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Ao meu marido, Toby, meu primeiro leitor e parceiro na vida.

Isto não
seria possível sem você.
E aos meus filhos, Lukas e Philip, por, às vezes , me deixarem
trabalhar.
Sumário
Dedicatória

Parte I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Parte II
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Parte III
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40

Agradecimentos
Sobre a autora
1

H á uma porção de lendas sobre minha mãe. Algumas contam que


ela traiu seu marido, um grande guerreiro mortal, roubando seu
Elixir da Imortalidade para se tornar uma deusa. Outras a
descrevem como uma vítima inocente que tomou o elixir enquanto
tentava impedir que ladrões o pegassem. Seja qual for a história na
qual você acredite, minha mãe, Chang’e, tornou-se imortal. Assim
como eu.
Lembro-me da quietude de minha casa. Havia apenas eu, uma
criada leal chamada Ping’er e minha mãe morando na lua. Vivíamos
em um palácio feito de pedras brancas cintilantes, com colunas de
madrepérola e um telhado deslumbrante de prata pura. Seus
quartos amplos estavam cheios de móveis de canela-preta, e o
aroma típico da especiaria flutuava pelo ar. Um campo de alvas
jasmins-do-imperador nos cercava, tendo um único loureiro no
centro, que portava sementes luminosas, de um brilho etéreo. Não
havia vento, pássaro, e nem mesmo mãos, que conseguissem
arrancá-las; agarravam-se aos galhos com tanta firmeza quanto as
estrelas ao céu.
Minha mãe era gentil e amorosa, mas um pouco distante, como
se carregasse uma grande dor que entorpecera seu coração. Todas
as noites, depois de acender as lanternas para iluminar a lua, ela
ficava em nosso alpendre fitando o mundo mortal abaixo. Às vezes,
eu acordava pouco antes do amanhecer e ainda a via ali, com os
olhos envoltos em memórias. Incapaz de suportar a tristeza em seu
semblante, eu a envolvia em meus braços, e minha cabeça ficava
na altura de sua cintura. Ela se encolhia ao sentir meu toque, como
se despertasse de um sonho, antes de acariciar meu cabelo e me
levar de volta a meu quarto. Seu silêncio me incomodava; eu tinha
receio de tê-la chateado, embora ela raramente perdesse a
paciência. Ping’er finalmente me explicou que minha mãe não
gostava de ser perturbada nessas horas.
— Por quê? — indaguei.
— Sua mãe sofreu uma grande perda. — Ela ergueu a mão para
calar minha pergunta seguinte. — Não cabe a mim dizer mais nada.
Pensar na tristeza dela trouxe a mim uma angústia perfurante.
— Já se passaram anos. Minha mãe algum dia vai se recuperar?
Ping’er ficou em silêncio por um momento.
— Algumas cicatrizes são entalhadas em nossos ossos; são parte
de quem somos, moldes do que nos tornaremos. — Observando
minha expressão cabisbaixa, ela me embalou em seus braços
reconfortantes. — Mas ela é mais forte do que você pensa,
Estrelinha. Assim como você.
Apesar dessas sombras fugazes, eu era feliz ali, não fosse pela
dor torturante de que algo estava faltando em nossas vidas. Eu era
solitária? Talvez, embora tivesse pouco tempo a perder ficando
aborrecida com minha solidão. Todas as manhãs minha mãe me
dava aulas de escrita e leitura. Eu moía o pigmento na pedra até
que se formasse uma pasta preta brilhante, enquanto ela me
ensinava a formar cada caractere com os traços fluidos de seu
pincel.
Embora eu apreciasse esses momentos com minha mãe, eram
das aulas com Ping’er que eu mais gostava. Minha pintura era
razoável, e meu bordado era péssimo, mas isso não importava
diante da música, pela qual me apaixonei. Algo na forma como as
melodias se formavam mexia com emoções em mim que eu ainda
não compreendia — fosse das cordas dedilhadas ou das notas que
meus lábios moldavam. Sem amigos para disputar meu tempo, logo
dominei a flauta e o guqin — a cítara de sete cordas —, superando
as habilidades de Ping’er em apenas alguns anos. Em meu
aniversário de 15 anos, minha mãe me presenteou com uma
pequena flauta de jade branca que eu carregava para todos os
lugares em uma bolsa de seda pendurada na cintura. Era meu
instrumento favorito; seu timbre era tão límpido que até mesmo os
pássaros voavam até a lua para ouvi-lo — embora parte de mim
acreditasse que eles vinham também para ficar fitando minha mãe.
Às vezes, eu me pegava olhando para ela, fascinada pela
perfeição de suas feições. Seu rosto tinha o formato de uma
semente de melão e sua pele brilhava com o lustro de uma pérola.
Sobrancelhas delicadas arqueavam-se sobre esguios olhos negros,
que se curvavam em crescentes quando ela sorria. Presilhas de
ouro brilhavam nas voltas torcidas de seu cabelo escuro e uma
peônia vermelha adornava um dos lados. Suas vestimentas internas
eram do azul do céu do meio-dia, combinadas com um robe branco
e prata, que fluía até seus tornozelos. Enrolada em sua cintura havia
uma faixa vermelha, ornamentada com borlas de seda e jade.
Algumas noites, enquanto eu estava deitada na cama, ouvia seu
tilintar suave, e o sono vinha fácil quando eu sabia que ela estava
por perto.
Ping’er me assegurou de que eu me parecia com minha mãe, mas
isso era como comparar uma flor de ameixa à de lótus. Minha pele
era mais escura, meus olhos eram mais redondos e meu maxilar era
mais anguloso, com uma covinha no queixo. Será que eu havia
puxado ao meu pai? Eu não sabia; nunca o conhecera.
Passaram-se anos até eu perceber que minha mãe, que
enxugava minhas lágrimas quando eu caía e endireitava meu pincel
quando escrevia, era a Deusa da Lua. Os mortais a adoravam,
fazendo oferendas a ela a cada Festival do Meio do Outono — no
15º dia do 8º mês lunar —, quando a lua tinha seu brilho mais
intenso. Nesse dia, eles queimam incensos em orações e preparam
bolinhos da lua, com crostas tenras recheadas com uma incrível
pasta doce de sementes de lótus e ovos de pato salgados. As
crianças carregam lanternas brilhantes em forma de coelhos,
pássaros ou peixes, simbolizando a luz da lua. Nesse dia, que
acontecia uma vez ao ano, eu ficava na sacada, fitando o mundo lá
embaixo, sentindo o cheiro do incenso perfumado que subia para o
céu em homenagem a minha mãe.
Os mortais me intrigavam, porque minha mãe olhava para o
mundo deles com muito anseio. Suas histórias me fascinavam, com
suas batalhas por amor, poder e sobrevivência — embora eu tivesse
pouca compreensão de tais intrigas em meu confinamento seguro.
Li tudo o que estava ao alcance de minhas mãos, porém meus
favoritos eram os contos de valentes guerreiros que lutavam contra
inimigos temíveis para proteger quem amavam.
Um dia, enquanto eu estava vasculhando uma pilha de
pergaminhos em nossa biblioteca, algo brilhante chamou minha
atenção. Puxei essa coisa para fora, com o coração palpitando por
encontrar um livro que eu não lera antes. Pela encadernação
costurada de forma grosseira, parecia ser um texto mortal. A capa
estava tão desbotada que eu mal conseguia distinguir a pintura de
um arqueiro apontando um arco de prata para dez sóis no céu.
Detectei os detalhes fracos de uma pena dentro dos orbes. Não,
não eram sóis, mas pássaros curvados, formando bolas de fogo.
Levei o livro para meu quarto, e meus dedos formigavam enquanto
apertavam o papel quebradiço em meu peito. Afundando em uma
cadeira, virei ansiosamente as páginas, devorando-as.
Começou como muitos contos de heroísmo, com o mundo mortal
tragado por um terrível infortúnio. Dez pássaros solares ascenderam
ao céu, queimando a terra e causando grande sofrimento. Nenhuma
colheita era capaz de vingar no solo carbonizado e não havia água
para beber nos rios secos. Dizia-se que os deuses do céu
favoreciam os pássaros solares, e ninguém se atrevia a desafiar
criaturas tão poderosas. Bem quando toda a esperança parecia
perdida, um guerreiro destemido chamado Houyi empunhou seu
arco glacial encantado. Ele disparou suas flechas ao céu, matando
nove dos pássaros solares, salvo um, para que iluminasse a terra…
O livro foi tomado de mim. Minha mãe estava ali, vermelha, com a
respiração curta e breve. Quando agarrou meu braço, suas unhas
se cravaram em minha carne.
— Você leu isto? — gritou ela.
Minha mãe raramente levantava a voz. Olhei fixamente para ela, e
enfim consegui assentir com a cabeça.
Ela me soltou, sentando-se com tudo em uma cadeira enquanto
pressionava os dedos nas têmporas. Estendi a mão para tocá-la,
com medo de que ela se afastasse, enraivecida, mas ela envolveu
minhas mãos com as próprias, e sua pele estava fria como gelo.
— Fiz alguma coisa errada? Por que não posso ler isso? —
perguntei, hesitante. Não havia nada fora do comum na história.
Ela ficou em silêncio por tanto tempo que pensei que não tinha
ouvido minha pergunta. Quando finalmente se voltou para mim,
seus olhos estavam luminosos, mais brilhantes que as estrelas.
— Você não fez nada de errado. O arqueiro, Houyi… ele é seu
pai.
Uma luz passou veloz em minha mente, e meus ouvidos
zumbiram com aquelas palavras. Quando eu era mais jovem, muitas
vezes perguntava a ela sobre meu pai. No entanto, ela sempre caía
em silêncio e sua face se tornava obscura, até que, por fim, minhas
perguntas cessaram. Minha mãe carregava muitos segredos no
coração, e não os compartilhava comigo. Até agora.
— Meu pai? — Enquanto eu dizia essas palavras, meu peito
apertava.
Minha mãe fechou o livro, olhando demoradamente para a capa.
Com medo de que ela saísse, ergui o bule de porcelana e lhe servi
uma xícara de chá. Estava frio, mas ela o bebericou sem reclamar.
— No Reino Mortal, nós nos amávamos — ela começou a dizer,
com a voz baixa e suave. — Ele também amava você, mesmo antes
de seu nascimento. E agora… — Suas palavras foram sumindo
enquanto ela piscava freneticamente. Segurei sua mão para
confortá-la, como um lembrete gentil de que eu ainda estava ali. —
E, agora, estamos separados por toda a eternidade.
Eu mal conseguia raciocinar em meio aos pensamentos que
enchiam minha cabeça e às emoções que irrompiam dentro de mim.
Desde que me entendo por gente, meu pai não passava de uma
presença nebulosa em minha mente. Quantas vezes sonhei com ele
sentado a minha frente enquanto comíamos nossas refeições,
passeando a meu lado sob as árvores em flor! Sempre que eu
acordava, o calor em meu peito se dissolvia em uma dor vazia.
Nesse dia, eu finalmente soube o nome de meu pai, e que ele me
amava.
Não era de admirar que minha mãe parecesse assombrada todo
esse tempo, presa em suas memórias. O que havia acontecido com
meu pai? Ele ainda estava no Reino Mortal? Como acabamos aqui?
No entanto, engoli minhas perguntas, enquanto minha mãe
enxugava as lágrimas. Ah, como eu queria saber, mas não a
machucaria para aliviar minha curiosidade egoísta.

O TEMPO PARA UM IMORTAL era como a chuva para o ilimitado oceano.


Nossa vida era tranquila, agradável, e os anos passavam como se
fossem semanas. Quem sabe quantas décadas teriam se passado
dessa maneira se minha vida não tivesse sido lançada à turbulência,
como uma folha arrancada de seu galho pelo vento?
Era um dia claro, a luz do sol entrava por minha janela. Deixei de
lado meu guqin laqueado, fechando os olhos para descansar. Como
acontecera antes, partículas de luz prateada flutuaram em minha
mente, puxando-me e provocando-me — assim como o cheiro de
jasmim-do-imperador me atraía para a floresta todas as manhãs. Eu
queria ir até elas, mas lembrei-me do aviso severo de minha mãe.
— Não se aproxime delas, Xingyin — implorou, e sua pele estava
pálida. — É muito perigoso. Confie em mim, elas vão desaparecer.
Prometia a ela gaguejando que não faria isso. E, ao longo dos
anos, mantive minha palavra diligentemente. Sempre que um brilho
prateado me chamava, eu pensava com afinco em outras coisas —
uma música ou meu último livro — até minha mente clarear e ele
desaparecer. No entanto, isso estava ficando cada vez mais difícil,
porque as luzes brilhavam mais forte e seu chamado era mais
tentador. O desejo de tocá-las era quase irresistível.
Nesse dia elas brilharam demais, como se sentissem minha
determinação vacilar, a agitação inquieta em meu sangue. Eu sentia
isso com mais frequência ultimamente, uma parte de mim ansiando
por… algo que não tinha nome. Uma mudança, talvez. Mas nunca
acontecia nada aqui. Nada nunca mudava.
As luzes não pareciam perigosas. Minha mãe estaria enganada?
Ela havia me alertado contra inúmeras coisas tão inofensivas quanto
subir em uma árvore ou correr pelos corredores, talvez lembrando-
se de tais perigos de sua infância mortal. Aproximei-me do brilho em
minha mente. Mais perto do que nunca. Alguma coisa me agarrou,
arrastando-me para longe — era medo ou culpa? Porém, agora,
imprudente, rasguei essas coisas como se fossem teias de aranha.
Eu estava à beira, pendendo no limite. Uma corrente passou por
minhas veias; sussurros espiralavam em meus ouvidos. Inclinando-
me para frente, estendi a mão — apenas para ver o prateado
cintilante se espalhar como a luz das estrelas ao amanhecer.
Meus olhos se abriram, e meus sentidos formigavam. Eu não
tinha ideia de quanto tempo fiquei sentada ali, perdida em um torpor.
Além de minha janela, o sol da tarde fazia uma infusão de fios de
rosa e ouro no céu. A emoção se foi; o remorso desceu como uma
pedra sobre meu peito. Eu quebrara a promessa feita a minha mãe.
E, pior ainda, queria fazer isso de novo. Aquelas luzes não eram
perigosas, eram parte de mim — agora eu sabia disso, com uma
certeza surpreendente. Por que ela me advertiu contra elas? Vou
perguntar por quê , decidi, levantando-me. Tenho idade suficiente
para saber .
Assim que cheguei à entrada, uma energia estranha zumbiu no ar,
arrepiando os pelos de minha nuca. Auras de imortais —
desconhecidas para mim — oscilando e se mesclando, como as
nuvens no céu. Eu não sabia dizer quantas, embora uma parecesse
brilhar mais forte do que o resto, muito mais forte do que a de minha
mãe ou a de Ping’er.
Quem viera aqui?
Quando escancarei as portas, minha mãe voou para meu quarto.
Tropecei para trás, batendo em uma cadeira. Ela descobriu o que eu
havia feito? Estava aqui para me repreender?
Abaixei a cabeça.
— Sinto muito, Mãe. As luzes…
Ela agarrou meus ombros.
— Isso não importa, Xingyin. Temos uma visitante. Ela não pode
saber que você está aqui. Que é minha filha.
Minha pulsação disparou diante da ideia de conhecer alguém
diferente. Então, o sentido das palavras dela me atingiu, assim
como seu tom, e minha animação foi amassada como uma folha de
papel.
— A senhora não quer que eu conheça sua amiga?
Suas mãos me largaram, e os contornos de seu rosto se
endureceram até que parecessem esculpidos em mármore.
— Não é uma amiga, é a imperatriz do Império Celestial. Ela não
sabe sobre você, ninguém sabe. E não podemos deixar que eles a
encontrem!
As palavras dela, apressadas e trôpegas, me assustaram, apesar
da excitação que despertou dentro de mim. Eu havia lido que o
Império Celestial era a mais poderosa das oito terras imortais,
aninhado como uma preciosa lágrima no coração do reino. Seu
imperador e sua imperatriz viviam em um palácio que flutuava sobre
um banco de nuvens, de onde governavam os Celestiais e os
mortais, e vigiavam o sol, a lua e as estrelas. Em todo o nosso
tempo aqui, eles nunca haviam se dignado a visitar nossa casa
afastada, então por que agora?
E por que eu tinha que me esconder?
Uma vibração estranha na boca de meu estômago espalhou
tentáculos gélidos por meu ser.
— O que há de errado? — indaguei, esperando que ela negasse.
Ela tocou minha bochecha com ternura.
— Explicarei tudo depois. Por enquanto, fique em seu quarto e
não faça barulho.
Assenti e ela saiu, fechando as portas. Apenas então percebi que
minha mãe não havia respondido a minha pergunta. Abri um livro,
devolvendo-o a seu lugar depois de ler a mesma linha três vezes.
Dedilhei uma corda do guqin , mas depois a belisquei para abafar a
nota. Enquanto eu olhava para as portas fechadas, uma curiosidade
ardente me envolveu, consumindo meu medo. Lentamente,
caminhei em direção a elas, abrindo uma fresta. Apenas uma olhada
na Imperatriz Celestial e eu voltaria para meu quarto. Quando eu
teria outra chance de vê-la, uma das imortais mais poderosas do
reino? E ela pode até estar usando sua Coroa da Fênix, que dizem
ser feita de penas de ouro puro e ornamentada com cem pérolas
luminosas.
Silenciosa como uma sombra, andei na ponta dos pés pelo longo
corredor que levava de meu quarto ao Salão Prateado da Harmonia
— o cômodo mais grandioso de nosso Palácio da Luz Pura — com
seu piso de mármore, lâmpadas de jade e cortinas de seda. Pilares
de madeira inseridos em bases de prata adornadas adicionavam um
toque de calor a sua elegância impecável. Era o local onde sempre
imaginei que entreteríamos nossos convidados, embora nunca
tivéssemos tido um até então.
Logo que saí do quarto, uma voz suave veio flutuando. Agucei
meus ouvidos.
— Chang’e, como tem passado? — O tom cordial da Imperatriz
Celestial me surpreendeu. Ela não parecia tão temível assim.
— Bem, Vossa Majestade Celestial. Obrigada pela preocupação.
— A voz de minha mãe estava radiante, mas de um jeito não
natural.
Um breve silêncio sucedeu essa troca de cortesias. Agachando-
me junto à parede, estiquei o pescoço para espiar o saguão. Minha
mãe se ajoelhara no chão, com a cabeça baixa, e, na frente dela,
sentada na cadeira de minha mãe, só podia ser a Imperatriz
Celestial.
Ela não estava usando uma coroa, mas um elaborado diadema
feito com joias na forma de folhas e flores que tilintavam quando ela
se movia. Enquanto eu a fitava, fascinada, um botão desabrochou,
abrindo-se em uma orquídea de ametista. Sobre as pontas de seus
dedos brilhavam dedais de ouro pontiagudos, curvos como as
garras de um falcão. O bordado prateado em seu roupão violeta
refletiu a luz fraca que entrava pelas janelas. Ao contrário da aura
delicada e calma de minha mãe, a dela era forte, pulsando quente.
Ela era deslumbrante, mas seus lábios brilhantes contrastando com
sua pele alva me fizeram pensar em sangue recém-derramado na
neve.
Fazendo jus a seu grau altíssimo de nobreza, a imperatriz não
viera sozinha. Seis criados estavam atrás dela — juntos a um
homem alto e imortal, de pele mais escura que os demais. Peças
achatadas de âmbar adornavam seu chapéu preto, suas vestes
escuras estavam presas com uma faixa de bronze e luvas brancas
cobriam suas mãos. Eu não sabia nada sobre a Corte Celestial, mas
a maneira como ele se portava parecia indicar que ocupava uma
posição mais elevada do que os demais. No entanto, havia algo nele
de que eu não gostava e, enquanto seus olhos castanho-claros e
cortantes vasculhavam a sala, eu recuei, pressionando minhas
costas contra a parede.
Após uma breve pausa, a imperatriz falou novamente, e sua voz
agora era mais fria do que uma peça de jade que não estava sendo
usada.
— Chang’e, foi detectada uma mudança peculiar na energia aqui.
Está cultivando um poder secreto ou abrigando um hóspede
proibido, violando os termos de sua prisão?
Eu endureci, e minhas omoplatas ficaram rijas com o jeito que ela
falou. Um anseio parecia revestir cada palavra, como se ela se
divertisse com a ideia do erro de minha mãe. Imperatriz ou não,
como ela se atrevia a falar dessa maneira? Minha mãe era a Deusa
da Lua, adorada e amada por incontáveis mortais! Como poderia ser
uma prisioneira? Este lugar era mais do que nossa casa; era o
domínio de minha mãe. Quem acendia as lanternas todas as noites?
Por quem as árvores balançavam e suspiravam enquanto ela
passava? Como ela poderia fazer qualquer coisa aqui que não fosse
um direito seu?
— Vossa Majestade Celestial, deve haver algum mal-entendido.
Meus poderes são fracos, como sabe. Não há mais ninguém aqui.
Quem ousaria vir? — respondeu minha mãe com firmeza.
— Ministro Wu. Compartilhe sua descoberta — ordenou a im-
peratriz.
Ouvi passos arrastados à frente.
— Hoje cedo, uma mudança significativa na aura da lua foi
detectada. Algo sem precedentes, em todos os meus anos de
estudo. Não pode ser mera coincidência.
Em sua voz suave, senti um fundo de animação. Ele apreciava os
problemas de minha mãe, tal como a imperatriz? A ideia me
queimou de raiva, apesar do desconforto formigante que sentia.
Aquela adrenalina em minhas veias mais cedo quando eu toquei as
luzes, o sussurro no ar… teria isso os atraído para cá de alguma
forma?
— Espero que nossa leniência não a tenha tornado ousada —
sibilou a imperatriz. — Você teve sorte antes, ao ter sido presa aqui
confortavelmente por ter roubado o Elixir da Imortalidade de seu
marido. Escapou do chicote relâmpago e da haste flamejante. Mas
isso mudará se descobrirmos que está envolvida em mais
desventuras. Confesse agora e talvez sejamos misericordiosos —
disparou ela, despedaçando a tranquilidade de nossa casa.
Minha mão voou a minha boca, sufocando meu suspiro. Eu nunca
perguntara a minha mãe como ela ascendeu à imortalidade,
sentindo que isso a fazia sofrer. No entanto, desde que li a história
dos pássaros solares, uma pergunta continuou girando em minha
mente: onde estava meu pai? Ouvir que ele recebeu o elixir e minha
mãe foi acusada de roubá-lo… embrulhou o meu estômago. A
imperatriz estava errada , disse a mim mesma, ferozmente,
enterrando um traiçoeiro cerne de dúvida.
Minha mãe não vacilou, tampouco negou essas acusações vis.
Será que estava acostumada a ser tratada assim pela imperatriz?
Quando espiei o cômodo novamente, ela estava curvada,
pressionando a testa e as palmas das mãos no chão.
— Vossa Majestade Celestial. Ministro Wu. Talvez esse fenômeno
tenha sido causado pelo recente alinhamento das estrelas. A
constelação do Dragão Azul entrou na rota da lua, o que pode ter
distorcido nossas auras. Quando passar, as coisas devem voltar ao
normal. — Ela falava como um pesquisador que estudava os céus,
embora eu soubesse que ela não tinha interesse em tais assuntos.
Seguiu-se um longo silêncio, interrompido por batidas rítmicas —
os dedais pontiagudos de ouro da imperatriz cravaram-se na
madeira macia do apoio de braço. Finalmente, ela se levantou, com
os criados reunidos atrás dela.
— Pode ser, mas voltaremos. Você foi deixada sozinha por tempo
demais.
Fiquei feliz por eles partirem, apesar da ameaça à espreita no tom
da imperatriz, como um cordão de seda muito tensionado. Incapaz
de ouvir mais, voltei silenciosamente para meu quarto e me deitei na
cama, olhando pela janela. O céu escureceu ao indescritível cinza-
violeta do crepúsculo, quando a última luz do dia dá lugar à noite.
Minha mente estava entorpecida, embora eu ainda tenha sentido o
instante em que aquelas auras desconhecidas desapareceram.
Momentos depois, minha mãe abriu as portas, com o rosto mais
branco do que as paredes de pedra.
Minhas dúvidas desapareceram. Eu não acreditava na Imperatriz
Celestial. Minha mãe nunca teria traído meu pai. Nem mesmo pela
imortalidade.
Levantei-me da cama, indo para o lado dela. Eu já tinha quase a
mesma altura que ela.
— Mãe, ouvi o que a imperatriz lhe disse.
Ela me abraçou com muita força. Contra seu ombro, relaxei,
aliviada por ela não estar com raiva, embora seu corpo estivesse
muito tenso.
— Não temos muito tempo. A imperatriz pode voltar a qualquer
momento com seus soldados — sussurrou ela.
— O que eles podem fazer? Não fizemos nada de errado. — Meu
estômago revirou, uma sensação desagradável. — Somos
prisioneiras? O que a imperatriz quis dizer sobre o elixir?
Ela se inclinou para trás para fitar meu rosto.
— Xingyin, você não é uma prisioneira aqui. Mas eu sou. O
Imperador Celestial concedeu o Elixir da Imortalidade a seu pai, por
matar os pássaros solares e salvar o mundo. Porém, Houyi não o
tomou. Havia apenas o suficiente para uma pessoa e ele não queria
subir aos céus sem mim. Eu estava grávida, nossa felicidade
parecia completa. Assim, ele escondeu o elixir, e só eu sabia onde.
Então, sua voz ficou embargada.
— Mas meu corpo estava muito fraco para suportar seu parto. Os
médicos nos disseram que você… que não sobreviveríamos ao
nascimento. Houyi não queria acreditar neles, não queria desistir,
levava-me a um especialista após o outro, em busca de um
prognóstico diferente. No entanto, no fundo, eu sabia que diziam a
verdade. — Ela fez uma pausa, e uma tensão se formou ao redor de
seus olhos, como se ela estivesse tocando memórias doloridas. —
Quando ele foi chamado para batalha, fiquei sozinha. As contrações
começaram, muito antes do esperado, na calada da noite. Tal
agonia rasgou meu corpo, eu mal conseguia gritar. Eu estava com
tanto medo de morrer, de perder você…
Quando ela ficou em silêncio, a pergunta saiu de mim em uma
explosão:
— O que aconteceu?
— Peguei o elixir no esconderijo, tirei a rolha e o bebi.
Na quietude da sala, só o que se ouvia era a batida de meu
próprio coração. Minhas mãos não estavam mais aquecendo as de
minha mãe, estavam tão frias quanto as dela.
— Você me odeia, Xingyin? — perguntou ela, com a voz trêmula.
— Por trair seu pai?
As palavras da imperatriz eram verdadeiras. Por um momento não
pude me mover; minhas entranhas se contorceram com aquela
revelação. Se minha mãe não tivesse tomado o elixir, talvez
tivéssemos sobrevivido. Minha família estaria incólume. No entanto,
eu sabia o quanto ela amava meu pai, o quanto lamentou sua perda.
E, independentemente de qualquer coisa, eu estava grata por estar
viva.
Engoli o resto de minha hesitação.
— Não, mãe. A senhora nos salvou.
Seu olhar estava distante, velado pela memória.
— Deixar seu pai… ah, como doeu. Embora eu deva admitir que
não queria morrer. Nem poderia deixar você morrer. Apenas mais
tarde fui perceber que os presentes do Imperador Celestial vinham
com cordéis invisíveis. Que tais decisões não cabem aos mortais. O
imperador ficou furioso por ter sido eu quem se tornou imortal em
vez de seu ilustre pai. A imperatriz me acusou de empregar ardis
para obter a imortalidade que eu não merecia.
— A senhora explicou o que houve? — perguntei. — Certamente,
se eles soubessem que era para salvar nossas vidas…
— Não ousei. A imperatriz parecia hostil, como se guardasse
algum rancor contra seu pai. Ela até o acusou de ingratidão por
rejeitar o presente do imperador. Eu soube, então, que ela tentou
puni-lo ao invés de recompensá-lo por matar os pássaros solares.
Ela não hesitaria em prejudicá-lo. Como eu poderia contar a eles
que você existia? Para protegê-la da ira dos imperadores, mantive
seu nascimento em segredo. Confessei meu roubo. Como punição,
fui exilada para a lua. Um encantamento foi lançado sobre mim e me
prende aqui por toda a eternidade. Não posso deixar este lugar, não
importa o quanto queira. — Em voz baixa, acrescentou: — Um
palácio do qual você não pode escapar nada mais é que uma
prisão.
Lutei para respirar; meu peito arfava como um peixe lançado para
fora da água. Eu pensava que nossas vidas eram muito pacíficas,
muito seguras de todos os perigos em meus livros. Saber que
incorremos na ira dos imortais mais poderosos do reino abalou todo
o meu ser.
— Mas por que a imperatriz apareceu hoje, depois de todo esse
tempo?
— Nossas auras emanam de nossa força vital, o núcleo de nossa
magia; aquelas luzes que você vê em sua mente. Desde que você
nasceu, fizemos nosso melhor para esconder seu poder. Apesar de
nossos esforços, hoje a imperatriz sentiu você.
Minha garganta se fechou.
— Não sabia. Isso é tudo culpa minha.
Como fui estúpida e imprudente! Por estar entediada, ignorei o
aviso de minha mãe, quebrei minha promessa e nos arremessei ao
mais grave dos perigos.
— Eu também sou culpada. Eu lhe disse para não tentar tocar sua
magia, mas deveria ter explicado o motivo; que isso poderia alertar
o Reino Celestial sobre sua presença — suspirou ela. — Isso teria
acontecido em algum momento; a cada ano você fica mais forte. Se
eles a encontrarem, nossa punição será severa, não tenho dúvidas.
Temo menos por mim, e mais pelo que fariam com você, uma
criança imortal que não deveria existir.
— O que podemos fazer?
— Apenas uma coisa. Você deve partir.
O medo vitrificou minha pele como gelo se formando sobre um
lago. Nunca mais ver minha mãe… subitamente, senti um medo de
soltá-la.
— Não posso ficar com a senhora? Eu me escondo. Treine-me,
para que eu possa ajudar.
— Não dá. Você ouviu as palavras da imperatriz. Eles estarão nos
observando ainda mais de perto agora. É tarde demais.
— Talvez a senhora os tenha convencido, talvez eles não voltem.
— Um apelo desesperado, uma esperança infantil.
— Eu posso ter ganhado um pouco de tempo para nós. Mas a
imperatriz não teria vindo por mero capricho. Eles voltarão. E
depressa. — Sua voz ficou mais embargada, obstruída pela
emoção. — Não somos capazes de proteger você. E não somos
fortes o suficiente.
— Mas para onde irei? Quando nos veremos de novo? — Cada
palavra era um golpe, dando forma ao pesadelo que se formava.
— Ping’er levará você até a família dela, no Mar do Sul. — Ela
falava em um tom radiante agora, como se tentasse convencer nós
duas. — Ouvi dizer que o oceano é lindo. Você terá uma boa vida lá,
livre da nuvem que paira sobre nós.
Ping’er compartilhara comigo tudo o que sabia das terras além,
agitando minha imaginação, que ansiava por aventuras. O grande
mar estava dividido em quatro domínios que se estendiam da costa
leste ao oceano austral, das falésias a oeste às águas do norte. Eu
ficava estupefata com suas histórias sobre as criaturas que viviam
nas cidades reluzentes submersas ou nas margens douradas. Como
eu tinha sonhado em explorá-las…
Contudo, nunca imaginei fugir de casa para fazer isso. De que
adiantavam as aventuras quando não havia ninguém com quem
com-partilhá-las?
A mão de minha mãe se fechou ao redor da minha, arrastando-
me de volta ao presente.
— Você nunca deve dizer a ninguém quem é. O Imperador
Celestial tem informantes em todos os lugares. Ele entenderia sua
própria existência como um insulto imperdoável. — Ela falou com
urgência, e seus olhos penetraram os meus, até que lhe fiz minha
promessa sufocada. Inclinando-se para mim, então, ela prendeu
algo em volta de meu pescoço. Um colar de ouro com um pequeno
disco de jade. Era da cor das folhas da primavera, com a escultura
de um dragão na superfície. Meus dedos esfregaram a pedra fria,
sentindo uma fina rachadura na borda. — Isto pertencia a seu pai.
— Seus olhos estavam tão escuros quanto uma noite sem luar. —
Não diga a ninguém quem você é. Mas nunca se esqueça de suas
origens.
Ela me abraçou com mais força, acariciando meu cabelo. Mantive
a cabeça baixa, em covardia, não querendo vê-la partir, desejando
que aquele momento durasse para sempre. Seus dedos roçaram
minha bochecha uma vez, e então não havia mais nada, exceto um
vazio dolorido.
Afundando no chão, envolvi meus joelhos com os braços. Ah,
como eu queria gritar, berrar, socar o chão. Minha mão foi
rapidamente para a boca, abafando meus soluços roucos, mas
minhas lágrimas silenciosas… permiti que escorressem por meu
rosto. No período de uma única noite, no qual a flor da lua floresce e
murcha, minha vida foi revirada. Meu caminho, que parecia uma
estrada reta, traçou uma curva no deserto — e eu estava perdida.
O quarto estava escuro, a noite caíra. A lua ainda estava envolta
em sombras, pois as lanternas não haviam sido acesas. O
despontar da lua viria mais tarde naquela noite.
A emergência me fez entrar em ação. Se mamãe e Ping’er seriam
punidas, eu não queria ser descoberta. Embora a morte raramente
fosse infligida a imortais, as ameaças de relâmpago e fogo da
imperatriz faziam meu corpo se contrair de pavor.
Ping’er me ajudou a empacotar meus pertences em uma grande
trouxa.
— Não leve muito, e nada muito requintado, para não levantar
suspeitas. — Seus olhos estavam vermelhos, mas, vendo minha
expressão aflita, acrescentou: — Você estará a salvo no Mar do Sul,
tão oculta como uma estrela nos céus. Minha família cuidará de
você e ensinará tudo o que precisa saber. — Ela amarrou as pontas
do pano da trouxa, formando uma bolsa que pendurou em meu
ombro. — Vamos?
Eu não queria. No entanto, insensível a tudo, assenti. O que mais
eu podia fazer? Eu não podia nem mesmo culpar os caprichos do
destino, pois fui eu quem causei isso a nós.
Enquanto Ping’er e eu corríamos pela entrada, indo para o leste,
em direção à floresta de jasmins-do-imperador, olhei para trás uma
última vez. Nunca minha casa pareceu mais bonita do que naquele
momento em que eu estava gravando a fogo cada curva, cada
pedra em minha mente. As mil lanternas iluminavam o solo, as
telhas prateadas refletiam as estrelas. E, na sacada onde eu olhava
para o mundo abaixo, havia uma figura esbelta, trajando branco.
O olhar de minha mãe não estava fixo no Reino Mortal, mas em
mim, com a mão erguida em despedida. Ignorando o puxão urgente
de Ping’er na manga de minhas vestes, eu caí de joelhos, curvando-
me para pressionar a testa na terra macia. Meus lábios se moveram
em um voto silencioso: eu voltaria, libertaria minha mãe. Não sabia
como, mas tentaria com tudo o que havia em mim. Esse não seria
nosso fim. Enquanto eu seguia Ping’er em direção à nuvem que nos
levaria para longe, a dor atingiu meu coração com tanta força e
clareza que o partiu; a única coisa que o mantinha unido era um fio
tênue de esperança.
2

I nalei o ar revigorante, muito fresco, mas inodoro, sem vestígios de


especiarias. Quando a nuvem disparou pelo céu, tropecei,
agarrando o braço de Ping’er. Como era assustadora a noite sem o
brilho das lanternas! Naquela manhã, o medo ainda era uma
emoção estranha para mim, e agora eu estava sufocada por ele.
Felizmente, a nuvem repleta de orvalho não cedeu sob meus pés,
era firme como o solo — não fosse pelo vento forte que soprava ao
redor.
Seria uma longa jornada até o Mar do Sul; para além do Império
Celestial, passando pelas florestas exuberantes do Império da
Fênix. Mais longe até mesmo do que o Deserto Dourado, a
imensidão de areia estéril que margeava o temido Reino dos
Demônios. Como encontraria meu caminho para casa? Ocorreu-me
então que talvez não cogitassem que eu o encontraria.
Um mar de luzes brilhava ao longe, tirando-me de meus
pensamentos sombrios.
— O Império Celestial — sussurrou Ping’er.
Quando veio uma rajada repentina de vento, ela olhou para trás, e
a cor sumiu de seu rosto. Girei em meu próprio eixo, e meu olhar
sondou a noite. Uma grande nuvem subiu em nossa direção, e
sobre ela estavam as formas sombrias de seis imortais. Suas
armaduras brilhavam em branco e dourado, mas suas feições
estavam obscurecidas pela escuridão.
— Soldados! — disse Ping’er, ofegante.
Meu coração disparou.
— Estão procurando por nós?
Ping’er me puxou para trás dela.
— Estão vestindo armaduras celestiais. Devem estar aqui por
ordem da imperatriz. Fique abaixada! Esconda-se! Tentarei ser mais
rápida que eles.
Deitei-me e fiquei pressionada à nuvem, enterrando-me em seus
tentáculos frios. Parte de mim estava feliz por não ver os soldados;
mesmo assim, minha pele se arrepiou de pavor do desconhecido.
Os olhos de Ping’er estavam fechados quando um fluxo tênue de luz
disparou da palma de sua mão. Até aquela noite, eu nunca a tinha
visto usar magia; talvez porque antes não havia necessidade de
usá-la. Nossa nuvem avançou, mas logo desacelerou novamente.
O suor escorria por sua pele.
— Eu não consigo fazê-la ir mais rápido; não sou forte o bastante.
Se eles nos alcançarem… vão descobrir quem somos.
— Eles estão perto? — Eu me virei a fim de olhar para trás, então
desejei não ter feito isso.
O aço reluzia nas mãos dos soldados, aproximando-se cada vez
mais. Em breve nos alcançariam. Alguém poderia reconhecer
Ping’er, e fariam perguntas. Eu era uma péssima mentirosa, sem a
prática que nascia da necessidade; um olhar severo de minha mãe
era o suficiente para fazer a verdade jorrar de minha língua. Visões
monstruosas encheram minha mente: soldados invadindo minha
casa, arrastando minha mãe acorrentada. Um crepitante chicote-
relâmpago açoitando suas costas, rasgando sua pele enquanto o
sangue respingava na seda branca de seu roupão. Eu me
engasguei, e a bile quente subiu até minha garganta. Minhas unhas
se cravaram na carne da palma de minha mão. Eu não podia deixar
que nos pegassem. Não podia deixar minha mãe e Ping’er se
machucarem. Contudo, fraca como eu era, havia apenas uma coisa
que conseguia pensar em fazer, e podia muito bem ser a última
coisa que eu faria.
Cerrando os dentes até doerem, forcei as palavras a saírem.
— Ping’er, deixe-me aqui.
Ela olhou para mim como se eu tivesse perdido a cabeça.
— Não, este é o Império Celestial! Devemos chegar ao Mar do
Sul. Temos que…
A calmaria em mim se despedaçou. Puxei o braço dela com uma
força frenética, fazendo-a vir para baixo.
— Não conseguiremos deixá-los para trás. Assim que nos
capturarem, vão punir a todos nós. Eu… eu acho que devemos nos
separar. Você deve permanecer na nuvem; eu não sei controlá-la.
Ping’er, pelo menos assim teremos uma chance! — Que escolha
tínhamos? Nenhuma que nos desse qualquer esperança de
escapar. No entanto, por mais que tentasse, eu não conseguia parar
de tremer.
Ela balançou a cabeça negativamente, mas fui insistente.
— Estarei segura no Império Celestial, contanto que não
percebam quem eu sou. Prometi a mamãe que não contaria a
ninguém, e não vou. Encontrarei um lugar para me esconder. Talvez
você possa fugir dos soldados sem mim. — Minhas palavras saíram
apressadas. Mais um instante e seria tarde demais, o poder de
decisão seria arrancado de nós.
O fogo que veio em nossa direção ardia pela noite e acertou a
nuvem, que estremeceu enquanto dava uma guinada brusca. Uma
onda de calor passou por minha pele quando Ping’er levantou a
mão, brilhando com a luz que extinguiu as chamas. Com um grito,
ela caiu ao meu lado.
— Eles estão atacando — disse ela, incrédula, mesmo enquanto
pressionava as palmas das mãos brilhantes na nuvem, acelerando-
a.
O terror tomou conta de mim, mas eu não podia sucumbir. Não
agora, quando cada segundo importava.
— Ping’er, é a única maneira. Não podemos deixar que eles nos
alcancem. — Falei com firmeza, com urgência, não mais como uma
criança implorando para ser ouvida. — Esta é a minha escolha.
Então seu rosto se endureceu em um vislumbre de determinação
sombria. Ela apontou para um banco de nuvens espesso ao longe.
— Ali. Eu vou descer o mais baixo que puder e protegê-la da
queda.
Apesar de suas palavras tranquilizadoras, algo me inquietou. Ela
respirava com esforço e dificuldade. Sua pele estava úmida ao
toque. Será que estava doente? Impossível. Imortais não sofriam de
tais moléstias.
— Ping’er, você está ferida? O fogo…
— Só estou um pouco cansada. Não é nada demais.
Rolei de lado, espiando pela borda da nuvem enquanto ela
avançava. Minha mente foi em um salto para os perigos à frente,
para além do vazio abaixo, para as luzes brilhantes ziguezagueando
em meio à escuridão. Lindas. Aterrorizantes. Levantando-me, joguei
meus braços ao redor de Ping’er, abraçando-a com força.
Desejando não ter que deixá-la. Desejando muitas coisas, que
jamais aconteceriam.
Ela me abraçou em total desespero enquanto mergulhamos no
banco de nuvens. Gotículas de água gelada roçaram minha pele, e
a umidade grudava em minhas roupas. À medida que descíamos, o
frio cortava fundo, direto em meus ossos. Minhas pernas tremeram
quando as estiquei para ficar de pé. Pude sentir que a pele de
Ping’er se assemelhava a cinzas se resfriando quando ela passou
um braço em meu ombro. O ar reluziu quando um formigamento
pairou sobre mim como o roçar de uma pena.
— O escudo amortecerá sua queda. Mesmo assim, isso pode
doer e você deve ter cuidado o tempo todo. — Suas mãos tremiam
enquanto ela pendurava minha pequena bolsa em meu braço.
— Você vai tentar voltar quando o perigo passar? — Agarrei-me a
essa frágil esperança, tentando juntar os cacos de minha coragem.
Tentando não desmoronar.
Lágrimas se acumularam nos olhos dela.
— É claro. Mas se eu não…
— Eu vou encontrar o caminho de volta. Um dia, quando for
seguro — disse rapidamente, para dar segurança a nós duas.
— Você vai. Você deve, por sua mãe. — Ela respirou fundo. —
Pronta?
Eu estava tão tensa que pensei que algo em mim se quebraria.
Não, eu nunca estaria pronta… saltar para o desconhecido, cortar
este último cordão ligando minha casa a mim. Porém, se eu não
partisse agora, se cedesse a meu pânico, se me deixasse afundar
na sombra da dúvida, a pouca determinação que me restava
desapareceria. De frente para ela, forcei minhas pernas rígidas a
darem um passo para trás, em direção à borda. Eu preferiria cem
vezes mais estar olhando para ela do que para a enorme fenda
abaixo.
— Agora! — gritou ela, em uma súbita explosão de força, com os
olhos em chamas.
Minhas pernas cambalearam para trás, ao mesmo tempo que a
cabeça de Ping’er pendeu para o lado e ela tombou num ponto
amontoado da nuvem. Mas eu também estava caindo, atravessando
o vazio negro do céu. O vento removeu todos os meus
pensamentos, engolindo o grito que irrompeu de minha garganta,
chicoteando meu rosto e meus membros até eles ficarem em carne
viva. Minhas roupas estavam sendo puxadas, formando uma nuvem
de seda. Eu não conseguia respirar com o ar batendo contra mim, e
meus pulmões estavam em chamas. Um rugido em meus ouvidos
bloqueava tudo, exceto meu coração acelerado.
No entanto, à minha frente, encolhendo-se até virar um pontinho,
estava a nuvem de Ping’er, imóvel. Seu corpo estava encolhido no
mesmo lugar em que ela havia caído. Será que ela havia
desmaiado?
— Vão embora ! — gritei, inaudível, enquanto os soldados iam
depressa em sua direção. O pânico revirou minhas entranhas
quando estendi as mãos num gesto fútil, tentando agarrar
desesperadamente… alguma coisa dentro de mim. Minha pele
formigou, ficando quente e, em seguida, fria, quando uma onda
cintilante de ar disparou pelo vazio em direção à nuvem de Ping’er.
Ela brilhou com intensidade antes de se afastar velozmente,
desaparecendo no horizonte distante.
Colidi com o chão, e a dor explodiu em todo o meu corpo. O ar foi
embora de meu peito com a pancada, e eu só conseguia ficar ali
enquanto as lágrimas escorriam de meus olhos, misturando-se com
o suor que escorria por minha pele. O cansaço tomou conta de mim.
Enquanto meus dedos agarravam a grama macia abaixo de mim,
respirei, trêmula, e o cheiro das flores preencheu meu nariz. O
aroma era doce, mas eu estava insensível a ele. Forçando as
palmas das mãos no chão, empurrei-me para cima. Sentia uma dor
imensa; fora isso, estava ilesa. O encantamento de Ping’er me
protegeu da pior parte da queda.
Pensei que a estava salvando, mas ela me ajudou a fugir,
descuidando-se da própria segurança. Ela conseguiu escapar?
Minha mãe estava segura? Eu estava segura? Minha respiração
ficou breve e acelerada; eu estava me afogando, lutando para puxar
o ar. Imortais não são afetados por doenças ou velhice, mas ainda
podemos ser feridos pelas armas, pelas criaturas e pela magia de
nosso mundo. Eu, tola como era, nunca imaginei que tais perigos
chegariam a nos tocar. E agora eu me encolhia com os braços em
volta dos joelhos, e um gemido fino e agudo escapava de mim,
como o de um animal ferido. Estúpida , xinguei a mim mesma
repetidas vezes por causar isso a nós, até que finalmente cerrei com
força os lábios, para abafar os sons.
Perdi a noção de quanto tempo fiquei ali deitada, e minha
garganta estava ferida pelo sofrimento que engolira. E, sim, eu
também temia por mim, pois minha mente foi tomada pela
imaginação de soldados e feras cruéis. Quem poderia dizer o que
espreitava no escuro? Eu estava me desfazendo, estava um caco;
então um raio de luz caiu sobre mim. Erguendo a cabeça, olhei para
a lua, vendo-a de longe pela primeira vez. Linda, luminosa e
reconfortante. Respirava agora com mais facilidade, encontrando
alento na ideia de que, enquanto a lua despontasse a cada noite, eu
saberia que minha mãe tinha acendido as lanternas e estava bem.
Uma lembrança penetrou minha mente: ela andando pela floresta,
com seu manto branco brilhando no escuro. Meu coração ferido
ficou apertado de saudade, mas me endureci para não afundar
novamente no abismo da autopiedade.
Pequenas luzes vindas de baixo chamaram minha atenção,
cintilantes, dançando nas profundezas escuras. Foi isso que
vislumbrei de cima? Só então percebi que o chão era como um
espelho, um reflexo das estrelas tecendo na noite. A beleza
desconhecida delas me inflamou, como um lembrete gritante de que
eu não estava mais em casa. Tombei novamente, cruzando os
braços ao redor do corpo. E fiquei olhando para a lua até que minha
dor diminuísse e eu finalmente caísse em um adormecer sem
sonhos no chão frio e duro.

. Era minha mãe? Tudo isso


ALGUÉM ESTAVA DANDO TAPINHAS EM MEU BRAÇO
teria sido só um sonho terrível? A esperança raiou, dissipando a
névoa do sono. Meus olhos se abriram, piscando à claridade do dia.
As luzes rodopiantes haviam desaparecido e refletidas em seu lugar
estavam as nuvens rosadas do amanhecer.
Uma mulher estava agachada ao meu lado, com uma cesta no
flanco. Sua mão, que repousava sobre meu cotovelo, estava quente
e seca, como a superfície de uma lanterna de papel.
— Por que está dormindo aqui? — Ela franziu o cenho. — Você
está bem? — Levantei-me, suprimindo um gemido causado pela dor
nas costas. Eu mal consegui acenar com a cabeça para responder
àquela pergunta, entorpecida pelas memórias que caíam sobre mim.
— Seja cuidadosa por essas bandas. Você devia ir para casa. Ouvi
dizer que houve uma confusão ontem à noite e soldados estão
patrulhando esta área. — Ela pegou a cesta e se levantou.
Minhas entranhas deram um nó. Confusão? Soldados?
— Espere! — pedi a ela. Não sabia ao certo o que dizer, mas não
queria ser deixada sozinha. — O que houve?
— Uma criatura atravessou as barreiras. Os guardas a
perseguiram. — Ela estremeceu. — Espíritos-raposa apareceram
nos últimos anos. Embora eu tenha ouvido que pode ter sido um
Demônio, tentando arrebatar crianças Celestiais para realizar seus
ardis malignos.
Um dos monstros do Reino dos Demônios? Percebi, então, que
os guardas estavam me procurando. Eu era o suposto Demônio. Eu
teria rido alto se não estivesse tomada pelo medo. Ping’er
provavelmente não sabia sobre essas barreiras.
— Eles capturaram alguém? — Minha voz saiu fraca e fina.
— Ainda não, mas não se preocupe. Nossos soldados são os
melhores do mundo. Eles vão pegar o intruso em pouco tempo. —
Ela me deu um sorriso tranquilizador, antes de perguntar: — O que
está fazendo aqui a esta hora?
Relaxei, aliviada. Ping’er tinha escapado! No entanto,
provavelmente fiquei aqui por horas e ela ainda não voltara. Será
que aquele vendaval que irrompeu pelos céus a carregou para longe
demais?
Um pensamento me cutucou. Teria aquele poder, de alguma
forma, emanado de mim ? Eu poderia fazer algo assim novamente?
Não, que ridículo cogitar isso. Ademais, nada de bom resultara de
minha magia até então, e eu não podia arriscar chamar atenção.
Comecei a falar, percebendo que a mulher estava olhando para
mim, pois ainda não tivera resposta para sua pergunta anterior. Ela
não suspeitou de mim porque esperava encontrar alguma fera ou
demônio temível, mas eu não ousaria dar a ela nenhuma razão para
duvidar de mim.
— Não tenho lugar para onde ir. Eu… eu fui demitida da casa em
que trabalhava. Caí e desmaiei. — Minhas palavras eram
desajeitadas e meu timbre de voz, hesitante. Minha língua não
estava acostumada a proferir mentiras tão descaradas.
Seu rosto suavizou-se. Talvez ela tenha tido empatia com meu
sofrimento, que transbordava de mim como a água de um rio sob a
chuva.
— Pelos Quatro Mares, alguns desses nobres são tão mal-
humorados e egoístas… Calma, não é tão ruim assim. Em breve
você encontrará outro lugar. — Ela inclinou a cabeça para o lado. —
Eu trabalho na Mansão do Lótus Dourado. Ouvi dizer que a Jovem
Senhora está procurando outra criada, caso você precise de uma
nova ocupação.
Sua bondade aqueceu o inverno de meu sofrimento. Minha mente
entrou em disparada. Andar por aí sozinha certamente despertaria
suspeitas. Eu não tinha certeza de como poderia estar pensando em
coisas tão simples, mas algo endureceu dentro de mim. Não podia
me dar ao luxo de sofrer após ter chafurdado na dor por metade da
noite. Se eu desmoronasse agora, tudo teria sido em vão. Eu
encontraria um lugar aqui e, de alguma forma, voltaria para casa,
mesmo que isso demorasse um ano, uma década ou um século.
— Obrigada. Estou grata por sua gentileza. — Curvei-me em uma
reverência pouco elegante, pois nunca seguíamos essa cerimônia
em casa. Isso pareceu agradá-la e ela sorriu, gesticulando para que
eu a seguisse.
Caminhamos pelo resto do trajeto em silêncio, passando por um
bosque de bambus e atravessando uma ponte de pedra cinza que
se arqueava sobre um rio, antes de chegarmos aos portões de uma
grande propriedade. Uma placa laqueada preta estava logo abaixo
do telhado da entrada, com caracteres dourados:

MANSÃO DO LÓTUS DOURADO


Era uma propriedade extensa, um aglomerado de salões
interligados e pátios espaçosos. Colunas vermelhas sustentavam
telhados curvos de telhas azul-escuras. Flores de lótus flutuavam
sobre as lagoas, com uma fragrância inebriante e doce. Segui
aquela mulher por longos corredores iluminados por lanternas de
pau-rosa, até chegarmos a um grande prédio. Deixando-me na
porta, ela se aproximou de um homem de rosto corado e falou com
ele. Ele assentiu uma vez, antes de vir em minha direção. Ajeitei
mais a postura, instintivamente alisando as partes amarrotadas de
meu manto.
— Ah, você veio em boa hora! — exclamou ele. — Madame
Meiling, a Jovem Senhora, me advertiu ontem à noite por não ter
encontrado uma criada nova. Embora eu me pergunte por que ela
não pode se contentar com três — murmurou ele, enquanto
mantinha um olhar avaliador fixo em mim. — Você já serviu em uma
casa grande? Quais são suas habilidades?=
Engoli em seco, pensando em minha casa. Lá eu não ficava
ociosa, ajudava sempre que podia.
— Não tão grande quanto esta — arrisquei, por fim. — Ficarei
grata por qualquer cargo que o senhor me oferecer. Sei cozinhar,
limpar, tocar música e ler. — Minhas habilidades estavam longe de
ser impressionantes, mas minha resposta pareceu satisfazê-lo.
Passei os dias seguintes aprendendo as tarefas, desde como
preparar o chá de Madame Meiling ao seu gosto, até cozinhar seus
bolos de amêndoa favoritos e cuidar de suas roupas — algumas
adornadas com bordados tão requintados que pareciam tremer sob
meu toque. Outros deveres incluíam lustrar os móveis, lavar a roupa
de cama e cuidar dos jardins. Eu ficava de pé desde o amanhecer
até a noite, talvez por não ter poderes importantes que facilitassem
minhas tarefas.
As regras da casa irritavam mais do que o trabalho em si:
controlavam o quanto eu precisava me curvar para fazer as
reverências, exigiam que eu ficasse de boca fechada até que
alguém falasse, que eu nunca me sentasse na presença de minha
senhora, que obedecesse a todas as suas ordens sem hesitar. Cada
regra enterrava um pouco mais de meu orgulho, ampliando o
abismo entre patroa e servo; um lembrete constante da inferioridade
de minha posição e do fato de que eu não estava mais em casa.
Isso poderia até doer mais, mas meu coração já estava carregado
de dor, e minha mente estava afundada em preocupações muito
maiores do que pés doloridos ou mãos esfoladas. E, de certa forma,
eu estava feliz por meus dias estarem cheios, mesmo com tanta
labuta, deixando-me pouco tempo para me debruçar sobre minha
angústia.
Quando o mordomo-chefe finalmente considerou meu
desempenho satisfatório, fui designada para ficar junto às outras
criadas de Madame Meiling, com as quais eu dividiria um quarto.
Era uma senhora supostamente exigente, mas eu esperava que nós
quatro bastássemos a ela. Quando cheguei com minha bolsa, as
outras criadas estavam se vestindo; punham roupões verde-
salgueiro por cima de suas vestes internas brancas. Uma das
garotas ajudou outra a amarrar uma faixa amarela na cintura. Uma
jovem bonita, com covinhas na face, pôs um grampo de metal em
forma de lótus em seu cabelo, e éramos obrigadas a usar um igual.
Elas formavam um trio animado, conversando entre si com uma
intimidade espontânea. Apesar do sofrimento que pesava sobre
mim, uma faísca se acendeu em meu peito. Talvez eu finalmente
tivesse a oportunidade de fazer os amigos que há muito desejava.
A garota das covinhas se virou para mim.
— Você é a novata? De onde você é?
— Eu… eu… — A história que Ping’er me ajudou a inventar me
fugiu. Sob o peso de seu olhar, o calor correu em minhas
bochechas.
As outras riram, e seus olhos brilhavam como seixos lavados pela
chuva.
— Jiayi — disse uma delas à garota com o grampo de lótus. —
Parece que ela perdeu a voz.
O olhar de Jiayi me varreu, e sua boca se curvou como se ela
estivesse fitando algo que a desagradava. Será que foi meu
penteado simples ou a falta de adornos pendurados em minha
cintura, pulsos e pescoço? Ou será que me faltava a postura que ela
possuía, a certeza de seu lugar neste mundo? Tudo isso anunciava
a simples verdade: eu era uma estranha que não pertencia àquele
lugar.
— Qual é o trabalho de seus pais? Meu pai é o chefe da guarda
daqui — declarou ela, com um distinto ar de superioridade.
Meu pai matou os sóis. Minha mãe acende a lua.
Isso apagaria a expressão presunçosa de seu rosto, mas reprimi
o impulso imprudente. Não compensava ser tachada de mentirosa
ou jogada em uma cela em troca de um momento de satisfação.
Sem falar do perigo para minha mãe e para Ping’er caso elas
acreditassem em mim.
— Eu não tenho família aqui — respondi em vez disso. Uma
resposta segura, mas que me faria ser ainda mais desprezada por
elas. Já era possível enxergar esse desprezo nos olhares que
trocavam agora que sabiam que eu não tinha ninguém para me
proteger.
— Que chato. Onde o mordomo encontrou você? Na rua? — Jiayi
riu e deu meia-volta. Uma a uma, as demais a seguiram, voltando a
conversar entre si tão alegremente quanto um bando de pássaros.
A boca de meu estômago ficou revestida de gelo. Eu não sabia o
que elas esperavam de mim; sabia apenas que achavam que me
faltava algo. Que eu era indigna. Caminhei vagarosamente até o
canto mais distante e pus minha bolsa sobre a cama vazia. As
meninas riram, compartilhando uma piada entre si, e sua alegria
aprofundou ainda mais a dor de meu isolamento. Quando um nó se
formou em minha garganta, corri para fora dali a fim de recuperar a
compostura. Eu odiava fugir, mas odiaria mais ainda chorar na
frente delas.
— Guarde suas lágrimas para algo importante — disse a mim
mesma ferozmente antes de voltar para a sala. Elas se voltaram
para mim de uma vez, num silêncio súbito e chocante. Só então
notei que minha bolsa de pano estava desamarrada e seu conteúdo,
espalhado pelo chão.
O ar ficou tenso de hostilidade enquanto eu me arrastava para
recuperar minhas posses. Alguém riu, e meus ouvidos ficaram
rubros ao ouvir isso.
— Infantis. Mesquinhas — praguejei comigo mesma. Mas, ah,
como essa humilhação me inflamava! Como eu tinha sido
privilegiada por ter tido apenas amor e afeto até agora. Na infância,
eu tinha pavor dos monstros cruéis sobre os quais lia em meus
livros. No entanto, eu estava aprendendo que um sorriso de foice e
palavras que cortam profundamente são tão temíveis quanto. Nunca
imaginei que existissem pessoas assim, que se vangloriavam de
pisar na dignidade de outras, que prosperavam com a dor alheia.
Uma vozinha dentro de mim sussurrou que eu realmente fora
encontrada na rua, sem habilidades ou contatos importantes. Talvez,
se eu segurasse a língua e mantivesse a cabeça baixa, elas me
aceitariam como uma delas futuramente. Eu estava tão cansada que
só queria deixar as coisas acontecerem. O que importava se elas
vencessem? Quem se importava com dignidade ou honra? Isso não
era nada comparado a tudo que eu havia perdido. Mas algo dentro
de mim gritou em protesto. Não, elas não me deixariam
envergonhada. Eu não agradaria ou bajularia ninguém para ganhar
a amizade delas. Prefiro ficar sozinha a ter amigas assim. E, embora
eu me sentisse menor que um inseto naquele momento, ergui a
cabeça para olhá-las nos olhos.
O desprezo estava estampado nas belas feições de Jiayi, mas
também havia desconforto na maneira como seus olhos se
desviaram brevemente. Ela esperava que eu me esgueirasse para o
lado e desaparecesse nas sombras? Fiquei feliz por tê-la
desapontado. Elas haviam me ferido, mas não teriam a satisfação
de saber disso. Sua indelicadeza só teria a força que eu permitisse,
e eu retomaria o orgulho esfarrapado que estava debaixo das solas
de seus pés porque… era tudo o que me restava.
3

O pavilhão dava para um pátio de glicínias, e as árvores estavam


enfeitadas com cachos de flores lilás. Eu estava parada atrás de
minha senhora, Madame Meiling, que usava um vestido de brocado
rosa com flores reluzentes nas mangas e saia esvoaçante. Era uma
peça requintada; suas pétalas bordadas ruborizavam-se num
vermelho profundo antes de novamente se tornarem prateadas.
Meus olhos se arregalaram. Madame Meiling tinha inúmeros trajes,
mas aquele era raro. Apenas as costureiras mais habilidosas eram
capazes de encantar suas criações para reagirem aos poderes de
quem as trajava.
Além de servir Madame Meiling e manter seus aposentos e pátio
impecáveis, fui encarregada de cuidar de suas roupas — mantos,
capas e faixas de seda, cetim e brocado. A princípio, parecia uma
tarefa agradável, embora um tanto tediosa. Mas logo descobri que
suportaria o peso de seu considerável descontentamento sempre
que algo estivesse fora de lugar, ou pelo menor arranhão ou
partícula de poeira que houvesse. Para piorar as coisas, Jiayi
selecionava o traje de nossa senhora todos os dias, aumentando
minha carga de trabalho com seu fluxo interminável de reclamações
e exigências.
Talvez percebendo que eu estava distraída, Madame Meiling
contraiu os lábios quando fitou os olhos em minha direção.
— Chá — disse ela, com um tom seco.
Apressei-me a encher sua xícara, e o vapor perfumado ondulou
pelo ar.
Uma forte rajada de vento soprou pelo pátio, espalhando pétalas
pela grama. Madame Meiling alisou as mangas esvoaçantes,
franzindo a testa como se estivesse irritada pela ousadia do vento
em atrapalhar sua manhã.
— Xingyin, traga minha capa — exigiu ela. — A de seda pêssego,
com bainha dourada. Certifique-se de que é a correta.
Curvei-me, lutando contra a vontade de ranger os dentes.
Madame Meiling era jovem, mas possuía o temperamento imperioso
de uma matriarca de mil anos.
Apenas alguns meses haviam se passado desde minha chegada,
mas o calor de estar entre os entes queridos já havia esmaecido a
um mero eco de lembrança. Como prometido, eu mantinha minha
identidade em segredo, mas nunca longe de meus pensamentos. À
noite, ouvia a respiração profunda e regular de minhas colegas de
quarto antes de deixar minha mente vaguear pelos corredores
cintilantes de minha casa. Foi quando começaram os pesadelos, de
minha mãe e Ping’er sendo capturadas por soldados. De voltar para
casa e encontrá-la abandonada e em ruínas. Não era de se admirar
que muitas vezes eu acordasse encharcada de suor, ofegante
devido à dor no peito.
As outras criadas não gostavam de mim, pensando que eu era
inferior a elas. Esse desprezo apenas me deixava mais firme,
embora elas tenham tornado a vida difícil para mim de inúmeras
maneiras mesquinhas: arruinando as coisas que estavam sob meus
cuidados, zombando de cada palavra minha, contando histórias
falsas sobre mim para nossa senhora… Ela me mandou ajoelhar no
pátio tantas vezes que me sentia um dos leões de pedra esculpida
que guardavam a entrada. Eu não deveria reclamar; isso era melhor
do que o cárcere ou o açoite com chicotes flamejantes. No entanto,
a indignidade doía mais do que o desconforto. Eu engolia o choro
todas as vezes, até quase conseguir sentir a diferença entre o sabor
amargo da humilhação e o sal da tristeza.
Corri para o quarto de Madame Meiling e procurei freneticamente
por sua capa. Sua paciência era curta e seu temperamento, tão
inflamável quanto os fogos de artifício que os mortais soltavam
durante os festivais. Finalmente, eu a vi jogada sobre uma cadeira.
Ao pegá-la, meu alívio desapareceu. Havia uma mancha escura
escorrendo pelo tecido, a tinta ainda brilhando. Sem pensar,
coloquei-a de volta onde estava antes que manchasse minha pele.
— O que aconteceu? — Jiayi entrou, com um sorriso brincando
nos lábios enquanto olhava para a peça de roupa arruinada. — Se
você não cuida adequadamente das roupas de nossa Jovem
Senhora, só pode culpar a si mesma.
Quando sua mão se moveu em um aceno desdenhoso, fiquei
rígida ao ver um de seus dedos manchados.
— Foi você — acusei, categoricamente. Não deveria ter sido uma
surpresa.
Suas bochechas ficaram coradas quando ela ergueu a cabeça
rapi-damente.
— E daí, quem acreditaria em você?
Meu temperamento, que vinha fervendo ao longo dos meses de
indignidades, se agitou.
— Tais truques não fazem de você melhor do que ninguém, eles a
rebaixam — sibilei.
Jiayi deu um passo para trás. Ela temia que eu a atacasse? Tudo
o que eu queria era um pedido de desculpas, uma confissão, não
que ela se escondesse atrás de seus sorrisos zombeteiros e de
suas cúmplices.
Mas até isso me foi negado quando Madame Meiling invadiu a
sala.
— Por que está demorando tanto? O vento está quase me
congelando! — Quando seu olhar deslizou para a capa no chão,
ficou boquiaberta.
Jiayi recuperou a compostura primeiro, com olhos arregalados e
inocentes enquanto pegava a roupa e a sacudia para mostrar
melhor a marca.
— Jovem Senhora, Xingyin derramou tinta na capa e me disse
para não contar a você, pois estava com medo.
Respirei fundo, lutando para manter a calma. Madame Meiling
nunca ficaria do meu lado contra sua criada favorita. Não sem
provas, que dessa vez eu tinha.
— Jiayi está enganada; eu não fiz tal coisa. Ela estava manchada
antes de eu chegar aqui. A Jovem Senhora pode nos inspecionar
em busca de manchas.
Jiayi empalideceu enquanto enterrava as mãos nas dobras
sedosas da capa. Ela não precisava ter se incomodado, pois os
olhos de Madame Meiling se apertaram, como um gato que foi
acariciado de um jeito que não gosta. Ela não tinha apreço por mim,
talvez influenciada pelas histórias que os outros lhe contavam.
— Jiayi é sua antecessora nesta casa. Peça desculpas a ela
imediatamente. Em seguida, limpe isto e certifique-se de que esteja
impecável. — Ela pegou a roupa e a jogou em mim. A capa atingiu
minha bochecha, deslizando até pousar em meus pés.
Eu não conseguia falar; meu estômago se revirou com a injustiça.
Meus braços permaneceram estáticos em meus flancos, desafiando
suas ordens. Um desejo selvagem de arremessar a roupa de volta
nela tomou conta de mim. De derramar tinta recém-preparada sobre
o manto de Jiayi. De explodir… mas a fantasia terminava ali. Para
onde mais eu iria?
Quando os lábios de Madame Meiling se fecharam até formar um
traço fino, abaixei a cabeça, forçando um pedido de desculpas.
Agarrando a capa, saí correndo do quarto, sem saber por quanto
tempo mais poderia me conter.
Queria ficar sozinha, longe do burburinho das outras criadas. Eu
estava começando a entender por que minha mãe preferia a solidão
durante os momentos que oprimiam seu coração. Com um balde e
uma barra de sabão, fui até o rio próximo. Exuberantes bambus
verde-esmeralda cresciam ao redor, estendendo-se orgulhosamente
em direção ao céu. Sentei-me à beira do rio, esfregando a capa,
com o peito tão apertado que mal conseguia respirar. Que saudade
de minha casa! A promessa que fiz de resgatar minha mãe me
esmagou devido à sua pura futilidade. Como eu poderia ajudá-la,
sendo impotente desse jeito? Meu futuro se estendia diante de mim,
solitário e sombrio; uma vida inteira de servidão sem esperança de
melhorar. Uma lágrima indesejada brotou no canto de meu olho. Eu
tinha aprendido a engoli-las, fungando com força ou piscando para
afastá-las. Entretanto, como estava sozinha, deixei que
escorressem por minha bochecha.
— Por que você está chorando? — perguntou uma voz limpa,
assustando-me.
Virei-me, e só então percebi o jovem sentado em uma pedra a
uma curta distância, com um cotovelo apoiado no joelho erguido.
Como pude ignorar sua aura, que pulsava no ar? Forte e cálida,
brilhante como o sol a pino num dia sem nuvens. Seus olhos
escuros brilhavam sob as sobrancelhas arregaladas, e havia um
brilho em sua pele, como se tivesse sido envernizada pelo sol. O
longo cabelo preto estava preso em um rabo de cavalo,
derramando-se sobre o manto de brocado azul, que estava preso na
cintura com um cinto de seda. Um ornamento de jade amarelo
pendia de sua faixa, e notei que a borla chegava aos joelhos quando
ele desceu da pedra e veio andando em minha direção. Quando o
jovem retribuiu meu olhar sem reservas, um calor subiu por minha
nuca.
— Não deve ser tão difícil lavar algumas roupas sujas — afirmou
ele, olhando para o tecido em minhas mãos.
— Como você sabe? É muito mais difícil do que parece —
retruquei. — E eu nunca choraria por isso. É só que… sinto falta de
minha família. — No momento em que as palavras saíram, mordi a
língua. Era a verdade, mas o que deu em mim para falar daquelas
coisas com um estranho?
— Se você sente falta de sua família, é só voltar para ela. Por que
partiu? Especialmente para fazer um trabalho como este. — Ele
gesticulou para a roupa encharcada com desdém, e os cantos de
seus lábios se curvaram para cima.
Ele estava zombando de mim? Eu já havia estourado minha cota
de maus tratos naquele dia. Sua arrogância e a maneira
despreocupada com que falava deixaram meus nervos em
frangalhos. O que ele sabia de meus problemas? Quem era ele para
me julgar?
Lancei um olhar aguçado para seus adornos.
— Nem tudo é tão simples. Nem todo mundo tem a sorte de fazer
o que quer. E não aceitarei conselhos de alguém que nunca
trabalhou um dia na vida.
O sorriso do jovem desapareceu.
— Sua atitude é bastante insolente para uma criada. — Ele
parecia mais curioso do que ofendido.
— Ser uma criada não apaga meu orgulho. Meu trabalho não é
um reflexo de quem sou. — Dando as costas para ele, esfreguei a
capa com mais vigor do que antes. Eu já tinha perdido muito tempo;
Madame Meiling ficaria furiosa se eu demorasse demais, o que
significaria outra noite de joelhos no chão frio e duro.
Não houve resposta e pensei que ele tinha ido embora, cansado
de me provocar. No entanto, quando dei meia-volta, ele ainda
estava lá.
— Procurando por mim? — disse ele, rindo. Quando uma
resposta negativa inflamada subiu por minha garganta, ele
acrescentou rapidamente: — Você é da Mansão do Lótus Dourado?
— Como sabe disso? — Levantei-me, perguntando-me se ele era
um conhecido de Madame Meiling.
Então ele se inclinou para frente, e sua mão estendida roçou a
lateral de meu rosto. Recuei e o empurrei para longe, derrubando o
grampo metálico de lótus de meu cabelo. Antes que pudesse me
mover, ele se abaixou e o pegou da grama. Sem dizer uma palavra,
limpou o grampo na manga, colocando-o de volta em meu cabelo. A
terra manchou seu manto, mas isso não parecia incomodá-lo nem
um pouco.
— Obrigada — falei, recuperando a voz. Não, ele não podia ser
amigo de minha senhora. Nenhum deles jamais ajudaria uma criada.
— Seu grampo — explicou ele. — As criadas de lá não usam um
desses? — Assenti enquanto me sentava, mergulhando a capa no
riacho novamente, praguejando internamente pela teimosia da tinta.
Em vez de ir embora, como eu esperava, ele se sentou ao meu
lado, com as pernas balançando nas margens. — Por que está tão
triste?
Fazia muito tempo que eu não tinha com quem conversar, alguém
disposto a ouvir. Minha cautela, tão cuidadosamente cultivada
naquele lugar, descongelou na centelha do calor dele.
— Toda manhã, quando acordo, não quero abrir os olhos —
comecei a dizer, hesitante, desacostumada a desabafar.
— Talvez você devesse dormir mais se está tão cansada assim.
— Ele sorriu, mas fiz uma careta para ele, sem achar graça. Fui tola
demais ao pensar que ele teria se importado. Agarrei a capa e o
balde para ir embora, enquanto ele se levantava. — Sinto muito —
disse ele, tenso, como se não estivesse acostumado a se desculpar.
— Eu não devia ter zombado de você quando estava tentando me
dizer algo importante.
— Não, não devia. — No entanto, não havia rancor em minha voz;
seu pedido de desculpas amolecera meu ressentimento. Foi sincero
e gentil, duas qualidades que eu vi pouquíssimo depois que saí de
casa.
— Se ainda estiver disposta a me contar, eu ficaria honrado em
ouvir. — Ele inclinou a cabeça com uma formalidade inesperada.
Bufei.
— Eu dificilmente descreveria isso como honra, mas aprecio sua
tentativa desajeitada de bajulação.
— Desajeitada? — Agora ele fazia uma careta. — Então deu
certo? — perguntou ele, sem arrependimento algum.
Não consegui reprimir um sorriso.
— Infelizmente.
Quando um silêncio constrangedor se abateu sobre nós, peguei
uma folha comprida de grama e a enrolei entre os dedos.
— Então, por que você odeia seus dias? — indagou ele.
Dei um nó na grama e depois outro. Era mais fácil olhar para a
folha do que para ele.
— Porque eu não tenho perspectiva de nada. Sou um fracasso.
Não importa o que eu faça, o quanto eu tente, nada vai mudar.
Alguma vez você já sentiu isso? Desamparo? — Imediatamente,
repreendi a mim mesma pela tolice. Alguém como ele nunca
entenderia.
— Sim — respondeu ele, de forma direta.
— Sentiu? — Não que eu duvidasse dele, mas ele parecia ser
uma daquelas criaturas douradas que possuíam mais do que seu
quinhão de bênçãos. Eu não sabia nada sobre ele, exceto sua
aparência e suas roupas finas, mas sua postura confiante anunciava
privilégios mais altos do que linhagens ou títulos.
Ele se inclinou para trás, descansando as mãos na grama.
— Todo mundo tem seus problemas; alguns os trazem à mostra,
outros os escondem melhor. Em meu caso, faço o que posso para
esticar os limites que me aborrecem, mesmo que seja um
pouquinho por vez. Quem sabe quando a mudança mais ínfima fará
a diferença?
O que ele disse mexeu comigo. Eu havia repreendido a mim
mesma por ser fraca, mas seria isso uma desculpa para não fazer
nada? Nos últimos meses eu tinha sido uma sombra de mim
mesma, esvaziada pela dor e pela autopiedade. Eu não possuía
poderes importantes, nem amigos ou família para me dar suporte.
Mas eu não estava indefesa , nem mesmo quando aqueles soldados
perseguiram a mim e a Ping’er. Eu me arrisquei em vez de esperar
pela captura, que era certa. Então por que não correr riscos aqui,
onde consegui abrigo às custas de minha dignidade e de meus
sonhos? Talvez eu não encontrasse um jeito naquele momento, mas
talvez por meio de pequenos empurrões, pequenos passos, eu
possa abrir meu caminho, afinal, e esse caminho pode me levar
para casa.
Um alívio vertiginoso tomou conta de mim, inesperado, mas bem-
vindo. Fiquei grata a ele, àquele rapaz de maneiras estranhas, às
vezes ofensivo, mas cortês e gentil. Ah, minha situação ainda era
terrível, mas meu espírito, embora machucado, não havia sido
quebrado. Talvez tivesse bastado enfim ser vista novamente como
uma pessoa, como eu mesma, para ser lembrada de que havia vida
além da Mansão do Lótus Dourado, assim que eu quebrasse esse
ciclo de sofrimento, no qual prendi a mim mesma acreditando ser o
único caminho.
— Eu partiria amanhã, mas não tenho para onde ir — murmurei
fervorosamente.
— E quanto a sua família? Seus amigos? Eles não podem ajudar?
— Meu rosto se fechou. Minha mãe e Ping’er estavam perdidas para
mim.
— Não tenho ninguém.
— Seus pais… faleceram? — perguntou ele, com certa relutância.
Estremeci ao pensar nisso, desejando não ter falado de minha mãe.
Os mortais acreditavam que até mesmo falar essas coisas em voz
alta dava azar. Muitos temores sobre tantas coisas que poderiam
dar errado ainda nublavam meu coração. A expressão do jovem
ficou mais suave. — Sinto muito — disse ele, gentilmente, tomando
meu silêncio como resposta.
A culpa pesava em minha língua. Eu não queria mentir para ele,
mas não podia dizer a verdade. E pior do que isso era aceitar sua
simpatia, à qual eu não tinha direito. Abri a boca para corrigi-lo, para
pronunciar as palavras que dissipariam sua compaixão e o
tornariam um estranho desinteressado mais uma vez, mas o som de
passos me interrompeu.
Era Madame Meiling, vindo em minha direção com o brocado
farfalhando. Fiquei de pé num sobressalto, lutando contra o medo já
conhecido que se espalhava por mim. O ar mudou com o calor de
sua aura; a raiva emanava dela em ondas. Eu era bem versada nos
estágios de seu temperamento e, pelo tom escarlate que manchava
suas bochechas, ela estava realmente furiosa.
— Xingyin! Quanto tempo leva para limpar uma simples mancha?
— Estremeci com a agudez em seu tom, mesmo que minha coluna
tenha ficado retesada. Nenhum pedido de desculpas saltou de
minha língua, e não baixei o olhar. Meu silêncio pareceu enfurecê-la
ainda mais. — Como ousa ficar aqui sentada, vadiando, de papinho
com estranhos? — Ela lançou um olhar desdenhoso para meu novo
conhecido, mas então uma coisa estranha e maravilhosa aconteceu.
Seu rosto perdeu a cor, e seus lábios puxaram o ar brevemente.
Caindo de joelhos, ela juntou as mãos em concha, mantendo-as
erguidas à sua frente enquanto se dobrava em uma reverência
formal, para o jovem que se levantou para ficar ao meu lado.
— Madame Meiling saúda Vossa Alteza, o Príncipe Herdeiro
Liwei. — Sua voz ficou doce como mel. — Se soubéssemos que o
senhor estava nos honrando com sua presença, teríamos preparado
uma recepção adequada.
Eu a teria acompanhado e caído de joelhos também, mas tudo o
que consegui fazer foi olhar para aquele rapaz, incrédula. Por que
não me disse quem era? Ele também não mentiu , lembrei. Foi-se
embora o jovem gentil em quem eu havia confiado; em seu lugar
estava um lorde, portando todo o seu poder. Ele estava de pé com
as mãos unidas atrás das costas e com expressão distante. Se eu
tivesse visto esse lado dele antes, talvez tivesse fugido.
Ele deu um aceno de cabeça para ela com formalidade fria.
— Madame Meiling, o que essa criada fez para ganhar uma
reprimenda tão severa?
Ela deixou sair um suspiro leve quando seus ombros caíram. Ela
parecia muito frágil e adorável agora, como uma rosa despojada de
seus espinhos.
— Vossa Alteza, sempre tratei aqueles que me servem como se
fossem da família. O que o senhor testemunhou foi apenas um
deslize em meu temperamento, causado pelas reiteradas ofensas
desta criada.
De minha garganta saíram ruídos estrangulados, e fiz força para
abafá-los. A expressão do Príncipe Liwei era ilegível. Teria
acreditado nela? E por que meu astral foi ao chão quando pensei
nessa possibilidade?
— De que maneira ela a ofendeu? — Seu tom era agradável, mas
ele não deu permissão para Madame Meiling se levantar.
— Ela estragou minhas vestes favoritas e tentou se livrar da culpa
com mentiras.
— Eu não menti! — gritei, esquecendo todo e qualquer decoro.
As costas do Príncipe Liwei ficaram ligeiramente tensas. Teria ele
se arrependido de ter sido arrastado para uma briguinha trivial?
Assim eram meus dias na Mansão do Lótus Dourado; um fluxo
incessante de mesquinhez que me desgastava e me corroía. Mas
não seria mais desse jeito, decidi. Meu encontro com o príncipe, por
mais inexplicável que tenha sido, me fez lembrar de que eu não
precisava andar mansa pelo caminho que estava diante de mim. Eu
iria atrás de todas as vantagens que pudesse encontrar e faria uso
delas, até mesmo da posição social dele.
— Você a viu arruinar suas vestes? — perguntou ele a Madame
Meiling.
Ela hesitou.
— Não, contaram-me que…
Ele ergueu a mão rapidamente, interrompendo-a.
— Madame Meiling, parece que a senhora apressadamente culpa
pessoas sem a devida diligência. — Ele pegou a capa de mim e
olhou para a mancha, que não sumira nem um pouco, apesar de
meus esforços. O ar se aqueceu quando uma luz dourada passou
da palma de sua mão para a seda. A mancha desapareceu e a peça
secou, como se nunca tivesse sido molhada.
Seu poder mágico era forte, e tinha um bom fluxo! Como eu
gostaria de poder fazer isso. A ventania que surgiu para levar
Ping’er a um lugar seguro parecia um sonho distante. Se fui eu que
a conjurei, não fazia ideia de como fazer isso de novo. Quando
fechava os olhos, ainda captava vislumbres tentadores das luzes
dentro de mim, mas elas se afastavam no instante em que estendia
a mão. Minhas tentativas foram, na melhor das hipóteses, ruins. Ver
essas luzes me apunhalava com medo e remorso. Se ao menos eu
não tivesse chamado a atenção da imperatriz, eu ainda estaria em
casa. Talvez depois Ping’er me ensinasse como usar meus poderes.
Com amargura, pensei: de que adiantava a magia destreinada? E
havia pouca esperança de evoluir minhas habilidades enquanto
permanecesse ali.
Na Mansão do Lótus Dourado, apenas os servos mais favorecidos
eram ensinados a canalizar seu poder mágico para realizar tarefas
rudimentares. Os guardas eram instruídos em feitiços de ataque e
defesa, desde erguer escudos de proteção até lançar raios de fogo
ou de gelo. E o resto de nós deveria trabalhar da mesma forma que
os mortais. Sabia-se que a maioria das criadas possuía pouca força
vital, ou seja, era improvável que se tornassem fortes o suficiente
para ascender na hierarquia dos imortais.
Talvez isso também valesse para mim, mas, no fundo, eu não
pensava assim. Foram meus poderes que chamaram a atenção do
Império Celestial. O que foi minha perdição, mas talvez eu pudesse
transformá-la numa vantagem, se eu encontrasse alguém que
quisesse me treinar.
O Príncipe Liwei entregou a capa, agora impecável, para Madame
Meiling.
— Acredito que não haverá necessidade de repreender mais
ninguém. — Seu tom endureceu. — Qualquer criada antiga em sua
casa, ou até mesmo a senhora, poderia ter resolvido isso sem
recorrer a essas medidas. Tal comportamento vindo de uma posição
de privilégio não lhe cai bem.
Duas manchas vermelhas queimavam nas bochechas de
Madame Meiling. Uma parte infantil de mim adorava vê-la ser
repreendida, mas o que aconteceria quando o príncipe fosse
embora? Quando uma nova voz soou, a do pai de Madame Meiling,
minha ansiedade triplicou.
— Vossa Alteza. — Ele veio apressado para onde estávamos,
provavelmente avisado da presença do príncipe herdeiro por um
vigilante. Caindo de joelhos, ele fez uma reverência formal, tocando
a testa no chão. — Se minha filha ou esta serva o ofendeu, imploro
por seu perdão.
— Estou desapontado ao ver como Madame Meiling trata as
pessoas de sua casa — disse o príncipe. — Tal comportamento não
tem lugar em minha corte. Quando eu voltar, pretendo rescindir o
convite de sua casa para a escolha de minha companheira.
Prendi um suspiro de surpresa. Madame Meiling falara pouco
disso, desde que fora escolhida como candidata. O Príncipe
Herdeiro havia organizado uma competição para escolher uma
companheira de estudos, que aprenderia ao seu lado. Era isso o
que ele queria dizer com esticar os limites que o aborreciam?
Estaria cansado de seus amigos no palácio? Diziam que o príncipe
desejava abrir a oportunidade para todo o reino, mas sua proposta
fora rejeitada. Agora, cada candidata tinha de ser apadrinhada por
uma família nobre, e essas famílias apresentavam apenas seus
parentes.
O pai de Madame Meiling empalideceu. Seria uma terrível
humilhação ser riscado da lista, e haveria rumores intermináveis
sobre o motivo de sua filha ter sido considerada inapta.
— Por favor, perdoe-a, Vossa Alteza — implorou ele. — Minha
filha seria uma verdadeira flor agraciando sua corte, se tivesse a
sorte de se juntar a ela.
Uma ideia ousada se formou em minha mente. Até mesmo
atrevida, mas uma chance como aquela talvez nunca mais
aparecesse. Não estar mais à mercê de uma senhora caprichosa,
estudar com o Príncipe Liwei, aprender a controlar meus poderes…
Minha boca ficou seca com esse pensamento. Talvez, então, eu
pudesse ajudar minha mãe.
Caí de joelhos, fazendo uma reverência desajeitada.
— Sua Alteza, por favor, não revogue o convite de Madame
Meiling. Mas… — As palavras ficaram presas em minha garganta
como uma espinha de peixe firmemente alojada. Ele ficou
esperando, e sua paciência acalmou meus nervos desorientados.
Minha língua correu sobre meus lábios enquanto reunia coragem
para dizer: — Eu também desejo participar.
Madame Meiling e seu pai se viraram para mim, com olhos
esbugalhados. Para eles, eu não era nada, não merecia tal honra.
Eu quis cavar um buraco e me enterrar nele, não estava
acostumada a me expor daquela maneira, mas a opinião do
Príncipe Liwei era a única que importava.
Ele piscou, aparentemente surpreso pela primeira vez desde que
o conheci.
— Por quê? — indagou Liwei.
O pai de Madame Meiling esperava estreitar os laços com a
família real. Falava-se até que ela ganharia o afeto do príncipe. Isso
tudo pouco me importava. A ideia de adulá-lo passou por minha
cabeça, mas decidi falar com o coração. Foi o que eu fiz antes de
saber quem ele era.
— Vossa Alteza, seria uma honra estar em sua companhia, mas
essa não é a razão pela qual quero isso…
Ele deu um tapinha no queixo, contraindo os lábios.
— Você não quer estar em minha companhia?
— Não, Vossa Alteza. Quer dizer, sim. Sim, eu quero estar em
sua companhia — gaguejei —, mas, acima de tudo, quero aprender
com o senhor , com os maiores mestres do império. —
Silenciosamente, amaldiçoei minhas palavras desajeitadas. Ele
recusaria , pensei, desesperada. Mas teria sido pior não tentar.
Ele ficou parado, como se pesasse minha resposta. Por fim, disse
ao pai de Madame Meiling:
— Permitirei que sua filha continue como candidata, com uma
condição: que você apadrinhe também a participação desta criada.
A esperança voou sobre mim como uma pipa levada pelo vento.
— Vossa Alteza, ela é apenas uma criada — protestou o pai de
Madame Meiling.
— Nosso trabalho não é um reflexo de quem somos. — O
Príncipe Liwei ecoou minhas palavras anteriores, com um olhar de
aço, além de sua idade. — Apadrinhe as duas, ou não apadrinhará
ninguém.
— Sim, Vossa Alteza. — O pai de Madame Meiling fez uma
reverência enquanto o Príncipe Liwei se afastava, desaparecendo
na floresta de bambu.
Um silêncio tenso sucedeu sua partida. Peguei minhas coisas,
com a intenção de me fazer desaparecer quando o pai de Madame
Meiling acenou para mim.
— Como você conhece o Príncipe Herdeiro? — exigiu saber.
— Acabei de conhecê-lo — respondi honestamente.
O senhor olhou para mim, acariciando a barba.
— Por que ele está tão interessado em seu bem-estar? —
perguntou-se ele, em voz alta, não observando nada em minha
aparência que pudesse ter motivado a defesa do príncipe herdeiro.
De soslaio, vislumbrei o rosto de Madame Meiling, ainda vermelho
de fúria e humilhação. Relutando jogar sal em sua ferida, escolhi
minhas palavras com cuidado.
— Ele me viu chorando e acho que sentiu pena de mim. —
Ocorreu-me, então, que isso provavelmente era a verdade.
Ele assentiu, dispensando-me com um movimento da mão. Ter
pena de alguém como eu era algo que ele podia compreender.
Curvei-me e pedi licença, com passos mais leves que o planar de
uma pena. Eu não era nenhuma tola iludida; seria preciso um
milagre para ganhar. No entanto, fiquei profundamente satisfeita em
estender a mão para agarrar a oportunidade. Mesmo que eu
perdesse. Mesmo que eu fosse expulsa da Mansão do Lótus
Dourado. Essa lasca de esperança foi uma lufada de ar fresco em
minha existência estagnada. Estimulada por uma nova
determinação, voltei com a cabeça um pouco mais alta. Eu não era
mais uma criança disposta a flutuar com a maré: eu iria contra a
corrente se fosse preciso. E, se eu ganhasse, por algum golpe de
sorte milagroso, nunca mais ficaria desamparada.
4

D ormir não me fez descansar. Minha mente estava atormentada


por visões de fracasso. Saindo debaixo das cobertas, levantei-me
para me arrumar. Todas as candidatas receberam um conjunto de
roupas e uma tabuleta de sândalo com nossos nomes gravados.
Coloquei o manto de seda cor de damasco, amarrando a faixa de
brocado amarelo na cintura. Em seguida, um casaco diáfano, com
os tons inconstantes do amanhecer. Mangas esvoaçantes roçavam
em meus pulsos, e a saia descia até meus tornozelos. Meus dedos
correram sobre o material, leve e macio, com um brilho sutil nos fios.
Eu não usava seda tão fina desde que saí de casa. Sem habilidades
para tentar algo mais elaborado com o cabelo, puxei-o em um rabo
de cavalo que balançava sobre minhas costas.
Pegando a tabuleta de madeira, prendi-a na cintura, traçando os
caracteres de meu nome gravados nela:

Estrela de prata, a companheira constante da lua. Mãe — pensei


—, vou fazer a senhora se orgulhar de mim hoje . Segui meu
caminho em direção às portas, ansiosa para escapar dos olhares
pétreos das outras garotas que acabavam de se levantar de suas
camas.
— Não fique muito acostumada com o Palácio de Jade. Você
voltará para cá em breve — gritou Jiayi, provocando-me.
Parei na entrada, sem me virar.
— Obrigada por seus votos gentis, Jiayi — respondi, no tom mais
agradável que pude. — Quando eu voltar, será para arrumar minhas
coisas. Enquanto isso, cuide melhor das roupas de Madame Meiling.
Para seu próprio bem, certifique-se de mantê-las longe da pedra de
tinta.
Eu me afastei, de costas eretas, mas feliz por ela não poder ver
meu rosto. Apesar de minhas palavras ousadas, uma parte de mim
tinha certeza de que sua previsão mesquinha se cumpriria. No
entanto, desde o dia à beira do rio, não aceitava mais fingir
indiferença, nem segurava minha língua diante de insultos.
Fora da mansão, ocorreu-me que eu não conhecia o caminho
para o Palácio de Jade. Mesmo que eu pudesse perguntar a
Madame Meiling, ela nunca me ajudaria. Levantei minha cabeça
para vasculhar os céus. O Palácio de Jade flutuava em um banco de
nuvens acima do reino. Não devia ser difícil localizá-lo.
Nas vezes em que eu saía da casa, nunca podia ficar fora por
muito tempo. Ao redor estavam as magníficas propriedades dos
mais poderosos imortais do mundo. Algumas haviam sido
construídas a partir de madeiras raras, com telhados em camadas
compostos de telhas esmaltadas, enquanto outras eram trabalhadas
em pedra polida, com telhados elegantemente elevados. Árvores e
arbustos abundavam em tons de carmesim e ametista, esmeralda e
cinabre. O Império Celestial era como um jardim numa primavera
eterna; as flores não murchavam e as folhas não escureciam.
Naquele dia, o chão brilhava num azul brilhante, refletindo os céus
claros, como se terra e céu fossem um só.
A escadaria de puro mármore branco que levava ao palácio
desaparecia entre as nuvens. Enquanto eu subia os degraus,
segurando-me ao corrimão, meus olhos foram atraídos para as
intrincadas esculturas de fênix em seus balaústres. Chegando ao
topo, fiquei estática com a paisagem. Colunas de âmbar
sustentavam um magnífico telhado de três camadas de jade verde-
grama. Dragões de ouro empoleiravam-se majestosamente em cada
canto, com pérolas luminosas presas às mandíbulas; eram tão
realistas que eu quase podia sentir o vento ondulando em suas
crinas. As paredes de pedra branca estavam salpicadas de cristais,
que brilhavam como estrelas contra um mar de nuvens.
Flanqueando a entrada havia incensários de bronze cravejados de
pedras preciosas, de onde brotavam fios de fumaça doce.
Uma placa enorme de lápis-lazúli pendia sobre a entrada, gravada
em ouro com os caracteres:

PALÁCIO DE JADE DO PARAÍSO IMORTAL


Quando um criado fez um gesto para mim, eu o segui através das
portas laqueadas de vermelho, tentando não ficar boquiaberta com
o teto pintado de flores em cores de cobalto, escarlate e caqui.
Atravessamos corredores sinuosos e grandes jardins de prazer,
pavilhões dourados e lagos cheios de lótus, antes de emergir num
pátio repleto de imortais. Estiquei o pescoço para ler a placa de
madeira pintada com o nome do local:

PÁTIO DA TRANQUILIDADE ETERNA


Embora naquele dia a residência do Príncipe Herdeiro fosse tudo,
menos tranquila. Enquanto o sol ainda não estava alto, o ar vibrava
com auras de imortais. Todas as outras candidatas já haviam se
reunido: cultivadas e colhidas nas mais ilustres famílias do reino.
Todas ansiosas para serem plantadas no jardim do Príncipe
Herdeiro, assim como eu, admiti para mim mesma, embora me
sentisse deslocada ali, como uma erva daninha entre as orquídeas,
da mesma forma que sempre me comparava a minha mãe.
Para além de sua linhagem, as outras candidatas eram
indubitavelmente brilhantes, cultas, talentosas. Poderosas . Embora
estivéssemos todas vestidas da mesma forma, jade e ouro
brilhavam em seus cabelos, e joias ornamentadas pendiam de suas
cinturas. Suas sapatilhas eram grossas, bordadas com fios de seda,
algumas com pérolas lustrosas incrustadas. Muitas me fitaram com
curiosidade e, quando meus olhos encontraram os de Madame
Meiling, seus lábios se contraíram como se ela tivesse mordido uma
ameixa azeda. Ela deu meia-volta, forçando uma risada, e suas
palavras flutuaram até mim quando ela não fez nenhuma tentativa
de abaixar a voz.
— Aquela garota ali, que parece uma camponesa mortal. Ela era
minha criada. — Madame Meiling fez uma pausa, deixando os
suspiros passarem antes de continuar. — A pior que já tive, tanto
estúpida quanto sem graça.
— Como ela conseguiu ser selecionada? — perguntou um
homem magro, olhando para mim.
Madame Meiling torceu o nariz.
— Ela implorou ao Príncipe Liwei por uma chance, e ele teve
pena. Provavelmente só permitiu isso porque sabe que ela não pode
vencer.
Cerrei as mãos na saia de meu manto, amassando a seda
delicada. Ela pretendia me ferir, abalar minha confiança, talvez. Ela
não fazia ideia do quão fundo suas zombarias me atingiam. Porém,
eu não daria esse prazer a ela; em vez disso, meu desejo de vencer
cresceu. Eu não ficaria com remorso nenhum por minha suposta
relutância em escalar aquela hierarquia para alcançar o prêmio. De
qualquer forma, de que me importavam aquelas regras? Não fui
criada para reverenciar os títulos ou o status social deles, e
certamente não começaria a fazer isso agora, quando vencer não
apenas transformaria um futuro já brilhante em ouro, mas mudaria
minha vida.
Um gongo soou; seu timbre metálico reverberou alto e o silêncio
seguiu seu rastro. Os criados correram para o pátio, abrindo
caminho para o palanque elevado em frente ao pavilhão, onde
estavam dispostas treze mesas. Um número ímpar; imaginei que a
minha era um acréscimo tardio. Sussurros farfalharam pela multidão
enquanto os imortais caíam de joelhos, tocando suas testas no
chão. Apressei-me para seguir o exemplo quando o Príncipe
Herdeiro entrou, acompanhado pela mãe e seus criados.
— Todos podem se levantar.
O som familiar de sua voz acalmou meus nervos. Ao me levantar,
olhei ansiosamente para o palanque. Seria aquele o mesmo jovem
que limpara a sujeira de meu grampo de cabelo e ouvira meus
problemas? Um colar de ouro reluzia em seu pescoço, sob um
manto de brocado azul bordado com dragões amarelos. Um brilho
prateado emanava de seu queixo, como se ele estivesse respirando
névoa e nuvem. Elos de jade lisos e brancos prendiam seu manto
em volta da cintura. Seu cabelo estava preso num topete impecável,
envolto numa coroa de ouro com uma grande safira oval. Ele
parecia muito grandioso. Até mesmo majestoso. E, no entanto,
também era exatamente como eu me lembrava, com sua expressão
pensativa e olhos escuros e inteligentes.
Meu olhar foi para as brilhantes vestes rubras de sua mãe, que
estava ao lado de Liwei. As fênix escarlates em suas vestimentas
estavam com os graciosos pescoços esticados, e suas cristas quase
se emaranhavam no colar comprido de contas de jade que envolvia
seu pescoço. Quando fitei seu rosto, meu sangue congelou.
A Imperatriz Celestial.
A pessoa que ameaçara e aterrorizara minha mãe, forçando-me a
fugir de casa. A raiva despertou, descongelando meu medo, e
minhas emoções guerreavam dentro de mim. Cerrei as mãos em
punhos apertados quando forcei um sorriso amarelo nos lábios. Que
insensatez de minha parte não ter ligado os pontos! Será que minha
mente estava entorpecida pela tristeza e pelos meses sem dormir à
noite? Meus instintos gritavam para eu ir embora, mas eu não podia
me revelar naquele momento. Além disso, a imperatriz não tinha a
menor ideia de minha identidade. E, mais importante que isso, a
necessidade superava meu medo; eu precisava daquela
oportunidade de ter alguma esperança de melhorar de vida. Mesmo
que isso me levasse para mais perto de quem eu temia, de quem eu
desprezava. Lentamente, abri as mãos e as deixei pender nas
laterais do corpo.
À ordem silenciosa do Príncipe Liwei, um aceno com a cabeça, o
criado-chefe gritou:
— Todas as candidatas participarão dos dois primeiros desafios.
Somente as vencedoras passarão para a terceira e última rodada.
Sua Alteza determinou que é proibido usar qualquer tipo de magia;
estes são testes de perícia, aprendizado e habilidade, os quais o
Príncipe preza mais. — Ele fez uma pausa. — O primeiro desafio
será a arte do preparo de chá.
Soltei o ar, sentindo minha tensão se aliviar. Parte de mim temia
ser colocada em alguma tarefa impossível, na qual eu fracassaria
antes mesmo que ela começasse. Mas o alívio durou pouco quando
os candidatos correram para o pavilhão num redemoinho de seda e
brocado. Corri para a mesa que me designaram, tentando acalmar o
coração acelerado. Eu sabia preparar chá; já havia feito isso
inúmeras vezes antes, para mim, para minha mãe e até mesmo
para Madame Meiling.
No entanto, o que era tudo aquilo em cima da mesa diante de
mim? Minha cabeça começou a latejar com a variedade
desconcertante de itens. Mais de uma dúzia de bules de vários
tamanhos, de barro, porcelana e jade. Uma grande bandeja estava
abarrotada de potes de folhas de chá: as pretas e enroladas de
oolong , as pérolas de jasmim e outras marrom-douradas e verdes.
Num canto havia uma pilha de pu-erh prensado em forma de
bolinhos e tijolos. Tigelinhas de porcelana cheias de flores secas
estavam alinhadas ao lado deles. Peguei alguns itens e levei-os ao
nariz: terrosos e inebriantes, floridos e doces. Os aromas só me
confundiram ainda mais. Eu mal conseguia identificar alguns, como
chá Longjing , jasmim e crisântemo selvagem.
Meu ânimo foi ao chão quando olhei ao redor. As outras
candidatas cheiravam os chás habilmente antes de fazer suas
escolhas. Algumas selecionaram mais de um tipo; será que
achavam que usar apenas um chá era um preparo humilde demais?
As mais rápidas já estavam servindo seus chás, enquanto eu nem
havia escolhido nada. Peguei um bolinho cheiroso de pu-erh ,
arranquei um pedaço dele com uma agulha de prata e o coloquei
em um bule de porcelana. Eu tinha pouca experiência em preparar
esse chá, mas ouvi dizer que as melhores folhas eram prensadas
em blocos compactos em forma de bolo e envelhecidas por anos, ou
até mesmo décadas. Enquanto esperava a água ferver, olhei em
volta novamente; só então percebi que quem escolheu o pu-erh
usava bules de barro, e alguns estavam descartando a primeira
infusão que faziam. Uma dúvida repentina me atingiu, então desisti
da primeira opção, e decidi fazer o que eu conhecia melhor. O
favorito de minha mãe, o chá Longjing . O vapor da chaleira de
bronze começou a sibilar e, rapidamente, despejei o líquido fervente
sobre outro jogo de chá para aquecê-lo, a fim de despertar mais o
sabor das folhas. Sem pausa, joguei um punhado de folhas verdes
brilhantes no bule e o enchi com água quente. Recolocando a
tampa, esperei impacientemente que a infusão se completasse.
Vinte segundos. Não mais, porque eu estava quase sem tempo.
Passei o chá para uma xícara de porcelana, mas ele parecia uma
sopa marrom escura. Quando levantei a tampa para ver os
resíduos, meu estômago ficou gelado. Sua desatenta — xinguei a
mim mesma. Na pressa, pus o Longjing no mesmo bule que o pu-
erh . Quando misturava chás, era alertada para tomar cuidado com
a temperatura da água e com as proporções para equilibrar seus
sabores, fossem eles delicados ou fortes. Pelo aroma pesado e sem
vida que emanava ali, fiz tudo errado.
Alguém pigarreou — o criado-chefe, acenando para mim com
impaciência. Eu era a única que não havia servido meu chá e não
havia tempo para preparar outro. Minhas mãos estavam rígidas ao
carregar a bandeja para o Príncipe Liwei. A cada passo o grande
sonho de me destacar no desafio se desvanecia ainda mais. Pior
ainda, e se Sua Alteza cuspisse meu chá? A imperatriz ficaria
furiosa; eu poderia ser expulsa da competição imediatamente. Seria
considerada tão indigna e inapta quanto acreditavam.
Quando coloquei a bandeja na frente do Príncipe Liwei, seus
olhos se aqueceram ao me reconhecerem, passando rapidamente
para a tabuleta de sândalo em minha cintura. Sem hesitar, ele levou
a xícara à boca e deu um bom gole. Eu estava de pé diante dele,
então apenas eu pude ver sua testa franzindo ligeiramente e seus
lábios se contraírem. Essa expressão sumiu em instantes, mas meu
ânimo todo foi embora. Eu não podia pensar que era uma expressão
de prazer, de forma alguma. No entanto, para minha surpresa, o
Príncipe Liwei ergueu minha xícara no ar.
— Esta aqui. Nunca antes provei uma mistura tão singular. — Ele
acenou para um criado, que gravou meu nome.
A Imperatriz Celestial se inclinou para frente.
— Liwei, tem certeza? A cor está tão estranha… Deixe-me provar.
Um arrepio percorreu minha espinha. Eu me lembrava muito bem
da voz dela: melodiosa, mas afiada.
Quando o Príncipe Liwei foi entregar a xícara, ela escorregou de
seus dedos, atingindo o chão com um estrondo. A porcelana
quebrou; o líquido escuro empoçava o chão de pedra com os restos
de minha mistura infeliz. Uma multidão de criados correu para limpar
a bagunça, mas a imperatriz os ignorou, olhando para mim como se
fosse eu quem a tivesse deixado cair.
Quando o criado-chefe me anunciou como vencedora do primeiro
desafio, tombei de alívio, sem me ofender com os sussurros
chocados. Pois, apesar das palavras do Príncipe Liwei, eu duvidava
que meu chá merecesse tal honra. No entanto, de alguma forma, eu
estava à frente na competição e era isso o que importava.
Em frente ao pavilhão, uma pintura de jasmins-do-imperador em
flor foi desvelada para o segundo desafio. Enquanto o público
suspirava de admiração, pediram-nos para compor um dístico
inspirado na cena. Prendi um ruído de frustração. Fazia muito tempo
desde que eu havia pegado em um pincel, e mais ainda desde a
última vez que compusera alguma coisa. Tentei evocar palavras
elegantes e frases floreadas, mas minha mente permaneceu tão
vazia quanto o papel intocado diante de mim. Fechei os olhos, e o
cheiro de tinta ficou mais forte no escuro : pesado, com um leve tom
medicinal. Eu quase conseguia me imaginar de novo em casa, com
o ar frio soprando por minha janela, farfalhando as finas folhas de
papel sobre minha mesa de madeira.
Minha mãe começara a me ensinar a escrever há anos. Lembro-
me de como seus suspiros ecoavam em meus ouvidos. Ela era
paciente, mas eu era uma aluna desafiadora, principalmente em
assuntos que não me interessavam.
— Xingyin, segure o pincel com mais firmeza — advertiu ela pela
décima vez. — Polegar de um lado, dedos indicador e médio do
outro. Em linha reta, não o deixe ficar inclinado.
Apenas quando ficou satisfeita com a postura de grafia ela me
permitiu mergulhar os duros pelos marfins do pincel na tinta
brilhante. Enquanto eu o girava com mais força na pedra de tinta,
ela avisou:
— Não tão forte. Seus traços ficarão desajeitados, a tinta
escorrerá.
Eu imaginara os caracteres elegantes que formaria, mas meu
entusiasmo logo diminuiu depois de fazer o mesmo movimento
vacilante repetidamente.
— Qual é o sentido de aprender isso? — indaguei, impaciente. —
Não é como se eu fosse me tornar uma escriba ou estudiosa.
Então ela tomou o pincel de mim, desenhando o caractere com
movimentos firmes e precisos: “Eterno”, a palavra formada pelos
oito traços que compunham todos os caracteres existentes.
— Você nunca crescerá se fizer apenas aquilo em que é boa —
disse ela. — As coisas mais difíceis são as que mais valem a pena.
Relutante em deixar o refúgio de minha memória, abri os olhos
devagar. Os demais competidores escreviam com uma calma
frenética, curvados em concentração. Olhei para a pintura, não
pensando mais no que poderia agradar os juízes, mas no quanto a
falta de minha mãe doía. Levantando o pincel, escrevi as seguintes
frases:

As pétalas murcham, sua doce fragrância se encerra,Outrora o sol


brilhava, mas hoje a lama as congela.
Quando meu dístico foi lido em voz alta, houve alguns acenos e
murmúrios apreciativos. Estava longe de ser o melhor, mas fiquei
grata simplesmente por não ter me desonrado. Depois que a
imperatriz escolheu Madame Lianbao como vencedora, aplaudi
junto com a plateia.
Enquanto a pintura era levada, vários criados entraram, trazendo
grandes bandejas cheias de comida para a refeição da tarde. Perdi
a conta do número impressionante de pratos enquanto as mesas
envergavam sob o peso de travessas de camarões cozidos em
manteiga dourada, carne de porco assada, frango assado com
ervas, sopas delicadas e legumes artisticamente moldados em
flores. O aroma era delicioso, mas eu só consegui dar algumas
mordidas antes que meu estômago se revirasse, reclamando.
Coloquei meus kuàizi sobre a mesa, erguendo o olhar para ver
Madame Lianbao empurrando a comida pelo prato com pouco
entusiasmo. Havia um fluxo incessante de conversas ao nosso
redor, mas tudo o que eu conseguia pensar era no que vinha depois.
O último desafio, do qual somente nós participaríamos. Quando
nossos olhos se encontraram, lancei um sorriso relutante, que ela
retribuiu após um momento de hesitação.
Depois que os pratos e a comida que sobrou foram levados, o
gongo soou mais uma vez. O criado-chefe anunciou em voz alta:
— Para o desafio final, Madame Lianbao e a Criada Xingyin
selecionarão um instrumento para tocar uma canção de sua
escolha. A vencedora será escolhida por Sua Majestade Celestial e
Sua Alteza.
Meu coração deu um pulo. Finalmente, algo em que eu possuía
alguma habilidade! Nossas mesas haviam sido esvaziadas e nelas
foi posta uma grande variedade de instrumentos. Madame Lianbao
fez uma reverência na direção do palanque antes de escolher o
guqin e tomar seu assento. Era uma bela melodia, um clássico
sobre as folhas do mundo mortal mudando de cor de jade para
ruivo, e seus dedos tocavam as cordas com maestria. Enquanto eu
admirava sua habilidade, minha confiança diminuía a cada nota
perfeita.
Então chegou minha vez. Quando todos se viraram para mim,
minhas mãos começaram a suar. Limpei-as na saia, tentando me
acalmar. Eu tinha me apresentado apenas na frente de minha mãe e
de Ping’er. A mais amável plateia, uma das mais clementes.
Andando sem dobrar direito os joelhos, caminhei para o centro do
pavilhão. Meus olhos dispararam sobre as cítaras e os alaúdes,
ficando vidrados sobre os sinos e tambores… mas não havia
nenhuma flauta. Fiz uma pausa diante do guqin , o único
instrumento familiar presente. No entanto, não era minha
especialidade, e Madame Lianbao o havia tocado muito melhor do
que eu jamais conseguiria. Selecioná-lo seria escolher a derrota, e
uma vida inteira na Mansão do Lótus Dourado não me aproximaria
nem um passo de meu sonho.
Grata pela saia longa esconder o tremor de minhas pernas,
curvei-me para o palanque.
— Vossa Majestade Celestial, Vossa Alteza. Não há flautas aqui.
Posso tocar meu próprio instrumento?
A imperatriz contraiu os lábios.
— As regras não podem ser quebradas. — Sua entonação era
afiada de desaprovação.
Mantive o rosto abaixado para que ela não visse meu medo e
meu ressentimento reprimidos.
— Vossa Majestade Celestial, as regras diziam apenas que eu
tinha de selecionar um instrumento para tocar. Não especificaram de
onde.
Alguém suspirou de surpresa. Ergui o olhar e vi o criado-chefe dar
um passo apressado para trás.
A imperatriz fechou sua expressão enquanto inclinava a cabeça
para trás e as contas de jade em volta de seu pescoço estalavam
furiosamente.
— Sua garota insolente, como ousa argumentar comigo?
— Honorável Mãe, foi um erro nosso não providenciar flautas —
interveio o Príncipe Liwei. — Não vejo por que ela tocar o próprio
instrumento seria um problema. Os nossos não têm o mesmo
padrão de todos os convencionais?
A imperatriz se inclinou para frente e se dirigiu a mim em um tom
arrepiante:
— Sua flauta será inspecionada. Se descobrirmos qualquer feitiço
sobre ela, sua trapaça fará com que você seja açoitada até não
conseguir mais andar.
— Hoje não haverá açoite — disse o Príncipe Liwei com firmeza.
Uma de suas mãos estava cerrada sobre o colo.
Ela não respondeu, apontando para alguém atrás dela.
— Ministro Wu, conduza a inspeção.
Um imortal com olhos castanho-claros saiu da multidão, e o
âmbar em seu chapéu brilhava como gotas de ouro. Era ele; o
ministro que descobrira a mudança na energia da lua, que alertara a
imperatriz e a levou até minha casa. Talvez ele fosse apenas um
cortesão vigilante, mas meu estômago deu um nó ao vê-lo. Com
meu choque ao ver a imperatriz, eu não tinha percebido que ele
também estava ali.
Eu podia sentir o olhar da imperatriz sobre mim; todos me
encaravam enquanto eu me atrapalhava com os laços de minha
bolsa. Se eles acreditassem que era meu nervosismo, eu ficaria
contente. Melhor isso do que a fúria latente que ameaçava explodir.
Como ela ousa me acusar de trapacear? Talvez, na cabeça dela,
alguém como eu não tivesse escrúpulos. Talvez, pensei
maldosamente, ela apenas suspeitasse de mim porque ela seria
capaz de fazer isso.
Fiz uma reverência, erguendo os braços para oferecer minha
flauta. Uma criada correu para pegá-la e a repassou para o Ministro
Wu. Sua expressão era de um desinteresse entediado, muito
distante do anseio que ele havia demonstrado diante dos apuros de
minha mãe. Será que ele achava os procedimentos do dia
cansativos? Ou se ressentia por receber ordens da imperatriz?
Mesmo assim, desempenhou sua tarefa de maneira admirável,
inspecionando minha flauta com um cuidado meticuloso. Como eu
odiava ver meu precioso instrumento, presente de minha mãe, entre
seus dedos enluvados!
Por fim, ele se voltou para a imperatriz.
— Não há feitiços.
O descontentamento dela ficou evidente em seu aceno breve com
a cabeça.
— Prossiga — ordenou a Imperatriz Celestial.
Quando a criada da imperatriz devolveu minha flauta, meus dedos
se fecharam ao redor dela. Respirei fundo, tentando afrouxar o
aperto em meu peito, que ainda ardia com a humilhação daquela
acusação. Fechando os olhos, tentei afastar os estranhos
indiferentes ao meu redor, procurando a melodia que eu queria; a
busca desesperada de uma ave por seus filhotes roubados, até
morrer congelada com a chegada do inverno. Uma canção de
tristeza, dor e perda, para canalizar as emoções que rodopiavam em
meu interior. Quando a quietude tomou conta de mim, ergui a flauta,
regozijando-me com a pressão familiar da jade fria contra meus
lábios. Que saudade eu tinha disso. A música começou alegre, com
notas radiantes ondulando pelo ar, elevando-se claras e puras.
Lentamente, foi se transformando em incerteza e terror, até
mergulhar no abismo do desespero.
A última nota foi tocada. Com as mãos trêmulas, baixei a flauta.
Ping’er havia elogiado minha habilidade musical, mas será que
aquele público a consideraria boa? Levantei os olhos e vi a
imperatriz com o rosto pálido e furioso. Certamente, isso era um
bom sinal, embora eu não conseguisse ler a expressão do Ministro
Wu. Um aplauso soou, acompanhado por outros, e esses ruídos se
chocavam como trovões. Uma alegria feroz percorreu meu corpo;
independentemente do resultado, eu havia dado o meu melhor.
O Príncipe Liwei e a imperatriz conversaram por um longo tempo.
Como fui a última pessoa a tocar no dia, permaneci parada em meu
lugar diante deles e pude captar trechos da conversa.
A imperatriz tentou ao máximo dissuadir o filho.
— A linhagem de Madame Lianbao é impecável. Ela é bem-
educada, inteligente, graciosa e musical. Como pode preferir uma
mera criada a ela? Ela tem feições comuns demais, e aquela marca
no queixo é um sinal claro de mau temperamento.
Juntei as mãos sobre o colo, apertando os dedos.
— Honorável Mãe, se escolhêssemos alguém com base apenas
em sua linhagem, não haveria necessidade de realizar este evento
hoje. — Seu tom era respeitoso, mas firme.
O silêncio pairou no ar enquanto eles se encaravam. Vi pouca
semelhança em suas feições, o que me alegrou. Havia calor no
rosto do Príncipe Liwei, em vez do semblante reto e frio da
imperatriz.
Finalmente, ela suspirou, emitindo um ruído exasperado.
— Um assunto tão insignificante não merece meu tempo. Espero
que você nos obedeça em assuntos mais importantes. — Sem dizer
mais nada, a imperatriz levantou-se e saiu do pátio, com os criados
correndo atrás dela.
Quando meu nome foi anunciado, não ouvi os aplausos e os
votos de congratulações. Meu coração se encheu de alívio, mas eu
ainda temia que aquilo fosse apenas um sonho. Atravessando a
multidão, meu olhar inquieto procurou o do Príncipe Liwei. Só depois
que vi seu sorriso de resposta me atrevi a ter esperança, como a
primeira flor que brota após um longo inverno.
5

O sol estava baixo no céu quando arrumei meus pertences na


Mansão do Lótus Dourado. Eu poderia ter partido no dia seguinte,
mas não havia motivo algum para demora; não havia despedidas a
fazer, nem ninguém de quem eu sentiria falta. Nos dias após a
competição, a Madame Meiling e seus outros atendentes me
mantiveram ocupada com um fluxo interminável de tarefas
desagradáveis e humilhantes. Eu gostaria de dizer que tal maldade
escorria por mim como água sobre óleo, que a alegria em meu
coração não deixava espaço para a amargura apodrecer. Mas não
sou tão magnânima ou indulgente. Eu já havia aprendido que nada
irritava tanto minhas algozes quanto a indiferença. E, assim, eu
sorria diante de seus comandos, fazia uma reverência e obedecia, o
tempo todo imaginando a consternação delas quando partisse para
o palácio, para nunca mais voltar.
Ao subir as escadas de mármore branco que levavam ao Palácio
de Jade, meus pés estavam mais leves do que as nuvens que
flutuavam acima dele. Para minha surpresa, encontrei o criado-
chefe à espera na entrada. Ele contraiu os lábios de desaprovação
ao me ver, ou talvez estivesse aborrecido por ser tão tarde.
— Sua Majestade Celestial pediu a mim que a instruísse sobre
seus deveres. — Sem esperar por minha resposta, ele atravessou
as portas laqueadas de vermelho, e segui apressada atrás dele.
Antes dominada pela ansiedade, apenas conseguia me lembrar
de um borrão, com cores vibrantes e beleza requintada. Agora mais
calma, estudei os arredores, descobrindo que o Palácio de Jade era
do tamanho de uma pequena cidade e projetado com precisão
metódica. Os soldados ficavam alojados no perímetro mais externo,
ao longo das paredes do palácio, e um pouco mais adiante ficavam
os quartos dos criados e empregados do palácio. Cercada por
jardins floridos e lagos cheios de carpas, a Corte Externa era onde
ficavam os aposentos de hóspedes de honra e dos cortesãos
selecionados que não tinham imóveis. A família real residia na Corte
Interna, e seus pátios amplos ficavam agrupados ao redor do
coração do palácio: o Tesouro Imperial, a Câmara de Reflexões e o
Salão da Luz Leste.
Perdida no labirinto de caminhos sinuosos onde cada salão e
câmara tinha seu próprio nome e propósito, senti uma pontada ao
me lembrar da simplicidade de minha casa. Embora as terras do
Palácio da Luz Pura fossem vastas, nossas necessidades eram
inegavelmente mais modestas: não havia cortesãos para entreter,
nós mesmas preparávamos nossas refeições simples e havia uma
floresta em nosso quintal.
Enquanto caminhávamos, o criado-chefe tagarelava sobre as
regras de etiqueta.
— Você deve se ajoelhar quando cumprimentar Sua Alteza e
sempre que ele lhe der um comando. Em todos os outros
momentos, curve-se até a cintura quando ele falar com você.
Sempre se dirija a Sua Alteza por seu título, nunca por seu nome.
Se você tiver a sorte de conhecer Suas Majestades Celestiais,
ajoelhe-se e pressione a testa no chão até que eles lhe deem
permissão para se levantar. Se passar por alguém de nível mais
alto, pare e faça uma reverência. Fale em tom suave, vista-se com
elegância, como convém à sua posição social…
A princípio, escutei atentamente, mas minha atenção logo se
desviou para os tetos e pilares ornamentados e esculpidos ao longo
do corredor. Fênix douradas estavam intercaladas com peônias
carmesim e folhas de verde-esmeralda. O corredor atravessava um
jardim que eu desejava explorar, sombreado por magnólias e
macieiras silvestres.
Parei, percebendo que havia perdido o criado-chefe de vista.
Girando em meu próprio eixo, encontrei-o parado a uma curta
distância atrás, com os braços cruzados sobre o peito enquanto ele
olhava para mim com intenso desagrado.
Eu me curvei bem baixo. Embora eu não estivesse familiarizada
com as nuances da hierarquia do palácio, o criado-chefe
evidentemente se considerava meu superior.
— Obrigada por sua orientação — disse, tão respeitosamente
quanto pude, o tempo todo me perguntando quantas regras deixei
passar, e se elas eram de alguma importância.
Para meu alívio, ele descruzou os braços e continuou andando.
— Se um nobre tivesse assumido essa posição, não residiria
dentro do palácio; em vez disso, viria todas as manhãs para
acompanhar Sua Alteza e voltaria para casa todas as noites. No
entanto, dada a sua situação, foi necessário fazer alguns ajustes.
Nesse momento o criado-chefe suspirou como se ele tivesse feito
alguma concessão custosa.
— Com esses benefícios adicionais em mente, além de seus
deveres como companheira de aprendizado do Príncipe Liwei, Sua
Majestade Celestial ordenou que você também o sirva.
Desviei os olhos para esconder minha confusão, ciente de que o
olhar dele estava atento em mim. Eu era uma criada glorificada ou
uma companheira desonrada? Esse não era o prêmio que eu
ganhara, e eu não achava que outra pessoa seria tratada assim — a
Madame Lianbao com certeza não seria. A imperatriz esperava que
eu me ofendesse e recusasse? Eu não era tão fraca assim. Apesar
da sombra que ela havia lançado sobre minha conquista, eu não
sairia dali por causa de uma explosão de rancor. Depois de servir a
Madame Meiling, aquelas condições não seriam uma dificuldade.
Além disso, preferia trabalhar pelo meu sustento em vez de me
sentir em dívida com Suas Majestades Celestiais. Talvez eu
devesse ficar mais ressentida pela redução de classe social, mas
por aquela oportunidade eu varreria o chão ali todos os dias se
fosse necessário.
— Eu ficaria honrada em servir Sua Alteza — declarei.
O criado-chefe contraiu os lábios.
— Deve ficar honrada mesmo. Não se esqueça disso. Deve
acordar todas as manhãs antes de Sua Alteza e ajudá-lo a se vestir.
Vai preparar seu chá e organizar suas refeições. Ainda que na hora
das refeições possa jantar com Sua Alteza, sirva-o antes de você.
Não coma até que ele o faça. Você o acompanhará em suas aulas e
treinamentos, nos quais estudará a seu lado, colocando as
necessidades de aprendizado dele acima das suas, é claro.
— Claro — repeti com firmeza, engolindo palavras mais seletas
que brotaram em minha língua.
Felizmente, logo entramos no Pátio da Tranquilidade Eterna. O
lugar era muito sereno sem a multidão de espectadores e a
ansiedade que davam um nó em minhas entranhas. Jasmins,
glicínias e pessegueiros floresciam no jardim com fragrâncias
delicadas e doces. Uma cachoeira retumbava em um lago repleto de
carpas amarelas e laranjas. O pátio dava para o pavilhão onde a
seleção havia sido realizada, mas agora aquele lugar continha uma
mesa redonda de mármore e vários banquinhos organizados.
— Este é o seu quarto. — O criado-chefe parou em frente às
portas, que estavam fechadas. — Mais uma coisa: demando que
você mantenha uma atitude servil e respeitosa em todos os
momentos, criando um ambiente harmonioso para Sua Alteza.
Durante o banho do Príncipe…
Inspirei bruscamente, e o ar que entrou por meus lábios fez um
assobio.
— Preciso ajudar Sua Alteza com o banho?
Ele ajeitou a postura, lançando-me um olhar de censura.
— Quando Sua Alteza estiver tomando banho, use esse tempo
para preparar os livros e materiais para o dia seguinte — completou
o criado-chefe, enunciando cada palavra com clareza minuciosa,
sem dúvida me tomando por uma tola.
Balbuciei um agradecimento, grata quando ele saiu. Abrindo as
portas de correr, entrei. O quarto era espaçoso e bem mobiliado,
com uma cama grande de madeira coberta por cortinas azul-claras.
Pinturas em rolos de seda estavam penduradas nas paredes,
retratando cenas de montanhas em cinza-violeta e ciprestes, faisões
e peônias. Uma janela grande se abria para o pátio e a seu lado
havia uma escrivaninha, com uma pilha de papel, um conjunto de
pincéis de escrita e um tinteiro de porcelana. Uma lanterna de seda
já estava acesa, lançando seu brilho contra a luz minguante.
Incrédula, sentei-me na cama, beliscando meu braço. Doeu; aquilo
tudo era real. Eu queria rir alto ao me deitar de costas no colchão
macio. A serenidade do lugar, quebrada apenas pelo fluxo rítmico da
água e pelo vento farfalhando entre as árvores, me fez lembrar de
casa. E, depois de viver com quem achava que cada palavra e
gesto meus eram insuficientes, era um alívio estar sozinha mais
uma vez.

, dormi durante a noite


SEM TER SIDO PERTURBADA PELOS PESADELOS ANTERIORES
até a luz do sol entrar por minha janela. As cortinas esvoaçavam na
brisa da manhã, carregadas com o perfume das flores. Havia uma
leveza desconhecida em mim — percebi que era a ausência de
medo. Eu não tinha percebido a tensão espiralada em meu interior
até ela desaparecer. Havia pilhas de peças de seda e brocado no
armário; peguei um manto branco e amarrei um pedaço de cetim
verde na cintura. A saia esvoaçante era bordada com borboletas e,
quando passei o dedo na costura lisa de uma asa, ela bateu. Um
vestido encantado. Será que isso significava que eu tinha muita
força vital? Será que eu aprenderia a usá-la logo? Minha pele
formigava com a ideia.
Saindo de meu quarto, atravessei o pátio até os aposentos do
Príncipe Liwei — o grande prédio em frente ao meu. As portas de
madeira tinham um verniz vermelho vivo, treliçadas com um padrão
de círculos e intercaladas com camélias douradas. Ergui a mão e
bati suavemente à porta. Sem obter resposta, bati com mais força.
Depois de esperar um pouco, abri-a, ansiosa para não me atrasar.
Estava escuro lá dentro; um brocado grosso cobria as janelas e a
cama de pau-rosa no canto mais distante. O Príncipe Liwei ainda
devia estar dormindo. Meu coração bateu mais rápido quando entrei
na sala, e uma tábua do assoalho rangeu sob meus pés.
— Vossa Alteza, fui instruída a acordá-lo a esta hora. — Minha
voz saiu fina e incerta, com o título pesado em minha língua.
Recordando a lição do criado-chefe, caí de joelhos, curvando-me
até a testa bater desajeitadamente no chão duro.
Em troca, fui cumprimentada pelo silêncio. Imaginando como
alguém poderia acordar um príncipe “respeitosamente”, me movi.
Um momento antes de serem puxadas, as cortinas da cama
farfalharam. Ao levantar a cabeça, meus olhos se prenderam aos
dele. Quando percebi que o príncipe trajava apenas o manto branco
que vestia por baixo das roupas, um calor corou minha face.
— Chá — falei, desajeitada. — Vossa Alteza gostaria de um
pouco de chá?
Ele se apoiou num cotovelo, bocejando enquanto seu cabelo caía
solto sobre os ombros.
— O que você está fazendo no chão? Levante-se, não há
necessidade de se ajoelhar. Quando nos conhecemos você não
teve toda essa cerimônia.
— Só porque eu não sabia quem você era. Vossa Alteza não deve
se aproximar das pessoas sem um anúncio, uma procissão, ou…
seja lá o que se costuma fazer. É muita desconsideração e
injustiça… — Fechei a boca, mas já era tarde. Ele tinha o dom de
me irritar.
Ele sorriu, parecendo inesperadamente satisfeito.
— Estou feliz que a pessoa que conheci no rio ainda esteja aqui.
Você parecia diferente um momento atrás. Estava muito…
reverente.
Mostrei os dentes cerrados, mais rosnando do que sorrindo.
— Chá, Vossa Alteza?
— Ah. Sim, por favor. — Então uma expressão estranha
atravessou seu rosto. — Você poderia pedir a alguém da cozinha
para prepará-lo? Não tenho certeza se conseguiria degustar sua
bebida “ímpar” uma segunda vez.
Presa entre o riso e a vergonha mortificante, corri para a cozinha,
refazendo os passos do dia anterior. Um aroma rico e saboroso
emanava das panelas de mingau e das frigideiras com bolinhos em
forma de meia-lua. Distraída, quase colidi com um criado que
carregava uma tigela fumegante de sopa. Ele me lançou um olhar
assustador, e sua boca já se abria para me repreender, mas alguém
agarrou meu braço e me puxou para longe.
Era uma garota com o manto roxo dos ajudantes de cozinha.
Suas bochechas tinham as curvas arredondadas de uma maçã e
seu cabelo preto estava enrolado em um coque.
— Melhor ficar fora do caminho dele. Ele acha que é melhor do
que o resto de nós porque serve à imperatriz. — Seus olhos
castanhos se voltaram para mim. — Eu sou Minyi. Você é nova por
aqui? Qual é o seu trabalho? A quem você serve?
Fiquei parada, surpresa com as perguntas, mas não detectei
malícia nela, apenas curiosidade e uma franqueza que me fez
lembrar de Ping’er.
— Príncipe Liwei — respondi.
— Ah, então foi você quem desagradou Sua Majestade Celestial.
Minha boca ficou seca; o cheiro de comida agora revirava meu
estômago. Como a notícia se espalhou rápido!
Ela deu um tapinha leve em minha mão.
— Não se preocupe. Sua Majestade Celestial desaprova quase
todos. Mas, diga, você ou Sua Alteza precisam de algo?
— Apenas café da manhã. E chá, para Sua Alteza — respondi, re-
compondo-me.
— Você quer alguma coisa? — perguntou ela.
Quando meu olhar se desviou para os bolinhos, ela deu uma
piscadela.
— Vou garantir que você receba uma porção especialmente
caprichada nesta manhã.
— Obrigada. — Curvei-me, mas ela me puxou para cima.
— Não é necessário. Você é a companheira de estudos do
Príncipe Liwei. — Ela passou a mão no queixo, refletindo. — Talvez
eu devesse me curvar a você.
— Por favor, não — respondi enfaticamente, antes de agradecê-la
mais uma vez e sair.
No quarto do Príncipe Liwei, ajudei-o a se vestir, segurando um
manto de brocado azul-celeste para ele. Ao redor de sua cintura,
amarrei uma faixa preta, na qual ele prendeu um ornamento
amarelo de seda e de jade.
Seu cabelo escuro escorria solto pelas costas e ele estava
sentado diante de um espelho, segurando um pente de prata.
— Pode me ajudar?
Hesitei antes de estender a mão para pegá-lo. Até então eu tinha
arrumado apenas meu próprio cabelo, no estilo simples, que não
exigia habilidade alguma. Na Mansão do Lótus Dourado, era Jiayi
quem tinha a tarefa íntima de vestir Madame Meiling. Passei o pente
pelos cabelos do Príncipe Liwei com movimentos rítmicos, e minha
mente trabalhava com ardor tentando se lembrar dos penteados
masculinos da Mansão do Lótus Dourado. Ele tinha mais cabelo do
que eu, sedoso e brilhoso, caindo pelas costas como ébano polido.
Encontrando um nó, cravei o pente mais fundo, arrancando alguns
fios acidentalmente.
Ele inspirou bruscamente, virando-se para mim com uma
expressão de dor.
— Xingyin, eu a ofendi de alguma forma?
O pente caiu de minha mão, fazendo barulho. Talvez eu tivesse
penteado o cabelo com mais vigor do que pretendia.
— Sinto muito, Vossa Alteza.
Com dedos hábeis, ele puxou o cabelo num coque liso, que enfiou
em um diadema de prata e prendeu com um grampo de jade
lapidada. Olhando para meus olhos por meio do espelho, ele
arqueou uma sobrancelha.
— Sente mesmo? Sente tanto que irá me ajudar com meu cabelo
todas as manhãs até acertar?
Isso era uma ordem? Recordando as regras de etiqueta, ajoelhei-
me em reconhecimento, mas ele estendeu a mão, colocando as
mãos sob meus cotovelos para me levantar.
— Xingyin, estaremos juntos todos os dias. Quando somos só nós
dois, não há necessidade de tanta formalidade. Você não precisa se
ajoelhar ou se curvar toda vez que eu disser algo, ou passará a
maior parte do dia com a cabeça no chão. E me chame apenas de
Liwei. Quando nos conhecemos, senti que não havia paredes entre
nós. Que você era alguém com quem eu podia falar livremente. Eu
queria que fôssemos amigos, se você também quiser — revelou ele
gentilmente.
Meus olhos colidiram com os dele. Que sorriso caloroso! Era
como se um raio de sol houvesse deslizado para dentro da solidão
de minha alma. Ele não era nada do que eu esperava de um
príncipe, mas muito mais. Eu me perguntei o que o criado-chefe
faria a respeito disso, não que importasse.
— Sim, eu quero — respondi.
Após nossa refeição matinal, partimos para nossa primeira aula.
Segui Liwei pelos corredores aparentemente intermináveis até um
grande jardim. Salgueiros graciosos cercavam um lago, e uma ponte
de madeira vermelha se arqueava sobre a água até uma pequena
ilha. Um único pavilhão fora construído sobre ela com um telhado de
pontas curvadas para cima, e telhas verdes vitrificadas misturavam-
se perfeitamente ao ambiente verdejante. Inspirei fundo o ar fresco,
tentada a me demorar ali, mas Liwei avançou por um portal circular
de pedra branca adornado com uma placa envernizada onde se lia:

CÂMARA DE REFLEXÕES
Um nome apropriado para um lugar de aprendizado, e eu
esperava estar à altura dele. Quando nos sentamos a uma mesa
comprida e pegamos nossos livros, olhei ao redor da sala. O piso de
mármore cinza, as vigas de madeira simples e os móveis esparsos
contrastavam bastante com o resto do palácio opulento. As
prateleiras estavam abarrotadas de pergaminhos e havia pilhas de
livros nas mesas que tinham sido empurradas até as paredes. As
altas janelas gradeadas davam para o jardim, e um ar frio entrava
na câmara.
Um imortal idoso entrou. Liwei sussurrou para mim que ele era o
Guardião do Destino dos Mortais e nos ensinaria a história dos
mundos. A barba branca ultrapassava sua cintura e sua mão
enrugada portava um cajado de jade.
Eu já tinha visto rugas assim antes, no rosto de Ping’er, quando
ela me colocava na cama nas noites em que minha mãe ficava
muito tempo na varanda. Meu dedo roçara as linhas nos cantos de
seus olhos.
— Ping’er, o que é isso?
— Uma marca dos anos — respondeu ela.
— Você é mais velha que mamãe? — Fiquei surpresa, pois minha
mãe aparentava muita seriedade e cerimônia.
— Uns cem anos a mais, pelo menos. Até a idade adulta, nossa
vida segue um padrão semelhante ao dos mortais. Depois disso,
nossas idades deixam de importar. Um imortal de mil anos de idade
pode ter a mesma aparência de um de trinta. O que determina
nossa juventude é a quantidade de força vital que temos.
Apoiei-me sobre um cotovelo, desperta pela curiosidade.
— Força vital?
— Isso mesmo. A essência de nossos poderes, que determina a
energia que pode ser canalizada em magia. Tenho essas rugas
porque não sou tão forte — revelou ela.
— Mamãe terá também? E eu? — indaguei.
— Só o tempo dirá. — Antes que eu pudesse perguntar mais,
Ping’er saiu apressada do quarto, fechando bem a porta.
Essa lembrança causou uma pontada em meu coração. Até a
chegada da imperatriz, aquela fora a primeira e a última vez que
Ping’er falou de magia para mim. Agora eu sabia os segredos que
ela guardara naquela noite, meus poderes selados. Essa descoberta
poderia ter me incomodado mais se eu tivesse tomado
conhecimento dela antes da visita da imperatriz. Porém, percebi que
isso não importava mais — não agora, depois que a tempestade
irrompera e me levara com ela, embora eu não fosse capaz de
ignorar a vontade de ter aprendido tudo isso antes, para talvez
poder ter feito algo para evitá-la.
O Guardião do Destino dos Mortais pegou um livro, folheando
suas páginas.
— Quantos anos ele tem? — perguntei a Liwei enquanto olhava
para os cabelos brancos como a neve do imortal.
O Guardião ergueu o olhar com uma expressão aflita.
— Não comente sobre a idade de outra pessoa. Isso é falta de
educação em todos os lugares, especialmente no Reino Mortal. —
Seu tom era severo, mas não indelicado, como se estivesse me
alertando sobre outros que poderiam se ofender mais facilmente.
Murmurei um pedido de desculpas apressado, mas, no momento
em que o Guardião desviou sua atenção, Liwei se inclinou para
perto de mim e sussurrou:
— Alguns imortais escolhem parar de preservar sua juventude.
— Porque nós preferimos preservar nossa sabedoria — retrucou
o Guardião. — Vossa Alteza, peço-lhe que seja um exemplo melhor
para sua companheira de estudos.
Assenti com seriedade, ignorando o olhar de Liwei. Embora eu
devesse admitir que parte da bronca que ele levou era culpa minha,
foi um alívio ouvir outra pessoa, e não eu, ser repreendida por sua
conduta.
Quando o Guardião do Destino dos Mortais saiu, um tutor veio
nos ensinar sobre as constelações e depois outro veio falar de
herbalismo. Eu estava me esforçando para ficar quieta durante a
longa aula, ministrada por um imortal carrancudo, de queixo pontudo
e ar pedante. Enquanto meus olhos passavam desatentos pelas
figuras de flores (todas elas estavam começando a parecer
idênticas) minha mão foi direto para a boca, abafando um bocejo.
O professor, talvez sentindo minha atenção se perder, se voltou
para mim.
— Xingyin, quais são as propriedades desta planta? — Seu tom
era áspero, e ele batia com uma bengala de bambu fina na página à
minha frente.
Corrigi a postura com muita rapidez, olhando fixamente para a
imagem de uma flor simples, com pétalas pontudas num tom azul
pastel. “Lírios das estrelas”, dizia o título. Infelizmente, não havia
nenhuma outra informação.
— Hum. — Olhei descontroladamente para Liwei. Ele arregalou
os olhos para mim, depois os fechou e deixou a cabeça cair para o
lado.
— Ela faz dormir! — gritei, pescando a dica dele.
O professor contraiu os lábios.
— Correto. Embora amarga, esta flor silvestre pode ser um
potente sonífero quando consumida com vinho.
— Obrigada — sussurrei para Liwei.
— Às ordens. — Um pequeno sorriso brincava em seus lábios.
Eu havia acabado de guardar os livros da última lição quando
notei um imortal de aparência sombria vindo em nossa direção; suas
botas faziam um barulho seco no chão de mármore. Seu rosto
magro não tinha rugas, exceto por uma bem profunda na testa, e
seu cabelo escuro estava preso num coque. Sua armadura era feita
de placas retas de metal branco brilhante com bordas douradas,
amarradas firmemente como escamas sobre seus ombros e peito,
chegando até os joelhos. Um tecido vermelho cobria seus braços e
se encerrava nos dois braceletes espessos de ouro que estavam em
seus pulsos. Uma larga tira de couro preto estava em sua cintura,
presa por um disco de jade amarelo. Havia uma grande bainha de
prata amarrada no flanco de seu corpo, da qual se projetava um
cabo de ébano. A aura que ondulava dele era tão firme e forte
quanto um carvalho robusto que viveu por anos a fio.
Um soldado Celestial, assim como aqueles dos quais Ping’er e eu
fugimos naquela noite. Um calafrio me tomou por inteiro e comecei a
fechar as mãos sobre a mesa.
— Por que ele está aqui? Aconteceu alguma coisa?
— O General Jianyun é o comandante de maior patente do
Exército Celestial. Ele veio nos instruir sobre táticas militares.
— Vossa Alteza. — Ele saudou Liwei com uma mesura. Quando
seu olhar se voltou para mim, a ruga em sua testa ficou mais
profunda.
— General Jianyun, esta é Xingyin — anunciou Liwei,
gesticulando em minha direção.
Curvei-me para o general, mas ele não respondeu. Sob seu olhar
penetrante, comecei a me mexer de inquietude pelas memórias que
sua presença evocava.
— Você se interessa por táticas militares?
Fiquei rígida por causa de seu tom afiado, enquanto me
atrapalhava tentando responder. Eu nunca havia dado muita
atenção aos grandes estratagemas das batalhas por domínio, glória,
poder e orgulho dos reinos. Meus desejos eram mais humildes,
menores. Tudo o que eu queria aprender era como me defender e
proteger aqueles que eu amava.
— Não sei ainda. Esta é minha primeira lição — respondi. Quando
sua expressão ficou fechada de desaprovação, uma fagulha de
rebeldia se acendeu em mim. — Tenho o desejo de aprender.
Porém, o interesse de um aluno também depende da habilidade do
professor.
Ele arregalou os olhos. Prendi a respiração. Ele me expulsaria da
aula? Com essa impertinência, talvez eu merecesse isso.
Para minha surpresa, o General Jianyun sorriu.
— Sua companheira tem a aprovação de Sua Majestade
Celestial? — indagou ele a Liwei, com falsa incredulidade.
— Minha mãe não se envolve em tais assuntos. — Foi tudo o que
Liwei disse, enquanto abria seu livro.
Embora o general estivesse com uma expressão desconfiada,
não falou mais nada sobre isso.
Ao meio-dia, minha cabeça latejava de tantas lições e minha mão
doía de tanto escrever. Quando fomos dispensados para a refeição
da tarde, fiquei feliz em fugir para a cozinha. Carregando a bandeja
cheia de comida, segui em direção ao pavilhão do lado de fora da
Câmara de Reflexões. Uma pequena placa pendia sobre ela,
pintada em grandes traços pretos com os caracteres:

PAVILHÃO DA CANÇÃO DO SALGUEIRO


— Que nome lindo! — exclamei sozinha.
Sobre a mesa de mármore, coloquei o peixe cozido no vapor, as
folhas tenras de ervilha-de-neve e o frango dos oito tesouros.
— E muito adequado — respondeu Liwei, colocando o dedo na
frente dos lábios.
Não entendi o que ele quis dizer, mas segui sua orientação de
permanecer em silêncio. Quando uma brisa soprou, os salgueiros
balançaram e seus galhos tocaram a água límpida. À medida que as
delicadas folhas farfalhavam umas contra as outras, o ar foi se
enchendo de sussurros suspirantes — uma melodia requintada,
embora melancólica. Isso me lembrava muito o vento que soprava
pelos arbustos de jasmim-do-imperador, o tilintar dos ornamentos de
jade de minha mãe…
— Você gostou das aulas? — perguntou Liwei, interrompendo
meu devaneio. Ele serviu um pouco de cada iguaria em meu prato,
em um desrespeito gritante à etiqueta.
— Gostei mais de algumas do que de outras — respondi,
lembrando-me da palestra tediosa sobre plantas e ervas. —
Especialmente da aula do General Jianyun.
— Achei que você ia dormir nessa.
— Por quê? As meninas devem apenas desenhar, cantar e
costurar? — indaguei, pensando nas lições de Madame Meiling e
nas aulas que tive com Ping’er.
— Claro que não. — Ele se inclinou para frente como se estivesse
prestes a transmitir alguma grande sabedoria, e sua entonação era
grave. — Que tal ter filhos? — Havia um brilho zombeteiro em seus
olhos.
Engasguei com um pedaço de frango que estava mastigando e,
para completar, Liwei começou a dar tapas em minhas costas a fim
de me desengasgar, o que foi um golpe a mais em minha dignidade.
Ansiosa para mudar de assunto, eu disse:
— Bem, eu não sei desenhar e você não gostaria que eu
cantasse.
— Você vai costurar minhas roupas?
— Não, a menos que você queira roupas com buracos onde não
deveria haver nenhum.
Seus dedos bateram na mesa contemplativamente.
— Então, você não sabe desenhar, cantar nem costurar. Que tal…
— Não! — exclamei, num tom mais alto do que queria, lutando
contra a onda de calor que subia por minha pele.
Ele ficou parado ali e me lançou um olhar de inocência.
— Eu só queria saber se você tocaria sua flauta para mim.
Flauta?, pensei, praguejando. Ah, essa minha mente errante.
— O que você achou que eu quis dizer? — Ele balançou a cabeça
negativamente, fingindo reprovação.
— Só isso. Nada além disso. — Agarrei-me à mentira.
— De que outra forma você poderia compensar por todas essas
coisas que não sabe fazer? Parece que são muitas, não é? —
Quando os lábios de Liwei se contraíram, suspeitei que ele estava
achando isso tudo divertido demais para meu gosto.
— Da mesma forma que você pode compensar as suas —
retruquei.
— As minhas? — Pelo visto ele sentiu a alfinetada. Uma parte de
mim se perguntou se alguém já havia falado com ele dessa maneira.
— Diga só uma.
— Seus modos — comecei a listar. — Seu senso de
superioridade. Seu hábito de interromper os professores. O fato de
você ficar falando coisas tão ultrajantes por mera diversão. Ah, e…
Liwei ergueu a mão, parecendo aflito.
— Uma já bastava.
Tentei manter um semblante sério, mesmo que o riso estivesse
borbulhando dentro de mim. Ah, como me sentia à vontade. Meu
coração estava mais leve do que estivera em meses.
— Além disso, não acredito que tocar música esteja incluído na
minha lista de deveres — acrescentei.
Ele pegou um pedaço brilhante de peixe branco, checando se
havia espinhas nele antes de colocá-lo em meu prato.
— Você não é muito amável.
Vesti meu sorriso mais doce para ele.
— Depende de como você pergunta. — Ele riu, mas depois
pigarreou. — Sinto muito por minha mãe ordenar a você que
também me servisse. Não precisa fazer isso. Sou perfeitamente
capaz de cuidar de mim mesmo quando quero.
— Eu não me importo, de verdade — respondi. — Estou feliz por
trabalhar para meu próprio sustento. E, se eu não servir a você,
alguém pode contar para Sua Majestade Celestial. — Ela adoraria
ter o menor pretexto para me enxotar dali, disso eu tinha certeza.
Parte de mim estava aliviada pela imperatriz não mostrar
generosidade, porque isso significava que eu não devia nada a ela.
E Liwei não me fazia sentir como se estivesse servindo a ele, mas o
ajudando. Uma pequena mudança, mas que fazia uma diferença
enorme para meu orgulho.
— Obrigado — disse ele, levantando-se. — Agora, precisamos
correr. Temos uma tarde inteira de treinamento pela frente.
Isso atiçou minha curiosidade.
— Que treinamento?
— Esgrima, arquearia, artes marciais. Se não for de seu
interesse, posso fazer com que você seja liberada — ofereceu-se
Liwei, acenando de forma magnânima.
Obriguei-me a respirar profundamente para conter a euforia que
corria em mim como a água que escorre por uma montanha depois
de uma forte chuva. Minha vontade aumentou após a aula do
General Jianyun e eu estava ansiosa para aprender mais sobre as
habilidades que poderiam me ajudar a ficar mais forte. Poderosa o
suficiente para resistir aos ventos da mudança ou mudar seu curso,
em vez de ceder diante da menor das brisas. Minha imaginação
alçou voo, totalmente livre, enquanto eu fantasiava sobre voltar para
casa e quebrar o encantamento que prendia minha mãe na lua…
Minha voz tremia de animação.
— Liwei, tocarei a flauta para você sempre que desejar – contanto
que não me faça ser liberada dessas aulas.
6

C anforeiras rodeavam um gramado enorme, sombreando todos


nós. Por todo o lugar havia soldados com armaduras brilhando em
branco e dourado. Comandantes gritavam instruções para suas
tropas — algumas lutavam com espadas, outras com lanças
adornadas por borlas vermelhas. Sobre um tablado de madeira,
fileiras de soldados seguiam os passos de um instrutor. Seus
movimentos eram como uma dança, graciosos e bem sincronizados,
embora muito mais mortíferos — foi o que pensei quando uma
mulher derrubou um soldado de costas no chão. Várias tábuas
foram montadas nas extremidades do campo para servir de alvo, e
os soldados praticavam arquearia atirando flechas nelas.
Enquanto eu os observava, um soldado disparou uma flecha —
ela cortou o ar, cravando-se bem no centro de uma tábua-alvo.
Totalmente deslumbrada, aplaudi até minhas mãos latejarem.
— Você se impressiona facilmente — disse Liwei.
— Você consegue fazer melhor? — retruquei.
— É claro.
A certeza em sua entonação me pegou de surpresa. Então o
General Jianyun apareceu, caminhando em nossa direção.
— Vossa Alteza, o que deseja praticar primeiro?
— Arquearia — respondeu Liwei imediatamente.
Ao comando do general, os soldados limparam as tábuas-alvo
redondas — cada uma delas tinha quatro anéis pintados, que
culminavam em um centro vermelho. Liwei foi até o suporte de
armas e escolheu um arco longo e recurvado. Quase sem fazer
esforço (aparentemente), ele encaixou a flecha no arco, puxou e
disparou no alvo. Antes que eu pudesse piscar, outra passou
zunindo por mim. Ambas perfuraram o centro, provocando baques
altos.
Olhei para a tábua, atordoada com sua precisão e rapidez.
— Pelo visto não era exagero seu.
— Eu nunca exagero — disse ele. — Quer tentar?
Estendi as mãos para o arco, mas as recolhi ao olhar de soslaio
para os soldados que nos cercavam. Eu nunca empunhara uma
arma antes, muito menos uma daquele tipo, que parecia exigir muita
precisão.
Liwei falou baixinho com o General Jianyun, que saiu com os
outros. Com apenas nós dois ali, fiquei mais aliviada. Ele me passou
um arco, menor do que o usado por ele.
— Madeira de amoreira. Boa para começar, é mais leve —
explicou ele.
Meus dedos formigaram quando tocaram a madeira envernizada,
fechando-se ao redor do punho revestido de seda. O arco não me
parecia estranho, era como se eu já o tivesse usado uma centena
de vezes antes. Será que era assim com meu pai, o maior arqueiro
que já existiu? Se minha mãe não tivesse tomado o elixir, se
tivéssemos permanecido no mundo de baixo, ele poderia ter me
ensinado a atirar como ele — embora eu duvidasse que pudesse
derrubar um sol, muito menos nove. Senti uma dor no peito, o que
era algo fútil, pois não havia remédio para isso. Nem mesmo todos
os desejos do mundo reuniriam minha família novamente.
— Xingyin, você está pronta? — gritou Liwei.
Assenti, movendo-me em direção ao alvo, mas ficando a certa
distância, como ele fizera. Liwei estava bem atrás de mim, guiando
minhas mãos enquanto eu erguia o arco.
— Respire fundo, usando todo o seu âmago. Ao puxar a corda,
aplique a força de seu corpo inteiro, não apenas dos braços. — Ele
tocou meus ombros e ergueu meu cotovelo direito. — Mantenha
uma linha reta. — Meus braços se esforçavam para sustentar a
posição e a corda machucava meus dedos. Finalmente satisfeito,
ele se afastou. — Ajuste a flecha até que a ponta se alinhe com o
alvo. Ao soltá-la, apenas a mão da ponta deve se mover; a outra
precisa ficar firme no punho. E não desanime se errar. É sua
primeira tentativa.
Algo fez a boca de meu estômago arder. Um desejo de me sair
bem, de fazer jus ao nome de meu pai, mesmo que ninguém
soubesse disso além de mim. Estreitei os olhos para focalizar o alvo
a distância. Todo o resto se transformou num borrão; a tábua
brilhava como um farol no escuro. Prendendo a respiração e
tentando ao máximo ficar totalmente imóvel, soltei a flecha. Ela
rasgou o ar, atingindo o anel mais externo do alvo com um baque.
— Acertei! — Uma emoção pura percorreu minhas veias.
Liwei bateu palmas, dando um sorriso.
— Você tem um bom professor.
— Rá! Serei melhor do que você em breve. — Sem vergonha
nenhuma, gabei-me em meio à euforia.
— Vamos fazer uma aposta? Daqui a três meses, teremos uma
competição. O perdedor terá de fazer as vontades do vencedor por
um dia.
— Já não tenho que fazer as suas todos os dias? — Consegui
dizer isso com uma expressão séria, não sei como.
— Sem reclamar, sem discutir, sem hesitar — acrescentou ele,
após um momento de reflexão.
— Mas sem nenhum pedido impossível — retruquei com uma
confiança renovada. E não podia recuar agora; ele zombaria de mim
sem pena.
— De acordo. — Seu sorriso ficou mais largo. — Está com medo
das coisas que posso mandar você fazer?
— Longe disso — rebati, com um sorriso igualmente largo. — Vou
gostar de dar ordens a Vossa Alteza.
— Você ainda não ganhou — lembrou ele, antes de ir em direção
aos soldados que treinavam com espadas.
— Nem você — murmurei para mim mesma.
Resolvi ficar perto dos alvos. Meus dedos coçavam para pegar o
arco novamente — para sentir aquela alegria pura no momento em
que a flecha se solta, a satisfação quando ela atinge o alvo.
Pegando outra, coloquei-a no arco, tentando me lembrar das
instruções de Liwei.
— Você não deveria ter aceitado essa aposta. Sua Alteza é um
excelente atirador — comentou alguém atrás de mim.
Minha concentração se quebrou, meu corpo estremeceu. A flecha
passou muito longe do alvo.
Dei meia-volta e vi que uma soldado Celestial me observava. Ela
era estonteante; tinha pele marrom clara, sardas no nariz e olhos de
raposa, com os cantos externos voltados para cima. Ao inspecionar
minha flecha enterrada sem cerimônia na terra, fez uma careta,
retorcendo os lábios carnudos.
— É, você definitivamente não deveria ter aceitado essa aposta
— repetiu ela.
Seria ela mais uma Jiayi, escondendo a malícia sob um verniz de
civilidade? Meneei a cabeça com frieza, talvez até com desdém.
— Obrigada pela preocupação, mas pode deixar comigo.
Achei que ela iria embora, mas em vez disso cruzou os braços.
Ela pretendia assistir, talvez esperando que eu me sentisse
humilhada.
Dei as costas para ela, desejando que saísse dali. Atirei outra
flecha. Ela atingiu a tábua, estremecendo ao atingir o anel mais
próximo do centro. Mesmo que provavelmente tenha sido uma feliz
coincidência e não fruto de minhas habilidades cruas, não pude
resistir e disse:
— Talvez seja Sua Alteza quem não deveria ter aceitado.
— Nada mal para sua terceira tentativa. — O elogio me pegou de
surpresa. Mais surpresa ainda fiquei quando ela pôs a mão sobre o
punho cerrado, inclinando a cabeça em um cumprimento para mim.
— Eu sou Shuxiao.
Minha mente ficou vazia; eu não estava acostumada a tanta
civilidade. Na Mansão do Lótus Dourado, nunca recebera tal
cortesia. Aqui, toda a atenção das pessoas se concentrava em
Liwei.
Ela inclinou a cabeça para o lado, talvez refletindo diante do
silêncio constrangedor. Apressadamente, retribuí a saudação. Ao
voltar à postura normal, pensei freneticamente em algo para dizer.
Falar do clima seria um tédio. Não tínhamos amigos em comum, ou
melhor, eu não tinha nenhum que pudesse ser assunto. Além disso,
eu não podia perguntar sobre a família dela, pois não podia falar da
minha.
— Você gosta de ser uma soldado Celestial? — consegui, por fim,
perguntar.
— E quem não gostaria? — respondeu ela, com uma expressão
séria. — É maravilhoso receber ordens na maior parte do tempo,
obedecer sem questionar, apanhar muito no treinamento e se sentir
sortuda quando não morre no meio de uma missão.
— Parece… terrível — falei, desconcertada.
— Calma, ainda não contei a melhor parte. Está vendo o que
temos que vestir? — Ela cutucou a armadura. — É mais pesada do
que parece, se é que isso é possível. E, quando andamos,
parecemos panelas e frigideiras batendo. Ainda bem que
aprendemos a abafar o som diante de nossos inimigos.
— Então por que você é militar? — Não pude deixar de perguntar.
Ela deu de ombros.
— Quem não gostaria de servir ao Imperador Celestial e a nosso
reino?
Aquele tom de voz era seriedade ou sarcasmo? Não fui capaz de
distinguir e decidi que seria mais sábio permanecer em silêncio
enquanto ela escolhia um arco da prateleira.
— Ouvi você estudando com Sua Alteza. Seus pais servem aqui
na corte?
Balancei a cabeça negativamente, movendo-me para o lado a fim
de lhe dar espaço, torcendo para que ela me perguntasse outra
coisa. Qualquer outra coisa.
Ela apontou o arco, ajustando a mira enquanto observava o alvo.
Sua flecha assobiou no ar, atingindo a placa perto do centro.
— Bom tiro — comentei.
Ela fez uma careta.
— Meu ponto fraco é o arco. Já pratiquei muito e ainda não
consigo acertar o centro. Prefiro espadas. Ou lanças. Ela olhou para
mim, não queria desviar do assunto de antes. — Você é uma
Celestial? Sua família é daqui?
Olhei para frente, fingindo concentração.
— Não tenho mais família. — A mentira aparecia com mais
facilidade agora, mas a vergonha ainda era uma brasa que ardia
com o mesmo vigor. Não havia muitas escolhas a não ser manter a
farsa, pois Liwei acreditava que meus pais haviam falecido.
Ela ficou quieta por um momento, antes de estender a mão para
dar um tapinha em meu ombro.
— Sinto muito. Tenho certeza de que eles teriam orgulho de você.
Senti um aperto no peito. Que pessoa horrível eu era por
conquistar a empatia daquela soldado com motivos dissimulados!
No entanto, que desejo desesperado eu tinha de que suas palavras
fossem verdadeiras! Não pude deixar de imaginar como minha mãe
se sentiria, agora que eu servia à casa do imperador que a havia
aprisionado.
— Os cortesãos estavam reclamando, pois uma “ninguém”
conquistou a vaga ao lado do Príncipe Liwei — acrescentou ela. —
Esse, em minha opinião, é o maior dos elogios. Como você
conseguiu?
— Sorte — respondi, com uma petulância que nem senti, ficando
irritada ao mesmo tempo. Eu não seria uma “ninguém” para sempre.
Eles saberiam meu nome um dia, e os de meus pais.
— E sua família? — perguntei, tentando não ser mais o assunto
da conversa.
— Nós somos Celestiais, mas meus pais não servem na corte.
Meu pai diz que é muito perigoso. Aqui é turbulento demais, todos
ficam brigando pelos favores reais. Ele prefere uma vida tranquila.
— Ela torceu o nariz, acrescentando: — Mas, com seis filhos, nossa
casa é tudo, menos pacífica.
— Seis?! — exclamei, totalmente surpresa.
— Não é tão horrível nem tão maravilhoso quanto você pode
pensar. Quando estamos de bem, meus irmãos e minhas irmãs são
os melhores amigos do mundo. Mas, quando brigamos… — Ela
estremeceu e suas feições formaram uma expressão aterrorizada.
— Talvez fosse até melhor seu pai escapar para a Corte Celestial,
no fim das contas — disse-lhe.
Um largo sorriso se esticou em seu rosto.
— Minha mãe não deixaria.
Pelo resto da tarde, praticamos juntas. Shuxiao, a caçula de sua
grande família, estava cercada de companhia desde o nascimento.
Sobre ela pairava um quê de vitalidade, um carisma natural bastante
cativante. Muitos soldados gritavam ou acenavam para ela enquanto
passavam. Alguns me incluíram em suas saudações, acreditando
que Shuxiao e eu éramos amigas.
E, depois desse dia, de fato nos tornamos amigas.
No fim do dia, meus dedos estavam cheios de bolhas. Meus
braços e minhas costas doíam. Eu não havia tocado em nenhuma
espada nem proferido qualquer sussurro mágico. No entanto,
quando saímos do campo, eu mal podia esperar para voltar.
No quarto de Liwei, separei os livros para nossas aulas do dia
seguinte. Quando ele voltou do banho, usava apenas um manto
branco curto sobre uma calça preta folgada. O cabelo comprido,
ainda úmido, pendia de suas costas. Eu esperava ser dispensada,
mas ele se sentou à mesa e me olhou com expectativa.
— Qual música você vai tocar?
Seu pedido anterior sumira completamente de minha mente. Eu
estava cansada, meus membros estavam doloridos, querendo muito
a cama e o sono, mas me sentei ao lado dele e peguei minha flauta.
Uma melodia cadenciada ondulou no ar, como o despertar da
primavera, como os rios congelados que derretiam e voltavam a fluir
repletos de vida.
Quando terminei, pus a flauta na mesa.
— É incrível como esse pequeno instrumento pode produzir tal
música. — Após um momento de hesitação, ele acrescentou: —
Essa música é mais alegre do que aquela que você tocou antes. Ela
reflete seu humor?
— Sim. Este foi um dos melhores dias de minha vida, e devo
agradecê-lo por isso. — Minhas palavras foram simples, mas
sinceras. Eu ainda sentia falta de minha casa, de minha mãe e de
Ping’er, mas não sentia mais que estava sozinha à deriva no mundo,
sem ter com quem contar.
Liwei pigarreou e as pontas de suas orelhas ficaram vermelhas.
Levantando-se, ele caminhou até a escrivaninha. Um pergaminho
pintado com a gravura de uma garota estava pendurado na parede
ao lado. Olhos escuros brilhavam em sua face perfeitamente oval.
Ela estava sentada sob cachos de glicínias em flor, segurando um
bastidor de bordar de bambu.
— Quem é ela? — perguntei.
Ele olhou para a gravura em silêncio por um momento.
— Ela morava no pátio perto do meu. Quando eu era criança, a
visitava com frequência. Ela era paciente, mesmo quando eu
embolava os fios que ela tecia em seus bordados.
Imaginei um jovem Liwei, totalmente travesso.
— Você disse “costumava”. O que houve com ela?
Uma sombra cobriu o rosto do príncipe.
— Um dia, fui ao pátio dela e não havia mais nada nem ninguém
ali. Os criados me disseram que ela havia se mudado. Ninguém
ousou dizer para onde ela foi.
Desejei poder aliviar sua tristeza. Ele se sentou à escrivaninha e
nela havia uma bandeja de materiais de desenho: algumas folhas de
papel em branco, uma grande pedra de tinta de jade roxa e um
suporte de sândalo do qual pendiam pincéis de bambu e de madeira
envernizada. Observei com curiosidade enquanto ele escolhia um
pincel, mergulhava-o na tinta brilhante e desenhava com pinceladas
hábeis. Depois de alguns minutos, ele me deu o papel.
— É para você — disse Liwei quando não fiz menção de pegá-lo.
Olhei para o papel. Meu rosto me observou de volta, uma
reprodução muito fiel, fitando o horizonte com os dedos
descansando na flauta. Minhas mãos tremiam quando peguei a
gravura.
— Você desenha muito bem — elogiei suavemente. — Mas não
precisa fazer isso toda vez que eu tocar flauta para você. Pode não
ser um dever meu, mas também não é uma permuta.
— De que outra forma eu poderia compensar por todas essas
coisas que não sei fazer? — indagou ele, com a expressão séria. —
Parece que são muitas, não é?
Eu ri, lembrando-me de nossa conversa anterior.
— Então vou aceitar este, mas só este.
Ele sorriu.
— Boa noite, Xingyin.
Levantei-me e lhe desejei boa noite. Quando me virei para fechar
a porta, deparei-me com Liwei ainda curvado sobre a mesa e com o
pincel na mão. Meu coração foi tomado por um calor inexplicável, e
dei meia-volta a fim de olhar para o céu.
Na noite clara e sem nuvens, a lua estava deslumbrante; não
havia bloqueio algum a sua luz. Enquanto eu caminhava para meu
quarto, do outro lado do pátio, seu brilho iluminou meu caminho,
mais intenso do que um fio cheio de lanternas.
7

M ergulhei em minha nova vida. Os dias foram se transformando


em semanas. Todas as manhãs, tínhamos aulas na Câmara de
Reflexões e à tarde treinávamos com o Exército Celestial. Minha
mente estava aberta para novos mundos e conhecimentos, mas era
o treinamento em campo que mais me deixava animada. Aprendi a
manejar uma espada com proficiência — cortar e estocar, bloquear
e aparar —, embora minhas habilidades não superassem as de
Liwei. Ansiosa para alcançá-lo, estudava as técnicas de luta até
tarde da noite, repetindo os movimentos no silêncio de meu quarto
até que executá-los fosse tão fácil quanto pegar a comida com meus
kuàizi ou soprar uma nota em minha flauta.
Às vezes eu me perguntava por que sentia tanta alegria quando
acertava uma flecha ou quando um oponente era derrubado por um
golpe bem encaixado. Seria porque antes eu era tão fraca que
minha força recém-descoberta me fazia ficar eufórica? Ou será que
esse desejo, essa vontade de vencer, sempre correu em minhas
veias?
Pensar em treinar meus poderes me enchia tanto de entusiasmo
quanto de pavor. Quando eu era criança, me imaginava conjurando
raios de fogo e voando pelos céus. Mas, depois das consequências
desastrosas de meu primeiro contato com a magia, eu adoraria
nunca mais mexer com ela novamente. Liwei teria me liberado
dessas aulas, porém um imortal sem magia é como um tigre sem
garras. Somos bem fortes fisicamente, mas também podemos
acabar virando mortais. Se eu quisesse ajudar minha mãe, tinha de
aceitar meu poder. E, embora isso me assustasse, uma parte de
mim também ansiava por isso.
Nossa instrutora, a Professora Daoming, era a guardiã do Tesouro
Imperial e de seu acervo de artefatos encantados. Parecia que ela
só usava mantos cinza-fosco, e seu cabelo preto vivia enrolado em
um coque apertado, do qual alfinetes de prata se projetavam como a
cauda aberta de um pássaro. Seus olhos arregalados eram da cor
de amêndoas, e sua pele pálida não tinha rugas nascidas do franzir
de sua testa, nem as que nascem de sorrisos.
Enquanto Liwei já havia progredido para feitiços avançados, eu
não tinha nenhum treinamento com magia. Nas primeiras semanas,
tudo o que a Professora Daoming me permitiu fazer foi meditar —
com instruções esparsas para manter os olhos fechados, a mente
vazia e o espírito “calmo como um amanhecer sem vento”. Pratiquei
esses exercícios com entusiasmo no início, imaginando a
descoberta de algum poder oculto ou atingir a iluminação, mas logo
me cansei de ficar sentada de pernas cruzadas no chão por horas a
fio. Sempre que a Professora Daoming via uma ruga aparecer em
minha testa, ou minha perna estremecer, ela batia em meu braço
com o leque, soltando orientações vagas, como:
“Limpe a mente de toda distração!”
“Tenha total consciência de sua energia!”
“Busque a luz na escuridão!”
Minha frustração só aumentava e eu cerrava os dentes, engolindo
a ira. Imaginava Liwei conjurando raios de chamas enquanto eu
estava sentada apanhando de leque.
Meditar, para mim, era particularmente exasperante. Na
arquearia, o objetivo era claro, e os resultados, instantâneos. Eu
sabia o que fazer para melhorar e como chegar lá. Porém a
meditação era uma coisa nebulosa e misteriosa. Um caminho com
infinitos destinos sinuosos, nos quais você pode passar horas
vagando e acabar no exato ponto em que começou.
Um dia, enquanto eu estava sentada, tentando ficar totalmente
quieta e não dormir, reparei que uma sombra pairava sobre mim.
Abri ligeiramente os olhos e me deparei com a Professora Daoming
imóvel a minha frente.
— Se você está preocupada em estar ou não fazendo certo, então
está tudo errado — suspirou ela.
Abri os olhos.
— Não sou muito boa nisso — admiti. — A meditação ajuda
mesmo? Tudo o que ela faz é me dar sono.
A Professora Daoming balançou a cabeça negativamente
enquanto se sentava ao meu lado.
— Ah, Xingyin. Acalmar a mente é uma habilidade crucial, que vai
além da magia. Em seus esforços, você é impaciente, precipitada,
apaixonada. Mais do que ninguém, precisa aprender a desprender a
mente de seus sentimentos. Firme os pensamentos e observe antes
de mergulhar. Quando as emoções nublam nosso ser, o que vem
depois é a catástrofe. — Ela alisou o roupão na altura dos joelhos.
— Na meditação não há um alvo, nem julgamentos. A chave está na
paz, na conexão e na unidade consigo mesma. — Ela fez uma
pausa. — Sinto que sua força vital é intensa. No entanto, ela foi
suprimida desde a infância, e é por isso que você tem problemas
para entender sua magia. Isso foi feito de forma grosseira e nunca
teria dado certo se você fosse mais velha e tivesse treinado de
maneira adequada. A meditação ajudará a quebrar o selo em sua
força vital, libertando suas habilidades. Mas somente se você
permitir.
Olhei para a Professora Daoming com a mente girando. Minha
mãe não queria que minha magia se fortalecesse. Ela e Ping’er
devem ter feito o possível para ocultar meus poderes e esconder
minha existência. Mordi o lábio com força. Minha mãe queria uma
vida tranquila para mim, uma vida feliz. Depois de décadas de
sofrimento e medo, ela deve ter pensado que a paz era o melhor
presente que poderia me dar. Talvez eu também quisesse isso, mas
então a chama de ser mais do que eu era, de ser tudo o que eu
pudesse ser, se acendeu em mim.
A Professora Daoming continuou:
— Você tem um grande potencial. No entanto, antes que possa
usar seus poderes, precisa entendê-los. Antes que possa lançar sua
energia, deve aprender como empunhá-la. Ouvi dizer que você é
boa arqueira. É possível atirar como você atira sem se tornar uma
só com o arco? — Ela tocou minha têmpora com delicadeza. —
Alguns conhecimentos pulsam em nossos corações, enquanto
outros são adquiridos pelo corpo e pela mente.
Suas palavras eram uma repetição das de minha mãe, uma lição
que eu deveria ter aprendido muito antes. Como dominava algumas
coisas com facilidade, ficava impaciente com as que não dominava.
Uma onda de emoções irrompeu dentro de mim — vergonha por
minha conduta, gratidão pela paciência da mestra. Ajoelhei-me e me
curvei em reverência, estendendo as mãos.
— Professora Daoming, peço seu perdão. Eu estava impaciente e
ressentida. Fui arrogante ao pensar que sabia tudo. A partir de
agora, prometo seguir suas instruções, aplicando todas as minhas
habilidades ao máximo.
Um sorriso encheu a face da professora com um acolhimento
repentino. Percebi, então, que ela era linda, mas não da mesma
forma que minha mãe. Era preciso observar mais de perto para ver
a graça de seus movimentos, a força de seu porte, a delicadeza de
suas feições. Sua beleza era mais silenciosa, mas, uma vez
desvendada, não menos luminosa.
— Fico feliz por ouvir isso. Meu leque já está ficando gasto. —
Sem dizer outra palavra, ela se levantou e foi embora.
Prendi o riso, mesmo ao esfregar o braço por instinto. Talvez a
Professora Daoming não fosse tão intimidadora quanto eu pensava.
E talvez eu não fosse uma aluna tão terrível quanto temia ser.

agora que não resistia mais às aulas.


PASSEI A PROGREDIR MAIS RÁPIDO
Mesmo assim, levou semanas até que eu ganhasse habilidade
suficiente em meditação para passar ao uso de meus poderes — o
que eu tanto desejava e tanto temia desde que saí de casa.
De acordo com a Professora Daoming, as luzes que vislumbrei
girando em mim eram minha energia espiritual. Mesmo que lançar
feitiços gastasse essa energia, tal qual a água que goteja de um
balde, ela poderia ser reabastecida no descanso e na meditação.
Sem ela, nossos corpos seriam iguais aos dos mortais e nossas
vidas, tão frágeis quanto as deles.
— Nunca esgote sua energia, Xingyin — advertiu a professora.
— Por quê?
— Tentar extrair mais energia do que você possui a deixará
incapaz de manter sua força vital, que é a essência de seus
poderes, a fonte de sua energia. — Ela falou devagar, assegurando-
se de que meu olhar estivesse fixo nela, pois queria ter certeza de
que eu estava prestando atenção. — Para um imortal, isso é a
morte.
Comecei a suar frio nas mãos. Sempre pensei que aprender a
usar minha magia me tornaria mais forte. O medo era uma coisa
distante, do passado. Nunca me ocorreu que usá-la também seria
perigoso.
— Como isso acontece? — perguntei.
— Na tentativa de lançar um feitiço muito poderoso, de canalizá-lo
por muito tempo, ou de desfazer algo que você não é capaz de
desfazer.
Meus pensamentos foram voando até minha mãe e o feitiço que a
prendia.
— Há encantamentos inquebráveis?
— Todos eles podem ser quebrados se você souber como. Se for
poderosa o suficiente. Se for a pessoa certa para fazer isso — disse
ela. — Não aconselho que lance seu poder no vazio e fique tão
vidrada nisso que não consiga parar.
Suspirei profundamente. Era possível, e era o que importava.
Depois eu daria um jeito de descobrir como.

, eu era incapaz de lançar até o mais simples feitiço — as


A PRINCÍPIO
luzes ainda não se deixavam alcançar. No entanto, com o passar
das semanas, cheguei mais perto até sentir uma agitação em meu
âmago, como um acorde inacabado prestes a compor a harmonia
de uma canção.
Certa noite, enquanto Liwei tomava banho, percebi que seu chá
havia esfriado. Embora ele não se importasse, era uma noite fria,
ideal para uma bebida quente. Fechando os olhos, procurei a
energia em meu interior — prateada e brilhante, cintilante como
poeira estelar. As luzes oscilaram quando estendi a mão, lutando
contra a força invisível que tentava me fazer recuar. O suor brotou
em minha testa, meus punhos se fecharam de tensão, mas eu
venci, libertando-me das amarras invisíveis e agarrando-me às
luzes. Por um momento, elas se debateram quando as capturei,
como as escamas escorregadias de um peixe que não quer ser
pego, mas então algo mudou profundamente em meu ser, dando-me
uma sensação de completude, como se eu finalmente tivesse me
conectado a alguma parte vital de mim mesma. Minha pele
formigava como se eu tivesse sido imersa em água gelada. Não foi
por acaso. As luzes ficaram imóveis, cedendo a meu comando, e
um fluxo de energia brilhante saiu da ponta de meus dedos em
direção ao bule. O vapor começou a sair do bico e a água
borbulhava com o calor. Dei uma risada, eufórica pelo sucesso de
meu primeiro feitiço.
Sob a orientação da Professora Daoming, aprendi a manipular
uma brisa, congelar gotas de chuva, conjurar escudos de proteção
e, sim, até mesmo conjurar os raios de fogo com os quais sonhava.
Muitos imortais optavam por não usar seus poderes para coisas
comuns, que são facilmente realizadas sem eles. Mesmo assim,
nesses primeiros dias eu praticava sempre que podia; nenhum
exercício era muito pequeno ou muito cansativo. Em certa ocasião,
sem pensar, conjurei um grampo de cabelo, que bateu no coque de
Liwei com mais força do que o esperado. Ele até moveu a cabeça
para trás, soltando o ar e sibilando, sobressaltado, embora sorrisse
ao olhar para mim. Eu não precisava mais tatear no escuro para
agarrar uma centelha luminosa — minha energia vinha
imediatamente a meu alcance e minha magia fluía sem limites.
Depois de vários meses de treinamento, a Professora Daoming
me levou ao jardim exuberante logo após a Câmara de Reflexões.
Era uma manhã sem vento e o lago parecia um espelho, totalmente
imóvel. Ela ergueu a mão e cinco esferas luminosas se formaram no
ar. Línguas de fogo saltaram de uma delas; de outra, saiu um jato de
água translúcida. A terceira continha um pedaço de terra cor de
cobre e, na quarta, rodopiava uma névoa espessa.
Fogo, Água, Terra, Ar. Os quatro Talentos Elementais da magia
que suas lições anteriores me ensinaram. Fitei o último globo, que
brilhava em um tom vermelho vivo.
— E esse, qual é?
— Magia da vida, para curar as feridas e as moléstias do corpo.
Um dos Talentos Intrínsecos. — Ela ficou um pouco mais séria e
seus lábios se contraíram em linhas finas.
— Um dos Talentos? Quais são os outros?
Ela me lançou um olhar severo, ignorando minha pergunta.
— Xingyin, qual é o mais forte dos Talentos Elementais?
Passei a palma da mão sobre as esferas e o calor dela se
misturava com a frieza das energias diferentes. Trechos das aulas
passaram por minha mente. A Terra pode extinguir o Fogo, mas o
Fogo pode abrasar a Terra. O Ar pode atiçar uma chama ou apagá-
la. Meus pensamentos entraram todos juntos em um labirinto de
contradições.
— Depende da força dos Talentos quando colocados uns contra
os outros — respondi, por fim.
As sobrancelhas da mestra se fecharam de imediato, formando
uma expressão carrancuda.
— A resposta está incompleta. — Baixei a cabeça, desejando ter
prestado mais atenção ao que ela disse nas aulas. Ela prosseguiu:
— Cada Talento tem seus pontos fortes e fracos. Todos os quatro
são igualmente poderosos. O que faz a maior diferença é o poder
dos conjuradores, sua força vital, que determina quanta energia está
à disposição e a habilidade com a qual a manejam. — Quando ela
passou a palma da mão sobre os dois primeiros orbes, o fogo
aumentou muito, engolindo a esfera de água. No momento seguinte,
a água jorrou, afogando as chamas. — Quem é forte o suficiente a
ponto de se especializar precisa, primeiramente, descobrir seu
Talento. A maioria dos imortais tem afinidade com um, talvez dois. O
Príncipe Liwei se destaca na Magia do Fogo e na Magia da Vida,
enquanto nosso imperador é um dos poucos mestres em todos os
Talentos, capaz até mesmo de canalizar o Fogo do Céu.
— Fogo do Céu? — repeti. Era a primeira vez que ouvia falar
sobre aquilo.
— É o relâmpago, quando manipulado por imortais. Uma magia
rara e poderosa. Não é um elemento em si, mas uma convergência
ímpar da magia de um ser. — Movendo brevemente o dedo, ela
acendeu as chamas. — Para alguns, o Talento é inato. Para a
maioria de nós, ele se origina de nosso ambiente natural; talvez
porque absorvemos inconscientemente a energia do que nos cerca.
Quem habita florestas e montanhas é mais hábil nas artes da Terra
e do Ar. Os Imortais da Fênix são adeptos da Magia do Fogo e os
Imortais do Mar lançam os mais poderosos feitiços de Água. Os
Talentos dos Celestiais sempre apresentaram elementos diferentes.
— Ela se virou para mim com uma expressão séria. — Qual será o
seu?
Fui varrida pela emoção. A Professora Daoming acreditava que
eu era forte o suficiente para avançar! A maioria dos imortais
possuía magia suficiente para lançar um repertório de feitiços
menores — acender fogueiras, curar ferimentos leves, conjurar uma
chuvarada. Porém, o verdadeiro poder reside na maestria de um
Talento e, para isso, é preciso ter bastante força vital. Dizia-se que
algumas magias avançadas eram tão poderosas que podiam
esgotar a energia de um imortal mais fraco mesmo sendo lançadas
apenas uma vez.
Orientada por ela, estendi a mão para os orbes brilhantes e liberei
minha energia em uma nuvem prata reluzente. As esferas da Terra,
do Ar e da Vida apagaram-se imediatamente. A do Fogo brilhou
mais intensamente, mas uma rajada de vento surgiu do orbe
translúcido, extinguindo as chamas antes que se espalhassem pelo
jardim. Os salgueiros se curvaram bruscamente, chicoteando o lago
e formando ondas.
Com um movimento da mão da Professora Daoming, o vento se
acalmou e parou. Seus lábios se curvaram em um sorriso raro,
enquanto meu coração batia como um tambor. O vento havia
causado destruição total no jardim, outrora tranquilo; folhas
dispersas cobriam o chão, árvores balançavam descontroladamente
e galhos de salgueiro quebrados eram arrastados pela água. Eu fiz
tudo isso?
— Seu Talento reside no Ar, mas você tem certa afinidade com o
Fogo — pontuou a Professora Daoming.
Em meio a minha total alegria, algo deu um puxão na ponta de
minha consciência, algo que havia sido ignorado mais cedo. Fiz um
gesto em direção às esferas brilhantes.
— Estes são todos os Talentos?
O rosto da mestra ficou sombrio por um instante.
— Está tarde. Você está dispensada — disse ela abruptamente.
Minha curiosidade guerreou com minha cortesia. Eu me curvei,
agradecendo pela aula. Então a pergunta explodiu de mim:
— Se a vida é um dos Talentos Intrínsecos, quais são os outros?
— É proibido. — Sem dizer outra palavra, ela se afastou.
Seu comportamento estranho apenas atiçou ainda mais minha
curiosidade, e isso pesou sobre mim durante o resto do dia. No
jantar, comi com pouco entusiasmo, mal sentindo o gosto dos
camarões fritos com pimenta-rosa.
— Não está com fome? — perguntou Liwei, com os kuàizi
apoiados sobre a tigela.
Hesitei. A professora Daoming disse que era proibido, mas… ele
era o único que poderia me revelar isso.
— Além da Vida, quais são os outros Talentos Intrínsecos? — Ele
ficou quieto por tanto tempo que pensei que também me deixaria no
escuro. — Não podemos nem mesmo falar sobre isso? — Meneei a
cabeça. — Esqueça que eu perguntei. Não quero que você diga
nada que não deveria.
Ele baixou os kuàizi , tamborilando com os dedos na mesa em um
ritmo inquieto.
— Há apenas mais um: a Mente, que costumava estar entre os
Talentos mais poderosos. No entanto, séculos atrás, meu pai e seus
aliados condenaram essa magia e a baniram em todo o mundo.
Enchi o bule com água quente, deixando o chá em infusão antes
de despejá-lo em nossas xícaras.
— Por que ele fez isso?
— Surgiram relatos aterrorizantes sobre as práticas dos Talentos
da Mente; que seus adeptos bebiam sangue de mortais e se
banqueteavam com a carne de crianças para sustentar sua magia,
que seus poderes haviam deformado totalmente suas verdadeiras
formas, transformando-os em coisas irreconhecíveis. — Ele franziu
a testa. — Talvez sejam só rumores. Afinal, eles são imortais como
nós. O que sabemos com certeza é que há uma diferença marcante
em seus olhos: eles brilham como pedras lapidadas.
— O poder deles era mesmo mau? — perguntei.
— Alguns Talentos da Mente podem obrigar as pessoas a
executar ordens contra sua vontade. Um ato hediondo. Imagine ser
forçada a atacar alguém? A machucar seus entes queridos?
Essa ideia me deu calafrios.
— Como isso é possível?
— Felizmente, poucos são realmente capazes disso. Quanto
maior for a força vital de uma pessoa, mais difícil é controlá-la, pois
requer mais esforço. Um imortal habilidoso no Talento da Mente só
pode controlar outro imortal poderoso por um curto período. — Uma
sombra atravessou seu rosto. — Mesmo que isso aconteça apenas
uma vez, já é um limite que não se deve cruzar. Ainda que seja
apenas por um momento, a vida de alguém pode ser destruída. A
prisão da mente é muito pior que a do corpo.
— Muitos imortais têm esse poder? Por que não nos falam dele?
— Porque meu pai não gosta que se comente sobre isso.
Ademais, é uma habilidade rara, nem ele a possui.
Parte de mim não pôde deixar de se perguntar se era por isso que
o imperador odiava essa magia. Por não conseguir entender, por ser
o único Talento que lhe escapava. Mas enterrei tais pensamentos,
indisposta a dizê-los em voz alta. Não importava a afinidade que eu
e Liwei tínhamos, eu não podia me permitir esquecer que ele era o
filho do Imperador Celestial.
Ele prosseguiu:
— A maioria dos praticantes veio da Muralha das Nuvens, que
antigamente era um domínio de nosso reino que fazia fronteira com
o Deserto Dourado. Quando a proibição foi anunciada, alguns se
ofereceram para selar seus poderes e vir morar em nossas terras.
No entanto, a maioria se recusou.
— Deve ser difícil sacrificar anos de estudo e de treino —
arrisquei opinar, pensando em meus próprios esforços para dominar
apenas algumas habilidades.
— Quem veio foi bem recompensado. Um oportunista ambicioso
incitou os Imortais das Nuvens a se rebelar, um esquema para
tomar o poder e se declarar rei. Depois que eles proclamaram a
separação de seu reino, meu pai queimou os pergaminhos antigos
de sua magia, enterrando suas cinzas no fundo dos Quatro Mares.
Uma dura retaliação.
— Isso pôs um fim a tudo? — indaguei.
— Infelizmente, o Rei da Muralha das Nuvens recuperou as
cinzas e reconstruiu os pergaminhos. Ele estava enfraquecido, mas
aprendeu sabe-se lá qual arte das trevas e conseguiu novos
poderes que superaram os antigos. Com alianças recém-feitas com
os Mares do Norte e do Oeste, ele declarou guerra contra nós. As
perdas foram catastróficas, milhares de imortais morreram; até que,
finalmente, foi feito um acordo de trégua. No entanto, meu pai jurou
que nenhum Imortal das Nuvens entraria novamente no Império
Celestial.
Puxei na memória tudo o que Ping’er havia me contado sobre os
oito reinos do Reino Imortal. Não houve menção à Muralha das
Nuvens.
— A Muralha se tornou parte de outro reino?
Ele fez uma pausa.
— Agora é conhecida como o Reino dos Demônios.
Engasguei-me com o chá, tossindo e cuspindo, enquanto Liwei
me passava um lenço para limpar o queixo. Diziam que o Reino dos
Demônios era uma terra de névoa e neblina, lar de feras temíveis,
monstros e feiticeiros malignos. De alguma forma, era mais fácil
desprezá-los antes de perceber, como Liwei havia dito, que eles
eram como nós.
Minha mente girava com tudo o que havia aprendido. Não pude
deixar de perguntar:
— Você concordou com o que seu pai fez?
Ele fez uma careta.
— Segundo meu pai, não pode haver respeito sem medo. Para
ser um líder poderoso, é preciso governar com mão de ferro,
esmagar a resistência com uma força ainda maior. Para ele, eu sou
uma decepção; meu pai me repreende por ser muito bonzinho. Mas,
não importa o que ele faça, não posso mudar quem eu sou.
— E o que ele faz? — Um frio subiu em meu estômago. Eu nunca
tinha visto Liwei parecer tão perturbado antes.
Seus dedos se fecharam em punho sobre a mesa. Quando ele
falou, foi em voz baixa.
— Ele só quer o melhor para mim. Mas, quando chegar minha vez
de assumir o trono, não governarei como ele.
Estendendo a mão, toquei seus dedos cerrados para confortá-lo.
Tudo o que eu sabia sobre esses assuntos, aprendi em nossas
aulas — o que eu estudava nos textos, as histórias de grandes reis
e rainhas, tanto mortais como imortais. Porém, eu tinha certeza de
uma coisa: o Império Celestial — qualquer império — seria mais
próspero sob o comando de um governante com mente e ouvidos
bem abertos, em vez de um soberano que exigisse obediência
incondicional.
Eu não tinha afeto algum pela Imperatriz Celestial e muito menos
pelo imperador que aprisionara minha mãe, embora nunca o tivesse
conhecido. Pelo que aprendi com os rumores e também sozinha,
Liwei não era nada parecido com os pais. Ao contrário de muitas
pessoas em posições de poder, ele não tinha prazer em impor sua
vontade ou em deixar os outros para baixo. Também nunca se
mostrava superior em relação a mim, ao contrário de muitos. Ele
passava de amigo risonho para instrutor paciente e, qualquer que
fosse o papel que assumisse, seu cuidado e sua consideração me
acolhiam. Sempre que debatíamos sobre nossas aulas ou
lutávamos em treino, ele me motivava a melhorar, nunca me dando
vantagens que eu não merecesse. Todas as noites eu ia para a
cama dolorida e exausta, mas meu coração reluzia por ser tratada
como sua semelhante.
Eu me destacava mais na arquearia — fosse usando o arco curto,
que era mais leve e rápido, ou o longo, que conferia maior precisão.
Em pouco tempo alguns comandantes instruíram suas tropas a me
observar enquanto eu treinava. A presença deles me deixava
nervosa; eu tinha medo de parecer idiota derrubando minhas flechas
ou errando o alvo. Contudo, no momento em que colocava a flecha
em meu arco e a puxava, uma calma se espalhava por mim. Talvez
meu controle sobre minhas emoções tivesse melhorado com as
lições da Professora Daoming, embora ainda estivesse longe da
perfeição.
Certa tarde, cheguei à estação de arquearia e me deparei com um
arranjo diferente: apenas dois alvos a distância. Liwei estava parado
ali, com um arco em cada mão. Um pouco atrás dele estava o
General Jianyun com um pequeno grupo de soldados, e Shuxiao
entre eles.
— Já se passaram três meses. Esqueceu? — gritou Liwei.
Meu ânimo foi ao chão quando me lembrei de minha aposta
imprudente. Mesmo assim, abri um sorriso brilhante quando peguei
o arco que estava com ele.
— É claro que não. Quais são as regras?
— Três flechas para cada? — propôs ele. — Vence quem marcar
mais pontos.
Assenti em aceitação, indo para trás da linha. A flecha dele
assobiou ao voar em direção ao alvo, mas desviei o olhar. Seus
disparos eram uma distração, e eu não me daria àquele luxo.
Mantendo a atenção no alvo, atirei a primeira flecha, perfurando-o
bem no centro. A segunda seguiu o rastro da primeira, entrando no
olho vermelho da tábua. E a última flecha partiu a segunda bem no
meio. Tendo feito três disparos perfeitos, minha confiança
aumentou, até que vi a tábua de Liwei: um espelho da minha.
O General Jianyun franziu a testa, incapaz de decidir o vencedor.
Ele foi até o suporte de armas e pegou um disco de argila, não
maior que meu punho.
— Nossos arqueiros avançados usam isso para praticar suas
habilidades. Quando o disco for lançado no ar, irá bem longe. O
primeiro que o acertar será o vencedor.
Resmunguei internamente. Eu não tinha muita experiência com
alvos móveis.
— Talvez isso seja muito difícil para Xingyin — disse Liwei.
O orgulho levou a melhor sobre mim.
— Tudo bem — declarei, brevemente, encaixando uma flecha em
meu arco.
O General Jianyun lançou o disco para o alto. A peça cortou os
ares, mais veloz do que o esperado. Pisquei — um curto instante de
hesitação — e minha flecha voou em direção ao disco… enquanto a
flecha de plumas douradas de Liwei estilhaçava o barro.
Reprimi o desânimo. Foi uma disputa justa.
— Você ganhou — disse, aceitando o resultado.
— Vou cobrar meu prêmio amanhã. — Ele abriu um sorriso para
mim, o que me fez ficar arrepiada. — Se passasse mais um ou dois
meses, eu não seria capaz de vencê-la. Da próxima vez, escolha
melhor o momento de suas batalhas!
Enquanto Liwei caminhava para fora do campo, fiquei encarando
suas costas com raiva, não me importando mais com a dignidade de
ser boa perdedora.
Shuxiao me deu um tapinha no ombro.
— Foi por pouco. Por um momento, pensei que você o tinha
derrotado, mas esses alvos voadores são complicados. Eu erro
metade dos meus.
— Por pouco não é bom o bastante.
Ela fez uma careta.
— Você é muito dura consigo mesma. Ele venceu hoje, mas você
começou a treinar há poucos meses.
Um pouco animada por suas palavras, fitei o General Jianyun.
Sua cabeça estava inclinada para o lado, com um brilho avaliador
nos olhos enquanto examinava os alvos.
— General Jianyun, posso tentar novamente com o disco?
Eu não perderia novamente.
8

A cordei com alguém batendo forte à minha porta.


— Xingyin, você está acordada? — chamou Liwei do lado de fora.
Grunhi. Meus membros e olhos ainda estavam pesados de sono.
— Volte quando o sol nascer!
— Não. — Ele parecia entusiasmado demais. — Devo lembrá-la
de nossa aposta?
Olhei feio para a direção em que ele estava, o que era inútil, já
que ele não podia me ver. Eu estava muito tentada a deixá-lo
esperando do lado de fora enquanto ficava na cama e o ignorava,
mas isso seria petulante e sem sentido. Além de ele ser o Príncipe
Herdeiro , eu dera minha palavra. Chutando as cobertas para o lado,
levantei-me e lavei o rosto com água fria — estava com tanto sono
que nem pensei em esquentá-la — antes de vestir um manto de
seda e prender o cabelo num coque baixo. Quando saí, vi Liwei
encostado na parede, batendo o pé com impaciência. Ele vestia
roupas simples de brocado cinza e seu cabelo estava preso com
uma fita preta.
Estava escuro lá fora, exceto pelas lanternas de pau-rosa acesas.
Nem mesmo os ajudantes da cozinha haviam se levantado para
preparar a refeição matinal.
— Para onde vamos? — indaguei enquanto corríamos pelo pátio.
— Para fora do palácio. Não temos aulas esta manhã, pois
nossos professores irão à corte para uma audiência com meu pai.
Até o General Jianyun nos liberou hoje, por causa do retorno do
Capitão Wenzhi, que estava em batalha.
Fiquei ainda mais atenta. O Capitão Wenzhi era um dos
guerreiros mais jovens e mais célebres do Império Celestial. Os
soldados falavam com tanta reverência de seus feitos e de sua
habilidade com a espada e com o arco que despertaram minha
curiosidade. Infelizmente, muitas vezes ele estava em missão, para
o desespero de seus muitos admiradores — e, quando ele voltava,
nunca era por muito tempo. Eu mesma esperava encontrá-lo
pessoalmente no campo de treinamento, e parte de mim estava um
pouco desapontada por perder essa chance.
No entanto, fiquei arrepiada ao pensar em deixar o palácio,
enquanto seguia Liwei até um pátio deserto cercado por um grosso
muro de pedra. Um pulso de sua energia deslizou sobre minha pele,
tão quente quanto uma brisa ensolarada.
— Estou disfarçando nossas auras — explicou ele. — Sem isso,
os guardas sentirão que eu saí.
Pelo comportamento furtivo de Liwei, essa não era uma saída
oficial. Não era de se espantar, então, que não tenhamos ido para a
entrada principal, pois ele não tinha permissão para sair sem a
comitiva habitual de guardas e criados. Somente depois de assumir
seus deveres na corte ele poderia ir e vir como quisesse.
Tomada pela curiosidade, perguntei:
— Como é minha aura? Posso sentir a sua e a de quem está ao
meu redor, mas não a minha.
Ele olhou para mim atentamente e fiquei tensa de expectativa.
— Chuva — disse ele, finalmente.
— Chuva? — repeti, sentindo-me como um balão murcho. Parecia
uma coisa triste e totalmente sem graça, sem um pingo de ânimo.
— Uma tempestade prateada; feroz, implacável, indomável.
As palavras de Liwei me aqueceram de modo inesperado. Ele
sorriu.
— Gostou dessa definição?
Minha breve satisfação foi abruptamente apagada.
— Só se você estiver falando sério.
— Tudo o que eu falo é sério. Talvez seja por isso que eu
desagrado tanto meu pai. — Ele parecia desanimado agora; seu
jeito zombeteiro se fora.
Tentando melhorar seu humor novamente, perguntei:
— Seu plano para sair daqui conseguirá fazer com que
atravessemos a parede?
— Claro que não. Tenha paciência. — Concentrado, ele apertou
os olhos e o ar ao nosso redor brilhou mais uma vez. Uma rajada de
vento surgiu, erguendo-nos em pleno ar. Meu coração foi parar na
boca, e meu estômago deu um nó quando fomos arremessados por
cima do muro; então aterrissamos às margens de uma grande
floresta.
Cambaleei, agarrando-me a uma árvore. Minha respiração ficou
breve e rápida. A sensação de vazio, de queda livre, trouxe
lembranças indesejadas. O pânico do momento em que saltei da
nuvem de Ping’er.
Liwei olhou para mim.
— Você está tremendo. Qual é o problema? — Incapaz de falar,
agachei-me, levando as mãos à cabeça.
Ele havia me apressado a manhã toda, mas agora estava sentado
ao meu lado, em um silêncio confortável. Seu braço deslizou sobre
meus ombros, puxando-me para ele. Inspirei profundamente,
sentindo seu cheiro — era como a grama de primavera, um aroma
fresco com um toque doce.
Lentamente, seu calor foi se infiltrando em meu corpo trêmulo até
que eu estivesse firme novamente. Sentindo sua proximidade,
afastei-me, com as mãos nos joelhos, tentando não pensar no frio
causado pela ausência de seu toque.
— Estou bem. Não precisamos mais ficar aqui sentados — sugeri.
— O que houve? — perguntou ele gentilmente.
— Eu… não gosto de cair. — Um pedacinho da verdade, que não
valia nem um terço dela.
Ouvi passos, cada vez mais altos. Seriam guardas patrulhando a
área? Pegando minha mão, Liwei me ajudou a ficar de pé e
corremos para a floresta.
— Foi assim que você saiu quando o vi pela primeira vez? —
perguntei enquanto corríamos. Após os meses de treinamento,
percebi que era fácil acompanhar seu ritmo.
— Sim. Eu estava curioso sobre quem seria minha companhia.
Queria passar muito tempo com essa pessoa e queria ter certeza de
que ela não era irritante, péssima ou chata. Eu já havia visitado seis
casas antes da Mansão do Lótus Dourado.
— Por que você criou a competição? — indaguei, curiosa.
— É difícil fazer amigos – amigos de verdade – no Palácio de
Jade. — Esse comentário direto me pegou de surpresa. Inúmeros
cortesãos e nobres competiam pela atenção do príncipe. Parte de
meus deveres incluía inspecionar os presentes e os convites que
jorravam todos os dias para dentro do Pátio da Tranquilidade
Eterna. Liwei ignorava a maioria, preferindo ler ou pintar em seu
quarto a participar de qualquer banquete.
— Às vezes, eu me pergunto — prosseguiu ele, em voz baixa —,
quantas pessoas gostariam de ter minha amizade se eu não fosse
filho do imperador. É uma posição que ganhei sem fazer nada.
Eu gostaria .
As palavras saltaram para minha língua, mas eu não conseguia
pronunciá-las em voz alta. Soava como bajulação vazia, mas não
era nada além da verdade. Quantas vezes eu desejei que ele não
fosse o filho do Imperador Celestial e que eu não precisasse mentir
sobre quem eu era para manter meus entes queridos a salvo?
— Com o concurso, eu esperava conhecer alguém novo, uma
pessoa não corrompida pela ambição ou pela ganância. Minha mãe
me atrapalhou com as condições que impôs, mas, felizmente, eu
conheci você.
Foi a primeira vez que ele me contou por que havia me ajudado
na competição.
— Pensei que você tinha me ajudado por pena — confessei, com
uma pontada de vergonha. Eu não merecia a empatia de Liwei; fiz
ele pensar que minha família estava morta. No entanto, como eu
poderia tê-lo corrigido sem contar mais mentiras?
Um sorriso iluminou o rosto dele.
— Eu a ajudei porque gostei de você. Você fala o que pensa, tem
orgulho de si mesma. É honesta sobre o que quer e destemida para
correr atrás disso. Você não finge ser outra pessoa perto de mim.
Isso era verdade quando você não sabia quem eu era, e continua
sendo verdadeiro até hoje.
O brilho em meu peito foi apagado pela culpa. Eu me vi incapaz
de suportar seu olhar. Eu estava fingindo ser outra pessoa, desde o
início. Estava sendo eu mesma, mas não quem ele pensava que eu
era.
Alheio ao meu desconforto, ele continuou:
— Quando estou com você, sinto que você me vê por quem sou,
não a coroa, nem o império. Nem os favores que posso conceder ou
negar. — Ele soltou um suspiro exageradamente pesado. — Mal
sabia eu no que estava me metendo. Toda noite eu vou dormir
cansado de seus golpes, com seus insultos ecoando em meus
ouvidos…
— Parece até que você não merece! Você praticamente pede por
eles! — respondi. — Lembrando que é você quem insiste em treinar
luta dia e noite comigo. — Ignorei a mão que ele estendeu para
mim, olhando para ele em vez disso.
Liwei pigarreou com força.
— Lembrando que agora é você quem tem uma aposta a honrar.
Engolindo uma seleção de vários insultos, peguei a mão dele.
Quando seus dedos fortes se fecharam ao redor dos meus, tentei
reprimir o aumento repentino de meu pulso.
Caminhamos pela floresta, parando apenas ao ouvir vozes. O ar
zumbia com as auras misturadas dos imortais, como se estivesse
vivo.
— Chegamos. — Ele foi me puxando em meio às árvores até
chegarmos a uma grande clareira.
Havia dezenas de barracas amontoadas em espiral, como a
estrutura de uma concha. Elas eram feitas de madeira laqueada em
vermelho, preto, azul e amarelo, com placas pintadas no topo.
Iguarias desconhecidas e tentadoras exalavam aromas de dar água
na boca, e havia uma vibração animada na multidão que já aparecia
para comprar coisas, mesmo que fosse muito cedo.
— Que lugar é este? — perguntei, ofegante, em tom de
admiração.
Ele parecia satisfeito com minha reação.
— Esta feira é montada uma vez a cada cinco anos. Começa ao
amanhecer e termina ao meio-dia. Imortais vêm de todas as partes
trocar bens, itens mágicos ou quitutes raros.
Conforme avançávamos clareira adentro, cabeças se voltavam
para Liwei como flores ao sol. Mesmo sem os trajes régios, seu
porte e sua aparência chamavam a atenção. Quando o Príncipe não
deu atenção a eles, os olhos da multidão se viraram para mim —
estreitos, vislumbrando boatos, arregalados, revelando surpresa.
Éramos um par que não combinava, mas de que me importavam as
opiniões que eles deixavam à mostra de forma tão escancarada
quanto os enfeites em seus cabelos? Nada poderia diminuir meu
entusiasmo nem minha alegria por estar ali com Liwei naquele dia.
Enquanto passávamos pelas barracas, os comerciantes gritavam
em voz alta para atrair possíveis fregueses:
— Amuletos encantados!
— Lichias do Reino Mortal!
— Rubis do Vale do Fogo!
Os fregueses trocavam bens próprios — de gemas e pérolas
cintilantes do tamanho de meu polegar a sachês de ervas
aromáticas e anéis feitos de metais preciosos — pelas mercadorias.
Eu teria parado por muito tempo em todas as barracas, mas Liwei
me apressou.
— Temos apenas algumas horas até o mercado fechar. As coisas
mais raras ficam perto do centro — explicou ele.
— Chá da Montanha Kunlun! — anunciou uma jovem enquanto
oferecia copos aos que passavam. O aroma de seu chá era tão
perfumado que ela logo atraiu uma longa fila de fregueses; entre
eles, eu e Liwei.
Kunlun era uma cordilheira de grande energia mística que ficava
no mundo de baixo. Era o único lugar no Reino Mortal onde os
imortais podiam morar, desde que se mantivessem ocultos. As mais
raras plantas e flores cresciam ali, cultivadas pela harmonia ímpar
das energias mortal e imortal. O chá era maravilhoso — saboroso e
aromático, com uma pitada de amargor que só realçava seu sabor.
Liwei tirou um anel de jade e o trocou por vários saquinhos de seda
contendo o chá.
— Por que o anel? — perguntei. — Por que joias, ervas e coisas
assim?
— Alguns itens servem apenas como enfeite, o resto possui
propriedades ou poderes especiais. Esses anéis, por exemplo — ele
levantou a bolsa —, cada um deles contém um fragmento de
energia que pode facilitar o lançamento de feitiços.
Uma barraca chamou minha atenção: estava cheia de conchas.
Algumas eram do tamanho de meu punho; outras, do tamanho de
minha unha. Suas cores variavam do branco puro ao azul, e
algumas tinham o rubor de uma pétala de lótus.
— Essas conchas são encantadas para capturar seu som favorito,
melodia ou até mesmo a voz de um ente querido. Elas foram
recolhidas nas águas mais profundas do Mar do Sul — disse o
vendedor com orgulho.
Mar do Sul, o lar de Ping’er. Peguei uma linda concha branca,
passando o dedo por seu contorno curvado. No entanto, sem ter
nada para trocar por ela, devolvi-a. Ao meu lado, Liwei puxou um
anel de jade vermelho, oferecendo-o ao vendedor. Puxei seu braço
para trás, pois não queria que ele a comprasse para mim.
— Você trocaria a concha por uma música? — perguntei ao
comerciante. — Eu poderia tocar uma música que ficasse gravada
nelas, o que aumentaria o seu valor.
— Você toca bem? — O olhar dele mudou, vasculhando a
multidão em busca de fregueses menos problemáticos.
Antes de perder completamente sua atenção, peguei minha flauta
e toquei uma melodia animada. Uma das preferidas de minha mãe,
que representava a chuva caindo em uma floresta de bambu.
Quando a música terminou, fiquei surpresa ao ver que havia um
pequeno grupo de pessoas ao meu redor, algumas segurando uma
pedra colorida ou um anel de prata. Antes que eu pudesse recusar,
o vendedor de conchas pegou todos os itens das mãos deles. Com
gestos hábeis, ele embrulhou a concha branca que eu queria,
colocando-a na palma de minha mão junto com metade das
mercadorias que ganhei e depois colocou o resto em sua própria
bolsa.
— Foi um prazer fazer negócios com você — exclamou ele,
piscando para mim.
Fiquei boquiaberta e Liwei me deu um tapinha nas costas.
— Você deveria montar uma barraca aqui da próxima vez —
sugeriu ele, em um tom brincalhão.
Sorri.
— E o que você faria? Sentaria ao meu lado e venderia suas
gravuras?
Ele inclinou a cabeça para o lado, e seus olhos brilhavam.
— Talvez. Poderíamos viajar pelo reino, parando onde
quiséssemos e partindo quando ficássemos entediados. Seria uma
vida boa.
— Sim, seria.
As palavras saltaram antes que eu me desse conta. Impossível ,
sussurrou uma voz em minha mente, não me dizendo nada que eu
não soubesse. O Príncipe Herdeiro Celestial não estava destinado a
tal vida, livre de responsabilidades ou deveres. E como essa vida
errante ajudaria minha mãe? Como eu poderia abandoná-la à
solidão e à prisão enquanto satisfazia meus impulsos egoístas?
Um instante de silêncio nos atravessou e o ar ficou espesso com
uma tensão repentina. A fim de distraí-lo, levantei a mão para
mostrar-lhe meus ganhos: um par de anéis de prata, duas gotas de
âmbar e uma pedrinha azul.
— Vamos tomar café da manhã — sugeri, fingindo ter esquecido
as palavras que dissemos antes.
Compramos lichias frescas, bolinhos crocantes de cebolinha e
bolos de amêndoas, comendo-os enquanto andávamos pelo
mercado. Nossos dedos estavam grudentos com uma camada de
óleo, açúcar e migalhas quando começamos a descascar a casca
vermelha e escamosa das lichias, cuja polpa transparente era mais
doce que mel. Liwei comparou seu sabor delicado aos Pêssegos
Imortais, que levavam mais de três séculos para amadurecer, mas
infelizmente as lichias não tinham nenhuma de suas propriedades
mágicas.
Era quase meio-dia quando chegamos ao fim do mercado, bem
no centro da espiral de barracas. A última delas era de madeira
laqueada na cor preta, com uma pequena placa que dizia “Adornos
Preciosos”. Sua dona estava sentada entre as mercadorias, serena;
não anunciava nada, nem acenava para os fregueses. Suas
bandejas estavam abarrotadas de fragmentos esculpidos de jaspe e
jade, cornalina e turquesa, que podiam ser amarrados à cintura.
Liwei pegou dois ornamentos de jade requintados, brancos e
esculpidos como nós infinitos, um símbolo de longevidade e de
sorte. Acima deles, brilhava uma pedra preciosa transparente em
forma de lágrima, e de sua base pendia uma borla de seda azul.
Observando seu interesse, a vendedora se aproximou.
— Jovem Lorde, você tem um gosto excelente. Isso é uma Gota
do Céu. Peça a uma pessoa amada ou a um amigo para canalizar
um pouco de energia nela. Quando a pedra estiver transparente, é
sinal de que eles estão sãos e salvos. Porém, quando ela ficar
vermelha, essa pessoa está correndo grave perigo e você pode usar
a borla amarrada a ela para encontrá-la.
— Vou levar. — Liwei contou dez anéis de jade verde-grama e os
entregou para a vendedora, que agradeceu enquanto os enfiava na
manga de seu manto.
Liwei passou o polegar levemente sobre uma das pedras na
palma de sua mão. Sua magia rodopiou e a joia transparente agora
brilhava com flocos de luz dourada.
Ele me ofereceu a pedra, mas não aceitei.
— Para que isto?
— Não posso dar um presente a minha amiga? — Quando ele
abriu a boca, eu me preparei para outro lembrete de nossa aposta,
mas tudo o que ele disse foi: — Eu ficaria muito feliz se você o
aceitasse.
Alguma coisa em seu olhar prendeu o meu.
Assenti, incapaz de encontrar as palavras. Ele sorriu para mim,
antes de se curvar para amarrar a borla em minha cintura. A pedra
de jade brilhava suavemente contra a seda clara de meu vestido.
Ah, como eu gostaria de ter algo para dar a ele em troca.
— Obrigada. Terei muito cuidado com ela — agradeci.
— É para cuidar mesmo — disse ele, sério. — Assim você saberá
quando estou em perigo e não terá desculpa para não me socorrer.
Dei uma risada alta. A ideia de que o Príncipe Herdeiro do Império
Celestial precisasse de minha ajuda era totalmente inconcebível.
Ele me deu a outra gota.
— Agora é sua vez. Canalize sua energia na pedra.
Parei por um instante.
— Tem certeza?
— Amigos cuidam uns dos outros. Quer dizer, se for isso que
você quiser, claro.
A ligeira hesitação em sua voz me incomodou. Ele achava que eu
poderia recusar? Eu apreciava isso nele — apesar de seu status,
ele nunca ordenava, sempre me dava escolha.
Pressionei a pedra com os dedos, liberando minha energia nela. A
joia brilhava, assim como a que estava amarrada em minha cintura,
mas em seu interior havia luzes prateadas. Dando um sorriso, Liwei
a prendeu em sua faixa preta.
— O sol e a lua. Um par ideal — comentou a vendedora enquanto
recolhia suas bandejas. Olhei para ela, sem saber o que ela queria
dizer com isso, mas, quando outro freguês se aproximou dela, nos
afastamos.
Ao meio-dia, a multidão se dispersou e o mercado ficou
obscurecido por nuvens rodopiantes brancas e cinzas. Os
mercadores desmontaram suas barracas, subiram em suas nuvens
e foram embora rapidamente. Em apenas alguns instantes, todos os
vestígios do mercado desapareceram, como se nunca tivesse
existido — exceto pelo peso da pedra de jade pendurada em minha
cintura, pela doçura das lichias que persistia em minha boca e pelo
afeto que se aninhara bem no fundo de meu coração.
9

N o Império Celestial não havia estações para marcar a passagem


do tempo. Dois anos passaram tão rápido que, não fosse pela
mudança das fases da lua, teria perdido a conta. A tranquilidade que
sentia ali me lembrava de minha casa, tirando a dor incômoda em
meu peito sempre que pensava em minha mãe. Ah, como eu
desejava vê-la novamente de perto, não apenas como um orbe
distante nos céus. O único consolo era pelo menos ter encontrado
no Império um propósito que nunca conhecera antes: lutar para
melhorar a mim mesma e para encontrar um caminho para casa.
Do amanhecer ao anoitecer, Liwei e eu estávamos juntos —
estudando o que aprendíamos nas aulas ou treinando no campo. As
refeições eram minha parte favorita; nelas conversávamos sobre
qualquer coisa que quiséssemos, fossem assuntos sérios ou não.
Certa vez, Liwei me perguntou sobre minha casa e como meus pais
haviam morrido. Mordi a língua com força, desejando poder contar a
verdade. Ao ver os lábios dele se contraírem, eu soube que ele
ficara desapontado com minha reserva. Isso me matava por dentro
— eu não era insensível; estava tomada pela culpa por enganá-lo.
Nossa amizade significava mais para mim do que qualquer coisa
que eu possuísse.
No dia seguinte seria seu aniversário. Foi organizada uma grande
celebração, pois aquele ano era especial, marcando a data em que
ele assumiria seus deveres na corte como Príncipe Herdeiro. Ele me
convidou, mas recusei; tinha pouco interesse em passar uma noite
com Suas Majestades Celestiais e a corte. No entanto, estava
angustiada com o presente que daria a ele, pois não tinha como dar
nada caro. Decidi, por fim, compor uma música para Liwei. O
Príncipe tinha um grande apreço por música, mesmo que não
tocasse um instrumento sequer. No entanto, a composição demorou
mais do que eu esperava, pois eu só podia trabalhar nela tarde da
noite ou de manhã cedo, tecendo um escudo de privacidade ao
redor de meu quarto para evitar que a música se espalhasse pelo
pátio.
Vasculhei as gavetas, pegando a concha branca que havia
comprado no mercado anos atrás. Ela brilhava na palma de minha
mão, e suas espiras curvas terminavam num pináculo elegante.
Colocando a concha sobre a mesa, lancei uma farpa de vento nela
para despertar sua magia. Então levei a flauta à boca, deixando
meu fôlego entrar no instrumento. A concha brilhava enquanto a
melodia se derramava, e sua luz se dissipou ao fim da última nota.
Apressadamente, embrulhei-a com um pedaço de seda. Demorei
demais; já estava atrasada.
Atravessei o pátio correndo e parei diante da porta do quarto de
Liwei. Uma aura poderosa pulsava dentro dela — irregular, afiada e
forte. Eu havia feito o melhor que podia para evitar aquela aura até
então. O suor escorria por minhas mãos quando abri a porta e
entrei. A Imperatriz Celestial estava sentada ao lado de Liwei, com
seus criados atrás dela. Seu manto verde se amontoava no chão
como um tapete de musgo, e grampos de ouro com a forma de
folhas brilhavam em seu cabelo. Eu nunca tinha visto a imperatriz
tão de perto antes. As memórias de minha partida, quando deixei
minha mãe, passaram por minha mente, cortando-me como se
tivesse acontecido no dia anterior.
Ajoelhei-me para cumprimentá-la, como exigia a etiqueta,
curvando o corpo até que minha testa e minhas mãos tocassem o
chão.
A imperatriz não me deu licença para me erguer.
— Esse é o comportamento da Companheira de Estudos do
Príncipe Herdeiro? Acordar tão tarde e deixar meu filho cuidar de si
mesmo? — Sua voz estava áspera ao proferir a reprimenda.
Eu deveria ter me desculpado ou implorado por perdão. Porém,
embora meu corpo estivesse rígido com a tensão do momento,
meus lábios permaneceram firmemente selados. Eu não era mais
uma criança acovardada, com medo de sua sombra.
— Levante-se — disse Liwei.
Ergui a cabeça do chão, mas permaneci de joelhos. Não daria à
imperatriz nenhuma razão para me dispensar.
— Honorável Mãe, Xingyin se atrasou esta manhã somente por
causa da tarefa que lhe atribuí. — Liwei olhou para mim. —
Encontrou a raiz de ginseng-da-neve?
— Sim. — Fiquei feliz por seu raciocínio rápido.
— Poderia deixá-la na cozinha para que façam um tônico com
ela? Peça-lhes para enviá-lo com a refeição da tarde para Suas
Majestades Celestiais.
Atenta aos criados vigilantes, pressionei a testa no chão como
forma de acato à ordem. Levantando-me, corri para a entrada,
ansiosa para sair dali.
Ouvi a voz da imperatriz serpenteando atrás de mim e, depois que
saí do quarto, ela tinha um tom mais agradável.
— Liwei, você é um filho devotado — elogiou ela. — O banquete
de amanhã será um grande evento. Os Imortais das Flores e da
Floresta se juntarão a nós, assim como os monarcas do mar; uma
chance rara de afirmar nossa boa vontade em relação aos Quatro
Mares. Também seremos honrados com a presença da Rainha
Fengjin e de sua filha.
— A Princesa Fengmei? — perguntou Liwei, com a voz
embargada.
— Claro. O Império da Fênix é nosso aliado mais importante. Mais
do que nunca, com a ameaça daquele maldito Reino dos Demônios
ainda pairando sobre nós — acrescentou ela, com uma entonação
carregada. — Espero que você seja um anfitrião atencioso. E que
saiba o que se espera de você.
Do outro lado da porta, lancei um olhar de apoio para Liwei. Ele
não gostava de tais ocasiões, evitando tantas quanto podia. Mas
seria impossível para ele escapar de uma comemoração em sua
homenagem, principalmente com os olhos afiados da mãe
observando cada movimento que ele fizesse.
Liwei e eu havíamos plantado um pequeno jardim em um canto do
pátio. Com uma pá, desenterrei a raiz de ginseng-da-neve, que
brotara de uma semente cultivada havia apenas um mês. Embora
geralmente levasse anos para o ginseng vingar, o encantamento de
Liwei ajudou as plantas a crescerem mais rapidamente. Admirando
a raiz perfeita que se formara, com uma polpa tão branca que era
quase translúcida, julguei ser um sacrifício válido em troca de minha
pele.
Na cozinha movimentada, encontrei Minyi, que eu já conhecia
bem. Depois de lhe passar o ginseng, decidi esperar enquanto ela
preparava nossa comida.
Ela me examinou, torcendo o nariz.
— Xingyin, você está tão pálida… Está comendo direito?
— Atrasei-me de manhã e levei uma bronca de Sua Majestade
Celestial — contei a ela.
Minyi suspirou de comiseração. A imperatriz era muito temida por
seu temperamento — feroz, malicioso, facilmente provocado — e
poucos eram poupados disso.
— Nossa imperatriz tem uma chama intensa. Coisa de quem é do
Império da Fênix — comentou ela.
— Império da Fênix? Ela não é uma Celestial?
Ela balançou a cabeça negativamente, dando uma olhada furtiva
à sua volta. Minyi estava a par das histórias e das fofocas dos
diversos criados que visitavam a cozinha. Era fácil trocar uma
guloseima pelas últimas notícias e, à noite, uma taça de vinho
soltava até mesmo as línguas mais rígidas. A única coisa que ela
amava mais do que colecionar fofocas era compartilhá-las com os
amigos.
— Antes de se casar com o imperador, Sua Majestade Celestial
era uma princesa do Império da Fênix. Ela não era tão mal-
humorada no início, mas seu temperamento piorou após a morte de
seus familiares queridos.
Era a primeira vez que ouvia falar sobre aquilo. Eu não achava
que era possível, mas fiquei com muita pena ao pensar em sua
perda.
— O que aconteceu a eles?
Minyi fechou a expressão.
— Um conto trágico. A imperatriz é parente de Madame Xihe, a
deusa do sol que mora no Bosque da Amoreira Perfumada, no céu
do Leste. Madame Xihe teve dez filhos, e costumava levar consigo
um de cada vez sempre que voava pelos céus em sua carruagem
puxada pela fênix. Seus filhos eram criaturas poderosas, de pura luz
e calor, venerados como o sol no mundo mortal.
Gelei.
— Dez filhos? Dez sóis? Os parentes da Imperatriz Celestial?
Minyi mexeu o macarrão que fervia em uma panela, alheia (ainda
bem) a minha angústia enorme.
— As fênix são parentes próximos dos pássaros solares de três
patas.
Pássaros solares. Essas palavras me incendiaram.
— O que houve? — indaguei, atônita.
— Muitos anos atrás, Madame Xihe foi gravemente ferida. Para
socorrê-la, a imperatriz enviou um general de confiança ao Bosque
da Amoreira Perfumada para conduzir a carruagem em seu nome.
Apenas um pássaro solar foi autorizado a ir com ele, mas eles
desobedeceram, e todos os dez pularam na carruagem de uma vez
só e voaram para longe antes que o general pudesse detê-los. Os
pássaros solares não queriam voltar, ficaram voando pelos céus dia
e noite. — Minyi fez uma pausa. — Foi uma época terrível, de luz
ofuscante e calor escaldante. Os mortais foram os que mais
sofreram: seu mundo frágil foi incinerado, ficando à beira da
destruição.
“O Imperador Celestial enviou mensageiros para repreender os
pássaros solares, mas eles ignoraram todos. Eram tão velozes que
ninguém conseguia pegá-los. O próprio imperador poderia tê-los
derrubado, mas a imperatriz os protegeu do ataque. Sob sua
proteção, os pássaros solares teriam transformado o mundo inteiro
em cinzas, mas, por fim, foram abatidos por um bravo mortal.”
Meu pai. Minhas pernas tremiam. Agarrei a lateral da mesa e meu
cotovelo derrubou uma tigela de ameixas amarelas, que rolaram
pelo chão. Evitando o olhar de um cozinheiro enfurecido, abaixei-me
para pegar as frutas, agradecendo pela oportunidade de esconder o
rosto. Andei pelas memórias embaçadas do livro que li uma vez — a
história de meu pai contada pelos mortais. Dizia-se que os pássaros
solares tinham o favor dos deuses, que estavam sob sua proteção.
Mas e as relações de sangue da Imperatriz Celestial? Não era de se
espantar que ela tivesse tentado punir meu pai por matá-los.
Engoli saliva, acreditando que isso aliviaria o ressecamento de
minha garganta.
— Esse mortal… O que aconteceu com ele?
Minyi jogou um punhado de cebolinha verde picada sobre duas
tigelas de macarrão, depois as colocou numa bandeja de madeira
polida. Quase como uma reflexão tardia, ela acrescentou um
pequeno prato de legumes e outro de bolinhos. Suprimi o desejo de
agarrar seu braço e arrancar o restante da história a sacudidelas.
— Ah. Os atos do mortal foram elogiados pelo imperador e ele foi
recompensado com o Elixir da Imortalidade.
— Sua Majestade Celestial não ficou zangado com ele por matar
os parentes da imperatriz? — Eu não conseguia esconder a
preocupação em minha voz.
Minyi se inclinou para mais perto, falando mais baixo agora.
— Dizem que o imperador pode ter participado da morte dos
pássaros solares. O mortal os derrubou com um arco encantado de
gelo e ele usava um amuleto que o protegia do fogo que eles
lançavam. Como um mero mortal poderia obter tais tesouros, e
ainda por cima usá-los sem a bênção de Sua Majestade Celestial?
Isso me deu um baque. Por que o imperador faria uma coisa
dessas? Por que ele mesmo não parou os pássaros solares?
Apenas para evitar conflito com a imperatriz?
— O que aconteceu depois? — perguntei, embora também
temesse a resposta.
Ela me fitou, surpresa. Talvez Minyi pensasse que esse fora o fim
de tudo. O mundo salvo da destruição e o mortal recompensado por
seu serviço ao Imperador Celestial.
— Madame Xihe ficou furiosa com a morte de seus filhos e cortou
todos os laços com a imperatriz. Como parente da deusa do sol, a
Rainha Fênix também ficou furiosa. Antes, falava-se muito de um
noivado entre a filha dela e Sua Alteza, o Príncipe, mas ouvi dizer
que desistiram! Uma pena, pois teria sido um excelente par para ele.
Alguns reclamam porque a Princesa Fengmei é cem anos mais
velha que Sua Alteza. No entanto, esses números são
insignificantes para pessoas como nós.
Liwei nunca havia mencionado um noivado antes, embora agora
eu entendesse sua reação esquisita ao ouvir o nome da princesa
pela manhã. Os rumores que o cercavam eram como flores de
pessegueiros, e eram tantos que eu passei a considerá-los tão leves
quanto suas pétalas, que voam com o vento e são esquecidas
quando tocam o chão. Porém, eu não estava interessada nisso
agora.
— E o destino do mortal depois que ele recebeu o elixir? —
sondei, esperando que ela não notasse meu forte interesse. Talvez
eu pudesse conseguir alguma pista sobre o paradeiro de meu pai.
Minyi franziu a testa enquanto colocava um bule de porcelana na
bandeja. O aroma de jasmim veio serpenteando até meu nariz.
— O mortal nunca ascendeu aos céus como imortal. Ninguém
sabe o que houve com ele. — Sua voz sumiu quando ela deu meia-
volta abruptamente.
Não a questionei mais. Não fiquei surpresa com a relutância de
Minyi em falar da ascensão de minha mãe. O castigo à Deusa da
Lua não era um conto do qual se falava livremente. Suas
Majestades Celestiais não gostavam de ser lembradas de quem os
desagradava.
Agradeci a Minyi, pegando a bandeja de comida enquanto saía da
cozinha atordoada. A imperatriz não gostava de mim, acreditava que
eu não era digna de ser a companheira de estudos de seu filho.
Estremeci, imaginando seu rancor se descobrisse que meu pai
havia matado os pássaros solares. Respirei fundo, tentando acalmar
meu estômago agitado. Os instintos de minha mãe estavam certos;
a Imperatriz realmente guardava rancor de meu pai. Ela não teria
piedade conosco, aproveitaria a chance de nos destruir. Decidi que
não deixaria isso acontecer. Ainda assim, agora eu não podia fazer
nada além de me esforçar ao máximo, aprimorando minhas
habilidades e procurando uma maneira de nos manter seguros.
Quando voltei ao quarto de Liwei, fiquei aliviada ao descobrir que
a imperatriz tinha ido embora; não estava com a menor vontade de
fingir respeito e obediência. Comemos em silêncio; nenhum de nós
estava querendo conversar. Os bolinhos de Minyi eram muito bem
feitos; estavam rechonchudos por causa do recheio de carne de
porco e alho-poró e foram fritos até atingirem uma coloração
marrom-dourada — mesmo assim, para mim tinham gosto de papel.
— Xingyin, você parece cansada — observou Liwei.
Pus as mãos nas bochechas, beliscando-as discretamente para
fazê-las ficarem coradas. Ele era a segunda pessoa a comentar
sobre minha palidez naquela manhã.
— Não dormi bem. — Até para mim a desculpa soou fraca.
— Não leve a sério o que minha mãe disse. Ela parece feroz, mas
está muito preocupada comigo.
Assenti mecanicamente, pois achei que, se falasse, revelaria
demais. Recolhendo nossos livros que estavam em cima da mesa,
esperei por ele à porta.
Ele pegou a pilha pesada de minhas mãos.
— Já disse que você não precisa carregar minhas coisas.
— O que sua mãe diria? — perguntei.
— Não conte a ela — disse ele, lançando-me um sorriso
conspiratório.
Retribuí o sorriso, embora não tenha conseguido ignorar minha
inquietação. Passei a manhã toda desconfortável, mal ouvindo as
lições dos professores, ganhando uma careta do General Jianyun e
uma bronca da Professora Daoming. Agora, nos alvos de arquearia,
eu errava todos os disparos enquanto treinava junto com Shuxiao.
Ela chegou a se encolher ao ver um tiro particularmente ruim, que
deixou minha flecha cravada na grama a uns trinta centímetros da
tábua.
— Xingyin, há ciscos nos seus olhos?
Antes que eu pudesse responder, o General Jianyun caminhou
em minha direção, com uma expressão irritadíssima. Nesse dia eu
esgotei sua paciência.
— Xingyin, o treinamento ficou fácil a ponto de você não querer
mais se esforçar?
Baixei a cabeça, com a vergonha crescendo dentro de mim. O
General Jianyun era um mentor diligente para Liwei e para mim.
Enquanto muitos de nossos professores concentravam seus
esforços no Príncipe Herdeiro, ele dividia sua atenção igualmente
entre nós.
Ao ouvir o tom exaltado do General, Liwei, que lutava com um
soldado, olhou de relance para nós, deu um salto à frente com a
espada apontada e, com algumas estocadas bem encaixadas,
ganhou o treinamento de esgrima em instantes. Então veio
depressa para meu lado e, embora eu estivesse feliz por seu apoio,
não queria que ele testemunhasse minha humilhação.
O General Jianyun pegou uma bolsa de couro no suporte de
armas.
— Vamos tentar algo mais desafiador hoje. Se você errar um
sequer, terá mais uma hora de treino hoje à noite.
Assim, ele jogou o conteúdo da bolsa no ar. Dez disquinhos de
argila, cada um do tamanho de uma nêspera, foram lançados no ar.
— Acerte todos! — vociferou ele.
Antes de ele terminar de falar eu já havia alvejado os dois
primeiros. No mesmo fôlego, preparei a flecha seguinte e acertei
outros três numa sequência veloz. Ajoelhando-me, atirei mais duas,
que subiram aos céus. Os últimos três estavam quase fora de vista.
Mirei a flecha com cuidado para acertar um e o outro em seguida. O
último disco sumiu de vista. Fechei os olhos, esforçando-me para
ouvir em meio ao silêncio. Minha mente estava limpa, sem nenhum
pensamento. Uma leve vibração chegou a meus ouvidos, um vento
sussurrante. Soltei a flecha, que emitiu um ruído agudo e
despedaçou o disco.
Eu me acalmei, nervosa com o silêncio repentino e com a
multidão que se formara. Então um soldado alto e magro que eu
nunca vira antes aplaudiu, e esse barulho quebrou meu torpor.
Shuxiao aplaudiu quando Liwei deu um passo à frente, erguendo-
me pela cintura e me girando.
— Liwei, ponha-me no chão — sibilei, consciente dos olhares
atentos. Por alguma razão, achei difícil recuperar o fôlego e minha
pulsação saltava num ritmo irregular.
Ele deu uma risada enquanto me colocava no chão e, com um
sorriso de despedida, voltou para o campo de esgrima.
Os soldados se dispersaram, mas o General Jianyun ficou imóvel,
estudando-me por um momento.
— Você já pensou em seu futuro? Quando não for mais a
companheira de estudos do Príncipe Herdeiro? — indagou ele,
afinal.
A pergunta direta me atingiu. Eu não havia pensado no fim de
minha atribuição, mas Liwei logo assumiria seus deveres na corte.
Suas aulas diminuiriam e, então, o que eu faria? Seria sua criada,
servindo refeições e chá para ele? A ideia doía, como se um carvão
em brasa estivesse dentro de mim.
O General Jianyun continuou, alheio ao meu mal-estar:
— Sua arquearia é inigualável. De acordo com a Professora
Daoming, sua magia é forte. Acho que você se sairia muito bem no
exército. Seu futuro poderia ser mais brilhante do que o sol.
Minha mente girou com as possibilidades. Meu pai foi um soldado;
esse fora seu caminho para a glória: matar os pássaros solares e
salvar o mundo. Uma grande honra, um fardo terrível. Sua
recompensa tinha sido o elixir que tornou minha mãe e eu imortais,
embora tenha nos separado dele.
Saindo de meu estupor, perguntei:
— General Jianyun, como se progride no exército?
— Lutando pelo nosso reino. Realizando cada tarefa com o
melhor de suas habilidades. Protegendo seus companheiros
soldados. Trabalho duro, obediência e lealdade ao longo dos anos.
Existe honra maior do que servir nosso império e Suas Majestades
Celestiais? — Sua voz estava exultante de orgulho.
Uma recusa rude saltou para minha língua e eu a esmaguei ali
mesmo, por respeito ao general, mas não fui capaz de impedir meus
lábios de se contraírem.
Ele não pareceu notar, acrescentando como uma reflexão tardia:
— Alguns também sonham em ganhar o Talismã do Leão
Vermelho, embora tal conquista seja rara.
— Talismã do Leão Vermelho? — Nunca ouvira falar dele antes.
— É a mais alta honraria do Exército Celestial, concedida pelo
próprio imperador. Seu portador recebe um favor real.
Uma esperança selvagem flutuou em meu peito.
— Como se conquista esse talismã? — Praguejei o tremor em
minha voz, esperando que ele não percebesse minha ansiedade.
— Com atos excepcionais de bravura, coragem ou sacrifício a
serviço do Império Celestial. — Ele franziu a testa. — No entanto,
isso não é algo em que você deva ancorar suas esperanças. Em
toda a minha vida, pouquíssimas vezes vi alguém ser condecorado
com o Talismã.
O General Jianyun devia ter centenas de anos. Milhares, quem
sabe? Como eu poderia superar os poderosos guerreiros de lá,
quando meus poderes haviam aparecido há poucos anos e eu mal
os controlava? Não, eu não podia me permitir pensar assim, não
poderia admitir a derrota antes de tentar. Entre todos os mortais ao
longo dos séculos, fora meu pai quem chamou a atenção do
imperador e ganhou o Elixir da Imortalidade. Eu não me esforçaria
por nada menos.
No entanto, algo freou meu ânimo crescente. Se eu me juntasse
ao Exército Celestial, teria que deixar o Pátio da Tranquilidade
Eterna. Eu estava segura ali. Mesmo longe de minha mãe, eu
estava feliz, o tanto quanto podia. Ah, fiquei desorientada nesse
momento. Jamais poderia me esquecer por que estava ali — tendo
sido arrancada de minha casa, fui ao Palácio de Jade para
encontrar o caminho de volta. O discurso de honra e servidão do
General Jianyun não me comoveu. Aquela não era minha casa; eu
não tinha lealdade àquele lugar; até mesmo guardava rancor de
Suas Majestades Celestiais, que eu estava disposta a engolir para
atingir meus objetivos. Mesmo assim, a oferta me deu um vislumbre
de um futuro no qual eu poderia progredir por meu próprio mérito,
uma chance de conseguir a liberdade de minha mãe. Isso era, de
longe, muito melhor que meus desejos de voar para a lua e quebrar
o encantamento que a prendia lá. Que vida nos esperaria depois
disso? Uma eternidade sendo caçadas e vivendo com medo.
O General Jianyun pigarreou, talvez pensando em meu silêncio
prolongado.
Juntei as mãos e me curvei a ele.
— Obrigada por sua confiança em mim, General Jianyun.
Prometo pensar a respeito.
A oferta do oficial me tentou mais do que eu gostaria de admitir.
Já estava inclinada a aceitá-la, embora não pudesse fazer isso
antes de falar com Liwei.
Naquela noite, durante nossa refeição, Liwei perguntou:
— Sobre o que você e o General Jianyun conversaram? Parecia
ser algo sério.
Surpresa por ele ter notado, levantei meus kuàizi para enfiar um
punhado de arroz na boca. Por alguma razão, eu relutava em contar
a ele sobre a oferta do general. Algumas desculpas passaram por
minha cabeça, mas eu só mentira para ele uma vez e fora por
necessidade.
— O General Jianyun sugeriu que eu me juntasse ao exército,
depois que meus estudos acabarem.
— Acabarem? — Ele parecia confuso. — Quem disse que vão
acabar?
Pus os kuàizi na mesa e lancei a ele um olhar taciturno.
— Liwei, por quanto tempo as coisas continuarão assim? Depois
de assumir suas responsabilidades, você terá menos tempo para as
aulas. Não vai precisar de uma companheira.
Pela primeira vez, ele apareceu abalado.
— Mas você é minha amiga.
Essas palavras dilaceraram minha consciência; mesmo assim, eu
não conseguia pensar em mim mesma sozinha.
— Eu sou sua amiga. Aqui, ou aonde quer que eu vá.
— Você quer me deixar e se alistar no exército? — Havia uma
nota de incredulidade em sua voz e, bem no fundo, mágoa.
— Há coisas que eu quero e que você desconhece
completamente. Eu tenho meus próprios sonhos. — Minha voz
estava rouca de comoção. Os anos que passara ali, treinando e
estudando, foram felizes. No entanto, eram apenas os degraus da
escada que minha ambição escalava.
Talvez Liwei tenha sentido que estava me afastando e minha
determinação estava se enrijecendo. Ele se inclinou para mim e
perguntou:
— Quais são seus sonhos? Deixe-me ajudar, como eu puder.
As palavras pairavam na ponta de minha língua. Para confiar
nele, para contar a verdade. Ele era um Príncipe Celestial, poderoso
e favorecido. Mas reprimi o desejo. Não tinha certeza de como as
coisas poderiam mudar entre nós se ele soubesse quem eu era, que
eu tinha mentido para ele, que eu era filha da deusa que caíra em
desgraça por desafiar os desejos de seu pai, e do mortal que havia
matado os amados pássaros solares de sua mãe.
— Não, você não pode me ajudar — respondi, tranquila. — Mas
agradeço sua vontade.
A mão de Liwei cobriu a minha, e um formigamento inesperado
passou por meu braço.
— Minha oferta está de pé. A qualquer hora, o que você precisar.
Pense nisso e não tome nenhuma decisão precipitada.
Eu acreditava que estava decidida. Mesmo assim, presa pela
intensidade em seu olhar, apenas pude assentir em resposta.
Amanhã , disse a mim mesma, covarde. Decidirei amanhã .
10

L evantei-me com um sobressalto. Meus olhos vasculharam o


cômodo escuro e eu segurava firme as cobertas, amassando-as
entre meus dedos. Eu não estava em casa. Mas não era tarde
demais. Minha mãe e Ping’er não estavam mortas.
Esses pesadelos já haviam me atormentado antes, mas nunca no
Pátio da Tranquilidade Eterna — até agora. Talvez meu encontro
com a Imperatriz Celestial ou a incerteza sobre meu futuro tenham
causado uma recaída nos medos de meu passado.
Ouvia-se um som de passos em todo o pátio. As portas de meu
quarto foram escancaradas e o ar frio da noite o invadiu quando
Liwei apareceu na entrada. Ele entrou no quarto e sentou-se em
minha cama, entrelaçando os dedos nos meus, e sua mão estava
quente e firme.
— Você estava gritando. Está tudo bem?
— Um sonho. — Minha respiração estava trêmula e irregular. O
pavor fora muito real para mim. A imagem da forma sem vida de
minha mãe passou por minha mente e meu medo se fundiu com um
desejo tão forte de voltar para casa que chegava a doer. Meus olhos
foram tomados por lágrimas indesejadas.
Com a outra mão, ele tocou meu rosto e acariciou de leve minha
bochecha. Ele só tinha me visto chorar uma vez antes, quando nos
conhecemos perto do rio. Sem hesitar, ele me puxou e me abraçou
forte. Retribuí o abraço, e isso despertou uma necessidade em mim,
desconhecida e intensa. Com a guarda baixa, permiti a mim mesma
ser confortada por sua força; meu corpo mergulhou no dele
enquanto a represa de minhas emoções se rompia.
Minhas lágrimas encharcaram suas roupas; quando afastei a
cabeça do peito de Liwei, a seda branca estava úmida. Só então
percebi que ele estava usando apenas o manto interno; devia ter
saído da cama com pressa. Minha pulsação disparou, embora eu o
tivesse visto vestido assim mil vezes antes. Com um canto da
manga de minhas vestes, tentei secar o tecido fino. Senti o coração
dele acelerar conforme seus braços me envolviam, aumentando um
calor que corria por minhas veias.
Nossos meses de companheirismo se desvaneceram; era como
se estivéssemos nos vendo pela primeira vez. Ele não era mais o
jovem com quem eu fizera amizade, o jovem que implicava comigo.
Seu toque inflamou meus sentidos, seu olhar roubou minha
respiração. Estendi a mão para tirar o longo cabelo de Liwei da
frente de seu rosto; estava solto, não havia sido penteado quando
ele acordou, e tinha um brilho negro em contraste com a brancura
de seu manto.
Abri levemente a boca. Os olhos de Liwei se voltaram para ela,
tão profundos quanto piscinas à meia-noite. Ele se inclinou e
pressionou a boca na minha com firmeza e uma ternura intensa.
Inspirei profundamente; seu cheiro agradável e caloroso se
misturava com a fragrância das flores do pátio. Uma de suas mãos
pegou a parte de trás de minha cabeça e a outra enlaçou minha
cintura. Meus braços envolveram seu pescoço, mas eu não sabia
como eles haviam chegado lá. Nós nos abraçamos com tanta força
que sua respiração, quente e doce, se misturou com a minha na
boca. Seus lábios fizeram mais força, abrindo mais os meus —
nossas línguas se encontraram e se emaranharam. Um calor
incrível ardeu dentro de mim e se espalhou por todo o meu corpo,
da cabeça aos pés. Meus braços e minhas pernas ficaram fracos,
como se estivessem dormentes, e caímos, entrelaçados, em minha
cama.
Uma rajada de vento entrou pelas portas abertas. As cortinas
azul-claras ao redor de minha cama tremularam, tão leves como
nuvens diáfanas. Enquanto os painéis da janela chacoalhavam, eu
me levantei… tremendo por ter perdido o calor dele. Meu olhar foi
para o pátio. Qualquer um que passasse por ali poderia ter visto o
que fizemos. Por sorte, ainda estava escuro. Nossa única
testemunha foi a lua no céu.
Ele se sentou ao meu lado, passando a mão no cabelo.
— Xingyin, desculpe-me.
Suas palavras foram um jato de água fria, um rude despertar de
meu torpor. É claro que ele ficaria arrependido! Na escuridão da
noite, movido pela pena e pelo derramar de minhas emoções — não
era de se admirar que ele tivesse se sentido obrigado a me
consolar, e eu fora ávida por tirar vantagem de sua bondade.
— Não precisa se desculpar — falei com voz suave quando
afastei o olhar, deixando o cabelo cobrir meu rosto. Diante de seu
silêncio, interpretei que ele concordava. — Isso foi um erro para nós
dois. Um momento de loucura que será esquecido pela manhã. —
Uma tentativa desajeitada de salvar meu orgulho.
Ele apertou minha mão com força, pressionando-a contra o peito.
— Loucura? Nunca me senti tão lúcido em minha vida. Você quer
esquecer que isso aconteceu? Não consigo.
Meu coração batia descontroladamente, como as asas de um
pássaro contra as barras de sua gaiola. No entanto, o medo e a
razão, sempre vigilantes, se ergueram.
— Não deveríamos fazer isso.
Ele inclinou a cabeça em minha direção.
— Por quê? — A simplicidade de sua pergunta era
surpreendente. Mas não era tão fácil assim como ele pensava; havia
muitas coisas contra nós que ele desconhecia… que eu escondera
dele. Ele baixou a voz, como se estivesse fazendo uma confissão:
— Eu queria beijar você há muito tempo.
O calor me inundou novamente, deslizando por minha pele como
se eu estivesse deitada sob o sol. Suas palavras afastaram minhas
dúvidas quando estendi a mão e o puxei para perto, quando ele
inclinou a cabeça em minha direção mais uma vez. Meus olhos se
arregalaram e depois se fecharam, perdidos em uma lânguida
névoa de desejo, como se eu estivesse flutuando em um rio de
estrelas. Quando finalmente nos afastamos, nossa respiração
estava áspera e irregular e estávamos enredados ao luar, até que
uma agitação na quietude anunciou a aproximação do amanhecer.
Lembrando que dia era, levantei-me, vasculhando a gaveta em
busca de meu presente. Quando coloquei com força o pacote
embrulhado em seda na mão de Liwei, reprimi a vontade de pegá-lo
de volta. O que era uma humilde concha perto dos tesouros
inestimáveis que ele possuía?
Ele tirou o embrulho, olhando para a concha. Eu a peguei e soprei
gentilmente; ela começou a brilhar enquanto minha música enchia a
sala. Era alegre, ondulava com expectativa, esperança e, percebi
naquele momento, anseio. A canção de meu coração, antes que eu
mesma a conhecesse.
Ele não se moveu até que a música tivesse terminado.
— É linda. Como se chama? — perguntou ele.
Eu sorri, lutando contra a dificuldade de falar que se instalara de
repente em minha garganta.
— É você quem decide. Eu a compus para você.
Ele pegou a concha de mim e a ergueu novamente, mas eu
segurei seu braço.
— Ouça quando eu não estiver aqui.
Seu corpo ficou rígido quando ele se virou para fitar meu rosto.
— Você vai embora?
— Não quis dizer isso. É seu presente de aniversário, não de
despedida. — O modo como evitei a pergunta dele atingiu minha
consciência.
Ele entrelaçou os dedos nos meus novamente, e sua tensão
diminuiu.
— Obrigado. Nunca recebi um presente tão maravilhoso —
acrescentou ele, com um sorriso provocante. — E, agora, não
preciso mais implorar para você tocar uma música para mim.
Eu me afastei, olhando para ele com raiva fingida.
— É fácil assim me substituir?
— Não quero testar isso nunca. — Com um suspiro arrependido,
ele me soltou e se levantou de minha cama. — Devo ir embora
antes que os criados acordem.
Reuni minha coragem e disse logo em seguida:
— Liwei, não temos aulas amanhã. Vamos passar o dia juntos?
Ele parou à entrada do quarto, assentindo uma vez com um
sorriso nos lábios, saiu e fechou as portas.
Sozinha mais uma vez, minha mente acordou do feitiço. A culpa
me golpeou, feroz e implacável. O Imperador Celestial não teve
misericórdia de minha mãe, condenando-a à prisão eterna. Lembrei-
me do medo que minha mãe tinha da imperatriz, e o pavor dela me
enchia de remorso. Como eu poderia sentir aquilo pelo príncipe? Eu
era fraca a tal ponto, de traí-la tão facilmente?
Pus as mãos nas têmporas, por entre os cabelos. Porém, isso não
era trair minha mãe. Mesmo nas profundezas de sua tristeza, ela
não proferia uma palavra sequer de ressentimento contra o
imperador e a imperatriz. Ela não usaria isso contra mim; tudo o que
ela sempre quis foi minha felicidade. Eu era de mim mesma,
diferente de meus pais — assim como Liwei. E ele não era nada
como eles. Depois de todo o nosso tempo juntos, eu sabia disso
melhor do que ninguém. Ele era meu amigo mais querido, antes
de… ser o que era para mim agora. E eu não o culparia por eventos
passados há tanto tempo, nem por circunstâncias que estavam além
de seu controle.
Como eu gostaria de abrir meu coração para ele, de revelar todas
as partes de mim. Liwei não faria nada para me machucar, mas eu
hesitava em envolvê-lo em meus problemas, em colocá-lo contra
seus pais quando sabia como a relação deles era tensa. E a
covarde em mim morria de medo de desapontá-lo; enganar um
amado dói mais do que enganar um amigo.
Eu odiava essas mentiras, esse medo, essa dúvida. Mas isso não
era nada diante da ameaça de ser descoberta. O Palácio de Jade
não era um lugar para compartilhar tais segredos. E, ali, a rigidez do
imperador e o rancor da imperatriz não dariam espaço a nenhuma
misericórdia para mim, principalmente sabendo sobre o laço que
unia nossas famílias. Não, eu não quebraria minha promessa à
minha mãe — não até que eu soubesse que seria seguro.
Fiquei acordada em minha cama até os raios do sol surgirem. Na
luz da manhã, o desejo da noite passada se dissipou na névoa de
um sonho, exceto pela lembrança dos lábios dele gravada
profundamente em minha alma.
11

F itei meu reflexo no espelho. Meu cabelo preto caía suavemente


até a cintura, minha pele brilhava por causa das tardes ao sol.
Minhas feições podiam ser normais, mas eu estava contente com o
que via — até mesmo com a covinha no queixo, que a Imperatriz
Celestial criticara, dizendo ser um sinal de temperamento difícil.
Levei a mão até um de meus vestidos habituais, mas, em vez
dele, puxei outro, de seda azul-clara, bordado com pássaros
coloridos. Quando o vesti, um estorninho bordado com linha verde
abriu as asas e voou ao redor da saia. Minha força vital estava
realmente maior. Minyi pediu a sua amiga, uma costureira
habilidosa, que o bordasse, depois de reclamar que minhas roupas
eram muito simples e inadequadas. De fato, meu armário estava
repleto de roupas brancas. Eu não me importava, pois elas me
lembravam de minha mãe.+
Porém, a vida agora estava tomada por cores.
Nesse dia tive um interesse incomum por minha aparência;
raramente me vestia com tanto cuidado. Havia um saltitar em meus
passos quando atravessei o pátio, mas, ao passar do lado de fora
do quarto de Liwei, hesitei. Será que fora um sonho? E se ele não
se lembrasse? Pior ainda, e se ele se arrependesse de tudo o que
acontecera? Tomando coragem, empurrei as portas e entrei.
Ele já estava desperto e sentado à mesa, usando um manto de
brocado amarrado na cintura com uma faixa de seda preta. Um anel
de prata prendia seu cabelo no topo da cabeça, e os fios fluíam
como um rio de tinta pelas costas. Seus olhos estavam tão escuros
como sempre foram, mas agora eram cem vezes mais bonitos para
mim.
Seu olhar permaneceu fixo em mim enquanto ele se levantava.
— Não fique tão surpresa. Posso me vestir sem que alguém
segure minhas roupas para mim. — Um sorriso veio a seus lábios
quando ele acrescentou: — Embora eu goste mais quando você faz
isso.
Minha mente traiçoeira conjurou imagens de todas as vezes em
que pus seda e brocado sobre seus ombros. Como meus dedos
roçavam a curva de seu pescoço sempre que eu ajustava as dobras
de seu manto, como minhas mãos envolviam sua cintura para
amarrar sua faixa. Nunca parava para pensar naqueles gestos, mas
agora meu coração disparava e minha garganta estava seca.
— Xingyin.
O som de meu nome saindo de seus lábios mexeu comigo. Olhei
para ele de relance, notando a caixa esguia que ele estendia para
mim.
— É seu aniversário, não meu.
— Trocar presentes dá sorte — explicou ele.
Quando não fiz nenhuma menção de pegar a caixa, ele abriu a
tampa e puxou um grampo de cabelo feito de madeira, laqueado em
ricos tons de azul e cravejado de pedrinhas claras que capturavam e
fragmentavam a luz.
Fiquei sem ar. Grampos de cabelo eram tradicionalmente dados
como um símbolo de amor, mas apaguei a esperança que despertou
em mim. Não tínhamos feito tais promessas um para o outro.
Quanto à noite anterior… eu ainda não tinha certeza do que ela
significaria à luz do dia.
— Fiz esse grampo há um tempo, para combinar com o
significado de seu nome. Demorei um pouco para acertar as cores.
Ele o fez? Para mim? Era um acessório requintado; sua
habilidade conseguira captar todas as facetas do humor
temperamental do céu. E mesmo que não fosse, mesmo que fosse
apenas uma haste de madeira simples, não significaria menos para
mim.
Ele se inclinou para frente e pôs o grampo em meu cabelo, assim
como fizera na primeira vez que nos encontramos.
— Obrigada — agradeci com dificuldade, olhando-o nos olhos.
— Só temos a manhã. Meu pai pediu para me ver antes do
banquete. — Ele pegou uma cesta da mesa e, com a mão livre,
segurou a minha. — Você vai mudar de ideia e ir ao banquete hoje à
noite? Significaria muito para mim ter você lá. Tudo ficaria muito
menos chato. — Sua boca estava arqueada em um sorriso
pensativo.
Minhas entranhas se contorceram com a ideia de ver Suas
Majestades Celestiais. Mas era a celebração de Liwei, e uma parte
de mim estava curiosa sobre esse lado dele como herdeiro do trono,
que eu raramente via. E, agora, percebia que desejava passar cada
momento com ele, sentindo um aperto estranho no peito quando
estávamos separados.
— Sim — respondi. — Eu vou.
No pátio, Liwei convocou uma nuvem. Ocorreu-me que agora ele
poderia deixar o palácio à vontade, o que significava que ele
assumiria seus deveres na corte em breve. Afugentei uma onda de
ansiedade; eu não mancharia o dia de hoje com dúvidas sobre o
amanhã ou temores do passado. No entanto, quando olhei para a
nuvem, não pude deixar de pensar na última vez que voei em uma
com Ping’er. Subindo nela, Liwei me puxou atrás dele. A nuvem era
suave e fria, mas firme. Quando ela voou pelos ares, perdi o
equilíbrio, mas Liwei agarrou minha mão para me dar apoio e não a
soltou.
Depois de alguns momentos, comecei a relaxar. A nuvem subiu
tão suavemente que logo esqueci meus medos. Voar à luz do dia
era infinitamente mais prazeroso do que fugir à noite. Montanhas
altas, lagos cintilantes e florestas exuberantes cor de esmeralda se
desenrolavam como a gravura de um pergaminho sob nossos pés.
Quando passamos depressa sob uma chuva leve, as gotas que
caíram em minha pele foram tão refrescantes quanto o orvalho da
manhã. Eu poderia estar com frio por conta das nuvens escuras que
se acumulavam e escondiam o sol, mas as mãos de Liwei sobre as
minhas me enchiam de calor.
Pousamos no meio de uma floresta diferente de tudo que eu já
havia visto. Nem no Império Celestial, nem em meus sonhos. Os
pessegueiros floresciam até onde a vista alcançava, com galhos
carregados de flores rosas e brancas que enfeitavam o ar com uma
doçura inebriante. Sempre que o vento soprava, uma chuva de
pétalas caía no chão.
Peguei uma na palma da mão; macia como veludo, mais leve que
o ar.
— Onde estamos?
— Em algum lugar no Reino Mortal.
— O Reino Mortal? — exclamei em voz alta, alarmada.
Imortais eram proibidos de descer sem a permissão do Imperador
Celestial. Em um passado bem distante, eles vagavam por aquele
mundo à vontade. Talvez gostassem da onda de poder causada por
andar entre os mais fracos, por ouvir seus cânticos de adoração ou
suas súplicas apavoradas. Para os mortais, eles não eram apenas
imortais; eram deuses. No entanto, isso levou a um grande caos. Os
mortais eram aterrorizados pela magia. E muitos destinos foram
alterados devido a tal interferência, matando alguns antes da hora
ou salvando outros de desastres predestinados. O Guardião do
Destino dos Mortais persuadiu o Imperador Celestial a emitir um
decreto, proibindo todos os imortais de se aventurarem naquele
lugar livremente. Embora muitos desgostassem dessa decisão,
ninguém se atreveu a desafiar a ordem. Desde então, nosso reino
foi velado da vista mortal e, a cada ano que passava, suas
memórias de nós se desvaneciam ainda mais em mitos e lendas.
Tudo o que eles viam agora quando olhavam para o céu eram o sol,
a lua e as estrelas.
— Temos permissão para estar aqui? — Olhei furtivamente para o
céu, com um receio parcial de que o Guardião do Destino dos
Mortais descesse e nos levasse de volta para nos punir.
Liwei pôs a mão na cintura e ergueu um pedaço alongado de jade
intrincadamente esculpido com um dragão. Um selo imperial.
— Com isso, podemos ir a qualquer lugar que desejarmos —
assegurou-me Liwei, deixando-o cair e bater tilintando na Gota do
Céu. — Um dos poucos benefícios de participar daqueles debates
longos na corte.
Depois de caminhar um pouco mais pela floresta, sentamo-nos ao
lado de um riacho borbulhante. A grama macia estava coberta por
pétalas pálidas, algumas já amarronzadas nas extremidades, um
lembrete de que nada ali era permanente, de que cada instante
aproximava todas as criaturas de seu fim inevitável. Não pude
deixar de pensar em meu pai, envelhecendo a cada dia que
passava. Um desejo de procurá-lo, se ele ainda estivesse vivo,
tomou conta de mim. Mas Liwei não sabia nada sobre meus pais, e
como eu poderia contar a ele agora?
Fiquei feliz por ele não poder ver meu rosto enquanto tirava as
coisas de dentro da cesta. Um jarro de porcelana com vinho, peras
douradas e uma variedade de pãezinhos cozidos no vapor — alguns
recheados com pasta de feijão doce, outros com carne. Quando
peguei um, minha mão colidiu com a dele.
Ele tirou o prato de meu alcance.
— Que tal um desafio valendo os pãezinhos?
Resmunguei interiormente. Sem meu arco, ele provavelmente me
superaria em qualquer outra arma. Mas eu não me importava muito
com o prêmio, e menos ainda em perder. Alheio ao meu
descontentamento, Liwei vasculhou o chão até encontrar dois
gravetos resistentes, jogando um para mim.
Eu o peguei no ar.
— Você não acha que as chances estão a seu favor? Você é o
melhor espadachim. Pelo menos por enquanto — murmurei,
baixinho.
Ele começou a me rodear com a graça de um predador.
— Já está admitindo a derrota?
Fiquei de pé num salto, segurando o graveto com firmeza e
sentindo sua casca áspera.
Um pedaço de seda branca apareceu na palma da mão dele.
— Vou cobrir um de meus olhos e mesmo assim vou ganhar.
— Certamente — respondi com doçura, tentando não ranger os
dentes. Eu poderia ter rejeitado a oferta arrogante, mas agarraria
qualquer vantagem apenas para ferir seu orgulho.
Uma brisa varreu as árvores, fazendo chover flores sobre nós
enquanto estávamos um de frente para o outro. Saltei para o lado
da venda primeiro, esperando pegá-lo de surpresa. Liwei brandiu
seu graveto para cima a fim de bloquear o meu, recuando
rapidamente para atingir minha panturrilha. Sibilei, girando para
apunhalá-lo no peito. Ele soltou o ar quando eu saí de seu alcance,
um momento antes de dispararmos com tudo um na direção do
outro. A paz da floresta se desintegrou com o estalar de nossos pés
contra as pedras e as folhas secas, com o estrondo de nossos
gravetos em colisão. Eu não pude evitar uma onda de admiração
por sua técnica — ataque feroz, mas recuo rápido, cada movimento
controlado e mesmo assim livre. O páreo estava mais equilibrado do
que o esperado, e eu tinha expectativas de que, com alguma sorte,
pudesse vencer. Avistando uma abertura, pulei para frente, mas ele
se inclinou para trás e meu graveto cortou o ar vazio. Antes que eu
pudesse recuar, seu golpe forte derrubou o graveto de minha mão.
Abafei um grito, lutando para esconder minha frustração.
— Se fosse com o arco, eu teria derrotado você com os dois olhos
fechados. — Peguei um pão na cesta e joguei para ele.
Ele o agarrou, mas o ofereceu para mim imediatamente.
— Aqui, tome.
— É o seu prêmio. — Peguei uma pera, afundei os dentes em sua
polpa madura e seu suco doce e perfumado encheu minha boca.
Quando ele tentou me dar o pãozinho de novo, meneei a cabeça.
— Você quer me desafiar pelo direito de não o comer? —
perguntei maliciosamente. Ele me lançou um olhar gelado antes de
morder o pão macio. O aroma forte de carne de porco assada
flutuava em minha direção; era um cheiro delicioso. — Cuidado para
não se engasgar — provoquei, com um sorriso sincero.
A fome era um pequeno preço a pagar pela expressão irada que
brilhou em seu rosto. Eu havia perdido a partida, mas de alguma
forma saí por cima. Olhando para o céu nublado, maravilhei-me com
a forma como tudo parecia mais bonito. Mesmo as nuvens de chuva
não eram mais sombrias e ameaçadoras; em vez disso, estavam
imbuídas de uma majestade sombria.
Depois que comemos, ele me serviu uma taça de vinho. Quando
a fragrância delicada de jasmim-do-imperador se espalhou pelo ar,
eu me acalmei, rememorando uma floresta de flores brancas como
a lua.
Meus dedos se apertaram ao redor do copo enquanto eu o erguia
em um brinde.
— Que você seja feliz sempre.
Seu olhar pousou em mim.
— Se eu estiver sempre tão feliz quanto estou agora, esse seria o
melhor desejo de todos.
O vinho desceu por minha garganta com um calor inebriante.
Depois de esvaziarmos nossos copos, ele os encheu novamente e
ergueu o dele para mim.
— Que todos os seus sonhos se realizem.
Eu me perguntei o que ele pensaria se soubesse quais eram eles.
Por muito tempo, meus sonhos eram recuperar o que eu havia
perdido no passado. No entanto, desde a noite passada, ou talvez
até antes dela, uma esperança para o futuro criou raízes em meu
coração.
— Quais são seus sonhos? — perguntou ele, assim como fizera
no dia anterior, como se tivesse colhido de mim os pensamentos.
— Estar com meus entes queridos — respondi, depois de uma
pausa. Era a verdade, mas uma verdade oca, folheada de ouro para
enganar alguém. Quando seu olhar ficou sério e ele se inclinou para
mais perto, minha respiração acelerou. — Mas hoje vou me
contentar com a vitória. — Soltei a primeira coisa que veio em minha
mente, xingando a mim mesma quando ele se afastou.
Ele pôs as mãos na parte de trás da cabeça enquanto se deitava
na grama.
— Importa-se de fazer valer suas grandes palavras de antes?
— Por que não? Não vou pegar leve com você só porque é seu
aniversário. — Eu não estava tão confiante quanto parecia; nunca
tinha atirado de olhos vendados antes.
Um arco dourado materializou-se no chão diante de nós,
primorosamente esculpido com penas arqueadas ao longo das
hastes.
— Eu queria mostrar isso para você — disse Liwei enquanto se
levantava. — Uma das armas mais poderosas de nosso tesouro.
Esta pode ser uma boa chance de testá-lo.
Eu o peguei. Meus dedos formigaram no ponto em que tocaram o
metal.
— Onde estão as flechas?
Liwei se moveu atrás de mim e nossos corpos ficaram a poucos
centímetros de distância. Com os braços estendidos em minhas
laterais, ele me orientou a erguer o arco e puxar a corda prateada.
Minha pulsação acelerou e minha cabeça girou. Eu erraria qualquer
alvo naquela posição, mesmo que estivesse a cinco passos de
distância.
Uma flecha flamejante se formou em minhas mãos, crepitando,
como se estivesse viva. Assustada, eu teria largado o arco, mas
Liwei o segurava por cima de minhas mãos. Quando finalmente
afrouxamos a corda, a flecha desapareceu.
— Poucas armas existentes são tão poderosas. Cada flecha do
Arco de Fogo da Fênix pode causar ferimentos graves em apenas
um contato. Mas apenas quem tem muita força vital pode empunhar
essa arma de forma eficaz — alertou ele.
Olhei para o arco, lembrando-me da capa desbotada do livro
mortal. Era verdade que meu pai havia usado um arco de gelo para
derrubar os pássaros solares? Uma arma encantada do Reino
Imortal?
— Alguém com pouca força vital, talvez um mortal, poderia usar
tal arma? — indaguei. Ele refletiu sobre a pergunta.
— Itens mágicos possuem seu próprio poder. A maioria deles
pode ser usada por qualquer pessoa. Até mortais. No entanto,
quanto mais forte seu usuário, mais poderoso o item se torna, pois
ele consome a energia do usuário para aumentar e reabastecer a
própria. Se este arco for empunhado por alguém com pouca força
vital, essa pessoa não apenas terá dificuldade de controlá-lo, mas o
poder do item será muito reduzido.
— Como este arco consome nossa energia? Não parece ser
diferente dos outros.
Ele se inclinou mais perto e a respiração dele espiralava em meu
ouvido.
— Uma arma como o Arco de Fogo da Fênix forma uma conexão
com seu portador, absorvendo sua energia perfeitamente. Isso o
torna poderoso, mas também perigoso.
— Perigoso? — repeti, tentando pensar em qualquer coisa além
do calor do corpo dele se misturando ao meu.
— Sim, porque no caos da batalha os portadores de tais armas
podem não perceber quanta energia foi gasta até que seja tarde
demais — disse ele com seriedade.
Engoli em seco, lembrando-me da severa advertência da
Professora Daoming para nunca deixar minha energia se esgotar.
Saindo dos braços de Liwei, passei-lhe o arco.
— Você primeiro.
— Você não tinha um desafio em mente? — perguntou ele.
— Desta vez, que tal um de habilidade, não de velocidade? —
sugeri, pensando na derrota de antes.
Ele se abaixou para pegar duas flores de pessegueiro murchas.
Enquanto a magia do Príncipe Herdeiro girava sobre elas, a cor
voltou a aflorar; as pétalas brilhavam como se fossem esculpidas
em quartzo rosa.
— Quem acertá-las da maior distância vence.
Peguei uma das flores, que agora estava dura como pedra.
Seu comportamento implicante se fora, ele agora olhava para a
frente com os olhos estreitos, arco apontado e corda esticada.
Assim que ele assentiu para dar o sinal, soltei a primeira flor. Ela
subiu, afastando-se mais rápido que um beija-flor, girando no ar.
Vários segundos se passaram e a flor agora era um pontinho no
horizonte. Com um tinido, a flecha de Liwei foi atirada para frente,
despedaçando as pétalas em uma explosão de centelhas
flamejantes.
Um excelente tiro. Eu não tinha certeza se poderia superá-lo
como estaria, com os olhos vendados. Estava prestes a engolir
minha provocação orgulhosa de antes e exigir uma partida em
igualdade de condições, mas reprimi o impulso quando peguei o
arco. Ansiosa para testar seu poder, passei os dedos sobre a corda
brilhante, mais rígida do que as feitas de seda.
Enquanto Liwei amarrava o pano branco sobre meus olhos, seus
dedos roçavam minhas bochechas. Isso era uma distração que eu
não podia me dar ao luxo de ter, então inspirei profundamente para
limpar a mente.
Quando estava preparada, assenti. Um zumbido baixo quebrou o
silêncio, um ruído leve de rodopio, desaparecendo a cada momento
que passava. Agora estava quase imperceptível, e mesmo assim
esperei, aguçando os ouvidos. No preciso momento em que veio o
silêncio, minha flecha foi libertada — assobiando no ar e atingindo
algo com um tilintar. A coisa atingida se estilhaçou, pegando fogo e
emitindo um silvo.
Levantei a mão a fim de puxar a venda para baixo, mas braços
fortes me cercaram e o cheiro de grama aquecida pelo sol afogou
meus sentidos. Os lábios dele esmagaram os meus, pressionando-
os, e seu hálito quente estava entrelaçado com a doçura persistente
do vinho. Estremeci, não de frio, mas devido ao calor que corria por
minhas veias. Agarrando seus ombros, eu o puxei para ainda mais
perto de mim. Sua boca foi descendo, traçando um caminho
escaldante por meu pescoço, com uma fome que me deixou sem
fôlego. Com a mão livre, tirei a venda e fui ofuscada pela luz
repentina. Caímos no chão. O tapete de pétalas era mais macio que
qualquer cama… meu corpo estava aceso, com mil sensações
cintilantes.
As primeiras gotas de chuva foram suaves e frágeis, enxugadas
facilmente, mas logo se transformaram numa inundação torrencial
impossível de ignorar. Deitamos no chão, deixando a chuva cair
sobre nós, encharcando-nos completamente, como se tivéssemos
nadado no rio.
Nosso fôlego estava pesado e irregular; nossos dedos se
emaranhavam na grama molhada.
— Quem ganhou? — perguntei, voltando a mim.
Ele me lançou um olhar incrédulo.
— Num momento como este, é nisso que você pensa?
— Eu venci. — Respondi minha própria pergunta com um suspiro
satisfeito.
— O que a faz pensar assim?
— Se você tivesse vencido, não teria me distraído, teria esfregado
isso na minha cara. Impiedosamente.
Ele se apoiou num cotovelo para me olhar.
— É nisso que você acredita? — indagou ele, em um tom
magoado. — Pois bem. O beijo não teve nada a ver com a sua
aparência quando você atirou a flecha e atingiu o alvo, mesmo que
ele já tivesse desaparecido. — Ele balançou a cabeça
negativamente. — Por que fui me apaixonar por alguém que tem
tanto prazer em reduzir meu orgulho a pó?
Incrédula, fiquei de queixo caído.
— Você me ama?
— Depois de todo o nosso tempo juntos, eu tive escolha?
Coloquei a mão em seu peito, sem paciência para piadas.
— Está falando sério?
A luz em seus olhos abriu um caminho para meu coração,
enquanto sua mão vinha capturar a minha.
— Sim.
Quando criança, minha mãe me advertiu contra olhar diretamente
para o sol, dizendo que seu enorme fulgor poderia me cegar. Talvez
fosse algo que a mãe dela lhe dissera. Embora isso possa ser
verdade para os mortais, agora eu duvidava que uma coisa dessas
pudesse prejudicar a visão de um imortal. Mesmo assim, seu aviso
ficou em minha mente — sempre que eu via o orbe de fogo no céu,
eu instintivamente me virava ou me protegia. Nesse dia, eu
finalmente ousei olhar para o sol, permitindo que seu brilho me
atingisse sem nenhum obstáculo, derramando-se em minhas veias
até que eu estivesse totalmente acesa. Nunca imaginei que
existisse uma alegria tão luminosa, e nunca mais me contentaria em
ficar nas sombras.
Depois do aguaceiro, o céu ficou limpo mais uma vez. Liwei
conjurou uma nuvem para nos levar para casa e, no caminho,
secamos nossas roupas. Se tivéssemos voltado no estado
encharcado em que estávamos, teríamos dado origem a perguntas
indiscretas e fofocas indesejadas. Enquanto voávamos de volta para
o Palácio de Jade, meu estado de espírito estava mais leve do que
as nuvens pelas quais passávamos.
Em meu quarto, afundei em minha cama num torpor parecido com
um sonho. Descansar estava longe de minha mente enquanto a
euforia que me percorria sufocava toda a esperança de dormir.
Quando alguém bateu, abri as portas e me deparei com um criado
segurando um rolo de papel amarrado com um cordão de seda.
— Sua Alteza me pediu para dar isto a você. — Quando peguei o
papel e agradeci, ele acrescentou: — Alguém está esperando por
Sua Alteza lá fora.
Imaginando quem poderia ser, entrei no pátio e vi uma garota
sentada no pavilhão. Sua aura era quente e leve, embora também
pulsasse com força. Ela era surpreendentemente bonita, com olhos
esguios e curvados para cima, um rosto em forma de coração e
feições delicadas. Seda cor-de-rosa cobria seu corpo alto, e seu
cabelo escuro estava preso por grampos de ouro do qual caíam fios
de rubis, brilhando com chama interior. Curvei-me para ela em
saudação. Seria filha de um cortesão ou de uma das damas
favoritas da imperatriz?
— O Príncipe Liwei está aqui? — Sua voz era suave e doce.
Uma ligeira inquietação alfinetou meu coração, mas dei a ela um
sorriso agradável.
— Sua Alteza está com Suas Majestades Celestiais. — Quando
sua postura murchou, acrescentei: — Há algo em que eu possa
ajudar?
— Tenho um presente para Sua Alteza, mas posso dar a ele mais
tarde. — A garota olhou para a pintura inacabada de uma flor de
pessegueiro sobre a mesa. Alguns pincéis estavam embebidos em
um jarro de água e ao lado havia uma bandeja de porcelana, ainda
molhada de tinta. Liwei devia ter trabalhado na obra havia pouco
tempo.
— É uma obra do Príncipe Liwei? — Ela traçou o contorno dos
galhos. — É linda.
— Sua Alteza tem muitas habilidades — comentei.
Quando ela se levantou para sair, seu cotovelo derrubou um
pincel. Tinta verde-escura manchou toda a obra de arte.
Ela exclamou de susto enquanto pegava um lenço de seda,
enxugando furiosamente o papel. Corri para ajudá-la, empurrando o
jarro. Ele tombou e a água jorrou sobre a mesa, encharcando a obra
de arte em instantes. Da árvore, outrora primorosamente pintada,
apenas manchas verde-escuras podiam ser vistas no meio da
bagunça molhada.
Os dedos dela torciam o lenço em nós e suas cordas vocais
trabalhavam em palavras que ela não falava.
— Pode ter sido o vento — falei solenemente.
Ela piscou para mim.
— Ou um pássaro — concordou ela rapidamente.
Nossos olhos se encontraram num profundo momento de
compreensão. Pouco depois, ela saiu, virando-se uma vez a fim de
olhar para o pátio.
De volta a meu quarto, desenrolei o pedaço de papel de Liwei.
Era uma pintura minha, parada debaixo de uma árvore florida —
uma flecha estava encaixada em meu arco, no instante antes de ser
disparada. Meu olhar estava fixo no alvo, minha boca exibia
determinação, minhas costas estavam eretas. Minha pulsação
acelerou ao pensar que ele me via daquele jeito — forte e, de
alguma forma, bonita.
Na parte inferior do papel, uma mensagem estava escrita em suas
pinceladas arrojadas:
Você pode ter vencido o desafio, mas não o maior prêmio.
Um sorriso lento se espalhou por meu rosto com a memória de
nosso envolvimento mais cedo. Pegando um pedaço de papel,
mergulhei meu pincel na tinta e escrevi minha resposta:
No jogo dos corações não há prêmio.
Minha mãe teria ficado satisfeita; minha caligrafia havia
melhorado. Dobrando o bilhete, joguei-o em minha bolsa. Eu
encontraria um momento apropriado para entregá-lo a Liwei à noite.
12

O Salão da Luz Oriental não tinha teto, abria-se para o céu


estrelado. Suas paredes de pedra branca eram raiadas com veios
de ouro puro, enquanto o chão era pavimentado com ladrilhos de
jade esculpidos em flores. Pilares brilhantes de cristal iluminavam a
sala, assim como as centenas de lanternas de seda penduradas
entre eles em tons ardentes de carmesim e vermelhão. A fragrância
de flores raras perfumava o ar, misturando-se com os deliciosos
aromas da enorme quantidade de comida sobre as mesas de pau-
rosa. Pêssegos Imortais cobiçados estavam empilhados em
bandejas de prata para serem distribuídos a critério da Imperatriz
Celestial. Apenas um desses pêssegos, em tom marfim cremoso
com um rubor divino, tinha o poder de intensificar a força vital de um
imortal ou de prolongar a vida de um mortal.
Mesmo no Império Celestial, tal extravagância era rara. Os
convidados vestidos de forma luxuosa se cumprimentavam
efusivamente, corados pela animação e pelo vinho. Eu tinha
acabado de chegar e já estava perdida naquele mar de estranhos.
Alguém cutucou meu ombro. Era o General Jianyun, pela primeira
vez sem armadura, mas vestido com um longo casaco de brocado
de prata drapeado sobre o manto cinza. Juntei as mãos e me curvei,
aliviada por ver alguém que conhecia.
— Este é seu primeiro banquete? — perguntou ele.
— Sim. Sua Alteza me convidou esta noite.
Seguiu-se um breve silêncio.
— E então? Já pensou em minha oferta? — indagou ele, sem
rodeios.
Meus olhos se fixaram em um ladrilho de jade enquanto eu
procurava uma resposta. Ah, eu teria agarrado aquela oportunidade
antes. Mas, agora, um novo medo pulsava em mim só de pensar em
ficar longe de Liwei — por semanas, talvez meses a fio. Não que ele
tivesse substituído minha mãe, mas meu coração, antes inteiro, fora
partido em dois. Eu faria o que vim fazer, com certeza, porém, por
egoísmo, queria um pouco mais de tempo aqui. Nosso amor era
muito novo, muito precioso para correr qualquer risco.
Decidi então que falaria com Liwei à noite. Depois das
festividades, eu lhe contaria o que pudesse sem revelar o nome de
minha mãe. Ele entenderia, não me pressionaria por mais. E talvez,
juntos, encontrássemos nosso caminho.
— General Jianyun, talvez não devêssemos falar desses assuntos
no aniversário de Sua Alteza. — Eu esperava que tal ocasião me
permitisse esse atraso.
Contrariado, ele franziu a testa, mas assentiu enquanto olhava ao
redor da sala lotada.
— Você conhece algum desses pavões aqui? — Uma risada
reprimida escapou de minha garganta, e tentei disfarçá-la tossindo.
— Estou no exército há muito tempo. Não faço lisonjas nem digo
coisas que não quero dizer. Acredite em mim, esse monte de
cortesãos só serve para se vestir com penas finas e assobiar
elogios vazios. — O General Jianyun fez uma expressão de
desgosto enquanto apontava com a cabeça para um homem a
nossa frente. — Aquele, porém, é mais um corvo astuto. O
conselheiro leal do imperador, ainda que seu conselho sirva, muitas
vezes, a ele mesmo.
Era raro o General Jianyun falar tão depreciativamente de outros,
e perguntei-me quem merecia seu desprezo. Não conseguia ver o
rosto do homem, apenas seu belo manto roxo e as luvas claras que
cobriam suas mãos — um acessório incomum que me impressionou
imediatamente. Era o Ministro Wu, que se virou como se sentisse
nossos olhos sobre ele. Ele me ignorou e contraiu os lábios
enquanto se curvava para o General Jianyun. A visão do ministro
revirou meu estômago, despertando novamente o velho sofrimento
e o velho medo.
Tão envolvida estava em meus pensamentos que quase esbarrei
no alto imortal que parou diante de nós; as folhas de bambu
bordadas em seu manto farfalhavam em seda esmeralda. Uma faixa
cinza estava amarrada em sua cintura, seu cabelo em um coque
brilhante preso com um alfinete de ébano. Sua aura correu sobre
mim: fresca e limpa, mas densa e forte. Como um vento de outono
espesso com folhas esmagadas e chuva. Seus olhos negros
varreram-me com pouco interesse antes de cumprimentar o General
Jianyun, juntando as mãos e esticando-as enquanto se curvava.
O estranho chamou o general para um canto, o que me deu a
oportunidade de estudá-lo mais a fundo. Ele se portava com a
segurança da autoridade, mas não parecia muito mais velho do que
eu, a menos que fosse um daqueles imortais poderosos, ocultando
mil anos com sua força vital. Seu rosto era atraente; maçãs do rosto
altas com uma mandíbula forte e uma boca bem formada, embora
um pouco austera. Não me lembrava de tê-lo visto no campo de
treinamento, mas duvidava que fosse um cortesão pelo modo como
seus olhos percorriam a sala com impaciência, como se aquela
alegria o entediasse.
Dei um passo à frente, com a intenção de pedir licença para me
retirar. Não era nada prazeroso ser excluída, relegada a não mais
que uma peça de mobília, embora andar sozinha na multidão
também me assustasse.
O General Jianyun se assustou como se tivesse se esquecido de
minha presença.
— Ah, Xingyin. Conhece o Capitão Wenzhi?
O célebre comandante? Um dos melhores guerreiros do império,
apesar de ser apenas cem anos mais velho que eu? No entanto,
antes que eu pudesse cumprimentá-lo, ele se virou abruptamente,
como se estivesse ansioso para que eu fosse embora. Eu o achei
insuportável e, mordendo a língua, tentei não permitir que sua
descortesia me incomodasse, mesmo estando furiosa comigo
mesma por, antes da festa, querer conhecê-lo.
— Xingyin é a companheira de estudos do Príncipe Herdeiro —
acrescentou o General Jianyun.
O jovem e arrogante capitão virou-se para mim, então, com o
rosto iluminado por um súbito interesse.
— Aquela que treina com Sua Alteza? A arqueira?
— Sim — respondi secamente, ainda magoada por sua grosseria
anterior.
— Retornei há poucos dias. Vi você ontem, no campo, quando
atirou naqueles discos. Nunca vi uma pontaria tão boa. — Um
sorriso pousou em seus lábios.
Fiquei parada pensando e finalmente o reconheci. O soldado alto
que aplaudiu primeiro.
Seu olhar passou pela seda azul de meu vestido, pelas magnólias
cor de creme com miolos dourados bordadas em minha saia. Um
cinto de brocado verde, cravejado de prata, estava amarrado em
minha cintura. Em meu cabelo estava o broche que Liwei me dera
de presente.
— Peço desculpas por não a ter reconhecido antes. Nesse
vestido, você parece… — Sua voz sumiu e as pontas de suas
orelhas ficaram vermelhas.
— Um pavão inútil? — Terminei a frase para ele, sorrindo para o
General Jianyun.
O Capitão Wenzhi não riu.
— Eu quis dizer que nesse vestido você não parece a guerreira
que é. — Seu elogio me encheu de um prazer inesperado. Talvez
ele não fosse tão insuportável quanto eu pensava. — Gostaria de
sentar-se conosco? — convidou ele.
Aceitei de bom grado. Tinha acabado de vislumbrar o pai de
Madame Meiling e estava tão interessada em manter distância dele
quanto ele de mim.
Nossa mesa estava na frente e tinha uma vista limpa do
palanque. Nele, uma mesa de pau-rosa estava posta diante dos
tronos brancos de jade, ladeados por outros de menor tamanho.
Naquela noite, a realeza visitante foi homenageada por estar
sentada ao lado de Suas Majestades Celestiais, embora ainda não
tivessem aparecido.
Um silêncio tomou conta da sala. Uma força fez o ar vibrar
quando a família real entrou e todos foram caindo de joelhos aos
tropeços. Ergui a cabeça um centímetro para ter um vislumbre do
imperador que aprisionara minha mãe. Mesmo cercado pelos
imortais mais poderosos do reino, o Imperador Celestial era
estonteante. Sua aura brilhava com um poder impenetrável: de uma
montanha de pedra, de uma geleira eterna. Dragões escarlates e
azuis estavam bordados em suas vestes amarelas brilhantes,
voando velozes por nuvens rodopiantes. A moldura de ouro
ornamentada de sua coroa foi colocada em uma base incrustada de
joias, da qual caíam fios de pérolas brilhantes. Elas balançavam
diante de sua testa, captando a luz a cada movimento dele. Seu
rosto era atemporal, mesmo para um imortal; sua pele lisa não
exibia nem a vitalidade da juventude, nem as preocupações do
tempo. Na escuridão de suas pupilas, encontrei uma ligeira
semelhança com o filho — embora suas profundezas opacas
fossem desprovidas de calor. Ele não parecia particularmente
aterrorizante, mas algo nele fez meu estômago congelar.
Liwei parou à minha frente, inclinando a cabeça para me
cumprimentar. Mesmo assim, seu sorriso estava guardado e seus
olhos, opacos. Será que ele gostaria de voltar para seus aposentos?
Quis perguntar isso, mas não ali. Não naquele momento. Só de
reconhecer minha presença, ele desrespeitou o protocolo que exigia
que ele cumprimentasse os convidados de honra primeiro. Enquanto
ele se afastava, meu pulso acelerou e fitei-o como uma garota com
um olhar de lua cheia. Ele estava magnífico, com o casaco de
brocado azul meia-noite aberto, revelando o manto branco-prateado,
brilhando como se o tecido fosse feito de luz das estrelas. Seu
cabelo estava sob uma coroa de ouro e safira e preso por um
alfinete ornamentado.
— Os monarcas dos Quatro Mares. — O General Jianyun acenou
com a cabeça em direção ao palanque, achando que esse era o
objeto de meu interesse. — É raro vê-los juntos. As relações ficaram
tensas desde o apoio dos Mares do Oeste e do Norte ao Reino dos
Demônios. No entanto, isso está no passado; talvez seja o anúncio
de um novo começo.
Todos eles usavam mantos esvoaçantes em vários tons de azul e
verde, mas a semelhança terminava aí. Os cabelos longos do Rei
do Mar do Leste brilhavam como prata fiada em sua pele escura,
enquanto os olhos verdes da Rainha do Mar do Sul brilhavam em
seu rosto pálido. Os dois monarcas restantes estavam rígidos em
seus assentos: um usava uma coroa de coral, o outro, de turquesa e
pérolas.
— Quem é aquela sentada ao lado deles? — Olhei para a
belíssima imortal com joias em formato de flores brilhando nas
voltas de seus cabelos.
— A Imortal das Flores. Nossos jardins requintados são o
resultado de seus esforços. Eu a vi reviver um jardim murcho com
um leve movimento do pulso, embora ela não seja tão poderosa
quanto sua antecessora — observou o General Jianyun.
— O que aconteceu com sua antecessora? — Era raro um imortal
desistir de seu cargo.
— Madame Hualing escolheu viver longe do Império Celestial, na
Floresta da Eterna Primavera. Um lugar que ela cultivava como
queria.
Eu esperei que o general continuasse, curiosa sobre essa imortal,
mas ele ficou em silêncio, tamborilando os dedos na mesa.
Então, o Capitão Wenzhi falou.
— Os Celestiais não gostam de falar dela. Talvez isso os lembre
do que pode acontecer até mesmo com os mais poderosos, caso
percam a aprovação do imperador.
O General Jianyun fez uma careta.
— Mesmo você, dos Quatro Mares, não gostaria de irritar nosso
imperador. — Eu estava prestes a perguntar ao Capitão Wenzhi de
qual dos Quatro Mares ele era, quando ele falou novamente: —
Contam que Madame Hualing se distraiu e negligenciou seus
deveres por décadas, até que o tribunal pediu a Sua Majestade
Celestial que a removessem de seu cargo. Desde então, ela não foi
mais vista. Há centenas de anos.
Eu me perguntei porque o imperador não revogara os deveres de
Madame Hualing antes; ele parecia não tolerar a menor
desobediência dos outros. Mas então todas as cabeças se voltaram
para a entrada e sussurros ansiosos começaram a farfalhar pela
multidão. Virei-me para ver dois imortais se aproximando do
palanque.
— Rainha Fengjin e a filha, Princesa Fengmei, do Império da
Fênix — disse para mim o Capitão Wenzhi.
O nome me atingiu como um golpe. Segundo os boatos, era a
princesa que fora prometida a Liwei. Capas brilhantes de penas
douradas estavam presas em volta de seus ombros, sobre as
longas vestes de brocado carmesim cravejado de pérolas. Uma
coroa de rubis de fogo brilhava no cabelo da rainha. Quando a
princesa levantou a cabeça, algo em meu peito se contraiu. Era a
garota que eu havia conhecido no pátio mais cedo, minha parceira
na destruição total da pintura de Liwei. A imperatriz cumprimentou-
as calorosamente, levantando-se enquanto gesticulava para seus
assentos. Meu coração deu um nó quando a princesa se sentou ao
lado de Liwei, cujo rosto parecia esculpido em pedra.
Respirei fundo, determinada a manter um bom estado de espírito.
Felizmente, o General Jianyun conhecia muitos fatos interessantes
sobre os nobres convidados e não hesitou em compartilhá-los. Na
maior parte do tempo, o Capitão Wenzhi ficava em silêncio, mas era
solícito comigo, garantindo que minha taça de vinho estivesse
sempre cheia e colocando as iguarias mais seletas em meu prato.
Sempre que olhava para cima, via que Liwei me encarava. À
medida que a noite avançava, sua expressão ficava mais obscura
que uma noite sem lua, mais trovejante que uma tempestade de
primavera. Naquele momento, ele parecia mais temível do que a
Imperatriz Celestial.
O Capitão Wenzhi se inclinou para mim.
— Por que Sua Alteza está olhando carrancudo para você?
— O senhor deve estar enganado — respondi rapidamente,
tentando esconder meu desconforto.
O olhar que ele me lançou foi de descrença, mas deu de ombros.
— Nesse caso, ele deve estar olhando para mim.
Talvez fosse o vinho soltando minha língua ou a maneira informal
como ele falava, pois respondi:
— O senhor acha que sua aparência é tão agradável assim? Nem
todo mundo fica admirado ao vê-lo.
— Estou interessado em ouvir o que você pensa de mim. — Suas
sobrancelhas estavam arqueadas em um aparente desafio.
— Mesmo que não o agrade?
— Especialmente se não me agradar — disse ele, aprofundando
o tom da voz.
Dei uma risada vazia, incapaz de expulsar aquele sentimento de
desconforto, de que algo não estava certo. Por que Liwei estava
olhando para mim ? Não havia outra maneira de descrever seus
lábios cerrados e seus olhos queimando como brasas nos meus.
Infelizmente, a imperatriz também notou. Ela apontou o dedo para
mim, e o dedal de ouro pontiagudo brilhou na luz. Apenas nesse
instante percebi que não eram meros ornamentos, mas Garras da
Fênix que, conforme se falava, eram revestidas por um veneno
potente.
Caminhando arrastada, fui até a frente do palanque e me ajoelhei,
aguardando sua ordem.
Seu olhar penetrante me lembrou o de um falcão mergulhando
sobre a presa.
— Seu grampo de cabelo é lindo, um tesouro raro, de fato. Onde
você o obteve? — Seu tom de voz suave embainhava a adaga em
suas palavras.
Minhas bochechas ficaram quentes enquanto eu procurava uma
resposta. Uma resposta educada, uma observação espirituosa,
qualquer coisa, menos o silêncio de dar sono que fazia com que
presumissem uma culpa inexistente.
Liwei se levantou e juntou as mãos, curvando-se em uma
reverência.
— Honorável Mãe, foi um presente meu para ela.
— Você é afortunada por meu filho ser tão generoso. Como
planeja retribuir tal gentileza? — Seus lábios vermelhos se abriram
em um sorriso sem alegria. — Hoje é aniversário dele. Que presente
trouxe para ele? Espero que seja de igual valor.
Liwei levantou a voz.
— Honorável Mãe, não há necessidade disso. Se isso a ofende
de alguma forma, peço que fale comigo a sós.
Ela o ignorou; os dedais brilhavam enquanto ela tamborilava as
unhas no apoio de braço do trono. Ela pretendia me humilhar,
anunciando a todos que aquele não era meu lugar. Mas eu não
estava envergonhada — estava furiosa. Não apenas por mim, mas
por suas ameaças a minha mãe, por sua tentativa fracassada de
arruinar meu pai, por seu egoísmo em não controlar os pássaros
solares até que a tragédia acontecesse.
Não, eu não recuaria diante de seu olhar, não me acovardaria
diante de sua condescendência. Ergui a cabeça com um sorriso
brilhante no rosto.
— A Sua Alteza, dei meu presente. No entanto, se desejar que eu
o compartilhe, ficarei feliz em atendê-la.
Ela olhou para mim como se eu fosse o pior dos insetos. Com um
aceno imperioso, gesticulou para que eu continuasse.
Tirei a flauta de minha bolsa. Meus dedos estavam tão gelados
quanto a jade em minhas mãos. Minha língua passou por meus
lábios secos enquanto eu olhava para a multidão, começando a me
arrepender das palavras imprudentes que haviam me levado até ali.
Alguns convidados pareciam entediados, outros estavam radiantes
de expectativa diante da humilhação que viria. Como eu poderia me
apresentar diante de tal público? Mal conseguia respirar; minhas
costelas estavam apertadas, como se estivessem coladas umas nas
outras. Atrás de mim, passos bateram contra o chão quando alguém
se aproximou. Era o Capitão Wenzhi, trazendo um banquinho, que
ele colocou diante de mim.
Abaixando-se, ele sussurrou em meu ouvido:
— Quando as linhas da batalha estiverem traçadas, avance com a
mente limpa.
Engoli em seco, assentindo com a cabeça para ele em
agradecimento. Suas palavras foram um conforto contra meu medo
debilitante. Recuar agora seria realmente pior do que fracassar.
Prefiro que a imperatriz pense que meu desempenho é insatisfatório
a acreditar que sou covarde ou mentirosa. Sentei-me no banco,
grata por essa posição esconder minhas pernas trêmulas.
Respirando fundo, levei a flauta à boca. A imperatriz, o imperador e
os convidados reais ficaram borrados em minha visão; tudo o que
via eram os olhos de Liwei nos meus. Aquela era a música dele, e
eu tocava somente para ele. Minhas notas subiram claras, fortes e
autênticas — refletindo todas as emoções que ele já havia evocado
em mim.
No momento em que a melodia terminou, fiz uma reverência ao
palanque e voltei rápido para meu assento. Desejei que fosse
possível desaparecer afundando no chão em meio ao silêncio
perfurado por um punhado de aplausos daqueles que ainda não
haviam percebido que a expressão no rosto da imperatriz não era
de admiração, mas de raiva — fervendo como uma panela deixada
por muito tempo no fogão. Minha raiva se fora e eu me preocupava
com como ela retaliaria. Não agora, depois — ela não esqueceria
aquele insulto. Eu não fiz nada além do que ela pediu e, no entanto,
ambas sabíamos que minha rebeldia foi me recusar a deixá-la me
fazer de tola. Ela era a Imperatriz Celestial, mas também era a mãe
de Liwei. Por meio de minha imprudência e de meu orgulho,
emaranhei ainda mais os laços entre nós.
Tentei chamar a atenção de Liwei, mas então os doces foram
trazidos e os convidados murmuraram em deleite. Eram iguarias
requintadas — bolos de amêndoas prensados em formas de flores,
quadrados dourados de geleia de jasmim-do-imperador, bolinhos de
gergelim crocantes e uma variedade enorme de pudins — mas meu
apetite havia desaparecido.
A imperatriz sussurrou para o marido, que assentiu uma vez. Sua
voz profunda retumbou no silêncio repentino no corredor.
— Esta noite, reunimo-nos para comemorar o aniversário de
nosso filho, o Príncipe Herdeiro Liwei. Acontece que esta é uma
dupla celebração. Estamos muito felizes em anunciar seu noivado
com a Princesa Fengmei, do Império da Fênix. Que a concordância
entre eles dure para todo o sempre e que encontrem a felicidade
eterna juntos.
Como se estivesse em transe, minha mão se moveu por vontade
própria, juntando-se aos outros, levando as xícaras à boca. Não
provei o que bebi, se é que bebi alguma coisa. O anúncio do
imperador entrou em mim como uma lâmina no peito, retorcendo-se
cruelmente ao me atingir. Não ouvi nada além do rugido em minha
mente — nem os aplausos dos convidados se levantando, nem as
palmas que ressoaram por todo o salão. Meus dedos se cravaram
na mesa, minhas unhas arranhavam a madeira polida. Lágrimas
cobriram meus olhos, mas eu lutei contra elas, mordendo o interior
de minha bochecha até que o gosto quente de metal e de sal
encheu minha boca.
Um casamento era uma ocasião alegre, acredita-se que trazia
sorte. Enquanto os convidados lutavam para ver quem esbanjava
mais elogios ao casal, sentei-me entorpecida em minha cadeira,
sem forças para fugir.
“Que combinação harmoniosa de pérola e jade!”
“A Princesa Fênix e o Príncipe Dragão, um par realmente auspi-
cioso!”
“Viu como são belos? Uma conjunção feita no céu, com certeza!”
Cada palavra era uma facada em minha ferida infectada. Olhei
para Liwei, incrédula, com alguma esperança de que ele se
levantasse de um salto e negasse, que dissesse que isso era
apenas uma brincadeira cruel. Ele não olhou para mim, porém, e
seus olhos eram invernais, desprovidos de luz. Pior ainda, ele
aceitava os parabéns dos convidados assentindo brevemente com a
cabeça. A Princesa Fengmei corava com a atenção e, quando ela
tocou o braço de Liwei, meu estômago murchou como uma folha
seca que cai nas chamas.
Era real; ele estava noivo de outra. Um desejo desesperado de
sair dali tomou conta de mim. Eu queria ficar sozinha, deixar minha
dor fluir como um rio no oceano. Porém, esmaguei o impulso
covarde. Eu não correria, nem me esconderia. Bem quando eu
pensei que certamente desmaiaria de dor, uma mão cobriu a minha,
firme e forte, um toque frio que penetrou meu torpor. Erguendo a
cabeça, meu olhar colidiu com o do Capitão Wenzhi, iluminado pela
compreensão. Ele era um estranho que eu conhecera naquela noite,
mas agora era minha única âncora naquela tempestade furiosa.
Aceitei seu conforto silencioso, agarrando seus dedos — sentindo-
me tão vazia quanto um jarro de vinho descartado e tombado,
derramando seu conteúdo no solo indiferente.
13

A noite estava clara e caía uma leve geada, mas eu já estava


congelada por dentro. Sentei-me no pátio, fitando a lua solitária no
céu. Será que minha mãe conseguia me ver? Pela primeira vez, eu
esperava que ela não conseguisse. Eu não queria que ela sentisse
minha dor, que soubesse que idiota eu tinha sido.
Uma sombra caiu sobre mim, mas não olhei para cima. Nem
mesmo quando ele se sentou ao meu lado.
— Xingyin, eu posso explicar.
Cerrei os punhos sobre o colo, as veias saltando na pele. Ele
brincou com meu amor de uma forma tão insensível, como uma flor
arrancada e deixada para murchar no chão. Eu merecia mais do que
isso. Preservaria o que sobrara de meu orgulho, pois já havia
perdido muito.
— Vossa Alteza, precisa de minha ajuda? Se não, vou me
recolher.
— Pode me ouvir? — A luz em seus olhos se extinguiu; havia se
afogado em um abismo.
Levantei-me; minhas pernas eram como tábuas de madeira. Ele
tentou me pegar pelo braço, mas me desvencilhei; não queria ser
tocada, muito menos por ele.
— Muito bem. — Sua voz estava tensa. — Preciso de ajuda esta
noite.
Eu o segui em silêncio até seu quarto. Acendi as lamparinas,
aqueci o braseiro, esquentei uma jarra de vinho e levei uma nova
muda de roupas para ele. Sobre a mesa, coloquei seus livros e
materiais para o dia seguinte. Eu havia realizado essas tarefas para
ele inúmeras vezes antes, mas nunca com uma precisão tão fria,
nem com o coração tão relutante.
Ele ficou parado ali, observando-me com aqueles olhos escuros e
insondáveis. Quando levantou os braços, tirei seu casaco azul
escuro e, em seguida, seu manto branco e prateado, pendurando-os
em um suporte de madeira. Tirei o grampo de ouro e a coroa de sua
cabeça. Seu cabelo caiu sobre seus ombros e eu o penteei,
tomando cuidado para não deixar um único fio me tocar.
Quando terminei, fiz uma reverência e me virei para sair.
— Eu não a dispensei — anunciou ele calmamente.
— Cumpri todas as minhas funções. Para que mais precisa de
mim? — Minha voz era seca; meu coração, pesado. Eu não poderia
suportar aquela farsa por muito mais tempo.
— Sente-se. Escute-me — acrescentou ele. — Por favor.
Embora meu orgulho me enfurecesse e tentasse me fazer sair
dali, sentei-me em uma cadeira. Olhando para a vela bruxuleante
sobre a mesa, decidi que ficaria até que se apagasse. Ele não teria
mais de mim do que esse tempo.
Liwei sentou-se ao meu lado, passando as mãos no cabelo. Notei,
distante, que meus esforços com o pente haviam sido em vão.
— Minha mãe sempre quis fortalecer nossos laços com o Império
da Fênix. Eles são um domínio poderoso, uma aliança desejável e
seus parentes, embora a Rainha Fengjin seja de uma linhagem
distante. Quando os pássaros solares foram mortos, abatidos sob
nossa vigilância, o vínculo entre nossos reinos ficou tenso. — Ele
respirou fundo.
“Foi então que ela pressionou mais pelo noivado entre a Princesa
Fengmei e eu. Nunca concordei, mesmo sendo meu dever, o que se
esperava de mim. Eu não queria me casar com alguém que não
amava. Os anos se passaram e acreditei que ela havia abandonado
a ideia. Quando a deixei ontem, fui até meus pais, com a intenção
de contar-lhes sobre nós. Eles me informaram então que um
noivado havia sido acertado naquele mesmo dia entre a Princesa
Fengmei e eu. E, claro, eu recusei! Mas eles explicaram a urgência
do matrimônio. Além do prestígio, era para garantir nossa
sobrevivência. A Rainha Fênix está inquieta. De acordo com nossos
espiões, nossos inimigos fizeram propostas para ela se voltar contra
nós. Não podemos perder a amizade do Império da Fênix agora,
muito menos tê-los como nossos inimigos. Não quando estamos
enfraquecidos após a guerra com o Reino dos Demônios. Não
quando ainda somos ameaçados por eles. A trégua entre nós está
sobre o mais tênue dos fios, e ele provavelmente arrebentará caso
eles consigam uma vantagem; e temos certeza de que estão
tramando contra nós, mesmo agora. — Ele prosseguiu naquele tom
uniforme e protocolar. — Devo proteger meu reino e minha família,
como puder. Não posso, por vontade própria, fazer nada que possa
colocá-los em perigo. Eu não posso ser egoísta, não importa o
quanto eu queira.
O silêncio se estendeu entre nós, tão largo quanto um abismo.
Suas palavras eram para ser um conforto, mas eu estava
devastada. Talvez eu pudesse ter suportado melhor se ele tivesse
sido forçado, mas saber que ele havia aceitado o noivado por
vontade própria doeu mais do que um soco em cheio em meu
estômago.
No entanto, a lógica era impiedosa e a razão, implacável; não
teriam pena de meu coração ferido. Eu teria tomado uma decisão
diferente? Eu não teria feito qualquer sacrifício para salvar minha
família e meu lar?
Isso não foi o bastante. Não foi o bastante para aliviar a dor em
meu peito, o nó na garganta, o mal-estar que dava voltas na boca
de meu estômago. Ele disse que me amava e depois se prometeu a
outra. Eu estava doente com as emoções contorcidas e retorcidas
que inchavam, queimavam e ardiam por dentro. Mas ele não saberia
de meu desespero; eu não contaria nada a ele. Não para poupar
seus sentimentos, mas os meus. Chorar diante dele, implorar ou
suplicar, isso eu não poderia suportar. O que quer que acontecesse,
eu manteria a cabeça erguida. Era em meu orgulho que eu me
agarrava durante os momentos mais difíceis, era o que me restava
agora.
Mas não foi fácil. Fixei o olhar na luz oscilante da vela, lutando
para ter calma. Por que os momentos que exigiam maior força eram
quando estávamos mais fracos? Desviei o olhar dele, não por
despeito, mas para esconder minhas lágrimas.
Lembrando-me do bilhete dobrado em minha bolsa, puxei-o com
dedos trêmulos. Que brincadeira cruelmente profética; de fato não
havia prêmios naquele jogo de corações. Apertei o papel com muita
força, esmagando-o em uma bola. Como fui tola ao pensar que tudo
daria certo, exatamente como nos livros que lera: a criança perdida
encontrada pela mãe, o monstro derrotado por um valente guerreiro,
a princesa salva pelo príncipe. Mas eu não era princesa coisa
alguma e contos de fadas não existiam para gente como eu, nem
mesmo no céu.
De alguma forma, encontrei forças para dizer as palavras que
precisavam ser ditas. As que o libertariam, as que partiriam meu
coração.
— Entendo. De verdade. Preciso ir.
— Você não precisa ir. Sempre terei um lugar para você aqui. —
Ele estendeu a mão para mim, mas recuou no último momento,
fechando a mão em punho.
Eu não ficaria mais em dívida com ele, mesmo que alguns
pensassem que esse era meu dever, agora que ele havia quebrado
sua palavra. Mas eu não trocaria os cacos de nosso amor em
favores. Segurando os fios de minha dignidade, envolvi-me em
indiferença.
— Que lugar você pode me oferecer? Como uma de suas
criadas? Alguém para brincar com seus futuros filhos? Uma dama
de companhia para sua esposa ? — Minha risada foi irregular e
dura. — Quero mais da vida.
Foi a vez dele de desviar o olhar.
— Para onde você vai? Vou ajudá-la a encontrar outra função. Em
qualquer lugar que você queira.
— Não — respondi rápido, rápido demais. Teria sido muito fácil
aceitar, deixá-lo facilitar meu caminho. Uma alegria feroz se
apoderou de mim por não ter sido forçada a aceitar sua bondade.
Por saber que eu havia conquistado uma posição por mérito próprio,
não por um favor dele. Eu não ficaria presa a ninguém. A trilha que
eu seguiria estava clara, e eu não tinha motivos para demorar mais.
Talvez estar no exército me ajudasse a esquecer tudo o que
acontecera ali. Talvez começar de novo me desse a chance de me
curar.
Tirei o grampo do cabelo e ofereci a ele; as pedras claras do
acessório brilhavam enquanto refletiam a luz. Quando ele não o
pegou, coloquei-o sobre a mesa. Minha mão, rígida, foi na direção
da Gota do Céu em minha cintura, mas hesitei. Isso eu guardaria
como lembrança. Fora um presente de amizade e, apesar de tudo,
ele ainda era meu amigo.
Um peso esmagador caiu sobre mim, minando a força de meus
membros. Talvez por saber que, quando saísse daquele quarto,
nunca mais voltaria. Que nosso tempo juntos havia chegado ao fim.
Pensei, com amargura, que já deveria estar acostumada a me
separar daqueles que eu amava.
Levantando-me, juntei as mãos em concha e fiz uma reverência
para ele, curvando-me bastante.
— Vossa Alteza, foi uma honra servi-lo.
Memórias de nosso tempo juntos passaram por minha mente:
nossos anos de amizade, nossos poucos dias de amor roubados.
Então a chama da vela cintilou, lutando por seus segundos finais de
vida antes de se reduzir a um fio de fumaça… o quarto agora estava
envolto em escuridão.
14

O fogo crepitava, disparando faíscas no ar. Sentada no chão, isso


não me fez recuar de onde estava, lixando as hastes de minhas
flechas para torná-las mais finas. Mais rápidas. Não era um trabalho
necessário, mas mantinha minhas mãos ocupadas e minha mente,
silenciosa. Um canto de minha boca se inclinou num sorriso
zombeteiro. Apenas alguns meses antes eu estava estudando na
Câmara de Reflexões e agora estava preparando minhas flechas
para matar um monstro.
Xiangliu, a serpente de nove cabeças, fugiu do Reino Imortal para
o mundo abaixo. Ela atormentava as aldeias vizinhas, inundando
seus rios e arrebatando vítimas para alimentar seu apetite
insaciável. Embora os guerreiros mortais tentassem há muito tempo
acabar com a criatura, não eram páreo para sua força e sua astúcia.
Eu me perguntei por que o Imperador Celestial esperou até agora
para enviar suas forças, assim como deixou os pássaros solares
vagarem sem controle por tanto tempo. Não pensei que fosse uma
crueldade consciente, mas sim a trivialidade desinteressada com a
qual um mortal veria a vida de um inseto, incapaz de compreender
seu sofrimento. E não era apenas o imperador; muitos imortais
compartilhavam dessa visão. Talvez eu pudesse ter sido como eles
se sangue mortal não corresse em minhas veias. Se meus
pensamentos sobre minha mãe e meu pai não estivessem
entrelaçados àquele lugar.
Olhei para a montanha que se erguia do chão. Aquele lugar era
chamado de Pico das Sombras. Na luz fraca, a rocha escura
brilhava como se estivesse coberta por uma camada de graxa.
Olhando de cima, não se parecia em nada com o que eu imaginava
que o Reino Mortal seria. Sem lanternas acesas, sem crianças
rindo, nem mesmo uma única árvore para adornar a terra estéril.
Apenas uma tensão no ar semelhante ao momento em que uma
tempestade está prestes a acontecer.
No chão, mudei de posição, e o metal pressionou meus ombros e
minhas costelas. Shuxiao não havia exagerado quando falou do
peso daquela proteção. Para mim, parecia uma piada de mau gosto
que agora eu estivesse usando a mesma armadura que me
despertara tanto medo. Mas aquela fora a minha escolha.
Lembrei-me da noite em que deixei o Pátio da Tranquilidade
Eterna. Determinada a não demorar mais, procurei o General
Jianyun e aceitei sua oferta de integrar o Exército Celestial.
— Excelente. — Ele sorriu então, um evento raro. — Você
informou Sua Alteza? Ele deveria…
— Ele sabe. — Meus nervos estavam muito desgastados para
percorrerem o caminho sinuoso da cortesia. Eu me curvei para ele
novamente, esperando que o gesto tornasse as palavras a seguir
indolores. — General Jianyun, agradeço por esta oportunidade, mas
tenho algumas condições.
— Tem? — A monossílaba, de algum modo, adicionou indignação
e descontração a minha temerosidade.
— Não preciso de um posto oficial nem de remuneração. O que
eu quero é a liberdade de escolher minhas próprias campanhas e
ser reconhecida por minhas conquistas. — Meu corpo ficou tenso,
preparando-se para sua desaprovação.
Ele torceu os lábios, ficando muito sério. Será que o general
desaprovava minha audácia? Porém, eu conhecia meu próprio valor
agora e não estava apenas grata por ter ganhado uma
oportunidade. Não ficaria escalando a hierarquia em busca de um
título sem sentido ou um poder que eu não cobiçava. Nem colocaria
meu futuro nas mãos de outra pessoa de maneira tão imediata.
Mesmo as pessoas mais confiáveis podem nos decepcionar, até
quando não querem — uma lição que aprendi com Liwei, e aprendi
bem.
O General Jianyun cruzou os braços, encarando-me com um
olhar feroz.
— Não é assim que se faz. Os comandantes formam suas tropas
para cada missão considerando a experiência e a habilidade de
cada soldado. Todos nós servimos aos melhores interesses do
Reino Celestial.
— E assim eu farei — falei tais palavras vazias. Não havia tomado
aquela decisão por lealdade ao Império Celestial; tudo que eu queria
era o Talismã do Leão Vermelho. Mas não seria tarefa fácil brilhar
mais do que os outros guerreiros. E assim, naquela noite cheia de
estrelas, eu traçaria meu próprio caminho para fulgurar no céu. Eu
perseguiria as oportunidades que acreditava que chamariam a
atenção do Imperador Celestial. Eu conseguiria o talismã, a chave
para a liberdade de minha mãe — a única ambição que ardia
inalterada em mim ao longo dos anos, agora livre de meu coração
fraco. Minha hesitação de antes agora me deixava envergonhada.
Eu nunca teria esquecido minha mãe, teria feito tudo o que pudesse
para ajudá-la… mas a felicidade tinha um jeito de ofuscar os limites
de uma pessoa, de entorpecer seu senso de urgência. Nunca mais ,
jurei.
Finalmente, o General Jianyun cedeu. Condecorada com o posto
genérico de “Arqueira”, juntei-me à tropa do Capitão Wenzhi — o
único comandante que eu conhecia e, mais importante, um guerreiro
célebre que seria designado para as campanhas mais importantes.
No entanto, amaldiçoei essa decisão nas semanas seguintes —
atirando em alvos até meus dedos machucarem, treinando combate
até não poder mais ficar de pé e lançando encantamentos até que
eu estivesse mais acabada que um trapo velho. O Capitão Wenzhi
fazia seus soldados treinarem duro, e todas as noites eu caía na
cama ansiosa para mergulhar no esquecimento do sono, com o
corpo exausto e os músculos em chamas.
E o treino não era isento de perigo. Pouco depois de me juntar ao
exército, o Capitão Wenzhi me levou a uma câmara subterrânea
iluminada por tochas bruxuleantes. Leões de pedra cinza com olhos
esbugalhados estavam alinhados nas paredes e suas mandíbulas
abertas imitavam sorrisos assustadores, como se estivessem
zombando de nós. Ao vê-los, fiquei toda arrepiada. No momento em
que o capitão saiu, a porta se fechou com um estrondo — dardos
saíram sibilando das bocas dos leões, vindo em minha direção mais
rápido do que a chuva caindo em uma tempestade. Caí no chão,
rolando sob uma saliência. Mas fui muito lenta, e senti a dor
atravessar minha perna. Estremeci ao arrancar os dardos de minha
carne, antes de armar uma flecha e atirar na direção de onde eles
vieram. Mais por acidente do que por desígnio, acertei a boca de um
dos leões. Suas mandíbulas se fecharam, encerrando seus ataques.
Só depois que eu atingi todos eles — com minhas flechas se
projetando de suas mandíbulas — a saraivada cessou e a porta se
abriu novamente.
Meu sangue ferveu ao ver o Capitão Wenzhi parado na entrada.
Fora tudo um teste?
— Por que não me avisou? — indaguei.
— Em uma batalha real, o inimigo avisaria antes de atacar?
— O senhor não é meu inimigo.
Ele inclinou a cabeça para um lado, encarando-me de forma
penetrante.
— Fico feliz que pense assim. No entanto, Arqueira Xingyin, seu
desempenho foi péssimo.
Com o orgulho ferido, fiz uma careta.
— Eu atirei em todos os leões. Escapei da armadilha.
Seu olhar permaneceu nos pontos vermelhos manchados em
minha panturrilha, onde o sangue escorria em fluxos finos.
— Esta foi só a primeira etapa na Câmara dos Leões e você já se
feriu. Se os dardos estivessem revestidos com veneno, você estaria
morta.
Balançando a cabeça negativamente, ele entrou na sala e tirou
minhas flechas das mandíbulas dos leões. Dardos saltaram em
nossa direção mais uma vez. Eu queria me abaixar, rolar para um
lugar seguro, mas, enquanto ele se mantinha firme, eu me forcei a
ficar ao lado dele, com o coração batendo forte conforme as setas
pontiagudas se aproximavam cada vez mais. Assim que eu estava
prestes a me jogar no chão, ele fez um movimento breve e quase
indiferente com a mão. Uma parede cintilante de gelo apareceu
diante de nós e os dardos bateram nela.
Meu orgulho desapareceu como vapor no ar frio. Uma rajada de
vento, uma parede de chamas — qualquer coisa assim teria
funcionado! Embora eu tivesse aprendido a lançar minha magia sem
esforço, usá-la não foi instintivo. Talvez eu tenha conseguido me
virar sem ela por muito tempo. Quando atacada, meu primeiro
instinto foi utilizar minhas mãos e meus pés. Como um mortal ,
pensei. Fiel às minhas raízes.
A voz do capitão endureceu.
— Os guerreiros mais poderosos são proficientes tanto em
combate como em magia. Você não sobreviveria por muito tempo
apenas com habilidades de luta, nem pode confiar somente na
magia. Se fizer isso, perceberá que sua energia logo se exaure,
uma circunstância muito perigosa. Não importa o que esteja
acontecendo, mantenha a mente limpa para julgar quando usar seu
poder com maior impacto. Mas não hesite em usá-lo quando
necessário.
As palavras dele me atingiram. Ansiosa para provar a mim
mesma, voltava àquela câmara por conta própria. A cada vez as
armadilhas eram um pouco mais difíceis; às vezes, espinhos
atravessavam o chão ou fogo saía das paredes. Terminava as
sessões de treino dolorida e machucada, com feridas sangrando. Só
mais tarde soube que a Câmara dos Leões era reservada para os
guerreiros mais habilidosos do exército. Enquanto a maioria levava
meses ou até mesmo um ano para dominar todas as armadilhas,
levei algumas semanas.
Eu estava mais forte, mais rápida e mais poderosa do que nunca.
Entretanto, será que eu estava preparada para o desafio diante de
mim naquele momento? Olhei para a montanha escura, tentando
reprimir o mal-estar que crescia em mim, perguntando-me se eu
tinha feito a escolha certa ao vir até àquele lugar — minha primeira
batalha contra um monstro tão temível, cujo nome intimidava os
imortais em silêncio.
Alguém se aproximava; ouvi passos na terra. Fiquei feliz pela
distração de meus pensamentos lúgubres.
— Arqueira Xingyin, estive procurando por você. — O Capitão
Wenzhi sentou-se ao meu lado. — Você precisa saber de algumas
coisas sobre Xiangliu.
Comecei a me levantar para cumprimentar o capitão, mas ele
gesticulou para que eu permanecesse sentada. Quando estávamos
sozinhos, muitas vezes ele se deixava cair nessa informalidade,
algo raro no Exército Celestial, governado por patentes e hierarquia.
Seria porque nos demos bem no banquete, quando ele me
emprestou sua força no momento em que eu mais precisava? Ou
será que ficava à vontade comigo porque eu não tinha patente
oficial alguma e não estava atrás de seu favor nem de sua
aprovação?
— Das nove cabeças de Xiangliu, você só pode acertar uma —
instruiu ele, abruptamente.
Fiquei imóvel, segurando a flecha com firmeza.
— O que quer dizer?
— O núcleo de seu poder está em seu quinto crânio, o do meio.
— Ele olhou para as chamas. — Se estivéssemos em qualquer
outro lugar, poderíamos atacá-lo com magia. No entanto, nossos
poderes são limitados nesta montanha.
Eu fora alertada sobre isso. Quando tentei liberar minha energia
ali, ela se afastou de mim, como na época em que eu não havia
treinado ainda.
— Isso é por causa de algum encantamento?
Ele se moveu e as chamas saltitantes lançaram sombras em sua
face.
— Ninguém sabe. Só descobrimos este lugar quando caçamos
Xiangliu até aqui. A serpente é antiga e astuta; talvez soubesse que
estaria segura aqui.
— Não posso atirar em todas as cabeças dela até atingir a certa?
— Minha irreverência disfarçava meu desconforto. Pensar em nove
mandíbulas batendo as presas diante de mim me deu calafrios até
os ossos.
— Se fosse assim, poderíamos convocar uma dúzia de arqueiros
e cobri-lo de flechas. Xiangliu estaria morto há muito tempo e não
precisaríamos de você.
— Então por que não faz isso? — retruquei, irritada com suas
palavras.
— Suas outras cabeças são invulneráveis. Acertar a errada
apenas enfurece Xiangliu, fazendo-o ficar alerta e dificultando ainda
mais nossa tarefa. Da última vez, fomos forçados a recuar quando
nosso arqueiro foi incapacitado. Mas a cada batalha aprendemos
mais sobre nosso inimigo.
Encarei o capitão com surpresa. Não pensei que eles tinham
tentado lutar com o monstro antes. Talvez apenas as vitórias fossem
ostentadas, e as derrotas, rapidamente enterradas.
— A quinta cabeça é diferente das outras? — perguntei.
— Ela não é coberta de escamas como o resto, e sua pele é
quase como a nossa. Para destruir Xiangliu, você deve acertar os
olhos, um tiro certeiro, que atravesse o crânio. — Ele fez uma
pausa. — Infelizmente, suas pálpebras não podem ser perfuradas
por nenhuma arma. Pelo menos nenhuma que conhecemos.
— Eu só posso atirar em seus olhos quando estão abertos? —
repeti, atônita.
O capitão assentiu brevemente.
— Xiangliu se protege bem. Pelo que aprendemos da última vez,
seus olhos só se abriam quando ele cuspia ácido em nós, seu
ataque mais poderoso. E, mesmo assim, pelo mais breve dos
momentos.
Ele pegou um graveto e o jogou no fogo, que crepitou, e as
faíscas que voaram alto eram um espelho de minha tensão
crescente.
Minha flecha caiu no chão.
— Isso é tudo ? — Rezei muito para que fosse.
Ele assentiu, como se fosse uma simples questão de acertar um
alvo a dez passos de distância.
— Por que não me contou isso antes? — Praguejei internamente
por não ter coletado mais informações antes; não havia dado a
devida importância para isso. Porém, naquela noite descobri que
não era tão indiferente assim a minha própria sobrevivência.
— Não duvide de si mesma. Xiangliu não escapará desta vez.
Temos tudo de que precisamos — disse ele, com segurança e
calma.
— E o que seria isso? — perguntei, um pouco desconfiada.
— Dois arqueiros — respondeu Wenzhi, irônico.
— Você terá um a menos em breve — comentei, taciturna.
Ele riu.
— E velocidade. Sua velocidade, para ser exato. Nunca vi
ninguém atirar com tanta precisão e rapidez como você. Isso será
crucial. — Esta última parte foi dita por ele em um tom sombrio.
— Eu poderia ter treinado de forma diferente se tivesse percebido
o que estávamos enfrentando.
— Como você poderia ter se esforçado mais do que se esforçou?
— indagou ele, antes de abrandar a voz. — Não se sente pronta?
Meu rosto se torceu numa careta. Mais do que o medo da
serpente, eu não gostava daquela sensação — de que eu era uma
peça de xadrez manipulada ao bel-prazer do capitão. Ele contou o
que acreditava que eu precisava saber, posicionou-me onde ele
pensava que eu deveria estar. Assim era a hierarquia de comando
da qual Shuxiao havia me alertado, mas eu não era uma recruta
impotente.
— Da próxima vez, prefiro decidir se estou pronta ou não por mim
mesma.
Ele sorriu quando se levantou.
— Boa noite, Arqueira Xingyin. É tarde e todo o mundo já está
dormindo.
Eu esperava que o Capitão Wenzhi fosse para sua tenda, mas ele
caminhou em direção à montanha, desaparecendo em sua sombra.
Onde ele estava indo àquela hora? Minha curiosidade lutou com
minha relutância em me intrometer, e meu desejo de respeitar sua
privacidade venceu. Todos precisávamos de tempo para nós
mesmos. As chamas tremeluziram fracamente antes de se tornarem
uma pilha fumegante. Sem o silvo e a crepitação do fogo, o silêncio
era interrompido somente pela respiração constante dos outros
soldados. Eu não tinha ideia de quanto tempo fiquei ali sentada,
perdida em meus pensamentos. Quando o Capitão Wenzhi
finalmente ressurgiu, encarou-me, sentada sozinho no escuro.
— Por que ainda está acordada? — perguntou ele, caminhando
em minha direção.
— Não estou cansada. — Meus olhos foram para as mãos dele,
manchadas de sujeira. — E por que o senhor está acordado?
— Eu precisava inspecionar nossa trilha para amanhã. Garantir
que não houvesse surpresas. — O capitão suspirou. — Durma um
pouco. Amanhã temos uma subida íngreme e uma luta árdua.
Então eu o deixei ali e fui achar um lugar no chão. As noites eram
a parte mais difícil. Quando estava sozinha no escuro, as memórias
que eu afastava na luz do dia vinham com tudo. Lembranças de
olhos escuros calorosos e um sorriso implicante, que desfaziam a
casca dura em volta de meu coração até que eu abraçasse a mim
mesma, lutando para respirar com o peito apertado. Talvez essa
noite tivesse sido pior porque eu estava no Reino Mortal — onde
minha mãe e meu pai se conheceram, se apaixonaram e foram
felizes, até que vieram os pássaros solares. Até que eu nasci.
Certa vez, criei coragem para perguntar a minha mãe como eles
se conheceram. Se eu não tivesse lido o livro, nunca teria sido tão
ousada. Mas é assim com todo o conhecimento; quando se tem
apenas um pouco, ele deixa você com sede de mais. E descobri que
ela não se importava em falar de seu passado mortal. Ela apenas se
esquivava de falar das memórias que vieram depois disso. Às vezes
eu sentia que havia duas partes dela — a mortal e a imortal — a
primeira pertencia a meu pai, e a segunda, a mim.
Ela ficara radiante com a minha pergunta; um rubor surgiu em
suas bochechas.
— Crescemos juntos em uma vila à beira-mar — contou ela. —
Ele era inteligente, o corredor mais rápido e o mais veloz com um
arco. Não foi surpresa quando os soldados vieram buscá-lo assim
que ele completou 17 anos, recrutando-o. Ele não reclamou, apenas
abraçou a mãe enquanto ela chorava. Tentei não chorar também,
embora nos amássemos. Antes de sair, ele prometeu que voltaria
para me buscar. Por cinco anos, esperei. Às vezes eu pensava que
ele tinha me esquecido ao longo de seu caminho para a grandeza,
mas estava enganada.
Então seu rosto ficou triste e ela contraiu os lábios trêmulos. Não
havia necessidade de dizer em voz alta o que nós duas sabíamos:
que eles se separaram de uma forma muito mais definitiva do que
se meu pai tivesse mudado de ideia e nunca mais voltasse — agora
o céu inteiro estava entre eles.
Com um suspiro, estiquei-me no chão frio. Todos os outros
estavam dormindo, exatamente como o Capitão Wenzhi dissera. Eu
ainda sofria, embora não mais apenas por minha perda. Meus pais
foram separados como um pêssego cortado em duas metades. O
amor deles estava intacto e ainda assim não podiam ficar juntos.
Seria isso pior do que a inevitabilidade da morte? Eu não sabia
dizer.
Pensei com amargura que, ao contrário de mim, pelo menos
minha mãe havia se casado com seu amor. Ele tinha sido fiel a ela.
E ela a ele, até o fatídico dia em que tomou o elixir. Será que todos
os caminhos para o amor levavam a este destino: desilusão por
separação, traição ou morte? A alegria passageira valeria a tristeza
que a seguia? Supus que a resposta dependia da força do amor,
das memórias criadas — que pareciam suficientes para minha mãe
durante as décadas de sua vigília solitária. Contudo, em meus
piores momentos, uma escuridão se apoderava de mim,
sussurrando coisas odiosas — que eu era uma tola, uma fraca, que
tinha sido descartada tão facilmente. Entregar-me ao ódio teria
aliviado minha dor lancinante. Eu poderia deixar o ressentimento
sufocar minha dor, poderia culpar Liwei pela dor que ele me causou.
Teria sido apenas um breve alívio, pois o que doía mais do que
qualquer ferida em meu orgulho era o amor que perdemos, o futuro
que não era mais nosso.
O buraco dolorido dentro de meu peito se abriu ainda mais.
Instintivamente, procurei a lua na noite, deixando sua luz suave
roçar meu rosto, o bálsamo para minha dor. Fechando os olhos,
quase podia imaginar que era o toque de minha mãe. Cravei as
unhas nas palmas das mãos. Eu era mais do que aquele amor
malfadado; não deixaria que ele me definisse. Eu tinha que pensar
em minha família, tinha meus próprios sonhos para realizar… e uma
serpente de nove cabeças para matar no dia seguinte.
15

A luz do sol incendiava a montanha com um brilho sinistro. Eu


rangia os dentes enquanto me levantava, seguindo logo atrás do
Capitão Wenzhi à medida que subíamos a encosta. O suor escorria
por minha testa, meu pescoço e minhas costas conforme eu punha
os dedos na rocha fria para me firmar na superfície escorregadia.
Olhei para baixo; o chão estava tão longe que minha cabeça girou.
Pela centésima vez tentei convencer a mim mesma de que uma
queda no Reino Mortal provavelmente não nos mataria, embora eu
desejasse poder convocar uma nuvem agora.
— Chegamos. — O Capitão Wenzhi subiu em uma plataforma.
O resto de nós correu atrás dele, sendo o Arqueiro Feimao o
último a aparecer — corado, com a armadura brilhante arranhada
em alguns lugares. Teria caído? Felizmente, parecia ileso. No fim da
plataforma se assomava uma entrada escura, alta o suficiente para
que pudéssemos passar por ela sem nos curvar. Xiangliu havia
escolhido bem seu lar. Não apenas estava protegido da magia, mas
o terreno rochoso com caminhos estreitos e aberturas apertadas
tornava impossível invadir com tropas.
O Capitão Wenzhi esperou que nos reuníssemos antes de se
dirigir a nós em tom firme.
— Fiquem em guarda. Xiangliu é poderoso e veloz, suas presas
são mais afiadas que facas e sua pele é protegida por escamas
impenetráveis. Com nove cabeças, pouco escapa à sua atenção. E,
haja o que houver, não olhem nos olhos dele.
— Por quê? — perguntei, já temendo a resposta.
— Ele pode paralisar vocês.
Um silêncio tenso caiu sobre nós, finalizado pelo arrastar de pés.
Não era surpresa que essa criatura tenha escapado da morte por
tanto tempo, mesmo depois de atrair a ira do Imperador Celestial.
Ele prosseguiu, falando mais devagar agora:
— Concentrem seus ataques no ventre, sua parte mais
vulnerável. Isso não vai matá-lo, mas vai causar dor. Nosso objetivo
é distraí-lo e ameaçá-lo, até que ataque com seu ácido. É aí que
nosso alvo será exposto e os arqueiros entrarão em ação. Ao meu
sinal, atacaremos em dois grupos, flanqueando-o e conduzindo-o
em direção à entrada onde os arqueiros montarão guarda. — Seu
olhar foi até o Arqueiro Feimao e até mim. — Não entrem em
combate com ele, a menos que precisem. Mantenham suas flechas
apontadas, prontas para o momento do disparo. Não teremos
muitas chances. Fiquem firmes, mirem bem e lutem juntos.
Como se fôssemos um só, curvamo-nos, envolvendo os punhos
de uma das mãos com a outra. Quando nos levantamos novamente,
estávamos com a postura ligeiramente mais ereta que de costume.
A tensão me deixava totalmente rígida enquanto olhava para os
rostos taciturnos ao meu redor. Aquela não era uma sessão de
treinos que eu podia repetir sempre que quisesse. O menor dos
erros desequilibraria a balança entre a vida e a morte, e não apenas
para mim.
Saímos da segurança da plataforma ensolarada, entrando
lentamente na caverna. Ela era enorme, tão alta que eu não
conseguia ver o teto no escuro. Fiquei de costas para a luz, assim
como o Arqueiro Feimao, um pouco mais longe. Inspirei
profundamente, quase me engasgando quando o ar úmido atingiu
meus pulmões — misturado com sal, terra e o fedor de carne podre.
Logo à frente, o Capitão Wenzhi ergueu a mão em advertência. Ele
apontou para o centro da caverna, submersa em água escura. Os
soldados seguiram seu exemplo, movendo-se para o lado,
passando por cima dos ossos que estavam espalhados,
abandonados de uma forma que beirava a crueldade.
Estreitei os olhos, distinguindo uma grande silhueta encolhida na
água, tão imóvel que a água estava praticamente sem ondulação
alguma. A criatura estava dormindo? Limpei as mãos, molhadas de
suor, antes de preparar uma flecha. Atirara em inúmeros alvos de
metal, madeira e pedra, nunca em uma criatura de carne e osso.
Engolindo em seco, meus olhos encontraram os do Capitão Wenzhi.
Assenti, assim como o Arqueiro Feimao, sinalizando que estávamos
prontos. Quando o assobio baixo do capitão cortou o silêncio, os
soldados avançaram, batendo os pés em marcha.
Luzes vermelhas se acenderam como vaga-lumes dançando
sobre a água, mas elas estavam fixas em cabeças que se ergueram
junto com Xiangliu em toda a sua altura, quase a de um jovem
cipreste. Nove cabeças surgiram de seu corpo cilíndrico; todas
pareciam ter vindo de um pesadelo, todas eram velozes, com vida
própria. Oito estavam cobertas por escamas negras com olhos
flamejantes e presas brancas como ossos, reluzentes devido a um
líquido espumoso; uma tinha a pele de um imortal formoso, exceto
pelas linhas escuras que se espalhavam como porcelana rachada.
Sua boca estava aberta, mostrando dentes cinzentos e, no ponto
em que deveriam estar seus olhos, havia cavidades ocas — como
buracos no chão, parcialmente preenchidos. Isso me deu a estranha
sensação do rosto de um imortal que havia sido arrancado e posto
sobre o da serpente como uma luva.
Minha espinha gelou e segurei meu arco com mais força.
Soldados correram para a água, erguendo suas espadas. As
mandíbulas da criatura estalavam ferozmente enquanto ela envolvia
os mais próximos com sua cauda espinhosa, arremessando-os
contra a parede de pedra. Eles caíram fazendo um estrondo e seus
gritos ecoaram em meus ouvidos. Uma das cabeças de Xiangliu deu
um bote para baixo e suas presas se afundaram no pescoço de um
soldado. Ele gritou em agonia, tentando cortar a face escamosa da
serpente com a espada.
— Não! — gritou o Capitão Wenzhi.
Era tarde demais; as cabeças de Xiangliu se reorganizaram para
formar um escudo ao redor de seu núcleo, como as pétalas de uma
flor fechadas em um botão. A serpente saltou da água com
surpreendente agilidade, espalhando por toda a parte gotas de água
fria e com cheiro de morte.
Os soldados persistiram. Um deles enfiou a espada no estômago
da criatura. Xiangliu urrou, um som feroz, enquanto rastejava em
direção à entrada — subindo mais alto até se erguer sobre Feimao e
eu. Suas escamas brilhavam como ônix contra a luz do sol que
entrava.
O medo fez um corte em meu coração; não era a ferroada
traiçoeira do desconhecido, mas uma facada desferida pela terrível
ameaça a minha sobrevivência. Um instinto primitivo tomou conta de
mim; meus ouvidos estavam surdos aos alertas do Capitão Wenzhi
e meus dedos soltaram a corda do arco enquanto a flecha voava.
Mesmo quando ela o atingiu, xinguei a mim mesma por não ficar
escondida, como foi instruído. Por chamar a atenção da serpente
em vez de surgir no momento oportuno para atacar.
Uma das cabeças de Xiangliu se inclinou para arrancar minha
flecha, jogando-a de lado quase desdenhosamente. As demais se
espalharam ao meu redor, e seus olhos brilhantes perfuravam os
meus. Congelei, notando apenas agora as pequenas escamas
peroladas que cobriam as órbitas oculares de seu núcleo, quase
imperceptíveis no escuro.
— Não olhe! — gritou o Arqueiro Feimao, gesticulando
freneticamente para mim. Tropecei para trás assim que uma soldado
arremessou sua lança no estômago da serpente. O grito de Xiangliu
perfurou o ar quando sua cabeça do meio se ergueu, abrindo as
pálpebras e revelando duas brasas ardentes. Seu núcleo! As oito
mandíbulas de Xiangliu se abriram, cuspindo um líquido espumoso,
esverdeado, acre e azedo pela caverna. Os atingidos gritaram de
dor, caindo no chão e se contorcendo em pura agonia. O ácido
espirrou em meus braços, espumando conforme corroía o pano;
bolhas brotaram sobre minha pele como papoulas vermelhas. Eu
teria gritado até ficar rouca, mas a tortura lancinante de minha pele
sendo arrancada da carne arrancou todo o ar de meus pulmões.
Trincando os dentes até achar que quebrariam, tateei em busca
de outra flecha, encaixando-a no meu arco. Feimao me encarou,
sinalizando para que eu atirasse, mas o pânico e a dor me faziam
tremer demais. O medo de errar, de falhar, decepcionando todos
que dependiam de mim, tomou conta. Meu parceiro de arco
disparou sua flecha — no momento em que aqueles orbes
brilhantes desapareceram —, mas ela bateu nas pálpebras da
serpente e se estilhaçou.
Nove bocas se curvaram em sorrisos arrepiantes. Aqueles olhos
vermelhos brilhavam de maldade pura ao se fixarem em nós.
Soldados fizeram uma investida frontal e a cauda de Xiangliu se
esticou, jogando-os para a lateral. Feimao e eu recuamos, mas duas
das cabeças da criatura atacaram, afundando as presas nos ombros
dele. Ele gritou, dobrando-se de dor, com o sangue escorrendo das
feridas.
Eu queria vomitar o que estava em meu estômago. Chorar pela
dor dele e dos outros, surrados pela criatura cruel. Mas o pavor
travou minha garganta. Eu não era capaz nem mesmo de
choramingar. Xiangliu rastejou para mais perto; uma de suas
cabeças estava se arqueando em minha direção com uma graça
lânguida. Tão perto que eu podia me ver refletida naqueles orbes
vermelhos. Uma fadiga esquisita se abateu sobre mim. Minha
pegada no arco relaxou e ele escorregou de meus dedos. Os olhos
da serpente brilharam quando ela abriu a boca. Das presas brancas
pingava um líquido espumoso. Quando seu hálito fétido atravessou
meu torpor, recuei, confusa. Minha mente ficou limpa quando
agachei para recuperar meu arco.
Alguém gritou — era o Capitão Wenzhi — correndo em nossa
direção, brandindo a espada bem alto. Ele golpeou a barriga da
serpente e Xiangliu gritou de raiva, girando as cabeças na direção
dele.
— O alvo! — bradou ele, enquanto erguia o escudo para afastar
as mandíbulas da criatura.
As pálpebras peroladas se abriram. Carvões em brasa ganharam
vida mais uma vez no escuro. A boca do monstro se abriu, cuspindo
ácido, que espirrou em minhas mãos e um pouco na bochecha, que
ardia e doía como se tivesse sido atingida por fogo e gelo. Ondas
obscuras de agonia arrastaram minha consciência, puxando-me
para baixo… no entanto, a visão do Capitão Wenzhi lutando contra
o monstro acendeu em mim uma vontade feroz de não decepcioná-
lo novamente.
Os músculos de minha perna se contraíram e eu me esforcei para
me manter firme, lutando contra a ânsia de vômito diante do fedor
de carne queimada. Puxei duas flechas de minha aljava e as
preparei. A cabeça de Xiangliu recuou e meus braços vacilaram
enquanto eu lutava para conseguir a mira ideal — meu olhar estava
fixo em seus olhos flamejantes enquanto tudo o mais ficou borrado
em volta. Minhas flechas rasgaram o ar, acertando a criatura com
um barulho nauseante.
O monstro ficou imóvel; oito pares de olhos de rubi piscavam
rapidamente. Justo quando pensei que tinha falhado, que tinha
errado, um grande espasmo percorreu seu corpo e suas cabeças
rolaram para trás; seus pescoços se amontoaram quando ele caiu
no chão. A poeira subiu no ar.
O silêncio repentino foi surpreendente, desprovido dos gritos e
sobressaltos, do som de carne rasgando. Trocamos olhares
atordoados, sem acreditar que o terror chegara ao fim. Que
estávamos vivos. Feimao me deu um tapa nas costas, com um
sorriso que virou uma careta quando pôs a mão no próprio ombro.
Alguém riu, outro alguém vibrou. Um sorriso amarelo se esticou em
meu rosto, embora eu não estivesse com vontade de comemorar.
Meus braços estavam cheios de bolhas, mas meu estômago deu um
nó ao ver o Capitão Wenzhi. As partes visíveis de seu corpo
estavam cobertas de crostas com ferimentos muito piores do que os
meus.
— Sinto muito. — Minha voz estava rouca quando olhei para
Feimao e para os outros soldados feridos. — Perdi a primeira
chance, perdi a cabeça. Se eu não tivesse perdido, se eu…
— Arqueira Xingyin, pare de se desculpar. — O Capitão Wenzhi
tinha um tom sério, mas não indelicado. — Nenhuma batalha é
perfeita; poucas coisas saem como planejado. O que importa é que
Xiangliu está morto e todos nós saímos vivos daqui hoje.
Ele examinou meus ferimentos, contraindo os lábios — em
desaprovação, pensei. Em vez de me repreender, ele pegou um
pequeno frasco de jaspe, pingando várias gotas de um líquido
amarelado em meus braços. O cheiro suave de menta e ervas
cortou o ar fétido, e um frescor penetrava minha pele enquanto a dor
diminuía para um latejar incômodo.
— Isso apenas adormece a dor. — Ele me passou o frasco. —
Não tente se curar. O ácido de Xiangliu tem um veneno que precisa
ser tratado adequadamente. Quando voltarmos, mandarei um
médico até você.
— Mande um para você também, seu estado é pior do que o meu.
— Apontei com a cabeça para suas feridas.
Então minhas pernas vacilaram, desmentindo minhas palavras
duras enquanto eu tombava. Atingida por uma onda de tontura,
pressionei a testa nos braços. Tínhamos vencido, mas onde estava
a alegria de atingir meu alvo? Houve um alívio inegável pelo fim do
combate, sim, mas ele estava emaranhado com um aperto em meu
peito. Seria pena da criatura cuja vida eu havia tirado? Pior, e
enterrada mais fundo em mim, havia… vergonha? Sim, vergonha
por ter matado tão facilmente, e porque eu faria isso de novo.
O Capitão Wenzhi se agachou ao meu lado.
— Com o tempo vai ficar mais fácil — disse ele, como se pudesse
ler meus pensamentos.
— Tenho medo disso também — admiti, hesitante.
— Xiangliu devorou incontáveis mortais. Se não fosse impedido,
teria matado mais.
Suas palavras me confortaram. Pelo menos o bastante para que o
ritmo de minha respiração e minha tensão diminuíssem. Ficando de
pé com dificuldade, olhei para o corpo da serpente. Sangue escorria
de seus olhos e penetrava o chão. Ele era um monstro — não por
causa de sua aparência, mas por seus atos. Agarrando-me a isso,
algo endureceu dentro de mim. Eu não lamentaria meus novos
feitos, e os faria quantas vezes fosse necessário.
Nesse momento, uma sensação estranha bateu nas margens de
minha consciência. Cambaleante, vislumbrei algo brilhando no fundo
da caverna, mas que ficara visível apenas agora, com o ângulo do
brilho do sol tardio.
— Capitão Wenzhi, o que é aquilo mais adiante?
Seu olhar acompanhou o meu.
— É o brilho da luz refletida?
— Acho que não. Você sente alguma coisa vinda de lá? —
indaguei. Quando ele meneou a cabeça, mordi os lábios,
perguntando-me se eu estava enganada. No entanto, lá estava ela,
aquela atração em minha mente. Uma sensibilidade fraca e
indescritível. — Vou inspecionar o que é e voltar mais tarde —
decidi.
— Eu vou com você. E se Xiangliu tiver um irmão? — Ele abriu
um sorriso.
Estremeci.
— Contanto que não coma mortais, podemos deixá-lo em paz.
Entramos na passagem estreita no fim da caverna, atravessando
um riacho raso antes de sair em outra caverna. Uma abertura no
teto permitia que a luz do sol passasse irrestrita, atingindo uma pilha
de tesouros reluzentes. Cordões de pérolas, ornamentos de jade e
pedras preciosas do tamanho de meu punho estavam empilhadas
no chão, tão descuidadamente como se fossem galhos, folhas e
pedras.
— O que é isto? — perguntei, encontrando a voz.
— Pertences saqueados das vítimas de Xiangliu? — O Capitão
Wenzhi se abaixou para inspecionar alguns dos itens. — Não,
alguns deles são de nosso reino. Xiangliu deve tê-los trazido aqui.
Peguei um pequeno baú e o abri. Dentro dele havia um colar de
ouro cravejado com pedaços de âmbar.
Ele ergueu a joia.
— Um amuleto de magia da Terra.
— Como você sabe disso? — perguntei, curiosa.
— O âmbar é um tesouro sagrado das árvores — explicou ele,
devolvendo-o ao baú. — Vou apresentar isso a Sua Majestade
Celestial.
Abrimos mais alguns baús, deixando de lado um magnífico colar
de rubis, uma esfera lisa de lápis-lazúli com veias grossas de ouro e
um enfeite de cabelo prateado em forma de sino de vento. Quando
passei meus dedos sobre ele, um tilintar melódico encheu a
caverna.
Fiz um gesto em direção ao monte cintilante.
— O que devemos fazer com tudo isto?
Os imortais tinham pouca necessidade de riqueza material, exceto
para ornamentação ou vaidade. Magia, status e linhagens — esses
eram os verdadeiros determinantes de poder no Império Celestial.
O Capitão Wenzhi deu de ombros.
— Vou levar algumas peças para a coleção de Suas Majestades
Celestiais, e cada soldado pode coletar lembranças de uma batalha
arduamente vencida. Quanto ao resto, sinta-se à vontade para
descartá-los como desejar.
Foi então que a vi: uma grande caixa de madeira em um canto da
caverna; sua simplicidade era um forte contraste com os tesouros
inestimáveis que a cercavam. Quando me aproximei, o toque
invisível em minha mente ficou mais forte — era como sentir a aura
de um imortal que chamava sozinho por mim. Abaixando-me, abri a
tampa com a pulsação acelerada enquanto olhava para o interior da
caixa: havia um arco esculpido em jade verde com uma corda
brilhante de ouro. Um dragão na parte inferior; sua magnífica
cabeça ficava na ponta e seu corpo se arqueava ao longo da arma
até chegar à cauda. Quando toquei a pedra fria, o poder vibrou em
meu interior, como se eu tivesse enfiado meu braço nas águas de
uma cachoeira furiosa. Algo estalou dentro de mim, como se eu
tivesse encontrado algo que não percebi que havia perdido.
Erguendo o arco, puxei a corda e quase o derrubei quando um frágil
raio de luz surgiu entre meus dedos. Não doeu; em vez disso,
causou-me um formigamento agradável que fez um estalo antes de
desaparecer.
— Fogo do Céu! — Espantou-se o Capitão Wenzhi.
O arco caiu de minhas mãos. Dizia-se que esse era um grande
poder — possuído pelo Imperador Celestial — e um único raio
desses poderia nos ferir muito, até mesmo acabar com nossas
vidas.
Seus olhos brilhavam quando ele se abaixou para pegá-lo.
— O Arco Dragão de Jade — murmurou ele, passando a mão nos
entalhes da arma.
A certeza em seu tom me chamou a atenção.
— Como é que você sabe? Já o viu antes?
O capitão deu de ombros.
— Existem poucas armas de Fogo do Céu e apenas uma delas é
um arco.
— Por que o relâmpago desapareceu? — Fiquei intrigada, pois
não tinha soltado a corda.
Uma expressão pensativa cruzou seu rosto.
— Talvez seus poderes ainda não sejam fortes o suficiente para
empunhá-lo.
O Capitão Wenzhi parecia calmo, embora sua respiração
estivesse acelerada. Erguendo o arco, ele segurou a corda dourada.
Ele contraía os músculos do braço, mas o arco não cedia tal qual
comigo, parecendo um fio de seda. No momento em que o pôs no
chão, o arco saltou em minhas mãos como se eu o tivesse puxado.
Ele levantou a cabeça, olhando para mim atentamente. Inquieta,
pus o arco de volta na caixa e entreguei-a para ele. Um barulho alto
veio de dentro dela.
Ele franziu a testa e empurrou a caixa de volta para mim. O
barulho cessou.
— Fique com ele por enquanto, até decidirmos o que fazer.
Parece ter formado uma conexão com você, e é uma arma muito
poderosa para ser deixada por aí.
Um arrepio percorreu-me com suas palavras. Por alguma razão,
vi-me relutante em me separar do arco, mas me obriguei a
perguntar:
— Devemos devolvê-lo ao Império Celestial?
— O arco não pertence ao Império Celestial. Ouvi dizer que seu
dono desapareceu há muito tempo. Mantenha-o seguro e bem
escondido até descobrirmos a quem devemos devolvê-lo. — Seus
olhos se cravaram nos meus com uma intensidade repentina e ele
acrescentou — Não comente isso com ninguém.
Assenti com a cabeça, apesar da inquietação que apertava meu
estômago. Será que ele temia que o Imperador Celestial tomasse o
arco para si? No entanto, certamente era a coisa certa a fazer,
devolver o arco ao seu dono.
Enquanto eu olhava para o resto do tesouro, uma ideia veio à
tona.
— Vamos distribuir isto para as aldeias que Xiangliu devastou.
Embora nada possa compensar a perda de seus entes queridos,
pelo menos suas vidas vão melhorar.
Ele assentiu.
— Escolha as suas lembranças. Vou chamar os outros.
Eu me agachei, pegando um bracelete de ouro cravejado de
coral; suas cores brilhantes me lembravam Shuxiao. Prendi a joia
em minha cintura.
— Minha amiga vai gostar disto.
— E para você, nada? — perguntou o capitão.
Hesitei antes de pegar um colar de safiras; o fogo azul de suas
pedras era como o da coroa de Liwei. Em seguida, ele escorregou
das minhas mãos, tilintando ao cair no chão.
— Não tenho banquetes ou grandes eventos dos quais participar.
Mesmo que tivesse, tenho tudo de que preciso. — Pensei no
pingente que usava, que nunca removi. Dava-me uma sensação de
pertencimento, sabendo que era de meu pai, e que minha mãe o
colocou em meu pescoço com as próprias mãos.
O Capitão Wenzhi ficou em silêncio por um momento, antes de
caminhar até a entrada da caverna e chamar os outros. Quando
eles se juntaram a nós, seus olhos se arregalaram com aquele
cenário. Mesmo para os imortais, aquele não era um tesouro
comum. Enquanto eles escolhiam grampos de cabelo de joias,
colares de pérola e âmbar e braceletes de jade, o capitão escolheu
vários itens para o Tesouro Imperial e para os soldados que haviam
retornado mais cedo.
Os que ainda tinham forças ficaram trabalhando a noite inteira
empacotando o ouro e as joias. Quando finalmente saímos da
caverna, meu olhar se desviou uma vez para a forma imóvel
encolhida no chão. Prendi a respiração, tentando não sentir o cheiro
metálico da terra encharcada de sangue.
O céu clareou a um cinza enevoado quando entregamos o último
tesouro para as aldeias. Fiquei atrás dos outros, observando quando
uma porta se abriu e uma velha saiu — a primeira mortal que eu via
de perto. Sua pele era enrugada e seus olhos amarelados estavam
caídos. As roupas esfarrapadas que pendiam de seu corpo
ofereciam escassa proteção contra o frio cortante, enquanto em
suas mãos havia uma pá incrustada de terra. Estaria se preparando
para trabalhar tão cedo? A velha tropeçou na caixa na entrada,
curvando-se para pegá-la. Seu queixo caiu; seus olhos se
arregalaram com o tesouro. Um grito estridente escapou de seus
lábios, e esse som me penetrou profundamente. Com os braços em
volta do peito, ela correu pelas ruas com uma força recém-
descoberta, gritando para que os vizinhos acordassem. Portas
foram escancaradas, gritos irromperam pela descoberta do tesouro.
Alguns dos aldeões caíram de joelhos, murmurando orações de
agradecimento, enquanto outros choravam e se abraçavam. O ar
pulsava com sua alegria e alívio… talvez aquele inverno não fosse
tão amargo, afinal.
Achei que fomos magnânimos ao presenteá-los com aquela
fortuna, mas o calor que senti em meu coração parecia ainda mais
precioso que ela. Quando alguém parou ao meu lado, engoli o nó na
garganta. Olhando de relance para o Capitão Wenzhi, vi um sorriso
se estender em seu rosto impassível. Seus olhos negros refletiam o
fogo dourado do sol enquanto seus raios nos banhavam, trazendo
um novo amanhecer.
16

A li não havia lagos prateados ou jardins cheios de flores para


agraciar minha visão; meu quartinho dava para as paredes do
palácio. Mas eu o ganhei por meio de meus próprios esforços e não
como favor de outra pessoa. Nas noites em que minha mente
inquieta me afastava do sono, eu subia até o telhado para olhar as
estrelas acima e as luzes brilhantes do reino abaixo. Às vezes eu
adormecia nas frias telhas de jade, embalada pelo brilho prateado
da lua. Isso me lembrou das lanternas em minha casa, cuja luz
brilhava através de minha janela enquanto eu estava deitada em
minha cama de canela-preta.
Na privacidade de meu quarto, tirei minhas roupas, ansiosa para
lavar o sangue e o suor do corpo. O bálsamo do Capitão Wenzhi
estava acabando e, quando mergulhei na água quente do banho,
meus braços doeram. Cerrando os dentes com força, esfreguei-me
até ficar quase em carne-viva. Depois, vesti um roupão branco e me
joguei na cama, esperando descansar antes que o médico
chegasse.
Fui tomada pelo sono. Quando acordei, o sol havia escurecido a
um tom âmbar. Sentei-me e estiquei os braços — preparando-me
para a dor —, mas não senti nada. Não restava sequer uma pontada
ou uma marca na pele. O médico deve ter vindo enquanto eu
dormia.
— Descansou bem?
A voz dele me assustou, e eu a conhecia tão bem quanto a
minha. Minha pulsação acelerou quando me virei lentamente.
Liwei estava sentado à mesa, calmo, como se tivéssemos nos
visto no dia anterior, e não meses antes, como se nossas últimas
palavras não tivessem saído sufocadas de dor e de arrependimento.
Seu manto cinza estava preso na cintura com uma corrente de elos
de ônix, e seu cabelo longo, com um anel de prata. Sua aparência
era exatamente como eu me lembrava, mas seu rosto estava mais
magro, e seus olhos, mais escuros do que antes — ou talvez
tivessem perdido o brilho.
Mantive a feição plena em indiferença, mas, por dentro… eu era
um misto confuso de emoções emaranhadas e contorcidas.
Levantando-me da cama, curvei-me com uma formalidade rígida.
— Você não precisa fazer isso — disse ele, com a voz tensa.
— Eu não precisaria se você não viesse aqui sem ser convidado.
— Fechei mais as lapelas de meu manto interno. — Liwei, isso não
é nada adequado. Não estou vestida. Estes são os aposentos dos
soldados, e você… seu lugar não é aqui. — Quando ele não
pareceu inclinado a sair, caminhei até o guarda-roupa, puxando a
primeira peça de roupa que encontrei: um roupão verde pelo qual
passei os braços, amarrando seu cinto. Sentei-me na cama
novamente, pois não queria ficar sentada ao lado dele. — Por que
está aqui, Vossa Alteza?
— Você me chamou de Liwei há pouco — observou ele.
— Um erro — respondi. — O senhor é o Príncipe Herdeiro. Eu
sou uma soldado. Para mim, o senhor é “Vossa Alteza”.
Seus dedos finos brincavam com a xícara sobre a mesa.
— Fiquei sabendo que você voltou. Queria ver você, saber que
não estava ferida. — Ele franziu a testa. — Seus ferimentos foram
graves. Por que não foi se curar antes?
— Minhas habilidades são, na melhor das hipóteses,
rudimentares. E, por causa do veneno da serpente, o Capitão
Wenzhi acreditava que a ferida deveria ser tratada por um médico.
— Eu não o olhava nos olhos. Vê-lo rachou a casca em volta de
meu coração, reavivando a dor que eu lutei por muito tempo para
suprimir.
Ele pigarreou.
— Acredito que você merece todas as congratulações. Ouvi dizer
que abateu Xiangliu com duas flechas em um único tiro. — Ele
parecia satisfeito. Orgulhoso, até.
— Sozinha, não. Se não fosse pelos outros, eu não teria saído
com vida — retruquei com emoção.
A cor sumiu de seu rosto, mas eu não me permiti pensar muito em
sua preocupação.
— Vossa Alteza, agradeço sua visita, mas desejo descansar. Por
favor, retire-se. Estendi a mão para as portas, temperando a
grosseria com uma pequena reverência.
Ele não se levantou. Não disse palavra alguma. Teria ficado
ofendido? O criado-chefe teria tido um ataque de fúria com meu
desrespeito. Porém, notei uma coisa: como ele poderia ter visto
meus ferimentos? A menos que…
— Você me curou?
— Sim. — Seu olhar estava fixo no meu.
Minha mente traidora conjurou a imagem dele sentado à minha
cama, passando as mãos delicadamente sobre meus braços
enquanto canalizava sua energia neles.
— Não pedi que o fizesse. Mas obrigada.
— Não precisa agradecer — disse ele. — Como tem passado?
Lembrei-me das incontáveis noites sem dormir desde que o deixei
com a dor corroendo meu coração. Das lágrimas que prendi até que
secassem. Esses eram meus segredos, escondidos sob meu
sorriso.
— Bem — menti descaradamente. — Meu treinamento me
mantém ocupada. O Capitão Wenzhi é um mestre severo.
Ele retesou a mandíbula e sua voz assumiu um tom afiado, não
familiar:
— Sim, o Capitão Wenzhi é muito zeloso com você. Será que
alguém questiona por que ele gasta tanto tempo e esforço com
apenas uma recruta?
Essa insinuação me fez ficar furiosa. Se ele estava com ciúmes,
não tinha o direito de estar.
— Por que você veio aqui? — perguntei novamente, com uma voz
mais dura do que antes.
A mão dele se fechou em punho sobre a mesa.
— Não deveria ter vindo. Fiquei longe o máximo que pude. Mas,
quando você foi para o Reino Mortal, não pude ignorar o medo de
que você estivesse em perigo. De que não voltasse.
A confissão dilacerou todas as minhas defesas cuidadosamente
construídas. Como eu odiava essa fraqueza que se agitava em mim,
esse anseio fútil pelo que estava perdido. Como seria fácil admitir a
dor no meu peito e tocá-lo, como eu sonhara! Porém, ele fora
prometido a outra, e eu não me contentaria com menos do que eu
tinha para dar.
Então, em vez disso, dei uma risada curta e áspera. Naquela
batalha, a indiferença e a zombaria seriam minha armadura.
— Acha que eu sou inábil a esse ponto?
Ele me encarou sem vacilar.
— Xingyin, isso é injusto. Você sabe o quanto eu a considero.
— Não o suficiente, ao que parece. Não venha falar de injustiça,
Liwei. — Xinguei a mim mesma pelo lapso de falar seu nome e pelo
brilho repentino em seus olhos. — Você deixou sua escolha clara na
noite em que se comprometeu com outra. Deixei a minha clara
quando parti. É injusto que você venha até mim agora, porque
deveria perceber que isso me desconcerta. — Eu deveria ter parado
ali, mas meu ressentimento e minha raiva agora jorravam de mim.
— Você disse que me amava. Partiu meu coração… Você nem
mesmo me contou sobre seu noivado. Acha isso justo ? — As
palavras eram amargas; no entanto, foi um alívio proferi-las em voz
alta.
— Não. — A voz dele estava rouca. — Você tem todo o direito de
me desprezar. Saiba apenas disso; se eu pudesse escolher, seria
você. — Ele passou a mão pelo cabelo, como fazia quando estava
angustiado. Como eu gostaria de não saber essas coisas sobre ele,
e que ele não me comovesse tanto! — Eu ia lhe contar. O noivado
não deveria ser anunciado naquela noite, mas minha mãe
convenceu meu pai a fazer isso.
Quando inspirei, minha respiração estava trêmula. Eu estava
errada; a imperatriz não esperara para retaliar, e seu golpe fora mais
certeiro do que ela jamais poderia ter esperado. Não importava;
nada teria mudado. Ele era o Príncipe Herdeiro. O casamento era
seu dever, e eu deveria ter percebido isso desde o início.
Um silêncio pesado caiu sobre nós. Parte de mim desejava que
ele fosse embora, para que eu pudesse me afundar de volta na
cama e me perder na dormência do sono. No entanto, uma parte
mais fraca de mim ainda adorava sua presença — deliciando-se por
ver seu rosto, ouvir o som de sua voz, e ansiando por seu toque —
apesar de conhecer a angústia que viria depois.
Tomei coragem e perguntei:
— A data do casamento foi marcada? — Pronto, puxei de uma
vez o curativo da ferida quando disse aquilo em voz alta. Não era
melhor lutar contra o monstro ao ar livre do que deixá-lo à espreita
nas sombras, sem saber o melhor momento de atacar?
A luz de seus olhos se extinguiu.
— Os presentes de noivado foram trocados, mas a cerimônia
levará anos para acontecer. A Princesa Fengmei e eu ainda somos
jovens, e pedi um tempo para me dedicar aos meus deveres. Talvez,
então, as coisas possam mudar.
Ele não parecia um noivo ansioso. Tampouco entendi a demora
quando a troca de presentes era um compromisso tão vinculante
quanto a assinatura do contrato de noivado. Quem ousaria ir contra
uma aliança entre as duas famílias mais poderosas do reino? Fiz a
pergunta, deixei a dor entrar, arrancando o último resquício de
esperança de meu coração. No entanto, que arrependimento forte
me apunhalou naquele momento: fui rasgada pelas garras do ciúme.
Alguém bateu à porta. Seria Shuxiao, chamando-me para o
jantar? Eu adoraria qualquer distração naquele instante.
Caminhando para as portas, abri-as com um sorriso de boas-vindas
nos lábios…
Quem estava na entrada era o Capitão Wenzhi, sem armadura e
com um manto preto.
— A médica disse que foi mandada embora antes que pudesse
atender você. — Ao ver Liwei, ele ficou rígido antes de se curvar em
uma saudação. — Vossa Alteza, eu não esperava encontrá-lo no
quartel dos soldados.
A expressão de Liwei ficou fria, vestindo a máscara imperial que
ele usava com tanta facilidade.
— Capitão Wenzhi, você é muito zeloso com seus soldados. Até
mesmo os visita a essa hora, tão tarde…
— De fato sou, Vossa Alteza. Principalmente com os feridos. —
Ele entrou na sala, sem que a hostilidade de Liwei o constrangesse.
Enquanto olhavam um para o outro, fixamente e sem piscar,
minha cabeça começou a latejar.
Finalmente, Liwei se voltou para mim.
— Estou mais tranquilo sabendo que você voltou. — Ele acenou
brevemente com a cabeça para o Capitão Wenzhi, que respondeu
com outra reverência curta. Por sua postura, eu sabia que ele
estava descontente quando saiu.
— Por que seu retorno seria um peso na mente do Príncipe
Liwei? — perguntou o Capitão Wenzhi, pegando o banco recém-
desocupado. Com um feitiço rápido, ele esquentou a água no bule,
preparando chá fresco de jasmim e me servindo uma xícara.
Tomei um gole, saboreando sua fragrância delicada e seu calor
reconfortante.
— Nós somos amigos. Estudamos juntos.
— Ele não parecia amigável. Você também não.
Mantive o rosto inexpressivo, devolvendo o copo ao seu lugar.
— Capitão Wenzhi, você veio por um motivo específico ou apenas
para causar problemas onde não há?
— Vim ver seus ferimentos. Como estão?
— Curados. — Estendi os braços para mostrar-lhe a pele
renovada, aliviada ao notar que os ferimentos dele também haviam
desaparecido.
Uma expressão estranha cruzou seu rosto.
— Você tem sorte de ter sido tão bem atendida.
Recolhi os braços. Ele sabia que a médica não tinha me atendido.
— Como foi sua audiência com Sua Majestade Celestial? —
indaguei, em uma tentativa desajeitada de mudar de assunto.
— O imperador ficou satisfeito. Você estaria pronta para subir de
patente se decidisse fazer carreira. — Seu tom se elevou como se
ele estivesse fazendo uma pergunta.
Eu não me importava com isso, mas aquele era um começo
promissor para a jornada que eu esperava que me levasse para
casa.
— Não vou subir nada. Porém, se eles quiserem me dar um novo
título, eu não me importaria em ter o seu — falei suavemente.
— Eu mesmo informarei Suas Majestades Celestiais de seu
desejo. — Após isso, ele acrescentou, quase como uma reflexão
tardia: — O Arco Dragão de Jade; você o guardou em um lugar
seguro?
Meneei a cabeça, pensando na caixa debaixo de minha cama e
no encantamento que lancei para escondê-la de olhares indiscretos.
— Vou partir em breve para um dos Reinos do Mar. Se você se
juntar a nós, podemos encontrar algumas informações sobre o arco
lá. No entanto, pode ser perigoso. O fato de o rei deles solicitar
nossa ajuda é muito importante, e nenhum favor do Imperador
Celestial vem sem um preço.
Seu rosto mudou de expressão por um breve instante. Seria
desgosto? Ou preocupação com os perigos à frente?
— Vou pensar na oferta — respondi lentamente. Então, ele se
levantou.
— Vejo você no treinamento amanhã. Ao amanhecer.
Resisti ao impulso de reclamar. Não adiantaria.
Ele quase trombou com Shuxiao na porta. Tentando equilibrar a
pesada bandeja nas mãos, ela se curvou para ele
desajeitadamente. Em troca, ele fez um aceno curto para ela, saindo
com a expressão distante.
Shuxiao colocou a bandeja na mesa.
— Seu jantar. Ouvi dizer que você se machucou.
— Obrigada. — Eu estava feliz pela companhia dela. O quarto de
Shuxiao era perto do meu e fazíamos refeições juntas sempre que
podíamos. Ao olhar para a carne de porco assada, o feijão verde
refogado e as nêsperas maduras, meu estômago roncou,
lembrando-me de que eu não tinha comido nada o dia todo.
Levantando a tampa da panela de bambu, peguei um pão macio,
enfiando fatias da carne tenra em suas dobras.
— Um médico a atendeu? — perguntou ela.
— Sim. — Eu estava relutante em falar mais.
Ela inclinou a cabeça para trás a fim de me encarar.
— Você parece bem. Radiante, até. Talvez fosse você quem devia
ter me levado o jantar. — Empurrando o banco para trás, ela
levantou a bainha de seu manto, exibindo duas fileiras de marcas
vermelhas na panturrilha.
— São marcas de dentes? O que aconteceu?
— Espíritos de raposa. Alguns invadiram o quartel. — Ela fez uma
careta. — Quando a magia deles se esgota, eles mordem. Agora
não está mais doendo, mas isso coça como nunca e a médica disse
que levaria semanas para as marcas desaparecerem. Se
desaparecerem.
— Como eles entraram aqui? — Fiquei surpresa, pois barreiras
mágicas poderosas protegiam o Império Celestial de seus inimigos.
Todas as noites, os soldados de serviço conjuravam escudos ao
longo das fronteiras do reino, o que os alertava para qualquer
intrusão.
— Um deles tomou a forma de um Celestial e entrou sem ser
detectado. Quando passou pelos escudos, desfez as barreiras
mágicas por dentro. Isso não devia ter acontecido. Mesmo com a
mudança de aparência, nossas barreiras deveriam ter detectado
suas auras. O General Jianyun está investigando o assunto.
Remexi a bolsa, tirando o frasco de jaspe que o Capitão Wenzhi
havia me dado. Tirando a rolha, sacudi o recipiente para despejar as
últimas gotas sobre a perna dela.
Quando a vermelhidão dos ferimentos diminuiu, ela suspirou de
alívio.
— O que é isto?
— É só uma coisa que o Capitão Wenzhi me deu para os
ferimentos.
— É mesmo? O Capitão Wenzhi costuma dar remédios raros para
meros soldados? — Seu olhar parecia me perfurar.
— Só desta vez. — Foi tudo o que eu disse.
— Ou apenas para essa soldado.
Não respondi, pegando uma nêspera e descascando-a com
cuidado excessivo.
Ela deu de ombros então, talvez cansada de me provocar quando
eu não mordi a isca.
— Como está Xiangliu? — perguntou ela, como se estivéssemos
falando de um amigo em comum.
— Morto. Flechado no olho. — Era mais fácil falar do assunto com
desdém. De alguma forma, isso tornava tudo menos real: o perigo, a
vida que eu havia tirado.
— Que brutalidade — comentou ela. — Foi uma luta difícil?
Descrevi a batalha, sabendo que ela estaria interessada em cada
detalhe. Quando terminei, desviei o olhar, admitindo:
— Perdi a cabeça. Os feridos… foi por causa de meus erros.
— Qualquer um ficaria apavorado. O que você achou que
aconteceria? Xiangliu, logo em sua primeira missão! Novos recrutas
normalmente são enviados em missões simples, como inspecionar a
fronteira ou procurar algum artefato perdido. — Foi justamente pelo
perigo que me alistei. Missões simples eram inúteis para mim. Elas
não fariam meu nome ser sussurrado no ouvido do imperador; não
me dariam o Talismã do Leão Vermelho. Ela acrescentou: — Pelo
menos você se recuperou a tempo. Ninguém morreu. Bem, exceto
Xiangliu. Não se esqueça de que foi você quem o matou.
Assenti, sentindo-me um pouco melhor.
— Mas não foi de todo ruim. Nós encontramos uma caverna de
tesouros.
Ela se inclinou sobre a mesa.
— Você ficou com alguma coisa?
Pensei no Arco Dragão de Jade, de longe mais precioso do que
qualquer joia. Mas não era meu e o Capitão Wenzhi havia me
alertado para mantê-lo escondido e não falar dele. Vasculhei minha
bolsa em busca do bracelete, colocando-o na palma da mão dela.
Ela abriu o fecho, passando a mão nele. O ouro e o coral
brilhavam contra sua pele.
— É lindo.
— É apenas uma bijuteriazinha. — Fiquei feliz porque ela pareceu
ter gostado. — Você deveria ter visto o que o Capitão Wenzhi trouxe
para o Tesouro Imperial.
Ela fez uma expressão curiosa.
— O que o Capitão Wenzhi estava fazendo aqui? Não que eu
esteja reclamando, muita gente nos invejaria por essa visita.
— O que quer dizer?
— Você não notou que, sempre que ele treina, as multidões se
juntam, tanto homens quanto mulheres? Alto, ombros largos, olhos
bonitos, boca firme, nariz reto — recitou ela, contando cada traço
nos dedos. — Se ele sorrisse mais, faria um uso melhor de sua
beleza.
— Ele é bonito? — Eu o achava impressionante, mas bonito? Ela
me lançou um olhar de reprovação.
— Você não notou? Como pode? Depois dos meses que passou
treinando com ele, andando ao lado dele, dormindo sob as estrelas
perto da fogueira acesa… — Peguei um pão e joguei nela, e ela o
pegou no ar com habilidade. — Não fique tão revoltada. — Ela
sorriu. — Ou posso começar a pensar que há alguma verdade nos
boatos.
Será que eram os mesmos que chegaram a Liwei? Foi por isso
que ele me procurou no momento em que voltei, querendo uma
negação ou uma confissão?
— Esses boatos dos quais você está falando são mais que
ridículos — retruquei, mais exaltada do que pretendia.
— Será que cutuquei uma ferida?
Calei a boca na hora.
Shuxiao pegou uma nêspera da tigela, passando-a para mim.
Uma oferta de paz.
— Poucos são tão respeitados quanto o Capitão Wenzhi. Suas
habilidades de luta são renomadas e sua magia é
extraordinariamente forte para alguém que não vem de nenhuma
linhagem conhecida.
Olhei para ela.
— De onde ele é mesmo?
— Ouvi dizer que o Capitão Wenzhi é de alguma linhagem familiar
indistinta dos Quatro Mares. Um estrangeiro subir na hierarquia e se
tornar o capitão mais jovem do Exército Celestial não é uma proeza
fácil.
Tive um sentimento de identificação com o Capitão Wenzhi,
sabendo que nós dois estávamos criando uma vida nova para nós
mesmos. Embora ele fosse muito mais capaz do que eu, isso me
deu esperança de alcançar minhas próprias ambições — um
desconhecido podia ascender à proeminência no Império Celestial.
Mesmo assim, eu não conseguia deixar de pensar que nem
mesmo ele havia ganhado o Talismã do Leão Vermelho.
Após a refeição, ajudei Shuxiao a empilhar os pratos vazios na
bandeja. Quando tentei tomar a bandeja de suas mãos, ela a
afastou de mim.
— Não é todo dia que você mata um monstro lendário. E parece
que o Capitão Wenzhi não vai pegar leve com você amanhã
também. — Sem dizer mais nada, ela saiu do quarto.
O sono me fugiu naquela noite. Com um suspiro impaciente,
joguei as cobertas para longe e saí do quarto. Subindo no telhado,
acomodei-me nos ladrilhos frios de jade. Como a solidão da noite
me lembrava de casa… As luzes do Império Celestial brilhavam
abaixo de mim, e agora eu defendia suas fronteiras com minha vida.
Minha mãe se sentiria traída por minha nova jura de lealdade?
Pensaria que eu a havia esquecido na busca pelo poder? Esse
pensamento fez meu peito ficar apertado. Se ao menos ela
soubesse a verdade, que tudo o que fazia era para ganhar sua
liberdade, para que pudéssemos ficar juntas novamente…
17

E u estava diante da mesa do General Jianyun, perguntando-me


por que ele havia me convocado. Raramente o via agora, desde que
comecei a treinar com o Capitão Wenzhi e suas tropas. Meu olhar
fixou-se na mesa, primorosamente trabalhada em pau-rosa e
incrustada com madrepérola em desenhos de bambu, flores-de-
lótus e garças. Não esperava que uma peça tão delicada adornasse
o escritório de um soldado tão pragmático, embora eu tenha me
lembrado de que, apesar de seu exterior ameaçador, o general
havia me mostrado uma gentileza que eu não merecia. Ele tinha
visto algo em mim antes que eu mesma percebesse.
Eu me mexia de desconforto sob o peso de seu olhar e as
escamas douradas de minha armadura tilintavam. O General
Jianyun fechou a expressão em uma bronca sem palavras: uma boa
soldado não se inquieta.
Fiquei com a postura mais ereta, forçando as pernas a ficarem
imóveis. Teria me chamado ali para me advertir por alguma coisa?
Para me dar um sermão sobre meu descuido com Xiangliu?
O vislumbre de um sorriso se formou em seus lábios.
— Para sua primeira missão, você se saiu bem.
Respirei aliviada.
— Obrigada, General.
— Conforme o combinado, você pode decidir sua próxima missão.
Duas delas demandam um recruta. Uma campanha irá ao Deserto
Dourado para colher as ervas raras que crescem lá. Mesmo que ele
faça fronteira com o Reino dos Demônios, não esperamos nenhuma
perturbação, já que o tratado de paz permanece intacto.
Assenti, tentando parecer entusiasmada. Nunca havia estado no
Deserto Dourado, mas coletar plantas não era muito atrativo. Talvez
eu devesse estar grata por uma tarefa mais fácil depois de Xiangliu,
mas isso não chamaria a atenção do imperador.
— Ou você prefere acompanhar o Capitão Wenzhi novamente? —
ofereceu o General Jianyun. — Mesmo que ele prefira essa
alternativa, a escolha é sua. Ele liderará uma tropa para o Mar do
Leste, cujo rei pediu nosso suporte para lidar com os distúrbios
recentes.
Minha mente ficou agitada com um trecho de uma história que
minha mãe costumava me contar. Sua voz era suave e melodiosa
ao falar do Mar do Leste e dos…
— Dragões — sussurrei, tão envolvida na memória de sua mão
fria acariciando minha bochecha que inspirei por instinto; uma
tentativa fútil de sentir o cheiro de canela-preta. Uma dor seca
tomou conta de mim, diferente da agonia lancinante do desgosto,
embora ambas despertassem em mim um desejo por algo perdido.
O General Jianyun ficou tenso, um raro deslize em sua
compostura.
— Dragões?
Dei uma risada estridente e alta demais para encobrir meu
deslize.
— Apenas uma velha fábula. Contam que o Mar do Leste foi o
berço dos dragões. Foram eles que causaram esses distúrbios?
Ele respondeu lentamente, escolhendo as palavras com cuidado.
— Os dragões não estão mais no Mar do Leste. Nem no Reino
Imortal.
Uma dúzia de perguntas atravessou minha mente. Tudo o que eu
sabia sobre os dragões vinha da história que me contaram. Até
agora, eu os considerava apenas um mito, um símbolo de poder que
parecia ter a aprovação do imperador.
Antes que eu pudesse falar, o general prosseguiu, franzindo a
testa:
— São os sereianos, os habitantes do fundo do mar. Pela primeira
vez, eles foram hostis. Embora esteja havendo apenas conflitos
menores por enquanto, o Capitão Wenzhi está se preparando para
qualquer eventualidade.
A exploração tranquila do Deserto Dourado ou os perigos do Mar
do Leste? O fedor da caverna de Xiangliu saltou em minha memória
e a fenda sinistra entre suas escamas causou um arrepio em minha
espinha. Mas esse era o preço do caminho que eu havia escolhido.
E, como o Capitão Wenzhi havia dito, talvez pudéssemos conseguir
mais informações sobre o Arco Dragão de Jade no Mar do Leste.

NAS SEMANAS ANTERIORESa nossa partida, treinei mais intensamente do


que nunca. Apesar de ser elogiada por abater Xiangliu, no fundo eu
sentia que era uma fraude — que tal elogio era imerecido. Meu
medo e minha inexperiência puseram todos nós em perigo. Como
fora arrogante em imaginar que estava pronta, que poderia
mergulhar nas profundezas do oceano e milagrosamente aprender a
nadar! Que imprudência pensar que meus feitos no treinamento
poderiam ser facilmente replicados quando o sangue deixasse o ar
espesso, e a dor e o pânico engolissem meu corpo e minha mente.
Não, eu não cometeria esse erro novamente. Cada noite eu
afundava na cama, tão exausta que não temia mais ficar sozinha
com meus pensamentos no escuro. Já não procurava a solidão do
telhado. Por que fazer isso, se adormecia no momento em que
minha cabeça caía no travesseiro?
O céu estava encoberto pelas nuvens que convocamos para
nossa jornada ao Mar do Leste. Um mortal olhando para cima teria
se assustado com os enormes bancos de nuvens movendo-se
rapidamente pelos céus. Finalmente superei minha ansiedade para
dominar essa habilidade, não mais dependendo de outra pessoa
para me deslocar. Minha energia fluiu em uma onda brilhante,
chamando a nuvem mais próxima. Manchas de prata estavam
tecidas em suas dobras volumosas, impregnando-a com minha
magia enquanto eu voava para os céus.
A beleza do Mar do Leste me paralisou. O litoral estava repleto de
flores de cores vivas e plantas que brilhavam com um fulgor interior.
Estendi a mão para tocar uma pétala, surpresa ao sentir que era
firme e fria como porcelana. Uma floresta exuberante crescia na
extremidade, longe da costa, e casas de madeira de cedro e de
pedra foram construídas sobre a areia. Seus telhados inclinados
eram revestidos com turquesa e madrepérola e, à luz da manhã,
brilhavam como as ondas do mar. Uma passarela de cristal se
arqueava da praia até o palácio, que se erguia do meio do oceano.
Meu olhar estava fixo no horizonte infinito enquanto eu vagava em
direção à costa e minhas botas afundavam na areia macia.
Esquecendo o trabalho, agachei-me e mergulhei as mãos na água
fria, assustando os peixinhos prateados que nadavam nas águas
rasas. Quando uma sombra caiu sobre mim, eu me virei, apertando
os olhos contra a luz do sol.
O Capitão Wenzhi estava de pé atrás de mim, com um sorriso
divertido nos lábios.
— Você nunca viu o mar?
Fiquei de pé também, sacudindo a água nas mãos. Algumas
gotas respingaram nele, mas o capitão não pareceu se importar.
— Apenas sobrevoando, ou em gravuras. E… uma pessoa me
disse que era lindo. — As palavras melancólicas de minha mãe
ecoaram em minha mente, suas expectativas pela vida que eu teria.
Quando vários soldados se aproximaram, ouvi passos
esmagando a areia. Sob seus olhares atentos, fechei o punho,
cobri-o com a palma da outra mão e me curvei.
— Capitão Wenzhi, aguardo sua ordem.
— Cuide de seus afazeres antes de explorar o terreno. — Seu
tom era severo, mas seu sorriso não se desfez quando ele deu
meia-volta e caminhou até os soldados que aguardavam.
Mantive a cabeça baixa, escondendo meu rosto. Um espectador
poderia pensar que eu estava envergonhada pela reprimenda, mas,
enquanto eu olhava para as águas em movimento constante, meu
estado de espírito estava mais leve do que a brisa errante. E, pela
primeira vez em meses, senti a agitação da expectativa.
Depois que o acampamento foi montado, acompanhei o Capitão
Wenzhi pela ponte de cristal para sua audiência com o rei. O palácio
reluzia entre mar e céu — um edifício cintilante de quartzo, turquesa
e madrepérola, com um telhado de duas camadas de telhas
douradas. As grandes portas de entrada eram trabalhadas em
madeira de freixo e incrustadas com ouro, e sobre elas pendia uma
placa com os caracteres:

PALÁCIO DO CORAL PERFUMADO


Em volta do palácio, havia mais flores e plantas requintadas do
que na praia — ramos em tom de vermelhão, flores verdes
brilhantes em forma de leque, talos tubulares cor-de-rosa e rochas
lisas cobertas de musgo reluzindo em vermelho. Um jardim
encantado cultivado no coração do oceano.
Passando pelas portas, um atendente nos guiou por um longo
lance de escadas. Os níveis mais baixos do palácio foram
construídos debaixo d’água, feitos da mesma pedra clara da ponte.
Era como andar no fundo do oceano, cercado por água corrente e
recifes de coral. Quando entramos em um salão lotado com tetos
altos, o silêncio caiu sobre os imortais reunidos. Só então ouvi o
melodioso tilintar dos fios de conchas de marfim que balançavam
atrás dos tronos de ágata. Eu só tinha visto o Rei Yanzheng do Mar
do Leste uma vez antes, no banquete de Liwei. O cabelo prateado
emoldurava seu rosto liso e sem rugas e seus olhos brilhavam em
contraste com sua pele escura. Seu manto de seda azul-petróleo
era bordado com ondas contornadas por curvas brilhantes de fio
branco. Uma coroa de ouro em forma de leque, cravejada de
pérolas, repousava sobre seus cabelos.
O Capitão Wenzhi e eu nos ajoelhamos no chão, esticando as
mãos unidas quando nos curvamos.
— O Império Celestial responde ao pedido de ajuda do Mar do
Leste — iniciou o capitão, formalmente. — Desembainharemos
nossas espadas e vergaremos nossos arcos a seu serviço.
— Levantem-se — ordenou o rei, parecendo satisfeito. — Somos
gratos pela assistência do Império Celestial durante esses tempos
difíceis. Os ataques dos sereianos nos pegaram desprevenidos,
pois eles sempre viveram pacificamente entre nós antes. Capitão
Wenzhi, sua reputação chegou até nossos ouvidos no Mar do Leste
e agradecemos ao Imperador Celestial por nos enviar seu melhor
guerreiro.
O Capitão Wenzhi curvou-se novamente.
— Vossa Majestade é gentil, mas eu não mereço tal elogio. É uma
honra servir com o melhor de minhas habilidades.
O Rei Yanzheng acariciou a barba.
— A humildade que acompanha tamanho talento é rara. — Ele
gesticulou em minha direção. — Essa senhora é sua esposa?
Ruídos abafados escaparam de minha boca quando as orelhas do
Capitão Wenzhi ficaram vermelhas.
— Não, Majestade. Esta é… a Primeira Arqueira Xingyin, do
Exército Celestial.
A apresentação chamou minha atenção. Primeira Arqueira ?
O rei olhou para minha armadura.
— Ah — assentiu ele, com um sorriso sarcástico. — Não temos
mulheres guerreiras aqui.
Vários cortesãos riram; alguns abafaram o riso erguendo as
mangas dos mantos. Meu estômago deu um nó com a intromissão
inconveniente, mesmo que eu tenha fechado os punhos em
resposta ao desdém da corte.
O Capitão Wenzhi varreu a sala com um olhar arrepiante, que
silenciou a zombaria com mais eficácia do que uma espada.
— A Primeira Arqueira Xingyin é a arqueira mais qualificada de
todo o nosso exército. Ela será de grande ajuda para esta
campanha. — Seu tom era cortante. — Vossa Majestade, poderia
nos informar sobre a situação com os sereianos?
O rei gesticulou para o jovem ao lado dele.
— Meu filho mais velho, o Príncipe Yanxi, dará todas as
informações a vocês.
Um imortal alto, vestido com um manto azul-celeste brilhante, deu
um passo à frente. Pequenos peixes, bordados em carmesim e
prata, saltavam das dobras. Seu cabelo castanho-escuro estava
enrolado em um coque alto, preso com um grampo de cabelo
turquesa. Como ele encurtou a distância, pude sentir sua aura, fria e
firme, vibrando com poder.
— Capitão Wenzhi, Primeira Arqueira Xingyin. Desde o início dos
tempos, vivemos em harmonia com os sereianos. Enquanto nós,
Imortais do Mar, preferimos ficar tanto na terra quanto no mar, eles
optaram por morar nas profundezas da água, emergindo apenas em
ocasiões raras. Eles reverenciavam os dragões que habitavam os
oceanos e desejavam estar perto deles. Os dragões eram criaturas
sábias e gentis, ajudando a manter a harmonia em nossas águas. —
Sua entonação mudou, ficando tensa. — Quando o Imperador
Celestial baniu os dragões de nosso reino, os sereianos ficaram
insatisfeitos. Com o tempo, sua aversão à terra aumentou,
preferindo ficar reclusos entre os seus nas profundezas do oceano.
Anos atrás, meu pai permitiu que eles escolhessem um governador
para representá-los em nossa corte. Infelizmente, o Governador
Renyu é perigoso; suas ambições vão muito além de seu mandato.
Recebemos relatos de que ele havia recrutado um grande exército
de sereianos, treinando-os em combate armado e magia. Quando
meu pai pediu que comparecesse à corte para responder a essas
acusações, ele recusou. — Pensei comigo mesma que treinar um
exército sem autorização real era de fato uma traição, e a culpa do
Governador Renyu agravou-se pela recusa em se reunir com o rei.
O Príncipe Yanxi esfregou a testa, fechando ainda mais a
expressão. — Desde então, os sereianos se tornaram totalmente
hostis. Imortais do Mar que mergulharam fundo demais foram
atacados. As casas mais próximas da costa foram invadidas. E
todas as vezes os criminosos fugiram antes que nossos soldados
pudessem prendê-los.
— Esses delitos comuns provavelmente não são tudo o que o
governador pretende. Vossa Alteza sabe alguma coisa sobre seus
planos? — perguntou o Capitão Wenzhi.
— Recentemente, ele emitiu seu próprio decreto, banindo todos
os Imortais do Mar das profundezas do oceano. Um grave insulto.
Acreditamos que ele quer derrubar meu pai e tomar o trono para si.
Sob o comando do Governador Renyu, o exército de sereianos se
tornou forte e poderoso, e temo que o inverso possa ser dito do
nosso. Somos uma nação pacífica, desacostumada à batalha, e por
isso solicitamos o auxílio do Reino Celestial.
Teríamos que lutar contra os sereianos debaixo d’água? Meu
estômago revirou com o pensamento. Como muitos Celestiais, eu
não tinha aprendido a nadar — qual era a necessidade disso se
podíamos voar? Certa vez, na infância, caí no rio perto de minha
casa. A água fria me envolveu com pressão, entupindo meu nariz e
minha boca. Eu me debatia — meus movimentos frenéticos apenas
me arrastavam mais fundo para o abraço do rio. Foi minha mãe
quem mergulhou na água, puxando-me para fora. Ela me
repreendeu num tom de voz trêmulo, mesmo quando seus braços
me envolveram com força e a batida reconfortante de seu coração
silenciou meu pavor por completo.
O medo ao me lembrar disso foi enorme. Afugentei-o para dizer:
— Soldados celestiais não estão acostumados a ficar debaixo
d’água. Se houver uma batalha, devemos tentar atrair os sereianos
para a terra.
Algo que parecia ser surpresa iluminou o rosto do Príncipe Yanxi.
— De fato. Estaríamos em grande desvantagem debaixo d’água.
Os sereianos são excelentes nadadores e estão acostumados à
escuridão. No entanto, hesitarão em nos desafiar em terra.
Precisamos de um plano.
O Rei Yanzheng inclinou-se para frente.
— O Capitão e suas tropas chegaram hoje. Estamos sendo
péssimos anfitriões, mantendo-os aqui sem descanso. — Seu
sorriso era gracioso e caloroso. — Capitão Wenzhi, planejamos um
banquete esta noite em sua homenagem. Espero que nos prestigie
com sua presença, junto com a Primeira Arqueira Xingyin.
— Ficaríamos honrados — agradeceu o Capitão Wenzhi, e
pigarreou, hesitante. — Vossa Majestade, a biblioteca do Palácio do
Coral Perfumado é renomada em todo o Reino Imortal. Poderia
permitir que eu a visitasse? Espero aprender o máximo que puder
sobre os sereianos.
O rei assentiu com a cabeça.
— Um criado o levará até lá sempre que desejar.
Quando o Capitão Wenzhi e eu saímos do salão, sorri para ele.
— “Primeira Arqueira? A arqueira mais bem qualificada em nosso
exército?” — repeti suas palavras anteriores. — Isso significa que
agora estamos mais próximos?
Ele me lançou um olhar exasperado.
— Não é uma patente oficial, pois você não é uma recruta oficial.
E desde quando isso importa para você? — Dei uma risada, sem
contestar sua afirmação. Nunca era desrespeitosa com ele, mas
também não o tratava com a deferência que sua patente exigia.
Sem perder o ritmo, ele continuou: — Você está Primeira Arqueira.
Se fizer corpo mole e perder sua patente, terá que se contentar em
ser Segunda ou Terceira Arqueira, o que soa muito menos
impressionante.
— Ah, vamos ver! — O comentário dele me pegou. — Quer me
desafiar? — Ele era conhecido por ser um arqueiro habilidoso; no
entanto, no momento em que as palavras saíram de minha boca,
quis retirá-las. Elas evocaram muitas memórias inquietantes… de
uma floresta de pessegueiros, de alguém que eu queria
desesperadamente esquecer. Um início de sorriso se formou nos
lábios dele.
— Não com o arco. Mas você é mais que bem-vinda para me
testar em qualquer outra arma. — Eu não respondi, forçando-me a
seguir em frente, um passo após o outro, e o silêncio agora caía
entre nós. Ele parou nas portas de entrada, inclinando a cabeça
enquanto me examinava. — Você está pálida. Cansada. Tem
treinado muito duro. Por que não volta para o acampamento e
descansa? Vou à biblioteca para ver se encontro alguma coisa útil.
— Ele gesticulou para o criado à disposição, que se apressou
imediatamente.
— Estou bem — retruquei, ansiosa para visitar a biblioteca
também. Mas ele me parou e me encarou implacavelmente, até que
concordei. Não podia desafiar uma ordem dele na frente do criado.
— Vou lhe contar sobre o que encontrar — disse ele, talvez
percebendo o desânimo em meu rosto. — Descanse enquanto
pode. Esta noite será longa.
18

U ma criada do Palácio do Coral Perfumado chegou, trazendo uma


bandeja de roupas para o banquete. Feliz por sua hospitalidade
graciosa, peguei o vestido de cetim amarelo com contas turquesas
costuradas na bainha e nos punhos e o vesti. Uma faixa verde-mar
envolvia minha cintura, e suas borlas de seda caíam até meus
joelhos. O estilo da vestimenta era diferente daquelas do Império
Celestial, deixando meu pingente de jade exposto abaixo da
cavidade do pescoço. O único acessório extra era um pente de
pérolas adornando o topo de minha cabeça e meu cabelo escuro
escorrendo solto por minhas costas.
O Capitão Wenzhi esperou por mim do lado de fora. Meu coração
acelerou inesperadamente enquanto eu caminhava em direção a
ele. Ele estava deslumbrante naquela noite: usava um manto verde-
floresta, com um pedaço de seda preta reluzente amarrado em volta
da cintura. Seu cabelo estava preso em um anel de jade esculpido,
caindo sobre seu ombro como ondas da noite. Foi como se eu
tivesse lavado meus olhos, finalmente admirando com uma clareza
surpreendente todas as belas feições que Shuxiao havia descrito.
O vento soprava suavemente naquela noite. Inspirei o ar frio,
afogando os sentidos na fragrância do mar — uma mistura de sol e
sal com uma corrente de entusiasmo. Os raios do sol poente
pintavam as águas de carmesim e vermelhão; o Palácio do Coral
Perfumado brilhava como uma joia no horizonte.
No salão de banquetes, centenas de lanternas estavam
penduradas no teto, luminosas e brilhantes. Mesas baixas de
madeira e cadeiras estofadas com brocado estavam dispostas ao
redor das paredes, deixando um espaço vazio no centro da sala. Em
um canto estava sentada uma senhora elegante tocando uma pipa ,
um instrumento de madeira de quatro cordas em forma de pera
alongada. Enquanto ela dedilhava as cordas, os acordes
melancólicos da canção enchiam o ar. Seu jeito de tocar era
magistral; do som de uma única corda, ela tecia um rio de tristeza e
um oceano de lamento.
O rei e a rainha estavam sentados em um palanque na
extremidade do corredor. Uma magnífica flor dourada, com uma
pérola do tamanho da palma de minha mão, brilhava no cabelo da
rainha. As pétalas esvoaçavam ao redor da pérola, que reluzia em
branco em um momento e, no outro, esse fulgor se transformava no
tom mais escuro de preto. Um garotinho estava ao lado dela,
segurando sua mão. Sua cabeça mal chegava ao braço de seu
trono e seus olhos escuros eram grandes e solenes. Ao lado dele
estava uma dama elegante trajando seda cor de damasco com fios
de pérolas rosas enroladas em volta do pescoço. Seu queixo
delicado estava inclinado para cima e ela examinava o salão com
uma expressão de régia indiferença.
— Aquela é a filha de Sua Majestade? — perguntei ao Capitão
Wenzhi quando fomos cumprimentar nossos anfitriões.
— Sua Majestade tem apenas dois filhos, o Príncipe Yanxi, que
você conheceu, e o Príncipe Yanming. — Seguindo meu olhar, ele
acrescentou: — A senhora que está com o Príncipe Yanming é
Madame Anmei, sua governanta. Ela é filha de um nobre poderoso
e sua família tem grande influência nesta corte.
Depois de prestarmos nossos respeitos à família real, um criado
nos levou a nossa mesa. O Capitão Wenzhi encheu nossos copos e
tomei um gole do vinho; a doçura suave dos grãos fermentados
ficou em minha língua. Os pratos de prata diante de nós estavam
cheios de comidas exóticas, que em sua maioria eu nunca tinha
visto: crustáceos vermelhos brilhantes, águas-vivas douradas e
esferas pretas pontiagudas. Eu pensei que essas últimas pareciam
particularmente pouco apetitosas, embora os outros convidados
comessem com prazer.
O Capitão Wenzhi pegou uma e a abriu, passando metade para
mim. Peguei a carne e a pus na boca, saboreando seu sabor
cremoso e salgado.
— A comida é de seu agrado? — perguntou o Príncipe Yanxi,
aparecendo diante de nós inesperadamente.
Engasguei-me, tossindo alto. Pegando meu copo, tomei um
grande gole de vinho antes de me levantar apressadamente para
saudá-lo.
Ele inclinou a cabeça em reconhecimento, dizendo:
— Capitão Wenzhi, meu pai deseja falar com você. Ele perguntou
se você se juntaria a ele em sua mesa. Farei companhia à Primeira
Arqueira Xingyin até que retorne.
O Capitão Wenzhi franziu a testa em um instante rápido, mas a
expressão logo desapareceu. Ele se curvou para o príncipe antes de
caminhar em direção ao palanque. Não pude deixar de notar como
Madame Anmei ficou radiante quando ele ocupou o lugar vazio na
mesa deles.
O Príncipe Yanxi sentou-se na cadeira enquanto olhava
atentamente para mim. Por alguma razão, não achei seu interesse
ofensivo. Talvez fosse a curiosidade aberta em sua expressão ou o
humor enquanto eu retribuía seu olhar com ousadia, determinada a
não ser a primeira a quebrar o silêncio.
— Primeira Arqueira, onde aprendeu suas habilidades? — A
maneira sincera como falava me lembrou do General Jianyun.
— Treinei junto ao Príncipe Liwei quando era sua companheira de
estudos — respondi, de forma semelhante, esperando que ele não
percebesse o tremor em minha voz.
Então ele se lembrou.
— É claro. Era você no banquete. Tocou flauta muito bem. Ainda
toca?
— Não. — Desviei o olhar. Eu não tocara desde aquela noite.
Talvez percebendo que fiquei desconfortável, ele perguntou:
— Por que se alistou no Exército Celestial? Era o desejo da sua
família?
— O general que orientou meu treinamento inicial me ofereceu.
As pontas de seus dedos brincavam com a borda de seu copo.
— Certamente deve ter havido muitas outras oportunidades para
alguém que serviu ao Príncipe Herdeiro.
— Em nenhuma delas eu teria a liberdade de fazer meu próprio
caminho. Não tenho uma família que mexa os pauzinhos para me
promover e dependo apenas de minhas habilidades. — Levei o copo
à boca e dei um longo gole. — Mas esta é a minha escolha; eu não
procuraria outra — acrescentei, pensando no Talismã do Leão
Vermelho.
Um sorriso brincou em seus lábios e ele estreitou os olhos, que
não eram pretos como eu imaginara, mas tinham o azul profundo e
opaco das safiras não lapidadas. Ele pegou o jarro de porcelana
para encher meu copo.
— Sua franqueza é revigorante.
O vinho estava subindo a minha cabeça, soltando minha língua.
— Por que Vossa Alteza tem tantas perguntas para alguém como
eu?
— Porque não há muitas como você. O Capitão Wenzhi tem uma
estima profunda por sua pessoa. Você deve ser excepcionalmente
habilidosa para ter o título de Primeira Arqueira. No entanto, você
não se parece com nenhum guerreiro que já vi.
Retribuí seu sorriso.
— Não havendo mulheres em seu exército, não estou surpresa.
Ele inclinou a cabeça para trás e riu.
— Peço desculpas. Normalmente não sou tão inepto em meus
elogios.
Teria eu ouvido direito? Cada vez mais consciente da repentina
pausa na conversa, olhei em volta do salão. Muitos dos Imortais do
Mar do Leste estavam olhando para nós, sussurrando entre si.
— Fazer companhia para mim está causando uma grande
agitação. Talvez Vossa Alteza deva atender a seus outros
convidados — sugeri, percebendo tardiamente que não se dispensa
um príncipe do reino.
Felizmente, pareceu que, em vez de irritar-se, ele achou graça.
— Eu a deixei desconfortável? Não era minha intenção. Só queria
conhecê-la melhor. As pessoas me interessam, tanto quanto livros,
música ou arte interessam aos outros. — Meus dedos torceram o
tecido macio de minha saia enquanto eu procurava em vão por uma
resposta apropriada. Seus olhos brilharam quando se fixaram em
minha garganta. — Seu pingente… o amuleto é raro. Poderia me
dizer sua origem?
Minha garganta ficou seca. Perguntavam-me tanto sobre minha
família que eu tinha uma resposta pronta na ponta da língua. No
entanto, ninguém nunca me perguntara sobre o pingente de meu
pai, geralmente escondido sob meu manto. Eu achava que era uma
joia comum; seu único valor para mim estava na herança.
— Encontrei no mercado que aparece a cada cinco anos no
Império Celestial — respondi rapidamente.
— Um achado afortunado. — Ele disse cada palavra com muita
minúcia.
Eu me remexi na cadeira, perguntando-me se ele percebera a
mentira. Fiquei tentada a mudar de assunto, a me aventurar por um
terreno mais seguro, mas o interesse dele despertou o meu. Talvez
ele soubesse algo sobre o pingente de meu pai.
— Por que o chamou de amuleto?
— Porque é. Um amuleto poderoso, de proteção. — Levei a mão
à jade e a acariciei. Teria meu pai usado aquilo para desafiar os
pássaros solares? Teria o amuleto o protegido das chamas mortais?
O Príncipe Yanxi se inclinou para examinar a pedra. — Infelizmente,
parece ter sido danificado.
A rachadura no aro.
— Pode ser restaurado? — indaguei, ansiosa um pouco além da
medida.
Ele fechou a expressão.
— Pela escultura, isso parece ser um talismã dos dragões. Sendo
assim, só eles podem restaurá-lo.
Fiquei totalmente desanimada e soltei o pingente. Os dragões não
estavam mais no Reino Imortal. Banidos, contara o Príncipe Yanxi,
ecoando a história que eu ouvira quando criança.
— Vossa Alteza sabe muito sobre os dragões. No Império
Celestial há pouca informação sobre eles — observei.
— Os Dragões Veneráveis, como eram chamados, nasceram no
Mar do Leste e viveram aqui até serem banidos. Embora nunca
tenham estado sob nosso domínio, nossos historiadores, estudiosos
e escribas reuniram todas as informações que puderam encontrar
sobre eles. Apesar de sua aparência assustadora, os dragões eram
sábios e benevolentes, usando seu poder para ajudar os
necessitados e manter a paz em nossas águas. Muitos os
reverenciavam: os sereianos, os Imortais do Mar, até mesmo os
mortais. Muitos ainda lamentam essa perda. Se você estiver
interessada em saber mais, está convidada a visitar nossa
biblioteca.
— Obrigada. — Fiquei grata por sua generosa oferta. De acordo
com o Capitão Wenzhi, ela não era feita para qualquer pessoa.
Minha curiosidade foi atiçada, especialmente depois de perder
minha oportunidade anterior, e eu ansiava por mergulhar na
biblioteca, se eu tivesse tempo para o fazer.
— Vossa Alteza já ouviu falar do Arco Dragão de Jade? —
perguntei, tentando manter a voz serena.
O corpo dele enrijeceu, quase imperceptivelmente.
— Por que pergunta?
— Ouvi alguém falar sobre isso e me perguntei quem empunhava
uma arma tão poderosa.
— Ninguém — respondeu ele, sério. — Ele se perdeu junto com
seu dono, mesmo antes de os dragões serem banidos, e
provavelmente nunca mais será encontrado.
Estava prestes a confidenciar-lhe que o arco não estava perdido,
que estava em minha posse. Porém, eu sabia pouco a respeito do
príncipe e prometera ao Capitão Wenzhi que não falaria sobre isso.
Ademais, ele parecia não saber nada sobre o paradeiro de seu
dono.
O badalar dos sinos chamou minha atenção, com seus tons
prateados. Dançarinas entraram, indo em direção ao centro do salão
em um redemoinho de seda azul e verde. Uma série de sinos
dourados pendia de suas cinturas e suas tiaras ornamentadas eram
cravejadas de pedras preciosas. Cada artista carregava um bastão
de jade polido ao qual uma larga fita vermelha estava presa.
Quando a musicista tocando pipa começou uma nova canção, uma
melodia mais viva com acordes ondulantes, elas levantaram os
bastões e dançaram. Seus corpos graciosos giravam, mergulhavam
e rodopiavam; as fitas fluíam atrás deles, tão brilhantes como
labaredas vivas. Suspiros de apreciação encheram a multidão, o
meu entre eles.
Duas dançarinas saltaram no ar; suas fitas giravam em torno de
seus corpos numa espiral graciosa. Quando aterrissaram, outra
saltou alto, arqueando-se em direção aos tronos numa notável
demonstração de agilidade. Enquanto meus olhos a seguiam,
arregalados de admiração, algo brilhante deslizou da base de sua
bengala. A suavidade de sua expressão se transformou na
crueldade de um predador.
Meu estômago se revirou de pavor. Por instinto, corri para pegar
uma arma — não encontrei nenhuma, então peguei um prato de
prata em vez disso, arremessando-o na dançarina saltitante. A louça
a atingiu na têmpora, derrubando sua tiara. Ela gritou quando caiu
no chão em um emaranhado de seda e fita.
Os convidados se levantaram, gritando alarmados. Alguns
olharam para mim como se eu tivesse enlouquecido, atrapalhando a
apresentação com a minha conduta deseducada.
— Ela tem uma arma! — avisei o Príncipe Yanxi.
Ele se levantou imediatamente, gritando ordens para os guardas
prenderem a dançarina.
Depois de alguns momentos tensos, um guarda correu em nossa
direção. Seu rosto estava muito sério e ele portava um amontoado
de agulhas afiadas, que brilhavam com os restos viscosos de um
líquido esverdeado.
— Veneno de escorpião do mar — sibilou o Príncipe Yanxi. —
Espalha-se rapidamente, paralisando todo o corpo. Em grande
quantidade, é fatal.
A música havia parado quando a dançarina caiu, deixando o salão
em um silêncio sinistro. Os convidados trocavam olhares confusos;
seus murmúrios não eram mais indignados, mas ansiosos e
preocupados. O ar mudou, ficou espesso de tensão. Algo bateu
contra a parede. Metal colidiu, ouviu-se um grito de gelar o sangue.
Ao meu lado, o Príncipe Yanxi desembainhou a espada. As portas
foram escancaradas; um guarda estava parado na entrada, com a
armadura azul e prata manchada de sangue.
— Sereianos! Estamos sob ataque!
Uma lança atravessou seu peito com um estalo úmido e a ponta
agora estava encharcada de sangue. Os olhos do soldado se
arregalaram quando ele cambaleou pra frente, antes de cair de
joelhos e tombar.
Os convidados tropeçaram nos próprios pés, derrubando mesas e
cadeiras enquanto seguiam apressados e aos tropeços para o fundo
da sala. O Capitão Wenzhi saltou do palanque com a espada já
desembainhada. Praguejei por estar de mãos vazias, mas o príncipe
pegou um arco e uma aljava de um guarda próximo e os jogou para
mim. Puxei uma flecha de haste vermelha dura e fria como pedra e
encaixei-a na corda.
— Coral de fogo. Sereianos são vulneráveis a isso — anunciou
firmemente o Príncipe Yanxi, empunhando a espada com tanta força
que os nós dos dedos estavam brancos.
Os invasores entraram no salão como um enxame. Suas
armaduras eram feitas de pequenas escamas que brilhavam como
madrepérola. Eles correram em nossa direção, com pupilas
turquesa brilhantes e cabelos trançados e esvoaçantes. A pele clara
dos sereianos era revestida com um brilho iridescente, como se eu
estivesse olhando para eles através de uma vidraça colorida. Minha
pele se arrepiou quando vi suas espadas curvas, revestidas com o
mesmo veneno das agulhas. Quem era cortado pelas lâminas ficava
imóvel, com espasmos nos membros e olhos arregalados de horror.
Quando o Príncipe Yanxi correu para a briga, um sereiano se
lançou sobre ele. Imediatamente disparei uma flecha, atingindo o
agressor no ombro. Ele caiu no chão, agarrando a haste cravada em
sua carne. Fiquei estática ao ver isso e ao ouvi-lo ofegar. Mas não
podia me dar ao luxo do remorso enquanto atirava flecha após
flecha nos invasores — embora eu mirasse em seus membros
sempre que podia. O Capitão Wenzhi teria me repreendido se
tivesse percebido isso. Para ele, um inimigo era um inimigo, e
mostrar misericórdia em uma batalha era deixar as costas
desprotegidas. No entanto, eu não pude deixar de pensar: por que
os tritões haviam feito um levante contra os Imortais do Mar? Eu
estava aprendendo que os reis nem sempre eram tão justos quanto
nas histórias, e a misericórdia dos deuses às vezes era falha.
O sangue se espalhava no chão, e as palmas de minhas mãos
estavam escorregadias de suor. Minhas flechas eram disparadas em
um fluxo implacável, e os gritos de agonia de quem era atingido por
elas ribombavam em minha consciência. Forcei a atenção de volta
para as armas que os sereianos carregavam, para o dano que eles
causavam. Mas, para cada um que tombava em razão de nossas
flechas e espadas, outros tantos entravam no salão. Nossos
números iam diminuindo e formamos um círculo protetor em torno
da família real e dos convidados.
Os olhos dos sereianos brilhavam de expectativa ao se
aproximarem de nós. Eles tinham a vantagem; nós estávamos em
menor número. Eles ergueram as mãos, e um cheiro forte de
maresia tomou o ar: torrentes de água salgada jorravam no salão. O
Capitão Wenzhi usou magia e estilhaços de gelo mergulharam em
direção aos sereianos. Vários foram atingidos e caíram, mas a água
rodopiava mais alto, encharcando nossos sapatos e roupões,
aumentando em volume até uma onda gigantesca surgir acima de
nós. O Rei Yanzheng usou sua energia vibrante e dispersou a onda
— embora outras surgissem em seu lugar. Cada vez mais surgiam
ao nosso redor até sermos cercados por paredes trêmulas de água,
à beira de quebrar e nos engolir. Uma criança soltou um grito fraco,
como se tentasse abafar o medo. Seria o Príncipe Yanming?
Reunindo minha energia, conjurei uma rajada de vento que voou
pelo salão, arqueando-se sobre nós como uma cúpula translúcida;
ela foi atravessada pelo gelo brilhante que Wenzhi produzia com
sua energia, bem na hora em que as ondas caíram, quebrando
nossa barreira. Cambaleei sob o peso esmagador; meus braços e
minhas pernas doíam enquanto eu lutava contra a exaustão. Justo
quando pensei que desmaiaria, o Príncipe Yanxi usou sua magia,
reunindo toda a água e arremessando-a sobre os sereianos.
À distância, ouvi passos e enrijeci o corpo, preparando-me para
um novo ataque enquanto apontava meu arco com as mãos
doloridas já puxando uma flecha de imediato. Mais soldados
entraram no salão, desta vez vestidos com a armadura azul e
prateada do Mar do Leste. Relaxei de alívio, baixando a arma. Os
sereianos atacaram os soldados, lutando bravamente, mas logo
foram derrotados.
O líder capturado foi arrastado para a frente. Sangue escorria de
um corte largo em sua bochecha e suas pupilas brilhavam com uma
chama azul.
— Assassinas disfarçadas de dançarinas com agulhas
envenenadas para matar nosso rei. O Governador Renyu recorreu a
mais alguma tática desprezível? — perguntou o Príncipe Yanxi, com
repulsa.
— Todas as táticas são honoráveis quando se lida com um
assassino de dragões — cuspiu o sereiano.
— Como é? Explique-se! — ordenou o Rei Yanzheng, em um tom
de voz áspero e indignado.
O olhar do sereiano era puro ódio.
— O Governador Renyu nos contou de sua inveja do poder dos
dragões e de seu rancor por eles não se curvarem à sua autoridade.
Vocês conspiraram com o Imperador Celestial para aprisioná-los e
matá-los!
O Príncipe Yanxi estremeceu como se estivesse com nojo.
— Isso são mentiras perversas! Nós reverenciamos os dragões.
Continuamos os honrando. Nunca procuramos submetê-los a nosso
jugo, a graça de sua presença nos bastava. — O tom de voz do
príncipe endureceu. — Acusar meu pai disso é obsceno e indigno
de sua inteligência.
O sereiano rosnou:
— Você mente tão bem quanto seu pai.
O Príncipe Yanxi se lançou contra ele, mas o Capitão Wenzhi
agarrou seu braço, puxando-o para trás.
— Além das alegações de seu governador, que prova vocês têm
de que os dragões foram assassinados? — indagou o capitão.
A confusão permeou a face do sereiano, embora ele tenha
permanecido obstinadamente em silêncio.
O Rei Yanzheng falou calmamente:
— Seu governador não lhe mostrou nenhuma prova porque não
existe nenhuma. Suas alegações são infundadas, suas acusações
são falsas. Nada mais do que palavras vazias para instigá-lo a fazer
o que ele manda.
O sereiano mostrou os dentes.
— O Governador Renyu jura que vingará a morte dos dragões.
Assim que o rei indigno for deposto, ele devolverá a glória aos
sereianos, ele irá… — O sereiano fechou a boca, virando o rosto.
Teria ficado com medo de deixar algo escapar, ou um encantamento
o impediu de fazê-lo?
O Capitão Wenzhi pareceu não notar isso quando deu uma risada
sem sentimento.
— O governador pretende tomar a coroa depois de assassinar
seu legítimo governante? Quão nobre da parte dele, ascender ao
trono em nome da busca de retribuição pelos dragões.
O sereiano meneou a cabeça com veemência.
— Não, o Governador Renyu é honrado! Ele apenas deseja… —
Mais uma vez, suas palavras foram cortadas.
O Rei Yanzheng suspirou.
— Eu gostaria que pudéssemos ter feito mais para ajudar os
dragões. Nós imploramos ao Imperador Celestial para revogar sua
punição, para libertá-los, mas ele recusou. Eles desafiaram
efetivamente a autoridade imperial e nossas mãos estavam atadas.
Os dragões não gostariam que entrássemos em guerra com o
Império Celestial. Eles valorizavam a paz acima de tudo.
— Dragões não são vistos há séculos! — gritou o sereiano.
— Isso não significa que estão mortos — rebateu o Príncipe
Yanxi. — Nós sentiríamos se essa luz desaparecesse de nosso
mundo.
Quando o sereiano zombou desse argumento, mordi meu lábio,
olhando para ele. Alguma coisa parecia errada. Seus olhos
brilhavam com convicção e ele falava com paixão, mas por que
apostara sua vida e sua honra em alegações vazias?
A voz do Capitão Wenzhi rompeu o silêncio, suave e baixa.
— Qual era sua intenção hoje? Matar o rei e seu herdeiro?
Mesmo assim os aliados do Mar do Leste nunca aceitariam o
Governador Renyu como rei. Qual era o plano dele?
O sereiano ergueu a cabeça em desafio.
— Mostre-me do que é capaz. Eu não direi nada.
— Ah, mas vai sim — alertou o Capitão Wenzhi, e cada palavra
dita estava cercada de aço. — Descobri que existem maneiras de
extrair até os segredos mais preciosos. Não apenas fogo e gelo,
mas coisas do reino mortal. Mutilação, esfolamento. Carne fervida
em azeite.
Um calafrio passou por mim, embora eu mantivesse o rosto
impassível.
O sereiano se encolheu quando o Capitão Wenzhi se inclinou
para ele.
— Se você não falar, um de seus amigos pode ser persuadido a
fazê-lo. Caso contrário, seu povo sofrerá a ira do Império Celestial.
Eles serão banidos do Mar do Leste, exilados no Deserto Dourado.
Abandonados para vagar e esturricar sob o calor do sol pela
eternidade nas areias secas.
O Príncipe Yanxi respirou fundo e seu pai ficou pálido. Para um
Imortal do Mar, tal destino deve ser pior que a morte. Eles haviam
mantido a compostura durante a ameaça macabra de tortura, mas
eu não achava que eles tivessem estômago para aquela dura
punição. No entanto, o que importava era no que o sereiano
acreditava. Ouvi dizer que o Capitão Wenzhi era hábil em extrair
respostas de prisioneiros teimosos sem recorrer a crueldades
físicas. Os rumores não eram exagerados; o prisioneiro já mostrava
sinais de que cederia: sua respiração acelerava e seus olhos
fitavam tudo em volta velozmente, mas sempre voltavam para o
capitão.
Eu havia testemunhado a determinação inabalável do Capitão
Wenzhi em batalha, seu destemor na vanguarda. Sua honra e sua
bravura eram reverenciadas pelos soldados, mas aquilo… essa era
uma nova faceta de sua personalidade. Talvez fossem dois lados da
mesma moeda; não seria possível alcançar tudo o que ele havia
alcançado sem certa crueldade.
O sereiano se encolheu. Ainda assim, o Capitão Wenzhi
sustentou o olhar, com pupilas escuras como obsidiana.
Finalmente, o sereiano cedeu, tremendo incontrolavelmente.
— Não, por favor — implorou ele em um ganido fino. — Deixe
meu povo em paz. Não os machuque. — Ele engasgava, como se
as palavras tivessem sido arrancadas dele. — O Príncipe
Yanming… mesmo que não conseguíssemos matar o rei,
deveríamos capturar seu filho.
O Rei Yanzheng ficou de pé. Ele procurou no salão o jovem
príncipe, que estava encolhido ao lado da rainha em um canto
distante, com a cabeça apoiada em seu ombro. Alegremente alheio
à ameaça feita a sua família e a sua vida.
O Príncipe Yanxi segurou firme o cabo de sua espada, lutando
para manter a compostura.
— Um plano desprezível. O Governador Renyu deve querer
coroar meu irmão enquanto governa nos bastidores do trono.
Depois de eliminar o restante de nós. — Ele acenou com a cabeça
para os guardas, que arrastaram o prisioneiro para longe. Não havia
mais espírito de batalha no sereiano, que estava molenga como
ervas marinhas no litoral.
Pouco antes, o salão estava cheio de alegria e risos. Agora
soldados de armadura substituíam os convidados elegantes que
haviam fugido; os gemidos dos feridos eram um substituto precário
aos acordes tranquilos da pipa .
— Peço desculpas pelo fim abrupto de nossas festividades. Não
foram as boas-vindas que pretendíamos — declarou o Príncipe
Yanxi com tristeza.
O Capitão Wenzhi tinha uma expressão sombria.
— Talvez não, mas conseguimos informações valiosas sobre as
ambições do Governador Renyu e até onde ele está disposto a ir
para alcançá-las.
O Príncipe Yanxi assentiu.
— Vamos planejar nosso trajeto amanhã, com nossos
comandantes. Prometo que será menos agitado do que esta noite,
agora que estamos alertas. Independentemente disso, temos um
amplo suprimento de flechas no palácio. — Seus olhos brilharam
quando ele acrescentou: — De pratos também, se a Primeira
Arqueira preferir.
Dei um sorriso vazio, embora tenha aceitado sua tentativa de
aliviar o clima.
O Príncipe Yanxi inclinou a cabeça para o Capitão Wenzhi.
— Sua ajuda esta noite foi inestimável, e meu pai certamente o
elogiará para o Império Celestial. Sua reputação é, de fato,
merecidíssima. — Ele olhou em minha direção. — Assim como a
sua, Primeira Arqueira.
Curvei-me em agradecimento ao elogio. No entanto, meu sorriso
desapareceu enquanto eu olhava ao redor do salão, para os
pedaços de porcelana e para a comida derramada, misturada a
rastros de sangue carmesim.
19

P erdi o sono naquela noite. Quando fomos atacados, um instinto


gélido de sobrevivência me envolveu, e eu atirei em quem nos
atacava sem vacilar. Mas, com as acusações do sereiano soando
em meus ouvidos, a dúvida abriu caminho em meu coração. Os
dragões estavam em perigo? Seria o Rei Yanzheng tão justo quanto
sua fama dizia ser? Seria a admiração do Príncipe Yanxi pelos
dragões um fingimento? Não, pensei comigo mesma, ele não
parecia ser duas-caras.
Tornou-se um hábito para o Capitão Wenzhi e eu comermos
juntos, e eu geralmente gostava desses momentos de
companheirismo confortável. No entanto, naquela manhã, peguei
minha refeição com indiferença.
— Você combateu bem noite passada — disse ele.
Estremeci, sem sentir orgulho de seu elogio, pois os gritos de
agonia de quem eu atingi ainda ecoavam em minha mente.
— Você acredita no que o sereiano disse sobre o Rei Yanzheng
trair os dragões?
— Não — respondeu ele com firmeza, com tanta certeza que um
pouco de meu desconforto se dispersou. — A reverência que o rei
tem a eles é muito conhecida. Além disso, os dragões não eram
uma ameaça para ele.
— Por que os sereianos acreditam no governador? — indaguei.
— Isso que é um mistério. O Governador Renyu tem o perfil de
um tirano e suas ações implacáveis na noite passada apenas
reforçaram essa suspeita. É possível que ele tenha ganhado um
apoio dessa magnitude apenas porque os sereianos estão isolados
há muito tempo. Parece que acreditam em cada palavra de Renyu
— respondeu ele sombriamente.
Levei uma colher de congee à boca. Os grãos foram cozidos até
ficarem macios como seda, e seu sabor se misturava com frango e
ervas. Mastiguei metodicamente, enquanto outra pergunta pairava
na ponta de minha língua; essa eu tinha mais receio de fazer.
Olhando para ele, descobri que o Capitão Wenzhi havia deixado sua
tigela intocada.
— Tem mais alguma coisa a incomodando? — perguntou ele. —
Suas dúvidas estão escritas claramente em seu rosto.
Coloquei a colher de porcelana no prato, voltando a atenção para
ele.
— Você seria mesmo capaz de fazer aquilo tudo que disse? Até
exilar os sereianos no deserto?
— Você acha que eu seria? — Sua expressão era séria e, por
algum motivo, senti que minha resposta importava para ele.
Eu quis dizer que não, mas continuei.
— Ontem você falou muito tranquilamente em mutilar e esfolar,
como se falasse sério. — Nenhuma batalha era isenta de
crueldades, mas cometer tamanha atrocidade com um inimigo
capturado e indefeso parecia muito errado.
— Há partes de meu trabalho das quais não gosto muito —
comentou ele em voz baixa. — E o que você viu ontem foi uma
delas. Nem tudo é tão direto quanto na ponta de uma espada. Não
estou orgulhoso do que disse, mas, se não tivesse dito, o Príncipe
Yanming poderia ter sido sequestrado. Centenas de soldados
poderiam ter morrido em batalha. O Rei Yanzheng poderia ter sido
assassinado. Junto com seu novo amigo, o Príncipe Yanxi.
Fiquei refletindo sobre seu tom mordaz. Mesmo assim, as outras
palavras do Capitão Wenzhi ressoaram em mim. Como eu mesma
sabia, às vezes nos encontramos em situações nas quais somos
forçados a enganar pessoas contra nossa vontade, nosso caráter e
nosso coração.
Ele prosseguiu, como se fosse um alívio descarregar aqueles
pensa-mentos.
— O sereiano não se importava com a própria integridade física;
nenhuma ameaça feita a ele surtiria efeito. Mas ele não seria tão
desprendido com a vida de sua família e de seus amigos. — Um
sorriso breve e curto se espalhou em seus lábios. — E o fato de o
Imperador Celestial ser famoso por não ter misericórdia ajudou.
Eu sabia muito bem disso. Estremeci ao me lembrar do olhar
gélido do imperador, do pavor que me envolveu ao vê-lo. Eu não
tinha dúvidas de que ele eliminaria aqueles que acreditava serem
uma ameaça.
— Obrigada por me contar isso — disse, de coração. Ele não
precisava se explicar, e fazer isso foi uma prova de que confiava em
mim.
— Eu é que agradeço por ouvir — disse ele calmamente. —
Espero que sempre conversemos assim, que você compartilhe
comigo quaisquer preocupações que tiver.
Ele pegou sua tigela, embora o congee tivesse esfriado. Não
falamos durante o resto da refeição, mas comi com uma satisfação
renovada e sem o fardo que estava em minha consciência.
Quando o Capitão Wenzhi e eu chegamos ao Palácio do Coral
Perfumado, um criado nos mostrou um quarto no andar mais alto.
As janelas se abriam para o mar azul, sempre inconstante e sem
limites. Cadeiras de pau-rosa estavam dispostas ao redor de uma
grande mesa esculpida em uma única placa de madeira. O Príncipe
Yanxi e seis outros imortais estavam agrupados em torno dela,
envolvidos numa discussão acalorada.
Dispensando a necessidade de cortesias, o príncipe nos
apresentou rapidamente aos comandantes na sala. Seu rosto
estava sombrio quando disse:
— Os sereianos nunca ousaram invadir o palácio antes. Só
fizeram isso agora porque acreditam que seu exército é forte o
suficiente para nos confrontar. O que significa que estamos ficando
sem tempo.
O Capitão Wenzhi sentou-se em uma cadeira e gesticulou para
que eu fizesse o mesmo. Um criado se apressou para encher
nossas xícaras com chá.
— Eles também podem querer provocar uma retaliação
precipitada — alertou ele.
O Príncipe Yanxi assentiu concisamente.
— Seremos cautelosos. No entanto, se permitirmos que o
Governador Renyu nos ataque sem resposta, isso só o encorajará
ainda mais. — Seu olhar encontrou o meu do outro lado da sala. —
O argumento da Primeira Arqueira sobre garantir que a batalha seja
travada em terra é vital. Os sereianos, sem dúvida, prefeririam nos
atrair para debaixo d’água, onde são mais fortes.
O Capitão Wenzhi juntou as mãos sobre a mesa.
— Orquestrar o confronto nos permitiria escolher o campo de
batalha. Você disse que os sereianos, quando atacam, vêm à costa.
Existe alguma outra ocasião que os levaria para a terra?
— Nenhuma que conhecemos — respondeu o Príncipe Yanxi.
— Então precisamos atraí-los para nós. O que podemos usar
como isca? — indagou o Capitão Wenzhi, decisivamente.
Alguns generais se remexeram em suas cadeiras como se
estivessem desconcertados com a sugestão. Tomei um gole de chá
para afrouxar o nó em minha garganta.
— Deve ser algo que faça o próprio Governador Renyu liderar o
ataque. Isso só deve funcionar uma única vez — acrescentei
rapidamente, antes que perdesse a coragem.
— Concordo. O governador já liderou uma investida antes? —
perguntou o Capitão Wenzhi.
— Não. Ele é poderoso, mas muito cauteloso — respondeu o
Príncipe Yanxi.
O Capitão Wenzhi suspirou.
— Posso ser franco, Vossa Alteza? — Assim que o Príncipe Yanxi
assentiu, ele continuou: — Itens mágicos ou tesouros podem não
ser suficientes para seduzi-lo a arriscar a própria cabeça. No
entanto, agora estamos cientes de que o Príncipe Yanming é crucial
para os planos do governador.
A cadeira do Príncipe Yanxi raspou no chão quando ele ficou de
pé em um salto.
— Você quer usar meu irmãozinho como isca ? — vociferou ele.
O Capitão Wenzhi não vacilou, parecendo indiferente à ira do
príncipe.
— Seu irmão será levado a um lugar seguro ao primeiro sinal de
perigo. Só precisamos que ele atraia o governador para nossa
armadilha.
O Príncipe Yanxi o encarava, furioso.
— Como você pode garantir a segurança dele?
Lembrei-me do jovem príncipe na noite anterior, quando segurava
a mão de sua mãe com muita força e repousava a cabeça em seu
ombro. Isso me lembrou de como eu me agarrava a minha mãe
durante os momentos em que estava com mais medo; quando
quase me afoguei no rio, quando soube que precisava sair de casa.
Algo endureceu dentro de mim; uma voz subiu de minha garganta e
disse:
— Eu vou proteger o Príncipe Yanming.
Todas as cabeças se viraram para mim; surpresa e ceticismo
marcavam claramente suas faces. Eu mesma estava incrédula. Até
aquele momento, essa não tinha sido minha intenção.
Apenas o Capitão Wenzhi sorriu.
— Ela será a guarda perfeita para vigiar Sua Alteza. Eu vou
protegê-lo também. Não podemos cercá-lo com mais guardas do
que o normal sem levantar suspeitas.
Relaxei o corpo na cadeira, aliviada por não ser mais o centro das
atenções. Ou seria por causa de sua oferta de ficar de guarda
comigo?
A expressão glacial do Príncipe Yanxi derreteu um pouco quando
ele se sentou novamente.
O Capitão Wenzhi, sempre pronto a aproveitar uma abertura,
disse:
— Este plano vai funcionar. Após o ataque de ontem à noite, o
Governador Renyu deve ter percebido que tirar o príncipe daqui é
quase impossível. Poderíamos espalhar a notícia de que o Príncipe
Yanming partirá em breve para o Império Celestial para sua
segurança. Tudo o que precisamos é que ele apareça na praia, para
convencer o governador de que ele realmente saiu do palácio. A
Primeira Arqueira Xingyin e eu não sairemos de perto dele nem por
um segundo. Se isso não atrair o Governador Renyu, nada mais o
fará.
Um general robusto com cabelos castanhos claros franziu a testa.
— Sua Alteza tem apenas sua governanta e um guarda com ele o
tempo todo. Além disso — ele corou enquanto me lançava um olhar
furtivo —, não há mulheres em nosso exército. A presença da
Primeira Arqueira não levantaria suspeitas?
O silêncio saudou sua astuta observação.
O Capitão Wenzhi enfiou o queixo entre os dedos enquanto seu
olhar pairava sobre mim.
— A Primeira Arqueira Xingyin pode se disfarçar de Madame
Anmei, a governanta do príncipe.
Congelei, reprimindo um protesto instintivo. Como eu poderia
fazer alguém pensar que eu era a elegante dama do banquete?
Minha opinião foi aparentemente compartilhada por muitos, pois os
generais trocaram olhares incrédulos, embora parecessem
educados demais para expressar suas reservas em voz alta.
O Capitão Wenzhi não tinha tais escrúpulos.
— Eu sei que ela não se parece em nada com Madame Anmei,
mas, com as roupas e os acessórios certos, um pouco de
maquiagem…
— Capitão Wenzhi, obrigada por sua confiança em mim —
interrompi, lutando contra uma breve irritação diante de seus
comentários insensíveis.
A expressão do Príncipe Yanxi ainda estava fechada.
— Meu irmão será levado da praia antes que a batalha comece.
— Foi uma exigência, não uma pergunta.
O Capitão Wenzhi inclinou a cabeça.
— Claro.
Agora o príncipe dirigia a palavra a mim.
— Isso será ainda mais perigoso do que ontem à noite. O
Governador Renyu é perigoso e imprevisível. Você será alvo dos
ataques de nosso inimigo e, para evitar suspeitas, não pode
carregar armas nem usar magia, pelo menos não até que a
armadilha funcione. Embora eu esteja confiante de que podemos
derrotá-los, ninguém sabe o resultado de uma batalha. Temo por
sua segurança caso eles cheguem até você e vejam que meu irmão
não está sob seus cuidados.
Sua franqueza e sua preocupação me tocaram.
— Vossa Alteza, cuidarei de seu irmão e de mim — assegurei a
ele.
Ele assentiu, então, olhando ao redor do local.
— Muito bem, vamos prosseguir. Precisamos de algum tempo
para fazer nossos preparativos e plantar as informações com as
fontes certas. Seria prudente se você pudesse passar algum tempo
com meu irmão nos próximos dias. Se nosso plano for bem-
sucedido, ele precisa estar à vontade com você.
Algo revirou em meu estômago. Embora reconhecesse que era
uma sugestão sensata, eu nunca havia passado muito tempo com
crianças.
Após a reunião, o Capitão Wenzhi e eu seguimos o príncipe até
os aposentos de seu irmão. Ao nos ver, Madame Anmei se levantou
e fez uma reverência, roçando a saia de brocado verde no chão. De
perto, ela era ainda mais impressionante do que eu me lembrava.
Suas bochechas ficaram rosadas quando viu o Capitão Wenzhi,
mas foi a reverência cortês dele para ela que me fez morder a parte
de baixo de meu lábio por algum motivo inexplicável.
O Príncipe Yanming avançou, então, executando uma reverência
impecável para o irmão. Quando ele foi apresentado a mim, parecia
não ter me reconhecido da noite anterior. O Príncipe Yanxi não
perdeu tempo, chamou Madame Anmei para um canto e falou com
ela em voz baixa.
Sem dizer mais nada, eles saíram da sala com o Capitão Wenzhi.
— Aonde Madame Anmei está indo? Quem é você? — indagou o
Príncipe Yanming, imperativo. Suas bochechas eram fofas e
redondas, mesmo que seu queixo se projetasse desafiadoramente.
Eu me agachei para olhar em seus olhos, do mesmo tom de azul
que os do irmão.
— Madame Anmei teve que sair por um curto período de tempo,
mas estará de volta em breve. Vou ficar com você por enquanto.
Ele contraiu os lábios; sua boca virou uma linha reta.
— Sabe jogar algum jogo?
— Que tal weiqi ? — sugeri, já procurando em seu quarto pelo
tabuleiro com pedras lisas pretas e brancas.
Ele deu de ombros.
— Você sabe cantar? Desenhar? Fazer animais de papel? —
enumerou ele.
Balancei a cabeça negativamente, ficando desanimada.
— Você é a pior governanta que já tive. — Ele cruzou os braços
em sinal de rebeldia.
Fiz uma careta para ele, irritada com suas palavras.
— Bem, eu não sou sua governanta e você está sendo muito
grosseiro. Talvez, se você fosse um pouco mais educado, eu o
ensinasse algumas coisas legais que eu sei fazer.
Seus olhos se estreitaram mais e sua boca se contraiu até
parecer uma uva passa. Fiquei esperando a pirraça e a choradeira,
pensando que Shuxiao, com seu carisma natural, estaria muito
melhor preparada para esse desafio. Porém, ele ajeitou a postura e,
com uma graça notável, perguntou:
— Bem, o que você sabe fazer?
Fiquei caçando em minha mente algo para dizer a fim de cativar
seu interesse, algo para fazer jus a minha ostentação precipitada.
— Eu sei tocar flauta — revelei, com uma pitada excessiva de
orgulho.
Ele bufou impacientemente, revirando os olhos, totalmente
desinteressado em uma de minhas maiores habilidades.
— Eu li muitos livros — acrescentei rapidamente. — Sei contar
histórias!
Um súbito interesse despertou em seu rosto.
— Sobre os dragões?
— Sobre os Quatro Dragões, quando levaram a chuva para o
Reino Mortal. — Fiquei aliviada por finalmente ter chamado sua
atenção. Era um de meus contos favoritos quando criança, e mais
verdadeiro para ele do que eu suspeitava.
— Aquele em que os dragões são punidos pelo chatonildo do
Imperador Celestial? Esse é o pior de todos!
Antes que eu pudesse me conter, uma gargalhada explodiu de
mim ao ouvir essa descrição irreverente do imortal mais poderoso
do reino. Os cantos de seus lábios esboçaram um sorriso.
— O que mais você sabe fazer? — A animosidade desapareceu
de seu tom. Devolvi o sorriso.
— Atirar flechas e lutar com uma espada. — Ele ficou radiante
quando agarrou meu braço e me arrastou em direção a um grande
baú abarrotado de espadas e escudos de madeira.
— O Irmão Mais Velho diz que sou muito jovem para aprender.
Mas você vai me ensinar, não vai? — perguntou ele ansiosamente.
Desarmada diante de tal entusiasmo, assenti brevemente,
esperando que o Príncipe Yanxi perdoasse minha transgressão.
Quando Madame Anmei e o Capitão Wenzhi finalmente voltaram,
estávamos no meio de uma batalha simulada, saltando sobre o coral
no jardim e batendo nossas espadas de madeira uma contra a
outra. Ao vê-los, larguei apressadamente a espada, alisando o
cabelo desgrenhado.
— Vossa Alteza, é hora de dormir — avisou Madame Anmei, em
um tom firme.
O Príncipe Yanming ficou triste, mas pegou a mão dela.
— Você vai voltar amanhã? — perguntou.
Algo floresceu dentro de mim ao ouvir a esperança em sua voz.
— Sim. Eu gostaria muito disso.
O céu havia atingido o crepúsculo quando voltamos para a praia.
Em vez de me juntar ao Capitão Wenzhi em sua tenda, fiz a ceia
com os outros soldados. Por alguma razão, não queria estar em sua
companhia naquela noite.
Eu estava em meu limite. Após a refeição, caminhei na orla da
praia, escalando uma grande rocha. Ver as ondas quebrando na
costa, imprudentes consigo mesmas, acalmou minha inquietude. A
pedra áspera pressionou minhas costas quando me deitei, olhando
para o céu. Quando a lua brilhou intensamente, eu sabia que minha
mãe tinha acendido as mil lanternas e a dor perpétua em meu
coração se aliviou um pouco. Enquanto eu a imaginava me
envolvendo em seus braços, colando seu rosto no meu, um sorriso
se espalhou por meus lábios.
Passos se aproximaram, quase afogados pelo quebrar das ondas.
— Você gosta de olhar para a lua — comentou o Capitão Wenzhi,
atrás de mim.
— É uma visão melhor do que muitas outras. — Não fiz menção
de levantar. Foi rude de minha parte, mas não estava com
disposição para cortesia.
Enquanto ele subia para se juntar a mim, apoiei-me nos
cotovelos, olhando para ele.
— Você vai embora? — Lutei para manter a voz firme.
— Não.
— Então vou eu. — Pus as mãos na rocha para descer, mas ele
cobriu minha mão com a dele, tão inflexível quanto a pedra sob
minha pele.
— Por que está brava? — Ele parecia confuso.
Tirei a mão debaixo da dele, abraçando meus joelhos. Na
verdade, eu não sabia a causa da sensação corrosiva sempre que
olhava para ele.
— Foi porque eu sugeri que você se vestisse como Madame
Anmei? — sondou ele.
A memória de suas palavras descuidadas doeu.
— Você não teve a menor preocupação comigo quando disse
isso.
Surpreso, ele franziu a testa.
— Está com medo? — perguntou ele, entendendo mal o que eu
quis dizer. — Você é capaz de cuidar do jovem príncipe e de si
mesma, mesmo sem armas e sem magia. Se eu não me
preocupasse com você, ficaria de guarda junto contigo?
— Eu não estou com medo.
— Então qual é o motivo de seu mau humor? — Sua voz era tão
suave quanto a brisa da noite.
— Eu sei que você admira Madame Anmei e que eu não sou tão
bonita ou elegante quanto ela. Mas… não foi agradável ouvir você
dizer isso em voz alta. — Lembrar-me daquilo fez um calor subir por
meu pescoço.
— Admiro ? Se dei atenção a ela, foi apenas porque isso parecia
aborrecer você. — Ele sorriu ironicamente, antes de ficar sério mais
uma vez. — Por que você quer se parecer com ela? Por que um
falcão quer ser um rouxinol?
Minha pulsação acelerou. Eu não sabia por que, mas de repente
eu estava insegura. Ansiosa para ir embora dali, mas, mesmo
assim… querendo ficar.
— Capitão Wenzhi…
— Wenzhi, apenas. — Seu olhar prendia o meu.
De alguma forma, eu sabia que era um momento de grande
importância para ele, um sinal de confiança do qual ele não
abdicaria facil-mente.
Meu desejo covarde de partir desapareceu. Eu chamava Shuxiao
pelo nome, mas éramos amigas íntimas. Pares. Até então, só me
dirigia a ele como “Capitão Wenzhi”, assim como ele me chamava
de “Arqueira Xingyin” — qualquer outra forma de tratamento seria
impensável. Trocávamos implicâncias, alfinetadas e até discutíamos
abertamente um com o outro, mas esse passo novo seria atravessar
um terreno desconhecido, quebrando mais uma barreira entre nós, e
eu gostaria disso.
— Wenzhi — repeti lentamente, estranhando o nome sem o título.
Um sorriso apareceu em seus lábios, quase imperceptível no
escuro. O restante de meu desconforto desapareceu, substituído por
uma vibração quente. Eu não disse mais nada, nem ele. Juntos,
deitamo-nos na rocha em um silêncio confortável; o único som da
noite eram as ondas correndo para a costa.
A lua se ergueu mais alto. Seu brilho cintilou na água; fragmentos
de mil cacos de prata estavam refletidos em sua superfície. A brisa
esfriava minha pele enquanto o calor em meu peito se espalhava
por minhas veias, como se eu estivesse bêbada de vinho.
20

O s dias seguintes passaram voando, causando muita ansiedade,


mas mesmo assim foram bons. Ensinei o príncipe Yanming a
segurar uma espada e o deixei me derrotar todas as vezes que
treinamos combate. Ele me ensinou a fazer dobraduras de animais,
e cantamos musiquinhas bobas que inventamos juntos. Quando ele
descobriu que eu conhecia apenas uma história de seus amados
dragões, reuniu seus livros e lemos sobre como os dragões
salvaram os sereianos dos monstros marinhos e como purificaram
as águas quando um grupo de águas-vivas venenosas contaminou
o oceano. Não era de se admirar que a ausência deles tivesse
deixado um vazio tão grande no Mar do Leste. Quando ele jogou os
braços em volta de meu pescoço, apertando-me com os braços
macios, um calor floresceu dentro de mim. O príncipe entrou
devagarinho em meu coração, tornando-se o amigo de infância que
eu nunca tive, o irmão que eu nunca soube que desejava.
Muito depressa, o dia de nosso ardil chegou. Sentei-me em uma
sala com Wenzhi, enquanto duas criadas do palácio cuidavam de
mim, ajudando em minha transformação em Madame Anmei.
— Você poderia tentar agir com recato e gentileza? — sugeriu
Wenzhi. — Dê passos mais curtos ao caminhar. Seu olhar deve ser
mais suave. A Madame Anmei é uma flor delicada, então você
poderia tentar não ser…
— Um espinho? — retruquei com rispidez e mau humor. Ele
estava há uma hora me ensinando sobre o comportamento que eu
deveria ter. Atirei-lhe um sorriso enganosamente doce. — Talvez
você devesse se vestir como Madame Anmei, já que parece saber
tanto sobre seus maneirismos.
Uma das criadas prendeu rapidamente uma risada.
Os olhos de Wenzhi pareceram sorrir, mas ele continuou como se
eu não tivesse dito nada.
— Tente parecer um pouco assustada ou nervosa. Nem todo
mundo é tão seguro de si quanto você.
Eu me virei, atrapalhando uma criada que estava tentando colocar
uma flor dourada em meu cabelo.
— Desde que conheci você, tive medo mais vezes do que em
toda a minha vida anterior. E quem não teria, sendo perfurada por
dardos, escaldada no fogo, atacada por monstros?
— Se você teve medo, estava com a mente no lugar. Pelo menos
na maior parte do tempo.
Wenzhi sentou-se e desenrolou um pergaminho feito de tiras de
bambu, todas repletas de caracteres minúsculos e encadernados
com seda. Logo ele estava absorto na leitura, como se tivesse
esquecido que eu estava lá.
Sua indiferença me incomodou, mais do que deveria. Olhei no
espelho e vi uma estranha me encarando. As criadas fizeram a
maquiagem de minhas sobrancelhas em arcos delicados, passaram
um pó cor-de-rosa em minhas bochechas e coloriram meus lábios
com um tom coral leve. Meu cabelo estava preso em voltas,
adornado com joias em forma de flor das quais caíam fios de contas
turquesas. A seda lilás de meu vestido era bordada com conchas
coloridas e ervas marinhas, e eu tinha uma faixa vermelha amarrada
na cintura. Um sobretudo tradicional de cetim azul fluía até meus
pés, e, para finalizar, chinelos de brocado dourado.
As criadas me elogiaram antes de saírem da sala, dizendo que eu
estava linda.
— Pronta? — Uma nota de impaciência soou na voz de Wenzhi
quando ele se virou para mim. No silêncio repentino, reparei que eu
estava prendendo a respiração. — Você parece diferente — disse
ele, finalmente. — Mesmo que não precise de tanto… douramento.
— Douramento? — Eu estava dividida entre achar graça e ficar
revoltada. — Lembre-se de que isso foi ideia sua.
Ele deu de ombros.
— E foi uma boa ideia, mas nunca disse que gostava dela.
Não era nenhum elogio, mas a intensidade de seu olhar fez com
que meu corpo formigasse, como se uma brisa fresca roçasse
minha pele. Antes que eu pudesse responder, ele voltou para o
pergaminho e retomou a leitura. Quando me levantei a fim de achar
um livro para mim, tropecei na bainha de meu sobretudo.
Wenzhi ficou de pé em um salto para me segurar pelo braço.
Seus olhos se acenderam e meu coração disparou como se eu
tivesse corrido por um longo percurso. Mas eu sabia que tais
sentimentos eram perigosos e os ferimentos que eles podiam
causar eram mais dolorosos do que os de uma espada.
Eu me afastei, desviando o olhar. Ele baixou as mãos e um
silêncio constrangedor caiu sobre nós.
Felizmente, o Príncipe Yanming chegou logo depois. Ao me ver,
caiu na gargalhada, apagando meu breve orgulho por minha
aparência.
— Você está vestindo as roupas de Madame Anmei!
— Hoje ela é a Madame Anmei — Wenzhi o lembrou, com
rispidez. — Lembre-se do que seu irmão lhe disse, Alteza.
A alegria desapareceu do rosto do Príncipe Yanming quando ele
assentiu com a cabeça e seu corpo tremeu um pouco. Claro, o
menino estava com medo, sabendo que ele e seus entes queridos
estavam em perigo.
Agachando-me, pus a mão em seu ombro.
— Não se preocupe — disse a ele. — É um pouco perigoso, mas
você estará seguro. Seu irmão está esperando na floresta com seus
guardas e não vamos deixar nada acontecer com você.
Ele mordeu o lábio.
— E você? Não quero que nada aconteça com você.
— Não vai — prometi, enxugando o suor em minha mão antes de
segurar a dele. — Eu vou cuidar de nós dois.
Um olhar estranho surgiu no rosto do Príncipe Yanming.
— Mas… você não é uma combatente muito boa. Eu a venci
todas as vezes e estou apenas começando a aprender.
Wenzhi abafou uma gargalhada enquanto eu olhava para o
menino.
— Não se preocupe — tranquilizei o Príncipe Yanming, que ainda
fazia uma careta. — Eu sou melhor com o arco.
Juntos, caminhamos em silêncio do palácio até a praia. Uma
grande tenda havia sido erguida ali para nós, longe da costa. Um
alvo visível para as forças do Governador Renyu, um alvo que eu
esperava ser irresistível. Assim que entramos e as abas de pano da
tenda se abaixaram, comecei a esconder armas, arcos e aljavas
cheias de flechas ali dentro.
Depois, demos um longo passeio na praia, com o sol do meio-dia
nos castigando. Os moradores foram escoltados para um lugar
seguro, deixando soldados celestiais disfarçados em seus lugares
— enquanto o Príncipe Yanxi e seu exército se escondiam na
floresta que margeava a praia. Não soltei a mão do Príncipe
Yanming enquanto examinava nossos arredores em busca de
qualquer sinal de perigo. No entanto, não havia nenhum; o mar
estava tranquilo e cristalino.
Logo depois que voltamos para a tenda, o Príncipe Yanming
adormeceu, talvez exausto pelo esforço do dia. Eu o cobri com um
cobertor, observando sua respiração e ficando muito encantada com
a serenidade em seu rosto. Prometi silenciosamente que, não
importava o que acontecesse hoje, eu o manteria a salvo.
Procurando na tenda alguma coisa para me distrair, encontrei
alguns livros e um tabuleiro de weiqi em um canto, sendo atraída
pelo brilho de suas pedras pretas e brancas. Mas eu não estava
com disposição nem para ler, nem para jogar. Aguardar um ataque
deixava meus nervos à flor da pele, ao contrário de Wenzhi, que
estava sentado em uma cadeira, lendo seu pergaminho com uma
calma imperturbável.
Uma vontade de interromper sua concentração passou por mim.
— Quando você veio para o Império Celestial? — perguntei.
— Há um tempo.
Sem me deixar intimidar pela resposta monossilábica, continuei.
— Você veio de qual dos Quatro Mares?
Ele levantou a cabeça, fitando-me com um olhar agudo.
— Por que o interesse repentino?
Eu suspirei.
— Não há muito que eu possa fazer aqui além de conversar.
Infelizmente, não pude escolher minha companhia.
— Por que não falamos sobre você? — sugeriu ele. — De onde
você é?
— Do Mar do Sul. — Pega de surpresa, falei a primeira coisa que
me veio à mente, aquilo que, no passado, me orientaram a dizer.
— Do Mar do Sul — repetiu ele, lentamente, baixando o
pergaminho. — E, mesmo assim, você nunca havia visto o oceano?
Meu rosto ficou corado imediatamente. Que sorte ele estar
coberto por uma camada de pó.
— Saí de lá quando era criança e não me lembro de nada. E sua
família? — Eu estava ansiosa para afugentar o foco de mim. Ele
ficou em silêncio por um tempo.
— Tenho parentes no Mar do Oeste, mas não os vejo há muito
tempo. Estou ocupado demais com minhas responsabilidades.
— Sente falta deles? — perguntei, pensando em minha mãe.
— De alguns mais, de outros, menos — respondeu Wenzhi com
um sorriso tenso. Ele pegou seu pergaminho novamente, um sinal
de que nossa conversa acabara. Finalmente conheci alguém tão
reticente quanto eu. Estaria ele relutante em falar da família porque
o Mar do Oeste ficou do lado dos demônios na guerra? Talvez fosse
prudente não lembrar os outros disso. Embora o Império Celestial
atualmente estivesse em paz com os Quatro Mares, a memória dos
imortais era boa. Abri a boca para fazer outra pergunta, mas hesitei.
Nem todo mundo tinha um passado que fosse uma trilha por
campos ensolarados. Todos temos espaços que preferimos deixar
nas sombras.
O sol desceu mais e, mesmo assim, nem sinal dos sereianos.
Será que nosso plano falhou e o Governador Renyu era esperto
demais para cair em nosso estratagema?
— Quanto tempo mais devemos ficar aqui? Não podemos sair
agora? Talvez o governador mau não venha. — O Príncipe Yanming
estava inquieto desde que acordara, pois não estava acostumado a
ficar confinado.
Olhei para Wenzhi.
— Vamos dar outra caminhada lá fora? Para mostrar a eles que
ainda estamos aqui?
— Eles podem estar esperando até o anoitecer para atacar. Os
sereianos são capazes de enxergar no escuro — contou ele.
— E se espalharmos a notícia de que o Príncipe Yanming está
partindo em breve? Os guardas e os criados podem fingir os
preparativos enquanto caminhamos perto da água. Depois disso,
Sua Alteza deve ser escoltado a um local seguro. — O perigo
aumentava a cada momento que passava. No entanto, seria melhor
provocar a ação dos sereianos a deixar o plano deles ser executado
como eles queriam.
Ele assentiu, chamando o guarda para transmitir suas instruções.
Antes de sairmos da barraca, ele me passou uma pequena adaga
com cabo de prata.
— Guarde isso com você o tempo todo.
Peguei-a e a enfiei na faixa de minha cintura, escondida debaixo
do meu sobretudo. Era mais um ornamento do que uma arma, mas
era tudo que eu tinha para me defender. Não , lembrei-me. Eu ainda
tinha meus poderes e, mesmo que estivesse de mãos vazias, não
estava indefesa.
O oceano estava inquieto, com turbulentas águas de um cinza-
esverdeado. Ondas espumantes subiam alto antes de quebrar no
litoral. Desvencilhando-se de minha mão, o Príncipe Yanming correu
na minha frente. Eu o persegui na água, encharcando meus
chinelos e minha saia.
Uma sombra escura caiu sobre nós como o cair da noite e um
pavor glacial congelou meu estômago. Um polvo enorme surgiu
como uma torre, bloqueando o próprio sol. Tentáculos gigantes
bateram, cada um com o dobro do comprimento de um homem
adulto — espirrando água e inundando a praia. Montado sobre a
criatura estava um guerreiro com armadura perolada que chegava
aos joelhos e deixava seus braços nus, e uma coroa de galhos de
coral vermelho entrelaçada no cabelo. Ao redor de seu pescoço
brilhava um grande pingente, um disco de ouro circundando uma
pedra amarela brilhante. Ele empunhava uma lança em uma das
mãos e, na outra, um escudo cravejado de espinhos ameaçadores.
Seus olhos eram brancos como uma geleira e, quando eles se
fixaram em mim, fiquei paralisada.
Era o Governador Renyu.
Wenzhi gritou em alarme e os lábios do governador se curvaram
em um sorriso. O polvo estava quase em cima do Príncipe Yanming!
Correndo mais para o fundo, eu o agarrei com força enquanto
voltávamos apressados para fugir da maré alta. Um tentáculo bateu
atrás de mim, cortando minha panturrilha. Prendi um grito, forçando-
me a seguir em frente através da corrente agitada enquanto a água
do mar tirava o sangue de meu ferimento e o fazia arder. Assim que
chegamos à costa, a água começou a espumar com milhares de
medusas tremulando, com ferrões envenenados cobrindo seus
tentáculos translúcidos.
Os sereianos surfavam nas cristas das ondas, bradando enquanto
invadiam a praia. Com um grito de resposta, os homens do Príncipe
Yanxi surgiram da floresta. Os soldados Celestiais tiraram seus
disfarces e suas armaduras reluziam na luz do fim da tarde. Uma
tensão repentina rasgou o ar, brilhando e cintilando com as energias
dos guerreiros quando os exércitos colidiram.
Raios de fogo e gelo foram lançados em escudos erguidos às
pressas. Espadas se chocavam em ruídos estrondosos, ressoando
na areia ondulante. O Príncipe Yanming tremia em meus braços
enquanto corríamos para a tenda. Mas, quando gritos agonizantes
irromperam atrás de mim, eu parei, dando meia-volta. Meu coração
ficou dolorido com a visão. O polvo gigante estava enrolando
soldados celestiais em seus tentáculos, arremessando-os no
oceano onde medusas venenosas os enxameavam, arrastando-os
sob as ondas. Wenzhi gritava para que fossem para um terreno
mais alto, mas suas palavras se perdiam no caos. Sua energia
irrompeu em um clarão de luz, solidificando-se em um escudo
imponente ao longo da costa.
No entanto, a área era muito ampla, e sua magia formava uma
parede fina demais. Flanqueado por vários guerreiros, o Governador
Renyu ergueu a mão e uma luz azul foi lançada na direção da
barreira. Uma vez, duas e depois três — até que finalmente
despedaçou o escudo de Wenzhi. Eu teria saído às pressas em
busca de uma arma, mas, se eu comprometesse o disfarce, o
governador poderia perceber que era uma armadilha.
Os sereianos seguiram em frente, agora com ímpeto, enquanto
nossos soldados se espalhavam como folhas levadas pelo vento.
Wenzhi tremia; eu nunca o tinha visto tão perturbado — tão ansioso,
furioso e frustrado.
— Vá — disse a ele. — Você não precisa vir conosco. Eu cuidarei
do Príncipe Yanming.
Ele estava imóvel, com os olhos fixos na carnificina.
— O que vai fazer?
— Vou ficar na tenda. Lá estaremos seguros.
Sem esperar pela resposta, saí com o Príncipe Yanming. Vários
soldados esperavam dentro da tenda para escoltá-lo ao local
seguro. Porém, quando eles tentaram tirá-lo de mim, ele me agarrou
com mais força.
— Você não vem? — perguntou ele, com a voz trêmula.
Acariciei sua bochecha.
— Vossa Alteza precisa ir agora. Seu irmão está esperando por
você. Estarei com você em breve.
— Promete?
Antes de assentir, hesitei por um brevíssimo instante. Eu odiava
mentir para ele, mas, se o governador encontrasse aquele lugar
vazio, poderia se retirar antes que pudéssemos capturá-lo. Cada
segundo que eu conseguia ganhar com essa farsa aumentava
nossa chance de pegá-lo.
Meu coração disparou enquanto observava o Príncipe Yanming e
os soldados saírem pelos fundos da tenda, desaparecendo na
segurança da floresta. Só então um pouco de minha tensão se
aliviou. Sentei-me para esperar, agitada por não fazer nada
enquanto o sangue encharcava a areia lá fora. Esperávamos
prender o Governador Renyu, mas ele nos pegou desprevenidos
com a ferocidade de seu ataque e com os monstros marinhos sob
seu comando.
Tirando meu sobretudo ensopado, peguei um arco e uma aljava,
colocando-os sobre a mesa ao meu alcance. Parte de mim queria
tapar os ouvidos com as mãos para abafar o clangor do aço, os
gritos e os gemidos. Quanto tempo mais eu conseguiria suportar
isso? Quando um grito alto perfurou o ar, corri para a entrada —
tropeçando até parar quando a silhueta de uma forma inerte caiu
contra as paredes da tenda.
A cortina de entrada da tenda se ergueu. Uma pessoa apareceu.
Dei um passo para trás com o corpo rígido de ansiedade.
— Você deve ser a Madame Anmei. — O Governador Renyu me
cumprimentou com uma reverência zombeteira. — Os rumores
sobre sua beleza não foram exagerados.
Sua aura encheu o ar, fazendo pressão no espaço confinado ao
meu redor: forte, com certeza; no entanto, como uma maré
inconstante, oscilava.
Será que o controle dele sobre seu poder era instável? Eu não
tive tempo para refletir quando o governador entrou. Era muito mais
alto que eu, e todas as partes de seu corpo que estavam à mostra
exibiam músculos fortes. Seu olhar frio me fez tremer, assim como o
sorriso cruel em sua boca e o sangue espirrado em sua face.
Corri para o arco na mesa, mas ele o tirou de meu alcance e o
jogou para fora da tenda, soltando uma gargalhada.
— Você sabe usar isto?
Meneei a cabeça, encolhendo-me enquanto a mão ia até a adaga
escondida. Se eu estivesse com o arco, uma flecha já teria
atravessado o peito dele. Mas, como ele tinha a vantagem por
enquanto, eu não abandonaria o disfarce. Enquanto ele acreditasse
que eu era Madame Anmei, não poderia me ferir.
— Quem é você? — perguntei, tentando desviar a atenção dele
de minhas mãos.
— Você não tem nada a temer. Tudo que eu quero é o pequeno
príncipe. Ajude-me e será bem recompensada. — Seu olhar
vasculhou a tenda. — Onde ele está?
A voz do governador era bela, profunda, melodiosa; a mais linda
que eu já ouvira. Minha desconfiança a respeito dele se desfizera,
sendo substituída por uma admiração calorosa. O Governador
Renyu parecia honorável e gentil. Por que fora tão cruelmente
caluniado? O disco em seu pescoço brilhava com mais força, como
os olhos de uma serpente cintilando no escuro.
A imagem me abalou e meus instintos fizeram meu corpo formigar
em alerta. Comecei a piscar, libertando-me da promessa tentadora
em suas palavras e forçando-me a ouvir os gritos do lado de fora.
Em um lampejo, percebi como ele tinha tanta influência sobre os
sereianos. Sua voz tinha magia, e isso compelia os outros a
acreditar nele. Será que vinha do pingente brilhante em volta do seu
pescoço? O que quer que fosse, quase deu certo comigo,
superando até mesmo minha hostilidade. Não era de se admirar que
os sereianos fossem tão leais a ele, dispostos a se arriscar para
protegê-lo, a lutar por ele pela mera promessa de suas palavras e
pela ilusão de sua honra. Eu nunca havia me deparado com tal
poder antes. Seria ele um Demônio? Um usuário do temido Talento
da Mente?
Não ousei deixar meu medo transparecer. Ele esperava minha
admiração, minha obediência, que eu cedesse à sua vontade como
uma folha ao vento. Arregalando os olhos a fim de parecer inocente,
gesticulei para a cama onde o Príncipe Yanming tinha dormido mais
cedo. As cobertas estavam amontoadas por cima, dando a
aparência de que havia um pequeno corpo sob elas.
— Ele está dormindo — avisei ao governador.
A boca de Renyu se curvou em um sorriso perverso.
— Uma vez que o Mar do Leste for meu, vou me livrar do pirralho
e governaremos juntos, eu e você. Os outros reinos também cairão
perante mim, e você será a Rainha dos Quatro Mares. Ele estendeu
a mão, prometendo o que acreditava ser o que eu queria ouvir.
Ao ouvi-lo falar assim do Príncipe Yanming e de seus planos
desprezíveis, a raiva explodiu dentro de mim, mas fiquei feliz por
isso reforçar minha vontade vacilante. Olhei para a gema amarela
em seu peito. Àquela distância curta, eu via que um estranho poder
emanava dela, deixando-me arrepiada.
— O que faz você pensar que vai ganhar?
— Os sereianos obedecem a todas as minhas ordens, assim
como as criaturas marinhas. Você não tem nada a temer comigo ao
seu lado.
Suas palavras se derramaram em mim como mel, mesmo diante
do nó em meu estômago. Concordar com ele e ganhar sua
aprovação era uma tentação extremamente poderosa. Não, eu não
podia sucumbir; não podia acabar como um de seus asseclas sem
vontade própria. Cravei as unhas nas palmas das mãos enquanto
canalizava uma onda de energia em meus ouvidos para selar minha
audição. Envolta no silêncio repentino, mal podia ouvir minha
própria respiração. Minhas entranhas se contorceram quando
pensei que lutaria com ele daquela maneira, mas eu temia mais cair
sob seu controle.
Fixei meu olhar no governador. Não seria possível confiar em
nenhum alerta sonoro, nem um leve som de passos revelando um
movimento, nem um desembainhar de espadas indicando uma
estocada. Embora necessário, seria um risco. Enquanto ele se
movia em direção à cama, peguei a adaga e a arremessei nele. Ele
girou para o flanco e a lâmina cortou sua face. Sem nenhuma
pausa, ele se projetou para a frente, arrancando as cobertas da
cama, rosnando ao ver que estava vazia. Imediatamente ele se
virou para mim, mas fui às pressas pegar o arco mais próximo,
encaixando e disparando uma flecha no mesmo ritmo. Com um
movimento de seu escudo, ele a bloqueou e ela foi ao chão.
Disparei uma após a outra em um ritmo frenético, até que meus
dedos estivessem ardendo nas ranhuras crivadas em suas pontas.
Porém, ele era rápido, evitando todas com uma velocidade
surpreendente. Meu cotovelo bateu em uma estante enquanto eu
procurava outra flecha. Quando ele pegou a lança com uma firmeza
que deixou os nós de seus dedos brancos, conjurei um escudo, que
a bloqueou bem no momento que a arma dele me acertaria.
Minha última flecha acertou o ombro de Renyu. Joguei-me no
chão para pegar outra aljava; fiquei tão concentrada nela que não
senti a mudança no ar até que algo perfurasse minha panturrilha,
espalhando um ardor como se fosse um incêndio. Duas agulhas de
prata estavam cravadas em minha perna, prendendo a seda de meu
vestido em minha carne, manchada com o líquido esverdeado que
eu tinha visto antes. Veneno de escorpião do mar corria em minhas
veias. Meu escudo não existia mais, deixando-me tão indefesa
quanto um coelho preso em uma armadilha enquanto o caçador se
aproximava cada vez mais.
O governador abriu bem a boca e bradou algo, mas tudo o que
ouvi foi um zumbido fraco. Afrouxei o selo em meus ouvidos até que
passasse o mais fraco dos sussurros. Tudo o que me restava para
retardá-lo eram palavras.
— Covarde — sibilei, tentando adiar o fim inevitável, para incitá-lo
a se precipitar. — Lute comigo sem esses truques.
— Os perdedores reclamam, os vencedores… bem, os
vencedores têm coisas melhores a fazer. — A complacência
presunçosa em suas palavras fez o medo subir por minha espinha
dorsal.
A atração em sua voz ainda estava lá, mas era mais fraca; mal
podia ouvi-la. Usei meus poderes, lutando para ficar firme diante da
agonia lancinante do veneno.
A gema em volta de seu pescoço brilhava como ouro ao sol.
Enquanto eu olhava para ele, perguntei:
— É assim que está controlando os sereianos, com seu pingente?
— Minha voz soava como se viesse de longe. — Tal magia é
desprezível.
— Desprezível por quê? Porque não é capaz de manejá-la?
Porque você tem medo? — Ele inclinou a cabeça para um lado,
embora eu não achasse que ele esperava uma resposta. — Os
sereianos sempre tiveram suspeitas contra os Imortais do Mar. Eu
apenas acendi a faísca do preconceito neles, alinhei a vontade
deles com a minha. Isso é diferente de apontar uma espada para a
garganta de seu inimigo? Por que uma vitória deveria ser
considerada honrosa e a outra não?
— Não é a mesma coisa — vociferei. — Você tirou a liberdade
deles de escolher, de julgar por conta própria, para obrigá-los a
cometer atos que nunca fariam. Eles prefeririam a morte. — Encarei
o governador com um olhar desdenhoso, mesmo que estivesse
totalmente amedrontada. — Mas nenhum encantamento é
inquebrável. Você vai pagar quando eles se libertarem.
— A morte é a única forma de libertar quem está sob meu
controle. — Uma luz cruel brilhou em seus olhos. — Alguns me
irritaram com sua incompetência, outros eram muito difíceis de
dominar. Pouco antes de morrerem, suas faces ficaram totalmente
iluminadas. Compreensão, raiva, também, por terem sido feitos de
tolos. Isso tornou o fim deles ainda mais doce. Assim como
acontecerá com você.
A lança de Renyu brilhou. Lutando contra a dor, reuni meus
poderes, mas então ele deu um soco em minha têmpora. A dor me
engoliu e minha energia se dispersou. Se eu pudesse mover os pés,
fugiria, mas não consegui nem mesmo gritar em meio à dormência
esmagadora que caiu sobre mim.
Eu ainda tinha minhas flechas. Mesmo que minhas pernas
estivessem totalmente paralisadas, meus braços ainda se moviam
— pelo menos por enquanto — até que o veneno se espalhasse.
Levei a mão às costas, tateando a aljava. Quando peguei uma
flecha, o governador a arrancou de mim e a partiu em dois,
pressionando a ponta de metal na palma de minha mão até que ela
perfurasse minha carne. A agonia desnudou minha mente. Eu não
conseguia gritar, mal conseguia respirar. Com um sorriso malicioso,
ele removeu o arco de minhas mãos, jogando-o onde eu não
alcançava. Pegando a lança que havia derrubado, pressionou-a em
meu peito, apenas o suficiente para perfurar minha pele com sua
ponta venenosa. O sangue brotou na seda como um hibisco
carmesim desabrochando suas pétalas. Então engasguei e a parte
superior de meu corpo convulsionou antes de ficar imóvel. Pelo
sorriso em seus lábios, eu sabia que ele apreciava meu sofrimento.
Meu coração vacilava, esfaqueado pelo remorso. Será que eu
veria minha mãe e Ping’er novamente? O rosto de Liwei passou por
minha mente e, estranhamente, o de Wenzhi também. A dor
escaldante corria por minhas veias, agora mais veloz, e minha
respiração estava ficando áspera e irregular. Fechei os olhos para
bloquear o pavor de estar completamente à mercê do governador —
desarmada, envenenada e aprisionada. Não , disse a mim mesma,
furiosamente. Eu ainda tinha meu treinamento. Eu ainda tinha meu
juízo .
Eu ainda tinha minha magia.
Lutei para me acalmar, rangendo os dentes até doer. Meu poder
veio voando para minhas mãos, uma ventania surgiu na tenda e o
jogou no chão. Algo caiu de sua cabeça: a coroa de coral vermelho;
seus ramos se despedaçaram.
Seus olhos brilharam de choque e de raiva. Ele ergueu a mão,
que brilhava com magia — mas eu era implacável, até mesmo
imprudente, e lancei uma enxurrada de feitiços em sua direção —
não ousando permitir que ele tivesse a chance de retaliar. Rajadas
selvagens de vento o açoitaram, espirais de ar o prenderam, raios
de chamas queimaram sua pele, que depois foi encharcada. Se eu
não estivesse incapacitada e presa no mesmo ponto, poderia ter
desmaiado de tensão. Nunca lutei tanto, confiando apenas em
minha magia. O aviso da Professora Daoming para não esgotar
minha energia ecoou em minha cabeça, mas se parasse eu
morreria. Ele não teria misericórdia, não me daria uma segunda
chance. Apoiado contra as paredes da tenda, o governador defletia
cada rajada até o suor escorrer de sua testa e sua respiração ficar
tão pesada quanto a minha. Um orgulho feroz tomou conta de mim;
eu não era mais a presa que ele caçava.
Alguém apareceu na entrada. Wenzhi! Coberto de sangue, areia e
sujeira, com o rosto tenso de exaustão. Ou seria fúria? Quando o
Governador Renyu cambaleou para ficar de pé, Wenzhi investiu
contra ele — espada batendo contra lança. A boca do governador
falava freneticamente, proferindo palavras que eu não conseguia
entender. O que ele estava dizendo? E se Wenzhi caísse sob seu
controle?
— O pingente! — Meu grito se dissolveu em um sussurro
quebrado; eu não tinha forças para mais que isso. O medo de que
não fosse suficiente, que ele não me ouvisse, se apoderou de mim.
E meu arco estava muito longe; minha magia, quase esgotada.
Minha mão latejava com uma dor que estivera ali o tempo todo, mas
fora ofuscada pela agonia que assolava meu corpo. Olhei para baixo
e vi o fragmento quebrado da flecha ainda cravado nela.
Quando Wenzhi jogou o governador em uma estante, ouvi um
estrondo abafado. Ele levantou e seu pingente brilhava com mais
intensidade. Um calafrio passou por mim: a qualquer momento ele
poderia usar seu poder. Eu não conseguia me mexer, nem mesmo o
dedo; o veneno me incapacitara completamente. No entanto, eu não
podia deixar Wenzhi cair sob o controle do governador. Lutando
para respirar, acessei minha energia com dificuldade para formar
uma corrente de vento — esguia, mas rápida e forte — que
arrancou a haste da flecha de minha carne e a lançou no
governador. Ela acertou o pingente. A gema amarela rachou e a luz
que havia nela se dissipou.
O Governador Renyu soltou um brado completamente
enraivecido, mas foi como um sussurro em meus ouvidos. A dor me
incinerava, e eu estava dormente para todo o resto. Wenzhi girou
com graça mortal, chutando o flanco do governador. Quando Renyu
cambaleou para trás, a espada de Wenzhi fez um corte em suas
costelas e estilhaçou as escamas peroladas de sua armadura. O
governador abriu a boca e uma estranha expressão cruzou seu
rosto. Seria surpresa? Descrença por seu feitiço ter falhado? O que
quer que fosse, eu estava feliz por isso. Fui tomada por uma
satisfação cruel.
O Governador Renyu estava ofegante e seus movimentos ficavam
cada vez mais frenéticos enquanto ele aparava os golpes brutais de
Wenzhi. Ele estava descuidado agora, fedendo a desespero.
Quando Wenzhi ergueu o braço, o governador arremessou sua
lança nele — mas o capitão girou para o outro lado, enfiando sua
espada com precisão pela armadura do Governador Renyu, bem
nas costelas, e se projetou para a frente, cravando a lâmina ainda
mais fundo, até que estivesse enterrada até o punho e a ponta da
arma surgisse nas costas do governador, prata revestida de
vermelho. O rosto de Wenzhi tinha uma expressão feroz quando ele
puxou a espada. O sangue espirrou no ar e o Governador Renyu
teve um espasmo; de sua boca saía apenas um chiado molhado
enquanto ele cambaleava para trás. Ele tentava de forma
atrapalhada tapar a ferida aberta com a mão enquanto seu sangue
escorria pelos dedos em um volume absurdo. O governador então
tombou, batendo a cabeça no chão — revirando os olhos,
contorcendo os membros, antes que todo o corpo ficasse
completamente imóvel.
Morto. Ele estava morto. Eu não sentia piedade dele, nem alegria.
Havia apenas um alívio profundo por tudo ter acabado, por estarmos
vivos.
Wenzhi largou a espada e correu para mim. Agarrou meus
ombros e arregalou os olhos ao ver meus ferimentos. Quando seus
lábios se moveram, esforcei-me para ouvir.
— Onde está a ferida? Por que você não está se mexendo?
Apesar do conforto de seu toque, uma frieza se espalhou por mim
como se eu estivesse enterrada sob uma camada de neve. Minha
visão ficou turva enquanto eu olhava para ele, a última coisa que vi
antes que a escuridão me tomasse.
21

A bri uma fresta em minhas pálpebras e, com os olhos muito


apertados, vi a luz do sol que entrava pelas janelas, misturada com
uma brisa salina. Meu corpo estava pesado com aquela moleza que
vem depois de um longo adormecer; cada movimento era uma luta.
Eu tremia de frio, exceto pelo calor sobre minha mão. Alguém a
apertava com força, mas quem? Essa pessoa estava sentada ao
meu lado; seu rosto parecia um borrão enquanto eu piscava para
limpar a visão. Eu não me importava com aquele toque. Era um
conforto atravessando as memórias que se enrolavam no limite de
minha consciência: sangue, dor e terror.
Eu me levantei. Meus olhos se fixaram nos de Wenzhi, mais
suaves do que eu já os tinha visto antes. Minha pele ficou quente
quando recolhi a mão. Há quanto tempo estaria ali? Quanto tempo
eu tinha dormido? Passei as pernas para o lado da cama, tentando
não estremecer de dor.
Ele franziu a testa.
— Você está dormindo há dias. Vá devagar.
— Estou bem. — Apesar da bravata quando me levantei, estava
tonta e trôpega, mesmo parada de pé. Só o orgulho impediu que eu
me jogasse de novo na cama enquanto agarrava o estrado de
madeira para me firmar.
Ele passou o braço em minha cintura, segurando-me com leveza,
porém firme, enquanto me ajudava a sentar na cadeira mais
próxima.
— E o Príncipe Yanming? Está seguro? O que aconteceu? —
Minhas perguntas saíram rapidamente.
— Da próxima vez é melhor se preocupar com você mesma.
Ele levantou o bule e derramou um chá marrom-avermelhado em
uma xícara de porcelana, empurrando-a para mim. Pu-erh . Senti
sua fragrância rica e terrosa antes de tomar um longo gole, e o
líquido desceu por minha garganta com um calor revigorante.
— O Príncipe Yanming está bem e exige vê-la. — Ele fez uma
pausa para encher minha xícara. — Após a morte do Governador
Renyu, os sereianos se renderam. Ainda não decidiram qual será a
punição deles.
Lembranças passaram por minha mente — o prazer doentio que o
governador teve em me atormentar, sua expressão aterrorizada
quando a espada de Wenzhi perfurou seu peito. O sangue
carmesim que se acumulou ao redor de seu corpo imerso na terrível
quietude da morte. Eu disse a mim mesma que estava feliz por isso,
mesmo enquanto meu estômago se revirava. O governador teria me
matado com todos os requintes de crueldade possíveis. No entanto,
eu não via isso como um triunfo. Embora ele tivesse morrido, as
cicatrizes de suas ações traiçoeiras permaneceram; as vidas que
ele havia roubado, irrevogavelmente destruídas.
— Pode ser que os sereianos não tenham culpa nenhuma. O
Governador tinha um poder estranho que ganhou a confiança deles.
Sua voz, seu pingente… — Franzi a testa, esforçando-me para que
minhas memórias fragmentadas fizessem sentido. — Ele usou isso
em mim também.
Wenzhi fechou o semblante.
— Como você resistiu?
— Selei minha audição. — Fiz uma careta. — Talvez tenha sido
estupidez. Isso fez com que a luta contra ele fosse muito mais difícil,
mas eu não consegui pensar em mais nada.
A mão dele apertou a mesa até que os nós dos dedos ficassem
brancos.
— Felizmente, os poderes do governador eram fracos, vinham do
pingente, como você bem disse. Um usuário verdadeiro do Talento
da Mente poderia ter dobrado até mesmo sua vontade em
segundos. Assim que ele conseguisse escravizar você, seria
manipulada até a morte, dele ou sua. — Lembrar-me do governador
se vangloriando despertou novamente o temor. Como se sentisse
minha angústia, ele estendeu a mão por cima da mesa e tocou meu
braço. — Eu não deveria ter deixado você lá. Você não teria ficado
tão ferida se eu tivesse ficado.
— Se você tivesse ficado, talvez todos nós estivéssemos nos
curvando ao Governador Renyu neste momento — retruquei, séria.
— Isso não é culpa sua. Minha segurança cabe a mim. E eu
certamente não tinha intenção de deixá-lo me matar. Em algum
momento eu o teria feito se arrepender de tentar.
— Sim, não tenho dúvidas de que você faria isso. — Ele se
inclinou para frente, inspecionando meu rosto. — Se estiver bem o
suficiente, devemos partir em breve. Já mandei os outros de volta,
mas o Príncipe Yanxi quer vê-la antes de irmos. Ele está na sala de
audiências esta manhã.
Levantei-me, sentindo-me um pouco mais firme enquanto alisava
meu manto verde-claro, apenas agora tendo a noção de verificar se
estava vestida adequadamente. Roupas tão simples podem
incomodar a Corte do Mar do Leste, impecavelmente vestida, mas,
depois de quase morrer, eu tinha maiores preocupações em mente.
No momento em que entramos no salão, Wenzhi foi chamado à
parte por um general do Mar do Leste. Fiquei próxima às paredes da
sala, procurando pelo Príncipe Yanxi e finalmente o vi conversando
muito com outro imortal. O estranho estava de costas para mim,
mas sua postura e seu manto de brocado azul-escuro eram
estranhamente familiares.
Quando o Príncipe Yanxi me notou, inclinou a cabeça. Então seu
interlocutor deu meia-volta, e seus olhos escuros perfuraram os
meus.
Era Liwei, a última pessoa que eu esperava ver ali. Um tremor
percorreu meu coração — medo ou alegria, eu não conseguia mais
distinguir as emoções que ele evocava em mim. Mas ele ainda era
querido para mim, não importava o quanto eu desejasse que não
fosse.
Liwei falou brevemente com o Príncipe Yanxi antes de vir em
minha direção. Sabendo que estávamos sendo observados, fiz uma
reverência a ele com muita cerimônia.
— Levante-se — disse ele, com a voz tensa.
Olhei-o nos olhos sem nenhum lampejo de emoção, grata pelo
treinamento da Professora Daoming — agora eu era capaz de vestir
aquela máscara apesar do turbilhão que girava dentro de mim.
— Por que está aqui? Quando você chegou?
— Há três dias. — Ele ergueu a Gota do Céu presa na cintura. A
gema estava límpida e os seus flocos de prata giravam dentro dela.
— Quando ficou vermelha, vim para cá o mais rápido que pude.
Agarrei a pedra em minha cintura, gêmea da Gota do Céu dele.
Um desejo selvagem de jogá-la fora e enterrá-la com nosso
passado tomou conta de mim — como a tentação de arrancar uma
casca de ferida antes que ela cicatrizasse. Por que eu a usava? Por
que me apegar àquela lembrança? Tola emocionada , repreendi a
mim mesma, forçando-me a afrouxar a mão.
— Quando cheguei aqui, a batalha já havia terminado. Você
estava inconsciente e seus ferimentos sangravam quando o capitão
Wenzhi a tirou da tenda. E… eu temi o pior. — Ele se acalmou,
como se lutasse consigo mesmo. — Você foi gravemente ferida. O
Príncipe Yanxi a trouxe ao palácio para que os médicos reais
pudessem extrair o veneno de seu corpo. Qualquer dose a mais
teria matado você.
Ele se inclinou para mim, pegando minha mão; o toque de nossas
palmas, as pontas de seus dedos contra os meus… Fiquei parada,
surpresa pelo gesto. Minha pele esquentou e seu poder começou a
percorrer meu corpo. Minha mente ficou mais limpa; uma força
revigorante se espalhou por mim, mas eu me afastei. Mesmo que
ele fosse um médico habilidoso em Magia da Vida, a mera ideia de
sua energia se misturando com a minha despertou muitas emoções
inquietantes.
— Obrigada. Você não precisa fazer isso. — Procurei algo mais
para dizer. Qualquer coisa em meio ao silêncio constrangedor que
desceu sobre nós. — O que estava discutindo com o Príncipe
Yanxi?
A expressão dele ficou sombria e ele abaixou os olhos.
— Um assunto grave. O Arqueiro Feimao, conhecido seu, relatou
recentemente uma estranha condição. Desde a batalha com
Xiangliu, ele tem tido dificuldade em usar sua magia. Acreditamos
que um pedaço de minério preto engastado em sua armadura
suprimiu seus poderes.
— Como ele está? — perguntei, preocupada.
— Quando removeram a pedra, ele se recuperou.
— Que metal é esse? Como foi parar na armadura dele?
— Ninguém viu nada parecido antes. O Arqueiro Feimao suspeita
que veio do Pico das Sombras, de uma fenda na qual ele caiu.
Nossos batedores encontraram vestígios dessa pedra lá, mas nada
além de restos.
— Alguém o minerou? — Um pensamento arrepiante.
Ele assentiu concisamente.
— Parece que sim. Uma coisa dessas pode ser catastrófica nas
mãos erradas. Eu avisei ao Príncipe Yanxi para se manter vigilante
e nos alertar caso descubra alguma coisa.
Ele se calou. No silêncio repentino, meus sentidos se aguçaram.
Estávamos perto um do outro, conversando com a mesma facilidade
que sempre tivemos. Lá estava ele, aquele cordão invisível enrolado
em nossos corações — desgastado, mas intacto, apesar de minhas
tentativas de arrebentá-lo.
Talvez fosse um vínculo que nunca poderia ser rompido,
enraizado em nossa amizade antes de nosso amor malfadado. Eu
não queria isso — que minha alma desse um salto e no mesmo
instante despencasse, que o vazio em meu peito se reabrisse. Mas
minha quase morte foi um lembrete contundente de que a vida era
preciosa. Precária, mesmo para um imortal. E, agora, eu me sentia
mais viva do que em meses. O cheiro dele me inundou com
lembranças de nosso tempo no Pátio da Tranquilidade Eterna… Eu
quase podia ouvir o barulho estrondoso da cachoeira.
Fechei os punhos quando me afastei de Liwei, recuando a uma
distância segura enquanto uma corrente de ar frio passava entre
nós. Ele abriu a boca para dizer algo, mas ergueu o olhar quando
alguém se aproximou.
— Primeira Arqueira.
Era o Príncipe Yanxi, junto com Wenzhi, cujo rosto parecia
esculpido em pedra quando se curvou para Liwei.
Eu também teria me curvado, se o Príncipe Yanxi não tivesse
levantado a mão para dispensar as formalidades.
— Estou feliz que tenha se recuperado. Minha família tem uma
dívida de gratidão com você por se arriscar para proteger meu
irmão. Se precisar de nossa ajuda, será uma honra ir ao seu auxílio.
Suas palavras gentis me tocaram.
— Não há dívida alguma, Vossa Alteza. As ambições do
Governador Renyu se estendiam além daqui, até os Quatro Mares.
Se ele não fosse contido, teria causado grande sofrimento a todos.
O Príncipe Yanxi balançou a cabeça negativamente em
descrença.
— Somos afortunados por você e o Capitão Wenzhi terem dado
um fim nisso.
— E o pingente do Governador? — perguntou Liwei.
— Foi destruído. — Lembrei-me da flecha que arranquei da mão
para destruir a pedra. Liwei suspirou.
— É um alívio que um artefato tão perigoso não exista mais, que
nunca mais possa ser usado. Mas não posso deixar de desejar que
tivéssemos tido a chance de estudá-lo. Sabemos pouquíssimo sobre
essa magia, temo que isso seja uma desvantagem. Devemos saber
contra o que lutamos.
Eu entendi o que ele queria dizer e, no entanto, fiquei feliz por
nunca mais ver aquele pingente amaldiçoado.
— E os antigos servos do Governador Renyu que nos atacaram?
Serão levados à justiça? — indagou Wenzhi, com um tom afiado.
Seria por causa da lembrança dos Celestiais que foram mortos em
batalha? Não pude esquecer sua angústia ao vê-los cair.
— A justiça será feita conforme o Mar do Leste decidir —
respondeu Liwei severamente. — Embora pareça que ambos os
lados foram ludibriados pelo Governador.
— Vossa Alteza, independentemente das desculpas que deram,
os sereianos se rebelaram contra seu soberano. Seu próprio pai
acredita que tais assuntos devem ser tratados com rigor, de modo
que ninguém tente algo assim novamente. — Os lábios de Wenzhi
se curvaram em um sorriso zombeteiro. Ele gostava de provocar
Liwei? Certamente parecia que ele se importava pouco com a
aprovação do príncipe.
— Senti o poder do feitiço, quase caí sob seu domínio. Poderia
facilmente ter sido manipulada por ele — lembrei a Wenzhi.
Ele não respondeu, mas cerrou os dentes com força, como se
minhas palavras o tivessem ferido.
— Muitos sereianos pareciam desnorteados, sem saber por que
se revoltaram — revelou o Príncipe Yanxi. — Vamos investigar mais
para apurar sua inocência. Quem for considerado inocente será
liberado, a princípio sob vigilância. Alguns serão convidados a
permanecer em nossa corte como intermediários entre nós e os
sereianos. Laços mais estreitos impedirão que isso aconteça
novamente.
Os sereianos não teriam tanta sorte na jurisdição do Imperador
Celestial.
— Seu pai e você são muito sábios e misericordiosos — elogiei,
sem intenção de bajulá-los.
Antes que ele pudesse responder, ouvi o som de passos e um par
de braços pequenos se agarrou em volta de minha cintura. Dando
meia--volta, levantei o príncipe Yanming no ar, ignorando a dor em
meu corpo enquanto ele gritava de alegria. Quando o coloquei no
chão novamente, ele estava com um semblante solene e uma
expressão séria.
— Você não nos seguiu. Mentiu. — Seu tom era acusador.
Fui pega pela culpa e me agachei, encarando seu rosto.
— Sinto muito. Eu não podia ir com você, mas não devia ter dito
que iria.
— Estou feliz por você não ter morrido. E… muito obrigado.
Ele estendeu a mão: um dragãozinho, requintadamente
trabalhado em papel vermelho, estava aninhado nela.
Eu o peguei, segurando-o entre o polegar e o indicador, com
medo de amassar o papel delicado.
— Obrigada. Guardarei este presente sempre comigo.
O lábio inferior do príncipe tremeu.
— Que os dragões a protejam em sua jornada. — Ele passou as
costas da mão sobre os olhos, deu meia-volta e saiu correndo.
Fiquei olhando até o pequenino desaparecer, emocionada.
— Aonde quer que vá, sempre terá lugar aqui; seja em nossa
corte ou como nossa amiga. — O Príncipe Yanxi falava sério, e a
ideia de ter outro lar no mundo fez algo em meu âmago se acalmar.
— Príncipe Yanxi, é hora de partirmos — disse Liwei, em um
timbre glacial.
— Obrigado por sua hospitalidade, Alteza — agradeceu Wenzhi,
com a mesma formalidade frígida.
A mudança palpável na atitude deles era tanto intrigante quanto
gratuita. E a maneira como eles olhavam para o Príncipe Yanxi era
decididamente hostil. Meneei a cabeça para banir esses
pensamentos, perguntando-me se eu havia imaginado tudo isso.
Felizmente, o Príncipe Yanxi parecia alheio a essa frieza
repentina e disse, com um sorriso brincando na boca:
— Agradecemos ao Império Celestial por vir em nosso auxílio.
22

D epois do ocorrido no Mar do Leste, Wenzhi e eu fomos de uma


campanha para outra, às vezes sem retornar ao Império Celestial
por meses a fio. Lutamos contra monstros aterrorizantes, feras
vorazes e, mais recentemente, contra os espíritos temíveis que
assolavam a fronteira leste, perto das florestas do Império da Fênix.
Quando finalmente chegamos ao Palácio de Jade, eu estava
exausta, ansiosa para ir ao meu quarto. No entanto, quando recebi a
notícia de que Shuxiao havia sido promovida, fui atrás dela
imediatamente.
Bati na porta de seu quarto, esperando encontrá-la comemorando
com os amigos, mas, quando ela a abriu, seu sorriso não tinha o
calor habitual; ela parecia uma cópia pálida de si mesma. Uma
lamparina solitária iluminava a escuridão. Sobre a mesa havia um
pote de porcelana cheio de vinho.
— É assim que você comemora? Bebendo sozinha? — Balancei
negativamente a cabeça em falsa descrença quando entrei e me
sentei em um banquinho. — Não está feliz em me ver?
— Mais do que imagina… — Ela tirou a rolha coberta com um
pano vermelho do pote de vinho e me serviu um copo, que ergui em
um brinde.
— Tenente Shuxiao, que este seja apenas o começo.
Ela esvaziou o copo num único gole. Eu a encarei, com a mão
parada no ar. Shuxiao costumava beber com moderação, mas talvez
aquela fosse uma ocasião especial. Quando enchi seu copo, ela o
esvaziou novamente. Dando de ombros, decidi acompanhá-la.
Bebemos num silêncio confortável, até um rubor florescer em
nossas faces, o doce aroma de jasmim-do-imperador se misturar às
nossas respirações e a lâmpada ganhar um brilho nebuloso. No
entanto, os olhos de Shuxiao permaneciam distantes, como se sua
mente estivesse longe, num lugar nada agradável.
— O que aconteceu? — indaguei finalmente, incapaz de me
conter. — Aconteceu alguma coisa com sua família? Recebeu
notícias ruins?
Ela apertou o copo.
— Quero ir para casa.
Palavras simples que me tocaram profundamente, que ecoavam
em minha mente a cada dia e cada noite. Eu sabia que Shuxiao
sentia falta da família; ela falava dos parentes com muita saudade.
Mas era uma Celestial, e eu pensava que ela era feliz ali, que tinha
escolhido aquele caminho.
— Esta não é a sua casa? Você não quer estar aqui? —
perguntei, tímida, questionando-me se o vinho havia entorpecido
minha mente.
— Não. Minha casa fica no interior, sombreada por macieiras,
onde há um rio que corta os campos. — Um pequeno sorriso
brincou em seus lábios. — Meu pai nunca quis uma vaga na corte,
nem os favores do imperador. Nossa família tem força, mas estamos
sem aliados. Isso não faria diferença, mas um nobre poderoso se
interessou por minha irmã mais nova. Ele se aproximou de meu pai
e pediu que ela fosse sua concubina. Um insulto. Ainda que ele não
fosse lascivo e velho, com mais de uma dúzia de concubinas e três
esposas.
Essas coisas eram comuns entre a nobreza, mas me causavam
repulsa. Como o amor podia prosperar em uma circunstância tão
desigual?
— Minha irmã recusou o arranjo. Meu pai a apoiou, como poucos
teriam feito. O velho bode ficou furioso por termos desprezado essa
grande honraria — vociferou ela. — Ele ameaçou arruinar minha
família. Disse que mancharia nossa reputação perante a Corte
Celestial. Quem nos defenderia? Ninguém sabia nosso nome.
— Por isso você se alistou?
Ela assentiu.
— Para acabar com essas ameaças e esse assédio. Para evitar
que aconteça novamente. Poucos ousariam nos difamar sem provas
agora que tenho voz com o General Jianyun. Mas estar entre a
multidão do Palácio de Jade não é a vida que eu queria. Gostaria de
estar em casa com minha família e meus amigos, talvez me
apaixonar. No entanto, quanto mais alto eu subo, mais me prendo
aqui e mais temos a perder. — Segurando o pote, ela o esvaziou em
seu copo, derramando um pouco do vinho na mesa.
Eu não sabia o que dizer. Talvez eu estivesse falhando com ela
por causa de meu silêncio contínuo, mas não queria dar conselhos
equivocados. Sempre achara que Shuxiao era feliz e prosperava ali;
tanto comandantes quanto soldados gostavam dela. Talvez as
coisas fossem como Liwei dissera: todo mundo tem seus problemas;
alguns os trazem à mostra, outros os escondem melhor.
Eu não podia aconselhar que ela seguisse o coração. Não podia
aconselhar que fosse egoísta. Isso era escolha dela, e eu a apoiaria
de bom grado em qualquer decisão que tomasse. Nós duas
tínhamos nossos próprios fardos a suportar e somente nós
sabíamos seu verdadeiro custo e se poderíamos pagá-lo.
— Talvez você encontre alguém aqui — brinquei, tentando aliviar
seu humor.
Ela torceu o nariz.
— Você já conquistou o melhor, pelo menos entre os homens —
disse ela, rindo, enquanto remexia no baú atrás de si e pegava outra
garrafa de vinho.
Estaria ela falando de Wenzhi? Um calor passou por minha nuca,
mas segurei a língua, fingindo indiferença.
Depois de uma pausa, ela cutucou meu braço.
— Xingyin, tem uma coisa que eu queria perguntar há um tempo.
— Tomei um longo gole, deixando o vinho arder no aperto repentino
em minha garganta. Será que ela suspeitava de alguma coisa sobre
minha família? Minha identidade? Ela não trairia minha confiança,
mas eu não podia arriscar ser indiscreta por azar. — O que é aquele
enfeite que você sempre usa na cintura? Com a pedra em forma de
lágrima. Vi que o Príncipe Liwei tem um daqueles.
Expirei profundamente, aliviada pelo segredo de minha mãe estar
seguro, embora uma nova ansiedade tenha apertado meu peito.
Meu passado com Liwei era outro segredo enterrado
profundamente, mas eu não mentiria para Shuxiao. Não por isso.
— Foi um presente do Príncipe Liwei. — Eu odiava o jeito que
minha voz tremia ao falar o nome dele. Ela deu um sorriso como
quem diz “eu sabia”, então acrescentei às pressas: — Não foi nada
demais, apenas um sinal de amizade. Ele está noivo. — Uma
afirmação tão óbvia quanto a cor de meu cabelo.
Ela apertou os olhos, como se estivesse lutando para se lembrar
de algo em meio à confusão de seu estado embriagado.
— O Príncipe Liwei nunca aparece sem ele. E os criados dizem
que do quarto dele dá para ouvir aquela música que você tocou no
banquete com frequência.
Então ele ainda tinha a concha? Isso não significa nada, não
muda nada , sibilou uma voz dentro de mim.
Fiquei brincando com o copo. Desta vez, fui eu quem o esvaziou
primeiro.
— Não sabia que você gostava de fofocas baratas — provoquei.
— Só quando são sobre meus amigos — rebateu ela com um
sorriso.
Não voltei a falar e ela também não. Então, bebemos num silêncio
confortável pelo resto da noite, com o ar pesado de lembranças do
passado.
Na manhã seguinte, minha cabeça latejava impiedosamente.
Achei que uma caminhada ajudaria a aliviar a dor, mas meus pés
me levaram de volta a um pátio familiar. Hesitei antes de entrar no
pavilhão e me sentar em um banquinho. Carpas amarelas e
alaranjadas corriam ao redor das flores de lótus enquanto a
cachoeira caía cascateando no lago com um barulho reconfortante.
Fechei os olhos e inspirei, sentindo o aroma doce no ar. Meu antigo
quarto ficava a alguns passos de distância — estaria ocupado por
outra pessoa? Era a primeira vez que entrava no Pátio da
Tranquilidade Eterna desde que parti. Era exatamente como eu me
lembrava, mas tudo havia mudado.
Uma garota, passando pelo pátio, parou e fez uma reverência
para mim. Em suas mãos estava uma bandeja de doces
confeitados, do tipo que se esfarela e se desfaz quando você morde
e chega no recheio doce de feijão. Quando ela ergueu o olhar,
reconheci-a imediatamente.
— Minyi, sou eu! — Dei uma risada. — Por que está sendo tão
formal?
Duas covinhas apareceram em suas bochechas redondas.
— Quem não ouviu falar das proezas da Primeira Arqueira este
ano? — respondeu ela, vindo se sentar ao meu lado. — Você
realmente eliminou vinte espíritos em sua batalha mais recente?
Prendi o riso, lembrando-me de seu gosto por fofocas.
— Doze. Eles voam rápido.
— E o Diabo de Ossos? Como era?
Estremeci ao me lembrar da criatura malévola que se libertara da
prisão Celestial.
— Cabelos e pupilas tão brancos que eram quase translúcidos.
Sua pele era empoeirada e esticada como a de um tambor.
Ela agarrou a manga de minhas vestes.
— Como você o matou?
Uma memória passou como um raio por minha mente: a espada
de Wenzhi fazendo um arco no ar e cravando-se no pescoço da
criatura, que tentou mordê-lo violentamente com uma boca
abarrotada de agulhas de prata no lugar dos dentes. Quando
Wenzhi evitou sua investida, as garras do monstro brilharam acima
de seu pescoço, em direção à veia latejante pela qual seu sangue
fluía. Dominada pelo medo, disparei uma flecha que se cravou em
seu crânio. Um líquido espesso e branco escorreu da ferida e a
criatura soltou um grito agudo que cortou o ar. Suas garras
agarraram a haste uma vez antes de sua pata perder a força e o
monstro desabar no chão. Os dias em que meu coração se remoía
de pena estavam há muito no passado, embora as faces dos mortos
ainda me assombrassem.
— O Capitão Wenzhi e eu lutamos juntos — contei a ela. À
menção do nome dele, Minyi se ajeitou e seus olhos brilharam,
como sempre acontecia quando ela farejava uma nova história. Para
evitar a pergunta seguinte, questionei apressadamente: — Que
notícias você tem do palácio? Como está Sua Alteza? — Mordi a
língua, mas era tarde demais. Falar de Liwei assim em voz alta
devia ser culpa do vinho da noite anterior, que confundia meus
sentidos.
Alguém se aproximou por trás. Teria o rugido da cachoeira
abafado os passos? Um pigarro, e só por esse som fui capaz de
distinguir quem era antes de me virar. Ao meu lado, Minyi ficou de
pé e se curvou. Sem dizer outra palavra, pegou sua bandeja e saiu
às pressas, deixando-me sozinha com o intruso. Mas não era um
intruso; ele tinha todo o direito de estar ali. Era eu quem não
pertencia àquele lugar.
— Por favor, perdoe-me a transgressão, Vossa Alteza. Partirei
imediatamente. — A formalidade era um escudo que eu segurava
firme para me defender de minha própria fraqueza.
— Por que não pergunta diretamente para mim como estou? —
Em seu tom de voz havia um calor que eu não sentia há muito
tempo.
Eu teria saído, mas ele ficou em minha frente. Quando olhei para
ele, não pude negar que ainda estava lá; aquela dor em meu
coração, aquele fio que repuxava sempre que ele estava perto…
não importava o quanto eu desejasse que isso não acontecesse.
Uma brisa suave soprou pelo pátio, levando uma mecha de meu
cabelo até a bochecha de Liwei, que o pegou, com olhos tão
inescrutáveis quanto piscinas à noite.
— Tudo bem? — perguntou ele.
— Sim.
— Por que você está aqui?
— Curiosidade. Eu queria conhecer minha substituta — respondi,
com uma petulância que não convenceu em nada.
— Quem poderia ter tomado o seu lugar?
Seu tom e suas palavras ainda me afetavam, mas eu me forcei a
sair dali.
— Não somos mais amigos? Desde o Mar do Leste, eu a vi
pouquíssimas vezes e em todas elas você foge. — Ele gesticulou
em direção aos banquinhos. — Por que você não se senta? Vamos
conversar como fazíamos antes. Ou você está com medo? — Uma
nota de desafio soou em sua voz.
Meu bom senso guerreou com meu orgulho, e este ganhou a
batalha quando me sentei, instigada por sua provocação.
— Não posso ficar muito tempo. Meu treinamento…
— Sim, a valente Primeira Arqueira — interrompeu ele, com um
timbre cortante. — Quem mais protegeria o Império Celestial?
Mesmo depois de todos os seus feitos, Primeira Arqueira. Um título
honorável, mas sem patente ou poder. Por que você não comanda
um batalhão, em vez de seguir a sombra do Capitão Wenzhi?
Cerrei os dentes.
— Esta é a minha escolha. Quero a liberdade de entrar nas
campanhas que quiser. Não tenho desejo de subir na hierarquia
apenas por ambição.
Ele olhou para mim como se estivesse procurando por algo.
— Ou será que tem algo a mais por trás de seu relacionamento?
Existem muitos rumores sobre o jovem capitão e a talentosa
arqueira que ele tanto adora. As duas estrelas mais brilhantes do
Exército Celestial. Que sorte você não ser oficial do exército; caso
contrário, isso seria muito inadequado.
A acusação me feriu.
— Como ousa falar comigo sobre o que é “inadequado” se você
está noivo e mesmo assim fica me provocando dessa forma? Você
não tem o direito de exigir essas coisas de mim. Não é de sua conta
o que eu faço e quem eu vejo. Quanto a mim, agora estou
totalmente indiferente a você.
Palavras imprudentes ditas por mim, sem me importar com a
tempestade que varreu a face dele. No entanto, eu não ficaria ali
para ser criticada de novo. Estava cansada desse emaranhado e de
como ele fizera nós dentro de mim. Levantei-me e comecei a me
afastar, mas ele me segurou pelo pulso.
— Eu me importo — resmungou ele. — Apesar de meu bom
senso, meu julgamento e minha honra, não consigo deixar de me
importar.
Seus olhos estavam com um brilho tão ardente quanto o sol.
Presa por seu olhar, eu não conseguia me mover, mas só percebi
isso quando ele me puxou para si, quando já era tarde demais. Eu
deveria tê-lo empurrado para longe, mas não havia força em meus
braços. Sua confissão despertou em mim algo que eu pensava estar
morto há muito tempo. Eu nunca tinha visto esse lado dele antes,
cheio de paixão e de ciúme, e uma parte imprudente de mim se
deliciava com isso.
Ele inclinou a cabeça — lentamente, a princípio. Quando eu não
fugi, ele afrouxou a mão que segurava meu pulso, subindo para me
pegar pela cintura. Algo fumegava nas profundezas de seus olhos,
um momento antes de seus lábios pressionarem os meus com a
fome de uma fera, com uma avidez que fez meu sangue ferver. Não
havia pensamentos em minha mente; raiva, vergonha, medo do que
aquilo significava; nada além de uma leveza inebriante, de um fogo
ardente que corria em minhas veias. Minha mão já estava indo em
direção ao pescoço dele a fim de puxá-lo para mais perto e eu
inclinei a cabeça para trás, afogando-me na sensação e no calor de
seu toque, e seus braços me abraçavam muito apertado. Não queria
mais fugir dali.
Outrora, aquele pátio fora meu refúgio. O barulho calmante da
cachoeira, a fragrância das flores da primavera no ar, a alegria que
eu conhecera ali. No entanto, embora a dolorosa familiaridade do
lugar tenha trazido à tona lembranças tão doces, a mais marcante
era a de quando eu fiquei sentada sozinha sentindo frio na noite de
seu noivado.
Empurrei-o para longe com força e ele cambaleou para trás, seus
braços caindo. Eu lutava para respirar, para juntar os fragmentos de
minha compostura.
— Não, Liwei. Acabou. Acabou .
Ele passou a mão pelo cabelo; seu peito subia e descia em um
ritmo irregular.
— Não vamos mentir um para o outro, Xingyin. Não acabou. Seu
coração ainda bate ao som do meu. Você ainda sente algo por mim,
assim como eu por você. — Ele falou baixinho, sem nenhum traço
de orgulho. Apenas com uma certeza que era cem vezes mais
irritante.
— O que você quer de mim? — gritei, furiosa com ele e comigo
mesma. — Você está prometido a outra, mas parece decidido a me
humilhar para que eu admita meus sentimentos. Isso lhe agrada?
Saber que você não foi tão facilmente esquecido satisfaz seu
orgulho real? Ou será que pretende seguir os passos de seu pai e
ter uma concubina em cada canto do palácio?
—Nunca. — Ele recuou como se tivesse sido insultado.
Eu mesma não acreditava naquelas duras acusações, mas uma
parte de mim — uma parte amarga e vingativa — queria golpeá-lo,
feri-lo como ele me feriu. Nós nos encaramos sem falar nada. Meu
coração batia tão forte que rezei para que ele não pudesse ouvir.
Por fim, ele me deu as costas com as mãos rígidas nos flancos do
corpo.
— Eu não sei o que estou fazendo — anunciou ele em voz baixa,
como se fosse uma confissão relutante. — Minha mente me diz para
parar, para deixá-la ir, mas eu não consigo. Vejo você aonde quer
que eu vá, você está comigo em tudo que eu faço; à minha mesa
enquanto como, em meu quarto quando acordo. Sua voz fica no ar,
seu sorriso está sempre em meus olhos. Não consigo a esquecer,
não importa o quanto eu tenha tentado.
Nenhum de nós se mexia, nenhum de nós falava. Fui muito fraca
por não ir embora naquele momento, por ter ficado tão comovida
com a confissão. Não saberia dizer quanto tempo ficaríamos ali,
imóveis como os leões de pedra que guardavam a entrada, se as
portas do pátio não tivessem sido escancaradas. Afastei-me de
Liwei bem a tempo; um mensageiro corria em sua direção. Seu
chapéu preto estava torto e seu manto balançava ao vento.
Ele se curvou, ofegando um pouco ao falar com Liwei.
— Vossa Alteza, Suas Majestades Celestiais solicitam sua
presença imediata no Salão da Luz Oriental. Um assunto urgente
requer sua atenção.
Liwei franziu a testa.
— Vou imediatamente. — Ele olhou para mim como se quisesse
dizer mais alguma coisa, mas então se afastou.
Corri de volta para meu quarto, tentando acalmar minhas
emoções agitadas. No entanto, elas foram despertadas novamente
ao ver Wenzhi sentado à mesa.
— Você não estava com o General Jianyun esta manhã? —
perguntei, sentando-me no banco ao lado dele.
— Nossa reunião terminou cedo. — Ele parecia tenso. Hesitante,
o que era muito diferente dele. — Xingyin, há algo que devo lhe
dizer.
Apertei as mãos em meu colo, e um calafrio se espalhou por mim,
antecipando más notícias.
Ele se inclinou para mim e disse com a voz rouca de emoção
repentina:
— Pedi baixa do Exército Celestial. Esta semana será a última
para mim. Tenho assuntos familiares importantes para tratar longe
daqui e não pretendo voltar — revelou ele, com um cuidado
pensado, como se quisesse ter certeza de que eu havia entendido o
que ele queria dizer.
— Você vai embora? Para o Mar do Oeste? — perguntei, com
dificuldade. Ele assentiu brevemente.
— Minha missão final será inspecionar as tropas na fronteira do
Deserto Dourado. Ultimamente há alguma inquietação por lá.
Meu peito estava tão apertado que era difícil respirar. Desde os
eventos no Mar do Leste, algo havia mudado entre nós. Meu
coração batia mais rápido ao vê-lo e seu sorriso me aquecia como
vinho. Às vezes, eu achava que via uma chama terna em seus olhos
quando ele olhava para mim. Ao interagirmos, éramos restritos;
nunca nos tocávamos, nem dizíamos nada que fugisse ao decoro.
No entanto, havíamos nos tornado mais do que amigos, à beira de
algo inteiramente novo e emocionante. Ou será que isso eram
apenas ilusões minhas? Olhei para o chão, sentindo-me
estranhamente desanimada. Desiludida. Magoada, talvez? Embora
não tivesse o direito de estar, pois a culpa me apunhalava com a
memória dos lábios de Liwei nos meus.
Wenzhi estava olhando para mim como se esperasse minha
resposta a uma pergunta que ele não fizera. Sua voz finalmente se
infiltrou na névoa de meu sofrimento:
— Quer vir comigo?
— Para… a fronteira do Deserto Dourado? — questionei,
gaguejando.
— Isso também, se você quiser — respondeu ele, sério. — O que
eu quis dizer é: você viria comigo quando eu deixar o exército?
Passei a língua em meus lábios secos.
— O que quer dizer? — Não ousei interpretar mal sua intenção.
Um sorriso iluminou o rosto de Wenzhi e o quarto todo.
— Você não sabe o que eu sinto por você? — Sua voz estava
trêmula, a primeira rachadura em sua compostura de ferro. — Eu
não podia falar antes, mas agora estou livre. Quero que você venha
comigo. Para minha casa, para minha família. Para que possamos
compartilhar nossas vidas. — Ele abaixou a cabeça até tocar a
minha; nossas sobrancelhas quase se encostavam, sua respiração
fazia minha pele esquentar. — Seus sonhos serão meus sonhos
também.
A alegria me atingiu como as pequenas ondas em um lago depois
de uma chuva forte. Eu pensei que não haveria mais amor para
mim, sua beleza de tirar o fôlego, seu sofrer turbulento. Fora feliz
antes e acreditava que voltaria a ser quando voltasse para casa —
para minha verdadeira casa, não esta, construída sobre uma teia de
mentiras. Agora, um futuro com Wenzhi acenava para mim, com um
céu claro e nenhuma nuvem escura no horizonte. Sem corações
partidos ou emaranhados passados. No qual o sangue não tivesse
sido derramado entre nossos parentes, com laços imaculados pelo
ódio ou ressentimentos do passado — no qual eu pudesse ter
completude e estar isenta de culpa, remorso e tristeza.
Apenas nesse momento me atrevi a admitir para mim mesma o
medo de ter fracassado. Que, em minha arrogância, eu havia
calculado mal o valor de meu talento, o valor de minhas ações. Pois,
apesar de meu serviço ao Exército Celestial, minha esperança de
conquistar a liberdade de minha mãe estava desaparecendo, como
uma pintura em seda deixada muito tempo ao sol. Um perdão do
imperador era a maneira mais segura de garantir sua libertação. No
entanto, embora minhas proezas tenham conquistado elogios e
presentes (que eu recusei) nem mesmo um sussurro sobre o
Talismã do Leão Vermelho fora pronunciado até então. Eu deveria
ter confiado no alerta do General Jianyun, mas meu orgulho me fez
acreditar que era possível. O imperador não era conhecido por sua
generosidade em dispensar tais favores. Da mesma forma, ninguém
condenado à prisão eterna fora perdoado até então. Portanto, talvez
fosse hora de buscar um novo rumo para ajudar minha mãe. Talvez
eu encontrasse esse rumo na terra natal de Wenzhi, no Mar do
Oeste.
Nesse momento me sobressaltei com a mão de Wenzhi em meu
braço. Ele ainda estava esperando minha resposta, talvez pensando
a respeito de meu silêncio prolongado. Quando olhei seu rosto forte
e belo, algo se moveu em meu peito. Eu me importava com ele, eu
sei que sim. Minha consternação com sua partida era prova disso. E
não dizem que o amor cresce ao longo dos meses e dos anos em
mentes que combinam? Tínhamos a eternidade diante de nós.
— Você também deseja isso? — Seu timbre de voz não titubeava
mais; agora estava cheio de confiança renovada, como se já
soubesse minha resposta.
Sim . A palavra estava na ponta de minha língua e, mesmo assim,
eu não conseguia dizê-la. Algo puxava a borda de meu coração,
uma voz fraca implorando para que eu reconsiderasse. Eu teria
pedido mais tempo a ele, não fosse o barulho do cascalho nos
assustando. Alguém corria em direção ao meu quarto com uma
pressa incomum e Wenzhi abriu as portas. Um jovem criado estava
parado na entrada.
— Capitão Wenzhi — disse ele, ofegante. — Estive procurando
pelo senhor em todos os lugares. Suas Majestades Celestiais
solicitaram sua presença imediata no Salão da Luz Oriental.
Que estranho, pensei comigo mesma. Ele era o segundo
mensageiro que eu tinha visto hoje transmitindo notícias urgentes.
Os olhos de Wenzhi exibiam seu aborrecimento.
— Irei em breve. — O mensageiro se encolheu, mas não foi
embora. Sua coragem era louvável, principalmente à luz do evidente
desagrado de Wenzhi.
— Todos os outros comandantes já se reuniram. Eu… eu fui
instruído a acompanhá-lo até o Salão no momento em que o
encontrasse.
Wenzhi suspirou enquanto me chamava de canto para dizer:
— Vamos conversar amanhã. — Ele poderia ter dito mais, mas o
mensageiro arrastou os pés, lançando um olhar nervoso em nossa
direção. Com um aceno impaciente de cabeça, Wenzhi se afastou.
Sozinha em meu quarto, sentei-me à mesa até o fogo dourado do
sol diminuir para uma brasa brilhante. Não fosse por meu lapso de
fraqueza naquela manhã, eu acreditaria que meu coração estava
pleno, livre dos laços que o prendiam. Um futuro glorioso acenava
no horizonte. No entanto, eu ainda me agarrava a um fragmento de
meu passado, como um pessegueiro em flor anseia pelas pétalas
que caíram de seus galhos.
23

S huxiao se sentou na cadeira à minha frente, colocando a bandeja


de comida na mesa de madeira. Seus olhos vasculharam o entorno
do grande refeitório, já lotado de soldados debruçados sobre a
refeição matinal.
— A princesa Fengmei foi sequestrada — contou ela em voz
baixa.
Deixei a colher cair em minha tigela, espirrando congee na mesa.
— Como? Quando? Quem fez isso? — As perguntas saíram
rolando de minha língua. Deve ter sido por isso que Liwei e Wenzhi
foram convocados ontem.
— Tudo o que sei é que o Príncipe Liwei liderará o resgate. —
Sob a mesa, apertei meu joelho. Se não fosse pelos eventos do dia
anterior, a notícia não teria me afetado tanto. Contudo, ele me
beijara como se eu fosse a única em seu coração. Ele falara
palavras tão ternas… e agora se arriscaria para salvar a noiva?
Salvar um noivado que ele alegava não querer? Um formigamento
frio rastejou em volta de meu peito e o apertou. Inspirei e depois
expirei, tentando me libertar dessa sensação. Eu estava me
comportando como uma criança egoísta. Como seu noivo e aliado,
quem mais deveria ir?
— Desejo-lhe todo o sucesso do mundo. Espero que a traga de
volta em segurança. — Mesmo que minhas palavras tenham soado
um pouco vazias, ter conseguido proferi-las me deixou feliz.
— Raptar a princesa não é tarefa fácil. Eu me pergunto quem…
— Shuxiao parou de falar abruptamente.
O General Jianyun estava diante de nós com os braços cruzados.
Saltamos imediatamente para cumprimentá-lo.
— Tenente Shuxiao, eu não quero saber onde você ouviu isso,
mas esta discussão, ou qualquer outra sobre este assunto, está
encerrada. Fui claro? — ordenou ele.
Ela me lançou um olhar apavorado antes de responder com uma
mansidão incomum:
— Sim, General Jianyun.
Então ele me fitou.
— Primeira Arqueira Xingyin, venha comigo. Preciso falar com
você. — Eu o encarei com surpresa até Shuxiao chutar minha
canela; a dor desfez meu torpor e eu corri atrás dele. — A notícia é
verdadeira — revelou ele, sem rodeios, enquanto se sentava atrás
de sua mesa de pau-rosa. — A Rainha Fengjin está aflita. O
sequestrador mandou suas exigências, demandando que ela
rompesse a aliança conosco e advertindo que não teria misericórdia
de sua filha no caso de haver qualquer tentativa de resgate. É por
isso que cabe a nós salvá-la.
— Isso é obra dos Demônios? — perguntei.
— Suspeitamos que sim, embora não tenhamos provas.
Independentemente disso, nossa prioridade é recuperar a Princesa
Fengmei com segurança. Sua Alteza liderará uma pequena equipe
para resgatá-la, não mais do que uma dezena de soldados para
evitar que sejam vistos. Com uma ameaça dessas, a discrição é
crucial para não colocar em risco a segurança da princesa. — Ele
tamborilava na mesa em um ritmo constante. — O Príncipe Liwei
pediu que você se juntasse à equipe de resgate.
Se um raio caísse de um céu sem nuvens e me atingisse eu não
ficaria tão surpresa quanto estava naquele momento. Sem
conseguir dizer nada, lutei contra as emoções que cresciam dentro
de mim; emaranhadas e retorcidas, queimando, mas geladas.
Contudo, uma coisa estava clara: eu não queria fazer aquilo.
O general fechou a expressão, talvez lendo a recusa em meu
rosto.
— Embora eu não possa ordenar que você faça isso, eu a exorto
fortemente a fazê-lo. Pelo império. Por nossa aliança. Nada importa
mais que isso.
O argumento não me influenciou. Eu não era tão nobre nem tão
valente. Não era o perigo físico que me repelia, mas a ferida em
meu coração e em meu orgulho. Isso não valia as recompensas que
o Império Celestial tinha a oferecer, e eu já as havia recusado.
— Há muitos outros mais adequados e mais habilidosos do que
eu — argumentei.
— Com o arco? — Liwei apareceu à porta e disse isso. Eu não o
tinha ouvido chegar.
Quando o General Jianyun se levantou para cumprimentá-lo, eu
segui o exemplo, reprimindo o salto em meu peito. Eu não ficaria
presa no que havia acontecido entre nós; não fora mais do que um
lapso momentâneo. Talvez estar no Pátio da Tranquilidade Eterna
tenha obnubilado nossas mentes com lembranças. Agora,
estávamos mergulhados mais profundamente em uma nova
realidade, na qual Liwei e eu nos afastaríamos até que nunca mais
pudéssemos encontrar o caminho de volta um para o outro.
— Com Sua Alteza em pessoa liderando o resgate, certamente
vocês têm todas as habilidades das quais necessitam. — Isso era o
que um cortesão diria na esperança de bajular o príncipe, se não
fosse pelo tom cortante de minha voz.
Liwei cruzou a sala e ficou na minha frente.
— Nem todas. Você me superou no tiro com arco há muito tempo,
como nós dois sabemos. — Quando eu não respondi, ele tomou
uma das cadeiras em frente ao General Jianyun e fez sinal para que
eu fizesse o mesmo. Sentei-me rigidamente ao lado dele, desejando
estar em qualquer lugar, menos naquele. — Prossiga, General
Jianyun — pediu Liwei.
— Acreditamos que a Princesa Fengmei está sendo mantida em
cativeiro na Floresta da Eterna Primavera, perto das montanhas ao
sul do Império da Fênix. Esse foi o último vestígio que tivemos dela.
Esse nome me fez lembrar de algo.
— Não era esse o lar de Madame Hualing, a antiga Imortal das
Flores, antes de ela desaparecer?
Ele assentiu, sombrio.
— Desde então, a floresta está oculta por uma estranha magia.
Há séculos ninguém se aventura por lá. Não sabemos que outros
perigos espreitam ali, além das forças hostis que fizeram a princesa
de prisioneira. Furtividade e subterfúgio serão cruciais, assim como
suas habilidades.
O General Jianyun esperava que eu aceitasse prontamente, mas
eu não faria isso. Algumas pessoas podiam me achar indelicada,
mas eu não conseguia deixar meus sentimentos de lado tão
facilmente. Meus próprios desejos importavam também. Fiquei com
remorso ao pensar no perigo que a Princesa Fengmei corria, mas
eu não era tão arrogante para imaginar ser a única capaz de fazer o
resgate.
Eu me levantei, juntando as mãos e me curvando.
— General Jianyun, o senhor prometeu que eu teria a liberdade
de escolher minhas missões. Eu recuso esta.
Ele fez uma careta e abriu a boca para me repreender, mas Liwei
o interrompeu:
— Posso falar com Xingyin a sós?
O general lançou um olhar ameaçador em minha direção antes de
se curvar para Liwei e sair da sala.
— Gostaria de se sentar? — perguntou Liwei após um momento
de silêncio.
— Prefiro ficar de pé. — Eu estava ansiosa para sair na primeira
oportunidade, determinada a evitar qualquer intimidade com ele. Ele
suspirou e se levantou. Parte de mim estava muito desconfortável
com a situação absurda. Ontem ele me envolvera cheio de paixão
em seus braços, e agora estava me pedindo para resgatar sua
noiva. Fiquei totalmente furiosa, ardia de raiva. — Você se importa
tão pouco assim com meus sentimentos? — Não pude deixar de
perguntar, e me odiei por isso.
— É meu dever fazer isso — explicou ele. — Se fracassarmos, se
algum mal acontecer à Princesa Fengmei, não apenas seria uma
grande tragédia, mas também inclinaria o Império da Fênix em
direção ao Reino dos Demônios, fortalecendo-os e enfraquecendo-
nos imensamente. Com essa vantagem, os Demônios ficariam
tentados a quebrar a paz e novamente guerrear conosco.
— Entendo. Mas por que eu preciso ir com você? Existem
inúmeros guerreiros competentes que você pode escolher, que
ficariam honrados em acompanhá-lo.
— Porque não há ninguém em quem eu confie mais do que você.
— Os olhos dele estavam fixos nos meus. — Ultimamente
aconteceram muitas coisas. Espíritos de raposas passando por
nossas alas. A moléstia do Arqueiro Feimao. E agora isso. A
princesa foi sequestrada quando estava a caminho do Império
Celestial. Só os círculos íntimos de nossas cortes sabiam dessa
viagem. O que significa que há um traidor no Império da Fênix ou
aqui — concluiu ele com seriedade. — Eu falei sério sobre suas
habilidades. Isso será perigoso e precisaremos de todas as
vantagens que pudermos ter. — Quando não respondi, ele
acrescentou em voz baixa: — Estou colocando você em uma
situação impossível. Você deve me odiar.
Minha cabeça latejava sob o peso de minha indecisão. Ser
incumbida de salvar a noiva de Liwei tanto me inquietou quanto me
machucou. Eu queria que ela fosse resgatada, mas não queria fazer
parte disso. E uma voz fraca dentro de mim sussurrava que, se o
Império Celestial acabasse, talvez minha mãe fosse libertada…
Esse pensamento vil me estremeceu. Eu tinha amigos aqui que
sofreriam na guerra. E se os Demônios ascendessem à
supremacia? Mesmo que eu não acreditasse mais que eles eram
aqueles monstros que eu temia, também não confiava em seu rei,
que parecia tão implacável quanto o Imperador Celestial,
especialmente com o sequestro da Princesa Fengmei para forçar a
rendição da rainha. Deveria me atrever a depositar nossos destinos
nas mãos deles? Se eu aprendera alguma coisa ao longo desses
anos foi que ninguém saía vencedor em uma guerra, nem mesmo
aqueles que pensavam ter vencido.
O rosto da Princesa Fengmei passou por minha mente — não a
nobre que eu vi de longe usando uma capa de penas douradas, mas
a garota que eu conheci no pátio de Liwei. Por que eu não
conseguia tratar essa missão como qualquer outra que eu havia
aceitado antes? Se não fosse pelo nosso passado, eu teria
aproveitado esta chance para ajudar o Príncipe Herdeiro Celestial e
a Princesa Fênix. Era uma oportunidade rara, que sem dúvida
chamaria a atenção do imperador — possivelmente me colocando
ao alcance do Talismã do Leão Vermelho e evitando uma guerra
desastrosa. Além disso, eu poderia verdadeiramente me recusar a
ajudar Liwei? Independentemente de qualquer coisa, ele ainda era
meu amigo.
Centenas de ponderações se retorciam e serpenteavam em mim,
e todas me puxavam na mesma direção. Eu iria com Liwei. Não por
dever ou obrigação, mas para proteger meu amigo e aqueles que eu
amava no Império Celestial. Para ajudar a salvar a garota inocente
com quem eu falara. E, se isso não ganhasse o favor de Sua
Majestade Celestial e o talismã que eu desejava, nada jamais
ganharia. Seria meu passo final ao longo deste caminho antes de
começar de novo, e eu sairia com a consciência limpa. Olhei-o nos
olhos.
— Vou com você.
— Obrigado.
Quando ele deu um passo em minha direção, afastei-me.
— Vou com você — repeti. — No entanto, peço que se comporte
com decoro a partir de agora… como se nosso passado não
existisse.
Essas palavras frias também me feriram, mas eu não podia
permitir que outro momento de fraqueza atrapalhasse minha
firmeza.
— E se você quebrar o decoro? — A sombra de um sorriso se
formou em seus lábios.
Ele voltou a ser meu amigo implicante do passado com uma
facilidade impressionante. Mas eu não podia permitir nem mesmo
isso.
— Não podemos continuar assim — retruquei em voz baixa,
tentando sufocar o desejo persistente que estar perto dele
despertava; a culpa e a vergonha faziam meu estômago arder. —
Eu vou ajudá-lo no resgate da Princesa Fengmei, mas você tem sua
honra e eu tenho a minha. E o que fizemos não importa. Você está
noivo agora, seu coração é dela. — A memória de nosso beijo
passou por mim, sem querer. O último , disse a mim mesma
fervorosamente. Uma porta fechada, a despedida derradeira.
Seu rosto era cinza e sombra; seus olhos, sem luz. Foi então que
eu soube que tinha conseguido cortar o último fio puído de nosso
laço. Ele ficou em silêncio, inclinou a cabeça para mim e se afastou.
Eu não olhei para cima, não quis vê-lo sair. Minhas palavras foram
verdadeiras — um golpe fatal, uma morte rápida. No entanto, foi um
triunfo vazio, deixando um amargor em minha boca e uma dor
aguda em meu peito.
Perdi o sono naquela noite. Atormentada pela inquietação, escalei
os pilares do lado de fora de meu quarto. Uma brisa suave agitava o
ar e eu me sentei nas telhas frias de jade, olhando para o céu. A lua
brilhava através da escuridão, uma luz suave e gentil.
Ouviu um farfalhar. Era Wenzhi escalando a borda do telhado. Ele
jogou seu manto por sobre o quadril enquanto se sentava ao meu
lado.
— Fiquei esperando você.
— Sinto muito. Hoje foi um dia… agitado. — Eu odiava a maneira
como minhas palavras tropeçavam, como se eu tivesse algo a
esconder. Ah, mas você tem , sussurrou minha mente. — Eu não
posso ir com você para a fronteira — contei a ele.
Ele cerrou a mandíbula, mas não mostrou surpresa. Será que já
havia sido informado pelo General Jianyun?
— Não vá com o Príncipe Liwei — pediu ele com súbita urgência.
— É muito perigoso. Imortais evitam a Floresta da Eterna Primavera
por um bom motivo. Desde o desaparecimento de Madame Hualing,
são muitos os rumores sobre esse lugar; feitiços sombrios, criaturas
hostis, dor e morte.
Dei de ombros com uma indiferença que não sentia.
— Ao seu lado eu não enfrentei nada menos que monstros.
Seu suspiro misturou o ar frio.
— Você não se importa com a própria segurança?
Fiz uma careta, um pouco surpresa com sua insistência.
— Como isso pode ser mais perigoso que Xiangliu? Que o
Governador Renyu? Ou que o Diabo dos Ossos? — enumerei,
tentando aliviar sua preocupação.
— Porque eu não estarei lá. E se algo acontecer com você? —
Ele fez uma pausa. — Não liga para como eu me sinto?
Sua preocupação me tocou, mas eu não seria dissuadida.
— Sim, eu ligo. Mas posso cuidar de mim. Independentemente
disso, está decidido. Partiremos amanhã.
— Por que fazer isso? — questionou ele. — Não importa o que o
General Jianyun ordena se em breve deixaremos este lugar. Por
que se arriscar desnecessariamente? Com certeza não é por
lealdade ao Império Celestial.
Ajeitei a postura, sendo atingida por suas palavras. Eu era capaz
de me proteger. No passado, eu tinha ido em seu auxílio com a
mesma frequência que ele vinha ao meu. E esse comentário de que
eu não tinha lealdade ao Império Celestial… Eu não precisava ser
lembrada disso. Servi ao Império porque acreditava que isso
libertaria minha mãe. O treinamento que recebi, a reputação que
construí, as vidas que tirei; tudo isso foi um meio para um fim, assim
como todo o tempo que passei aqui.
No entanto, também dei ouvidos à preocupação que pesava sua
voz, e tentei me justificar:
— Não estou fazendo isso porque me ordenaram. O Príncipe
Liwei me pediu para ajudá-lo. Não poderia recusar.
O rosto de Wenzhi ficou com uma expressão obscura.
— Ainda está apaixonada por ele? É por isso que está arriscando
sua vida para salvar alguém com quem não se importa? Esqueceu
que ele trocou você por outra? — Suas palavras duras me
açoitaram como se fossem um chicote.
Olhei para ele com a ira inflamando minhas veias. Ele não sabia
nada sobre Liwei e eu. Mais do que nosso amor condenado, Liwei
era meu amigo; meu único amigo quando eu não tinha nenhum, e
essas raízes eram muito mais profundas do que minha decepção e
minha mágoa. A bondade dele comigo era uma dívida, e eu pagaria
esse débito.
— Como você pode dizer isso para mim? — vociferei. — Eu não
sou um fantoche doente de amor, implorando por uma migalha de
afeto. Tenho meus próprios sonhos, meus próprios princípios, minha
própria honra para defender. — Indisposta para qualquer explicação
a mais, levantei-me para ir embora dali.
— Espere, Xingyin… — Seu timbre de voz trazia uma nota de
desespero. Parei, mas não me virei. Ele falou tão baixinho que eu
me esforcei para ouvir. — Sinto muito. Eu não devia ter falado
assim. Fiquei desapontado e… com ciúmes. — Ele suspirou
profundamente. — Achei que tínhamos nos entendido ontem. Estou
errado? Você entendeu direito o que eu quero para nosso futuro?
Meu coração amoleceu, apesar da raiva que ainda borbulhava em
mim. Tudo o que Wenzhi vira foi meu desespero com o noivado de
Liwei, e não era de se admirar que ele estivesse ressentido agora.
Ele se declarou e isso era difícil, mas não lhe dava o direito de falar
assim comigo.
Dei meia-volta, olhando-o nos olhos.
— Wenzhi, você deve confiar no meu julgamento como eu confio
no seu. Não tente me insultar ou me culpar por fazer o que acho que
devo fazer. Como teremos um futuro juntos se não acha que eu sou
igual a você?
— Você é igual a mim. Mais do que igual. — Wenzhi ficou de pé,
segurando minha mão com força. — Eu só não quero que você se
machuque. — O vento ficou mais forte, soprando meu cabelo em
minha face. Enquanto eu tremia, Wenzhi tirou seu sobretudo,
colocando-o sobre meus ombros, e me puxou para perto. —
Prometa-me que vai ficar a salvo. Que não vai fazer nada… muito
imprudente — sussurrou ele em meu ouvido.
Tive vontade de rir, e isso dispersou minha ira. Para dizer uma
coisa dessas, ele me conhecia bem. E eu o conhecia bem o
suficiente para perceber como ele se conteve para não dizer mais
nada.
O cheiro fresco de agulhas de pinheiro flutuava no ar, acendendo
uma luz em meu coração que baniu as sombras persistentes. Meus
sentimentos por Wenzhi eram fortes, embora diferentes dos que eu
tivera por Liwei. Talvez a paixão ardente e intensa que eu conhecera
com Liwei fosse a impetuosidade de um primeiro amor, impregnada
pela tola inocência de que nada poderia nos separar. Para os
amores do depois há um pouco mais de lentidão, um pouco mais de
cautela; depois que corações são feridos e promessas são
quebradas. E talvez o calor crescente de meus sentimentos por
Wenzhi fosse a evolução de todo e qualquer amor.
Descansei minha cabeça em seu ombro, e minha tensão foi
chegando ao fim.
— Prometo. E, quando eu voltar, deixaremos este lugar juntos.
Ficamos ali em silêncio. O único sinal de que ele tinha ouvido
minha resposta foi o leve aperto que deu em meu braço. Pela
primeira vez naquele dia, eu estava em paz. Um desejo de contar
meus segredos a ele tomou conta de mim, mas não naquela noite,
não naquele lugar. No Império Celestial minha guarda estava
sempre erguida. Um dia, quando estivéssemos longe dali, eu lhe
contaria sobre minha mãe.
A noite que se estendia diante de nós era muito escura, mas, com
o resplendor da luz da lua e das estrelas, parecia tão clara quanto o
dia.
24

A Floresta da Eterna Primavera já foi o lugar mais belo do Reino


Imortal. Dizia-se que o próprio Imperador Celestial plantara a
floresta quando jovem, com galhos cortados da primeira árvore do
mundo, regados com o orvalho extraído de um lótus encantado. Sob
o dossel gracioso de árvores altas havia lagoas cristalinas e rios
prateados, repletos de peixes. Aqueles que vagavam pelo coração
da floresta falavam, fascinados, de árvores em eterna floração, com
galhos carregados de flores de todas as cores. Frutas maduras,
mais doces que o néctar, cresciam tão abundantes quanto as flores
silvestres em meio à grama macia. A perfeição idílica da floresta
havia atraído pássaros, feras e imortais. Até a poderosa Madame
Hualing, a primeira Imortal das Flores, ficara encantada com o lugar,
deixando o Império Celestial para fazer seu lar ali — peônias,
camélias e azaleias floresciam por onde ela passava.
Mas o paraíso não durou muito. Depois que Madame Hualing foi
destituída de sua posição, não levantou mais a mão para plantar,
não reviveu mais as flores murchas. E depois que ela desapareceu
as copas exuberantes secaram, as lagoas cintilantes se tornaram
poças de lama movediça e as árvores murcharam, para nunca mais
florescerem.
Saltei de minha nuvem, impressionada com o silêncio profundo do
lugar. Nem um pio de pássaro, nem mesmo o bater das asas de
uma libélula. Uma névoa branca cobria a floresta, revestida de um
frio indesejado. As árvores eram altas e retas, e suas folhas
enrugadas estavam agarradas aos galhos em morte eterna. Havia
poças turvas dispersas no entorno e nos afastamos delas para
evitar que fôssemos sugados para suas profundezas sem fim. O ar
parado cheirava à decomposição, uma triste zombaria com a
promessa que o nome da floresta trazia. À medida que entrávamos
mais em meio à sombra e à névoa, minha pele ficava arrepiada e eu
segurava com mais firmeza o Arco de Fogo da Fênix. Se ao menos
eu pudesse ter trazido o Dragão de Jade, já que o Fogo do Céu era
mais poderoso que as chamas… mas eu não sabia se poderia usá-
lo, nunca disparei suas flechas. E também tinha receio de usar o
arco na frente de soldados Celestiais que poderiam confiscá-lo em
nome do imperador.
Dois soldados correram na frente para explorar o caminho,
enquanto os outros oito ficaram onde estavam.
— Não dá para convocar uma nuvem — explicou Liwei. — O
nevoeiro é muito denso e algum feitiço o mantém sempre aqui.
— Não podemos dissipá-lo?
— Não é um feitiço simples. Além disso, a neblina esconde nosso
rastro por enquanto e não queremos alertar ninguém sobre nossa
presença.
— Mesmo que tenhamos batedores, como vamos encontrar a
Princesa Fengmei?
— Posso sentir a aura dela, embora precise chegar perto o
suficiente — explicou ele.
Essa revelação me atingiu. Será que ele era mais íntimo da
princesa do que eu imaginava? Lembrei-me de evitar falar com ele,
para que minha mente não entrasse em uma espiral profunda
demais. No entanto, parecia que ele não ligava.
— O Capitão Wenzhi deixará o Império Celestial em breve. O que
você fará, então?
Ainda que tenha sido uma fala em tom informal, até mesmo
agradável, minha resposta ficou presa na garganta. Ele continuou
com aquela voz baixa e tranquila.
— Meus sentimentos por você permanecem inalterados, mas não
falarei mais deles. Aquilo que você disse ontem… que me pediu…
você estava certa.
Assenti de maneira automática, pensando: se isso era verdade,
que peso sufocante era esse que caía agora sobre mim? Fechei os
punhos, furiosa comigo mesma. Como eu ainda podia me
emocionar com Liwei, apesar de meus sentimentos por Wenzhi? Eu
era tão volúvel e inconstante assim? Meu futuro com Wenzhi seria
iluminado pela esperança, não atolado nos arrependimentos do
passado, e eu não desperdiçaria essa chance de ser feliz.
Passos vinham em nossa direção, cautelosos e suaves. Ergui o
olhar e vi um dos batedores se aproximando.
— Vossa Alteza, há soldados cerca de quinhentos passos à
frente. Armados e guardando um pagode.
— Prossigam com cautela. Eles não podem saber que estamos
aqui — advertiu Liwei.
Sacamos nossas armas, avançando furtivamente. Na clareira
diante de nós, o pagode era enorme — oito andares de altura,
quase tão alto quanto as árvores ao redor. As torres em camadas
eram de madeira em ruínas, e as janelas de treliça e os beirais
ornamentais tinham uma cor desbotada que outrora poderia ter sido
um vermelho vivo. Ele se misturava perfeitamente à paisagem
arruinada, um borrão dilapidado de tons marrons e cinza. Parecia
abandonado, apesar da dúzia de soldados que o cercavam, vestidos
com armaduras de bronze polido.
— Reconhece a armadura deles? — perguntei.
— Não. Mas disfarçá-la é fácil. — Liwei fechou os olhos por um
momento, franzindo a testa. — A Princesa Fengmei está lá dentro;
eu posso senti-la. Devemos derrubar os guardas silenciosamente,
para evitar alarde. — Ele se dirigia a todos nós em voz baixa. —
Comece com os mais próximos de nós, indo até o pagode.
Devemos ser rápidos para evitar que gritem, senão a princesa
estará em perigo.
Ao sinal de Liwei, soltei uma flecha flamejante que se cravou no
peito da guarda mais próxima. Quando um gorgolejo engasgado
saiu de sua garganta, atirei no que estava ao lado dela, que caiu no
chão com olhos esbugalhados. Liwei e seus guerreiros moveram-se
rapidamente para cercar os soldados restantes, acabando com eles
num coro sinistro de sons estrangulados e gritos sussurrados.
O confronto acabou. O suor escorria por minha testa, apesar do
frio que envolvia minha pele. Foi fácil — fácil demais. O olhar de
Liwei se voltou para o meu, ecoando minha suspeita tácita.
— O pagode — disse ele. — Pode haver mais guardas lá e…
Um rugido irrompeu da floresta, abafando o resto de suas
palavras. Uma enxurrada de inimigos veio em nossa direção, com a
luz do sol refletindo em suas armaduras de bronze conforme eles
lotavam a clareira. Com um golpe de sua espada, Liwei derrubou
dois deles. Eu flechei outro que corria em direção a ele, e um
soldado inimigo caiu inconsciente aos meus pés. No tumulto, eu não
o ouvi se aproximar. Ele poderia ter me pegado de surpresa se não
fosse a flecha esquisita de penas pretas que se projetava para fora
de seu peito.
Eu me virei para procurar o arqueiro, mas Liwei gritou:
— Pegue a princesa!
Ele ergueu a espada ardendo em chamas e golpeou em um arco
amplo, repelindo os agressores que o cercavam. Suas armas
brilhavam em prata e ouro; outros carregavam correntes de metal
escuro nas mãos. Fiquei furiosa ao vê-los, pois tinham total certeza
de que o levariam como prisioneiro. O resto dos guerreiros de Liwei
estava travando uma batalha frenética ao seu redor, em menor
número, mas ainda mantendo suas posições. Ainda tínhamos
chance… pelo menos por enquanto, se eu encontrasse a princesa a
tempo.
Eu queria ficar e lutar, mas corri para dentro do pagode, deixando
a batalha do lado de fora para Liwei e os outros Celestiais. O medo
cortou meu coração, mesmo quando me lembrei fervorosamente da
habilidade de Liwei com a espada e de sua magia poderosa. Ele
poderia mantê-los afastados até que eu voltasse. Quanto mais cedo
eu encontrasse a Princesa Fengmei, mais cedo poderíamos todos
fugir daquele lugar amaldiçoado.
Subi correndo as escadas de madeira, esperando ser confrontada
por guardas em cada esquina. No entanto, o lugar estava
estranhamente deserto quando cheguei ao andar mais alto sem
encontrar um único inimigo. Abri a porta de madeira grossa no topo,
mas ela se manteve firme. Impaciente, convoquei uma rajada de ar
que quebrou a fechadura.
A Princesa Fengmei ficou de pé em meio aos pedaços e às lascas
de madeira espalhados pelo chão. Seu rosto em forma de coração
estava pálido e seus olhos castanhos, arregalados, enquanto ela
olhava fixamente para mim, como se não tivesse certeza se deveria
gritar de terror ou chorar de alívio. Ela inclinou a cabeça para um
lado ao me examinar, talvez tentando se lembrar de onde nos
conhecíamos.
— Estou com o Exército Celestial. Viemos resgatá-la! Rápido, o
Príncipe Liwei está sendo atacado! — Minha voz pulsava de pressa.
Ela se animou com a menção do nome de Liwei e ergueu os
pulsos para mim. Eles estavam presos com algemas de metal preto,
unidas por uma corrente fina.
— Pode tirar isto?
Saquei a espada e bati na delicada corrente. A lâmina ricocheteou
e meu braço latejou devido ao esforço, mas nem um arranhão
apareceu no metal. Serrar os elos não funcionou e martelá-los não
fez sequer um amassado. Durante todo esse tempo estava
pensando muito em Liwei lá embaixo, imaginando flechas voando
em direção às suas costas desprotegidas e espadas sendo
cravadas em seu peito.
— Fique parada.
Encaixei uma flecha no arco e a puxei, disparando-a na algema
de sua mão direita. O fogo vermelho ondulou pelo metal e
rachaduras apareceram antes de a algema se despedaçar. Tomei
fôlego novamente e atirei outra flecha em seu pulso esquerdo,
quebrando a segunda algema.
Os lábios da Princesa Fengmei se curvaram em um sorriso
trêmulo.
— Você… você atira muito bem — elogiou ela, suavemente,
afastando as mechas de cabelo preto que cobriam seu rosto.
Sua beleza delicada fez meu coração doer. Engoli em seco,
curvando-me para jogar fora os elos de metal quebrados em seus
pés. Eles ardiam como gelo grudado em minha pele.
— O que são estas correntes?
Ela encolheu os ombros.
— Não faço ideia. Quando eles as colocaram em mim, não
consegui reunir minha energia.
Meu estômago revirou violentamente. Aquelas correntes… Eu
tinha visto os soldados lá embaixo carregando-as. E, no Mar do
Leste, Liwei me contara sobre o minério do Pico das Sombras que
podia anular os poderes de um imortal.
— Depressa! — Eu a pus de pé. — O Príncipe Liwei está em
perigo!
Algo assobiou no ar; um som que todo arqueiro sabia de cor. Eu
me joguei no chão, arrastando a princesa para baixo. Senti meu
braço doer e olhei incrédula para o sangue escorrendo do corte.
Correndo para a janela, levantei a cabeça uma polegada apenas
para ver um brilho afiado voando em minha direção. Eu me abaixei,
deitando-me no chão quando outra flecha mergulhou na sala.
Lancei uma flecha de chamas ardente pela janela. No momento
seguinte, duas flechas vieram em minha direção, errando por um fio
e batendo no chão. Cerrei os dentes. Aquele arqueiro era
formidável. Não era de se admirar que não houvesse guardas ali;
qualquer pessoa que viesse ao resgate da princesa teria sido morta
há muito tempo. A pena preta era familiar; idêntica à da flecha que
atingiu o soldado que veio me atacar do lado de fora. Eu era o alvo
o tempo todo? O arqueiro havia errado? Parecia improvável, dada a
habilidade dessa pessoa; embora fosse mais improvável ainda que
esse arqueiro tenha me salvado apenas para me matar depois.
Respirei fundo, furiosa com meu inimigo invisível. Corria um
tempo precioso. Se aquelas correntes eram capazes de selar a
magia de um imortal, Liwei não teria chance. Preparei outra flecha,
saltando para ver meu inimigo pela primeira vez. Uma pessoa alta
— um homem — estava em um galho de árvore largo, com uma
flecha pronta para disparo. Seu rosto estava escondido por um
capacete, mas seus olhos tinham um brilho prateado e eram
penetrantes. Surpresa, afrouxei a corda do arco e a chama
desapareceu. Eu me preparei, esperando que uma flecha me
perfurasse naquele momento… mas o arqueiro baixou a arma. Nós
nos encaramos em um brevíssimo instante de silêncio antes que ele
recuasse para as sombras e fosse embora.
Não havia tempo para pensar naquilo. Agarrei a mão da Princesa
Fengmei e descemos as escadas juntas em direção à fúria da
batalha — apenas para desembocar no silêncio mortal de um
cemitério. Corpos estavam espalhados por toda parte, dezenas e
dezenas em armaduras de bronze. Fiquei desolada quando contei
dez caídos em ouro e branco: a armadura dos Celestiais. Corri em
direção a todos, um por vez, procurando qualquer sinal de vida em
todos os corpos. Mas seus olhos estavam vazios e suas auras
haviam se tornado nada.
— Onde está o Príncipe Liwei? — A voz da Princesa Fengmei
tremia enquanto ela olhava aterrorizada para a carnificina.
— Não sei — sussurrei, insensível a tudo, exceto ao medo que
rastejava em mim, transformando minha carne em pedra.
25

A luz minguante filtrou-se através do nevoeiro, lançando uma aura


misteriosa ao redor das árvores. A Princesa Fengmei e eu vagamos
pela floresta, procurando por qualquer sinal de Liwei. A cada passo,
meu coração afundava ainda mais em desespero. Eu mal conseguia
respirar em meio ao pânico que me dominava, mas minha
necessidade desesperada de encontrá-lo me levou adiante.
Os soluços abafados dela perfuraram meu torpor.
— O Príncipe Liwei é forte e poderoso. Talvez ele tenha
escapado. Ou talvez esteja ferido e não pode nos encontrar agora.
— Minha voz soava oca e minhas palavras, falsas. Ele não teria nos
abandonado enquanto estivesse vivo.
Ela assentiu, soluçando aflita enquanto se agarrava ao parco
conforto que eu tentei dar.
— Obrigada por me resgatar. Mas eu não seria capaz de suportar
se o Príncipe Liwei estivesse em perigo ou… ou ferido. — Sua voz
ficou embargada e as lágrimas brotaram em seus olhos mais uma
vez.
Tive um lampejo de irritação, meus nervos já estavam em carne
viva. Eu não queria bancar a babá naquele momento, queria
encontrá-lo . Como eu poderia rastrear Liwei com aqueles gritos? Se
algum inimigo estivesse nos caçando, já teríamos sido capturadas
ou mortas. No entanto, reprimi o impulso de ralhar com ela,
passando o braço ao redor de seus ombros e puxando-a para perto.
— Nós vamos encontrá-lo — disse. Uma promessa para nós
duas.
Isso pareceu acalmá-la quando seus olhos castanhos se
prenderam nos meus.
— Estou a reconhecendo agora. Você era a companheira de
estudos do Príncipe Liwei. Conhecemo-nos no dia do banquete.
— Sim. No pavilhão. — Uma nostalgia daqueles dias do passado
e uma alegria que enchia meu coração vieram a mim. Ela suspirou.
— Você foi gentil. Assim como está sendo neste momento.
Fiquei em silêncio conforme a vergonha subia da boca de meu
estômago para meu rosto. Não, eu não fui gentil — nem agora, nem
no passado. No primeiro contato eu não percebera quem ela era.
Depois, não quis saber mais sobre ela, talvez com medo de
descobrir o que agora eu sabia — que a Princesa Fengmei seria um
bom par para Liwei. Teria sido muito mais fácil se eu pudesse não
gostar dela.
— Sua Alteza e vocês são bons amigos? — perguntou ela.
Desviei o olhar sob o pretexto de examinar nossos arredores.
— Sim, somos. — Uma meia resposta, como a Professora
Daoming diria, dando-me uma bronca.
Então ela enrijeceu o corpo e eu fiz o mesmo, com medo de que
ela pudesse me perguntar algo que me forçaria a mentir. Quando
ela tirou a cabeça de meu ombro, apontou para o cinto em volta de
minha cintura.
— Por que isto está brilhando?
A Gota do Céu. A gema, outrora cristalina, brilhava em vermelho
vivo, pulsando com uma energia estranha. Obriguei-me a respirar
profundamente, a conter o pavor que novamente surgia em mim.
Liwei estava em perigo; contudo, isso também significava que eu
poderia encontrá-lo. Puxei a princesa para a mata fechada.
— Espere aqui. Fique escondida. Tente não fazer barulho. Voltarei
assim que puder. Se eu não voltar até o amanhecer, vá para o norte
até sair da floresta, por ali. — Apontei, caso ela não tivesse certeza.
— Pode usar magia novamente. Proteja-se e ataque qualquer um
que tente a ferir. Quando sair da floresta, convoque uma nuvem
para levá-la para casa.
Mexi em meu cinto, sacando uma adaga e passando-a para ela,
que aceitou sem dizer uma palavra, segurando a arma com
frouxidão e insegurança.
— Feche bem os dedos em volta do cabo, com força — instruí. —
Mantenha a lâmina virada para o lado oposto ao seu e a adaga
virada para cima. Se precisar atacar, não hesite.
Seus olhos estavam arregalados de medo quando ela assentiu.
Senti-me culpada por deixá-la ali, mas estava ficando sem tempo.
Quando parti, olhei para trás uma vez a fim de ter certeza de que ela
estava fora de vista antes de sair correndo até minhas pernas
queimarem como fogo.
Segui o puxão da Gota do Céu até uma abertura estreita no sopé
de uma montanha. Sem me importar com os perigos internos, entrei.
Estava um breu total, e a gema vermelha brilhante em minha cintura
projetava uma luz ameaçadora nas paredes. O ar úmido era
rançoso, denso de mofo e podridão; engasguei quando ele encheu
meus pulmões. Assim que dobrei uma curva fechada, tropecei no
chão irregular, caindo e ralando as mãos.
De longe, conseguia ouvir vagamente o som de vozes. Agachei-
me, rastejando ao longo do caminho estreito em direção ao som,
movendo-me mais rápido quando avistei luz à frente. A passagem
se abria para uma larga plataforma, na qual subi, olhando para a
grande câmara abaixo.
Meu coração se apertou imediatamente. Lá estava Liwei em uma
cadeira, algemado com grilhões idênticos aos usados para conter a
Princesa Fengmei. Escorria sangue de seu cabelo emaranhado,
pingando em seu rosto. Ele tinha um corte profundo na testa, e
hematomas escuros floresciam em uma de suas bochechas. Sua
aura estava reduzida, piscando num ritmo errático. Mesmo assim,
ele mantinha a cabeça erguida, como se estivesse sentado em um
trono em vez de acorrentado. Observei os guardas que o vigiavam,
aliviada por não encontrar nenhum rastro do estranho arqueiro no
meio deles — por si só, ele já seria um oponente formidável. Teria
sido abatido pelos soldados Celestiais antes que eles morressem?
De repente, senti uma aura muito mais forte que as demais —
térrea, estridente e discordante. Não era dos soldados, até onde eu
sabia, mas sim da dama que estava diante de Liwei. Seus olhos de
raposa brilhavam num belo tom de bronze e a metade inferior de
seu rosto estava coberta por um véu transparente; sua pele era tão
alva quanto neve fresca. Peônias carmesim estavam bordadas em
seu vestido vermelho, desdobrando suas pétalas de seda para
revelar estames dourados brilhantes. Um cacho de camélias estava
enfiado em sua faixa. Agachada na plataforma acima deles, senti
um resquício de uma fragrância floral, enjoativa e doce, com um
leve toque de decomposição.
— Usei um pássaro para capturar um dragão. — Sua voz estava
cheia de satisfação. — Depois de todas as histórias de suas
proezas, estou desapontada pela facilidade com que caiu em minha
armadilha, Alteza.
Liwei cerrou os dentes e retesou os músculos como se estivesse
lutando com algum inimigo invisível.
— O que são estas correntes? — resmungou ele, por fim.
— Um presente dos Demônios. Forjadas com metal do mundo
mortal, usando as artes proibidas por seu pai. — Enquanto ela o
observava lutar contra elas, afirmou em um tom entediado: — Tente
tudo o que quiser, sua magia é inútil enquanto isso estiver em você.
— Madame Hualing, por que fazer isso? Por que se aliar ao Reino
dos Demônios? — questionou Liwei.
Madame Hualing, a Imortal das Flores que fora deposta? Achei
que ela tinha deixado a floresta ou desaparecido por causa de
alguma arte maligna. Nunca a imaginei vivendo naquelas cavernas
escuras.
— Você era uma das maiores imortais de nosso reino até optar
por viver em reclusão. Deseja mesmo trair o Reino Imortal? —
continuou Liwei, com a voz calma apesar dos apuros em que se
encontrava. Talvez ele ainda esperasse convencê-la por meio da
razão.
Ela deu uma risada amarga.
— Trair o Reino Imortal? Eu ? Você acha que eu escolhi esta
vida? Permita-me contar a história real, pequeno príncipe. Há muito
tempo, seu pai e eu nos conhecemos nesta floresta. Ele era recém-
casado com sua mãe, mas isso não o impediu de me cortejar. —
Liwei se levantou da cadeira, mas dois guardas o fizeram se sentar
novamente, empurrando seus ombros para baixo. Ela não pareceu
notar isso, absorta em memórias. — Sempre que ele podia fugir,
vinha para cá. Ofereceu um palácio no Império Celestial para mim.
Eu recusei. Eu não era uma humilde cortesã que devia gratidão por
seus favores, era uma das divindades mais ilustres do reino. — Sua
face suavizou-se. — Certa noite de primavera, quando as peônias
estavam em flor, ele me fez um voto: uma vez que ele se tornasse
poderoso o suficiente para arriscar a ira do Império da Fênix,
casaria-se comigo, elevando-me ao mesmo status que a imperatriz.
Liwei balançou a cabeça negativamente e o sangue do ferimento
escorreu por sua bochecha.
— Meu pai nunca teria feito uma promessa tão imprudente.
— Pessoas apaixonadas muitas vezes fazem promessas que não
podem cumprir — rosnou ela. — Quando a notícia chegou aos
ouvidos de sua mãe, ela me fez uma visita, cuspindo suas ameaças
e sua maldade. Antes de partir, ela me deu um presente. A luz na
caverna aumentou quando Madame Hualing levantou o véu. Em seu
rosto oval, os lábios carnudos eram de um vermelho vibrante e seu
nariz era delicadamente arqueado. As cicatrizes finas e desbotadas,
uma em cada bochecha, me intrigaram; eram tão pequenas que mal
se podia percebê-las. O véu caiu mais uma vez. — As cicatrizes
deixadas pelas Garras da Fênix não têm cura. Devo viver com estas
marcas horríveis para sempre.
Estremeci, lembrando-me dos dedais afiados de ouro nos dedos
da imperatriz, que poderiam facilmente rasgar carne e osso. Mas,
apesar do que a Madame Hualing pensava, ela ainda era linda. O
que revirava meu estômago era a maldade em sua expressão.
— Deve haver uma explicação. E se fosse um espírito assumindo
a aparência de minha mãe? — argumentou Liwei.
— Criança ignorante. Quem mais usa as Garras da Fênix? Que
outra pessoa eu ameaçava, isolada como estava? — perguntou ela,
sarcástica. — Pior ainda, seu pai, o covarde infiel, me abandonou.
Em um só golpe fui roubada de minha beleza, traída por meu amor
e despojada de meu título. De tudo que eu mais gostava. Desde
então, minha vida tem sido apenas sofrimento, mergulhada em
desgraça e arrependimento.
Quando ela esticou os dedos para acariciar a bochecha de Liwei,
ele tentou se desvencilhar, o mais longe que as correntes permitiam.
— Então, é justo que eu tire de meus algozes a única coisa que
eles prezam acima de tudo. Você, o filho deles. A pessoa mais
amada por aqueles que mais odeio.
— Madame Hualing, pense com muito cuidado no que fará. Esta é
a mais alta traição. Você será uma pária no Reino Imortal, caçada
por Celestiais e por nossos aliados. Eles virão aqui e…
A risada dela era estridente e áspera. E, quando ela terminou, seu
sorriso era o de uma raposa saciada.
— Eu não sou tola, Vossa Alteza. Não estarei aqui quando
chegarem. Assim que eu apresentar sua força vital ao Rei Demônio,
ganharei sua eterna gratidão. Um presente de núpcias, se quiser
chamar assim. Talvez então ele possa derrotar seus malditos pais e,
quando ele se sentar no Trono Celestial, serei eu quem estará ao
lado dele. Imperatriz, finalmente. — Ela se gabou, mostrando um
anel com uma ametista oval que brilhava com uma luz malévola.
A visão disso despertou em mim uma repulsa profunda,
inexplicável e estranha. Além disso, o que ela queria dizer sobre a
força vital de Liwei?
Ele não demonstrou nenhum traço de medo.
— Madame Hualing, você sofreu uma grave injustiça. Solte-me e
dou-lhe minha palavra que investigarei esta situação. Qualquer mal
feito a você será reparado. Não caia nas promessas do Rei
Demônio. A deslealdade dele não tem limites.
— Assim como a de seus pais — sussurrou ela, pressionando o
anel na testa dele.
As amarras no pescoço de Liwei se esticaram enquanto seu rosto
se contraía em agonia. A ametista brilhou com um fulgor dourado
pouco antes de as pálpebras dele se fecharem como as asas de
uma mariposa presa.
Algo estalou dentro de mim. Eu não pensei. Consumida pela
raiva, minhas mãos se moveram por vontade própria, soltando uma
flecha de fogo que atingiu o braço de Madame Hualing. Ela gritou,
afastando a mão de Liwei enquanto os guardas corriam para ajudá-
la. Mirei uma flecha nas algemas de Liwei, assim como fiz com a
princesa. Mas eu tremia demais por causa da raiva e, em vez de
acertar o alvo, atingi a corrente entre seus pulsos. Ela arrebentou e
Liwei caiu no chão. Então ele se moveu e meu coração deu um salto
quando seus olhos se abriram e se fixaram em mim, arregalados de
choque e iluminados por… alguma emoção que eu não conseguia
ler. Antes que ele pudesse sair dali, os guardas o cercaram
rapidamente com escudos reluzentes apontados para cima.
Fui tomada por uma frieza implacável. O medo se misturava à
raiva enquanto eu disparava flecha após flecha neles até que suas
barreiras quebrassem e os guardas caíssem como talos de arroz na
época da colheita. Começaram a lançar raios mágicos e atirar
flechas contra mim; joguei-me no chão de pedra, rolando para uma
cobertura. Eu estava ficando cansada rapidamente; precisava
conservar energia. Pensei muito, tentando achar alguma maneira de
distrair Madame Hualing e seus guardas na parte inferior para que
eu pudesse chegar a Liwei e fugir com ele. Mas então o ar começou
a pulsar com magia e um forte aroma de terra e de metal inundou
meu nariz. Um musgo verde vivo subiu na plataforma, espalhando-
se como água derramada; suas raízes espinhosas se afundavam
com força nela, traçando rachaduras na pedra. Eu me levantei às
pressas, recuando e conjurando um escudo instantes antes de a
plataforma quebrar.
Eu estava em queda livre. O grito de Liwei perfurou meus ouvidos,
pronunciando meu nome com um desespero dilacerante. Abaixo,
Madame Hualing acenou em minha direção, anulando meu escudo.
Sem a proteção, meus pés bateram contra o chão áspero da
caverna e meus joelhos cederam quando dei uma cambalhota.
Rolando para a lateral, saltei e fiquei de pé conforme os soldados se
aproximavam de mim. Estavam em menor número agora, mas
mesmo assim não conseguiria lutar com tantos deles sem me ferir.
Praguejei pela imprudência que fez com que eu fosse descoberta.
Seria muito melhor ter permanecido escondida e pegá-los
desprevenidos. Porém, o que eu poderia ter feito com Liwei em
tamanho perigo? Enquanto os guardas arremessavam suas lanças
em mim, reuni minha energia, desencadeando um vendaval que
arremessou Madame Hualing e seus soldados contra as paredes de
pedra.
Girando, corri até Liwei, mas os soldados que restaram correram
para cercá-lo e alguns o seguraram com força. Madame Hualing se
aproximou de mim, e os grampos de cabelo cravejados de joias
pendiam tortos nas voltas de seus cabelos. Seu véu fora rasgado e
as cicatrizes agora estavam vívidas contra a fúria pálida de sua
pele.
— Quem é você? — Seu tom de voz era ameaçador. Apontei o
arco em resposta, mirando um raio de fogo nela. — Pare, ou ele
morre — alertou ela, sem rodeios, gesticulando para o soldado ao
seu lado, que pressionou a ponta de sua lança contra o pescoço de
Liwei.
Imediatamente, forcei meus dedos a se soltarem e a flecha
flamejante desapareceu. O olhar de Madame Hualing fixou-se no
Arco de Fogo da Fênix, antes de subir para o meu rosto.
— Ah… A arqueira. Primeira Arqueira, é assim que a chamam?
Ouvi falar de seus feitos. — Ela parecia curiosa. Intrigada, até. — É
uma pena que suas habilidades sejam desperdiçadas a serviço do
Império Celestial.
— Quem falou de mim para você? — Eu não era arrogante a
ponto de acreditar que minha fama havia chegado àquele lugar
remoto.
Ela não respondeu, apenas pôs a mão no queixo, aparentemente
perdida em pensamentos.
— Seu zelo em proteger o Príncipe Herdeiro é admirável. Veja só,
aventurar-se aqui, onde nada além da morte espera por você.
Esqueça-o. Junte-se a nós contra o Império Celestial. Os Demônios
a recompensarão muito bem. Qualquer cargo, qualquer honraria,
estaria a seu dispor.
— Nunca. — Recusei, explosiva, embora eu me amaldiçoasse no
instante seguinte por me revelar assim. Teria sido mais sábio fingir
interesse em sua oferta e ganhar sua confiança, para ter esperança
de escapar. Mas minha incapacidade de pensar com clareza quando
meu coração estava apertado sempre fora minha fraqueza.
Um sorriso lento se espalhou em seus lábios.
— Ah, isso vai além de mera lealdade e dever, não é? — disse
ela, aparentemente achando aquilo prazeroso. — Uma soldado
apaixonada pela realeza? O que você poderia oferecer ao Príncipe
Herdeiro Celestial, exceto sua vida a serviço dele?
— Você não sabe de nada — vociferou Liwei. — Xingyin, você
deve sair daqui. Agora. — Ele falou as últimas palavras como um
apelo, com uma pressa que latejava em sua voz.
Mas se eu fosse embora ele morreria sozinho.
— Ah, Alteza. Parece que sua reputação não é tão honorável
quanto acreditávamos — zombou Madame Hualing. — Paquerando
uma plebeia com quem você nunca poderia esperar se casar. Você
é filho de seu pai, de fato: colhe flores para seu próprio prazer e as
descarta quando murcham. — Ela me fitou com um olhar atento e
curioso. — Sabe que ele está noivo de alguém de sangue real, com
beleza, poder e charme? Ele arriscaria a vida para resgatar essa
prenda; assim como você está se sacrificando por ele .
Cada palavra sobre a Princesa Fengmei me apunhalava, assim
como na noite de seu noivado. Eu acreditava que estava acima de
tais sentimentos, mas, se eles podiam ser ressuscitados tão
facilmente… algum dia eu estaria livre deles? Um pensamento
terrível veio a mim: havia alguma verdade em suas palavras cruéis.
Eu viera para salvar Liwei, mas não conseguiria nada além de
minha morte. E, se eu morresse, o que aconteceria com minha
mãe? Ela nunca saberia de meu destino terrível, passando a
eternidade em sua espera fútil; primeiro por meu pai, depois por
mim. Por que sacrifiquei tudo pela pessoa que rompeu comigo, que
talvez nunca tenha me amado de verdade?
Foi o brilho nos olhos dela que me fez parar. Ela me induziu bem,
dando voz aos meus pensamentos mais cruéis — que me
provocavam no meio da noite. Ela queria me deixar com ciúmes, me
fazer duvidar de meu próprio valor, para permitir que o ódio entrasse
e afundasse suas garras em meu coração. Respirei fundo, tentando
me recompor. Eu precisava manter o interesse dela, ganhar tempo
para golpeá-la ou fazê-la ser imprudente. Não ousaria fazer com
que sua atenção se voltasse novamente para Liwei e para as coisas
vis que ela havia planejado para ele.
— Sim, ficamos juntos no passado — admiti, hesitante. — Agora
Sua Alteza e eu seguimos nossos caminhos separados.
— Foi escolha sua ou dele? — Ela sorriu como se já soubesse a
resposta. Desviei o olhar; sua pergunta me ferira mais fundo do que
eu esperava. — A vida seria melhor sem amor — afirmou Madame
Hualing com sentimento, como se eu fosse uma amiga de
confiança. Como se tivéssemos a mesma opinião.
As palavras dela ressoaram em mim. Fechar o coração ao amor
— a todo e qualquer amor — seria a única forma de felicidade? Eu
mesma não havia imaginado isso durante aqueles longos meses de
sofrimento? De fato, meus momentos mais sombrios foram quando
deixei quem amava. E mesmo assim… os momentos mais felizes de
minha vida também foram com eles. Contudo, eu não discordaria
dela. Ela parecia acreditar que havia uma conexão entre nós. Teria
ela visto uma parte de si mesma em mim? Estremeci com a ideia,
mas agora eu teria cautela, cultivaria essa ilusão para pegá-la
desprevenida com mais facilidade.
— Talvez você esteja certa — concordei, aplicando uma amargura
na voz. — O amor não foi bom comigo.
— Nem comigo. — Madame Hualing arfava. — Eu não pedi o
amor do imperador, mas ele me enganou com falsas promessas até
que eu retribuísse seu afeto. Quando estava magoada e assustada,
ansiava por seu conforto. Ele nunca mais voltou. Por causa dele,
perdi tudo, até a felicidade que tinha antes. Eu preferiria que ele
tivesse morrido a ter me magoado tanto. Tudo o que quero agora é
me vingar daqueles que me derrubaram. — Estremeci interiormente
com a veemência em suas palavras. Ela não havia proferido a
maldição no calor da raiva; isso vinha de um desejo fervoroso
arrancado das profundezas de seu coração. — Eles nunca vão
mudar — prosseguiu Madame Hualing em um timbre baixo e íntimo.
— A realeza Celestial é orgulhosa, fria e inflexível. Quando se perde
o amor deles, jamais se pode recuperá-lo. Pergunte a si mesma: por
que você faz isso? Só para que ele possa se lembrar com carinho
de você depois que se casar com a princesa? Chorar uma única
lágrima sobre seu túmulo? Um agradecimento insignificante demais
por um sacrifício tão grande. Não jogue sua vida fora.
Então me ocorreu que ela acreditava que nossas situações eram
semelhantes. Que eu também tinha sido enlaçada por um amor sem
esperança; que eu fora deixada de lado por ninguém menos que o
filho de seu amante cruel, e que minhas ações eram uma tentativa
desesperada de recuperar o que havia perdido.
Cravei os dentes em meu lábio, mordendo com força, até que o
gosto quente de sal e de ferro jorrasse em minha boca. Assim como
ela, eu não buscara o amor. Minha vida seria plena sem ele. No
entanto, ele se apoderou de mim, infiltrando-se em meus sentidos
como um perfume sutil, até encontrar beleza numa flor caída e
prazer numa tempestade. Mas paguei essa alegria dada a mim
multiplicando minha tristeza por dez. Mesmo quando acreditei que
meu coração estava curado, as cicatrizes permaneceram, reabrindo
com apenas um toque dele.
Por que eu fazia isso? A pergunta dela ecoou em mim
novamente. Eu conhecia os perigos quando segui o rastro de Liwei
até ali, mas não hesitei uma vez sequer. Meu único pensamento foi
ir em seu auxílio. Meu único medo tinha sido sua segurança. Mas
ela estava errada; eu não estava tentando reconquistá-lo. Teria sido
pela amizade, como eu disse a mim mesma? Ou por honra, para
pagar a dívida de sua bondade? A resposta me fugia e se escondia
nas margens de minha mente.
Ergui o olhar e meus olhos colidiram com os de Liwei — então o
que eu estava lutando para entender me atingiu com a força de um
raio, aquilo contra o qual eu tinha lutado tanto no passado, que eu
tinha medo de compreender, porque essa revelação poderia ser
minha ruína. Proferi palavras tão orgulhosas para ele… sobre honra,
sobre dever. Mentira, era tudo mentira.
Eu ainda estava apaixonada por Liwei.
Todo esse tempo eu continuei dizendo a mim mesma que meus
sentimentos por ele eram um resquício do passado, uma atração
persistente. Meu orgulho não me deixava ficar presa a ele, mas eu
não queria deixá-lo partir. Disse a ele que esquecesse o que
tivemos, mas eu mesma não podia fazer isso. Cada vez que ele
aparecia, uma parte secreta de mim se regozijava em saber que ele
ainda se importava. Minha frieza com ele era apenas uma máscara
para esconder meus sentimentos até mesmo de mim; eu ainda o
amava e nunca deixei de o amar.
Aproximei-me de Liwei, quase tremendo. As faces dos soldados
estavam desfocadas; tudo o que eu via era ele. Com um puxão,
desenterrei os segredos enterrados no fundo de meu coração. Se
eu não dissesse a ele agora, talvez nunca mais tivesse a chance.
— Eu amo você. — Lágrimas brotaram em meus olhos. Não fiz
questão de escondê-las. — Eu o amava. Eu ainda o amo. Tentei
esquecer você, destruir meus sentimentos. Mas não consegui.
Algo pesado se soltou em meu peito e caiu, um fardo que eu não
tinha percebido que carregava até então. Olhando para ele; eu
estava perdida por um momento em nosso passado. Através do ar
estagnado da caverna pútrida, eu quase podia sentir o cheiro doce
das flores de pessegueiro.
Eu me trouxe de volta ao presente, ao perigo. Os olhos de Liwei
estavam fixos nos meus e ele abriu a boca para dizer algo, mas
balancei a cabeça em advertência. Madame Hualing parecia
paralisada, com o rosto iluminado de expectativa. Não era disso que
ela me acusara? Ela esperava que Liwei fosse me rejeitar? Que eu
me juntaria a ela, amarga e perturbada? Se eu me voltasse contra
Liwei, validando tudo o que ela fizera, tudo o que ela se tornara por
causa de seu próprio amor contaminado, teria saciado seu desejo
de vingança?
Eu não lhe daria nenhum prazer naquele dia. Não queria acabar
como ela, consumida pelo rancor e faminta por algo que não poderia
ter até que isso me destruísse. Nas noites em que minha dor era
mais aguda, teria sido muito fácil cair em ressentimento e ódio. No
entanto, por mais que eu o amasse, amava mais a mim mesma. E
não havia fim para o amor, como eu descobria agora — era algo que
crescia e se renovava eternamente, expandindo-se para abranger
cada novo horizonte. Família, amigos e amantes também; nenhum
amor igual ao outro, mas todos preciosos à sua maneira.
Falei com Liwei, levantando a voz para ser ouvida.
— Não tenho arrependimentos. Sempre me lembrarei com
carinho do que tivemos juntos. Não me ressinto de sua felicidade
com outra pessoa, e nunca conseguiria desejar a sua morte. — O
momento era esse, talvez não houvesse outro. Meu estômago se
contorceu quando vi o olhar furioso de Madame Hualing. — Eu não
sou como você.
— Sua estúpida, tola sentimental. — Manchas vermelhas vivas
brilharam nas faces de Madame Hualing e seus olhos se estreitaram
até quase se fecharem completamente. Ela estava tremendo agora,
seria de decepção ou de raiva?
Rápida como um raio, apontei o arco e chamas riscaram meus
dedos. O fogo atingiu o peito de Madame Hualing com uma luz
ofuscante e ela cambaleou para trás; o cheiro acre de seda e carne
queimadas empesteou o ar. Mas então ela usou sua magia e
conjurou um fluxo brilhante, extinguindo o fogo com um silvo. Os
soldados investiram contra mim com suas armas reluzindo à luz das
tochas. Eu agachei, girando para a lateral e disparando outra flecha,
apenas para acertar o escudo que surgiu em volta de Madame
Hualing. Quando ela moveu levemente os dedos, um cheiro de terra
subiu, como folhas podres numa floresta. Trepadeiras grossas
saíram do solo, enrolando-se em volta de minha cintura e me
jogando contra o chão. O sangue jorrou de minha têmpora e meu
arco foi arrancado de mim. Esparramada no chão, tentei recuperar o
fôlego e a ponta de um chinelo de brocado cutucou meu rosto.
Madame Hualing olhou para mim com os lábios curvados em um
sorriso malicioso. Havia um rasgo carbonizado em seu manto onde
minha flecha havia acertado, embora a pele por baixo estivesse
incólume, totalmente curada.
Ela era forte. Eu fracassei. E, agora, ela estava lívida.
— Quanta nobreza você tem; além de amá-lo, ainda aceita que
ele fique com outra, prezando pelo passado e perdoando as mágoas
que lhe causaram. É tão desprendida a ponto de se sacrificar,
arriscando a si mesma por um amor que já não é mais seu? —
zombou ela, ironizando minha declaração — Vamos ver como seus
princípios se saem quando for realmente testada.
Um guarda agarrou meu braço e me pôs de pé. Outros dois
arrastaram Liwei para onde eu estava. Ainda havia algemas de
metal negro em seus pulsos, anulando seus poderes; que
arrependimento de ter errado minha flechada… O olhar de Liwei não
abandonava o meu. Aparentemente alheios ao nosso perigo, seus
olhos brilhavam com todo o calor e ternura que eu conhecia.
— Você arriscou sua vida por ele, mas ele fará o mesmo por
você? — O tom de sua voz fedia a desprezo.
— Deixe-a ir. Eu não vou resistir — pediu Liwei, sem hesitar por
nem um momento.
Uma alegria feroz cantou em minhas veias. Mesmo temendo o
que viesse depois, que essa declaração apenas a deixasse mais
furiosa. A boca de Madame Hualing se esticou em um sorriso triste.
— Vamos nos divertir um pouco esta noite. Um combate até a
morte. Entre vocês dois. Se vencer, Primeira Arqueira, eu a
libertarei. Até permito que use seu arco. — A doçura de sua voz
contrastava com suas palavras abomináveis.
Talvez eu não estivesse ouvindo direito. Ela não quis dizer isso;
ela não podia ter dito isso. Liwei e eu deveríamos nos matar para
nos salvarmos? Seria alguma piada perversa a fim de nos assustar?
Porém, quando olhei para o rosto dela, tão adorável e impiedoso,
um arrepio percorreu minha espinha.
Não era um jogo.
26

O s olhos de Liwei eram brasas ardentes.


— Eu não vou lutar com você, Xingyin. Por favor… vá embora.
Meneei a cabeça. Eu não o abandonaria para a morte certa, nem
mesmo para me salvar. Madame Hualing suspirou.
— Matarei os dois caso se recusem a lutar. Um final muito
romântico, mantendo todos os seus princípios honoráveis, mas uma
lamentável imprudência.
Um desespero enorme tomou conta de mim quando vi o olhar
sombrio e resoluto de Liwei. Nossos braços se mantinham imóveis,
desafiando a ordem dela. Não seríamos seus peões naquele jogo
doentio e eu não desistiria sem resistir; lutaria até que minha
energia se esgotasse, até que nossos últimos suspiros fossem
gastos. Só então ela poderia arrancar de nós sua vitória sangrenta.
Ela fez um estalo com a língua no céu da boca.
— Que decepção. Eu esperava um espetáculo mais animado.
Mas existem maneiras de fazê-los cooperar. — Seu escudo mágico
reluzia enquanto se aproximava de Liwei; a imortal segurou o queixo
dele e suas unhas lhe cortaram a pele da face.
Ele tentou recuar, com uma expressão apavorada. No entanto, ela
o segurava com força e os soldados imobilizaram seus braços com
mais força ainda.
— Liwei! — Saltei em direção a ele, tentando abrir caminho entre
os guardas que me agarraram e me jogaram de volta aonde estava.
As pupilas de Madame Hualing brilhavam como lascas de topázio.
Uma lembrança surgiu, algo que Liwei me disse uma vez sobre
usuários do Talento da Mente: seus olhos brilham como pedras
lapidadas .
O medo invadiu meu ser, seguido pela dúvida. Recusei-me a
acreditar, não ousei. Madame Hualing era do Império Celestial, não
do Reino dos Demônios, da Muralha das Nuvens ou seja lá de qual
lugar. Outrora Imortal das Flores, seu Talento tinha de ser a Terra,
não a Mente. Eu mesma tinha visto isso com o musgo rastejante e
as trepadeiras monstruosas. Era impossível que ela conhecesse as
artes proibidas. E, mesmo que as conhecesse, certamente o
imperador as teria selado. Mas e se o imperador não soubesse
disso? E se ela tivesse desaparecido antes que essa magia fosse
banida?
Gotas de suor brilhavam na pele de Liwei. Ainda assim, Madame
Hualing não o soltava. Não pude deixar de lembrar que ela era uma
das imortais mais poderosas do reino. E, mesmo que a magia de
Liwei não estivesse anulada, ele estava fraco em virtude da batalha
e do anel de ametista. Tentei me assegurar de que, se ela estivesse
tentando controlá-lo, fracassaria. Liwei também era forte. Ele não se
renderia, ele lutaria…
Todavia, quando Madame Hualing e seus guardas o soltaram, eu
não o conhecia mais. Algo vital nele se perdera. Senti minhas
entranhas congelarem quando olhei em seus olhos — pior do que
se fossem os de um estranho, eram tão frios quanto os do pai. Seu
rosto estava inexpressivo e ele permanecia imóvel, mesmo no
momento em que um guarda pôs uma espada em sua mão. Alguém
me deu outra e fechei a mão por puro reflexo em torno do cabo.
Madame Hualing se inclinou para mim, e eu engasguei quando o
cheiro de flores em decomposição preencheu meu nariz.
— Está arrependida de ter rejeitado minha oferta? Um aviso final:
não seja tão tola a ponto de jogar sua vida fora por ele. O príncipe
não dará valor algum a isso; os homens da família dele têm coração
de pedra.
Não hesitei, saltando para frente a fim de estocar a espada nela.
Quando a arma bateu contra seu escudo, a dor percorreu meu
braço. Ergui a arma novamente — era melhor morrer lutando —,
mas os soldados me empurraram para o lado e um deles chutou a
parte de trás de meus joelhos, fazendo-me cair no chão.
Madame Hualing se agachou e acariciou minha face com o dedo
gelado. Estremeci, recuando.
— Não se esqueça, você ainda tem seus poderes . — Lembrou
ela, em um sussurro íntimo. — Se deixar que ele a mate… bem, a
vida dele já o deixou. Porém, se ele morrer, você vive.
Algo se estilhaçou dentro de mim. Uma escolha impossível,
morrer em um sacrifício inútil ou matar Liwei para me salvar. Mais do
que apenas querer Liwei morto, ela queria que eu o matasse. Será
que ela tinha um prazer sádico em torturar o filho de seu inimigo?
Será que apreciava a ideia de que eu vivesse amargurada e
arrependida assim como ela? Ou tudo isso seria para provar que eu
estava errada? Que, apesar de minha declaração, ela e eu não
éramos tão diferentes, afinal, que a mesma maldade que habitava
em seu coração espreitava o meu…
Ah, eu a provocara muito mesmo, e agora nós dois pagaríamos.
Madame Hualing bateu palmas e o som ecoou na caverna. Como
se fosse um sinal, o corpo de Liwei estremeceu e ele veio em minha
direção. Com a espada na mão, ele me circulava; uma paródia cruel
das tantas vezes em que ele me desafiou em treino.
Eu não conseguia me mover, incapaz de desviar os olhos de seu
olhar morto. Mesmo agora, eu não acreditava que ele pudesse me
ferir. Embora eu mesma quase tenha sido controlada no Mar do
Oeste e tenha visto do que uma pequena fração desse poder era
capaz.
Ele investiu rápido como um raio. Atordoada, ergui minha espada
com um segundo de atraso e a arma dele cortou minha bochecha. O
sangue escorria do corte ardente, mas não era nada comparado ao
meu sofrimento interior. Ele não me olhava com ódio, mas com total
indiferença.
Um cintilar prateado, rígido e brilhante. Meu corpo se moveu por
vontade própria, jogando meu braço para cima e fazendo com que
nossas espadas se chocassem. Ele golpeou de cima para baixo
implacavelmente e eu cambaleei sob a força de seu ataque, com os
calcanhares plantados no chão. Em uma finta súbita, ele girou para
o lado. Cambaleei para frente enquanto ele acertava as escamas de
minha armadura com a espada, cravando-a profundamente em meu
ombro. O ferro frio afundou em minha carne, raspando o osso. Com
um puxão leve, ele tirou a espada de mim e ela emitiu um ruído
molhado. Meus pulmões arquejavam quando pressionei a palma na
ferida aberta e o sangue jorrou entre meus dedos. Agora a raiva me
dominara, por mais inconsciente que fosse, e eu investi contra ele,
perfurando sua armadura com a espada, que atingiu seu flanco.
Recolhi-a imediatamente, antes que penetrasse muito fundo, sendo
incinerada pela vergonha e pelo remorso… e pelo terror de ele nem
sequer ter vacilado.
Nossas lâminas se chocaram repetidamente. Eu me segurei todas
as vezes, embora ele não demonstrasse tal contenção. No entanto,
estávamos mais próximos do que eu esperava. Ele era o melhor
espadachim, mas eu tive o privilégio de treinar como uma soldado.
Eu era rápida, ele era forte. Meus golpes eram hábeis, ele era
implacável. A magia teria desequilibrado a luta, mas os poderes dele
estavam anulados, e eu relutava em usar os meus contra Liwei.
Uma distinção tênue, mas usá-los agora pareceria uma execução.
Quase uma injustiça. Minha mente gritava: para que serve tanta
honra? Meu coração, por outro lado, sussurrava que não era Liwei
quem me atacava assim, tão impiedosamente, mas apenas seu
corpo dançando a música de outro ser. Ele era meu oponente, mas
não era meu inimigo. Embora eu quisesse vencer, não podia matá-
lo. Não era apenas a honra que me restringia, mas um senso de
autopreservação, sabendo que matar a pessoa que eu amava
também me destruiria. Eu nunca me recuperaria, nem se passasse
uma eternidade, nem mesmo se eu encontrasse o caminho de casa.
Prendi o pé em uma pedra solta e tropecei. Num lampejo, a ponta
de sua espada pressionou a frente de meu pescoço. Ele se acalmou
e um músculo se contraiu em sua bochecha. Estaria ele lutando
contra o controle de Madame Hualing? Fitei a antiga Imortal das
Flores; de seus olhos saía uma luz ofuscante, sua testa estava
coberta de suor. Será que ela estava cansada? A esperança raiou
em mim, apenas para ser extinta quando a mão de Liwei tremeu um
momento antes de me golpear com a espada e atravessar meu
peito. Arquejei e minhas pernas cederam, fazendo com que eu
desabasse no chão de pedra, caindo em uma poça de meu próprio
sangue, ainda quente.
A escuridão me chamou, um vazio misericordioso e indolor
florescendo em meu corpo, eclipsado apenas pela agonia de saber
que foi ele quem fez isso. Uma memória esquecida se acendeu. Os
braços de minha mãe, levantando-me após um tombo, limpando as
lágrimas de meu rosto com seu polegar. Era meu primeiro
machucado de verdade, minha pele ralada ardia muito, até que seu
toque frio e seus murmúrios suaves aliviaram a dor.
Aquele não seria meu fim.
Abri os olhos. Reuni uma parte preciosa de meu poder, fechando
a ferida. Os médicos se envergonhariam de meu trabalho grosseiro;
a cicatriz permaneceria, mas a dor diminuiu e o sangramento
estancou. Minha mente clareou um pouco e me levantei aos
tropeços, procurando no rosto de Liwei o menor sinal de vida; no
entanto não havia nada, nem um lampejo de amor, nem um
pedacinho de remorso. E, naquele momento, algo se acendeu em
mim: eu não jogaria minha vida fora. Não seria derrotada por mim
mesma nem por outra pessoa. Eu lutaria para viver e, enquanto eu
vivesse, haveria esperança. Eu arriscaria tudo para agarrar qualquer
chance de sobrevivermos, até mesmo nossas vidas.
Minha energia estava enfraquecendo. Concentrei o que pude e o
ar tremeluziu quando lancei minha magia em Liwei. Espirais de
vento envolveram seu corpo e o derrubaram, selando suas orelhas,
seu nariz e sua boca, e mantendo suas pálpebras fechadas.
Cobrindo cada centímetro de sua pele até que ele não pudesse
fazer nada exceto ficar ali, contorcendo-se como uma fera
enjaulada. Se seus poderes não tivessem sido restringidos, minhas
amarras mágicas nunca o teriam detido assim.
A risada extasiada de Madame Hualing ecoou em meus ouvidos.
Não era aquele o espetáculo que ela nos obrigara a realizar? Ela
sonhara em infligir uma tortura desse tipo em seu amante infiel?
Preso no casulo de ar, Liwei estava mais pálido que a neve. Eu
ofegava, lutando contra o desejo de soltá-lo. No entanto, eu me
mantive firme. Não poderia parar agora. Meu poder fluía, instalando-
se em cada poro de seu corpo até que ele brilhou com mil luzes
prateadas, como se estivesse envolto em poeira estelar. Meu
coração, que fora arrancado de mim, não sentia mais dor; ela
perdera todo o significado.
Ele foi parando de resistir até ficar com o corpo mole e o ritmo
constante de sua aura desaparecer até eu não conseguir mais senti-
lo. Parei apenas nesse momento. Meus olhos estavam secos,
embora dentro de mim eu tivesse chorado um rio. Eu estava em
cacos, rachada, dilacerada e mutilada, mas me recusei a quebrar.
Indo ao chão, procurei a mão fria de Liwei e a peguei.
— Sinto muito. — Um sussurro áspero. — Perdoe-me.
Aplausos altos ecoaram pela caverna, contrastando com meu
desespero. Só então me ocorreu a coisa vil e indescritível que eu
fizera. Madame Hualing queria ferir aqueles que a magoaram, mas
fui eu quem matou aquele que me amava. No brilho frio da vitória,
meus motivos seriam vazios, preservando meu desejo egoísta de
viver?
Perdi o controle. Afastei-me dele como se ele me queimasse; eu
não merecia tocá-lo, não depois disso, não depois do que fiz.
Abracei a mim mesma enquanto vomitava até meu estômago se
esvaziar e doer. Chorava e soluçava copiosamente, e o som ecoava
pelo silêncio terrível.
Mas ainda não havia acabado. Eu não poderia deixar tudo isso
ser em vão. Reunindo os cacos de minha compostura, fiquei de pé
com dificuldade.
— Eu a saúdo — disse categoricamente para Madame Hualing.
Ela inclinou a cabeça.
— Dei minha palavra. E minha oferta ainda está de pé. O Rei
Demônio ficaria feliz em tê-la ao seu lado. Uma boa mente, braço e
vontade fortes. Alguém que faz o que precisa ser feito quando
necessário.
Estremeci com o elogio, esperando que ela entendesse isso como
exaustão em vez de repulsa. Nunca pensei que teria sede de
sangue, mas eu a mataria agora e ficaria contente com isso. No
entanto, ela não mentira. Minhas mãos estavam manchadas com o
sangue de Liwei; eu escolhera feri-lo.
— Você estava certa — disse, tentando deixá-la com uma
sensação de falsa segurança. — Não faz sentido morrer apenas por
princípios. Considerarei sua oferta, apenas porque depois disso não
serei mais bem-vinda no Império Celestial.
Quando Madame Hualing assentiu, um guarda me passou o Arco
de Fogo da Fênix. Enquanto eu o segurava, uma memória passou
por mim — a primeira vez que eu o peguei, na floresta de
pessegueiros. Uma vida inteira atrás, quando eu ainda não havia me
despedaçado. Dei meia-volta e andei trôpega em direção a Liwei
novamente. Sem vida e algemado, ele ainda era o príncipe em toda
a sua plenitude. Rezei muito para que nossa provação estivesse
quase no fim.
— Liberte-o. — Apontei para suas algemas. Vê-las me enfureceu
além do que eu podia aguentar. Eu mesma teria feito isso, mas não
queria que desconfiassem de mim.
— Por quê? — perguntou ela.
Eu a olhei bem nos olhos.
— Eu fiz o que você queria, mesmo que isso tenha me magoado
profundamente. O Príncipe Liwei deve ser enterrado com toda a
cerimônia que merece. Farei o serviço final de devolver seu corpo
aos pais, mas não o levarei acorrentado como um escravo.
Ademais, você quer que isto caia nas mãos do Império Celestial? —
Apontei para o metal que envolvia seus pulsos.
Quando ela não disse nada, franzi a testa.
— Você não quer que Suas Majestades Celestiais saibam o que
fez com o filho deles?
— O que você fez, não é? — Ela me provocou com requintada
crueldade. — Se você entregasse o corpo dele, seria de grande
serventia para mim. Eu só queria estar lá para ver isso.
Ela acenou com a cabeça para um soldado que se apressou para
frente. Ele pressionou uma coisa nas algemas de Liwei, que caíram,
batendo no chão. Imediatamente, passei o braço de Liwei sobre
meus ombros a fim de levá-lo para longe.
— Espere. — Madame Hualing se aproximou e o anel de ametista
brilhou em seu dedo. — Preciso drenar a força vital dele, está
desaparecendo rapidamente. Sem as correntes será mais rápido.
Minha respiração acelerou, lutei para ficar calma. Eu não a
deixaria profaná-lo ainda mais. Quando ela estendeu a mão,
concentrei minha energia, preparando-me para soltá-la, mas o ar
esquentou e uma força poderosa arremessou Madame Hualing para
longe. Ela bateu contra a parede de pedra e seu escudo oscilou à
medida que faixas de fogo a prendiam. Virei e vi Liwei cambaleando
em seus pés com a ponta de sua espada se arrastando no chão.
Quando três soldados o atacaram, ele brandiu a arma em um arco
amplo, fazendo-os voar longe com o golpe. Um guarda disparou em
minha direção com a lança em riste e o derrubei com uma flecha
veloz no peito.
Eu estava tremendo, meu coração estava em chamas. Foi um
palpite insano, nada mais, cogitado a partir do pouco que eu sabia.
No Mar do Leste, eu havia selado minha audição para lutar contra a
manipulação mental do Governador Renyu, mas seu feitiço vinha
apenas de sua voz, e isso não teria dado certo aqui. No entanto, o
governador dissera que a morte era a única libertação de quem
fosse pego pelas garras de tal poder. Assim, para quebrar o controle
de Madame Hualing sobre Liwei, selei todos os sentidos que ele
possuía, levando-o à beira da morte. Se eu fracassasse, ele teria
morrido ou me matado, e teríamos perdido a vida por nada.
Quando segurei sua mão depois disso, transferi minha energia
para ele, o máximo que eu pude sem levantar suspeitas. Eu não era
médica e tudo o que podia fazer era rezar para que fosse suficiente.
Eu não poderia ter arriscado a vida dele apenas para salvar a
minha. Mas para salvar a nós dois, sim.
Eu esperava que, sob o pretexto da morte, Madame Hualing me
deixasse levá-lo embora. E quase funcionou. Mas comemorei cedo
demais; ainda não estávamos livres do perigo. Senti que ela
acumulava energia, mas foi tarde demais. De uma vez só, Madame
Hualing desfez suas amarras e os cipós avançaram velozes,
enrolando-se ao redor de Liwei e de mim, extraindo o ar de meu
peito, apertando meus braços e minhas pernas até ficarem
dormentes. Antes que eu tivesse tempo de me desesperar, a magia
de Liwei se espalhou por nós e queimou as plantas.
Madame Hualing ergueu as mãos novamente. O cheiro úmido de
terra se intensificou e o ar fulgurou com sua magia. Conjurei uma
barreira enquanto Liwei usava seu poder atrás de mim. Eu não
conseguiria lutar contra ela sozinha, mas, juntos, tínhamos uma
chance. Ouvi o crepitar da energia de Madame Hualing quando ela
conjurou mais cipós, que brilhavam com uma luz sinistra e
envolviam nosso escudo. O suor escorria de minha testa enquanto
eu tentava não imaginar o que eles procuravam com tanta
voracidade.
Meu esforço não passou despercebido pela imortal. Os lábios
vermelhos de Madame Hualing se curvaram em um sorriso
enquanto a pressão esmagadora em nosso escudo se intensificava.
Os tentáculos vegetais se enrolavam com vigor renovado. O tempo
não estava do nosso lado; eu estava prestes a ficar esgotada e a
força de Liwei também devia estar diminuindo. Em breve,
tombaríamos; de fadiga, ou por causa do feitiço malévolo, ou pelos
soldados se aproximando de nós com as faces iluminadas pela sede
de combate.
Não; depois de todo o esforço, eu não abriria mão de nossas
vidas tão facilmente. Pensei em um plano — louco e imprudente —,
contudo o mais leve vislumbre de esperança era preferível à morte
certa. Meus olhos encontraram os de Liwei e eu murmurei uma
orientação silenciosa para ele manter o escudo ativo. Ele assentiu,
esforçando-se conforme aguentava sozinho todo o peso de nossa
barreira. Reuni os fragmentos de minha energia em um orbe
brilhante do tamanho de uma bola de gude, lançando-o para atingir
o escudo de Liwei por dentro. Ele rachou, embora a teia de cipós o
segurasse firme. Cerrei os dentes, soltando o ar por uma fresta
entre os lábios. O aviso grave da Professora Daoming sobre não
exaurir meu poder martelava em minha mente, mas eu não
conseguia parar. Minha cabeça latejava enquanto eu torcia as
últimas partículas de luz de minha essência e as lançava em uma
rajada de vento.
Nosso escudo se despedaçou e a pressão arremessou longe os
cipós de Madame Hualing, direto em seu corpo, nos soldados
fugitivos, no teto e nas paredes, onde se fixaram como se tivessem
criado raízes imediatamente. Rachaduras atravessavam a caverna e
a pedra rangia e tremia.
Desabei no chão, tão vazia quanto uma lanterna de papel
pisoteada por um pé descuidado. Estava tremendo, não pelo frio na
caverna, mas pelo frio gélido que aumentava em meus braços e
minhas pernas. Minhas pálpebras estavam pesadas, querendo se
fechar, se render à escuridão que se espalhava por meu corpo.
Tudo ficou com um aspecto nebuloso, até que eu não soubesse
mais se ainda estava viva ou presa em um sonho sem fim.
Luzes rodopiavam, brilhantes, douradas — a magia de Liwei
fluindo em meu corpo destruído. Elas mergulhavam no breu, mas
não desapareciam, tal como a luz do sol brilhando sobre o mar
noturno. As luzes fluíram para o núcleo de minha força vital,
enterrado profundamente em minha cabeça, extraindo uma única
lasca de prata, a última parte de minha energia. Comecei a sentir o
frio me deixar e minhas forças voltando quando acordei e vi os
dedos de Liwei entrelaçados com os meus enquanto estávamos
deitados no chão.
Os olhos de Madame Hualing estavam vidrados e sua boca
estava aberta em um grito silencioso. Seu corpo convulsionou
quando as videiras se enrolaram em torno dela em um abraço
mortal, apertando cada vez mais, rasgando a seda de seu vestido,
constringindo sua carne inchada até ficar vermelha e roxa. Engoli
minha bílis enquanto observava seus esforços se desvanecendo; as
camélias em sua cintura, outrora firmes e de corolas orgulhosas,
murcharam e tombaram, e as peônias de seda em seu vestido
ficaram marrons e desfiadas. A luz desapareceu de suas pupilas e a
amargura recuou de seu rosto até restar apenas sua beleza fria.
Eu poderia ter ficado deitada ali até a lua crescer e minguar,
incapaz de reunir forças para me levantar, mas a caverna
estremeceu com mais força do que antes. Rochas começaram a cair
da parte superior e Liwei me colocou de pé; meus músculos
estiravam enquanto corríamos em direção à entrada. Uma pedra
atingiu minhas costas, derrubando-me no chão. Nuvens de poeira
desceram quando o teto quebrou, no mesmo instante em que Liwei
conjurou um vendaval que nos lançou para fora. Então, a caverna
desmoronou com um rugido ensurdecedor.
O chão duro oferecia pouco alívio ao meu corpo devastado. Eu
não conseguia me mover, fiquei deitada na terra como se estivesse
presa. Meus pulmões inspiravam e expiravam de forma irregular, um
fôlego depois do outro. Liwei estava com os olhos abertos e fixos
em mim. Quando a cor foi voltando gradativamente ao seu rosto, o
medo que eu tinha retrocedeu. Ele estendeu a mão para mim,
então, tocando minha bochecha molhada com lágrimas que não
percebi que haviam caído.
Sorri, contente por sentir seu calor. Eu não tinha mais palavras; já
dissera tudo que estava em meu coração.
O brilho luminoso da lua lançava um feitiço ao redor da floresta.
Na luz pálida, as árvores mortas brilhavam como colunas polidas de
prata e de jade. A neblina desapareceu, dispersada pelo vento
noturno. Teria sido Madame Hualing quem conjurou o feitiço ali para
ocultar-se do mundo?
Ouvia-se o farfalhar das folhas e o estalar dos galhos. Mudamos
de posição no chão quando vimos a Princesa Fengmei emergir da
floresta. Com um grito de alegria, ela correu para Liwei e o abraçou.
Os olhos dele rapidamente se voltaram para mim e ele hesitou antes
de estender a mão para segurar a dela.
Fiz um esforço para me sentar, desviando o olhar daquele
encontro, embora seus sussurros perfurassem meus ouvidos.
Finalmente, a Princesa Fengmei tocou meu braço.
— Fiquei escondida onde você mandou até ouvir um estrondo. —
Quando ela reparou em meu estado, tapou a boca com a mão. —
Você está bem?
Eu devia estar horrível, coberta de sangue, hematomas e sujeira.
No entanto, sua preocupação me comoveu.
— Eu estarei, assim que Sua Alteza nos levar de volta ao Império
Celestial.
O sorriso da Princesa Fengmei vacilou quando ela fitou Liwei. Sua
expressão era indecifrável, mas seus olhos eram piscinas profundas
que ameaçavam me afogar se eu os encarasse por muito tempo. O
olhar dela caiu sobre a Gota do Céu na cintura dele. Ela inclinou a
cabeça em direção à pedra gêmea, que pendia de meu cinto,
novamente cristalina.
— Um par perfeito. — A voz da princesa era suave como uma
brisa em um campo.
Uma vontade inexplicável de me justificar tomou conta de mim,
embora ela não tivesse perguntado.
— Um presente de amigos — falei.
Ela não respondeu, ficando calada enquanto Liwei se levantava e
me oferecia a mão. Segurei-a, desequilibrada, lutando contra o
desejo de agarrá-la com mais força, de deleitar-me com a sensação
de sua pele na minha. Quando ele ajudou a Princesa Fengmei a se
levantar, corri na frente deles. Não queria me intrometer, nem era
forte o suficiente para suportar ver seu braço protetor envolvendo os
ombros dela. Meu coração ainda estava em carne viva depois de
tudo que passamos, depois de tudo que confessei tanto para ele
quanto para mim.
Rumando para o norte, liderei a trilha através das árvores, além
da floresta, em direção ao cheiro de grama fresca e de flores
silvestres. Inspirei profundamente, saboreando o frescor do ar. A
Princesa Fengmei usou sua magia, convocando uma grande nuvem
que desceu diante de nós. Subi nela, ansiosa para sair daquele
cemitério de sonhos desfeitos. Agora que tudo acabara, fiquei com
pena ao pensar no destino de Madame Hualing, um fim trágico para
uma imortal tão ilustre. Lembrei-me de minha mãe também,
ansiando por meu pai, vivendo metade de sua vida na sombra,
enterrada em memórias e arrependimentos.
Não, eu não faria a mesma escolha que elas. Eu não ansiaria pelo
que havia sido perdido e que era impossível de recuperar. Olharia
para os dias vindouros, para a felicidade que me esperava neles…
se eu fosse corajosa e firme o bastante para alcançá-la.
27

A escuridão fluía através dos pilares de cristal, lançando centenas


de minúsculos arco-íris sobre os ladrilhos esculpidos. Enquanto uma
brisa fresca passava pelo Salão da Luz Oriental, a cortina de contas
de jade tilintava suavemente atrás dos tronos. Toda a corte estava
presente, e o peso de todos os olhos estava sobre mim enquanto
estava ajoelhada no chão. Esticando os braços, curvei o corpo,
colocando a testa e as mãos no chão em um gesto formal de
reverência ao Imperador e à Imperatriz Celestiais.
— Levante-se — ordenou o imperador.
Lentamente, desdobrei as pernas e ergui a cabeça, fitando os
tronos. Naquele dia, Suas Majestades Celestiais estavam
resplandecentes, trajando um brocado amarelo imperial. Pérolas
brilhantes caíam em cascata da coroa do imperador, e nos cabelos
da imperatriz repousava um diadema de ouro e de rubi na forma de
asas de fênix. Ao lado deles, estava Liwei. Seu manto de gola alta
era de brocado azul meia-noite, bordado com garças douradas entre
nuvens brancas rodopiantes. Um cinto de elos de jade estava em
sua cintura e seu coque estava envolto em uma coroa de safira.
Observei bem seu rosto, aliviada por não encontrar nenhum
vestígio dos ferimentos causados na Floresta da Eterna Primavera.
Eu estava muito nervosa para falar com ele antes da cerimônia, até
mesmo com medo. Naquela caverna úmida onde a morte nos
cortejou, eu desnudei meu coração. Por mais que dizer cada uma
daquelas palavras tenha sido um ato consciente, a lembrança de
minha ousadia à luz do dia, sem o perigo pairando sobre nós, me
fazia arder de vergonha, contudo não estava arrependida. Agora eu
entendia que, antes de poder abraçar meu futuro, tinha de me
libertar das amarras do passado.
Meu olhar o deixou e foi parar em Wenzhi, que estava na lateral
do salão. Ele me deu um aceno de cabeça tranquilizador enquanto
eu sorria, aquecida pela lembrança de seus cuidados desde meu
retorno — ordenando aos médicos que me atendessem, trazendo-
me ervas raras e remédios para acelerar minha recuperação. Sua
presença constante atiçou ainda mais os rumores que nos
cercavam. Porém, depois do que eu tinha acabado de passar, não
me importava com o que as línguas soltas diriam. E eu não podia
mais afirmar que eram meros rumores.
A Imperatriz Celestial contraía os lábios como se tivesse mordido
um cunquate verde. Embora os olhos de Liwei brilhassem muito,
achei difícil desviar o olhar dela. Atrás de mim, sussurros flutuavam
no ar, meu nome era repetido em voz baixa. Eu não era a única que
me perguntava por que tinha sido convocada.
Então, o Imperador Celestial começou a falar.
— Primeira Arqueira, você prestou um grande serviço ao nosso
império. Nosso filho teria morrido sem sua ajuda, e relatou seus atos
com detalhes. A Princesa Fengmei também expressou sua gratidão
por resgatá-la. Condecoramos sua coragem e sua bravura, e
agradecemos por proteger nosso filho e sua noiva.
Dei um sorriso amarelo e me curvei em agradecimento. Um elogio
gracioso do Imperador Celestial era mais raro do que a lua
eclipsando o sol. No entanto, apesar de suas palavras, seu rosto
permanecia frio e inexpressivo. Se ele ficara aliviado pela fuga do
filho ou ressentido pela morte de Madame Hualing, eu não saberia
dizer.
— Primeira Arqueira Xingyin, ouça.
Era muito estranho ouvir meu nome sendo pronunciado pelo
imperador. Meu corpo ficou tenso e o silêncio envolveu a corte como
uma camada de neve. Algo tilintou e arquejos de surpresa
preencheram o salão. Ergui o olhar e vi que o Imperador Celestial
estava com a mão esticada em minha direção, oferecendo um
fragmento alongado de jade vermelho-sangue.
— Eu lhe concedo o Talismã do Leão Vermelho. — Ele fez uma
pausa, deixando as palavras impactarem. — Peça uma graça a si
mesma e a concederemos, desde que esteja em nosso poder.
Um criado correu até ele, trazendo uma bandeja revestida com
verniz preto. O imperador colocou o talismã sobre ela, então o
serviçal a pegou e veio em minha direção com passos comedidos,
parando na minha frente. Minhas mãos estavam tensas quando
peguei o jade, encarando-o numa espécie de torpor. Um leão havia
sido esculpido no centro da pedra, com olhos esbugalhados e crina
encaracolada esculpidos com detalhes requintados. De sua base,
pendia uma borla grossa de seda dourada.
A voz do imperador ressoou pela câmara, mas só consegui captar
trechos do que ele disse. Meu coração batia tão forte que pensei
que fosse explodir. Eu ouvi direito? Era realmente o Talismã do Leão
Vermelho? Ele falava com tanta frieza que parecia estar oferecendo
um simples pedaço de terra ou um baú cheio de ouro. Como se isso
não fosse a realização de meu maior sonho, a única coisa da qual
jamais desisti!
Vi que o imperador me fitava com expectativa — ele queria que
eu chorasse de alegria, que declarasse minha eterna gratidão?
Certamente não queria aquele silêncio bocejante depois que uma
hesitação súbita roubou minha voz. Eu tinha apenas um desejo… e
ele não iria gostar nem um pouco dele.
— Você precisa de tempo para pensar? — Seu timbre de voz
projetava uma incisividade; impaciência, talvez. Ou seria um aviso
para não me exceder?
O medo de perder aquela chance me assolava. As palavras
subiram por minha garganta, saindo em um arquejo sufocado:
— Minha mãe! — Um silêncio varreu a multidão. Inspirei, trêmula,
tentando acalmar meus nervos à flor da pele. — Meu desejo é que
Vossa Majestade Celestial liberte minha mãe. — Falei mais devagar
desta vez, tão claro quanto possível.
Os olhos da imperatriz se contraíram como as garras de um
predador.
— Sua mãe? E quem seria ela?
A maldade em seu tom me fez parar um pouco. Meu desejo sem
dúvida incitaria sua fúria. Suas Majestades Celestiais odiariam
parecer tolas por terem sido enganadas pela impotente Deusa da
Lua por todos esses anos. E se quando eu revelasse tudo eles
negassem meu pedido e aplicassem um castigo ainda maior a ela?
Eu caí de joelhos novamente, curvando a cabeça.
— Vossa Majestade Celestial, minha mãe não me pediu isto. Isto
tudo é obra minha. Peço humildemente sua garantia de que ela não
será punida por minhas ações, ou por qualquer coisa que eu revelar
hoje.
— Como se atreve a exigir algo de nós?! — sibilou a imperatriz. O
ar de repente ficou espesso de frio. Se eu fosse um requerente
qualquer, o imperador poderia ter me sentenciado à prisão por ter
sido tão temerária, ou a coisa pior. No entanto, o jade em meu
punho me lembrou de que eu conquistei o direito de falar, por meio
de sangue, suor e lágrimas.
— Muito bem — anunciou o imperador, em um tom glacial. —
Você tem minha palavra de que sua mãe estará a salvo. No entanto,
essa proteção não se estenderá a você se, de alguma forma, nos
ofender. Você responderá por seus próprios atos.
A ameaça dele minou minha coragem. Fui tomada por um desejo
de fugir, de deslizar para as sombras e ser esquecida. Embora
estivéssemos separadas, minha mãe e eu estávamos seguras por
enquanto. Ilesas. Será que fui gananciosa e fui atrás de algo além
do que deveria? Porém, lembrei-me do que Wenzhi sussurrara para
mim uma vez, quando eu estava ali, diante dos tronos de jade, como
agora.
Quando as linhas da batalha estiverem traçadas, avance com a
mente limpa . De alguma forma, eu consegui; conquistei o talismã.
Nunca mais eu teria uma chance como esta. Não me acovardaria
neste momento, não depois de tudo que fiz para chegar até aqui.
Uma onda de emoção me percorreu quando encontrei as palavras
aninhadas no fundo de meu coração, aquelas que eu sussurrava
para mim mesma todas as noites antes de dormir, antes de acordar
a cada amanhecer.
— Sou filha de Chang’e. Sou a filha da Deusa da Lua.
O burburinho começou; murmúrios fracos se transformavam em
suspiros sobressaltados, ruídos fervorosos acompanhados pelo
arrastar nervoso de pés. Liwei arregalou os olhos e cerrou a
mandíbula, Wenzhi contraiu os lábios. As duas pessoas que me
conheciam melhor, que mais confiavam em mim, que eu mantive no
escuro. Não consigo imaginar o quanto se sentiram traídos ao
ouvirem minha confissão.
— Da Deusa da Lua ? — A imperatriz proferia cada palavra como
se as cuspisse. — Se Chang’e é sua mãe, quem é seu pai?
O medo transpassou meu coração como a tinta de um pincel
mergulhado na água se diluindo nela. Meu pai havia matado os
pássaros solares, entes queridos dela. Mas a raiva que eu sentia
pela insinuação grosseira da imperatriz fez com que eu erguesse a
cabeça e a olhasse nos olhos, falando com menos cuidado e mais
orgulho do que deveria.
— Meu pai é o marido de minha mãe, Houyi, o arqueiro mortal.
No momento em que essas palavras foram ditas em voz alta,
todos os nós atados pela tensão que guardei dentro de mim por
todos aqueles anos se desfizeram. Fui levada por uma onda de
leveza e de liberdade por poder reconhecer meus pais. Eu não tinha
percebido o peso desse fardo até aquele momento. No entanto,
além de meu alívio e de meu orgulho intensos, não havia glória na
revelação de quem eu era. Antes sentiram pena de mim por não ter
família ou nenhuma pessoa próxima, mas, aos olhos da corte, era
muito pior ser manchada pela relação com quem havia caído em
desgraça.
A fúria embotava a pele clara da imperatriz. Os nós de seus
dedos estavam brancos; ela cravava as garras de ouro no braço do
trono.
O Imperador Celestial foi o primeiro a quebrar a quietude.
— Explique-se — ordenou ele com um tom de voz sombrio. A
maneira como ele olhava para mim… me lembrou do momento em
que Liwei enfiou sua espada em meu peito.
Todos conheciam a história dos dez pássaros solares, mas
ninguém sabia a verdade por trás da ascensão da Deusa da Lua à
imortalidade. Contei a história que ouvira outrora para a plateia
hostil, que prestava atenção em cada palavra. Falei do perigo à vida
de minha mãe e à minha. De sua escolha impossível, desoladora.
Do medo que a levou a esconder minha existência. Não pude conter
as lágrimas que ardiam em meus olhos quando falei da tristeza que
assombrara minha mãe por todos os dias de sua vida imortal.
Quando concluí, pus a testa nos ladrilhos de jade novamente,
engolindo meu orgulho e meu rancor em prol da chance de ser
ouvida.
— Por todos esses anos, minha mãe foi prisioneira, vivendo na
solidão e no sofrimento. Ela tomou o elixir para salvar nossas vidas,
não sabia que havia infringido uma lei. Como um mortal poderia
saber uma coisa dessas? Eu imploro pela misericórdia e pela
compreensão de Vossas Majestades Celestiais, imploro que
perdoem a transgressão de minha mãe e absolvam sua pena. Esta
é a graça que peço.
Eu me levantei, colocando as mãos trêmulas nos joelhos
dobrados. Meu olhar se chocou com o do Imperador Celestial,
totalmente indiferente ao meu apelo sincero.
A imperatriz apontou um dedo para mim, quase convulsionando
de raiva.
— Tal farsa não pode ser tolerada. Esta linhagem, desde Chang’e
e Houyi até esta… esta garota é traiçoeira, cheia de mentiras, de
falsidade, de ingratidão. Ela deve ser encerrada de uma vez.
A gloriosa esperança que brotara um momento antes murchou e
morreu. No entanto, o silêncio recebeu as palavras da imperatriz.
Não houve gritos entusiasmados de apoio, apenas alguns acenaram
com a cabeça, e fiquei grata por isso.
Alguém se moveu na lateral, indo ao chão para prestar sua
reverência. Um cortesão, diria eu, por seu chapéu cerimonial, por
seu manto preto e pelo ornamento de jade amarelo pendurado na
faixa da cintura. Alguém de alto status para estar tão perto dos
tronos, embora eu não pudesse ver seu rosto de onde estava, atrás
dele.
— Vossa Majestade Celestial, permite que eu ofereça minha
opinião?
Aquele timbre aveludado e a vista dele de costas mexeram com
minha memória. De onde eu conhecia aquele imortal?
O imperador recostou-se no trono.
— Levante-se, Ministro Wu, e diga o que pensa. Apreciamos seus
conselhos.
Meu coração entrou em queda livre. Ministro Wu ? Eu não deveria
ter ficado surpresa; ele parecia sempre ligado a meus momentos
mais desafiadores naquele lugar. Daquela distância próxima, sua
aura pulsava ao meu redor, tão densa e opaca quanto um lago sem
fundo.
O ministro curvou-se novamente antes de se levantar. Quando
olhou para trás, a hostilidade em sua expressão me fez tremer.
— Vossa Majestade Celestial, nem Chang’e nem sua filha
merecem vossa misericórdia. Uma roubou seu presente, a outra os
enganou dessa maneira desprezível. Como pôde a Deusa da Lua
mentir para Vossa Majestade Celestial de forma tão descarada
quando a visitamos?! Sob vossas ordens, voltarei à Lua e a
prenderei para que seja julgada com sua filha por seus delitos. Caso
permitam que fiquem impunes, isso abrirá um precedente perigoso
para outros, que tentarão tirar vantagem de vossa bondade.
A maldade dele me surpreendeu. Em meu breve encontro anterior
com o ministro, ele apenas me fitara com um desinteresse
entediado. Naquele dia ele não sabia quem eu era, mas por que
isso importava? Ele desprezava minha herança mortal? Achava que
eu era indigna de estar ali? Por que proferiria palavras tão cruéis,
cuidadosamente elaboradas para inflamar as suspeitas e a raiva do
imperador? Bondade? Misericórdia? Dessa elite que prendeu minha
mãe por todos esses anos apenas por beber o elixir? Pensei,
espumando de raiva.
— Minha mãe não é uma ameaça ao Império Celestial — gritei,
jogando fora toda a compostura que havia usado em meu pedido
anterior. — Ela não prejudicou ninguém, estava apenas tentando me
proteger. Ela não merece isso…
— Basta — ordenou o imperador, com a voz uniforme. Mas a
ameaça que essa única palavra trazia era pior do que qualquer
brado enfurecido.
Praguejei a mim mesma pela explosão precipitada. Se ele me
matasse agora, ninguém o culparia.
No silêncio repentino, Liwei desceu do estrado, jogando o manto
de lado enquanto se ajoelhava perto de mim. Ele me lançou um
olhar de advertência antes de falar e sua voz exalava uma calma
constante.
— Honorável Pai, Honorável Mãe. Devo minha vida à Primeira
Arqueira Xingyin. Ela se arriscou para salvar a mim, indo muito além
do dever e da honra. Se não fosse por ela, eu estaria morto e a
Princesa Fengmei ainda estaria sob o jugo de seus captores. Nosso
império seria lançado ao caos. Como vosso filho obediente, preciso
lembrá-los de que, em virtude de seus atos de bravura, a Primeira
Arqueira recebeu o Talismã do Leão Vermelho hoje, que é uma
graça real, não uma sentença.
Um calor despertou dentro de mim por saber que mesmo ali,
cercada de hostilidade e de condenações, ainda podia considerá-lo
um amigo. Além do fato de que eu nunca seria capaz de falar com
tanta eloquência, Liwei arriscou causar a ira dos pais ao lembrá-los
de sua promessa, algo que ninguém mais ousaria fazer. Podia não
ser suficiente para mudar meu destino, mas saber que ele fez isso
apesar de estar incomodado com minha revelação me comoveu
profundamente.
A imperatriz olhou para ele de forma tão assustadora que um
homem menos corajoso teria fugido às pressas. Quanto à
expressão no rosto de seu pai… eu simplesmente tremi
completamente e desviei o olhar. No entanto, Liwei ficou onde
estava, permanecendo de joelhos diante deles, tão humildemente
quanto qualquer pessoa fazendo um pedido.
— O que ela requer não é uma graça comum. A prisão eterna não
pode ser desfeita por capricho. — Uma nota astuta se infiltrou na
voz da imperatriz quando ela acrescentou: — Além disso, o pedido
da Primeira Arqueira é em nome de sua mãe, não em nome de si
mesma , que é o que se deve conceder ao portador do talismã. Ela
é mais do que afortunada se não a punirmos por essa enganação,
fingindo ser alguém que não é.
Como ela era capaz de negociar a vida de minha mãe como se
fosse alguma quinquilharia no mercado? Como ela ousava roubar
minha vitória conquistada a tão duras penas e transformá-la nesse
triunfo vazio? O sangue que derramei, a dor que senti… Fechei os
olhos com força, sufocando o desejo de explodir novamente, de
arremessar meu desprezo e minha raiva em seus rostos arrogantes
e indiferentes.
— Vossa Majestade Celestial é sábia — concordou o Ministro Wu,
suavemente. — Se as intenções da Primeira Arqueira eram
honoráveis, por que escondeu sua identidade? Quem sabe quais
outros truques ela aprendeu com a mãe desonesta, que outras
tramas espreitam em seu coração?
Meu sangue borbulhava de raiva. Eu conseguia aguentar insultos
a mim; à minha mãe, não. Voltei a atenção para o ministro e abri a
boca para retrucá-lo, o que certamente seria uma imprudência,
quando passos estalaram nos ladrilhos de pedra.
Era Wenzhi, curvando-se ao meu lado.
— Vossa Majestade Celestial, por favor, solicito que leve em
consideração o valioso serviço da Primeira Arqueira. Ela serviu com
lealdade e bravura, ajudando-nos a conquistar vitórias que
fortaleceram o Império Celestial. Além disso, a Primeira Arqueira
Xingyin nunca enganou ninguém, pois nunca questionaram se era
filha da deusa Chang’e e do mortal Houyi.
Algumas cabeças assentiram. Era um argumento esperto, e eu
gostaria de ter pensado nele sozinha.
As vestes do Imperador Celestial farfalharam quando ele se
mexeu em seu trono.
— General Jianyun, qual é a sua opinião?
Prendi a respiração enquanto o general vinha à frente. Não
conseguia ver seu rosto do ponto em que estava ajoelhada. Como o
comandante de maior patente do imperador, o general poderia
trazer a balança a meu favor, se assim o desejasse. Se não
estivesse furioso com a minha confissão.
— Vossa Majestade Celestial, a filiação da Primeira Arqueira
Xingyin é… desafortunada. No entanto, ela tem sido uma recruta
valente e excepcional. Sobretudo, salvou a vida de Sua Alteza e de
sua noiva, preservando nossa aliança com o Império da Fênix. Tal
bravura não deve padecer de recompensa, como graciosamente
determinado por vós anteriormente. — Ele fez uma pausa, para que
suas palavras fossem sentidas. — Devemos apreciar a flor,
independentemente de suas raízes.
Os murmúrios no salão ficaram mais altos. Agucei meus ouvidos
para escutá-los. Seria possível que alguns estivessem surpresos
com o modo como eu estava sendo tratada? Que houvesse
sussurros desaprovando cautelosamente o imperador e a
imperatriz?
O imperador permaneceu calado. Meu coração acelerou quando
senti seu olhar sobre mim, embora não ousasse me mover conforme
minha respiração embaçava o piso. As palavras do General Jianyun
seriam mais contundentes que as acusações do Ministro Wu? Ele
falou muito bem, oferecendo a Suas Majestades Celestiais um
caminho para me perdoar em nome da magnanimidade e da graça.
Mas minhas entranhas se apertaram com a lembrança da
misericórdia que o imperador havia dispensado tão insensivelmente
à minha mãe, à Madame Hualing e aos dragões.
— Primeira Arqueira Xingyin — convocou o imperador, por fim.
Curvei o corpo mais uma vez, preparando-me para o que viria.
Tentando não pensar na tortura e nos horrores que aguardavam
quem o ofendia.
— Você não deve ser culpada pelos erros de seus pais. Seus
méritos falam por você, que recebeu o Talismã do Leão Vermelho
por seus atos.
Levantei a cabeça de uma vez só, com a esperança vibrando
dentro de mim, mal conseguindo me conter enquanto aguardava
ansiosamente as palavras seguintes do imperador.
— No entanto, a graça que requer, a liberdade de Chang’e, a
Deusa da Lua, não será concedida.
Fechei a mão com força ao redor do jade, amassando a borla
presa nele. Qual era a utilidade da pedra agora? Não havia mais
nada que eu quisesse do Imperador Celestial. Embora estivesse
aliviada por não ser punida, não havia respeito nem gratidão em
meu coração. Não com essa peça que me pregaram, o pagamento
de meu serviço com moeda falsa.
— Conceda-me então outra graça, Vossa Majestade Celestial —
pedi, encorajada pelo rancor. — Um favor só para mim. O direito de
ganhar a liberdade de minha mãe por meio de uma missão
escolhida por vós. — Uma oferta imprudente, mas o que eu tinha a
perder? Desta vez eu detalharia tudo no pedido, ninguém o poria em
xeque novamente.
Meu comportamento beirava a insolência. Quem era eu para fazer
exigências ao Imperador Celestial? Todavia, em vez de ira, uma luz
astuta brilhou naqueles orbes insondáveis, e o regente ergueu a
mão para acariciar o queixo.
— Muito bem, Primeira Arqueira. Ordenamos que você execute
mais uma missão em nome de sua mãe, para quitar as ofensas
realizadas.
— Qual será ela, Vossa Majestade Celestial? — Minhas palavras
saíam depressa. Eu viajaria para os confins da terra, para o próprio
Reino dos Demônios, se isso libertasse minha mãe.
O imperador não disse nada, estendendo algo para mim — um
caroço cinza-escuro. Inclinei-me para mais perto, esticando o
pescoço. Era um selo, feito de metal fosco, com um dragão
esculpido no topo.
Wenzhi inspirou levemente de admiração. Olhei para ele com
surpresa.
— O Selo Divino de Ferro libertará os quatro dragões que estão
presos no reino mortal por seus crimes graves. Cada um deles
possui uma pérola única. Ordeno que recupere as pérolas dos
dragões e traga-as para mim. — A voz do imperador ficou mais
afiada. — Se eles não obedecerem ao meu comando, use qualquer
meio necessário. Assim que as quatro pérolas estiverem em meu
poder, perdoarei sua mãe e você estará livre para voltar para ela.
Eu me encolhi involuntariamente. Os Dragões Veneráveis! Depois
de aprender sobre eles no Mar do Oeste, não teria vontade de
desafiar criaturas tão incríveis e tão nobres. Os dragões entregariam
suas pérolas de forma pacífica? Se não o fizessem, eu seria capaz
de fazer o que precisava ser feito, aquilo que o imperador esperava
de mim?
— Estamos de acordo? — A voz dele estava áspera de
impaciência.
Reprimi meu desconforto, deixando-o assentar em meu estômago
como gordura sólida. Era a chance que eu pedira ao imperador.
Como poderia estar relutante agora? Estendendo as mãos, curvei-
me, aceitando as condições. Negócio fechado, algo tão corriqueiro
quanto em um mercado, mas havia muita coisa em jogo ali.
Um criado se aproximou, colocando o selo em minha mão. O
metal era frio e, quando o deixei cair em minha bolsa, a seda
afundou com seu peso.
O imperador assentiu para mim. Uma dispensa breve, que aceitei
de bom grado. Levantando-me, dei as costas para os tronos e movi
as pernas, uma após a outra, e cada passo era mais pesado que o
anterior. Olhando para a frente, eu poderia parecer indiferente ao
resto da corte. No entanto, eu era um turbilhão de emoções
contorcidas por dentro, e esse turbilhão ameaçava me despedaçar.
Alívio, pela verdade ter sido finalmente revelada, mas fúria por
terem tomado de mim a recompensa que conquistei com muito suor.
A esperança sobrevoava meu ser por ter recebido essa segunda
oportunidade, mesmo que fosse temperada por um terror abismal de
que o preço pela liberdade de minha mãe poderia ser alto demais
para mim.
28

S aí do Salão da Luz Oriental em transe. Muitos servos do palácio


me fitavam com curiosidade enquanto poliam as balaustradas de
pedra e varriam o terreno imaculado. Shuxiao veio andando em
minha direção como se estivesse esperando por mim todo esse
tempo. Eu contara a ela sobre a convocação, não imaginando que
os eventos de hoje se desenrolariam daquela forma.
— É verdade sobre sua mãe? — indagou ela.
Olhei-a, surpresa. Eu não dera nem cinco passos para fora do
salão.
— Como sabe disso?
— Ah. A maioria das audiências reais é muito chata. Quando
disseram que as vozes estavam exaltadas lá dentro… — Ela sorriu
enquanto olhava ao redor. — Você ficaria surpresa com quantas
pessoas encontraram coisas que exigia a atenção urgente delas
aqui. — Seu sorriso desapareceu quando ela me puxou de lado,
para longe de ouvidos curiosos. — Sua mãe é mesmo Chang’e? A
Deusa da Lua?
Havia raiva em sua voz? Ressentimento? Todas as vezes que ela
falou da própria família, eu não disse uma palavra, deixando-a
acreditar que toda a minha havia morrido. Eu não poderia culpá-la
se ela nunca mais quisesse falar comigo. Seria melhor para ela se
não falasse. Somando-se ao desfavor de Suas Majestades
Celestiais, eu era uma amiga indigna e perigosa de se ter.
— Sim — respondi, preparando-me para palavras duras. Em vez
disso, ela me abraçou.
— Sinto muito por sua mãe — disse ela, soltando-me. — Mas
também estou brava com você. Eu nunca teria contado a ninguém.
Havia outras coisas que eu lhe confidenciara, coisas que ela
achava que havia guardado para si mesma.
— Eu não podia dizer nada, não até ter certeza de que seria
seguro.
Ela assentiu lentamente.
— Entendo. Mas duvido que suas novidades tenham agradado a
Suas Majestades Celestiais.
— Agradaram tanto quanto uma cítara com uma corda
arrebentada. — Franzi a testa, lembrando-me da raiva sibilante da
imperatriz, e o imperador… ficara zangado a princípio, com certeza.
No entanto, parecia estranhamente satisfeito quando saí do salão.
Devia estar mesmo , pensei, recebendo o dobro da mão de obra e
pagando apenas um salário … — E, agora, devo dar um jeito de
persuadir quatro dragões a entregarem suas pérolas ao imperador
se eu quiser ter esperança de ver minha mãe novamente. — Não
pude deixar de pensar: se eu fracassasse, se não tivesse mais
serventia para o Império Celestial, a promessa do imperador para
mim ainda seria válida? Minha mãe estaria a salvo da maldade da
imperatriz? Eu estaria, mesmo indo para um lugar tão longínquo
quanto a terra natal de Wenzhi? — Por que as pérolas? — perguntei
em voz alta. — O Tesouro Imperial não está transbordando de joias?
— Tudo o que sei é que os dragões guardam muito bem suas
pérolas, que são preciosas para eles, embora as histórias não
digam o porquê . — Shuxiao gesticulou para os dragões dourados
que brilhavam no telhado de jade, cada um deles com um orbe
luminoso repousando firmemente dentro de suas mandíbulas.
Empalideci ao pensar naquelas presas curvas se fincando em
minha carne. Seria um plano astuto para que eu fosse devorada
com o Talismã do Leão Vermelho e tudo? Isso resolveria o dilema
do imperador, livrando-se de uma só vez de minha presença
problemática, e ele ainda teria honrado sua palavra. Meu estômago
se contorceu quando cogitei essa hipótese. Shuxiao deu um tapinha
em meu braço.
— Você está bem?
— Não sei. — Eu estava entorpecida. No espaço de uma manhã,
meu coração ficou disparado de esperança, repleto de medo e
agora balançava em um mar turbulento.
— Bem, não morra. Eu sempre quis visitar a lua — disse ela,
rindo.
— Não estou a fim disso, mas os dragões podem estar —
retruquei, séria.
— Então nós teremos que garantir que eles não consigam.
— Nós ?
Ela cruzou os braços.
— Eu vou com você.
A esperança raiou em mim antes de se extinguir de repente. Ela
era uma Celestial, jurara lealdade ao império. Ela servia ao exército
para proteger sua família… como eu poderia acabar com seu
sacrifício de uma forma tão egoísta, expondo minha amiga à ira do
imperador?
— Não, você não pode abandonar seu posto. — Quando ela
começou a reclamar, prossegui: — Ouça. Meu pai matou os
parentes da imperatriz. Minha mãe desafiou o imperador. Eu
também caí em desgraça. Você não pode ser arrastada para isso;
tem sua própria família para proteger. E se Suas Majestades
Celestiais descontarem a raiva neles?
Ela fechou a expressão na hora.
— Eu não aguentaria isso.
— Nem eu. Porque somos iguais — comentei, com o tom de voz
pesado. — Por nossa família e pelas pessoas que amamos fazemos
coisas que não faríamos por nós mesmas. Só aprendi isso sobre
mim depois que saí de casa. Podem nos chamar de tolas. Quem
não entende isso, jamais entenderá.
Ela não discutiu, embora ainda parecesse incomodada.
— Você não pode ir sozinha. É muito perigoso. E se eu for com
você sem ninguém saber?
— Vou apenas pedir pérolas aos dragões. — Falei com uma
segurança que não sentia. — O povo do Mar do Oeste afirma que
os dragões são pacíficos. A pior coisa que podem fazer é recusar.
Minha compostura fraquejou quando as palavras do imperador
ecoaram em minha mente: use qualquer meio necessário . Não fora
uma sugestão, mas uma ordem.
— E você não estará sozinha — anunciou Wenzhi, avançando.
Há quanto tempo ele estava ali? — Vou com você.
Não era de minha natureza me apoiar em outra pessoa, mas, ah,
como fiquei aliviada ao ouvir isso. Ele não era vulnerável como
Shuxiao, deixaria aquele lugar em breve. Além disso, lutamos juntos
muitas vezes; eu estava feliz por ele se dispor a ir comigo naquela
missão.
Shuxiao respirou fundo. Recobrando a compostura, curvou-se
apressadamente para Wenzhi.
— Tenente, poderia nos dar licença? — pediu ele. — Tenho algo a
discutir com Xingyin.
Ela inclinou a cabeça para mim como quem faz uma pergunta
sem dizer uma palavra. Eu a amava por isso, por cuidar de mim em
primeiro lugar. No entanto, era exatamente por isso que eu não
podia arriscar que ela fosse comigo; não podia arriscar que ela
irritasse quem tinha o poder de retaliar e feri-la.
— Shuxiao, eu vou ficar bem.
— Se mudar de ideia, posso dizer ao General Jianyun que estou
me sentindo mal e ser liberada por alguns dias. Fingir que fui
mordida por um espírito de raposa, essas coisas — acrescentou ela
com sinceridade.
Wenzhi fez uma careta.
— Tenente, espero que não pratique tal conduta irresponsável.
— Não, capitão. — Ela se curvou para ele novamente. —
Somente em ocasiões especiais.
Prendi o riso quando ela saiu, e voltei a ficar séria ao pensar no
que estava por vir. Wenzhi e eu caminhamos em silêncio, entrando
em um jardim conhecido que cercava um lago tranquilo. Sem aviso,
ele pegou meu braço e me conduziu pela ponte de madeira para o
Pavilhão da Canção do Salgueiro. Deixei de lado as memórias
indesejadas de todas as vezes em que me sentei ali com Liwei.
Ele me soltou, então, voltando-se para a superfície espelhada da
água.
— Por que não me contou?
Fechei os olhos, pensando na noite em que havia fugido de casa
— cheia de dor e de medo. A pressa na voz de minha mãe quando
ela me pediu para nunca revelar nada.
— Fiz uma promessa para minha mãe.
— Depois de tudo que passamos, você não confia em mim?
— Claro que sim. Mas não era um segredo que eu pudesse
compartilhar assim, dessa forma solta. Isso colocaria a todos nós
em perigo. — Estendi a mão para tocar seu pulso. — Faz diferença?
Ainda sou quem sempre fui.
Ele virou a mão e segurou a minha.
— Tem razão. Não importa. Mas eu queria que você tivesse me
dito antes. Talvez eu pudesse ter ajudado a salvá-la. Talvez eu ainda
possa.
Sua aceitação inabalável de meu passado tocou meu coração.
Seu apoio incondicional. Até aquele momento, eu não tinha certeza
de que o teria. Eu me inclinei contra ele, descansando a cabeça em
seu peito, e ele me abraçou. O cheiro de sua pele era fresco e
revigorante.
— Eu contaria a você. Um dia, quando estivéssemos longe daqui.
— Eu ouvi seu coração acelerar.
— Isso muda alguma coisa? Ainda quer vir comigo?
— Sim. — Uma emoção percorreu meu ser; não havia hesitação,
nem dúvida. — Mas preciso ajudar minha mãe antes. Cumprir a
tarefa do imperador. Vai me esperar um pouco mais?
Wenzhi me abraçou mais forte.
— Contanto que você seja minha, assim como sou seu, temos
todo o tempo do mundo.
Ficamos parados, estáticos, até que um formigamento na nuca
me lembrou de onde estávamos, à vista de quem passava. Eu me
afastei e girei em meu próprio eixo. Meu olhar esbarrou com o de
Liwei enquanto ele estava na ponte, tão imóvel quanto uma de suas
colunas de madeira. Seus olhos estavam arregalados e suas mãos
cerradas em punhos. Algo em mim se desfez ao ver a expressão em
seu rosto; não era culpa, mas tristeza pela dor que eu infligira.
Com passos comedidos, Liwei entrou no pavilhão.
— Posso falar com você? — Seus modos eram frios e formais,
como se eu fosse uma estranha, uma daquelas cortesãs que ele
sempre tentava evitar. Nem parecia que, apenas alguns dias antes,
teríamos protegido um ao outro com a vida. Sempre seria assim
conosco: um passo à frente e três atrás? Não era isso , falei para
mim mesma. Não andávamos mais juntos; nossos caminhos se
separaram.
Assenti, mesmo enquanto meu estômago se contorcia. Mais do
que a qualquer pessoa, eu lhe devia uma explicação.
— Encontrarei você mais tarde — avisou Wenzhi.
Eu pensei que ele iria embora, mas pegou minha mão novamente,
passando o polegar em minha palma numa carícia proposital. Meu
coração acelerou e, apesar de estar sobressaltada, não me afastei.
Wenzhi deu um sorriso ligeiro quando me soltou. Ele se curvou para
Liwei — na verdade, foi mais uma inclinação curta da cabeça —
antes de partir.
— Sinto muito — disse para Liwei, hesitante, mas eu lhe devia
mais do que um pedido de desculpas grosseiro, por tudo o que
éramos um para o outro, por nossa amizade. Ele não merecia minha
desonestidade.
— Você mentiu para mim desde o dia em que nos conhecemos.
— A desolação em seu tom me magoou. — Por que me disse que
seus pais estavam mortos?
— Não disse! Você que presumiu isso e eu… deixei você achar
que sim. Eu não tinha ideia de como corrigir isso, não sem contar
mais mentiras. Prometi à minha mãe que guardaria esse segredo.
Eu tinha que protegê-la. Você consegue imaginar a punição que ela
receberia se seus pais descobrissem isso? Se soubessem que ela
também tinha me escondido? Eles a teriam condenado à tortura ou
à morte, como fariam hoje se eu não tivesse ganhado o talismã, se
eu não tivesse garantido a segurança dela perante a corte. —
Minhas palavras saíram mais ríspidas do que eu pretendia.
Lamentava tê-lo enganado e, no entanto, não tive muita escolha; a
família dele me levou àquela situação.
— Por que você não me contou depois que nos aproximamos? —
Seus olhos prendiam os meus, escuros e impassíveis. — Você não
é quem eu acreditava ser.
Essa acusação doeu e despertou minha ira.
— Eu sempre lhe disse a verdade sobre mim. Escondi apenas
quem eram meus pais, e já lhe contei por que fiz isso. Eu fui
separada de minha família; ela está perdida para mim. Você saber a
verdade não mudaria nada além de colocar minha mãe em perigo.
Então, por que isso importa? Por que o incomoda tanto? É porque
eles eram mortais? Porque caíram em desonra ao desobedecerem
a seu pai? — Essas palavras raivosas nem faziam muito sentido, eu
sabia que ele não pensava assim. Porém a irritação me fez falar
sem pensar, querendo magoar e me justificar ao mesmo tempo.
Ele recuou, me encarando.
— Isso não significa nada pra mim, mas nunca pensei que você
mentiria. Você ganhou minha confiança, mas nunca me deu a sua.
Minha raiva passou. Embora eu quisesse negar, havia verdade
em suas palavras. Eu fora egoísta, fechando-me, aceitando o que
ele tinha para dar.
— Eu queria contar, quis muitas vezes, mas estava com medo. No
começo, eu não sabia o que você poderia fazer e depois… eu não
queria ser um fardo.
— Xingyin, como você pôde pensar que eu a magoaria? Eu teria
ajudado você de todas as formas que estivessem ao meu alcance.
— Agora ele falava com mais suavidade.
— Liwei, eu não queria esconder isso de você. Eu estava com
medo de seus pais descobrirem, do que poderiam fazer com minha
mãe, comigo, e até com você se os enfurecesse. Acha mesmo que
Suas Majestades Celestiais estariam dispostas a ter misericórdia?
— Fiz uma careta de desgosto e ele estreitou os olhos.
— Por que vir para cá se isso a aproximou de quem você
despreza? Estava em busca de vingança? Foi tudo premeditado
para que você aumentasse seu poder?
Não desviei o olhar. Eu não tinha vergonha do que fizera.
— Vingança, não. Nem tudo. Sim, eu queria a oportunidade que
você ofereceu, eu queria me aperfeiçoar. Só os fortes são
favorecidos no Império Celestial, só assim poderia conseguir o que
queria. Você me julgaria por ir atrás de um futuro novo depois que o
meu foi roubado? Até entrar no palácio, eu não fazia ideia de quem
eram seus pais. Mesmo assim, nunca quis colocá-lo contra eles.
Mais que tudo, eu queria libertar minha mãe, mas apenas se fosse
por meus próprios méritos, como fiz hoje, nunca ferindo você ou os
seus.
— Mais que tudo? — repetiu ele, com a voz embargada. — Então
eu fui apenas um trampolim para sua ambição. Devo ter servido
maravilhosamente bem às suas necessidades pedindo a meu pai
que lhe concedesse a graça hoje. — Ele inclinou a cabeça em
direção à minha, quase com ternura, mas suas palavras estavam
impregnadas de amargura. — Sua aposta pagou bem. Agora você
tem o que queria, Primeira Arqueira: fama, respeito, o Talismã do
Leão Vermelho. A liberdade de sua mãe está quase ao seu alcance.
— Tudo o que eu queria era o que foi tirado de mim! — rosnei. —
Você não tem ideia do que eu passei, de como minha mãe sofreu!
— Explodi de raiva e dei um tapa nele, mas Liwei segurou minha
mão, seus dedos faziam meu pulso arder. Por um momento ficamos
parados nos encarando. Nossa respiração estava rápida e breve, e
eu conseguia ouvir meu coração bater sem precisar tocar meu peito.
— Eu conquistei tudo isso sozinha, servindo ao Império Celestial,
seu império, com meu sangue. Assim como conquistarei a liberdade
de minha mãe com essa tarefa final. — Eu me soltei e me afastei
dele. — Sinto muito por enganar você, de verdade. Mas eu nunca
quis o magoar e não mereço suas acusações. — Eu estava quase
tremendo de raiva e de decepção quando acrescentei: — Não
importa o que perdemos, sempre acreditei que nossa amizade seria
para sempre. Talvez eu estivesse errada. — Naquele momento, não
pude deixar de pensar que Wenzhi e Shuxiao não me julgaram e me
acolheram totalmente. No entanto, entre os três, quem eu mais
magoei com minhas mentiras foi Liwei.
Ele desviou o olhar para o lago calmo, colocando as mãos para
trás. Quando voltou a falar, seu tom de voz estava firme novamente.
— Ah, Xingyin. Meu desapontamento me contaminou. Eu sou um
tolo ciumento, ter visto vocês dois agora… — Ele balançou a cabeça
negativamente. — Não era isso que eu queria dizer a você quando
nos encontramos. Eu planejei tudo: um discurso sincero sobre como
sou grato por você não ter me abandonado para morrer nas mãos
delicadas de Madame Hualing. Talvez agora você esteja se
arrependendo disso. — Um sorriso apareceu em seus lábios.
— Talvez — rebati com rigidez, indisposta a deixar minha raiva de
lado mesmo que ela tenha se dissipado com as palavras dele.
— Na Floresta da Eterna Primavera, naquela caverna miserável…
fiquei muito feliz em vê-la, mas ao mesmo tempo com um medo
absurdo de perdê-la. — Ele falava devagar, como se a memória
doesse. — Devo a minha vida a você. Obrigado por salvá-la.
— Você não me deve nada — retruquei. — Foi uma escolha, uma
decisão minha.
— Você poderia ter se salvado, mas ficou ali. Em troca, eu… eu
quase matei você — Ele interrompeu a fala, respirando com
dificuldade. — Eu nunca vou esquecer o olhar em seu rosto quando
dei o primeiro golpe. Isso vai me assombrar pelo resto de meus
dias.
Uma parte volúvel de mim queria puxá-lo para perto para que
confortássemos um ao outro até que aquelas lembranças vis de sua
espada derramando meu sangue e de minha magia drenando sua
vida fossem arrancadas de nós.
Meu peito queimava como se estivesse repleto de brasas, mas
tudo o que eu disse foi:
— Eu sei que não foi você. Sei que não foi sua intenção.
Ele ficou em silêncio, olhando em meus olhos.
— Você falou sério quando disse na caverna que me amava? —
Ele falou tão baixinho que foi quase um sussurro.
— Sim. — Inspirei profundamente, tentando reprimir a pontada
em meu coração. Talvez o amor ficasse nele para sempre; eu
estava aprendendo que esse sentimento não podia ser extinto a
nosso bel-prazer. — Mas também falei sério depois, quando disse
que sempre me lembraria com carinho do que tivemos. E desejo-lhe
muita felicidade em sua vida, embora eu não faça mais parte dela.
Ele cravou as unhas na palma da própria mão e uma gota de
sangue caiu sobre a asa dourada de uma garça.
— Pensei que, se sobrevivêssemos à Madame Hualing, ainda
teríamos uma chance de achar o caminho que nos uniria
novamente. Mas eu estava enganado, fui arrogante além da conta
ao pensar que seu caminho levava apenas a mim.
As palavras dele me surpreenderam. Seria possível que… ele
tenha achado que eu pediria que ele fosse a graça dada pela
conquista do talismã?
Liwei prosseguiu com a voz carregada de remorso.
— Desejo-lhe toda a felicidade, embora ele não a mereça, embora
eu não possa deixar de desejar que as coisas fossem diferentes
entre nós.
— Obrigada. — As palavras soavam esquisitas em minha língua.
Congelando, apesar do sol que fazia, cruzei os braços. — Você
ainda me odeia por não ter contado?
— Eu nunca seria capaz de odiar você. Eu que fui estúpido por
não a deixar ir quando não tinha o menor direito de prendê-la. — O
movimento de sua garganta insinuava que ele tinha mais a dizer. —
Você parte amanhã? — perguntou ele finalmente.
Assenti.
— Eu vou com você.
— Por quê?
Ele deu de ombros, mudando o timbre de voz para aquele
distanciamento polido, e isso doeu mais do que eu gostaria de
admitir.
— Pela mesma razão que você foi comigo para a floresta. Você
está entrelaçada em minha vida, quer estejamos juntos ou não. Vou
ajudá-la porque eu quero, não porque devo. E não há necessidade
de colocar isso em um cálculo; o que você me deve, o que eu lhe
devo, essas dívidas não têm sentido entre nós.
Depois que ele se foi, permaneci no banco de mármore por muito
tempo. Uma lufada de vento passou nos salgueiros e seus galhos
faziam o lago ondular. As folhas farfalharam como se sussurrassem
os segredos que eu acabara de derramar para o mundo. Reivindicar
minha identidade e me libertar das pretensões do passado parecia
um sonho impossível. E agora eu estava a um passo de libertar
minha mãe, de voltar para casa. Eu acreditava que essa
oportunidade me traria uma alegria absoluta, mas descobri que
estava entremeada com uma amargura incompreensível.
29

L anternas vermelhas e redondas com franjas de seda amarela


foram amarradas acima das ruas pavimentadas de pedra. As
árvores farfalhavam, lançando suas sombras sobre as paredes
pálidas do prédio, com um padrão treliçado em losangos nas portas
e nas janelas desbotadas em tons apagados de vermelho e de
verde. Telhas cinzentas se misturavam à escuridão, uma escolha
prática contra o clima temperamental do mundo mortal. A aldeia
podia parecer erma à noite, mas as lanternas luminosas davam-lhe
um brilho encantado.
Uma centena de aromas flutuava no ar: comida, perfumes e
mortais. As pessoas se aglomeravam nas ruas, a maioria vestida
com mantos de algodão simples, enquanto os mais prósperos, em
menor número, usavam brocados brilhantes ou seda. Acessórios
pendiam de suas cinturas, alguns adornados com contas de jade ou
discos de metais preciosos. Ruídos altos de estalo me assustaram e
faíscas brilhantes, papel vermelho picado e fumaça espessa
estouravam no ar. Fogos de artifício. Haveria um festival naquela
noite? Os rostos dos aldeões estavam radiantes de entusiasmo,
exatamente como quando eu os observava de longe na lua.
Liwei e Wenzhi pararam do lado de fora de um grande prédio.
Uma grande placa preta estava pendurada na entrada com os
seguintes ideogramas pintados de branco:

ESTALAGEM DO LAGO OESTE


Lanternas em forma de cabaça estavam penduradas em cada
lado das portas vermelhas de madeira. Suas janelas estavam
abertas para o ar frio da noite, a música e os risos se espalhavam
pela rua. Era um estabelecimento animado, embora minha cabeça
começasse a latejar com o barulho incessante.
Passaríamos a noite ali antes de viajar para o Rio Changjiang,
onde o Dragão Longo ficou preso sob uma montanha por séculos.
Quando Wenzhi propôs que parássemos naquela aldeia, concordei
prontamente, ansiosa por um vislumbre de como os mortais viviam.
Eu poderia ter sido um deles se o destino tivesse cometido um
deslize.
Ao nos ver, o estalajadeiro meneou a cabeça para nos enxotar.
Estaria a pousada cheia? A cidade certamente estava movimentada.
Wenzhi não disse nada, apenas colocou um tael de prata sobre a
mesa. Funcionou tão bem quanto um encantamento; o rosto do
estalajadeiro se iluminou quando ele o enfiou na manga. O homem
disse algo em voz baixa para Wenzhi, mas a gargalhada de um
cliente próximo abafou sua fala e não pude ouvi-la.
Uma jovem, talvez sua filha, mostrou-nos uma mesa de madeira
junto à janela. Ela saiu e voltou depressa, carregando uma bandeja
com pratos de cogumelos selvagens salteados, costelas de porco
assadas, um pequeno peixe frito e uma grande tigela de sopa
fumegante.
— Há alguma apresentação hoje à noite? — indagou Wenzhi à
garota, apontando para o tablado elevado no meio da sala.
Ela se curvou para ele e um rubor manchou suas bochechas.
— Um contador de histórias, Jovem Mestre. Um dos melhores da
região.
Jovem Mestre? Segurei o riso. Wenzhi devia ter duas vezes a
idade do avô dela, embora sua pele lisa e suas feições esculpidas
não dessem sinais disso.
No meio de nossa refeição, o contador de histórias chegou. Uma
longa barba grisalha cobria seu rosto enrugado e seus olhos
franzidos brilhavam sob sobrancelhas grossas. Ao se acomodar em
uma cadeira de bambu, ele pôs o cajado de madeira retorcida no
chão. Aceitando uma moeda de um cliente, o homem pigarreou
antes de começar a contar a história de um nobre rei que havia sido
traído por sua concubina favorita, uma espiã infiltrada de um império
inimigo. Quando o malfadado par morreu no final trágico, o público
extasiado vibrou e aplaudiu, alguns enxugaram as lágrimas com
lenços e mangas. Prendi um bocejo, sentindo pouco além de
repulsa pela trama da concubina e impaciência pela tolice do rei.
Com um sorriso alegre, Wenzhi jogou uma moeda de prata para o
contador de histórias, que a pegou com surpreendente destreza,
enfiando-a em sua bolsa.
— Jovem Mestre, qual história deseja ouvir? — perguntou o
contador de histórias, com cerimônia.
— A dos Quatro Dragões — respondeu Wenzhi.
Endireitei a coluna e fiquei de orelhas em pé.
— Ah! Um clássico. O Jovem Mestre deve ser um erudito —
bajulou o contador de histórias.
Vários clientes da estalagem resmungaram, provavelmente
esperando por histórias mais picantes envolvendo reis luxuriosos e
belas donzelas. Mas, quando o contador de histórias ergueu a mão,
ficaram em silêncio. Sua barba prateada brilhava tanto quanto a
prata que estava em sua bolsa.
Ele começou a narrar, com a voz tão suave quanto o melhor
vinho.
— Há muito tempo, quando o mundo ainda era novo, não havia
lagos ou rios. Toda a água ficava nos Quatro Mares, e o povo
dependia da chuva que caía do céu para cultivar as colheitas e
matar a sede. O Mar do Oeste era o lar dos quatro dragões. O
Dragão Longo era o maior de todos, com escamas vermelhas como
chamas, e o Dragão Pérola brilhava como a neve invernal. O
Dragão Amarelo era mais ofuscante que o sol e o Dragão Negro,
mais escuro que a noite. Duas vezes por ano, eles subiam do mar
para voar pelo céu.
O contador de histórias levantou a voz, assustando os ouvintes.
— Um dia, eles ouviram gritos e lamentos altos vindos de baixo,
de nosso mundo. Curiosos, aproximaram-se voando, ouvindo as
preces desesperadas das pessoas por chuva após uma longa seca.
As roupas delas estavam frouxas nos corpos magros e seus lábios,
rachados de sede. Atormentados pelo sofrimento delas, os dragões
imploraram ao Imperador Celestial que enviasse chuva aos mortais.
O imperador concordou, contudo, devido a uma calamidade divina,
isso fugiu de sua mente e passaram-se mais semanas sem chuva.
Ele fez uma pausa, pegando sua xícara e levando-a à boca.
Quando continuou, seu tom de voz estava reduzido a um sussurro
controlado. Percebi que eu estava me esforçando para ouvir,
embora conhecesse bem a história. Foi a mesma que me ofereci
para contar ao Príncipe Yanming e ele zombou de mim.
— Incapaz de suportar a miséria do povo faminto, os dragões
voaram para o Mar do Oeste, encheram suas mandíbulas com água
salgada e a espalharam pelo céu. A magia deles a transformou em
água pura, que choveu na terra seca do mundo de baixo. O povo
caiu de joelhos, regozijando-se e louvando os deuses. Mas o
Imperador Celestial ficou furioso, porque os dragões ultrapassaram
sua autoridade. Ele aprisionou cada um deles sob uma montanha de
ferro e de pedra. No entanto, antes de cada dragão ser preso, ele
sacrificou o imenso poder deles para trazer um rio caudaloso que
garantisse que nunca mais faltaria água em nosso mundo. A partir
daquele dia, quatro grandes rios passaram a fluir em nossa terra, de
leste a oeste, nomeados em homenagem aos dragões, em
reconhecimento a seu nobre sacrifício.
A plateia aplaudiu, mas com menos entusiasmo do que antes.
Uma mulher rapidamente jogou uma moeda para o contador de
histórias, gritando seu pedido.
Eu não a ouvi, perdida nas lembranças que pairavam sobre mim.
Essa história era uma de minhas favoritas quando criança e muitas
vezes pedi à minha mãe que a contasse para mim. Fechando os
olhos, quase conseguia vê-la deitada em minha cama de canela-
preta e eu passando a mão nas cortinas brancas delicadas que
esvoaçavam na brisa. Eu não precisava de uma lamparina, pois as
estrelas brilhavam no céu e as lanternas lançavam seu brilho
perolado por minha janela.
Eu amava aquela história, embora o final me deixasse
incomodada. Uma noite, perguntei à minha mãe:
— Por que o imperador se esqueceu de trazer chuva para os
mortais?
— O imperador tem muitas preocupações e responsabilidades;
governar os reinos de cima e de baixo não é tarefa fácil. Todos os
dias ele precisa atender a inúmeras petições e a muitos
requerimentos.
— Mas por que ele puniu os dragões por ajudar os mortais em
vez de agradecê-los? — perguntei.
Ela acariciou minha face e seu toque frio acalmou minha
inquietação.
— Durma, Estrelinha. É apenas uma história — pediu ela,
evitando minha pergunta com facilidade.
Só agora compreendia que não havia resposta satisfatória. Pelo
menos nenhuma que não ofendesse o Imperador Celestial.
A missão do imperador me enchia de inquietação, como um
espinho fincado na parte de baixo de meu calcanhar. E ainda mais
quando me lembrava da admiração do Príncipe Yanxi pelos
dragões, das histórias que ouvira sobre sua benevolência. Se os
dragões não quisessem entregar as pérolas, eu seria capaz de lutar
com eles? Não sabia se conseguiria derrotar um , que dirá quatro ?
Era uma missão impossível, ingrata; o sucesso dela viria ao preço
de minha honra, e meu fracasso representava minha morte.
— Xingyin, qual é o problema? — A pergunta de Wenzhi me
despertou de meus pensamentos.
— Estou cansada — comentei, embora não tivesse razão para
estar.
— Por que você não dorme? — sugeriu Liwei, sem tirar os olhos
de sua tigela. — Vamos levar um dia inteiro para chegar ao
Changjiang a pé, mesmo sem parar para descansar.
Desde que havíamos nos falado no Pavilhão da Canção do
Salgueiro, uma frieza se instalara entre nós. Será que as palavras
que trocamos cortaram os laços que ainda restavam? Ou teria sido
a intimidade que ele presenciou entre Wenzhi e eu? Qualquer que
fosse a causa, Liwei estava sendo impecavelmente cortês, mas
introspectivo. Mesmo que isso fosse exatamente o que eu pedira a
ele, me deixava com um vazio interno.
A filha do estalajadeiro veio limpar nossa mesa. Ao colocar cada
prato em sua bandeja com lentidão meticulosa, lançou olhares
furtivos para Wenzhi e para Liwei. Seus olhos iam de um para outro,
de um para outro, como se ela não pudesse decidir de quem mais
gostava. Na verdade, eles tinham pouca concorrência naquele lugar.
Mesmo vestidos com mantos simples e auras silenciadas, Wenzhi e
Liwei tinham o mesmo efeito nos corações mortais e nos imortais.
Levantei-me para sair. Só de compartilhar aquela refeição com
eles já fiquei com os nervos à flor da pele.
— Onde é meu quarto?
Wenzhi fez uma careta e apontou para o andar de cima.
— A pousada está cheia. Teremos de dividir. — Ao notar minha
expressão horrorizada, ele acrescentou: — Você pode ficar com a
cama, é claro. Tenho certeza de que Sua Alteza pode passar uma
noite no chão. — Um quê de zombaria temperava sua voz.
— De fato — concordou Liwei, friamente. — Embora eu pretenda
ficar no quarto mesmo assim.
Isso fora um aviso? Será que eu estava interpretando seu tom de
voz de maneira exagerada? Não importava. Mesmo que aquela
estalagem possuísse as camas mais macias do reino, deitar na
relva úmida seria melhor que passar uma noite inteira naquela
situação.
— Ah, perdi o sono. — Afastei-me da mesa, acovardada. — Vou
dar uma volta para digerir esse tanto de comida. É a primeira vez
que venho a um vilarejo mortal.
O banco de Wenzhi se arrastou no chão quando ele se levantou.
— Eu vou com você.
Balancei a cabeça negativamente, sorrindo para que a dor de
minha recusa fosse menor para ele. Eu queria passar um tempo
sozinha. E, por alguma razão, eu não queria ir com Wenzhi e deixar
Liwei sozinho.
Corri pela estalagem, saindo pela entrada dos fundos. Aquela rua
era menor do que a que havíamos percorrido antes, mas não menos
animada. Vários aldeões assistiam aos artistas de rua enquanto eles
giravam pratos em varetas ou cuspiam labaredas. Parei para ouvir
um velho tocando erhu , um violino de madeira de duas cordas. A
melodia melancólica combinava bem com meu humor. Quando
terminou, joguei um tael de ouro em sua tigela e ele tilintou nas
moedas de cobre.
Ainda que tarde, as crianças corriam, perseguindo cães que
latiam ou apinhando-se nas barraquinhas. Algumas estavam com
borboletas e outros insetos feitos de palha de grama, outras tinham
palitos de doces vermelhos, esféricos e brilhantes. Curiosa, comprei
um para mim e mastiguei a casca cristalizada crocante até sentir o
gosto ácido da fruta de espinheiro que ela cobria. Enquanto lambia
meus dedos melados de açúcar, alguns aldeões me encararam,
talvez imaginando porque eu estava tão entusiasmada com uma
guloseima simples. Será que minha mãe também gostava daquele
doce? Ergui a cabeça para o céu, desejando poder perguntar a ela.
O orbe luminoso lunar era menor do que no Império Celestial,
mas igualmente impressionante em contraste com o negrume da
noite. Ocorreu-me que, se meu pai não tivesse recebido o elixir de
presente e minha mãe não o tivesse tomado, talvez estivéssemos
morando em uma vila como aquela, em uma casa com paredes
brancas, um telhado verde-musgo desgastado e portas de madeira.
Nossa família estaria inteira. Por um momento, não consegui
respirar, perdida no sonho. Ou talvez você estaria morta , sussurrou
minha mente.
Minha mãe ainda olhava aqui para baixo com saudosismo? Meu
pai ainda estava vivo? Será que ele… culpava minha mãe pela
escolha dela, ou a mim, por colocar a vida de sua esposa em
perigo? Se ao menos eu pudesse procurá-lo, mas não tinha ideia
por onde começar. E não me atrevi a testar a paciência do
imperador mais do que já havia testado.
Entrei em uma rua vazia, andei uns cinquenta passos nela e
minha pele se arrepiou com o mesmo formigamento que eu sempre
sentia quando o perigo estava próximo, da mesma forma que
aconteceu quando o arqueiro atirou em mim na Floresta da Eterna
Primavera. Ele estar ali, no Reino Mortal, era impossível, era mais
provável que ele tenha sido eliminado pelos soldados de Liwei. No
entanto, isso não mudava o fato de que eu estava sendo observada.
Fingindo ignorância, continuei andando. Ainda que eu duvidasse
que qualquer coisa pudesse me ferir ali, eu tinha alguns punhais
escondidos por via das dúvidas. O Arco Dragão de Jade estava
pendurado em minhas costas, embrulhado em um pedaço de pano
para evitar chamar atenção. Parece que foi uma sugestão sábia de
Wenzhi que eu o trouxesse.
Na privacidade de meu quarto, treinei com ele. No início eu só
conseguia manter suas flechas acesas por pouco tempo, mas com o
tempo elas foram ficando mais firmes em minhas mãos. Eu estava
muito ansiosa para testar sua força, deixar voar livre o raio
crepitante de luz — mas nunca ousei fazê-lo. Em que lugar do
Império Celestial alguém poderia disparar um raio de Fogo do Céu
sem ser visto?
Quando ouvi passos atrás de mim, lembrei que os imortais eram
proibidos de usar magia no Reino Mortal, a menos que houvesse
extrema necessidade. Dragões hostis eram, sem dúvida, um caso
desses, mas por enquanto minhas habilidades físicas teriam que
bastar.
— Aonde vai com tanta pressa? — exclamou um homem. — Uma
bela dama como você gostaria de companhia?
Três homens avançaram, cercando-me. Eles usavam roupas
refinadas e adornos de prata e de jade, mas o cheiro forte do vinho
subia até meu nariz. Eles devem estar muito bêbados para me
acharem bonita , pensei, autodepreciativa. Pelos olhares maliciosos
em seus rostos, não era difícil adivinhar suas intenções.
Cerrei as mãos em punhos.
— Não da companhia que você tem a oferecer — respondi
secamente, virando as costas.
Uma mão corpulenta apertou meu ombro, girando-me.
— Não seja tímida. Por que você estaria andando por aqui,
sozinha, se não quer isso? — disse o mais alto, na minha cara. O
hálito dele era horrível, fedia aos restos de sua refeição anterior, e
sua mão agora apalpava a gola de meu manto.
— Você sabe quem nós somos? Podemos fazer o que…
A raiva e o nojo explodiram em meu sangue. Agarrei seu pulso e
o torci nas costas dele. Ele gritou de dor e segurou a mão torcida.
Será que a quebrei? Eu não pretendia, embora parte de mim
esperasse que sim. Seus dois amigos rosnaram e investiram contra
mim juntos, tentando me agarrar. Esquivei das mãos deles, segurei-
os pelo pescoço e bati a cabeça dos dois uma na outra, produzindo
um estalo retumbante. Dois chutes os fizeram cair feio no chão.
Antes que qualquer um deles pudesse se sentar, eu estava com
uma adaga em cada mão, ambas apontadas para suas gargantas.
Pressionei as lâminas no pescoço deles até que uma fina linha de
sangue escorresse, e sibilei:
— Acho que esta não é a primeira vez que vocês fazem isso. Se
voltarem a sequer pensar em cometer um crime tão vil de novo, eu
vou voltar aqui e arrancar o coração de vocês com a ponta de
minhas facas. — Lancei um olhar de aversão completa a eles antes
de dar um chute nas costas de cada um deles, fazendo-os voar
longe.
— Demônio! Madame Demônio! — exclamou um deles, ofegante
e com olhos esbugalhados à medida que levantava e fugia.
Não exatamente , refleti comigo mesma. Mas foi um bom chute,
muito perto da verdade, só que ele jamais saberia disso.
Minha raiva ainda não havia sido aplacada. Lancei uma onda
mágica brilhante que disparou atrás deles. Talvez minha pequena
transgressão passasse despercebida. Foi precipitado de minha
parte, mas fiquei enojada com a conduta deles e pela forma como
eles tentaram me culpar por aquele comportamento desprezível.
Alguém deu uma risada. Virei de costas e vi Wenzhi encostado
em uma parede ali perto, com o rosto de quem havia se divertido
muito.
— Muito bem — elogiou ele. — Eu teria me juntado a você, mas
você não precisou de ajuda.
— Estou feliz por você ter gostado do espetáculo. — Limpei as
adagas antes de devolvê-las às suas bainhas.
Uma centelha perigosa acendeu nos olhos dele.
— Se você não tivesse cuidado desses sujeitos, eu teria gostado
mais. Eles não conseguiriam andar, muito menos correr. Você os
deixou escapar muito inteiros — reclamou ele.
— Eu não contei ainda as outras coisas que eu fiz. As feridas
deles não vão cicatrizar por meses, cada machucado irá doer muito
mais, o sangue ficará escorrendo dos cortes. Eles não vão se
esquecer facilmente desta noite, do que tentaram fazer e do que eu
fiz com eles. Acho que eles não conseguirão nem mesmo olhar para
outra mulher novamente, muito menos tentar atacá-la.
Wenzhi ergueu as sobrancelhas.
— Lembre-me de nunca pisar no seu calo.
Ele se desencostou da parede, reduzindo a distância entre nós,
estendendo as mãos e me abraçando pela cintura. Meu coração
acelerou quando levantei o rosto e o fitei, com a expectativa
incendiando minha pele. Seus olhos brilharam com uma emoção
insondável quando ele inclinou a cabeça, pressionando os lábios
nos meus. O fulgor de uma explosão estelar acendeu em minha
mente. Por um momento ficamos ali, totalmente imóveis, com os
corpos colados um no outro. Então, seus lábios se separaram dos
meus; sua boca era ávida e me queria, seu fôlego era quente e
doce. Meu corpo esquentou como lava — ardendo em brasa,
derretendo e brilhando. Calor corria por minhas veias, ateando fogo
em mim. A mão de Wenzhi subiu pelas curvas de minhas costas,
seus dedos se embolaram em meu cabelo e ele puxou minha
cabeça com delicadeza para trás. Seus lábios frios deslizaram para
o meu pescoço, fazendo uma trilha escaldante. Eu estava em
chamas. Entregue. Todos os pensamentos fugiram de minha mente
enquanto eu o agarrava e o puxava para mais perto, apertando-me
nele até que as batidas de seu coração ecoassem no meu.
Quando as mãos dele me deixaram, não pude evitar suspirar.
Abracei a mim mesma, um pequeno conforto para o vazio interno.
Nossas respirações ficaram pesadas no silêncio repentino que caiu
sobre nós.
— Eu não estava seguindo você para espioná-la. Queria lhe
mostrar uma coisa — revelou ele.
Caminhamos até chegarmos às margens de um rio próximo.
Estava lotado de pessoas que acendiam lanternas e as soltavam na
água. Diferentemente das de seda que havia no vilarejo, estas eram
feitas de papel encerado colorido, dobrado e moldado em lótus de
maneira artística. Uma vela brilhava no centro de cada flor, luminosa
na escuridão.
— Achei que o Festival das Lanternas Aquáticas poderia
interessá-la — contou ele.
Os aldeões ostentavam expressões solenes e austeras; alguns
choravam. A tristeza pairava no ar como o frio do inverno.
— O que eles estão fazendo? — indaguei.
— Preces aos seus ancestrais falecidos pedindo orientação.
Honrando e lembrando seus entes queridos que já partiram. As
lanternas também servem para guiar os espíritos errantes de volta
ao seu mundo. — De sua manga esvoaçante, ele tirou uma flor
pequena, oferecendo-a para mim, e eu o fitei.
— Para que é isto?
— Um dragão não é pouca coisa. Talvez você devesse pedir
orientação a seus ancestrais.
Olhei para ele e uma ternura se desvelou em meu coração. Ele
reconhecia minhas raízes mortais e meu lugar naquele mundo. Foi
então que percebi o quanto ele se importava comigo. E eu, com ele.
Peguei a lanterna e acendi a vela, agachando-me para soltá-la no
rio. Ela balançou por um momento antes de ficar firme na água e
flutuar para longe. Eu não pedi orientação — a quem poderia pedir
isso? Eu não sabia se meu pai ainda estava neste mundo ou no
além. Eu nem sabia os nomes de meus ancestrais. Todavia, eu
esperava que, onde quer que estivessem, vissem a lanterna que
acendi em sua homenagem e soubessem que foram lembrados.
Sob o céu escuro, ficamos em silêncio. O rio brilhava à luz de
centenas de lanternas, um córrego de fogo vivo que seguia com a
corrente em direção a um horizonte desconhecido.
30

O sol se reduzira a um orbe desbotado de luz vermelha. Em seu


brilho, cada vez menor, as águas do Changjiang brilhavam enquanto
o rio seguia como uma serpente de fogo pelo Vale Esmeralda,
estendendo-se muito além de onde nossos olhos podiam ver.
Estreitei os olhos, examinando nossos arredores para descobrir
onde ficava a suposta prisão do Dragão Longo, o mais poderoso
dos dragões. Liwei apontou para uma montanha de rocha azul-
acinzentada com o pico envolto em neblina. Campos de flores
amarelas desabrochavam em sua base. Contra o céu que
escurecia, uma luz clara irradiava da montanha, tão fraca que não
podia ser vista por olhos mortais.
Desatei o cordão de minha bolsa e peguei o Selo Divino de Ferro.
O metal não estava mais frio, pulsava quente. Meu coração disparou
quando o ergui em direção ao pico imponente. Será que o cume
desabaria e o dragão subiria aos céus, grato por ser libertado de
seu cárcere?
Contudo, nada aconteceu. O vale permanecia quieto, apenas
grilos cantavam sua serenata noturna.
— Como isto aqui funciona? — perguntei a Liwei. Ele pegou o
selo, inspecionando suas marcas antes de devolvê-lo para mim.
— É uma chave. Só precisamos encontrar a fechadura.
Olhei para a enorme montanha, imaginando quanto tempo levaria
para procurá-la.
— Isso conta como “extrema necessidade”? — questionei. Um
sorriso apareceu em seus lábios.
— Meu pai não irá puni-la se você está aqui sob as ordens dele.
Use qualquer meio necessário . As palavras do imperador
ecoaram em mim novamente. Deixando de lado o desconforto,
canalizei minha magia; a luz saiu da palma de minha mão e
envolveu o metal opaco. O dragão esculpido nele explodiu em
chamas, contorcendo-se como se estivesse vivo. O vento quente
subiu em meu rosto quando o selo disparou no ar, circundando a
montanha como um farol em chamas, depois mergulhando e
desaparecendo de vista. Antes que eu tivesse tempo de me
preocupar, ele apareceu novamente no horizonte, voltando para
minha mão com tanta força que me deu um solavanco e eu quase
caí no chão. Enquanto eu o fitava, o fogo diminuiu até apagar e o
dragão se transformou em ferro inanimado novamente.
O chão estremeceu. Tropecei, quase derrubando o selo antes de
recolocá-lo em minha bolsa. Um rugido estrondoso quebrou o
silêncio. Minha cabeça se voltou imediatamente para o pico quando
uma grande rachadura o dividiu. Pedras voaram em todas as
direções, várias passaram por mim enquanto eu me abaixava,
agachando-me no chão. Línguas vermelhas de chamas surgiram do
coração da montanha, subindo pelas fendas escancaradas como
um vulcão à beira da erupção.
Com um rugido ensurdecedor, uma enorme criatura irrompeu
dele, sacudindo nuvens de poeira cegante de seu corpo. Escamas
vermelho-rubi brilhavam como se fossem metal recém-forjado. Suas
patas enormes tinham garras douradas em forma de foice, sua crina
e sua cauda fluíam com exuberantes fios em tom de vermelhão. Sua
face seria completamente aterrorizante, coroada por chifres brancos
como osso e com presas curvas e afiadas, não fosse por seus olhos
âmbar cintilando sabedoria.
Ficamos parados, totalmente absortos enquanto o dragão
arqueava o pescoço em direção ao céu. Seu olhar varreu o vale e
fixou-se em nós. Sem fazer pausa alguma, ele voou em nossa
direção e seu corpo poderoso ondulou no ar. Que voo gracioso, sem
precisar de asas! No entanto, à medida que a grande criatura se
aproximava, meu coração batia tão forte que pensei que fosse abrir
um buraco em minhas costelas. Xiangliu, o polvo gigante, o Diabo
dos Ossos… nenhum desses monstros tinha me assustado tanto.
— Quem me libertou de minha prisão? Diga-me seu nome . — A
voz do dragão tinha o volume perfeito, nem baixo nem alto, nem
agudo nem suave.
Com um sobressalto, percebi que suas mandíbulas permaneciam
fechadas enquanto falava e sua voz reverberava em minha mente
como se fôssemos o mesmo ser. Olhei para Liwei e para Wenzhi;
ambos estavam igualmente atordoados e confusos. Eu não havia
notado isso; o dragão também falara com eles.
O Dragão Longo inclinou sua magnífica cabeça para a lateral.
Estaria ele esperando por uma resposta para sua pergunta?
Pigarreei, tentando afrouxar o nó súbito em minha garganta.
— Dragão Venerável, meu nome é Xingyin; sou filha de Chang’e e
Houyi. Eu o libertei a mando do Imperador Celestial, que requer que
sua pérola seja entregue a ele. — Meu orgulho em falar os nomes
de meus pais foi anulado pela natureza embaraçosa de minha
tarefa.
Um rosnado profundo perfurou o silêncio. Os olhos da criatura se
estreitaram de forma ameaçadora e fumaça fluiu de suas narinas
dilatadas. Não, não era fumaça, mas névoa, tão fresca quanto um
amanhecer de outono. Abalada pela hostilidade, dei um passo para
trás, soltando as amarras do Arco Dragão de Jade.
— Que direito tens de exigir minha essência espiritual? —
vociferou o dragão.
— Sua essência, não — rebati rapidamente, tentando tranquilizá-
lo. — O imperador quer somente sua pérola. — Enquanto eu falava,
uma semente de dúvida germinou. No Império Celestial, onde as
joias eram tão abundantes quanto as flores, por que o imperador
cobiçava essas pérolas?
Faíscas saíram das narinas do Dragão Longo quando sua voz
irrompeu em minha mente.
— Nossas pérolas contêm nossa essência espiritual. O possuidor
delas nos controla! Espera que troquemos voluntariamente o
cárcere pela escravidão sob o jugo daquele que nos trancafiou por
levar chuva aos mortais? Poderíamos ter lutado com ele à época ou
fugido para os oceanos além de seu alcance, mas tal ato teria
rasgado os céus e revirado o solo, colocando terra e mar um contra
o outro. E isso nos seria insuportável.
Eu estava desolada quando dei meia-volta e encarei Liwei.
— Você estava ciente disso?
— Não — respondeu ele, lacônico. — Os dragões desapareceram
do Reino Imortal há séculos. Nada em nossos textos fala disso.
Eu deveria saber que ele não teria escondido isso de mim.
Percebi, então, que fora enganada pelo imperador. Ele pediu as
pérolas sem mencionar a essência dos dragões. Não foi com isso
que concordei… no entanto, essa foi a barganha que fiz. Como eu
faria isso? Como eu convenceria os dragões a desistir de sua
liberdade em troca da de minha mãe?
Contudo, como eu não faria?
Lembrei a mim mesma que não era a mesma coisa, embora isso
fosse uma verdade difícil de aguentar. Prisão não é a mesma coisa
que escravidão. Dar ao imperador tanto poder sobre os dragões,
forçá-los a ceder seu arbítrio a ele; eu seria capaz de fazer uma
coisa tão monstruosa?
— Você serviu ao Imperador Celestial no passado. Ele deve ter
um bom motivo para solicitar que o sirva novamente. — Procurei
uma solução pacífica, agarrando-me a esse fio tênue para preservar
minha consciência, mesmo me odiando por isso.
Os olhos do Dragão Longo brilharam e sua cauda chicoteou o ar.
— Nós nunca servimos ao Imperador Celestial. Um imortal muito
mais digno era nosso mestre. A ele cedemos nossa lealdade, até
que devolvesse as pérolas à nossa custódia.
As palavras dele esmagaram meu último vislumbre de esperança.
Virando-me para Wenzhi e Liwei, percebi uma determinação lúgubre
em suas faces.
Levei a mão ao pingente de jade, puxando-o para fora e
apertando-o para me reconfortar. Eu não conseguia olhar para o
dragão, um aperto quente e formigante se espalhava em meu peito.
— Desculpe, mas eu preciso de suas pérolas.
O Dragão Longo mostrou as presas, mais afiadas que lanças.
Suas mandíbulas se abriram, lançando um jorro de névoa branca
em minha direção. Uma luz forte emanou de Liwei e de Wenzhi, e
eu conjurei meu próprio escudo para cima, tarde demais; a névoa
me envolveu, grudando em minha pele e queimando-a com seu frio
glacial e cortante. Mas o desconforto desapareceu abruptamente,
deixando apenas um frescor agradável abaixo da parte da frente de
meu pescoço. Seria meu pingente? Eu o ergui a fim de olhar para a
escultura. A rachadura nela havia desaparecido; o jade estava
inteiro mais uma vez. Teria sido obra do sopro do dragão?
O Dragão Longo inclinou a cabeça para trás, esbugalhando os
olhos enquanto a névoa saía de suas narinas mais uma vez. Ele
atacaria de novo? Fiquei apavorada e saquei o arco; o Fogo do Céu
crepitava entre meus dedos. Meu estômago revirou quando apontei
para a criatura. Eu pensei loucamente em minha mãe, reunindo a
força e a crueldade necessárias para fazer o que precisava ser feito.
Tudo que eu tinha de fazer era soltar a flecha…
A memória do dragão de papel do Príncipe Yanming surgiu em
minha mente do nada. Que os dragões a protejam em sua jornada .
Meu coração estremeceu em uma súbita explosão de angústia
quando ergui o arco mais alto, para longe do dragão, disparando o
raio no céu. Veias brancas de luz iluminaram os céus. Uma
decepção esmagadora desceu sobre mim, mas estava misturada
com um alívio inegável. Eu não podia atingi-lo e, no fundo, sabia
que minha mãe também não queria isso, não importando o que nos
custasse.
Atrás de mim, Liwei respirou fundo. O Dragão Longo esticou o
pescoço na minha direção, olhando para o arco. Algo brilhou em seu
olhar dourado, como se o reconhecesse.
— O Arco Dragão de Jade. Como isso é possível? — A voz dele
havia novamente se acalmado.
Antes que eu pudesse falar, Wenzhi deu um passo à frente. Ele
provavelmente ouvira a pergunta do dragão também.
— O arco a escolheu. Agora ela é sua portadora.
— Isto é mais que inesperado. — O suspiro do Dragão Longo foi
como o vento cortando as árvores. — Poderia entregar o Selo
Divino de Ferro para mim? Gostaria de utilizá-lo para libertar meus
irmãos, pois devo reunir-me com eles. Dou minha palavra que
voltaremos aqui e que nenhum mal lhes acontecerá.
Wenzhi me puxou de lado e falou em voz baixa.
— Peça ao dragão para entregar sua pérola primeiro. Se você lhe
entregar o selo, ele libertará os outros e pode ser que você nunca
mais os encontre. Chegamos até aqui; se você perder o selo agora,
acabará de mãos vazias.
Seu conselho era sensato. Em qualquer confronto, Wenzhi estava
sempre vigilante e implacável — e por isso era tão vitorioso com
tanta frequência.
Mas os dragões não eram meus inimigos.
Ao desviar o olhar, meus olhos encontraram os de Liwei.
— Xingyin, esta decisão é sua — disse ele, em um tom mais
gentil do que eu esperava.
Eu deveria ter seguido o conselho de Wenzhi, mas minha intuição
me guiou por um caminho diferente. Eu acreditava que o Dragão
Longo não me enganaria. Como eu poderia esperar ganhar sua
confiança se hesitasse em entregar a minha?
Lentamente, estendi a mão com o selo repousado em sua palma.
Uma luz disparou da pata do Dragão Longo e cobriu o selo, que
flutuou até seu alcance. Quando suas garras se fecharam ao redor
dele, a enorme mandíbula do dragão se curvou para cima. Com um
único salto, ele disparou nos ares da noite.
Wenzhi olhava silenciosamente para a forma do dragão sumindo
no céu. Estaria descontente? A experiência dele era um patrimônio
que eu não possuía, mas eu confiava em minha intuição.
Estendi a mão para tocar seu braço e o apertei.
— Ele vai voltar.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque minha sabedoria é maior do que minha idade. — Falei
levemente, tentando ocultar a dúvida que crescia em mim.
Ele deu uma risada bela e autêntica.
— É mesmo. Embora você seja jovem, para uma imortal —
acrescentou ele, incisivamente.
— Então diga-me, ó, Ancião — brinquei, sorrindo. — O que você
quis dizer quando falou que o arco me escolheu? Por que você não
mencionou isso antes?
Ele se inclinou para ajeitar uma mecha solta de cabelo atrás de
minha orelha, demorando mais tempo que o necessário para isso.
— Foi algo que li na biblioteca do Mar do Leste. Não achei
importante, pois parecia óbvio que o arco havia feito sua escolha.
— Não para mim — confessei. — Achei que era alguma
coincidência, que talvez eu fosse a primeira pessoa a tocar o arco.
Que eu era apenas sua guardiã.
— Eu deveria ter contado a você, mas isso fugiu de minha mente
até este momento. As palavras do dragão devem ter refrescado
minha memória — disse ele, ironicamente.
— Você descobriu mais alguma coisa? — investiguei.
— Apenas que o Arco Dragão de Jade tem um mestre por vez. Eu
não sabia ao certo se essa parte era verdade. — Um olhar
pensativo atravessou seu rosto. — No entanto, a reação do Dragão
Longo parece confirmar isso.
— Eu nunca ouvi falar dessa arma antes — comentou Liwei, vindo
em nossa direção. — O que não me surpreende, já que não
estudamos os dragões. Posso segurá-la? — perguntou ele,
estendendo a mão.
Antes que eu pudesse oferecê-lo a ele, o arco estremeceu em
minha mão em aparente desagrado. Liwei recuou, balançando a
cabeça.
— Eu não serei tolo o suficiente para tentar pegá-lo.
Não sei quanto tempo esperamos, mas o céu escureceu
completamente, até que o último resquício de calor do dia foi
extraído da terra. Finalmente, joguei-me exausta no chão,
abraçando os joelhos. Teria errado ao confiar nos dragões?
Enganei-me a respeito de sua honra? Não ousei olhar para Wenzhi.
Embora ele não afirmasse que estava certo ou me criticasse, ainda
assim eu o teria desapontado. E o pânico tomou conta de mim
quando imaginei o que o Imperador Celestial faria se eu voltasse de
mãos vazias, sem pérolas nem selo. Assim que eu estava prestes a
admitir a derrota, a lua e as estrelas desapareceram como se
tivessem sido engolidas pela noite, cobertas pelas silhuetas das
quatro criaturas no céu.
Os dragões pousaram diante de nós e o chão tremeu com o
imenso impacto de sua descida. O solo voou para cima quando
fincaram suas garras douradas na terra; suas caudas chicoteavam
enquanto seus longos pescoços se arqueavam na direção do céu, e
seus chifres reluziam em um tom branco e prateado. Suas auras
eram tão poderosas que o próprio ar parecia estremecer com sua
força. Os outros três eram menores que o Dragão Longo, mas não
menos magníficos. Um brilhava como o luar, com uma juba da cor
da neve. Outro era tão deslumbrante quanto o sol, com uma fileira
de espinhos dourados que se estendia por todo o seu dorso. E o
último fundia-se perfeitamente nas sombras, exceto por suas presas
de marfim que brilhavam como punhais feitos de ossos.
Na margem do rio mais extenso do reino, os Dragões Veneráveis
se reuniram novamente. Eles me encaravam sem piscar, com olhos
fulgurando eterna sabedoria. Sem saber por que, caí de joelhos e
curvei meu corpo até que minha testa tocasse a grama.
A voz do Dragão Longo vibrava em minha mente.
— Tens nosso agradecimento por nos libertar, por sermos
capazes de sentir o vento em nossas faces novamente. Uma vez
mais, a vida se torna preciosa. — Seus olhos brilhavam e a névoa
fluía de suas narinas. — No entanto, não desejamos servir ao
Imperador Celestial. Não daremos nossas pérolas a ele.
Um peso caiu sobre mim quando me levantei. Wenzhi se
aproximou como que para me apoiar. Ele achava que eu enfrentaria
os dragões agora? Não poderia. Não era o medo que me impedia,
embora eles provavelmente pudessem me despedaçar se
quisessem; mas não queria . Ou seja, eu falhei. Minha mãe
continuaria aprisionada. E tudo pelo que eu havia lutado no Império
Celestial seria em vão.
A voz do Dragão Longo ressoava em mim novamente.
— Daremos nossas pérolas a você.
— O quê? Por quê? — repeti, incrédula, certa de que ouvira mal,
mesmo quando Liwei e Wenzhi olharam para mim.
Quando o Dragão Longo levantou a cabeça, sua juba ondulava no
ar como uma chama sedosa.
— Há muito tempo, quando éramos jovens, um poderoso feiticeiro
roubou nossa essência espiritual. Teríamos perecido, se não
tivéssemos sido salvos por um bravo guerreiro. No entanto,
estávamos muito enfraquecidos para recuperar nossa essência,
então o guerreiro a inseriu em quatro pérolas. A ele juramos
lealdade. Quando o herói deixou o Mar do Leste, nos devolveu as
pérolas. No entanto, estamos sob um pacto de honra que nos obriga
a devolvê-las a ele caso nos peça ou a quem o substituiu. — Neste
momento, o Dragão Longo fez uma pausa. — O Arco Dragão de
Jade era sua estimada arma e respondia somente a ele. E, agora,
escolheu você.
Minha mente rodopiou. Eu sabia que o arco era poderoso, mas
nunca sonhei que ocupava um lugar de tamanha reverência entre os
dragões. Menos ainda que eu seria sua legítima detentora. E que os
dragões me reconheceriam como…
— Mas eu não sou o imortal que os salvou — revelei, hesitante.
— Não sei nada dele. Minha mãe e meu pai são mortais.
— Títulos são herdados. O talento pode estar ligado ao sangue,
mas a verdadeira grandeza jaz no interior — disse o Dragão Longo.
— Há uma razão pela qual o arco a escolheu. Um motivo que talvez
você ainda desconheça, que apenas se revelará com o dissipar das
nuvens. Nosso juramento deve ser cumprido. Honraremos a escolha
do arco e entregaremos nossas pérolas a você, se assim desejar. —
O Dragão Longo fixou seu olhar áureo em mim. — No entanto, é
preciso que você saiba de algo. Se aceitar nossas pérolas, pedimos
que jure, assim como fez nosso mestre, nunca nos forçar a realizar
feitos que não estamos inclinados a executar e sempre proteger
nossa honra e nossa liberdade. Somos criaturas pacíficas. Não
podemos permitir que nosso poder seja manobrado à morte e à
destruição, ou perderemos nossa força e morreremos.
Apesar da noite fria, o suor brotou em minha pele. Fui atingida
pelo medo, imaginando o que o imperador poderia ter exigido dos
dragões, e o que isso teria custado a eles. O que os dragões me
ofereceram era uma honra imensa e, ao mesmo tempo, um fardo
terrível, que eu não tinha certeza se era digna de assumir ou forte o
suficiente para suportar.
— Dragões Veneráveis, poderiam libertar minha mãe, a Deusa da
Lua? —perguntei em voz baixa. — Se pudessem, eu não precisaria
do perdão do imperador. Não precisaria das pérolas. Não precisaria
colocar minha honra contra a liberdade de minha mãe em uma
balança.
Os orbes âmbar do Dragão Longo se apagaram.
— Mesmo durante nosso encarceramento, ouvimos a história de
Chang’e e Houyi. O imperador controla os corpos celestes, e
Chang’e está vinculada à lua. Sua imortalidade é proveniente do
elixir, um presente dele. Portanto, Chang’e é súdita dele e a punição
que lhe foi aplicada, não obstante seja severa, é um direito imperial.
Não podemos desfazer o encantamento. A tentativa de libertá-la
seria uma afronta ao Império Celestial. Um ato de guerra. Não
podemos combatê-los, pois isso nos destruiria.
O peso de minha indecisão quase me esmagou. Eu não queria
trair os dragões, mas e se isso mantivesse viva a ameaça à minha
mãe? Eu seria capaz de resistir à terrível tentação de trocar os
dragões pela segurança dela? E se eles morressem a serviço do
imperador? Eu seria capaz de viver com esse peso na consciência?
Parte de mim gritava para recusar esse fardo, mas como eu
poderia deixar essa chance escapar? Se ao menos houvesse uma
maneira de aproveitar o poder dos dragões sem colocá-los em
perigo… se eu pudesse manter os dragões e minha mãe a salvo…
Eu não sabia se era possível, mas só havia uma maneira de
descobrir.
Juntei as mãos à minha frente, curvando-me para eles.
— Aceito as pérolas.
Os dragões inclinaram suas cabeças. Teria sido o
desapontamento que os fez ocultar as faces?
Fui apunhalada profundamente pela culpa. Acrescentei imediata-
mente:
— Em troca, juro nunca vos forçar a realizar feitos que não estão
inclinados a executar e a sempre proteger vossa honra e vossa
liberdade. E eu devolverei as pérolas a vós. — Minha voz tremia
com a solenidade de meu voto. Os dragões não me pediram nada,
mas no fundo eu sabia que isso era o certo.
A noite estava tão quieta que eu podia ouvir o tremor da grama, o
estalar de uma folha balançando em seu galho. Finalmente, o
Dragão Longo veio em minha direção. Quando ele abriu a enorme
mandíbula, seu fôlego enevoou o ar. Entre reluzentes presas
brancas, sobre uma língua vermelho-sangue, repousava uma pérola
de chama carmesim. Ao abaixar a cabeça, sua língua colocou a
pérola suavemente na palma de minha mão. Os outros seguiram
esse exemplo, um de cada vez até que quatro pérolas brilhavam em
minha mão, cada uma da mesma cor da criatura que a presenteou.
Elas ressoavam de poder em minha pele, incandescentes como se
tivessem sido encharcadas pela luz do sol.
— Nossos destinos estão em suas mãos, filha de Chang’e e
Houyi — entoou o Dragão Longo, com austeridade. — Sempre que
desejar nos convocar, empunhe nossas pérolas e diga nossos
nomes.
Fechei a mão em que estavam as pérolas, o pagamento que o
Imperador Celestial havia exigido.
— Obrigada por sua confiança — sussurrei.
— Obrigado por sua promessa. — O Dragão Longo soltou um
suspiro saudosista. — Agora queremos banhar-nos nas águas
frescas do Mar do Leste, do qual estivemos afastados por muito
tempo. — Sem dizer mais nada, ele subiu no ar, cruzando os céus.
O Dragão Pérola e o Amarelo seguiram logo atrás.
Apenas o Dragão Negro não se moveu, com um olhar
desconcertantemente brilhante. Quando falou, sua voz soou como
um sino tocado com força.
— Filha de Chang’e e Houyi. Durante meus anos sob a montanha,
ouvi os mortais que se banhavam em meu rio falarem do maior
arqueiro que já existiu.
— Você sabe algo sobre meu pai? — Não ousei ter esperança,
mas não consegui reprimir o salto incrível que meu coração deu.
O Dragão Negro hesitou.
— Eles falavam de seu túmulo, não muito longe das margens de
meu rio. No ponto onde dois rios se fundem em um só, há uma
colina coberta de flores brancas. Lá, encontrará seu lugar de
descanso.
Meu pai estava… morto? No fundo, sempre nutri uma esperança
secreta de que ele estivesse vivo. Mesmo com o curto período de
vida de um mortal, ele ainda devia estar no início do inverno de sua
vida. Minha última esperança remanescente foi esmagada, e
lamentei perder o pai que nunca conheci. Quanto à minha mãe, que
ainda esperava por ele, ficaria de coração partido; isso destruiria o
sonho ao qual ela se apegara todo esse tempo. A força se esvaiu de
minhas pernas e caí de joelhos na grama coberta de orvalho,
afundada em desespero.
Wenzhi se agachou ao meu lado, puxando-me para seus braços.
Pelo canto do olho, vi Liwei estender a mão em minha direção, mas
deixá-la voltar à posição original.
O Dragão Negro suspirou.
— Gostaria de trazer notícias mais alegres. Minhas condolências
por sua perda. — Com um salto gracioso na noite, ele voou para
longe.
Wenzhi me abraçou mais forte. Ao fitá-lo, assustei-me. Suas
pupilas não estavam mais pretas, mas cinza-prateadas, como chuva
no inverno. Eu me debati, empurrando-o quando uma nuvem
desceu e nos levou para o céu, subindo tão rapidamente que eu mal
conseguia respirar o ar que corria em meu rosto. Lutei contra a
imobilização de Wenzhi, tentando reunir minha energia
furiosamente, apesar do frio entorpecente que se espalhava por
meu corpo como a geada se formando em uma folha. Eu não
conseguia me mexer, nem mesmo resistir. O grito de Liwei perfurou
meu estupor, seguido pelo clangor metálico que logo se reduziu a
um eco abafado.
— Desculpe.
Um sussurro errante que se dissolveu com o vento, tão baixo que
talvez eu o tenha imaginado. Olhos de prata, nublados de
arrependimento, e então tudo ficou escuro.
31

U m perfume forte se infiltrou em meus sentidos, era opulento e


doce como uma floresta dourada. Sândalo , sussurrou minha mente,
despertando do torpor que a envolvia. Abri os olhos, piscando. Ao
me sentar, levei a mão à cabeça, que latejava, e a dor piorou
quando olhei para o cômodo com móveis de mogno, piso de
mármore verde e cortinas de seda dourada. Uma fumaça perfumada
serpenteava no ar, saindo de um incensário tradicional, de três pés.
Algo frio fazia minhas mãos arderem e, quando olhei para baixo,
estremeci. Braceletes de metal escuro envolviam meus pulsos,
feitos do mesmo material que algemou Liwei na Floresta da Eterna
Primavera. Tentei removê-los, mas estavam muito apertados;
círculos de metal maciço, sem trancas nem dobradiças. Tentei
acessar minha energia, mas ela fugia de mim, exatamente como era
no tempo em que não havia treinado meus poderes. Assim como
aconteceu no Pico das Sombras.
O medo me envolveu e eu cambaleei para as portas, tentando
abri-las. Estavam trancadas. Sentei em um banquinho em forma de
barril, com a raiva fazendo a boca de meu estômago queimar. Eu
era uma prisioneira? Minha magia foi anulada? Onde estava Liwei?
Wenzhi? E as pérolas? Desamarrei minha bolsa com as mãos
trêmulas, sacudindo seu conteúdo sobre a mesa. Minha flauta de
jade caiu rolando dela, junto com o dragão de papel do Príncipe
Yanming. Corri para a cama e joguei as cobertas para o lado,
espiando por baixo dos móveis, abrindo baús e gavetas. Mas não
havia sinal das pérolas nem de meu arco.
Lembrei-me da cor gélida das pupilas de Wenzhi, do sussurro no
vento antes de perder a consciência. Estaria ele possuído por algum
espírito malévolo ou sua aparência teria sido copiada por ele? Será
que estava em perigo? Senti um aperto no peito, mesmo quando
uma suspeita revoltante rastejou nas beiradas de minha mente.
As portas se abriram. Ergui a cabeça. Uma jovem entrou,
carregando uma bandeja. Surpresa com minha expressão séria, ela
hesitou antes de se curvar apressadamente.
— Madame, que bom vê-la acordada. Eu irei… irei informar à Sua
Alteza imediatamente.
Ela largou a bandeja sobre a mesa e saiu às pressas, fechando
as portas.
— Esperem! — Corri para as portas e tentei abri-las sem sucesso,
gritando: — Que lugar é este? Quem é “Sua Alteza”?
Não houve resposta, apenas seus passos desaparecendo em
silêncio.
Sentei-me no banco novamente, contendo a vontade de bater na
mesa de tanta frustração. Por falta do que fazer, levantei a tampa da
tigela de porcelana, olhando com desinteresse para o caldo claro
regado com óleo de gergelim dourado. Seu aroma quente e
saboroso veio flutuando até meu nariz, mas eu empurrei a tigela
para o lado.
Uma brisa entrou no quarto, neutralizando o incenso enjoativo.
Corri para a janela, inalando grandes baforadas de ar fresco. O sol
brilhava intensamente, embora o chão abaixo estivesse obscurecido
por nuvens violeta. Telhas iridescentes brilhavam no telhado como
um arco-íris. Olhei mais de perto para as paredes de obsidiana,
notando sulcos profundos o suficiente para me agarrar. Levantando
a saia, passei um pé pela janela, e bati em uma barreira invisível tão
dura quanto rocha.
Rangendo os dentes, tentei reunir minha energia com mais força
do que antes, mas as manchas de luz se afastavam como se
estivessem sendo espalhadas pelo vento. Vasculhei o quarto
novamente, esvaziando o conteúdo das gavetas e dos armários,
espalhando seda, brocados e livros empilhados no chão por onde
passava. Se eu tivesse que lutar para sair dali, precisaria de armas:
arrancaria a perna da mesa, se necessário. Mexendo em uma caixa
cheia de joias, tirei todos os grampos de cabelo, colocando dois em
meu cabelo e escondendo o restante na faixa que envolvia minha
cintura.
As portas rangeram atrás de mim. Reuni coragem e dei meia-volta
com um grampo de ouro na palma da mão. Wenzhi entrou no quarto
vestido com um manto de brocado verde bordado com folhas de
outono que mudavam de cor, de vermelho para dourado. Seu cabelo
escuro estava preso em um anel de jade, caindo sobre seu ombro.
Ao ver seus olhos, fiquei incandescente de raiva, pois não eram
mais negros, tinham um estranho tom prateado. Era um impostor!
Atirei o grampo de cabelo em seu rosto e corri em direção à entrada.
Ele girou para a lateral, pegando-me pela cintura enquanto eu lutava
e o chutava. Meu pé bateu com força em sua coxa e ele sentiu,
mesmo quando seu braço se apertou ao meu redor. Quando dobrei
o joelho para chutar seu estômago, ele o bloqueou habilmente.
Frenética, golpeei seu peito com a palma das mãos, afastando-me
dele e batendo a parte de trás da cabeça na parede. Estúpida ,
praguejei internamente em meio à dor, vendo estrelas.
Movi os olhos como se estivesse atordoada, então deixei meu
corpo amolecer como se tivesse desmaiado. Ele me segurou com
um braço na altura dos ombros e o outro abaixo de meus joelhos,
pegando-me no colo. Ele me carregou por um curto caminho antes
de me deitar na cama. Com os olhos fechados, sentia com
surpreendente clareza seus dedos calejados roçando minha pele,
ajeitando o cabelo que estava em meu rosto com uma ternura que
eu não esperava. Estremecendo por dentro, mantive a expressão
apagada, mesmo enquanto tateava um grampo de cabelo em minha
faixa. Quando uma sombra caiu sobre mim, fiquei tensa e alerta;
meus olhos se abriram e eu peguei o grampo, tentando esfaqueá-lo.
Ele segurou meu pulso, impedindo que a ponta afiada atingisse seu
pescoço por um milímetro.
Ele sorriu.
— Xingyin, quanta sede de sangue, logo de manhã. — Algo
gelado desceu minha espinha rastejando. Sua voz profunda entrou
em meu ouvido com uma dolorosa familiaridade, mas agora ele era
um estranho para mim. Quando ele tirou o alfinete de prata
esculpido de minha mão, resisti a ele, debatendo-me com força
renovada. Ele repousou as mãos e parou de sorrir. — Não tenha
medo.
— Seus olhos — falei com dificuldade, levantando-me com os
joelhos pressionados no peito. Eles brilhavam da mesma forma que
os de Madame Hualing. Fiquei arrepiada. Até ter certeza do que ele
era capaz, eu precisaria ter cautela.
Ele deu de ombros como se não importasse.
— Um disfarce para evitar perguntas desnecessárias.
— Quem é você? — indaguei.
— A mesma pessoa que você conheceu todo esse tempo. A
mesma pessoa que sempre esteve perto de você.
Endureci a voz.
— Sem jogos mentais. Diga-me, quem é você?
Ele me estudou atentamente.
— Eu não a acolhi quando você revelou ser filha da Deusa da
Lua? Xingyin, você e eu sabemos tudo o que importa um para o
outro.
Eu estava com um nó terrível no estômago, a sensação de ser um
peão que fora manipulado. Tudo o que ele dizia era uma defesa ou
uma evasiva para ganhar tempo, tudo calculado para controlar
minha raiva e mexer com minha consciência. Para nos unir, para
fazer parecer que éramos iguais. O que quer que ele tenha feito
deve realmente ter sido terrível.
— Nem tente me comparar a você — rosnei, furiosa. — Quando
menti para você nunca o toquei, mas você… você me trancou e
roubou meus pertences.
Ele cerrou os dentes e levantou, caminhando em direção à janela.
— Que lugar é este? — questionei, odiando o tremor em minha
voz, a incerteza nova que senti ao redor dele, o medo .
— É meu lar. A Muralha das Nuvens.
Seu tom de voz ganhou uma breve ternura, mas logo depois
esfriou novamente.
— Embora haja quem prefira chamá-lo de Reino dos Demônios.
Um estratagema inteligente dos Celestiais para nos rotular como
inimigos, para sermos injuriados e temidos até mesmo por quem
nunca vimos.
Impossível. Aquele não podia ser o Reino dos Demônios. E ele
não era nenhum Demônio; eles foram banidos do Império Celestial.
Certamente alguém teria percebido isso durante todos os anos em
que ele serviu no exército.
— Isso é uma piada? — Saltei da cama, derrubando um vaso
esmaltado com o cotovelo. Ele atingiu o chão com força, e o barulho
reverberou pelo quarto.
As portas se abriram e dois soldados entraram, vestindo uma
armadura preta com bordas de bronze. Um tinha o nariz fino e um
queixo pontudo, como um furão; seu companheiro, mais alto, tinha a
pele clara e os olhos redondos. Borlas negras enfeitavam as lanças
reluzentes que eles empunhavam. Ao verem Wenzhi, curvaram-se,
batendo a extremidade contundente das lanças no chão.
— Vossa Alteza, ouvimos um estrondo — disse o menos feio.
Ergui a cabeça imediatamente quando me dei conta da saudação
do soldado, das palavras anteriores da criada. O pai dele era
mesmo o Rei Demônio, o monarca calculista que todos os Celestiais
temiam e desprezavam? Eu queria cair de volta na cama e fechar os
olhos, esperando que isso fosse apenas um pesadelo e que eu
acordaria logo. Mas lembrei-me da voz do dragão tocando minha
mente, de suas pérolas fazendo minha mão formigar, do vento forte
em minha face enquanto eu estava sendo raptada…
Não era um sonho.
Os soldados curvaram-se novamente para Wenzhi, acatando uma
ordem que eu não ouvira. Quando se levantaram, me olharam com
uma curiosidade escancarada.
— Deixe-nos a sós — disse ele com frieza. Eles saíram de
imediato, fechando as portas.
Juntei as mãos, desejando ter uma arma nelas.
— Vossa Alteza — disse, áspera. — Como ousa me trazer aqui
contra minha vontade?
Ele se apoiou no parapeito da janela, de frente para mim agora.
— Contra sua vontade? Você concordou em vir comigo.
— Não fiz nada disso.
— Concordou, sim. Disse que viria comigo para minha casa.
Eu mal conseguia pensar com a raiva que me tomava por
completo. A farsa dele zombava das promessas que fizemos um ao
outro. Eu acreditava que ele era do Mar do Oeste; nunca imaginei
que o Reino dos Demônios fosse sua casa! Eu nunca teria
concordado com isso . Meus punhos se fecharam, mas eu os forcei
a afrouxar; agora não era hora de ceder à minha ira. Ele era um
mentiroso sem par, no entanto saber isso só poderia me ajudar
agora.
Eu precisava descobrir mais.
— Como pôde fazer isso comigo? — Minha voz estava rouca de
tanta raiva que eu estava reprimindo.
Ele cruzou a sala, pegando um dos bancos ao lado da mesa.
Levantando o bule de porcelana, serviu duas xícaras de chá,
oferecendo-me uma, como costumava fazer. Encarei-o com olhos
pétreos, até que ele levou o copo à boca e bebeu.
Ele franziu a testa.
— Fez bem em não beber, está frio. — Uma leve onda de seu
poder envolveu as xícaras e a fragrância de jasmim subiu quando a
cor do chá mudou de marrom opaco para um belo dourado.
— Eu mesma poderia ter feito isso, mas não consigo. O que você
fez comigo? — Eu me forcei para fora da cama, esticando as mãos
na direção dele; o metal brilhava soturno em minha pele.
— Apenas uma precaução, para garantir que você não faça nada
tolo.
Um desejo de golpeá-lo tomou conta de mim.
— A coisa mais estúpida que já fiz foi confiar em você. Como
você passou pelas proteções do Império Celestial? Por que essa
farsa de se juntar ao exército? Por que me trouxe aqui?
— Tantas perguntas, Xingyin. Eu responderei ao que puder, se
você se sentar. — Ele gesticulou para o banco ao lado dele.
Eu encarava Wenzhi quando me sentei com as costas mais
rígidas do que uma tábua.
— As barreiras do Império Celestial não são tão fortes quanto no
passado. Será que é porque não possuem mais a capacidade de
sondar os pensamentos de seus inimigos? Foi simples enfraquecê-
las ainda mais e me esconder com magia.
— Você é um deles . Um praticante das artes proibidas. — Eu não
pude evitar um calafrio.
— Sim, embora elas não sejam proibidas aqui. Aqui, são um dom
.
— Seu traidor — xinguei, lembrando-me dos espíritos de raposa
que romperam as barreiras e feriram Shuxiao. — Você não se
importa com a dor que causou?
— E aqueles a quem salvei? E os monstros e os inimigos que
ajudei a derrotar pelo Império Celestial? — rebateu ele. — Mas
agora estamos andando em círculos; isso não levará a lugar
nenhum. Você não manteve sua própria ascendência em segredo,
Xingyin? Você, mais do que ninguém, deveria entender minha
situação. — Seu tom de voz passou a ser zombeteiro. — Não
banque a justa. Não é ao Império Celestial que você tem lealdade.
Meu frágil domínio sobre minhas emoções se desfez.
— O que quer que eu fizesse, não era uma espiã. Tinha de
proteger minha família. Minha vida. Em nenhum momento coloquei
em perigo alguém além de mim mesma. — E acrescentei, irada: —
E quanto à sua lealdade? Você fingiu muito bem que se importava
com os soldados Celestiais, mas por dentro adorava vê-los se
ferindo.
A aura dele ficou mais intensa, agitando-se como nuvens de
tempestade.
— Eu sempre me importei com quem estava sob meu comando,
chorei por cada vida perdida. Eu fiz o que tinha de fazer. Não
importava se eu gostava disso ou não.
— Assim como fez comigo.
— O quê?! — exclamou ele bruscamente. Parecia surpreso. —
Não, isso não. Nunca.
— Então, por quê? — indaguei, vislumbrando uma brecha em sua
compostura. Achei que ele não me responderia e, mesmo que
respondesse, esperava mais mentiras. No entanto, quando ele
voltou a falar, havia tanta tensão reprimida em seu corpo que dava
para notar que ficava profundamente afetado pelo que estava
pensando naquele momento.
— O segundo filho do rei tem poucas oportunidades. Tudo foi
dado ao meu meio-irmão, Wenshuang. Mesmo que ele fosse menos
capaz e que seus poderes fossem inferiores aos meus; ele não tem
o menor talento em nossa magia, que é o pilar de nosso poder. No
entanto, ele foi nomeado Príncipe Herdeiro por nenhuma outra
razão além de ser o primogênito. — Sua boca se torceu em um
sorriso amargo. — Então, fui ter com meu pai e fizemos um trato
não muito diferente do seu com o imperador.
— Tudo isso, só para tomar a herança de seu irmão? —
questionei, incrédula. Talvez uma parte de mim esperasse que ele
tivesse sido levado a isso contra sua vontade. Mas ganância e
ambição… Eu não achava que essas coisas o moviam tanto. Ele
não era quem eu acreditava que fosse; não havia honra nele. No
entanto, essa centelha de crueldade, esse desejo de vencer a todo
custo sempre esteve lá. Eu devia ter percebido que isso era apenas
ambição sem limites.
Ele apertou a xícara sobre a mesa e os nós de seus dedos
ficaram brancos devido ao esforço.
— Você não sabe nada de meu meio-irmão.
— Eu nem sabia que você tinha um irmão.
— Exceto pelo sangue compartilhado, ele não é um ente querido
por mim. Desde que éramos crianças ele não sentia nada por mim
além de crueldade e de ódio. Suportei um sofrimento horrível em
suas mãos: surras, punições e insultos. Eu não podia fazer nada
contra ele, não por ser mais fraco, mas por ele ser o herdeiro. Os
poucos criados e amigos leais que tive em minha juventude também
foram levados por ele, então aprendi a não favorecer ninguém. A
única maneira de proteger a mim mesmo e àqueles com quem me
importava era passar por cima dele e reivindicar o trono.
Reprimi um ruído de pena, tentando ignorar seu tom de voz bruto.
Como eu saberia se não eram mais mentiras para fazer com que eu
tivesse empatia por ele? Meus olhos se fixaram nos dele quando
perguntei:
— O que isso tem a ver com o Império Celestial, com as pérolas e
comigo ?
— O sonho de meu pai é derrubar o Império Celestial. Seu ódio
pelo imperador é profundo por ele ter difamado nossa magia e feito
o Reino Imortal se voltar contra nós. Por aqueles que perdemos na
guerra. Mas não fomos capazes de quebrar a trégua; não temos
força o suficiente para derrotá-los e a seus aliados.
— Sua magia é desprezível. — Palavras precipitadas,
estimuladas pela lembrança do tormento de Liwei sob o controle de
Madame Hualing e de meu combate com o Governador Renyu.
— Não, não é. Nossa magia pode curar doenças mentais, aliviar o
sofrimento, revelar mentiras, detectar más intenções. Ela pode ser
usada de maneiras desprezíveis, assim como Água, Fogo, Terra e
Ar vêm sendo invocados para cometer atrocidades que causam
morte e destruição. Nosso Talento é o mais fácil de ser condenado
porque é o menos compreendido dentre todos. Sobretudo porque é
temido por quem está no poder: o imperador e seus aliados.
— Controlar a mente de alguém e roubar sua vontade própria é
uma coisa vil.
Ele fechou a expressão.
— Essa magia raramente era exercida antes da guerra, não era
tolerada nem mesmo entre nós, até que fomos forçados a usá-la
para nos defender. Não culpe o instrumento, mas quem rege a
orquestra. Talvez a intenção do imperador tenha sido consolidar seu
poder no Reino Imortal. Não há união mais forte do que contra um
inimigo comum. Se assim for, ele criou uma profecia autorrealizável,
que será sua ruína. Exilar-nos somente nos tornou mais fortes,
dando-nos uma causa. E, em uma guerra, as linhas entre o certo e o
errado são frágeis.
Meus pensamentos se embolavam e se entrelaçavam. Eu não
confiava nele, nem no imperador. Ou talvez fosse a habilidade de
Wenzhi que fazia com que eu me sentisse assim, sua capacidade
de distorcer as coisas até que eu não pudesse discernir mais nada.
Quando permaneci em silêncio, ele prosseguiu:
— Prometi a meu pai que, se ele me nomeasse herdeiro, eu o
ajudaria a derrubar o Império Celestial. Eu procuraria a arma mais
poderosa contra seu imperador, que ele temia tanto que prendeu no
Reino Mortal.
— Os dragões — falei, num sussurro estrangulado. — Você
tomou as pérolas de mim. O que vai fazer com elas?
Ele deu de ombros.
— Talvez eles fiquem felizes em se vingar daquele que os
aprisionou por tanto tempo.
— Nunca! — gritei. — Você ouviu o que eles disseram. Os
dragões amam a paz. Eles se permitiram ser aprisionados para
evitar derramamento de sangue. Eles vão morrer se você os forçar a
fazer uma coisa dessas. — Minhas palavras caíram em ouvidos
surdos. Seu rosto estava marcado por uma determinação gélida,
talhada em pedra. Ignorando a dor em meu peito, prossegui. Eu
tinha de saber quão fundo ia a traição dele. — O minério do Pico
das Sombras. Você o extraiu para forjar isto? — Balancei as
pulseiras na frente dele.
— Precisávamos nos defender como fosse possível.
— No Mar do Leste, você orquestrou a rebelião dos sereianos?
Seus lábios se contraíram em uma linha fina.
— Uma semente plantada que deu mais problemas do que frutos.
Há muito tempo eu queria visitar a biblioteca do Mar do Leste, mas
eles protegem ferozmente seus conhecimentos. Especialmente
qualquer coisa relacionada aos dragões. Nossos espiões relataram
que o exército deles era complacente e que o governador era
ambicioso. Combinamos que o pingente seria dado de presente ao
Governador Renyu para semear a discórdia, sabendo que o Mar do
Leste pediria ajuda ao Império Celestial ao primeiro sinal de tensão.
Quem poderia recusar um favor a um salvador? Mas os planos do
governador foram além do que pretendíamos. Não queríamos que
ele usurpasse o trono do Mar do Leste e lançasse sua ambição em
direção aos Quatro Mares. Nossa inimizade é apenas voltada ao
Império Celestial.
Obriguei-me a ouvir com uma calma imparcial, embora me
enojasse pensar que ele fingira tanta preocupação com as vítimas
daquele dia. Não ousei ponderar muito profundamente suas
respostas; não seria capaz de me conter se o fizesse. Ergui a
cabeça e vi que ele me fitava com aqueles olhos cinza-claros e
brilhantes. Algo se agitou em mim, uma lembrança vaga. O arqueiro
na floresta, com os olhos prateados, que atirou em mim de maneira
tão implacável.
— Foi você quem me atacou no pagode! — Eu quase me contorci
de tanta dor no coração. — Você estava por trás do sequestro da
Princesa Fengmei!
Ele desviou o olhar. De vergonha ou de culpa?
— Eu avisei para você não ir, estava tentando a proteger. Apenas
atirei em você para mantê-la a salvo dentro do pagode, longe da
emboscada. Se você tivesse se ferido, poderia sair a salvo dali.
Sua flecha de penas negras havia de fato atingido o inimigo, mas
isso não diminuía minha raiva em nada.
— Como pôde? Você sabe o inferno que passamos lá?
Ele inspirou irregularmente.
— Ordenei à Madame Hualing que não lhe fizesse mal. Ela
concordou. Mas você, Xingyin, tem o dom de evocar emoções fortes
naqueles que conhece. Para seu bem ou seu mal.
Eu tremi de nojo pela maneira íntima com a qual ele falou comigo.
— Um plano honorável — parabenizei ele, com um sarcasmo
fervilhante. — Sequestrar uma garota inocente e manipular a dor de
uma imortal amargurada, fazendo com que ela cumprisse suas
ordens sem que você sujasse as mãos. Não tem vergonha?
Ele fechou ainda mais o rosto devido à minha provocação.
— Minhas décadas de serviço, ganhando acesso ao círculo mais
íntimo de poder no Império Celestial, não renderam a chave para os
dragões. Meu pai estava impaciente, então decidi voltar e entregar a
ele um presente à altura.
— Liwei. — Doeu pensar nele. Ele voltara para o Império
Celestial? Será que estava querendo saber de meu paradeiro?
Wenzhi suspirou.
— Bastava um dos dois: conseguir a força vital do príncipe
herdeiro ou o fim da aliança com o Império da Fênix. Uma pena
você ter destruído o anel de Madame Hualing. Meu pai ficou muito
descontente com essa perda.
Algo em mim se despedaçou ao ver a falta de remorso dele: o
último pedaço de… qualquer esperança que eu ainda tinha de que
aquela pessoa não era ele, de que nada daquilo era real. Tudo o
que eu fizera desde que deixei minha mãe, tudo o que eu havia
realizado, parecia estar contaminado por sua maldade.
A bile subiu em minha garganta — quente, amarga, ácida. Lutei
para manter a calma, falhando miseravelmente. Bati na cara dele
com toda a força que consegui reunir. Ele não recuou nem bloqueou
quando sua cabeça virou para o lado com um estalo retumbante.
Minha mão ardia como fogo, embora a marca vermelha deixada em
sua pele me desse uma satisfação feroz.
— Xingyin, eu sei que você está nervosa. Mas não me bata de
novo.
— Nervosa? Palavras não conseguem descrever como estou me
sentindo agora, nem o quanto eu o desprezo.
Ele se inclinou para mais perto de mim, reduzindo a voz a um
sussurro sinuoso.
— Foi uma escolha sua. Você pegou as pérolas dos dragões. Não
negue que também queria o poder deles.
Estremeci com a verdade inegável, mas ele estava errado sobre
mim. Sim, eu queria o poder deles. Mas não pelas mesmas razões
que ele. No entanto, meu peito cedeu com uma percepção
repentina.
— Você fingiu gostar de mim porque sabia sobre o legado do Arco
Dragão de Jade? Porque desconfiava que eu pudesse controlá-lo…
e, por meio dele, controlar os dragões?
— Não — negou ele, sem hesitar. — Não posso negar que fiquei
intrigado com sua conexão com o arco. E o que aprendi no Mar do
Oeste me deu uma razão para mantê-la por perto. A princípio como
uma aliada, e depois… — Um rubor opaco se espalhou por seu
rosto. — O que existe entre nós começou antes disso. Você mexeu
comigo na primeira vez que a vi atirar. Eu não esperava sentir o que
senti. Foi em parte por isso que decidi desistir das pérolas e voltar
para casa. Eu não queria mais mentiras entre nós.
Mesmo naquele momento, uma parte de mim doía com a
confissão, mas eu não deixaria transparecer. Ele nunca saberia o
quanto me magoara.
Wenzhi prosseguiu:
— Eu quase gostaria que o imperador não tivesse atribuído essa
missão a você. Nunca quis ser seu oponente. No entanto, como quis
o destino, durante sua audiência com o imperador ele revelou a
única coisa pela qual eu estava esperando todos esses anos. Uma
coincidência fortuita que eu não poderia ignorar.
— Não tão fortuita para mim. — Observei seu rosto; não havia
nenhum sinal de que fazer isso comigo o tivesse magoado. — Você
sabe que eu preciso das pérolas para salvar minha mãe. Sabe o
que eu passei para consegui-las, e mesmo assim as tirou de mim.
— Lutei para ficar firme, para fazer um último apelo. — Se você
gosta de mim como diz, dê-me as pérolas e me liberte.
Ele deu um passo, reduzindo a distância entre nós e me puxando
em um abraço. Contra minha pele ardente, suas mãos eram gelo.
— As pérolas são essenciais para o futuro de meu povo, para que
possamos nos livrar da ameaça perpétua do Império Celestial. Com
os dragões sob nosso comando, derrotaremos o imperador
facilmente. Quando isso acontecer, juro que encontrarei uma
maneira de libertar sua mãe. Teremos tudo o que sempre quisemos,
que nunca sonhamos ser possível. Família, poder e um ao outro.
Você só precisa confiar em mim.
Eu me libertei de seus braços. Minha pele rejeitava seu toque,
sendo que apenas um dia atrás eu ansiava por ele. A visão que ele
tinha de nosso futuro… como isso me enojava.
— Dei minha palavra aos dragões. Minha promessa significa algo
para mim, mesmo que a sua não signifique nada para você. — Eu
poderia ter dito mais. Poderia ter me enfurecido, gritado e xingado
ele, mas um cansaço doloroso tomava conta de mim agora, uma
doença em meu coração. Eu me afastei dele, querendo que ele
fosse embora, incapaz de suportar sua presença por mais um
momento.
Ele soltou um suspiro pesado, cheio de arrependimento.
— Tire um tempo para pensar sobre as coisas. De qualquer
forma, você não vai sair daqui. — Ele foi até as portas e as abriu. —
É inútil tentar escapar. Se você persistir em agir como uma tola, não
terei escolha a não ser tratá-la como tal.
As portas se fecharam. Minha raiva explodiu, peguei a xícara dele
e a arremessei na parede; a delicada porcelana se quebrou em
inúmeros fragmentos, impossível de se fazer inteira novamente.
32

A pesar do alerta de Wenzhi, tentei escapar. Eu precisava. Mas as


janelas estavam seladas e as portas, firmemente trancadas. Passei
correndo por elas uma vez, quando uma criada trouxe minha
refeição, apenas para dar de cara com os guardas do lado de fora.
Infelizmente, eles eram veteranos experientes, não recrutas que eu
poderia pegar desprevenidos. Lutei com todas as minhas forças,
contudo eles me subjugaram facilmente, jogando-me de volta em
meu quarto.
Sentada no banquinho, meus dedos tamborilavam na mesa em
um ritmo incessante. Como eu sairia daquele lugar amaldiçoado?
Como recuperaria as pérolas? E minha mãe… minha esperança de
libertá-la se reduzira a uma fantasia desesperada, como era no
tempo em que servi na Mansão do Lótus Dourado. De uma só vez,
Wenzhi havia destruído meus sonhos e meu coração. Cravei as
unhas na mesa, soltando lascas finas de madeira.
A dor, afiada e implacável, fincou garras em mim, justamente
quando eu acreditava que estava entorpecida pela traição dele.
Minha mente vagou para o nosso tempo juntos — as memórias me
açoitavam, mas eu não quis ser gentil comigo mesma. Lembrei-me
de tudo o que ele havia dito e feito: sua insistência em mantermos o
Arco Dragão de Jade em segredo, sua ida à meia-noite ao Pico das
Sombras, sua dissuasão ao meu interesse na biblioteca do Mar do
Leste. Nada relevante por si só, mas em conjunto os episódios
completavam um cenário mais sinistro. Sua reticência em falar de si
mesmo deveria ter servido como um aviso para mim mais do que
para qualquer outra pessoa, porém eu estava tão envolvida em
minhas próprias emoções, ambições e desejos que fiquei alheia a
todo o resto. Eu também culpava minha vaidade: não podia negar
que fiquei deslumbrada com sua reputação e lisonjeada por chamar
sua atenção. Eu queria que ele fosse honrado, alguém em quem eu
pudesse confiar, e então coloquei tudo o que ele fizera nesse
pedestal. Ele me enganou, mas eu permiti. Se ao menos eu tivesse
prestado atenção ao aviso da Professora Daoming: quando as
emoções nublam nosso ser, o que vem depois é a catástrofe. Mas
agora era tarde demais.
As portas se abriram. Fiquei de pé, vasculhando a sala em busca
de qualquer coisa que pudesse usar como arma. Desde a última
vez, Wenzhi havia ordenado a remoção de todos os grampos de
cabelo. Eu poderia ter rendido uma criada com minhas próprias
mãos, mas, depois de minha tentativa de fugir, agora eram os
soldados que me traziam as refeições.
Não era um guarda. Wenzhi entrou, com o manto de brocado
azul-escuro girando em torno de seus pés. Um cinto de tecido
cravejado de âmbar estava preso em sua cintura. Sobre seu cabelo
repousava uma coroa de jade branca, com uma esmeralda brilhante
engastada. Meus olhos se estreitaram ao ver o preço de sua honra.
Sentei-me novamente, ignorando-o. Instintivamente, agarrei o
metal ao redor de meus pulsos. Não importava como eu puxava ou
batia os braceletes contra a parede, eles seguiam intactos, embora
minha pele estivesse machucada e arranhada.
Quando seu olhar se fixou em meus braços, pus as mãos nas
costas. Ele avançou e os pegou. Um frescor reconfortante se
infiltrou em mim com seu toque e as marcas em minha pele
desapareceram.
Eu me desvencilhei dele. Não agradeci. Não olhei para ele.
Ele se sentou à minha frente.
— Não se machuque novamente. Minha paciência não é ilimitada.
Encarei Wenzhi com a voz grossa de ódio.
— O que mais você vai fazer? Além de me capturar, selar minha
magia e roubar minhas posses?
A gema em sua coroa brilhou mais forte, talvez canalizando sua
ira. No entanto, sua expressão permaneceu inescrutável e ele se
inclinou para mim.
— O que posso fazer para deixá-la à vontade? — perguntou ele,
como se fosse um anfitrião gracioso e eu, sua convidada de honra.
Levantei meus pulsos algemados. Ele deu um meio sorriso.
— Receio que não. Pelo menos não até que você caia em si.
— Eu já caí em mim — retruquei. — Agora eu o vejo pelo que é:
um mentiroso e um ladrão. — Ele se afastou, fechando a expressão.
Se minhas palavras o feriram, eu estava feliz. — Algo me ocorreu.
Você, um Príncipe Demônio, enganou o Imperador Celestial. Você
se infiltrou no Império Celestial, nos círculos mais próximos de sua
corte, e os espionou. Isso não viola sua trégua? Certamente os
aliados do Império Celestial se reunirão com o imperador e
marcharão contra você.
Ele deu de ombros, não demonstrando a preocupação que eu
esperava.
— Pode-se dizer que eu os servi bem. Pelo menos enquanto eu
estava sob o comando deles.
Mordi o interior de minha bochecha ao lembrar que ele era de fato
o guerreiro mais renomado do Exército Celestial.
— Mas foi você quem enfraqueceu as barreiras, fomentou a
agitação no Mar do Oeste, planejou o sequestro da Princesa
Fengmei…
— Xingyin, só você sabe disso — interrompeu ele, com uma
calma irritante. — Os Celestiais não sabem quem eu sou, pelo
menos não ainda. Eles acreditam que sou apenas um espião, como
aqueles que enviaram para se infiltrar em nossa corte sem sucesso.
Além disso, o imperador relutará em admitir ter sido enganado todos
esses anos; seu orgulho é muito grande. Por enquanto, ele
procurará uma maneira de preservar sua dignidade em vez de reunir
aliados para uma guerra que ele não deseja travar. Pelo menos não
enquanto a balança de poder for incerta. — Um sorriso brincou em
seus lábios. — Embora certamente esteja a nosso favor agora.
As pérolas , pensei, ardendo de ira.
Aparentemente alheio à minha raiva evidente, ele pegou uma
tangerina da tigela e a descascou. Ofereceu a fruta a mim, mas não
me dignei a responder.
— E quanto a mim? Certamente violaria sua preciosa trégua
sequestrar um soldado Celestial, roubando as pérolas que o
imperador queria para si mesmo. — Minha voz soou triunfante;
desta vez eu tinha certeza que o atingira. — Liberte-me, devolva
meus pertences, e eu não direi a eles o que você fez. — Barganhar
com ele feria meu orgulho, mas eu não estava em condições de ser
exigente.
Ele comia a fruta, um gomo de cada vez, mastigando com grande
concentração. Estaria tentando evitar me responder? Não teria
pensado naquilo antes? Improvável, dada a sua astúcia.
Por fim, ele apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos.
— Eu preferia que você não soubesse disso.
— O que quer dizer? — Um calafrio percorreu minha pele. Eu não
acho que gostaria do que ele tinha a dizer em seguida.
— A Corte Celestial acredita que você é minha convidada de
honra, minha futura noiva. A trapaceira calculista que persuadiu o
imperador a entregar o selo e que depois roubou as pérolas dos
dragões e fugiu para cá por sua própria vontade. Eles não podem
me culpar por abrigar você; ignorar seus crimes não viola a trégua.
— Seu monstro — xinguei, em voz baixa. — Isso foi tudo obra sua
. Ninguém acreditaria que eu faria… que nós… — Minhas entranhas
se contorceram com a lembrança dos rumores que nos cercavam.
Aqueles boatos que eu desdenhava, pensando que línguas frouxas
não importavam. Eu estava errada, muito errada. As palavras
tinham poder; faziam falsidades adentrarem a realidade à base de
sussurros, construíam ou destruíam reputações. Foi por isso que
confiei em Wenzhi tão prontamente no passado. Era por isso que
tantos acreditariam que essas coisas sobre mim eram verdade; uma
mentirosa confessa que havia escondido sua identidade de todos
que a conheciam. Quem confiaria em mim se minha honra estava
em farrapos?
— Liwei — lembrei. — Ele acreditaria em mim. Ele estava lá… —
Minha frágil esperança desmoronou quando algo sacudiu minha
memória. Aqueles gritos que eu tinha ouvido enquanto Wenzhi me
carregava, o barulho metálico… Liwei tinha sido atacado? Ele se
machucou? Ele teria tentado me ajudar, teria tentado vir atrás de
mim. A menos que tivesse sido impedido. — O que fizeram com
ele? — Quando uma expressão irada surgiu no rosto de Wenzhi,
enchi-me de alívio. — Ele escapou — declarei, com certeza.
— Mesmo se ele falar em sua defesa, poucos acreditariam nele. A
evidência contra você é irrefutável e todos sabem que ele tem uma
queda por sua ex-companheira. — Ele fez uma pausa, como se
ponderasse o que diria a seguir. — Xingyin, desculpe-me se isso a
aflige, mas é o melhor. Um recomeço. Esqueça o Império Celestial.
Não há mais nada para você lá.
Ele falou suavemente, e naquele momento… passei a odiá-lo. A
dimensão do que ele fizera se abateu sobre mim e meu corpo se
contraiu de pavor. Se o imperador acreditasse que eu o havia traído,
o que ele faria com minha mãe? Ele ainda honraria sua promessa
de não lhe fazer mal? Eu precisava voltar para consertar isso.
Ele abriu a boca para falar novamente, mas então um soldado
entrou correndo, curvou-se e disse, apressado:
— Vossa Alteza, o Exército Celestial…
— Agora não — rebateu Wenzhi.
O soldado enrijeceu, antes de dar meia-volta e sair correndo,
fechando as portas atrás dele.
— Exército Celestial? — Subi o tom de voz com um quê de
interesse por fora, mas por dentro eu estava desesperada para
saber o que acontecera.
Um microinstante de hesitação foi o único sinal de que ele estava
incomodado.
— É só o problema de sempre em nossas fronteiras.
Fingi indiferença, mesmo enquanto minha mente rodopiava,
tentando entender o que eu tinha ouvido. Aquele soldado viera
relatar às pressas notícias urgentes sobre o Exército Celestial, e a
resposta afiada de Wenzhi fora muito diferente de seu
comportamento habitual. Não se tratava de uma simples questão de
tropas indisciplinadas na fronteira. Algo mais sério estava
acontecendo, algo que ele queria esconder de mim.
Meu peito doeu ao ver como ele mentia com facilidade.
Entretanto, eu não seria mais ludibriada tão facilmente.
No momento em que ele saiu, corri para as portas. Elas eram
feitas de ébano com um sólido painel de madeira na parte inferior e
a metade superior era treliçada em um padrão de círculos
entrelaçados, forrados com seda branca. Eu me agachei para evitar
que minha silhueta aparecesse do outro lado.
A voz de Wenzhi chegou aos meus ouvidos, baixa e abafada.
— Dobre a guarda. Caso algo inesperado aconteça ou se ela
tentar escapar novamente, informe-me imediatamente.
As armaduras tilintaram, talvez os soldados tivessem feito uma
reverência. O pensamento de ter minha guarda dobrada me
enfureceu. Como eu escaparia agora? Ajeitando minha saia longa,
sentei-me no chão. O mármore era duro e frio, mas talvez eu
pudesse ouvir algo importante.
Devo ter ficado naquela posição, com as costas pressionadas
contra as portas, por horas, até meu pescoço doer e minhas pernas
ficarem com cãibras. Levantei em um salto duas vezes e corri
quando ouvi a madeira ranger. O sol desceu mais, e meu quarto
ficou mais escuro. No entanto, eu não soube de nada novo além das
refeições favoritas de meus guardas, as histórias de suas famílias e
os imortais dos quais eles gostavam. Suspirando, levantei-me e
comecei a andar de um lado para o outro, tentando acalmar a
agitação incessante em meu estômago.
Perto da janela, fiz uma pausa. Mais de mil soldados se reuniam
abaixo de mim, com armaduras negras brilhando como um oceano à
noite. Wenzhi estava em um palanque na frente deles, dirigindo-se
às tropas como costumava fazer antes de um confronto iminente,
embora me enojasse pensar que agora ele estava conspirando
contra aqueles com quem havia lutado no passado. Esforcei-me
para ouvir, mas nada passava pela barreira, nem mesmo o assobiar
da brisa que entrava por ela. Bati no escudo até meus punhos
ficarem doloridos. Se ao menos eu pudesse ouvir o que ele estava
dizendo, isso responderia às perguntas que incendiavam minha
mente.
Abaixo, um grupo de soldados deu um passo à frente. Quando
Wenzhi assentiu, eles levantaram as mãos. A magia fez o ar reluzir
e um trecho de nuvem violeta se transformou em areia dourada.
Por quê? Eu me aproximei da barreira, mas os soldados se
dispersaram logo depois. Uma inquietação tomou conta de mim,
como se eu estivesse em uma ponte frágil que poderia ceder a
qualquer momento, fazendo-me cair no penhasco. A noite havia
caído, então apaguei a lamparina, mergulhando o quarto na
escuridão. Talvez os soldados ficassem menos alertas se
acreditassem que eu estava dormindo.
Voltei para perto das portas, sentando-me e abraçando os joelhos.
Um confronto era iminente, eu tinha certeza disso. Quando? Como o
Exército Celestial estava envolvido? E por que eles estavam
transformando as nuvens em areia?
Passos soaram do lado de fora. Uma armadura retinia.
— Sua Alteza solicita um relatório. — Agora era uma voz
feminina.
Ela falava tão baixo que tive de fechar os olhos, esforçando-me
para ouvir. Assim como eu tinha feito ao atirar com os olhos
vendados na floresta de pessegueiros.
— Tudo calmo. Ela estava quieta hoje e foi dormir cedo. Talvez
esteja finalmente cedendo.
Alguém deu uma risada. Cerrei os dentes ao ouvir o som de
escárnio.
— Capitã Mengqi, perdemos a chamada de Sua Alteza — disse
outro soldado em um tom respeitoso. — A senhora tem alguma
notícia? — Agucei os ouvidos. Uma capitã? Ela devia estar mais
bem informada.
— Nossas fontes nos dizem que o Príncipe Herdeiro Celestial se
juntará ao exército amanhã. Eles marcharão no dia seguinte, ao
amanhecer. — Liwei estava a caminho? Por quê? Minha esperança
crescente virou medo quando imaginei o que Wenzhi faria. De
alguma forma, ele viraria o jogo a seu favor. Ou seja… isso era uma
armadilha e eu, a isca.
Um homem pigarreou.
— Está tudo em ordem? — perguntou ele, um pouco nervoso.
— No momento em que cruzarem a fronteira, nossa vitória estará
selada. — A voz dela pulsava de satisfação e grunhidos de
aprovação acompanhavam suas palavras.
Pouco depois, a Capitã Mengqi partiu. À medida que seus passos
ficavam inaudíveis, eu desabei contra a parede, lutando contra um
surto de pânico. Por que o Exército Celestial estava ali? Não poderia
ser por minha causa; o imperador nunca levantaria um dedo para
me salvar, especialmente depois das mentiras que Wenzhi
espalhou. Deve ter sido por causa das pérolas. Mas por que
marchariam sozinhos, sem sequer reunir seus aliados? Certamente
não pretendiam atacar e quebrar a trégua; não a fim de travar uma
guerra para a qual não estavam preparados e que não desejavam.
Senti mais verdade nisso do que nas afirmações de Wenzhi. Parecia
haver pouca disposição do Exército Celestial para entrar em
combate com o Reino dos Demônios. Os soldados não falavam do
confronto passado com triunfo, mas em voz baixa, cheia de medo.
Eles foram para a batalha esperando uma vitória rápida, apenas
para voltarem mancando com uma trégua frágil.
Não, os Celestiais não cruzariam a fronteira. Liwei nunca seria tão
imprudente, nem mesmo se provocado. Eu estudei com ele;
conhecia sua mente. Perder a vida de forma imprudente não era
algo que ele aceitaria. Será que era um chamariz para distrair o
Reino dos Demônios enquanto eles procuravam pelas pérolas?
Mas, pelo que disse anteriormente, Wenzhi devia saber que o
Exército Celestial não pretendia invadir. O que será que ele estava
tramando? Com as pérolas em seu poder, Wenzhi controlava os
dragões. Forçar um confronto agora, perto de seu território, era sua
maior vantagem. No entanto, se eles atacassem os Celestiais sem
motivo, o resto do Reino Imortal se levantaria contra eles.
Minha cabeça latejava enquanto eu tentava juntar os fragmentos
de meus pensamentos. A Muralha das Nuvens ficava ao lado do
Deserto Dourado. Os soldados transformaram as nuvens violeta em
areia. Estariam criando uma nova fronteira? A ilusão de uma?
Entendi tudo de repente, e congelei.
Era uma armadilha muito pior do que eu imaginava.
Os Celestiais seriam atraídos para dentro do Reino dos Demônios
com uma fronteira falsa. Assim que a cruzassem, estariam violando
a trégua e ficariam vulneráveis à retaliação. Nem mesmo seus
aliados poderiam culpar o Reino dos Demônios por qualquer coisa
que fizessem para se defender. Uma emboscada aguardaria os
Celestiais, eu tinha certeza; nada seria deixado ao acaso. Era um
plano desonesto, hediondo.
Levei o punho fechado à boca, sufocando meu grito. Ah, se eu
não tivesse recebido as pérolas! Mas fui tentada pelo poder,
desesperada por uma maneira de libertar minha mãe sem pagar o
preço do imperador. Que gananciosa eu fui ao tentar ter tudo! Que
arrogante, ao pensar que poderia protegê-los… não podia nem
proteger a mim mesma. E agora vinha o próximo desastre — as
mortes de milhares de pessoas estariam em minha consciência.
Uma onda de desolação me varreu, roubando minhas últimas
forças. Fechei os olhos, mas tudo o que pude ver foi o chão
inundado de sangue, brilhando com a armadura dos Celestiais
mortos. O olhar sem vida de Liwei. O corpo inerte de Shuxiao. Os
rostos daqueles com quem eu servi passaram por minha mente,
todos marchando em direção à sua destruição. Mordi com força os
nós dos dedos até que a pele se rompeu e um jorro quente de ferro
e de sal se derramou em minha boca. Minha visão ficou turva de
lágrimas quentes enchendo meus olhos enquanto eu caía no chão
em posição fetal com as mãos fechadas em punhos que não podiam
fazer nada além de esmurrar o chão de mármore frio.
33

E u não podia deixar Liwei e o Exército Celestial caírem na


armadilha mortal que os aguardava. Não podia deixá-los morrer por
minha causa.
O que eu poderia fazer para evitar isso? Se eu pudesse usar
minha magia e o Arco Dragão de Jade, poderia ter tentado fugir.
Porém, impotente, sem armas e sem amigos, minha esperança de
escapar era tão pequena quanto um rato preso nas garras de um
tigre. Por enquanto, eu só podia depender de minha inteligência. E
lembrei a mim mesma que nem toda batalha pode ser vencida com
força bruta; às vezes, a água precisa desgastar a pedra lentamente.
Eu surtei com Wenzhi tal qual uma criança — magoada, zangada
e precipitada. Minha resistência apenas despertou suspeitas dele
sobre mim, o que tornou a fuga mais difícil. Eu precisava convencê-
lo de que tinha mudado de ideia para fazê-lo baixar a guarda. Só
então eu poderia recuperar as pérolas e fugir. Mas ele não seria
facilmente enganado. Lágrimas até poderiam ser úteis, mas Wenzhi
me viu matar monstros sem titubear. Suplicar não daria certo; a
ambição dele era implacável. Também não seria fácil mentir para
ele, pois me conhecia muito bem. Pelo menos ele pensava que sim
— a raiva ardia em mim enquanto eu me lembrava de suas
suposições arrogantes. Como ele podia imaginar que eu
compactuaria com seus planos vis?
Contudo, talvez eu pudesse usar o que Wenzhi sabia sobre mim
contra ele, deixá-lo pensar que ele tinha me levado um pouco para
seu lado. Ele tentou usar a liberdade de minha mãe para me tentar.
Acreditava que eu faria qualquer coisa para salvá-la, assim como
ele fizera para garantir seu lugar no trono. Ele estava errado, eu não
era como ele. Minha honra era preciosa para mim, e eu sabia que
também era para minha mãe.
Ainda estava escuro, mas saí debaixo das cobertas e me levantei
para me preparar, com o estômago revirando, como sempre
acontecia na manhã de uma batalha. Dessa vez, no entanto, eu não
tinha armas além de sorrisos e de palavras, e não sabia manejar
nenhuma das duas. E, em vez de armadura, estaria trajando seda.
Vasculhei o armário abarrotado de roupas requintadas em cores
vivas. Preocupar-me com meu traje naquele momento parecia
totalmente errado e fútil. No entanto, uma aparência externa polida
desviaria a atenção das mentiras vazias que eu planejava proferir.
Determinada a seguir esse plano, peguei um manto preto, que
combinava bem com meu humor no momento. Garças emplumadas
estavam bordadas na parte inferior e, quando toquei a asa branca
de uma delas, ela esvoaçou pela seda da cor da meia-noite. Ah, se
eu pudesse fazer o mesmo…
Horas se passaram, o sol subia mais no céu e Wenzhi ainda não
aparecera. Pensei com amargura que talvez ele estivesse muito
ocupado planejando o massacre do dia seguinte. Preparando suas
armadilhas, tramando e maquinando, e tudo o que eu havia feito até
então foi abrir um buraco considerável na mesa. Não, eu não podia
apenas ficar sentada ali e esperar enquanto aqueles que eu amava
estavam em perigo. Se ele não viesse, eu iria atrás dele, antes que
fosse tarde demais.
Caminhando para as portas, bati alto nelas. Vozes abafadas
passavam pelo painel forrado de seda.
— Não responda, é outro truque — sussurrou um dos guardas.
— E se ela estiver ferida ou houver algo errado?
Outro guarda bufou.
— Ferida? Nós é que vamos nos ferir se abrirmos as portas.
Fiz uma careta ao ouvir suas respostas desconfiadas, por mais
bem fundamentadas que fossem. Em minhas tentativas de escapar,
eu havia os arranhado, chutado e xingado sem a menor cerimônia.
Impaciente, exigi:
— Preciso ver o Príncipe Wenzhi. — Falar o nome dele junto ao
título soava muito esquisito.
O silêncio atendeu a meu pedido. Justamente quando pensei que
eles recusariam, que talvez eu precisasse derrubar as portas, elas
se abriram. Um escudo brilhava ao redor dos seis soldados, que
tinham suas lanças apontadas em minha direção.
Mesmo no total desespero de minha situação, prendi o riso. Eles
me achavam tão temível assim?
— Vocês poderiam me levar ao Príncipe Wenzhi? — perguntei
com meu tom de voz mais doce, tentando não engasgar com as
palavras.
Os guardas trocaram olhares confusos. Depois de sussurrar entre
si, um deles saiu correndo. Teria ido em busca de reforços? Não
muito tempo depois, uma soldado alta apareceu, espreitando pelo
corredor. Suas feições eram marcantes, apesar da suspeita em seus
olhos castanho-claros. Ela não se parecia em nada com os
Demônios que eu lia nos contos de Ping’er — nenhum deles se
parecia. Embora eu odiasse admitir isso, a palavra “demônio” havia
alterado minhas percepções, fazendo com que eu pensasse o pior
deles, mas não eram diferentes de nós em nada.
— Sou a Capitã Mengqi, da guarda pessoal do Príncipe Herdeiro
Wenzhi. Sua Alteza deu ordens para não ser perturbado hoje —
anunciou a recém-chegada, com uma determinação lúgubre.
Mas eu não voltaria docilmente para meu quarto, não seria tão
facilmente rebatida assim.
— O Príncipe Wenzhi me disse que eu poderia vê-lo sempre que
quisesse — menti descaradamente, surpresa com minha própria
desenvoltura.
Um jovem soldado de pele clara comentou:
— Sua Alteza está meditando antes da bata… — Ao perceber o
olhar feroz da Capitã Mengqi, ele fechou a boca e deu um passo
para trás. Suspirei, alisando os vincos inexistentes em minha saia.
— O Príncipe Wenzhi ficará muito descontente ao saber disso. —
Como se tivesse tido uma ideia repentina, fiz uma expressão alegre.
— Por que você não me leva até ele? Se ele se recusar a me ver,
podemos voltar imediatamente.
Quando os olhos da capitã se estreitaram de desconfiança, acres-
centei:
— Sete soldados armados não podem conter uma prisioneira
desarmada e indefesa? — Minha voz soava como um desafio e
tinha uma pitada de escárnio. Levantei os pulsos para mostrar o
metal amaldiçoado que os prendia.
Com um aceno de cabeça, a Capitã Mengqi indicou que eu
deveria segui-la. Ela ia na frente em um ritmo acelerado enquanto
os outros guardas vinham atrás de mim. A cada passo eu podia
sentir seus olhares perfurando meu crânio e suas lanças apontadas
para minhas costas.
Corri para acompanhar a capitã, estudando nosso caminho,
esperando encontrar uma saída. O cheiro inebriante de sândalo
pairava no ar, vindo dos incensários de bronze espalhados ao longo
do corredor. Treliças de ouro ornamentadas envolviam os pilares de
ébano e o piso de mármore verde era raiado com grossas listras de
prata.
Ao passarmos pelas portas de madeira no fim do corredor,
entramos em um jardim exuberante. Naquele lugar, a fragrância de
flores desabrochando abafava o incenso enjoativo. Fiz uma pausa,
virando-me como se estivesse em transe, enquanto caçava
qualquer coisa que pudesse explorar. O jasmim às vezes era usado
como sedativo, mas era muito fraco. Arranquei algumas folhas da
árvore de ginkgo , pois dizia-se que elas causavam dores de
estômago e tonturas — embora ainda não soubesse direito o que
pretendia fazer. Apesar da abundância de plantas e de ervas ali, não
encontrei mais nada de útil, nem mesmo um único cogumelo com
propriedades alucinógenas. Ah, se eu tivesse sido uma aluna mais
atenta! Mas então parei, vislumbrando as flores azuis com pétalas
pontudas espreitando em meio à grama. Eu já as tinha visto antes…
no primeiro dia na Câmara de Reflexões. A memória de nosso
instrutor irado e a de Liwei fingindo adormecer vieram à tona em
minha mente. Agachada, peguei uma, fingindo admirá-la enquanto
esmagava suas pétalas entre os dedos até ficarem pegajosos com
seu sumo. Quando senti o cheiro, uma sonolência tomou conta de
mim. Larguei a flor na hora e limpei as mãos na parte inferior do
manto. Lírios-das-estrelas. Misturados com vinho, podiam levar
qualquer pessoa ao sono mais profundo.
Atrás de mim, um soldado pigarreou com impaciência. Ergui o
olhar e vi que a Capitã Mengqi já havia saído do jardim. Fiquei feliz
por isso, pois ela parecia mais difícil de enganar. Levantando-me,
fingi tropeçar, caindo e ralando a mão em uma pedra até o sangue
escorrer por ela. Enquanto os soldados olhavam para isso
consternados, minha outra mão tateava atrás de mim e pegava um
punhado de flores.
— Eu sou tão desastrada… — Dei um sorriso pesaroso aos
guardas. Seria difícil acreditar que eu pronunciara minha primeira
mentira apenas alguns anos atrás. Eu odiava mentir para Liwei e
para Shuxiao, mas a mentira daquele momento despertou algo novo
em mim. Uma satisfação inesperada, quase uma alegria interior por
enganar meus captores, retribuir Wenzhi na mesma moeda.
Sacudi a sujeira da saia do manto, colocando as flores em minha
bolsa. Quando uma sombra apareceu sobre mim, olhei para cima e
vi um estranho parado diante de nós. Suas roupas eram magníficas,
quase extravagantes, cravejadas de pedras preciosas que piscavam
contra o brocado roxo. Ele parecia um pouco familiar, tinha maçãs
do rosto salientes, mandíbula forte e lábios finos. Embora algumas
pessoas talvez o achassem atraente, a inquietação astuta em sua
expressão me repeliu.
— Vossa Alteza. — Os soldados o cumprimentaram com uma
reverência. Pensei comigo mesma: outro príncipe? Não era uma
surpresa, já que o Rei Demônio era solteiro e corriam boatos de que
tinha dezenas de concubinas, muitas das quais estariam disputando
para ter mais filhos e garantir influência e status.
Ele ignorou os outros e fixou a atenção em mim.
— E quem é você? — Seu tom de voz era agradável, mas seus
olhos amarelados lembravam uma serpente caçando sua presa.
Não respondi, sem saber o que dizer, certa de que não
encontraria aliados naquele lugar. Felizmente, a Capitã Mengqi
apareceu e veio caminhando em nossa direção. Ela franziu a testa
ao ver o estranho, embora tenha se curvado para ele
respeitosamente.
— Capitã Mengqi. Como é raro vê-la longe de meu irmão mais
novo. Você pode me dizer quem ela é? — Ele gesticulou em minha
direção.
Irmão mais novo? Eu me espantei, olhando mais de perto para
ele. Seria o Príncipe Wenshuang? O irmão odiado de Wenzhi?
— Ela é convidada do Príncipe Herdeiro Wenzhi — respondeu a
Capitã Mengqi, com uma entonação equilibrada.
O rosto do homem foi de repente tomado por uma expressão
ameaçadora. A menção do título de Wenzhi o teria enfurecido tanto
assim? E teria a Capitã Mengqi feito isso para bater de frente com
ele, para evitar uma possível detenção para nós, ou ambos?
O Príncipe Wenshuang lançou um sorriso deslumbrante para mim
e todos os vestígios de sua ira se foram.
— Eu soube disso. Você é realmente do Império Celestial?
Incomodada por seu olhar, assenti concisamente.
— Vossa Alteza, perdoe-nos, mas devemos seguir nosso
caminho. — A Capitã Mengqi curvou-se novamente e seu corpo
estava tenso enquanto ela se levantava.
Os lábios do Príncipe Wenshuang se contraíram quando ele
sacudiu a mão em um gesto de desprezo. Quando saímos, eu podia
sentir seu olhar perfurando minhas costas.
Atravessamos um portão circular de pedra até um pátio, seguindo
em direção a um grande edifício cercado por pinheiros altos e
verdejantes. O ar estava fresco e doce, com o cheiro de agulhas de
pinheiro se misturando com a brisa noturna… lembrava o cheiro do
próprio Wenzhi, embora eu tenha reprimido esse pensamento
indesejado. Pilares de mármore preto flanqueavam a entrada,
esculpidos com um padrão de redemoinho embutido em ouro. As
portas fechadas eram painéis sólidos de ébano, que não davam
nenhuma pista do que havia atrás delas.
A Capitã Mengqi bateu os nós dos dedos contra a madeira.
Um breve silêncio, depois passos.
— Dei instruções claras para não ser incomodado — disse
Wenzhi friamente de dentro.
A capitã olhou para mim.
— Peço desculpas pela intrusão, Alteza. Partiremos
imediatamente.
Eu não.
— Insisti que a Capitã Mengqi me trouxesse aqui — cortei.
Ele não respondeu. Prendi a respiração enquanto a Capitã
Mengqi suspirava e os soldados trocavam olhares ansiosos.
As portas se abriram. Wenzhi estava na entrada, e seu manto
verde-escuro quase varria o chão. Seu cabelo estava caído sobre os
ombros, solto e livre. Ao me ver, seus olhos se arregalaram antes de
se apertarem; desconfiança , pensei. No entanto, ele deu um passo
para a lateral, permitindo minha entrada.
Entrei em seu quarto, ouvindo as portas se fecharem atrás de
mim com um baque sinistro. Fiquei empertigada, olhei ao redor dos
aposentos espaçosos, observando as paredes de pedra, o pé-direito
alto e as janelas compridas. Incensários de ouro ladeavam a
entrada, felizmente apagados, pois eu preferia muito o ar sem
perfume. Uma cama de mogno ficava em uma plataforma elevada
no meio do quarto, coberta com cortinas brancas que caíam de seu
dossel. Livros e pergaminhos estavam empilhados em uma grande
mesa perto da janela, que ofereceria uma vista agradável do pátio
se não estivesse fechada. Várias espadas estavam penduradas do
outro lado da sala em bainhas de ouro e de prata, madeiras nobres
e jade. Ao vê-las, fiquei imóvel, tentando suprimir uma explosão de
entusiasmo.
Ele caminhou em minha direção e seu olhar me fixava. Cerrei os
punhos, mas forcei os braços a permanecerem relaxados nos
flancos de meu corpo. Se eu pudesse manter a compostura, se ele
acreditasse que eu desconhecia completamente suas tramas, eu
teria uma chance. Todavia, se eu revelasse minhas verdadeiras
intenções, seria confinada mais uma vez, sem esperança de fugir, e
esse seria o menor de meus problemas.
Seus olhos deslizaram por meus chinelos de brocado, subindo por
meu manto e indo até o pente de jade em meu cabelo.
— Para que… isso tudo? Embora a cor combine com você.
Dei de ombros.
— Eu estava entediada.
Um sorriso brincou em seus lábios.
— Sentiu minha falta hoje?
Eu reprimi a vontade de xingá-lo. Palavras duras não me
renderiam nada além de um momento de satisfação infantil,
arruinando todos os meus esforços para chegar até ali. Em vez
disso, ergui a cabeça, fitando-o com um olhar desafiador.
— Mesmo que eu sentisse, não admitiria.
— Por que está aqui, Xingyin? — questionou ele, sem rodeios.
— Eu quero respostas — retruquei. — Você tem as pérolas. Tem
o Arco Dragão de Jade. Eu não tenho mais serventia para você. Por
que me manter aqui?
Ele ficou em silêncio por um momento, como se tentasse decidir o
que dizer.
— Não é óbvio? Meu coração permanece o mesmo.
Achei que não sentiria nada além de ódio por ele. No entanto,
essa simples declaração despertou algo em mim. Eu era isso
mesmo: fraca, e praguejei a mim mesma por isso. Apesar da ternura
de suas palavras, eu nunca esqueceria as coisas cruéis que ele
fizera. Ele alegou se importar comigo, e então tomou tudo que eu
amava. Se esse era o seu amor, eu não o queria.
Olhei para o chão, tentando parecer confusa. Dividida. Indecisa.
— O que você disse antes… sobre nós. Sobre nosso futuro.
Sobre minha mãe. Você falou sério?
Ele se inclinou para perto de mim, tão perto que uma mecha de
seu cabelo roçou minha bochecha.
— Você não está mais com raiva de mim? — Embora sua voz
fosse suave, seu olhar era vigilante e avaliador.
Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Eu estava com raiva antes. Furiosa. Como eu poderia não
estar depois do que você fez? — Ergui novamente a cabeça e o
olhei nos olhos. — Mas você tinha razão. O que mais importa é a
liberdade de minha mãe. Foi por isso que me alistei no exército e
me esforcei ao longo de todos esses anos. E também… — Minha
voz sumiu, embora eu esperasse que o que estava implícito nesse
ato ficasse claro e que ele confundisse o calor que corava minhas
bochechas com desejo, e não vergonha. — Você disse que poderia
me ajudar a libertá-la. Como? — perguntei com avidez, como se
estivesse tentando testar sua sinceridade ao invés de convencê-lo
da minha. Ele não esperaria que um oponente em desvantagem se
movesse para atacar em vez de defender. Seria um movimento
imprudente, tolo, até. Mas o que importava quando eu não tinha
mais nada a perder?
— Assim que derrubarmos o Império Celestial, com o poder dos
dragões atrás de nós, nada estará além do nosso alcance. — Seu
tom de voz era cauteloso, embora seus olhos brilhassem
surpreendentemente.
Obriguei-me a assentir, internamente furiosa por ele acreditar que
os dragões eram uma propriedade pronta para acatar suas ordens.
Mesmo contra a vontade deles, mesmo que pudessem morrer por
servi-lo assim. Como se a batalha do dia seguinte fosse justa, em
vez de uma porção de táticas desonestas que ele planejara para
emboscar os soldados que lutaram ao lado dele no passado.
Enterrei minha repulsa no sorriso caloroso em meus lábios.
— Você me dá sua palavra? — Deixá-lo balançar o que eu mais
queria no mundo diante de mim como se fosse um presente doeu
muito. Mais ainda porque era uma coisa que estava fora de meu
alcance.
Ele piscava lentamente, em aparente descrença. No entanto, sua
mente sempre se mantinha afiada.
— Você está disposta a cortar todos os seus laços com o Império
Celestial? — rebateu ele, procurando a menor rachadura em minha
compostura.
Estaria falando de Liwei? Vesti uma máscara de indiferença.
— O Império Celestial não significa nada para mim. O imperador
prendeu minha mãe. A imperatriz me tratou com despeito e desdém.
Quanto ao filho deles… — Nesse ponto, deixei uma nota de
provocação adentrar minha voz. — Você ainda está com ciúmes
dele? Ele me magoou no passado, e eu só o ajudei depois porque
esperava que ele interviesse por minha mãe. — Foi disso que Liwei
me acusou antes. Era exatamente no que Wenzhi poderia acreditar,
por causa de sua própria falta de escrúpulos. Eu me aproximei dele
até que a seda de nossas vestes se tocasse. — Você foi minha
escolha, mesmo antes de irmos atrás dos dragões. Minha raiva nos
últimos dias não tinha nada a ver com ele, mas com você , com o
que você fez, com a sua mentira para mim, com a quebra de nossa
confiança. — Suavizei a entonação; agora falava baixo, com certa
expectativa. Inclinei a cabeça para trás. — Ah, eu ainda não o
perdoei, vai demorar um pouco. Mas isso depende de…
— Do quê? — questionou ele.
— De você conseguir ou não consertar as coisas entre nós.
Ele olhava para mim com os braços cruzados. Eu conhecia
aquele olhar imerso em pensamentos, sopesando cada palavra que
eu dizia contra o que ele sabia. Ele se lembrava da frieza entre Liwei
e eu no Reino Mortal? De minha promessa a ele no telhado? As
melhores mentiras eram de fato aquelas impregnadas de verdade.
Finalmente, ele relaxou os braços e acalmou a expressão.
— Fique comigo, e prometo libertar sua mãe assim que
derrotarmos o Império Celestial. Sua família também será minha.
Ele proferiu essas palavras com a seriedade de um voto, o que
teria me trazido muita alegria apenas alguns dias antes; mas, agora,
fazia meu estômago revirar! No entanto, a esperança de que ele
tinha acreditado em minhas mentiras, de que eu ainda tinha uma
chance, se acendeu dentro de mim.
— Eu vou cobrar isso. — Falei cada palavra com a voz gentil e
pausada.
Seus olhos brilharam como prata derretida quando ele levantou a
mão para acariciar minha face. Nosso abraço na aldeia mortal
passou por minha mente, quando eu ansiava por seu toque e queria
mais. Mas eu sabia o que ele queria de mim agora, e não daria isso
a ele. Não conseguiria beijá-lo novamente; eu não era uma
mentirosa tão boa assim.
— Vamos tomar uma bebida? Para celebrar — sugeri.
— Se você quiser. — Ele baixou a mão, levantando a voz para
chamar uma criada, que entrou com uma reverência respeitosa.
— Vinho de jasmim-do-imperador — ordenou ele, lembrando-se
de minha bebida preferida.
No entanto, tal consideração era irrelevante agora; eu precisava
de uma bebida mais forte para disfarçar o amargor dos lírios-das-
estrelas. Meus dedos roçaram a pele fria de seu pulso enquanto eu
tentava não tremer.
— Estou com disposição para outra coisa. Vinho de ameixa,
talvez?
Ele acenou para a criada, que fez uma reverência antes de sair.
Quando as portas se fecharam, ele deu um passo em minha
direção, com o olhar cheio de desejo. Vasculhei os arredores,
procurando algo — qualquer coisa — para distrair seus
pensamentos. Um guqin estava sobre uma mesa baixa no canto, um
belo instrumento de madeira com verniz vermelho e incrustado com
madrepérola.
— Sabe tocar? — perguntei. Um lembrete gritante de que eu não
sabia muito sobre ele.
— Um pouco.
— Quem diz “um pouco” normalmente quer dizer “muito”. Você é
habilidoso? — Minha voz tinha um timbre desafiador. Ele deu um
sorriso em resposta.
— Um pouco.
Ele se curvou diante do instrumento com a testa franzida de
concentração. Sua melodia começou em um sussurro tentador, doce
e leve. Enquanto ele dedilhava as cordas, suas notas subiam e
desciam com uma beleza assombrosa. Ele tocava com tanta
intensidade, tanta paixão, que, mesmo com tudo que eu sabia sobre
ele, sua música me comoveu profundamente.
Enquanto a última nota terminava de soar, esfreguei as mãos na
parte inferior de meu manto. As pétalas amassadas dos lírios-das-
estrelas caíram no chão sem serem notadas e seu sumo estava
espremido no vinho que a criada trouxe. Erguendo a jarra de
porcelana, enchi um copo e o ofereci a ele com as duas mãos. Ele o
aceitou com um sorriso, mas, quando o levou aos lábios, fez uma
pausa.
De imediato, ergui o meu copo e disse:
— Pelos dias futuros.
Ele aceitou meu brinde e bebeu de uma vez. Sua expressão
estava surpresa, perplexa, até. Teria ele se surpreendido com o
sabor?
— Você toca bem — comentei com um pouco de pressa,
esperando desviar sua atenção.
— Não tão bem quanto você domina a flauta.
A única vez que ele me ouvira tocar foi no banquete de Liwei: a
música que eu lhe dera de presente. Wenzhi nunca tinha me
convidado para tocar antes e eu me perguntava, seria por causa
disso? Para ganhar um tempo precioso, peguei minha flauta,
inclinando a cabeça em direção a ele como se fizesse uma
pergunta.
— Seria uma honra — respondeu ele, calmamente.
Fazia muito tempo que eu não tocava. Soprei várias notas soltas
para me acostumar novamente com o instrumento, vasculhando
minha mente para encontrar a música que eu queria. Meu fôlego
deslizou para dentro da jade oca, comedido e tranquilo, soltando
notas calmantes e longas. Enquanto tocava, pensei na cachoeira no
Pátio da Eterna Tranquilidade, na água que batia nas rochas e
embalava meu sono. Na lua no céu escuro, em seu brilho
confortando incontáveis mortais antes de seus olhos se fecharem.
Nos lírios-das-estrelas esmagados no vinho de Wenzhi, uma poção
para dormir mais potente do que meia dúzia de jarras de vinho —
que naquele momento corria em suas veias.
A mão dele agarrou minha flauta, tirando-a de meus lábios. Meu
pulso acelerou enquanto eu lhe lançava um olhar inocente. Tirei o
instrumento de suas mãos fracas e o joguei de volta em minha
bolsa. Apressadamente, puxei o guqin para mim, dedilhando a
primeira música em que consegui pensar — uma melodia vibrante e
animada. Eu estava sem prática, era menos habilidosa que ele, mas
isso bastou para abafar a voz dele e ocultá-la dos soldados do lado
de fora.
Ele piscava lentamente, como se lutasse contra a onda de sono
que, eu rezava, o faria apagar em breve.
— Xingyin, o que você fez? — Suas palavras eram arrastadas,
seu tom de voz era fúria misturada com mágoa.
— Nada além do que você merecia. — Meus dedos deslizavam
sobre o guqin , arrancando acordes ondulantes que culminaram em
um crescendo triunfal, zombando da situação de Wenzhi.
Um suspiro engasgado saiu de sua garganta, como se ele
estivesse tentando chamar os guardas, enquanto uma nova melodia
fluía de meus dedos, triste, com notas assustadoras e prolongadas
que abafavam seus gritos.
— Por quê? — indagou ele, com aspereza. Lancei um olhar
desde-nhoso.
— Você realmente achou que eu poderia perdoá-lo por tudo o que
fez? Que minha promessa aos dragões seria quebrada tão
facilmente? Que eu poderia trair as pessoas com quem me importo
para cumprir meus próprios objetivos? Eu não sou você.
Ele tateou a cintura, mas não havia nenhuma arma nela. Mais
uma vez, ele tentou chamar os guardas, mas sua voz nada mais era
do que um sussurro rouco.
— Isso não vai mudar nada.
— Talvez não — sibilei, dedilhando as cordas sem pausa. — Mas
eu sei tudo sobre sua armadilha para o Exército Celestial. Eu tinha
de fazer alguma coisa ou nunca seria capaz de me perdoar.
— Eles já estão aqui. É tarde demais. — Com os olhos fechando,
ele estava com uma expressão rígida. — Eu sabia que ele viria. Por
você ou pelas pérolas. Não importava pelo que, mas eu sabia que
ele viria. — A voz dele virou um resfolegar tenso. — Assim como eu
suspeitei que você iria até ele se pudesse. Eu esperei que não,
mas… — No ponto em que estava sentado, ele tonteou, piscando
rapidamente até suas pálpebras se fecharem e ele cair no chão.
Continuei tocando até o fim da música; parar naquele momento
levantaria suspeitas. A melodia queixosa foi um adeus adequado a
tudo o que havíamos perdido.
No momento em que a última nota parou de soar, fiquei de pé em
um salto. Eu não tinha certeza de quanto tempo eu tinha até que o
efeito da bebida passasse. Pegando uma espada de sua coleção,
com cabo de jade branco cravejado de rubis, olhei para a porta e
balancei a cabeça negativamente. Não podia escapar antes de
encontrar as pérolas; não podia deixá-las nas mãos de Wenzhi.
Olhei de relance para seu corpo imóvel, suas vestes verde-escuras
espalhadas pelo chão, seu cabelo se espalhando ao redor dele
como uma poça de tinta. O sono relaxou suas feições severas,
fazendo minha consciência doer, ficando cheia de vergonha naquele
momento.
Assim como acontecia com ele, foi muito fácil para mim enganar
uma pessoa.
34

A s pérolas estavam ali, eu tinha certeza disso. Wenzhi manteria


um item precioso desses à mão, principalmente na véspera da
batalha. Abrindo as gavetas de sua mesa, encontrei apenas alguns
selos de jade e de metal, uma pedra de tinta e folhas de papel
soltas. As prateleiras não continham nada além de livros e
pergaminhos, enquanto o armário estava empilhado com roupas
que caíram no chão em minha busca frenética.
O sol desceu, o quarto ficou mais escuro. Acendi as lanternas
cobertas de seda que lançavam seu brilho suave pelas paredes. No
sono profundo, a respiração rítmica de Wenzhi quebrava o silêncio.
Quanto tempo eu tinha até que o efeito da poção acabasse? Ele
pedira para não ser perturbado, mas por quanto tempo essa ordem
valeria? E se alguém lhe trouxesse uma refeição ou um relatório? E
não pude deixar de me perguntar o que os guardas do lado de fora
acreditavam que estávamos fazendo todo esse tempo.
Roí as unhas, que agora estavam na palma de minha mão. Forcei
a calma, o raciocínio. No covil de Xiangliu, eu, de alguma forma,
senti a presença do Arco Dragão de Jade. Fechando os olhos,
concentrei-me em abafar o poderoso pulsar da aura de Wenzhi,
ampliando meus sentidos, tal como fazia ao tentar realizar um
disparo desafiador. Apertei os dedos nas têmporas, tentando
acalmar as batidas fortes de meu coração, silenciar meu medo,
minha frustração e minha esperança — assim como a Professora
Daoming me ensinara. À medida que a quietude vinha, eu passei a
respirar com mais facilidade e a tensão foi deixando meu corpo. Ao
redor estava a escuridão reconfortante entremeada com vislumbres
de luz.
Meus olhos se abriram. Lá estava, aquela sensação indescritível
passando por minha consciência; um sussurro, uma rajada de
vento. Chamando por mim, assim como fez quando me atraiu para a
caverna escondida no Pico das Sombras. Certamente as pérolas
estariam no mesmo lugar que o Arco Dragão de Jade.
Era como andar às cegas na escuridão para achar meu caminho
segurando um fio de teia de aranha como guia. Passo a passo,
rastreei a atração exercida por ele até um pequeno armário
laqueado em um canto da sala. Em minha busca frenética, eu devo
tê-lo ignorado — ou será que havia sido encantado para ficar
invisível? Corri até ele, puxei as alças das portas e vi que estavam
trancadas com um pesado cadeado de latão. Impaciente, peguei
minha espada e serrei as dobradiças o mais forte que pude. A
madeira era resistente e levou tempo; farpas perfuraram minha pele
antes que as portas se quebrassem e se soltassem.
Alguém pigarreou atrás de mim. Foi um som voluntário cheio de
ameaça. Dei meia-volta, com medo de ver que Wenzhi estava
acordado, mas tudo o que vi foram os olhos amarelos do Príncipe
Wenshuang.
Eu não o tinha ouvido entrar, de tão concentrada que estava em
minha tarefa. Só então percebi a mudança no ar, pulsando com o
calor de sua aura. Ele fechou as portas e eu prendi a vontade de
gritar. Sua presença fez o pavor tomar conta de mim, mas temi
alertar mais os guardas. Se eles entrassem, nada do que eu
dissesse os convenceria de minha inocência. Mas ele era apenas
um homem e eu estava muito perto agora; se eu pudesse me livrar
dele…
— Meu querido irmão sabe o que você está fazendo? — indagou
ele, em um tom agradável e com um sorriso brincando nos lábios.
Eu não respondi, minha mente estava em branco. Ele ficou dando
tapinhas no queixo com o dedo, como quem pensa sobre algo,
enquanto seu olhar varria o quarto, que quando entrei estava
impecável, mas agora parecia como se um tornado tivesse passado
ali, espalhando os pertences de Wenzhi sem cerimônia. — Creio
que não. — Ele respondeu à própria pergunta.
Meu coração acelerou quando dei um passo casual para o lado,
tentando bloquear a forma adormecida de Wenzhi de sua vista.
Seus olhos me seguiram e uma luz sinistra brilhou neles quando
pousaram no irmão. Fiquei desesperada, certamente ele gritaria
chamando os soldados. Eu não teria escolha a não ser atacá-lo
quando os guardas entrassem na sala ao primeiro clangor de
metais. Eu seria presa ou morta, os dragões seriam escravizados e
minha mãe ficaria presa para sempre. Liwei e o Exército Celestial
pereceriam.
Sem aviso, ele lançou uma magia e as paredes da sala
começaram a brilhar com uma luz translúcida que se encaixou nas
frestas entre as janelas e as portas. Um frio se formou na boca de
meu estômago, como se eu tivesse engolido um pedaço de gelo. Eu
conhecia aquele encantamento; eu mesma o tecera uma vez no
passado, para evitar que minha música se espalhasse pelo Pátio da
Tranquilidade Eterna. Mesmo que eu gritasse até minha garganta
ficar rouca, os guardas do lado de fora não ouviriam nada além do
farfalhar do vento.
Essa ideia me animou e me aterrorizou ao mesmo tempo.
— O que está fazendo? — Fiquei feliz por minha confusão
mascarar meu medo e, por ser genuína, fez com que ele passasse
despercebido. Embora a sala estivesse silenciosa e meu arco
estivesse à distância de um salto, não ousei arriscar que ele
descobrisse as pérolas. Não enquanto a magia dele saía em ondas
e a minha ainda estava restrita.
— Você tem meus mais profundos agradecimentos. Há muito
tempo desejei por este momento. Não era suficiente para meu irmão
ser reverenciado e elogiado por todos, ele também tinha que roubar
meu direito de nascença… — Ele fechou as mãos.
Afastei-me dele, indo para mais perto do armário laqueado. Ele
inclinou a cabeça para mim.
— Estou muito agradecido, vou até deixá-la fugir. Isso me
poupará o trabalho de me livrar de você e fortalecerá minha história.
Congelei.
— História?
— Todos irão chorar com este conto trágico. Como a espiã
Celestial, por quem meu estúpido meio-irmão se apaixonou, o traiu
e o matou. — O príncipe deu um sorriso perverso.
— Você… vai matá-lo? Seu irmão? E me culpar por isso? —
Apesar de minha raiva por Wenzhi, pensar nisso fez meu coração
se contorcer.
— Meio -irmão — corrigiu ele friamente, ecoando o desdém de
Wenzhi por seu parentesco. — Qual é o problema? Você não quer
fugir? Não odeia ele? Não foi essa a razão de fazer tudo isto? — Ele
gesticulou ao redor do quarto.
Sem esperar por minha resposta, ele desembainhou sua espada
e caminhou em direção a Wenzhi.
O caos explodiu em minha mente. Lembrei a mim mesma que
odiava Wenzhi. Por tudo que ele fizera, por tudo o que planejava
fazer. Eu o detestava e o desprezava e não queria nada mais do
que escapar dali. No entanto, eu podia mesmo ficar parada e deixá-
lo ser assassinado sem chance de se defender? Ele só estava
vulnerável porque eu o havia enganado. Sua morte estaria em
minha consciência, como se eu mesma tivesse cravado a espada
nele. Espontaneamente, fui inundada por lembranças de quando ele
me defendeu contra o Governador Renyu, de quando ele suportou o
peso do ataque de Xiangliu, das muitas vezes que cuidamos e
protegemos um ao outro. Ah, ele mentiu e me enganou demais;
nunca poderíamos voltar ao que já fomos. Contudo, também não
poderia fingir que tudo entre nós ficou para trás. Eu o odiava agora
porque o amei no passado.
Entrei na frente do príncipe Wenshuang, impedindo sua
passagem. Segurei o cabo de jade de minha espada com tanta
força que os rubis marcaram a palma de minha mão.
— Não posso deixar que você faça isso.
As pupilas dele eram fendas de chama amarela.
— Talvez fosse melhor se você não sobrevivesse, no fim das
contas.
Com a espada erguida, saltei na direção dele. Ele aparou o golpe
com a própria espada, antes de disparar em minha direção. Girei
para a lateral, dando uma pirueta para chutá-lo. Ele se esquivou, eu
errei. Minha espada fez um arco no ar em direção ao seu peito e ele
abaixou, mas foi muito lento e a lâmina fez um corte em sua orelha.
Enquanto o sangue escorria pelo pescoço do príncipe, um rosnado
irrompeu de sua garganta. Eu voei nele novamente; a energia
deixou o ar espesso quando um escudo brilhante o envolveu. Minha
espada colidiu com a barreira dele e meu braço latejava enquanto
eu cambaleava com o coice. Antes que eu pudesse me recuperar,
ele agarrou meu pulso, torcendo-o grosseiramente; minha arma caiu
no chão.
Ele deu um soco em minha têmpora e os anéis que ele tinha nos
dedos cortaram minha carne. Arfei quando a dor explodiu em minha
cabeça. A escuridão florescia enquanto eu lutava contra o vazio que
me tentava. Se eu desmaiasse naquele momento, Wenzhi e eu
morreríamos. O Príncipe Wenshuang investiu tão rápido que eu fui
pega de surpresa; ele me puxou pela cintura, apertando meu corpo
contra o dele e me forçando a um abraço repulsivo. A fúria em sua
expressão se transformou em algo mais sinistro, o que me fez
querer vomitar o conteúdo de meu estômago. Se ao menos eu
tivesse meus poderes, o teria arremessado contra a parede até que
todos os ossos de seu corpo imortal se quebrassem. E, ainda assim,
não seria suficiente.
Em vez disso, ataquei com as pernas, acertando seu abdômen
com o joelho. Ele sentiu o golpe, mas não afrouxou o aperto.
Enquanto eu resistia me debatendo, ele torceu meus braços atrás
de mim e me fez virar de costas, empurrando-me contra o chão com
uma força ofuscante. Minha cabeça bateu no mármore, ardendo,
enquanto meu sangue se espalhava pelo chão. Quando ele se
agachou sobre mim, me segurou firmemente pelas omoplatas
enquanto eu me contorcia tentando me soltar.
— Se ao menos eu pudesse contar ao meu irmãozinho sobre
isso. Infelizmente, ele nunca vai acordar.
Ele estava muito perto de mim, e seus perdigotos vinham parar
em minha face.
Eu ofegava, tentando me afastar dele. Ele cravou os dedos em
minha carne com muita força; eu sentia sua respiração quente e
espessa na nuca. O medo me atormentou quando um pensamento
passou por minha mente… talvez a morte fosse misericórdia, afinal.
Não, afugentei de imediato a ideia, tomando muito fôlego e
gritando o mais alto que pude. Que venham os guardas , pensei
loucamente, que me capturem . Eu preferiria ser uma prisioneira a
estar à mercê daquele monstro. Mas foi inútil, o escudo acústico do
príncipe engolia o som. No entanto, eu não parei; o que começou
como um grito oco de medo se transformou em um berro de raiva
incandescente, queimando meu terror, acendendo o fogo em mim…
eu resistiria.
O Príncipe Wenshuang se afastou, talvez desconcertado pela
ferocidade em minha voz. Apenas por um instante, mas foi o
suficiente. Então eu ataquei, batendo a parte de trás de minha
cabeça em seu rosto com toda a força que pude reunir. Um estalo
rasgou o ar. Ele me soltou xingando, pressionando o nariz para
conter o jorro de sangue. Saltei para ficar de pé, peguei minha
espada do chão e a brandi na direção dele. Ele ficou vermelho de
raiva e luzes brilharam em sua mão; um raio de chamas já vinha em
minha direção. Minha espada subiu em um movimento rápido,
bloqueando seu ataque; tentáculos de fogo crepitaram na lâmina,
que se estilhaçou em fragmentos de prata. Eu não parei, joguei-me
no chão de mármore e deslizei, chutando suas pernas. Ele caiu com
um baque, gemendo. Procurei freneticamente por outra arma, sem
me atrever a tirar os olhos dele; o príncipe já estava se levantando,
e sua expressão era pura fúria assassina. Minha espada foi
destruída, mas o cabo de jade em minha mão era pesado e
incrustado de pedras preciosas. Erguendo-o alto, eu o acertei na
têmpora com toda a minha força, duas vezes. Ouvi um estalo
horrível e os olhos dele se arregalaram antes de se fecharem.
Ofeguei, lutando contra a vontade de vomitar quando soltei o
cabo. Escorria sangue do corte em sua testa. Se ele fosse mortal,
meu golpe teria esmagado seu crânio como um ovo cozido. No
entanto, não senti pena dele por planejar matar o irmão adormecido
e pelo que tentou fazer comigo. Uma parte de mim se perguntou:
devo matá-lo? Bastaria uma única flecha de meu arco.
Correndo para o armário, abri o que restava de suas portas; com
cuidado, pois não podia baixar a guarda. Com o príncipe
inconsciente, seu escudo acústico havia se desfeito. Peguei meu
arco, segurando-o com força imediatamente. Mexendo nos
destroços, enfiei a mão neles e encontrei uma pequena caixa de
madeira. Quando abri a tampa, as pérolas brilhavam nela,
luminosas e cintilantes. Quase ri alto de tanto alívio. Pegando a que
brilhava como fogo à meia-noite, sussurrei o nome do Dragão
Negro, rezando para que o vento levasse minhas palavras
rapidamente para o Mar do Leste.
Um gemido veio a meus ouvidos. Olhei para trás e vi Wenzhi se
mexendo; sua cabeça balançava de um lado para o outro, como se
ele estivesse tendo algum sonho inquieto. O efeito da poção estava
passando! Segurei o arco com mais força, mesmo quando resistia à
tentação de atirar. Eu não seria diferente de seu irmão se fizesse
isso. E certamente os guardas invadiriam ao ouvir o disparo e me
prenderiam no quarto. Preparando-me, atravessei as portas
correndo, seguindo em disparada pelo pátio. Gritos assustados
irromperam atrás de mim: eram os soldados pegos de surpresa por
minha corrida repentina. O choque deles não durou muito; sua
magia já estava se espiralando em meu encalço. Pior ainda, uma
voz familiar chamou meu nome em um grito desesperado. Wenzhi.
Totalmente acordado agora e correndo atrás de mim; cada passo de
suas pernas compridas vencia os meus com facilidade. O ar brilhou
com sua magia e cristais de gelo surgiram no ar…
Segui bruscamente por outro caminho, fugindo de seu feitiço, mas
uma parede surgiu diante de mim e sua pedra lisa era impossível de
escalar. Passos soaram mais alto; eles estavam quase me
alcançando. Saltando em um dos pilares de mármore, subi nele,
usando a treliça ornamentada como ponto de apoio. Como eu fazia
isso com frequência no Palácio de Jade, tinha experiência nesse
tipo de subida.
No telhado, saquei o Arco Dragão de Jade, quase chorando ao
ouvir seu poder crepitando da forma que eu me lembrava. Com
minha energia ainda bloqueada, a corda estava dura e cortava meus
dedos; o Fogo do Céu era uma mera sombra de sua antiga força.
Eu só podia rezar para que fosse suficiente e o apontei para baixo,
para o inimigo que surgiria a qualquer momento; minhas entranhas
estavam apertadas com a ideia de ter que disparar.
Mas, então, os pinheiros estremeceram, dobrando-se a uma
rajada de vento que arrancava suas agulhas perfumadas, que
cobriam a grama. A lua minguante desapareceu, escondida atrás da
criatura sombria que desceu em minha direção, com olhos âmbar
que brilhavam como duas estrelas no céu. O Dragão Negro chegou
e sua imensa forma ondulava enquanto pairava acima de nós.
Wenzhi apareceu, escalando com graça e agilidade. Ele veio em
minha direção, parando apenas ao ver a flecha acesa e apontada
para seu peito.
— Eu deveria acertar seu coração perverso com isso.
O olhar de Wenzhi era ardente. Ele chegou mais perto.
— Por que não faz isso, então?
Segurei o arco com mais força ainda, mantendo a flecha firme.
Seria muito fácil atirar. Ele estava acordado, provocando-me; não
havia desonra nisso. No entanto, por que eu hesitava? Gritos vindos
de baixo chamaram minha atenção. Nuvens desceram do céu,
convocadas por seus soldados. Logo eles viriam voando atrás de
mim.
O céu não estava mais impenetravelmente escuro, sendo
marcado por lascas de luz. O amanhecer estava quase sobre nós.
Em breve, o Exército Celestial marcharia… eu estava ficando sem
tempo.
Afrouxei a corda. A flecha desapareceu. Girei nos calcanhares,
correndo pelo telhado, e saltei da borda com as pernas arqueando
no ar. Minha mão agarrou uma garra dourada e me esforcei para
manter a firmeza nela enquanto a cauda do dragão se enrolava em
volta de minha cintura para me colocar em suas costas. Passando o
tecido delicado de meu manto, eu sentia suas escamas duras e frias
como pedra.
O Dragão Negro subiu ao céu. Mais rápido que qualquer pássaro,
que o próprio vento. Olhando para baixo, tive o primeiro vislumbre
do Reino dos Demônios, da cidade que descansava em um banco
interminável de nuvens violetas. Lanternas de seda flutuavam em
seu entorno, lançando um brilho etéreo sobre as casas de ébano e
de pedra. Seus telhados eram arqueados com beirais virados para
cima em cada vértice, vitrificados em tons brilhantes, como joias na
noite. Ainda maior que eles era o palácio do qual eu fugira, com
ladrilhos de pedra iridescentes brilhando com a beleza indescritível
de um arco-íris.
A cidade estava silenciosa, enredada nos espasmos do sono. No
entanto, por mais que tentasse, não consegui tirar a voz de Wenzhi
de minha mente, nem a angústia com a qual ele chamou meu nome.
O corpo poderoso do Dragão Negro percorreu vastas distâncias em
meros instantes. Logo o Reino dos Demônios desapareceu de
minha vista, como se fosse um pesadelo do qual eu despertara —
exceto pelas memórias profundamente gravadas em mim e pela dor
que obscurecia meu coração.
35

O ar trovejava em poder, como se fosse uma tempestade


turbulenta. Olhando para baixo, um calafrio subiu por meus braços e
minhas pernas. Cerca de mil soldados de armadura negra
velejavam em nuvens violeta, uma sombra rastejando no céu. Eles
estavam estranhamente silenciosos, sem o tinir de metais ou o som
do vento, e eu amaldiçoei a esperteza deles em abafar os ruídos de
seus movimentos.
O dragão voou à frente até quase os ultrapassarmos. Os soldados
na frente usavam elmos de bronze reluzentes cravejados de ônix.
Quando eles levantaram as mãos, surgiram ondas cintilantes de luz.
A energia pulsando através do ar ficou mais intensa e uma névoa
opaca com reflexos vermelhos em suas dobras se formou, como
gotas espalhadas de sangue. Essa névoa subiu rodopiando pela
noite e alguns de seus vapores atingiram a parte inferior de meu
manto. Uma doçura pesada inundou meus sentidos, misturada ao
cheiro desagradável de frutas estragadas — meus pulmões foram
fechando como se eu estivesse me asfixiando com fumaça. Minha
mente ficou enevoada e eu estremeci, abraçando a mim mesma
enquanto minha cabeça girava de um lado para o outro, tentando
entender o ambiente desconhecido.
Onde eu estava? Como viera parar ali? E o que eram aquelas
luzes voando pelo céu como gotas de chuva escarlates? Meu
estômago embrulhou quando vi a criatura que me carregava tão
rapidamente, de escamas negras, garras douradas e bigodes
ondulando para trás como fitas de seda. Magnífica, aterrorizante,
embora estranhamente familiar. Será que a vira em uma gravura?
Para onde estava me levando? Tentei pegar o arco para me
defender, para exigir uma explicação, mas a criatura deu uma
guinada para cima, subindo muito alto, até onde o céu estava
escuro e sem nuvens. Parcialmente congelada de medo, eu a
agarrei instintivamente e o vento açoitava meu rosto enquanto eu
tentava respirar. Como era fresco o ar que enchia meus pulmões
agora e expelia o aroma doce e enjoativo!
Minha mente ficou limpa novamente, embora eu ainda estivesse
me recuperando do choque.
— Eu… eu não me lembrava mais de você — disse ao dragão. —
Pensei que fosse um inimigo e quase atirei em você.
Sua voz prateada soou em minha cabeça.
— A névoa da confusão é um feitiço da Mente. Suas vítimas não
conseguem distinguir amigo de inimigo, e suas memórias ficam
borradas enquanto a estão inspirando. Embora seja menos
poderoso que a compulsão, esse feitiço pode atingir uma área muito
maior.
— Um exército inteiro. — Os Celestiais estariam indefesos contra
isso, presos como borboletas em uma rede. — Como podemos nos
proteger? Com um escudo?
— Apenas o mais forte dos escudos funcionaria; a névoa é capaz
de atravessar a menor rachadura ou fenda. Tal ardil não pode ser
facilmente desfeito, mas é possível evitá-lo, dispersá-lo ou purificá-lo
a partir dos céus.
Abaixo de nós, o deserto brilhava em ouro polido — o vasto
crescente de terra que ficava entre o Reino dos Demônios e o Reino
Imortal. Centenas de luzes piscavam logo à frente, e fogueiras se
apagavam ao amanhecer. O alívio tomou conta de mim porque não
era tarde demais: o Exército Celestial ainda não havia marchado.
Quando descemos, as cabeças de todos os soldados se voltaram
para o Dragão Negro — o medo se misturava ao espanto —
enquanto pousávamos em um monte de areia ondulante. Eu desci
de suas costas deslizando e tropeçando no chão. Só então alguns
soldados se viraram para mim, como se tivessem acabado de notar
minha presença.
— Espere — ordenou o Dragão Negro. Ele abriu a boca e seu
sopro claro atingiu como geada os braceletes que me acorrentavam.
O metal se partiu, caindo na areia em cacos. Esfreguei meus pulsos
para aquecê-los. Soltos, estavam maravilhosamente leves.
— Obrigada. Por tudo — agradeci.
O Dragão Negro inclinou a cabeça em resposta. Com um gracioso
salto no ar, voou em direção ao Mar do Oeste, com as escamas
brilhando como brasas à luz do sol nascente.
Só então notei os soldados me cercando. Minha saudação morreu
em meus lábios ao ver seus rostos, envoltos em desconfiança e
repugnância.
— Traidora — sibilou alguém, um soldado que serviu sob o
comando de Wenzhi no Mar do Oeste. — Estava planejando nos
abandonar todo esse tempo enquanto fazia suas refeições na tenda
do capitão?
— Por que está aqui? — vociferou outro. — Volte para os
Demônios, seu lugar é com eles!
Um coro de concordância ergueu-se do resto. Eles não eram
todos desconhecidos meus; reconheci vários com quem havia
treinado, outros da tropa de Wenzhi. Tínhamos lutado juntos,
minhas flechas trabalharam em uníssono com suas espadas e suas
lanças. Eu não devia ter esperado outra coisa. Haveria surpresa, é
claro. Perguntas, com certeza. Porém, uma vez que eu me
explicasse, eles não ficariam felizes por eu ter conseguido fugir? No
entanto, tudo o que eu via agora eram seus olhares hostis e suas
armas apontadas para mim. No tumulto, eu quase me esqueci dos
rumores que Wenzhi havia espalhado. Eles acreditaram naquelas
mentiras sobre mim com uma facilidade incrível.
— Seus tolos — disse uma voz familiar. Era Shuxiao, abrindo
caminho no meio da multidão, com seus longos cabelos enfiados
em um capacete dourado.
Meu ânimo se elevou, embora eu não ousasse correr para ela e
macular minha amiga com esse gesto de intimidade. Entretanto, ela
não teve o mesmo decoro, passando o braço no meu.
— Não acreditem em tudo que ouvem, especialmente se vier do
Reino dos Demônios. O Príncipe Liwei nos disse que Xingyin foi
sequestrada. Ela nunca teria ido até lá por vontade própria. —
Shuxiao murmurou em meus ouvidos: — É melhor que não tenha
ido. Você devia mesmo ter me deixado ir atrás dos dragões consigo.
Talvez passasse por muito menos problemas.
— Eu quis muito que você pudesse ir — falei, comovida. Ela
apertou meu braço um pouco mais forte antes de soltá-lo.
— Você está bem?
— Agora estou.
Não estávamos fora de perigo, mas me ocorreu que eu estava em
liberdade. Com súbita clareza, percebi como esse sentimento era
precioso. Com que facilidade ela poderia ser tomada. E quanto a
prisão custara à minha mãe e aos dragões.
A multidão de soldados se abriu quando Liwei caminhou em
minha direção, parando a um passo de distância. Sua armadura de
ouro branco brilhava e um manto de brocado escarlate fluía de seus
ombros. Nenhuma palavra saltou à minha língua, e eu estava
contente naquele momento apenas por olhar para ele — seguro,
ileso, vivo. Lentamente, como se despertasse de um sonho, Liwei
diminuiu a distância entre nós e me envolveu em seus braços. Sua
armadura pressionou minha pele, mas eu me agarrei a ele em uma
vontade egoísta; o calor de seu abraço afastava minha angústia e
meu terror, descongelava a frieza que surgira entre mim e ele.
Naquele momento, não pensei no perigo iminente ou na ira do
imperador, até que uma tosse me assustou, um lembrete de que
estávamos cercados por soldados vigilantes. Os braços de Liwei
relaxaram e eu dei um passo rápido para trás.
— O que aconteceu? Quem é Wenzhi de verdade? — questionou
ele.
— É o filho do Rei Demônio. — Mesmo naquele momento, a
afirmação soava obscena aos meus ouvidos. Shuxiao soltou o ar,
surpresa.
— Capitão Wenzhi? Um Demônio? Mas você e ele não… — Ela
lançou um olhar furtivo para Liwei.
— Impossível. Nossas barreiras nunca teriam permitido que um
Demônio entrasse — declarou ele.
— Ele me contou que elas não são mais tão fortes quanto no
passado. E os poderes dele são formidáveis. — Lembrei-me de
suas pupilas, gemas prateadas reluzentes. Ele não tinha descido tão
baixo a ponto de me controlar por meios tão desprezíveis, mas,
depois do que eu tinha feito, talvez ele não pensasse em ter esse
cuidado novamente.
— O que ele queria? — indagou Liwei, sério. — Embora eu possa
imaginar.
— As pérolas, para garantir seu status de herdeiro. — Não
detalhei mais que isso. As outras coisas que ele havia dito… quando
estávamos a sós.
Liwei cerrou os dentes e sua garganta se mexia, como se
estivesse se segurando para não perguntar mais nada.
— Espere, eu preciso mostrar uma coisa. — Acessei minha
energia, com um alívio enorme por ver que meus sentidos estavam
afiados novamente; o poder fluía de mim em uma corrente brilhante
que dissipou o encantamento do Exército dos Demônios. A apenas
cem passos de distância, a terra tremia como um lago agitado pelo
vento. O ouro se transformou em violeta e a areia se transformou
em nuvens.
— Uma fronteira falsa — murmurou Liwei, com a voz repleta de
horror.
— Uma armadilha para fazer você quebrar o tratado.
— Se fizéssemos isso, eles poderiam ter retaliado sem medo de
represálias. Teriam nos pegado desprevenidos. Não estamos
preparados para a batalha; nossa presença aqui foi planejada como
uma distração enquanto procurávamos por você.
— Por mim? — repeti, incrédula. O imperador nunca teria
ordenado ao exército que marchasse em meu nome. A menos que
fosse para me levar de volta e ficar diante de sua ira. A boca dele se
ergueu em um sorriso irônico.
— Para papai, a prioridade é recuperar as pérolas, é claro. No
entanto, para mim, não há outra razão além de você.
Uma ternura floresceu dentro de mim, tão preciosa e frágil como o
primeiro sol após a geada de inverno. Tínhamos trilhado esse
caminho muitas vezes antes. Assim que eu acreditei que a porta se
fechara de vez, ela se abriu novamente. Mas eu não interpretaria
suas palavras para além do que eram; ele não teria feito menos pela
Princesa Fengmei. Desta vez eu me resguardaria melhor, estava
cansada de ser machucada.
— Como você escapou? — perguntou Liwei.
Sorri para ele, meu primeiro sorriso verdadeiro desde que fui
raptada.
— Lembra dos lírios-das-estrelas? Da lição, da resposta que você
soprou para mim e que me salvou de uma bronca? — Aquela
manhã na Câmara de Reflexões parecia outra vida. — Por sorte,
você era um estudante dedicado. Eu não os conheceria se não
fosse por isso. — Ele assentiu, embora parecesse um pouco
confuso. — Eu usei o sumo deles para fazer Wenzhi dormir.
Um silêncio tenso caiu sobre nós. Se ele estava imaginando como
eu havia feito isso, como eu convenci Wenzhi a beber a poção, não
me perguntou. De todo modo, eu não tinha certeza se contaria a ele.
— Pena que você não tinha acônito, seria um sono mais
duradouro. — Seus olhos brilharam perigosamente enquanto ele
acariciava o inchaço em minha têmpora e os cortes em minha
bochecha e em meu lábio com uma ternura dolorida. Quando ele
pegou minha mão, sua energia fluiu em mim com um calor
formigante e meu desconforto desapareceu. — Ele machucou você?
— indagou ele, com dificuldade.
— Não! Foi o irmão dele. — Meu estômago revirou de náusea
quando me lembrei do corpo do Príncipe Wenshuang contra o meu,
de sua respiração em minha nuca.
Shuxiao passou o braço em volta de mim em um gesto silencioso
de acolhimento, talvez percebendo minha angústia.
As mãos de Liwei se fecharam em punhos.
— Foi culpa minha. Os soldados dele me atacaram, não consegui
me livrar deles rapidamente. Você havia sumido, só mais tarde
descobrimos onde estava. Eu sinto muito… por não a ter encontrado
antes.
— Eu escapei, estou ilesa. Assim como você — lembrei, tentando
afugentar nosso mal-estar. — E estou com as pérolas. É isso que
importa. — Um poder agitou o ar, vindo do oeste, onde ficava o
Reino dos Demônios. O terror me envolveu e agarrei o braço de
Liwei. Não havia acabado ainda. — Temos de ir embora. Agora. O
exército de Wenzhi está próximo. Eles planejaram lançar uma névoa
encantada sobre nosso exército assim que você cruzasse a
fronteira; ela nos deixaria confusos. Ele ainda pode fazer isso;
Wenzhi não vai parar até recuperar as pérolas. Em um lugar tão
remoto, quem saberia a verdade? Sem testemunhas, ele pode
alegar o que quiser. — Xinguei a mim mesma por não ter pensado
nisso antes.
Liwei deu meia-volta, convocando seus comandantes, mandando
soldados em busca deles. Após uma breve espera, três generais
correram em nossa direção; a luz do sol brilhava em seus capacetes
adornados com borlas grossas de seda vermelha. Eles eram mais
velhos que Liwei; um deles era um imortal de aparência distinta com
mechas brancas no cabelo, o General Liutan, que muitas vezes
enviava seus soldados para observar minhas práticas de tiro com
arco no campo. Como se fossem um só, curvaram-se para Liwei,
cobrindo os punhos com a mão aberta.
— Isto é uma emboscada. Reúna as tropas, voltaremos para casa
imediatamente — ordenou ele, com firmeza e vigor.
Os olhos dos generais vieram até mim, cheios de desconfiança.
Ergui mais ainda a cabeça, contendo a vontade de recuar. Eu não
fizera nada de errado; arrisquei minha vida para alertá-los.
O mais baixo dos três deu um passo à frente.
— Vossa Alteza, onde ouviu isso? A ordem de seu pai era que
permanecêssemos na fronteira até recuperarmos as pérolas dos
dragões.
Liwei contraiu a mandíbula quase imperceptivelmente.
— A Primeira Arqueira Xingyin trouxe novas informações.
Alguém bufou, não soube dizer quem. O General Liutan lançou
um olhar acusador em minha direção antes de dizer:
— Vossa Alteza, pedimos que tenha cautela. Ela é uma espiã do
Reino dos Demônios.
— Não sou espiã alguma — retruquei com o máximo de firmeza
possível, embora seu desprezo e sua descrença me fizessem ficar
furiosa. — Essas mentiras foram espalhadas para fazer parecer que
o Reino dos Demônios não foi responsável pelo roubo das pérolas.
Não dizer nada teria o mesmo efeito. A expressão do General
Liutan permaneceu inalterada e ele acrescentou:
— Vossa Alteza, espiões são os indivíduos mais hábeis em fingir
inocência. Seu pai…
— Basta — interrompeu Liwei, com a voz tão afiada quanto uma
espada. — Confio minha vida à Primeira Arqueira Xingyin, a qual ela
salvou mais de uma vez. Vai desafiar minha ordem, General Liutan?
O rosto do general ficou lívido, como se ele estivesse doente.
Todos os três caíram de joelhos ao mesmo tempo.
— Obedeceremos, Vossa Alteza.
Com um movimento de mão, Liwei ordenou que se levantassem.
— Não há tempo a perder. Os Demônios dispersarão uma névoa
para nos confundir. Não ataquem a menos que seja necessário.
Conservem a energia de suas tropas para voar e erguer escudos.
— Esses escudos devem ser fortes, muito bem conjurados. — Os
generais nem olhavam em minha direção enquanto eu falava. A
raiva me atingiu, mas segui em frente, ignorando o desprezo deles.
— Voar é o meio mais seguro, embora a névoa possa ser purificada
com vento ou chuva. Não a inalem. Respirá-la apenas uma vez já é
o bastante para que surta efeito. — Minha voz falhou quando me
lembrei de minha própria desorientação, de quase ter atacado o
dragão.
O General Liutan hesitou.
— As pérolas, Vossa Alteza. E quanto a elas? Isso não seria um
truque para nos deixar de mãos vazias?
— Elas estão comigo — interpelei, impaciente para silenciar suas
dúvidas. E lamentei essas palavras quando vislumbrei o brilho nos
olhos dele. — Mas não ficarão comigo por muito tempo se não nos
apressarmos.
— Espalhem as notícias. Cada nuvem deve ter apenas duas
pessoas, no máximo três, velocidade é essencial — ordenou Liwei.
Os generais fizeram uma reverência antes de darem meia-volta e
saírem quase correndo.
— Liwei, também devemos ir — insisti.
— Não vou até que o acampamento esteja vazio. Mas você…
você deve ir embora com as pérolas — alertou ele, com seriedade.
Toquei a bolsa de seda. Não queria deixar Liwei em perigo
naquele lugar. Mas ele estava certo, eu não podia deixar Wenzhi
reaver as pérolas. Assumi esse fardo, e o carregaria.
— Tenha cuidado. Não demore muito, ou voltarei por você —
disse, com mais intensidade do que pretendia.
— Isso é uma promessa ou uma ameaça? — O canto de seu
lábio se curvou em um sorriso torto. — Confesso, meu orgulho ficará
gravemente ferido se você me salvar novamente.
— Antes ferido do que morto. — Meu tom de voz leve mascarava
minha preocupação, mas eu confiava nele para cuidar de si mesmo,
e havia coisas maiores do que nós em jogo.
Nuvens desciam de cima. Quando os soldados Celestiais
saltaram sobre elas, alçando voo, suspirei aliviada. No entanto,
quando um aroma muito enjoativo veio flutuando até meu nariz, girei
em meu próprio eixo e meu corpo se contraiu de terror.
Nosso tempo tinha acabado.
36

U m exército-noite voava em nossa direção, liderado por Wenzhi,


com a face pétrea e soturna. Como chegamos a isso? Havia apenas
algumas semanas ele lutava ao meu lado; agora, era o inimigo.
— Depressa, Xingyin! — Shuxiao estendeu a mão, ardendo em
luz. Quando uma nuvem mergulhou, ela a puxou para si, quase me
arrastando.
O vento açoitou minha pele, meu cabelo esvoaçava atrás de mim.
À medida que nos afastávamos da fronteira, o deserto ondulava
diante de nós como um rolo de cetim desfiado. Estiquei o pescoço,
procurando por Liwei entre os Celestiais em fuga, e perdi o ânimo
ao não encontrar nenhum vestígio dele.
— Preciso voltar — avisei a ela. — Algo deve ter dado errado.
Shuxiao olhou para trás, enrijecendo o corpo.
— Xingyin, algo deu errado.
Atrás de nós, a névoa da confusão passava por entre os
soldados, brilhando com estrelas ensanguentadas enquanto riscava
os céus. Ela se aproximava mais a cada momento, e seus vapores
se agarravam a tudo que estava ao alcance. Felizmente, a nuvem
de Shuxiao era rápida; nós estávamos à margem do gás mágico. No
entanto, mesmo àquela distância, fui atingida por uma onda
atordoante. Apressadamente, teci um escudo sobre nós, selando-o
firmemente para que nenhum traço do vil feitiço pudesse passar. Os
Celestiais mais próximos de nós seguiram o exemplo e escudos
reluzentes formaram um arco sobre eles enquanto se afastavam.
Porém vi horrorizada como a maior parte do exército atrás de nós,
onde a névoa rodopiava mais espessa, parava completamente.
— Ergam seus escudos! — gritei para eles, mas minhas palavras
se perderam no tumulto.
Seus olhos adquiriram um brilho vítreo, seus movimentos eram
bruscos e incertos. Meu estômago congelou quando alguns deles
começaram a sacudir as cabeças em aparente confusão,
arranhando os próprios pescoços. Alguns caíram, contorcendo-se
enquanto arrancavam os capacetes e até os cabelos. Uma soldado
cambaleou até a borda da nuvem e, então, sem hesitar, saltou dela,
mergulhando no vazio. Meu grito cortou o ar, e mesmo que eu tenha
lançado minha magia para pegá-la era tarde demais; ela
desapareceu de vista, e ouvi um baque surdo vindo do solo abaixo
de mim.
Baixei a mão, tremendo.
— Shuxiao, nós devemos… — Como se ela tivesse lido meus
pensamentos, nossa nuvem fez uma curva, voando de volta para a
névoa. Ela estremeceu, gesticulando à frente.
— O que é isto?
— Magia da Mente. Uma de suas manifestações mais grotescas.
— Não me admira que seja proibida — disse ela, enfurecida.
À medida que nos aproximávamos, a verdadeira extensão do
horror se revelava. Lutei contra o desejo de fugir do pesadelo que se
desenrolava. Em meio à névoa turbulenta, alguns Celestiais
lançavam raios de gelo e chamas contra seus companheiros, outros
os atacavam com armas. Um deles enfiou a lança no ombro de sua
companheira, a ponta encharcada de sangue se projetava de sua
carne. Mas a vítima não gritava nem recuava, avançando para
lançar seu peso contra o oponente enquanto caíam, rolando até a
beirada da nuvem. Em outra nuvem, três Celestiais se atacavam
sem ligar para mais nada, com rostos inexpressivos, aparentemente
entorpecidos pela dor, embora sua nuvem estivesse salpicada de
sangue.
Enjoada, senti a ânsia de vômito tomar conta de mim. Não
importavam as alegações de Wenzhi, a maldade nessa magia ia
além de qualquer outra. Com amigo versus amigo, a atrocidade era
duas vezes maior. Esse tormento perverso condenaria quem tivesse
a sorte de sair vivo a uma vida inteira de remorso e de tristeza.
Por que eles não se protegiam, onde estavam seus escudos? Por
que não tentaram afastar a névoa? Será que foram muito lentos e
foram afetados antes que tivessem a chance de se proteger? Ou
será que os generais não repassaram meu aviso? Seus rostos
desconfiados passaram por minha mente. Talvez realmente
acreditassem que eu era uma traidora e Liwei, um tolo confiante.
A névoa ficou mais espessa, espalhando seu brilho malévolo até
o céu parecer encharcado de sangue. Em um momento ela engoliria
quem estivesse à margem, infiltrando-se em seus escudos e
jogando-os ao caos. Mais gritos rasgaram o ar, junto com uivos de
terror. Eu estava longe da névoa, mas mesmo assim me senti
engolida pela impotência. Eu odiava o fato de não haver monstro
para matar, nenhum alvo a ser atacado. De que serviria meu arco
contra aquele inimigo terrível? Uma coisa nebulosa e mutante, com
uma fome que nada poderia saciar.
Shuxiao me agarrou, cravando as unhas em meu braço.
— General Liutan! — gritou ela, apontando para a frente.
Eu me virei e vi o general de cabelos brancos, aquele que me
acusara de ser uma espiã, cercado por dezenas de soldados
confusos. Um escudo o envolvia, mesmo enquanto os outros se
aproximavam, não deixando nenhum espaço de fuga. Meu
estômago revirou quando eles atacaram o general, que estava com
uma expressão muito consternada pelo esforço de manter o escudo
ativo.
Um Celestial voou em nossa direção, com o manto escarlate
esvoaçando atrás dele. Liwei. Quase chorei de alívio ao vê-lo.
— Vou ajudar o General Liutan. Leve quantos puder para um local
seguro. — Ele fez uma pausa, olhando-me demoradamente. —
Tenha cuidado.
Sem esperar resposta, ele voou em direção aos soldados, com o
ouro de suas armaduras iluminando o céu. No entanto, nada além
do caos reinava no meio deles; Celestiais se contorciam, confusos,
atacando uns aos outros com magia, punhos e armas. Nunca
imaginei tamanha calamidade. Que violência, que brutalidade!
Quando fui atingida pela névoa, só quis me defender, não ferir o
outro. No entanto, nesse momento, a sede de sangue deles
emanava em ondas. Será que o tumulto agravara a confusão de
todos, que sabiam estar em uma batalha, mas eram incapazes de
distinguir inimigo de amigo?
Eles estão sofrendo por sua causa , sibilou uma voz áspera
dentro de mim. Você nunca deveria ter ficado com as pérolas dos
dragões. Veja o que sua ganância e sua arrogância causaram. O
remorso, tal qual um punhal, me esfaqueou profundamente, mas
havia outras forças em jogo também — o desejo do imperador pelo
poder e a ambição implacável de Wenzhi. Minha consciência não
me faria pagar o preço disso tudo sozinha. E eu não chafurdaria na
culpa agora, ainda havia uma chance de acabar com isso.
Um pensamento pérfido rastejou dentro de mim; eu poderia
resolver tudo isso facilmente. Os dragões… e se eu os convocasse
para nos ajudar? Eu já havia chamado o Dragão Negro para me
levar a um lugar seguro. Por que não aproveitar o poder deles para
afastar o inimigo? Em um único ataque eu poderia salvar o Exército
Celestial e vingar a traição de Wenzhi. Com eles sob meu comando,
eu poderia tirar minha mãe das mãos do imperador e devolver sua
liberdade. Minha visão mudou: vi a mim mesma com uma coroa na
cabeça, fazendo quem fosse leal a mim ganhar influência e
eliminando todos os que me fizeram mal. Só então, eu abriria mão
das pérolas. Tudo o que eu tinha de fazer era falar os nomes dos
dragões…
Pus a mão na bolsa. Lutando contra a tentação, eu a recolhi. Não,
tal coisa destruiria os dragões, me destruiria. Eu nunca poderia me
perdoar. Fiz uma promessa a eles, e eu a fiz com seriedade;
portanto, eu a cumpriria. Não ousaria me aventurar por um caminho
do qual talvez nunca conseguisse voltar, pelo menos não até que
todas as outras trilhas fossem percorridas. Olhei para Shuxiao.
— Vento. Chuva. Qualquer coisa que limpe os céus.
Ela assentiu, apertando os olhos com força e se concentrando, e
as veias de seu pescoço começaram a aparecer. Reuni o máximo
de energia que pude e o poder percorreu meu corpo.
— Agora! — bradei.
A magia fluiu de nossas mãos. Uma rajada de vento surgiu no
meio das nuvens, arrebatada de uma tempestade de verão no
mundo mortal, misturada com poeira e calor. Algo sacudiu nossa
nuvem e eu tropecei, equilibrando-me para alimentar o vento
faminto, e o ar agitado se transformou em um vendaval uivante que
se lançou ao céu, dissipando a névoa de quem estava mais próximo
de nós.
No entanto, nosso alcance não era amplo o suficiente; centenas
ainda estavam em perigo. Pior ainda, os Demônios começaram a
responder a nossos esforços, forçando a névoa de volta sobre nós.
Agora ela se contorcia mais e estava mais espessa, presa entre os
dois lados. Por mais quanto tempo poderíamos sustentar aquilo?
Nossos escudos não resistiriam para sempre; já estávamos
cansadas. Se não conseguíssemos espantar a névoa logo, ela
voltaria com mais força, engolindo a todos nós.
Logo à frente, um grupo de Demônios passou disparado, liderado
por Wenzhi. Hesitei por um momento antes de convocar uma nuvem
e saltar sobre ela para persegui-los.
— O que está fazendo? — exclamou Shuxiao.
— Indo atrás deles.
— Está louca? — gritou ela, gesticulando para a horda de
Celestiais confusos à frente.
— Não, e é exatamente por isso que estou fazendo isso. —
Apontei para Wenzhi. — Ele não está aqui por acaso. Talvez eu
encontre uma maneira de impedir isso tudo.
Seguindo Wenzhi em meio às nuvens, voei em uma rota sinuosa
para evitar ser detectada; embora houvesse pouca chance de ele
sentir minha aura em meio àquele vasto emaranhado de imortais.
Saquei o Arco Dragão de Jade de minhas costas e fiquei de
prontidão. Naquele ponto, a névoa era tão densa que eu mal podia
ver além da neblina cintilante de poeira vermelha. Quando um
pouquinho de sua fragrância enjoativa me atingiu — mel e podridão
— prendi a respiração de uma vez, reforçando meu escudo. Eu não
podia perder o controle agora, um momento poderia fazer a
diferença entre a vida e a morte; matar um inimigo ou uma pessoa
amada.
Liwei estava a uma curta distância, controlando um vento furioso
para limpar o ar. Estava funcionando, os soldados começando a sair
de seu transe e a se afastar do General Liutan — mas então Wenzhi
mergulhou em sua direção como um falcão avistando sua presa.
Liwei era seu alvo durante todo esse tempo? Ele não conseguiria
fazer nada, decidi, correndo atrás dele com o coração batendo forte.
Liwei olhou para cima imediatamente, como se sentisse Wenzhi
se aproximar. Por um momento, eles se encararam com olhos tão
brilhantes e tão ameaçadores que eu congelei por dentro. De
espadas desembainhadas, eles atacaram um ao outro com uma
ferocidade imparável. Lâminas se chocaram e faíscas choveram
com a força de seus golpes. Por um momento eu não consegui me
mover, presa nos braços do medo, ainda paralisada pela graça
selvagem da esgrima de ambos, movimentos que eram um borrão
naquela batalha impiedosa.
Quando puxei a corda de meu arco, meus dedos estavam rígidos,
e o Fogo do Céu crepitava em minhas mãos. Eu me preparei para
disparar, lembrando-me de que Wenzhi era o inimigo. Mas eles
eram rápidos demais; as espadas reluziam e seus corpos não
paravam de girar. E se eu errasse?
Nesse momento, Liwei agachou, evitando que a espada de
Wenzhi o decepasse; depois rolou para trás a fim de estocar sua
arma no peito do oponente. Ele desviou, golpeando com a espada
em um amplo arco, vencendo a armadura de Liwei e fazendo seu
sangue espirrar no ar com o corte. Liwei arquejou, levando a mão ao
ferimento.
Enquanto Wenzhi estava de pé diante dele, erguendo sua
espada, algo dentro de mim estalou. Não podia usar o arco: de tão
perto, o Fogo do Céu poderia ferir Liwei também. Espirais de vento
saltaram de minhas mãos, atingindo Wenzhi. Ele se dobrou como se
tivesse levado um soco no estômago, tropeçando até a borda de
sua nuvem. Recuperando o equilíbrio, formou um escudo ao redor
de si. Ele virou em minha direção.
— Xingyin, parece que seus poderes voltaram.
— Por meus próprios méritos — rosnei.
— Porém, você está muito atrasada. — Seu tom de voz parecia
arrependido quando ele levantou a mão novamente e punhais de
gelo foram velozes em direção a Liwei.
Disparei no ar, lançando-me entre eles e conjurando um escudo
em torno de mim e de Liwei — o ataque de Wenzhi se estilhaçou
inofensivamente contra ele. Isso despertou algo em minha mente,
uma lembrança da época em que Wenzhi e eu estávamos na
Câmara dos Leões, quando ele me instruiu a usar meus poderes.
Eu não acho que ele esperava que sua lição fosse usada assim.
Wenzhi fechou a cara. Seria raiva? Decepção? Quando ele
recuou, o ar tremeu com sua energia, que bateu contra meu escudo.
Ele estremeceu enquanto eu resistia, mantendo a barreira mágica
firme contra ele, mas então seus soldados atacaram, lançando
magia sobre nós. Meu escudo se rompeu e estilhaços de gelo,
madeira e chamas me arranharam. Mordi minha língua, prendendo
um grito. Algo sibilou atrás de mim e Liwei lançou fogo nos soldados
Demônios. Ele gesticulou na direção de Wenzhi e as línguas de
chamas vermelhas agora corriam para ele, tão quentes como se
tivessem sido arrancadas do sol.
O escudo de Wenzhi se despedaçou; ele foi arremessado para
trás e caiu de sua nuvem, tombando nas profundezas. Meu coração
caiu junto. Corri para a beirada de minha nuvem, olhando para baixo
enquanto seus soldados se lançavam atrás dele. O poder deles o
manteve em segurança. Uma mistura de emoções emaranhadas me
atravessou, uma das quais sendo, inegavelmente, alívio.
— Essa coisa de me salvar está virando um hábito seu —
comentou Liwei.
— Não sabia que estávamos contando. — Olhei para baixo
novamente, meio temendo ver que Wenzhi subia. — Isso ainda não
acabou, Liwei. Precisamos nos apressar.
A neblina que nos envolvia ficava mais espessa; os esforços
anteriores de Liwei não serviram para nada. Mais uma vez, os
soldados cercavam o General Liutan; o cabelo do militar estava
molhado de suor e seu escudo começava a oscilar.
Eu já estava liberando magia para convocar um vendaval e a
energia de Liwei se fundia com a minha em fluxos de luz contínuos.
O suor escorria de meu rosto, e meus joelhos quase cederam com
esse esforço. Embora a névoa tenha diminuído um pouco, ainda
pairava sobre os Celestiais presos que estavam começando a voltar
sua atenção para nós. Das mãos de um saíram chamas. Eu me
agachei, quase sendo queimada. Outro arremessou uma lança em
Liwei, mas ele bloqueou o golpe com facilidade. Enquanto isso, o
General Liutan estava encolhido em sua nuvem, suportando o peso
de seus ataques.
Logo à frente, avistei os soldados Demônios que usavam
capacetes cravejados de ônix. Os mesmos que eu tinha visto
quando voei com o Dragão Negro, só agora visíveis no coração da
neblina. Os Talentos da Mente que criaram a névoa; seus olhos
brilhavam enquanto ondas de luz vermelha giravam em suas mãos.
No entanto, seus rostos estavam tensos e cobertos de suor.
Eles estavam tão cansados quanto nós, o que significava que
poderiam ser abatidos.
A esperança brilhou em mim enquanto eu gesticulava para eles.
— Liwei, vou atacar os Talentos da Mente. Mantenha o feitiço
ativo!
Antes que eu terminasse de falar, ele havia aumentado sua
energia para suportar meu fardo. O vento rodopiou no ar e uma
tempestade caiu sobre os Celestiais.
Disparei uma flecha de Fogo do Céu, acertando um Talento da
Mente. Ele gritou uma vez e seu corpo tremeu muito enquanto sua
pele estalava com o raio. Quando ele caiu, a névoa parou de fluir de
suas mãos. Não parei — não havia tempo para comemorar ou sentir
remorso —, minha nuvem subia pelo ar enquanto atirava em outro
e, em seguida, num terceiro. Os Talentos da Mente gritaram,
apontando para mim enquanto torrentes de magia saltavam em
minha direção. Meu escudo tremeu antes de se desfazer, mas outro
surgiu em seu lugar, dourado-brilhante.
— Xingyin, cuidado! — bradou Liwei.
Assenti em agradecimento e logo disparei outra flecha. A Talento
Demônio se agachou, mas meu tiro a atingiu no ombro. Quando
mirei no quinto, os Talentos da Mente quebraram a formação e
fugiram.
A névoa os seguiu. Ainda mais Celestiais foram despertados do
transe, juntando-se a nós. A última volta de meu penteado se desfez
e meu vestido preto esvoaçou descontroladamente quando nossa
ventania se fortaleceu, uivando enquanto acelerava pelos céus,
varrendo cada canto do firmamento. A névoa ficou mais fina e suas
luzes carmesim desapareceram como estrelas no amanhecer. O céu
tinha a calma de uma tempestade que acabava de passar, e nossas
nuvens seguiam em direção à segurança do Império Celestial.
Estávamos seguros, os Demônios se foram. Mas meu coração
ainda estava acelerado, e eu respirava muito rápido ao pensar no
que me esperava em minha audiência com o imperador. Minhas
alternativas estavam se reduzindo velozmente. Agora que os
generais sabiam que eu tinha as pérolas, devia entregá-las ao
imperador ou desafiá-lo, recusando abertamente. Uma escolha
agonizante, se é que era de fato uma escolha. Qualquer uma seria
considerada uma traição, a perda de algo infinitamente precioso,
fosse a liberdade de minha mãe ou a dos dragões. Pior era o medo
de que o imperador punisse ainda mais minha mãe por minha
rebeldia, ou que tomasse as pérolas de mim à força, assim como
ordenara que eu as tomasse dos dragões.
Minha cabeça latejava. Se ao menos eu pudesse proteger as
duas coisas! Tal feito era impossível, a menos que… houvesse uma
forma de cumprir meu acordo sem prejudicar os dragões. Uma ideia
ganhou corpo em minha mente, frágil e nova. Insana e, sem dúvida,
perigosa.
— Xingyin — disse Shuxiao, parando ao meu lado. — Vamos.
— Não posso — respondi. — Ainda não. — Não disse mais nada,
não ousei revelar meu plano, se é que poderia ser chamado assim;
era mais uma série aleatória de ideias e de palpites. Revelar isso à
minha amiga a poria em perigo, em uma situação insustentável, e
eu já estava mergulhada em uma dessas, dividida entre meus entes
queridos e minha honra.
— Pode fazer uma coisa por mim? — perguntei a ela, muito séria.
— Qualquer coisa.
— Não conte que não voltei. Espalhe a notícia de que você me
perdeu de vista na batalha. — Talvez isso pudesse atrasar o
despertar das suspeitas do imperador.
— Só isso? Eu estava esperando que você me desse um desafio
de verdade — disse, rindo.
— Qualquer coisa que me envolva é um desafio nos dias de hoje.
Mas, se as coisas não saírem como planejado, talvez você possa
pensar em uma maneira de conter a raiva de Sua Majestade
Celestial. — Falei em tom de brincadeira, tentando esconder meu
medo. Ela fez uma pausa, inspecionando meu rosto.
— Fique em segurança. Farei o que puder — respondeu ela, por
fim.
— Obrigada. — Foi tudo o que eu disse, embora houvesse muito
mais a ser dito. Enquanto ela voava em direção ao Império Celestial,
olhou para trás uma vez e acenou.
— Xingyin, meu pai aguarda você.
Desviei o olhar de Liwei, tirando o cabelo da testa enquanto
reunia coragem para dizer a ele:
— Não posso entregar as pérolas dos dragões ao seu pai. Dei
minha palavra a eles.
A princípio ele não disse nada; seus olhos escuros eram solenes.
— O que vai fazer?
Hesitei. Seria muita ousadia confiar nele? Será que ele queria que
o pai ficasse com as pérolas? Em caso positivo, tentaria me
impedir? Porém, quando olhei em seu rosto, iluminado com o calor
que ainda me assombrava, sabia que minhas preocupações não
eram verdadeiras. Ele podia discutir comigo, tentar me dissuadir,
mas nunca me trairia.
— Os dragões disseram que sua essência espiritual estava ligada
às pérolas por um encantamento. De acordo com a Professora
Daoming, nenhum feitiço é inquebrável. E se isso puder ser
desfeito? Não sei se é possível, mas pretendo descobrir. —
Acrescentei, relutante: — Dessa forma, manterei meu acordo com
seu pai, mas apenas o que fiz com ele e nada mais.
Ele deu um sorriso ligeiro.
— Só as pérolas e nada mais, você quer dizer?
Assenti, apesar da dúvida que me atormentava. O imperador
pretendia ter mais do que o combinado de mim. E, agora, ele teria
exatamente o que lhe foi prometido, e isso não era, de forma
alguma, o que ele pretendia. Talvez não desse certo; muitas coisas
podiam dar em nada. Talvez o encantamento não pudesse ser
desfeito. Talvez o imperador não aceitasse as pérolas sem a
essência; certamente ficaria furioso. Mas que outra alternativa eu
tinha? Não tinha estômago para nenhuma das outras possibilidades.
Quando a nuvem de Liwei se aproximou, ele pulou na minha,
estendendo a mão para mim.
— Não temos muito tempo.
Desde que deixei o Pátio da Tranquilidade Eterna, nunca pude
respirar com tanta facilidade como naquele momento. Não estava
sozinha e, apesar de tudo o que acontecera entre nós, ele ainda era
meu amigo.
No entanto, não me agradava atraí-lo para aquele plano. Minha
estratégia colocaria Liwei contra o pai, incorrendo em seu
descontentamento e incitando sua ira. Mas eu não recusaria sua
ajuda agora; ela era tão bem-vinda para mim quanto a chuva em
solo ressecado. Havia muita coisa em jogo.
— Para onde vamos? — perguntou ele.
— Para o local onde nasceram os dragões.
37

O Palácio do Coral Perfumado brilhava como uma pérola rósea em


sua concha. Naquele dia, a água corrente tinha um tom de azul
brilhante e as ondas eram coroadas por espuma branca. Enquanto
atravessávamos a ponte cristalina, algo doeu em meu coração;
memórias indesejadas da última vez que estive ali me inundaram.
Os guardas do palácio curvaram-se para Liwei, reconhecendo-o
imediatamente. Embora eles também me conhecessem, a presença
do Príncipe Herdeiro nos ajudou a conseguir uma audiência rápida,
apesar de nossa falta de cortesia ao chegarmos sem avisar. Fomos
conduzidos a um cômodo espaçoso enquanto um criado foi chamar
o Príncipe Yanxi.
Liwei olhava para um magnífico recife de coral brilhando como
uma joia através da parede. Peixes de cores vivas corriam por ele,
cautelosos com as sombras maiores que passavam acima:
predadores. A expressão dele era sombria, talvez contemplando a
situação impossível para a qual eu o arrastara.
— Eu sei que não é isso que você quer, mas obrigada por vir
comigo — disse a ele.
— Muitos discordarão do que você está planejando. — Seu olhar
me fitou, tão opaco quanto as águas além. — Mas você sempre terá
meu apoio.
Palavras simples ditas com seu jeito calmo, mas que me afetaram
profundamente.
As portas se abriram e o Príncipe Yanxi entrou. Seu manto de
brocado cinza-pérola tinha pontos de ouro, e ele usava um cinto de
lápis-lazúli. Sorrateiramente tentei reduzir os amassados de minha
saia com as mãos. Pelo menos a cor escura escondia as manchas
de sujeira, suor e sangue.
Ele cumprimentou Liwei antes de se virar para mim com um
sorriso.
— Primeira Arqueira, decidiu deixar o frio Império Celestial para
viver em nosso quente litoral?
Triste, balancei a cabeça negativamente.
— Infelizmente, estamos aqui em circunstâncias menos
desejáveis, Vossa Alteza.
A urgência em meu tom afugentou a jovialidade do príncipe.
— Se precisar de alguma coisa, é só pedir — assegurou ele,
sentando-se e gesticulando para que eu fizesse o mesmo.
Permaneci de pé, já desamarrando as cordas de minha bolsa e
colocando as pérolas na palma da mão. Elas faziam minha pele
formigar e o fogo de seu interior pulsava.
O Príncipe Yanxi inclinou-se para inspecioná-las, e depois ergueu
a cabeça.
— Seriam essas as pérolas dos Dragões Veneráveis?
— Sim.
— Como você as conseguiu? — perguntou ele, maravilhado.
— Elas foram dadas a mim — falei essas palavras com relutância
e incerteza. Eu não estava acostumada a revelar meus segredos tão
facilmente. Mesmo naquele momento, uma parte de mim temeu que
eu tivesse cometido um erro ao ir até lá, que o Príncipe Yanxi fosse
obrigado a nos entregar ao Império Celestial.
Talvez sentindo meu desconforto, ele enrijeceu o corpo,
afastando-se.
— Quem as deu para você? Quem tem o direito de fazê-lo?
— Os próprios dragões — respondi, um pouco magoada pela
dúvida do nobre. Mas eu me lembrei do quanto ele se importava
com os dragões. E eu mesma ainda estava incrédula que eles
confiaram suas pérolas a mim.
— Meu pai encarregou Xingyin de coletar as pérolas dos dragões
para ele. Eles foram libertados do Reino Mortal usando seu selo —
explicou Liwei. O Príncipe Yanxi ficou de pé em um salto, com o
rosto radiante.
— Os dragões estão livres! Devo informar a meu pai.
Entrei na frente dele.
— Vossa Alteza, seu pai saberá no momento oportuno. Por
enquanto, há um assunto mais urgente no qual precisamos de sua
ajuda.
— Urgente?
— Devo lhe perguntar algo sobre estas pérolas.
O olhar dele me sondava, e ele se sentou novamente, cauteloso.
— Não posso deixar de me perguntar, por que o Imperador
Celestial deseja as pérolas agora? E por que os dragões abriram
mão delas?
— Não posso falar pelas intenções de Sua Majestade Celestial.
Quando concordei, não sabia o que as pérolas significavam para os
dragões. Fique tranquilo, eu prometi proteger a liberdade deles.
Ele não respondeu, com a cabeça inclinada para o lado como se
ainda não tivesse decidido se confiava em nós. Inspirando
profundamente, tomei a frente.
— O encantamento que liga a essência espiritual dos dragões às
pérolas pode ser quebrado? — Meu coração disparava enquanto eu
esperava sua resposta.
— Por quê? — Ele olhou para mim como se eu fosse um quebra--
cabeça que ele estava tentando montar.
— Quero devolver a essência dos dragões a eles, para que nunca
mais sejam obrigados a servir a ninguém.
— Por que você quer fazer isso? Por que não devolver as pérolas
aos dragões? — questionou ele, sempre perceptivo. Pensei em
minha mãe; o Príncipe Yanxi ainda não devia saber sobre ela.
— Na verdade, também estou sendo egoísta. Se eu devolver as
pérolas aos dragões, falharei em minha missão. Não desejo isso. O
imperador me prometeu algo que eu quero muito.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Deve ser algo importante, Primeira Arqueira.
— Nada é mais importante do que a família — respondi, em voz
baixa. — Como você mesmo sabe, Vossa Alteza.
A expressão do Príncipe Yanxi relaxou e ele se recostou na
cadeira. Estaria ele pensando no irmão? Nos pais?
— Esse encantamento do qual você fala é poderoso. — Ele
esfregou o queixo, pensativo. — O selo foi criado por meio de
sangue e de magia, e por meio deles pode ser quebrado. Mas
apenas com a magia e o sangue do legítimo detentor das pérolas.
Era possível. Ainda havia uma chance. Todo encantamento
demandava magia, embora eu não pudesse deixar de tremer com a
menção de sangue.
Ele hesitou, olhando para Liwei.
— Fale livremente, Vossa Alteza. Está entre amigos, ninguém se
ofenderá — tranquilizou Liwei.
O Príncipe Yanxi entrelaçou os dedos e apoiou os cotovelos na
mesa.
— Primeira Arqueira Xingyin, os dragões ofereceram suas pérolas
somente a você? — Quando eu assenti, sua expressão ficou ainda
mais austera. — Não se sabe muito sobre o guerreiro que os salvou,
o primeiro mestre deles. Alguns acreditam que era um parente do
Imperador Celestial. Se sim, por que os dragões não ofereceriam a
lealdade a você ou a seu pai? — perguntou ele a Liwei.
As esculturas de ouro no telhado do Palácio de Jade, os bordados
nas vestes imperiais… seria o boato verdadeiro ou eram apenas
símbolos para perpetuar um mito poderoso? Será que o imperador
cobiçava o poder dos dragões por todo esse tempo e o motivo da
punição imposta àqueles seres lendários seria sua recusa em se
curvar a ele?
— Não temos muitas informações sobre os dragões no Império
Celestial. Tudo o que sei é que eles não desejam servir a meu pai.
Deixaram isso claro quando foram libertados. — Liwei fez uma
pausa. — Por que pergunta?
O Príncipe Yanxi suspirou.
— Liberar a essência dos dragões não é simples. Requer um
grande sacrifício, que o guerreiro fez para ligar sua essência às
pérolas. Metade da força vital para completar o encantamento. —
Ele se inclinou sobre a mesa em minha direção. — Os dragões
entregaram suas pérolas, o que significa que eles reconhecem você
como verdadeira detentora delas. Portanto, é você, sozinha, quem
deve pagar esse preço.
Suas palavras martelavam em minha mente. Metade de minha
força vital? Ao contrário de minha energia, que podia ser
recuperada, podia levar décadas para recuperar minha força vital.
Séculos, talvez. Eu ficaria imensamente enfraquecida. Usar o Arco
Dragão de Jade seria um desafio. Como eu poderia proteger
aqueles que eu amava? Como eu poderia me defender?
Liwei segurou minha mão com força.
— Xingyin, não faça isso. Tem de haver outro jeito!
Soltei a mão dele, consciente do olhar penetrante do Príncipe
Yanxi. Seria muito fácil ir embora e deixar o destino seguir seu
curso. Deixar que tomassem a decisão por mim em vez de sofrer
para decidir. Mas eu estive muito perto de perder as pérolas, não
ousaria arriscar que isso acontecesse de novo. Eu não sabia quanto
tempo tinha. Mesmo naquele momento, as tropas de Wenzhi
podiam estar se aproximando de nós, e o imperador devia estar
ficando impaciente com minha ausência.
Mordi a parte interna do lábio até que a carne macia cedesse,
ardendo, enquanto o sabor quente do sangue enchia minha boca.
Se o Príncipe Yanxi estivesse errado ou se a quebra do
encantamento falhasse, eu teria me enfraquecido por nada. E se eu
não entregasse as pérolas ao Imperador Celestial, teria sua eterna
inimizade. Ele honraria a promessa de não machucar minha mãe?
Quanto a mim…
Um arrepio percorreu meu corpo.
No entanto, a magia não era a única força que eu possuía. Eu já
tinha vivido sem ela antes. Enganei Wenzhi com minhas palavras e
um punhado de pétalas, derrotei um príncipe Demônio com os
poderes anulados. Se isso desse certo, de uma só vez eu
conseguiria libertar os dragões e voltar com as pérolas, cumprindo
— em tese — o acordo que fiz com o imperador. Eu ainda teria uma
chance de libertar minha mãe.
— Farei isso. — Minhas mãos tremiam quando coloquei as
pérolas em minha bolsa, amarrando o cordão com força. — Vossa
Alteza, sou grata por sua ajuda. — Agora que a decisão havia sido
tomada, eu estava ansiosa para seguir em frente.
— Você vai precisar de uma arma poderosa — alertou ele. — O
sangue desfará o selo e sua força vital abrirá o caminho, mas a
essência dos dragões precisa ser expelida das pérolas. Se sua
arma for fraca demais, você ficará ainda mais esgotada. Não há
como voltar atrás quando a quebra do encantamento começar. —
Havia um aviso não dito nas palavras dele: você pode acabar
morrendo .
O Arco Dragão de Jade era um peso reconfortante em minhas
costas.
— Isto serve? — Eu o tirei do ombro, colocando-o sobre a mesa
diante dele.
O Príncipe Yanxi começou a passar o dedo em seus intrincados
detalhes com reverência. Quando o arco chacoalhou ao seu toque,
ele se afastou imediatamente.
— Você é portadora do Arco Dragão de Jade? Como isso é
possível?
— Não sei ao certo — respondi, honestamente. — É o arco que
me permite portá-lo.
— Por isso os dragões deram suas pérolas para você —
comentou ele.
— Eles não queriam — confessei, sendo tomada pela vergonha.
— Mas fui tentada pelo poder deles e arrogante em acreditar que
poderia mantê-los a salvo. Eu estava errada.
Peguei o arco da mesa.
— Vossa Alteza, peço desculpas por nossa pressa, mas devemos
ir. Existe algum lugar isolado por perto onde possamos convocar os
dragões?
Ele se levantou.
— A ponta sul tem um território deserto. Se você não tiver
objeções, eu mesmo a levarei até lá. — Um sorriso melancólico
brincou em seus lábios. — Confesso, há muito desejo ver os
Dragões Veneráveis. Podemos ser lendas para os mortais, mas os
dragões são lendas para todos nós.

para a praia, que ficava a uma curta


A NUVEM DO PRÍNCIPE YANXI NOS LEVOU
distância. Cercada por penhascos imponentes e rochas irregulares,
não era de se admirar que estivesse deserta, apesar de suas águas
cristalinas. Enquanto estávamos na areia branca, olhei para as
pérolas em minha mão. Aquilo daria certo? Em breve, eu
descobriria. Respirando fundo, sussurrei os nomes dos dragões
para as pérolas, e o fogo ardeu em suas profundezas lustrosas.
Por um único instante, tudo ficou quieto; mar e céu se fundindo
em um só. Com uma correria sussurrante, as águas se
transformaram de azul em verde, e as ondas subiam mais alto e
vinham apressadas para a costa com sua espuma branca. No
horizonte, um redemoinho se abria, crescendo cada vez mais, até
ameaçar engolir o oceano inteiro. De suas profundezas, os quatro
dragões dispararam, subindo ao céu. A água fria espirrou sobre nós
e as gotas brilhavam à luz do sol. O ar vibrava intensamente quando
eles pousaram na praia diante de nós, enterrando as garras de ouro
na areia.
O Príncipe Yanxi cambaleou para trás, de queixo caído. Suas
vestes estavam úmidas, o cabelo grudado na testa. Enquanto eu
enxugava a água de meu próprio rosto, tentei não sorrir ao ver o
príncipe imaculado tão desgrenhado e encharcado.
Os corpos imensos dos dragões lançavam sombras sobre a praia,
mas seus passos eram graciosos e leves enquanto vagavam em
nossa direção.
O olhar âmbar do Dragão Longo fixou-se em mim e sua voz
reverberou em minha mente.
— Xingyin, filha de Chang’e e Houyi. Por que você nos chamou?
O Príncipe Yanxi respirou fundo. O Dragão Longo falara com
todos nós? Lancei a ele um olhar de desculpas. Fui uma convidada
muito descortês por deixá-lo às cegas até agora.
Eu teria ficado contente em estar ali, apreciando toda a glória que
era ver os dragões, mas não ousei perder mais tempo.
— Dragões Veneráveis, desejo liberar sua essência espiritual das
pérolas e devolvê-la a vocês. É o que querem também? — Falei
claramente, indo ao cerne da questão.
Eles ergueram a cabeça e o ar com seu entusiasmo. A voz do
Dragão Longo soou entre meus ouvidos.
— Desejamos isso mais do que nadar no mar e voar no ar. Não
podíamos pedir isso a você antes; este sacrifício deve partir
espontaneamente de um coração.
Meu peito se apertou com a esperança em seus olhos, ardendo
com um brilho dourado.
— Eu tentarei.
Os dragões curvaram seus longos pescoços em um aceno
gracioso; seus olhares estavam avidamente fixos nas pérolas em
minha mão.
O Príncipe Yanxi sacou uma adaga com cabo de lápis-lazúli.
— Está pronta?
Assenti, mostrando a mão. Porém, Liwei se colocou entre nós,
pegando meu pulso. Seu rosto estava pálido, marcado de
ansiedade.
— Xingyin, tenha cuidado. Se você não parar na hora certa, eu
vou…
— Ela precisa fazer isso sozinha — advertiu o Príncipe Yanxi. —
Uma vez que o encantamento começar, você não pode intervir. Isso
a matará.
Liwei o ignorou, falando comigo.
— Tem certeza de que quer fazer isso? Você não precisa decidir
agora.
— Já decidi — disse a ele calmamente. — Esta é a minha
escolha.
Ele ficou em silêncio, finalmente pegando a adaga do Príncipe
Yanxi. Quando assenti, ele segurou o cabo com muita força e
passou a lâmina da adaga na palma de minha mão. Um corte limpo
e perfeito, nem muito raso, nem muito profundo. O metal frio
diminuía a dor enquanto minha pele se abria e o sangue quente
jorrava. Fechei a mão em punho e a virei, deixando o sangue
escorrer sobre as pérolas como uma chuva vermelha.
Minhas entranhas se reviraram ao pensar no que estava por vir.
Fechando os olhos, segui o rastro de luzes em meu corpo até
chegar ao núcleo brilhante de minha força vital, bem no fundo de
minha cabeça. Abri minha essência com um puxão, e isso parecia
muito brutal, uma violação de mim mesma, mas não parei e minha
força vital começou a correr livre em minhas veias, como um rio sem
represa. Forte, indomável, vibrando intensamente. Mais brilhante
que as estrelas infinitas, mais luminosa que a lua. Porém, quando
minha força vital fluiu de minhas mãos para as pérolas, uma súbita
fraqueza me invadiu, minhas mãos e pernas perderam a força.
Tropecei, quase caindo. Cerrando os dentes ao ponto de doer, firmei
os joelhos, lutando contra o desejo instintivo de conter o fluxo.
Minha força vital caía sobre as pérolas, fazendo meu sangue brilhar
um instante antes de ser sugado para dentro delas como água em
uma esponja. As pérolas saíram de minha mão e flutuaram no ar; o
brilho em seu interior se intensificava cada vez mais, até que se
tornaram esferas de pura chama.
Só então interrompi o fluxo de força vital, caindo de joelhos na
areia, ofegando descontroladamente. O suor escorria por meu rosto
e uma exaustão entorpecente tomava conta de minhas pernas e
meus braços. Pior ainda era o vazio dentro de mim por ter uma
parte de meu ser arrancada. Agora só me restava esperar que isso
bastasse.
Liwei se agachou e segurou minhas mãos. Sua energia veio até
mim, percorrendo meu corpo. Ao contrário das outras vezes que ele
me curou, porém, seu calor era oco e o conforto, insuficiente. Será
que eu não conseguiria mais canalizar o poder que ele me dava
como se estivesse derramando água em um copo transbordando?
Não havia tempo para refletir sobre isso, não havia acabado
ainda. Eu me desvencilhei dele, levantando ofegante do chão.
Cambaleando alguns passos para trás, ergui o Arco Dragão de
Jade. No passado, sua corda se esticava como que feita de seda,
mas agora estava inflexível, cortando meus dedos até ficar
escorregadia de sangue. Meus músculos se estiraram, mas eu
segurei firme, até que, finalmente, uma fina flecha de Fogo do Céu
brilhou. Vê-la tão fraca fez com que eu me sentisse mal, mas não
era hora para autopiedade. Apontando para a pérola vermelha,
soltei o relâmpago em seu centro flamejante. Ele a atingiu soltando
um brilho ofuscante, fazendo explodir uma nuvem de ouro da pérola.
O Dragão Longo esticou o pescoço para frente, abrindo bem a boca
a fim de atrair as partículas brilhantes para dentro de seu corpo. Seu
peito brilhou como se tivesse engolido uma estrela e depois
escureceu.
A pérola carmesim caiu na areia. Intacta, mas seu fogo interior se
extinguiu. Os outros dragões se viraram para mim, com expressões
tomadas por expectativa. Apontei e puxei a corda do arco mais três
vezes, atirando três flechas nas pérolas restantes, e em todas elas a
nuvem dourada saiu, indo parar na boca de um dos dragões. Minha
energia estava quase esgotada e meus dedos cortados até o osso.
Meu sangue se espalhava pela areia branca como flores de
ameixeira na neve.
Quatro pérolas estavam no chão. Abaixando-me, peguei todas,
brilhante como o sol, vermelho-fogo, branco-gelo, preto-meia-noite.
Elas eram lindas, mas algo vital nelas se perdera. Quando se vê a
lua cheia, a crescente perde o encanto.
Os olhos dos dragões brilhavam com manchas de ouro e suas
bocas se curvaram em um sorriso. Suas vozes reverberaram como
uma só, um som mais belo do que qualquer música no mundo.
— Tens nossa gratidão. Estamos completos novamente, somos
nossos próprios mestres.
Lisonjeada e exausta demais para falar, curvei-me para eles em
vez disso.
Com sua garra, o Dragão Longo arrancou uma escama brilhante
do corpo, tão perfeita quanto a pétala de uma rosa em flor, e
ofereceu-me inclinando a cabeça.
— Se precisar de nosso apoio, mergulhe-a em um líquido e
iremos até você.
Peguei a escama, segurando-a com força. Sem dizer mais nada,
eles deram meia-volta e mergulharam na água. Quando a
ondulação final de suas caudas desapareceu, o mar se acalmou e
novamente tornou-se um espelho do céu.
Liwei pôs a mão sobre a minha e sua magia já corria em mim,
curando meu corpo devastado, mas não havia nada que ele
pudesse fazer quanto ao meu vazio interior. Apoiando-me nele, olhei
para o oceano, sentindo-me estranhamente desolada. O Príncipe
Yanxi estava ao nosso lado, imóvel como uma estátua, com o olhar
fixo na distância.
— Vossa Alteza, obrigada por sua ajuda — disse a ele.
O sorriso do nobre era radiante.
— Sou eu quem devo agradecê-la, filha da Deusa da Lua. O que
vi hoje me acalentará por toda a eternidade.
Corei, cheia de orgulho intenso pelo elogio imediato. Mas minha
mãe ainda era uma prisioneira e nossos destinos estavam em uma
corda bamba. Não me arrependia; estava feliz pelo que eu tinha
feito, mas o medo crescente do confronto que se aproximava me
amedrontava. O Imperador Celestial não era conhecido por sua
misericórdia, e, nesse dia, eu lhe dei fortes razões para não ter
nenhuma comigo.
38

N ossa nuvem voava pelo céu, carregada por uma brisa suave. Era
um dia claro, e podíamos ver todo o mundo mortal abaixo — embora
eu olhasse fixamente à frente. Ao longe, a luz do sol brilhava sobre
os dragões dourados empoleirados no telhado do Palácio de Jade.
Soldados com armaduras negras apareceram no horizonte,
voando sobre nuvens violeta para atacar a nós e ao Império
Celestial. Imediatamente nos cercaram, separando-se apenas para
deixar Wenzhi passar. Ele estava diante de mim agora, com o manto
cinza-escuro esvoaçando ao redor dos tornozelos e a esmeralda na
coroa brilhando com fogo de jade. Embora não usasse armadura,
uma espada estava em sua cintura.
Liwei ficou rígido ao meu lado, emitindo uma aura de fúria.
— Traidor! Veio confessar seus crimes?
— Não há nada a confessar. Nem mesmo soube de acusação
alguma vinda da Corte Celestial. — O tom sedoso de Wenzhi era
feito para causar raiva.
— Você sabe o que fez, e eu também sei. Vai pagar por seus
crimes — vociferou Liwei.
— Talvez. Mas não hoje. E certamente não é você quem vai me
punir. — Wenzhi deliberadamente o ignorou e fixou seu olhar no
meu. — Eu não vim lutar com você hoje.
Fiz um gesto para as flechas e as lanças que seus soldados
apontavam para nós.
— Isto indica o contrário.
— Eu não disse nada sobre não lutar com ele. — Ele acenou
rapidamente com a cabeça na direção de Liwei, embora não
desviasse o olhar de mim. — Dê-me as pérolas — disse ele, como
se estivesse pedindo um grampo de cabelo.
Não lhe daria mais nada de mim, nem agora, nem nunca.
— É tarde demais! As pérolas agora não têm mais utilidade para
você.
Ele franziu a testa, tentando ler minha expressão.
— O que quer dizer?
— A essência dos dragões voltou a ser somente deles.
Ele sibilou.
— Não minta, Xingyin. Isso não lhe convém.
— Não é mentira — falei, muito séria. Se ele não acreditasse em
mim, se conseguisse pegar as pérolas de novo, arruinaria a última
esperança de liberdade de minha mãe. Tirando as pérolas de minha
bolsa, coloquei-as na palma de minha mão enquanto caminhava até
a borda da nuvem.
— Você sabe como elas eram antes. Vendo-as agora, acha que
estão do mesmo jeito? — Meu coração começou a bater num ritmo
irregular. Embora eu quisesse que ele visse como elas haviam
perdido o brilho, era exatamente isso o que eu temia que o
imperador descobrisse e, por consequência, me punisse.
Ele olhou para as pérolas de queixo caído.
— Por quê? — indagou ele, finalmente.
Sua voz pulsava com tanto choque, consternação e decepção que
era como música para meus ouvidos. Eu não esperava que essa
satisfação imensa corresse em mim, esse triunfo exultante porque
tudo o que ele fizera e a teia intrincada em que ele me prendera não
adiantaram de nada.
— Por sua causa — revelei.
— O quê?
— Quero agradecer por me mostrar o que precisava ser feito, o
que aconteceria se as pérolas caíssem em mãos erradas. Eu não
podia deixar isso acontecer de novo. — Coloquei as pérolas de volta
na bolsa. — Agora não temos nada que você queira, deixe-nos
passar.
Em vez disso, sua nuvem se aproximou e a raiva foi deixando seu
semblante. Eu me preparei para mais mentiras.
— E se eu disser que não estou aqui somente pelas pérolas? —
perguntou ele.
— Eu não dou a mínima para o que você veio fazer aqui. — Liwei
se aproximou de mim, segurando o cabo da espada com muita
força. Agarrei a manga de seu manto.
— Liwei, não o ataque.
— Depois de tudo, ainda se importa com ele? — perguntou Liwei,
incrédulo.
— Como pode pensar uma coisa dessas? — disse, enfurecida,
soltando-o. — Estou é farta de derramamento de sangue, de medo
e de luto. O melhor caminho é convencê-lo a nos deixar ir. Se atacá-
lo, seus soldados vão retaliar. E se ele o ferir de novo — levantei a
voz para que Wenzhi pudesse ouvir — vai levar um raio no meio do
coração.
— Você já o partiu, Xingyin. Não pode machucá-lo mais do que já
machucou — disse ele, baixinho. Dei uma risada aguda e radiante.
— Terei prazer em tentar. — No momento seguinte eu puxei o
arco e o Fogo do Céu ardeu entre meus dedos cerrados, mas
inegavelmente mais fraco que antes.
O olhar de Wenzhi fixou-se no sangue que escorria por minha
mão; as feridas antigas se abriram novamente.
— O que aconteceu? Por que está fraca assim? — Sua voz
estava áspera de surpresa.
Tínhamos lutado juntos tantas vezes que não era de se admirar
que ele pudesse sentir que meu poder havia diminuído. Eu não
respondi, abafando um silvo de dor.
— Não se esforce deste jeito — advertiu Liwei.
— Largue a espada, Príncipe Demônio — ordenei, com a mais
ameaçadora das vozes. — Faça seus soldados recuarem e deixe-
nos ir. Em troca, não dispararei isto em seu peito. Ainda que você
mereça. — Um momento de silêncio pulsou entre nós, ininterrupto
por palavra ou mesmo respiração.
Os olhos prateados de Wenzhi brilharam.
— Xingyin, você perdeu a cabeça? Se extraiu mesmo o poder das
pérolas, como vai retornar ao Palácio de Jade? Confia tanto assim
na misericórdia de Suas Majestades Celestiais?
A provocação dele me deixou irritada, mas por baixo dela eu
detectei algo mais — seria preocupação com minha segurança?
Não me importei, pois me lembrei de sua traição vil, erguendo a
cabeça em desafio.
— Mais do que na sua. Confiar em você me rendeu o quê?
Mentiras e cativeiro. O bloqueio de minha magia e o roubo de meus
pertences. — Essa memória me fez tremer de raiva.
Wenzhi estendeu a mão para mim.
— Você não precisa confrontar o Imperador Celestial. Venha
comigo, vou mantê-la a salvo. Não será uma prisioneira desta vez.
Farei o que puder para ajudar você e sua mãe… de forma
incondicional.
A oferta me pegou de surpresa, assim como sua preocupação.
Porém, palavras, o vento leva. O importante são as atitudes, e eu
nunca mais poderia confiar nele. Sustentei a firmeza na
empunhadura do arco com o olhar fixo nele.
— Eu não irei com você, eu mesma cuidarei de me manter a
salvo.
O rosto dele escureceu.
— Percebe o que a espera na Corte Celestial? Considere-se
afortunada se apenas prenderem você, da mesma forma que
fizeram com sua mãe!
— Xingyin tem meu apoio. Ao contrário de você, nunca a trairei —
declarou Liwei categoricamente.
Antes que eu pudesse falar, uma saraivada de flechas assobiou
no ar e uma delas atingiu meu ombro. Senti uma dor muito forte e
prendi um grito, soltando o arco. Seria uma armadilha? Enquanto
Liwei retirava a flecha e curava meu ferimento, olhei furiosa para
Wenzhi. No entanto, sua expressão estava estranhamente aflita.
— Não atirem! — ordenou ele a seus soldados, rosnando.
Suas pupilas eram cinza como um mar varrido pelo vento quando
ele se virou para mim.
— Eu sei o que meu irmão disse a você. Ele lhe ofereceu a
liberdade e minha morte. Você recusou. Por quê?
Eu podia sentir Liwei olhando para mim, surpreso em silêncio. Eu
não lhe contara sobre aquilo. Por alguma razão, não quis.
— Não foi por sua causa — retruquei ferozmente. — Eu não podia
deixar seu irmão fazer isso, porque nem mesmo meu pior inimigo
merece morrer daquela maneira. Não teria sido… honorável.
Seus lábios se curvaram em um sorriso triste.
— Sou grato por sua honra. Você me salvou naquela noite, de
certa forma. — Ele inspirou lentamente e, quando soltou o ar, o
ruído parecia um suspiro arrependido. — Não farei você agir contra
sua vontade novamente. Não quero seu ódio e seu rancor. — Ao
olhar para Liwei, seu rosto se contorceu em um sorriso de escárnio.
— Para pagar minha dívida com ela, deixarei vocês irem. Não terão
tanta sorte na próxima vez que nos encontrarmos.
— Nem você. — A voz de Liwei era desprezo puro.
Olhei para Wenzhi, incrédula. Seria um truque? Ele estava
mesmo permitindo que fôssemos embora dali? E quanto à sua
ambição e ao acordo que fizera com o pai? Uma parte de mim
esperava que ele tomasse essa atitude, mas eu nunca acreditei que
ele tomaria.
Guardei esses pensamentos para mim quando um vento surgiu,
brilhando com a energia de Liwei que fazia nossa nuvem voar para
longe. Embora eu tenha resistido à vontade de olhar para trás, podia
sentir o calor do olhar de Wenzhi nos seguindo.
Quanto mais nos aproximávamos do Palácio de Jade, mais
profundo meu medo ficava. Minha pele era como gelo, e meu
coração acelerava ao pensar na fúria do imperador. Eu não tinha
dúvidas de que ele perceberia a mudança nas pérolas, e eu ainda
esperava usá-las para reivindicar o cumprimento de nosso acordo.
Será que ele me acusaria de trapaça e nos puniria? Pus as mãos no
rosto, respirando em um ritmo frenético.
Dedos quentes envolveram meus pulsos. Tão gentilmente como
se estivesse segurando um de seus pincéis, Liwei afastou minhas
mãos.
— Você tem as pérolas. Você cumpriu a tarefa. Eu estarei ao seu
lado.
Ele não me soltou até aterrissarmos no Salão da Luz Oriental. A
luz do sol, intensa e brilhante, fulgurava nas paredes de pedra. Um
contraste completo com o pavor que espreitava dentro de mim. Um
desejo de fugir tomou conta de mim, de sumir até que meu próprio
nome fosse esquecido. Contudo, como aconteceu com todas as
coisas difíceis que enfrentei antes — Xiangliu, o Governador Renyu,
a batalha contra Liwei na Floresta da Eterna Primavera —, eu
também enfrentaria aquela situação.
No momento em que entrei no corredor, todas as cabeças se
voltaram para mim — corpos tensos, olhos endurecidos. Mas isso
não era nada perto dos sussurros que se enrolavam como o silvo de
cobras. “Traidora”, “mentirosa”, “Demônio”; tudo isso passou por
meus ouvidos. Liwei recebia olhares de pena, como se estivessem
se perguntando como ele pôde ter sido enganado por mim. Meu
estômago deu um nó diante de uma recepção tão hostil, mesmo
quando a raiva ardia em mim por ser considerada culpada sem
chance de defesa. E também por Liwei, em cujo julgamento eles
deveriam ter mais fé.
Ereta como uma lança, caminhei até a frente da plataforma. Não
lancei um olhar sequer aos cortesãos; não por arrogância, mas para
garantir que o peso de sua censura não esmagasse minha falsa
coragem. Minha única defesa era que eu não tinha feito nada de
errado, então não ousei revelar um lampejo de dúvida.
Diante de Suas Majestades Celestiais, caí de joelhos, curvando-
me e tocando a testa e as mãos nos ladrilhos de jade. Fui saudada
pelo silêncio; o imperador não ordenou que eu me levantasse.
Hesitante, ergui a cabeça para os tronos e fitei seus sapatos
incrustados de pérolas, depois a bainha de suas vestes de brocado,
que eram da cor da noite. Dragões de ouro bordados rodeavam a
parte inferior da roupa do imperador e fênix de prata dançavam na
da imperatriz. Os olhos do Imperador Celestial sondaram meu rosto
quando ele se inclinou para frente e os fios de pérolas de sua coroa
tilintaram.
— Dizem-me que você é uma traidora. Que levou as pérolas dos
dragões para o Reino dos Demônios, entregando-as ao seu amante.
Não é uma história difícil de acreditar, embora meu filho tenha falado
muito enfaticamente em sua defesa. No entanto, a única coisa que
me fez refletir foi o quão apaixonadamente você implorou por sua
mãe anteriormente. Certamente, você não a selaria a um destino
ainda pior com seus crimes. Certamente, nenhuma filha faria uma
coisa dessas com a mãe amada. Certamente, minha confiança em
você não estava equivocada.
Sua voz era suave, mas eu não era tola o suficiente para deixar a
ameaça oculta nela passar despercebida. O que ele disse que faria
com minha mãe me atingiu profundamente. Ah, eu estava grata por
ter escapado do Reino dos Demônios, por me defender diante dele
naquele momento. Meus instintos estavam certos; ele teria atacado
minha mãe em retaliação por meus crimes imaginários. No entanto,
estava igualmente claro que aquele julgamento estava apenas
começando .
— Vossa Majestade Celestial é sábia. Eu nunca faria uma coisa
dessas. — Fiquei enjoada por proferir tal bajulação, mas não me
atrevi a confrontá-lo com nossas vidas em jogo.
O imperador recostou-se em seu trono, e o ar entre nós estava
carregado de tensão.
— Onde estão as pérolas dos dragões?
Meus dedos tremiam enquanto eu tateava minha bolsa, mas
forcei-os a se firmarem e estiquei a mão, mostrando as pérolas.
Um criado as tomou de mim e as entregou ao Imperador. Ele
ergueu uma por uma entre o polegar e o indicador, segurando-as
contra a luz. Quando ele me encarou com aqueles cacos de gelo
negro sob as sobrancelhas bem desenhadas, congelei por dentro,
como se estivesse diante do maior rigor do inverno.
— Como se atreve a tentar me ludibriar! — vociferou ele, com
uma voz trovejante.
Sob meu roupão, minhas pernas tremiam. Sua ira era ainda mais
aterrorizante por ele sempre ter tido muito comedimento até então.
Todavia, encolher-me e implorar por misericórdia seria uma
confissão de culpa. E isso eu não podia fazer.
— Vossa Majestade Celestial, não é nenhum truque. Essas são
as pérolas dos dragões, como me ordenou buscar.
— Não são!
— Honorável Pai, ela fala a verdade. — Liwei permaneceu ao
meu lado, em vez de assumir seu lugar na plataforma. A mão do
imperador brilhou com uma luz branca que girava em torno dos
orbes lustrosos.
— Onde está a essência dos dragões? — Ele falou cada palavra
pausadamente, mais calmo, embora sua voz permanecesse repleta
de ameaça.
Eu deveria estar apavorada, mas em vez disso a raiva acendeu
em mim. Não fora uma coincidência; o imperador pretendia me usar
para controlar os dragões. Eu o encarei de volta, sem vacilar.
— Foi devolvida a eles, pois não pertence a ninguém além deles
mesmos. Vossa Majestade Celestial, tudo o que me pedistes foram
as pérolas que estão em vossas mãos. Minha parte do acordo foi
cumprida.
Ele socou o braço do trono.
— Os dragões devem se submeter a mim e à minha autoridade!
— Eles discordam. — Palavras precipitadas, pensei,
repreendendo a mim mesma, embora não fosse nada além da
verdade.
Os cortesãos se afastaram de mim num farfalhar de seda e
brocado. Como se eu tivesse uma doença infecciosa e eles não
fossem imortais.
— Honorável Pai, os dragões não tencionam estar sob a
autoridade de ninguém — comentou Liwei. — Era muito perigoso
manter a essência deles presa às pérolas. E se elas caíssem
novamente nas mãos do inimigo? Xingyin as recuperou, mas correu
um risco imenso para fazer isso. Imagine a destruição que os
Demônios teriam feito cair sobre nós com os dragões sob o
comando deles!
Os cortesãos arquejaram, chocados, mas se calaram quando a
Imperatriz Celestial apontou o dedo para mim.
— Você passou dos limites de um modo imperdoável — rosnou
ela, com dentes brancos como osso contra lábios carmesins. — De
alguma forma, com atitudes frias e calculistas, você enganou meu
filho para que falasse em sua defesa. Mas é uma traidora e deve ser
punida como tal. Voltou porque foi descartada? Enganada por seu
amante? Esperando voltar às boas graças de meu filho?
Palavras tão vis destruíram os últimos fragmentos de meu
controle. Era uma crueldade em dobro, porque eu fora enganada,
mas não do jeito que ela imaginava.
Fiquei de pé. Era uma grave quebra de etiqueta, mas não era
nada em comparação com as palavras que saíram de mim naquele
momento.
— Eu não sou uma traidora. Cumpri a missão, consegui as
pérolas dos dragões e arrisquei a vida para recuperá-las. Fiz
exatamente o que Vossas Majestades ordenaram, e tudo o que
peço agora é que libertem minha mãe como prometido, como a
honra manda.
— Quem é você para falar de honra? Não tem um pingo de
respeito por Sua Majestade Celestial?! Caia de joelhos agora e
implore por misericórdia! — Uma voz áspera me repreendeu,
acrescentando: — Outros morreram por muito menos.
Olhei para trás e vi o Ministro Wu dando um passo à frente, com
os olhos esbugalhados em aparente indignação. Meu estômago
embrulhou na hora. Ele já havia provado não gostar de mim, nem de
minha mãe, e daquela vez não seria diferente.
O ministro curvou-se diante dos tronos.
— Vossa Majestade Celestial foi muito gentil com esta mentirosa
e ela vos enganou reiteradas vezes. Quem pode afirmar que ela não
entregou as essências para os Demônios em vez de devolvê-las aos
dragões?
Por um momento não consegui falar, atordoada por sua acusação
maliciosa.
— Isso não é verdade — respondi, por fim.
— Pode provar isso? — rebateu o Ministro Wu. Liwei olhou para
ele.
— Minha palavra bastaria? Porque eu estava com Xingyin quando
ela foi sequestrada e quando lutou ao nosso lado contra o Exército
dos Demônios. Estava ao lado dela quando devolveu a essência
aos dragões. Ministro Wu, você também questiona minha honra? —
Ele dizia cada palavra como se o desafiasse.
O ministro curvou-se para Liwei, embora sua expressão fosse de
ceticismo.
— Vossa Alteza, és gentil e misericordioso. Todos estamos
cientes de vossa… amizade especial com a Primeira Arqueira. Não
há nada que não dirá para protegê-la?
Alguém riu da insinuação. Alguns riram em seguida. As palavras
do ministro foram calculadas para inflamar a ira do imperador,
lembrando-o do que ele desdenhava como as “fraquezas” de Liwei,
quando na verdade eram suas maiores qualidades. Antes, eu me
perguntava se sua antipatia por mim se originava de minha herança,
de seu desprezo pelos mortais, talvez. Contudo, por sua hostilidade
e pela maneira como ele conseguia incitar o imperador contra nós,
devia ser mais do que isso. Eu o ofendera de alguma forma que não
percebia? Ele guardava algum rancor contra meus pais?
A energia no corredor mudou e cristais de gelo flutuaram no ar;
cruzei os braços para me esquentar um pouco que fosse. Os
sussurros se encerraram no mesmo instante, um momento antes de
o silêncio engolir a sala como se eu tivesse sido transportada para a
terra dos mortos. O rosto do Imperador Celestial estava mais frio
que o coração de uma geleira. Ele ergueu a mão, estendeu-a, e
faíscas brancas estalaram de seus dedos, mais brilhantes ainda do
que a luz de meu arco, vindo em minha direção com uma velocidade
de tirar o fôlego. O medo me envolveu em uma nevasca gélida. Eu
não conseguia me mover, nem mesmo para tirar os olhos da terrível
beleza do Fogo do Céu, um instante antes de ele o disparar em mim
com precisão impiedosa.
A dor explodiu. Ardente, abrasadora. Mil agulhas incandescentes
perfuraram meu peito repetidamente em um sofrimento sem fim.
Nem mesmo percebi que havia desmoronado no chão e lágrimas
caíam de meus olhos sobre os ladrilhos de jade, sem derramar uma
única gota de sangue. A tortura não era meu corpo sendo cortado
ou esfaqueado, mas meus nervos sendo arrancados de minha carne
pelo mar de luzes que crepitava sobre minha pele. Nunca havia
sentido tanta dor na vida — nem com o ácido de Xiangliu, nem com
o veneno do escorpião do mar, nem mesmo quando Liwei cravou
sua espada em mim. Nada em meus piores pesadelos ou medos
mais sombrios poderia ter me preparado para aquele tormento
dilacerante que mutilava meu próprio ser.
Suspiros estrangulados saíam de minha boca. Meu corpo
estremecia enquanto eu vomitava. Eu fora até ali de cabeça erguida,
mas estava em tamanho sofrimento que a última coisa que
importava era a multidão de estranhos testemunhando minha
completa humilhação.
Meus gritos vieram, então, quebrando o silêncio. Mordi a língua
para abafar os gritos tarde demais e o sangue escorreu de minha
boca. Agradeci por ele, era um lembrete de que eu ainda estava
viva. Em meio ao torpor da agonia, uma voz veio flutuando até meus
ouvidos — Liwei. Sua angústia contorcia meu coração enquanto eu
me afogava em dor.
Lampejos de uma vida não vivida, de caminhos não trilhados,
varreram minha mente, despertando mil arrependimentos e
saudades. Se ao menos eu pudesse ter ido para casa, para minha
mãe! Se ao menos Liwei e eu nunca tivéssemos nos separado! Se
ao menos Wenzhi não tivesse me traído! Se ao menos… aquele não
fosse o fim.
Lutei contra a vontade de fechar os olhos, de afundar no tentador
vazio. Seria possível sobreviver àquilo? Esperei por um lampejo de
raiva, esperei que minha vontade endurecesse e revivesse minhas
forças, mas não havia nada além do cansaço que penetrava meus
ossos.
Agora eu sabia que morreria naquele lugar. Não havia piedade
nem misericórdia na expressão do imperador, apenas uma
satisfação insensível de que sua justiça seria aplicada. Mas eu não
me reduziria a ficar acuada. Partiria de olhos abertos. Veria tudo, o
rosto de meu amado e o de meu assassino.
Meu corpo estremeceu quando pus as mãos no chão, levantando
a cabeça alguns centímetros. Cada fôlego era um tormento
estremecedor. Meu pingente escorregou das dobras de meu manto
e o disco de jade tilintou contra o piso.
Teriam se passado apenas alguns segundos? Foi uma vida inteira
de sofrimento.
— Pai! — O grito de Liwei perfurou meus ouvidos novamente,
junto com aquele estalo sinistro no ar.
Olhei para ele, atordoada, enquanto um escudo brilhante de luz
dourada me envolvia. Assim como quando ele me protegera dos
soldados Demônios, o Fogo do Céu do imperador virou nada
quando o atingiu. Meu corpo ficou mole de alívio com isso, apesar
de o escudo ter se partido um momento depois. Liwei correu para
frente, parando entre mim e os tronos — o rosto pálido, suor
escorrendo pela testa. Ele veio em meu auxílio, assim como eu
sempre soube que faria.
— Liwei, saia da frente. Não mostrarei clemência se me desafiar
novamente. — A voz do imperador era tão hostil que parecia se
dirigir a um inimigo em vez do filho.
A imperatriz desceu da plataforma às pressas, tropeçando. As
flores douradas em seu diadema tremiam como se tivessem sido
capturadas por um vendaval.
— Liwei, essa garota traiçoeira não merece sua proteção. Sua
conduta é uma ameaça a todos nós. — Ela o pegou pelo braço a fim
de puxá-lo para longe.
Quando ele se desvencilhou, o imperador acenou para seus
guardas, que correram em direção a Liwei. Eu quis dizer a ele para
sair, mas fui preenchida por uma alegria violenta quando ele resistiu
para ficar ali. Eu estava com tanto frio que nunca pensei que sentiria
calor novamente, mas, enquanto o observava, uma faísca se
acendeu dentro de mim e meu braço se estendeu em uma tentativa
inútil de tocá-lo.
O olhar do imperador se voltou para mim e ele levantou a mão.
Meu corpo devastado não poderia resistir a outro ataque, mas forcei
meus olhos a se abrirem, mesmo quando as pontas dos dedos do
monarca se acenderam novamente.
O tempo parou. O Fogo do Céu veio em minha direção com uma
velocidade estonteante, mas com uma lentidão agonizante. O grito
de Liwei quebrou meu atordoamento. Sacudi a cabeça e um grito
irrompeu de minha garganta quando ele se libertou dos guardas
vindo me proteger com seu corpo; mesmo que eu tenha estendido a
mão a fim de empurrá-lo para o lado. Mesmo sabendo que era tarde
demais.
— Não… — Um sussurro partido no momento em que ele
segurou minha mão. Quando meus olhos encontraram os dele,
cheios de ternura e de amor, eu soube que nunca me arrependeria
daquela visão final.
A luz branca ofuscou minha visão. Eu me preparei para a morte.
No entanto, minha pele não foi perfurada pela dor aguda… minha
carne não foi rasgada por uma agonia abrasadora. Em vez disso, eu
estava envolta em um casulo luminoso, tão suave e delicado quanto
a névoa ao amanhecer. Meus olhos foram até Liwei imediatamente.
Ele estava vivo e a salvo, assim como eu. Foi então que senti uma
frieza ondulando em meu peito. Soltei a mão de Liwei e peguei o
pingente de meu pai, que fazia minha pele formigar e brilhava muito.
A mesma luz que protegera a mim e a Liwei. No entanto, assim
como surgiu brevemente, desapareceu; senti a jade esquentar em
meus dedos e a pedra lisa rachou, exatamente como estava antes
de o sopro do Dragão Longo a consertar.
O Imperador Celestial… Eu não o reconhecia mais naquele
momento. Pálido de choque, vermelho de raiva. Será que sentia
algum remorso por quase ter matado o filho? Ele não sentiria por
mim. Enquanto seu olhar pétreo vinha em minha direção, forcei-me
a encará-lo de volta; eu aceitaria o ódio e retribuiria com o meu.
Liwei afastou o manto, ajoelhando-se no chão.
— Honorável Pai, sua ordem foi obter as pérolas dos dragões
pela revogação da sentença da Deusa da Lua. O senhor não disse
nada sobre a essência espiritual deles. Se erramos, imploro por
misericórdia em nosso favor. No entanto, as quatro pérolas estão
diante de você, como prometido. Falta apenas um lado do trato a
ser cumprido. O seu.
A voz dele chegou a cada canto do salão, tirando a corte do
choque. Alguns cortesãos, os mais corajosos, assentiram.
Sussurros saíam de bocas cobertas por mangas de vestes. Claro,
eles sabiam pouco sobre as pérolas e o grande poder que uma vez
contiveram. Aos olhos deles completei minha missão e fui
recompensada com um raio no peito.
O Imperador Celestial se acalmou. As palavras de Liwei pareciam
tê-lo lembrado dos inúmeros olhos que o observavam. Línguas
silenciosas que ali não julgavam podiam não se conter tanto quando
retornassem para casa. Ele seria considerado justo e benevolente,
ou tirano e cruel? Quanto a mim, Liwei vinculara irrevogavelmente
nossos destinos. As “minhas” escolhas se tornaram “nossas”. Minha
punição também seria a dele. Eu lutara por Liwei na Floresta da
Eterna Primavera, assim como ele estava lutando por mim ali. Então
balancei a cabeça negativamente para afugentar tais pensamentos.
Como ele me dissera antes, não havia necessidade de ficar
contando. Não importava o quanto nossos caminhos divergiram,
nosso vínculo permaneceu intacto.
— Vossa Majestade Celestial — os tons sedosos do Ministro Wu
eram inoculados mais uma vez —, eu humildemente vos aconselho
a esmagar tal rebeldia de uma vez. Essa menina e sua mãe
zombarão do Reino Celestial. Não se esqueça de como Chang’e
escondeu a existência da filha, assim como esta tentou enganá-lo
agora. E se outros acreditarem que podem enganá-lo e escapar
ilesos?
Liwei se virou para ele, apontando para onde eu estava caída no
chão.
— Ilesos? Você conseguiria suportar o Fogo do Céu como ela?
Ela já pagou mais que o suficiente por qualquer ofens…
— Silêncio! — disparou o imperador, agarrando os braços de seu
trono.
O ar estava sufocante, espesso de tensão. Ninguém ousava se
mexer, nem mesmo a imperatriz, enquanto olhava para Liwei com
olhos arregalados de incredulidade.
O Imperador Celestial contraiu a boca em uma linha fina. O gelo
começou a brilhar na atmosfera mais uma vez e meu corpo se
encolheu ao recordar o tormento, preparando-se para o abraço da
morte.
O som agudo de botas contra os ladrilhos quebrou o silêncio.
Uma aura se aproximou — firme, resoluta e forte — General
Jianyun. Diante da plataforma, ele caiu de joelhos.
— Vossa Majestade Celestial. Antes de dar vosso veredito, é
dever de seu servo leal lembrá-lo de que a Primeira Arqueira salvou
o Exército Celestial da armadilha hedionda do Reino dos Demônios
hoje. Os soldados desejam mostrar sua gratidão e, mesmo agora,
aguardam do lado de fora. — Ele ergueu a cabeça, gesticulando
para a entrada do salão.
Olhei para cima, descrente, ficando de pé com dificuldade e
ignorando a dor que florescia a cada movimento. Lentamente, dei
meia-volta, seguindo o aceno do General Jianyun. Os cortesãos
diante de mim se separaram, sussurrando entre si.
Shuxiao estava perto da entrada e logo atrás dela, além do salão,
havia um mar de soldados Celestiais, estendendo-se mais longe do
que eu podia ver. Como se fossem um, curvaram-se, e a luz do sol
ondulou sobre suas armaduras, uma maré de fogo branco-dourado.
Meu coração subiu à garganta e a dor em meu corpo diminuiu.
Lágrimas brotaram em meus olhos quando me curvei para eles.
Eu não era leal ao Reino Celestial. Era leal aos meus amigos;
aqueles com quem lutei, aqueles com quem sangrei. Quando voltei
à postura normal, meus olhos encontraram os de Shuxiao. Ergui a
mão para minha amiga em saudação. Pelo visto eu tinha muito a
agradecer a ela. Quem mais teria informado ao General Jianyun e
levado o exército até ali?
O exército do Imperador Celestial.
Senti um calafrio na nuca. Recordando-me, dei meia-volta
novamente e caí de joelhos. Eu não imploraria nem suplicaria; não
iria adiantar.
— Vossa Majestade Celestial, não sou uma traidora. Cumpri os
termos de nosso acordo e aguardo sua justiça. — Minhas palavras
foram simples; minha voz, rouca de tanto gritar. O que viesse depois
não importava, havia uma paz em mim por saber que eu fizera tudo
que estava ao meu alcance.
Os murmúrios no salão ficaram mais altos, e vários cortesãos
meneavam a cabeça. Os soldados não se dispersaram, ficaram na
entrada do salão.
O rosto do Imperador Celestial era uma máscara de porte régio,
sem nenhum traço da rigidez e da raiva de um momento antes.
Quando ele falou, seu tom era firme e calmo.
— Primeira Arqueira Xingyin. Em gratidão por seu nobre serviço,
realizaremos seu desejo. Chang’e tem meu perdão e doravante
estará livre para deixar a lua. No entanto, não deve fugir de suas
responsabilidades. Como a Deusa da Lua, ainda cabe a ela garantir
que o corpo celeste nasça todas as noites, sem exceção.
Um breve instante de silêncio. Então os aplausos explodiram,
dentro e além do Salão da Luz Oriental. Se havia quem discordasse,
a imperatriz ou o Ministro Wu, seus protestos caíram em ouvidos
surdos. Eu caí novamente, sentindo a tensão ir embora de meu
corpo, mesmo que minha mente rodopiasse. O perdão do imperador
foi generoso. Magnânimo. Totalmente inesperado. Eu sabia, como
ele, que não havia realmente cumprido minha missão; não tinha
feito o que ele queria. Ele tinha o direito de negar sua parte do
acordo, por também ser meu juiz. Sua graça foi bem calculada,
lendo o clima da corte e de seus soldados, para preservar sua honra
e sua reputação. E também percebi a ameaça em suas palavras.
Nem tudo estava bem. E não haveria misericórdia uma segunda
vez.
Quando o imperador acenou, um selo apareceu diante de mim,
brilhando como uma estrela. Peguei o objeto, dobrando o corpo para
baixo e pressionando a cabeça no chão de pedra fria. Não havia
humildade ou gratidão em mim, mas eu desempenharia meu papel
naquela farsa. A dor percorria cada centímetro de minha carne e eu
não conseguia afastar a pontada de medo de que aquilo ainda
pudesse ser um truque. Confiança era algo que eu tinha aprendido a
não ceder prontamente. No entanto, minha alegria não podia ser
contida; veio livre, derramando-se por mim como os raios do sol
atravessando o céu infinito.
Eu estava indo para casa.
39

M inha mente viajara para cá mil vezes, embora eu tenha feito este
caminho apenas uma vez antes. Vi primeiro a floresta branca como
a lua de jasmins-do-imperador, o brilho do loureiro à distância. O
amplo telhado prateado, depois as brilhantes paredes de pedra do
Palácio da Luz Pura. Minha casa . Fechando os olhos, senti um
aroma leve e inebriante de canela-preta. Se aquilo era um sonho, eu
não queria acordar.
Fiz a nuvem parar e saltei ao chão iluminado pelo brilho das
lanternas. A qualquer momento, mamãe e Ping’er sentiriam a
presença surpreendente de um visitante. Mal dei alguns passos
quando as portas se abriram e uma mulher esbelta de branco
surgiu, com uma peônia vermelha enfiada no cabelo. Ela estava
pálida e contraía os lábios. Os visitantes eram uma ocorrência rara
aqui, e geralmente anunciavam infortúnios ou más notícias.
Eu não era mais a criança que fugira com medo do desconhecido
agarrada a Ping’er. No entanto, o tempo aqui havia parado; eu a
reconheceria em qualquer lugar. Um sorriso se esticou em meu
rosto e meus pés voaram sobre o caminho de pedra. Nunca
estiveram tão leves. E meu coração… meu coração estava
incandescente, mais brilhante que todas as estrelas do céu.
— Mãe! — Joguei meus braços ao redor dela; agora eu era mais
alta. — Eu voltei.
Seu corpo enrijeceu quando ela se afastou, olhando para meu
rosto. Será que ela suspeitava de algum truque para pegá-la
desprevenida? Seu olhar me investigou, parando em meus olhos,
movendo-se para a fenda em meu queixo. Ela respirou fundo um
momento antes de levantar a mão para acariciar minha bochecha,
com os olhos brilhando como o luar na água. Então seus braços me
envolveram, abraçando-me com tanta força quanto ela tinha em
meus sonhos.
— Xingyin, Xingyin — sussurrava ela repetidamente, e cada
repetição era mais alta que a anterior, como se quanto mais ela
dissesse meu nome, mais ela pudesse acreditar que era verdade.
Outra pessoa apareceu na entrada, talvez atraída pela comoção.
Ela estava ao lado de uma coluna de madrepérola, esticando o
pescoço.
— Estrelinha? — Um leve sussurro escapou de seus lábios.
Meu nome de infância me encheu de uma doçura repentina. Os
anos se passaram, mas era como se eu nunca tivesse partido. Na
verdade, meu coração sempre esteve aqui.
— Ping’er! Sou eu! — Ela correu para mim, abraçando-me como
costumava fazer.
— Passaram-se tantos anos, estive tão preocupada! — Suas
palavras saíam como se ela as estivesse segurando há muito
tempo. — Eu… eu falhei com você naquele dia. Eu fui muito lenta.
Sou tão…
— Não, Ping’er. Eu nunca teria escapado se não fosse por você.
— Eu a abracei com mais força. — Como você escapou dos
soldados? — Meu último vislumbre dela fora seu corpo sem vida
enquanto a nuvem se afastava.
— Eu estava quase exausta, pensei que havia morrido. Por sorte,
um vento surgiu e me levou para um lugar seguro. Eu tive de
recuperar minhas energias antes que pudesse voltar. Retornei ao
Império Celestial para encontrá-la, mas não sabia para onde você
tinha ido. Então, os soldados me pararam. — Seu rosto estava
pálido. — Suspeitaram de mim e, desde então, não tive permissão
para sair deste lugar.
— Eu sabia que você ia tentar me encontrar. — Uma leveza se
espalhou por meu peito. — Se você não fizesse isso, seria porque
não conseguiu.
Ficamos do lado de fora até que o brilho da lua começou a
desaparecer. Nós três rimos e choramos com as mãos entrelaçadas;
nenhuma de nós queria se soltar. Até então, eu não tinha percebido
o quanto sentia falta disso: da unidade da família, do amor
incondicional. Eu não queria me mexer, não faria nada que pudesse
quebrar a perfeição do momento, aquela renovação de minha alma.
Esses momentos, mesmo em uma vida imortal, são muito raros;
ocasiões nas quais a felicidade é absoluta e silencia os murmúrios
constantes que nos atacam. Com minha mãe e Ping’er ao meu lado,
sobre a terra de minha casa, eu não queria mais nada; meu coração
já estava cheio até explodir.
Quando a noite deu lugar à pérola do amanhecer, finalmente
entramos pelas portas prateadas. Meu olhar se deteve nas paredes
claras, nas lâmpadas brancas de jade em cada pilar de madeira
esculpida. Nada comparado aos tesouros do Palácio de Jade, mas
cem vezes mais preciosas para mim. A quietude era mais profunda
do que eu lembrava, assim como a tranquilidade que permeava o ar.
Mas, depois de tudo que eu passara, estava feliz por isso.
Joguei-me em uma cadeira, passando os dedos pelos sulcos da
madeira. Estou em casa , sussurrei para mim mesma, fitando minha
mãe com medo de ela desaparecer se eu desviasse o olhar. De que
tudo aquilo desaparecesse, deixando-me sozinha em minha cama
no Império Celestial. Talvez esse medo viesse de meu tormento com
tantos pesadelos, talvez eu estivesse acostumada a sofrer, pois
aquele cerne comprimido de medo em meu peito ainda estava lá,
dizendo que aquilo era apenas uma ilusão. Eu me belisquei até que
manchas vermelhas apareceram em meu braço, deliciando-me com
a dor que dizia que tudo aquilo era real .
Ping’er colocou uma xícara quente de chá perfumado em minhas
mãos. As perguntas fluíram, então:
— Você está bem? Está feliz? Onde esteve esse tempo todo? O
que você tem feito?
Respondi com o máximo de detalhes que pude, tentando
satisfazer anos de ansiedade e de curiosidade. Enquanto algumas
memórias como meu tempo na Mansão do Lótus Dourado eram um
borrão, outras estavam mais nítidas do que eu desejava. Quando
falei da entrada no Palácio de Jade, minha mãe agarrou a manga de
minhas vestes e a puxou.
— O Imperador Celestial descobriu sua identidade? — Ela olhou
por cima do ombro, como se esperasse que soldados armados
invadissem nossas portas.
— Não naquele momento — assegurei a ela. Antes que ela
pudesse sondar mais, eu rapidamente descrevi meu treinamento em
magia, combate e arquearia.
— Arquearia? — Sua voz ficou um pouco embargada. — Assim
como seu pai — disse ela, com orgulho.
Um nó se formou em minha garganta. Por muito tempo eu vivi
com medo de quem eu era — não falando nunca os nomes de meus
pais, fingindo para o mundo exterior que eles não existiam… como
se eu fosse uma erva daninha silvestre nascida em um campo
aberto. Agora, eu queria gritar isso para o mundo.
Minha mãe me interrompeu uma vez. Sem precisar omitir nada
em minha casa, um calor enchia minha voz sempre que eu
mencionava o nome de Liwei.
— O que você tem com o Príncipe Herdeiro Celestial? —
perguntou ela.
Percebi o leve franzir em sua testa.
— Nós somos… amigos — gaguejei, e um calor subiu por meu
pescoço.
— Esse Capitão Wenzhi também é seu amigo? — A voz de minha
mãe estava enganosamente suave.
— Não — retruquei incisivamente, em um volume maior do que
pretendia.
Houve uma pausa constrangedora quando minha mãe trocou um
olhar preocupado com Ping’er, e fiquei feliz quando não fizeram
mais perguntas sobre isso. Apressadamente, comecei a descrever
as batalhas das quais participei, as criaturas e os inimigos que
enfrentei a serviço do Exército Celestial.
Aqueles monstros eram muito melhores do que os que habitavam
minha mente.
Ping’er estremeceu com minha descrição de Xiangliu e cruzou os
braços.
— Você ficou com medo?
— O tempo todo. — Algumas pessoas podiam pensar que sou
uma covarde, mas não senti vergonha de admitir isso. Eu não era
uma dessas heroínas valentes que mergulhavam no perigo de forma
tão destemida. Eu tinha medo de me machucar, de fracassar e,
acima de tudo, da morte. De nunca mais ver minha mãe ou meus
entes queridos. Lamentar todas as coisas não ditas ou não feitas.
Deixar a vida que ainda não vivi. Fui elogiada por minha bravura,
mas eu sabia a verdade: todas essas coisas foram feitas apesar de
meu medo, porque não as fazer me amedrontava mais.
Elas ficaram surpresas ao saber como eu salvei a vida de Liwei.
Não contei a elas as coisas cruéis que Madame Hualing nos obrigou
a fazer; eu não queria desenterrar aquelas memórias dolorosas,
nem deixar as duas ainda mais espantadas. O rosto de minha mãe
ficou pálido com a revelação de minha identidade e o acordo que eu
tinha feito com o imperador.
— Como você pôde fazer uma coisa dessas? Correr esse risco?
— Ela se levantou e andou pela sala, com as mãos unidas com
tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. — E se você
fosse condenada à prisão? À tortura? À morte ?
— Todas essas coisas eram possibilidades muito reais na época
— brinquei. Mas minha alegria desapareceu ao ver seu rosto
preocupado. — Mãe, eu ganhei o Talismã do Leão Vermelho e a
graça do imperador. Não havia melhor momento para perguntar isso
a ele. Se não, não estaria aqui hoje. Eu passaria meus dias
lamentando essa oportunidade perdida, arrependida por não ter
tentado. E esse seria um destino pior. — Fiz uma pausa, então,
encarando seu rosto. — Mãe, a senhora também se arriscou
quando tomou o elixir. — Ela ficou tão quieta, tão imóvel, que quase
me arrependi das palavras. — A senhora me salvou no passado, e
eu agradeço por isso.
Um leve sorriso se formou nos lábios de minha mãe, mesmo
enquanto as lágrimas escorriam por suas bochechas.
— Ah, chega dessa tristeza — disse Ping’er, enxugando os olhos
com o canto da manga. — Este é um dia feliz. O mais feliz de todos.
Não choraremos mais.
— E, como vocês podem ver, estou bem — assegurei a elas,
levantando-me e esticando os braços. Seus olhos se demoraram em
mim até que se convenceram de que eu não estava com nenhum
ferimento aparente. Embora eu não tenha dito nada sobre a teia de
cicatrizes brancas espalhadas por meu peito. As feridas feitas pelo
Fogo do Céu do imperador, ainda recentes. Eu não achava que elas
sumiriam; ficaria marcada para sempre. Mas de que isso importava?
Algumas cicatrizes não eram nada perto do que eu tinha
recuperado.
Quando minha mãe soube que o honorável Capitão Wenzhi era
do Reino dos Demônios, sentiu um calafrio, ficando horrorizada.
— Xingyin, como você se sentiu? — perguntou ela, com uma
perspicácia invejável.
Meneei a cabeça, sem palavras; a trapaça dele ainda era difícil de
suportar. Agora que eu estava segura, o peso da traição de Wenzhi
era sentido em totalidade. Uma dor diferente de quando Liwei e eu
nos separamos, não que essa também não tivesse me feito sofrer.
Com Liwei, foram as circunstâncias que nos separaram. Ele era o
Príncipe Herdeiro Celestial, com obrigações para com seu reino. Já
com Wenzhi… fui magoada pela falsidade e pelas vis decisões dele
. Minha mágoa estava misturada com remorso por ter sido tão
descuidada, tão imprudente a ponto de cair em suas mentiras. E
havia amargura, também, por ele ter abalado minha confiança em
mim mesma. Por ter me rebaixado às profundezas de sua própria
fraude quando eu fingi afeto para dopá-lo e fugir. Eu não tinha
vergonha do que fizera, mas também não tinha orgulho.
Felizmente, Ping’er tinha perguntas mais urgentes a fazer.
— O que aconteceu com as pérolas? E com os dragões?
Procurei palavras que fizessem jus à sua beleza sobrenatural, ao
seu poder e à sua graça. Quando falei da restauração da essência
dos dragões, a mão de minha mãe cobriu a minha. Não houve
julgamentos por colocar em perigo sua liberdade e eu mesma,
apenas orgulho brilhando em seu rosto.
— Os dragões estão livres — sussurrou Ping’er. — Eu acreditava
que eles estavam perdidos para sempre.
Continuei com minha história, respondendo às perguntas delas da
melhor forma que pude, apenas as evitando quando doesse demais
— quando não conseguisse esconder meus sentimentos. Quando
terminei, o sol estava a pico e o céu, um azul-celeste.
Foi então que desamarrei minha bolsa, pegando o selo que o
Imperador Celestial me dera, tão frio quanto um punhado de neve.
Meu coração batia tão rápido que eu mal conseguia respirar
enquanto saía de minha cadeira e caía de joelhos diante de minha
mãe.
— Xingyin, por que está ajoelhada? — Ela parecia confusa
quando se inclinou para frente de mãos estendidas para me
erguer…
Mas eu levantei as mãos juntas em concha para ela em vez disso.
Nelas estava o selo, brilhando como gelo iluminado pelo sol. Eu
tremia muito e nem sabia por quê. Medo, entusiasmo, esperança, ou
seria tudo junto? Será que daria certo? Como eu rezei para que sim!
Ela pegou o selo de minha mão e o ergueu.
— O que é isto?
Antes que eu pudesse responder, algo faiscou no metal — feixes
de luz branco-prateada saíram de suas profundezas, envolvendo
minha mãe em um brilho deslumbrante. Ping’er e eu protegemos
nossos olhos, quase cegos devido ao clarão que se desvaneceu
abruptamente. O selo agora se tornara um pedaço de carvão fosco.
Minha mãe ficou imóvel como mármore. Quando ela se virou para
mim, seus olhos estavam cheios de admiração, brilhando mais do
que as mil lanternas acesas.
— O encantamento foi quebrado. Eu estou livre.
Quando Ping’er ficou de pé, exclamando de alegria, meu corpo
ficou mole de alívio. Até então eu temia um truque cruel do
imperador. Mas ele manteve sua palavra. Uma torrente de emoção
me varreu e desembaraçou os nós enterrados profundamente,
dissipou as sombras à espreita, arrancou minha tristeza; todo o meu
ser fora preenchido com nada além de uma leveza crescente e
ardente.
Finalmente, nossas vidas poderiam começar de novo.
40

E m minha infância, nosso isolamento não era um grande fardo. Eu


não tinha amigos ou companheiros, e tinha pouca necessidade
deles; minha mãe e Ping’er bastavam para mim. Mas agora, depois
de algumas semanas imersa em tamanha tranquilidade, reparei que
estava com saudade de meus amigos no Império Celestial e além.
Meu desejo foi atendido antes do que eu imaginava. Antes do sol
nascer no dia seguinte, Ping’er gritou que Liwei estava em minha
casa. Meus olhos estavam pesados de sono, mas a ideia de vê-lo
fez meu coração acelerar. Pulei da cama e lavei o rosto rapidamente
antes de vestir um manto azul; sua cor favorita, observou minha
mente traiçoeira antes que eu a silenciasse. Passando um pente no
cabelo, enrolei parte dele. Meus passos eram rápidos e impacientes,
e disse a mim mesma que era porque estava feliz em ver um
amigo… qualquer amigo, depois daquela solidão. Quando entrei no
Salão Prateado da Harmonia, encontrei minha mãe sentada com ele
enquanto conversavam tal qual se conhecessem. Ping’er estava ao
lado deles, servindo o chá. Como costumávamos nos servir,
suspeitei que a presença dela hoje fosse para dar uma olhada mais
de perto no Príncipe Herdeiro Celestial.
Minha respiração ficou presa na garganta ao vê-lo. Seu manto de
brocado azul-escuro estava preso com um pedaço de pano preto,
borlas de seda e jade estavam penduradas em sua cintura. Seu
cabelo comprido estava preso em um anel de ouro, balançando
sobre as costas. Ele estava sentado com as palmas das mãos
apoiadas nos joelhos, com uma postura que eu não via havia algum
tempo. Quando ele se levantou para me cumprimentar, seu sorriso
era mais radiante que o sol.
— Você… você está aqui — gaguejei, com todo pensamento
coerente me fugindo.
— Vim sem ser convidado, mas sou bem-vindo, espero. — Ele
estendeu a mão para pegar a minha.
A intimidade me pegou de surpresa, assim como o calor
desenfreado em seu olhar.
— Sim, sempre — finalmente consegui dizer.
Na hora exata, minha mãe e Ping’er disseram que precisavam ir a
outro lugar. Ao me deixarem sozinha com ele, minha mãe sinalizou
que aprovava Liwei totalmente, apesar de suas reservas anteriores.
Ele tinha jeito com as pessoas, uma sinceridade que atraía os
outros antes mesmo de saberem quem ele era. Assim como quando
nos conhecemos.
— Tudo bem? — perguntou ele.
— Melhor do que o esperado — respondi com sinceridade. Sono
tranquilo, sem pesadelos. Uma vida despreocupada, sem
responsabilidades. Ninguém para tocar meu coração ou afogá-lo em
desespero. Tais luxos podem fazer maravilhas à saúde. Desde o
meu retorno, minha força vital também estava se fortalecendo. A lua
possuía uma poderosa energia rejuvenescedora que eu
desconhecia, talvez porque minha magia tivesse sido suprimida.
Levaria um tempo até que eu recuperasse minhas forças, mas
poderia ser mais cedo do que eu esperava. Embora meu corpo
estivesse se curando, minha alma estava inquieta. Só conseguia
andar pela floresta de jasmins-do-imperador por certo tempo e
assim era com a leitura ou a música. — Tudo bem? — Repeti sua
pergunta. O pavor tomou conta de mim quando me lembrei de sua
rebeldia com o pai. E também fiquei muito envergonhada por tê-lo
deixado suportar o peso da ira dos pais sozinho. Tudo o que me
consumia depois daquele confronto doloroso era uma ânsia
desesperada de voltar para casa, de deixar o Império Celestial, com
um temor parcial de que o imperador mudasse de ideia e exigisse a
devolução de seu selo.
Liwei segurou minha mão com mais firmeza e seus olhos escuros
me imobilizaram ali mesmo.
— Nada que eu não tenha passado antes.
Mordi o lábio, querendo perguntar mais. Contudo, a intensidade
de seu olhar e sua proximidade me fizeram parar. Haveria algo
diferente com ele hoje? Era quase como se ele tivesse voltado a ser
o Liwei de antigamente, antes de eu… descartei a ideia. Ele estava
aqui, eu estava feliz por isso. E eu tinha um favor a pedir a ele hoje:
que levasse minha mãe e eu para o Reino Mortal. Para ver meu pai.
Egoísta, esperei para contar a notícia à minha mãe. Para nos
deixar desfrutar de alguns dias de felicidade pura, aproveitando
nosso reencontro e sua liberdade recém-recuperada. Mas eu sabia
que ela desejava voar ao Reino Mortal para procurar meu pai assim
que pudesse. Uma noite, quando não pude mais esperar, peguei
sua mão.
— Mãe, eu tenho algo a dizer! — Palavras indesejadas cheias de
pressentimentos. Ou teria sido o tremor em minha voz que fez sua
face tornar-se cinza?
Sua mão fria se desvencilhou da minha.
— Não quero ouvir. — Sua súplica infantil me atingiu. Eu me
perguntei se deveria deixar as coisas como estavam, metade
esperança, metade negação… Algo dentro de mim recuou. Melhor
cortar o cordão do que deixá-lo se desgastar até o fim inevitável.
— Sinto muito. O Dragão Negro me contou… O pai está morto. —
Minha voz ficou embargada com as palavras e minha garganta se
fechou.
Ela desmoronou, curvando o corpo e ofegando. Eu a segurei
rápido, tentando suportar seus gritos engasgados. Minhas palavras
haviam tirado toda a esperança dela como uma faca cortando uma
planta doente que ainda tinha vontade de viver. Eu perdera um pai
que nunca conheci, mas minha mãe perdeu um marido que ainda
amava.
Juntos, agora, nós três voávamos para o Reino Mortal. O rosto de
minha mãe estava branco enquanto ela puxava as mangas de seu
manto com nervosismo. Fazia muito tempo desde que ela deixara a
lua. Felizmente, a nuvem de Liwei voava tão suavemente quanto um
pássaro.
O Dragão Negro descrevera bem o lugar. Onde os dois rios se
fundiam, vimos a pequena colina coberta de flores brancas. No
ponto mais alto erguia-se uma grande sepultura circular feita de
mármore. Ideogramas incrustados com ouro soletravam o nome:

HOUYI
Ao redor havia pinturas das realizações de meu pai; as batalhas
que vencera, os inimigos que derrotara. Era uma tumba magnífica,
digna até de um rei naquele mundo. No entanto, entristeceu-me que
não houvesse menção de sua família ou descendentes. Teria vivido
sozinho até o fim?
Minha mãe agarrou meu braço, com passos vacilantes. Ela olhou
para a sepultura com o rosto afligido pela dor.
— Nós podemos ir embora, se a senhora quiser — sussurrei, com
dor no peito.
— Não — exclamou ela, ferozmente. Ela puxou as mangas
compridas para cima, pegou a vassoura e começou a varrer com
uma explosão de energia. Por um momento, eu me perguntei o que
os mortais pensariam se vissem a reverenciada Deusa da Lua
varrendo tão diligentemente quanto qualquer aldeão comum. De
repente, ocorreu-me que eles, mais do que ninguém, entenderiam o
respeito que ela queria prestar ao marido. Para mostrar a ele que,
mesmo na morte, ainda o honrava. Eu me agachei, usando meu
lenço para limpar a poeira e a sujeira do mármore, polindo os
ideogramas até que brilhassem mais uma vez. Liwei se afastou no
início, antes de se curvar para arrancar ervas daninhas.
Quando o local estava impecável, minha mãe trouxe as frutas e
os bolos que ela mesma preparara como oferenda, empilhados em
pratos de porcelana. Acendi os bastões de incenso e passei três
para ela, suas pontas vermelhas com as chamas apagadas.
Segurando-os diante de nós, ajoelhamo-nos diante do túmulo e nos
curvamos três vezes. Uma esposa e uma filha, lamentando nossa
maior perda. Após a reverência final, coloquei os bastões de
incenso firmemente no pequeno incensário de latão. Finos rastros
de fumaça perfumada flutuaram no céu.
Toquei a mão dela, despertando-a de seu torpor.
— Mãe, quando a senhora anda na floresta à noite, pensa em
quê? — Eu sempre quis perguntar isso.
Ela fechou os olhos, com um sorriso que parecia um sonho.
— Em você criança. Em seu pai. Em nossa vida juntos. Como eu
gostaria que ele estivesse conosco, que não tivesse sido deixado
para trás. — Ela inclinou a cabeça e sua boca sussurrou palavras
pela metade. — Às vezes eu me pergunto… e se os médicos
estivessem errados? E se eu não tivesse bebido o elixir? Teríamos
vivido todos esses anos juntos, no mundo abaixo. Meu cabelo
estaria grisalho agora, mas teríamos sido felizes . — Ela apertou
minha mão com mais força. — Enquanto eu subia aos céus, olhei
para trás uma vez e o vi na janela com a mão estendida, com tanta
angústia no rosto. Ele voltou tarde demais. Algumas noites eu me
atormento, imaginando como ele se sentiu enquanto me observava
voar para longe. Será que entendeu por que eu fiz aquilo? Será que
se sentiu traído? Será que… me odiou? Nessas noites, eu também
me odeio. — Ela olhava para frente, com um nó na garganta. — No
momento em que peguei o elixir, só conseguia pensar em você e em
mim, no quanto eu queria que nós ficássemos vivas . Quando bebi,
escolhi a morte de meu marido antes da minha. Escolhi uma vida
sem ele. Escolhi… nós. — Sua voz pulsava com emoção repentina.
— Eu nunca me libertarei de minha tristeza. No entanto, faria tudo
de novo, mesmo sabendo tudo o que aconteceu depois. Porque isso
significa que eu teria você.
As lágrimas caíram dela como uma chuva. Eu me amaldiçoei por
minha pergunta impensada, apesar de saber que perguntar a
entristeceria. Mas não podíamos continuar escondendo e
enterrando nossa mágoa, principalmente daqueles que amávamos.
Eu tinha aprendido que o perdão, o crescimento e a eventual cura
de nossas feridas vinham da dor. Então me ocorreu que talvez
minha mãe e eu fôssemos mais parecidas do que eu imaginava.
Nós duas havíamos aproveitado as oportunidades que surgiram em
nosso caminho, ambas escolhemos viver.
Lentamente, seus dedos escorregaram de meu alcance, como se
ela tivesse esquecido minha presença. Seu olhar estava fixo nos
caracteres brilhantes do nome de meu pai na lápide, e seus lábios
moviam-se para pronunciá-los em silêncio. Seu legado e suas
realizações esculpidas em pedra imutável. Para sempre enraizados
na memória do mundo que ele havia salvo. Enquanto houvesse
livros para ler e canções para cantar, ele nunca seria esquecido.
Mas isso era um consolo vazio para aqueles que o amavam.
Levantando-me, juntei-me a Liwei na margem do rio. Ficamos em
silêncio, observando a água brilhando à luz do sol enquanto a brisa
brincava com nossos cabelos. O ar do mundo mortal estava repleto
de uma miríade de aromas; flores desabrochando, folhas em
decomposição, a água terrena do rio fervilhando de vida. Ele se
voltou para mim.
— Pedi à Princesa Fengmei que nosso noivado não acontecesse
mais.
Olhei para ele, incrédula, sem saber o que dizer.
— Por quê? Quando? — perguntei, por fim.
Ele me lançou um sorriso pesaroso.
— Precisa perguntar? Depois que você partiu, eu a visitei. Contei
a verdade, o que eu deveria ter dito a ela muito antes. Ela merecia
mais do que eu tinha a oferecer: um coração que nunca seria dela.
Ela foi muito compreensiva, e me pediu para dizer que espera que
encontremos a felicidade juntos. Acho que ela sabia desde o dia em
que você a resgatou.
Lembrei-me de seu olhar claro quando fitou nossas Gotas do Céu,
quando percebeu que eram um par perfeito. Eu não queria magoá-
la… mas, ah, eu não podia negar a alegria que floresceu em mim
naquele momento.
— E a aliança?
— O Império da Fênix reafirmou seu apoio ao Império Celestial.
Embora o vínculo não seja tão forte quanto uma aliança por
casamento, eles continuarão sendo nossos amigos e aliados. Tanto
a rainha quanto ela continuam agradecidas por nossa ajuda. — Ele
pegou minha mão, pressionando-a contra seu peito, onde seu
coração batia tão alto quanto o meu. Seus olhos brilharam com uma
emoção desenfreada. Enquanto sua outra mão estava em minha
face, inclinei-me inconscientemente contra ele, atraída por seu calor
que nunca esqueci. — Meu coração é seu; sempre foi seu — disse
ele. — Não precisa responder agora. Eu sei que você precisa de um
tempo com sua mãe e para pensar sobre as coisas. Eu estava
errado antes; não lutei o suficiente por nós naquela época. Mas
nunca vou falhar com você novamente. — Ele disse as últimas
palavras tão solenemente quanto um voto.
As emoções que me inundavam não deixavam espaço para falar.
Era como se o sol tivesse emergido de trás das nuvens, iluminando
o céu. As sombras podem retornar, mas por enquanto eu me
deleitaria com seu brilho.
Quando anoiteceu, voamos de volta para a lua. Antes de partir,
Liwei me ajudou a erguer os escudos de proteção. Nossa casa não
era mais proibida aos imortais e, quando acolhíamos visitantes,
precisávamos ter cautela. Juntos, tecemos nossa magia em fios de
poder que se estendiam ao redor do Palácio da Luz Pura. Quando
parei, exausta, Liwei assumiu. Quando ele fechou os olhos, sua
energia explodiu em uma onda de luz, circulando nossos escudos
antes de desaparecer.
— Acrescentei outra camada de proteção para detectar quem
esconde sua forma, seja Demônio, espírito ou Celestial. Embora não
possa impedir a entrada deles, esperamos que seja um aviso
suficiente — explicou ele.
Com a seriedade em seu tom, o sangue deixou meu rosto.
— Celestial? — repeti, tropeçando na palavra. Eu pensei que a
intriga, o perigo e o medo haviam acabado.
O rosto de Liwei ficou obscuro.
— Não tenho conhecimento de trama alguma. No entanto, meus
pais estão descontentes pelo exército ter lhe dado apoio. Sussurros
chegaram a seus ouvidos de que ele a ter deixado vir para cá é visto
por muitos como um sinal de fraqueza. Alguns começam a
questionar novamente a sabedoria de suas decisões passadas:
aprisionar os dragões, exilar a Deusa da Lua, permitir que os
pássaros solares vagassem sem restrições…
Fiquei arrepiada.
— Tudo o que eu queria era voltar para casa e libertar minha mãe.
Eu nunca pretendi que nada disso fosse um desafio. Eu só quero
viver em paz.
— Não podemos controlar o que os outros temem. Mas você não
estará sozinha. Eu estarei com você, enquanto você permitir. —
Liwei pegou minhas mãos congeladas, levando-as aos lábios e
soprando seu hálito quente sobre elas. — Estou apenas sendo
cuidadoso. São rumores e boatos, nada com que se preocupar por
enquanto.
Assenti, rígida. Rumores e boatos em ouvidos errados ainda
podiam ter consequências terríveis.
Naquela noite, depois que Liwei saiu, eu me remexi e me virei
antes de adormecer. Mesmo no sono não encontrei descanso;
perdida em um sonho vívido no qual eu estava na varanda, olhando
para o céu. As nuvens eram de uma cor estranha, quase violeta.
Quando uma pessoa alta veio ao meu lado, seu manto verde
rodopiou na brisa.
Ele me encarou com aqueles olhos prateados, como se
esperasse que eu falasse.
— Obrigado por nos deixar ir. Mas isso não apaga tudo o que fez
— disse, rigidamente.
— Eu falei sério. Nunca mais iria forçá-la a agir contra sua
vontade novamente. — Havia uma nota melancólica em seu tom,
que eu nunca tinha ouvido antes. — Eu não percebi o que tínhamos
até que foi perdido. Se ao menos pudéssemos começar de novo, eu
faria as coisas de forma diferente.
Eu não respondi. Não sabia o que dizer.
— Há algo que quero lhe perguntar.
— Pode perguntar, mas pode ser que eu não responda —
retruquei, não querendo me aprofundar em uma conversa que trazia
de volta muitas memórias inquietantes.
Embora ele sorrisse, havia um vazio no gesto.
— Senti falta de sua companhia. Daria esse prazer a mim?
— Eu não senti falta da sua. — Uma meia verdade, uma meia
mentira. Lembrei a mim mesma de que tudo o que eu perdera foi a
ilusão de nosso companheirismo, não a realidade de sua traição.
Os olhos dele brilharam.
— No telhado, antes que o dragão a levasse, você teria atirado
em mim?
Eu me perguntara isso inúmeras vezes até então. Agora, eu
finalmente sabia a resposta.
— Não. — A honestidade dele merecia nada menos que a minha.
Com essa única palavra, ele soltou um suspiro e relaxou a tensão
que estava em seus ombros.
— Você poderia gostar do Demônio como gostou do Celestial?
— O Celestial nunca existiu. Era o Demônio o tempo todo. — De
alguma forma, mantive minha voz uniforme, ignorando a dor em
meu peito.
Ele inclinou a cabeça, sério.
— Talvez. Não importa como você me veja, vou esperar até que
volte.
— Volte a quê?
— A me amar novamente. — Seus dedos roçaram a lateral de
minha cabeça, acariciando levemente meu cabelo. — Ou, pelo
menos, a não me odiar mais.
Antes que eu pudesse me afastar e soltar a resposta mordaz que
estava na ponta da língua, ele desapareceu.
Acordei na manhã seguinte, como se tivesse areia nos olhos e de
mau humor. Meu sonho fora muito vívido, e as emoções evocadas,
muito reais; fiquei perdida em pensamentos por um longo tempo.
Alternando entre a indignação por ele ter se infiltrado em meus
sonhos e o ressentimento por pensar que ele ainda mexia assim
comigo. Finalmente, levantei-me para me vestir. Na frente do
espelho, congelei ao ver o grampo de prata em meu cabelo
esculpido com um padrão de nuvens. Meus dedos agarraram o
metal frio, arrancando-o e jogando-o em uma gaveta.
Peguei o Arco Dragão de Jade, pendurando-o no ombro antes de
sair do quarto. Meu tempo no exército me ensinou a ter cautela, a
ter sempre uma arma à mão. Caminhando para fora, testei mais
uma vez os escudos que Liwei e eu tecemos. Fios de ouro e de
prata entrelaçados firmemente, tão delicados quanto uma teia de
aranha, porém mais fortes que o ferro. Com uma explosão de
coragem, pensei, se os inimigos espreitassem no horizonte, eu
estaria pronta para eles.
Naquela noite, não sonhei com Wenzhi. Eu estava insegura,
indecisa sobre como me sentia, embora pressentisse que não seria
a última vez que o veria.

em uma rotina. Desde que minha mãe foi absolvida


MEUS DIAS CAÍRAM
de sua pena, muitos imortais vieram nos visitar. Alguns para prestar
homenagem, outros para satisfazer sua curiosidade, mais
interessados no escândalo de nossa história do que com qualquer
preocupação genuína. Eu ansiava por enxotá-los depois da primeira
xícara de chá, mas o olhar de minha mãe continha meus impulsos
mais rudes. No entanto, fora essas pequenas irritações, era
maravilhoso estar em casa. Sentir-me segura, livre e amada. Fiel à
sua promessa, Shuxiao me visitava frequentemente, muitas vezes
aparecendo sem avisar. Eu sempre ficava feliz com sua companhia
e por ouvir suas notícias sobre o reino. Minyi também veio, e até a
Professora Daoming e o General Jianyun. Esses eram meus
momentos favoritos — compartilhar minha casa com os amigos que
fiz, ouvir suas vozes e seu riso se espalharem por nossos
corredores. Tal companhia não prejudicava a paz, mas a melhorava.
No entanto, nenhum visitante era mais frequente do que Liwei.
Fizemos longas caminhadas pela floresta branca de jasmins-do-
imperador, serpenteando entre as lanternas brilhantes sob o céu
estrelado. Quando eu tocava o guqin ou a flauta, ele se sentava ao
meu lado, desenhando ou pintando. Às vezes eu erguia o olhar e via
seus olhos escuros fixos em mim com tanta intensidade que meus
dedos escorregavam na melodia. Mas eu não me esquivava mais de
seu toque, nem sentia aquela pontada de culpa quando meu
coração acelerava ao vê-lo. E minha mente, mais uma vez, ousou
sonhar com nosso futuro.
Algumas noites, depois que Ping’er ia dormir, eu me juntava à
minha mãe enquanto ela estava na varanda de nossa casa.
Ficávamos juntas, mas perdidas nas próprias memórias; ela, no
reino abaixo; eu, nos céus acima. Agora eu entendia, com
surpreendente clareza, por que ela não queria ser perturbada
durante esses momentos. E, embora não nos falássemos,
encontramos uma espécie de consolo na companhia uma do outra,
compartilhando nossa dor — uma dor que eu não compreendia em
minha infância. Muitas vezes, notava que tinha ficado sozinha, sem
perceber quando ela tinha ido embora, de tão imersa que estava em
meus próprios pensamentos, tentando responder às perguntas que
giravam em minha mente.
Liwei e eu poderíamos realmente esquecer tudo o que acontecera
para nos separar? Os laços que foram rompidos poderiam ser
refeitos? Na tranquilidade de meu lar, esperava ter tempo para
desvendar esses nós emaranhados de minha vida. No entanto,
embora fôssemos imortais, eu não poderia trilhar esse caminho para
sempre — fugindo do amor, com medo de tomar a decisão errada,
com medo de me machucar. Eu não achava que era inconstante,
mas a verdade é que eu não conhecia mais meu próprio coração.
Sempre pensei que a vida era uma estrada sinuosa, fazendo
curvas com os caprichos do destino. Sorte e oportunidade,
presentes além do nosso controle. Enquanto eu contemplava a noite
sem fim, percebi que nossos caminhos foram forjados a partir das
escolhas que fizemos. Seja para alcançar uma oportunidade ou para
deixá-la passar. Ser levado pela mudança ou se manter firme. Na
superfície, minha vida tinha completado seu ciclo. No entanto, não
precisava mais me esconder nas sombras, enterrando meu passado
e temendo por meu futuro. Nunca mais esconderia quem eu era,
nem os nomes de meu pai e minha mãe. A notícia de que eu era
filha da Deusa da Lua e do mortal que havia matado os sóis se
espalhou pelos oito reinos do Reino Imortal.
Na escuridão, as mil lanternas ganharam vida. O céu estava claro.
As estrelas infinitas. A luz da lua estava cheia e brilhante. Numa
noite como aquela, meu coração estava contente, esperando a
promessa do amanhã.
Agradecimentos

A Filha da Deusa da Lua começou como um sonho doido que não


teria sido possível sem o amor e o apoio da minha família, dos meus
amigos e daqueles que acreditaram no livro e em mim. Sinto-me
verdadeiramente abençoada por poder incluí-los aqui.
A David Pomerico, meu brilhante editor da Harper Voyager dos
Estados Unidos — sempre me lembrarei de nossa primeira ligação,
que mudou o curso da minha vida, e soube então que meu livro
havia encontrado seu lar. É uma honra trabalhar com você, e você
tem sido um campeão incrível na batalha pela Filha da Deusa da
Lua . Sua visão para o livro e suas notas perspicazes (adorei seu
humor) me levaram a me tornar uma escritora melhor, e a história é
muito mais forte por causa de você.
Para Vicky Leech, minha incrível editora na Harper Voyager UK —
estou realmente muito feliz por trabalhar com você! Obrigada por me
apoiar tão bem e por suas ideias inspiradoras que nos levaram a
caminhos que nunca imaginei que trilharíamos, e sou grata por
termos seguido por eles.
Gratidão eterna à minha incrível agente, Naomi Davis, por
acreditar em uma escritora desconhecida que morava do outro lado
do mundo e tinha pouca experiência na escrita, e por trabalhar
comigo para aprimorar meu ofício. Você é maravilhosa e incansável,
minha guia e parceira em tudo com sua visão, sua experiência e sua
empatia.
Meus mais profundos agradecimentos à incrível equipe da Harper
Voyager dos EUA, com a qual tenho a sorte de trabalhar: DJ
DeSmyter, Sophie Normil, Ronnie Kutys e a equipe de vendas da
HarperCollins; gostaria de poder citar todos! Eu me esforcei a fim de
encontrar as palavras para expressar minha gratidão, mas, por
favor, saibam que sou muito grata por tudo.
Kuri Huang, muito obrigada por ilustrar a obra-prima requintada da
capa dos EUA, e a Jeanne Reina por sua direção inspirada. Além de
uma obra de arte, é a capa dos meus sonhos! Agradecimentos
especiais a Angela Boutin, Virginia Norey, Rachel Weinick, Jane
Herman e Mireya Chiriboga por sua inestimável ajuda! E, para a
incrivelmente talentosa Natalie Naudus, obrigada por ser a voz de
Xingyin, por trazê-la à vida.
Também sou muito grata à maravilhosa equipe da Harper Voyager
no Reino Unido — Natasha Bardon, Maddy Marshall, Jaime
Witcomb, Susanna Peden, Robyn Watts e Marta Juncosa — seu
apoio significa muito para mim. Obrigada a Ellie Game, a incrível
designer de capa, e a Jason Chuang por criar a incrível capa do
Reino Unido que eu não conseguia parar de olhar, que é
absolutamente perfeita para a história.
Para todos os outros na HarperCollins em todo o mundo que
apoiaram A Filha da Deusa da Lua , que ajudaram a obra a alcançar
seus leitores, àqueles que não pude incluir aqui; por favor, saibam,
agradeço a tudo o que fizeram.
Entrei no mercado editorial sem conhecer ninguém e era um
medo real que ninguém lesse meu livro. Sou eternamente grata aos
brilhantes autores que leram uma versão inicial do manuscrito:
Stephanie Garber, Shelley Parker-Chan, Andrea Stewart, Shannon
Chakraborty, Ava Reid, Genevieve Gornichec, Tasha Suri e
Elizabeth Lim. Não sou capaz de expressar como fiquei emocionada
com suas palavras atenciosas e generosas, e me sinto afortunada
por ter lido seus belos livros.
Para Anissa de Gomery, estou muito feliz por termos nos
conectado e por sua amizade agora. Trabalhar com você é um dos
pontos altos da minha jornada de escrita, e sou muito grata a você e
à sua equipe maravilhosa.
Ao meu amado marido, Toby — meu parceiro na vida, meu
primeiro leitor, crítico mais feroz e mais valente apoiador — sou
eternamente grata a você por me encorajar a perseguir meus
sonhos e me aguentar enquanto eu fazia a transição para esta nova
e exigente fase da minha vida. Por cuidar de nossos filhos quando
eu precisava cumprir meu prazo (a maior parte de 2021), por ouvir
meus temores quando tudo parecia impossível, por comemorar cada
etapa. Eu não poderia ter feito isso sem você.
A Lukas e a Philip, por sua empolgação com o que começou
como uma “ideia maluca” da mãe, por suas fotos e rabiscos
entusiasmados, suas perguntas sobre minha história e — o mais
importante — por me deixarem trabalhar quando os fones de ouvido
estavam ligados. Amo vocês do fundo do meu coração.
Eu não estaria onde estou sem meus pais. Obrigada à minha
mãe, por seu amor e seu apoio, por cultivar meu fascínio infantil
pela fantasia chinesa e por me deixar ficar em casa para ler em vez
de sair. Aquelas poucas aulas de flauta e guzheng não foram um
desperdício total! E ao meu pai, por trabalhar tão duro para nos dar
uma vida melhor, por seu amor, humor e entusiasmo por tudo o que
fazíamos, e por me dar os livros que acenderam minha paixão por
histórias. Eu sinto sua falta, e gostaria que você ainda estivesse
conosco.
À minha irmã, Ee Lynn, por seu amor e incentivo, por estar
disponível nos melhores e nos piores momentos, e por ler meus
primeiros trabalhos. Ao meu primo Swee Gaik, por seus conselhos
inestimáveis e por me animar quando expressei pela primeira vez
meu sonho improvável de me tornar autora. Muito obrigada a você e
ao Dan!
Sonali, sempre serei grata a você por ler meu terrível primeiro
rascunho e por me dar a coragem de mergulhar na assustadora
busca por um agente. Sua crença em mim foi a faísca que acendeu
isso. A Jacquie, por seu apoio e gentileza inabaláveis, e por ser
minha voz da razão. Eu não sei como eu poderia ter passado por
isso sem vocês. Sou muito grata por ter vocês duas em minha vida
— as melhores amigas que eu poderia ter, minha calma em meio ao
tumulto da publicação, da maternidade e da vida.
Lamentavelmente, não tenho habilidade suficiente para escrever
um poema chinês. Agradecimentos especiais a Han Lihua por sua
bela interpretação do dístico de Xingyin na competição e por me
ajudar a cunhar os nomes perfeitos dos locais. A Yangsze Choo
pelos generosos conselhos a uma nova autora. E a Lisa Deng por
sua paciência com minhas perguntas aleatórias e frequentes, desde
discutir nomes até mitos e cultura.
Aos meus queridos amigos em Hong Kong — aqueles que
conheci na BA e HKIS. Sou muito grata a todos vocês por seu
encorajamento e seu apoio, particularmente durante a insanidade do
meu ano de estreia. Sua amizade significa muito para mim, e vocês
tocaram minha vida de muitas maneiras.
À professora mais inspiradora que já tive, Puan Vasantha Menon,
obrigada por incutir em mim o amor pela literatura.
É um privilégio fazer parte dos incrivelmente talentosos
#22Debuts e ter irmãos agentes tão maravilhosos que me ajudaram
a me manter sã. Além disso, para Kristen (@myfriendsarefiction),
Mike Lasagna, Daniel Bassett, Kelecto (@panediting), Ellie
(@faerieontheshelf), CW, Kristin Dwyer, Lauren (@fictiontea) —
vocês são todos incríveis, e eu sou grata pelo seu apoio inicial.
Finalmente, mas tão importante quanto, meus intermináveis
agradecimentos aos leitores, livreiros, bibliotecários, blogueiros,
bookstagrammers e à comunidade do livro por seu apoio à Filha da
Deusa da Lua . E, se você está lendo isto, eu sou muito grata a você
por dar uma chance a este livro, por me permitir compartilhar minha
história com você. Eu amei escrevê-lo com todo o meu coração, e
espero que você encontre algo para amar nele também.
Sobre a autora
SUE LYNN TANescreve contos de fantasia inspirados nos mitos e nas
lendas pelos quais se apaixonou quando criança. Nascida na
Malásia, estudou em Londres e na França antes de se estabelecer
em Hong Kong com a família.
Seu amor por histórias começou com um presente do pai, sua
primeira compilação de contos de todo o mundo. Depois de devorar
todas as fábulas que encontrou na biblioteca, ela descobriu livros de
fantasia — passando muitos anos de sua adolescência perdida em
mundos mágicos.
Quando não está escrevendo ou lendo, gosta de explorar as
colinas e os lagos perto de sua casa, os templos, as praias e as
ruas estreitas e sinuosas de lá. Ela também é grata por ter acesso a
chá de bolhas e comida picante, que infelizmente não sabe
cozinhar.
Encontre-a em www.suelynntan.com, ou no Instagram e no Twitter
em @suelynntan.
Table of Contents
Dedicatória
Parte I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Parte II
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Parte III
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Agradecimentos
Sobre a autora

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