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Isto não
seria possível sem você.
E aos meus filhos, Lukas e Philip, por, às vezes , me deixarem
trabalhar.
Sumário
Dedicatória
Parte I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Parte II
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Parte III
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Agradecimentos
Sobre a autora
1
CÂMARA DE REFLEXÕES
Um nome apropriado para um lugar de aprendizado, e eu
esperava estar à altura dele. Quando nos sentamos a uma mesa
comprida e pegamos nossos livros, olhei ao redor da sala. O piso de
mármore cinza, as vigas de madeira simples e os móveis esparsos
contrastavam bastante com o resto do palácio opulento. As
prateleiras estavam abarrotadas de pergaminhos e havia pilhas de
livros nas mesas que tinham sido empurradas até as paredes. As
altas janelas gradeadas davam para o jardim, e um ar frio entrava
na câmara.
Um imortal idoso entrou. Liwei sussurrou para mim que ele era o
Guardião do Destino dos Mortais e nos ensinaria a história dos
mundos. A barba branca ultrapassava sua cintura e sua mão
enrugada portava um cajado de jade.
Eu já tinha visto rugas assim antes, no rosto de Ping’er, quando
ela me colocava na cama nas noites em que minha mãe ficava
muito tempo na varanda. Meu dedo roçara as linhas nos cantos de
seus olhos.
— Ping’er, o que é isso?
— Uma marca dos anos — respondeu ela.
— Você é mais velha que mamãe? — Fiquei surpresa, pois minha
mãe aparentava muita seriedade e cerimônia.
— Uns cem anos a mais, pelo menos. Até a idade adulta, nossa
vida segue um padrão semelhante ao dos mortais. Depois disso,
nossas idades deixam de importar. Um imortal de mil anos de idade
pode ter a mesma aparência de um de trinta. O que determina
nossa juventude é a quantidade de força vital que temos.
Apoiei-me sobre um cotovelo, desperta pela curiosidade.
— Força vital?
— Isso mesmo. A essência de nossos poderes, que determina a
energia que pode ser canalizada em magia. Tenho essas rugas
porque não sou tão forte — revelou ela.
— Mamãe terá também? E eu? — indaguei.
— Só o tempo dirá. — Antes que eu pudesse perguntar mais,
Ping’er saiu apressada do quarto, fechando bem a porta.
Essa lembrança causou uma pontada em meu coração. Até a
chegada da imperatriz, aquela fora a primeira e a última vez que
Ping’er falou de magia para mim. Agora eu sabia os segredos que
ela guardara naquela noite, meus poderes selados. Essa descoberta
poderia ter me incomodado mais se eu tivesse tomado
conhecimento dela antes da visita da imperatriz. Porém, percebi que
isso não importava mais — não agora, depois que a tempestade
irrompera e me levara com ela, embora eu não fosse capaz de
ignorar a vontade de ter aprendido tudo isso antes, para talvez
poder ter feito algo para evitá-la.
O Guardião do Destino dos Mortais pegou um livro, folheando
suas páginas.
— Quantos anos ele tem? — perguntei a Liwei enquanto olhava
para os cabelos brancos como a neve do imortal.
O Guardião ergueu o olhar com uma expressão aflita.
— Não comente sobre a idade de outra pessoa. Isso é falta de
educação em todos os lugares, especialmente no Reino Mortal. —
Seu tom era severo, mas não indelicado, como se estivesse me
alertando sobre outros que poderiam se ofender mais facilmente.
Murmurei um pedido de desculpas apressado, mas, no momento
em que o Guardião desviou sua atenção, Liwei se inclinou para
perto de mim e sussurrou:
— Alguns imortais escolhem parar de preservar sua juventude.
— Porque nós preferimos preservar nossa sabedoria — retrucou
o Guardião. — Vossa Alteza, peço-lhe que seja um exemplo melhor
para sua companheira de estudos.
Assenti com seriedade, ignorando o olhar de Liwei. Embora eu
devesse admitir que parte da bronca que ele levou era culpa minha,
foi um alívio ouvir outra pessoa, e não eu, ser repreendida por sua
conduta.
Quando o Guardião do Destino dos Mortais saiu, um tutor veio
nos ensinar sobre as constelações e depois outro veio falar de
herbalismo. Eu estava me esforçando para ficar quieta durante a
longa aula, ministrada por um imortal carrancudo, de queixo pontudo
e ar pedante. Enquanto meus olhos passavam desatentos pelas
figuras de flores (todas elas estavam começando a parecer
idênticas) minha mão foi direto para a boca, abafando um bocejo.
O professor, talvez sentindo minha atenção se perder, se voltou
para mim.
— Xingyin, quais são as propriedades desta planta? — Seu tom
era áspero, e ele batia com uma bengala de bambu fina na página à
minha frente.
Corrigi a postura com muita rapidez, olhando fixamente para a
imagem de uma flor simples, com pétalas pontudas num tom azul
pastel. “Lírios das estrelas”, dizia o título. Infelizmente, não havia
nenhuma outra informação.
— Hum. — Olhei descontroladamente para Liwei. Ele arregalou
os olhos para mim, depois os fechou e deixou a cabeça cair para o
lado.
— Ela faz dormir! — gritei, pescando a dica dele.
O professor contraiu os lábios.
— Correto. Embora amarga, esta flor silvestre pode ser um
potente sonífero quando consumida com vinho.
— Obrigada — sussurrei para Liwei.
— Às ordens. — Um pequeno sorriso brincava em seus lábios.
Eu havia acabado de guardar os livros da última lição quando
notei um imortal de aparência sombria vindo em nossa direção; suas
botas faziam um barulho seco no chão de mármore. Seu rosto
magro não tinha rugas, exceto por uma bem profunda na testa, e
seu cabelo escuro estava preso num coque. Sua armadura era feita
de placas retas de metal branco brilhante com bordas douradas,
amarradas firmemente como escamas sobre seus ombros e peito,
chegando até os joelhos. Um tecido vermelho cobria seus braços e
se encerrava nos dois braceletes espessos de ouro que estavam em
seus pulsos. Uma larga tira de couro preto estava em sua cintura,
presa por um disco de jade amarelo. Havia uma grande bainha de
prata amarrada no flanco de seu corpo, da qual se projetava um
cabo de ébano. A aura que ondulava dele era tão firme e forte
quanto um carvalho robusto que viveu por anos a fio.
Um soldado Celestial, assim como aqueles dos quais Ping’er e eu
fugimos naquela noite. Um calafrio me tomou por inteiro e comecei a
fechar as mãos sobre a mesa.
— Por que ele está aqui? Aconteceu alguma coisa?
— O General Jianyun é o comandante de maior patente do
Exército Celestial. Ele veio nos instruir sobre táticas militares.
— Vossa Alteza. — Ele saudou Liwei com uma mesura. Quando
seu olhar se voltou para mim, a ruga em sua testa ficou mais
profunda.
— General Jianyun, esta é Xingyin — anunciou Liwei,
gesticulando em minha direção.
Curvei-me para o general, mas ele não respondeu. Sob seu olhar
penetrante, comecei a me mexer de inquietude pelas memórias que
sua presença evocava.
— Você se interessa por táticas militares?
Fiquei rígida por causa de seu tom afiado, enquanto me
atrapalhava tentando responder. Eu nunca havia dado muita
atenção aos grandes estratagemas das batalhas por domínio, glória,
poder e orgulho dos reinos. Meus desejos eram mais humildes,
menores. Tudo o que eu queria aprender era como me defender e
proteger aqueles que eu amava.
— Não sei ainda. Esta é minha primeira lição — respondi. Quando
sua expressão ficou fechada de desaprovação, uma fagulha de
rebeldia se acendeu em mim. — Tenho o desejo de aprender.
Porém, o interesse de um aluno também depende da habilidade do
professor.
Ele arregalou os olhos. Prendi a respiração. Ele me expulsaria da
aula? Com essa impertinência, talvez eu merecesse isso.
Para minha surpresa, o General Jianyun sorriu.
— Sua companheira tem a aprovação de Sua Majestade
Celestial? — indagou ele a Liwei, com falsa incredulidade.
— Minha mãe não se envolve em tais assuntos. — Foi tudo o que
Liwei disse, enquanto abria seu livro.
Embora o general estivesse com uma expressão desconfiada,
não falou mais nada sobre isso.
Ao meio-dia, minha cabeça latejava de tantas lições e minha mão
doía de tanto escrever. Quando fomos dispensados para a refeição
da tarde, fiquei feliz em fugir para a cozinha. Carregando a bandeja
cheia de comida, segui em direção ao pavilhão do lado de fora da
Câmara de Reflexões. Uma pequena placa pendia sobre ela,
pintada em grandes traços pretos com os caracteres:
N ossa nuvem voava pelo céu, carregada por uma brisa suave. Era
um dia claro, e podíamos ver todo o mundo mortal abaixo — embora
eu olhasse fixamente à frente. Ao longe, a luz do sol brilhava sobre
os dragões dourados empoleirados no telhado do Palácio de Jade.
Soldados com armaduras negras apareceram no horizonte,
voando sobre nuvens violeta para atacar a nós e ao Império
Celestial. Imediatamente nos cercaram, separando-se apenas para
deixar Wenzhi passar. Ele estava diante de mim agora, com o manto
cinza-escuro esvoaçando ao redor dos tornozelos e a esmeralda na
coroa brilhando com fogo de jade. Embora não usasse armadura,
uma espada estava em sua cintura.
Liwei ficou rígido ao meu lado, emitindo uma aura de fúria.
— Traidor! Veio confessar seus crimes?
— Não há nada a confessar. Nem mesmo soube de acusação
alguma vinda da Corte Celestial. — O tom sedoso de Wenzhi era
feito para causar raiva.
— Você sabe o que fez, e eu também sei. Vai pagar por seus
crimes — vociferou Liwei.
— Talvez. Mas não hoje. E certamente não é você quem vai me
punir. — Wenzhi deliberadamente o ignorou e fixou seu olhar no
meu. — Eu não vim lutar com você hoje.
Fiz um gesto para as flechas e as lanças que seus soldados
apontavam para nós.
— Isto indica o contrário.
— Eu não disse nada sobre não lutar com ele. — Ele acenou
rapidamente com a cabeça na direção de Liwei, embora não
desviasse o olhar de mim. — Dê-me as pérolas — disse ele, como
se estivesse pedindo um grampo de cabelo.
Não lhe daria mais nada de mim, nem agora, nem nunca.
— É tarde demais! As pérolas agora não têm mais utilidade para
você.
Ele franziu a testa, tentando ler minha expressão.
— O que quer dizer?
— A essência dos dragões voltou a ser somente deles.
Ele sibilou.
— Não minta, Xingyin. Isso não lhe convém.
— Não é mentira — falei, muito séria. Se ele não acreditasse em
mim, se conseguisse pegar as pérolas de novo, arruinaria a última
esperança de liberdade de minha mãe. Tirando as pérolas de minha
bolsa, coloquei-as na palma de minha mão enquanto caminhava até
a borda da nuvem.
— Você sabe como elas eram antes. Vendo-as agora, acha que
estão do mesmo jeito? — Meu coração começou a bater num ritmo
irregular. Embora eu quisesse que ele visse como elas haviam
perdido o brilho, era exatamente isso o que eu temia que o
imperador descobrisse e, por consequência, me punisse.
Ele olhou para as pérolas de queixo caído.
— Por quê? — indagou ele, finalmente.
Sua voz pulsava com tanto choque, consternação e decepção que
era como música para meus ouvidos. Eu não esperava que essa
satisfação imensa corresse em mim, esse triunfo exultante porque
tudo o que ele fizera e a teia intrincada em que ele me prendera não
adiantaram de nada.
— Por sua causa — revelei.
— O quê?
— Quero agradecer por me mostrar o que precisava ser feito, o
que aconteceria se as pérolas caíssem em mãos erradas. Eu não
podia deixar isso acontecer de novo. — Coloquei as pérolas de volta
na bolsa. — Agora não temos nada que você queira, deixe-nos
passar.
Em vez disso, sua nuvem se aproximou e a raiva foi deixando seu
semblante. Eu me preparei para mais mentiras.
— E se eu disser que não estou aqui somente pelas pérolas? —
perguntou ele.
— Eu não dou a mínima para o que você veio fazer aqui. — Liwei
se aproximou de mim, segurando o cabo da espada com muita
força. Agarrei a manga de seu manto.
— Liwei, não o ataque.
— Depois de tudo, ainda se importa com ele? — perguntou Liwei,
incrédulo.
— Como pode pensar uma coisa dessas? — disse, enfurecida,
soltando-o. — Estou é farta de derramamento de sangue, de medo
e de luto. O melhor caminho é convencê-lo a nos deixar ir. Se atacá-
lo, seus soldados vão retaliar. E se ele o ferir de novo — levantei a
voz para que Wenzhi pudesse ouvir — vai levar um raio no meio do
coração.
— Você já o partiu, Xingyin. Não pode machucá-lo mais do que já
machucou — disse ele, baixinho. Dei uma risada aguda e radiante.
— Terei prazer em tentar. — No momento seguinte eu puxei o
arco e o Fogo do Céu ardeu entre meus dedos cerrados, mas
inegavelmente mais fraco que antes.
O olhar de Wenzhi fixou-se no sangue que escorria por minha
mão; as feridas antigas se abriram novamente.
— O que aconteceu? Por que está fraca assim? — Sua voz
estava áspera de surpresa.
Tínhamos lutado juntos tantas vezes que não era de se admirar
que ele pudesse sentir que meu poder havia diminuído. Eu não
respondi, abafando um silvo de dor.
— Não se esforce deste jeito — advertiu Liwei.
— Largue a espada, Príncipe Demônio — ordenei, com a mais
ameaçadora das vozes. — Faça seus soldados recuarem e deixe-
nos ir. Em troca, não dispararei isto em seu peito. Ainda que você
mereça. — Um momento de silêncio pulsou entre nós, ininterrupto
por palavra ou mesmo respiração.
Os olhos prateados de Wenzhi brilharam.
— Xingyin, você perdeu a cabeça? Se extraiu mesmo o poder das
pérolas, como vai retornar ao Palácio de Jade? Confia tanto assim
na misericórdia de Suas Majestades Celestiais?
A provocação dele me deixou irritada, mas por baixo dela eu
detectei algo mais — seria preocupação com minha segurança?
Não me importei, pois me lembrei de sua traição vil, erguendo a
cabeça em desafio.
— Mais do que na sua. Confiar em você me rendeu o quê?
Mentiras e cativeiro. O bloqueio de minha magia e o roubo de meus
pertences. — Essa memória me fez tremer de raiva.
Wenzhi estendeu a mão para mim.
— Você não precisa confrontar o Imperador Celestial. Venha
comigo, vou mantê-la a salvo. Não será uma prisioneira desta vez.
Farei o que puder para ajudar você e sua mãe… de forma
incondicional.
A oferta me pegou de surpresa, assim como sua preocupação.
Porém, palavras, o vento leva. O importante são as atitudes, e eu
nunca mais poderia confiar nele. Sustentei a firmeza na
empunhadura do arco com o olhar fixo nele.
— Eu não irei com você, eu mesma cuidarei de me manter a
salvo.
O rosto dele escureceu.
— Percebe o que a espera na Corte Celestial? Considere-se
afortunada se apenas prenderem você, da mesma forma que
fizeram com sua mãe!
— Xingyin tem meu apoio. Ao contrário de você, nunca a trairei —
declarou Liwei categoricamente.
Antes que eu pudesse falar, uma saraivada de flechas assobiou
no ar e uma delas atingiu meu ombro. Senti uma dor muito forte e
prendi um grito, soltando o arco. Seria uma armadilha? Enquanto
Liwei retirava a flecha e curava meu ferimento, olhei furiosa para
Wenzhi. No entanto, sua expressão estava estranhamente aflita.
— Não atirem! — ordenou ele a seus soldados, rosnando.
Suas pupilas eram cinza como um mar varrido pelo vento quando
ele se virou para mim.
— Eu sei o que meu irmão disse a você. Ele lhe ofereceu a
liberdade e minha morte. Você recusou. Por quê?
Eu podia sentir Liwei olhando para mim, surpreso em silêncio. Eu
não lhe contara sobre aquilo. Por alguma razão, não quis.
— Não foi por sua causa — retruquei ferozmente. — Eu não podia
deixar seu irmão fazer isso, porque nem mesmo meu pior inimigo
merece morrer daquela maneira. Não teria sido… honorável.
Seus lábios se curvaram em um sorriso triste.
— Sou grato por sua honra. Você me salvou naquela noite, de
certa forma. — Ele inspirou lentamente e, quando soltou o ar, o
ruído parecia um suspiro arrependido. — Não farei você agir contra
sua vontade novamente. Não quero seu ódio e seu rancor. — Ao
olhar para Liwei, seu rosto se contorceu em um sorriso de escárnio.
— Para pagar minha dívida com ela, deixarei vocês irem. Não terão
tanta sorte na próxima vez que nos encontrarmos.
— Nem você. — A voz de Liwei era desprezo puro.
Olhei para Wenzhi, incrédula. Seria um truque? Ele estava
mesmo permitindo que fôssemos embora dali? E quanto à sua
ambição e ao acordo que fizera com o pai? Uma parte de mim
esperava que ele tomasse essa atitude, mas eu nunca acreditei que
ele tomaria.
Guardei esses pensamentos para mim quando um vento surgiu,
brilhando com a energia de Liwei que fazia nossa nuvem voar para
longe. Embora eu tenha resistido à vontade de olhar para trás, podia
sentir o calor do olhar de Wenzhi nos seguindo.
Quanto mais nos aproximávamos do Palácio de Jade, mais
profundo meu medo ficava. Minha pele era como gelo, e meu
coração acelerava ao pensar na fúria do imperador. Eu não tinha
dúvidas de que ele perceberia a mudança nas pérolas, e eu ainda
esperava usá-las para reivindicar o cumprimento de nosso acordo.
Será que ele me acusaria de trapaça e nos puniria? Pus as mãos no
rosto, respirando em um ritmo frenético.
Dedos quentes envolveram meus pulsos. Tão gentilmente como
se estivesse segurando um de seus pincéis, Liwei afastou minhas
mãos.
— Você tem as pérolas. Você cumpriu a tarefa. Eu estarei ao seu
lado.
Ele não me soltou até aterrissarmos no Salão da Luz Oriental. A
luz do sol, intensa e brilhante, fulgurava nas paredes de pedra. Um
contraste completo com o pavor que espreitava dentro de mim. Um
desejo de fugir tomou conta de mim, de sumir até que meu próprio
nome fosse esquecido. Contudo, como aconteceu com todas as
coisas difíceis que enfrentei antes — Xiangliu, o Governador Renyu,
a batalha contra Liwei na Floresta da Eterna Primavera —, eu
também enfrentaria aquela situação.
No momento em que entrei no corredor, todas as cabeças se
voltaram para mim — corpos tensos, olhos endurecidos. Mas isso
não era nada perto dos sussurros que se enrolavam como o silvo de
cobras. “Traidora”, “mentirosa”, “Demônio”; tudo isso passou por
meus ouvidos. Liwei recebia olhares de pena, como se estivessem
se perguntando como ele pôde ter sido enganado por mim. Meu
estômago deu um nó diante de uma recepção tão hostil, mesmo
quando a raiva ardia em mim por ser considerada culpada sem
chance de defesa. E também por Liwei, em cujo julgamento eles
deveriam ter mais fé.
Ereta como uma lança, caminhei até a frente da plataforma. Não
lancei um olhar sequer aos cortesãos; não por arrogância, mas para
garantir que o peso de sua censura não esmagasse minha falsa
coragem. Minha única defesa era que eu não tinha feito nada de
errado, então não ousei revelar um lampejo de dúvida.
Diante de Suas Majestades Celestiais, caí de joelhos, curvando-
me e tocando a testa e as mãos nos ladrilhos de jade. Fui saudada
pelo silêncio; o imperador não ordenou que eu me levantasse.
Hesitante, ergui a cabeça para os tronos e fitei seus sapatos
incrustados de pérolas, depois a bainha de suas vestes de brocado,
que eram da cor da noite. Dragões de ouro bordados rodeavam a
parte inferior da roupa do imperador e fênix de prata dançavam na
da imperatriz. Os olhos do Imperador Celestial sondaram meu rosto
quando ele se inclinou para frente e os fios de pérolas de sua coroa
tilintaram.
— Dizem-me que você é uma traidora. Que levou as pérolas dos
dragões para o Reino dos Demônios, entregando-as ao seu amante.
Não é uma história difícil de acreditar, embora meu filho tenha falado
muito enfaticamente em sua defesa. No entanto, a única coisa que
me fez refletir foi o quão apaixonadamente você implorou por sua
mãe anteriormente. Certamente, você não a selaria a um destino
ainda pior com seus crimes. Certamente, nenhuma filha faria uma
coisa dessas com a mãe amada. Certamente, minha confiança em
você não estava equivocada.
Sua voz era suave, mas eu não era tola o suficiente para deixar a
ameaça oculta nela passar despercebida. O que ele disse que faria
com minha mãe me atingiu profundamente. Ah, eu estava grata por
ter escapado do Reino dos Demônios, por me defender diante dele
naquele momento. Meus instintos estavam certos; ele teria atacado
minha mãe em retaliação por meus crimes imaginários. No entanto,
estava igualmente claro que aquele julgamento estava apenas
começando .
— Vossa Majestade Celestial é sábia. Eu nunca faria uma coisa
dessas. — Fiquei enjoada por proferir tal bajulação, mas não me
atrevi a confrontá-lo com nossas vidas em jogo.
O imperador recostou-se em seu trono, e o ar entre nós estava
carregado de tensão.
— Onde estão as pérolas dos dragões?
Meus dedos tremiam enquanto eu tateava minha bolsa, mas
forcei-os a se firmarem e estiquei a mão, mostrando as pérolas.
Um criado as tomou de mim e as entregou ao Imperador. Ele
ergueu uma por uma entre o polegar e o indicador, segurando-as
contra a luz. Quando ele me encarou com aqueles cacos de gelo
negro sob as sobrancelhas bem desenhadas, congelei por dentro,
como se estivesse diante do maior rigor do inverno.
— Como se atreve a tentar me ludibriar! — vociferou ele, com
uma voz trovejante.
Sob meu roupão, minhas pernas tremiam. Sua ira era ainda mais
aterrorizante por ele sempre ter tido muito comedimento até então.
Todavia, encolher-me e implorar por misericórdia seria uma
confissão de culpa. E isso eu não podia fazer.
— Vossa Majestade Celestial, não é nenhum truque. Essas são
as pérolas dos dragões, como me ordenou buscar.
— Não são!
— Honorável Pai, ela fala a verdade. — Liwei permaneceu ao
meu lado, em vez de assumir seu lugar na plataforma. A mão do
imperador brilhou com uma luz branca que girava em torno dos
orbes lustrosos.
— Onde está a essência dos dragões? — Ele falou cada palavra
pausadamente, mais calmo, embora sua voz permanecesse repleta
de ameaça.
Eu deveria estar apavorada, mas em vez disso a raiva acendeu
em mim. Não fora uma coincidência; o imperador pretendia me usar
para controlar os dragões. Eu o encarei de volta, sem vacilar.
— Foi devolvida a eles, pois não pertence a ninguém além deles
mesmos. Vossa Majestade Celestial, tudo o que me pedistes foram
as pérolas que estão em vossas mãos. Minha parte do acordo foi
cumprida.
Ele socou o braço do trono.
— Os dragões devem se submeter a mim e à minha autoridade!
— Eles discordam. — Palavras precipitadas, pensei,
repreendendo a mim mesma, embora não fosse nada além da
verdade.
Os cortesãos se afastaram de mim num farfalhar de seda e
brocado. Como se eu tivesse uma doença infecciosa e eles não
fossem imortais.
— Honorável Pai, os dragões não tencionam estar sob a
autoridade de ninguém — comentou Liwei. — Era muito perigoso
manter a essência deles presa às pérolas. E se elas caíssem
novamente nas mãos do inimigo? Xingyin as recuperou, mas correu
um risco imenso para fazer isso. Imagine a destruição que os
Demônios teriam feito cair sobre nós com os dragões sob o
comando deles!
Os cortesãos arquejaram, chocados, mas se calaram quando a
Imperatriz Celestial apontou o dedo para mim.
— Você passou dos limites de um modo imperdoável — rosnou
ela, com dentes brancos como osso contra lábios carmesins. — De
alguma forma, com atitudes frias e calculistas, você enganou meu
filho para que falasse em sua defesa. Mas é uma traidora e deve ser
punida como tal. Voltou porque foi descartada? Enganada por seu
amante? Esperando voltar às boas graças de meu filho?
Palavras tão vis destruíram os últimos fragmentos de meu
controle. Era uma crueldade em dobro, porque eu fora enganada,
mas não do jeito que ela imaginava.
Fiquei de pé. Era uma grave quebra de etiqueta, mas não era
nada em comparação com as palavras que saíram de mim naquele
momento.
— Eu não sou uma traidora. Cumpri a missão, consegui as
pérolas dos dragões e arrisquei a vida para recuperá-las. Fiz
exatamente o que Vossas Majestades ordenaram, e tudo o que
peço agora é que libertem minha mãe como prometido, como a
honra manda.
— Quem é você para falar de honra? Não tem um pingo de
respeito por Sua Majestade Celestial?! Caia de joelhos agora e
implore por misericórdia! — Uma voz áspera me repreendeu,
acrescentando: — Outros morreram por muito menos.
Olhei para trás e vi o Ministro Wu dando um passo à frente, com
os olhos esbugalhados em aparente indignação. Meu estômago
embrulhou na hora. Ele já havia provado não gostar de mim, nem de
minha mãe, e daquela vez não seria diferente.
O ministro curvou-se diante dos tronos.
— Vossa Majestade Celestial foi muito gentil com esta mentirosa
e ela vos enganou reiteradas vezes. Quem pode afirmar que ela não
entregou as essências para os Demônios em vez de devolvê-las aos
dragões?
Por um momento não consegui falar, atordoada por sua acusação
maliciosa.
— Isso não é verdade — respondi, por fim.
— Pode provar isso? — rebateu o Ministro Wu. Liwei olhou para
ele.
— Minha palavra bastaria? Porque eu estava com Xingyin quando
ela foi sequestrada e quando lutou ao nosso lado contra o Exército
dos Demônios. Estava ao lado dela quando devolveu a essência
aos dragões. Ministro Wu, você também questiona minha honra? —
Ele dizia cada palavra como se o desafiasse.
O ministro curvou-se para Liwei, embora sua expressão fosse de
ceticismo.
— Vossa Alteza, és gentil e misericordioso. Todos estamos
cientes de vossa… amizade especial com a Primeira Arqueira. Não
há nada que não dirá para protegê-la?
Alguém riu da insinuação. Alguns riram em seguida. As palavras
do ministro foram calculadas para inflamar a ira do imperador,
lembrando-o do que ele desdenhava como as “fraquezas” de Liwei,
quando na verdade eram suas maiores qualidades. Antes, eu me
perguntava se sua antipatia por mim se originava de minha herança,
de seu desprezo pelos mortais, talvez. Contudo, por sua hostilidade
e pela maneira como ele conseguia incitar o imperador contra nós,
devia ser mais do que isso. Eu o ofendera de alguma forma que não
percebia? Ele guardava algum rancor contra meus pais?
A energia no corredor mudou e cristais de gelo flutuaram no ar;
cruzei os braços para me esquentar um pouco que fosse. Os
sussurros se encerraram no mesmo instante, um momento antes de
o silêncio engolir a sala como se eu tivesse sido transportada para a
terra dos mortos. O rosto do Imperador Celestial estava mais frio
que o coração de uma geleira. Ele ergueu a mão, estendeu-a, e
faíscas brancas estalaram de seus dedos, mais brilhantes ainda do
que a luz de meu arco, vindo em minha direção com uma velocidade
de tirar o fôlego. O medo me envolveu em uma nevasca gélida. Eu
não conseguia me mover, nem mesmo para tirar os olhos da terrível
beleza do Fogo do Céu, um instante antes de ele o disparar em mim
com precisão impiedosa.
A dor explodiu. Ardente, abrasadora. Mil agulhas incandescentes
perfuraram meu peito repetidamente em um sofrimento sem fim.
Nem mesmo percebi que havia desmoronado no chão e lágrimas
caíam de meus olhos sobre os ladrilhos de jade, sem derramar uma
única gota de sangue. A tortura não era meu corpo sendo cortado
ou esfaqueado, mas meus nervos sendo arrancados de minha carne
pelo mar de luzes que crepitava sobre minha pele. Nunca havia
sentido tanta dor na vida — nem com o ácido de Xiangliu, nem com
o veneno do escorpião do mar, nem mesmo quando Liwei cravou
sua espada em mim. Nada em meus piores pesadelos ou medos
mais sombrios poderia ter me preparado para aquele tormento
dilacerante que mutilava meu próprio ser.
Suspiros estrangulados saíam de minha boca. Meu corpo
estremecia enquanto eu vomitava. Eu fora até ali de cabeça erguida,
mas estava em tamanho sofrimento que a última coisa que
importava era a multidão de estranhos testemunhando minha
completa humilhação.
Meus gritos vieram, então, quebrando o silêncio. Mordi a língua
para abafar os gritos tarde demais e o sangue escorreu de minha
boca. Agradeci por ele, era um lembrete de que eu ainda estava
viva. Em meio ao torpor da agonia, uma voz veio flutuando até meus
ouvidos — Liwei. Sua angústia contorcia meu coração enquanto eu
me afogava em dor.
Lampejos de uma vida não vivida, de caminhos não trilhados,
varreram minha mente, despertando mil arrependimentos e
saudades. Se ao menos eu pudesse ter ido para casa, para minha
mãe! Se ao menos Liwei e eu nunca tivéssemos nos separado! Se
ao menos Wenzhi não tivesse me traído! Se ao menos… aquele não
fosse o fim.
Lutei contra a vontade de fechar os olhos, de afundar no tentador
vazio. Seria possível sobreviver àquilo? Esperei por um lampejo de
raiva, esperei que minha vontade endurecesse e revivesse minhas
forças, mas não havia nada além do cansaço que penetrava meus
ossos.
Agora eu sabia que morreria naquele lugar. Não havia piedade
nem misericórdia na expressão do imperador, apenas uma
satisfação insensível de que sua justiça seria aplicada. Mas eu não
me reduziria a ficar acuada. Partiria de olhos abertos. Veria tudo, o
rosto de meu amado e o de meu assassino.
Meu corpo estremeceu quando pus as mãos no chão, levantando
a cabeça alguns centímetros. Cada fôlego era um tormento
estremecedor. Meu pingente escorregou das dobras de meu manto
e o disco de jade tilintou contra o piso.
Teriam se passado apenas alguns segundos? Foi uma vida inteira
de sofrimento.
— Pai! — O grito de Liwei perfurou meus ouvidos novamente,
junto com aquele estalo sinistro no ar.
Olhei para ele, atordoada, enquanto um escudo brilhante de luz
dourada me envolvia. Assim como quando ele me protegera dos
soldados Demônios, o Fogo do Céu do imperador virou nada
quando o atingiu. Meu corpo ficou mole de alívio com isso, apesar
de o escudo ter se partido um momento depois. Liwei correu para
frente, parando entre mim e os tronos — o rosto pálido, suor
escorrendo pela testa. Ele veio em meu auxílio, assim como eu
sempre soube que faria.
— Liwei, saia da frente. Não mostrarei clemência se me desafiar
novamente. — A voz do imperador era tão hostil que parecia se
dirigir a um inimigo em vez do filho.
A imperatriz desceu da plataforma às pressas, tropeçando. As
flores douradas em seu diadema tremiam como se tivessem sido
capturadas por um vendaval.
— Liwei, essa garota traiçoeira não merece sua proteção. Sua
conduta é uma ameaça a todos nós. — Ela o pegou pelo braço a fim
de puxá-lo para longe.
Quando ele se desvencilhou, o imperador acenou para seus
guardas, que correram em direção a Liwei. Eu quis dizer a ele para
sair, mas fui preenchida por uma alegria violenta quando ele resistiu
para ficar ali. Eu estava com tanto frio que nunca pensei que sentiria
calor novamente, mas, enquanto o observava, uma faísca se
acendeu dentro de mim e meu braço se estendeu em uma tentativa
inútil de tocá-lo.
O olhar do imperador se voltou para mim e ele levantou a mão.
Meu corpo devastado não poderia resistir a outro ataque, mas forcei
meus olhos a se abrirem, mesmo quando as pontas dos dedos do
monarca se acenderam novamente.
O tempo parou. O Fogo do Céu veio em minha direção com uma
velocidade estonteante, mas com uma lentidão agonizante. O grito
de Liwei quebrou meu atordoamento. Sacudi a cabeça e um grito
irrompeu de minha garganta quando ele se libertou dos guardas
vindo me proteger com seu corpo; mesmo que eu tenha estendido a
mão a fim de empurrá-lo para o lado. Mesmo sabendo que era tarde
demais.
— Não… — Um sussurro partido no momento em que ele
segurou minha mão. Quando meus olhos encontraram os dele,
cheios de ternura e de amor, eu soube que nunca me arrependeria
daquela visão final.
A luz branca ofuscou minha visão. Eu me preparei para a morte.
No entanto, minha pele não foi perfurada pela dor aguda… minha
carne não foi rasgada por uma agonia abrasadora. Em vez disso, eu
estava envolta em um casulo luminoso, tão suave e delicado quanto
a névoa ao amanhecer. Meus olhos foram até Liwei imediatamente.
Ele estava vivo e a salvo, assim como eu. Foi então que senti uma
frieza ondulando em meu peito. Soltei a mão de Liwei e peguei o
pingente de meu pai, que fazia minha pele formigar e brilhava muito.
A mesma luz que protegera a mim e a Liwei. No entanto, assim
como surgiu brevemente, desapareceu; senti a jade esquentar em
meus dedos e a pedra lisa rachou, exatamente como estava antes
de o sopro do Dragão Longo a consertar.
O Imperador Celestial… Eu não o reconhecia mais naquele
momento. Pálido de choque, vermelho de raiva. Será que sentia
algum remorso por quase ter matado o filho? Ele não sentiria por
mim. Enquanto seu olhar pétreo vinha em minha direção, forcei-me
a encará-lo de volta; eu aceitaria o ódio e retribuiria com o meu.
Liwei afastou o manto, ajoelhando-se no chão.
— Honorável Pai, sua ordem foi obter as pérolas dos dragões
pela revogação da sentença da Deusa da Lua. O senhor não disse
nada sobre a essência espiritual deles. Se erramos, imploro por
misericórdia em nosso favor. No entanto, as quatro pérolas estão
diante de você, como prometido. Falta apenas um lado do trato a
ser cumprido. O seu.
A voz dele chegou a cada canto do salão, tirando a corte do
choque. Alguns cortesãos, os mais corajosos, assentiram.
Sussurros saíam de bocas cobertas por mangas de vestes. Claro,
eles sabiam pouco sobre as pérolas e o grande poder que uma vez
contiveram. Aos olhos deles completei minha missão e fui
recompensada com um raio no peito.
O Imperador Celestial se acalmou. As palavras de Liwei pareciam
tê-lo lembrado dos inúmeros olhos que o observavam. Línguas
silenciosas que ali não julgavam podiam não se conter tanto quando
retornassem para casa. Ele seria considerado justo e benevolente,
ou tirano e cruel? Quanto a mim, Liwei vinculara irrevogavelmente
nossos destinos. As “minhas” escolhas se tornaram “nossas”. Minha
punição também seria a dele. Eu lutara por Liwei na Floresta da
Eterna Primavera, assim como ele estava lutando por mim ali. Então
balancei a cabeça negativamente para afugentar tais pensamentos.
Como ele me dissera antes, não havia necessidade de ficar
contando. Não importava o quanto nossos caminhos divergiram,
nosso vínculo permaneceu intacto.
— Vossa Majestade Celestial — os tons sedosos do Ministro Wu
eram inoculados mais uma vez —, eu humildemente vos aconselho
a esmagar tal rebeldia de uma vez. Essa menina e sua mãe
zombarão do Reino Celestial. Não se esqueça de como Chang’e
escondeu a existência da filha, assim como esta tentou enganá-lo
agora. E se outros acreditarem que podem enganá-lo e escapar
ilesos?
Liwei se virou para ele, apontando para onde eu estava caída no
chão.
— Ilesos? Você conseguiria suportar o Fogo do Céu como ela?
Ela já pagou mais que o suficiente por qualquer ofens…
— Silêncio! — disparou o imperador, agarrando os braços de seu
trono.
O ar estava sufocante, espesso de tensão. Ninguém ousava se
mexer, nem mesmo a imperatriz, enquanto olhava para Liwei com
olhos arregalados de incredulidade.
O Imperador Celestial contraiu a boca em uma linha fina. O gelo
começou a brilhar na atmosfera mais uma vez e meu corpo se
encolheu ao recordar o tormento, preparando-se para o abraço da
morte.
O som agudo de botas contra os ladrilhos quebrou o silêncio.
Uma aura se aproximou — firme, resoluta e forte — General
Jianyun. Diante da plataforma, ele caiu de joelhos.
— Vossa Majestade Celestial. Antes de dar vosso veredito, é
dever de seu servo leal lembrá-lo de que a Primeira Arqueira salvou
o Exército Celestial da armadilha hedionda do Reino dos Demônios
hoje. Os soldados desejam mostrar sua gratidão e, mesmo agora,
aguardam do lado de fora. — Ele ergueu a cabeça, gesticulando
para a entrada do salão.
Olhei para cima, descrente, ficando de pé com dificuldade e
ignorando a dor que florescia a cada movimento. Lentamente, dei
meia-volta, seguindo o aceno do General Jianyun. Os cortesãos
diante de mim se separaram, sussurrando entre si.
Shuxiao estava perto da entrada e logo atrás dela, além do salão,
havia um mar de soldados Celestiais, estendendo-se mais longe do
que eu podia ver. Como se fossem um, curvaram-se, e a luz do sol
ondulou sobre suas armaduras, uma maré de fogo branco-dourado.
Meu coração subiu à garganta e a dor em meu corpo diminuiu.
Lágrimas brotaram em meus olhos quando me curvei para eles.
Eu não era leal ao Reino Celestial. Era leal aos meus amigos;
aqueles com quem lutei, aqueles com quem sangrei. Quando voltei
à postura normal, meus olhos encontraram os de Shuxiao. Ergui a
mão para minha amiga em saudação. Pelo visto eu tinha muito a
agradecer a ela. Quem mais teria informado ao General Jianyun e
levado o exército até ali?
O exército do Imperador Celestial.
Senti um calafrio na nuca. Recordando-me, dei meia-volta
novamente e caí de joelhos. Eu não imploraria nem suplicaria; não
iria adiantar.
— Vossa Majestade Celestial, não sou uma traidora. Cumpri os
termos de nosso acordo e aguardo sua justiça. — Minhas palavras
foram simples; minha voz, rouca de tanto gritar. O que viesse depois
não importava, havia uma paz em mim por saber que eu fizera tudo
que estava ao meu alcance.
Os murmúrios no salão ficaram mais altos, e vários cortesãos
meneavam a cabeça. Os soldados não se dispersaram, ficaram na
entrada do salão.
O rosto do Imperador Celestial era uma máscara de porte régio,
sem nenhum traço da rigidez e da raiva de um momento antes.
Quando ele falou, seu tom era firme e calmo.
— Primeira Arqueira Xingyin. Em gratidão por seu nobre serviço,
realizaremos seu desejo. Chang’e tem meu perdão e doravante
estará livre para deixar a lua. No entanto, não deve fugir de suas
responsabilidades. Como a Deusa da Lua, ainda cabe a ela garantir
que o corpo celeste nasça todas as noites, sem exceção.
Um breve instante de silêncio. Então os aplausos explodiram,
dentro e além do Salão da Luz Oriental. Se havia quem discordasse,
a imperatriz ou o Ministro Wu, seus protestos caíram em ouvidos
surdos. Eu caí novamente, sentindo a tensão ir embora de meu
corpo, mesmo que minha mente rodopiasse. O perdão do imperador
foi generoso. Magnânimo. Totalmente inesperado. Eu sabia, como
ele, que não havia realmente cumprido minha missão; não tinha
feito o que ele queria. Ele tinha o direito de negar sua parte do
acordo, por também ser meu juiz. Sua graça foi bem calculada,
lendo o clima da corte e de seus soldados, para preservar sua honra
e sua reputação. E também percebi a ameaça em suas palavras.
Nem tudo estava bem. E não haveria misericórdia uma segunda
vez.
Quando o imperador acenou, um selo apareceu diante de mim,
brilhando como uma estrela. Peguei o objeto, dobrando o corpo para
baixo e pressionando a cabeça no chão de pedra fria. Não havia
humildade ou gratidão em mim, mas eu desempenharia meu papel
naquela farsa. A dor percorria cada centímetro de minha carne e eu
não conseguia afastar a pontada de medo de que aquilo ainda
pudesse ser um truque. Confiança era algo que eu tinha aprendido a
não ceder prontamente. No entanto, minha alegria não podia ser
contida; veio livre, derramando-se por mim como os raios do sol
atravessando o céu infinito.
Eu estava indo para casa.
39
M inha mente viajara para cá mil vezes, embora eu tenha feito este
caminho apenas uma vez antes. Vi primeiro a floresta branca como
a lua de jasmins-do-imperador, o brilho do loureiro à distância. O
amplo telhado prateado, depois as brilhantes paredes de pedra do
Palácio da Luz Pura. Minha casa . Fechando os olhos, senti um
aroma leve e inebriante de canela-preta. Se aquilo era um sonho, eu
não queria acordar.
Fiz a nuvem parar e saltei ao chão iluminado pelo brilho das
lanternas. A qualquer momento, mamãe e Ping’er sentiriam a
presença surpreendente de um visitante. Mal dei alguns passos
quando as portas se abriram e uma mulher esbelta de branco
surgiu, com uma peônia vermelha enfiada no cabelo. Ela estava
pálida e contraía os lábios. Os visitantes eram uma ocorrência rara
aqui, e geralmente anunciavam infortúnios ou más notícias.
Eu não era mais a criança que fugira com medo do desconhecido
agarrada a Ping’er. No entanto, o tempo aqui havia parado; eu a
reconheceria em qualquer lugar. Um sorriso se esticou em meu
rosto e meus pés voaram sobre o caminho de pedra. Nunca
estiveram tão leves. E meu coração… meu coração estava
incandescente, mais brilhante que todas as estrelas do céu.
— Mãe! — Joguei meus braços ao redor dela; agora eu era mais
alta. — Eu voltei.
Seu corpo enrijeceu quando ela se afastou, olhando para meu
rosto. Será que ela suspeitava de algum truque para pegá-la
desprevenida? Seu olhar me investigou, parando em meus olhos,
movendo-se para a fenda em meu queixo. Ela respirou fundo um
momento antes de levantar a mão para acariciar minha bochecha,
com os olhos brilhando como o luar na água. Então seus braços me
envolveram, abraçando-me com tanta força quanto ela tinha em
meus sonhos.
— Xingyin, Xingyin — sussurrava ela repetidamente, e cada
repetição era mais alta que a anterior, como se quanto mais ela
dissesse meu nome, mais ela pudesse acreditar que era verdade.
Outra pessoa apareceu na entrada, talvez atraída pela comoção.
Ela estava ao lado de uma coluna de madrepérola, esticando o
pescoço.
— Estrelinha? — Um leve sussurro escapou de seus lábios.
Meu nome de infância me encheu de uma doçura repentina. Os
anos se passaram, mas era como se eu nunca tivesse partido. Na
verdade, meu coração sempre esteve aqui.
— Ping’er! Sou eu! — Ela correu para mim, abraçando-me como
costumava fazer.
— Passaram-se tantos anos, estive tão preocupada! — Suas
palavras saíam como se ela as estivesse segurando há muito
tempo. — Eu… eu falhei com você naquele dia. Eu fui muito lenta.
Sou tão…
— Não, Ping’er. Eu nunca teria escapado se não fosse por você.
— Eu a abracei com mais força. — Como você escapou dos
soldados? — Meu último vislumbre dela fora seu corpo sem vida
enquanto a nuvem se afastava.
— Eu estava quase exausta, pensei que havia morrido. Por sorte,
um vento surgiu e me levou para um lugar seguro. Eu tive de
recuperar minhas energias antes que pudesse voltar. Retornei ao
Império Celestial para encontrá-la, mas não sabia para onde você
tinha ido. Então, os soldados me pararam. — Seu rosto estava
pálido. — Suspeitaram de mim e, desde então, não tive permissão
para sair deste lugar.
— Eu sabia que você ia tentar me encontrar. — Uma leveza se
espalhou por meu peito. — Se você não fizesse isso, seria porque
não conseguiu.
Ficamos do lado de fora até que o brilho da lua começou a
desaparecer. Nós três rimos e choramos com as mãos entrelaçadas;
nenhuma de nós queria se soltar. Até então, eu não tinha percebido
o quanto sentia falta disso: da unidade da família, do amor
incondicional. Eu não queria me mexer, não faria nada que pudesse
quebrar a perfeição do momento, aquela renovação de minha alma.
Esses momentos, mesmo em uma vida imortal, são muito raros;
ocasiões nas quais a felicidade é absoluta e silencia os murmúrios
constantes que nos atacam. Com minha mãe e Ping’er ao meu lado,
sobre a terra de minha casa, eu não queria mais nada; meu coração
já estava cheio até explodir.
Quando a noite deu lugar à pérola do amanhecer, finalmente
entramos pelas portas prateadas. Meu olhar se deteve nas paredes
claras, nas lâmpadas brancas de jade em cada pilar de madeira
esculpida. Nada comparado aos tesouros do Palácio de Jade, mas
cem vezes mais preciosas para mim. A quietude era mais profunda
do que eu lembrava, assim como a tranquilidade que permeava o ar.
Mas, depois de tudo que eu passara, estava feliz por isso.
Joguei-me em uma cadeira, passando os dedos pelos sulcos da
madeira. Estou em casa , sussurrei para mim mesma, fitando minha
mãe com medo de ela desaparecer se eu desviasse o olhar. De que
tudo aquilo desaparecesse, deixando-me sozinha em minha cama
no Império Celestial. Talvez esse medo viesse de meu tormento com
tantos pesadelos, talvez eu estivesse acostumada a sofrer, pois
aquele cerne comprimido de medo em meu peito ainda estava lá,
dizendo que aquilo era apenas uma ilusão. Eu me belisquei até que
manchas vermelhas apareceram em meu braço, deliciando-me com
a dor que dizia que tudo aquilo era real .
Ping’er colocou uma xícara quente de chá perfumado em minhas
mãos. As perguntas fluíram, então:
— Você está bem? Está feliz? Onde esteve esse tempo todo? O
que você tem feito?
Respondi com o máximo de detalhes que pude, tentando
satisfazer anos de ansiedade e de curiosidade. Enquanto algumas
memórias como meu tempo na Mansão do Lótus Dourado eram um
borrão, outras estavam mais nítidas do que eu desejava. Quando
falei da entrada no Palácio de Jade, minha mãe agarrou a manga de
minhas vestes e a puxou.
— O Imperador Celestial descobriu sua identidade? — Ela olhou
por cima do ombro, como se esperasse que soldados armados
invadissem nossas portas.
— Não naquele momento — assegurei a ela. Antes que ela
pudesse sondar mais, eu rapidamente descrevi meu treinamento em
magia, combate e arquearia.
— Arquearia? — Sua voz ficou um pouco embargada. — Assim
como seu pai — disse ela, com orgulho.
Um nó se formou em minha garganta. Por muito tempo eu vivi
com medo de quem eu era — não falando nunca os nomes de meus
pais, fingindo para o mundo exterior que eles não existiam… como
se eu fosse uma erva daninha silvestre nascida em um campo
aberto. Agora, eu queria gritar isso para o mundo.
Minha mãe me interrompeu uma vez. Sem precisar omitir nada
em minha casa, um calor enchia minha voz sempre que eu
mencionava o nome de Liwei.
— O que você tem com o Príncipe Herdeiro Celestial? —
perguntou ela.
Percebi o leve franzir em sua testa.
— Nós somos… amigos — gaguejei, e um calor subiu por meu
pescoço.
— Esse Capitão Wenzhi também é seu amigo? — A voz de minha
mãe estava enganosamente suave.
— Não — retruquei incisivamente, em um volume maior do que
pretendia.
Houve uma pausa constrangedora quando minha mãe trocou um
olhar preocupado com Ping’er, e fiquei feliz quando não fizeram
mais perguntas sobre isso. Apressadamente, comecei a descrever
as batalhas das quais participei, as criaturas e os inimigos que
enfrentei a serviço do Exército Celestial.
Aqueles monstros eram muito melhores do que os que habitavam
minha mente.
Ping’er estremeceu com minha descrição de Xiangliu e cruzou os
braços.
— Você ficou com medo?
— O tempo todo. — Algumas pessoas podiam pensar que sou
uma covarde, mas não senti vergonha de admitir isso. Eu não era
uma dessas heroínas valentes que mergulhavam no perigo de forma
tão destemida. Eu tinha medo de me machucar, de fracassar e,
acima de tudo, da morte. De nunca mais ver minha mãe ou meus
entes queridos. Lamentar todas as coisas não ditas ou não feitas.
Deixar a vida que ainda não vivi. Fui elogiada por minha bravura,
mas eu sabia a verdade: todas essas coisas foram feitas apesar de
meu medo, porque não as fazer me amedrontava mais.
Elas ficaram surpresas ao saber como eu salvei a vida de Liwei.
Não contei a elas as coisas cruéis que Madame Hualing nos obrigou
a fazer; eu não queria desenterrar aquelas memórias dolorosas,
nem deixar as duas ainda mais espantadas. O rosto de minha mãe
ficou pálido com a revelação de minha identidade e o acordo que eu
tinha feito com o imperador.
— Como você pôde fazer uma coisa dessas? Correr esse risco?
— Ela se levantou e andou pela sala, com as mãos unidas com
tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. — E se você
fosse condenada à prisão? À tortura? À morte ?
— Todas essas coisas eram possibilidades muito reais na época
— brinquei. Mas minha alegria desapareceu ao ver seu rosto
preocupado. — Mãe, eu ganhei o Talismã do Leão Vermelho e a
graça do imperador. Não havia melhor momento para perguntar isso
a ele. Se não, não estaria aqui hoje. Eu passaria meus dias
lamentando essa oportunidade perdida, arrependida por não ter
tentado. E esse seria um destino pior. — Fiz uma pausa, então,
encarando seu rosto. — Mãe, a senhora também se arriscou
quando tomou o elixir. — Ela ficou tão quieta, tão imóvel, que quase
me arrependi das palavras. — A senhora me salvou no passado, e
eu agradeço por isso.
Um leve sorriso se formou nos lábios de minha mãe, mesmo
enquanto as lágrimas escorriam por suas bochechas.
— Ah, chega dessa tristeza — disse Ping’er, enxugando os olhos
com o canto da manga. — Este é um dia feliz. O mais feliz de todos.
Não choraremos mais.
— E, como vocês podem ver, estou bem — assegurei a elas,
levantando-me e esticando os braços. Seus olhos se demoraram em
mim até que se convenceram de que eu não estava com nenhum
ferimento aparente. Embora eu não tenha dito nada sobre a teia de
cicatrizes brancas espalhadas por meu peito. As feridas feitas pelo
Fogo do Céu do imperador, ainda recentes. Eu não achava que elas
sumiriam; ficaria marcada para sempre. Mas de que isso importava?
Algumas cicatrizes não eram nada perto do que eu tinha
recuperado.
Quando minha mãe soube que o honorável Capitão Wenzhi era
do Reino dos Demônios, sentiu um calafrio, ficando horrorizada.
— Xingyin, como você se sentiu? — perguntou ela, com uma
perspicácia invejável.
Meneei a cabeça, sem palavras; a trapaça dele ainda era difícil de
suportar. Agora que eu estava segura, o peso da traição de Wenzhi
era sentido em totalidade. Uma dor diferente de quando Liwei e eu
nos separamos, não que essa também não tivesse me feito sofrer.
Com Liwei, foram as circunstâncias que nos separaram. Ele era o
Príncipe Herdeiro Celestial, com obrigações para com seu reino. Já
com Wenzhi… fui magoada pela falsidade e pelas vis decisões dele
. Minha mágoa estava misturada com remorso por ter sido tão
descuidada, tão imprudente a ponto de cair em suas mentiras. E
havia amargura, também, por ele ter abalado minha confiança em
mim mesma. Por ter me rebaixado às profundezas de sua própria
fraude quando eu fingi afeto para dopá-lo e fugir. Eu não tinha
vergonha do que fizera, mas também não tinha orgulho.
Felizmente, Ping’er tinha perguntas mais urgentes a fazer.
— O que aconteceu com as pérolas? E com os dragões?
Procurei palavras que fizessem jus à sua beleza sobrenatural, ao
seu poder e à sua graça. Quando falei da restauração da essência
dos dragões, a mão de minha mãe cobriu a minha. Não houve
julgamentos por colocar em perigo sua liberdade e eu mesma,
apenas orgulho brilhando em seu rosto.
— Os dragões estão livres — sussurrou Ping’er. — Eu acreditava
que eles estavam perdidos para sempre.
Continuei com minha história, respondendo às perguntas delas da
melhor forma que pude, apenas as evitando quando doesse demais
— quando não conseguisse esconder meus sentimentos. Quando
terminei, o sol estava a pico e o céu, um azul-celeste.
Foi então que desamarrei minha bolsa, pegando o selo que o
Imperador Celestial me dera, tão frio quanto um punhado de neve.
Meu coração batia tão rápido que eu mal conseguia respirar
enquanto saía de minha cadeira e caía de joelhos diante de minha
mãe.
— Xingyin, por que está ajoelhada? — Ela parecia confusa
quando se inclinou para frente de mãos estendidas para me
erguer…
Mas eu levantei as mãos juntas em concha para ela em vez disso.
Nelas estava o selo, brilhando como gelo iluminado pelo sol. Eu
tremia muito e nem sabia por quê. Medo, entusiasmo, esperança, ou
seria tudo junto? Será que daria certo? Como eu rezei para que sim!
Ela pegou o selo de minha mão e o ergueu.
— O que é isto?
Antes que eu pudesse responder, algo faiscou no metal — feixes
de luz branco-prateada saíram de suas profundezas, envolvendo
minha mãe em um brilho deslumbrante. Ping’er e eu protegemos
nossos olhos, quase cegos devido ao clarão que se desvaneceu
abruptamente. O selo agora se tornara um pedaço de carvão fosco.
Minha mãe ficou imóvel como mármore. Quando ela se virou para
mim, seus olhos estavam cheios de admiração, brilhando mais do
que as mil lanternas acesas.
— O encantamento foi quebrado. Eu estou livre.
Quando Ping’er ficou de pé, exclamando de alegria, meu corpo
ficou mole de alívio. Até então eu temia um truque cruel do
imperador. Mas ele manteve sua palavra. Uma torrente de emoção
me varreu e desembaraçou os nós enterrados profundamente,
dissipou as sombras à espreita, arrancou minha tristeza; todo o meu
ser fora preenchido com nada além de uma leveza crescente e
ardente.
Finalmente, nossas vidas poderiam começar de novo.
40
HOUYI
Ao redor havia pinturas das realizações de meu pai; as batalhas
que vencera, os inimigos que derrotara. Era uma tumba magnífica,
digna até de um rei naquele mundo. No entanto, entristeceu-me que
não houvesse menção de sua família ou descendentes. Teria vivido
sozinho até o fim?
Minha mãe agarrou meu braço, com passos vacilantes. Ela olhou
para a sepultura com o rosto afligido pela dor.
— Nós podemos ir embora, se a senhora quiser — sussurrei, com
dor no peito.
— Não — exclamou ela, ferozmente. Ela puxou as mangas
compridas para cima, pegou a vassoura e começou a varrer com
uma explosão de energia. Por um momento, eu me perguntei o que
os mortais pensariam se vissem a reverenciada Deusa da Lua
varrendo tão diligentemente quanto qualquer aldeão comum. De
repente, ocorreu-me que eles, mais do que ninguém, entenderiam o
respeito que ela queria prestar ao marido. Para mostrar a ele que,
mesmo na morte, ainda o honrava. Eu me agachei, usando meu
lenço para limpar a poeira e a sujeira do mármore, polindo os
ideogramas até que brilhassem mais uma vez. Liwei se afastou no
início, antes de se curvar para arrancar ervas daninhas.
Quando o local estava impecável, minha mãe trouxe as frutas e
os bolos que ela mesma preparara como oferenda, empilhados em
pratos de porcelana. Acendi os bastões de incenso e passei três
para ela, suas pontas vermelhas com as chamas apagadas.
Segurando-os diante de nós, ajoelhamo-nos diante do túmulo e nos
curvamos três vezes. Uma esposa e uma filha, lamentando nossa
maior perda. Após a reverência final, coloquei os bastões de
incenso firmemente no pequeno incensário de latão. Finos rastros
de fumaça perfumada flutuaram no céu.
Toquei a mão dela, despertando-a de seu torpor.
— Mãe, quando a senhora anda na floresta à noite, pensa em
quê? — Eu sempre quis perguntar isso.
Ela fechou os olhos, com um sorriso que parecia um sonho.
— Em você criança. Em seu pai. Em nossa vida juntos. Como eu
gostaria que ele estivesse conosco, que não tivesse sido deixado
para trás. — Ela inclinou a cabeça e sua boca sussurrou palavras
pela metade. — Às vezes eu me pergunto… e se os médicos
estivessem errados? E se eu não tivesse bebido o elixir? Teríamos
vivido todos esses anos juntos, no mundo abaixo. Meu cabelo
estaria grisalho agora, mas teríamos sido felizes . — Ela apertou
minha mão com mais força. — Enquanto eu subia aos céus, olhei
para trás uma vez e o vi na janela com a mão estendida, com tanta
angústia no rosto. Ele voltou tarde demais. Algumas noites eu me
atormento, imaginando como ele se sentiu enquanto me observava
voar para longe. Será que entendeu por que eu fiz aquilo? Será que
se sentiu traído? Será que… me odiou? Nessas noites, eu também
me odeio. — Ela olhava para frente, com um nó na garganta. — No
momento em que peguei o elixir, só conseguia pensar em você e em
mim, no quanto eu queria que nós ficássemos vivas . Quando bebi,
escolhi a morte de meu marido antes da minha. Escolhi uma vida
sem ele. Escolhi… nós. — Sua voz pulsava com emoção repentina.
— Eu nunca me libertarei de minha tristeza. No entanto, faria tudo
de novo, mesmo sabendo tudo o que aconteceu depois. Porque isso
significa que eu teria você.
As lágrimas caíram dela como uma chuva. Eu me amaldiçoei por
minha pergunta impensada, apesar de saber que perguntar a
entristeceria. Mas não podíamos continuar escondendo e
enterrando nossa mágoa, principalmente daqueles que amávamos.
Eu tinha aprendido que o perdão, o crescimento e a eventual cura
de nossas feridas vinham da dor. Então me ocorreu que talvez
minha mãe e eu fôssemos mais parecidas do que eu imaginava.
Nós duas havíamos aproveitado as oportunidades que surgiram em
nosso caminho, ambas escolhemos viver.
Lentamente, seus dedos escorregaram de meu alcance, como se
ela tivesse esquecido minha presença. Seu olhar estava fixo nos
caracteres brilhantes do nome de meu pai na lápide, e seus lábios
moviam-se para pronunciá-los em silêncio. Seu legado e suas
realizações esculpidas em pedra imutável. Para sempre enraizados
na memória do mundo que ele havia salvo. Enquanto houvesse
livros para ler e canções para cantar, ele nunca seria esquecido.
Mas isso era um consolo vazio para aqueles que o amavam.
Levantando-me, juntei-me a Liwei na margem do rio. Ficamos em
silêncio, observando a água brilhando à luz do sol enquanto a brisa
brincava com nossos cabelos. O ar do mundo mortal estava repleto
de uma miríade de aromas; flores desabrochando, folhas em
decomposição, a água terrena do rio fervilhando de vida. Ele se
voltou para mim.
— Pedi à Princesa Fengmei que nosso noivado não acontecesse
mais.
Olhei para ele, incrédula, sem saber o que dizer.
— Por quê? Quando? — perguntei, por fim.
Ele me lançou um sorriso pesaroso.
— Precisa perguntar? Depois que você partiu, eu a visitei. Contei
a verdade, o que eu deveria ter dito a ela muito antes. Ela merecia
mais do que eu tinha a oferecer: um coração que nunca seria dela.
Ela foi muito compreensiva, e me pediu para dizer que espera que
encontremos a felicidade juntos. Acho que ela sabia desde o dia em
que você a resgatou.
Lembrei-me de seu olhar claro quando fitou nossas Gotas do Céu,
quando percebeu que eram um par perfeito. Eu não queria magoá-
la… mas, ah, eu não podia negar a alegria que floresceu em mim
naquele momento.
— E a aliança?
— O Império da Fênix reafirmou seu apoio ao Império Celestial.
Embora o vínculo não seja tão forte quanto uma aliança por
casamento, eles continuarão sendo nossos amigos e aliados. Tanto
a rainha quanto ela continuam agradecidas por nossa ajuda. — Ele
pegou minha mão, pressionando-a contra seu peito, onde seu
coração batia tão alto quanto o meu. Seus olhos brilharam com uma
emoção desenfreada. Enquanto sua outra mão estava em minha
face, inclinei-me inconscientemente contra ele, atraída por seu calor
que nunca esqueci. — Meu coração é seu; sempre foi seu — disse
ele. — Não precisa responder agora. Eu sei que você precisa de um
tempo com sua mãe e para pensar sobre as coisas. Eu estava
errado antes; não lutei o suficiente por nós naquela época. Mas
nunca vou falhar com você novamente. — Ele disse as últimas
palavras tão solenemente quanto um voto.
As emoções que me inundavam não deixavam espaço para falar.
Era como se o sol tivesse emergido de trás das nuvens, iluminando
o céu. As sombras podem retornar, mas por enquanto eu me
deleitaria com seu brilho.
Quando anoiteceu, voamos de volta para a lua. Antes de partir,
Liwei me ajudou a erguer os escudos de proteção. Nossa casa não
era mais proibida aos imortais e, quando acolhíamos visitantes,
precisávamos ter cautela. Juntos, tecemos nossa magia em fios de
poder que se estendiam ao redor do Palácio da Luz Pura. Quando
parei, exausta, Liwei assumiu. Quando ele fechou os olhos, sua
energia explodiu em uma onda de luz, circulando nossos escudos
antes de desaparecer.
— Acrescentei outra camada de proteção para detectar quem
esconde sua forma, seja Demônio, espírito ou Celestial. Embora não
possa impedir a entrada deles, esperamos que seja um aviso
suficiente — explicou ele.
Com a seriedade em seu tom, o sangue deixou meu rosto.
— Celestial? — repeti, tropeçando na palavra. Eu pensei que a
intriga, o perigo e o medo haviam acabado.
O rosto de Liwei ficou obscuro.
— Não tenho conhecimento de trama alguma. No entanto, meus
pais estão descontentes pelo exército ter lhe dado apoio. Sussurros
chegaram a seus ouvidos de que ele a ter deixado vir para cá é visto
por muitos como um sinal de fraqueza. Alguns começam a
questionar novamente a sabedoria de suas decisões passadas:
aprisionar os dragões, exilar a Deusa da Lua, permitir que os
pássaros solares vagassem sem restrições…
Fiquei arrepiada.
— Tudo o que eu queria era voltar para casa e libertar minha mãe.
Eu nunca pretendi que nada disso fosse um desafio. Eu só quero
viver em paz.
— Não podemos controlar o que os outros temem. Mas você não
estará sozinha. Eu estarei com você, enquanto você permitir. —
Liwei pegou minhas mãos congeladas, levando-as aos lábios e
soprando seu hálito quente sobre elas. — Estou apenas sendo
cuidadoso. São rumores e boatos, nada com que se preocupar por
enquanto.
Assenti, rígida. Rumores e boatos em ouvidos errados ainda
podiam ter consequências terríveis.
Naquela noite, depois que Liwei saiu, eu me remexi e me virei
antes de adormecer. Mesmo no sono não encontrei descanso;
perdida em um sonho vívido no qual eu estava na varanda, olhando
para o céu. As nuvens eram de uma cor estranha, quase violeta.
Quando uma pessoa alta veio ao meu lado, seu manto verde
rodopiou na brisa.
Ele me encarou com aqueles olhos prateados, como se
esperasse que eu falasse.
— Obrigado por nos deixar ir. Mas isso não apaga tudo o que fez
— disse, rigidamente.
— Eu falei sério. Nunca mais iria forçá-la a agir contra sua
vontade novamente. — Havia uma nota melancólica em seu tom,
que eu nunca tinha ouvido antes. — Eu não percebi o que tínhamos
até que foi perdido. Se ao menos pudéssemos começar de novo, eu
faria as coisas de forma diferente.
Eu não respondi. Não sabia o que dizer.
— Há algo que quero lhe perguntar.
— Pode perguntar, mas pode ser que eu não responda —
retruquei, não querendo me aprofundar em uma conversa que trazia
de volta muitas memórias inquietantes.
Embora ele sorrisse, havia um vazio no gesto.
— Senti falta de sua companhia. Daria esse prazer a mim?
— Eu não senti falta da sua. — Uma meia verdade, uma meia
mentira. Lembrei a mim mesma de que tudo o que eu perdera foi a
ilusão de nosso companheirismo, não a realidade de sua traição.
Os olhos dele brilharam.
— No telhado, antes que o dragão a levasse, você teria atirado
em mim?
Eu me perguntara isso inúmeras vezes até então. Agora, eu
finalmente sabia a resposta.
— Não. — A honestidade dele merecia nada menos que a minha.
Com essa única palavra, ele soltou um suspiro e relaxou a tensão
que estava em seus ombros.
— Você poderia gostar do Demônio como gostou do Celestial?
— O Celestial nunca existiu. Era o Demônio o tempo todo. — De
alguma forma, mantive minha voz uniforme, ignorando a dor em
meu peito.
Ele inclinou a cabeça, sério.
— Talvez. Não importa como você me veja, vou esperar até que
volte.
— Volte a quê?
— A me amar novamente. — Seus dedos roçaram a lateral de
minha cabeça, acariciando levemente meu cabelo. — Ou, pelo
menos, a não me odiar mais.
Antes que eu pudesse me afastar e soltar a resposta mordaz que
estava na ponta da língua, ele desapareceu.
Acordei na manhã seguinte, como se tivesse areia nos olhos e de
mau humor. Meu sonho fora muito vívido, e as emoções evocadas,
muito reais; fiquei perdida em pensamentos por um longo tempo.
Alternando entre a indignação por ele ter se infiltrado em meus
sonhos e o ressentimento por pensar que ele ainda mexia assim
comigo. Finalmente, levantei-me para me vestir. Na frente do
espelho, congelei ao ver o grampo de prata em meu cabelo
esculpido com um padrão de nuvens. Meus dedos agarraram o
metal frio, arrancando-o e jogando-o em uma gaveta.
Peguei o Arco Dragão de Jade, pendurando-o no ombro antes de
sair do quarto. Meu tempo no exército me ensinou a ter cautela, a
ter sempre uma arma à mão. Caminhando para fora, testei mais
uma vez os escudos que Liwei e eu tecemos. Fios de ouro e de
prata entrelaçados firmemente, tão delicados quanto uma teia de
aranha, porém mais fortes que o ferro. Com uma explosão de
coragem, pensei, se os inimigos espreitassem no horizonte, eu
estaria pronta para eles.
Naquela noite, não sonhei com Wenzhi. Eu estava insegura,
indecisa sobre como me sentia, embora pressentisse que não seria
a última vez que o veria.