picles de narazuke.
— Você está se tornando um verdadeiro beberrão, Saku, — disse meu avô
com um ar de satisfação.
— Afinal de contas, sou seu neto.
— Mas seu pai é meu filho e não consegue beber nem uma gota.
— Deve ser o que eles chamam de atavismo.
— Entendo, — disse meu avô, balançando a cabeça. — Então, o que você
acha? Você me faz esse favor?
7
NO DIA SEGUINTE, minha cabeça doía e eu não estava em condições de
fazer trigonometria ou discurso indireto. Passei a manhã escondido atrás dos
livros didáticos, tentando não vomitar. Depois de passar pela aula de ginástica no
quarto período, finalmente comecei a me sentir melhor. Comi meu almoço no
pátio com a Aki. O jato da fonte me fez sentir como se fosse vomitar de novo,
então mudamos o banco de lugar e nos sentamos de costas para o lago. Contei a
ela a história do meu avô.
— Então seu avô estava apaixonado por aquela mulher o tempo todo, —
disse Aki. Achei que tinha visto lágrimas em seus olhos.
— Sim, acho que sim. — Assenti com a cabeça. Eu tinha sentimentos
contraditórios. — Ele tentou superá-la, mas não conseguia esquecê-la.
— E ela também não conseguia esquecer seu avô.
— É muito estranho, não acha?
— Vamos lá, estamos falando de meio século. Uma espécie pode evoluir
nesse tempo.
— É maravilhoso. O fato de eles poderem ficar apaixonados por uma pessoa
por tanto tempo, — disse Aki com um olhar distante.
— Todos os organismos envelhecem, certo? Todas as células, exceto as
reprodutivas, estão sujeitas ao envelhecimento. Seu rosto, Aki, vai ficar cada vez
mais enrugado.
— O que você está tentando dizer?
— Mesmo que você tenha vinte anos quando se conhecem, depois de
cinquenta anos você tem setenta.
— Então, ficar loucamente apaixonado por uma avó de 70 anos é meio
nojento, não é?
— Eu acho que é lindo. — Aki parecia irritado.
— E daí que, de vez em quando, eles iam para um hotel ou algo assim?
— Pare com isso. — ela olhou para mim.
— O vovô é completamente capaz de fazer algo assim.
— Você é o único capaz de fazer isso, Saku-chan.
— De jeito nenhum.
— Sim, você faria isso.
Levamos nosso argumento para a aula de ciências depois do almoço. O
professor de biologia estava falando sobre como o DNA dos seres humanos era
98,4% idêntico ao dos chimpanzés. Ele disse que a diferença genética entre nós
era menor do que a diferença genética entre chimpanzés e gorilas, portanto, os
parentes mais próximos dos chimpanzés não eram os gorilas, mas nós mesmos.
Diante disso, a classe inteira começou a rir. O que era tão engraçado, pensei.
Idiotas estúpidos.
Aki e eu nos sentamos no fundo da sala de aula.
— Você acha que isso seria considerado adultério? — eu disse.
— Claro que não. É platônico.
— Sim, mas tanto o vovô quanto a mulher eram casados. Do ponto de vista
do cônjuge, pode ser adultério, mas para os dois foi puro amor.
Aki parecia perdida em seus pensamentos.
— E daí, pode ser adúltero ou platônico, dependendo da perspectiva?
— Algo assim.
— O que você quer dizer com isso?
— O adultério é um conceito definido pela sociedade, certo? Ele muda com
o tempo. Por exemplo, em uma sociedade poligâmica, o significado seria
totalmente diferente. Mas ficar apaixonado por uma pessoa por cinquenta anos
inteiros – isso transcende a cultura, a história e outras coisas.
— Ela transcende a espécie?
— Você acha que um chimpanzé pode ficar apaixonado por outro chimpanzé
por cinquenta anos?"
— Não sei nada sobre chimpanzés.
— Então, o amor puro é maior do que o adultério.
— Não acho que 'ótimo' seja a palavra certa.
Nesse momento, o professor nos disse que já estávamos conversando há
muito tempo.
Como punição, fomos obrigados a ficar no fundo da sala de aula. Era disso
que se tratava o poder, pensei. Não havia problema em falar sobre a possibilidade
de cruzamento entre seres humanos e chimpanzés, mas não havia problema em
falar sobre o amor entre um homem e uma mulher que transcende o tempo.
Continuamos nossa discussão em sussurros.
— Você acredita em outro mundo depois deste?
— Porque o vovô e aquela mulher prometeram um ao outro que ficariam
juntos em outro mundo.
Aki pensou por um tempo e falou:
— Não, eu não sei.
— Mas você reza todas as noites antes de ir dormir, certo?
— Eu acredito em Deus, — disse ela com firmeza.
— Qual é a diferença entre os dois?
— O 'mundo após a morte' não parece ser algo que as pessoas inventaram
para se sentirem melhor com a morte?
Pensei sobre isso.
— Então, eles também não podem ficar juntos no próximo mundo.
— É nisso que eu acredito, — disse Aki. — Seu avô e aquela mulher devem
ter visto as coisas de forma diferente.
— Deus também poderia ter sido inventado para fazer as pessoas se
sentirem melhor. Afinal, quando é que as pessoas recorrem a Deus para ter
ajuda?
— Isso é diferente do meu Deus.
— O quê, existem muitos deuses? Ou tipos diferentes?
— Mesmo que você não acredite no Céu, você ainda pode ter admiração por
Deus. É por isso que eu oro todas as noites.
Fomos finalmente mandados para o corredor, onde continuamos nossa
discussão até o final da aula. Depois, fomos chamados à sala dos professores e
repreendidos pelo professor de biologia e pelo professor responsável da sala. Era
muito bom estarmos tão próximos, disseram eles, mas na aula deveríamos nos
dedicar mais a ouvir o professor.

Já estava quase anoitecendo quando saímos da escola. Caminhamos em


silêncio em direção ao Daimyo Park. Passamos por um campo de jogos e um
museu de história, além de uma cafeteria chamada "Castle Town". Tínhamos ido
lá uma vez quando voltávamos da escola para casa, mas o café era tão ruim que
nunca mais voltamos. Passamos por uma antiga fábrica de saquê e chegamos ao
pequeno rio que corria pela cidade. Aki esperou até que tivéssemos atravessado
a ponte para começar a falar.
— Mas, no fim das contas, eles nunca chegaram a ficar juntos, — disse ela.
— Depois de esperar cinquenta anos.
— Eles deveriam ter se reunido depois que o marido dela morreu. O vovô
tem estado sozinho desde que a vovó morreu.
Eu também estava pensando nisso.
— Quanto tempo?
— Há cerca de dez anos. Mas ela morreu antes do marido. Simplesmente
não deu certo.
— É uma história triste.
— É uma história bem ridícula também, para você saber.
A conversa foi interrompida. Continuamos andando e olhando para baixo.
Quando passamos pelo supermercado e pela loja de tatames, e viramos a
esquina do barbeiro, estávamos quase chegando à casa de Aki.
— Ajude-o, Saku-chan, — disse ela, como se soubesse que estávamos
correndo contra o tempo.
— É fácil para você dizer isso. Estamos falando em violar o túmulo de
alguém.
— Você está com medo?
— Claro que sim. O que mais achou?
— Você não é bom com esse tipo de coisa, não é, Saku-chan? — Ela estava
rindo.
— O que há de tão engraçado?
— Ah, nada.
Finalmente, a casa dela ficou à vista. Eu viraria à direita na rua logo antes
dela e atravessaria a rua para chegar em casa. Faltavam cerca de cinquenta
metros. Sem que nenhum de nós assumisse a liderança, nosso ritmo ficou mais
lento até que estávamos parados, conversando.
— É um crime, certo? — eu disse.
— É mesmo? — Ela olhou para cima, perplexa.
— É claro que é.
— Do que eles iriam te acusar?
— Provavelmente uma ofensa sexual.
— Ah, por favor.
Enquanto ela ria, o cabelo roçando seus ombros balançava e realçava o
branco da blusa. Nossas sombras se alongavam, as metades superiores inclinadas
e projetadas sobre uma parede de concreto à frente.
— De qualquer forma, se me pegarem, serei suspenso da escola.
— Então irei visitá-lo.
Isso era para ser um incentivo?
— Você é tão descontraído, — murmurei com um suspiro.
8
DISSE AOS MEUS PAIS que estava dormindo na casa do meu avô. Era um
sábado à noite. Para o jantar, pedimos sushi; meu avô se esbanjou e nos deu a
pedido de luxo. Mesmo assim, eu não conseguia distinguir entre o atum e o
ouriço-do-mar, e o abalone poderia muito bem ser de borracha. Dessa vez, nada
de cerveja ou Bordeaux. Tomamos chá com o sushi enquanto assistimos ao
beisebol na TV, e depois tomamos café. A transmissão terminou no meio do jogo.
— Já está na hora de irmos, — disse meu avô.
O túmulo da mulher ficava a leste da cidade, em um templo dedicado à
esposa de um senhor feudal. Descemos do táxi perto do templo. Essa área ficava
em um distrito montanhoso, onde o abastecimento de água era desligado antes
da escassez no verão. Ainda era setembro, mas o ar noturno estava frio.
Um pequeno portão de dois andares ficava ao lado dos degraus de pedra
que levavam ao prédio principal. Passamos por ele, e um caminho de terra
vermelha se estendia diretamente para o cemitério. À nossa esquerda, havia uma
parede de gesso branco, do outro lado da qual pareciam estar os aposentos do
sacerdote, mas não havia sinal de vida. Apenas uma luz fraca brilhava na janela
do que pode ter sido o banheiro. Do nosso lado direito, havia túmulos antigos,
provavelmente datados da era feudal. Os adornos inclinados e as lápides lascadas
pareciam flutuar à luz da lua. Os antigos ciprestes e cedros que cresciam na
encosta da montanha pairavam sobre o caminho, quase obscurecendo o céu.
Logo à frente, em uma curva do caminho, estava o mausoléu da esposa do
senhor feudal. Eu podia ver através da escuridão uma linha de lápides de
formatos estranhos, combinações de cubos, esferas e cones. Contornamos as
pedras e viramos à esquerda, entrando mais fundo no cemitério. Não usamos a
lanterna que havíamos trazido, por medo de chamar a atenção. Seguimos em
frente com a luz da lua como guia.
— Onde está? — Perguntei ao meu avô, que estava caminhando na minha
frente.
— Mais à frente.
— Você já esteve lá antes?
— Sim. — Ele não estava em um clima de conversa.
Fiquei imaginando quantos túmulos havia nesse lugar. As encostas suaves
da ravina estavam praticamente cobertas de lápides. Cada túmulo não continha
necessariamente apenas uma pessoa. Se um túmulo comum continha as cinzas
de dois ou três corpos, eu não conseguia nem imaginar quantos mortos estavam
enterrados em todo o cemitério. Eu já tinha ido a cemitérios durante o dia,
muitas vezes, mas essa era a primeira vez que chegava a um tão tarde. À noite, a
presença dos mortos – uma espécie de respiração, quase — era intensamente
palpável. Olhando para cima, vi alguns morcegos voando em torno das copas das
enormes árvores que cobriam o céu.
Em seguida, as árvores se abriram e o céu saltou à vista. As estrelas
pareciam chover sobre nós. Olhando para cima, apesar de mim mesmo, entrei
nas costas de meu avô.
— Está aqui?"
— Sim, está aqui.
Vi um túmulo perfeitamente comum, um pouco envelhecido.
— E agora?
— Primeiro, vamos prestar nossos respeitos.
Achei muito estranho dar seus cumprimentos quando você veio para roubar
o túmulo, mas meu avô acendeu os incensos que havia trazido e fez uma
oferenda. Ajoelhado, ele juntou as palmas das mãos e ficou muito quieto. Fiquei
atrás dele e juntei as palmas das mãos também. Decidi pensar nisso como um
pedido de desculpas aos outros mortos no túmulo.
— Agora, — disse meu avô. — Vamos deixar isso de lado.
Juntos, levantamos o queimador de incenso de pedra e o colocamos de
lado.
— Coloque a lanterna para dentro, consegue fazer isso?
Uma laje de pedra foi colocada no túmulo. Meu avô enfiou a chave de fenda
que havia trazido entre a laje e a pedra ao redor e tentou empurrar a laje para
fora, deslizando a chave de fenda para frente e para trás ao redor das bordas. A
placa avançou um pouco, até que finalmente, usando as pontas dos dedos, meu
avô conseguiu puxá-la para fora. Dentro havia uma câmara espaçosa, longa e
profunda. Agachado, um adulto cabe facilmente dentro dela.
— Dê-me isso.
Meu avô pegou a lanterna. Deitado de barriga para baixo, ele entrou até a
altura de seus peitos na câmara. Eu segurei a parte de trás de suas pernas para
evitar que ele caísse na tumba. Depois de procurar um pouco, ele me entregou a
lanterna e, com cuidado, usando as duas mãos, retirou uma urna de cerâmica. Eu
o observei trabalhar em silêncio. Ele apontou a lanterna para o fundo da urna
para verificar o nome escrito ali. Em seguida, retirou o cordão colocado sobre ela
e levantou lentamente a tampa. As cinzas dela estavam lá dentro. Passou-se um
longo tempo. Quando finalmente o chamei, notei que seus ombros tremiam
levemente à luz da lua.
Meu avô pegou uma pequena pitada de cinzas da urna e as colocou em uma
pequena caixa de madeira que ele havia trazido. Eu queria dizer: "Não seja tão
modesto depois de todo esse trabalho, pegue um punhado inteiro!" Ele ficou
olhando para a urna por um momento, depois recolocou a tampa e puxou o
cordão de volta para ela. Mais uma vez, segurei suas pernas enquanto ele
devolvia a urna ao túmulo. Fui eu quem colocou a laje de pedra de volta no lugar.
Em todas as bordas, ela estava marcada com arranhões feitos pela chave de
fenda do meu avô.
Já era quase meia-noite quando voltamos para o apartamento. Brindamos
um ao outro com cerveja gelada. Senti uma sensação de realização, mas também
uma espécie de solidão.
— Eu o deixei acordado até tarde hoje, Saku, com todo esse incômodo, —
disse meu avô.
— Não tem problema, — eu disse, colocando cerveja em seu copo meio
vazio. — Mas tenho certeza de que você poderia ter passado bem sem mim.
Ele levou o copo à boca, com um olhar distante no rosto. Finalmente, ele se
levantou e pegou um livro da estante.
— Você aprendeu a ler poesia clássica chinesa, não é, Sakutaro? — disse
ele, abrindo o livro amarelado. — Tente ler este poema.
O título era "Ge Sheng", ou "Kudzu Grows". Dei uma olhada na tradução
japonesa abaixo do texto chinês.
— Você entende do que se trata?
— Basicamente, está dizendo que, quando morrermos, vamos ser
enterrados juntos, certo?
Meu avô assentiu em silêncio e recitou de memória a última parte do
poema: — 'Dias de verão, noites de inverno, depois de cem anos, para essa
morada eu voltarei.'
— Mais ou menos o que isso significa é: longos dias de verão e longas
noites de inverno, você está descansando aqui. Depois de cem anos, eu também
descansarei aqui com você. Portanto, espere em paz por esse dia.
— A pessoa que ele ama morreu?
— Apesar de todo o progresso que parecemos ter feito, as emoções
humanas permanecem as mesmas. No fundo de nosso coração, não mudamos
muito. Esse poema foi escrito há dois mil anos ou mais. É de uma época muito
anterior ao estabelecimento das quadras e de outros estilos formais que você
aprendeu na escola. E, ainda assim, mesmo hoje, podemos entender os
sentimentos das pessoas daquela época. Para isso, não é preciso ter formação
acadêmica ou conhecimentos específicos. Esses sentimentos podem ser
compreendidos por qualquer pessoa, eu acho.
A pequena caixa de madeira estava sobre a mesa. Alguém que não a
conhecesse poderia vê-la e pensar que continha um cordão umbilical ou uma
medalha. Era uma sensação estranha.
— Guarde isso para mim, — disse meu avô de repente.
— Quando eu morrer, quero que você espalhe minhas cinzas junto com as
dela.
— Espere um pouco, — eu disse.
— Pegue aproximadamente a mesma quantidade de cinzas de mim e
misture-as. Depois, espalhe-as onde você quiser, Saku. — Meu avô repetiu o
pedido como se fosse o último.
Tardiamente, tomei conhecimento do esquema do meu avô. Se tudo o que
ele queria era roubar as cinzas dela, poderia ter feito isso sozinho. O fato de
confiar em seu neto e fazer dele — eu! – seu cúmplice no crime tinha sido feito
com um propósito.
— Você me prometeu, certo? — disse ele.
— Não posso fazer esse tipo de promessa.
— Por favor. Conceda o desejo de um velho miserável. — ele parecia que ia
começar a chorar a qualquer momento.
— Mas, vamos lá, vovô. Eu simplesmente não sei.
— Por quê? É uma coisa tão simples.
Só agora me lembrei de ter ouvido meu pai reclamar com minha mãe sobre
o egocentrismo do meu avô. É isso mesmo, meu avô era egoísta. Ele era do tipo
que, se quisesse alguma coisa, não levava em conta o problema que estava
causando aos outros.
— Tem certeza de que pode deixar algo tão importante para mim? — Tentei
fazê-lo mudar de ideia.
— A quem mais eu poderia perguntar? — Os idosos eram tão teimosos.
— Meu pai, por exemplo — eu disse. — Ele é seu filho. Além disso, ele seria
o responsável pelo seu funeral, como chefe de família.
— Aquele certinho? Ele não entende pessoas como nós.
— Como nós?
Fiquei ali sentado, atônito. Ele disse:
— É claro. Você e eu sempre nos demos bem, — e prosseguiu com a
barganha. — Eu sabia que você entenderia, Saku, e é por isso que eu estava
esperando que você crescesse.
Tenho a sensação de que tudo isso começou muito antes da noite em que
me apaixonei pela enguia grelhada. Desde que eu era criança, meu avô estava
trabalhando em seu projeto nos bastidores, criando-me para esse dia. Eu me
senti como a criança Murasaki, caindo nas mãos do Príncipe Genji em The Tale of
Genji.
— Mas quando você vai morrer, vovô? — minha voz, apesar de mim mesmo,
era neutra.
— Isso seria quando chegasse minha hora, eu acho. — Ele não pareceu nem
um pouco preocupado com minha mudança de tom.
— Então, quando é isso?
— Eu disse 'quando chegar minha hora' porque não sei. Se soubéssemos, a
vida seria apenas um plano.
— Então, como posso saber se estarei por perto quando você morrer, vovô?
Se eu não estiver lá quando você for cremado, não poderei pegar uma pitada de
suas cinzas.
— Se é assim, tudo o que você precisa fazer é roubar meu túmulo, como
fizemos esta noite.
— Você quer que eu faça isso de novo?
— Por favor. — Sua voz era urgente. — Você é a única pessoa a quem posso
pedir.
— Talvez sim, mas mesmo assim.
— Ouça, Sakutaro. É muito triste quando a pessoa que você ama morre.
Essa dor não tem forma. Não importa o que você faça. É por isso que, talvez,
queiramos lhe dar forma. Como o poema que acabamos de ler, é difícil nos
separarmos, mas podemos ficar juntos novamente. Por favor, faça com que nosso
desejo se torne realidade.
Eu sempre tive respeito pelos idosos, mas, além disso, acho que foi esse
"nosso" que me conquistou.
— Está bem, — eu disse. — Espalhar as cinzas, certo?
— Então você vai realizar o desejo de um velho?" O rosto de meu avô
brilhou.
— Que escolha eu tenho?
— Agradeço, — disse ele, olhando para baixo.
— Mas 'onde eu quiser' não serve, certo? Você precisa me dizer exatamente
onde.
— Claro, eu posso fazer isso. — com o rosto um tanto pensativo, ele disse:
— Mas não sabemos o que acontecerá com o lugar quando eu morrer.
Digamos que eu lhe diga para espalhá-las ao redor das raízes de uma árvore -
dez anos depois, pode haver uma rodovia sobre aquele local.
— Se isso acontecer, você sempre pode mudar.
Meu avô pensou um pouco e depois disse:
— Não, vou deixar isso com você, afinal. Use seu bom senso.
— Estou dizendo que não quero fazer isso. Tudo bem, me dê uma ideia
geral: montanha, mar ou céu?
— Talvez o mar.
— O mar?
— Mas não em qualquer lugar onde a água esteja suja.
— Tudo bem, então. Encontrarei um lugar limpo e os espalharei lá.
— Espere um pouco. Se for o mar, a maré virá e nos levará em direções
diferentes.
— Talvez.
— Então, vamos fazer com que sejam montanhas.
— Montanhas, então?
— Em um lugar onde os desenvolvedores não virão.
— Vou fazer isso bem alto, aonde ninguém vai.
— Seria bom se houvesse algumas flores silvestres por perto.
— Flores silvestres, tudo bem.
— Ela adorava violetas.
Cruzei os braços e fixei meus olhos em meu avô.
— Essa é uma ordem bem detalhada.
— ah, desculpe. — Ele parecia solitário ao desviar o olhar. — Eu gostaria que
você pensasse nisso como a auto indulgência de um homem velho.
Soltei um grande suspiro, alto o suficiente para que meu avô ouvisse.
— Então, espalhe as cinzas nas montanhas, onde quase ninguém vai e onde
as violetas selvagens estão crescendo.
— Parece que você está ficando cansado.
— Não estou.
— Tudo bem.
9
NO DIA SEGUINTE, CHEGUEI EM CASA um pouco antes do meio-dia e liguei
para a Aki. Ela já tinha planos para a tarde, mas disse que poderia nos encontrar
mais tarde. Combinamos de nos encontrar às cinco horas por cerca de uma hora.
Havia um santuário xintoísta mais ou menos na mesma distância de nossas
casas. Da minha casa, você seguia a estrada para o sul ao longo do rio por cerca
de 500 metros e atravessava a ponte, chegando a um grande arco que era a
entrada principal do santuário. Além dela, havia um estacionamento de terra que
subia poeira a qualquer sinal de movimento, depois, uma longa escada de pedra
que levava ao meio de uma pequena colina. O santuário ficava no topo dessa
escada. Olhando para o leste dali, podia-se ver uma estrada estreita que passava
por um bairro residencial antes de chegar à estrada principal. Do outro lado da
rua principal, escondida em uma das ruas atrás da delegacia de polícia, ficava a
casa de Aki. Eu gostava de chegar cedo ao santuário para ver a Aki se
aproximando. Quanto mais cedo eu a avistasse, mais feliz eu ficaria.
Sem saber que eu a estava observando, Aki vinha pedalando em sua
bicicleta, ligeiramente inclinada para a frente. Ela deixou a bicicleta na base da
colina, no lado leste, e subiu a trote por um conjunto diferente de escadas
estreitas de pedra das que eu havia subido.
— Desculpe-me pelo atraso, — disse ela, com os ombros erguidos.
— Você não precisava correr
— Não temos muito tempo, — disse ela, com um grande suspiro.
— Você tem planos para mais tarde? — perguntei, dando uma olhada no
relógio.
— Não. Apenas um banho e o jantar.
— Então, temos tempo.
— Mas será noite.
— O que você planeja que façamos?
— Não sei. — Ela riu. — Era você que queria conhecer, Saku-chan.
— Isso não levará muito tempo.
— Então, acho que não precisei me apressar.
— Sim, é o que eu estava dizendo.
— Bem, de qualquer forma, vamos nos sentar.
Sentamos no topo da escada. A cidade se estendia abaixo de nós. A
fragrância das doces flores de osmanthus flutuava com a brisa.
— Então, do que se trata?
— O céu já está escuro no leste.
— Veremos um OVNI hoje à noite.
— O que você queria mostrar?
— Aqui.
Tirei a pequena caixa de madeira do bolso do meu paletó. Havia um elástico
grosso em volta dela para que a tampa não se soltasse. Talvez sentindo o que
havia dentro dela, Aki se encolheu um pouco.
— Você fez isso? — Assenti com a cabeça. — Quando?
— Ontem à noite.
Removi o elástico e levantei a tampa com cuidado. No fundo da caixa havia
fragmentos esbranquiçados de ossos. Aki olhou para dentro.
— Não há muita aí.
— Eu sei. Foi só isso que ele levou. Não sei se ele ficou humilde, tímido ou o
quê.
Ela não prestou atenção no que eu disse.
— Por que está com algo tão importante?
— Estou guardando isso para ele. Quando ele morrer, quer que eu misture
suas cinzas com estas e as espalhe em algum lugar.
— Isso é como um último pedido?
— Mais ou menos.
Contei a ela sobre o poema chinês.
— Trata-se de desejar a união eterna ou algo assim.
— União eterna?
— Sim, o que basicamente significa 'vamos ser enterrados juntos quando
morrermos'. Se você não disser a si mesmo que um dia estarão juntos
novamente, não conseguirá suportar. Você sabe, perder a pessoa que você ama.
O vovô disse que as pessoas sempre se sentiram assim. Desde tempos antigos.
— Mas então eles não precisam ser enterrados juntos no mesmo túmulo?
— Acho que isso não funcionaria no caso deles porque ambos eram casados
com outras pessoas. Provavelmente foi por isso que ele teve essa ideia. Isso é
que é ser chato.
— É uma história bonita.
— Se ele quer tanto ficar com ela, ele deveria comer isso.
— As cinzas?
— Talvez tenha bastante cálcio. — Aki deu uma risadinha.
— Se eu morresse, você comeria minhas cinzas, Saku-chan?
— Sim.
— Não há nada que você possa fazer a respeito. Eu roubaria o túmulo, como
fiz ontem à noite, pegaria suas cinzas e comeria um pouco todas as noites. Seria
meu regime de saúde.
Ela riu novamente, depois parou.
— Acho que eu também gostaria de ter minhas cinzas espalhadas em algum
lugar. Em algum lugar com uma bela vista, — disse ela, com um olhar distante. —
Os túmulos são tão escuros e úmidos.
— Não estávamos falando de algo que realmente aconteceria, certo?
Em vez de rir, ficamos quietos. Olhamos para as cinzas na caixa.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — De jeito nenhum.
— No começo, eu não queria ficar com ele. Mas olhar para ele com você me
faz sentir em paz.
— Eu também.
— Estranho, não é?
O sol já havia se posto e estava escurecendo. Um homem com uma saia
hakama branca, provavelmente o sacerdote do santuário, subiu as escadas. Nós
lhe demos boa noite. Ele nos cumprimentou com uma voz grave.
— O que vocês estão fazendo? — perguntou ele, sorrindo.
— Só conversando — respondi.
— Coloque a tampa de volta — disse Aki quando o sacerdote estava fora de
vista.
Fechei a caixa, enrolei o elástico em volta dela e a coloquei de volta no
bolso do paletó. Ela observou a protuberância em meu bolso por um tempo e
depois olhou para o céu.
— As estrelas estão lá fora, — disse ela. — Você não acha que elas estão
mais bonitas ultimamente?
— É por causa dos clorofluorcarbonos. A camada de ozônio está sendo
destruída, por isso o ar está mais rarefeito e as estrelas estão mais brilhantes.
Ficamos olhando para o céu em silêncio.
— Não vai aparecer OVNIs esta noite.
Aki riu como se estivesse envergonhado.
— Quer ir para casa?
— Sim. — Ela fez um pequeno aceno de cabeça.
Nós nos beijamos no momento em que a última luz se dissipou do céu.
Nossos olhos se encontraram em um acordo não dito e, antes que
percebêssemos, nossos lábios estavam se tocando. Os lábios de Aki tinham cheiro
de folhas caídas. Ou talvez esse cheiro tenha sido trazido pelo sacerdote, que
estava queimando folhas no jardim. Aki colocou a mão em meu bolso sobre a
caixa de madeira e encostou os lábios nos meus mais uma vez. O cheiro de
folhas caídas ficou mais forte.
PARTE 2
EU PEGUEI UMA COCA-COLA da geladeira e bebi em pé mesmo. Do lado de
fora da janela, havia um vasto deserto vermelho. Aqui no deserto, um novo ano
chegava todos os dias: ao meio-dia, a terra assava sob o calor do solstício de
verão, mas à noite a temperatura caía para quase zero, em um ciclo de 24 horas
das estações, pulando a primavera e o outono.
O termostato mostrava uma temperatura bem abaixo na sala. Era difícil
acreditar que o ar além dessa única vidraça estivesse a mais de 50 graus Celsius.
Fiquei olhando para o deserto por um longo tempo. Ao redor do hotel havia
árvores altas de eucalipto e algumas manchas esparsas de grama, mas além
disso, nada. Meu olhar não tinha onde parar.
Os pais de Aki tinham saído em um ônibus de turismo. Eles disseram que,
como sua filha não tinha conseguido ver as paisagens do deserto, eles as veriam
por ela. Eles me convidaram para ir junto, mas eu fiquei para trás. Não estava
com vontade. O que eu estava vendo agora era algo que Aki não tinha visto. Ela
não tinha visto isso no passado e nunca veria no futuro. Onde ficava esse lugar,
perguntei a mim mesmo. É claro que era possível especificar a latitude e a
longitude, ou o nome geográfico. Mas isso não tinha muito significado, porque
onde quer que esse lugar estivesse, não era em lugar algum.
Para mim, tudo parecia deserto – campos e montanhas verdes, oceanos
cintilantes, ruas de cidades cheias de gente. Eu não precisava ter vindo até aqui.
Aki havia morrido, e o mundo inteiro havia se transformado em um deserto. Ela
havia fugido para algum lugar além do fim do mundo. Enquanto eu corria atrás
dela, minhas pegadas foram apagadas pelo vento e pela areia.
No restaurante do hotel, turistas de bermuda e camiseta estavam sentados
fazendo suas refeições.
— Como foi o deserto? — Perguntei aos pais de Aki.
— Quente, — disse seu pai.
— Você escalou a Uluru?
— Esse homem está tão fora de forma, — respondeu a mãe de Aki. — Ele
tem ainda menos resistência do que eu.
— Você tem muita resistência.
— Talvez você deva parar de fumar.
— Eu penso nisso o tempo todo.
— Mas você não faz isso.
— Não é tão fácil assim.
— Isso é porque você não está realmente falando sério. Você só diz que
quer desistir sem fazer nada.
Ouvi a conversa dos pais de Aki sem realmente prestar atenção. Como eles
podiam falar tão normalmente? Eu sabia que eles estavam se esforçando para o
meu bem. Mas ainda assim, Aki não estava lá. Não havia mais nada para
conversar.
Quando descemos do ônibus, havia uma enorme montanha de rocha à
nossa frente. A superfície era recortada, com corcovas como as de um camelo.
Muitas e muitas pedras semelhantes formavam uma massa colossal. Vários
turistas subiram em fila indiana, segurando-se em uma corrente. Aqui e ali, ao
redor da montanha, havia cavernas escavadas pelo vento ao longo do tempo. A
arte rupestre aborígine cobria as paredes.
O caminho era mais íngreme do que eu esperava. Logo eu estava suando e
minha cabeça latejava. Os pedaços de rocha acima pareciam músculos do braço
de algum gigante. Depois de subir cerca de dez metros, a trilha se nivelou.
Entramos no sobe e desce do cume, passando por uma pequena colina após a
outra. Em seguida, a suave crista de rochas terminou e o solo desceu direto. A
luz transparente do sol destacava as antigas camadas de rocha.
Uma brisa forte soprava no cume, tornando o calor suportável. À distância, a
fronteira entre a terra e o céu era de um branco trêmulo devido ao calor, o
horizonte indistinto. A vista era a mesma em todas as direções. A luz preenchia o
céu sem nuvens. A sutil gradação de azul, do ultramarino ao turquesa pálido, era
tudo o que havia.
Na lanchonete na parte inferior, queimei minha língua em uma torta de
carne. Um Cessna sobrevoou a montanha de pedra. Não importava para onde
você fosse aqui, era de avião. As pessoas simplesmente mudavam de aeroporto
para aeroporto. No deserto, vimos carros quebrados e aviões pequenos. A
garagem mais próxima ficava a centenas de quilômetros de distância, portanto,
não havia outra opção a não ser abandoná-los.
De onde eu estava sentado, podia ver que o penhasco tinha acabado de
subir. A superfície arredondada da rocha estava enrugada com inúmeras dobras
profundas.
— É como um cérebro humano, — disse alguém.
— Pare com isso! — gritou uma garota na mesma mesa.
Mas Aki não estava lá para ouvir aquela conversa, então eu também não
estava lá. E tampouco estava aqui, agora. Eu havia entrado em um lugar que não
era passado ou presente, vida ou morte. Eu não sabia como havia chegado lá. Eu
simplesmente estava lá.
— Você não gostaria de comer alguma coisa? — perguntou a mãe de Aki.
O pai de Aki pegou o cardápio que estava na beira da mesa e o entregou à
esposa. Ela o estendeu na minha frente.
— Por que eles têm uma seleção tão grande de frutos do mar no meio do
deserto? — ela perguntou desconfiada.
— Eles trazem tudo de avião, — respondeu seu marido.
— Bem, eu não quero comer carne de canguru ou de búfalo, então...
Um garçom veio à nossa mesa. Como eu não havia falado, eles pediram
salmão da Tasmânia marinado e algumas ostras. Da carta de vinhos, eles
escolheram um vinho branco de preço razoável. Nenhum de nós disse nada
enquanto esperávamos a comida chegar. O pai de Aki serviu uma taça de vinho
para mim também. O garçom trouxe nossa comida. Eu lhe pedi um pouco de
água. Eu estava com muita sede.
Tomei em um único gole a água do copo e, de repente, não consegui ouvir
nenhum dos sons ao meu redor. Era diferente de ter água presa em seus ouvidos.
O silêncio era total: as vozes das pessoas, o tilintar de facas e garfos contra os
pratos – eu não conseguia ouvir nada. Os pais de Aki pareciam estar falando sem
som, apenas mexendo a boca.
Tudo o que eu conseguia ouvir era o som de alguém comendo um biscoito.
Parecia vir de longe e, ao mesmo tempo, bem perto do meu ouvido. Crunch,
crunch, crunch…

Naquela época, eu não achava que a doença de Aki fosse muito grave. A
morte era algo que acontecia com pessoas idosas, não conosco. Claro, às vezes
ficávamos doentes. Pegamos uma gripe ou quebramos um braço. Mas a morte
era algo completamente diferente, algo distante no futuro, que vinha depois de
você ter vivido por décadas. Era uma estrada branca que se estendia em frente,
desaparecendo em uma luz deslumbrante muito, muito distante. Você não sabia o
que havia além dela. Alguns diziam que era o nada, mas nenhum ser humano o
tinha visto de fato.
— Gostaria de ter ido, — sussurrou Aki.
Eu a havia trazido uma boneca de madeira esculpida por um artista
aborígine como presente de nossa viagem de formatura. Ela me agradeceu e
colocou a boneca em seu colo.
— Eu quase nunca peguei um resfriado. Desde que eu era pequena. E
agora, depois de tudo ficar doente.
— Podemos ir de novo, quando você quiser, — eu disse. — Cairns fica a
apenas sete horas de avião. É como ir a Tóquio no trem-bala.
— Isso é verdade. — Aki ainda parecia triste. — Eu só queria poder ter ido
com todo mundo.
Peguei alguns lanches em uma sacola de loja de conveniência. Seus
favoritos, pudim de creme e biscoitos de chocolate.
— Quer um pouco?
— Obrigado.
Comemos o pudim em silêncio. Depois que terminamos o pudim, comemos
os biscoitos. Se eu parasse de mastigar e prestasse atenção, ouviria o som da Aki
mordendo o biscoito. Crek, Crek, Crek, Crek – quase como se ela estivesse me
comendo.
— Podemos ir para lá em nossa lua de mel, — eu disse depois de um tempo.
Aki, que estava sentada com um olhar vazio, virou-se para mim com um
olhar questionador.
— Para a Austrália. Podemos ir para lá em nossa lua de mel.
— Sim, — disse ela, como se seu coração não estivesse realmente nisso.
Então, voltando a si, ela perguntou: — Quem?
— 'Quem?' Você e eu, certo?
— Você e eu? — Ela riu alto.
— Você tem outra pessoa em mente?
— Não, — disse ela, e parou de rir. — Mas é estranho.
— Estranho, como?
— Vamos para nossa lua de mel.
— Em que parte?
— O que você quer dizer com isso?
— Ir para a Austrália? Ou vai se casar?
Aki pensou por um tempo e disse:
— Vou me casar, eu acho.
— O que há de tão estranho nisso?
— Eu não sei.
Peguei um biscoito da caixa. A camada de chocolate na parte superior havia
começado a derreter. O clima ainda estava muito quente.
— Você tem razão, é estranho.
— Não é?
— Sim. Você e eu, recém-casados.
— Faz você rir, não é?
— Sim. É como dizer, adivinhe? A Madonna é realmente virgem.
— O que isso significa?
— Eu não sei.
A conversa foi interrompida ali. Continuamos mordiscando biscoitos, como
se estivéssemos mordiscando o tempo. Crocante, crocante, crocante, crocante...
Tudo parecia ter acontecido há muito, muito tempo.
2
O VERÃO ESTAVA SE APROXIMANDO, e os dias estavam ficando mais
longos. Fazíamos muitos desvios no caminho da escola para casa para aproveitar
ao máximo a luz do dia até tão tarde. O cheiro de folhas novas estava por toda
parte. Nós nos encontrávamos no santuário e caminhávamos ao longo do aterro,
rio acima. A margem do rio estava repleta de grama que brotava durante o verão,
e os peixes pulavam na superfície da água. Ao anoitecer, ouvíamos rãs. E de vez
em quando, quando não havia ninguém por perto, nós nos beijávamos, apenas
tocando levemente nossos lábios. Eu adorava aqueles beijos roubados. Sentia
como se o mundo tivesse me dado uma fruta e eu estivesse pegando sua parte
mais deliciosa.
Naquele dia, também, subimos o rio e voltamos ao santuário. Sentados nos
degraus de pedra, planejamos um passeio para as férias de maio. Aki queria ir ao
zoológico, mas nossa cidade não tinha um. O zoológico mais próximo ficava na
capital da região, onde fica o aeroporto. Isso ficava a cerca de duas horas de
trem, uma viagem de ida e volta de quatro horas. Pensei que ir à praia ou às
montanhas em algum lugar mais próximo seria bom o suficiente, mas Aki havia
decidido pelo zoológico e já estava fazendo planos. Ela disse que, se saíssemos
cedo, teríamos cinco horas lá.
— Vamos levar nosso próprio almoço, — disse ela. — Vou fazer um para
você também, Saku-chan. Assim, economizamos dinheiro.
— Obrigado. Então, resta apenas a passagem do trem.
— Você acha que podemos fazer isso?
Eu tinha dinheiro, economizado com meu trabalho na biblioteca. Tudo o que
tive de fazer foi deixar de comprar alguns CDs que eu queria.
— E quanto à sua família?
— Família?
— O que você vai dizer a eles?
— Que vou para o zoológico com você. É isso que estamos fazendo, certo?
Foi, mas não vi a necessidade de ser tão explícito. Isso fez com que a coisa
toda parecesse um passeio de escola primária.
— A palavra explícita vem do latim para desdobrado ou exposto. Você sabia
disso?
Ela estreitou os olhos.
— O que está planejando?
— Nada. Eu só queria saber como seus pais me veem.
— O que você quer dizer com isso?
— Você acha que eles me veem como o futuro marido da filha deles?
— Como se isso sequer passasse pela cabeça deles — riu Aki.
— Por que não?
— Por que não? Temos apenas dezesseis anos.
— Então, arredondando isso, temos vinte.
— Que tipo de matemática é essa?
Olhei para suas canelas, que ficavam para fora da saia. Na luz fraca do
crepúsculo, o branco de suas meias era deslumbrante.
— Eu só quero me apressar e me casar.
— Eu também, — disse ela timidamente.
— Porque quero que fiquemos juntos para sempre.
— Sim.
— Se nós dois nos sentimos assim, então por que isso não é possível?
— Por que isso, porque aquilo?
Ignorando sua pergunta, continuei:
— Porque o casamento é a união de dois indivíduos independentes e que
consentem. Então, o que acontece com as pessoas que não podem se tornar
independentes? Por exemplo se estiverem doentes ou algo assim. Elas não
deveriam ter permissão para casar?"
— Lá vamos nós de novo, — disse Aki com um suspiro.
— O que você acha que significa ser independente?
Ela pensou um pouco.
— Trabalhar e ganhar dinheiro sozinha, eu acho.
— Então, o que significa ganhar dinheiro?
— Eu não sei.
— Significa desempenhar seu papel na sociedade de acordo com suas
capacidades. A recompensa por fazer isso é o dinheiro. Portanto, se alguém tem
o talento de se apaixonar, por que não deveria dar total alcance a essa
capacidade e ser pago por isso?
— Acho que tem que ser algo que ajude a sociedade em geral.
— Não consigo pensar em nada que ajude mais a sociedade em geral do
que estar apaixonado por alguém.
— Na verdade, estou planejando me casar com alguém que diz coisas como
essas como se fossem perfeitamente razoáveis.
— Veja, a maioria das pessoas passa a vida pensando apenas em si mesma,
certo? — Continuei. — Desde que estejam comendo bem e comprando as coisas
que querem, não se importam com mais ninguém. Mas quando você se apaixona
por alguém, essa pessoa se torna mais importante para você do que você
mesmo. Se tivéssemos apenas um pouco de comida, eu daria a minha para você.
Se não tivéssemos muito dinheiro, eu lhe daria o que você quisesse e não
compraria nada para mim. Se algo tivesse um gosto bom para você, isso seria
suficiente para mim. Porque se você estiver feliz, eu também estarei feliz. É isso
que significa amar alguém. O que poderia ser mais importante do que isso?
Nada. Acho que alguém que descobriu a capacidade de amar fez uma descoberta
maior do que qualquer outra coisa pela qual alguém já ganhou um Prêmio Nobel.
E se as pessoas não entenderem isso, ou não quiserem entender, então a raça
humana pode ir para o inferno. Vá se chocar em outro planeta ou algo assim. E
quanto mais cedo, melhor"
— Saku-chan, — disse Aki, tentando me acalmar.
— As pessoas que pensam que são melhores do que as outras só porque
são um pouco mais inteligentes são idiotas. Elas podem passar a vida inteira
estudando, eu digo. Ganhar dinheiro é a mesma coisa. As pessoas que são boas
em ganhar dinheiro devem simplesmente ir em frente e ganhar dinheiro todos os
dias. E depois deveriam usar esse dinheiro para cuidar de nós.
— Saku-chan.
Depois da segunda vez que ela chamou meu nome, finalmente me calei. O
rosto de Aki, com aquele sorriso levemente tímido, olhou para o meu. Ela inclinou
um pouco a cabeça e disse:
— Que tal um beijo?

O zoológico era como qualquer outro zoológico. O leão estava dormindo, o


porco-formigueiro rolava na lama e o tamanduá-bandeira estava comendo. O
elefante andava pela jaula produzindo enormes fezes. O hipopótamo bocejava na
água. A girafa esticou seu longo pescoço como se estivesse olhando para as
pessoas e comeu folhas de uma árvore. Aki era louca por animais e empurrava a
multidão para dar uma olhada melhor. Ao observar um lêmure, ela disse:
— Veja como ele usa a cauda de forma inteligente!
E ao observar um iguana verde por uma janela de vidro, ela realmente
chamou por ela:
— Aqui, venha aqui.
Qual era a graça de gastar dinheiro para ver girafas e leões? Se você me
perguntasse, os zoológicos não prestavam, e era só isso. Eu me interessava por
questões ambientais, mas isso não fazia de mim um naturalista ou um ecologista.
Eu só queria viver feliz para sempre com Aki. E para isso, eu queria que as
florestas tropicais e a camada de ozônio fossem preservadas. Isso era tudo. Eu
também era a favor da proteção dos animais, mais por raiva da crueldade
arrogante dos seres humanos do que por pena dos animais. Aki pareceu não
entender isso e pensou que eu era um amante dos animais, gentil e amável. E foi
por isso que ela disse:
— Vamos ao zoológico em nossas próximas férias, Saku-chan! O zoológico!
Como se eu gostasse de ver guaxinins e pítons. Me dê um tempo. Deixe-me
beijá-la, deixe-me pelo menos tocar seus seios, foi a resposta que dei em minha
cabeça, mas não em voz alta. Não tive coragem.
Almoçamos perto da jaula do gorila da planície. O gorila estava sentado em
um canto, coçando a axila. De vez em quando, colocava o nariz lá. Pelo que pude
perceber, ele estava bastante preocupado com seu próprio odor corporal. Ele
ficava repetindo os mesmos movimentos várias vezes, até que pensei que ele
poderia ser neurótico.
— Aquela mulher que seu avô amava, você ainda tem as cinzas dela?
Tínhamos terminado de comer e estávamos tomando chá oolong em lata
quando Aki me perguntou isso.
— Sim, eu os tenho. É o que o vovô quer.
— É isso mesmo. — Ela sorriu.
— O que que tem isso?
Ela pensou um pouco.
— Seu avô se casou com outra pessoa, não com ela.
— É? Criando assim uma causa remota para eu ter nascido.
— Gostaria de saber que tipo de casal eles eram.
— O vovô e a vovó? — Ela assentiu com a cabeça.
— A vovó morreu muito cedo, então não sei ao certo. Mas acho que eles
eram, você sabe, um casal comum. Acho que eles se davam bem. Quero dizer,
veja que paraíso de tolos eles tinham um filho.
— Um paraíso de tolos?
— Você conhece meu pai. Se os pais não se dessem bem, o filho seria um
pouco mais sem noção, certo? Ou, pelo menos, mais sensível.
— Eu me pergunto o que seria melhor.
— Melhor o quê?
— Viver com a pessoa que você ama ou continuar apaixonado pela pessoa
que você ama enquanto vive com outra pessoa.
— Isso é fácil. Viver juntos.
— Mas se vocês moram juntos, começam a ver as coisas ruins da outra
pessoa também. Ou você começa a brigar por causa de pequenas coisas idiotas.
E quando isso acontece todos os dias, depois de vinte ou trinta anos, você
provavelmente não sentirá mais nada por essa pessoa. Não importa o quanto
você estava apaixonado no início. — Ela falou com convicção.
— Você é tão pessimista.
— Você nunca pensa em coisas como essa, Saku-chan?
— Claro, mas eu daria um toque melhor. Digamos que você esteja louco por
outra pessoa agora. Dez anos depois, você a ama ainda mais. Você ama até
mesmo as coisas sobre ela que o incomodavam no início. Cem anos depois, você
passou a amar cada fio de cabelo da cabeça dela.
— Cem anos depois?, — perguntou Aki, rindo. — Você planeja viver tanto
tempo assim?
— Aquela coisa que você ouve sobre casais que se cansam um do outro
depois de ficarem juntos por muito tempo, aposto que é mentira. Quero dizer,
olhe para nós. Estamos saindo há quase dois anos inteiros e não estamos nem
um pouco cansados um do outro.
— Sim, mas nós não moramos juntos.
— O que seria diferente?
— Você veria todos os meus lados ruins.
— Como o quê?
— Eu não vou contar.
— Eles são tão ruins que você não pode me contar sobre eles?
— Sim, eles são. — Ela olhou para baixo e disse: — Você provavelmente não
gostaria mais de mim.
Por algum motivo, me senti rejeitado.
— Você conhece aquele mito de que o amor de duas pessoas move
montanhas? — eu disse, me recompondo. — Havia um casal, realmente
apaixonados, mas eles foram forçados a se separar. O pai dela, ou talvez os
irmãos dela, os atrapalharam.
— E depois?
— Eles foram separados. Ele foi enviado para alguma ilha, muito longe para
ir em um pequeno barco. Mas o amor deles era muito forte. Assim, a ilha, que
ficava a quilômetros de distância, foi lentamente se aproximando do continente
até se juntar a ele. Foi o amor deles que puxou a ilha.
Dei uma olhada para Aki, que estava olhando para baixo e parecia estar
pensando.
— As pessoas nos tempos antigos devem ter pensado que o amor é
realmente poderoso, — continuei. — Quero dizer, forte o suficiente para mover
uma ilha. Elas devem ter visto esse poder ao seu redor, ou o sentiram. Mas, em
algum momento, pararam de usá-lo.
— Por que, você acha?
— Talvez porque isso causou muitos problemas. Quero dizer, se tem ilhas se
movendo toda vez que um casal se apaixona, os cartógrafos ficariam loucos para
acompanhar. E imagine o que aconteceria quando duas pessoas brigarem pela
mesma pessoa. Uma batalha entre ilhas que se movem. Poderia ficar feio. Seus
próprios corpos provavelmente também não aguentariam.
— Isso é verdade. — Ela assentiu.
— Eles devem ter decidido reduzir o consumo dessas coisas e dedicar mais
energia à caça e à coleta.
— Você parece um orientador educacional, — disse ela, rindo. Aki usou uma
voz grave.
— Hirose, os meninos estão muito bem, mas que tal se concentrar um
pouco mais em seus estudos? Você não poderá ir para a faculdade se for
reprovado nos testes de matemática.
— O que está dizendo?
— Cuidado com o Matsumoto, em particular. Passe muito tempo com ele e
ele pode acabar arruinando sua vida. Ele é o tipo de pessoa que fica tão
apaixonado que acaba puxando as ilhas para a costa sem pensar nas
consequências.
Depois, voltando à sua voz normal, ela disse:
— Em breve teremos provas de meio de semestre.
— Sim, amanhã voltaremos aos livros. — Aki assentiu com tristeza.
— Até lá, porém, vamos viver para o amor, — eu disse.

No caminho da estação de trem para o zoológico, caminhamos por uma rua


estreita para evitar as multidões. Imediatamente, notei um hotel e que tipo de
hotel era. Com o canto do olho, notei a placa verde de vaga e memorizei o preço
de um "quarto". Comparei esse valor com a quantidade de dinheiro que restava
no meu bolso, menos a passagem de trem para casa.
Pegamos a mesma rua no caminho de volta. Ainda faltava algum tempo
para o pôr do sol, e a luz verde de vaga estava acesa como antes. Ficamos mais
silenciosos à medida que nos aproximávamos. Nossos passos pareciam ficar mais
pesados. Quando chegamos em frente ao hotel, mal estávamos nos movendo.
— Você se incomodaria de entrar em um lugar como esse, Aki? — Perguntei,
sem virar a cabeça.
— E quanto a você, Saku-chan? — disse ela, mantendo o rosto abaixado.
— Eu realmente não me importo de uma forma ou de outra.
— Você não acha que é muito cedo?
Silêncio.
— Que tal apenas dar uma olhada? Nós entramos e, se estiver ruim, saímos
de novo.
— Você tem dinheiro suficiente?
— Sim.
A porta grossa era como a de um restaurante de alta classe. Nós a abrimos
e entramos no prédio. Eu estava tão nervoso que pensei que poderia vomitar o
almoço que havíamos comido, mas imaginei o gorila da planície cheirando o
próprio sovaco e, de alguma forma, consegui me conter. Ao contrário do que eu
esperava, o saguão do hotel era bem iluminado e parecia limpo.
Não havia ninguém por perto.
— Que alívio, está tudo tranquilo.
Na frente do saguão havia uma máquina como as máquinas de trocar
moedas que existem nos fliperamas. Pelo que pude perceber, você deveria
colocar seu dinheiro ali e apertar o botão do quarto de sua escolha, e a chave
cairia no prato abaixo. Dessa forma, você poderia usar as instalações sem
precisar ter contato com ninguém. Eu estava procurando minha carteira quando
Aki falou.
— Eu não quero, — disse ela em voz baixa. — Não gosto de lugares como
este.
Soltei a carteira e bati no bolso de trás da calça.
— Sim, tem razão.
— Vamos.
Entramos na rua estreita e começamos a caminhar em direção à estação de
trem. Nenhum de nós falou por um longo tempo. O crepúsculo estava caindo
rapidamente.
— Acho que foi meio nojento, — eu disse quando a estação ficou visível.
— Vamos dar as mãos, — foi tudo o que ela respondeu.
3
PARA O MEU RELATÓRIA de férias de verão, li The Departure Never Came
(A partida nunca chegou), de Toshio Shimao. A história se passa nos estágios
finais da Guerra do Pacífico, e o protagonista, o capitão de uma unidade
kamikaze, recebe a ordem do quartel-general para se preparar para o ataque.
Preparando-se para o que ele sabe que será o último dia de sua vida, ele espera
com seus companheiros pela ordem de decolagem. A ordem, no entanto, nunca
chega. Suspenso entre a vida e a morte, o protagonista recebe a notícia de que o
Japão se rendeu incondicionalmente.
Nosso relacionamento também não mostrou muito progresso durante as
férias. Nós nos víamos quase todos os dias, mas quase nunca nos beijávamos.
Como eu iria nos levar ao nível de "relações carnais"? Sem saber o que fazer,
murmurei:
— Será que a partida nunca virá?
No romance, o protagonista olha para trás e diz: "Depois que nossa
decolagem foi evitada, foi o peso do cotidiano, mais do que qualquer outra coisa,
que foi tão difícil de suportar". Foi exatamente assim que me senti. Fiquei
pensando naquele dia de maio em que fomos ao zoológico. Na verdade, tínhamos
entrado no hotel, mas saímos sem fazer nada. Agora, isso parecia algo definitivo.
Eu me considerava uma espécie em extinção. Antes de os seres humanos serem
criaturas racionais, homens de vontade fraca como eu, sem dúvida, morreram
sem deixar descendentes.
Enquanto eu me afundava na miséria, metade das férias passava
rapidamente. A cada dois dias, eu ia à escola à tarde para nadar. Eu conhecia
muitos dos garotos que ficavam por lá. Corríamos 50 metros e o perdedor
oferecia a todos hambúrgueres no McDonald's na volta para casa.
Um dia, encontrei Oki na piscina. Eu já não falava muito com ele, pois ele
estava em atividades diferentes na escola. Ele ainda praticava judô, que havia
começado no ensino fundamental. Agora ele tinha o porte físico de Arnold
Schwarzenegger.
Depois de andarmos um pouco juntos, nos sentamos ao sol à beira da
piscina. Havia uma grande árvore de cânfora nas proximidades. Deitei-me nas
raízes da árvore e observei uma fila de formigas operárias carregando comida de
volta para o ninho.
— Você vai nadar? — perguntou Oki.
— Diga-me, o que você acha que torna a vida agradável para uma formiga?
— Se você não for, vou entrar sozinho.
— O que você acha que uma formiga gosta de fazer?
— Bem, comer insetos mortos… e insetos fracos, eu acho.
Não pude deixar de rir da seriedade com que ele disse isso.
— O quê? — disse ele, parecendo magoado.
— Você gosta de judô?
— Mais ou menos.
Pensei que ele iria se levantar e ir embora, mas Oki fez uma pausa antes de
dizer:
— Você vai sair com Hirose, não vai?
— Hã, é.
— Um dos rapazes da equipe de judô está atrás dela, então fique de olho.
— Qual é o nome dele?
— Tachibana.
— Que idiota sem noção.
— Você vai acabar sendo morto, — disse Oki, como se eu não soubesse do
que estava falando.
— No festival de verão, outro dia, uns caras de outra escola brigaram com
ele no cinema. Ele deixou três deles meio mortos.
— Isso é assustador, — eu disse.
A superfície da piscina brilhava refletindo o sol. No fundo pintado de azul,
anéis transparentes de luz abriam e fechavam. As linhas de azulejos pretos que
marcavam a distância pareciam balançar. Se você se distraísse, não ouvira
nenhum dos sons ao seu redor, apenas o bater tranquilo da água.
— Então, ei, até onde você foi com ela? — disse Oki.
— Até onde?
— Sabe, você já fez aquilo?
— Vocês do judô são tão rudes, — eu disse com os olhos fechados.
— Só estou cuidando de você, está bem? — Sua voz soou sombria.
— O que você quer dizer com isso?
— Apenas se apresse e faça isso, se ainda não fez.
Era só nisso que ele conseguia pensar? Bem, na verdade, eu também só
conseguia pensar nisso.
— Então, provavelmente o Tachibana não vai dar em cima dela.
Que burrice, pensei. Dar em cima dela? Os caras que saíam por aí se
gabando de "minha mulher" ou "minha namorada" me davam nojo. Se esse idiota
do Tachibana gostava tanto da Aki, por que ele simplesmente não foi em frente e
contou a ela? Não dar em cima da Aki porque eu tinha "feito isso" com ela - que
tipo de raciocínio era esse? Aki não pertencia a ninguém além dela mesma.
— Vocês, do judô, são tão simplórios, — eu disse.
— Você está me irritando, — disse Oki, parecendo já estar na metade do
caminho.
— Não fique irritado.
Ele suspirou.
— Olhe, se quiser, posso preparar tudo para você.
— Preparar o quê?
— Conheço um bom lugar. Para um encontro. Se você a levar lá, posso
garantir que você vai até o fim.
Eu estreitei os olhos e disse:
— Vocês do judô são muito gentis, não são?
— Como assim?
— Por que está fazendo isso?"
— Lembra quando quebrei a perna daquela vez e você e a Hirose foram ao
hospital para me ver? — disse Oki. — Vocês realmente fizeram meu dia.
— Isso com certeza foi há muito tempo.
Lembrei-me de ter subido a Colina do Castelo com a Aki naquele dia. Agora,
nós dois estávamos em um clima de sentimentalismo. Oki falou novamente.
— Você quer ouvir sobre isso ou não?
— Claro, vamos ouvir.
— Não sei se é bom dizer aqui, — disse ele, olhando em volta.
— Que tal ir ao McDonald's?
— McDonald's?"
— De qualquer forma, estou com um pouco de fome.
— Eu não estou.
— Bem, eu estou, — disse Oki.
Recuperei-me instantaneamente de meus sentimentos de nostalgia.
— Alguém não disse que estes são tempos trágicos, quando a amizade é
comprada e vendida por dinheiro?
— Nunca ouvi isso, — disse ele. Levantando-se, ele acrescentou:
— Um Big Mac é uma porção grande de batatas fritas e está combinado.
4
A CASA DE OKI ERA À FRENTE DO MAR, e seus pais eram produtores de
pérolas. Na época do ensino fundamental, ele costumava pedalar cinco
quilômetros até a escola em sua bicicleta todos os dias. Agora ele pegava o
ônibus, dizendo que os treinos de judô eram difíceis. Eu já tinha ido à casa de Oki
algumas vezes com alguns amigos. Na água, em frente à casa, flutuava uma
balsa de ostras do tamanho de uma quadra de tênis. Seus pais nos deixavam
nadar lá. A extremidade mais distante da balsa ficava a mais de dez metros da
costa, de modo que não podíamos ver o fundo. Corríamos ao longo da prancha
da balsa e pulávamos na água, várias vezes. Não importava a distância que nós
pulasse ou a profundidade em que mergulharemos, o mar continuava sem parar,
sem fim. Quando ficávamos com fome, íamos até a cooperativa de pesca para
comprar pão e leite e comíamos na jangada. Depois, nadamos novamente. Todos
os tipos de peixes pequenos nadavam embaixo da balsa. Nós arrancamos os
mexilhões que ficavam grudados nas laterais, quebramos com pedras e usávamos
a carne como isca de pesca. Os destemidos peixes-ferro e peixes-pedra mordiam
e se tornavam nosso jantar.
Todas as famílias envolvidas na pesca ou no cultivo de pérolas possuíam
barcos, geralmente quatro ou cinco, e a qualquer momento pelo menos um dos
barcos não estava em uso. Segundo Oki, os cultivadores de pérolas estavam mais
ocupados entre abril e junho, quando o grão da semente é inserido nas ostras, e
bastante relaxados depois disso. Se pegássemos emprestado um dos barcos de
sua família por algumas horas sem permissão, não haveria problema. Ele afirmou
que ninguém em sua casa sequer notaria a falta do barco.
A cerca de um quilômetro da casa de Oki, no mar, havia uma pequena ilha
chamada Yumejima. Dez anos antes, uma empresa local havia começado a
desenvolvê-la para construir um resort de recreação com praia, parque de
diversões e hotel. No entanto, o banco que financiava o projeto começou a ter
problemas e se retirou no meio do caminho. A empresa teve que suspender os
planos, mas depois foi à falência e o projeto foi totalmente paralisado.
— A maioria das coisas já está construída, — disse Oki, enchendo a boca de
batatas fritas. — Você pode ver a roda-gigante e a montanha-russa da minha
casa.
— Alguma outra empresa deveria assumir o controle.
Eu estava tomando café e me perguntando quando a Oki chegaria ao ponto.
— Quero dizer, já está quase pronto, certo?
— Sim, mas se fosse aberto para negócios, eles perderiam centenas de
milhões de ienes todos os anos, — disse Oki. Isso fazia sentido.
Pensei nos edifícios e nos passeios, deixados lá para serem destruídos.
Quando eu estava na escola primária, havia um concurso de fotos de Yumejima
todos os anos. As crianças desenhavam a ilha, e um painel de juízes, incluindo o
prefeito e o presidente da empresa de desenvolvimento, selecionava as melhores.
Os vencedores recebiam prêmios caros, como bicicletas e videogames. Nós
desenhamos imagens futuristas da ilha e as enviamos.
— Mas... tudo tem uma utilidade, — disse Oki enquanto mordia seu Big
Mac. — Especialmente hotéis.
Então, ele estava indo direto ao ponto. Vendo meu interesse, ele acenou
com a cabeça.
— Hoje em dia, a ilha é onde os caras com barcos levam suas namoradas.
Eles se vão para lá nas noites de sexta e sábado e fazem isso nas camas do
hotel.
— Tem certeza? — Eu me inclinei para frente.
— Certa vez, fui pescar lá com alguns rapazes da equipe de judô. Fomos
explorar o interior do hotel. Havia um monte de camisinhas usadas em todos os
quartos.
— Hmm, — resmunguei, tomando meu café morno.
— Então você pode levar a Hirose para a ilha e fazer isso com ela.
— Em um quarto cheio de camisinhas usadas?
— Muito gostoso, não é?
Aki havia deixado passar um lugar limpo e de aparência decente que, na
verdade, era um hotel em funcionamento. Será que ela entenderia o fascínio da
ilha? Se eu a levasse até lá, não seria provável que ela não apenas deixasse
passar a oportunidade, mas também desmaiasse? Então, será que eu deveria
fazer isso com ela enquanto ela estivesse desmaiada?
— Você pode simplesmente ir até lá e entrar nos prédios e outras coisas?
— Acho que é uma propriedade privada, mas não vai ter nenhum guarda
por lá.
— Eu não gostaria de encontrar nenhum dos caras que vão lá.
— Não tem problema. Eles só vão lá nos finais de semana. Você pode ir em
uma terça ou quarta-feira.
— E você nos levará até lá?
— Provável, então, pague apenas pelo combustível.
— Permita-me chamá-lo de Barqueiro Ryunosuke de hoje em diante.
— Temos um acordo, garoto apaixonado?
— Por favor, capitão, eu não sou um garoto apaixonado.
Mesmo enquanto brincava com o Oki, eu já estava pensando em como
convencer o Aki a vir para a ilha comigo.
5
SAÍ DE CASA por volta das seis da manhã e encontrei Aki no ponto de
ônibus. Eu disse aos meus pais que estava indo acampar em um bom lugar perto
da casa de um amigo meu, onde poderíamos pescar e nadar. Também entreguei
a eles um pedaço de papel com o número de telefone de Oki, dizendo-lhes que
poderiam me ligar lá em caso de emergência. Desde que eu disse aos meus pais
para onde estava indo, eles não fizeram muitas perguntas. E o que eu havia dito
a eles não era exatamente uma mentira. Eu estava indo acampar perto da casa
da Oki.
— Quem é a namorada do Oki? — Aki perguntou quando estávamos no
ônibus.
— Não sei. Acho que ela está na mesma sala de aula que ele.
— Eu me pergunto por que ele nos convidou.
— Lembra da época do ensino fundamental? Nós o visitamos no hospital.
— Quando ele quebrou a perna?
— Sim. Aparentemente, nós realmente fizemos o dia dele.
— E ele está demonstrando seu apreço agora?
No entanto, quando o ônibus chegou ao nosso destino, a namorada de Oki
de repente não pôde se juntar a nós em nossa viagem de acampamento.
— É uma pena, — eu disse, fingindo estar muito decepcionado.
— Sim, realmente é, — disse Oki.
— Mas já estamos aqui. Você quer ir mesmo assim, só nós três?
— Sim, vamos lá.
Colocamos nossas coisas em um barco amarrado à jangada de pérolas.
— Onde estão suas coisas, Oki? — perguntou Aki.
Olhei para Oki.
— Hã? Eu, é…
— Empacotei tudo o que ele precisa, — interrompi rapidamente. — Ele está
nos deixando usar seu barco, então decidimos que eu cuidaria do resto.
— Sim, é isso mesmo. Estou encarregado do barco.
Depois de carregar o barco, nós nos revezamos para entrar. Era um barco de
fibra de vidro com capacidade para quatro pessoas e tinha um motor de popa
danificado.
— Vamos lá! — disse Oki.
— Sim, sim, capitão — eu disse.
Aki sentou-se no meio do barco, parecendo não estar convencida. Ainda era
de manhã cedo e uma névoa branca cobria a baía. Através dela, podíamos ver
mais balsas e boias de plástico. A proa do nosso barco cortava a superfície e
espalhava jatos de água à esquerda e à direita que brilhavam com a luz da
manhã. Mais adiante, a neblina se dissipou. Uma pipa circulava por cima,
cortando grandes arcos no céu. De vez em quando, passamos por barcos de
pesca que retornavam e, todas às vezes, Aki acenava para eles. Os pescadores
sempre acenavam de volta. Oki, operando o motor de popa, olhava para o sol e a
observava.
A roda-gigante ficava cada vez maior à medida que nos aproximávamos da
ilha. Em frente ao parque de diversões, havia a praia de natação. Podíamos ver
as barracas de praia e os chuveiros. Todas as estruturas estavam desgastadas e
enferrujadas, apodrecendo por causa da chuva e do ar salgado. O sol já estava
alto, iluminando o vermelho da coluna de sustentação descascada da
roda-gigante.
O cais ficava à esquerda do parque de diversões e, atrás dele, em uma
pequena colina, havia um hotel branco. O píer também era vermelho-ferrugem.
Não havia dique ou quebra-mar. Como a ilha ficava em um mar interior,
geralmente era calma, a menos que houvesse uma tempestade ou tufão. Oki
aliviou o acelerador do motor de popa e lentamente dirigiu o barco em direção ao
píer. Olhando por cima da borda do barco, pude ver cardumes de pequenos
peixes, azuis e amarelos, nadando na água brilhante e iluminada pelo sol. Um
pouco mais distante, flutuava um grupo de águas-vivas brancas.
Oki estendeu a mão para agarrar o poste e eu subi no píer. Amarrei o barco
com a corda que Oki me jogou e dei uma mão a Aki. Descarregamos nossa
bagagem e, finalmente, Oki subiu no cais. Perguntei a Aki se ela gostaria de
caminhar até a praia.
— E o Oki?
— Eu...— Ele hesitou e olhou para mim.
— Queria ir pescar, certo? — Respondi de imediato.
— Sim, eu vou pescar.
— Ele é um cara que gosta de sua solidão.
A praia ficava no lado sul da ilha. O sol batia impiedosamente e não havia
sombra alguma. A uma pequena distância de onde as ondas quebravam,
lírios-do-mar cresciam na areia. De vez em quando, ouvíamos o grito de um
pássaro vindo da colina, mas, fora isso, o único som era o estrondo das ondas
batendo na praia.
As barracas de praia estavam tão dilapidadas que não podíamos usá-las.
Suas estruturas de ferro estavam enferrujadas e as tábuas de madeira do piso
estavam apodrecidas em alguns lugares. Além disso, havia enxames de baratas
marinhas em seu interior. Decidimos revezar na troca de roupa atrás dos boxes
dos chuveiros.
Aki era uma boa nadadora. Mantendo o rosto fora da água, ela nadava
rápido e facilmente de lado. Com meus óculos de proteção, eu podia ver
peixinhos de todas as cores nadando. Havia também muitas estrelas-do-mar e
ouriços-do-mar. Em um local onde eu podia apenas tocar os dedos dos pés no
fundo, passei os óculos de proteção para a Aki. Mas era muito fundo para ela
ficar de pé, então apoiei seu corpo na água enquanto ela colocava os óculos.
Seus seios estavam bem na frente dos meus olhos. Sua pele branca, molhada
pela água do mar, brilhava ao sol.
Nadamos até mais longe, onde nenhum de nós conseguia ficar de pé. Aki
estava com o rosto na água, olhando para baixo através dos óculos de proteção.
Com dificuldade, ela os tirou e os entregou.
— Uau, — disse ela.
Coloquei os óculos de proteção e olhei para baixo d'água. Abaixo de nós, o
fundo do mar descia em um cone invertido. As laterais íngremes e inclinadas
ficavam cada vez mais indistintas à medida que se aprofundavam, até que
finalmente foram engolidas pela escuridão. Era assustador.
— Urgh, — eu disse.
Aki sorriu. Tentei arrancar um beijo daqueles lábios, mas não deu certo. Nós
dois acabamos engolindo uma tonelada de água salgada e engasgando.
Engasgamos, engasgamos e rimos alto. Segurando minha mão, Aki flutuou de
costas. Fiz o mesmo e fechei os olhos. A parte interna de minhas pálpebras
estava vermelha. Uma pequena onda passou por mim e quebrou na praia.
Quando abri os olhos e olhei para o lado, vi os longos cabelos de Aki espalhados
na água, como se alguém tivesse esvaziado um pote de tinta ali.
Ao meio-dia, voltamos ao cais, onde Oki estava nos esperando. Como
havíamos planejado, ele disse que tinha acabado de ouvir pelo rádio do barco
que sua mãe estava se sentindo mal e que ele precisava ir para casa por um
tempo.
— Nós também vamos voltar, — disse Aki com consideração.
— Não. — Oki fez uma careta e disse:
— Vocês fiquem aqui e podem pescar ou algo assim. Afinal de contas, vocês
vieram até aqui. Eu voltarei mais tarde. Não é nada sério. Minha mãe sempre
teve pressão alta. Ela só precisa tomar o remédio e se deitar. Ela vai ficar bem.
— Tudo bem, então, cuide-se, — eu disse.
— Você não acha que deveríamos voltar também para ver como ela está? —
disse Aki, ainda com aquele olhar de preocupação. — Se ela estiver bem,
podemos voltar. Mas se ela estiver realmente doente, será um incômodo para a
família da Oki se ainda estivermos aqui.
— Você acha?
Com essa resposta fraca, virei-me para meu cúmplice, implorando
silenciosamente. Grandes gotas de suor começaram a escorrer por sua testa.
— Meu irmão está chegando do trabalho por volta das seis. Então eu posso
voltar. Ei, eu também estava ansioso por essa viagem de acampamento, pessoal.
Vou ser um bom menino a tarde toda, então me deixem divertir um pouco esta
noite.
— Bem, se é isso que ele diz… — Sem completar a frase, olhei para Aki.
Ela parecia um pouco comovida com todo o apelo apaixonado que Oki fez.
— Tudo bem. Acho que vamos ficar.
Oki e eu não pudemos deixar de trocar olhares. Seu rosto carrega uma
expressão de alívio, mas seus olhos diziam "seu desgraçado". Certificando-se de
que
Aki não veria, e eu pressionei as palmas das mãos na frente do peito para
demonstrar minha gratidão.
Nossas ações depois disso foram estranhamente rápidas. Oki só queria se
afastar da ilha. E eu queria colocá-lo no barco e mandá-lo embora antes que Aki
mudasse de ideia.
— Quarto 305, — sussurrou Oki enquanto desamarrou a corda.
— Isso vai lhe custar muito caro.
— Obrigado, eu realmente agradeço.
Juntei as palmas das mãos novamente.
Quando o barco sumiu de vista, decidimos almoçar no píer. Aki estava com
uma camiseta branca sobre o maiô, enquanto eu usava apenas meu calção de
banho. De repente, me dei conta: não havia ninguém na ilha além de mim e da
Aki. Oki não retornaria até o meio-dia do dia seguinte. Senti uma onda de desejo
crescendo dentro de mim.
Eu mal podia dizer o que estávamos comendo. Eu estava tonto com a
enormidade da liberdade que me foi dada. Nas próximas vinte e quatro horas, eu
poderia ser um lobo, se quisesse, ou um cordeiro – qualquer coisa, desde o Dr.
Jekyll até o Sr. Hyde. As possibilidades de quem eu era, de quem eu poderia ser,
haviam se expandido infinitamente. Escolher apenas uma dentre todo esse
espectro me assustava, porque Aki veria apenas esse eu, e todo o resto
desapareceria. Ao considerar isso, meu desejo inicial desapareceu e foi
substituído por um estranho sentimento de responsabilidade.
Depois do almoço, pescamos com o equipamento que Oki havia deixado
para trás. Colocamos iscas nos anzóis com larvas. O bodião e o peixe-preto de
grande os atacaram momentos depois de lançarmos as linhas. Tínhamos
planejado pegar alguns para o jantar, mas eles morderam tão ingenuamente que
ficamos com pena deles e jogamos na água cada um de volta depois de tirá-los
do anzol. Depois de um tempo, isso se tornou um incômodo e, por isso, paramos
de pescar.
As grossas tábuas do píer haviam absorvido o calor do sol. Sentados ali,
sentimos uma sonolência agradável. Um vento fresco soprava do mar e, por isso,
não ficamos nem um pouco suados. Passamos protetor solar um no corpo do
outro. De vez em quando, pulávamos do píer para entrar na água e nos
molharmos uns aos outros.
— Gostaria de saber se a mãe de Oki está bem, — disse Aki.
— Não é muito grave. Apenas pressão alta.
— Mas eles o avisaram pelo rádio, então deve ter sido.
A mentira que contamos à Aki estava se tornando cada vez mais um fardo.
Agora que eu estava sozinho com ela, não me importava tanto com "relações
carnais" e tudo o mais. Aqui, à beira do sucesso, o esquema que eu havia bolado
com Oki parecia infantil e bobo. Senti que estava me vendo, infantil e bobo como
eu era, de algum lugar distante.
Aki tirou um rádio transistorizado da mochila e o ligou. Era a hora do
"Afternoon Pops". Reconheci as vozes dos DJ's, um homem e uma mulher.
Nossa, está quente todos os dias, não é? Sim, bem, é verão! Portanto, hoje
estamos trazendo um programa especial dedicado a músicas que você gostaria
de ouvir na praia.
É isso mesmo! E também estamos aceitando solicitações por telefone,
portanto, venha as ligações! Todos que fizerem uma solicitação hoje terão seu
nome incluído em um sorteio, e os dez vencedores sortudos receberão camisetas
especialmente desenhadas!
Por que não começamos lendo um cartão postal?
Muito bem! Aqui está uma do "Yoppa" em Kazemachi. "Olá Kiyohiko, olá
Yoko." Olá para você também! "Estou no hospital agora com um problema de
estômago." É sério? "Eles fazem todos esses exames em mim todos os dias e
estou ficando muito cansado." Aposto que você está. "Talvez eu precise fazer
uma operação bem no meio das minhas férias de verão! Ainda assim, tenho uma
longa vida pela frente, então acho que um verão como esse não é tão ruim."
Uau, que atitude fantástica! Eu sei como é isso. Eu mesmo tive que fazer uma
operação, ainda no ensino médio. Foi uma apendicite e fiquei no hospital por três
dias. Sei que pode ser assustador, mas não se preocupe, tudo estará resolvido
antes que você perceba.
Diz alguém que já passou por isso. Bem, isso foi apenas uma apendicite.
Esperamos que o problema estomacal de Yoppa também não seja muito grave.
Esperamos que você melhore logo, Yoppa! E agora, já que você pediu, aqui está
"Midsummer Fruit", do Southern All-Stars!
— Lembra daquela vez que você enviou um pedido de música para mim,
Saku-chan? — Aki disse no meio da música.
— Sim.
Desejei que ela não tivesse tocado no assunto.
— No segundo ano do ensino fundamental, — ela continuou. — Era
'Tonight', não era? Você também escreveu a mentira mais louca.
— E você me deixou ficar com ele no dia seguinte.
— Mas agora é uma boa lembrança. Quer dizer, você inventou essa história
só para que eles lessem seu cartão postal e atendessem ao seu pedido, certo?
— Mais ou menos, — eu disse. — Na época, você estava namorando um
cara do ensino médio.
— Namorei? — Sua voz soou um pouco estridente. Ela se virou para me
olhar.
— Um lindo jogador de vôlei.
— Ah, — disse ela. — Mas como você soube disso, Saku-chan?
— Eu ouvi as meninas conversando na aula.
— Ah, caramba. Eu tive uma queda por ele.
— Uma paixão?
— Sim. Eu era apenas uma criança. Não sabia nada sobre o amor.
— Hmm.
Ela olhou meu rosto.
— Não me diga que você está com ciúmes, Saku-chan?
— Há algo de errado nisso?
— Vamos lá, eu estava no ensino fundamental!
— Ei, eu até fico com ciúmes do seu sutiã, está bem?
— Pare com isso!
Nuvens estavam se formando sobre o continente. Os topos eram brancos e
brilhantes, as seções centrais eram cinzas, mas as partes inferiores eram quase
totalmente pretas. Podíamos ouvir o estrondo de um trovão ao longe. Um vento
quente e úmido soprava do mar. As nuvens se moviam lentamente em nossa
direção, cobrindo todo o céu. O mar, que era de um azul profundo, agora estava
cinza.
— Oki parece não estar voltando, — disse Aki, ansiosa.
Quase contei a verdade a ela. Eu queria me desculpar e me livrar daquele
sentimento opressivo, mas, naquele momento, uma grande gota de chuva caiu
do céu. No início, as gotas caíam lentamente, mas, como um metrônomo fora de
controle, o ritmo da chuva foi ficando cada vez mais rápido até que, finalmente,
parecia uma cortina branca.
— É uma sensação maravilhosa, — disse Aki. Ela levantou o rosto para o
céu, de modo que a chuva atingiu sua testa. — Você planejou isso assim, não foi?
Eu me virei para olhar para ela. A chuva salpicava suas bochechas.
— Primeiro, quatro de nós deveríamos ir acampar. Então, de repente, a
namorada do Oki não pode ir. Depois, a mãe do Oki fica doente. E ficamos
sozinhos na ilha.
Achei que estava acabado.
— Me desculpe.
Encarei Aki de frente e abaixei a cabeça. A chuva parecia mais forte. As
ondas que lavam o píer ficavam mais altas. Ela permaneceu como estava, com os
olhos fechados e o rosto voltado para a chuva.
— Pelo amor de Deus, — ela acabou dizendo, parecendo minha mãe. —
Quando o barco vai chegar?
— Por volta do meio-dia de amanhã.
— Então, ainda temos muito tempo.
— Hm, eu juro que não faremos nada que você não queira fazer.
Ela não respondeu e apenas olhou para nossas mochilas molhadas e para o
cooler com nossa comida.
— Bem, de qualquer forma, vamos levar nossas coisas para algum lugar, —
disse ela e finalmente se levantou.
6
À DISTÂNCIA, o hotel parecia novo, mas de perto podíamos ver a pintura
descascando do que era praticamente uma ruína. Um enorme salgueiro ficava no
portão e, além dele, uma suave ladeira levava à entrada. Paramos e olhamos para
cima. O hotel de quatro andares poderia facilmente ter servido de locação para
um filme de terror. Havia tábuas pregadas sobre as portas automáticas, mas uma
parte havia sido arrancada, deixando uma abertura grande o suficiente para uma
pessoa entrar. Parecia mais um local para venda de drogas ou um esconderijo
para fugitivos do que um encontro de amantes.
No primeiro andar, além do saguão e do lounge, tinha um restaurante e uma
cozinha. Havia pilhas de mesas e cadeiras em um canto do restaurante.
Passamos pelo saguão e subimos lentamente as escadas. O segundo andar e o
andar superior eram todos quartos de hóspedes. As portas, placas de madeira
marrom-escura com maçanetas, ladeavam um lado do corredor. Havia muita areia
fina acumulada nos corredores e escadas, fazendo um som de areia quando
andávamos com nossas sandálias.
Oki havia dito: quarto 305. Em outras palavras, esse era o quarto que ele
havia limpado para nós enquanto nadamos no mar - para que a Aki não tivesse
que ver camisinhas usadas e coisas do gênero. É claro que eu havia prometido
pagar a ele. Ainda não tínhamos decidido o preço, mas achei que um Big Mac e
uma porção grande de batatas fritas não dariam conta do recado. Eu me senti
como um proprietário de uma pequena empresa, endividado até as orelhas com
um agiota.
Uma árvore que crescia na encosta atrás do hotel havia atravessado uma
janela quebrada na metade do corredor. Os galhos da árvore se espalharam pelo
teto, repletos de folhas verdes. Era apenas uma questão de tempo até que a
vegetação engolisse todo o hotel.
Abri a porta do quarto 305. A primeira coisa que vimos foi a gigantesca
cama de casal, bem no centro do quarto. Desviamos o olhar como se tivéssemos
visto algo proibido. Além da cama, o quarto estava vazio. Nós dois olhamos para
o chão e depois para o teto, sem saber para onde mais olhar. Paralisado pelo
silêncio, eu não conseguia pensar em nada para dizer. Até mesmo o som de
engolir era muito alto.
— Por que não deixamos nossas coisas aqui e damos uma volta pelo hotel?
Finalmente consegui.
Aki acenou com a cabeça, aliviada.
— Sim, vamos.
Fomos até a cozinha no primeiro andar. Lá também, as plantas da colina
atrás haviam invadido e estavam crescendo em cachos aqui e ali. Nós dois
estávamos cobertos com o sal da água do mar – a chuva não tinha sido suficiente
para lavar tudo. Tentamos abrir as torneiras, mas não saía água.
— Sem água, não podemos nem fazer o jantar, — disse Aki.
— Oki disse que há um poço lá atrás, — respondi na defensiva.
A porta dos fundos estava faltando. A chuva havia parado, e o sol da tarde
lançava sombras fracas no chão da cozinha. A encosta do morro estava próxima
do hotel, com uma inclinação sufocada por ervas daninhas tão grossas e altas
que escondiam o solo por baixo. As ervas daninhas, as vinhas, os arbustos, tudo
isso, se misturava uns aos outros.
Acima do emaranhado de rosas silvestres, Artemísia e dokudami, um par de
borboletas rabo de andorinha esvoaçava perseguindo uma à outra. Uma velha
cisterna de pedra estava meia enterrada na folhagem, facilmente perdida se você
não estivesse olhando com atenção. Um cano de plástico saía da grama e água
limpa jorrava de sua boca. Supus que fosse água de nascente e mergulhei minha
mão na cisterna. A água estava agradavelmente fria.
— Vamos tomar banho, — eu disse.
Aki ainda estava usando uma camiseta por cima do maiô.
— Vou pegar nossas toalhas.
— Tudo bem.
Ela olhou em volta como se estivesse envergonhada.
Fui até nosso quarto e peguei nossas toalhas e roupas limpas. Quando
voltei, Aki estava nua ao lado da cisterna, de costas para mim. O sol poente
estava escondido atrás da crista da colina, e sua forma branca e pura energia de
forma nebulosa da profusão turva de ervas daninhas. Como se estivesse em um
sonho, fiquei olhando para ela por um tempo.
— O que está fazendo?
— Bem, — disse ela, ficando de costas para mim, — não tenho uma toalha.
— Você tirou a roupa sem pensar no que fazer depois? — Rindo, coloquei a
toalha sobre seus ombros.
— Obrigada.
Aki se secou rapidamente e depois enrolou a toalha em volta de si mesma.
Ela desceu até a parte superior de suas coxas.
— Não fique olhando tanto assim, — disse ela.
A cisterna estava cheia de plantas aquáticas verde-amarronzadas, que
balançavam como finos cachos de cabelo. Mergulhei minha toalha na água e me
lavei. Torci a toalha e estava me enxugando com ela quando percebi que Aki
estava me observando da entrada da cozinha.
— Eu não sabia que você estava aí.
Ela baixou os olhos.
— Achei que você precisaria de uma toalha.
— Obrigado.
Fiquei de costas para ela enquanto pegava sua toalha.

Eu havia pegado emprestado um fogão de acampamento, uma panela e


uma colher de meu pai, um entusiasta da vida ao ar livre. O cardápio era
"Unatamadon". Primeiro, você ferve a água e aquece o arroz embalado em
saquinhos. Enquanto estiver cozinhando, corte a raiz de bardana e coloque-a na
água, depois pique a cebolinha verde e a enguia grelhada. Escorra a raiz de
bardana, coloque-a no fundo da panela e adicione água e temperos. Quando
ferver, adicione a enguia e a cebolinha. Depois de um tempo, despeje os ovos
batidos por cima, desligue o fogo e tampe a panela para que os ovos endureçam.
Coloque-os sobre o arroz e voilà! Acompanhado de sopa de missô instantânea,
você tem uma refeição respeitável.
Aki fez palitinhos de legumes e uma salada de frutas. Considerando todo o
trabalho envolvido, não era o tipo de comida que fazia você apreciar as delícias
de cozinhar ao ar livre. Estava escurecendo, então acendi a lanterna que também
havia pegado emprestado do meu pai. Enquanto comíamos, sintonizamos o rádio
em uma estação FM. Era outro programa de solicitações, esse dedicado a bandas
ocidentais com nomes longos: The Red Hot Chili Peppers, Everything But the Girl,
Afrika Bambaataa & SoulSonic Force.
Depois do jantar, limpamos a louça com papel higiênico e colocamos todo o
nosso lixo em um saco plástico. Pegamos a lanterna e subimos para o nosso
quarto. Talvez por termos nos visto nus, dessa vez não estávamos tão
desconfortáveis. E com o estômago cheio, ter pensamentos perversos era muito
incômodo. Encostados na cabeceira da cama, decidimos fazer um teste de
vocabulário em inglês. Um de nós dizia uma palavra japonesa e o outro tinha que
dizer o equivalente em inglês. Se a outra pessoa não conseguisse responder, mas
você conseguisse, você ganhava um ponto.
— 'Meishin', — disse Aki.
— Superstição, — respondi imediatamente.
— Foi fácil?
— Mais ou menos. Certo, 'ninshin'.
— Ninshin? — Aki olhou para mim com os olhos arregalados.
— Não sabe?
— Não.
— Concepção.
— Ah, sim.
— Sua vez, Aki.
— Deixa eu pensar... dojo, kyokan.
— Simpatia. — Novamente, respondi de imediato. — Você está estudando
palavras que começam com S?
— Sim. Mas, caramba, Saku-chan, você sabe mesmo muitas palavras.
— Ambos aparecem em títulos de músicas de rock. Peguei-os de
Stevie Wonder e os Rolling Stones.
— Sério?
Era minha vez novamente.
— Bokki.
— Como eu disse, bokki. Como se diz bokki em inglês?
— Primeiro ninshin, agora bokki? Quem precisa saber como dizer isso em
inglês?
Mantive a calma e expliquei:
— "Concepção" também significa uma ideia, não apenas engravidar. E bokki
é "ereção". Se você soletrar com um L em vez de um R, significa um voto.
Portanto, uma "eleição geral" é quando o país inteiro vota, e uma "ereção geral"
é quando um comandante do exército tem uma ereção. Veja, eu não quero que
você cometa erros embaraçosos como esse, Aki.
— Onde você aprende essas coisas? — Aki perguntou, ainda parecendo com
dúvidas. — Concepção, ereção e outras coisas.
— Eu as procuro no dicionário.
— Faça melhor o que você gosta mais, como diz o ditado.
— Na verdade, não é esse o caso.
— Acho que é exatamente esse o caso, na verdade.
Sem querer brigar, paramos de falar e olhamos pela janela. Estava escuro
como breu lá fora e não conseguimos ver nada.
— O que será que seremos quando crescermos, depois de estudar todas
essas palavras e coisas em inglês?, — disse Aki, como se estivesse falando
consigo mesma.
— Ouvi dizer que o aumento do número de mulheres que frequentam a
universidade é diretamente proporcional ao aumento da taxa de divórcio. Você
não acha que há algo errado se, quanto mais você estuda, menos feliz você fica?
— O divórcio não necessariamente o torna menos feliz.
— Acho que isso é verdade. — Depois de um momento, ela disse: — O
objetivo da vida é encontrar a felicidade. Nós estudamos e trabalhamos porque
queremos ser felizes.
No rádio, o programa que apresentava bandas com nomes longos ainda
estava passando. Eles voltaram ainda mais no tempo e estavam tocando
Quicksilver Messenger Service, Creedence Clearwater Revival e Big Brother & the
Holding Company.
Mais tarde naquela noite, a chuva começou novamente. Ela batia nas
janelas e nos beirais, fazendo muito barulho. Ficamos deitados na cama, ouvindo
o barulho. Fechando os olhos e me concentrando no som, percebi que os cheiros
se tornaram mais intensos. O cheiro da chuva, o cheiro da terra e das plantas na
encosta, o cheiro da poeira no chão, o cheiro do papel de parede descascado
parecia nos envolver em uma camada após a outra de cheiro.
Deveríamos estar cansados, mas, por mais tarde que fosse, nenhum de nós
sentia sono. Decidimos nos revezar para contar histórias de nossa infância. Aki foi
a primeira.
— Quando terminamos o jardim de infância, fizemos uma cápsula do tempo
e a colocamos no pátio de recreação. Colocamos um jornal dentro, uma foto de
toda a turma e algumas cartas que escrevemos. O tema era 'O que eu quero ser
quando crescer'.
— O que você escreveu?
— Esse é o problema. Não me lembro, — disse ela.
— Uma noiva, talvez?
— Sim, talvez, — disse ela com uma pequena risada. — Eu gostaria de
poder desenterrá-la e lê-la.
Então chegou a minha vez.
— Na época em que minha avó ainda era viva, havia um massagista que
vinha de vez em quando. Ele tinha cerca de sessenta anos e havia nascido cego.
Então, um dia, ele me perguntou: 'Ei, garotinho, a chuva cai em gotas ou em
longas linhas como fios? Ele nunca tinha visto, então não sabia.
— É, hm. — Aki assentiu com a cabeça, como se isso fizesse sentido. —
Então, o que você disse a ele?
— Eu disse a ele que a água cai em gotas. E ele disse: 'Então são gotas, não
é? Ele parecia muito emocionado. Ele me disse que estava se perguntando sobre
isso desde que era criança. E então ele disse: 'Graças a você, garotinho, hoje sou
um pouco mais sábio'.
— Isso é como o Cinema Paradiso.
— Sim, mas quando penso nisso agora, é estranho.
— Por quê?
— Se isso o incomodava há tanto tempo, por que ele não perguntou a
alguém antes? Por que ele esperou até os sessenta anos? E por quê ele
perguntou a mim, dentre todas as pessoas?
— Ele provavelmente olhou para você e se lembrou de quando era criança e
se perguntou sobre a chuva.
— Ou talvez ele tenha saído por aí fazendo essa mesma pergunta às
pessoas, toda vez que chovia.
A chuva ainda estava caindo.
— Espero que nossas famílias não estejam preocupadas conosco, — disse
Aki.
— Talvez eles já tenham pedido à polícia para nos procurar.
— O que você disse aos seus pais, Saku-chan?
— Que eu estava indo acampar perto da casa de um amigo. E quanto a
você?
— Eu também disse que estava acampando. Usei uma amiga como
desculpa.
— Você pode confiar nela?
— Acho que sim. Mas odeio esse tipo de coisa. Você incomoda muitas
pessoas.
— Eu sei, você está certo.
Aki se deitou e se virou para mim. Ela me beijou, senti o leve toque de seus
lábios.
— Vamos levar o tempo que for necessário para nos conhecermos. Não há
necessidade de pressa.
Envolvidos nos braços um do outro, fechamos os olhos. Sob o cobertor de
algodão que havíamos estendido no lugar de um lençol, grãos de areia faziam
barulho.

Quando acordei no meio da noite, o rádio estava com estática e a lanterna


estava apagada. Levantei-me e desliguei o rádio. O quarto estava abafado, então
abri a janela e o ar fresco, com cheiro de mar, entrou. Parecia que não haveria luz
por algum tempo. A chuva havia parado e o céu, agora limpo, estava repleto de
estrelas. Talvez por não haver luzes por perto, as estrelas estavam tão próximas
que senti que poderia cutucá-las com a ponta da minha vara de pescar.
— Estou ouvindo as ondas. — era a voz de Aki.
— Você está acordada?
Ela foi até a janela e olhou para fora. Do outro lado do mar escuro,
podíamos ver luzes piscando na margem oposta.
— Eu me pergunto onde isso fica.
— Koike, talvez, ou Kokubo.
Podíamos ouvir as ondas se aproximando e recuando, para frente e para
trás. Elas jogavam as pedras na praia e, quando recuava, faziam um barulho
estrondoso.
— Você está ouvindo um telefone tocando? — disse Aki.
— Parece que sim.
Eu escutei.
— Você está certa.
Peguei a lanterna na mesa. O corredor estava completamente escuro, e o
feixe da lanterna iluminava a parede mais distante com um amarelo difuso. O
som do toque parecia vir de um cômodo próximo ao final do corredor. Andamos
devagar, o mais silenciosamente possível. O telefone ainda estava tocando.
Deveríamos estar nos aproximando do quarto, mas o som não ficava mais alto.
O toque parou abruptamente, como se a pessoa que estava ligando tivesse
decidido que estávamos fora e desligado. Olhamos um para o outro sem falar.
Acenei com a lanterna ao redor. Estávamos bem no local onde a árvore havia
entrado pela janela quebrada. Acima de nossas cabeças, um galho grosso coberto
por trepadeiras estava verde com folhas. Quando o iluminei com a lanterna,
vimos um besouro rastejando sobre a casca da árvore. Coloquei minha cabeça
para fora da janela quebrada e apontei o feixe da lanterna para fora. A encosta
estava a apenas quatro ou cinco metros de distância.
— Vagalumes, — sussurrou Aki.
Seguindo a direção do seu olhar, vi uma pequena luz na grama. No início, vi
apenas uma, mas olhando atentamente, comecei a ver mais delas brilhando aqui
e ali. Enquanto observamos, seu número continuava a crescer.
As luzes de centenas de vaga-lumes tremeluziam nas ervas daninhas e nos
arbustos, brilhando e descansando repetidas vezes. Um que estava parado em
uma folha flutuava para cima, voava em companhia de dois ou três outros e
depois se escondeu novamente na grama. Embora fossem muitos, seu voo era
silencioso. Às vezes parecia que o grupo inteiro estava flutuando na brisa.
— Apague a lanterna, — disse Aki.
E então estávamos com eles, na mesma escuridão. Vi um vaga-lume se
separar dos demais e voar em nossa direção, emitindo sua luz fraca. Do lado de
fora da janela, ele parou em pleno ar. Estendi minha mão, com a palma para
cima. O vaga-lume recuou, como se desconfiasse de mim, depois parou em uma
folha da árvore. Ficamos esperando. Quando finalmente voltou a voar, o
vaga-lume circundou Aki e depois, como um único floco de neve caindo, pousou
suavemente em seu ombro. Era como se o vaga-lume a tivesse escolhido. Ele
brilhou duas ou três vezes, como se estivesse lhe enviando algum tipo de sinal.
Prendendo a respiração, observamos o vaga-lume. Depois de brilhar
algumas vezes, ele se levantou de seu ombro. Dessa vez, sem a hesitação de sua
aproximação, ele voou direto de volta para os arbustos. Esforcei meus olhos para
segui-lo. Logo ele se juntou a seus companheiros e foi engolido pelas muitas
luzes minúsculas que havia ali, e eu o perdi.
PARTE 3
QUANDO VOLTAMOS da nossa viagem de estudos à Austrália, a doença de
Aki já tinha um nome: anemia aplástica. Seu médico disse que o funcionamento
de sua medula óssea havia se deteriorado, e ela parecia acreditar nele. É claro
que eu também não tinha motivos para duvidar dessa explicação.
Para evitar infecções, fui instruído por uma enfermeira sobre o
"Equipamento de Proteção Individual". Primeiro, tive de pegar um avental e uma
máscara em um armário no corredor e vesti-los. Em seguida, tive de tirar os
sapatos e calçar chinelos especiais. Depois de desinfetar minhas mãos na entrada
do quarto de Aki, finalmente fui autorizado a entrar.
Toda vez que ela me via com minha máscara e o jaleco, caía na gargalhada.
— Não consigo evitar, você está tão engraçado!
— O que posso fazer? — Eu disse. — Culpe a sua medula óssea. Ela é
preguiçosa demais para produzir células sanguíneas, por isso fico sou obrigado a
me vestir assim
— Como vai a escola? — perguntou ela, mudando de assunto.
— O mesmo de sempre.
— Não está quase na hora das provas do meio do ano?
— Acho que sim.
— Você está estudando?
— Sim.
— Gostaria de poder voltar para a escola logo, — disse ela, olhando pela
janela.
Uma enfermeira entrou pela porta e perguntou a Aki se estava tudo bem.
Ela sorriu para mim e me cumprimentou. Eu vinha visitá-la todos os dias, então a
maioria das enfermeiras me conhecia. Os testes e outros procedimentos eram
realizados principalmente pela manhã, portanto, tudo ficava tranquilo até a hora
do jantar.
— Ela está olhando para ter certeza de que não vamos nos beijar, — disse
Aki em voz baixa quando a enfermeira se foi. — A enfermeira chefe me falou
outro dia. Ela disse para não beijar aquele seu namorado que vem aqui todos os
dias. Porque ele pode te transmitir germes.
Por um momento, tive uma visão de germes se aglomerando em minha
boca.
— Um pouco nojento, quando você coloca dessa forma.
— Você quer?
— Está tudo bem.
— Nós podemos, você sabe.
— Mas e quanto a todos os meus germes?
— Tem um enxaguante bucal que é um medicamento que uso, ali perto da
pia. Se você enxaguar a boca muito bem com ele, vai ficar tudo bem.
Abaixei minha máscara, usei o enxaguante bucal. Sentei-me na beira da
cama, de frente para ela. Lembrei-me da primeira vez que nos beijamos. Arriscar
um beijo esterilizado parece mais interessante. Tocamos nossos lábios.
— Tem gosto de enxaguante bucal, — disse ela.
— Se você ficar mal hoje à noite, vão me culpar.
— Mas estou feliz por termos feito isso.
— Que tal mais uma vez?
Mais uma vez, tocamos nossos lábios. Depois de enxaguar minha boca com
enxaguante bucal e usar um jaleco verde-claro como a de um cirurgião, o beijo
parecia um ritual solene.
— Em junho, vamos ver as hortênsias lá no Castelo da Colina, — eu disse.
— A promessa que fizemos na época do ensino fundamental, — disse Aki,
fechando parcialmente os olhos como se estivesse olhando para longe. — Só se
passaram três anos, mas parece que foi há muito tempo.
— Muita coisa aconteceu desde então.
— Sim, realmente.
Aki parecia perdida em seus pensamentos. Ela sussurrou: — Ainda falta
mais de meio ano para junho.
— Você só precisa melhorar até lá.
— Aham. — Ela assentiu com a cabeça. — Mas está tão longe até lá. Se
soubéssemos que isso ia acontecer, deveríamos ter ido quando eu ainda estava
bem.
— Você está falando como se não fosse melhorar.
Em vez de responder, Aki apenas deu um sorriso desanimado.

No dia em que cheguei ao hospital, encontrei Aki dormindo. Sua mãe, que
sempre a acompanhava, estava ausente. De costas para a janela, Aki dormia com
os olhos fechados. O rosto dela estava muito pálido devido à anemia. As cortinas
de cor creme estavam fechadas, evitando que a luz externa a incomodasse. A luz
do sol que penetrava pelas cortinas banhava o quarto com um brilho suave, como
asas de borboleta. A luz incidia sobre o rosto de Aki, criando uma sombra sutil.
Sentindo que estava presenciando algo único, continuei olhando para Aki
enquanto ela dormia. De repente, fui tomado pela ansiedade de que, de dentro
daquele sono tranquilo, uma morte silenciosa surgisse, como uma semente
papoula flutuando no ar. Era como quando eu fazia um desenho ao ar livre na
aula de artes: eu olhava para o papel branco sob o sol forte até que ele
parecesse estar coberto de pequenas manchas pretas.
— Aki.
Chamei seu nome várias vezes. Até que ela se mexeu um pouco. Movia a
cabeça de um lado para o outro, como se estivesse se livrando de algo. O que
quer que estivesse cobrindo seu rosto se desfez, camada por camada. A vida
voltou, fraca a princípio, e então, como o gorjeio de um pássaro, seus olhos se
abriram.
— Saku-chan, — ela sussurrou surpresa.
— Como você se sente?
— Dormi um pouco, então estou bem melhor.
Ela se sentou e tirou o cardigã de onde estava pendurado no encosto de
uma cadeira. Ela o vestiu sobre o pijama.
— Eu estava me sentindo muito triste esta manhã, — disse ela. Seus olhos
tinham um traço de desolação. — Pensando em morrer e coisas assim. Estava
imaginando o que aconteceria comigo se eu descobrisse que teria de me despedir
de você para sempre.
— Que bobagem. Isso não é algo em que você deveria estar pensando.
— Acho que sim. — Ela suspirou e disse: — Acho que estou perdendo a
coragem ou algo assim.
— É ruim ficar aqui sozinha aqui no hospital?
— Sim. — Ela fez um pequeno aceno de cabeça.
O silêncio parecia pesado quando paramos de falar.
— Não consigo nem imaginar o que significa eu partir deste mundo — disse
Aki, como se estivesse falando consigo mesma. — É uma sensação estranha
pensar que sua vida vai acabar em algum momento. É natural que isso aconteça,
é claro, mas geralmente você vive sua vida sem pensar em coisas assim.
— Você precisa pensar mais em coisas boas. Por exemplo: quando você
estiver curada.
— Tipo, nos casar? — sua pergunta interrompeu a conversa.
— Acho que vou usar o enxaguante bucal, — disse eu, e finalmente
consegui fazer com que ela sorrisse.

Toda vez que eu ia visitá-la, nós nos beijávamos às escondidas das


enfermeiras. Para mim, era uma forma de provar que eu estava vivo. Aki nunca
teve febre ou qualquer outro sinal de infecção, então eu pretendia continuar com
isso enquanto ela estivesse lá.
— Ultimamente, muito do meu cabelo está caindo quando eu o lavo, —
disse ela.
— Isso é um efeito colateral de seu medicamento? — Aki assentiu em
silêncio.
— Isso me deixa triste.
Peguei sua mão sem pensar. Não sabia o que dizer.
— Eu o amarei mesmo que você seja careca, — deixei escapar.
Ela me encarou com os olhos arregalados.
— Você precisa ser tão explícito sobre isso?
— Desculpe, — eu disse. E então, de forma um tanto fraca, acrescentei: —
A palavra explícita vem do latim e significa desdobrado ou exposto. Lembra?
Aki encostou o rosto em meu peito e começou a chorar como uma criança
pequena. Foi tão inesperado que fiquei surpreso, completamente perdido. Era a
primeira vez que eu a via chorar. Eu não sabia se era a doença ou os
medicamentos que ela estava tomando que a deixavam tão emotiva. Mas foi
então que comecei a perceber a gravidade de sua doença.
2
O ROSTO DE AKI HAVIA FICADO MAIS FINO. Ela não conseguia comer nada
por causa da náusea. Sentia-se mal o dia todo e não suportava ver e nem sentir
o cheiro de comida. Quando estava muito ruim, ouvir o barulho do carrinho que
trazia refeições era o suficiente para fazê-la vomitar. Receitaram-lhe um
medicamento anti náusea, mas não parecia ajudar. Estava claro que eles estavam
lhe dando medicamentos muito fortes, mas isso não combinava com "anemia".
Então, qual o motivo de estarem a tratando?
Procurei por anemia aplástica em um dicionário médico. Era definida como
anemia decorrente de uma falha da medula óssea em produzir células
sanguíneas. Isso se encaixava na explicação do médico de Aki. Enquanto eu lia
sobre as opções de tratamento – transfusões de sangue e doses de hormônios
esteróides — minha atenção foi atraída por um verbete na página seguinte.
Leucemia. Lembrei-me do cartão postal de solicitação de música que eu havia
enviado, ainda no ensino fundamental. Será que aquela brincadeira insensível que
eu havia feito poderia ter voltado para assombrar Aki? Afastei esse pensamento
irracional e comecei a ler a descrição no dicionário médico. Mas um remorso que
parecia estar ecoando no futuro tomou conta do meu coração.
Como Aki temia, seu cabelo começou a cair. Como era longo, os locais onde
caía eram ainda mais perceptíveis. Ela foi ficando cada vez mais desanimada à
medida que o tratamento avançava.
— Estou realmente preocupada que o medicamento não esteja funcionando,
— disse ela. — Quero dizer, se os efeitos colaterais são tão ruins e não estão
funcionando, isso significa que não há remédio que cure o que eu tenho.
— Hoje em dia, eles podem curar praticamente qualquer coisa, — eu disse,
pensando na descrição que havia lido no dicionário médico. — Especialmente
quando o paciente é uma criança.
— Dezessete anos é uma criança?
— Você ainda tem dezesseis anos.
— Quase dezessete.
— De qualquer forma, isso está na metade do caminho entre crianças e
adultos.
— Então, tenho cinquenta por cento de chance.
Houve um breve silêncio.
— Talvez eles ainda estejam procurando os medicamentos certos para você.
— Será que estão? Me pergunto, — disse ela, com ar de dúvida.
— Na época da escola primária, fiquei um tempo no hospital com
pneumonia. Naquela ocasião, também, o remédio que me deram não funcionou
por muito tempo. Eles continuam experimentando diferentes medicamentos em
mim e, finalmente, encontraram um que funcionou. Mas até encontrarem, meus
pais estavam realmente preocupados que eu fosse morrer.
— Espero que realmente encontrem o medicamento certo para mim. Nesse
ritmo meu corpo vai desmoronar.
— Eu gostaria de poder tomar seu lugar.
— Se você realmente passasse pelo que estou sofrendo, acho que não seria
capaz de dizer isso.
Foi como se houvesse um lapso no tempo naquele quarto neste momento.
— Sinto muito, — disse Aki, com a voz embargada. — Talvez eu deva ter
mais medo não de não me recuperar, mas de que o fato de estar doente possa
deformar minha personalidade. Se eu deixar de ser quem eu sempre fui e você
começar a me odiar, eu realmente não sei o que farei.

No dia seguinte, Aki me cumprimentou usando um gorro de malha rosa.


— Que coisa é essa?
Ela o retirou com um sorriso malicioso. Fiquei ofegante, tomei um susto
naquele momento. Ela havia cortado o cabelo curto; em uma noite, passou de
um cabelo comprido para curto. Ela parecia outra pessoa.
— Eu pedi a eles que fizessem isso. — Aki falou primeiro. — Quando o
tratamento terminar, vai voltar a crescer, disseram, e eu poderei ter cabelos
longos como antes. Então, acho que é assim mesmo. Até lá, vou ter que me
concentrar em melhorar.
— Então você decidiu lutar contra essa coisa.
— Mesmo que eu perca todo o meu cabelo, você ainda vai me amar?
— Como se eu não fosse fazer isso.
Aki ficou em silêncio, como se minhas palavras a tivesse feito perder a
coragem.
— Você sabe que existem conventos, — disse ela depois de um tempo.
— O quê? Quer se tornar uma irmã, é isso que você quer dizer?
— Eu estava pensando sobre isso antes de ficar doente. Que se você
morresse antes de mim, eu entraria em um convento budista.
— É esse tipo de coisa que você fica pensando?
— Não consigo me imaginar casada, tendo filhos e sendo mãe, e
envelhecendo com alguém além de você.
— Também não consigo me imaginar casando, tendo filhos e sendo pai com
ninguém além de você. É por isso que você precisa ficar bem novamente.
— Tem razão. — Ela passou as mãos no cabelo. — Fico bonita assim?
Depois disso, a náusea de Aki começou a diminuir. Talvez seu corpo tenha se
acostumado com as drogas. Ou talvez tenha sido sua atitude positiva. Embora
ainda não pudesse comer refeições completas, ela consegue comer frutas, geléia,
suco de laranja e pequenas quantidades de pão. Ela também começou a ler livros
novamente, um pouco de cada vez. Desenvolveu um interesse pelos aborígenes.
— Antes de colher uma planta, eles sempre colocam as mãos sobre ela, —
ela me disse. — E então eles simplesmente sabem. Por exemplo, se a planta
ainda está crescendo, ou se é muito cedo para colhê-la, ou se já pode colher.
Coloquei minhas mãos na frente do rosto de Aki.
— Essa ainda está em fase de crescimento, é muito cedo para colhê-la.
— Ei, estou falando sério.
— O que você acha que os aborígenes comem?
— Pássaros e peixes... nozes, frutas e plantas...
— Acho que eu não gostaria de comer coisas como cangurus e lagartos. Ou
cobras, crocodilos e lagartas.
— O que está tentando dizer?
— Se você se tornasse um aborígine, não poderia comer coisas como pudim
de creme e biscoitos.
— Por que você sempre tem que pensar em coisas materiais como essa?
— Os aborígenes não me pareciam ser pessoas maravilhosas, como você
parece pensar. — Eu estava me lembrando do que tinha visto em nossa viagem.
— Alguns deles pareciam meio sujos e pouco saudáveis. Eles ficavam sentados
bebendo álcool o dia todo e tentavam roubar dinheiro dos turistas.
Isso deixou Aki irritada.
— Isso é porque eles foram oprimidos, — disse ela. Então, ela ficou sem
dizer nada por um longo tempo.
Os aborígenes não eram o problema, percebi depois que saí do hospital. Ela
via o modo de vida tradicional deles como uma espécie de utopia, algo com o
qual poderia comparar sua própria existência. Ou então eles lhe davam esperança
– um significado para sua vida.
— Eles acreditam que tudo nesta Terra existe por uma razão, — ela me
disse em outra ocasião. "Tudo no universo tem um propósito, então as coisas que
chamamos de mutações ou coincidências na verdade não são. Porque essas
coisas não existem. Nós apenas as vemos dessa forma porque não temos
consciência suficiente. Não temos a sabedoria para entender tudo isso."
— Então um bebê anencéfalo nasceu assim por algum motivo?
— O que é isso?
— Um bebê que nasceu sem cérebro. Ouvi dizer que há um plano quando
isso acontece, eles usam seu coração para transplante para crianças com
problemas cardíacos graves. Isso explica o motivo do porque bebês anencéfalos
nascem?
— Acho que isso é um pouco diferente. Entender não é a mesma coisa que
usar.
Como ela ainda tinha anemia, o rosto de Aki estava pálido.
Ela continuava a receber transfusões de sangue e a maior parte de seu
cabelo havia caído.
— Você também acha que as pessoas morrem por algum motivo?
— Sim.
— Então, se há uma boa razão ou propósito para isso, por que as pessoas
se esforçam tanto para evitá-la?
— Porque ainda não entendemos realmente a morte.
— Lembra daquela vez em que conversamos sobre o Céu? Você disse que
não acreditava no Céu ou em outro mundo.
— Eu lembro.
— Mas se a morte de uma pessoa significa algo, então você tem que ter o
Céu ou um mundo após a morte, ou não faz sentido.
— Por que não?
— Bem, porque quando você morre, tudo acaba, certo? Se não há nada
depois, como a morte pode ter algum significado?
Aki olhou pela janela. A grande torre branca se escondia através das várias
árvores no Castelo da Colina. Várias pipas sobrevoaram sobre.
— Veja, eu acredito que o que está aqui agora, tem tudo que preciso. — Ela
parecia estar escolhendo suas palavras com cuidado. — Tudo está aqui e nada
está faltando. É por isso que não há necessidade de pedir a Deus por coisas que
você não tem, ou de se voltar para o céu ou para outro mundo depois deste.
Tudo já está aqui. Portanto, acho que encontrar o que você quer aqui é mais
importante. — Ela fez uma pausa e depois acrescentou:
— Acho que o que não está aqui agora também não estará depois que você
morrer. Apenas o que está aqui agora permanecerá, mesmo depois que você
morrer. É difícil de explicar.
— Meu amor por você está aqui agora, então continuará aqui depois que
morrermos, — eu disse, pegando o fio da meada.
— É isso, exatamente isso. — Aki acenou com a cabeça. — Era isso que eu
queria dizer. Por isso, não há necessidade de ficar triste ou assustado.
3
DA JANELA da cafeteria do hospital, eu podia ver o céu com algumas nuvens
cinzentas e baixas. Sentei-me em frente à mãe de Aki, me sentindo um pouco
nervoso. Duas xícaras de café estavam sobre a mesa, já mornas.
— Sobre a doença da Aki. — Sua mãe, que estava conversando sobre isso e
aquilo, abordou o assunto de forma um tanto abrupta. — Você conhece uma
doença chamada leucemia, Sakutaro?
Acenei com a cabeça. Meu coração começou a bater forte. Algo gelado
percorreu todos os vasos sanguíneos do meu corpo.
— Então, eu acho que você já tem uma ideia do que pode ser, — disse ela e
tomou um gole de água. — Você já deve ter adivinhado, mas Aki tem leucemia.
No momento, eles estão atacando as células doentes com medicamentos. Essa é
a razão pela qual ela estava sentindo náuseas e perdendo o cabelo.
A mãe de Aki olhou para mim, como se quisesse verificar minha reação.
Acenei com a cabeça em silêncio. Ela suspirou e continuou.
— Graças aos medicamentos, eles conseguiram eliminar muitas das células
ruins. O médico diz que ela vai apresentar melhora durante um tempo e até sair
do hospital. Mas eles não podem se livrar de todas as células ruins de uma só
vez. Os medicamentos que estão usando são muito fortes, por exemplo. E por
isso, eles precisam repetir o mesmo tratamento várias vezes. Isso levará pelo
menos dois anos. Talvez até cinco.
— Cinco anos? — As palavras saíram da minha boca. Essa miséria vai
continuar por mais cinco anos?
— Então, e isso é algo que discutimos com o médico, estamos pensando em
levar a Aki para a Austrália quando ela sair do hospital. Vocês sabem que ela
estava tão ansiosa para a viagem da turma e não pôde ir. Se a leucemia reincidir,
ela terá de voltar ao hospital para tratamento intensivo. E gostaríamos de levá-la
para lá antes disso, se possível.
Ela parou de falar e olhou para mim.
— E é sobre isso que eu queria falar com você. Acho que a Aki ficaria muito
feliz se você viesse conosco. O que você acha? É claro que, se você concordar em
vir, nós iremos ver seus pais para pedir permissão.
— Eu vou, — respondi imediatamente.
— Ah, que bom. Obrigada. — Ela parecia aliviada. — Tenho certeza de que a
Aki ficará muito feliz. Ah, e, por favor, não diga a ela o que ela tem por enquanto.
Essa também é a opinião do médico, mas gostaríamos que ela continuasse
pensando que se trata de anemia aplástica. É claro que chegará o momento em
que teremos que dizer o que ela realmente tem, porque ela vai lutar contra isso
por um longo tempo. Mas gostaríamos de esperar até termos uma ideia melhor
de suas perspectivas.

Usei o computador da biblioteca para pesquisar todos os livros que


mencionam a leucemia e dei uma olhada em todos eles. Independentemente do
livro que eu consultasse, os sintomas e o tratamento descritos correspondiam aos
de Aki. Os efeitos colaterais que ela teve foram o resultado da quimioterapia, que
atacou as células da leucemia, mas também destruiu os glóbulos brancos
saudáveis, tornando-a suscetível a infecções. Agora eu entendia por que havia
sido instruída sobre a "assepsia". Um livro dizia que, atualmente, sete em cada
dez casos de leucemia entram em remissão, com casos de recuperação completa
"não desconhecidos". Então, isso significava que, mesmo hoje, a recuperação
completa era rara?
No caminho da escola para casa, vi algumas nuvens banhadas pela luz do
sol que estavam brilhando. Parado no meio da rua, fiquei olhando para elas por
um longo tempo, lembrando-me das nuvens que tínhamos visto da ilha durante
as férias de verão. A pele brilhante e o corpo saudável de Aki agora fazem parte
do passado. Por um tempo, não consegui pensar. O som da campainha de uma
bicicleta atrás de mim finalmente me trouxe de volta. Quando olhei para o céu
novamente, o sol havia se abaixando, aprofundando-se nas nuvens deixando uma
sombra. Como o tempo fluía rápido e tragicamente. A felicidade era como aquelas
nuvens, mudando de aparência de um minuto para o outro – brilhando douradas,
depois afundando no cinza, nunca no mesmo estado por mais de um momento.
Como uma fantasia passageira, até mesmo a hora mais radiante passava
rapidamente.
Adquiri o hábito de fazer uma oração antes de ir para a cama. Eu não
pensava mais se Deus existia ou não. Eu simplesmente precisava de algo como
Deus, um objeto de minhas próprias orações pessoais. Talvez suplicar fosse uma
palavra melhor. Eu queria suplicar com um ser todo-poderoso que estava além da
compreensão humana: se Aki se recuperasse, Ele poderia me levar em seu lugar.
Pensar em mim mesmo era insignificante perto de minha preocupação com Aki,
como as estrelas que são eclipsadas pela luz do sol.
Todas as noites eu ia para a cama orando, mas todas as manhãs eu
acordava saudável e era Aki quem estava doente. Por mais que eu quisesse
compartilhar, seu sofrimento era só dela. O meu não era nada mais do que uma
tentativa de experimentar o que ela estava passando. Eu não era a Aki, e seu
sofrimento não era meu para ser sentido.
4
O ESTADO DE SAÚDE DE AKI parecia melhorar e depois piorar,
repetidamente. Paralelamente a isso, seu humor também tinha altos e baixos.
Alguns dias ela falava alegremente sobre todos os tipos de coisas, enquanto em
outros dias eu mal conseguia arrancar uma palavra dela. Em dias assim, eu tinha
a sensação de que a Aki não precisava mais de mim, e o tempo passado em seu
quarto de hospital parecia um dever doloroso.
Eu me perguntava se ela não estava respondendo à quimioterapia,
comparando o que eu via com o que havia lido em todos aqueles livros. Se esse
tratamento não funcionasse, a não ser que houvesse um transplante de medula
óssea, não haveria esperança de recuperação. Quando Aki estava se sentindo
bem, olhávamos os guias de viagem e falávamos sobre a Austrália, mas ambos
duvidamos que ela realmente pudesse ir. Eu também não tinha ouvido falar de
nenhum plano real de sua mãe, desde que ela havia conversado comigo.
— O motivo do meu tratamento ser tão ruim, eu devo ter algo muito
horrível. — Aki estava na cama, com os olhos fechados de dor.
— Mesmo que seja, eles estão lhe dando esse tratamento horrível porque há
uma chance de curá-lo. — Fiz tudo o que pude para colocar as coisas da melhor
maneira possível. — Se não houvesse nenhuma chance de recuperação, eles só
lhe dariam coisas para que você se sentisse melhor.
Aki me ignorou e disse:
— Às vezes, eu só quero fugir daqui. Todos os dias, tenho medo de me
cansar disso e não querer mais continuar o tratamento.
— Estou aqui com você.
— Quando você está comigo, eu estou bem. Mas depois que você sai,
Saku-chan, e nós jantamos e está quase na hora de apagar as luzes, eu começo
a me sentir realmente desesperada, como se eu tivesse que sair daqui.
Aki desenvolveu uma febre alta e, por alguns dias, não pude ir vê-la. Uma
infecção havia se instalado devido à diminuição de seus glóbulos brancos e,
embora ela estivesse recebendo antibióticos, a temperatura não baixava. Nessa
época, comecei a questionar o tratamento do hospital. Como a mãe de Aki havia
dito, a quimioterapia geralmente leva à remissão e, quando isso acontecia com
Aki, o plano era levá-la para a viagem. Mas não importava quanto tempo durasse
o tratamento, não se falava em sua saída do hospital, e isso significava que eles
não tinham conseguido controlar a doença. Não importava se a leucemia da Aki
era um caso difícil ou se o programa de tratamento do médico era ineficaz, de
qualquer forma, se as coisas continuassem assim, o corpo da Aki iria se esgotar
antes que o tratamento terminasse.
— Acho que está tudo acabado para mim. — Quando finalmente voltei a ver
Aki, ela disse isso com os lábios vermelhos com os vestígios da febre.
— Isso não é verdade.
— Dá para perceber.
— Você não pode perder a esperança assim, — disse eu, sem querer
elevando o tom de voz.
— Até você está gritando comigo agora, Saku-chan. — Ela olhou para baixo,
abandonada.
— Não estou gritando com você, — eu disse. Pensando bem, perguntei, —
Alguém está lhe dando trabalho?
— Todo mundo, — disse ela. — Estão sempre me dizendo que tenho que
lutar mais, comer tudo o que como e ficar mais forte. Se eu disser que não posso
comer nada, eles me repreendem por não tomar o remédio para náusea. Mas eu
me sinto tão enjoada que não consigo comer nada.
A essa altura, Aki parecia saber o que ela tinha. Mesmo que ninguém tenha
lhe contado essas coisas, eventualmente acabou descobrindo.
— Ainda não consigo me imaginar morrendo. Mas, mesmo assim, a morte já
está bem ali na minha frente.
— Por que você sempre encara as coisas assim? — perguntei.
— O médico me explicou os resultados do meu exame de sangue esta
manhã, — disse ela, como se estivesse tentando provar que seu pessimismo
tinha fundamento. — Ele disse que eu ainda tenho muitas células ruins, então
eles vão atacá-las com medicamentos. Só sei que essas células ruins são células
de leucemia.
— Você perguntou isso ao médico?
— De jeito nenhum. É muito aterrorizante. — ela continuou, com a voz
pensativa. — Eles me deram todos os tipos de medicamentos até agora, e
nenhum deles conseguiu destruir todas as células ruins. Então, para matar as
células que restaram, eles terão de usar algo mais forte. Mas eu juro que não
aguento mais isso. Os medicamentos vão me matar antes que da doença.
— Acho que o mais importante é saber se eles são adequados para sua
condição, e não o quão fortes ou fracos eles são. Portanto, se o médico disser
que tentará outro medicamento, isso não significa necessariamente que os efeitos
colaterais serão piores.
— Me pergunto se é realmente isso.
Aki pensou um pouco e depois suspirou como se não tivesse chegado a uma
conclusão.
— Ontem, eu ainda acreditava que iria melhorar. Mas agora, sinto que não
suportaria viver nem mais um dia.
Ao voltar do hospital para casa, uma premonição de que eu poderia perder
Aki veio à minha mente. Tive um súbito impulso de continuar andando até estar
longe, em um lugar onde pudesse esquecer tudo. Aqui estava eu caminhando
sozinho em uma estrada que, há apenas alguns meses, eu havia andando com a
Aki. E a ideia de que eu nunca mais andaria por essa estrada com ela me parecia
um futuro erradicável.

O novo medicamento que começaram a usar na Aki tinha fortes efeitos


colaterais. Quando a náusea finalmente diminuiu, ela ainda não conseguia comer
nada, dessa vez por causa das feridas na boca.
Ela teve que voltar a receber soro intravenoso.
— Eu não me importo mais, — ela sussurrou, como se fosse para si mesma.
— Com o quê?
— Independentemente de eu ser curada ou não. Decidi aprender com os
aborígenes. Se tudo tem uma razão, então deve haver uma razão real para o fato
de eu estar doente.
— A razão pela qual as pessoas ficam doentes é para que possam vencer e
se tornarem mais fortes.
— Está tudo bem. — Ela fechou os olhos. — Está tudo bem. Estou cansada
disso, da dor e de pensar nessa doença o tempo todo. Gostaria de poder ir com
você para uma terra onde a doença não existe.
Sua voz não tinha esperança alguma. Ela me estimulou a continuar.
— Se chegarmos a esse ponto, iremos juntos.
Aki abriu os olhos e olhou para mim. Ela parecia estar perguntando onde. Eu
mesmo não sabia a resposta para isso. Talvez o que eu havia dito fosse apenas
uma fantasia, mas no momento em que a coloquei em palavras, fiquei possuído
pela ideia. As palavras que saíram de minha boca pareciam marcar o caminho
para o nosso futuro.
— Prometo que vou levá-lo para longe daqui, — eu disse, e depois disse
novamente. — Se realmente não houver esperança, então é isso que faremos.
— Como? — Aki perguntou com voz rouca.
— Vou pensar em uma maneira. Não quero acabar como vovô.
— Seu avô?
— Sim, fazer meu neto ir roubar seu túmulo.
Notei seu olhar carregado de dúvidas, então falei qual o lugar:
— Vamos juntos para a Austrália. Não vou deixá-la morrer sozinha em um
lugar como este, Aki.
Ela baixou os olhos e parecia estar pensando. Quando finalmente levantou o
rosto, olhou-me diretamente nos olhos e fez um pequeno aceno de cabeça.
5
AKI FOI FICANDO MAIS FRACA a cada dia. A essa altura, ela estava quase
completamente careca. Hematomas roxos cobriam seu corpo, e suas mãos e pés
estavam inchados. Não havia tempo para hesitação. Comecei a pensar mais sério
sobre a Austrália e a reunir informações. Felizmente, os passaportes e vistos que
havíamos conseguido para nossa viagem de estudos ainda eram válidos. A
princípio, achei que a melhor opção seria um pacote turístico com um guia, pois
parecia a maneira mais segura e garantida de ir. Mas o procedimento de inscrição
era complicado, portanto não poderíamos sair imediatamente. E o panfleto dizia
que os menores de 20 anos precisam de um acordo assinado por seu
responsável.
A organização das passagens aéreas era uma verdadeira dor de cabeça.
Com Aki tão doente, as passagens com desconto seriam muito perigosas, pacote
completo custaria 400.000 ienes por pessoa. Escolher a data de partida também
foi difícil. Eu não podia perguntar ao médico dela quando seria melhor e não
podia prever qual seria a condição dela em uma ou duas semanas.
— Quero ir embora o mais rápido possível, — disse Aki. — A náusea deve
passar quando eu parar de tomar a medicação. Porém, quanto mais esperarmos,
mais fraca ficarei. Quero ir o quanto antes que ainda tenho forças.
Depois de analisar todas as opções, optei por uma oferta especial de uma
companhia aérea australiana. Pagaríamos 180.000 ienes por pessoa e, por uma
pequena taxa, poderíamos cancelar no último minuto. Dessa forma, se chegasse
à data e Aki não pudesse viajar, poderíamos receber nosso dinheiro de volta e
esperar por outra oportunidade.
O maior problema, de todos, era o dinheiro. Eu teria que pagar pelas
passagens quando reservar os assentos, mas tudo o que eu tinha na poupança
era cerca de cem mil ienes – nem de longe é o suficiente. Como conseguir o
restante? E logo de cara? Eu só conseguia pensar em uma solução.
— Quinhentos mil? — Os olhos de meu avô se arregalaram quando ele ouviu
o pedido.
— Por favor, vovô. Vou me esforçar muito e vou pagar cada centavo.
— Para que você precisa desse dinheiro?
— Não me pergunte o motivo, apenas me empreste o dinheiro.
— Você sabe que não posso fazer isso.
Meu avô serviu Bordeaux em duas taças e me ofereceu uma. De forma
amigável, ele disse:
— Ei, Sakutaro. Você sabe do meu segredo. Confiei a você o meu último
desejo. E ainda assim não quer compartilhar seu segredo comigo?
— Sinto muito, mas não posso.
— Por que não?
— A mulher que você amava está morta, certo? Não há problema em falar
sobre alguém que já morreu. Mas se a pessoa ainda estiver viva, você não pode.
— Então é algo envolvendo amor, não é?
— Não é nada disso!
No momento em que eu disse isso, tudo o que eu estava escondendo veio à
tona. Meu avô me observou consternado. Chorei em voz alta por um longo tempo
e, quando finalmente parei, tomei um gole de vinho. Meu avô não me fez mais
perguntas e bebemos nosso vinho em silêncio.
Devo ter adormecido no sofá. Quando acordei, havia um cobertor sobre mim
e já eram quase onze horas.
— Sua mãe ligou, — disse meu avô, olhando por cima do livro que estava
lendo. — Ela está muito preocupada. Você quer passar a noite aqui?
— Não, eu vou para casa. — Eu ainda estava um pouco atordoado. — Tenho
aula amanhã.
Meu avô me observava com um olhar pensativo. E quando ele se levantou,
trouxe uma caderneta de banco da sala ao lado e a colocou sobre a mesa.
— A senha é véspera de Natal.
— Meu aniversário?
— Eu planejei dar isso a você depois que começasse a faculdade. Mas há
um momento certo para tudo. Não sei para que você precisa desse dinheiro,
Sakutaro. Se não quiser me dizer, tudo bem. Mas eu só quero perguntar uma
coisa. Você tem certeza de que, se não fizer isso agora, vai se arrepender?
Acenei com a cabeça.
— Tudo bem, então — disse meu avô. — De qualquer forma, vá em frente e
pegue isso. Deve haver cerca de um milhão.
— Tem certeza?
— Só não faça nada muito louco, ouviu? — disse ele. — Porque não se trata
apenas de você, Sakutaro.

Pesquisei tudo o que podia sobre a Austrália. Li guias, liguei para agências
de viagens e solicitei Fax de centros de informações sobre viagens. Aki e eu
revisamos nosso plano sempre que seus pais não estavam por perto.
— Reservei passagens para nós no dia 17 de dezembro, — eu disse. — Meu
aniversário?
— Sim, achei que poderia ser um dia de sorte para ela. — Ela sorriu e me
agradeceu com uma voz fraca.
— É um voo noturno, — expliquei. — Enfim, teremos que sair daqui no início
da noite. Será bem na hora em que estiverem servindo o jantar, então deve ser
fácil escapar. Pegamos um táxi até a estação e, quando estivermos no trem,
estaremos livres.
Aki fechou os olhos e parecia estar imaginando a cena em sua mente.
— Passaremos a noite no avião e chegaremos a Cairns no início da manhã.
Encontraremos um lugar para descansar e depois vamos pegar um voo doméstico
para Uluru. A cidade também tem hotéis do tipo lodge, então acho que podemos
nos hospedar por um preço baixo. Se você não tiver vontade de voltar, podemos
ficar lá o tempo que quiser.
— Estou começando a achar que podemos realmente fazer isso, — disse ela,
abrindo os olhos.
— É claro que podemos. Prometi a você que faríamos isso.
Usei o cartão de meu avô para sacar dinheiro e paguei as passagens aéreas
na agência de viagens. Ao mesmo tempo, comprei um seguro de viagem.
Comprar as passagens em dólares australianos foi mais trabalhoso do que eu
imaginava, a maioria dos bancos não fazia câmbio. Liguei para todos os bancos
da cidade até finalmente encontrar um onde eu pudesse comprar.
Havia um último obstáculo, mas era crucial. De alguma forma, tive que tirar
o passaporte de Aki da casa dela.
— Não posso pedir para que seus pais tragam o passaporte para nós.
— Se eu tivesse um irmão ou irmã, poderíamos perguntar a eles. — Como
eu, Aki era filha única.
Ela disse que seu passaporte estava na gaveta da escrivaninha. Podíamos
contar com ele lá, já que ela quase nunca o usava. Eu já tinha ido à casa da Aki
várias vezes, e, se eu pudesse entrar, seria fácil tirar o passaporte. O problema
era que não conseguimos inventar uma desculpa plausível para uma visita.
— Acho que vou ter que roubá-lo, então, — eu disse.
— Sim, acho que não temos escolha.
— Então, como faço para entrar lá sem ser descoberto?
— Vou desenhar uma planta da casa para você.
Ela desenhou uma planta baixa em um caderno e me orientou sobre como
realizar o roubo.
— Sabe, parece que estou sempre fazendo coisas assim — disse eu,
lembrando-me do dia que fui ao cemitério.
— Sinto muito, — disse ela.
— E eu costumava ser um jovem tão íntegro.

Depois de visitar Aki no dia seguinte, sentei-me em uma cafeteria do outro


lado da rua do hospital e esperei o pai dela chegar do trabalho. A cafeteria ficava
no segundo andar, e eu tinha uma visão clara do estacionamento, de onde eu
estava, perto da janela. Eu conhecia o carro dele, então não tinha chance de
perdê-lo. Com certeza, depois de uma hora, ele passou pelo portão da frente. Era
um pouco antes das sete. Eu me certifiquei de vê-lo sair do carro e então deixei a
cafeteria.
Eu corri de bicicleta até a casa de Aki, uma velha estrutura de madeira que
estava na família desde a geração de seu avô. Na entrada, onde se tirava os
sapatos, uma tela de madeira protegia o interior. Atrás dela, vários degraus que
rangia ao pisar levava ao quarto de Aki, que ficava de frente para o lago. Se você
entrasse pela rua, o quarto dela parecia estar no porão. Mas se você olhasse do
jardim, ele ficava no primeiro andar, pois a casa ficava em um declive.
Aki tinha me dito para ir através do cercado dos fundos. Eu deveria entrar
no jardim por ali e invadir o galpão ao lado do lago. Na parte de trás do galpão
havia uma passagem, bloqueada por uma cômoda velha. Se eu empurrasse a
cômoda e seguisse a passagem, acabaria em um armário na casa principal. O
armário ficava bem em frente ao quarto de Aki.
As dobradiças da porta do galpão estavam caindo, então foi fácil arrombar a
porta. Consegui empurrar a cômoda velha para o lado e entrei na passagem. Aki
havia me avisado sobre a bagunça. Tirei as coisas do meu caminho à medida que
avançava, até que cheguei em frente a um cômodo familiar. Em silêncio, abri a
porta. Lá dentro estava escuro como breu e, junto com um cheiro de mofo, havia
um cheiro nostálgico. Liguei a lanterna que havia trazido e procurei em sua
escrivaninha. Encontrei seu passaporte imediatamente. Quando estava fechando
a gaveta, notei uma pequena pedra sobre a mesa. Fechei-a em meu punho e sua
textura fria aquece contra minha pele. Fiquei imaginando se a Aki às vezes a
segurava assim na mão.
Movendo a cortina para o lado, pude ver o lago com muitas carpas
coloridas, banhadas pelas luzes do jardim. Eu já havia ficado aqui com Aki,
olhando para o lago. Ficamos observando em silêncio enquanto as carpas nadam
sem pressa. Fechei a cortina e dei mais uma olhada no quarto de Aki. Do outro
lado da janela havia uma escrivaninha, onde ela havia me dito que eu encontraria
sua caderneta de banco, na gaveta de cima. O dinheiro que ela estava
economizando para a viagem de estudos ainda deveria estar em sua conta,
intocado. No entanto, em vez de abrir essa gaveta, abri outra. Ela estava cheia de
blusas e camisetas de Aki, todas bem dobradas. Peguei uma delas em minha mão
e pressionei meu rosto contra ela. O cheiro dela se misturava levemente com o
cheiro de amaciante.
O tempo simplesmente passou. Eu sabia que precisava sair dali
rapidamente, mas meu corpo não se mexia. Eu queria ficar ali para sempre,
pegando cada um de seus pertences em minhas mãos, um por um, encostando
minha bochecha neles, sentindo seu cheiro. O cheiro de Aki que permanecia aqui
despertou minhas lembranças, e fui tomado por uma alegria enorme. Por um
momento, fui pego pela euforia de nosso primeiro beijo, nosso primeiro abraço.
Mas no momento seguinte, aquele doce êxtase foi sugado para um abismo
escuro, e fiquei atordoado no quarto escuro, ainda segurando a camisa de Aki em
minhas mãos. Minha noção de tempo havia se perdido. Tive a ilusão de que Aki
já havia partido e que eu tinha ido ao quarto dela para mexer em seus pertences.
A ilusão era assustadoramente vívida, como se eu estivesse me lembrando do
futuro. Finalmente, me livrei do cheiro de Aki, que se infiltrou em cada célula do
meu corpo, e saí do quarto.

Eu disse a Aki que tinha o passaporte dela.


— Agora tudo o que precisamos fazer é fugir, — disse ela.
— Quase tudo está pronto. Preciso apenas comprar mais algumas coisinhas.
É isso.
— Me desculpe por todo esse transtorno, Saku-chan.
— Não diga coisas esquisitas.
— Às vezes, tenho pensamentos estranhos. — Aki continuou. — Como, por
exemplo, se eu realmente estou doente. Quero dizer, eu sei que estou. Mas eu
me deito aqui e penso em você, então é como se estivéssemos sempre juntos e
eu não me sentisse mais doente.
Tive que cerrar os dentes.
— E você reclamando que não conseguia comer nada, há pouco tempo.
— Eu sei. — Ela deu uma risadinha. — Neste momento, estou me sentindo
muito estranha. Minha cabeça está um caos por causa da minha doença, mas não
consigo pensar nela com clareza. Eu estava tão desesperada para ir embora
daqui. Agora nem sei do que eu queria fugir.
— Não estamos fugindo, estamos partindo.
— Sim. — Ela assentiu e fechou os olhos. — Ultimamente tenho sonhado
muito com você, Saku-chan. E você, costuma sonhar comigo?
— Eu vejo que isso tudo é tão real todos os dias.
Aki abriu os olhos. Vi que eles não tinham nenhuma sombra de medo ou
ansiedade. Em vez disso, estavam cheios de serenidade, como um lago no fundo
de uma floresta densa. Sua voz, quando ela falava, era igualmente serena.
— E quando você não consegue mais ver que as coisas são reais?
Eu não respondi. Não podia responder. Essa possibilidade estava além dos
limites de minha imaginação.
6
O JANTAR ERA ÀS SEIS HORAS, e os visitantes, com exceção da família,
tinham de ir embora. Um pouco antes das seis, os carrinhos de refeição ficavam
alinhados nos corredores. Os pacientes pegavam suas próprias bandejas e
comiam em seus quartos. Alguns deles paravam na sala de estar e enchiam seus
bules e xícaras de chá da grande chaleira lá. Durante essa enxurrada de
atividades, Aki escapava do hospital.
Depois de minha visita habitual, atravessei a rua e fui até a cafeteria do
segundo andar. Em pouco tempo, Aki aparece, misturada com os visitantes que
estavam indo embora. Ela usava um cardigã sobre o pijama e, como sempre, seu
gorro de lã. Saí da cafeteria e parei um táxi que passava no momento em que Aki
se aproximava. Ela entrou e eu disse ao motorista para onde ir, ignorando o olhar
de dúvida em seu rosto.
— Deu tudo certo?
— Fingi que tinha que fazer uma ligação e continuei andando.
— Como você se sente?
— Bem, não muito bem, mas...
Eu havia guardado nossa bagagem em um guarda volumes na estação: uma
mala grande, duas malas de mão e uma sacola de compras com as roupas de
Aki. Quando todas foram retiradas, tínhamos uma grande pilha de bagagens.
— Primeiro, você tem que trocar de roupas, — eu disse, olhando para Aki
que estava de pijama. — Suas coisas estão aqui.
— Minhas coisas estão juntas também, Saku-chan?
— Peguei as blusas e camisetas do seu quarto. Mas os jeans e suéteres que
estão lá são meus. Talvez sejam um pouco grandes para você.
Aki foi ao banheiro para se trocar e saiu depois de alguns minutos.
— Nada mal, — eu disse.
— Isso tem o seu cheiro, — disse ela com o nariz encostado na manga do
suéter.
— Você pode estar com frio, mas só até entrarmos no trem. Na Austrália é
verão.
Eu tinha as passagens preparadas. Passamos pelas catracas e ficamos na
plataforma. Eu estava nervoso até o trem chegar, preocupado se os pais de Aki
iriam entrar correndo na estação. Quando finalmente entramos no trem e
encontramos nossos assentos, senti como se tivesse realizado uma tarefa
enorme.
— Sinto que estou sonhando.
— Bem, você não está, certo?
Eu havia comprado um bolo enquanto esperava por Aki, e agora o tirei da
caixa. Era pequeno, mas era um bolo de aniversário.
— Para mim?
— Tem velas de aniversário também. Disseram que a mais grossa vale por
dez anos.
Coloquei o bolo no colo de Aki e coloquei a vela grossa no centro. Formando
um anel ao redor dela, coloquei sete velas finas.
— Agora ele estará cheio de buracos.
Aki não disse nada e sorriu. Acendi as velas com um isqueiro descartável. Os
passageiros próximos viraram a cabeça para o cheiro.
— Feliz aniversário.
— Obrigada.
As chamas das velas se refletiam na janela escura.
— Agora assopre-as.
Aki ergueu o bolo na frente de seu rosto. Uma vez não foi suficiente – ela
teve que soprar uma segunda e uma terceira vez antes que todas as oito velas
fossem apagadas. Ela parecia cansada com o esforço.
— Vamos ter que usar colheres, não temos faca.
Entreguei a ela uma colher de plástico transparente, do mesmo tipo que
sempre usávamos para seu pudim de creme favorito. Comi exatamente a metade,
começando de um lado e parando no meio. Aki só provou um pouco e não tocou
no resto.
— Mas é estranho, não é?
— O que é?
— Aki, quando for 17 de dezembro. Vai ser tarde demais para falar que é
outono.
Ela olhou para mim como se não entendesse do que eu estava falando.
— Eles deveriam ter lhe dado o nome do inverno. Tipo, Fuyuko ou Fuyumi
ou algo assim.
— Saku-chan, você achou que meu nome era Aki, como na estação?
Ficamos olhando um para o outro.
— Não acredito nisso, — disse ela. — Isso significa que você estava errado o
tempo todo.
— Foi um grande erro?
— Meu Aki foi tirado de Hakuaki, explicou ela. — O período Cretáceo. Esse é
um período da Era Mesozóica em que surgiram todos os tipos de novas formas de
vida. Como as samambaias e os dinossauros. Meus pais me deram esse nome na
esperança de que eu prosperasse como eles.
— Prosperar é tão grande quanto um dinossauro, não é?
— Você realmente não sabia?
— Eu sempre achei que era a Aki como a estação.
— Mas você deve ter visto meu nome escrito na lista da escola.
— Quando o conheci, pensei: Ah, estação de outono e do caqui.
— Quando você coloca algo na cabeça, eu juro, — disse ela, rindo. — Mas
tudo bem, se foi assim que você pensou em mim. Podemos deixar que seja nosso
nome para usarmos entre nós dois. Embora pareça um pouco com outra pessoa.
O trem acelerou em direção à cidade onde ficava o aeroporto, parando em
várias estações ao longo do caminho. Essa foi a primeira vez que viajamos juntos
nesse trem desde que fomos ao zoológico em maio. Daquela vez, nossa viagem
tinha um destino. Dessa vez também, pode-se dizer que estávamos indo para
algum lugar. Mas eu não tinha mais certeza se esse lugar existia em algum lugar
desse mundo.
— Acabei de perceber algo realmente importante.
— E agora? — Aki virou a cabeça para a janela.
— Seu aniversário é 17 de dezembro, certo?
— Sim, e o seu é 24 de dezembro.
— Isso significa que, desde que nasci, nunca houve um único momento em
que você não estivesse aqui.
— Acho que sim.
— Eu nasci em um mundo que tinha você nele, Aki. — Ela franziu a testa
como se estivesse preocupada.
— Um mundo sem você é desconhecido para mim. Eu nem sei se ele existe.
— Não se preocupe. Mesmo que eu não esteja aqui, o mundo ainda existirá.
— Como eu vou saber isso?
Olhei pela janela. Estava completamente escuro e eu não conseguia ver
nada. O que sobrou do bolo no pequeno encosto do banco estava refletido no
vidro escuro.
— Saku-chan?
— Foi aquele cartão postal, eu sei que foi, — eu disse. — É porque eu
escrevi essas coisas. Eu trouxe isso para você, Aki.
— Fico triste ao ouvir você dizer coisas assim.
— Isso também me deixa triste.
Novamente, virei-me para olhar pela janela escura, mas não vi nada. Nem o
passado, nem o futuro. Apenas as ruínas do bolo de aniversário de Aki.
— Eu estava esperando você nascer, Saku-chan, — disse Aki com uma voz
calma. — Eu estava em um mundo sem você, sozinha, esperando por você.
— Isso foi apenas por uma semana. Quanto tempo você acha que terei de
viver sem você, Aki?
— O tempo é realmente um problema? — perguntou ela, parecendo muito
adulta. — O tempo que passei com você foi curto, mas muito feliz; tão feliz que
não consigo imaginar nada mais do que isso. Acho que fui mais feliz do que
qualquer outra pessoa no mundo inteiro. Mesmo agora, neste exato momento…
Então, isso é o suficiente. Lembra daquela vez em que conversamos e eu disse
que o que está aqui agora estará aqui para sempre, mesmo depois que eu
morrer?
Suspirei. — Você é muito fácil de satisfazer, Aki. Você deveria ser mais
gananciosa.
— Sou gananciosa, — disse ela. — Porque não pretendo abrir mão dessa
felicidade. Pretendo levá-la comigo aonde quer que eu vá, para todo o sempre.
A estação ficava longe do aeroporto, que ficava na periferia da cidade, perto
do mar. Não tínhamos tempo para esperar o ônibus, então pegamos um táxi.
Andamos pelas ruas escuras durante um tempo. Todas as lembranças que
havíamos criado juntos pareciam passar pela janela, uma após a outra. Correndo
em direção ao futuro dessa maneira, eu não conseguia encontrar nenhuma
esperança à minha frente. Em vez disso, quanto mais nos aproximávamos do
aeroporto, maior era o meu desespero. Eu não sabia para onde o passado tinha
ido, por que o presente era tão doloroso. Eu não conseguia nem acreditar que
essa dor fosse real.
— Saku-chan, você tem um lenço de papel? — Aki perguntou, com a mão
pressionada contra o nariz.
— Qual é o problema?
— Hemorragia nasal.
Procurei em meus bolsos e tirei um pacote de lenços de papel que haviam
me dado na rua. Ele anunciava um serviço de empréstimo.
— Você está bem?
— Sim, tenho certeza de que isso vai parar logo.
Mas quando saímos do táxi, seu nariz ainda estava sangrando e o lenço de
papel estava encharcado. Tirei uma toalha de nossa bagagem e Aki a segurou
contra o nariz. Ela se sentou em um sofá no saguão do aeroporto.
— Devemos voltar? — Eu disse, inquieto. — Ainda podemos cancelar.
— Não, me leve, — disse Aki. Eu mal conseguia ouvi-la.
— Não precisamos ir agora. Podemos ir em outro momento.
— Se não formos agora, nunca iremos. Nunca mais.
Seu rosto estava pálido. Só de pensar que ela estava entrando no avião
daquele jeito, fiquei com medo. E se sua condição piorasse a bordo?
— Não, vamos voltar.
— Por favor.
Aki segurou minha mão. Sua mão estava inchada e cheia de hematomas.
Quando a apertei de volta, meus dedos deixaram um sinal.
— Tudo bem. Vou fazer o check-in, então, espere aqui.
— Obrigado.
Comecei a caminhar em direção ao balcão de check-in. Decidi que
abandonaria tudo e iria para a Austrália com Aki. Eu não tinha mais medo de
nada. Não conseguia mais vislumbrar um futuro – apenas o presente se estendia
à minha frente por toda a eternidade.
Naquele momento, ouvi atrás de mim o som de algo caindo. Quando me
virei, Aki estava no chão em frente ao sofá.
Quando cheguei até ela, as pessoas já estavam se reunindo ao redor. Seu
nariz e sua boca estavam vermelhos de sangue, e ela não respondeu quando
chamei seu nome. Tarde demais, pensei. Tarde demais para tudo — para me
casar com Aki, para ter filhos com ela. Tarde demais para esse único sonho que
nos restava.
— Ajude-a, — eu disse para as pessoas que estavam ao nosso redor. — Por
favor, ajudem-na. Por favor.
Um funcionário do aeroporto veio e disse que alguém estava chamando uma
ambulância. Mas para onde eles planejavam levá-la? Não havia nenhum lugar
para onde pudéssemos ir. Ficaremos presos a esse local para sempre.
— Por favor.
Minha voz ficou mais fraca, até que a palavra era apenas um sussurro
direcionado à Aki, que estava inconsciente. Eu não estava apelando para Aki ou
para as pessoas ao nosso redor. Eu estava suplicando a um ser muito maior, em
uma voz que só eu podia ouvir, repetidamente – ajude Aki, salve-a, salve nós
dois, leve-nos para longe daqui. Mas minha oração não foi atendida. Não fomos a
lugar algum. Apenas as horas continuavam a se mover à medida que a noite
chegava.
7
ERA MEIO-DIA quando os pais de Aki e meu pai chegaram ao hospital para
onde Aki havia sido levada. A mãe de Aki olhou para mim, depois desviou o rosto
e caiu em prantos. Segurando sua esposa nos braços, o pai de Aki olhou para
mim por cima do ombro e fez um pequeno aceno de cabeça. Os dois
conversaram com o médico no corredor e depois entraram no quarto de Aki. Meu
pai se sentou ao meu lado no sofá e colocou a mão em meu ombro. Ele não disse
nada.
O tempo passou. Em determinado momento, meu pai me trouxe um café
em um copo descartável.
— Está quente, — disse ele.
Mas eu não conseguia sentir o calor. Segurei o copo com cuidado em minhas
mãos e esperei o café esfriar. Se eu não fizesse isso, teria queimado minha
língua.
Meia hora depois, os pais de Aki saíram de seu quarto. Sua mãe,
pressionando um lenço nos olhos, virou-se para mim.
— Por favor, entre e a veja, — disse ela.
Seguindo as instruções da enfermeira, vesti o avental esterilizado e coloquei
uma touca e máscara. Aki havia sido colocada em uma ala de isolamento. Havia
um soro intravenoso em um braço e uma máscara de oxigênio em seu rosto.
Quando peguei seu braço livre, ela abriu os olhos em silêncio. Nós dois
estávamos sozinhos no quarto.
— Então é um adeus, — disse ela. — Mas não fique triste, Saku-chan.
Assenti com a cabeça.
— Além do fato de eu partir, não há nada para ficar triste. Depois de uma
pausa, ela continuou. — Tenho a sensação de que o Céu existe, afinal de contas.
Estou começando a sentir que isso já é o Céu.
— Vou me juntar a você em breve, — consegui dizer.
— Estarei esperando. — O sorriso de Aki foi fugaz. — Mas você não precisa
vir tão cedo. Mesmo que eu não esteja mais aqui, sempre estarei com você.
— Eu sei.
— Encontre-me novamente, tá?
— Eu o encontrarei, pode deixar.
Sua respiração ficou difícil e ela se esforçou para controlá-la.
— Ainda bem, — disse ela fracamente. — Porque eu sei para onde estou
indo.
— Você não vai a lugar nenhum, Aki.
— Não, não vou. — Ela fechou os olhos como se estivesse concordando. —
Era isso que eu estava tentando dizer.
Ela estava se afastando de mim, pouco a pouco: sua voz, a expressão em
seu rosto, até mesmo a sua mão que eu estava segurando.
— Lembra daquele dia de verão? — Sua voz parecia o último brilho de uma
brasa moribunda. — Navegando no mar naquele barquinho.
— Eu me lembro.
Aki começou a dizer mais alguma coisa, mas as palavras ficaram em sua
boca. Ela está indo embora, pensei. Deixando apenas uma lembrança como cacos
de vidro, lembranças que desapareciam e cortavam-me.
Na minha mente, havia um vasto oceano azul no verão. Tudo estava ali. Não
faltava nada. Mas se eu tentasse tocar essa lembrança, minha mão ficaria coberta
de sangue. Eu queria que pudéssemos flutuar ali para sempre. Queria poder me
juntar à Aki e me tornar parte dela, como um raio de sol sobre a água.
8
O PÍER DE DESEMBARQUE parecia flutuar em meio à neblina. Podíamos
ouvir as ondas lavando suavemente os seixos na praia. Os pássaros gorjeiam na
colina atrás de nós. Pelo som, havia vários tipos deles.
— Que horas são? — Aki perguntou da cama.
— Sete e meia, — respondi olhando para o relógio. — Está um nevoeiro
denso lá fora, mas deve passar logo. Aposto que vai ser outro dia quente.
Descemos as escadas com nossas coisas e lavamos o rosto com água da
cisterna nos fundos. Depois, tomamos um café da manhã simples, com pão e
suco de frutas. Ainda tínhamos três horas até que Oki viesse nos buscar, então
decidimos fazer uma caminhada na praia.
A chuva da noite anterior havia esfriado o ar. A estrada até a praia era
pavimentada com concreto, que agora estava se desfazendo em pedaços. As
ervas daninhas saíam das rachaduras, ainda úmidas da chuva. Caminhamos até a
praia sem falar muito. As gotas de chuva estavam presas nas teias de aranha das
barracas de praia e brilhavam à luz do sol.
Aki pegou uma pequena pedra na beira da água.
— Veja, tem o formato de uma cabeça de gato.
— Formato de um gato?
— Aqui estão as orelhas, a boca.
— Tem razão, quer levá-la para casa?
— Sim. Será uma lembrança.
Mais tarde, ficamos sentados no píer, observando o mar. O barco de Oki se
aproximou na hora marcada.
— Desculpe, pessoal, o problema da minha mãe era pior do que eu pensava,
— disse ele, jogando a corda para cima.
— Está tudo bem, Oki.
— O que há de errado?
Oki olhou para Aki. Ela corou e olhou para baixo.
— Vamos, — eu disse.
Uma enorme nuvem se agitava no céu do leste. O topo da nuvem era
redondo e liso e, banhado pela luz do sol, brilhava como uma pérola. Com Oki no
leme, o barco se movia rapidamente. À nossa esquerda, podíamos ver a praia, a
roda-gigante e os trilhos da montanha-russa. A colina, lavada pela chuva e
banhada pelo sol de verão, brilhava com uma vegetação densa e brilhante. O mar
estava muito calmo, quase sem ondas, e sua superfície estava repleta de
águas-vivas.
A proa do barco os empurrou para o lado à medida que avançávamos.
— Você não está ouvindo alguma coisa? — disse Aki.
O barco estava na ponta norte da ilha. Enormes rochedos se inclinavam em
direção ao mar e, ao redor deles, rochas pretas pontiagudas também apareciam.
Ficamos atentos, mas não ouvimos nada.
— Desligue o motor, — gritei para Oki.
— O que foi? — disse ele, e aliviou o acelerador.
Quando o motor do barco parou, ouvimos um som baixo e estrondoso. Ele
se repetia em intervalos regulares no mesmo tom. Era um som assustador,
diferente de tudo que eu já havia ouvido antes.
— Gostaria de saber o que é — disse Aki.
— Uma caverna, — respondeu Oki. — Há uma caverna bem perto da ilha.
Oki girou o acelerador e começou a mover o barco para fora, mas um
minuto depois pudemos ouvir as rotações do motor diminuindo. Finalmente, com
um silvo, ele parou completamente. Oki puxou a corda que saía do motor de
popa para dar partida, mas não importava quantas vezes ele tentasse, o motor só
fazia um som de lamento e se recusava a ligar.
— Eu vou puxar. Você mantém suas mãos no acelerador.
Apoiei minhas pernas no fundo do barco e puxei a corda com força. Depois
de algumas tentativas, o motor gaguejou e começou a voltar à vida, mas quando
Oki girou o acelerador para acelerá-lo, ele fez aquele som de lamento e morreu
novamente.
— É, acabou para nós, — disse Oki.
— Desculpe. É porque eu disse que ouvi alguma coisa.
— Não é sua culpa, Hirose.
— Eu sei, que tal pedir ajuda pelo rádio?
— Esta coisa nunca teve um rádio, — respondeu Oki.
O barco foi levado pela maré. Yumejima agora era pequena e distante. Oki
tirou uma chave de fenda da caixa de ferramentas e removeu a tampa do motor
de popa, mas não foi possível saber qual era o problema.
— Não parece que há algo errado, — disse Oki, inclinando a cabeça.
— Sem combustível?
— Não, ainda tem.
— O que vamos fazer? — disse Aki, parecendo desamparada.
— Ah, outro barco passará por aqui mais cedo ou mais tarde, — disse Oki.
Um pouco depois do meio-dia, começou a chover. Levantamos nossos rostos
para o céu e deixamos que as gotas de chuva nos atingissem. A chuva parou
quase que imediatamente e, mais uma vez, o sol se abriu. Não vimos sinal de
nenhuma ilha na direção em que estávamos indo à deriva.
— Quando você olha assim, o mar parece um pouco curvo. O queixo de Aki
se apoiou na lateral do barco. Ela estreitou os olhos e olhou para o horizonte.
— Bem, sim, porque a Terra é redonda — respondi.
— Se o horizonte é curvo, como é que horizontal significa transversal?
— Você tem razão nisso.
— Acho que isso vem da época em que as pessoas pensavam que a Terra
era plana como uma bandeja e que o oceano corria pela borda como uma
cachoeira.
Durante um tempo, continuamos a olhar para o horizonte brilhante. Então,
Oki gritou:
— Um barco!
Olhamos para trás e vimos um barco de pesca se aproximando de nós.
Ficamos de pé e acenamos com os braços, e o barco diminuiu a velocidade e se
aproximou. Quando estava a cerca de cinco metros de distância, o pescador idoso
chamou a Oki.
— É você, Ryunosuke?
— Você o conhece? — Perguntei a Oki sem respirar.
— Ele é o Hotta. É nosso vizinho.
Quando Oki explicou o que havia acontecido, Hotta nos jogou uma corda.
Oki a amarrou no leme. Rebocados pelo barco de pesca, começamos a nos mover
lentamente.
— Ufa, — disse Oki.
— Veja! — Aki gritou com alegria.
Olhando na direção que ela apontou, vi um grande arco-íris onde as nuvens
de chuva se encontravam com o céu azul. Ele se desvaneceu em direção à parte
inferior e não chegou a formar um arco completo. Olhei fixamente para ele e, ao
vê-lo, cada uma das cores do arco-íris pareceu se separar, de modo que entre o
vermelho e o amarelo, entre o azul e o verde, pude ver que inúmeras cores
haviam se dissolvido. Foram todas dissipadas pelo vento, como a pele das costas
queimadas pelo sol no final do verão. A luz do sol foi dissolvida no ar, e o céu
brilhou como se inúmeros fragmentos de vidro tivessem sido espalhados nele.
PARTE 4
O FUNERAL DE AKI FOI REALIZADO em um dia frio no final de dezembro.
Nuvens cinzentas pairavam no céu desde a manhã e não havia sinal de sol.
Alunos e professores da escola vieram prestar suas homenagens. Lembrei-me de
outro funeral, no terceiro ano do ensino fundamental, quando a professora de Aki
morreu na época do Natal. Aki havia lido um discurso fúnebre naquele dia,
exatamente dois anos antes. Eu não conseguia entender o que eram dois anos.
Não parecia nem longo nem curto. Eu havia perdido totalmente a noção do
tempo.
Durante o discurso de um estudante, começou a chover violentamente. Isso
causou uma pequena agitação na sala, mas o discurso foi lido até o fim. Muitas
das meninas estavam chorando. Em seguida, chegou a hora de oferecer incenso
e, como todo mundo, acendi o incenso em frente ao altar e me curvei, juntando
as palmas das mãos. Quando levantei a cabeça, vi a fotografia da Aki bem na
minha frente. A Aki retratada ali era de uma beleza jovem e impecável, nada
parecida com a Aki de agora. Pelo menos, não era a Aki que eu conhecia tão
bem.
A maioria dos enlutados se despediu do caixão no portão do templo, mas eu
recebi permissão para acompanhá-lo até o crematório. Entrei na minivan da
empresa funerária com os parentes de Aki. Seguimos o carro fúnebre em seu
lento caminho à nossa frente. De vez em quando caía uma chuva de granizo e, a
cada vez, o motorista ligava os limpadores de para-brisa. O crematório ficava em
um lugar fora da cidade. O carro subiu uma estrada solitária na montanha,
ladeada de cedros. Passamos por uma granja de galinhas e um monte de carros
sucateados que haviam sido jogados na beira da estrada. Pensei em Aki, que
estava sendo levado para aquele lugar desolado para ser cremado e transformado
em cinzas.
Em minha mente, estava a saudável Aki. Eu a havia levado para casa um dia
ao anoitecer, no outono do nosso primeiro ano no ensino médio. O cabelo dela
tocando os ombros fez com que o branco de sua blusa se destacasse.
Lembrei-me de nossas sombras projetadas na parede de concreto. Lembrei-me
dela flutuando de costas ao meu lado no verão passado, com as pálpebras bem
fechadas contra o sol, os cabelos espalhados na água, a pele branca e brilhante
molhada. Eu mal podia suportar a ideia de aquele corpo, o corpo de Aki, ser
cremado e transformado em cinzas. Abri a janela do carro e virei o rosto para o
ar frio. As pedras de granizo atingiram meu rosto e derreteram. Havia tantas
coisas que eu gostaria de ter feito por ela. Elas surgiam em minha mente e
desapareciam como o granizo que atingia meu rosto.
Enquanto seu corpo estava sendo cremado, foi servido saquê aos adultos.
Caminhei sozinho até a parte de trás do prédio. A encosta se erguia atrás dele,
coberta de grama marrom. As cinzas foram jogadas em uma pequena pilha de
lixo. Os arredores estavam silenciosos, sem vozes humanas ou canto de pássaros.
Na quietude, eu podia ouvir o som fraco da fornalha que estava queimando a Aki.
Assustado, olhei para o céu e vi uma chaminé de tijolos vermelhos com fumaça
saindo de sua boca quadrada e suja de fuligem.
Era uma sensação estranha, ver a fumaça do corpo em chamas da pessoa
que eu mais amava no mundo inteiro subindo para o céu de inverno. Por um
longo tempo, fiquei ali e segui a fumaça com os olhos enquanto ela continuava
chegando, às vezes preta, às vezes branca. Quando a última fumaça se fundiu
com as nuvens cinzentas e se tornou indistinta, senti como se meu coração
tivesse sido esvaziado.

O ano virou, e os dias que eu e Aki passamos juntos foram jogados fora
junto com os calendários. Passei a primeira semana do ano novo na sala de estar,
assistindo à TV. Quase não saí de casa, nem mesmo para a tradicional visita ao
santuário de Ano Novo. Na TV, havia celebridades com roupas elegantes,
cantando músicas e jogando jogos. Eu não reconhecia seus rostos nem seus
nomes. Era uma televisão em cores, mas tudo o que eu via eram tons de cinza. A
multidão de pessoas torcendo e rindo era apenas preto e branco. Por fim, a cena
não fazia sentido algum.
Viver cada dia era como suicídio e ressurreição, repetidamente. Todas as
noites, antes de dormir, eu desejava nunca mais acordar. Não em um mundo sem
Aki. Mas quando a manhã chegava, eu sempre acordava em um mundo frio, vazio
e sem Aki. Como Cristo, eu seria ressuscitado. Eu fazia minhas refeições e
conversava com as pessoas. Se chovesse, eu usava um guarda-chuva e secava
minhas roupas se elas ficassem molhadas. Mas nada disso tinha significado. Era
como o barulho de teclas de piano tocadas ao acaso.
Tive um sonho recorrente, no qual Aki e eu estávamos em um barco,
flutuando em um mar tranquilo. Ela estava falando sobre o horizonte, dizendo
que provavelmente era assim chamado desde uma época em que se acreditava
que a Terra era plana e que o oceano corria pela borda como uma cachoeira.
Respondi que, mesmo que o oceano descesse como uma cachoeira, a borda da
Terra era muito distante, muito além de onde um barco poderia ir, portanto,
poderia muito bem não existir. Enquanto conversávamos, olhei para trás e vi o
mar apenas alguns metros de distância, com quantidades colossais de água
sendo sugadas furiosamente para baixo, sem nenhum som.
Instigando Aki a ir à minha frente, pulei na água e comecei a nadar na
direção oposta à da cascata. Uma forte correnteza puxou a água que parecia tão
calma do barco. Lutamos contra ela, batendo os braços e as pernas. Depois de
nadar com força por algum tempo, a força da correnteza diminui e percebi que
havia escapado. Mas quando olhei ao meu lado, Aki não estava lá.
Ouvi um grito e olhei para trás. Aki estava sendo sugada em direção à
cachoeira. Atingida pelo fluxo furioso de água, seu corpo girava como um pião.
Gritando, ela batia na superfície com as mãos, enquanto atrás dela a água a
puxava. A perfeita ausência de som fazia o mar parecer ainda mais cruel.
Comecei a nadar de volta, mas sabia que era tarde demais. Sempre chego tarde
demais, pensei.
A voz de Aki chegou até mim de longe. Gritei seu nome várias vezes. Mas a
correnteza estava engolindo suas mãos, seu rosto, seu cabelo espalhado na água.
A última coisa que vi foram seus olhos, arregalados de terror, antes de ser sugada
pela água azul e sumir de vista.
O vazio permaneceu comigo mesmo quando as aulas recomeçaram. Meus
colegas de classe não tinham muita diversão ou consolo. Eu podia fingir que
gostava de conversar com eles, mas para mim, nossas conversas não
significavam nada. As palavras que eu dizia mal pareciam reais. Eu me sentia
falso na frente de meus amigos, e a voz que eu usava não parecia a minha. A
presença deles se tornou um fardo, então comecei a evitar lugares com pessoas.
Eu havia perdido a sensação de existir junto com os outros. Eu me sentia como a
única pessoa no mundo.
Quando chegava em casa, pegava livros de referência e planilhas e
estudava. Eu podia ficar imerso por horas. Resolver problemas difíceis de cálculo
e procurar palavras em inglês no dicionário não era nem um pouco doloroso,
porque não havia espaço para emoções. Era mais fácil do que a maioria das
coisas, mas mesmo assim, de vez em quando, algo me pegava desprevenido. Eu
poderia estar lendo uma passagem em inglês e me deparar com a frase "raining
cats and dogs" (chovendo cães e gatos) e me lembrar de um dia em que Aki e eu
tínhamos saído para caminhar sob uma chuva torrencial. Ela foi a única que
trouxe um guarda-chuva. Nós dois nos escondemos embaixo dele e caminhamos
pela trilha que sempre fazíamos. Nós dois estávamos encharcados quando
chegamos à casa dela. Aki pegou uma toalha para mim, mas eu disse que iria me
molhar de novo e fui para casa com o guarda-chuva dela. Toda vez que uma
lembrança como essa voltava, meu coração ardia como uma pele queimada pelo
sol no verão.
Todos os dias pareciam separados do dia anterior. O tempo havia parado de
fluir para mim. A sensação de que algo era duradouro, ou que poderia crescer e
mudar, havia se perdido para mim. Viver significava existir de momento a
momento. Eu não conseguia enxergar o futuro, e o passado estava repleto de
memórias que me cortavam se eu as tocasse. Sangrando, eu as pegava e olhava
para elas. Eu dizia a mim mesmo que o sangue acabaria coagulando e
cicatrizaria. E eu me perguntava se, quando isso acontecesse, eu seria capaz de
tocar minhas lembranças de Aki e não sentir nada.
2
Um dia, eu estava assistindo a um programa de variedades na TV na casa
do meu avô. Um autor famoso entrou em cena e começou a falar sobre o mundo
após a morte. Os seres humanos existem como uma fusão de carne e
consciência, disse ele. Quando morremos, nos livramos de nossas vestes de
carne. E então a consciência sai da pessoa morta como uma borboleta de sua
crisálida e vai para o outro mundo, onde os entes queridos, que já morreram,
esperam. Ele disse que o mundo após a morte nos envia todos os tipos de sinais,
mas nos acostumamos demais com o pensamento racionalista para percebê-los.
Precisamos estar alertas para não perder esses sinais, disse ele. Isso
simplesmente não me pareceu certo.
— O que você acha, vovô? — perguntei quando o show terminou. — Você
acha que o mundo após a morte existe? Algum lugar onde você pode se reunir
com as pessoas que ama?
— Seria bom se isso acontecesse, — respondeu ele, com os olhos ainda
fixos na televisão.
— Bem, não acho que seja.
— Isso seria triste, não seria?
— Se alguém morrer, ele permanece morto e você nunca mais poderá vê-lo
novamente. Todo mundo sabe disso.
Meu avô parecia preocupado.
— Você é muito pessimista, Saku.
— Fico pensando nisso o tempo todo, porque as pessoas inventaram coisas
como o céu e o outro mundo.
— Por que eles fizeram isso?
— Porque alguém que eles amavam morreu, é por isso.
— Ah.
— As pessoas inventaram o céu e o mundo após a morte porque muitas
pessoas com quem se importavam morreram. Quero dizer, quem morre é sempre
a outra pessoa, não você, certo? Então, os que ficaram para trás tiveram essas
ideias como uma forma de salvar os que morreram. Mas acho que tudo isso é
uma besteira. O céu e o outro mundo são apenas concepções humanas, só isso.
Meu avô pegou o controle remoto da mesa e desligou a TV.
— Morrer em nosso mundo é uma coisa difícil, não é, Sakutaro? — disse ele.
— Não há nada depois, você não renasce nem nada... A morte é simplesmente
um vazio, nada mais. Isso é terrivelmente difícil de contemplar, não é?
— Mas é assim que as coisas são, então que escolha temos?
— Acho que essa é uma maneira de ver as coisas.
— Quando leio sobre cristãos e pessoas dizendo que a morte é linda e que
não há nada a temer, isso realmente me irrita. É estúpido e arrogante. A morte
não é bela. É horrível e vazia, só isso. E não há nada que você possa fazer a
respeito.
Meu avô ficou olhando para o teto por um tempo. Ele continuou olhando
para cima quando finalmente falou:
— Diz-se que Confúcio não discutia o Céu, mas quando um discípulo favorito
morreu, ele chorou: "Ai de mim, o Céu está me destruindo!" e lamentou-o
excessivamente. E diz que Kukai, que pregava o nirvana, também chorou, apesar
de si mesmo, com a morte de um de seus discípulos". — Ele se virou para mim e
perguntou:
— Por que é tão doloroso perder alguém que você ama?"
Quando não respondi, meu avô continuou.
— Acho que é porque você já ama essa pessoa. Não é a separação ou a
ausência em si que é triste. Você a ama, e é por isso que dizer adeus parte seu
coração. É por isso que você procura lembranças da pessoa e nunca deixa de
lamentar por ela. Então, a tristeza e o luto não são nada mais do que uma faceta
de seu amor? Apenas uma expressão dos sentimentos que você tem por aquela
pessoa?
— Eu não sei.
— Bem, pense no que significa a morte de alguém. Se for alguém que você
nunca conheceu ou com quem nunca se importou, isso não significa nada para
você, certo? Isso nem sequer conta como uma ausência. É somente porque você
não quer que a pessoa se vá que você percebe quando ela se vai. Você a ama,
então a ausência dela se torna um problema para você. Você a ama e, por isso, o
fato dela não estar presente faz com que você sofra. E é por isso que o luto
sempre nos leva à mesma conclusão: é difícil nos separarmos, mas um dia
estaremos juntos novamente.
— Você acha que pode ficar junto com aquela mulher?
— Quando você fala sobre estarmos juntos, Sakutaro, você quer dizer como
dois seres humanos?
Eu não respondi.
— Se acreditarmos que não há nada além do que pode ser visto, ou seja, o
que tem forma física, isso não torna a vida incrivelmente monótona? — disse
meu avô. — Não, acho que a pessoa que eu amava nunca mais aparecerá na
minha frente com a mesma forma que eu conhecia antes. Mas ela e eu sempre
estivemos juntos. Nos últimos cinquenta anos, nunca houve um momento em
que não estivéssemos juntos.
— Mas isso está apenas em sua mente. É uma crença.
— É claro que é uma crença. O que há de errado nisso? Considere qualquer
ramo da ciência, é apenas um conjunto de crenças. Qualquer coisa que os seres
humanos façam usando suas mentes envolve crença, não pode ser de outra
forma. É apenas uma questão de quão fortes são essas crenças. Os cientistas
tentam provar o que acreditam usando telescópios, microscópios e coisas do
gênero. Mas nós não somos cientistas, então não vejo por que não podemos usar
outra coisa. Como o amor, por exemplo.
— O que você acabou de dizer?
— Amor, eu disse. Amor. Você não sabe o que é amor?
— Claro que sim, mas ouvir você dizer isso, vovô, faz com que pareça outra
coisa.
— Isso porque o amor de que estou falando, Sakutaro, e o que passa por
amor neste mundo, são tão parecidos quanto giz e queijo.
Eu achava que isso era apenas uma bobagem de velho. Depois que Aki
morreu, a simpatia e as condolências dos adultos parecem falsas e vazias para
mim. Se algo não parecia real para mim, eu não conseguia aceitar. Não conseguia
aceitar nenhuma lógica que não correspondesse ao único sentimento real que eu
tinha: o de que ela havia partido.
— No final, ela não pediu para me ver, — eu disse, expressando o
pensamento que vinha me atormentando desde então. — Parecia até que ela não
queria me ver. Por que você acha que isso aconteceu?
— Então, nenhum de nós pôde estar presente quando a mulher que
amávamos morreu.
— Mas por que ela não me quis com ela até o fim?
— Sabe, Sakutaro, — disse meu avô. — As pessoas se despedem de todos
os tipos, mas, estranhamente, você e eu acabamos tendo experiências
semelhantes. Nenhum de nós pôde passar a vida com a mulher que amávamos
ou estar presente quando ela morreu. Acredite, eu sei pelo que você está
passando. Mas mesmo assim, Saku, acho que a vida é uma coisa boa. Acho que é
uma coisa linda. Isso pode não combinar com o que você sente agora, mas é o
que eu sinto. Tenho uma sensação muito real de que a vida é bela.
Ele parecia estar absorvido pelo que acabara de dizer. Depois, virou-se para
mim e perguntou:
— O que você acha que a beleza realmente é?
— Passo, — disse eu, de forma concisa.
— Há coisas que se tornam realidade na vida e coisas que não se tornam, —
disse ele. — As coisas que realmente acontecem, as pessoas esquecem logo
depois. Mas as coisas que nunca se realizam ficam em nossos corações para
sempre. Estou falando de coisas chamadas sonhos e anseios. Acho que são
nossos sentimentos por eles que sustentam a beleza da vida. Todas as coisas que
não aconteceram se tornaram realidade, como beleza.
Peguei o controle remoto e liguei a TV. Como se estivessem cansados de
todas as extravagâncias do Ano Novo, todos os programas pareciam monótonos e
sem vida.
— Se eu ficar passando os canais assim, tenho a sensação de que a Aki
pode aparecer, — eu disse, usando o controle remoto para mudar os canais um
após o outro. — E então, se pudéssemos conversar, seria bom.
— Como um item mágico de algum personagem de mangá?
— Acho que sim.
— Mas eu não sei. Se um item como esse fosse inventado para nos permitir
conversar com pessoas que morreram, talvez nos tornasse pessoas piores.
— Pessoas piores?
— Quando você pensa em alguém que morreu, Sakutaro, isso não faz você
se sentir mais puro, de alguma forma?
Fiquei em silêncio.
— Não se pode ser egoísta ou calculista em relação a alguém que está
morto, nem desejar mal a essa pessoa. Parece que é assim que somos feitos.
Veja os sentimentos que você tem pela Aki, Sakutaro. Tristeza, arrependimento,
compaixão... Para você, agora, isso é difícil de suportar. Mas não são sentimentos
ruins, nem um só. Cada um deles o nutrirá à medida que você envelhecer. Por
que a morte das pessoas que amamos nos torna pessoas melhores? Acho que
pode ser porque a morte é estritamente separada da vida. Os mortos não
aceitam nenhuma abertura do lado dos vivos. E é por isso que a morte de uma
pessoa pode nos nutrir como seres humanos.
— Acho que você está apenas tentando fazer com que eu me sinta melhor.
— Não, não é disso que se trata. — Ele sorriu. — Eu gostaria de fazer você
se sentir melhor, mas isso não é possível. Ninguém pode fazer você se sentir
melhor, Sakutaro. Isso é algo que você terá de superar sozinho.
— Como você superou isso, vovô?
— Decidi pensar em como teria sido do outro jeito.
Meu avô apertou os olhos, como se estivesse olhando para longe.
— Como teria sido se eu tivesse morrido primeiro. Se isso tivesse
acontecido, ela teria que sentir a dor que eu estava sentindo. E não consigo
imaginá-la fazendo algo como roubar meu túmulo para pegar minhas cinzas. Por
um lado, não sei se algum dos netos dela é tão compreensivo quanto você,
Sakutaro. E quando pensei nisso dessa forma, senti que, ao ser deixado para
trás, pude assumir o sofrimento dela. Dessa forma, não precisei fazê-la passar
pela dor de me perder.
— Hmm…
— É a mesma coisa para você, Sakutaro. Você está sofrendo por causa dela.
Como ela está morta, ela não pode lamentar o que aconteceu com ela. Então,
você está sofrendo por ela, no lugar dela. E ao fazer isso, Sakutaro, talvez você
esteja vivendo por ela.
Eu pensei sobre isso.
— Ainda soa como palavras.
— Tudo bem, — disse meu avô, dando uma risadinha. — Afinal, é isso que é
pensar. Não há nada no mundo que possa ser completamente pensado. Mesmo
que você ache que já esgotou um assunto, depois de um tempo você começa a
sentir que não esgotou. E então você pode pensar mais um pouco sobre o
assunto. Eventualmente, seus pensamentos se tornam realidade. É assim que
funciona.
Paramos de conversar e ouvimos os sons do lado de fora. O vento começou
a soprar, e fortes rajadas sacudiam as janelas voltadas para a varanda, como se
quisesse arrancá-las.
— Vá para a Austrália, — disse meu avô. — Vá dar uma olhada no deserto e
os cangurus com ela.
— Os pais dela querem espalhar suas cinzas por lá.
— Bem, há vários tipos de maneiras de enterrar os mortos.
— Quando ela ainda estava saudável, contei a ela sobre ir com você para
roubar as cinzas.
— Você fez isso?
— Nós até abrimos a caixa e olhamos as cinzas juntos.
Olhei para ele para ver sua reação. Meu avô permaneceu imóvel, com os
braços cruzados e os olhos fechados.
— Isso o incomoda?
Ele abriu os olhos lentamente e sorriu.
— Eu dei isso para você guardar, Sakutaro, então faça o que quiser com
isso.
— Depois de olharmos as cinzas, nos beijamos pela primeira vez. Não sei
por quê. Não planejamos nem nada, simplesmente aconteceu.
Meu avô ficou em silêncio por um tempo.
— É uma bela história, — disse ele.
Sim, mas agora a garota que eu beijei é apenas cinzas.
3
O OUTBACK CONCEDIDO aos aborígenes era um deserto estéril, e o
Território do Norte era uma terra de penhascos e arbustos. Nosso Land Cruiser
sacudia violentamente na trilha empoeirada e cheia de sulcos, que seguia o leito
de um rio. Vimos uma estação de retransmissão telegráfica construída em pedra
e, além dela, havia uma planície sem casas e com vegetação esparsa. Passamos
por alguns campos plantados com melões. A estrada se estendia em frente, sem
fim à vista. A pavimentação havia acabado logo depois que saímos da cidade, e
mal conseguimos enxergar atrás de nós por causa das enormes nuvens de poeira
que o carro levantava. Depois de um tempo, os campos desapareceram e
passamos por uma fazenda. Havia manadas de gado em ambos os lados da
estrada. O gado morto era deixado no pasto, e seus corpos, inchados pelo calor,
estavam cobertos de corvos.
Chegamos a uma cidade pequena, como um lugar que se vê em um filme
de faroeste. Estava quente e empoeirado. Havia um restaurante estilo pub ao
lado do posto de gasolina, então decidimos parar para comer e descansar. Do
lado de dentro da porta, alguns homens estavam jogando dardos. O interior era
sombrio. Motoristas de caminhão e trabalhadores da construção civil, todos com
tatuagens nos braços parecidos com os de Popeye, bebiam cervejas com suas
tortas de carne. As pernas peludas que se projetavam em seus shorts eram
quase tão grossas quanto minha cintura.
— O nome da Aki foi tirado de Hakuaki, o período Cretáceo? — Perguntei à
mãe de Aki, que estava sentada ao meu lado, olhando fixamente para ela.
Sem pensar, ela se virou para mim:
— Ah, sim. Meu marido inventou isso. Por que você pergunta?
— Eu sempre achei que era Aki, como na estação, desde que a conheci. E
ela nunca usava kanji quando escrevia seu nome. Ela sempre assinava suas
cartas para mim foneticamente em katakana.
— Ela é uma preguiçosa, aquela garota — disse a mãe de Aki. — Até mesmo
o kanji para Hiro em Hirose é, na verdade, este aqui.
Ela usou o dedo para escrever a versão mais complicada do caractere kanji
na palma da mão.
— Se você escrever o nome completo dela usando kanji, serão muitos
traços. Por isso, ela sempre usou a versão simplificada de Hiro e Katakana para
seu primeiro nome. Acho que ela adquiriu esse hábito na escola primária.
O pai de Aki havia estendido um mapa no balcão e estava olhando para ele
com o guia que havíamos contratado em Cairns.
— Cerca de cinquenta quilômetros ao sul daqui há um lugar que é um local
sagrado para os aborígenes — explicou o guia em japonês fluente. Ele havia
morado no Japão há um tempo. — É proibido entrar nele, mas obtive uma
permissão especial.
— Podemos ir até lá de carro? — perguntou o pai de Aki.
— Provavelmente teremos que caminhar até o último trecho.
— Será que vou conseguir? — disse a mãe de Aki.
O guia sorriu. — Então você vai espalhar as cinzas de sua filha lá?
— Não é estranho? — respondeu a mãe de Aki. — Logo antes de morrer, ela
ficava repetindo isso várias vezes, como se estivesse delirando. Acho que ela
estava um pouco confusa, mas mesmo assim, isso me irritou. Sentimos que
temos que lhe conceder esse último desejo. É tanto para nós mesmos quanto
para ela. Não queremos nenhum arrependimento.
Olhei pela janela. Um aborígine de meia-idade barbudo estava sentado à
sombra de uma acácia, bebendo vinho embrulhado por saco de papel marrom.
Pequenos grupos de jovens negros usando chapéus de cowboy passavam por ele.
Mesmo aqui na Austrália, eu não conseguia entender que Aki havia morrido.
Sempre tive a sensação de que ela estava em algum lugar, que eu a veria de
relance.
Um garçom colocou um hambúrguer enorme e uma garrafa de Coca-Cola na
minha frente. Como era absurdo comer coisas o tempo todo quando eu não tinha
o menor apetite.
Uma planície marrom se estendia diante de nós até onde a vista alcançava.
Quase não havia árvores em lugar algum, apenas algumas ervas daninhas que se
agarravam à terra ressecada. No topo de uma colina, podíamos ver uma
plantação de eucaliptos. Aqui e ali havia enormes rochas que teriam sido movidas
em uma erupção vulcânica. Não havia quase nenhum sinal de vida animal. O guia
nos disse que, durante o calor do dia, os animais descansavam em buracos e
embaixo de pedras. A pavimentação já havia terminado há muito tempo, e as
rodas do carro ocasionalmente começavam a girar na terra vermelha e macia.
Passamos por várias carcaças de canguru, uma das quais já não passava de uma
pele achatada ao lado da estrada. Quando olhei para trás, ela estava coberta de
poeira.
Depois de cerca de uma hora na estrada, chegamos a um bosque
exuberante com um pequeno rio correndo em frente. Havia pouca água nele, e
de seu leito brotava um eucalipto claro. Um trailer estava estacionado na margem
e duas famílias estavam fazendo um churrasco, sentadas no chão e bebendo
cerveja. Nosso guia saiu do carro e foi até eles. Ele lhes perguntou algo com uma
voz alegre, e eles apontaram para o rio, segurando seus pratos de plásticos.
— Dizem que fica do outro lado deste rio, — ele voltou e disse ao pai de Aki,
que estava sentado no banco do motorista. — Eu o guiarei.
Ele entrou na água sem tirar os sapatos de trekking2 e dirigiu o Land Cruiser
para uma seção rasa onde o leito do rio era firme. As famílias que faziam
piquenique observavam nosso progresso. Quando o carro conseguiu atravessar o
rio, nosso guia voltou para o banco do passageiro.
— Vamos lá, então.
Uma trilha de areia se estendia pelo bosque escuro. O pai de Aki dirigiu o
carro cautelosamente em meio à luz fraca. Estava começando a anoitecer. O céu
pálido aparecia através de pequenos espaços entre as árvores.
— Ainda não tenho uma compreensão muito boa desse negócio de sonhar,
— disse o pai de Aki.
— Bem, sonhar tem vários significados, — respondeu o guia. — Um deles é
o ancestral mítico de uma tribo. Por exemplo, se o sonho de uma tribo é o
canguru, o canguru é seu ancestral.
— Falando de Wallaby, você quer dizer o animal? — perguntou a mãe de
Aki.

2
O tênis para trekking é muito mais leve e flexível do que a bota. Por isso, ele é indicado para trilhas em
terrenos pouco acidentados, além de caminhadas mais curtas e corridas de montanha.
— Não, nesse caso, o canguru é o sonhador, ou seja, seu ancestral mítico.
Esse ancestral criou o animal e sua tribo. Portanto, eles e os animais são
descendentes do mesmo ancestral.
— Então a tribo Wallaby e os cangurus são irmãos?
— Sim. E é por isso que a tribo Wallaby não pode matar e comer cangurus.
Eles estariam matando e comendo seus próprios irmãos.
— Fascinante, — disse o pai de Aki, parecendo impressionado. — Então é
isso que é totemismo.
— Depois, há os sonhos pessoais, — continuou o guia.
— O que é isso? — perguntou o pai de Aki.
— Algo que é visto ou sonhado pela mãe no nascimento de alguém,
geralmente um animal ou uma planta, compartilhará a alma dessa pessoa e será
seu sonho pessoal. Esses sonhos nunca são contados, mas permanecem como o
objeto secreto de adoração de cada pessoa.
— Portanto, cada tribo tem um sonho e cada indivíduo tem um sonho
pessoal.
— É isso mesmo.
Tornou-se difícil distinguir as formas dos objetos. A paisagem perdeu sua
profundidade, ou melhor, perdeu totalmente a perspectiva. Coisas que deveriam
estar distantes pareciam próximas, enquanto coisas que deveriam estar próximas
pareciam tão distantes que nunca as alcançaremos.
— Dizem que os aborígines enterram seus mortos duas vezes, — continuou
nosso guia. — Na primeira vez, eles os enterram no chão, como nós fazemos.
Então, depois de dois ou três meses, eles desenterraram os restos mortais e
recolheram os ossos. Eles arrumam os ossos em um pedaço de casca de árvore
exatamente como eram quando a pessoa estava viva, da cabeça até os dedos dos
pés. E então colocam isso dentro de um tronco oco.
— Por que será que eles fazem isso? — disse a mãe de Aki.
— Acredita-se que o primeiro sepultamento é para a carne e o segundo
sepultamento é para os ossos.
— Estou entendendo. Isso faz sentido, — disse o pai de Aki.
— Por fim, os ossos são lavados pela chuva e retornam à terra. Todo o
sangue e o suor do corpo da pessoa morta se infiltram de volta na terra e se
dirigem a uma fonte subterrânea sagrada. A alma segue para lá, onde vive como
um espírito.
As árvores ficavam mais próximas umas das outras à medida que
avançávamos. Quando não podíamos mais dirigir entre elas, saímos do carro. O
bosque havia se transformado em um matagal, com galhos finos e retorcidos em
uma confusão entre nós. Por ela passava uma trilha estreita. Tudo o que
ouvíamos eram nossos próprios passos. De vez em quando, algo se movia nos
arbustos próximos, mas nunca vimos nenhum animal.
Passamos por um grupo de plantas com espinhos longos e afiados, como se
fossem porcos-espinhos gigantes, e chegamos a um pasto marrom-dourado. Aqui
não havia nenhum tipo de ponto de referência. Além de um único bosque de
eucaliptos, tudo o que podíamos ver era a vasta planície seca e gramada.
Ninguém falava. O céu ainda estava claro. Parecia que estávamos caminhando há
horas, mas talvez não tenha sido mais do que trinta minutos. Meus lábios
estavam rachando com o ar seco. Eu queria poder beber água gelada, mas, ao
mesmo tempo, minha sede parecia ser problema de outra pessoa.
Por fim, o solo abaixo de nós se transformou em areia e rocha. Havia uma
enorme rocha redonda com algo parecido com uma palmeira sagu crescendo ao
lado dela. Um grande pássaro marrom circulava no alto do céu. Subimos uma
encosta íngreme e quebradiça para chegar a um platô. As poucas árvores
estavam sem folhas, com suas cascas cinzentas enrugadas como a pele de uma
mulher idosa. Um pássaro que eu não conhecia piava. Um lagarto rastejava sobre
a rocha seca.
— Aqui deve estar bom, — disse nosso guia.
— É este o lugar? — perguntou a mãe de Aki, como se isso não fosse
exatamente o que ela esperava.
— Toda essa área é.
— Vamos fazer isso, então — disse o pai de Aki.
— Faça você, — disse a mãe dela, e empurrou a urna para o marido.
— Por que nós três não fazemos isso?
O pó branco parecia frio em minha palma. Eu não conseguia entender o que
era. Talvez minha mente pudesse, mas meu coração recusava a compreensão. Se
eu o absorvesse, eu me desintegraria. Como uma pétala de flor congelada, com
um estalar de dedos, meu coração se despedaçará.
— Adeus, Aki, — ouvi sua mãe dizer.
Soltei as cinzas de minhas mãos. Levadas pelo vento, elas se dispersaram e
se espalharam pelo deserto vermelho. A mãe de Aki estava chorando. Seu marido
colocou o braço em volta do ombro dela e os dois começaram a voltar lentamente
pelo caminho. Eu não conseguia me mexer. Sentia que o que havia sido soprado
para a terra vermelha eram fragmentos de mim mesmo, como se eu tivesse sido
espalhado ali, sem esperança de ser reunido novamente.
— Vamos? — perguntou o guia. — Vai escurecer em pouco tempo. Você não
vai querer ficar no deserto à noite.
4
QUANDO VOLTEI da Austrália, já era quase primavera. Depois que os
exames finais terminaram, as aulas eram como aqueles jogos de beisebol em que
o campeonato da liga já está decidido. Comecei a olhar muito para o céu no
caminho de ida e volta para a escola e entre minhas aulas chatas. Às vezes, eu
passava muito tempo olhando para o céu, imaginando se ela estava lá em cima.
Na última luz do inverno e na suave luz do sol da primavera, em tudo o que vinha
do céu, eu sentia a presença de Aki. De vez em quando, enquanto eu olhava para
cima, nuvens se formavam do nada e passavam por cima de mim. Toda vez que
as nuvens iam e vinham, eu podia sentir a mudança da estação.
Em um domingo quente, em meados de março, Oki me levou até a ilha.
Quando expliquei por que eu queria ir, ele concordou de bom grado em pilotar o
barco. Depois que atracaram no píer, caminhei sozinho pela praia. Oki me
esperou ao lado do barco. A água estava fria e clara. O sol agradável brilhava nas
ondas que lavavam os seixos na praia. Um caranguejo da mesma cor das pedras
se arrastava ao longo das águas rasas e depois fugia para águas mais profundas.
As anêmonas-do-mar estendiam suas garras brilhantemente coloridas entre as
pedras, e minúsculos caracóis-do-mar se agarravam às pedras maiores. Eu
parecia notar apenas pequenas coisas.
Mais para o interior, onde as ondas não chegavam, muitas flores de
trepadeira rosa estavam desabrochando. Acima delas, uma única borboleta
branca esvoaçava. Eu me lembrava de ter visto um par de borboletas rabo de
andorinha atrás do hotel quando estávamos aqui no verão anterior. Os eventos
daquela noite correram em minha cabeça como feixes de luz deslumbrantes.
Cada lembrança daquela noite, por menor que fosse, era preciosa, e cada uma
delas brilhava tão intensamente que não parecia possível que tivessem realmente
acontecido.
Um passo acima da margem, havia um aterro que se estendia até o
penhasco atrás. Nele havia uma antiga figura de pedra da divindade Jizo. Fiquei
imaginando quem poderia tê-la colocado ali e por quê. Talvez alguém tivesse
morrido no mar e ela estivesse guardando o espírito dessa pessoa? A divindade
não havia recebido um santuário para a abrigar e estava exposta aos elementos.
É claro que também não havia oferendas de flores ou moedas. O ar salgado que
soprava do mar havia desgastado os olhos e a boca da divindade. Tudo o que
restou foi seu nariz, uma pequena protuberância no centro do rosto. As feições
suavizadas da divindade o faziam parecer muito gentil.
Sentei-me em um cascalho seco perto do Jizo3 e fiquei olhando para o mar,
uma faixa de azul como o traço largo de um pincel. Raios de sol insistiam em
brilhar sobre a estátua. A vegetação do promontório que se estendia à minha
esquerda estava banhada pela luz do sol, e eu podia ver claramente cada um dos
galhos dos pinheiros. Era tão bonito que parecia um desperdício vê-lo sozinho, e
eu queria que Aki pudesse vê-lo comigo. Parecia que eu passava todos os dias da
minha vida assim, desejando coisas que nunca aconteceriam.
Chamei seu nome com suavidade. Somente meus lábios, de todos os que
existiam no mundo, tinham a permissão para chamar seu nome. Mas imaginar
seu rosto levou alguns instantes e, cada vez que eu tentava, parecia demorar
mais. Depois de algum tempo, lembrar o rosto dela poderia ser como achar uma
única foto em um álbum antigo. Será que a memória de Aki se desgastaria em
minha mente, como aquela divindade à beira-mar sem características, de modo
que, finalmente, depois de muitos anos, tudo o que restaria dela seria seu nome?
Será que seu nome, que por tanto tempo acreditei erroneamente significar
"outono", seria a única coisa que restaria dela?
Deitei-me no cascalho e fechei os olhos. A parte interna de minhas
pálpebras estava vermelha e brilhante, exatamente como no verão passado,
quando nadamos nesse mar. Era uma sensação estranha, pensar que o sangue
vermelho estava fluindo através de mim agora, como naquela época.
Devo ter adormecido. Quando me dei conta, alguém estava chamando meu
nome. Abri meus olhos. Oki estava olhando para o meu rosto.
— O que aconteceu? — Perguntei, sentando-me.

3
Jizō, ou Ojizō-sama, é uma das divindades budistas mais queridas no Japão. Suas estátuas podem ser
encontradas por todo o país: em estradas.
— É isso que eu quero saber, — disse ele. — Você estava demorando, então
achei melhor vir te procurar.
Oki se sentou ao meu lado e ficamos olhando para o mar juntos. O vento
trazia um cheiro forte de sal. O sol havia contornado o promontório à nossa
esquerda e estava quase diretamente sobre o mar à nossa frente.
— Continuo sentindo que ela ainda está por perto, — eu disse. — Aqui, ali...
em toda parte. Onde quer que eu esteja, ela está lá. Você acha que é uma
ilusão?
— Olha... não sei, — murmurou Oki.
— Acho que a maioria das pessoas faria isso.
Nós dois ficamos em silêncio. Oki pegou uma pequena pedra e a jogou na
água. Ele fez isso mais algumas vezes.
— Você já sonhou que estava voando? — perguntei.
Ele olhou para mim como se não tivesse entendido o que eu queria dizer.
— Você quer dizer, como em um avião ou algo assim?
— Não, você mesmo está voando. Sabe, como o Ultraman.
— Desde que seja um sonho, — disse ele, abrindo um sorriso, — sonhe o
que quiser. Isso é problema seu.
— Sim, mas você nunca tem sonhos como esse? Onde acontecem coisas
que não são possíveis na vida real?
— Acho que não.
Ele pegou outra pedra e a jogou em direção ao mar. A pedra fez um som
abafado quando atingiu a praia antes de cair na água.
— Então, o que é essa história de sonhar que você está voando?
— Você não pode fazer isso na vida real, certo? — eu disse. — Logicamente,
isso não pode acontecer, certo?
— Sim — disse ele lentamente.
— Mas no sonho, você está fazendo isso. Você está realmente voando. Isso
não é possível na vida real, mas quando você está sonhando, não parece ser
assim. Você não está voando pelo ar e pensando 'este é um sonho irracional'. E
mesmo que estivesse pensando isso, você está fazendo isso. Está olhando para
baixo, para as cidades e outras coisas, e pode realmente sentir que está voando.
Isso não é uma ilusão.
— Sim, mas é um sonho.
— É isso mesmo, é um sonho.
— Então, o que você está dizendo?
— Aki morreu. Seu corpo foi cremado e transformado em cinzas. Espalhei
essas cinzas, com minhas próprias mãos, pelo deserto. E mesmo assim, ela está
aqui. Ela está aqui. Não é uma ilusão. É um sentimento real, e não posso fazer
nada a respeito. Não posso negar que ela está aqui. Mesmo que eu não possa
provar, minha sensação de que ela está por perto é um fato.
Quando parei de falar, Oki estava olhando para mim com pena.
— Será que estou sonhando?


Quando estávamos voltando para o píer, vi uma pedra brilhante na beira da
água. Quando a peguei, vi que não era uma pedra, mas um pedaço de vidro que
havia sido trazido pelas ondas até que suas bordas ficassem completamente lisas.
Na água, o pedaço de vidro parecia uma joia verde. Coloquei-o no bolso do meu
paletó.
— Você não quer ir até o hotel? — perguntou Oki quando chegamos perto
do píer. — Lá tem lembranças para você, certo?
Por um segundo, senti como se o interior do meu peito estivesse congelado.
Em vez de responder, dei um suspiro profundo. Oki não disse mais nada.
Tirei um pequeno frasco de vidro transparente do bolso do meu paletó. O
que tinha dentro era branco e parecido com areia.
— Estas são as cinzas dela.
— Você vai jogá-las aqui?" — perguntou Oki, inquieto.
— Não tenho certeza.
Eu tinha a intenção de espalhar as cinzas de Aki no mar. Essa foi a razão
pela qual pedi a Oki para me trazer aqui. Mas...
— Não sei, parece um desperdício. Não que carregá-los por aí esteja me
fazendo bem.
— Fique com ela, se não tiver certeza, — disse Oki. — Se você as espalhar e
se arrepender, será tarde demais. Assim que você descobrir como se sente,
poderá fazer isso. Eu o trarei aqui novamente, quando você quiser.
A maré estava baixando. O barco havia se afastado muito do píer. O mar
estava calmo e tão azul que poderia fazer você chorar.
— Você já ouviu o Hirose cantar? — Oki perguntou de repente. — Sabe
quando, no ensino fundamental, eles nos davam aqueles testes de canto na aula
de música? Quando nos fazia cantar todas aquelas músicas idiotas? Bem, quando
a Hirose tinha que cantar, sua voz era tão baixa que não dava para ouvir nada. Eu
estava na primeira fila e não conseguia nem saber qual era a música.
— Certa vez, alguém gritou: 'Não estou ouvindo você!' no meio da conversa.
— Sim, é isso mesmo. E então a voz dela ficou ainda mais baixa, e o rosto
dela ficou bem vermelho, de um jeito que você sentia pena dela, e ela cantou o
resto olhando para baixo.
— Você se lembra de tudo isso, não é?
— Não, não, não é isso, — disse Oki, confuso. — Eu não gostava dela nem
nada. Quero dizer, é claro que eu gostava dela, mas não do jeito que você
gostava. Você sabe.
Eu também estava pensando em Aki cantando. Não durante a aula de
música, mas na noite em que ficamos no hotel da ilha. Eu tinha saído para pegar
algo no quarto enquanto fazíamos o jantar. Quando voltei, Aki estava cortando
legumes e cantando em voz baixa. Parei na porta da cozinha e a escutei. Sua voz
era tão baixa que eu mal conseguia entender a melodia, muito menos a letra,
mas seu canto era feliz. Isso me fez pensar que em casa, quando ela estava
cozinhando, ela sempre cantava assim. Se eu a chamasse, ela pararia, então
fiquei na porta e apenas a escutei.
— Acho que vou me agarrar a isso, afinal de contas.
Coloquei o frasco de volta no bolso e me levantei.
— Tudo bem, — disse Oki e assentiu, parecendo um pouco aliviado.
Em meu bolso, algo frio tocou minha mão. Quando o tirei, vi que era o
pedaço de vidro que eu havia pegado antes. A superfície havia se tornado branca
e turva. Tão bonito e parecido com uma pedra preciosa na água, agora era
apenas um pedaço de vidro. Eu o joguei em direção ao mar com toda a força que
pude. Ele traçou um arco limpo no ar e caiu na água com um pequeno respingo.
— Você quer voltar, garoto apaixonado?
O amante se virou.
— Sim, sim, capitão.
PARTE 5
AS ÁRVORES E OS arbustos de Castelo da Colina estavam cheios e verdes. A
torre havia sido restaurada, e a tinta de suas paredes se destacava de forma
brilhante. Subimos a trilha a partir do portão norte. Os bosques densos que antes
a envolviam estavam limpos. Uma estrutura totalmente nova, um museu
folclórico, estava lá.
Da torre do castelo, era possível ver toda a cidade. A leste, havia montanhas
e, a oeste, o mar. Com todo o desenvolvimento dos últimos dez anos, a cidade
havia se estendido até a baía. O mar parecia muito menor para mim agora.
— Que vista linda, — disse ela.
— Não há muito o que ver na cidade, — eu disse. Parecia um pouco
defensivo sem querer. — Nunca sei o que mostrar a alguém que trago aqui.
— Isso não é diferente de qualquer outro lugar. Quantas cidades estão
cheias de pontos turísticos? E eu realmente gostei daquele templo. Gostaria de
ter conhecido seu avô antes de ele morrer.
— Acho que você e ele podem ter se dado bem.
Nós dois voltamos nossos olhares para a vista da baía. O cabo que cercava o
mar e as ilhas também estavam pontilhados com a flor rosa pálida das cerejeiras
silvestres.
— Eu meio que pensei que você estava inventando, — admitiu ela. — Quero
dizer, era perfeito demais... romântico demais. Mas hoje, depois de ver o túmulo
e tudo mais, acho que tenho que acreditar em você.
— Pode ser uma mentira elaborada.
Ela me lançou um olhar malicioso.
— Sim, pode ser. Pode ser perigoso acreditar cem por cento nisso. E isso
vale para tudo a seu respeito.
— Às vezes, eu mesmo não tenho certeza se as coisas aconteceram como
eu me lembro. Se são um sonho ou a realidade. Mesmo que eu conhecesse
alguém muito bem, se essa pessoa morrer e passar muito tempo, começo a me
perguntar se ela realmente existiu.
A trilha no lado sul não era tão desenvolvida quanto a trilha do lado norte.
Ainda era muito íngreme e estreito, e não encontramos quase ninguém nela. Os
degraus de pedra com musgo crescendo sobre eles e a terra vermelha exposta
não haviam mudado nada. Depois de um tempo de descida, encontrei o grupo
espesso de arbustos que estava procurando.
— O que é isso?
— Hortênsias.
Ela olhou para o arbusto e olhou para mim como se dissesse: "As hortênsias
são tão incomuns assim?"
— Mas elas não vão florescer tão cedo, — eu disse e comecei a andar
novamente. No fundo do meu coração, havia um leve tremor.
— Essa parte não mudou muito, eu — disse um pouco mais adiante.
— Você vinha muito aqui? — ela perguntou.
— Não, só uma vez.
Comecei a rir.
— Parecia que você vinha aqui o tempo todo.
— Sinto que sim, mas foi só uma vez.
De volta ao carro, dirigi em direção à escola do ensino fundamental. Violas
enchiam majestosamente os canteiros de flores em frente ao portão. Era quase o
final de março.
— Esta é a minha antiga escola de ensino fundamental, — expliquei.
— Sério? — Ela baixou a janela. — Vamos entrar.
O prédio tinha uma aparência monótona e pobre. A parede de blocos de
concreto, escurecidas pela chuva, inclinava-se em direção à estrada. Estava quase
anoitecendo, e o local estava silencioso. Era o feriado de primavera e o campo,
onde as crianças estavam sempre no meio do treino de beisebol ou futebol,
também estava vazio.
Entramos por um portão lateral.
— Este lugar está realmente se deteriorando. — Minha voz parecia distante.
— Não me lembro da última vez que vim a uma escola de ensino
fundamental! — disse ela e pulou em direção às barras, deixando-me para trás.
Foi aqui que tudo começou, tentei dizer a mim mesmo. Foi aqui que conheci
a Aki. Parecia que tinha sido há décadas, como se fosse algo que tivesse
acontecido em outra época, em um mundo distante. Me senti como Rip Van
Winkle, olhei ao meu redor e vi que as cerejeiras estavam em plena floração.
Naquela época, eu nunca tinha olhado para as flores de cerejeira. Eu havia me
formado sem nunca perceber que havia cerejeiras. Mas elas eram tão bonitas.
No fundo do meu coração, um buraco tão pequeno quanto uma picada de
alfinete se abriu e, como um buraco negro, engoliu tudo – as cerejeiras, a escola,
todo o tempo que havia passado. Enquanto eu era sugado para um passado que
parecia tão distante, a voz de Aki voltou para mim.
— Eu adorava limpar as carteiras quando tínhamos que limpar a sala de
aula. Eu lia tudo o que as pessoas tinham escrito. Havia coisas antigas deixadas
por pessoas que haviam se formado anos antes, e corações e flechas onde as
pessoas haviam gravado os nomes de suas paixões. Eu desejava não ter que
apagar alguns deles…
Ela falou bem perto do meu ouvido, com aquela voz tímida que eu adorava.
Para onde ela tinha ido? Toda a doçura, as coisas belas, boas e frágeis que
formaram a pessoa chamada Aki, para onde foram? Será que estavam viajando
sob as estrelas brilhantes, como um trem em um campo nevado à noite?
Correndo sem parar em um curso não mensurável pelos padrões deste mundo?
Às vezes, em uma manhã, algo que você havia perdido há muito tempo
aparece inesperadamente no lugar onde você o havia colocado. Ela parecia
exatamente como antes, porém, era mais nova do que quando a perdeu. Seria
como se alguém o tivesse guardado cuidadosamente para você. Será que um dia
o espírito da Aki voltaria para cá dessa forma?
Tirei um pequeno frasco de vidro do bolso do meu paletó. Eu pretendia
carregá-lo comigo pelo resto da minha vida, mas certamente não precisava fazer
isso. Neste mundo, há começos e fins. Aki estava em ambos. Tive a sensação de
que isso era suficiente.
Olhando para um canto do campo, vi uma jovem tentando com todas as
suas forças alcançar o topo de um poste de escalada. Em sua saia, ela envolvia o
poste com as pernas e colocava uma mão sobre a outra, levantando o corpo um
pouco de cada vez. Eu a observava no crepúsculo cada vez mais profundo. Logo
ela se perderia de vista, entre as árvores e os brinquedos do playground no
escuro. Era uma vez, eu havia observado Aki daqui. À luz do sol forte, ela havia
subido em um poste no canto do campo. Mas eu não sabia mais se essa era uma
lembrança real.
Um vento soprou, espalhando flores de cerejeira aos meus pés. Olhei para o
frasco de vidro em minha mão. Um leve receio passou por mim – será que eu me
arrependeria disso? Talvez sim. Mas agora eu estava dentro de um lindo turbilhão
de pétalas.
Lentamente, retirei a tampa do frasco. E então, não pensei mais. Com a
boca aberta do frasco virada para o céu, espalhei com um único movimento sobre
o azul. Cinzas brancas dançavam no crepúsculo como neve de primavera. Outra
rajada de vento espalhou mais pétalas de flores. As cinzas de Aki se tornaram
parte do turbilhão e desapareceram de vista.
Posfácio
Socrates In Love é o título que originalmente dei a este romance, mas por
várias razões ele foi publicado com um título diferente no Japão. A frase
"Sócrates in love" em si, no entanto, não é uma criação original minha, mas
aparece em "What Is Philosophy?" de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em seu
trabalho, os autores afirmam que o amor é uma forma de violência que força
você a pensar. Esse foi meu ponto de partida para desenvolver o personagem
Sakutaro, o protagonista deste romance.

A história humana tem sido, de certa forma, a história da carência. Desde o


material, como comida, roupas e abrigo, até o intangível, como liberdade e
igualdade, fomos expostos a todos os tipos de necessidades em nosso tempo
aqui na Terra. Nas últimas décadas, entretanto, a sociedade japonesa parece ter
se saciado. Temos tudo o que precisamos e muito mais. Pode-se dizer que, de
fato, alcançamos a "felicidade". Mas, estranhamente, justamente quando nossa
sociedade parece ter alcançado a "felicidade", parece que a bondade - uma boa
maneira de viver, uma boa vida - está desaparecendo em uma proporção inversa
à riqueza. Esse, ouso dizer, é o maior problema que a sociedade japonesa
enfrenta atualmente.

O que é bondade? Acredito que ter um senso generoso de receptividade


para com os outros, incluindo os animais e os mortos, é um pré-requisito
importante. Não há muito em que pensar quando se vive apenas para si mesmo -
ganhar dinheiro e manter-se saudável, no máximo. Isso significa que ver apenas
a si mesmo é equivalente a não ver nada. Somente por meio de outra pessoa.
Acima de tudo, quando essa outra pessoa está enfrentando a morte, pensar
realmente se torna uma forma de violência coercitiva. O que você pode fazer e o
que deve fazer por ela? Pensar sobre essas coisas, é claro, não salvará a vida da
outra pessoa. Mas acredito, sem dúvida, que esses pensamentos deixam algo
duradouro - tanto na pessoa que está morrendo quanto na que fica para trás - e
que isso nos torna, pouco a pouco, pessoas melhores.
Kyoichi Katayama
30 de maio de 2005 174

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