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ISBN 9788557173279

Copyright da tradução © Saraiva Educação, 2019


Título original: Buns
Copyright © Alice Clayton, 2017
Todos os direitos reservados.
Publicado mediante acordo com a editora original, Gallery Books, uma divisão da Simon &
Schuster Inc.

Clayton, Alice
O hoteleiro de Hudson Valley / Alice Clayton; tradução de Regiane Winarski. –
São Paulo: Benvirá, 2019.
328 p.
ISBN 9788557173279
Título original: Buns
1. Ficção norte-americana 2. Literatura erótica I. Título II. Winarski, Regiane
19-1922
CDD 813.6
CDU 82-3(73)

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção norte-americana

Preparação: Augusto Iriarte


Revisão: Simone Oliveira
Diagramação: Camilla Felix Cianelli Chaves
Capa: Deborah Mattos
Imagem de capa: iStock/GettyImagesPlus/Milan Markovic

Livro digital (E-pub)


Produção do e-pub Guilherme Henrique Martins Salvador

1ª edição, outubro de 2019


Todos os direitos reservados à Benvirá, um selo da Saraiva Educação, parte do grupo
Somos Educação. Av. das Nações Unidas, 7221, 1º Andar, Setor B Pinheiros – São Paulo
– SP – CEP: 05425-902
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CL 670749
Para o Mohonk Mountain House,
onde a inspiração se tornou realidade.
Capítulo 1

– Sócia?
– Sócia.
– Sócia?
– Sócia.
– Sócia?
– Não se você continuar com esse problema recém-desenvolvido
de compreensão... Mas, sim, Clara. Sócia.
Uau.
Eu estava sentada com noventa centímetros de uma mesa de
mogno me separando da minha adulta favorita no mundo, que por
acaso também era minha chefe, e ela tinha acabado de me dizer
que, se eu conseguisse executar de forma extraordinária esse
próximo trabalho, seria promovida a sócia.
Inspirei e expirei. Inspirei e expirei. Era um daqueles momentos,
sabe? Aqueles sobre os quais você lê, do tipo de que se lembra
mais tarde na vida, ao pensar no passado, como um marco, um dia
que se destaca entre todos os outros, um dia cheio de cores e
brilhos e, talvez, um unicórnio. No futuro, eu olharia para trás e diria:
“Foi nesse dia que a minha vida mudou. Foi nesse dia que o
trabalho árduo e as horas e fins de semana passados no escritório e
os encontros e festas perdidos e o sangue e o suor e as lágrimas
passaram a valer a pena, porque eu cheguei aqui, neste espaço e
tempo, porque finalmente conquistei o meu espaço neste mundo”.
Barbara sorriu, me vendo absorver tudo, provavelmente
conseguindo ver minhas engrenagens girando. Ela me contratara
cinco anos e meio antes, me tomara embaixo das asas e me
orientara a cada passo no caminho. E agora estava me dando a
chave do reino. Sócia de uma das agências de branding mais
conhecidas e mais respeitadas do país. Se…
– Se o Bryant Mountain House pular para o século vinte e um, eu
vou ver meu nome no cabeçalho?
Ela assentiu.
– É esse o acordo, menina.
Inspirei e expirei. Inspirei e expirei.
E sorri.
– Vou para lá amanhã.
Eu não tinha carro. Algo nada incomum quando se considera que
passo quase oitenta por cento do ano na estrada e que, quando fico
em casa, em Boston, vou a pé para todos os lugares que preciso. O
trânsito horrível em Boston foi suficiente para me fazer mudar de
canal nas poucas vezes em que tentei ver um comercial de carro,
considerando se gastaria meu suado dinheirinho para finalmente
comprar um.
Apesar disso, eu adorava dirigir e aproveitava qualquer desculpa
para pegar a estrada sempre que um trabalho mais longo se
iniciava. E não dá para negar que trabalhos longos descreviam
minha vida.
Mas agora eu talvez fosse me tornar sócia nessa carreira que
amava tanto. Poderia ser real? Estava mesmo acontecendo? Era…
– Só verifique se o tanque está cheio, certo?
Voltei para o presente, no estacionamento da locadora Hertz, nos
limites da cidade. Eu estava sonhando acordada enquanto o garoto
falava das opções de abastecimento.
– Claro, claro, tanque. Tanque cheio. Pode deixar. – Bati no teto
do carro alugado, um Corolla bege com quatro portas. Firme.
Seguro. Confiável. Muito sem graça. – Posso ir? – Estava ansiosa
para pegar a estrada. Eram só quatro horas até o Bryant Mountain
House, mas eu queria ter certeza de que teria tempo de dar uma
olhada nas coisas antes do jantar.
– Pode. Para onde você vai?
– Catskills, no norte de Nova York…
Parei de falar quando um carro foi aparecendo aos poucos no
lava-jato, chamando minha atenção. O começo da primavera no
nordeste, quando tudo estava carregado e cinza, lamacento e frio,
era um dos momentos mais feios do mundo. Assim, quando aquele
conversível lindo, brilhante, vermelho e tão lindo apareceu e
lembrou ao mundo como era o verão, não consegui parar de olhar.
O carro era ousado, audacioso, espalhafatoso e totalmente
desnecessário.
E muito legal.
O garoto acompanhou meu olhar e ergueu uma sobrancelha.
Eu apontei.
– Quanto custa aquele?
– Boooooa – respondeu ele, subindo em alguns pontos sua
avaliação sobre mim.
Como nasci sete semanas antes da hora, sempre fui pequena. De
legging preta, galochas pretas que praticamente me engoliam
inteira, apesar de serem o menor tamanho na loja, e uma capa de
chuva preta para me proteger do chuvisco intermitente, eu parecia
perfeita para um Corolla bege com quatro portas.
Mas, por baixo da capa de chuva, eu estava de camiseta
vermelho-cereja colada. E, por baixo da legging, estava de calcinha
vermelho-cereja de seda. E, quando tirei o boné e passei a mão
pelo cabelo, transformando meu corte curto em um arrepiado louco,
falei com lábios pintados de vermelho-cereja:
– É, vou precisar daquele ali.
Vinte minutos depois, saí de Boston com meu carro
desnecessário, determinada a arrasar tanto naquele trabalho que
talvez pudesse comprar um carrão daqueles para minha coleção
vermelho-cereja.
Uma sócia merecia um presente especial, certo?

Uma sócia também deveria saber que não é boa ideia usar um carro
esportivo em estradas sinuosas ainda cheias de sal, gelo e poças.
Era por isso que eu raramente tomava decisões impulsivas, que
raramente agia sem pensar. Eu preferia manter as coisas simples e
deixar a maluquice com minha melhor amiga, Natalie Grayson, e
até, de certa forma, com minha outra melhor amiga, Roxie Callahan,
que sabia ser doida quando precisava.
Natalie e Roxie. Nós três tínhamos nos conhecido anos antes,
quando fomos parar em uma faculdade de culinária na Califórnia, as
três com dezoito anos e prontas para grandes mudanças. Roxie era
a única que tinha talento culinário de verdade, e, embora eu tenha
gostado do ano que passei na Califórnia, percebi logo que cozinhar
nunca seria mais do que um hobby e, então, voltei para a Nova
Inglaterra. Natalie teve uma desilusão similar com a culinária e
também voltou para casa, na ilha de Manhattan, que ela achava que
pertencia exclusivamente a ela.
Roxie ficou, deixou sua marca na Califórnia como personal chef
das estrelas e só voltou para a cidadezinha natal, Bailey Falls,
quando sua carreira implodiu por causa de um chantili que virou
manteiga. Essa mesma manteiga foi o que mudou o rumo de sua
vida e a fez apreciar verdadeiramente sua cidade natal, uma cidade
que tinha recebido Leo Maxwell durante o período em que ela ficara
longe, o homem que agora era dono de seu coração.
A próxima vítima da cidadezinha a cair no buraco negro de
encanto e doçura foi Natalie, a garota mais urbana que poderia
existir. Oficialmente, ela morava em Manhattan. Extraoficialmente,
não estava enganando ninguém depois que começou a passar as
noites de meio de semana a cento e cinquenta quilômetros da ilha,
na companhia de Oscar Mendoza, dono da Bailey Falls Creamery e
o único homem capaz de fazê-la pisar além do Bronx.
E ali estava eu, a caminho da mesma cidade, que também era lar
do Bryant Mountain House, o hotel cujo rebranding seria feito por
mim, junto com uma reforma para que saísse do vermelho.
Roxie e Natalie estavam animadas, convencidas de que, depois
que passasse um tempo na excêntrica cidade, eu me apaixonaria
por lá tanto quanto elas e decidiria ficar.
Eu nunca ficava. Em lugar nenhum. Adorava viver na estrada,
conhecendo gente nova, ficando em cada lugar por tempo suficiente
apenas para me envolver com algo que um dia tinha sido incrível e
precisava ser trazido de volta à vida. Depois que isso era feito, era
hora do projeto seguinte.
Eu tinha um apartamento. Tinha coisas nele. Tinha meu nome na
caixa de correspondência.
Mas eu não tinha um lar.
– Não desfaça a mala, garota, você não vai ficar aqui muito
tempo…
Olhei para ela e pisquei. O sol formava uma espécie de eclipse na
cabeça dela, e eu não conseguia identificar as feições individuais
em seu rosto, mas sabia que a expressão era de resignação
cansada. Eu era só mais uma criança em uma casa cheia de outras
crianças. Com as malas nunca desfeitas por completo…
Balancei a cabeça para afastar a lembrança, apertando o volante.
Sócias em conversíveis não pensavam no passado, só pensavam
no futuro. Parei para comprar um café e tomar na estrada, mexi na
playlist e escolhi umas músicas do Fleetwood Mac.
“You can go your own way…”.
Era o que eu pretendia. Seguir meu próprio caminho.

***

Três horas depois, saí da rodovia interestadual e peguei a


estadual que me levaria a Bailey Falls, até o Bryant Mountain
House. Desliguei a música e incorporei a profissional.
Era agora que eu precisava pensar, refletir, imaginar como seria
correr o risco de ter toda sua história de família destruída por uma
bola de demolição. Quando aceitei o emprego, foi com isso que me
comprometi. Não eram só alguns meses de trabalho; era um meio
de vida. E não só para a família, mas para todos os funcionários,
cujas vidas costumavam estar tão amarradas à história quanto as
das pessoas que tinham seu nome no letreiro. A família Bryant era
pequena de nome, mas com muita gente agregada. E eu trabalharia
para salvar empregos mais do que só aquela família.
Os Bryants eram donos daquela propriedade havia quase cento e
cinquenta anos. E, como é comum no caso de hotéis gerenciados
por famílias, contaram muito com o “mas sempre foi assim”, que
simplesmente não funciona mais na era moderna. Com o Yelp e o
TripAdvisor ajudando todo mundo a fazer planos de viagem, as
avaliações podiam fazer um local decolar ou despencar. E eles
tiveram uma boa cota de avaliações ruins nos anos anteriores.
Juntando isso à crise econômica recente e à consequente
necessidade de economizar por parte dos viajantes, eles estavam
correndo o risco de perder o lindo hotel.
A não ser que…
* Som de trompetes *
… eles me tivessem. E tinham. Mexi o pescoço, estalei os ombros
e me preparei para a linha de chegada.
Eu tinha um hotel para salvar.

* SOM DE UMA SEGUNDA RODADA DE TROMPETES,


IGUALMENTE IMPRESSIONANTE *

***

– Melanie Bixby, hóspede chegando agora – eu disse, apoiada na


janela do motorista, em frente à guarita na entrada da propriedade.
Nem piscava mais quando usava meu pseudônimo, de tão natural
que era. Quando fazia check-in com meu verdadeiro nome, nunca
percebia o que realmente estava acontecendo em um hotel. Clara
Morgan ganhava o tratamento de tapete vermelho, Clara Morgan
era colocada nos melhores quartos, recebia champanhe de cortesia
quase sempre, e cada manobrista, carregador de malas e camareira
se esforçava para desejar bom dia, boa tarde e boa noite a Clara
Morgan.
Já Melanie Bixby era uma hóspede normal e sempre descobria a
história verdadeira.
– Bixby, Bixby… Ah, claro! Aqui está, senhorita Bixby. Vou pegar
seu crachá do estacionamento. – Depois de um momento lá dentro,
ele voltou com o crachá, que colocou no painel para mim. – Deixe
isso aí enquanto estiver hospedada conosco, é assim que
diferenciamos os hóspedes que ficam para dormir daqueles que só
passam o dia.
– Passam o dia? – Banquei a burra.
– Sim, senhora, o Bryant Mountain House tem algumas das
melhores trilhas de caminhada e ciclismo da região. Por trinta e
cinco dólares, as pessoas podem passar o dia inteiro no bosque.
Sem acesso à casa principal. Mas tem uma boa lanchonete no limite
da propriedade.
– Vocês recebem muitos hóspedes para passar o dia? Fora de
temporada?
O atendente olhou para o céu e coçou a barba, como se estivesse
tentando adivinhar uma resposta.
– Não, senhora. No verão, sim, mas está ficando cada vez mais
difícil receber gente aqui quando está frio e chuvoso. Como hoje.
Nós tivemos uma tempestade algumas semanas atrás que faria…
Ora, veja só! Estou falando sem parar, e a senhorita tem lugares
para ir! Permaneça à direita, esse caminho vai levá-la até o resort. –
Ele deu um sorriso simpático, os olhos se enrugando nos cantos
enquanto acenava.
– Obrigada! – gritei, fechando a janela para me proteger da chuva
fria de primavera que tinha começado a cair. Pesada e densa,
acabaria virando gelo derretido até o anoitecer se continuasse
assim.
Fiquei à direita como instruído e comecei a subir e subir. A
estrada serpenteava em direção ao topo da montanha. O céu de fim
de tarde estava ficando pesado com nuvens de tempestade e cada
vez mais escuro. À minha esquerda, a colina era coberta de árvores
e arbustos densos que, em um mês, mais ou menos, estariam
explodindo de tanto verde. Do outro lado, a estrada tinha uma queda
abrupta, e as árvores abriam caminho em alguns trechos para exibir
pedras caídas, escarpadas e ásperas. Vi uma trilha marcada para
os hóspedes do Bryant Mountain House que se embrenhava na
floresta.
A caminhada devia ser incrível.
Tomei uma nota mental de investigar as trilhas e continuei subindo
a interminável colina. Aumentei um pouco a velocidade dos
limpadores de para-brisa contra a chuva agora constante, fiz a
última curva e ali estava, finalmente, o resort.
Pelo menos uma parte. A enormidade da estrutura não cabia no
para-brisa do meu carrinho esportivo nada prático e nem um pouco
adequado para a montanha. Mas o que eu conseguia ver era
impressionante.
Passei por baixo de uma série de salgueiros-chorões plantados
ao longo da estrada como soldados, arqueados e formando um
efeito de túnel que, no verão, devia ser um deslumbre. No final
horrível do inverno e no igualmente horrível começo da primavera,
os galhos expostos se emplumavam, úmidos com a neve derretida e
quase retorcidos. Não eram exatamente receptivos.
Tremendo de leve, segui pelo arco e tive minha segunda visão do
resort. Alta e imponente, a ala leste surgiu de repente – mas a vista
verdadeiramente impactante era a da montanha, a oeste, ou a do
lago, a leste. Seis, não, sete andares surgiam diante do céu de
inverno. Fui mais devagar até parar para apreciar a arquitetura:
pedra rudimentar misturada com sequoia polida, janelas verdes,
chaminés altas de pedra cinzenta. Assobiei ao pisar novamente no
acelerador e seguir pela floresta escura que cercava a propriedade.
Passei por vários celeiros, pelo estábulo, pelo jardim de verão e tive
um vislumbre da beirada do campo de golfe.
De repente, o caminho me levou para a frente do resort, onde
começava o estacionamento. Uma espiada na intensidade da
chuva, e optei na mesma hora pelo manobrista; desviei para a
entrada coberta.
Desviar em uma chuva que é quase gelo não é uma coisa sábia
de se fazer em um Corolla bege tedioso, e menos ainda em um
carro esportivo vermelho com tração traseira. Derrapei na última
curva, a traseira escorregando loucamente enquanto eu agarrava o
volante e tentava posicionar o carro. Compensei demais para um
lado, dei uma volta ampla e, com o canto do olho, vi um homem
vestido de capa e chapéu verde esticando as mãos e gritando.
– Cuidado! – berrei.
– Pare! – gritou ele.
Bati no meio-fio e, por meros centímetros, deixei de atropelar o
cara de capa de chuva, que se jogou para o lado no último segundo
e caiu em um arbusto grande.
– Ah, meu Deus... – sussurrei baixinho, e tudo ficou silencioso de
repente. Olhei pelo para-brisa e vi galochas balançando no ar, e os
galhos do arbusto sacudindo enquanto o homem que quase
atropelei tentava se levantar. – Ah, meu Deus!
Saí do carro e corri até o arbusto. Ele estava tentando se soltar.
– Me desculpe! Ah, não, você está bem? Me desculpe!
Sua capa de chuva, com as palavras “Bryant Mountain House”
estampadas, ficou presa em um galho, o chapéu estava caído para
trás e pendurado pelo fio, e uma das galochas tinha saído.
– Ah, pelo amor de Deus! – exclamou ele, puxando o galho.
– Posso ajudar? – perguntei, esticando a mão na direção do
galho.
– Não, não, acho que você já fez o suficiente – disse ele com
rispidez.
– Bem, me deixe pelo menos ver se consigo…
– Estou bem, não faça isso…
– Acho que descobri onde está preso, só…
– Não faça isso, vai rasgar, está tudo bem, está… Cuidado!
O galho se soltou e levou junto metade da capa de chuva,
batendo na lateral da cabeça do homem ao voltar para seu lugar no
arbusto.
– Opa, não acredito que isso… Me desculpe!
– Tudo bem. – Ele falou por entre os dentes.
Nós dois nos olhamos. Eu me senti péssima. Ele parecia
frustrado.
Juntei as mãos nas costas, olhei ao redor e tentei sorrir.
– Onde posso fazer o check-in?
Capítulo 2

Acontece que o homem que quase atropelei era o mensageiro


encarregado de me ajudar a entrar.
– Você é a senhorita Bixby, certo? – perguntou ele depois que se
limpou.
– Como você… Ah. Ligaram da guarita? – perguntei.
– Ligaram – respondeu ele secamente.
Nesse momento, outro funcionário usando uma capa de chuva
igual apareceu correndo.
– Desculpe por isso, senh.… Opa… O que aconteceu aqui?
– A senhorita Bixby teve um pequeno problema na última curva –
disse o cara do arbusto, andando até o carro, desligando-o e
jogando a chave para o funcionário. Fiquei apenas olhando
enquanto ele pareceu se recompor, se empertigou e retomou a
expressão profissional. – Vou só pegar suas malas no porta-malas e
vamos cuidar do seu check-in, certo?
– Sim. Por favor. – Assenti, querendo sair do caminho dele e não
provocar mais nenhum problema.
Segui-o até o saguão e tive minha primeira visão da opulência do
antigo e grandioso hotel. Uma escadaria graciosa feita de montantes
finos e de carvalho firme subia por vários andares e descia por pelo
menos um, pelo que eu conseguia ver, dividindo uma ampla sala de
recepção. Poltronas e sofazinhos confortáveis se espalhavam em
volta de uma, duas, não, três lareiras, todas acesas para afastar o
frio. Cada lareira era única, com prateleiras superiores entalhadas
de madeiras escuras e ladeadas por tijolos de cerâmica verde-
escuros e amarelo-dourados. Vitoriano até o fim, o hotel era lindo,
embora um tanto… exagerado? Não, datado era uma palavra
melhor.
– É lindo, não é?
– Hum? – perguntei, me virando na direção do mensageiro, que
estava me olhando e avaliando minha reação. – Ah, sim, é adorável.
– Foram encontrados no local quando cavaram a base original –
disse ele quando passamos por cinco enormes cristais de cor
ametista exibidos acima de outra lareira enorme, essa feita de
pedras empilhadas.
– É mesmo? – Assenti. – E quando foi isso?
Uma expressão de orgulho surgiu em seu rosto, como se tivesse
sido ele quem enfiou a primeira pá na terra.
– Em 1872. Na verdade, o lugar em que você está agora abrigava
a cozinha original da hospedaria. – Ele deu um sorriso, o tipo de
sorriso que faz você querer investir em pasta de dente e luz do sol.
Não consegui resistir a oferecer meus dentes brancos em
resposta. Se todos os funcionários tinham tanto orgulho do Bryant
Mountain House quanto o mensageiro, a situação era melhor do que
eu pensava.
Eu o segui na direção da recepção, reparando nos sapatos
pretos, na calça cáqui passada acompanhada do casaco verde-
floresta com o nome do resort nas costas. Meio misturado demais
para um uniforme de funcionário, mas, em uma tarde chuvosa
assim, eu não ia me prender a formalidades.
– Oi, Trish, essa é a senhorita Bixby, que veio fazer o check-in.
– Claro – disse uma loura bonita na recepção.
Quando fui pegar minha bolsa, o mensageiro se inclinou ao
mesmo tempo para pegá-la. Não sei qual de nós a virou, mas todo o
conteúdo dela se espalhou no tapete.
– Deve haver alguma coisa no ar hoje... Peço desculpas, vou
ajudar – disse ele, se ajoelhando ao meu lado enquanto eu já
enfiava tudo de volta: cadernos, lápis, iPad, carteira, meu planner…
Ei, onde estava meu planner?
Olhei para a esquerda e ali estava o mensageiro, observando
meu planner com uma expressão estranha no rosto. Tossi de forma
incisiva, e ele desviou o olhar para mim.
– Aqui está – disse, ajeitando a capa em relevo e o devolvendo.
– Obrigada. Eu perderia a cabeça se isto sumisse – falei e
gargalhei, guardando-o de volta na bolsa.
Não só a cabeça, mas tudo de qualquer projeto em que estivesse
trabalhando. Lotado a ponto de explodir com recortes de jornal,
fotografias, planilhas marcadas de vermelho e anotações
manuscritas, meu planner era a coisa mais importante da minha
bolsa. Para além do aspecto prático, ele tinha valor sentimental. Foi
Barbara quem me deu, na primeira vez que fui resolver um trabalho
sozinha, no Colorado.
– Aqui está, garota. Isso vai ajudar a deixar as tarefas
organizadas por mais tempo – dissera ela, me entregando o planner
com capa de couro. Na capa, havia meu nome em letras prateadas.
– Barbara, você me mima – eu respondera, passando os dedos
sobre meu nome. – Obrigada, você é um amor.
– Estou protegendo meu investimento. – Ela rira. – É do meu
interesse que você mantenha a concentração quando estiver longe.
E agora eu sempre estava longe, acompanhada do planner de
grandes ideias.
Falando em acompanhada, o mensageiro estava observando meu
rosto com uma expressão curiosa. Não pude evitar fazer o mesmo.
Agora que estávamos fora da chuva, pude vê-lo de verdade.
Cabelo castanho-avermelhado, cortado curto, mas ameaçando
encaracolar se tivesse a oportunidade. Alto, magro, com maçãs
destacadas e um maxilar forte. Havia algumas sardas no nariz, e as
bochechas coradas indicavam alguém que gostava de estar ao ar
livre, mesmo no inverno.
Ele usava óculos com aros de casco de tartaruga, cujos tons
imitavam as mechas louro-avermelhadas do cabelo, e os olhos eram
do azul mais profundo que eu já tinha visto, quase parecendo tinta.
Olhos que observavam os meus como se procurassem alguma
coisa, até que se arregalaram quando ele encontrou o que estava
procurando.
O canto esquerdo da boca subiu num sorriso fácil.
– Pronta para subir?
– Claro – respondi, percebendo, quando sorriu de novo, que ele
sabia que estava sendo abusado. Revirei os olhos, pendurei a bolsa
no ombro e repreendi a mim mesma por flertar com um mensageiro
menos de cinco minutos depois de chegar.
Nunca se envolva. Essa era uma regra tão rígida quanto a
bundinha que aquele cara devia ter embaixo da calça bem passada.
Depois de guardar no bolso a chave, que, juro, era de ouro de
verdade, resisti à vontade de abrir meu sorriso abusado.
– Pode ir na frente.

Havia silêncio quando chegamos ao sexto andar e seguimos pelo


corredor. Quase silêncio demais. O hotel, como muitos hotéis
antigos, tinha sido ampliado ao longo dos anos, o que criava uma
espécie de sensação de toca de coelho. Alguns degraus no final do
corredor, uma virada no final, mais alguns degraus, o corredor não
acabava!
– Meu Deus do céu! Vou precisar de um mapa para voltar ao
saguão – eu disse depois da quarta virada. – Por que me colocaram
tão longe?
Ele olhou despreocupadamente para mim por cima do ombro.
– Deram a você um dos melhores quartos desta ala. Com muita
privacidade.
Eu não tinha ouvido nenhum som vindo dos quartos pelos quais
passamos. Nem de televisão, nem de rádio, nem de conversa. Mas
ouvi cada passo que dei estalando e gemendo no piso de madeira
velho embaixo do tapete florido, anunciando a todos que alguém
estava passando.
– Privacidade. Legal.
Aquele lugar era antiquado, e tudo nele denunciava sua idade. Os
tetos tinham pelo menos três metros de altura, e acima de cada
porta havia uma janelinha de ventilação, um sinal da época antes do
ar-condicionado. Cada janela estava escura, sem luz dentro. Não
havia mais ninguém naquele andar. As paredes eram cobertas de
papel de parede rosa florido com uns sessenta centímetros de
lambris de cerejeira escura, detalhes que eram lindos, ainda que
datados. Penduradas em perfeita linha reta na parede, estavam
fotografias do passado do hotel, em preto e branco, que retratavam
pessoas sérias segurando raquetes de tênis e tacos de croquet.
Não é que as pessoas não estivessem felizes, é que nas
fotografias antigas elas tinham que ficar na mesma pose por uns
dez minutos ou mais, e quem ia ficar sorrindo por tanto tempo?
Logicamente, eu sabia disso. Mas, no fundo da mente, conforme
andava pelo corredor, só conseguia ver pessoas mortas e furiosas
me encarando.
Eu preciso dizer uma coisa. Só para deixar registrado. Eu não me
assusto com facilidade. Não grito em filmes de terror, não me
escondo quando coisas fazem barulho à noite. Mas aquele
corredor…
Lembra, em O iluminado, quando Danny anda de velocípede
pelos corredores do Hotel Overlook? Pois é. Isso.
Por que os corredores são tão sinistros?, era a primeira pergunta
que eu faria quando me sentasse com a família Bryant.
– Venha. – Ele riu ao notar minha hesitação. – Não falta muito.
Nós finalmente chegamos ao meu quarto, número 668.
– Ah, você está brincando, né? – Eu ri sem acreditar. O corredor
sinistro, as viradas, o pessoal morto das fotos. – Por que você não
me coloca logo no meia, meia, meia de uma vez?
– Ah, não, ninguém fica no seiscentos e sessenta e seis – disse
ele seriamente, balançando a cabeça enquanto pegava a chave.
Depois de abrir a porta, olhou para trás, para mim. – Só um certo
escritor de sucesso especialista em livros de terror cujas histórias
geralmente se passam no Maine… Será que você ouviu falar dele?
Ele estava curtindo muito aquilo. Lancei mais um olhar para o
corredor, para o quarto escuro em frente, e passei correndo pelo
mensageiro para entrar no meu quarto.
Acendi a luz – de um jeito que não tinha nada a ver com pânico –
e olhei em volta.
O mesmo tema vitoriano era dominante no hotel todo. Mas o
quarto era grande, uma boa surpresa para uma construção velha
como aquela. Entretanto, mesmo considerando o tamanho, não
havia a esperada cama king size que eu pedira na reserva, e sim
duas camas de solteiro, cada uma coberta com uma colcha (colcha
mesmo!), cuja estampa era composta de rosas cor-de-rosa sobre
um fundo listrado de rosa mais escuro. Em cima de cada cama,
havia um travesseiro, e a colcha estava esticada e presa sob o
colchão de um jeito que eu nunca tinha visto na vida real, só em
fotografias dos anos cinquenta. Havia uma cômoda antiga com jarra
e bacia de pedra – uau! – junto à parede mais distante, e, embora
as beiradas do lindo piso de tábuas largas estivessem visíveis, o
resto era escondido por um pesadelo de tapete malva e turquesa.
Era Supergatas misturado com Titanic em um hotel de estrada
dos anos setenta. Mas, oi, o que é isso?
– Uma lareira? – eu disse, olhando para a cavidade pequena e
lindamente decorada. – Que impressionante! Onde liga?
– Liga? – perguntou ele, colocando minhas malas no armário.
– É, pra esquentar – perguntei, olhando em volta. – Espera, não
pode ser…
– A lenha? É – respondeu ele, apontando para o cartão na
prateleira. – É só ligar para o atendimento ao hóspede que alguém
vem acender na mesma hora.
– Não acredito – sussurrei, momentaneamente atordoada. Uma
lareira em um quarto de hotel já era um luxo, mas a lenha? – Isso é
bem incomum.
– O Bryant Mountain House é um lugar incomum, senhorita Bixby.
Você vai descobrir que somos cheios de surpresas.
– Estou vendo – murmurei, passando a mão pela madeira
entalhada na prateleira acima da lareira.
– Ali fica o banheiro, e sua varanda particular é aqui. Com essa
chuva, não vai haver vista esta noite, mas, se o tempo estiver limpo
de manhã, você deve conseguir ver até o Hyde Park. Você vai jantar
no quarto esta noite ou no restaurante?
– Hum? Ah, no restaurante – eu disse, ainda examinando o
quarto. Estava faltando algo.
– Muito bem. Mais alguma coisa, senhorita Bixby?
– Na verdade, sim – eu disse, confusa. – Cadê a televisão?
– Não tem televisão.
– Espera, como é?
Ele sorriu.
– A família Bryant sempre acreditou que a natureza devia vir em
primeiro lugar aqui na montanha.
Cruzei os braços sobre o peito.
– O que isso tem a ver com a minha televisão?
– A família Bryant acredita que a televisão pode ser uma
distração, um desvio do mundo natural que está literalmente do lado
de fora da sua porta.
– Não necessariamente discordo do conceito de forma abstrata,
mas, de forma prática, os hóspedes não deveriam poder decidir se
querem ou não a natureza acompanhada de bom entretenimento?
– A família Bryant argumentaria que os hóspedes tomam essa
decisão quando decidem passar férias aqui. Ao optarem por um
hotel como este, estão fazendo uma escolha clara e distinta de
deixar o mundo externo para trás e entrar em comunhão com a
natureza, sem distração.
– Seu site diz que este hotel se orgulha de receber o Festival
Anual de Polca e Corrida do Acordeão do Hudson Valley. Como isso
não é uma distração?
Ele arregalou os olhos, a expressão se alterando.
– A família Bryant acredita que…
Eu levantei a mão.
– Quer saber, chega do que a família Bryant acredita. Isso soa
como coisa de novela, que passa no exato aparelho do qual estou
falando. Então, fala logo. Tem que ter uma televisão aqui em algum
lugar, né?
– Claro. – Ele assentiu e ajustou os óculos. – Você está convidada
a conhecer o Salão Poente, no primeiro andar, quando quiser. Tem
uma televisão comunitária lá.
– Salão Poente? Você não pode estar falando sério.
Ele piscou.
– Claro que estou falando sério.
– Isso é um absurdo!
– Absurdo é uma pessoa que seja incapaz de mergulhar
totalmente na natureza.
Eu balancei a cabeça e arregalei os olhos. Esse cara era de
verdade?
– Mergulhar totalmente na natureza? Como você conseguiu dar o
salto entre “ei, quero ver o programa Today de manhã enquanto me
arrumo” e a minha incapacidade de mergulhar totalmente na
natureza?
– O Bryant Mountain House sempre manteve um laço rigoroso
com o mundo natural.
– Baboseira! Trish tem um pacote de Twinkies na recepção.
Duvido que sua versão da natureza inclua recheio de creme,
principalmente quando o tal creme está totalmente mergulhado em
um bolinho artificial amarelo-fluorescente.
Ele franziu a testa.
– Isso não está no protocolo, eu garanto.
– Com ou sem protocolo, como posso conseguir que uma
televisão seja trazida para o meu quarto?
– É impossível.
– Nada é impossível – eu disse, cruzando os braços na frente do
peito.
– Travesseiros adicionais? Possível. Roupão fofinho e
confortável? – ele foi até o armário e o abriu com um floreio. – Tão
possível que já está aqui. Um sundae às três da madrugada? – Ele
foi até o telefone e o tirou do gancho. – Nada nos deixaria mais
felizes do que realizar esse pedido.
– Então ninguém na história deste lugar, desde a invenção da
telinha portátil, teve a permissão de ter uma televisão no quarto?
Ele fez uma pausa curtíssima antes de responder tranquilamente:
– Não que eu saiba.
– Nenhuma mulher idosa e doente que não pôde ir ao Salão
Poente, mas queria ver as novelas da tarde? – insisti. – Ou talvez
aquele escritor de terror do Maine que pode ter pedido uma
televisão para assistir à adaptação para a televisão de um dos seus
muitos romances? Você está me dizendo que nenhum dos seus
hóspedes VIP, inclusive, como seu site declara, todos os
presidentes do país, nunca pôde ter uma televisão no quarto?
Ele franziu a testa.
– Talvez alguma pequena exceção tenha sido feita, em uma
circunstância muito extrema, mas…
– Arrá! – gritei. – E é isso o que temos aqui, uma circunstância
extrema. Pode ir até seu armário de circunstâncias extremas e
pegar uma bela televisão de tela plana. – Eu me sentei na cadeira
acolchoada no canto, desarrumando várias camadas de paninhos
de renda com um movimento amplo.
Pelo jeito, os paninhos aliviaram não só o efeito de sentar na
cadeira, mas também o efeito da minha declaração, pois a
expressão do mensageiro passou de frustração mal contida para
uma de esta conversa acaba aqui!
– Senhorita Bixby, ficarei muito feliz em comunicar seu pedido
incomum à gerência. Isso é tudo? – Ele exibiu num sorriso os
dentes alinhados.
Uma televisão é um pedido incomum. Inacreditável.
– Tudo bem, vou ficar bem. – Suspirei, agora cansada da
conversa. Queria desfazer as malas, me acomodar e ver o que mais
havia de estranho naquele lugar.
– Vou deixá-la à vontade, então – respondeu ele e, quando saiu
para o corredor, disse: – Espero que tenha uma ótima estada
enquanto estiver conosco, senhorita Morgan.
– Obrigada, eu… Espere um minuto, do que você me chamou?
Quem é você?
– Archie Bryant – respondeu ele, o sorriso agora passando a algo
mais parecido com puro cálculo. – Bem-vinda ao Bryant Mountain
House.
A porta se fechou, e eu permaneci parada. Com cara de raiva.
Archie Bryant, o filho do homem que me contratou. Que sabia
exatamente quem eu era, que eu não era Melanie Bixby e que eu
tinha feito check-in fingindo ser outra pessoa.
Filho da…
Capítulo 3

Inspirei o ar frio e expirei uma nuvem enquanto contemplava


como lidar com essa sinuca de bico.
Quando o belo sr. Bryant saiu, fui até a varanda. Todos os
quartos, independentemente do tamanho, tinham uma varanda com
duas antigas e lindas cadeiras de balanço. E as cadeiras de balanço
eram uma necessidade, desde que o tempo estivesse melhor,
porque aquela vista…
No alto das Montanhas Catskill, a vista era deslumbrante. Mesmo
com as nuvens cinzentas de tempestade, era maravilhosa. O vale
profundo abaixo do resort abria espaço para as montanhas ao
longe, em cujas árvores ainda se viam resquícios da última nevasca.
O ar frio envolveu meus tornozelos, mas permaneci por um
momento mais, perdida no silêncio. Balancei-me para a frente e
para trás, do calcanhar até a ponta do pé, e senti as pernas doendo
por ter passado o dia sentada no carro. Eu desejava sair, me
alongar, correr, meu corpo gritava por exercício. Entretanto, a chuva
tinha mesmo virado uma mistura de neve derretida e gelo, e eu
sabia que não devia explorar uma trilha nova naquele tempo
impiedoso.
Não conseguia tirar da cabeça o fato de que o mensageiro era
filho do dono. Eu devia ter desconfiado. Ele estava com roupas boas
demais para um mensageiro; tirando o casaco de fleece, que,
pensando bem, cobria uma camisa branca de botões e uma gravata,
a calça cáqui careta e os sapatos brilhosos deveriam ter revelado a
identidade dele.
Ugh, aquela conversa ridícula sobre a televisão, uma coisa da
qual ele se lembraria quando fôssemos apresentados um ao outro
em dois dias, depois que “Clara Morgan” fizesse o check-in.
Ah, bom. Eu já tinha tido conversas mais controversas com uma
equipe de hotel do que “arrumem televisores, por favor”. Só preferia
começar essa conversa nos meus termos.
Falando sério: sem televisão! Em que ano estávamos? Uma sala
de televisão no Salão Poente não só era uma coisa antiquada, como
não me ajudava em nada quando eu precisava de ruído de fundo.
Sempre preferi ficar com a televisão ligada, mesmo sem estar
assistindo. Quando comia, quando lia, quando dormia, claro, eu
precisava do barulho. Às vezes, até a deixava ligada quando não
estava em casa, para que não ficasse tão sombria e silenciosa, pois
eu precisava ouvir algo além do silêncio quando voltava à noite. Eu
procurava um ruído que pudesse deixar como um som de fundo
interessante, mas não a ponto de me manter acordada. Nada era
melhor para isso do que aqueles comerciais de coleções de músicas
dos anos setenta, sabe?
O fato era que eu não pegava no sono sem uma televisão
desde… Meu Deus, quanto tempo? Minha mente já estava em
disparada com a ideia de pegar no sono hoje, de tentar pegar no
sono naquele silêncio vazio. Eu nem sabia se conseguia dormir sem
o barulho.
Quando não havia barulho, minha mente tomava o controle. A
parte não analítica dela, onde as coisas ficavam mais bem
guardadas e isoladas e escondidas.
Balancei a cabeça para afastar a apreensão, respirei o ar gelado
novamente e decidi voltar para o quarto e desfazer a mala.

***

– Ah, pelo amor de… Ai! – gritei quando a cama bateu na minha
cabeça pela terceira vez. Desfazer a mala era difícil quando o único
armário do quarto não era um closet, mas um esconderijo de outro
dispositivo antigo, a cama retrátil. O hábito me fazia abrir a porta do
armário a cada peça de roupa que eu pegava, e eu esquecia que
naquela montanha, com tanta natureza e tantos princípios de vida,
embora não houvesse televisão nos quartos, havia uma cama
retrátil.
Esfreguei a cabeça enquanto empurrava a cama idiota para
dentro do “armário”, depois fui até o guarda-roupa com outra pilha
de roupas. Em seguida, fui até a bolsa, peguei um Post-it e uma
caneta e grudei um bilhete no armário com o aviso: “Não abra essa
porra de novo!”.
Fiz outra anotação, desta vez no planner, para acrescentar mais
um item à lista de coisas que eu precisava resolver no hotel.
E, com isso, desfiz a mala com a tranquilidade e a economia de
movimentos de alguém que literalmente passou, e passa, a maior
parte da vida adulta vivendo de uma mala.
Não só a vida adulta.
Coloquei no celular um podcast sobre viagens e aumentei o
volume, sabendo que não perturbaria ninguém naquele andar.
Fechei o planner e passei a mão pelo nome na capa. Ficou óbvio
para mim que Archie tinha visto, lido, percebido que eu não era
quem disse que era… e decidiu deixar rolar? Era esse o motivo de
eu estar naquela terra de ninguém, em um andar desocupado? E,
se ele sabia quem eu era, e ele sabia, por que foi tão… humm…
bem… babaca?

Depois de concluir que era melhor ficar na minha até entender


exatamente o que estava acontecendo, cancelei minha reserva para
jantar e pedi comida pelo serviço de quarto. Pensei em solicitar que
mandassem alguém para acender a lareira, mas me dei conta de
que podiam muito bem enviar o mensageiro Archie, e desisti
rapidinho.
Tomei um banho longo na banheira funda – antiga e com pés de
garras, claro. Reli minhas anotações sobre a propriedade, li meus e-
mails, fiz algumas pesquisas sobre a cidade de Bailey Falls… e
morri de tédio.
Não contei para minhas amigas que estava indo para a cidade;
nada trai um pseudônimo com mais rapidez do que duas loucas
correndo pelo saguão gritando “Claraaaaaa!”. Se bem que a gritaria
provavelmente ficaria por conta de Natalie, e a loucura, de Roxie;
ninguém estaria a salvo.
Agora, conforme ia ficando tarde e eu ia ficando sem ter o que
fazer, sem televisão no futuro próximo, minha mente estava
começando a se abrir a possibilidades. Isso é sempre perigoso.
Inquieta, me levantei e fui até a janela. A chuva com gelo que
batia na vidraça me fez me arrepender de não pedir que a lareira
fosse acesa. Espiei pelo gelo nas beiradas do vidro e vi um
vislumbre de lanterna abaixo e uma sombra ampla onde ficavam as
montanhas, fora do campo de visão. Outra pessoa talvez se
sentisse solitária. Outra pessoa talvez olhasse toda aquela
escuridão profunda e visse a única luz daquela única lanterna, e se
perguntasse se realmente havia mais alguém lá fora.
Outra pessoa, talvez. Mas eu não sentia solidão. Não era possível
sentir solidão se você não se permitisse, e aprendi logo cedo a me
preparar para isso. Aprendi a não deixar o lábio tremer, a empertigar
a coluna e ficar ereta e a transformar o que poderia ser um
sentimento de solidão em uma determinação profunda e segura.
Uma determinação que me protegeu e me consolou por sete lares
temporários diferentes, me mantendo concentrada nos estudos e no
trabalho, em vez de nos amigos e na família.
Agora, adulta, eu tinha amigos. Quanto a uma família…
Suspirei, balancei a cabeça e me virei para o quarto. Ao ver que
era tarde o suficiente para justificar que eu fosse dormir, botei o
pijama e entrei debaixo da coberta. Hum, lençóis finos e
ressecados. Peguei outro Post-it, escrevi as palavras “contagem de
fios” rapidamente e colei na capa do planner. A lista de coisas a
fazer estava crescendo, e Clara Morgan nem tinha chegado
oficialmente.
Apaguei a luz, me deitei melhor na cama e ouvi os estalos da
construção velha se acomodando à noite. Um pequeno assobio do
aquecedor no canto, a chuva com gelo ainda batendo na janela…
todos os barulhos que uma televisão abençoada encobriria.
Dei play em outro podcast sobre viagens, este sobre o mercado
central de Istambul, mandei meu corpo relaxar e descansar. Meu
último pensamento antes de adormecer foi que, se Archie Bryant
sabia o tempo todo quem eu realmente era e não falou nada, isso
fazia dele um grande babaca.
Archie Bryant. Pffft.

A manhã seguinte estava clara e fria. Quando meu despertador


tocou no horário habitual, às cinco e meia, acordei grogue e perdida.
Eu não tinha dormido bem, e isso era estranho, pois passava tanto
tempo viajando que dormia melhor em hotéis do que em casa.
Ossos do ofício, acho. Não era só a cama, meio mole e afundada no
meio, que não era confortável; eu não conseguia identificar o
motivo. Simplesmente passei a maior parte da noite virando de um
lado para o outro.
Pensei em me permitir uma ocorrência rara, um período extra de
nove minutos até o alarme voltar a tocar, mas, agora que a família
Bryant sabia que eu estava no local, eu precisava estar pronta para
o que quer que acontecesse hoje. No entanto, a primeira coisa que
eu faria seria sair para correr.
Sempre fui de correr, uma atividade que comecei logo cedo, por
volta do sétimo ano. Eu era veloz quando criança, mas percebi
rapidamente que minha maior qualidade era a resistência. Quando
pequena, tinha uma energia quase infinita, algo que me diziam com
frequência. Se me botassem em uma corrida de cross-country, eu
era capaz de correr por dias. Podia estar quente, frio, chovendo, não
importava, desde que eu conseguisse sentir o chão debaixo dos
tênis e ouvir a batida regular dos pés passando pelo quinto
quilômetro, pelo sexto, e assim por diante.
Todos os corredores sabem que, quando você chega em um
determinado ponto, seu corpo assume o controle e você entra no
ritmo dele. Eu planejava melhor quando estava correndo. As ideias
tomavam forma, apareciam soluções coerentes para os problemas,
e um plano se montava enquanto eu percorria o terreno, qualquer
que fosse.
Tinha dezenove anos quando completei minha primeira maratona.
Foi no ano em que estudei em Santa Barbara com Roxie e Natalie.
Botei na cabeça que era capaz. Minhas amigas odiavam correr;
para elas, fazer exercício não era algo prazeroso, era algo que se
suportava para tentar queimar os churros que fizemos na aula de
sobremesas. Os meus ficaram intragáveis. Os da Natalie,
provavelmente tóxicos. Já os da Roxie ficaram épicos.
Então, é, eu corria sozinha. Depois da primeira maratona, foi
como se uma luz tivesse sido acesa, e percebi que havia uma
grande comunidade de guerreiros das ruas iguais a mim, que
amavam correr e sentir a dor perfeita que vem quando você força
seu corpo a fazer alguma coisa, principalmente quando ele tem
certeza de que não consegue, mas faz mesmo assim. O poder da
mente, vencer a vozinha em sua cabeça que diz para você parar,
que é demais, que é muito difícil, que você não consegue.
Eu conseguia. E corri como louca pela costa da Califórnia naquele
ano, viciada na emoção de atravessar a linha de chegada. Boa
nadadora e ótima ciclista, eu tinha vinte e um anos quando
completei o primeiro triatlo. Tive que treinar mais para ele do que
para qualquer outra coisa na vida; o nado e a pedalada não são tão
naturais para mim quanto a corrida, mas, conforme fui ficando mais
eficiente nesses esportes, passei a gostar dos triatlos quase tanto
quanto das maratonas.
Eu estava sempre treinando. Estava sempre me condicionando
fisicamente. E estava sempre ou me recuperando de uma corrida ou
me preparando para uma.
Meu tipo de trabalho encaixava perfeitamente com esse estilo de
vida, e era exatamente isso, um estilo de vida. Eu não podia chamar
o que fazia de hobby, porque era uma parte essencial de
absolutamente tudo o que eu fazia.
Eu estava em ótima forma, então podia me permitir ingerir
comidas e vinho o quanto quisesse, mas minha regra era a
moderação porque, embora uma fatia a mais de bolo de chocolate
não fosse ficar no meu corpo na forma de calorias não consumidas,
podia desequilibrar meu açúcar, me deixar lerda e transformar uma
corrida de oito quilômetros, que eu fazia três ou quatro dias por
semana, em um inferno.
Vesti uma calça legging e uma camiseta, amarrei os tênis e fui
para a academia.
Ah, cara.
A “academia” do Bryant Mountain House era… Ah, cara, só era.
Acrescentada à casa principal em algum momento dos anos vinte
como um “ginásio”, foi reformada nos anos oitenta, quando Jane
Fonda virou febre no país, e depois esquecida. Era enorme, mas
essa era a única característica positiva. Havia algumas bicicletas
ergométricas antigas, alguns pesos e bancos, um aparelho elíptico
velho ao lado de um amontoado de Ab Toners. As paredes eram
tomadas por espelhos estilo estúdio de balé intercalados com
pôsteres motivacionais, inclusive um de um gato que estava
desesperadamente Aguentando Firme. Entretanto, embaixo das
cores brilhosas de malva e turquesa que compunham a palheta de
cores do Bryant e com as quais eu estava me acostumando, havia
um lindo piso de tábuas largas de pinheiro alaranjado. Algumas
marcas desbotadas do “ginásio” antigo ainda eram visíveis no piso,
e, claro, cada ponta da academia tinha uma lareira.
E, em um canto, um equipamento novo: uma esteira
moderníssima.
Fiquei pensando em quem foi o rico que faleceu e deixou a esteira
para o hotel, mas logo dei de ombros e subi nela. E mergulhei na
natureza. À minha frente, visível por um janelão, estava a
propriedade inteira, inclusive uma vista livre das Catskills. Passei
meu tempo na esteira olhando as árvores e o céu azul.
O que eu já amava no Bryant Mountain House era que ali em
cima parecia que o tempo tinha parado. A floresta e as colinas ao
redor eram tão lindas quanto deviam ser quando os irmãos Bryant
pisaram lá pela primeira vez, olharam o local e souberam que era
onde construiriam o que se tornaria seu legado. O lugar era
intocado, e um hóspede poderia facilmente imaginar Jennifer Grey
correndo por um bosque de short jeans e tênis Keds, pronta para
dançar o chá-chá-chá com a versão de Bailey Falls do Patrick
Swayze.
O que eu também já amava era o que me dedicaria a ajustar. Sou,
talvez mais do que a média, a favor da tradição, porém havia
elementos que tinham que ser trazidos para o nosso século. Os
quartos, a paleta, os móveis, sem dúvida nenhuma a academia. E
seria divertido encontrar o equilíbrio entre o novo e o antigo, a
tradição com um toque diferente.
Aumentei um pouco a inclinação e a velocidade da esteira. Meu
cérebro estava começando a elaborar um plano para o Bryant
Mountain House, e eu precisava esvaziar a mente.
Às seis e quarenta e cinco, após completar minha corrida,
pendurei uma toalha sobre os ombros e estava saindo da academia
quando trombei com um Archie Bryant muito alto, muito elegante e
muito surpreso.
Como não percebi de imediato quem era, tirei os fones e tentei
pedir desculpas.
– Desculpe! Me desculpe, eu…
– Cuidado por onde…
Nós falamos ao mesmo tempo e paramos, as palavras pairando
no ar, e eu tentei de novo.
– Senhor Bryant, me desculpe. Não achei que ninguém fosse
estar acordado tão cedo.
– Deus ajuda quem cedo madruga, senhorita Bixby – respondeu
ele, desvencilhando seus papéis da minha bolsa.
Vestido impecavelmente com um terno cinza-escuro, uma gravata
verde-clara e um lenço estampado no bolso, ele parecia o herdeiro
rico nos mínimos detalhes. Olhou para o terno com desprazer, como
se eu tivesse deixado uma marca de garota suada que ele teria de
carregar no peito o dia inteiro. Dei uma olhada rápida nele para ter
certeza de que isso não tinha acontecido, e é claro que não tinha.
Eu estava suada, mas não estava pingando, ora. Mas era hora de
resolver uma coisa.
– Você não acha que podemos deixar de lado essa história de
senhorita Bixby?
– Ah, até você explicar para o meu pai e para o resto da equipe
por que a caríssima especialista que ele trouxe de Boston está
andando por aí usando um pseudônimo e atropelando pessoas, vou
me referir a você como qualquer outro hóspede que se registrou no
nosso lindo hotel. – Ele se inclinou um pouco mais para perto, e
reparei novamente nas sardas em seu nariz, desta vez com um
fundo significativamente mais vermelho. Com raiva: ele estava com
raiva de mim. E isso ia além do encontrão. – Tenho certeza de que
ele vai ficar feliz em conhecê-la hoje.
– Hoje? – perguntei, franzindo o nariz, sem entender. A reunião
com a equipe era em dois dias.
– Sim, há uma reunião hoje para a equipe sênior, às sete e meia.
No salão de reuniões Camélia, no terceiro andar. Coloquei embaixo
da sua porta um bilhete com as minúcias.
Quem diz minúcias?
Ele saiu andando, mas falou por cima do ombro:
– Todos, inclusive meu pai, estão ansiosos para conhecer a
misteriosa senhorita Bixby.
– Ah, que bom. Talvez ele seja o cara com quem eu precise falar
para conseguir uma televisão!
– Nada de televisão! – gritou ele sem se virar.
– Ridículo – murmurei e olhei para o relógio. Droga, menos de
uma hora para tomar banho e trocar de roupa para a reunião.
Dei meia-volta e corri na direção oposta à que Archie tinha
seguido, deixando o elevador de lado e subindo os seis lances de
escada.
Ele acha que está à frente, pensei enquanto corria para o quarto.
Pensa que está em vantagem.
Bom, sr. Archie Bryant, vamos ver o quanto você está errado.
Capítulo 4

Às sete e vinte e cinco, parei na entrada do salão de reuniões


Camélia, no terceiro andar, como requisitado, cinco minutos
adiantada e pronta para conhecer o homem que me contratou, o pai
de Archie Bryant, Jonathan Bryant. Vestida para matar com uma
blusa tomara-que-caia vermelho-cereja por baixo de uma jaqueta de
couro preto ajustada, calça preta e saltos Jimmy Choo vermelhos de
oito centímetros, eu estava com a minha armadura – necessária
para conhecer a equipe com alguns dias de antecedência.
Não estava nervosa, pois eu nunca fico nervosa. No entanto, não
tinha ideia do que Archie já tinha dito para o pai. Eu poderia ser
demitida antes mesmo de começar oficialmente o trabalho, o que
significaria o fim da minha sociedade. O sr. Bryant pai podia ter
marcado a reunião com a intenção clara de me demitir ali mesmo,
diante do olhar, e do sorriso, do filho com sardas.
Foi por isso que fiquei tão surpresa quando soube que o sorriso
de alegria que me recebeu no salão pertencia a Jonathan Bryant,
que não só se levantou quando entrei, como veio apertar minha mão
e me dar boas-vindas ao Bryant Mountain House.
– Senhorita Morgan, é um prazer conhecê-la, um grande prazer!
Obrigado por se reunir conosco nesta manhã. Espero que não
tenhamos interferido muito em sua estada.
– Minha estada? – perguntei.
– Sim, meu filho me contou que você chegou com um nome falso
e…
– Senhor Bryant, eu garanto que o único motivo para eu ter dado
o nome Bixby foi que eu…
– … queria explorar o terreno sem que nós soubéssemos que
você estava aqui? Queria sentir o Bryant Mountain House como
uma hóspede comum? Estava interessada em ver como
funcionamos sem os artifícios que montaríamos para uma famosa
especialista em branding de hotéis?
Sorri para Archie, que estava logo atrás do pai, quando sua
expressão foi da expectativa à confusão, à frustração e, finalmente,
à pura raiva.
– Sim, sim e sim, senhor Bryant, sim para todas as perguntas. –
Apertei com vontade a mão dele, agora concentrada no pai, e não
no filho. – E é um prazer conhecê-lo! Por favor, me chame de Clara.
– Clara. – Ele assentiu. – É uma ideia genial, pensando bem,
querer entender a propriedade como hóspede antes de tentar
entendê-la como profissional. – Ele fez sinal para uma mesa
comprida cheia de doces e frutas, pães e queijos. Na ponta mais
distante, garrafas térmicas de café luziam. – Fique à vontade. Coma
alguma coisa. Depois, eu adoraria apresentá-la à equipe.
Jonathan Bryant era um homem lindo; era fácil ver de quem
Archie tinha herdado a aparência. No entanto, enquanto Archie
parecia frio e distante, para não dizer um perfeito babaca, o pai era
a epítome do calor e do acolhimento. Ele se afastou, deixando
espaço para que eu comesse e tomasse uma xícara de café. Sem
querer parecer ingrata pela hospitalidade, fiz exatamente isso.
Botei em uma tigela algumas frutas vermelhas e alguns pedaços
de melão, coloquei um bagel integral na torradeira e, quando estava
servindo café, parei um momento para apreciar a beleza do salão.
Com painéis de madeira, como tudo naquela montanha, era
elegante e refinado. Uma mesa enorme ocupava o centro da sala,
com confortáveis cadeiras giratórias em volta. Reparei que havia
cartões com nomes na frente de cada assento, para eu saber
exatamente quem estaria conhecendo.
– Deixe-me ajudar com isso – disse uma voz familiar atrás de
mim.
– Me ajudar a cair do penhasco, imagino – falei baixinho,
arquean-do as sobrancelhas quando Archie entrou na minha frente
e pegou minha tigela.
– Bem, nós estamos em uma montanha… – murmurou ele.
– Você fala com todos os hóspedes assim ou sou só eu que
ganho o tratamento especial? – perguntei enquanto seguíamos para
a mesa.
Ele colocou minha tigela na frente de uma cadeira do lado
esquerdo da mesa.
– Você é hóspede, senhorita Morgan?
Coloquei o café e me posicionei na frente de uma cadeira do lado
direito da mesa.
– A pedido do seu pai, sim. – Olhei diretamente para a tigela de
frutas que estava do lado oposto ao lugar que escolhi.
Archie arqueou a sobrancelha esquerda, inclinou a cabeça e me
examinou novamente com os olhos atentos.
– Meu pai – disse ele, pegando a tigela e colocando na minha
frente – faria qualquer coisa para salvar este hotel. Inclusive trazer
alguém de fora.
– Ah, então é esse o problema. Eu sou de fora. – Sussurrei a
última parte como se estivesse dizendo tenho lepra.
– Senhorita Morgan, antes de chegar aqui ontem, quanto tempo
você passou no Bryant Mountain House?
– Antes de chegar aqui ontem, senhor Bryant? Nenhum.
– Interessante. E antes de chegar aqui ontem, quanto tempo tinha
passado no Hudson Valley?
– Nenhum – respondi imediatamente, recebendo um sorriso
arrogante. – A não ser que você conte os quatro anos em Ithaca.
Mas sem dúvida você não contaria, porque tecnicamente Ithaca
pertence à região de Finger Lakes. – Eu lhe ofereci o meu sorriso
arrogante. – Tirei meu diploma de hotelaria em Cornell.
Ele afetou surpresa.
– Ah, sim, você estudou em Cornell. Devo ter esquecido esse
detalhe.
Olhei para ele com a testa franzida, sem entender.
– Você esqueceu um detalhe que eu não mencionei?
– Eu esqueci um detalhe que li no seu arquivo. Não vai mais
acontecer.
– Meu arquivo?
– Você não acha que eu deixaria meu pai contratar uma pessoa
para virar nosso mundo de cabeça para baixo e não investigaria se
ela é qualificada, acha?
Meus olhos se arregalaram.
– Arquivo... Você tem um arquivo sobre mim. Uau.
– Uau?
– Uau como quem diz “cara, que sinistro”.
Agora foi ele quem ficou de olhos arregalados.
– Cara? Você me chamou de “cara”?
– Cara, eu também te chamei de sinistro. Você não percebeu?
De repente, notei um silêncio maior, do tipo que sufoca, do tipo
que gruda como filme de PVC. Archie e eu estávamos a centímetros
um do outro, ele com as mãos nos quadris, eu com um dedo
apontado para seu peito pelo buraco do bagel, enquanto todo
mundo esperava para ver o que aconteceria. Olhei para o pai dele,
que nos observava com os braços cruzados e um sorriso de
satisfação.
Tanto Archie quanto eu demos um passo para trás, depois outro,
como dois colegiais na aula de teatro recebendo as primeiras
instruções de palco. Resisti à vontade repentina e louca de fazer
uma reverência e me sentei com calma e com, assim eu esperava,
uma enorme graciosidade.
Encarei Jonathan Bryant, assenti e disse:
– Vamos começar.

***

A reunião correu surpreendentemente bem, considerando como


começou. Conheci toda a equipe sênior do Bryant Mountain House.
Chefes de camareiras, de serviço de quarto, de cozinha, de
jardinagem, de recreação, de atividades históricas, de atendimento
ao hóspede e de contabilidade. Se uma equipe não era liderada por
uma pessoa da família Bryant, era liderada por alguém que estava
lá havia tempo suficiente para ser membro honorário. De cara,
adorei a sra. Banning, da cozinha, e a sra. Toomey, das camareiras.
Elas insistiram desde o começo que, se eu precisasse de alguma
ajuda, qualquer uma, deveria procurá-las imediatamente.
Se bem que, para ser justa, essa atitude generosa, essa
disposição de ouvir e aprender parecia ser compartilhada por toda a
equipe.
Menos Archie Bryant. Ele ficou sentado durante a reunião, ficou
quieto durante as apresentações e ouviu atentamente as
preocupações compartilhadas pela equipe. Seu pai estava liderando
a reunião, mas ficou claro que Archie era dono dos verdadeiros
olhos e ouvidos do resort. Quando eu fazia uma pergunta direta, ele
respondia de forma rápida e eficiente, sem oferecer nenhuma outra
informação além da pedida.
Isso não era incomum. Ao longo dos anos, lidei com muitos
gerentes que não gostavam de uma pessoa vinda “de fora” para
dizer como elas deveriam cuidar de seu hotel. Entretanto, nunca
encontrei alguém tão articulado em expressar seu desprazer com a
minha existência.
– Uma das coisas que farei, antes mesmo de começarmos a
conversar sobre mudanças a serem implementadas, é observar.
Olhar. Sentir como as coisas são.
Archie deu uma risada debochada.
Não reagi; ignorei o ruído anasalado e continuei:
– Senhora Toomey, há quanto tempo trabalha no Bryant Mountain
House?
A idosa sorriu, prendeu uma caneta na orelha e respondeu com
orgulho:
– Comecei quando tinha dezoito anos, como instrutora de
natação.
– Ela e eu começamos no mesmo verão – interrompeu a sra.
Banning, arqueando uma sobrancelha. – Ela brincou no lago o verão
todo enquanto eu ficava aqui dentro fazendo as camas. Antes de
instalarmos o sistema de ar-condicionado.
– Seja como for, nós duas estamos aqui há mais tempo do que
gostaríamos de admitir – disse a sra. Toomey, e as duas mulheres
riram.
– Quarenta e nove anos – disse Archie da outra ponta da mesa, e
dez cabeças se viraram ao mesmo tempo. – Vocês duas estão aqui
há quarenta e nove anos – repetiu ele, sorrindo para as mulheres. –
Meu pai já está planejando a festa de cinquenta anos.
– Que incrível – comentei, e as mulheres coraram um pouco. –
Fora o fato de que o senhor Bryant aqui acabou de nos dizer a idade
de vocês, isso é incrível. – Os funcionários riram, mas Archie só
ergueu uma sobrancelha. – Então, senhora Toomey, você começou
na recreação. E quando foi que passou para a cozinha?
– Minha nossa, fiz tantas coisas aqui que é difícil lembrar
exatamente. Acho que comecei a trabalhar mais na cozinha depois
que passei para dentro, no final dos anos oitenta. Fiz várias coisas,
trabalhei nas reservas, na recepção e até fui um pouco camareira…
Para minha sorte, quando trabalhei arrumando camas, o sistema de
ar-condicionado já tinha sido instalado. E aí surgiu uma vaga no
gerenciamento do restaurante. Precisavam de alguém que cuidasse
do jantar, e estou nisso desde então.
– E o chef principal se aposentou recentemente, correto?
– Aposentou? – perguntou ela, se inclinando para a frente. – Ele
não está mais aqui, mas não sei bem se ele se aposentou.
– Precisamos remexer nisso? – Archie suspirou.
– Não estamos remexendo. Ela perguntou – retrucou a sra.
Toomey, sorrindo largamente para mim como se me encorajasse a,
sim, remexer nisso.
No entanto, eu já tinha enfrentado Archie o suficiente e decidi ficar
na minha.
– Quer saber, vamos deixar isso pra lá por enquanto e falar sobre
reservas. O senhor Bryant fez a gentileza de me enviar os números
das últimas duas temporadas, assim como a projeção de reservas
para o verão – eu disse, me virando para o sr. Bryant pai.
Ele abriu um sorriso caloroso.
– Você vai ter que começar a me chamar de Jonathan. Todo
mundo me chama assim.
– Ah, não sei, eu…
– Você devia mesmo chamá-lo de Jonathan. Ele vai insistir –
interrompeu Archie, com uma expressão resignada no rosto.
– O que posso dizer, eu amo Walt Disney. – Jonathan riu.
Eu balancei a cabeça.
– Não entendi.
– Walt Disney colocou o primeiro nome, e só o primeiro nome, no
crachá, e ninguém podia chamá-lo de senhor Disney. Ele achava
que isso o distanciava muito da equipe, e ele queria que todos
sentissem que tinham a mesma participação no resultado.
– Amei essa ideia – falei, concordando na mesma hora com a
motivação. Alguns dos outros riram, inclusive Archie. – Você não
concorda?
– Não é que eu não queira que todos sintam que fazem parte da
equipe, mas…
– Archie tem uma abordagem mais formal do que eu no trabalho.
Sempre foi assim. Nesse aspecto, ele é bem mais parecido com o
meu pai – disse Jonathan, com um certo orgulho.
– O vovô tinha uma abordagem formal para tudo, pai. Ele teria
uma hemorragia se visse homens de bermuda no café da manhã.
– Bermuda? – perguntei.
– Nós relaxamos o código de vestuário muitos anos atrás –
explicou Archie.
– Vinte, foi vinte anos atrás. – Seu pai riu. – Nunca vou esquecer.
Quando você chegou no salão de jantar principal para o brunch de
sua formatura vestindo bermuda, sua avó sussurrou para mim que
era bom que seu avô tivesse morrido um ano antes, porque ver
joelhos no salão de jantar o teria feito ir direto para o túmulo.
Uma pessoa na ponta da mesa comentou que ele não teve
problema nenhum quando as minissaias entraram na moda, nos
anos sessenta, e a conversa se perdeu aí. Histórias sobre o
passado, acontecimentos, risadas, lembranças, tradições. Enquanto
eu observava a família, de sangue e de proximidade, lembrei
novamente que só as histórias que eles tinham guardadas
preencheriam uma biblioteca de três metros de altura. Era disso que
eu precisava que eles se lembrassem quando as mudanças
tivessem início. Decidi não voltar a falar das reservas projetadas
para o verão. Por que jogar um balde de água fria se todos
pareciam estar se divertindo tanto com as lembranças? Eles
poderiam voltar a se preocupar depois – e se preocupariam mesmo.
Se as contas estivessem certas, eles teriam o pior verão de todos.
Conforme a conversa foi morrendo, voltei a falar:
– Agradeço a todos por esta reunião improvisada. Sei que alguns
de vocês podem questionar meus métodos, inclusive o motivo para
eu ter feito check-in ontem com um nome diferente. – Apontei o
bagel na direção de Archie, que levantou o copo de café em
resposta. – Mas estou aqui para ajudar. E quero ouvir suas histórias,
todas elas, para entender melhor quem vocês são e qual é o DNA
deste lugar. Então, por favor, não escondam nada, contem o que se
sentirem à vontade para contar, e prometo que, em troca, vou
trabalhar como uma condenada. Combinado?
Vozes ecoaram de lado a lado da mesa:
– Combinado.
Eu estava prestes a me levantar quando Jonathan falou:
– Você se registrou como Melanie Bixby por duas noites, correto?
– Isso mesmo – respondi, com uma expressão de “você me
pegou”.
– Bem, no que me diz respeito, você ainda é Melanie Bixby. O que
quer dizer que ainda está de férias. Então, nada de falar de trabalho
pelo resto do dia. Quero que você relaxe e se divirta. Fique à
vontade. Vamos começar, como foi que você disse?, a trabalhar
como condenados amanhã, certo?
Surpresa e satisfeita, concordei.
– Como brinde, Archie será seu guia pessoal hoje.
– Como é? – nós dois dissemos, fazendo Jonathan abrir o maior
sorriso que eu tinha visto o dia todo.
Ele se encostou na cadeira, com as mãos entrelaçadas, e olhou
de um para o outro.
– Sim, acho que um passeio é necessário.
Quando a reunião acabou, todos saíram, conversando
amigavelmente, me dizendo “bem-vinda” e “obrigado” e “estamos
animados para começar” enquanto passavam. Jonathan, o último a
sair, abriu um sorriso largo e apertou minha mão.
E sobramos Archie e eu. Encarando um ao outro.
Assenti, resignada.
– Hum, certo, bem, vou botar minha bolsa no quarto e…
– Se você quer fazer um passeio, é melhor colocar calçados mais
confortáveis – interrompeu Archie, indicando meus calcanhares.
Eu era obcecada por saltos agulha; quanto mais altos, melhor.
Peguei esse hábito de Natalie. Reparei que ele olhou para minhas
sandálias, mas seu olhar se demorou nas minhas pernas. Apertei os
olhos.
– Ah, acho que consigo acompanhar.
E foi assim que ganhei um passeio particular pelo Bryant
Mountain House.

– Por onde devemos começar? – perguntei quando saímos da sala


de reuniões.
Ele me olhou friamente.
– Há um passeio todas as manhãs para conhecer o resort, guiado
cada vez por uma pessoa diferente da equipe. O senhor Phelps é
quem está dando o de hoje e ele é um ótimo guia, sabe de muitas
coisas. Vai começar em alguns minutos, a partir da Sala do Lago.
Deve dar uma boa ideia do trabalho que você vai ter. – Ele saiu
andando, mas eu o chamei de volta.
– Achei que você ia me levar para conhecer o resort.
– Senhorita Morgan, tenho muitas coisas a fazer esta manhã,
muitas. A última coisa para a qual tenho tempo é caminhar pelo
resort.
Trinquei os dentes.
– E a última coisa que eu quero fazer é passar minha manhã com
o filho mal-humorado do dono que se disfarçou de mensageiro e
disse que moveria montanhas pelos hóspedes, mas não pode
conseguir uma televisão para o quarto. No entanto, aceitei o
trabalho e seu pai me contratou, então vou fazer o que seu pai
quiser. E ele quer que você me leve para conhecer o resort, não que
me jogue nas costas do pobre senhor Phelps. – Gostando ou não,
ele seria meu guia. – Então, por onde nós começamos?
Ele se virou para mim, parecendo mais irritado do que em toda
aquela manhã.
– Você é destruidora assim em todos os seus projetos?
– Engraçado você falar em destruição, senhor Bryant,
considerando que é exatamente o que cuido para que não aconteça
em nenhum dos meus projetos.
Ele fez uma careta.
– Isso nunca vai acontecer aqui. Não vou permitir que aconteça
aqui.
– E é exatamente por isso que você precisa da minha ajuda –
lembrei a ele.
– Meu pai contratou você, não…
– Você? – interrompi. Eu também podia participar desse jogo. –
Sei que foi seu pai quem me contratou. Vou me arriscar aqui e dizer
que, segundo meus instintos, ele vai se aposentar ano que vem,
certo?
– No final deste ano. Aonde você quer chegar?
Eu sabia.
– E você vai assumir no lugar dele, certo?
– No dia primeiro de janeiro.
– No dia primeiro de janeiro, é? Essa mudança vai acontecer
antes ou depois do Mergulho no Lago?
– Depois do… Como você sabe sobre o Mergulho no Lago?
Firmei bem o olhar.
– O Mergulho no Lago, uma das tradições mais antigas do final de
ano no Bryant Mountain House? Depois da meia-noite do Ano-novo,
os funcionários e hóspedes, ao menos os corajosos, vão até a ponta
sul do lago por uma área de gelo que foi preparada especificamente
para isso. Me parece loucura, mas vocês fazem isso desde os anos
vinte, certo?
Seus olhos azuis me observaram com atenção.
– Desde 1919, na verdade.
– Ótimo, então estamos chegando em cem anos e vamos ter que
fazer alarde sobre isso. Quebrar o recorde de idiotas congelando os
bigulins ao mesmo tempo.
– Bigulins?
Dei de ombros.
– Imagino que a maioria dos idiotas seja homem. Me diga: estou
enganada?
Ele riu, uma gargalhada honesta. E mudou a expressão
completamente. Pela primeira vez, não havia desconfiança, nem
irritação, nem tentativa de imaginar o que eu diria para poder dizer
primeiro. Percebi com um sobressalto que ele não era tão mais
velho do que eu. Uma gargalhada, uma simples gargalhada, tirou
anos do rosto dele.
– Pronta para o passeio?
Dei um suspiro de alívio.
– Sim, estou. Por onde vamos começar?
– Pela Sala do Lago. É lá que os passeios sempre começam –
respondeu ele, virando-se e indo na direção da escada. – Você
vem?
– Você ainda vai me passar para outra pessoa? – perguntei,
acompanhando-o.
– Não, vou assumir o lugar do senhor Phelps. Tem certeza de que
não quer botar calçados mais confortáveis?
Ignorei o desafio, apesar de esse carregar menos ressentimento.
Progresso. Por mim, ótimo.
– Bigulins – eu o ouvi murmurar.
Sim. Progresso.
Capítulo 5

Todas as manhãs, aparentemente desde o início dos tempos, um


passeio pelo hotel era guiado por uma pessoa da equipe. Podia ser
alguém da recepção, podia ser alguém da cozinha, podia ser o
próprio Jonathan Bryant. Não importava, a questão era que todos
contavam essencialmente a mesma coisa, com alguns detalhes
pessoais para personalizar a história daquele grande e antigo hotel.
O tour saía da Sala do Lago às nove e meia da manhã e sempre
cobria, se o tempo permitisse, a casa principal, os jardins e a doca.
Quando Archie e eu chegamos na Sala do Lago, fiquei atônita ao
perceber que ainda não tinha visto aquele lado do resort.
– Como assim, você ainda não viu o lago? – perguntou ele,
incrédulo.
– O tempo estava péssimo ontem à noite, e depois de descobrir
que o mensageiro que carregou minhas malas era o dono e que não
ficou nada feliz com minha chegada antecipada, me pareceu uma
boa ideia ficar no quarto e não atrapalhar. – Ele teve a decência de
parecer um pouco envergonhado, talvez por achar que reagiu de
forma agressiva demais ontem. – Além do mais, eu não queria
vagar pelos corredores tarde da noite com todas aquelas pessoas
sinistras me olhando das paredes.
Isso fez Archie revirar os olhos, e qualquer vislumbre fugidio de
pedido de desculpas sumiu no momento em que falei das fotos
sinistras. Refleti que eu não precisava ter mencionado as fotos
sinistras, mas não resisti. Eu estava cutucando a onça com vara
curta? Talvez.
– De qualquer modo, você deveria tirar um momento para ver o
lago. Não fazer isso seria como ir ao Grand Canyon e só tentar vê-lo
do estacionamento.
– Você está comparando um lago nas Catskills ao Grand Canyon?
– perguntei, arqueando uma sobrancelha.
– Nós temos cinco minutos até o passeio começar, senhorita
Morgan. Veja por si mesma – respondeu ele, fazendo sinal para que
eu entrasse no salão enquanto ele se virava para falar com alguém
da recepção.
Eu queria muito ver o lago, então entrei. Mas não porque ele
mandou.
A Sala do Lago tinha um nome adequado. Era relaxante e
confortável e exibia várias mesas longas com jogos como Monopoly,
Trival Pursuit e, para os pequenos, Serpentes e Escadas. Tábuas
largas de pinheiro formavam o piso, lisas, mas com marcas
agradáveis de anos de uso. Havia poltronas e sofazinhos, com mais
estampas de rosas, reunidos em áreas de conversa; as paredes
eram cobertas por lambris lindos e havia outra daquelas lareiras
gigantescas. Essa era ladeada de azulejos de vidro verde-
esmeralda, enegrecidos parcialmente por anos de fumaça e cinzas.
A parte superior da lareira era formada de uma única peça de
madeira entalhada, e só os cães da lareira seriam capazes de
sustentar uma sequoia.
Enquanto eu explorava, alguém do resort entrou correndo com
uma cesta de gravetos e começou a acender uma pequena fogueira
dentro da lareira gigantesca. Em frente à lareira, havia um longo
sofá de couro de aparência aconchegante e várias cadeiras de
balanço, e não foi difícil me imaginar encolhida ali em uma tarde fria
com um bom livro e um chocolate quente. Olhei ao redor esperando
ver isso, mas o local estava praticamente vazio, exceto por dois
cavalheiros idosos jogando cartas no canto e por três senhoras de
cabelinho branco com agulhas de tricô, que brilhavam enquanto elas
tricotavam e conversavam.
Hum. Teríamos que trabalhar para levar uma clientela mais jovem
para lá. Mas, naquele momento, foi a coisa azul à minha direita que
chamou minha atenção. Janelas amplas, da largura da sala,
levavam a uma varanda comprida com pelo menos cinquenta
cadeiras de balanço. E depois? O lago.
Eu tinha visto fotos e estudado, mas nada poderia ter me
preparado para a pura beleza da água.
Entalhado havia milhões de anos na encosta da montanha, quase
como um espelho refletindo as nuvens fofas no céu, o lago era largo
e longo, e com a água mais azul, de um azul profundo, escuro.
Quase da cor dos olhos de Archie.
O pensamento surgiu rapidamente, espontâneo. Com a mesma
rapidez, eu o espantei.
Mantenha a concentração, Clara, há um trabalho a ser feito. E um
lago a ser admirado.
Era cercado por rochas enormes, que iam até a água como se um
gigante tivesse jogado pedrinhas. Eram visíveis na água
transparente, até as profundezas. Uma floresta de pinheiros
envolvia o lago e o protegia da maior parte do vento que açoitava a
montanha, resultando em uma superfície lisinha na água.
Uma doca de pinho se prolongava da margem, com lindas canoas
antigas e barcos a remo, mas vi também vários caiaques e pranchas
de paddle.
A partir da varanda da sala, caminhos e trilhas serpenteavam,
alguns ao redor do lago e alguns na direção da montanha. E, bem
acima, no alto do penhasco mais próximo, quase na parte mais
distante do lago, havia uma torre de observação, feita de pedra.
Era, em uma palavra, deslumbrante. A sensação que senti só de
ficar poucos minutos na varanda foi revigorante, calmante. Era tão
fácil imaginar carruagens cheias de famílias ricas de Nova York e da
Filadélfia saindo do trem cheio de fuligem na estação de
Poughkeepsie e viajando os últimos quilômetros até o Bryant
Mountain House para passar o verão longe da agitação da cidade
grande, e a sensação de assombro que deviam ter sentido ao ver a
gloriosa paisagem...
Não era surpresa que a família Bryant tivesse se acomodado ali,
determinada a compartilhar o amor pela natureza com os hóspedes.
Um verão ali poderia ser muito benéfico para famílias cansadas
da agitação urbana.
Revigorada, voltei para o salão, pronta para o passeio.
Duas outras hóspedes se juntaram a nós. Duas. As duas com uns
oitenta anos, sendo generosa. Muito generosa. As duas senhoras
estavam olhando para Archie com adoração enquanto ele
conversava com elas; ficou claro que o conheciam muito bem e
frequentavam o resort havia anos.
– Obrigado por se juntar a nós, senhorita Morgan.
– Eu não perderia isso por nada. Você estava certo sobre o lago,
a propósito. É lindo.
Ele pareceu satisfeito.
– Bem, vamos começar. Senhoras, sei que ambas já me
acompanharam neste passeio numerosas vezes, mas temos uma
hóspede nova hoje, que está vindo à nossa montanha pela primeira
vez.
– Ah, bem-vinda, bem-vinda! – exclamou uma delas, segurando a
bolsa na frente do peito como se fosse um urso de pelúcia. – Não é
o máximo?
– É. – Eu sufoquei uma gargalhada. – É o máximo.
– Você é nossa hóspede desde… Ah, desde que era garotinha,
não é mesmo? – Archie perguntou à senhora da bolsa, e ela deu um
gritinho de júbilo.
– Desde que o pai do Archie era garotinho. Eu esperava com
ansiedade a época de vir para cá. Meus pais me traziam, depois eu
trouxe meus filhos, e é assim que é!
– Eu passava todos os feriados de Quatro de Julho aqui, a minha
família alugava alguns quartos pelo verão todo – disse a outra
mulher, ansiosa para acrescentar sua história. E talvez para
conquistar o brilho do sorriso de Archie. – Na época, as esposas e
os filhos ficavam o verão todo, e os maridos vinham nos fins de
semana.
Era assim em muitos dos hotéis antigos com os quais trabalhei:
gerações após gerações cheias de lembranças parecidas. A
senhora do Quatro de Julho e a da bolsa sorriram uma para a outra,
depois para Archie, e tossi para disfarçar a risada.
– Bem, então eu deveria deixar que as duas damas guiassem o
passeio, pois aposto que sabem tudo tão bem quanto eu – disse
Archie, abrindo um sorriso largo que as fez rir mais uma vez.
Surgiu para mim de repente uma imagem de Cary Grant, tranquilo
e relaxado, um tremendo encanto. Era dele que Archie me fazia
lembrar, com o sotaque da costa leste e tudo.
Depois que as risadas passaram, o passeio finalmente começou.
E quase na mesma hora fui mergulhada na história do resort. Tudo
começou em 1872, quando os irmãos Bryant, Theophilus e
Ebenezer, compraram o pequeno Sky Inn, de oito quartos, no lago
Sky, nos arredores de Bailey Falls. A construção de um hotel maior
começou na primavera seguinte, com o objetivo específico de atrair
famílias ricas do nordeste para que respirassem o ar da montanha e
apreciassem a o santuário natural. Os irmãos Bryant tinham a ideia
de serem protetores da terra e da natureza e compraram o máximo
de terrenos e fazendas ao redor, mantendo-os como reserva
protegida por gerações.
– Foi quando eles começaram a organizar o que chamaram de
Sociedade do Bem Maior. Os irmãos acharam desde o começo que,
se pudessem reunir líderes mundiais, chefes de estado e da
indústria em um lugar lindo como o lago Sky, poderiam influenciar
uns aos outros a trabalharem juntos para o bem maior.
– Ora, isso é genial! – eu disse.
Ele virou a cabeça para mim, com uma expressão de dúvida.
– Isso foi sarcasmo, senhorita Morgan?
– De jeito nenhum, senhor Bryant – respondi, me perguntando se
passaríamos do estágio de chamar um ao outro de senhor e
senhorita. – Eu acho mesmo genial.
– Bem, sim. E muito à frente do tempo deles.
– Como está isso atualmente?
– Ah, a Sociedade do Bem Maior foi oficialmente desfeita nos
anos trinta, um pouco antes de os Estados Unidos se envolverem na
guerra. Houve conversas sobre reativá-la depois, mas Ebenezer já
tinha falecido, e Theophilus tinha passado o controle ao filho, que
cuidava das operações de rotina do resort. Lembre que, depois da
guerra, as coisas cresceram por aqui, e todos os dias tinha gente
chegando e saindo, com filas para o check-in que às vezes iam até
lá fora!
Eu estava prestes a perguntar como ele sabia, pois o pai dele era
um bebê na época, mas ele respondeu antes que eu falasse.
– Já vi fotografias – explicou ele, e assenti. – Tive a sensação de
que havia mais sarcasmo a caminho.
– Havia – admiti, e perguntei: – Considerando a época em que
estamos vivendo agora, senhor Bryant, refazer a sociedade pode
ser uma excelente forma de aumentar o envolvimento da
comunidade. E se pudermos divulgar essa estratégia pelo
Facebook, Twitter, Snapchat e outras redes, podemos trazer uma
série de visitantes novos para o resort. Com sorte, gente com
enorme presença nas redes sociais.
– Você está sugerindo que podemos resolver a paz mundial se eu
trouxer a Taylor Swift para a minha montanha?
– Quem é que está sendo sarcástico agora? – perguntei, olhando
diretamente para ele.
Ele resmungou algo ininteligível e nos fez seguir adiante.
– Agora, senhoras, vocês vão ver aqui, ao entrarmos na sala de
música, que, quando criaram esta sala, tiveram grande preocupação
com a acústica…
O passeio durou um pouco mais de uma hora e foi o melhor curso
intensivo de tudo relacionado ao Bryant que eu podia ter feito.
Olhamos a sala de jantar quando a estavam arrumando para o
almoço, fomos à varanda do quarto andar para ver a vista do lago
de lá e paramos no spa, onde tive a agradável surpresa de ver que
tinha havido uma reforma recente. Eu aproveitaria o spa assim que
fosse humanamente possível.
E a minha parte favorita foi… a antiga estação de refrigerante.
Localizada na loja de suvenires, tinha um balcão comprido com
bancos giratórios, espelho atrás, balinhas de centavos e fileiras e
fileiras de caixas de sorvete caseiro. Além de todos os doces, eles
serviam uma seleção limitada de lanches na hora do almoço para
quem não queria o bufê formal de serviço completo no salão de
jantar. Havia várias placas penduradas atrás do balcão com alguns
dos principais itens do cardápio, e reparei em uma coisa embaixo
chamada…
– Especial do Archie? Espera aí, tem um sanduíche em sua
homenagem? – perguntei enquanto Archie tentava nos levar
embora.
– Pode apostar que tem – disse a mulher atrás do balcão, de uns
sessenta anos. O cabelo grisalho estava preso em duas tranças
compridas que desciam pelas costas, e o olhar estava carregado de
diversão. – Quer saber o que tem nele?
Archie pareceu estar morrendo de vergonha.
– Não tem nada que eu queira saber mais – respondi, mantendo o
olhar nele.
– Bem, começa com pão branco comum – começou ela, e Archie
balançou a cabeça.
– Judith…
– A fatia de cima leva ketchup e a outra leva Miracle Whip, certo,
Archie? Nada de maionese pra esse garoto! – Judith apontou na
direção dele com o polegar, e ele deu de ombros timidamente.
– Depois, três pedaços de picles…
– Adoro picles! – disse a senhora da bolsa, e a do Quatro de
Julho riu.
– E termina com uma porção generosa de pasta de salsicha de
cabo a rabo!
– Eca, isso devia ser ilegal. – Eu ri.
– Obrigado, Judith – disse Archie da outra ponta do balcão.
– Alguém pede isso? – perguntei.
– Claro, o Archie pede o especial do Archie pelo menos três vezes
por semana, se bem que, de vez em quando, pede o Jonathan.
– O que tem no Jonathan? – perguntei.
– Mesma coisa, mas com cebola.
– Meu Deus, não – eu disse, com uma expressão horrorizada.
– Obrigado, Judith – repetiu Archie, nos levando de volta ao
saguão.
– Quando vamos poder experimentar o especial do Archie? –
sussurrou a senhora da bolsa, fazendo a do Quatro de Julho rir de
novo enquanto Archie ficava vermelho até as orelhas.
– Vamos continuar o passeio, certo? – disse ele, nos levando para
longe da estação de refrigerante, de onde Judith acenava com
orgulho.
– Ah, mal posso esperar para ver o que vem agora – falei com
alegria.

As senhoras da bolsa e do Quatro de Julho se afastaram com um


aceno de despedida e uma última risadinha para Archie, e eu e ele
fomos parar na sala de televisão.
– Está vendo, senhorita Morgan, você tem acesso a uma televisão
sempre que quiser – disse ele, sorrindo docemente.
Revirei os olhos e olhei ao redor. Como tudo ali, o espaço era
decorado com linda madeira escura entalhada e ocupado por
poltronas e sofazinhos de aparência confortável, tudo em volta de
uma televisão que devia ter começado a vida por volta do começo
dos anos oitenta.
– Se eu não soubesse, acharia que isso é piada.
– Não é piada.
– Você tem um videocassete, senhor Bryant, e vai ficar aqui de
cara séria dizendo que não é piada?
– Olhe melhor. É um aparelho híbrido de videocassete e DVD.
– Uau. Só… uau.
– Nos anos sessenta, meu avô considerou colocar televisões nos
quartos, e meu pai também, alguns anos depois. Mas eles viram,
como eu continuo a ver, o benefício de poder vir para cá para fugir.
Atualmente, é ainda mais importante poder se desconectar, se
desligar.
– Você já mencionou isso.
– Entretanto – continuou ele –, é claro que sempre vimos a
necessidade de permanecer um pouco conectados ao que se passa
no mundo, então sempre fizemos questão de que houvesse uma
televisão disponível quando necessário. Os hóspedes adoram
assistir à queda da bola no Ano-novo todos juntos, amontoados na
mesma sala em que, antes deles, outros hóspedes viram Neil
Armstrong andar na lua. Partidas do Super Bowl, Jogos Olímpicos,
noites de eleição, todos são eventos em que nossos hóspedes
mantiveram contato com o mundo, mas ainda unidos de uma forma
única.
– Tudo bem, entendi. Entendi mesmo, principalmente esse
espaço compartilhado que vocês têm aqui. É excêntrico,
aconchegante, leva a outro tempo e lugar, blá-blá-blá. Mas, pelo
amor de Deus, as pessoas gostam de ter televisão no quarto!
Principalmente considerando o quanto vocês cobram por noite!
– Preço por noite? Voltamos a isso? Senhorita Morgan, o que
você não consegue perceber é que tudo está incluído no preço. As
refeições, as atividades, o chá da tarde, a diversão…
– Mas não uma televisão. Você tem que concordar comigo nisso,
ao menos um pouco.
– Por que é tão necessário que você tenha televisão no seu
quarto? – perguntou ele, em um tom desafiador. Era uma pergunta
justa, ainda que ele fosse um filho da puta xereta.
Mas como se explica a um estranho por que o silêncio e a
tranquilidade são simplesmente inaceitáveis?
– Meus motivos são particulares – declarei, sem querer explicar
por que uma mulher adulta preferia o som agudo de música country
clássica em vez de deixar as vozes do passado voltarem e a
puxarem pelo pé.
Conway Twitty versus sua mãe que foi presa e a deixou em um
abrigo para crianças?
Olha que isso poderia dar uma música country…
– A questão, senhor Bryant, é que, embora eu aprecie a
dedicação da sua família à natureza e à preservação de um
descanso silencioso, pelo amor de Deus, vocês têm que ceder um
pouco!
Ele levantou a mão.
– Você está me mandando calar a boca? – perguntei, cruzando os
braços.
Ele inclinou a cabeça para o lado.
– Está ouvindo isso? – Ele se inclinou para perto do grande
aquecedor no canto, ouvindo com atenção.
– Se ouço… Ei! Ei, volta aqui! – eu gritei enquanto ele saía
andando a passos rápidos pelo saguão, resmungando baixinho. –
Eu estava falando com você!
– Ora, então me acompanhe, senhorita Morgan.
– Ah, seu… – Saí correndo atrás dele pelo aposento, passando
por uma porta dupla atrás da recepção e descendo dois lances de
escada.
– Eu estava no meio de uma coisa com você e você sai correndo
como um morcego fugindo do inferno!
– Nem tudo pode girar em torno de você e sua necessidade
incessante de uma televisão.
Nós dobramos uma esquina, passamos por alguns armários
antigos e descemos outra escadaria íngreme.
– É o que quero dizer, senhor Bryant. Que não sou minoria aqui.
Praticamente todo mundo tem uma televisão no quarto, ainda mais
quando está de férias. Pare de tentar me fazer me sentir como se
fosse eu a errada aqui!
No pé da escada, ele parou, pegou uma lanterna em uma
prateleira e virou para a direita.
– Se você está se sentindo errada, a culpa é sua. Estou apenas
tentando observar que, aqui em cima, longe da cidade grande e do
barulho e do agito, você deveria conseguir se desligar.
– Você disse mesmo agito?
Andamos rapidamente por arcos antigos de tijolos, por câmaras
frigoríficas com interior de pedra, e, quando passamos por uma
antiga adega abobadada, ele interrompeu a crítica ao meu vício em
televisão para voltar a bancar o guia.
– Era aqui que escondiam as bebidas durante a época da Lei
Seca.
– É mesmo? Achei que este lugar era seco como o Saara naquela
época.
– Oficialmente, era, claro.
– Claro. – Sorri, pensando em todos aqueles Bryants
engomadinhos ali embaixo entornando gim com os funcionários. –
Ainda tem algum por aqui?
– Não é nem meio-dia, senhorita Morgan.
– Nós já estaremos no lugar para onde quer que estejamos indo
na hora do coquetel? Para onde nós vamos, exatamente? –
perguntei conforme o seguia por outro túnel serpenteante, ainda
mais escuro.
– Sala da caldeira – respondeu ele, e as palavras flutuaram no
corredor longo e escuro à frente.
– Tipo do Freddy Krueger?
– O cara de suéter vermelho e verde?
– O que tem navalhas no lugar dos dedos, é. – Afastei teias de
aranha do rosto e espiei a escuridão. No final do corredor, uma porta
pesada de metal se abriu nas dobradiças barulhentas, e Archie
parou na porta.
– Então, sim, esse tipo de sala da caldeira.
– Que ótimo. – Engoli em seco e fui engolida por nuvens de vapor.
– Meu Deus, está fervendo aqui embaixo! – exclamei, apertando os
olhos para enxergar melhor na neblina. Uma cidade inteira de canos
e bombas morava ali, metal rugindo e vapor… vapor para todo
lado.– Não estou surpresa de haver lareiras em todos os quartos. –
Examinei o equipamento. Idade da Pedra, aquelas caldeiras eram
da Idade da Pedra! – Onde estão os caras de macacão jogando
carvão lá dentro?
– Você não está sendo meio dramática? – perguntou ele enquanto
consultava um mapa desenhado à mão na parede. – Sala do Lago,
Sala do Lago… Achei! – Ele começou a mexer em registros e
alavancas.
– Não acho, senhor Bryant – respondi, olhando em volta com um
olhar mais crítico. – Você tem ideia do quanto estaria economizando
em aquecimento, sem contar os créditos de imposto que receberia,
se trocasse por tecnologia mais ecológica?
– Espere, espere só um segundo: você acabou de chegar e já
está me mandando instalar um sistema completamente novo de
aquecimento? Nós usamos esse sistema há anos e nunca falhou. –
O vapor estava ficando denso, e a sala estava quente e grudenta e,
meu Senhor, estava ficando cada vez mais quente.
Puxei a jaqueta de couro para deixar entrar alguma brisa.
– Então por que exatamente estamos aqui? Por que exatamente
você saiu correndo no meio de uma conversa?
Ele me olhou com incredulidade quando uma batida alta começou
a soar na fornalha à minha direita. E a fornalha à minha esquerda
começou a cuspir um jato enorme de vapor, enchendo o ar já
indistinto com uma nuvem ainda maior.
– Você estava dizendo? – perguntei, com um sorrisinho
considerável.
Ele chegou mais perto, se abaixou para passar por um cano e
puxou a gravata enquanto se aproximava.
– Ah, você é especialista em aquecimento agora? Quando a
faculdade de hotelaria ensinou isso?
Senti um filete de suor descendo pelo peito e desisti de deixar
algum ventinho entrar: tirei a jaqueta.
– Eu não sei nada sobre aquecimento e resfriamento além do fato
de que, quando ligo o ar-condicionado no verão, não quero ouvir
barulho. Mas conheço os números do seu balanço, e sei que a
quantia gasta anualmente em serviços essenciais é absurda.
– Eu tenho um hotel enorme – retrucou ele, tirando o paletó e
pegando uma chave inglesa enorme.
– Que eu tenho certeza que fica bem isolado no inverno –
respondi, passando por baixo de um cano e entrando na frente dele.
– Você quer que eu fale sobre a corrente de ar no meu quarto
ontem? Minha cama estava um gelo! Primeiro, achei que era da
varanda, depois, achei que estava entrando por baixo da porta, do
corredor. No fim das contas, vinha dos dois lugares! Parecia um
túnel de vento.
– Sinto muito, senhorita Morgan, por sua cama ter ficado tão fria
ontem à noite.
– Diz o sujeito se gabando do hotel enorme.
Nós nos encaramos, travados em uma batalha silenciosa de
determinação. Os óculos de Archie estavam começando a embaçar,
mas continuamos parados, cara a cara. Inspiramos ao mesmo
tempo, e vi a pulsação no maxilar, por baixo de uma leve barba por
fazer. Nós dois estávamos nervosos, irritados, aborrecidos. Ele
lambeu os lábios. Só a ponta da língua apareceu e tocou em uma
gotícula de suor.
– Alguém já disse que você é incrivelmente grosseira?
– Todo mundo que já me contratou.
– E você tem orgulho desse histórico?
– Todos eles agora me dão referências estreladas. Posso fornecer
o contato deles para você.
Ele balançou a cabeça, se virou e começou a trabalhar com a
chave inglesa, virando um troço, usando a força do corpo todo. Ele
grunhiu em determinado ponto, e por causa do vapor vi os músculos
de suas costas se contraindo sob a camisa branca. Dei um passo
para mais perto, só um, para assistir à briga dele com o negocinho.
– Quase… Consegui… Pronto! – exclamou, se virando triunfante
em um jorro final de vapor e assobio e dando de cara comigo bem
mais perto do que um momento antes.
Surpresa por ele ter acabado tão rápido e pega no flagra olhando,
soltei um “Bravo, sr. Bryant” e me dei um tapa mental por falar de
um jeito tão parecido com o Feliz aniversário, sr. Presidente da
Marilyn Monroe.
Ele deu um sorrisinho. Eu fechei a cara.
Babaca.

Saímos do porão suados e grudentos, desgrenhados e um pouco


sujos de fuligem. Na Sala do Lago, onde tínhamos começado o
passeio, bati palmas, ansiosa para voltarmos ao trabalho e fugirmos
do que tinha acabado… Enfim.
– Bem, obrigada pelo passeio, especialmente esse final agitado.
Todos os hóspedes ganham esse final especial ou…?
– Só você, senhorita Morgan – disse ele, botando a mão no
ouvido com exagero e ouvindo o aquecedor. – Escute isso,
ronronando como um gatinho.
– Um gatinho carregando uma bola de ferro, talvez – eu disse,
debochada. – Ainda está estalando.
– Paciência, alguns desses sistemas precisam de um pouco de
ajuste de tempos em tempos, mas, no final, valem a atenção
especial.
– Ajuste isto, então: eu vou me limpar. Depois, a pedido do seu
pai, para aproveitar o dia aqui na sua montanha, vou sair e passear
um pouco.
– Sim, sim, claro – respondeu ele, limpando o resto do vapor e da
fuligem dos óculos.
– Por onde você acha que devo começar?
– Uma massagem?
– Talvez.
– Está frio demais para nadar no lago.
– Concordo. Eu estava pensando em sair para caminhar. Alguma
sugestão de trilha?
– Você vai caminhar? Nisso? – Pelo janelão, ele olhou para a
chuva, que tinha recomeçado. Estava um pouco mais quente do que
no dia anterior, então agora era só chuva, sem gelo. Nada de
encostas escorregadias.
– Eu não derreto. Além disso, mais do que um dia presa aqui
dentro e eu vou começar a escalar paredes.
– Você pode andar em volta do lago. É plano e coberto de
cascalho, então não deve estar lamacento. É um bom jeito de ver a
propriedade e tem uma vista linda do hotel.
– Decidido – eu disse, me virando para sair.
– Você tem planos para o jantar? – perguntou ele, tão rápido que
imaginei se estava me perguntando… – Quer dizer, precisa que eu
faça uma reserva para você na sala de jantar ou vai comer no
quarto de novo?
– Como você sabe que eu comi no quarto ontem? – Pisquei com
uma expressão inocente.
Ele balançou a cabeça com desdém.
– Este hotel é meu, senhorita Morgan. Você acha mesmo que eu
não sei tudo o que está acontecendo?
Preferi não responder.
– Vou à sala de jantar esta noite. Tenho companhia. Duas, na
verdade.
– Ah. É mesmo. – Declaração, não pergunta.
– Aham, minhas amigas Roxie e Natalie vêm jantar. Alguma
recomendação?
– Tudo é ótimo – respondeu ele, mais uma vez com aquele
orgulho no rosto.
– É mesmo? Então todas aquelas críticas que li no TripAdvisor e
no Yelp estavam erradas? Acho que vamos descobrir, considerando
que uma das minhas companhias para jantar é chef profissional e
com certeza vai ter muito a dizer sobre o quanto tudo é excelente...
O orgulho sumiu, a irritação voltou, e decidi que era hora de sair
para caminhar.
Capítulo 6

Quando fiz minha reserva original, me informaram que, enquanto


o café da manhã e o almoço eram casuais, os hóspedes se
arrumavam para o jantar. Os homens tinham que usar paletó e
gravata, e as mulheres deveriam comparecer de esporte fino ou
“trajes de resort”. Sabendo disso, enchi minha mala de divertidos
vestidos rodados e de saltos altos. Para o meu primeiro jantar oficial
no Bryant Mountain House, escolhi um vestido transpassado rosa-
escuro com cerejinhas lindas. Com os saltos vermelhos, uma
camada generosa de batom vermelho-cereja e meu cabelo louro, na
altura dos ombros, penteado para trás, eu parecia um furacão retrô.
Modéstia à parte.
À parte mesmo.
Arrumar-se para jantar: que conceito lindo e muitas vezes
esquecido. Era comum que minhas refeições consistissem de
comida pedida por telefone e fossem feitas no sofá em frente à
televisão, o que, no que dependesse de Archie, não aconteceria ali;
então aproveitei a oportunidade de me arrumar um pouco. Estava
animada para ver minhas amigas; fazia um tempo que as garotas
não se reuniam, e fiquei feliz de finalmente conhecer a famosa sala
de jantar do Bryant Mountain House.
Às seis e quinze em ponto, já descendo a escada, ouvi minhas
amigas antes de vê-las. Como sempre.
– É aqui, juro, Rox! É aqui que você e o Leo deviam juntar os
trapos.
– Não sei, é tão formal... Sempre imaginei a gente casando em
um lugar menos espalhafatoso, um pouco mais caseiro.
– Menos espalhafatoso? Do quê? Do que a Fazenda Maxwell,
com a mansão enorme e o celeiro de mármore?
– O celeiro não é de mármore. Não seja ridícula.
– Tem ou não uma pedra de mármore que foi colocada pelo antigo
governador de Nova York?
– Pelo presidente.
– Pelo presidente de Nova York?
– Não, pelo presidente mesmo, do país. Ao que parece, ele era
amigo do tataravô do Leo.
– Eu realmente não posso m ais falar com você, não sou chique o
bastante para essa conversa. E isso vem de uma mulher que está
usando sapatos Louboutin que ainda vão ser lançados.
Balancei a cabeça e espiei atrás da escada. Vi minhas duas
amigas tirando os casacos e os cachecóis e atraindo olhares de
todos os homens presentes com mais de catorze anos e menos de
oitenta. Roxie era estilo a garota da casa vizinha, com cabelo
castanho ondulado e olhos cintilantes que irradiavam saúde e
felicidade. A maior parte da felicidade atualmente vinha do
namorado deslumbrante, Leo Maxwell, fazendeiro de sangue azul
de uma família de Nova York, que comia na mão dela – e ela no
tórax dele, para o prazer de Leo.
Se Roxie era uma garota comum, Natalie era o demônio do outro
lado da rua, a que você torce para seu marido não ver quando ela
abre a porta só de camiseta pela manhã para pegar o jornal.
Deslumbrante, com pele de marfim e cabelo ruivo-dourado, ela tinha
a cabeça de Manhattan e a boca de uma moradora do Bronx. Era
toda curvas, o tempo todo, um sofrimento para qualquer homem que
achasse que tinha a menor chance perante a força da natureza que
era Natalie. Fazia sentido que o homem que de fato tinha essa
chance fosse igualmente uma força da natureza; um pedaço de mau
caminho absurdo e lindíssimo, que tinha jogado futebol americano,
tirava leite de vacas e batia manteiga; e estou falando mesmo de um
pedaço de mau caminho: Oscar Mendoza, o leiteiro que ela vinha
ordenhando havia meses.
Minhas garotas contavam os detalhes sempre que nos
juntávamos ou por telefone, e parecia óbvio que elas estavam
convencidas de que a próxima colheita seria na minha plantação.
Mas, calma, falando em colheita…
– Eu perdi alguma coisa? Vocês vão se casar? – perguntei,
descendo os últimos degraus e interrompendo a discussão.
– Garota, vem aqui agora, porra! – gritou Natalie, surpreendendo
mais do que alguns hóspedes e alegrando ao menos uma. –
Caramba, você está linda!
– Olha essa boca, Grayson! – respondi, me jogando em cima das
duas e deixando que me abraçassem forte. Enquanto elas eram
altas, eu era pequena, e era bom estar no meio do sanduíche de
novo. – Falando sério, que conversa é essa de casamento?
– Ela está noiva! – disse Natalie, e eu me virei e dei um grito.
– Ela não está noiva – corrigiu Roxie, mostrando o anelar ainda
vazio na mão esquerda, e mudando depois para o dedo do meio. –
Para de dizer isso!
– Por que ela está dizendo isso? – perguntei, confusa.
– Pergunta aonde ela foi no último fim de semana. Vai, pergunta –
instruiu Natalie. Antes de eu abrir a boca, ela respondeu à própria
pergunta. – Ela foi para a cidade, para a minha cidade, sem me
dizer, e olhou uma caralhada de anéis de noivado na porra da
VC&A.
– VC&A? – sussurrei para Roxie.
– Van Cleef & Arpels. – Ela ficou vermelha.
– Quem chama assim? – sussurrei em resposta.
Natalie finalmente percebeu que tinha perdido a plateia e chamou
nossa atenção de volta beliscando nossas bochechas.
– Qualquer um que tenha conta na loja a chama assim, e a família
Maxwell tem, porra!
– Espera, espera! Me mostra a sua mão – eu disse, revirando os
olhos para a falação de Natalie. – Não estou vendo anel.
– Isso porque, mesmo com toda essa baboseira que essa doida
está dizendo, eu não estou noiva. Nós só… olhamos.
– Uns diamantes gigantescos – interrompeu Natalie.
– Sim, uns diamantes gigantescos – respondeu Roxie, abrindo um
sorriso tímido. – E eu o obriguei a parar de olhar. Sinceramente,
como ele espera que eu cozinhe com um cubo de gelo em cima do
dedo?
– Liga para o Leo agora, diz que eu aceito o cubo de gelo. Eu
aceito o cubo de gelo! – Natalie fez que ia pegar o celular, mas eu
coloquei uma mão tranquilizadora no ombro dela.
– Que tal esperarmos o Oscar fazer isso, hein? Enquanto isso,
vamos jantar. Que tal? – perguntei.
– Sim. Combinado. Vamos comer – disse Natalie, assentindo. –
Mas eu vou fazê-la desenhar esse anel no guardanapo pra saber
como é.
– Você acha mesmo que tem guardanapos de papel no Bryant
Mountain House? Este lugar só tem linho, não é, Clara? – perguntou
Roxie, e eu sorri.
– Não importa, vou arrumar um pedaço de papel pra você
desenhar o anel. Enorme. Enorme! E eu estou com Oscar, então
entendo de enorme.
– Ah, pelo amor de Deus, vamos logo! – eu disse, puxando as
duas para a sala de jantar.
Enquanto seguíamos pelo corredor, Roxie foi se maravilhando
com tudo o que viu.
– Não venho aqui há séculos, desde que era criança! Minha mãe
me trazia todos os anos na Páscoa. Tem um brunch incrível no
domingo com uma caça aos ovos no gramado, claro. Mas o que me
lembro melhor é do pãozinho de Páscoa.
– Pãozinho de Páscoa, um custa um centavo e dois custam dois?
– perguntou Natalie.
– Ah, esse custava mais de um centavo. Era o melhor, fofinho e
com gosto de canela por dentro e as menores groselhas que você já
viu, e dourados por fora com uma cruz perfeita em cima, feita de
açúcar. Eu comia parte por parte, um pouco de cada vez, pra tentar
descobrir quais outras especiarias além da canela eles usavam, se
misturavam ou só jogavam as groselhas dentro. Ah, era
maravilhoso!
Natalie e eu estávamos acostumadas com Roxie poetizando
sobre comida; obviamente, essa sempre foi a vocação dela. Uma
vez, ela passou vinte minutos (e sei disso porque olhei para o
relógio quando a história acabou) nos contando como as cenouras
laranja superaram as cenouras de outras cores do mercado e
conquistaram um espaço no nosso coração. Eu gostaria de dizer
que estou sendo irônica, mas ela disse exatamente essas palavras.
– Eu gosto de pão de Páscoa. Gosto de meter a boca. Não me
importa como são feitos. – Natalie não conseguia resistir.
– Tudo bem, malucas, comportem-se hoje, por favor e obrigada –
instruí quando chegamos à entrada da sala de jantar. Tinha passado
por ela no passeio guiado, mas ainda não tinha entrado.
Era linda! Conforme seguíamos a recepcionista até nossa mesa,
fiquei virando a cabeça como uma coruja para observar o teto alto, o
trabalho artístico envolvido nos entalhes das paredes, a quantidade
de madeira usada na construção da sala – e, claro, a lareira grande
e larga o bastante para assar um porco.
Já sentada, olhei o resto dos hóspedes jantando. Tomando notas
mentais o tempo todo, percebi que a sala de jantar não estava nem
metade ocupada, e só contei dois casais com idade próxima à
minha e só uma família com crianças pequenas. Quase todo mundo
tinha idade de aposentadoria pelo menos, ou mais. Isso era ótimo
no quesito lealdade dos clientes, mas, sendo realista, eles
precisariam ser substituídos por novos clientes, novas famílias e
casais que vissem o Bryant Mountain House como seu lugar
especial nas montanhas.
– Você está trabalhando, não está? – ouvi Roxie perguntar e me
virei, e a vi me olhando com expectativa.
– Ahn? – Abri o guardanapo e o coloquei no colo. Um guardanapo
que tinha sido dobrado e colocado em um aro, um aro de
guardanapo mesmo. E havia lavandas, minha nossa, aquelas
tigelinhas de lavar os dedos! Eu não via uma coisa assim desde que
visitara o Queen Mary.
– Você está trabalhando. Estou vendo as engrenagens girando.
– Ah, desculpa.
– Ela está sempre trabalhando, essa aí, sempre trabalhando.
Você não consegue desligar, não é? – Natalie apontou o dedo para
mim.
– Com licença, mas é por isso que estou aqui – eu disse,
apontando o dedo para ela. – E não estou trabalhando,
tecnicamente. Estou aqui com vocês duas, suas bobas. – Mas elas
estavam certas. Era difícil desligar. Mesmo nas raras vezes que
tirava férias, eu não conseguia deixar de olhar de forma crítica os
hotéis em que me hospedava.
Normalmente, eu estava sozinha, então ninguém percebia minhas
peripécias mentais.
Mas aquelas duas me conheciam bem demais.
Um garçom com uma bandeja com copos apareceu do nada.
– Damas, seus coquetéis.
– Nós não pedimos coquetéis – comecei a dizer quando uma taça
de espumante foi colocada na nossa frente.
– Todas as refeições no Bryant Mountain House começam com
um coquetel de champanhe – disse ele, colocando o último copo na
mesa com um floreio.
Inspecionei a taça, cheia até a borda com bolhas e com um
pequeno cubo de açúcar no fundo e um pedaço de casca de limão
em cima.
– Todas as refeições?
– Ou outro coquetel, se você preferir. Talvez um Grasshopper?
Um Pink Squirrel?
– Pink Squirrel? Que diabos é isso? – perguntou Natalie com o
canto da boca.
– Não tenho mais certeza – respondi, levando a taça aos lábios. –
Bem, vamos?
Cada uma bebericou ao mesmo tempo, fez careta ao mesmo
tempo, como se fosse planejado, e botou a taça de lado.
– Coquetel de champanhe, mal posso esperar para contar para a
minha mãe. Eu não tinha ideia de que ainda faziam isso aqui! –
Roxie riu, enfiou a mão na bolsa e mandou uma mensagem de texto
para Trudy.
– Devo concluir que é outra tradição do hotel? – perguntei. – Vou
acrescentar à minha lista de “Uau, é sério?”.
– Como está indo, aliás? Cedo demais para dizer? – perguntou
Roxie.
– Estou raspando a superfície ainda, mas já tive algumas ideias –
refleti.
– É incrível aqui, não é? Nós não tínhamos dinheiro para ficar
aqui quando eu era criança, mas conseguíamos vir em alguns
eventos grandes. Natal, às vezes no Halloween, e as
comemorações do Domingo de Páscoa sempre eram as mais
lindas.
– Com o pãozinho – lembrei a ela, que sorriu.
– Com o pãozinho, claro.
– Falando em pãozinho… – disse Natalie, e acompanhei o olhar
dela.
Ali estava meu guia do passeio, indo tranquilamente de mesa em
mesa, conversando com os hospedes e encantando as velhinhas de
cabelo branco. Com um terno cinza-chumbo, uma gravata azul-clara
e outro lenço combinando no bolso, Archie preenchia lindamente o
traje, eu tinha que admitir. Se Leo era jogador de rúgbi e Oscar, de
futebol americano, Archie parecia que jogaria polo aquático. Alto e
magro, seus ombros eram largos, a cintura, fina. E a bunda?
É. Até eu tinha que concordar que era linda.
Mas eu trabalhava para aquela bunda. Então…
– Não vamos falar da bunda do Archie, tá? – eu disse, pegando o
cardápio e avaliando as opções.
– Como você sabia que eu estava falando do Archie? – disse
Natalie, lançando um olhar rápido para Roxie.
– Não estava? – perguntei.
– Ah, estava, claro, mas é interessante que você soube na hora
de quem eu estava falando quando mencionei que alguém nesta
sala além de mim tinha uma bunda linda.
Olhei para Roxie em busca de ajuda.
– Manda ela se ferrar, por favor e obrigada.
Ela assentiu.
– Vou mandá-la se ferrar logo depois de você explicar como sabia
de quem ela estava falando.
– Nós não vamos ter essa discussão. Ele é meu chefe. E é um
babaca.
– Ela está vermelha, está muito vermelha. Clara nunca fica
vermelha. – Natalie riu, e eu segurei a cabeça com as mãos. – Você
tem um crush! Chegou aqui ontem e já tem um crush!
– Eu não estou vermelha. Não tenho um crush. Estou tentando
jantar com as minhas duas amigas malucas que vieram me visitar
no meu novo lugar de trabalho, ora, mas estamos falando dos
pãezinhos do Archie Bryant!
– Samuel – ouvi uma voz grave dizer atrás de mim –, parece que
as moças da mesa catorze ainda não receberam a cesta de pães.
Você pode trazer?
– Claro, senhor Bryant!
Como o destino é um filho da puta irônico, Archie Bryant estava
parado ali com uma expressão de diversão na cara, porque sabia
muito bem que eu não tinha me referido aos pãezinhos do tipo que
se come.
Agora eu fiquei vermelha.
Por sorte, não precisei dizer nada. Lidando tranquilamente com a
situação, sendo que a situação eram Natalie e Roxie com cara de
que aquilo era a coisa mais engraçada do mundo e comigo
parecendo que preferia ser engolida pelo piso do que estar ali,
Archie esticou a mão para Roxie.
– Roxie, que bom ver você! Como está a Zombie Cakes?
– Bem. Muito bem, na verdade. – Roxie tinha aberto a Zombie
Cakes no outono, um food truck construído em um trailer Airstream
retrô muito legal. Especializada em bolos tradicionais com um toque
atual, a Zombie Cakes estava conquistando um nome não só no
Hudson Valley, mas também em Manhattan.
– Ainda preciso trazer você aqui para uma conversa oficial. Nós
adoraríamos incluir uns bolos seus no nosso cardápio.
– Ah, meu Deus, é sério? – perguntou ela, sorrindo. – Quando
você quiser!
– Falando em quando você quiser – interrompeu Natalie, e prendi
a respiração por não saber o que viria a seguir –, nós temos que
conversar sobre botar você na minha campanha de Bailey Falls. Por
que não fotografamos você quando estive aqui no outono? Você é
bonito demais para não aparecer no comercial. Você já viu, não é?
– Vi, senhorita Grayson.
– Pode me chamar de Natalie.
– Muito bem, Natalie. Já vi, mas não sei se o tom geral da sua
propaganda passa a mensagem certa para o tipo de clientela que
tentamos cultivar aqui no Bryant Mountain House.
– Você não quer jovens de vinte e trinta e poucos anos com boa
renda tirando fotos de tudo o que gostam neste lugar e postando
para os amigos, que também têm boa renda? – perguntou Natalie,
arqueando a sobrancelha para ele.
– Sim, na verdade é esse o tipo de clientela que estamos
querendo atrair – interrompi antes que a conversa pudesse
prosseguir.
– E mais uma coisa – disse Natalie, e apoiei a cabeça nas mãos
de novo. Não adiantou nada falar. – Quando eu disse que você é
bonito demais para não aparecer, eu falei sério. Você é um gato e
aceite isso como um elogio, tá, Archie?
Eu o vi olhar melhor para Natalie, sem dúvida surpreso pelo jeito
dela de falar o que pensa, mas ele respondeu como qualquer bom
anfitrião faria.
– Natalie, apesar de eu não saber o que a minha beleza tem a ver
com o resort, agradeço pelo elogio. – Ele se virou para mim. – Foi
um elogio, não foi?
– Foi, sim – eu disse rapidamente, querendo evitar outra
discussão. – Desculpe pela coisa dos pãezinhos, eu…
– Coisa dos pãezinhos, senhorita Morgan? Que coisa dos
pãezinhos é essa exatamente?
Eu gaguejei.
– Hum… Eu… Ahn…
– Bem dito, senhorita Morgan. Ah, sim, obrigado, Samuel, muito
bem. Senhoras, apreciem a refeição. – Quando pegou uma pinça de
prata para colocar um pãozinho no meu prato, Archie se virou para
mim, de costas para minhas amigas, com aqueles olhos azuis
lindos, e piscou. – E seu pãozinho.
Esse cara.
Ele sabia.
Ele sabia sobre os pães.
Ele levou os pães para mim.
E mesmo assim… piscou.
Talvez houvesse mais nele do que dava para perceber num olhar.
Principalmente quando olhar já era tão bom.
– Flerte. Flerte. Flerte – cantarolou Natalie assim que Archie se
afastou.
– Ah, por favor – respondi, pegando meu pãozinho quente e
reparando como cabia perfeitamente na minha mão. Meu Senhor.
– Bailey Falls ataca de novo – murmurou Roxie, e Natalie inclinou
a cabeça para trás e riu.
– Tudo bem, meninas, se acalmem. Escolham os pratos. Bailey
Falls não atacou nada, podemos ser adultas por um minuto?
Sinceramente, vocês são duas crianças e… Natalie, o que você está
fazendo?
– Tentando ver se ele está olhando para você. – Ela estava
sentada de lado na cadeira com o espelho aberto e virado para
longe do rosto.
– Não quero encorajar isso agora. Então, Roxie, o que você vai
querer, os medalhões de filé ou o salmão no papelote? Isso quer
dizer que é cozido dentro de um papel, não é?
Roxie não prestou a menor atenção ao que falei.
– Cara, ele não está olhando, ele não está olhando…
– Nem você. Tenho zero, vou repetir, zero interesse em Archie
Bry…
Roxie me interrompeu:
– Ele olhou! Ele olhou para você, Clara!
– Olhou? – perguntei, e de repente Natalie não estava mais na
beira da cadeira, pois a beira sumiu e ela caiu no chão, a saia
subindo e expondo a cinta-liga vermelha.
Três garçons e um homem de oitenta anos tropeçaram atrás dela
na disputa para oferecer ajuda.
– Quero os medalhões de filé ao ponto, por favor – eu disse para
Samuel, que ainda estava parado ali, segurando os pãezinhos.
O jantar ficou um pouco mais calmo depois disso. O serviço foi
impecável, a comida foi… mais ou menos. Nem ruim nem boa, só
mais ou menos. Perguntei a Roxie o que ela achava.
– É boa. Tem meio que gosto de comida de casamento –
respondeu ela depois que reparei que ficou empurrando a comida,
mas não terminou a refeição.
– Quer dizer, é meio antiquado, nada novo para ver aqui. Mas
esse ambiente é imbatível.
As janelas largas, que durante o dia exibiriam a vista das
montanhas, agora espelhavam as luzes das velas e dos lustres. Era
uma sala ampla, mas parecia aconchegante e íntima.
– E esses cardápios, com tão poucas opções? – perguntou
Natalie enquanto comíamos a sobremesa.
– Chamam de jantar rotativo, um conceito meio ultrapassado, mas
bem típico nesses resorts antigos. O cardápio muda todas as noites,
normalmente com três ou quatro entradas, três ou quatro pratos
principais e algumas sobremesas. Os pratos podem se repetir uma
vez durante a semana, mas só uma vez – respondi.
– Então, se você passa uma semana aqui com a família, pode
comer no hotel todas as noites e nunca vai jantar a mesma coisa –
acrescentou Roxie.
– Exatamente. Mas eu apostaria que é o mesmo cardápio que
eles servem há muito tempo – falei, pensando em voz alta.
– Ah, você acha? Bolo com sorvete é sempre uma escolha certa,
mas, falando sério, qual foi a última vez que você viu em um
cardápio? – perguntou Roxie.
– Eu amo sorvete com bolo – respondeu Natalie, curvando o
braço em volta da sobremesa. – Não ouse pegar meu sorvete com
bolo!
– Não, não, não é isso que a Clara está dizendo.
– Não mesmo, mas talvez a gente possa mudar umas coisas.
Deixar alguns clássicos, tirar os que estão aqui desde sempre, mas
talvez atualizar um pouco os outros. – Peguei meu caderno e anotei
algumas ideias enquanto pensava nelas. – Rox, você devia voltar
aqui. Se reunir com o Archie para falar da Zombie Cakes, e talvez a
gente possa ir até a cozinha e ver o que acontece lá. Pego alguns
cardápios para checar com que frequência mudam.
– Eu posso fazer isso.
– Eu também quero vir – disse Natalie.
– Você fica na cidade com o Oscar, batendo manteiga ou sei lá o
que vocês fazem.
– Nós fazemos muita coisa. Ontem à noite mesmo, ele me botou
na bancada da cozinha, com o vestido por cima da cabeça, a boca
cheia de…
– Então, enfim, com você envolvida, espero que o Archie seja um
pouco mais receptivo às mudanças que quero fazer aqui. – Olhei
diretamente para Roxie, sabendo que não devia deixar Natalie
continuar.
– Ele não está sendo legal?
– Ele está sendo bem cretino, e pode acreditar que essa é a
melhor palavra para isso. Mas é diferente desta vez, mais… Não
sei. Quando acontece em outros hotéis, é porque eles me veem
como uma caneta vermelha que vai mudar tudo o que tocar, e
acham que eu vou jogar fora tudo pelo que trabalharam, quando na
verdade é o oposto. Este lugar é incrível, só preciso torná-lo
lucrativo de novo. Trazer para este século, tirar um pouco de poeira.
– É bem caro. Quer dizer, tem bastante dinheiro do Hudson Valley,
mas o que cobram por noite aqui é pesado para a maioria das
pessoas – concordou Roxie.
– É, vou ter que conversar com eles sobre o preço. Sei que o
Archie vai surtar. Alguma dica de como falar com ele?
– Eu? Eu mal o conheço.
– Para com isso, você passou a infância nessa cidade.
– É verdade, mas tem dois lados em Bailey Falls. Estou no lado
das lanchonetes, e famílias como os Bryant e os Maxwell estão do
lado do clube de campo. Além do mais, ele é mais velho do que eu.
Só sei as poucas coisas que a minha mãe contou ao longo dos
anos. Ela é amiga de Hilda Banning, que trabalha aqui, e disse que
ele mudou muito depois da Ashley.
– Ashley? – perguntei.
– Ashley? – perguntou Natalie com a boca cheia de bolo e
sorvete.
Roxie assentiu.
– A esposa dele.
– Ah – eu disse, sentindo a coluna murchar e se encolher na
cadeira. Claro que ele era casado; que homem tinha aquela
aparência e não era casado? Olhei para ele, no outro lado do salão
conversando com um grupo de garçons, e reparei pela primeira vez
na aliança na mão esquerda. Claro.
Espera, por que “claro”? Por que você se importa? Archie Bryant
ser casado não tem absolutamente nada a ver com o trabalho que
você foi contratada para fazer. Então coma seu bolo com sorvete e
volte ao trabalho.
Peguei o garfo enquanto Roxie continuou falando:
– É, de acordo com a senhora Banning, ele ficou péssimo quando
ela faleceu.
Eu levantei a cabeça.
– Opa, espera, como é? – perguntou Natalie.
– Ah – eu disse, expirando. Ah.
Olhei para Archie de novo, vendo-o se mover pela sala de jantar
conforme cumprimentava e falava com as pessoas, sabendo agora
que uma coisa horrível tinha acontecido com ele.
– Como ela…?
Roxie interrompeu Natalie:
– Não sei. Eu não morava aqui na época e nunca soube dos
detalhes.
– Meu Deus, mas importa? – perguntei na hora em que ele me
encarou a distância. Por apenas um instante, percebi uma coisa em
seu rosto. Interesse? Intriga? E, só por um instante, senti essa coisa
percorrer meu corpo. Mas, antes que eu pudesse sentir direito, a
expressão sumiu e deu lugar a outra, tranquila e reservada.
Capítulo 7

– Não… não… por favor… não… NÃO!


Acordei de repente, encharcada de suor, emaranhada no lençol,
segurando o travesseiro e com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Minha respiração ofegante estava tão alta naquele quarto, naquele
quarto silencioso demais.
– Droga! – resmunguei, ainda segurando o travesseiro com uma
das mãos e passando a outra pelo cabelo úmido. – Droga – repeti,
um pouco mais baixo agora, com meus batimentos desacelerando,
a tensão armazenada sumindo, relaxando minhas juntas paralisadas
de medo.
Essa porra de pesadelo! Eu o tinha desde que me entendia por
gente, mas não mais com tanta frequência. E normalmente não
depois de uma noite com as minhas garotas. Sempre o mesmo
sonho, sempre o mesmo começo.
Peguei a mala e atravessei a porta de uma bela casa colonial de
tijolos, uma casa comum numa rua comum numa cidade comum dos
Estados Unidos. No entanto, do outro lado da porta, havia outra
porta, em outra rua, em outra cidade. Eu ficava passando por
portas, uma atrás da outra, sem nunca chegar a lugar nenhum, sem
nunca poder parar, descansar e respirar. Cada vez que olhava para
baixo, estava com uma nova mala na mão, e elas se acumulavam
até eu estar arrastando uma montanha de baús e caixas.
Finalmente abri a última porta, e lá estavam eles. Uma mãe, um
pai, um cachorro, um gato. Minha família. Eles estavam me
esperando. “Coloque as malas no chão”, eles disseram. “Fique um
pouco”, eles disseram. “Tem um lindo quarto esperando você”, eles
disseram, “é só subir aquela escada”.
Entretanto, quando fui para a escada, com o coração batendo
rápido e um sorriso nervoso surgindo no rosto, ouvi outra voz. Alta,
autoritária, firme.
– Um erro foi cometido.
Virei-me e vi uma mulher, severa com sua gola abotoada até o
pescoço e o terno apertado, apertado demais para ser confortável.
Como ela se senta com isso, eu sempre pensava, sem arrebentar
todos os botões?
– Um erro foi cometido – repetiu ela, atravessando rapidamente o
ambiente na minha direção.
Minhas mãos estavam grudentas de suor enquanto eu lutava para
continuar segurando a mala.
– Um erro? – ouvi minha própria voz perguntar, baixa e metálica e
pequena e, ainda assim, tão esperançosa.
– Aqui não é o seu lugar.
A família deu as costas, até o gato, deu as costas para mim e
para as minhas malas. O cachorro rosnou baixo e devagar e
daquele jeito grave que quase não dá para perceber de primeira.
“Vá embora”, ele parecia dizer, “aqui não é o seu lugar”.
Agora, eu ouvia todos dizerem isso, cantarolarem, cantarem.
Vozes altas, más e cruéis, afiadas e estridentes. “Aqui não é o seu
lugar. Aqui não é o seu lugar”.
Saí correndo, com as malas batendo nas canelinhas de menina,
cobertas de hematomas, não de cair no parquinho, mas por causa
das portas sem fim, das malas sem fim, ferida por fora e por dentro
e chorando, chorando tanto enquanto todas as portas se fechavam
atrás de mim e eu ficava sozinha. No mundo. Sozinha.
E eu acordava me debatendo na cama, com as lágrimas correndo
pelo rosto, enquanto sussurrava sempre as mesmas palavras…
– Me deixem ir para casa.
Como eu sentia falta da televisão.
Saí da cama e fui ao banheiro pegar uma toalha molhada para
passar no rosto e no pescoço, o suor agora frio e grudento. Olhei-
me no espelho, sabendo que o sono agora não voltaria pelo resto da
noite.
Aquele pesadelo era singularmente capaz de me derrubar, me
destruir e me tirar do prumo. Por anos, foi meu calcanhar de
Aquiles, meu ponto fraco. Se eu deixasse, se eu permitisse que
aqueles malditos demônios voltassem para dentro da minha cabeça,
era adeus, Clara. Frustrada com a ideia de horas eternas acordada
pensando em coisas em que não queria pensar, percebi que só
havia uma coisa a fazer.
Fui para a academia e corri na esteira até meus pulmões
arderem. Eu precisava suar. E também precisava me concentrar.

Correr sempre me ajudou. A batida dos meus pés no asfalto ou na


grama ou na terra batida ou na borracha da esteira silenciava os
sonhos e as lembranças. Direito e esquerdo. Direito e esquerdo. Um
ritmo, um padrão, uma coisa que estava sempre lá, sempre
constante, sempre disponível quando eu precisava. Direita e
esquerda. Se conseguisse correr com velocidade e intensidade
suficientes, era tudo o que eu ouvia.
E então a mágica acontecia. O mundo sumia, o pesadelo em si
sumia, e meu cérebro assumia. Isto é, a parte boa do meu cérebro,
a parte que me ajudava a planejar e criar, resolver e consertar. Eu
não pensava no meu passado e na dor que existia lá, sempre no
passado, nada de dor no presente, nenhuma dor no presente, e me
concentrava no meu trabalho, na minha função, na minha salvação.
Quando amanheceu nas Catskills, eu já tinha uma abordagem
completamente nova para o problema do Bryant Mountain House.
***
– Andei olhando as reservas para o verão. E as dos últimos anos.
Como vocês acham que estão se saindo? – perguntei.
Eu estava em uma reunião com Jonathan, Archie e alguns outros
integrantes da equipe sênior, inclusive os chefes de atendimento
aos hóspedes e de reservas. Fiquei um pouco surpresa com a
cordialidade de Archie quando cheguei de manhã; ele foi até
simpático. Talvez tivéssemos passado pelo pior e ele tivesse
percebido que eu estava ali para ajudar, não destruir o legado de
sua família.
Não confie nisso… Ele está tramando alguma coisa.
– O verão é a época mais movimentada, com um aumento de
hóspedes perto de cada feriado – respondeu ele com certa
arrogância. O terno cinza perfeitamente passado estava
ornamentado com uma gravata laranja e outro lenço combinando. –
Temos até lista de espera caso alguma das famílias regulares
cancele no fim de semana do Memorial Day.
– Que ótimo, ótimo mesmo. Mas o que me preocupa são os
outros fins de semana, os que não têm feriado, quando as reservas
parecem cair quase sete por cento.
– Sete por cento em comparação ao ano passado? – perguntou
Archie.
– É.
– Até que não está ruim. Sei que vamos compensar até o fim do
verão. Sempre fazemos uma festa enorme no fim de semana do
Labor Day e todo mundo espera com ansiedade. Quase todos os
quartos são reservados – disse Jonathan, mas seu filho pareceu
preocupado.
– Sete por cento – repetiu Archie.
– Em comparação ao ano passado. – Eu assenti e repuxei os
lábios. – Somados a uma queda de cinco por cento em relação ao
ano anterior e de surpreendentes onze por cento no ano anterior a
esse.
– Bem, ainda estamos nos recuperando do golpe que todos
levaram em 2008. Ninguém tirou férias naquele ano.
– Nem no ano seguinte – acrescentei, vendo Archie anotar
algumas coisas em um bloco. – A questão é que, mesmo levando
2008 em conta, suas reservas de verão caíram em quase vinte e
cinco por cento quando comparadas a uma década atrás. Mas
vocês sobem os valores a cada dois anos.
– Bem, isso segue nosso aumento normal de preços. Nós sempre
fizemos isso, nossos hóspedes sabem que mesmo uma instituição
como o Bryant Mountain House precisa manter os preços de acordo
com o mercado – respondeu Jonathan.
– Mas é isso, Jonathan – eu disse, distribuindo alguns folhetos –,
o preço de vocês agora está alto demais. E em uma época em que
as pessoas ainda estão lutando para recuperar o dinheiro perdido
nos planos de aposentadoria e em valores de investimentos.
– Mas nós oferecemos um produto acima da média – disse
Archie, com duas manchas vermelhas aparecendo no alto das
bochechas. – Não podemos oferecer nossos quartos por preços de
barganha. Você falou de valores? O valor de férias neste resort é
incalculável.
– Na verdade, é calculável. E muito. E, embora o aumento de
preços seja o padrão quando os custos são mensuráveis, vocês
implementaram os mesmos aumentos enquanto seu crescimento
ficou mais lento, dando um preço alto para o bem mais valioso na
indústria hoteleira: bundas nas camas. – Olhei ao redor, para olhos
que não estavam arregalados de choque, e sim concentrados. –
Aquelas famílias antigas são o sangue vital do seu resort, ninguém
questiona isso. O fato de vocês terem lista de espera é incrível,
parabéns. Mas o que acontece quando essas famílias antigas não
existirem mais? O que acontece quando as últimas dezenas de
matriarcas falecerem, e as histórias e tradições de família de verões
no Bryant Mountain House se tornarem só lembranças que a
geração mais nova não pode pagar?
– Os aumentos de preços refletem coisas como os ajustes
salariais de custo de vida que oferecemos aos nossos funcionários
todos os anos. – Archie falou as palavras de um jeito gelado e baixo.
Mas então a voz subiu, assim como o corpo, que se ergueu da
cadeira. – Só a manutenção de um resort deste tamanho é
impressionante. Se reduzirmos os preços, como você espera que
continuemos funcionando? – disse Archie com rispidez, jogando o
bloco na mesa.
Eu também me levantei e me inclinei sobre a mesa, desafiando-o.
– Envolvendo a sua cidade. Envolvendo comerciantes locais.
Trazendo gente de Bailey Falls e as incluindo na dinastia em vez de
ficar sentado no alto da sua montanha atendendo apenas os ricos.
Ouvi ofegos vindos dos dois lados, mas mantive os olhos nos de
Archie. Ele era a chave ali, a cavilha que sustentava a operação
inteira. Jonathan Bryant podia ser o CEO e podia ser quem me
contratara, mas ele ia se aposentar. Era de Archie que eu precisava.
Se eu não tivesse a adesão dele, o resto da equipe seguiria sua
posição, e aquele lugar e o modo de vida deles passariam para as
páginas apagadas da história de algo que já tinha sido grandioso no
passado.
Respirei fundo e prossegui:
– Agora, lamento se você acha minhas palavras duras, mas, com
base nos números, temos que fazer algo significativo para salvar
este hotel. Começa com o que gosto de chamar de Plano dos Cinco
Rs. O primeiro, Revigorar. Identificamos os custos que podemos
compensar ao longo dos anos trocando coisas por tecnologia mais
econômica, como o sistema AVAC. Dois, Reformar: nós pensamos
em maneiras de modernizar os quartos dos hóspedes e usar uma
parte do que já tem neles. Três, Rejuvenescer, dar vida nova a
áreas estagnadas, principalmente aos cardápios. Reviver é o
número quatro, nem tudo que é velho é chato. Vamos trazer de volta
algumas das tradições que podemos ter deixado de lado e agregá-
las aos novos clientes. Vamos reviver a parceria que este hotel tinha
com Bailey Falls de uma forma bem mais específica e calculada. E,
finalmente, Renovar. Os detalhes disso só serão determinados
quando eu conseguir fazer projeções de custo bem específicas, mas
podem ter certeza de que esse último ponto é impressionante.
Olhei em volta e vi olhos arregalados. Era hora de garantir que
eles soubessem que ainda eram parte daquilo.
– Acreditem, estou aberta a toda e qualquer sugestão, por mais
fora da caixinha que seja. Na verdade, quanto mais doida, melhor,
quanto mais ousada, melhor, quanto mais longe de “mas foi sempre
assim que fizemos”, melhor.
A sala estava em silêncio, mas não de um jeito bom. Eu sabia,
tinha ido longe demais e rápido demais, e agora descobriria que
estava despedida e era adeus, sociedade.
Então, quando foi Archie que falou primeiro, fui a mais surpresa.
Mas fazia sentido, considerando que era Archie, e só Archie, quem
podia dar uma virada naquilo.
– Embora eu possa não gostar do método – disse ele por entre
dentes –, a senhorita Morgan está correta. Nós temos que fazer as
coisas de um jeito diferente e ousado se quisermos manter este
hotel em funcionamento. Desde que seu plano não envolva a
filmagem de um episódio de Keeping Up with the Kardashians na
nossa montanha, acho que nós… eu… tenho que dar a você o
benefício da dúvida e ouvir seu plano completo.
Ele me encarou intensamente, o desafio claro na profundeza azul.
– Se você pensar bem, as Kardashians trariam uma cobertura
gigantesca para o resort, só um tweet da Kim poderia…
– Senhorita Morgan, acho que falo por todo mundo quando digo:
nem pensar. – Mas ele falou com um sorriso torto, como se tivesse
acabado de comer uma coisa com gosto ruim.
– Certo, então vamos trabalhar.

Fizemos uma pausa para o almoço por volta de meio-dia, quando


uma quantidade absurda de trabalho já tinha sido realizada. Senti
que os planos começavam a tomar forma. Todo mundo estava com
o bloco cheio de anotações, quadros brancos cobriam as paredes
com perguntas para o final da sessão e com listas de coisas a fazer,
cadeiras tinham sido empurradas e rearrumadas, e, no final, Archie
tinha até tirado o paletó, afrouxado a gravata e dobrado as mangas.
E isso só me fez ficar desviando o olhar para seus antebraços. Eu
adorava um belo antebraço.
Esqueça o antebraço!
Não, esqueça você o antebraço!
Que maravilha, agora eu estava brigando comigo mesma, uma
atitude bem adulta.
Quando paramos para almoçar, fui até o janelão no fundo da sala
de reuniões, com vista para o lago. Alonguei os braços acima da
cabeça e senti as costas estalando. O trabalho duro nem sempre
era bom para a coluna, mas por sorte meu local de trabalho atual
incluía um spa de alto nível. Ossos do ofício.
– Senhorita Morgan?
– O que houve, senhora Banning? – Ela tinha tido algumas das
ideias mais interessantes naquela manhã. Era bom ter alguém do
meu lado.
– Eu só queria dizer que estou muito feliz de você estar aqui.
– Ora, que bom ouvir isso, senhora Banning! Estou feliz de estar
aqui!
– Ah, por favor, me chame de Hilda.
– Só se você me chamar de Clara. Essa coisa de senhorita
Morgan é uma grande bobagem.
Ela me olhou com malícia.
– Jonathan gosta das coisas um pouco mais informais, mas,
quando ele se aposentar, acho que o Archie vai querer de volta um
ambiente de trabalho mais formal.
Eu ri.
– Bem, vamos ter que mostrar para ele como pode ser divertido
relaxar um pouco, certo?
– Se você não se importa que eu diga, você já mostrou – disse
ela, apontando o queixo na direção de um Archie risonho e
sorridente, que estava a mundos de distância do aristocrata
engomadinho que eu tinha conhecido.
– Ele tem que abrir a cabeça, pelo menos quanto a este lugar, ou
a coisa vai ficar feia.
Ela pareceu surpresa.
–Ah, está tão ruim assim?
Olhei para ela com tristeza.
– Infelizmente, sim. Não este ano, talvez não no próximo, mas, se
não mudarmos as coisas… – Parei de falar. Eles precisavam saber,
precisavam ver o que estava a caminho. Então, meu olhar se voltou
para Archie, que tinha se afastado do resto do grupo e agora estava
andando na frente das anotações que eu deixara nos quadros
brancos. – Sei que não é fácil para ele ouvir isso, ele parece viver
para este hotel.
– Sim, acho que você está certa. Sabe, ele nunca mais foi o
mesmo depois que a esposa faleceu. – O rosto dela se tomou de
tristeza. – Eu o conheço desde que ele era bebê, ele literalmente
cresceu aqui com os pais, andando para lá e para cá neste hotel
enorme como se aqui fosse um quintal gigantesco. Eu acho, nós
todos achamos, na verdade, que ele precisa fazer este hotel dar
certo mais do que qualquer outra coisa. Ashley ia querer isso para
ele.
– Ashley era a esposa dele, certo? Eles foram casados por muito
tempo? – perguntei, e minhas bochechas ficaram quentes. Por mais
que os detalhes não fossem da minha conta, não consegui evitar
umas perguntas para saber o que sensibilizava o cara.
– Foram casados só alguns anos, mas estavam juntos desde
sempre. Se conheciam desde o fundamental, foram namorados de
ensino médio, ora, ele até a pediu em casamento no campo de
croquet no fim de um jogo. A vida de cada um deles girava em torno
do outro e em torno deste hotel. – Ela suspirou com a lembrança.
Eu forcei a barra.
– Como ela morreu?
Ela ficou pálida.
– Câncer. De ovário, que depois foi para o fígado. Surgiu do nada
e, quando descobriram o que era, já era tarde demais. – Ela piscou.
– Ela não teve a menor chance.
– Quantos anos ela tinha?
– Trinta e dois.
Fiz um ruído de surpresa.
– Meu Deus, ela só tinha trinta e dois anos quando faleceu?
A sra. Banning assentiu, mas de repente arregalou os olhos, e
uma expressão de vergonha surgiu em seu rosto antes de ela olhar
para baixo.
Eu soube que Archie estava ali antes mesmo de ele falar.
– Sei que você acha que tem acesso a qualquer coisa que tenha
a ver com a família Bryant, senhorita Morgan, mas quero ser o
primeiro a dizer que a minha esposa… – Senti sua mão em meu
ombro, me virando. Seu rosto estava pálido, com os olhos ardendo.
– A minha esposa é assunto proibido.
– Claro, eu só estava…
Ele me interrompeu com um movimento da mão. Sem tirar os
olhos de mim, disse:
– Uma palavrinha, por favor, senhora Banning. – Não foi uma
pergunta.
E, com isso, ele deu meia-volta e saiu da sala, e a sra. Banning o
seguiu.
Além de tê-la metido em confusão, eu perdi todo o terreno que
tinha ganhado com Archie.
Pooooorra.
Capítulo 8

Finalmente, o tempo tinha melhorado. O gelo estava derretendo


havia alguns dias, o sol estava brilhando, e um vento quente
soprava do sul, trazendo o primeiro gosto de primavera. Não chovia
fazia quase uma semana, a lama tinha finalmente secado… e era
hora de correr de novo. Lá fora.
A primavera tinha chegado.
Eu estava doida, doida para correr ao ar livre; estava cansada da
esteira e do ambiente fechado. E aquela manhã era a minha chance
de sair e queimar energia. Já tinha examinado as trilhas, planejado
uma rota e conversado com algumas pessoas da recreação para
saber quais caminhos eram melhores naquela época do ano.
Saí da cama, com o sol mal tendo aparecido, e vesti uma legging,
uma camiseta Dri-Fit e um suéter Gore-Tex fino. A primavera tinha
chegado, mas ainda estava frio. Enchi a garrafa de água, amarrei os
tênis e desci a escada aos pulos.
Eu estava ali havia tempo suficiente para ter estabelecido uma
rotina. Não havia muita gente de pé tão cedo, e as poucas que havia
me deixavam em paz. Cumprimentei Howard, o recepcionista da
noite. Dei um oi rápido para Paul e Shawn, os copeiros dos dias
modernos que tinham a tarefa de circular de manhã cedo e acender
o fogo nas milhares de lareiras. As primeiras urnas de café estavam
sendo colocadas na Sala do Lago por Nancy, que ajudava na
cozinha à noite e atendia os pedidos de serviço de quarto da
madrugada. Senti com vontade o aroma dos divinos grãos tostados,
mas só tomaria uma xícara depois da corrida.
Saí para a varanda comprida, levantei uma perna e a outra, me
alongando e sentindo a queimação boa nos quadríceps. O sol já
estava começando a aparecer acima das árvores, e o céu estava
mais iluminado, em um tom de cinza-claro em vez do tom chumbo
de quando eu saíra do quarto. Consultei mais uma vez o mapa que
tinha guardado no bolso e corri na direção da trilha.
Fui aquecendo devagar, pegando velocidade conforme meus
músculos relaxaram e entraram no ritmo habitual. Os pássaros já
estavam cantando, conversando e contando suas notícias penosas.
Me embrenhei na floresta, seguindo a trilha que serpenteava para
cá e para lá com a inclinação constante para cima que uma esteira
conseguia imitar, mas nunca igualar.
Meus pulmões se encheram de ar, um ar bom e limpo da
montanha que era gelado, mas revigorante. Gelado. Essa era a
palavra para descrever Archie naquele momento. Tãããão gelado. O
tempo podia estar descongelando, mas, caramba, aquele homem
tinha pedaços de gelo no sangue. Bem, pelo menos no que dizia
respeito a mim. Quando ele lidava com o resto do mundo, com a
amada equipe da amada montanha, era todo sorrisos. Mas por que
era assim comigo? Para mim, ele reservava o mais gelado de tudo,
até quando falava diretamente comigo.
Em pelo menos três ocasiões específicas, ele saiu da sala quando
eu entrei. Saiu antes mesmo de eu ter a chance de dar bom-dia ou
dizer um “oi, como aquele bagel está bonito, tem mais?”.
Durante as reuniões matinais, quando a equipe toda tinha que
estar junta, ele evitava fazer perguntas diretamente para mim e,
quando se dignava a falar comigo pessoalmente, fazia isso de um
modo tão desdenhoso que até seu pai erguia a sobrancelha. E,
quando discutia comigo sobre alguma coisa, o que acontecia com
frequência, não era fogo amigo.
– Errado.
– Como?
– Errado.
– Perdão?
– Eu também lamento, senhorita Morgan, ter ficado sentado aqui
durante uma apresentação inteira debatendo se precisamos ou não
mudar como fazemos nosso chocolate quente. Nós sempre
oferecemos chocolate quente caseiro aqui no Bryant Mountain
House, desde que o hotel original foi construído nós…
– Vocês tinham chocolate esperando em uma chaleira sobre o
fogo ardente para os hóspedes que quisessem apreciar um pouco
quando viessem do passeio de trenó puxado por cavalos, com sinos
tilintando e purê de batata no bolso para manter as mãozinhas
delicadas da Costa Leste deles quentes e calorosas – eu
interrompera, por já ter ouvido essa descrição específica numerosas
vezes desde que tinha chegado. – E eu entendo, entendo mesmo.
Mas, pelo amor de Deus, senhor Bryant, você usa três tipos
diferentes de chocolate importado para fazer a bebida! É
ridiculamente caro! Você tem alguma ideia do quanto poderia
economizar só em um ano de chocolate importado? Os hóspedes
quase nem bebem mais, mas aquela maldita chaleira fica cheia até
a borda com chocolate quente importado todos os dias na hora do
chá, como se montes de trenós ainda fossem puxados por cavalos
na montanha!
– Batata assada.
– O que é batata assada? – perguntei, olhando para ele como se
ele tivesse tido um derrame.
– Não era purê de batata no bolso, senhorita Morgan, era batata
assada, aquecida nas cinzas embaixo da chaleira de chocolate
quente. – Ele tirou os óculos e os limpou na beirada da gravata
vermelha estampada. – Purê de batata... – debochou. – Aonde você
vai?
– Vou para a cozinha bater a cabeça algumas vezes no forno,
quem sabe aproveitar para jogar umas batatas lá dentro – gritei por
cima do ombro enquanto abria a porta e saía da reunião.
– Não deixe de furar as batatas com um garfo, senão elas
explodem. – Sua voz, no tom de quem achava que tinha vencido a
rodada, saiu pela porta antes que eu a fechasse.
– Quer saber – eu comecei, voltando para a reunião como se
estivesse atravessando uma porta giratória –, vou te dar uma coisa
para furar…
– Vamos fazer um intervalo de cinco minutos, pessoal –
interrompeu Jonathan, e onze chefes de departamento saíram da
sala como tiros de espingarda, com Archie por último, andando
casualmente e com um sorriso satisfeito.
– Catorze mil, setecentos e trinta e três – eu disse com irritação
quando ele passou por mim.
– O que foi isso? – Ele olhou para mim com expressão altiva.
– Catorze mil, setecentos e trinta e três dólares é o que você
gastou ano passado em ingredientes de chocolate quente.
Ele empalideceu.
Enfiei o caderno na bolsa e fui para a porta, passando bem na sua
frente.
– Eu nem comecei a somar o quanto este lugar gasta em limão
para a limonada especial das antigas que vocês servem no verão.
Essa é a merda, senhor Bryant, e lamento pela escolha de palavras,
mas essa é a merda que afunda os resorts antigos. Quando você
estiver pronto para discutir as ideias reais e práticas que tenho para
manter este lugar no azul e continuar servindo chocolate quente, me
avise.
Aaaah, como ele me irritava! Eu não tinha ideia de como me
comunicar com o sujeito. Tentei pedir desculpas, várias vezes até,
mas ele mudava de assunto, falava mais alto do que eu ou ia
embora.
Em outro mundo, eu desistiria. Chamaria de oportunidade
perdida, concluiria o trabalho e iria embora sabendo que consegui
fazer meu trabalho, e fazê-lo bem apesar do filho do chefe me odiar.
Algumas pessoas simplesmente não gostavam de mim, e eu era
capaz de suportar isso.
Entretanto, duas coisas tornavam esse outro mundo impossível.
Um: havia a sociedade em jogo para mim. E, embora Barbara
estivesse tecnicamente no comando, ela tinha outros sócios com
direito de voto, e eu achava que Archie não seria muito gentil no
meu relatório final. Dois: eu ainda queria pedir desculpas. Eu tinha
ultrapassado meus limites; tinha xeretado a vida pessoal dele, feito
fofoca e, pior, fui pega fazendo isso! E agora minha chance de
corrigir o episódio estava sendo negada.
Meus pés bateram no cascalho; o terreno ficava mais selvagem
conforme eu subia a montanha. Ajustei a passada e a respiração e
continuei. O que eu poderia fazer, como poderia obter uma chance
de falar com ele e fazê-lo me ouvir? Ouvir de verdade. Nada de
brigas por causa de batatas.
Falando em ouvir, além do barulho dos meus pés no cascalho,
ouvi o de outros pés. Havia mais alguém na trilha, não muito à
frente. Vi movimento em uma das curvas, que nesta altura eram
mais curtas. Acelerei e vi, acima de pernas longas e fortes, uma
jaqueta amarela se movendo a um ritmo regular pela trilha e uma
cabeça com cabelo castanho-avermelhado.
Archie. Na montanha. Sozinho.
Ele não conseguiria fugir de mim.
Abaixei a cabeça, respirei fundo e corri mais rápido.
Agora, percebo que parece uma cena de escola primária. A
garota corre atrás do garoto, literalmente, enquanto ele foge.
Corri mais rápido. Quando fez outra curva, ele olhou para trás e
me viu subindo pela encosta em sua direção, com fogo nos
calcanhares. Eu estava tão perto que consegui ver sua expressão.
Ele estava surpreso, mas fez cara feia e começou a correr mais
rápido.
Puta que pariu!
Então, corri mais rápido ainda, porque, sabe… pouco antes da
cara feia, houve uma breve expressão de outra coisa.
Desafio.
Vamos lá, Bryant! Me mostra o que você tem!
Quando nós dois aceleramos o passo, eu ganhei um metro e
meio, mas perdi um metro quando ele deu uma explosão de
velocidade em volta de uma rocha. Ele perdeu o equilíbrio em uma
área de cascalho solto, e cheguei bem perto, mas me desequilibrei
no mesmo lugar e fiquei para trás novamente.
Eu respirava com dificuldade, mas agora estava perto o suficiente
para ouvi-lo ofegar também. As curvas tinham quase noventa graus
de inclinação, e a paisagem tinha virado um borrão. Pulei uma
árvore caída pela qual ele tinha passado segundos antes; ele
contornou uma poça. Passamos por um trecho com menos árvores,
e tive um vislumbre de um lago, agora bem abaixo de nós.
Vi o fim da trilha; estávamos quase no topo. Fiz um esforço e
mandei meus pés irem mais rápido, disparados para o cume.
Nossas pernas se moviam junto agora, correndo rápido, com lama e
cascalho espirrando e voando entre nós. Eu estava gemendo,
ofegando; ele grunhia a cada passo. Meu peito ardia, meus pés
doíam, minhas pernas tremiam, mas não tinha como aquele filho da
puta chegar antes de mim no topo!
Fiz mais força do que jamais tinha feito na vida. Mandei minhas
pernas virarem pistões, e elas, apesar dos músculos com câimbras,
me empurraram cada vez mais para cima. Estávamos iguais agora,
os dois voando, um movimento perpétuo, nossos membros eram
uma mancha de cores.
Com um último grunhido e um sorriso triunfante no meu rosto,
fizemos a última curva e corremos para um campo aberto,
empatados no topo. Sem vencedor. Sem perdedor.
Mas meio que eu como vencedora.
Corri mais alguns passos antes de diminuir o ritmo, respirando,
com os pulmões agradecidos. Senti o suor escorrendo pelas costas,
o cabelo grudado no rosto virado para cima, sentindo o sol da
manhã. Ali, no topo de uma montanha, sem nada em volta além de
árvores e céu e terra e grama, senti a euforia chegando e aplacando
as câimbras e a dor que certamente voltaria mais tarde. Mas, agora,
eu só sentia alegria.
Corri mais uns seis metros na direção de uma torre de pedras
empilhadas na beirada, o observatório. Ouvi-o atrás de mim, a uma
distância curta, os pés pesados como os meus. Quando me
aproximei da torre, o mundo surgiu amplo na minha frente, com
fazendas e riachos e lindos celeiros vermelhos no horizonte quase
infinito. Em um dia claro, dava mesmo para ver a eternidade.
Olhei para ele para oferecer um sorriso de parabéns e, quando
conseguisse falar de novo, agradecer por uma corrida tão boa, mas,
quando vi seu rosto, fiquei paralisada.
– Você – grunhiu ele, chegando até mim rapidamente agora que
eu estava imóvel. – Qual é o seu problema?
– Meu problema?
– Quem corre atrás de outra pessoa na montanha?
– Quem foge de alguém que está correndo atrás dele na
montanha? – respondi. – Eu só queria falar com você!
– Falar comigo? Se você quer falar comigo, você pede! Você pede
uma reunião, manda um e-mail, ora, passa um bilhete quando estou
sentado ao seu lado em uma reunião, caramba, mas não corre atrás
de mim na montanha!
– Eu peço uma reunião? – gritei, incrédula. – Qual é o seu
problema? Essa é a coisa mais ridícula que já ouvi! Se eu quero
falar com você, eu falo com você.
Ele chegou mais perto, muito perto, bem na minha cara. Dei um
passo para trás e outro, recuando até estar encostada na torre.
– Você não entende? O que quer que você tenha para dizer, o
que quer que você ache que precisa me dizer, eu não quero ouvir.
– Mas se eu pudesse só…
Não consegui dizer mais nada. Porque a boca de Archie estava
na minha, um fogo e um calor queimando meus lábios.
Chocada, grudei os olhos nos dele, que estavam carregados de
raiva.
Mordi o lábio dele e o empurrei.
– Que porra é essa? – eu disse, franzindo a testa enquanto ele
ofegava na minha frente.
Mas minhas mãos se fecharam em sua jaqueta e o puxaram para
perto de novo, as unhas afundando em seu peito, puxando seu rosto
para beijá-lo de novo, com intensidade e insistência.
Bati em seu ombro quando ele gemeu nos meus lábios, inclinado,
quando minha língua entrou em sua boca. Gemi quando ele
mordiscou minha pele, e suas mãos brutas agora envolveram minha
lombar, me empurrando por inteira. Senti a pedra incomodando nas
costas, meus quadris batendo nos dele enquanto tentava me firmar
no chão, mas, depois da corrida, minhas pernas pareciam geleia.
– Você é uma louca, sabia? – disse ele, me puxando com força,
tudo duro, tudo forte.
– Eu sou a louca? – perguntei, mordendo seu lábio inferior de
novo, com força suficiente para sentir gosto de sangue.
Ele inclinou a cabeça para baixo até os olhos ficarem na altura
dos meus.
– Não faça isso de novo – avisou.
– Não me diga o que fazer – eu avisei, enfiando as mãos no
cabelo claro e puxando-o para trás, exibindo o pescoço para morder
a pele ali. Estava quente e suada e grudenta, e senti gosto de sal na
língua.
Uma de suas mãos subiu e bateu na pedra atrás de mim,
enquanto a outra me puxava para perto, e seus quadris roçavam
nos meus e pressionavam minhas coxas.
– Você é irritante – disse ele, a voz como aço quente. – E é baixa
demais. – Com isso, ele me levantou, minhas pernas envolveram
sua cintura sem muito jeito, e ele me pressionou contra a torre.
Agora na mesma altura dele, fiz expressão de desdém.
– Sou da altura perfeitamente certa. – E, quando ele encostou os
lábios no meu pescoço, a língua surgindo para lamber e sugar
minha pele, inclinei a cabeça para trás com um baque na pedra. – E
você é um babaca.
Seus quadris empurraram, minhas pernas se abriram mais, e,
enquanto ele se roçava em mim, eu segurei em sua cabeça, que
descia, chegando na gola da minha jaqueta, os lábios dando beijos
quentes e molhados na minha clavícula. Beijei delicadamente a
ponta de sua orelha e sussurrei:
– Me desculpe.
Ele parou. Levantou a cabeça, e os olhos, que estavam cheios de
desejo, começaram a ficar tomados de confusão e tristeza e…
medo.
O momento passou, e ele me botou no chão, soltou
delicadamente minhas pernas de sua cintura e, quando tentei virar
seu rosto para o meu para pedir desculpas novamente, balançou a
cabeça.
– Eu… Meu Deus, não posso fazer isso.
Ele recuou, se virou e desceu a montanha.
Não corri atrás dele desta vez.

Fiquei lá em cima por uns bons trinta minutos, vendo a manhã


ocupar o vale. Minha mente estava em disparada, avaliando as
possibilidades, calculando o risco e o benefício e percebendo que
eu precisava desistir, me afastar. Com Archie, eu tinha mexido em
uma coisa que não tinha nada que mexer. Era ruim em muitos
níveis, e eu precisava acabar com isso, botar uma pedra em cima e
esquecer que tinha acontecido.
Mas eu queria esquecer que aquilo tinha acontecido?
Meus dedos foram até os lábios e sentiram o calor ainda
presente. Eu ainda sentia seu gosto, ainda o sentia apertando a
boca na minha repetidas vezes. Alguma coisa no fundo de mim
tinha despertado, um calor instantâneo, um desejo instantâneo, uma
reação carnal tão rápida e fogosa que me pegou de surpresa por
sua intensidade. Eu nunca tinha sentido algo assim.
Mas é pelo seu chefe, então…
Certo. Certo! Balancei a cabeça para espairecer e inspirei o ar frio
e limpo da montanha. Ele era meu chefe e eu precisava resolver a
situação. Uns beijos ótimos não podiam estragar tudo de bom que
eu queria fazer lá em cima, não mesmo.
Eu adorava o local, adoraria ficar e fazer tudo o que sabia fazer
para consertar o problema. Mas eu tinha metido os pés pelas mãos,
tinha colocado a língua no lugar errado, e eu sabia que não podia
me encrencar mais.
Fui para o alto da trilha e vi o resort daquele ângulo. Tinha sido
fotografado daquele lugar muitas vezes, e era mesmo uma vista de
um milhão de dólares. O lago, o terreno, a doca, tudo era lindo lá de
cima, exatamente como o site, os cartões-postais e as gravuras na
loja de suvenires declaravam.
Dei uma última olhada e desci, pronta para procurá-lo, encontrá-lo
e explicar exatamente por que aquilo não podia acontecer nunca
mais.
Esperando no fim da trilha, estava Archie, muito mais lindo do que
eu gostaria.
Capítulo 9

– A gente precisa conversar.


Minha nossa, como ele era atraente.
– A gente precisa conversar – repetiu ele.
Não só atraente, mas loucamente lindo. Com a beleza clássica,
ombros largos, uma cintura bonita, talvez ele…
– Senhorita Morgan?
– Humm? – perguntei, sem conseguir afastar o olhar da camiseta
branca aparecendo embaixo do casaco.
– Estou pedindo que você me escute – interrompeu ele.
O lábio inferior estava inchado por causa dos meus dentes, e vi
ao menos um arranhão em seu pescoço. O cabelo estava
desgrenhado, a jaqueta estava quase totalmente aberta, e sorri,
apesar de tudo, quando vi as marcas de lama que meus tênis
deixaram nas laterais de sua calça.
Eu não devia falar. Não devia mergulhar mais fundo do que já
estava. Mas admito que estava curiosa. E, caramba, ainda estava
cem por cento excitada por aquele babaca lindo e irritante.
Isso é perigoso.
Bota a cabeça no lugar!
– Senhor Bryant, sim, entendi, estou ouvindo – eu disse,
atordoada. Mas recuperando o controle. – Não precisamos
conversar, está tudo bem. Não vai acontecer de novo, isso não é
problema, não precisa ser, vamos em frente, está bem?
– Ah, acho melhor conversarmos antes de seguir em frente –
respondeu ele.
Contra todas as partes do meu cérebro que gritavam para que eu
passasse por ele e fosse direto para o quarto, assenti e deixei que
ele me levasse para um caramanchão próximo à trilha principal.
Me acomodei em um dos bancos de madeira e esperei para ouvi-
lo. Como ele tinha dito, eu o perseguira pela encosta de uma
montanha, então desta vez não seria eu quem falaria primeiro.
Ele andou de um lado para o outro algumas vezes, com um
gingado tranquilo e regular. Eu devia ter percebido que ele era um
corredor, o corpo praticamente denunciava. Era longo e magro, cada
passo era medido. Conservando energia.
Mas quando ele deixava aquela energia solta e livre… Caramba.
Me mexi um pouco no banco. A sensação dos seus dedos na minha
pele ainda queimava; eu apostaria que até a noite teria dez
manchinhas roxas nos quadris.
Por que isso era tão excitante?
– Qual foi o relacionamento mais longo que você já teve?
Opa.
– Hum, o quê? – Enquanto eu estava pensando sobre meus
quadris, ele tinha parado de andar e feito uma pergunta. Ele a
repetiu.
– Não sei se isso é da sua conta.
Ele olhou para o céu e passou as mãos no rosto. O cabelo estava
muito desgrenhado ainda.
– Estou perguntando porque estou tentando explicar o motivo de
ter tido aquela reação quando você perguntou sobre a Ashl… – Uma
expressão de dor surgiu em seu rosto. – Sobre a minha esposa.
Ah, caramba.
– Olha, eu lamento muito sobre aquilo. Eu não queria que você
me ouvisse e não estava tentando fazer fofoca nem nada, eu só…
– Porque o relacionamento mais longo que eu tive foi com a
minha esposa e começou quando estávamos no ensino médio. Para
falar a verdade, começou bem antes disso. Eu a conheci
praticamente a vida toda. Achei que passaria o resto da vida com
ela. Aconteceu que foi só o resto da vida dela. – Ele piscou os olhos
tão azuis. – Então, apesar de ela ter morrido, e sei que morreu, às
vezes sou surpreendido por isso dos jeitos mais loucos. Quando
você conhece alguém por tanto tempo e de repente a pessoa
desaparece da vida, é impossível saber como lidar. É impossível
ficar tanto tempo com uma pessoa e não sentir necessidade de se
envolver, de lutar por ela, de protegê-la.
Eu não acreditei que ele estava falando comigo, realmente
falando comigo. Era uma virada de cento e oitenta graus em relação
ao que tinha acontecido até então. Ele sempre foi tão fechado e
irritado, e agora estava se abrindo? E sobre uma coisa tão trágica?
– Não consigo nem começar a imaginar. – E era verdade. Eu
nunca tinha sentido a necessidade de proteger ninguém além de
mim mesma. Não havia ninguém para cuidar de mim. Nunca houve.
– Eu conheço pessoas novas todos os dias nesse trabalho. Elas
vêm para o que considero a minha casa e eu as recebo e as deixo à
vontade. Ninguém sabe a história, ninguém sabe o que aconteceu,
porque são só pessoas novas que vêm pelo lago e pelas canoas e
pelos passeios.
– E pelas lareiras. Vocês têm lareiras maravilhosas – acrescentei,
e ele sorriu.
Ele devia sorrir mais, o sorriso fazia coisas incríveis no seu rosto.
Às vezes, Archie provoca em mim uma sensação pesada, uma
sensação de que ele viu coisas demais para uma pessoa tão jovem.
Quando ele sorri, isso some. As linhas se suavizam, linhas que sei
que foram provocadas pela tragédia.
– E pelas lareiras – concordou ele. – As pessoas que trabalham
aqui são a minha família. Elas conhecem a história, sabem tudo, e
por isso nunca tocam no assunto. Por que fariam isso? Então, você
entende que aqui é um lugar muito seguro para mim. E aí, alguém
vem, alguém que eu nunca quis aqui.
Eu levanto a mão.
– Esse alguém sou eu.
– Esse alguém é você. – Outro sorriso. – Você é um pé no saco,
sabia?
– Eu tenho que responder isso?
– Você perguntou sobre a minha esposa.
Respirei fundo.
– Perguntei.
– Por quê?
Eu queria me aproximar dele. Queria ir até ele, ficar na ponta dos
pés e dar um beijo suave em sua bochecha, mas, caramba, havia
noventa e nove motivos para não fazer isso e nenhum bom motivo
para fazer.
Fora o fato de que todas as fibras do meu ser queriam, e não
queriam parar nisso.
Então, fiz a única coisa que podia. Eu me sentei sobre as mãos. E
tentei explicar.
– Você também é um grande pé no saco, não me importo de falar.
Na verdade, alguém devia dizer isso para você, com frequência.
Mas, quando eu soube sobre a sua esposa – seus olhos se
arregalaram, investigativos –, você se tornou mais do que um pé no
saco. Não é pena, mas fiquei triste por você. Perguntei para a
pessoa errada. Devia ter perguntado para você.
Ele suspirou.
– Quando alguém morre, ninguém sabe direito o que fazer com as
pessoas que ficam. Ninguém quer falar sobre o assunto, sei que às
vezes é preciso, mas eu nunca gostei de saber que as outras
pessoas estavam falando. Isso faz sentido?
– Perfeitamente. – Assenti. – Então me conte você sobre ela.
– Tem certeza de que não devíamos falar sobre o que acabou de
acontecer? Lá em cima? – Ele desviou o olhar para a torre do
observatório, que estava nos observando naquele momento.
– Ah, nós vamos falar sobre aquilo, senhor Bryant – eu disse,
arqueando a sobrancelha –, principalmente sobre o fato de você ter
metido a mão na massa. E por massa eu quero dizer minha bunda.
– Não fiz nada do tipo – murmurou ele, o azul se incendiando
mais uma vez. – Seus quadris, por outro lado…
– Lembre-me de correr atrás de você na montanha com mais
frequência.
Ele deu uma gargalhada, e foi algo mágico. E foi nessa magia que
andei até ele, toquei-o, não com os lábios, mas com a mão, e afastei
delicadamente o cabelo castanho-avermelhado que tinha caído em
sua testa. Ele fechou os olhos e se inclinou para mais perto do meu
toque, quase como um gato. Meu Deus, quando foi a última vez que
alguém tinha trocado aquele cara?
Mas a verdade era que seria a última vez que eu o tocaria, ao
menos assim.
– E, como as pessoas parecem enlouquecer um pouco naquelas
montanhas, recomendo que fiquemos um pouco mais perto do chão.
Ele ficou de olhos fechados e concordou com minhas palavras.
Mas não se afastou ainda, nem eu.
No final, foram as pessoas subindo pela trilha, outros
madrugadores ansiosos para sair no tempo bom daquela manhã,
que destruíram nosso mundinho no caramanchão. Nós nos
afastamos e, finalmente, botamos uma distância respeitável e
apropriada entre os dois.
Mas, mesmo naquela distância respeitável, os olhos dele arderam
de calor.

No dia seguinte, cheguei na reunião matinal e fiquei surpresa de ver


Archie lá. Surpresa porque ele não tinha ido a semana inteira, só
tinha ido às reuniões que o demandavam especificamente, e só
para ficar ouvindo, sem fornecer informação nenhuma, ou, em caso
de ouvir uma pergunta direta, responder de forma a gerar uma
discussão comigo.
Hoje, quando entrei, ele se levantou na mesma hora, levou uma
xícara de café para mim com dois cubos de açúcar e uma dose de
creme, exatamente como gosto, e, antes que eu pudesse gaguejar
qualquer coisa, se virou para o resto do grupo e anunciou:
– A partir de hoje, vou abraçar a senhorita Morgan.
Não cheguei a cuspir o café, mas só porque o tinha engolido
quase todo, queimando o esôfago e a língua. O resto da equipe só
ficou olhando para ele com expectativa, questionando que tipo de
reunião aquela se tornaria.
Minha reação e os olhares das pessoas fizeram com que ele
reavaliasse as palavras na mesma hora, e Archie deu uma
gargalhada nervosa.
– Abraçar as ideias dela, claro, as ideias. Eu tenho sido, bem,
acho que todos podemos concordar, um verdadeiro pé no saco até
aqui.
Eu levantei a mão. Mas bem poderia estar pedindo para me
darem cubos de gelo por causa da minha garganta.
– Algumas das ideias podem não ser muito convencionais, mas
estou disposto a tentar ver as coisas pelo ponto de vista dela.
Dentro do limite da razão, claro.
– Claro – eu disse, conseguindo abrir um sorriso enquanto me
perguntava o que ele estava tramando.
As famosas últimas palavras.
A trégua não durou nem uma hora. Às dez e meia, ele estava
frustrado, e eu estava incrivelmente irritada e só queria pegar a
xícara de café agora vazia e jogar no meio de sua testa.
– Você não pode ficar dificultando as coisas, senhor Bryant! Tem
que ser assim, senão não vamos chegar a lugar nenhum.
– Nada tem que ser até eu dizer que tem que ser, senhorita
Morgan, e agradeço se você se lembrar disso. Estou disposto, mais
do que disposto, acredito, a avaliar a melhoria de alguns dos
quartos, mas…
– Não é melhoria. É renovação. Colchões novos. Lençóis novos.
Travesseiros novos. Falando por experiência própria, a minha cama
aqui, em uma palavra? Merda.
– As camas não são uma merda, senhorita Morgan – declarou
ele. – E agradeço se você lembrar que cada uma daquelas camas é
parte deste hotel há mais de um século…
– Papel de parede novo – continuei, empolgada e aproveitando a
motivação – e um conceito completamente novo para o carpete, isso
se houver carpete. Há dinheiro no orçamento para isso se
pudermos…
Ele explodiu. Em toda a sala de reuniões Camélia e com todos os
chefes de departamento que estavam compartilhando o frasco de
antiácido tamanho econômico.
– Orçamento? Como você espera que nós paguemos por essa
renovação, façamos uma redução nos valores dos quartos e
tragamos entretenimento adicional para o verão e…
– Posso falar com você por um momento? – perguntei,
interrompendo sua declamação. – Em particular?
Ele fez cara de quem ia dizer alguma outra coisa, mas segurou as
palavras. Expirou com força e se afastou da mesa.
– Quinze minutos de intervalo para todo mundo.
Estoicamente, ele me seguiu para a varanda com vista para o
lago. Eu normalmente fazia meus intervalos lá fora, para ter um
pouco de contato com a natureza sempre que precisava.
Eu precisava agora. Precisava dizer uma coisa bem drástica para
ele e precisava que ele embarcasse comigo.
– Senhorita Morgan, entendo que fiquei um pouco exaltado lá
dentro, mas você precisa entender que todas essas mudanças vão
ser caras e…
Eu o interrompi.
– Você vai ter que fechar por alguns meses todos os anos,
provavelmente nos próximos cinco a oito anos, para manter este
lugar funcionando.
Ele inclinou a cabeça como se não tivesse me ouvido.
– Como é?
– Olha, já li e reli os livros-caixa, e é o único jeito que vejo de
fazermos as mudanças que temos que fazer e ficar dentro do
orçamento. Você sangra dinheiro fora de temporada, não chega a
trinta por cento de ocupação, e não faz mais sentido financeiro ser
um verdadeiro resort de inverno. Ao menos por um tempo. É
drástico, mas precisa ser feito.
Ele apertou os lábios com tanta força que ficaram brancos.
– Nós nunca fechamos nem um dia desde que abrimos as portas.
Nem em nevascas, nem em guerras, nem para grandes consertos
nem para nada.
Eu suspirei, sabendo que era muita coisa para aceitar.
– Sei disso e sei que estou pedindo muito.
– Você está pedindo o impossível.
Balancei a cabeça.
– Não é impossível. Fizemos isso no Manor Crest no Colorado e
no Seaspray em Rhode Island. É verdade que eles ainda estão
fazendo, mas o Manor Crest está a caminho de reabrir pelo ano
inteiro em dois anos… um ano antes do programado.
Ele balançou lentamente a cabeça.
– Você quer fechar o Bryant Mountain House.
Eu assenti com a mesma lentidão.
– Por dez semanas, começando no meio de janeiro. Depois das
festas de fim de ano e de uma festa de Ano-Novo de arrasar, vocês
fecham as portas. Podemos conversar sobre abrir para o Dia dos
Namorados, em fevereiro, embora eu não recomende, ao menos no
primeiro ano.
– E reabrimos?
– Logo antes da Páscoa. Eu diria no feriado de Páscoa, mas,
como a data é móvel, diria na terceira semana de março.
– Na terceira semana de março – sussurrou ele, tão estranho à
ideia como se eu tivesse sugerido que passássemos os pés do
outro a ferro. – Nós perderíamos a temporada de inverno inteira e
todas as atividades ao ar livre. Temos neve antes do Natal, claro,
mas a parte boa só vem em janeiro, e o lago só congela nessa
época. Não vai ter patinação no gelo no lago, nem passeio com
sapatos de neve pelo bosque, nada.
– Sinto muito, senhor Bryant. De verdade. – Tive que fechar as
mãos apertado nas costas de tanto que queria tocá-lo, acalmá-lo e
tornar tudo melhor. Eu resisti. – Mas podemos fazer isso dar certo, e
você ficaria surpreso com o quanto podemos fazer quando o hotel
estiver sem hóspedes e com uma equipe mínima.
– A equipe, o que vamos fazer com as pessoas? Elas dependem
dos salários, muitas delas, as pessoas trabalham aqui há anos. Nós
não podemos, eu não posso… – Ele parou de falar e balançou a
cabeça de novo. – Isso nunca vai dar certo.
– Pode dar certo. Mas você vai ter que confiar em mim – eu disse,
chegando mais perto. Estávamos visíveis para qualquer pessoa que
estivesse andando em volta do lago ou pela doca, sem mencionar o
resto da equipe, na sala. Mas dei esse passo mesmo assim, um
passo pequeno. Ele precisava saber que eu estava do seu lado. –
Sei que estou pedindo muito, mas você tem que acreditar que, se
não embarcar nessa, se não guiar sua equipe e seu hotel, em
alguns anos não vão ser dez anos fechando só durante o inverno. –
Vi uma série de emoções passar por seu rosto: desespero,
frustração e, finalmente, resignação.
– Vou precisar de detalhes e de detalhes dos detalhes. E vou
fazer muitas perguntas. E seria útil se você não agisse como se
estivesse esperando a Terceira Guerra Mundial cada vez que faço
uma pergunta.
Sufoquei uma risada.
– Concordo, mas também seria útil se você não me olhasse cada
vez que abro a boca como se eu estivesse tentando destruir você.
Ele me olhou de lado e assentiu.
– Mas antes de levarmos isso para o grupo, até para o meu pai,
você vai ter que me mostrar seus planos por inteiro, vai ter que me
contar tudo o que quer fazer. Sem surpresas.
– Combinado.
– Esta noite.
– Esta noite?
– Esta noite. Você vai me contar tudo.
Eu expirei. Por que aquela declaração me deixou inquieta?
Voltamos para a reunião como um fronte unido, com planos de
jantar, desta vez na cidade, de falar sobre os meus planos. Terreno
neutro? Talvez. Mas, pela primeira vez com aquele sujeito, senti
esperança.
Capítulo 10

Às cinco para as sete, desci a escada e encontrei Archie no


saguão. Era engraçado como, no tempo relativamente curto em que
estava ali, eu tinha passado a conhecer certas partes do hotel como
a palma da minha mão. Sabia que as samambaias em vasos no
quinto andar estavam meio murchas e pareciam não estar sendo
regularmente molhadas. Sabia que o último quarto à direita no
quarto andar sempre tomava chá da tarde no quarto e que a
bandeja ainda costumava estar no corredor quando eu descia para
jantar. Eu sabia que o terceiro degrau entre o terceiro e o quarto
andar fazia um barulho alto dependendo de como você pisasse
nele.
A escada principal era uma coisa linda, toda de madeira
entalhada e colunas retorcidas. Entre o segundo e o primeiro andar,
ficava ainda mais grandiosa, a peça principal no centro do saguão.
Quando dobrei a última esquina e vi Archie esperando no pé da
escada, um sorriso lento surgiu em seu rosto.
– Isso é tão Titanic...
Eu ri. Se bem que Jack, com seu melhor traje emprestado, não
chegava nem perto de Archie Bryant com suéter e calça jeans. O
suéter era de gola V, de caxemira bege com aparência macia, só
com a gola da camisa branca de botão aparecendo, de forma que
ele estava arrumado como sempre, mas um pouco mais acessível
do que com os ternos bem cortados.
– Você sabe, Jack, Rose, a escadaria e tal?
– Que terrível. Não tenho planos de bater em nenhum iceberg
hoje.
– Você não devia planejar bater em nada hoje – eu disse,
erguendo uma sobrancelha e parando alguns degraus antes do fim.
Olho no olho.
Os olhos azuis dele faiscaram.
– Vamos só tentar terminar o jantar sem gritar. Seria um bom
começo, senhorita Morgan.
– Espere um minuto – eu disse. – Nós vamos jantar na cidade,
certo?
– É esse o plano.
– Então eu sou Clara. E você é Archie. Depois que sairmos da
montanha e tal.
Ele refletiu por um momento.
– Combinado. – Assentiu. – Clara.
Um tremor involuntário percorreu meu corpo quando ouvi meu
nome em seus lábios. Misericórdia.
Jantar de trabalho. É um jantar de trabalho. Pare de tremer.
Mas o meu nome. Nos lábios dele. Divino.
Trabalho. É trabalho. Foco!
Desci os dois últimos degraus e parei ao seu lado. Ele estava
certo, sou baixa, mal chegava aos ombros dele. Archie segurou meu
casaco aberto para mim e, quando os deslizou sobre meus ombros,
perguntou:
– Está pronta?
– Ah, estou! – Isso saiu da minha boca antes que eu pudesse me
segurar, e ele riu no meu ouvido, um som baixo e grave. Caramba,
tremi de novo.
Archie + sussurros = misericórdia!
Saímos pela porta da frente sob os olhares atentos de todos os
funcionários, sendo que metade deles nem devia estar trabalhando,
eu tinha quase certeza, mas se materializaram naquele momento.
Sim, era bom estarmos indo para a cidade.

***

– Esse carro é… bem bonito. – Eu estava no banco da frente de


um BMW muito bonito e luxuoso. O aquecedor estava ligado e meus
pés estavam esticados no calor, agradecidos depois da caminhada
gelada até o carro.
– Você se interessa por engenharia alemã, senhorita Morg…
Clara?
Ah, eu podia muito bem me acostumar com aquele cara dizendo
meu nome sem parar.
– Não necessariamente.
– E o que a interessa?
– É isso que vamos fazer agora? Perguntas?
Ele deu um tchau para o guarda da guarita, mudou a marcha e
me olhou.
– Você enfiou a língua na minha boca ontem. Não acha que umas
perguntas sejam a progressão natural?
– A minha língua na sua boca foi depois que você botou a sua
língua na minha boca, Archie. Não vamos nos esquecer disso.
– Acho que não vou esquecer tão cedo.
O carro ficou em silêncio. Carregado. Estávamos descendo a
montanha, a escuridão pressionando de todos os lados. As palavras
dele pairaram no ar, eu ainda as ouvia ecoando. Eu queria aquela
língua na minha boca de novo? Citando a mim mesma: ah, sim. Mas
não importava, porque eu estava ali para fazer um serviço e não
botaria minha carreira inteira em risco porque um nerd gatinho me
beijou. E, tecnicamente, eu o beijei também.
Controle-se, Clara!
– Correr.
– O quê?
– Você perguntou o que me interessa. Correr. Às vezes, nadar.
– Se você nada tão rápido quanto corre, deve ser meio peixe.
– E pedalar. Mas, entre os três, prefiro correr.
– Você deveria fazer triatlo.
– Você devia me ver fazendo triatlo. O próximo é em junho.
– Você está de brincadeira.
– Não estou.
– Sério?
– Sério. Ironman. Tecnicamente, Ironwoman. Mas estou pensando
em fazer um Tough Mudder depois.
– Você está falando daquelas corridas em que as pessoas correm
pela lama e escalam muros?
– É.
– Não é imundo?
– Ah, sim. Quanto mais imundo, melhor. – Eu ri e me virei para
olhar para ele. – Quer ir comigo?
– A uma corrida na lama?
– Claro.
– Você quer que eu vá ver você ficar suja de lama.
– Ah, não, eu quero que você vá ficar sujo de lama comigo.
– E por que exatamente eu faria isso?
– Você está de brincadeira? É incrível! – Dei um soco com
empolgação em seu ombro. – É tão emocionante! Você força seus
limites, acha que não vai conseguir, mas aí consegue, bate os
cotovelos, arranha os joelhos, chora pelo menos uma vez, pode até
vomitar… É muita diversão!
– Queria saber se meu pai sabe que contratou uma pessoa louca
para ajudar a salvar o hotel dele.
– Ah, não – respondi. – Você se sairia muito bem. Não é nada de
mais ficar meio sujo às vezes.
– Vou acreditar na sua palavra. – Ele riu e virou o carro à direita.
De repente, já estávamos em Bailey Falls.
Eu já tinha visto fotos. Tinha ouvido Natalie falar poeticamente
sobre a beleza do local, e até Roxie agora admitia que a cidade dela
era mais bonita do que ela lembrava. Eu tinha crescido em um
ambiente urbano e, ainda assim, preferia o ambiente da cidade.
Mas, quando viajava a trabalho, costumava ser em ou perto de
lindas cidadezinhas. E admito que eu adorava um certo ar rústico.
Pelo mesmo motivo, eu adorava hotéis antigos de família.
Adorava a sensação de orgulho que percebia sempre que estava
em uma cidade pequena. Havia o aspecto de que todo mundo
conhecia todo mundo, claro, mas também havia uma sensação de
pertencimento, de união, que era totalmente estranha para mim.
Nunca fazia sentido eu me tornar “uma deles” quando eu estava
trabalhando em um lugar assim, mas eu gostava muito de ver de
fora. E Bailey Falls não era exceção.
As casinhas graciosas, as ruas arborizadas, algumas ainda com
os paralelepípedos originais, as lojas familiares na rua principal e
uma praça como as de antigamente. Meu Deus, aquele lugar não
era adorável?
E o mais adorável de tudo, o lugar que eu estava doida para ver,
mas ainda não tinha visitado, era o Callahan’s. Era o restaurante da
mãe de Roxie, Trudy. Para a minha surpresa, foi lá que paramos.
– Nós vamos ao Callahan’s?
– Tudo bem por você?
– Claro, claro, eu só achei… Sei lá.
Ele desligou o carro e me olhou com atenção.
– Achou o quê?
– Achei que você fosse um cara mais formal. Acho que pensei
que você ia querer jantar em um francês chique, sei lá.
– Existe um lugar assim?
Eu revirei os olhos.
– Você só parece o tipo de cara que come em um lugar onde dá
para lavar os dedos em lavandas nas mesas.
– Você devia conhecer um sujeito melhor antes de correr atrás
dele montanha acima, então.
Tudo bem, não dava mais.
– Pela última vez, eu posso ter corrido atrás de você, mas foi só
para falar, e aí você… – Mas fui interrompida pela porta dele se
fechando e por uma piscadela e um sorriso pelo para-brisa. Eu não
tinha perdido o fio da meada quando ele abriu a minha porta – …
me empurrou naquela torre e me agarrou como se tivesse acabado
de sair da prisão e…
Não era só de torres que ele gostava. Quando me dei conta, eu
estava espremida entre a parede fria de tijolos entre o restaurante e
um taxidermista, com Archie e suas mãos absurdamente fortes nos
meus quadris.
– Você é mesmo um pé no saco – disse ele, com a respiração em
nuvens no espaço bem pequeno entre nós.
– Você é a única pessoa que me disse isso.
– E eu tenho uma dificuldade incrível de acreditar nisso.
Enfiei as mãos em seu cabelo e enrolei nos dedos as mechas
castanho-avermelhadas. Os olhos azuis ficaram loucos.
Meu coração também ficou louco e quase pulou do peito. Aquilo
era errado, errado demais. Eu sabia que não devia fazer aquilo.
– E eu tenho uma dificuldade incrível de acreditar que você ainda
não está me beijando. – Eu sabia que não devia, mas, naquele
momento, não me importei.
Seus lábios cobriram os meus em um instante, e todos os sinais
do calmo e composto sr. Bryant haviam desaparecido quando ele
explorou minha boca com a sua. Ele me beijou como se nunca fosse
se cansar, como se eu fosse desaparecer.
– Ah, Deus – murmurei enquanto ele puxava meus quadris para
os dele, desesperado e faminto.
– Seu gosto é incrível – sussurrou ele, dando beijos pelo meu
rosto, no meu pescoço. – Como você pode ter um gosto tão doce?
Puxei seu rosto de volta até o meu, encarei profundamente seus
olhos, passei uma perna em volta de seu quadril e o puxei para o
meu calor.
Estrelas. Eu vi estrelas. Nos olhos dele, nos meus, no céu da
noite, não sei. Só sei que, quando ele roçou em mim, enlouquecido,
o mundo mudou e de repente tudo eram cores fortes e o rosto dele
estava deslumbrante.
– Ah, meu Deus – gemi, a voz abafada contra seu pescoço. – Ah,
meu Deus, não acredito que estamos fazendo isso.
– Oficialmente, nós não estamos fazendo isso – grunhiu ele, a
mão subindo pela minha perna e agarrando a minha coxa.
– Isso é ruim, isso é muito ruim – ofeguei.
– É a pior coisa – concordou ele, e nos silenciou com um beijo
ardente.
Ouvi passos. Passos perto, na rua. Os passos ficaram mais
lentos.
– Cara, tem gente se pegando ali no beco!
– Não tem, não. Onde? Ah. Ahhhh.
– A gente devia parar de olhar?
– Acho que tenho que dizer que… sim?
Os passos não recomeçaram. Meu Deus, nós tínhamos plateia.
Abaixei a perna, olhei por cima do ombro de Archie e vi dois
homens olhando descaradamente, apreciando o espetáculo. Mas
eles logo ficaram constrangidos quando perceberam que foram
pegos espiando e saíram apressados pela rua.
Meu coração estava disparado nos ouvidos. Aquilo foi perto
demais. Eles viram meu rosto, mas ninguém me conhecia na
cidade. E Archie estava de costas. Eles não viram o rosto dele.
– Meu Deus, quem é pego se agarrando em um beco?! –
Suspirei, e ele encostou a testa na minha, os dois sem fôlego.
– Desculpe – disse ele, as bochechas ficando vermelhas. – Eu
normalmente não… Quer dizer, que tipo de homem…
Eu rapidamente o beijei, com firmeza.
– Eu também estou sentindo isso, seja o que for. Nós só
precisamos parar de fazer isso.
Ele me encarou, o canto direito da boca se erguendo. Mas
também percebeu o que estava em jogo. Ele recuou, e nós dois nos
ajeitamos.
Demos alguns passos para a rua e entramos na lanchonete. Lá,
fomos recebidos por rostos familiares sentados em volta de uma
mesa grande no meio do restaurante.
Roxie.
Leo.
Natalie.
Um grandão que supus que fosse Oscar.
E mais dois rostos que, ao me verem, sorriram como o gato da
Alice.
Os dois caras do beco. Merda.
– Clara, porra! Por que você não disse para a gente que vinha
jantar? – disse Natalie, se levantando assim que passamos pela
porta. – Nós teríamos… Ah, oi, Archie! – terminou ela, a voz toda
cantarolada.
– Oi, Natalie – respondeu Archie, abrindo um sorriso confuso.
Ela passou o braço pelo dele e o levou na mesma hora para a
mesa do grupo.
– Vocês dois têm que sentar com a gente, certo, Clara? – Ela
olhou para mim por cima do ombro e fez sinal de positivo. Ah, pelo
amor de…
– Na verdade, Nat, nós queríamos trabalhar durante o jantar. Você
sabe como é, coisa de trabalho que não interessa a ninguém e…
– Oi, Arch! Como vai! Não nos vemos faz um século! – disse Leo,
pulando da cadeira e passando um braço pelo ombro de Archie. Do
lado que Natalie não estava segurando. – Como andam as coisas?
Eu já tinha conhecido Leo quando ele e Roxie passaram um fim
de semana na Nova Inglaterra e pararam em Boston para me levar
para jantar. Ele tinha cabelo louro-acinzentado, olhos verdes lindos
e um corpo gostoso de fazendeiro. Era uma surpresa que Roxie
passasse algum tempo na vertical. Nascido em uma das famílias
mais ricas dos Estados Unidos, ele abandonara o trabalho no banco
para revitalizar a Fazenda Maxwell, que se tornara um dos principais
exemplos de cultivo orgânico e sustentável do país. Inteligência,
grana, aparência, ele tinha tudo. Mas a melhor parte era que ele era
um bom sujeito. Além disso, era louco por Roxie, o que o deixava no
topo da minha lista.
– Nada diferente. Ando ocupado, você sabe como é. Como estão
as coisas na fazenda?
– Prestes a explodir. É nosso último período de tranquilidade
antes de a loucura começar, daqui a algumas semanas. As coisas já
estão agitadas na estufa.
– Imagino. Roxie, é bom ver você de novo – disse Archie, e
assentiu para o gigante. – Oscar, as coisas andam bem na leiteria,
imagino?
Fiquei olhando fixamente, fixamente mesmo, para a quantidade
de coisas inacreditáveis acontecendo na minha frente. Ele se
levantou, e parecia que não parava de ficar mais alto. Oscar
Mendoza, ex-jogador profissional de futebol americano, era um deus
polinésio de dois metros de altura. Pele dourada, olhos castanhos
cor de chocolate, cabelo escuro preso em um rabo de cavalo que
tecnicamente ficava no limite entre o pretensioso e o brega, mas
nele ficava bom, e era conhecido na região por três coisas: sua
leiteria incrível, seu amor pela namorada e seu dom para conversar.
– Archie. Oi. – Foi assim que ele contribuiu para a conversa, junto
com um soquinho que Archie correspondeu. O gesto seguinte foi
puxar Natalie, botar a mão com firmeza na bunda dela e abrir um
sorriso lento por tê-la de volta ao seu lado.
– Clara, você ainda não conhece o Oscar – disse Natalie, se
encostando nele.
– Parece que ouço falar de você desde sempre. Não consigo
acreditar que não nos conhecemos! – Estiquei a mão, que foi
envolvida por uma pata de urso pardo.
– É um prazer conhecer você, Clara – respondeu ele. Suas
palavras foram breves, mas os olhos eram gentis.
– Sério, podemos pegar mais duas cadeiras, a não ser que vocês
prefiram ficar sozinhos. Para falar de trabalho – ofereceu Roxie, se
preparando para ir na direção da pilha de cadeiras no canto, mas
me dando a chance de pular fora.
Eu assenti.
– Obrigada, mas temos trabalho para fazer e…
– Besteira, senhorita Morg… Clara. – Archie parou de falar e deu
de ombros. – Vai ser divertido. – Duas cadeiras apareceram na
mesma hora, e fui conduzida a uma delas.
– Ótimo – eu disse por entre dentes, agora na frente dos dois
caras, sendo que nenhum deles tinha falado, mas ambos exibiam
sorrisos maliciosos idênticos.
– Clara, este é Chad Bowman.
– Ah, claro, o Chad Bowman. Ouvi falar de você – eu disse,
sorrindo enquanto apertava a mão de Chad. – Roxie era a fim dele
na época da escola, né?
– Ele mesmo – confirmou Roxie. – E esse é o marido dele, Logan,
que agora é meu crush em vez do Chad.
– Faz sentido de um jeito estranho. – Logan riu, também
apertando minha mão.
Os dois olharam várias vezes para mim e para Archie, se
questionando sobre o que exatamente estava acontecendo. Embora
eu também quisesse saber essa resposta, pedi silenciosamente a
eles, com um arqueio de sobrancelha, que não falassem sobre a
pornografia no beco que tinham acabado de testemunhar.
As sobrancelhas de Chad perguntaram se era segredo.
As minhas disseram que sim, sim, era.
As sobrancelhas de Logan se moveram muito para me dizer que,
embora fosse um babado, meu segredo estava seguro com eles.
Archie estava alheio a tudo isso, já envolvido em uma conversa
com Leo e Oscar sobre o treinamento de primavera dos Yankees e
blá-blá-blá.
Acomodada, Roxie se inclinou por cima da mesa.
– Chad é vereador e foi ele quem trouxe a agência da Natalie
para trabalhar na promoção de Bailey Falls.
– Sim, é ao Chad que tenho que agradecer cada vez que meu
celular fica sem sinal ou que começo a assobiar “The Farmer in the
Dell” como uma maluca do interior – disse Nat, batendo com o
cardápio na mesa. – O que eu vou pedir, hein?
– Ouvi falar que os bolos da Zombie Cakes são muito bons –
disse Roxie com o canto da boca.
– Ouvi falar que a garota que faz os bolos da Zombie Cakes é
meio metida – ouvi uma voz familiar dizer quando uma bandeja
cheia de copos de água foi colocada na mesa. – E como foi que me
tornei garçonete desta mesa, hein?
Eu me virei e vi Trudy, a hippie perpetuamente apaixonada que
também era mãe de Roxie.
– Ora, Clara Morgan! Eu não sabia que você estava na cidade!
Vem aqui me dar um abraço e um beijo.
Eu me levantei e fui envolvida pelos braços dela e pelo aroma
familiar de patchouli misturado com batata frita.
– Oi, Trudy!
– Como você está? Veio visitar as garotas?
– Mais ou menos.
Roxie se intrometeu.
– Ela está fazendo a magia dela lá no Bryant Mountain House,
mãe. Está ajudando o Archie.
– Archie Bryant, não vejo você há um século! – Ela deu um
tapinha carinhoso no ombro dele e apertou seu braço. – Você
precisa vir aqui com mais frequência. Está magro demais. Vai comer
a carne assada hoje! Com uma porção generosa de purê de batata.
– Ela olhou para mim, ainda presa em seu outro braço. – E você,
está chegando alguma corrida que exija uma dose a mais de
carboidratos?
– Não, por enquanto não tenho nenhuma.
– Então você também vai comer a carne assada. – Ela olhou no
fundo dos meus olhos, inquisitiva. – Você parece estar precisando
de ferro. Vou botar uma fatia a mais pra você. O resto de vocês
pode escolher o que quiser, já volto. É ótimo ver você, Clara! – Ela
me guiou de volta para a cadeira e olhou de repente para Archie e
para mim quando percebeu que estávamos sentados um ao lado do
outro. – Uhum. – E, balançando o bloco e a caneta, saiu,
murmurando baixinho sobre ginkgo biloba e vitamina D.
– Já era o nosso trabalho – murmurei para Archie, e ele chegou
mais perto.
– A gente sempre pode dar uma volta depois.
– Ah, é? – perguntei.
Ele só sorriu e me cutucou com o cotovelo. Mas nós dois
lembramos que estávamos em público e nos afastamos, olhando
para baixo, para o outro lado da sala, para qualquer lugar, menos
um para o outro.
Frio na barriga por causa de um cotovelo. Isso era perigoso.

– O que a Trudy quis dizer quando falou de corrida? – perguntou


Leo.
– A Clara corre. E nada. Caramba, a Clara faz tudo – disse
Natalie.
Oscar deu um beijo na testa dela.
– De que tipo de corrida você participa? – perguntou Leo.
– Provas de resistência, esse tipo de coisa. Tento fazer várias
maratonas por ano, dependendo de onde estou trabalhando. Se
conseguir encaixar um triatlo, eu faço.
– Você é durona, né? – perguntou Logan, e dei de ombros.
– Ela é – respondeu Roxie, e me encarou por cima da mesa. Ela
estava certa. Eu era. Tinha que ser.
– Você já fez uma daquelas corridas pela lama? – perguntou
Chad.
Eu assenti.
– A gente estava falando disso no caminho para cá. Tem uma em
breve em Syracuse, parece que o percurso é ótimo.
– Era dessa que eu estava falando! – exclamou Logan, batendo
no ombro de Chad. – A gente tem que fazer!
– Ah, cara, uma daquelas Tough Mudder? – perguntou Leo,
olhando para Oscar. – O que você acha, Mendoza, será que
aguenta?
– Lama? – perguntou ele. – Claro. É só terra molhada.
– Excelente. Você topa, gata? – perguntou Leo, passando o braço
pela namorada.
– Como fui me envolver nisso? Vão vocês fazer isso, eu e a
Natalie vamos ficar assistindo da arquibancada.
– Eu vou pelo salsichão – respondeu Natalie, piscando para
Oscar.
– A gente vai, a gente vai mesmo! – disse Leo, olhando para
Archie. – Você vai, né?
Comecei a falar, querendo tirar o dele da reta, mas mais uma vez
ele me surpreendeu.
– Claro – disse ele, com toda a confiança de alguém que decidiu
uma coisa em uma fração de segundo, mas parecia bem decidido. –
Por que não?
A empolgação se espalhou pela mesa com todos se exaltando ou,
no caso de Roxie e Natalie, um sentimento de apoio misturado com
repulsa.
Ouvi tudo isso me perguntando como uma simples saída noturna
para conversar com Archie sobre o hotel tinha se tornado um grande
evento de amizade. Todos conversando com todos, rindo,
brincando. Estava meio caótico e até um pouco… sufocante? De um
jeito bom, mas houve um momento em que tive que me encostar e
só respirar, sentindo todas aquelas personalidades se chocando e
caindo em cima de mim.
Eu não estava acostumada com tanta falação. Já tinha visto a
versão glorificada de Hollywood de um jantar de família grande, mas
nunca tinha estado em um. Ouvi as conversas, ri com todo mundo,
mas havia uma parte de mim que se sentia meio… de fora. Era o
habitual para mim, mas desta vez eu estava dentro, eu era uma
parte de dentro. Por que ainda parecia sufocante, então?
Não me sentia solitária, nunca me permiti chegar a isso. Então,
por que, mesmo cercada dos meus amigos e de amigos deles e me
divertindo, senti um vazio por dentro? É possível se sentir solitária
quando se está cercada de gente?
Esfreguei o peito e senti uma dor atrás das costelas. Eu estava lá,
estava envolvida, mas só em parte. Uma parte de mim estava
pairando fora disso, na beirada, sem ser notada.
Mas Archie reparou em mim. Seu olhar encontrou o meu e o calor
dele incendiou esses vazios.
Quando Leo começou a me perguntar sobre as corridas das quais
eu já tinha participado e Logan me contou sobre a vez que caiu de
um percurso de cordas e que foi a coisa mais legal que já aconteceu
com ele, me senti incluída e pude me permitir aproveitar a noite pelo
que era. Uma noitada com amigos. Com carne assada. E esbarros
repetidos acidentais de propósito de cotovelos.

Algumas horas depois, estávamos voltando para a montanha. Foi


uma noite divertida, com muitas risadas e histórias e palavrões.
Trudy me fez prometer que jantaria no restaurante em breve. Gostei
de conhecer Oscar, e, embora Archie não parecesse ter nada em
comum com ele, eles se davam bem.
Chad e Logan pareceram entender. Quando ficou claro que eu
estava trabalhando no hotel, eles trocaram um olhar rápido e deram
um aceno sutil na minha direção. Eu tinha certeza de que teria que
dar explicações em algum momento, mas esse problema estava
temporariamente resolvido.
Mesmo resolvido, era um risco que eu não podia correr. No meu
ponto de vista, essa história só tinha um resultado possível, e não
era bom. Arrisquei um olhar para o perfil de Archie enquanto ele
dirigia. Os dedos longos, graciosos e delicados no volante. O nariz
forte, o maxilar entalhado, os lábios carnudos, agora curvado em um
sorriso pequeno e cheio de segredos. Ele tinha se divertido. Fazia
algum tempo que ele não se divertia? Eu tinha a sensação de que
sim.
– Você sai muito? – perguntei.
– Explique.
– Sai – eu repeti, encolhendo as pernas embaixo do corpo e o
encarando por cima do painel. – Por aí. Com amigos. Com… Sei lá.
– Não, não mesmo – respondeu ele, entrando na pista que levava
ao resort.
– Por quê?
– Eu costumo estar sobrecarregado com o hotel, se é isso que
você quer saber, e não sobra muito tempo para a vida social.
– Entendi.
– E se você está perguntando se estou saindo com alguém, e
acho que está, a resposta é a mesma.
– Eu não estava perguntando isso.
– Tudo bem.
– Porque nós trabalhamos juntos.
– Você trabalha para mim, tecnicamente – respondeu ele com
mais do que um toque de humor.
– Eu trabalho para o seu pai, tecnicamente. E, de qualquer modo,
não importa, porque o que aconteceu lá, aquela pegação perto das
latas do lixo, não pode acontecer de novo.
– Concordo. – Ele assentiu.
Olhei para ele com atenção. Ele tinha concordado rápido demais.
– Estou falando sério, Archie. É má ideia.
De repente, ele parou o carro no acostamento. Apagou as luzes e
se virou para mim.
– Eu sei o que é uma má ideia, senhorita Morgan. Sei todos os
motivos por que isso não pode e não vai mais acontecer.
– Que bom – eu disse, inquieta. – Então nós concordamos.
– Nós concordamos. – Ele assentiu. – Nós também concordamos
que o que queremos agora é que eu puxe você por cima desse
console e veja a rapidez com que consigo te deixar nua no meu
colo, mas isso não vai acontecer. – Ele firmou o maxilar. – Porque
nós concordamos.
– Ah, meu Deus, sim, eu concordo... – eu disse, ciente de que
estava ofegante enquanto falava.
Com cuidado e com grande esforço, ele engrenou o carro e
voltamos para o hotel.
Capítulo 11

– Se você fechar a ala leste para reformas e encher


completamente a ala oeste com as reservas que já tem, vai
economizar na limpeza e na arrumação, já que não vai precisar
trazer funcionários adicionais tão cedo na temporada de verão. Além
do mais, os hóspedes não vão se sentir tão espalhados.
– Espalhados?
– Cara, o andar é praticamente todo meu. Você sabe como é
sinistro lá?
– Uma curiosidade: você sabia que, na virada do século XX, e não
do XXI, aconteceu uma coisa em um quarto perto do seu, um…
– Se você terminar essa história, vou sair tão rápido desta
reunião, senhor Bryant, que sua cabeça vai girar. Você já leu
algumas críticas on-line? Este lugar é conhecido, e vou citar aqui,
pela “abundância de corredores assustadores”.
– Anotado, senhorita Morgan. Corredores assustadores. Entendi.
Continue.
Archie e eu estávamos em uma reunião durante o café da manhã,
em um canto tranquilo da sala de jantar. Eu tinha insistido para
ficarmos em um lugar público, em uma área iluminada, para ter
certeza de que nada aconteceria. E voltamos a sr. Bryant e srta.
Morgan. Mas eu não podia negar a emoção que sentia quando ele
falava meu nome.
Clara.
Ele falava como se gostasse de falar, como se ficasse feliz de unir
as letras na esperança de me fazer virar a cabeça.
E dentro da minha cabeça era o único lugar onde eu permitia esse
pensamento; eu não podia deixar que se manifestasse de novo e
corresse solto por aí. De novo.
Então, tomava precauções. Quando ele chegou de manhã, eu já
ocupava uma mesa redonda e grande perto da janela e estava com
meu planejamento todo espalhado. Nós tínhamos que decidir
algumas coisas de uma vez por todas antes da reunião com todos à
tarde. E ter um bom pedaço de mesa entre nós era incrivelmente
importante, principalmente com aquele olhar faminto dele, de quem
queria procurar um lugar para me imprensar.
– Por que você me colocou naquele quarto? – perguntei,
comendo uma tigela de aveia fina.
Estava chovendo hoje de novo, então, apesar de não conseguir
correr ao ar livre, eu tinha corrido oito quilômetros na esteira e
estava morrendo de fome. O bufê de café da manhã era bom – é
difícil estragar o café da manhã – e tinha tudo que se pudesse
imaginar. Infelizmente, eles serviam como se a casa estivesse
cheia, apesar de haver menos de cinquenta hóspedes no momento.
A quantidade de comida era absurda.
– Você acha que eu tive alguma coisa a ver com aquilo? –
perguntou ele, todo sério. Foram os olhos, brilhando atrás dos
óculos de aro de tartaruga, que o denunciaram.
– É prática comum colocar um hóspede a três quilômetros dos
outros?
– Você pareceu ser uma garota que gosta de… privacidade.
– Eu também pareço ser uma garota que carrega migalhas de pão
no bolso? Porque eu praticamente preciso deixar uma trilha de
migalhas para encontrar o caminho de volta.
Ele revirou o olhos.
– Eu não botei você no final do corredor. Botei Melanie Bixby no
final do corredor. – Ele me olhou com argúcia. – Clara Morgan não
faria o check-in naquela noite.
– Tem razão. Agora que estabelecemos que sou uma filha da puta
sorrateira, vou trocar de quarto. Uma suíte, por favor e obrigada.
– Você quer uma suíte agora? – Ele riu.
– Verifiquei as reservas com a Becky. A suíte Tower Lakeside só
está reservada para meados de abril. Eu quero.
– É a suíte mais luxuosa que temos.
– Estou ciente.
– Costumamos deixar essa suíte vazia para o caso de alguém da
realeza aparecer de repente.
– Alguém da realeza aparecer de repente? Às vezes, fico
pensando se você escuta o que você mesmo diz.
Ele teve a decência de parecer envergonhado.
– Admito, não acontece mais com tanta frequência. Mas acontecia
no passado.
– Certo, no passado. E a mulher que está aqui no presente para
salvar seu futuro gostaria de estar lá até o meio-dia.
Ele me observou por um momento, parecendo pesar minhas
palavras.
– Combinado – pronunciou. – Faça as malas, senhorita Morgan,
você vai se mudar.
– Essa é a história da minha vida. – Eu sorri.
– Gostaria de ouvir sobre isso qualquer hora – respondeu ele, e
meu sorriso ficou imóvel. – Você sempre morou em Boston?
– Aham – murmurei, com o sorriso imóvel na cara. – Eu gostaria
de repassar algumas ideias sobre as reformas dos quartos,
especialmente dos que você chama de quartos vitorianos.
– É a parte mais antiga do hotel – respondeu ele, me olhando com
atenção. – De que parte de Boston, de onde é a sua família?
– Ah. De toda parte. Daqui, dali. – Apontei para a ala vitoriana no
mapa à minha frente. – Se é a parte mais antiga do hotel, isso
explica por que é a mais entulhada.
– Como é? – disse Archie, ofendido. Bom, porque ofendido queria
dizer que ele tinha deixado de lado o outro assunto.
– Pode perguntar o quanto quiser, mas é entulhado e precisa de
uma arejada.
Suspirei de alívio quando vi a veia saltar em sua têmpora
esquerda. Isso significava que ele estava pronto para discutir e
esqueceria de me perguntar sobre a minha infância. Eu nunca sabia
como responder a isso; se você começa a contar que viveu em
abrigos para crianças a vida toda, o show de pena começava no
momento seguinte. Eu odiava.
Mas, para a minha sorte, aquela têmpora estava latejando.
– Você tem ideia do quanto valem as antiguidades naqueles
quartos? E você quer levar algo novo, algo padronizado, para eles?
– Eu adoraria que você me dissesse quando exatamente
mencionei a palavra “padronizado”, porque é a última coisa que
quero fazer.
– Você diz palavras como “arejar”, eu ouço “moderno” e
“simplificado”, e de repente estamos em um Marriott Airport.
Bati com a colher, e um monte de aveia voou.
– Sim, foi exatamente por isso que vocês me contrataram, para eu
transformar este lugar em um Marriott Airport. Você pode me dar o
mínimo de crédito?
– Como posso fazer isso se você está virando meu mundo de
cabeça para baixo?
Ele respondeu batendo a própria colher, e uma fatia de toranja
caiu na minha xícara de café. Ficamos nos encarando, os dois
respirando pesadamente, os rostos vermelhos, os punhos
apertados. Nosso garçom andou cautelosamente em volta da mesa,
sem conseguir decidir se limpava a sujeira que o chefe tinha feito ou
se era melhor não se intrometer em uma conversa acalorada.
O olhar de raiva de Archie fez o garçom se decidir, e ele se
afastou murmurando:
– Vou dar um momento a vocês dois.
Dobrei graciosamente meu guardanapo, me levantei e o joguei na
cadeira vazia.
– Não tem ninguém hospedado no terceiro andar da ala vitoriana
agora.
Ele me olhou como quem diz: “E eu deveria saber o que isso quer
dizer?”.
– Vá buscar a chave de um dos quartos e me encontre lá em vinte
minutos – instruí. – Vou mostrar exatamente o que quero dizer.
Lá estava. O fogo. Escondido por trás do terno de alfaiataria e dos
óculos caretas.
– Em quinze! – gritou ele.
Voltei rapidamente ao meu quarto para pegar a câmera. Eu queria
umas fotos dos quartos velhos e desgastados para mostrar a alguns
decoradores e colher opiniões, ideias novas para reformar os
quartos, trazê-los para o presente, em vez de mantê-los no passado
decrépito no qual aquele cara parecia querer viver!
Que cara chato! Eu não teria como fazer meu trabalho com ele
resistindo a cada etapa, muito menos obteria algum resultado já que
essa mesma resistência deixava não só meu sangue fervendo, mas
outras partes de mim acabavam ficando quentes no meio da
tempestade.
Ele sabia que quando ficava irritado mordia o lábio inferior?
Ele sabia que quando ficava com raiva sua pele ficava mais pálida
e as sardas se destacavam?
Ele sabia que, quando ficava frustrado, sua voz baixava e ficava
muito grave?
Ele sabia que, eu mal consegui me segurar para não pular por
cima da mesa no café da manhã e me engalfinhar com ele no chão,
em meio a flocos de aveia e fatias de toranja?
Cada vez mais irritada, saí correndo do quarto, desci a escada e
atravessei o saguão. Eu nunca tinha enfrentado um obstáculo como
aquele cretino! A reunião da manhã era para ser o começo de um
esforço colaborativo para salvar o hotel, mas já estava começando a
dar errado porque eu queria fazer as mudanças necessárias e ele
queria continuar discutindo. Como posso trabalhar assim? Como
posso ser eficiente?
Cheguei à escadaria pelo lado oposto e subi dois lances de
escada, chegando ao patamar a tempo de ver Archie dobrar a
esquina na outra ponta.
Ele estava com uma chave dourada em um chaveiro, que girou
nos dedos. Nós andamos um na direção do outro.
– O quarto trezentos e dezessete está bom para você?
– Perfeito, ótimo e entulhado – respondi. Inclinei a cabeça para a
porta num sinal para ele a abrir.
– O que você chama de entulhado, senhorita Morgan, é o que
gostamos de chamar de clássico – disse ele, enfiando com
tranquilidade a chave na fechadura e girando a maçaneta.
– Pode chamar do que quiser, só me leva para dentro e me tira
desse corredor sinistro.
Ele me lançou um olhar por cima do ombro e empurrou a porta,
segurando-a aberta para que eu entrasse primeiro.
Os quartos eram menores nesta parte do hotel, sem armários,
mas com cômodas grandes. Também não tinham camas retráteis.
Mas, considerando que era a ala vitoriana, todas as superfícies
eram cobertas de um paninho de frivolité. As rosas que havia em
meu quarto também estavam presentes ali, só que multiplicadas por
mil. Havia o papel de parede de rosas, retratos com moldura florida
de tigelas de frutas e de jarras de água, e, ladeando as janelas,
cadeiras pequenas e com aparência desconfortável, de costas retas.
– Senhoras e senhores, o quarto da vovó Esther.
Andei pelo quarto, parando para admirar a vista das montanhas.
Os quartos eram entulhados, sim, porém tinham uma vista
maravilhosa. Tinha começado a chover, uma chuvinha leve, mas as
montanhas ainda estavam lá.
– Cada peça neste quarto é uma antiguidade – disse ele, parado
na porta.
– Cada peça neste quarto é uma antiguidade – concordei,
mexendo nas franjas de um abajur velho –, mas também parece
que, a qualquer segundo, a Nellie Oleson vai passar correndo por
aqui a caminho do mercado.
– Quem é Nellie Oleson?
– Esquece – eu disse, indo até a cama. – O que quero dizer é:
olha para esta cama. É uma antiguidade, mas, pelo amor de Deus, é
cama de casal. Não é king, nem queen, é de casal. Quem dorme em
camas de casal hoje em dia?
– Pessoas. As pessoas dormem em camas de casal o tempo
todo.
– Não mesmo. A não ser que você seja um universitário morando
no seu primeiro apartamento. Casais querem pelo menos uma cama
queen. Falando nisso, você precisa atrair o hóspede de fim de
semana, os casais que querem ficar longe dos filhos e passar um
fim de semana romântico nas montanhas. Acredite, quando eles
chegarem aqui, vão querer fazer aquilo numa cama maior. King,
idealmente. Fazer em uma cama de casal faz parecer que você está
de agarração na casa dos pais.
– Não acredito que estou tendo essa conversa – disse ele,
balançando a cabeça.
– Acredite, Hoteleiro, as pessoas trepam quando viajam de férias.
– Senhorita Morgan, acho que não há necessidade para usar uma
linguagem assim. Por favor, fale baixo.
– E elas não querem trepar no quarto da vovó Esther! – eu disse
no momento em que a sra. Banning, da limpeza, passou.
– Ora, o que está acontecendo aqui? – disse ela, os olhos se
iluminando como os de um gato que acabou de ver o Piu-Piu.
Archie contraiu o maxilar.
– Nada, senhora Banning. Só estamos discutindo algumas ideias
que a senhorita Morgan tem para dar vida nova aos nossos quartos
velhos e entulhados.
– Ah, que maravilha! – exclamou ela, batendo palmas. – Eu
sempre achei que umas cortinas novas de renda fariam maravilhas
para…
– Obrigado, senhora Banning – disse Archie, dando um tapinha
rápido no ombro dela e fechando a porta. Ele se virou para mim
também rápido. – Você é sempre tão grosseira quando fala com um
chefe?
– Meu chefe é seu pai, e ele não me deixou tão irritada quanto
você deixou.
– Senhorita Morgan, vou dizer…
Eu levantei a mão.
– Pare. Pare agora. Eu adoraria ter mais dez rodadas de
discussão sobre quem tem o maior pau, mas, sinceramente…
– Se isso está em questão, talvez você tenha algo para me contar
que não esteja visualmente aparente.
– … está na hora de trabalhar. Como aparentemente nós não
somos capazes de ter uma conversa para tomar uma decisão sem
começar a brigar, vou dizer tudo o que acho que precisa ser feito
para mudar este lugar. Como aparentemente não conseguimos ir
adiante num assunto com os dois podendo falar, proponho o
seguinte: você escuta, não fala, e, quando eu terminar, pode fazer
perguntas, mas não antes disso. Combinado?
Ele estava furioso. Ele assentiu.
– Primeiro, vamos revisar. O hotel fecha por dez semanas no
inverno, o que já discutimos. Tenho uma proposta formal que vou
enviar por e-mail para sua avaliação; tem todos os detalhes sobre
como lidar com as mudanças dos funcionários, com as reservas
existentes, todas as coisas divertidas sobre as quais poderíamos
discutir durante horas. Mas você pode só ler, refletir e depois me
dizer como sou genial.
Ele abriu a boca e eu apontei um dedo.
– Não, não terminei.
Ele fechou a boca. Furioso. Ele assentiu.
– Segundo, as renovações nos quartos. Quando falei entulhado,
eu poderia ter usado outra palavra. Que tal “datado”? Não quero me
livrar das antiguidades, concordo que são lindas e perfeitas, com
trabalho da melhor qualidade e todas as outras banalidades que
começam e terminam com “não fazem mais assim hoje em dia”.
Então, elas ficam. Algumas. Algumas poderiam ser reaproveitadas.
Você sabia que pode converter o tamanho de molduras de camas
antigas para que caiba um colchão atual? E, para algumas, talvez
seja hora de se despedir. Você consegue imaginar como seria
divertido vender algumas dessas coisas? “Tenha uma peça da
história do Bryant Mountain House”, algo assim. A questão é: as
antiguidades que ficarem não precisam viver na terra das flores e
dos paninhos de frivolité. Tenho uma decoradora em mente que
acho que seria perfeita para o serviço. Ela trabalhou em uma
modernização de hotel na Califórnia que ficou lindíssima e poderia
estar alinhada com o DNA do Bryant Mountain House.
Archie abriu a boca, pensou melhor e a fechou.
– Se você ia dizer qualquer coisa sobre como eu poderia saber
qual é o DNA deste lugar, dado o pouco tempo que fiquei aqui,
melhor não falar nada. É meu trabalho conhecer o DNA, certo? Eu
sei disso.
Ele continuou furioso. E continuou assentindo.
– Terceiro, revivemos. Quero trazer a Natalie, fazer um esforço
maior para este lugar aparecer com mais proeminência na
campanha de Bailey Falls. Embora vocês tenham sido mencionados
brevemente na introdução, quero que apareçamos com destaque na
segunda fase. Quarto, quero trazer a comunidade, envolvê-la mais
neste lugar. O Chad mencionou na outra noite que achava que a
câmara da cidade seria receptiva a promoções que quiséssemos
fazer, e eu gostaria de conversar de novo com ele, sondar um pouco
mais. Os feriados são um grande evento para seus hóspedes leais,
e eu gostaria de torná-los parte da experiência de Bailey Falls como
um todo. Halloween, Ação de Graças, Natal, tudo. A Páscoa está
logo ali na esquina, vamos envolver a cidade. Você falou com a
Roxie sobre trazer os bolos da Zombie Cakes. Faça isso! E, quando
estiver cuidando disso, traga o Leo para ajudar, incremente o jardim
de verão, você pode até patrocinar uma feira de produtores locais
no verão, trazer pessoas para cá para elas verem como é. Ora,
deixe o Oscar trazer algumas vacas para… bem… não… vacas
podem deixar o lugar fedendo… mas vamos pelo menos ter a
manteiga e o queijo dele aqui. O país todo está louco por comida de
produção local e sustentável, e você tem produtores no seu quintal.
Faça acontecer. Você estabeleceu preços acima da média para a
cidade, ninguém que mora aqui pode pagar a hospedagem, e isso
não é bom. Você pode encher o hotel fora de temporada com os
residentes da região, e é isso o que vamos fazer.
Parei para respirar. Ele não estava mais com cara de furioso nem
assentindo, só estava ouvindo.
– Finalmente, a última coisa que quero mencionar hoje.
Rejuvenescer. Reduzir preços. Sim, este é um hotel de luxo que
atende uma clientela de luxo, e não quero perder essa experiência.
Mas acho que podemos trabalhar nos preços nas épocas mais
fracas do ano, implementar um sistema de preços para residentes,
com descontos maiores para quem mora na região, e começar a
trabalhar para entrar no nicho de retiro corporativo. Era algo com
que este hotel se envolvia muito, mas depois de 2008 isso ficou
mais lento ao ponto de, agora, ser quase inexistente. Podemos
recuperar isso, sei que podemos. Mas temos que ser competitivos
nos preços. Depois de alguns anos, com as coisas melhorando,
você pode reavaliar. Mas agora precisamos ir fundo. – Parei,
sabendo que tinha jogado um monte de informações de uma vez em
cima dele.
O único som era da chuva, que tinha mudado de uma chuva fraca
para um jorro forte. Estava caindo com tanta força que escondia
todos os outros sons. Lá fora, as montanhas tinham sumido atrás de
um muro de água, que borrava o mundo lá fora e nos prendia aqui
dentro.
Ele foi até a janela, olhou para o muro de água e para mim e
botou as mãos no rosto como se quisesse apagar tudo. Era muita
coisa para absorver. Tudo mudaria.
– Você acabou? – perguntou ele, a voz abafada pelas mãos e
pela chuva.
– Por enquanto – respondi, me balançando um pouco nos
calcanhares.
Ele deu um passo, outro e outro, até estar perto de mim, me
encarando. Os olhos estavam sérios, observadores, percorriam
cada centímetro do meu rosto. Esperei, dando-lhe tempo para
absorver todas as informações. Ele precisaria pensar sobre isso,
pesar algumas opções, examinar tudo o que eu ofereci. Foi por isso
que o que ele disse me surpreendeu demais.
– Eu topo. Vamos em frente.
Soltei o ar de repente.
– O quê? Que parte?
– Tudo – disse ele, balançando a cabeça mesmo assim. – Menos
a parte dos funcionários. Vamos ter que dar um jeito. Pagar tempo
de férias, prolongar férias, ora, eu até paro de receber salário por
um tempo, mas não vou despedir ninguém.
– Que generoso.
Ele abriu um sorriso pesaroso.
– O que posso dizer? Eles são da família. Você sabe como é com
a família.
Senti um caroço inesperado surgindo na garganta e ordenei que
voltasse para o lugar de onde tinha vindo.
– Tudo bem… Ahn, podemos repassar os detalhes agora se você
quiser, por que não voltamos para…
– Ah, não, senhorita Morgan. Desconfio que acabamos de
concordar sobre uma coisa, você não acha? – disse ele, esticando o
dedo e o prendendo na fivela do meu cinto, me puxando para si.
Engoli em seco – mais do que o normal, porque o maldito caroço
ainda estava lá.
– Nós não devíamos – eu disse enquanto permitia que ele me
puxasse para mais perto. – Isso é realmente uma ideia terrível...
Eu devo?
Você está sozinha com ele em um quarto de hotel. Beije-o.
Humm, nós estávamos em segurança lá dentro. Ninguém veria.
Além do mais, eu tinha acabado de vencer uma discussão e devia
me permitir um pouco, certo?
Só um selinho?
Só um. Eu me inclinei e rocei rapidamente os lábios nos dele,
sentindo na mesma hora a fagulha despertar algo que estava
ficando cada vez mais difícil de ignorar. Beijei-o só uma vez e vi
suas mãos deslizarem da fivela para a minha cintura. Vi um brilho
de metal e me dei conta de novo de que aquele homem estava
usando a aliança de casamento.
Meu bom Deus, ele ainda usava a aliança de casamento. A
esposa estava morta havia vários anos e ele ainda usava a aliança.
Era fofo. Pensando no assunto de forma abstrata. E era gentil. E
bom. Mas, para a pessoa sendo abraçada por ele no momento,
também era irritante. E meio estranho. E o motivo que eu precisava
para não deixar aquilo acontecer.
Ele passou o nariz no meu pescoço, e, com uma força de vontade
que eu não sabia que tinha, afastei Archie.
– Vou enviar o e-mail com todas as ideias reunidas. Depois, à
tarde, podemos nos encontrar na sala de reuniões? Para começar a
fazer planejamentos reais? – Segurei suas mãos, apertei-as de leve
e as afastei de mim. Era mais difícil pensar claramente quando
havia toques envolvidos.
Ele pareceu intrigado.
– Você vai embora… agora?
Eu não queria. Meu Deus, eu não queria, e foi por isso que eu
soube que devia. Não confiei em mim mesma para responder, então
só assenti. Ele pareceu querer me convencer a ficar… mas acabou
assentindo também. Isso não ia acontecer. Não podia.
– Por que você não vai primeiro? Vou esperar um pouco aqui –
sugeriu ele, ajeitando a gravata.
– Esperto – eu disse. – Mas é uma boa ideia. E não se esqueça
de trocar meu quarto.
– Seu quarto? – perguntou ele, confuso.
– Minha suíte nova, lembra? E espero que tenha uma televisão lá,
aliás.
– Nada de televisão.
– Droga – murmurei.
Eu o ouvi rir quando espiei o corredor para ver se estava vazio.
Quando cheguei à escada, o caroço em minha garganta tinha
sumido. Eu era especialista em empurrá-lo de volta. Tinha feito isso
a vida toda.

– Você não liga, não escreve, parece que se esqueceu de mim.


– Quando foi que eu escrevi para você?
– Uma carta de verdade? Nunca. Mas um e-mail de vez em
quando seria legal, só para eu saber que você não caiu da
montanha.
– Eu não caí da montanha.
– Já é um começo – disse Barbara, e nós duas rimos. – Sei que
você costuma ficar na sua quando mergulha em uma nova
propriedade.
– Você me conhece, me conhece muito bem – respondi, sentindo
o sorriso se abrir no rosto.
Ninguém na face do planeta, às vezes nem Roxie nem Natalie,
me conhecia como a minha chefe. Os amigos conhecem uma parte
de você, a maior parte, mas, quando você passa quarenta horas por
semana com uma pessoa, essa pessoa enxerga tudo. E Barbara me
entendia perfeitamente. Não conto com muita coisa no mundo, mas
saber que eu tinha alguém como ela do meu lado era uma
estabilidade de que eu precisava.
E, me conhecendo como me conhecia, ela sabia que eu era
capaz de lidar com as coisas sozinha, e me deixava livre. Eu só
tinha que dar um alô de tempos em tempos, o que, quando estava
soterrada de trabalho, eu costumava me esquecer de fazer.
– Desculpe por ter sumido. Eu pretendia mandar um sinal de
fumaça pra você saber que eu ainda estava respirando.
– Não foi nada. Mas, agora que estamos conversando, como
estão as coisas, garota?
– Eu devo ter um relatório da situação pronto para enviar por e-
mail para você amanhã, mas tudo bem até aqui. Muito bem. A todo
vapor, todos os sistemas funcionando, engrenagens girando.
– Qual é o problema. – Uma declaração, não uma pergunta, vinda
da minha chefe, nunca era uma coisa boa.
– O que você quer dizer?
– Quando você começa com esse vocabulário de controle de
missão, sei que tem alguma coisa. Fala logo.
Mordi o lábio. O que podia ser? Eu só andava me agarrando com
o cara que me contratou, o homem que daria a palavra final sobre
meu trabalho, o homem que estava com o destino da minha
sociedade nas mãos, enquanto eu estava doida para segurar outra
coisa nas minhas. O que poderia ser?
– Está tudo bem, Barbara. Eu só me deixo levar às vezes. Estava
passando SpaceCamp na sala de televisão outro dia.
– Aham – disse ela, sem acreditar nem por um segundo. – Como
está a família Bryant?
– Bem, eu acho. Houve resistência no começo, principalmente do
filho, mas ele embarcou conosco agora.
Eu a ouvi mexendo em papéis.
– Archibald, certo?
Segurei uma gargalhada. Eu teria que perguntar sobre isso a ele
mais tarde.
– Ele é chamado de Archie, mas, sim. Ele está cooperando agora.
– Que bom. Quando você acha que consegue terminar?
Franzi a testa.
– Hum, a gente está nos estágios iniciais, mas estou avançando.
Por quê? O que houve?
– Nada. Não houve nada. Só tem algumas coisas acontecendo
aqui no escritório. Eu adoraria acabar com isso mais cedo do que
mais tarde, só isso.
Agora eu fiquei curiosa sobre o que estava acontecendo.
– Tem alguma coisa que eu precise saber?
– Ah, nossa, não. Não é nada do tipo. – Ela riu e na mesma hora
me senti melhor. Se Barbara dizia que estava tudo bem, estava tudo
bem. – Só estou pensando no outono, tentando planejar as coisas.
Você sabe como eu sou, sempre tentando me antecipar.
– Você descobriu se o Waterside Hotel em Virgínia estava
contratando alguém para fazer consultoria?
– Descobri, e tenho que contar essa história! É impressionante! –
disse ela, e começou a contar a história.
Conversamos por um tempo, e eu contei o que estava
acontecendo no hotel. Ela fez algumas anotações, deu algumas
sugestões, que foram astutas, como sempre, e, no fim da conversa,
achei que ela tinha esquecido o começo.
– Cuide-se aí em cima e, se precisar conversar, você sabe que
sempre pode conversar comigo. Você sabe disso, não sabe, garota?
– Claro que sei – garanti, cruzando os dedos nas costas. Eu
podia, mas não sobre isso.
Talvez depois que fosse sócia. Aí, poderia contar. Só depois. Até
lá, eu estava determinada a deixar isso de lado.
O que eu teria mais dificuldade de deixar de lado era o pillow top
de pluma de ganso da minha nova suíte! Uma cama king com
dossel, na frente de uma grandiosa e resplandecente lareira de
mármore rosado e contorno de ébano. Descobri que, se eu
empilhasse bem os travesseiros, conseguia ver o fogo aceso e o
lago, a definição de luxo no Hudson Valley. Dois quartos, dois
banheiros, duas varandas e uma sala gloriosa; a suíte Tower
Lakeside tinha uma lista de espera de um quilômetro no verão. Mas
boa sorte para quem estivesse na lista. As mesmas três famílias a
reservavam pelo verão todo, de junho a agosto. Elas frequentavam
o hotel havia anos, com suas múltiplas gerações passando férias
junto, às vezes alugando andares inteiros do edifício principal. Eu já
tinha visto o quanto custava por noite. Não precisava de uma
calculadora para saber que quem podia pagar por quatro semanas
daquilo merecia ver a lareira e o lago ao mesmo tempo.
Usei um dos quartos como minha base de operações e pedi à
manutenção que me ajudasse a tirar os móveis e a trazer a artilharia
pesada: quadros brancos, quadros de cortiça, uma tábua de queijos
cortesia da Bailey Falls Creamery e uma parede inteira dedicada a
perguntas a serem avaliadas… a terra das perguntas que ainda não
tinham sido respondidas – mas seriam, em breve.
As coisas estavam começando a acontecer naquela montanha.
Nós ainda estávamos a algumas semanas da Páscoa, e havia
bastante tempo para ter algumas ideias novas antes de a primeira
leva de hóspedes leais chegar.
A equipe estava quase toda de acordo com as mudanças, e
Jonathan estava em êxtase. No começo, ele, como Archie, teve
preocupações sobre a redução de preço, mas eu acabei o
convencendo, apesar de ainda estarmos trabalhando nos detalhes.
Ele amou a ideia de aproximar a cidade e se questionou por que
não tinham feito isso antes.
– Às vezes, quando a situação está na sua cara, não dá para ver
– disse ele um dia quando mostrei uma prévia dos comerciais de
televisão, produzidos por Natalie, que seriam transmitidos na
semana seguinte nos grandes mercados da Costa Leste.
Roxie também ajudou muito. Quando ela conversou com Archie
sobre incluir bolos da Zombie Cakes no cardápio de sobremesas, o
chef confeiteiro do hotel deu uma olhada no Bolo de Sete Camadas
de Mirtilo e ameaçou se demitir. O chef principal ficou feliz com a
ameaça de demissão; aparentemente, o problema vinha se
desenvolvendo havia um tempo.
– Ele não está indo embora por causa das mudanças, está? –
perguntei à sra. Toomey quando soube da notícia. Fui correndo até
a cozinha, antes que a equipe do jantar descobrisse.
– Não só. Ele já está pensando há um tempo em se aposentar.
Acho que ele sente que este lugar precisa de sangue novo, alguém
novo na cozinha, que seja um pouco mais moderno.
– Ah, não. Me sinto péssima – lamentei, apoiada na bancada com
a cabeça nas mãos. – Eu nunca quis que ninguém se sentisse
expulso.
– Não é isso o que está acontecendo aqui, querida. Não mesmo.
Essas mudanças são boas. Precisam ser feitas. A equipe está
animada, isso eu garanto. E vou dizer outra coisa – disse ela,
olhando para trás para ver se ninguém ia ouvir.
– O quê? – perguntei com cautela, também olhando para trás.
– Não vejo o Archie feliz assim desde… bem… desde…
– Desde antes da morte da esposa? – Fiz uma careta.
Ela pensou por um momento, a expressão se suavizando.
– Sabe, eu tenho que admitir que acho que nunca o vi tão feliz. E
é a verdade.
Com isso, ela deu meia-volta e foi para a sala de jantar.
Ah.
Falando em Archie, o homem era uma máquina. Não, não assim.
Ele trabalhava dezesseis horas por dia. Não parava. Desde que
aderiu às mudanças, ele entrou com tudo. Uma coisa que eu tinha
reparado na primeira reunião estava se mostrando verdade. Ele
realmente valorizava a opinião dos outros e escutava. Isso era difícil
de encontrar em um chefe, mas ele realmente se esforçava para
garantir que a equipe se envolvesse e se sentisse ouvida.
Ele sempre tinha trabalhado tanto assim? Ou o trabalho tinha
ocupado sua vida depois do falecimento da esposa? Quando há dor
e sofrimento, ou quando lembranças ruins tomam conta, o trabalho
pode se tornar um salva-vidas, afastar sua mente do que você não é
capaz de suportar e canalizar a energia para uma coisa boa, uma
coisa tangível.
O trabalho também seria a forma que ele encontrara de suportar?

Uma noite, depois do jantar, fiz o caminho errado e parei em uma


parte do hotel que eu nunca tinha visto. Por não ter aonde ir e não
estar cansada, passeei um pouco antes de voltar para o quarto.
No final da ala leste, no primeiro andar, perto de alguns
escritórios, havia uma galeria de retratos. Todas as gerações da
família Bryant, começando com pinturas de Ebenezer e Theophilus,
os irmãos que deram início a tudo, ocupavam as paredes. Conforme
fui andando pelo corredor, a mesma expressão se revelou para mim
em muitos dos rostos. Fortes, destemidos, patrióticos, mas de
alguma forma introvertidos. Não havia rachadura na armadura ali,
não havia sinal do que mexia com aquelas pessoas além de uma
sensação de dever para com a família e com a vida que eles tinham
criado na montanha.
Vi algumas semelhanças com Archie, e com Jonathan também;
eles todos compartilhavam algumas feições. O maxilar elegante, o
nariz forte e reto, os olhos azuis, tudo evidente pela história familiar.
Mas, no final da fila, havia um retrato que eu não esperava ver,
mas do qual não consegui tirar os olhos.
Ashley Bryant. Esposa de Archie. Ela era linda.
O cabelo era louro platinado e caía em cachos delicados. Os
olhos eram verdes e belos, capturados pelo artista em um tom
parecido com a grama de verão. Ela tinha um sorriso caloroso, as
maçãs altas nas bochechas, e a mesma expressão tranquila de “a
vida não é incrível?” que todos na família pareciam ter.
Surgiu em minha mente a imagem de uma foto que eu tinha em
meu apartamento, uma das poucas fotografias que mandei
emoldurar. Eu, Natalie e Roxie logo depois que atravessei a linha de
chegada da minha primeira prova Tough Mudder. Coberta da cabeça
aos pés de terra e lama, palha e algumas pétalas de girassol, eu
terminara com vigor e imediatamente abraçara minhas amigas, que
tinham ido torcer por mim, deixando-as tão sujas quanto eu. Era
uma das minhas fotos favoritas de nós três. Falei para elas que
mandei emoldurar porque era uma foto linda de nós três sorrindo, e
era verdade, mas eu amava aquela foto de uma forma egoísta
porque também me lembrava do quanto eu era forte. Era quando
estava coberta de terra e de suor que eu me sentia mais viva, mais
capaz de conquistar qualquer coisa que aparecesse no meu
caminho, e sempre que eu olhava para aquela foto sentia uma
pontada de orgulho, uma emoção que não experimentava com
frequência.
Ashley parecia ter sido uma mulher que jamais tinha ficado
descabelada, ou usado um vestido amassado, ou esquecido um
aniversário. Ela tinha papéis de carta com seu nome gravado.
Dirigia um carro imaculado. Aquela era uma mulher que vivia por
sanduichinhos em miniatura.
Eu não sabia realmente de nada disso, veja bem, mas tinha
convivido com aquele tipo de pessoa durante toda a minha vida
adulta. Mas ela não era esnobe. Parecia uma pessoa boa de
verdade, do tipo que você acha que vai imediatamente odiar, mas
que é tão encantadora que isso acaba sendo impossível.
Eu não a conhecia. Mal conhecia Archie, para falar a verdade.
Mas, ao olhar para aquela mulher bonita, retratada em seu melhor
momento, vi que ela era o par perfeito para o marido.
Um marido que ainda usava a aliança.
Permiti-me mais um instante para observar aquela mulher
aparentemente perfeita e, quando terminei de avaliar os muitos
aspectos em que eu era o oposto dela, voltei para o meu quarto.
Capítulo 12

– É estranho que haja um resort internacionalmente conhecido e


muito bem avaliado a vinte minutos de onde eu passei a infância e
ainda moro e eu nunca tenha passado uma noite nele?
Eu estava sentada de frente para Chad Bowman, vereador da
cidade e eterno crush do ensino médio, ouvindo suas impressões do
Bryant Mountain House. Depois que eu e ele nos conhecemos no
Callahan’s, fizemos planos de nos encontrar para conversar sobre
como Bailey Falls e o resort poderiam se ajudar. Eu também
gostaria de ouvir a opinião dele sobre como a cidade via a família
Bryant e o que a família poderia fazer para reconquistar os
moradores.
– Sim, é estranho – concordei, dando outra garfada no meu prato
especial. Fazia sentido nos encontrarmos na lanchonete, pois eu
tinha prometido a Trudy que passaria lá quando voltasse à cidade. E
porque eu descobri que o especial do dia era frango com bolinhos
recheados. Um paraíso. – Mas você já foi lá.
– A minha família fazia questão de ir ao brunch de Páscoa, nós
não perdemos nem uma vez sequer, e, quando Logan e eu viemos
morar aqui, fomos caminhar nas trilhas algumas vezes com o passe
diário.
– O brunch de Páscoa. Roxie também falou sobre isso.
– Ah, sim. Quando eu era pequeno, todos levavam os filhos lá
para cima. Nós sempre íamos na Páscoa e às vezes íamos para o
jantar de Natal, se a minha não estivesse com vontade de cozinhar,
mas a Páscoa nós nunca perdíamos. Tinha caça aos ovos no
gramado e brunch com aqueles pãezinhos de Páscoa, quentinhos,
de matar.
Escrevi no caderno.
– Roxie também falou dos pãezinhos. Devem ser muito bons.
– Se eu pudesse, botaria aqueles pãezinhos na boca todo santo
dia.
– Olha a boca, Chad, isto aqui é um estabelecimento familiar –
disse Trudy ao passar com uma bandeja de bebidas. Dez segundos
depois, ela passou novamente, e desta vez bateu na cabeça dele
com uma pilha de cardápios.
– Trudy, que mente suja! Você é pior do que a sua filha. – Chad
fez uma careta e esfregou a cabeça, depois olhou para mim. – Você
me entendeu, né?
Pisquei com inocência.
– Só ouvi o quanto você amava aqueles pãezinhos.
– Eu seria capaz de matar para cravar os dentes em um daqueles
pãezinhos agora… Ai!
– O que eu acabei de falar? – perguntou Trudy, inclinada sobre o
encosto do banco, deixando um beijo de batom rosa na bochecha
dele. Ela piscou para mim. – Como estão os bolinhos?
– Estão incríveis. Parecem bolas leves e fofinhas.
Chad ergueu as sobrancelhas, na expectativa.
Trudy não disse nada.
– Você não vai bater nela por falar de bolas? – perguntou ele.
– Quem está com a mente suja agora? – cantarolou Trudy, saindo
pela esquerda, mas não sem antes dar outra batida na cabeça de
Chad.
– Sinceramente, eu nem sei por que ainda venho aqui –
resmungou ele, apoiando-se na borda da mesa para que todo
mundo ouvisse: – O atendimento é péssimo!
– Olha quem fala! – respondeu Trudy da cozinha, onde tinha
acabado de entrar pela porta vaivém.
– Enfim – disse ele, empurrando o prato agora vazio –, onde
estávamos?
– Nos pãezinhos.
– Isso! – Ele esfregou a cabeça distraidamente, sem dúvida ainda
sentindo a batida de Trudy. – A questão é que, fora nesses feriados,
nunca pareceu que o resort fosse parte da cidade. Não me entenda
mal, quase todo mundo que conheço teve pelo menos um emprego
de verão lá em algum momento, mas sempre pareceu… distante da
cidade em si. Sempre foi cheio de famílias ricas que vinham para se
afastar da vida e que, às vezes, visitavam a cidade e se
impressionavam com nosso adorável vilarejo interiorano, mas,
depois, voltavam para lá para relaxar nas cadeiras de balanço, jogar
croquet e tomar o chá chique da tarde. Não que não haja gente rica
aqui em Bailey Falls. E não que nós não tomemos chá chique da
tarde, porque a casa de chá da Hattie Mae na Elm Street serve chá
tradicional inglês todos os dias às três em ponto. Mas, não sei… –
Ele suspirou, a expressão absorta. – O Bryant Mountain House
sempre pareceu meio esnobe. Tenho condição de me hospedar lá
agora, mas eu quero? Ah.
– Ah?
– Ah. Vou acabar fazendo isso alguma hora. Admito que sempre
tive curiosidade de saber como é à noite. Tantos corredores
enormes. É sinistro?
Eu ri com deboche e pensei nas minhas primeiras noites lá.
– Um pouco. Mas estamos trabalhando nisso. E estou
trabalhando em um plano para torná-lo mais acessível para os
aldeões, que é como chamo vocês na minha cabeça.
– Faz a gente parecer personagens de um clássico de Dickens.
– Tem algo de muito clássico em tudo aqui, no hotel, na cidade,
nas pessoas. – Garfei o último pedaço de frango. – Nos bolinhos.
– Que a Roxie não te ouça; ela e a Trudy brigaram por uma
semana quando ela tentou mudar essa receita.
– Mudar? Por que ela mudaria?
– Ela queria acrescentar couve kale.
– Não.
– Sim. A Trudy bateu o pé.
– Escuta, a Roxie é minha amiga. Mas couve kale não tem lugar
junto com frango e bolinhos.
– Amém. – Ele riu. – Mas sei o que você quis dizer sobre aqui;
não tem lugar como o Hudson Valley. Logan e eu morávamos na
cidade, foi onde nos conhecemos. Mas sabíamos que, quando
estivéssemos prontos para assumir um compromisso, queríamos
morar em uma cidade pequena. Ele veio comigo num fim de
semana para conhecer minha família, deu uma olhada na praça e,
na mesma noite, começou a olhar sites de imobiliárias.
Olhei pelo janelão na frente do restaurante, para o sol do fim da
tarde iluminando as árvores. Havia verde para todo lado, da copa
das árvores à grama que começava a surgir nos gramados das
casas. Os açafrões despontavam de trás de troncos e em volta das
pilhas de neve ainda não derretidas; narcisos e tulipas abriam
caminho na terra. Pela janela, eu via as quatro ruas que formavam a
praça e as pessoas que estavam fazendo compras. Do outro lado
da praça, havia um mercado gerido por uma família, um estúdio de
dança, uma joalheria e o que parecia ser um boteco incrível. Os
casais de mãos dadas, as famílias com criancinhas, casais mais
velhos voltando para casa com sacolas, todos pareciam felizes.
Todos sorriam uns para os outros e, com muita frequência, pareciam
conhecer as pessoas por quem estavam passando.
– A Roxie chamava este lugar pejorativamente de cidadezinha.
– Correção: ela chamava de merda de cidadezinha.
Dobrei meu guardanapo no meio.
– Não sei por que as pessoas sempre falam “cidadezinha” como
se fosse uma coisa ruim. Há algo de positivo em ser uma
cidadezinha.
– Tem seus momentos – concordou ele.
– Eu assistia muito Nickelodeon quando era criança e adorava as
reprises de The Andy Griffith Show.
Chad sorriu e começou a assobiar a música tema.
– É engraçado que a Roxie teve que ir embora pra perceber o que
tinha aqui quando era pequena. – O que não falei é que o que ela
tinha aqui era uma coisa pela qual eu teria matado. Tudo naquela
cidade gritava felicidade, conforto, comunidade.
Segurança.
– Mas, às vezes, a gente precisa de uma perspectiva diferente
para enxergar, sabe? Eu nunca achei que voltaria, mas, quando vi
pelos olhos do Logan… deu certo. Ele veio de uma cidade pequena
e sempre soube que queria voltar para lá. Eu achava que ia ficar na
cidade grande.
– Em Manhattan?
– Aqui, quando se diz cidade grande, a conclusão lógica é que se
está falando de Manhattan. Basquete quer dizer os Knicks, beisebol
quer dizer os Yankees.
Eu ri.
– Conheço alguns torcedores do Red Sox na minha cidade que
diriam outra coisa.
Ele grunhiu.
– Ah, cara, estou tentando identificar seu sotaque há um tempão!
Você é de Boston?
– Nascida e criada.
– Em que parte?
Hesitei só por um segundinho.
– Vários lugares, em geral em South Boston.
– Teve um cara que estudou administração comigo que era de
Boston. De Back Bay, eu acho.
Eu ri.
– Bem, esse não era meu bairro.
– Sua família ainda está lá?
Minhas orelhas ficaram quentes.
– Não. A gente vai comer bolo? Vamos pedir bolo! – Acenei para
Trudy e falei com movimentos labiais para ela: sobremesa.
– Você é cheia de mistérios, não é?
– Quem, eu? Eu sou muito sem graça. – Dobrei o guardanapo de
novo.
– Tudo bem, mocinha dos pegas no beco.
– Que beco? – perguntou Trudy, trazendo o cardápio de
sobremesas.
– Não tem beco nenhum – eu disse, olhando para Chad com cara
de “não fala nada”. – Que tal o bolo de nozes?
– A Roxie fala que é delicioso. – Trudy riu. – Não conte para a
minha filha, mas eu também acho delicioso.
– Quero um delicioso, então – respondi.
– Dois deliciosos – concordou Chad.
Trudy voltou para a cozinha, e eu balancei a cabeça para Chad.
– E você fica quieto com esse papo de beco.
– Só vou me calar se você contar.
– Ah, meu Deus, você faz rimas agora? – Eu segurei a cabeça
com as mãos. – Falando sério, você não pode contar para ninguém.
Ninguém sabe.
– Sou ótimo em guardar segredos. Pode perguntar ao Homer da
loja de materiais de construção; só eu sei sobre as revistas que ele
guarda embaixo do balcão.
– E agora eu.
Ele pareceu abalado.
– Ah, merda! Ops. Mas a questão é que eu sei guardar segredo.
O Logan e eu não contamos para ninguém que você está pegando o
gostosão do hotel…
– Eu não estou pegando o gostosão do hotel!
– … mas, pode acreditar, estamos falando sobre aquilo sem parar
desde que vimos vocês no beco – Trudy apareceu com dois
pedaços de bolo e uma expressão curiosa no rosto – … gato do
beco. A gente quer adotar um gato de beco. Estamos pensando em
um bicho de estimação e faz sentido pegar um gato de rua, né? –
Ele assentiu para mim com entusiasmo, e eu imitei com vigor.
– Então você está com sorte! Ouvi uma barulheira no beco outra
noite, quase um gemido… Devia ser uma gata no cio – disse Trudy.
Chad e eu colocamos pedaços enormes de bolo na boca. Ela
olhou para nós como se fôssemos malucos e voltou para a cozinha,
balançando a cabeça.
– Isso aqui está uma maravilha – eu disse com a boca cheia.
– Está mesmo – disse ele. – Sabe o que também seria uma
maravilha? Você me contar a porcaria da história antes que eu
tenha que adotar uma porcaria de gato.
– Ah, caramba, como chegamos a esse ponto?
– A gente chegou a esse ponto porque você pediu isso! – Ele
apontou para mim com o garfo. – Há quanto tempo está rolando?
– Não tem nada rolando! Não oficialmente. Nem extraoficialmente,
na verdade. – Lambi um pedaço de nozes do garfo, pensando
naquela noite. Quando ele me empurrou na parede, com os olhos
parecendo brilhar ao olhar para mim, quando se encostou em mim e
afundou os dedos na minha pele. – Mas vou dizer que, quando
vocês pegaram a gente no beco… ainda bem que pegaram! Porque,
puta merda, aquele homem beija gostoso demais, e se vocês não
tivessem aparecido…
Chad praticamente pulou da cadeira de tão empolgado.
– Eu sabia! Eu sempre soube que aquele cara tinha um fogo, ele
é sempre tão composto e sério e abotoado, mas, secretamente,
homens assim são selvagens na cama! Me diz que ele é! Mesmo
que não seja. Mas inventa uma mentira boa, cheia de detalhes!
– Vamos com calma aí, vereador. Eu nem conheço você direito.
– Conhece por aproximação – disse ele, embora as palavras
tenham sido abafadas por bolo.
– Como?
– Por aproximação, você me conhece porque eu sou próximo da
Roxie.
– Não estou acreditando nesta conversa...
– A questão é que eu conheço a Roxie praticamente a vida toda.
E a Natalie, aquela garota come na minha mão. Elas são suas
melhores amigas, não são?
– São. – Franzi a testa, tentando acompanhar a lógica.
– Então eu e você, por aproximação, também somos melhores
amigos. Libera logo a baixaria!
– Ah, meu Deus... – eu disse, largando o garfo com um tinido. –
Se eu tivesse um desejo, um único desejo no mundo, seria voltar
para aquela noite e fazer que vocês não nos vissem.
– E se eu tivesse um desejo seria voltar àquela cena, mas cinco
minutos antes, para ver mais daquela pegação deliciosa. – Ele
sorriu e balançou as sobrancelhas. – Conta logo, menina!
Dobrei o guardanapo e fiz uma bolinha de origami.
– Tudo bem, você me pegou. Eu estava pegando meu chefe, ou o
filho do meu chefe, e não sei o que é pior. Foi uma delícia. Uma
loucura deliciosa. E uma loucura burra, e é por isso que você não
pode contar pra ninguém. Isso é bem ruim, eu nunca fiz nada igual,
estou violando todas as regras. Então, por favor, você não pode
falar sobre isso fora desta mesa aqui, agora.
– A gente voltou a isso? Eu prometo pela vida da minha mãe. –
Ele bateu na minha mão. – Mas, vamos lá, me conta alguma coisa.
Eu suspirei e o encarei.
– Ele tem lábios muito macios.
Ele arregalou os olhos.
– Adorei.
Eu apertei os olhos.
– E mãos muito grandes.
– Para.
– E ainda usa aliança.
– Hum.
– Mas isso não é estranho, né? Eles ficaram juntos muito tempo.
– Ficaram mesmo, é verdade – disse Chad, assentindo. – Ele é
mais velho do que eu e nós não estudamos juntos, mas até eu sabia
sobre eles. Eles foram rei e rainha do baile, eram praticamente
realeza no ensino médio. E quando ela morreu, meu Deus… Todo
mundo se sentiu péssimo por ele, dá pra imaginar? Perder alguém
assim?
Eu fiz uma careta. Eu conseguia imaginar. Talvez não do mesmo
jeito, mas eu sabia como era ser a pessoa que sobrou.
– Enfim, se isso, seja o que for, está acontecendo com vocês dois,
acho ótimo. Está na cara que os dois estão a fim. Será que não dá
pra pensar em um jeito de dar certo? Ele precisa tanto. E, se você
não se importar de eu falar, você também precisa.
– Você nem me conhece – eu disse, erguendo uma sobrancelha.
Ele ergueu a dele.
– Querida, um estranho consegue ver que você precisa dar.

As palavras de Chad ficaram se repetindo na minha cabeça durante


todo o caminho de volta até o resort. Já fazia um tempo, mas tanto
assim que dava para ver na minha cara?
Comecei a contar com os dedos os meses, e quando o número de
meses ultrapassou o número de dedos…
– Puta merda, eu preciso mesmo trepar – resmunguei baixinho.
De repente, fiz a última curva, e quem estava na estrada?
Archie. De sobretudo. Parado ao lado do carro, o finzinho de luz
da tarde caindo sobre ele como uma espécie de intervenção
divinamente linda, uma oração sexual atendida.
Parei ao seu lado e abri a janela.
– O que você está fazendo no meio da estrada?
– Um galho caiu. Eu estava tirando da frente para que aqueles
caras não tivessem que descer e fazer isso – disse ele, indicando
por cima do ombro a guarita da entrada. – E você, voltando para
passar a noite?
Olhei para a montanha, onde o caloroso e aconchegante hotel me
esperava. Tinha costela no cardápio de hoje, meu prato favorito. E
haveria uma exibição de Amargo pesadelo na sala de cinema, um
evento tentador. E eu tinha uns cem e-mails para responder, uma
pilha de papéis para revisar e um livro que tinha tirado na biblioteca
local: Hudson Valley: uma história.
Olhei para Archie.
– Quer fazer alguma coisa? – perguntei. – Tomar uma bebida,
talvez?
Um sorriso lento se abriu no rosto dele, que assentiu.
– Só preciso passar em casa.
– Beleza, escolha um bar na cidade e eu te sigo…
– Ou – disse ele, e na mesma hora tudo no meu corpo que podia
ficar em pé ficou. – Nós poderíamos tomar alguma coisa na minha
casa, Clara.
– Ah.
Ah.
Em reflexo, enfiei com força o pé no acelerador – se o câmbio do
carro não estivesse na posição neutra, eu teria caído do penhasco.
Balançando a cabeça e um pouco atordoada, falei:
– Seria ótimo.
– Excelente. – Ele riu e entrou atrás do volante do BMW. Esperou
que eu virasse e, comigo logo atrás, nos guiou até sua casa.
A cada buraco na estrada, a cada placa de pare, eu ouvia as
palavras de Chad ecoando… Querida, um estranho consegue ver
que você precisa dar.
Meu bom Deus, e como.

Ele não morava longe do resort. Algumas curvas, uma estradinha


tranquila, e a casa apareceu do nada. Eu não sabia o que esperar
da casa de Archie. Normalmente, dá para ter uma ideia melhor de
alguém ao ver a casa da pessoa, o local conta a história que as
pessoas não contam. Era bagunçada? Limpa? Moderna?
Tradicional?
Hum. O que será que a minha dizia sobre mim?
A garota solteira que nunca está em casa.
Verdade. A do Archie, por outro lado…
Afastado da estrada, em meio a um amontoado de árvores, havia
um chalé. Dois andares, placas de cedro cinzentas, janelas e porta
vermelhas. Varanda comprida com balanço e tudo. Debaixo de cada
janela, caixas de flores, vazias agora, mas era fácil imaginá-las
cheias de flores no verão. Caminho de cascalho, ladeado por olmos
antigos.
Lindo. Encantador. Do Archie. E, antigamente… da Ashley.
Fiquei sentada um momento no carro, olhando para a casa de
contos de fadas, batucando com os dedos no volante e pensando se
devia dar meia-volta e retornar ao hotel. Mas Archie saiu do carro
cheio de sorrisos lentos e sardas, e eu não resisti a dar um sorriso
em resposta.
Ele foi até a minha porta, a abriu para mim como um cavalheiro e
esticou a mão para me ajudar a sair.
Saia do carro, Clara.
Eu saí do carro. Coloquei a mão na dele e senti aquele choque
que sentia toda vez que o tocava. Deixei que ele me levasse para a
casa.
– É linda – eu disse, e falei com sinceridade. Não dava para olhar
para a casa dele e não pensar uau.
– É antiga, da virada do século. Era parte de uma fazenda que os
irmãos compraram quando criaram a reserva. Tecnicamente, não é
parte do hotel, mas é parte do terreno original. Foi usada como
chalé do jardineiro durante anos… Meus pais moraram aqui quando
se casaram, e meus avós também.
– Para ficar na família – eu disse baixinho, andando pelo caminho.
– O quê?
– Nada, é só que a sua família é… Não fica… Qual é a palavra?
Sufocante?
– Como assim?
– É família Bryant isso, família Bryant aquilo. Ninguém sai da
reserva para fazer outra coisa? Você já quis fazer outra coisa?
– Não sei – disse ele, inclinando a cabeça enquanto pensava. –
Talvez? É que isso é só o que eu conheci desde sempre. – Ele
destrancou a porta e a segurou aberta para mim. – Sobre alguém
sair para fazer outra coisa, alguns saíram e foram fazer suas coisas.
– Traidores! – provoquei, e ele riu.
– Nós os colocamos no sexto andar quando eles se hospedam
aqui. – Ele piscou. – Na ala oeste. A sua ala. Alguns deles ainda
estão vagando por lá.
– Eu sabia! – Eu ri e coloquei a bolsa ao lado da pasta dele na
entrada. Ele me ajudou com o casaco, que pendurou no cabide, ao
lado de seu sobretudo. – Ah... Uau.
O hall de entrada se abria em uma sala enorme, cujo pé direito
alto se elevava até o loft. Havia uma lareira, sofás e poltronas
aconchegantes e, no cantinho, o que eu já conseguia ver que era
uma cozinha gourmet.
– Aqui é incrível!
– Fizemos uma grande reforma uns oito anos atrás. Tiramos
paredes, acrescentamos ambientes no segundo andar, adaptamos
para ter a nossa cara, sabe? Minha esposa dizia que… – Ele parou
de falar e pareceu pouco à vontade. Olhou para a prateleira em
cima da lareira, que, vi agora, era coberta de fotos de Ashley.
Ele pareceu tão confuso, tão claramente em guerra com o que
queria dizer e achava que não devia. Andei até ele e pousei a mão
na dobra de seu braço.
– O que ela dizia?
Ele sorriu para mim, aliviado.
– Que esta casa tinha cheiro de naftalina e que estava na hora de
gente jovem morar aqui.
– Rá! – eu disse, e o rosto dele foi tomado pelo alívio. Alívio por
ter tido permissão para falar sobre ela? Para reconhecer que isso
era constrangedor para ele também? Nós estávamos aqui, juntos,
na casa que ele dividiu com a esposa. Talvez ir para lá não tivesse
sido uma ideia tão boa, talvez aquele lugar estivesse cheio demais
de lembranças, cheio demais do passado.
– Isso é estranho? – perguntou ele de repente, e comecei a
assentir vigorosamente. – Que bom que não sou só eu. – Ele riu. –
Estou viajando por mares nunca dantes navegados aqui.
– Ah, acho que nós dois estamos – respondi, olhando ao redor. –
Eu nunca fui para casa com o chefe. – Mordi a unha do polegar. – O
que a gente está fazendo? Isso não pode dar em nada, há uma lista
enorme de motivos para eu não fazer isso. – Fui contando na mão.
– Um, eu trabalho para você. Tecnicamente, para o seu pai, mas a
ideia é ruim mesmo assim. Dois, vou embora assim que esse
trabalho acabar, para o próximo hotel, para o próximo projeto, e é
provável que não volte nunca mais. Três, tenho a sensação de que
você não saiu com ninguém depois da sua esposa, então, puta
merda, eu quero ser essa garota? Quase sem pressão aqui. Quatro,
eu nem gosto tanto assim de você; você é meio que um babaca que
por acaso é absurdamente bonito, mas isso não deveria ser mais
forte do que a parte já citada sobre você ser babaca.
Cinco, as razões de um a quatro não são nada perto do
verdadeiro motivo de eu não poder fazer isso, que é o fato de você
ser exatamente o tipo de homem com quem sonhei passar o resto
da vida e que, se isso não desse certo, eu ficaria destruída.
– Então – sussurrei com a voz trêmula; todas as partes de mim
estavam doidas para tocar em mais do que seu cotovelo –, o que a
gente está fazendo?
– Não sei – respondeu ele, olhando para mim. – Você é
incrivelmente grosseira, uma sabichona destruidora que é muito
mais do que só um pouco mandona.
Eu ri, apesar de tudo.
– Que coisas lindas vindas de um hoteleirozinho pretensioso,
esnobe e incrivelmente grosseiro que prefere vagar por corredores
sinistros e passar tempo com antiguidades a ouvir a voz da razão.
– Passar tempo com antiguidades?
– É, bom, você gosta tanto de antiguidades – bufei. Que ótima
resposta.
– Eu gosto muito de você – respondeu ele –, mais do que deveria.
– Minha cabeça e meu coração ouviram essas palavras ao mesmo
tempo, e tudo dentro de mim derreteu. Ele esticou a mão e passou o
dedo pelo meu maxilar, parando para tocar de leve no meu lábio
inferior. – E você é mandona.
– Me beija, Hoteleiro – sussurrei, sem ligar para nenhuma
daquelas razões perfeitamente pensadas e completamente
verdadeiras.
Ele botou as mãos em mim. Botou os lábios em mim. E quase não
consegui sentir mais o chão sob os pés. Quando aquele homem me
beijava, eu esquecia tudo. E os motivos um a cinco deram tchau.

– Este é o melhor martíni que já tomei, e odeio admitir isso.


– O fato de eu ter preparado é o motivo de você odiar admitir?
– É. – Tomei um gole. – Mas está muito bom.
Nós ficamos nos beijando por mais tempo do que fui capaz de
contar e, quando finalmente separamos nossos lábios, inchados e
sedentos por mais, decidimos que era hora de tomar um ar e aquela
bebida.
Foi precisamente por estarmos sedentos por mais que paramos…
Sabendo que ir além da exploração a que tínhamos nos permitido
significaria ir longe demais. Acho que nós dois sabíamos que não
estávamos prontos para aquilo.
Mas para uma bebida forte, sim, nós estávamos preparados. E
Archie sabia preparar uma bebida boa. Em um armário na sala,
havia um bar cheio, com coqueteleiras, pegadores de gelo e copos
com monogramas.
– Presente de casamento? – perguntei enquanto ele colocava
gelo na coqueteleira junto com vodca e um toque de vermute.
– Por que a pergunta?
– Só fiquei curiosa – falei, vendo-o cortar com destreza um limão
em duas espirais. – É quando as pessoas costumam ganham esse
tipo de coisa.
– Na verdade, foi um kit que peguei do hotel. – Ele riu e serviu os
martínis em taças altas com a letra B. – É um conjunto dos anos
quarenta, mas foi a Ashley que mandou incluir o monograma. Você
talvez tenha reparado que monogramas são muito importantes na
minha família.
– Pois é, é meio difícil não ver o B gigantesco nas toalhas do meu
quarto, nos porta-copos e nos lençóis.
– Nome da família, negócio da família, temos que manter as
aparências. – Ele sorriu e me entregou a taça.
Nós estávamos no sofá, ficando à vontade.
– Você já quis fazer alguma coisa diferente? Em vez de herdar a
dinastia da família?
Ele ergueu uma sobrancelha, mas ficou pensativo.
– Acho que não, não de verdade. A última geração da minha
família é meio desprovida de herdeiros.
– Realmente, e quero dizer realmente mesmo, eu nunca ouvi
ninguém usar essa frase na minha vida.
Ele balançou a cabeça como se estivesse tentando me
convencer.
– É verdade, meu pai só teve um irmão, que morreu antes de
fazer dezoito anos, e eu sou filho único. Tenho alguns primos de
segundo grau, alguns ainda trabalham no hotel, você deve tê-los
conhecido, mas, quando você olha nossa árvore genealógica, que
era enorme, só sobrou eu.
– Então você está encurralado – eu disse.
Ele assentiu com uma expressão absorta no rosto.
– Acho que sim, mas nunca encarei dessa forma.
– Então, mesmo quando era criança, ou estava no ensino médio
ou na faculdade, até, você nunca pensou em, sei lá, fugir e entrar
para o circo? – Eu me virei para ele no sofá e dobrei as pernas
embaixo do corpo.
– Ah, claro, houve alguns momentos de circo. Eu pensei por uns
cinco minutos em fazer faculdade de medicina. Pensei por uns sete
em ser professor. Eu sempre amei história.
– Isso faz muito sentido. Consigo ver você em um campus de
faculdade, andando por aí com um cachimbo e uma pasta velha. – E
conseguia mesmo. – Tenho certeza de que todas as universitárias
brigariam para assistir a sua aula.
Ele soltou uma gargalhada.
– Acho que não sou do tipo pelo qual as pessoas brigariam.
Olhei para ele, o cabelo castanho-avermelhado caloroso à luz da
lareira, as sardas aparecendo embaixo dos olhos brilhantes.
– Eu daria umas boas cotoveladas.
– Com esse cotovelo? – perguntou ele, esticando a mão e
tocando meu braço de leve.
– Aham – sussurrei; mais uma vez, o toque do seu dedo provocou
arrepios no meu corpo todo.
Nós dois bebemos goles de martíni, nos encarando por cima das
taças. Meu Deus, esse cara...
– Mas – disse ele, rompendo o feitiço e o contato visual –, quando
os sete minutos acabaram, eu lembrei do quanto amava este lugar e
não queria deixar que outra pessoa o assumisse.
– Até eu chegar aqui. – Eu ri.
– Sim, até essa pessoinha mandona aparecer e começar a agir
como se fosse a dona.
Eu me apoiei nos joelhos e ergui o punho.
– Pior dia do mundo para você, Hoteleiro.
Ele sorriu, mas o sorriso não chegou aos seus olhos.
– Não foi o pior dia – disse ele baixinho.
Meu olhar se desviou para a aliança na mão esquerda. Ficamos
sentados em silêncio por um momento, só com o som do fogo, e,
quando o relógio do saguão começou a tocar, eu suspirei.
– É melhor eu ir.
Parte de mim queria que ele dissesse não, fique. E acho que
parte dele também queria dizer isso. Mas ele só esticou a mão para
segurar a minha, a apertou e disse:
– Vou te acompanhar até o carro.
Ele me beijou antes de eu ir embora, desta vez um beijo suave e
doce. Quando me deitei na cama mais tarde, ainda conseguia sentir
o toque dos seus lábios nos meus.
Capítulo 13

Uma Noite de Estrelas. O entretenimento daquela noite no Bryant


Mountain House foi anunciado assim. Internamente, só para
hóspedes do hotel. Vou explicar.
Todas as noites no Bryant Mountain House, havia um
entretenimento para os hóspedes do hotel. Podia variar entre um
entretenimento supremo e um entretenimento no sentido mais literal
da palavra. Todas as manhãs, os hóspedes recebiam um “jornal”
debaixo da porta com as atividades do dia. O Corneteiro de Bryant
listava exercícios e aulas de ioga, o que havia no cardápio do
almoço, a previsão do tempo, essas coisas. Tinha também uma
parte para atividades noturnas, como o filme que seria exibido, o
horário do jantar e o que estava planejado para o entretenimento
noturno, que costumava acontecer na Sala do Lago. Desde que
comecei a trabalhar lá, fui a palestras sobre como fazer sabonete, vi
três mágicos fazendo coelhos sumirem, tentei aprender quadrilha e
vi um grupo chamado de Schmanders Sisters, sem brincadeira,
tocar o boogie-woggie até cansar.
E essas noites eram sempre bem frequentadas. Estou dizendo, é
só tirar a televisão das pessoas e pronto, aprender a fazer macramê
vira uma coisa especial. Perguntei uma vez a Archie sobre o
entretenimento noturno, se ele achava que precisava ser mantido, e
ele realmente me perguntou: “Por quê? Qual é o problema do
entretenimento?”.
Assim, quando Uma Noite de Estrelas apareceu no Corneteiro,
supus que seria algum ato de variedades em que malabaristas ou
ventríloquos fariam de tudo um pouco, só não chegando ao ponto
de apresentar um poodle dançarino.
Não, não, na verdade era uma coisa bem legal. Um astrônomo
nos levaria em uma caminhada noturna até o Skytop para ver uma
chuva de meteoros. Achando que finalmente tinha encontrado o
evento para o qual estava pronta para convidar todo mundo, fiz as
ligações.
– Vocês têm que vir, vai ser tão legal!
– Espera, caminhar? À noite? Na escuridão? Para ver estrelas? –
Natalie era boa em declarar o óbvio.
– Ah, Pinup, não com tanta força – ouvi ao fundo. Aparentemente,
o óbvio não era a única coisa que ela fazia bem.
– Meu Deus, punheta matinal? Vocês são animais? – perguntei,
revirando os olhos.
– Escuta, não é porque você não faz que eu não vou fazer.
– Touché – respondi. – E aí, vocês vêm?
– Me dá cinco minutos e eu vou até um lugar mais alto ainda. –
Ela riu e eu suspirei pesadamente.
– Hoje à noite? No resort? Você vem?
– Vou perguntar ao Oscar – disse ela, cobrindo o telefone. Ouvi
coisas que, apesar de estarem abafadas, eu não tinha nada que
ouvir, mas ela acabou voltando ao telefone. Embora sem fôlego. –
Nós vamos. Que horas?
– Sete e meia nos encontramos no saguão. Vou avisar na guarita
que vocês vêm. Venham de botas e… Meu Deus, vou desligar
agora.
Minha ligação seguinte foi mais tranquila.
– Caminhada noturna? Parece… interessante. Não vai estar frio?
– Vai. O jeito de combater isso é vir de casaco e luvas.
Roxie riu.
– Vou confirmar com o Leo, mas acho que vamos, sim. A Polly vai
passar a noite com a Trudy.
– Ah, odeio tirar você de casa quando vocês têm a noite só pra
vocês, sei que isso não acontece com frequência. – Roxie adorava a
filha de Leo, Polly, mas namorar um cara com uma filha de oito anos
tinha suas limitações.
– Não, não, tudo bem. Além do mais, é bom ter você aqui. O Leo
estava dizendo outro dia como foi divertido encontrar você e o
Archie.
– Eu e o Archie? – Eu ri. – Não existe eu e o Archie. Quer dizer,
tem eu, e tem o Archie, e nós trabalhamos juntos, e acho que ele é
legal quando não está sendo babaca, mas não existe um eu e
Archie por si só, do jeito tradicional. Por que ele diria isso? Eu e
Archie? Que maluquice...
Silêncio do outro lado da linha.
– Hum, então tá – disse ela, o tom controlado.
Eu quase bati na minha própria testa quando repassei o que tinha
dito. Eu havia falado como uma maluca.
– Então, hum, enfim. Sete e meia?
– Claro. Pode deixar. – Ela fez uma pausa. – Tudo indo bem aí?
Merda.
– Tudo ótimo! – Eu praticamente gritei. Obriguei-me a respirar
fundo. – Tudo ótimo – repeti em um tom bem mais calmo. – Tudo
está ótimo. Estou trabalhando muito. Fazendo o de sempre. Você
me conhece.
– Conheço.
– Aham.
– Se houvesse alguma coisa acontecendo, alguma coisa sobre a
qual você quisesse conversar, você sabe que pode falar comigo,
né?
– Aham. – Que encrenca.
– Porque você sabe que eu odiaria pensar que uma das minhas
melhores amigas está passando por algo que está mexendo com
ela, mas achou que não podia me contar sabe-se lá por quê… Mas
sei que isso não está acontecendo porque é claro que você me
contaria, né?
– Aham. – Eu estava falando só isso porque meus lábios se
recusavam a se desgrudar um do outro.
– Tudo bem – disse ela com a voz mais doce do mundo. – Nos
vemos às sete e meia.
Você já sabe minha resposta.
Tudo bem. Roxie estava me sacando. Ela sabia que tinha alguma
coisa acontecendo. Mas, se eu ficasse tranquila à noite, ela talvez
deixasse para lá. Já se Natalie farejasse algo, eu estava ferrada.
Suspirei. Eu não podia falar sobre aquilo com aquelas duas. Elas
já começariam a plantar sementes sobre a força gravitacional
mágica que era Bailey Falls, que iria me sugar. Se sentissem o
cheiro de que havia alguma coisa acontecendo entre nós, elas
nunca nos deixariam em paz. E não era que eu não confiasse nas
minhas amigas, elas eram como minha família. Mas, quando eu
conversava com Roxie e Natalie sobre alguma coisa, era alguma
coisa. Se nem eu sabia o que era aquilo, se era ou não alguma
coisa, eu não queria transformar em mais do que realmente era.
Se eu contasse para as garotas, aquela merda se tornaria real. E,
quando a merda é real, pode machucar. Então, eu precisava
minimizar o interesse delas.
Liguei para Chad e convidei ele e Logan. Eles poderiam ser meus
escudos, se necessário. Além do mais, eles eram divertidos. E
precisávamos de gente jovem no resort, no mínimo para estimular
outras pessoas jovens e divertidas a fazerem uma reserva de fim de
semana. Na verdade…
Fui até a sala de Archie, botei a cabeça no vão da porta e o vi
atrás da mesa, trabalhando.
– Oi.
– Oi – disse ele, me olhando com um sorriso.
– Convidei algumas pessoas para ver os meteoros. A Roxie e a
Natalie e os acompanhantes, às sete e meia.
– Tudo bem.
– Eu também estava pensando que talvez pudéssemos convidar
algumas pessoas da região para passarem um fim de semana de
graça aqui. Gente como o Chad, da câmara municipal, o prefeito e
tal. Para eles verem como é bom e, depois, divulgarem o programa
de preços para residentes de Bailey Falls. Eles podem ajudar a
espalhar a notícia sobre o quanto se divertiram.
Ele se encostou na cadeira e pensou.
– Gostei. Convide todos. Ainda temos alguns quartos vazios para
o fim de semana de Páscoa. Eles têm planos?
– Para a Páscoa? – Engoli em seco.
– Claro, podemos convidá-los hoje. Que horas você disse que o
pessoal chegaria?
Engoli em seco de novo.
– Às sete e meia.
– Ótimo – disse ele, parecendo feliz da vida.
Comecei a me afastar, mas ele me chamou de volta.
– Aonde você pensa que vai?
– Hum, voltar ao trabalho. Tenho uma reunião com o pessoal da
recepção em alguns minutos.

Naquela noite, fui para o saguão alguns minutos antes do horário


marcado. Meu estômago estava embrulhado, e eu estava uma pilha
de nervos. Não sabia bem por quê. Nós tínhamos jantado todos
juntos na lanchonete, e eu não tinha ficado nervosa.
Aquilo foi um acaso feliz. Desta vez, você os convidou. Para
passarem um tempo com você… e o Archie.
Não oficialmente.
Continue se enganando.
Era verdade. Meus mundos sempre ficavam separados. Meu
mundo profissional era só para mim. Sendo mim a palavra-chave.
Eu passava tempo com amigos sempre que podia, claro, mas
levava uma vida bem isolada. Meu trabalho me levava por aí, eu
nunca dizia não para um trabalho distante. Não que eu não
gostasse de passar tempo com meus amigos – eu amava as minhas
garotas. Mas, de repente, a minha vida profissional e a minha vida
pessoal estavam se misturando por causa do meu convite e foi…
estranho. Eu estava me sentindo de cabeça para baixo: este era o
melhor jeito de descrever.
– Acha que está agasalhada o suficiente? – Ouvi a voz atrás de
mim, me virei e vi Archie admirando meu chapéu de pele falsa. –
Você parece que vai invadir a Polônia com essa coisa.
– Pode rir o quanto quiser, mas a cabeça é por onde se perde
mais calor corporal, e está bem frio hoje.
– Vai ter fogueira.
– Isso não vai atrapalhar a visibilidade das estrelas?
Ele se inclinou para perto do meu ouvido, que estava dentro do
chapéu de pele falsa.
– A fogueira é para depois.
– Depois?
– Depois. – Ele assentiu e senti seu hálito no pescoço. Eu tremi.
Ele reparou. – Que bom que você está com esse chapéu.
Me afastei, rindo, e dei um tapinha brincalhão em seu peito na
hora que a porta da frente se abriu.
– A gente ouviu falar que tinha estrelas aqui – disse Natalie,
puxando Oscar. – Queremos ver!
– Aguenta aí, mulher, nós temos que subir a montanha primeiro.
Como é que você está pensando em caminhar no mato com isso? –
perguntei, apontando para as botas de salto alto.
– Você me mandou usar botas. Eu usei botas. – Ela esticou os
pés, com saltos de oito centímetros. – Além do mais, se cansar, eu
pulo nas costas dele.
– Ela vai cansar – respondeu Oscar. – Ela acha que eu sou o
burro de carga dela.
– Jumento, amor, eu te chamei de jumento.
– Para de chamar meu amigo de jumento – repreendeu Leo,
encostando a cabeça no ombro de Oscar; Roxie estava ao seu lado.
– Todo mundo é jumento, mas entrem aqui – instruí, acenando
para todos, inclusive Chad e Logan, que estavam atrás. – Ei,
rapazes, que bom que vocês vieram!
– Você está de brincadeira? Eu estava doido para conhecer este
lugar, é incrível! – disse Logan, olhando para todos os lados ao
mesmo tempo. – Me mostre tudo, quero ver tudo! Agora.
– Bem, nós não temos muito tempo até o astrônomo…
– Ah, acho que temos tempo – disse Archie, dando um tapinha
em meu ombro. Foi um gesto que os olhos de águia de Natalie e
Roxie notaram na mesma hora. – E a Clara aqui pode guiar o
passeio.
– Posso? – perguntei enquanto ele me colocava à sua frente
como uma professora na frente dos alunos. – Espera, eu posso?
– Claro, você viu o passeio do hotel várias vezes, já deve saber
de cor. Não vamos ter tempo para ver tudo, mas pelo menos mostre
a eles o primeiro andar. A não ser que você não se lembre dos
detalhes.
Olhei para trás, para ele, cujos olhos cintilavam.
– Essa foi a sua versão de desafio do desafio?
– Depende. Você vai guiar o passeio?
Apertei os olhos e, ainda olhando para ele, comecei a falar com a
minha melhor voz de guia de turismo:
– O Bryant Mountain House foi fundado por dois irmãos, Ebenezer
e Theophilus Bryant, em 1872. A hospedaria original no lago se
chamava…
Eu guiei o passeio. Eu arrasei. Levei-os pelo saguão e mostrei as
obras de arte importantes. Levei-os pelo corredor até a loja de
suvenires e a estação de refrigerante, identifiquei corretamente o
ingrediente principal em um Green River e falei como era feito um
refrigerante de cereja, um creme de ovos e o especial do Archie,
sendo que todos concordaram que este último parecia horrendo e
errado. Eu os levei para a sala de jantar principal e falei sobre a
importância de se arrumar para jantar e por que isso sempre foi
tradição na montanha. E terminamos o passeio na Sala do Lago,
onde não só expliquei a importância do fóssil embutido na pedra
acima da lareira principal como perguntei se alguém no grupo sabia
que tipo de madeira formava os painéis da sala, uma pergunta que
todos os funcionários que guiavam o passeio faziam e quase
ninguém respondia corretamente.
– Mogno? – perguntou Leo.
– Não.
– Pau-rosa? – disse Chad.
– Não, mas foi um bom palpite. Tem pau-rosa na sala de leitura no
segundo andar.
– É castanheiro – disse Natalie.
– É castanheiro. – Abri um sorriso enquanto olhava para a minha
amiga.
– Como você sabe? – perguntou Archie, parecendo surpreso.
– Minha família trabalha com construção. Sei que este lugar não
poderia ter sido construído deste jeito trinta anos depois da data de
fundação por causa do parasita que deu nos castanheiros no
nordeste e, depois, no país todo. O castanheiro é quase impossível
de encontrar como material de construção depois de 1910, mais ou
menos, de tão valioso que ficou. Já tinha acabado por volta de 1940,
o que torna esta sala tão incrível. Você tem uma coisa especial pra
caralho aqui, senhor Bryant.
– Minha garota! – disse Oscar, apertando Natalie contra a lateral
do corpo com um braço de urso. – Ela entende de tora!
– Vamos encontrar o astrônomo antes que isso fuja de controle –
eu disse rapidamente, sabendo pelo sorriso babão no rosto de
Natalie que aquele assunto se desenvolveria rapidamente em
idiotices se eu não cortasse o mal pela raiz.
Olhei para Archie, pronta para pedir desculpa pelos meus amigos
e sua linguagem grosseira, mas vi que ele estava sorrindo de
satisfação, e não só porque alguém reconheceu o castanheiro em
toda sua glória e raridade, mas porque estava realmente se
divertindo.
Olhei para o grupo, alguns amigos antigos, alguns novos. Todos
estavam rindo e conversando, se preparando para a caminhada. Vi
Archie mostrar a Leo e Oscar no mapa grande onde ficava o Skytop
e como seria a caminhada. Chad e Roxie apoiavam a cabeça um na
do outro enquanto Logan ajudava Natalie a amarrar as botas
inadequadas. O fogo não parou de estalar com alegria na lareira,
nos transformando em uma imagenzinha aconchegante.
Fiquei de lado observando tudo. Era assim. Amigos. Família.
Juntos.
Senti um nó estranho no estômago, como se meu centro de
gravidade estivesse sendo puxado e reposicionado. Balancei a
cabeça para espairecer na hora em que um dos caras da recreação
veio para apresentar o guia da Noite de Estrelas.
– Está pronta? – perguntou Archie, vindo até mim e puxando de
brincadeira a ponta do meu chapéu de pele falsa.
Eu puxei o chapéu com força para baixo.
– Aham. Vamos sair daqui.
– Você já pensou em dar aulas sobre o que fez com a Fazenda
Maxwell? – Archie perguntou a Leo enquanto subíamos ao Skytop.
– Faço isso o tempo todo, na verdade – respondeu Leo. – Não
tanto durante o verão, que é a época de mais trabalho, mas durante
o inverno eu viajo por Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia para
falar sobre o que fazemos. Às vezes, vou a escolas de ensino
médio, mas na maioria das vezes vou a centros ou faculdades
comunitárias, e também a clubes de jardinagem, enfim, a qualquer
lugar onde haja pessoas interessadas em plantar e comer de forma
sustentável.
– Eu adoraria que você fizesse umas apresentações aqui; nós
temos um ótimo espaço para isso no segundo andar. Você estaria
interessado? Sei que nossos hóspedes estariam.
– Claro! Seria ótimo! – concordou Leo, batendo nas costas de
Archie.
– Talvez a Roxie pudesse dar uma aula de conserva ou
enlatados? – propus, piscando para minha amiga.
– Ah, minha nossa, sim! Eu adoraria! – exclamou ela. – Tinha uma
aula muito popular sobre isso quando eu morava em Los Angeles.
Você ficaria surpreso de ver como essa gente quer aprender a fazer
coisas assim!
– Ora, por que parar aí? – disse Archie, esfregando o queixo
enquanto pensava. – E se fizermos uma espécie de anexo de
estudo no resort, não só para hóspedes, mas para pessoas da
cidade e do Hudson Valley? Nós poderíamos incluir coisas como
jardinagem caseira; sei que nossa equipe de jardinagem adoraria ter
a oportunidade de sair um pouco das estufas. E, Oscar, o que você
acha de dar uma aula sobre como fazer queijos?
Oscar, com a sobrancelha erguida, olhou para Archie.
– Não sou muito bom na frente de uma sala de aula.
– Claro, tudo bem – concordou Archie.
– Claro que ele topa! – respondeu Natalie de onde estava, nas
costas de Oscar, os pés cansados por causa das botas menos de
dez minutos após a caminhada começar. – Posso ser a linda
intérprete. Você só grunhe e aponta e eu traduzo.
– Sabe quem você devia chamar? – interrompeu Chad, na parte
de trás do grupo. – Lembra da Hazel, que tem a floricultura na Elm?
– Eu conheço a Hazel desde que tinha três anos. – Archie riu. –
Ela sempre prendia um cravo na minha lapela quando eu ia à
cidade.
– Eu também! Ela seria ótima, aposto que adoraria dar aula de
arranjos florais. Ah, cara, um domingo na igreja, ela prendeu um
crisântemo tão pesado no meu paletó que eu quase caí.
– Essa é a Hazel. – Archie riu de novo, e todo mundo riu junto.
Eu não conhecia a Hazel. Na verdade, nunca tinha ouvido falar da
Hazel. Ouvi o grupo rir e contar histórias sobre aquela mulher com
quem metade deles tinha passado a infância e a outra metade
conhecia da cidade, e comecei a sentir aquele nó de novo, um vazio
embaixo do peito.
Haveria um anexo de estudos no Bryant Mountain House. Uma
ideia genial! Encabeçada pelo Archie, com aulas da Roxie e do Leo
e do Oscar e da Natalie, com presença e contribuição de Chad e de
Logan. Esse plano se desenvolveria em incontáveis almoços e
jantares, coquetéis e balanços de varanda, e estrearia para a cidade
e para o resort com grande chance de sucesso e, provavelmente,
seguiria sendo um dos eventos principais do novo Bryant Mountain
House.
Depois que eu fosse embora do Bryant Mountain House.
Depois que eu deixasse para trás esse grupo de amigos, esse
grupo cujas vidas seguiriam sem mim, indubitavelmente sentindo a
minha falta no caso de Roxie e de Natalie, e talvez de Archie, mas,
mesmo assim, eu era a peça que podia ser abandonada e puxada
de volta sem atrapalhar o grupo como um todo, como uma coisa em
si, uma unidade.
Havia um ecossistema inteiro de Bailey Falls que existia antes de
eu chegar e que continuaria existindo depois que eu fosse embora.
Eu partiria para fazer outro trabalho, outro projeto, outro quarto de
hotel com malas vazias no canto, outro carro alugado no
estacionamento, outro serviço de quarto comido em uma mesinha
de centro enquanto eu rabiscava outro plano em uma pilha de
blocos pautados, com um comercial de CDs enchendo meus
ouvidos com os sons de Jim Croce e Linda Ronstadt e a garantia de
que, desde que a televisão estivesse ligada, dando ao meu cérebro
a estática que ele precisava para funcionar, eu não estaria
pensando naquele grupo, naquela coisa, naquela unidade, naquela
família em Bailey Falls.
Esfreguei o peito. Alguns passos à frente, ouvi o astrônomo
falando sobre a chuva de meteoros e aonde deveríamos olhar para
não perdê-la. Fui para a frente e deixei o grupo para ouvir. Eu
precisava de estática.

***

– Está cansada?
– Um pouco, e você? – perguntei, encostada no corrimão principal
do saguão.
Tínhamos reunido os malucos e os mandado de volta para a
cidade. Foi uma noite divertida, e a boa notícia era que todos
estavam prontos para marcar seu fim de semana de residente. E
voltar para a Páscoa.
Archie não teve nenhum problema para convidar todos, como se
fossem seus amigos. E acho que eram mesmo. Naquela noite,
todos se misturaram bem. Tudo pareceu muito natural, como se
fôssemos amigos havia anos. Todos felizes, todos em casal. Só que
esse não era o caso. Não com Archie e comigo. Certo?
– Não cansada demais?
– Por quê?
Ele sorriu.
– Venha comigo, quero mostrar uma coisa.
– Ainda preciso das minhas luvas? – perguntei, levantando uma
sobrancelha.
– Definitivamente – respondeu ele e começou a subir a escada.
– A gente não vai voltar lá pra fora? – perguntei, confusa.
– Pare de fazer perguntas – disse ele, olhando para trás, e não
tive escolha senão segui-lo. Subimos seis lances de escada. E
percorremos três corredores. Dobramos várias esquinas. Fomos até
o fim da linha, até a beirada da ala leste.
Depois de um depósito de material de limpeza, quase escondida
atrás de um armário, havia uma porta pesada com um cadeado
pesado.
– É aqui que vocês botam os hóspedes que não puderam pagar?
– sussurrei, espiando por cima do ombro dele.
– Eles fazem o check-in, mas nunca vão embora – respondeu ele
em uma imitação de Vincent Price.
– Só para deixar registrado, isso foi sinistro pra cacete!
– Isto também – disse ele, girando a chave velha de metal para a
porta se abrir.
A escuridão nos chamava, e só consegui identificar uma escada
estreita e íngreme.
– Ah, para com isso!
– Com medo?
– Eu não sou burra. Escadas assim não foram feitas para serem
subidas, a não ser que haja um cara correndo atrás de você com um
machado.
– Posso ver se o Walter da manutenção está disponível.
– Posso ver se o Walter da manutenção está disponível para dar
uma surra em você por dizer uma merda dessa parado no pé da
escada do Psicose.
Uma porta se abriu e se fechou na outra ponta do corredor, e nós
dois demos um pulo.
– Tudo bem, cara, você tem trinta segundos pra me dizer qual é o
assunto aqui, senão vou para o meu quarto tomar um banho de
banheira.
– Hum, um banho de banheira...
Dei um soco no braço dele.
– Vinte e cinco segundos.
Ele riu e puxou uma cordinha. Uma única lâmpada se acendeu,
iluminando a escada e a tornando um pouco menos sinistra. Olhei
para cima: a escada subia por pelo menos dois andares, talvez
mais.
– Tudo bem, eu pergunto: aonde leva?
– Quem não arrisca… – disse ele, e começou a subir a escada.
Escada sinistra ou a imagem mental de Walter com um machado na
mão?
Segui Archie. As paredes tinham o caibro exposto, gesso sobre
arame sobre tijolos. A escada tinha painéis até metade da parede e
depois era aberta.
Nos painéis de madeira, havia assinaturas entalhadas.

Jeremiah, 1897
Bartholomew, 1912
James. Mickey, 1933
George, 1941
Jonathan, 1952

– Quem entalhou tudo isso? – perguntei, passando os dedos por


alguns dos nomes. Havia outras palavras também, a maioria rimas
simples. “Era uma vez uma garotinha, era estranha, mas era bem
bonitinha…”.
– Pessoas que trabalharam aqui. Pessoas que moraram aqui.
Você sabia que nos anos trinta essa parte do hotel era usada como
alojamento de um colégio interno de meninos? Só durou uma
década, mais ou menos. Tem fotos na biblioteca das beliches que
eles colocaram. No verão, os meninos dormiam na varanda, antes
do ar-condicionado, claro.
– Um colégio interno de meninos – repeti, lendo um poema sobre
uma garota com peitão que era um avião. – Você sabia que tem
peitos entalhados na madeira?
– Coisa de garotos – murmurou ele, e revirei os olhos. – Essa era
a parte que eu mais gostava de olhar quando vinha aqui.
– E o que exatamente é aqui? – perguntei quando finalmente
chegamos a um patamar. A lâmpada estava bem para baixo agora.
– Só mais alguns degraus – disse ele, dobrando uma esquina e
desaparecendo na escuridão.
Fiquei parada, movendo os tornozelos, quando ouvi uma batida e
um gritinho e a voz dele chegando até mim:
– Não seja covarde.
– Ah, por favor – eu disse e dobrei a esquina para a mesma
escuridão.
Um ar frio envolveu minhas pernas. Delineado pelo luar, Archie
estava parado em uma passagem que levava ao céu preto
pontilhado de estrelas. Ele estava no telhado.
– Cuidado, me dá sua mão – disse ele, me ajudando a passar
pela beirada alta que separava a escada do telhado.
– Opa, opa, opa, espera um minuto, eu…
– Confia em mim – disse ele baixinho, a mão forte na minha. –
Estou segurando você.
Eu saí. Para um mundo diferente. Daquela altura, nós víamos
tudo. O hotel todo se espalhava abaixo de nós, o campo de golfe, os
estacionamentos, os jardins, tudo. O lago estava calmo hoje,
refletindo uma imagem perfeitamente espelhada da lua e das
estrelas, ébano e alabastro e pura magia.
– Isso é incrível... – sussurrei.
– Deve haver outra chuva de meteoros daqui a pouco. Pensei em
vermos o espetáculo daqui.
– Isso é muito legal! – exclamei, olhando em todas as direções ao
mesmo tempo, sem querer perder nada. – O quanto nós podemos
chegar perto da beirada?
Em resposta, ele puxou minha mão para o corrimão de pedra que
contornava o telhado. Olhei pela beirada. Ao lado do lago, dava para
ver as varandas, nos andares todos, e os lampiões que iluminavam
o caminho até a doca. Parecia distante, mas tranquilo e um tanto
reconfortante.
– Olhe por onde anda, este telhado não é reformado há anos.
– O quê? – eu disse, chegando mais perto dele.
– Brincando, estou brincando – disse ele, tranquilizador.
Eu o encarei.
– Você é meio doente.
Ele olhou para mim com uma expressão que não consegui
identificar.
– Você é meio maravilhosa.
E, em um cenário de cinema, quando olhei para aqueles
calorosos olhos azuis, uma trilha cintilante brilhou no céu em um
arco acima da cabeça de Archie, em um perfeito momento Disney.
– A chuva de meteoros está começando de novo.
– Está? – disse ele, ainda olhando para mim.
Engoli em seco.
– Você vai perder.
Ele se inclinou para a frente e encostou a testa na minha.
– Acho que vou.
– Mas achei que você queria…
– Para de discutir comigo.
Eu parei de discutir. Ele começou a beijar. E começou.
Passei as mãos pelo seu pescoço e, de repente, percebi que
queria poder senti-lo, tocá-lo, conhecer a sensação da sua pele, o
que não conseguia com as luvas idiotas. Arranquei-as e joguei-as
para trás enquanto enfiava os dedos no cabelo absurdamente macio
que ele tinha, sem nunca afastar os lábios dos dele, sem querer
romper esse contato.
Enquanto isso, suas mãos tinham envolvido a minha cintura e me
puxado para mais perto, os dedos abertos nos meus quadris e
descendo até minha bunda. Suspirei nos lábios dele quando uma
das mãos entrou embaixo da minha blusa, os dedos frios parecendo
quentes na minha lombar.
– Meu Deus, sentir você é incrível – gemeu ele, rompendo nosso
beijo e dando pequenos beijos pelo meu maxilar até minha orelha. –
Sua pele… Quero…
Ele botou a boca na minha de novo e engoliu o que ia dizer e
emaranhou a língua na minha. As mãos me puxaram e eu o senti,
meu Deus, eu o senti, grosso e duro e ah, ele estava duro e grosso,
e meus olhos reviraram na cabeça só de imaginar como seria foder
com aquele homem.
Minhas mãos estavam inquietas agora, descendo pelos ombros
dele, pelos braços e subindo de novo. Eu queria mais. Precisava de
mais. Havia meteoros no céu, e eu precisava de mais.
A mão que estava debaixo da minha blusa subiu, foi para a frente
e se abriu no meu tronco, dedos longos e fortes brincando na minha
pele. A boca também estava em movimento, de volta ao meu
ouvido, sussurrando:
– Eu quero… eu preciso…
– O quê? – perguntei. – O que você quer?
Ele não respondeu com palavras. Mas respondeu. Ele me girou,
me empurrou contra uma das chaminés, prendeu uma mão na parte
de trás do meu joelho e me enganchou em seu quadril, me abrindo
para ele.
E moveu os quadris para fazer pressão em mim. Sim. Ele se
moveu de novo, os olhos agora ardendo nos meus. Sim, sim.
Uma fricção maravilhosa e incrível aumentava conforme ele se
pressionava mais e mais em mim. Os tijolos e as pedras frias
arranhavam minhas costas, incrível. Pedaços de fuligem caíam de
cima, ficando presos em nosso cabelo, fantástico. Meu pé direito se
apoiava com dificuldade na superfície de cascalho, se virando para
lá e para cá e até virando dolorosamente de uma forma que eu
sabia que sentiria quando tentasse correr de novo. Incrível, porra!
Porque, enquanto meu pé direito estava virando, meu pé esquerdo e
os dedos estavam apontados para o céu e, ah, meu Deus, eu não
acredito que Archie Bryant me levou a um orgasmo insano só de
roçar em mim.
– Ah, meu Deus... – eu me ouvi dizer, o calor explodindo no corpo
todo. – Ah, meu Deus, ah, meu Deus.
Ele me apertou mais contra seu quadril, se balançou contra mim,
usando o corpo para me levar mais e mais alto.
– Clara – disse ele, e meu nome em seus lábios me destruiu.
Fez com que eu me abrisse toda. As ondas me percorreram
enquanto as estrelas percorriam o céu. Enquanto eu me agarrava a
ele, ofegante, o corpo mole, sem noção de nada, eu só conseguia
pensar que nunca mais queria sair daquele telhado se significasse
que podia ficar agarrada naquele cara.
Quando a chuva de meteoros passou, esse pensamento me fez
agir mais rápido do que qualquer outra coisa, e, assim que foi
educadamente possível, eu o beijei e saí correndo.
Perigo. Perigo. Perigo.
Capítulo 14

Depois de parecer vazio e vasto por semanas, de repente o hotel


ficou vivo e vibrando de animação com a chegada do fim de semana
de Páscoa. Os arranjos florais ficaram mais elaborados, os porteiros
se movimentavam com mais pressa, e, pela primeira vez desde que
cheguei, não consegui uma reserva de jantar para o feriado inteiro
porque estavam, nas palavras pelas quais vive uma pessoa do setor
hoteleiro, “todas lotadas”.
– Adoro quando um hotel parece estar explodindo. E você? –
Suspirei, parada ao pé da escada do saguão com a sra. Toomey no
fim da tarde de sexta-feira, vendo um carro atrás do outro parar na
entrada. – Tem famílias vindo de todos os cantos, para passar o fim
de semana longe de casa, em um lugar onde serão tratadas como
realeza. Alguém faz a cama delas, alguém leva o jornal, alguém
dobra as toalhas… E quem não adora voltar para casa no fim de um
longo dia e encontrar um chocolate no travesseiro?
– Sei o que você quer dizer – disse ela –, principalmente nesses
fins de semana de feriado. É como ter toda a família debaixo do
mesmo teto. Opa, podemos ajudar com isso? – disse a sra. Toomey
quando Archie dobrou a esquina carregando uma árvore de ovos.
Havia galhos secos enfiados em um vaso grande e cheio de ovos
pintados em cores de primavera. Era um projeto artístico que alguns
hóspedes que participaram das atividades noturnas realizaram
durante a semana, fazendo furinhos nos ovos e soprando o que
tinha dentro para deixar as cascas vazias. Depois, os ovos eram
decorados com contas, purpurina, fitas, tudo delicado e lindo. Mais
uma tradição da família Bryant repetida por mais um ano.
– Está lindo! – Eu admirei a árvore, querendo bater nas cascas de
ovo como um gato, mas sabendo que seria malvista. – Aonde isso
vai?
– Bem… aqui – disse Archie, se equilibrando e colocando a
árvore delicadamente no meio da mesa do saguão. – Assim, os
hóspedes vão poder vê-la quando fizerem o check-in.
– Está ótimo, melhor do que eu esperava!
– Você duvidou da nossa árvore de ovos?
– Eu entrei no salão uma noite e encontrei várias senhoras idosas
soprando ovos… O que eu devia pensar?
A sra. Toomey segurou uma gargalhada.
– Vou procurar alguma coisa para fazer.
– Vamos estar lotados esta noite, tenho certeza de que tem
alguma coisa para fazer – brincou Archie, e ela deu um tapinha nele
antes de sair andando para aterrorizar as garotas da recepção.
Quando ela saiu de perto, ele me olhou com atenção. – Você andou
me evitando nos últimos dias?
Sim.
– Sim.
– Pode me dizer por quê?
Porque não consigo parar de pensar em você. Porque você me
tem na palma da mão. Porque não sei quanto tempo vou aguentar
sem ver você pelado embaixo de mim. Porque agora estou sentindo
coisas que vão além do que sei sentir.
– Eu ando superocupada.
– Humm – disse ele, sem acreditar. Afastei o olhar, sem querer
encará-lo. – Você não parece superocupada agora.
– Na verdade, estou. Tenho uma reunião com o pessoal do
serviço de quarto para ver se está tudo certo com o cardápio que
vamos implementar, tenho que falar com a Lucy da estufa sobre
levar algumas tulipas frescas para o saguão dos elevadores e ainda
preciso parar no spa e ver se eles têm tudo o que precisam para
lançar o pacote de Despertar da Primavera deste fim de semana. E
quero ver as reservas.
– Pinte uns ovos.
– Como?
– Pinte uns ovos. O cardápio do serviço de quarto está pronto, as
tulipas estão sendo colocadas no saguão do elevador agorinha
mesmo, e o spa está todo reservado, temos até lista de espera. Eu
verifiquei. Então venha pintar ovos comigo para a caça aos ovos.
– Eu tenho diploma em hotelaria, trabalho para a melhor firma de
branding da Nova Inglaterra, modernizei vários hotéis, e você quer
que eu pinte ovos?
– Com base no que você acabou de falar, você precisa de um
pouco de humildade. Você também veio para o meu hotel, jogou
tudo de pernas para o ar, sem mencionar que me deixou meio doido
não só com essa boca mandona, mas com os sons incríveis que faz
quando estou beijando essa boca mandona, e agora, por Deus, é a
minha vez de fazer você participar de uma das tradições mais
antigas do Bryant Mountain House. Pinte uns ovos.
Eu pensei por um momento.
– Tudo bem.
Vinte minutos depois, eu estava sentada a uma mesa enorme nos
fundos da cozinha, cercada de caixas de ovos cozidos.
– Não entendo. Não dava pra encomendar esses ovos já
pintados? Deve haver algum serviço especial que poderia ter
preparado isso.
– Bem, claro, mas qual seria a graça? – perguntou Archie,
enrolando as mangas e se preparando para mergulhar uma bandeja
inteira em tinta roxa.
– Realmente – questionei. Tentei imitá-lo com uma bandeja de
tinta verde. – Por que isso tem cheiro de molho de salada?
– É o vinagre.
– Tem vinagre na tinta?
Ele balançou a cabeça.
– Você é comunista? Nunca pintou ovos na vida?
Minhas mãos tremeram um pouco, mas consegui manter os ovos
no lugar.
– Sim, sou comunista. Quanto tempo eles precisam ficar aí
dentro?
– Espera um minuto, vamos deixar isso claro, deixando o
comunismo de lado. Você nunca pintou ovos na vida?
– Não é uma falha de caráter, é? – perguntei, arqueando a
sobrancelha para ele.
– Não, não, é que eu não… Bem, o que você fazia antes da
Páscoa? Ou seus pais só surpreendiam você com ovos na manhã
de Páscoa? Eu sempre fiquei pensando por que pintávamos os ovos
para o coelho esconder; se ele era o coelho de Páscoa, podia levar
os próprios ovos.
– O coelho os levava, sim – respondi, revirando os ombros. –
Nem todo mundo fazia a mesma coisa quando era criança, sabia?
– Acho que sim… Cada família é de um jeito, né?
– Aham. – Olhei para os ovos dele. – E quanto tempo eles
precisam ficar na tinta?
– Depende.
– Depende do quê?
Ele me olhou por cima do aro dos óculos.
– Do quanto você quer que seja profundo.
Ugh. Respirei fundo. E fiquei vermelha.
– Do quanto você quer que a cor seja profunda.
Eu pensei.
– Bem profunda.
– Imaginei. – Ele pareceu orgulhoso. Hum.
– Mas uma cor leve tem seus benefícios – eu disse com
inocência. Sem tirar os olhos da bandeja, inclinei a cabeça para o
lado. – Às vezes, só um pouco, quase sem penetrar, bem devagar,
sabe? Pode deixar uma pessoa maluca...
A bandeja dele tremeu de leve.
– Quer dizer, enfiar, qualquer um pode fazer. Já fazer devagar?
De leve? Tomando cuidado para tocar cada parte, sem perder
nenhum ponto? Isso é quase tão bom quanto algo bem profundo.
A bandeja dele tremeu de novo, desta vez mais do que um pouco.
Tirei a bandeja da tinta verde, depois a abaixei de leve, inclinada
à frente ao fazer isso, para ele poder espiar meu decote.
– Mas isso sou eu.
– Não só você – grunhiu Archie, e arrisquei um olhar para ele.
Suas mãos se agarravam à bandeja, os dedos brancos se
destacando contra a tinta roxa. Os antebraços estavam contraídos,
os ombros tensos, o maxilar travado. Ele me encarou e eu respirei
fundo.
– Imaginei – sussurrei, e enfiei minha bandeja no verde de novo.
Tingir ovos era divertido.

– Certo, então me explique como se eu fosse burra – disse Natalie


enquanto tomávamos Bloody Marys na Varanda do Pôr do Sol.
– Com prazer – respondi.
– Vocês escondem ovos na encosta da montanha.
– Isso.
– E mandam as crianças pequenas procurar.
– Basicamente.
– Eles não vão cair nas montanhas?
Eu ri com a boca na bebida.
– Não estão escondidos em beiradas de pedra ou no alto de
árvores nem nada assim.
– Só estou dizendo que é estranho.
– Eles fazem caça aos ovos nesse gramado há cem anos. Acho
que sabem o que estão fazendo.
Ela tirou o pedaço de aipo da bebida e mordeu a ponta.
– Não foi assim que eu planejei passar a Páscoa, isso é certo.
– E como exatamente nós estragamos a sua Páscoa? O que você
ia fazer?
– Primeiro de tudo, é feriado. Gosto de passar os feriados debaixo
do cobertor e debaixo do Oscar. Ou em cima do Oscar, dependendo
do quanto ele está cansado. Segundo, minha mãe está furiosa por
eu não estar na cidade agora. Até ameaçou chamar a patrulha
rodoviária para me levar de volta à força. Minha permissão para sair
da minha ilha se deveu a um único motivo.
– E que motivo foi esse?
– Você.
– Eu?
– É. Quando ela descobriu que você estava aqui, que saiu da sua
caverna em um feriado, ela gritou mazel e me mandou prometer
que, se seu exílio autoimposto nos feriados tiver acabado, eu vou
levar você no Dia de Ação de Graças deste ano.
Mordi a ponta do meu aipo em resposta.
– Ah, não, a Trudy já convidou para o Dia de Ação de Graças –
ouvi atrás de mim, me virei e vi Roxie se sentando em uma cadeira
de balanço. – Ela disse, e estou citando aqui: “Diz para aquela
merdinha que, se ela vai passar tanto tempo assim em Bailey Falls,
vai ter que passar o Dia de Ação de Graças na minha casa para
comer o melhor molho da vida dela”.
– Bem, isso é fofo, mas…
– Ela também me mandou dizer para você que ainda acha que
você está com pouco ferro e que é para você tomar isto. – Ela botou
um frasco de vitaminas na amurada. – Você precisa de cor, ela
disse.
– Ah, meu Deus, é abril! Que tal não falarmos sobre novembro? –
eu disse, acenando para o barman e pedindo um coquetel para
Roxie. – Agradeça à sua mãe e você à sua, pelos convites e pelos
comprimidos, mas estou bem.
Roxie e Natalie sempre me diziam que havia um convite
permanente para passar cada feriado na casa delas. E, a cada
feriado, eu agradecia educadamente e recusava. Elas sabiam o
motivo e tinham consciência de que era melhor não me pressionar.
Sinceramente, minha vontade era de sair voando da cadeira e me
esconder nas colinas. Feriados me deixavam nervosa e em péssimo
estado. Feriados eram vazios para mim quando eu era criança, e,
quando adulta, sempre foram um lembrete dos dias especiais que
eu não tive. Dá para imaginar como era para mim ter que aguentar
uma festa de Natal no ensino fundamental, cercada de crianças que
iam encontrar tudo o que queriam embaixo da árvore, quando o
mais próximo que eu chegaria de uma comemoração eram os
biscoitinhos de especiarias velhos daquela mesma festa?
Uma mãe de acolhimento se esforçava para fazer algo divertido
todos os anos. O marido bêbado se esforçava para estragar.
Sinceramente, sempre pareceu um dia desperdiçado e fez com que
evitar feriados se tornasse um hábito.
Mas neste ano era diferente. Neste ano, eu estava trabalhando
durante o feriado, em um hotel famoso pelo brunch de Páscoa. E
pela caça aos ovos. E pelos abençoados pãezinhos quentes que
todo mundo mencionava. E eu tinha amigos na cidade, amigos que
queriam estar comigo. Então, ali estava eu, sentada em uma
varanda grandiosa de um hotel grandioso assistindo a uma caça aos
ovos grandiosa em um gramado nas grandiosas Montanhas Catskill.
O Bloody Mary estava excelente. A companhia era de primeira. E
me perguntei se alguma das crianças pegando os ovos pintados de
roxo e verde escondidos na grama sabia como a pintura de ovos
tinha sido oralmente estimulante.
Abri um sorriso.
– Onde está o Archie? Achei que ele estaria com você, vendo as
festividades – perguntou Roxie.
– Comigo? – perguntei, engasgando um pouco com o suco de
tomate. – Não, não, ele está lá embaixo, supervisionando os ovos e
as crianças. A Natalie está convencida de que elas vão cair pela
encosta.
– Besteira. Eu vinha aqui caçar ovos quando era criança –
observou Roxie.
– Você diz isso agora, mas o que vai acontecer se…
– Ninguém vai cair de um penhasco hoje, pelo amor de Deus! –
Eu suspirei e revirei os olhos.
– Coisas mais estranhas já aconteceram – disse Natalie, e
mostrei a língua para ela.
– Olha só, ele está lá com… Ah, caramba. – Nós três olhamos
para o gramado e vimos Archie e Leo, cobertos de gema de ovo
cozido, cada um segurando umas treze cestas, com Oscar atrás
usando as orelhas de coelho mais tortas que eu já vi. – Meu Deus,
acho que nunca vi o seu homem abrir um sorriso tão grande. – Eu ri
e cutuquei Natalie.
– Eu já, mas só quando estou sentando no…
– Não, não. – Roxie balançou a cabeça. – Estou implorando para
você não terminar essa frase.
– Concordo totalmente – acrescentei, dando um soco leve no
punho de Roxie.
Natalie bufou e voltou a tomar o Bloody Mary. Nós três ficamos ali
um momento, vendo os rapazes brincando com as crianças, Archie
e Leo ainda tentando limpar a gema de ovo. Archie parecia feliz,
relaxado, envolvido no momento e à vontade. Sorri só de olhar para
ele.
– E como está o Archie?
– Bem. Ele está bem – respondi, o olhar ainda grudado nele.
Como se pudesse me sentir olhando, ele se virou e acenou para
mim. Acenei de volta, meu sorriso crescendo a cada segundo,
mesmo eu sentindo os olhos de Roxie e de Natalie abrindo buracos
nas laterais do meu crânio – Quer dizer, eu acho.
– É, mas não foi isso o que eu quis dizer – falou Natalie.
– Ah?
– Eu queria saber como está o Archie no sentido bíblico.
Quase cuspi a bebida.
– O quê? Por quê? O quê?
– Que sutileza, Nat – murmurou Roxie.
Natalie se sentou ereta na cadeira.
– Ei, eu perguntaria como é trepar com o cara, mas é Páscoa,
então usei a Bíblia.
– Espera um minuto – eu disse. – O que vocês duas estão
tramando?
– Engraçado, eu ia fazer a mesma pergunta. – Natalie riu e se
encostou na cadeira, quase a virando.
– Nós só… Quer dizer, eu e a Natalie, nós só queríamos saber…
– disse Roxie, parando de falar e balançando as sobrancelhas.
Deixei que ela continuasse fazendo isso por mais um momento
simplesmente porque ela parecia estar tendo uma síncope.
– Eu adoraria que você simplesmente fizesse a pergunta – eu
disse, acabando com o sofrimento dela.
– Você e o Archie ficam afofando os travesseiros juntos todas as
noites, por acaso? – perguntou Natalie.
– Não.
– Não? – as duas perguntaram.
– Não, nós não afofamos nada.
– Mentira! – disse Roxie, e olhei para ela com surpresa.
Normalmente, era Natalie quem tinha essa atitude de elefante em
loja de porcelana. – Men-ti-ra!
– O que você quer que eu diga, hein? – perguntei, olhando meu
coquetel. Senti as duas me encarando e minha azeitona de repente
ficou muito interessante.
– Que você tem feito um amorzinho gostoso de hotel desde que
chegou nessa montanha – disse Roxie.
– Que você anda montando nele desde que chegou nessa
montanha – acrescentou Natalie.
– Nenhuma das duas coisas. Essa é a verdade.
Roxie reagiu:
– Mas…
Eu a interrompi:
– Tem alguma coisa acontecendo, sim.
Natalie bateu palmas e quase perdeu o equilíbrio de novo.
– Mas, antes que alguém comece a sapatear, posso lembrar
algumas coisinhas a vocês? – continuei. – Um, eu vou embora. Não
agora, mas em algum momento. Dois, vou embora porque isso aqui
é meu trabalho e ele é meu chefe, e eu agradeço se as duas
pararem de bater palmas e de se balançar nas cadeiras falando
sobre amorzinho gostoso e montar nele porque eu trabalho aqui.
Três, a esposa dele morreu. Tem alguns anos, claro, mas eles
estavam juntos desde que o tempo foi inventado e ele não vai
superar isso tão cedo. Ele ainda usa a aliança, caso vocês não
tenham reparado, e como eu posso competir com isso? Quatro, eu o
adoro e ele beija melhor do que qualquer pessoa, e eu quero transar
com ele pela montanha toda, e se alguma de vocês disser mais
alguma coisa, vai levar um chute na bunda. – Bebi o que restava no
copo. – E estou cem por cento fodida.
– Opa, espera um segundinho aí! Então tem alguma coisa
acontecendo, mas vocês não… – Natalie fez um movimento
específico com o dedo.
– Não, isso não aconteceu. – Eu suspirei, estiquei a mão e peguei
o Bloody Mary de Roxie, já que o meu estava vazio. – Mas,
meninas… Porra. Ele é… Porra.
– Clara, florzinha, eu sei que você não gosta de se abrir e falar
sobre essas coisas, mas a gente vai precisar de palavras de
verdade no lugar de porra – disse Roxie.
– Tudo bem, que tal estas: maravilhoso. Incrível. Surpreendente.
Frustrante. Pretensioso. Irritante. – Eu fiz uma pausa e respirei
fundo. – Sardas.
– Sardas? – perguntou Natalie.
Eu assenti.
– Puta merda, as sardas me deixam doida. Quero contá-las e
beijá-las um monte de vezes.
– Ah, meu Deus! – disse Roxie, botando a mão sobre a boca.
– Não... – eu avisei baixinho.
– Mas, Clara, ah, meu Deus... – Ela continuou falando por entre
os dedos.
– Não diga – repeti.
– Você ama esse cara! – disse Natalie, dando outra mordida no
aipo.
– Merda. – Eu suspirei e me encostei na cadeira de balanço. –
Essa conversa acabou.
– Acabou porra nenhuma, porque... quer saber? Aquele cara ama
você também – disse Natalie.
– Não importa porque... espera, o quê?
– Ele ama mesmo.
Eu balancei a cabeça.
– Como você pode saber disso?
– Por acaso você acabou de me conhecer? Sabe por quantos
homens me apaixonei ao longo dos anos? Você acha que não sei
como é um homem apaixonado? – Ela se encostou na cadeira de
balanço e tirou um pedaço de aipo que tinha ficado preso nos
dentes. – Aquele cara ali ama você! E, se você o ama, não estou
entendendo o problema.
Minha mente estava girando. O que ela disse… O que as duas
disseram… Eu estava…? Ele estava…? Será que… Porra. Não.
NÃO! Com as palmas das mãos suadas e o coração disparado, me
virei para as minhas amigas.
– Vocês não entendem, tá? Não pode acontecer, é que... vocês
não veem, mas não pode acontecer.
Roxie se inclinou para a frente com preocupação nos olhos.
– Por que isso não pode acontecer, por que você não pode ter
isso?
Minha garganta de repente pareceu estar se fechando.
– Você não é capaz de entender porque, até o Leo aparecer, você
nunca se importou sobre se apaixonar. Você achava que era
besteira, que era perda de tempo, que era para otários. E você, Nat,
você deixou uma trilha de homens para trás, doidos de amor por
você enquanto você seguia para o homem seguinte. Agora, se estou
feliz pra caralho que vocês encontraram os amores das suas vidas?
Claro, porque vocês merecem, vocês duas. Estou muito feliz por
vocês, mas nenhuma das duas foi abandonada na vida e vocês não
sabem como é. Você não sabe, Roxie, porque nunca correu nenhum
risco antes do Leo, e você, Natalie, porque nunca se envolveu
profundamente com ninguém. Então nenhuma das duas foi
abandonada, descartada como lixo, solitária. Eu tenho um trabalho,
um trabalho que eu amo e que é a minha vida, a minha vida toda.
Não vou me botar em posição de ser abandonada de novo, e é por
isso que não posso me apaixonar, droga, então não forcem isso
comigo, tá?
Lágrimas tinham surgido nos meus olhos em algum momento
entre feliz e pra caralho, e as limpei com irritação.
– Eu amo vocês, amo mesmo, mas não importa o que eu sinto ou
poderia sentir pelo Archie, porque não posso me permitir. – Com o
canto do olho, vi a sra. Toomey e um dos chefs confeiteiros
acenando para mim freneticamente. Suspirei, me levantei da cadeira
de balanço e olhei para os dois, agora em silêncio. – Agora, se
vocês me derem licença, tenho que falar com um homem sobre um
pãozinho.
– Espera um minuto – disse Roxie, segurando meu braço antes
de eu conseguir fugir.
– Preciso ir – sussurrei, equilibrada no fio de uma navalha ali.
– Você está certa, sabe, eu fiz tudo o que pude para nunca me
apaixonar, ergui muros e me escondi atrás deles, deixando algum
cara passar por esse muro só por uma ou duas noites e só se eu
soubesse que era alguém que não poderia levar a sério. E, sim, a
Natalie partiu uns dois ou três corações ao longo dos anos…
– Dois ou três? – disse Natalie, mas Roxie balançou a cabeça.
– … mas isso foi porque ela teve os muros dela, todos nós temos
muros, Clara. Os seus são mais largos e mais altos do que os de
qualquer pessoa que conheci, e com bom motivo. Mas, quando ele
chega, e, sim, é assustador pra caralho, mas, quando aquele cara, o
seu cara, aparece e derruba esses muros…? O Leo era a última
coisa que eu estava procurando e eu fiz de tudo para estragar, mas
nós acabamos resolvendo. É complicado às vezes e assustador às
vezes, mas vale muito a pena.
– O Oscar fez um túnel por baixo dos meus muros, foi um ataque
sorrateiro. Eu nem sabia que estava apaixonada até estar – disse
Natalie, com a voz suave. – E fiquei morrendo de medo. Eu só
deixei um cara entrar no meu coração antes do Oscar, só um, e ele
quase me destruiu. E eu não ia deixar ninguém fazer isso de novo.
E não foi fácil com o Oscar no começo e às vezes ainda não é, mas
não existe outro lugar no planeta onde eu preferiria estar além de
aqui e agora. – Ela pegou minha mão e a apertou. – A não ser
sentada na cara do Oscar.
– Meu Deus – murmurei, olhando para o céu e, depois, para as
minhas duas amigas, a minha família, e me perguntei o que eu tinha
feito na vida para merecer pessoas malucas como elas. E me
perguntei se talvez, só talvez, haveria um pouco de verdade no que
as duas estavam dizendo… ou se era só o Bloody Mary falando.

Algum tempo depois, eu estava na sala de jantar principal, vendo a


equipe se apressar para preparar as últimas mesas e verificar se
tudo estava no lugar certo. Vi-os correndo de um lado para o outro
enquanto me esforçava para recuperar o controle. A qualquer
segundo agora, as portas se abririam, e as famílias entrariam
usando suas melhores roupas de Páscoa para fazer o desjejum e
comemorar a volta da primavera, eufóricas e felizes e explodindo de
amor e de felicidade.
E eu estava surtando.
Todos pareciam animados hoje, até os funcionários. Aquilo era a
família deles. Eles tinham que trabalhar em feriados, claro, mas
estavam sempre juntos, e ainda havia uma sensação festiva no ar.
As velas foram acesas, as flores estavam lindas, o resquício das
chamas do inverno ardia com alegria nas lareiras, e o lindo brunch
estava posto para todos. Presuntos suculentos, cheios de cravos e
cobertos de molho brilhante de mel. Mil tipos de batatas, cada uma
mais elaborada do que a outra. Os primeiros aspargos. As primeiras
ervilhas. Todos os tipos de caçarola que você poderia querer e todos
os tipos de “salada”.
– Formas de gelatina, dá para acreditar? – disse a sra. Banning
enquanto passava com uma bandeja cheia de torres vermelhas
trêmulas. – Ainda fazem formas de gelatina!
– Ah, tentaram acabar com elas alguns anos atrás, mas os
convidados pediram que fossem trazidas de volta. Quase invadiram
a cozinha com forquilhas – disse a sra. Toomey, também passando
com uma bandeja cheia de gelatinas. – Bem, garfos, mas você
entendeu.
– Acho que é porque todo mundo ainda quer as coisas do jeito
que a mãe fazia, sabe? – disse a sra. Banning, parando ao meu
lado e observando a mesa. – Todo mundo só quer recriar as coisas
como eram na infância. Mesmo estando em um hotel, nós ainda
queremos nossas mães cozinhando.
Assenti e sorri por entre dentes, sentindo um caroço de pânico
surgir.
– Mas não tem nada como os pãezinhos de Páscoa quentinhos
dessa família – disse a sra. Toomey, se aproximando pelo meu outro
lado e passando um braço pela minha cintura. Nós três ficamos
olhando enquanto levavam uma bandeja atrás da outra com os pães
mais fofos e lindos e perfeitos que eu já tinha visto. Só o cheiro já
era incrível. Amanteigados, com canela, pontilhados de groselhas e
pingando cobertura branca e linda. – Sabe, esses pães estão na
família do Archie há mais de um século.
Eu poderia dizer tantas coisas agora…
– Tradição – prosseguiu ela, sem saber que tinha acabado de
plantar uma mina terrestre. – Este hotel todo é construído com
tradição. E família. É tudo na vida, você não acha?
A bola de pânico saiu do meu estômago para a minha coluna e
agora estava subindo por cada vértebra, deixando uma trilha gelada.
Minha garganta queimou, e fiquei imaginando como tinha ficado tão
quente lá dentro.
– Ah, estou falando sem parar de novo! Os feriados me deixam
molenga por dentro.
– Molenga? – disse uma voz grave atrás de nós.
– Aí está você! Estávamos falando de você – disse a sra. Toomey
quando Archie parou ao nosso lado e olhou ao redor.
Alto e orgulhoso, limpo depois da caça aos ovos e novamente
com o terno cinza-chumbo sob medida. Hoje a gravata era de um
tom ensolarado e primaveril de amarelo, com um lenço cheio de…
– Coelhos, senhor Bryant? – eu disse, olhando para o pedacinho
de algodão branco saindo do bolso do terno. Minha voz soou
estridente, forçada.
– Não deboche dos coelhos, senhorita Morgan. É Páscoa. – Ele
se virou para a sra. Toomey. – Tudo está perfeito, como sempre. Os
hóspedes vão adorar.
Ela vibrou com os elogios dele. Todos vibravam. Ele trabalhava
muito, pedia a todos que fizessem o mesmo, e, quando um elogio
vinha, era merecido.
As mulheres pediram licença e voltaram para a cozinha, e mandei
o pânico que subia pela minha caixa torácica ficar lá embaixo.
– Acho que estamos prontos para deixar a multidão entrar, você
não acha? – perguntou ele, olhando para a porta dupla, que ainda
estava fechada.
– Sim, tudo parece pronto, e…
– Você está linda – murmurou; embora os olhos percorressem o
salão para não atrair atenção para nós, o sorriso caloroso
repuxando os lábios era só para mim.
– Obrigada – sussurrei, sem confiar mais na minha voz.
Corra. Saia daqui. Isso é demais...
– Você vai fazer a refeição conosco, todos os seus amigos
também. Este ano, tivemos que aumentar a mesa da família.
– Ah?
Meu Deus, é demais.
– É sempre bom quando as famílias crescem, não é?
Aquilo doeu. Doeu de verdade.
– Escute, estou com um pouco de dor de cabeça e estava
pensando que…
– Aí estão vocês! – Fiz uma careta quando ouvi Natalie atrás de
mim. – Estou faminta! Vamos dar início a esse show!
– Bem dito, Natalie. Estão todos aqui? – perguntou Archie.
Abri os olhos e vi toda a gangue, além de uma criança que supus
que fosse Polly, espalhada como em uma foto de família. Atrás
deles, uma horda de hóspedes bem-vestidos estava entrando,
pegando suas mesas de sempre, começando a fazer fila no bufê.
– Estamos todos aqui. Obrigado por nos convidar, Arch. Não
venho ao brunch de Páscoa daqui desde que eu era pequeno.
Minha mãe adora – disse Leo.
– Claro que adora – murmurou Roxie, ganhando uma risadinha de
Polly.
– O prazer é todo nosso – disse Jonathan Bryant, aparecendo do
nada e apertando as mãos de todos, se apresentando e dizendo
gentilezas, prazer em conhecê-los, amamos suas manteigas (isso
para Oscar) e tudo o mais.
Archie aproveitou o momento para se inclinar e sussurrar:
– Você estava falando alguma coisa sobre uma dor de cabeça?
Eu sabia que era a minha deixa, a minha chance de sumir, fingir
uma enxaqueca e passar a tarde no quarto ou caminhando nas
montanhas. Ou correndo. Era a minha chance de fugir. Respirei
fundo e me preparei para desviar das perguntas, mas, quando olhei
para o grupo reunido, olhei de verdade. Minhas melhores amigas no
mundo todo com seus amores. E, no caso de Roxie, seu amor mais
uma. Meus novos amigos Chad e Logan. O homem que me
contratou, uma adorável figura paterna que, assim como todas as
velhinhas, amava gelatina modelada e já estava mostrando para
Polly qual era a sua favorita. E Archie.
Um homem que ostentava óculos de aro de tartaruga e lenço de
coelhinho no bolso como nenhum outro no planeta. Um homem que
estava me olhando com os olhos mais gentis e doces do mundo,
cheios de preocupação, mas também carregados de esperança de
que eu estivesse bem e ficasse para o brunch. Para os pãezinhos.
Eu podia fazer isso, certo? Era só uma refeição, era só comida.
Só um tempo com os amigos. Por que eu estava tão preocupada?
Eu era capaz. Precisava fazer isso. Se havia uma hora certa para
encarar e lidar com a situação, essa hora era agora.
– Estou bem – eu disse, e como desejei que isso fosse verdade. E
vi como minhas palavras o deixaram feliz, o sorriso surgindo em seu
rosto rapidamente. – Estou bem – repeti. – Dizer essas palavras
afastou um pouco o caroço de pânico, que voltou para baixo pela
minha coluna, e suas ramificações que estavam prestes a me
envolver pareceram voltar para um lugar controlável. – Estou bem –
eu disse novamente.

Aahh, mas eu não estava nada bem. O brunch foi um caos


coordenado. Não na sala de jantar em geral, mas na nossa mesa.
Não consegui me comunicar com ninguém, todos ficavam falando
ao mesmo tempo, eu não consegui pensar, não consegui me
concentrar, na maior parte do tempo nem sabia com quem estava
falando.
– Ovos cremosos de chocolate Cadbury.
– Nojento.
– Nojento? Sai desta mesa agora por essa blasfêmia!
– Os ovos cremosos caem na categoria blasfêmia agora?
– Se você falar mal deles, sim.
– Esqueça os ovos cremosos, não dá para passar a Páscoa sem
ovos de creme de amendoim Reese’s.
– SIM! Ah, meu Deus, isso é mil por cento! Os ovos de creme de
amendoim Reese’s são os melhores!
– Minha mãe sempre botava um monte na minha cesta!
– Uma cesta coberta de fitas, não é?
– Exatamente! E cheia daquela grama de plástico verde.
– Grama de plástico verde! Ah, meu Deus, eu não vejo isso há
séculos! Você ia pegar um chocolate…
– … e metade da grama vinha junto!
– Minha mãe fazia um tipo de ninho com aquela grama de plástico
verde no meio da mesa de jantar e botava um coelho de chocolate
enorme em cima, depois espalhava jujuba em volta. E bichinhos de
marshmallow Peeps!
– PEEPS!
– SIM, PEEPS!
– Como foi que a gente ainda não falou sobre Peeps?
– Sua mãe deixava você botar os marshmallows no micro-ondas?
– Não mesmo, ela sabia que eu ia botar fogo na casa.
– A minha mãe não deixava, mas às vezes, quando ela não
estava, meu pai e eu íamos até o micro-ondas explodir os Peeps.
– A minha mãe me mataria! Além do mais, a gente estava
ocupado demais enfiando ovos cremosos Cadbury na boca pra nos
preocuparmos com doces bobos como Peeps.
– Eu falei pra minha mãe que viria para o brunch de Páscoa no
Bryant Mountain House, e ela me fez prometer que levaria alguns
pãezinhos de Páscoa escondidos em um guardanapo. Será que
alguém vai reparar?
– Posso pegar uma assadeira na cozinha. Será que basta?
– Talvez. Duas, duas assadeiras.
– Uma nova tradição: vamos passar o brunch de Páscoa juntos
aqui todos os anos.
– Eu apoio!
– Eu também. Mais pãezinhos, por favor!
– Combinado. Todos os anos. Todos nós, juntos. Agora alguém
me passa aquela gelatina antes que meu cérebro derreta?
– Eu tenho que ir.
– O quê?
– O quê?
– O que ela disse?
– É, eu tenho que ir. Não estou… me sentindo bem.
– Não, não, não vai!
– Ela não está se sentindo bem?
– Clara!
– Eu tenho que ir.
Capítulo 15

Pensei o dia todo no que Roxie e Natalie disseram. Que não era
perfeito para elas, que era difícil e complicado e maluco, mas que
em determinado ponto elas deixaram de lutar contra e cederam.
Havia uma parte de mim que queria ceder.
Então, ceda.
O brunch provou que eu não podia. Foi cheio de conversas sobre
família, tradições e lembranças compartilhadas e coisas em comum.
As pessoas não enxergam aquilo que funciona como a verdadeira
base da família americana moderna. Metade das pessoas na mesa
não se conhecia um ano antes, mas todas tinham um passado
parecido, um sistema ao pensar na infância coletiva, como ela era.
Eu não tinha isso. Não tinha nada parecido com isso.
Então, estavam planejando repetir o brunch no ano seguinte. No
mesmo horário, no mesmo local. A ideia disso, a frivolidade das
pessoas fazendo planos sem nenhuma preocupação na vida. Se
alguém não pudesse ir, ah... Tudo bem. Se Natalie e Oscar
decidissem passar o feriado em Manhattan com a família dela, tudo
bem. Planos mudam, a cantiga de uma doce família pode facilmente
ser trocada por outra porque a maioria das pessoas tem à
disposição um ambiente típico ao estilo Norman Rockwell, pronto
para ser servido a qualquer momento.
Planos mudam. E, às vezes, as pessoas ficam de fora e são
deixadas para trás e esquecidas sem que ninguém pense duas
vezes. Mas, se você não fizesse esses planos, sabe, e deixasse
tudo solto e livre e sem compromisso, sem amarras, sem ligações…
Ora. Você seria a única pessoa que teria o poder de partir o próprio
coração.
Eu era a única que podia partir meu próprio coração.
Fiquei horas sentada na varanda da suíte, ignorando as
mensagens de texto que eu sabia que estavam chegando de Roxie
e Natalie, só me balançando na cadeira, vendo o lago, aproveitando
a vista. O ar estava fresco, suave e delicado. Do lado de fora. Eu
ouvia as corujas piando umas para as outras, o som das ondas
balançando a doca abaixo, o vento nas árvores que exibiam seu
verde de primavera. Do lado de fora. O céu da noite estava claro,
mil estrelas cintilando naquele domingo de Páscoa. Do lado de fora.
Era mais fácil do lado de fora.
Ouvi uma batida na porta, mas a ignorei. Soou uma vez, duas,
três vezes, cada vez um pouco mais forte e mais insistente. Ignorei
todas. As coisas estavam se abrindo, e eu precisava de espaço para
lidar com os sentimentos.
Mas quando ouvi a porta se abrir e ouvi passos no piso de dentro,
eu soube quem era.
– Não é uma boa hora agora – eu disse, a voz áspera e rouca até
para mim.
– Você não está com dor de cabeça, não é? – perguntou ele. De
dentro.
– Não – respondi. Do lado de fora.
– Eu adoraria saber o que está se passando na sua linda
cabecinha – disse ele. De dentro.
Soltei um suspiro úmido e apertei bem os olhos.
– Não, não quer. – Do lado de fora. – Como foi o resto do dia?
Passos pelo chão. Quando falou, ele estava atrás da passagem
que levava à varanda.
– Bom. Legal. Tranquilo. Horrível.
– Horrível?
– Não foi a mesma coisa – disse ele baixinho. – Sem você.
Eu queria estar lá dentro. Ah, Deus, eu queria mais do que tudo.
Queria minha parte, uma parte dessa torta americana que todo
mundo tinha. Ser incluída, acompanhar, participar, cuidar e ser
cuidada, estar dentro. Mas, eu poderia?
Ouvi mais um passo, o ruído passando do abafado pelo tapete ao
piso seco. Ele estava do lado de fora agora, comigo.
Eu me levantei, virei e o vi parado. Alto e forte, com sardas e
óculos, os olhos calorosos conectados com os meus, ali estava ele.
– Oi – falou, a voz baixa e rouca. Ele tinha trabalhado muito o dia
todo para torná-lo especial para todos.
– Oi – eu disse, minha voz parecendo sem fôlego.
Fiquei fora do alcance dele, apoiada nos calcanhares, me
equilibrando na beirada. Eu queria me virar, me afundar na cadeira
de balanço e falar para ele ir embora, ficar lá dentro, ficar em
segurança. Mas aí ele sorriu, sabe. E eu corri. O que estava se
abrindo aos poucos ao longo do dia agora se desintegrou e eu cedi
e corri. Na direção dele.
Eu me joguei em seus braços, e ele me segurou, meio dentro,
meio fora. Eu estava sufocada, mas agora, em vez de pânico, senti
borboletas e raios de luar e uma luxúria pura que não foi pouca.
Corri para ele porque precisava. Debaixo de um céu noturno no
topo do mundo, onde ninguém podia ver e ninguém podia ouvir,
levei a boca à dele e foi tudo.
Choquei-me com ele com tanta força que ele grunhiu, mas
grunhiu na minha boca, o que foi um pouquinho de paraíso sexy. Em
um instante, seus braços me envolveram. Nesse mesmo instante,
eu o abracei, as mãos loucas e os dedos procurando, explorando,
encontrando calor e pele lisa, e uma gravata sai voando. E, então,
as mãos dele estavam em mim, empurrando as alças do meu
vestido, os lábios repuxando a pele, nos meus ombros e na minha
clavícula, encontrando pele disposta e exposta e quente, e minha
respiração suspira. Muros caem e pés tropeçam e as estrelas estão
acima e meus dedos estão embaixo e um cinto voa enquanto minha
pele canta.
Ele enfiou os dedos no meu cabelo, me prendendo com força e
carinho enquanto caí de joelhos, batendo com a patela na pedra fria,
mas nem me importei porque a respiração dele está irregular e
entrecortada e as costas batem na chaminé e partículas de fuligem
caem em mim e tudo está com cheiro de pedaços esquecidos,
queimados e chamuscados do que já foi, mas debaixo daquilo há
sinal e promessa de coisas verdes crescendo e renovação e
primavera.
Novo. Fresco. Limpo. Imaculado. Simples.
E, ah, meu Deus, preciso desse homem agora.
– Clara. Clara. – Ele disse meu nome com urgência, arranhando o
céu com calor e necessidade.
Puxei o zíper e ele está lá, ele é calor e necessidade, e quando
abro a boca e o envolvo, seu corpo todo se enrijece e as mãos se
paralisam no meu cabelo e meu nome se torna a única palavra que
ele sabe, porque agora, debaixo daquelas estrelas, eu sou a única
mulher que ele conhece e de quem precisa e quer e…
Ele é incrível pra cacete. E está fodendo a minha boca. Aquele
homem com lencinho no bolso está fodendo a minha boca. Arrisquei
um olhar para cima e, meu Senhor, ele está delineado nas estrelas,
a cabeça para trás e o mundo é o maxilar dele e essa é a coisa mais
erótica que já vivenciei.
Gutural. Frenético. Só o soltei para tomá-lo na boca de novo,
lambendo e movendo a língua enquanto ele bombeava, quase
descontrolado, e isso não era problema porque eu amo quando
esse homem perde o controle e bota as mãos em mim.
E ele fez isso. Puta merda, ele fez. Seus dedos afundaram no
meu cabelo, puxando e repuxando, e por que a sensação disso é
tão poderosa se não deveria, mas, puta merda, era. As mãos dele
eram grandes, os dedos eram longos, envolvendo minha cabeça,
perdidos e encontrados de novo quando ele me moveu com ele na
boca.
Segurei-o com firmeza na base, as pontas dos dedos subindo e
descendo enquanto eu o soltava da boca lentamente, só para
engoli-lo novamente, devagar e determinada.
– Isso é incrível – murmurou ele, e seus dedos se moveram,
soltando meu cabelo, percorrendo meu rosto, lentos e firmes.
Docemente, ele percorreu minhas maçãs e meu maxilar, com
gentileza. – Incrível.
Ele se move, me afasta dele e, se ajoelhando na minha frente, me
beija de novo, lambe meus lábios, e mais uma vez eu me abri para
ele, sentindo o gosto salgado e doce, gosto de Archie para todo
lado.
– Eu preciso ver você – sussurrou ele, e nós dois abrimos os
botões do meu vestido. Em uma confusão de mãos e dedos, meu
cotovelo para um lado e o rosto dele para outro, os óculos dele
saíram voando na escuridão.
– Desculpa. – Eu ri, mas fiquei maravilhada com o quanto ele
parecia aberto assim, sem nada entre mim e aqueles lindos olhos
azuis.
Ele deixou a cabeça pender e riu.
– A parte horrível é que não consigo ver nada sem eles, tudo vira
um borrão.
O cabelo dele roçou de forma agradável na minha clavícula.
– Esse é o tipo de coisa que uma garota ama ouvir.
– Não vai demorar nada – disse ele, tateando pela varanda. – Isso
é sexy, não é?
– Você está falando sério? – perguntei, apoiada nos cotovelos
para olhá-lo, a calça torta, a gravata de lado, o cabelo desgrenhado.
– É ridículo o quanto você é sexy.
– Humm – disse ele, ainda procurando os óculos.
– Vá para a direita – eu disse, o guiando. – Estão ao lado da…
– Merda.
Eu engoli em seco.
– … balaustrada.
Os óculos caíram, empurrados para o lado pelas mãos agitadas
de Archie.
– Inacreditável – murmurou ele. – Claro que isso tinha que
acontecer.
Eu me sentei e engatinhei até onde ele estava.
– Vem, você não precisa me ver – eu disse, passando a mão
pelas suas costas. – Para me ver. – Peguei sua mão esquerda e a
levei ao meu seio. A respiração dele travou. – Me conta.
– Contar? – Sua voz soou rouca e estrangulada.
– O que você sente. Como eu sou. – Botei a outra mão dele no
meu rosto, virei-a e dei um beijo no centro da palma. – O que você
está pensando.
– Alguma hora, Clara, você vai ter que me dizer o que está
pensando.
Ah. Eu assenti, sem conseguir falar, sem conseguir responder,
mas sabendo que, se eu estava cedendo nisso, estava cedendo em
tudo. Assenti de novo na mão dele e era disso que ele precisava.
A mão no meu seio se moveu de leve, o algodão do meu vestido
fino o suficiente para que eu sentisse os dedos se curvando
conforme o calor da minha pele o guiava. Tremi, a pele reagindo ao
seu toque na mesma hora. Levantei a mão, abri um botão e outro,
puxando o corpete do vestido para conceder acesso a ele. Eu
queria, não, eu precisava sentir suas mãos na minha pele.
– Me conta – murmurei de novo, precisando das palavras dele
tanto quanto do toque.
– Você é… macia – disse ele, um sorriso leve surgindo nos lábios.
– Tão macia...
– Aham. – Eu suspirei quando seus dedos encontraram a abertura
do meu vestido e entraram.
– Renda? – perguntou ele. O polegar passou pelo meu mamilo, e
eu arqueei as costas.
– Aham. – Suspirei de novo.
– É um pouco áspero, sinto os fios se prendendo nos sulcos dos
meus dedos – disse ele. – Mas a sua pele é tão macia.
Eu me apoiei nos cotovelos, deixando a cabeça pender para trás
enquanto ele se movia em cima de mim. A boca deixou um rastro de
beijos pelo meu pescoço, lambeu a base dele, mordiscando minha
clavícula. Ele se sustentou acima de mim, as mãos ainda
explorando. Envolveu meu mamilo e o sentiu crescer com o toque.
Ele sorriu.
– Você está excitada.
Eu o sentia na coxa, duro e grosso.
– Você, não?
Sua resposta foi morder com mais força, os dentes mordiscando o
alto do meu seio, que agora subia e descia a cada respiração,
ficando cada vez mais acelerada com os beijos. Ele puxou a alça do
sutiã pelo ombro, baixou a cabeça e levou a boca até mim.
Todas as minhas terminações nervosas reagiram, todos os
neurônios dispararam e todos os dedos dos pés se contraíram
quando a língua áspera foi passada no meu mamilo.
– Humm… Archie…
Suspirei, as costas se afastando do chão quando os lábios me
envolveram. No entanto, se eu não parava de me mexer embaixo
dele, ele parou de repente. As costas se enrijeceram, as mãos
ficaram paralisadas, a postura toda mudou.
– Archie? – perguntei, levantando a mão para afastar o cabelo de
sua testa.
– Eu preciso contar uma coisa – sussurrou ele, ainda paralisado.
– Tudo bem… – respondi, tentando imaginar o que seria. A
tensão entre nós tinha mudado, se transformado. Ele estava
preocupado, nervoso, e ainda paralisado. – Você quer contar para
mim ou para o meu peito?
Ele riu, o hálito quente no seio em questão. Mas a tensão foi
rompida de novo, e eu o vi relaxar, ao menos um pouco. Posicionei
um braço embaixo da cabeça, me apoiando para poder vê-lo. Ele se
apoiou em um braço acima de mim, a outra mão empurrando, por
reflexo, os óculos desaparecidos.
Ele ainda estava nervoso.
– Eu só dormi com uma mulher minha vida toda.
Ah. Ah…
– Só tive uma primeira vez. Ashley e eu tínhamos dezesseis anos
e tínhamos fugido para a casa de praia dos pais dela. Acendemos
velas e compramos vinho, botamos música suave e foi tudo muito
planejado, muito perfeito.
Visualizei mentalmente o banco de trás de um Chevelle 1972 com
Chuckie Sullivan, um CD do Nickelback tocando. Tremi.
Ele encarou meu tremor como gargalhada.
– Eu sei, é bobo, né?
– Não é bobo, parece bem legal – respondi, ajeitando o cabelo
dele de novo.
Ele se inclinou na direção da minha mão, fechou os olhos e virou
o rosto para beijar o centro da palma.
– Eu só estava pensando como é engraçado perder a virgindade.
É uma coisa que acontece com todo mundo, mas de formas tão
diferentes.
– A questão é que eu só estive com a Ashley, só a Ashley. Nunca
fiz isso com mais ninguém. Eu nem sabia se ia querer depois que
ela se foi.
– Escute, Archie, nós não temos que…
– Até você, Clara – interrompeu ele, os olhos se abrindo e
ardendo nos meus. – Eu quero você, quero você pra caralho, mais
do que eu achava possível, mas… bem… estou meio perdido aqui.
– Archie?
– Sim?
Eu me movi rapidamente, me levantei e rolei de lado, o puxei
comigo, rolei nós dois para eu ficar em cima, movendo sua mão pela
minha perna, que encaixei no quadril dele.
– Acredite quando eu digo que você sabe direitinho o que fazer.
Mas, se você quiser parar, é só dizer.
Os olhos, caramba, que olhos! Profundamente azuis,
profundamente perturbados, em guerra com o passado e o
presente. Eles procuravam respostas nos meus. Eu não podia dizer
a ele o que fazer, mas podia dar uma dica, não podia?
Sem ar, guiei sua mão pela minha coxa. Sem ar, prendi seu
polegar na lateral da minha calcinha. E então, ainda sem ar, botei as
duas mãos no peito dele, querendo ver o que ele faria.
Ele não fez nada. Seu peito subia e descia, e eu subia e descia
junto. Minha cabeça estava me mandando sorrir, tranquilizá-lo, dizer
para ele que estava tudo bem e que podíamos ir devagar, no ritmo
que ele precisasse.
Meu coração estava me mandando ser paciente, porque a
qualquer segundo a guerra interior de Archie acabaria e ele estaria
pronto para uma trepada rápida e imunda, do tipo que não quer
saber de velas nem de música suave.
A qualquer segundo agora.
A qualquer segundo agora.
A qualquer segundo a…
Ele moveu o polegar. O polegar, o polegar que controlava o
destino da minha calcinha. E do mundo. Ambos eram a mesma
coisa quando aquele polegar perfeito percorreu minha pele, preso
no pedacinho de seda mais pequenininho que já se viu, mesmo
Archie não conseguindo ver sem os óculos, e ele arrancou a
calcinha de uma vez.
E aí eu tomei a frente. Porque sabia que ele precisava de mim. E
porque eu queria. Eu me levantei acima dele, o vestido puxado até
os quadris e os seios escapando do top e o segurei com firmeza,
posicionando-o de forma que, quando eu desci, ele
Ah
Ele
Estava

E
Ah
Ele
Estava
Tão
Duro
e uma coisa bem parecida com assombro surgiu em seu rosto
quando o recebi dentro de mim.
Uma coisa idêntica a luxúria tomou conta de mim quando ele me
tomou, meu Deus, ele me tomou, me preencheu e me ergueu e
meteu em mim por baixo.
A incerteza sumiu. Os deveria e os e se sumiram. E no lugar
deles havia puro calor carnal. As mãos de Archie seguraram meus
quadris, empurrando e puxando enquanto ele me preenchia e eu me
movia nele, me balançando, sentindo cada centímetro absurdo dele
dentro de mim, ele estava dentro enquanto estávamos do lado de
fora e foi assustador e enlouquecedor e meu Deus, eu estava
gozando e como eu já podia estar gozando e eu tremi e me balancei
e todas as cores sumiram e o mundo se estreitou antes de explodir.
Ele se sentou mais ereto embaixo de mim, os lábios no meu seio
e as mãos nas minhas costas enquanto eu montava nele, montava
até chegar a outro orgasmo e outro, ancorada naqueles olhos
observadores, cheios de tinta e lindos quando o orgasmo poderoso
percorreu seu corpo.
Quando os quadris poderosos pararam, quando seus dedos
libertaram minha pele, quando os tendões do pescoço dele
finalmente relaxaram e o rubor nas bochechas surgiu, nós caímos
na varanda, os lábios dele alternando entre dar beijos cansados no
meu pescoço e sussurrar meu nome.
Clara, ele disse várias vezes. Deus, eu amava ouvir aquele
homem dizer meu nome.
Capítulo 16

– Tem certeza de que quer ir?


– Não quero, mas não consigo mesmo enxergar nada. Volto em
alguns minutos. Se você quiser que eu volte, claro.
– Eu quero. Que você volte. Com tudo. – Eu sorri e passei o braço
pelo dele enquanto o levava até a porta. – Está vendo o que eu fiz?
– Não estou vendo, e é por isso que vou correr até meu escritório
para pegar meus óculos reserva. Mas, sim, eu vi o que você fez.
Nós tínhamos entrado, desgrenhados e descabelados, satisfeitos
e felizes, ainda nos beijando e nos tocando, mas, quando Archie
tropeçara em um pufe e derrubara um abajur, ele insistira em buscar
os óculos reserva lá embaixo.
Eu não queria que ele saísse. Ainda conseguia senti-lo dentro de
mim. Mas…
Espiei no corredor.
– O caminho está livre.
– Tem certeza?
– Não tem ninguém no corredor – eu falei enquanto o guiava pela
porta.
Se estávamos gemendo e grunhindo na varanda momentos
antes, não era essa a questão; ele ainda estava no comando ali, e
eu preferia que ninguém o visse saindo do meu quarto com o cabelo
desgrenhado e os lábios inchados. E com batom na gola. E, ah,
caramba, batom na… calça. Eu me inclinei, lambi o polegar e
esfreguei a gola da camisa.
– O que é isso? – perguntou ele, aproveitando a oportunidade
para passar os braços na minha cintura e me abraçar.
– Estou tentando disfarçar as evidências – sussurrei, esfregando
a mancha. – Ah, você vai ter que mandar isso aqui pra tinturaria. E
não a de sempre, a não ser que queira que saibam que você andou
se envolvendo com uma pessoa que usa batom foda-me de
vermelho.
– Esse não é o nome de verdade, é? – murmurou ele, beijando
meu pescoço.
– Poderia ser. E mande a calça também – falei, rindo quando ele
errou meu pescoço e beijou a porta. – Olha, você parece o Mr.
Magoo.
– O Mr. Magoo não teria feito você gozar três vezes, senhorita
Morgan.
– Você acabou de chamar o cabideiro de senhorita Morgan, mas
você está certo sobre a outra coisa.
– Três vezes – disse ele novamente, incapaz de esconder o
orgulho na voz.
– Três vezes, senhor Bryant – concordei.
– Até agora – sussurrou ele deliciosamente no meu ouvido, me
puxando com firmeza para perto.
– Alguém pode ver – eu avisei quando suas mãos desceram
abaixo da minha cintura, segurando minha bunda e dando um
aperto.
Ele olhou para a esquerda e para a direita, concluiu que
conseguia enxergar o suficiente para saber que não tinha ninguém
lá e se inclinou para me beijar devagar. E com dedicação.
– Me dê dez minutos. Só vou buscar os óculos.
– Você não precisa dos óculos, senhor Bryant – respondi sem
fôlego.
Ele mordeu o lábio inferior. E depois mordeu o meu lábio inferior.
E disse:
– Quando eu voltar, vou te comer de novo. – Eu ofeguei. – E
desta vez eu quero ver.
Ele tirou a chave da minha mão e me deu um empurrãozinho para
trás. Enfiou a chave no bolso e piscou.
– Dez minutos.
E foi embora. Caramba. Eu amava um homem bem-vestido e
boca suja.
Exatamente dez minutos depois, sorri quando ouvi a chave
girando na fechadura. Ouvi a porta se abrir e fechar e os passos
dele cruzando a sala.
– Clara?
– Aqui – respondi, ligando a torneira. Um momento depois, vi o
reflexo dele no espelho quando ele entrou no banheiro. Virei-me a
tempo de ver seus olhos se arregalarem atrás dos óculos. E o
maxilar se contrair.
Parada no meio do banheiro, puxei o roupão dos ombros e deixei
que caísse no chão. Ouvi-o inspirar ao me ver nua pela primeira
vez, e à sua espera.
– Fiquei com um pouco de frio. A primavera chegou, mas ainda
está meio frio, você não acha? – Falei como se fosse perfeitamente
natural eu estar nua, andando em sua direção. Fiz questão de
rebolar os quadris mais do que o normal, fiz questão de que
houvesse um balanço adicional neles e também nos meus seios.
Estiquei a mão à sua frente para pegar duas tolhas e rocei nele. –
Pensei em me aquecer na banheira, será que você quer se juntar a
mim? Tem espaço para dois.
– Tem. – Ele assentiu, os olhos arregalados enquanto ele me via
caminhando pelo banheiro. Percebi seu olhar percorrendo meu
corpo, o desejo evidente, o corpo rígido como um fio desencapado.
Entrei na banheira e me acomodei na água.
– Eu estarei aqui quando você estiver pronto. – Sorri, sentindo o
calor me envolver.
Ele desabotoou o resto da camisa, tirou os sapatos e depois o
paletó.
Entendi o que ele quis dizer quando falou que queria olhar. Eu
queria vê-lo, ver o corpo dele, observar todos os ângulos e planos
que tinha perdido na escuridão da varanda. A cada peça de roupa
que caía no chão, eu via mais daquele homem e mais do que tinha
perdido.
– Você até que é bonito, sabia? – eu disse para ele quando ele
tirou a calça.
Ele era lindo. Os ombros largos, braços compridos e fortes,
cintura estreita marcada. Um pouco de pelos castanho-
avermelhados cobriam o peito. Os mesmos pelos faziam uma trilha
para o sul e desapareciam embaixo do elástico da cueca boxer.
– Bonito? – Ele passou a mão pelo cabelo, deixando-o ainda mais
em pé. Andou até a banheira e se ajoelhou ao lado dela. Ele me
olhou, olhou o topo dos seios, que rompia a superfície. Me
observou, prestou atenção em tudo, verificou tudo. – Meu Deus,
veja só você.
Mordi meu lábio inferior olhando para ele por entre pálpebras
pesadas. Mantendo os olhos nos meus o tempo todo, ele tirou a
cueca e entrou na banheira.
Senti a água se deslocar quando ele se moveu atrás de mim; ela
subiu até a beirada da banheira, mas parou antes de escorrer. Vi
suas mãos envolverem minha cintura e me puxarem para trás. Meu
Deus, ele estava duro. Eu o senti deslizando pela minha bunda.
– Você é muito alto – comentei quando suas pernas surgiram em
volta das minhas, pelo menos trinta centímetros mais longas.
– Eu sou alto ou você é baixa? – perguntou ele, mordendo o
ponto onde meu ombro virava meu pescoço.
– Os dois, eu acho. – Eu me recostei nele. – Se inundarmos o
banheiro, qual vai ser o tamanho do nosso problema?
– Quem vai inundar o banheiro?
Me virei para olhá-lo, e o movimento agitou a água e quase a fez
derramar.
– Está vendo, eu tenho que tirar um pouco dessa água…
– Clara, não se preocupe – ele começou a dizer quando me
inclinei para a frente na direção do ralo e o abri para que um pouco
da água descesse. – Pensando melhor – grunhiu ele, passando as
mãos pelas minhas costas na direção dos meus quadris, que
estavam erguidos agora que eu ficara de quatro –, que ideia
maravilhosa, fique à vontade para tirar o quanto de água você achar
necessário. – E então ele me beijou. Na bunda. Em uma nádega e
depois na outra, os dedos mordiscando a pele e…
– Ah! – exclamei, me impelindo para a frente da banheira,
batendo com a palma na porcelana.
– Fique parada – grunhiu ele, inclinando meus quadris para a
frente e os virando para cima ao lamber meu clitóris.
Nós dois gememos quando ele me tocou assim pela primeira vez,
a boca me envolvendo, trabalhando, chupando e fodendo. A louça
fria apertava meus seios enquanto a boca quente me devorava, e eu
balançava os quadris na cara dele. Seus gemidos foram tão guturais
quanto os meus quando gozei em sua boca, em sua língua, vendo
estrelas e derramando água para todo lado ao me desfazer para ele
mais uma vez.
Ele derramou bastante água ao se levantar atrás de mim, me
botar de quatro propriamente e meter em mim com força por trás.
– A água – eu ofeguei, a mão deslizando pelas minhas costas e
descendo para a frente do meu corpo, apertando um mamilo a
caminho do ombro para se apoiar, me movendo contra ele. – A água
é… Porra, que delícia… A água está derramando para todo lado!
Com a mão esquerda, ele pegou uma pilha de toalhas na
prateleira e jogou no chão no exato lugar onde a poça estava se
formando, depois deslizou a mão pelas minhas costas e terminou
com um tapa ressonante na minha bunda.
– Deixe que eu me preocupo com a água, Mandona. Você se
concentra na sensação disso aqui.
Foi o que eu fiz. Me entreguei e inclinei a cabeça para trás,
arqueei as costas, me arqueei em sua direção, deixando tudo que
eu estava sentindo correr loucamente pelo meu corpo enquanto os
gemidos dele ficavam mais graves e mais animalescos, usando meu
corpo, quente e molhado e escorregadio e precisamente… lá.

***

– Estou mimada agora. Você sabe disso, não é?


– Mimada?
– Aham – murmurei enquanto sua mão fazia um caminho
descendo pelo meu ombro, seguindo pelo meu cotovelo, indo até o
meu quadril, passando pela minha bunda e voltando.
Uma mão fazia esse caminho sem parar enquanto a outra
segurava meu seio. Com ele quase completamente encolhido em
volta de mim, parecíamos duas conchinhas na praia. Uma praia
muito aconchegante, quente e satisfeita. Depois de encher a
banheira de novo e de tomar um banho de verdade, nós fomos para
a minha cama, exaustos e encharcados, mas ainda sem conseguir
parar de tocar um no outro. Mas, antes de ir para a cama, Archie
acendera o fogo e o resultado era espetacular. Com o quarto
iluminado apenas pela luz da lareira, tudo parecia mais suave.
Cantos ficaram arredondados, beiradas ficaram indistintas, até o ar
pareceu mais delicado. Estava tranquilo e confortável, e a sensação
de suas mãos em meu corpo era tranquilizadora e calmante.
– Tudo isso. O fogo, a cama, o bonitão. – Beijei sua testa e me
aconcheguei nele. – Minha cama não vai mais ser a mesma agora
sem você nela. Estou mimada.
– Bem, vou me esforçar para ficar aqui o máximo de tempo
possível – respondeu ele, me beijando atrás da orelha e batendo
com os quadris nos meus. Em todas as partes que podíamos nos
tocar, estávamos nos tocando. Pele com pele, aconchegados.
Por mais que eu estivesse adorando o aconchego, a realidade do
que tinha acontecido, do que estava acontecendo havia semanas,
era inevitável.
– O que houve?
– Hum? – perguntei.
Ele beijou atrás da minha orelha de novo.
– Você suspirou. Quase como se estivesse murchando.
Dei de ombros.
– Só estava pensando no que vai acontecer agora. Como a gente
lida com isso? O que a gente faz?
– Eu gostaria de pensar que a gente vai fazer de novo, mas você
me exauriu. Não estou reclamando, só estou exausto.
– Não estou falando disso. – Eu ri e me virei para poder olhar para
ele. O lençol desceu e descobriu minha bunda. Fiquei animada de
ver seus olhos se deslocarem, as pupilas se dilatarem, a respiração
mudar. Ele podia estar exausto, mas não havia dúvida de que
faríamos de novo antes do fim da noite. Mas, agora… – Estou
falando sobre nós. Isso foi incrível, você é incrível, mas o que a
gente está fazendo? Falando sério, o que a gente está fazendo?
– Acho que não depende de mim – disse ele, mantendo o olhar no
meu corpo, sem me encarar –, depende? – E agora seus olhos
estavam nos meus, procurando, querendo saber.
– Eu vou embora. – Meu corpo ficou frio ao dizer em voz alta as
palavras, sem mencionar a luz que sumiu de seus olhos. – Quer
dizer, não agora, não amanhã e também não na semana que vem.
Mas vou embora. Alguma hora.
– Eu sei. – Passei a mão pelo seu cabelo e, como daquela
primeira vez, ele se inclinou mais para perto, faminto pelo meu
toque. – Eu poderia trancar você no sótão como uma pequena
clandestina, amarrar você, prender você na cama.
– Estou vendo que essa conversa deu uma virada.
– A melhor virada possível. O hoteleiro solitário não suporta a
ideia da pequena deusa do sexo o deixar e a esconde do mundo.
Faz com que ela se vista de princesa Leia ou a mulher do
Flashdance.
– O que está acontecendo aqui?
– Ei, você vai embora, então posso muito bem botar todos os
meus fetiches na mesa agora, certo? – O tom dele era de
brincadeira. Quase completamente.
Eu o beijei.
– Eu queria poder prometer mais, mas não posso agora. Minha
vida e meu mundo são chegar, consertar as coisas e ir embora para
ajudar outra pessoa. Sou tipo uma Mary Poppins de luxo.
– Primeiro de tudo, obrigado por botar na minha cabeça a ideia de
você vestida de governanta vitoriana, uma imagem que vai ser
impossível de apagar na próxima vez que você me chamar de
senhor Bryant. Segundo, por que isso aconteceu? Hoje. O que
mudou?
Mordi o lábio e pensei. E falei de coração.
– Hoje foi difícil para mim. Não gosto de feriados. Nem de
reuniões de família. – Eu balancei a cabeça. – Não são para mim.
Eu costumo evitar. Mas, hoje, estar com todo mundo e estar com
você foi… Qual é a palavra…?
– Incrível? Maravilhoso? Sensacional?
– Eu não vomitei.
Ele franziu a testa.
– São três palavras. E não é o que eu estava esperando.
– Se você me conhecesse, se me conhecesse de verdade,
saberia que hoje foi uma vitória. Eu entrei em pânico e fugi, mas não
mandei você ir embora e, para falar a verdade, antes, quando
estávamos todos juntos, quando eu não estava surtando e não
estava tão concentrada em aguentar, eu me diverti. Quando você
apareceu tão lindo, eu levei uma porrada na cara. Percebi que,
mesmo que só tenha esse pouquinho de tempo com você, eu te
quero. É antiprofissional, é escandaloso, é a pior coisa que eu
poderia fazer: dormir com o cara com quem vim trabalhar.
– Só para deixar claro, o cara sou eu, certo?
Eu sorri, mas prossegui:
– Mas, no final, havia cem motivos para fugir hoje e só um para
ficar. E você é o motivo, Archie. – Ele fechou os olhos e sorriu. – Eu
vou ter que ir embora um dia. E não sei o que vai acontecer quando
esse dia chegar, e sou egoísta pra caralho de dizer isso, mas vou
dizer mesmo assim. Eu quero você. Pelo tempo que eu puder ter.
Ele me encarou, e senti que ele queria saber mais. Perguntar
mais, ir mais fundo e descobrir o que estava realmente se passando
por baixo da superfície. Mas, talvez ele também tivesse visto nos
meus olhos que eu tinha dito tudo o que podia naquela noite, e que
era mais do que eu compartilhava em muito tempo. Talvez ele tenha
me achado egoísta, mas quisesse ser egoísta também. Se havia um
homem que merecia um momento de puro êxtase carnal livre de
obrigações, esse homem era Archie. No fim, ele não disse nada: ele
me rolou lentamente, até estar em cima de mim mais uma vez.
Minhas pernas envolveram seus quadris, da forma mais natural
possível, sem pre-cisar pensar.
Eu tinha que dizer mais uma coisa.
– Mas nós temos que guardar segredo, certo? Ninguém pode
saber.
Ele assentiu.
– Seria melhor pra você também, não é? Não ter que explicar o
que pode estar acontecendo?
Ele fez uma pequena pausa e me beijou de leve.
– Se eu achasse que você deixaria, eu desceria a escadaria
central amanhã de manhã com as mãos no seu corpo todo, pra todo
o mundo ver.
Eu o beijei, também de leve.
– Impossível.
Ele assentiu. Puxou os quadris para trás. E me penetrou com uma
estocada lenta e suave.
Inclinei a cabeça para trás no travesseiro, um pequeno sorriso
brincando nos lábios.
– Pensei que você estivesse exausto.
– Impossível – murmurou ele, tirando quase tudo. – O que você
estava dizendo no outro dia?
– Quando?
– Sobre ser de leve.
Eu o senti se mover dentro de mim, lento e quase sem entrar,
tirando e me fazendo tremer.
– É... De leve é bom.
Capítulo 17

Passei o dia trabalhando. Trabalhando só no sentido real da


palavra. Porque, na verdade, enquanto fazia esse “trabalho”, eu
estava tendo a maior dificuldade do mundo de tirar a cabeça de
onde ela queria ficar… com Archie. Enquanto repassava os detalhes
do upselling com a equipe no escritório de reservas, estava na
verdade considerando os detalhes da bunda dele, e que bunda!
Principalmente quando eu pensava nas minhas mãos nela,
apertando enquanto ele metia em mim e tirava, impossivelmente de
leve, impossivelmente enlouquecedor… como prometido. Assim,
quando ele me olhou por cima da mesa e perguntou se eu estava
pronta para outra rodada, eu cuspi o café, e foi só depois que ele
concluiu a frase com as palavras de projeções de custo que
consegui me recuperar e dar à sra. Toomey uns guardanapos para
limpar sua blusa, que eu tinha sujado.
Quando repassei os registros das operações do spa no fim de
semana, e vi não apenas que meu novo especial era um sucesso,
mas que a equipe queria mantê-lo durante toda a primavera e talvez
no verão, o que minha mente realmente estava lembrando era da
voz de Archie falando baixo e grave comigo na cama na noite
anterior, me mandando continuar, bem assim, não pare e você fica
maravilhosa quando goza. Assim, quando ele passou para olhar
como estavam as reservas do spa para o mês seguinte, e falou para
as mulheres que tinham acabado de tomar o banho de água mineral
para voltarem em breve para gozar da hospitalidade deles, eu tossi
na mão com tanta força que uma das atendentes levou uma garrafa
de água para mim.
Ao ver o cardápio de almoço oferecendo uma variedade de
linguiças… eu dei as costas e saí correndo, cobrindo o rosto
vermelho e lutando para controlar as risadinhas. Archie me viu
correndo da sala de jantar e riu tão alto que o ouvi em meio ao
barulho de cem hóspedes.
Eu estava eufórica. E garotas eufóricas dão risadinhas. Mas
também se esforçam muito para enfrentar o dia de trabalho.
Principalmente quando no fim do dia haveria alguma coisa (alguém!)
esperando.

Está ocupada hoje?


Depende.

De quê?

Do que você planejou pra mim.

Patinação no gelo.

Ah.

Não curte?

Eu estava esperando algo mais… horizontal.

Vamos gozar disso depois.

Desde que eu também.

Três vezes, srta. Morgan… três vezes.

Realmente. Então, patinação? Não está meio quente


para isso?

Está. Tecnicamente, fechamos o rinque semana passada, mas costumamos deixar aberto
por alguns dias a mais para os funcionários.
Eu sorri, apesar de tudo. Não devia ser tão complicado assim,
mas era.

Não sei se é uma boa ideia irmos patinar...


Não é meio “público”?

Já pensei nisso. A noite de ontem foi a última dos funcionários.

E você não é tecnicamente


um funcionário, então…

Então, patinação? 8 da noite?

Claro. E depois?

Depois, horizontal.

Você nunca me viu patinar. Vai acontecer mais rápido


do que você pensa.

8 da noite?

Combinado. Vejo você lá, sr. Bryant.

***

Eu já tinha passado várias vezes pelo rinque de patinação durante


minhas corridas no terreno do Bryant Mountain House, mas, como
ficava atrás de um dos lagos principais, só dava umas espiadinhas.
Com a quantidade tão baixa de hóspedes na primavera, não havia
muitos funcionários trabalhando no rinque, e eu não tinha ouvido
uma única pessoa dizer que queria patinar. Era uma pena. O lugar
tinha sido feito para esportes de inverno, mas, com menos neve a
cada ano, não dava para oferecer o tipo de passeio com sapatos de
neve ou o esqui cross-country pelos quais o hotel era famoso
antigamente.
Eu, pessoalmente, sempre soube que meus melhores dias
estavam no futuro, mas não era assim para muita gente. Havia
descoberto que muitas pessoas perdiam mais tempo revisitando o
passado do que planejando o futuro, sendo que eu sempre vivia
planejando. Fugir, ficar sozinha, ter sucesso e criar o tipo de vida em
que eu poderia ir a um lugar daqueles, ficar na maior suíte, pedir um
sundae às dez e meia da manhã de uma terça-feira só porque eu
podia e não esperar que ninguém além de mim mesma pagasse por
isso.
E eu podia mesmo. Não tinha vida pessoal, mas ganhava a vida
muito bem. Vivia na estrada a maior parte do tempo, normalmente
com hospedagem e comida de graça, e já tinha acumulado milhas
suficientes para viajar de primeira classe pelo mundo várias vezes…
O suficiente para mim e um convidado, se eu quisesse.
Mas eu nunca queria. Nunca chegava nem perto de querer. Eu
guardava milhagens e pontos de hotel como se estivessem saindo
de moda e era, até onde sabia, uma das únicas pessoas da minha
idade que tinha dois anos de salário guardados em um fundo de
emergência. Como falei, eu não tinha vida.
Mas hoje eu ia patinar no gelo. Então, afastei os pensamentos
tristes e os substituí por pensamentos castanho-avermelhados com
sardas.
Embora ainda estivesse um tempo frio que pedia um suéter
grande, o ar estava mais quente, e foi bom deixar o casaco e o
cachecol para trás. Mas fui de luvas, sabendo que passaria a maior
parte da noite caída no gelo, e não deslizando suavemente.
Havia uma inclinação na linha das árvores, uma trilha estreita e
lamacenta com uma placa indicando para virar à esquerda para
chegar ao rinque Bryant. Eles gostavam mesmo de colocar o nome
da família nas coisas.
Quando me aproximei, ouvi música. Logo antes de percorrer a
última curva, encontrei uma corda atravessando o caminho com
uma placa dizendo “Fechado até a próxima temporada”.
– Archie? – chamei, pensando se deveria ir em frente.
Eu devia tê-lo chamado de “sr. Bryant”. Poderia haver qualquer
pessoa lá com ele.
Droga.
– Senhor Bryant? – corrigi, tentando ver entre as árvores. E por
que a música parecia tão familiar?
– Pode subir! – eu o ouvi gritar e passei por baixo da corda.
Ao contornar a última curva, vi o rinque quando as árvores ficaram
mais espaçadas. Emoldurado por um telhado de madeira em arco,
mas aberto dos lados; o rinque não era grande, e não era pequeno:
era do tamanho certo. Uma pequena janela se abriu para o que eu
supus ser uma cozinha, que servia chocolate quente nos dias frios
de inverno; havia algumas cadeiras espalhadas, uma bancada para
empréstimo de patins e, como ali era o Bryant Mountain House, uma
enorme lareira de pedra, com cadeiras de balanço na frente do fogo
alto.
– Você acendeu o fogo? Só para nós dois? – eu falei, ainda sem
ver Archie. Ao andar na direção do fogo, vi uma caneca do esperado
chocolate quente, ainda quente o bastante para estar soltando
fumaça, e ouvi um barulho atrás.
Virei-me e vi Archie patinando no gelo branco. Ele era rápido com
os patins pretos de hóquei nos pés, e, quando se aproximou da
beirada, fez aquela coisa estranha que os garotos sempre fazem
com as garotas nos rinques de patinação.
Ele parou de repente e jogou borrifos de gelo em mim.
– Isso é porque eu não tenho maria-chiquinha pra você puxar? –
eu disse, limpando o gelo do rosto.
Ele murmurou alguma coisa que pareceu muito um “Vou arrumar
uma coisa para você puxar” quando se inclinou por cima da
amurada.
– Pronta para calçar seus patins?
– A gente vai começar direto na patinação? Sem aquecimento,
sem preliminar, direto para a ação?
– Eu não sabia que patinação podia ser tão cheia de insinuações.
– Eu vivo no mundo das insinuações.
Os olhos dele brilharam.
– Posso dar outra volta e jogar mais gelo em você se você quiser,
mas…
Eu balancei a cabeça.
– Me mostra os patins, Hoteleiro, e vamos ver se consigo ir
rápido.
Ele tossiu sem esconder muito a risada.
– Separei alguns tamanhos pra você, um deve servir. Tive que
pegar patins infantis, seus pés são muito pequenos.
– Que bom que meus peitos não são.
– Muito bom mesmo – disse ele, e desta vez não fez esforço
nenhum para segurar a gargalhada.
Arrisquei uma olhada na direção dele, que estava patinando para
longe, com as mãos viradas como se estivesse segurando melões.
Olhei para a bancada e havia mesmo vários pares enfileirados.
Archie estava certo, os patins que couberam foram os infantis. Eu
sabia que eram de criança porque eram cor-de-rosa com desenhos
de gatinhos.
– Por que você está demorando tanto, senhorita Morgan? – gritou
ele.
– Os cadarços estão com nós duplos! – eu gritei, tentando
desamarrar. Algumas voltas depois, ele estava ao meu lado e aos
meus pés.
– Me dá aqui.
– Pede direito.
– Mandona, me dá, por favor.
– Assim está melhor – falei, entregando-lhe o emaranhado de
cadarços.
Ele trabalhou nos nós por um tempo. Aproveitei o mesmo tempo
para o admirar. Não era com frequência que eu podia ver Archie
vestido de maneira mais casual, e embora nunca vá haver nada tão
lindo quanto aquele homem de terno de corte perfeito, havia algo de
atraen-te em vê-lo vestido de forma despojada e confortável.
Usando uma calça jeans surrada e um suéter de linha bege com um
pedacinho de uma camiseta azul aparecendo na gola, ele parecia
relaxado e feliz. Bem, ele estava feliz até começar a trabalhar no nó
que dei para ele.
– É terrível – murmurou ele.
– Eu tentei avisar – protestei, quando ele botou os patins no chão
para me olhar.
Seus cílios eram da mesma cor do cabelo, talvez um pouco mais
ruivos. Junto do azul dos olhos, eram hipnotizantes.
– É terrível – repetiu ele, colocando as mãos dos dois lados do
banco onde eu estava sentada e se apoiando nos joelhos – que
essa seja a primeira chance que tive de beijar você o dia todo.
– Isso é terrível – concordei enquanto ele trazia o rosto para perto
do meu. Senti o hálito quente nos lábios.
Ele me beijou uma vez e de novo. De forma delicada, suave,
calorosa.
Archie recuou para me olhar.
– Eu pensei em você.
– Pensou?
Ele assentiu.
– Pensei nesse seu corpinho, nu na banheira, todo molhado e
sedento.
Eu lambi os lábios.
– Molhado não só da água.
– Meu Deus – expirou ele, encostando a cabeça no meu ombro.
Aproveitei a oportunidade para dar um beijo em sua cabeça.
– Vamos acabar logo com essa patinação para ficarmos pelados
em algum lugar – eu falei. Os ombros dele tremeram. – Você está
rindo ou chorando?
– Os dois – respondeu ele, erguendo a cabeça e me beijando. –
Vem, Mandona, vamos para o gelo.
Com os nós desfeitos, ele me ajudou a calçar os patins, tirando
um tempo para passar as mãos dos meus tornozelos até os quadris
e de volta, depois segurou minha mão para me ajudar a levantar.
Fui até a amurada.
– Sabe o que falei antes, sobre ser péssima na patinação?
– Sim? – perguntou ele, pisando no gelo e ainda segurando minha
mão.
Dei meu primeiro passo no gelo. Ele olhou para trás e para baixo.
– Eu não estava brincando – respondi, a bunda batendo no gelo
um segundo depois de tentar ficar em pé nele.
– Ah, cara... – murmurou ele enquanto eu me debatia no chão.
– Você não devia me ajudar a me levantar? – eu falei de cara feia,
tentando apoiar os pés, mas não conseguindo.
– Você corre maratonas!
– É. – Meu pé esquerdo escorregou à frente.
– Você compete em triatlos.
– Também. Droga. – Meu pé direito escorregou para trás. –
Verdade.
– Você me perseguiu na subida de uma montanha, caramba, e
quase me venceu.
– Eu venci. Eu venci você. – Fiquei a meio mastro, e a única coisa
que me impediu de cair no gelo com as pernas cruzadas foi sua
mão, na qual me agarrei como uma barra de segurança.
– Mas você não sabe patinar? – Ele estava incrédulo.
– Você tem sorte de ser tão bonito – eu disse, bufando, ofegando,
lutando para recuperar o equilíbrio e o pouquinho de dignidade que
fosse possível. Voltei a ficar de pé, usando Archie de escada, até
estar na frente dele novamente. Balançando violentamente, mas de
pé.
– Não acredito que encontrei uma coisa em que você não é boa –
disse ele, a voz impressionada.
– Olha aqui – falei, cutucando-o no peito e, ao fazer isso,
perdendo o equilíbrio. Desta vez, ele me segurou com força contra o
peito para impedir que eu caísse de novo. – Não deboche de mim –
eu disse diretamente para seu umbigo.
– Ah, se eu tivesse uma câmera – refletiu ele.
– Ah, se eu tivesse um martelo, eu martelaria você no…
– Vamos tentar uma coisa diferente – declarou ele rapidamente.
Puxando-me para eu ficar completamente empertigada, ele me
contornou com cuidado, desviando com sabedoria dos meus pés
agitados, e ficou atrás de mim. Me segurou com firmeza pela cintura
e me puxou para perto. – Me dá suas mãos.
– O que está acontecendo, o que você está fazendo? – Minhas
mãos eram o que me impedia de comer gelo; a ideia de ele tirar isso
de mim era no mínimo assustadora, mas estava mais para o fim do
mundo mesmo.
– Shhh! – disse ele, a boca no meu ouvido. – Só relaxa. Relaxa
mesmo, seus músculos parecem nós. – Lentamente, ele empurrou
com os patins e nos deslocou pelo gelo.
– Isso é uma péssima ideia – gemi, sentindo o gelo passar
embaixo de nós. – Vou acabar derrubando você comigo.
– Não vai ser possível – disse ele, os patins se movendo com
segurança e firmeza pela superfície lisa. – Ajeite o equilíbrio, confie
nele.
– Mas eu vou cair. Não tem como eu não cair, não tem como isso
não terminar mal.
– Shh! – disse ele de novo, apertando as minhas mãos. – Não vou
deixar você cair.
– Mas você não tem como saber, a gente pode passar por um
caroço no gelo ou uma parte muito escorregadia ou…
– … ou a gente pode patinar por esse rinque quantas vezes a
gente quiser. – Ele fechou as mãos fortes sobre minhas luvas. –
Agora, respire. E aproveite.
Comecei a protestar de novo, a dizer que aquilo era uma ideia
terrível e que se eu caísse o levaria junto, mas quando abri a boca vi
a coisa mais incrível do mundo. À minha direita, estava o balcão dos
equipamentos. E… a lareira. Nós tínhamos dado a volta no rinque e
estávamos voltando para onde tínhamos começado.
E eu não tinha caído. E, olha, ali estava meu chocolate quente. O
mundo inteiro tinha passado e estava passando de novo enquanto
eu estava focada na minha preocupação com o que poderia
acontecer.
Entendido. Soltei o ar que estava prendendo e me entreguei.
– Isso aí – sussurrou ele, sentindo meu corpo relaxar e encaixar
no dele. – Você pegou o jeito.
– Bem, não sei se peguei o jeito, mas…
– Se dê um pouco de crédito – respondeu ele. – Quer ir um pouco
mais rápido?
Eu não queria. Então, falei que sim. Porque eu me conhecia o
suficiente para saber que a melhor coisa que poderia fazer era o
oposto do que eu queria.
Ele saiu patinando na hora que a música mudou, e descobri por
que ela me parecia familiar.
– É a trilha sonora de Dirty Dancing? – perguntei quando o mundo
passou voando.
– Aham. – Ele levou nossas mãos mais longe e me soltou por
uma fração de segundo antes de segurar com firmeza meus
quadris. – Você disse que este lugar fazia você lembrar do filme.
– Lembra. – Arrisquei um olhar na direção do hotel, que ficava do
outro lado do lago escuro, as lanternas piscando na beirada da
água. – Achei que você odiasse o filme.
– Todo mundo que mora nas Catskills já ouviu perguntas sobre
esse filme mais vezes do que dá pra contar – respondeu ele, me
guiando na curva a uma velocidade que, se eu estivesse sozinha,
poderia ter derrubado a lareira. – Mas a música era ótima.
– Nós devíamos fazer um fim de semana com o tema Dirty
Dancing aqui. Por que isso ainda não existe?
– Porque nós não queremos transformar nosso hotel num parque
temático, certo?
– Isso só vai acontecer se você botar uma montanha-russa, e
nesse caso eu quero andar.
– Está vendo, é assim que começa.
– Você vai me mostrar sua pachanga?
Ele deu um beijo no meu pescoço, patinou ainda mais rápido e
sussurrou:
– Você não faz ideia.
Nós patinamos por um minuto ou uma hora, não sei. Mas foi
rápido e incrível e de tirar o fôlego.
– Você devia dar uma volta sozinha.
– Mas fui tão bem com você, a gente não devia registrar isso
como um sucesso e não forçar a sorte?
– Uma volta pelo rinque, senhorita Morgan, e aí você pode forçar
o que quiser.
– Está vendo, você acha que isso vai funcionar comigo, mas não
vai.
– Se você der uma volta no rinque sozinha, vou lamber sua
boceta até você desmaiar.
Na próxima Olimpíada de Inverno, eu serei vista representando
meu país. Em que esporte? Patinação de velocidade.
Capítulo 18

Eu estava dormindo com Archie, mas não exatamente dormindo,


havia três semanas, seis dias, catorze horas e trinta e dois minutos.
Quarenta e três minutos se contássemos a rapidinha no armário de
vassouras… Mas quem conta rapidinhas, não é?
Na verdade, tecnicamente, devíamos contar rapidinhas porque,
mesmo com tempo e espaço limitados, aquele homem sabia botar
para foder. E foder com estilo. E botar para foder mais um pouco.
Nós fomos discretos, ou ao menos eu acho que fomos. De acordo
com as regras na minha cabeça, ninguém sabia que o homem que
ficava no pé da grande escadaria todos os dias recebendo os
hóspedes com uma palavra gentil e um aperto firme de mão era o
mesmo que ficava no pé da minha cama, com as minhas pernas por
cima de seu ombro, e me abria toda com a língua até eu estar
tremendo e então me virava e metia em mim como um homem
possuído.
Como alguém que tinha sido possuída por aquele homem
incontáveis vezes, acredite quando digo que é algo que vale a pena
testemunhar.
O foco dele, a atenção aos detalhes, unido a uma forma animal
absoluta e à paixão louca, me deixou destruída mais vezes do que
sou capaz de contar.
Mas ele contou. Ah, contou. Ele parecia o contador dos orgasmos,
avaliando e somando o total, sempre atrás de outro, sempre
forçando até eu estar tremendo e desfalecida, uma bola de energia
sexual incapaz de sobreviver a outro… mas ele sempre conseguia
mais um. Ele conhecia meu corpo, sabia o que eu era capaz de
fazer ainda que eu mesma achasse impossível, sabia exatamente
do que eu precisava.
E quero contar uma coisa sobre Archie Bryant, o homem da
bunda que parece dois pãezinhos. Ele amava de lado, de costas, de
frente e de todas as formas, mas o que ele amava mais do que tudo
era quando eu montava nele em uma daquelas cadeiras de balanço
antigas, com ele bem fundo, mais fundo a cada estocada, a cada
balanço da maldita cadeira, meus pés tentando se apoiar no velho
tapete vitoriano enquanto, pelo espelho dourado da sala, ele me via
trepar com ele como louca.
Estou dizendo, são sempre os caras de sardas e óculos. É neles
que se deve ficar de olho. São eles que vão fazer você esquecer
seu nome, mas dizer as piores baixarias imagináveis.
Hoje, no entanto, eu tinha que me concentrar. Hoje uma visitante
ia ao hotel.
Caroline Reynolds-Parker era uma designer de interiores da
Costa Oeste. Eu tinha visto o trabalho dela em um hotelzinho de
Sausalito e depois em um spa perto da Filadélfia. Ela trabalhava
para uma pequena firma em San Francisco, mas estava cada vez
mais concentrada em design comercial, e não residencial. Com
base no portfólio e na reputação dela, achei que seria a candidata
perfeita para sacudir as coisas nas Catskills.
Esperei-a no saguão, vendo os porteiros correrem para lá e para
cá com as malas. Estávamos chegando perto do verão, e as coisas
estavam ficando mais movimentadas. Mas ainda eram bem lentas
durante a semana, e foi por esse motivo que marquei a visita de
Caroline para uma quarta-feira. Já nos fins de semana, o hotel
ficava com metade da capacidade alugada. Em comparação com a
época em que cheguei, em meados de março, o movimento estava
excelente.
As portas se abriram, e uma mulher alta e magra com um lindo
cabelo louro entrou. Com um estilo fiel até nos detalhes ao
profissional casual da Califórnia, ela percorreu o saguão com a
confiança de alguém que era bom no trabalho e sabia disso.
– Você deve ser a Caroline – eu disse, cumprimentando-a com
um sorriso.
– Devo ser – disse ela, retribuindo meu sorriso. – Se você não for
Clara, eu não sei de mais nada.
– Sabe, sim – respondi, olhando por cima do ombro para a
recepção. – Beverly, nós não separamos o quarto meia, meia, meia
para a senhora Parker, não é?
– Não, senhora, nós a colocamos no… Deixe-me ver… – Beverly,
pega de surpresa, correu para procurar a reserva.
– Não precisa, Beverly, estou brincando!
– Ah, este lugar vai ser divertido. – Caroline riu, botou a bolsa no
chão e deu uma olhada de trezentos e sessenta graus no saguão. –
E lindo. – Ela andou até o papel de parede e passou o dedo pela
emenda. – Linen. Caro. Boa escolha.
– É mesmo? – perguntei, o coração despencando. Talvez eu não
soubesse tanto quanto achava, talvez o visual do hotel fosse certo e
preciso.
– Uma boa escolha – repetiu ela e me encarou – se ainda
estivéssemos em 1982.
Soltei o ar.
– E não estamos.
– Não – concordou ela, dando alguns passos mais para dentro.
Ao olhar para o tapete, ela se balançou para a frente e para trás
algumas vezes, batendo com o calcanhar. – Tem piso de madeira
aqui embaixo, dá pra saber. – Seus olhos se deslocaram.
Decidi naquele momento que, independentemente do que ela
quisesse fazer, eu faria o possível para que ela fosse contratada.
Desde que eu conseguisse arrancar o dinheiro de Archie.
– Mal posso esperar para ver este lugar, estou lendo sobre ele
desde que você fez contato com meu escritório, mês passado –
disse Caroline enquanto eu pegava sua bolsa e a levava para o
check-in. – Já tenho ótimas ideias, apesar de saber que você
também tem, considerando que disse que precisávamos de uma
reforma de proporções épicas.
– Ela disse o quê?
Droga. Botei a bolsa no chão, olhei de lado para Caroline e nós
duas nos viramos com os sorrisos mais doces do mundo nas nossas
carinhas lindas.
– Proporções épicas só no sentido da escala dos quartos, senhor
Bryant. Claro, quando mandei um e-mail para a Jillian Designs e
pedi a mundialmente renomada designer de interiores Caroline
Reynolds…
– Hífen Parker – disse ela.
– … claro, hífen Parker, ela ficou animada quando contei que os
quartos eram grandes e opulentos, como a propriedade era luxuosa
e excepcional – continuei, assentindo para Archie.
– Ah, sim, e você imagina como fiquei animada de poder dizer
que trabalhei no famoso Bryant Mountain House? Ora, vai
praticamente garantir que eu seja contratada por qualquer hotel, e
não vou ter como agradecer, senhor Bryant. Archie, suponho? –
Caroline sorriu e piscou o suficiente para eu saber que ele estava
convencido.
Archie ficou olhando para uma e para a outra, um pouco
atordoado, mas cortês demais para demonstrar. Bendito fosse. Ele
nunca conseguiria ir contra nós duas.
Mas nós deixamos que ele pensasse que tinha ganhado algumas
rodadas.

Passei a manhã levando Caroline para conhecer o hotel e


garantindo sem parar a Archie que ela não passaria dos limites e
que, sim, era necessário.
– Não consigo superar o fato de que tudo isso é antiguidade,
antiguidade de verdade, não reproduções – disse Caroline.
Estávamos em um dos quartos vitorianos da ala leste, a ala que
sugeri que fechássemos no inverno para começar as reformas. – E
as lareiras, meu Deus! Quem construiria um hotel hoje em dia e
colocaria lareiras em todos os quartos? E a lenha!
– Ninguém, essa é a resposta fácil – respondi, indo até a janela e
olhando as montanhas. – Ninguém construiria um lugar como este
agora. É grande demais, chique demais, só os materiais fariam
qualquer firma de construção dar um preço fora do mercado, sem
falar no risco da perspectiva do seguro de ter lareiras a lenha em
todos os quartos. – Eu suspirei. – Um lugar assim nunca mais vai
ser construído.
– Odeio admitir, mas você está certa – disse Caroline. Ela passou
a mão pela parede e bateu no papel de parede. – Tem gesso aqui
embaixo, gesso de verdade. Por cima de uma tela de arame e
provavelmente com três camadas de ripas de madeira. Esse gesso
fica preso com cal, areia, possivelmente conchas e quase
certamente misturado com pelos de cavalo. Dá para imaginar? – Ela
apontou para o teto, onde os quadros ficavam pendurados por
arame na cornija. – É por isso que quase sempre tem um trilho para
quadros em tudo que foi construído antes da virada do último
século, às vezes até os anos vinte. O gesso é forte, quase como
cimento, mas, se você enfiar um prego nele, uma coisa que não
deveria ser feita, ele desmorona como areia. Mas, se for bem
cuidado? Quase nunca precisa de conserto. – Ela passou a mão
pela parede. – Não tem nem uma irregularidade. Construíram este
lugar para durar.
Eu sorri. Ela entendia.
– Mas a decoração – disse ela bruscamente, pegando a câmera e
começando a trabalhar. – Isso não foi feito para durar. Isso, nós
podemos mudar.
– Mudar? – perguntou Archie, parado na porta. Ele tinha pedido
licença para terminar um trabalho antes de se juntar a nós na
inspeção.
– Calma, senhor Bryant – avisei. – Nenhuma loucura, só uma
melhorada, não é, Caroline?
– Exatamente – respondeu ela, andando pelo quarto enquanto
tirava várias fotos. – A questão é a seguinte, Archie, você sabe por
que tantas casas dos anos vinte têm madeira pintada de branco?
Painéis de madeira, do chão ao teto em alguns casos, como em
uma sala de jantar, mas pintados por cima, sabe por quê?
Archie olhou para mim e, novamente, para Caroline, seu rosto
ficando cada vez mais pálido.
– Você não está planejando pintar os painéis de madeira, está?
Porque, quando eu mencionar as palavras “ataque cardíaco” e “eu”
na mesma frase, posso garantir que não vai ser exagero.
Caroline ignorou a pergunta. Eu não podia ignorar a forma como
as sardas dele se destacavam do jeito mais lindo na cara imaginária
de ataque cardíaco.
– Os painéis de madeira eram pintados, Archie, normalmente nos
anos quarenta, porque as esposas não queriam uma casa que
parecia a casa da mãe delas. Quando aquelas casas foram
construídas, tudo era feito de lindos painéis de madeira. Agora os
vemos como lindos, um trabalho delicado de artesanato e detalhes
imemoriais. Certo?
– Certo. – Archie se manteve firme.
– Mas aquelas esposas olhavam e só viam escuro, escuro,
escuro. E elas viam a casa das mães delas. Ninguém quer morar na
casa da mãe; elas queriam coisas claras e leves e novas. Queriam
uma coisa diferente. E não parou aí. As mesmas mulheres que
pintaram os painéis tiveram famílias, as criaram, e suas filhas foram
morar no subúrbio, querendo coisas novas e diferentes. O rancho
nasceu. Tapete de parede a parede. Salas de recreação,
estranhamente com painéis de madeira, embora desta vez em
compensado fino feito para ser colado sobre a parede existente. Aí
essas mulheres tiveram filhos, e seus filhos entraram na era da
malva e do meu favorito, a faixa de parede. Não sei dizer quantas
casas cobertas de faixa de parede eu redecorei. Você devia ter visto
a minha cozinha em Sausalito quando eu comprei a casa, meu
Deus! O que quero dizer, Archie, é que todas as gerações mudam
as coisas. Agora, você está com sorte, porque tudo o que é velho
está novo de novo e existe uma honra na história agora. É moderno
ter coisas velhas, com novos propósitos e reimaginadas, mas
velhas. Então, vamos fazer mudanças. Mas são mudanças com as
quais você vai conseguir viver. Mudanças que vão ser parecidas
com o design original deste hotel, mudanças que vão honrar a
integridade e a beleza inerente de um lugar assim; quando eu
terminar, você vai jurar que não conseguiria imaginar de outro jeito.
Caramba. Ela era boa.
– Caramba. Você é boa – sussurrou Archie. Ele olhou para uma
de nós e, depois, para a outra. – Meu Deus, se vocês duas se
unissem, poderiam dominar o mundo.
– Aaah – eu e Caroline dissemos ao mesmo tempo, e Archie
ergueu as mãos, derrotado.
– Esqueçam o que falei. – Ele riu, mas ficou sério de novo. – Tudo
o que você disse até agora foi impressionante, mas, antes de
aprovar qualquer coisa, vou precisar ver exemplos do que você já
fez e do que está planejando fazer. Podemos concordar sobre isso,
não é?
– Claro – disse Caroline, e se aproximou para apertar a mão dele.
Ele olhou para ela por um momento, avaliando-a, e para mim,
depois apertou a mão dela.
– Estou ansioso. – Desviando o olhar de Caroline para mim, ele
disse: – Senhorita Morgan, uma palavrinha?
– Claro, senhor Bryant. – Assenti e andei até ele. – Caroline, não
comece o plano de dominação mundial enquanto eu não voltar.
– Claro! Vou precisar de um martíni antes de começar a planejar
isso.
Eu sorri e fui atrás de Archie até o corredor. Ele esperou que eu
fechasse a porta e revirou os olhos.
– Onde você a encontrou?
– San Francisco – respondi.
– Ela vai conseguir fazer isso dentro do orçamento? – perguntou
ele, olhando por cima do meu ombro.
– Ela diz que sim – respondi, olhando também por cima do meu
ombro. Não havia ninguém ali.
– E ela não pode chegar perto dos meus painéis de madeira.
– Pode deixar – sussurrei, dando um passo para mais perto dele.
Mas, em vez de chegar mais perto de mim, ele olhou para trás. – O
Walter está perseguindo você, por acaso?
– Nem mencione o Walter para mim agora – murmurou ele,
tirando uma chave do bolso e enfiando na fechadura do quarto ao
lado.
– O que você está fazendo? – perguntei quando ele me levou
para dentro rapidamente. – Onde você conseguiu essa chave?
– Chave mestra. Consigo entrar em qualquer lugar deste hotel a
qualquer hora que quero – disse ele, fechando a porta. Em um
instante, eu estava imprensada na parede logo atrás da porta. – E
agora a única coisa que eu quero é entrar em você.
– Você só pode estar brincando, nós não podemos… Puta que
pariu, Archie – eu gemi quando ele levantou minha saia com uma
das mãos e cobriu minha boca com a outra.
– Você tem que falar baixo – avisou ele, a voz abafada porque a
cabeça estava embaixo da minha saia. – Você não vai querer que a
sua nova amiga escute.

Saí do quarto, ajeitei a saia e o cabelo e voltei para o quarto onde


tinha deixado Caroline. Ela estava medindo a parte de dentro das
janelas e havia pilhas de persianas em cima da cama.
– Me desculpe por isso, foi uma pequena crise que surgiu do
nada.
– Ah, não foi nada – disse Caroline, me passando calmamente a
trena e andando até a parede oposta. – Resolveu tudo?
– Hum? Ah, sim, sim, a crise foi resolvida e todos ficaram
satisfeitos.
Ela sorriu.
– Que bom. Sabe, eu estava pensando, apesar de eu ter quase
certeza de que o gesso é grosso, talvez seja bom acrescentar um
isolamento, sabe, só para preencher um pouco as paredes. Fazem
maravilhas com isolamento atualmente, podemos acrescentar por
um pequeno buraco na base, não custaria tanto quanto se fosse
feito dez anos atrás. Você ficaria impressionada com o que pode
fazer não só para ajudar a regular a temperatura, mas também para
reduzir os ruídos. – Ela me encarou diretamente nessa última parte.
– Ruídos? – perguntei, a voz mais aguda do que o normal.
– Aham – disse ela, fechando a mão e batendo na parede. Bem
onde eu estava, mas do outro lado. – As paredes são finas, sabe.
Horrorizada. Eu estava horrorizada. Tentando manter a voz firme,
gaguejei:
– Ah. S-sim, entendo como isso pode…
– Clara? – disse ela, abrindo a trena.
– Sim? – Minha voz tinha aumentado três oitavas. Mariah ficaria
orgulhosa.
– Não se preocupe. – Ela esticou a trena em uns vinte e cinco
centímetros. – Eu tenho um igual a ele em casa.

– Não estou entendendo. O que você está me dizendo?


– Olha, você está sabendo tudo o que eu sei. Ninguém está
falando, pelo menos não quem pode saber de alguma coisa. O resto
de nós está imaginando o que está acontecendo. Eu queria ter mais
para contar.
– Mas existe a possibilidade de essa fusão não acontecer? –
perguntei a Barbara, a mente em disparada tentando absorver tudo
o que ela tinha me contado.
Ela estava desconfiada havia um tempo; a gerência sênior não
estava tão disponível como costumava ser, houve prognósticos
imprecisos, e, na semana anterior, uns tipos medianos de recursos
humanos tinham aparecido para farejar, supostamente levados pelo
comitê para garantir a eficiência de cada departamento, mas nosso
departamento interno de RH não estava avisado. Acrescentando a
isso o boato de que o The Empire Group, a firma principal de
marketing de Nova York, que tinha um departamento inteiro
dedicado a consciência de marca com uma divisão forte de hotéis,
estava avaliando a ideia de agregar algumas das firmas menores da
Costa Leste, exatamente como a firma para a qual eu trabalhava, e
pronto: uma fusão corporativa como possibilidade se tornou, de
repente, uma ideia firmemente enraizada na realidade.
– Mas o que isso vai significar? Quer dizer, não, na verdade o que
eu quero saber é: como isso vai nos afetar? Já há projetos
encaminhados, datas futuras de início, você sabe que eu queria
concorrer ao trabalho no Oakmont quando este aqui acabar, isso
ainda vai ser possível?
Barbara deu o suspiro pesado de uma mulher cujo mundo pode
virar do avesso e de cabeça para baixo de uma hora para outra. Ela
trabalhava para a firma desde sempre, ela era a firma, se alguém
fosse estar seguro, esse alguém seria ela, não?
– Não sei, garota. Vou te contar tudo assim que souber. Por
enquanto, fique na sua e faça o melhor que puder. Seu trabalho fala
por si, mas agora ele precisa gritar, entendeu?
Eu entendia. Meu trabalho precisava ser incrível, impecável, e
minhas referências quando eu saísse daquele hotel tinham que ser
perfeitas. É incrível como os buracos no balão começam a aparecer
rápido quando há a possibilidade de uma auditoria externa. Meu
trabalho era bom, sempre tinha sido, e o atual não era exceção. A
não ser, claro, por Archie.
– Barbara, que confusão – eu gemi, apoiando a cabeça na mão.
– Ei, não desanime por isso, nada foi confirmado ainda. Por
enquanto, vamos seguir trabalhando e ficando alertas. Vai ficar tudo
bem. Agora, me conte sobre as reservas de verão no Mountain
House. Como estão?
Barbara e eu conversamos por mais alguns minutos. A conversa
foi tensa, artificial e diferente de qualquer outra anterior.
Normalmente, eu podia contar com Barbara para três coisas. Para
me dar bronca, para me elogiar enquanto me dava bronca e para
sempre mostrar meu verdadeiro norte. Ela era minha bússola
profissional e sempre cuidava para que eu estivesse apontando
para a frente e pensando adiantado, assegurando que eu fizesse as
escolhas na minha carreira que me manteriam assim. Pela primeira
vez, ela parecia insegura, e isso fez tremer a agulha apontada para
o meu verdadeiro norte.
Uma fusão? O que isso significaria? Eu ainda poderia escolher os
trabalhos que quisesse? Ir para onde eu sentisse que era
necessária? Eu tinha me matado de trabalhar durante anos para
chegar a um certo lugar na empresa, isso seria desfeito? E se o que
tinha acontecido em Bailey Falls fosse descoberto quando a nova
gerência estivesse assumindo? “Ei, essa é nossa principal
funcionária, Clara Morgan, ela deu para o cliente, mas as reservas
aumentaram muito, então não vamos dar atenção para essa
primeira parte”.
Eu ouvia Barbara no meu ouvido me dizendo para não me
preocupar até haver algo com que me preocupar.
Tentei apontar minha bússola para o norte.
Eu tremi e abracei meu corpo.
– Está com frio?
– Um pouco.
– Você devia ter colocado um casaco.
– Eu não estava pensando, tinha uma pessoa beijando meu
pescoço quando eu estava tentando me arrumar e acabei
esquecendo.
Archie sorriu.
– Só para deixar claro, essa pessoa era eu, certo?
– Certo.
Eu ri. Estávamos na cidade, uma coisa rara atualmente, pois
estávamos mais ocupados do que nunca no hotel. Desde que eu
chegara, Roxie estava atrás de mim para que eu fosse a uma aula
de Conservas Zumbis, e em um momento de fraqueza eu concordei
não só em ir, mas em levar Archie.
Roxie e Natalie sabiam o que estava acontecendo desde a
Páscoa. Mas estavam doidas para ver pessoalmente. Então,
descemos a montanha. E estava frio.
– Está mesmo frio – eu disse de novo, movendo os braços para
me aquecer.
A aula de Roxie fora ficando mais e mais popular nos meses
anteriores, e o espaço do restaurante estava quase pequeno
demais. As vagas próximas estavam todas ocupadas, e tivemos que
andar quase cinco quarteirões para chegar a tempo.
– Aqui, tome – disse Archie, tirando seu casaco e colocando nos
meus ombros.
– Não. Por favor. Eu não poderia. – Falei isso na cara de pau,
enquanto aproveitava o calor. – Seu cheiro é bom, aliás.
A gargalhada dele soou por toda a pracinha.
– Meu cheiro é bom?
Eu dei de ombros.
– É, sim. – Inspirei fundo. – É, seu cheiro é bom.
– Como é meu cheiro? – perguntou ele, passando os braços pelos
meus ombros e me puxando para mais perto.
Olhei ao redor com nervosismo, me perguntando quantas
pessoas podiam nos ver e como o boato de que o dono do Bryant
Mountain House e a forasteira que foi consertar as coisas estavam
pendurados um no outro se espalharia pela cidade. Mas o peso do
braço dele, o jeito como ele me aconchegou com tranquilidade, de
forma ao mesmo tempo tão casual e tão preocupada, impossibilitou
que eu me concentrasse em qualquer outra coisa além de tentar, em
vão, capturar o aroma de Archie.
– Madeira.
– Como?
– Madeira. Fiz uma aula de carpintaria uma vez, um crédito extra
no ensino médio, um último respiro antes de o professor se
aposentar. Nós fizemos caixas de pássaros de nogueira. Nos dias
em que a gente cortava a madeira, ela sempre ficava com um cheiro
fresco, quase adstringente. E, nos dias em que lixávamos a
madeira, em que manipulávamos a madeira por um tempão, o
cheiro era diferente, meio… Não sei. Fresco e verde, mas meio
quente também. Aconchegante. O que fazia sentido na época,
porque eu estava fazendo uma casinha aconchegante para uma
futura família pássaro. Você tem um cheiro parecido.
– Eu tenho um cheiro aconchegante.
– E meio de bordo.
– De nogueira e bordo?
– Do xarope, xarope de bordo.
– Eu adoro panqueca. – Ele passou o braço com mais firmeza nos
meus ombros. – Então você fez carpintaria no ensino médio? Inte-
ressante.
– Não quero construir uma casa de pássaros, se é isso o que
você deseja.
– Não, eu só estava pensando que é uma das primeiras coisas
que você menciona que é relacionada à sua infância. Você nunca
disse onde cresceu, ou que tipos de coisas gostava de fazer.
– Ah. É mesmo? – falei, puxando o casaco sobre o corpo.
– Aonde você vai?
– Hum?
– Volta aqui. – Ele riu e me puxou de volta para o seu lado. Eu
tinha me afastado sem nem perceber.
– Uau, que multidão! – eu disse, apontando para o restaurante,
feliz de estarmos quase lá. Não queria falar sobre casas de
pássaros nem sobre aulas de carpintaria nem sobre infâncias.
Queria entrar e aprender a enlatar ou fazer conserva do que quer
que fosse que ela ia ensinar hoje.
– Todas essas pessoas estão aqui para uma aula de culinária? –
perguntou Archie enquanto víamos outro grupo entrar.
– A Roxie disse que ficou bem popular, mas eu não fazia ideia do
quanto.

As aulas começaram como brincadeira, com Chad e Logan


querendo aprender a fazer geleia e picles. A história envolvia
apocalipse zumbi e todas as pessoas velhas morrendo e nenhuma
pessoa jovem e saudável sabendo fazer geleia caseira. A geleia
seria importante depois. Então, ela ensinou para eles. E eles
comentaram com amigos, e, na semana seguinte, mais gente
apareceu. E assim por diante. Era a aula de culinária mais popular
da cidade e, mais importante, uma das atividades sociais mais
populares para o hipster do Hudson Valley.
Paramos em frente à porta, vendo as festividades a toda lá
dentro. Pensei de repente que, em todo o tempo que eu e Archie
passamos juntos, eu nunca o tinha ouvido falar de passar tempo
com amigos, nem mencionar um amigo em geral. Que vida solitária
ele devia ter tido na montanha depois que a esposa morreu.
Ele não é um eremita maluco de livro de fantasia…
Certo.
Antes que eu pudesse ruminar por muito tempo, o decote de
Natalie estava encostado na vitrine e, pelo jeito como sua boca se
movia, entendi que ela estava dizendo “Entra aqui agora”.
– Suas amigas são… – Archie parou de falar, sem conseguir tirar
os olhos do que ela estava exibindo.
– Estranhas? – terminei.
– Tão estranhas! – concordou ele, afastando o olhar com uma
risada e um movimento de cabeça.
– Venha, quanto antes entramos, mais cedo podemos sair. E fazer
coisas pelados.
Ele parou com a mão na porta e deixou a cabeça pender de forma
dramática.
– Por que você só está me dizendo isso agora? A gente podia
estar fazendo coisas pelados neste exato momento?
– Quem sabe, se eu tomar vinho o suficiente hoje – eu disse,
passando embaixo do braço dele e entrando –, eu possa fazer
coisas peladas no carro.
Se eu não o conhecesse tão bem, diria que o cara de lencinho no
bolso rosnou.
A aula de Conservas Zumbis foi um sucesso. Nós fomos em uma
noite atípica, numa aula que a turma tinha pedido o inverno inteiro.
Era noite da massa de torta. Depois que cumprimentamos todos e
Roxie nos colocou em estações, ouvi minha amiga falar para uma
turma lotada. As pessoas se espalhavam pelo restaurante, pela
cozinha, pelo balcão, cada mesa estava tomada e havia até
estações improvisadas perto da porta.
– Ela precisa de um lugar maior – sussurrou Archie enquanto eu
ouvia Roxie explicar o que era necessário para fazer a massa de
torta perfeita.
– Ela está procurando, mas em uma cidade pequena assim não
tem muitos espaços para uma chef profissional. O Leo ofereceu um
espaço na fazenda, mas acho que ela quer fazer sozinha, sabe?
Acho que foi por isso que ela ficou tão animada quando você deu a
ideia de levar para o resort e…
– Tem alguma coisa que vocês gostariam de compartilhar com o
resto da turma? – perguntou Roxie, caminhando de estação em
estação.
– Sim, eu gostaria de dizer que estou animada de estar aqui e que
a professora é muito bonita. – Pisquei para ela, que revirou os olhos.
– Eu sou muito bonita, quanto a isso não vou discutir – respondeu
ela, inspecionando nossa mesa. – Estou vendo que vocês mediram
a farinha, sua manteiga está cortada em quadrados perfeitos, a
água gelada está pronta, o cortador de massa está na mão.
– Isso – eu disse com orgulho. Minha estação era a mais limpa. –
Estou prontinha.
– Uma pergunta – disse ela. – O que você vai deixar o Archie
fazer?
– O quê? – perguntei, olhando com surpresa.
– Isso é trabalho em equipe, Clara, você tem que deixá-lo fazer
alguma coisa. Não dá para aprender a fazer a massa de torta
perfeita sem meter a mão na massa. Agora abre espaço e dá o
cortador pra ele.
Archie estalou a língua quando empurrei o cortador em sua
direção.
– Claro que ele vai fazer alguma coisa, eu só estava preparando
tudo para ele – murmurei, revirando os olhos na direção dela.
– Eu vi isso – disse ela enquanto se afastava.
– Era para ver mesmo – respondi.
Quando a aula acabou, quase todos foram embora, menos alguns
de nós, que fomos até a cozinha para ajudar Roxie na arrumação.
– Não acredito que fiz massa de torta! – Archie dizia, balançando
a cabeça, ainda de olho na torta perfeita na bancada, como se ela
pudesse desaparecer.
– Você se saiu bem, Arch, vocês deviam voltar na semana que
vem – disse Roxie, se encostando em Leo, que empilhava pratos
limpos nas prateleiras.
– Qual é o cardápio da semana que vem?
– Caldo de galinha caseiro. Ensinei no outono, mas isso foi antes
de a turma crescer tanto, e todos estão pedindo de novo.
– Ah, nós viremos, definitivamente – disse Archie com
entusiasmo, assentindo e secando as mãos no avental. Ele estava
lavando os últimos pratos, e Oscar os estava secando. Natalie e eu
estávamos sentadas na bancada de aço inoxidável no canto. – Não
é?
– Hum? – perguntei, erguendo o olhar das unhas e vendo Archie
me olhando com expectativa. – Ah, sim, claro, nós viremos. Semana
que vem.
Archie voltou rindo para a pia, enquanto Oscar olhava com
irritação para um copo escorregadio que ele não conseguia segurar.
Senti o olhar de outra pessoa e me virei. Dei de cara com Natalie
me observando com expectativa.
– O que foi? – perguntei, franzindo a testa.
– Me conta você – disse ela, franzindo a dela como se estivesse
tentando ver dentro do meu cérebro.
– Você sabe que não gosto quando você tenta ler mentes.
Pergunta logo. – Suspirei, cansada de repente. Estava calor na
cozinha com tanta gente e a água quente.
– Estão fazendo planos para você – disse ela, erguendo o queixo
na direção de Archie. – Estão fazendo planos de fazer caldo com
você na semana que vem.
– É? E daí? Foi divertido hoje. Você não se divertiu?
– Claro, é divertido toda semana. O Oscar e eu nunca perdemos
uma aula quando estamos na cidade.
– Que doméstico da sua parte! – respondi, percebendo a secura
em minha voz e me arrependendo quase imediatamente. –
Desculpe, foi crueldade.
– Um pouco – concordou ela, esbarrando no meu ombro –, mas
não vou usar isso contra você. Por que você está sendo cruel?
– Não sei. É que… acho que estou um pouco sufocada com tudo
isso. – Suspirei de novo.
– Com tudo isso… o quê? – perguntou Natalie, me olhando com
um sorriso malicioso. – Você está finalmente pronta para admitir que
você e Archie estão dançando na horizontal na montanha?
Eu escondi o rosto em um pano de prato.
– Tudo bem, tudo bem, eu desisto.
– Eu sabia! – Ela riu e bateu nos meus ombros. – Conta tudo para
a Natalie aqui, começando com o quanto ele ama quando você
monta nele como uma vaqueira.
– Ah, pelo amor de Deus – falei com rispidez, agora cobrindo a
cabeça toda com o pano. Mas espiei pelo cantinho. – Na verdade,
você está cem por cento correta, sabia?
– É um talento. – Ela suspirou. – Mas, falando sério, que bom.
Estava na hora.
– Na verdade, estava na hora, está na hora, e essa hora alguma
hora vai ter que acabar – falei, vendo os rapazes terminarem a
lavação.
Archie, rindo, arremessou o pano de prato e se agachou quando
Leo jogou uma esponja molhada em sua direção. Seus olhos
estavam de um azul absurdo, captando a luz com alegria. O cabelo
estava desgrenhado, as mangas da camisa, encharcadas apesar de
terem sido dobradas; ele parecia relaxado e à vontade.
Todos eles, na verdade. Os garotos estavam brincando, Roxie
tinha se afastado e estava conversando com Chad e Logan sobre a
peça em que Polly estava envolvida na escola, combinando de irem
no mês seguinte. Foi como um episódio de série de televisão em
que todo mundo é bonito e feliz e faz todo o sexo que pode querer
antes de ir para o café ou para a lanchonete do bairro contar piadas
e fazer comentários picantes.
E eu era a garota sob o pano de prato sentada na bancada
tentando entender qual era o lugar dela. Eu era a garota que
aparecia num arco de quatro ou cinco episódios, por quem um dos
personagens principais se apaixonava, um personagem que se
tornava parte de uma história mais forte e mais definida enquanto
absorvia o que a forasteira tinha a oferecer. Apesar de,
tecnicamente, eu estar presente desde a mesma época em que todo
mundo, ainda estava de fora. Porque eu iria embora no final da
minha história, faria as malas e seguiria para o deserto cinzento de
personagens de séries que saem de cena tão rapidamente quanto
entraram.
Archie ficaria. Eu seria “a garota que o trouxe de volta à vida”. Ou
“a garota que fez Archie ficar ótimo de novo”. Ou, pior: “a garota que
partiu o coração dele”.
Fiz uma careta e massageei o vazio repentino que senti no
coração. Eu precisava voltar ao hotel, precisava me deitar e dormir
um pouco e não pensar nisso agora. Mas isso não estava planejado.
– Estou vendo que você está se torturando, garota – disse Natalie
–, mas acho que você está pensando um pouco demais sobre a
situação.
– Como eu posso não pensar demais? Eu penso demais sobre
tudo, e você está me dizendo que essa é a hora de confiar que o
universo não vai fazer merda?
– É. Eu acho exatamente isso – disse ela. – Para de pensar tanto,
Clara. Você vai tirar de letra, acredite.
Não respondi, só fiquei massageando o vazio no meu peito
enquanto a agitação da noite terminava.
– Bom, como estão todos aqui – disse Roxie, pulando na bancada
ao lado de Natalie, de forma que ficamos as três enfileiradas –, eu
tenho uma novidade. – Leo parou na frente dela com um sorriso
largo. – Bem, nós temos uma novidade.
– Você está grávida. Eu sabia! Eu sabia, porra, não falei que a
Roxie ia ser a primeira? – comemorou Natalie, acenando para Oscar
e tentando puxá-lo até ela com sua versão pessoal de raio trator. –
Não falei?
– Silêncio, Pinup, deixa que ela fale – grunhiu ele, mas se
submeteu ao raio trator.
– Sim, Pinup, deixe que ela fale – disse Roxie. – Mas, não, eu não
estou grávida.
– Ainda – disse Leo, passando a mão pela perna dela em um
gesto possessivo.
– Silêncio, pessoal – instruí, me inclinando para a frente para
poder ver o rosto de Roxie. Ela estava com um sorriso enorme. –
Menos a Roxie.
– Bem, não é nenhuma grande surpresa, acho, mas o Leo me
pediu em casamento. E…
– Ela disse sim! – gritou Leo, tomando-a nos braços e a girando
pela cozinha, quase arrancando a cabeça de Archie no processo.
Gritos de parabéns e mazel tovs choveram sobre o casal feliz, e
Natalie empurrou todo mundo para abraçar Roxie com força. Archie
apertou a mão de Leo e deu tapinhas nas costas dele; quando
Oscar fez exatamente a mesma coisa, quase derrubou Leo no
processo. A mão de Roxie foi tirada à força por Natalie dos bolsos
de trás da calça e lá estava, o cubo de gelo.
Cintilante e luminoso, um diamante do tamanho de um rinque de
patinação ocupava o dedo anelar da mão esquerda. Cintilando do
mesmo jeito, estavam os olhos dela e o rosto dele. Emocionados.
Orgulhosos. Os dois estavam reluzindo como se iluminados por
dentro.
Fiquei animada. Senti tanto orgulho. Então, por que pareceu que
meu sorriso era falso, que meus parabéns e que-incrível e claro-
que-serei-dama pareceram sinceros, mas não emocionados?
Uma pergunta que continuei me fazendo durante o trajeto de
carro para casa. Mas Archie falou o suficiente por nós dois.
– Estou pensando que, se usarmos a sala de jantar menor do
primeiro andar para a aula de Conservas Zumbis, a que só abrimos
quando estamos lotados, não vai atrapalhar muito o serviço de
jantar regular. Teríamos que pensar em alguma coisa no verão, mas
talvez se mudarmos o horário ou passarmos para os fins de semana
em junho e julho… Não sei, o que você acha?
Quase não tive tempo de respirar para responder, e ele já estava
seguindo outra tangente:
– Outra coisa: estou pensando se devíamos oferecer um desconto
se um aluno quiser passar a noite. Pode ser outro jeito de
apresentar alguns rostos novos da cidade, pois sei o quanto você
quer trazer mais os habitantes da região, e essa pode ser uma boa
forma de fazer isso. Não durante a alta temporada, claro, mas, se
oferecermos uma tarifa com desconto no outono, talvez de trinta por
cento, e uma melhoria de quarto? Nem todo mundo poderia
aproveitar a oferta, mas talvez mais do que a gente acha. Qual é a
sua opinião?
Ele novamente nem esperou que eu respondesse, e já iniciou
outro monólogo:
– Ah, antes que eu me esqueça, falei com o Oscar sobre levar
algumas vacas, só umas duas, talvez um dos bezerros. O Bryant
Mountain House tem um celeiro, só não é usado há anos, mas
talvez neste verão possamos fazer uma parceria com ele para
apresentar um novo conceito de fazenda à mesa para os hóspedes,
e envolver o Leo também. Já contei que havia vacas aqui, só para o
leite, o queijo e a manteiga? É verdade. Ano passado, encontrei um
cardápio dos anos trinta que dizia “com leite das vacas da Família
Bryant”. Dá pra acreditar? Aposto que o Leo poderia arrumar umas
galinhas, nossos hóspedes adorariam saber que estão comendo
ovos frescos da fazenda. E, se o Oscar trouxer um bezerro, que
grande oportunidade de aprendizado para as crianças que se
hospedarem aqui, principalmente as da cidade, que nunca veem a
origem dos alimentos. O Leo estava me contando sobre o programa
que ele iniciou alguns anos atrás, em que a família Maxwell
patrocina algumas escolas da cidade para que elas levem as
crianças para passeios. Você sabia que a maioria nunca tinha visto
uma galinha? Ursos e leões, sim, porque já foram ao zoológico, mas
dá para imaginar crianças que nunca viram uma galinha?
– Nem todas as crianças podem visitar uma fazenda, Archie. Nem
todas as crianças chegam a ir ao zoológico. – Eu suspirei e olhei
pela janela, para a noite. Podia ser primavera no calendário, mas
aquela noite no norte do estado de Nova York estava um gelo.
– Mas a maioria das crianças vai a um ou ao outro, mesmo que só
em um passeio da escola. Me lembro que, quando eu estava no
quarto ano, minha turma inteira tomou o trem pra cidade só para ir
ao zoológico do Bronx.
– Quando eu estava no quarto ano, a mãe da família de
acolhimento com a qual eu morava se recusou a assinar a
permissão para que eu fosse a um passeio da escola, como punição
por eu ter derramado tinta na cozinha. Quando eu estava no quinto
ano, a mãe da outra família de acolhimento não podia dar os vinte
dólares para eu pegar o ônibus até o centro de Boston com as
outras crianças da minha turma, pra fazer o passeio da escola,
então passei o dia todo no refeitório fazendo um projeto de crédito
extra sobre Paul Revere e suas corridas noturnas mágicas com a
orientadora, que estava preocupada de eu estar reprimindo
emoções. E eu devia estar mesmo, considerando que, no primeiro
ano, minha mãe foi ao meu passeio até Gloucester para ver os
pescadores, mas encheu a cara em um bar no almoço em vez de
passar tempo com as crianças, e acabou sendo pega transando
com um dos pescadores com quem tínhamos que nos encontrar
mais tarde. Então, veja só, os passeios são um assunto meio
complicado pra mim.
O carro ficou em silêncio. Mas eu, na minha cabeça, só conseguia
ouvir as palavras saindo e explodindo acima de nós e pintando o
interior do moderno carro alemão com outras palavras terríveis, não
ditas, mas, certamente, pensadas…
Bagagem.
Problemas.
Cicatrizes.
Inútil.
Não raspe essa superfície porque, meu Senhor, o que você
encontraria embaixo?
Eu não era Ashley. Não tive uma infância perfeita cercada de uma
família amorosa e preocupada em me proteger e guiar e esconder
os monstros e me preparar para uma vida de amor e risadas e
perfeição quando eu finalmente encontrasse o homem perfeito, o
homem que conhecia desde que era criança e com quem passei
para a vida adulta, dois adultos morando em um castelo perfeito na
nossa própria montanha, em que não há palavras duras nem braços
desinteressados, só amor, amor e amor.
Eu nunca tinha ficado tão dolorosamente ciente de como eu era
diferente de Archie quanto naqueles momentos de silêncio no carro.
Eu estava tremendo.
Ele encostou o carro.
Ele me tirou do banco e me puxou por cima do console para o
colo dele depois de soltar meu cinto.
Eu estava tremendo.
Ele puxou os lados do casaco, o que eu ainda estava usando,
passou os braços pela minha cintura e se inclinou para a frente, me
segurando contra o peito como a um bebê, apoiando o queixo no
alto da minha cabeça.
Eu ainda estava tremendo. Mas estava respirando. E estava
inspirando aquele aroma gostoso do Archie, o aroma amadeirado e
de panqueca com xarope de bordo, e, por baixo de tudo, só havia
calor, por baixo do terno bem cortado da Costa Leste só havia o
mais caloroso dos homens.
Nós não voltamos para o hotel naquela noite. Fomos direto para a
casa dele, andamos direto até a lareira, tiramos tudo o que havia
entre nós, e, quando ele me penetrou perto do fogo, eu ofeguei e ele
gemeu e preencheu meu corpo, minha mente e meu coração.
Ele não me pediu para explicar nada naquela noite. Mas, deitada
no conforto dos seus braços, enrolada nele de todas as formas
possíveis, eu soube que isso aconteceria.
E eu não sabia o que diria.
Capítulo 19

Nós passamos a noite no chão da sala. Nenhum de nós


mencionou o fato de que ambos parecíamos estar evitando o quarto
dele, o quarto que ele tinha compartilhado com a esposa, e talvez
tenha sido melhor assim. Nu, Archie reuniu travesseiros e
cobertores e colchas, e, nua, eu o ajudei a arrumar um ninho
maravilhoso na frente do fogo. Ele não perguntou nada, e eu não
ofereci nada, mas abri os olhos na manhã seguinte e me deparei
com ele me olhando.
– Eu meio que explodi ontem à noite – falei.
Ele esticou a mão para afastar do meu rosto uma mecha de
cabelo, passando carinhosamente as pontas dos dedos na minha
bochecha.
– Foi mesmo.
Eu me espreguicei, me perguntando se poderia enrolar o
suficiente para tomar uma xícara de café. Lendo meus
pensamentos, ele sorriu.
– Que tal eu fazer café, você fazer torrada e a gente conversar um
pouco?
– Que horas são?
– Não importa.
Eu franzi a testa. Sabia que precisávamos conversar, mas eu
ainda tinha um trabalho a fazer.
– Está muito tarde? – perguntei, me levantando e pegando um
dos cobertores.
Branco. Tudo estava branco.
– Minha nossa. – Suspirei enquanto olhava pelo janelão. O mundo
estava coberto de neve. Fofa e densa, agarrada a todas as árvores
e galhos, na beira da água e cobrindo o gramado. Pelo menos trinta
centímetros de neve tinham caído enquanto dormíamos. – Estava
na previsão do tempo?
– Não, foi uma tempestade surpresa – disse ele, parando ao meu
lado na frente da janela, enrolado em outro cobertor. – Nós
costumamos ter pelo menos uma nevasca tardia por ano, mas tem
um tempo que aconteceu uma tão forte quase sem aviso.
– E as estradas não vão ser limpas, imagino.
– Vão. Nós temos limpadores de neve no hotel, e imagino que já
tenham começado a limpar a via principal. Mas só virão para esta
parte quando todas as estradas abertas aos hóspedes estiverem
limpas. Então, por um tempo…
– Nós estamos presos aqui – terminei por ele, ainda olhando para
a camada de neve lá fora.
Encurralados pela neve. E nós dois ainda nus. Normalmente,
seria uma coisa de sonhos, mas eu tinha escolhido a noite errada
para descarregar minha bagagem idiota. E agora um dia de neve se
transformaria em um dia de sentimentos.
Que merda. Se isso ia acontecer, eu precisaria de proteínas.
– Você tem ovos pra acompanhar as torradas e o café?
Dez minutos depois, estávamos sentados no balcão da cozinha
com ovos mexidos, torradas, geleia e o abençoado café. Archie
tinha me dado um moletom antigo da Bailey Falls High School, com
a logo do campeonato de polo aquático. As mangas tiveram que ser
dobradas umas cinco vezes para eu não me afogar nele. Deu para
entender minha piadinha?
– Está gostoso – disse ele, colocando uma garfada de ovos na
boca.
– Obrigada, eu botei um pedacinho de queijo que achei na
geladeira.
– Tem queijo na minha geladeira?
– Uns três tipos diferentes. Quem colocou lá?
Ele sorriu.
– Minha empregada, Greta. Ela trabalha para a família há anos e
insiste em fazer minhas compras toda semana, apesar de eu
raramente cozinhar. Na mente dela, uma geladeira cheia significa
uma vida cheia.
– Sua esposa cozinhava?
Ele parou com o garfo a caminho da boca. Depois de um ou dois
segundos, levou o garfo à boca, mastigou, engoliu e me olhou com
atenção.
– Você está tentando falar sobre qualquer coisa exceto o que
aconteceu no carro ontem à noite?
Eu mastiguei. Eu engoli.
– Sim.
– E por quê?
Eu mastiguei. Eu engoli.
– Não fico muito à vontade falando sobre meu passado. Nenhuma
parte dele.
– Todo mundo tem um passado, Clara.
– Mas nem todo mundo precisa revisitá-lo. É passado, um tempo
que já passou. Por que arrastá-lo de volta?
Ele cobriu minha mão com a sua.
– Seja arrastado de volta ou conversado diariamente, o passado
sempre dá um jeito de aparecer, de se jogar na sua cara até você
deixar que ele se manifeste. Aí, sim, às vezes dá pra seguir em
frente. Mas ele nunca passa de verdade.
Tirei a mão de debaixo da dele, peguei meu prato agora vazio e
levei até a pia.
– Quanto tempo você acha que vai demorar para a estrada ser
limpa?
– Uau, nem trinta segundos. Impressionante!
– O quê?
Ele também levou o prato até a pia.
– E eu achando que nós chegaríamos a algum lugar hoje.
Me afastei da pia, com o rosto quente, as mãos nos quadris.
– E aonde exatamente você achou que nós chegaríamos? Nós
estamos presos pela neve, sem termos para onde ir, sem termos
onde nos esconder, vamos perturbar a Clara até ela ceder? Isso não
é justo, é?
– Minha esposa morreu com trinta e dois anos. A vida não é justa,
porra. Quanto mais cedo você aceitar isso, melhor vai ficar.
– Não! – eu respondi com rispidez, apontando para ele. – Não vai
ficar melhor, vai ficar exatamente o oposto. Olha o que está
acontecendo agorinha mesmo, você falando do passado e nós
imediatamente brigando por uma coisa tão idiota! É o meu passado,
Archie, e, se eu quiser que ele fique enterrado, vai ficar enterrado,
porra. Me desculpe por ter dito todas aquelas coisas no carro ontem,
foi um erro, um ato falho, e acredite quando digo que não vai
acontecer de novo. E, sim, eu sei que a sua esposa morreu com
trinta e dois anos e isso é mesmo uma merda, mas eu não sou ela e
estou longe de ser perfeita e se você acha que vou ser como ela
então… – Eu parei no meio do grito. – Quer saber, é exatamente por
isso que eu não devia ter começado isso, eu sabia que era má ideia.
– Saí para buscar minhas roupas. Novamente, estava tremendo. No
espaço de doze horas, eu tinha deixado a superfície lisa rachar e já
estava pagando o preço. Estava dizendo coisas que nunca deveria
dizer e estava magoando Archie, deu para perceber.
É por esse motivo que eu não me envolvo. Porque, quando duas
pessoas compartilham uma coisa, uma delas se magoa. E, muito
tempo atrás, prometi a mim mesma que nunca magoaria outra
pessoa. Eu precisava sair antes que mais coisas fossem ditas.
– Aonde você pensa que vai?
– Para casa. Para o hotel.
– Na neve? Você vai andar um quilômetro e meio subindo a
montanha na neve?
Eu enfiei as pernas na calça.
– Você acha que eu não consigo?
– Não é isso, pelo amor de Deus. – Ele passou as mãos pelo
cabelo, frustrado. – Tudo para você é competição?
Peguei um dos gorros dele no armário de casacos – e um casaco
– e o enfiei na cabeça com tanta força que cobriu metade do meu
rosto. Empurrei o gorro para cima com irritação.
– Sim. Não. Não sei. Cala a boca.
Ele mordeu o lábio inferior, tentando não rir.
– O quê? – perguntei. Ele não respondeu. – O quê? – gritei,
batendo o pé.
– Sua calça está do avesso e, quando você puxou o gorro para
cima, seu nariz ficou preso e, eu não devia dizer isso, mas vou
dizer: você ficou parecendo uma porquinha.
Meu queixo caiu.
Ele sorriu.
– E eu acho você uma idiota por fugir na neve só para provar que
tem razão. Porque isso é bosta de cavalo.
– Bosta de cavalo? – repeti.
– Bosta de cavalo – concordou ele, sorrindo largamente. – Bosta
de cavalo você deixar uma coisa como seu passado te impedir de
passar a manhã comigo. A gente podia colocar sapatos de neve e
caminhar na floresta. Ou eu poderia foder você loucamente na
banheira. Tanto faz. São duas ótimas opções. É com você. Mas não
vá embora só porque não quer falar sobre seu passado. Isso é
besteira. Nós somos adultos. – Ele se virou para voltar para a
cozinha, mas parou e olhou para trás. – E, acredite, eu sei que você
não é nem um pouco como a minha esposa. Mas você é maluca de
achar que ela era perfeita. Ela era impaciente e não prestava
atenção aos detalhes, era famosa por deixar sujeira e bagunça e
não arrumar e, mais do que tudo, era um saco às vezes. – Ele
inclinou a cabeça para o lado. – Ah, vocês duas têm uma coisa em
comum. – Ele foi até a pia e começou a lavar a louça, assobiando
enquanto trabalhava. Não olhou para trás, não disse mais nada, só
fez o que tinha ido fazer.
E isso me deixou furiosa.
– Escute, senhor intrometido em tudo, não é porque você está
pronto para falar do meu passado que eu também estou pronta,
combinado? E isso não me torna bosta de cavalo.
– Eu não disse que você era bosta de cavalo – corrigiu ele,
apontando para mim com uma escova e fazendo um gesto amplo. –
Eu disse que isso era bosta de cavalo. – Ele se virou para a louça. –
Você não pode deixar o passado te definir, Clara.
– Diz o homem que ainda está de aliança – murmurei.
Ele enrijeceu as costas e virou a cabeça. Eu me mantive firme. Se
ele podia me cutucar, eu podia cutucar de volta.
Entretanto, enquanto eu o olhava e esperava que explodisse, que
gritasse comigo, dissesse que eu estava errada, que aquela era a
sua vaca sagrada e que eu não tinha nada que tocar nesse assunto
com ele… aconteceu o oposto. Ele relaxou as costas, balançou a
cabeça e voltou a lavar a louça. Um momento depois, falou:
– É justo. Não vou forçar a barra. – Mas então ele olhou por cima
do ombro para mim. – Hoje. Mas vou voltar a falar, e em breve. –
Archie voltou a cuidar dos pratos, calmo e tranquilo e controlado. –
Mas você não precisa ir embora.
Eu refleti. Realmente parecia frio lá fora. E a neve estava bem
alta. E, sendo uma neve tardia, estava úmida e pesada; seria bem
difícil andar por ela. Montanha acima, como ele falou.
Olhei na direção da cozinha. Ele estava fazendo mais café, e o
cheiro estava divino. O filho da puta estava assobiando “Stay”, da
trilha sonora de Dirty Dancing. Uma caminhada com sapatos de
neve parecia legal. A foda na banheira parecia melhor ainda. A
pergunta era: conseguiríamos passar o dia todo sem falar sobre as
coisas que eu não estava pronta para verbalizar? Ele disse que não
forçaria a barra, mas seria verdade?
Subir a montanha ou trepar.
Tirei o gorro. Tirei a calça. Andei sem fazer barulho até a cozinha,
peguei um pano e um prato no escorredor e comecei a secar a
louça.
Arrisquei uma olhada para ele, ao meu lado, ainda assobiando.
Seu sorriso estava enorme. Mantive o olhar no prato.
– Então, só para deixar claro, a foda vai acontecer antes da
caminhada.
Ele colocou o prato na pia, colocou o meu prato na pia, me pegou
no colo enfiando as lindas mãos na minha bunda nua e começou a
subir a escada.
– E depois da caminhada.
Archie cumpriu a palavra: ele não forçou a barra. Mas agora havia
algo em torno de nós, uma coisa palpável, uma tensão que não
existia antes. Ou, melhor, a tensão tinha mudado de forma. Antes,
eu estava tentando não me envolver. Agora, estava envolvida e
tentando desesperadamente evitar falar sobre qualquer coisa
importante. Eu ia embora, disso nós dois sabíamos, então por que
jogar na água lamacenta mais detalhes que não vão mudar nada?
E, falando em lama…
A tempestade de neve que caiu durante dois dias deixou o chão
úmido, lamacento, lodoso, nojento. Ou seja, na condição perfeita
para uma corrida Tough Mudder.
Natalie estava com a esperança de que tivéssemos esquecido a
corrida e, mais importante, que ela tinha dito que participaria.
– Tenho certeza que falei que ficaria torcendo da arquibancada –
disse ela quando chegamos ao Mountain House antes das seis na
manhã da corrida.
– Você vai participar, Pinup – murmurou Oscar, pegando o
enorme cooler cheio de bebidas e de lanches e o colocando na
parte de trás do ônibus.
Todos combinaram de deixar os carros no estacionamento do
hotel e seguir juntos, estilo acampamento. Para completar o tema
acampamento, Archie dirigiria um antigo ônibus escolar, pintado de
verde e branco e com o nome do hotel na lateral, que era usado
pelos funcionários havia anos em acampamentos e combinava com
a ambientação do dia: crianças grandes brincando na lama.
Oscar passou as mãos pela calça e puxou Natalie.
– Além do mais, você adora uma imundície.
– Estou imaginando quantas insinuações podem ser inseridas em
um único dia – refletiu Leo, nos chamando pela janela enquanto
puxava Roxie para os fundos do ônibus.
– Falando em inserir – disse Roxie, rindo por cima do ombro dele
quando Leo fez menção de incliná-la sobre o banco.
– Tudo se resume a insinuar! – Logan riu, enquanto Chad se
arrastava com cara de sono até parar do meu lado.
– Estou feliz de você estar aqui, de verdade. Você é um excelente
acréscimo a esse grupo de idiotas, mas todas as aventuras que
você vai planejar vão começar às cinco da madrugada?
– Provavelmente. – Sorri e vi Logan e Archie colocando bolsas
com toalhas dentro do ônibus. Dormir com o gerente de um hotel
era ótimo quando o assunto eram suprimentos. Ele mandara a
cozinha preparar sanduíches e saladas para o passeio e fora ao
setor de arrumação para conseguir material para nos limparmos
depois da corrida. – As manhãs são o melhor horário para coisas
assim, embora o começo seja frio.
Chad tremeu bem na hora, e o empurrei na direção do ônibus,
rindo. Archie desceu os degraus, a expressão animada.
– Cem por cento prontos.
A viagem até Syracuse era de um pouco mais de três horas ao
longo de uma paisagem linda. Quando pegamos a estrada, depois
que todos tomaram um café, as regras naturais das viagens de
carro foram incorporadas e unanimemente aceitas. Petiscos foram
consumidos, canções do Def Leppard foram cantadas – em voz alta
e desafinada, como se esperaria –, e as piadas foram ficando mais
picantes com o passar do dia.
Archie foi dirigindo, eu fui na parte da frente com ele, e os outros
se espalharam. O grupo foi conversando, falando, rindo, foi como eu
imaginava que seria viajar com a família Do-Ré-Mi. A uma hora de
Syracuse, Roxie foi até a frente e se sentou perto de mim.
– Qual vai ser o nível de dificuldade dessa corrida? Seja sincera –
perguntou ela, parecendo meio nervosa.
– É difícil – admiti, pensando em alguns trajetos que tinha feito ao
longo dos anos. – Nem todo mundo consegue, e não por covardia
ou porque desiste, mas porque é uma corrida difícil de completar.
– Ótimo, que ótimo. O Leo vai terminar, e eu vou ficar me
afogando na lama com a Nat.
– Não necessariamente. Tem muitos homens que não terminam.
Caras em forma, super-sarados. As mulheres terminam sempre, e
vários homens ficam jogados na pista. Não estou dizendo que é o
que vai acontecer hoje, mas você não devia entrar supondo que não
vai terminar. Entra supondo que vai, senão é melhor ficar sentada
na torcida comendo cachorro-quente.
– Eu gosto de cachorro-quente – refletiu ela.
– O gosto vai ser melhor se você comer depois, coberta de lama –
falei – e de vitória.
– Você não desiste, não é?
– Não – respondi com sinceridade. Percebi o olhar de Archie em
mim pelo retrovisor.
– A ideia de que vai ter uma salsicha me esperando na linha de
chegada me faz querer mais ainda – disse Roxie, e Archie segurou
uma gargalhada.
– Salsicha é bom – concordei.
– Será que consigo servir salsicha no casamento? – refletiu ela, e
eu afastei o olhar do de Archie.
– No casamento? Mas por quê?
– Exatamente por esse motivo. É a última coisa que você espera
em um casamento, e é por isso que é uma ideia excelente.
– A cabeça da sua sogra vai explodir se você servir cachorro-
quente no seu casamento – eu avisei.
Leo podia ser pé no chão e tranquilo, mas a mãe dele era o
oposto: arrogante e um pouco fria; pelo que eu soube, não tinha
nada a ver com a imagem de calor hippie que era Trudy. Roxie tinha
feito progressos com a mãe de Leo, era verdade, mas ainda havia
uma certa distância. Uma distância que cachorros-quentes não
diminuiriam.
– É possível que isso seja parte do motivo para eu estar
considerando a ideia. Claro que eu serviria cachorros-quentes de
excelente qualidade… Caramba, tem um açougueiro no Hyde Park
que faz salsichas artesanais incríveis, mas eu gosto da ideia de
servir comida assim naquela casa chique.
– Então vai ser mesmo na fazenda? – perguntei.
A fazenda de Leo ficava no terreno do complexo, como eu
gostava de chamar. Ela era uma enorme propriedade antiga à
margem do rio Hudson e, ainda assim, cabia facilmente nas
dezenas de hectares que pertenciam à sua família, que incluíam
uma mansão de pedra no alto de uma colina. Onde Leo fazia
questão de não morar, preferindo uma casa que ele mesmo tinha
construído, do outro lado da propriedade.
– Acho que sim, faz sentido. Nós dois amamos a Fazenda
Maxwell, o celeiro é incrível e, ei, adivinha, vai ser de graça.
– É lindo lá – concordei.
– Mas?
– Não tem mas. É lindo. Vai ser um dia lindo para uma noiva linda
e um noivo lindo e vamos todos comer salsichas lindas. – Senti um
puxão estranho no coração. Claro que eu voltaria para o casamento,
eu fazia parte dele, mas não estaria mais aqui. Dependendo de
quando eles decidissem juntar os trapinhos, eu já teria feito as
malas e descido da montanha, ido para outro hotel, outra
propriedade, outra cidade, talvez até outro país.
Eu estaria envolvida no casamento, tão envolvida quanto
possível, por mensagens de texto e pelo FaceTime e por e-mails e
fazendo de tudo para ser a melhor madrinha. Exceto pelos gritinhos
e estresses e risadas e choros do dia a dia que Natalie
compartilharia com Roxie, porque ela estaria aqui, e eu estaria
longe, sem poder participar completamente.
Participar completamente do casamento?
Porra. Não. Vou falar: sem poder participar completamente dessa
vida, da vida que o universo estava pegando aos punhados e
jogando em cima de mim com um monte de gritos e estresses e
risadas e choros e Archie.
Mas eu não podia participar completamente. Eu tinha a minha
vida, não podia largar tudo e mergulhar naquela. Tinha trabalhado
como uma louca a vida adulta inteira para ser alguém, para
caminhar com minhas próprias pernas e ser boa no que fazia. Não
deixei que nada me impedisse, nem atrapalhasse, nem mudasse
quem eu era. Eu estaria presente ao lado de Roxie, para celebrar
com ela e com Leo a vida que eles escolheram viver juntos. Mas,
em algum momento, voltaria para a minha.
E, de repente, pela primeira vez, não fiquei tão animada com a
perspectiva. E isso era mais perigoso do que tudo.
Engoli em seco e forcei um sorriso.
– Salsichas, então. Vai ter asinha de frango também?
Lama. Lama gelada. Água gelada. Pedaços congelados de grama e
coisas imundas escorrendo pela minha pele e a cobrindo, pesando,
ameaçando me tirar da corrida como a tantos outros. Minhas pernas
estavam pegando fogo, minhas coxas pareciam lava derretida, tudo
queimando, uma exaustão total e trêmula. Mas segui em frente.
A questão de uma corrida como a Tough Mudder é que não
importa se você está sozinha ou com um grupo de amigos: há
desafios que não dá para fazer sem ajuda. O Everest, uma subida
por uma parede curva com uma vala de água embaixo. Não dá para
ultrapassar se não houver alguém no alto esperando para segurar
sua mão e te puxar. E embaixo, se sacrificando na lama e na gosma
para te deixar subir nele, em seus ombros, com os tênis pingando.
Perdemos Oscar no Everest. O mais alto de todos, ele deixou que
nós subíssemos em seu corpo absurdo para ultrapassarmos o
obstáculo. Quando estávamos todos no alto, nós nos viramos para
ajudá-lo, mas ele ficou para trás, já que a fila de pessoas que nos
seguia pediu sua ajuda também. Como sempre foi um jogador de
grupo, ele sorriu mais do que em qualquer outra ocasião, acenou
para nós e continuou ajudando os estranhos.
Perdemos Natalie no Enema Ártico, onde latões de lixo cheios de
água e de cubos de gelo nos esperavam. Ela deu uma olhada nas
pessoas pulando na água e emergindo com frio até os ossos, os
músculos travados, mal conseguindo se mexer, com um grito
silencioso entalado na garganta, e disse: “foda-se essa merda!”, e
foi para o furgão de cerveja. Sempre sábia essa Natalie.
Leo e Roxie ficaram com Archie e comigo até o Fogo no Buraco,
um obstáculo em que você desce por um escorrega de água até um
anel de fogo. Um desafio mental acima de tudo; não dá para pensar
demais, senão você não vai. Coberta de lama e à beira das
lágrimas, Roxie empacou no alto e não conseguiu ir em frente. Leo
ficou com ela. Logan e Chad aproveitaram a oportunidade para
encerrar o dia, pois se deram conta de que, se também ajudassem a
“consolar” Roxie, poderiam vestir roupas secas e tomar chocolate
quente.
Archie e eu avançamos, e ele se dedicou ao máximo. Eu estava
acostumada a fazer essas corridas sozinha, contando com
estranhos para me ajudarem, para me darem a mão quando eu
precisava. Nunca tinha passado por isso com um companheiro, e foi
uma experiência totalmente diferente. Boa… e ruim.
Passei a corrida toda olhando para trás para ver se ele estava
bem. O que era ridículo, porque a força e a disposição atlética
daquele homem eram incríveis. Ele não precisava de ninguém o
verificando. Mas senti que precisava ficar de vigia, ter certeza, e isso
me tirou completamente da minha zona de conforto. Precisei me
dedicar mais naquela corrida, ir mais rápido, forçar mais do que em
qualquer outra ocasião anterior. E, mentalmente, eu estava exausta.
Dá para imaginar como é difícil deixar alguém ajudar quando você
passou a vida toda cuidando para que as pessoas soubessem que
você não precisa delas? Estranhos podiam me ajudar, era parte do
jogo. Mas Archie tentar me ajudar? Fiquei absurdamente irritada, e
que tipo de pessoa fica com raiva do namorado por ajudar?
O tipo que preferiria descer em um escorrega de água até um aro
de fogo a admitir que tinha chamado alguém de namorado.
Não senti o toque da chama beijando minha pele quando desci
pelo escorrega cheio de lama. Não senti a água gelada espirrando
em mim, enchendo meus olhos com lama e gosma. Não senti as
pedras ferindo meus joelhos, nem o plástico arranhando meus
cotovelos, mas claro que senti a mão dele na minha, perguntando
se eu estava bem e se queria terminar a prova.
Se eu queria terminar?
Olhei para o rosto doce de Archie, coberto com a mesma lama, e
fiz expressão de raiva.
– Claro que quero! – me ouvi gritar e saí correndo. Fingi não notar
o rosto magoado, as sardas que eu tanto amava agora
indistinguíveis da sujeira que pontilhava seu rosto, o nosso, desde o
começo da corrida de resistência.
Corri mais rápido, me desloquei com mais velocidade, pulei nas
poças e conquistei colinas. Divisei obstáculos e avaliei rapidamente
qual era o melhor caminho, sem nunca contorná-los, porque quem
contornava era fraco. Comemorei com estranhos, vi-os travarem
suas lutas pessoais e se superarem. E, quando Archie me ofereceu
a mão para passar pelo último obstáculo, o Muro, eu desviei o olhar,
fingi não ter visto e me segurei em outra pessoa que estava no alto
ajudando todo mundo, como Oscar tinha feito no começo da corrida.
Quando eu digo que fingi não ver a mão dele, eu quero dizer que
fingi no sentido mais generoso da palavra. Porque não havia
ninguém no muro que não tenha visto exatamente o que eu fiz.
Quando tive a chance de dar a mão para alguém que me amava, eu
preferi deliberadamente a mão de alguém que eu provavelmente
nunca mais veria.
Novamente, o que isso diz sobre mim?
Pulei do Muro, agora a cinquenta metros da linha de chegada.
Havia um grupo reunido lá, formado por todas as pessoas que já
tinham terminado, todas as que tinham deixado a corrida cedo, mas
ainda estavam delirantes de animação e de orgulho por terem
completado alguma parte do percurso, e por aqueles que tinham ido
torcer por pessoas queridas.
Dei uma última olhada por cima do ombro, quase sem pretender;
já tinha se tornado algo natural. E ali estava ele. Archie. Correndo
tão rápido quanto eu, mas me deixando ir na frente. Ele não parecia
magoado, apesar de estar com um galo feio se formando na testa
por causa de uma queda de uma ponte de cordas. Não parecia
cansado, apesar de as linhas na testa, que existiam quando eu o
conheci e que pareciam ter sumido recentemente, terem voltado e
estarem mais fundas a cada segundo, com a camada de lama e
sujeira.
Se eu fosse adulta, pegaria a mão dele agora, reconheceria que
fizemos aquilo juntos e que agora tínhamos uma conquista tangível
e incrível, e atravessaria a linha de chegada com ele.
Se eu fosse uma criança teimosa e chata, viraria para a frente,
correria como louca e chegaria antes dele na linha de chegada,
depois me viraria e fingiria que não tinha fingido e esperaria que ele
acreditasse, que me abraçasse e que fôssemos continuar trepando,
mas sem sentimentos.
Eu queria correr. Meu Deus, eu queria correr. E foi por isso que eu
soube que era a coisa errada a fazer.
Eu estiquei a mão para trás, segurei a dele e cruzamos a linha de
chegada juntos.
O sol estava brilhando. Mas seu brilho não era nada em
comparação ao sorriso de orelha a orelha na cara dele quando
segurei sua mão. E não pude conter um sorriso.
Terminamos com ímpeto, suas pernas compridas e minhas pernas
curtas no mesmo ritmo conforme íamos rumo ao limite, a adrenalina
ao máximo quando passamos debaixo do arco.
– Isso foi incrível! – gritou Archie, me puxando enquanto nos
misturávamos à multidão de outros corredores. – Incrível!
Eufórica, eu ri com ele e senti nossos corpos grudentos e suados
se espremerem um no outro, feliz por termos terminado, feliz por ter
esticado a mão para ele, feliz por ter dado aquele pequeno passo
que, embora parecesse simples, era impossivelmente difícil para
mim. Sorri para ele, estiquei a mão e ajeitei seu cabelo
desgrenhado.
Ele me olhou sorrindo, com uma satisfação profunda e pura e
evidente na expressão.
– Você não está feliz de ter vindo? – perguntei, ofegando por
causa da exaustão, mas sentindo a euforia maluca que me acometia
quando forçava meu corpo a ir além do que achava que era
possível.
Ele assentiu, e alguém abriu uma garrafa de champanhe e jogou
em cima de nós, fedida e nojenta e incrível.
– Eu te amo.
Gelei. Ele sentiu. O mundo desapareceu. Tudo desapareceu.
Éramos eu e Archie parados em um vácuo de ruído branco e de
estática. Meu coração parou, meus pulmões pararam e fiquei ciente
de que o sorriso no meu rosto começou a parecer de mentira.
No entanto, antes que eu pudesse reagir, antes que pudesse
pensar em como reagir, o mundo desabou em cima de nós.
– Seus filhos da puta imundos! Eu sabia que vocês iam terminar!
Natalie, que veio correndo e se chocou em nós, me pegou no colo
e me parabenizou por ser a babaca mais durona que ela conhecia.
É. Eu era mesmo.

***
Mais uma vez, eu estava voltando para casa com Archie, evitando
encará-lo ou falar sobre qualquer coisa significativa, a não ser o
quanto todo mundo tinha ido bem na prova. Tínhamos ficado lá um
tempo, comemorando com os outros participantes, tomando umas
cervejas, apreciando alguns cachorros-quentes depois de tanto
falarmos de salsicha. Leo se ofereceu para dirigir na volta, para que
Archie pudesse tomar umas cervejas, e isso tornou mais difícil
manter outras pessoas nas nossas conversas, tornou mais difícil
impedir uma conversa real, na qual eu ficaria perdida, sem saber
como agir.
Ninguém na minha vida tinha me dito que me amava. E eu não
sabia como interpretar. Roxie e Natalie me amavam, claro.
Tecnicamente, elas me disseram, mas normalmente nas linhas do
“eu te amo, mas você não pode ir com essa calça”, ou “eu te amo,
mas para de roubar toda a pipoca”, ou “eu te amo, mas Henry Cavill
não é o homem mais sexy do mundo, ponto-final”. Deixando de lado
essas brincadeiras, ninguém nunca tinha olhado nos meus olhos,
enfiado as mãos no meu peito para segurar meu coração e dito “eu
te amo”.
O que acontece depois? Conheço a versão dos livros de
romance. Eu digo a mesma coisa para ele, há mais dois ou três
parágrafos melosos, e fim. Conheço a versão da comédia
romântica, normalmente com uma Julia ou uma Sandra no papel
principal. A música, muitas vezes uma canção escrita especialmente
para o filme, aumenta de volume, há risadas seguidas de beijos, e
muitas vezes o problema que as duas pessoas estão enfrentando
há noventa minutos some porque o amor supera todos os
sentimentos, blá-blá-blá.
O que você faz quando ouve essas palavras pela primeira vez e
seu primeiro instinto é vomitar? É por isso que heroínas de romance
nunca eram ferradas da cabeça como eu, porque, meu Deus, que
história horrível seria.
O essencial era que eu estava morrendo de medo de descer do
ônibus quando chegássemos ao Mountain House porque ficaria
sozinha com Archie, e ele não deixaria isso passar em branco. Evitei
Archie durante todo o caminho de volta, sentada com minhas
garotas ou com todo mundo em um grupo grande, tomando cerveja
do barril que Oscar tinha atenciosamente providenciado-os,
passando copos descartáveis para os outros e parabenizando pela
conquista. Mas agora a atmosfera estava ficando mais tranquila.
Todos se juntando em pares, cochilando ou jogando no celular, e a
interferência inconsciente dos nossos amigos estava
desaparecendo. Ali vem ele e se senta à minha frente no fundo do
ônibus; sozinhos, enfim.
Ele falaria comigo sobre o que tinha dito? Eu precisaria dizer para
ele a mesma coisa? Conseguiria dizer a mesma coisa?
– Ei, Clara, para de ficar tão tensa. Não precisa falar nada, tá?
Opa. O quê?
Eu pisquei e olhei para Archie, que exibia um sorriso pesaroso.
– Como você fez isso? – perguntei, com os olhos arregalados e
mais do que um pouco apavorada. Eu estava surtando?
– Não é difícil saber o que está acontecendo aí dentro – disse ele,
batendo na minha têmpora. – Só não vai ficar surtada demais, tá?
– Tá? – gemi. – Não consigo, sabe, quer dizer… eu…
Ele deu de ombros.
– Eu disse o que precisava dizer. Você pode não dizer nada. Por
enquanto. Está bem?
Eu balancei a cabeça.
– Não entendi. Qual é a pegadinha?
– Bobinha – murmurou ele, mudando de banco e se sentando ao
meu lado. – Não tem pegadinha. Só resolva o que estiver
acontecendo aí dentro e depois a gente conversa.
Eu não merecia aquele cara. De verdade, eu não merecia alguém
tão compreensivo. E, pensando bem, como ele podia me entender
tão bem quando, pela primeira vez, nem eu me entendia?
Capítulo 20

O e-mail com o cabeçalho da empresa chegou às quatro e trinta e


sete da tarde de uma sexta. “Felizes em anunciar blá-blá-blá fusão
com o The Empire Group blá-blá-blá levar a indústria em blá-blá-blá
uma parceria por tempos blá-blá-blá algumas posições de nível
sênior foram mescladas blá-blá-blá…”
Só um minuto. Quais posições de nível sênior? Com o coração na
garganta, passei rapidamente os olhos pelo resto do e-mail
procurando as informações que me diriam se Barbara tinha ou não
sido…
Meu telefone tocou. O nome dela surgiu no visor.
– Não – eu disse como cumprimento.
– Sim – respondeu ela, com um suspiro choroso.
– Como assim? – Eu me sentei com força numa cadeira próxima,
sem ligar por estar no meio do saguão nem para o fato de que
alguns hóspedes que estavam passando ouviram e ergueram uma
sobrancelha. Eu estava pronta para derrubar aquela montanha se o
que temia fosse mesmo verdade. – Não podem fazer isso! Como
alguém pode ter achado que logo você é substituível?
– Já está feito, garota. Tecnicamente, não fui demitida, minha
função foi eliminada, e eu tive que escolher entre descer um degrau
com um decréscimo significativo de salário ou aceitar a rescisão de
contrato e seguir a vida.
– Que ótimas opções.
– Foi o que eu falei logo antes de aceitar a rescisão de contrato e
mandá-los tomar naquele lugar.
– Você não fez isso – respondi, nem um pouco chocada.
– Claro que fiz – retorquiu ela. – Eu ajudei a construir essa
empresa, trouxe metade dos clientes e mais da metade dos
funcionários. A verdade é que eu estava pensando em me
aposentar em alguns anos, mas fico louca da vida de não estar
saindo nos meus próprios termos.
– Bem, se você os mandou tomar naquele lugar, de certa forma
está, não é?
Ela deu uma risada.
– Então…
– Então o que isso quer dizer para você? – perguntou ela,
sabendo aonde eu queria chegar.
– É terrível que essa seja minha próxima pergunta? – Fiz uma
careta.
– Não, é exatamente o que eu perguntaria. Na verdade, foi o que
perguntei assim que superei o choque da proposta. Todas as
posições estão congeladas agora, os aumentos de salários estão
congelados…
– As promoções estão congeladas? – interrompi.
– Você adivinhou. Em breve, você deve receber um e-mail
explicando a quem vai se reportar depois que eu sair, o que vai
acontecer em duas semanas.
– Duas semanas – sussurrei. – Nem sei o que dizer.
– Bem, por enquanto não diga nada, só escute. Você tem que
aparecer no escritório na segunda-feira para conhecer seu novo
chefe. Ele vai chamar todas as equipes de campo, exceto quem
está em outros países. Ele quer conhecer todo mundo
pessoalmente. E vou avisando, ele é um tremendo idiota.
– Que ótimo – eu disse, apoiando a cabeça na mão. – Mas que
ótimo.
– Você vai ficar bem – respondeu ela. – Você é ótima na sua
função, sempre fez trabalhos incríveis e suas referências são
impecáveis. Só não bote fogo no Bryant Mountain House nem faça
nada que a envergonhe, e tudo vai ficar bem.
– Aham – falei, sem querer comentar diretamente a parte da
vergonha. – Mas, Barbara, o que você vai fazer?
– Quem é que sabe, garota? Estou trabalhando desde os quinze
anos. Pode ser legal tomar um tempo para decidir. Ei, talvez eu faça
uma hortinha, como todo mundo sempre fala.
– Você deveria vir pra cá, vamos instalar uma hortinha perto da
cozinha, para que os chefs tenham acesso a ervas frescas o ano
inteiro. Lembra da minha amiga Roxie, que é chef? O namorado
dela, bem, noivo agora, tem uma das maiores fazendas orgânicas
da Costa Leste, e ela fica a uns quinze quilômetros daqui. Eles vão
nos ajudar a refazer os jardins. Além dos maravilhosos canteiros de
flores que já existem, vão pegar um terreno abandonado depois do
campo de croquet para plantar todo tipo de coisa. Foi o Archie quem
sugeriu, na verdade, ele adora a ideia de aproximar o Mountain
House do que ele originalmente era. Claro que quer tudo feito dentro
do orçamento, mas, nossa, você devia ter visto a cara dele quando
o Oscar, o produtor de laticínios da cidade, que está namorando
minha amiga Natalie, você se lembra da Natalie, bem, quando ele
trouxe as vacas e elas começaram a correr para o lago, e o Archie
quase rasgou a calça correndo atrás delas e… – Eu parei quando
me dei conta de que estava tagarelando.
– Olha só você! – disse ela, maravilhada.
Era hora de encerrar.
– Bem, como você vai ter um tempo de folga, sua desempregada,
você devia vir para relaxar um pouco. Pra um fazendeiro lindo te
ensinar como se planta manjericão.
– Vou pensar nisso – refletiu ela, mas seu tom me disse que ela já
tinha parado de pensar no problema dela e estava imaginando o
que eu estava fazendo.
– Já que vou ter que ir aí na segunda, você vai ter tempo para um
almoço? Se eu for despedida também, podemos pagar martínis uma
para a outra.
– Você não vai ser demitida. Mas não vou recusar um martíni,
nem o almoço. Eu adoraria ver você, garota, vamos conversar. E,
lembre-se, fique firme com esse cara e deixe que seu trabalho fale
por si.
– Aham. – Eu assenti. Era a cara de Barbara me dar conselhos
durante a ligação que teve que fazer para contar que tinha perdido o
emprego. – Sinto muito por tudo isso.
Ela bufou novamente, disse um tchau e desligou.
Deixei o celular de lado, afundei na cadeira e olhei para o janelão
que dava para o lago. Acabei ficando lá por três horas, vendo o sol
se deslocar pelo céu e se pôr atrás das montanhas. Só quando o
salão ficou escuro e as lâmpadas se acenderam foi que me levantei
e voltei para o meu quarto.

Recebi uma mensagem de texto de Archie por volta das oito e meia.
Eu queria encontrá-lo no telhado? Eu estava enrolando havia horas
e precisava de alguma coisa para me animar. Uns amassos lá no
alto seriam a coisa certa para me ajudar a dormir à noite.
Corri para a escadaria, sorrindo para mim mesma quando vi que a
porta já estava aberta, a forma de ele me mostrar que estava lá em
cima. Subi a escada rapidamente, de repente não querendo outra
coisa além de entrar em seus braços e me aconchegar no peito.
Quando foi que fiquei tão melosa?
Agora mesmo, ao me dar conta de que há benefícios em não
passar todas as noites sozinha, principalmente uma noite em que
você recebe uma notícia ruim.
– Oi – disse ele depois que empurrei a porta e pisei no telhado.
– Oi. – Eu suspirei, tantas emoções surgindo em mim ao vê-lo:
alívio, gratidão, satisfação, misturados com pura luxúria.
O Archie do fim do dia – com a gravata frouxa, sem o paletó e, oi,
o que é isso, mangas dobradas? – era meu Archie favorito. Era bem
diferente do Chefão Abotoadinho que conheci quando cheguei.
Atravessei o telhado até ele, e uma brisa leve soprou a barra da
minha saia. Tinha sido o primeiro dia quente do ano, e o telhado
ainda retinha um pouco do calor. O ar estava quente, leve e
reconfortante, e, quando cheguei perto, fui com ansiedade para seu
abraço.
– Parece que não vi você o dia todo. – Ele suspirou no meu
cabelo.
– Eu andei meio escondida – admiti, adorando a sensação das
suas mãos na minha lombar.
– Ah, cara, isso nunca é uma coisa boa. – Ele riu e deu um passo
para trás para se apoiar na amurada. Puxou-me entre as pernas e
me posicionou para poder me olhar nos olhos. – O que houve,
Mandona?
Pensei se devia contar para ele. Para quê? Ele não poderia fazer
nada. Mas eu queria contar, queria participar desse ritual de fim de
dia chamado “como foi seu dia, querida”, estar dentro desse ritual
pela primeira vez.
– Bem, falei com a Barbara hoje à tarde.
– Quem é Barbara?
– Sério? – perguntei, franzindo o nariz.
– Nunca ouvi você falar dela.
– Isso não parece possível – comentei, pensando em todas as
conversas que tivemos. Eu não falei dela?
– Você não gosta muito do que chamamos de compartilhar. – Ele
riu e segurou minhas mãos entre nós. – Quem é Barbara?
– Ah – respondi, ainda surpresa de nunca ter falado dela. – Ela é
minha chefe.
– Entendi. Barbara, a chefe.
– Mas ela é mais do que isso. Ela me contratou, me ensinou tudo
o que eu sei, basicamente me treinou e criou essa maravilhosa
hoteleira mandona que você está vendo hoje.
– Então é a ela que eu teria que agradecer por essa humildade
incrível?
– Você teria que ser rápido, porque ela acabou de me contar que
vai sair. Várias pessoas vão sair. Já ouviu falar do The Empire
Group?
Contei tudo para ele. Quem Barbara era, o que ela significava
para mim, como tinha me botado no caminho em que eu estava
hoje. E contei tudo sobre o The Empire Group, a fusão e o que
poderia significar para mim.
– Então você sabe alguns detalhes, mas não todos, é isso? –
perguntou ele quando terminei.
– É, não sei muito. Mas sei o suficiente pra ficar nervosa com o
que isso pode significar para mim e para o meu emprego. Minha
chance de sociedade praticamente acabou, isso é certo.
– Bem, acho que você não devia se preocupar enquanto não
souber todos os detalhes.
– Não devia me preocupar? – perguntei.
Ele balançou a cabeça.
– Eu nunca vi sentido em me preocupar se não houver motivo.
Pode acabar sendo melhor, você não tem como saber.
– Mas a Barbara foi praticamente chutada pra fora – eu disse, a
testa franzida.
– Isso é terrível, claro, mas você mesma disse que ela está
ansiosa para plantar ervas.
– Essa não é a questão, Archie.
Ele juntou minhas mãos, levou até a boca e as beijou.
– Só estou dizendo que é pra gente se preocupar com isso
quando a hora chegar.
– Essa hora é agora. Eu tenho que ir a Boston na segunda para
conhecer meu chefe novo.
– Perfeito, você vai ter a chance de mostrar a ele como é
fantástica. Eu mesmo vou dizer; como o cliente para quem você
está trabalhando, posso testemunhar como você é incrível. – Ele
virou minhas mãos e deixou beijos no centro das palmas. – Quando
digo incrível, é incrível mesmo.
Ele estava brincando, mas a ideia de ele falar com meu novo
chefe, possivelmente contar sobre o que andamos fazendo aqui
além de trabalhar… provocou um arrepio em mim.
Archie reparou e me tomou nos braços.
– Não se preocupe, Mandona. Prometo que vai dar tudo certo.
– Mas você não sabe – eu disse para o ombro dele.
– Se eu fosse você, não passaria mais tempo pensando nisso
enquanto não souber mais.
Eu insisti:
– Mas e se…
– E se marcianos aparecerem amanhã, Clara, e decidirem
explodir a gente? Como você se sentiria se isso acontecesse e você
passasse a sua última noite no planeta se preocupando com uma
coisa sobre a qual não tinha controle, em vez de passá-la comigo,
me deixando fazer coisas com você.
Eu sorri contra minha vontade.
– Deixando você fazer coisas comigo?
– Preferivelmente, coisas em que estivéssemos bem mais
pelados. Mas não sou fresco, aposto que poderia fazer maravilhas
mesmo com você ainda de saia – disse ele com seriedade,
deslizando uma das mãos pela minha perna e escorregando-a para
baixo da minha saia.
– Ah, senhor Bryant. – Eu suspirei, tentando relaxar, tentando não
me preocupar, como ele tinha pedido.
Admito que foi mais fácil relaxar quando ele botou a boca em mim
debaixo do céu noturno.
Mas eu não parei de me preocupar de verdade.
Capítulo 21

– Clara Morgan? É um prazer conhecê-la. Sou Dick Stevee.


Dick Stevee. Melhor nome do mundo.
– É um prazer, senhor Stevee – respondi, apertando sua mão e
entrando na sala de reuniões. – Como estão as coisas para o
senhor até agora?
A equipe de gerência tinha assumido duas das nossas salas de
reunião enquanto fazia a “transição” para o novo arranjo. Dick
Stevee, meu novo supervisor, estava se reunindo com todas as
equipes de campo para avaliar, ajustar e fazer as mudanças que
achasse necessárias em relação à forma como executávamos
nossas operações.
Até o momento, o que eu sabia sobre Dick era o seguinte: ele era
eficiente, inteligente e tomava decisões em frações de segundos,
não apenas sobre políticas da empresa, mas sobre pessoas. O tipo
de cara que, quando gostava de você, você o via como líder, mas,
se não, você o via como um…
– Pode me chamar de Dick – disse ele, indicando a cadeira do
outro lado da mesa. – As coisas estão acontecendo rápido, Clara, e
por isso era tão importante que eu me encontrasse hoje com você.
Eu não falei para ele me chamar de Clara, mas…
– É que andei revisando seus arquivos, andei revisando os
arquivos de todos os funcionários, e tenho que dizer que são muito
impressionantes.
– Bem, obrigada, eu tento e…
– Mas você demora demais.
Eu engoli em seco.
– Como?
– Você demora demais. Todos vocês. Algumas das mudanças que
vocês fizeram nos lugares e os resultados que alcançaram são
incríveis. Ninguém está negando isso.
– E? – perguntei.
– Mas temos que começar a alcançar esses resultados em
metade do tempo.
– Impossível – eu falei sem nem hesitar.
– Interessante você ter dito isso, Clara, porque algumas outras
pessoas na mesma posição que você disseram que não haveria
problema.
– Meus colegas fazem um bom trabalho, ótimo, na verdade, mas
ninguém tem o histórico que eu tenho. Minha taxa de sucesso é
impecável, os retornos dos investimentos dos meus clientes são
abundantes em todos os casos, e todos eles me contratariam de
novo.
– Mas você demora mais em cada projeto do que qualquer outra
pessoa da firma.
– Alguns diriam que é exatamente por isso que eu tenho a taxa de
sucesso que tenho. Eu trabalho sem me apressar. – Eu me mantive
firme. Não tinha problema em ser simpática com o chefe novo, mas
conhecia caras assim e, se eles farejassem fraqueza, qualquer
fraqueza, era o fim.
– Veja o… Qual é o nome… – Ele mexeu nos papéis. – Bigelow
Mountain House?
– Bryant Mountain House – corrigi, e ele me olhou por cima dos
óculos.
– Sim, o Bryant Mountain House. De acordo com seu plano inicial,
você vai passar a maior parte da primavera lá, mas, com base nas
suas projeções, você deve estar praticamente acabando agora. –
Ele empurrou o papel para mim.
– Praticamente acabando e acabado são coisas diferentes – eu
disse, sem olhar para o papel. Eu sabia o que tinha dito, eu mesma
fiz o plano. – Essa é uma propriedade única, com preocupações
únicas. Aceitaram mais mudanças do que eu previa inicialmente,
mudanças importantes. Abandoná-los agora seria exatamente isso,
um abandono.
– Mas você voltaria para verificar o progresso, certo?
– Claro. Depois que a fase inicial estiver completa. Ainda estamos
a semanas disso, sem mencionar que estão entrando na época
mais movimentada do ano.
– Uma semana.
– Como é? – Balancei a cabeça sem entender.
– Uma semana, Clara, você tem uma semana para terminar o
projeto Bigelow.
– Bryant Mountain House. Mas, senhor, com todo o respeito, isso
simplesmente não é possível.
Ele me olhou com atenção.
– Conversei com outros três funcionários hoje que têm o mesmo
cargo que você. Nenhum deles produz resultados parecidos com os
seus. Todos dizem que podem terminar os projetos mais cedo. Não
tenho dúvida de que o que você está fazendo lá é incrível, mas
agora é hora de eficiência. A Barbara falou sobre o congelamento
de contratações? Sobre o congelamentos de promoções?
– Falou, Dick – eu disse friamente, grudando os olhos nos dele,
sem ousar afastar o olhar.
– Sei que ela tinha falado com você sobre uma promoção que a
tornaria sócia. Sei que você provavelmente é a única pessoa da
equipe agora que é remotamente qualificada para uma posição
dessas, mas também sei que, no momento, não precisamos de uma
nova sócia. No entanto, no ano que vem, depois que as coisas
tiverem se ajeitado – ele fechou a pasta –, certamente haverá uma
abertura no The Empire Group. Desde que o funcionário prove ser
capaz de jogar em equipe. De abraçar as mudanças que estamos
pedindo a todos. De se sacrificar agora e ser recompensado mais
para a frente.
Não falei nada. Não consegui falar nada.
– Uma semana, Clara. E quero que você entre no leilão do serviço
do Oakmont, e espero que consiga. Podemos conversar sobre os
detalhes depois.
Ele se levantou da cadeira e apertou minha mão com força.
– Foi um prazer conhecer você e bem-vinda ao The Empire
Group.
Filho da puta.

Minha mente não parou de girar no caminho até Bailey Falls. Mas
meu estômago começou a embrulhar quando entrei na I-90 Oeste.
Já não estava me sentindo muito bem durante a reunião com Dick
Stevee, piorei um pouco quando estava no estacionamento no
centro de Boston, e, quando entrei na rodovia, só queria chegar a
Bailey Falls antes que o inferno explodisse.
Aparentemente, a sorte não estava do meu lado. O inferno
explodiu no banheiro feminino de uma parada entre Ludlow e
Chicopee: vomitei tudo nos meus sapatos. Vomitei com tanto
estardalhaço que, quando saí do banheiro, uma velhinha com
expressão de solidariedade me deu uma garrafa de água, que
aceitei com gratidão. Fazia muito tempo que eu não tinha gripe, e
por um breve e apavorante momento meu cérebro surtou com a
ideia de que eu estava grávida e que a vida que eu conhecia
mudaria para sempre. Eu estava na metade do corredor de produtos
femininos, a caminho de fazer xixi num palitinho, quando meu
cérebro voltou com a notícia de que eu tinha ficado menstruada dois
dias antes e ainda estava apreciando o milagre da feminilidade
adulta, então não era isso.
Por sorte, eu estava na metade do corredor, então só precisei dar
mais uns vinte passos para chegar ao banheiro antes que outra
rodada de exposição do café da manhã acontecesse.
Eu estava pegando fogo e morrendo de frio, estava tremendo,
mas minhas costas pareciam travadas, e minhas mãos estavam
secas, enquanto meus cotovelos… de alguma forma, meus
cotovelos estavam impossivelmente suados. Mas, se eu estava
morrendo, isso não ia acontecer em um banheiro no Stuckey’s, de
jeito nenhum. Joguei um pouco de água no rosto, cambaleei até a
loja, comprei um Gatorade e um frasco de antiácido, entrei no
conversível vermelho idiota que eu tive que alugar muitas semanas
antes e virei o carro na direção de Bailey Falls.
Levei mais três horas para percorrer o que deveria ter levado
noventa minutos. Tive que parar mais duas vezes para vomitar e,
quando vi os telhados de pedra do Bryant Mountain House, tive
certeza de que estava com uma febre alta o suficiente para
preocupar as legiões de duendes que tinham invadido meu carro.
Deixei as chaves na ignição e assenti fracamente para o
manobrista, dei três passos para dentro do saguão e percebi que
não precisava ir mais longe, o sofá à esquerda da recepção era um
lugar lindo para cochilar se eu só pudesse encostar a cabeça por
um…

Contaram para mim que caí de cara em um divã de cem anos. Não
daria para inventar esse tipo de coisa, sinceramente, e foi lá que
Beverly, da recepção, me encontrou antes mesmo dos meus
sapatos terem caído dos meus pés. Beverly chamou Jonathan, que
chamou Archie, que me levou para o meu quarto como o príncipe
encantado enquanto eu gemia e resmungava loucamente sobre
conversíveis vermelhos e um chefe chamado Dick.
O Bryant Mountain House é como o Barco do amor. E, assim
como o Barco do amor, tem um médico residente. Mais ou menos.
Lá tem o dr. Carlisle, um clínico geral aposentado que vai ao hotel
todas as tardes para jogar pinochle e roubar biscoitos quando acha
que ninguém está olhando. Ele estava lá, no meio do seu pinochle,
quando caí de cara, e seguiu Archie, que me carregava
desacordada no colo até meu quarto, para ver se estava tudo bem.
Não me lembro de muita coisa da conversa, mas, quando o médico
soube que eu tinha vomitado por umas quatro horas, e outras coisas
que não mencionaremos aqui, e depois me ouviu vomitando no
banheiro, declarou que eu tinha uma severa infecção estomacal,
recomendou descanso e líquidos, um balde a uma distância
pequena da cama e que eu deixasse meu corpo se curar sozinho.
Só para deixar registrado, vomitar na frente de qualquer pessoa é
constrangedor. Vomitar na frente do seu mais ou menos namorado
enquanto ele segura o balde galantemente e sussurra palavras
tranquilizadoras e de encorajamento é um novo tipo de inferno.
Archie não queria ir embora. Recusou-se. Ele me botou na cama,
me tirou da cama quando necessário, pediu travesseiros,
cobertores, um aquecedor portátil e um ventilador giratório, três
tipos diferentes de canja de galinha e quatro tipos diferentes de
picolé. E pelo menos um litro de Lysol, o que deu ao quarto um belo
aroma de hospital, mas que, sem dúvida, era melhor do que o cheiro
de vômito.
Eu não conseguia nem pensar em tomar um dedo de caldo de
galinha, e, quando Archie tentou me provocar com um picolé de
cereja, lembro-me vagamente de dizer a ele que enfiasse em um
lugar bem particular – enquanto corria para o banheiro de novo.
Acabei encolhida no ladrilho frio, convencida de que ia morrer e que
a última coisa que eu veria seriam as garrafinhas de xampu
enfileiradas como soldadinhos armando um ataque contra a pilha de
toalhas indefesas.
O delírio no chão do banheiro levou a um episódio confuso em
que fiquei convencida de que Archie estava andando no teto, e tinha
sido enviado pelo próprio Jesus Cristo para entregar a mensagem
de que Marte era adequado para a vida humana desde que Matt
Damon conseguisse fazer as plantas crescerem.
Por volta das três e meia da madrugada, a febre passou, e
lembro-me de um homem com mãos maravilhosamente frescas
prendendo o edredom nos meus ombros e arrumando meu cabelo
suado, e do delicioso peso da mão dele apoiada acima das minhas
pálpebras fechadas. Lembro-me do aroma leve de xarope de
panqueca e de sardas pequenas dançando na frente dos meus
olhos antes de eu cair em um sono ininterrupto e abençoado.
Capítulo 22

Pássaros cantavam. Um jornal fez barulho. Um zumbido baixo e


intermitente começou… Uma melodia do musical South Pacific,
talvez? O que quer que fosse, só piorou o latejar nas minhas
têmporas. Tentei abrir os olhos, mas pareciam uma lixa. Com a mão,
abri uma pálpebra e fiz uma careta por causa do sol que entrava
pela janela fechada. Quando o mundo surgiu, juntei os sons que
tinha ouvido com as imagens que estava vendo agora e comecei a
me dar conta de algumas coisas:

1. Eu tinha sobrevivido. Não morri naquele piso de banheiro


depois de vomitar as patelas.
2. Foi Archie quem cuidou de mim durante todo o tempo em que
eu vomitei e chorei e choraminguei e… Ah, caramba.
3. Eu estava dolorida.
4. Eu estava mal-humorada.
5. Eu estava fedendo.
6. Archie ainda estava lá.

Ah, meu bom Deus, Archie ainda estava lá. Ele viu tudo, esteve
presente em todas as minhas nojeiras, me viu no fundo do poço. Eu
fui nojenta, mas, pior do que isso, fui fraca. E ele viu tudo. Droga.
Gemi e rolei para o lado. Esse movimento fez todos os músculos
do meu corpo, principalmente os da barriga, se contraírem.
Meu gemido alertou Archie, que se virou na cadeira onde estava
lendo o jornal, tomando café e mastigando um pãozinho de canela.
Ele sorriu.
– Como está se sentindo?
– Depende. – Fiz uma careta e me esforcei para me sentar. –
Quando você estacionou um caminhão na minha boca?
– Infelizmente, foi um caso sério de infecção estomacal que fez
isso – disse ele, botando o café de lado rapidamente para ajeitar um
travesseiro atrás de mim.
Olhei em volta. Copos de ginger ale pela metade, pacotes de
biscoitos de água e sal quase cheios, um cesto de lixo agora limpo
ao lado da cama e… flores?
– De onde vieram as tulipas?
– Mandei trazerem, queria que você tivesse uma coisa bonita para
olhar quando finalmente acordasse – disse ele, fazendo carinho no
meu cabelo e o afastando da minha testa.
– Isso foi legal – eu disse, tentando sorrir, mas, puta que pariu, até
meu rosto estava doendo. – Você não devia chegar muito perto.
Estou fedendo.
– Você não está fedendo.
– Bem, meu cabelo deve estar nojento, e, falando sério, você não
precisa fazer isso – eu disse, me afastando um pouco dele. O quarto
parecia quente demais. – Você se importa de abrir a janela, deixar
um pouco de ar fresco entrar?
Ele franziu a testa.
– Eu não faria isso ainda, não é bom você pegar frio. Seu pobre
corpo passou por muita coisa nos últimos dois dias.
– Ah, acho que vou ficar bem.
– Talvez mais tarde – disse ele, encerrando o assunto. – Já está
com fome?
Fiz uma careta.
– Meu Deus, não! Vou passar o resto do ano sem comer.
– Você quase não comeu desde segunda. Precisa recuperar suas
forças. Aqui, por que você não se deita. Vou mandar trazerem canja.
– Ele começou a puxar a coberta por cima de mim e, finalmente, me
dei conta do que ele tinha dito.
– Desde segunda? Espera, que dia é hoje? – perguntei, me
lembrando de repente da reunião em Boston e da minha conversa
com Dick e…
– É quarta, querida, você ficou apagada a maior parte do tempo –
disse ele, tranquilizador, mais uma vez ajeitando meu cabelo.
– Eu fiquei apagada por dois dias? – gritei, empurrando as
cobertas e tentando sair da cama. Só tinham me dado uma semana
para terminar o projeto do hotel, e agora eu tinha menos tempo
ainda. Que pesadelo.
– Clara, volte para a cama. Você precisa descansar. – Ele puxou
delicadamente meu cotovelo, mas eu já estava quase fora da cama
e queria ar fresco. Ugh, e um banho.
– Estou bem, de verdade, vamos abrir aquela janela e arejar um
pouco este quarto – falei, calçando os chinelos e oscilando um
pouco nas pernas que pareciam não ficar de pé havia meses. – Só
vou olhar rapidinho meus e-mails e tomar um banho. Onde está meu
celular?
– Não sei – disse ele, olhando em volta. – Não o vejo desde que
trouxemos você para cá.
– Ah, cara – falei, gemendo e indo rapidamente até a bolsa,
tentando não reparar que minha cabeça ainda estava girando um
pouco. Revirei-a procurando o aparelho. – Droga, não está aqui!
Onde está minha outra bolsa?
– Perto da escrivaninha. Vou buscar para você.
– Pode deixar – eu disse, já a caminho, minha mente tentando
relembrar tudo o que tinha acontecido desde que chegara de
Boston. – Meu celular não tocou esse tempo todo?
– Não ouvi, mas não estava prestando atenção em nada além de
você. Você estava muito mal.
– Desculpa, nem imagino como deve ter sido horrível – eu disse,
olhando para ele da bolsa. – Por favor, me diga que eu não vomitei
em você!
– Ok – disse ele, dando de ombros.
– Ah, Deus, que nojo! – exclamei, tirando tudo da outra bolsa e
não encontrando o celular. – Estou tão constrangida.
– Não há motivo para ficar constrangida. – Ele sorriu e andou até
mim, que agora virava de cabeça para baixo a bolsa e a sacudia. –
A cortina do chuveiro levou a pior.
Onde estava meu celular?
– Aham… Cortina do chuveiro. – Barbara tinha tentado ligar? Dick
tinha tentado ligar? Meu Deus, e se ligaram para o hotel e deixaram
escapar que eu teria que ir embora em poucos dias? – Espera, que
cortina do chuveiro?
– Você não lembra? – Archie sorriu e esticou a mão para
massagear meu ombro. – Você ficou dizendo que estava bem, que
não ia mais vomitar, mas saiu correndo para o banheiro e não
conseguiu chegar a tempo.
Agora que ele estava falando…
– Archie, falando sério, estou com uma dívida enorme com você.
Não consigo acreditar que você ficou aqui durante tudo isso. Eu
podia ter me virado, e você não teria que ver aquilo tudo. Bem, acho
que agora não sobrou mistério nenhum.
– Você não tem dívida nenhuma comigo e estava precisando de
mim, por isso fiquei.
– Não estou dizendo que não agradeço, mas, minha nossa, eu
não esperaria que ninguém ficasse ao meu lado durante uma coisa
dessas, eu não teria pedido nem à Roxie para ficar. – Tentei pensar
nas lembranças confusas do trajeto na segunda. Eu me lembrava de
ter usado o telefone no carro e deixado um recado para Barbara. O
celular ainda estaria no carro?
Vi meus tênis no canto, mas, antes que pudesse pegá-los para ir
ao estacionamento, reparei que Archie estava um pouco quieto
demais.
– O que foi? – perguntei.
– Você não precisava me pedir para ficar, Clara. É óbvio que eu
ficaria. Onde você acha que eu estaria com você doente? – Ele
parecia meio intrigado, quase magoado.
– Desculpe. Não foi isso o que eu quis dizer, eu só… Foi muito
legal da sua parte cuidar de mim até eu ficar bem, e agora eu estou.
Estou bem melhor. Pode voltar ao trabalho. – Eu me sentei em uma
cadeira de canto e comecei a amarrar os tênis, ignorando a dor de
cabeça lancinante atrás dos meus olhos.
– Relacionamentos não são só diversão, Mandona. Às vezes,
quando metade do casal está mal, a outra parte a ajuda a se
levantar, sabia? – Ergui o olhar do cadarço, e ele estava ali, olhando
com carinho para mim. – Por que você está calçando os tênis?
Eu me levantei.
– Tenho que correr até o carro, acho que deixei o celular no banco
da frente. É o único lugar onde pode estar e…
– Ah, não – disse ele, me segurando pelos ombros e me levando
até o banheiro. – Você disse que queria tomar um banho, e estou
achando que um longo banho de banheira seria perfeito, não de pé.
Vou providenciar a canja sobre a qual falamos e, se você realmente
precisar, posso ir até seu carro… depois.
– Isso parece incrível, Archie, de verdade. Mas preciso do meu
celular por causa de umas coisas da fusão, então me deixa ir lá
rapidinho e aí eu volto para tomar uma ducha.
– Clara, você mal se aguenta de pé. Você vomitou direto por dois
dias e teve febre de quarenta graus. Você não vai a lugar nenhum.
Se precisa tanto daquele celular, eu vou buscar. Mas depois que
você tomar um banho e voltar para a cama.
Tirei as mãos dele dos meus ombros.
– Archie, preciso do meu celular. Agora. Não posso me dar ao
luxo de estar sem contato nem por uma hora, menos ainda por
quarenta e oito. Preciso ver meus e-mails, verificar as mensagens
de voz, apagar incêndios. Não tenho tempo para continuar doente.
– Isso é ridículo. Se você está doente, você está doente. Não
pode simplesmente declarar que não está.
Afastei o cabelo da testa.
– Na verdade, posso. E agradeço imensamente tudo o que você
fez por mim, mas agora tenho que voltar ao trabalho. É simples
assim.
– Acho uma péssima ideia – disse ele, parando na frente da porta.
Minha dor de cabeça explodiu com tudo, turvando minha visão,
avermelhando-a.
– Eu preciso do meu celular! Vou buscar meu celular. Se você
acha ou não que é uma péssima ideia, é irrelevante. – Parei na
frente dele, com as mãos nos quadris.
– Não entendo – disse ele. – Você está com raiva de mim por
cuidar de você?
– É isso o que está acontecendo? Porque parece que você está
tentando tomar decisões por mim com base no que você acha que
eu deveria estar fazendo, e vou logo avisando que isso nunca é uma
boa ideia.
– Puta merda – murmurou ele, passando a mão pelo cabelo. –
Você está puxando briga comigo. Não acredito.
– Estou tentando muito não fazer isso, Archie, e agora é a parte
em que você se dá conta de que sou mais do que capaz de me
cuidar.
– É esse o problema? – perguntou ele, incrédulo.
– Que droga! – gritei. – Eu só quero pegar meu celular idiota, e
você está aqui achando que tem o direito de tentar me impedir!
– Vou buscar a porra do telefone, se é tão importante para você! –
gritou ele.
– Deus, você não entende! – falei com rispidez. – Não é só o
telefone, é tentar pedir sopa quando eu disse que não queria, e me
mandar ficar com a janela fechada quando eu queria que ficasse
aberta, e me mandar tomar banho de banheira em vez de banho de
chuveiro.
– Você está com raiva de mim porque eu quero ajudar? Cuidar de
você?
– Sim! – Joguei longe o tênis que ainda não tinha calçado e
quebrei o abajur da mesa de cabeceira. – Não preciso de ninguém
me ajudando e não preciso de ninguém cuidando de mim. Eu
sempre cuidei de mim mesma, nunca precisei de ninguém e não
posso me dar ao luxo de precisar agora. Eu sempre vou tomar
minhas próprias decisões, fazer o que eu quero e quando eu quero
porque eu fui feita assim. Sei que você está acostumado a cuidar de
pessoas, sei o que você passou com a sua esposa, mas vamos
deixar bem claro: eu nunca vou ser essa garota, está bem? Eu
nunca vou me acostumar a contar com os outros, porque sabe como
a gente fica? Sozinha, destruída, abandonada. Então, não preciso
da ajuda de ninguém, na verdade eu prefiro o oposto. É mais fácil
assim, quando não esperamos nada de ninguém.
Ele ficou em silêncio. O único som no quarto era a minha
respiração, carregada.
– Ah, cara – sussurrou ele finalmente. – Nunca ia dar certo, não
é?
Minha respiração parou completamente.
Nossa chance sempre foi zero.
– Eu vou embora em cinco dias.
Eu fiz questão que fosse assim.
– Meu novo chefe me deu uma semana para terminar aqui e,
depois, tenho que voltar para Boston, para me candidatar ao
próximo projeto.
Eu bloquearia todos os caminhos possíveis até que não sobrasse
nenhum.
– Talvez seja melhor assim, Archie.
Talvez eu tenha feito de tudo para que fosse assim, Archie.
– Eu voltarei algumas vezes ao longo do próximo ano para
verificar o progresso que você e sua equipe fizeram.
Sua equipe. Não “nossa” equipe. Não haveria nada nosso.
– Talvez um dia a gente possa tentar e…
– O que eu falei, o que eu disse. Aquelas palavras… – Ele engoliu
em seco, e eu sofri. – Aquilo não significa nada?
Sua expressão suplicava para que eu dissesse que não era
verdade.
Eu respirei fundo, prendi o ar e expirei.
– Se você for embora, acabou – disse ele, os olhos azuis gelados.
– É o fim.
– Eu tenho que ir. É meu trabalho.
Eu sou o meu trabalho.
– Você é muito boa no seu trabalho – disse ele, assentindo. – E é
por isso que não acredito nem por um segundo que você tem que ir.
Você acabou de me dizer que ninguém te obriga a fazer algo que
você não queira.
– Isso é diferente.
Não é, não.
– Não – disse ele com tristeza. – Não é.
Ele se virou para sair.
– Sinto muito, Archie. De verdade.
Ele parou e falou por cima do ombro, recusando-se a olhar para
mim:
– Sabe qual é a pior parte, Clara? – Ah, Deus, não diz meu nome,
não vou conseguir se você disser o meu nome. – Eu sei que você
sente muito.
Ele saiu. Terminei de calçar os tênis e fui procurar meu celular.
Estava no banco do passageiro, onde eu tinha deixado.
Você não podia ter deixado que ele buscasse a porcaria do
telefone?
Se pudesse, eu teria deixado.

– Não acredito.
– Porra nenhuma.
– Meninas, parem com isso.
– Ah, tá.
– Porra nenhuma.
– Obrigada, de verdade, muito obrigada por serem compreensivas
com isso. – Joguei o garfo no prato, que retiniu, abandonando o
pedaço de bolo.
Eu tinha me encontrado com Roxie e Natalie para contar que eu
iria embora mais cedo do que achava e pedir que elas fossem me
atualizando sobre o casamento, para eu poder estar na cidade para
os compromissos de madrinha. Assim que dei a notícia e comi um
pedaço do bolo de limão de Roxie, fui atacada pelos dois lados, com
elas dizendo que eu estava sendo escrota e como ousava sair da
cidade assim.
Foram dias horríveis. Passei o resto da quarta-feira me
recuperando da doença enquanto tentava reassumir o controle dos
meus e-mails e espremer nos cinco dias que me restavam as
semanas de trabalho que ainda teria.
Eu não ficava sozinha com Archie desde aquela manhã, não sei
se por coincidência ou por planejamento. O único encontro que tive
com ele foi durante uma conversa muito rápida e superficial com ele
e o pai sobre os detalhes da temporada de verão.
De início, ele se recusou a olhar para mim e, quando olhou, não
foi com o calor e o carinho que eu tinha me acostumado a ver. O
sorriso lento, o humor rápido, a forma como os olhos azuis
brilhavam quando eu estava sendo lasciva… ou ficavam mais sérios
quando eu estava sendo realmente lasciva. Tudo isso estava
perdido para mim agora, escondido por trás da máscara de trabalho
e de negócios.
O que eu esperava? Eu parti o coração dele. Parti o meu, se é
que eu tinha um. E não sabia mais se tinha.
Minhas melhores amigas também estavam convencidas disso.
– É que eu não entendo – protestou Natalie, segurando o garfo na
mão fechada e pontuando cada palavra com uma batida na mesa. –
Vocês ficavam tão bem juntos, de verdade! Porra, Clara!
– Olha, vocês sabiam que não ia durar. Não tinha como. Eu teria
que ir embora de qualquer jeito. Ele sabia. Eu sabia. Porra, vocês
sabiam, então parem de me encher o saco!
Natalie apontou o garfo para mim.
– Vou encher seu saco o quanto eu quiser, Morgan, porque você
está agindo como uma idiota. Essa é a pior decisão que você podia
tomar, você não pode ir embora. Não pode!
– Clara, querida – disse Roxie, sempre a voz da razão. Ela me
conhecia melhor do que todo mundo, era sempre a mediadora, a
que conseguia segurar Natalie quando ela começava a exagerar.
Ela acalmaria a situação, conseguiria articular para Natalie o que
realmente estava acontecendo, que para mim era impossível ficar.
Roxie daria sentido à situação. – Que monte de merda você está
falando.
– Espera, o quê? – perguntei, virando a cabeça para ela com
surpresa.
– Eu te amo – disse ela, os olhos tristes –, mas você está
cagando pela boca. E você sabe que não forço muito a barra porque
sei que é difícil pra você. Sei que você odeia quando acha que
alguém está tentando te dizer o que fazer, mas, neste caso, eu não
ligo. Sem equívoco e sem dúvida, isso é um erro. Se você fizer isso,
se deixar esse homem que te ama, você vai se arrepender pelo
resto da vida.
Lágrimas quentes e intensas arderam por trás das minhas
pálpebras. Mas eu não as deixaria cair. Não podia.
– Todo mundo ficou maluco? A questão aqui não sou eu, não é
nem o Archie. – Um nó do tamanho de uma laranja surgiu na minha
garganta por eu ter dito o nome dele em voz alta. – Pelo amor de
Deus, eu não tenho escolha! É o meu trabalho, caso alguém tenha
esquecido, e o meu trabalho me obriga a estar em um lugar
diferente o tempo todo. – Engoli em seco, e a laranja aumentou de
tamanho. – Foi divertido, foi muito divertido estar aqui com vocês e
conhecer todo mundo e conhecer o Leo e o Oscar, e até o Chad e o
Logan, ver a Trudy de novo e, sim, claro, o Archie. – O nó estava do
tamanho de um abacaxi. – Eu amei o tempo que pude passar com o
Archie, foi incrível e maravilhoso e, porra, ele é… meu Deus, ele é
tudo… mas isso não importa porque eu tenho que ir. Não posso ficar
aqui. Então, isso é só… – Dei um suspiro tão profundo que até
meus dedos dos pés de repente ficaram exaustos. – É assim que as
coisas são. – Olhei para as duas por pálpebras pesadas. Tudo
parecia pesado, todas as partes de mim pareciam sobrecarregadas
e muito tristes. – Está bem?
Roxie balançou a cabeça e repuxou os lábios como quem tivesse
muitas coisas a dizer, porém sabia que nenhuma delas adiantaria.
– Está bem.
– Não está bem, mas está bem – concordou Natalie, a voz,
normalmente alta e forte, não mais do que um sussurro agora.
Peguei o garfo, sem fome, mas precisando de alguma coisa para
fazer.
– Está bem.
Capítulo 23

Dois meses depois…


– Duzentos fios é muito pouco.
– É o que sempre usamos.
– Sei disso, mas ainda é muito pouco.
– Acho que os hóspedes não se importam com a contagem de
fios durante as férias.
– Bem, é exatamente nisso que você está errado. – Eu suspirei. –
As pessoas querem se sentir cuidadas quando estão em um hotel
desta magnitude, às vezes de formas que elas nem sabiam que
precisavam. Elas querem se sentir reconfortadas, cuidadas e,
quando se deitam na cama no fim de um longo dia, elas querem se
olhar e dizer “uau, essa é a cama mais confortável em que já dormi”.
– Peguei o lençol velho e o esfreguei entre os dedos. – Acredite, a
última coisa que você vai querer é alguém dizendo quando entra na
cama: “Puta merda, dá para acreditar que estamos gastando
oitocentos dólares por noite e não conseguem nem colocar uns
lençóis bons nas camas?”.
Eu estava sentada na Sala de Reuniões Charleston do Oakmont
Resort and Golf Club em Buford, Carolina do Sul, em uma reunião
com o diretor de operações, o responsável de vendas e o supervisor
dos camareiros. Tentando explicar para eles por que os lençóis
ásperos de merda tinham que ser substituídos. Como esperado,
eles estavam resistindo. Como esperado, eu estava resistindo.
Sabe o que não era esperado? O fato de eu não estar nem aí se
ia ganhar a discussão ou não.
Eu estava no Oakmont havia menos de duas semanas e já tinha
identificado os problemas de equipe, reparado em novas
oportunidades de branding e lançado várias iniciativas severas de
corte de custos, assim como um programa de recreação totalmente
novo. Antes disso, eu tinha estado no The Lantern Inn em Stowe,
Vermont, no The Red Hill Farm Bed & Breakfast, em Mackinac
Island, Michigan, e em uma visita rápida e muito produtiva ao The
Sea Grass Hotel and Tennis Club em Mendocino, Califórnia.
Mesmas questões, mesmos problemas, basicamente as mesmas
soluções. Eu salvei o dia, botei o trem nos trilhos e segui feliz meu
caminho. E agora, ali estava eu, na Carolina do Sul.
Depois de quarenta e cinco minutos, não tínhamos nem falado do
edredom novo que eu estava sugerindo. Eu daria um tiro na cabeça,
mas era a favor do controle de armas.
De repente, me senti exausta.
– Querem saber, vamos deixar isso para depois. Sei que vocês
estão ansiosos para acabar e voltar para casa antes do fim de
semana prolongado, então vamos todos pensar no que propus e a
gente decide isso quando voltarmos, certo? – Acenei para eles com
um sorriso cansado.
Todos, tão ansiosos quanto eu para voltar para casa para um fim
de semana prolongado, concordaram, agradeceram pelo meu tempo
e saíram da sala de reunião. Fechei a porta, pensei melhor e a
tranquei. Voltei para a mesa onde meus materiais estavam
organizados e empilhados. Ideias pesquisadas e avaliadas,
procedimentos e coisas a fazer e coisas que ajudariam e coisas a
serem descartadas.
Sentei-me na cadeira, olhei tudo e deitei a cabeça na mesa. Meu
chefe, Dick Stevee, um perfeito babaca, por mais que eu duvidasse,
tinha acertado sobre uma coisa. Quando você não liga para o
trabalho que está fazendo, consegue terminar rapidinho.
Eu tinha virado uma máquina. Respirava, dormia e comia análises
de custos, planilhas de funcionários, projeções de reservas,
objetivos de vendas. Minha agenda era tão pesada que nem
competi em maratonas e triatlos, e todo o exercício que fazia era
dentro de uma academia, em uma esteira, normalmente com o iPad
aberto para poder trabalhar ainda mais.
Meu chefe estava maravilhado.
– Continue assim, Morgan, e quando chegar a hora, a sociedade
será sua.
Eu deveria estar em êxtase. Deveria estar feliz da vida. Deveria
estar… porra, deveria estar feliz.
Eu estava infeliz. Só tinha conseguido escapar um fim de semana
para Nova York, para ajudar Roxie a comprar o vestido de
casamento, e passara boa parte daquela viagem tropeçando nas
minhas próprias palavras para ter certeza de que ninguém
mencionaria a pessoa sobre quem eu estava louca para perguntar.
Archie.
Só de pensar no nome dele, eu tinha vontade de suspirar e chorar
e sorrir e franzir a testa, tudo ao mesmo tempo.
Eu nem me despedi. Que tipo de pessoa faz isso? O último dia foi
tão agitado, tinha tanta coisa para fazer e tão pouco tempo, e
sempre havia outras pessoas por perto, me distraindo, nos
mantendo separados, que, quando chegou a hora de ir embora, eu
me virei para ver onde ele estava e só o vi voltando para dentro do
hotel, com a cabeça baixa. E não fui atrás dele.
A vergonha queimava minhas bochechas. Bati a cabeça na mesa,
tentando bloquear a luz que entrava pelas lindas janelas antigas. O
cheiro de madeira velha e rara me trouxe de volta para o presente.
Aos poucos, fiquei ciente dos meus arredores. Aquele hotel, como
tantos outros, era cheio de uma beleza antiga de verdade; tinha
testemunhado guerras, a Grande Depressão, o pouso na lua,
famílias começando e crescendo e mudando e envelhecendo e
morrendo. Por muitas vidas, aguentou firme, acolhendo quem ia
procurar algo velho e lindo e reconfortante. As tradições abrigadas
dentro daquelas paredes eram dignas de ser salvas, sempre seriam.
Aquilo era a minha paixão. Mas aquele tipo de paixão não podia ser
apressado, não podia ser adaptado a uma programação já intensa e
sobrecarregada. Eu precisava de liberdade para fazer o que faço
melhor. Mas precisava encontrar a magia de novo.
Peguei o último voo de Charleston para Boston naquela mesma
noite, sentada no banco do meio, na última fila ao lado do banheiro.
Fiquei presa no trânsito quando tomei a decisão idiota de pegar um
táxi em vez do ônibus Silver Line, e, para piorar, o ar-condicionado
do táxi estava quebrado, e fiquei suando como uma porca. Quando
cheguei ao meu apartamento, eu estava em péssimo estado e
morrendo de fome. Liguei para meu restaurante chinês favorito e
pedi… bem… tudo.
Eu não precisava passar o fim de semana em casa, mas estava
inquieta. Normalmente, eu gostava de passar meus fins de semana
viajando pela parte do país onde estivesse trabalhando. Eu poderia
ter dirigido até Gulf Shores e passado algumas noites na praia.
Poderia ter dirigido até Savannah e me hospedado em uma antiga
fazenda. Poderia ter ficado no Oakmont escondida no meu quarto,
pedindo serviço de quarto e vendo um monte de filmes no pay-per-
view.
Na minha televisão. No meu quarto.
Mas eu estava inquieta. Então, fui para casa. E lá eu fiquei
sentada no sofá, cercada de mei fun e chow fun e wonton. E uma,
não, duas garrafas vazias de vinho. Eu ouvia meu vizinho agitado
com os preparativos do Quatro de Julho, crianças rindo e algumas
bombinhas sendo estouradas. Mas fiquei em casa, com meu wonton
e meu vinho, sentada no sofá.
Eu ainda estava inquieta. Mas agora estava empanturrada e
inquieta. E meus globos oculares estavam vazando. O quê?
Olhei para o apartamento no qual eu quase nunca ficava. Na
verdade, quando eu contava os dias na estrada e os dias em casa,
a diferença era enorme. Ali era o lugar onde eu guardava as poucas
coisas que tinha. Sentada no sofá, olhei em volta, vi as cadeiras que
não combinavam, as quais tinha obtido quando o The Graceful
Palmos Hotel, em Miami, fechara as portas, cinco anos antes. Vi as
mesas de canto que antes decoravam a entrada do The Heights
Resort and Spa em Vail, Colorado, das quais eles se livraram
quando, quatro anos antes, os convenci a fazer uma redecoração.
Até o sofá onde eu estava, uma peça fantástica art déco de veludo
verde, eu escolhera enquanto fazia consultoria no Tucker Home em
Rhode Island, três anos antes. Tudo no meu apartamento era da
casa de outra pessoa.
Meu apartamento. Meu Deus, nem na minha cabeça eu
conseguia chamá-lo de lar. E, caramba, por que meus globos
oculares estavam vazando de novo? Tinha caído mostarda neles?
Sem pensar muito, peguei o telefone e liguei. Liguei para Roxie, e
ela ligou para Natalie. E fizemos uma conferência.
– Pessoal, tem alguma coisa errada com meus olhos – falei, a voz
rouca.
– Quanto você tomou de vinho? – perguntou Natalie.
– Duas garrafas. – Eu funguei. – Mas não derramei nenhuma
delas nos olhos.
– Ah, que bom – disse Roxie, rindo de leve. – O que está
acontecendo?
– Não sei – respondi, e nunca na vida falei com mais sinceridade.
– Eu realmente não sei.
– Bem, para começar, você falou com o Archie? – perguntou
Natalie, e me irritei na mesma hora.
– O que falar com o Archie teria a ver com alguma coisa? –
perguntei, apertando as mãos. – Se falei com o Archie… Por acaso
você falou com o Archie?
– Por acaso, falei, sim – disse Natalie. – E…
– Natalie, cala a boca! – interrompeu Roxie e, pela primeira vez,
Natalie a ouviu. – Onde você está, Clara?
– Em casa. – Funguei. – Bem, no meu apartamento.
– Em Boston? Quanto tempo você vai ficar na cidade?
Fiz um cálculo, que foi difícil por causa do vinho.
– Vou ficar uns dias aqui, os funcionários do Oakmont fazem
rotação no feriado. Quando vi que nem todos iam trabalhar e que eu
teria uns dias de folga, decidi vir pra cá ficar à toa, mas… droga. –
Eu não tinha palavras, não tinha palavras para explicar o que estava
sentindo, e isso era muito frustrante. – Não sei! – repeti.
– Clara, querida, vem pra cá. Entre num trem e venha pra cá,
podemos pegar você na estação de Poughkeepsie.
– Não posso. – Suspirei. – Não posso fazer isso.
– Pode, sim – disse Natalie depois de ter passado trinta segundos
em silêncio. – Senta essa bunda num trem e vem pra casa.
– Casa? – perguntei. – Achei que Manhattan era a sua casa.
– Me escuta, sua maluca, e se você algum dia repetir isso na ilha
de Manhattan, eu vou te dar uma surra bem dada, mas minha casa
é aqui agora. Caramba, não acredito que estou dizendo isso, e
nunca vou abrir mão da minha casa lá, mas – ela fez uma pausa, e
nem Roxie nem eu respiramos –, puta que pariu, minha casa é onde
o Oscar estiver. E onde as vacas dele estiverem. Então… pronto.
Bailey Falls é a minha casa. E, se eu posso dizer isso, meu Deus,
você pode muito bem entrar em um trem e vir para cá.
– Não posso, não posso mesmo – falei. – Saí tão rápido e nem…
Ah, pessoal, eu nem… – Nessa hora, comecei a chorar
copiosamente. – Eu nem me despedi!
Elas ficaram em silêncio enquanto eu me acalmava. O vinho e a
comida faziam seu trabalho, dando vazão às lágrimas rápidas e
quentes – que, acho, meus dutos lacrimais nem sabiam produzir.
– Eu o amo – finalmente consegui falar, soluço enorme. – Eu o
amo e parti o coração dele, e agora estou me esforçando pra voltar
ao que faço de melhor, mas não é a mesma coisa, sabem? Eu
trabalho e trabalho e… Ah, está tudo uma droga agora. – Dei um
suspiro grande e úmido.
Mas aí ouvi Leo ao fundo perguntando se Roxie tinha comprado
leite no caminho para casa, e tudo caiu na minha cabeça como uma
tonelada de tijolos. Roxie e Natalie tinham esse tipo de conversa o
tempo todo. Ei, comprou leite quando estava vindo para casa ou
querida, a torneira da cozinha ainda está pingando, ou você sabe se
a conta de gás já foi paga, ou essa pinta parece estranha? Todas as
perguntas aleatórias e bobas que preenchem o dia acabam
preenchendo uma vida. Com lembranças. E tradições.
– Querem saber – falei, de repente me sentindo idiota e cansada.
– Vou desligar, preciso dormir. Ligo de novo amanhã.
– Não, não, Clara, você está aborrecida, vamos conversar – disse
Roxie, mas eu já estava balançando a cabeça.
– Tudo bem, de verdade, sinto muito por ter surtado. Eu só
preciso dormir.
– Posso estar em Boston em quatro horas – disse Natalie, e sorri
apesar das lágrimas que ainda escorriam pelas minhas bochechas.
– Sei que pode. Mas estou bem, falando sério.
– Não acredito em você nem por um segundo – disse Roxie, a voz
triste. – Nem por um segundo.
– Tudo bem, eu tenho um monte de trabalho para o fim de
semana. Vou dormir esta noite e amanhã terei voltado ao normal.
Vou correr, pode acreditar, está tudo bem. – Antes que elas
tentassem me manter mais tempo no telefone, eu me despedi e
desliguei.
Fiquei deitada lá mesmo no sofá, cercada de pacotes de
mostarda picante, que definitivamente não eram a causa das
lágrimas, e encarei o teto. O teto debaixo do qual eu morava havia
anos, mas que nunca tinha me dado ao trabalho de olhar.
E, pela primeira vez, percebi que queria minhas próprias
tradições. Não era suficiente simplesmente arquivar e apreciar e
tentar salvar as de outras pessoas. Eu queria as minhas próprias
histórias para contar.
Minhas tradições eram pequenas, mas eram tudo. Eu sabia pintar
ovos de Páscoa. Sabia em que radiador mexer quando o apito de
vapor tocava na Sala do Lago. Sabia que dava para ver a Via
Láctea do telhado em uma noite clara.
E sabia que correr não me dava mais a tranquilidade de que eu
precisava. Eu precisava de silêncio, mas o silêncio que vem depois
do amor, depois dos suspiros e gritos, quando as mãos dele
percorriam livremente meu corpo nu, não mais frenéticas, mas
tocando-o só porque sim. Só pelo puro motivo da pele tocando na
pele sem nada entre elas, de se comunicar em um nível celular,
você está aqui e eu estou aqui e nós estamos aqui e isso é muito
mais do que o suficiente, porque é tudo.
Naquela noite, adormeci pensando em montanhas e patins no
gelo. Quando acordei na manhã seguinte, eu sabia o que tinha que
fazer. Ou, pelo menos, o que precisava tentar fazer.
Mas, antes disso, eu precisava comprar meu primeiro carro.
Verde. Tudo era tão verde. Na última vez que subira aquela
montanha, nem era primavera ainda e qualquer coisa que
lembrasse verde só aparecia timidamente, de leve. Mas agora? O
mundo todo estava verde.
Virei à direita antes da saída para a cidade, mas mesmo dali eu vi
que Bailey Falls estava pronta para o Quatro de Julho. Havia
bandeirinhas vermelhas, brancas e azuis penduradas em todas as
varandas, entre os postes de luz da Main Street, e, ao lado de todas
as portas das casas, a bandeira americana esvoaçava com orgulho.
Dirigi junto ao rio até o lado sul da cidade, com o rio Hudson
cintilando à minha esquerda sob o sol da tarde. Estava quente, mas,
depois da umidade e do calor abafado da Carolina do Sul, um dia de
verão nas Catskills trouxe uma brisa agradável e uma pausa bem-
vinda. A brisa balançou meu cabelo enquanto eu dirigia com a
capota aberta, a caminho da entrada para o Bryant Mountain House.
Desde que tomara a decisão de sair de Boston, de manhã, eu
estava agindo puramente por instinto. Na esquina de casa, havia
uma loja de carros especializada em clássicos, e, quando vi que um
carro conversível vermelho-cereja totalmente desnecessário estava
na liquidação de Quatro de Julho, interpretei isso como um sinal de
que o universo apoiava minha tentativa desesperada de implorar ao
sr. Archibald Bryant para ser meu par.
Segurei uma gargalhada, mas imediatamente mudei de ideia e
deixei o som se espalhar com orgulho pelo ar tranquilo do interior
enquanto eu subia a montanha, determinada a pôr as mãos no meu
homem. Ninguém sabia que eu estava a caminho, nem mesmo as
garotas. Eu não queria falar, só queria agir. Me saía bem quando
seguia meus instintos e sabia que precisava segui-los agora. Ri
comigo mesma quando pensei no que minhas amigas diriam
quando descobrissem o que eu estava tramando.
Soltei outra gargalhada quando pensei na provável expressão de
Dick Stevee quando recebesse o e-mail no qual eu essencialmente
pedia demissão imediata do The Empire Group. Uma coisa que ele
certamente não esperava.

Prezado Dick,
Estou escrevendo para contar neste Quatro de Julho que estou
anunciando minha independência e entregando meu pedido de
demissão. Embora este e-mail não seja acompanhado por fogos de
artifício reais, saiba que, na minha cabeça, eles estão explodindo
sem parar agora. Sabe, eu amo meu emprego. Ou melhor, amava
meu emprego até você e o The Empire Group aparecerem e
mudarem tudo. Mudar é bom, e eu nunca tive medo de mudança,
mas, neste ponto da minha vida… apenas não.
Vou ficar até o fim do projeto do Oakmont, mas considere essa a
minha última contribuição. Não sei para onde a vida vai me levar,
mas me alivia saber que não vou ser, nunca, sua sócia.
Atenciosamente,
Clara Morgan

Ele realmente não esperava por isso. E, sinceramente, nem eu.


Mas, colocando tudo o que importava na balança, percebi que tinha
chegado a hora. A hora de abrir um pouco as asas e ver o que havia
por aí. A hora de abrir a agenda também; eu tinha muitos contatos e
referências adquiridos ao longo dos anos, e os donos e gerentes de
hotel não hesitariam em me recomendar para outros que
precisassem de ajuda para restaurar a marca. Eu encontraria
trabalho e não estava preocupada com isso. Trabalho do qual eu
poderia sentir orgulho, que poderia fazer no meu tempo, no meu
ritmo, com o objetivo de gerar frutos, e não de terminar logo porque
tinha que começar outro.
Mas meu trabalho seguinte, assim eu esperava, seria no Bryant
Mountain House, para terminar o que eu tinha começado. Se o dono
me quisesse.
Uma risada nervosa saiu da minha boca ao pensar naquele dono.
Ele ainda me queria? Eu poderia fazê-lo me querer de novo? Era
tarde demais?
Talvez não. Talvez não. Talvez sim. Mas eu não ia dar as costas e
fugir desta vez, eu ia tentar com tudo.
Enfiei o pé no acelerador, percorrendo as Catskills de olho na
placa que indicava que a entrada do Bryant Mountain House ficava
depois da curva.

– Não, eu não tenho reserva. Mas, Bert, você me conhece, sou eu,
a Clara. Clara Morgan. Passei semanas aqui na primavera.
– Eu conheço você, senhorita Morgan, e é por isso que sei que
você conhece as regras. Ninguém entra sem reserva. – Bert, o
segurança, franziu a testa para mim por cima da prancheta. – A não
ser que você tenha um passe diário. Você tem um passe diário?
Bert estava cortando meu barato.
– Não, mas, se precisar comprar um, eu compro.
– Alguém sabe que você vem? – Ele me encarou. Eu sabia o que
realmente estava perguntando. Archie sabia?
– Não – falei, engolindo em seco. – Foi uma coisa de ímpeto.
– Aham – disse ele, franzindo a testa. – Achei que podia ser esse
o caso.
– Mas estou aqui por um bom motivo, eu juro – falei, me
esforçando para parecer arrependida e merecedora.
– Você não está planejando fazer uma cena, está? – perguntou
ele, com expressão de dúvida.
Engoli em seco novamente.
– Não. – Eu certamente não estava planejando.
– Quer comprar um passe diário, é? O dia está quase acabando.
– Ele olhou para o relógio.
– Bert, estou implorando! Só me dá o passe diário e prometo que
você não vai se arrepender.
– Não posso dar o passe diário. – Droga. Comecei a pensar se
conseguiria entrar pela floresta na encosta da montanha e não me
perder. – Mas posso vender um passe.
– Bert. Eu te amo.
– Acho bom você manter essas palavras à mão, senhorita Morgan
– respondeu ele, um pouco vermelho quando lhe entreguei meu
cartão de crédito.
– Você não precisa ligar lá para cima e informar certas pessoas
de que estou a caminho – olhei para ele com expressão de súplica
–, precisa?
Ele achou graça e me entregou o crachá e meu cartão de crédito.
– Acho que não.
Soltei um suspiro de alívio.
– Obrigada, Bert. – Comecei a fechar a janela, mas ele acenou
para mim.
– Também lhe dei um crachá do estacionamento de hóspedes,
apesar de você tecnicamente não ser hóspede. Assim, você pode
estacionar perto do prédio principal caso esteja tentando chegar lá
rápido. – Ele piscou.
– Obrigada, muito obrigada!
– Boa sorte! – gritou ele quando me afastei.
– Espero não precisar, senão volto pra chamar você, Bert! – gritei
para ele.
Olhei rapidamente para o relógio no painel. Quatro e meia. Revirei
o cérebro tentando lembrar o que eles faziam no Quatro de Julho.
Eu tinha tratado disso com a recreação. Eu sabia. Sabia que havia
torta de lagosta no jantar. Sabia que havia fogueira e marshmallow.
Sabia que haveria fogos no lago… Mas havia alguma outra coisa
especial que eles faziam durante o dia. Corrida de melancia?
Arremesso de ovos? Era provável, mas, não, era outra coisa. Uma
grande tradição, uma coisa que sempre fizeram, mas eu não
conseguia lembrar por nada no mundo!
Fiz a última curva e ali estava. Ocupando o horizonte todo, o hotel
era grandioso, muito grandioso. No brilho quente do verão, era
brutal a diferença para a impressão quase fria que eu tivera quando
o vira pela primeira vez numa tarde gelada, tantos meses antes.
Agora, o hotel resplandecia em sua melhor forma. As varandas,
cheias de jardineiras, explodiam com flores vermelhas e laranja, as
cadeiras de balanço estavam ocupadas por pessoas de todas as
idades, e bandeiras americanas esvoaçavam nos parapeitos do
telhado.
O gramado da frente, onde eu vira crianças procurando ovos de
Páscoa, estava verdejante e aparado, e as crianças desta vez
jogavam croquet com os mesmos bastões que os pais empunhavam
quando aprenderam a jogar. Mais cadeiras de balanço ocupavam a
varanda do Salão Poente, que era virada para as montanhas, e
estavam cheias de hóspedes tomando um coquetel vespertino antes
de irem para o grande churrasco.
E outra coisa… Droga, por que eu não conseguia lembrar?
Não importava, o hotel estava lindo e convidativo. Dirigi
rapidamente até o estacionamento, passando direto pelo manobrista
e entrando direto na primeira vaga que vi. Passei as mãos pelo
cabelo, belisquei as bochechas como uma boa Scarlett e saí
andando para a casa principal.
Depois de dois passos dentro do saguão, dei de cara com a sra.
Banning e a sra. Toomey.
– Olá, meninas! Como estão? Senti falta de vocês! – exclamei,
acelerando o passo para abraçá-las. Eu estava cheia de amor para
dar.
– Pois eu não – bufou a sra. Banning.
– Nem eu – disse a sra. Toomey com o mesmo mau humor.
– Qual é o problema? – perguntei, olhando para baixo para ver se
tinha derramado alguma coisa no meu vestido, me perguntando por
que elas não queriam me abraçar. A não ser que…
– Que coragem a sua de aparecer aqui – repreendeu-me a sra.
Banning, me olhando como se preferisse me ver pendurada no
mastro, no lugar da bandeira.
A sra. Toomey assentiu intensamente.
– E em um feriado, ainda por cima. Só espero que não tenha
vindo para causar mais problemas para ele, mocinha.
– Ahhh… – Suspirei, finalmente compreendendo. – E o “ele” de
quem vocês estão falando seria o Archie?
– Ah, então você se lembra do nome dele, é? – disse a sra.
Banning, erguendo tanto as sobrancelhas que fiquei surpresa de
sua testa não se abrir.
– Entendi, então todo mundo sabia que nós estávamos…
– Sim, exatamente – sussurrou a sra. Toomey. – Todo mundo
sabia que vocês estavam. Se você voltou para partir o coração dele
de novo, saiba que não vamos permitir, não é, Hilda?
– Isso mesmo, Prudence.
– Na verdade, uma das novas máquinas industriais de passar
lençóis acabou de chegar. Quer uma demonstração?
– Ora, Prudence, isso é um pouco demais, você não acha?
– Hilda, não tente me segurar, estou furiosa com essa mocinha
e…
– Sou mocinha agora? – perguntei, sorrindo apesar do fato de
minha morte estar sendo planejada bem na minha frente.
– Sua filha da puta! – ouvi do outro lado do saguão, e vi várias
mães tamparem os ouvidos dos filhos e os levarem para longe.
– Ah, cara – eu gemi e me virei para ver não só Natalie, mas
também Roxie, Leo, Oscar, Polly, Chad, Logan, Trudy e o namorado
novo dela, Wayne Tuesday. – Claro que a turma do amendoim
estaria aqui…
– Sou alérgica a amendoim – disse Polly.
– Você não é alérgica a amendoim – respondeu Leo.
– Mas todo mundo da minha sala é, por que eu não posso ser?
– Você não é alérgica a amendoim, gatinha, aceita de uma vez –
disse Leo.
– Eu sou intolerante à lactose – comentou Logan.
– Só quando come um pote inteiro de sorvete – acrescentou
Chad. – O que você devia parar de fazer.
– Vou criar uma linha de sorvetes na leiteria – declarou Oscar.
– Ah, que ótimo! – disse Trudy. – Se for bom, vou usar no
restaurante.
– Claro que vai ser bom – resmungou Oscar.
– Ninguém está dizendo que não seria bom, eu só estava dizendo
que…
– Seus filhos da puta! – gritou Natalie, se virando para todos. –
Calem a boca! E você, sua filha da puta – ela apontou para mim –, o
que você está fazendo aqui? E, Polly, toma dez dólares e vamos
encerrar o dia. – Ela enfiou algumas cédulas na mão de Polly para o
pote do palavrão, que a menina carregava para todos os lados
agora. Naquele ritmo, Polly ia conseguir pagar a própria faculdade.
– Clara! – Roxie sorriu. – Você veio para…?
– Sim, sim, vim. – Assenti com alegria. – Vocês sabem onde ele
está?
– Ele está na máquina de passar lençóis – comentou a sra.
Toomey, e a sra. Banning a mandou calar a boca.
– Está na varanda do terceiro andar – disse Roxie, sorrindo. –
Vão fazer o Salto da Varanda de Quatro de Julho.
Sim! Era isso! Era essa a tradição que eu não estava lembrando,
o Salto da Varanda. Desde que o hotel tinha sido construído,
hóspedes e funcionários pulavam da varanda do terceiro andar no
lago abaixo para comemorar o aniversário do país. Era a tradição
mais antiga e amada. Fora os pãezinhos. E eles pulavam
pontualmente às cinco da tarde.
Olhei para o relógio do saguão na hora em que ele começou a
tocar.
Bong…
Meu coração pulou na garganta. Saí correndo para a escada.
Subi em um pulo os três primeiros degraus e corri pelos restantes
como um furacão. Ouvi uma confusão de pessoas atrás de mim,
esbarrando umas nas outras conforme tentavam me seguir, mas eu
estava muito à frente.
– Para onde estamos indo?
– Você não prestou atenção? Para o terceiro andar, vem!
– Isso é tão empolgante!
– Que bom que já tenho pipoca!
Bong…
Eu estava no patamar do segundo andar, correndo rápido e
passando por hóspedes à esquerda e à direita. Apesar de estar
correndo, apesar de estar em disparada para encontrar o homem
que eu amava mais do que tudo no planeta, não pude deixar de
reparar que tinham tirado o tapete e que o piso de madeira embaixo
era incrível.
Bong…
Meus pés tocaram no primeiro degrau do terceiro andar e eu
quase derrubei um vaso de palmeira. Era uma planta nova.
Cheguei no quinto degrau. Desejei ter tempo, mais tempo, para
pensar no que dizer agora que tinha chegado, agora que o veria de
novo. O que eu poderia dizer para fazer com que ele me escutasse
e soubesse o quanto eu estava arrependida de ter saído do jeito que
saí? Eu poderia fazê-lo me ver, me ouvir, me amar de novo? E se
ele não me amasse mais? Ah, merda.
Bong…
– Vocês a estão vendo? Onde ela está?
– Pinup, para de bater em mim, isso não me faz ir mais rápido!
– Desculpa, desculpa, com licença, perdão, desculpa, com
licença!
– A máquina de passar, estou dizendo, a máquina de passar vai
cuidar dela!
– Estou preocupada com você, Prudence!
– Por que alguém pularia de uma varanda?
– Por que todo mundo não pularia?
Subi o último andar e olhei como louca em volta. Havia uma
multidão reunida na varanda, algumas pessoas de roupa de banho e
algumas ainda de vestido de verão e shorts, todas na beirada da
amurada de madeira, preparadas e esperando alguma coisa, algum
tipo de sinal, para pularem no lago.
Entrei no local, a minha turma do amendoim a menos de três
metros de mim, abri caminho até a frente dando cotoveladas como
uma groupie em um show, tentando chegar na frente antes que…
Bong…
Cinco horas.
Ali. No meio da amurada, em cima, pronto para pular. Ele se virou
com um apito na boca, pronto para soprar e avisar a todos que era a
hora.
Abri caminho na multidão, e um homem particularmente robusto
abriu o braço e quase me fez cair, mas, quando dei mais um
empurrão com minhas pernas de corredora, ele me viu.
Os olhos dele se encontraram com os meus e, em sua surpresa e
seu choque e em minha alegria e em meu arroubo apaixonado…
Bem. O mundo simplesmente sumiu.
Mas meu impulso ainda estava agindo.
Na hora que ele soprou o apito, me choquei contra o último grupo
de pessoas e pulei na amurada, batendo contra o peito dele ao
passar o braço pelo seu pescoço… e empurrar nós dois da
amurada.
Ele soprou o apito durante toda a queda.
***

Dizem que o tempo é elástico. Às vezes, uma hora passa em um


instante enquanto você se agarra a cada segundo, querendo que vá
mais devagar. Às vezes, um instante se prolonga até uma hora,
quando tudo se passa em câmera lenta, o tempo se alongando, as
beiradas borradas e as cores desbotadas.
Caí três andares com Archie Bryant, e demorou uma vida inteira.
Eu sabia que ele estava tocando o apito, havia uma parte de mim
que o ouvia, agudo e alto, enquanto caíamos no lago abaixo.
Entretanto, dentro daquela bolha, a parte de mim que estava dentro
daquele espaço onde o tempo parou, eu só tinha consciência de
sentir sua pele ao meu toque e de poder encarar seus olhos à
procura de algum indício de qual era a minha situação.
Durante esses três andares, seus olhos falaram comigo, volumes
e volumes de palavras e frases e parágrafos reunidos em pura
emoção primitiva.
Dor.
Pesar.
Medo.
Paixão.
Calor.
Raiva.
Decepção.
Euforia.
Alegria.
Fome.
Desejo.
Esperança.
E, finalmente, logo antes de batermos na água… mais uma vez,
dor.
Nós caímos, batemos no lago gelado como se fôssemos um só,
mergulhamos na água fria e limpa e descemos até as profundezas,
o frio tirando meu ar.
Além do mais, só para deixar claro, ele tocou o apito durante toda
a queda.
Quando estávamos debaixo da água, eu o soltei e, quando
subimos à superfície, estávamos a vários metros um do outro. Ele
subiu… com raiva.
– Qual é o seu problema? – bufou, tirando o cabelo da cara. –
Quem faz uma coisa assim?
– Eu não planejei fazer isso, só me empolguei quando vi você e
não queria que você pulasse sem mim, então…
– Então você nos jogou de uma varanda? – disse ele. Tentei
nadar para mais perto, mas ele foi para longe.
– Tecnicamente, eu fiz o Salto da Varanda. Só não sabia que ia
fazer, senão teria parado um momento para tirar minhas sandálias
da aspiração.
– Sandálias da inspiração?
– Da aspiração, porque as comprei antes de ter dinheiro para
poder comprá-las, quando estava tentando mostrar ao mundo o que
eu aspirava ser. Tipo se vestir para o emprego que você quer e não
para o que você tem, sabe? Vi essas sandálias caras da Kate
Spade na vitrine da Saks uma vez e sabia que precisava tê-las.
Peeptoe amarelo e turquesa de saltinho baixo, a cara da pessoa
que eu queria ser. Acabaram se tornando minhas sandálias da
sorte.
– Não acredito que estou tendo essa conversa – resmungou ele,
nadando para longe.
Eu me virei para levantar um pé no ar, o pé nu.
– Mas, está vendo, eu perdi as duas, estão no fundo do lago
agora, e não pensei nisso antes. Se tivesse parado por cinco
segundos antes de me chocar com você, eu teria tirado. – Botei o pé
na água e nadei para mais perto. – São minhas sandálias de
aspiração, afinal.
– Não estou nem aí para suas sandálias – disse ele, dando as
costas para mim e indo na direção da doca. Mas ele não tinha ido
muito longe quando se virou, movimentando a água ao redor. – O
que você está fazendo aqui?
Nessa hora, aplausos explodiram de cima, e ao olhar para o alto
vimos os três andares do hotel espremidos nas varandas e sacadas,
comemorando. A comemoração era liderada pela minha turma do
amendoim, claro.
– Pelo amor de Deus – grunhiu ele, e deu as costas para mim de
novo e saiu nadando.
– Ei, ei! – gritei, nadando tranquilamente pela água. – Aonde você
vai, volta aqui!
Ele nadou mais rápido, eu nadei mais rápido. Ele foi para a doca,
mas, quando viu o pessoal da recreação e uma quantidade grande
de hóspedes agora amontoada entre as canoas para ver o que
estava acontecendo, virou para a direita e seguiu para o meio do
lago.
Para a plataforma.
Eu estava certa sobre Archie o tempo todo. Ele era nadador. E
agora parecia uma mancha molhada de tão rápido que se deslocava
pela água. Para cada duas braçadas que eu dava, ele dava quatro.
Ele estava deslizando tranquilamente, percorrendo a água em um
ritmo absurdo, mas eu não ia desistir. Porra nenhuma.
Dei uma explosão de velocidade de olho no prêmio.
– Pare de vir atrás de mim! – gritou ele.
– Pare de nadar, então! – eu gritei, sem parar de nadar.
– Isso é loucura! Você é louca! – gritou ele, se virando de costas
sem deixar de dar uma braçada.
– Diz o cara que me faz ir atrás dele!
– Inacreditável – eu o ouvi dizer quando chegou à plataforma e se
içou sem esforço.
Baixei a cabeça e nadei como um torpedo até ele.
Quando cheguei lá, ele estava de pé na beirada, com água
pingando do corpo glorioso. Por uma fração de segundo, Archie
ficou entre mim e o sol. Eu fiquei na água, na sua sombra, a silhueta
dele pintada na minha pele molhada. Eu via seu rosto agora, tão
lindo, tão furioso. Seus olhos pareciam dois mirtilos gelados. Porra,
eu amo esse homem.
Subi na plataforma, o vestido grudado no corpo, e parei ao seu
lado.
– Você pode me explicar exatamente o que está acontecendo
aqui?
– Posso. Eu te amo.
– Que palhaçada foi essa de nos jogar da varanda, Clara! Você
podia ter nos machucado!
– Valeu a pena. Eu te amo.
– Que tipo de pessoa faz uma coisa assim?
– Esta pessoa. Eu te amo.
Ele começou a fazer outra pergunta, mas eu o detive com a boca.
Joguei-me novamente nele, pulei em seus braços, estivesse ele
pronto para mim ou não, e o beijei na boca. Ele caiu para trás na
plataforma, me levando junto, e caí sobre o apito.
– Não acredito que você ainda está com isso.
– Não acredito que você está falando do meu apito.
– Não acredito que você soprou essa coisa durante toda a queda.
– Não acredito que você… Droga, não! Não, você não vai fazer
isso de novo, não vai me superar no meio de um lago. – Ele tentou
se erguer, mas o puxei para baixo.
– Tarde demais, eu te amo.
– Pare de dizer isso! – gritou ele, se apoiando nos cotovelos.
– Não consigo. Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo. – Ele tentou
novamente se erguer, mas passei os pés em volta de suas coxas e
o puxei de novo. – Eu nunca falei isso pra ninguém na minha vida
toda e estou vendo que amo dizer “eu te amo” pra você.
– Você não sabe o que está dizendo – falou ele, o rosto ainda
cheio de exasperação, mas a voz mais suave agora, não tão
irritada. – Por favor, não diga de novo.
– Archie – falei enquanto a água do cabelo castanho-avermelhado
pingava em mim. – Não consigo parar de dizer porque é o que eu
sinto. E vim aqui hoje só pra dizer isso. Eu fui babaca e burra
quando fui embora porque não sabia lidar com o que estava
sentindo. Eu já te amava, claro que amava, mas não conseguia
dizer. Eu te amei todos os dias desde que fui embora e te amo
agora. Eu me sinto melhor quando estou perto de você, sou melhor
quando estou perto de você. Não gosto da minha vida sem você. Eu
larguei meu emprego. Comprei um carro idiota. Pulei da porra de
uma varanda no Quatro de Julho porque te amo e não suportava
nem mais um segundo nesse planeta sem seus braços em volta de
mim.
Ele ficou em silêncio. Eu ainda estava com os tornozelos em volta
dele, sem soltar.
– E outra coisa. – Respirei fundo, mas vi que meu peito não
estava doendo tanto, não como antes. – Minha mãe foi presa
quando eu tinha seis anos. Antes disso, fui tirada dela três vezes
porque ela era dependente química. Quando ela foi presa, voltei
para um lar de acolhimento porque não havia ninguém pra ficar
comigo. Eu não conheci meu pai, os pais dela estavam mortos, eu
não tinha tios nem tias nem primos nem nada. Eu não tinha pra
onde ir. E, quando ela saiu da prisão, não foi me buscar. Teve uma
overdose um ano depois, e eu só descobri quando tinha treze anos.
Morei com sete famílias de acolhimento antes de fazer dezoito anos
e ficar por conta própria. Nunca olhei para trás. Passei a vida
sabendo que ninguém me queria e fiz questão que minha vida
continuasse assim. Sem apegos, sem raízes, sem uma casa de
verdade, sem tradições de verdade. Eu cuidava de mim mesma e
pronto. A ideia de depender de outra pessoa, de ter que precisar de
alguém, não era algo que eu me permitisse, porque se mais alguém
me abandonasse, eu ficaria destruída.
– Clara – disse ele, os olhos cheios.
– Mas tudo bem – falei, levantando a mão e ajeitando seu cabelo.
– Posso contar isso tudo agora porque não estou mais constrangida.
Não sou meu passado, sou meu presente. E meu futuro está em
aberto. Posso construir o tipo de vida que quiser pra mim, e a vida
que eu quero pra mim é com você, só com você. Tudo, todas as
partes, até suas antiguidades e seu Especial do Archie e suas
sardas e seu apito idiota, eu quero. Porque eu te amo, eu te amo
tanto, eu te amo com todo o coração. E, até você, não havia nada
dentro dele. Você preencheu meu coração. – Segurei seu rosto nas
mãos. – Meu coração, se você quiser, é seu.
Ele ficou em silêncio de novo. Eu mal respirava. Ele quereria?
Poderia?
Finalmente, ele fechou os olhos. E encostou a testa na minha.
– Não acredito que você nos jogou de uma varanda.
– Não acredito que você me fez te perseguir pelo lago.
Ele abriu os olhos.
– Não acredito que tenho uma garota tão mandona me amando
tanto.
– Eu te amo.
– Ouvi falar.
– Agora você tem que dizer também.
Ele beijou meu nariz, minhas pálpebras, cada bochecha e meu
queixo. E sussurrou:
– Eu te amo.
Eu estiquei os dedos dos pés.
– Me beija, Hoteleiro.
Ele beijou mesmo.
A turma do amendoim e o hotel inteiro comemoraram.

Nós voltamos nadando até a margem. Nossos amigos estavam nos


esperando na doca.
– Quando você capricha, você capricha mesmo, hein! – gritou
Natalie, colocando uma toalha nos meus ombros.
– Eu o amo – eu disse, sorrindo para o meu homem.
– Vem cá, Mandona. – Ele riu e me aninhou debaixo do braço. E
olhou para a varanda do terceiro andar. – Mais ninguém pulou?
– Não mesmo, todo mundo só ficou olhando pra ver o que ia
acontecer – respondeu Leo, dando um tapinha nas costas de
Archie. – Talvez você possa fazer o pulo no Labor Day.
– Vou ficar de fora desse. – Olhei para cima e vi como a varanda
era alta. – Meu Senhor, que coisa alta!
– Esther Williams aqui. – Roxie riu. – Mas você não ia deixar seu
homem pular sozinho.
– Eu o amo – repeti. Não cansava de ouvir essas palavras saírem
da minha boca. Emocionante.
– Sei que ama, querida. – Ela riu e chamou alguém na multidão. –
Ei, tem uma pessoa aqui pra você conhecer.
– Não dá pra esperar? Eu quero beijar o Archie um pouco. – E,
sem esperar, estiquei as mãos e puxei a boca receptiva dele até a
minha, sem me importar com quem estava olhando e com quem eu
ia conhecer.
– Ahn, Clara? – ouvi Roxie dizer.
– Sim, sim, num minuto. – Suspirei quando as mãos de Archie
envolveram minha cintura e me puxaram.
– Não se preocupe, Rox, vamos nos encontrar com ela depois, os
dois parecem meio ocupados, né? – ouvi uma voz estranhamente
familiar e com um sotaque britânico distinto.
Abri os olhos apesar de ainda estar beijando Archie. Olhei para a
esquerda apesar de ainda estar beijando Archie. E vi Jack Hamilton,
o próprio, parecendo meio constrangido… enquanto eu ainda estava
beijando Archie.
– Eu te amo – eu disse para ele enquanto ainda estava beijando
Archie. – Quer dizer…
– Ai! – exclamou Archie. – Você mordeu meu lábio!
– Por que o Jack Hamilton está parado aqui me olhando? –
perguntei a Archie com o canto da boca. Olhei para a ruiva linda ao
lado de Jack. – Merda, a Grace Sheridan também está me olhando.
O que está acontecendo?
– Nós vimos seu salto da varanda e foi brilhante, não foi, minha
doidinha? – Jack perguntou a Grace, passando o braço pelo ombro
dela.
– Se eu não tivesse visto, não teria acreditado! – respondeu
Grace, com um sorriso naturalmente caloroso.
– Alguém pode me explicar o que está acontecendo? – perguntei,
sem conseguir tirar os olhos da realeza de Hollywood parada na
minha frente. – E, Jack, eu te amo.
– Tudo bem, já chega – disse Roxie, se intrometendo. – Lembra
que você falou sobre trazer celebridades como clientes pra cá,
trazer sangue novo para o Bryant Mountain House? Bem, eu
comentei com o Archie que talvez tivesse um casal que se
encaixaria perfeitamente, e ele os convidou para o fim de semana.
Não é demais? – Ela passou os braços pelos deles. – Não vejo
esses dois desde que fui embora de Los Angeles.
– Ela disse que voltaria pra cozinhar pra gente, mas não voltou
nunca – disse Jack.
– Agora que eu conheci o Leo, entendo por quê – disse Grace,
abrindo outro sorriso de estrela de cinema na direção de Leo.
– A Grace está se apresentando em Nova York por algumas
semanas e pensamos em aparecer aqui para ver a Rox e conhecer
o hotel do qual ela tanto fala. Que é ótimo, aliás. Parabéns, amigo! –
disse Jack, esticando a mão e apertando a de Archie.
– Estamos felizes de receber vocês aqui – disse Archie, e de
repente percebi que eu estava conhecendo a estrela da franquia
Tempo, uma das minhas favoritas, num vestido encharcado depois
de me jogar num lago para beijar o homem que eu amava.
Era o melhor dia do mundo.

– Eu só queria que alguém tivesse me avisado, só isso – falei de


novo debaixo da toalha. Archie e eu finalmente tínhamos
conseguido sair do meio dos hóspedes e funcionários que haviam
se reunido em volta de nós perto do lago e escapado para um dos
quartos, para tomar um banho. Eu estava esfregando o cabelo para
tirar um pouco da umidade e, quando levantei a cabeça, ele estava
todo espetado. – Afinal, é o Jack Hamilton, porra! É como não dizer
para alguém que, “ei, a propósito, o Robert Pattinson está colhendo
maçãs no seu jardim, nada de mais”.
De repente, mãos quentes envolveram minha cintura e me
puxaram para perto de um corpo quente.
– Eles já estão aqui há alguns dias, Mandona. Não é nada de
mais agora. Lembra que já houve gente da realeza hospedada aqui.
Você se acostuma.
– Realeza – debochei, me virando nos braços dele. – Eles são a
realeza de Hollywood, e ainda acho que alguém podia ter me
contado. Eu fiz papel de boba.
– Você estava linda – respondeu ele, me beijando no nariz. –
Principalmente quando falou pra ele que o amava.
– Eu o amo. – Sorri. – Mas não como amo você.
– Esperamos que não – advertiu Archie, erguendo meu queixo
com a mão. – Quanto tempo você acha que nós temos aqui antes
de virem nos procurar?
– Que se fodam – falei, pegando a mão dele. Virei a palma para
cima e dei um beijo no meio. – Eles não sabem em que quarto
estamos e não tenho ideia de onde meu celular está, então eles não
podem me ligar e… – Parei de falar e fiquei parada, olhando para
sua mão.
– Clara?
Ergui a mão dele.
– Sua aliança. Você não está usando.
– Não.
Meu coração bateu mais rápido.
– Quando você tirou?
Ele ergueu meu queixo novamente para poder me encarar.
– No dia em que você foi embora. Não usei mais depois disso.
– Ah.
– Só amei duas mulheres na vida, Clara. – Aqueles olhos azuis,
envoltos pelos cílios ruivos mais lindos, começaram a ganhar brilho.
– Para deixar claro, sou uma delas, né?
– Ridícula – murmurou ele, passando as pontas dos dedos na
minha bochecha.
Fiquei nas pontas dos pés e o beijei.
– Quer ficar aqui não vendo televisão?
Ele me ergueu no ar.
– Achei que você não ia perguntar!
Ele me deixou nua em segundos. E o jeito como me olhou deixou
claro que não íamos a lugar nenhum tão cedo.
– Nós vamos perder os fogos – eu disse quando ele me carregou
para a cama.
– A gente pode ver da varanda.
– Tradição nova, é? – Levantei os braços acima da cabeça
quando ele começou a beijar meu corpo.
– Exatamente o que eu estava pensando – disse ele para o meu
umbigo.
– Eu te amo.
Ele ergueu minha perna por cima do seu ombro.
– Nunca pare de dizer isso.
– Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo. Eu…
“Ah…
“Ah…
“Ah…
“… te amo!”
Epílogo

Eu a observava do outro lado da sala de jantar. Ela ainda não


tinha reparado em mim. Quando minha garota estava concentrada
em uma coisa, era difícil afastar o olhar. Por mim, tudo bem, porque
eu amava vê-la trabalhar.
Ela examinou os novos cardápios com os óculos novos, que ela
tinha insistido que não precisava, mas acabou comprando. Ficava
linda quando os usava, principalmente quando eu ia para a cama e
a encontrava ainda acordada e lendo. Apoiada nos mil travesseiros
que ela gostava de empilhar à noite, ela se sentava majestosamente
em uma montanha branca, usando só os óculos e uma das minhas
camisetas velhas, com planilhas e revistas de negócios espalhadas
ao redor. Às vezes, quando lia, a ponta da língua dela aparecia. Ela
sabia que fazia isso? Sabia que me deixava louco?
Às vezes, ela sabia. Como quando eu estava bem dentro dela e
ela estava quente e molhada em volta de mim e enfiava as unhas
nas minhas costas, um grau acima da dor, sabendo que eu meteria
com mais rapidez e intensidade se ela fizesse isso. Eu ficava louco.
Minha garota era selvagem. E barulhenta. E chata. E irritante. E
mandona à beça. E eu não mudaria nada nela.
– Ei, Hoteleiro! – chamou ela do outro lado do quarto, e sorri só de
ouvir sua voz. – Vem aqui e olha isso comigo.
– Estou indo, Mandona.
Clara tinha pedido demissão, e, apesar de o chefe tentar fazê-la
voltar, ela estava inflexível na decisão. Embora tivesse passado o
restante do verão comigo, ajudando nossa equipe a implementar as
mudanças que ela tinha iniciado na primavera, em setembro percebi
que estava ficando inquieta.
– Eu poderia escolher os trabalhos, escolher quando vou
trabalhar. Eu teria muita liberdade de fazer as coisas como eu
quero.
– Parece ótimo.
– Não, sério, o que você acha? – perguntara ela, roendo
ansiosamente a unha do polegar.
Ela tinha me abordado com a ideia de voltar a trabalhar como
freelancer. Para dizer de forma simples, minha garota tinha
construído um nome tão grande no nosso mercado que havia donos
de hotel batendo à porta dela. Mesmo com o que o The Empire
Group havia tentado fazer com Clara, o trabalho dela falava por si.
No entanto, ela não queria tomar essa decisão sem mim.
Não foi fácil para a minha garota passar a compartilhar. Ela estava
muito acostumada a fazer as coisas do seu jeito. Durante anos, ela
tinha tomado decisões baseada em suas próprias necessidades,
mas estava se esforçando muito para me incluir em tudo agora, e eu
a amava ainda mais por isso.
– Acho que parece ótimo, acho mesmo – falei, me inclinando para
beijá-la ruidosamente. – Vou sentir falta de ver seu rosto ao abrir os
olhos de manhã, mas parece uma ótima oportunidade.
– E meus peitos na sequência – disse ela, se inclinando para me
beijar também ruidosamente.
– Se você dormisse nua, eu poderia vê-los antes do seu rosto
algumas vezes – falei, puxando-a para o meu colo.
Aquela discussão terminou alguns segundos depois. E, algumas
semanas depois, Clara voltou para a estrada, e até agora está
sendo ótimo.
O Bryant Mountain House estava melhorando lentamente. Nós
implementamos quase todas as mudanças que Clara recomendou,
e tudo estava indo muito bem. Estávamos fechando uma parte do
hotel depois das festas, e os ajustes que havíamos precisado fazer
na equipe foram mínimos. Caroline e seus funcionários já tinham
começado a reforma dos quartos, e até eu tinha que admitir que
estava ficando lindo. E uns poucos tweets de um cara como Jack
Hamilton colocaram nosso hotel no mapa para um novo grupo de
viajantes. Quem poderia imaginar?
E ali estávamos nós, a uma semana do Natal. As festas ainda
eram difíceis para Clara, mas ela estava se esforçando muito. Nós
tínhamos passado o Dia de Ação de Graças em Manhattan com a
família de Natalie (uma briga que ainda magoava Trudy), e Clara se
saiu bem. Aos poucos, mas regularmente, estávamos construindo
lembranças novas para substituir as que ela não tinha tido em tantos
anos. E comemoramos cada feriado com o máximo de “eu te amo”
que conseguíamos dizer.
Eu sentia falta de Ashley. Claro que sentia falta de Ashley. Ela foi
parte da minha vida por mais tempo do que não foi. Mas, enquanto
nosso relacionamento parecia fácil, quase coisa do destino, o meu
amor por Clara dava trabalho, mas do melhor tipo. Nós
desafiávamos um ao outro, nós brigávamos, mas nos amávamos
muito. A compensação? Meu Deus, ela valia tudo.
– Eu contei que a Roxie e eu encontramos uns cardápios antigos
de 1920? Nós os usamos como base para estes, mas só como
base. Não íamos começar a servir suco de toranja e tomate no
jantar, né? Quem faz uma coisa dessas?
– Os Bryants faziam – eu disse, olhando por cima do ombro dela
para os cardápios. – Suco de toranja era um ótimo limpador de
palato.
– Isso não explica o suco de tomate. – Ela olhou para mim com
uma sobrancelha erguida, como se estivesse pronta para começar
uma discussão.
Eu estava pronto se ela estivesse.
– Era época da Lei Seca, e o suco de tomate devia estar batizado
com birita do porão.
– Falando em porão, a gente tem que voltar àquela sala da
caldeira qualquer hora, Hoteleiro. – Ela sorriu. – Adoro como você
fica segurando uma chave inglesa. – Ela se inclinou sobre a mesa,
fingindo mexer com no saleiro e no pimenteiro, mas só estava
mesmo mostrando a bunda dentro da saia lápis. Falando em anos
vinte, o que era aquilo, ela estava de meias de náilon?
Minha garota me deixava louco.
– Nos encontramos lá em vinte minutos.
Ela se virou com fogo nos olhos e balançou a cabeça.
– Em quinze, e ponto final.
Impossível contestar.
Agradecimentos

Enquanto escrevo isto, estou olhando pela janela do hotel para a


Ópera de Sydney. Como essa é a minha vida? Como cheguei aqui?
Como foi que uma mulher que gerenciava um day spa em St. Louis,
Missouri, acabou do outro lado do mundo em uma sessão de
autógrafos de livros (para autografar livros escritos por ela, mas
vocês já sabiam disso)?
A resposta é: vocês. Para dizer de forma simples, o motivo são
vocês, lindas leitoras, vocês. Vocês vieram comigo nessa viagem
louca que começou quando apertei o botão para publicar o primeiro
capítulo de A ruiva misteriosa, que não passava de um trecho pouco
conhecido de uma fan fiction.
Amo essa comunidade mais do que sou capaz de expressar. Há
algo de tão mágico em mulheres lendo romances e recomendando
romances e amando romances… E, por mais agradecida que eu
seja como uma autora que tem a chance de participar disso, sinto
ainda mais gratidão como leitora pelo gênero em si. Nesse mundo
muito estranho em que estamos vivendo, poder passar os últimos
momentos do meu dia, de todos os dias, aliás, na cama com um
livro incrível de ficção romântica é exatamente o que todas nós
precisamos.
Voltando a este livro que você está segurando: ele foi todo
inspirado em uma viagem que fiz para o Mohonk Mountain House,
em New Paltz, Nova York. O hotel é como um portal para um mundo
diferente. É lindo, tranquilo, parece um abraço enorme no topo da
montanha. Não consigo explicar direito esse pedaço de paraíso na
Terra; só sei que, embora o Bryant Mountain House tenha sido
inspirado no Mohonk, houve muita licença criativa para inventar
esse mundo fictício, porque não há nada, NADINHA, no verdadeiro
resort que exigiria que alguém como Clara aparecesse e o
reformasse. O Mohonk é a perfeição. Tornou-se um dos meus
lugares favoritos no planeta. Para qualquer uma que more a um
trajeto de trem do Hudson Valley: arrume um jeito de passar um fim
de semana lá em cima. Para quem não mora perto: vá mesmo
assim. Faça a viagem. Vai mudar sua vida.
Preciso agradecer às suspeitas de sempre, Nina Bocci, Jessica
Royer-Ocken, Marla Daniels e Lauren McKenna, que, apesar de ser
minha nova editora, eu já admirava há anos. Obrigada por sempre
me empurrarem e esperarem mais. Eu não teria conseguido sem
vocês.
Agradeço novamente a todas que me acompanharam nessa
jornada. Não sei para onde estamos indo, mas espero que vocês
venham junto.

Bjs!
Alice
Conheça outras obras de
Alice Clayton
Table of Contents
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Epílogo
Agradecimentos
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