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SONHÁRIO:

Traduzindo a linguagem do inconsciente

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ÍNDICE

1. Introdução 3
2. Uma breve história dos sonhos 4
3. A ciência por trás do sono 6
4. Sonhos como manifestações do inconsciente 12
5. A interpretação dos sonhos 14
6. Aplicações práticas do que sonhamos 15
7. Conclusão 19
8. Para saber mais 21
9. Referências bibliográficas 21
SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

INTRODUÇÃO
“Sonhar é acordar-se para dentro.” - Mario Quintana

Entender o significado dos sonhos é um objetivo comum a muitas pessoas ao longo dos séculos. Aqueles
que tentam explicar o que é vivenciado durante o sono sabem que eles são geralmente formados por uma
linguagem simbólica, isto é, seja qual for o elemento presente no sonho, provavelmente ele corresponde a
algo muito diferente do próprio elemento.

Em meio às diversas emoções experimentadas em um sonho, a mais frequente delas é a ansiedade;


ademais, os sentimentos negativos são mais comuns do que os positivos. Um indivíduo pode sonhar de 4 a
7 vezes em apenas uma noite.

O sonho pode ser uma experiência tão interessante quanto misteriosa, e


seus enredos intrigam tanto curiosos quanto especialistas.
Para o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, um dos maiores estudiosos do tema, a correria da vida
moderna fez com que o ser humano perdesse a intimidade com os sonhos - abrindo mão assim de um
poderoso instrumento para simular ações e solucionar problemas. Diretor da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) e um dos fundadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), Ribeiro destaca que sonhar e refletir sobre isso são atitudes que permitem
imaginar o futuro a partir de experiências passadas:

O excesso de conhecimento com falta de sabedoria é muito perigoso - é o que vivemos hoje.
Aumentar a introspecção, fazer um regresso aos sonhos, voltar a trazê-lo para a mesa do café da
manhã, para a cama ao lado de quem se dorme, para um grupo de trabalho, para a psicanálise, com
os filhos, o sonho ser um assunto na vida das pessoas é muito importante.

Em seu livro “O Oráculo da Noite” (RIBEIRO, 2019), o especialista defende a atividade onírica como
uma espécie de treinamento para encarar os desafios cotidianos ou “um espaço de simulação sem
consequência”:

No mundo contemporâneo não há lugar nenhum para o sonho. Ninguém pergunta sobre os sonhos.
Mas, se você não prestar atenção aos sonhos, no fundo, é todo um espaço mental que deixa
de existir. É como se a pessoa abrisse mão de uma dimensão da sua mente.

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Figura 1 De acordo com Sidarta, os


sonhos são de essencial importância e
podem nos auxiliar a desenvolver um
melhor posicionamento diante da vida.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS SONHOS


“Os sonhos são a literatura do sono.” - Jean Cocteau

Os sonhos sempre despertaram enorme curiosidade e fascínio no ser humano. Por isso, a oniromancia
(do grego oneros e manteia = leitura dos sonhos) é uma prática social frequente desde a antiguidade, entre
povos como os egípcios e os judeus. Nossos antepassados consideravam as visões oníricas verdadeiras
revelações, por isso dedicavam-se ao seu registro e análise, além de usá-las para guiar decisões nas esferas
pessoal, política e econômica.

Sociedades antigas valorizavam tanto o sonho que a primeira coisa que faziam ao acordar era uma reunião
para descrever, coletivamente, os sonhos da noite anterior, buscando esclarecimentos para os mesmos.
Por meio das visões noturnas, aqueles povos tentavam prever bênçãos, como boas colheitas e vitórias nas
guerras, ou maldições, como pragas e doenças.

Os povos antigos, chineses, gregos, hindus e romanos consideravam os sonhos como mensageiros; para
uns, mensageiros dos espíritos e demônios, para outros, mensageiros dos deuses. O comportamento
desses povos era determinado pela compreensão dos sonhos. (REIS, 2015 p. 1 apud SOARES, 2016)

De acordo com um artigo da revista Epistemo-Somática, publicação da Clínica de Psicologia e Psicanálise do


hospital mineiro Mater Dei, os assírios foram o primeiro povo a desenvolver o interesse pela elucidação dos
sonhos:

Os primeiros registros de sonhos foram encontrados em forma de placas de argila na biblioteca do


rei Assurbanipal pertencente ao império Assírio, na antiga Mesopotâmia no quinto ou sexto milênio
a.C. Estes vestígios de linguagem escrita demonstram o interesse pelos sonhos e sua decifração
revelou que as placas continham uma espécie de guia de interpretação de sonhos.
(GONTIJO, 2006 p.1)

Já os gregos acreditavam que o sonho representava o vagar da alma enquanto dormiam, e que acordar antes
que a alma retornasse ao corpo poderia deixar alguém louco. Os sonhos representavam recados divinos a
decifrar para eles, uma dádiva de Prometeu, deus civilizador e titã afeiçoado à humanidade. Segundo a lenda
de Prometeu - cujo nome significa, etimologicamente, “aquele que compreende antes”, o titã presenteia os
homens com o domínio do fogo roubado dos deuses, a esperança e os sonhos (ÉSQUILO, 1989).

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Nessa mesma época, o grande filósofo Aristóteles é o primeiro pensador a desenvolver uma perspectiva
agnóstica em relação ao sonho, embora afirme que o caráter profético dos sonhos não deve ser ignorado,
mas sim verificado e analisado:

Não se pode nem descartar com desprezo a interpretação dos sonhos, nem ter nela confiança cega.
(...) Os sonhos devem ser considerados causas ou símbolos dos eventos, ou então coincidências.
(...) O mais sagaz intérprete de sonhos é aquele que possui a faculdade de colher as similaridades.
(ARISTÓTELES, 2003, p.83)

Muito tempo depois, já no final do século 19, a psicóloga americana Mary Calkins foi uma pioneira nos
estudos científicos sobre o sono. Ela acordava seus pacientes ao notar que eles estavam se mexendo e
os questionava sobre o que estavam sonhando; desse modo, Calkins descobriu que a maioria dos sonhos
ocorria na segunda metade do sono e estava relacionada às experiências vividas durante o dia (FINGER,
1994).

Após poucos anos, o pai da psicanálise Sigmund Freud iria além, propondo que os desejos reprimidos
mais secretos se manifestam nos sonhos – embora nem sempre de uma forma fácil de compreender.

Imagens mentais que surgem no período de sono podem representar


diversas vontades ocultas de nós mesmos e censuradas durante a vigília.
O impacto da teoria freudiana – que analisaremos detalhadamente mais adiante – é enorme e presente até a
atualidade.

Ainda na década de 1950, um cientista da Universidade de Chicago observou que, em certo momento
durante o sono de seus filhos, os olhos deles se moviam incessantemente, mesmo fechados. Isso originaria
um revolucionário artigo científico que introduziria a chamada fase REM (Rapid Eye Movement ou movimento
rápido dos olhos), associando-a aos sonhos (SMITHSONIAN, 2003).

O funcionamento dos sonhos seguiu como alvo de pesquisas e debates por muitos anos, atraindo a atenção
de neurobiólogos e psicólogos, além de unir diversos ramos científicos. Já se sabe, por exemplo, que o
sono REM é indispensável ao aprendizado, graças as suas propriedades de consolidar memórias
recém-adquiridas. Uma vez que a maioria dos sonhos acontece nesse período, é possível concluir que, sem
eles, talvez não fôssemos capazes de reconhecer o rosto de alguém que conhecemos no dia anterior, ou
lembrar um evento aparentemente corriqueiro, mas que pode ser importante no futuro.

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A CIÊNCIA POR TRÁS DO SONO


“Tudo o que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho.”
- Edgar Allan Poe

Boas horas de sono são fundamentais para todos nós; noites mal dormidas normalmente resultam em
lentidão e cansaço extremo durante o dia. Mas o que realmente se passa no organismo humano quando
alguém não dorme o suficiente?

Figura 2 Dormir é útil para eliminar dejetos do cérebro.

Primeiramente é importante observar que o sono é tão necessário para a vida quanto o oxigênio, a
água e a alimentação. Manter qualquer animal – inclusive o homem – acordado por muito tempo é morte
certa. Estudiosos descobriram que o sono é benéfico para as pessoas de várias formas, auxiliando a
processar memórias e a manter a vida social e emocional equilibrada.

Ao longo do dia, novas experiências levam as células cerebrais a criar conexões com outras zonas do
cérebro. Durante o sono, conexões mais fortes e relevantes são intensificadas, enquanto outras menos
importantes tendem a diminuir ou até desaparecer – dormir também é útil para eliminar dejetos do
cérebro (NEUROSCIENCE NEWS, 2019).

Um levantamento do Hospital da Mulher de Boston junto a 15.263 enfermeiras revelou que aquelas que
dormiam menos de cinco horas por noite a partir dos 50 anos possuíam uma capacidade de memorização
equivalente à de uma pessoa dois anos mais velha (ALZHEIMER’S & DEMENTIA, 2012).

A privação de sono impacta negativamente a memória, a tomada de decisões e a


comunicabilidade. Além disso, o excesso de cortisol no organismo decorrente da
privação de sono costuma provocar mau humor e aumentar a agressividade.
Um estudo liderado pela professora Maiken Nedergaard, do Medical Centre da University of Rochester,
em Nova York, descobriu uma rede de canais microscópicos, cheios de fluidos, que descarta restos
químicos do cérebro de ratos. Publicada em 2013, a pesquisa de Nedergaard mostra como o processo
de armazenamento e “limpeza” cerebral acontece durante o sono, ou seja, quando o órgão está
“fechado”: “É como quando você faz uma festa em casa. Você pode entreter os convidados ou limpar a casa,
mas não pode fazer os dois ao mesmo tempo”, explica a professora (UNIVERSITY OF ROCHESTER MEDICAL
CENTER, 2019).

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Leões dormem mais de 13 horas por dia; para os cavalos, duas são suficientes, enquanto as girafas
precisam de apenas 30 minutos diários. Os seres humanos têm um sono médio de oito horas, embora
algumas pessoas precisem de bem menos do que isso – há relatos de que Napoleão Bonaparte dormia
apenas quatro horas por noite (START SLEEPING, 2019).

Figura 2.1 As diferentes necessidades diárias de sono


no reino animal.

O déficit de sono pode modificar o comportamento dos genes nas células do corpo. Pesquisadores
da University of Surrey, em Guildford, Inglaterra, constataram que genes ligados a processos inflamatórios
parecem ficar mais ativos nesse contexto. Malcolm von Schantz, um dos especialistas do estudo em Surrey,
afirma que os genes reagem à falta de sono como se o organismo estivesse sob estresse (BBC, 2015).

Von Schantz defende que, em um passado distante, durantes períodos de estresse, os corpos de nossos
ancestrais se preveniam contra eventuais ferimentos ativando genes relacionados a inflamações, formando
assim uma proteção contra investidas de animais selvagens. (Atualmente esse mecanismo) “coloca o corpo
em alerta para um ferimento, mas nenhum ferimento acontece”, relata o pesquisador.

“Isso poderia ajudar a explicar os vínculos entre privação de sono e resultados negativos para a saúde, como
doença cardíaca e acidentes vasculares”, conclui Von Schantz.

Hoje em dia, portanto, preparar-se para ferimentos que não acontecem não é vantajoso – na realidade, essa
ativação inútil do sistema imunológico pode elevar o risco de doenças.

Embora a passagem do estado de vigília para o estado adormecido possa parecer abrupta, ela ocorre
por meio de um processo contínuo. Os ritmos circadianos têm um funcionamento cíclico: geralmente nos
sentimos despertos de manhã, enfrentamos uma queda de disposição no começo da tarde, ficamos com
bastante energia no início da noite e, por fim, bem cansados conforme chega a hora de dormir.

Pesquisas recentes elevaram consideravelmente nosso saber sobre o ritmo circadiano; de fato, o Prêmio
Nobel de Fisiologia ou Medicina do ano de 2017 foi conquistado por pesquisadores desse assunto
(NOBEL PRIZE, 2017). Embora o sistema envolvido na sonolência seja bastante complexo, é possível
afirmar que o corpo humano produz melatonina para indicar a necessidade de sono.

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Figura 2.2 Melatonina, o hormônio do sono.

POR QUE SONHAMOS?


Embora exista uma relação sinérgica entre alimentação, atividades físicas e sono, só há poucos anos
estudiosos de Harvard conseguiram demonstrar cientificamente que os sonhos podem de fato influenciar
a vida de vigília (HARVARD BUSINESS REVIEW, 2012). Essa teoria é reforçada pelo neurocientista e
especialista em sono Matthew Walker em sua obra “Por que nós dormimos” (WALKER, 2018).

Sonhar é um fenômeno universal e fisiológico, ou seja, todo mundo sonha. Sonhamos de 4 a 5 vezes por
noite, com durações de 5 a 30 minutos – isto é, passamos aproximadamente 6 anos de nossas vidas
sonhando. Os sonhos costumam ser mais longos e intensos na segunda metade da noite, mas como seu
rastro de memória é muito fraco, frequentemente nos esquecemos do que sonhamos; para lembrar, é
preciso despertar durante ou logo após o sonho.

Após décadas de pesquisa e prática clínica, como professor de neurociência e psicologia na Universidade de
Berkeley, Walker concluiu que sonhar é fundamental não apenas para a saúde física, mas também para
melhorar relacionamentos, aprender e ser mais produtivo. Ele conta, por exemplo, que certa vez, ao final de
uma palestra, foi interpelado por um pianista que comentou que, após uma boa noite de sono, conseguiu
tocar composições dificílimas.

Esse relato levou Walker a associar a facilidade de aprendizagem aos sonhos e à própria qualidade do
repouso.

De acordo com um estudo publicado em 2017 pelo periódico científico Nature Communications, o cérebro
só consegue fixar aprendizados durante a fase de sono REM (NATURE COMMUNICATIONS, 2017). Para
chegar a essa conclusão, o pesquisador da universidade parisiense PSL Thomas Andrillon monitorou o
sono de 20 pessoas que ouviram uma série de padrões de sons misturados com ruídos brancos (sinal
sonoro que possui todas as frequências na mesma potência, como o som de uma televisão fora do ar)
enquanto estavam acordadas e, em seguida, enquanto dormiam.

No dia seguinte ao experimento, ao solicitar que os participantes indicassem os padrões de sons a que
haviam sido submetidos, Andrillon constatou que os indivíduos que escutaram os sons durante a fase de
sono REM obtiveram um desempenho consideravelmente superior ao dos demais.

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Figura 2.3 A frequência das ondas cerebrais varia


conforme a fase do sono.

AS QUATRO FASES DO SONO


Ter um bom sono é tão necessário quanto dormir pelo tempo adequado. Embora adormecidos, nossos
cérebros permanecem em constante atividade, com oscilações padronizadas das frequências das ondas
cerebrais. Cada uma dessas “faixas de frequência” representa uma fase distinta do sono; elas se alternam ao
longo da noite, enquanto o cérebro desempenha funções especificas (SLEEP CYCLE, 2019):

• Fase 1: sono leve


Duração: entre 5 e 10 minutos
Frequência de ondas cerebrais: 4-12 Hz
Transição entre o estado de vigília e o sono. Nesta fase ocorre uma diminuição das ondas cerebrais e da
atividade muscular.

• Fase 2: sono médio


Duração: entre 20 e 30 minutos
Frequência de ondas cerebrais: 4-7 Hz
Aqui os olhos param de se mexer, enquanto as ondas cerebrais são reduzidas. A pressão sanguínea e a
temperatura corporal também diminuem.

• Fase 3: sono profundo


Duração: entre 10 e 30 minutos
Frequência de ondas cerebrais: 0,1-4 Hz
O cérebro “hiberna”, liberando ondas lentíssimas. Nesta fase é bastante difícil acordar, mas se acontecer o
indivíduo tende a ficar desorientado por algum tempo.

• Fase 4: R.E.M. (Rapid Eye Movement)


Duração: entre 10 e 60 minutos
Frequência de ondas cerebrais: 30 Hz
Na fase REM a frequência de ondas cerebrais dispara, atingindo a mesma velocidade observada no
estado de vigília. O cérebro fica bastante ativo, enquanto a pressão sanguínea e a respiração também são
aumentadas. Os olhos movem-se rapidamente e os sonhos surgem.

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Recentemente, uma equipe do ATR Computational Neuroscience Laboratories, em Kyoto, no Japão,


começou a investigar sonhos por meio do uso de um equipamento capaz de “lê-los”. Para isso, os
especialistas realizaram exames de ressonância magnética em voluntários enquanto dormiam, registrando
seus padrões de ondas cerebrais. Ao acordarem, os voluntários descreviam o que sonharam.

A partir desses relatos, a equipe criou uma lista com 20 categorias de sonhos: rua, casa, homem, mulher,
trabalho, etc. Em seguida, os estudiosos compararam as categorias ao padrão de atividade na área
cerebral responsável pelo processamento de dados visuais. Constatou-se, assim, uma relação direta
entre os temas e as zonas do cérebro ativadas. A relação foi tão clara que os especialistas podiam afirmar
com 80% de precisão em qual categoria o sonho do paciente se encaixava (NATURE, 2012).

Os sonhos que ocorrem durante a fase REM favorecem a organização criativa das informações recebidas
ao longo do dia, além de nos ajudar a lidar com questões emocionais. Sem eles, seria impossível adquirir
novos conhecimentos, formar lembranças e tomar decisões. A etapa REM ocupa em média 20% do sono de
um adulto.

Aproximadamente 12% das pessoas sonham apenas em preto e branco; as demais veem imagens
sempre coloridas. Pesquisas realizadas entre 1915 e 1950 indicavam que a maioria dos seres humanos
sonhava em preto e branco, porém isso começou a mudar nos anos de 1960 - hoje em dia, somente
4,4% dos indivíduos com 25 anos ou menos sonham em preto e branco. Estudos recentes indicam que
isso é uma das consequências do avanço na TV e no cinema, cujas transmissões tornaram-se coloridas
(NEWSCIENTIST, 2008).

O cérebro não consegue criar rostos, ou seja, se algum estranho aparece durante o sonho, certamente
essa pessoa já foi vista antes. Todas as feições com as quais sonhamos são de pessoas reais,
mesmo que não nos lembremos delas. Como vemos milhares de pessoas diferentes ao longo da vida, o
cérebro forma uma vasta lista de personagens para os sonhos.

SONHOS LÚCIDOS
“É escusado sonhar que se bebe; quando a sede aperta, é preciso acordar para beber.”
- Sigmund Freud

“Os sonhos são a realização de desejos ocultos”. O autor dessa frase é ninguém menos que o psicanalista
austríaco Sigmund Freud, que no ano de 1899 descobriu a cura para a doença de uma paciente por meio de
um sonho.

Lembrar claramente os sonhos já é muitas vezes uma tarefa difícil, mas que tal controlá-los? O chamado
sonho lúcido é um jeito de sonhar tendo consciência de que tudo que está ocorrendo é, de fato, parte
de um sonho.

Trata-se da capacidade de acessar o estado mental dos sonhos e refletir


sobre eles, sabendo que toda a experiência é imaginária
(TUCCILLO et al., 2015).
O primeiro relato histórico existente sobre o tema remonta a 415 d.C., em uma carta de Santo Agostinho.
Nela, foi registrado o sonho de um médico em Cartago, chamado Genádio, que tinha grandes dúvidas sobre
a vida após a morte. Ao dialogar com um anjo sobre o assunto, Genádio é informado de que tudo é um
sonho e consegue, a partir daí, tornar-se lúcido sobre todos os acontecimentos do mesmo.

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O termo “sonho lúcido” foi cunhado em 1913 pelo psiquiatra holandês Frederik van Eeden. Ele dedicava-
se a estudar os próprios sonhos e ficava intrigado com aqueles nos quais parecia “agir voluntariamente”. O
fenômeno, porém, só viraria objeto de mais pesquisas científicas a partir da década de 1980; nessa época,
o psicólogo alemão Paul Tholey estabeleceu três parâmetros para designar um sonho lúcido: ter a
consciência de estar sonhando, ser capaz de tomar decisões nele e memorizar o que ocorreu. Paralelamente,
o psicólogo Stephen LaBerge, da Universidade Stanford, propôs o primeiro método para a estimulação de
sonhos lúcidos (LABERGE, 2001).

O MÉTODO DO SONHO LÚCIDO DE LABERGE


A técnica deve ser praticada diariamente e os resultados geralmente surgem dentro de uma ou duas
semanas

1. Assim que despertar, não abra os olhos, nem pense. Só tente lembrar o máximo possível do que
sonhou e anote tudo.
2. Ao longo do dia, mentalize você mesmo tendo um sonho lúcido. Pense em como a experiência seria
interessante e no que você faria dentro do sonho.
3. Faça “checagens de realidade” durante o dia. Periodicamente pare suas atividades e questione se a
situação que está vivendo é real ou sonho.
4. A pergunta “estou sonhando?” deve surgir em algum momento no sonho. Ao respondê-la, você tomará
consciência dentro dele.

Uma interessante técnica complementar nesse processo é a da âncora, usada por sonhadores lúcidos
para verificar se estão vivendo a realidade ou um sonho. A proposta é identificar ao longo do dia eventos
exclusivos do contexto não onírico. Ao apertar o interruptor da luz em um sonho, por exemplo, a luz não
necessariamente acenderá ou apagará, enquanto na vida real o interruptor sempre terá esse efeito. Há
vários outros tipos de âncoras, como olhar-se no espelho e ver a imagem que aparece antes de sair; aqui,
o que importa é criar hábitos simples para checar a realidade e posteriormente aplicá-los nos sonhos.

No ano 2000, LaBerge conseguiu comprovar que uma pessoa pode se comunicar com o mundo externo
enquanto sonha. Em seu estudo, os voluntários adormeciam e, assim que “acordassem” dentro de um
sonho, deveriam sinalizar com movimentos específicos dos olhos para os lados. Os resultados foram
surpreendentes e provaram que, embora eles estivessem de fato dormindo e sonhando - como verificado
por meio do acompanhamento de suas ondas cerebrais -, estavam simultaneamente acordados dentro dos
sonhos.

A ciência ainda não consegue explicar detalhadamente o processo de sonhar lucidamente, mas segue
investigando. Uma pesquisa realizada pela universidade alemã de Bonn descobriu que, durante os sonhos
lúcidos, o cérebro emite ondas elétricas de 40 Hertz, a mesma frequência do estado de vigília (os sonhos
normais apresentam ondas mais lentas, de 6 a 10 Hz). Assim, o sonho lúcido pode ser considerado uma
etapa intermediária entre dormir e estar acordado.

Sabe-se que esse processo está relacionado a duas zonas cerebrais: o córtex frontopolar e o
hipocampo, que se tornam mais ativos. Os cientistas do Instituto Max Planck, em Berlim, fizeram essa
constatação após analisar os cérebros de 31 pessoas que costumam ter sonhos lúcidos frequentemente.

O córtex frontopolar e o hipocampo são regiões cerebrais relacionadas à metacognição, ou seja, a


capacidade que todo ser humano tem de monitorar e controlar os próprios sentimentos.

O sonho lúcido pode ser considerado uma ação de controle das emoções,
só que durante o sono.
Sonhar lucidamente não é um fenômeno tão incomum quanto se imagina. Um levantamento do Instituto do
Cérebro da UFRN mostrou que 77,2% dos brasileiros já tiveram sonhos lúcidos, embora a grande maioria
das pessoas só experimente de um a dez desses sonhos durante toda a vida.
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De acordo com o autor da pesquisa, o neurocientista Sérgio Arthuro Mota-Rolim, os sonhos lúcidos podem
ser voluntários ou não, e não é possível escolher o que será sonhado. Ao acordar dentro de um sonho, o
sujeito percebe-se dentro de uma situação já formada e, apesar de poder decidir como agir a partir desse
momento, o cenário geral do sonho já está formado.

SONHOS COMO MANIFESTAÇÕES DO INCONSCIENTE


“O sonho é a satisfação de que o desejo se realize.” - Sigmund Freud

Em sua famosa obra “A Interpretação dos Sonhos”, publicada em 1900, Sigmund Freud afirma que “o sonho
é a estrada real que conduz ao inconsciente”. Contrariando teorias proeminentes que definiam os sonhos
como meras ferramentas de formação de memórias ou produtos da ativação cerebral aleatória, Freud
defendia que os sonhos trazem importantes insights sobre emoções e desejos ocultos.

Figura 2.4 Sigmund Freud e a análise dos sonhos.

No início de 1900, o psiquiatra austríaco escreveu extensivamente sobre as teorias dos sonhos e suas
interpretações. Ele explicava os sonhos como manifestações de ansiedades e desejos mais profundos,
frequentemente relacionados a obsessões e lembranças reprimidas.

Sonhar representaria, portanto, uma tentativa de realização de um desejo


inconsciente reprimido, tendo em vista que durante o sono a repressão
diminui e o indivíduo consegue sonhar com aquilo que o está sufocando
(FREUD, 2018).
Mas por que não sonhar diretamente com o que se deseja, em vez de metáforas que devem ser
submetidas a interpretações complexas para descobrir o que o sonhador realmente busca?

Freud justifica essa distorção comum nos sonhos por meio da repressão – por ser reprimida, a vontade
expressa no sonho só consegue passar pela consciência distorcendo-se:

“Quando a realização de desejo é irreconhecível, quando é disfarçada, deve ter havido uma
tendência à defesa contra esse desejo e, em consequência dela, o desejo não poderia se
manifestar de outra forma a não ser distorcido” (FREUD, 2012 p. 163).

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Freud compara esse sistema de controle e aprovação da consciência a um regime ditatorial. Durante o
regime militar brasileiro, por exemplo, as músicas eram compostas com muitas figuras de linguagens
e trocadilhos, de modo a não despertar a atenção dos censores governamentais. É o caso da canção
do famoso Chico Buarque, Cálice; no trecho “Pai, afasta de mim esse cálice”, a palavra cálice pode ser
entendida como “cale-se”, em alusão à repressão da ditadura.

Na interpretação dos sonhos, Freud emprega majoritariamente dois conceitos:

1. Condensação, “termo empregado por Sigmund Freud para designar um dos principais mecanismos
do funcionamento do inconsciente. A condensação efetua a fusão de diversas ideias do pensamento
inconsciente, em especial no sonho, para desembocar numa única imagem no conteúdo manifesto,
consciente” (ROUDINESCO, E.; PLON, M., 1997 p. 125).
2. Deslocamento, “processo psíquico inconsciente, teorizado por Sigmund Freud sobretudo no contexto
da análise do sonho. O deslocamento, por meio de um deslizamento associativo, transforma elementos
primordiais de um conteúdo latente em detalhes secundários de um conteúdo manifesto” (ROUDINESCO,
E.; PLON, M., 1997 p. 148).

Em termos gerais, a condensação representa uma forma de disfarçar ideias vistas como inadequadas
ou desagradáveis pelo sonhador, confundindo a consciência com uma mistura de emoções. Nesse
processo, para compreender o sentido original, é geralmente necessário o auxílio de um analista, que propõe
um encadeamento de pensamentos até atingir o verdadeiro núcleo.

Para demonstrar isso, Freud (1900, p.328) cita seu sonho da monografia de botânica; nele, embora o tema
onírico central seja a botânica, a verdadeira implicação é o conflito enfrentado por ter que trabalhar em
equipe, interagindo com seus colegas de curso. A disciplina em si, que não era uma de suas prediletas,
aparece no centro do sonho como um deslocamento para ocultar o conteúdo recalcado.

O médico vienense sugere que os sonhos devem ser abordados por meio de associação livre, com a
ajuda de um terapeuta. Freud trata também em sua obra dos chamados sonhos típicos, aqueles que têm
os significados parecidos para todas as pessoas (veremos detalhadamente este tipo de sonho mais adiante,
na sessão “Aplicações práticas do que sonhamos”):

Esses sonhos típicos também despertam um interesse especial porque supostamente provêm
das mesmas fontes em todas as pessoas, parecendo portanto especialmente apropriados
para dar esclarecimentos sobre as fontes dos sonhos (FREUD, 2012 p. 263\).

Segundo G. William Domhoff, professor emérito e professor de pesquisa de psicologia e sociologia da


Universidade da Califórnia, o termo “significado” implica em coerência e relações sistemáticas com
outras variáveis. Sendo assim, sonhos possuem significados e podem ser muito reveladores sobre o
conteúdo da mente humana.

Domhoff explica que 75 a 100 sonhos de uma pessoa fornecem uma espécie de “raio-x psicológico”
desse indivíduo. Além disso, a análise de 1.000 sonhos de alguém durante duas décadas pode indicar um
perfil da mente do indivíduo tão minuciosamente quanto tirar suas impressões digitais (DOMHOFF, 2017).

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A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS


“Alguns homens veem as coisas como são, e dizem ‘Por quê?’ Eu sonho com as coisas que
nunca foram e digo ‘Por que não?’ - George Bernard Shaw

O sonho pode ser entendido como um fenômeno da vida psíquica normal no qual elementos mentais
inconscientes são revelados de forma mais clara e acessível para análise. Na concepção freudiana, o
sonho é um produto da atividade inconsciente e sempre apresenta um sentido intencional: a concretização
ou tentativa de concretização, às vezes bastante dissimulada, de um desejo reprimido.

Os sonhos, portanto, demonstram a real natureza humana e devem


ser usados como formas de tornar o lado oculto da mente acessível à
consciência.
Sendo assim, a interpretação dos sonhos tem como principal objetivo descortinar conteúdos mentais,
ideias, experiências e dados que, por algum motivo, foram recalcados ou reprimidos, ou seja, excluídos do
consciente por ações defensivas do ego e do superego e enviados para o inconsciente.

A atividade onírica é a reflexão do modo no qual o organismo exercita a si mesmo em suas multíplices
partes e funções. A nossa consciência é um estado de reflexão, o modo de espelho que usamos para
relevar alguns comportamentos. A atividade onírica é o espelho total do realismo sinérgico do orgânico
funcional. No momento da morte, a última coisa que desaparece da nossa atividade é justamente a ação
onírica. (AZEVEDO, 2013, apud MENEGHETTI, 1998, p. 95)

Os sonhos podem dizer muito sobre nós mesmos. De acordo com uma pesquisa dos professores Ernest
Hartmann (ensina psiquiatria na Escola de Medicina da Universidade de Boston, EUA) e Robert Kunzendorf
(professor de psicologia da Universidade de Massachussets Lowell, EUA), o jeito como nossa mente
passa do estado de vigília para o sonho pode revelar aspectos importantes sobre nosso senso de
organização, criatividade e até radicalismo ou não de opiniões. Para tanto, Hartmann e Kunzendorf
sugerem as seguintes questões:

1. Qual é o comportamento das pessoas nos seus sonhos?


a) As feições das pessoas se transformam o tempo todo, inclusive virando animais ou monstros.
b) As pessoas que aparecem nos meus sonhos permanecem da mesma forma sempre.
c) Frequentemente começo sonhando com alguns amigos e eles repentinamente viram pessoas diferentes.
d) As pessoas mudaram de identidades apenas algumas poucas vezes em meus sonhos.

2. Quais das personagens são comuns nos seus sonhos?


a) Apenas parentes e amigos.
b) Todo tipo de gente: personagens fictícios, fadas, duendes, monstros, pessoas famosas, etc.
c) Familiares, amigos, conhecidos e celebridades.
d) Parentes, amigos e, eventualmente, celebridades.

3. Momentos estressantes na vida costumam interferir nos seus sonhos?


a) Não. Eu quase nunca lembro os meus sonhos.
b) Sim, tenho todos os tipos de pesadelos quando estou sob tensão.
c) Já tive sonhos com situações bem parecidas com as que eu estava vivenciando.
d) Às vezes, quando o problema real é bem sério.

4. Você controla seus sonhos de alguma forma?


a) Jamais. Às vezes nem participo do enredo do sonho, só observo os acontecimentos.
b) Controlo e normalmente sei que é um sonho.
c) Exerço algum controle e geralmente consigo despertar quando o sonho se torna desagradável.
d) Pouco controle, experimento o sonho como se fosse realidade.

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

5. A expressão francesa déjà vu refere-se à sensação de já ter estado em um lugar, visto algo ou feito alguma
coisa antes. Você já teve um déjà vu?
a) Não e não acho que faça sentido.
b) Sempre tenho.
c) Já tive algumas vezes.
d) Acho que não, mas não lembro.

6. Você costuma ter devaneios acordado?


a) Muitas vezes me distraio e tenho devaneios.
b) Quase nunca acontece.
c) Eventualmente, quando estou desocupado.
d) Às vezes, quando alguém me chama, não sei se foi no devaneio ou no mundo real.

Resultados:

Maioria de respostas A ou D: perfil aéreo


Você é criativo, imaginativo e frequentemente confunde lembranças de sonhos com fatos reais. É o tipo de
pessoa que costuma ter sonhos mais emocionais e também mais pesadelos do que a média.

Maioria de respostas B ou C: perfil centrado


Você é bastante racional, disciplinado e concentrado no que está fazendo. Pode ser bastante crítico e cético
também, desconfiando de qualquer coisa que não possa ser devidamente comprovada.

APLICAÇÕES PRÁTICAS DO QUE SONHAMOS


“Todos os homens que realizaram grandes coisas eram grandes sonhadores.”
- Orison Swett Marden

O neurocientista e psicólogo finlandês Antti Revonsuo defende que o hábito de sonhar teve um papel crucial
no êxito da espécie humana, pois sonhos com situações e animais perigosos preparavam nossos ancestrais
para os desafios da vida na selva (DREAM STUDIES, 2019). O neurocientista Sidarta Ribeiro realizou
pesquisas confirmam essa tese, revelando que os sonhos são úteis no treinamento do cérebro para
criar melhores soluções durante o dia. Sendo assim, faz sentido enxergar os sonhos menos como filmes
misteriosos e aleatórios de experiências passadas e mais como ensaios estratégicos para eventos futuros.

Figura 2.5 Sonhos: inspiração para histórias fantásticas.

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

O cérebro humano é um dispositivo tão poderoso e criativo que consegue construir imagens valiosas
enquanto dormimos. Alguns sonhos inspiram histórias fantásticas, enquanto outros originam grandes
descobertas e invenções nas áreas da ciência, da tecnologia e da arte (WORLD OF LUCID DREAMING,
2019).

Em sua juventude, Albert Einstein certa vez sonhou com várias vacas sendo arremessadas no campo
simultaneamente ao encostarem em uma cerca elétrica. Mas outra pessoa no sonho informou que elas
foram arremessadas uma a uma, e não ao mesmo tempo. Esse problema das vacas – arremessadas em
tempos diferentes de acordo com o ponto de vista do observador – foi essencial para o desenvolvimento
da teoria da relatividade.

Já a famosa música “Yesterday” dos Beatles foi sonhada por Paul McCartney, que despertou com toda a
sua melodia em mente, bastando criar a letra em parceria com John Lennon.

O médico canadense Frederick Banting, por sua vez, venceu o Nobel em 1923 devido à descoberta da
insulina como tratamento eficaz para diabetes. Sua inspiração também surgiu em um sonho, no qual
Banting pausava a liberação de insulina do pâncreas de um cachorro e o nível de açúcar no sangue do
animal disparava.

Um sonho nem sempre é tão fantasioso e sem sentido como pode parecer a princípio. “Ele mostra
que, sob a sua fachada, muitas vezes absurda, existe um sentido, que lógica e emocionalmente, nada tem de
absurdo”, explica a Dra. Ilana Waingort Novinsky, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise
de São Paulo.

Ilana afirma também que não há somente um tipo de sonho: “De acordo com Gustav Jung, discípulo de
Freud que criou uma teoria psicológica própria e que se dedicou muito ao estudo dos sonhos, podemos falar
em quatro tipos, que se baseiam na relação entre o consciente e o inconsciente: o primeiro indica um
tipo de sonho tipicamente consciente, de um evento ou situação vivido no dia anterior; o segundo advém de
um conflito entre a posição do consciente e a posição do inconsciente; o terceiro significa a forma com que
determinados conteúdos inconscientes interferem na consciência, a fim de modificá-la; e o quarto é mais raro,
são os chamados de ‘grandes sonhos’. Eles servem de orientação para toda uma fase da vida da pessoa e
incluem os sonhos de infância e também os decisivos” (EXAME, 2016).

Sonhos recorrentes ou típicos funcionam como alertas do inconsciente


sobre a necessidade de solucionar alguma questão interna com
repercussão externa.
Trata-se de enfatizar um problema, um padrão comportamental ou algo que está sendo evitado. Nessas
situações, o indivíduo tem sonhos sempre com aspectos simbólicos parecidos.

Esses elementos emocionais importantes – às vezes originados na infância ou na adolescência – não foram
adequadamente racionalizados, elaborados e superados, por isso permanecem mal resolvidos internamente.
Nesse cenário, sempre que algum evento inconscientemente remete àquela situação, os sonhos aparecem
para sinalizar que necessitamos voltar ao assunto para só depois prosseguir com a vida. As experiências,
nesse caso, podem ser variadas: culpa, agressão, abandono, etc.

Os principais tipos de sonhos recorrentes são (HALL, 1985):

• Estar atrasado:

Em um sonho, tentar alcançar um trem ou ônibus partindo ou estar atrasado para um encontro importante
são eventos que revelam o medo inconsciente de perder algo muito importante, como seu emprego,
relacionamento ou o crescimento de um filho. Sonhar com atrasos também pode revelar sobrecargas física e
emocional, destacando a necessidade de reavaliar as prioridades na rotina diária.

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

Figura 2.5 Atraso: um sonho recorrente.

• “Ter brancos” em exames ou diante de outras pessoas:

É comum também sonhar que, na hora de fazer uma prova ou exame, você subitamente não lembra mais
nada o que estudou, ou não consegue falar nada no momento de discursar em público. Esse tipo de sonho
costuma ter origem em preocupações excessivas e inseguranças em relação ao próprio desempenho e
capacidades.

• Catástrofe:

Sonhos com desastres naturais ou provocados pelo homem (avalanches, tsunamis, explosões, incêndios,
etc.) em geral correspondem a problemas que saíram de controle ou à sensação de estar sob ameaça
por algo. Toda pessoa já sonhou ao menos uma vez com algum tipo de apocalipse; nesse tipo de sonho, é
comum temer pela própria vida e pelas vidas de pessoas queridas.

Muitas vezes, esse pesadelo é acompanhado por uma paralisia do sono, na qual tentamos gritar, mas por
algum motivo não conseguimos emitir nenhum som. Isso acontece porque durante o sono REM o cérebro
humano paralisa o corpo para protegê-lo de reações e espasmos que poderiam causar ferimentos
reais.

• Ambientes desconhecidos:

Ver lugares desconhecidos em um sonho é uma manifestação da autoconsciência. Se você contempla uma
casa onde nunca esteve, por exemplo, isso significa falta de autoconhecimento, ou você pode também
estar negando algum aspecto da sua própria personalidade. Já um cômodo destacado e misterioso
corresponde a uma habilidade ou oportunidade oculta e subaproveitada.

Alguns lugares estão inconscientemente ligados a determinados processos. A cozinha, por ser o local onde
os alimentos são preparados e convertidos em uma refeição, pode indicar transformações internas. O
banheiro, por sua vez, remete à limpeza, por isso costuma simbolizar a necessidade de esclarecer algo.

• Estar caindo:

Sonhar com quedas de grandes alturas sinaliza o medo de perda do controle. Algumas coisas na vida
podem ser controladas, mas muitas independem da nossa vontade. Sendo assim, é fundamental refletir
sobre quais aspectos (relacionamentos afetivos, questões familiares, profissionais, financeiras, saúde, etc.)
você se sente mais vulnerável ou oprimido e por que isso acontece.

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

Fisiologicamente, sonhar que está caindo geralmente ocorre quando pegamos no sono. Nesse momento, o
sistema nervoso desacelera, a pressão arterial diminui e os batimentos cardíacos são reduzidos, levando o
cérebro a supor perigo e tentar acordar.

• Ferimentos ou morte:

Sonhos com ferimentos ou mortes de pessoas queridas refletem o medo em relação ao futuro e suas
possibilidades. Já sonhar com a própria morte normalmente diz respeito a um processo de transição ou
mudança em comportamentos, hábitos ou sentimentos – os antigos precisam morrer ou deixar de existir
para dar lugar aos novos.

• Gravidez:

Mulheres e até homens sonham com gravidez, e isso normalmente representa algo novo crescendo no
interior do indivíduo. Inconscientemente, a pessoa esperar conseguir gerar algo novo e criativo. Este tipo
de sonho revela que está na hora de traçar objetivos ousados e engajar-se em outros projetos, colocando
talentos e desejos adormecidos em prática.

• Nudez ou roupas inadequadas em público:

Neste tipo de sonho recorrente, o indivíduo encontra-se em um local público completamente nu ou vestindo
roupas inadequadas e ridículas. Os sentimentos de vergonha e constrangimento são intensos, expressando
o medo que o sonhador tem de que os outros descubram suas deficiências e fraquezas.

Figura 2.6 Nudez em público, outro sonho recorrente.

• Perseguição:

Sonhar que está sendo perseguido é mais comum para quem tende a fugir de conflitos e evita
desagradar os outros. Por isso, é preciso observar quem é o perseguidor no sonho. Ele geralmente
representa um sentimento ou evento negativo que a pessoa não deseja experimentar no estado de vigília.

Quem te persegue é uma pessoa conhecida? Com o que ou quem ela pode ser associada? Nos sonhos,
o perseguidor pode corresponder a outra pessoa ou mesmo a uma parte desconhecida da própria
personalidade do sonhador.

Há ainda uma teoria que afirma que os sonhos de fuga nada mais são do que ecos de instintos primitivos,
presentes em nossos genes e transmitidos por antepassados distantes que precisavam escapar de
predadores constantemente.

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

• Queda de dentes:

Os dentes são subconscientemente vistos como armas e relacionados à força e à autodefesa. Ao sonhar
com a perda dos próprios dentes, o indivíduo geralmente está expressando uma insegurança, sentindo-
se indefeso e desamparado no mundo real.

Alguns especialistas também relacionam a queda de dentes com raiva oculta, tendo em vista que, quando
reprimimos a ira, tendemos a apertar as mandíbulas e ranger a dentição.

• Transporte ou dispositivo defeituoso:

Quando um automóvel ou dispositivo eletrônico subitamente deixa de funcionar em suas mãos; pode ser o
celular que não obedece mais aos seus comandos e te impede de fazer uma ligação urgente, ou os freios
que falham de repente, quando o carro está em alta velocidade. Sonhos desse tipo são mais frequentes
entre as mulheres e indicam tensões com relacionamentos ou perda de conexão emocional com
alguém importante. Talvez você não esteja sendo apoiado como gostaria ou não consiga lidar com algum
evento difícil recente.

CONCLUSÃO
“Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã.”
- Victor Hugo

Como você tem se posicionado diante da vida: sonhando ou acordado? Embora os sonhos sejam essenciais
para compreender as próprias emoções, de nada adianta apenas sonhar e não tomar nenhuma atitude
consciente. Registrar e analisar os sonhos são processos indispensáveis para isso, pois nos ajudam a olhar
para dentro de nós sem os limites e restrições impostos pela consciência.

Figura 2.7 Natural e saudável, o sonho pode tornar-se


também uma ferramenta estratégica de autoconhecimento.

Sonhar é um evento fisiológico tão frequente quanto especial: quando


sonhamos, o cérebro fecha suas entradas sensoriais e suas saídas
motoras, porém apresenta uma intensa atividade mental.

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

Cognitivamente, a ciência já sabe que o sonho tem importantes funções de ajustes no aprendizado,
ajudando a esquecer o que não é relevante e a fixar memórias úteis, além de ordenar os arquivos mentais.

Mas o sonho também representa, acima de tudo, um exercício mental de criatividade e enfrentamento
de conflitos conscientes e inconscientes – processo que pode ser mais bem explorado por meio do
autoconhecimento.

Para lidar melhor com essas variações emocionais oníricas, a FELLIPELLI oferece uma premiada e exclusiva
seleção de formações e assessments. Conheça!

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SONHÁRIO: TRADUZINDO A LINGUAGEM DO INCONSCIENTE

Para saber mais:

• O Homem e seus Símbolos. Carl G. Jung. Harper Collins, 2016.


• Dream Psychology Psychoanalysis for Beginners. Sigmund Freud. A Public Domain Book, 2012.
• The Sleep Solution: Why Your Sleep is Broken and How to Fix It. W. Chris Winter M. D. Editora Berkley,
2018.
• Sleep Smarter: 21 Essential Strategies to Sleep Your Way to a Better Body, Better Health, and Bigger
Success. Shawn Stevenson. Audible Studios, 2016.
• The Promise of Sleep: A Pioneer in Sleep Medicine Explores the Vital Connection Between Health,
Happiness, and a Good Night’s Sleep. William C. Dement. Editora Dell, 2000.

Referências bibliográficas

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• SOARES, Pablo L. S. A História dos Sonhos e Seus Avanços Científicos. UNIFIN, 2016. Acesso em:
05/11/2019.
• GONTIJO, T. A Arte de Sonhar. Belo Horizonte, Epistemo-Somática, 2006.
• ÉSQUILO, 1989. Prometeu acorrentado. In Teatro grego. São Paulo: Cultrix.
• ARISTÓTELES, Il sonno e i sogni. Il sonno e la veglia, I sogni, La divinazione durante il sonno (a cura di
Luciana Recipi). Venezia: Marsilio Editori, 2003.
• FINGER, Stanley. Origins of neuroscience: A history of explorations into brain function. Oxford University
Press, New York, 1994.
• SMITHSONIAN, 2003. The Stubborn Scientist Who Unraveled A Mystery of the Night. Acesso em:
05/11/2019.
• NEUROSCIENCE NEWS, 2019. How our memories stabilize while we sleep. Acesso em: 05/11/2019.
• ALZHEIMER’S & DEMENTIA, 2012. Sleep duration and cognitive function: The Nurses’ Health Study. Acesso
em: 05/11/2019.
• UNIVERSITY OF ROCHESTER MEDICAL CENTER, 2019. Not All Sleep is Equal When It Comes to Cleaning
the Brain. Acesso em: 05/11/2019.
• START SLEEPING, 2019. Fascinating Animal Sleep Facts. Acesso em: 05/11/2019.
• BBC, 2015. Why do we sleep? Acesso em: 05/11/2019.
• NOBEL PRIZE, 2017. Acesso em: 05/11/2019.
• HARVARD BUSINESS REVIEW, 2012. Practicing in Dreams Can Improve Your Performance. Acesso em:
05/11/2019.
• WALKER, Matthew. Por que Nós Dormimos: A Nova Ciência do Sono e do Sonho. Editora Intrínseca, 2018.
• NATURE COMMUNICATIONS, 2017. Acesso em: 05/11/2019.
• SLEEP CYCLE, 2019. Acesso em: 05/11/2019.
• NATURE, 2012. Scientists read dreams. Acesso em: 05/11/2019.
• TUCCILLO, Dylan; ZEIZEL, Jared e PEISEL. Sonhos Lúcidos: um guia para dominar a arte de controlar seus
sonhos. Editora Sextante, 2015.
• NEWSCIENTIST, 2008. It’s black and white: TV influences your dreams. Acesso em: 05/11/2019.
• LABERGE, Stephen. Exploring the World of Lucid Dreaming. Lucidity Institute, 2001.
• FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Editora Nova Fronteira, 2018.
• FREUD, Sigmund. Freud (1912-1914) Totem e Tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e
outros textos. Companhia das Letras, 2012.
• ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Editora Zahar, 1997.
• DOMHOFF, G. William. The Emergence of Dreaming: Mind-Wandering, Embodied Simulation, and the
Default Network. Oxford University Press, 2017.
• AZEVEDO, Erico de Lima. Da fenomenologia de Edmund Husserl ao nexo ontológico de Antonio
Meneghetti: origens históricas, teorias e aplicações. São Paulo, 2013.
• DREAM STUDIES, 2019. An Evolutionary Theory of Dreaming. Acesso em: 05/11/2019.
• WORLD OF LUCID DREAMING, 2019. 10 Dreams That Changed Human History. Acesso em: 05/11/2019.
• EXAME, 2016. O que a psicanálise tem a dizer sobre os seus sonhos. Acesso em: 05/11/2019.
• HALL, James A. Jung e a Interpretação dos Sonhos: Manual de Teoria e Prática. Editora Cultrix, 1985.

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SONHÁRIO:
Traduzindo a linguagem do inconsciente

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