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Julius Vieira

A ÁGUA QUE CAI DO CÉU


Chuva
Eu peço que caia devagar
Só molhe esse povo de alegria
Para nunca mais chorar
- Falamansa
Era um céu azul sem nuvens. O sol amarelo parecia a mancha de
água sanitária que eu havia deixado cair na minha camisa azul, que a
propósito, eu usava naquele dia. Eu estava sentado debaixo de uma árvore,
sobre um chão de poeira vermelha que fazia com que minha bermuda jeans
e minha mão fizessem parte do cenário que criei na minha mente.

Cenário que se inicia como a abertura de um filme cult, onde a


câmera que estava focada no céu desce e encontra minhas mãos, parte da
minha bermuda e a terra, tudo em vermelho. O céu e minha camisa em
azul, além da mancha e o sol ambos amarelados, criando assim uma
espécie paleta de cores - e, nessa época, eu não sabia nem o que era uma
paleta. Não lembro bem a idade que tinha, não mais que oito anos de idade.

Debaixo daquela árvore, eu tentava me aliviar daquele calor quase


insuportável. Insuportável de fato, era ter que aturar esse mesmo calor
dentro de casa, por isso optei por ficar no quintal. Eu tirei a camisa e fiquei
com as costas nuas recostadas no tronco da tal árvore que não parecia se
incomodar com a minha presença.

Perto da casa onde morávamos havia uma represa. Ou melhor, o que


deveria ser uma represa. Naqueles últimos tempos, ela havia se tornado um
chão cheio de rachaduras que se pareciam com os calcanhares da minha vó,
que sempre passava um hidratante para diminuir o desconforto. Era um
pouco desolador ver aquele chão rachado, mas era divertido pular nas
“ilhas” que eram formadas pelas rachaduras. Ilhas de terra dentro de uma
represa sem água. E eu jovem pensava: Por que é que não tem um
hidratante para o chão igual tem para os pés da minha avó?

Fazia tempo que não chovia. Tempo suficiente para que eu, com oito
anos, não mais que isso, naquele dia ensolarado, sem nuvens, divagando
sobre aquele calor, ouvindo grilos cricarem, duvidar da existência da
chuva. Onde já se viu água cair do céu? Foi o pensamento que me ocorreu.
Eu até tinha lembranças de ter vistos chuvas, a brisa fria, o barulho no
telhado que se eu fechasse os olhos parecia o barulho de algo sendo frito
numa frigideira. Mas olhando aquele céu, parecia inconcebível que gotas
de água pudessem, do nada, cair dele. Parecia irreal, parecia mágico.

Levantei e fui até o meio do quintal, coloquei as mãos sobre os


olhos, apoiando-a na testa, para perceber melhor o azul. Talvez o céu seja
um mar que aprendeu a voar e de vez em quando sente saudade de casa.
Eu buscava explicações. Mas minhas explicações não tiravam minha
dúvida, eu não tinha propriedade sobre aquele assunto. Acho que nem
mesmo o Pequeno, meu amigo imaginário que era uma versão minúscula
minha, poderia ajudar. Eu tinha que recorrer a minha entidade máxima. Eu
fui perguntar a minha Vó.

Como disse, eu tinha oito anos, não mais que isso e tenho uma
lembrança, que eu talvez tenha modificado em minha cabeça ao passar dos
anos para que se parecesse como uma cena filme cult. Na época, eu nem
sabia o que era cult. Toda essa volta é só para dizer que, para fins
narrativos, encontrei minha vó passando seu creme para rachaduras nos
pés.

A pele preta dela contrastava com o amarelo do pote que continha o


seu creme que era branco, tal qual a cor da sola dos pés da minha Vó. Ela
estava sentada no sofá da sala, que era vermelho, quase igual a cor das
minhas mãos, pés, bermudas, terra, e as pegadas que eu tinha deixado para
trás no piso branco da casa. A única coisa que remetia ao azul do céu, era o
colar de olho grego que dona Magali, minha avó, usava. A senhora me
lançou um olhar de ternura e reprovação ao mesmo tempo, mas voltou a
massagear seu calcanhar.

Eu me aproximei e sentei no chão da sala próximo a seus pés.


Observei os movimentos circulares que ela fazia para distribuir o produto
na superfície mais necessitada e que encolhia o lábio toda vez que o creme
entrava dentro de uma rachadura, parecia arder.

— Sabe a represa, vó?

— Hum, o que tem?

— Ela tá seca.

— Sim, tá.

— Ela tá cheia de rachadura, a senhora viu?

— Vi sim, netinho.

— Parece seus pés. — Minha vó riu e na paleta de cores, seus dentes,


a sola dos seus pés, o creme e o chão da sala, todos brancos, contrastavam
com o amarelo, o vermelho, preto e azul.

— Parece sim, Isaac, parece sim.

— Será que tem um creme para as rachaduras da represa, Vó? —


Dessa vez ela olhou para mim, com os olhos castanhos que eu herdara dela.
Dizem que herdei da minha mãe, mas eu nunca a vi, então prefiro dizer que
herdei da minha vó.

— Nesse caso, meu neto, só a chuva resolve.

— E por acaso a chuva existe? — Perguntei, sério.

— Claro que existe, menino! De onde você tirou que não existe
chuva?

— Mas eu nem me lembro da última que vi água cair do céu, Vó!


Água caindo do céu, a senhora já viu?

— Claro que já!

— Sei lá, parece que é algo mágico.


— E é, Isaac. É lindo. É mágico. Faz vida e faz todas as cores do
mundo ficarem enfileiradinhas só pra gente sorrir.

— Eu queria ver a água que cai do céu, Vó!

— Talvez você veja logo.

— Sério?

— Sim, escuta só.

— Escutar o quê?

Admito que esperava ouvir o barulho de chuva, mas o que escutei


quando eu não devia ter mais que uns oito anos, foi um cricar diferente do
que os dos grilos. Parecia um zunido que reverberava por todo o lugar.

— É uma cigarra. — Ela falou sorrindo.

— E o que tem?

— Ela vem avisar que logo, logo chove.

Dois dias depois, eu conheci água que cai do céu. Ela veio boa, na
medida e hidratou a represa. Mudou totalmente a paleta de cores para um
cinza escuro de suas nuvens-mar com saudades de casa. Eu banhei na
chuva, e mesmo com o marrom do barro em minhas roupas, minha avó não
ligou. Ela disse que só não banhou comigo por que ela poderia ficar doente,
crianças se recuperam mais rápido. Eu também vi um arco-íris e sorri.

Minha teoria inicial, que foi confirmada por minha vó, também foi
confirmada pela natureza: se aquilo não era magia, eu não sabia o que era.
Quando entrei para a escola e descobri o ciclo da água, outra coisa foi
confirmada: era realmente o mar com saudade de casa. E eu descobri bem
antes, aos sete anos. Não eram oito, eram sete. Acabei de me lembrar. Sete
anos, não mais que isso, com certeza.
*

— Agora, me deem um instante.

Isaac coça sua barba espessa antes de levantar da mesa onde está
sentado com seus amigos. Eles estão na sua casa, na varanda de frente para
o mar. Ele pega quatro latas de cerveja em sua geladeira. O dia está quente
e segundo as previsões do tempo, logo mais, durante a semana, deveria
chover. Voltou para a mesa de madeira e colocou a bebida de frente para
cada um dos seus amigos que estavam naquela reunião. Era um projeto
novo, ousado. Ele sentou novamente e deu um último gole na sua cerveja
que bebera enquanto contava a história para seus brothers.

— O que acham?

— Acho que tem futuro, se for bem trabalhado. Tem que ser
minimalista, um realce na sonografia talvez. — Disse seu amigo de óculos
quadrado.

— O elenco tem que ser bom, afinal, inicialmente só teremos dois


atuando. — Disse o careca.

— Se quiser, eu te ajudo com o roteiro. — Disse o que estava de


frente para o Fael.

— Podemos gravar na casa da fazenda do meu tio, lá tem uma


represa que pode ser usada nas filmagens. — Disse Fael.

— Vocês acham mesmo que tem potencial? — Todos assentiram.


Isaac ergueu sua lata de cerveja vazia, sugerindo um brinde. Os outros o
acompanharam e ele disse: — Declaro oficialmente aberto a pré-produção
do próximo projeto de sucesso da Olho Grego Produções, mais um filme
dirigido por Isaac Santiago vai nascer.
— Já pensou num nome? — Perguntou Fael.

— “A água que cai do céu. ” — Todos aplaudiram.

Mais a noite, Isaac estava sozinho em casa, seus amigos já tinham


ido e ele foleava alguns álbuns de fotos antigas, procurando mais pistas da
história que ele queria contar. Encontrou uma foto dele criança com sua vó.
Ela com aquele sorriso branco, pele preta e os olhos que ele tinha herdado e
que ajudavam ele a enxergar o mundo daquele jeito meio mágico. Nem
parecia que fazia tanto tempo que aquilo havia acontecido.

— Eu devia ter uns nove anos nessa foto, eu acho, não mais que isso,
certeza. — Ele murmurou para si mesmo.

Algumas gotas começaram a escorrer pela a foto. Uma após outra


caindo em sequência. A vó de Isaac havia falecido já tinha uns cinco anos,
pouco antes dele finalizar sua faculdade de audiovisual. De lá para cá, Isaac
tinha conseguido um certo prestigio na área, por dirigir alguns curtas e um
longa. Tinha fundado a sua produtora que batizou de “Olho Grego”, por
causa do colar da mulher que tinha criado ele. Era uma forma de eternizar
algo dela. Mas ele queria eternizá-la na sétima arte também. As gotas
continuaram a rolar, cada vez com mais frequência. Isaac apoiou a foto no
peito e agora as lágrimas só rolavam por seu rosto.

— Onde já se viu água cair dos olhos? — Ele murmurou para si


mesmo, mesmo não fazendo tanto tempo assim que ele havia chorado.

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