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Existem muitas lendas sobre a minha mãe. Algumas dizem que ela traiu
o marido, um grande guerreiro mortal, ao roubar-lhe o Elixir da
Imortalidade para se tornar uma deusa. Outras retratam-na como uma
vítima inocente que engoliu o elixir para o manter a salvo de ladrões. Seja
qual for a história em que acreditem, a minha mãe, Chang’e, tornou-se
imortal. E eu também.
Lembro-me do sossego do meu lar. Éramos só eu, uma serva leal
chamada Ping’er e a minha mãe a residir na lua. Vivíamos num palácio
construído com uma pedra branca e reluzente, com colunas de madrepérola
e um telhado amplo de prata pura. As salas vastas estavam repletas de
mobília em madeira de cânfora, cuja fragrância aromática pairava pelo ar.
Uma floresta de jasmineiros rodeava o palácio, com um único loureiro no
meio, de onde brotavam sementes luminosas com um brilho etéreo. Nem o
vento nem as aves, nem mesmo as minhas mãos, conseguiam colher as
sementes, presas aos ramos tão firmemente como as estrelas ao céu.
A minha mãe era gentil e carinhosa, mas um pouco distante, como se
suportasse alguma grande mágoa que lhe tolhia o coração. Todas as noites,
depois de acender as lanternas que iluminavam a lua, ficava de pé na nossa
varanda a fitar o mundo dos mortais abaixo. Às vezes, eu acordava pouco
antes da alvorada e dava por ela ali parada, com o olhar envolto em
memórias. Incapaz de suportar a tristeza no rosto dela, eu apertava-a com os
meus braços, a minha cabeça na cintura dela. Ela estremecia ao meu toque,
como se acordasse de um sonho, antes de me afagar o cabelo e me levar de
volta para o meu quarto. O silêncio dela incomodava-me; receava tê-la
perturbado, apesar de ela raramente perder a calma. Foi Ping’er quem
finalmente me explicou que a minha mãe não gostava de ser incomodada
nessas alturas.
— Porquê? — perguntei.
— A sua mãe sofreu uma grande perda — respondeu Ping’er, erguendo
uma mão para travar a minha pergunta seguinte. — Não me cabe a mim
dizer mais.
Pensar no sofrimento da minha mãe partiu-me o coração.
— Já passaram anos. Irá a Mãe alguma vez recuperar?
Ping’er permaneceu em silêncio por um momento.
— Algumas cicatrizes marcam-nos até ao osso... fazem parte de quem
somos, moldam quem nos tomamos.
Ao ver a minha expressão abatida, Ping’er embalou-me com os braços
macios.
— Mas a força dela é maior do que julga, Estrelinha. Tal como a sua.
Apesar dessas sombras passageiras, eu era feliz ali, não fosse o mal-
estar constante de que algo faltava nas nossas vidas. Seria eu solitária?
Talvez, embora não tivesse muito tempo para me preocupar com a minha
solidão. Todas as manhãs, a minha mãe dava-me aulas de escrita e leitura.
Eu moía a tinta numa pedra até formar uma pasta preta e brilhante,
enquanto ela me ensinava a formar cada carácter com penadas fluídas do
seu pincel.
Apesar de apreciar esses momentos com a minha mãe, era das aulas
com Ping’er que eu mais gostava. A minha pintura era aceitável e o meu
bordado um horror, mas nada disso importava, pois a música era a minha
paixão. Algo na forma como as melodias tomavam forma agitava em mim
emoções que ainda não compreendia, fosse das cordas tocadas pelos meus
dedos, fosse das notas formadas pelos meus lábios. Sem companheiros para
me distraírem, em pouco tempo dominei a flauta e o qin, a cítara de sete
cordas, ultrapassando a perícia de Ping’er em poucos anos. No meu décimo
quinto aniversário, a minha mãe ofereceu-me uma pequena flauta de jade
branco, que eu levava para todo o lado numa bolsa de seda pendurada à
minha cintura. Era o meu instrumento preferido, com um tom tão puro que
até os pássaros voavam até à lua para me ouvirem... embora parte de mim
acreditasse que também vinham para admirar a minha mãe.
Às vezes, dava por mim a olhar para ela, extasiada pela perfeição dos
seus traços. O rosto tinha a forma de uma semente de melão e a pele reluzia
com o lustre de uma pérola. Sobrancelhas delicadas arqueavam-se sobre
olhos estreitos e pretos como azeviche, que se tomavam crescentes quando
ela sorria. Alfinetes dourados reluziam nas madeixas escuras do cabelo e
trazia uma peónia vermelha presa num dos lados. A túnica interior era azul
como o céu do meio-dia, complementada por um quimono branco e
prateado que lhe caía até aos tornozelos. À cintura trazia uma faixa
escarlate, ornamentada com borlas de seda e jade. Certas noites, quando eu
estava deitada na cama, ouvia o tilintar suave e adormecia mais facilmente
ao saber que ela estava por perto.
Ping’er assegurava-me de que eu era parecida com a minha mãe, mas
era como comparar a flor da ameixieira com o lótus. A minha pele era mais
escura, os meus olhos mais redondos e o meu queixo mais angular, com
uma reentrância no centro. Talvez eu me parecesse com o meu pai? Não
sabia; nunca o conhecera.
Passaram anos até eu perceber que a minha mãe, que me secava as
lágrimas quando eu caía e endireitava o meu pincel quando eu escrevia, era
a Deusa da Lua. Os mortais veneravam-na, fazendo-lhe oferendas a cada
Festival de Outono, no décimo quinto dia do oitavo mês lunar, quando o
brilho da lua atingia o auge. Nesse dia, queimavam incenso durante as
orações e cozinhavam bolos da lua, com uma crosta fina à volta de uma
pasta doce de sementes de lótus ou de um recheio salgado de ovo de pato.
As crianças levavam lanternas luminosas em forma de coelho, ave ou peixe,
simbolizando a luz da lua. Nesse dia do ano, eu ficava de pé na varanda, a
olhar para o mundo abaixo, inalando o incenso fragrante que subia até ao
céu em honra da minha mãe.
Os mortais intrigavam-me, pois a minha mãe fitava o mundo deles com
um anseio profundo. As histórias deles fascinavam-me, com as suas lutas
por amor, poder, sobrevivência... apesar de ter uma compreensão limitada
de tais intrigas na minha vida confinada. Lia tudo o que conseguia apanhar,
mas os meus preferidos eram as lendas de guerreiros valentes a lutar com
inimigos assustadores para proteger as suas amadas.
Um dia, enquanto vasculhava uma pilha de rolos na nossa biblioteca,
algo brilhante chamou-me a atenção. Fui ver o que era e senti o coração aos
saltos ao encontrar um livro que ainda não lera. A julgar pela trama
grosseira da lombada, parecia ser um texto dos mortais. A capa estava tão
desbotada que mal dava para perceber a pintura de um arqueiro a apontar
um arco prateado para dez sóis no céu. Percorri os detalhes esbatidos de
uma pena dentro das orbes. Não, não eram sóis, mas sim aves, enroscadas
em bolas de fogo. Levei o livro para o meu quarto, com os dedos a formigar
ao segurarem o papel quebradiço contra o meu peito. Deixando-me cair
numa cadeira, virava avidamente as páginas, devorando as palavras.
Começava como começam muitas lendas heroicas, com o mundo mortal
assolado por uma tragédia terrível. Dez aves solares ergueram-se no céu,
abrasando a terra e causando grande sofrimento. As colheitas não cresciam
no solo calcinado e não havia água para beber nos rios ressequidos. Corria o
rumor de que os deuses dos céus favoreciam as aves solares e ninguém se
atrevia a desafiar criaturas tão majestosas. Quando toda a esperança parecia
perdida, um guerreiro destemido chamado Houyi pegou no seu arco mágico
de gelo. Lançou as suas flechas pelo céu, matando nove das aves solares e
deixando apenas uma para iluminar a terra...
O livro foi-me tirado das mãos. A minha mãe estava parada ao meu
lado, corada, com a respiração rápida e ofegante. Quando me agarrou pelo
braço, as unhas cravaram-se-me na pele.
— Leste isto? — gritou.
A minha mãe raramente levantava a voz. Eu fitei-a, atónita, e consegui,
por fim, assentir.
Ela soltou-me, deixou-se cair para uma cadeira e apertou os dedos
contra as têmporas. Estendi as mãos para lhe tocar, receando que ela se
afastasse, zangada, mas ela envolveu as mãos nas minhas, a sua pele fria
como gelo.
— Fiz algo de errado? Porque não posso ler este livro? — perguntei,
hesitante.
A história não parecia ter nada de invulgar.
Ela ficou calada durante tanto tempo que pensei que não ouvira a minha
pergunta. Quando finalmente se virou para mim, tinha os olhos luminosos,
mais brilhantes do que as estrelas.
— Não fizeste nada de errado. O arqueiro, Houyi... é o teu pai.
Luzes percorriam-me a mente e os meus ouvidos retiniam com aquelas
palavras. Quando era mais nova, perguntara-lhe várias vezes sobre o meu
pai. Mas ela ficara sempre em silêncio, com uma expressão triste, até que,
por fim, parei de fazer perguntas. A minha mãe guardava no coração muitos
segredos que não partilhava comigo. Até agora.
— O meu pai?
Senti um aperto no peito ao pronunciar aquelas palavras.
Ela fechou o livro e ficou a olhar para a capa. Receando que ela pudesse
ir embora, ergui o bule de porcelana e servi-lhe uma taça. O chá estava frio,
mas ela bebeu sem se queixar.
— No Domínio Mortal, amávamo-nos — começou ela, numa voz baixa
e suave. — Ele também te amava, mesmo antes de nasceres. E agora...
Não terminou a frase e pestanejou furiosamente.
Segurei-lhe a mão para a reconfortar e lhe lembrar gentilmente de que
ainda estava ali.
— E agora, estamos separados para toda a eternidade.
Mal conseguia pensar por entre o tumulto que era a minha cabeça, as
emoções a irromperem dentro de mim. Desde que me lembrava, o meu pai
nunca passara de uma presença diáfana na minha mente. Quantas vezes
sonhei que estava sentado à minha frente durante as refeições, a passear ao
meu lado sob as árvores em flor. Sempre que acordava, o calor no meu peito
dissolvia-se numa mágoa vazia. Nesse dia, soube, por fim, o nome do meu
pai, e que ele me amava.
Não era de admirar que a minha mãe parecesse abatida ao longo de todo
esse tempo, presa nas suas memórias. O que acontecera ao meu pai? Estaria
ainda no Domínio Mortal? Como viéramos parar ali no alto? Contudo,
continha as minhas perguntas enquanto a minha mãe limpava as lágrimas.
Oh, como eu queria saber, mas não a faria sofrer para satisfazer a minha
curiosidade egoísta.
***
O tempo para um imortal era como chuva no oceano sem fim. A nossa
vida era tranquila, agradável, e os anos passavam como se fossem semanas.
Quem sabe quantas décadas teriam passado com este mesmo cenário se a
minha vida não tivesse sido arrebatada em tumulto, como uma folha
arrancada do ramo pelo vento?
Estava um dia bonito e a luz do sol entrava pela janela. Pus de lado o
meu qin lacado e fechei os olhos para descansar. Como já acontecera antes,
pontos prateados de luz vaguearam-me pela mente, puxando por mim,
chamando-me... como quando, todas as manhãs, o cheiro dos jasmineiros
me levava para a floresta. Queria estender a mão para lhes tocar, mas
lembrei-me do aviso severo da minha mãe.
“Não te aproximes das luzes, Xingyin”, implorara-me, de rosto lívido.
“É demasiado perigoso. Confia em mim, acabam por desaparecer.”
Eu tartamudeara a minha promessa. E com o passar dos anos, mantivera
diligentemente a minha palavra. Sempre que um vislumbre de brilho
prateado chamava por mim, eu pensava furiosamente noutras coisas, numa
música ou no último livro que lera, até a mente clarear e as luzes
desaparecerem. Contudo, estava a ficar cada vez mais difícil, as luzes
brilhavam com mais força e o seu apelo era mais tantalizante. A vontade de
lhes tocar, quase irresistível.
Como brilhavam naquele dia, talvez sentindo a minha determinação a
vacilar, a agitação inquietante do meu sangue. Ultimamente, sentia-me
assim com mais frequência, uma parte de mim a ansiar por... algo que não
tinha nome. Uma mudança, talvez. Mas ali nunca acontecia nada. Nunca
aconteciam mudanças.
As luzes não pareciam perigosas. Estaria a minha mãe errada? Ela
avisara sobre inúmeras coisas, tão inofensivas como trepar a uma árvore ou
correr pelos corredores, lembrando-se talvez desses perigos na sua infância
de mortal. Aproximei-me mais da radiância na minha mente. Mais perto do
que alguma vez chegara. Algo me agarrou, puxando-me para trás... Seria
medo ou culpa? Sentindo-me audaz, irrompi para lá das minhas dúvidas
como se fossem teias de aranha. Estava no limiar, a baloiçar no limite. Uma
corrente percorreu-me as veias, os sussurros a menearem-se entre os meus
ouvidos. Debrucei-me para a frente e estendi a mão... apenas para ver o
brilho prateado a dispersar como a luz das estrelas com a alvorada.
Abri os olhos, com os sentidos a fervilhar. Não fazia ideia de quanto
tempo passara ali sentada, perdida num devaneio. Para lá da janela, o sol do
fim da tarde tingia o céu com fiadas de rosa e dourado. A emoção
desaparecera; o remorso jazia como uma pedra no meu peito. Quebrara a
promessa que fizera à minha mãe. E, pior ainda, queria voltar a fazê-lo.
Aquelas luzes não eram perigosas, faziam parte de mim... Agora sabia isso
com uma certeza surpreendente. Porque me avisara a minha mãe contra
elas? Vou perguntar-lhe, decidi, levantando-me do chão. Já tenho idade
para saber.
Assim que cheguei à entrada, uma energia estranha vibrou pelo ar,
levantando-me os cabelos da nuca. Auras imortais, desconhecidas para
mim, mudando e fundindo-se como as nuvens no céu. Não conseguia dizer
quantas eram, embora uma parecesse brilhar mais do que as outras, muito
mais forte do que as auras da minha mãe ou de Ping’er.
Quem viera até cá?
Quando abri as portas, a minha mãe voou para dentro do quarto. Tombei
para trás, caindo sobre uma cadeira. Teria descoberto o que fiz? Estaria aqui
para ralhar comigo?
Deixei tombar a cabeça.
— Desculpa, Mãe. As luzes...
Ela agarrou-me pelos ombros.
— Isso agora não importa, Xingyin. Chegou uma visita. Ela não pode
saber que estás aqui. Que és minha filha.
A minha pulsação palpitava ao pensar em conhecer alguém novo. Então,
percebi o que ela queria dizer, a maneira como o dissera, e a minha
excitação desfez-se em mil pedaços.
— Não queres que conheça a tua amiga?
As mãos dela afastaram-se de mim e o seu rosto endureceu até parecer
esculpido em mármore.
— Não é uma amiga. É a imperatriz do Reino Celestial. Ela não sabe de
ti, ninguém sabe. E não podemos deixar que descubram!
As palavras da minha mãe, jorradas numa torrente impetuosa,
assustaram-me, apesar da excitação que sentia. Lera que o Reino Celestial
era a mais poderosa das oito nações imortais, aninhado como uma lágrima
preciosa no coração do Domínio Imortal. O imperador e a imperatriz viviam
num palácio que flutuava sobre um banco de nuvens, de onde governavam
sobre celestiais e mortais enquanto vigiavam o sol, a lua e as estrelas. Em
todo o tempo que vivemos aqui, nunca se dignaram a visitar o nosso lar
remoto, por isso, porquê agora?
E porque tinha de me esconder?
Uma palpitação estranha na barriga lançou raízes geladas até ao âmago
do meu ser.
— Passa-se algo de errado? — perguntei, esperando que ela negasse.
Ela tocou-me gentilmente no rosto.
— Explico tudo mais tarde. Por agora, fica no teu quarto e não faças
barulho.
Assenti e ela saiu, fechando a porta atrás de si. Só então percebi que a
minha mãe não respondera à pergunta. Abri um livro, voltando a pousá-lo
depois de ler a mesma linha três vezes. Os meus dedos puxaram uma corda
do qin, mas apertaram-na logo a seguir, para abafar a nota. Enquanto fitava
a porta fechada, uma curiosidade intensa dominou-me, consumindo o meu
medo. Lentamente, caminhei até à porta e abri-a ligeiramente. Iria deitar
uma olhadela rápida à Imperatriz Celestial e depois regressaria ao meu
quarto. Quando voltaria a ter uma oportunidade de a ver, um dos imortais
mais poderosos em todo o domínio? Até podia estar a usar a Coroa da
Fénix, que se diz ser feita a partir de penas em ouro puro e decorada com
centenas de pérolas luminosas.
Silenciosa como uma sombra, esgueirei-me em bicos de pés pelo
corredor comprido que ia do meu quarto até ao Salão da Harmonia
Prateada, a divisão mais nobre do Palácio da Luz Pura, com chão de
mármore, lâmpadas de jade e cortinas de seda. Pilares de madeira assentes
em bases de prata adicionavam um toque caloroso à sua elegância pristina.
Sempre fora ali que nos imaginara a receber hóspedes, apesar de nunca
termos tido qualquer um até agora.
Ao virar da esquina, uma voz suave veio ao meu encontro. Esforcei-me
por ouvir melhor.
— Chang’e, como tem andado?
O tom cordial da Imperatriz Celestial surpreendeu-me. Não parecia
assim tão assustadora.
— Bem, Vossa Majestade Celestial. Agradeço-vos a vossa preocupação.
A voz da minha mãe soava invulgarmente animada.
Um breve silêncio seguiu-se a esta troca de cortesias. Agachada junto à
parede, estiquei o pescoço para espreitar para o interior do salão. A minha
mãe estava ajoelhada no chão, com a cabeça curvada. Diante dela, sentada
na cadeira da minha mãe, tinha de ser a Imperatriz Celestial.
Não estava a usar uma coroa, mas antes um toucado elaborado com
folhas e flores cravejadas de joias, que tilintavam quando se movia.
Enquanto fitava o toucado, enfeitiçada, um botão desabrochou numa
orquídea de ametista. Na ponta dos dedos reluziam dedais pontiagudos de
ouro, recurvados como as garras de um falcão. O bordado prateado na sua
túnica violeta captava a luz fraca que entrava pelas janelas. Ao contrário da
aura calma e delicada da minha mãe, a sua aura era forte, irradiando calor.
Era deslumbrante, mas os lábios vermelhos em contraste com a pele branca
faziam-me pensar em sangue derramado sobre neve.
Como era próprio da sua excelsa posição, a imperatriz não viera só. Seis
servas erguiam-se atrás dela, bem como um imortal alto, de compleição
mais escura do que os restantes. Peças planas de âmbar enfeitavam-lhe o
chapéu preto, e o quimono escuro estava preso por uma faixa da cor do
bronze, enquanto luvas brancas lhe cobriam as mãos. Eu não sabia nada
sobre a Corte Celestial, mas a maneira como o homem se movia parecia
indicar que era de classe mais elevada do que os restantes acompanhantes.
Contudo, havia algo nele que me desagradava. Quando os olhos castanho-
claros percorreram o salão, encolhi-me e encostei-me à parede.
Após uma breve pausa, a imperatriz voltou a falar, num tom mais frio
do que uma peça de jade.
— Chang’e, foi detetada aqui uma alteração peculiar da energia. Anda a
cultivar um poder secreto ou a acolher um hóspede clandestino, violando os
termos do seu aprisionamento?
Fiquei rígida, com as omoplatas a contraírem-se ao ouvi-la falar. Uma
avidez parecia cobrir cada palavra, como se estivesse deleitada com a ideia
de a minha mãe ter errado. Imperatriz ou não, como se atrevia a falar assim?
A minha mãe era a Deusa da Lua, venerada e amada por inúmeros mortais!
Como podia ela ser prisioneira? Aquele sítio era mais do que o nosso lar;
era o seu domínio. Quem acendia as lanternas todas as noites? Quem fazia
as árvores balançar e suspirar ao passar por elas? Como podia ela fazer algo
que não fosse certo?
— Vossa Majestade Celestial, deve haver um mal-entendido. Os meus
poderes são fracos, como bem sabeis. E não está aqui mais ninguém. Quem
se atreveria a vir? — respondeu a minha mãe num tom firme.
— Ministro Wu. Partilhe a sua descoberta — ordenou a imperatriz.
Ouviram-se passos.
— Esta manhã, foi detetada uma mudança significativa na aura da lua.
Sem precedente em todos os meus anos de estudo. Não pode ser
coincidência.
Na voz suave do imortal, pareceu-me ouvir uma sugestão de excitação.
Sentiria prazer com os apuros da minha mãe, como a imperatriz parecia
sentir? Fiquei furiosa só de pensar nisso, apesar de um mal-estar
inquietante. A palpitação nas minhas veias quando toquei nas luzes, o
sussurro no ar... isso tê-los-ia, de alguma forma, atraído para cá?
— Espero que a nossa clemência não a tenha tomado ousada — avisou
a imperatriz. — Teve muita sorte antes, quando foi confortavelmente
aprisionada aqui por ter roubado o Elixir da Imortalidade do seu marido.
Nessa altura, escapou ao chicote de relâmpago e à vara flamejante. Mas
mudará se descobrirmos que está a planear novos logros. Confesse agora e
talvez sejamos misericordiosos — fustigou, estilhaçando a tranquilidade do
nosso lar.
A mão voou-me para a boca, abafando uma exclamação. Nunca
perguntara à minha mãe como ascendera à imortalidade, sentindo que isso a
fazia sofrer. Contudo, desde que lera a lenda das aves solares, uma questão
não me saía da mente: Onde estava o meu pai? Ao ouvir que fora agraciado
com o elixir e que a minha mãe era acusada de o ter roubado... algo se
contorceu dentro de mim. A imperatriz estava errada, disse convictamente
a mim mesma, reprimindo uma semente traidora de dúvida.
A minha mãe não estremeceu nem negou as aquelas acusações vis.
Estaria acostumada a tal tratamento por parte da imperatriz? Quando voltei
a olhar para o salão, estava debruçada com a testa e as mãos no chão.
— Vossa Majestade Celestial. Ministro Wu. Talvez esse fenómeno tenha
sido causado pelo recente alinhamento das estrelas. A constelação do
Dragão Celeste entrou no percurso da lua, o que pode ter distorcido as
nossas auras. Quando passar, tudo deve voltar ao normal.
Falou como uma erudita que estuda os céus, apesar de eu saber que não
se interessava por esses assuntos.
Seguiu-se um longo silêncio, pontuado por um tamborilar rítmico... as
pontas afiadas dos dedais dourados da imperatriz a cravarem-se na madeira
macia do braço da cadeira. Por fim, a imperatriz levantou-se, com as servas
a juntaram-se à sua volta.
— Talvez seja isso, mas regressaremos. Foi deixada a sós por
demasiado tempo.
Fiquei contente por vê-los partir, apesar da ameaça que pairava sob o
tom da imperatriz, como um cordão de seda apertado com força. Incapaz de
continuar a ouvir, esgueirei-me de volta para o meu quarto e deitei-me na
cama, olhando para lá da janela. O céu escurecera para o fugaz cinzento
violáceo do crepúsculo, quando o fim do dia dá lugar à noite. Sentia a
mente atordoada, ainda assim consegui pressentir quando aquelas auras
pouco familiares se afastaram. Momentos depois, a minha mãe abriu as
portas de rompante, o rosto mais branco do que as paredes de pedra.
As minhas dúvidas desapareceram. Não acreditava na Imperatriz
Celestial. A minha mãe nunca teria traído o meu pai. Nem mesmo pela
imortalidade.
Saltei para fora da cama e fui ter com ela. Era agora quase tão alta como
ela.
— Mãe, ouvi o que a imperatriz te disse.
Ela envolveu-me com os braços e apertou-me com força. Encostada ao
seu ombro, relaxei, aliviada, por ela não estar zangada comigo, apesar de
sentir como o seu corpo estava tenso.
— Não temos muito tempo. A imperatriz pode voltar a qualquer
momento com os seus soldados — segredou.
— O que podem eles fazer? Não fizemos nada de errado.
O meu estômago contorceu-se, uma sensação desagradável.
— Somos prisioneiras? O que queria dizer a imperatriz acerca do elixir?
A minha mãe afastou-se para me olhar no rosto.
— Xingyin, tu não és uma prisioneira. Mas eu sou. O Imperador
Celestial concedeu o Elixir da Imortalidade ao teu pai, por matar as aves
solares e salvar o mundo. Mas Houyi não o tomou. Só havia elixir
suficiente para uma pessoa e ele não queria ascender aos céus sem mim. Eu
estava grávida, a nossa felicidade parecia total. Por isso, ele escondeu o
elixir, e apenas eu sabia onde.
Então, a voz dela vacilou.
— Mas o meu corpo era demasiado fraco para te dar à luz. Os médicos
disseram-nos que tu... que nós não sobreviveríamos ao parto. Houyi não
queria acreditar neles, não queria desistir... Levou-me a um médico atrás do
outro, à procura de um prognóstico diferente. Contudo, lá no fundo, eu
sabia que estavam a dizer a verdade.
Fez uma pausa, com uma tensão à volta dos olhos, como se estivesse a
recuar nas memórias e isso fosse doloroso.
— Quando foi chamado para combater, fiquei sozinha. Foi então que
começaram as dores, demasiado cedo, a meio da noite. A agonia que me
irrompia pelo corpo era tal que mal conseguia gritar. Receava morrer,
receava perder-te.
Assim que parou de falar, uma pergunta irrompeu de mim:
— O que aconteceu?
— Fui buscar o elixir ao seu esconderijo, tirei a tampa e bebi-o.
No silêncio do quarto, só conseguia ouvir o batimento do meu coração.
As minhas mãos já não aqueciam as da minha mãe, estavam tão frias como
as dela.
— Odeias-me, Xingyin? — perguntou-me numa voz trémula. — Por ter
traído o teu pai?
As palavras da imperatriz eram verdadeiras. Por um momento, não me
consegui mover, as minhas entranhas a contorcerem-se perante aquela
revelação. Se a minha mãe não tivesse tomado o elixir, talvez tivéssemos
sobrevivido. A minha família não teria sido separada. Contudo, sabia como
ela amava o meu pai, como lamentava profundamente a sua perda. Acima
de tudo, sentia-me grata por estar viva.
Engoli os últimos vestígios da minha hesitação.
— Não, Mãe. Tu salvaste-nos.
O seu olhar estava distante, velado pela memória.
— Deixar o teu pai... oh, como custou. Mas tenho de admitir que não
queria morrer. Nem podia deixar que tu morresses. Só mais tarde descobri
que as dádivas do Imperador Celestial vêm com condições não declaradas.
Que tais decisões não cabem aos mortais. O imperador ficou furioso por ter
sido eu a tornar-me imortal, em vez do teu ilustre pai. A imperatriz acusou-
me de usar truques para obter uma imortalidade que eu não merecera.
— Mas explicaste-lhes? — perguntei. — Certamente, se soubessem que
era para nos salvar...
— Não me atrevi. A imperatriz parecia hostil, como se guardasse rancor
ao teu pai. Até o acusou de ingratidão por desdenhar a dádiva do imperador.
Percebi então que ela procurara puni-lo, em vez de o recompensar, por ter
matado as aves solares. Ela não hesitaria em fazer-te mal. Como lhes podia
revelar a tua existência? Para te proteger da ira deles, mantive o teu
nascimento em segredo. Confessei o roubo. Como castigo, fui exilada para
a lua. Um encantamento lançado sobre mim prende-me aqui para toda a
eternidade. Não posso sair deste sítio, por muito que queira. — E
acrescentou em voz baixa: — Um palácio de onde não podemos sair não
deixa de ser uma prisão.
Eu respirava com esforço, o meu peito a palpitar como um peixe fora de
água. Julgara que as nossas vidas eram tão pacíficas, tão seguras dos
perigos que lia nos livros. Descobrir que éramos o alvo da ira dos imortais
mais poderosos em todo o domínio abalou-me até ao meu âmago.
— Mas porque veio hoje a imperatriz, passado tanto tempo?
— As nossas auras emanam da nossa força vital, o núcleo da nossa
magia... as luzes que vês na tua mente. Desde que nasceste, fizemos tudo o
que podíamos para esconder o teu poder. Apesar dos nossos esforços, hoje a
imperatriz sentiu-te.
Senti um nó na garganta.
— Eu não sabia. Tudo isto é culpa minha.
Como fui estúpida e descuidada! Porque estava aborrecida, ignorei o
aviso da minha mãe, quebrei a minha promessa e coloquei-nos no maior dos
perigos.
— A culpa também é minha. Eu disse-te para não tocares na tua magia,
mas devia ter-te explicado porquê, que podia alertar o Reino Celestial da tua
presença.
Então, soltou um suspiro.
— Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde; a cada ano que passa
ficas mais forte. Se te descobrirem, o nosso castigo vai ser severo, disso não
tenho dúvidas. Não receio por mim, mas por ti, uma criança imortal que
nunca devia ter nascido.
— O que podemos fazer?
— Só podemos fazer uma coisa. Tens de partir daqui.
O medo cobriu-me a pele como gelo a formar-se na superfície de um
lago. Nunca mais voltar a ver a minha mãe... De repente, receava largá-la.
— Não posso ficar contigo? Eu escondo-me. Treina-me, para eu poder
ajudar.
— Não podemos. Ouviste as palavras da imperatriz. Agora, vão vigiar-
nos mais atentamente. É tarde de mais.
— Talvez os tenhas convencido, talvez não voltem.
Uma súplica desesperada, uma esperança infantil.
— Posso ter-nos conseguido algum tempo. Mas a imperatriz não teria
vindo aqui apenas por capricho. Regressarão. E em breve. — A emoção
embargou-lhe a voz. — Não te podemos proteger. Não temos força
suficiente.
— Mas para onde irei? Voltarei a ver-te?
Cada palavra era um golpe, dando forma ao pesadelo crescente.
— Ping’er vai levar-te para a família dela no Mar do Sul. — A minha
mãe falava agora num tom mais animado, como se estivesse a tentar
convencer-nos a ambas. — Ouvi dizer que o oceano é lindo. Vais ter uma
vida boa lá, longe das nuvens que pairam sobre nós.
Ping’er partilhara comigo tudo o que sabia sobre as terras para lá do
palácio, agitando a minha imaginação, que ansiava por aventura. O grande
oceano estava dividido em quatro domínios, da costa oriental ao oceano
meridional, dos penhascos ocidentais às águas setentrionais. Eu ficara
cativada pelas histórias de criaturas que viviam nas cidades cintilantes
debaixo de água ou nas costas douradas. Como sonhara explorá-las.
Contudo, nunca imaginara que fugiria de casa para o fazer. Para que
serviam as aventuras se não tivéssemos ninguém com quem as partilhar?
A mão da minha mãe fechou-se sobre a minha, trazendo-me de volta
para o presente.
— Não podes contar a ninguém quem és. O Imperador Celestial tem
informadores em todo o lado. Tomaria a tua própria existência como um
insulto imperdoável.
Falou-me num tom urgente, olhos presos nos meus até eu dizer a custo a
minha promessa.
Debruçando-se para mim, apertou algo à volta do meu pescoço. Um
colar de ouro com um pequeno disco de jade. Era da cor das folhas na
primavera, com um dragão esculpido na superfície. Os meus dedos tocaram
na pedra fria, sentindo uma fenda fina no rebordo.
— Isto pertencia ao teu pai. — Os seus olhos estavam tão escuros como
uma noite sem luar. — Não digas a ninguém quem és. Mas também nunca
te esqueças.
Então, abraçou-me com força e afagou-me o cabelo. Mantive a cabeça
baixa, covardemente, não querendo vê-la partir, desejando que aquele
momento durasse para sempre. Os seus dedos tocaram-me na cara uma
última vez e, depois, não havia mais nada a não ser um vazio doloroso.
Deixando-me cair ao chão, envolvi os joelhos com os braços. Oh, como
queria gritar e gemer e bater com os punhos no chão. A mão voou-me para
a boca, abafando os soluços roucos, mas as lágrimas silenciosas... deixei-as
correr pelo rosto. Numa só noite, no tempo que a flor da lua demora a
desabrochar e a murchar, a minha vida foi virada do avesso. O meu
caminho, que até então parecera uma estrada a direito, virara subitamente
para os ermos desertos... e eu estava perdida.
O quarto estava escuro, a noite caíra. A lua continuava envolta em
sombras, pois as lanternas ainda não tinham sido acesas. O nascer da lua
viria mais tarde.
A urgência pôs-me em ação. Não queria ser descoberta e fazer com que
a minha mãe e Ping’er fossem punidas. Apesar de a pena de morte
raramente ser aplicada a imortais, as ameaças da imperatriz, de relâmpagos
e fogo, faziam o meu corpo torcer-se de terror.
Ping’er ajudou-me a embrulhar os meus pertences num pano grande.
— Não muita coisa, nem nada muito caro, para evitar suspeitas.
Tinha os olhos vermelhos de lágrimas, mas ao ver a minha expressão
devastada, acrescentou:
— Vai ficar a salvo no Mar do Sul, tão bem escondida como uma estrela
no firmamento. A minha família vai tomar conta de si e ensinar-lhe tudo o
que precisa de saber. — Então, atou as pontas do pano, formando um saco
que pendurou ao meu ombro. — Vamos?
Eu não queria ir. Contudo, atordoada para tudo, assenti. Que mais podia
fazer? Nem sequer podia culpar os caprichos do destino, pois fora eu a
causar tudo isto.
Enquanto Ping’er e eu nos apressávamos pela entrada, seguindo para
leste pela floresta de jasmineiros, olhei para trás uma última vez. Nunca o
meu lar me parecera tão belo como naquele momento em que guardava na
memória cada curva, cada pedra. As mil lanternas iluminavam o solo, as
telhas prateadas refletiam as estrelas. E na varanda de onde eu fitava o
mundo abaixo erguia-se um vulto esbelto vestido de branco.
O olhar da minha mãe não estava fixo no Domínio Mortal, mas em
mim, os dedos erguidos num gesto de despedida. Ignorando os puxões
urgentes de Ping’er na minha manga, deixei-me cair de joelhos,
debruçando-me até tocar com a testa na terra macia. Os meus lábios
moveram-se numa promessa silenciosa: que um dia regressaria, que
libertaria a minha mãe. Não sabia como, mas iria tentar com todas as
minhas forças. Este não seria o nosso fim. Enquanto seguia Ping’er até à
nuvem que nos levaria para longe dali, a dor atingiu-me com tal força que...
o meu coração partiu-se... mantido junto apenas por um ténue fio de
esperança.
Inalei o ar revigorante, fresco, mas vazio, sem o mais pequeno vestígio
de especiarias. Quando a nuvem se lançou velozmente pelo céu, perdi o
equilíbrio e segurei-me ao braço de Ping’er. Como era arrepiante a noite
sem o brilho das lanternas. Nessa mesma manhã, o medo era uma emoção
desconhecida para mim, e agora quase me sufocava. Felizmente, as dobras
nebulosas da nuvem não cediam sob os meus pés, tão sólidas como terra
firme... não fosse o vento intenso a toda a volta.
Seria uma viagem longa até ao Mar do Sul... para lá do Reino Celestial
e das florestas luxuriantes do Reino da Fénix. Ainda mais distante do que o
Deserto Dourado, o vasto crescente de areia árida que fazia fronteira com o
temido Reino Infernal. Como encontraria o caminho de volta para casa?
Ocorreu-me então que talvez pensassem que eu nunca o faria.
Um mar de luzes cintilou ao longe, distraindo-me de pensamentos
sombrios.
— O Reino Celestial — sussurrou Ping’er.
Quando uma súbita rajada de vento se fez sentir, Ping’er olhou por cima
do ombro e empalideceu. Virei-me para trás e sondei a noite com o olhar.
Uma nuvem grande voava na nossa direção, com os vultos indistintos de
seis imortais em cima. As armaduras brancas e douradas cintilavam, mas as
suas feições eram ocultadas pela escuridão.
— Soldados! — exclamou Ping’er.
O meu coração começou a bater com força.
— Andam à nossa procura?
Ping’er puxou-me para trás de si.
— Usam armadura celestial. Devem estar aqui às ordens da imperatriz.
Baixe-se! Esconda-se! Vou tentar deixá-los para trás.
Baixei-me tanto quanto podia, escondendo-me nos fiapos frios da
nuvem. Parte de mim estava contente por não estar a ver os soldados, ainda
assim, a minha pele arrepiava-se com horror do desconhecido. De olhos
fechados, Ping’er soltou um feixe estreito de luz da palma da mão. Até essa
noite, nunca a vira usar magia... talvez nunca tivesse sido preciso. A nossa
nuvem arrancou subitamente, mas abrandou logo a seguir.
Suor perlava a pele de Ping’er.
— Não consigo que ande mais depressa; não sou suficientemente forte.
Se nos apanham... vão descobrir quem é.
— Estão perto?
Torci-me para espreitar para trás e desejei não o ter feito.
Aço brilhava nas mãos dos soldados, cada vez mais próximos. Em
breve, alcançar-nos-iam. Alguém podia reconhecer Ping’er, perguntas
seriam feitas. Eu era uma péssima mentirosa, sem a prática que vinha da
necessidade. Um olhar severo da minha mãe era o suficiente para a verdade
me escapar dos lábios. Visões monstruosas apinhavam a minha mente:
soldados a invadir o meu lar, a arrastar a minha mãe acorrentada. Um
chicote estralejante de relâmpago a vergastar-lhe as costas, cortando-lhe a
pele e salpicando de sangue a seda branca do quimono. Engasguei-me, com
fel quente a subir-me à garganta.
Cravei as unhas na palma da mão. Não podia deixar que nos
apanhassem. Não podia deixar que magoassem a minha mãe e Ping’er. Mas
fraca como era, só conseguia pensar numa coisa, que podia muito bem ser a
última coisa que alguma vez faria.
Cerrando os dentes até me doerem, forcei as palavras a saírem.
— Ping’er, deixa-me descer aqui.
Ela olhou para mim como se eu tivesse perdido o juízo.
— Não, estamos no Reino Celestial! Temos de chegar ao Mar do Sul.
Temos de...
A minha calma estilhaçou-se. Segurei-lhe o braço com uma força
frenética, puxando-a para baixo.
— Não conseguimos fugir deles. Quando nos capturarem, vão punir-
nos. Eu... eu acho que nos devíamos separar. Tens de ficar na nuvem; não a
consigo controlar. Ping’er, pelo menos assim temos uma hipótese!
Que escolha tínhamos? Nenhuma que nos desse uma boa hipótese de
ambas escaparmos. Contudo, por muito que tentasse, não conseguia parar
de tremer.
Ping’er abanou a cabeça, mas eu insisti.
— Vou ficar a salvo no Reino Celestial, enquanto não souberem quem
sou. Prometi à Mãe que não diria a ninguém, e não vou dizer. Vou encontrar
um sítio para me esconder. Talvez consigas escapar aos soldados sem mim?
As minhas palavras saíam num sussurro apressado. A qualquer
momento podia ser tarde de mais e a decisão podia ser-nos tirada das mãos.
Fogo iluminou a noite, a arder na nossa direção. Atingiu-nos, e a nossa
nuvem estremeceu ao guinar bruscamente. O calor passou por cima da
minha pele enquanto Ping’er erguia a mão e soltava uma luz que apagava as
chamas. Com um grito, caiu ao meu lado.
— Estão a atacar-nos — exclamou, incrédula, sem nunca tirar as mãos
reluzentes da nuvem para a acelerar. Senti o aperto do terror, mas não podia
sucumbir. Não agora, quando cada segundo contava.
— Ping’er, é a única solução. Não podemos deixar que nos apanhem. —
Falei num tom firme e urgente, não mais uma criança a implorar por ser
ouvida. — A escolha também é minha.
Algo endureceu no rosto dela, uma determinação sombria. Ping’er
apontou para um denso banco de nuvens ao longe.
— Ali... Vou largá-la o mais baixo que puder. Vou escudá-la da queda.
Apesar das palavras confiantes, algo deixou-me perturbada. A sua
respiração era áspera e esforçada. A pele estava húmida ao toque. Estaria
doente? Impossível. Os imortais não sofriam de tais males.
— Ping’er, estás ferida? O fogo...
— Apenas um pouco cansada. Não tem de se preocupar.
Virei-me para o lado, espreitando pelo limite da nuvem a grande
velocidade. A minha mente saltou para os perigos adiante... para lá do vazio
abaixo de nós, para as luzes cintilantes entrelaçadas na escuridão.
Maravilhoso. Aterrador. Então, levantei-me e envolvi Ping’er nos meus
braços, apertando-a com força. Desejando não ter de a largar. Desejando
tantas coisas, nenhuma das quais viria a acontecer.
Ping’er agarrou-me com um desespero feroz enquanto mergulhávamos
para o banco de nuvens. Gotículas de água gelada roçaram-me a pele e a
humidade colou-se à minha roupa. À medida que mergulhávamos ainda
mais, o frio penetrava profundamente, até aos ossos. Tinha as pernas a
tremer quando as estiquei para me levantar. A pele de Ping’er parecia cinza
arrefecida ao passar-me um braço pelas costas. O ar estremeceu e um
arrepio percorreu-me o corpo como o toque de uma pluma.
— O escudo vai amortecer-lhe a queda. Mas ainda assim pode sentir dor
e deve ter sempre cuidado.
As suas mãos tremiam quando me pendurou o pequeno saco no braço.
— Vais voltar? Quando o perigo passar?
Agarrei-me a essa esperança frágil, tentando reunir os restos da minha
coragem. Tentando não me desfazer.
Os olhos de Ping’er encheram-se de lágrimas.
— Claro que sim. Mas se não voltar...
— Vou encontrar o caminho de volta. Um dia, quando for seguro —
respondi rapidamente, para reconfortar ambas.
— Vai, sim. Tem de voltar, pela sua mãe. — Ping’er respirou fundo. —
Está pronta?
Eu estava tão tensa que achava que podia quebrar. Não, nunca estaria
pronta... para saltar para o desconhecido, para cortar este último laço com o
meu lar. Mas se não partisse naquele momento, se cedesse ao pânico
descontrolado, se me deixasse tomar pela mais pequena sombra de dúvida...
a pouca determinação que ainda tinha iria desvanecer-se. Voltada para
Ping’er, forcei as pernas rígidas a recuarem até ao limite da nuvem. Preferia
mil vezes vê-la do que à escuridão vazia abaixo.
— Agora! — gritou ela num súbito impulso de força, com os olhos a
cintilar.
As minhas pernas cambalearam para trás... precisamente quando a
cabeça de Ping’er rolou para o lado e ela tombou dentro da nuvem. Mas eu
também estava a cair, através da escuridão vazia do céu. O vento levou
todos os meus pensamentos, engolindo o grito que brotou da minha
garganta, fustigando-me a cara e os membros até deixar de os sentir. A
minha roupa era puxada para a frente numa nuvem de seda. Não conseguia
respirar, com o ar a bater contra mim e os pulmões em chamas. Um rugido
nos meus ouvidos bloqueava tudo, exceto o batimento do meu coração.
Contudo, diante de mim, cada vez mais pequena, estava a nuvem de
Ping’er, ainda parada. O corpo dela imóvel onde tombara. Teria desmaiado?
Foge!, gritei sem som, quando os soldados se aproximaram da nuvem.
Terror apertou-me por dentro enquanto estendia as mãos, um gesto fútil,
tentando desesperadamente agarrar... algo dentro de mim. Arrepios
percorriam a minha pele, ora quente, ora fria, quando uma rajada cintilante
de ar jorrou pelo vazio na direção da nuvem de Ping’er. A nuvem cintilou
intensamente e saiu lançada pelo céu, desaparecendo no horizonte distante.
Despenhei-me no chão, dor a percorrer o meu corpo inteiro. O ar saiu-
me do peito, só conseguia ficar ali deitada enquanto lágrimas corriam dos
olhos, misturando-se com o suor que cobria a pele. Um cansaço profundo
tomou conta de mim. Assim que os meus dedos agarraram erva macia por
baixo de mim, inalei tremulamente, o aroma das flores enchendo-me as
narinas. Um cheiro doce, mas indiferente para mim. Pressionando a palma
das mãos contra o chão, levantei-me, dorida, mas sem ferimentos. O
encantamento de Ping’er protegera-me dos danos da queda.
Pensei que estava a salvá-la, mas ela ajudou-me a escapar, sem pensar
na sua própria segurança. Teria ela escapado? Estaria a minha mãe a salvo?
Estaria eu! A minha respiração era rápida e ofegante, como se estivesse a
afogar-me, com falta de ar. Os imortais não sofriam de doenças ou velhice,
mas podiam ser feridos por armas, criaturas e magia do Domínio Imortal.
Como uma tonta, nunca imaginara que tais perigos nos pudessem tocar. E
agora... Enrolada numa bola apertada, braços em volta dos joelhos, um
lamento fraco e agudo a escapar de mim como de um animal ferido.
Estúpida, amaldiçoei-me vezes e vezes sem conta por fazer cair a desgraça
sobre nós, até que apertei os lábios com força para abafar os gemidos.
Não sei quanto tempo fiquei ali deitada, a garganta rouca de tanta
mágoa. E, sim, também temia por mim, com pensamentos de soldados
cruéis e feras vorazes a ocuparem a mente. Quem sabia o que rondava na
escuridão? Estava a ir-me abaixo, numa lástima, mas então um feixe de luz
caiu-me em cima. Ergui a cabeça e fitei a lua, a primeira vez que a via de
longe. Era linda e luminosa, assim como reconfortante. Respirei mais
facilmente, encontrando conforto na ideia de que, enquanto a lua se
erguesse todas as noites, saberia que a minha mãe acendera as lanternas e
estava bem. Uma memória surgiu-me na mente, a minha mãe a caminhar
pela floresta, com o quimono branco a brilhar na escuridão. O meu coração
magoado doeu de saudade, mas forcei-me a não de novamente no abismo
da autocomiseração.
Vislumbres de luz vindos de baixo chamaram-me a atenção, luzes
trémulas a dançar nas profundezas escuras. Seriam as luzes que avistara de
cima? Só então percebi que o solo era como um espelho, um reflexo das
estrelas dispersas pelo céu noturno. Aquela beleza desconhecida assustou-
me, mais uma lembrança de que já não estava em casa. Voltei a deixar-me
cair, envolvendo o corpo com os braços. Fiquei a fitar a lua até a dor
abrandar e acabei por cair num sono sem sonhos no chão frio e duro.
***
Alguém estava a tocar-me no braço. Seria a minha mãe? Teria sido tudo
um terrível pesadelo? Um jorro de esperança dissipou a neblina do sono.
Abri os olhos, pestanejando com o brilho do dia. As luzes trémulas tinham
desaparecido e refletidas no lugar delas estavam as nuvens rosadas da
alvorada.
Uma mulher estava acocorada ao meu lado, com um cesto pousado no
chão. A mão dela no meu cotovelo era quente e seca como a superfície de
uma lanterna de papel.
— Porque está a dormir aqui? — perguntou, de testa franzida. — Sente-
se bem?
Levantei-me bruscamente, suprimindo um gemido por causa da dor nas
costas. Mas consegui responder à pergunta com um aceno, atordoada pelas
memórias que caíam sobre mim como uma onda.
— Tenha cuidado. Devia ir para casa. Ouvi dizer que houve um
distúrbio qualquer ontem à noite e os soldados andam a patrulhar a área.
Em seguida, pegou no cesto e levantou-se.
Senti um nó na barriga. Distúrbio? Soldados?
— Espere! — gritei, sem saber o que dizer, mas não querendo ficar
sozinha. — O que aconteceu?
A mulher encolheu os ombros.
— Uma criatura passou pelas barreiras protetoras. Os guardas saíram no
seu encalço. Nos últimos anos, temos tido muitos espíritos-raposa. Mas
ouvi dizer que ontem pode ter sido um infernal, a tentar roubar crianças
celestiais para as suas artes negras.
Um desses monstros do Reino Infernal? Foi então que tive consciência
de que era de mim que os guardas andavam à procura. Que era eu o suposto
infernal. Teria rido à gargalhada se não estivesse tolhida de medo. Ping’er
não devia saber das barreiras protetoras.
— Apanharam alguém?
A minha voz soou fraca e fina.
— Ainda não, mas não se preocupe. Os nossos soldados são os
melhores de todos os reinos. Vão capturar esse intruso rapidamente. — A
mulher prendou-me com um sorriso reconfortante antes de perguntar: — O
que está a fazer aqui a esta hora?
Suspirei de alívio. Ping’er conseguira fugir! Contudo, eu devia ter
ficado ali deitada durante horas e ela não regressara. A rajada de vento que
atravessara os céus e a lançara para longe tê-la-ia levado para longe de
mais?
Um pensamento surgiu-me na mente. Aquele poder teria, de alguma
forma, vindo de mim? Conseguiria voltar a fazê-lo? Não, que pensamento
mais ridículo. Além disso, até agora, nada de bom viera da minha magia e
não podia correr o risco de voltar a chamar atenção para mim. Com um
sobressalto, reparei que a mulher estava a olhar para mim e a sua pergunta
continuava por responder. Não devia desconfiar de mim, pois
provavelmente estaria à espera de um monstro ou de uma fera assustadora,
mas não me atrevia agora a dar-lhe motivos para duvidar de mim.
— Não tenho para onde ir. Eu... eu fui dispensada da casa onde
trabalhava. Caí e desmaiei.
As minhas palavras eram desajeitadas, o meu tom hesitante. A minha
língua não estava habituada a proferir mentiras tão descaradas.
O rosto da mulher suavizou-se. Talvez pressentisse a minha
infelicidade, a jorrar de mim como um rio engrossado pela chuva.
— Pelos Quatro Mares, alguns desses nobres são mesmo rabugentos e
egoístas. Vamos, vamos, não é assim tão mau. Tenho a certeza de que vai
encontrar outro sítio. — Depois, inclinou a cabeça para o lado. — Eu
trabalho na Mansão do Lótus Dourado. Ouvi dizer que a Jovem Ama está à
procura de mais uma serva, se precisar de ocupação.
A bondade da mulher era uma fonte de calor no inverno da minha
miséria. Os pensamentos atropelavam-se na minha mente. Vaguear por aí
sozinha certamente levantaria suspeitas. Não sabia bem como conseguia
pensar em assuntos tão mundanos, mas algo endureceu dentro de mim. A
mágoa era um luxo ao qual não me podia dar, depois de perder metade da
noite nela mergulhada. Se me fosse abaixo agora, tudo teria sido em vão.
Encontraria um lugar aqui e conseguiria, de alguma forma, regressar a casa,
nem que demorasse um ano, uma década ou um século.
— Obrigada. Agradeço-lhe a bondade.
Curvei-me pela cintura, numa vénia desajeitada, pois em casa nunca
fazíamos muita cerimónia. A mulher pareceu agradada e sorriu, fazendo-me
sinal para a seguir.
Fizemos o resto do caminho em silêncio, para lá de um maciço de
bambus e através de uma ponte de pedra cinzenta por cima de um rio, até
chegarmos aos portões de uma enorme propriedade. Uma placa lacada de
preto estava exposta acima do telhado da entrada com os caracteres
dourados:
Quando o meu poema foi lido em voz alta, recebeu alguns acenos e
murmúrios de aprovação. O meu não era, nem de longe, o melhor, mas
senti-me grata por não me ter desgraçado. Quando a imperatriz escolheu a
Dama Lianbao como vencedora, aplaudi com a restante assistência.
Assim que o quadro foi levado embora, vários servos entraram,
carregados com enormes tabuleiros cheios de comida para a refeição da
tarde. Perdi conta do número estonteante de pratos e as mesas pareciam
vergar sob o peso de travessas de camarão cozinhado em manteiga dourada,
porco assado, frango grelhado com ervas aromáticas, sopas delicadas e
legumes artisticamente cortados em forma de flor. O cheiro era delicioso,
mas só consegui dar algumas dentadas antes de o meu estômago resmungar
em protesto. Pousei os pauzinhos na mesa e olhei para a Dama Lianbao, que
empurrava a comida no prato com pouco entusiasmo. As conversas fluíam
incessantemente à nossa volta, mas só conseguia pensar no que viria a
seguir, o último desafio no qual só nós as duas participaríamos. Quando os
nossos olhares se cruzaram, dirigi-lhe um sorriso tímido, que ela retribuiu
após um momento de hesitação.
Depois de os pratos e os restos de comida terem sido recolhidos, o
gongo voltou a soar. O mordomo anunciou em voz alta:
— Para o desafio final, a Dama Lianbao e a Serva Xingyin vão escolher
um instrumento cada uma para tocarem uma música à sua escolha. A
vencedora será escolhida por Sua Majestade Celestial e por Sua Alteza.
O coração saltou-me no peito. Finalmente, uma prova para a qual eu
possuía algum talento! As mesas foram retiradas e uma vasta seleção de
instrumentos foi posta à disposição. A Dama Lianbao fez uma vénia para o
palanque antes de escolher o qin e se sentar. Tocou uma melodia linda, um
clássico sobre as folhas no mundo mortal passarem da cor do jade para
vermelho e castanho, os dedos a puxarem as cordas com mestria. Apesar de
admirar a sua habilidade, a minha confiança esmorecia a cada nota perfeita.
Era a minha vez. Quando todos se viraram para mim, as palmas das
minhas mãos cobriram-se de suor. Limpei-as à saia, tentando acalmar-me.
Apenas tocara diante da minha mãe e de Ping’er. Um público muito
recetivo, muito benévolo. Com passos rígidos, aproximei-me do centro do
pavilhão. Os meus olhos fitaram cítaras e alaúdes, miraram sinos e
tambores... mas não havia qualquer flauta. Parei diante do qin, o único
instrumento ali que me era familiar. Contudo, não era o meu melhor
instrumento e a Dama Lianbao tocara-o muito melhor do que eu alguma vez
poderia. Escolhê-lo seria optar pela derrota, e toda uma vida na Mansão do
Lótus Dourado não me deixaria um passo mais perto do meu sonho.
Grata por a saia comprida me tapar as pernas trémulas, fiz uma vénia
para o palanque.
— Vossa Majestade Celestial, Vossa Alteza. Não há uma flauta aqui.
Posso tocar o meu próprio instrumento?
A imperatriz franziu os lábios.
— As regras não podem ser quebradas.
O tom cortante anunciava desaprovação. Mantive o rosto baixo para que
ela não pudesse ver o meu ressentimento e o medo mal contido.
— Vossa Majestade Celestial, as regras apenas dizem que tenho de
escolher um instrumento para tocar. Não especificam de onde.
Alguém soltou uma exclamação. Olhei brevemente para cima e vi o
mordomo a dar um passo rápido para trás. Com um ar furioso, a imperatriz
ergueu o queixo, fazendo tilintar violentamente as contas de jade do seu
colar.
— Rapariga insolente, atreve-se a discutir comigo?
— Honorável Mãe, foi por nossa omissão que nenhuma flauta foi
providenciada — observou o Príncipe Liwei. — Não vejo que importância
tem se ela tocar o seu próprio instrumento. Não são os nossos instrumentos
de um padrão igual ou superior a qualquer outro?
A imperatriz debruçou-se para diante e dirigiu-se a mim num tom
arrepiante:
— A sua flauta será inspecionada. Se descobrirmos algum
encantamento, será açoitada até não conseguir andar, por tentar fazer batota.
— Ninguém será açoitado hoje — declarou o Príncipe Liwei, num tom
tenso, com uma das mãos fechada com força no seu colo.
A imperatriz não respondeu, gesticulando para alguém atrás de si.
— Ministro Wu, conduza a inspeção.
Um imortal com olhos castanho-claros saiu da multidão, o âmbar no seu
chapéu a cintilar como gotas de ouro. Era ele; o ministro que detetara a
flutuação na energia da lua, que alertara a imperatriz e a levara até minha
casa. Talvez fosse apenas um cortesão atento, mas senti um aperto na
barriga ao olhar para ele. Com o choque de ver a imperatriz, no tumulto
daquele dia, não percebera que ele também ali estava.
Conseguia sentir o olhar da imperatriz sobre mim, todos olhavam presos
em mim enquanto eu me debatia com os cordões da bolsa de seda. Se
achassem que eu estava nervosa, tanto melhor... antes isso do que a fúria
crescente que ameaçava irromper de mim. Como se atrevia ela a acusar-me
de batota. Talvez, na mente dela, alguém como eu não tivesse escrúpulos.
Talvez, pensei perversamente, apenas me acusasse de fazer o que ela
própria faria.
Com uma vénia, ergui os braços para oferecer a minha flauta. Uma
serva apressou-se a vir buscá-la e levou-a ao Ministro Wu. A sua expressão
era de desinteresse entediado, muito distante da avidez que demonstrara
perante os problemas da minha mãe. Acharia os eventos daquele dia
aborrecidos? Ressentir-se-ia de receber ordens da imperatriz? Não obstante,
desempenhou o seu papel de forma admirável, inspecionando a minha
flauta com atenção meticulosa. Como odiava ver o meu instrumento
precioso, um presente da minha mãe, entre os seus dedos enluvados.
Por fim, o ministro voltou-se para a imperatriz.
— Não há qualquer encantamento.
O desagrado da imperatriz era visível no aceno breve com que
respondeu.
— Prossiga — ordenou.
Quando a serva da imperatriz me devolveu a flauta, os meus dedos
seguraram-na com força. Respirei fundo, tentando aliviar a tensão no meu
peito, ainda enfurecida com a humilhação da acusação. Fechando os olhos,
tentei alhear-me de todos os desconhecidos indiferentes em meu redor,
procurando a melodia que queria tocar, sobre a busca desesperada de uma
ave pelas crias perdidas, até morrer de frio quando chegou o inverno. Uma
música de mágoa, dor e perda para canalizar as emoções que tinha dentro de
mim. Uma calma caiu sobre mim e ergui a flauta, regozijando-me com o
toque familiar do jade frio contra os meus lábios. Como lhe sentira falta. A
música começou animadamente, com notas alegres a voar pelo ar,
erguendo-se límpidas e puras. Lentamente, a melodia transformou-se em
incerteza errática e terror, antes de mergulhar no abismo do desespero.
A última nota desvaneceu-se. Com mãos trémulas, baixei a flauta.
Ping’er elogiava sempre o meu desempenho na flauta, mas seria
considerado insuficiente ali? Olhei para cima e deparei com a imperatriz
lívida e furiosa... certamente um bom sinal, mas não conseguia decifrar a
expressão do Ministro Wu. Alguém bateu palmas, seguido de outros, os
sons a chocarem entre si como um trovão. Uma alegria intensa percorreu-
me o corpo por, independentemente do resultado, ter dado o meu melhor.
O Príncipe Liwei e a imperatriz conferenciaram durante muito tempo.
Como última candidata do dia, fiquei sentada na cadeira diante deles e
captei partes da conversa.
A imperatriz tentava ao máximo influenciar o filho.
— A linhagem da Dama Lianbao é impecável. É educada, inteligente,
elegante e talentosa. Como podes preferir uma simples serva? Tem um ar
tão comum e aquela fenda no queixo é um sinal garantido de mau feitio.
Crispei as mãos no meu colo, apertando os dedos uns contra os outros.
— Honorável Mãe, se fosse para escolher alguém com base apenas na
sua linhagem, não haveria necessidade de realizar o evento de hoje.
O seu tom era respeitoso, mas firme.
Um silêncio pairou no ar enquanto se fitavam um ao outro. Via pouca
semelhança nas suas feições, o que me alegrou. O rosto do Príncipe Liwei
era caloroso, em contraste com a fisionomia áspera e fria da imperatriz.
Por fim, a imperatriz soltou um suspiro, um som exasperado.
— Um tema tão trivial não merece a minha atenção. Espero que nos
obedeças em assuntos mais importantes.
Sem mais palavras, a imperatriz ergueu-se e abandonou o pátio, seguida
apressadamente pelas servas.
Quando o meu nome foi anunciado, não ouvi os aplausos e os votos de
parabéns. O meu coração dilatou-se de alívio, mas ainda temia que fosse
apenas um sonho. Através da multidão, o meu olhar inquieto procurava o
Príncipe Liwei. Só depois de ver o sorriso com que me prendou é que me
atrevi a ter esperança, como a primeira flor a desabrochar após um longo
inverno.
O sol aproximava-se do horizonte quando acabei de arrumar os meus
pertences na Mansão do Lótus Dourado. Podia ter partido no dia seguinte,
mas não tinha qualquer motivo para ficar; ninguém de quem me despedir,
ninguém de quem fosse sentir falta. Nos dias seguintes à competição, a
Dama Meiling e as outras servas mantiveram-me ocupada com um sem-fim
de tarefas desagradáveis e humilhantes. Gostava de poder dizer que tal
malícia deslizou de mim como água sobre óleo, que a alegria no meu
coração não deixava espaço para a amargura fermentar. Mas não era nem
tão magnânima nem tão clemente. Por essa altura, já aprendera que nada
irritava mais as minhas atormentadoras do que a indiferença. Por isso,
aceitei todas as ordens com um sorriso e uma vénia, sempre a imaginar
como ficariam desanimadas quando eu partisse para o palácio, para nunca
voltar.
Ao subir as escadas de mármore branco que davam para o Palácio de
Jade, os meus pés eram mais leves do que as nuvens que deslizavam pelo
céu acima. Para minha surpresa, encontrei o mordomo à minha espera na
entrada. Ao ver-me, apertou os lábios em desaprovação, ou talvez não
apreciasse a hora tão tardia.
— Sua Majestade Celestial pediu-me que a instruísse sobre os seus
deveres.
Sem esperar pela minha resposta, passou pelas portas lacadas de
vermelho, forçando-me a segui-lo apressadamente.
Por causa da ansiedade na visita anterior, apenas me lembrava de uma
neblina difusa de cores vibrantes e beleza requintada. Neste dia, mais
calma, observei o espaço envolvente, descobrindo que o Palácio de Jade era
do tamanho de uma cidade pequena e disposto com precisão metódica. Os
soldados ficavam alojados no perímetro exterior, junto às muralhas do
palácio. Um pouco mais para o interior ficavam os aposentos dos servos e
dos funcionários do palácio. Rodeada por jardins floridos e tanques repletos
de carpas ficava a Corte Exterior, os alojamentos de convidados de honra e
cortesãos especiais sem propriedade própria. A Corte Interior era onde
residia a família real, com pátios vastos no coração do palácio: o Tesouro
Imperial, a Câmara da Reflexão e o Salão da Luz Oriental.
Perdida naquele labirinto de caminhos tortuosos, cada salão e cada
câmara com o seu próprio nome e função designada, recordei a
simplicidade do meu lar com um aperto no coração. Apesar de o recinto do
Palácio da Luz Pura ser vasto, as nossas necessidades eram inegavelmente
mais modestas, sem cortesãos para entreter, com refeições descomplicadas
que preparávamos nós mesmas e uma floresta virgem nas traseiras.
Enquanto caminhávamos, o mordomo salmodiava sobre as regras de
etiqueta.
— Deve ajoelhar-se quando cumprimentar Sua Alteza ou quando Sua
Alteza lhe der uma ordem. Em todas as outras alturas, faça uma vénia pela
cintura quando Sua Alteza falar consigo. Dirija-se sempre a Sua Alteza pelo
seu título, nunca pelo seu nome. Se tiver a felicidade de encontrar Suas
Majestades Celestiais, ajoelhe-se e encoste a testa ao chão até receber
permissão para se levantar. Se passar por alguém de classe superior à sua,
pare e faça uma vénia. Fale baixo, vista-se aprumadamente de acordo com a
sua classe...
De início, ouvia atentamente, mas logo a minha atenção vagueou para
os tetos e pilares requintadamente esculpidos ao longo do corredor. Fénix
douradas alternavam com peónias escarlates e folhas verde-esmeralda. O
caminho atravessava um jardim que desejava tanto explorar, à sombra de
magnólias e macieiras bravas...
Parei ao perceber que perdera o mordomo de vista. Ao dar meia-volta,
dei por ele parado um pouco para trás, de braços cruzados sobre o peito e
um olhar de intenso desagrado.
Fiz uma vénia, profunda. Apesar de não estar familiarizada com as
matizes da hierarquia do palácio, era óbvio que o mordomo se considerava
acima de mim.
— Obrigada pelos sábios conselhos — entoei o mais respeitosamente
que fui capaz, interrogando-me quantas regras não teria ouvido e se seriam
importantes.
Para meu alívio, o mordomo descruzou os braços e continuou a andar.
— Se uma nobre tivesse assumido a sua posição, não residiria no
palácio, chegaria antes todas as manhãs para acompanhar Sua Alteza e
regressaria a casa todas as noites. Contudo, dada a sua situação, tivemos de
fazer alguns ajustes. — O mordomo suspirou, como se tivesse sido ele a
fazer uma concessão onerosa. — Com esses benefícios adicionais em
mente, além dos seus deveres como companheira de estudo do Príncipe
Liwei, Sua Majestade Celestial determinou que também serviria Sua Alteza.
Olhei para o lado para esconder a minha confusão, consciente do seu
olhar atento sobre mim. Seria eu uma serva exaltada ou uma companheira
desgraçada? Não fora esse o prémio que eu ganhara e duvidava que outra
pessoa qualquer fosse assim tratada. Decididamente, não a Dama Lianbao.
Esperaria a imperatriz que me sentisse ofendida e desistisse? Não era assim
tão fraca de espírito. Apesar dos esforços para desvalorizar o meu feito, não
partiria num acesso de despeito. Depois de servir a Dama Meiling, aquilo
não era nada de mais. Além disso, preferia ganhar o meu sustento, em vez
de ficar em dívida para com Sua Majestade Celestial. Talvez me devesse ter
ressentido mais do meu estatuto diminuído, mas por uma oportunidade
assim, eu teria varrido o chão do palácio todos os dias, se fosse preciso.
— É uma honra servir Sua Alteza — respondi.
O mordomo apertou os lábios.
— É verdadeiramente uma honra. Nunca se esqueça. Deve acordar
todas as manhãs antes de Sua Alteza e ajudar Sua Alteza a vestir-se. Vai
preparar o chá e as refeições de Sua Alteza. Às refeições, pode comer com
Sua Alteza, mas deve servir Sua Alteza antes de a si própria. Não deve
comer até Sua Alteza dar a primeira dentada. Vai acompanhar Sua Alteza às
aulas e aos treinos, estudando ao lado de Sua Alteza e colocando as
necessidades educativas de Sua Alteza acima das suas, claro.
— Claro — repeti num tom seco, contendo a seleção de palavras que
me veio ao pensamento.
Felizmente, pouco depois entrámos para o Pátio da Tranquilidade
Eterna. Como era sereno, sem a multidão de espectadores e a ansiedade a
dar nós dentro de mim. Jasmins, glicínias e pessegueiros floriam no jardim,
a sua fragrância delicada e doce. Uma cascata murmurava num tanque
apinhado de carpas amarelas e cor de laranja. Tudo isso dominado pelo
pavilhão onde a competição tivera lugar, só que agora uma mesa redonda de
mármore e vários bancos estavam dispostos no interior.
— Este é o seu quarto.
O mordomo parou diante das portas fechadas de um edifício pequeno.
— Mais uma coisa, aconselho-a a manter uma atitude respeitosa e atenta
em todas as ocasiões, criando um ambiente harmonioso para Sua Alteza.
Durante o banho de Sua Alteza...
Inalei bruscamente, a respiração a assobiar ligeiramente entre os meus
lábios.
— Tenho de ajudar Sua Alteza a tomar banho?
O mordomo empertigou-se e deitou-me um olhar de censura.
— Quando Sua Alteza estiver a tomar banho, use esse tempo para
preparar os livros e materiais para o dia seguinte.
Cada palavra foi enunciada com uma clareza minuciosa, na clara
convicção de estar a falar com uma idiota.
Murmurei os meus agradecimentos, aliviado por o ver ir embora.
Deslizei as portas para o lado e entrei. O quarto era espaçoso e bem
mobilado, com uma cama grande de madeira com cortinas azuis. Das
paredes pendiam pinturas de seda, que representavam cenas com montanhas
de um cinzento violáceo e ciprestes, faisões e peónias. Uma janela grande
dava para o pátio e ao fundo estava uma mesa com uma pilha de papel, um
conjunto de pincéis de escrita e um tinteiro de porcelana. Uma lanterna de
seda já se encontrava acesa, espalhando a sua radiância na luz fraca do fim
do dia. Sentei-me na cama, incrédula, e belisquei o braço. Doeu; aquilo era
real. Queria soltar uma gargalhada quando me deixei cair no colchão macio.
A serenidade daquele lugar, quebrada apenas pelo fluxo rítmico da água e
pelo vento a sacudir as árvores, lembrava-me o meu lar. E depois de viver
com pessoas que encontravam defeitos em cada palavra ou gesto meu, era
um alívio voltar a estar a sós.
***
Imperturbada por pesadelos, dormi a noite toda, até a luz do sol entrar
pela janela. As cortinas flutuavam na brisa matinal, carregada com o aroma
de flores. Sentia em mim uma leveza pouco familiar... a ausência de medo,
apercebi-me. Não dera conta da tensão dentro de mim até ela desaparecer.
Pilhas de seda e brocado estavam amontoadas no armário. Tirei uma túnica
branca que prendi na cintura com uma faixa de cetim verde. A saia ampla
estava decorada com borboletas, que esvoaçavam quando tocava com um
dedo no bordado de uma asa. Uma túnica encantada. Quereria isso dizer que
a minha força vital era forte? Aprenderia brevemente a usá-la? Sentia
arrepios na pele só de pensar nisso.
Saindo do quarto, atravessei o pátio até aos aposentos do Príncipe
Liwei, o edifício grande diante do meu. As portas de madeira estavam
lacadas num vermelho-vivo, com treliças num padrão de círculos alternados
com camélias douradas. Ergui a mão e bati suavemente. Quando não ouvi
qualquer resposta, bati com mais força. Depois de esperar algum tempo,
abri as portas, esperando não estar atrasada. O interior estava sombrio, com
cortinas de brocado espesso nas janelas e à volta da cama de pau-rosa no
canto mais distante. O Príncipe Liwei ainda devia estar a dormir. O meu
coração bateu mais depressa quando entrei para o quarto e uma tábua do
soalho rangeu sob o meu pé.
— Vossa Alteza, fui instruída para vos acordar a esta hora.
A minha voz soou frágil e insegura, o título rígido nos meus lábios.
Recordando a litania do mordomo, baixei até a minha testa bater
desajeitadamente no chão duro.
O silêncio foi a única resposta. Mudei de posição, interrogando-me qual
seria a forma “respeitosa” de acordar um príncipe. As cortinas da cama
restolharam um momento antes de serem afastadas. Erguendo a cabeça,
fitei-o nos olhos. Senti o rosto a corar quando percebi que ele vestia apenas
a túnica interior branca.
— Chá — soltei bruscamente. — Quereis chá, Vossa Alteza?
O príncipe apoiou-se num cotovelo e bocejou, com o cabelo a cair-lhe
sobre os ombros.
— O que estás a fazer aí no chão? Levanta-te, não tens de te ajoelhar.
Não eras assim tão respeitosa quando nos conhecemos.
— Apenas porque não sabia com quem estava a falar. Não devia
aproximar-se à socapa de uma pessoa, sem um aviso, ou um cortejo, ou...
seja lá o que costuma fazer. É uma falta de consideração e injusto da sua...
Tarde de mais, fechei a boca. Ele tinha o dom de me provocar.
Ele sorriu, parecendo inesperadamente agradado.
— Fico contente por ver que a pessoa que conheci no rio ainda aí está.
Parecias diferente há um momento. Tão... deferencial.
Mostrei-lhe os dentes, mais numa careta do que num sorriso.
— Chá, Vossa Alteza?
— Ah. Sim, por favor.
Mas então, uma expressão peculiar passou-lhe pelo rosto.
— Podes pedir a alguém na cozinha que nos prepare o chá? Não sei se
consigo voltar a beber a tua mistura “singular”.
Dividida entre o riso e a vergonha, apressei-me até à cozinha, seguindo
em sentido inverso os meus passos no dia anterior. Um aroma rico e
saboroso erguia-se das panelas com papa a ferver, dos tachos a fervilhar
com pastéis em forma de crescente. Distraída, quase colidi com um servo a
carregar uma taça fumegante de sopa. O servo deitou-me um olhar
medonho, abrindo a boca para me ralhar, mas alguém agarrou o meu braço
e puxou-me para longe.
Era uma rapariga com a túnica roxa dos servos da cozinha. A cara dela
tinha as curvas arredondadas de uma maçã e o cabelo preto estava preso
num nó.
— É melhor saíres da frente dele. Pensa que é melhor do que nós
porque serve a imperatriz.
Os olhos castanho-escuros saltaram para mim.
— Chamo-me Minyi. És nova? O que fazes? Quem é o teu amo?
Fiquei calada, apanhada de surpresa pela fiada de perguntas. Mas não
detetei malícia nela, apenas curiosidade e uma franqueza que me fazia
lembrar Ping’er.
— O Príncipe Liwei — respondi.
— Ah, então foste tu que desagradaste a Sua Majestade Celestial.
Fiquei com a boca seca e o cheiro da comida dava-me agora a volta ao
estômago. Como se espalhara depressa a notícia. Ela deu-me uma
palmadinha na mão.
— Não te preocupes. Sua Majestade Celestial desaprova quase toda a
gente. Ora bem, tu ou Sua Alteza precisam de alguma coisa?
— Só o pequeno-almoço. E chá para Sua Alteza — respondi,
recompondo-me.
— E tu queres alguma coisa? — perguntou Minyi.
Quando o meu olhar caiu sobre os pastéis, ela piscou-me um olho.
— Vou garantir que te levam uma dose especialmente generosa esta
manhã.
— Obrigada.
Comecei a fazer uma vénia, mas ela puxou-me para cima.
— Não precisas de fazer isso. És a companheira do Príncipe Liwei.
Então, coçou o queixo em contemplação.
— Se calhar, eu é que devia fazer-te uma vénia.
— Não, por favor — pedi veementemente, antes de voltar a agradecer e
de me afastar.
No quarto do Príncipe Liwei, ajudei-o a vestir-se, segurando uma túnica
de brocado azul-celeste enquanto ele enfiava os braços nas mangas. Na
cintura, apertei-lhe uma faixa preta, que ele prendeu com um ornamento de
jade amarelo e seda.
O cabelo escuro caía-lhe solto pelas costas quando se sentou diante de
um espelho, segurando um pente de prata.
— Podes ajudar-me?
Hesitei, antes de estender a mão para pegar no pente. Nunca penteara
outro cabelo além do meu, num estilo simples que não requeria a mais
pequena habilidade. Na Mansão do Lótus Dourado, era Jiayi quem tinha a
tarefa íntima de vestir a Dama Meiling. Passei o pente pelo cabelo do
Príncipe Liwei com movimentos ritmados, a minha mente a trabalhar
furiosamente, tentando lembrar-me dos penteados masculinos na Mansão do
Lótus Dourado. O seu cabelo era mais pesado do que o meu, sedoso e
lustroso, caindo-lhe pelas costas como ébano polido. Quando deparei com
uma riça, fiz mais força com o pente, arrancando acidentalmente alguns
cabelos.
O príncipe inalou bruscamente e virou-se para mim com uma expressão
dorida.
— Xingyin, ofendi-te de alguma forma?
O pente caiu-me da mão e chocalhou no chão. Talvez me tivesse
aplicado ao seu cabelo com mais vigor do que tencionava.
— Lamento, Vossa Majestade.
Com dedos hábeis, o príncipe prendeu o cabelo num nó liso, que
segurou com uma peça de prata e prendeu com um alfinete de jade.
Captando o meu olhar no espelho, ergueu-me um sobrolho.
— Lamentas mesmo? O suficiente para me ajudares a pentear-me todas
as manhãs até aprenderes a fazê-lo direito?
Aquilo era uma ordem? Recordando as regras de etiqueta, ajoelhei-me
em obediência, mas ele estendeu os braços e pôs as mãos nos meus
cotovelos para me levantar.
— Xingyin, vamos estar juntos todos os dias. Quando estamos só nós os
dois, não há necessidade de tanta formalidade. Não precisas de te ajoelhar
ou fazer uma vénia sempre que falo, ou vais passar a maior parte do dia
com a cabeça no chão. E trata-me por Liwei. Quando nos conhecemos, era
como se não houvesse barreiras entre nós. Parecias alguém com quem eu
podia falar abertamente. Gostava que fôssemos amigos, não queres isso
também? — perguntou-me gentilmente.
O meu olhar colidiu com o dele. Como era caloroso o seu sorriso, como
um raio de sol que irrompera pela solidão da minha alma. Não era nada o
que eu esperava de um príncipe, mas muito mais. Interroguei o que acharia
o mordomo de tudo aquilo. Não que importasse muito.
— Sim, gostava muito — respondi.
Depois de refeição da manhã, saímos para a nossa primeira lição. Segui
Liwei pelos corredores aparentemente intermináveis, até um jardim vasto.
Salgueiros graciosos rodeavam um lago, com uma ponte de madeira
vermelha a arquear sobre a água até uma ilha pequena. Um pavilhão isolado
erguia-se na ilha, com um telhado de telhas verdes e pontas reviradas,
confundindo-se com a envolvência verdejante. Inspirei fundo o ar fresco,
tentada a demorar-me ali, mas Liwei prosseguiu por um portão circular de
pedra branca adornado com uma placa lacada na qual se lia:
CÂMARA DA REFLEXÃO
A toda a volta viam-se mais das plantas e flores exóticas que vira na
praia, massas de ramos escarlates, flores de um verde-vivo em forma de
leque, caules tubulares cor-de-rosa e pedras lisas cobertas de musgo
vermelho brilhante. Um jardim encantado colhido do coração do oceano.
Para lá das portas, um servo guiou-nos por um longo lanço de escadas.
Os níveis mais baixos do palácio erguiam-se debaixo de água, construídos
com a mesma pedra translúcida da ponte. Era como caminhar no fundo do
mar, rodeados por todos os lados por água em movimento e recifes de coral.
Quando entrámos para um salão apinhado com um teto elevado, um silêncio
caiu sobre os imortais ali reunidos. Só então ouvi o tilintar melodioso dos
fios de conchas de marfim que baloiçavam atrás dos tronos de ágata.
Apenas vira o Rei Yanzheng, do Mar do Leste, uma vez, no banquete de
Liwei. Cabelo prateado emoldurava-lhe o rosto macio e os olhos brilhavam
em contraste com a pele escura. A túnica verde-azulada estava bordada com
ondas, delineadas com curvas de linha branca. Uma coroa dourada em
forma de leque, cravejada de pérolas, repousava-lhe no cabelo.
O Capitão Wenzhi e eu ajoelhámo-nos no chão, estendendo as mãos
fechadas ao fazermos uma vénia.
— O Reino Celestial respondeu ao pedido de ajuda do Mar do Leste —
entoou Wenzhi, num tom formal. — As nossas espadas serão
desembainhadas e os nossos arcos esticados ao vosso serviço.
— Ergam-se — ordenou o rei, soando agradado. — Ficamos gratos pelo
apoio do Reino Celestial nestes tempos conturbados. O ataque dos tritões
apanhou-nos de surpresa, pois sempre viveram pacificamente entre nós.
Capitão Wenzhi, a sua reputação chegou aos nossos ouvidos até aqui no
Mar do Leste e agradecemos ao Imperador Celestial por nos enviar o seu
mais exaltado guerreiro.
O Capitão Wenzhi voltou a fazer uma vénia.
— Sois generoso, Vossa Majestade, mas não mereço um tal elogio. É
uma honra servir até ao máximo das minhas capacidades.
O Rei Yanzheng alisou a barba.
— Humildade a acompanhar um talento tal é raro.
Então, gesticulou para mim.
— Esta dama é a sua esposa?
Sons estrangulados escaparam-me da boca e as orelhas do Capitão
Wenzhi ficaram vermelhas.
— Não, Vossa Majestade. Esta é... a Arqueira-Mor Xingyin, do Exército
Celestial.
Arrebitei as orelhas ao ouvir a apresentação. Arqueira-Mor?
O rei olhou para a minha armadura.
— Ah — assentiu, com um sorriso perplexo. — Aqui não temos
mulheres guerreiras.
Vários cortesãos soltaram risadinhas, alguns disfarçando o riso atrás das
mangas. Senti um nó na barriga com todo aquele escrutínio indesejado e
cerrei os punhos perante o seu desdém.
O Capitão Wenzhi varreu o salão com um olhar gélido, silenciando a
diversão mais eficazmente do que uma espada.
— A Arqueira-Mor Xingyin é a arqueira mais galardoada do nosso
exército. Será de grande utilidade na nossa campanha. Em seguida, falou
num tom cuidadoso. — Vossa Majestade, podeis informar-nos sobre a
situação com os tritões?
O rei gesticulou para o jovem ao seu lado.
— O meu filho mais velho, Príncipe Yanxi, vai pôr-vos ao corrente.
Um imortal alto deu um passo à frente, vestido com uma túnica azul-
celeste cintilante. Pequenos peixes, bordados com fio carmesim e prateado,
dardejavam pelas dobras do tecido. O cabelo castanho-escuro estava preso
num nó, seguro com um alfinete de turquesa. Ao perto, senti a sua aura, fria
e firme, a vibrar de poder.
— Capitão Wenzhi, Arqueira-Mor Xingyin. Desde o início dos tempos,
sempre vivemos em paz com os tritões. Enquanto nós, imortais do mar,
preferimos viver tanto em terra como no mar, os tritões escolheram as
profundezas do oceano, subindo à superfície apenas em raras ocasiões.
Veneravam os dragões que costumavam viver aqui e desejavam estar perto
deles. Os dragões eram criaturas sábias e gentis que ajudavam a manter a
harmonia nas nossas águas.
O tom da sua voz mudou então, tornando-se mais tenso.
— Quando o Imperador Celestial baniu os dragões do nosso domínio, os
tritões ficaram perturbados. Com o passar do tempo, a sua aversão a terra
firme tomou-se mais forte, preferindo o isolamento das profundezas do
oceano. Há anos, o meu pai permitiu que escolhessem um governador para
os representar na corte. Infelizmente, o Governador Renyu é perigoso e a
sua ambição estende-se muito para lá do seu mandato. Recebemos relatos
de que recrutara um vasto exército entre os tritões, treinando-os no uso de
armas e magia. Quando o meu pai o convocou para responder a essas
acusações, ele recusou.
Pensei para comigo que treinar um exército sem um mandato era, de
facto, traição. E a culpa do Governador Renyu só era aumentada pela recusa
em comparecer perante o rei.
O Príncipe Yanxi esfregou a testa com uma expressão sombria.
— Desde então, os tritões tornaram-se abertamente hostis. Imortais do
mar que se aventuraram em águas profundas foram atacados. As casas mais
perto da costa foram saqueadas. A cada ataque, os salteadores fugiam antes
que os nossos soldados os conseguissem apreender.
— É pouco provável que banditismo seja a única intenção do
governador. Faz alguma ideia dos seus planos? — perguntou o Capitão
Wenzhi.
— Recentemente, emitiu um édito banindo todos os imortais do mar das
profundezas do oceano. Um insulto grave. Cremos que tenciona derrubar o
meu pai e tomar o trono para si. Sob o comando do Governador Renyu, o
exército tritão tornou-se forte e poderoso, enquanto o contrário, receio, pode
ser dito de nós. Somos uma nação pacífica, pouco habituada a combater, por
isso pedimos ajuda ao Reino Celestial.
Teríamos de lutar contra os tritões debaixo de água? Senti o estômago às
voltas só de pensar nisso. Como muitos celestiais, nunca aprendera a nadar.
Para quê, quando podíamos voar? Certa vez, na minha infância, caí num rio
perto de casa. Água fria pressionava-me de todos os lados, tapando-me o
nariz e a boca. Esbracejei e esperneei, mas os movimentos frenéticos apenas
me afundaram no abraço do rio. Foi a minha mãe que mergulhou para
dentro de água e me puxou para fora. Ralhara comigo num tom trémulo
enquanto me envolvia num abraço apertado, o batimento reconfortante do
seu coração a silenciar as últimas réstias do meu terror.
Como era intenso o medo recordado que me atormentava agora. Mas
empurrei-o para o lado.
— Os soldados celestiais não estão habituados a lutar debaixo de água.
Se houver uma batalha, devíamos tentar atrair os tritões para terra firme.
Algo passou pelo rosto do Príncipe Yanxi, algo semelhante a surpresa.
— De facto. Ficaríamos em grande desvantagem debaixo de água. Os
tritões são excelentes nadadores e estão habituados à escuridão. Contudo,
sentir-se-ão relutantes em enfrentar-nos em terra. Precisamos de um plano.
O Rei Yanzheng debruçou-se para diante.
— O capitão e os seus soldados acabaram de chegar. Estamos a ser
pouco hospitaleiros, mantendo-os aqui enquanto precisam de tratar das suas
acomodações. — O sorriso do rei era gracioso e cordial. — Capitão
Wenzhi, organizámos um banquete esta noite em sua honra. Espero que nos
agracie com a sua presença, acompanhado pela Arqueira-Mor Xingyin.
— Seria uma honra. — Logo depois, o Capitão Wenzhi hesitou e
engoliu em seco. — Vossa Majestade, a biblioteca do Palácio de Coral
Fragrante é exaltada em todo o Domínio Imortal. Dais-me permissão que a
visite? Espero aprender tudo o que possa ser útil na luta contra os tritões.
O rei inclinou a cabeça.
— Um servo levá-lo-á lá sempre que queira.
Quando saímos do salão, sorri para o Capitão Wenzhi.
— Arqueira-Mor? A arqueira mais galardoada do nosso exército? —
comentei, fazendo eco das suas palavras. — Isso quer dizer que as nossas
patentes estão mais próximas?
Ele deitou-me um olhar exasperado.
— Como não é uma recruta oficial, a posição também não é oficial. E
desde quando é que se importa com patentes?
Soltei uma risada e não protestei mais. Nunca lhe faltara ao respeito,
mas também nunca o tratara com a deferência que a sua posição exigia.
Sem abrandar a passada, Wenzhi continuou a falar:
— A Xingyin é a arqueira mais galardoada do exército. Contudo, não se
desleixe ou pode perder essa posição. Terá de se contentar com segunda-
arqueira ou terceira-arqueira, que não soa nem de perto tão impressionante.
— Ah! — exclamei, ofendida pela insinuação. — Quer resolver isso
num desafio?
Ele tinha fama de ser um bom arqueiro, contudo, assim que as palavras
me passaram pelos lábios, quis logo desdizê-las. Evocavam demasiadas
memórias dolorosas... de uma floresta de pessegueiros em flor, de alguém
que queria desesperadamente esquecer.
A sombra de um sorriso formou-se nos seus lábios.
— Não com o arco. Mas é bem-vinda a enfrentar-me com qualquer
outra arma.
Não respondi, forçando-me a caminhar em frente, um pé depois do
outro, e um silêncio caiu sobre nós.
Ele parou junto das portas da entrada, escrutinando-me de cabeça
inclinada.
— Parece pálida. Cansada. Tem andado a treinar demasiado. Porque não
regressa ao acampamento e descansa? Vou até à biblioteca ver se encontro
algo que nos seja útil.
Fez um gesto para um servo, que se aproximou apressadamente.
— Estou bem — protestei, ansiosa por visitar a biblioteca.
Mas ele deitou-me um olhar implacável até eu assentir. Não podia
desafiar uma ordem sua diante de um servo.
— Depois falo-lhe do que encontrar — prometeu ao ver a minha
expressão desiludida. — Descanse enquanto pode. A cerimónia desta noite
promete ser longa.
Um servo do Palácio de Coral Fragrante chegou com um tabuleiro de
roupas para o banquete. Grata pela hospitalidade generosa, escolhi um
vestido de cetim amarelo com contas de turquesa cosidas na bainha e nos
punhos. Uma faixa verde-água cingia-me a cintura, com borlas de seda que
caíam até aos joelhos. O estilo do vestido era diferente do usado no Reino
Celestial, deixava o pendente de jade à vista abaixo do pescoço. O meu
outro adorno era um pente de pérolas a prender-me o cabelo, que caía solto
pelas costas.
O Capitão Wenzhi esperava por mim fora do meu quarto. A minha
pulsação saltou inesperadamente quando caminhei para ele. Estava muito
elegante naquela noite, com uma túnica verde-escura e uma faixa luzidia de
seda preta atada à cintura. O cabelo estava preso por um anel de jade
esculpido, caindo-lhe sobre o ombro como ondas de noite pura. Foi como se
me tivessem lavado os olhos e visse finalmente, com uma clareza
assombrosa, todas as feições elegantes que Shuxiao descrevera.
O vento soprava suavemente nessa noite. Inalei o ar fresco, saturando os
sentidos com a fragrância do mar, uma mistura cativante de sol e sal,
condimentada com uma nota de excitação. Os raios do sol poente tingiam as
águas de carmesim e escarlate, o Palácio de Coral Fragrante como uma joia
no horizonte.
No salão de banquetes, centenas de lanternas pendiam do teto,
luminosas e coloridas. Mesas baixas de madeira e cadeiras forradas a
brocado estavam dispostas ao longo das paredes, deixando um espaço vazio
no centro da divisão. Num canto sentava-se uma dama elegante a tocar um
pipa, o instrumento de quatro cordas em forma de pera alongada. À medida
que a dama dedilhava as cordas, os fios melancólicos da música preenchiam
o ar. Tocava de forma magistral; de cada corda vibrante extraía um rio de
mágoa e um oceano de dor.
O rei e a rainha sentavam-se num palanque ao fundo do salão. Uma
magnífica flor de ouro com uma pérola do tamanho da palma da minha mão
reluzia no cabelo da rainha. As pétalas estremeciam à volta da pérola, que
num momento emitia um brilho branco, assumindo a seguir o negro mais
profundo. Um rapazinho estava de pé ao lado dela, segurando-lhe a mão. A
cabeça do rapaz mal chegava ao braço do trono e os olhos escuros eram
grandes e solenes. Ao lado do rapaz estava uma dama elegante vestida de
seda cor de pêssego, com fiadas de pérolas cor-de-rosa ao pescoço.
Erguendo o queixo delicado, escrutinava o salão com uma expressão de
distanciamento régio.
— Aquela é a filha de Sua Majestade? — perguntei ao Capitão Wenzhi,
quando fomos cumprimentar os nossos anfitriões.
— Sua Majestade só tem dois filhos, o Príncipe Yanxi, que já conheceu,
e o Príncipe Yanming.
Seguindo o meu olhar, acrescentou:
— A dama ao lado do Príncipe Yanming é a Dama Anmei, a sua ama. É
filha de um nobre poderoso e a sua família tem grande influência na corte.
Depois de prestarmos a nossa homenagem à família real, um servo
guiou-nos até à nossa mesa. O Capitão Wenzhi encheu as nossas taças e
provei o vinho, com a doçura suave do grão fermentado a prolongar-se na
minha língua. As travessas de prata diante de nós estavam repletas de
comidas exóticas, a maioria das quais nunca vira antes: crustáceos
vermelhos luzidios, alforrecas douradas e esferas pretas com picos. Essas
últimas pareceram-me especialmente pouco apetitosas, mas os outros
convidados comiam-nas com deleite.
O Capitão Wenzhi pegou numa e abriu-a ao meio, oferecendo-me
metade. Colhi a carne e levei-a à boca, saboreando o paladar cremoso e
salgado.
— A comida está ao seu gosto? — perguntou o Príncipe Yanxi,
aparecendo inesperadamente diante de nós.
Engasguei-me com a comida que tinha na boca, tossindo ruidosamente.
Pegando na minha taça, dei um longo gole de vinho antes de me levantar
apressadamente para o cumprimentar.
O príncipe respondeu à saudação com uma breve inclinação da cabeça.
— Capitão Wenzhi, o meu pai deseja falar consigo. Gostaria de se juntar
a ele à sua mesa? Eu faço companhia à Arqueira-Mor Xingyin até ao seu
regresso.
O Capitão Wenzhi franziu brevemente a testa, mas no instante seguinte
o seu rosto estava novamente sereno. Com uma vénia ao príncipe,
caminhou até ao palanque. Não consegui deixar de reparar em como a
Dama Anmei pareceu animar-se quando ele se sentou num lugar vago à
mesa real.
O Príncipe Yanxi baixou-se para a cadeira sem desviar o olhar de mim.
Por algum motivo, não achei o seu interesse ofensivo. Talvez fosse pelo ar
de curiosidade sincera ou pela expressão de humor quando o fitei
ousadamente de volta, determinada a não ser a primeira a quebrar o
silêncio.
— Onde aprendeu as suas aptidões, Arqueira-Mor?
A candura com que falava lembrava-me o General Jianyun.
— Treinei ao lado do Príncipe Liwei quando era a sua companheira.
Respondi no mesmo registo, esperando que não se apercebesse do
tremor na minha voz.
— Claro — comentou ao reconhecer-me. — Lembro-me de si no
banquete. Tocava flauta muito bem. Ainda toca?
Desviei o olhar.
— Não.
Não voltara a tocar desde essa noite.
Talvez pressentindo o meu desconforto, o príncipe mudou de assunto:
— Porque se juntou ao Exército Celestial? Foi por vontade da sua
família?
— O general que acompanhou o meu treino inicial ofereceu-me um
posto.
Yanxi começou a mover os dedos sobre o rebordo da sua taça.
— Certamente haveria muitas outras oportunidades disponíveis para
alguém que serviu o Príncipe Herdeiro.
— Não onde tivesse a liberdade de escolher o meu caminho. Não tenho
família para promover a minha carreira, dependo apenas das minhas
capacidades. — Levei o copo à boca e dei um gole longo. — Mas esta é a
minha escolha, não quereria outra — acrescentei, pensando no Leão
Carmesim.
Um sorriso surgiu-lhe nos lábios, os olhos semicerraram-se. Não eram
pretos como imaginara, mas do azul intenso e opaco das safiras por polir.
Ele pegou no jarro de porcelana para voltar a encher a minha taça.
— A sua franqueza é refrescante.
O vinho subia-me à cabeça e soltava-me a língua.
— Porque tem Vossa Alteza tantas perguntas para uma alguém como
eu?
— Porque não há muitas pessoas como a Arqueira-Mor. O Capitão
Wenzhi tem-na em grande consideração. Deve ser excecionalmente capaz
no seu posto de arqueira. Mas não se parece com nenhum guerreiro que já
tenha visto.
Sorri-lhe de volta.
— Como não há mulheres no vosso exército, não estou surpreendida.
Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma risada.
— Peço desculpa. Normalmente, não sou tão inábil nos meus elogios.
Será que o ouvira corretamente? Apercebendo-me de uma súbita pausa
nas conversas, olhei para o salão à minha volta. Muitos dos imortais do Mar
do Leste estavam a olhar para nós, sussurrando entre si.
— A vossa presença ao meu lado está a causar uma comoção, Vossa
Alteza. Talvez devêsseis conviver com os restantes convidados — sugeri,
apercebendo-me, tarde de mais, de que não se pode mandar embora um
príncipe do reino.
Felizmente, ele pareceu divertido, e não ofendido.
— Deixei-a pouco à vontade? Não era a minha intenção. Apenas queria
conhecê-la melhor. As pessoas interessam-me, tanto como outros se
interessam por livros, música ou arte.
Os meus dedos retorciam o tecido macio do vestido enquanto
procurava, em vão, uma resposta adequada.
Os seus olhos reluziram quando se fixaram no meu pescoço.
— O seu medalhão... é um amuleto raro. Podia dizer-me a sua origem?
Fiquei com a garganta seca. Já fora questionada tantas vezes sobre a
minha família que tinha uma resposta pronta na ponta da língua. Contudo,
nunca me haviam perguntado sobre o medalhão do meu pai, normalmente
escondido sob a roupa. Sempre pensei que fosse uma joia banal, a sua
herança o único valor que tinha para mim.
— Encontrei-o no mercado. O que aparece no Reino Celestial uma vez
a cada cinco anos — respondi rapidamente.
— Uma descoberta afortunada.
Ele enunciou lentamente cada palavra.
Mudei de posição na cadeira, interrogando se ele se apercebera da
minha mentira. Senti-me tentada a mudar de assunto, a regressar a terreno
mais seguro, mas o seu interesse avivara o meu. Talvez ele soubesse algo
sobre o medalhão do meu pai.
— Porque lhe haveis chamado um amuleto?
— Porque é um amuleto. Um poderoso amuleto de proteção.
Os meus dedos ergueram-se para tocar no jade. Teria o meu pai usado o
amuleto quando partiu no encalço das aves solares? Teria o amuleto
protegido o meu pai das chamas mortais?
O Príncipe Yanxi debruçou-se para observar melhor a pedra.
— Infelizmente, parece ter sido danificado.
A rachadela no rebordo.
— Pode ser restaurado? — perguntei, com um pouco de ansiedade a
mais.
Os cantos da sua boca descaíram.
— Pelo estilo da escultura, parece ser um talismã dos dragões. Se assim
for, só eles o podem consertar.
O meu ânimo desabou quando soltei o medalhão. Os dragões já não
viviam no Domínio Imortal. Banidos, dissera o Príncipe Yanxi, fazendo eco
da história que ouvira na infância.
— Sabeis muito sobre dragões. No Reino Celestial, há pouca
informação sobre eles — observei.
— Os Dragões Veneráveis, como eram conhecidos, nasceram no Mar do
Leste e viveram aqui até serem banidos. Embora nunca tenham estado sob a
nossa autoridade, os nossos historiadores, estudiosos e escribas reuniam
toda a informação que conseguiam encontrar sobre eles. Apesar da
aparência assustadora, eram sábios e benevolentes, usando a sua magia para
ajudar quem precisava e para manter a paz nas nossas águas. Muitos
veneravam-nos, tritões, imortais do mar, até mortais. Muitos lamentam a
sua partida. Se quiser aprender mais, é bem-vinda na nossa biblioteca.
— Agradeço-vos muito.
Estava grata pela oferta generosa. Segundo o Capitão Wenzhi, não era
uma oferta feita de ânimo leve. A minha curiosidade estava espicaçada,
especialmente depois de já ter perdido uma oportunidade, e ansiava por
mergulhar na biblioteca, se pelo menos tivesse tempo para o fazer.
— Vossa Alteza, haveis ouvido falar do Arco do Dragão de Jade? —
perguntei, tentando manter um tom descontraído.
A sua postura ficou rígida, quase impercetivelmente.
— Porque pergunta?
— Ouvi alguém falar dele e fiquei a pensar em quem teria empunhado
uma arma tão poderosa.
— Ninguém — respondeu-me num tom grave. — Desapareceu junto
com o dono, antes até de os dragões serem banidos, e provavelmente nunca
será encontrado.
Estive quase a confidenciar-lhe que o arco não estava perdido, que
estava à minha guarda. Mas sabia pouco sobre o príncipe e prometera ao
Capitão Wenzhi que não falaria do arco a ninguém. Além disso, ele parecia
não saber nada sobre o paradeiro do dono.
O repicar de sinos chamou-me a atenção, com os seus tons vibrantes e
metálicos. Entraram dançarinas, a deslizar até ao centro do salão num
tumulto de seda azul e verde. Uma fiada de sinos dourados tilintava-lhes à
cintura e os toucados ornados estavam cravejados de pedras preciosas. Cada
bailarina trazia um pau de jade polido ao qual estava preso uma fita
vermelha. Quando a tocadora de pipa começou uma música nova, uma
melodia animada com acordes vibrantes, as dançarinas ergueram os paus de
jade e dançaram. Os corpos graciosos giravam e mergulhavam e
rodopiavam, as fitas a esvoaçarem atrás delas, fulgurantes como chamas.
Suspiros de apreço ergueram-se da multidão, incluindo os meus.
Duas bailarinas saltaram pelo ar, as fitas a rodar à volta dos seus corpos
numa espiral elegante. Quando pousaram, outra saltou alto, arqueando na
direção dos tronos numa notável exibição de agilidade. Quando a seguia
com os olhos, arregalados de admiração, algo brilhante deslizou da base do
seu pau de jade. A suavidade da sua expressão deu lugar à ferocidade de um
predador.
Terror apertou-me a barriga. Por instinto, procurei uma arma. Quando
não encontrei, peguei numa travessa de prata e arremessei-a à dançarina que
saltava pelo ar. A travessa acertou-lhe na cabeça e deixou-lhe o toucado
torto. A bailarina soltou um grito ao cair ao chão num monte confuso de
seda azul, verde e vermelha.
Os convidados levantaram-se num salto com gritos de alarme. Alguns
deitavam-me olhares zangados, como se eu tivesse perdido o juízo,
perturbando o espetáculo com a minha conduta incivilizada.
— Ela tem uma arma — avisei o Príncipe Yanxi.
Ele pôs-se logo em ação, gritando ordens aos guardas para prenderem a
dançarina.
Após uns momentos de tensão, um guarda veio a correr até nós. Tinha
uma expressão lúgubre quando estendeu um punhado de agulhas afiadas,
reluzindo com os vestígios viscosos de um líquido esverdeado.
— Veneno de escorpião-do-mar — sibilou o Príncipe Yanxi. —
Espalha-se depressa, paralisando o corpo todo. Uma dose alta pode ser fatal.
A música parara quando a dançarina caíra, mergulhando o salão num
silêncio ominoso. Os convidados trocavam olhares confusos, os murmúrios
não mais indignados, mas agora ansiosos e urgentes. O ar mal se movia,
pleno de tensão. Algo bateu contra a parede. Metal chocou com metal e um
grito arrepiante fez-se ouvir. Ao meu lado, o Príncipe Yanxi desembainhou
a espada. As portas abriram-se de rompante e um guarda parou à entrada,
com a armadura azul e prateada manchada de sangue.
— Tritões! Estamos a ser atacados!
Uma lança trespassou-lhe o peito com um esguicho húmido, a ponta
encharcada em sangue. O soldado arregalou os olhos e cambaleou para a
frente, caindo de joelhos e tombando para o lado.
Os convidados levantaram-se subitamente, derrubando mesas e cadeiras
ao fugirem para o fundo do salão. O Capitão Wenzhi saltou do palanque, a
espada já desembainhada. Praguejei por estar de mãos vazias, mas o
príncipe tirou um arco e uma aljava a um guarda próximo e atirou-mos.
Pegando numa flecha, assestei-a na corda, a haste vermelha dura e fria
como pedra.
— Coral de fogo. Os tritões são-lhe vulneráveis — explicou o Príncipe
Yanxi, numa voz tensa, os nós dos dedos brancos à volta do punho da
espada.
Os atacantes jorraram para dentro do salão. A sua armadura era tecida
de pequenas escamas que reluziam como madrepérola. Correram na nossa
direção, brilhantes pupilas turquesa, o cabelo entrançado a esvoaçar atrás
deles. A pele pálida estava coberta por um brilho iridescente, como se
estivesse a olhar para eles através de um vidro colorido. Senti um calafrio
na pele ao avistar as espadas curvas, untadas com o mesmo veneno das
agulhas. Aqueles que eram cortados pelas suas lâminas ficavam
imobilizados, os membros a tremerem erraticamente, os olhos arregalados
de horror.
Quando o Príncipe Yanxi se embrenhou no combate, um tritão atacou-o.
Soltei de imediato uma flecha e atingi o atacante no ombro. O tritão caiu ao
chão, agarrando a haste da flecha cravada na sua carne. Fiz-me insensível
àquela visão, aos seus queixumes de dor. O remorso era para mim um luxo,
disparando flecha atrás de flecha sobre os invasores... mas fazia pontaria
para os membros sempre que podia. O Capitão Wenzhi ter-me-ia
admoestado se tivesse percebido isso. Para ele, um inimigo era um inimigo
e mostrar misericórdia em combate era deixar a retaguarda desprotegida.
Contudo, não conseguia parar de pensar no porquê de os tritões se terem
revoltado contra os imortais do mar. Estava a aprender que os reis nem
sempre eram tão justos como os das histórias e que a misericórdia dos
deuses por vezes revelava-se viciada.
Sangue manchava o chão e as minhas mãos estavam escorregadias de
suor. As minhas flechas voavam numa torrente implacável, os gritos de
agonia dos meus alvos a agredirem-me a consciência. Forcei a minha
atenção de volta para as armas que os tritões empunhavam, para o
sofrimento que causavam. Mas por muitos que caíssem sob as nossas
flechas e espadas, mais ainda brotavam pelas portas. As nossa forças
diminuíam à medida que formávamos um círculo defensivo à volta da
família real e dos convidados.
Os olhos dos tritões brilhavam de antecipação enquanto fechavam o
cerco. Tinham a vantagem; eles eram mais do que nós. Ergueram as mãos, o
cheiro da água salgada denso no ar quando torrentes de água irromperam
pelo salão. O Capitão Wenzhi estendeu o seu poder e fragmentos de gelo
caíram sobre os tritões. Vários tombaram, mas a água continuava a
revolver-se, cada vez mais alta, encharcando sapatos, vestidos e túnicas, até
uma onda se erguer acima de nós. A energia do Rei Yanzheng irradiou do
seu corpo, dispersando a onda, mas outras erguiam-se atrás dela. Mais e
mais, elevando-se à nossa volta até ficarmos encurralados por paredes
trémulas de água, prestes a quebrarem e arrastarem-nos para longe. Um
grito fraco atrás de mim deixou-me abalada, o grito de uma criança a tentar
conter o medo. Seria o Príncipe Yanming?
Recolhendo a minha energia, invoquei um vento que varreu o salão,
erguendo-se sobre nós como uma cúpula translúcida, semeada de gelo
cintilante quando Wenzhi juntou a sua energia à minha. Mesmo a tempo,
pois as ondas caíram sobre a nossa barreira. Cambaleei sob o peso
esmagador, sentindo os membros a gemer enquanto me debatia contra a
exaustão. Quando pensava que ia colapsar, o poder do Príncipe Yanxi
irrompeu para diante, afastando a água para cima dos tritões.
Ouviram-se passos ao longe. Contraí os músculos, preparada para mais
um assalto ao erguer o arco, as minhas mãos doridas já a assestar uma
flecha. Mais soldados entraram para o salão, dessa vez com a armadura azul
e pratada do Mar do Leste. Com um suspiro de alívio, baixei a arma. Os
tritões atacaram os soldados e lutaram valentemente, mas foram
rapidamente dominados.
O líder capturado foi arrastado até nós. Sangue escorria-lhe de um corte
longo na cara e nos olhos cintilava uma chama azul.
— Assassinas disfarçadas de dançarinas com agulhas envenenadas para
matar o nosso rei. A que outras táticas desprezíveis recorre o Governador
Renyu? — perguntou o Príncipe Yanxi, com desdém.
— Todas as táticas são honradas para lidar com um assassino de dragões
— ripostou o tritão.
— O que quer dizer? Explique-se! — exigiu o Rei Yanzheng, numa voz
indignada.
Quanto ódio emanava do olhar do tritão.
— O Governador Renyu disse-nos como nutria inveja do poder dos
dragões e se ressentia da sua recusa de se submeterem à sua autoridade.
Conspirou com o Imperador Celestial para os aprisionar e assassinar!
O Príncipe Yanxi estremeceu com repugnância.
— Que punhado de vis mentiras! Nós reverenciávamos os dragões.
Ainda os honramos. Nunca os procurámos dominar, bastava que nos
agraciassem com a sua presença. — O seu tom endureceu. — Fazer essa
acusação ao meu pai é obsceno e indigno da sua inteligência.
— Mente tão bem como o seu pai — resmungou o tritão.
O Príncipe Yanxi atirou-se para cima dele, mas o Capitão Wenzhi
segurou-lhe o braço e puxou-o para trás.
— Para lá das afirmações do governador, que provas tem de que os
dragões foram assassinados? — quis saber o Capitão Wenzhi.
Um ar de confusão passou brevemente pelo rosto do tritão, que
manteve, contudo, um silêncio obstinado.
O Rei Yanzheng falou calmamente.
— O seu governador não lhe mostrou provas porque não existem. As
suas alegações são infundadas, as suas acusações são falsas. Nada mais do
que palavras vazias para vos incitar a seguir as suas ordens.
O tritão arrepanhou os lábios.
— O Governador Renyu jura que vingará a morte dos dragões. Assim
que o rei indigno for deposto, ele vai restaurar a glória dos tritões, vai...
O tritão fechou a boca e olhou para o lado. Teria medo de revelar algo?
Ou algum encantamento impedia-o de dizer mais?
O Capitão Wenzhi pareceu não reparar quando soltou uma risada sem
alegria.
— O governador tenciona tomar a coroa depois de assassinar o rei
legítimo? Que nobre da parte dele, ascender ao trono em nome de procurar
retribuição pelos dragões.
O tritão abanou a cabeça veementemente.
— Não, o Governador Renyu é honrado! Ele apenas deseja...
Mais uma vez, ficou sem palavras.
— Desejava poder ter feito mais pelos dragões — suspirou o Rei
Yanzheng. — Implorámos ao Imperador Celestial que rescindisse o castigo,
que os libertasse, mas ele recusou. Eles tinham, de facto, desafiado a sua
autoridade e as nossas mãos estavam atadas. Os dragões não teriam
desejado que entrássemos em guerra com o Reino Celestial. Valorizavam a
paz acima de tudo o resto.
— Os dragões não são vistos há séculos! — gritou o tritão.
— Isso não significa que estejam mortos — contrapôs o Príncipe Yanxi.
— Teríamos sentido se uma tal luz tivesse desaparecido do nosso mundo.
Mordi o lábio e fitei o rosto desdenhoso do tritão. Algo não estava certo.
Falava com paixão e os olhos brilhavam de convicção, mas porque
arriscaria vida e honra com base em meras alegações infundadas?
A voz do Capitão Wenzhi quebrou o silêncio, baixa e suave.
— Qual era o vosso objetivo hoje? Matar o rei e o herdeiro? Contudo,
os aliados do Mar do Leste nunca aceitariam o Governador Renyu como rei.
Qual era o plano do governador?
O tritão ergueu o queixo, desafiador.
— Façam o vosso pior. Não vou dizer nada.
— Oh, mas vai — disse o Capitão Wenzhi, cada palavra dura como aço.
— Descobri que há maneiras de extrair até os segredos mais preciosos. Não
só fogo e gelo, mas também os métodos do mundo mortal. Decepar
membros, esfolar a pele. Ferver a carne em óleo.
Um arrepio percorreu-me o corpo, mas mantive o rosto impassível.
O tritão estremeceu quando o Capitão Wenzhi se debruçou sobre ele.
— Se não falar, um dos seus amigos pode ser persuadido a fazê-lo. Caso
contrário, o seu povo vai sofrer a fúria do Reino Celestial. Vão ser banidos
do Mar do Leste, exilados para o Deserto Dourado. Deixados a vaguear e a
definhar sob o calor do sol, passando o resto da eternidade nas areias
ressequidas.
O Príncipe Yanxi inalou abruptamente e o seu pai ficou pálido. Para um
imortal do mar, um tal destino seria pior do que a morte. Tinham mantido a
compostura durante a conversa sinistra sobre tortura, mas não achei que
conseguissem aguentar um castigo assim tão duro. Mas o que importava era
o que o tritão acreditava. Ouvira dizer que o Capitão Wenzhi tinha talento
para obter respostas de prisioneiros teimosos sem recorrer a crueldade
física. Os rumores não eram exagerados. O tritão já dava sinais de ceder, a
respiração mais rápida, os olhos a dardejar por todo o lado, mas regressando
sempre ao capitão.
Testemunhara a determinação inabalável do Capitão Wenzhi em
combate, a sua temeridade ao carregar sobre o inimigo. A sua honra e
coragem eram reverenciadas pelos soldados, mas aquilo... aquilo era uma
nova faceta da sua personalidade. Talvez fossem dois lados da mesma
moeda; ninguém conseguiria alcançar tudo o que alcançara sem uma certa
crueldade.
O tritão encolheu-se. Mesmo assim, o Capitão Wenzhi olhava-o
fixamente, as pupilas escuras como obsidiana.
Por fim, o tritão colapsou, tremendo incontrolavelmente.
— Mais não — implorou numa voz débil. — Deixe o meu povo em paz.
Não lhes faça mal.
Ofegou como se as palavras estivessem a ser-lhe arrancadas.
— O Príncipe Yanming... Mesmo que não conseguíssemos matar o rei,
devíamos capturar o filho.
O Rei Yanzheng levantou-se abruptamente. Vasculhou o salão com o
olhar à procura do jovem príncipe, que estava aninhado ao lado da rainha
num canto distante, a cabeça apoiada no ombro da mãe. Abençoadamente
ignorante da ameaça que pendia sobre a sua família e a sua vida.
O Príncipe Yanxi segurou com força o punho da espada, tentando
manter a compostura.
— Um plano ignóbil. O Governador Renyu deve querer coroar o meu
irmão para governar como o poder atrás do trono. Depois de se livrar do
resto de nós.
Assentiu brevemente para os guardas, que levaram embora o
prisioneiro. Já não havia mais luta dentro do tritão, que tombava dos braços
dos seus captores como uma alga arrastada para a praia.
Pouco tempo antes, o salão estivera repleto de alegria e riso. Agora,
soldados de armadura tomavam o lugar dos convidados elegantes, que
tinham fugido, e os gemidos dos feridos eram um fraco substituto dos
acordes relaxantes do pipa.
— Peço perdão pelo fim abrupto das nossas festividades. Não eram bem
as boas-vindas que tínhamos planeado — lamentou o Príncipe Yanxi, num
tom pesaroso.
A expressão do Capitão Wenzhi era soturna.
— Talvez não, mas ganhámos informação valiosa sobre as ambições do
Governador Renyu. E até onde é capaz de ir para as alcançar.
O Príncipe Yanxi assentiu.
— Vamos traçar os nossos planos amanhã, com os nossos comandantes.
Prometo que vai ser menos atribulado do que esta noite, agora que estamos
em alerta. Seja como for, temos amplas reservas de flechas no palácio. —
Com um brilho nos olhos, acrescentou: — De travessas também, se a
Arqueira-Mor preferir.
Os meus lábios curvaram-se num sorriso vazio, apesar de acolher a sua
tentativa de aliviar o ambiente.
O Príncipe Yanxi inclinou a cabeça para o Capitão Wenzhi.
— A sua ajuda hoje foi inestimável e o meu pai não se esquecerá de o
louvar ao Reino Celestial. A sua reputação é bem merecida.
Olhou então na minha direção.
— Tal como a sua, Arqueira-Mor.
Fiz uma vénia em reconhecimento do elogio. Contudo, o meu sorriso
esmoreceu quando olhei para o salão à minha volta, para os fragmentos de
porcelana e para a comida espalhada pelo chão, misturados com rastos
vermelhos de sangue.
Nessa noite, não consegui dormir. Quando fomos atacados, fora tomada
por um frio instinto de sobrevivência e abatera os atacantes sem hesitar.
Mas com as acusações do tritão a ecoarem nos meus ouvidos, a dúvida
encontrou o caminho até ao meu coração. Estariam os dragões em perigo?
Seria o Rei Yanzheng tão virtuoso como tinha fama de ser? Seria fingida a
admiração do Príncipe Yanxi pelos dragões? Não, pensei para mim mesma,
ele não parecia ter uma natureza desonesta.
Eu e o Capitão Wenzhi ganháramos o hábito de comer juntos, e
normalmente gostava desses momentos de companheirismo silencioso.
Contudo, nessa manhã, debiquei a refeição sem energia.
— Lutou bem ontem à noite — disse ele.
Estremeci, sentindo pouco orgulho ao ouvir o elogio, os gritos
agonizantes dos meus alvos ainda a ecoar na minha mente.
— Acredita em alguma coisa do que aquele tritão disse? Sobre o Rei
Yanzheng trair os dragões?
— Não — respondeu num tom firme, com uma certeza tal que parte da
minha apreensão desapareceu. — A reverência do rei pelos dragões é bem
conhecida. Além disso, os dragões não eram uma ameaça para ele.
— Então, porque acreditam os tritões no governador? — perguntei.
— Isso é um mistério. O Governador Renyu tem todas as características
de um tirano e as suas ações impiedosas de ontem à noite apenas
confirmaram essa suspeita. É possível que tenha conseguido um apoio tão
forte apenas porque os tritões têm vivido em isolamento há tanto tempo. —
E acrescentou soturnamente: — Parecem acreditar em tudo o que ele diz.
Levei à boca uma colherada de caldo de arroz, os grãos cozinhados até
ficarem macios como seda, o sabor com notas de frango e ervas aromáticas.
Mastiguei metodicamente, enquanto outra pergunta pairava na ponta da
língua, uma pergunta que hesitava em fazer. Quando ergui o olhar, reparei
que o Capitão Wenzhi não tocara na sua taça.
— Que mais a preocupa? — quis ele saber. — As dúvidas estão escritas
na sua cara.
Pousei a colher de porcelana e virei-me para ele.
— Teria sido capaz de o fazer? Todas as coisas que disse... até exilar os
tritões para o deserto?
— Acha que eu teria sido capaz?
A sua expressão era grave e, por algum motivo, senti que a minha
resposta era importante para ele.
Não, quis dizer, mas insisti.
— Ontem, falou de decepar membros e esfolar pele tão facilmente,
como se falasse a sério.
Nenhuma batalha estava isenta de crueldade, mas parecia-me errado
fazer algo semelhante a um inimigo capturado. Indefeso.
— Há partes do meu trabalho que não me agradam — admitiu ele em
voz baixa. — E o que viu ontem é uma delas. Nem tudo é tão linear como a
lâmina de uma espada. Não me orgulho do que disse, mas calculo que, se
não o tivesse dito, o Príncipe Yanming teria sido raptado. Centenas de
soldados teriam morrido em combate. O Rei Yanzheng teria sido
assassinado, juntamente com o seu novo amigo, o Príncipe Yanxi.
Fiquei surpreendida com o seu tom cáustico. Contudo, as outras
palavras do Capitão Wenzhi fizeram eco dentro de mim. Como bem sabia,
por vezes dávamos por nós em situações em que éramos forçados a enganar
contra a nossa vontade, os nossos princípios e os nossos sentimentos.
Ele continuou, como se fosse um alívio desabafar aqueles pensamentos.
— O tritão não queria saber da sua própria segurança; ameaças contra
ele teriam sido ignoradas. Mas as vidas da sua família e dos seus amigos,
isso não trataria de forma tão leviana. — Um sorriso tenso surgiu-lhe nos
lábios. — E ajuda que o Imperador Celestial não tenha fama de
misericordioso.
Como eu bem sabia. Estremeci ao recordar o olhar gélido do imperador,
o terror que me envolvia só de o ver. Não duvidava que eliminaria aqueles
que considerasse uma ameaça.
— Obrigada por me dizer isso.
Estava a ser sincera. Ele não precisava de se explicar, o facto de o fazer
era um sinal de confiança.
— Obrigado por me ouvir — respondeu em voz baixa. — Espero que
consigamos sempre falar assim. Que partilhe sempre comigo quaisquer
preocupações que tenha.
Pegou então na taça, apesar de o caldo ter ficado frio. Não falámos
durante o resto da refeição, mas comi com apetite renovado, aliviado o
fardo na minha consciência.
Quando eu e o Capitão Wenzhi chegámos ao Palácio de Coral
Fragrante, um servo conduziu-nos até uma sala no último andar. As janelas
abriam para o mar azul, sem limites e sempre a mudar. Cadeiras de pau-rosa
estavam dispostas à volta de uma mesa grande, talhada a partir de uma só
peça de madeira. O Príncipe Yanxi e seis outros imortais estavam sentados à
mesa, embrenhados numa discussão acesa.
Dispensando cortesias, o príncipe apresentou-nos rapidamente aos
comandantes na sala.
— Os tritões nunca se atreveram a atacar o palácio — declarou com
uma expressão sombria. — Só o fazem agora porque acreditam que o seu
exército é suficientemente forte para nos enfrentar. O que significa que
estamos a ficar sem tempo.
O Capitão Wenzhi sentou-se numa cadeira e fez-me sinal que fizesse o
mesmo. Um servo apressou-se a encher-nos as taças com chá.
— Também podem estar a tentar provocar uma retaliação precipitada —
avisou.
O Príncipe Yanxi assentiu secamente.
— Seremos cautelosos. Contudo, se permitirmos que o Governador
Renyu nos ataque sem repercussões, isso apenas o vai encorajar.
O seu olhar cruzou-se com o meu através da sala.
— O argumento da Arqueira-Mor sobre garantir que a batalha é travada
em terra firme é crucial. Os tritões prefeririam certamente levar a luta para
debaixo de água, onde são mais fortes.
O Capitão Wenzhi apertou as mãos por cima da mesa.
— Orquestrar o confronto permitir-nos-ia escolher o campo de batalha.
Disseram que os tritões fazem saques em terra. Há outro motivo que os
traga para terra firme?
— Nenhum que saibamos — respondeu o Príncipe Yanxi.
— Então, temos de os atrair até nós. O que podemos usar como isco? —
perguntou o Capitão Wenzhi, num tom determinado.
Alguns generais remexeram-se nas cadeiras, desconcertados pela
sugestão. Dei um gole no meu chá para soltar o aperto que sentia na
garganta.
— Terá de ser algo que leve o Governador Renyu a liderar pessoalmente
o ataque. Isto só vai funcionar uma vez — acrescentei rapidamente, antes de
perder a coragem.
— Concordo. O governador alguma vez liderou um ataque? —
perguntou o Capitão Wenzhi.
— Não. Ele é poderoso, mas muito cuidadoso — respondeu o Príncipe
Yanxi.
O Capitão Wenzhi soltou um suspiro.
— Posso falar com franqueza, Vossa Alteza? — Após um aceno do
Príncipe, Wenzhi continuou: — Itens mágicos ou tesouros podem não ser
suficientes para o aliciar a arriscar a pele. Contudo, agora sabemos que o
Príncipe Yanming é essencial para o plano do governador.
O Príncipe Yanxi levantou-se abruptamente, arrastando a cadeira para
trás.
— Quer que eu use o meu irmão como isco? — bradou.
O Capitão Wenzhi não estremeceu, parecendo indiferente à fúria do
príncipe.
— O seu irmão será posto a salvo ao primeiro sinal de perigo. Só
precisaremos dele para atrair o governador até à nossa armadilha.
O Príncipe Yanxi deitou-lhe um olhar zangado.
— Como pode garantir a sua segurança?
Lembrei-me do jovem príncipe na noite anterior, como segurara com
força a mão da mãe e escondera a cara contra o seu ombro. Recordou-me de
como eu abraçara a minha mãe nos momentos em que tivera mais medo,
quando quase me afoguei, quando soube que tinha de partir de casa.
Algo endureceu dentro de mim, uma voz que se ergueu pela minha
garganta para dizer:
— Eu protejo o Príncipe Yanming.
Todas as cabeças se viraram para mim, surpresa e ceticismo claramente
visíveis nos seus rostos. Eu própria não podia crer; até àquele momento,
essa não era a minha intenção.
Apenas o Capitão Wenzhi sorriu.
— Será a guarda perfeita para defender Sua Alteza. Eu também o vou
proteger. Não o podemos rodear com mais guardas do que o normal, não
sem levantar suspeitas.
Deixei-me cair na cadeira, aliviada por não ser mais o centro das
atenções. Ou seria devido à sua proposta de ficar de vigia comigo?
A expressão do Príncipe Yanxi suavizou um pouco quando se sentou.
O Capitão Wenzhi prosseguiu, sempre rápido a pressentir uma
oportunidade.
— Este plano vai funcionar. Depois do ataque de ontem à noite, o
Governador Renyu deve ter consciência de que é praticamente impossível
raptar o príncipe no palácio. Podemos espalhar o rumor de que o Príncipe
Yanming vai partir brevemente para o Reino Celestial, para sua segurança.
Só precisamos que Sua Alteza apareça na praia, para convencer o
governador da sua presença. Eu e a Arqueira-Mor Xingyin vamos estar ao
seu lado o tempo todo. Se isto não atrair o Governador Renyu, nada o fará.
Um general encorpado com cabelo castanho-claro franziu a testa.
— Sua Alteza costuma ser acompanhada apenas pela ama e por um
guarda. Além disso — acrescentou, corado, deitando-me um olhar furtivo
—, não temos mulheres no nosso exército. A presença da Arqueira-Mor não
vai deixar o inimigo desconfiado?
A observação astuta foi recebida com silêncio. O Capitão Wenzhi
apoiou o queixo nos dedos cruzados e olhou para mim.
— A Arqueira-Mor Xingyin pode disfarçar-se de Dama Anmei, a ama
do príncipe.
Fiquei paralisada, suprimindo um protesto instintivo. Como poderia
convencer alguém de que eu era a dama elegante do banquete? Pelos vistos,
a minha opinião era partilhada por muitos dos presentes, pois os generais
trocaram olhares incrédulos, mas pareciam ser demasiado educados para
expressarem as suas dúvidas em voz alta.
O Capitão Wenzhi não sentia tais escrúpulos.
— Sei que ela não se parece nada com a Dama Anmei, mas com as
roupas certas e uns acessórios, alguma pintura facial...
— Capitão Wenzhi, agradeço a sua confiança em mim — interrompi,
contendo uma explosão de irritação ao ouvir os seus comentários frívolos.
A expressão do Príncipe Yanxi mantinha-se soturna.
— O meu irmão será levado para longe do local antes de começarem os
combates.
Era uma exigência, não uma pergunta.
O Capitão Wenzhi inclinou a cabeça.
— Claro.
O príncipe falou então para mim.
— Isto seria ainda mais arriscado do que a noite de ontem. O
Governador Renyu é perigoso e imprevisível. Seria o alvo dos ataques do
inimigo e, para evitar suspeitas, não poderia estar armada nem usar a sua
magia, pelo menos até o governador cair na armadilha. Apesar de sentir
confiança na nossa vitória, ninguém pode saber ao certo o resultado de
qualquer confronto. Temo pela sua segurança se chegarem até si e não
encontrarem o meu irmão a seu cargo.
A sua candura e preocupação tocaram-me.
— Vossa Alteza, tomarei conta do vosso irmão e de mim — garanti.
Ele assentiu, olhando para os rostos à volta da mesa.
— Muito bem, vamos prosseguir. Mas precisamos de algum tempo para
fazer os preparativos e plantar a informação junto das fontes certas. Seria
prudente se pudesse passar algum tempo com o meu irmão nos próximos
dias. Para o nosso plano funcionar, ele precisa de se sentir à vontade
consigo.
Senti um aperto no estômago. Apesar de reconhecer o bom senso da sua
sugestão, nunca passara muito tempo com crianças.
Depois da reunião, o Capitão Wenzhi e eu seguimos o príncipe até aos
aposentos do irmão. Ao ver-nos, a Dama Anmei ergueu-se e fez uma vénia,
com o vestido de brocado verde a roçar o chão. Ao perto, era ainda mais
bonita do que me lembrava. Corou ligeiramente quando viu o Capitão
Wenzhi, mas foi a vénia elegante que Wenzhi lhe fez que me deixou a
morder o lábio por algum motivo inexplicável.
Em seguida, avançou o Príncipe Yanming e fez uma vénia perfeita ao
irmão. Quando me foi apresentado, não deu qualquer sinal de me
reconhecer da noite anterior. O Príncipe Yanxi não perdeu tempo a puxar a
Dama Anmei para o lado para lhe falar num tom sussurrado. Sem mais
palavras, saíram do quarto com o Capitão Wenzhi.
— Para onde foi a Dama Anmei? Quem é você? — quis saber o
Príncipe Yanming.
O seu rosto era redondo e macio, apesar do queixo desafiador.
Baixei-me para o fitar nos olhos, de um azul semelhante aos do irmão.
— A Dama Anmei teve de sair por um bocadinho, mas volta daqui a
pouco. Vou ficar convosco até ela voltar.
O príncipe apertou os lábios.
— Sabe jogar algum jogo?
— Que tal weiqi? — propus, vasculhando o quarto à procura do
tabuleiro com as pedras pretas e brancas.
Ele estremeceu.
— Sabe cantar? Desenhar? Fazer animais de papel? — tagarelou.
Abanei a cabeça, desanimada.
— É a pior ama que alguma vez vi.
Então, cruzou os braços num gesto rebelde. Deitei-lhe um olhar
zangado, irritada pelas suas palavras.
— Bom, não sou a vossa ama e estais a ser muito rude. Se fosseis um
pouco mais educado, talvez vos ensinasse algumas das coisas excitantes que
sei fazer.
Ele cerrou ainda mais os olhos e franziu a boca como uma uva passa.
Preparei-me para birras e lágrimas, pensando em como Shuxiao, com o seu
charme natural, teria estado bem mais preparada para aquele desafio em
concreto. Mas então ele assumiu uma pose digna e perguntou:
— Então, o que sabe fazer?
Puxei pela cabeça, tentando lembrar-me de algo para lhe dizer que lhe
prendesse a atenção, algo para justificar a minha bravata precipitada.
— Sei tocar flauta — sugeri, não com pouco orgulho.
Ele bufou impacientemente e revirou os olhos, pouco impressionado
com uma das minhas melhores aptidões.
— Li montes de livros — acrescentei rapidamente. — Posso contar-lhe
histórias!
Um interesse súbito iluminou-lhe o rosto.
— Sobre os dragões?
— Sobre os Quatro Dragões e como trouxeram chuva para o Domínio
Mortal.
Fiquei aliviada por finalmente ter conseguido prender-lhe a atenção.
Fora uma das minhas lendas favoritas quando era criança, uma história com
mais verdade do que suspeitava.
— Aquela em que os dragões são punidos pelo chato do Imperador
Celestial? É a pior delas todas!
Antes que me conseguisse conter, ronquei uma risada ao ouvir a
descrição irreverente do imortal mais poderoso em todo o domínio.
Os cantos dos lábios do príncipe curvaram-se ligeiramente para cima.
— Que mais sabe fazer?
A animosidade desaparecera-lhe da voz. Devolvi-lhe o sorriso.
— Sei atirar flechas. E lutar com uma espada.
O rosto dele iluminou-se enquanto me puxava pelo braço até uma
enorme arca repleta de espadas de madeira e escudos.
— O Irmão Mais Velho diz que sou demasiado novo para aprender. Mas
vai ensinar-me, não vai? — pediu avidamente.
Impotente perante tanto entusiasmo, assenti debilmente, esperando que
o Príncipe Yanxi me perdoasse aquela transgressão.
Quando a Dama Anmei e o Capitão Wenzhi finalmente regressaram,
estávamos embrenhados numa batalha a fingir, saltando por cima dos corais
no jardim, as nossas espadas de madeira a chocarem uma com a outra. Ao
vê-los, larguei apressadamente a espada e alisei o cabelo despenteado.
— Vossa Alteza, está na hora de dormir — disse a Dama Anmei, num
tom firme.
O Príncipe Yanming deixou descair os ombros, mas deu-lhe a mão.
— Vem visitar-me amanhã? — perguntou-me.
Algo desabrochou dentro de mim ao ouvir a esperança na sua voz.
— Sim. Gostaria muito.
O céu escurecera quando regressámos à costa. Em vez de comer com o
Capitão Wenzhi na sua tenda, comi com os outros soldados. Por algum
motivo, nessa noite não desejava a sua companhia.
Estava nervosa, tensa. Depois da refeição, caminhei pela praia e subi
para uma pedra grande. Ver as ondas a atirarem-se contra a costa com um
abandono imprudente acalmou o meu nervosismo. A pedra áspera fez
pressão contra as minhas costas assim que me deitei a olhar para o céu.
Quando a lua brilhava tão intensamente como naquele dia, sabia que a
minha mãe acendera as mil lanternas e a dor constante no meu coração
atenuava-se ligeiramente. Ao imaginá-la a abraçar-me, com a sua cara
fresca encostada à minha, um sorriso passou-me pelos lábios.
Passos aproximaram-se, quase abafados pela rebentação das ondas.
— Gosta de olhar para a lua — comentou o Capitão Wenzhi, algures
atrás de mim.
— É uma vista melhor do que muitas.
Não me dei ao trabalhar de levantar. Era rude da minha parte, mas não
estava com paciência para cortesias. Quando ele subiu a rocha ao meu
encontro, apoiei-me nos cotovelos e deitei-lhe um olhar zangado.
— Quer sair daqui?
Fiz um esforço por manter a voz estável.
— Não.
— Então, saio eu.
Encostei a palma das mãos à rocha para deslizar para baixo, mas ele
cobriu-me a mão com a dele, tão firme como a pedra por baixo da minha
pele.
— Porque está zangada? — perguntou, soando confuso.
Soltei a minha mão e abracei os joelhos. Na verdade, não sabia a causa
daquela sensação estranha sempre que olhava para ele.
— Foi por eu ter sugerido que se vestisse como a Dama Anmei? —
arriscou.
A memória das suas palavras descuidadas magoou-me.
— Não se preocupou minimamente comigo quando disse isso.
Wenzhi franziu a testa, surpreendido.
— Tem medo? — perguntou, entendendo mal o que eu queria dizer. —
É perfeitamente capaz de tomar conta do príncipe e de si, mesmo sem armas
ou magia. E se não me preocupasse consigo, ter-me-ia oferecido para ficar
de vigia ao seu lado?
— Não tenho medo.
— Então, qual é o motivo deste mau humor?
A sua voz era tão suave como a brisa da noite.
— Sei que admira a Dama Anmei e que não sou tão bonita nem tão
elegante como ela. Mas... não foi agradável ouvi-lo em voz alta.
Senti-me a corar com a recordação desse momento.
— Eu admiro a Dama Anmei? Se fui atencioso com ela, foi apenas
porque isso a parecia irritar a si. — Pôs então um sorriso malicioso, mas
voltou rapidamente a ficar sério. — Porque quereria parecer-se com ela?
Porque quereria um falcão tornar-se um rouxinol?
A minha pulsação acelerou. Não sabia porquê, sabia apenas que me
sentia subitamente insegura. Com vontade de fugir e, contudo... querendo
ficar.
— Capitão Wenzhi...
— Só Wenzhi.
Os seus olhos fitaram os meus.
Sem saber como, percebi que era um momento de grande importância
para ele, um sinal de confiança que não oferecia com facilidade.
O meu desejo covarde de fugir desapareceu. Tratava Shuxiao pelo
nome, mas éramos boas amigas. Pares. Sempre o tratara por “Capitão
Wenzhi”, tal como ele sempre me tratara por “Arqueira Xingyin” —
qualquer outra forma de tratamento teria sido impensável. Tínhamos
troçado um com o outro, até discutido, mas aquilo seria uma travessia para
território desconhecido, afastando mais uma barreira entre nós. Uma que,
descobri, não me importar minimamente de dispensar.
— Wenzhi — repeti lentamente, pouco habituada a dizer o seu nome
sem o título.
Um sorriso apareceu-lhe nos lábios, quase impercetível no escuro.
Os últimos vestígios de desconforto desapareceram, substituídos por
uma trepidação calorosa. Não voltei a falar e ele também não. Juntos,
ficamos sentados na rocha num companheirismo silencioso, as ondas a
rebentar na costa como único som.
A lua ergueu-se mais alto. O seu brilho cintilava na água, os fragmentos
de mil pedaços de prata refletidos na superfície. A brisa arrefeceu-me a pele
enquanto o calor no meu peito percorria as veias, como se estivesse
embriagada com vinho.
Os dias seguintes passaram a voar, crivados de ansiedade... contudo,
também foram dias felizes. Ensinei o Príncipe Yanming a segurar uma
espada e deixei-o vencer-me sempre que lutávamos. Ele mostrou-me como
fazer animais de papel e cantámos músicas patetas que inventámos juntos.
Quando ele descobriu que eu só sabia uma única história sobre os seus
queridos dragões, foi buscar os seus livros e, juntos, lemos como os dragões
salvaram os tritões dos monstros marinhos, como purificaram as águas
quando uma massa de alforrecas venenosas contaminou o oceano. Não era
de admirar que a ausência destas criaturas deixasse um tal vazio no Mar do
Leste. E quando Yanming atirou os braços à volta do meu pescoço,
apertando-me com força, senti um calor a desabrochar dentro de mim.
Yanming conseguira penetrar a muralha à volta do meu coração e tornar-se
o companheiro de infância que nunca tivera, o irmão que nunca soubera
querer.
Cedo de mais, chegou o dia da nossa artimanha. Estava sentada num
quarto com Wenzhi, enquanto duas servas do palácio se atarefavam comigo,
ajudando-me a transformar na Dama Anmei.
— Podes tentar agir de forma reservada e gentil? — sugeriu Wenzhi. —
Dá passos pequenos quando andas. O teu olhar deve ser mais suave. A
Dama Anmei é uma flor delicada, podes tentar não ser...
— Um espinho? — retorqui, com os nervos em franja.
Durante a última hora, Wenzhi dera-me lições sobre o comportamento
que devia emular. Deitei-lhe um sorriso enganadoramente doce.
— Talvez o capitão devesse vestir-se de Dama Anmei, já que conhece
tão bem todos os seus maneirismos.
Uma das servas soltou um riso abafado, rapidamente disfarçado.
Os olhos de Wenzhi estreitaram-se com humor, mas prosseguiu como se
eu não tivesse falado.
— Tenta parecer um pouco nervosa ou receosa. Nem toda a gente tem a
tua confiança.
Virei-me para ele, desfazendo os esforços de uma serva que tentava
prender uma flor dourada no meu cabelo.
— Desde que te conheci, tive medo mais vezes do que em toda a minha
vida. Quem não teria, crivada de dardos, chamuscada por fogo, atacada por
monstros?
— Se tiveste medo, mantiveste a cabeça em cima dos ombros. A maior
parte do tempo.
Então, sentou-se e desenrolou um rolo feito de tiras de bambu, cada uma
repleta de caracteres minúsculos e presa com seda. Em tempo nenhum,
ficou embrenhado na sua leitura como se tivesse esquecido de que eu estava
ali.
A sua indiferença incomodou-me, mais do que devia. Olhei para o
espelho e uma desconhecida fitou-me de volta. As servas tinham delineado
as minhas sobrancelhas em arcos delicados, polvilhado a minha cara com
pó de rosas e pintado os meus lábios da cor do coral. O meu cabelo estava
preso em anéis macios, adornados com joias em forma de flor, de onde
pendiam fiadas de contas de turquesa. A seda lilás do meu vestido estava
bordada com conchas coloridas e algas, uma faixa carmesim cingia a
cintura. Um quimono aberto de cetim azul caía até aos pés, calçados com
chinelos de brocado dourado.
As servas elogiaram-me, dizendo-me como estava bonita, antes de
saírem do quarto.
— Estás pronta?
Uma nota de impaciência vibrou na voz de Wenzhi quando se virou para
mim.
No silêncio súbito, dei por mim a suster a respiração.
— Estás diferente — disse ele por fim. — Mas alguém como tu não
precisa de todos estes... enfeites.
— Enfeites? — repeti, dividida entre o riso e a humilhação. — Posso
lembrar-te de que a ideia foi tua?
Ele encolheu os ombros.
— É uma boa ideia, mas não disse que me agradava.
Não era um elogio, mas a intensidade do seu olhar lançou-me um
arrepio pelo corpo, como uma brisa fresca a deslizar sobre a minha pele.
Antes que pudesse responder, ele pegou no rolo de bambu e retomou a
leitura. Quando me levantei para procurar um livro para mim, tropecei na
bainha do quimono.
Wenzhi levantou-se num salto para me amparar, os seus dedos a
fecharem-se sobre os meus braços. Uma luz cintilava-lhe nos olhos e o meu
coração batia como se tivesse corrido uma grande distância. Mas aprendera
que tais sentimentos eram perigosos e que as feridas que podiam infligir
eram mais dolorosas do que os golpes de uma espada.
Recuei, desviando o olhar. Ele deixou cair os braços e um silêncio
embaraçado desceu sobre nós.
Felizmente, o Príncipe Yanming chegou pouco depois. Ao ver-me,
desatou à gargalhada, esbatendo o meu breve orgulho na minha aparência.
— Está a usar as roupas da Dama Anmei!
— Hoje, ela é a Dama Anmei — lembrou Wenzhi, num tom severo. —
Recordai o que o vosso irmão vos disse, Vossa Alteza.
A alegria desapareceu do rosto do Príncipe Yanming enquanto assentia,
com o corpo a tremer ligeiramente. É claro que tinha medo, sabendo que ele
e aqueles que amava estavam em perigo.
Baixei-me e segurei-lhe o ombro.
— Não vos preocupeis — disse-lhe. — É um bocadinho perigoso, mas
ficareis a salvo. O vosso irmão está à espera na selva com os seus guardas e
não vamos deixar que nada vos aconteça.
Yanming mordeu o lábio.
— E a si? Também não quero que lhe aconteça nada.
— E nada vai acontecer — prometi, limpando o suor da mão antes de a
estender. — Tomarei conta de nós.
Uma expressão curiosa passou pelo rosto do príncipe.
— Mas... não luta muito bem. Venci-a sempre e só comecei a aprender
agora.
Wenzhi conteve a custo uma risada e deitei-lhe um olhar zangado.
— Não vos preocupeis — disse ao Príncipe Yanming, que ainda franzia
a testa. — Sou bem melhor com o arco.
Juntos, caminhámos em silêncio do palácio até à costa. Uma tenda
grande fora erigida para nosso uso, longe do mar. Um alvo visível para as
forças do Governador Renyu, um alvo que esperávamos ser irresistível.
Assim que entrámos e a aba da tenda se fechou, comecei a esconder armas,
arcos e aljavas à volta da tenda.
A seguir, demos um longo passeio pela praia, o sol do meio-dia a bater
sobre nós. Os residentes tinham sido evacuados para um sítio seguro,
deixando soldados celestiais disfarçados no seu lugar, enquanto o Príncipe
Yanxi e o seu exército se escondiam na selva junto à praia. Sem largar a
mão do Príncipe Yanming, analisava a envolvente à procura de sinais de
perigo. Contudo, não havia perigo à vista, o mar estava tranquilo e límpido.
Pouco depois de regressarmos à tenda, o Príncipe Yanming adormeceu,
talvez exausto com a tensão daquele dia. Tapei-o com um cobertor,
observando o peito a subir e a descer, e a serenidade do seu rosto tocou-me
profundamente. Mantê-lo-ia a salvo, prometi silenciosamente, acontecesse o
que acontecesse. Procurando em redor algo para me distrair, encontrei
alguns livros e um tabuleiro de weiqi preparado num canto, as peças pretas
e brancas a luzir convidativamente. Mas não estava com disposição para
nenhum deles. Esperar pelo ataque deixava-me os nervos em franja, ao
contrário de Wenzhi, que estava sentado numa cadeira a ler o seu rolo com
uma calma imperturbável.
Fui tomada por um impulso de perturbar a sua concentração.
— Quando vieste para o Reino Celestial? — perguntei.
— Há algum tempo.
Sem me deixar desencorajar pela resposta curta, insisti.
— De qual dos Quatro Mares vieste?
Ele ergueu a cabeça e fitou-me atentamente.
— Porquê o súbito interesse?
Soltei um suspiro.
— Não há muito que fazer aqui a não ser conversar. Infelizmente, a
escolha de companhia é um pouco limitada.
— Porque não falamos de ti? — sugeriu ele. — De onde vens?
— Do Mar do Sul.
Apanhada de surpresa, disse a primeira coisa que me veio à mente, a
história de disfarce que combinara ao partir do lar.
— Do Mar do Sul — repetiu ele lentamente, pousando o rolo. — E, no
entanto, nunca viste o oceano?
Senti o rosto a corar. Felizmente, estava coberto com uma camada de
pó.
— Parti quando era pequena e não me lembro de grande coisa. E a tua
família?
Estava ansiosa por afastar a conversa de mim.
Ele ficou em silêncio por um bom bocado.
— Tenho parentes no Mar do Oeste, mas não os vejo há muito tempo.
As minhas responsabilidades mantêm-me ocupado.
— Tens saudades deles? — perguntei, pensando na minha mãe.
— De uns mais do que de outros — respondeu, com um sorriso tenso.
Voltou a pegar no rolo, um sinal de que a nossa conversa chegara ao
fim. Encontrara finalmente alguém tão reticente quanto eu. Teria pouca
disposição para falar da sua família porque o Mar do Oeste aliara-se ao
Reino Infernal durante a guerra? Talvez fosse prudente não recordar isso
aos demais. Apesar de o Reino Celestial estar agora em paz com os Quatro
Mares, as memórias imortais eram longas. Abri a boca para fazer outra
pergunta, mas hesitei. Nem toda a gente tinha um passado tão idílico como
um passeio num campo ensolarado. Todos temos os nossos recantos que
preferimos deixar nas sombras.
O sol desceu para o horizonte e continuávamos sem sinal dos tritões.
Teria o nosso plano falhado? Seria o Governador Renyu demasiado ardiloso
para cair na nossa cilada?
— Quanto tempo mais temos de ficar aqui? Não podemos ir embora?
Talvez o governador não venha.
O Príncipe Yanming estava irrequieto desde que acordara, pouco
habituado a estar confinado. Olhei de relance para Wenzhi.
— Vamos dar mais um passeio lá fora? Para reafirmar que ainda
estamos aqui?
— Podem estar à espera do cair da noite para atacarem. Os tritões veem
bem no escuro — respondeu Wenzhi.
— E se fizermos correr o rumor de que o Príncipe Yanming partirá em
breve? Os guardas e servos podem fingir os preparativos enquanto
passeamos perto da água. A seguir, Sua Alteza pode ser escoltada para um
local seguro.
O perigo aumentava a cada momento que passava. Contudo, seria
melhor provocar a entrada dos tritões em ação do que deixar que o seu
plano se desenrolasse como pretendiam.
Wenzhi assentiu, chamando um guarda para lhe dar instruções. Antes de
sairmos da tenda, deu-me um punhal pequeno com um cabo de prata.
— Mantém isto contigo a todo o momento.
Aceitei o punhal, prendendo-o na faixa, escondido sob o quimono. Era
mais um ornamento do que uma arma, mas era tudo o que tinha para me
defender. Não, lembrei a mim mesma. Ainda tinha os meus poderes e,
mesmo desarmada, não estava indefesa.
O oceano estava agora agitado, as águas verde-acinzentadas e
turbulentas. Ondas coroadas de espuma erguiam-se alto e rebentavam sobre
a costa. Soltando-se da minha mão, o Príncipe Yanming correu à minha
frente. Persegui-o para dentro de água, encharcando chinelos e vestido.
Uma sombra escura tombou sobre nós, como se tivesse caído a noite, e
um terror frio apertou-me a boca do estômago. Acima de nós erguia-se um
polvo enorme que tapava o próprio sol. Tentáculos gigantes, cada um com o
dobro do comprimento de um homem adulto, chicoteavam em redor,
batendo na água e alagando a praia. Montado na criatura estava um
guerreiro de armadura opalescente que lhe chegava aos joelhos e deixava os
braços destapados, com uma coroa de coral vermelho entretecida no cabelo.
Ao pescoço luzia um medalhão grande, um disco de ouro a rodear uma
pedra amarela e brilhante. Numa mão segurava uma lança e na outra um
escudo coberto de picos afiados. Os olhos eram pálidos como glaciares, e
quando se fixaram em mim, fiquei paralisada.
O Governador Renyu.
Wenzhi gritou um aviso e os lábios do governador curvaram-se num
sorriso cruel. O polvo estava quase em cima do Príncipe Yanming!
Correndo pela água adentro, agarrei-o e segurei-o com força enquanto
fugíamos da maré enchente. Um tentáculo atacou-me pelas costas e cortou-
me na perna. Contive um grito, forçando-me a avançar pela corrente
tumultuosa, enquanto a água do mar lavava o sangue da ferida. Assim que
chegámos à praia, a água encheu-se de milhares de alforrecas trémulas, com
tentáculos translúcidos cobertos de espigões venenosos.
Os tritões surfavam a cristã das ondas, rugindo enquanto irrompiam pela
praia. Em resposta, os homens do Príncipe Yanxi soltaram um grito e saíram
da selva. Os soldados celestiais despiram os disfarces, a armadura a reluzir
com o sol da tarde. Uma tensão súbita rasgou o ar, brilhando e tremendo
com as energias dos guerreiros, quando os exércitos colidiram.
Raios de fogo e gelo foram arremessados contra escudos erguidos à
pressa. Espadas chocaram estrepitosamente, soando através da areia revolta.
O Príncipe Yanming tremia nos meus braços enquanto corríamos para a
tenda. Mas quando gritos agoniantes chegaram até nós vindos de trás, parei
e dei meia-volta. O que vi apertou-me o coração. O polvo gigante envolvia
soldados celestiais com os tentáculos e arremessava-os para o oceano, onde
alforrecas venenosas os rodeavam e arrastavam sob as ondas. Wenzhi
gritou-lhes que recuassem para terreno mais elevado, mas as palavras
perdiam-se no caos. A sua energia irrompeu numa explosão de luz,
solidificando num escudo alto ao longo da costa.
Contudo, a área era demasiado extensa e a sua magia ficou demasiado
estendida. Flanqueado por vários guerreiros, o Governador Renyu ergueu a
mão e luz azul-clara atingiu a barreira. Uma vez, duas vezes, outra e outra
vez, até que, por fim, o escudo de Wenzhi se desfez em pedaços. A minha
vontade era pegar numa arma, mas se me livrasse do meu disfarce, o
governador podia pressentir a armadilha.
Os tritões prosseguiram com o ataque, agora com entusiasmo, enquanto
os nossos soldados dispersavam como folhas sopradas pelo vento. Wenzhi
tremia, nunca o vira tão perturbado, tão ansioso, furioso e frustrado.
— Vai — encorajei-o. — Não precisas de ficar connosco. Eu tomo
conta do Príncipe Yanming.
Ele parou, com o olhar fixo na carnificina.
— O que vais fazer?
— Fico dentro da tenda. Lá ficaremos seguros.
Sem esperar pela sua resposta, afastei-me com o Príncipe Yanming.
Vários soldados esperavam dentro da tenda para o escoltar para segurança.
Mas quando o tentaram separar de mim, ele agarrou-me com força.
— Não vem comigo? — perguntou, com a voz a tremer.
Fiz-lhe uma festa na cara com um dedo.
— Vossa Alteza, precisais de partir agora. Vosso irmão aguarda por vós.
Juntar-me-ei a vós brevemente.
— Promete?
Hesitei por um instante antes de assentir. Detestava mentir-lhe, mas se o
governador desse com a tenda deserta, poderia partir antes que o
conseguíssemos deter. Cada momento que comprasse com aquela farsa
aumentava as hipóteses de o capturarmos.
O meu coração batia com força quando vi o Príncipe Yanming e os
soldados saíram pelo fundo da tenda, desaparecendo para a segurança da
selva. Só então soltei alguma da minha tensão. Sentei-me para esperar,
agitada por não poder fazer nada enquanto lá fora sangue manchava a areia.
Esperávamos encurralar o Governador Renyu, mas ele apanhara-nos
desprevenidos com a ferocidade do seu ataque e os monstros marinhos às
suas ordens.
Despindo o quimono encharcado, peguei num arco e numa aljava,
colocando-os em cima de uma mesa ao meu alcance. Parte de mim queria
tapar os ouvidos para abafar o choque das armas, os gritos e os gemidos.
Quanto mais daquilo aguentaria? Quando um grito agudo irrompeu pelo ar,
corri para a entrada... e parei abruptamente quando uma forma frouxa
tombou contra as paredes da tenda.
A aba da tenda abriu-se. Um vulto ergueu-se à entrada. Recuei um
passo, o corpo hirto de ansiedade.
— Deve ser a Dama Anmei.
O Governador Renyu saudou-me com uma vénia trocista.
— Os rumores da sua beleza não eram exagerados.
A sua aura enchia o ar, pressionando-me naquele espaço confinado;
forte, certamente, mas vacilante como uma maré inconstante. Teria um
controlo instável sobre o seu poder? Não tinha tempo para ponderar o
problema enquanto ele entrava, erguendo-se acima de mim; as partes
visíveis do seu corpo pareciam cordas de músculos. O olhar frio deu-me
arrepios, bem como o sorriso cruel e o sangue espalhado pela cara.
Corri para o arco em cima da mesa, mas ele atirou-o para fora do meu
alcance e arremessou-o para fora com uma gargalhada.
— Sabe como o usar?
Abanei a cabeça, afastando-me dele enquanto os meus dedos se
aproximavam do punhal escondido. Se tivesse o arco nas mãos, o
governador já teria uma flecha cravada no peito. Mas como naquele
momento ele tinha a vantagem, não revelaria o meu disfarce. Enquanto
acreditasse que eu era a Dama Anmei, talvez não me magoasse.
— Quem é? — perguntei, tentando desviar a atenção das minhas mãos.
— Não tem nada a temer. Só quero o pequeno príncipe. Ajude-me e será
bem recompensada. — O seu olhar vasculhou a tenda. — Onde está ele?
A sua voz era rica, grave, melodiosa... a voz mais bonita que alguma
vez ouvira. As minhas suspeitas esvaneceram-se, substituídas por uma
admiração calorosa. O Governador Renyu parecia ser honrado e gentil.
Porque fora tão maliciosamente difamado? O disco ao seu pescoço
refulgia com mais força, como os olhos de uma serpente a reluzir no escuro.
A imagem abalou-me e os meus instintos gritaram um aviso. Pestanejei
e afastei-me da promessa tantalizante das suas palavras, forçando-me a
ouvir os gritos no exterior. Subitamente, percebi como conseguia
influenciar os tritões. Havia magia na sua voz, o que levava outros a
acreditar nele. Viria do medalhão brilhante que trazia ao pescoço? Fosse o
que fosse, quase funcionara comigo, superando até a minha hostilidade.
Não era de admirar que os tritões lhe fossem tão leais, dispostos a arriscar a
vida para o proteger, a lutar por ele com base apenas na promessa das suas
palavras e na ilusão da sua honra. Mas nunca encontrara um poder assim.
Seria ele um infernal? Um dos temíveis Talentos da Mente?
Não me atrevia a deixar transparecer o meu medo. Ele esperava a minha
admiração, a minha obediência. Que eu me vergasse à sua vontade como
uma folha de erva ao vento. Arregalando os olhos para parecer inocente,
gesticulei para a cama onde o Príncipe Yanming dormira nesse dia. As
cobertas estavam enroladas perto da cabeceira da cama, dando a impressão
de um corpo pequeno por baixo.
— Está a dormir — disse-lhe.
A sua boca contorceu-se num sorriso cruel.
— Quando o Mar do Leste for meu, livro-me do pirralho e poderemos
governar juntos. Os outros reinos também cairão aos meus pés, Dama
Anmei, e será Rainha dos Quatro Mares.
Ele estendeu-me a mão, prometendo o que pensava que eu queria ouvir.
Senti a raiva a crescer em mim, ao ouvi-lo a falar assim do Príncipe
Yanming e dos seus planos desprezíveis, mas acolhi-a de bom grado, pois
fortalecia a minha vontade. Fitei a joia amarela que trazia ao peito. Ao
perto, um estranho poder emanava da joia, eriçando-me os pelos.
— O que o leva a pensar que vai vencer?
— Os tritões obedecem às minhas ordens, bem como as criaturas do
mar. Não tem nada a temer enquanto me tiver ao seu lado.
As suas palavras vertiam sobre mim como mel líquido, enquanto eu me
torcia por dentro. Como era tentador concordar com ele, merecer a sua
aprovação. Não, não podia sucumbir; não podia acabar como um dos seus
lacaios sem cérebro. Cravei as unhas nas palmas das mãos enquanto
invocava um surto de energia para os meus ouvidos, de forma a deixar de
ouvir. Envolta num silêncio súbito, mal conseguia ouvir a minha própria
respiração. Senti um aperto na barriga ao pensar em lutar com ele assim,
mas temia ainda mais cair sob o seu controlo.
Olhei fixamente para ele. Não haveria o raspar de um passo ou o silvo
de uma espada para me alertar. Um risco, mas necessário. Quando ele se
moveu para a cama, tirei o punhal da faixa à minha cintura e ataquei-o. Ele
virou-se para o lado e a lâmina cortou-lhe a cara. Sem hesitar, atirou-se para
diante, puxando as cobertas da cama e vociferando ao dar por ela vazia.
Virou-se imediatamente para mim, mas corri para o arco mais próximo,
assestando e soltando uma flecha na mesma respiração. Ele ergueu um
escudo e atirou-a para o chão. Soltei flecha atrás de flecha num ritmo
frenético, até os meus dedos doerem nos sulcos marcados nas suas pontas.
Ele era rápido, esquivando-se de cada flecha com uma velocidade
assombrosa. Quando os nós dos dedos da mão que segurava a lança ficaram
brancos, invoquei um escudo, mesmo a tempo de travar a sua arma.
A minha última flecha atingira-o no ombro. Saltei para uma nova aljava,
tão concentrada em apanhá-la que não senti a mudança no ar até algo me
golpear a perna, espalhando-se como fogo. Duas agulhas prateadas
erguiam-se da minha perna, prendendo à carne a seda do meu vestido,
manchada com um líquido esverdeado que já vira antes. Veneno de
escorpião-do-mar, a correr pelas minhas veias. O meu escudo desapareceu,
deixando-me tão desprotegida como um coelho preso numa armadilha, com
o caçador cada vez mais perto.
Ele arrepanhou os lábios, mostrando os dentes, mas tudo o que ouvia era
um zumbido ténue. Dissipei a magia que me tapava os ouvidos, até
conseguir ouvir o sussurro baixo. Tudo o que me restava agora para o
abrandar eram palavras.
— Covarde — sibilei, tentando adiar o fim inevitável, tentando
provocar um ato irrefletido. — Luta comigo sem truques.
— Os vencidos queixam-se e os vencedores... bom, os vencedores têm
coisas melhores para fazer.
Falava com uma complacência arrogante que lançava calafrios de medo
pela minha espinha.
O apelo da sua voz ainda lá estava, mas mais fraco; mal o conseguia
ouvir. Invoquei os meus poderes, debatendo-me para aguentar a agonia
ardente do veneno.
A joia ao seu pescoço brilhou como ouro batido pelo sol.
— Esse medalhão, é assim que controla os tritões? — perguntei, fitando
o medalhão. A minha voz soava como se viesse de muito longe. — Tal
magia é desprezível.
— Desprezível porque não a consegue usar? Porque a teme? — Ele
inclinou a cabeça para o lado, mas não acreditava que esperasse por uma
resposta. — Os tritões sempre albergaram suspeitas contra os imortais do
mar. Eu apenas ateei a faísca dos seus preconceitos, encorajei-os a pensar
como eu. Será assim tão diferente de encostar uma espada ao pescoço do
inimigo? Porque é uma vitória considerada honrosa e a outra não?
— Não é a mesma coisa — protestei. — Retirou-lhes a liberdade de
escolher, de formar a sua própria opinião. Compeliu-os a atos que
prefeririam morrer a cometer. — Fitei-o com um olhar de desdém, apesar de
me sentir a mirrar por dentro. — Mas nenhum encantamento é inquebrável.
Vai pagar caro quando eles se libertarem.
— A morte é a única libertação para aqueles sob o meu controlo.
Uma luz cruel brilhou-lhe nos olhos.
— Houve alguns que me irritaram com a sua incompetência, outros
eram demasiado difíceis de dominar. Mesmo antes de morrerem, essa
clareza moldou-lhes as feições. Raiva também, por terem sido enganados.
Tomou o seu fim ainda mais doce. Tal como será o seu.
A sua lança reluziu. Resistindo à dor, invoquei os meus poderes... mas
então o seu punho atingiu-me na cabeça. Fui envolvida pela dor e a minha
energia dispersou. Se pudesse mover os pés, teria fugido, mas nem sequer
consegui soltar um grito no torpor esmagador que tomava conta de mim.
As minhas flechas, ainda as tinha. Apesar de as minhas pernas estarem
imóveis como raízes, os meus braços continuavam livres, pelo menos
naquele momento, até o veneno se espalhar. Levei uma mão às costas,
tateando à toa na aljava. Quando consegui agarrar uma flecha, o governador
tirou-ma e partiu-a ao meio, cravando a ponta metálica na minha mão até
penetrar na carne. A agonia encheu-me a mente. Não conseguia gritar, mal
conseguia respirar. Com um esgar malicioso, tirou-me o arco da mão e
atirou-o para lá do meu alcance. Pegando na lança tombada, encostou-a ao
meu peito, exercendo pressão suficiente para quebrar a pele com a ponta
envenenada. Sangue assomou pela seda como um hibisco carmesim a
desabrochar. Soltei uma exclamação e o meu torso foi abanado por uma
convulsão antes de ficar paralisado. Pela curva nos seus lábios, percebi que
apreciava o meu sofrimento.
O meu coração sobressaltou-se, ferido de arrependimento. Voltaria a ver
a minha mãe e Ping’er? O rosto de Liwei passou-me pela mente, assim
como, estranhamente, o de Wenzhi. Uma dor lancinante percorreu-me as
veias, agora mais depressa, a minha respiração áspera e errática. Fechei os
olhos para bloquear o horror de estar completamente à sua mercê:
desarmada, envenenada e aprisionada. Não, disse a mim mesma, furiosa.
Ainda tenho o meu treino. Ainda tenho o meu pensamento.
Ainda tenho a minha magia.
Procurei acalmar-me, cerrando os maxilares até me doerem. O meu
poder voou ao meu encontro, um vendaval que irrompeu pela tenda,
empurrando-o para o chão. Algo caiu da sua cabeça, a coroa de coral
vermelho, os ramos desfeitos em pedaços.
Os seus olhos reluziram de choque, depois de raiva. Ergueu uma mão,
brilhando com a sua própria magia, mas eu era imparável, até mesmo
imprudente, e atirei uma torrente de encantamentos para cima dele, não me
atrevendo a permitir-lhe a oportunidade de retaliar. Rajadas de vento
vergastavam-no, laços de ar prendiam-no, labaredas de fogo queimavam-lhe
a pele antes de se apagarem. Se não estivesse incapacitada, enraizada
naquele sítio, poderia ter colapsado com o esforço. Nunca lutara assim,
confiando apenas na minha magia. Passou-me pela cabeça o aviso da
Mestra Daoming, de não drenar a minha energia, mas se parasse, morreria.
O governador não me mostraria misericórdia, não me daria uma segunda
oportunidade. Encostado às paredes da tenda, desviava todos os golpes até
ficar com a testa suada e a respiração tão ofegante como a minha. Um
orgulho feroz tomou conta de mim, por já não ser a presa que ele caçara.
Alguém apareceu à entrada. Wenzhi! Coberto de sangue, areia e poeira,
o seu rosto tenso de exaustão, ou seria fúria? Quando o Governador Renyu
se levantou, cambaleante, Wenzhi carregou sobre ele, espada a chocar com
lança. A boca do governador movia-se furiosamente, proferindo palavras
que eu não conseguia ouvir. O que estaria a dizer? E se Wenzhi caísse sob o
seu controlo?
— O medalhão!
O meu grito não passou de um sussurro rouco; não tinha força para
mais. Fui tomada pelo medo de não ser suficiente, de ele não me ter ouvido.
E o meu arco estava longe de mais, a minha magia quase esgotada. A minha
mão latejava de dor, ali o tempo todo, mas abafada pela agonia que me
percorria o corpo. Olhei para baixo e vi a ponta da flecha ainda cravada na
minha mão.
Um estrondo abafado soou quando Wenzhi atirou o governador para
cima de uma estante. O governador levantou-se e o medalhão luziu com
mais brilho. Um calafrio percorreu-me o corpo; a qualquer momento, podia
libertar o seu poder. Não me podia mover, nem sequer podia mexer um
dedo; o veneno incapacitara-me por completo. Contudo, não podia deixar
que Wenzhi caísse sob o controlo do governador. Arfando, invoquei energia
para formar uma corrente de ar, estreita, mas rápida e forte, que arrancou a
ponta da flecha da minha mão, arremessando-a sobre o governador. A
flecha acertou no medalhão, em cheio na joia. A joia amarela rachou e
perdeu toda a luz.
O Governador Renyu abriu a boca num grito repleto de raiva, mas soou
como um suspiro aos meus ouvidos. Estava a arder de dor, atordoada para
tudo o resto. Wenzhi girou com uma graça mortal, o seu pé a colidir com o
flanco do governador. Quando o governador cambaleou para trás, a lâmina
de Wenzhi golpeou-o nas costelas, rachando a escamas opalescentes da sua
armadura. A boca do governador abriu-se, muito redonda, e uma expressão
estranha passou-lhe pelo rosto. Seria choque? Incredulidade por o seu
encantamento ter falhado? O que quer que fosse, fiquei contente, uma
satisfação feroz a arder dentro de mim.
O Governador Renyu estava ofegante, os seus movimentos cada vez
mais frenéticos enquanto aparava os golpes brutais de Wenzhi. Parecia
agora descuidado, até mesmo desesperado. Quando Wenzhi ergueu um
braço, o governador atacou com a lança, mas Wenzhi rodou para o outro
lado, mergulhando a espada na armadura do Governador Renyu pelo meio
das costelas. Investiu então em frente, afundando a espada até ao punho, a
ponta a sair pelas costas do governador, metal coberto de sangue. O rosto de
Wenzhi estava distorcido numa expressão selvagem enquanto puxava a
lâmina. Sangue esguichou pelo ar e o corpo do Governador Renyu vacilou,
com um suspiro gorgolejante a escapar-lhe dos lábios ao cambalear para
trás. A sua mão tateou a ferida aberta e o sangue, tanto sangue, escorria-lhe
pelos dedos. O governador tombou então e bateu com a cabeça no chão,
revirando os olhos e estremecendo os membros até ficar totalmente imóvel.
Morto. Estava morto. Não havia piedade em mim, nem alegria. Apenas
um alívio profundo que tudo terminara, que estávamos vivos.
Wenzhi largou a espada e correu para mim. Segurou-me pelos ombros,
os olhos arregalados ao ver os meus ferimentos. Quando os seus lábios se
moveram, esforcei-me para o ouvir.
— Onde estás ferida? Porque não te moves?
Apesar do conforto do seu toque, uma frieza espalhava-se por mim,
como se estivesse enterrada sob uma camada de neve. A minha visão ficou
turva quando olhei para ele, a última coisa que vi antes de ser reclamada
pela escuridão.
Abri a custo as pálpebras e estreitei os olhos com a luminosidade. A luz
do sol entrava pelas janelas, enlaçada a uma brisa com aroma a sal. O corpo
pesava-me com a moleza de um sono longo, cada movimento um esforço.
Estremeci com frio, excetuando o calor na minha mão. Alguém me
segurava a mão, mas quem? Alguém sentado ao meu lado, um rosto difuso
quando pestanejei para clarear a visão. O toque não me incomodava. Era
um conforto perante as memórias que se revolviam nos limites da
consciência, memórias de sangue, dor e terror.
Sentei-me abruptamente. Os meus olhos fitaram os de Wenzhi, mais
gentis do que alguma vez os vira. Senti um calor a percorrer a pele quando
puxei a mão. Há quanto tempo estava ali? Quanto tempo dormira eu? Rodei
as pernas para fora da cama, tentando não estremecer com a dor.
Ele franziu a testa.
— Estás a dormir há dias. Tem calma.
— Estou bem.
Apesar da bravata ao levantar-me, sentia-me zonza, a vacilar de pé.
Apenas o orgulho me impediu de cair de novo na cama enquanto me
segurava à cabeceira de madeira para me apoiar.
Ele passou um braço pelos meus ombros, o seu toque leve, mas firme, e
ajudou-me a caminhar até uma cadeira próxima.
— O Príncipe Yanming ficou a salvo? O que aconteceu?
As perguntas jorravam-me da boca.
— Da próxima vez, devias ter mais cuidado contigo.
Ergueu um bule e serviu um fio de chá castanho-avermelhado para uma
taça de porcelana. Pu’er. Inalei a rica fragrância terrosa antes de dar um
gole longo, o líquido a deslizar pela garganta com um calor revigorante.
— O Príncipe Yanming está bem e tem pedido para te visitar —
respondeu Wenzhi, fazendo uma pausa para voltar a encher a taça. — Após
a morte do Governador Renyu, os tritões renderam-se. O seu castigo ainda
está por determinar.
Memórias vieram-me à mente, do prazer doentio que o governador
sentira ao torturar-me, da sua expressão assombrada quando Wenzhi lhe
cravou a espada no peito. O sangue carmesim que se acumulara à volta do
seu corpo, mergulhado na terrível imobilidade da morte. Fiquei contente,
disse a mim mesma, apesar do nó no estômago. O governador ter-me-ia
matado, com o máximo de crueldade de que fosse capaz. Mesmo assim,
sentia pouco triunfo nesse momento. E, apesar de ele ter morrido, as marcas
do seu logro permaneciam; as vidas que tomara, as que destruíra
irrevogavelmente.
— Os tritões podem não ter culpa. O governador tinha um poder
estranho que o ajudou a conquistar a sua confiança. A sua voz, o seu
medalhão... — Franzi a testa, tentando fazer sentido das memórias
fragmentadas. — Também o usou em mim.
Uma sombra caiu sobre o rosto de Wenzhi.
— Como resististe?
— Bloqueei a minha audição — respondi com um esgar. — Talvez
tenha sido estúpido. Tornou muito mais difícil lutar com ele, mas não
consegui pensar em mais nada.
Wenzhi cerrou a mão sobre a mesa até os nós dos dedos ficarem
brancos.
— Felizmente, os poderes do governador eram fracos, por virem do
medalhão, como adivinhaste corretamente. Um verdadeiro Talento da
Mente poderia ter-te dominado em segundos. Uma vez sob o seu controlo,
serias sua até ao fim dos teus dias, ou dos dele.
Um eco da bravata do governador, despertando de novo os meus
receios. Ao sentir a minha perturbação, Wenzhi estendeu a mão sobre a
mesa e tocou-me no braço.
— Não devia ter saído do teu lado. Não te terias magoado tanto se
tivesse ficado contigo.
— Se tivesses ficado comigo, por esta hora talvez estivéssemos os dois
a fazer vénias ao Governador Renyu. — Em seguida, acrescentei
gravemente: — A culpa não é tua. Eu sou responsável pela minha
segurança. E não tinha, certamente, a mais pequena intenção de me deixar
matar por ele. Tê-lo-ia feito arrepender-se das suas tentativas. De uma
forma ou de outra.
— Não tenho dúvidas disso. — Debruçou-se então sobre mim para me
inspecionar o rosto. — Se estás bem, devemos partir em breve. Já enviei os
restantes de volta, mas o Príncipe Yanxi quer falar contigo antes de
partirmos. Vai estar na sala de audiências durante a manhã.
Ergui-me, sentindo-me um pouco mais forte ao alisar a minha túnica
verde-pálida, só agora tendo a presença de espírito para verificar se estava
apropriadamente vestida. Roupas tão simples podiam erguer sobrolhos na
impecavelmente vestida corte do Mar do Leste, mas depois de quase
morrer, tinha coisas mais importantes com que me preocupar.
Assim que entrei na sala de audiências, Wenzhi foi chamado à parte por
um general do Mar do Leste. Mantive-me na periferia da sala, à procura do
Príncipe Yanxi, encontrando-o, por fim, em conversa com outro imortal. O
desconhecido estava de costas para mim, mas a sua postura e a túnica de
brocado azul-escuro eram estranhamente familiares.
Quando o Príncipe Yanxi reparou em mim, inclinou a cabeça. O seu
companheiro virou-se então e fitou-me com olhos escuros.
Era Liwei, a última pessoa que esperava ver ali. Um tremor abalou-me o
coração, se de pavor ou alegria, já não conseguia dizer. Mas ainda tinha
sentimentos por ele, por muito que desejasse o contrário.
Liwei falou brevemente com o Príncipe Yanxi, antes de caminhar na
minha direção. Consciente de todos os que nos observavam, fiz-lhe uma
vénia com todo o cerimonial.
— Erga-se — disse ele num tom tenso.
Fitei-o nos olhos sem o mais pequeno vislumbre de emoção, grata pelo
treino da Mestra Daoming, que me permitia usar aquela máscara, apesar do
tumulto dentro de mim.
— Porque estais aqui? Quando haveis chegado?
— Há três dias.
Ergueu então a gota-celeste que trazia à cintura. A joia estava límpida,
com faíscas prateadas a cintilar nas suas profundezas.
— Quando a joia ficou vermelha, vim para cá o mais depressa que pude.
Segurei a borla à minha cintura, o par da sua joia. Um impulso louco
tomou conta de mim, de a deitar fora, de a enterrar com o nosso passado,
como a tentação de arrancar uma crosta antes de a ferida estar sarada.
Porque usava ainda a joia? Porquê agarrar-me a essa memória? Tonta
sentimental, ralhei a mim mesma, forçando-me a largá-la.
— Quando cá cheguei, a batalha já terminara. Estava inconsciente, com
sangue a escorrer das feridas, quando o Capitão Wenzhi a carregou para
fora da tenda. Eu... eu temi o pior. — Parou de falar e manteve-se quieto,
como se estivesse a debater-se consigo mesmo. — Estava gravemente
ferida. O Príncipe Yanxi trouxe-a para o palácio, para os curandeiros reais
lhe extraírem o veneno do corpo. Uma dose maior tê-la-ia matado.
Debruçou-se então para mim, tomando a minha mão na dele, as nossas
palmas a tocarem-se, as pontas dos seus dedos premindo contra os meus.
Apanhada de surpresa, fiquei imóvel. Um calor envolveu-me a pele quando
o seu poder percorreu o meu corpo. A minha mente clareou, uma força
revigorante espalhou-se por mim, mas puxei a mão. Apesar de Liwei ser um
curandeiro treinado em magia da Vida, a ideia de a sua energia misturar-se
com a minha suscitava demasiadas emoções perturbadoras.
— Agradeço-vos muito, mas não precisais de fazer isso. — Procurei
algo para dizer. Qualquer coisa, no silêncio incómodo que caiu sobre nós.
— O que discutíeis com o Príncipe Yanxi?
A sua expressão tornou-se lúgubre, de pálpebras veladas.
— Um assunto grave. O Arqueiro Feimao, creio que o conhece, relatou
recentemente uma estranha maleita. Após a batalha com Xiangliu, tinha
dificuldade em invocar a sua magia. Acreditamos que um pedaço de
minério escuro alojado na sua armadura lhe suprimia os poderes.
— Como está ele agora? — perguntei, preocupada.
— Assim que retirámos o minério, recuperou de imediato.
— Que metal é esse? Como foi lá parar?
— Nunca ninguém viu nada assim. O Arqueiro Feimao desconfia que o
minério veio do Pico Sombrio, de quando caiu numa ravina. Os nossos
batedores encontraram vestígios do minério no local, mas nada mais.
— Alguém o levou?
Um pensamento arrepiante. Liwei assentiu tensamente.
— Parece ter sido minerado. Tal coisa seria catastrófica nas mãos
erradas. Avisei o Príncipe Yanxi para estar atento e nos avisar se descobrir
alguma coisa.
Ficou depois em silêncio. Na calma súbita, os meus sentidos ficaram
mais apurados. Como estávamos perto um do outro, a falar com o mesmo à
vontade de sempre. Ali estava ainda, o laço invisível à volta dos nossos
corações, gasto, mas intacto, apesar das minhas tentativas de o romper.
Talvez fosse um laço que nunca pudesse ser quebrado, enraizado na
amizade anterior ao nosso amor malfadado. Eu não queria aquilo, que o
meu ânimo subisse e descesse no mesmo momento, que o vazio no meu
peito se reabrisse. Mas quase morrer fora uma lembrança brusca de como a
vida era preciosa. Precária, até mesmo para um imortal. E naquele
momento, sentia-me mais viva do que me sentira nos últimos meses. O seu
aroma despertou em mim memórias do tempo passado no Pátio da
Tranquilidade Eterna... Quase conseguia ouvir o murmúrio da queda de
água.
Fechei as mãos e afastei-me de Liwei, recuando para uma distância
segura. Uma brisa fresca passou entre nós. Ele ainda abriu a boca para falar,
mas então ergueu o olhar, para alguém a aproximar-se.
— Arqueira-Mor.
Era o Príncipe Yanxi, juntamento com Wenzhi, cujo rosto parecia
talhado em pedra ao fazer uma vénia a Liwei.
Também me preparava para lhe fazer uma vénia, mas o Príncipe Yanxi
ergueu uma mão para dispensar as formalidades.
— Fico contente por ver que recuperou. A minha família fica com uma
dívida de gratidão por ter arriscado a vida para proteger o meu irmão. Se
alguma vez precisar da nossa ajuda, será uma honra prestar-lha.
As palavras gentis tocaram-me.
— Não há qualquer dívida, Vossa Alteza. As ambições do Governador
Renyu estendiam-se para lá dos Quatro Mares. Se não tivesse sido travado,
traria grande desgosto para todos.
O Príncipe Yanxi abanou a cabeça, incrédulo.
— Foi uma felicidade o Capitão Wenzhi e a Arqueira-Mor terem posto
fim aos seus planos.
— Onde está o medalhão do governador? — perguntou Liwei.
— Destruído.
Lembrei-me da flecha que arrancara da minha mão e usara para partir a
joia. Liwei soltou um suspiro.
— É um alívio saber que um artefacto tão perigoso desapareceu, que
não pode voltar a ser usado. Mas gostava que tivéssemos tido a
oportunidade de o estudar. Sabemos tão pouco sobre esse tipo de magia,
receio que isso nos deixe em desvantagem. Temos de saber o que temos
pela frente.
Apesar de perceber o que ele queria dizer, estava contente por nunca
mais ter de ver aquele maldito medalhão.
— E aqueles que serviram o Governador Renyu? Aqueles que nos
atacaram? Serão levados à justiça? — perguntou Wenzhi, com um toque
agressivo na voz.
Estaria a lembrar-se dos celestiais caídos em combate? Não podia
esquecer a sua angústia quando os viu a tombar.
— A justiça será cumprida como for determinado pelo Mar do Leste —
respondeu Liwei, num tom sombrio. — Mas parece que ambos os lados
foram enganados pelo governador.
— Vossa Alteza, independentemente das suas desculpas, os tritões
rebelaram-se contra o seu soberano. O vosso próprio pai acredita que tais
incidentes devem ser tratados com severidade, para que ninguém os tente
repetir.
Os lábios de Wenzhi curvaram-se num sorriso trocista. Gostaria de
provocar Liwei? Não parecia muito preocupado com ficar nas boas graças
do príncipe.
— Eu senti o poder do encantamento, quase fiquei sob o seu domínio —
comentei para Wenzhi. — Podia facilmente ter sido eu a ficar sob o seu
feitiço.
Ele não respondeu, mas cerrou o maxilar como se as minhas palavras o
tivessem magoado.
— Muitos dos tritões pareciam atordoados, sem saberem bem porque se
tinham revoltado — informou o Príncipe Yanxi. — Vamos investigar mais
para determinar a sua inocência. Os que forem considerados livres de culpa
serão libertados, sob vigilância inicialmente. Alguns serão convidados a
permanecer na corte como intermediários entre nós e os tritões. Laços mais
próximos impedirão que isto volte a acontecer.
Os tritões não teriam tanta sorte com a justiça do Imperador Celestial.
— Vós e o vosso pai sois verdadeiramente sábios e misericordiosos —
disse-lhe, sem intenção de lisonjear.
Antes que ele pudesse responder, ouviram-se passos pela sala e um par
de braços pequenos abraçou-me a cintura. Rodando para trás, levantei o
Príncipe Yanming no ar, ignorando a dor no meu corpo enquanto ele gritava
de alegria. Quando voltei a pousá-lo no chão, a sua expressão ficou solene,
com os cantos da boca virados para baixo.
— Não nos seguiu. Mentiu-me.
O seu tom era acusador. Senti uma pontada de culpa quando me baixei e
fitei-o nos olhos.
— Desculpai-me. Na altura, não podia ir convosco, mas não vos devia
ter dito que iria.
— Fico contente por não ter morrido. E... obrigado.
Então, estendeu-me a mão. Na palma da sua mão estava um pequeno
dragão, executado com perícia a partir de papel vermelho. Peguei no
dragão, segurando-o entre o polegar e um dedo, com receio de esmagar o
papel delicado.
— Obrigada. Será sempre precioso para mim.
O seu lábio inferior tremeu.
— Que os dragões a protejam nas suas viagens.
Em seguida, passou as costas das mãos pelos olhos, deu meia-volta e
afastou-se a correr. Fiquei a vê-lo até o pequeno vulto desaparecer, com um
nó na garganta.
— Onde quer que vá, terá sempre um lugar aqui, seja na nossa corte ou
como nossa amiga — disse o Príncipe Yanxi, com franqueza.
Algo dentro de mim relaxou ao pensar que tinha outro lar neste mundo.
— Príncipe Yanxi, está na hora de partirmos — disse Liwei, num tom
glacial.
— Agradeço-vos a vossa hospitalidade, Vossa Alteza — disse Wenzhi,
com uma formalidade igualmente fria.
A mudança notória da atitude de ambos tinha tanto de espantoso como
de despropositado. E a forma como fitavam o Príncipe Yanxi era
decididamente pouco amistosa. Abanei a cabeça para banir esses
pensamentos, interrogando-me se imaginara tudo.
Felizmente, o Príncipe Yanxi pareceu não reparar no ambiente
subitamente frio e mantinha um sorriso nos lábios.
— Agradecemos ao Reino Celestial por ter vindo em nosso auxílio.
Depois do Mar do Leste, Wenzhi e eu seguimos de campanha em
campanha, ficando, por vezes, meses a fio longe do Reino Celestial.
Enfrentámos monstros aterradores, feras vorazes e, mais recentemente, os
espíritos temíveis que atormentavam a fronteira oriental, perto das florestas
do Reino da Fénix. Estava exausta quando finalmente regressámos ao
Palácio de Jade, ansiosa por recolher ao meu quarto. Contudo, quando ouvi
a notícia de que Shuxiao recebera uma promoção, fui logo à sua procura.
Bati à porta do seu quarto, à espera que estivesse a celebrar com
amigos. Mas quando me abriu a porta, o seu sorriso não tinha a alegria
habitual; parecia uma cópia esbatida de si mesma. Uma lâmpada solitária
iluminava a escuridão e em cima da mesa estava um jarro de vinho em
porcelana.
— É assim que celebras? A beber sozinha? — Abanei a cabeça,
incrédula, quando entrei e me sentei num banco. — Não estás contente com
a minha visita?
— Mais do que imaginas.
Tirou então a tampa de pano vermelho do jarro de vinho e serviu-me
uma taça. Ergui a taça num brinde.
— À Tenente Shuxiao, que isto seja só o início.
Ela esvaziou a taça num gole só. Fiquei a olhar para ela, com a mão
parada no ar. Shuxiao bebia normalmente com moderação, mas talvez
aquela fosse uma ocasião especial. Quando voltei a encher-lhe a taça, ela
voltou a esvaziá-la. Com um encolher de ombros, decidi fazer-lhe
companhia. Bebemos no silêncio de camaradas de armas, até ficarmos
coradas, com o aroma doce do jasmim no nosso hálito, e a lamparina
ganhou um halo difuso. Contudo, os olhos de Shuxiao mantinham-se
apagados, como se a sua mente estivesse muito longe, e num sítio pouco
agradável.
— O que se passa? — perguntei por fim, incapaz de me conter. — É a
tua família? Más notícias?
Os seus dedos apertaram a taça.
— Quero ir para casa.
Palavras simples que me tocaram profundamente, que ecoavam dia e
noite nos meus pensamentos. Sabia que Shuxiao sentia falta da família;
falava deles com tantas saudades. Mas era celestial e sempre pensei que
fosse feliz aqui, que escolhera aquele caminho.
— Este não é o teu lar? Não queres ficar aqui? — perguntei a medo,
interrogando-me se o vinho me atordoara a mente.
— Não. O meu lar fica no sul rural, à sombra das macieiras, com um rio
a atravessar os campos. — Um sorriso passou-lhe pelos lábios. — O meu
pai nunca procurou um lugar na corte ou as boas graças do imperador.
Apesar de a nossa família não ser fraca, não temos aliados. Isso não faria
diferença se um nobre poderoso, encantado com a minha irmã mais nova,
não tivesse abordado o meu pai a pedir-lhe que ela se tornasse sua
concubina. Um insulto. Mesmo se o nobre não fosse um velho devasso com
três esposas e mais de uma dúzia de concubinas.
Tais ocorrências eram comuns entre a nobreza, mas achava a ideia
repugnante. Como poderia o amor medrar em circunstâncias tão desiguais?
— A minha irmã recusou o pedido. O meu pai apoiou-a, como poucos
pais apoiariam. O velho bode ficou furioso por termos rejeitado uma grande
honra — resmungou Shuxiao. — Ameaçou destruir a minha família. Que
mancharia a nossa reputação na Corte Celestial. Quem nos defenderia
quando ninguém sabia o nosso nome?
— Foi por isso que juntaste ao exército?
Shuxiao assentiu.
— Para pôr fim às ameaças e intimidações. Para impedir que voltassem
a acontecer. Poucos se atreveriam a caluniar-nos sem algum tipo de prova,
agora que eu tinha acesso ao General Jianyun. Mas não era esta a vida que
queria para mim, no meio das multidões do Palácio de Jade. Queria ficar em
casa com a família e os amigos. Talvez apaixonar-me. Contudo, quanto
mais subo na hierarquia, mais presa fico a este lugar. Mais temos a perder.
Pegando no jarro, esvaziou o resto do vinho para a sua taça, derramando
algum para a mesa.
Não sabia o que dizer. Talvez o meu silêncio não a estivesse a ajudar,
mas também não queria dar-lhe maus conselhos. Sempre julgara que
Shuxiao prosperava aqui, estimada tanto por oficiais como pelos soldados.
Talvez fosse como Liwei dissera: Todos temos os nossos problemas; uns
expõe-nos para todos verem, enquanto outros disfarçam melhor.
Não lhe podia dizer para ouvir o seu coração. Não lhe podia dizer para
ser egoísta. Era uma escolha que tinha de ser ela a fazer, eu apoiaria de bom
grado qualquer decisão que tomasse. Ambas tínhamos os nossos fardos para
carregar e apenas nós sabíamos o quanto custavam e se éramos capazes de
os suportar.
— Talvez encontres alguém aqui? — brinquei, tentando aliviar o
ambiente.
Ela torceu o nariz.
— Ah! Tu ficaste com o melhor partido... pelo menos, entre os homens.
Começou a vasculhar a arca atrás de si e tirou outro jarro de vinho.
Estaria a falar de Wenzhi? Senti um calor a subir-me pelo pescoço, mas
mantive-me calada, fingindo indiferença.
Após uma pausa, ela deu-me uma cotovelada no braço.
— Xingyin, há algo que te quero perguntar há já algum tempo.
Dei um gole longo, deixando o vinho arder através do nó súbito na
minha garganta. Suspeitaria de algo sobre a minha família? Sobre a minha
identidade? Ela não trairia a minha confiança, mas não podia correr o risco
de uma indiscrição inadvertida.
— O que é esse ornamento que usas sempre à cintura? A joia em forma
de lágrima. Vi o Príncipe Liwei a usar uma igual.
Soltei a respiração que estava a reter, aliviada por o segredo da minha
mãe estar a salvo, apesar de sentir na barriga um novo aperto de ansiedade.
O meu passado com Liwei era outro segredo bem enterrado, mas não
mentiria a Shuxiao. Não sobre isso.
— Foi um presente. Do Príncipe Liwei. — Odiei como a minha voz
tremeu ao dizer o seu nome. Quando um sorriso sabedor se espalhou pelos
lábios de Shuxiao, acrescentei apressadamente: — Não foi nada de mais,
apenas um presente de amizade. Ele está noivo.
Uma afirmação tão óbvia como a cor do meu cabelo. Ela estreitou os
olhos, como se estivesse a tentar lembrar-se de algo no seu estado de
ebriedade.
— O Príncipe Liwei nunca tira essa borla. E os servos dizem que a tua
canção, a que tocaste no banquete, é ouvida muitas vezes a flutuar do seu
quarto.
Ele também guardara a concha? Não quer dizer nada, não muda nada,
sibilou uma voz na minha cabeça.
Os meus dedos brincaram com a taça. Dessa vez, fui eu quem a
esvaziou primeiro.
— Não pensei que desses ouvidos a bisbilhotices — comentei.
— Só quando dizem respeito aos meus amigos — sorriu ela.
Não falei mais, e ela também não. Passámos o resto da noite a beber
num silêncio de camaradagem, o ar entre nós carregado de memórias do
passado.
A minha cabeça latejava impiedosamente na manhã seguinte. Pensei
que um passeio poderia aliviar a dor, mas os meus pés levaram-me até um
pátio familiar. Hesitei antes de entrar para o pavilhão e me sentar num
banco. Carpas amarelas e cor de laranja nadavam por entre flores de lótus e
a cascata caía para dentro do lago com um murmúrio relaxante. Fechei os
olhos e inalei a doçura do ar. O meu velho quarto ficava a poucos passos de
distância. Estaria ocupado por outra pessoa? Era a primeira vez que entrava
no Pátio da Tranquilidade Eterna desde que partira. Estava tal qual me
lembrava, e, no entanto, tudo mudara.
Uma serva parou ao atravessar o pátio e fez-me uma vénia. Nas mãos
levava um tabuleiro de pastéis, do tipo que se desfazia em migalhas quando
dávamos uma dentada para chegar ao recheio de feijão doce. Quando
ergueu o rosto, reconheci-a de imediato.
— Minyi, sou eu! — ri-me. — Porque estás a ser tão formal?
Duas covinhas apareceram-lhe no rosto redondo.
— Quem não ouviu falar dos feitos da Arqueira-Mor ao longo do último
ano? — disse ela, vindo sentar-se ao meu lado. — Abateste mesmo vinte
espíritos durante a tua última batalha?
Um sorriso passou-me pelos lábios ao lembrar-me do seu apetite por
bisbilhotices.
— Doze. Eles voam depressa.
— E o Diabo de Osso? Como era ele?
Estremeci ao lembrar-me da criatura malévola que escapara da prisão
celestial.
— Cabelo e pupilas tão pálidos que eram quase translúcidos. Pele
branca esticada como um tambor.
Ela agarrou-me a manga.
— Como o mataste?
Uma memória passou-me pela mente: a espada de Wenzhi a arquear
pelo ar antes de se cravar no pescoço da criatura. As mandíbulas do diabo,
repletas de agulhas prateadas, em vez de dentes, tentavam morder-lhe
ferozmente. Enquanto Wenzhi se esquivava aos ataques, as garras do
monstro saltaram-lhe ao pescoço, na direção da veia latejante por onde
corria o sangue vital. Tomada pelo medo, soltei uma flecha que se cravou
no crânio da criatura. Um líquido branco e espesso começou a escorrer da
ferida e um grito lancinante rasgou o ar. As garras seguraram a haste da
flecha e tombaram ao lado do corpo quando o monstro caiu ao chão. Os
dias em que o meu coração se apertava com piedade tinham ficado para
trás, mas ainda era assombrada pelos rostos dos mortos.
— O Capitão Wenzhi e eu lutámos juntos — disse-lhe.
Ao ouvir-me falar de Wenzhi, Minyi empertigou-se, com o brilho que
lhe vinha aos olhos quando lhe cheirava uma história nova.
— Que novidades tens aqui do palácio? — perguntei apressadamente,
na tentativa de me esquivar à sua curiosidade. — Como está Sua Alteza?
Mordi a língua, tarde de mais. O vinho da noite anterior devia ter-me
deixado o cérebro aturdido para falar o nome dele em voz alta.
Alguém se aproximou por trás. Teria o murmúrio da cascata abafado os
passos? Alguém pigarreou. Só por esse som, soube que era ele antes de me
virar. Ao meu lado, Minyi levantou-se num salto e fez uma vénia. Sem mais
palavras, pegou no tabuleiro e partiu apressadamente, deixando-me sozinha
com o intruso. Mas não era um intruso; tinha todo o direito de estar ali. Era
eu quem não pertencia ali.
— Por favor, perdoai a intromissão, Vossa Alteza. Partirei
imediatamente.
A formalidade era um escudo ao qual me agarrava para encobrir as
minhas fraquezas.
— Porque não me pergunta em pessoa como estou?
A sua voz tinha um calor que há muito não ouvia.
Teria saído nesse momento, mas ele interpôs-se no meu caminho.
Quando levantei o olhar para ele, não pude negar que ainda lá estava,
aquela dor no meu coração, a ligação que puxava por mim sempre que ele
estava por perto... por muito que desejasse que assim não fosse. Uma brisa
suave soprou pelo pátio, arrastando uma madeixa do meu cabelo contra o
rosto dele. Ele apanhou-a no meio dos dedos, com olhos tão inescrutáveis
como duas lagoas à noite.
— Tem estado bem? — perguntou.
— Sim.
— Porque está aqui?
— Curiosidade. Queria conhecer a minha substituta — respondi com
uma irreverência pouco convicta.
— Quem é que a poderia substituir?
O seu tom, as suas palavras, ainda me afetavam. Mas afastei-me na
direção da saída.
— Já não somos amigos? Desde o Mar do Leste, vi-a meia dúzia de
vezes e foge sempre de mim. — Indicou então os bancos. — Porque não
nos sentamos? Vamos falar como costumávamos fazer. A não ser que tenha
medo.
Uma nota de desafio soou na sua voz.
O meu bom senso debatia-se com o meu orgulho. O orgulho venceu
quando me sentei, acicatada pela sua provocação.
— Não me posso demorar. O meu treino...
— Sim, a valente Arqueira-Mor — interrompeu Liwei, num tom
sarcástico. — Quem mais protegeria o Reino Celestial? E apenas
“Arqueira-Mor”, depois de todos os seus feitos. Um título honorável, mas
sem patente ou poder. Porque não procura um comando seu, em vez de
seguir sempre na sombra do Capitão Wenzhi?
Cerrei os dentes.
— Prefiro assim. Quero a liberdade de participar em campanhas da
minha escolha. Não desejo subir na hierarquia apenas por ambição.
Ele olhou para mim como se estivesse à procura de algo.
— Ou há algo mais por detrás da vossa relação? Correm muitos rumores
sobre o jovem capitão e a sua arqueira favorita. As duas estrelas mais
brilhantes do Exército Celestial. É uma sorte arqueira-mor não ser uma
posição oficial no exército, ou isso seria muito inapropriado.
A acusação magoou-me.
— Como vos atreveis a falar-me do que é “impróprio” quando sois vós
que estais noivo e me provocais desta forma? Não tendes o direito de me
fazer tais perguntas. Não vos diz respeito o que eu faço ou com quem o
faço. Quanto a mim, a minha indiferença por vós não podia ser maior.
Que palavras irrefletidas, sem querer saber da tormenta que lhe cobriu o
rosto. Contudo, não ficaria ali a ser alvo das suas críticas. Já estava farta
dessas complicações e de como me deixavam num nó. Levantei-me e
afastei-me, mas ele agarrou-me pelo pulso.
— Mas eu importo-me — admitiu. — Contra todo o bom senso, contra
todo o discernimento, contra a minha própria honra, não consigo deixar de
me importar.
Uma luz resplandecia-lhe nos olhos, mais fulgurante do que o sol. Presa
pelo seu olhar, não me conseguia mover, reparando apenas, tarde de mais,
quando ele me puxou para si. Devia ter-me empurrado para longe dele, mas
não tinha força nos braços. A sua confissão acordou algo dentro de mim que
julgava ter morrido. Nunca vira aquele seu lado, cheio de paixão e ciúme, e
uma parte temerária de mim regozijava-se.
Ele baixou a cabeça, lentamente de início, e quando não fugi, a sua mão
soltou-me o pulso e envolveu-me a cintura. Algo fumegava nas profundezas
dos seus olhos, um momento antes de os seus lábios pressionarem os meus
com uma fome como se estivesse às portas da morte, com uma urgência que
deixou o meu sangue ao rubro. Não havia mais pensamentos na minha
mente, nem raiva, nem vergonha, nem receio do que aquilo quereria dizer.
Nada para lá daquela leveza, do fogo coruscante que me percorria as veias.
Os meus dedos subiam-lhe pelo pescoço para o puxar para mim quando
inclinei a cabeça para trás, afogando-me na sensação do seu toque e do seu
calor, enquanto os seus braços me envolviam, prendendo-me num abraço do
qual já não queria escapar.
Aquele pátio... fora outrora o meu refúgio. O ritmo relaxante da cascata,
a fragrância das flores primaveris no ar, a alegria que sentira ali. Contudo,
enquanto a familiaridade dolorosa daquele lugar me trazia memórias tão
doces, uma estava gravada mais profundamente na minha mente, de quando
ficara sentada, imóvel e só, na noite do seu noivado.
Empurrei-o para longe de mim com força, e ele cambaleou para trás,
abanando os braços. Recuperei o fôlego, esforçando-me por reunir as réstias
da minha compostura.
— Não, Liwei. Acabou. Nós acabámos.
Ele passou uma mão pelo cabelo, o peito a subir e a descer a um ritmo
irregular.
— Não vamos mentir um ao outro, Xingyin. Nós não acabámos. O teu
coração ainda bate por mim. Ainda sentes algo por mim, tal como eu sinto
algo por ti.
Falou baixo, sem vestígio de orgulho. Apenas com uma certeza que era
cem vezes mais irritante.
— O que queres de mim? — gritei, furiosa com ele e comigo mesma. —
Estás prometido a outra, mas pareces empenhado em forçar-me a admitir os
meus sentimentos. Isso dá-te prazer? Apela ao teu orgulho aristocrático
ouvir-me dizer que não és assim tão fácil de esquecer? Ou tencionas seguir
as pisadas do teu pai e manter uma concubina em cada canto do palácio?
Ele retraiu-se, como se o tivesse insultado.
— Isso nunca.
Eu própria não acreditava naquelas acusações tão graves, mas parte de
mim, uma parte amarga e vingativa, queria atacá-lo, magoá-lo como ele me
magoara. Trocámos olhares zangados, nenhum de nós disse uma palavra. O
meu coração batia com tanta força que rezava para ele não o ouvir.
Por fim, ele virou-me costas, punhos cerrados ao lado do corpo.
— Não sei o que estou a fazer — disse num sussurro, quase uma
confissão relutante. — A minha mente diz-me para parar, para te deixar ir...
mas não consigo. Vejo-te em todo o lado, estás comigo em tudo o que faço;
à mesa enquanto como, no meu quarto quando acordo. A tua voz no ar, o
teu sorriso nos meus olhos. Não te consigo esquecer, por muito que tente.
Nenhum de nós se moveu, nenhum de nós falou. Como era fraca, por
não partir imediatamente, por me deixar comover pela sua confissão. Não
sei quanto tempo teríamos ficado ali parados, imóveis como os leões de
pedra que guardavam a entrada, se as portas do pátio não tivessem sido
abertas de rompante. Afastei-me de Liwei mesmo a tempo quando um
mensageiro correu para ele. Tinha o chapéu preto torto e a túnica esvoaçava
ao vento.
O mensageiro fez uma vénia e falou para Liwei, ofegante.
— Vossa Alteza, Suas Majestades Celestiais requerem a vossa presença
imediata no Salão da Luz Oriental.
Um assunto urgente requer a vossa atenção.
Liwei franziu a testa.
— Irei imediatamente.
Ainda olhou para mim como se quisesse dizer mais, mas afastou-se
apressadamente.
Voltei para o meu quarto, tentando acalmar as minhas emoções
desgovernadas. Contudo, foram de novo agitadas pela visão de Wenzhi,
sentado à mesa.
— Não ias falar com o General Jianyun, esta manhã? — perguntei ao
sentar-me ao lado dele.
— A reunião acabou mais cedo.
Soou tenso. Hesitante, o que não era nada normal nele.
— Xingyin, há algo que tenho de te dizer.
Fechei as mãos sobre o meu colo, sentindo um arrepio que antecipava
más notícias. Ele debruçou-se para mim, a voz subitamente rouca de
emoção.
— Demiti-me do Exército Celestial. Esta semana será a minha última.
Tenho assuntos familiares importantes para tratar, longe daqui, e não conto
regressar.
Falou com uma calma deliberada, como se quisesse ter a certeza de que
eu percebia o que estava a dizer.
— Vais partir? Para o Mar do Oeste? — consegui perguntar.
Ele assentiu tensamente.
— A minha última missão vai ser uma inspeção das tropas na fronteira
do Deserto Dourado. Ultimamente, têm andado inquietas.
Sentia um aperto tal no peito que mal conseguia respirar. Desde o Mar
do Leste, algo mudara entre nós. O meu coração batia mais depressa quando
o via e o seu sorriso aquecia-me como vinho. As vezes, julgava avistar-lhe
um brilho nos olhos quando olhava para mim. Éramos circunspetos nas
nossas interações, sem um único gesto ou palavra para lá dos limites do
decoro. Contudo, tornáramo-nos mais do que amigos, no limiar de algo
inteiramente novo e excitante. Ou teria sido tudo ilusão minha? Deixei o
olhar cair para o chão, sentindo-me estranhamente desanimada. Desiludida.
Até mesmo magoada? Apesar de não ter esse direito, sentindo uma pontada
de culpa ao lembrar-me dos lábios de Liwei nos meus.
Wenzhi olhava para mim, como se estivesse à espera da resposta a uma
pergunta que eu não ouvira, a sua voz a penetrar por fim a neblina da minha
tristeza.
— Queres vir comigo?
— Para... a fronteira do Deserto Dourado? — tartamudeei.
— Isso também, se quiseres — disse ele num tom grave. — Eu queria
dizer se queres vir comigo quando eu for embora.
Passei a língua pelos lábios.
— O que queres dizer?
Não me atrevia a entender mal as suas intenções. Um sorriso iluminou-
lhe o rosto, iluminou o quarto inteiro.
— Não sabes dos meus sentimentos por ti? — A sua voz tremeu, a
primeira fissura na sua compostura férrea. — Antes não podia falar, mas
agora estou livre. Quero que venhas comigo, para o meu lar, para a minha
família. Para vivermos juntos as nossas vidas. — Baixou então a cabeça ao
nível da minha, testas quase a tocar, o hálito dele quente na minha pele. —
Os teus sonhos também serão os meus.
Alegria percorria-me o corpo como ondas num lago após uma chuvada.
Pensara que o amor acabara para mim... a sua beleza deslumbrante, a sua
agonia tumultuosa. Fora feliz antes e acreditava que voltaria a sentir alegria
quando encontrasse o caminho de regresso ao lar, ao meu verdadeiro lar,
não a este que erigira sobre uma teia de mentiras. Agora, um futuro com
Wenzhi chamava por mim, com céus límpidos e nem uma nuvem escura no
horizonte. Um futuro sem corações partidos nem passados complicados.
Um em que não havia sangue derramado entre as nossas famílias, os nossos
laços livres de ódio ou ressentimentos antigos — em que podia ser eu
própria, livre de culpa, remorsos e mágoa.
Apenas agora me atrevia a admitir a mim mesma o receio de ter falhado.
De, na minha arrogância, ter calculado mal o valor do meu talento, o mérito
dos meus atos. Pois, apesar dos serviços prestados ao Exército Celestial, as
esperanças de conquistar a liberdade da minha mãe começavam a
desvanecer-se, como uma pintura em seda deixada demasiado tempo ao sol.
Um perdão do imperador era a maneira mais certa de conseguir a sua
libertação. Contudo, apesar de os meus feitos terem valido elogios e
presentes, que eu recusara, nem uma única menção do Talismã do Leão
Carmesim. Devia ter ouvido o aviso do General Jianyun, mas o meu
orgulho levara-me a pensar que sabia mais do que ele. O imperador não era
conhecido pela sua generosidade a dispensar tais favores. Nem alguma vez
perdoara alguém sentenciado a prisão eterna. Por isso, talvez fosse hora de
procurar um novo caminho para ajudar a minha mãe. Talvez o encontrasse
na pátria de Wenzhi, no Mar do Oeste.
A mão de Wenzhi no meu braço sobressaltou-me. Continuava à espera
da minha resposta, talvez interrogando-se sobre o meu silêncio prolongado.
Quando olhei para o seu rosto forte e bonito, algo mudou dentro de mim.
Gostava dele, sabia que sim. O meu desânimo ao saber que iria partir era
prova disso. E não diziam que o amor cresceria entre duas mentes
compatíveis, com o passar dos meses e dos anos? Tínhamos a eternidade
pela frente.
— Também queres o que eu quero?
O tom dele já não era urgente, mas transbordava com uma confiança
recém-descoberta, como se já tivesse pressentido a minha resposta.
Sim. A palavra formou-se nos meus lábios, contudo, não a conseguia
dizer. Algo puxava pelo meu coração, uma voz fininha que me implorava
que reconsiderasse. Teria pedido mais tempo para pensar, mas o som de
passos na gravilha sobressaltou-nos. Alguém corria para o meu quarto com
uma pressa desmedida quando Wenzhi abriu as portas.
Um servo jovem estava parado à entrada.
— Capitão Wenzhi — ofegou. — Procurei por si em todo o lado. Suas
Majestades Celestiais requerem a sua presença imediata no Salão da Luz
Oriental.
Que estranho, pensei para mim mesma. Era o segundo mensageiro que
via naquele dia com notícias urgentes.
Um brilho de irritação passou pelos olhos de Wenzhi.
— Vou já.
O mensageiro encolheu-se, mas não partiu. A sua coragem era louvável,
especialmente perante o desagrado visível de Wenzhi.
— Todos os outros comandantes já chegaram. Eu... eu recebi instruções
de o acompanhar assim que o encontrasse.
Wenzhi soltou um suspiro e puxou-me para o lado.
— Falamos amanhã.
Podia ter dito mais, mas o mensageiro arrastava os pés, deitando-nos
olhares nervosos. Com um abanar impaciente de cabeça, Wenzhi afastou-se.
Sozinha no meu quarto, fiquei sentada à mesa até o fogo dourado do sol
poente se reduzir a uma brasa incandescente. Se não fosse o lapso de
fraqueza nessa manhã, poderia ter acreditado que o meu coração estava
inteiro, livre dos laços que o prendiam antes. Um futuro glorioso erguia-se
no horizonte. Contudo, ainda me agarrava a vestígios do meu passado,
como um pessegueiro em flor com saudades da flor caída ao solo.
Shuxiao sentou-se na cadeira diante de mim e pousou o tabuleiro de
comida na mesa de madeira. Os seus olhos percorreram o refeitório amplo,
já apinhado de soldados debruçados sobre a refeição da manhã.
— A Princesa Fengmei foi raptada — falou num sussurro.
Deixei cair a colher na taça, salpicando caldo de arroz para cima da
mesa.
— Como? Quando? Por quem?
As perguntas jorravam dos meus lábios. Devia ser por isso que Liwei e
Wenzhi tinham sido chamados no dia anterior.
— Só ouvi dizer que o Príncipe Liwei vai liderar a operação de resgate.
Por baixo da mesa, a minha mão agarrou o meu joelho. Não fosse o que
acontecera ontem, aquela notícia não me teria afetado tanto. Contudo, ele
beijara-me como se eu fosse a única no seu coração. As palavras temas que
falara... e agora arriscava a vida para salvar a noiva? Um noivado que
alegava nunca ter querido? Um calafrio apertou-me o peito. Inalei e expirei,
tentando libertar-me da sensação. Estava a comportar-me como uma criança
egoísta. Como noivo e aliado, quem mais poderia liderar a operação?
— Desejo-lhe todo o sucesso. Espero que a traga de volta sã e salva.
Se as minhas palavras soaram pouco convincentes, sentia algum consolo
em saber que eram sinceras.
— Raptar uma princesa não é tarefa fácil. Pergunto-me quem...
Shuxiao parou de falar abruptamente. O General Jianyun erguia-se
diante de nós de braços cruzados. Levantámo-nos num salto para o saudar.
— Tenente Shuxiao, não preciso de saber onde ouviu isso, mas quero
que seja o fim desta conversa, ou de qualquer outra sobre o assunto.
Entendido? — ordenou.
Shuxiao deitou-me um olhar de pânico e respondeu com uma humildade
incomum:
— Sim, General Jianyun.
O general olhou então para mim.
— Arqueira-Mor Xingyin, venha comigo. Preciso de falar consigo.
Fiquei a olhar para ele, espantada, até Shuxiao me dar um pontapé na
perna. A dor quebrou o pasmo e apressei-me a segui-lo.
— A notícia é verdadeira — disse o general, sem qualquer preâmbulo,
ao sentar-se atrás da secretária de pau-rosa. — A Rainha Fengjin está
destroçada. O raptor comunicou os termos do resgate e exige que ela quebre
a aliança connosco. E avisou que não haverá misericórdia para a filha se
alguém a tentar salvar. É por isso que cabe a nós libertá-la.
— Foi o Reino Infernal? — perguntei.
— É para onde recaem as nossas suspeitas, mas não temos provas. Seja
como for, a nossa prioridade é trazer a Princesa Fengmei sã e salva. Sua
Alteza vai liderar uma equipa pequena para a resgatar, não mais de uma
dúzia de soldados, para não serem detetados. Dada a ameaça, a discrição é
crucial para não pôr em risco a segurança da princesa. — O general
tamborilava na mesa num ritmo regular. — O Príncipe Liwei pediu que
fizesse parte da equipa de resgate.
Não teria ficado mais assombrada se um relâmpago me tivesse atingido
num dia sem nuvens. Sem saber o que dizer, debati-me com as emoções que
se erguiam dentro de mim, emaranhadas e contorcidas, ardentes, mas frias.
Mas uma coisa era clara: eu não queria fazer parte daquilo.
A sua expressão ficou sombria, lendo talvez a recusa no meu rosto.
— Apesar de não lhe poder ordenar que faça parte desta missão,
aconselho-a veementemente a aceitar. Pelo reino. Pela nossa aliança. Nada é
mais importante.
Esse argumento não me convenceu; eu não era nobre nem intrépida.
Não era o perigo físico que me demovia, mas a mágoa no meu coração e no
meu orgulho. Aquilo não valia as recompensas que o Reino Celestial tinha
para me oferecer, recompensas que já recusara antes.
— Há muitos outros mais adequados, mais habilitados do que eu —
respondi.
— Com o arco?
Foi Liwei quem falou, parado à porta. Não o ouvira a chegar.
Quando o General Jianyun se levantou para o saudar, fiz o mesmo,
reprimindo o coração que saltava no meu peito. Não me deteria no que
acontecera entre nós; fora apenas um lapso temporário. Talvez estar no
Pátio da Tranquilidade Eterna nos tivesse toldado a mente com memórias. E
naquele momento estávamos mergulhados numa nova realidade, na qual
Liwei e eu nos separaríamos cada vez mais, até nenhum de nós jamais
conseguir encontrar o caminho de volta para o outro.
— Com Sua Alteza em pessoa a liderar o resgate, certamente têm todas
as capacidades necessárias.
Isso era o que diria um cortesão, esperando lisonjear o príncipe... não
fosse o tom cortante na minha voz.
Liwei atravessou a sala e parou diante de mim.
— Nem todas. Há muito que me superou no tiro ao arco, como ambos
sabemos.
Quando não respondi, ele puxou uma das cadeiras diante da secretária
do General Jianyun e indicou-me que fizesse o mesmo. Sentei-me
rigidamente ao lado dele, desejando estar em qualquer lado menos ali.
— Prossiga, General Jianyun — disse Liwei.
— Acreditamos que a Princesa Fengmei está a ser retida na Floresta da
Primavera Eterna, perto das montanhas a sul do Reino da Fénix. O rasto que
temos termina aí.
O nome pareceu-me familiar.
— Não era aí o lar da Dama Hualing, a anterior Flor Imortal? Antes de
ter desaparecido?
O general assentiu soturnamente.
— Desde então, a floresta tem estado velada de olhares indiscretos por
uma magia estranha. Ninguém se aventura lá há séculos. Não sabemos que
mais perigos espreitam para lá das forças hostis que raptaram a princesa.
Silêncio e subterfúgio vão ser cruciais, bem como as suas capacidades.
O General Jianyun esperava que eu aceitasse com toda a graciosidade.
Não o faria. Alguns poderiam considerar-me ingrata, mas não conseguia pôr
de lado os meus sentimentos assim com tanta facilidade. Os meus desejos
também importavam. Senti uma pontada de culpa ao pensar no perigo que
pairava sobre a Princesa Fengmei, mas não era arrogante ao ponto de pensar
que era a única capaz de realizar aquela tarefa.
Ergui-me, uma mão fechada sobre a outra e fiz uma vénia profunda.
— General Jianyun, prometeu-me que teria a liberdade de escolher as
minhas missões. Eu recuso esta missão. O general franziu a testa e abriu a
boca para me admoestar, mas foi interrompido por Liwei.
— Posso falar com Xingyin a sós?
O general deitou-me um olhar de reprovação, fez uma vénia a Liwei e
saiu da sala.
— Não se quer sentar? — perguntou Liwei, após um momento de
silêncio.
— Prefiro ficar em pé.
Estava ansiosa por sair à primeira oportunidade, determinada a evitar
qualquer intimidade com ele.
Liwei soltou um suspiro e levantou-se. Parte de mim estremeceu com o
absurdo da situação. Apenas no dia anterior, puxara-me para os seus braços
com tanta paixão e agora estava a pedir-me que salvasse a sua noiva. Fúria
erguia-se em mim, ardente e violenta.
— Importai-vos assim tão pouco com os meus sentimentos? —
perguntei, contrariada, odiando-me por o fazer.
— Tenho de fazer isto — disse ele. — Se falharmos, se algo acontecer à
Princesa Fengmei, não só seria uma grande tragédia, mas empurraria o
Reino da Fénix para o Reino Infernal, fortalecendo-os e enfraquecendo-nos,
imensamente. Com essa vantagem, o Reino Infernal seria tentado a quebrar
a paz, a declarar-nos guerra.
— Eu compreendo. Mas porque tenho de ser eu a ir convosco? Podeis
escolher inúmeros guerreiros competentes, que se sentiriam honrados por
vos poder acompanhar.
Os seus olhos fitaram os meus.
— Porque não há ninguém em quem confie mais. Ultimamente, tem
havido demasiados incidentes. Espíritos-raposa que passam pelas nossas
defesas. A maleita do Arqueiro Feimao. E agora isto. A princesa foi raptada
a caminho do Reino Celestial. Apenas os círculos íntimos das duas cortes
sabiam desta viagem. O que significa que há um traidor, ou no Reino da
Fénix, ou aqui — concluiu com gravidade. — Falei a sério sobre as suas
capacidades. Isto vai ser perigoso e precisamos de todas as vantagens que
conseguirmos reunir.
Quando não respondi, ele acrescentou em voz baixa:
— Estou a colocá-la numa posição impossível. Deve odiar-me.
Sentia a cabeça esmagada pelo peso da indecisão. O pedido para salvar
a noiva de Liwei deixara-me perturbada e magoada. Desejava que fosse
salva, mas não queria ter nada que ver com isso. E uma pequena voz na
minha cabeça segredava-me que, se o Reino Celestial fosse derrubado,
talvez a minha mãe fosse libertada...
Repudiei um pensamento tão vil. Tinha amigos aqui de quem gostava,
que sofreriam se houvesse uma guerra. E se o Reino Infernal assumisse a
supremacia? Apesar de já não acreditar que eram os monstros que tanto
temia, também não confiava no seu rei, que parecia ser tão implacável como
o Imperador Celestial, principalmente se raptara a Princesa Fengmei para
forçar a capitulação da rainha. Atrever-me-ia a deixar os nossos futuros em
tais mãos? Se aprendera alguma coisa ao longo daqueles anos, era que
ninguém ganhava numa guerra, nem aqueles que julgavam ter vencido.
O rosto da Princesa Fengmei passou-me pela mente, não a figura régia
com a capa de penas douradas que vira ao longe, mas a rapariga que
conhecera no pátio de Liwei. Não podia eu tratar aquela missão como todas
as outras que aceitara antes? Se não fosse o nosso passado, teria agarrado
com as duas mãos a possibilidade de ajudar o Príncipe Celestial e a Princesa
Fénix. Era uma oportunidade rara, que certamente chamaria a atenção do
imperador, possivelmente colocando-me ao alcance do Leão Carmesim e
evitando uma guerra desastrosa. Para lá disso, podia mesmo recusar ajuda a
Liwei? Apesar de tudo, ainda era meu amigo.
Uma centena de considerações volteavam nos meus pensamentos,
puxando agora todas na mesma direção. Iria com Liwei. Não por dever ou
obrigação, mas para o proteger, ao meu amigo, e àqueles que me eram
queridos no Reino Celestial. Para ajudar a salvar a rapariga inocente com
quem falara. E se isso não me valesse as boas graças de Sua Majestade
Imperial e o talismã que tanto desejava, nada o faria. Seria o meu último
passo naquele caminho antes de recomeçar de novo. E partiria de
consciência tranquila.
Olhei-o nos olhos.
— Irei convosco.
— Obrigado.
Quando ele deu um passo na minha direção, afastei-me.
— Irei convosco — repeti. — Contudo, peço-vos que doravante vos
comporteis dentro dos limites do decoro... como se o nosso passado não
existisse.
Aquelas palavras frias também me magoaram, mas não podia permitir
que um outro momento de fraqueza minasse a minha determinação.
— E se não for eu a faltar ao decoro?
A sombra de um sorriso passou-lhe pelos lábios. Com que facilidade se
tomava o amigo trocista do meu passado. Mas nem isso eu podia permitir.
— Não podemos continuar assim — disse num sussurro, tentando
abafar o desejo persistente suscitado pela sua proximidade, a culpa e a
vergonha que me queimavam um buraco no estômago. — Vou ajudar-vos e
à Princesa Fengmei. Mas vós tendes a vossa honra e eu tenho a minha. E
não havia honra alguma no que fizemos. Agora estais comprometido, o
vosso coração pertence a outra.
A memória inoportuna do nosso beijo passou-me pela mente. O nosso
último beijo, prometi a mim mesma, uma porta fechada, um último adeus.
O seu rosto era cinza e sombra, os olhos desprovidos de luz. Foi então
que percebi que conseguira... cortar o último fio ténue do nosso antigo laço.
Em silêncio, Liwei inclinou a cabeça para mim e afastou-se. Não ergui o
olhar, não o queria ver sair. As minhas palavras atingiram o alvo, um golpe
fatal, uma morte rápida. Contudo, era um triunfo oco que me deixou uma
amargura na boca e uma dor profunda no peito.
O sono evitou-me nessa noite. Atormentada pelo desassossego, trepei os
pilares diante do meu quarto. Uma brisa suave agitava o ar quando me
sentei nas frias telhas de jade, fitando o céu. A lua brilhava na escuridão, a
sua luz gentil e suave.
Algo restolhou, era Wenzhi a trepar para o telhado. Ajeitando o
quimono, sentou-se ao meu lado.
— Esperei por ti hoje.
— Desculpa. Este dia foi... atribulado.
Odiei a maneira como as minhas palavras se atrapalhavam, como se
tivesse algo a esconder. E tens mesmo, sussurrou a minha mente.
— Não posso ir contigo até à fronteira — disse-lhe.
Ele cerrou o maxilar, mas não se mostrou surpreendido. Já teria sido
informado pelo General Jianyun?
— Não vás com o Príncipe Liwei — pediu-me com uma urgência
súbita. — É demasiado perigoso. Os imortais evitam a Floresta da
Primavera Eterna por bons motivos. Desde o desaparecimento da Dama
Hualing, abundam rumores sobre esse lugar, rumores de encantamentos
negros e criaturas ferozes, de miséria e morte.
Encolhi os ombros com uma indiferença que não sentia.
— Já enfrentei monstros antes, e precisamente contigo.
O seu suspiro rodopiou no ar frio.
— Não tens o mais pequeno cuidado com a tua própria segurança?
Franzi a testa, um pouco surpreendida com a sua insistência.
— Como é isto mais perigoso do que Xiangliu? Do que o Governador
Renyu? Ou o Diabo de Osso? — enumerei, tentando aliviar a sua
preocupação.
— Porque eu não vou estar lá. E se algo te acontece? — Fez uma pausa.
— Não te importas com os meus sentimentos?
A sua preocupação tocou-me, mas nada mudaria a minha decisão.
— Claro que sim. Mas sei tomar conta de mim. Além disso, já está
decidido. Partimos amanhã.
— Mas porquê? — insistiu ele. — As ordens do General Jianyun não
importam, não quando em breve deixaremos este sítio para trás. Porque
queres colocar-te em perigo desnecessariamente? Não é certamente por
lealdade ao Reino Celestial.
Endireitei as costas, aferroada por aquelas palavras. Era perfeitamente
capaz de me proteger. No passado, viera em seu auxílio tantas vezes como
ele viera em meu. E a provocação de que eu não sentia qualquer lealdade ao
Reino Celestial... não precisava que mo recordassem. Servi o Reino
Celestial porque acreditava que conduziria à libertação da minha mãe. O
treino que recebera, a reputação que construíra, as vidas que tomara, tudo
isso era um meio para atingir um fim, como tudo o mais que fizera ali.
Contudo, também ouvia a preocupação que lhe estrangulava a voz.
Tentei explicar-lhe.
— Não faço isto porque me ordenaram. O Príncipe Liwei pediu-me que
o ajudasse. Não podia recusar.
Uma sombra caiu sobre o rosto de Wenzhi.
— Ainda o amas? É por isso que vais arriscar a vida para salvar alguém
de quem não queres saber? Já te esqueceste que ele te deixou por outra?
As palavras agrestes cortaram-me como um chicote.
Olhei-o nos olhos, com raiva a arder-me nas veias. Ele não sabia nada
sobre mim e Liwei. Para lá do nosso amor desafortunado, Liwei era meu
amigo, o meu único amigo numa altura em que não tinha ninguém, e essas
raízes eram mais profundas do que a desilusão e a mágoa. A bondade que
me demonstrara era uma dívida que eu tinha para com ele, uma que pagaria.
— Como podes dizer-me isso? — protestei. — Não sou uma marioneta
apaixonada a pedinchar uma migalha de afeto. Tenho os meus sonhos, os
meus princípios, a minha honra.
Sem vontade de me explicar mais, levantei-me e comecei a afastar-me.
— Espera, Xingyin...
Na sua voz tremia uma nota de desespero. Parei, mas não me virei.
Ele falou tão baixo que tive de me esforçar para o ouvir.
— Desculpa. Não devia ter dito aquilo. Estava desiludido e... com
ciúmes. — Exalou profundamente. — Pensei que ontem tínhamos chegado
a um acordo. Estava enganado? Não entendeste o que te quis dizer? As
minhas esperanças para o nosso futuro?
O meu coração acalmou, apesar da raiva que ainda fervia em mim. Tudo
o que Wenzhi vira fora o meu desespero com o noivado de Liwei, e não era
de admirar que naquele momento se sentisse ressentido. Uma confissão
difícil para ele, mas não lhe dava o direito de falar assim comigo.
Virei-me e olhei-o nos olhos.
— Wenzhi, tens de confiar no meu discernimento como eu confio no
teu. Não tentes insultar-me ou chantagear-me para eu fazer o que tu achas
que eu devia fazer. Como poderemos ter um futuro juntos se não me vires
como tua igual?
— Tu és minha igual. Mais do que minha igual. — Wenzhi levantou-se
e segurou com força a minha mão. — Só não quero que te magoes.
O vento ficou mais forte, soprando o meu cabelo para cima da cara.
Quando tremi de frio, Wenzhi despiu o quimono e passou-mo pelos ombros,
envolvendo-me com um braço.
— Promete-me que terás cuidado. Que não farás nada... demasiado
temerário — segredou ao meu ouvido.
Uma vontade de rir percorreu-me o corpo, dissipando a ira. Ele
conhecia-me tão bem, para dizer algo assim. E eu conhecia-o
suficientemente bem para sentir como estava a conter-se para não dizer
mais.
O cheiro fresco a agulhas de pinheiro pairava no ar, acendendo no meu
coração uma luz que baniu as sombras persistentes. Os meus sentimentos
por Wenzhi eram fortes, apesar de diferentes do que sentira por Liwei.
Talvez a paixão ardente e delirante que sentira por Liwei fosse apenas a
loucura do primeiro amor, imbuída da inocência tola de que nada nos
poderia separar. Nos amores que se seguiam, avançava-se com mais calma,
com mais cautela, após corações partidos e promessas quebradas. E talvez o
carinho crescente que sentia por Wenzhi fosse a evolução de todo o amor.
Encostei a cabeça ao seu ombro, soltando os últimos vestígios de
tensão.
— Prometo. E quando regressar, vamos partir juntos deste sítio.
Ficámos ali em silêncio, o seu abraço mais apertado o único sinal de que
ouvira a minha resposta. Pela primeira vez nesse dia, senti-me em paz.
Tomou-me uma ânsia de lhe contar todos os meus segredos, mas não
naquele momento, não ali. No Reino Celestial, estava sempre de guarda.
Um dia, longe daquele sítio, falar-lhe-ia da minha mãe.
Como era escura a noite que se estendia diante de nós; no entanto,
alumiada pelo brilho da lua e das estrelas, parecia tão radiante como o dia.
A Floresta da Primavera Eterna fora outrora o sítio mais lindo do
Domínio Imortal. Dizia-se que o Imperador Celestial em pessoa plantara a
floresta na sua juventude, com ramos cortados da primeira árvore do mundo
e aspergidos com o orvalho de um lótus encantado. Sob a copa graciosa das
árvores altas viam-se lagos cristalinos e rios cintilantes repletos de peixes
reluzentes. Aqueles que vagueavam pelo coração da floresta falavam,
extasiados, de árvores sempre em flor, os ramos carregados de botões de
todas as cores. Fruta madura, mais doce do que néctar, crescia tão
abundantemente como as flores silvestres por entre a erva suave. A
perfeição idílica da floresta atraía aves, animais e imortais. Até a poderosa
Dama Hualing, a primeira Flor Imortal, ficara encantada com o lugar e
partira do Reino Celestial para fazer ali o seu lar, deixando um rasto de
peónias, camélias e azáleas.
Mas esse paraíso não durou muito. Depois de ter sido exonerada da sua
posição, não mais a Dama Hualing ergueu a mão para plantar flores, não
mais reavivou as plantas murchas. E quando desapareceu, as copas
luxuriantes ficaram castanhas, os lagos cintilantes tomaram-se charcos de
lodo e as árvores definharam e nunca mais floriram.
Desci da minha nuvem, impressionada com o profundo silêncio daquele
sítio. Nem o pio de uma ave, nem mesmo o esvoaçar de uma libélula. Um
nevoeiro branco cobria a floresta, envolta numa frieza desagradável. As
árvores erguiam-se altas e direitas, as folhas mirradas presas aos ramos
numa morte eterna. Por todo o lado se viam lagoas turvas, que evitávamos
para não sermos sugados para as profundezas sem fundo. O ar estagnado
tresandava a podridão, uma triste zombaria da promessa no nome da
floresta. À medida que nos embrenhávamos em sombra e nevoeiro, sentia a
pele arrepiada e segurava com força o Arco da Fénix de Fogo. Se pelo
menos pudesse ter trazido o Arco do Dragão de Jade. O fogo-celeste era
mais forte do que as chamas. Mas não tinha a certeza se seria capaz de o
empunhar, nunca tendo soltado as suas flechas. E também temia usá-lo
diante de soldados celestiais que podiam reclamá-lo em nome do imperador.
Dois soldados seguiram à frente para explorar o caminho e os oito
restantes ficaram para trás.
— Não adianta invocar uma nuvem aqui — explicou Liwei. — O
nevoeiro é demasiado denso e um encantamento mantém-no aqui.
— Não podemos dissipar o encantamento?
— Não é um encantamento simples. Além disso, o nevoeiro tapa o
nosso rasto, por enquanto, e não quero alertar ninguém para a nossa
presença.
— Como vamos encontrar a Princesa Fengmei? Mesmo com batedores?
— perguntei.
— Consigo sentir a aura dela, mas tenho de chegar perto — respondeu
Liwei.
Aquela revelação incomodou-me. Seria ele mais íntimo com a princesa
do que eu imaginara? Lembrei-me de evitar falar com ele, para impedir a
minha mente de espiralar para tais profundezas.
Liwei, contudo, não tinha tais escrúpulos.
— O Capitão Wenzhi vai abandonar o Reino Celestial em breve. O que
vai fazer então?
Apesar de o seu tom ser coloquial, até mesmo simpático, a resposta
ficou presa na minha garganta.
Ele prosseguiu no seu tom baixo e sincero.
— Os meus sentimentos por si não mudaram, mas não vou falar mais
disso. O que me disse ontem... o que me pediu. Tinha razão.
Assenti rigidamente. Se isso era verdade, o que seria então o peso
asfixiante que caía sobre mim naquele instante? Cerrei os punhos, furiosa
comigo mesma. Como podia continuar a ser afetada por Liwei, apesar dos
meus sentimentos por Wenzhi? Seria assim tão volúvel e inconstante? O
meu futuro com Wenzhi luzia com esperança, não estava atolado em
arrependimentos passados. Não descartaria essa possibilidade de felicidade.
Ouvimos passos na nossa direção, cautelosos e suaves. Ergui o olhar e
avistei um dos batedores a aproximar-se.
— Vossa Alteza, há soldados uns quinhentos passos adiante. Armados, a
guardar um pagode.
— Avancem com cautela. Não podem saber que estamos aqui —
advertiu Liwei.
Preparámos as nossas armas, abrindo caminho furtivamente. Na clareira
diante de nós erguia-se o pagode, oito andares de altura, quase tão alto
como as árvores em redor. As torres escalonadas eram feitas de madeira
podre, as treliças das janelas e os ornamentos dos beirais numa cor
desbotada que podia ter sido outrora um vermelho-vivo. Como se confundia
com a paisagem desolada, uma mancha delapidada de castanhos e
cinzentos. Como parecia desolado, apesar da dúzia de soldados que o
rodeava, vestidos com armadura de bronze polido.
— Reconheceis a armadura? — perguntei.
— Não. Mas isso é fácil de disfarçar.
Liwei fechou os olhos por um momento e franziu a testa.
— A Princesa Fengmei está lá dentro; consigo senti-la. Temos de
eliminar os guardas sem fazer barulho, para evitar que deem o alarme —
disse para todos nós num sussurro. — Comecem com os que estão mais
perto de nós, avançando até ao pagode. Temos de ser rápidos para não
poderem gritar, ou a princesa ficará em perigo.
Ao sinal de Liwei, soltei uma flecha flamejante, que se cravou no peito
da guarda mais próxima. Quando um murmúrio engasgado lhe saiu da
garganta, acertei no guarda ao lado, que tombou para o chão de olhos
arregalados. Liwei e os seus guerreiros avançaram rapidamente para rodear
os restantes soldados, derrubando-os ao som de um coro ominoso de
arquejos estrangulados e gritos sussurrados.
A escaramuça terminara. Suor perlava-me a testa, apesar do calafrio que
me percorria a pele. Fora fácil... demasiado fácil. O olhar de Liwei
encontrou o meu, ecoando a minha suspeita muda.
— O pagode — disse ele. — Pode haver mais guardas lá...
Um rugido irrompeu da floresta, abafando o resto da frase. Uma vaga de
inimigos corria para nós, a luz do sol refletida nas armaduras de bronze
quando inundaram a clareira. Com um golpe de espada, Liwei derrubou
dois deles. Eu acertei uma flecha noutro que corria para ele... precisamente
quando um soldado inimigo desfaleceu aos meus pés. No tumulto, não o
ouvira. Podia ter-me apanhado desprevenida, não fosse a estranha flecha
com penas pretas que lhe saía do peito.
— Salve a princesa! — gritou Liwei, enquanto eu olhava em redor à
procura do arqueiro.
Ergueu então a espada em chamas e brandiu-a num arco largo, forçando
a recuar os atacantes que o rodeavam. As armas dos inimigos soltavam
reflexos prateados e dourados, enquanto outros carregavam correntes de um
metal escuro nas mãos. As correntes deixaram-me furiosa, a certeza de que
o tomariam como prisioneiro. Os restantes guerreiros travavam uma batalha
feroz à sua volta, em desvantagem, mas sem ceder terreno. Ainda tínhamos
uma hipótese... pelo menos por enquanto. Se eu encontrasse a princesa a
tempo.
Eu queria ficar e lutar, mas corri para o pagode, deixando a batalha para
Liwei e os outros celestiais. Medo apertava-me o coração, mas lembrei-me
ferventemente da perícia de Liwei com a espada e da sua poderosa magia.
Conseguiria mantê-los afastados até eu regressar. Quanto mais depressa
encontrasse a Princesa Fengmei, mais depressa poderíamos todos fugir
daquele sítio maldito.
Corri pelas escadas de madeira acima, quase esperando ser confrontada
por guardas a cada esquina. Contudo, o edifício estava estranhamente vazio
e cheguei ao último andar sem encontrar um único inimigo. Forcei a porta
grossa de madeira ao cimo das escadas, mas esta não se moveu. Impaciente,
invoquei uma rajada de ar que estilhaçou a fechadura.
A Princesa Fengmei levantou-se num salto, no meio das lascas e dos
pedaços de madeira espalhados pelo chão. O seu rosto em forma de coração
estava pálido e os olhos castanhos, arregalados, fitavam-me
inexpressivamente, como se não soubesse bem se devia gritar de terror ou
chorar de alívio. Inclinou a cabeça para um lado e escrutinou-me, como se
estivesse a tentar lembrar-se de onde nos conhecíamos.
— Sou do Exército Celestial. Estamos aqui para a salvar. Depressa, o
Príncipe Liwei está a ser atacado!
A minha voz vibrava de urgência.
Ela animou-se ao ouvir o nome de Liwei, erguendo os pulsos para mim.
Estavam presos com grilhetas de metal escuro unidas por uma corrente fina.
— Consegue tirar-mas?
Desembainhei a espada e golpeei a corrente fina. A lâmina ressaltou e o
meu braço ficou dorido com o esforço, mas não se via nem um arranhão no
metal. Serrar os elos não funcionou e martelar não lhes fez a mais pequena
mossa. Enquanto isso, a minha mente era atormentada por pensamentos de
Liwei lá em baixo, com flechas a voar para as suas costas desprotegidas,
com lâminas projetadas contra o seu peito.
— Não se mexa.
Puxei uma flecha, soltando-a sobre a grilheta no pulso direito. Fogo
carmesim percorreu o metal e fissuras tornaram-se fendas até o metal se
rachar. Respirando fundo, soltei outra flecha sobre o pulso esquerdo e a
outra grilheta caiu ao chão.
Os lábios da Princesa Fengmei curvaram-se num sorriso trémulo.
— Tem... tem muita pontaria — disse em voz baixa, afastando as
nuvens de cabelo preto que lhe tapavam o rosto.
A sua beleza delicada causou-me um aperto no coração. Engoli em
seco, baixando-me para atirar para longe os pedaços partidos de metal aos
seus pés. Queimavam como gelo ao colar-se à pele.
— Que correntes são estas?
Os seus ombros descaíram.
— Não faço ideia. Quando mas puseram, deixei de conseguir invocar a
minha energia.
Senti um espasmo doloroso no estômago. Aquelas correntes... vira os
soldados lá em baixo a carregarem correntes iguais. E no Mar do Leste,
Liwei falara-me de um minério do Pico Sombrio que conseguia suprimir os
poderes de um imortal.
— Depressa! — apelei, ajudando-a a pôr-se de pé. — O Príncipe Liwei
está em perigo!
Algo assobiou pelo ar; um som que todos os arqueiros sabiam de cor.
Atirei-me ao chão, puxando a princesa para baixo. Senti uma dor no braço e
fitei, incrédula, o sangue a escorrer de um corte. Fui até à janela e levantei a
cabeça, apenas o suficiente para ver algo afiado e brilhante a voar na minha
direção. Baixei-me e deitei-me no chão quando outra flecha mergulhou pela
sala.
Puxei uma flecha flamejante e soltei-a pela janela. No momento
seguinte, duas flechas voaram na minha direção, falhando por um cabelo
antes de chocalharem pelo chão. Cerrei os dentes. Aquele arqueiro era
formidável. Não era de admirar que não houvesse guardas ali; qualquer
inimigo que tentasse salvar a princesa teria sido abatido muito antes. As
penas pretas eram familiares, idênticas à flecha que abatera o meu atacante
lá fora. Teria sido eu o alvo? Teria o arqueiro falhado antes? Parecia pouco
provável, dada a sua perícia, mas mais improvável ainda era a ideia de que
o arqueiro me salvara, apenas para me tentar matar mais tarde.
Respirei fundo, furiosa com o meu atacante invisível. Tempo precioso
escoava-se. Se aquelas correntes conseguiam suprimir a magia de um
imortal, Liwei não teria hipóteses. Assestei outra flecha e levantei-me num
salto para ver o meu inimigo. Um vulto alto, um homem, erguia-se num
ramo largo, flecha preparada no arco. Tinha o rosto escondido por um
capacete, mas os seus olhos fitavam-me com um brilho prateado. Apanhada
de surpresa, os meus dedos soltaram a corda e a chama desapareceu.
Preparei-me para a flecha que esperava ver cravada em mim... mas o
arqueiro baixou o seu arco. Fitámo-nos um ao outro por um instante de
silêncio. Em seguida, ele recuou para as sombras e desapareceu.
Não tinha tempo para ponderar. Agarrei na mão da Princesa Fengmei e
corremos juntas pelas escadas, na direção da fúria da batalha, apenas para
emergir para a calma mortal de um cemitério. Havia corpos espalhados por
todo o lado, dezenas e dezenas com armaduras de bronze. Fiquei
desanimada quando contei dez corpos de dourado e branco, a armadura dos
celestiais tombados. Corri de um corpo para o seguinte, procurando sinais
de vida em cada um. Mas tinham todos os olhos vazios, as auras dissipadas.
— Onde está o Príncipe Liwei?
A voz de Princesa Fengmei tremia enquanto fitava a carnificina com
horror.
— Não sei — sussurrei, insensível a tudo, exceto ao terror que tomava
conta de mim, transformando-me a carne em pedra.
A luz minguante filtrava através do nevoeiro, envolvendo as árvores
com um halo sinistro. A Princesa Fengmei e eu vagueávamos pela floresta,
à procura de qualquer sinal de Liwei. A cada passo, o meu coração
afundava-se mais em desespero. Mal conseguia respirar, tomada pelo
pânico, mas a necessidade desesperada de o encontrar fazia-me continuar.
O choro abafado de Fengmei quebrou o meu torpor.
— O Príncipe Liwei é forte e poderoso. Talvez tenha escapado. Ou pode
estar ferido, incapaz de nos encontrar.
A minha voz soou oca e as minhas palavras falsas. Ele não nos teria
abandonado enquanto ainda houvesse vida nele.
Ela assentiu, soluçando de angústia ao agarrar-se à pequena réstia de
conforto que eu lhe dava.
— Obrigada por me salvar. Mas não conseguiria suportar se o Príncipe
Liwei estivesse em perigo ou... ou ferido.
A sua voz estremeceu e lágrimas começaram novamente a jorrar dos
seus olhos.
Uma onda de irritação atingiu-me, os meus nervos já em franja. Não
queria fazer de ama-seca naquele momento, só queria encontrar Liwei.
Como podia seguir o seu rasto com ela a chorar? Se estivéssemos a ser
perseguidas por inimigos, já teríamos sido capturadas ou mortas. Contudo,
reprimi o impulso de ralhar com ela. Em vez disso, passei-lhe um braço
pelos ombros e puxei-a para mim.
— Vamos encontrá-lo — prometi.
Uma promessa para ambas.
Isso pareceu acalmá-la e os olhos castanhos fitaram os meus.
— Agora reconheço-a. Era a companheira do Príncipe Liwei.
Conhecemo-nos no dia do banquete.
— Sim. No pavilhão.
Senti-me enleada pela saudade desses dias há muito passados e da
alegria que enchia então o meu coração. Ela soltou um suspiro.
— Na altura, foi bondosa comigo. Como está a ser agora.
Fiquei em silêncio, sentindo a vergonha que subia do estômago a chegar
ao rosto. Não, eu não fora bondosa, nem agora nem então. Da primeira vez,
não percebera quem ela era. E depois, não quisera aprender mais sobre ela,
talvez com receio de descobrir o que sabia agora, que a Princesa Fengmei
seria um bom partido para Liwei. Teria sido bem mais fácil se conseguisse
antipatizar com ela.
— É amiga de Sua Alteza? — perguntou ela.
Desviei o olhar, sob o pretexto de examinar a floresta em nosso redor.
— Sim, somos amigos.
Uma meia-verdade, como a Mestra Daoming teria criticado.
Quando ela ficou hirta, também fiquei, receando que pudesse perguntar
algo que me obrigaria a mentir. Ela ergueu a cabeça do meu ombro e
apontou para a minha cintura.
— Porque está isso a brilhar?
A gota-celeste. A joia normalmente límpida emitia um brilho vermelho,
pulsando com uma energia estranha. Forcei-me a respirar fundo, a conter o
terror que voltava a crescer em mim. Liwei estava em perigo. No entanto,
isso também significava que o podia encontrar.
Puxei a princesa para um maciço de árvores.
— Esperai aqui. Ficai escondida. Tentai não fazer o mais pequeno som.
Voltarei assim que puder. Se não regressar até à alvorada, segui para norte
até estardes fora da floresta, naquela direção. — Apontei, no caso de ela não
saber ao certo. — Já tendes a vossa magia de volta. Protegei-vos e atacai
quem tentar fazer-vos mal. Uma vez fora da floresta, podereis invocar uma
nuvem para vos levar para casa.
Vasculhei o meu cinto, saquei um punhal e dei-lho. Ela aceitou-o sem
dizer palavra, segurando-o sem grande força ou convicção.
— Apertai os dedos à volta do cabo — instruí. — Lâmina apontada para
longe de vós e inclinada para cima. Se tiverdes de atacar, não hesiteis.
Ela assentiu, com os olhos arregalados de medo. Senti-me culpada por a
deixar ali, mas estava a ficar sem tempo. Quando parti, virei-me para trás
para verificar se ela estava bem escondida. Então, afastei-me a correr até
sentir as pernas em chamas.
Segui a atração da gota-celeste até uma fenda estreita no sopé de uma
montanha. Sem receio dos perigos no interior, entrei pela abertura. Na
escuridão, o brilho vermelho da joia à minha cintura lançava uma luz
ameaçadora sobre as paredes. O ar húmido mal se movia, carregado de
bolor e podridão; engasguei-me quando me encheu os pulmões. Ao virar
uma esquina abrupta, tropecei no chão irregular e raspei a palma das mãos
ao cair.
Vozes chegaram até mim, vindas de longe. Baixei-me e rastejei pela
passagem estreita na direção do som, movendo-me mais depressa quando
avistei luz adiante. A passagem abria para uma saliência larga, para a qual
trepei, fitando a ampla câmara abaixo.
Senti um aperto no coração. Lá estava Liwei numa cadeira, preso com
as mesmas grilhetas que tinham usado para aprisionar a Princesa Fengmei.
Um fio de sangue escorria-lhe do cabelo para a cara. Um corte fundo
atravessava-lhe a testa, nódoas negras começavam a aparecer na cara. A sua
aura parecia diminuída, pulsando num ritmo errático. Contudo, mantinha a
cabeça erguida, como se estivesse sentado num trono, e não acorrentado a
uma cadeira. Observei os guardas e fiquei aliviada ao não encontrar entre
eles o estranho arqueiro. Ele sozinho teria sido um adversário formidável.
Teria sido morto pelos soldados celestiais antes de eles tombarem?
Uma aura chamou-me a atenção, muito mais forte do que as restantes,
poderosa e terrosa, estridente e dissonante. Não vinha dos soldados, tanto
quanto conseguia perceber, mas emanava antes da dama parada diante de
Liwei. Os seus olhos inclinados cintilavam num belo tom de bronze e a sua
pele, apesar de metade do rosto estar tapada por um véu fino, era branca
como neve acabada de cair. Peónias carmesim estavam bordadas no seu
vestido escarlate, desabrochando as pétalas sedosas para revelar estames
dourados. Um ramo de camélias estava preso à faixa na sua cintura. Quando
me acocorei na saliência de pedra, senti uma sugestão de fragrância floral,
enjoativamente doce com um leve toque de podridão.
— Usei uma pequena ave para apanhar um dragão. — A sua voz
exsudava satisfação. — Após todos os relatos das suas proezas, fiquei
desiludida com a facilidade com que caiu na minha armadilha, Vossa
Alteza.
Liwei cerrou o maxilar, contraindo os músculos como se estivesse a
debater-se com um inimigo invisível.
— Que correntes são estas? — protestou por fim.
— Um presente do Reino Infernal. Forjadas com metal do mundo
mortal, usando as artes proibidas pelo seu pai. — Observou então os
esforços de Liwei e acrescentou num tom entediado: — Pode debater-se à
vontade, mas a sua magia é inútil enquanto tiver essas correntes.
— Dama Hualing, porque está a fazer isto? Porquê aliar-se ao Reino
Infernal? — exigiu saber Liwei.
Dama Hualing, a Flor Imortal deposta? Pensava que ela partira da
floresta ou que desaparecera por algum ato maléfico. Nunca a imaginara a
viver naquelas cavernas escuras.
— Estava entre os imortais mais poderosos do reino, até optar por viver
em reclusão. Deseja mesmo trair o Domínio Imortal? — continuou Liwei,
numa voz calma, apesar do perigo.
Talvez esperasse ainda convencê-la pela razão. Ela riu-se, um som
amargo e sem alegria.
— Eu trair o reino? Acha mesmo que escolhi esta vida? Deixe-me
contar-lhe a história verdadeira, principezinho. Há muito tempo, o seu pai e
eu encontrávamo-nos nesta floresta. Ele casara-se recentemente com a sua
mãe, mas isso não o impedia de me cortejar.
Liwei tentou levantar-se da cadeira, mas dois guardas puxaram-no para
baixo, segurando-o pelos ombros.
Ela pareceu nem reparar, perdida nas suas memórias.
— Sempre que conseguia escapar, ele vinha até aqui. Ofereceu-me um
palácio no Reino Celestial. Eu recusei. Não era uma mera cortesã grata pela
sua atenção, mas uma das mais ilustres divindades em todo o domínio. —
Uma certa suavidade caiu-lhe sobre o rosto. — Numa noite de primavera,
quando as peónias estavam em flor, ele fez-me uma promessa. Que casaria
comigo, assim que tivesse poder suficiente para correr o risco de desagradar
ao Reino da Fénix, e erguer-me-ia ao nível da imperatriz.
Liwei abanou a cabeça, o sangue da sua ferida escorrendo-lhe pela cara.
— O meu pai nunca faria uma promessa tão imprudente.
— Os apaixonados fazem muitas vezes promessas que não podem
cumprir — asseverou ela. — Quando tudo isso chegou aos ouvidos da sua
mãe, ela fez-me uma visita, cuspindo ameaças e veneno. Antes de partir,
deu-me um presente.
A luz da caverna tremeluziu quando a Dama Hualing levantou o véu.
Na oval clássica do seu rosto, os lábios cheios eram de um vermelho
vibrante, o nariz delicadamente arqueado. As cicatrizes finas, uma em cada
lado da cara, intrigaram-me, tão ténues que mal se notavam.
O véu voltou a cair.
— As cicatrizes deixadas pelas Garras da Fénix nunca curam. Tenho de
viver com estas marcas odiosas para sempre.
Estremeci, lembrando-me dos dedais dourados afiados que cobriam os
dedos da imperatriz, que podiam facilmente cortar carne e osso. Mas, apesar
do que pensava a Dama Hualing, ela continuava linda. Era a crueldade da
sua expressão que me dava a volta ao estômago.
— Tem de haver uma explicação. E se foi um espírito que tomou o
aspeto da minha mãe? — protestou Liwei.
— Criança ignorante. Quem mais usa as Garras da Fénix? Quem mais
ameaçava eu, isolada como estava? — troçou ela. — Pior ainda, o seu pai, o
covarde desleal, abandonou-me. Num só golpe, fui privada da minha
beleza, traída pelo meu amor e exonerada do meu título. De tudo o que mais
prezava. Desde então, a minha vida tem sido uma miséria, mergulhada em
desgosto e arrependimento.
Quando ela estendeu os dedos para acariciar o rosto de Liwei, ele
afastou-se dela, tanto quanto os seus captores lhe permitiam.
— Por isso, é apenas adequado que eu prive aqueles que me torturaram
da única coisa a que dão valor. O seu filho. A pessoa mais amada por
aqueles que mais odeio.
— Dama Hualing, pense bem no que está a fazer. Isto é traição ao mais
alto nível. Vai ser expulsa do Domínio Imortal, perseguida pelos celestiais e
pelos nossos aliados. Vão cair sobre este sítio e...
A sua risada era estridente e irritante. Quando parou de rir, o seu sorriso
era o de uma raposa saciada.
— Não sou tola, Vossa Alteza. Não vou estar aqui quando me vierem
buscar. Assim que oferecer a sua força vital ao Rei Infernal, vou merecer a
sua gratidão eterna. Um presente de casamento, se lhe quiser chamar assim.
Talvez então ele consiga derrotar os seus malditos pais. Quando ele se
sentar no Trono Celestial, serei eu a sentar-me ao seu lado. Finalmente
imperatriz — gabou-se, erguendo um anel com uma ametista oval que
emitia uma luz malévola.
Ao avistar a joia, senti uma profunda repugnância, inexplicável e
estranha. E que quereria dizer acerca da força vital de Liwei?
Ele não demonstrou o mais pequeno sinal de medo.
— Dama Hualing, foi vítima de uma grave injustiça. Liberte-me e dou-
lhe a minha palavra de que investigarei o assunto. Qualquer mal que lhe
tenha sido feito será reparado. Não se deixe levar pelas promessas do Rei
Infernal. A perfídia dele não tem limites.
— Tal como a dos seus pais — vociferou ela, pressionando o anel
contra a testa de Liwei.
Liwei contraiu os músculos do pescoço e o seu rosto contorceu-se em
agonia. A ametista emitiu um brilho dourado e as pálpebras de o príncipe
estremeceram como as asas de uma traça aprisionada.
Algo quebrou dentro de mim. Não pensei. Consumida pela raiva, as
minhas mãos moveram-se de moto próprio, soltando uma flecha flamejante
que se cravou no braço da Dama Hualing. Ela soltou um grito e afastou a
mão de Liwei, enquanto os guardas acorriam em seu auxílio. Apontei uma
flecha às grilhetas de Liwei, tal como fizera às grilhetas da princesa. Mas a
raiva fez-me tremer demasiado e acertei na corrente entre os seus pulsos. As
grilhetas soltaram-se uma da outra e Liwei caiu ao chão. Moveu-se logo em
seguida, e o meu coração saltou no peito quando os olhos dele se abriram e
me fitaram, arregalados de choque e luminosos com... uma emoção que eu
não conseguia perceber. Antes que ele se conseguisse mover, os guardas
rodearam-no rapidamente, com escudos a reluzir no ar. Uma frieza
envolveu-me, o medo misturado com a raiva quando atirei sobre eles flecha
atrás de flecha, até que a barreira se quebrou e os guardas tombaram como
caules de arroz na colheita. Flechas e raios de magia eram arremessados na
minha direção. Atirei-me ao chão e rolei para longe do perigo. Estava a
cansar-me depressa; tinha de preservar a minha energia. A minha mente não
parava, tentando pensar numa forma de distrair a Dama Hualing e os
guardas para eu poder resgatar Liwei e fugir com ele. Mas então, o ar
pulsou com magia e um aroma intenso a terra e metal entrou-me pelas
narinas. Um musgo verde e brilhante cresceu sobre a parede de pedra,
espalhando-se pela saliência como água derramada, as raízes espinhosas a
cravarem-se fundo, abrindo fendas na rocha. Levantei-me num salto e
recuei com um escudo erguido, um instante antes de a saliência de pedra se
desfazer.
Caí pelo ar, despenhando-me pelo vazio. O grito de Liwei perfurou-me
os ouvidos, chamando o meu nome com um desespero agonizante. Abaixo,
a Dama Hualing gesticulou na minha direção, dissipando o meu escudo.
Sem proteção, os meus pés chocaram com o chão áspero da caverna e os
meus joelhos cederam quando caí à toa. Rolando para o lado, levantei-me
num salto e os soldados rodearam-me. Menos numerosos agora, mas mais
do que seria capaz de enfrentar sem ficar ferida. Amaldiçoei a temeridade
que me levou a revelar a minha posição. Teria sido bem melhor permanecer
escondida e apanhá-los de surpresa. Mas que mais poderia fazer com Liwei
sob um perigo tal? Quando os guardas avançaram de lança em riste,
invoquei a minha energia e libertei um vendaval que atirou a Dama Hualing
e os seus soldados contra as paredes de pedra.
Dando meia-volta, corri para Liwei, mas os soldados, os que restavam,
apressaram-se a rodeá-lo, alguns segurando-o com força. A Dama Hualing
aproximou-se de mim, com alfinetes cravejados de joias a pender à toa dos
anéis de cabelo. O véu voara-lhe do rosto e as cicatrizes destacavam-se na
palidez furiosa da sua pele.
— Quem se atreve a interferir? — A sua voz emanava ameaça.
Em resposta, puxei a corda do arco e apontei-lhe uma flecha flamejante.
— Pare ou ele morre — disse ela calmamente, gesticulando para um
soldado ao seu lado, que pressionou a ponta da lança contra o pescoço de
Liwei.
De imediato, forcei os dedos a largar a corda e a flecha flamejante
desapareceu. O olhar da Dama Hualing fixou-se no Arco de Fogo da Fénix
antes de deslizar até ao meu rosto.
— Ah... a arqueira. Arqueira-Mor, é assim que lhe chamam? Ouvi falar
dos seus feitos. — Soava curiosa. Até mesmo intrigada. — É uma pena que
as suas habilidades tenham sido desperdiçadas ao serviço do Reino
Celestial.
— Quem lhe falou de mim?
Não era convencida ao ponto de achar que a minha fama chegara a um
local tão remoto.
Ela não respondeu, apenas tamborilou no queixo, parecendo perdida em
pensamentos.
— O seu zelo na defesa do Príncipe Herdeiro é admirável, ao ponto de
se aventurar onde nada a espera a não ser a morte. Esqueça-o. Junte-se a nós
contra o Reino Celestial. O Reino Infernal recompensá-la-á bem. Qualquer
título, qualquer honra que queira será sua.
— Nunca.
A recusa brotou dos meus lábios, mas amaldiçoei-me de imediato por
ter revelado as minhas intenções. Uma estratégia mais sensata teria sido
fingir-me interessada pela sua oferta e ganhar a sua confiança, de forma a
ter uma hipótese de fugir. Mas essa sempre fora a minha fraqueza, a minha
incapacidade de pensar direito quando o coração estava perturbado.
Um sorriso lento surgiu-lhe nos lábios.
— Oh, isto é mais do que lealdade e dever, não é? — observou,
visivelmente deliciada. — Uma guerreira apaixonada por um membro da
realeza? O que poderia oferecer ao Príncipe Herdeiro, além da sua vida ao
seu serviço?
— Não sabe nada — criticou Liwei. — Xingyin, tens de sair daqui.
Agora.
Falou aquelas últimas palavras como um apelo, a voz a vibrar de
urgência. Mas se eu partisse, ele morreria. Sozinho.
— Ah, Vossa Alteza. Parece que a sua reputação não é tão honrada
como pensávamos — troçou a Dama Hualing. — Um romance com uma
plebeia com quem nunca se poderia casar. É mesmo filho do seu pai,
colhendo flores para seu próprio prazer e descartando-as quando começam a
murchar.
Virou-se então para mim, um olhar intenso e inquisitivo.
— Sabe que ele tem uma noiva? Uma noiva de sangue real, dotada de
beleza, poder e charme. Um prémio que ele arriscaria a vida para salvar, tal
como você sacrificaria a sua vida para o salvar.
Cada palavra sobre a Princesa Fengmei trespassava-me, tal como na
noite do noivado. Julgara-me acima de tais sentimentos, mas se podiam ser
ressuscitados tão facilmente... alguma vez me veria livre? Um pensamento
terrível passou pela minha mente, que talvez houvesse alguma verdade nas
suas palavras cruéis. Que eu fora ali para salvar Liwei, mas não alcançaria
nada, exceto a minha morte. E se eu morresse, o que aconteceria à minha
mãe? Nunca saberia do meu destino terrível, desperdiçando a eternidade
numa espera fútil, primeiro pelo meu pai, depois por mim. Porque
sacrifiquei tudo por alguém que me traiu, que talvez nunca me tenha
realmente amado?
Foi o brilho nos seus olhos que me fez parar para pensar. Ela provocara-
me bem, dando voz aos meus pensamentos mais cruéis, os que me
atormentavam à noite. Ela queria deixar-me com ciúmes, fazer-me duvidar
do meu valor. Permitir que o ódio deslizasse para dentro de mim e cravasse
as suas garras no meu coração. Respirei fundo, tentando controlar-me.
Precisava de a manter interessada, para ganhar tempo para um ataque ou
provocá-la a fazer algo imprudente. Não me atrevia a deixar que a sua
atenção regressasse a Liwei e às coisas vis que planeara para ele.
— Sim, estivemos juntos no passado — admiti hesitantemente. —
Agora, Sua Alteza e eu seguimos caminhos separados.
— A escolha foi sua ou dele?
Os seus lábios curvaram-se como se já soubesse a resposta.
Desviei o olhar, mais magoada pela pergunta do que esperara.
— A vida seria melhor sem amor — disse a Dama Hualing, com
sinceridade, como se eu fosse uma amiga de confiança. Como se eu fosse
igual a ela.
As suas palavras fizeram eco dentro de mim. Seria fechar o coração ao
amor, a todo o amor, o único caminho para o contentamento? Não o
imaginara eu mesma, durante aqueles longos meses de miséria? De facto, os
meus momentos mais sombrios foram quando abandonei os meus amados.
E, no entanto... também os meus momentos mais felizes foram passados
com eles. Mas não discordaria dela. Parecia acreditar que havia uma ligação
entre nós. Veria ela em mim uma parte de si mesma? Estremeci só de pensar
nisso, mas naquele momento tinha de avançar com cautela, de cultivar essa
ilusão para melhor a apanhar de surpresa.
— Talvez tenha razão — disse eu, deixando uma certa dureza penetrar
na minha voz. — O amor não me tem tratado bem.
— Nem a mim. — O peito da Dama Hualing arquejava. — Eu não pedi
o amor do imperador, mas ele seduziu-me com falsas promessas até eu lhe
retribuir o afeto. Quando me senti magoada e assustada, desejei o seu
conforto. Mas ele nunca regressou. Por causa dele, perdi tudo, até a
felicidade que sentia antes. Preferia que ele tivesse morrido a magoar-me
assim. Agora só quero vingar-me daqueles que me deixaram na desgraça.
Estremeci intimamente com a veemência daquelas palavras. Não
proferira uma maldição levada pela fúria, mas antes um desejo fervoroso
das profundezas do seu coração.
— Eles nunca vão mudar de ideias — continuou a Dama Hualing, num
tom baixo e íntimo. — A realeza celestial é orgulhosa, fria e inflexível. O
seu amor, uma vez perdido, não pode nunca ser recuperado. Pergunte-se
porque faz isto? Para ele poder acarinhar a sua memória depois de casar
com a sua princesa? Derramar uma lágrima sobre o seu túmulo? Que
agradecimento tão mesquinho para um sacrifício tão grande. Não
desperdice a sua vida.
Foi então que percebi, ela acreditava que as nossas situações eram
similares. Que também eu fora aprisionada num amor sem esperança; que
também eu fora posta de lado, e logo pelo filho do seu amante cruel. E que
as minhas ações eram uma tentativa desesperada de recuperar o que
perdera.
Cravei os dentes no lábio, mordendo com força até sentir na boca um
sabor a sal e ferro. Tal como ela, eu não procurara o amor. A minha vida era
completa sem ele. Contudo, apanhara-me de surpresa, insinuando-se nos
meus sentidos como um aroma subtil, até dar por mim a ver beleza numa
flor caída e encanto numa tempestade. Mas toda a alegria que me deu,
paguei-a dez vezes mais em mágoa. Mesmo quando achava que o meu
coração estava curado, as cicatrizes permaneciam, reabrindo ao mais
pequeno toque da sua mão.
Porque fazia eu aquilo? A pergunta voltava a ecoar na minha mente.
Sabia o perigo que corria quando segui o rasto de Liwei até ali, mas não
hesitei uma única vez. O meu único pensamento fora vir em seu auxílio. O
meu único receio fora pela sua segurança. Mas ela estava errada; eu não
estava a tentar reconquistá-lo. Teria sido por amizade, como dissera a mim
mesma? Ou por honra, para pagar uma dívida de bondade? A resposta
escapava-me, à espreita nos limites da minha mente.
Ergui o rosto, o meu olhar cruzou-se com o de Liwei... e então caiu-me
em cima com a força de um relâmpago. O que me esforçara por entender.
Aquilo a que tanto tentara resistir. Que temera saber porque essa revelação
podia ser o meu fim. Tantas palavras orgulhosas que lhe dissera, sobre
honra e dever. Mentiras, tudo mentiras.
Eu ainda amava Liwei.
Todo aquele tempo a dizer a mim mesma que os sentimentos por ele
eram um resquício do passado, o eco da nossa atração. O meu orgulho não
me deixava agarrar Liwei, ainda assim eu não o queria largar. Dissera-lhe
que se esquecesse de nós, quando eu própria era incapaz de o fazer. Sempre
que ele vinha ter comigo, uma parte secreta de mim regozijava-se por saber
que ele ainda me queria. A minha frieza para com ele era apenas uma
máscara para esconder os meus sentimentos, até de mim mesma, que o
amava ainda e nunca parara de o amar.
Aproximei-me de Liwei, agora quase a tremer. Os rostos dos soldados
confundiam-se com a paisagem de fundo; apenas via o príncipe. A custo,
exumei os segredos enterrados nas profundezas do meu coração. Se não lhe
dissesse agora, poderia não voltar a ter a oportunidade.
— Eu amo-te. — Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Lágrimas
que não tentaria esconder ou afastar. — Amei-te então. Amo-te ainda.
Tentei esquecer-te, esmagar esses sentimentos. Mas falhei.
Algo pesado soltou-se do meu peito e caiu, um fardo que não percebera
estar a carregar até àquele instante. Olhando para ele, perdi-me por um
momento no nosso passado. Apesar do ar estagnado daquela caverna
pútrida, quase conseguia sentir o doce perfume das flores de pessegueiro.
Obriguei-me a regressar ao presente, ao perigo atual. Os olhos de Liwei
fitavam os meus, os lábios afastados para falar, mas abanei a cabeça em
aviso. A Dama Hualing parecia siderada, o rosto iluminado pela
antecipação. Não fora daquilo mesmo que me acusara? Esperaria que Liwei
me rejeitasse? Que eu lhe fizesse companhia, amarga e destroçada? Ver-me
a virar contra Liwei satisfaria o seu desejo de vingança, validaria tudo o que
fizera, tudo em que se tomara, por causa do seu amor desprezado.
Não lhe daria essa satisfação. Não queria acabar como ela, afogada em
rancor e a ansiar por algo que não podia ter... até isso me destruir. Durante
as noites em que a minha dor atingiu o clímax, teria sido tão fácil deixar-me
afundar no ódio e no ressentimento. Contudo, por muito que o amasse,
amava-me ainda mais. E como começava a descobrir, o amor não tinha fim,
era algo que crescia e se renovava infinitamente, expandindo-se para
alcançar cada novo horizonte. Família. Amigos. E outros amantes também,
nenhum igual ao anterior, mas cada um precioso à sua própria maneira.
Falei para Liwei, erguendo a voz para ser ouvida.
— Não me arrependo de nada. Sempre acarinharei o que tivemos juntos.
Não sinto ciúmes da tua felicidade com outra e nunca desejaria a tua morte.
Aquele era o momento, podia não haver outro. Senti-me a contorcer-me
por dentro quando fitei o olhar furioso da Dama Hualing.
— Não somos iguais.
— Sua tola estúpida e sentimental.
Manchas vermelhas erguiam-se do rosto da Dama Hualing e os seus
olhos pareciam duas fendas. Estava agora a tremer, seria de desilusão ou
raiva?
Rápida como um relâmpago, ergui o arco, uma flecha flamejante nos
dedos. Atingi-a no peito com uma luz fulminante e ela cambaleou para trás,
um cheiro acre a carne e seda queimada a contaminar o ar. Mas então a sua
magia jorrou num fluxo cintilante e extinguiu as chamas com um silvo. Os
soldados atacaram-me, armas brilhantes à luz das tochas. Esquivei-me,
rodei para o lado e outra flecha voou dos meus dedos... apenas para atingir
o escudo que rodeava agora a Dama Hualing. Com um gesto dos dedos, um
cheiro terroso ergueu-se do solo, como folhas em decomposição numa
floresta. Gavinhas grossas brotaram, enrolando-se à volta da minha cintura
e prendendo-me contra o chão. Sangue escorria-me da cabeça quando me
tiraram o arco das mãos. Estendida no chão, tentei recuperar o fôlego
quando a ponta perlada de um chinelo de brocado levantou o meu rosto. A
Dama Hualing olhava para mim, os lábios retorcidos num sorriso cruel, um
rasgão queimado no vestido onde a minha flecha a atingira, mas a pele por
baixo estava macia, já curada.
Ela era forte. Eu falhara. E agora ela estava lívida.
— Que nobre da sua parte, amá-lo e libertá-lo para amar outra.
Acarinhar o passado e esquecer a dor. É assim tão altruísta, ao ponto de
arriscar a vida por um amor que já não é seu? — troçou, transformando a
minha confissão numa farsa. — Vamos ver como se aguentam os seus
princípios quando são verdadeiramente postos à prova.
Um guarda segurou-me pelo braço e pôs-me de pé. Dois outros
arrastaram Liwei até onde eu estava. As argolas de metal preto ainda lhe
rodeavam os pulsos, suprimindo o seu poder, e como me amaldiçoei por
falhar aquela primeira flecha. O olhar de Liwei nunca se afastou do meu.
Parecendo ignorar o perigo que corríamos, brilhavam com o carinho e a
ternura que recordava.
— Arriscou a sua vida por ele, mas será que ele fará o mesmo por si?
A sua voz transbordava de escárnio.
— Deixe-a partir. Não lhe resistirei — disse Liwei, sem um momento de
hesitação.
Uma alegria intensa vibrou nas minhas veias. Mesmo temendo o que
viria a seguir, que aquela declaração apenas a deixaria mais furiosa.
A sua boca estendeu-se num sorriso sem alegria.
— Esta noite, vamos ter entretenimento. Uma luta. Até à morte. Entre
vocês os dois. Se vencer, Arqueira-Mor, pode ir em liberdade. Até a deixo
ficar com o seu arco.
A doçura da sua voz chocava com o sentido odioso das suas palavras.
Não podia ter ouvido bem. Não estava a falar a sério; não podia estar a
falar a sério. Queria que Liwei e eu... lutássemos até à morte para nos
salvarmos? Seria uma piada doentia para nos assustar? Mas quando olhei
para o seu rosto, tão encantador e impiedoso, um arrepio percorreu-me a
espinha.
Aquilo não era um jogo.
Os olhos de Liwei pareciam em chamas.
— Não vou lutar contigo, Xingyin. Por favor... sai daqui.
Abanei a cabeça. Não o abandonaria a uma morte certa, nem mesmo
para me salvar.
A Dama Hualing soltou um suspiro.
— Caso se recusem a lutar, serão ambos mortos. Um final bastante
romântico, defender até ao fim os vossos honoráveis princípios, mas
também um desperdício irresponsável.
Um desespero profundo caiu sobre mim quando fitei o olhar lúgubre,
mas resoluto, de Liwei. Os nossos braços permaneceram tombados ao lado
do corpo, desafiando as suas ordens. Não seríamos peões no seu jogo
doentio. Nem eu me renderia pacificamente; lutaria até drenar toda a minha
energia, até ao nosso último fôlego. Só então poderia ela arrancar a sua
vitória sangrenta das nossas mãos sem vida.
A Dama Hualing estalou a língua contra o céu da boca.
— Que desilusão. Estava à espera de um entretenimento mais animado.
Contudo, há formas de garantir a vossa cooperação.
O seu escudo cintilou quando se aproximou de Liwei, agarrando-lhe o
queixo com os dedos, as unhas a cortar-lhe a pele.
Ele tentou afastar-se, com uma expressão de horror no rosto. Contudo,
ela segurou-o com força e os soldados apertaram-lhe os braços atrás das
costas.
— Liwei!
Corri para ele, tentando passar pelos guardas, que me agarraram e
empurraram para trás.
As pupilas da Dama Hualing cintilavam como fragmentos de topázio.
Uma memória surgiu na minha mente, algo que Liwei me dissera sobre os
Talentos da Mente: Os seus olhos, que cintilam como joias lapidadas.
O medo tomou conta de mim, seguido de perto pela dúvida. Recusava-
me a acreditar, não me atrevia. A Dama Hualing era do Reino Celestial, não
do Reino Infernal, da Muralha Nebulosa ou lá como se chamava aquele
sítio. Outrora a Flor Imortal, o seu talento devia ser da Terra, não da Mente.
Eu própria testemunhara o seu poder, o musgo rastejante e as gavinhas
monstruosas. Era impossível que ela conhecesse a magia proibida. E mesmo
que conhecesse, certamente o imperador tê-la-ia reprimido. E se o
imperador não soubesse? E se ela tivesse desaparecido antes de tal magia
ser banida?
Gotas de suor brilhavam na pele de Liwei. Mesmo assim, a Dama
Hualing não o largou. Não conseguia parar de pensar que ela era um dos
imortais mais poderosos em todo o domínio. E mesmo se a magia de Liwei
não estivesse suprimida, ele fora enfraquecido pelo combate e pelo anel de
ametista. Se ela estava a tentar controlá-lo, falharia de certeza, tentei
reassegurar-me. Liwei também era forte. Ele não cederia, ele lutaria...
Mas quando a Dama Hualing e os seus guardas o soltaram, já não o
reconhecia. Algo vital se perdera nele.
Estremeci por dentro ao fitar-lhe os olhos. Pior do que o olhar de um
desconhecido, eram frios como os olhos do pai. Ficou imóvel, com um
rosto inexpressivo, até quando um guarda lhe pôs uma espada na mão.
Alguém me estendeu outra espada e os meus dedos fecharam-se
instintivamente à volta do punho.
Quando a Dama Hualing se debruçou para mim, quase me engasguei
com o cheiro a flores em decomposição que me inundou as narinas.
— Já se arrependeu de ter rejeitado a minha oferta? Um último aviso:
não seja tonta ao ponto de sacrificar a sua vida por ele. Ele não lhe vai dar
valor; os homens desta família têm corações empedernidos.
Sem hesitar, saltei para a frente e apontei-lhe uma estocada. Quando a
espada chocou com o seu escudo, dor percorreu-me o braço. Voltei a erguer
a espada, era preferível morrer a lutar, mas os soldados empurraram-me
para o lado e um pontapeou-me atrás dos joelhos para me deitar ao chão.
A Dama Hualing baixou-se e passou um dedo gelado pelo meu rosto.
Estremeci e afastei-me do seu toque.
— Não se esqueça de que ainda tem os seus poderes — falou num
sussurro íntimo. — Se deixar que ele a mate... bom, a vida dele está perdida
de qualquer maneira. Mas se o matar, pode partir em liberdade.
Algo quebrou dentro de mim. Uma escolha impossível, morrer num
sacrifício fútil ou matar Liwei para me salvar. Mais do que querer ver Liwei
morto, ela queria que fosse eu a matá-lo. Sentiria um prazer sádico em
atormentar o filho do seu inimigo? Apreciaria a ideia de me condenar a uma
vida de miséria e arrependimento, como a dela? Ou quereria apenas provar
que eu estava errada? Que, apesar dos meus protestos, eu e ela não éramos
assim tão diferentes, que a mesma crueldade que vivia no seu coração
espreitava também no meu?
Oh, eu provocara-a demasiado bem, e agora ambos pagaríamos por isso.
A Dama Hualing bateu palmas, o som oco ecoou na caverna. Como se
fosse um sinal, o corpo de Liwei estremeceu e começou a andar para mim.
De espada em punho, começou a rodear-me, numa paródia cruel das muitas
vezes que me desafiara para um treino.
Não me conseguia mover, incapaz de desviar a atenção do seu olhar sem
vida. Mesmo naquele momento, não conseguia acreditar que ele me fizesse
mal. Apesar de eu própria quase ter sido controlada no Mar do Leste e ter
visto do que era capaz apenas uma fração daquele poder.
Então atacou-me, rápido como um relâmpago. Atordoada, ergui a
espada, um segundo tarde de mais, e a sua lâmina deixou-me um corte na
cara. Sangue escorria do golpe doloroso, mas isso não era nada comparado
com a agonia dentro de mim. Porque ele olhava para mim, não com ódio,
mas com indiferença.
Um brilho metálico, duro e intenso. O meu corpo moveu-se de moto
próprio, erguendo um braço, e as nossas lâminas chocaram. Ele
pressionava-me sem misericórdia e cambaleei sob a força do golpe,
afincando os calcanhares no chão. Numa simulação súbita, ele rodou para o
lado. Desequilibrei-me para a frente e a sua espada correu sobre as escamas
da minha armadura, atingindo-me no ombro. Ferro frio cortou-me a carne
até ao osso. Um puxão suave do braço e a lâmina saiu do meu corpo com
um som húmido. Um arquejo de ar saiu-me dos pulmões e pressionei a
ferida com uma mão, sangue a escorrer-me pelos dedos. O meu corpo foi
percorrido por uma onda de raiva, embora a culpa não fosse dele, e golpeei-
o. A minha lâmina penetrou-lhe a armadura e cravou-se no seu flanco.
Puxei imediatamente a espada, antes que fosse fundo de mais, atormentada
por vergonha e remorso... juntamente com horror por ele nem sequer ter
estremecido.
As nossas espadas chocaram. Uma e outra vez. Contive-me a cada
ataque, apesar de ele não mostrar o mesmo comedimento. Contudo,
estávamos mais equilibrados do que eu esperara. Ele sempre fora o melhor
espadachim, mas eu tinha o benefício do treino de um soldado. Eu era
rápida, ele era forte. Os meus ataques eram hábeis, os seus eram
implacáveis. A magia ter-lhe-ia dado vantagem, mas estava suprimida. E
dei por mim relutante em usar a minha magia contra ele. Era uma distinção
mínima, mas usar os meus poderes contra ele parecia ser uma execução. Até
mesmo injusto. A minha mente protestava, para que servia tal honra,
mesmo quando o meu coração sussurrava que não era Liwei quem me
atacava tão impiedosamente, apenas a concha vazia do seu corpo, com outra
vontade a puxar-lhe os fios. Era meu adversário, mas não era meu inimigo.
E apesar de querer ganhar, não o queria matar. Não era apenas a honra que
me impedia, mas também um instinto de sobrevivência, sabendo que matar
o meu amado também me destruiria. Jamais conseguiria recuperar, nunca
em toda a eternidade. Nem mesmo se encontrasse o caminho de volta para o
lar.
O meu pé prendeu-se numa pedra solta e caí. Num instante, a ponta de
Liwei pressionou-me o pescoço. Parou então, contraindo um músculo na
cara. Estaria a resistir ao controlo da Dama Hualing? Olhei para ela, uma
luz ofuscante a verter-lhe dos olhos, a testa coberta por uma camada de
suor. Estaria a cansar-se? Esperança brilhou dentro de mim, apenas para ser
extinta quando a mão de Liwei tremeu, um momento antes de cravar a
espada no meu peito. Arquejei e perdi a força nas pernas ao cair para o chão
de pedra, afundando numa poça do meu sangue ainda quente.
A escuridão chamava por mim, um vácuo misericordioso sem a dor que
percorria o meu corpo, eclipsada apenas pela agonia de saber que fora ele a
fazer aquilo. Uma memória esquecida despertou em mim. Os braços da
minha mãe a erguerem-me do sítio onde caíra, limpando-me uma lágrima
com o polegar. Como doera a perna arranhada, a minha primeira ferida a
sério, até o seu toque frio e murmúrios suaves terem aliviado a dor.
Aquilo não seria o fim.
Abri os olhos. Invoquei um fragmento precioso de poder e selei a ferida.
Os curandeiros teriam ficado arrepiados com o meu trabalho tosco, com a
cicatriz que deixaria, mas a dor dissipou-se e a hemorragia estancou. Com a
mente um pouco mais clara, levantei-me a custo, procurando no rosto de
Liwei o mais pequeno sinal de reconhecimento. Contudo, não encontrei
nada; nem um vislumbre de amor nem uma réstia de remorso. E nesse
momento, algo se tomou claro para mim: não deitaria fora a minha vida.
Não seria derrotada por mim nem por mais ninguém. Lutaria pela vida e
enquanto houvesse vida haveria esperança. Para agarrar a oportunidade de
sobrevivermos, arriscaria tudo. Até mesmo as nossas vidas.
A minha energia estava a diminuir. Invoquei tanto quanto consegui, o ar
a tremeluzir enquanto arremessava a minha magia contra Liwei. Correntes
de ar envolveram-lhe o corpo, atirando-o ao chão, selando-lhe os ouvidos, o
nariz, a boca e as pálpebras. Cobrindo cada pedaço da sua pele até não ser
capaz de fazer mais nada a não ser ficar ali deitado, como um animal numa
armadilha. Se o seu poder não estivesse suprimido, nunca teria conseguido
prendê-lo assim.
O riso deliciado da Dama Hualing ecoou nos meus ouvidos. Não era
aquele o espetáculo que nos forçara a desempenhar? Teria sonhado com
infligir um tal tormento ao seu próprio amante desleal?
Preso no casulo de ar em que o sepultei, Liwei estava mais pálido do
que a neve. Aflita, contive o impulso de o libertar. Mas estava determinada;
já não podia parar. O meu poder fluiu, assentando sobre cada poro de sua
pele, até ele cintilar com milhares de luzes prateadas, como se estivesse
coberto de pó de estrelas. Se me tivessem arrancado o coração do corpo,
não teria sofrido mais; a dor perdeu todo o sentido.
Por fim, Liwei parou de se debater e o seu corpo ficou imóvel, o pulsar
regular da sua aura cada vez mais fraco, até deixar de o sentir. Só então
parei. Tinha os olhos secos, apesar de interiormente ter chorado um rio.
Como me sentia miserável, partida e rasgada e ferida, mas recusava-me a ir
abaixo. Deixando-me cair ao chão, os meus dedos procuraram a mão fria de
Liwei, pressionando as nossas mãos uma contra a outra.
— Desculpa — disse-lhe num sussurro rouco. — Perdoa-me.
Um aplauso forte ecoou pela caverna, chocando com o meu desespero.
Foi então que ganhei consciência da coisa vil e indescritível que fizera. A
Dama Hualing queria magoar quem lhe fizera mal, mas eu abatera a única
pessoa que ainda amava. À luz fria da vitória, seriam vazios os meus
motivos? Disfarçando apenas o meu desejo egoísta de viver?
Perdi o controlo. Afastei-me de Liwei, como se ele queimasse; não
merecia tocar-lhe. Não depois daquilo, depois do que lhe fizera. Apertando
o corpo com os braços, vomitei até o meu estômago se fechar em protesto.
Soluços de choro rasgavam-me a garganta, feios e ferozes, ecoando no
silêncio terrível.
Mas ainda não acabara. Não podia deixar que tudo aquilo fosse em vão.
Reunindo as últimas réstias de dignidade, levantei-me com esforço.
— O meu arco — disse calmamente para a Dama Hualing.
Ela inclinou a cabeça.
— Dei a minha palavra. E a minha oferta mantém-se. O Rei Infernal
ficaria agradado por a ter a seu lado. Uma mente sagaz, um braço forte e
uma vontade determinada. Alguém que faz o que precisa de ser feito,
quando chega a hora.
Estremeci com aquele elogio, esperando que ela encarasse isso como
cansaço, não como repugnância. Nunca me imaginara uma pessoa
sanguinária, mas naquele momento tê-la-ia matado com alegria. Contudo,
ela não me mentira. As minhas mãos estavam manchadas com o sangue de
Liwei; a escolha de lhe fazer mal fora minha.
— Tinha razão — disse eu, tentando iludi-la com um falso sentimento
de segurança. — Não faz sentido morrer por uma questão de princípio. E
vou ponderar a sua proposta, mas apenas porque o Reino Celestial não me
vai querer de volta depois disto.
Quando a Dama Hualing assentiu, um guarda atirou-me o Arco do Fogo
de Fénix. Quando o agarrei, uma memória surgiu na minha mente, da
primeira vez que o segurei no pomar de pessegueiros em flor. Numa outra
vida, quando eu ainda estava inteira. Virei-me para trás, cambaleando de
novo para ele. Morto e acorrentado, continuava a ser o príncipe imperial da
cabeça aos pés. Como rezei para que o nosso tormento acabasse
rapidamente.
— Libertem-no.
Apontei para as grilhetas. Vê-las deixava-me furiosa para lá do que era
suportável. Fá-lo-ia eu própria, mas não queria levantar suspeitas.
— Porquê? — perguntou ela.
Olhei-a nos olhos.
— Fiz o que queria que fizesse, apesar de me ter custado imensamente.
O Príncipe Liwei deve ser sepultado com toda a cerimónia que merece. Eu
farei o último serviço de devolver o corpo aos seus pais, mas não o vou
levar agrilhoado como um escravo. Além disso, quer que isto caia nas mãos
do Reino Celestial? — Gesticulei para o metal que lhe rodeava os pulsos.
Quando ela não falou, franzi a testa.
— Não quer que Suas Majestades Imperiais saibam o que fez ao seu
filho?
— O que a Arqueira-Mor fez — troçou ela com uma crueldade
requintada. — Agradar-me-ia que o corpo fosse entregue por si. Só desejava
poder lá estar para ver.
Meneou então a cabeça para um soldado, que se apressou para a frente.
O soldado premiu algo contra as grilhetas, que caíram, chocalhando no
chão. Sem perder tempo, pus o braço de Liwei sobre o meu ombro para o
levar embora.
— Espere.
A Dama Hualing aproximou-se, o anel de ametista a reluzir-lhe no dedo.
— Tenho de lhe drenar a força vital, está a esvair-se depressa. Vai ser
mais rápido agora, sem as correntes.
A minha respiração acelerou e tentei acalmar-me. Não permitiria que ela
o profanasse mais. Quando ela estendeu a mão para Liwei, invoquei a
minha energia, preparando-me para a soltar... mas o ar aqueceu e uma força
poderosa arremessou a Dama Hualing para longe. Ela bateu contra a parede
e o seu escudo dissipou-se quando faixas de fogo a prenderam. Virei-me
para trás e deparei-me com Liwei, erguendo-se a custo, a ponta da espada a
raspar no chão. Quando três soldados o atacaram, brandiu a espada num
arco largo e o golpe lançou-os pelo ar. Um guarda correu para mim de lança
em riste e abati-o com uma flecha rápida no peito.
Estava a tremer, com o coração ao rubro. Não fora mais do que um
palpite, baseado no pouco que sabia. No Mar do Leste, selara a audição para
combater a influência do Governador Renyu, mas a sua magia era
transmitida apenas pela voz, e isso não teria funcionado ali. Contudo, o
governador mencionara que a morte era a única libertação daqueles
controlados por tal poder. Por isso, para quebrar o controlo da Dama
Hualing sobre Liwei, selei todos os seus sentidos, deixando-o às portas da
morte. Se tivesse falhado, ele teria morrido ou ter-me-ia matado. E ambos
teríamos perecido para nada.
Quando, depois, lhe segurei a mão, canalizei para ele alguma da minha
energia. O máximo que conseguia sem levantar suspeitas. Eu não era
curandeira e só podia rezar que fosse suficiente. Nunca poderia arriscar a
vida dele só para salvar a minha. Mas fizera-o para nos salvar a ambos.
Esperara que, se Liwei parecesse morto, a Dama Hualing me deixasse
levá-lo. E quase funcionou. Mas exultei cedo de mais; ainda não estávamos
fora de perigo. Demasiado tarde, senti-a a reunir o seu poder. Com um só
golpe, a Dama Hualing dissipou as faixas de fogo que a prendiam e puxou
gavinhas para fora do solo, enrolando-as à volta de mim e de Liwei,
apertando-me o peito até não conseguir respirar, estrangulando-me os
membros até deixar de os sentir. Antes que eu começasse a desesperar, a
magia de Liwei irradiou em redor, queimando as plantas.
A Dama Hualing voltou a erguer as mãos. O cheiro húmido a terra
tornou-se forte e o ar cintilou com a sua magia. Ergui uma barreira e Liwei
reforçou-a com o seu poder. Eu não conseguia lutar sozinha com ela,
contudo, juntos tínhamos uma hipótese. A sua energia estralejou quando
nos atingiu, transformando-se em gavinhas infinitas que emitiam uma luz
sinistra enquanto se contorciam contra o nosso escudo. Suor escorria-me
pela testa enquanto tentava imaginar o que procurariam com uma fome tão
voraz.
O meu esforço não lhe passou despercebido. Os lábios vermelhos da
Dama Hualing curvaram-se para cima à medida que a pressão esmagadora
sobre o nosso escudo se intensificava. As trepadeiras contorciam-se com
um vigor renovado. O tempo não estava do nosso lado; sentia-me exausta e
as forças de Liwei também deviam estar a diminuir. Em breve tombaríamos,
fosse pela fadiga, fosse pelo encantamento malévolo da Dama Hualing, ou
às mãos dos soldados à nossa volta, cujos rostos se iluminavam em
antecipação.
Não, eu não abdicaria assim tão facilmente das nossas vidas. Um plano
formou-se na minha mente, louco e imprudente, mas o mais pequeno
vislumbre de esperança era preferível à morte certa. O meu olhar encontrou
o de Liwei e enunciei-lhe em silêncio que mantivesse firme o escudo. Ele
assentiu, acusando o esforço quando passou a sustentar sozinho a nossa
barreira. Reuni as últimas réstias da minha energia numa esfera brilhante
pouco maior do que um berlinde e arremessei-o para atingir o escudo de
Liwei do lado de dentro. O escudo estalou, mas a trama de trepadeiras
segurou-o. Cerrei os dentes e um silvo de ar escapou-me dos lábios. O aviso
severo da Mestra Daoming sobre não esgotar o meu poder ecoava-me na
mente, mas não podia parar. A minha cabeça latejava quando tirei de mim
as últimas faíscas de luz e lancei-as para fora numa rajada de vento.
O nosso escudo desfez-se e a força arremessou para longe as trepadeiras
da Dama Hualing, para cima do seu corpo, dos soldados em fuga, do teto e
das paredes, onde ficaram como se tivessem criado raízes. Fendas
percorreram a caverna, a pedra a gemer e a tremer.
Tombei para o chão, oca como uma lanterna de papel pisada por um pé
descuidado. Tremia, não pelo frio da caverna, mas pelo gelo que me
percorria os membros. Sentia as pálpebras pesadas, desejosas de se
fecharem, de se renderem à escuridão que se espalhava pelo meu corpo.
Tudo ficou difuso, até já não saber se estava viva ou presa num sonho sem
fim.
Luzes rodopiaram no ar com um brilho dourado, a magia de Liwei a
fluir para o meu corpo alquebrado. As luzes mergulharam no negrume, mas
não se extinguiram, como a luz do sol a cintilar sobre o mar noturno.
Irradiaram até ao núcleo da minha força vital, enterrada no fundo da minha
cabeça, invocando uma única faúlha prateada, a minha última energia. O
frio dentro de mim recuou, a minha força de regresso quando despertei e
deparei com os dedos de Liwei entrelaçados nos meus, ambos deitados no
chão.
Os olhos da Dama Hualing estavam vidrados, a sua boca aberta num
grito sem som. O seu corpo contorcia-se sob as gavinhas que se enrolavam
à sua volta num abraço estrangulador. Cada vez mais apertadas, rasgando a
seda do vestido, espremendo a carne até ficar vermelha e roxa. Engoli a
bílis que me veio à boca, vendo os seus esforços a enfraquecerem, as
camélias que trazia à cintura a ficarem murchas, as peónias de seda no seu
vestido agora castanhas e rotas. A luz apagou-se nos seus olhos e a
amargura desapareceu-lhe do rosto... até restar apenas a sua beleza fria.
Podia ter ficado ali até a lua crescer e minguar, incapaz de invocar a
força para me levantar. Mas a caverna estremeceu com mais força do que
antes. Pedras caíam de cima quando Liwei me pôs de pé, os meus músculos
doridos enquanto corríamos para a entrada. Um pedaço de pedra atingiu-me
nas costas e deitou-me ao chão. Nuvens de pó tombavam do teto fraturado,
a derrocar. Precisamente quando Liwei invocou um vendaval que nos levou
para a entrada, a caverna colapsou atrás de nós com um rugido
ensurdecedor.
O solo firme oferecia escasso alívio ao meu corpo massacrado. Não me
conseguia mover, deitada na terra como se estivesse presa ao chão. Uma
respiração ofegante e depois outra escapou dos meus pulmões. Os olhos de
Liwei estavam abertos, a fitar os meus. Quando a cor regressou ao seu
rosto, o meu medo recuou. Então, ele estendeu-me a mão e segurou-me o
rosto, molhado com lágrimas que não me recordava de ter chorado.
Sorri, contente por sentir o seu calor. Não tinha mais palavras; dissera
tudo o que trazia no coração.
O brilho luminoso da lua lançava um encanto sobre a floresta. À luz
pálida, as árvores mortas reluziam como colunas polidas de prata e jade. O
nevoeiro desaparecera, disperso pelo vento noturno. Teria sido invocado
pela Dama Hualing para se esconder do mundo?
Folhas restolharam, ramos estalaram. Virámo-nos quando a Princesa
Fengmei emergiu da floresta. Com um grito de alegria, correu para Liwei e
abraçou-o. Os olhos dele precipitaram-se na minha direção, a sua mão
hesitante antes de a abraçar.
Sentei-me com esforço, desviando o olhar do seu reencontro, mas os
seus sussurros trespassavam-me os ouvidos. Por fim, a Princesa Fengmei
tocou-me no braço.
— Escondi-me onde me disse, até ouvir um estrondo forte. Depois de
me escrutinar, levou uma mão à boca. — Está bem?
Eu devia ser uma visão medonha, coberta de sangue, nódoas negras e
sujidade. Mas a sua preocupação tocou-me.
— Vou ficar, quando Vossa Alteza nos levar de volta para o Reino
Celestial.
O sorriso da Princesa Fengmei vacilou quando olhou para Liwei. A sua
expressão era inescrutável, mas os olhos eram lagoas profundas nas quais
eu corria o risco de me afogar se os fitasse por demasiado tempo. O olhar da
princesa recaiu sobre a gota-celeste que o príncipe trazia à cintura. Olhou
então para a gota-celeste que pendia do meu cinto, agora translúcida de
novo.
— Joias a condizer.
A sua voz era suave como uma brisa num prado. Um impulso
inexplicável de explicar tomou conta de mim, apesar de ela não ter
perguntado nada.
— Um presente de amizade — disse-lhe.
Ela não respondeu, ficando em silêncio enquanto Liwei se levantava e
me estendia a mão. Segurei-a e levantei-me com esforço, combatendo o
impulso de o abraçar, de me deliciar com a sensação da sua pele contra a
minha. Quando ele ajudou a Princesa Fengmei a levantar-se, apressei-me à
frente deles. Não queria intrometer-me nem era suficientemente forte para
suportar a visão do seu braço protetor sobre os ombros dela. Não quando o
meu coração ainda sofria depois de tudo por que passáramos. Depois de
tudo o que confessara, tanto a mim como a ele.
Dirigindo-me para norte, abri caminho através das árvores, para lá da
floresta, na direção do odor de erva viçosa e flores silvestres. Inalei
profundamente, deliciando-me com a frescura do ar. A magia da Princesa
Fengmei irrompeu pelo ar, invocando uma nuvem grande que desceu na
nossa direção. Subi para a nuvem, ansiosa por abandonar aquele cemitério
de sonhos destroçados. Agora que tudo terminara, sentia piedade ao pensar
no destino da Dama Hualing, um final trágico para uma imortal tão ilustre.
Lembrei-me também da minha mãe, a sofrer pelo meu pai, a viver metade
da sua vida na sombra, enterrada em memórias e arrependimento.
Não, não faria as mesmas escolhas que elas. Não ansiaria pelo que
perdera, impossível de recuperar. Olharia para os dias vindouros, para a
felicidade que me esperava... se tivesse a coragem e a firmeza de a alcançar.
A luz do sol cintilava através dos pilares de cristal, lançando centenas
de pequenos arco-íris sobre as lajes esculpidas. Quando uma brisa fresca
soprou pelo Salão da Luz Oriental, as cortinas de contas de jade atrás dos
tronos tilintaram suavemente. Naquele dia, toda a corte estava presente, o
peso de todos esses olhares sobre mim quando me ajoelhei no chão.
Estendendo os braços, dobrei o corpo até ficar com a testa e a palma das
mãos encostadas ao chão, em homenagem formal ao Imperador e à
Imperatriz Celestial.
— Erga-se — entoou o imperador.
Lentamente, estiquei as pernas e ergui a cabeça para os tronos. Suas
Majestades Celestiais estavam resplandecentes em brocado amarelo-
imperial. Pérolas lustrosas pendiam da coroa do imperador e um toucado de
ouro e rubis com a forma das asas de uma fénix repousava no cabelo da
imperatriz. Ao seu lado erguia-se Liwei. O seu quimono de gola alta em
brocado azul-escuro estava bordado com garças douradas entre nuvens
brancas. Elos de jade cingiam-lhe a cintura e trazia uma coroa de safiras
sobre o nó no cabelo.
Fitei o seu rosto, aliviada por não encontrar o mais pequeno sinal dos
ferimentos que sofrera na Floresta da Primavera Eterna. Sentira-me
demasiado nervosa para o procurar antes. Até mesmo receosa. Naquela
caverna húmida onde a morte nos visitara, expusera-lhe o meu coração.
Apesar de cada palavra ser sincera, à luz do dia e sem perigo a pairar sobre
nós, a memória da minha ousadia mortificava-me. Mas não me arrependia
de nada. Compreendia agora que, antes de enfrentar o futuro, tinha de me
soltar das amarras do passado.
Olhei para Wenzhi, parado a um dos lados do salão. Ele acenou
reconfortantemente quando lhe sorri, encorajada pela memória dos cuidados
que tivera comigo desde o meu regresso, ordenando aos curandeiros que
tratassem de mim, trazendo-me medicamentos e ervas raras para acelerar a
minha recuperação. A sua presença constante levou ao rubro os rumores
que nos rodeavam. Mas depois de tudo o que sofrera, não queria saber o que
diziam as línguas ociosas. E já não podia alegar que eram apenas rumores.
Os lábios da Imperatriz Celestial estavam franzidos, como se tivesse
trincado uma nêspera pouco madura. Já os olhos de Liwei tinham um brilho
tal que era difícil para mim desviar o olhar. Atrás de mim, sussurros
pairavam no ar, o meu nome repetido em tons murmurados. Eu não era a
única que se interrogava sobre porque fora chamada.
O Imperador Celestial falou então.
— Arqueira-Mor, prestou um grande serviço ao nosso reino. Sem a sua
ajuda, o nosso filho teria perecido. Ele falou extensamente dos seus feitos.
A Princesa Fengmei também expressou a sua gratidão pelo seu salvamento.
Elogiamos a sua coragem e valentia, e agradecemos-lhe pela proteção do
nosso filho e da sua noiva.
Com um sorriso tenso, fiz uma vénia de agradecimento. Um elogio tal
vindo do Imperador Celestial era mais raro do que a lua eclipsar o sol.
Contudo, apesar das palavras, o seu rosto permanecia frio e impassível. Se
sentia alívio pela fuga do filho ou choque com a morte da Dama Hualing,
não lhe vi no rosto o mais pequeno sinal.
— Arqueira-Mor Xingyin, ouça a minha vontade.
Como era estranho ouvir o meu nome falado pelo imperador. O meu
corpo ficou tenso quando um silêncio envolveu a corte como um manto de
neve. Algo tilintou e exclamações ergueram-se no ar. Olhei para cima e vi
que o Imperador Celestial estendera a mão para mim, uma placa oblonga de
jade vermelho pousada na palma da sua mão.
— Concedo-lhe o Talismã do Leão Carmesim. Fez então uma pausa,
deixando que todos entendessem bem as suas palavras. — Peça um favor
para si e será concedido, dentro das nossas capacidades.
Um servo correu até ao imperador segurando um tabuleiro de lacre
preto. O imperador pousou o talismã no tabuleiro e o servo caminhou na
minha direção com passos lentos, parando diante de mim para me oferecer
o tabuleiro. Sentia as mãos rígidas quando peguei na placa de jade, fitando-
a com espanto. Um leão estava gravado no centro, os olhos bulbosos e a
juba frisada esculpidos com detalhe requintado. Da base pendia uma borla
espessa de seda dourada.
A voz do imperador ribombava pelo salão, mas captei apenas pedaços
das suas palavras. O meu coração batia com tanta força que temia que
rebentasse. Ouvira corretamente? Seria isto mesmo o Talismã do Leão
Carmesim? O imperador falou tão calmamente, como se estivesse a fazer
uma doação de terras ou a oferecer uma arca de ouro. Como se aquilo não
fosse a concretização do meu maior desejo, do qual quase desistira!
Erguendo o olhar, deparei com o imperador a olhar para mim com
expectativa. Esperaria lágrimas de alegria ou proclamações de gratidão
eterna? Não contava certamente com aquele silêncio imenso; a trepidação
súbita roubara-me a voz. Só tinha um desejo... e não era um desejo que lhe
agradaria.
— Precisa de tempo para pensar?
A sua voz tinha um tom áspero, talvez de impaciência. Ou seria um
aviso para não me exceder?
Fui tomada pelo receio de perder aquela oportunidade. As palavras
escaparam-me da garganta, voaram como uma exclamação estrangulada:
-A minha mãe!
Silêncio percorreu a multidão. Respirando tremulamente, tentei acalmar
os meus nervos em franja.
— O meu desejo é que liberteis a minha mãe, Vossa Majestade.
Falei lentamente dessa vez, o mais claramente que pude. Os olhos da
imperatriz curvaram-se como as garras de um predador.
— A sua mãe? Quem é a sua mãe?
A malícia na sua voz fez-me hesitar. O meu desejo podia certamente
incitar a fúria de ambos. Suas Majestades Celestiais detestariam passar por
tolos, enganados pela débil Deusa da Lua durante todos esses anos. E se
revelasse tudo e eles negassem o meu pedido, infligindo-lhe um castigo
ainda mais pesado?
Caí de joelhos no chão e baixei a cabeça.
— Vossa Majestade Celestial, a minha mãe não me pediu que fizesse
isto. Foi tudo da minha autoria. Peço-vos humildemente a vossa garantia de
que não será punida pelos meus atos ou por tudo o mais que revelar hoje.
— Como se atreve a fazer-nos exigências? — exclamou a imperatriz.
O ar ficou pesado com uma frieza súbita. Se eu fosse uma suplicante
normal, o imperador podia ter-me condenado à prisão, ou pior, pela minha
temeridade. Contudo, o jade que segurava na mão recordava-me de que eu
merecera o direito de falar ali com o meu sangue, o meu suor e as minhas
lágrimas.
— Muito bem — disse o imperador num tom gélido. — Tem a minha
palavra de que a sua mãe ficará a salvo. Contudo, essa proteção não se
estende a si, se descobrirmos que nos ofendeu de alguma forma. Terá de
responder pelas suas ações.
A ameaça abalou a minha coragem. Fui tomada por uma vontade de
fugir, de desaparecer nas sombras e ser esquecida. Apesar de estarmos
separadas, por enquanto a minha mãe e eu estávamos seguras. Ilesas.
Estaria a ser gananciosa, a desejar mais do que devia? Mas lembrei-me de
algo que Wenzhi me dissera, quando, como hoje, estive ali diante dos tronos
de jade.
Quando as linhas de batalha ficam traçadas, avança com clareza de
pensamento.
Eu conseguira; eu ganhara o talismã. Nunca mais teria uma
oportunidade assim. Não seria uma covarde agora, não depois de tudo o que
fizera para ali chegar. Uma vaga de emoção percorreu o meu corpo quando
encontrei as palavras aninhadas no fundo do meu coração, as palavras que
sussurrara a mim mesma todas as noites antes de dormir, antes de acordar a
cada alvorada.
— A minha mãe é Chang’e. Sou filha da Deusa da Lua.
Os sussurros começaram, burburinhos ténues davam lugar a arquejos,
murmúrios fervilhantes acompanhados pelo arrastar de pés nervosos. Liwei
arregalou os olhos e cerrou o maxilar, os lábios de Wenzhi formaram uma
linha apertada. Aqueles que me conheciam melhor, aqueles que mais
confiavam em mim, aqueles a quem mantive na ignorância. Como se
deviam sentir traídos pela minha confissão.
— A Deusa da Lua?
A imperatriz cuspiu cada palavra.
— Se Chang’e é a sua mãe, quem é o seu pai?
Medo toldou-me o coração, como tinta a sair de um pincel mergulhado
em água. O meu pai matara as aves solares, suas parentes queridas. Mas a
minha fúria com a sua insinuação grosseira levou-me a erguer o queixo para
a fitar nos olhos, a falar com menos cuidado e mais orgulho do que devia.
— O meu pai é o esposo da minha mãe, o arqueiro mortal Houyi.
Assim que aquelas palavras foram faladas em voz alta, a tensão que
sentira dentro de mim durante todos aqueles anos dissipou-se. Uma leveza
varreu-me o corpo, uma onda de liberdade por finalmente admitir quem
eram os meus pais. Não percebera o peso desse fardo até àquele momento.
Contudo, para lá do orgulho e do alívio intenso, não havia glória alguma na
revelação da minha identidade. Antes era alvo de compaixão por não ter
família e ligações influentes, mas aos olhos daquela corte, era bem pior ter a
reputação manchada por associação aos caídos em desgraça.
A fúria manchava a pele pálida da imperatriz. Tinha os nós dos dedos
brancos e os dedais dourados nos dedos cravavam-se nos braços do trono.
O Imperador Celestial foi o primeiro a quebrar o silêncio.
— Explique-se.
O tom de voz era austero e a maneira como me olhava... fez-me lembrar
o momento em que Liwei cravou a espada no meu peito.
Todos conheciam a história das dez aves solares. Mas ninguém sabia a
verdade por detrás da ascensão da Deusa da Lua à imortalidade. Àquele
público hostil pendente de cada palavra minha, recontei a história que me
fora contada. O perigo que ameaçava a vida da minha mãe e a minha. A sua
terrível escolha. O terror que a levara a esconder a minha existência. Não
pude conter as lágrimas que me ardiam nos olhos quando falei da mágoa
que assombrou a minha mãe todos os dias da sua vida imortal.
Quando terminei, voltei a encostar a testa às lajes de jade, engolindo o
orgulho e o ressentimento pela oportunidade de ser ouvida.
— Durante todos estes anos, a minha mãe tem sido uma prisioneira,
vivendo em solidão e tristeza. Ela tomou o elixir para salvar as nossas
vidas. Desconhecia que quebrara qualquer regra, como podia uma mortal
saber tal coisa? Imploro a misericórdia e a compreensão de Vossas
Majestades Celestiais, que perdoeis a transgressão da minha mãe e anuleis o
seu castigo. É esse o favor que vos peço.
Ergui-me, pousando as mãos trémulas nos joelhos dobrados. O meu
olhar colidiu com o do Imperador Celestial, completamente insensível ao
meu pedido sincero.
A imperatriz apontou-me um dedo, quase em convulsões de raiva.
— Um tal logro não pode ser tolerado. Esta linhagem, de Chang’e e
Houyi até esta... até esta rapariga, é uma linhagem traiçoeira, repleta de
mentiras, desonestidade, ingratidão. Devia ser terminada imediatamente.
A esperança gloriosa que nascera em mim momentos antes definhou e
morreu. Contudo, as palavras da imperatriz foram recebidas em silêncio.
Não se ouviram gritos entusiasmados de apoio, apenas alguns assentiram, e
por isso estava grata.
Alguém saiu da multidão e ajoelhou-se no chão em homenagem aos
imperadores. Um cortesão, conseguia ver, por causa do chapéu cerimonial e
das vestes pretas, do ornamento de jade amarelo que lhe pendia da cintura.
Um cortesão de alta patente, para estar posicionado tão perto dos tronos,
mas não lhe conseguia ver o rosto, pois ajoelhou-se à minha frente.
— Vossa Majestade Celestial, permitis-me que partilhe a minha
opinião?
A voz aveludada, o vulto de costas, agitou-me a memória. Onde vira já
aquele imortal?
O imperador reclinou-se no trono.
— Erga-se, Ministro Wu, e diga de sua justiça. O seu conselho é sempre
apreciado.
O coração caiu-me aos pés. Ministro Wu? Não devia ter ficado
surpreendida; ele parecia estar sempre ligado aos meus momentos mais
difíceis ali. Assim tão perto, a sua aura pulsava à minha volta, tão densa e
opaca como um lago sem fundo.
O ministro voltou a fazer uma vénia e pôs-se de pé. Quando se virou
para trás, estremeci ao ver a hostilidade na sua expressão.
— Vossa Majestade Celestial, nem Chang’e nem a sua filha merecem a
vossa misericórdia. Uma roubou a vossa dádiva, a outra enganou-vos de
forma desprezível. O descaramento com que a Deusa da Lua mentiu a Sua
Majestade Celestial quando a visitámos antes! Se assim o ordenardes,
regressarei lá para a deter, para ser julgada ao lado da filha pelas suas
ofensas. Se permitir que não sejam punidas, isso criará um precedente
perigoso para todos aqueles que procurem tirar partido da vossa bondade.
A sua malícia chocou-me. No meu breve encontro anterior com o
ministro, olhou-me apenas com um desinteresse entediado. Não sabia então
quem eu era, mas porque importaria isso? Desprezaria a minha herança
mortal? Achar-me-ia indigna de ali estar? Porque proferiria palavras tão
cruéis, cuidadosamente escolhidas para inflamar as suspeitas e a ira do
imperador? Bondade? Misericórdia?, pensei, indignada. Quando a minha
mãe foi aprisionada durante todos estes anos apenas por beber o elixir?
— A minha mãe não é uma ameaça para o Reino Celestial — bradei,
desfazendo todo o bem conseguido com a compostura do meu pedido
anterior. — Não fez mal a ninguém, estava apenas a tentar proteger-me.
Não merece um tal...
— Chega.
O imperador falou calmamente, mas a ameaça que irradiava daquela
única palavra era pior do que um rugido.
Amaldiçoei-me pela minha explosão temperamental. Se ele me
condenasse agora, ninguém o censuraria.
No silêncio súbito, Liwei desceu do palanque e afastou as abas do
quimono antes de se ajoelhar ao meu lado. Deitou-me um olhar de aviso
antes de falar, a sua voz a exalar uma calma firme.
— Honorável Pai, Honorável Mãe. Devo a minha vida à Arqueira-Mor
Xingyin. Ela arriscou a sua vida para vir em meu auxílio, muito para lá do
que exigia o dever e a honra. Se não fosse ela, eu estaria morto. A Princesa
Fengmei ainda seria uma refém. O nosso reino teria sido mergulhado no
caos. Como vosso filho diligente, devo lembrar-vos que, por causa dos seus
feitos de valentia, a Arqueira-Mor recebeu hoje o Talismã do Leão
Carmesim. Uma dádiva real, não uma condenação.
Uma sensação de calor cresceu dentro de mim, por saber que ali,
rodeada de hostilidade e condenação, tinha ainda um amigo. Não só eu
nunca conseguiria falar com tanta eloquência, mas Liwei arriscava a ira dos
pais ao recordar-lhes a sua promessa, algo que ninguém se atrevera a fazer.
Podia não ser suficiente para alterar o meu destino, mas saber que ele fizera
aquilo, apesar do choque que sentira ao ouvir a minha revelação, tocou-me
profundamente.
A imperatriz deitou-lhe um olhar tão furioso que um homem menos
corajoso ter-se-ia afastado. Quanto à expressão no rosto do seu pai,
estremeci e desviei o olhar. Mas Liwei manteve-se firme, de joelhos diante
deles como qualquer suplicante.
— O que ela pede não é um favor qualquer. Um aprisionamento eterno
não pode ser anulado por capricho — ripostou a imperatriz, acrescentando
numa nota astuciosa: — Além disso, o pedido da Arqueira-Mor é para
benefício da sua mãe. Não para o dela própria, como é devido ao portador
do talismã. Já tem muita sorte por não a punirmos por este logro, fingindo
ser quem não é.
Como podia ela regatear com a vida da minha mãe como se fosse uma
bugiganga no mercado? Como se atrevia a roubar-me a vitória, conquistada
com tanto custo, e distorcê-la naquele triunfo oco? Todo o sangue que
derramara, toda a agonia que padecera... Fechei os olhos com força,
contendo o impulso de voltar a vociferar, de arremessar o meu desdém, a
minha raiva, aos seus rostos arrogantes e insensíveis.
— Vossa Majestade Celestial é sábia — concordou suavemente o
Ministro Wu. — Se as intenções da Arqueira-Mor eram honráveis, porque
escondeu a sua identidade? Quem sabe que mais truques lhe ensinou a sua
mãe perversa, que intrigas se escondem no seu coração?
Fúria corria-me pelas veias. Aguentava melhor os insultos dirigidos a
mim do que à minha mãe. Virei-me para o ministro, abrindo a boca para o
admoestar, um erro, claro, quando se ouviram passos nas lajes de pedra.
Era Wenzhi, a baixar-se ao meu lado.
— Vossa Majestade Celestial, peço-vos que leveis em conta o serviço
valioso da Arqueira-Mor. Ela serviu-vos com lealdade e coragem,
ajudando-nos a alcançar vitórias que fortaleceram o Reino Celestial. Além
disso, a Arqueira-Mor Xingyin nunca enganou ninguém explicitamente.
Nunca ninguém a questionou se era filha da deusa Chang’e e do mortal
Houyi.
Algumas cabeças assentiram. Era um argumento astuto, algo que
gostava de me ter lembrado. As vestes do Imperador Celestial restolharam
quando se mexeu no trono.
— General Jianyun, qual é a sua opinião?
Sustive a respiração quando o general se aproximou. Do sítio onde
estava ajoelhada, não lhe conseguia ver o rosto. Na qualidade de mais alto
comandante do imperador, o general podia fazer a balança pender a meu
favor... se assim decidisse. Se não estivesse furioso com a minha confissão.
— Vossa Majestade Imperial, a linhagem da Arqueira-Mor Xingyin é...
infeliz. Contudo, tem sido uma recruta corajosa e excecional. Mais
importante ainda, salvou as vidas de Sua Alteza e da sua noiva, preservando
a nossa aliança com o Reino da Fénix. Tal coragem não deve ficar sem
recompensa, como haveis graciosamente determinado. — Fez então uma
pausa, para que todos percebessem o que queria dizer. — Devemos apreciar
a flor, independentemente das raízes.
Os murmúrios à volta do salão aumentaram de intensidade. Esforcei-me
por ouvir. Seria possível que alguns exprimissem surpresa pelo meu
tratamento? Até mesmo alguns sussurros cautelosos de censura?
O imperador não falou. A minha pulsação acelerou quando senti o seu
olhar sobre mim, mas não me atrevi a mover e fitei a condensação da minha
respiração nas lajes. As palavras do General Jianyun valeriam mais do que
as acusações do Ministro Wu? O general falara bem, propondo a Suas
Majestades Celestiais o expediente de me perdoarem numa demonstração
de magnanimidade e benevolência. Mas sentia um aperto no peito ao pensar
na misericórdia do imperador, a mesma que mostrara tão friamente à minha
mãe, à Dama Hualing e aos dragões.
— Arqueira-Mor Xingyin — disse o imperador por fim.
Voltei a prostrar-me no chão, preparando-me para o que dali viria.
Tentando não pensar nas torturas e nos horrores que esperavam aqueles que
o ofendiam.
— Não será culpada pelos erros dos seus pais. Os seus méritos devem
ser avaliados isoladamente. Foi agraciada com o Talismã do Leão
Carmesim pelo seu serviço.
Ergui a cabeça, a esperança a vibrar dentro de mim, mal contida
enquanto esperava ansiosamente pelas próximas palavras do imperador.
— Contudo, a dádiva que pede, a libertação de Chang’e, a Deus da Lua,
não será concedida.
Os meus dedos fecharam-se sobre o talismã de jade, amarrotando a
borla. Para que servia agora o talismã? Não havia mais nada que quisesse
do Imperador Celestial. Apesar de estar aliviada por não ser punida,
também não sentia respeito ou gratidão no meu coração. Não pelo logro de
que era alvo; o meu serviço pago com moeda falsa.
— Concedei-me então isto, Vossa Majestade Celestial — retorqui,
encorajada pelo ressentimento. — Uma dádiva para mim apenas. A
oportunidade de ganhar a liberdade da minha mãe através de uma tarefa à
vossa escolha.
Uma proposta temerária, mas que mais tinha eu a perder? Enunciaria os
termos de forma tão clara desta vez que ninguém poderia ter dúvidas.
O meu comportamento roçava a insolência. Quem era eu para fazer
exigências ao Imperador Celestial? Mas em vez de ira, um brilho astuto
cintilou naqueles olhos insondáveis, um dedo erguido a afagar o queixo.
— Muito bem, Arqueira-Mor. Ordenamos-lhe que realize mais uma
tarefa em nome da sua mãe, para compensar as suas ofensas contra nós.
— Que tarefa é essa, Vossa Majestade Celestial?
As palavras escaparam-me dos lábios. Iria até aos confins do mundo, até
o Reino Infernal se fosse preciso, para libertar a minha mãe.
O imperador não falou, estendendo algo para mim, um objeto cinzento-
escuro na palma da mão. Debrucei-me para perto e estiquei o pescoço. Era
um selo, feito de um metal baço, com uma gravura intrincada de um dragão
em cima.
Wenzhi inalou suavemente, com uma expressão de fascínio. Olhei de
relance para ele, surpreendida.
— O Divino Selo de Ferro libertará os quatro dragões, aprisionados no
mundo mortal pelos seus crimes graves. Cada um possui uma pérola única.
Ordeno-lhe que obtenha as pérolas dos dragões e que mas traga. — O tom
de voz do imperador endureceu. — Se eles não obedecerem à minha ordem,
use os meios que achar necessários. Assim que as quatro pérolas estiverem
na minha posse, perdoarei a sua mãe e poderá regressar para junto dela.
Estremeci involuntariamente. Os Veneráveis Dragões! Depois de ouvir
falar deles no Mar do Leste, não sentia a mais pequena vontade de desafiar
criaturas tão nobres e poderosas. Os dragões entregariam as pérolas de livre
vontade? Se não o fizessem, conseguiria eu fazer o que fosse preciso? O
que esperava o imperador de mim?
— Estamos de acordo?
A sua voz tinha uma nota de impaciência.
Engoli o nervosismo, deixando-o assentar no estômago como gordura
coalhada. Eu pedira aquilo ao imperador, procurara aquela oportunidade.
Como podia agora hesitar? Fechando as mãos uma sobre a outra, aceitei os
seus termos com uma vénia. O negócio estava fechado, tão banal como
qualquer negócio no mercado, mas as paradas eram bem mais altas.
Um servo aproximou-se e pousou o selo na minha mãe estendida. O
metal era frio ao toque. Quando o larguei na minha bolsa, a seda distendeu-
se com o seu peso.
O imperador assentiu para mim. Uma dispensa breve que acolhi com
alegria. Pondo-me de pé, virei costas aos tronos e empurrei as pernas em
frente, cada passo mais pesado do que o anterior. Olhando sempre em
frente, podia ter parecido indiferente ao resto da corte. Contudo,
intimamente, eu era um turbilhão de emoções revoltas que ameaçavam
rasgar-me em pedaços. De alívio, por a verdade vir finalmente à superfície,
mas também de fúria, por me ver negada a recompensa pela qual tanto
lutara. Esperança crescia em mim por receber aquela segunda oportunidade,
temperada por um temor profundo... que o preço pela liberdade da minha
mãe estivesse para lá do que eu era capaz de pagar.
Atordoada, saí do Salão da Luz Oriental. Vários servos do palácio
fitavam-me com curiosidade enquanto poliam as balaustradas de pedra e
varriam o chão imaculado. Shuxiao veio ter comigo como se tivesse estado
aquele tempo todo à minha espera. Dissera-lhe que fora convocada, sem
imaginar que os eventos daquele dia se desenrolariam assim.
— É verdade? — perguntou. — Sobre a tua mãe?
Pestanejei para ela, surpreendida. Não dera mais de cinco passos fora do
salão.
— Como é que sabes?
— Ah. A maioria das audiências reais são incrivelmente aborrecidas.
Quando correu palavra que foram ouvidas vozes exaltadas... — Shuxiao
sorriu e olhou em redor. — Ias ficar espantada com a quantidade de gente
que encontrou uma tarefa urgente para fazer por estes lados. — O seu
sorriso esmoreceu quando me puxou para o lado, para longe de ouvidos
ávidos. — A tua mãe é mesmo Chang’e, a Deusa da Lua?
Ouviria ira na sua voz? Ressentimento? De todas as vezes que me falara
da sua família, eu nunca dissera uma palavra, deixando-a acreditar que a
minha família morrera. Não a censuraria se nunca mais quisesse falar
comigo. Poderia ser melhor para ela se parasse de o fazer. Alvo do
desprazer de ambas as Majestades Celestiais, eu era uma amiga indigna e
perigosa para se ter.
— Sim — respondi, preparando-me para palavras duras.
Em vez disso, ela puxou-me para um abraço.
— Lamento muito pela tua mãe — disse-me quando me soltou. — Mas
também estou zangada contigo. Eu nunca teria dito nada a ninguém.
Havia outras coisas que eu lhe contara em confidência, coisas que ela
adivinhara e não contara a ninguém.
— Não podia dizer nada, não até ter a certeza que era seguro.
Ela assentiu lentamente.
— Eu entendo. Mas duvido que a notícia tenha sido do agrado de Suas
Majestades Celestiais.
— Tão agradável como uma cítara com uma corda rompida.
Franzi a testa, recordando a fúria da imperatriz, a maneira como o
imperador... ficara zangado no início, era verdade. Contudo, parecera
estranhamente satisfeito quando saí. Devia estar, disse a mim mesma, por
conseguir o dobro do trabalho pelo mesmo preço.
— E agora, não sei como, tenho de convencer quatro dragões a cederem
as suas pérolas ao imperador, se quero ter a mais pequena esperança de
voltar a ver a minha mãe.
Não consegui reprimir a dúvida, se eu falhasse, se me revelasse inútil
para o Reino Celestial, manteria o imperador a promessa que me fizera?
Ficaria a minha mãe a salvo da malícia da imperatriz? Ficaria eu, mesmo
estando tão longe, na terra natal de Wenzhi?
— Porquê as pérolas? — perguntei em voz alta. — O Tesouro Imperial
não está repleto de joias?
Shuxiao gesticulou para os dragões dourados que cintilavam no telhado
de jade, uma orbe luminosa bem segura nas suas mandíbulas.
— Só ouvi dizer que os dragões guardam bem as suas pérolas, que lhes
são preciosas, mas as histórias não dizem porquê.
Empalideci só de pensar naqueles dentes curvos a cravarem-se na minha
carne. Seria aquilo uma trama ardilosa para fazer com que eu fosse
devorada, com o Leão Carmesim e tudo? Não resolveria isso o dilema do
imperador, livrando-se da minha presença incómoda sem faltar à sua
palavra? Senti um aperto na barriga só de pensar nisso.
Shuxiao tocou-me no braço.
— Estás bem?
— Não sei ao certo.
Sentia-me atordoada por dentro. No espaço de uma manhã, o meu
coração erguera-se com esperança, afundara-se no medo e agora boiava
num mar de tumulto.
— Bom, vê lá se não te matam. Sempre quis visitar a lua — disse-me
ela com uma risada.
— Não está nos meus planos, mas os dragões podem ter outras ideias —
respondi num tom sombrio.
— Então, vamos ter de garantir que não o fazem.
— Vamos?
Ela cruzou os braços sobre o peito.
— Vou contigo.
Esperança acendeu-se dentro de mim, para de imediato se apagar. Ela
era celestial; as suas lealdades jaziam aqui. Servia no exército para proteger
a família; como podia eu ser egoísta ao ponto de desfazer o seu sacrifício e
a expor à ira do imperador?
— Não, não podes abandonar o teu posto. — Quando ela começou a
protestar, eu continuei: — Ouve. O meu pai matou os parentes da rainha. A
minha mãe desafiou o imperador. Eu também caí em desgraça. Não podes
ser arrastada para isto; tens a tua própria família para proteger. E se Suas
Majestades Celestiais descarregassem a sua ira sobre eles?
O ânimo fugiu-lhe do rosto.
— Não aguentaria isso.
— Nem eu. Porque somos iguais — disse-lhe lugubremente. —
Fazemos coisas pela nossa família, pelas pessoas que amamos, que não
faríamos por nós mesmas. Só descobri isso acerca de mim depois de
abandonar o lar. Alguns podem chamar-nos tolas. Aqueles que não
entendem, nunca entenderão.
Ela não protestou, mas ainda parecia perturbada.
— Não podes ir sozinha. É demasiado perigoso. E se eu me juntasse a ti
sem ninguém saber?
— Só vou pedir as pérolas aos dragões — disse-lhe com uma confiança
que não sentia. — Os habitantes do Mar do Leste dizem que os dragões são
pacíficos. O pior que podem fazer é recusar.
A minha compostura vacilou quando as palavras do imperador ecoaram
na minha mente: Use os meios que achar necessários. Não foi uma
sugestão, foi uma ordem.
— E não vais estar sozinha — disse Wenzhi, caminhando para nós. —
Há quanto tempo estaria ali? — Eu vou contigo.
Não estava na minha natureza apoiar-me noutros, mas, oh, como fiquei
aliviada por ouvir aquilo. Ele não era vulnerável como Shuxiao; partiria
daquele lugar em breve. Além disso, lutáramos juntos tantas vezes, estava
contente por o ter ao meu lado naquela missão.
Shuxiao inalou ruidosamente. Recuperando da surpresa, fez uma vénia
apressada para Wenzhi.
— Tenente, dá-nos licença? — perguntou Wenzhi. — Tenho algo a
discutir com Xingyin.
Shuxiao inclinou a cabeça para mim numa pergunta sem palavras.
Adorava-a por isso, por pensar primeiro nas minhas necessidades. Contudo,
era precisamente por isso que não podia correr o risco de a levar comigo,
não podia arriscar que ela desagradasse àqueles com poder para retaliar e
lhe fazer mal.
— Tudo bem, Shuxiao.
— Se mudares de ideias, posso dizer ao General Jianyun que me estou a
sentir mal nos próximos dias. A mordidela do espírito-raposa a fazer das
suas outra vez — ofereceu ela com toda a candura.
Wenzhi franziu a testa.
— Tenente, espero que não tenha o hábito de agir com tanta
irresponsabilidade.
— Não, Capitão — respondeu ela com uma nova vénia. — Apenas em
ocasiões especiais.
Contive uma risada quando ela se afastou, refreada pelo pensamento do
que jazia adiante. Wenzhi e eu caminhámos em silêncio até um jardim
familiar à volta de um lago tranquilo. Sem aviso, ele agarrou-me pelo braço
e puxou-me pela ponte de madeira até ao Pavilhão da Canção do Salgueiro.
Afastei do pensamento as memórias inoportunas dos tempos que ali passara
com Liwei.
Então, Wenzhi soltou-me e virou-se para o seu reflexo na superfície da
água.
— Porque não me disseste?
Fechei os olhos e pensei na noite em que fugi do lar, transida de mágoa
e terror. A urgência na voz da minha mãe quando me fez jurar segredo.
— Fiz uma promessa à minha mãe.
— Depois de tudo o que passámos juntos, ainda não confias em mim?
— Claro que confio. Mas este não era um segredo que pudesse partilhar
sem mais nem menos. Ter-nos-ia posto a todos em perigo. — Estendi a mão
para lhe tocar no pulso. — Faz diferença? Continuo a ser a pessoa que
sempre fui.
Ele virou a mão e segurou a minha.
— Tens razão, não faz diferença. Mas gostava que me tivesses dito
antes. Podia ter-te ajudado. Talvez ainda possa.
Fiquei emocionada com a sua aceitação inabalável do meu passado. O
seu apoio resoluto. Até aquele momento, não sabia ao certo se podia contar
com ele. Encostei-me a ele, pousando a cabeça no seu peito quando o seu
braço me passou pelos ombros. O aroma que emanava da sua pele era
fresco e verdejante.
— Queria dizer-te. Um dia, quando estivéssemos longe daqui.
O seu coração batia contra o meu ouvido, mais rápido do que antes.
— Isto muda alguma coisa? Ainda vens comigo?
— Sim. — Um arrepio percorreu o meu corpo, que não era de hesitação
nem de dúvida. — Mas primeiro tenho de ajudar a minha mãe. Tenho de
cumprir a tarefa do imperador. Podes esperar mais um pouco?
Wenzhi abraçou-me com mais força.
— Enquanto fores minha como eu sou teu, temos todo o tempo do
mundo.
Ficámos parados, imóveis, até uma comichão na nuca me levar a
recordar onde estávamos, à vista de todos os que passassem. Afastei-me do
seu abraço e virei-me. O meu olhar cruzou-se com o de Liwei, parado na
ponte, imóvel como um dos postes de madeira. Tinha os olhos arregalados,
as mãos cerradas ao lado do corpo. Algo se torceu dentro de mim ao ver-lhe
a expressão no rosto, não culpa, mas tristeza pela dor que lhe causara.
Com passos calculados, Liwei entrou para o pavilhão.
— Posso falar consigo?
Os seus modos eram frios e formais, como se eu fosse uma
desconhecida, uma dessas cortesãs que estava sempre a tentar evitar.
Quando poucos dias antes tínhamos defendido a vida um do outro. Seria
sempre assim entre nós: um passo para a frente e três para trás? Não, disse a
mim mesma. Já não caminhávamos juntos; os nossos caminhos tinham
divergido.
Assenti, apesar do nó dentro de mim. Mais do que a qualquer outra
pessoa, devia-lhe uma explicação.
— Venho ter contigo mais tarde — disse-me Wenzhi.
Pensei que partiria então, mas voltou a pegar na minha mão e passou o
polegar pela palma da mão numa carícia deliberada. A minha pulsação
acelerou. Apesar de mortificada, não puxei a mão. Os lábios de Wenzhi
curvaram-se na sugestão de um sorriso quando me largou. Fez uma vénia
curta a Liwei, mais um breve aceno de cabeça, e afastou-se.
— Lamento muito — disse de forma hesitante a Liwei.
Apesar de lhe dever muito mais do que esse pedido desajeitado de
desculpas. Por tudo o que fôramos um para o outro, pela nossa amizade, ele
nunca merecera a minha desonestidade.
— Mentiu-me desde o dia em que nos conhecemos. — A dureza na sua
voz magoou-me. — Porque me disse que os seus pais estavam mortos?
— Não disse! Quando presumiu isso, eu... eu deixei que continuasse a
pensar assim. Não fazia ideia de como o corrigir, não sem mais mentiras.
Prometi à minha mãe que manteria o segredo. Tinha de a proteger. Pode
imaginar o castigo que sofreria se os seus pais descobrissem o seu engano?
Se soubessem que ela me escondera? Tê-la-iam sentenciado a tortura ou
morte, como poderiam ter feito hoje, se eu não tivesse recebido o talismã.
Se eu não tivesse garantido a sua segurança diante da corte.
As palavras saíram-me dos lábios mais duras do que tencionava.
Lamentava tê-lo enganado, mas nunca tivera grande escolha, levada a isso
pela sua família.
— Porque não me disse quando ficámos mais íntimos? — Os seus olhos
fitavam os meus, escuros e inflexíveis. — Não é a pessoa que eu pensava
ser.
A acusação magoou-me e despertou a minha ira.
— Sempre lhe disse a verdade sobre mim. Apenas escondi a verdade
sobre os meus pais e já lhe disse porquê. Eu fui separada da minha família;
eles estão perdidos para mim. Saber a verdade não teria mudado nada, a não
ser pôr a minha mãe em perigo. Por isso, que diferença faz? Porque o
incomoda tanto? É por eles serem mortais? Por terem caído em desgraça
por desobedecerem ao seu pai?
As minhas palavras eram odiosas e não faziam muito sentido. Sabia
bem que ele não era assim. Mas estava irritada e falei sem pensar, querendo
tanto magoá-lo como tentar explicar-me.
Ele estremeceu e deitou-me um olhar zangado.
— Isso não significa nada para mim. Apenas nunca pensei que me
mentisse. Aceitou a minha confiança e nunca me confiou a sua.
A minha ira dissipou-se. Por muito que o quisesse negar, havia verdade
naquelas palavras. Eu fora egoísta, protegendo-me sempre, aceitando o que
ele tinha para dar.
— Eu quis dizer-lhe tantas vezes, mas tive medo. No início, não sabia o
que faria. E mais tarde... não queria tornar-me um fardo.
— Xingyin, como pode pensar que alguma vez lhe faria mal? Tê-la-ia
ajudado de qualquer maneira que pudesse.
A sua voz soava agora mais gentil.
— Liwei, não quis esconder isto de si. Receava que os seus pais
descobrissem, receava o que pudessem fazer, à minha mãe, a mim, até a si,
se os zangasse. Acha que Suas Majestades Celestiais mostrariam
misericórdia?
Torci o lábio de desgosto.
Ele estreitou os olhos.
— Porque veio para cá se isso a deixou mais perto das pessoas que
desprezava? Procurava vingança? Foi tudo calculado para avançar o seu
plano?
Não desviei o olhar; não tinha vergonha do que fizera.
— Vingança, não. E nem tudo. Sim, queria a oportunidade que me
oferecia, queria melhorar-me. Apenas os fortes são favorecidos no Reino
Celestial, apenas assim conseguiria o que queria. Pode censurar-me por
procurar um novo futuro depois de o meu me ter sido retirado? Não me
ocorreu, até entrar no palácio, quem eram os seus pais. Mesmo então, nunca
quis virá-lo contra eles. Queria libertar a minha mãe, mais do que tudo, mas
apenas pelos meus esforços, como fiz hoje. Nunca pretendi fazer mal a si ou
aos seus.
— Mais do que tudo? — repetiu num tom estranho. — Ao que parece,
fui apenas um degrau na sua ambição. Como servi bem as suas
necessidades hoje, quando apelei ao meu pai que lhe concedesse o seu
favor. — Inclinou a cabeça para mim, quase de uma forma tema, mas as
suas palavras emanavam amargura. — A sua aposta recompensou-a
generosamente. Agora tem tudo o que sempre quis, Arqueira-Mor: fama,
respeito, o Leão Carmesim. A liberdade da sua mãe está quase ao seu
alcance.
— Apenas queria o que me foi tirado! — vociferei. — Não faz ideia do
que passei. Como a minha mãe sofreu!
Perdi a calma e a minha mão voou para lhe bater.
Ele agarrou-me a mão, os seus dedos a queimar-me o pulso. Por um
momento, ficámos ali parados, a olhar um para o outro, zangados. As
nossas respirações rápidas, o coração a latejar-me entre as orelhas.
— Mereci tudo isso por mim própria, a servir o Reino Celestial, o seu
reino, com o meu sangue. Como vou merecer a libertação da minha mãe
com esta última tarefa. — Soltei a minha mãe e afastei-me dele. —
Lamento tê-lo enganado, a sério. Mas nunca o quis magoar e não mereço as
suas acusações. — Estava quase a tremer de raiva e desilusão quando
acrescentei: — Apesar de tudo o que perdemos, sempre acreditei que
teríamos a nossa amizade. Talvez estivesse errada.
Nesse momento, não pude deixar de pensar na aceitação sem reservas
de Wenzhi e Shuxiao. Contudo, dos três, fora Liwei quem eu mais magoara
com as minhas mentiras.
Ele desviou o olhar para o lago calmo, as mãos fechadas atrás das
costas. Quando falou, a sua voz soava de novo firme.
— Ah, Xingyin. A minha desilusão tornou-me cruel. Sou um tolo
ciumento, ao ver-vos juntos agora mesmo... — Abanou então a cabeça. —
Não era nada disto que te queria dizer quando te voltasse a ver. Tinha tudo
planeado, um discurso sincero sobre como me sentia grato por não me teres
deixado morrer às mãos gentis da Dama Hualing. Suponho que agora deves
estar arrependida disso.
Um sorriso triste passou-lhe pelos lábios.
— Talvez — respondi rigidamente, pouco disposta a abrir mão da
minha fúria, sentindo-a a dissipar-se com as suas palavras.
— Na Floresta da Primavera Eterna, naquela maldita caverna... senti-me
exultante quando te vi, mas aterrorizado que pudesses morrer. — Falava
lentamente, como se a memória lhe fosse dolorosa. — Devo-te a minha
vida. Obrigado por a salvares.
— Não me deve nada — disse-lhe eu. — A escolha foi minha. A
decisão foi minha.
— Podia teres-te salvado, mas ficaste. Enquanto eu... eu quase te
matei... — Parou de falar, ofegante. — Nunca me esquecerei da expressão
no teu rosto quando desferi o primeiro golpe. Vai assombrar-me para o resto
dos meus dias.
Parte de mim, uma parte imprudente, queria abraçá-lo. Queria deixar
que nos reconfortássemos um ao outro até conseguirmos arrancar todas as
memórias vis da sua espada a derramar o meu sangue. Da minha magia a
drenar-lhe a vida.
O meu peito ardia como se estivesse repleto de carvão em brasa, mas
tudo o que disse foi:
— Sei que não foi por vontade tua.
Ele ficou então em silêncio, o seu olhar fixo no meu.
— Foi verdade o que disseste na caverna? Que ainda me amas?
Falou num tom tão baixo que era quase um sussurro.
— Sim.
Respirei fundo, tentando conter o tremor no meu coração. Talvez fosse
algo que estaria ali para sempre; começava a aprender que o amor não
desaparece só porque queremos.
— Mas quis dizer o que disse a seguir, que acarinharia sempre o que
tivemos. E que te desejo felicidade na tua vida, mesmo não fazendo mais
parte dela.
Ele cravou as unhas na palma da mão e uma gota de sangue caiu sobre a
asa dourada de uma garça.
— Pensei que, se sobrevivêssemos à Dama Hualing, talvez tivéssemos
uma oportunidade de nos reencontrarmos. Mas estava enganado, que
arrogância a minha ao pensar que o teu caminho apenas levaria até mim.
As suas palavras sobressaltaram-me. Seria possível... teria ele pensado
que eu o pediria como recompensa do talismã?
Ele prosseguiu, numa voz carregada de arrependimento.
— Desejo-te toda a felicidade. Apesar de ele não te merecer. Apesar de
desejar que as coisas tivessem sido diferentes entre nós.
— Obrigada. — O agradecimento soou estranho nos meus lábios.
Arrepiada, apesar do sol, cruzei os braços diante de mim. — Ainda me
odeias por não te ter dito?
— Eu nunca te conseguiria odiar. E fui eu que fui estúpido, recusando-
me a deixar-te ir quando não tinha qualquer direito de te reter.
Engoliu em seco, como se tivesse algo mais a dizer.
— Partes amanhã? — perguntou por fim.
Assenti.
— Vou contigo.
— Porquê?
Ele encolheu os ombros, voltando ao tom distante e educado que me
magoava mais do que gostava de admitir.
— Pela mesma razão por que vieste comigo à floresta. A tua vida está
entrelaçada com a minha, estejamos juntos ou não. Vou ajudar-te porque
quero, não porque sou obrigado. E não há necessidade de ajustar contas; o
que me deves, o que te devo, tais dívidas não têm valor entre nós.
Fiquei sentada no banco de mármore muito depois de ele partir. Uma
rajada de vento varreu os salgueiros, os seus ramos a tocar no lago. As
folhas restolharam, como se estivessem a sussurrar ao mundo os segredos
que eu revelara. Aquilo parecera um sonho impossível, reclamar a minha
identidade e ver-me livre das mentiras do passado. E agora estava um passo
mais próxima de libertar a minha mãe, de regressar ao lar. Acreditara que
aquela oportunidade me traria uma alegria sem limites, mas dei por ela
temperada com uma amargura incompreensível.
Lanternas vermelhas e redondas, orladas de seda amarela, pendiam
sobre as ruas de pedra. Árvores restolhavam, lançando sombra sobre as
paredes claras dos edifícios, as treliças diagonais de portas e janelas em tons
gastos de vermelho e verde. Telhas cinzentas confundiam-se com a
escuridão, uma escolha prática, dado o clima temperamental do mundo
mortal. Aquela aldeia podia parecer lúgubre à noite, mas as lanternas
luminosas davam-lhe um brilho encantado.
Uma centena de aromas pairava no ar, a comida, perfumes e mortais. As
pessoas apinhavam as ruas, a maioria vestida com túnicas simples de
algodão, enquanto os mais prósperos usavam lustrosos brocados ou sedas.
Ornamentos pendiam das cinturas, alguns adornados com contas de jade ou
discos de um metal precioso. Estalidos fortes sobressaltaram-me, quando
faúlhas brilhantes, réstias de papel vermelho e fumo espesso rebentaram no
ar. Fogo de artifício. Haveria algum festival nessa noite? Os rostos dos
aldeões estavam iluminados de excitação, tal como quando os observava ao
longe, da lua.
Liwei e Wenzhi pararam diante de um edifício grande. Uma sólida placa
preta pendia diante da entrada, com caracteres pintados a branco:
A toda a volta viam-se pinturas dos feitos do meu pai; as batalhas que
vencera, os inimigos que derrotara. Era um túmulo magnífico, digno de um
rei naquele mundo. Contudo, entristecia-me que não houvesse referências a
tempo até recuperar a minha força, mas poderia ser mais cedo do que
antecipara.
Apesar de o meu corpo estar a sarar, o meu espírito estava inquieto.
Havia um limite para o número de passeios pelos jasmineiros que alguém
consegue fazer. Para o número de horas passadas com leitura e música.
— Tens estado bem? — ecoei.
Senti um temor ao recordar como desafiara o pai. E senti vergonha
também, por o ter deixado sozinho para lidar com a ira dos pais. Tudo o que
me consumia após aquele confronto fatídico era uma vontade desesperada
de regressar ao lar, de abandonar o Reino Celestial, receando que o
imperador pudesse mudar de ideias e exigir a devolução do selo.
Liwei apertou-me a mão com força e os seus olhos escuros prenderam-
me onde estava.
— Nada que não tenha suportado antes.
Mordi o lábio, querendo perguntar mais. No entanto, a intensidade do
seu olhar, a sua proximidade, fez-me hesitar. Haveria hoje algo de diferente
nele? Era quase como se tivesse voltado a ser o Liwei de antigamente, antes
de... Afastei esse pensamento. Ele estava ali, isso deixava-me feliz. E tinha
um favor para lhe pedir, para nos levar a mim e à minha mãe ao Domínio
Mortal. Para nos levar até ao meu pai.
Não sem egoísmo, esperara antes de dar a notícia à minha mãe. Queria
que apreciássemos uns dias de felicidade pura, em regozijo pela nossa
reunião e pela liberdade recém-adquirida. Mas sabia que ela estava ansiosa
por voar até ao Domínio Mortal e procurar o meu pai. Uma noite, quando
não podia adiar mais, apertei a sua mão na minha.
“Mãe, tenho algo para te dizer.” Palavras indesejadas, repletas de mau
agoiro. Ou teria sido o tremor na minha voz que lhe deixara o rosto lívido?
A sua mão fria soltou-se da minha. “Não quero ouvir.”
A súplica infantil trespassou-me o coração. Interroguei-me se devia
deixar tudo como estava. Metade esperança, metade negação. Algo em mim
estremeceu. Era melhor cortar o laço num golpe rápido, em vez de o deixar
desfiar-se até ao final inevitável.
“Lamento. O Dragão Negro disse-me que... o Pai morreu.” A minha voz
fraquejou quando senti um aperto na garganta.
Ela cedeu então, tombando para o chão com o corpo a tremer. Abracei-a
com força, tentando não estremecer com o seu choro angustiado. As minhas
palavras tinham posto fim a toda a esperança, como uma faca que corta uma
planta doente ainda agarrada à vida. Eu perdera um pai que nunca
conhecera, mas a minha mãe perdera um marido que ainda amava.
Voávamos agora juntos até ao Domínio Mortal. O rosto da minha mãe
estava pálido e repuxava as mangas de nervosismo. Havia muito tempo que
não saía da lua. Felizmente, a nuvem de Liwei deslizava tão suavemente
como uma ave pelo ar.
O Dragão Negro descrevera bem o local. Onde os dois rios se uniam,
encontrámos uma colina pequena coberta de flores brancas. No ponto mais
alto erguia-se um grande túmulo circular feito de mármore. Caracteres
gravados a ouro formavam o nome:
HOUYI
A toda a volta viam-se pinturas dos feitos do meu pai; as batalhas que
vencera, os inimigos que derrotara. Era um túmulo magnífico, digno de um
rei naquele mundo. Contudo, entristecia-me que não houvesse referências a
família ou descendentes. Vivera sozinho até ao fim?
A minha mãe segurou-se ao meu braço, os seus passos vacilantes. Fitou
o túmulo, uma expressão de mágoa no rosto.
— Podemos partir, se quiseres — sussurrei-lhe, superando a dor no meu
peito.
— Não — respondeu-me fervorosamente.
Arregaçou então as mangas compridas, pegou na vassoura e começou a
varrer energicamente. Por um momento, pensei no que pensariam os
mortais se vissem a venerada Deusa da Lua a varrer tão atarefadamente
como qualquer aldeã. Então, apercebi-me de que eles, mais do que
ninguém, compreenderiam o respeito que ela queria demonstrar pelo
marido. Mostrar-lhe que, até na morte, ainda o honrava. Baixei-me e usei o
meu lenço para limpar o pó e a sujidade do mármore, polindo os caracteres
até brilharem de novo. No início, Liwei ficou para trás, mas depois baixou-
se para apanhar as ervas daninhas.
Quando o túmulo ficou imaculado, a minha mãe trouxe as oferendas de
fruta e bolos que preparara pessoalmente, amontoados em pratos de
porcelana. Acendi os paus de incenso e estendi-lhe três, as pontas
vermelhas com uma chama ténue. Segurando-os diante de nós, ajoelhámo-
nos perante o túmulo e fizemos três vénias. Uma esposa e uma filha a
fazerem luto pela maior de todas as perdas. Depois da última vénia, cravei
firmemente os paus de incenso no pequeno queimador de latão. Fios finos
de fumo aromático ergueram-se pelo ar.
Toquei-lhe na mão, despertando-a do seu devaneio.
— Mãe, quando caminhas pela floresta à noite, em que pensas?
Quisera perguntar-lhe isso tantas vezes.
Ela fechou os olhos, um sorriso sonhador nos lábios.
— Em ti, quando eras criança. No teu pai. Na nossa vida juntos. Como
desejava que ele estivesse connosco, que não tivesse ficado para trás. —
Baixou então a cabeça, sussurros trémulos a caírem-lhe dos lábios. — As
vezes pergunto-me... e se os médicos estivessem errados? E se não tivesse
bebido o elixir? Teríamos vivido todos estes anos juntos, no mundo abaixo.
Teria agora o cabelo grisalho, mas teríamos sido felizes.
A mão dela apertou a minha com força.
— Quando ascendi aos céus, virei-me para trás e vi-o à janela, a sua
mão estendida, tanta angústia no seu rosto. Regressara tarde de mais. Há
noites em que me atormento, interrogando-me como se terá sentido ao ver‐
me voar para longe. Terá entendido porque o fiz? Ter-se-á sentido traído?
Será que... me odiava? Nessas noites, também me odeio. — Ela olhou em
frente e engoliu em seco antes de prosseguir. — No momento em que ergui
o elixir, só conseguia pensar em ti e em mim, em como queria que
vivêssemos. Quando o bebi, escolhi a morte do meu marido em vez da
minha. Escolhi uma vida sem ele. Escolhi-nos a nós. — A sua voz tremeu
com uma emoção súbita. — Nunca me verei livre da minha mágoa.
Contudo, voltaria a fazer igual, mesmo sabendo o que vinha a seguir.
Porque significaria que te tinha.
Lágrimas caíam-lhe dos olhos como um aguaceiro. Amaldiçoei-me pela
minha pergunta irrefletida. Por tê-la feito, apesar de saber que lhe causaria
dor. Mas não podíamos continuar a esconder e enterrar a nossa mágoa,
especialmente daqueles que amávamos. Aprendera que, para lá da dor,
encontrávamos perdão, amadurecimento e, por fim, a cura das nossas
feridas. Apercebi-me então que talvez eu e a minha mãe fôssemos mais
parecidas do que imaginara. Ambas tínhamos aproveitado a oportunidade
quando nos surgiu, ambas tínhamos escolhido viver.
Lentamente, os seus dedos deslizaram da minha mão, como se tivesse
esquecido a minha presença. O seu olhar estava fixo nos caracteres
reluzentes do nome do meu pai no túmulo, os seus lábios enunciando-o em
silêncio. O seu legado e os seus feitos gravados em pedra imutável. Para
sempre inscritos na memória do mundo que salvara, enquanto houvesse
livros para ler e canções para cantar. Nunca seria esquecido. Mas era um
conforto vazio para aqueles que o amavam.
Pondo-me de pé, fui ter com Liwei, na margem do rio. Ficámos parados
em silêncio, vendo a água a refletir a luz do sol enquanto a brisa brincava
com o nosso cabelo. O ar no mundo mortal estava carregado com uma
miríade de odores; flores a desabrochar, folhas em decomposição, a água
terrosa do rio a fervilhar de vida.
Então, virou-se para mim.
— Pedi à Princesa Fengmei para me libertar do noivado.
Olhei para ele, incrédula, sem saber o que dizer.
— Porquê? Quando? — perguntei por fim.
Ele prendou-me com um sorriso triste.
— Precisas de perguntar porquê? Depois de partires, visitei a Princesa
Fengmei. Disse-lhe a verdade, o que lhe devia ter dito há muito tempo. Ela
merecia mais do que eu tinha para lhe oferecer: um coração que nunca seria
seu. Ela foi muito compreensiva. E pediu-me para te dizer que espera que
encontremos a felicidade juntos. Acho que ela sabia desde o dia em que a
salvaste.
Lembrei-me do seu olhar límpido quando recaíra sobre as nossas gotas-
celestes, quando percebera que eram um par a condizer. Não desejava a sua
mágoa... mas, oh, não podia negar a alegria que desabrochava dentro de
mim agora.
— E a aliança?
— O Reino da Fénix reafirmou o seu apoio ao Reino Celestial. Apesar
de não ser um laço tão forte como se houvesse um casamento,
permanecerão nossos amigos e aliados. Tanto a rainha como a princesa
continuam gratas pela nossa ajuda.
Pegou então na minha mão e pressionou-a contra o seu peito, onde o
coração batia com tanta força como o meu. Os seus olhos brilhavam com
uma emoção sem limites. Quando a outra mão afagou a curva do meu rosto,
encostei-me inconscientemente, atraída pelo seu calor tão familiar.
— O meu coração é teu, sempre foi teu — declarou. — Não tens de
responder já. Sei que precisas de tempo para estar com a tua mãe e pensar
na tua vida. Eu estava errado antes; não lutei por nós como devia. Mas
nunca voltarei a falhar-te.
Pronunciou as últimas palavras solenemente, como um juramento.
As emoções que corriam pelo meu corpo não me deixavam falar. Era
como se o sol tivesse aparecido de trás das nuvens, iluminando o céu. As
sombras podiam regressar, mas por enquanto deliciar-me-ia com a sua
radiância.
Quando o crepúsculo se acercou, voámos de volta para a lua. Antes de
partir, Liwei ajudou-me a erguer barreiras de proteção. O nosso lar já não
estava interdito a imortais; apesar de acolhermos visitas de bom grado,
também precisávamos de ter cuidado. Juntos, tecemos a nossa magia numa
trama de poder que se estendia a toda a volta do Palácio da Luz Pura.
Quando tive de parar, exausta com o esforço, Liwei prosseguiu sozinho.
Fechou os olhos e a sua energia irrompeu numa onda de luz, envolvendo as
nossas barreiras antes de desaparecer.
— Acrescentei uma camada adicional de proteção para detetar aqueles
que disfarçam a sua forma, sejam infernais, espíritos ou celestiais. Não
impede que entrem, mas espero que vos avise com antecedência —
explicou.
O sangue fugiu-me do rosto ao ouvir a gravidade da sua voz.
— Celestiais? — repeti, tropeçando na palavra.
Julgava que estávamos livres de intrigas, perigo e medo. Uma sombra
passou pelo rosto de Liwei.
— Não tenho conhecimento de qualquer intriga. Contudo, os meus pais
estão desagradados com a intervenção do exército a teu favor. Rumores
chegaram aos seus ouvidos de que a sua capitulação neste assunto está a ser
vista por muitos como um sinal de fraqueza. Alguns começam a questionar
de novo a sabedoria de decisões passadas, como aprisionar os dragões,
exilar a Deusa da Lua. Permitir que as aves solares vagueassem
desenfreadamente.
Um arrepio percorreu-me o corpo.
— Eu só queria voltar para casa e libertar a minha mãe. Nunca tencionei
desafiá-los. Só quero viver aqui em paz.
— Não podemos controlar o que outros temem. Mas não vais ficar
sozinha. Vou ficar contigo o tempo que me deixares. — Liwei pegou nas
minhas mãos geladas, levou-as aos lábios e soprou o seu hálito quente sobre
elas. — Estou só a ser cauteloso. São apenas murmúrios e rumores, nada
que nos deva preocupar por enquanto.
Assenti rigidamente. Murmúrios e rumores nos ouvidos errados podiam
ter consequências graves.
Nessa noite, depois de Liwei partir, virei-me e revirei-me na cama antes
de adormecer. E nem no sono encontrei descanso, perdida num sonho
vívido em que estava de pé numa varanda, a olhar para o céu. As nuvens
tinham uma cor estranha, quase violeta. Quando um vulto alto pousou ao
meu lado, a sua túnica verde esvoaçava com a brisa.
Ele olhou para mim com olhos prateados, como se estivesse à espera
que eu falasse.
— Obrigada por nos deixares partir. Mas isso não apaga tudo o que
fizeste — declarei rigidamente.
— Fui sincero no que disse. Que nunca mais te forçaria contra a tua
vontade. — Havia uma nota melancólica na sua voz, que nunca lhe ouvira
antes. — Não percebi o que tínhamos até o perder. Se pudéssemos começar
de novo, faria tudo de forma diferente.
Não lhe respondi. Não sabia o que dizer.
— Há algo que te quero perguntar.
— Podes perguntar, mas posso não responder — contrapus, pouco
disposta a ser arrastada para uma conversa que me trazia tantas más
memórias.
O seu sorriso tinha um quê de vazio.
— Faz-me a vontade? Sinto falta da tua companhia.
— Não sinto falta da tua.
Meia verdade, meia mentira. Lembrei-me que aquilo de que sentia falta
era a ilusão do nosso companheirismo, não a realidade da sua mentira.
Os seus olhos refulgiram.
— No telhado, antes de o dragão te levar, terias atirado sobre mim?
Perguntara-me isso inúmeras vezes. E agora sabia finalmente a resposta.
— Não.
A sua honestidade não merecia menos da minha parte. Ao ouvir essa
palavra, ele exalou profundamente, a tensão a soltar-se dos seus ombros.
— Conseguirias amar o infernal como amaste o celestial?
— O celestial nunca existiu. Foste sempre o infernal.
Sem saber como, mantive a voz firme, ignorando o aperto que sentia no
peito.
Ele inclinou a cabeça gravemente.
— Talvez. Vejas-me como me vires, vou esperar.
— Vais esperar o quê?
— Que voltes a amar-me. — Os seus dedos tocaram-me na cabeça,
acariciaram-me o cabelo. — Ou, pelo menos, que deixes de me odiar.
Antes que me pudesse afastar, com uma resposta cortante na língua, ele
desaparecera.
Acordei na manhã seguinte abatida e com os olhos irritados. O sonho
fora tão vívido, as emoções evocadas tão reais, que fiquei algum tempo
perdida nos meus pensamentos. Alternando entre ultraje, por ele ter
invadido os meus sonhos, e ressentimento, por ainda ficar perturbada
quando pensava nele. Por fim, levantei-me e vesti-me. Diante do espelho,
fiquei paralisada ao ver o alfinete de prata no meu cabelo, esculpido com
um padrão de nuvens. Os meus dedos agarraram o metal frio, puxaram o
alfinete para fora e atiraram-no para uma gaveta.
Peguei no Arco do Dragão de Jade e pendurei-o ao ombro antes de sair
do quarto. O tempo que passara no exército ensinara-me a ser cautelosa; a
ter sempre uma arma à mão. Quando saí do palácio, voltei a testar as
barreiras que Liwei e eu tínhamos tecido. Fios de ouro e prata entrelaçados
numa trama apertada, delicada como uma teia de aranha, mais forte do que
ferro. Num espírito de desafio, pensei que, se inimigos surgissem no
horizonte, eu estaria pronta.
Nessa noite, não sonhei com Wenzhi. Fiquei perturbada, sem saber o
que sentir, mas pressentia que não fora a última vez que o veria.
***
Os meus dias caíram numa rotina. Desde do castigo da minha mãe ter
sido anulado, muitos imortais vinham visitar-nos. Alguns para expressar o
seu respeito, outros para satisfazer a sua curiosidade, mais interessados no
escândalo da nossa história do que motivados por atenção genuína.
Desejava mostrar-lhes a porta da rua ao fim do primeiro sorvo de chá, mas o
olhar severo da minha mãe reprimia os meus impulsos mais rudes. Contudo,
para lá dessas ligeiras irritações, era maravilhoso estar em casa. Sentir-me
segura e livre e amada. Fiel à sua promessa, Shuxiao era uma visita
frequente, muitas vezes aparecendo sem avisar. Ficava sempre contente
com a sua companhia e por ouvir notícias do reino. Minyi também vinha
visitar-nos, e até a Mestra Daoming e o General Jianyun. Essas eram as
minhas alturas preferidas, quando partilhava o meu lar com os amigos que
fizera, quando ouvia as suas vozes e o seu riso a espalhar-se pelas salas do
palácio. Companhia assim nunca perturbava a nossa paz, apenas a
aumentava.
Contudo, nenhuma visita era tão frequente como Liwei. Dávamos
longos passeios pela floresta de jasmineiros, vagueando pelo meio das
lanternas luminosas, sob o céu estrelado. Quando eu tocava qin ou flauta,
ele ficava sentado ao meu lado, a desenhar ou a pintar. Às vezes, eu erguia o
olhar e deparava com os seus olhos escuros presos em mim com uma
intensidade tal que os meus dedos falhavam uma nota. Mas já não me
afastava do seu toque nem sentia aquela pontada de culpa quando a minha
pulsação acelerava ao vê-lo. E a minha mente, mais uma vez, atrevia-se a
sonhar com o nosso futuro.
Certas noites, depois de Ping’er se ir deitar, fazia companhia à minha
mãe quando ela saía para a varanda do nosso lar. Estávamos juntas, mas
cada uma perdida nas suas memórias, as dela, no domínio abaixo, as
minhas, nos céus acima. Entendia agora, com uma clareza surpreendente,
porque não queria ela ser incomodada naqueles momentos. E apesar de não
falarmos, encontrávamos algum conforto na companhia uma da outra, em
partilhar a nossa mágoa, uma mágoa que eu não podia compreender na
minha infância. Muitas vezes, sobressaltava-me ao dar por mim sozinha,
não me tendo apercebido da sua saída, tão embrenhada estava nos meus
pensamentos, tentando responder à pergunta que não me saía do
pensamento.
Poderíamos eu e Liwei esquecer verdadeiramente tudo o que acontecera
para nos separar? Poderiam os laços rompidos ser repostos? Na
tranquilidade do meu lar, esperava ter tempo para desenvencilhar os nós
complicados da minha vida. Contudo, apesar de sermos imortais, eu não
podia continuar assim para sempre, afastando-me do amor, receando fazer a
escolha errada, com medo de me magoar. Nunca acreditara ser uma pessoa
volúvel, mas a verdade é que já não sabia o que queria o meu coração.
Sempre pensara que a vida era uma estrada, torcendo-se e retorcendo ao
sabor dos caprichos do destino.
Sorte e oportunidade, dádivas fora do nosso controlo. Ao olhar para a
noite sem fim, apercebi-me de que os nossos caminhos eram traçados pelas
escolhas que fazíamos. Aproveitar uma oportunidade ou deixá-la passar. Ser
levado pela mudança ou manter os pés firmes. À superfície, a minha vida
dera uma volta completa. Contudo, já não precisava de me esconder nas
sombras, de enterrar o meu passado e temer pelo meu futuro. Nunca mais
teria de esconder quem era e os nomes do meu pai e da minha mãe. Correra
palavra pelos oito reinos do Domínio Imortal que eu era a filha da Deusa da
Lua e do mortal que matara as aves solares.
Na escuridão, as mil lanternas acenderam-se. O céu estava límpido. As
estrelas infinitas. A luz da lua estava cheia e brilhante. Numa noite assim, o
meu coração ficava contente, à espera da promessa do amanhã.
Agradecimentos
Filha da Deusa da Lua começou como um sonho louco que nunca teria
sido possível sem o amor e apoio da minha família e dos meus amigos, bem
como de todos os que acreditaram no livro e em mim. Sinto-me
verdadeiramente abençoada por poder incluí-los aqui.
A David Pomerico, o meu brilhante editor na Harper Voyager US, vou
lembrar-me sempre da nossa primeira chamada, que mudou o rumo da
minha vida, quando soube que o meu livro encontrara o seu lar. É uma
honra trabalhar consigo, foi um defensor incrível da Filha da Deusa da Lua.
A sua visão para o livro e as observações penetrantes (o humor foi muito
apreciado) levaram-me a tomar uma escritora melhor e a história ficou mais
forte por sua causa.
A Vicky Leech, a minha espantosa editora na Harper Voyager UK, estou
verdadeiramente contente por trabalhar consigo! Obrigada por ser uma
maravilhosa defensora e pelas ideias inspiradoras que nos levaram por
caminhos que nunca me imaginara a trilhar, pelo qual lhe fico grata.
Gratidão eterna para a minha incrível agente, Naomi Davis, por
acreditar numa escritora desconhecida que vivia no outro lado do mundo e
com pouca experiência, por trabalhar comigo para melhorar a minha escrita.
É maravilhosa e combativa, a minha guia e parceira durante todo o processo
com a sua visão, experiência e empatia.
Os meus sentidos agradecimentos à equipa incrível da Harper Voyager
US com quem tive a felicidade de trabalhar: DJ DeSmyter, Sophie Normil,
Ronnie Kutys e a equipa de vendas da HarperCollins, gostava de poder
nomear todos! Não consigo encontrar palavras para exprimir o meu apreço,
mas saibam que estou grata por tudo.
Kuri Huang, muito obrigada pela ilustração requintada da capa da
edição americana, e a Jeanne Reina pela direção inspirada. Mais do que
uma obra de arte, é a capa dos meus sonhos! Agradecimentos especiais a
Angela Boutin, Virgínia Norey, Rachel Weinick, Jane Herman e Mireya
Chiriboga, pela ajuda inestimável! E à incrivelmente talentosa Natalie
Naudus, obrigada por ser a voz de Xingyin, por lhe dar vida.
Também estou imensamente grata à maravilhosa equipa da Harper
Voyager UK: Natasha Bardon, Maddy Marshall, Jaime Witcomb, Susanna
Peden, Robyn Watts e Marta Juncosa, o vosso apoio é tão importante para
mim. Obrigada a Ellie Game, a espantosa designer da capa, e a Jason
Chuang, por criar a deslumbrante capa da versão inglesa da qual não
conseguia desviar o olhar, absolutamente perfeita para a história.
A todos os demais na HarperCollins em todo o mundo que apoiaram
Filha da Deusa da Lua, que ajudaram a que chegasse aos seus leitores, a
todos aqueles que não posso incluir aqui por falta de espaço, saibam que
aprecio tudo o que fizeram.
Cheguei ao mundo editorial sem conhecer ninguém e com o receio real
que ninguém fosse ler o meu livro. Estou eternamente grata aos autores
brilhantes que leram a primeira versão do manuscrito: Stephanie Garber,
Shelley Parker-Chan, Andrea Stewart, Shannon Chakraborty, Ava Reid,
Genevieve Gornichec, Tasha Suri e Elizabeth Lim. Não consigo dizer como
fiquei tocada pelas vossas palavras atenciosas e generosas, e sinto-me
afortunada por ter lido os vossos livros maravilhosos.
A Anissa de Gomery, estou tão contente por nos termos conhecido e
pela nossa amizade. Trabalhar consigo foi um dos pontos altos da minha
viagem como escritora e estou imensamente grata a si e à sua equipa
maravilhosa.
Ao meu querido marido, Toby, meu parceiro na vida, meu primeiro
leitor, meu mais feroz crítico e meu mais valioso apoiante, fico-te
etemamente grata por me encorajares a seguir o meu sonho e me aturares
quando fiz a transição para esta nova e inegavelmente exigente fase da
minha vida. Por tomares conta dos nossos filhos quando eu tinha prazos
para cumprir (uma boa parte de 2021), por dares ouvidos aos meus medos
quando tudo parecia impossível, por celebrares cada marco na viagem. Não
teria conseguido sem ti.
A Lukas e Philip, pela vossa excitação com o que começou por ser a
“ideia maluca” da mamã, pelos desenhos e rabiscos entusiásticos, pelas
perguntas sobre a história e, acima de tudo, por me deixarem trabalhar
quando tinha os auriculares postos. Amo-vos aos dois com todo o coração.
Não estaria aqui sem os meus pais. Obrigada à minha mãe, pelo amor e
apoio, por cultivar o meu fascínio de infância por dramas chineses de
fantasia e por me deixar ficar em casa a ler em vez de sair. Aquelas aulas de
flauta e guzheng não foram um desperdício completo! E ao meu pai, por
trabalhar tanto para nos dar uma vida melhor, pelo amor, humor e
entusiasmo por tudo o que fazíamos, e por me dar os livros que alimentaram
a minha paixão por histórias. Sinto a tua falta e gostava que ainda estivesses
entre nós.
À minha irmã, Ee Lynn, pelo amor e encorajamento, por estares ao meu
lado nos melhores e nos piores momentos, e por leres os meus primeiros
trabalhos. À minha prima Swee Gaik, pelos conselhos inestimáveis e por
me encorajares quando primeiro exprimi o desejo loucamente improvável
de me tornar escritora. Muito obrigada a ti e ao Dan!
Sonali, ficarei sempre grata por leres o meu terrível primeiro esboço e
por me dares a coragem de mergulhar no intimidante mundo editorial. A tua
fé em mim foi a faísca que ateou tudo isto. A Jacquie, pelo apoio
inabalável, pela bondade e por seres a voz da razão. Não sei como teria
passado por tudo isto sem ti. Estou tão grata por vos ter às duas na minha
vida, as melhores amigas que podia ter desejado, a minha calma no tumulto
do mundo editorial, da maternidade e da vida.
Lamentavelmente, não tenho talento suficiente para escrever um poema
chinês. Um agradecimento especial a Han Lihua pela maravilhosa
interpretação do poema de Xingyin na competição e por me ajudar a cunhar
os nomes perfeitos para os locais. A Yangsze Choo, pelos conselhos
generosos a uma nova escritora. E a Lisa Deng, pela paciência com as
minhas perguntas frequentes e aleatórias, desde discutir nomes até mitos e
cultura.
Aos meus queridos amigos em Hong Kong, àqueles que conheci na BA
e na HKIS. Estou tão grata a todos vós pelo encorajamento e apoio,
especialmente durante a loucura do primeiro ano. A vossa amizade é tão
importante para mim e tocaram a minha vida de tantas formas diferentes.
Ao professor mais inspirador que já tive, Puan Vasantha Menin,
obrigada por me inculcar um amor por literatura.
É um privilégio fazer parte dos incrivelmente talentosos #22Debuts e ter
tantos irmãos de agente que me ajudaram a manter a sanidade. A Kristen
(@myfriendsarefiction), Mike Lasagna, Daniel Bassett, Kelecto
(@panediting), Ellie (@faerieon-theshelf), CW, Kristin Dwyer, Lauren
(@fíctiontea), são todos espantosos e estou grata pelo vosso apoio.
Finalmente, mas não menos importante, um agradecimento infinito aos
leitores, livreiros, bibliotecários, bloggers, bookstagrammers e a toda a
comunidade dos livros pelo apoio a Filha da Deusa da Lua. E se estão a ler
isto, estou-vos muito grata por darem uma oportunidade a este livro, por
permitirem que partilhasse esta história convosco. Adorei escrevê-lo com
todo o coração e espero que também tenham encontrado nele algo para
amar.