Você está na página 1de 456

Table of Contents

Sue Lynn Tan


Bio
Mapa Domínios
Parte I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Parte II
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Parte III
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Agradecimentos
Sue Lynn Tan

Filha da Deusa da Lua


Reino Celestial

Porto Editora
Existem muitas lendas sobre a minha mãe. Algumas dizem que ela traiu
o marido, um grande guerreiro mortal, ao roubar-lhe o Elixir da
Imortalidade para se tornar uma deusa. Outras retratam-na como uma
vítima inocente que engoliu o elixir para o manter a salvo de ladrões. Seja
qual for a história em que acreditem, a minha mãe, Chang’e, tornou-se
imortal. E eu também.
Lembro-me do sossego do meu lar. Éramos só eu, uma serva leal
chamada Ping’er e a minha mãe a residir na lua. Vivíamos num palácio
construído com uma pedra branca e reluzente, com colunas de madrepérola
e um telhado amplo de prata pura. As salas vastas estavam repletas de
mobília em madeira de cânfora, cuja fragrância aromática pairava pelo ar.
Uma floresta de jasmineiros rodeava o palácio, com um único loureiro no
meio, de onde brotavam sementes luminosas com um brilho etéreo. Nem o
vento nem as aves, nem mesmo as minhas mãos, conseguiam colher as
sementes, presas aos ramos tão firmemente como as estrelas ao céu.
A minha mãe era gentil e carinhosa, mas um pouco distante, como se
suportasse alguma grande mágoa que lhe tolhia o coração. Todas as noites,
depois de acender as lanternas que iluminavam a lua, ficava de pé na nossa
varanda a fitar o mundo dos mortais abaixo. Às vezes, eu acordava pouco
antes da alvorada e dava por ela ali parada, com o olhar envolto em
memórias. Incapaz de suportar a tristeza no rosto dela, eu apertava-a com os
meus braços, a minha cabeça na cintura dela. Ela estremecia ao meu toque,
como se acordasse de um sonho, antes de me afagar o cabelo e me levar de
volta para o meu quarto. O silêncio dela incomodava-me; receava tê-la
perturbado, apesar de ela raramente perder a calma. Foi Ping’er quem
finalmente me explicou que a minha mãe não gostava de ser incomodada
nessas alturas.
— Porquê? — perguntei.
— A sua mãe sofreu uma grande perda — respondeu Ping’er, erguendo
uma mão para travar a minha pergunta seguinte. — Não me cabe a mim
dizer mais.
Pensar no sofrimento da minha mãe partiu-me o coração.
— Já passaram anos. Irá a Mãe alguma vez recuperar?
Ping’er permaneceu em silêncio por um momento.
— Algumas cicatrizes marcam-nos até ao osso... fazem parte de quem
somos, moldam quem nos tomamos.
Ao ver a minha expressão abatida, Ping’er embalou-me com os braços
macios.
— Mas a força dela é maior do que julga, Estrelinha. Tal como a sua.
Apesar dessas sombras passageiras, eu era feliz ali, não fosse o mal-
estar constante de que algo faltava nas nossas vidas. Seria eu solitária?
Talvez, embora não tivesse muito tempo para me preocupar com a minha
solidão. Todas as manhãs, a minha mãe dava-me aulas de escrita e leitura.
Eu moía a tinta numa pedra até formar uma pasta preta e brilhante,
enquanto ela me ensinava a formar cada carácter com penadas fluídas do
seu pincel.
Apesar de apreciar esses momentos com a minha mãe, era das aulas
com Ping’er que eu mais gostava. A minha pintura era aceitável e o meu
bordado um horror, mas nada disso importava, pois a música era a minha
paixão. Algo na forma como as melodias tomavam forma agitava em mim
emoções que ainda não compreendia, fosse das cordas tocadas pelos meus
dedos, fosse das notas formadas pelos meus lábios. Sem companheiros para
me distraírem, em pouco tempo dominei a flauta e o qin, a cítara de sete
cordas, ultrapassando a perícia de Ping’er em poucos anos. No meu décimo
quinto aniversário, a minha mãe ofereceu-me uma pequena flauta de jade
branco, que eu levava para todo o lado numa bolsa de seda pendurada à
minha cintura. Era o meu instrumento preferido, com um tom tão puro que
até os pássaros voavam até à lua para me ouvirem... embora parte de mim
acreditasse que também vinham para admirar a minha mãe.
Às vezes, dava por mim a olhar para ela, extasiada pela perfeição dos
seus traços. O rosto tinha a forma de uma semente de melão e a pele reluzia
com o lustre de uma pérola. Sobrancelhas delicadas arqueavam-se sobre
olhos estreitos e pretos como azeviche, que se tomavam crescentes quando
ela sorria. Alfinetes dourados reluziam nas madeixas escuras do cabelo e
trazia uma peónia vermelha presa num dos lados. A túnica interior era azul
como o céu do meio-dia, complementada por um quimono branco e
prateado que lhe caía até aos tornozelos. À cintura trazia uma faixa
escarlate, ornamentada com borlas de seda e jade. Certas noites, quando eu
estava deitada na cama, ouvia o tilintar suave e adormecia mais facilmente
ao saber que ela estava por perto.
Ping’er assegurava-me de que eu era parecida com a minha mãe, mas
era como comparar a flor da ameixieira com o lótus. A minha pele era mais
escura, os meus olhos mais redondos e o meu queixo mais angular, com
uma reentrância no centro. Talvez eu me parecesse com o meu pai? Não
sabia; nunca o conhecera.
Passaram anos até eu perceber que a minha mãe, que me secava as
lágrimas quando eu caía e endireitava o meu pincel quando eu escrevia, era
a Deusa da Lua. Os mortais veneravam-na, fazendo-lhe oferendas a cada
Festival de Outono, no décimo quinto dia do oitavo mês lunar, quando o
brilho da lua atingia o auge. Nesse dia, queimavam incenso durante as
orações e cozinhavam bolos da lua, com uma crosta fina à volta de uma
pasta doce de sementes de lótus ou de um recheio salgado de ovo de pato.
As crianças levavam lanternas luminosas em forma de coelho, ave ou peixe,
simbolizando a luz da lua. Nesse dia do ano, eu ficava de pé na varanda, a
olhar para o mundo abaixo, inalando o incenso fragrante que subia até ao
céu em honra da minha mãe.
Os mortais intrigavam-me, pois a minha mãe fitava o mundo deles com
um anseio profundo. As histórias deles fascinavam-me, com as suas lutas
por amor, poder, sobrevivência... apesar de ter uma compreensão limitada
de tais intrigas na minha vida confinada. Lia tudo o que conseguia apanhar,
mas os meus preferidos eram as lendas de guerreiros valentes a lutar com
inimigos assustadores para proteger as suas amadas.
Um dia, enquanto vasculhava uma pilha de rolos na nossa biblioteca,
algo brilhante chamou-me a atenção. Fui ver o que era e senti o coração aos
saltos ao encontrar um livro que ainda não lera. A julgar pela trama
grosseira da lombada, parecia ser um texto dos mortais. A capa estava tão
desbotada que mal dava para perceber a pintura de um arqueiro a apontar
um arco prateado para dez sóis no céu. Percorri os detalhes esbatidos de
uma pena dentro das orbes. Não, não eram sóis, mas sim aves, enroscadas
em bolas de fogo. Levei o livro para o meu quarto, com os dedos a formigar
ao segurarem o papel quebradiço contra o meu peito. Deixando-me cair
numa cadeira, virava avidamente as páginas, devorando as palavras.
Começava como começam muitas lendas heroicas, com o mundo mortal
assolado por uma tragédia terrível. Dez aves solares ergueram-se no céu,
abrasando a terra e causando grande sofrimento. As colheitas não cresciam
no solo calcinado e não havia água para beber nos rios ressequidos. Corria o
rumor de que os deuses dos céus favoreciam as aves solares e ninguém se
atrevia a desafiar criaturas tão majestosas. Quando toda a esperança parecia
perdida, um guerreiro destemido chamado Houyi pegou no seu arco mágico
de gelo. Lançou as suas flechas pelo céu, matando nove das aves solares e
deixando apenas uma para iluminar a terra...
O livro foi-me tirado das mãos. A minha mãe estava parada ao meu
lado, corada, com a respiração rápida e ofegante. Quando me agarrou pelo
braço, as unhas cravaram-se-me na pele.
— Leste isto? — gritou.
A minha mãe raramente levantava a voz. Eu fitei-a, atónita, e consegui,
por fim, assentir.
Ela soltou-me, deixou-se cair para uma cadeira e apertou os dedos
contra as têmporas. Estendi as mãos para lhe tocar, receando que ela se
afastasse, zangada, mas ela envolveu as mãos nas minhas, a sua pele fria
como gelo.
— Fiz algo de errado? Porque não posso ler este livro? — perguntei,
hesitante.
A história não parecia ter nada de invulgar.
Ela ficou calada durante tanto tempo que pensei que não ouvira a minha
pergunta. Quando finalmente se virou para mim, tinha os olhos luminosos,
mais brilhantes do que as estrelas.
— Não fizeste nada de errado. O arqueiro, Houyi... é o teu pai.
Luzes percorriam-me a mente e os meus ouvidos retiniam com aquelas
palavras. Quando era mais nova, perguntara-lhe várias vezes sobre o meu
pai. Mas ela ficara sempre em silêncio, com uma expressão triste, até que,
por fim, parei de fazer perguntas. A minha mãe guardava no coração muitos
segredos que não partilhava comigo. Até agora.
— O meu pai?
Senti um aperto no peito ao pronunciar aquelas palavras.
Ela fechou o livro e ficou a olhar para a capa. Receando que ela pudesse
ir embora, ergui o bule de porcelana e servi-lhe uma taça. O chá estava frio,
mas ela bebeu sem se queixar.
— No Domínio Mortal, amávamo-nos — começou ela, numa voz baixa
e suave. — Ele também te amava, mesmo antes de nasceres. E agora...
Não terminou a frase e pestanejou furiosamente.
Segurei-lhe a mão para a reconfortar e lhe lembrar gentilmente de que
ainda estava ali.
— E agora, estamos separados para toda a eternidade.
Mal conseguia pensar por entre o tumulto que era a minha cabeça, as
emoções a irromperem dentro de mim. Desde que me lembrava, o meu pai
nunca passara de uma presença diáfana na minha mente. Quantas vezes
sonhei que estava sentado à minha frente durante as refeições, a passear ao
meu lado sob as árvores em flor. Sempre que acordava, o calor no meu peito
dissolvia-se numa mágoa vazia. Nesse dia, soube, por fim, o nome do meu
pai, e que ele me amava.
Não era de admirar que a minha mãe parecesse abatida ao longo de todo
esse tempo, presa nas suas memórias. O que acontecera ao meu pai? Estaria
ainda no Domínio Mortal? Como viéramos parar ali no alto? Contudo,
continha as minhas perguntas enquanto a minha mãe limpava as lágrimas.
Oh, como eu queria saber, mas não a faria sofrer para satisfazer a minha
curiosidade egoísta.
***
O tempo para um imortal era como chuva no oceano sem fim. A nossa
vida era tranquila, agradável, e os anos passavam como se fossem semanas.
Quem sabe quantas décadas teriam passado com este mesmo cenário se a
minha vida não tivesse sido arrebatada em tumulto, como uma folha
arrancada do ramo pelo vento?
Estava um dia bonito e a luz do sol entrava pela janela. Pus de lado o
meu qin lacado e fechei os olhos para descansar. Como já acontecera antes,
pontos prateados de luz vaguearam-me pela mente, puxando por mim,
chamando-me... como quando, todas as manhãs, o cheiro dos jasmineiros
me levava para a floresta. Queria estender a mão para lhes tocar, mas
lembrei-me do aviso severo da minha mãe.
“Não te aproximes das luzes, Xingyin”, implorara-me, de rosto lívido.
“É demasiado perigoso. Confia em mim, acabam por desaparecer.”
Eu tartamudeara a minha promessa. E com o passar dos anos, mantivera
diligentemente a minha palavra. Sempre que um vislumbre de brilho
prateado chamava por mim, eu pensava furiosamente noutras coisas, numa
música ou no último livro que lera, até a mente clarear e as luzes
desaparecerem. Contudo, estava a ficar cada vez mais difícil, as luzes
brilhavam com mais força e o seu apelo era mais tantalizante. A vontade de
lhes tocar, quase irresistível.
Como brilhavam naquele dia, talvez sentindo a minha determinação a
vacilar, a agitação inquietante do meu sangue. Ultimamente, sentia-me
assim com mais frequência, uma parte de mim a ansiar por... algo que não
tinha nome. Uma mudança, talvez. Mas ali nunca acontecia nada. Nunca
aconteciam mudanças.
As luzes não pareciam perigosas. Estaria a minha mãe errada? Ela
avisara sobre inúmeras coisas, tão inofensivas como trepar a uma árvore ou
correr pelos corredores, lembrando-se talvez desses perigos na sua infância
de mortal. Aproximei-me mais da radiância na minha mente. Mais perto do
que alguma vez chegara. Algo me agarrou, puxando-me para trás... Seria
medo ou culpa? Sentindo-me audaz, irrompi para lá das minhas dúvidas
como se fossem teias de aranha. Estava no limiar, a baloiçar no limite. Uma
corrente percorreu-me as veias, os sussurros a menearem-se entre os meus
ouvidos. Debrucei-me para a frente e estendi a mão... apenas para ver o
brilho prateado a dispersar como a luz das estrelas com a alvorada.
Abri os olhos, com os sentidos a fervilhar. Não fazia ideia de quanto
tempo passara ali sentada, perdida num devaneio. Para lá da janela, o sol do
fim da tarde tingia o céu com fiadas de rosa e dourado. A emoção
desaparecera; o remorso jazia como uma pedra no meu peito. Quebrara a
promessa que fizera à minha mãe. E, pior ainda, queria voltar a fazê-lo.
Aquelas luzes não eram perigosas, faziam parte de mim... Agora sabia isso
com uma certeza surpreendente. Porque me avisara a minha mãe contra
elas? Vou perguntar-lhe, decidi, levantando-me do chão. Já tenho idade
para saber.
Assim que cheguei à entrada, uma energia estranha vibrou pelo ar,
levantando-me os cabelos da nuca. Auras imortais, desconhecidas para
mim, mudando e fundindo-se como as nuvens no céu. Não conseguia dizer
quantas eram, embora uma parecesse brilhar mais do que as outras, muito
mais forte do que as auras da minha mãe ou de Ping’er.
Quem viera até cá?
Quando abri as portas, a minha mãe voou para dentro do quarto. Tombei
para trás, caindo sobre uma cadeira. Teria descoberto o que fiz? Estaria aqui
para ralhar comigo?
Deixei tombar a cabeça.
— Desculpa, Mãe. As luzes...
Ela agarrou-me pelos ombros.
— Isso agora não importa, Xingyin. Chegou uma visita. Ela não pode
saber que estás aqui. Que és minha filha.
A minha pulsação palpitava ao pensar em conhecer alguém novo. Então,
percebi o que ela queria dizer, a maneira como o dissera, e a minha
excitação desfez-se em mil pedaços.
— Não queres que conheça a tua amiga?
As mãos dela afastaram-se de mim e o seu rosto endureceu até parecer
esculpido em mármore.
— Não é uma amiga. É a imperatriz do Reino Celestial. Ela não sabe de
ti, ninguém sabe. E não podemos deixar que descubram!
As palavras da minha mãe, jorradas numa torrente impetuosa,
assustaram-me, apesar da excitação que sentia. Lera que o Reino Celestial
era a mais poderosa das oito nações imortais, aninhado como uma lágrima
preciosa no coração do Domínio Imortal. O imperador e a imperatriz viviam
num palácio que flutuava sobre um banco de nuvens, de onde governavam
sobre celestiais e mortais enquanto vigiavam o sol, a lua e as estrelas. Em
todo o tempo que vivemos aqui, nunca se dignaram a visitar o nosso lar
remoto, por isso, porquê agora?
E porque tinha de me esconder?
Uma palpitação estranha na barriga lançou raízes geladas até ao âmago
do meu ser.
— Passa-se algo de errado? — perguntei, esperando que ela negasse.
Ela tocou-me gentilmente no rosto.
— Explico tudo mais tarde. Por agora, fica no teu quarto e não faças
barulho.
Assenti e ela saiu, fechando a porta atrás de si. Só então percebi que a
minha mãe não respondera à pergunta. Abri um livro, voltando a pousá-lo
depois de ler a mesma linha três vezes. Os meus dedos puxaram uma corda
do qin, mas apertaram-na logo a seguir, para abafar a nota. Enquanto fitava
a porta fechada, uma curiosidade intensa dominou-me, consumindo o meu
medo. Lentamente, caminhei até à porta e abri-a ligeiramente. Iria deitar
uma olhadela rápida à Imperatriz Celestial e depois regressaria ao meu
quarto. Quando voltaria a ter uma oportunidade de a ver, um dos imortais
mais poderosos em todo o domínio? Até podia estar a usar a Coroa da
Fénix, que se diz ser feita a partir de penas em ouro puro e decorada com
centenas de pérolas luminosas.
Silenciosa como uma sombra, esgueirei-me em bicos de pés pelo
corredor comprido que ia do meu quarto até ao Salão da Harmonia
Prateada, a divisão mais nobre do Palácio da Luz Pura, com chão de
mármore, lâmpadas de jade e cortinas de seda. Pilares de madeira assentes
em bases de prata adicionavam um toque caloroso à sua elegância pristina.
Sempre fora ali que nos imaginara a receber hóspedes, apesar de nunca
termos tido qualquer um até agora.
Ao virar da esquina, uma voz suave veio ao meu encontro. Esforcei-me
por ouvir melhor.
— Chang’e, como tem andado?
O tom cordial da Imperatriz Celestial surpreendeu-me. Não parecia
assim tão assustadora.
— Bem, Vossa Majestade Celestial. Agradeço-vos a vossa preocupação.
A voz da minha mãe soava invulgarmente animada.
Um breve silêncio seguiu-se a esta troca de cortesias. Agachada junto à
parede, estiquei o pescoço para espreitar para o interior do salão. A minha
mãe estava ajoelhada no chão, com a cabeça curvada. Diante dela, sentada
na cadeira da minha mãe, tinha de ser a Imperatriz Celestial.
Não estava a usar uma coroa, mas antes um toucado elaborado com
folhas e flores cravejadas de joias, que tilintavam quando se movia.
Enquanto fitava o toucado, enfeitiçada, um botão desabrochou numa
orquídea de ametista. Na ponta dos dedos reluziam dedais pontiagudos de
ouro, recurvados como as garras de um falcão. O bordado prateado na sua
túnica violeta captava a luz fraca que entrava pelas janelas. Ao contrário da
aura calma e delicada da minha mãe, a sua aura era forte, irradiando calor.
Era deslumbrante, mas os lábios vermelhos em contraste com a pele branca
faziam-me pensar em sangue derramado sobre neve.
Como era próprio da sua excelsa posição, a imperatriz não viera só. Seis
servas erguiam-se atrás dela, bem como um imortal alto, de compleição
mais escura do que os restantes. Peças planas de âmbar enfeitavam-lhe o
chapéu preto, e o quimono escuro estava preso por uma faixa da cor do
bronze, enquanto luvas brancas lhe cobriam as mãos. Eu não sabia nada
sobre a Corte Celestial, mas a maneira como o homem se movia parecia
indicar que era de classe mais elevada do que os restantes acompanhantes.
Contudo, havia algo nele que me desagradava. Quando os olhos castanho-
claros percorreram o salão, encolhi-me e encostei-me à parede.
Após uma breve pausa, a imperatriz voltou a falar, num tom mais frio
do que uma peça de jade.
— Chang’e, foi detetada aqui uma alteração peculiar da energia. Anda a
cultivar um poder secreto ou a acolher um hóspede clandestino, violando os
termos do seu aprisionamento?
Fiquei rígida, com as omoplatas a contraírem-se ao ouvi-la falar. Uma
avidez parecia cobrir cada palavra, como se estivesse deleitada com a ideia
de a minha mãe ter errado. Imperatriz ou não, como se atrevia a falar assim?
A minha mãe era a Deusa da Lua, venerada e amada por inúmeros mortais!
Como podia ela ser prisioneira? Aquele sítio era mais do que o nosso lar;
era o seu domínio. Quem acendia as lanternas todas as noites? Quem fazia
as árvores balançar e suspirar ao passar por elas? Como podia ela fazer algo
que não fosse certo?
— Vossa Majestade Celestial, deve haver um mal-entendido. Os meus
poderes são fracos, como bem sabeis. E não está aqui mais ninguém. Quem
se atreveria a vir? — respondeu a minha mãe num tom firme.
— Ministro Wu. Partilhe a sua descoberta — ordenou a imperatriz.
Ouviram-se passos.
— Esta manhã, foi detetada uma mudança significativa na aura da lua.
Sem precedente em todos os meus anos de estudo. Não pode ser
coincidência.
Na voz suave do imortal, pareceu-me ouvir uma sugestão de excitação.
Sentiria prazer com os apuros da minha mãe, como a imperatriz parecia
sentir? Fiquei furiosa só de pensar nisso, apesar de um mal-estar
inquietante. A palpitação nas minhas veias quando toquei nas luzes, o
sussurro no ar... isso tê-los-ia, de alguma forma, atraído para cá?
— Espero que a nossa clemência não a tenha tomado ousada — avisou
a imperatriz. — Teve muita sorte antes, quando foi confortavelmente
aprisionada aqui por ter roubado o Elixir da Imortalidade do seu marido.
Nessa altura, escapou ao chicote de relâmpago e à vara flamejante. Mas
mudará se descobrirmos que está a planear novos logros. Confesse agora e
talvez sejamos misericordiosos — fustigou, estilhaçando a tranquilidade do
nosso lar.
A mão voou-me para a boca, abafando uma exclamação. Nunca
perguntara à minha mãe como ascendera à imortalidade, sentindo que isso a
fazia sofrer. Contudo, desde que lera a lenda das aves solares, uma questão
não me saía da mente: Onde estava o meu pai? Ao ouvir que fora agraciado
com o elixir e que a minha mãe era acusada de o ter roubado... algo se
contorceu dentro de mim. A imperatriz estava errada, disse convictamente
a mim mesma, reprimindo uma semente traidora de dúvida.
A minha mãe não estremeceu nem negou as aquelas acusações vis.
Estaria acostumada a tal tratamento por parte da imperatriz? Quando voltei
a olhar para o salão, estava debruçada com a testa e as mãos no chão.
— Vossa Majestade Celestial. Ministro Wu. Talvez esse fenómeno tenha
sido causado pelo recente alinhamento das estrelas. A constelação do
Dragão Celeste entrou no percurso da lua, o que pode ter distorcido as
nossas auras. Quando passar, tudo deve voltar ao normal.
Falou como uma erudita que estuda os céus, apesar de eu saber que não
se interessava por esses assuntos.
Seguiu-se um longo silêncio, pontuado por um tamborilar rítmico... as
pontas afiadas dos dedais dourados da imperatriz a cravarem-se na madeira
macia do braço da cadeira. Por fim, a imperatriz levantou-se, com as servas
a juntaram-se à sua volta.
— Talvez seja isso, mas regressaremos. Foi deixada a sós por
demasiado tempo.
Fiquei contente por vê-los partir, apesar da ameaça que pairava sob o
tom da imperatriz, como um cordão de seda apertado com força. Incapaz de
continuar a ouvir, esgueirei-me de volta para o meu quarto e deitei-me na
cama, olhando para lá da janela. O céu escurecera para o fugaz cinzento
violáceo do crepúsculo, quando o fim do dia dá lugar à noite. Sentia a
mente atordoada, ainda assim consegui pressentir quando aquelas auras
pouco familiares se afastaram. Momentos depois, a minha mãe abriu as
portas de rompante, o rosto mais branco do que as paredes de pedra.
As minhas dúvidas desapareceram. Não acreditava na Imperatriz
Celestial. A minha mãe nunca teria traído o meu pai. Nem mesmo pela
imortalidade.
Saltei para fora da cama e fui ter com ela. Era agora quase tão alta como
ela.
— Mãe, ouvi o que a imperatriz te disse.
Ela envolveu-me com os braços e apertou-me com força. Encostada ao
seu ombro, relaxei, aliviada, por ela não estar zangada comigo, apesar de
sentir como o seu corpo estava tenso.
— Não temos muito tempo. A imperatriz pode voltar a qualquer
momento com os seus soldados — segredou.
— O que podem eles fazer? Não fizemos nada de errado.
O meu estômago contorceu-se, uma sensação desagradável.
— Somos prisioneiras? O que queria dizer a imperatriz acerca do elixir?
A minha mãe afastou-se para me olhar no rosto.
— Xingyin, tu não és uma prisioneira. Mas eu sou. O Imperador
Celestial concedeu o Elixir da Imortalidade ao teu pai, por matar as aves
solares e salvar o mundo. Mas Houyi não o tomou. Só havia elixir
suficiente para uma pessoa e ele não queria ascender aos céus sem mim. Eu
estava grávida, a nossa felicidade parecia total. Por isso, ele escondeu o
elixir, e apenas eu sabia onde.
Então, a voz dela vacilou.
— Mas o meu corpo era demasiado fraco para te dar à luz. Os médicos
disseram-nos que tu... que nós não sobreviveríamos ao parto. Houyi não
queria acreditar neles, não queria desistir... Levou-me a um médico atrás do
outro, à procura de um prognóstico diferente. Contudo, lá no fundo, eu
sabia que estavam a dizer a verdade.
Fez uma pausa, com uma tensão à volta dos olhos, como se estivesse a
recuar nas memórias e isso fosse doloroso.
— Quando foi chamado para combater, fiquei sozinha. Foi então que
começaram as dores, demasiado cedo, a meio da noite. A agonia que me
irrompia pelo corpo era tal que mal conseguia gritar. Receava morrer,
receava perder-te.
Assim que parou de falar, uma pergunta irrompeu de mim:
— O que aconteceu?
— Fui buscar o elixir ao seu esconderijo, tirei a tampa e bebi-o.
No silêncio do quarto, só conseguia ouvir o batimento do meu coração.
As minhas mãos já não aqueciam as da minha mãe, estavam tão frias como
as dela.
— Odeias-me, Xingyin? — perguntou-me numa voz trémula. — Por ter
traído o teu pai?
As palavras da imperatriz eram verdadeiras. Por um momento, não me
consegui mover, as minhas entranhas a contorcerem-se perante aquela
revelação. Se a minha mãe não tivesse tomado o elixir, talvez tivéssemos
sobrevivido. A minha família não teria sido separada. Contudo, sabia como
ela amava o meu pai, como lamentava profundamente a sua perda. Acima
de tudo, sentia-me grata por estar viva.
Engoli os últimos vestígios da minha hesitação.
— Não, Mãe. Tu salvaste-nos.
O seu olhar estava distante, velado pela memória.
— Deixar o teu pai... oh, como custou. Mas tenho de admitir que não
queria morrer. Nem podia deixar que tu morresses. Só mais tarde descobri
que as dádivas do Imperador Celestial vêm com condições não declaradas.
Que tais decisões não cabem aos mortais. O imperador ficou furioso por ter
sido eu a tornar-me imortal, em vez do teu ilustre pai. A imperatriz acusou-
me de usar truques para obter uma imortalidade que eu não merecera.
— Mas explicaste-lhes? — perguntei. — Certamente, se soubessem que
era para nos salvar...
— Não me atrevi. A imperatriz parecia hostil, como se guardasse rancor
ao teu pai. Até o acusou de ingratidão por desdenhar a dádiva do imperador.
Percebi então que ela procurara puni-lo, em vez de o recompensar, por ter
matado as aves solares. Ela não hesitaria em fazer-te mal. Como lhes podia
revelar a tua existência? Para te proteger da ira deles, mantive o teu
nascimento em segredo. Confessei o roubo. Como castigo, fui exilada para
a lua. Um encantamento lançado sobre mim prende-me aqui para toda a
eternidade. Não posso sair deste sítio, por muito que queira. — E
acrescentou em voz baixa: — Um palácio de onde não podemos sair não
deixa de ser uma prisão.
Eu respirava com esforço, o meu peito a palpitar como um peixe fora de
água. Julgara que as nossas vidas eram tão pacíficas, tão seguras dos
perigos que lia nos livros. Descobrir que éramos o alvo da ira dos imortais
mais poderosos em todo o domínio abalou-me até ao meu âmago.
— Mas porque veio hoje a imperatriz, passado tanto tempo?
— As nossas auras emanam da nossa força vital, o núcleo da nossa
magia... as luzes que vês na tua mente. Desde que nasceste, fizemos tudo o
que podíamos para esconder o teu poder. Apesar dos nossos esforços, hoje a
imperatriz sentiu-te.
Senti um nó na garganta.
— Eu não sabia. Tudo isto é culpa minha.
Como fui estúpida e descuidada! Porque estava aborrecida, ignorei o
aviso da minha mãe, quebrei a minha promessa e coloquei-nos no maior dos
perigos.
— A culpa também é minha. Eu disse-te para não tocares na tua magia,
mas devia ter-te explicado porquê, que podia alertar o Reino Celestial da tua
presença.
Então, soltou um suspiro.
— Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde; a cada ano que passa
ficas mais forte. Se te descobrirem, o nosso castigo vai ser severo, disso não
tenho dúvidas. Não receio por mim, mas por ti, uma criança imortal que
nunca devia ter nascido.
— O que podemos fazer?
— Só podemos fazer uma coisa. Tens de partir daqui.
O medo cobriu-me a pele como gelo a formar-se na superfície de um
lago. Nunca mais voltar a ver a minha mãe... De repente, receava largá-la.
— Não posso ficar contigo? Eu escondo-me. Treina-me, para eu poder
ajudar.
— Não podemos. Ouviste as palavras da imperatriz. Agora, vão vigiar-
nos mais atentamente. É tarde de mais.
— Talvez os tenhas convencido, talvez não voltem.
Uma súplica desesperada, uma esperança infantil.
— Posso ter-nos conseguido algum tempo. Mas a imperatriz não teria
vindo aqui apenas por capricho. Regressarão. E em breve. — A emoção
embargou-lhe a voz. — Não te podemos proteger. Não temos força
suficiente.
— Mas para onde irei? Voltarei a ver-te?
Cada palavra era um golpe, dando forma ao pesadelo crescente.
— Ping’er vai levar-te para a família dela no Mar do Sul. — A minha
mãe falava agora num tom mais animado, como se estivesse a tentar
convencer-nos a ambas. — Ouvi dizer que o oceano é lindo. Vais ter uma
vida boa lá, longe das nuvens que pairam sobre nós.
Ping’er partilhara comigo tudo o que sabia sobre as terras para lá do
palácio, agitando a minha imaginação, que ansiava por aventura. O grande
oceano estava dividido em quatro domínios, da costa oriental ao oceano
meridional, dos penhascos ocidentais às águas setentrionais. Eu ficara
cativada pelas histórias de criaturas que viviam nas cidades cintilantes
debaixo de água ou nas costas douradas. Como sonhara explorá-las.
Contudo, nunca imaginara que fugiria de casa para o fazer. Para que
serviam as aventuras se não tivéssemos ninguém com quem as partilhar?
A mão da minha mãe fechou-se sobre a minha, trazendo-me de volta
para o presente.
— Não podes contar a ninguém quem és. O Imperador Celestial tem
informadores em todo o lado. Tomaria a tua própria existência como um
insulto imperdoável.
Falou-me num tom urgente, olhos presos nos meus até eu dizer a custo a
minha promessa.
Debruçando-se para mim, apertou algo à volta do meu pescoço. Um
colar de ouro com um pequeno disco de jade. Era da cor das folhas na
primavera, com um dragão esculpido na superfície. Os meus dedos tocaram
na pedra fria, sentindo uma fenda fina no rebordo.
— Isto pertencia ao teu pai. — Os seus olhos estavam tão escuros como
uma noite sem luar. — Não digas a ninguém quem és. Mas também nunca
te esqueças.
Então, abraçou-me com força e afagou-me o cabelo. Mantive a cabeça
baixa, covardemente, não querendo vê-la partir, desejando que aquele
momento durasse para sempre. Os seus dedos tocaram-me na cara uma
última vez e, depois, não havia mais nada a não ser um vazio doloroso.
Deixando-me cair ao chão, envolvi os joelhos com os braços. Oh, como
queria gritar e gemer e bater com os punhos no chão. A mão voou-me para
a boca, abafando os soluços roucos, mas as lágrimas silenciosas... deixei-as
correr pelo rosto. Numa só noite, no tempo que a flor da lua demora a
desabrochar e a murchar, a minha vida foi virada do avesso. O meu
caminho, que até então parecera uma estrada a direito, virara subitamente
para os ermos desertos... e eu estava perdida.
O quarto estava escuro, a noite caíra. A lua continuava envolta em
sombras, pois as lanternas ainda não tinham sido acesas. O nascer da lua
viria mais tarde.
A urgência pôs-me em ação. Não queria ser descoberta e fazer com que
a minha mãe e Ping’er fossem punidas. Apesar de a pena de morte
raramente ser aplicada a imortais, as ameaças da imperatriz, de relâmpagos
e fogo, faziam o meu corpo torcer-se de terror.
Ping’er ajudou-me a embrulhar os meus pertences num pano grande.
— Não muita coisa, nem nada muito caro, para evitar suspeitas.
Tinha os olhos vermelhos de lágrimas, mas ao ver a minha expressão
devastada, acrescentou:
— Vai ficar a salvo no Mar do Sul, tão bem escondida como uma estrela
no firmamento. A minha família vai tomar conta de si e ensinar-lhe tudo o
que precisa de saber. — Então, atou as pontas do pano, formando um saco
que pendurou ao meu ombro. — Vamos?
Eu não queria ir. Contudo, atordoada para tudo, assenti. Que mais podia
fazer? Nem sequer podia culpar os caprichos do destino, pois fora eu a
causar tudo isto.
Enquanto Ping’er e eu nos apressávamos pela entrada, seguindo para
leste pela floresta de jasmineiros, olhei para trás uma última vez. Nunca o
meu lar me parecera tão belo como naquele momento em que guardava na
memória cada curva, cada pedra. As mil lanternas iluminavam o solo, as
telhas prateadas refletiam as estrelas. E na varanda de onde eu fitava o
mundo abaixo erguia-se um vulto esbelto vestido de branco.
O olhar da minha mãe não estava fixo no Domínio Mortal, mas em
mim, os dedos erguidos num gesto de despedida. Ignorando os puxões
urgentes de Ping’er na minha manga, deixei-me cair de joelhos,
debruçando-me até tocar com a testa na terra macia. Os meus lábios
moveram-se numa promessa silenciosa: que um dia regressaria, que
libertaria a minha mãe. Não sabia como, mas iria tentar com todas as
minhas forças. Este não seria o nosso fim. Enquanto seguia Ping’er até à
nuvem que nos levaria para longe dali, a dor atingiu-me com tal força que...
o meu coração partiu-se... mantido junto apenas por um ténue fio de
esperança.
Inalei o ar revigorante, fresco, mas vazio, sem o mais pequeno vestígio
de especiarias. Quando a nuvem se lançou velozmente pelo céu, perdi o
equilíbrio e segurei-me ao braço de Ping’er. Como era arrepiante a noite
sem o brilho das lanternas. Nessa mesma manhã, o medo era uma emoção
desconhecida para mim, e agora quase me sufocava. Felizmente, as dobras
nebulosas da nuvem não cediam sob os meus pés, tão sólidas como terra
firme... não fosse o vento intenso a toda a volta.
Seria uma viagem longa até ao Mar do Sul... para lá do Reino Celestial
e das florestas luxuriantes do Reino da Fénix. Ainda mais distante do que o
Deserto Dourado, o vasto crescente de areia árida que fazia fronteira com o
temido Reino Infernal. Como encontraria o caminho de volta para casa?
Ocorreu-me então que talvez pensassem que eu nunca o faria.
Um mar de luzes cintilou ao longe, distraindo-me de pensamentos
sombrios.
— O Reino Celestial — sussurrou Ping’er.
Quando uma súbita rajada de vento se fez sentir, Ping’er olhou por cima
do ombro e empalideceu. Virei-me para trás e sondei a noite com o olhar.
Uma nuvem grande voava na nossa direção, com os vultos indistintos de
seis imortais em cima. As armaduras brancas e douradas cintilavam, mas as
suas feições eram ocultadas pela escuridão.
— Soldados! — exclamou Ping’er.
O meu coração começou a bater com força.
— Andam à nossa procura?
Ping’er puxou-me para trás de si.
— Usam armadura celestial. Devem estar aqui às ordens da imperatriz.
Baixe-se! Esconda-se! Vou tentar deixá-los para trás.
Baixei-me tanto quanto podia, escondendo-me nos fiapos frios da
nuvem. Parte de mim estava contente por não estar a ver os soldados, ainda
assim, a minha pele arrepiava-se com horror do desconhecido. De olhos
fechados, Ping’er soltou um feixe estreito de luz da palma da mão. Até essa
noite, nunca a vira usar magia... talvez nunca tivesse sido preciso. A nossa
nuvem arrancou subitamente, mas abrandou logo a seguir.
Suor perlava a pele de Ping’er.
— Não consigo que ande mais depressa; não sou suficientemente forte.
Se nos apanham... vão descobrir quem é.
— Estão perto?
Torci-me para espreitar para trás e desejei não o ter feito.
Aço brilhava nas mãos dos soldados, cada vez mais próximos. Em
breve, alcançar-nos-iam. Alguém podia reconhecer Ping’er, perguntas
seriam feitas. Eu era uma péssima mentirosa, sem a prática que vinha da
necessidade. Um olhar severo da minha mãe era o suficiente para a verdade
me escapar dos lábios. Visões monstruosas apinhavam a minha mente:
soldados a invadir o meu lar, a arrastar a minha mãe acorrentada. Um
chicote estralejante de relâmpago a vergastar-lhe as costas, cortando-lhe a
pele e salpicando de sangue a seda branca do quimono. Engasguei-me, com
fel quente a subir-me à garganta.
Cravei as unhas na palma da mão. Não podia deixar que nos
apanhassem. Não podia deixar que magoassem a minha mãe e Ping’er. Mas
fraca como era, só conseguia pensar numa coisa, que podia muito bem ser a
última coisa que alguma vez faria.
Cerrando os dentes até me doerem, forcei as palavras a saírem.
— Ping’er, deixa-me descer aqui.
Ela olhou para mim como se eu tivesse perdido o juízo.
— Não, estamos no Reino Celestial! Temos de chegar ao Mar do Sul.
Temos de...
A minha calma estilhaçou-se. Segurei-lhe o braço com uma força
frenética, puxando-a para baixo.
— Não conseguimos fugir deles. Quando nos capturarem, vão punir-
nos. Eu... eu acho que nos devíamos separar. Tens de ficar na nuvem; não a
consigo controlar. Ping’er, pelo menos assim temos uma hipótese!
Que escolha tínhamos? Nenhuma que nos desse uma boa hipótese de
ambas escaparmos. Contudo, por muito que tentasse, não conseguia parar
de tremer.
Ping’er abanou a cabeça, mas eu insisti.
— Vou ficar a salvo no Reino Celestial, enquanto não souberem quem
sou. Prometi à Mãe que não diria a ninguém, e não vou dizer. Vou encontrar
um sítio para me esconder. Talvez consigas escapar aos soldados sem mim?
As minhas palavras saíam num sussurro apressado. A qualquer
momento podia ser tarde de mais e a decisão podia ser-nos tirada das mãos.
Fogo iluminou a noite, a arder na nossa direção. Atingiu-nos, e a nossa
nuvem estremeceu ao guinar bruscamente. O calor passou por cima da
minha pele enquanto Ping’er erguia a mão e soltava uma luz que apagava as
chamas. Com um grito, caiu ao meu lado.
— Estão a atacar-nos — exclamou, incrédula, sem nunca tirar as mãos
reluzentes da nuvem para a acelerar. Senti o aperto do terror, mas não podia
sucumbir. Não agora, quando cada segundo contava.
— Ping’er, é a única solução. Não podemos deixar que nos apanhem. —
Falei num tom firme e urgente, não mais uma criança a implorar por ser
ouvida. — A escolha também é minha.
Algo endureceu no rosto dela, uma determinação sombria. Ping’er
apontou para um denso banco de nuvens ao longe.
— Ali... Vou largá-la o mais baixo que puder. Vou escudá-la da queda.
Apesar das palavras confiantes, algo deixou-me perturbada. A sua
respiração era áspera e esforçada. A pele estava húmida ao toque. Estaria
doente? Impossível. Os imortais não sofriam de tais males.
— Ping’er, estás ferida? O fogo...
— Apenas um pouco cansada. Não tem de se preocupar.
Virei-me para o lado, espreitando pelo limite da nuvem a grande
velocidade. A minha mente saltou para os perigos adiante... para lá do vazio
abaixo de nós, para as luzes cintilantes entrelaçadas na escuridão.
Maravilhoso. Aterrador. Então, levantei-me e envolvi Ping’er nos meus
braços, apertando-a com força. Desejando não ter de a largar. Desejando
tantas coisas, nenhuma das quais viria a acontecer.
Ping’er agarrou-me com um desespero feroz enquanto mergulhávamos
para o banco de nuvens. Gotículas de água gelada roçaram-me a pele e a
humidade colou-se à minha roupa. À medida que mergulhávamos ainda
mais, o frio penetrava profundamente, até aos ossos. Tinha as pernas a
tremer quando as estiquei para me levantar. A pele de Ping’er parecia cinza
arrefecida ao passar-me um braço pelas costas. O ar estremeceu e um
arrepio percorreu-me o corpo como o toque de uma pluma.
— O escudo vai amortecer-lhe a queda. Mas ainda assim pode sentir dor
e deve ter sempre cuidado.
As suas mãos tremiam quando me pendurou o pequeno saco no braço.
— Vais voltar? Quando o perigo passar?
Agarrei-me a essa esperança frágil, tentando reunir os restos da minha
coragem. Tentando não me desfazer.
Os olhos de Ping’er encheram-se de lágrimas.
— Claro que sim. Mas se não voltar...
— Vou encontrar o caminho de volta. Um dia, quando for seguro —
respondi rapidamente, para reconfortar ambas.
— Vai, sim. Tem de voltar, pela sua mãe. — Ping’er respirou fundo. —
Está pronta?
Eu estava tão tensa que achava que podia quebrar. Não, nunca estaria
pronta... para saltar para o desconhecido, para cortar este último laço com o
meu lar. Mas se não partisse naquele momento, se cedesse ao pânico
descontrolado, se me deixasse tomar pela mais pequena sombra de dúvida...
a pouca determinação que ainda tinha iria desvanecer-se. Voltada para
Ping’er, forcei as pernas rígidas a recuarem até ao limite da nuvem. Preferia
mil vezes vê-la do que à escuridão vazia abaixo.
— Agora! — gritou ela num súbito impulso de força, com os olhos a
cintilar.
As minhas pernas cambalearam para trás... precisamente quando a
cabeça de Ping’er rolou para o lado e ela tombou dentro da nuvem. Mas eu
também estava a cair, através da escuridão vazia do céu. O vento levou
todos os meus pensamentos, engolindo o grito que brotou da minha
garganta, fustigando-me a cara e os membros até deixar de os sentir. A
minha roupa era puxada para a frente numa nuvem de seda. Não conseguia
respirar, com o ar a bater contra mim e os pulmões em chamas. Um rugido
nos meus ouvidos bloqueava tudo, exceto o batimento do meu coração.
Contudo, diante de mim, cada vez mais pequena, estava a nuvem de
Ping’er, ainda parada. O corpo dela imóvel onde tombara. Teria desmaiado?
Foge!, gritei sem som, quando os soldados se aproximaram da nuvem.
Terror apertou-me por dentro enquanto estendia as mãos, um gesto fútil,
tentando desesperadamente agarrar... algo dentro de mim. Arrepios
percorriam a minha pele, ora quente, ora fria, quando uma rajada cintilante
de ar jorrou pelo vazio na direção da nuvem de Ping’er. A nuvem cintilou
intensamente e saiu lançada pelo céu, desaparecendo no horizonte distante.
Despenhei-me no chão, dor a percorrer o meu corpo inteiro. O ar saiu-
me do peito, só conseguia ficar ali deitada enquanto lágrimas corriam dos
olhos, misturando-se com o suor que cobria a pele. Um cansaço profundo
tomou conta de mim. Assim que os meus dedos agarraram erva macia por
baixo de mim, inalei tremulamente, o aroma das flores enchendo-me as
narinas. Um cheiro doce, mas indiferente para mim. Pressionando a palma
das mãos contra o chão, levantei-me, dorida, mas sem ferimentos. O
encantamento de Ping’er protegera-me dos danos da queda.
Pensei que estava a salvá-la, mas ela ajudou-me a escapar, sem pensar
na sua própria segurança. Teria ela escapado? Estaria a minha mãe a salvo?
Estaria eu! A minha respiração era rápida e ofegante, como se estivesse a
afogar-me, com falta de ar. Os imortais não sofriam de doenças ou velhice,
mas podiam ser feridos por armas, criaturas e magia do Domínio Imortal.
Como uma tonta, nunca imaginara que tais perigos nos pudessem tocar. E
agora... Enrolada numa bola apertada, braços em volta dos joelhos, um
lamento fraco e agudo a escapar de mim como de um animal ferido.
Estúpida, amaldiçoei-me vezes e vezes sem conta por fazer cair a desgraça
sobre nós, até que apertei os lábios com força para abafar os gemidos.
Não sei quanto tempo fiquei ali deitada, a garganta rouca de tanta
mágoa. E, sim, também temia por mim, com pensamentos de soldados
cruéis e feras vorazes a ocuparem a mente. Quem sabia o que rondava na
escuridão? Estava a ir-me abaixo, numa lástima, mas então um feixe de luz
caiu-me em cima. Ergui a cabeça e fitei a lua, a primeira vez que a via de
longe. Era linda e luminosa, assim como reconfortante. Respirei mais
facilmente, encontrando conforto na ideia de que, enquanto a lua se
erguesse todas as noites, saberia que a minha mãe acendera as lanternas e
estava bem. Uma memória surgiu-me na mente, a minha mãe a caminhar
pela floresta, com o quimono branco a brilhar na escuridão. O meu coração
magoado doeu de saudade, mas forcei-me a não de novamente no abismo
da autocomiseração.
Vislumbres de luz vindos de baixo chamaram-me a atenção, luzes
trémulas a dançar nas profundezas escuras. Seriam as luzes que avistara de
cima? Só então percebi que o solo era como um espelho, um reflexo das
estrelas dispersas pelo céu noturno. Aquela beleza desconhecida assustou-
me, mais uma lembrança de que já não estava em casa. Voltei a deixar-me
cair, envolvendo o corpo com os braços. Fiquei a fitar a lua até a dor
abrandar e acabei por cair num sono sem sonhos no chão frio e duro.
***
Alguém estava a tocar-me no braço. Seria a minha mãe? Teria sido tudo
um terrível pesadelo? Um jorro de esperança dissipou a neblina do sono.
Abri os olhos, pestanejando com o brilho do dia. As luzes trémulas tinham
desaparecido e refletidas no lugar delas estavam as nuvens rosadas da
alvorada.
Uma mulher estava acocorada ao meu lado, com um cesto pousado no
chão. A mão dela no meu cotovelo era quente e seca como a superfície de
uma lanterna de papel.
— Porque está a dormir aqui? — perguntou, de testa franzida. — Sente-
se bem?
Levantei-me bruscamente, suprimindo um gemido por causa da dor nas
costas. Mas consegui responder à pergunta com um aceno, atordoada pelas
memórias que caíam sobre mim como uma onda.
— Tenha cuidado. Devia ir para casa. Ouvi dizer que houve um
distúrbio qualquer ontem à noite e os soldados andam a patrulhar a área.
Em seguida, pegou no cesto e levantou-se.
Senti um nó na barriga. Distúrbio? Soldados?
— Espere! — gritei, sem saber o que dizer, mas não querendo ficar
sozinha. — O que aconteceu?
A mulher encolheu os ombros.
— Uma criatura passou pelas barreiras protetoras. Os guardas saíram no
seu encalço. Nos últimos anos, temos tido muitos espíritos-raposa. Mas
ouvi dizer que ontem pode ter sido um infernal, a tentar roubar crianças
celestiais para as suas artes negras.
Um desses monstros do Reino Infernal? Foi então que tive consciência
de que era de mim que os guardas andavam à procura. Que era eu o suposto
infernal. Teria rido à gargalhada se não estivesse tolhida de medo. Ping’er
não devia saber das barreiras protetoras.
— Apanharam alguém?
A minha voz soou fraca e fina.
— Ainda não, mas não se preocupe. Os nossos soldados são os
melhores de todos os reinos. Vão capturar esse intruso rapidamente. — A
mulher prendou-me com um sorriso reconfortante antes de perguntar: — O
que está a fazer aqui a esta hora?
Suspirei de alívio. Ping’er conseguira fugir! Contudo, eu devia ter
ficado ali deitada durante horas e ela não regressara. A rajada de vento que
atravessara os céus e a lançara para longe tê-la-ia levado para longe de
mais?
Um pensamento surgiu-me na mente. Aquele poder teria, de alguma
forma, vindo de mim? Conseguiria voltar a fazê-lo? Não, que pensamento
mais ridículo. Além disso, até agora, nada de bom viera da minha magia e
não podia correr o risco de voltar a chamar atenção para mim. Com um
sobressalto, reparei que a mulher estava a olhar para mim e a sua pergunta
continuava por responder. Não devia desconfiar de mim, pois
provavelmente estaria à espera de um monstro ou de uma fera assustadora,
mas não me atrevia agora a dar-lhe motivos para duvidar de mim.
— Não tenho para onde ir. Eu... eu fui dispensada da casa onde
trabalhava. Caí e desmaiei.
As minhas palavras eram desajeitadas, o meu tom hesitante. A minha
língua não estava habituada a proferir mentiras tão descaradas.
O rosto da mulher suavizou-se. Talvez pressentisse a minha
infelicidade, a jorrar de mim como um rio engrossado pela chuva.
— Pelos Quatro Mares, alguns desses nobres são mesmo rabugentos e
egoístas. Vamos, vamos, não é assim tão mau. Tenho a certeza de que vai
encontrar outro sítio. — Depois, inclinou a cabeça para o lado. — Eu
trabalho na Mansão do Lótus Dourado. Ouvi dizer que a Jovem Ama está à
procura de mais uma serva, se precisar de ocupação.
A bondade da mulher era uma fonte de calor no inverno da minha
miséria. Os pensamentos atropelavam-se na minha mente. Vaguear por aí
sozinha certamente levantaria suspeitas. Não sabia bem como conseguia
pensar em assuntos tão mundanos, mas algo endureceu dentro de mim. A
mágoa era um luxo ao qual não me podia dar, depois de perder metade da
noite nela mergulhada. Se me fosse abaixo agora, tudo teria sido em vão.
Encontraria um lugar aqui e conseguiria, de alguma forma, regressar a casa,
nem que demorasse um ano, uma década ou um século.
— Obrigada. Agradeço-lhe a bondade.
Curvei-me pela cintura, numa vénia desajeitada, pois em casa nunca
fazíamos muita cerimónia. A mulher pareceu agradada e sorriu, fazendo-me
sinal para a seguir.
Fizemos o resto do caminho em silêncio, para lá de um maciço de
bambus e através de uma ponte de pedra cinzenta por cima de um rio, até
chegarmos aos portões de uma enorme propriedade. Uma placa lacada de
preto estava exposta acima do telhado da entrada com os caracteres
dourados:

MANSÃO DO LÓTUS DOURADO

Era uma propriedade vasta, um complexo de salões interligados e pátios


espaçosos. Colunas vermelhas suportavam telhados curvos com telhas azul-
noturno. Flores de lótus flutuavam nos tanques, soltando uma fragrância
intensa e doce. Segui a mulher por longos corredores iluminados por
lanternas de pau-rosa, até chegarmos a um edifício grande. Deixando-me à
porta, a mulher aproximou-se de um homem corado e falou-lhe. O homem
assentiu uma vez antes de vir ter comigo. Endireitei as costas, alisando
instintivamente os vincos do quimono.
— Ah, isto é oportuno! — exclamou o homem. — A Jovem Ama, a
Dama Meiling, repreendeu-me ainda ontem à noite por não lhe ter
encontrado uma nova serva. Embora alguém se possa perguntar porque não
lhe chegam três servas — murmurou, fixando-me com um olhar avaliador.
— Alguma vez serviu numa casa grande? O que sabe fazer?
Engoli em seco, pensando no meu lar. Eu não era indolente e ajudava
sempre que podia.
— Não tão grande como esta — respondi por fim. — Ficava grata por
qualquer ocupação que pudesse oferecer. Sei cozinhar, limpar, tocar música
e ler.
As minhas capacidades não eram muito impressionantes, mas a resposta
pareceu satisfazê-lo.
Os dias seguintes foram passados a aprender as minhas tarefas, desde
como preparar o chá da Dama Meiling como ela gostava até fazer os seus
bolinhos de amêndoa preferidos e tratar das suas roupas, algumas adornadas
com bordados tão requintados que pareciam tremer sob o meu toque. Outros
deveres incluíam polir a mobília, lavar lençóis e tratar dos jardins. Ficava de
pé da alvorada ao cair da noite, talvez porque não tinha poderes dignos de
nota para me ajudar nas tarefas.
As regras incomodavam-me mais do que o trabalho: ditavam a
profundidade da minha vénia, exigiam que ficasse calada até falarem
comigo, que nunca me sentasse na presença da minha ama, que obedecesse
a todas as suas ordens sem hesitar. Cada regra erodia mais um pouco o meu
orgulho, aumentando o fosso entre ama e serva, uma lembrança constante
da inferioridade da minha posição e do facto de já não estar em casa.
Essas ofensas podiam ter irritado mais, mas o meu coração já estava
repleto de mágoa, a minha mente saturada com preocupações bem maiores
do que pés doridos ou mãos esfoladas. De certa forma, estava satisfeita por
ter os dias tão ocupados, mesmo com tarefas tão ingratas, que mal me
sobrava tempo para cismar na minha infelicidade.
Quando o mordomo finalmente considerou que o meu desempenho era
satisfatório, fui posta ao serviço da Dama Meiling, juntamente com as
outras servas, com quem partilharia um quarto. A Dama Meiling tinha fama
de ser uma ama exigente, mas eu esperava que quatro servas dessem conta
do recado. Quando cheguei com o meu saco, as outras servas estavam a
preparar-se, vestindo túnicas verde-seco sobre vestidos brancos. Uma das
raparigas ajudou outra a atar uma faixa amarela à cintura. Uma rapariga
bonita com covinhas na cara pôs no cabelo um alfinete de latão em forma
de lótus, que todas éramos obrigadas a usar. Formavam um trio animado,
conversando entre si com uma familiaridade fácil. Apesar da infelicidade
que pesava sobre mim, senti uma faísca a acender-se no meu peito. Talvez
aqui tivesse a oportunidade de fazer as amigas que há tanto desejava.
A rapariga das covinhas virou-se para mim.
— És a rapariga nova? De onde vens?
— Eu... eu...
A história que Ping’er me ajudara a inventar fugiu-me da cabeça. Sob a
pressão dos seus olhares, senti o calor a subir-me para o rosto.
As outras riram-se, com os olhos a brilhar como seixos molhados pela
chuva.
— Jiayi — disse uma delas para a rapariga com o alfinete de lótus. —
Parece que perdeu a voz.
O olhar de Jiayi varreu-me de alto a baixo, a boca a contorcer-se como
se estivesse a ver algo que lhe desagradava. Seria o meu penteado simples
ou a falta de ornamentos pendurados da cintura, dos pulsos e do pescoço?
Ou seria porque me faltava a sua pose, a confiança do seu lugar naquele
mundo? Tudo isso anunciava a verdade simples de que eu era uma
forasteira, que não pertencia ali.
— O que fazem os teus pais? O meu pai é o chefe da guarda — declarou
Jiayi, com um ar visível de superioridade.
O meu pai matou os sóis. A minha mãe ilumina a lua.
Isso ter-lhe-ia tirado a expressão presumida do rosto, mas suprimi esse
impulso imprudente. Um momento de satisfação não valia o risco de ser
considerada uma mentirosa ou atirada para uma cela. Para não falar do
perigo que correriam a minha mãe e Ping’er se alguém acreditasse em mim.
— Não tenho família aqui — repliquei por fim.
Uma resposta segura, mas que me valeria ainda mais desdém. Já o
conseguia ver nos olhares que trocavam, agora que sabiam que eu não tinha
ninguém que me protegesse.
— Que aborrecido. Onde foi que o mordomo te encontrou? Na rua? —
desdenhou Jiayi, virando-me costas.
Uma por uma, as outras servas imitaram-na, voltando a falar entre si tão
alegremente como um bando de pássaros.
Senti um aperto no estômago. Não sabia ao certo o que esperavam de
mim, apenas que fora considerada aquém do esperado. Indigna. Caminhei
rigidamente para o canto oposto do quarto e pousei o meu saco na cama
vazia. As raparigas riram-se, partilhando uma piada entre si, e a sua alegria
apenas tomou o meu isolamento mais doloroso. Com um nó na garganta, saí
apressadamente do quarto para me recompor. Detestava fugir assim, mas
detestaria ainda mais chorar diante delas.
Guarda as lágrimas para algo que seja importante, disse a mim mesma
antes de voltar para dentro do quarto. As três raparigas viraram-se para mim
ao mesmo tempo, o silêncio súbito perturbador. Só então reparei que o meu
saco de pano estava desatado e o seu conteúdo espalhado pelo chão.
O ar encheu-se de hostilidade enquanto eu gatinhava pelo chão a
apanhar as minhas posses. Alguém soltou uma risadinha, deixando-me as
orelhas a arder. Infantil. Mesquinho, pensei, furiosa. Mas, oh, como me
custava a humilhação! Como fora privilegiada por conhecer apenas amor e
carinho até àquele momento. Na minha infância, tinha medo dos monstros
cruéis nos meus livros. Contudo, estava a aprender que igualmente temível
era um sorriso cortante e palavras contundentes. Nunca imaginara que
existiam pessoas assim, que se orgulhavam de pisar a dignidade dos outros,
que medravam com a miséria alheia.
Uma pequena voz dentro de mim segredava que eu fora realmente
encontrada na rua, sem roupas de seda nem ligações familiares. Se ficasse
calada e de cabeça baixa, talvez as outras servas acabassem por me aceitar
como uma delas. Estava tão cansada que só queria que me deixassem em
paz. Que importava se elas ganhavam? Quem queria saber de dignidade ou
honra? Isso não era nada comparado com tudo o que perdera. Mas algo
dentro de mim gritava em protesto. Não, elas não me humilhariam. Não iria
adulá-las para ganhar a sua amizade. Preferia estar sozinha a ter amigas
assim. E, apesar de, naquele momento, me sentir inferior a um inseto, ergui
o queixo para as olhar nos olhos.
No rosto bonito de Jiayi via-se uma expressão de desprezo, mas também
de inquietação, na maneira como desviou o olhar. Será que esperava que eu
rastejasse e me escondesse nas sombras? Fiquei contente por a desiludir.
Tinham-me magoado, mas não teriam a satisfação de o saber. A maldade
delas só tinha sobre mim o poder que eu lhe desse, e recuperaria o meu
orgulho maltratado de debaixo dos seus pés porque... era tudo o que me
restava.
O pavilhão dava acesso a um pátio com glicínias, as árvores decoradas
com cachos de flores lilases. Estava parada atrás da minha ama, a Dama
Meiling, que trazia um vestido de brocado cor-de-rosa com flores reluzentes
nas mangas amplas e na saia. Era requintado, as pétalas bordadas assumiam
um intenso tom vermelho antes de voltarem ao prateado original. Arregalei
os olhos. A Dama Meiling possuía roupas sem fim, mas aquele vestido era
raro. Apenas as costureiras mais habilidosas conseguiam encantar as suas
criações para responderem aos poderes de quem as usava.
Além de servir a Dama Meiling e de manter os quartos e o pátio
imaculados, uma das minhas tarefas era tratar da sua roupa: túnicas, capas e
faixas de seda, cetim e brocado. No início, parecia uma tarefa agradável, se
bem que um pouco monótona. Mas rapidamente descobri que fazia de mim
o alvo do seu considerável desagrado sempre que algo estava fora do sítio
ou tinha o mais pequeno arranhão ou partícula de pó. Para tornar a situação
ainda pior, Jiayi escolhia a roupa da nossa ama todos os dias, aumentando o
meu trabalho com uma torrente infindável de queixas e exigências.
Talvez pressentindo a minha distração, a Dama Meiling franziu os
lábios e olhou na minha direção.
— Chá — disse secamente.
Apressei-me a encher-lhe a taça, o vapor fragrante a retorcer-se pelo ar.
Uma forte rajada de vento soprou pelo pátio, fazendo chover pétalas
sobre a relva. A Dama Meiling alisou as mangas agitadas, franzindo a testa
como se a irritasse que o vento se atrevesse a perturbar-lhe a manhã.
— Xingyin, vai buscar a minha capa — ordenou. — A de seda cor de
pêssego com a bainha dourada. Vê se trazes a capa certa.
Fiz uma vénia, suprimindo a vontade de rilhar os dentes. A Dama
Meiling era jovem, mas possuía o temperamento autoritário de uma
matriarca milenar.
Chegara ali havia poucos meses, mas a sensação de como era estar entre
entes queridos começava a desvanecer, o eco de uma memória. Como
prometido, mantinha a minha identidade em segredo... mas nunca estava
longe dos meus pensamentos. À noite, ouvia a respiração profunda e regular
das minhas companheiras de quarto antes de deixar a minha mente vaguear
até aos salões cintilantes do meu lar. Era então que começavam os
pesadelos, nos quais a minha mãe e Ping’er eram capturadas por soldados.
Nos quais regressava a casa e dava por ela deserta e em ruínas. Não era de
admirar que acordasse muitas vezes encharcada em suor, arfando através
das cãibras no peito.
As outras servas não gostavam de mim, considerando a minha condição
abaixo das suas. O seu desprezo apenas reforçava a minha determinação,
apesar de me fazerem a vida negra de inúmeras maneiras mesquinhas:
estragando coisas deixadas a meu cargo, troçando de cada palavra que eu
dizia, contando histórias falsas sobre mim à nossa ama. Ela mandava-me
ficar de joelhos no pátio tantas vezes que me sentia como um dos leões
esculpidos em pedra que guardavam a entrada. Não me devia queixar; era
melhor do que a prisão ou ser fustigada com chicotes em chamas. Contudo,
mais ainda do que o desconforto, era a indignidade que magoava. A cada
incidente, continha as lágrimas, engolindo-as, até conseguir sentir a
diferença entre o travo amargo da humilhação e o sal da tristeza.
Apressei-me até ao quarto da Dama Meiling e procurei freneticamente
pela capa. A sua paciência era escassa e o feitio tão incendiário como o
fogo de artifício que os mortais lançavam nos festivais. Por fim, avistei-a
pousada numa cadeira. Quando peguei na capa, o alívio esfumou-se assim
que avistei uma nódoa escura no tecido, a tinta ainda a reluzir. Sem pensar,
larguei-a antes que me manchasse a pele.
— O que se passa? — perguntou Jiayi, ao entrar, com um sorriso nos
lábios ao olhar para a peça de roupa estragada. — Se não tomas conta da
roupa da nossa ama como deve ser, a culpa é tua e só tua.
Quando a sua mão acenou numa despedida desdenhosa, fiquei hirta ao
ver que um dos seus dedos estava manchado.
— Foste tu — acusei num tom calmo.
Não era uma grande surpresa. Ela corou e abanou a cabeça.
— Mas quem vai acreditar em ti?
O meu feitio, a fervilhar após meses de indignidades, transbordou.
— Truques destes não te fazem melhor do que ninguém, fazem-te pior
— sibilei.
Jiayi recuou um passo. Estaria com receio de que a atacasse? Só queria
um pedido de desculpas, uma admissão de culpa, em vez de se esconder
atrás das cúmplices e de sorrisos trocistas.
Mas até isso me foi negado quando a Dama Meiling irrompeu pelo
quarto.
— Porque estás a demorar tanto? Quase fiquei gelada com o vento!
Assim que o seu olhar recaiu sobre a capa no chão, ficou boquiaberta.
Jiayi recuperou primeiro a compostura, de olhos arregalados e ar
inocente, pegando na peça de roupa e abanando-a para melhor mostrar a
nódoa.
— Jovem Ama, Xingyin deixou cair tinta na capa. Pediu-me que não lhe
dissesse porque tinha medo.
Respirei fundo, tentando manter a calma. A Dama Meiling nunca ficaria
do meu lado contra a sua serva favorita. Não sem provas... que, dessa vez,
eu tinha.
— Jiayi está enganada; não fiz tal coisa. A capa já estava manchada
quando cheguei. A Jovem Ama pode inspecionar-nos à procura de manchas
de tinta.
Jiayi empalideceu e escondeu as mãos nas dobras de seda da capa. Não
precisava de se ter preocupado, pois a Dama Meiling estreitou os olhos,
como um gato a quem fizeram festas no sentido contrário do pelo. Não
gostava de mim, influenciada talvez pelas histórias que as outras lhe
contavam.
— Jiayi é tua superior nesta casa. Pede-lhe desculpa imediatamente. A
seguir, vai lavar isto e garante que fica sem a mais pequena nódoa.
Em seguida, pegou na peça de roupa maculada e atirou-a para mim. A
capa acertou-me na cara e deslizou por mim até cair aos meus pés.
Nem podia falar, fervendo por dentro com aquela injustiça. Os meus
braços permaneceram hirtos ao lado do corpo, a despeito das suas ordens.
Um impulso feroz tomou conta de mim, de lhe atirar a capa de volta. De
verter tinta sobre o vestido de Jiayi. De sair porta fora... mas a fantasia
terminava aí. Para onde iria?
Assim que os lábios da Dama Meiling se apertaram até se tomarem duas
faixas estreitas, curvei a cabeça e forcei-me a proferir um pedido de
desculpas. Pegando na capa, saí a correr do quarto, sem saber por quanto
tempo mais me conseguiria conter.
Queria ficar a sós, longe da tagarelice das outras servas. Começava a
perceber porque é que a minha mãe preferia a solidão nos momentos em
que sentia o coração pesado. Com um balde e uma barra de sabão, fui até ao
rio próximo. Caules de bambu cresciam por todo o lado, de um verde-
esmeralda luxuriante que se erguia orgulhosamente para o céu. Sentei-me
na margem do rio, esfregando a capa, com o peito tão tenso que mal
conseguia respirar. Como tinha saudades de casa! A promessa que fizera de
salvar a minha mãe esmagava-me com o peso da sua futilidade. Como a
poderia ajudar, impotente como era? O futuro estendia-se diante de mim,
solitário e desolado, uma vida inteira de servidão sem esperança de
melhoramento. Uma lágrima indesejada formou-se no canto de um olho.
Aprendera a engoli-las, inalando bruscamente ou pestanejando depressa.
Mas como estava sozinha, deixei-a correr pelo rosto.
— Porque está a chorar?
A voz límpida sobressaltou-me.
Virei-me para trás, reparando então num jovem sentado numa pedra a
pouca distância, com um cotovelo apoiado no joelho erguido. Como podia
não ter reparado na sua aura a pulsar no ar? Forte e quente, brilhante como
um céu sem nuvens. Olhos escuros reluziam sob sobrancelhas longas e a
pele parecia ter uma certa radiância, como se tivesse sido vidrada pelo sol.
O longo cabelo preto estava preso num rabo de cavalo que caía sobre a
túnica de brocado azul, apertada na cintura por um cinto de seda. Um
ornamento de jade amarelo pendia-lhe do cinto, com uma borla que lhe
chegava aos joelhos quando saltou da pedra e caminhou ao meu encontro.
Quando me olhou nos olhos sem reservas, senti calor a subir-me pelo
pescoço.
— Não pode ser assim tão difícil lavar umas roupas sujas — comentou,
olhando para a capa molhada nas minhas mãos.
— Como poderia saber? É muito mais difícil do que parece — retorqui.
— E nunca choraria por causa disto. É só que... tenho saudades da minha
família.
Assim que as palavras me saíram da boca, mordi a língua. Era a
verdade, mas o que me possuíra para falar de tais coisas com um
desconhecido?
— Se tem assim tantas saudades da família, volte para casa. Porque
partiu? Especialmente para fazer um trabalho destes.
E gesticulou desdenhosamente para a roupa molhada, curvando
ligeiramente os cantos dos lábios.
Estaria a fazer troça de mim? Já aturara o suficiente de comportamentos
semelhantes naquele dia. A sua arrogância, a forma descuidada como
falava, irritavam-me os nervos à flor da pele. O que sabia ele acerca dos
meus problemas? Quem era ele para me julgar?
Deitei um olhar crítico às suas roupas finas.
— Nem tudo é assim tão simples. Nem todos temos a boa sorte de
fazermos o que nos apetece. E não vou aceitar conselhos de alguém que
nunca trabalhou um dia que fosse em toda a vida.
O seu sorriso desapareceu.
— A sua atitude é muito insolente para uma serva.
Soou mais curioso do que ofendido.
— Ser uma serva não quer dizer que não tenho o meu orgulho. O
trabalho que faço não é um reflexo de quem sou.
Virando-lhe costas, esfreguei a capa com mais vigor do que antes. Já
perdera demasiado tempo; a Dama Meiling ficaria furiosa se demorasse
muito... o que significaria mais uma noite de joelhos no chão frio e duro.
O jovem não me respondeu e pensei que se fora embora, farto de troçar
de mim. Contudo, quando me virei para trás, lá estava ele.
— Está à minha procura? — riu-se. Uma negação exaltada subia-me
pela garganta quando ele rapidamente acrescentou: — Trabalha na Mansão
do Lótus Dourado?
Levantei-me de imediato, interrogando-me se seria algum conhecido da
Dama Meiling.
— Como é que sabe?
Ele debruçou-se para a frente e a mão estendida tocou-me no lado da
cabeça. Recuei e afastei-lhe a mão bruscamente, derrubando o alfinete de
latão em forma de lótus que trazia no cabelo. Antes que me conseguisse
mexer, ele baixou-se e apanhou-o da relva. Sem dizer palavra, limpou o
alfinete à manga e voltou a pô-lo no meu cabelo. Ficou com a manga suja
de terra, o que não o pareceu incomodar minimamente.
— Obrigada — agradeci, encontrando de novo a voz.
Não, não podia ser um amigo da ama. Nenhum deles alguma vez
ajudaria uma serva.
— O seu alfinete — explicou. — As servas não usam todas um alfinete
igual?
Assenti ao sentar-me, voltando a mergulhar a capa no rio, maldizendo
em silêncio a nódoa teimosa. Em vez de partir, como eu esperava, o jovem
sentou-se ao meu lado, com as pernas a baloiçar da margem.
— Porque está tão infeliz?
Passara tanto tempo desde a última vez que tivera alguém com quem
falar, alguém disposto a ouvir-me. A minha cautela, cultivada aqui com
tanto cuidado, derreteu perante o seu calor humano.
— Todas as manhãs, quando acordo, não quero abrir os olhos.
Comecei de forma hesitante, pouco habituada a desabafar.
— Talvez deva dormir mais, se está assim tão cansada — sorriu ele.
Deitei-lhe um olhar carrancudo, com pouca paciência para o seu humor.
Que parvoíce a minha, achar que ele se poderia importar. Quando peguei na
capa e no balde para me ir embora, ele levantou-se apressadamente.
— Perdoe-me — disse rigidamente, como se não estivesse acostumado
a pedir desculpas. — Não devia ter feito piadas quando estava a tentar
dizer-me algo importante.
— Não, não devia.
Mas não havia rancor na minha voz; o seu pedido de desculpas
apaziguara o meu ressentimento. Fora sincero e bondoso, duas coisas que
encontrara muito pouco desde que saíra de casa.
— Se ainda estiver inclinada a dizer-me, seria uma honra ouvir.
Em seguida, inclinou a cabeça com uma formalidade inesperada.
Soltei uma risada.
— Dificilmente descreveria isto como uma honra, mas agradeço-lhe a
tentativa desastrada de me lisonjear.
Foi a vez de ele franzir a testa.
— Desastrada? Funcionou? — perguntou descaradamente.
Não consegui suprimir um sorriso.
— Infelizmente.
Um silêncio incómodo caiu entre nós. Apanhei uma folha de relva e
torci-a no meio dos dedos.
— Então, porque receia o começo de cada dia? — sondou ele.
Dei um nó na folha de relva e depois outro. Era mais fácil olhar para a
folha de relva do que para ele.
— Porque não tenho nada por que ansiar. Sou um fracasso e, não
importa o que faça, por muito que tente, nada vai mudar nunca. Alguma vez
se sentiu assim? Impotente?
Censurei-me imediatamente por ser uma idiota. Alguém como ele nunca
compreenderia.
— Sim — respondeu simplesmente.
— Sim?
Não era que eu duvidasse dele, mas parecia ser uma daquelas criaturas
afortunadas que possuía mais do que a sua quota de bênçãos. Não sabia
nada sobre ele, além do seu aspeto e das roupas finas, mas os modos
confiantes anunciavam privilégio mais do que qualquer linhagem ou título.
Ele inclinou-se para trás, apoiando as mãos na relva.
— Todos temos os nossos problemas; uns expõe-nos para que todos
vejam, enquanto outros disfarçam melhor. Quanto a mim, faço o que posso
para esticar os limites que me incomodam, mesmo que seja só um pouco de
cada vez. Quem sabe quando o mais pequeno avanço pode fazer a
diferença?
Aquelas palavras fizeram eco em algo dentro de mim. Andava a criticar-
me por ser fraca, mas teria sido apenas uma desculpa para não fazer nada?
Nos últimos meses, fora uma sombra de mim mesma, abatida pela mágoa e
pela autocomiseração. Era verdade que não possuía poderes dignos de nota,
nem amigos ou família para me ajudarem. Mas não era impotente, nem
mesmo quando eu e a Ping’er fomos perseguidas por aqueles soldados.
Naquele instante, saltara para o desconhecido, em vez de esperar pela
captura inevitável. Por isso, porque não fazer o mesmo aqui? Onde o abrigo
me custava a dignidade e os meus sonhos? Podia não encontrar uma saída
no imediato, mas com pequenos ajustes, pequenos passos, podia
perfeitamente fazer o meu próprio caminho, um caminho que me levasse de
volta para casa.
Um alívio estonteante percorreu-me o corpo, inesperado, mas bem-
vindo. Fiquei grata àquele jovem com modos peculiares, por vezes
ofensivo, mas cortês e bondoso. Oh, a minha situação continuava terrível,
mas o meu ânimo, apesar de esmurrado, estava intacto. Talvez precisasse
apenas de voltar a ser vista como uma pessoa. Como eu mesma. De ser
lembrada de que havia uma vida para lá da Mansão do Lótus Dourado
assim que quebrasse este ciclo de miséria, no qual me prendera ao acreditar
que era o único caminho em frente.
— Partiria amanhã, mas não tenho para onde ir — murmurei
fervorosamente.
— E a sua família? Os seus amigos? Não podem ajudar?
Fiquei logo com uma expressão fechada. A minha mãe e Ping’er
estavam perdidas para mim.
— Não tenho ninguém.
— Os seus pais... faleceram? — perguntou o jovem, hesitante.
Estremeci só de pensar nisso, desejando não ter falado da minha mãe.
Os mortais acreditavam que dava azar falar de tais coisas em voz alta.
Demasiados medos ainda envolviam o meu coração, de demasiadas coisas
que podiam correr mal.
A sua expressão suavizou.
— Lamento muito — disse gentilmente, tomando o meu silêncio por
resposta.
A culpa pesava-me na boca. Não lhe queria mentir, mas também não lhe
podia dizer a verdade. Mas pior ainda era receber a sua compaixão, à qual
não tinha o mais pequeno direito. Abri a boca para o corrigir, para
pronunciar as palavras que dissipariam a sua compaixão e tomá-lo-iam de
novo num desconhecido desinteressado... mas o som de passos
interrompeu-me.
Era a Dama Meiling, a avançar na minha direção num restolhar de
brocado. Levantei-me num salto, combatendo o temor familiar que se
espalhava pelo meu corpo. O ar mudou com o calor da sua aura, ondas de
cólera umas atrás das outras. Já conhecia bem as várias fases do seu feitio; a
julgar pelo tom escarlate no rosto, estava verdadeiramente furiosa.
— Xingyin! Quanto tempo demora a lavar uma pequena nódoa?
Estremeci ao ouvir a ira no seu tom, ao mesmo tempo que algo
endurecia dentro de mim. Nenhum pedido de desculpas me passou pelos
lábios, nem baixei o olhar.
O meu silêncio pareceu deixá-la ainda mais furiosa.
— Como te atreves a ficar aqui sentada, a preguiçar e a falar com
desconhecidos?
A Dama Meiling lançou um olhar de desdém ao meu novo conhecido,
mas então aconteceu algo de estranho e maravilhoso. O rosto dela ficou
pálido de morte e uma exclamação escapou-se dos seus lábios. Caindo de
joelhos no chão, juntou as mãos e estendeu-as à sua frente, enquanto fazia
uma vénia formal... ao jovem que se levantara e parara ao meu lado.
— A Dama Meiling saúda Sua Alteza, o Príncipe Herdeiro Liwei.
A voz dela soava doce como mel.
— Se soubéssemos que nos honráveis com a vossa presença, teríamos
preparado uma receção adequada.
Também a devia ter imitado e posto de joelhos, mas apenas o conseguia
fitar, incrédula. Porque não me dissera quem era? Ele também não mentira,
lembrei a mim mesma. O jovem em quem confiara desaparecera; no lugar
dele estava um lorde, seguro do seu poder. Erguia-se com as mãos juntas
atrás das costas e uma expressão altiva. Se antes tivesse visto este lado dele,
teria fugido.
O jovem assentiu para a minha ama com uma formalidade fria.
— Dama Meiling, o que fez a sua serva para merecer uma crítica tão
severa?
A minha ama soltou um suspiro suave e deixou descair os ombros.
Como agora parecia delicada e encantadora, como uma rosa desprovida de
espinhos.
— Vossa Alteza, sempre tratei aqueles que me servem como se fossem
família. O que haveis testemunhado foi apenas uma perda de controlo,
provocada pelas falhas sucessivas desta serva.
Sons estrangulados escaparam da minha garganta, que suprimi como
pude. A expressão do Príncipe Liwei era inescrutável. Acreditaria nela? E
porque me sentia desanimada ao pensar nisso?
— Como a ofendeu?
O tom da sua voz era agradável, mas não deu permissão à Dama
Meiling para se levantar.
— Estragou a minha peça de roupa favorita e tentou mentir para fugir às
suas responsabilidades.
— Eu não menti! — gritei, esquecendo todo o decoro.
A postura do Príncipe Liwei ficou ligeiramente hirta. Estaria
arrependido por se envolver numa disputa tão trivial? Assim eram os meus
dias na Mansão do Lótus Dourado; uma litania incessante de mesquinhez
que me desgastava aos poucos. Mas não mais, decidi. O encontro com o
príncipe, por muito inexplicável que fosse, recordou-me de que não
precisava de caminhar de modo submissivo ao longo do caminho que se
estendia diante de mim. Buscaria e usaria todas as vantagens que
conseguisse encontrar, até mesmo a da posição dele.
— Viu-a a estragar a sua peça de roupa? — perguntou o príncipe à
Dama Meiling.
Ela hesitou.
— Não, quem me disse foi...
O príncipe ergueu a mão, cortando-lhe a palavra.
— Dama Meiling, parece ser rápida a atribuir culpa sem uma
investigação adequada.
Então, tirou-me a capa das mãos e olhou para a nódoa, que todos os
meus esforços não tinham conseguido diminuir. O ar aqueceu quando uma
luz dourada passou da sua mão para a seda. A nódoa desapareceu e a capa
estava seca, como se nunca se tivesse molhado.
A sua magia era forte! E com que facilidade fluía dele. Como desejava
poder fazer o mesmo. O vendaval que se erguera para levar Ping’er para
segurança parecia um sonho distante. Se viera de mim, não fazia a mais
pequena ideia de como o voltar a fazer. Quando fechava os olhos, avistava
vislumbres tantalizantes das luzes na minha mente, mas fugiam de mim
assim que lhes tentava tocar. As minhas tentativas eram, no melhor dos
casos, pouco empenhadas, avistar as luzes enchia-me de medo e remorso.
Se pelo menos não tivesse atraído a atenção da imperatriz, ainda estaria em
casa. Talvez Ping’er acabasse por me ensinar a usar os meus poderes.
Pensei, com amargura, para que servia a magia sem o devido treino? E não
teria grande esperança de melhorar as minhas capacidades enquanto
permanecesse aqui.
Na Mansão do Lótus Dourado, apenas os servos mais favorecidos eram
ensinados a canalizar magia para realizar tarefas rudimentares, para os
ajudar no seu trabalho. Os guardas eram instruídos em encantamentos de
ataque e defesa, desde erguer escudos protetores até invocar raios de fogo
ou de gelo. Os restantes servos deviam trabalhar como os mortais. Na
verdade, a maioria possuía uma força vital fraca, com poucas hipóteses de
ascender na hierarquia dos imortais.
Talvez isso também fosse verdade no meu caso, mas bem lá no fundo,
não achava que fosse assim. Fora o meu poder que chamara a atenção do
Reino Celestial. Fora a minha desgraça, mas talvez pudesse virar isso a meu
favor... se encontrasse alguém disposto a treinar-me.
O Príncipe Liwei passou a capa, agora imaculada, para as mãos da
Dama Meiling.
— Julgo que já não é necessário admoestar ninguém — comentou,
endurecendo o tom. — Qualquer servo qualificado da sua casa, ou até a
Dama, podia ter resolvido este problema sem recorrer a medidas tão
extremas. Tal comportamento a partir de uma posição de privilégio não se
reflete bem sobre si.
Duas manchas vermelhas coravam o rosto da Dama Meiling. Uma parte
mesquinha de mim sentia prazer em vê-la a ser repreendida, mas o que
aconteceria quando o príncipe partisse? Quando se ouviu uma nova voz, a
do pai da Dama Meiling, a minha ansiedade triplicou.
— Vossa Alteza. — O senhor da casa apressou-se ao nosso encontro,
provavelmente alertado para a presença do Príncipe Herdeiro por um servo
vigilante. Pondo-se de joelhos, fez uma vénia formal, tocando com a testa
no chão. — Se a minha filha ou esta serva vos ofenderam, imploro o vosso
perdão.
— Fiquei desiludido ao ver como a Dama Meiling trata as pessoas da
sua casa — observou o príncipe. — Tal comportamento não tem lugar na
minha corte. Quando regressar ao palácio, tenciono rescindir o convite à sua
casa para a seleção da minha companheira.
Contive uma exclamação. A Dama Meiling não falara de mais nada
desde que fora escolhida como candidata. O Príncipe Herdeiro preparara
essa competição para escolher uma companheira de estudo, alguém para
aprender ao seu lado. Seria a isto que se referia quando falou de esticar os
limites que o incomodavam? Estaria farto dos seus amigos no palácio?
Dizia-se que o príncipe quisera estender a oportunidade a todo o reino, mas
fora indeferido. Agora, cada candidata tinha de ser patrocinada por uma das
casas nobres, que se limitaram a propor apenas os seus parentes.
O pai da Dama Meiling empalideceu. Seria uma terrível humilhação ser
riscado da lista e não teriam fim os boatos sobre como falhara a sua filha.
— Imploro-vos que a perdoeis, Vossa Majestade — suplicou. — A
minha filha seria uma verdadeira flor na vossa corte, se tivesse a boa sorte
de ser admitida.
Uma ideia ousada formou-se na minha mente. Audaciosa mesmo, mas
poderia não voltar a ter uma oportunidade assim. Deixar de estar à mercê de
uma ama caprichosa, estudar com o Príncipe Liwei, aprender a controlar os
meus poderes... A minha boca ficou seca só de pensar nisso. Talvez, depois,
pudesse ajudar a minha mãe.
Caí de joelhos no chão e fiz uma vénia desajeitada.
— Vossa Alteza, peço-vos que não retireis o convite à Dama Meiling.
Mas...
As palavras ficaram-me presas na garganta como uma espinha de peixe
firmemente alojada.
Ele esperou e a paciência dele acalmou-me os nervos. Passei a língua
pelos lábios enquanto reunia a coragem para dizer:
— Também quero participar.
A Dama Meiling e o pai viraram-se para mim, de olhos arregalados.
Para eles, eu não era nada, não era merecedora de tal honra. Só me queria
afundar no chão, pouco habituada a destacar-me daquela forma... mas a
opinião do Príncipe Liwei era a única que contava.
Ele pestanejou, parecendo surpreendido pela primeira vez desde que o
encontrara.
— Porquê? — disse por fim.
O pai da Dama Meiling esperara criar laços próximos com a família
real. Até se falava de ela conseguir conquistar o afeto do príncipe. Eu não
queria saber de nada disso. Passou-me pela cabeça tentar lisonjeá-lo, mas
decidi falar com franqueza. Foi o que fizera antes de saber quem ele era.
— Vossa Alteza, seria uma honra privar da vossa companhia, mas não é
esse o motivo por que quero isto...
Ele tamborilou no queixo, torcendo o canto dos lábios.
— Então, não quer privar da minha companhia?
— Não, Vossa Alteza. Quero dizer, sim! Sim, quero privar da vossa
companhia — tartamudeei. — Mas mais do que tudo, quero aprender na
vossa companhia, com os melhores mestres do reino.
Silenciosamente, amaldiçoei as minhas palavras desastradas. Ele vai
recusar, pensei, desesperada. Mas teria sido pior não ter tentado.
Ele permaneceu em silêncio, como se estivesse a ponderar a minha
resposta. Finalmente, falou para o pai da Dama Meiling.
— Vou permitir que a sua filha mantenha o seu lugar, com uma
condição: também vai patrocinar a participação desta serva.
A esperança ergueu-se em mim como um papagaio levado pelo vento.
— Vossa Majestade, não passa de uma serva — protestou o pai da
Dama Meiling.
— O que fazemos não é um reflexo de quem somos — disse o Príncipe
Liwei, ecoando as minhas palavras, com um olhar férreo que parecia
ultrapassar a sua idade. — Patrocine as duas ou nenhuma.
— Sim, Vossa Alteza.
O pai da Dama Meiling fez uma vénia e o Príncipe Liwei afastou-se,
desaparecendo na floresta de bambu.
A sua partida foi seguida por um silêncio tenso. Peguei nas minhas
coisas, tencionando desaparecer de vista, quando o pai da Dama Meiling me
chamou com um gesto.
— Como conheces o Príncipe Herdeiro? — quis saber.
— Só o conheci hoje — respondi honestamente.
Ele estreitou os olhos para mim, afagando a barba.
— Porque estará tão interessado no teu bem-estar? — interrogou-se em
voz alta, não observando nada no meu aspeto que pudesse justificar a minha
defesa por parte do Príncipe Herdeiro.
Pelo canto do olho, vislumbrei o rosto da Dama Meiling, ainda corado
de fúria e humilhação. Não querendo pôr sal na ferida, escolhi as minhas
palavras com cuidado.
— O príncipe viu-me a chorar e acho que teve pena de mim.
Ocorreu-me então que isso era provavelmente a verdade.
Ele assentiu, dispensando-me com um gesto. Pena por alguém como eu
era algo que conseguia compreender.
Fiz uma vénia e pedi permissão para me afastar, os meus passos mais
leves do que uma pena. Não tinha grandes ilusões; seria preciso um milagre
para eu vencer. Mas sentia uma profunda satisfação por poder agarrar
aquela oportunidade. Mesmo se perdesse. Mesmo se fosse expulsa da
Mansão do Lótus Dourado. Aquela réstia de esperança era uma lufada de ar
fresco na minha existência estagnada. Estimulada por uma nova
determinação, fiz o caminho de regresso com a cabeça um pouco mais
erguida. Já não era uma criança disposta a vagar com a maré. Agora
dirigiria a corrente, se fosse preciso. E se vencesse, por algum miraculoso
golpe de sorte, nunca mais seria impotente.
O sono não me trouxe repouso, a minha mente atormentada por visões
de fracasso. Atirando os cobertores para trás, levantei-me e comecei a
preparar-me. Todas as candidatas receberam um conjunto de roupa e uma
tabuinha de sândalo com o seu nome gravado. Vesti um túnica de seda cor
de pêssego, atado à cintura com uma faixa de brocado amarelo, e depois um
quimono diáfano nas cores mutáveis da alvorada. Mangas amplas roçavam-
me os pulsos, a saia chegava-me aos tornozelos. Percorri com os dedos o
tecido, leve e macio, com um brilho subtil na trama. Não usava seda tão
fina desde que partira de casa. Como não tinha habilidade para fazer nada
elaborado com o cabelo, prendi-o num rabo de cavalo que me caía para as
costas.
Então, peguei na tabuinha e prendi-a à cintura, seguindo o contorno dos
caracteres do meu nome gravados na madeira:

Estrela prateada, a companheira constante da lua. Mãe, pensei, hoje vou


deixar-te orgulhosa de mim. Dirigi-me para a porta, ansiosa por escapar aos
olhares duros das outras servas, que começavam naquele instante a levantar-
se da cama.
— Não te habitues ao Palácio de Jade. Vais estar de volta não tarda
muito — lançou Jiayi, num tom trocista.
Parei à porta do quarto, sem me virar.
— Obrigada pelos votos de sucesso, Jiayi — respondi, no tom mais
agradável que consegui. — Quando regressar, vai ser para vir buscar as
minhas coisas. Enquanto isso, trata melhor da roupa da Dama Meiling. Para
teu bem, mantém-na longe do tinteiro.
Afastei-me, de costas direitas, mas contente por ela não me poder ver a
cara. Apesar das minhas palavras ousadas, parte de mim tinha a certeza de
que a previsão cruel se realizaria. Contudo, desde aquele dia junto ao rio, já
não me limitava a fingir indiferença ou a deixar insultos sem resposta.
Fora da mansão, ocorreu-me que não sabia o caminho para o Palácio de
Jade. Mesmo que arranjasse a coragem para perguntar à Dama Meiling, ela
nunca me ajudaria. Ergui a cabeça para procurar no céu. O Palácio de Jade
flutuava num banco de nuvens acima do reino. Não devia ser difícil de
encontrar.
Antes, sempre que me aventurava fora da mansão, não me podia
demorar. A toda a volta erguiam-se as propriedades magníficas dos imortais
mais poderosos do reino. Algumas eram construídas com madeiras raras e
telhados escalonados de telhas vidradas, enquanto outras eram feitas de
pedra polida com as pontas dos telhados elegantemente reviradas.
Abundavam árvores e arbustos, ornados em tons de carmesim e ametista,
esmeralda e escarlate. O Reino Celestial era como um jardim numa
primavera eterna; as flores não murchavam e as folhas não perdiam a cor.
Naquele dia, o chão tinha um brilho azul, espelhando o céu límpido acima
como se a terra e o céu fossem um só.
A escadaria de mármore branco que dava para o palácio desaparecia no
meio das nuvens. Enquanto subia os degraus, segurando o corrimão, o meu
olhar foi atraído pelas fénix intrincadas gravadas nas balaustradas. Ao
chegar ao topo, fiquei paralisada com a vista. Colunas de âmbar suportavam
um magnífico telhado de jade verde em três andares. Dragões dourados
erguiam-se majestosamente em cada canto, com pérolas luminosas presas
nas mandíbulas, tão realistas que quase conseguia sentir o vento que lhes
soprava nas jubas. As paredes de pedra branca estavam salpicadas de
cristais que brilhavam como estrelas contra um mar de nuvens. A cada lado
da entrada erguiam-se incensórios cravejados de pedras preciosas, de onde
rodopiavam fios finos de fumo adocicado.
Uma placa enorme de lápis-lazúli pendia da entrada, com caracteres
gravados a ouro:
PALÁCIO DE JADE DO CÉU IMORTAL

Quando um servo à espera me fez sinal, segui-o para lá das portas


lacadas a vermelho, tentando não ficar de boca aberta a olhar para o teto
pintado com flores em tons de cobalto, escarlate e dióspiro. Atravessámos
corredores tortuosos e vastos jardins decorativos, pavilhões dourados e
tanques cheios de nenúfares, até emergirmos para um pátio apinhado de
imortais. Inclinei a cabeça para ler a placa de madeira pintada com o nome
daquele sítio:

PÁTIO DA TRANQUILIDADE ETERNA

Mas naquele dia, a residência do Príncipe Herdeiro era tudo menos


tranquila. Apesar de o sol ainda não ir alto, o ar vibrava com auras imortais.
Todas as outras candidatas já tinham chegado, cultivadas e colhidas das
mais ilustres famílias do reino. Todas ansiosas por serem plantadas no
jardim do Príncipe Herdeiro, tal como eu, tinha de admitir. Apesar de me
sentir fora do meu meio, como uma erva daninha no meio de orquídeas,
como me sentia sempre que me comparava com a minha mãe.
Além da linhagem, as outras candidatas eram inquestionavelmente
inteligentes, cultas, talentosas. Poderosas. Apesar de estarmos todas
vestidas de igual, jade e ouro cintilavam nos seus cabelos, ornamentos com
joias pendiam-lhes dos cintos. Os seus chinelos estavam cobertos de
bordados de seda, alguns até com pérolas lustrosas. Muitas olharam para
mim com curiosidade, e quando o meu olhar se cruzou com o da Dama
Meiling, ela franziu os lábios como se tivesse trincado uma ameixa amarga.
Virou-me costas com uma risada forçada, e as suas palavras chegaram até
mim, pois não fez o mais pequeno esforço para baixar a voz.
— Aquela rapariga ali, que parece uma camponesa mortal. Costumava
ser minha serva. — A Dama Meiling fez uma pausa, deixando calar as
exclamações antes de prosseguir. — A pior serva que alguma vez tive, tão
estúpida como desinteressante.
— Como foi selecionada? — perguntou um homem magro, deitando-me
um olhar de relance.
A Dama Meiling torceu o nariz.
— Implorou uma oportunidade ao Príncipe Liwei e ele teve pena dela.
Provavelmente, só aceitou a candidatura dela porque sabe que ela não pode
ganhar.
Os meus dedos agarraram a saia do meu vestido, amarrotando a seda
delicada. Ela queria magoar-me, abalar a minha confiança, talvez. Mal sabia
ela como o seu sarcasmo me feria profundamente. Mas não lhe daria essa
satisfação e a minha vontade de ganhar apenas ficou mais forte. Não
sentiria o mais pequeno remorso pela minha alegada temeridade em elevar-
me acima da minha posição para alcançar o prémio. Para que queria eu
saber das regras, afinal? Não fora educada para reverenciar títulos ou classe
social, e certamente não começaria agora, não quando vencer podia
transformar a minha vida e não apenas dourar um futuro já de si brilhante.
Soou um gongo, o tom metálico a reverberar alto, deixando um silêncio
no seu rasto. As candidatas apressaram-se para dentro do pátio, abrindo
caminho até ao palanque erguido diante do pavilhão onde se viam treze
mesas. Um número estranho e calculei que eu fosse a última adição.
Sussurros percorriam a multidão quando os imortais se ajoelharam, tocando
com a testa no chão. Apressei-me a fazer o mesmo quando o Príncipe
Herdeiro entrou, acompanhado pela mãe e respetivos servos.
— Podem levantar-se.
O som familiar da sua voz acalmou-me os nervos. Assim que me
levantei, olhei ansiosamente para o palanque. Seria aquele o mesmo jovem
que limpara a sujidade do meu alfinete e ouvira os meus problemas? Uma
gola dourada brilhava no seu pescoço, por baixo de uma túnica de brocado
azul bordada com dragões amarelos. Um brilho prateado emanava das
mandíbulas dos dragões, como se estivessem a exalar neblina e nuvens.
Peças planas de jade branco cingiam a túnica na cintura. O cabelo estava
preso num nó imaculado, envolvido por uma coroa dourada com uma
grande safira oblonga. Como parecia grandioso. Até mesmo majestoso. E,
contudo, também era quem eu recordava, com uma expressão pensativa e
olhos escuros e inteligentes.
O meu olhar passou para o vestido escarlate da sua mãe, que estava
junto dele. As fénix vermelhas na sua roupa estendiam as cabeças graciosas,
as cristas quase emaranhadas no longo colar de contas de jade que trazia ao
pescoço. Quando os meus olhos vaguearam até ao rosto, o meu sangue
tomou-se gelo.
A Imperatriz Celestial.
Que ameaçara e aterrorizara a minha mãe, forçando-me a fugir de casa.
A ira fez derreter o meu medo, as emoções a digladiarem-se dentro de mim.
Os meus dedos formaram punhos enquanto forçava a boca a assumir um
sorriso neutro. Como era possível não ter feito a ligação? Estaria a minha
mente atordoada pela mágoa e por aqueles meses de noites sem dormir? Os
meus instintos gritavam que saísse dali, mas agora não me podia expor.
Além disso, a imperatriz não fazia a mais pequena ideia da minha
identidade. Mais importante ainda, a necessidade superava o medo, eu
precisava daquela oportunidade para ter alguma esperança de me tornar
alguém. Mesmo que isso me levasse para mais perto daqueles que tanto
temia. Daqueles que desprezava. Lentamente, abri as mãos, deixando-as
tombar ao lado do corpo.
Após um aceno do Príncipe Liwei, o mordomo anunciou:
— Nos dois primeiros desafios, todas as candidatas vão participar.
Apenas as vencedoras passarão para a terceira e última ronda. Sua Alteza
determinou que não é permitida magia; estes são testes de perícia,
aprendizagem e habilidade, qualidades que Sua Alteza preza acima de tudo.
— O mordomo fez uma pausa. — O primeiro desafio vai ser a arte de fazer
chá.
Respirei fundo, sentindo a tensão a soltar-se. Parte de mim temera uma
qualquer tarefa impossível na qual falharia antes mesmo de começar. Mas o
meu alívio foi de curta duração ao ver as candidatas a apressarem-se na
direção do pavilhão num corrupio de seda e brocado. Corri para a mesa que
me fora designada, tentando acalmar o meu coração ribombante. Eu sabia
fazer chá, já o fizera inúmeras vezes, para mim, para a minha mãe. Até para
a Dama Meiling.
No entanto, o que era tudo aquilo na mesa diante de mim? A minha
cabeça começou a latejar só de olhar para a variedade delirante de objetos.
Mais de uma dúzia de bules em vários tamanhos, de barro, de porcelana e
de jade. Um tabuleiro grande estava apinhado de frascos com folhas de chá:
oolong preto, pérolas de jasmim e folhas castanhas e verdes. Num canto
estava uma pilha de blocos e rodelas de pu’er comprimido. Pequenas taças
de porcelana cheias de flores secas estavam alinhadas ao lado. Peguei em
alguns ingredientes e levei-os ao nariz... terroso e intenso, floral e
adocicado... os aromas apenas me confundiam mais. Consegui identificar a
custo alguns deles; chá de Longjing, jasmim e crisântemo selvagem, entre
outros.
O meu ânimo esmoreceu quando olhei em redor. As outras candidatas
cheiravam os chás com confiança antes de fazerem as suas seleções.
Algumas pegaram em mais do que um tipo, talvez desdenhando uma
mistura simples como demasiado humilde? As mais rápidas já estavam a
servir os seus chás, enquanto eu nem sequer fizera a minha escolha.
Pegando numa rodela fragrante de pu’er, soltei uma fatia com uma agulha
de prata e deixei-a cair para um bule de porcelana. Tinha pouca experiência
a preparar este chá, mas ouvira dizer que as melhores folhas eram
comprimidas nestes blocos e envelheciam durante anos, até mesmo
décadas. Enquanto esperava que a água fervesse, voltei a olhar em redor...
reparando então que todas as que escolheram pu’er usaram bules de barro,
algumas descartando a primeira água. Abalada por dúvidas súbitas, pus de
lado a minha primeira escolha, decidindo seguir com o que sabia fazer, o
chá Longjing que a minha mãe preferia, o chá do Poço do Dragão. Vapor
assobiava da chaleira de bronze e verti rapidamente o líquido fervente sobre
outra chávena para a aquecer, para realçar melhor o sabor das folhas. Sem
perder um segundo, atirei um punhado das folhas verdes para o bule e
enchi-o de água quente. Pousando a tampa, esperei impacientemente que a
infusão se fizesse. Vinte segundos. Não mais, pois estava quase sem tempo.
Servi o chá para uma taça de porcelana, uma sopa castanha e carregada.
Senti um nó na barriga quando levantei a tampa para inspecionar as folhas.
Descuidada, amaldiçoei-me. Com a pressa, preparara o Longjing no mesmo
bule onde pusera o pu’er. Quando se misturava chás, fora avisada para ter
cuidado com a temperatura da água e com as proporções, de forma a
equilibrar os sabores, fossem delicados ou intensos. Pelo aroma pesado e
apagado que emanava da taça, saíra tudo errado.
Alguém pigarreou, era o mordomo, acenando impacientemente. Era a
única que ainda não servira o chá e já não tinha tempo de preparar um bule
novo. Com mãos rígidas, carreguei o tabuleiro até ao Príncipe Liwei. A
cada passo, o sonho grandioso de me distinguir resvalava para o
esquecimento. Pior ainda, e se Sua Alteza cuspisse o meu chá? A imperatriz
ficaria furiosa, podia ser imediatamente expulsa da competição, considerada
indigna e inapta, como todos acreditavam que eu era.
Ao pousar o tabuleiro diante do Príncipe Liwei, um brilho de
reconhecimento passou-lhe pelos olhos, fitando de relance o meu nome na
placa de sândalo à minha cintura. Sem hesitar, ele levou a taça à boca e deu
um gole longo. Parada diante dele, só eu vi o ligeiro franzir de sobrolho, o
trejeito dos lábios. Desapareceu num instante, mas o meu ânimo tombou-me
aos pés. Não conseguia imaginar como aquilo poderia ser uma expressão de
prazer. Contudo, para meu espanto, o Príncipe Liwei ergueu a minha taça.
— Este. Nunca provei uma mistura tão singular.
E assentiu para um servo, que anotou o meu nome.
A Imperatriz Celestial debruçou-se para a frente.
— Liwei, tens a certeza? Tem uma cor tão estranha. Deixa-me provar.
Um calafrio percorreu-me a espinha. Como me lembrava bem da sua
voz, melodiosa, mas cortante.
Quando o Príncipe Liwei lhe estendeu a taça, deixou-a escorregar dos
dedos e cair ao chão com estrépito. A porcelana partiu-se em mil pedaços, o
líquido escuro escorreu pelo chão, os restos da minha preparação infeliz.
Uma multidão de servos apressou-se a limpar aquela confusão, mas a
imperatriz ignorou-os, deitando-me um olhar como se tivesse sido eu a
deixar cair a taça.
Quando o mordomo me anunciou como vencedora do primeiro desafio,
desfaleci de alívio, sem sentir ofensa com os sussurros chocados. Pois,
apesar das palavras do Príncipe Liwei, duvidava que o meu chá merecesse
essa honra. Contudo, sem saber como, estava na dianteira da competição e
isso era o mais importante.
Diante do pavilhão, um quadro de jasmineiros em flor foi desvelado
para o segundo desafio. Enquanto a assistência soltava suspiros de
admiração, foi-nos pedido que compuséssemos um poema inspirado pela
cena. Contive um resmungo. Há muito que não pegava num pincel, quanto
mais compor um poema. Tentei pensar em palavras elegantes e frases
floreadas, mas a minha mente permaneceu tão em branco como o papel
diante de mim. Fechei os olhos, o cheiro da tinta mais intenso na escuridão,
pesado, com um ténue toque medicinal. Quase conseguia imaginar-me de
regresso a casa, a brisa fresca a soprar pela janela, fazendo restolhar as
folhas finas na minha mesa de madeira.
Fora anos antes, quando a minha mãe começou a ensinar-me a escrever.
Lembro-me de como os seus suspiros ecoavam nos meus ouvidos. Apesar
de ela ser paciente, eu era uma aluna difícil, particularmente em matérias
que não me interessavam.
“Xingyin, segura o pincel com firmeza”, admoestara ela pela décima
vez. “O polegar de um lado, o indicador e o médio do outro. A direito, não
inclines o pincel.”
Apenas quando ficara satisfeita é que me deixou mergulhar os pelos
rígidos do pincel de marfim na tinta lustrosa. Enquanto rodava o pincel com
força contra a pedra do tinteiro, ela avisara-me: “Tanta tinta, não. As tuas
linhas vão ficar grosseiras, a tinta vai escorrer.”
Imaginara os caracteres elegantes que iria formar, mas o meu
entusiasmo desapareceu de imediato após fazer o mesmo traço trémulo uma
e outra vez. “De que serve aprender isto?”, perguntei, impaciente. “Não vou
ser uma escriba ou uma erudita.”
Ela tirara-me o pincel da mão, desenhando o carácter com
movimentos seguros e precisos: “Sempre”, a palavra composta pelos oito
traços com os quais todos os caracteres são formados. “Nunca irás crescer
se apenas fizeres o que sabes fazer bem”, avisou-me. “As coisas mais
difíceis são muitas vezes as que têm mais valor.”
Relutante em abandonar o refúgio da memória, abri os olhos
lentamente. As outras candidatas escreviam com uma calma frenética,
debruçadas com concentração. Fitei o quadro, pensando, não no que
agradaria ao júri, mas em como sentia tanta falta da minha mãe que me
doía. Levantando o pincel, escrevi as seguintes linhas:

Tombam as flores, sua doce fragrância se perdeu,


Outrora aquecidas pelo sol, hoje o gelo as prendeu.

Quando o meu poema foi lido em voz alta, recebeu alguns acenos e
murmúrios de aprovação. O meu não era, nem de longe, o melhor, mas
senti-me grata por não me ter desgraçado. Quando a imperatriz escolheu a
Dama Lianbao como vencedora, aplaudi com a restante assistência.
Assim que o quadro foi levado embora, vários servos entraram,
carregados com enormes tabuleiros cheios de comida para a refeição da
tarde. Perdi conta do número estonteante de pratos e as mesas pareciam
vergar sob o peso de travessas de camarão cozinhado em manteiga dourada,
porco assado, frango grelhado com ervas aromáticas, sopas delicadas e
legumes artisticamente cortados em forma de flor. O cheiro era delicioso,
mas só consegui dar algumas dentadas antes de o meu estômago resmungar
em protesto. Pousei os pauzinhos na mesa e olhei para a Dama Lianbao, que
empurrava a comida no prato com pouco entusiasmo. As conversas fluíam
incessantemente à nossa volta, mas só conseguia pensar no que viria a
seguir, o último desafio no qual só nós as duas participaríamos. Quando os
nossos olhares se cruzaram, dirigi-lhe um sorriso tímido, que ela retribuiu
após um momento de hesitação.
Depois de os pratos e os restos de comida terem sido recolhidos, o
gongo voltou a soar. O mordomo anunciou em voz alta:
— Para o desafio final, a Dama Lianbao e a Serva Xingyin vão escolher
um instrumento cada uma para tocarem uma música à sua escolha. A
vencedora será escolhida por Sua Majestade Celestial e por Sua Alteza.
O coração saltou-me no peito. Finalmente, uma prova para a qual eu
possuía algum talento! As mesas foram retiradas e uma vasta seleção de
instrumentos foi posta à disposição. A Dama Lianbao fez uma vénia para o
palanque antes de escolher o qin e se sentar. Tocou uma melodia linda, um
clássico sobre as folhas no mundo mortal passarem da cor do jade para
vermelho e castanho, os dedos a puxarem as cordas com mestria. Apesar de
admirar a sua habilidade, a minha confiança esmorecia a cada nota perfeita.
Era a minha vez. Quando todos se viraram para mim, as palmas das
minhas mãos cobriram-se de suor. Limpei-as à saia, tentando acalmar-me.
Apenas tocara diante da minha mãe e de Ping’er. Um público muito
recetivo, muito benévolo. Com passos rígidos, aproximei-me do centro do
pavilhão. Os meus olhos fitaram cítaras e alaúdes, miraram sinos e
tambores... mas não havia qualquer flauta. Parei diante do qin, o único
instrumento ali que me era familiar. Contudo, não era o meu melhor
instrumento e a Dama Lianbao tocara-o muito melhor do que eu alguma vez
poderia. Escolhê-lo seria optar pela derrota, e toda uma vida na Mansão do
Lótus Dourado não me deixaria um passo mais perto do meu sonho.
Grata por a saia comprida me tapar as pernas trémulas, fiz uma vénia
para o palanque.
— Vossa Majestade Celestial, Vossa Alteza. Não há uma flauta aqui.
Posso tocar o meu próprio instrumento?
A imperatriz franziu os lábios.
— As regras não podem ser quebradas.
O tom cortante anunciava desaprovação. Mantive o rosto baixo para que
ela não pudesse ver o meu ressentimento e o medo mal contido.
— Vossa Majestade Celestial, as regras apenas dizem que tenho de
escolher um instrumento para tocar. Não especificam de onde.
Alguém soltou uma exclamação. Olhei brevemente para cima e vi o
mordomo a dar um passo rápido para trás. Com um ar furioso, a imperatriz
ergueu o queixo, fazendo tilintar violentamente as contas de jade do seu
colar.
— Rapariga insolente, atreve-se a discutir comigo?
— Honorável Mãe, foi por nossa omissão que nenhuma flauta foi
providenciada — observou o Príncipe Liwei. — Não vejo que importância
tem se ela tocar o seu próprio instrumento. Não são os nossos instrumentos
de um padrão igual ou superior a qualquer outro?
A imperatriz debruçou-se para diante e dirigiu-se a mim num tom
arrepiante:
— A sua flauta será inspecionada. Se descobrirmos algum
encantamento, será açoitada até não conseguir andar, por tentar fazer batota.
— Ninguém será açoitado hoje — declarou o Príncipe Liwei, num tom
tenso, com uma das mãos fechada com força no seu colo.
A imperatriz não respondeu, gesticulando para alguém atrás de si.
— Ministro Wu, conduza a inspeção.
Um imortal com olhos castanho-claros saiu da multidão, o âmbar no seu
chapéu a cintilar como gotas de ouro. Era ele; o ministro que detetara a
flutuação na energia da lua, que alertara a imperatriz e a levara até minha
casa. Talvez fosse apenas um cortesão atento, mas senti um aperto na
barriga ao olhar para ele. Com o choque de ver a imperatriz, no tumulto
daquele dia, não percebera que ele também ali estava.
Conseguia sentir o olhar da imperatriz sobre mim, todos olhavam presos
em mim enquanto eu me debatia com os cordões da bolsa de seda. Se
achassem que eu estava nervosa, tanto melhor... antes isso do que a fúria
crescente que ameaçava irromper de mim. Como se atrevia ela a acusar-me
de batota. Talvez, na mente dela, alguém como eu não tivesse escrúpulos.
Talvez, pensei perversamente, apenas me acusasse de fazer o que ela
própria faria.
Com uma vénia, ergui os braços para oferecer a minha flauta. Uma
serva apressou-se a vir buscá-la e levou-a ao Ministro Wu. A sua expressão
era de desinteresse entediado, muito distante da avidez que demonstrara
perante os problemas da minha mãe. Acharia os eventos daquele dia
aborrecidos? Ressentir-se-ia de receber ordens da imperatriz? Não obstante,
desempenhou o seu papel de forma admirável, inspecionando a minha
flauta com atenção meticulosa. Como odiava ver o meu instrumento
precioso, um presente da minha mãe, entre os seus dedos enluvados.
Por fim, o ministro voltou-se para a imperatriz.
— Não há qualquer encantamento.
O desagrado da imperatriz era visível no aceno breve com que
respondeu.
— Prossiga — ordenou.
Quando a serva da imperatriz me devolveu a flauta, os meus dedos
seguraram-na com força. Respirei fundo, tentando aliviar a tensão no meu
peito, ainda enfurecida com a humilhação da acusação. Fechando os olhos,
tentei alhear-me de todos os desconhecidos indiferentes em meu redor,
procurando a melodia que queria tocar, sobre a busca desesperada de uma
ave pelas crias perdidas, até morrer de frio quando chegou o inverno. Uma
música de mágoa, dor e perda para canalizar as emoções que tinha dentro de
mim. Uma calma caiu sobre mim e ergui a flauta, regozijando-me com o
toque familiar do jade frio contra os meus lábios. Como lhe sentira falta. A
música começou animadamente, com notas alegres a voar pelo ar,
erguendo-se límpidas e puras. Lentamente, a melodia transformou-se em
incerteza errática e terror, antes de mergulhar no abismo do desespero.
A última nota desvaneceu-se. Com mãos trémulas, baixei a flauta.
Ping’er elogiava sempre o meu desempenho na flauta, mas seria
considerado insuficiente ali? Olhei para cima e deparei com a imperatriz
lívida e furiosa... certamente um bom sinal, mas não conseguia decifrar a
expressão do Ministro Wu. Alguém bateu palmas, seguido de outros, os
sons a chocarem entre si como um trovão. Uma alegria intensa percorreu-
me o corpo por, independentemente do resultado, ter dado o meu melhor.
O Príncipe Liwei e a imperatriz conferenciaram durante muito tempo.
Como última candidata do dia, fiquei sentada na cadeira diante deles e
captei partes da conversa.
A imperatriz tentava ao máximo influenciar o filho.
— A linhagem da Dama Lianbao é impecável. É educada, inteligente,
elegante e talentosa. Como podes preferir uma simples serva? Tem um ar
tão comum e aquela fenda no queixo é um sinal garantido de mau feitio.
Crispei as mãos no meu colo, apertando os dedos uns contra os outros.
— Honorável Mãe, se fosse para escolher alguém com base apenas na
sua linhagem, não haveria necessidade de realizar o evento de hoje.
O seu tom era respeitoso, mas firme.
Um silêncio pairou no ar enquanto se fitavam um ao outro. Via pouca
semelhança nas suas feições, o que me alegrou. O rosto do Príncipe Liwei
era caloroso, em contraste com a fisionomia áspera e fria da imperatriz.
Por fim, a imperatriz soltou um suspiro, um som exasperado.
— Um tema tão trivial não merece a minha atenção. Espero que nos
obedeças em assuntos mais importantes.
Sem mais palavras, a imperatriz ergueu-se e abandonou o pátio, seguida
apressadamente pelas servas.
Quando o meu nome foi anunciado, não ouvi os aplausos e os votos de
parabéns. O meu coração dilatou-se de alívio, mas ainda temia que fosse
apenas um sonho. Através da multidão, o meu olhar inquieto procurava o
Príncipe Liwei. Só depois de ver o sorriso com que me prendou é que me
atrevi a ter esperança, como a primeira flor a desabrochar após um longo
inverno.
O sol aproximava-se do horizonte quando acabei de arrumar os meus
pertences na Mansão do Lótus Dourado. Podia ter partido no dia seguinte,
mas não tinha qualquer motivo para ficar; ninguém de quem me despedir,
ninguém de quem fosse sentir falta. Nos dias seguintes à competição, a
Dama Meiling e as outras servas mantiveram-me ocupada com um sem-fim
de tarefas desagradáveis e humilhantes. Gostava de poder dizer que tal
malícia deslizou de mim como água sobre óleo, que a alegria no meu
coração não deixava espaço para a amargura fermentar. Mas não era nem
tão magnânima nem tão clemente. Por essa altura, já aprendera que nada
irritava mais as minhas atormentadoras do que a indiferença. Por isso,
aceitei todas as ordens com um sorriso e uma vénia, sempre a imaginar
como ficariam desanimadas quando eu partisse para o palácio, para nunca
voltar.
Ao subir as escadas de mármore branco que davam para o Palácio de
Jade, os meus pés eram mais leves do que as nuvens que deslizavam pelo
céu acima. Para minha surpresa, encontrei o mordomo à minha espera na
entrada. Ao ver-me, apertou os lábios em desaprovação, ou talvez não
apreciasse a hora tão tardia.
— Sua Majestade Celestial pediu-me que a instruísse sobre os seus
deveres.
Sem esperar pela minha resposta, passou pelas portas lacadas de
vermelho, forçando-me a segui-lo apressadamente.
Por causa da ansiedade na visita anterior, apenas me lembrava de uma
neblina difusa de cores vibrantes e beleza requintada. Neste dia, mais
calma, observei o espaço envolvente, descobrindo que o Palácio de Jade era
do tamanho de uma cidade pequena e disposto com precisão metódica. Os
soldados ficavam alojados no perímetro exterior, junto às muralhas do
palácio. Um pouco mais para o interior ficavam os aposentos dos servos e
dos funcionários do palácio. Rodeada por jardins floridos e tanques repletos
de carpas ficava a Corte Exterior, os alojamentos de convidados de honra e
cortesãos especiais sem propriedade própria. A Corte Interior era onde
residia a família real, com pátios vastos no coração do palácio: o Tesouro
Imperial, a Câmara da Reflexão e o Salão da Luz Oriental.
Perdida naquele labirinto de caminhos tortuosos, cada salão e cada
câmara com o seu próprio nome e função designada, recordei a
simplicidade do meu lar com um aperto no coração. Apesar de o recinto do
Palácio da Luz Pura ser vasto, as nossas necessidades eram inegavelmente
mais modestas, sem cortesãos para entreter, com refeições descomplicadas
que preparávamos nós mesmas e uma floresta virgem nas traseiras.
Enquanto caminhávamos, o mordomo salmodiava sobre as regras de
etiqueta.
— Deve ajoelhar-se quando cumprimentar Sua Alteza ou quando Sua
Alteza lhe der uma ordem. Em todas as outras alturas, faça uma vénia pela
cintura quando Sua Alteza falar consigo. Dirija-se sempre a Sua Alteza pelo
seu título, nunca pelo seu nome. Se tiver a felicidade de encontrar Suas
Majestades Celestiais, ajoelhe-se e encoste a testa ao chão até receber
permissão para se levantar. Se passar por alguém de classe superior à sua,
pare e faça uma vénia. Fale baixo, vista-se aprumadamente de acordo com a
sua classe...
De início, ouvia atentamente, mas logo a minha atenção vagueou para
os tetos e pilares requintadamente esculpidos ao longo do corredor. Fénix
douradas alternavam com peónias escarlates e folhas verde-esmeralda. O
caminho atravessava um jardim que desejava tanto explorar, à sombra de
magnólias e macieiras bravas...
Parei ao perceber que perdera o mordomo de vista. Ao dar meia-volta,
dei por ele parado um pouco para trás, de braços cruzados sobre o peito e
um olhar de intenso desagrado.
Fiz uma vénia, profunda. Apesar de não estar familiarizada com as
matizes da hierarquia do palácio, era óbvio que o mordomo se considerava
acima de mim.
— Obrigada pelos sábios conselhos — entoei o mais respeitosamente
que fui capaz, interrogando-me quantas regras não teria ouvido e se seriam
importantes.
Para meu alívio, o mordomo descruzou os braços e continuou a andar.
— Se uma nobre tivesse assumido a sua posição, não residiria no
palácio, chegaria antes todas as manhãs para acompanhar Sua Alteza e
regressaria a casa todas as noites. Contudo, dada a sua situação, tivemos de
fazer alguns ajustes. — O mordomo suspirou, como se tivesse sido ele a
fazer uma concessão onerosa. — Com esses benefícios adicionais em
mente, além dos seus deveres como companheira de estudo do Príncipe
Liwei, Sua Majestade Celestial determinou que também serviria Sua Alteza.
Olhei para o lado para esconder a minha confusão, consciente do seu
olhar atento sobre mim. Seria eu uma serva exaltada ou uma companheira
desgraçada? Não fora esse o prémio que eu ganhara e duvidava que outra
pessoa qualquer fosse assim tratada. Decididamente, não a Dama Lianbao.
Esperaria a imperatriz que me sentisse ofendida e desistisse? Não era assim
tão fraca de espírito. Apesar dos esforços para desvalorizar o meu feito, não
partiria num acesso de despeito. Depois de servir a Dama Meiling, aquilo
não era nada de mais. Além disso, preferia ganhar o meu sustento, em vez
de ficar em dívida para com Sua Majestade Celestial. Talvez me devesse ter
ressentido mais do meu estatuto diminuído, mas por uma oportunidade
assim, eu teria varrido o chão do palácio todos os dias, se fosse preciso.
— É uma honra servir Sua Alteza — respondi.
O mordomo apertou os lábios.
— É verdadeiramente uma honra. Nunca se esqueça. Deve acordar
todas as manhãs antes de Sua Alteza e ajudar Sua Alteza a vestir-se. Vai
preparar o chá e as refeições de Sua Alteza. Às refeições, pode comer com
Sua Alteza, mas deve servir Sua Alteza antes de a si própria. Não deve
comer até Sua Alteza dar a primeira dentada. Vai acompanhar Sua Alteza às
aulas e aos treinos, estudando ao lado de Sua Alteza e colocando as
necessidades educativas de Sua Alteza acima das suas, claro.
— Claro — repeti num tom seco, contendo a seleção de palavras que
me veio ao pensamento.
Felizmente, pouco depois entrámos para o Pátio da Tranquilidade
Eterna. Como era sereno, sem a multidão de espectadores e a ansiedade a
dar nós dentro de mim. Jasmins, glicínias e pessegueiros floriam no jardim,
a sua fragrância delicada e doce. Uma cascata murmurava num tanque
apinhado de carpas amarelas e cor de laranja. Tudo isso dominado pelo
pavilhão onde a competição tivera lugar, só que agora uma mesa redonda de
mármore e vários bancos estavam dispostos no interior.
— Este é o seu quarto.
O mordomo parou diante das portas fechadas de um edifício pequeno.
— Mais uma coisa, aconselho-a a manter uma atitude respeitosa e atenta
em todas as ocasiões, criando um ambiente harmonioso para Sua Alteza.
Durante o banho de Sua Alteza...
Inalei bruscamente, a respiração a assobiar ligeiramente entre os meus
lábios.
— Tenho de ajudar Sua Alteza a tomar banho?
O mordomo empertigou-se e deitou-me um olhar de censura.
— Quando Sua Alteza estiver a tomar banho, use esse tempo para
preparar os livros e materiais para o dia seguinte.
Cada palavra foi enunciada com uma clareza minuciosa, na clara
convicção de estar a falar com uma idiota.
Murmurei os meus agradecimentos, aliviado por o ver ir embora.
Deslizei as portas para o lado e entrei. O quarto era espaçoso e bem
mobilado, com uma cama grande de madeira com cortinas azuis. Das
paredes pendiam pinturas de seda, que representavam cenas com montanhas
de um cinzento violáceo e ciprestes, faisões e peónias. Uma janela grande
dava para o pátio e ao fundo estava uma mesa com uma pilha de papel, um
conjunto de pincéis de escrita e um tinteiro de porcelana. Uma lanterna de
seda já se encontrava acesa, espalhando a sua radiância na luz fraca do fim
do dia. Sentei-me na cama, incrédula, e belisquei o braço. Doeu; aquilo era
real. Queria soltar uma gargalhada quando me deixei cair no colchão macio.
A serenidade daquele lugar, quebrada apenas pelo fluxo rítmico da água e
pelo vento a sacudir as árvores, lembrava-me o meu lar. E depois de viver
com pessoas que encontravam defeitos em cada palavra ou gesto meu, era
um alívio voltar a estar a sós.
***
Imperturbada por pesadelos, dormi a noite toda, até a luz do sol entrar
pela janela. As cortinas flutuavam na brisa matinal, carregada com o aroma
de flores. Sentia em mim uma leveza pouco familiar... a ausência de medo,
apercebi-me. Não dera conta da tensão dentro de mim até ela desaparecer.
Pilhas de seda e brocado estavam amontoadas no armário. Tirei uma túnica
branca que prendi na cintura com uma faixa de cetim verde. A saia ampla
estava decorada com borboletas, que esvoaçavam quando tocava com um
dedo no bordado de uma asa. Uma túnica encantada. Quereria isso dizer que
a minha força vital era forte? Aprenderia brevemente a usá-la? Sentia
arrepios na pele só de pensar nisso.
Saindo do quarto, atravessei o pátio até aos aposentos do Príncipe
Liwei, o edifício grande diante do meu. As portas de madeira estavam
lacadas num vermelho-vivo, com treliças num padrão de círculos alternados
com camélias douradas. Ergui a mão e bati suavemente. Quando não ouvi
qualquer resposta, bati com mais força. Depois de esperar algum tempo,
abri as portas, esperando não estar atrasada. O interior estava sombrio, com
cortinas de brocado espesso nas janelas e à volta da cama de pau-rosa no
canto mais distante. O Príncipe Liwei ainda devia estar a dormir. O meu
coração bateu mais depressa quando entrei para o quarto e uma tábua do
soalho rangeu sob o meu pé.
— Vossa Alteza, fui instruída para vos acordar a esta hora.
A minha voz soou frágil e insegura, o título rígido nos meus lábios.
Recordando a litania do mordomo, baixei até a minha testa bater
desajeitadamente no chão duro.
O silêncio foi a única resposta. Mudei de posição, interrogando-me qual
seria a forma “respeitosa” de acordar um príncipe. As cortinas da cama
restolharam um momento antes de serem afastadas. Erguendo a cabeça,
fitei-o nos olhos. Senti o rosto a corar quando percebi que ele vestia apenas
a túnica interior branca.
— Chá — soltei bruscamente. — Quereis chá, Vossa Alteza?
O príncipe apoiou-se num cotovelo e bocejou, com o cabelo a cair-lhe
sobre os ombros.
— O que estás a fazer aí no chão? Levanta-te, não tens de te ajoelhar.
Não eras assim tão respeitosa quando nos conhecemos.
— Apenas porque não sabia com quem estava a falar. Não devia
aproximar-se à socapa de uma pessoa, sem um aviso, ou um cortejo, ou...
seja lá o que costuma fazer. É uma falta de consideração e injusto da sua...
Tarde de mais, fechei a boca. Ele tinha o dom de me provocar.
Ele sorriu, parecendo inesperadamente agradado.
— Fico contente por ver que a pessoa que conheci no rio ainda aí está.
Parecias diferente há um momento. Tão... deferencial.
Mostrei-lhe os dentes, mais numa careta do que num sorriso.
— Chá, Vossa Alteza?
— Ah. Sim, por favor.
Mas então, uma expressão peculiar passou-lhe pelo rosto.
— Podes pedir a alguém na cozinha que nos prepare o chá? Não sei se
consigo voltar a beber a tua mistura “singular”.
Dividida entre o riso e a vergonha, apressei-me até à cozinha, seguindo
em sentido inverso os meus passos no dia anterior. Um aroma rico e
saboroso erguia-se das panelas com papa a ferver, dos tachos a fervilhar
com pastéis em forma de crescente. Distraída, quase colidi com um servo a
carregar uma taça fumegante de sopa. O servo deitou-me um olhar
medonho, abrindo a boca para me ralhar, mas alguém agarrou o meu braço
e puxou-me para longe.
Era uma rapariga com a túnica roxa dos servos da cozinha. A cara dela
tinha as curvas arredondadas de uma maçã e o cabelo preto estava preso
num nó.
— É melhor saíres da frente dele. Pensa que é melhor do que nós
porque serve a imperatriz.
Os olhos castanho-escuros saltaram para mim.
— Chamo-me Minyi. És nova? O que fazes? Quem é o teu amo?
Fiquei calada, apanhada de surpresa pela fiada de perguntas. Mas não
detetei malícia nela, apenas curiosidade e uma franqueza que me fazia
lembrar Ping’er.
— O Príncipe Liwei — respondi.
— Ah, então foste tu que desagradaste a Sua Majestade Celestial.
Fiquei com a boca seca e o cheiro da comida dava-me agora a volta ao
estômago. Como se espalhara depressa a notícia. Ela deu-me uma
palmadinha na mão.
— Não te preocupes. Sua Majestade Celestial desaprova quase toda a
gente. Ora bem, tu ou Sua Alteza precisam de alguma coisa?
— Só o pequeno-almoço. E chá para Sua Alteza — respondi,
recompondo-me.
— E tu queres alguma coisa? — perguntou Minyi.
Quando o meu olhar caiu sobre os pastéis, ela piscou-me um olho.
— Vou garantir que te levam uma dose especialmente generosa esta
manhã.
— Obrigada.
Comecei a fazer uma vénia, mas ela puxou-me para cima.
— Não precisas de fazer isso. És a companheira do Príncipe Liwei.
Então, coçou o queixo em contemplação.
— Se calhar, eu é que devia fazer-te uma vénia.
— Não, por favor — pedi veementemente, antes de voltar a agradecer e
de me afastar.
No quarto do Príncipe Liwei, ajudei-o a vestir-se, segurando uma túnica
de brocado azul-celeste enquanto ele enfiava os braços nas mangas. Na
cintura, apertei-lhe uma faixa preta, que ele prendeu com um ornamento de
jade amarelo e seda.
O cabelo escuro caía-lhe solto pelas costas quando se sentou diante de
um espelho, segurando um pente de prata.
— Podes ajudar-me?
Hesitei, antes de estender a mão para pegar no pente. Nunca penteara
outro cabelo além do meu, num estilo simples que não requeria a mais
pequena habilidade. Na Mansão do Lótus Dourado, era Jiayi quem tinha a
tarefa íntima de vestir a Dama Meiling. Passei o pente pelo cabelo do
Príncipe Liwei com movimentos ritmados, a minha mente a trabalhar
furiosamente, tentando lembrar-me dos penteados masculinos na Mansão do
Lótus Dourado. O seu cabelo era mais pesado do que o meu, sedoso e
lustroso, caindo-lhe pelas costas como ébano polido. Quando deparei com
uma riça, fiz mais força com o pente, arrancando acidentalmente alguns
cabelos.
O príncipe inalou bruscamente e virou-se para mim com uma expressão
dorida.
— Xingyin, ofendi-te de alguma forma?
O pente caiu-me da mão e chocalhou no chão. Talvez me tivesse
aplicado ao seu cabelo com mais vigor do que tencionava.
— Lamento, Vossa Majestade.
Com dedos hábeis, o príncipe prendeu o cabelo num nó liso, que
segurou com uma peça de prata e prendeu com um alfinete de jade.
Captando o meu olhar no espelho, ergueu-me um sobrolho.
— Lamentas mesmo? O suficiente para me ajudares a pentear-me todas
as manhãs até aprenderes a fazê-lo direito?
Aquilo era uma ordem? Recordando as regras de etiqueta, ajoelhei-me
em obediência, mas ele estendeu os braços e pôs as mãos nos meus
cotovelos para me levantar.
— Xingyin, vamos estar juntos todos os dias. Quando estamos só nós os
dois, não há necessidade de tanta formalidade. Não precisas de te ajoelhar
ou fazer uma vénia sempre que falo, ou vais passar a maior parte do dia
com a cabeça no chão. E trata-me por Liwei. Quando nos conhecemos, era
como se não houvesse barreiras entre nós. Parecias alguém com quem eu
podia falar abertamente. Gostava que fôssemos amigos, não queres isso
também? — perguntou-me gentilmente.
O meu olhar colidiu com o dele. Como era caloroso o seu sorriso, como
um raio de sol que irrompera pela solidão da minha alma. Não era nada o
que eu esperava de um príncipe, mas muito mais. Interroguei o que acharia
o mordomo de tudo aquilo. Não que importasse muito.
— Sim, gostava muito — respondi.
Depois de refeição da manhã, saímos para a nossa primeira lição. Segui
Liwei pelos corredores aparentemente intermináveis, até um jardim vasto.
Salgueiros graciosos rodeavam um lago, com uma ponte de madeira
vermelha a arquear sobre a água até uma ilha pequena. Um pavilhão isolado
erguia-se na ilha, com um telhado de telhas verdes e pontas reviradas,
confundindo-se com a envolvência verdejante. Inspirei fundo o ar fresco,
tentada a demorar-me ali, mas Liwei prosseguiu por um portão circular de
pedra branca adornado com uma placa lacada na qual se lia:

CÂMARA DA REFLEXÃO

Um nome adequado para um local de aprendizagem, que eu esperava


honrar. Quando nos sentámos a uma mesa comprida e tirámos os nossos
livros, olhei para a sala à minha volta. O chão de mármore cinzento, as
traves simples de madeira e o mobiliário escasso contrastavam fortemente
com o resto do palácio opulento. As estantes estavam apinhadas de rolos e
viam-se pilhas de livros nas mesas empurradas contra as paredes. A treliça
da janela alta que dava para o jardim deixava entrar o ar fresco.
Um imortal idoso entrou. Liwei segredou-me que era o Guardião dos
Destinos Mortais, que nos ensinaria a história dos domínios. A barba branca
caía-lhe para lá da cintura e a mão enrugada segurava um báculo de jade.
Já vira rugas assim no rosto de Ping’er, quando ela me deitava na cama
nas noites em que a minha mãe se demorava na varanda. Certa vez, toquei
com o dedo nas linhas nos cantos dos olhos dela.
“Ping’er, o que é isto?”
“Uma marca da passagem dos anos”, respondeu-me ela.
“És mais velha do que a Mãe?”
Fiquei espantada, pois a minha mãe parecia tão grave e solene.
“Pelo menos uns cem anos. Até à idade adulta, as nossas vidas seguem
um padrão semelhante à dos mortais. Depois disso, a nossa idade deixa de
importar. Um imortal de mil anos pode parecer da mesma idade que um
imortal de trinta. A nossa força vital determina a nossa juventude.”
Apoiei-me num cotovelo, animada de curiosidade.
“Força vital?”
“A origem dos nossos poderes, que determina quanta energia possuímos
para canalizar magia. Tenho estas rugas porque não sou muito forte”,
explicou Ping’er.
“A Mãe também vai ter rugas? E eu?”, perguntei.
“O tempo dirá.”
Antes que pudesse fazer mais perguntas, Ping’er apressou-se para fora
do quarto, fechando a porta ao sair.
A memória apertou-me o coração. Até à chegada da imperatriz, foi a
primeira e a última vez que Ping’er me falou de magia. Sabia agora os
segredos que ela calara nessa noite, sobre os meus poderes selados. A
descoberta podia ter-me perturbado mais se tivesse sabido isso antes da
visita da imperatriz. Mas descobri que já não importava, não agora, depois
da tempestade que caíra sobre nós e me levara para longe. Contudo, isso
não me impedia de desejar ter sabido da sua existência, que podia ter feito
algo para o evitar.
O Guardião dos Destinos Mortais pegou num livro e folheou as páginas.
— Que idade tem ele? — soltei para Liwei, olhar fixo no cabelo branco
como neve.
O Guardião olhou para mim com uma expressão sentida.
— Não comente a idade de outras pessoas. É considerado uma falta de
educação em todo o lado, especialmente no Domínio Mortal.
Os seus modos eram severos, mas não cruéis, como se estivesse a
avisar-me de que outros poderiam ofender-se com mais facilidade.
Murmurei apressadamente um pedido de desculpas. Mas assim que o
Guardião nos virou costas, Liwei inclinou-se para me segredar:
— Alguns imortais escolhem não preservar a sua juventude.
— Porque preferimos preservar a nossa sabedoria — ripostou o
Guardião. — Vossa Alteza, aconselho-vos a dar um melhor exemplo à vossa
companheira de estudo.
Assenti sobriamente, ignorando o olhar contrariado de Liwei, mas tinha
de admitir que desempenhara um papel na chamada de atenção. Era
refrescante ouvir alguém que não eu a ser repreendido pela sua conduta.
Quando o Guardião dos Destinos Mortais saiu, chegou um tutor para
nos ensinar sobre as constelações, depois outro sobre ervas medicinais.
Estava a custar-me ficar quieta durante a aula demorada, ensinada por um
imortal sério com queixo pontiagudo e um ar pedante. Enquanto o meu
olhar pairava sobre as figuras de flores, que começavam a parecer todas
iguais, a minha mão voou até à minha boca para conter um bocejo.
Talvez pressentindo a minha falta de atenção, o professor virou-se para
mim.
— Xingyin, quais são as propriedades desta planta? — perguntou num
tom cortante, batendo na página diante de mim com uma vara estreita de
bambu.
Endireitei-me na cadeira, fitando inexpressivamente a figura de uma
banal flor azul com pétalas bicudas.
“Lírio-estrela”, dizia o título. Infelizmente, a página não tinha mais
informação.
— Mmm — murmurei, olhando aflita para Liwei.
Ele arregalou os olhos e depois fechou-os e deixou tombar a cabeça.
— Sono! — gritei, percebendo o que ele queria dizer.
O tutor franziu os lábios.
— Correto. Apesar de amarga, esta flor silvestre pode ser uma potente
droga soporífera quando consumida com vinho.
— Obrigada — segredei para Liwei.
— Não tens de quê — respondeu-me com um ligeiro sorriso nos lábios.
Estava a acabar de guardar os livros da última aula quando um imortal
de ar severo caminhou na nossa direção, as botas a ecoar no chão de
mármore. O rosto magro era liso, tirando uma ruga vincada no sobrolho, e
trazia o cabelo escuro preso num nó. A sua armadura era feita de placas
planas de um metal branco reluzente, orladas de ouro e apertadas como
escamas sobre os ombros e o peito, até aos joelhos. Tecido vermelho
tapava-lhe os braços, terminando em punhos dourados grossos nos pulsos.
Uma faixa larga de couro preto envolvia-lhe a cintura, presa com um disco
de jade amarelo. Pendurada do lado do corpo estava uma volumosa bainha
de prata, de onde saía um cabo de marfim. A aura que emanava dele forte e
firme como a de um carvalho com muitos anos.
Um soldado celestial, como aqueles de quem Ping’er e eu fugimos
naquela noite. Senti um arrepio pelo corpo e os meus dedos curvaram-se
sobre a mesa.
— Porque está ele aqui? Há algum problema?
— O General Jianyun é o mais alto comandante do Exército Celestial.
Está aqui para nos instruir na arte da guerra.
— Vossa Alteza — cumprimentou o general com uma vénia.
Quando o seu olhar recaiu sobre mim, as rugas na testa vincaram-se
ainda mais.
— General Jianyun, esta é Xingyin — apresentou Liwei.
Fiz uma vénia ao general, mas ele não respondeu. Sob o seu olhar
penetrante, comecei a remexer-me, perturbada pelas memórias que a sua
presença invocava.
— Está interessada na arte da guerra?
O tom severo deixou-me hirta enquanto procurava a custo uma resposta.
Nunca pensara muito nos grandes esquemas dos reinos a batalhar por
dominância, glória, poder e orgulho. Os meus desejos eram mais humildes,
mais pequenos. Só queria aprender a defender-me e a proteger aqueles que
amava.
— Ainda não sei. É a minha primeira aula — respondi. Quando a sua
expressão tomou um ar desaprovador, uma faísca de desafio acendeu-se
dentro de mim. — Gosto de aprender. Mas o interesse do aluno também
depende da habilidade do professor.
O general arregalou os olhos. Sustive a respiração. Iria expulsar-me da
aula? Nada que eu não merecesse, pela minha impertinência.
Para minha surpresa, o General Jianyun sorriu de orelha a orelha.
— Sua Majestade Imperial aprova a vossa nova companhia? —
perguntou o general a Liwei, fingindo-se incrédulo.
— A minha mãe não se envolve em tais assuntos — foi tudo o que disse
Liwei, enquanto abria o seu livro.
Apesar da sua expressão pouco convencida, o general não falou mais do
assunto.
Ao meio-dia, a minha cabeça doía de tanto aprender e tinha a mão
dorida de tanto escrever. Quando fomos dispensados para a refeição da
tarde, fiquei contente por escapar até à cozinha. Carregando o tabuleiro
cheio de comida, fui até ao pavilhão diante da Câmara da Reflexão. Da
entrada pendia um sinal pequeno, no qual se lia, em fortes pinceladas
pretas:

PAVILHÃO DA CANÇÃO DO SALGUEIRO

— Que nome bonito.


Pousei o peixe cozido, folhas tenras de ervilha-torta e o frango oito-
tesouros na mesa de mármore.
— E adequado também — respondeu Liwei, levando um dedo aos
lábios.
Não percebi o que queria dizer, mas acedi ao pedido para ficar em
silêncio. Quando a brisa soprava, os salgueiros abanavam, mergulhando os
ramos na água límpida. Então, as folhas delicadas roçavam umas nas outras
e o ar enchia-se de suspiros sussurrados, uma melodia requintada, mas
melancólica. Trazia-me à memória o vento a soprar pelos jasmineiros, o
tilintar dos ornamentos de jade da minha mãe.
— Gostaste das nossas lições? — perguntou Liwei, interrompendo o
meu devaneio.
Ele serviu-me um pouco de cada prato, em flagrante desrespeito das
convenções.
— Umas mais do que outras — respondi, lembrando-me da aula
aborrecida sobre plantas e ervas. — Gostei especialmente da aula do
General Jianyun.
— Pensava que ias adormecer nessa aula.
— Porquê? As raparigas só devem desenhar, cantar e coser? —
perguntei, pensando nas lições da Dama Meiling e nas minhas lições com
Ping’er.
— Claro que não — respondeu Liwei, num tom grave, debruçando-se
como quem vai partilhar uma sabedoria profunda. — E ter filhos?
Os seus olhos tinham um brilho trocista.
Engasguei-me num pedaço de frango que estava a mastigar, com a
indignidade acrescida de Liwei ter de me bater nas costas para o desalojar.
Ansiosa por mudar de assunto, disse:
— Bom, não sei desenhar e acredite que não quer que eu cante.
— Vais coser as minhas roupas?
— Não, a não ser que queira roupa com buracos onde não deviam.
Liwei tamborilou contemplativamente com os dedos na mesa.
— Então, não sabes desenhar, cantar ou coser. Que tal...
— Não! — exclamei, mais alto do que pretendia, resistindo à onda de
calor que me percorria a pele.
Ele pestanejou e deitou-me um olhar inocente.
— Só ia perguntar se tocavas flauta para mim.
Flauta? Praguejei para dentro, amaldiçoando os devaneios da minha
imaginação.
— De que achavas que estava a falar? — perguntou, abanando a cabeça
em desaprovação.
— Nisso mesmo — respondi, agarrando-me à mentira. — Nada mais.
— De que outra maneira poderias compensar as tuas limitações? Parece
que tens muitas.
Ao ver o trejeito nos lábios de Liwei, desconfiei que ele estava a gostar
demasiado de tudo aquilo.
— Da mesma maneira que compensa pelas suas — retorqui.
Ele pareceu ofendido. Uma parte de mim interrogou-se se alguém
alguma vez falara assim com ele.
— As minhas? Diz uma.
— Os seus modos? — sugeri. — O sentimento de superioridade? O
hábito de interromper os professores? A maneira como diz coisas ultrajantes
para se divertir? A...
Liwei ergueu uma mão, parecendo magoado.
— Uma chegava.
Tentei manter uma cara séria, apesar da alegria que borbulhava dentro
de mim. Como me sentia à vontade, o coração mais leve do que alguma vez
o sentira em meses.
— Além disso, não creio que tocar música estivesse incluído na minha
lista de tarefas — acrescentei.
Ele pegou num pedaço luzidio de peixe branco, inspecionando-o para
ver se tinha espinhas antes de o pôr no meu prato.
— Não és muito flexível.
Deitei-lhe o meu sorriso mais doce.
— Depende de como me pedir.
Ele riu-se, mas a seguir pigarreou.
— Lamento muito pela ordem da minha mãe, por também teres de me
servir. Não é preciso. Sou perfeitamente capaz de tratar de mim, quando
quero.
— Não me importo — respondi. — Fico contente por trabalhar pelo
meu sustento. E se não o fizer, alguém pode denunciar-me a Sua Majestade
Celestial.
A imperatriz ficaria encantada com a mais pequena desculpa para me
expulsar, disso tinha a certeza. Parte de mim estava aliviada por a imperatriz
não me ter mostrado qualquer generosidade, pois isso significava que não
lhe devia nada. E Liwei não me fazia sentir como se o estivesse a servir,
mas sim a ajudar. Uma distinção pequena, mas que fazia todo um mundo de
diferença para o meu orgulho.
— Obrigado — agradeceu Liwei, ao levantar-se. — Agora temos de nos
apressar. Temos uma longa tarde de treino pela frente.
A minha curiosidade foi espicaçada.
— Que treino?
— Esgrima, tiro ao arco, artes marciais. Se não estiveres interessada,
posso conseguir que te dispensem — propôs Liwei, com um gesto
magnânimo da mão.
Forcei-me a respirar fundo, a conter a agitação que me percorria como
água a descer da montanha após uma chuvada. A lição do General Jianyun
abrira-me o apetite e estava ansiosa por aprender mais sobre as habilidades
que me poderiam ajudar a ficar mais forte. Suficientemente poderosa para
suportar os ventos de mudança e até mudar-lhes o rumo, em vez de ceder à
mais pequena brisa. A minha imaginação ergueu-se até ao firmamento, livre
de todas as limitações, enquanto fantasiava voar para casa e quebrar o
encantamento que prendia a minha mãe na lua...
A minha voz tremia de excitação.
— Liwei, toco flauta para si as vezes que quiser... desde que não me
dispense dessas lições.
As alcanforeiras circundavam um enorme campo relvado, projetando a
sua sombra sobre nós. A toda a volta estavam soldados, que envergavam
armaduras reluzentes brancas e douradas. Comandantes gritavam instruções
às suas tropas, uns a lutar com espadas, outros a empunhar lanças ornadas
com borlas vermelhas. Numa plataforma de madeira, filas de soldados
imitavam os passos de um instrutor. Os seus movimentos eram tão
graciosos e bem sincronizados como uma dança, mas bem mais mortais,
pensei eu, quando uma mulher atirou um soldado corpulento ao chão.
Vários alvos estavam montados na periferia do campo, onde os soldados
praticavam tiro ao arco.
Enquanto eu assistia, um soldado soltou uma flecha... cortando o ar e
acertando no centro do alvo. Admirada, aplaudi até me doerem as mãos.
— Impressionas-te com facilidade — disse-me Liwei.
— Consegue fazer melhor? — desafiei.
— Claro.
A certeza no seu tom apanhou-me de surpresa. Mas então apareceu o
General Jianyun, a caminhar na nossa direção.
— Vossa Alteza, o que deseja praticar primeiro?
— Tiro ao arco — respondeu imediatamente Liwei.
A uma ordem do general, os soldados prepararam os alvos redondos,
cada um pintado com quatro anéis em volta de um centro vermelho. Liwei
foi até ao suporte de armas e escolheu um arco longo e curvo. Quase sem
esforço, aparentemente, assestou uma flecha e soltou-a sobre o alvo. Antes
que eu conseguisse pestanejar, outra flecha passou a voar por mim. Ambas
acertaram no centro com baques sonoros.
Fiquei a olhar para o alvo, espantada com a sua pontaria e rapidez.
— Não estava a exagerar.
— Eu nunca exagero — reagiu ele. — Queres experimentar?
Estendi as mãos, mas recuei logo com um olhar furtivo para os soldados
à nossa volta. Nunca pegara numa arma antes, muito menos numa que
parecia requerer tanta precisão.
Liwei falou em voz baixa com o General Jianyun, que se afastou com os
restantes soldados. Quando ficámos a sós, respirei mais à vontade. Liwei
passou-me um arco, mais pequeno do que o arco que usara.
— Madeira de amoreira. É boa para iniciantes, porque é mais leve —
explicou.
Os meus dedos vibraram quando tocaram na madeira lacada e se
fecharam sobre a pega envolta em seda. O arco dava-me uma sensação
familiar, como se já o tivesse usado uma centena de vezes. Teria sido assim
para o meu pai, o maior arqueiro que alguma vez viveu? Se a minha mãe
não tivesse tomado o elixir, se tivéssemos ficado no mundo dos mortais, ter-
me-ia ensinado a atirar como ele, mas duvidava que eu conseguisse
derrubar um sol, quanto mais nove. Senti um aperto no coração, uma dor
fútil e sem remédio. Todos os desejos do mundo não reuniriam a minha
família.
— Xingyin, estás pronta? — perguntou Liwei.
Assenti, pondo-me de lado para o alvo distante, como ele fizera. Liwei
estava parado atrás de mim, guiando-me as mãos enquanto eu erguia o arco.
— Respira fundo, bem lá de baixo. Quando puxares a corda, faz força
com o corpo todo e não apenas os braços.
Então, tocou-me nos ombros e ergueu-me o cotovelo direito.
— Mantém-nos em linha reta.
Os meus braços esforçavam-se por manter a posição, a corda a cortar-
me os dedos e o polegar.
Finalmente satisfeito, Liwei recuou um passo.
— Ajusta a flecha até a ponta alinhar com o alvo. Quando a soltares,
apenas a mão se deve mover, mantém a outra bem firme na pega. E não te
sintas desencorajadas se falhares. É a tua primeira tentativa.
Algo ardia na boca do meu estômago. Um desejo de fazer bem, de ficar
à altura da fama do meu pai. Mesmo que mais ninguém soubesse além de
mim. Estreitei os olhos para o alvo distante. Tudo o resto ficou desfocado, o
alvo a brilhar tão intensamente como um farol na escuridão. Sustendo a
respiração e mantendo-me o mais imóvel que podia, soltei a corda. A flecha
voou pelo ar e acertou no anel exterior do alvo com um baque.
— Acertei!
Emoção pura corria-me pelas veias.
Liwei bateu palmas, com um sorriso no canto da boca.
— Tens um bom professor.
— Ah! Em tempo nenhum vou superar o meu mestre — gabei-me,
despudorada na minha euforia.
— Queres apostar? Daqui a três meses, fazemos uma competição. O
perdedor vai ter de fazer as vontades do vencedor durante um dia.
— Não tenho já de fazer a sua vontade todos os dias?
Não sei como, mas consegui dizer aquilo com cara séria.
— Sem queixas, sem discussões, sem hesitações — acrescentou Liwei,
após deliberar por um momento.
— Mas dentro do razoável — contrapus, o arco na minha mão a dar-me
uma nova confiança.
E agora não podia recuar; ele troçaria de mim sem dó.
— De acordo — aceitou ele, mostrando um sorriso ainda maior. — Tens
medo do que te vou ordenar que faças?
— Muito pelo contrário — respondi com um sorriso igualmente aberto.
— Vou apreciar dar ordens a Vossa Alteza.
— Ainda não ganhaste — lembrou-me ele, caminhando na direção dos
soldados a praticar com espadas.
— Nem tu — murmurei para mim mesma.
Decidi continuar a treinar tiro ao alvo. Os meus dedos formigavam por
voltar a pegar no arco, por sentir a excitação pura enquanto a flecha se
soltava, a satisfação quando acertava no alvo. Pegando noutra flecha,
assestei-a no arco e tentei lembrar-me das instruções de Liwei.
— Não devia ter aceitado aquela aposta. Sua Alteza é um excelente
arqueiro — observou alguém atrás de mim.
Perdi a concentração e o meu corpo mexeu-se. A flecha voou longe do
alvo.
Virei-me para trás e deparei-me com uma guerreira celestial a observar-
me. Era muito atraente, com pele castanho-clara e uma mão-cheia de sardas
sobre o nariz, os olhos ligeiramente inclinados nos cantos. Os lábios grossos
contorciam-se numa careta quando inspecionou a minha flecha,
ingloriamente cravada na terra.
— Sim, decididamente, não devia ter aceitado aquela aposta — repetiu.
Seria outra Jiayi, disfarçando malícia sob uma camada fina de
civilidade? Respondi com um aceno breve, quase desdenhoso.
— Obrigada pela preocupação. Cá me safo.
Pensei que ela iria embora, mas em vez disso cruzou os braços sobre o
corpo. Tencionaria ficar a assistir? Talvez esperasse humilhar-me um pouco
mais?
Virei-lhe costas, desejando que ela fosse embora. Assestei outra flecha e
soltei-a. A flecha acertou no alvo e ficou a tremer no anel mais perto do
centro. Mais provavelmente por feliz coincidência do que pela minha
habilidade de principiante, mas não resisti a dizer:
— Talvez Sua Alteza é que não devia ter aceitado.
— Nada mau para a terceira tentativa.
O elogio apanhou-me de surpresa. Mais ainda quando ela pousou uma
mão sobre o punho e inclinou a cabeça para mim.
— Chamo-me Shuxiao.
A minha mente ficou em branco; não estava acostumada a tanta
civilidade. Na Mansão do Lótus Dourado, nunca recebera tal cortesia.
Enquanto ali, era sobre Liwei que toda a atenção recaía.
Ela inclinou a cabeça para o lado, talvez estranhando o silêncio
atrapalhado. À pressa, cumprimentei-a de volta. Quando terminei a vénia,
pensei furiosamente em algo para dizer. Falar do tempo seria demasiado
aborrecido. Não tínhamos amigos em comum, ou antes, eu não tinha
amigos. E não lhe podia perguntar pela família quando não podia falar da
minha.
— Gosta de estar no exército celestial? — perguntei por fim.
— Quem não gostaria? — respondeu ela com um ar sério. — É
maravilhoso receber ordens o tempo todo, ter de obedecer sem questionar,
levar tareias durante o treino e dar-me por feliz quando não morro numa
missão.
Até estremeci.
— Isso soa... horrível.
— E nem sequer falei da melhor parte. Está a ver o que temos de usar?
— perguntou, dando uma pancada na armadura. — É mais pesada do que
parece, se isso é possível. E quando andamos, soamos como um monte de
tachos e panelas. Ainda bem que nos ensinam a disfarçar o nosso ruído dos
inimigos.
— Então, porque o faz? — não resisti a perguntar.
Ela encolheu os ombros.
— Quem não quereria servir o Imperador Celestial e o nosso reino?
O tom na sua voz teria uma ponta de honestidade ou sarcasmo? Não
conseguia dizer e decidi que o mais sensato seria manter-me em silêncio
enquanto ela escolhia um arco do suporte.
— Ouvi dizer que estuda com Sua Alteza. Os seus pais servem na corte?
Abanei a cabeça, chegando-me para o lado para lhe dar espaço,
esperando que ela me fizesse outra pergunta. Sobre outro assunto qualquer.
Ela ergueu o arco e ajustou a pontaria enquanto inspecionava o alvo. A
flecha assobiou pelo ar, acertando no alvo perto do centro.
— Bom tiro — observei.
Ela fez uma careta.
— O tiro ao arco é a minha desgraça; farto-me de praticar e continuo a
não acertar no centro. Prefiro espadas. Ou lanças.
Olhou então para mim, não se deixando distrair.
— É celestial? De onde é a sua família?
Olhei para a frente, fingindo concentração.
— Já não tenho família.
A mentira custou-me menos agora, mas a vergonha ardia com o mesmo
furor. Não tinha escolha a não ser manter a farsa, pois Liwei acreditava que
os meus pais tinham morrido.
Ela manteve-se em silêncio por um momento, antes de estender a mão
para me dar uma palmadinha no ombro.
— Lamento. Tenho a certeza de que estariam orgulhosos de si.
Senti um aperto no peito. Como era vil da minha parte, ser o alvo da sua
compaixão sob falsos pretextos. E, contudo, como desejava
desesperadamente que as suas palavras fossem verdade. Não consegui
impedir-me de pensar como se sentiria a minha mãe, agora que eu servia no
palácio do imperador que a aprisionara.
— Os cortesãos andavam a resmungar sobre uma “ninguém” que tinha
ganhado a posição junto do Príncipe Liwei — acrescentou ela. — A meu
ver, não há maior elogio. Como conseguiu?
— Sorte — respondi, com um desembaraço que não sentia.
E também irritada. Não seria uma “ninguém” para sempre. Um dia,
todos saberiam o meu nome, e o dos meus pais.
— Onde está a sua família? — perguntei, tentando afastar a conversa de
mim.
— Somos celestiais, mas os meus pais não servem na corte. O meu pai
alega que é demasiado perigoso. Demasiados conflitos, com todos a
competir pelo favor imperial. Ele prefere uma existência tranquila. Depois
de torcer o nariz, acrescentou: — Mas com seis filhos, o nosso lar é tudo
menos tranquilo.
— Seis! — exclamei.
— Não é tão horrível nem tão maravilhoso como possa pensar. Quando
nos damos bem, os meus irmãos e irmãs são os melhores amigos do mundo.
Mas quando discutimos...
Ela estremeceu e fez uma careta de horror.
— Talvez o seu pai tivesse feito melhor em fugir para a Corte Celestial
— comentei.
O seu rosto abriu-se num sorriso.
— A minha mãe não o deixava.
Durante o resto da tarde, treinámos juntas. A mais nova de uma família
grande, Shuxiao vivera rodeada de companhia desde que nascera. Possuía
uma vitalidade, um à vontade, que atraía outros. Muitos soldados chamaram
por ela ou acenaram-lhe ao passar. Alguns incluíram-me na saudação,
acreditando que eu e Shuxiao éramos amigas.
E, de facto, depois desse dia éramos mesmo.
Ao final do dia, tinha os dedos em ferida. Doíam-me os braços e tinha
as costas doridas. Não tocara numa espada nem pronunciara um único
sussurro de magia. Ainda assim, quando saímos do campo de treino, mal
podia esperar por regressar.
No quarto de Liwei, preparei os livros para as lições do dia seguinte.
Quando regressou do banho, Liwei vestia apenas uma túnica branca e curta
por cima de umas calças pretas e largas. O cabelo comprido, ainda húmido,
caía-lhe pelas costas. Esperava ser dispensada, mas ele sentou-se à mesa e
deitou-me um olhar expectante.
— Que música vais tocar?
O pedido que me fizera antes fugira-me completamente da memória.
Estava cansada e o meu corpo cansado só queria ir para a cama... mas
sentei-me ao seu lado e peguei na flauta. Uma melodia ritmada ondulou
pelo ar, sobre o despertar da primavera, o degelo dos rios e a vida a fluir de
novo.
Quando terminei, pousei a flauta.
— É espantoso como um instrumento tão pequeno pode dar forma a
música assim — comentou.
Após um momento de hesitação, acrescentou:
— Esta música é mais alegre do que a música de ontem. Isso reflete o
teu estado de espírito?
— Sim. Foi um dos melhores dias da minha vida e tenho de lhe
agradecer por isso.
As minhas palavras eram simples, mas sinceras. Ainda sentia falta do
meu lar, da minha mãe e de Ping’er, mas já não sentia que andava sozinha à
deriva e sem rumo no mundo.
Liwei clareou a garganta e ficou com as orelhas vermelhas. Pondo-se de
pé, foi até à sua secretária. Um rolo com a pintura de uma jovem estava
pendurado na parede ao lado. Olhos escuros cintilavam no rosto
perfeitamente oval. Estava sentada sob cachos de glicínias em flor,
segurando uma armação de bordado em bambu.
— Quem é ela? — perguntei.
Ele fitou a pintura em silêncio por um momento.
— Costumava viver no pátio ao lado do meu. Quando eu era pequeno,
visitava-a com frequência. Era paciente, mesmo quando eu emaranhava os
fios dos seus bordados.
Imaginei um pequeno Liwei a transbordar de malandrice.
— Disse “costumava”. Onde está ela agora?
Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
— Um dia, entrei no pátio e encontrei-o deserto. Os servos disseram-me
que ela se mudara para longe. Ninguém me queria dizer para onde fora.
Desejei poder aliviar-lhe a tristeza. Ele sentou-se à secretária, onde um
tabuleiro com material de desenho estava preparado: umas folhas de papel
rígido, um grande tinteiro em jade púrpura e um suporte de sândalo do qual
pendiam pincéis de bambu e madeira lacada. Observei com curiosidade
enquanto ele escolhia um pincel, mergulhava-o na tinta lustrosa e desenhava
no papel com pinceladas hábeis. Após uns minutos, ofereceu-me o papel.
— É para ti — disse ele, quando não fiz nenhum gesto para segurar no
papel.
Fitei o papel. O meu rosto fitou-me de volta, um retrato notável,
observando a distância com os dedos pousados na flauta. As mãos tremiam-
me quando peguei na pintura.
— Desenha muito bem — disse em voz baixa. — Mas não precisa de
fazer isto sempre que eu tocar para si. Pode não ser um dever, mas também
não é uma troca.
— De que outra forma poderei compensar as minhas limitações? —
perguntou ele com um ar sério. — Afinal, tenho tantas.
Soltei uma risada, recordando a nossa conversa nesse dia.
— Então, só este.
Ele sorriu.
— Boa noite, Xingyin.
Pus-me de pé e desejei-lhe boa-noite. Quando fechei as portas ao sair,
avistei Liwei ainda debruçado sobre a secretária, de pincel na mão. O meu
coração encheu-se com uma emoção inexplicável ao virar-me para fitar o
céu acima.
No céu noturno sem nuvens, a lua estava deslumbrante, sem
impedimentos à sua luz. Quando caminhei até ao meu quarto, do outro lado
do pátio, a sua radiância iluminou-me o caminho, mais brilhante do que
uma fiada de lanternas.
Habituei-me à minha vida nova e os dias transformaram-se em semanas.
De manhã, tínhamos aulas na Câmara da Reflexão, à tarde, treinávamos
com o Exército Celestial. A minha mente abria-se para novos mundos e
novos conhecimentos, mas era o campo de treino que mais me excitava.
Aprendi a ser proficiente com a espada, a cortar e trespassar, a bloquear e
desviar, mas as minhas habilidades continuavam aquém das de Liwei.
Ansiosa por o igualar, estudei as técnicas de luta pela noite dentro,
repetindo os movimentos no sossego do meu quarto até se tomarem tão
naturais como pegar nos pauzinhos para comer ou formar uma nota na
minha flauta.
Às vezes, interrogava-me porque sentiria tanta excitação quando uma
flecha acertava no alvo. Ou quando um oponente era derrotado por um
golpe bem colocado. Seria por ter sido tão fraca antes que agora me
deliciava com a minha recém-encontrada força? Ou teria estado esse
impulso, esse desejo de vencer, sempre presente nas minhas veias?
A perspetiva de treinar os meus poderes enchia-me tanto de entusiasmo
como de temor. Na minha infância, fantasiara com invocar raios de fogo e
voar pelos céus. Mas depois das consequências desastrosas do meu primeiro
encontro com a magia, teria ficado contente se nunca mais lhe tocasse.
Liwei ter-me-ia dispensado, mas um imortal sem magia era como um tigre
sem garras. Mesmo sendo fisicamente fortes, bem que podíamos ser
mortais. Se quisesse mesmo ajudar a minha mãe, teria de abraçar o meu
poder. E, apesar de me assustar, uma parte de mim também o desejava
avidamente.
A nossa instrutora, a Mestra Daoming, era a guardiã do Tesouro
Imperial e do seu acervo de artefactos encantados. Parecia só usar túnicas
de um cinzento pardo, com o cabelo preto preso num nó apertado de onde
saíam alfinetes de prata como um leque. Os olhos grandes eram da cor das
amêndoas e a pele pálida estava livre de rugas de riso ou zanga.
Eu não tinha treino mágico, enquanto Liwei já progredira para
encantamentos avançados. Nas primeiras semanas, a Mestra Daoming
apenas me permitia meditar, com instruções genéricas para manter os olhos
fechados, a mente vazia e o espírito “calmo como uma manhã sem vento”.
No início, abordei esses exercícios com entusiasmo, antecipando a
descoberta de algum poder ou conhecimento escondido, mas não tardou
muito até me aborrecer por passar horas sem fim sentada no chão de pernas
cruzadas. Sempre que a Mestra Daoming via uma ruga que fosse a surgir na
minha testa, ou um tremor na minha perna, batia-me no braço com o leque,
ralhando algo vago como:
— Limpe a sua mente de distrações!
— Foque-se na perceção da sua energia!
— Veja a luz através das trevas!
Eu rilhava os dentes, cada vez mais frustrada, engolindo a ira ao
imaginar Liwei a invocar raios de fogo enquanto eu estava para ali sentada
a levar com um leque no braço.
Meditar, para mim, era particularmente exasperante. No tiro ao arco, o
objetivo era claro e o resultado instantâneo. Sabia o que fazer para melhorar
e como lá chegar. Ao passo que a meditação era uma coisa nebulosa e
misteriosa, um caminho com um número infinito de destinos tortuosos, no
qual podíamos passar horas a vaguear e acabar onde tínhamos começado.
Um dia, estava eu sentada o mais quieta que podia e a tentar não
adormecer quando uma sombra caiu sobre mim. Abri ligeiramente os olhos
e dei com a Mestra Daoming parada à minha frente.
— Se a sua preocupação é se está a fazer isto bem, é porque não está —
suspirou.
Abri os olhos completamente.
— Não sou muito boa nisto — admiti. — Além disso, para que preciso
de meditação? Só me faz adormecer.
A Mestra Daoming abanou a cabeça e sentou-se ao meu lado.
— Ah, Xingyin. Acalmar a mente é uma capacidade crucial que se
estende até para lá da magia. A Xingyin é impaciente, precipitada,
impetuosa nos seus esforços. Mais do que qualquer outro, tem de aprender a
soltar a sua mente dos seus sentimentos. Acalme os pensamentos e observe,
antes de mergulhar de cabeça. Quando as emoções nos toldam o
discernimento, o desastre não tarda — avisou, alisando a túnica sobre os
joelhos. — A meditação não tem um alvo. Nenhum juízo de valor. É a paz,
a ligação e unidade com nós próprios, que é a chave.
Fez então uma pausa.
— Sinto que a sua força vital é forte. Contudo, foi suprimida desde a
sua infância, por isso tem dificuldade em tocar na sua magia. Foi feito de
forma desajeitada e nunca teria funcionado se fosse mais velha e
devidamente treinada. A meditação vai ajudar a quebrar o selo que encerra
sua força vital, a libertar as suas capacidades. Mas apenas se permitir que
assim seja.
Fitei a Mestra Daoming, com a mente num turbilhão. A minha mãe não
quisera que a minha magia crescesse. Ela e Ping’er deviam ter feito o que
podiam para ocultar os meus poderes e esconder a minha existência. Mordi
o lábio e apertei com força. A minha mãe queria uma vida tranquila para
mim, uma vida feliz. Após décadas de sofrimento e terror, devia ter pensado
que a paz era o melhor presente que me podia dar. Talvez eu também o
quisesse, até se acender dentro de mim aquela chama de ser mais do que
era, de ser tudo o que podia ser.
— A Xingyin tem grande potencial — continuou a Mestra Daoming. —
Contudo, para poder fazer uso desse poder, primeiro tem de o compreender.
Antes de poder soltar a sua energia, tem de aprender a segurá-la. Ouvi dizer
que é uma arqueira habilidosa. Conseguiria acertar no alvo sem se tomar
una com o arco? — Tocou suavemente no lado da minha cabeça. — Algum
conhecimento bate-nos no coração, enquanto outro é aprendido pelo corpo e
pela mente.
Aquelas palavras ecoavam as da minha mãe, uma lição que eu devia ter
aprendido muito antes. Como algumas coisas eram fáceis para mim, ficava
impaciente com as que não eram.
Uma onda de emoções ergueu-se dentro de mim: vergonha pela minha
conduta, gratidão pela sua paciência. Pousei os joelhos no chão e curvei o
corpo de mãos estendidas.
— Mestra Daoming, peço-lhe perdão. Fui impaciente e melindrosa.
Arrogante, ao achar que sabia o que era melhor. Doravante, prometo seguir
as suas instruções o melhor que puder.
O seu sorriso trouxe-lhe ao rosto uma súbita simpatia. Percebi então
como era bela, se bem que não do mesmo modo que a minha mãe. Era
preciso olhar com mais atenção para encontrar a graça nos seus
movimentos, a força na sua postura, a delicadeza nas suas feições. A sua
beleza era mais tranquila, mas não menos luminosa uma vez descoberta.
— Fico contente por ouvir isso. O meu leque começava a ficar gasto.
Sem mais uma palavra, levantou-se e afastou-se.
Contive uma risada e esfreguei instintivamente o braço. Talvez a Mestra
Daoming não fosse tão intimidante como julgara. E talvez eu não fosse uma
aluna tão terrível como temera.
***
O meu progresso foi mais rápido, agora que já não resistia às aulas.
Mesmo assim, demorei semanas até ter habilidade suficiente em meditação
para começar a usar os meus poderes, o que mais desejara e temera desde
que saíra de casa.
Segundo a Mestra Daoming, as luzes que vislumbrava a rodopiar dentro
de mim eram a minha energia espiritual. Lançar encantamentos drenava a
nossa energia, como água a pingar de um balde, e podia ser reposta através
de descanso e meditação. Sem isso, os nossos corpos não seriam diferentes
dos mortais e as nossas vidas seriam tão frágeis como as suas.
— Nunca esgote a sua energia, Xingyin — avisou-me.
— Porquê?
— Tentar usar mais energia do que possui pode deixá-la incapaz de
sustentar a sua força vital, o núcleo dos seus poderes, a fonte da sua energia.
— Falava devagar, fitando-me nos olhos para ter a certeza de que eu estava
a ouvir. — Isso é a morte para um imortal.
As palmas das minhas mãos cobriram-se de suor frio. Sempre pensara
que aprender a usar a minha magia me tornaria mais forte. Faria do medo
uma coisa do passado. Nunca me ocorrera que haveria perigo no seu uso.
— Como é que isso acontece? — perguntei.
— Se tentar invocar um encantamento demasiado poderoso, se tentar
suster um encantamento por demasiado tempo ou se tentar desfazer algo
que não consegue desfazer.
Os meus pensamentos voaram para a minha mãe e o encantamento que
a prendia na lua.
— Alguns encantamentos são inquebráveis?
— Todos os encantamentos podem ser quebrados, se soubermos como.
Se formos suficientemente fortes. Se formos a pessoa certa para o fazer —
respondeu. — Não quer dar por si a lançar o seu poder para o nada e ser
arrastada pela corrente.
Soltei a respiração que estava a suster. Era possível. Era isso que
importava. Quanto ao como, teria de perceber isso mais tarde.
***
No início, não conseguia invocar nem o encantamento mais simples, as
luzes ainda se mantinham fora do meu alcance. Contudo, com o passar das
semanas, fui chegando mais perto, até sentir algo a mover-se dentro de
mim, como um acorde incompleto no limite da harmonia.
Certa noite, quando Liwei estava a tomar banho, reparei que o seu chá
estava frio. Apesar de ser provável que ele não se importasse, estava uma
noite fresca, ideal para uma bebida quente. Fechando os olhos, procurei a
energia dentro de mim, o brilho prateado que cintilava como estrelas. As
luzes bruxulearam quando me estendi para elas, debatendo-me com a força
invisível que me puxava para trás. A testa cobriu-se de suor, cerrei os
punhos com o esforço, mas segui em frente, rompendo a barreira escondida
para alcançar as luzes. Por um momento, contorceram-se sob o meu
controlo, como as escamas escorregadias do peixe que não quer ser
apanhado, mas então algo mudou dentro de mim, imbuindo-me de um
sentido de unidade, como se finalmente estivesse ligada a uma parte vital de
mim. Um arrepio percorreu-me a pele, como se tivesse sido molhada com
água gelada. Não foi um acaso. As luzes acalmaram, cedendo à minha
vontade quando um feixe de energia reluzente irrompeu dos meus dedos
para o bule. Vapor começou a sair do bico, a água começou a ferver. Soltei
uma risada, inebriada com o sucesso do meu primeiro encantamento.
Sob a orientação da Mestra Daoming, aprendi a extrair uma brisa do ar,
a transformar gotas de chuva em gelo, a erguer escudos protetores e até, isso
mesmo, a invocar os raios de fogo com que sonhara. Muitos imortais optam
por não usar os seus poderes para tarefas mundanas que podem facilmente
ser executadas sem magia. Mas naqueles primeiros dias, eu praticava
sempre que podia, nenhuma tarefa era demasiado pequena ou cansativa.
Uma vez, invoquei sem pensar um alfinete de cabelo, que cravei no nó do
cabelo de Liwei com mais força do que pretendia. A sua cabeça estremeceu
e a respiração assobiou-lhe entre os dentes com sobressalto, apesar do
sorriso com que me prendou quando olhou para mim de relance. Já não
andava às cegas na escuridão à procura de uma faísca de luz, a minha
energia surgia prontamente quando a solicitava, a minha magia fluía sem
impedimentos.
Após várias semanas de treino, a Mestra Daoming levou-me até um
jardim luxuriante para lá da Câmara da Reflexão. Era uma manhã sem
vento e o lago estava liso como um espelho. Quando ergueu a mão, cinco
esferas luminosas tomaram forma no ar. Labaredas crepitavam numa delas,
água translúcida ondeava dentro de outra. A terceira continha um pedaço de
terra acobreada e uma neblina opaca contorcia-se na quarta.
Fogo, Água, Terra, Ar. Os quatro Talentos elementais da magia que
recordava de aulas anteriores. Espreitei para o último globo, que emitia um
brilho carmesim.
— Que Talento é este?
— Magia da Vida, para curar as feridas e os males do corpo. Um dos
Talentos intrínsecos.
Ficou ligeiramente hirta e franziu os lábios.
— Um deles? Quais são os outros?
Ela deitou-me um olhar duro e ignorou a minha pergunta.
— Xingyin, qual é o mais forte dos Talentos elementais?
Passei a palma da mão sobre as esferas, o calor a misturar-se com a
frescura das diferentes energias. Fragmentos de lições passaram-me pela
mente. A Terra pode abafar o Fogo, mas o Fogo pode calcinar a Terra. O Ar
pode alimentar uma chama ou extingui-la. Os meus pensamentos
emaranharam-se uns nos outros num labirinto de contradições.
— Depende da força dos Talentos opostos uns aos outros — respondi
por fim.
O seu sobrolho franziu-se.
— Isso é só metade da resposta.
Baixei a cabeça, desejando ter estado mais atenta nas aulas.
— Cada Talento tem as suas forças e fraquezas — continuou ela. —
Todos os quatro podem ser igualmente poderosos. O que importa é o poder
do invocador, a força vital que determina quanta energia tem ao seu dispor e
a habilidade com que a manipula.
Ao passar a palma da mão sobre as duas primeiras esferas, as chamas
saltaram alto, envolvendo a esfera da água. No momento seguinte, a água
ergueu-se para apagar as chamas.
— Aqueles com força suficiente para se especializarem precisam
primeiro de descobrir qual o seu Talento. A maioria dos imortais é atraída
por um deles, talvez dois. As magias do Fogo e da Vida são as mais fortes
no Príncipe Liwei, enquanto o nosso imperador é um dos poucos que
domina todos os Talentos, conseguindo mesmo invocar fogo-celeste.
— Fogo-celeste? — repeti.
Era a primeira vez que ouvia falar de tal coisa.
— Relâmpago, empunhado por imortais. Uma magia rara e poderosa.
Não é um elemento em si, mas sim uma convergência única da magia de um
imortal.
Com um estalar de dedos, as chamas reacenderam-se.
— Para alguns, o Talento é inato. Para a maioria de nós, resulta do
nosso ambiente natural, talvez porque, inconscientemente, absorvemos
energia do meio circundante. Os que vivem em florestas e montanhas são
mais dotados nas artes de Terra e Ar. Os imortais do Reino da Fénix são
especialistas em magia do Fogo e os imortais dos Quatro Mares são os mais
poderosos em encantamentos de Água. Os Talentos dos celestiais sempre se
repartiram pelos vários elementos — explicou, virando-se para mim com
uma expressão séria. — Qual é o seu?
Um calafrio de emoção percorreu-me o corpo. A Mestra Daoming
acreditava que eu era suficientemente forte para avançar! A maioria dos
imortais possuía magia suficiente para invocar um repertório limitado de
encantamentos menores: acender fogos, curar ferimentos ligeiros, chamar
um aguaceiro. Contudo, o verdadeiro poder jazia no domínio de um
Talento. Para isso, era preciso ter uma força vital suficientemente poderosa.
Dizia-se que alguns encantamentos avançados eram tão potentes que
podiam esgotar a energia de um imortal mais fraco numa só invocação.
Seguindo as suas instruções, estendi a mão para as esferas brilhantes e
soltei a minha energia numa reluzente nuvem prateada. As esferas da Terra,
do Ar e da Vida apagaram-se logo. O Fogo ardeu com mais força, mas uma
rajada de vento ergueu-se da esfera translúcida, apagando as chamas antes
de sair disparada pelo jardim. Os salgueiros vergaram-se sob o vento forte e
o lago cobriu-se de ondas.
A um gesto da Mestra Daoming, o vento acalmou e parou. Os seus
lábios curvaram-se num sorriso raro, enquanto o meu coração batia como
um tambor. O vento devastara o jardim outrora tranquilo; folhas caídas
cobriam o chão, as árvores abanavam, ramos partidos de salgueiro boiavam
na água. Eu fizera aquilo?
— O seu Talento é do Ar, mas tem alguma afinidade com o Fogo —
observou a Mestra Daoming.
No meio da minha alegria, algo chamava por mim no limiar da
consciência, algo que ela deixara escapar antes. Apontei para as esferas
reluzentes.
— Estes são todos os Talentos?
Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
— Já é tarde. Pode ir embora — disse ela abruptamente.
A curiosidade debatia-se com a cortesia. Fiz uma vénia e agradeci-lhe a
aula. Mas então, a pergunta brotou-me dos lábios:
— Se a Vida é um dos Talentos intrínsecos, quais são os outros?
— É proibido.
E afastou-se sem dizer mais.
Aquele comportamento estranho apenas aguçou a minha curiosidade,
atormentando-me o resto do dia. Durante a refeição da noite, comi com
pouco entusiasmo, mal provando os camarões fritos em pimenta vermelha.
— Não tens fome? — perguntou Liwei, com os pauzinhos a pairar sobre
a taça.
Hesitei. A Professora Daoming dissera que era proibido, mas... ele era a
única pessoa que mo poderia dizer.
— Além da Vida, quais são os outros Talentos intrínsecos?
Ele permaneceu em silêncio durante tanto tempo que julguei que
também ele me deixaria na ignorância.
— Nem sequer podemos falar do assunto? — perguntei, abanando a
cabeça. — Esquece que perguntei. Não quero que digas nada que não devas.
Ele pousou os pauzinhos, tamborilando na mesa com os dedos num
ritmo inquieto.
— Só há mais um, Mente, que costumava ser um dos Talentos mais
poderosos. Contudo, há séculos, o meu pai e os seus aliados condenaram
essa forma de magia e baniram-na do Domínio Imortal.
Voltei a encher o bule com água quente, deixando o chá em infusão
antes de o servir para as nossas taças.
— Porque fizeram isso?
— Emergiram histórias aterradoras acerca das práticas dos praticantes
de magia mental... que bebiam sangue mortal e banqueteavam-se com a
carne de crianças para manter a sua magia, que os seus poderes tinham
distorcido as suas formas verdadeiras para lá de tudo o que era natural.
Liwei franziu a testa. — Rumores, talvez? Afinal, são imortais como nós. A
única diferença de que temos a certeza são os seus olhos, que cintilam como
joias lapidadas.
— Os poderes da Mente são mesmo maléficos? — perguntei.
— Alguns praticantes conseguiam forçar outros a obedecer-lhes contra a
sua vontade. Um ato odioso. Imagina, seres forçada a atacar alguém? A
fazer mal àqueles que amas?
Estremeci só de pensar.
— Como é possível tal coisa?
— Felizmente, poucos são verdadeiramente capazes de o fazer. Quanto
mais forte a força vital, mais difícil é forçar alguém, pois isso requer mais
energia. Um praticante experiente conseguiria controlar um imortal
poderoso apenas por breves momentos.
Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
— Mas mesmo que aconteça apenas uma vez, é uma vez a mais. Mesmo
que seja só por um momento, pode ser suficiente para destruir uma vida.
Uma prisão da mente é muito pior do que uma prisão do corpo.
— Muitos imortais têm esse poder? Porque ninguém nos avisa sobre
isso?
— O meu pai não gosta que se fale disso. Além disso, é uma habilidade
rara, nem o meu pai a domina.
Parte de mim não pode deixar de se interrogar se seria por isso que o
imperador odiava essa magia. Porque não a conseguia entender, porque era
o único Talento que lhe escapava. Mas suprimi esses pensamentos, pouco
disposta a enunciá-los em voz alta. Por muito próximos que Liwei e eu nos
tivéssemos tomado, não me podia esquecer de que ele era o filho do
Imperador Celestial.
— A maioria vinha da Muralha Nebulosa, outrora uma província do
nosso reino junto do Deserto Dourado — continuou ele. — Quando o
banimento foi anunciado, alguns voluntariam-se para selar os seus poderes
e mudarem-se para as nossas terras. A maioria, contudo, recusou-se.
— Deve ser difícil, sacrificar anos de estudo e treino — observei,
pensando nos meus esforços para dominar apenas algumas habilidades.
— Os que o fizeram foram bem compensados. Os imortais da Muralha
Nebulosa foram incitados à rebelião por um arrivista ambicioso, num golpe
para tomar o poder e declarar-se rei. Depois de proclamarem a sua
separação do Reino Celestial, o meu pai queimou os rolos antigos da sua
magia, enterrando as cinzas no fundo dos Quatro Mares.
Uma retaliação severa.
— Acabou aí? — perguntei.
— Infelizmente, o Rei da Muralha Nebulosa recuperou as cinzas e
reconstruiu os rolos. Ficou enfraquecido, mas com as artes negras que
aprendeu, os seus novos poderes ultrapassavam os antigos. Forjando novas
alianças com os Mares do Norte e do Oeste, declarou-nos guerra. As baixas
foram catastróficas, milhares de imortais pereceram, até que, por fim, uma
trégua foi acordada. Contudo, o meu pai jurou que nenhum imortal da
Muralha Nebulosa voltaria a poder entrar no Reino Celestial.
Vasculhei a memória à procura de tudo o que Ping’er me contara dos
oito reinos do Domínio Imortal. Nunca mencionara a Muralha Nebulosa.
— A Muralha Nebulosa tornou-se parte de outro reino?
Liwei fez uma pausa.
— Hoje é conhecida como Reino Infernal.
Engasguei-me com o meu chá, tossindo violentamente, e Liwei passou-
me um lenço para limpar o queixo. Dizia-se que o Reino Infernal era uma
terra de neblina e nevoeiro, lar de feras temíveis, de monstros e de
feiticeiros maléficos. De certo modo, era mais fácil desprezá-los antes de
perceber, como Liwei dissera, que eram como nós.
A minha mente rodopiava com tudo o que aprendera e não contive uma
pergunta:
— Concordaste com o que o teu pai fez?
Ele fez uma careta.
— Segundo o meu pai, não pode haver respeito sem medo. Para ser um
líder poderoso, é preciso governar com punho de ferro, esmagar toda a
resistência com uma força ainda maior. Eu sou uma desilusão para ele;
repreende-me por ser demasiado gentil. Mas faça ele o que fizer, não posso
mudar quem sou.
— O que faz ele?
Senti um aperto na barriga. Nunca vira Liwei tão perturbado. Os seus
dedos fecharam-se num punho em cima da mesa. Quando falou, fê-lo em
voz baixa.
— Ele só quer o que é melhor para mim. Mas quando chegar a minha
vez de subir ao trono, não governarei como ele.
Estendi a mão e toquei-lhe no punho fechado para o reconfortar. Tudo o
que eu sabia sobre esse assunto era apenas o que aprendíamos nas aulas, o
que estudava nos textos, nas histórias de grandes reis e rainhas, tanto
mortais como imortais. Mas tinha a certeza de uma coisa, que o Reino
Celestial, ou qualquer outro reino, prosperaria mais com um governante que
ouvisse com uma mente aberta do que com um governante que exigisse
obediência cega.
Não sentia grande apreço pela Imperatriz Celestial, e muito menos pelo
imperador que aprisionara a minha mãe, apesar de nunca o ter conhecido.
Pelo que me apercebia pelas bisbilhotices e pelo que eu própria via, Liwei
não era nada como os pais. Ao contrário de muitos em posições de poder,
não sentia qualquer prazer em impor a sua vontade ou rebaixar os demais.
Nunca era condescendente comigo, como tantos eram. Passava de amigo
alegre para instrutor paciente e, fosse qual fosse o papel que assumisse, o
seu cuidado e consideração eram inspiradores. Quando treinávamos ou
debatíamos as nossas lições, levava-me a melhorar, nunca cedendo uma
vantagem que eu não conquistasse. Todas as noites, ia deitar-me dorida e
exausta, mas o meu coração incandescia por ser tratada como uma igual.
O tiro ao arco era a prática na qual eu brilhava, quer com o arco curto,
que era mais leve e rápido, quer com o arco longo, que permitia melhor
pontaria. Alguns comandantes começaram a dizer às suas tropas para me
observarem enquanto eu treinava. A sua presença enervava-me; tinha receio
de fazer figura de idiota deixando cair as flechas ou falhando o alvo.
Contudo, assim que esticava o arco, uma calma tomava conta de mim.
Talvez o meu controlo sobre as minhas emoções tenha melhorado com as
instruções da Mestra Daoming, apesar de ainda estar longe de perfeito.
Certa tarde, cheguei ao campo de treino e deparei com um arranjo
diferente, com apenas dois alvos ao longe. Liwei estava parado no campo
com um arco em cada mão. Um pouco atrás dele estava o General Jianyun,
com um pequeno grupo de soldados, entre os quais Shuxiao.
— Passaram três meses. Já te esqueceste? — chamou Liwei.
O meu ânimo caiu-me aos pés ao lembrar-me da minha aposta
precipitada. No entanto, pus no rosto um sorriso ao aceitar um dos arcos.
— Claro que não. Quais são os termos?
— Três flechas para cada um? — propôs ele. — O vencedor é quem
fizer mais pontos.
Assenti o meu acordo, movendo-me para trás da linha. A sua flecha
assobiou quando voou para o alvo, mas desviei o olhar. Não me podia dar
ao luxo de me distrair com o seu desempenho. Focando-me no meu alvo,
soltei a primeira flecha e acertei no centro. A segunda flecha seguiu-lhe o
rasto e cravou-se no olho vermelho do alvo. A terceira flecha rachou a
segunda ao meio. Tendo conseguido três tiros perfeitos, senti-me mais
confiante... até ver o alvo de Liwei, um reflexo perfeito do meu.
O General Jianyun franziu a testa, incapaz de decidir quem era o
vencedor. Caminhando até ao suporte de armas, pegou num disco de barro,
pouco maior do que o meu punho.
— Os nossos arqueiros de elite usam isto para praticar. Quando o disco
for arremessado, vai erguer-se pelo ar. A primeira pessoa a acertar-lhe é o
vencedor.
Gemi para dentro. Não tinha muita experiência com alvos em
movimento.
— Talvez seja demasiado difícil para Xingyin — comentou Liwei.
O orgulho levou-me a melhor.
— Por mim, pode ser — ripostei secamente, assestando uma flecha no
arco.
O General Jianyun atirou o disco para o alto. O disco disparou pelo ar,
mais depressa do que antecipara. Pestanejei, meio segundo de hesitação, a
minha flecha a cortar o ar na direção do disco a rodopiar... quando a flecha
de penas douradas de Liwei partiu o alvo de barro.
Contive o meu desânimo. Fora uma competição justa.
— Vossa Alteza venceu — concedi.
— Cobro amanhã — disse ele com um sorriso que me deixou irritada.
— Mais um mês ou dois e não te teria vencido. Da próxima vez, escolhe
melhor o momento das tuas batalhas.
Quando ele se afastou, deitei um olhar zangado às suas costas, não me
importando já com a dignidade de perder com elegância.
Shuxiao deu-me uma palmada no ombro.
— Foi por pouco. Por um momento, pensava que ias ganhar, mas
aqueles alvos em movimento são difíceis. Falho metade das vezes os meus.
— Por pouco não é suficiente.
Ela fez uma careta.
— És demasiado dura contigo mesma. Ele venceu-te hoje, mas só
começaste a treinar há uns meses.
Um pouco animada pelas suas palavras, virei-me para o General
Jianyun. Com a cabeça inclinada, o general fitava os alvos com um brilho
avaliador nos olhos.
— General Jianyun, posso voltar a tentar aquele disco?
Não perderia uma segunda vez.
Acordei sobressaltada com alguém a bater-me à porta com força.
— Xingyin, estás acordada? — chamou Liwei, do exterior.
Resmunguei, com olhos e membros ainda pesados de sono.
— Volta quando o sol nascer!
— Não! — protestou ele, irritantemente alegre. — Tenho de te lembrar
da nossa aposta?
Lancei um olhar furioso na direção dele, um esforço desperdiçado
quando ele não me podia ver. Como me senti tentada a deixá-lo lá fora à
espera, enquanto eu ficava na cama e o ignorava... mas isso seria petulante e
inútil. Mais do que o facto de ele ser o Príncipe Herdeiro, eu dera a minha
palavra. Empurrando as cobertas com os pés, arrastei-me para fora da cama
e lavei a cara com água fria, demasiado cansada sequer para a aquecer,
antes de vestir uma túnica de seda e apanhar o cabelo num nó baixo.
Quando saí, dei com Liwei encostado à parede, a bater impacientemente
com o pé. Trazia uma túnica simples em brocado cinzento e o cabelo preso
por uma fita preta.
Estava escuro no pátio, com exceção do brilho das lanternas de pau-
rosa. Nem os servos da cozinha se tinham levantado para preparar a
refeição matinal.
— Onde vamos? — perguntei enquanto atravessávamos apressadamente
o pátio.
— Para fora do palácio. Esta manhã, não temos aulas porque os nossos
professores vão estar na corte numa audiência com o meu pai. Até o
General Jianyun nos dispensou, por causa do regresso do Capitão Wenzhi.
As minhas orelhas arrebitaram logo. O Capitão Wenzhi era um dos
guerreiros mais jovens e mais galardoados do Reino Celestial. Os soldados
falavam com uma reverência tal dos seus feitos, e do seu talento com a
espada e o arco, que me espicaçaram a curiosidade. Infelizmente,
costumava estar fora do palácio em missão, para desânimo dos seus muitos
admiradores, e quando regressava, nunca era por muito tempo. Eu esperava
poder conhecê-lo pessoalmente no campo de treino, e parte de mim ficou
um pouco desiludida por perder essa oportunidade.
Contudo, um arrepio excitado percorreu-me o corpo só de pensar que
íamos sair do palácio, enquanto seguia Liwei por um pátio deserto rodeado
por um espesso muro de pedra. Uma onda da sua energia roçou-me pela
pele, quente como uma brisa aquecida pelo sol.
— Estou a disfarçar as nossas auras — explicou. — Caso contrário, os
guardas sentiam-me a sair.
Pelo comportamento furtivo de Liwei, aquela não era uma saída oficial.
Não era de admirar que não nos dirigíssemos para a entrada principal, pois
ao príncipe não era permitido sair do palácio sem o habitual cortejo de
guardas e servos. Só depois de assumir os seus deveres na corte é que
poderia entrar e sair quando quisesse.
— Como é a minha aura? — perguntei, curiosa. — Consigo sentir a tua
aura e a das pessoas à minha volta, mas não a minha.
Ele fitou-me, concentrado, e fiquei tensa de antecipação.
— Chuva — respondeu ele por fim.
— Chuva? — repeti, desiludida.
Soava triste e aborrecido, nem um pouco excitante.
— Uma tempestade prateada; intensa, implacável, indomada.
Um calor inesperado cresceu em mim ao ouvir aquelas palavras.
— Gostas dessa explicação? — sorriu ele.
O meu breve prazer apagou-se abruptamente.
— Só se estiveres a ser honesto.
— Sou sempre honesto. Talvez seja por isso que desagrado tanto ao
meu pai.
Soava agora lúgubre, sem o habitual tom trocista.
— O que estás a fazer também nos vai ajudar a atravessar a muralha? —
perguntei, tentando aliviar a tensão.
— Claro que não. Tem paciência.
Os seus olhos estreitaram-se em concentração e o ar à nossa volta voltou
a brilhar. Formou-se uma rajada de vento que nos elevou no ar. O coração
caiu-me aos pés e senti o estômago às voltas quando fomos arremessados
por cima da muralha... e pousados na extremidade de uma floresta extensa.
Cambaleei e agarrei-me a uma árvore. A minha respiração era rápida e
superficial. A sensação de estar no nada, de cair pelo ar, trouxe de volta
memórias indesejadas. O terror do momento quando saltei da nuvem de
Ping’er.
Liwei olhava-me fixamente.
— Estás a tremer. O que se passa?
Incapaz de falar, acocorei-me no chão, com a cabeça encostada aos
braços.
Liwei passara a manhã toda a apressar-me, mas agora estava sentado ao
meu lado num silêncio solidário. Passou o braço pelos meus ombros e
puxou-me para si. Respirei fundo, sentindo o seu aroma, como o da erva na
primavera, fresco com um toque de doçura.
Lentamente, o seu calor penetrou no meu corpo trémulo, até eu me
acalmar de novo. Consciente da sua proximidade, afastei-me, segurando os
joelhos com as mãos e tentando não pensar como sentia frio sem o seu
toque.
— Estou bem. Já não precisamos de ficar aqui sentados — disse-lhe.
— O que aconteceu? — perguntou ele gentilmente.
— Eu... eu não gosto de cair.
Uma réstia de verdade, mal arranhando a superfície.
Ouviram-se passos no solo, cada vez mais altos. Guardas a patrulhar a
área? Pegando na minha mão, Liwei ajudou-me a levantar e corremos para
a floresta.
— Foi assim que saíste quando nos conhecemos? — perguntei-lhe
enquanto corríamos.
Após meses de treino, não tinha dificuldade em acompanhá-lo.
— Sim. Estava curioso acerca da minha companheira. Passaria muito
tempo com essa pessoa e queria ter a certeza de que não era irritante,
horrível ou aborrecida. Já visitara seis casas antes da Mansão do Lótus
Dourado.
— Porque organizaste a competição? — quis eu saber.
— É difícil encontrar amigos no Palácio de Jade. Amigos a sério.
A confissão franca apanhou-me de surpresa. Um sem-fim de cortesãos e
nobres competiam pela sua atenção. Parte dos meus deveres incluía
examinar os presentes e convites que jorravam todos os dias para o Pátio da
Tranquilidade Eterna. Liwei ignorava a maioria dos pedidos, preferindo ler
ou pintar no seu quarto a comparecer a um banquete.
— Às vezes, pergunto-me — continuou em voz baixa — quantos
procurariam a minha amizade se não fosse o filho do imperador. Uma
posição que não fiz nada por merecer.
Eu procurava.
As palavras saltaram-me para a língua, mas não as consegui pronunciar
em voz alta. Soavam a lisonja vazia, apesar de serem a pura verdade.
Quantas vezes desejei que ele não fosse o filho do Imperador Celestial? E
não ter de mentir sobre quem era para proteger as pessoas que mais amava?
— Com a competição, esperava conhecer alguém novo, sem a mácula
da ambição e da ganância. A minha mãe estragou-me os planos com as suas
condições, mas, felizmente, conheci-te.
Era a primeira vez que ele me dizia porque me ajudara a participar.
— Pensava que me tinhas ajudado por sentires pena de mim — admiti
com uma pontada de vergonha.
Eu não merecia a sua simpatia, não quando o deixara pensar que a
minha família estava morta. Contudo, como o poderia ter esclarecido sem
dizer ainda mais mentiras?
Um sorriso iluminou-lhe o rosto.
— Eu ajudei-te porque gostei de ti. Dizes o que pensas e tens orgulho
em ti. És honesta acerca do que queres e destemida no seu encalço. Não
finges ser outra pessoa quando estás comigo. E apesar de, na altura, não
saberes quem eu era, isso continua a ser verdade.
A culpa abafou o brilho no meu peito. Dei por mim incapaz de o olhar
nos olhos. Eu estava a fingir, estivera a fingir desde o início. Eu era eu
própria, mas não quem ele pensava que eu era.
Ele continuou, sem reparar no meu desconforto.
— Quando estou contigo, sinto que me vês como eu sou, e não a coroa
ou o reino. Não os favores que posso conceder ou negar. — Suspirou, com
um pesadume exagerado. — Mal sabia no que me estava a meter. Todas as
noites, adormeço exausto com os teus ataques, com os teus insultos a ecoar
nos meus ouvidos...
— Nada que não mereças ou não estejas a pedir! — retorqui. — Deixa
que te lembre que és tu que insistes em treinar comigo dia e noite.
Ignorei a mão que ele me estendeu e deitei-lhe um olhar zangado. Liwei
pigarreou enfaticamente.
— E deixa que eu te lembre de que neste momento não estás a honrar os
termos da nossa aposta.
Engolindo uma boa seleção de insultos, peguei na mão dele. Quando os
seus dedos fortes envolveram os meus, tentei suprimir a inesperada
aceleração da minha pulsação.
Caminhámos pela floresta, parando apenas ao ouvir vozes. O ar vibrava
como se estivesse vivo, com as auras de vários imortais.
— Chegámos.
Ele puxou-me pelas árvores para uma clareira ampla.
Dezenas de bancas apinhavam-se umas em cima das outras, formando
uma longa espiral, como a curvatura de uma concha. Eram feitas de madeira
lacada em tons de vermelho e preto, azul e amarelo, com sinais pintados em
cima. Aromas de dar água na boca saturavam o ar, de comidas
desconhecidas e tentadoras, e sentia-se um murmúrio de excitação na
multidão já a ver as bancas àquela hora tão matinal.
— Que sítio é este? — sussurrei, num tom maravilhado.
Ele pareceu agradado com a minha reação.
— Este mercado tem lugar a cada cinco anos. Começa ao nascer do sol
e termina ao meio-dia. Vêm imortais de todo o lado para trocar posses,
objetos mágicos ou iguarias raras.
À medida que nos embrenhávamos pela clareira, cabeças viravam-se
para Liwei como flores para o sol. Mesmo sem a roupagem régia, a sua
postura e o seu aspeto chamavam a atenção. Quando ele não lhes ligava, os
seus olhares recaíam sobre mim, semicerrados com especulação,
arregalados de espanto. Éramos um par incongruente, mas o que me
importavam as opiniões que mostravam no rosto tão visivelmente como se
fossem ornamentos no cabelo? Naquele dia, nada conseguiria abafar a
minha excitação, a minha alegria por estar ali com ele.
Quando passávamos pelas bancas, os comerciantes anunciavam alto os
seus produtos para potenciais clientes:
— Amuletos encantados!
— Líchias do Domínio Mortal!
— Rubis do Vale do Fogo!
Os clientes compravam os produtos trocando as suas próprias posses,
desde joias cintilantes e pérolas do tamanho do meu polegar até saquetas de
ervas aromáticas e anéis de metais preciosos. Eu ter-me-ia demorado em
todas as bancas, mas Liwei fazia-me seguir em frente.
— Só temos algumas horas até o mercado fechar. Os objetos mais raros
ficam mais adiante, perto do centro — explicou.
— Chá da Montanha de Kunlun! — anunciou uma donzela, oferecendo
taças aos transeuntes.
O aroma do chá era tão fragrante que logo atraiu uma longa fila de
clientes, eu e Liwei entre eles.
Kunlun era uma cadeira montanhosa de grande energia mística no
mundo abaixo. Era o único sítio no Domínio Mortal onde os imortais
tinham permissão de residir, desde que se mantivessem longe de vista. As
plantas e flores mais raras cresciam lá, cultivadas pela harmonia única de
energias mortais e imortais. Quando sorvi o chá, achei-o maravilhoso, rico e
aromático, com um toque de amargura que apenas lhe realçava o sabor.
Liwei tirou um anel de jade e trocou-o por vários sacos de seda com chá.
— Porquê o anel? — perguntei. — Porquê trocar joias, ervas e coisas
assim?
— Parte é para ornamentação, enquanto o resto possui alguma
propriedade ou poder especial. Cada um destes anéis — explicou, erguendo
a sua bolsa — contém um fragmento de energia que pode ajudar a invocar
encantamentos.
Uma banca chamou-me a atenção, repleta de conchas. Algumas eram
tão grandes como o meu punho, outras do tamanho da minha unha. As cores
variavam entre o branco puro e um azul intenso, e algumas tinham o rubor
de uma pétala de lótus.
— Estas conchas estão encantadas para captar o seu som favorito, uma
melodia preferida ou até a voz da pessoa amada. Foram apanhadas nas
águas mais profundas do Mar do Sul — informou o mercador com orgulho.
O Mar do Sul, o lar de Ping’er. Peguei numa linda concha branca e
segui-lhe o contorno com um dedo. Contudo, como não tinha nada para
trocar, voltei a pousá-la. Ao meu lado, Liwei tirou um anel de jade
vermelho e ofereceu-o ao mercador. Eu puxei-lhe o braço para trás, não
querendo que ele a comprasse para mim.
— Troca uma concha por uma música? — perguntei ao mercador. —
Posso tocar uma música que pode capturar numa destas conchas para lhe
aumentar o valor.
— E toca bem? — contrapôs o mercador, olhando para a multidão à
procura de clientes menos problemáticos.
Antes que perdesse completamente a sua atenção, peguei na minha
flauta e toquei uma melodia animada. Uma das preferidas da minha mãe,
acerca da chuva a cair numa floresta de bambu. Quando a música terminou,
fiquei espantada ao deparar-me com um pequeno grupo de pessoas à minha
volta, algumas estendendo uma pedra colorida ou um anel de prata. Antes
que eu pudesse recusar, o mercador de conchas avançou e recolheu todos os
objetos. Com mãos destras, embrulhou a concha branca que eu queria e pô-
la na minha mão, juntamente com metade dos objetos que eu ganhara. O
resto, guardou na sua bolsa.
— Foi um prazer fazer negócio consigo — disse o mercador, piscando-
me um olho.
Ainda estava boquiaberta quando Liwei me deu uma palmada nas
costas.
— Da próxima vez, devias abrir aqui uma banca — sugeriu num tom
divertido.
— E o que farias tu? — sorri. — Sentavas-te ao meu lado a vender as
tuas pinturas?
Ele inclinou a cabeça para o lado, com um brilho nos olhos.
— Talvez. Podíamos viajar pelo reino, parando onde quiséssemos e
partindo quando ficássemos aborrecidos. Seria uma boa vida.
— Sim, seria.
As palavras passaram-me pelos lábios antes que as pudesse conter.
Impossível, sussurrou uma voz na minha mente, não me dizendo nada que já
não soubesse. O Príncipe Herdeiro do Reino Celestial não estava destinado
a uma vida assim, livre de responsabilidades e deveres. E como poderia esse
vaguear errante ajudar a minha mãe? Como poderia eu deixá-la, sozinha e
prisioneira, enquanto eu satisfazia os meus desejos egoístas?
Um momento de silêncio passou entre nós, o ar pesado com uma tensão
súbita. Para o distrair, ergui a palma da mão para lhe mostrar os meus
ganhos: dois anéis de prata, duas gotas de âmbar e uma pequena pedra azul.
— Vamos procurar algo para o pequeno-almoço — sugeri, fingindo que
as nossas palavras de há pouco tinham sido esquecidas.
Comprámos líchias frescas, pastéis de cebolinho estaladiços e bolos de
amêndoa, que comemos enquanto caminhávamos pelo mercado. Tínhamos
os dedos pegajosos com uma camada de óleo, açúcar e migalhas quando
começámos a descascar a casca vermelha e escamosa das líchias, a polpa
translúcida mais doce do que mel. Liwei comparou o sabor delicado aos
Pêssegos Imortais, que demoravam três séculos a amadurecer, mas,
infelizmente, as líchias não possuíam as suas propriedades mágicas.
Era quase meio-dia quando chegámos ao fim do mercado, mesmo no
centro da espiral de bancas. A última banca era feita de madeira lacada de
preto, com um pequeno sinal no qual se lia “Ornamentos Preciosos”. A
dona estava sentada serenamente entre os seus produtos, sem chamar ou
acenar para os clientes. Os tabuleiros estavam repletos de peças esculpidas
de jaspe e jade, cornalina e turquesa, que podiam ser presos à cintura. Liwei
pegou em dois ornamentos requintados em jade branco, esculpidos na
forma de nó infinito, um símbolo de longevidade e sorte. Acima deles
reluzia uma gema translúcida em forma de lágrima e da base pendia uma
borla de seda azul.
Observando o seu interesse, a vendedora aproximou-se.
— Jovem Lorde, tem um gosto excelente. Essas são gotas-celestes. Peça
a uma amada ou uma pessoa querida que canalize um pouco da sua energia
para dentro da pedra. Quando a pedra estiver límpida, estão bem e a salvo.
Mas quando a pedra fica vermelha, isso significa que estão em grande
perigo e pode usar a borla para ir ao seu encontro.
— Vou levar as duas.
Liwei contou dez anéis de jade verde e passou-os à vendedora. A
mulher agradeceu-lhe ao guardar os anéis na manga.
O polegar de Liwei roçou uma das pedras na palma da mão. A sua
magia envolveu a borla e a gema translúcida brilhava agora com faíscas de
luz dourada.
Ofereceu-ma, mas não aceitei.
— Para que é isso?
— Não posso oferecer um presente à minha amiga? — Quando ele abriu
a boca, preparei-me para mais uma lembrança da nossa aposta, mas tudo o
que disse foi: — Ficaria muito satisfeito se o aceitasses.
Algo no seu olhar prendeu o meu.
Assenti, sem conseguir encontrar palavras. Ele sorriu para mim e
baixou-se para prender a borla à minha cintura. O jade reluzia discretamente
contra a seda clara da minha túnica. Como desejava ter algo para lhe dar em
troca.
— Obrigada. Vou estimá-la sempre — disse-lhe.
— Acho bem — respondeu ele num tom solene. — Assim, vais saber
quando eu estiver em perigo e não vais ter desculpas para não vires em meu
auxílio.
Soltei uma risada sonora. Era inconcebível que o Príncipe Herdeiro do
Reino Celestial alguma vez precisasse da minha ajuda.
Ele deu-me a outra borla.
— Agora tu. Canaliza a tua energia para esta pedra.
Fiz uma pausa.
— Tens a certeza?
— Os amigos tomam conta uns dos outros. Se for isso que quiseres
também...
A ligeira hesitação na sua voz tocou-me. Acharia que eu podia recusar?
Era o que mais gostava nele — que, apesar da sua posição, nunca exigia,
dava-me sempre a escolher.
Premi os dedos contra a pedra, libertando a minha energia. A gema
ficou a brilhar como a pedra presa à minha cintura, mas com um brilho
prateado no seu núcleo. Com um sorriso, Liwei prendeu-a à sua faixa preta.
— O sol e a lua. Um par a condizer — observou a vendedora ao pegar
nos seus tabuleiros.
Olhei para ela, incerta do que quereria dizer, mas outro cliente abordou-
a e nós afastámo-nos.
Ao meio-dia, a multidão dispersou, o mercado obscurecido por um
turbilhão de nuvens brancas e cinzentas. Os mercadores arrumaram as suas
bancas, subiram para as suas nuvens e voaram rapidamente para longe. Em
poucos momentos, todos os vestígios do mercado haviam desaparecido,
como se nunca tivesse existido... exceto pelo peso do jade pendurado à
minha cintura, pela doçura das líchias ainda na minha boca e pelo calor
aninhado no fundo do meu coração.
No Reino Celestial, não havia estações para marcar a passagem do
tempo. Dois anos passaram tão depressa que quase não dei conta, não fosse
o crescer e o minguar da lua. O bem-estar que sentia aqui fazia-me recordar
o lar, exceto a mágoa persistente que sentia quando pensava na minha mãe.
Como tinha saudades de a ver, sem ser apenas uma orbe brilhante no
firmamento. O meu consolo era que, pelo menos, encontrara aqui um
propósito que nunca tivera antes: esforçar-me por melhorar, para encontrar
o caminho de volta para casa.
Do nascer ao pôr do sol, Liwei e eu estávamos juntos, a estudar as
nossas lições ou a lutar no campo de treino. As refeições eram a minha
altura preferida, quando falávamos de tudo o que nos passava pela cabeça, a
sério ou a brincar. Certa vez, Liwei perguntou-me sobre o meu lar e como
tinham morrido os meus pais. Mordi a língua com força, desejando poder
dizer-lhe a verdade. Pelo franzir dos lábios, percebi que ficara desiludido
com a minha renitência. Como me contorcia por dentro. Não era insensível
e pesava-me a culpa de o enganar. A nossa amizade tinha mais valor para
mim do que qualquer um dos meus pertences.
O dia seguinte era o seu aniversário. Estava planeada uma celebração
grandiosa, pois era um ano especial, marcando o início dos seus deveres na
corte como Príncipe Herdeiro. Liwei convidou-me para o banquete, mas
recusei, pouco interessada em passar uma noite com Suas Majestades
Celestiais e a sua corte. Ainda assim, agonizei sobre que presente lhe
oferecer, pois não possuía nada de valor, e acabei por decidir compor-lhe
uma música. Liwei era apaixonado por música, apesar de não tocar
qualquer instrumento. Contudo, demorou mais do que eu esperara, pois só
conseguia trabalhar nela ao fim da noite ou no início da manhã, erguendo
uma barreira de privacidade à volta do meu quarto para impedir que a
música chegasse ao outro lado do pátio.
Vasculhei as minhas gavetas e peguei na concha branca que comprara
no mercado anos antes. Reluzia na minha mão, as voltas apertadas a
terminarem numa espiral elegante. Pousando a concha na mesa, invoquei
um sopro de vento para acordar a sua magia. Depois, levei a flauta aos
lábios, deixando a minha respiração deslizar pelo instrumento. A concha
brilhava enquanto a melodia irrompia da flauta, apagando-se a luz assim
que a última nota deixou de soar. Apressadamente, embrulhei-a num pedaço
de seda. Demorara muito tempo; já estava atrasada.
Atravessei o pátio a correr, parando apenas diante dos aposentos de
Liwei. Uma aura poderosa pulsava no interior, áspera, acerada e forte, uma
aura que fizera por evitar até agora. As palmas das minhas mãos cobriram-
se de suor quando abri as portas e entrei. A Imperatriz Celestial estava
sentada ao lado de Liwei, com as servas atrás de si. O seu vestido verde
estendia-se para o chão como um tapete de musgo, com ganchos de ouro em
forma de folha no cabelo. Nunca vira a imperatriz de tão perto. Memórias
da separação da minha mãe inundaram-me a mente, ferindo-me como se
tivesse acontecido no dia anterior.
Saudei-a de joelhos, como mandava a etiqueta, dobrando o corpo até
tocar no chão com as mãos e a testa.
A imperatriz não me deu permissão para me levantar.
— É este o comportamento da Companheira do Príncipe Herdeiro?
Acordar tão tarde e deixar o meu filho a arranjar-se sozinho?
A sua voz transbordava de censura.
Eu devia ter pedido desculpas ou implorado perdão. Mas, embora o meu
corpo estivesse tenso de nervosismo, os meus lábios permaneceram selados.
Já não era uma criança assustada, com medo da própria sombra.
— Ergue-te — ordenou Liwei.
Levantei a cabeça do chão, mas mantive-me de joelhos. Não queria dar
à imperatriz um motivo para me dispensar.
— Honorável Mãe, Xingyin só chegou tarde esta manhã por causa da
tarefa que lhe incumbi — explicou Liwei, olhando para mim. —
Encontraste a raiz de ginseng nevado?
— Sim, Vossa Alteza.
Fiquei contente com o seu raciocínio rápido.
— Podes levá-lo até à cozinha para prepararem um tónico? Pede-lhes
que enviem o tónico com a refeição da tarde de Suas Majestades Celestiais.
Consciente das servas atentas, encostei a testa ao chão em
reconhecimento do pedido. Pondo-me de pé, apressei-me na direção da
porta, ansiosa por sair dali.
A voz da imperatriz veio ao meu encontro, num tom mais agradável
agora que eu partira.
— Liwei, és um filho devoto — elogiou ela. — O banquete de amanhã
vai ser um grande evento. Os imortais da Flor e da Floresta juntar-se-ão a
nós, bem como os monarcas dos mares, uma rara ocasião de afirmar a nossa
boa vontade para com os Quatro Mares. Também vamos ser honrados com a
presença da Rainha Fengjin e da sua filha.
— A Princesa Fengmei? — perguntou Liwei, com uma nota de
apreensão na voz.
— Claro. O Reino da Fénix é o nosso mais importante aliado, mais do
que nunca, com a ameaça do maldito Reino Infernal a pairar sobre nós. —
Então, acrescentou num tom carregado de sentido: — Espero que sejas um
anfitrião atencioso. E que saibas o que é esperado de ti.
Atrás da porta, olhei para Liwei com compaixão. Ele não apreciava tais
ocasiões, evitando-as tanto quanto podia. Mas seria impossível escapar à
sua própria celebração, especialmente com o olhar atento da mãe a vigiar
todos os seus movimentos.
Liwei e eu tínhamos um pequeno jardim no canto do pátio. Pegando
numa pá, escavei a raiz de ginseng nevado, plantada apenas um mês antes.
Apesar de normalmente demorar anos a cultivar ginseng, um encantamento
de Liwei ajudava as plantas a amadurecerem mais depressa. Admirando a
raiz perfeitamente formada, com uma polpa tão branca que era quase
translúcida, considerei-a um sacrifício adequado para me salvar a pele.
Na cozinha agitada, encontrei Minyi, que ficara a conhecer bem. Após
lhe dar o ginseng, decidi esperar enquanto ela preparava a nossa comida.
Ela escrutinou-me e torceu o nariz.
— Xingyin, estás tão pálida. Tens comido o suficiente?
— Cheguei tarde esta manhã e Sua Majestade Celestial deu-me um
sermão — contei-lhe.
Ela soltou um suspiro compassivo. A imperatriz era temida pelo seu
feitio, cruel, malicioso, fácil de provocar, e poucos eram poupados.
— A nossa imperatriz tem muito fogo dentro de si. Os imortais do
Reino da Fénix costumam ter temperamentos fogosos — observou.
— Do Reino da Fénix? Ela não é celestial?
Minyi abanou a cabeça, olhando furtivamente em redor. Minyi ouvia
histórias e bisbilhotices dos muitos servos que visitavam as cozinhas. Era
uma questão simples de trocar uma iguaria pelas últimas notícias. E, à noite,
uma taça de vinho soltava até as línguas mais empedernidas. Só havia uma
coisa que ela gostava mais do que ouvir bisbilhotices: partilhá-los com as
amigas.
— Antes de se casar com o imperador, Sua Majestade Celestial era uma
princesa do Reino da Fénix. No início, não era tão mal-humorada, mas a sua
disposição piorou após a morte dos parentes queridos.
Era a primeira vez que ouvia aquilo. Não o achara possível, mas senti
piedade ao pensar na sua perda.
— O que lhes aconteceu?
A expressão de Minyi ficou sombria.
— Uma história trágica. A imperatriz é parente da Dama Xihe, a deusa
do sol que vive no Pomar da Amoreira Fragrante, no céu oriental. A Dama
Xihe tinha dez filhos que costumava levar consigo na sua carroça puxada
pelas suas fénix, um de cada vez, no seu percurso pelo firmamento. Os seus
filhos eram criaturas de puro calor e luz, venerados como o sol no mundo
dos mortais.
Senti um calafrio.
— Dez filhos? Dez sóis? Os parentes da Imperatriz Celestial?
Minyi mexeu uma panela a ferver com massa, felizmente alheia ao meu
desconforto crescente.
— As fénix são parentes próximas das aves solares de três pernas.
Aves solares. As próprias palavras escaldavam-me.
— O que aconteceu? — consegui dizer.
— Há muitos anos, a Dama Xihe ficou gravemente ferida. Para a ajudar,
a imperatriz enviou um general de confiança até ao Pomar da Amoreira
Fragrante, para guiar a carroça no seu lugar. Apenas uma ave solar lhe
podia fazer companhia, mas as aves desobedeceram, saltaram as dez para a
carroça e saíram a voar antes que o general as pudesse impedir. As aves
solares não desejavam regressar, voando pelos céus dia e noite.
Minyi fez uma breve pausa.
— Foi um tempo terrível, de luz ofuscante e calor abrasador. Os mortais
eram os que mais sofriam, com o seu mundo frágil chamuscado ao ponto da
destruição. O Imperador Celestial enviou emissários para repreender as aves
solares, mas elas ignoraram todos. Eram tão rápidas que ninguém as
conseguia apanhar. O imperador podia tê-las derrubado pessoalmente, mas
a imperatriz protegia-as de ataques. Sob a sua proteção, as aves solares
teriam deixado o mundo em cinzas... mas foram finalmente abatidas por um
mortal corajoso.
O meu pai. Senti as pernas a tremer. Agarrei-me à parte lateral da mesa
e derrubei com o cotovelo uma taça de ameixas amarelas, que rolaram para
o chão. Evitando o olhar de um cozinheiro irado, baixei-me para apanhar a
fruta, aproveitando a oportunidade de esconder a cara. Vasculhei as
memórias apagadas do livro que lera uma vez, a história do meu pai contada
pelos mortais. Diziam que as aves solares eram favorecidas pelos deuses,
sob sua proteção. Mas parentes da Imperatriz Celestial? Não era de admirar
que ela tivesse tentado punir o meu pai por as ter matado.
Engoli saliva para molhar a garganta seca.
— O mortal... o que lhe aconteceu?
Minyi salpicou cebolinho picado sobre duas taças de massa e pousou-as
num tabuleiro de madeira polida. Quase por impulso, acrescentou um
pequeno prato de legumes e uma travessa de pastéis. Suprimi a vontade de a
agarrar pelo braço e sacudir dela o resto da história.
— Oh. Os feitos do mortal foram elogiados pelo imperador e foi
recompensado com o Elixir da Imortalidade.
— O imperador não ficou zangado com ele por ter matado os parentes
da imperatriz?
Já não conseguia disfarçar a urgência na minha voz. Minyi chegou-se
mais perto e falou em voz baixa.
— Diz-se que o imperador pode ter tido mão na queda das aves solares.
O mortal abateu-os com um arco encantado de gelo e usou um amuleto que
o protegia do fogo das aves solares. Como poderia um mero mortal ter
obtido tais tesouros, como os poderia ter usado sem a bênção de Sua
Majestade Celestial?
Algo em tudo aquilo deixou-me perturbada. Porque faria o imperador
tal coisa? Porque não travou pessoalmente as aves solares? Teria sido
apenas para evitar um confronto com a imperatriz?
— O que aconteceu a seguir? — perguntei, apesar de também temer a
resposta.
Ela deitou-me um olhar de surpresa. Talvez achasse que era o fim da
história. O mundo salvo da ruína. O mortal recompensado pelo seu serviço
ao Imperador Celestial.
— A Dama Xihe ficou furiosa com a morte dos seus filhos e cortou
todos os laços com a imperatriz. A Rainha Fénix, parente da deusa do sol,
também ficou enfurecida. Antes disso, havia muitos rumores de um noivado
entre a sua filha e Sua Alteza, mas ouvi dizer que foi cancelado! Uma pena,
pois teriam sido um par perfeito. Alguns queixam-se de que a Princesa
Fengmei é cem anos mais velha do que Sua Alteza. Números insignificantes
para pessoas como nós.
Liwei nunca mencionara um noivado, mas agora eu entendia melhor a
sua estranha reação ao nome da princesa, esta manhã. Havia tantos rumores
românticos à sua volta que me habituara a não lhes dar mais importância do
que às pétalas sopradas pelo vento, esquecidas assim que pousavam no
chão. Mas isso não era o que eu queria saber naquele momento.
— E qual foi o destino do mortal? Depois de receber o elixir? — sondei,
esperando que ela não reparasse no meu profundo interesse.
Talvez conseguisse alguma informação sobre o paradeiro do meu pai.
Minyi franziu a testa ao pousar no tabuleiro um bule de porcelana. Fios
fragrantes de jasmim chegaram-me às narinas.
— O mortal nunca ascendeu aos céus como imortal. Ninguém sabe o
que lhe aconteceu.
Parou então de falar e virou-se abruptamente.
Não a questionei mais. Não me surpreendia a relutância de Minyi em
falar da ascensão da minha mãe. O castigo da Deusa da Lua não era um
tema abordado abertamente. Suas Majestades Celestiais não gostavam de
ser recordadas daqueles que lhes tinham desagradado.
Agradeci a Minyi, segurando o tabuleiro de comida quando saí das
cozinhas, atordoada. A imperatriz não gostava de mim, considerava-me
indigna do seu filho. Estremeci ao imaginar a sua hostilidade se alguma vez
descobrisse que o meu pai matara as aves solares. Respirei fundo, tentando
acalmar o tumulto no meu estômago. Os instintos da minha mãe estavam
corretos; a imperatriz sentia mesmo rancor pelo meu pai. Não nos mostraria
a mais pequena misericórdia e aproveitaria qualquer oportunidade para nos
destruir. Decidi que não a deixaria. Apesar de ainda não poder fazer nada,
exceto trabalhar tanto quanto podia, aperfeiçoando as minhas capacidades e
procurando uma forma de nos manter todas a salvo.
Quando regressei ao quarto de Liwei, foi com alívio que constatei que a
imperatriz já partira, tendo pouca vontade de fingir respeito e obediência.
Comemos em silêncio, nenhum de nós inclinado para conversa casual. Os
pastéis de Minyi eram feitos com requinte: recheio de porco e alho-francês,
a casca frita até ficar estaladiça e dourada... mas naquele momento sabiam a
papel na minha língua.
— Xingyin, pareces cansada — observou Liwei.
As minhas mãos voaram para o meu rosto, tentando devolver-lhe a cor
com pequenos beliscões. Era a segunda pessoa a comentar a minha palidez
naquela manhã.
— Não dormi bem.
A desculpa soou fraca até aos meus ouvidos.
— Não leves a peito o que disse a minha mãe. Ela parece cruel, mas
apenas se preocupa demasiado comigo.
Assenti rigidamente, não confiando em mim para falar. Levantando os
nossos livros da mesa, esperei por ele junto da porta dupla.
Ele tirou a pilha pesada das minhas mãos.
— Já te disse que não precisas de carregar as minhas coisas.
— O que diria a tua mãe? — perguntei.
— Não lhe contes — respondeu ele com um sorriso conspiratório.
Respondi-lhe com um sorriso meu, mas não me conseguia livrar do
desconforto. Passei a manhã perturbada, mal ouvindo as lições dos
professores e merecendo um olhar carrancudo do General Jianyun e uma
descompostura da Mestra Daoming. A seguir, no tiro ao arco, falhei todos
os alvos enquanto treinava com Shuxiao.
Ela estremeceu após um tiro especialmente mau, que deixou a minha
flecha cravada na relva muito longe do alvo.
— Xingyin, tens poeira nos olhos?
Antes que eu pudesse responder, o General Jianyun caminhou na minha
direção com uma expressão de desagrado. Naquele dia, eu esgotara a sua
paciência.
— Xingyin, o nosso treino ficou tão fácil para si que já não se dá ao
trabalho de se esforçar?
Baixei a cabeça, sentindo a vergonha a crescer dentro de mim. O
General Jianyun era um mentor diligente para mim e para Liwei. Apesar de
muitos dos nossos professores focarem os seus esforços no Príncipe
Herdeiro, ele dividia a sua atenção igualmente entre nós.
Ouvindo o general a erguer a voz, Liwei olhou de relance na nossa
direção do sítio onde estava a treinar com um soldado. Avançou em frente,
com a espada estendida, e com algumas estocadas bem colocadas ganhou o
combate em poucos segundos. A seguir, não perdeu tempo a pôr-se ao meu
lado. Apesar de ficar feliz por ter o apoio dele, não queria que ele
testemunhasse a minha humilhação.
O General Jianyun tirou um saco de couro do suporte das armas.
— Hoje, vamos tentar algo mais difícil. Se falhar um que seja, vai ficar
mais uma hora a treinar.
Dito isso, atirou ao ar o conteúdo do saco. Dez pequenos discos de barro
saíram a voar, nenhum deles maior do que uma nêspera.
— Acerte em todos! — ordenou.
Ainda antes que ele acabasse de falar, já eu atingira os dois primeiros.
No mesmo fôlego, assestei a flecha seguinte e atingi mais três em rápida
sucessão. Apoiando um joelho no chão, atingi mais dois, alto no ar. Os
últimos três estavam quase fora de vista. Posicionei cuidadosamente a
minha flecha para atingir um e depois outro. O último disco desapareceu da
minha vista. Fechei os olhos, esforçando-me por ouvir para lá do silêncio. A
minha mente estava límpida, livre de pensamentos. Um sussurro ténue
chegou-me aos ouvidos, uma réstia de vento. Soltei a flecha com um acorde
vibrante e o disco partiu-se em pedaços.
Fiquei quieta, enervada pelo silêncio súbito e pela multidão que se
reunira. Então, um soldado magro e alto, que eu nunca vira antes, bateu
palmas e o som quebrou o encanto. Shuxiao aplaudiu e Liwei aproximou-se
de mim, erguendo-me pela cintura e fazendo-me rodopiar.
— Liwei, pousa-me no chão — sussurrei, consciente de todos os olhares
atentos.
Por algum motivo, tinha dificuldade em recuperar o fôlego e a minha
pulsação batia um ritmo errático.
Ele soltou uma risada quando me pousou e sorriu ao regressar para o
treino com espada.
Os soldados dispersaram, mas o General Jianyun ficou para trás,
observando-me por um momento.
— Já pensou no seu futuro? Quando não for mais a companheira do
Príncipe Herdeiro? — perguntou por fim.
A frontalidade da pergunta apanhou-me de surpresa. Nunca imaginara
que a minha posição atual tivesse um fim, mas Liwei assumiria em breve os
seus deveres na corte. As suas aulas diminuiriam e depois, o que faria eu?
Além de me tomar sua serva, de servir refeições e chá? A ideia queimou-me
como um carvão em brasa.
O General Jianyun continuou, alheio ao meu desconforto.
— Não tem rival no tiro ao arco. Segundo a Mestra Daoming, a sua
magia é forte. Acho que se daria muito bem no exército e o seu futuro
poderia ser mais brilhante do que o sol.
A minha mente rodopiava com todas as possibilidades. O meu pai era
um soldado; fora o seu caminho para a glória, abater as aves solares e salvar
o mundo. Uma grande honra, um fardo terrível. A sua recompensa foi o
elixir que fez de mim e da minha mãe imortais, mas também nos separou
dele.
— General Jianyun, como avança uma pessoa no exército? — perguntei
quando saí do meu pasmo.
— Lutando pelo nosso reino. Realizando cada tarefa o melhor que
conseguimos. Protegendo os nossos irmãos de armas. Trabalho duro,
obediência, lealdade ao longo dos anos. Haverá maior honra do que servir o
nosso reino e Suas Majestades Celestiais?
O orgulho era audível na sua voz.
Uma recusa breve assomou aos meus lábios, que suprimi por respeito ao
general, mas não consegui impedir que o meu lábio se torcesse.
Ele não pareceu reparar e acrescentou, quase distraidamente:
— Também há quem sonhe com ganhar o Talismã do Leão Carmesim,
apesar de ser raro.
— O Talismã do Leão Carmesim?
Nunca ouvira falar.
— É a mais elevada condecoração do Exército Celestial, concedida pelo
imperador em pessoa. O seu portador tem direito a um favor imperial.
Uma esperança delirante esvoaçou no meu coração.
— Como se pode ganhar esse talismã?
Amaldiçoei o tremor na minha voz, esperando que ele não ouvisse a
minha ansiedade.
— Por atos excecionais de valor, coragem ou sacrifício ao serviço do
Reino Celestial — respondeu o general, franzindo a testa. — Contudo, não
é algo que alguém deva esperar. Em toda a minha vida, o talismã foi
concedido menos de uma mão-cheia de vezes.
O General Jianyun devia ter centenas de anos. Talvez mil? Como
poderia eu superar os poderosos guerreiros do Reino Celestial quando
começara a dominar os meus poderes apenas uns anos antes? Não, não me
podia permitir pensar assim, não podia admitir a derrota antes de tentar.
Entre todos os mortais ao longo dos séculos, foi o meu pai que chamou a
atenção do imperador e foi agraciado com o Elixir da Imortalidade. Não
podia almejar a menos.
Contudo, algo limitava a minha excitação crescente. Se me juntasse ao
Exército Celestial, teria de abandonar o Pátio da Tranquilidade Eterna. Lá
estava a salvo. Tão feliz quanto podia ser longe da minha mãe. Ah, tudo se
tornava confuso em mim. Jamais me podia esquecer porque estava ali, que
fora forçada para fora do meu lar, que viera para o Palácio de Jade para
encontrar o caminho de regresso. A conversa de honra e serviço do General
Jianyun não me convencia. Aquele não era o meu lar; não sentia qualquer
lealdade para com o Reino Celestial. Até sentia rancor contra Suas
Majestades Celestiais, que estava disposta a engolir para atingir os meus
fins. E, contudo, aquela oferta dava-me um vislumbre de um futuro onde
podia progredir pelo meu mérito, uma oportunidade de conquistar a
liberdade da minha mãe. Bem melhor do que as minhas fantasias loucas de
voar até à lua e quebrar o encantamento que a prendia lá. Que vida nos
esperaria depois disso? Uma eternidade sempre em fuga, a viver com medo.
O General Jianyun clareou a garganta, talvez estranhando o meu
silêncio prolongado.
Fechei uma mão sobre a outra e fiz-lhe uma vénia.
— Obrigada pela sua confiança em mim, General Jianyun. Prometo
levar a sua proposta em consideração.
A oferta tentava-me mais do que queria admitir. Já estava inclinada a
aceitar, mas não o podia fazer sem falar primeiro com Liwei.
Durante a nossa refeição nessa noite, Liwei perguntou-me:
— De que estavas a falar com o General Jianyun? Parecia uma conversa
séria.
Surpreendida por ele ter reparado, levantei os pauzinhos e enfiei na boca
um pedaço de arroz. Por algum motivo, sentia-me relutante em falar-lhe da
oferta do general. Algumas desculpas passaram-me pela mente, mas apenas
lhe mentira uma vez e fora por necessidade.
— O General Jianyun sugeriu que eu me juntasse ao exército, quando o
meu papel aqui chegasse ao fim.
— Ao fim? — repetiu Liwei, confuso. — Quem te disse que haveria um
fim?
Pousei os pauzinhos na mesa e deitei-lhe um olhar sério.
— Liwei, quanto tempo achas que as coisas vão ficar assim? Quando
assumires as tuas novas responsabilidades, vais ter menos tempo livre para
as aulas. Não vais precisar de uma companheira.
Por uma vez, ele pareceu desorientado.
— Mas... tu és minha amiga.
Como aquelas palavras me pesaram na consciência, mas não podia
pensar só em mim.
— Eu sou tua amiga. Aqui ou onde quer que esteja.
— Queres deixar-me? Juntar-te ao exército?
Havia uma nota de incredulidade na sua voz e, por baixo, de mágoa.
— Há coisas que quero das quais não sabes nada. Também tenho os
meus sonhos.
A minha voz soou embargada de emoção. Os anos que passara ali, a
treinar e estudar, tinham sido felizes. Contudo, eram apenas degraus na
escada da minha ambição.
Talvez Liwei me tivesse sentido a afastar-me, a dureza da minha
resolução.
— Quais são os teus sonhos? — perguntou, inclinando-se para mim. —
Deixa-me ajudar, como puder.
As palavras pairavam-me na ponta da língua. Queria confiar nele.
Dizer-lhe a verdade. Ele era um Príncipe Celestial, poderoso e favorecido.
Mas suprimi o impulso. Não sabia ao certo como podiam mudar as coisas
entre nós se soubesse quem eu era. Que lhe mentira. Que era filha da deusa
caída em desgraça por desafiar a vontade do seu pai e do mortal que matara
as aves solares tão queridas da sua mãe.
— Não, não me podes ajudar — disse em voz baixa. — Mas obrigada
por o quereres fazer.
A mão dele cobriu a minha e um arrepio inesperado percorreu-me o
braço.
— A minha oferta mantém-se. O que precisares, quando precisares.
Pensa nisso e não tomes decisões precipitadas.
Julgava que tinha já decidido. Mas sob a intensidade do seu olhar,
apenas pude assentir em resposta. Amanhã, disse a mim mesmo
covardemente. Amanhã decido.
Ergui-me num salto, o meu grito a atravessar a noite. Os meus olhos
percorreram o quarto escuro e agarrei os lençóis com força, amarrotando-os
entre os dedos. Não estava em casa. Não era tarde de mais. A minha mãe e
Ping’er não estavam mortas.
Já tivera pesadelos assim, mas nunca no Pátio da Tranquilidade Eterna...
até agora. Talvez o meu encontro com a Imperatriz Celestial ou a incerteza
sobre o meu futuro tenham causado uma recaída nos medos do passado.
Passos ecoaram pelo pátio. As minhas portas abriram-se de rompante e
o ar fresco da noite jorrou pelo quarto quando Liwei ficou parado à entrada.
Depois, atravessou o quarto e sentou-se na minha cama, entrelaçando os
dedos nos meus, o seu toque quente e forte.
— Estavas a gritar. Estás bem?
— Foi um sonho.
A minha respiração estava trémula e irregular. O meu terror fora bem
real. A imagem da forma sem vida da minha mãe surgiu-me na mente, o
meu medo a fundir-se com uma dolorosa saudade de casa. Lágrimas
inoportunas ardiam-me os olhos.
A sua outra mão tocou-me na cara, o polegar a acariciar a minha pele.
Apenas me vira chorar uma vez, quando me conhecera junto ao rio. Sem
hesitar, puxou-me para os seus braços e segurou-me com força. Eu abracei-
o de volta, os braços dele a despertarem uma necessidade dentro de mim,
desconhecida e intensa. Baixei a guarda e deixei-me consolar pela sua
força, o meu corpo a afundar-se no dele enquanto a barragem das minhas
emoções se abria.
As minhas lágrimas encharcaram-lhe a roupa, a seda branca agora
húmida quando afastei a cara. Só então percebi que ele vestia apenas a
túnica interior; com a pressa, devia ter vindo a correr direto da cama. A
minha pulsação acelerou, apesar de já o ter visto vestido assim milhares de
vezes. Com um canto da minha manga, tentei secar o tecido fino. A sua
pulsação acelerou sob a palma da minha mão assim que os seus braços me
envolveram com força, gerando um calor que me percorria as veias.
Os meses de companheirismo desapareceram; era como se nos
estivéssemos a ver um ao outro pela primeira vez. Ele já não era o jovem
que se tornara meu amigo, o jovem que troçava de mim. O seu toque
inflamava-me os sentidos, o seu olhar deixava-me sem fôlego. Estendi a
mão para lhe afastar o cabelo comprido da cara, despenteado durante o sono
e reluzindo escuramente contra a brancura da túnica.
Entreabri os lábios. Os seus olhos recaíram sobre eles, profundos como
lagos à meia-noite. Ele baixou-se e encostou a boca à minha com firmeza,
mas com uma ternura dolorosa. Inalei fundo, o seu aroma quente e limpo
perfumado com a fragrância das flores do pátio. Uma das suas mãos
segurou-me a nuca enquanto a outra envolvia-me a cintura. Os meus braços
envolviam-lhe o pescoço com força, não sei como tinham ido lá parar.
Segurámo-nos um ao outro tão perto, a sua respiração a entrar na minha
boca, quente e doce ao misturar-se com a minha. Os seus lábios
pressionaram com mais força, apartando os meus... as nossas línguas
procurando e pressionando. Um calor tórrido espalhou-se do meu âmago até
aos dedos dos pés. Os meus membros estavam fracos, como se fossem
líquidos, quando caímos, abraçados, para a minha cama.
Uma rajada de vento soprou pelas portas abertas. As cortinas azul-
pálidas à volta da cama esvoaçaram, suaves como nuvens de gaze. Quando
os vidros das janelas chocalharam, ergui-me na cama... tremendo com a
perda do seu calor. O meu olhar desviou-se para o pátio para lá das portas.
Qualquer pessoa que passasse teria visto o que estávamos a fazer.
Felizmente, ainda estava escuro. A lua no céu era a nossa única testemunha.
Ele sentou-se ao meu lado, passando as mãos pelo cabelo.
— Xingyin, desculpa.
As suas palavras foram como um jorro de água fria, um duro despertar
do meu sonho. Claro que ele sentiria arrependimento! Na escuridão da
noite, movido pela piedade e pela torrente das minhas emoções... não era de
admirar que se tivesse sentido obrigado a saciar o meu desejo. E eu fora
demasiado ansiosa a aproveitar-me da sua bondade.
— Não tens de pedir desculpas. — A minha voz soou ligeira quando lhe
virei costas, deixando o cabelo tapar-me a cara. No seu silêncio, li o seu
acordo. — Isto foi um erro para ambos. Um momento de loucura que será
esquecido com o nascer do sol.
Uma tentativa desajeitada de salvar o meu orgulho.
Ele segurou a minha mão com força e encostou-a ao peito.
— Loucura? Nunca me senti tão lúcido em toda a minha vida. Queres
esquecer o que aconteceu? Eu não consigo.
O meu coração batia desenfreado, como as asas de um pássaro contra as
barras da sua gaiola. Contudo, o medo e a razão, sempre vigilantes, falaram
mais alto.
— Não devíamos estar a fazer isto.
Ele inclinou a cabeça para mim.
— Porquê?
A sua pergunta era chocante na sua simplicidade. Mas não era tão fácil
como ele parecia crer; havia demasiadas razões contra nós das quais ele não
sabia nada... porque eu não lhas contara.
— Quero beijar-te há muito, muito tempo — disse ele num sussurro,
como se estivesse a fazer uma confissão.
O calor voltou a envolver-me, deslizando pela minha pele como se
tivesse estado deitada ao sol. As suas palavras afastaram as minhas dúvidas
e estendi os braços para o puxar para mim, enquanto ele baixava a cabeça
ao encontro da minha. Os meus olhos arregalaram-se e depois fecharam-se
lentamente, perdidos na neblina lânguida do desejo como se eu estivesse a
flutuar num rio de estrelas. Quando finalmente nos afastámos, a nossa
respiração era forte e errática, abraçados um ao outro sob o luar, até que um
murmúrio no silêncio anunciou a aproximação da alvorada.
Recordando que dia era, levantei-me rapidamente, vasculhando a gaveta
à procura do meu presente. Quando pousei o embrulho de seda na sua mão,
suprimi o impulso de lho tirar. O que era uma humilde concha ao lado dos
tesouros inestimáveis que ele possuía?
Liwei afastou o tecido e fitou a concha no interior. Peguei nela e soprei-
lhe docemente, fazendo a concha brilhar enquanto a minha música enchia o
quarto. Uma música alegre, repleta de promessa e esperança... e desejo,
percebia agora. A música do meu coração, antes mesmo de eu o saber.
Ele não se moveu até a música chegar ao fim.
— É linda. Como se chama? — quis ele saber.
Sorri, com a garganta subitamente embargada.
— Podes dar-lhe o nome que quiseres. Compus a música para ti.
Ele pegou na concha e voltou a erguê-la, mas segurei-lhe o braço.
— Ouve-a quando eu não estiver aqui.
O corpo dele ficou hirto quando se virou para me fitar o rosto.
— Vais embora?
— Não era isso que queria dizer. É um presente de aniversário, não de
despedida.
Senti um peso na consciência por fugir assim à pergunta. Ele voltou a
entrelaçar os dedos nos meus, menos tenso.
— Obrigado. Nunca recebi um presente tão maravilhoso. — Então, com
um sorriso trocista, acrescentou: — E agora já não tenho de te implorar que
me toques uma música.
Afastei-me dele, fingindo-me zangada e ofendida.
— Sou assim tão fácil de substituir?
— Não quero descobrir nunca.
Com um suspiro de lamento, soltou-me e levantou-se da minha cama.
— Tenho de ir embora antes que os servos acordem.
Reuni a minha coragem e chamei por ele.
— Liwei, amanhã não temos aulas. Vamos passar o dia juntos?
Ele parou à entrada e assentiu, com os lábios curvados ao fechar as
portas do meu quarto.
De novo sozinha, a minha mente despertou do encantamento que me
prendera. Fui assaltada por uma culpa intensa e implacável. O Imperador
Celestial não mostrara a mais pequena misericórdia à minha mãe,
condenando-a a um encarceramento eterno. Lembrei-me do medo que a
minha mãe sentia da imperatriz, o seu terror a encher-me de remorsos.
Como podia sentir-me assim acerca do filho deles? Seria assim tão fraca
para a trair com tanta facilidade?
Pressionei os dedos contra as têmporas, enterrando-os no meu cabelo.
Mas aquilo não era trair a minha mãe. Mesmo nas profundezas do seu
sofrimento, ela nunca proferira uma palavra de rancor contra o imperador e
a imperatriz. Não me censuraria por isto; tudo o que sempre quisera era a
minha felicidade. Eu era uma pessoa por direito próprio, separada dos meus
pais... tal como Liwei. E ele não era nada como eles. Depois de todo o
tempo que passámos juntos, sabia isso melhor do que ninguém. Era o meu
amigo mais querido, antes de... ser para mim o que era agora. E eu nunca o
censuraria por causa de acontecimentos há muito passados e circunstâncias
fora do seu controlo.
Como desejava ter desabafado com ele, revelar-lhe todas as partes de
mim. Liwei não faria nada para me magoar, mas hesitava em envolvê-lo nos
meus problemas, em colocá-lo em confronto com os pais quando sabia
como era tensa a sua relação com eles. E a covarde dentro de mim temia o
seu desapontamento; os enganos de uma amante magoavam mais do que os
de uma amiga.
Detestava aquelas mentiras, aquele medo e aquela dúvida. Mas tudo isso
era uma sombra ténue ao lado da ameaça de ser descoberta. O Palácio de
Jade não era um sítio para partilhar tais segredos. E aqui, eu e a minha mãe
encontraríamos pouca misericórdia da crueldade do imperador, do rancor da
imperatriz. Mais ainda depois de descobrir como as nossas famílias estavam
interligadas. Não, não quebraria a promessa que fizera à minha mãe, não até
ter a certeza de que seria seguro.
Fiquei acordada, deitada na cama, até luzirem os primeiros raios de sol.
À luz da manhã, o desejo da noite anterior parecia um sonho nebuloso,
exceto a memória dos lábios dele gravada a fogo na minha alma.
Fitei o meu reflexo no espelho. O cabelo preto e liso caía-me até à
cintura, a pele estava morena pelas tardes passadas ao sol. Apesar de não ter
feições notáveis, fiquei satisfeita com o que vi, até com a fenda no queixo
que a Imperatriz Celestial criticara como um sinal de mau feitio.
Estendi a mão para um dos meus vestidos habituais, mas acabei por
escolher um vestido de seda azul-claro, bordado com aves coloridas.
Quando o vesti, um estorninho bordado com linha verde estendeu as asas e
voou uma vez à volta da saia. A minha força vital tinha realmente
aumentado. Minyi pedira à sua amiga, uma costureira habilidosa, que me
fizesse aquele vestido, depois de se queixar que a minha roupa era
demasiado simples e pouco lisonjeira. O meu armário estava, de facto,
repleto de roupa branca. Não me importava muito, fazia-me recordar a
minha mãe.
Mas, agora, a vida vibrava de cor.
Naquele dia, fui tomada por um interesse incomum pela minha
aparência; raramente me vestira com tanto cuidado. Com uma passada
enérgica, atravessei o pátio, mas diante dos aposentos de Liwei, hesitei.
Teria sido um sonho? E se ele não se lembrasse? Pior ainda, e se estivesse
arrependido do que acontecera? Ganhando coragem, abri as portas e entrei.
Ele já estava acordado, sentado à mesa, com uma túnica de brocado
atada à cintura com uma faixa de seda preta. Um aro de prata prendia-lhe o
cabelo, que lhe caía pelas costas como um rio de tinta. Os seus olhos eram
tão escuros como sempre, mas agora pareciam-me cem vezes mais bonitos.
O olhar dele demorou-se em mim quando se levantou.
— Não fiques tão espantada. Consigo vestir-me sem alguém a segurar-
me a roupa. — Um sorriso repuxou-lhe os lábios quando acrescentou: —
Mas prefiro quando és tu a ajudar-me.
A minha mente perversa invocou imagens de todas as vezes que lhe
cobrira os ombros com seda e brocados. Como os meus dedos tinham
roçado o seu pescoço quando ajustava a gola da túnica, as minhas mãos à
volta da sua cintura para lhe prender a faixa. Na altura, não dera muita
importância, mas agora deixou-me com o coração aos saltos e a garganta
seca.
— Xingyin.
O meu nome nos seus lábios agitou-me. Olhei para ele, reparando na
caixa estreita que me estendia.
— É o teu aniversário, não o meu.
— Dá boa sorte trocar presentes — disse ele, em jeito de explicação.
Quando não me movi para aceitar o presente, ele abriu a tampa e tirou
da caixa um alfinete de cabelo. Esculpido em madeira, estava lacado em
ricos tons de azul, cravejado de pequenas pedras translúcidas que prendiam
e refratavam a luz.
Fiquei sem fôlego. Tradicionalmente, os alfinetes de cabelo eram um
sinal de amor, mas abafei a esperança que se acendia dentro de mim. Não
fizéramos tais promessas um ao outro. Quanto à última noite... ainda não
sabia bem que significado teria à luz do dia.
— Fiz isto há algum tempo, para condizer com o significado do teu
nome. Demorei um bom bocado a acertar as cores.
Ele fez aquilo? Para mim? Era requintado, a sua habilidade captara
todas os cambiantes temperamentais do céu. E mesmo que não fosse,
mesmo que fosse apenas um simples alfinete de madeira, não teria tido
menos valor para mim.
Ele debruçou-se e pôs-me o alfinete no cabelo. Como fizera quando nos
conhecemos.
— Obrigada — consegui dizer, erguendo os olhos para os seus.
— Só temos a manhã livre. O meu pai pediu para falar comigo antes do
banquete. — Liwei tirou um cesto de cima da mesa e estendeu-me a outra
mão. — Não vais mudar de ideias sobre logo à noite? Gostava muito que lá
estivesses. Tomaria tudo muito menos aborrecido.
A sua boca curvou-se num sorriso persuasivo.
Senti um nó na barriga só de pensar em ver Suas Majestades Celestiais.
Mas era a celebração de Liwei e parte de mim estava curiosa por ver um
lado seu que raramente via, o de herdeiro do trono. Agora dava por mim a
querer passar cada momento com ele, sentindo um aperto pouco familiar
sempre que estávamos separados.
— Sim — respondi-lhe. — Irei ao banquete.
No pátio, Liwei invocou uma nuvem. Reparei que agora ele podia sair
do palácio sempre que quisesse, o que significava que assumiria em breve
os seus deveres na corte. Afastei uma onda de ansiedade; não mancharia
estedia com dúvidas sobre o amanhã ou receios acerca do passado. Mas
quando olhei para a nuvem, não consegui evitar pensar na última vez que
voara numa com Ping’er. Depois de subir para a nuvem, Liwei puxou-me
para trás dele. A nuvem era macia e fresca, mas firme sob os nossos pés.
Quando saiu disparada pelo ar, desequilibrei-me, mas Liwei agarrou-me a
mão para me segurar e não me largou.
Uns momentos depois, comecei a relaxar. A nuvem deslizava tão
suavemente que logo esqueci os meus receios. Voar durante o dia era
infinitamente mais agradável do que voar à noite. Montanhas altaneiras,
lagos cintilantes e florestas luxuriantes estendiam-se como uma pintura
desenrolada aos nossos pés. Quando atravessámos um ligeiro aguaceiro, as
gotas que me roçaram na pele eram tão frescas como o orvalho matinal.
Podia ter tido frio, com as nuvens escuras a taparem o sol, não fossem as
mãos de Liwei sobre as minhas a encherem-me de calor.
Pousámos no meio de uma floresta como nunca vira antes. Nem no
Reino Celestial nem nos meus sonhos. Pessegueiros em flor até onde o
olhar alcançava, com ramos carregados de flores cor-de-rosa e brancas que
perfumavam o ar com um arome doce e intenso. Sempre que o vento
soprava, uma mão-cheia de pétalas tombava para o solo.
Apanhei uma na palma da minha mão, macia como veludo, mais leve do
que o ar.
— Onde estamos?
— Algures no Domínio Mortal.
— No Domínio Mortal? — repeti, alarmada.
Os imortais estavam proibidos de descer ao Domínio Mortal sem
permissão do Imperador Celestial. Muito antes, os imortais vagueavam por
aquele mundo a seu bel-prazer. Talvez gostassem da sensação de poder ao
caminhar entre os mais fracos, de ouvir os seus cânticos de adoração ou as
suas súplicas aterrorizadas. Para os mortais, eles não eram apenas imortais;
eram deuses. Contudo, isso levou a grandes tumultos. A magia inspirava
terror aos mortais. E demasiados destinos foram alterados por essas
interferências, causando a morte prematura de alguns e salvando outros de
calamidades predestinadas. O Guardião dos Destinos Mortais persuadiu o
Imperador Celestial a emitir um édito que bania todos os imortais de
viajarem à vontade por aquele mundo. Apesar de muitos lamentaram o
sucedido, ninguém se atrevia a desafiar a ordem. Desde então, o nosso
domínio estava escondido dos mortais. A cada ano que passava, as suas
memórias de nós transformavam-se em mitos e lendas. Agora, quando os
mortais olhavam para cima, viam apenas o sol, a lua e as estrelas.
— Temos permissão para estar aqui?
Espreitei furtivamente para o céu, quase esperando que o Guardião dos
Destinos Mortais descesse sobre nós e nos arrastasse para o nosso castigo.
Liwei ergueu uma peça longa de jade que trazia pendurada à cintura,
intrincadamente esculpida com um dragão. Um selo imperial.
— Com isto, posso ir para onde quiser — garantiu-me, deixando cair o
selo, que tilintou contra a gota-celeste. — Um dos poucos benefícios de
assistir às longas discussões na corte.
Depois de nos embrenharmos mais um pouco na floresta, sentámo-nos
ao lado de um ribeiro gorgolejante. A relva macia estava coberta de pétalas
claras, algumas já acastanhadas nas margens. Uma lembrança de que nada
ali em baixo ficava na mesma, cada momento deixando todas as criaturas
mais perto do seu inevitável fim. Não consegui deixar de pensar no meu
pai, a envelhecer a cada dia que passava. A saudade levava-me a procurá-lo,
a descobrir se ainda estava vivo. Mas Liwei não sabia nada sobre os meus
pais, e como podia contar-lhe agora?
Fiquei contente por ele não conseguir ver a minha cara enquanto tirava a
comida do cesto. Tirou um jarro de vinho em porcelana, peras douradas e
uma seleção variadas de pastéis cozidos ao vapor, uns recheados com pasta
de feijão doce, outros com carne. Quando fui buscar um, a minha mão
colidiu com a dele.
Ele puxou o prato para fora do meu alcance.
— Podes comer se passares um desafio.
Resmunguei para dentro. Sem o meu arco, provavelmente ele conseguia
superar-me com qualquer outra arma. E apesar de sentir pouco entusiasmo
pelo prémio, sentia ainda menos por perder. Alheio ao meu desagrado,
Liwei vasculhou o chão até encontrar dois paus grossos, atirando-me um.
Apanhei o pau no ar.
— Não achas que este desafio te favorece? És melhor espadachim do
que eu. Pelo menos, por enquanto — murmurei entre dentes.
Ele andou à minha volta com a elegância de um predador.
— Já estás a admitir a derrota?
Levantei-me num salto, os dedos apertados sobre a casca áspera.
Um pedaço de seda branca apareceu-lhe na mão.
— Vou tapar um dos olhos, e mesmo assim vou ganhar.
— Por favor — respondi docemente, tentando não rilhar os dentes.
Podia ter recusado a oferta arrogante, mas aproveitaria qualquer
vantagem só para lhe amolgar o orgulho.
Uma brisa varreu as árvores, causando uma chuva de pétalas quando
parámos um diante do outro. Saltei primeiro para o lado vendado,
esperando apanhá-lo de surpresa. Liwei ergueu o seu pau para bloquear o
meu, retirando-o rapidamente para me atingir na perna. Assobiei entre
dentes, rodando para lhe acertar no peito. A respiração saiu-lhe forçada pelo
meio dos lábios quando saltei para fora do seu alcance, um momento antes
de nos empenharmos no combate com mais furor. A paz da floresta
desintegrou-se com o som dos nossos passos sobre as pedras e folhas secas,
o baque dos nossos paus a chocarem. Não consegui deixar de sentir
admiração pela sua técnica, com ataques fortes e retiradas rápidas, cada
movimento controlado e, contudo, livre. O nosso confronto foi mais
equilibrado do que o esperado e confiava, com alguma sorte, poder ganhar.
Detetando uma aberta, atirei-me para a frente... mas ele recuou, agachado, e
o meu pau cortou o ar. Antes que eu conseguisse retirar, ele tirou-me o pau
da mão com uma pancada forte.
Contive um grito, esforçando-me por esconder a minha frustração.
— Se tivesse sido tiro ao arco, tinha-te vencido com os dois olhos
vendados.
Então, tirei um pastel do cesto e atirei-lho.
Ele apanhou-o, mas ofereceu-mo de imediato.
— Toma, podes ficar com ele.
— Não, é o teu prémio.
Pegando numa pera, ferrei os dentes na polpa madura e o sumo doce e
fragrante encheu-me a boca.
Quando ele tentou voltar a dar-me o pastel, abanei a cabeça.
— Queres desafiar-me pelo direito de não o comer? — perguntei com
sarcasmo.
Ele deitou-me um olhar frio antes de dar uma dentada na massa fofa.
Cheirava deliciosamente, a fragrância rica do porco assado a pairar no ar.
— Vê lá se não te engasgas — disse-lhe com um sorriso.
A fome foi um pequeno preço a pagar pela expressão irada que lhe
passou pelo rosto. Eu perdera o desafio, mas de alguma forma conseguira
ficar em vantagem. Olhando para o céu nublado, maravilhou-me como tudo
parecia mais bonito. Até as nuvens de chuva já não pareciam escuras e
ameaçadoras, mas antes imbuídas de uma majestade sombria.
Depois de termos comido, ele serviu-me uma taça de vinho. Quando um
aroma delicado de jasmim pairou no ar, fiquei quieta, recordando uma
floresta com flores brancas como a lua.
Apertei os dedos à volta da taça e ergui-a num brinde.
— Que possas ser sempre feliz.
O olhar dele parou sobre mim.
— Se for sempre tão feliz como sou agora, seria o melhor desejo de
sempre.
O vinho deslizou pela minha garganta com um calor inebriante. Depois
de termos esvaziado as nossas taças, ele voltou a enchê-las e foi a sua vez
de fazer um brinde.
— Que todos os teus sonhos se realizem.
Interroguei-me sobre o que pensaria ele se soubesse que sonhos eram
esses. Durante muito tempo, os meus sonhos consistiam em recuperar o que
perdera no passado. Contudo, desde a noite anterior, ou talvez antes, uma
esperança para o futuro criara raízes no meu coração.
— Quais são os teus sonhos? — perguntou-me, como fizera no dia
anterior, como se estivesse a tirar pensamentos da minha cabeça.
— Estar com as pessoas que amo — respondi, após uma pausa. Era a
verdade, mas uma verdade oca, embelezada com enganos. Os seus olhos
escureceram quando se debruçou para mim, e a minha respiração acelerou.
— Mas hoje contento-me com vencer-te.
Exclamei a primeira coisa que me passou pela cabeça, amaldiçoando-
me quando ele se afastou. Ele deitou-se na relva, com as mãos atrás da
cabeça.
— Queres pôr à prova as tuas palavras de há pouco?
— Porque não? Não te vou fazer a vida fácil só porque fazes anos.
Não me sentia tão confiante como soava; nunca atirara de olhos
vendados. Um arco dourado materializou-se no solo à nossa frente,
requintadamente lavrado com penas nas hastes.
— Queria mostrar-te isto — disse Liwei, ao levantar-se. — Uma das
armas mais poderosas do nosso tesouro. Pode ser uma boa oportunidade
para o testar.
Peguei no arco e senti um formigueiro nos dedos quando toquei no
metal.
— Onde estão as flechas?
Liwei parou atrás de mim, os nossos corpos separados por meros
centímetros. Com os braços esticados de cada lado de mim, guiou-me a
erguer o arco e a puxar a corda prateada. Senti a pulsação a acelerar e a
cabeça a latejar. Na nossa posição atual, falharia qualquer alvo, mesmo que
estivesse a cinco passos de distância.
Uma flecha flamejante formou-se nas minhas mãos, estralejando como
se estivesse viva. Sobressaltada, podia ter deixado cair o arco, não fossem
as mãos de Liwei a segurar as minhas. Quando finalmente soltámos a corda,
a flecha desapareceu.
— Existem poucas armas mais poderosas. Cada flecha do Arco da Fénix
de Fogo pode causar ferimentos graves com um único impacto. Mas apenas
aqueles com uma força vital abundante podem manejar tal arma com
eficácia — avisou.
Fitei o arco, lembrando-me da capa desbotada do livro mortal. Seria
verdade que o meu pai usara um arco de gelo para derrubar as aves solares?
Uma arma encantada do Domínio Imortal?
— Uma pessoa com pouca força vital, como um mortal, poderia usar
uma arma assim? — perguntei.
Ele ponderou a pergunta.
— Os objetos mágicos possuem o seu próprio poder. A maioria pode ser
usada por qualquer pessoa. Até pelos mortais. Contudo, quanto mais forte o
utilizador, mais poderoso se torna o objeto, pois extrai energia do utilizador
para aumentar e restabelecer a sua. Se este arco fosse usado por alguém
com pouca força vital, não só teria dificuldade em controlá-lo, mas a força
do arco seria grandemente diminuída.
— Como passa a nossa energia para o arco? Não parece muito diferente
dos outros.
Ele debruçou-se mais, a sua respiração no meu ouvido.
— Uma arma como o Arco da Fénix de Fogo forma uma ligação com o
utilizador, absorvendo impercetivelmente a sua energia. Isso toma-o
poderoso, mas também perigoso.
— Perigoso? — repeti, tentando pensar noutra coisa que não no calor do
seu corpo a fundir-se com o meu.
— Perigoso porque, no tumulto da batalha, o utilizador de tal arma pode
não se aperceber de quanta energia foi despendida. Até ser tarde de mais —
explicou num tom grave.
Engoli em seco, recordando o aviso severo da Mestra Daoming sobre
nunca drenar a minha força vital. Afastando-me dos seus braços, estendi-lhe
o arco.
— Tu primeiro.
— Tens algum desafio em mente? — perguntou-me.
— Que tal um desafio de habilidade e não de rapidez? — sugeri,
lembrando-me da minha derrota anterior.
Ele baixou-se e pegou em duas flores de pessegueiro murchas. Quando
a sua magia as envolveu, as flores recuperaram a cor, as pétalas a brilhar
como se fossem esculpidas em quartzo róseo.
— Quem acertar na flor à maior distância é o vencedor.
Peguei numa das flores na palma da sua mão, agora dura como pedra.
A expressão trocista desapareceu-lhe do rosto quando olhou para a
frente com olhos semicerrados, o arco erguido e a corda retesada. Ao seu
sinal, soltei a primeira flor, que saiu a voar, mais rápida do que um beija-
flor, rodopiando pelo ar. Passaram vários segundos, a flor era agora uma
poeira minúscula no horizonte. Com uma vibração, a flecha de Liwei voou
pelo ar, estilhaçando as pétalas numa explosão de faíscas incandescentes.
Um tiro excelente. Não tinha a certeza se o conseguiria superar, estando
vendada. Estive quase a renegar a minha gabarolice anterior, a exigir
condições iguais, mas suprimi o impulso ao pegar no arco. Ansiosa por
testar a sua força, passei os dedos pela corda reluzente, mais rígida do que
as cordas tecidas com seda.
Quando Liwei atou o pano branco sobre os meus olhos, os seus dedos
roçaram-me a cara. Não me podia dar ao luxo de me distrair e inalei fundo
para clarear a mente.
Quando me senti pronta, assenti. Um som grave quebrou o silêncio, um
ligeiro rodopiar, esvanecendo-se a cada momento que passava. Quase
impercetível agora, ainda assim continuei a esperar, esforçando os ouvidos.
No preciso momento em que o som desapareceu no silêncio, soltei a flecha,
que assobiou pelo ar, acertando com um tinido. Algo se despedaçou e pegou
fogo com um assobio.
Ergui a mão para tirar a venda, mas braços fortes envolveram-me, os
meus sentidos inundados pelo aroma a relva aquecida pelo sol. Os seus
lábios esmagaram os meus e apartaram-nos, o hálito quente perfumado com
o vestígio adocicado do vinho. Estremeci, não do frio, mas do calor que me
percorria as veias. Segurando-lhe os ombros, abracei-o com força contra
mim. A sua boca desceu, deixando um rasto escaldante no meu pescoço
com uma fome que me deixou sem fôlego. Com a mão livre, tirei a venda
dos olhos e pestanejei com a súbita luminosidade. Caímos para o chão, o
tapete de pétalas mais macio do que qualquer cama... o meu corpo
inflamado com mil sensações cintilantes.
As primeiras gotas de chuva foram suaves e frágeis, facilmente
esquecidas. Mas logo se tomaram uma chuva torrencial, impossível de
ignorar. Ficámos deitados no chão, deixando que a chuva nos caísse em
cima, encharcando-nos como se tivéssemos estado a nadar no rio.
A nossa respiração era pesada e errática, os nossos dedos entrelaçados
na erva molhada.
— Quem ganhou? — perguntei, de regresso ao presente.
Ele deitou-me um olhar incrédulo.
— Numa altura destas, é isso que te preocupa?
— Ganhei eu — respondi à minha própria pergunta com um suspiro
satisfeito.
— O que te faz pensar isso?
— Se tivesses sido tu, não me terias distraído. Ter-me-ias esfregado isso
na cara. Sem misericórdia.
Ele apoiou-se num cotovelo e olhou para mim.
— É mesmo nisso que acreditas? — perguntou num tom ofendido. —
Muito bem. O beijo não teve nada que ver com o teu ar quando puxaste o
arco e acertaste no alvo, apesar de ele já ter desaparecido.
Abanou então a cabeça.
— Porque me apaixonei por alguém que sente um tal prazer em esmagar
o meu orgulho até não sobrar nada?
Os meus lábios apartaram-se incredulamente.
— Tu... amas-me?
— Depois de todo o tempo que passámos juntos, tinha outra escolha?
Pousei a palma da mão no seu peito, sem disposição para piadas.
— Estás a falar a sério?
A luz nos seus olhos desbravou um caminho até ao meu coração quando
a sua mão se estendeu para agarrar a minha.
— Sim.
Quando era criança, a minha mãe avisara-me para não olhar diretamente
para o sol, pois o seu brilho podia cegar-me. Talvez fosse algo que a sua
mãe lhe dissera. Apesar de isso poder ser verdade para os mortais, agora
duvidava que algo assim pudesse danificar a visão de um imortal. Mesmo
assim, o aviso ficara-me na memória, sempre que via a orbe luminosa no
céu, desviava ou tapava instintivamente os olhos. Neste dia, atrevi-me
finalmente a olhar diretamente para o sol, permitindo que a sua radiância
me atravessasse, espalhando-se pelas minhas veias até eu própria brilhar.
Nunca imaginara que uma alegria tão luminosa pudesse existir, e jamais
mais me contentaria com ficar na sombra.
Depois da chuvada, o céu voltou a ficar limpo. Liwei invocou uma
nuvem para nos levar de volta para casa. No caminho de regresso, secámos
as nossas roupas. Se tivéssemos chegado todos ensopados, teríamos dado
origem a perguntas indiscretas e bisbilhotices indesejadas. Enquanto
voávamos para o Palácio de Jade, o meu ânimo estava mais leve do que as
nuvens que ficavam para trás.
No meu quarto, deixei-me cair na cama como se estivesse num sonho.
Descanso era a última coisa que tinha em mente e a excitação que me
percorria o corpo afastava qualquer esperança de dormir. Quando alguém
bateu à porta, abri-a e dei com um servo a segurar um rolo de papel, preso
com um fio de seda.
— Sua Alteza pediu-me que lhe desse isto.
Quando peguei no papel e agradeci, o servo acrescentou:
— Alguém aguarda Sua Alteza no pátio.
Interrogando-me sobre quem seria, saí para o pátio e deparei com uma
rapariga sentada no pavilhão. A sua aura era quente e leve, mas pulsava
com força. Era espantosamente bonita, com olhos estreitos virados para
cima num rosto em forma de coração de feições delicadas. Seda cor-de-rosa
envolvia-lhe o corpo alto e o cabelo escuro estava preso com alfinetes
dourados, de onde caíam fiadas de rubis, que brilhavam com uma chama
interior. Saudei-a com uma vénia. Seria a filha de um cortesão ou uma das
damas favoritas da imperatriz?
— O Príncipe Liwei está aqui?
A sua voz era doce e gentil. Um arrepio inquieto tocou-me no coração,
mas prendei-a com um sorriso agradável.
— Sua Alteza está com Suas Majestades Celestiais. —Quando os seus
ombros descaíram em desânimo, acrescentei: — Posso ajudá-la de alguma
forma?
— Tenho um presente para Sua Alteza, mas posso dar-lho mais tarde.
A rapariga olhou para uma pintura por acabar de um pessegueiro, que
estava em cima da mesa. Alguns pincéis estavam de molho num frasco de
água e um tinteiro de porcelana estava pousado ao lado, ainda húmido de
tinta. Liwei devia ter estado a pintar ali até pouco tempo antes.
— É obra do Príncipe Liwei? — perguntou, percorrendo com o dedo o
contorno dos ramos. — É lindo.
— Sua Alteza tem muitos talentos — assenti.
Quando ela se levantou para ir embora, o seu cotovelo tocou num
pincel. Tinta verde-escura salpicou para cima da pintura.
Ela exclamou e tirou um lenço de seda, limpando furiosamente o papel.
Corri a ajudá-la e derrubei o frasco. A água espalhou-se pela mesa,
encharcando a pintura em segundos. Da árvore outrora pintada com
requinte restavam apenas manchas verde-escuras no papel ensopado.
Os seus dedos torciam o lenço até lhe dar nós, a garganta a formar
palavras que não chegava a pronunciar.
— Deve ter sido o vento — declarei solenemente.
Ela pestanejou para mim.
— Ou um pássaro — concordou depressa.
Os nossos olhos cruzaram-se num profundo momento de entendimento.
Pouco depois, ela partiu, virando-se uma última vez para ver o pátio.
De regresso ao meu quarto, desenrolei o papel enviado por Liwei. Era
um retrato meu, de pé sob uma árvore em flor, com uma flecha assestada no
arco, no momento antes de a soltar. O meu olhar estava fixo no alvo, na
minha boca uma expressão determinada, as costas direitas. A pulsação
acelerou-me ao pensar que ele me via assim: forte e também bonita.
Ao fundo da folha, uma mensagem estava escrita com pinceladas
audazes:

Podes ter vencido o desafio, mas não o prémio principal.

Um sorriso espalhou-se lentamente pelo meu rosto ao recordar o nosso


abraço. Pegando num pedaço de papel, mergulhei o meu pincel na tinta e
escrevi a minha resposta:

Não há prémios no jogo dos corações.

A minha mãe teria ficado satisfeita; a minha caligrafia melhorara.


Dobrando a nota, guardei-a na minha bolsa. Encontraria um momento
oportuno para lho dar durante esta noite.
O Salão da Luz Oriental não tinha teto, abrindo para o céu estrelado. As
paredes de pedra branca estavam raiadas de veios de ouro puro e o chão
pavimentado com lajes de jade esculpidas em forma de flores. Pilares de
cristal reluzente iluminavam a sala, junto com centenas de lanternas de seda
penduradas entre os pilares em tons fogosos de carmesim e escarlate. A
fragrância de flores raras perfumava o ar, misturando-se com os aromas
deliciosos da comida disposta nas mesas de pau-rosa. Os cobiçados
Pêssegos Imortais formavam pilhas altas em travessas de prata, para serem
distribuídos à discrição da Imperatriz Celestial. Apenas um desses pêssegos,
de um marfim cremoso com um rubor divino, tinha o poder de aumentar a
força vital de um imortal ou prolongar a vida de um mortal.
Até no Reino Celestial, tal decadência era rara. Os convidados
ricamente vestidos cumprimentavam-se efusivamente, corados de excitação
e vinho. Eu acabara de chegar e já estava perdida num mar de
desconhecidos.
Alguém me tocou no ombro. Era o General Jianyun, por uma vez sem
armadura, com um quimono comprido em brocado prateado sobre uma
túnica cinzenta. Fechei uma mão sobre a outra e fiz-lhe uma vénia, aliviada
por ver alguém que conhecia.
— É o seu primeiro banquete? — perguntou-.
— Sim. Fui convidada por Sua Alteza.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Então? Já pensou na minha proposta? — interrogou bruscamente.
O meu olhar fixou-se numa laje de jade enquanto procurava uma
resposta. Oh, como teria agarrado uma oportunidade assim com as duas
mãos antes. Mas, agora, um novo receio percorria-me o corpo só de pensar
em ficar separada de Liwei, durante semanas seguidas, talvez até meses.
Não se tratava de ele ter substituído a minha mãe... mas antes de o meu
coração estar dividido em dois, quando anteriormente era um só. Ia aceitar a
proposta, sabia que sim... mas no meu egoísmo, queria um pouco mais de
tempo aqui. O nosso amor era novo de mais, precioso de mais para arriscar
levianamente.
Falaria com Liwei nessa noite, decidi. Depois das festividades, dir-lhe-
ia o que podia sem revelar o nome da minha mãe. Ele entenderia, não me
pressionaria a dizer mais. E, juntos, talvez conseguíssemos encontrar o
nosso rumo.
— General Jianyun, talvez não devêssemos falar de tais assuntos no
aniversário de Sua Alteza.
Esperava que ele me concedesse esse adiamento. O general franziu a
testa, desagradado, mas assentiu e olhou em redor para a sala apinhada.
— Reconhece algum destes pavões?
Uma risada estrangulada escapou-me da garganta, que tentei disfarçar
como tosse.
— Estou há demasiado tempo no exército. Não faço lisonjas nem digo
nada em que não acredite. Acredite em mim, este bando de cortesãos só
serve para vestir penas bonitas e chilrear elogios vazios.
O General Jianyun torceu o lábio em desgosto ao indicar com a cabeça
um homem diante de nós.
— Já aquele ali é mais um corvo matreiro. Leal conselheiro do
imperador, mas os seus conselhos parecem favorecê-lo sempre.
Era raro o General Jianyun falar com tanto desdém de outra pessoa e
interroguei-me sobre quem merecera o seu desprezo. Não conseguia ver o
rosto do homem, apenas a requintada túnica púrpura e as luvas claras que
lhe cobriam as mãos, um acessório incomum que me chamou logo a
atenção. Era o Ministro Wu, que se virou como se tivesse sentido que o
observavam. Ignorou-me, franzindo os lábios ao fazer uma vénia ao
General Jianyun. Ver o ministro deu-me a volta à barriga, despertando de
novo um velho terror.
Estava tão distraída com os meus pensamentos que quase colidi com um
imortal alto que parara à nossa frente, as folhas de bambu bordadas na sua
túnica a restolhar na seda verde. Uma faixa cinzenta prendia-lhe a cintura e
trazia o cabelo penteado num nó luzidio seguro por um alfinete de marfim.
A sua aura envolveu-me, fria e fresca, mas também densa e forte. Como o
vento de outono, repleto de chuva e folhas esmagadas. Os olhos pretos
passaram por mim com pouco interesse quando cumprimentou o General
Jianyun, fechando uma mão sobre a outra e estendendo-as ao fazer uma
vénia.
O desconhecido puxou o general para o lado, o que me deu a
oportunidade de o observar melhor. Comportava-se com a segurança da
autoridade, mas não parecia ser muito mais velho do que eu, a não ser que
fosse um daqueles imortais poderosos que disfarçava mil anos de idade com
a sua força vital. O seu rosto era cativante; maçãs do rosto elevadas, com
um maxilar forte e uma boca bem formada, se bem que um pouco severa.
Não me lembrava de o ver no campo de treinos, mas duvidava que fosse um
cortesão, pela maneira como os olhos dardejavam impacientemente pela
sala, como se toda aquela alegria o aborrecesse.
Dei um passo adiante, tencionando pedir licença para me afastar. Não
era especialmente divertido ser posta de lado, relegada a pouco mais do que
uma peça de mobiliário, mas navegar aquela multidão sozinha também era
intimidante.
O General Jianyun sobressaltou-se, como se tivesse esquecido a minha
presença.
— Ah, Xingyin. Conhece o Capitão Wenzhi?
O célebre oficial? Um dos melhores guerreiros do reino, apesar de ser
apenas cem anos mais velho do que eu? Contudo, antes que o pudesse
cumprimentar, ele virou-se abruptamente, como se estivesse ansioso por me
ver ir embora. Decidi que ele era insuportável, mordendo a língua. Tentando
não deixar que a sua falta de cortesia me afetasse, apesar de estar furiosa
comigo mesma por ter desejado conhecê-lo.
— Xingyin é a companheira do Príncipe Herdeiro — acrescentou o
General Jianyun.
O capitão jovem e arrogante virou-se então para mim, com um súbito
interesse no rosto.
— A que treina com Sua Alteza? A arqueira?
— Sim — respondi com brevidade, ainda irritada com a sua falta de
educação.
— Regressei há apenas uns dias. Vi-a ontem, no campo de treinos,
quando acertou em todos aqueles discos. Nunca vi perícia assim com o
arco.
Um sorriso passou-lhe pelos lábios.
Pestanejei, reconhecendo-o finalmente. O soldado alto que aplaudira
primeiro.
O seu olhar deslizou sobre a seda azul do meu vestido, sobre as
magnólias brancas com centros dourados bordadas na saia. Um cinto de
brocado verde com inclusões de prata estava atado à minha cintura. No
cabelo trazia o alfinete que Liwei me oferecera.
— Peço desculpa por não a reconhecer mais cedo. Com esse vestido,
parece...
Calou-se, com as orelhas coradas.
— Um pavão inútil? — terminei a frase, com um sorriso para o General
Jianyun.
O Capitão Wenzhi não se riu.
— Eu queria dizer que, com esse vestido, não parece a guerreira que é.
O elogio encheu-me de um prazer inesperado. Talvez não fosse tão
insuportável como julgara.
— Gostaria de se sentar connosco? — convidou-me.
Aceitei alegremente. Acabara de avistar o pai da Dama Meiling e tinha
tanta vontade de ficar longe dele como ele de mim.
A nossa mesa ficava à frente, com vista para o palanque, onde uma
mesa de pau-rosa estava posta diante dos tronos de jade branco, ladeados
por tronos mais pequenos de cada lado. Naquele dia, a realeza convidada
teria a honra de se sentar ao lado de Suas Majestades Celestiais, apesar de
nenhum deles ter aparecido ainda.
Um silêncio caiu então sobre a sala. O ar vibrava com poder enquanto a
família imperial entrava e todos se ajoelhavam no chão. Levantei a cabeça
um centímetro para apanhar um vislumbre do imperador que aprisionara a
minha mãe. Mesmo rodeado pelos imortais mais poderosos de todo o
domínio, o Imperador Celestial era ofuscante. A sua aura emanava um
poder impenetrável; o poder de uma montanha de pedra, de um glaciar sem
fim. Dragões azuis e escarlates bordados na túnica amarela e brilhante
voavam pelo meio de nuvens revoltas. A estrutura ornada da coroa de ouro
erguia-se sobre uma base cravejada de joias, de onde caíam fiadas de
pérolas lustrosas. As pérolas baloiçavam-lhe diante da testa, refletindo a luz
a cada movimento. O rosto não aparentava idade, até para um imortal, a
pele lisa desprovida tanto da vitalidade da juventude como do desgaste da
velhice. Na escuridão das pupilas encontrei um fragmento de parecença
com o filho, mas nele as profundezas opacas eram desprovidas de calor.
Não parecia especialmente aterrador, mas algo nele gelou-me o sangue nas
veias.
Liwei parou diante de mim e inclinou a cabeça em cumprimento.
Contudo, o seu sorriso era reservado e o olhar apagado. Desejaria também
estar nos seus aposentos? Queria perguntar-lhe, mas não ali. Não agora. O
simples reconhecimento da minha presença violara o protocolo que requeria
que cumprimentasse primeiro os convidados de honra. Quando ele se
afastou, o meu coração batia descontroladamente enquanto olhava para ele
como uma menininha tonta. Ele estava magnífico esta noite, com um
quimono de brocado azul-escuro a revelar a túnica prateada que brilhava
como se fosse tecida de luz das estrelas. O cabelo estava preso numa coroa
de ouro e safiras, segura no sítio por um alfinete decorativo.
— Os monarcas dos Quatro Mares — informou o General Jianyun, ao
indicar o palanque, compreendendo mal o meu interesse. — É raro vê-los
juntos. As relações têm sido tensas desde que os Mares do Oeste e do Norte
apoiaram o Reino Infernal. Contudo, isso são águas passadas; talvez o
banquete desta noite anuncie um novo começo.
Cada um deles usava vestes esvoaçantes em vários tons de azul e verde,
mas a semelhança parava aí. O cabelo comprido do Rei do Mar do Leste
cintilava como fios de prata contra a pele escura, enquanto os olhos verdes
da Rainha do Mar do Sul brilhavam no seu rosto pálido. Os outros dois
monarcas sentavam-se rigidamente nos seus tronos, um usando uma coroa
de coral, o outro de turquesa e pérolas.
— Quem está sentada ao lado deles?
Fitei uma imortal deslumbrante com joias em forma de flor a reluzir nas
madeixas do seu cabelo.
— A Flor Imortal. Os nossos jardins requintados são o resultado dos
seus esforços. Já a vi devolver a vida a um jardim murcho com um jeito da
mão, apesar de não ser tão poderosa como a sua predecessora — observou o
General Jianyun.
— O que aconteceu à sua predecessora?
Era raro um imortal abandonar a sua posição.
— A Dama Hualing decidiu viver longe do Reino Celestial, na Floresta
da Primavera Eterna. Um sítio que ela cultivou a seu gosto.
Esperei que ele continuasse, curiosa sobre aquela imortal, mas
permaneceu em silêncio, tamborilando os dedos na mesa.
O Capitão Wenzhi falou então.
— Os celestiais não gostam de falar dela. Talvez isso lhes recorde o que
acontece até aos mais poderosos quando perdem o favor do imperador.
O General Jianyun franziu a testa.
— Até os nativos dos Quatro Mares, como o capitão, não desejam
enfurecer o nosso imperador.
Preparava-me para perguntar ao Capitão Wenzhi de qual dos Quatro
Mares era natural quando ele voltou a falar.
— Diz-se que a Dama Hualing se distraiu dos seus deveres e
negligenciou-os durante décadas, até que a corte pediu a Sua Majestade
Celestial que a afastasse da sua posição. Desde então, não voltou a ser vista.
Há centenas de anos.
Interroguei-me porque o imperador não afastara a Dama Hualing mais
cedo, quando parecia não tolerar a mais pequena desobediência noutros.
Mas então todas as cabeças se voltaram para a entrada do salão, sussurros
excitados a percorrer a multidão. Virei-me e vi duas imortais a
aproximarem-se do palanque.
— A Rainha Fengjin e a sua filha, a Princesa Fengmei, do Reino da
Fénix — informou-me o Capitão Wenzhi.
O nome atingiu-me como um soco. A princesa que se dizia estar
prometida a Liwei? Capas cintilantes de penas douradas estavam presas aos
ombros das duas, sobre longos vestidos de brocado carmesim cravejados de
pérolas. Uma coroa de rubis reluzia no cabelo da rainha. Assim que a
princesa ergueu a cabeça, senti um aperto no peito. Era a rapariga com
quem falara no pátio nesse dia, a minha parceira na destruição acidental da
pintura de Liwei. A imperatriz saudou-as calorosamente, erguendo-se para
lhes indicar pessoalmente os seus lugares. Algo apertou com força o meu
coração quando a princesa se sentou ao lado de Liwei, sentado no seu trono
com um rosto esculpido em pedra.
Respirei fundo, determinada a manter o ânimo. Felizmente, o General
Jianyun sabia montes de factos interessantes sobre os nobres convidados e
não hesitou em partilhar. Durante a maior parte do banquete, o Capitão
Wenzhi manteve-se calado, mas solícito das minhas necessidades,
garantindo que a minha taça tinha sempre vinho e colocando as melhores
iguarias no meu prato.
Sempre que levantava o olhar, dava por Liwei a olhar para mim. À
medida que a noite avançava, a sua expressão ficava mais e mais sombria,
como uma noite sem lua, mais carregada do que uma tempestade de
primavera. Nesse momento, parecia mais assustador do que a Imperatriz
Celestial.
O Capitão Wenzhi debruçou-se para mim.
— Porque está Sua Alteza a deitar-lhe olhares zangados?
— Deve estar enganado — respondi rapidamente, tentando esconder o
meu desconforto.
O olhar que me deitou era de pura incredulidade. Mas depois encolheu
os ombros.
— Nesse caso, deve estar a olhar para mim.
Talvez tenha sido o vinho que me soltou a língua, ou a maneira informal
como falou, pois dei por mim a responder:
— Acha a sua aparência assim tão apelativa? Nem toda a gente
desfalece de admiração só de olhar para si.
— Teria todo o gosto em ouvir o que pensa de mim.
As suas sobrancelhas pareceram arquear-se em desafio.
— Mesmo que não lhe agrade?
— Especialmente se não me agradar — respondeu numa voz grave.
Soltei uma risada, um som oco, incapaz de banir um sentimento de
desconforto, de que algo não estava bem. Porque estava Liwei a deitar-me
olhares zangados? Não havia outra forma de descrever os lábios franzidos e
os olhos a fitarem-me como carvões em brasa.
Infelizmente, a imperatriz também reparou. Torceu o dedo na minha
direção, com o dedal pontiagudo de ouro a refletir a luz. Só agora me
apercebia de que não eram meros ornamentos, mas as Garras da Fénix, que
se dizia estarem untadas com um veneno potente.
Levantando-me a custo, caminhei até diante do palanque e ajoelhei-me,
aguardando as suas ordens.
O seu olhar penetrante fez-me pensar num falcão a siar sobre a sua
presa.
— O seu alfinete de cabelo é encantador, um tesouro verdadeiramente
raro. Onde o obteve?
A suavidade da sua voz escondia a lâmina nas suas palavras.
Senti um rubor a aquecer-me a cara enquanto procurava uma resposta.
Uma resposta educada, um comentário espirituoso, qualquer coisa menos o
silêncio prolongado que implicava culpa onde não havia nenhuma.
Liwei ergueu-se e apertou as mãos diante dela, dobrando o corpo numa
vénia.
— Honorável Mãe, foi um presente meu.
— Tem sorte por o meu filho ser tão generoso. Como tenciona retribuir
tal gentileza? — perguntou-me, abrindo os lábios vermelhos num sorriso
sem alegria. — Hoje é o aniversário do meu filho. Que presente lhe trouxe?
Só espero que seja de valor comparável.
Liwei ergueu a voz.
— Honorável Mãe, não há necessidade. Se a ofendi de alguma forma,
peço que fale comigo a sós.
A imperatriz ignorou-o, os dedais a cintilar enquanto tamborilava nos
braços do trono. Queria humilhar-me, anunciar a todos os presentes que o
meu lugar não era ali. Mas não me sentia envergonhada, sentia-me furiosa.
Não só por mim, mas pelas suas ameaças à minha mãe, pela sua tentativa
falhada de destruir o meu pai, pelo seu egoísmo ao não mandar recolher as
aves solares até a tragédia acontecer.
Não, não recuaria sob o seu olhar, não me encolheria perante o seu
desdém. Ergui a cabeça, com um sorriso alegre no rosto.
— Já dei a Sua Alteza o meu presente. Contudo, se desejais que o
partilhe, terei muito gosto em fazer-vos a vontade.
Ela fitou-me como se eu fosse o mais insignificante dos insetos. Com
um aceno imperioso, fez-me sinal que continuasse.
Tirei a flauta da bolsa, os meus dedos tão frios como o jade nas minhas
mãos. A minha língua passou pelos lábios secos e olhei de relance para a
multidão, começando a arrepender-me das palavras temerárias que me
tinham deixado naquela posição. Alguns convidados pareciam aborrecidos,
enquanto outros antecipavam a minha inevitável humilhação. Como poderia
tocar diante de tal assistência? Mal conseguia respirar, as costelas
contraídas como se estivessem a ser esmagadas.
Atrás de mim, ouviram-se passos a ecoar no chão quando alguém se
aproximou. Era o Capitão Wenzhi, com um banco na mão, que pousou
diante de mim.
Baixando-se, segredou ao meu ouvido:
— Quando as linhas de batalha ficam traçadas, avança com clareza de
pensamento.
Engoli em seco, assentindo em agradecimento. As suas palavras deram-
me conforto no meu medo debilitante. Recuar agora seria, de facto, pior do
que falhar. Preferia que a imperatriz considerasse insuficiente o meu talento
musical do que me julgasse covarde ou mentirosa. Deixei-me cair no banco,
grata por me poder sentar e disfarçar o tremor nas pernas. Respirando
fundo, levei a flauta aos lábios. A imperatriz, o imperador, os convidados
reais, tudo desapareceu da minha visão; apenas via os olhos de Liwei a
fitarem os meus. Aquela era a sua música e toquei apenas para ele. As
minhas notas ergueram-se límpidas, fortes e afinadas, refletindo todas as
emoções que ele alguma vez invocara em mim.
Assim que terminei, fiz uma vénia para o palanque e fugi de volta para
o meu lugar. Desejava poder ser engolida pelo chão no silêncio que se
seguiu, pontuado por aplausos esporádicos daqueles que ainda não se
tinham apercebido de que a expressão da imperatriz não era de admiração,
mas de raiva, que transbordava como de uma panela deixada demasiado
tempo ao lume. A minha fúria acalmara e receava agora a sua retaliação.
Não naquele momento, mas mais tarde. Aquele insulto não seria esquecido.
Não fizera nada que ela não me tivesse pedido, contudo, ambas sabíamos
que o meu ato de desafio consistia em não permitir que ela me humilhasse.
Apesar de ela ser a Imperatriz Celestial, também era a mãe de Liwei. Por
ser impulsiva e orgulhosa, emaranhei ainda mais os laços que nos uniam.
Tentei captar a atenção de Liwei, mas então os doces foram servidos e
murmúrios deliciados ergueram-se dos convidados. As doçarias eram
requintadas: bolos de amêndoa em forma de flor, quadrados dourados de
geleia de jasmim, bolas de sésamo estaladiças e pudins de todas as cores do
arco-íris. Mas o meu apetite desaparecera.
A imperatriz sussurrou algo ao esposo, que assentiu. A sua voz grave
trovejou no silêncio súbito no salão.
— Hoje, estamos reunidos para comemorar o aniversário do nosso filho,
o Príncipe Herdeiro Liwei. No entanto, este banquete é uma dupla
celebração. É com igual prazer que anunciamos o seu noivado com a
Princesa Fengmei, do Reino da Fénix. Que possam estar sempre em
harmonia e encontrar a felicidade eterna na companhia um do outro.
Como se estivesse num transe, a minha mão moveu-se por vontade
própria, juntando-me aos restantes convidados num brinde aos noivos. Não
senti o sabor do que bebi, se é que bebi de todo. O anúncio do imperador
cravou-se em mim como uma lâmina no meu peito, torcendo cruelmente ao
penetrar. Não ouvia nada para lá do rugido na minha mente, nem os
parabéns dos convidados, agora de pé, nem os aplausos que ecoavam pelo
salão. Os meus dedos curvaram-se sobre a mesa, as minhas unhas
arranharam a madeira encerada. Lágrimas ardiam-me nos olhos, mas lutei
contra elas, mordendo o interior da minha boca até o sabor quente a sal e
metal me encher a boca.
Um casamento era uma ocasião festiva, vista como um presságio
afortunado. Enquanto os convidados disputavam entre si nos elogios
entusiásticos ao casal, sentei-me atordoada no meu lugar, sem forças sequer
para fugir.
— Que harmoniosa combinação de pérola e jade!
— A Princesa Fénix e o Príncipe Dragão, uma associação
verdadeiramente auspiciosa!
— Veem a beleza de ambos? Um casamento verdadeiramente
abençoado pelos deuses!
Cada palavra era mais um golpe na minha ferida infeta. Olhei para
Liwei, incrédula, quase esperando que ele se levantasse e negasse tudo. Que
dissesse que era tudo uma piada cruel. Mas ele não olhou para mim e os
seus olhos estavam frios, desprovidos de luz. Pior ainda, aceitava as
felicitações dos convidados com um aceno breve. A Princesa Fengmei
corava com toda aquela atenção. Quando ela tocou no braço de Liwei, o
meu coração definhou como uma folha seca largada nas chamas.
Aquilo era real; ele estava noivo de outra. Fui tomada por uma vontade
desesperada de sair dali. Queria estar sozinha, deixar a mágoa jorrar de mim
como um rio para o oceano. Mas esmaguei esse impulso covarde. Não
fugiria, não me esconderia. Quando pensava que desfaleceria com a dor,
uma mão cobriu a minha, firme e forte, o toque frio a penetrar no meu
torpor. Ergui a cabeça e o meu olhar cruzou-se com o do Capitão Wenzhi,
repleto de compreensão. Era um desconhecido com quem nunca falara antes
dessa noite, mas agora era a minha única âncora naquela tempestade
furiosa. Aceitei o seu conforto silencioso, apertando-lhe os dedos, sentindo-
me tão vazia como uma taça de vinho que fora derrubada, vertendo o seu
conteúdo para o solo indiferente.
A noite estava límpida, com um toque de geada, mas eu já estava gelada
por dentro. Sentei-me no pátio, fitando a lua solitária no céu. Poderia a
minha mãe ver-me? Pela primeira vez, esperei que não pudesse. Não queria
que ela sentisse a minha dor, que soubesse como eu fora uma idiota.
Uma sombra caiu sobre mim, mas não olhei para cima. Nem mesmo
quando ele se sentou ao meu lado.
— Xingyin, deixa-me explicar.
Cerrei os punhos no colo, as veias salientes sob a pele. Ver o meu amor
a ser objeto de um jogo frívolo, como uma flor colhida e deixada a murchar
no chão. Eu merecia mais. Tentaria salvar o pouco orgulho que me restava,
pois já perdera demasiado.
— Requereis o meu serviço, Vossa Alteza? Caso contrário, retirar-me-ei
para os meus aposentos.
— Queres ouvir-me?
A luz no seu olhar extinguira-se, afogada num abismo.
Levantei-me, as pernas rígidas como duas pranchas de madeira. Ele
estendeu a mão para o meu braço, mas afastei-me dele, não querendo ser
tocada, muito menos por ele.
— Muito bem — disse ele numa voz tensa. — Podes servir-me esta
noite.
Segui-o em silêncio até ao seu quarto. Acendi as lanternas, avivei as
brasas no braseiro, aqueci um jarro de vinho e levei-lhe uma muda fresca de
roupa. Na mesa, pousei os livros e os materiais para o dia seguinte.
Realizara aquelas tarefas inúmeras vezes, mas nunca com tanta precisão ou
com um coração tão contrariado.
Ele ficou parado, a observar-me com os seus olhos escuros e
inescrutáveis. Quando ergueu os braços, despi-lhe o quimono azul-escuro e
depois a túnica branca e prateada, pendurando-os num cabide de madeira.
Puxei o alfinete de ouro e tirei-lhe a coroa da cabeça. O cabelo caiu-lhe
sobre os ombros, e eu penteei-o com cuidado para não deixar que um único
cabelo me tocasse.
Assim que terminei, fiz uma vénia e virei-me para a porta.
— Não te dei permissão para saíres — disse ele em voz baixa.
— Já realizei todas as minhas tarefas. Que mais desejais de mim?
A minha voz era monocórdica, o meu coração pesado. Não suportaria
aquela farsa por muito mais tempo.
— Senta-te. Ouve. — Em seguida, acrescentou: — Por favor.
Apesar de o meu orgulho vociferar que saísse dali, sentei-me numa
cadeira. Fitando a vela trémula em cima da mesa, decidi que ficaria até se
apagar. Não me teria mais tempo do que isso.
Liwei sentou-se ao meu lado e passou as mãos pelo cabelo. Reparei
friamente que os meus esforços com a escova tinham sido em vão.
— A minha mãe sempre quis reforçar os nossos laços com o Reino da
Fénix. São uma nação poderosa, um aliado desejável e a sua família, apesar
de a Rainha Fengjin ser uma parente distante. Quando as aves solares foram
mortas, abatidas durante o nosso reinado, o laço entre os dois reinos ficou
comprometido.
Respirou tremulamente.
— Foi então que começou a insistir num noivado entre mim e a
Princesa Fengmei. Eu nunca aceitei, apesar de ser o meu dever, o que se
esperava de mim. Não queria casar com alguém que não amasse. Passaram-
se anos e pensava que ela esquecera a ideia. Quando nos separámos, fui ter
com os meus pais, com a intenção de lhes falar de nós. Eles informaram-me
de que um noivado fora acordado nesse mesmo dia entre mim e a Princesa
Fengmei. Claro que recusei! Mas eles explicaram-me a urgência da união.
Mais do que prestígio, tratava-se de assegurar a nossa sobrevivência. O
Reino da Fénix está agitado. Segundo os nossos espiões, os nossos inimigos
têm avançado propostas de aliança contra nós. Não nos podemos dar ao
luxo de perder a amizade do Reino da Fénix agora, muito menos tê-los
como inimigos. Não quando ainda estamos enfraquecidos depois da guerra
com o Reino Infernal. Não quando eles ainda nos ameaçam. A trégua entre
nós encontra-se no mais precário dos equilíbrios e será quebrada assim que
eles ganhem a mais pequena vantagem. Temos a certeza de que estão a
conspirar contra nós neste preciso momento.
Continuou num tom monótono.
— Tenho de proteger o meu reino e a minha família, de todas as formas
que puder. Não posso fazer deliberadamente algo que os possa pôr em
perigo. Não posso ser egoísta, por muito que queira.
O silêncio estendeu-se entre nós, vasto como um abismo sem fundo.
As suas palavras pretendiam ser uma fonte de conforto, mas deixaram-
me destroçada. Talvez tivesse suportado melhor tudo aquilo se ele tivesse
sido forçado. Saber que ele aceitara aquele noivado de livre vontade doía
mais do que um murro na barriga.
Contudo, a lógica era implacável e a razão inexorável, sem a mais
pequena compaixão pelo meu coração ferido. Teria eu feito uma escolha
diferente da que ele fizera? Não teria feito qualquer sacrifício para salvar a
minha família e o meu lar?
Não era suficiente. Não chegava para aliviar a dor no meu peito, o nó na
garganta, a náusea que fermentava no meu estômago. Ele dissera que me
amava, e depois prometeu-se a outra. Estava farta daquelas emoções
coleantes e contorcidas que inchavam e queimavam dentro de mim. Mas
não o deixaria ver o meu desespero; não lhe falaria dele. Não para poupar
os seus sentimentos, mas os meus. Chorar diante dele, rogar e suplicar, isso
não suportaria. Independentemente do que acontecesse, manteria a cabeça
erguida. Fora ao orgulho que me agarrara nos momentos mais difíceis, era a
única coisa que me restava agora.
Mas não era fácil. Fixei o olhar na vela bruxuleante, procurando
acalmar-me. Porque eram os momentos que exigiam mais a nossa força
aquelas em que estávamos mais fracos? Desviei o olhar dele, não por
despeito, mas para esconder as lágrimas.
Lembrando-me do papel dobrado na minha bolsa, retirei-o com dedos
trémulos. A minha piada revelou-se cruelmente profética: de facto, não
havia prémios no jogo dos corações. Fechei a mão sobre o papel,
amarrotando-o numa bola. Que tolice a minha, pensar que tudo se resolveria
como nos livros que lera: a criança perdida era encontrada pela mãe, o
monstro derrotado pelo guerreiro valente, a princesa salva pelo príncipe.
Mas eu não era uma princesa e os contos de fadas não existiam para a
minha laia, nem mesmo no céu.
Sem saber como, encontrei a força para dizer as palavras que
precisavam de ser ditas. Aquelas que o libertariam, que quebrariam o meu
coração.
— Eu entendo. A sério. Mas tenho de partir.
— Não precisas. Terás sempre um lugar aqui.
Ele estendeu a mão para mim, mas recuou no último momento,
fechando os dedos num punho.
Não ficaria mais em dívida com ele, apesar de alguns poderem pensar
que era o meu direito, agora que ele traíra a minha confiança. Mas não
queria trocar por favores os fragmentos do nosso amor. Reunindo os restos
da minha dignidade, envolvi-me num manto de indiferença.
— Que lugar me pode oferecer? Ser uma das suas servas? Alguém para
brincar com as suas futuras crianças? Uma das companheiras da sua
esposa? — A minha risada foi dura e áspera. — Quero mais da vida.
Foi a vez dele de desviar o olhar.
— Para onde vais? Posso ajudar-te a encontrar uma posição. Onde
quiseres.
— Não — retorqui depressa, demasiado depressa.
Teria sido tão fácil aceder, deixar que ele me facilitasse o caminho.
Invadiu-me uma felicidade feroz por não ser obrigada a aceitar a sua
bondade. Por ter conquistado uma posição pelo meu mérito, não pelos
favores dele. Não deveria nada a ninguém. O meu percurso era claro, não
tinha motivos para adiar. Talvez juntar-me ao exército me ajudasse a
esquecer tudo o que acontecera ali. Talvez começar de novo me desse a
oportunidade de me curar.
Tirei o alfinete do cabelo e estendi-lho, as joias límpidas a reluzir com a
luz. Quando ele não o aceitou, pousei-o em cima da mesa. Os meus dedos
moveram-se rigidamente para a gota-celeste, mas hesitei. Isso, guardaria
como recordação. Fora um presente de amizade. O que quer que
acontecesse, ele continuava a ser meu amigo.
Um peso esmagador caiu-me em cima, roubando-me toda a força nos
membros. Talvez fosse o saber que, assim que saísse daquele quarto, seria
para nunca voltar. Que o nosso tempo juntos chegara ao fim. Pensei
amargamente que já devia estar acostumada a afastar-me das pessoas que
amava.
Pondo-me de pé, fechei uma mão sobre a outra e fiz-lhe uma vénia
profunda.
— Vossa Alteza, foi uma honra servir-vos.
Memórias do nosso tempo juntos atravessaram-me os pensamentos: os
anos de amizade, os poucos dias de amor clandestino. Depois, a chama da
vela estremeceu, debatendo-se nos últimos segundos de vida antes de se
contorcer num fio de fumo... o quarto agora mergulhado em escuridão.
O fogo estralejou, disparando faúlhas para o ar. Não estremeci, sentada
no chão a lixar a haste das minhas flechas de forma a tomá-las mais
delgadas. Mais velozes. Não era necessário, mas mantinha-me as mãos
ocupadas e a mente silenciosa. Um canto da minha boca torceu-se num
sorriso trocista. Poucos meses antes, estudava na Câmara da Reflexão e
agora preparava flechas para matar um monstro.
Xiangliu, a serpente de nove cabeças, fugira do Domínio Imortal para o
mundo abaixo. Atormentava as aldeias circundantes, inundando os rios e
arrebatando vítimas para satisfazer o seu apetite insaciável. Guerreiros
mortais tentavam derrubar a criatura havia muito tempo, mas não estavam à
altura da sua força e astúcia. Interroguei-me porque o Imperador Celestial
esperara até agora para enviar as suas forças, tal como deixara as aves
solares andarem à solta por tanto tempo. Não achava que fosse crueldade
deliberada, mas apenas o desinteresse frio com que um mortal poderia
encarar a vida de um inseto, incapaz de compreender o seu sofrimento. Não
era só o imperador; muitos imortais partilhavam esse ponto de vista. Talvez
também eu fosse como eles, se não me corresse sangue mortal nas veias. Se
os meus pensamentos sobre a minha mãe e o meu pai não estivessem
entrelaçados com aquele lugar.
Fitei a montanha que se erguia adiante. Pico Sombrio, era assim que se
chamava. À luz do sol poente, a pedra escura luzia como se estivesse
coberta por uma camada de gordura. Não era nada como imaginara que
fosse o Domínio Mortal quando o observava de cima. Nem uma lanterna a
brilhar, nem um riso de uma criança, nem sequer uma árvore para
embelezar a terra árida. Apenas tensão no ar, um pouco como o momento
antes de uma tempestade rebentar.
Mudei de posição, o metal a cravar-se nos ombros e nas costelas.
Shuxiao não exagerara quanto ao peso. Parecia-me uma piada de mau gosto
que agora usasse a mesma armadura que antes me causara tanto medo. Mas
era por escolha minha.
Recordei a noite em que parti do Pátio da Tranquilidade Eterna.
Determinada a não perder mais tempo, procurei o General Jianyun e aceitei
a proposta de me juntar ao Exército Celestial.
“Excelente”, sorriu o general, uma ocorrência rara. “Já informou Sua
Alteza? Ele devia..
“Sua Alteza já sabe.”
Os meus nervos estavam demasiado em franja para percorrer o trilho
tortuoso da cortesia. Voltei a fazer-lhe uma vénia, esperando que o gesto
suavizasse as palavras que diria a seguir.
“General Jianyun, agradeço-lhe a oportunidade, mas tenho algumas
condições.”
“Oh?”
Aquela única sílaba conseguia transmitir tanto indignação como
divertimento perante a minha temeridade.
“Não preciso de uma patente oficial nem de remuneração. Quero apenas
a liberdade de escolher as minhas próprias campanhas e reconhecimento
pelos meus feitos.”
O meu corpo ficou tenso, preparado para a sua reprovação.
O general franziu os lábios. Estaria desagradado com a minha audácia?
Mas agora sabia o meu próprio valor e não me limitava a sentir gratidão por
me darem uma oportunidade. Não me arrastaria pela hierarquia em nome de
um título irrelevante ou de poder que não desejava. Nem colocaria tão
facilmente o meu futuro nas mãos de terceiros. Aqueles em quem mais
confiávamos podiam desiludir-nos, mesmo que não tivessem intenções de o
fazer, uma lição que aprendera, e bem, com Liwei.
O General Jianyun cruzou os braços sobre o peito, fixando-me com um
olhar severo.
“Não é assim que funciona. Os comandantes escolhem as suas tropas
para cada missão, considerando a experiência e a perícia de cada soldado.
Todos servimos o melhor interesse do Reino Celestial.”
“Tal como eu.”
Que palavras tão vazias. Não fazia aquilo por lealdade ao Reino
Celestial; tudo o que queria era o Talismã do Leão Carmesim. Mas não seria
proeza fácil distinguir-me entre tantos outros guerreiros. Assim, naquela
noite repleta de estrelas, traçaria o meu caminho para brilhar no
firmamento. Perseguiria as oportunidades que achasse que chamariam a
atenção do Imperador Celestial. Ganharia o talismã, a chave para a
liberdade da minha mãe, a única ambição que se mantinha inalterada ao
longo dos anos, agora sem as grilhetas do meu coração fraco. Sentia
vergonha da forma como hesitara antes. Nunca esqueceria a minha mãe,
teria feito tudo o que pudesse para a ajudar... mas a felicidade tem o dom de
embotar a nossa determinação, de amortecer a nossa urgência. Nunca mais,
prometi.
Finalmente, o General Jianyun cedeu. Recebi o título genérico de
“Arqueira” e juntei-me à companhia do Capitão Wenzhi, o único
comandante que conhecia e, mais importante ainda, um oficial célebre que
seria enviado para as campanhas mais importantes.
Contudo, amaldiçoei essa decisão nas semanas que se seguiram,
atirando sobre alvos até me doerem os dedos, lutando até não me aguentar
de pé, tecendo encantamentos até ficar tão seca como um pano espremido.
O Capitão Wenzhi treinava os seus soldados com dureza e todas as noites eu
caía na cama com o corpo sem forças e os músculos em chamas, ansiosa
por me afundar no esquecimento do sono.
Nem o treino era isento de perigo. Pouco depois de me juntar ao
exército, o Capitão Wenzhi levou-me até uma câmara subterrânea iluminada
por tochas bruxuleantes. Leões de pedra cinzenta com olhos salientes
alinhavam-se ao longo das paredes, as mandíbulas abertas a imitar sorrisos
aterradores, como se estivessem a fazer troça de nós. Como me arrepiara a
pele só de os ver. Assim que o capitão saiu e fechou a porta atrás de si,
dardos saíram disparados da boca dos leões, voando para mim mais
depressa do que chuva numa tempestade. Atirei-me ao chão e rolei para
baixo de uma saliência. Mas fui demasiado lenta e dor percorria-me a perna.
Estremeci ao tirar os dardos da minha carne, antes de assestar uma flecha e
atirar na direção de onde vinham os dardos. Mais por acidente do que
desígnio, acertei na boca de um dos leões. As mandíbulas fecharam-se,
pondo fim aos ataques. Só quando atingi todos, com as minhas flechas a
saírem-lhes da boca, é que terminou a barragem de dardos e a porta voltou a
abrir-se.
Senti o sangue a ferver ao avistar o Capitão Wenzhi parado à entrada.
Aquilo fora um teste?
“Porque não me avisou?”, quis saber.
“Numa batalha verdadeira, espera que o inimigo a avise antes de
atacar?”
“O capitão não é meu inimigo.”
Ele inclinou a cabeça para o lado, fixando-me com o olhar.
“Fico contente por pensar assim. Contudo, Arqueira Xingyin, o seu
desempenho foi péssimo.”
Levantei o queixo, ferida no orgulho.
“Acertei em todos os leões. Escapei da armadilha.”
O seu olhar demorou-se nas manchas vermelhas espalhadas pela minha
coxa, com sangue a escorrer em fios finos.
“Isto foi só a primeira fase da Câmara dos Leões e mesmo assim ficou
ferida. Se os dardos estivessem cobertos de veneno, estaria morta.”
Abanando a cabeça, o Capitão Wenzhi atravessou a sala e desalojou as
minhas flechas da boca dos leões. Os dardos voltaram a disparar. Queria
baixar-me, rolar para um sítio seguro, mas ele ficou onde estava e forcei-me
a ficar ao lado dele, com o coração aos saltos ao ver a ponta afiada dos
dardos cada vez mais perto. Quando me preparava para me atirar ao chão,
ele fez um gesto de mão quase negligente. Uma parede translúcida de gelo
surgiu diante de nós e travou os dardos.
O meu orgulho desvaneceu-se como vapor sob uma brisa fresca. Uma
rajada de vento, uma parede de chamas, qualquer um desses encantamentos
teria funcionado! Apesar de ter aprendido a invocar a minha magia sem
esforço, o seu uso ainda não era instintivo para mim. Talvez tivesse vivido
demasiado tempo sem ela. Quando era atacada, o meu primeiro instinto era
retaliar com mãos e pés. Como um mortal, pensei para mim. Fiel às minhas
origens.
A sua voz endureceu.
“Os guerreiros mais poderosos são proficientes tanto em combate como
em magia. Não sobreviveria muito tempo usando apenas as suas
capacidades de combate, nem pode confiar apenas na magia. Se o fizesse,
logo veria a sua energia esgotada. Uma circunstância extremamente
perigosa. Aconteça o que acontecer, mantenha a mente límpida para avaliar
quando usar o seu poder com máximo impacto. Mas não hesite em usá-lo
sempre que for necessário.”
As suas palavras tocaram-me. Ansiosa por provar o meu valor, regressei
a essa câmara sozinha. A cada vez, as armadilhas eram um pouco mais
difíceis; às vezes, espigões saíam do chão ou fogo irrompia das paredes.
Acabava as sessões dorida, com sangue a pingar dos ferimentos. Só mais
tarde descobri que a Câmara dos Leões estava reservada aos guerreiros mais
capazes do exército. Enquanto a maioria demorava meses, às vezes um ano,
a dominar todas as armadilhas, eu demorei algumas semanas.
E estava mais forte, mais rápida, mais poderosa do que alguma vez fora.
Mas estaria pronta para o que jazia adiante? Fitei a montanha escura,
tentando suprimir a náusea que crescia em mim, interrogando-me se fizera a
escolha certa ao ir para ali, a minha primeira batalha contra um monstro tão
temível que o seu próprio nome intimidava imortais.
Alguém se aproximou, passos a pisar a terra. Fiquei contente pela
distração dos meus pensamentos funestos.
— Arqueira Xingyin, andava à sua procura.
O Capitão Wenzhi baixou-se ao meu lado.
— Há coisas que deve saber acerca de Xiangliu.
Comecei a levantar-me para o saudar, mas ele fez-me um gesto para
ficar sentada. Quando estávamos sozinhos, costumava deixar-se cair num
registo informal, raro no Exército Celestial, dominado por patentes e pela
hierarquia. Seria porque tínhamos criado uma ligação durante o banquete,
quando ele me deu forças no momento em que mais precisava? Ou estaria
mais à vontade comigo porque eu não tinha uma patente oficial e não
procurava a sua proteção ou a sua aprovação?
— Das nove cabeças de Xiangliu, só pode acertar numa — revelou ele
abruptamente.
Fiquei quieta, com os dedos à volta da flecha.
— O que quer dizer?
— O núcleo do seu poder reside na quinta cabeça, a do meio —
explicou, fitando as chamas. — Se estivéssemos noutro sítio, poderíamos
atacá-la com magia. Contudo, nesta montanha, os nossos poderes estão
suprimidos.
Fora avisada sobre isso. Quando tentei tocar na minha energia naquele
sítio, vi-a fugir de mim como quando não tinha treino.
— É algum encantamento?
Ele mudou de posição, com as chamas a lançarem-lhe sombras sobre o
rosto.
— Ninguém sabe. Só descobrimos este sítio quando seguimos o rasto de
Xiangliu até aqui. A serpente é antiga e astuciosa; talvez soubesse que aqui
estaria a salvo.
— Não posso atirar sobre todas as cabeças até atingir a cabeça certa?
A irreverência disfarçava o meu desconforto. O mero pensamento de
nove cabeças a rangerem dentes afiados para mim fazia com que sentisse
um arrepio pelos ossos.
— Se assim fosse, teríamos trazido uma dúzia de arqueiros e coberto a
serpente de flechas. Xiangliu estaria morta há muito tempo e não
precisaríamos de si.
— Porque não fazem isso? — retorqui, irritada com as suas palavras.
— As outras cabeças são invulneráveis. Atingir a cabeça errada apenas
antagoniza Xiangliu, deixando-a desconfiada e tornando a nossa tarefa mais
difícil. Na última vez, fomos forçados a retirar quando o nosso arqueiro
ficou incapacitado. Mas a cada batalha aprendemos mais sobre o nosso
inimigo.
Fitei-o, surpreendida. Não me apercebera de que tinham tentado antes.
Talvez apenas as vitórias fossem badaladas, as derrotas rapidamente
abafadas.
— A quinta cabeça tem alguma diferença em relação às outras? —
perguntei.
— Não está coberta de escamas como as outras e a pele é quase como a
nossa. Para destruir Xiangliu, tem de lhe acertar nos olhos, até ao cérebro.
— Fez então uma pausa, antes de continuar. — Infelizmente, as pálpebras
não podem ser perfuradas por armas. Pelo menos, por armas que
conheçamos.
— Só lhe posso acertar nos olhos quando estão abertos? — perguntei,
atordoada.
Ele assentiu tensamente.
— Xiangliu protege-se bem. Pelo que percebemos na última vez, os
olhos só se abrem quando ataca com ácido, o seu ataque mais poderoso. E
mesmo então, apenas pelo mais breve dos momentos.
Pegou num pau e atirou-o para o fogo. O pau estralejou, atirando
faúlhas para o ar, espelhando a minha tensão crescente.
A flecha caiu-me ao chão.
— É tudo?
Como rezava que fosse.
Ele assentiu, como se fosse apenas uma questão de atingir um alvo a dez
passos.
— Porque não me avisou antes?
Amaldiçoei-me secretamente por não ter procurado mais informação
antes. Na altura, não me importara muito. Mas, nessa noite... descobri que
não era assim tão indiferente à minha própria sobrevivência.
— Não duvide de si mesma. Xiangliu não vai escapar desta vez. Temos
tudo o que precisamos — afirmou com uma confiança calma.
— E o que é isso? — perguntei, um pouco desconfiada.
— Dois arqueiros — gracejou.
— Daqui a nada vai ter menos um — ripostei, mal-humorada.
Ele soltou uma risada.
— E rapidez. A sua rapidez, para ser mais preciso. Nunca vi ninguém
atirar tão depressa com tanta precisão. Isso vai ser crucial.
A última frase foi dita num tom lúgubre.
— Podia ter treinado de forma diferente se soubesse o que tínhamos
pela frente.
— Como poderia ter-se esforçado mais do que se esforçou? —
contrapôs ele, falando depois num tom mais gentil. — Não se sente
preparada?
Franzi os lábios. Mais do que medo da serpente, não gostava da
sensação de ser uma peça de xadrez jogada a seu bel-prazer. De me dizer o
que achava que eu devia saber, de me posicionar onde achava que eu devia
ir. Tal era a hierarquia de comando de que Shuxiao me avisara, mas eu não
era uma recruta impotente.
— Da próxima vez, prefiro ser eu a decidir a minha prontidão.
Os seus lábios retorceram-se quando se levantou.
— Boa noite, Arqueira Xingyin. É tarde e os outros já estão todos a
dormir.
Esperava que fosse para a sua tenda, mas em vez disso caminhou para a
montanha, desaparecendo nas sombras. Onde iria àquela hora? A minha
curiosidade debateu-se com a relutância de me intrometer, o meu desejo de
respeitar a sua privacidade venceu. Todos precisávamos de tempo para nós
mesmos. As chamas bruxulearam debilmente antes de desapareceram nas
brasas da fogueira. Sem os assobios e estalidos das chamas, o silêncio era
quebrado apenas pela respiração regular dos outros soldados. Quando o
Capitão Wenzhi finalmente regressou, olhou para mim, sentada no escuro.
— Ainda está acordada? — perguntou, caminhando na minha direção.
— Não estou cansada.
Olhei de relance para as suas mãos, sujas de terra.
— Porque está o capitão acordado? — interroguei, devolvendo-lhe a
questão.
— Precisava de inspecionar o caminho para amanhã. Para ter a certeza
de que não havia surpresas.
Soltou então um suspiro.
— Vá dormir. Amanhã temos pela frente uma escalada íngreme e uma
luta dura.
Deixei-o então, e fui procurar o meu lugar no chão. As noites eram mais
difíceis. Quando me deitava sozinha no chão, as memórias que mantinha
afastadas durante o dia despenhavam-se sobre mim. Memórias de olhos
escuros e calorosos, de um sorriso trocista, que erodiam a carapaça em volta
do meu coração até me deixarem com os braços a abraçar o corpo,
debatendo-me por respirar através da rigidez no meu peito. Talvez fosse
pior agora porque estava no Domínio Mortal, onde a minha mãe e o meu
pai se tinham conhecido, apaixonado e sido felizes. Até chegarem as aves
solares. Até chegar eu.
Certa vez, reunira coragem suficiente para perguntar à minha mãe como
se tinham conhecido. Se não tivesse lido o livro, nunca teria sido tão
ousada. Mas era assim com todo o conhecimento, ter um pouco deixava-nos
apenas com uma sede maior. E descobrira que ela não se importava de falar
do seu passado mortal. Era das memórias que se seguiam que ela se
afastava. Às vezes, sentia que havia duas partes dela, a mortal e a imortal,
das quais a primeira pertencia ao meu pai e a segunda pertencia-me.
Ela ficara encantada ao ouvir a minha pergunta, corando ligeiramente.
“Crescemos juntos numa aldeia à beira-mar”, contara-me. “Ele era o
mais esperto, o corredor mais veloz, o mais rápido com o arco. Não foi uma
surpresa quando os soldados vieram buscá-lo aos dezassete anos para o
recrutar. Ele não se queixou, apenas abraçou a mãe chorosa. Tentei não
chorar também, apesar de nos amarmos um ao outro. Antes de partir,
prometeu que voltaria para mim. Esperei durante cinco anos. Às vezes,
receava que me tivesse esquecido no seu caminho para a glória. Mas isso
não aconteceu.”
Uma nuvem caíra-lhe então sobre o rosto, fazendo-a apertar os lábios
trémulos. Não havia necessidade de ela dizer em voz alta o que ambas
sabíamos: que se tinham separado, mais irrevogavelmente do que se o meu
pai tivesse mudado de ideias e nunca voltado — e agora tinham um céu
inteiro a separá-los.
Com um suspiro, estendi-me no chão frio. Todos os outros estavam a
dormir, como dissera o Capitão Wenzhi. Ainda sentia a mágoa, mas não
apenas pela minha perda. Os meus pais tinham sido separados como um
pêssego cortado em duas metades. O seu amor estava intacto, contudo, não
podíamos estar juntos. Seria isso pior do que a finalidade inevitável da
morte? Não sabia.
Pensei amargamente que, ao contrário de mim, pelo menos a minha mãe
casara-se com o seu amado. Ele fora-lhe fiel. E ela a ele, até ao dia fatídico
em que bebera o elixir. Era aí que todos os caminhos do amor iam dar? À
mágoa, fosse pela separação, pela traição ou pela morte? A alegria
passageira compensaria o desgosto que se seguia? Supunha que dependia da
força do amor, das recordações criadas, que pareciam ser suficientes para
sustentar a minha mãe por décadas de vigília solitária. Contudo, nos meus
momentos de maior desalento, uma escuridão avançava sobre mim,
sussurrando coisas odiosas, que eu era uma tonta, uma fraca, facilmente
descartável. A dor constante teria abrandado se me tivesse rendido ao ódio,
deixando o ressentimento abafar a mágoa, culpando Liwei por todo o
sofrimento que me causara. Mas teria sido um alívio temporário, porque o
que lamentava, mais do que o orgulho ferido, era o amor que perdêramos, o
futuro que já não era nosso.
O vácuo doloroso no meu peito ficou maior. Instintivamente, vasculhei
o céu noturno à procura da lua, deixando que a sua luz suave me tocasse no
rosto, um bálsamo para a minha dor. Fechando os olhos, quase conseguia
imaginar que era o toque da minha mãe. Cravei as unhas na palma das
mãos. Eu era mais do que um amor amaldiçoado; não deixaria que isso me
definisse. Tinha uma família em que pensar, sonhos para realizar... e uma
serpente de nove cabeças para matar no dia seguinte.
A luz do sol incendiava a montanha com um brilho ominoso. Rilhei os
dentes e puxei-me para cima, logo atrás do Capitão Wenzhi enquanto
escalávamos a encosta. Suor escorria-me pela testa, pelo pescoço e pelas
costas, cravava os dedos na pedra fria para me segurar à superfície
escorregadia. Olhei para baixo, o solo tão distante que me deixou a cabeça a
andar à roda. Pela centésima vez, assegurei-me de que era pouco provável
que uma queda no Domínio Mortal se revelasse fatal, apesar de, mais do
que nunca, desejar poder invocar uma nuvem.
— Chegámos.
O Capitão Wenzhi subiu para uma saliência.
O resto da companhia seguiu-o. O Arqueiro Feimao foi o último a
aparecer, corado, com a armadura brilhante raspada aqui e ali. Teria caído?
Felizmente, não parecia estar ferido. No final da saliência, erguia-se uma
brecha escura, suficientemente alta para conseguirmos entrar sem nos
curvarmos. Xiangliu escolhera bem o seu covil. Não só estava protegido de
magia, como o terreno rochoso com caminhos estreitos e passagens
apertadas tomava impossível um ataque frontal.
O Capitão Wenzhi esperou que estivéssemos todos juntos antes de nos
falar num tom firme.
— Fiquem em alerta. Xiangliu é rápida e poderosa, com presas mais
afiadas do que facas, e a pele está protegida por escamas impenetráveis.
Com nove cabeças, pouco escapa à sua atenção. E façam o que fizerem, não
a olhem nos olhos.
— Porquê? — perguntei, temendo já a resposta.
— Podem ficar paralisados.
Um silêncio tenso caiu sobre nós, pontuado pelo arrastar de pés. Não era
de espantar que aquela criatura tivesse iludido a morte durante tanto tempo,
mesmo após merecer a ira do Imperador Celestial.
O Capitão Wenzhi prosseguiu, falando agora mais devagar.
— Foquem os vossos ataques na barriga, o seu ponto mais vulnerável.
Não a vai matar, mas vai causar-lhe dor. O nosso objetivo é distraí-la e
ameaçá-la, até ela soltar o ácido. É nesse momento que o nosso alvo fica
vulnerável, é nesse momento que os arqueiros vão atacar. Ao meu sinal,
vamos avançar em dois grupos, flanqueando-a e empurrando-a para a
entrada, onde os arqueiros vão estar emboscados. — Olhou então para mim
e para o Arqueiro Feimao. — Não ataquem se não for estritamente
necessário. Mantenham as flechas assestadas, prontas para atirar. Não
vamos ter muitas oportunidades. Mantenham-se firmes, façam pontaria,
lutem em conjunto.
A um só tempo, fizemos uma vénia com uma mão a agarrar a outra.
Quando endireitámos as costas, erguíamo-nos um pouco mais altos. Sentia-
me tensa como uma mola quando fitei os rostos sérios em meu redor.
Aquilo não era uma sessão de treino que podia repetir quando quisesse. O
mais pequeno lapso podia fazer a diferença entre a vida e a morte, e não só
para mim.
Abandonámos a segurança da saliência banhada pelo sol e deslizámos
para dentro da gruta. Era enorme, erguendo-se a uma altura tal que não
conseguia ver o teto na escuridão. Parei de costas para a luz e o Arqueiro
Feimao fez o mesmo a pouca distância de mim. Inalei profundamente,
quase me engasgando quando o ar húmido entrou para os meus pulmões,
com um aroma a sal, terra e o fedor de carne putrefacta. Adiante, a mão do
Capitão Wenzhi ergueu-se em aviso. Gesticulou para o centro da caverna,
submerso em água preta como tinta. Os soldados seguiram a sua indicação,
movendo-se para o lado e pisando os ossos espalhados com um desinteresse
quase cruel.
Estreitei os olhos e avistei um vulto enorme agachado na água, tão
quieto que mal fazia ondas. Estaria a criatura a dormir? Limpei as mãos,
húmidas de suor, antes de assestar uma flecha. Atirara flechas contra
inúmeros alvos de metal, madeira e pedra... mas nunca contra uma criatura
de carne e osso. Engolindo em seco, o meu olhar cruzou-se com o do
Capitão Wenzhi. Assenti e o Arqueiro Feimao fez o mesmo, indicando a
nossa prontidão. Quando o assobio baixo do capitão quebrou o silêncio, os
soldados carregaram em frente, com os pés a bater no chão.
Luzes vermelhas ganharam vida, como pirilampos a dançar acima da
água. Só que que estavam engastados em cabeças que se ergueram quando
Xiangliu se desenrolou em toda a sua altura, quase tão alta como um
cipreste. Nove cabeças cresciam do corpo cilíndrico, cada uma saída de um
pesadelo, cada uma a dardejar com vida própria. Oito estavam cobertas de
escamas pretas, com olhos flamejantes e presas brancas como osso, luzindo
com um líquido espumoso. Uma tinha a pele de um imortal pálido, mas
atravessada por linhas escuras como porcelana estalada. Lábios entreabertos
deixavam ver dentes acinzentados, e no sítio onde deviam estar os olhos
viam-se duas covas suaves, como buracos no chão apenas parcialmente
cheios. Dava a sensação arrepiante de um rosto arrancado a um imortal e
vestido sobre a serpente como uma luva.
Senti um calafrio pela espinha e agarrei com mais força no arco. Os
soldados correram para a água de espadas erguidas. As mandíbulas da
criatura mordiam ferozmente enquanto meneava a cauda com espigões para
os inimigos mais próximos, arremessando-os contra a parede rochosa. Os
soldados chocaram com estrondo e os seus gritos ecoaram nos meus
ouvidos. Quando uma das cabeças de Xiangliu se baixou, as presas afiadas
cravaram-se no pescoço de um soldado. O homem gritou em agonia,
golpeando com a lâmina no rosto escamoso da serpente.
— Não! — gritou o Capitão Wenzhi.
Era tarde de mais, as cabeças de Xiangliu juntaram-se para formar um
escudo à volta da cabeça principal, como as pétalas de uma flor a fecharem-
se num botão. A serpente saltou para fora de água com uma agilidade
surpreendente, salpicando gotas por todo o lado. Fria e tresandando a morte.
Os soldados continuaram a atacar. Uma cravou a espada na barriga da
criatura. Xiangliu soltou um guincho, um som selvagem, ao deslizar para a
entrada, erguendo-se até ficar acima de mim e do Arqueiro Feimao. Contra
a luz do sol que entrava pela gruta, as escamas brilhavam como ónix.
O medo cortou-me o coração; não a picada insidiosa do desconhecido,
mas um terror paralisante pela minha vida. Um instinto primitivo tomou
conta de mim, os meus ouvidos surdos para os avisos do Capitão Wenzhi,
os meus dedos soltando a corda enquanto as flechas voavam. Mesmo que a
atingisse, amaldiçoei-me por não ficar escondida como me tinham
instruído. Por chamar a atenção da serpente, em vez de emergir no
momento oportuno para dar o golpe final.
Uma das cabeças de Xiangliu baixou-se e arrancou a minha flecha,
atirando-a para o lado num gesto quase desdenhoso. As restantes rodearam-
me, fitando-me com aqueles olhos incandescentes. Fiquei paralisada, só
agora reparando nas minúsculas escamas perladas que cobriam as cavidades
oculares da cabeça principal, mal percetíveis no escuro.
— Desvia o olhar! — gritou o Arqueiro Feimao, gesticulando para mim.
Cambaleei para trás no momento em que um soldado arremessou a sua
lança à barriga da serpente. O grito de Xiangliu rasgou o ar e a cabeça do
meio ergueu-se, abrindo as pálpebras para revelar dois carvões
incandescentes. O seu centro nevrálgico! As oito mandíbulas de Xiangliu
escancararam-se, cuspindo um líquido esverdeado e espumoso pela caverna,
acre e azedo. Os soldados atingidos pelo ácido soltavam gritos angustiados,
caindo ao chão e contorcendo-se de agonia. O ácido salpicou-me o braço,
espumando enquanto corroía o tecido, com bolhas a formarem-se na minha
pele como papoilas carmesins. Teria gritado até ficar rouca, mas a agonia
escaldante, a sensação da pele a soltar-se da carne, tirou-me todo o ar dos
pulmões.
Cerrando o maxilar até julgar que iria estalar, procurei uma nova flecha
e assestei-a no arco. O Arqueiro Feimao olhou para mim, fazendo-me sinal
para atacar... mas estava a tremer demasiado devido à dor e ao terror.
Percorria-me a dúvida que iria falhar, que seria um fracasso, que deixaria
mal todos os que dependiam de mim. A flecha do Arqueiro Feimao voou
pelo ar, precisamente quando as orbes reluzentes desapareceram, a haste a
chocar com as pálpebras da serpente e desfazer-se em pedaços.
Nove bocas curvaram-se em sorrisos arrepiantes, os olhos vermelhos a
brilhar com malícia quando se fixaram em nós. Soldados correram para
diante e a cauda de Xiangliu estalou como um chicote, atirando-os para
longe. Eu e o Arqueiro Feimao recuámos, mas duas das cabeças da criatura
caíram sobre nós e cravaram as presas nos ombros dele. Ele gritou e
contorceu-se em agonia, com sangue a jorrar das feridas.
Queria curvar-me e deixar jorrar o conteúdo do meu estômago. Queria
chorar pela dor dele e dos outros, selvaticamente castigados por aquela
criatura cruel. Mas o terror fechara-me a garganta, não conseguia sequer
gemer. Xiangliu deslizou para mais perto, uma das suas cabeças a arquear
na minha direção com uma elegância lânguida. Tão perto que conseguia ver
o meu reflexo naquelas orbes carmesins. Uma fadiga estranha caiu sobre
mim. Soltei os dedos do arco e deixei-o cair ao chão. Os olhos da serpente
cintilaram quando abriu a boca. Presas de um branco imaculado pingavam
um líquido espumoso. Quando o hálito podre quebrou o encanto sobre mim,
recuei, pestanejando de confusão. Consegui pensar claramente de novo e
baixei-me para recuperar o arco.
Alguém gritou, o Capitão Wenzhi, correndo na nossa direção de espada
erguida. Golpeou a barriga da serpente e Xiangliu soltou um rugido de
raiva, virando as cabeças para ele.
— O alvo! — gritou, erguendo o escudo para se defender das
mandíbulas da criatura.
As pálpebras perladas abriram-se. Carvões incandescentes voltaram a
brilhar, como brasas na escuridão. As mandíbulas do monstro
escancararam-se, jorrando ácido que me salpicou as mãos e um pouco no
meu peito, onde ardia como fogo e gelo. Ondas negras de agonia
percorriam-me a consciência, arrastando-me para baixo... mas a imagem do
Capitão Wenzhi a batalhar com o monstro acendeu em mim um desejo feroz
de não o voltar a desiludir.
Contraí os músculos das pernas e esforcei-me para me manter firme,
combatendo o impulso de vomitar com o fedor a carne chamuscada.
Tirando duas flechas da aljava, assestei-as na corda do arco. A cabeça de
Xiangliu virou-se para mim e os braços tremiam enquanto procurava um
tiro desimpedido, o meu olhar fixo nos olhos flamejantes, tudo o resto
desfocado. As minhas flechas voaram pelo ar e atingiram o alvo com um
esguicho enjoativo.
Ficou parada, oito pares de olhos cor de rubi a piscar rapidamente.
Quando começava a pensar que falhara o alvo, um estremeção violento
percorreu o corpo da serpente e as cabeças caíram para trás, os pescoços a
enrolarem-se uns nos outros quando colapsou para o chão. Poeira ergueu-se
no ar.
O silêncio súbito era chocante, desprovido de gritos e gemidos, do som
de carne a rasgar. Trocámos olhares atordoados, mal podendo acreditar que
o horror chegara ao fim. Estávamos vivos. Feimao deu-me uma palmada
nas costas, o sorriso a transformar-se numa careta quando levou a mão ao
ombro. Alguém se riu, alguém aplaudiu. Um sorriso rígido abria-se no meu
rosto, apesar de não sentir vontade de celebrar. Os meus braços estavam
cobertos de pústulas, mas senti um nó na barriga ao ver o Capitão Wenzhi.
As partes do seu corpo que eu conseguia ver estavam cobertas de
ferimentos bem piores do que os meus.
— Lamento.
A minha voz soou rouca quando olhei para Feimao e para os outros
soldados feridos.
— Desperdicei a primeira oportunidade, perdi a coragem. Se não
tivesse...
— Arqueira Xingyin, pare de pedir desculpa — disse o Capitão Wenzhi,
num tom severo, mas não cruel. — Nenhuma batalha é perfeita; poucas
coisas correm como planeado. O que importa é que Xiangliu está morta e
que todos saímos daqui pelo nosso próprio pé.
Escrutinou então os meus ferimentos, franzindo os lábios, com
desilusão, pensei. Em vez de me admoestar, pegou num pequeno frasco de
jaspe e deixou cair nos meus braços várias gotas de um líquido amarelado.
O aroma apaziguante a menta e ervas aromáticas cortou o ar fétido e uma
frescura penetrou-me na pele, fazendo a dor reduzir-se a um latejar fraco.
— Isto apenas atenua a dor — explicou, dando-me o frasco. — Não
tente curar-se a si mesma. O ácido de Xiangliu tem um veneno que precisa
de tratamento adequado. Quando voltarmos, envio-lhe um curandeiro.
— Chame um curandeiro para si também. Está em pior estado do que
eu.
Apontei para os seus ferimentos.
Então, perdi a força nas pernas, traindo as minhas palavras duras
enquanto caía ao chão. Atingida por uma onda de náusea, pressionei a
cabeça contra os braços. Tínhamos vencido, mas onde estava a excitação
por ter atingido o alvo? Havia um alívio inegável por tudo ter acabado, sim,
mas estava enlaçado com um aperto feroz no meu peito. Seria piedade? Pela
criatura cuja vida tomara? Pior ainda, enterrada mais fundo, seria...
vergonha? Por ter matado com tanta facilidade. E por saber que o voltaria a
fazer.
O Capitão Wenzhi baixou-se ao meu lado.
— Fica mais fácil — disse-me, como se conseguisse ler os meus
pensamentos.
— Isso também me assusta — admiti, hesitante.
— Xiangliu devorou inúmeros mortais. Se não tivesse sido travada, teria
matado ainda mais.
Aquelas palavras deram-me conforto. Pelo menos, o suficiente para a
minha respiração abrandar e a tensão aliviar. Levantando-me com
dificuldade, fitei o corpo sangrento da serpente. Sangue escorria-lhe dos
olhos e entranhava-se no solo. Era um monstro, não pela sua aparência, mas
pelo que fizera. Agarrando-me a isso, algo endureceu dentro de mim. Não
lamentaria o que voltaria a fazer, as vezes que precisasse de o fazer.
Nesse instante, uma sensação estranha puxou pelo limiar da minha
consciência. Virei-me para trás e avistei algo cintilante nas profundezas da
caverna, visível apenas agora que o sol da tarde brilhava naquele ângulo.
— Capitão Wenzhi, o que é aquilo lá ao fundo?
O seu olhar seguiu o meu.
— É um reflexo da luz?
— Não me parece. Não sente nada a vir dali? — perguntei.
Quando ele abanou a cabeça, mordi o lábio, interrogando se estaria
enganada. Contudo, lá estava a sensação, a puxar-me pela mente. Aquela
consciência ténue e elusiva.
— Vou inspecionar e volto mais tarde — decidi.
— Vou consigo. E se Xiangliu tiver uma irmã? — sorriu ele.
Estremeci.
— Desde que não coma mortais, podemos deixá-la em paz.
Avançámos pela passagem estreita até ao fim da gruta, atravessando um
ribeiro raso até emergirmos numa caverna. Um poço no teto deixava entrar
a luz do sol, que reluzia sobre um monte de tesouros cintilantes. Fios de
pérolas, ornamentos de jade e joias do tamanho do meu punho estavam
empilhadas no chão, de forma tão descuidada como se fossem ramos, folhas
e pedras.
— O que é isto? — perguntei quando recuperei a fala.
— Espólios das vítimas de Xiangliu?
O Capitão Wenzhi baixou-se para inspecionar alguns dos objetos.
— Não, alguns são do nosso domínio. Xiangliu deve tê-los trazido com
ela.
Peguei numa arca pequena e abri a tampa. Dentro jazia um colar de ouro
cravejado de pedaços de âmbar.
Ele ergueu o colar.
— Um amuleto de magia de Terra.
— Como sabe isso? — interroguei, curiosa.
— O âmbar é o tesouro sagrado das árvores — explicou, deixando o
colar cair de volta para a caixa. — Vou oferecê-lo a Sua Majestade
Celestial.
Abrimos mais algumas arcas, atirando para o lado um magnífico colar
de rubis, uma esfera lisa de lápis-lazúli com veios de ouro e um ornamento
de prata em forma de espanta-espíritos. Quando passei o dedo pelo
ornamento, uma melodia tilintante encheu a caverna.
Gesticulei para o tesouro cintilante.
— O que vamos fazer com tudo isto?
Os imortais tinham pouco necessidade de riqueza material, para lá de
motivos de ornamentação ou vaidade. Magia, título, linhagem, esses eram
os verdadeiros determinantes de poder no Reino Celestial.
O Capitão Wenzhi encolheu os ombros.
— Vou levar algumas peças para a coleção de Suas Majestades
Celestiais e cada soldado pode escolher uma recordação de uma vitória
difícil. Quanto ao resto, esteja à vontade para fazer o que achar melhor.
Foi então que a vi, uma caixa grande de madeira num canto da caverna,
a sua simplicidade em contraste com os tesouros inestimáveis em redor.
Quando me aproximei, o puxão invisível na minha mente ficou mais forte,
como se estivesse a sentir a aura de um imortal, uma aura que chamava
apenas por mim. Baixando-me, levantei a tampa, a pulsação acelerada com
o que vi lá dentro: um arco com uma cintilante corda dourada, esculpido em
jade verde. Um dragão, a cabeça magnífica numa das pontas, arqueando até
à cauda na outra. Quando toquei na pedra fria, um impulso de poder
percorreu-me como se tivesse mergulhado o braço numa cascata impetuosa.
Algo reagiu dentro de mim, como se tivesse encontrado algo que não sabia
ter perdido. Erguendo o arco, puxei a corda, quase o deixando cair quando
um ténue feixe de luz se formou entre os meus dedos. Não magoava,
emitindo antes um formigueiro agradável que crepitava antes de
desaparecer.
— Fogo-celeste — exclamou o Capitão Wenzhi.
O arco caiu-me das mãos. Dizia-se que era um grande poder, um poder
empunhado pelo Imperador Celestial, do qual um só golpe podia ferir-nos
gravemente, até mesmo pôr fim às nossas vidas.
Os seus olhos iluminaram-se quando se baixou para o apanhar.
— O Arco do Dragão de Jade — murmurou, passando a mão pelos
detalhes esculpidos.
O reconhecimento na sua voz sobressaltou-me.
— Como sabe? Já o viu antes?
Ele encolheu os ombros.
— Existem poucas armas de fogo-celeste, e apenas um arco.
— Porque desapareceu o relâmpago?
Estava intrigada, pois não soltara a corda. Uma expressão pensativa
passou-lhe pelo rosto.
— Talvez os seus poderes não sejam ainda suficientemente fortes para o
empunhar.
Ele parecia calmo, mas a sua respiração ficou mais rápida. Erguendo o
arco, puxou a corda dourada. Os músculos nos seus braços contraíram-se
com força, mas a corda não se moveu, enquanto para mim se vergara como
um fio de seda. Assim que ele o pousou no chão, o arco saltou para as
minhas mãos como se o tivesse puxado.
Ele ergueu a cabeça, fitando-me intensamente. Abalada, guardei o arco
de volta na caixa e passei-lha para as mãos. Um chocalhar intenso irrompeu
do interior.
Ele franziu a testa e devolveu-me a caixa. O chocalhar parou.
— Fique com isto por enquanto, até decidirmos o que fazer. Parece que
o arco formou uma ligação consigo e é uma arma demasiado poderosa para
deixar por aí.
Um arrepio percorreu-me ao ouvir aquelas palavras. Por algum motivo,
dei por mim relutante em separar-me do arco, mas forcei-me a perguntar:
— Será melhor devolvê-lo ao Reino Celestial?
— O arco não pertence ao Reino Celestial. Ouvi dizer que o dono
desapareceu há muito tempo. Mantenha-o a salvo e bem escondido, até
descobrirmos a quem o devemos devolver. — Os seus olhos fitaram-me
com uma intensidade súbita quando acrescentou: — Não fale disto a
ninguém.
Assenti, apesar da inquietação que me apertava o estômago. Temeria
que o Imperador Celestial pudesse reivindicar o arco? Contudo, era
seguramente a coisa certa a fazer, devolver o arco ao seu dono.
Ao fitar o resto do tesouro, ocorreu-me uma ideia.
— Vamos distribuí-lo pelos aldeãos que Xiangliu atormentou. Apesar de
nada poder compensar a perda de pessoas amadas, pelo menos vai tornar as
suas vidas mais fáceis.
Ele assentiu.
— Faça a sua escolha. Vou chamar os outros.
Baixei-me e apanhei uma pulseira de ouro cravejada de coral, cujas
cores brilhantes me lembravam Shuxiao. Guardei-a no meu cinto.
— A minha amiga vai gostar disto.
— Nada para si? — perguntou ele.
Hesitei antes de pegar num colar de safiras, o brilho azul das pedras
como o da coroa de Liwei. Então, o colar escorregou-me dos dedos e caiu
pesadamente ao chão.
— Não frequento banquetes nem grandes eventos. Mesmo que o fizesse,
tenho tudo o que preciso.
Pensei no medalhão que usava, que nunca tirava. Dava-me uma
sensação de pertença, saber que pertencera ao meu pai e que os dedos da
minha mãe o prenderam ao meu pescoço.
O Capitão Wenzhi ficou em silêncio por um momento, antes de
caminhar até à entrada da caverna para chamar os outros. Quando se
juntaram a nós, os outros soldados arregalaram os olhos. Até para imortais,
este não era um tesouro vulgar. Enquanto escolhiam alfinetes cravejados de
joias, colares de pérolas e âmbar e pulseiras de jade, o capitão selecionou
vários objetos para o Tesouro Imperial e para os soldados que tinham
regressado mais cedo.
Aqueles que ainda podiam trabalharam pela noite dentro, guardando o
ouro e as joias. Quando finalmente saímos da caverna, olhei de relance para
o vulto imóvel no chão. Sustive a respiração, tentando ignorar o travo
metálico da terra ensopada em sangue.
A madrugada coloria o céu de um cinzento nebuloso quando
entregámos o último tesouro aos aldeãos. Deixei-me ficar para trás,
observando quando uma porta se abriu e uma idosa saiu, a primeira mortal
que via de perto. Tinha a pele enrugada e olhos amarelados com papadas
pendentes. As roupas esfarrapadas que lhe cobriam o corpo ofereciam
escassa proteção do vento frio e as mãos seguravam uma pá suja de terra.
Estaria a preparar-se para começar a trabalhar àquela hora matinal?
Tropeçou na caixa à entrada, debruçando-se para pegar nela. Ficou
boquiaberta e arregalou os olhos ao ver o tesouro que continha. Um grito
agudo escapou-lhe dos lábios e senti-me trespassada pelo som. Abraçando a
caixa, correu pelas ruas com forças renovadas, gritando aos vizinhos que
acordassem. Portas abriram-se e ouviram-se gritos à medida que os tesouros
eram descobertos. Alguns dos aldeãos caíram de joelhos a murmurar preces
de gratidão, enquanto outros choravam e abraçavam-se entre si. O ar
vibrava de alegria e alívio... pois talvez aquele inverno pudesse não ser tão
cruel.
Pensei que éramos magnânimos ao oferecer tal fortuna, mas aquele
calor no meu coração parecia-me ainda mais precioso. Quando alguém
parou ao meu lado, engoli o nó na garganta. Olhando de relance para o
Capitão Wenzhi, avistei um sorriso no seu rosto impassível. Os olhos
escuros refletiam o brilho dourado do sol quando os seus raios caíram sobre
nós, anunciando uma nova alvorada.
Já não havia lagos prateados ou jardins repletos de flores para agraciar a
minha vista; o meu pequeno quarto dava para as muralhas do palácio. Mas
merecera-o pelos meus esforços, não pela graça de outra pessoa. Nas noites
em que a minha mente inquieta afastava o sono, subia até ao telhado para
observar as estrelas acima e as luzes cintilantes do reino abaixo. Às vezes,
adormecia em cima das telhas frias de jade, embalada pelo brilho prateado
da lua. Lembrava-me as lanternas do meu lar, cuja luz brilhava pela janela
do meu quarto quando estava deitada na minha cama de cânfora.
Na privacidade do meu quarto, despi a roupa, ansiosa por lavar o sangue
e o suor do corpo. O bálsamo do Capitão Wenzhi começava a perder efeito.
Quando me deixei afundar na água quente do banho, senti um ardor nos
braços. Cerrando os dentes, esfreguei-me zelosamente. A seguir, vesti uma
túnica branca e deixei-me cair na cama, esperando descansar até à chegada
do curandeiro.
O sono envolveu-me. Quando acordei, o sol escurecera para um tom de
âmbar. Sentei-me e estiquei os braços, preparando-me para a dor, mas não
senti nada. Não restava a mais pequena marca ou pontada de dor. O
curandeiro devia ter vindo enquanto eu dormia.
— Descansaste bem?
A voz sobressaltou-me, uma voz que conhecia tão bem como a minha
própria. Senti a pulsação a acelerar quando me virei lentamente.
Liwei estava sentado à mesa, calmo, como se tivéssemos estado juntos
no dia anterior e não meses antes, como se as últimas palavras que
trocáramos não tivessem estado sufocadas de dor e pesar. Uma corrente de
elos de ónix cingia-lhe a cintura da túnica cinzenta e um anel de prata
prendia-lhe o cabelo comprido. Estava tal qual me lembrava, exceto o rosto,
mais magro, e os olhos, mais escuros... ou talvez fosse a luz neles que se
apagara.
Assumi uma expressão de indiferença, mas por dentro... era uma
confusão de emoções emaranhadas a contorcerem-se. Levantando-me da
cama, fiz-lhe uma vénia formal.
— Não precisas de fazer isso — disse ele numa voz tensa.
— Não teria de o fazer se não tivesse entrado sem ser convidado.
Apertei melhor as lapelas da minha túnica.
— Liwei, isto é muito inapropriado. Não estou vestida. Aqui são os
aposentos dos soldados e... não é lugar para si.
Quando ele não deu sinais de partir, fui até ao roupeiro e vesti a
primeira roupa que encontrei, uma túnica verde que vesti à pressa, atando
um cinto à cintura. Não querendo ficar no banco ao lado de Liwei, voltei a
sentar-me na cama.
— Porque estais aqui, Vossa Alteza?
— Chamaste-me Liwei agora mesmo — observou.
— Um erro — admiti. — Sois o Príncipe Herdeiro. Eu sou um soldado.
Para mim, sois “Vossa Alteza”.
Os dedos esbeltos brincaram com a taça em cima da mesa.
— Ouvi dizer que tinhas regressado. Queria ver-te, saber que não
estavas ferida. — Em seguida, franziu a testa. — Os teus ferimentos eram
graves. Porque não te curaste a ti mesma?
— O meu talento de cura é, na melhor das hipóteses, rudimentar. E com
o veneno da serpente, o Capitão Wenzhi achou melhor que os meus
ferimentos fossem tratados por um curandeiro.
Não o olhei nos olhos. Vê-lo quebrava a carapaça à volta do meu
coração e reavivava a dor que havia muito lutava para suprimir.
Ele clareou a garganta.
— Creio que estás de parabéns. Ouvi dizer que derrubaste Xiangliu com
duas flechas ao mesmo tempo.
Ele soou satisfeito. Até mesmo orgulhoso.
— Não fui só eu. Se não fossem os outros, não teria saído de lá com
vida — disse com sinceridade.
O seu rosto ficou pálido, mas não me permiti tirar ilações da sua
preocupação.
— Vossa Majestade, agradeço-vos a visita, mas desejo descansar. Tende
a bondade de sair.
Indiquei as portas com uma mão, temperando a minha rudeza com uma
vénia curta.
Ele não se levantou. Não falou. Teria ficado ofendido? O mordomo teria
tido uma apoplexia ao ouvir a minha falta de respeito. Mas então ocorreu-
me, como poderia ter visto os meus ferimentos se...
— Fostes vós quem me curou?
O seu olhar fixou-se no meu.
— Sim.
A minha mente rebelde invocou a imagem dele sentado na minha cama,
as mãos a deslizar sobre os meus braços enquanto canalizava por elas a sua
energia curativa.
— Não vos pedi que o fizésseis. Mas agradeço-vos.
— Não tens de agradecer — disse ele. — Tens andado bem?
Recordei as inúmeras noites sem dormir desde que o deixara, a mágoa a
corroer-me o coração. As lágrimas que engoli até secarem de vez. Esses
eram os meus segredos, enterrados sob o meu sorriso.
— Sim — menti descaradamente. — O treino mantém-me ocupada. O
Capitão Wenzhi é um comandante exigente.
Ele cerrou o maxilar e uma aridez desconhecida entrou-lhe para a voz.
— Sim, o Capitão Wenzhi presta-te muita atenção. Uma pessoa
interroga-se porque dedica tanto tempo e esforço a uma só recruta.
A insinuação deixou-me a ferver por dentro. Se estava com ciúmes, não
tinha esse direito.
— Porque estais aqui? — voltei a perguntar, num tom mais ríspido do
que antes.
A sua mão formou um punho sobre a mesa.
— Não devia estar aqui. Mantive-me longe tanto tempo quanto pude.
Mas quando foste para o Domínio Mortal, não consegui conter o receio de
que pudesses estar em perigo. De que pudesses não regressar.
A confissão cortou a direito pelas minhas defesas cuidadosamente
erigidas. Como odiava aquela fraqueza que se agitava em mim, aquele
anseio fútil pelo que se perdera. Como seria fácil admitir a dor no meu
peito, estender-lhe a mão como tantas vezes sonhara. Mas ele estava
prometido a outra e eu não me contentaria com menos do que eu tinha para
dar.
Em vez disso, ri-me, um som curto e áspero, a indiferença e a troça a
constituírem as minhas armaduras naquela luta.
— Tendes assim tão fraca opinião das minhas capacidades?
Ele olhou para mim sem pestanejar.
— Xingyin, isso não é justo. Sabes bem a alta estima em que te tenho.
— Não a suficiente, ao que parece. Não fale comigo do que é injusto,
Liwei. Praguejei mentalmente pelo deslize do nome, pelo brilho súbito que
lhe passou pelos olhos. — Haveis deixado bem clara a vossa escolha na
noite em que ficastes noivo de outra. Eu deixei bem clara a minha quando
parti. É injusto da vossa parte virdes ter comigo agora, quando sabeis bem
como me perturba.
Devia ter parado por ali, mas agora o ressentimento e a raiva jorravam
de mim.
— Havíeis dito que me amáveis. Haveis partido o meu coração. Nem
sequer me haveis dito pessoalmente do noivado. Isso foi justo?
Palavras amargas. Contudo, era um alívio dizê-las em voz alta.
— Não — respondeu numa voz rouca. — Tens todo o direito de me
desprezar. Agora mesmo, se pudesse escolher, ficava contigo.
Passou a mão pelo cabelo, como fazia quando estava perturbado. Como
desejava não saber essas coisas sobre ele, e que ele não me emocionasse
tanto.
— Eu ia dizer-te. O noivado não era para ser anunciado naquela noite,
mas a minha mãe fez o meu pai mudar de ideias.
A minha respiração estremeceu quando inalei. Estava errada; a
imperatriz não esperara para retaliar e o seu golpe feriu-me mais do que ela
alguma vez saberia. Mas não importava; nada teria sido diferente. Ele era o
Príncipe Herdeiro. Casar era o seu dever e eu devia ter percebido isso logo
desde o início.
Um silêncio pesado caiu sobre nós. Parte de mim desejava que ele fosse
embora, para eu poder cair na cama e perder-me no torpor do sono.
Contudo, uma parte mais fraca de mim ainda vibrava com a sua presença,
bebendo o seu rosto, o som da sua voz, desejando o seu toque, apesar de
conhecer bem a angústia que se seguiria.
Ganhei coragem para perguntar:
— Já marcaram a data do casamento?
Pronto, dissera-o em voz alta, o penso arrancado com força da ferida.
Não era melhor combater o monstro à luz do dia, em vez de o deixar à
espreita nas sombras, sem saber quando poderia atacar?
A luz desapareceu-lhe dos olhos.
— Os presentes de noivado já foram trocados, mas a cerimónia ainda
pode demorar anos. Eu e a Princesa Fengmei ainda somos jovens e pedi
tempo para me dedicar aos meus deveres. Talvez então as coisas possam ser
diferentes.
Não soava como um noivo entusiasmado. Nem eu entendia o
adiamento, quando a troca de presentes era um compromisso tão
vinculativo como a assinatura do contrato de noivado. Quem se atreveria a
interferir com a aliança dos dois reinos mais poderosos do Domínio
Imortal? Fora eu que fizera a pergunta, que convidara a dor, extirpando do
meu coração a última réstia teimosa de esperança. Contudo, como era forte
a mágoa que me feria agora, e afiadas as garras do ciúme.
Alguém bateu à porta. Seria Shuxiao, a chamar-me para a refeição da
noite? Naquele momento, acolheria qualquer distração. Caminhando até às
portas, abri-as de rompante, com um sorriso de boas-vindas nos lábios...
Era o Capitão Wenzhi, parado à entrada do meu quarto, sem armadura e
com uma túnica preta.
— A curandeira disse que a mandaram embora antes de poder tratar de
si.
Ao avistar Liwei, o capitão ficou rígido e saudou o príncipe com uma
vénia.
— Vossa Alteza, não esperava encontrar-vos nos aposentos dos
soldados.
A expressão de Liwei tomou-se fria, assumindo a máscara imperial que
usava com tanta facilidade.
— Capitão Wenzhi, é muito atencioso com os seus soldados. Até os
visita a esta hora tão tardia.
— Sou, sim, Vossa Alteza. Especialmente com os que sofrem
ferimentos.
Wenzhi entrou para o quarto, pouco intimidado pela hostilidade de
Liwei. Ficaram a olhar um para o outro, olhares fixos e inexpressivos, e a
minha cabeça começou a doer. Por fim, Liwei virou-se para mim.
— Fico descansado por saber que está bem.
Assentiu brevemente para o Capitão Wenzhi, que respondeu com outra
vénia curta. Pela tensão nos seus ombros ao sair, conseguia ver que estava
desagradado.
— Porque se importa o Príncipe Liwei com o seu regresso? —
perguntou o Capitão Wenzhi, sentando-se no banco agora vago.
Com um toque de magia, aqueceu a água no bule, preparando chá de
jasmim e servindo-me uma taça.
Beberiquei, apreciando a fragrância delicada e o calor reconfortante.
— Somos amigos. Estudámos juntos.
— Não pareceu muito amigável. E a Xingyin também não.
Mantive o rosto impassível e pousei a taça na mesa.
— Capitão Wenzhi, veio aqui por algum motivo especial ou apenas para
arranjar problemas onde eles não existem?
— Vim verificar os seus ferimentos. Como estão?
— Curados.
Estendi os braços para lhe mostrar a pele renovada, aliviada por
observar que os seus ferimentos também tinham desaparecido.
Uma expressão estranha passou-lhe pelo rosto.
— Tem sorte de ter sido tão bem tratada.
Recolhi os braços. Ele sabia que a curandeira não me tratara.
— Como foi a audiência com Sua Majestade Celestial?
Uma tentativa desajeita de desviar a atenção.
— O imperador ficou agradado. A Xingyin estaria no bom caminho
para uma promoção, se fizesse disto a sua carreira.
O tom ergueu-se no fim, como se estivesse a fazer uma pergunta.
Isso não me interessava, mas era um começo promissor da jornada que,
esperava eu, me levaria de volta ao meu lar.
— Não vou a lado nenhum. Mas se me quiserem dar um título novo,
não me importava de ficar com o seu — comentei num tom ligeiro.
— Informarei Suas Majestades Celestiais do seu desejo. — Depois
acrescentou, quase por impulso: — O Arco do Dragão de Jade, guardou-o
num sítio seguro?
Assenti, pensando na caixa escondida debaixo da cama, com um
encantamento para a esconder de olhos curiosos.
— Vou partir brevemente para um dos Reinos dos Mares. Se vier
connosco, talvez encontremos lá mais informação sobre o arco. Contudo,
pode ser perigoso. O rei deles não pediria a nossa ajuda para algo trivial e
nenhum favor do Imperador Celestial vem sem um preço.
Algo passou fugazmente pelo seu rosto. Seria repugnância? Ou
preocupação com os perigos que tinha pela frente?
— Vou pensar nisso — respondi lentamente.
Então, ele levantou-se.
— Espero vê-la amanhã no treino. À alvorada.
Resisti ao impulso de protestar. Não serviria de nada.
O capitão quase colidiu com Shuxiao ao sair do quarto. Tentando
equilibrar o tabuleiro pesado que trazia nas mãos, ela fez-lhe uma vénia. Ele
respondeu com uma vénia curta e saiu com um ar ausente.
Shuxiao pousou o tabuleiro na mesa.
— O teu jantar. Ouvi dizer que ficaste ferida.
— Obrigada.
Estava contente com a sua companhia. Os nossos quartos ficavam perto
do um do outro e comíamos juntas sempre que podíamos. Quando olhei
para o porco grelhado, para o feijão-verde frito e para as nêsperas maduras,
o meu estômago roncou, lembrando-me de que não comera nada o dia todo.
Levantando a tampa do recipiente de bambu, peguei num pão macio e juntei
fatias de carne tenra.
— Já foste tratada por um curandeiro? — perguntou-me.
— Sim.
Não queria entrar em grandes detalhes. Ela inclinou a cabeça e olhou
para mim.
— Estás com bom ar. Praticamente a brilhar. Se calhar, devias ter sido
tu a trazer-me o jantar.
Arrastando o banco para trás, levantou a bainha da túnica, revelando
duas filas de marcas vermelhas na coxa.
— Isso são marcas de dentes? O que aconteceu?
— Espíritos-raposa. Alguns conseguiram entrar — respondeu com uma
careta. — Quando ficam sem magia, mordem. Já não me dói, mas arde que
se farta e a curandeira disse que as marcas vão demorar semanas a
desaparecer. Se desaparecerem.
— Como conseguiram entrar?
Fiquei espantada, pois barreiras poderosas protegiam o Reino Celestial
dos seus inimigos. Todas as noites, os soldados em patrulha teciam escudos
ao longo das fronteiras do reino que alertavam para qualquer intrusão.
— Uma das raposas assumiu a forma de um celestial e conseguiu passar
despercebida. Assim que entrou, rompeu as barreiras do lado de dentro. Não
devia ter acontecido. Mesmo numa forma alterada, as barreiras deviam ter
detetado a sua aura. O General Jianyun está a investigar o caso.
Remexi na minha bolsa, tirando o frasco de jaspe que o Capitão Wenzhi
me dera. Tirando a tampa, verti as últimas gotas para a sua perna.
A vermelhidão das lesões começou a diminuir e ela suspirou de alívio.
— O que é isso?
— Algo que o Capitão Wenzhi me deu para os meus ferimentos.
— Oh? O Capitão Wenzhi costuma oferecer medicamentos raros a
simples soldados?
O seu olhar parecia trespassar-me.
— Só desta vez — respondi.
— Ou só a esta soldado?
Não respondi, pegando numa nêspera e descascando-a com cuidado
excessivo. Ela encolheu os ombros, talvez cansada de se meter comigo
quando eu não mordia o isco.
— Como correu com Xiangliu? — perguntou, como se estivéssemos a
falar de um amigo mútuo.
— Morreu. Uma flecha no olho.
Era mais fácil falar do assunto com desdém. De certa forma, tomava
tudo menos real... o perigo, a vida que eu tirara.
— Que sangrento — observou ela. — Foi uma luta difícil?
Descrevi-lhe a batalha, sabendo que ela se interessaria por todos os
detalhes. Quando terminei, desviei o olhar e confessei:
— Perdi a coragem. Todos aqueles feridos... foi por causa dos meus
erros.
— Qualquer um teria ficado aterrorizado. Em que estavas a pensar...
Xiangliu na primeira missão? Os recrutas novos costumam ser enviados em
missões mundanas, como inspecionar a fronteira ou procurar um artefacto
perdido.
Era precisamente por causa do perigo que escolhera aquela missão.
Tarefas mundanas não me serviam de nada. Não fariam com que o meu
nome fosse sussurrado ao ouvido do imperador; não me valeriam o Leão
Carmesim.
— Pelo menos, recuperaste a tempo. Ninguém morreu. Bom, exceto
Xiangliu. Não te esqueças de que foste tu que a mataste.
Assenti, sentindo-me um pouco mais animada.
— Não foi tudo mau. Encontrámos um tesouro na caverna.
Ela debruçou-se sobre a mesa.
— Ficaste com alguma coisa?
Pensei no Arco do Dragão de Jade, de longe mais precioso do que
qualquer joia. Mas não era meu e o Capitão Wenzhi avisara-me para o
manter escondido e em segredo. Remexi na bolsa à procura da pulseira e
pula na sua mão.
Ela abriu o fecho e enfiou a mão na pulseira. O ouro e o coral brilhavam
contra a sua pele.
— É linda.
— É só um pequeno presente — comentei, contente por ela ter gostado.
— Devias ter visto o que o Capitão Wenzhi trouxe para o Tesouro Imperial.
A sua expressão ficou curiosa.
— O que estava a fazer aqui o Capitão Wenzhi? Não que esteja a
queixar-me, quando tantos teriam inveja de nós.
— O que queres dizer?
— Não reparaste nas multidões no campo de treino quando ele lá está,
tanto homens como mulheres? Alto, ombros largos, olhos límpidos, boca
firme, nariz direito — recitou, contando pelos dedos. — Se sorrisse mais
vezes, faria justiça àquele rosto bonito.
— Bonito?
Ele parecera-me interessante, mas bonito?
Ela deitou-me um olhar de reprovação.
— Como podes não ter reparado? Depois de meses a treinar com ele, a
caminhar ao lado dele, a dormir sob as estrelas à volta da mesma fogueira...
Peguei num pão e atirei-lho. Ela apanhou-o habilmente.
— Não protestes demasiado — riu-se. — Ou posso começar a pensar
que há alguma verdade nos rumores.
Seriam esses rumores que tinham chegado aos ouvidos de Liwei? Foi
por isso que me procurou assim que regressei, para obter de mim uma
negação ou confirmação?
— Esses rumores de que falas são completamente ridículos — respondi,
mais acaloradamente do que pretendia.
— Toquei na ferida?
Fechei logo a boca. Shuxiao tirou uma nêspera da taça e passou-ma.
Uma oferta de paz.
— Poucos têm uma reputação tão exaltada como o Capitão Wenzhi. A
sua perícia em combate é famosa e a sua magia é invulgarmente forte para
alguém que não descende uma linhagem conhecida.
Olhei de relance para ela.
— De onde vem ele?
— Ouvi dizer que o Capitão Wenzhi vem de uma família anónima num
dos Quatro Mares. Não foi um feito pequeno para ele, um estrangeiro, subir
pela hierarquia até se tomar o capitão mais jovem do Exército Celestial.
Senti um laço de companheirismo com o Capitão Wenzhi, sabendo que
estávamos ambos a forjar uma vida nova para nós aqui neste sítio. Apesar
de ele ser muito mais capaz do que eu, dava-me esperança para as minhas
ambições, que um desconhecido pudesse alcançar proeminência no Reino
Celestial.
Mas não conseguia deixar de pensar que nem ele fora galardoado com o
Leão Carmesim.
Depois da refeição, ajudei Shuxiao a empilhar os pratos vazios no
tabuleiro. Quando tentei tirar-lhe o tabuleiro das mãos, ela puxou-o para si.
— Não é todos os dias que matas um monstro lendário. E não me parece
que amanhã o Capitão Wenzhi te vá dar um dia fácil.
Sem mais palavra, Shuxiao saiu do quarto.
O sono evitou-me nessa noite. Com um suspiro impaciente, atirei as
cobertas para trás e saí do quarto. Depois de trepar para o telhado, estendi-
me nas telhas frias de jade. Como a solidão da noite me lembrava o lar. As
luzes do Reino Celestial cintilavam abaixo, o reino cujas fronteiras jurara
defender com a vida. Será que a minha mãe se sentiria traída pelas minhas
novas lealdades? Pensaria que a esquecera na busca do poder? Senti um
aperto no peito só de pensar nisso. Se pelo menos ela soubesse a verdade,
que tudo o que fazia era para conquistar a sua liberdade, para podermos
voltar a estar juntas.
Estava de pé diante da secretária do General Jianyun, interrogando-me
porque me teria convocado. Ultimamente, era raro vê-lo, desde que
começara a treinar com a companhia do Capitão Wenzhi. O meu olhar
fitava a mesa, intrincadamente esculpida em pau-rosa com embutidos de
madrepérola em forma de bambu, lótus e garças. Não esperava uma peça de
mobília tão requintada a decorar o escritório de um soldado tão pragmático.
Mas recordei a mim mesma que, apesar do seu aspeto intimidante, o general
honrara-me com uma bondade que eu não merecia. Vira algo em mim antes
mesmo de eu o perceber.
Remexi-me, inquieta, sob o peso do seu olhar, fazendo tilintar as placas
douradas da minha armadura. As sobrancelhas do General Jianyun uniram-
se numa admoestação sem palavras: um bom soldado consegue manter-se
imóvel.
Endireitei a postura, forçando as pernas a ficarem quietas. Ter-me-ia
chamado ali para me censurar alguma ofensa? Para me dar um sermão sobre
a minha imprudência na luta com Xiangliu?
A sugestão de um sorriso formou-se nos seus lábios.
— Para a primeira missão, safou-se bem.
Soltei a respiração que estava a conter.
— Obrigada, General.
— Como acordado, pode decidir qual será a sua próxima missão. Há
duas missões que precisam de mais um recruta. Uma vai ao Deserto
Dourado colher umas ervas raras que lá crescem. Apesar de fazer fronteira
com o Reino Infernal, não se esperam problemas, com o tratado de paz
intacto.
Assenti, tentando parecer interessada. Nunca fora ao Deserto Dourado,
mas apanhar plantas não era muito apelativo. Talvez devesse ficar grata por
uma tarefa mais fácil após lutar com Xiangliu, só que uma missão assim
não chamaria a atenção do imperador.
— Ou prefere acompanhar de novo o Capitão Wenzhi? — propôs o
General Jianyun. — Apesar de ser essa a preferência do capitão, a decisão é
sua. Ele vai levar uma companhia até ao Mar do Leste, cujo rei solicitou a
nossa ajuda para lidar com distúrbios recentes.
A minha mente recordou um fragmento de uma lenda que a minha mãe
costumava contar-me. A sua voz, suave e melodiosa, quando falava do Mar
do Leste e dos...
— Dragões — sussurrei, tão enredada na memória da sua mão fresca a
afagar-me a cara que inalei instintivamente, uma tentativa fútil de captar um
aroma a cânfora.
Uma dor abafada tomou conta de mim, diferente do sofrimento
lancinante do desgosto de amor, apesar de ambos despertarem em mim uma
saudade por algo que perdera.
O General Jianyun ficou tenso, um deslize raro da sua compostura.
— Dragões?
Soltei uma risada para encobrir o meu lapso, demasiado estridente,
demasiado alta.
— Só uma velha lenda que ouvi, que o Mar do Leste era o berço dos
dragões. São eles a causa da agitação?
O general falou lentamente, escolhendo as palavras com cuidado.
— Os dragões já não vivem no Mar do Leste. Já não vivem no Domínio
Imortal.
Uma dezena de questões passou-me pela mente. Tudo o que sabia sobre
os dragões era a história que me fora contada. Até agora, sempre pensara
neles como um mito, um símbolo de poder que o imperador parecia
favorecer.
Antes que pudesse falar, o general continuou, de testa franzida:
— São os tritões, os habitantes do fundo do mar. Quebraram a paz pela
primeira vez desde sempre. E, apesar de, por enquanto, se tratar apenas
pequenas escaramuças, o Capitão Wenzhi está a preparar-se para qualquer
eventualidade.
A exploração tranquila do Deserto Dourado ou os perigos do Mar do
Leste? O fedor da caverna de Xiangliu veio-me à memória, o tilintar
ominoso das suas escamas lançando-me um arrepio pela espinha. Mas era
esse o preço do caminho que escolhera. E como dissera o Capitão Wenzhi,
no Mar do Leste talvez pudéssemos encontrar mais informação sobre o
Arco do Dragão de Jade.
***
Nas semanas anteriores à nossa partida, treinei mais intensamente do
que nunca. Apesar de ser louvada por ter matado Xiangliu, no fundo sentia-
me uma fraude, que tais elogios não eram merecidos. O meu medo e
inexperiência tinham-nos posto a todos em perigo. Como fora arrogante ao
considerar-me pronta, ao pensar que podia mergulhar para as profundezas
do oceano e aprender a nadar milagrosamente. Que precipitação a minha,
julgar que os meus feitos nos treinos seriam facilmente replicados quando o
sangue saturasse o ar, corpo e mente dominados pela dor e pelo terror. Não,
não voltaria a cometer esse erro. Todas as noites, aterrava na cama tão
exausta que já não temia ficar sozinha no escuro com os meus pensamentos.
Já não procurava a solidão do telhado. Para quê, se me afundava no sono
assim que a cabeça pousava na almofada?
O céu estava carregado com as nuvens que tínhamos invocado para a
nossa viagem até ao Mar do Leste. Um mortal que olhasse para cima teria
ficado espantado com os enormes bancos de nuvens a moverem-se
rapidamente pelos céus. Superara finalmente a minha trepidação e
dominava essa habilidade, não dependendo mais de outros para me levarem.
A minha energia jorrou num fluxo cintilante, chamando para baixo a nuvem
mais próxima. Faíscas prateadas entrelaçavam-se nas dobras volumosas da
nuvem, imbuindo-a com a minha magia quando me ergui pelos ares.
A beleza do Mar do Leste deixou-me siderada. Plantas e flores de cores
vivas abundavam ao longo da costa, brilhando com uma radiância interior.
Quando estendi a mão para tocar numa pétala, descobri com surpresa que
era firme e fria como porcelana. Uma selva luxuriante crescia a um lado,
longe da costa, e casas de cedro e pedra erguiam-se na areia. Os telhados
íngremes, feitos de turquesa e madrepérola, reluziam à luz da manhã como
a espuma das ondas do mar. Uma passagem de cristal arqueava-se da praia
até ao palácio, que se erguia no meio do oceano.
O meu olhar fixou-se no horizonte sem fim enquanto vagueava na
direção da rebentação, as minhas botas a afundarem-se na areia fina.
Esquecidos todos os pensamentos de trabalho, baixei-me e mergulhei as
mãos na água fria, assustando os pequenos peixes prateados que nadavam
nos baixios. Quando uma sombra caiu sobre mim, virei-me para trás e
estreitei os olhos por causa do brilho do sol.
O Capitão Wenzhi erguia-se acima de mim, com um sorriso divertido
nos lábios.
— Nunca viu o mar?
Pus-me de pé, sacudindo a água das mãos. Algumas gotas salpicaram-
no, mas ele pareceu não se importar.
— Vi-o ao voar por cima ou em imagens. E... alguém me disse que era
lindo.
As palavras saudosas da minha mãe ecoaram na minha mente, as suas
esperanças da vida que imaginara para mim.
Passos na areia anunciaram a aproximação de vários soldados. Sob os
seus olhares atentos, fechei uma mão sobre a outra e fiz uma vénia.
— Capitão Wenzhi, aguardo as suas ordens.
— Trate dos seus deveres antes de se familiarizar com o meio
envolvente.
O tom era severo, mas o sorriso não esmoreceu quando se virou e
caminhou para os soldados à espera.
Mantive a cabeça baixa, escondendo o rosto. Quem por ali passasse
poderia pensar que me sentia envergonhada por ter sido repreendida, mas eu
estava a fitar a água sempre em mudança e o meu ânimo estava mais leve
do que a brisa do mar. Pela primeira vez em meses, senti um arrepio de
expectativa.
Assim que o campo ficou organizado, acompanhei o Capitão Wenzhi
através da ponte de cristal para a audiência com o rei. O palácio brilhava
entre o mar e o céu, um edifício cintilante de quartzo, turquesa e
madrepérola com telhados duplos de telhas douradas. As enormes portas de
entrada eram feitas de freixo decorado com ouro. Acima das portas pendia
uma placa inscrita com os caracteres:

PALÁCIO DE CORAL FRAGRANTE

A toda a volta viam-se mais das plantas e flores exóticas que vira na
praia, massas de ramos escarlates, flores de um verde-vivo em forma de
leque, caules tubulares cor-de-rosa e pedras lisas cobertas de musgo
vermelho brilhante. Um jardim encantado colhido do coração do oceano.
Para lá das portas, um servo guiou-nos por um longo lanço de escadas.
Os níveis mais baixos do palácio erguiam-se debaixo de água, construídos
com a mesma pedra translúcida da ponte. Era como caminhar no fundo do
mar, rodeados por todos os lados por água em movimento e recifes de coral.
Quando entrámos para um salão apinhado com um teto elevado, um silêncio
caiu sobre os imortais ali reunidos. Só então ouvi o tilintar melodioso dos
fios de conchas de marfim que baloiçavam atrás dos tronos de ágata.
Apenas vira o Rei Yanzheng, do Mar do Leste, uma vez, no banquete de
Liwei. Cabelo prateado emoldurava-lhe o rosto macio e os olhos brilhavam
em contraste com a pele escura. A túnica verde-azulada estava bordada com
ondas, delineadas com curvas de linha branca. Uma coroa dourada em
forma de leque, cravejada de pérolas, repousava-lhe no cabelo.
O Capitão Wenzhi e eu ajoelhámo-nos no chão, estendendo as mãos
fechadas ao fazermos uma vénia.
— O Reino Celestial respondeu ao pedido de ajuda do Mar do Leste —
entoou Wenzhi, num tom formal. — As nossas espadas serão
desembainhadas e os nossos arcos esticados ao vosso serviço.
— Ergam-se — ordenou o rei, soando agradado. — Ficamos gratos pelo
apoio do Reino Celestial nestes tempos conturbados. O ataque dos tritões
apanhou-nos de surpresa, pois sempre viveram pacificamente entre nós.
Capitão Wenzhi, a sua reputação chegou aos nossos ouvidos até aqui no
Mar do Leste e agradecemos ao Imperador Celestial por nos enviar o seu
mais exaltado guerreiro.
O Capitão Wenzhi voltou a fazer uma vénia.
— Sois generoso, Vossa Majestade, mas não mereço um tal elogio. É
uma honra servir até ao máximo das minhas capacidades.
O Rei Yanzheng alisou a barba.
— Humildade a acompanhar um talento tal é raro.
Então, gesticulou para mim.
— Esta dama é a sua esposa?
Sons estrangulados escaparam-me da boca e as orelhas do Capitão
Wenzhi ficaram vermelhas.
— Não, Vossa Majestade. Esta é... a Arqueira-Mor Xingyin, do Exército
Celestial.
Arrebitei as orelhas ao ouvir a apresentação. Arqueira-Mor?
O rei olhou para a minha armadura.
— Ah — assentiu, com um sorriso perplexo. — Aqui não temos
mulheres guerreiras.
Vários cortesãos soltaram risadinhas, alguns disfarçando o riso atrás das
mangas. Senti um nó na barriga com todo aquele escrutínio indesejado e
cerrei os punhos perante o seu desdém.
O Capitão Wenzhi varreu o salão com um olhar gélido, silenciando a
diversão mais eficazmente do que uma espada.
— A Arqueira-Mor Xingyin é a arqueira mais galardoada do nosso
exército. Será de grande utilidade na nossa campanha. Em seguida, falou
num tom cuidadoso. — Vossa Majestade, podeis informar-nos sobre a
situação com os tritões?
O rei gesticulou para o jovem ao seu lado.
— O meu filho mais velho, Príncipe Yanxi, vai pôr-vos ao corrente.
Um imortal alto deu um passo à frente, vestido com uma túnica azul-
celeste cintilante. Pequenos peixes, bordados com fio carmesim e prateado,
dardejavam pelas dobras do tecido. O cabelo castanho-escuro estava preso
num nó, seguro com um alfinete de turquesa. Ao perto, senti a sua aura, fria
e firme, a vibrar de poder.
— Capitão Wenzhi, Arqueira-Mor Xingyin. Desde o início dos tempos,
sempre vivemos em paz com os tritões. Enquanto nós, imortais do mar,
preferimos viver tanto em terra como no mar, os tritões escolheram as
profundezas do oceano, subindo à superfície apenas em raras ocasiões.
Veneravam os dragões que costumavam viver aqui e desejavam estar perto
deles. Os dragões eram criaturas sábias e gentis que ajudavam a manter a
harmonia nas nossas águas.
O tom da sua voz mudou então, tornando-se mais tenso.
— Quando o Imperador Celestial baniu os dragões do nosso domínio, os
tritões ficaram perturbados. Com o passar do tempo, a sua aversão a terra
firme tomou-se mais forte, preferindo o isolamento das profundezas do
oceano. Há anos, o meu pai permitiu que escolhessem um governador para
os representar na corte. Infelizmente, o Governador Renyu é perigoso e a
sua ambição estende-se muito para lá do seu mandato. Recebemos relatos
de que recrutara um vasto exército entre os tritões, treinando-os no uso de
armas e magia. Quando o meu pai o convocou para responder a essas
acusações, ele recusou.
Pensei para comigo que treinar um exército sem um mandato era, de
facto, traição. E a culpa do Governador Renyu só era aumentada pela recusa
em comparecer perante o rei.
O Príncipe Yanxi esfregou a testa com uma expressão sombria.
— Desde então, os tritões tornaram-se abertamente hostis. Imortais do
mar que se aventuraram em águas profundas foram atacados. As casas mais
perto da costa foram saqueadas. A cada ataque, os salteadores fugiam antes
que os nossos soldados os conseguissem apreender.
— É pouco provável que banditismo seja a única intenção do
governador. Faz alguma ideia dos seus planos? — perguntou o Capitão
Wenzhi.
— Recentemente, emitiu um édito banindo todos os imortais do mar das
profundezas do oceano. Um insulto grave. Cremos que tenciona derrubar o
meu pai e tomar o trono para si. Sob o comando do Governador Renyu, o
exército tritão tornou-se forte e poderoso, enquanto o contrário, receio, pode
ser dito de nós. Somos uma nação pacífica, pouco habituada a combater, por
isso pedimos ajuda ao Reino Celestial.
Teríamos de lutar contra os tritões debaixo de água? Senti o estômago às
voltas só de pensar nisso. Como muitos celestiais, nunca aprendera a nadar.
Para quê, quando podíamos voar? Certa vez, na minha infância, caí num rio
perto de casa. Água fria pressionava-me de todos os lados, tapando-me o
nariz e a boca. Esbracejei e esperneei, mas os movimentos frenéticos apenas
me afundaram no abraço do rio. Foi a minha mãe que mergulhou para
dentro de água e me puxou para fora. Ralhara comigo num tom trémulo
enquanto me envolvia num abraço apertado, o batimento reconfortante do
seu coração a silenciar as últimas réstias do meu terror.
Como era intenso o medo recordado que me atormentava agora. Mas
empurrei-o para o lado.
— Os soldados celestiais não estão habituados a lutar debaixo de água.
Se houver uma batalha, devíamos tentar atrair os tritões para terra firme.
Algo passou pelo rosto do Príncipe Yanxi, algo semelhante a surpresa.
— De facto. Ficaríamos em grande desvantagem debaixo de água. Os
tritões são excelentes nadadores e estão habituados à escuridão. Contudo,
sentir-se-ão relutantes em enfrentar-nos em terra. Precisamos de um plano.
O Rei Yanzheng debruçou-se para diante.
— O capitão e os seus soldados acabaram de chegar. Estamos a ser
pouco hospitaleiros, mantendo-os aqui enquanto precisam de tratar das suas
acomodações. — O sorriso do rei era gracioso e cordial. — Capitão
Wenzhi, organizámos um banquete esta noite em sua honra. Espero que nos
agracie com a sua presença, acompanhado pela Arqueira-Mor Xingyin.
— Seria uma honra. — Logo depois, o Capitão Wenzhi hesitou e
engoliu em seco. — Vossa Majestade, a biblioteca do Palácio de Coral
Fragrante é exaltada em todo o Domínio Imortal. Dais-me permissão que a
visite? Espero aprender tudo o que possa ser útil na luta contra os tritões.
O rei inclinou a cabeça.
— Um servo levá-lo-á lá sempre que queira.
Quando saímos do salão, sorri para o Capitão Wenzhi.
— Arqueira-Mor? A arqueira mais galardoada do nosso exército? —
comentei, fazendo eco das suas palavras. — Isso quer dizer que as nossas
patentes estão mais próximas?
Ele deitou-me um olhar exasperado.
— Como não é uma recruta oficial, a posição também não é oficial. E
desde quando é que se importa com patentes?
Soltei uma risada e não protestei mais. Nunca lhe faltara ao respeito,
mas também nunca o tratara com a deferência que a sua posição exigia.
Sem abrandar a passada, Wenzhi continuou a falar:
— A Xingyin é a arqueira mais galardoada do exército. Contudo, não se
desleixe ou pode perder essa posição. Terá de se contentar com segunda-
arqueira ou terceira-arqueira, que não soa nem de perto tão impressionante.
— Ah! — exclamei, ofendida pela insinuação. — Quer resolver isso
num desafio?
Ele tinha fama de ser um bom arqueiro, contudo, assim que as palavras
me passaram pelos lábios, quis logo desdizê-las. Evocavam demasiadas
memórias dolorosas... de uma floresta de pessegueiros em flor, de alguém
que queria desesperadamente esquecer.
A sombra de um sorriso formou-se nos seus lábios.
— Não com o arco. Mas é bem-vinda a enfrentar-me com qualquer
outra arma.
Não respondi, forçando-me a caminhar em frente, um pé depois do
outro, e um silêncio caiu sobre nós.
Ele parou junto das portas da entrada, escrutinando-me de cabeça
inclinada.
— Parece pálida. Cansada. Tem andado a treinar demasiado. Porque não
regressa ao acampamento e descansa? Vou até à biblioteca ver se encontro
algo que nos seja útil.
Fez um gesto para um servo, que se aproximou apressadamente.
— Estou bem — protestei, ansiosa por visitar a biblioteca.
Mas ele deitou-me um olhar implacável até eu assentir. Não podia
desafiar uma ordem sua diante de um servo.
— Depois falo-lhe do que encontrar — prometeu ao ver a minha
expressão desiludida. — Descanse enquanto pode. A cerimónia desta noite
promete ser longa.
Um servo do Palácio de Coral Fragrante chegou com um tabuleiro de
roupas para o banquete. Grata pela hospitalidade generosa, escolhi um
vestido de cetim amarelo com contas de turquesa cosidas na bainha e nos
punhos. Uma faixa verde-água cingia-me a cintura, com borlas de seda que
caíam até aos joelhos. O estilo do vestido era diferente do usado no Reino
Celestial, deixava o pendente de jade à vista abaixo do pescoço. O meu
outro adorno era um pente de pérolas a prender-me o cabelo, que caía solto
pelas costas.
O Capitão Wenzhi esperava por mim fora do meu quarto. A minha
pulsação saltou inesperadamente quando caminhei para ele. Estava muito
elegante naquela noite, com uma túnica verde-escura e uma faixa luzidia de
seda preta atada à cintura. O cabelo estava preso por um anel de jade
esculpido, caindo-lhe sobre o ombro como ondas de noite pura. Foi como se
me tivessem lavado os olhos e visse finalmente, com uma clareza
assombrosa, todas as feições elegantes que Shuxiao descrevera.
O vento soprava suavemente nessa noite. Inalei o ar fresco, saturando os
sentidos com a fragrância do mar, uma mistura cativante de sol e sal,
condimentada com uma nota de excitação. Os raios do sol poente tingiam as
águas de carmesim e escarlate, o Palácio de Coral Fragrante como uma joia
no horizonte.
No salão de banquetes, centenas de lanternas pendiam do teto,
luminosas e coloridas. Mesas baixas de madeira e cadeiras forradas a
brocado estavam dispostas ao longo das paredes, deixando um espaço vazio
no centro da divisão. Num canto sentava-se uma dama elegante a tocar um
pipa, o instrumento de quatro cordas em forma de pera alongada. À medida
que a dama dedilhava as cordas, os fios melancólicos da música preenchiam
o ar. Tocava de forma magistral; de cada corda vibrante extraía um rio de
mágoa e um oceano de dor.
O rei e a rainha sentavam-se num palanque ao fundo do salão. Uma
magnífica flor de ouro com uma pérola do tamanho da palma da minha mão
reluzia no cabelo da rainha. As pétalas estremeciam à volta da pérola, que
num momento emitia um brilho branco, assumindo a seguir o negro mais
profundo. Um rapazinho estava de pé ao lado dela, segurando-lhe a mão. A
cabeça do rapaz mal chegava ao braço do trono e os olhos escuros eram
grandes e solenes. Ao lado do rapaz estava uma dama elegante vestida de
seda cor de pêssego, com fiadas de pérolas cor-de-rosa ao pescoço.
Erguendo o queixo delicado, escrutinava o salão com uma expressão de
distanciamento régio.
— Aquela é a filha de Sua Majestade? — perguntei ao Capitão Wenzhi,
quando fomos cumprimentar os nossos anfitriões.
— Sua Majestade só tem dois filhos, o Príncipe Yanxi, que já conheceu,
e o Príncipe Yanming.
Seguindo o meu olhar, acrescentou:
— A dama ao lado do Príncipe Yanming é a Dama Anmei, a sua ama. É
filha de um nobre poderoso e a sua família tem grande influência na corte.
Depois de prestarmos a nossa homenagem à família real, um servo
guiou-nos até à nossa mesa. O Capitão Wenzhi encheu as nossas taças e
provei o vinho, com a doçura suave do grão fermentado a prolongar-se na
minha língua. As travessas de prata diante de nós estavam repletas de
comidas exóticas, a maioria das quais nunca vira antes: crustáceos
vermelhos luzidios, alforrecas douradas e esferas pretas com picos. Essas
últimas pareceram-me especialmente pouco apetitosas, mas os outros
convidados comiam-nas com deleite.
O Capitão Wenzhi pegou numa e abriu-a ao meio, oferecendo-me
metade. Colhi a carne e levei-a à boca, saboreando o paladar cremoso e
salgado.
— A comida está ao seu gosto? — perguntou o Príncipe Yanxi,
aparecendo inesperadamente diante de nós.
Engasguei-me com a comida que tinha na boca, tossindo ruidosamente.
Pegando na minha taça, dei um longo gole de vinho antes de me levantar
apressadamente para o cumprimentar.
O príncipe respondeu à saudação com uma breve inclinação da cabeça.
— Capitão Wenzhi, o meu pai deseja falar consigo. Gostaria de se juntar
a ele à sua mesa? Eu faço companhia à Arqueira-Mor Xingyin até ao seu
regresso.
O Capitão Wenzhi franziu brevemente a testa, mas no instante seguinte
o seu rosto estava novamente sereno. Com uma vénia ao príncipe,
caminhou até ao palanque. Não consegui deixar de reparar em como a
Dama Anmei pareceu animar-se quando ele se sentou num lugar vago à
mesa real.
O Príncipe Yanxi baixou-se para a cadeira sem desviar o olhar de mim.
Por algum motivo, não achei o seu interesse ofensivo. Talvez fosse pelo ar
de curiosidade sincera ou pela expressão de humor quando o fitei
ousadamente de volta, determinada a não ser a primeira a quebrar o
silêncio.
— Onde aprendeu as suas aptidões, Arqueira-Mor?
A candura com que falava lembrava-me o General Jianyun.
— Treinei ao lado do Príncipe Liwei quando era a sua companheira.
Respondi no mesmo registo, esperando que não se apercebesse do
tremor na minha voz.
— Claro — comentou ao reconhecer-me. — Lembro-me de si no
banquete. Tocava flauta muito bem. Ainda toca?
Desviei o olhar.
— Não.
Não voltara a tocar desde essa noite.
Talvez pressentindo o meu desconforto, o príncipe mudou de assunto:
— Porque se juntou ao Exército Celestial? Foi por vontade da sua
família?
— O general que acompanhou o meu treino inicial ofereceu-me um
posto.
Yanxi começou a mover os dedos sobre o rebordo da sua taça.
— Certamente haveria muitas outras oportunidades disponíveis para
alguém que serviu o Príncipe Herdeiro.
— Não onde tivesse a liberdade de escolher o meu caminho. Não tenho
família para promover a minha carreira, dependo apenas das minhas
capacidades. — Levei o copo à boca e dei um gole longo. — Mas esta é a
minha escolha, não quereria outra — acrescentei, pensando no Leão
Carmesim.
Um sorriso surgiu-lhe nos lábios, os olhos semicerraram-se. Não eram
pretos como imaginara, mas do azul intenso e opaco das safiras por polir.
Ele pegou no jarro de porcelana para voltar a encher a minha taça.
— A sua franqueza é refrescante.
O vinho subia-me à cabeça e soltava-me a língua.
— Porque tem Vossa Alteza tantas perguntas para uma alguém como
eu?
— Porque não há muitas pessoas como a Arqueira-Mor. O Capitão
Wenzhi tem-na em grande consideração. Deve ser excecionalmente capaz
no seu posto de arqueira. Mas não se parece com nenhum guerreiro que já
tenha visto.
Sorri-lhe de volta.
— Como não há mulheres no vosso exército, não estou surpreendida.
Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma risada.
— Peço desculpa. Normalmente, não sou tão inábil nos meus elogios.
Será que o ouvira corretamente? Apercebendo-me de uma súbita pausa
nas conversas, olhei para o salão à minha volta. Muitos dos imortais do Mar
do Leste estavam a olhar para nós, sussurrando entre si.
— A vossa presença ao meu lado está a causar uma comoção, Vossa
Alteza. Talvez devêsseis conviver com os restantes convidados — sugeri,
apercebendo-me, tarde de mais, de que não se pode mandar embora um
príncipe do reino.
Felizmente, ele pareceu divertido, e não ofendido.
— Deixei-a pouco à vontade? Não era a minha intenção. Apenas queria
conhecê-la melhor. As pessoas interessam-me, tanto como outros se
interessam por livros, música ou arte.
Os meus dedos retorciam o tecido macio do vestido enquanto
procurava, em vão, uma resposta adequada.
Os seus olhos reluziram quando se fixaram no meu pescoço.
— O seu medalhão... é um amuleto raro. Podia dizer-me a sua origem?
Fiquei com a garganta seca. Já fora questionada tantas vezes sobre a
minha família que tinha uma resposta pronta na ponta da língua. Contudo,
nunca me haviam perguntado sobre o medalhão do meu pai, normalmente
escondido sob a roupa. Sempre pensei que fosse uma joia banal, a sua
herança o único valor que tinha para mim.
— Encontrei-o no mercado. O que aparece no Reino Celestial uma vez
a cada cinco anos — respondi rapidamente.
— Uma descoberta afortunada.
Ele enunciou lentamente cada palavra.
Mudei de posição na cadeira, interrogando se ele se apercebera da
minha mentira. Senti-me tentada a mudar de assunto, a regressar a terreno
mais seguro, mas o seu interesse avivara o meu. Talvez ele soubesse algo
sobre o medalhão do meu pai.
— Porque lhe haveis chamado um amuleto?
— Porque é um amuleto. Um poderoso amuleto de proteção.
Os meus dedos ergueram-se para tocar no jade. Teria o meu pai usado o
amuleto quando partiu no encalço das aves solares? Teria o amuleto
protegido o meu pai das chamas mortais?
O Príncipe Yanxi debruçou-se para observar melhor a pedra.
— Infelizmente, parece ter sido danificado.
A rachadela no rebordo.
— Pode ser restaurado? — perguntei, com um pouco de ansiedade a
mais.
Os cantos da sua boca descaíram.
— Pelo estilo da escultura, parece ser um talismã dos dragões. Se assim
for, só eles o podem consertar.
O meu ânimo desabou quando soltei o medalhão. Os dragões já não
viviam no Domínio Imortal. Banidos, dissera o Príncipe Yanxi, fazendo eco
da história que ouvira na infância.
— Sabeis muito sobre dragões. No Reino Celestial, há pouca
informação sobre eles — observei.
— Os Dragões Veneráveis, como eram conhecidos, nasceram no Mar do
Leste e viveram aqui até serem banidos. Embora nunca tenham estado sob a
nossa autoridade, os nossos historiadores, estudiosos e escribas reuniam
toda a informação que conseguiam encontrar sobre eles. Apesar da
aparência assustadora, eram sábios e benevolentes, usando a sua magia para
ajudar quem precisava e para manter a paz nas nossas águas. Muitos
veneravam-nos, tritões, imortais do mar, até mortais. Muitos lamentam a
sua partida. Se quiser aprender mais, é bem-vinda na nossa biblioteca.
— Agradeço-vos muito.
Estava grata pela oferta generosa. Segundo o Capitão Wenzhi, não era
uma oferta feita de ânimo leve. A minha curiosidade estava espicaçada,
especialmente depois de já ter perdido uma oportunidade, e ansiava por
mergulhar na biblioteca, se pelo menos tivesse tempo para o fazer.
— Vossa Alteza, haveis ouvido falar do Arco do Dragão de Jade? —
perguntei, tentando manter um tom descontraído.
A sua postura ficou rígida, quase impercetivelmente.
— Porque pergunta?
— Ouvi alguém falar dele e fiquei a pensar em quem teria empunhado
uma arma tão poderosa.
— Ninguém — respondeu-me num tom grave. — Desapareceu junto
com o dono, antes até de os dragões serem banidos, e provavelmente nunca
será encontrado.
Estive quase a confidenciar-lhe que o arco não estava perdido, que
estava à minha guarda. Mas sabia pouco sobre o príncipe e prometera ao
Capitão Wenzhi que não falaria do arco a ninguém. Além disso, ele parecia
não saber nada sobre o paradeiro do dono.
O repicar de sinos chamou-me a atenção, com os seus tons vibrantes e
metálicos. Entraram dançarinas, a deslizar até ao centro do salão num
tumulto de seda azul e verde. Uma fiada de sinos dourados tilintava-lhes à
cintura e os toucados ornados estavam cravejados de pedras preciosas. Cada
bailarina trazia um pau de jade polido ao qual estava preso uma fita
vermelha. Quando a tocadora de pipa começou uma música nova, uma
melodia animada com acordes vibrantes, as dançarinas ergueram os paus de
jade e dançaram. Os corpos graciosos giravam e mergulhavam e
rodopiavam, as fitas a esvoaçarem atrás delas, fulgurantes como chamas.
Suspiros de apreço ergueram-se da multidão, incluindo os meus.
Duas bailarinas saltaram pelo ar, as fitas a rodar à volta dos seus corpos
numa espiral elegante. Quando pousaram, outra saltou alto, arqueando na
direção dos tronos numa notável exibição de agilidade. Quando a seguia
com os olhos, arregalados de admiração, algo brilhante deslizou da base do
seu pau de jade. A suavidade da sua expressão deu lugar à ferocidade de um
predador.
Terror apertou-me a barriga. Por instinto, procurei uma arma. Quando
não encontrei, peguei numa travessa de prata e arremessei-a à dançarina que
saltava pelo ar. A travessa acertou-lhe na cabeça e deixou-lhe o toucado
torto. A bailarina soltou um grito ao cair ao chão num monte confuso de
seda azul, verde e vermelha.
Os convidados levantaram-se num salto com gritos de alarme. Alguns
deitavam-me olhares zangados, como se eu tivesse perdido o juízo,
perturbando o espetáculo com a minha conduta incivilizada.
— Ela tem uma arma — avisei o Príncipe Yanxi.
Ele pôs-se logo em ação, gritando ordens aos guardas para prenderem a
dançarina.
Após uns momentos de tensão, um guarda veio a correr até nós. Tinha
uma expressão lúgubre quando estendeu um punhado de agulhas afiadas,
reluzindo com os vestígios viscosos de um líquido esverdeado.
— Veneno de escorpião-do-mar — sibilou o Príncipe Yanxi. —
Espalha-se depressa, paralisando o corpo todo. Uma dose alta pode ser fatal.
A música parara quando a dançarina caíra, mergulhando o salão num
silêncio ominoso. Os convidados trocavam olhares confusos, os murmúrios
não mais indignados, mas agora ansiosos e urgentes. O ar mal se movia,
pleno de tensão. Algo bateu contra a parede. Metal chocou com metal e um
grito arrepiante fez-se ouvir. Ao meu lado, o Príncipe Yanxi desembainhou
a espada. As portas abriram-se de rompante e um guarda parou à entrada,
com a armadura azul e prateada manchada de sangue.
— Tritões! Estamos a ser atacados!
Uma lança trespassou-lhe o peito com um esguicho húmido, a ponta
encharcada em sangue. O soldado arregalou os olhos e cambaleou para a
frente, caindo de joelhos e tombando para o lado.
Os convidados levantaram-se subitamente, derrubando mesas e cadeiras
ao fugirem para o fundo do salão. O Capitão Wenzhi saltou do palanque, a
espada já desembainhada. Praguejei por estar de mãos vazias, mas o
príncipe tirou um arco e uma aljava a um guarda próximo e atirou-mos.
Pegando numa flecha, assestei-a na corda, a haste vermelha dura e fria
como pedra.
— Coral de fogo. Os tritões são-lhe vulneráveis — explicou o Príncipe
Yanxi, numa voz tensa, os nós dos dedos brancos à volta do punho da
espada.
Os atacantes jorraram para dentro do salão. A sua armadura era tecida
de pequenas escamas que reluziam como madrepérola. Correram na nossa
direção, brilhantes pupilas turquesa, o cabelo entrançado a esvoaçar atrás
deles. A pele pálida estava coberta por um brilho iridescente, como se
estivesse a olhar para eles através de um vidro colorido. Senti um calafrio
na pele ao avistar as espadas curvas, untadas com o mesmo veneno das
agulhas. Aqueles que eram cortados pelas suas lâminas ficavam
imobilizados, os membros a tremerem erraticamente, os olhos arregalados
de horror.
Quando o Príncipe Yanxi se embrenhou no combate, um tritão atacou-o.
Soltei de imediato uma flecha e atingi o atacante no ombro. O tritão caiu ao
chão, agarrando a haste da flecha cravada na sua carne. Fiz-me insensível
àquela visão, aos seus queixumes de dor. O remorso era para mim um luxo,
disparando flecha atrás de flecha sobre os invasores... mas fazia pontaria
para os membros sempre que podia. O Capitão Wenzhi ter-me-ia
admoestado se tivesse percebido isso. Para ele, um inimigo era um inimigo
e mostrar misericórdia em combate era deixar a retaguarda desprotegida.
Contudo, não conseguia parar de pensar no porquê de os tritões se terem
revoltado contra os imortais do mar. Estava a aprender que os reis nem
sempre eram tão justos como os das histórias e que a misericórdia dos
deuses por vezes revelava-se viciada.
Sangue manchava o chão e as minhas mãos estavam escorregadias de
suor. As minhas flechas voavam numa torrente implacável, os gritos de
agonia dos meus alvos a agredirem-me a consciência. Forcei a minha
atenção de volta para as armas que os tritões empunhavam, para o
sofrimento que causavam. Mas por muitos que caíssem sob as nossas
flechas e espadas, mais ainda brotavam pelas portas. As nossa forças
diminuíam à medida que formávamos um círculo defensivo à volta da
família real e dos convidados.
Os olhos dos tritões brilhavam de antecipação enquanto fechavam o
cerco. Tinham a vantagem; eles eram mais do que nós. Ergueram as mãos, o
cheiro da água salgada denso no ar quando torrentes de água irromperam
pelo salão. O Capitão Wenzhi estendeu o seu poder e fragmentos de gelo
caíram sobre os tritões. Vários tombaram, mas a água continuava a
revolver-se, cada vez mais alta, encharcando sapatos, vestidos e túnicas, até
uma onda se erguer acima de nós. A energia do Rei Yanzheng irradiou do
seu corpo, dispersando a onda, mas outras erguiam-se atrás dela. Mais e
mais, elevando-se à nossa volta até ficarmos encurralados por paredes
trémulas de água, prestes a quebrarem e arrastarem-nos para longe. Um
grito fraco atrás de mim deixou-me abalada, o grito de uma criança a tentar
conter o medo. Seria o Príncipe Yanming?
Recolhendo a minha energia, invoquei um vento que varreu o salão,
erguendo-se sobre nós como uma cúpula translúcida, semeada de gelo
cintilante quando Wenzhi juntou a sua energia à minha. Mesmo a tempo,
pois as ondas caíram sobre a nossa barreira. Cambaleei sob o peso
esmagador, sentindo os membros a gemer enquanto me debatia contra a
exaustão. Quando pensava que ia colapsar, o poder do Príncipe Yanxi
irrompeu para diante, afastando a água para cima dos tritões.
Ouviram-se passos ao longe. Contraí os músculos, preparada para mais
um assalto ao erguer o arco, as minhas mãos doridas já a assestar uma
flecha. Mais soldados entraram para o salão, dessa vez com a armadura azul
e pratada do Mar do Leste. Com um suspiro de alívio, baixei a arma. Os
tritões atacaram os soldados e lutaram valentemente, mas foram
rapidamente dominados.
O líder capturado foi arrastado até nós. Sangue escorria-lhe de um corte
longo na cara e nos olhos cintilava uma chama azul.
— Assassinas disfarçadas de dançarinas com agulhas envenenadas para
matar o nosso rei. A que outras táticas desprezíveis recorre o Governador
Renyu? — perguntou o Príncipe Yanxi, com desdém.
— Todas as táticas são honradas para lidar com um assassino de dragões
— ripostou o tritão.
— O que quer dizer? Explique-se! — exigiu o Rei Yanzheng, numa voz
indignada.
Quanto ódio emanava do olhar do tritão.
— O Governador Renyu disse-nos como nutria inveja do poder dos
dragões e se ressentia da sua recusa de se submeterem à sua autoridade.
Conspirou com o Imperador Celestial para os aprisionar e assassinar!
O Príncipe Yanxi estremeceu com repugnância.
— Que punhado de vis mentiras! Nós reverenciávamos os dragões.
Ainda os honramos. Nunca os procurámos dominar, bastava que nos
agraciassem com a sua presença. — O seu tom endureceu. — Fazer essa
acusação ao meu pai é obsceno e indigno da sua inteligência.
— Mente tão bem como o seu pai — resmungou o tritão.
O Príncipe Yanxi atirou-se para cima dele, mas o Capitão Wenzhi
segurou-lhe o braço e puxou-o para trás.
— Para lá das afirmações do governador, que provas tem de que os
dragões foram assassinados? — quis saber o Capitão Wenzhi.
Um ar de confusão passou brevemente pelo rosto do tritão, que
manteve, contudo, um silêncio obstinado.
O Rei Yanzheng falou calmamente.
— O seu governador não lhe mostrou provas porque não existem. As
suas alegações são infundadas, as suas acusações são falsas. Nada mais do
que palavras vazias para vos incitar a seguir as suas ordens.
O tritão arrepanhou os lábios.
— O Governador Renyu jura que vingará a morte dos dragões. Assim
que o rei indigno for deposto, ele vai restaurar a glória dos tritões, vai...
O tritão fechou a boca e olhou para o lado. Teria medo de revelar algo?
Ou algum encantamento impedia-o de dizer mais?
O Capitão Wenzhi pareceu não reparar quando soltou uma risada sem
alegria.
— O governador tenciona tomar a coroa depois de assassinar o rei
legítimo? Que nobre da parte dele, ascender ao trono em nome de procurar
retribuição pelos dragões.
O tritão abanou a cabeça veementemente.
— Não, o Governador Renyu é honrado! Ele apenas deseja...
Mais uma vez, ficou sem palavras.
— Desejava poder ter feito mais pelos dragões — suspirou o Rei
Yanzheng. — Implorámos ao Imperador Celestial que rescindisse o castigo,
que os libertasse, mas ele recusou. Eles tinham, de facto, desafiado a sua
autoridade e as nossas mãos estavam atadas. Os dragões não teriam
desejado que entrássemos em guerra com o Reino Celestial. Valorizavam a
paz acima de tudo o resto.
— Os dragões não são vistos há séculos! — gritou o tritão.
— Isso não significa que estejam mortos — contrapôs o Príncipe Yanxi.
— Teríamos sentido se uma tal luz tivesse desaparecido do nosso mundo.
Mordi o lábio e fitei o rosto desdenhoso do tritão. Algo não estava certo.
Falava com paixão e os olhos brilhavam de convicção, mas porque
arriscaria vida e honra com base em meras alegações infundadas?
A voz do Capitão Wenzhi quebrou o silêncio, baixa e suave.
— Qual era o vosso objetivo hoje? Matar o rei e o herdeiro? Contudo,
os aliados do Mar do Leste nunca aceitariam o Governador Renyu como rei.
Qual era o plano do governador?
O tritão ergueu o queixo, desafiador.
— Façam o vosso pior. Não vou dizer nada.
— Oh, mas vai — disse o Capitão Wenzhi, cada palavra dura como aço.
— Descobri que há maneiras de extrair até os segredos mais preciosos. Não
só fogo e gelo, mas também os métodos do mundo mortal. Decepar
membros, esfolar a pele. Ferver a carne em óleo.
Um arrepio percorreu-me o corpo, mas mantive o rosto impassível.
O tritão estremeceu quando o Capitão Wenzhi se debruçou sobre ele.
— Se não falar, um dos seus amigos pode ser persuadido a fazê-lo. Caso
contrário, o seu povo vai sofrer a fúria do Reino Celestial. Vão ser banidos
do Mar do Leste, exilados para o Deserto Dourado. Deixados a vaguear e a
definhar sob o calor do sol, passando o resto da eternidade nas areias
ressequidas.
O Príncipe Yanxi inalou abruptamente e o seu pai ficou pálido. Para um
imortal do mar, um tal destino seria pior do que a morte. Tinham mantido a
compostura durante a conversa sinistra sobre tortura, mas não achei que
conseguissem aguentar um castigo assim tão duro. Mas o que importava era
o que o tritão acreditava. Ouvira dizer que o Capitão Wenzhi tinha talento
para obter respostas de prisioneiros teimosos sem recorrer a crueldade
física. Os rumores não eram exagerados. O tritão já dava sinais de ceder, a
respiração mais rápida, os olhos a dardejar por todo o lado, mas regressando
sempre ao capitão.
Testemunhara a determinação inabalável do Capitão Wenzhi em
combate, a sua temeridade ao carregar sobre o inimigo. A sua honra e
coragem eram reverenciadas pelos soldados, mas aquilo... aquilo era uma
nova faceta da sua personalidade. Talvez fossem dois lados da mesma
moeda; ninguém conseguiria alcançar tudo o que alcançara sem uma certa
crueldade.
O tritão encolheu-se. Mesmo assim, o Capitão Wenzhi olhava-o
fixamente, as pupilas escuras como obsidiana.
Por fim, o tritão colapsou, tremendo incontrolavelmente.
— Mais não — implorou numa voz débil. — Deixe o meu povo em paz.
Não lhes faça mal.
Ofegou como se as palavras estivessem a ser-lhe arrancadas.
— O Príncipe Yanming... Mesmo que não conseguíssemos matar o rei,
devíamos capturar o filho.
O Rei Yanzheng levantou-se abruptamente. Vasculhou o salão com o
olhar à procura do jovem príncipe, que estava aninhado ao lado da rainha
num canto distante, a cabeça apoiada no ombro da mãe. Abençoadamente
ignorante da ameaça que pendia sobre a sua família e a sua vida.
O Príncipe Yanxi segurou com força o punho da espada, tentando
manter a compostura.
— Um plano ignóbil. O Governador Renyu deve querer coroar o meu
irmão para governar como o poder atrás do trono. Depois de se livrar do
resto de nós.
Assentiu brevemente para os guardas, que levaram embora o
prisioneiro. Já não havia mais luta dentro do tritão, que tombava dos braços
dos seus captores como uma alga arrastada para a praia.
Pouco tempo antes, o salão estivera repleto de alegria e riso. Agora,
soldados de armadura tomavam o lugar dos convidados elegantes, que
tinham fugido, e os gemidos dos feridos eram um fraco substituto dos
acordes relaxantes do pipa.
— Peço perdão pelo fim abrupto das nossas festividades. Não eram bem
as boas-vindas que tínhamos planeado — lamentou o Príncipe Yanxi, num
tom pesaroso.
A expressão do Capitão Wenzhi era soturna.
— Talvez não, mas ganhámos informação valiosa sobre as ambições do
Governador Renyu. E até onde é capaz de ir para as alcançar.
O Príncipe Yanxi assentiu.
— Vamos traçar os nossos planos amanhã, com os nossos comandantes.
Prometo que vai ser menos atribulado do que esta noite, agora que estamos
em alerta. Seja como for, temos amplas reservas de flechas no palácio. —
Com um brilho nos olhos, acrescentou: — De travessas também, se a
Arqueira-Mor preferir.
Os meus lábios curvaram-se num sorriso vazio, apesar de acolher a sua
tentativa de aliviar o ambiente.
O Príncipe Yanxi inclinou a cabeça para o Capitão Wenzhi.
— A sua ajuda hoje foi inestimável e o meu pai não se esquecerá de o
louvar ao Reino Celestial. A sua reputação é bem merecida.
Olhou então na minha direção.
— Tal como a sua, Arqueira-Mor.
Fiz uma vénia em reconhecimento do elogio. Contudo, o meu sorriso
esmoreceu quando olhei para o salão à minha volta, para os fragmentos de
porcelana e para a comida espalhada pelo chão, misturados com rastos
vermelhos de sangue.
Nessa noite, não consegui dormir. Quando fomos atacados, fora tomada
por um frio instinto de sobrevivência e abatera os atacantes sem hesitar.
Mas com as acusações do tritão a ecoarem nos meus ouvidos, a dúvida
encontrou o caminho até ao meu coração. Estariam os dragões em perigo?
Seria o Rei Yanzheng tão virtuoso como tinha fama de ser? Seria fingida a
admiração do Príncipe Yanxi pelos dragões? Não, pensei para mim mesma,
ele não parecia ter uma natureza desonesta.
Eu e o Capitão Wenzhi ganháramos o hábito de comer juntos, e
normalmente gostava desses momentos de companheirismo silencioso.
Contudo, nessa manhã, debiquei a refeição sem energia.
— Lutou bem ontem à noite — disse ele.
Estremeci, sentindo pouco orgulho ao ouvir o elogio, os gritos
agonizantes dos meus alvos ainda a ecoar na minha mente.
— Acredita em alguma coisa do que aquele tritão disse? Sobre o Rei
Yanzheng trair os dragões?
— Não — respondeu num tom firme, com uma certeza tal que parte da
minha apreensão desapareceu. — A reverência do rei pelos dragões é bem
conhecida. Além disso, os dragões não eram uma ameaça para ele.
— Então, porque acreditam os tritões no governador? — perguntei.
— Isso é um mistério. O Governador Renyu tem todas as características
de um tirano e as suas ações impiedosas de ontem à noite apenas
confirmaram essa suspeita. É possível que tenha conseguido um apoio tão
forte apenas porque os tritões têm vivido em isolamento há tanto tempo. —
E acrescentou soturnamente: — Parecem acreditar em tudo o que ele diz.
Levei à boca uma colherada de caldo de arroz, os grãos cozinhados até
ficarem macios como seda, o sabor com notas de frango e ervas aromáticas.
Mastiguei metodicamente, enquanto outra pergunta pairava na ponta da
língua, uma pergunta que hesitava em fazer. Quando ergui o olhar, reparei
que o Capitão Wenzhi não tocara na sua taça.
— Que mais a preocupa? — quis ele saber. — As dúvidas estão escritas
na sua cara.
Pousei a colher de porcelana e virei-me para ele.
— Teria sido capaz de o fazer? Todas as coisas que disse... até exilar os
tritões para o deserto?
— Acha que eu teria sido capaz?
A sua expressão era grave e, por algum motivo, senti que a minha
resposta era importante para ele.
Não, quis dizer, mas insisti.
— Ontem, falou de decepar membros e esfolar pele tão facilmente,
como se falasse a sério.
Nenhuma batalha estava isenta de crueldade, mas parecia-me errado
fazer algo semelhante a um inimigo capturado. Indefeso.
— Há partes do meu trabalho que não me agradam — admitiu ele em
voz baixa. — E o que viu ontem é uma delas. Nem tudo é tão linear como a
lâmina de uma espada. Não me orgulho do que disse, mas calculo que, se
não o tivesse dito, o Príncipe Yanming teria sido raptado. Centenas de
soldados teriam morrido em combate. O Rei Yanzheng teria sido
assassinado, juntamente com o seu novo amigo, o Príncipe Yanxi.
Fiquei surpreendida com o seu tom cáustico. Contudo, as outras
palavras do Capitão Wenzhi fizeram eco dentro de mim. Como bem sabia,
por vezes dávamos por nós em situações em que éramos forçados a enganar
contra a nossa vontade, os nossos princípios e os nossos sentimentos.
Ele continuou, como se fosse um alívio desabafar aqueles pensamentos.
— O tritão não queria saber da sua própria segurança; ameaças contra
ele teriam sido ignoradas. Mas as vidas da sua família e dos seus amigos,
isso não trataria de forma tão leviana. — Um sorriso tenso surgiu-lhe nos
lábios. — E ajuda que o Imperador Celestial não tenha fama de
misericordioso.
Como eu bem sabia. Estremeci ao recordar o olhar gélido do imperador,
o terror que me envolvia só de o ver. Não duvidava que eliminaria aqueles
que considerasse uma ameaça.
— Obrigada por me dizer isso.
Estava a ser sincera. Ele não precisava de se explicar, o facto de o fazer
era um sinal de confiança.
— Obrigado por me ouvir — respondeu em voz baixa. — Espero que
consigamos sempre falar assim. Que partilhe sempre comigo quaisquer
preocupações que tenha.
Pegou então na taça, apesar de o caldo ter ficado frio. Não falámos
durante o resto da refeição, mas comi com apetite renovado, aliviado o
fardo na minha consciência.
Quando eu e o Capitão Wenzhi chegámos ao Palácio de Coral
Fragrante, um servo conduziu-nos até uma sala no último andar. As janelas
abriam para o mar azul, sem limites e sempre a mudar. Cadeiras de pau-rosa
estavam dispostas à volta de uma mesa grande, talhada a partir de uma só
peça de madeira. O Príncipe Yanxi e seis outros imortais estavam sentados à
mesa, embrenhados numa discussão acesa.
Dispensando cortesias, o príncipe apresentou-nos rapidamente aos
comandantes na sala.
— Os tritões nunca se atreveram a atacar o palácio — declarou com
uma expressão sombria. — Só o fazem agora porque acreditam que o seu
exército é suficientemente forte para nos enfrentar. O que significa que
estamos a ficar sem tempo.
O Capitão Wenzhi sentou-se numa cadeira e fez-me sinal que fizesse o
mesmo. Um servo apressou-se a encher-nos as taças com chá.
— Também podem estar a tentar provocar uma retaliação precipitada —
avisou.
O Príncipe Yanxi assentiu secamente.
— Seremos cautelosos. Contudo, se permitirmos que o Governador
Renyu nos ataque sem repercussões, isso apenas o vai encorajar.
O seu olhar cruzou-se com o meu através da sala.
— O argumento da Arqueira-Mor sobre garantir que a batalha é travada
em terra firme é crucial. Os tritões prefeririam certamente levar a luta para
debaixo de água, onde são mais fortes.
O Capitão Wenzhi apertou as mãos por cima da mesa.
— Orquestrar o confronto permitir-nos-ia escolher o campo de batalha.
Disseram que os tritões fazem saques em terra. Há outro motivo que os
traga para terra firme?
— Nenhum que saibamos — respondeu o Príncipe Yanxi.
— Então, temos de os atrair até nós. O que podemos usar como isco? —
perguntou o Capitão Wenzhi, num tom determinado.
Alguns generais remexeram-se nas cadeiras, desconcertados pela
sugestão. Dei um gole no meu chá para soltar o aperto que sentia na
garganta.
— Terá de ser algo que leve o Governador Renyu a liderar pessoalmente
o ataque. Isto só vai funcionar uma vez — acrescentei rapidamente, antes de
perder a coragem.
— Concordo. O governador alguma vez liderou um ataque? —
perguntou o Capitão Wenzhi.
— Não. Ele é poderoso, mas muito cuidadoso — respondeu o Príncipe
Yanxi.
O Capitão Wenzhi soltou um suspiro.
— Posso falar com franqueza, Vossa Alteza? — Após um aceno do
Príncipe, Wenzhi continuou: — Itens mágicos ou tesouros podem não ser
suficientes para o aliciar a arriscar a pele. Contudo, agora sabemos que o
Príncipe Yanming é essencial para o plano do governador.
O Príncipe Yanxi levantou-se abruptamente, arrastando a cadeira para
trás.
— Quer que eu use o meu irmão como isco? — bradou.
O Capitão Wenzhi não estremeceu, parecendo indiferente à fúria do
príncipe.
— O seu irmão será posto a salvo ao primeiro sinal de perigo. Só
precisaremos dele para atrair o governador até à nossa armadilha.
O Príncipe Yanxi deitou-lhe um olhar zangado.
— Como pode garantir a sua segurança?
Lembrei-me do jovem príncipe na noite anterior, como segurara com
força a mão da mãe e escondera a cara contra o seu ombro. Recordou-me de
como eu abraçara a minha mãe nos momentos em que tivera mais medo,
quando quase me afoguei, quando soube que tinha de partir de casa.
Algo endureceu dentro de mim, uma voz que se ergueu pela minha
garganta para dizer:
— Eu protejo o Príncipe Yanming.
Todas as cabeças se viraram para mim, surpresa e ceticismo claramente
visíveis nos seus rostos. Eu própria não podia crer; até àquele momento,
essa não era a minha intenção.
Apenas o Capitão Wenzhi sorriu.
— Será a guarda perfeita para defender Sua Alteza. Eu também o vou
proteger. Não o podemos rodear com mais guardas do que o normal, não
sem levantar suspeitas.
Deixei-me cair na cadeira, aliviada por não ser mais o centro das
atenções. Ou seria devido à sua proposta de ficar de vigia comigo?
A expressão do Príncipe Yanxi suavizou um pouco quando se sentou.
O Capitão Wenzhi prosseguiu, sempre rápido a pressentir uma
oportunidade.
— Este plano vai funcionar. Depois do ataque de ontem à noite, o
Governador Renyu deve ter consciência de que é praticamente impossível
raptar o príncipe no palácio. Podemos espalhar o rumor de que o Príncipe
Yanming vai partir brevemente para o Reino Celestial, para sua segurança.
Só precisamos que Sua Alteza apareça na praia, para convencer o
governador da sua presença. Eu e a Arqueira-Mor Xingyin vamos estar ao
seu lado o tempo todo. Se isto não atrair o Governador Renyu, nada o fará.
Um general encorpado com cabelo castanho-claro franziu a testa.
— Sua Alteza costuma ser acompanhada apenas pela ama e por um
guarda. Além disso — acrescentou, corado, deitando-me um olhar furtivo
—, não temos mulheres no nosso exército. A presença da Arqueira-Mor não
vai deixar o inimigo desconfiado?
A observação astuta foi recebida com silêncio. O Capitão Wenzhi
apoiou o queixo nos dedos cruzados e olhou para mim.
— A Arqueira-Mor Xingyin pode disfarçar-se de Dama Anmei, a ama
do príncipe.
Fiquei paralisada, suprimindo um protesto instintivo. Como poderia
convencer alguém de que eu era a dama elegante do banquete? Pelos vistos,
a minha opinião era partilhada por muitos dos presentes, pois os generais
trocaram olhares incrédulos, mas pareciam ser demasiado educados para
expressarem as suas dúvidas em voz alta.
O Capitão Wenzhi não sentia tais escrúpulos.
— Sei que ela não se parece nada com a Dama Anmei, mas com as
roupas certas e uns acessórios, alguma pintura facial...
— Capitão Wenzhi, agradeço a sua confiança em mim — interrompi,
contendo uma explosão de irritação ao ouvir os seus comentários frívolos.
A expressão do Príncipe Yanxi mantinha-se soturna.
— O meu irmão será levado para longe do local antes de começarem os
combates.
Era uma exigência, não uma pergunta.
O Capitão Wenzhi inclinou a cabeça.
— Claro.
O príncipe falou então para mim.
— Isto seria ainda mais arriscado do que a noite de ontem. O
Governador Renyu é perigoso e imprevisível. Seria o alvo dos ataques do
inimigo e, para evitar suspeitas, não poderia estar armada nem usar a sua
magia, pelo menos até o governador cair na armadilha. Apesar de sentir
confiança na nossa vitória, ninguém pode saber ao certo o resultado de
qualquer confronto. Temo pela sua segurança se chegarem até si e não
encontrarem o meu irmão a seu cargo.
A sua candura e preocupação tocaram-me.
— Vossa Alteza, tomarei conta do vosso irmão e de mim — garanti.
Ele assentiu, olhando para os rostos à volta da mesa.
— Muito bem, vamos prosseguir. Mas precisamos de algum tempo para
fazer os preparativos e plantar a informação junto das fontes certas. Seria
prudente se pudesse passar algum tempo com o meu irmão nos próximos
dias. Para o nosso plano funcionar, ele precisa de se sentir à vontade
consigo.
Senti um aperto no estômago. Apesar de reconhecer o bom senso da sua
sugestão, nunca passara muito tempo com crianças.
Depois da reunião, o Capitão Wenzhi e eu seguimos o príncipe até aos
aposentos do irmão. Ao ver-nos, a Dama Anmei ergueu-se e fez uma vénia,
com o vestido de brocado verde a roçar o chão. Ao perto, era ainda mais
bonita do que me lembrava. Corou ligeiramente quando viu o Capitão
Wenzhi, mas foi a vénia elegante que Wenzhi lhe fez que me deixou a
morder o lábio por algum motivo inexplicável.
Em seguida, avançou o Príncipe Yanming e fez uma vénia perfeita ao
irmão. Quando me foi apresentado, não deu qualquer sinal de me
reconhecer da noite anterior. O Príncipe Yanxi não perdeu tempo a puxar a
Dama Anmei para o lado para lhe falar num tom sussurrado. Sem mais
palavras, saíram do quarto com o Capitão Wenzhi.
— Para onde foi a Dama Anmei? Quem é você? — quis saber o
Príncipe Yanming.
O seu rosto era redondo e macio, apesar do queixo desafiador.
Baixei-me para o fitar nos olhos, de um azul semelhante aos do irmão.
— A Dama Anmei teve de sair por um bocadinho, mas volta daqui a
pouco. Vou ficar convosco até ela voltar.
O príncipe apertou os lábios.
— Sabe jogar algum jogo?
— Que tal weiqi? — propus, vasculhando o quarto à procura do
tabuleiro com as pedras pretas e brancas.
Ele estremeceu.
— Sabe cantar? Desenhar? Fazer animais de papel? — tagarelou.
Abanei a cabeça, desanimada.
— É a pior ama que alguma vez vi.
Então, cruzou os braços num gesto rebelde. Deitei-lhe um olhar
zangado, irritada pelas suas palavras.
— Bom, não sou a vossa ama e estais a ser muito rude. Se fosseis um
pouco mais educado, talvez vos ensinasse algumas das coisas excitantes que
sei fazer.
Ele cerrou ainda mais os olhos e franziu a boca como uma uva passa.
Preparei-me para birras e lágrimas, pensando em como Shuxiao, com o seu
charme natural, teria estado bem mais preparada para aquele desafio em
concreto. Mas então ele assumiu uma pose digna e perguntou:
— Então, o que sabe fazer?
Puxei pela cabeça, tentando lembrar-me de algo para lhe dizer que lhe
prendesse a atenção, algo para justificar a minha bravata precipitada.
— Sei tocar flauta — sugeri, não com pouco orgulho.
Ele bufou impacientemente e revirou os olhos, pouco impressionado
com uma das minhas melhores aptidões.
— Li montes de livros — acrescentei rapidamente. — Posso contar-lhe
histórias!
Um interesse súbito iluminou-lhe o rosto.
— Sobre os dragões?
— Sobre os Quatro Dragões e como trouxeram chuva para o Domínio
Mortal.
Fiquei aliviada por finalmente ter conseguido prender-lhe a atenção.
Fora uma das minhas lendas favoritas quando era criança, uma história com
mais verdade do que suspeitava.
— Aquela em que os dragões são punidos pelo chato do Imperador
Celestial? É a pior delas todas!
Antes que me conseguisse conter, ronquei uma risada ao ouvir a
descrição irreverente do imortal mais poderoso em todo o domínio.
Os cantos dos lábios do príncipe curvaram-se ligeiramente para cima.
— Que mais sabe fazer?
A animosidade desaparecera-lhe da voz. Devolvi-lhe o sorriso.
— Sei atirar flechas. E lutar com uma espada.
O rosto dele iluminou-se enquanto me puxava pelo braço até uma
enorme arca repleta de espadas de madeira e escudos.
— O Irmão Mais Velho diz que sou demasiado novo para aprender. Mas
vai ensinar-me, não vai? — pediu avidamente.
Impotente perante tanto entusiasmo, assenti debilmente, esperando que
o Príncipe Yanxi me perdoasse aquela transgressão.
Quando a Dama Anmei e o Capitão Wenzhi finalmente regressaram,
estávamos embrenhados numa batalha a fingir, saltando por cima dos corais
no jardim, as nossas espadas de madeira a chocarem uma com a outra. Ao
vê-los, larguei apressadamente a espada e alisei o cabelo despenteado.
— Vossa Alteza, está na hora de dormir — disse a Dama Anmei, num
tom firme.
O Príncipe Yanming deixou descair os ombros, mas deu-lhe a mão.
— Vem visitar-me amanhã? — perguntou-me.
Algo desabrochou dentro de mim ao ouvir a esperança na sua voz.
— Sim. Gostaria muito.
O céu escurecera quando regressámos à costa. Em vez de comer com o
Capitão Wenzhi na sua tenda, comi com os outros soldados. Por algum
motivo, nessa noite não desejava a sua companhia.
Estava nervosa, tensa. Depois da refeição, caminhei pela praia e subi
para uma pedra grande. Ver as ondas a atirarem-se contra a costa com um
abandono imprudente acalmou o meu nervosismo. A pedra áspera fez
pressão contra as minhas costas assim que me deitei a olhar para o céu.
Quando a lua brilhava tão intensamente como naquele dia, sabia que a
minha mãe acendera as mil lanternas e a dor constante no meu coração
atenuava-se ligeiramente. Ao imaginá-la a abraçar-me, com a sua cara
fresca encostada à minha, um sorriso passou-me pelos lábios.
Passos aproximaram-se, quase abafados pela rebentação das ondas.
— Gosta de olhar para a lua — comentou o Capitão Wenzhi, algures
atrás de mim.
— É uma vista melhor do que muitas.
Não me dei ao trabalhar de levantar. Era rude da minha parte, mas não
estava com paciência para cortesias. Quando ele subiu a rocha ao meu
encontro, apoiei-me nos cotovelos e deitei-lhe um olhar zangado.
— Quer sair daqui?
Fiz um esforço por manter a voz estável.
— Não.
— Então, saio eu.
Encostei a palma das mãos à rocha para deslizar para baixo, mas ele
cobriu-me a mão com a dele, tão firme como a pedra por baixo da minha
pele.
— Porque está zangada? — perguntou, soando confuso.
Soltei a minha mão e abracei os joelhos. Na verdade, não sabia a causa
daquela sensação estranha sempre que olhava para ele.
— Foi por eu ter sugerido que se vestisse como a Dama Anmei? —
arriscou.
A memória das suas palavras descuidadas magoou-me.
— Não se preocupou minimamente comigo quando disse isso.
Wenzhi franziu a testa, surpreendido.
— Tem medo? — perguntou, entendendo mal o que eu queria dizer. —
É perfeitamente capaz de tomar conta do príncipe e de si, mesmo sem armas
ou magia. E se não me preocupasse consigo, ter-me-ia oferecido para ficar
de vigia ao seu lado?
— Não tenho medo.
— Então, qual é o motivo deste mau humor?
A sua voz era tão suave como a brisa da noite.
— Sei que admira a Dama Anmei e que não sou tão bonita nem tão
elegante como ela. Mas... não foi agradável ouvi-lo em voz alta.
Senti-me a corar com a recordação desse momento.
— Eu admiro a Dama Anmei? Se fui atencioso com ela, foi apenas
porque isso a parecia irritar a si. — Pôs então um sorriso malicioso, mas
voltou rapidamente a ficar sério. — Porque quereria parecer-se com ela?
Porque quereria um falcão tornar-se um rouxinol?
A minha pulsação acelerou. Não sabia porquê, sabia apenas que me
sentia subitamente insegura. Com vontade de fugir e, contudo... querendo
ficar.
— Capitão Wenzhi...
— Só Wenzhi.
Os seus olhos fitaram os meus.
Sem saber como, percebi que era um momento de grande importância
para ele, um sinal de confiança que não oferecia com facilidade.
O meu desejo covarde de fugir desapareceu. Tratava Shuxiao pelo
nome, mas éramos boas amigas. Pares. Sempre o tratara por “Capitão
Wenzhi”, tal como ele sempre me tratara por “Arqueira Xingyin” —
qualquer outra forma de tratamento teria sido impensável. Tínhamos
troçado um com o outro, até discutido, mas aquilo seria uma travessia para
território desconhecido, afastando mais uma barreira entre nós. Uma que,
descobri, não me importar minimamente de dispensar.
— Wenzhi — repeti lentamente, pouco habituada a dizer o seu nome
sem o título.
Um sorriso apareceu-lhe nos lábios, quase impercetível no escuro.
Os últimos vestígios de desconforto desapareceram, substituídos por
uma trepidação calorosa. Não voltei a falar e ele também não. Juntos,
ficamos sentados na rocha num companheirismo silencioso, as ondas a
rebentar na costa como único som.
A lua ergueu-se mais alto. O seu brilho cintilava na água, os fragmentos
de mil pedaços de prata refletidos na superfície. A brisa arrefeceu-me a pele
enquanto o calor no meu peito percorria as veias, como se estivesse
embriagada com vinho.
Os dias seguintes passaram a voar, crivados de ansiedade... contudo,
também foram dias felizes. Ensinei o Príncipe Yanming a segurar uma
espada e deixei-o vencer-me sempre que lutávamos. Ele mostrou-me como
fazer animais de papel e cantámos músicas patetas que inventámos juntos.
Quando ele descobriu que eu só sabia uma única história sobre os seus
queridos dragões, foi buscar os seus livros e, juntos, lemos como os dragões
salvaram os tritões dos monstros marinhos, como purificaram as águas
quando uma massa de alforrecas venenosas contaminou o oceano. Não era
de admirar que a ausência destas criaturas deixasse um tal vazio no Mar do
Leste. E quando Yanming atirou os braços à volta do meu pescoço,
apertando-me com força, senti um calor a desabrochar dentro de mim.
Yanming conseguira penetrar a muralha à volta do meu coração e tornar-se
o companheiro de infância que nunca tivera, o irmão que nunca soubera
querer.
Cedo de mais, chegou o dia da nossa artimanha. Estava sentada num
quarto com Wenzhi, enquanto duas servas do palácio se atarefavam comigo,
ajudando-me a transformar na Dama Anmei.
— Podes tentar agir de forma reservada e gentil? — sugeriu Wenzhi. —
Dá passos pequenos quando andas. O teu olhar deve ser mais suave. A
Dama Anmei é uma flor delicada, podes tentar não ser...
— Um espinho? — retorqui, com os nervos em franja.
Durante a última hora, Wenzhi dera-me lições sobre o comportamento
que devia emular. Deitei-lhe um sorriso enganadoramente doce.
— Talvez o capitão devesse vestir-se de Dama Anmei, já que conhece
tão bem todos os seus maneirismos.
Uma das servas soltou um riso abafado, rapidamente disfarçado.
Os olhos de Wenzhi estreitaram-se com humor, mas prosseguiu como se
eu não tivesse falado.
— Tenta parecer um pouco nervosa ou receosa. Nem toda a gente tem a
tua confiança.
Virei-me para ele, desfazendo os esforços de uma serva que tentava
prender uma flor dourada no meu cabelo.
— Desde que te conheci, tive medo mais vezes do que em toda a minha
vida. Quem não teria, crivada de dardos, chamuscada por fogo, atacada por
monstros?
— Se tiveste medo, mantiveste a cabeça em cima dos ombros. A maior
parte do tempo.
Então, sentou-se e desenrolou um rolo feito de tiras de bambu, cada uma
repleta de caracteres minúsculos e presa com seda. Em tempo nenhum,
ficou embrenhado na sua leitura como se tivesse esquecido de que eu estava
ali.
A sua indiferença incomodou-me, mais do que devia. Olhei para o
espelho e uma desconhecida fitou-me de volta. As servas tinham delineado
as minhas sobrancelhas em arcos delicados, polvilhado a minha cara com
pó de rosas e pintado os meus lábios da cor do coral. O meu cabelo estava
preso em anéis macios, adornados com joias em forma de flor, de onde
pendiam fiadas de contas de turquesa. A seda lilás do meu vestido estava
bordada com conchas coloridas e algas, uma faixa carmesim cingia a
cintura. Um quimono aberto de cetim azul caía até aos pés, calçados com
chinelos de brocado dourado.
As servas elogiaram-me, dizendo-me como estava bonita, antes de
saírem do quarto.
— Estás pronta?
Uma nota de impaciência vibrou na voz de Wenzhi quando se virou para
mim.
No silêncio súbito, dei por mim a suster a respiração.
— Estás diferente — disse ele por fim. — Mas alguém como tu não
precisa de todos estes... enfeites.
— Enfeites? — repeti, dividida entre o riso e a humilhação. — Posso
lembrar-te de que a ideia foi tua?
Ele encolheu os ombros.
— É uma boa ideia, mas não disse que me agradava.
Não era um elogio, mas a intensidade do seu olhar lançou-me um
arrepio pelo corpo, como uma brisa fresca a deslizar sobre a minha pele.
Antes que pudesse responder, ele pegou no rolo de bambu e retomou a
leitura. Quando me levantei para procurar um livro para mim, tropecei na
bainha do quimono.
Wenzhi levantou-se num salto para me amparar, os seus dedos a
fecharem-se sobre os meus braços. Uma luz cintilava-lhe nos olhos e o meu
coração batia como se tivesse corrido uma grande distância. Mas aprendera
que tais sentimentos eram perigosos e que as feridas que podiam infligir
eram mais dolorosas do que os golpes de uma espada.
Recuei, desviando o olhar. Ele deixou cair os braços e um silêncio
embaraçado desceu sobre nós.
Felizmente, o Príncipe Yanming chegou pouco depois. Ao ver-me,
desatou à gargalhada, esbatendo o meu breve orgulho na minha aparência.
— Está a usar as roupas da Dama Anmei!
— Hoje, ela é a Dama Anmei — lembrou Wenzhi, num tom severo. —
Recordai o que o vosso irmão vos disse, Vossa Alteza.
A alegria desapareceu do rosto do Príncipe Yanming enquanto assentia,
com o corpo a tremer ligeiramente. É claro que tinha medo, sabendo que ele
e aqueles que amava estavam em perigo.
Baixei-me e segurei-lhe o ombro.
— Não vos preocupeis — disse-lhe. — É um bocadinho perigoso, mas
ficareis a salvo. O vosso irmão está à espera na selva com os seus guardas e
não vamos deixar que nada vos aconteça.
Yanming mordeu o lábio.
— E a si? Também não quero que lhe aconteça nada.
— E nada vai acontecer — prometi, limpando o suor da mão antes de a
estender. — Tomarei conta de nós.
Uma expressão curiosa passou pelo rosto do príncipe.
— Mas... não luta muito bem. Venci-a sempre e só comecei a aprender
agora.
Wenzhi conteve a custo uma risada e deitei-lhe um olhar zangado.
— Não vos preocupeis — disse ao Príncipe Yanming, que ainda franzia
a testa. — Sou bem melhor com o arco.
Juntos, caminhámos em silêncio do palácio até à costa. Uma tenda
grande fora erigida para nosso uso, longe do mar. Um alvo visível para as
forças do Governador Renyu, um alvo que esperávamos ser irresistível.
Assim que entrámos e a aba da tenda se fechou, comecei a esconder armas,
arcos e aljavas à volta da tenda.
A seguir, demos um longo passeio pela praia, o sol do meio-dia a bater
sobre nós. Os residentes tinham sido evacuados para um sítio seguro,
deixando soldados celestiais disfarçados no seu lugar, enquanto o Príncipe
Yanxi e o seu exército se escondiam na selva junto à praia. Sem largar a
mão do Príncipe Yanming, analisava a envolvente à procura de sinais de
perigo. Contudo, não havia perigo à vista, o mar estava tranquilo e límpido.
Pouco depois de regressarmos à tenda, o Príncipe Yanming adormeceu,
talvez exausto com a tensão daquele dia. Tapei-o com um cobertor,
observando o peito a subir e a descer, e a serenidade do seu rosto tocou-me
profundamente. Mantê-lo-ia a salvo, prometi silenciosamente, acontecesse o
que acontecesse. Procurando em redor algo para me distrair, encontrei
alguns livros e um tabuleiro de weiqi preparado num canto, as peças pretas
e brancas a luzir convidativamente. Mas não estava com disposição para
nenhum deles. Esperar pelo ataque deixava-me os nervos em franja, ao
contrário de Wenzhi, que estava sentado numa cadeira a ler o seu rolo com
uma calma imperturbável.
Fui tomada por um impulso de perturbar a sua concentração.
— Quando vieste para o Reino Celestial? — perguntei.
— Há algum tempo.
Sem me deixar desencorajar pela resposta curta, insisti.
— De qual dos Quatro Mares vieste?
Ele ergueu a cabeça e fitou-me atentamente.
— Porquê o súbito interesse?
Soltei um suspiro.
— Não há muito que fazer aqui a não ser conversar. Infelizmente, a
escolha de companhia é um pouco limitada.
— Porque não falamos de ti? — sugeriu ele. — De onde vens?
— Do Mar do Sul.
Apanhada de surpresa, disse a primeira coisa que me veio à mente, a
história de disfarce que combinara ao partir do lar.
— Do Mar do Sul — repetiu ele lentamente, pousando o rolo. — E, no
entanto, nunca viste o oceano?
Senti o rosto a corar. Felizmente, estava coberto com uma camada de
pó.
— Parti quando era pequena e não me lembro de grande coisa. E a tua
família?
Estava ansiosa por afastar a conversa de mim.
Ele ficou em silêncio por um bom bocado.
— Tenho parentes no Mar do Oeste, mas não os vejo há muito tempo.
As minhas responsabilidades mantêm-me ocupado.
— Tens saudades deles? — perguntei, pensando na minha mãe.
— De uns mais do que de outros — respondeu, com um sorriso tenso.
Voltou a pegar no rolo, um sinal de que a nossa conversa chegara ao
fim. Encontrara finalmente alguém tão reticente quanto eu. Teria pouca
disposição para falar da sua família porque o Mar do Oeste aliara-se ao
Reino Infernal durante a guerra? Talvez fosse prudente não recordar isso
aos demais. Apesar de o Reino Celestial estar agora em paz com os Quatro
Mares, as memórias imortais eram longas. Abri a boca para fazer outra
pergunta, mas hesitei. Nem toda a gente tinha um passado tão idílico como
um passeio num campo ensolarado. Todos temos os nossos recantos que
preferimos deixar nas sombras.
O sol desceu para o horizonte e continuávamos sem sinal dos tritões.
Teria o nosso plano falhado? Seria o Governador Renyu demasiado ardiloso
para cair na nossa cilada?
— Quanto tempo mais temos de ficar aqui? Não podemos ir embora?
Talvez o governador não venha.
O Príncipe Yanming estava irrequieto desde que acordara, pouco
habituado a estar confinado. Olhei de relance para Wenzhi.
— Vamos dar mais um passeio lá fora? Para reafirmar que ainda
estamos aqui?
— Podem estar à espera do cair da noite para atacarem. Os tritões veem
bem no escuro — respondeu Wenzhi.
— E se fizermos correr o rumor de que o Príncipe Yanming partirá em
breve? Os guardas e servos podem fingir os preparativos enquanto
passeamos perto da água. A seguir, Sua Alteza pode ser escoltada para um
local seguro.
O perigo aumentava a cada momento que passava. Contudo, seria
melhor provocar a entrada dos tritões em ação do que deixar que o seu
plano se desenrolasse como pretendiam.
Wenzhi assentiu, chamando um guarda para lhe dar instruções. Antes de
sairmos da tenda, deu-me um punhal pequeno com um cabo de prata.
— Mantém isto contigo a todo o momento.
Aceitei o punhal, prendendo-o na faixa, escondido sob o quimono. Era
mais um ornamento do que uma arma, mas era tudo o que tinha para me
defender. Não, lembrei a mim mesma. Ainda tinha os meus poderes e,
mesmo desarmada, não estava indefesa.
O oceano estava agora agitado, as águas verde-acinzentadas e
turbulentas. Ondas coroadas de espuma erguiam-se alto e rebentavam sobre
a costa. Soltando-se da minha mão, o Príncipe Yanming correu à minha
frente. Persegui-o para dentro de água, encharcando chinelos e vestido.
Uma sombra escura tombou sobre nós, como se tivesse caído a noite, e
um terror frio apertou-me a boca do estômago. Acima de nós erguia-se um
polvo enorme que tapava o próprio sol. Tentáculos gigantes, cada um com o
dobro do comprimento de um homem adulto, chicoteavam em redor,
batendo na água e alagando a praia. Montado na criatura estava um
guerreiro de armadura opalescente que lhe chegava aos joelhos e deixava os
braços destapados, com uma coroa de coral vermelho entretecida no cabelo.
Ao pescoço luzia um medalhão grande, um disco de ouro a rodear uma
pedra amarela e brilhante. Numa mão segurava uma lança e na outra um
escudo coberto de picos afiados. Os olhos eram pálidos como glaciares, e
quando se fixaram em mim, fiquei paralisada.
O Governador Renyu.
Wenzhi gritou um aviso e os lábios do governador curvaram-se num
sorriso cruel. O polvo estava quase em cima do Príncipe Yanming!
Correndo pela água adentro, agarrei-o e segurei-o com força enquanto
fugíamos da maré enchente. Um tentáculo atacou-me pelas costas e cortou-
me na perna. Contive um grito, forçando-me a avançar pela corrente
tumultuosa, enquanto a água do mar lavava o sangue da ferida. Assim que
chegámos à praia, a água encheu-se de milhares de alforrecas trémulas, com
tentáculos translúcidos cobertos de espigões venenosos.
Os tritões surfavam a cristã das ondas, rugindo enquanto irrompiam pela
praia. Em resposta, os homens do Príncipe Yanxi soltaram um grito e saíram
da selva. Os soldados celestiais despiram os disfarces, a armadura a reluzir
com o sol da tarde. Uma tensão súbita rasgou o ar, brilhando e tremendo
com as energias dos guerreiros, quando os exércitos colidiram.
Raios de fogo e gelo foram arremessados contra escudos erguidos à
pressa. Espadas chocaram estrepitosamente, soando através da areia revolta.
O Príncipe Yanming tremia nos meus braços enquanto corríamos para a
tenda. Mas quando gritos agoniantes chegaram até nós vindos de trás, parei
e dei meia-volta. O que vi apertou-me o coração. O polvo gigante envolvia
soldados celestiais com os tentáculos e arremessava-os para o oceano, onde
alforrecas venenosas os rodeavam e arrastavam sob as ondas. Wenzhi
gritou-lhes que recuassem para terreno mais elevado, mas as palavras
perdiam-se no caos. A sua energia irrompeu numa explosão de luz,
solidificando num escudo alto ao longo da costa.
Contudo, a área era demasiado extensa e a sua magia ficou demasiado
estendida. Flanqueado por vários guerreiros, o Governador Renyu ergueu a
mão e luz azul-clara atingiu a barreira. Uma vez, duas vezes, outra e outra
vez, até que, por fim, o escudo de Wenzhi se desfez em pedaços. A minha
vontade era pegar numa arma, mas se me livrasse do meu disfarce, o
governador podia pressentir a armadilha.
Os tritões prosseguiram com o ataque, agora com entusiasmo, enquanto
os nossos soldados dispersavam como folhas sopradas pelo vento. Wenzhi
tremia, nunca o vira tão perturbado, tão ansioso, furioso e frustrado.
— Vai — encorajei-o. — Não precisas de ficar connosco. Eu tomo
conta do Príncipe Yanming.
Ele parou, com o olhar fixo na carnificina.
— O que vais fazer?
— Fico dentro da tenda. Lá ficaremos seguros.
Sem esperar pela sua resposta, afastei-me com o Príncipe Yanming.
Vários soldados esperavam dentro da tenda para o escoltar para segurança.
Mas quando o tentaram separar de mim, ele agarrou-me com força.
— Não vem comigo? — perguntou, com a voz a tremer.
Fiz-lhe uma festa na cara com um dedo.
— Vossa Alteza, precisais de partir agora. Vosso irmão aguarda por vós.
Juntar-me-ei a vós brevemente.
— Promete?
Hesitei por um instante antes de assentir. Detestava mentir-lhe, mas se o
governador desse com a tenda deserta, poderia partir antes que o
conseguíssemos deter. Cada momento que comprasse com aquela farsa
aumentava as hipóteses de o capturarmos.
O meu coração batia com força quando vi o Príncipe Yanming e os
soldados saíram pelo fundo da tenda, desaparecendo para a segurança da
selva. Só então soltei alguma da minha tensão. Sentei-me para esperar,
agitada por não poder fazer nada enquanto lá fora sangue manchava a areia.
Esperávamos encurralar o Governador Renyu, mas ele apanhara-nos
desprevenidos com a ferocidade do seu ataque e os monstros marinhos às
suas ordens.
Despindo o quimono encharcado, peguei num arco e numa aljava,
colocando-os em cima de uma mesa ao meu alcance. Parte de mim queria
tapar os ouvidos para abafar o choque das armas, os gritos e os gemidos.
Quanto mais daquilo aguentaria? Quando um grito agudo irrompeu pelo ar,
corri para a entrada... e parei abruptamente quando uma forma frouxa
tombou contra as paredes da tenda.
A aba da tenda abriu-se. Um vulto ergueu-se à entrada. Recuei um
passo, o corpo hirto de ansiedade.
— Deve ser a Dama Anmei.
O Governador Renyu saudou-me com uma vénia trocista.
— Os rumores da sua beleza não eram exagerados.
A sua aura enchia o ar, pressionando-me naquele espaço confinado;
forte, certamente, mas vacilante como uma maré inconstante. Teria um
controlo instável sobre o seu poder? Não tinha tempo para ponderar o
problema enquanto ele entrava, erguendo-se acima de mim; as partes
visíveis do seu corpo pareciam cordas de músculos. O olhar frio deu-me
arrepios, bem como o sorriso cruel e o sangue espalhado pela cara.
Corri para o arco em cima da mesa, mas ele atirou-o para fora do meu
alcance e arremessou-o para fora com uma gargalhada.
— Sabe como o usar?
Abanei a cabeça, afastando-me dele enquanto os meus dedos se
aproximavam do punhal escondido. Se tivesse o arco nas mãos, o
governador já teria uma flecha cravada no peito. Mas como naquele
momento ele tinha a vantagem, não revelaria o meu disfarce. Enquanto
acreditasse que eu era a Dama Anmei, talvez não me magoasse.
— Quem é? — perguntei, tentando desviar a atenção das minhas mãos.
— Não tem nada a temer. Só quero o pequeno príncipe. Ajude-me e será
bem recompensada. — O seu olhar vasculhou a tenda. — Onde está ele?
A sua voz era rica, grave, melodiosa... a voz mais bonita que alguma
vez ouvira. As minhas suspeitas esvaneceram-se, substituídas por uma
admiração calorosa. O Governador Renyu parecia ser honrado e gentil.
Porque fora tão maliciosamente difamado? O disco ao seu pescoço
refulgia com mais força, como os olhos de uma serpente a reluzir no escuro.
A imagem abalou-me e os meus instintos gritaram um aviso. Pestanejei
e afastei-me da promessa tantalizante das suas palavras, forçando-me a
ouvir os gritos no exterior. Subitamente, percebi como conseguia
influenciar os tritões. Havia magia na sua voz, o que levava outros a
acreditar nele. Viria do medalhão brilhante que trazia ao pescoço? Fosse o
que fosse, quase funcionara comigo, superando até a minha hostilidade.
Não era de admirar que os tritões lhe fossem tão leais, dispostos a arriscar a
vida para o proteger, a lutar por ele com base apenas na promessa das suas
palavras e na ilusão da sua honra. Mas nunca encontrara um poder assim.
Seria ele um infernal? Um dos temíveis Talentos da Mente?
Não me atrevia a deixar transparecer o meu medo. Ele esperava a minha
admiração, a minha obediência. Que eu me vergasse à sua vontade como
uma folha de erva ao vento. Arregalando os olhos para parecer inocente,
gesticulei para a cama onde o Príncipe Yanming dormira nesse dia. As
cobertas estavam enroladas perto da cabeceira da cama, dando a impressão
de um corpo pequeno por baixo.
— Está a dormir — disse-lhe.
A sua boca contorceu-se num sorriso cruel.
— Quando o Mar do Leste for meu, livro-me do pirralho e poderemos
governar juntos. Os outros reinos também cairão aos meus pés, Dama
Anmei, e será Rainha dos Quatro Mares.
Ele estendeu-me a mão, prometendo o que pensava que eu queria ouvir.
Senti a raiva a crescer em mim, ao ouvi-lo a falar assim do Príncipe
Yanming e dos seus planos desprezíveis, mas acolhi-a de bom grado, pois
fortalecia a minha vontade. Fitei a joia amarela que trazia ao peito. Ao
perto, um estranho poder emanava da joia, eriçando-me os pelos.
— O que o leva a pensar que vai vencer?
— Os tritões obedecem às minhas ordens, bem como as criaturas do
mar. Não tem nada a temer enquanto me tiver ao seu lado.
As suas palavras vertiam sobre mim como mel líquido, enquanto eu me
torcia por dentro. Como era tentador concordar com ele, merecer a sua
aprovação. Não, não podia sucumbir; não podia acabar como um dos seus
lacaios sem cérebro. Cravei as unhas nas palmas das mãos enquanto
invocava um surto de energia para os meus ouvidos, de forma a deixar de
ouvir. Envolta num silêncio súbito, mal conseguia ouvir a minha própria
respiração. Senti um aperto na barriga ao pensar em lutar com ele assim,
mas temia ainda mais cair sob o seu controlo.
Olhei fixamente para ele. Não haveria o raspar de um passo ou o silvo
de uma espada para me alertar. Um risco, mas necessário. Quando ele se
moveu para a cama, tirei o punhal da faixa à minha cintura e ataquei-o. Ele
virou-se para o lado e a lâmina cortou-lhe a cara. Sem hesitar, atirou-se para
diante, puxando as cobertas da cama e vociferando ao dar por ela vazia.
Virou-se imediatamente para mim, mas corri para o arco mais próximo,
assestando e soltando uma flecha na mesma respiração. Ele ergueu um
escudo e atirou-a para o chão. Soltei flecha atrás de flecha num ritmo
frenético, até os meus dedos doerem nos sulcos marcados nas suas pontas.
Ele era rápido, esquivando-se de cada flecha com uma velocidade
assombrosa. Quando os nós dos dedos da mão que segurava a lança ficaram
brancos, invoquei um escudo, mesmo a tempo de travar a sua arma.
A minha última flecha atingira-o no ombro. Saltei para uma nova aljava,
tão concentrada em apanhá-la que não senti a mudança no ar até algo me
golpear a perna, espalhando-se como fogo. Duas agulhas prateadas
erguiam-se da minha perna, prendendo à carne a seda do meu vestido,
manchada com um líquido esverdeado que já vira antes. Veneno de
escorpião-do-mar, a correr pelas minhas veias. O meu escudo desapareceu,
deixando-me tão desprotegida como um coelho preso numa armadilha, com
o caçador cada vez mais perto.
Ele arrepanhou os lábios, mostrando os dentes, mas tudo o que ouvia era
um zumbido ténue. Dissipei a magia que me tapava os ouvidos, até
conseguir ouvir o sussurro baixo. Tudo o que me restava agora para o
abrandar eram palavras.
— Covarde — sibilei, tentando adiar o fim inevitável, tentando
provocar um ato irrefletido. — Luta comigo sem truques.
— Os vencidos queixam-se e os vencedores... bom, os vencedores têm
coisas melhores para fazer.
Falava com uma complacência arrogante que lançava calafrios de medo
pela minha espinha.
O apelo da sua voz ainda lá estava, mas mais fraco; mal o conseguia
ouvir. Invoquei os meus poderes, debatendo-me para aguentar a agonia
ardente do veneno.
A joia ao seu pescoço brilhou como ouro batido pelo sol.
— Esse medalhão, é assim que controla os tritões? — perguntei, fitando
o medalhão. A minha voz soava como se viesse de muito longe. — Tal
magia é desprezível.
— Desprezível porque não a consegue usar? Porque a teme? — Ele
inclinou a cabeça para o lado, mas não acreditava que esperasse por uma
resposta. — Os tritões sempre albergaram suspeitas contra os imortais do
mar. Eu apenas ateei a faísca dos seus preconceitos, encorajei-os a pensar
como eu. Será assim tão diferente de encostar uma espada ao pescoço do
inimigo? Porque é uma vitória considerada honrosa e a outra não?
— Não é a mesma coisa — protestei. — Retirou-lhes a liberdade de
escolher, de formar a sua própria opinião. Compeliu-os a atos que
prefeririam morrer a cometer. — Fitei-o com um olhar de desdém, apesar de
me sentir a mirrar por dentro. — Mas nenhum encantamento é inquebrável.
Vai pagar caro quando eles se libertarem.
— A morte é a única libertação para aqueles sob o meu controlo.
Uma luz cruel brilhou-lhe nos olhos.
— Houve alguns que me irritaram com a sua incompetência, outros
eram demasiado difíceis de dominar. Mesmo antes de morrerem, essa
clareza moldou-lhes as feições. Raiva também, por terem sido enganados.
Tomou o seu fim ainda mais doce. Tal como será o seu.
A sua lança reluziu. Resistindo à dor, invoquei os meus poderes... mas
então o seu punho atingiu-me na cabeça. Fui envolvida pela dor e a minha
energia dispersou. Se pudesse mover os pés, teria fugido, mas nem sequer
consegui soltar um grito no torpor esmagador que tomava conta de mim.
As minhas flechas, ainda as tinha. Apesar de as minhas pernas estarem
imóveis como raízes, os meus braços continuavam livres, pelo menos
naquele momento, até o veneno se espalhar. Levei uma mão às costas,
tateando à toa na aljava. Quando consegui agarrar uma flecha, o governador
tirou-ma e partiu-a ao meio, cravando a ponta metálica na minha mão até
penetrar na carne. A agonia encheu-me a mente. Não conseguia gritar, mal
conseguia respirar. Com um esgar malicioso, tirou-me o arco da mão e
atirou-o para lá do meu alcance. Pegando na lança tombada, encostou-a ao
meu peito, exercendo pressão suficiente para quebrar a pele com a ponta
envenenada. Sangue assomou pela seda como um hibisco carmesim a
desabrochar. Soltei uma exclamação e o meu torso foi abanado por uma
convulsão antes de ficar paralisado. Pela curva nos seus lábios, percebi que
apreciava o meu sofrimento.
O meu coração sobressaltou-se, ferido de arrependimento. Voltaria a ver
a minha mãe e Ping’er? O rosto de Liwei passou-me pela mente, assim
como, estranhamente, o de Wenzhi. Uma dor lancinante percorreu-me as
veias, agora mais depressa, a minha respiração áspera e errática. Fechei os
olhos para bloquear o horror de estar completamente à sua mercê:
desarmada, envenenada e aprisionada. Não, disse a mim mesma, furiosa.
Ainda tenho o meu treino. Ainda tenho o meu pensamento.
Ainda tenho a minha magia.
Procurei acalmar-me, cerrando os maxilares até me doerem. O meu
poder voou ao meu encontro, um vendaval que irrompeu pela tenda,
empurrando-o para o chão. Algo caiu da sua cabeça, a coroa de coral
vermelho, os ramos desfeitos em pedaços.
Os seus olhos reluziram de choque, depois de raiva. Ergueu uma mão,
brilhando com a sua própria magia, mas eu era imparável, até mesmo
imprudente, e atirei uma torrente de encantamentos para cima dele, não me
atrevendo a permitir-lhe a oportunidade de retaliar. Rajadas de vento
vergastavam-no, laços de ar prendiam-no, labaredas de fogo queimavam-lhe
a pele antes de se apagarem. Se não estivesse incapacitada, enraizada
naquele sítio, poderia ter colapsado com o esforço. Nunca lutara assim,
confiando apenas na minha magia. Passou-me pela cabeça o aviso da
Mestra Daoming, de não drenar a minha energia, mas se parasse, morreria.
O governador não me mostraria misericórdia, não me daria uma segunda
oportunidade. Encostado às paredes da tenda, desviava todos os golpes até
ficar com a testa suada e a respiração tão ofegante como a minha. Um
orgulho feroz tomou conta de mim, por já não ser a presa que ele caçara.
Alguém apareceu à entrada. Wenzhi! Coberto de sangue, areia e poeira,
o seu rosto tenso de exaustão, ou seria fúria? Quando o Governador Renyu
se levantou, cambaleante, Wenzhi carregou sobre ele, espada a chocar com
lança. A boca do governador movia-se furiosamente, proferindo palavras
que eu não conseguia ouvir. O que estaria a dizer? E se Wenzhi caísse sob o
seu controlo?
— O medalhão!
O meu grito não passou de um sussurro rouco; não tinha força para
mais. Fui tomada pelo medo de não ser suficiente, de ele não me ter ouvido.
E o meu arco estava longe de mais, a minha magia quase esgotada. A minha
mão latejava de dor, ali o tempo todo, mas abafada pela agonia que me
percorria o corpo. Olhei para baixo e vi a ponta da flecha ainda cravada na
minha mão.
Um estrondo abafado soou quando Wenzhi atirou o governador para
cima de uma estante. O governador levantou-se e o medalhão luziu com
mais brilho. Um calafrio percorreu-me o corpo; a qualquer momento, podia
libertar o seu poder. Não me podia mover, nem sequer podia mexer um
dedo; o veneno incapacitara-me por completo. Contudo, não podia deixar
que Wenzhi caísse sob o controlo do governador. Arfando, invoquei energia
para formar uma corrente de ar, estreita, mas rápida e forte, que arrancou a
ponta da flecha da minha mão, arremessando-a sobre o governador. A
flecha acertou no medalhão, em cheio na joia. A joia amarela rachou e
perdeu toda a luz.
O Governador Renyu abriu a boca num grito repleto de raiva, mas soou
como um suspiro aos meus ouvidos. Estava a arder de dor, atordoada para
tudo o resto. Wenzhi girou com uma graça mortal, o seu pé a colidir com o
flanco do governador. Quando o governador cambaleou para trás, a lâmina
de Wenzhi golpeou-o nas costelas, rachando a escamas opalescentes da sua
armadura. A boca do governador abriu-se, muito redonda, e uma expressão
estranha passou-lhe pelo rosto. Seria choque? Incredulidade por o seu
encantamento ter falhado? O que quer que fosse, fiquei contente, uma
satisfação feroz a arder dentro de mim.
O Governador Renyu estava ofegante, os seus movimentos cada vez
mais frenéticos enquanto aparava os golpes brutais de Wenzhi. Parecia
agora descuidado, até mesmo desesperado. Quando Wenzhi ergueu um
braço, o governador atacou com a lança, mas Wenzhi rodou para o outro
lado, mergulhando a espada na armadura do Governador Renyu pelo meio
das costelas. Investiu então em frente, afundando a espada até ao punho, a
ponta a sair pelas costas do governador, metal coberto de sangue. O rosto de
Wenzhi estava distorcido numa expressão selvagem enquanto puxava a
lâmina. Sangue esguichou pelo ar e o corpo do Governador Renyu vacilou,
com um suspiro gorgolejante a escapar-lhe dos lábios ao cambalear para
trás. A sua mão tateou a ferida aberta e o sangue, tanto sangue, escorria-lhe
pelos dedos. O governador tombou então e bateu com a cabeça no chão,
revirando os olhos e estremecendo os membros até ficar totalmente imóvel.
Morto. Estava morto. Não havia piedade em mim, nem alegria. Apenas
um alívio profundo que tudo terminara, que estávamos vivos.
Wenzhi largou a espada e correu para mim. Segurou-me pelos ombros,
os olhos arregalados ao ver os meus ferimentos. Quando os seus lábios se
moveram, esforcei-me para o ouvir.
— Onde estás ferida? Porque não te moves?
Apesar do conforto do seu toque, uma frieza espalhava-se por mim,
como se estivesse enterrada sob uma camada de neve. A minha visão ficou
turva quando olhei para ele, a última coisa que vi antes de ser reclamada
pela escuridão.
Abri a custo as pálpebras e estreitei os olhos com a luminosidade. A luz
do sol entrava pelas janelas, enlaçada a uma brisa com aroma a sal. O corpo
pesava-me com a moleza de um sono longo, cada movimento um esforço.
Estremeci com frio, excetuando o calor na minha mão. Alguém me
segurava a mão, mas quem? Alguém sentado ao meu lado, um rosto difuso
quando pestanejei para clarear a visão. O toque não me incomodava. Era
um conforto perante as memórias que se revolviam nos limites da
consciência, memórias de sangue, dor e terror.
Sentei-me abruptamente. Os meus olhos fitaram os de Wenzhi, mais
gentis do que alguma vez os vira. Senti um calor a percorrer a pele quando
puxei a mão. Há quanto tempo estava ali? Quanto tempo dormira eu? Rodei
as pernas para fora da cama, tentando não estremecer com a dor.
Ele franziu a testa.
— Estás a dormir há dias. Tem calma.
— Estou bem.
Apesar da bravata ao levantar-me, sentia-me zonza, a vacilar de pé.
Apenas o orgulho me impediu de cair de novo na cama enquanto me
segurava à cabeceira de madeira para me apoiar.
Ele passou um braço pelos meus ombros, o seu toque leve, mas firme, e
ajudou-me a caminhar até uma cadeira próxima.
— O Príncipe Yanming ficou a salvo? O que aconteceu?
As perguntas jorravam-me da boca.
— Da próxima vez, devias ter mais cuidado contigo.
Ergueu um bule e serviu um fio de chá castanho-avermelhado para uma
taça de porcelana. Pu’er. Inalei a rica fragrância terrosa antes de dar um
gole longo, o líquido a deslizar pela garganta com um calor revigorante.
— O Príncipe Yanming está bem e tem pedido para te visitar —
respondeu Wenzhi, fazendo uma pausa para voltar a encher a taça. — Após
a morte do Governador Renyu, os tritões renderam-se. O seu castigo ainda
está por determinar.
Memórias vieram-me à mente, do prazer doentio que o governador
sentira ao torturar-me, da sua expressão assombrada quando Wenzhi lhe
cravou a espada no peito. O sangue carmesim que se acumulara à volta do
seu corpo, mergulhado na terrível imobilidade da morte. Fiquei contente,
disse a mim mesma, apesar do nó no estômago. O governador ter-me-ia
matado, com o máximo de crueldade de que fosse capaz. Mesmo assim,
sentia pouco triunfo nesse momento. E, apesar de ele ter morrido, as marcas
do seu logro permaneciam; as vidas que tomara, as que destruíra
irrevogavelmente.
— Os tritões podem não ter culpa. O governador tinha um poder
estranho que o ajudou a conquistar a sua confiança. A sua voz, o seu
medalhão... — Franzi a testa, tentando fazer sentido das memórias
fragmentadas. — Também o usou em mim.
Uma sombra caiu sobre o rosto de Wenzhi.
— Como resististe?
— Bloqueei a minha audição — respondi com um esgar. — Talvez
tenha sido estúpido. Tornou muito mais difícil lutar com ele, mas não
consegui pensar em mais nada.
Wenzhi cerrou a mão sobre a mesa até os nós dos dedos ficarem
brancos.
— Felizmente, os poderes do governador eram fracos, por virem do
medalhão, como adivinhaste corretamente. Um verdadeiro Talento da
Mente poderia ter-te dominado em segundos. Uma vez sob o seu controlo,
serias sua até ao fim dos teus dias, ou dos dele.
Um eco da bravata do governador, despertando de novo os meus
receios. Ao sentir a minha perturbação, Wenzhi estendeu a mão sobre a
mesa e tocou-me no braço.
— Não devia ter saído do teu lado. Não te terias magoado tanto se
tivesse ficado contigo.
— Se tivesses ficado comigo, por esta hora talvez estivéssemos os dois
a fazer vénias ao Governador Renyu. — Em seguida, acrescentei
gravemente: — A culpa não é tua. Eu sou responsável pela minha
segurança. E não tinha, certamente, a mais pequena intenção de me deixar
matar por ele. Tê-lo-ia feito arrepender-se das suas tentativas. De uma
forma ou de outra.
— Não tenho dúvidas disso. — Debruçou-se então sobre mim para me
inspecionar o rosto. — Se estás bem, devemos partir em breve. Já enviei os
restantes de volta, mas o Príncipe Yanxi quer falar contigo antes de
partirmos. Vai estar na sala de audiências durante a manhã.
Ergui-me, sentindo-me um pouco mais forte ao alisar a minha túnica
verde-pálida, só agora tendo a presença de espírito para verificar se estava
apropriadamente vestida. Roupas tão simples podiam erguer sobrolhos na
impecavelmente vestida corte do Mar do Leste, mas depois de quase
morrer, tinha coisas mais importantes com que me preocupar.
Assim que entrei na sala de audiências, Wenzhi foi chamado à parte por
um general do Mar do Leste. Mantive-me na periferia da sala, à procura do
Príncipe Yanxi, encontrando-o, por fim, em conversa com outro imortal. O
desconhecido estava de costas para mim, mas a sua postura e a túnica de
brocado azul-escuro eram estranhamente familiares.
Quando o Príncipe Yanxi reparou em mim, inclinou a cabeça. O seu
companheiro virou-se então e fitou-me com olhos escuros.
Era Liwei, a última pessoa que esperava ver ali. Um tremor abalou-me o
coração, se de pavor ou alegria, já não conseguia dizer. Mas ainda tinha
sentimentos por ele, por muito que desejasse o contrário.
Liwei falou brevemente com o Príncipe Yanxi, antes de caminhar na
minha direção. Consciente de todos os que nos observavam, fiz-lhe uma
vénia com todo o cerimonial.
— Erga-se — disse ele num tom tenso.
Fitei-o nos olhos sem o mais pequeno vislumbre de emoção, grata pelo
treino da Mestra Daoming, que me permitia usar aquela máscara, apesar do
tumulto dentro de mim.
— Porque estais aqui? Quando haveis chegado?
— Há três dias.
Ergueu então a gota-celeste que trazia à cintura. A joia estava límpida,
com faíscas prateadas a cintilar nas suas profundezas.
— Quando a joia ficou vermelha, vim para cá o mais depressa que pude.
Segurei a borla à minha cintura, o par da sua joia. Um impulso louco
tomou conta de mim, de a deitar fora, de a enterrar com o nosso passado,
como a tentação de arrancar uma crosta antes de a ferida estar sarada.
Porque usava ainda a joia? Porquê agarrar-me a essa memória? Tonta
sentimental, ralhei a mim mesma, forçando-me a largá-la.
— Quando cá cheguei, a batalha já terminara. Estava inconsciente, com
sangue a escorrer das feridas, quando o Capitão Wenzhi a carregou para
fora da tenda. Eu... eu temi o pior. — Parou de falar e manteve-se quieto,
como se estivesse a debater-se consigo mesmo. — Estava gravemente
ferida. O Príncipe Yanxi trouxe-a para o palácio, para os curandeiros reais
lhe extraírem o veneno do corpo. Uma dose maior tê-la-ia matado.
Debruçou-se então para mim, tomando a minha mão na dele, as nossas
palmas a tocarem-se, as pontas dos seus dedos premindo contra os meus.
Apanhada de surpresa, fiquei imóvel. Um calor envolveu-me a pele quando
o seu poder percorreu o meu corpo. A minha mente clareou, uma força
revigorante espalhou-se por mim, mas puxei a mão. Apesar de Liwei ser um
curandeiro treinado em magia da Vida, a ideia de a sua energia misturar-se
com a minha suscitava demasiadas emoções perturbadoras.
— Agradeço-vos muito, mas não precisais de fazer isso. — Procurei
algo para dizer. Qualquer coisa, no silêncio incómodo que caiu sobre nós.
— O que discutíeis com o Príncipe Yanxi?
A sua expressão tornou-se lúgubre, de pálpebras veladas.
— Um assunto grave. O Arqueiro Feimao, creio que o conhece, relatou
recentemente uma estranha maleita. Após a batalha com Xiangliu, tinha
dificuldade em invocar a sua magia. Acreditamos que um pedaço de
minério escuro alojado na sua armadura lhe suprimia os poderes.
— Como está ele agora? — perguntei, preocupada.
— Assim que retirámos o minério, recuperou de imediato.
— Que metal é esse? Como foi lá parar?
— Nunca ninguém viu nada assim. O Arqueiro Feimao desconfia que o
minério veio do Pico Sombrio, de quando caiu numa ravina. Os nossos
batedores encontraram vestígios do minério no local, mas nada mais.
— Alguém o levou?
Um pensamento arrepiante. Liwei assentiu tensamente.
— Parece ter sido minerado. Tal coisa seria catastrófica nas mãos
erradas. Avisei o Príncipe Yanxi para estar atento e nos avisar se descobrir
alguma coisa.
Ficou depois em silêncio. Na calma súbita, os meus sentidos ficaram
mais apurados. Como estávamos perto um do outro, a falar com o mesmo à
vontade de sempre. Ali estava ainda, o laço invisível à volta dos nossos
corações, gasto, mas intacto, apesar das minhas tentativas de o romper.
Talvez fosse um laço que nunca pudesse ser quebrado, enraizado na
amizade anterior ao nosso amor malfadado. Eu não queria aquilo, que o
meu ânimo subisse e descesse no mesmo momento, que o vazio no meu
peito se reabrisse. Mas quase morrer fora uma lembrança brusca de como a
vida era preciosa. Precária, até mesmo para um imortal. E naquele
momento, sentia-me mais viva do que me sentira nos últimos meses. O seu
aroma despertou em mim memórias do tempo passado no Pátio da
Tranquilidade Eterna... Quase conseguia ouvir o murmúrio da queda de
água.
Fechei as mãos e afastei-me de Liwei, recuando para uma distância
segura. Uma brisa fresca passou entre nós. Ele ainda abriu a boca para falar,
mas então ergueu o olhar, para alguém a aproximar-se.
— Arqueira-Mor.
Era o Príncipe Yanxi, juntamento com Wenzhi, cujo rosto parecia
talhado em pedra ao fazer uma vénia a Liwei.
Também me preparava para lhe fazer uma vénia, mas o Príncipe Yanxi
ergueu uma mão para dispensar as formalidades.
— Fico contente por ver que recuperou. A minha família fica com uma
dívida de gratidão por ter arriscado a vida para proteger o meu irmão. Se
alguma vez precisar da nossa ajuda, será uma honra prestar-lha.
As palavras gentis tocaram-me.
— Não há qualquer dívida, Vossa Alteza. As ambições do Governador
Renyu estendiam-se para lá dos Quatro Mares. Se não tivesse sido travado,
traria grande desgosto para todos.
O Príncipe Yanxi abanou a cabeça, incrédulo.
— Foi uma felicidade o Capitão Wenzhi e a Arqueira-Mor terem posto
fim aos seus planos.
— Onde está o medalhão do governador? — perguntou Liwei.
— Destruído.
Lembrei-me da flecha que arrancara da minha mão e usara para partir a
joia. Liwei soltou um suspiro.
— É um alívio saber que um artefacto tão perigoso desapareceu, que
não pode voltar a ser usado. Mas gostava que tivéssemos tido a
oportunidade de o estudar. Sabemos tão pouco sobre esse tipo de magia,
receio que isso nos deixe em desvantagem. Temos de saber o que temos
pela frente.
Apesar de perceber o que ele queria dizer, estava contente por nunca
mais ter de ver aquele maldito medalhão.
— E aqueles que serviram o Governador Renyu? Aqueles que nos
atacaram? Serão levados à justiça? — perguntou Wenzhi, com um toque
agressivo na voz.
Estaria a lembrar-se dos celestiais caídos em combate? Não podia
esquecer a sua angústia quando os viu a tombar.
— A justiça será cumprida como for determinado pelo Mar do Leste —
respondeu Liwei, num tom sombrio. — Mas parece que ambos os lados
foram enganados pelo governador.
— Vossa Alteza, independentemente das suas desculpas, os tritões
rebelaram-se contra o seu soberano. O vosso próprio pai acredita que tais
incidentes devem ser tratados com severidade, para que ninguém os tente
repetir.
Os lábios de Wenzhi curvaram-se num sorriso trocista. Gostaria de
provocar Liwei? Não parecia muito preocupado com ficar nas boas graças
do príncipe.
— Eu senti o poder do encantamento, quase fiquei sob o seu domínio —
comentei para Wenzhi. — Podia facilmente ter sido eu a ficar sob o seu
feitiço.
Ele não respondeu, mas cerrou o maxilar como se as minhas palavras o
tivessem magoado.
— Muitos dos tritões pareciam atordoados, sem saberem bem porque se
tinham revoltado — informou o Príncipe Yanxi. — Vamos investigar mais
para determinar a sua inocência. Os que forem considerados livres de culpa
serão libertados, sob vigilância inicialmente. Alguns serão convidados a
permanecer na corte como intermediários entre nós e os tritões. Laços mais
próximos impedirão que isto volte a acontecer.
Os tritões não teriam tanta sorte com a justiça do Imperador Celestial.
— Vós e o vosso pai sois verdadeiramente sábios e misericordiosos —
disse-lhe, sem intenção de lisonjear.
Antes que ele pudesse responder, ouviram-se passos pela sala e um par
de braços pequenos abraçou-me a cintura. Rodando para trás, levantei o
Príncipe Yanming no ar, ignorando a dor no meu corpo enquanto ele gritava
de alegria. Quando voltei a pousá-lo no chão, a sua expressão ficou solene,
com os cantos da boca virados para baixo.
— Não nos seguiu. Mentiu-me.
O seu tom era acusador. Senti uma pontada de culpa quando me baixei e
fitei-o nos olhos.
— Desculpai-me. Na altura, não podia ir convosco, mas não vos devia
ter dito que iria.
— Fico contente por não ter morrido. E... obrigado.
Então, estendeu-me a mão. Na palma da sua mão estava um pequeno
dragão, executado com perícia a partir de papel vermelho. Peguei no
dragão, segurando-o entre o polegar e um dedo, com receio de esmagar o
papel delicado.
— Obrigada. Será sempre precioso para mim.
O seu lábio inferior tremeu.
— Que os dragões a protejam nas suas viagens.
Em seguida, passou as costas das mãos pelos olhos, deu meia-volta e
afastou-se a correr. Fiquei a vê-lo até o pequeno vulto desaparecer, com um
nó na garganta.
— Onde quer que vá, terá sempre um lugar aqui, seja na nossa corte ou
como nossa amiga — disse o Príncipe Yanxi, com franqueza.
Algo dentro de mim relaxou ao pensar que tinha outro lar neste mundo.
— Príncipe Yanxi, está na hora de partirmos — disse Liwei, num tom
glacial.
— Agradeço-vos a vossa hospitalidade, Vossa Alteza — disse Wenzhi,
com uma formalidade igualmente fria.
A mudança notória da atitude de ambos tinha tanto de espantoso como
de despropositado. E a forma como fitavam o Príncipe Yanxi era
decididamente pouco amistosa. Abanei a cabeça para banir esses
pensamentos, interrogando-me se imaginara tudo.
Felizmente, o Príncipe Yanxi pareceu não reparar no ambiente
subitamente frio e mantinha um sorriso nos lábios.
— Agradecemos ao Reino Celestial por ter vindo em nosso auxílio.
Depois do Mar do Leste, Wenzhi e eu seguimos de campanha em
campanha, ficando, por vezes, meses a fio longe do Reino Celestial.
Enfrentámos monstros aterradores, feras vorazes e, mais recentemente, os
espíritos temíveis que atormentavam a fronteira oriental, perto das florestas
do Reino da Fénix. Estava exausta quando finalmente regressámos ao
Palácio de Jade, ansiosa por recolher ao meu quarto. Contudo, quando ouvi
a notícia de que Shuxiao recebera uma promoção, fui logo à sua procura.
Bati à porta do seu quarto, à espera que estivesse a celebrar com
amigos. Mas quando me abriu a porta, o seu sorriso não tinha a alegria
habitual; parecia uma cópia esbatida de si mesma. Uma lâmpada solitária
iluminava a escuridão e em cima da mesa estava um jarro de vinho em
porcelana.
— É assim que celebras? A beber sozinha? — Abanei a cabeça,
incrédula, quando entrei e me sentei num banco. — Não estás contente com
a minha visita?
— Mais do que imaginas.
Tirou então a tampa de pano vermelho do jarro de vinho e serviu-me
uma taça. Ergui a taça num brinde.
— À Tenente Shuxiao, que isto seja só o início.
Ela esvaziou a taça num gole só. Fiquei a olhar para ela, com a mão
parada no ar. Shuxiao bebia normalmente com moderação, mas talvez
aquela fosse uma ocasião especial. Quando voltei a encher-lhe a taça, ela
voltou a esvaziá-la. Com um encolher de ombros, decidi fazer-lhe
companhia. Bebemos no silêncio de camaradas de armas, até ficarmos
coradas, com o aroma doce do jasmim no nosso hálito, e a lamparina
ganhou um halo difuso. Contudo, os olhos de Shuxiao mantinham-se
apagados, como se a sua mente estivesse muito longe, e num sítio pouco
agradável.
— O que se passa? — perguntei por fim, incapaz de me conter. — É a
tua família? Más notícias?
Os seus dedos apertaram a taça.
— Quero ir para casa.
Palavras simples que me tocaram profundamente, que ecoavam dia e
noite nos meus pensamentos. Sabia que Shuxiao sentia falta da família;
falava deles com tantas saudades. Mas era celestial e sempre pensei que
fosse feliz aqui, que escolhera aquele caminho.
— Este não é o teu lar? Não queres ficar aqui? — perguntei a medo,
interrogando-me se o vinho me atordoara a mente.
— Não. O meu lar fica no sul rural, à sombra das macieiras, com um rio
a atravessar os campos. — Um sorriso passou-lhe pelos lábios. — O meu
pai nunca procurou um lugar na corte ou as boas graças do imperador.
Apesar de a nossa família não ser fraca, não temos aliados. Isso não faria
diferença se um nobre poderoso, encantado com a minha irmã mais nova,
não tivesse abordado o meu pai a pedir-lhe que ela se tornasse sua
concubina. Um insulto. Mesmo se o nobre não fosse um velho devasso com
três esposas e mais de uma dúzia de concubinas.
Tais ocorrências eram comuns entre a nobreza, mas achava a ideia
repugnante. Como poderia o amor medrar em circunstâncias tão desiguais?
— A minha irmã recusou o pedido. O meu pai apoiou-a, como poucos
pais apoiariam. O velho bode ficou furioso por termos rejeitado uma grande
honra — resmungou Shuxiao. — Ameaçou destruir a minha família. Que
mancharia a nossa reputação na Corte Celestial. Quem nos defenderia
quando ninguém sabia o nosso nome?
— Foi por isso que juntaste ao exército?
Shuxiao assentiu.
— Para pôr fim às ameaças e intimidações. Para impedir que voltassem
a acontecer. Poucos se atreveriam a caluniar-nos sem algum tipo de prova,
agora que eu tinha acesso ao General Jianyun. Mas não era esta a vida que
queria para mim, no meio das multidões do Palácio de Jade. Queria ficar em
casa com a família e os amigos. Talvez apaixonar-me. Contudo, quanto
mais subo na hierarquia, mais presa fico a este lugar. Mais temos a perder.
Pegando no jarro, esvaziou o resto do vinho para a sua taça, derramando
algum para a mesa.
Não sabia o que dizer. Talvez o meu silêncio não a estivesse a ajudar,
mas também não queria dar-lhe maus conselhos. Sempre julgara que
Shuxiao prosperava aqui, estimada tanto por oficiais como pelos soldados.
Talvez fosse como Liwei dissera: Todos temos os nossos problemas; uns
expõe-nos para todos verem, enquanto outros disfarçam melhor.
Não lhe podia dizer para ouvir o seu coração. Não lhe podia dizer para
ser egoísta. Era uma escolha que tinha de ser ela a fazer, eu apoiaria de bom
grado qualquer decisão que tomasse. Ambas tínhamos os nossos fardos para
carregar e apenas nós sabíamos o quanto custavam e se éramos capazes de
os suportar.
— Talvez encontres alguém aqui? — brinquei, tentando aliviar o
ambiente.
Ela torceu o nariz.
— Ah! Tu ficaste com o melhor partido... pelo menos, entre os homens.
Começou a vasculhar a arca atrás de si e tirou outro jarro de vinho.
Estaria a falar de Wenzhi? Senti um calor a subir-me pelo pescoço, mas
mantive-me calada, fingindo indiferença.
Após uma pausa, ela deu-me uma cotovelada no braço.
— Xingyin, há algo que te quero perguntar há já algum tempo.
Dei um gole longo, deixando o vinho arder através do nó súbito na
minha garganta. Suspeitaria de algo sobre a minha família? Sobre a minha
identidade? Ela não trairia a minha confiança, mas não podia correr o risco
de uma indiscrição inadvertida.
— O que é esse ornamento que usas sempre à cintura? A joia em forma
de lágrima. Vi o Príncipe Liwei a usar uma igual.
Soltei a respiração que estava a reter, aliviada por o segredo da minha
mãe estar a salvo, apesar de sentir na barriga um novo aperto de ansiedade.
O meu passado com Liwei era outro segredo bem enterrado, mas não
mentiria a Shuxiao. Não sobre isso.
— Foi um presente. Do Príncipe Liwei. — Odiei como a minha voz
tremeu ao dizer o seu nome. Quando um sorriso sabedor se espalhou pelos
lábios de Shuxiao, acrescentei apressadamente: — Não foi nada de mais,
apenas um presente de amizade. Ele está noivo.
Uma afirmação tão óbvia como a cor do meu cabelo. Ela estreitou os
olhos, como se estivesse a tentar lembrar-se de algo no seu estado de
ebriedade.
— O Príncipe Liwei nunca tira essa borla. E os servos dizem que a tua
canção, a que tocaste no banquete, é ouvida muitas vezes a flutuar do seu
quarto.
Ele também guardara a concha? Não quer dizer nada, não muda nada,
sibilou uma voz na minha cabeça.
Os meus dedos brincaram com a taça. Dessa vez, fui eu quem a
esvaziou primeiro.
— Não pensei que desses ouvidos a bisbilhotices — comentei.
— Só quando dizem respeito aos meus amigos — sorriu ela.
Não falei mais, e ela também não. Passámos o resto da noite a beber
num silêncio de camaradagem, o ar entre nós carregado de memórias do
passado.
A minha cabeça latejava impiedosamente na manhã seguinte. Pensei
que um passeio poderia aliviar a dor, mas os meus pés levaram-me até um
pátio familiar. Hesitei antes de entrar para o pavilhão e me sentar num
banco. Carpas amarelas e cor de laranja nadavam por entre flores de lótus e
a cascata caía para dentro do lago com um murmúrio relaxante. Fechei os
olhos e inalei a doçura do ar. O meu velho quarto ficava a poucos passos de
distância. Estaria ocupado por outra pessoa? Era a primeira vez que entrava
no Pátio da Tranquilidade Eterna desde que partira. Estava tal qual me
lembrava, e, no entanto, tudo mudara.
Uma serva parou ao atravessar o pátio e fez-me uma vénia. Nas mãos
levava um tabuleiro de pastéis, do tipo que se desfazia em migalhas quando
dávamos uma dentada para chegar ao recheio de feijão doce. Quando
ergueu o rosto, reconheci-a de imediato.
— Minyi, sou eu! — ri-me. — Porque estás a ser tão formal?
Duas covinhas apareceram-lhe no rosto redondo.
— Quem não ouviu falar dos feitos da Arqueira-Mor ao longo do último
ano? — disse ela, vindo sentar-se ao meu lado. — Abateste mesmo vinte
espíritos durante a tua última batalha?
Um sorriso passou-me pelos lábios ao lembrar-me do seu apetite por
bisbilhotices.
— Doze. Eles voam depressa.
— E o Diabo de Osso? Como era ele?
Estremeci ao lembrar-me da criatura malévola que escapara da prisão
celestial.
— Cabelo e pupilas tão pálidos que eram quase translúcidos. Pele
branca esticada como um tambor.
Ela agarrou-me a manga.
— Como o mataste?
Uma memória passou-me pela mente: a espada de Wenzhi a arquear
pelo ar antes de se cravar no pescoço da criatura. As mandíbulas do diabo,
repletas de agulhas prateadas, em vez de dentes, tentavam morder-lhe
ferozmente. Enquanto Wenzhi se esquivava aos ataques, as garras do
monstro saltaram-lhe ao pescoço, na direção da veia latejante por onde
corria o sangue vital. Tomada pelo medo, soltei uma flecha que se cravou
no crânio da criatura. Um líquido branco e espesso começou a escorrer da
ferida e um grito lancinante rasgou o ar. As garras seguraram a haste da
flecha e tombaram ao lado do corpo quando o monstro caiu ao chão. Os
dias em que o meu coração se apertava com piedade tinham ficado para
trás, mas ainda era assombrada pelos rostos dos mortos.
— O Capitão Wenzhi e eu lutámos juntos — disse-lhe.
Ao ouvir-me falar de Wenzhi, Minyi empertigou-se, com o brilho que
lhe vinha aos olhos quando lhe cheirava uma história nova.
— Que novidades tens aqui do palácio? — perguntei apressadamente,
na tentativa de me esquivar à sua curiosidade. — Como está Sua Alteza?
Mordi a língua, tarde de mais. O vinho da noite anterior devia ter-me
deixado o cérebro aturdido para falar o nome dele em voz alta.
Alguém se aproximou por trás. Teria o murmúrio da cascata abafado os
passos? Alguém pigarreou. Só por esse som, soube que era ele antes de me
virar. Ao meu lado, Minyi levantou-se num salto e fez uma vénia. Sem mais
palavras, pegou no tabuleiro e partiu apressadamente, deixando-me sozinha
com o intruso. Mas não era um intruso; tinha todo o direito de estar ali. Era
eu quem não pertencia ali.
— Por favor, perdoai a intromissão, Vossa Alteza. Partirei
imediatamente.
A formalidade era um escudo ao qual me agarrava para encobrir as
minhas fraquezas.
— Porque não me pergunta em pessoa como estou?
A sua voz tinha um calor que há muito não ouvia.
Teria saído nesse momento, mas ele interpôs-se no meu caminho.
Quando levantei o olhar para ele, não pude negar que ainda lá estava,
aquela dor no meu coração, a ligação que puxava por mim sempre que ele
estava por perto... por muito que desejasse que assim não fosse. Uma brisa
suave soprou pelo pátio, arrastando uma madeixa do meu cabelo contra o
rosto dele. Ele apanhou-a no meio dos dedos, com olhos tão inescrutáveis
como duas lagoas à noite.
— Tem estado bem? — perguntou.
— Sim.
— Porque está aqui?
— Curiosidade. Queria conhecer a minha substituta — respondi com
uma irreverência pouco convicta.
— Quem é que a poderia substituir?
O seu tom, as suas palavras, ainda me afetavam. Mas afastei-me na
direção da saída.
— Já não somos amigos? Desde o Mar do Leste, vi-a meia dúzia de
vezes e foge sempre de mim. — Indicou então os bancos. — Porque não
nos sentamos? Vamos falar como costumávamos fazer. A não ser que tenha
medo.
Uma nota de desafio soou na sua voz.
O meu bom senso debatia-se com o meu orgulho. O orgulho venceu
quando me sentei, acicatada pela sua provocação.
— Não me posso demorar. O meu treino...
— Sim, a valente Arqueira-Mor — interrompeu Liwei, num tom
sarcástico. — Quem mais protegeria o Reino Celestial? E apenas
“Arqueira-Mor”, depois de todos os seus feitos. Um título honorável, mas
sem patente ou poder. Porque não procura um comando seu, em vez de
seguir sempre na sombra do Capitão Wenzhi?
Cerrei os dentes.
— Prefiro assim. Quero a liberdade de participar em campanhas da
minha escolha. Não desejo subir na hierarquia apenas por ambição.
Ele olhou para mim como se estivesse à procura de algo.
— Ou há algo mais por detrás da vossa relação? Correm muitos rumores
sobre o jovem capitão e a sua arqueira favorita. As duas estrelas mais
brilhantes do Exército Celestial. É uma sorte arqueira-mor não ser uma
posição oficial no exército, ou isso seria muito inapropriado.
A acusação magoou-me.
— Como vos atreveis a falar-me do que é “impróprio” quando sois vós
que estais noivo e me provocais desta forma? Não tendes o direito de me
fazer tais perguntas. Não vos diz respeito o que eu faço ou com quem o
faço. Quanto a mim, a minha indiferença por vós não podia ser maior.
Que palavras irrefletidas, sem querer saber da tormenta que lhe cobriu o
rosto. Contudo, não ficaria ali a ser alvo das suas críticas. Já estava farta
dessas complicações e de como me deixavam num nó. Levantei-me e
afastei-me, mas ele agarrou-me pelo pulso.
— Mas eu importo-me — admitiu. — Contra todo o bom senso, contra
todo o discernimento, contra a minha própria honra, não consigo deixar de
me importar.
Uma luz resplandecia-lhe nos olhos, mais fulgurante do que o sol. Presa
pelo seu olhar, não me conseguia mover, reparando apenas, tarde de mais,
quando ele me puxou para si. Devia ter-me empurrado para longe dele, mas
não tinha força nos braços. A sua confissão acordou algo dentro de mim que
julgava ter morrido. Nunca vira aquele seu lado, cheio de paixão e ciúme, e
uma parte temerária de mim regozijava-se.
Ele baixou a cabeça, lentamente de início, e quando não fugi, a sua mão
soltou-me o pulso e envolveu-me a cintura. Algo fumegava nas profundezas
dos seus olhos, um momento antes de os seus lábios pressionarem os meus
com uma fome como se estivesse às portas da morte, com uma urgência que
deixou o meu sangue ao rubro. Não havia mais pensamentos na minha
mente, nem raiva, nem vergonha, nem receio do que aquilo quereria dizer.
Nada para lá daquela leveza, do fogo coruscante que me percorria as veias.
Os meus dedos subiam-lhe pelo pescoço para o puxar para mim quando
inclinei a cabeça para trás, afogando-me na sensação do seu toque e do seu
calor, enquanto os seus braços me envolviam, prendendo-me num abraço do
qual já não queria escapar.
Aquele pátio... fora outrora o meu refúgio. O ritmo relaxante da cascata,
a fragrância das flores primaveris no ar, a alegria que sentira ali. Contudo,
enquanto a familiaridade dolorosa daquele lugar me trazia memórias tão
doces, uma estava gravada mais profundamente na minha mente, de quando
ficara sentada, imóvel e só, na noite do seu noivado.
Empurrei-o para longe de mim com força, e ele cambaleou para trás,
abanando os braços. Recuperei o fôlego, esforçando-me por reunir as réstias
da minha compostura.
— Não, Liwei. Acabou. Nós acabámos.
Ele passou uma mão pelo cabelo, o peito a subir e a descer a um ritmo
irregular.
— Não vamos mentir um ao outro, Xingyin. Nós não acabámos. O teu
coração ainda bate por mim. Ainda sentes algo por mim, tal como eu sinto
algo por ti.
Falou baixo, sem vestígio de orgulho. Apenas com uma certeza que era
cem vezes mais irritante.
— O que queres de mim? — gritei, furiosa com ele e comigo mesma. —
Estás prometido a outra, mas pareces empenhado em forçar-me a admitir os
meus sentimentos. Isso dá-te prazer? Apela ao teu orgulho aristocrático
ouvir-me dizer que não és assim tão fácil de esquecer? Ou tencionas seguir
as pisadas do teu pai e manter uma concubina em cada canto do palácio?
Ele retraiu-se, como se o tivesse insultado.
— Isso nunca.
Eu própria não acreditava naquelas acusações tão graves, mas parte de
mim, uma parte amarga e vingativa, queria atacá-lo, magoá-lo como ele me
magoara. Trocámos olhares zangados, nenhum de nós disse uma palavra. O
meu coração batia com tanta força que rezava para ele não o ouvir.
Por fim, ele virou-me costas, punhos cerrados ao lado do corpo.
— Não sei o que estou a fazer — disse num sussurro, quase uma
confissão relutante. — A minha mente diz-me para parar, para te deixar ir...
mas não consigo. Vejo-te em todo o lado, estás comigo em tudo o que faço;
à mesa enquanto como, no meu quarto quando acordo. A tua voz no ar, o
teu sorriso nos meus olhos. Não te consigo esquecer, por muito que tente.
Nenhum de nós se moveu, nenhum de nós falou. Como era fraca, por
não partir imediatamente, por me deixar comover pela sua confissão. Não
sei quanto tempo teríamos ficado ali parados, imóveis como os leões de
pedra que guardavam a entrada, se as portas do pátio não tivessem sido
abertas de rompante. Afastei-me de Liwei mesmo a tempo quando um
mensageiro correu para ele. Tinha o chapéu preto torto e a túnica esvoaçava
ao vento.
O mensageiro fez uma vénia e falou para Liwei, ofegante.
— Vossa Alteza, Suas Majestades Celestiais requerem a vossa presença
imediata no Salão da Luz Oriental.
Um assunto urgente requer a vossa atenção.
Liwei franziu a testa.
— Irei imediatamente.
Ainda olhou para mim como se quisesse dizer mais, mas afastou-se
apressadamente.
Voltei para o meu quarto, tentando acalmar as minhas emoções
desgovernadas. Contudo, foram de novo agitadas pela visão de Wenzhi,
sentado à mesa.
— Não ias falar com o General Jianyun, esta manhã? — perguntei ao
sentar-me ao lado dele.
— A reunião acabou mais cedo.
Soou tenso. Hesitante, o que não era nada normal nele.
— Xingyin, há algo que tenho de te dizer.
Fechei as mãos sobre o meu colo, sentindo um arrepio que antecipava
más notícias. Ele debruçou-se para mim, a voz subitamente rouca de
emoção.
— Demiti-me do Exército Celestial. Esta semana será a minha última.
Tenho assuntos familiares importantes para tratar, longe daqui, e não conto
regressar.
Falou com uma calma deliberada, como se quisesse ter a certeza de que
eu percebia o que estava a dizer.
— Vais partir? Para o Mar do Oeste? — consegui perguntar.
Ele assentiu tensamente.
— A minha última missão vai ser uma inspeção das tropas na fronteira
do Deserto Dourado. Ultimamente, têm andado inquietas.
Sentia um aperto tal no peito que mal conseguia respirar. Desde o Mar
do Leste, algo mudara entre nós. O meu coração batia mais depressa quando
o via e o seu sorriso aquecia-me como vinho. As vezes, julgava avistar-lhe
um brilho nos olhos quando olhava para mim. Éramos circunspetos nas
nossas interações, sem um único gesto ou palavra para lá dos limites do
decoro. Contudo, tornáramo-nos mais do que amigos, no limiar de algo
inteiramente novo e excitante. Ou teria sido tudo ilusão minha? Deixei o
olhar cair para o chão, sentindo-me estranhamente desanimada. Desiludida.
Até mesmo magoada? Apesar de não ter esse direito, sentindo uma pontada
de culpa ao lembrar-me dos lábios de Liwei nos meus.
Wenzhi olhava para mim, como se estivesse à espera da resposta a uma
pergunta que eu não ouvira, a sua voz a penetrar por fim a neblina da minha
tristeza.
— Queres vir comigo?
— Para... a fronteira do Deserto Dourado? — tartamudeei.
— Isso também, se quiseres — disse ele num tom grave. — Eu queria
dizer se queres vir comigo quando eu for embora.
Passei a língua pelos lábios.
— O que queres dizer?
Não me atrevia a entender mal as suas intenções. Um sorriso iluminou-
lhe o rosto, iluminou o quarto inteiro.
— Não sabes dos meus sentimentos por ti? — A sua voz tremeu, a
primeira fissura na sua compostura férrea. — Antes não podia falar, mas
agora estou livre. Quero que venhas comigo, para o meu lar, para a minha
família. Para vivermos juntos as nossas vidas. — Baixou então a cabeça ao
nível da minha, testas quase a tocar, o hálito dele quente na minha pele. —
Os teus sonhos também serão os meus.
Alegria percorria-me o corpo como ondas num lago após uma chuvada.
Pensara que o amor acabara para mim... a sua beleza deslumbrante, a sua
agonia tumultuosa. Fora feliz antes e acreditava que voltaria a sentir alegria
quando encontrasse o caminho de regresso ao lar, ao meu verdadeiro lar,
não a este que erigira sobre uma teia de mentiras. Agora, um futuro com
Wenzhi chamava por mim, com céus límpidos e nem uma nuvem escura no
horizonte. Um futuro sem corações partidos nem passados complicados.
Um em que não havia sangue derramado entre as nossas famílias, os nossos
laços livres de ódio ou ressentimentos antigos — em que podia ser eu
própria, livre de culpa, remorsos e mágoa.
Apenas agora me atrevia a admitir a mim mesma o receio de ter falhado.
De, na minha arrogância, ter calculado mal o valor do meu talento, o mérito
dos meus atos. Pois, apesar dos serviços prestados ao Exército Celestial, as
esperanças de conquistar a liberdade da minha mãe começavam a
desvanecer-se, como uma pintura em seda deixada demasiado tempo ao sol.
Um perdão do imperador era a maneira mais certa de conseguir a sua
libertação. Contudo, apesar de os meus feitos terem valido elogios e
presentes, que eu recusara, nem uma única menção do Talismã do Leão
Carmesim. Devia ter ouvido o aviso do General Jianyun, mas o meu
orgulho levara-me a pensar que sabia mais do que ele. O imperador não era
conhecido pela sua generosidade a dispensar tais favores. Nem alguma vez
perdoara alguém sentenciado a prisão eterna. Por isso, talvez fosse hora de
procurar um novo caminho para ajudar a minha mãe. Talvez o encontrasse
na pátria de Wenzhi, no Mar do Oeste.
A mão de Wenzhi no meu braço sobressaltou-me. Continuava à espera
da minha resposta, talvez interrogando-se sobre o meu silêncio prolongado.
Quando olhei para o seu rosto forte e bonito, algo mudou dentro de mim.
Gostava dele, sabia que sim. O meu desânimo ao saber que iria partir era
prova disso. E não diziam que o amor cresceria entre duas mentes
compatíveis, com o passar dos meses e dos anos? Tínhamos a eternidade
pela frente.
— Também queres o que eu quero?
O tom dele já não era urgente, mas transbordava com uma confiança
recém-descoberta, como se já tivesse pressentido a minha resposta.
Sim. A palavra formou-se nos meus lábios, contudo, não a conseguia
dizer. Algo puxava pelo meu coração, uma voz fininha que me implorava
que reconsiderasse. Teria pedido mais tempo para pensar, mas o som de
passos na gravilha sobressaltou-nos. Alguém corria para o meu quarto com
uma pressa desmedida quando Wenzhi abriu as portas.
Um servo jovem estava parado à entrada.
— Capitão Wenzhi — ofegou. — Procurei por si em todo o lado. Suas
Majestades Celestiais requerem a sua presença imediata no Salão da Luz
Oriental.
Que estranho, pensei para mim mesma. Era o segundo mensageiro que
via naquele dia com notícias urgentes.
Um brilho de irritação passou pelos olhos de Wenzhi.
— Vou já.
O mensageiro encolheu-se, mas não partiu. A sua coragem era louvável,
especialmente perante o desagrado visível de Wenzhi.
— Todos os outros comandantes já chegaram. Eu... eu recebi instruções
de o acompanhar assim que o encontrasse.
Wenzhi soltou um suspiro e puxou-me para o lado.
— Falamos amanhã.
Podia ter dito mais, mas o mensageiro arrastava os pés, deitando-nos
olhares nervosos. Com um abanar impaciente de cabeça, Wenzhi afastou-se.
Sozinha no meu quarto, fiquei sentada à mesa até o fogo dourado do sol
poente se reduzir a uma brasa incandescente. Se não fosse o lapso de
fraqueza nessa manhã, poderia ter acreditado que o meu coração estava
inteiro, livre dos laços que o prendiam antes. Um futuro glorioso erguia-se
no horizonte. Contudo, ainda me agarrava a vestígios do meu passado,
como um pessegueiro em flor com saudades da flor caída ao solo.
Shuxiao sentou-se na cadeira diante de mim e pousou o tabuleiro de
comida na mesa de madeira. Os seus olhos percorreram o refeitório amplo,
já apinhado de soldados debruçados sobre a refeição da manhã.
— A Princesa Fengmei foi raptada — falou num sussurro.
Deixei cair a colher na taça, salpicando caldo de arroz para cima da
mesa.
— Como? Quando? Por quem?
As perguntas jorravam dos meus lábios. Devia ser por isso que Liwei e
Wenzhi tinham sido chamados no dia anterior.
— Só ouvi dizer que o Príncipe Liwei vai liderar a operação de resgate.
Por baixo da mesa, a minha mão agarrou o meu joelho. Não fosse o que
acontecera ontem, aquela notícia não me teria afetado tanto. Contudo, ele
beijara-me como se eu fosse a única no seu coração. As palavras temas que
falara... e agora arriscava a vida para salvar a noiva? Um noivado que
alegava nunca ter querido? Um calafrio apertou-me o peito. Inalei e expirei,
tentando libertar-me da sensação. Estava a comportar-me como uma criança
egoísta. Como noivo e aliado, quem mais poderia liderar a operação?
— Desejo-lhe todo o sucesso. Espero que a traga de volta sã e salva.
Se as minhas palavras soaram pouco convincentes, sentia algum consolo
em saber que eram sinceras.
— Raptar uma princesa não é tarefa fácil. Pergunto-me quem...
Shuxiao parou de falar abruptamente. O General Jianyun erguia-se
diante de nós de braços cruzados. Levantámo-nos num salto para o saudar.
— Tenente Shuxiao, não preciso de saber onde ouviu isso, mas quero
que seja o fim desta conversa, ou de qualquer outra sobre o assunto.
Entendido? — ordenou.
Shuxiao deitou-me um olhar de pânico e respondeu com uma humildade
incomum:
— Sim, General Jianyun.
O general olhou então para mim.
— Arqueira-Mor Xingyin, venha comigo. Preciso de falar consigo.
Fiquei a olhar para ele, espantada, até Shuxiao me dar um pontapé na
perna. A dor quebrou o pasmo e apressei-me a segui-lo.
— A notícia é verdadeira — disse o general, sem qualquer preâmbulo,
ao sentar-se atrás da secretária de pau-rosa. — A Rainha Fengjin está
destroçada. O raptor comunicou os termos do resgate e exige que ela quebre
a aliança connosco. E avisou que não haverá misericórdia para a filha se
alguém a tentar salvar. É por isso que cabe a nós libertá-la.
— Foi o Reino Infernal? — perguntei.
— É para onde recaem as nossas suspeitas, mas não temos provas. Seja
como for, a nossa prioridade é trazer a Princesa Fengmei sã e salva. Sua
Alteza vai liderar uma equipa pequena para a resgatar, não mais de uma
dúzia de soldados, para não serem detetados. Dada a ameaça, a discrição é
crucial para não pôr em risco a segurança da princesa. — O general
tamborilava na mesa num ritmo regular. — O Príncipe Liwei pediu que
fizesse parte da equipa de resgate.
Não teria ficado mais assombrada se um relâmpago me tivesse atingido
num dia sem nuvens. Sem saber o que dizer, debati-me com as emoções que
se erguiam dentro de mim, emaranhadas e contorcidas, ardentes, mas frias.
Mas uma coisa era clara: eu não queria fazer parte daquilo.
A sua expressão ficou sombria, lendo talvez a recusa no meu rosto.
— Apesar de não lhe poder ordenar que faça parte desta missão,
aconselho-a veementemente a aceitar. Pelo reino. Pela nossa aliança. Nada é
mais importante.
Esse argumento não me convenceu; eu não era nobre nem intrépida.
Não era o perigo físico que me demovia, mas a mágoa no meu coração e no
meu orgulho. Aquilo não valia as recompensas que o Reino Celestial tinha
para me oferecer, recompensas que já recusara antes.
— Há muitos outros mais adequados, mais habilitados do que eu —
respondi.
— Com o arco?
Foi Liwei quem falou, parado à porta. Não o ouvira a chegar.
Quando o General Jianyun se levantou para o saudar, fiz o mesmo,
reprimindo o coração que saltava no meu peito. Não me deteria no que
acontecera entre nós; fora apenas um lapso temporário. Talvez estar no
Pátio da Tranquilidade Eterna nos tivesse toldado a mente com memórias. E
naquele momento estávamos mergulhados numa nova realidade, na qual
Liwei e eu nos separaríamos cada vez mais, até nenhum de nós jamais
conseguir encontrar o caminho de volta para o outro.
— Com Sua Alteza em pessoa a liderar o resgate, certamente têm todas
as capacidades necessárias.
Isso era o que diria um cortesão, esperando lisonjear o príncipe... não
fosse o tom cortante na minha voz.
Liwei atravessou a sala e parou diante de mim.
— Nem todas. Há muito que me superou no tiro ao arco, como ambos
sabemos.
Quando não respondi, ele puxou uma das cadeiras diante da secretária
do General Jianyun e indicou-me que fizesse o mesmo. Sentei-me
rigidamente ao lado dele, desejando estar em qualquer lado menos ali.
— Prossiga, General Jianyun — disse Liwei.
— Acreditamos que a Princesa Fengmei está a ser retida na Floresta da
Primavera Eterna, perto das montanhas a sul do Reino da Fénix. O rasto que
temos termina aí.
O nome pareceu-me familiar.
— Não era aí o lar da Dama Hualing, a anterior Flor Imortal? Antes de
ter desaparecido?
O general assentiu soturnamente.
— Desde então, a floresta tem estado velada de olhares indiscretos por
uma magia estranha. Ninguém se aventura lá há séculos. Não sabemos que
mais perigos espreitam para lá das forças hostis que raptaram a princesa.
Silêncio e subterfúgio vão ser cruciais, bem como as suas capacidades.
O General Jianyun esperava que eu aceitasse com toda a graciosidade.
Não o faria. Alguns poderiam considerar-me ingrata, mas não conseguia pôr
de lado os meus sentimentos assim com tanta facilidade. Os meus desejos
também importavam. Senti uma pontada de culpa ao pensar no perigo que
pairava sobre a Princesa Fengmei, mas não era arrogante ao ponto de pensar
que era a única capaz de realizar aquela tarefa.
Ergui-me, uma mão fechada sobre a outra e fiz uma vénia profunda.
— General Jianyun, prometeu-me que teria a liberdade de escolher as
minhas missões. Eu recuso esta missão. O general franziu a testa e abriu a
boca para me admoestar, mas foi interrompido por Liwei.
— Posso falar com Xingyin a sós?
O general deitou-me um olhar de reprovação, fez uma vénia a Liwei e
saiu da sala.
— Não se quer sentar? — perguntou Liwei, após um momento de
silêncio.
— Prefiro ficar em pé.
Estava ansiosa por sair à primeira oportunidade, determinada a evitar
qualquer intimidade com ele.
Liwei soltou um suspiro e levantou-se. Parte de mim estremeceu com o
absurdo da situação. Apenas no dia anterior, puxara-me para os seus braços
com tanta paixão e agora estava a pedir-me que salvasse a sua noiva. Fúria
erguia-se em mim, ardente e violenta.
— Importai-vos assim tão pouco com os meus sentimentos? —
perguntei, contrariada, odiando-me por o fazer.
— Tenho de fazer isto — disse ele. — Se falharmos, se algo acontecer à
Princesa Fengmei, não só seria uma grande tragédia, mas empurraria o
Reino da Fénix para o Reino Infernal, fortalecendo-os e enfraquecendo-nos,
imensamente. Com essa vantagem, o Reino Infernal seria tentado a quebrar
a paz, a declarar-nos guerra.
— Eu compreendo. Mas porque tenho de ser eu a ir convosco? Podeis
escolher inúmeros guerreiros competentes, que se sentiriam honrados por
vos poder acompanhar.
Os seus olhos fitaram os meus.
— Porque não há ninguém em quem confie mais. Ultimamente, tem
havido demasiados incidentes. Espíritos-raposa que passam pelas nossas
defesas. A maleita do Arqueiro Feimao. E agora isto. A princesa foi raptada
a caminho do Reino Celestial. Apenas os círculos íntimos das duas cortes
sabiam desta viagem. O que significa que há um traidor, ou no Reino da
Fénix, ou aqui — concluiu com gravidade. — Falei a sério sobre as suas
capacidades. Isto vai ser perigoso e precisamos de todas as vantagens que
conseguirmos reunir.
Quando não respondi, ele acrescentou em voz baixa:
— Estou a colocá-la numa posição impossível. Deve odiar-me.
Sentia a cabeça esmagada pelo peso da indecisão. O pedido para salvar
a noiva de Liwei deixara-me perturbada e magoada. Desejava que fosse
salva, mas não queria ter nada que ver com isso. E uma pequena voz na
minha cabeça segredava-me que, se o Reino Celestial fosse derrubado,
talvez a minha mãe fosse libertada...
Repudiei um pensamento tão vil. Tinha amigos aqui de quem gostava,
que sofreriam se houvesse uma guerra. E se o Reino Infernal assumisse a
supremacia? Apesar de já não acreditar que eram os monstros que tanto
temia, também não confiava no seu rei, que parecia ser tão implacável como
o Imperador Celestial, principalmente se raptara a Princesa Fengmei para
forçar a capitulação da rainha. Atrever-me-ia a deixar os nossos futuros em
tais mãos? Se aprendera alguma coisa ao longo daqueles anos, era que
ninguém ganhava numa guerra, nem aqueles que julgavam ter vencido.
O rosto da Princesa Fengmei passou-me pela mente, não a figura régia
com a capa de penas douradas que vira ao longe, mas a rapariga que
conhecera no pátio de Liwei. Não podia eu tratar aquela missão como todas
as outras que aceitara antes? Se não fosse o nosso passado, teria agarrado
com as duas mãos a possibilidade de ajudar o Príncipe Celestial e a Princesa
Fénix. Era uma oportunidade rara, que certamente chamaria a atenção do
imperador, possivelmente colocando-me ao alcance do Leão Carmesim e
evitando uma guerra desastrosa. Para lá disso, podia mesmo recusar ajuda a
Liwei? Apesar de tudo, ainda era meu amigo.
Uma centena de considerações volteavam nos meus pensamentos,
puxando agora todas na mesma direção. Iria com Liwei. Não por dever ou
obrigação, mas para o proteger, ao meu amigo, e àqueles que me eram
queridos no Reino Celestial. Para ajudar a salvar a rapariga inocente com
quem falara. E se isso não me valesse as boas graças de Sua Majestade
Imperial e o talismã que tanto desejava, nada o faria. Seria o meu último
passo naquele caminho antes de recomeçar de novo. E partiria de
consciência tranquila.
Olhei-o nos olhos.
— Irei convosco.
— Obrigado.
Quando ele deu um passo na minha direção, afastei-me.
— Irei convosco — repeti. — Contudo, peço-vos que doravante vos
comporteis dentro dos limites do decoro... como se o nosso passado não
existisse.
Aquelas palavras frias também me magoaram, mas não podia permitir
que um outro momento de fraqueza minasse a minha determinação.
— E se não for eu a faltar ao decoro?
A sombra de um sorriso passou-lhe pelos lábios. Com que facilidade se
tomava o amigo trocista do meu passado. Mas nem isso eu podia permitir.
— Não podemos continuar assim — disse num sussurro, tentando
abafar o desejo persistente suscitado pela sua proximidade, a culpa e a
vergonha que me queimavam um buraco no estômago. — Vou ajudar-vos e
à Princesa Fengmei. Mas vós tendes a vossa honra e eu tenho a minha. E
não havia honra alguma no que fizemos. Agora estais comprometido, o
vosso coração pertence a outra.
A memória inoportuna do nosso beijo passou-me pela mente. O nosso
último beijo, prometi a mim mesma, uma porta fechada, um último adeus.
O seu rosto era cinza e sombra, os olhos desprovidos de luz. Foi então
que percebi que conseguira... cortar o último fio ténue do nosso antigo laço.
Em silêncio, Liwei inclinou a cabeça para mim e afastou-se. Não ergui o
olhar, não o queria ver sair. As minhas palavras atingiram o alvo, um golpe
fatal, uma morte rápida. Contudo, era um triunfo oco que me deixou uma
amargura na boca e uma dor profunda no peito.
O sono evitou-me nessa noite. Atormentada pelo desassossego, trepei os
pilares diante do meu quarto. Uma brisa suave agitava o ar quando me
sentei nas frias telhas de jade, fitando o céu. A lua brilhava na escuridão, a
sua luz gentil e suave.
Algo restolhou, era Wenzhi a trepar para o telhado. Ajeitando o
quimono, sentou-se ao meu lado.
— Esperei por ti hoje.
— Desculpa. Este dia foi... atribulado.
Odiei a maneira como as minhas palavras se atrapalhavam, como se
tivesse algo a esconder. E tens mesmo, sussurrou a minha mente.
— Não posso ir contigo até à fronteira — disse-lhe.
Ele cerrou o maxilar, mas não se mostrou surpreendido. Já teria sido
informado pelo General Jianyun?
— Não vás com o Príncipe Liwei — pediu-me com uma urgência
súbita. — É demasiado perigoso. Os imortais evitam a Floresta da
Primavera Eterna por bons motivos. Desde o desaparecimento da Dama
Hualing, abundam rumores sobre esse lugar, rumores de encantamentos
negros e criaturas ferozes, de miséria e morte.
Encolhi os ombros com uma indiferença que não sentia.
— Já enfrentei monstros antes, e precisamente contigo.
O seu suspiro rodopiou no ar frio.
— Não tens o mais pequeno cuidado com a tua própria segurança?
Franzi a testa, um pouco surpreendida com a sua insistência.
— Como é isto mais perigoso do que Xiangliu? Do que o Governador
Renyu? Ou o Diabo de Osso? — enumerei, tentando aliviar a sua
preocupação.
— Porque eu não vou estar lá. E se algo te acontece? — Fez uma pausa.
— Não te importas com os meus sentimentos?
A sua preocupação tocou-me, mas nada mudaria a minha decisão.
— Claro que sim. Mas sei tomar conta de mim. Além disso, já está
decidido. Partimos amanhã.
— Mas porquê? — insistiu ele. — As ordens do General Jianyun não
importam, não quando em breve deixaremos este sítio para trás. Porque
queres colocar-te em perigo desnecessariamente? Não é certamente por
lealdade ao Reino Celestial.
Endireitei as costas, aferroada por aquelas palavras. Era perfeitamente
capaz de me proteger. No passado, viera em seu auxílio tantas vezes como
ele viera em meu. E a provocação de que eu não sentia qualquer lealdade ao
Reino Celestial... não precisava que mo recordassem. Servi o Reino
Celestial porque acreditava que conduziria à libertação da minha mãe. O
treino que recebera, a reputação que construíra, as vidas que tomara, tudo
isso era um meio para atingir um fim, como tudo o mais que fizera ali.
Contudo, também ouvia a preocupação que lhe estrangulava a voz.
Tentei explicar-lhe.
— Não faço isto porque me ordenaram. O Príncipe Liwei pediu-me que
o ajudasse. Não podia recusar.
Uma sombra caiu sobre o rosto de Wenzhi.
— Ainda o amas? É por isso que vais arriscar a vida para salvar alguém
de quem não queres saber? Já te esqueceste que ele te deixou por outra?
As palavras agrestes cortaram-me como um chicote.
Olhei-o nos olhos, com raiva a arder-me nas veias. Ele não sabia nada
sobre mim e Liwei. Para lá do nosso amor desafortunado, Liwei era meu
amigo, o meu único amigo numa altura em que não tinha ninguém, e essas
raízes eram mais profundas do que a desilusão e a mágoa. A bondade que
me demonstrara era uma dívida que eu tinha para com ele, uma que pagaria.
— Como podes dizer-me isso? — protestei. — Não sou uma marioneta
apaixonada a pedinchar uma migalha de afeto. Tenho os meus sonhos, os
meus princípios, a minha honra.
Sem vontade de me explicar mais, levantei-me e comecei a afastar-me.
— Espera, Xingyin...
Na sua voz tremia uma nota de desespero. Parei, mas não me virei.
Ele falou tão baixo que tive de me esforçar para o ouvir.
— Desculpa. Não devia ter dito aquilo. Estava desiludido e... com
ciúmes. — Exalou profundamente. — Pensei que ontem tínhamos chegado
a um acordo. Estava enganado? Não entendeste o que te quis dizer? As
minhas esperanças para o nosso futuro?
O meu coração acalmou, apesar da raiva que ainda fervia em mim. Tudo
o que Wenzhi vira fora o meu desespero com o noivado de Liwei, e não era
de admirar que naquele momento se sentisse ressentido. Uma confissão
difícil para ele, mas não lhe dava o direito de falar assim comigo.
Virei-me e olhei-o nos olhos.
— Wenzhi, tens de confiar no meu discernimento como eu confio no
teu. Não tentes insultar-me ou chantagear-me para eu fazer o que tu achas
que eu devia fazer. Como poderemos ter um futuro juntos se não me vires
como tua igual?
— Tu és minha igual. Mais do que minha igual. — Wenzhi levantou-se
e segurou com força a minha mão. — Só não quero que te magoes.
O vento ficou mais forte, soprando o meu cabelo para cima da cara.
Quando tremi de frio, Wenzhi despiu o quimono e passou-mo pelos ombros,
envolvendo-me com um braço.
— Promete-me que terás cuidado. Que não farás nada... demasiado
temerário — segredou ao meu ouvido.
Uma vontade de rir percorreu-me o corpo, dissipando a ira. Ele
conhecia-me tão bem, para dizer algo assim. E eu conhecia-o
suficientemente bem para sentir como estava a conter-se para não dizer
mais.
O cheiro fresco a agulhas de pinheiro pairava no ar, acendendo no meu
coração uma luz que baniu as sombras persistentes. Os meus sentimentos
por Wenzhi eram fortes, apesar de diferentes do que sentira por Liwei.
Talvez a paixão ardente e delirante que sentira por Liwei fosse apenas a
loucura do primeiro amor, imbuída da inocência tola de que nada nos
poderia separar. Nos amores que se seguiam, avançava-se com mais calma,
com mais cautela, após corações partidos e promessas quebradas. E talvez o
carinho crescente que sentia por Wenzhi fosse a evolução de todo o amor.
Encostei a cabeça ao seu ombro, soltando os últimos vestígios de
tensão.
— Prometo. E quando regressar, vamos partir juntos deste sítio.
Ficámos ali em silêncio, o seu abraço mais apertado o único sinal de que
ouvira a minha resposta. Pela primeira vez nesse dia, senti-me em paz.
Tomou-me uma ânsia de lhe contar todos os meus segredos, mas não
naquele momento, não ali. No Reino Celestial, estava sempre de guarda.
Um dia, longe daquele sítio, falar-lhe-ia da minha mãe.
Como era escura a noite que se estendia diante de nós; no entanto,
alumiada pelo brilho da lua e das estrelas, parecia tão radiante como o dia.
A Floresta da Primavera Eterna fora outrora o sítio mais lindo do
Domínio Imortal. Dizia-se que o Imperador Celestial em pessoa plantara a
floresta na sua juventude, com ramos cortados da primeira árvore do mundo
e aspergidos com o orvalho de um lótus encantado. Sob a copa graciosa das
árvores altas viam-se lagos cristalinos e rios cintilantes repletos de peixes
reluzentes. Aqueles que vagueavam pelo coração da floresta falavam,
extasiados, de árvores sempre em flor, os ramos carregados de botões de
todas as cores. Fruta madura, mais doce do que néctar, crescia tão
abundantemente como as flores silvestres por entre a erva suave. A
perfeição idílica da floresta atraía aves, animais e imortais. Até a poderosa
Dama Hualing, a primeira Flor Imortal, ficara encantada com o lugar e
partira do Reino Celestial para fazer ali o seu lar, deixando um rasto de
peónias, camélias e azáleas.
Mas esse paraíso não durou muito. Depois de ter sido exonerada da sua
posição, não mais a Dama Hualing ergueu a mão para plantar flores, não
mais reavivou as plantas murchas. E quando desapareceu, as copas
luxuriantes ficaram castanhas, os lagos cintilantes tomaram-se charcos de
lodo e as árvores definharam e nunca mais floriram.
Desci da minha nuvem, impressionada com o profundo silêncio daquele
sítio. Nem o pio de uma ave, nem mesmo o esvoaçar de uma libélula. Um
nevoeiro branco cobria a floresta, envolta numa frieza desagradável. As
árvores erguiam-se altas e direitas, as folhas mirradas presas aos ramos
numa morte eterna. Por todo o lado se viam lagoas turvas, que evitávamos
para não sermos sugados para as profundezas sem fundo. O ar estagnado
tresandava a podridão, uma triste zombaria da promessa no nome da
floresta. À medida que nos embrenhávamos em sombra e nevoeiro, sentia a
pele arrepiada e segurava com força o Arco da Fénix de Fogo. Se pelo
menos pudesse ter trazido o Arco do Dragão de Jade. O fogo-celeste era
mais forte do que as chamas. Mas não tinha a certeza se seria capaz de o
empunhar, nunca tendo soltado as suas flechas. E também temia usá-lo
diante de soldados celestiais que podiam reclamá-lo em nome do imperador.
Dois soldados seguiram à frente para explorar o caminho e os oito
restantes ficaram para trás.
— Não adianta invocar uma nuvem aqui — explicou Liwei. — O
nevoeiro é demasiado denso e um encantamento mantém-no aqui.
— Não podemos dissipar o encantamento?
— Não é um encantamento simples. Além disso, o nevoeiro tapa o
nosso rasto, por enquanto, e não quero alertar ninguém para a nossa
presença.
— Como vamos encontrar a Princesa Fengmei? Mesmo com batedores?
— perguntei.
— Consigo sentir a aura dela, mas tenho de chegar perto — respondeu
Liwei.
Aquela revelação incomodou-me. Seria ele mais íntimo com a princesa
do que eu imaginara? Lembrei-me de evitar falar com ele, para impedir a
minha mente de espiralar para tais profundezas.
Liwei, contudo, não tinha tais escrúpulos.
— O Capitão Wenzhi vai abandonar o Reino Celestial em breve. O que
vai fazer então?
Apesar de o seu tom ser coloquial, até mesmo simpático, a resposta
ficou presa na minha garganta.
Ele prosseguiu no seu tom baixo e sincero.
— Os meus sentimentos por si não mudaram, mas não vou falar mais
disso. O que me disse ontem... o que me pediu. Tinha razão.
Assenti rigidamente. Se isso era verdade, o que seria então o peso
asfixiante que caía sobre mim naquele instante? Cerrei os punhos, furiosa
comigo mesma. Como podia continuar a ser afetada por Liwei, apesar dos
meus sentimentos por Wenzhi? Seria assim tão volúvel e inconstante? O
meu futuro com Wenzhi luzia com esperança, não estava atolado em
arrependimentos passados. Não descartaria essa possibilidade de felicidade.
Ouvimos passos na nossa direção, cautelosos e suaves. Ergui o olhar e
avistei um dos batedores a aproximar-se.
— Vossa Alteza, há soldados uns quinhentos passos adiante. Armados, a
guardar um pagode.
— Avancem com cautela. Não podem saber que estamos aqui —
advertiu Liwei.
Preparámos as nossas armas, abrindo caminho furtivamente. Na clareira
diante de nós erguia-se o pagode, oito andares de altura, quase tão alto
como as árvores em redor. As torres escalonadas eram feitas de madeira
podre, as treliças das janelas e os ornamentos dos beirais numa cor
desbotada que podia ter sido outrora um vermelho-vivo. Como se confundia
com a paisagem desolada, uma mancha delapidada de castanhos e
cinzentos. Como parecia desolado, apesar da dúzia de soldados que o
rodeava, vestidos com armadura de bronze polido.
— Reconheceis a armadura? — perguntei.
— Não. Mas isso é fácil de disfarçar.
Liwei fechou os olhos por um momento e franziu a testa.
— A Princesa Fengmei está lá dentro; consigo senti-la. Temos de
eliminar os guardas sem fazer barulho, para evitar que deem o alarme —
disse para todos nós num sussurro. — Comecem com os que estão mais
perto de nós, avançando até ao pagode. Temos de ser rápidos para não
poderem gritar, ou a princesa ficará em perigo.
Ao sinal de Liwei, soltei uma flecha flamejante, que se cravou no peito
da guarda mais próxima. Quando um murmúrio engasgado lhe saiu da
garganta, acertei no guarda ao lado, que tombou para o chão de olhos
arregalados. Liwei e os seus guerreiros avançaram rapidamente para rodear
os restantes soldados, derrubando-os ao som de um coro ominoso de
arquejos estrangulados e gritos sussurrados.
A escaramuça terminara. Suor perlava-me a testa, apesar do calafrio que
me percorria a pele. Fora fácil... demasiado fácil. O olhar de Liwei
encontrou o meu, ecoando a minha suspeita muda.
— O pagode — disse ele. — Pode haver mais guardas lá...
Um rugido irrompeu da floresta, abafando o resto da frase. Uma vaga de
inimigos corria para nós, a luz do sol refletida nas armaduras de bronze
quando inundaram a clareira. Com um golpe de espada, Liwei derrubou
dois deles. Eu acertei uma flecha noutro que corria para ele... precisamente
quando um soldado inimigo desfaleceu aos meus pés. No tumulto, não o
ouvira. Podia ter-me apanhado desprevenida, não fosse a estranha flecha
com penas pretas que lhe saía do peito.
— Salve a princesa! — gritou Liwei, enquanto eu olhava em redor à
procura do arqueiro.
Ergueu então a espada em chamas e brandiu-a num arco largo, forçando
a recuar os atacantes que o rodeavam. As armas dos inimigos soltavam
reflexos prateados e dourados, enquanto outros carregavam correntes de um
metal escuro nas mãos. As correntes deixaram-me furiosa, a certeza de que
o tomariam como prisioneiro. Os restantes guerreiros travavam uma batalha
feroz à sua volta, em desvantagem, mas sem ceder terreno. Ainda tínhamos
uma hipótese... pelo menos por enquanto. Se eu encontrasse a princesa a
tempo.
Eu queria ficar e lutar, mas corri para o pagode, deixando a batalha para
Liwei e os outros celestiais. Medo apertava-me o coração, mas lembrei-me
ferventemente da perícia de Liwei com a espada e da sua poderosa magia.
Conseguiria mantê-los afastados até eu regressar. Quanto mais depressa
encontrasse a Princesa Fengmei, mais depressa poderíamos todos fugir
daquele sítio maldito.
Corri pelas escadas de madeira acima, quase esperando ser confrontada
por guardas a cada esquina. Contudo, o edifício estava estranhamente vazio
e cheguei ao último andar sem encontrar um único inimigo. Forcei a porta
grossa de madeira ao cimo das escadas, mas esta não se moveu. Impaciente,
invoquei uma rajada de ar que estilhaçou a fechadura.
A Princesa Fengmei levantou-se num salto, no meio das lascas e dos
pedaços de madeira espalhados pelo chão. O seu rosto em forma de coração
estava pálido e os olhos castanhos, arregalados, fitavam-me
inexpressivamente, como se não soubesse bem se devia gritar de terror ou
chorar de alívio. Inclinou a cabeça para um lado e escrutinou-me, como se
estivesse a tentar lembrar-se de onde nos conhecíamos.
— Sou do Exército Celestial. Estamos aqui para a salvar. Depressa, o
Príncipe Liwei está a ser atacado!
A minha voz vibrava de urgência.
Ela animou-se ao ouvir o nome de Liwei, erguendo os pulsos para mim.
Estavam presos com grilhetas de metal escuro unidas por uma corrente fina.
— Consegue tirar-mas?
Desembainhei a espada e golpeei a corrente fina. A lâmina ressaltou e o
meu braço ficou dorido com o esforço, mas não se via nem um arranhão no
metal. Serrar os elos não funcionou e martelar não lhes fez a mais pequena
mossa. Enquanto isso, a minha mente era atormentada por pensamentos de
Liwei lá em baixo, com flechas a voar para as suas costas desprotegidas,
com lâminas projetadas contra o seu peito.
— Não se mexa.
Puxei uma flecha, soltando-a sobre a grilheta no pulso direito. Fogo
carmesim percorreu o metal e fissuras tornaram-se fendas até o metal se
rachar. Respirando fundo, soltei outra flecha sobre o pulso esquerdo e a
outra grilheta caiu ao chão.
Os lábios da Princesa Fengmei curvaram-se num sorriso trémulo.
— Tem... tem muita pontaria — disse em voz baixa, afastando as
nuvens de cabelo preto que lhe tapavam o rosto.
A sua beleza delicada causou-me um aperto no coração. Engoli em
seco, baixando-me para atirar para longe os pedaços partidos de metal aos
seus pés. Queimavam como gelo ao colar-se à pele.
— Que correntes são estas?
Os seus ombros descaíram.
— Não faço ideia. Quando mas puseram, deixei de conseguir invocar a
minha energia.
Senti um espasmo doloroso no estômago. Aquelas correntes... vira os
soldados lá em baixo a carregarem correntes iguais. E no Mar do Leste,
Liwei falara-me de um minério do Pico Sombrio que conseguia suprimir os
poderes de um imortal.
— Depressa! — apelei, ajudando-a a pôr-se de pé. — O Príncipe Liwei
está em perigo!
Algo assobiou pelo ar; um som que todos os arqueiros sabiam de cor.
Atirei-me ao chão, puxando a princesa para baixo. Senti uma dor no braço e
fitei, incrédula, o sangue a escorrer de um corte. Fui até à janela e levantei a
cabeça, apenas o suficiente para ver algo afiado e brilhante a voar na minha
direção. Baixei-me e deitei-me no chão quando outra flecha mergulhou pela
sala.
Puxei uma flecha flamejante e soltei-a pela janela. No momento
seguinte, duas flechas voaram na minha direção, falhando por um cabelo
antes de chocalharem pelo chão. Cerrei os dentes. Aquele arqueiro era
formidável. Não era de admirar que não houvesse guardas ali; qualquer
inimigo que tentasse salvar a princesa teria sido abatido muito antes. As
penas pretas eram familiares, idênticas à flecha que abatera o meu atacante
lá fora. Teria sido eu o alvo? Teria o arqueiro falhado antes? Parecia pouco
provável, dada a sua perícia, mas mais improvável ainda era a ideia de que
o arqueiro me salvara, apenas para me tentar matar mais tarde.
Respirei fundo, furiosa com o meu atacante invisível. Tempo precioso
escoava-se. Se aquelas correntes conseguiam suprimir a magia de um
imortal, Liwei não teria hipóteses. Assestei outra flecha e levantei-me num
salto para ver o meu inimigo. Um vulto alto, um homem, erguia-se num
ramo largo, flecha preparada no arco. Tinha o rosto escondido por um
capacete, mas os seus olhos fitavam-me com um brilho prateado. Apanhada
de surpresa, os meus dedos soltaram a corda e a chama desapareceu.
Preparei-me para a flecha que esperava ver cravada em mim... mas o
arqueiro baixou o seu arco. Fitámo-nos um ao outro por um instante de
silêncio. Em seguida, ele recuou para as sombras e desapareceu.
Não tinha tempo para ponderar. Agarrei na mão da Princesa Fengmei e
corremos juntas pelas escadas, na direção da fúria da batalha, apenas para
emergir para a calma mortal de um cemitério. Havia corpos espalhados por
todo o lado, dezenas e dezenas com armaduras de bronze. Fiquei
desanimada quando contei dez corpos de dourado e branco, a armadura dos
celestiais tombados. Corri de um corpo para o seguinte, procurando sinais
de vida em cada um. Mas tinham todos os olhos vazios, as auras dissipadas.
— Onde está o Príncipe Liwei?
A voz de Princesa Fengmei tremia enquanto fitava a carnificina com
horror.
— Não sei — sussurrei, insensível a tudo, exceto ao terror que tomava
conta de mim, transformando-me a carne em pedra.
A luz minguante filtrava através do nevoeiro, envolvendo as árvores
com um halo sinistro. A Princesa Fengmei e eu vagueávamos pela floresta,
à procura de qualquer sinal de Liwei. A cada passo, o meu coração
afundava-se mais em desespero. Mal conseguia respirar, tomada pelo
pânico, mas a necessidade desesperada de o encontrar fazia-me continuar.
O choro abafado de Fengmei quebrou o meu torpor.
— O Príncipe Liwei é forte e poderoso. Talvez tenha escapado. Ou pode
estar ferido, incapaz de nos encontrar.
A minha voz soou oca e as minhas palavras falsas. Ele não nos teria
abandonado enquanto ainda houvesse vida nele.
Ela assentiu, soluçando de angústia ao agarrar-se à pequena réstia de
conforto que eu lhe dava.
— Obrigada por me salvar. Mas não conseguiria suportar se o Príncipe
Liwei estivesse em perigo ou... ou ferido.
A sua voz estremeceu e lágrimas começaram novamente a jorrar dos
seus olhos.
Uma onda de irritação atingiu-me, os meus nervos já em franja. Não
queria fazer de ama-seca naquele momento, só queria encontrar Liwei.
Como podia seguir o seu rasto com ela a chorar? Se estivéssemos a ser
perseguidas por inimigos, já teríamos sido capturadas ou mortas. Contudo,
reprimi o impulso de ralhar com ela. Em vez disso, passei-lhe um braço
pelos ombros e puxei-a para mim.
— Vamos encontrá-lo — prometi.
Uma promessa para ambas.
Isso pareceu acalmá-la e os olhos castanhos fitaram os meus.
— Agora reconheço-a. Era a companheira do Príncipe Liwei.
Conhecemo-nos no dia do banquete.
— Sim. No pavilhão.
Senti-me enleada pela saudade desses dias há muito passados e da
alegria que enchia então o meu coração. Ela soltou um suspiro.
— Na altura, foi bondosa comigo. Como está a ser agora.
Fiquei em silêncio, sentindo a vergonha que subia do estômago a chegar
ao rosto. Não, eu não fora bondosa, nem agora nem então. Da primeira vez,
não percebera quem ela era. E depois, não quisera aprender mais sobre ela,
talvez com receio de descobrir o que sabia agora, que a Princesa Fengmei
seria um bom partido para Liwei. Teria sido bem mais fácil se conseguisse
antipatizar com ela.
— É amiga de Sua Alteza? — perguntou ela.
Desviei o olhar, sob o pretexto de examinar a floresta em nosso redor.
— Sim, somos amigos.
Uma meia-verdade, como a Mestra Daoming teria criticado.
Quando ela ficou hirta, também fiquei, receando que pudesse perguntar
algo que me obrigaria a mentir. Ela ergueu a cabeça do meu ombro e
apontou para a minha cintura.
— Porque está isso a brilhar?
A gota-celeste. A joia normalmente límpida emitia um brilho vermelho,
pulsando com uma energia estranha. Forcei-me a respirar fundo, a conter o
terror que voltava a crescer em mim. Liwei estava em perigo. No entanto,
isso também significava que o podia encontrar.
Puxei a princesa para um maciço de árvores.
— Esperai aqui. Ficai escondida. Tentai não fazer o mais pequeno som.
Voltarei assim que puder. Se não regressar até à alvorada, segui para norte
até estardes fora da floresta, naquela direção. — Apontei, no caso de ela não
saber ao certo. — Já tendes a vossa magia de volta. Protegei-vos e atacai
quem tentar fazer-vos mal. Uma vez fora da floresta, podereis invocar uma
nuvem para vos levar para casa.
Vasculhei o meu cinto, saquei um punhal e dei-lho. Ela aceitou-o sem
dizer palavra, segurando-o sem grande força ou convicção.
— Apertai os dedos à volta do cabo — instruí. — Lâmina apontada para
longe de vós e inclinada para cima. Se tiverdes de atacar, não hesiteis.
Ela assentiu, com os olhos arregalados de medo. Senti-me culpada por a
deixar ali, mas estava a ficar sem tempo. Quando parti, virei-me para trás
para verificar se ela estava bem escondida. Então, afastei-me a correr até
sentir as pernas em chamas.
Segui a atração da gota-celeste até uma fenda estreita no sopé de uma
montanha. Sem receio dos perigos no interior, entrei pela abertura. Na
escuridão, o brilho vermelho da joia à minha cintura lançava uma luz
ameaçadora sobre as paredes. O ar húmido mal se movia, carregado de
bolor e podridão; engasguei-me quando me encheu os pulmões. Ao virar
uma esquina abrupta, tropecei no chão irregular e raspei a palma das mãos
ao cair.
Vozes chegaram até mim, vindas de longe. Baixei-me e rastejei pela
passagem estreita na direção do som, movendo-me mais depressa quando
avistei luz adiante. A passagem abria para uma saliência larga, para a qual
trepei, fitando a ampla câmara abaixo.
Senti um aperto no coração. Lá estava Liwei numa cadeira, preso com
as mesmas grilhetas que tinham usado para aprisionar a Princesa Fengmei.
Um fio de sangue escorria-lhe do cabelo para a cara. Um corte fundo
atravessava-lhe a testa, nódoas negras começavam a aparecer na cara. A sua
aura parecia diminuída, pulsando num ritmo errático. Contudo, mantinha a
cabeça erguida, como se estivesse sentado num trono, e não acorrentado a
uma cadeira. Observei os guardas e fiquei aliviada ao não encontrar entre
eles o estranho arqueiro. Ele sozinho teria sido um adversário formidável.
Teria sido morto pelos soldados celestiais antes de eles tombarem?
Uma aura chamou-me a atenção, muito mais forte do que as restantes,
poderosa e terrosa, estridente e dissonante. Não vinha dos soldados, tanto
quanto conseguia perceber, mas emanava antes da dama parada diante de
Liwei. Os seus olhos inclinados cintilavam num belo tom de bronze e a sua
pele, apesar de metade do rosto estar tapada por um véu fino, era branca
como neve acabada de cair. Peónias carmesim estavam bordadas no seu
vestido escarlate, desabrochando as pétalas sedosas para revelar estames
dourados. Um ramo de camélias estava preso à faixa na sua cintura. Quando
me acocorei na saliência de pedra, senti uma sugestão de fragrância floral,
enjoativamente doce com um leve toque de podridão.
— Usei uma pequena ave para apanhar um dragão. — A sua voz
exsudava satisfação. — Após todos os relatos das suas proezas, fiquei
desiludida com a facilidade com que caiu na minha armadilha, Vossa
Alteza.
Liwei cerrou o maxilar, contraindo os músculos como se estivesse a
debater-se com um inimigo invisível.
— Que correntes são estas? — protestou por fim.
— Um presente do Reino Infernal. Forjadas com metal do mundo
mortal, usando as artes proibidas pelo seu pai. — Observou então os
esforços de Liwei e acrescentou num tom entediado: — Pode debater-se à
vontade, mas a sua magia é inútil enquanto tiver essas correntes.
— Dama Hualing, porque está a fazer isto? Porquê aliar-se ao Reino
Infernal? — exigiu saber Liwei.
Dama Hualing, a Flor Imortal deposta? Pensava que ela partira da
floresta ou que desaparecera por algum ato maléfico. Nunca a imaginara a
viver naquelas cavernas escuras.
— Estava entre os imortais mais poderosos do reino, até optar por viver
em reclusão. Deseja mesmo trair o Domínio Imortal? — continuou Liwei,
numa voz calma, apesar do perigo.
Talvez esperasse ainda convencê-la pela razão. Ela riu-se, um som
amargo e sem alegria.
— Eu trair o reino? Acha mesmo que escolhi esta vida? Deixe-me
contar-lhe a história verdadeira, principezinho. Há muito tempo, o seu pai e
eu encontrávamo-nos nesta floresta. Ele casara-se recentemente com a sua
mãe, mas isso não o impedia de me cortejar.
Liwei tentou levantar-se da cadeira, mas dois guardas puxaram-no para
baixo, segurando-o pelos ombros.
Ela pareceu nem reparar, perdida nas suas memórias.
— Sempre que conseguia escapar, ele vinha até aqui. Ofereceu-me um
palácio no Reino Celestial. Eu recusei. Não era uma mera cortesã grata pela
sua atenção, mas uma das mais ilustres divindades em todo o domínio. —
Uma certa suavidade caiu-lhe sobre o rosto. — Numa noite de primavera,
quando as peónias estavam em flor, ele fez-me uma promessa. Que casaria
comigo, assim que tivesse poder suficiente para correr o risco de desagradar
ao Reino da Fénix, e erguer-me-ia ao nível da imperatriz.
Liwei abanou a cabeça, o sangue da sua ferida escorrendo-lhe pela cara.
— O meu pai nunca faria uma promessa tão imprudente.
— Os apaixonados fazem muitas vezes promessas que não podem
cumprir — asseverou ela. — Quando tudo isso chegou aos ouvidos da sua
mãe, ela fez-me uma visita, cuspindo ameaças e veneno. Antes de partir,
deu-me um presente.
A luz da caverna tremeluziu quando a Dama Hualing levantou o véu.
Na oval clássica do seu rosto, os lábios cheios eram de um vermelho
vibrante, o nariz delicadamente arqueado. As cicatrizes finas, uma em cada
lado da cara, intrigaram-me, tão ténues que mal se notavam.
O véu voltou a cair.
— As cicatrizes deixadas pelas Garras da Fénix nunca curam. Tenho de
viver com estas marcas odiosas para sempre.
Estremeci, lembrando-me dos dedais dourados afiados que cobriam os
dedos da imperatriz, que podiam facilmente cortar carne e osso. Mas, apesar
do que pensava a Dama Hualing, ela continuava linda. Era a crueldade da
sua expressão que me dava a volta ao estômago.
— Tem de haver uma explicação. E se foi um espírito que tomou o
aspeto da minha mãe? — protestou Liwei.
— Criança ignorante. Quem mais usa as Garras da Fénix? Quem mais
ameaçava eu, isolada como estava? — troçou ela. — Pior ainda, o seu pai, o
covarde desleal, abandonou-me. Num só golpe, fui privada da minha
beleza, traída pelo meu amor e exonerada do meu título. De tudo o que mais
prezava. Desde então, a minha vida tem sido uma miséria, mergulhada em
desgosto e arrependimento.
Quando ela estendeu os dedos para acariciar o rosto de Liwei, ele
afastou-se dela, tanto quanto os seus captores lhe permitiam.
— Por isso, é apenas adequado que eu prive aqueles que me torturaram
da única coisa a que dão valor. O seu filho. A pessoa mais amada por
aqueles que mais odeio.
— Dama Hualing, pense bem no que está a fazer. Isto é traição ao mais
alto nível. Vai ser expulsa do Domínio Imortal, perseguida pelos celestiais e
pelos nossos aliados. Vão cair sobre este sítio e...
A sua risada era estridente e irritante. Quando parou de rir, o seu sorriso
era o de uma raposa saciada.
— Não sou tola, Vossa Alteza. Não vou estar aqui quando me vierem
buscar. Assim que oferecer a sua força vital ao Rei Infernal, vou merecer a
sua gratidão eterna. Um presente de casamento, se lhe quiser chamar assim.
Talvez então ele consiga derrotar os seus malditos pais. Quando ele se
sentar no Trono Celestial, serei eu a sentar-me ao seu lado. Finalmente
imperatriz — gabou-se, erguendo um anel com uma ametista oval que
emitia uma luz malévola.
Ao avistar a joia, senti uma profunda repugnância, inexplicável e
estranha. E que quereria dizer acerca da força vital de Liwei?
Ele não demonstrou o mais pequeno sinal de medo.
— Dama Hualing, foi vítima de uma grave injustiça. Liberte-me e dou-
lhe a minha palavra de que investigarei o assunto. Qualquer mal que lhe
tenha sido feito será reparado. Não se deixe levar pelas promessas do Rei
Infernal. A perfídia dele não tem limites.
— Tal como a dos seus pais — vociferou ela, pressionando o anel
contra a testa de Liwei.
Liwei contraiu os músculos do pescoço e o seu rosto contorceu-se em
agonia. A ametista emitiu um brilho dourado e as pálpebras de o príncipe
estremeceram como as asas de uma traça aprisionada.
Algo quebrou dentro de mim. Não pensei. Consumida pela raiva, as
minhas mãos moveram-se de moto próprio, soltando uma flecha flamejante
que se cravou no braço da Dama Hualing. Ela soltou um grito e afastou a
mão de Liwei, enquanto os guardas acorriam em seu auxílio. Apontei uma
flecha às grilhetas de Liwei, tal como fizera às grilhetas da princesa. Mas a
raiva fez-me tremer demasiado e acertei na corrente entre os seus pulsos. As
grilhetas soltaram-se uma da outra e Liwei caiu ao chão. Moveu-se logo em
seguida, e o meu coração saltou no peito quando os olhos dele se abriram e
me fitaram, arregalados de choque e luminosos com... uma emoção que eu
não conseguia perceber. Antes que ele se conseguisse mover, os guardas
rodearam-no rapidamente, com escudos a reluzir no ar. Uma frieza
envolveu-me, o medo misturado com a raiva quando atirei sobre eles flecha
atrás de flecha, até que a barreira se quebrou e os guardas tombaram como
caules de arroz na colheita. Flechas e raios de magia eram arremessados na
minha direção. Atirei-me ao chão e rolei para longe do perigo. Estava a
cansar-me depressa; tinha de preservar a minha energia. A minha mente não
parava, tentando pensar numa forma de distrair a Dama Hualing e os
guardas para eu poder resgatar Liwei e fugir com ele. Mas então, o ar
pulsou com magia e um aroma intenso a terra e metal entrou-me pelas
narinas. Um musgo verde e brilhante cresceu sobre a parede de pedra,
espalhando-se pela saliência como água derramada, as raízes espinhosas a
cravarem-se fundo, abrindo fendas na rocha. Levantei-me num salto e
recuei com um escudo erguido, um instante antes de a saliência de pedra se
desfazer.
Caí pelo ar, despenhando-me pelo vazio. O grito de Liwei perfurou-me
os ouvidos, chamando o meu nome com um desespero agonizante. Abaixo,
a Dama Hualing gesticulou na minha direção, dissipando o meu escudo.
Sem proteção, os meus pés chocaram com o chão áspero da caverna e os
meus joelhos cederam quando caí à toa. Rolando para o lado, levantei-me
num salto e os soldados rodearam-me. Menos numerosos agora, mas mais
do que seria capaz de enfrentar sem ficar ferida. Amaldiçoei a temeridade
que me levou a revelar a minha posição. Teria sido bem melhor permanecer
escondida e apanhá-los de surpresa. Mas que mais poderia fazer com Liwei
sob um perigo tal? Quando os guardas avançaram de lança em riste,
invoquei a minha energia e libertei um vendaval que atirou a Dama Hualing
e os seus soldados contra as paredes de pedra.
Dando meia-volta, corri para Liwei, mas os soldados, os que restavam,
apressaram-se a rodeá-lo, alguns segurando-o com força. A Dama Hualing
aproximou-se de mim, com alfinetes cravejados de joias a pender à toa dos
anéis de cabelo. O véu voara-lhe do rosto e as cicatrizes destacavam-se na
palidez furiosa da sua pele.
— Quem se atreve a interferir? — A sua voz emanava ameaça.
Em resposta, puxei a corda do arco e apontei-lhe uma flecha flamejante.
— Pare ou ele morre — disse ela calmamente, gesticulando para um
soldado ao seu lado, que pressionou a ponta da lança contra o pescoço de
Liwei.
De imediato, forcei os dedos a largar a corda e a flecha flamejante
desapareceu. O olhar da Dama Hualing fixou-se no Arco de Fogo da Fénix
antes de deslizar até ao meu rosto.
— Ah... a arqueira. Arqueira-Mor, é assim que lhe chamam? Ouvi falar
dos seus feitos. — Soava curiosa. Até mesmo intrigada. — É uma pena que
as suas habilidades tenham sido desperdiçadas ao serviço do Reino
Celestial.
— Quem lhe falou de mim?
Não era convencida ao ponto de achar que a minha fama chegara a um
local tão remoto.
Ela não respondeu, apenas tamborilou no queixo, parecendo perdida em
pensamentos.
— O seu zelo na defesa do Príncipe Herdeiro é admirável, ao ponto de
se aventurar onde nada a espera a não ser a morte. Esqueça-o. Junte-se a nós
contra o Reino Celestial. O Reino Infernal recompensá-la-á bem. Qualquer
título, qualquer honra que queira será sua.
— Nunca.
A recusa brotou dos meus lábios, mas amaldiçoei-me de imediato por
ter revelado as minhas intenções. Uma estratégia mais sensata teria sido
fingir-me interessada pela sua oferta e ganhar a sua confiança, de forma a
ter uma hipótese de fugir. Mas essa sempre fora a minha fraqueza, a minha
incapacidade de pensar direito quando o coração estava perturbado.
Um sorriso lento surgiu-lhe nos lábios.
— Oh, isto é mais do que lealdade e dever, não é? — observou,
visivelmente deliciada. — Uma guerreira apaixonada por um membro da
realeza? O que poderia oferecer ao Príncipe Herdeiro, além da sua vida ao
seu serviço?
— Não sabe nada — criticou Liwei. — Xingyin, tens de sair daqui.
Agora.
Falou aquelas últimas palavras como um apelo, a voz a vibrar de
urgência. Mas se eu partisse, ele morreria. Sozinho.
— Ah, Vossa Alteza. Parece que a sua reputação não é tão honrada
como pensávamos — troçou a Dama Hualing. — Um romance com uma
plebeia com quem nunca se poderia casar. É mesmo filho do seu pai,
colhendo flores para seu próprio prazer e descartando-as quando começam a
murchar.
Virou-se então para mim, um olhar intenso e inquisitivo.
— Sabe que ele tem uma noiva? Uma noiva de sangue real, dotada de
beleza, poder e charme. Um prémio que ele arriscaria a vida para salvar, tal
como você sacrificaria a sua vida para o salvar.
Cada palavra sobre a Princesa Fengmei trespassava-me, tal como na
noite do noivado. Julgara-me acima de tais sentimentos, mas se podiam ser
ressuscitados tão facilmente... alguma vez me veria livre? Um pensamento
terrível passou pela minha mente, que talvez houvesse alguma verdade nas
suas palavras cruéis. Que eu fora ali para salvar Liwei, mas não alcançaria
nada, exceto a minha morte. E se eu morresse, o que aconteceria à minha
mãe? Nunca saberia do meu destino terrível, desperdiçando a eternidade
numa espera fútil, primeiro pelo meu pai, depois por mim. Porque
sacrifiquei tudo por alguém que me traiu, que talvez nunca me tenha
realmente amado?
Foi o brilho nos seus olhos que me fez parar para pensar. Ela provocara-
me bem, dando voz aos meus pensamentos mais cruéis, os que me
atormentavam à noite. Ela queria deixar-me com ciúmes, fazer-me duvidar
do meu valor. Permitir que o ódio deslizasse para dentro de mim e cravasse
as suas garras no meu coração. Respirei fundo, tentando controlar-me.
Precisava de a manter interessada, para ganhar tempo para um ataque ou
provocá-la a fazer algo imprudente. Não me atrevia a deixar que a sua
atenção regressasse a Liwei e às coisas vis que planeara para ele.
— Sim, estivemos juntos no passado — admiti hesitantemente. —
Agora, Sua Alteza e eu seguimos caminhos separados.
— A escolha foi sua ou dele?
Os seus lábios curvaram-se como se já soubesse a resposta.
Desviei o olhar, mais magoada pela pergunta do que esperara.
— A vida seria melhor sem amor — disse a Dama Hualing, com
sinceridade, como se eu fosse uma amiga de confiança. Como se eu fosse
igual a ela.
As suas palavras fizeram eco dentro de mim. Seria fechar o coração ao
amor, a todo o amor, o único caminho para o contentamento? Não o
imaginara eu mesma, durante aqueles longos meses de miséria? De facto, os
meus momentos mais sombrios foram quando abandonei os meus amados.
E, no entanto... também os meus momentos mais felizes foram passados
com eles. Mas não discordaria dela. Parecia acreditar que havia uma ligação
entre nós. Veria ela em mim uma parte de si mesma? Estremeci só de pensar
nisso, mas naquele momento tinha de avançar com cautela, de cultivar essa
ilusão para melhor a apanhar de surpresa.
— Talvez tenha razão — disse eu, deixando uma certa dureza penetrar
na minha voz. — O amor não me tem tratado bem.
— Nem a mim. — O peito da Dama Hualing arquejava. — Eu não pedi
o amor do imperador, mas ele seduziu-me com falsas promessas até eu lhe
retribuir o afeto. Quando me senti magoada e assustada, desejei o seu
conforto. Mas ele nunca regressou. Por causa dele, perdi tudo, até a
felicidade que sentia antes. Preferia que ele tivesse morrido a magoar-me
assim. Agora só quero vingar-me daqueles que me deixaram na desgraça.
Estremeci intimamente com a veemência daquelas palavras. Não
proferira uma maldição levada pela fúria, mas antes um desejo fervoroso
das profundezas do seu coração.
— Eles nunca vão mudar de ideias — continuou a Dama Hualing, num
tom baixo e íntimo. — A realeza celestial é orgulhosa, fria e inflexível. O
seu amor, uma vez perdido, não pode nunca ser recuperado. Pergunte-se
porque faz isto? Para ele poder acarinhar a sua memória depois de casar
com a sua princesa? Derramar uma lágrima sobre o seu túmulo? Que
agradecimento tão mesquinho para um sacrifício tão grande. Não
desperdice a sua vida.
Foi então que percebi, ela acreditava que as nossas situações eram
similares. Que também eu fora aprisionada num amor sem esperança; que
também eu fora posta de lado, e logo pelo filho do seu amante cruel. E que
as minhas ações eram uma tentativa desesperada de recuperar o que
perdera.
Cravei os dentes no lábio, mordendo com força até sentir na boca um
sabor a sal e ferro. Tal como ela, eu não procurara o amor. A minha vida era
completa sem ele. Contudo, apanhara-me de surpresa, insinuando-se nos
meus sentidos como um aroma subtil, até dar por mim a ver beleza numa
flor caída e encanto numa tempestade. Mas toda a alegria que me deu,
paguei-a dez vezes mais em mágoa. Mesmo quando achava que o meu
coração estava curado, as cicatrizes permaneciam, reabrindo ao mais
pequeno toque da sua mão.
Porque fazia eu aquilo? A pergunta voltava a ecoar na minha mente.
Sabia o perigo que corria quando segui o rasto de Liwei até ali, mas não
hesitei uma única vez. O meu único pensamento fora vir em seu auxílio. O
meu único receio fora pela sua segurança. Mas ela estava errada; eu não
estava a tentar reconquistá-lo. Teria sido por amizade, como dissera a mim
mesma? Ou por honra, para pagar uma dívida de bondade? A resposta
escapava-me, à espreita nos limites da minha mente.
Ergui o rosto, o meu olhar cruzou-se com o de Liwei... e então caiu-me
em cima com a força de um relâmpago. O que me esforçara por entender.
Aquilo a que tanto tentara resistir. Que temera saber porque essa revelação
podia ser o meu fim. Tantas palavras orgulhosas que lhe dissera, sobre
honra e dever. Mentiras, tudo mentiras.
Eu ainda amava Liwei.
Todo aquele tempo a dizer a mim mesma que os sentimentos por ele
eram um resquício do passado, o eco da nossa atração. O meu orgulho não
me deixava agarrar Liwei, ainda assim eu não o queria largar. Dissera-lhe
que se esquecesse de nós, quando eu própria era incapaz de o fazer. Sempre
que ele vinha ter comigo, uma parte secreta de mim regozijava-se por saber
que ele ainda me queria. A minha frieza para com ele era apenas uma
máscara para esconder os meus sentimentos, até de mim mesma, que o
amava ainda e nunca parara de o amar.
Aproximei-me de Liwei, agora quase a tremer. Os rostos dos soldados
confundiam-se com a paisagem de fundo; apenas via o príncipe. A custo,
exumei os segredos enterrados nas profundezas do meu coração. Se não lhe
dissesse agora, poderia não voltar a ter a oportunidade.
— Eu amo-te. — Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Lágrimas
que não tentaria esconder ou afastar. — Amei-te então. Amo-te ainda.
Tentei esquecer-te, esmagar esses sentimentos. Mas falhei.
Algo pesado soltou-se do meu peito e caiu, um fardo que não percebera
estar a carregar até àquele instante. Olhando para ele, perdi-me por um
momento no nosso passado. Apesar do ar estagnado daquela caverna
pútrida, quase conseguia sentir o doce perfume das flores de pessegueiro.
Obriguei-me a regressar ao presente, ao perigo atual. Os olhos de Liwei
fitavam os meus, os lábios afastados para falar, mas abanei a cabeça em
aviso. A Dama Hualing parecia siderada, o rosto iluminado pela
antecipação. Não fora daquilo mesmo que me acusara? Esperaria que Liwei
me rejeitasse? Que eu lhe fizesse companhia, amarga e destroçada? Ver-me
a virar contra Liwei satisfaria o seu desejo de vingança, validaria tudo o que
fizera, tudo em que se tomara, por causa do seu amor desprezado.
Não lhe daria essa satisfação. Não queria acabar como ela, afogada em
rancor e a ansiar por algo que não podia ter... até isso me destruir. Durante
as noites em que a minha dor atingiu o clímax, teria sido tão fácil deixar-me
afundar no ódio e no ressentimento. Contudo, por muito que o amasse,
amava-me ainda mais. E como começava a descobrir, o amor não tinha fim,
era algo que crescia e se renovava infinitamente, expandindo-se para
alcançar cada novo horizonte. Família. Amigos. E outros amantes também,
nenhum igual ao anterior, mas cada um precioso à sua própria maneira.
Falei para Liwei, erguendo a voz para ser ouvida.
— Não me arrependo de nada. Sempre acarinharei o que tivemos juntos.
Não sinto ciúmes da tua felicidade com outra e nunca desejaria a tua morte.
Aquele era o momento, podia não haver outro. Senti-me a contorcer-me
por dentro quando fitei o olhar furioso da Dama Hualing.
— Não somos iguais.
— Sua tola estúpida e sentimental.
Manchas vermelhas erguiam-se do rosto da Dama Hualing e os seus
olhos pareciam duas fendas. Estava agora a tremer, seria de desilusão ou
raiva?
Rápida como um relâmpago, ergui o arco, uma flecha flamejante nos
dedos. Atingi-a no peito com uma luz fulminante e ela cambaleou para trás,
um cheiro acre a carne e seda queimada a contaminar o ar. Mas então a sua
magia jorrou num fluxo cintilante e extinguiu as chamas com um silvo. Os
soldados atacaram-me, armas brilhantes à luz das tochas. Esquivei-me,
rodei para o lado e outra flecha voou dos meus dedos... apenas para atingir
o escudo que rodeava agora a Dama Hualing. Com um gesto dos dedos, um
cheiro terroso ergueu-se do solo, como folhas em decomposição numa
floresta. Gavinhas grossas brotaram, enrolando-se à volta da minha cintura
e prendendo-me contra o chão. Sangue escorria-me da cabeça quando me
tiraram o arco das mãos. Estendida no chão, tentei recuperar o fôlego
quando a ponta perlada de um chinelo de brocado levantou o meu rosto. A
Dama Hualing olhava para mim, os lábios retorcidos num sorriso cruel, um
rasgão queimado no vestido onde a minha flecha a atingira, mas a pele por
baixo estava macia, já curada.
Ela era forte. Eu falhara. E agora ela estava lívida.
— Que nobre da sua parte, amá-lo e libertá-lo para amar outra.
Acarinhar o passado e esquecer a dor. É assim tão altruísta, ao ponto de
arriscar a vida por um amor que já não é seu? — troçou, transformando a
minha confissão numa farsa. — Vamos ver como se aguentam os seus
princípios quando são verdadeiramente postos à prova.
Um guarda segurou-me pelo braço e pôs-me de pé. Dois outros
arrastaram Liwei até onde eu estava. As argolas de metal preto ainda lhe
rodeavam os pulsos, suprimindo o seu poder, e como me amaldiçoei por
falhar aquela primeira flecha. O olhar de Liwei nunca se afastou do meu.
Parecendo ignorar o perigo que corríamos, brilhavam com o carinho e a
ternura que recordava.
— Arriscou a sua vida por ele, mas será que ele fará o mesmo por si?
A sua voz transbordava de escárnio.
— Deixe-a partir. Não lhe resistirei — disse Liwei, sem um momento de
hesitação.
Uma alegria intensa vibrou nas minhas veias. Mesmo temendo o que
viria a seguir, que aquela declaração apenas a deixaria mais furiosa.
A sua boca estendeu-se num sorriso sem alegria.
— Esta noite, vamos ter entretenimento. Uma luta. Até à morte. Entre
vocês os dois. Se vencer, Arqueira-Mor, pode ir em liberdade. Até a deixo
ficar com o seu arco.
A doçura da sua voz chocava com o sentido odioso das suas palavras.
Não podia ter ouvido bem. Não estava a falar a sério; não podia estar a
falar a sério. Queria que Liwei e eu... lutássemos até à morte para nos
salvarmos? Seria uma piada doentia para nos assustar? Mas quando olhei
para o seu rosto, tão encantador e impiedoso, um arrepio percorreu-me a
espinha.
Aquilo não era um jogo.
Os olhos de Liwei pareciam em chamas.
— Não vou lutar contigo, Xingyin. Por favor... sai daqui.
Abanei a cabeça. Não o abandonaria a uma morte certa, nem mesmo
para me salvar.
A Dama Hualing soltou um suspiro.
— Caso se recusem a lutar, serão ambos mortos. Um final bastante
romântico, defender até ao fim os vossos honoráveis princípios, mas
também um desperdício irresponsável.
Um desespero profundo caiu sobre mim quando fitei o olhar lúgubre,
mas resoluto, de Liwei. Os nossos braços permaneceram tombados ao lado
do corpo, desafiando as suas ordens. Não seríamos peões no seu jogo
doentio. Nem eu me renderia pacificamente; lutaria até drenar toda a minha
energia, até ao nosso último fôlego. Só então poderia ela arrancar a sua
vitória sangrenta das nossas mãos sem vida.
A Dama Hualing estalou a língua contra o céu da boca.
— Que desilusão. Estava à espera de um entretenimento mais animado.
Contudo, há formas de garantir a vossa cooperação.
O seu escudo cintilou quando se aproximou de Liwei, agarrando-lhe o
queixo com os dedos, as unhas a cortar-lhe a pele.
Ele tentou afastar-se, com uma expressão de horror no rosto. Contudo,
ela segurou-o com força e os soldados apertaram-lhe os braços atrás das
costas.
— Liwei!
Corri para ele, tentando passar pelos guardas, que me agarraram e
empurraram para trás.
As pupilas da Dama Hualing cintilavam como fragmentos de topázio.
Uma memória surgiu na minha mente, algo que Liwei me dissera sobre os
Talentos da Mente: Os seus olhos, que cintilam como joias lapidadas.
O medo tomou conta de mim, seguido de perto pela dúvida. Recusava-
me a acreditar, não me atrevia. A Dama Hualing era do Reino Celestial, não
do Reino Infernal, da Muralha Nebulosa ou lá como se chamava aquele
sítio. Outrora a Flor Imortal, o seu talento devia ser da Terra, não da Mente.
Eu própria testemunhara o seu poder, o musgo rastejante e as gavinhas
monstruosas. Era impossível que ela conhecesse a magia proibida. E mesmo
que conhecesse, certamente o imperador tê-la-ia reprimido. E se o
imperador não soubesse? E se ela tivesse desaparecido antes de tal magia
ser banida?
Gotas de suor brilhavam na pele de Liwei. Mesmo assim, a Dama
Hualing não o largou. Não conseguia parar de pensar que ela era um dos
imortais mais poderosos em todo o domínio. E mesmo se a magia de Liwei
não estivesse suprimida, ele fora enfraquecido pelo combate e pelo anel de
ametista. Se ela estava a tentar controlá-lo, falharia de certeza, tentei
reassegurar-me. Liwei também era forte. Ele não cederia, ele lutaria...
Mas quando a Dama Hualing e os seus guardas o soltaram, já não o
reconhecia. Algo vital se perdera nele.
Estremeci por dentro ao fitar-lhe os olhos. Pior do que o olhar de um
desconhecido, eram frios como os olhos do pai. Ficou imóvel, com um
rosto inexpressivo, até quando um guarda lhe pôs uma espada na mão.
Alguém me estendeu outra espada e os meus dedos fecharam-se
instintivamente à volta do punho.
Quando a Dama Hualing se debruçou para mim, quase me engasguei
com o cheiro a flores em decomposição que me inundou as narinas.
— Já se arrependeu de ter rejeitado a minha oferta? Um último aviso:
não seja tonta ao ponto de sacrificar a sua vida por ele. Ele não lhe vai dar
valor; os homens desta família têm corações empedernidos.
Sem hesitar, saltei para a frente e apontei-lhe uma estocada. Quando a
espada chocou com o seu escudo, dor percorreu-me o braço. Voltei a erguer
a espada, era preferível morrer a lutar, mas os soldados empurraram-me
para o lado e um pontapeou-me atrás dos joelhos para me deitar ao chão.
A Dama Hualing baixou-se e passou um dedo gelado pelo meu rosto.
Estremeci e afastei-me do seu toque.
— Não se esqueça de que ainda tem os seus poderes — falou num
sussurro íntimo. — Se deixar que ele a mate... bom, a vida dele está perdida
de qualquer maneira. Mas se o matar, pode partir em liberdade.
Algo quebrou dentro de mim. Uma escolha impossível, morrer num
sacrifício fútil ou matar Liwei para me salvar. Mais do que querer ver Liwei
morto, ela queria que fosse eu a matá-lo. Sentiria um prazer sádico em
atormentar o filho do seu inimigo? Apreciaria a ideia de me condenar a uma
vida de miséria e arrependimento, como a dela? Ou quereria apenas provar
que eu estava errada? Que, apesar dos meus protestos, eu e ela não éramos
assim tão diferentes, que a mesma crueldade que vivia no seu coração
espreitava também no meu?
Oh, eu provocara-a demasiado bem, e agora ambos pagaríamos por isso.
A Dama Hualing bateu palmas, o som oco ecoou na caverna. Como se
fosse um sinal, o corpo de Liwei estremeceu e começou a andar para mim.
De espada em punho, começou a rodear-me, numa paródia cruel das muitas
vezes que me desafiara para um treino.
Não me conseguia mover, incapaz de desviar a atenção do seu olhar sem
vida. Mesmo naquele momento, não conseguia acreditar que ele me fizesse
mal. Apesar de eu própria quase ter sido controlada no Mar do Leste e ter
visto do que era capaz apenas uma fração daquele poder.
Então atacou-me, rápido como um relâmpago. Atordoada, ergui a
espada, um segundo tarde de mais, e a sua lâmina deixou-me um corte na
cara. Sangue escorria do golpe doloroso, mas isso não era nada comparado
com a agonia dentro de mim. Porque ele olhava para mim, não com ódio,
mas com indiferença.
Um brilho metálico, duro e intenso. O meu corpo moveu-se de moto
próprio, erguendo um braço, e as nossas lâminas chocaram. Ele
pressionava-me sem misericórdia e cambaleei sob a força do golpe,
afincando os calcanhares no chão. Numa simulação súbita, ele rodou para o
lado. Desequilibrei-me para a frente e a sua espada correu sobre as escamas
da minha armadura, atingindo-me no ombro. Ferro frio cortou-me a carne
até ao osso. Um puxão suave do braço e a lâmina saiu do meu corpo com
um som húmido. Um arquejo de ar saiu-me dos pulmões e pressionei a
ferida com uma mão, sangue a escorrer-me pelos dedos. O meu corpo foi
percorrido por uma onda de raiva, embora a culpa não fosse dele, e golpeei-
o. A minha lâmina penetrou-lhe a armadura e cravou-se no seu flanco.
Puxei imediatamente a espada, antes que fosse fundo de mais, atormentada
por vergonha e remorso... juntamente com horror por ele nem sequer ter
estremecido.
As nossas espadas chocaram. Uma e outra vez. Contive-me a cada
ataque, apesar de ele não mostrar o mesmo comedimento. Contudo,
estávamos mais equilibrados do que eu esperara. Ele sempre fora o melhor
espadachim, mas eu tinha o benefício do treino de um soldado. Eu era
rápida, ele era forte. Os meus ataques eram hábeis, os seus eram
implacáveis. A magia ter-lhe-ia dado vantagem, mas estava suprimida. E
dei por mim relutante em usar a minha magia contra ele. Era uma distinção
mínima, mas usar os meus poderes contra ele parecia ser uma execução. Até
mesmo injusto. A minha mente protestava, para que servia tal honra,
mesmo quando o meu coração sussurrava que não era Liwei quem me
atacava tão impiedosamente, apenas a concha vazia do seu corpo, com outra
vontade a puxar-lhe os fios. Era meu adversário, mas não era meu inimigo.
E apesar de querer ganhar, não o queria matar. Não era apenas a honra que
me impedia, mas também um instinto de sobrevivência, sabendo que matar
o meu amado também me destruiria. Jamais conseguiria recuperar, nunca
em toda a eternidade. Nem mesmo se encontrasse o caminho de volta para o
lar.
O meu pé prendeu-se numa pedra solta e caí. Num instante, a ponta de
Liwei pressionou-me o pescoço. Parou então, contraindo um músculo na
cara. Estaria a resistir ao controlo da Dama Hualing? Olhei para ela, uma
luz ofuscante a verter-lhe dos olhos, a testa coberta por uma camada de
suor. Estaria a cansar-se? Esperança brilhou dentro de mim, apenas para ser
extinta quando a mão de Liwei tremeu, um momento antes de cravar a
espada no meu peito. Arquejei e perdi a força nas pernas ao cair para o chão
de pedra, afundando numa poça do meu sangue ainda quente.
A escuridão chamava por mim, um vácuo misericordioso sem a dor que
percorria o meu corpo, eclipsada apenas pela agonia de saber que fora ele a
fazer aquilo. Uma memória esquecida despertou em mim. Os braços da
minha mãe a erguerem-me do sítio onde caíra, limpando-me uma lágrima
com o polegar. Como doera a perna arranhada, a minha primeira ferida a
sério, até o seu toque frio e murmúrios suaves terem aliviado a dor.
Aquilo não seria o fim.
Abri os olhos. Invoquei um fragmento precioso de poder e selei a ferida.
Os curandeiros teriam ficado arrepiados com o meu trabalho tosco, com a
cicatriz que deixaria, mas a dor dissipou-se e a hemorragia estancou. Com a
mente um pouco mais clara, levantei-me a custo, procurando no rosto de
Liwei o mais pequeno sinal de reconhecimento. Contudo, não encontrei
nada; nem um vislumbre de amor nem uma réstia de remorso. E nesse
momento, algo se tomou claro para mim: não deitaria fora a minha vida.
Não seria derrotada por mim nem por mais ninguém. Lutaria pela vida e
enquanto houvesse vida haveria esperança. Para agarrar a oportunidade de
sobrevivermos, arriscaria tudo. Até mesmo as nossas vidas.
A minha energia estava a diminuir. Invoquei tanto quanto consegui, o ar
a tremeluzir enquanto arremessava a minha magia contra Liwei. Correntes
de ar envolveram-lhe o corpo, atirando-o ao chão, selando-lhe os ouvidos, o
nariz, a boca e as pálpebras. Cobrindo cada pedaço da sua pele até não ser
capaz de fazer mais nada a não ser ficar ali deitado, como um animal numa
armadilha. Se o seu poder não estivesse suprimido, nunca teria conseguido
prendê-lo assim.
O riso deliciado da Dama Hualing ecoou nos meus ouvidos. Não era
aquele o espetáculo que nos forçara a desempenhar? Teria sonhado com
infligir um tal tormento ao seu próprio amante desleal?
Preso no casulo de ar em que o sepultei, Liwei estava mais pálido do
que a neve. Aflita, contive o impulso de o libertar. Mas estava determinada;
já não podia parar. O meu poder fluiu, assentando sobre cada poro de sua
pele, até ele cintilar com milhares de luzes prateadas, como se estivesse
coberto de pó de estrelas. Se me tivessem arrancado o coração do corpo,
não teria sofrido mais; a dor perdeu todo o sentido.
Por fim, Liwei parou de se debater e o seu corpo ficou imóvel, o pulsar
regular da sua aura cada vez mais fraco, até deixar de o sentir. Só então
parei. Tinha os olhos secos, apesar de interiormente ter chorado um rio.
Como me sentia miserável, partida e rasgada e ferida, mas recusava-me a ir
abaixo. Deixando-me cair ao chão, os meus dedos procuraram a mão fria de
Liwei, pressionando as nossas mãos uma contra a outra.
— Desculpa — disse-lhe num sussurro rouco. — Perdoa-me.
Um aplauso forte ecoou pela caverna, chocando com o meu desespero.
Foi então que ganhei consciência da coisa vil e indescritível que fizera. A
Dama Hualing queria magoar quem lhe fizera mal, mas eu abatera a única
pessoa que ainda amava. À luz fria da vitória, seriam vazios os meus
motivos? Disfarçando apenas o meu desejo egoísta de viver?
Perdi o controlo. Afastei-me de Liwei, como se ele queimasse; não
merecia tocar-lhe. Não depois daquilo, depois do que lhe fizera. Apertando
o corpo com os braços, vomitei até o meu estômago se fechar em protesto.
Soluços de choro rasgavam-me a garganta, feios e ferozes, ecoando no
silêncio terrível.
Mas ainda não acabara. Não podia deixar que tudo aquilo fosse em vão.
Reunindo as últimas réstias de dignidade, levantei-me com esforço.
— O meu arco — disse calmamente para a Dama Hualing.
Ela inclinou a cabeça.
— Dei a minha palavra. E a minha oferta mantém-se. O Rei Infernal
ficaria agradado por a ter a seu lado. Uma mente sagaz, um braço forte e
uma vontade determinada. Alguém que faz o que precisa de ser feito,
quando chega a hora.
Estremeci com aquele elogio, esperando que ela encarasse isso como
cansaço, não como repugnância. Nunca me imaginara uma pessoa
sanguinária, mas naquele momento tê-la-ia matado com alegria. Contudo,
ela não me mentira. As minhas mãos estavam manchadas com o sangue de
Liwei; a escolha de lhe fazer mal fora minha.
— Tinha razão — disse eu, tentando iludi-la com um falso sentimento
de segurança. — Não faz sentido morrer por uma questão de princípio. E
vou ponderar a sua proposta, mas apenas porque o Reino Celestial não me
vai querer de volta depois disto.
Quando a Dama Hualing assentiu, um guarda atirou-me o Arco do Fogo
de Fénix. Quando o agarrei, uma memória surgiu na minha mente, da
primeira vez que o segurei no pomar de pessegueiros em flor. Numa outra
vida, quando eu ainda estava inteira. Virei-me para trás, cambaleando de
novo para ele. Morto e acorrentado, continuava a ser o príncipe imperial da
cabeça aos pés. Como rezei para que o nosso tormento acabasse
rapidamente.
— Libertem-no.
Apontei para as grilhetas. Vê-las deixava-me furiosa para lá do que era
suportável. Fá-lo-ia eu própria, mas não queria levantar suspeitas.
— Porquê? — perguntou ela.
Olhei-a nos olhos.
— Fiz o que queria que fizesse, apesar de me ter custado imensamente.
O Príncipe Liwei deve ser sepultado com toda a cerimónia que merece. Eu
farei o último serviço de devolver o corpo aos seus pais, mas não o vou
levar agrilhoado como um escravo. Além disso, quer que isto caia nas mãos
do Reino Celestial? — Gesticulei para o metal que lhe rodeava os pulsos.
Quando ela não falou, franzi a testa.
— Não quer que Suas Majestades Imperiais saibam o que fez ao seu
filho?
— O que a Arqueira-Mor fez — troçou ela com uma crueldade
requintada. — Agradar-me-ia que o corpo fosse entregue por si. Só desejava
poder lá estar para ver.
Meneou então a cabeça para um soldado, que se apressou para a frente.
O soldado premiu algo contra as grilhetas, que caíram, chocalhando no
chão. Sem perder tempo, pus o braço de Liwei sobre o meu ombro para o
levar embora.
— Espere.
A Dama Hualing aproximou-se, o anel de ametista a reluzir-lhe no dedo.
— Tenho de lhe drenar a força vital, está a esvair-se depressa. Vai ser
mais rápido agora, sem as correntes.
A minha respiração acelerou e tentei acalmar-me. Não permitiria que ela
o profanasse mais. Quando ela estendeu a mão para Liwei, invoquei a
minha energia, preparando-me para a soltar... mas o ar aqueceu e uma força
poderosa arremessou a Dama Hualing para longe. Ela bateu contra a parede
e o seu escudo dissipou-se quando faixas de fogo a prenderam. Virei-me
para trás e deparei-me com Liwei, erguendo-se a custo, a ponta da espada a
raspar no chão. Quando três soldados o atacaram, brandiu a espada num
arco largo e o golpe lançou-os pelo ar. Um guarda correu para mim de lança
em riste e abati-o com uma flecha rápida no peito.
Estava a tremer, com o coração ao rubro. Não fora mais do que um
palpite, baseado no pouco que sabia. No Mar do Leste, selara a audição para
combater a influência do Governador Renyu, mas a sua magia era
transmitida apenas pela voz, e isso não teria funcionado ali. Contudo, o
governador mencionara que a morte era a única libertação daqueles
controlados por tal poder. Por isso, para quebrar o controlo da Dama
Hualing sobre Liwei, selei todos os seus sentidos, deixando-o às portas da
morte. Se tivesse falhado, ele teria morrido ou ter-me-ia matado. E ambos
teríamos perecido para nada.
Quando, depois, lhe segurei a mão, canalizei para ele alguma da minha
energia. O máximo que conseguia sem levantar suspeitas. Eu não era
curandeira e só podia rezar que fosse suficiente. Nunca poderia arriscar a
vida dele só para salvar a minha. Mas fizera-o para nos salvar a ambos.
Esperara que, se Liwei parecesse morto, a Dama Hualing me deixasse
levá-lo. E quase funcionou. Mas exultei cedo de mais; ainda não estávamos
fora de perigo. Demasiado tarde, senti-a a reunir o seu poder. Com um só
golpe, a Dama Hualing dissipou as faixas de fogo que a prendiam e puxou
gavinhas para fora do solo, enrolando-as à volta de mim e de Liwei,
apertando-me o peito até não conseguir respirar, estrangulando-me os
membros até deixar de os sentir. Antes que eu começasse a desesperar, a
magia de Liwei irradiou em redor, queimando as plantas.
A Dama Hualing voltou a erguer as mãos. O cheiro húmido a terra
tornou-se forte e o ar cintilou com a sua magia. Ergui uma barreira e Liwei
reforçou-a com o seu poder. Eu não conseguia lutar sozinha com ela,
contudo, juntos tínhamos uma hipótese. A sua energia estralejou quando
nos atingiu, transformando-se em gavinhas infinitas que emitiam uma luz
sinistra enquanto se contorciam contra o nosso escudo. Suor escorria-me
pela testa enquanto tentava imaginar o que procurariam com uma fome tão
voraz.
O meu esforço não lhe passou despercebido. Os lábios vermelhos da
Dama Hualing curvaram-se para cima à medida que a pressão esmagadora
sobre o nosso escudo se intensificava. As trepadeiras contorciam-se com
um vigor renovado. O tempo não estava do nosso lado; sentia-me exausta e
as forças de Liwei também deviam estar a diminuir. Em breve tombaríamos,
fosse pela fadiga, fosse pelo encantamento malévolo da Dama Hualing, ou
às mãos dos soldados à nossa volta, cujos rostos se iluminavam em
antecipação.
Não, eu não abdicaria assim tão facilmente das nossas vidas. Um plano
formou-se na minha mente, louco e imprudente, mas o mais pequeno
vislumbre de esperança era preferível à morte certa. O meu olhar encontrou
o de Liwei e enunciei-lhe em silêncio que mantivesse firme o escudo. Ele
assentiu, acusando o esforço quando passou a sustentar sozinho a nossa
barreira. Reuni as últimas réstias da minha energia numa esfera brilhante
pouco maior do que um berlinde e arremessei-o para atingir o escudo de
Liwei do lado de dentro. O escudo estalou, mas a trama de trepadeiras
segurou-o. Cerrei os dentes e um silvo de ar escapou-me dos lábios. O aviso
severo da Mestra Daoming sobre não esgotar o meu poder ecoava-me na
mente, mas não podia parar. A minha cabeça latejava quando tirei de mim
as últimas faíscas de luz e lancei-as para fora numa rajada de vento.
O nosso escudo desfez-se e a força arremessou para longe as trepadeiras
da Dama Hualing, para cima do seu corpo, dos soldados em fuga, do teto e
das paredes, onde ficaram como se tivessem criado raízes. Fendas
percorreram a caverna, a pedra a gemer e a tremer.
Tombei para o chão, oca como uma lanterna de papel pisada por um pé
descuidado. Tremia, não pelo frio da caverna, mas pelo gelo que me
percorria os membros. Sentia as pálpebras pesadas, desejosas de se
fecharem, de se renderem à escuridão que se espalhava pelo meu corpo.
Tudo ficou difuso, até já não saber se estava viva ou presa num sonho sem
fim.
Luzes rodopiaram no ar com um brilho dourado, a magia de Liwei a
fluir para o meu corpo alquebrado. As luzes mergulharam no negrume, mas
não se extinguiram, como a luz do sol a cintilar sobre o mar noturno.
Irradiaram até ao núcleo da minha força vital, enterrada no fundo da minha
cabeça, invocando uma única faúlha prateada, a minha última energia. O
frio dentro de mim recuou, a minha força de regresso quando despertei e
deparei com os dedos de Liwei entrelaçados nos meus, ambos deitados no
chão.
Os olhos da Dama Hualing estavam vidrados, a sua boca aberta num
grito sem som. O seu corpo contorcia-se sob as gavinhas que se enrolavam
à sua volta num abraço estrangulador. Cada vez mais apertadas, rasgando a
seda do vestido, espremendo a carne até ficar vermelha e roxa. Engoli a
bílis que me veio à boca, vendo os seus esforços a enfraquecerem, as
camélias que trazia à cintura a ficarem murchas, as peónias de seda no seu
vestido agora castanhas e rotas. A luz apagou-se nos seus olhos e a
amargura desapareceu-lhe do rosto... até restar apenas a sua beleza fria.
Podia ter ficado ali até a lua crescer e minguar, incapaz de invocar a
força para me levantar. Mas a caverna estremeceu com mais força do que
antes. Pedras caíam de cima quando Liwei me pôs de pé, os meus músculos
doridos enquanto corríamos para a entrada. Um pedaço de pedra atingiu-me
nas costas e deitou-me ao chão. Nuvens de pó tombavam do teto fraturado,
a derrocar. Precisamente quando Liwei invocou um vendaval que nos levou
para a entrada, a caverna colapsou atrás de nós com um rugido
ensurdecedor.
O solo firme oferecia escasso alívio ao meu corpo massacrado. Não me
conseguia mover, deitada na terra como se estivesse presa ao chão. Uma
respiração ofegante e depois outra escapou dos meus pulmões. Os olhos de
Liwei estavam abertos, a fitar os meus. Quando a cor regressou ao seu
rosto, o meu medo recuou. Então, ele estendeu-me a mão e segurou-me o
rosto, molhado com lágrimas que não me recordava de ter chorado.
Sorri, contente por sentir o seu calor. Não tinha mais palavras; dissera
tudo o que trazia no coração.
O brilho luminoso da lua lançava um encanto sobre a floresta. À luz
pálida, as árvores mortas reluziam como colunas polidas de prata e jade. O
nevoeiro desaparecera, disperso pelo vento noturno. Teria sido invocado
pela Dama Hualing para se esconder do mundo?
Folhas restolharam, ramos estalaram. Virámo-nos quando a Princesa
Fengmei emergiu da floresta. Com um grito de alegria, correu para Liwei e
abraçou-o. Os olhos dele precipitaram-se na minha direção, a sua mão
hesitante antes de a abraçar.
Sentei-me com esforço, desviando o olhar do seu reencontro, mas os
seus sussurros trespassavam-me os ouvidos. Por fim, a Princesa Fengmei
tocou-me no braço.
— Escondi-me onde me disse, até ouvir um estrondo forte. Depois de
me escrutinar, levou uma mão à boca. — Está bem?
Eu devia ser uma visão medonha, coberta de sangue, nódoas negras e
sujidade. Mas a sua preocupação tocou-me.
— Vou ficar, quando Vossa Alteza nos levar de volta para o Reino
Celestial.
O sorriso da Princesa Fengmei vacilou quando olhou para Liwei. A sua
expressão era inescrutável, mas os olhos eram lagoas profundas nas quais
eu corria o risco de me afogar se os fitasse por demasiado tempo. O olhar da
princesa recaiu sobre a gota-celeste que o príncipe trazia à cintura. Olhou
então para a gota-celeste que pendia do meu cinto, agora translúcida de
novo.
— Joias a condizer.
A sua voz era suave como uma brisa num prado. Um impulso
inexplicável de explicar tomou conta de mim, apesar de ela não ter
perguntado nada.
— Um presente de amizade — disse-lhe.
Ela não respondeu, ficando em silêncio enquanto Liwei se levantava e
me estendia a mão. Segurei-a e levantei-me com esforço, combatendo o
impulso de o abraçar, de me deliciar com a sensação da sua pele contra a
minha. Quando ele ajudou a Princesa Fengmei a levantar-se, apressei-me à
frente deles. Não queria intrometer-me nem era suficientemente forte para
suportar a visão do seu braço protetor sobre os ombros dela. Não quando o
meu coração ainda sofria depois de tudo por que passáramos. Depois de
tudo o que confessara, tanto a mim como a ele.
Dirigindo-me para norte, abri caminho através das árvores, para lá da
floresta, na direção do odor de erva viçosa e flores silvestres. Inalei
profundamente, deliciando-me com a frescura do ar. A magia da Princesa
Fengmei irrompeu pelo ar, invocando uma nuvem grande que desceu na
nossa direção. Subi para a nuvem, ansiosa por abandonar aquele cemitério
de sonhos destroçados. Agora que tudo terminara, sentia piedade ao pensar
no destino da Dama Hualing, um final trágico para uma imortal tão ilustre.
Lembrei-me também da minha mãe, a sofrer pelo meu pai, a viver metade
da sua vida na sombra, enterrada em memórias e arrependimento.
Não, não faria as mesmas escolhas que elas. Não ansiaria pelo que
perdera, impossível de recuperar. Olharia para os dias vindouros, para a
felicidade que me esperava... se tivesse a coragem e a firmeza de a alcançar.
A luz do sol cintilava através dos pilares de cristal, lançando centenas
de pequenos arco-íris sobre as lajes esculpidas. Quando uma brisa fresca
soprou pelo Salão da Luz Oriental, as cortinas de contas de jade atrás dos
tronos tilintaram suavemente. Naquele dia, toda a corte estava presente, o
peso de todos esses olhares sobre mim quando me ajoelhei no chão.
Estendendo os braços, dobrei o corpo até ficar com a testa e a palma das
mãos encostadas ao chão, em homenagem formal ao Imperador e à
Imperatriz Celestial.
— Erga-se — entoou o imperador.
Lentamente, estiquei as pernas e ergui a cabeça para os tronos. Suas
Majestades Celestiais estavam resplandecentes em brocado amarelo-
imperial. Pérolas lustrosas pendiam da coroa do imperador e um toucado de
ouro e rubis com a forma das asas de uma fénix repousava no cabelo da
imperatriz. Ao seu lado erguia-se Liwei. O seu quimono de gola alta em
brocado azul-escuro estava bordado com garças douradas entre nuvens
brancas. Elos de jade cingiam-lhe a cintura e trazia uma coroa de safiras
sobre o nó no cabelo.
Fitei o seu rosto, aliviada por não encontrar o mais pequeno sinal dos
ferimentos que sofrera na Floresta da Primavera Eterna. Sentira-me
demasiado nervosa para o procurar antes. Até mesmo receosa. Naquela
caverna húmida onde a morte nos visitara, expusera-lhe o meu coração.
Apesar de cada palavra ser sincera, à luz do dia e sem perigo a pairar sobre
nós, a memória da minha ousadia mortificava-me. Mas não me arrependia
de nada. Compreendia agora que, antes de enfrentar o futuro, tinha de me
soltar das amarras do passado.
Olhei para Wenzhi, parado a um dos lados do salão. Ele acenou
reconfortantemente quando lhe sorri, encorajada pela memória dos cuidados
que tivera comigo desde o meu regresso, ordenando aos curandeiros que
tratassem de mim, trazendo-me medicamentos e ervas raras para acelerar a
minha recuperação. A sua presença constante levou ao rubro os rumores
que nos rodeavam. Mas depois de tudo o que sofrera, não queria saber o que
diziam as línguas ociosas. E já não podia alegar que eram apenas rumores.
Os lábios da Imperatriz Celestial estavam franzidos, como se tivesse
trincado uma nêspera pouco madura. Já os olhos de Liwei tinham um brilho
tal que era difícil para mim desviar o olhar. Atrás de mim, sussurros
pairavam no ar, o meu nome repetido em tons murmurados. Eu não era a
única que se interrogava sobre porque fora chamada.
O Imperador Celestial falou então.
— Arqueira-Mor, prestou um grande serviço ao nosso reino. Sem a sua
ajuda, o nosso filho teria perecido. Ele falou extensamente dos seus feitos.
A Princesa Fengmei também expressou a sua gratidão pelo seu salvamento.
Elogiamos a sua coragem e valentia, e agradecemos-lhe pela proteção do
nosso filho e da sua noiva.
Com um sorriso tenso, fiz uma vénia de agradecimento. Um elogio tal
vindo do Imperador Celestial era mais raro do que a lua eclipsar o sol.
Contudo, apesar das palavras, o seu rosto permanecia frio e impassível. Se
sentia alívio pela fuga do filho ou choque com a morte da Dama Hualing,
não lhe vi no rosto o mais pequeno sinal.
— Arqueira-Mor Xingyin, ouça a minha vontade.
Como era estranho ouvir o meu nome falado pelo imperador. O meu
corpo ficou tenso quando um silêncio envolveu a corte como um manto de
neve. Algo tilintou e exclamações ergueram-se no ar. Olhei para cima e vi
que o Imperador Celestial estendera a mão para mim, uma placa oblonga de
jade vermelho pousada na palma da sua mão.
— Concedo-lhe o Talismã do Leão Carmesim. Fez então uma pausa,
deixando que todos entendessem bem as suas palavras. — Peça um favor
para si e será concedido, dentro das nossas capacidades.
Um servo correu até ao imperador segurando um tabuleiro de lacre
preto. O imperador pousou o talismã no tabuleiro e o servo caminhou na
minha direção com passos lentos, parando diante de mim para me oferecer
o tabuleiro. Sentia as mãos rígidas quando peguei na placa de jade, fitando-
a com espanto. Um leão estava gravado no centro, os olhos bulbosos e a
juba frisada esculpidos com detalhe requintado. Da base pendia uma borla
espessa de seda dourada.
A voz do imperador ribombava pelo salão, mas captei apenas pedaços
das suas palavras. O meu coração batia com tanta força que temia que
rebentasse. Ouvira corretamente? Seria isto mesmo o Talismã do Leão
Carmesim? O imperador falou tão calmamente, como se estivesse a fazer
uma doação de terras ou a oferecer uma arca de ouro. Como se aquilo não
fosse a concretização do meu maior desejo, do qual quase desistira!
Erguendo o olhar, deparei com o imperador a olhar para mim com
expectativa. Esperaria lágrimas de alegria ou proclamações de gratidão
eterna? Não contava certamente com aquele silêncio imenso; a trepidação
súbita roubara-me a voz. Só tinha um desejo... e não era um desejo que lhe
agradaria.
— Precisa de tempo para pensar?
A sua voz tinha um tom áspero, talvez de impaciência. Ou seria um
aviso para não me exceder?
Fui tomada pelo receio de perder aquela oportunidade. As palavras
escaparam-me da garganta, voaram como uma exclamação estrangulada:
-A minha mãe!
Silêncio percorreu a multidão. Respirando tremulamente, tentei acalmar
os meus nervos em franja.
— O meu desejo é que liberteis a minha mãe, Vossa Majestade.
Falei lentamente dessa vez, o mais claramente que pude. Os olhos da
imperatriz curvaram-se como as garras de um predador.
— A sua mãe? Quem é a sua mãe?
A malícia na sua voz fez-me hesitar. O meu desejo podia certamente
incitar a fúria de ambos. Suas Majestades Celestiais detestariam passar por
tolos, enganados pela débil Deusa da Lua durante todos esses anos. E se
revelasse tudo e eles negassem o meu pedido, infligindo-lhe um castigo
ainda mais pesado?
Caí de joelhos no chão e baixei a cabeça.
— Vossa Majestade Celestial, a minha mãe não me pediu que fizesse
isto. Foi tudo da minha autoria. Peço-vos humildemente a vossa garantia de
que não será punida pelos meus atos ou por tudo o mais que revelar hoje.
— Como se atreve a fazer-nos exigências? — exclamou a imperatriz.
O ar ficou pesado com uma frieza súbita. Se eu fosse uma suplicante
normal, o imperador podia ter-me condenado à prisão, ou pior, pela minha
temeridade. Contudo, o jade que segurava na mão recordava-me de que eu
merecera o direito de falar ali com o meu sangue, o meu suor e as minhas
lágrimas.
— Muito bem — disse o imperador num tom gélido. — Tem a minha
palavra de que a sua mãe ficará a salvo. Contudo, essa proteção não se
estende a si, se descobrirmos que nos ofendeu de alguma forma. Terá de
responder pelas suas ações.
A ameaça abalou a minha coragem. Fui tomada por uma vontade de
fugir, de desaparecer nas sombras e ser esquecida. Apesar de estarmos
separadas, por enquanto a minha mãe e eu estávamos seguras. Ilesas.
Estaria a ser gananciosa, a desejar mais do que devia? Mas lembrei-me de
algo que Wenzhi me dissera, quando, como hoje, estive ali diante dos tronos
de jade.
Quando as linhas de batalha ficam traçadas, avança com clareza de
pensamento.
Eu conseguira; eu ganhara o talismã. Nunca mais teria uma
oportunidade assim. Não seria uma covarde agora, não depois de tudo o que
fizera para ali chegar. Uma vaga de emoção percorreu o meu corpo quando
encontrei as palavras aninhadas no fundo do meu coração, as palavras que
sussurrara a mim mesma todas as noites antes de dormir, antes de acordar a
cada alvorada.
— A minha mãe é Chang’e. Sou filha da Deusa da Lua.
Os sussurros começaram, burburinhos ténues davam lugar a arquejos,
murmúrios fervilhantes acompanhados pelo arrastar de pés nervosos. Liwei
arregalou os olhos e cerrou o maxilar, os lábios de Wenzhi formaram uma
linha apertada. Aqueles que me conheciam melhor, aqueles que mais
confiavam em mim, aqueles a quem mantive na ignorância. Como se
deviam sentir traídos pela minha confissão.
— A Deusa da Lua?
A imperatriz cuspiu cada palavra.
— Se Chang’e é a sua mãe, quem é o seu pai?
Medo toldou-me o coração, como tinta a sair de um pincel mergulhado
em água. O meu pai matara as aves solares, suas parentes queridas. Mas a
minha fúria com a sua insinuação grosseira levou-me a erguer o queixo para
a fitar nos olhos, a falar com menos cuidado e mais orgulho do que devia.
— O meu pai é o esposo da minha mãe, o arqueiro mortal Houyi.
Assim que aquelas palavras foram faladas em voz alta, a tensão que
sentira dentro de mim durante todos aqueles anos dissipou-se. Uma leveza
varreu-me o corpo, uma onda de liberdade por finalmente admitir quem
eram os meus pais. Não percebera o peso desse fardo até àquele momento.
Contudo, para lá do orgulho e do alívio intenso, não havia glória alguma na
revelação da minha identidade. Antes era alvo de compaixão por não ter
família e ligações influentes, mas aos olhos daquela corte, era bem pior ter a
reputação manchada por associação aos caídos em desgraça.
A fúria manchava a pele pálida da imperatriz. Tinha os nós dos dedos
brancos e os dedais dourados nos dedos cravavam-se nos braços do trono.
O Imperador Celestial foi o primeiro a quebrar o silêncio.
— Explique-se.
O tom de voz era austero e a maneira como me olhava... fez-me lembrar
o momento em que Liwei cravou a espada no meu peito.
Todos conheciam a história das dez aves solares. Mas ninguém sabia a
verdade por detrás da ascensão da Deusa da Lua à imortalidade. Àquele
público hostil pendente de cada palavra minha, recontei a história que me
fora contada. O perigo que ameaçava a vida da minha mãe e a minha. A sua
terrível escolha. O terror que a levara a esconder a minha existência. Não
pude conter as lágrimas que me ardiam nos olhos quando falei da mágoa
que assombrou a minha mãe todos os dias da sua vida imortal.
Quando terminei, voltei a encostar a testa às lajes de jade, engolindo o
orgulho e o ressentimento pela oportunidade de ser ouvida.
— Durante todos estes anos, a minha mãe tem sido uma prisioneira,
vivendo em solidão e tristeza. Ela tomou o elixir para salvar as nossas
vidas. Desconhecia que quebrara qualquer regra, como podia uma mortal
saber tal coisa? Imploro a misericórdia e a compreensão de Vossas
Majestades Celestiais, que perdoeis a transgressão da minha mãe e anuleis o
seu castigo. É esse o favor que vos peço.
Ergui-me, pousando as mãos trémulas nos joelhos dobrados. O meu
olhar colidiu com o do Imperador Celestial, completamente insensível ao
meu pedido sincero.
A imperatriz apontou-me um dedo, quase em convulsões de raiva.
— Um tal logro não pode ser tolerado. Esta linhagem, de Chang’e e
Houyi até esta... até esta rapariga, é uma linhagem traiçoeira, repleta de
mentiras, desonestidade, ingratidão. Devia ser terminada imediatamente.
A esperança gloriosa que nascera em mim momentos antes definhou e
morreu. Contudo, as palavras da imperatriz foram recebidas em silêncio.
Não se ouviram gritos entusiasmados de apoio, apenas alguns assentiram, e
por isso estava grata.
Alguém saiu da multidão e ajoelhou-se no chão em homenagem aos
imperadores. Um cortesão, conseguia ver, por causa do chapéu cerimonial e
das vestes pretas, do ornamento de jade amarelo que lhe pendia da cintura.
Um cortesão de alta patente, para estar posicionado tão perto dos tronos,
mas não lhe conseguia ver o rosto, pois ajoelhou-se à minha frente.
— Vossa Majestade Celestial, permitis-me que partilhe a minha
opinião?
A voz aveludada, o vulto de costas, agitou-me a memória. Onde vira já
aquele imortal?
O imperador reclinou-se no trono.
— Erga-se, Ministro Wu, e diga de sua justiça. O seu conselho é sempre
apreciado.
O coração caiu-me aos pés. Ministro Wu? Não devia ter ficado
surpreendida; ele parecia estar sempre ligado aos meus momentos mais
difíceis ali. Assim tão perto, a sua aura pulsava à minha volta, tão densa e
opaca como um lago sem fundo.
O ministro voltou a fazer uma vénia e pôs-se de pé. Quando se virou
para trás, estremeci ao ver a hostilidade na sua expressão.
— Vossa Majestade Celestial, nem Chang’e nem a sua filha merecem a
vossa misericórdia. Uma roubou a vossa dádiva, a outra enganou-vos de
forma desprezível. O descaramento com que a Deusa da Lua mentiu a Sua
Majestade Celestial quando a visitámos antes! Se assim o ordenardes,
regressarei lá para a deter, para ser julgada ao lado da filha pelas suas
ofensas. Se permitir que não sejam punidas, isso criará um precedente
perigoso para todos aqueles que procurem tirar partido da vossa bondade.
A sua malícia chocou-me. No meu breve encontro anterior com o
ministro, olhou-me apenas com um desinteresse entediado. Não sabia então
quem eu era, mas porque importaria isso? Desprezaria a minha herança
mortal? Achar-me-ia indigna de ali estar? Porque proferiria palavras tão
cruéis, cuidadosamente escolhidas para inflamar as suspeitas e a ira do
imperador? Bondade? Misericórdia?, pensei, indignada. Quando a minha
mãe foi aprisionada durante todos estes anos apenas por beber o elixir?
— A minha mãe não é uma ameaça para o Reino Celestial — bradei,
desfazendo todo o bem conseguido com a compostura do meu pedido
anterior. — Não fez mal a ninguém, estava apenas a tentar proteger-me.
Não merece um tal...
— Chega.
O imperador falou calmamente, mas a ameaça que irradiava daquela
única palavra era pior do que um rugido.
Amaldiçoei-me pela minha explosão temperamental. Se ele me
condenasse agora, ninguém o censuraria.
No silêncio súbito, Liwei desceu do palanque e afastou as abas do
quimono antes de se ajoelhar ao meu lado. Deitou-me um olhar de aviso
antes de falar, a sua voz a exalar uma calma firme.
— Honorável Pai, Honorável Mãe. Devo a minha vida à Arqueira-Mor
Xingyin. Ela arriscou a sua vida para vir em meu auxílio, muito para lá do
que exigia o dever e a honra. Se não fosse ela, eu estaria morto. A Princesa
Fengmei ainda seria uma refém. O nosso reino teria sido mergulhado no
caos. Como vosso filho diligente, devo lembrar-vos que, por causa dos seus
feitos de valentia, a Arqueira-Mor recebeu hoje o Talismã do Leão
Carmesim. Uma dádiva real, não uma condenação.
Uma sensação de calor cresceu dentro de mim, por saber que ali,
rodeada de hostilidade e condenação, tinha ainda um amigo. Não só eu
nunca conseguiria falar com tanta eloquência, mas Liwei arriscava a ira dos
pais ao recordar-lhes a sua promessa, algo que ninguém se atrevera a fazer.
Podia não ser suficiente para alterar o meu destino, mas saber que ele fizera
aquilo, apesar do choque que sentira ao ouvir a minha revelação, tocou-me
profundamente.
A imperatriz deitou-lhe um olhar tão furioso que um homem menos
corajoso ter-se-ia afastado. Quanto à expressão no rosto do seu pai,
estremeci e desviei o olhar. Mas Liwei manteve-se firme, de joelhos diante
deles como qualquer suplicante.
— O que ela pede não é um favor qualquer. Um aprisionamento eterno
não pode ser anulado por capricho — ripostou a imperatriz, acrescentando
numa nota astuciosa: — Além disso, o pedido da Arqueira-Mor é para
benefício da sua mãe. Não para o dela própria, como é devido ao portador
do talismã. Já tem muita sorte por não a punirmos por este logro, fingindo
ser quem não é.
Como podia ela regatear com a vida da minha mãe como se fosse uma
bugiganga no mercado? Como se atrevia a roubar-me a vitória, conquistada
com tanto custo, e distorcê-la naquele triunfo oco? Todo o sangue que
derramara, toda a agonia que padecera... Fechei os olhos com força,
contendo o impulso de voltar a vociferar, de arremessar o meu desdém, a
minha raiva, aos seus rostos arrogantes e insensíveis.
— Vossa Majestade Celestial é sábia — concordou suavemente o
Ministro Wu. — Se as intenções da Arqueira-Mor eram honráveis, porque
escondeu a sua identidade? Quem sabe que mais truques lhe ensinou a sua
mãe perversa, que intrigas se escondem no seu coração?
Fúria corria-me pelas veias. Aguentava melhor os insultos dirigidos a
mim do que à minha mãe. Virei-me para o ministro, abrindo a boca para o
admoestar, um erro, claro, quando se ouviram passos nas lajes de pedra.
Era Wenzhi, a baixar-se ao meu lado.
— Vossa Majestade Celestial, peço-vos que leveis em conta o serviço
valioso da Arqueira-Mor. Ela serviu-vos com lealdade e coragem,
ajudando-nos a alcançar vitórias que fortaleceram o Reino Celestial. Além
disso, a Arqueira-Mor Xingyin nunca enganou ninguém explicitamente.
Nunca ninguém a questionou se era filha da deusa Chang’e e do mortal
Houyi.
Algumas cabeças assentiram. Era um argumento astuto, algo que
gostava de me ter lembrado. As vestes do Imperador Celestial restolharam
quando se mexeu no trono.
— General Jianyun, qual é a sua opinião?
Sustive a respiração quando o general se aproximou. Do sítio onde
estava ajoelhada, não lhe conseguia ver o rosto. Na qualidade de mais alto
comandante do imperador, o general podia fazer a balança pender a meu
favor... se assim decidisse. Se não estivesse furioso com a minha confissão.
— Vossa Majestade Imperial, a linhagem da Arqueira-Mor Xingyin é...
infeliz. Contudo, tem sido uma recruta corajosa e excecional. Mais
importante ainda, salvou as vidas de Sua Alteza e da sua noiva, preservando
a nossa aliança com o Reino da Fénix. Tal coragem não deve ficar sem
recompensa, como haveis graciosamente determinado. — Fez então uma
pausa, para que todos percebessem o que queria dizer. — Devemos apreciar
a flor, independentemente das raízes.
Os murmúrios à volta do salão aumentaram de intensidade. Esforcei-me
por ouvir. Seria possível que alguns exprimissem surpresa pelo meu
tratamento? Até mesmo alguns sussurros cautelosos de censura?
O imperador não falou. A minha pulsação acelerou quando senti o seu
olhar sobre mim, mas não me atrevi a mover e fitei a condensação da minha
respiração nas lajes. As palavras do General Jianyun valeriam mais do que
as acusações do Ministro Wu? O general falara bem, propondo a Suas
Majestades Celestiais o expediente de me perdoarem numa demonstração
de magnanimidade e benevolência. Mas sentia um aperto no peito ao pensar
na misericórdia do imperador, a mesma que mostrara tão friamente à minha
mãe, à Dama Hualing e aos dragões.
— Arqueira-Mor Xingyin — disse o imperador por fim.
Voltei a prostrar-me no chão, preparando-me para o que dali viria.
Tentando não pensar nas torturas e nos horrores que esperavam aqueles que
o ofendiam.
— Não será culpada pelos erros dos seus pais. Os seus méritos devem
ser avaliados isoladamente. Foi agraciada com o Talismã do Leão
Carmesim pelo seu serviço.
Ergui a cabeça, a esperança a vibrar dentro de mim, mal contida
enquanto esperava ansiosamente pelas próximas palavras do imperador.
— Contudo, a dádiva que pede, a libertação de Chang’e, a Deus da Lua,
não será concedida.
Os meus dedos fecharam-se sobre o talismã de jade, amarrotando a
borla. Para que servia agora o talismã? Não havia mais nada que quisesse
do Imperador Celestial. Apesar de estar aliviada por não ser punida,
também não sentia respeito ou gratidão no meu coração. Não pelo logro de
que era alvo; o meu serviço pago com moeda falsa.
— Concedei-me então isto, Vossa Majestade Celestial — retorqui,
encorajada pelo ressentimento. — Uma dádiva para mim apenas. A
oportunidade de ganhar a liberdade da minha mãe através de uma tarefa à
vossa escolha.
Uma proposta temerária, mas que mais tinha eu a perder? Enunciaria os
termos de forma tão clara desta vez que ninguém poderia ter dúvidas.
O meu comportamento roçava a insolência. Quem era eu para fazer
exigências ao Imperador Celestial? Mas em vez de ira, um brilho astuto
cintilou naqueles olhos insondáveis, um dedo erguido a afagar o queixo.
— Muito bem, Arqueira-Mor. Ordenamos-lhe que realize mais uma
tarefa em nome da sua mãe, para compensar as suas ofensas contra nós.
— Que tarefa é essa, Vossa Majestade Celestial?
As palavras escaparam-me dos lábios. Iria até aos confins do mundo, até
o Reino Infernal se fosse preciso, para libertar a minha mãe.
O imperador não falou, estendendo algo para mim, um objeto cinzento-
escuro na palma da mão. Debrucei-me para perto e estiquei o pescoço. Era
um selo, feito de um metal baço, com uma gravura intrincada de um dragão
em cima.
Wenzhi inalou suavemente, com uma expressão de fascínio. Olhei de
relance para ele, surpreendida.
— O Divino Selo de Ferro libertará os quatro dragões, aprisionados no
mundo mortal pelos seus crimes graves. Cada um possui uma pérola única.
Ordeno-lhe que obtenha as pérolas dos dragões e que mas traga. — O tom
de voz do imperador endureceu. — Se eles não obedecerem à minha ordem,
use os meios que achar necessários. Assim que as quatro pérolas estiverem
na minha posse, perdoarei a sua mãe e poderá regressar para junto dela.
Estremeci involuntariamente. Os Veneráveis Dragões! Depois de ouvir
falar deles no Mar do Leste, não sentia a mais pequena vontade de desafiar
criaturas tão nobres e poderosas. Os dragões entregariam as pérolas de livre
vontade? Se não o fizessem, conseguiria eu fazer o que fosse preciso? O
que esperava o imperador de mim?
— Estamos de acordo?
A sua voz tinha uma nota de impaciência.
Engoli o nervosismo, deixando-o assentar no estômago como gordura
coalhada. Eu pedira aquilo ao imperador, procurara aquela oportunidade.
Como podia agora hesitar? Fechando as mãos uma sobre a outra, aceitei os
seus termos com uma vénia. O negócio estava fechado, tão banal como
qualquer negócio no mercado, mas as paradas eram bem mais altas.
Um servo aproximou-se e pousou o selo na minha mãe estendida. O
metal era frio ao toque. Quando o larguei na minha bolsa, a seda distendeu-
se com o seu peso.
O imperador assentiu para mim. Uma dispensa breve que acolhi com
alegria. Pondo-me de pé, virei costas aos tronos e empurrei as pernas em
frente, cada passo mais pesado do que o anterior. Olhando sempre em
frente, podia ter parecido indiferente ao resto da corte. Contudo,
intimamente, eu era um turbilhão de emoções revoltas que ameaçavam
rasgar-me em pedaços. De alívio, por a verdade vir finalmente à superfície,
mas também de fúria, por me ver negada a recompensa pela qual tanto
lutara. Esperança crescia em mim por receber aquela segunda oportunidade,
temperada por um temor profundo... que o preço pela liberdade da minha
mãe estivesse para lá do que eu era capaz de pagar.
Atordoada, saí do Salão da Luz Oriental. Vários servos do palácio
fitavam-me com curiosidade enquanto poliam as balaustradas de pedra e
varriam o chão imaculado. Shuxiao veio ter comigo como se tivesse estado
aquele tempo todo à minha espera. Dissera-lhe que fora convocada, sem
imaginar que os eventos daquele dia se desenrolariam assim.
— É verdade? — perguntou. — Sobre a tua mãe?
Pestanejei para ela, surpreendida. Não dera mais de cinco passos fora do
salão.
— Como é que sabes?
— Ah. A maioria das audiências reais são incrivelmente aborrecidas.
Quando correu palavra que foram ouvidas vozes exaltadas... — Shuxiao
sorriu e olhou em redor. — Ias ficar espantada com a quantidade de gente
que encontrou uma tarefa urgente para fazer por estes lados. — O seu
sorriso esmoreceu quando me puxou para o lado, para longe de ouvidos
ávidos. — A tua mãe é mesmo Chang’e, a Deusa da Lua?
Ouviria ira na sua voz? Ressentimento? De todas as vezes que me falara
da sua família, eu nunca dissera uma palavra, deixando-a acreditar que a
minha família morrera. Não a censuraria se nunca mais quisesse falar
comigo. Poderia ser melhor para ela se parasse de o fazer. Alvo do
desprazer de ambas as Majestades Celestiais, eu era uma amiga indigna e
perigosa para se ter.
— Sim — respondi, preparando-me para palavras duras.
Em vez disso, ela puxou-me para um abraço.
— Lamento muito pela tua mãe — disse-me quando me soltou. — Mas
também estou zangada contigo. Eu nunca teria dito nada a ninguém.
Havia outras coisas que eu lhe contara em confidência, coisas que ela
adivinhara e não contara a ninguém.
— Não podia dizer nada, não até ter a certeza que era seguro.
Ela assentiu lentamente.
— Eu entendo. Mas duvido que a notícia tenha sido do agrado de Suas
Majestades Celestiais.
— Tão agradável como uma cítara com uma corda rompida.
Franzi a testa, recordando a fúria da imperatriz, a maneira como o
imperador... ficara zangado no início, era verdade. Contudo, parecera
estranhamente satisfeito quando saí. Devia estar, disse a mim mesma, por
conseguir o dobro do trabalho pelo mesmo preço.
— E agora, não sei como, tenho de convencer quatro dragões a cederem
as suas pérolas ao imperador, se quero ter a mais pequena esperança de
voltar a ver a minha mãe.
Não consegui reprimir a dúvida, se eu falhasse, se me revelasse inútil
para o Reino Celestial, manteria o imperador a promessa que me fizera?
Ficaria a minha mãe a salvo da malícia da imperatriz? Ficaria eu, mesmo
estando tão longe, na terra natal de Wenzhi?
— Porquê as pérolas? — perguntei em voz alta. — O Tesouro Imperial
não está repleto de joias?
Shuxiao gesticulou para os dragões dourados que cintilavam no telhado
de jade, uma orbe luminosa bem segura nas suas mandíbulas.
— Só ouvi dizer que os dragões guardam bem as suas pérolas, que lhes
são preciosas, mas as histórias não dizem porquê.
Empalideci só de pensar naqueles dentes curvos a cravarem-se na minha
carne. Seria aquilo uma trama ardilosa para fazer com que eu fosse
devorada, com o Leão Carmesim e tudo? Não resolveria isso o dilema do
imperador, livrando-se da minha presença incómoda sem faltar à sua
palavra? Senti um aperto na barriga só de pensar nisso.
Shuxiao tocou-me no braço.
— Estás bem?
— Não sei ao certo.
Sentia-me atordoada por dentro. No espaço de uma manhã, o meu
coração erguera-se com esperança, afundara-se no medo e agora boiava
num mar de tumulto.
— Bom, vê lá se não te matam. Sempre quis visitar a lua — disse-me
ela com uma risada.
— Não está nos meus planos, mas os dragões podem ter outras ideias —
respondi num tom sombrio.
— Então, vamos ter de garantir que não o fazem.
— Vamos?
Ela cruzou os braços sobre o peito.
— Vou contigo.
Esperança acendeu-se dentro de mim, para de imediato se apagar. Ela
era celestial; as suas lealdades jaziam aqui. Servia no exército para proteger
a família; como podia eu ser egoísta ao ponto de desfazer o seu sacrifício e
a expor à ira do imperador?
— Não, não podes abandonar o teu posto. — Quando ela começou a
protestar, eu continuei: — Ouve. O meu pai matou os parentes da rainha. A
minha mãe desafiou o imperador. Eu também caí em desgraça. Não podes
ser arrastada para isto; tens a tua própria família para proteger. E se Suas
Majestades Celestiais descarregassem a sua ira sobre eles?
O ânimo fugiu-lhe do rosto.
— Não aguentaria isso.
— Nem eu. Porque somos iguais — disse-lhe lugubremente. —
Fazemos coisas pela nossa família, pelas pessoas que amamos, que não
faríamos por nós mesmas. Só descobri isso acerca de mim depois de
abandonar o lar. Alguns podem chamar-nos tolas. Aqueles que não
entendem, nunca entenderão.
Ela não protestou, mas ainda parecia perturbada.
— Não podes ir sozinha. É demasiado perigoso. E se eu me juntasse a ti
sem ninguém saber?
— Só vou pedir as pérolas aos dragões — disse-lhe com uma confiança
que não sentia. — Os habitantes do Mar do Leste dizem que os dragões são
pacíficos. O pior que podem fazer é recusar.
A minha compostura vacilou quando as palavras do imperador ecoaram
na minha mente: Use os meios que achar necessários. Não foi uma
sugestão, foi uma ordem.
— E não vais estar sozinha — disse Wenzhi, caminhando para nós. —
Há quanto tempo estaria ali? — Eu vou contigo.
Não estava na minha natureza apoiar-me noutros, mas, oh, como fiquei
aliviada por ouvir aquilo. Ele não era vulnerável como Shuxiao; partiria
daquele lugar em breve. Além disso, lutáramos juntos tantas vezes, estava
contente por o ter ao meu lado naquela missão.
Shuxiao inalou ruidosamente. Recuperando da surpresa, fez uma vénia
apressada para Wenzhi.
— Tenente, dá-nos licença? — perguntou Wenzhi. — Tenho algo a
discutir com Xingyin.
Shuxiao inclinou a cabeça para mim numa pergunta sem palavras.
Adorava-a por isso, por pensar primeiro nas minhas necessidades. Contudo,
era precisamente por isso que não podia correr o risco de a levar comigo,
não podia arriscar que ela desagradasse àqueles com poder para retaliar e
lhe fazer mal.
— Tudo bem, Shuxiao.
— Se mudares de ideias, posso dizer ao General Jianyun que me estou a
sentir mal nos próximos dias. A mordidela do espírito-raposa a fazer das
suas outra vez — ofereceu ela com toda a candura.
Wenzhi franziu a testa.
— Tenente, espero que não tenha o hábito de agir com tanta
irresponsabilidade.
— Não, Capitão — respondeu ela com uma nova vénia. — Apenas em
ocasiões especiais.
Contive uma risada quando ela se afastou, refreada pelo pensamento do
que jazia adiante. Wenzhi e eu caminhámos em silêncio até um jardim
familiar à volta de um lago tranquilo. Sem aviso, ele agarrou-me pelo braço
e puxou-me pela ponte de madeira até ao Pavilhão da Canção do Salgueiro.
Afastei do pensamento as memórias inoportunas dos tempos que ali passara
com Liwei.
Então, Wenzhi soltou-me e virou-se para o seu reflexo na superfície da
água.
— Porque não me disseste?
Fechei os olhos e pensei na noite em que fugi do lar, transida de mágoa
e terror. A urgência na voz da minha mãe quando me fez jurar segredo.
— Fiz uma promessa à minha mãe.
— Depois de tudo o que passámos juntos, ainda não confias em mim?
— Claro que confio. Mas este não era um segredo que pudesse partilhar
sem mais nem menos. Ter-nos-ia posto a todos em perigo. — Estendi a mão
para lhe tocar no pulso. — Faz diferença? Continuo a ser a pessoa que
sempre fui.
Ele virou a mão e segurou a minha.
— Tens razão, não faz diferença. Mas gostava que me tivesses dito
antes. Podia ter-te ajudado. Talvez ainda possa.
Fiquei emocionada com a sua aceitação inabalável do meu passado. O
seu apoio resoluto. Até aquele momento, não sabia ao certo se podia contar
com ele. Encostei-me a ele, pousando a cabeça no seu peito quando o seu
braço me passou pelos ombros. O aroma que emanava da sua pele era
fresco e verdejante.
— Queria dizer-te. Um dia, quando estivéssemos longe daqui.
O seu coração batia contra o meu ouvido, mais rápido do que antes.
— Isto muda alguma coisa? Ainda vens comigo?
— Sim. — Um arrepio percorreu o meu corpo, que não era de hesitação
nem de dúvida. — Mas primeiro tenho de ajudar a minha mãe. Tenho de
cumprir a tarefa do imperador. Podes esperar mais um pouco?
Wenzhi abraçou-me com mais força.
— Enquanto fores minha como eu sou teu, temos todo o tempo do
mundo.
Ficámos parados, imóveis, até uma comichão na nuca me levar a
recordar onde estávamos, à vista de todos os que passassem. Afastei-me do
seu abraço e virei-me. O meu olhar cruzou-se com o de Liwei, parado na
ponte, imóvel como um dos postes de madeira. Tinha os olhos arregalados,
as mãos cerradas ao lado do corpo. Algo se torceu dentro de mim ao ver-lhe
a expressão no rosto, não culpa, mas tristeza pela dor que lhe causara.
Com passos calculados, Liwei entrou para o pavilhão.
— Posso falar consigo?
Os seus modos eram frios e formais, como se eu fosse uma
desconhecida, uma dessas cortesãs que estava sempre a tentar evitar.
Quando poucos dias antes tínhamos defendido a vida um do outro. Seria
sempre assim entre nós: um passo para a frente e três para trás? Não, disse a
mim mesma. Já não caminhávamos juntos; os nossos caminhos tinham
divergido.
Assenti, apesar do nó dentro de mim. Mais do que a qualquer outra
pessoa, devia-lhe uma explicação.
— Venho ter contigo mais tarde — disse-me Wenzhi.
Pensei que partiria então, mas voltou a pegar na minha mão e passou o
polegar pela palma da mão numa carícia deliberada. A minha pulsação
acelerou. Apesar de mortificada, não puxei a mão. Os lábios de Wenzhi
curvaram-se na sugestão de um sorriso quando me largou. Fez uma vénia
curta a Liwei, mais um breve aceno de cabeça, e afastou-se.
— Lamento muito — disse de forma hesitante a Liwei.
Apesar de lhe dever muito mais do que esse pedido desajeitado de
desculpas. Por tudo o que fôramos um para o outro, pela nossa amizade, ele
nunca merecera a minha desonestidade.
— Mentiu-me desde o dia em que nos conhecemos. — A dureza na sua
voz magoou-me. — Porque me disse que os seus pais estavam mortos?
— Não disse! Quando presumiu isso, eu... eu deixei que continuasse a
pensar assim. Não fazia ideia de como o corrigir, não sem mais mentiras.
Prometi à minha mãe que manteria o segredo. Tinha de a proteger. Pode
imaginar o castigo que sofreria se os seus pais descobrissem o seu engano?
Se soubessem que ela me escondera? Tê-la-iam sentenciado a tortura ou
morte, como poderiam ter feito hoje, se eu não tivesse recebido o talismã.
Se eu não tivesse garantido a sua segurança diante da corte.
As palavras saíram-me dos lábios mais duras do que tencionava.
Lamentava tê-lo enganado, mas nunca tivera grande escolha, levada a isso
pela sua família.
— Porque não me disse quando ficámos mais íntimos? — Os seus olhos
fitavam os meus, escuros e inflexíveis. — Não é a pessoa que eu pensava
ser.
A acusação magoou-me e despertou a minha ira.
— Sempre lhe disse a verdade sobre mim. Apenas escondi a verdade
sobre os meus pais e já lhe disse porquê. Eu fui separada da minha família;
eles estão perdidos para mim. Saber a verdade não teria mudado nada, a não
ser pôr a minha mãe em perigo. Por isso, que diferença faz? Porque o
incomoda tanto? É por eles serem mortais? Por terem caído em desgraça
por desobedecerem ao seu pai?
As minhas palavras eram odiosas e não faziam muito sentido. Sabia
bem que ele não era assim. Mas estava irritada e falei sem pensar, querendo
tanto magoá-lo como tentar explicar-me.
Ele estremeceu e deitou-me um olhar zangado.
— Isso não significa nada para mim. Apenas nunca pensei que me
mentisse. Aceitou a minha confiança e nunca me confiou a sua.
A minha ira dissipou-se. Por muito que o quisesse negar, havia verdade
naquelas palavras. Eu fora egoísta, protegendo-me sempre, aceitando o que
ele tinha para dar.
— Eu quis dizer-lhe tantas vezes, mas tive medo. No início, não sabia o
que faria. E mais tarde... não queria tornar-me um fardo.
— Xingyin, como pode pensar que alguma vez lhe faria mal? Tê-la-ia
ajudado de qualquer maneira que pudesse.
A sua voz soava agora mais gentil.
— Liwei, não quis esconder isto de si. Receava que os seus pais
descobrissem, receava o que pudessem fazer, à minha mãe, a mim, até a si,
se os zangasse. Acha que Suas Majestades Celestiais mostrariam
misericórdia?
Torci o lábio de desgosto.
Ele estreitou os olhos.
— Porque veio para cá se isso a deixou mais perto das pessoas que
desprezava? Procurava vingança? Foi tudo calculado para avançar o seu
plano?
Não desviei o olhar; não tinha vergonha do que fizera.
— Vingança, não. E nem tudo. Sim, queria a oportunidade que me
oferecia, queria melhorar-me. Apenas os fortes são favorecidos no Reino
Celestial, apenas assim conseguiria o que queria. Pode censurar-me por
procurar um novo futuro depois de o meu me ter sido retirado? Não me
ocorreu, até entrar no palácio, quem eram os seus pais. Mesmo então, nunca
quis virá-lo contra eles. Queria libertar a minha mãe, mais do que tudo, mas
apenas pelos meus esforços, como fiz hoje. Nunca pretendi fazer mal a si ou
aos seus.
— Mais do que tudo? — repetiu num tom estranho. — Ao que parece,
fui apenas um degrau na sua ambição. Como servi bem as suas
necessidades hoje, quando apelei ao meu pai que lhe concedesse o seu
favor. — Inclinou a cabeça para mim, quase de uma forma tema, mas as
suas palavras emanavam amargura. — A sua aposta recompensou-a
generosamente. Agora tem tudo o que sempre quis, Arqueira-Mor: fama,
respeito, o Leão Carmesim. A liberdade da sua mãe está quase ao seu
alcance.
— Apenas queria o que me foi tirado! — vociferei. — Não faz ideia do
que passei. Como a minha mãe sofreu!
Perdi a calma e a minha mão voou para lhe bater.
Ele agarrou-me a mão, os seus dedos a queimar-me o pulso. Por um
momento, ficámos ali parados, a olhar um para o outro, zangados. As
nossas respirações rápidas, o coração a latejar-me entre as orelhas.
— Mereci tudo isso por mim própria, a servir o Reino Celestial, o seu
reino, com o meu sangue. Como vou merecer a libertação da minha mãe
com esta última tarefa. — Soltei a minha mãe e afastei-me dele. —
Lamento tê-lo enganado, a sério. Mas nunca o quis magoar e não mereço as
suas acusações. — Estava quase a tremer de raiva e desilusão quando
acrescentei: — Apesar de tudo o que perdemos, sempre acreditei que
teríamos a nossa amizade. Talvez estivesse errada.
Nesse momento, não pude deixar de pensar na aceitação sem reservas
de Wenzhi e Shuxiao. Contudo, dos três, fora Liwei quem eu mais magoara
com as minhas mentiras.
Ele desviou o olhar para o lago calmo, as mãos fechadas atrás das
costas. Quando falou, a sua voz soava de novo firme.
— Ah, Xingyin. A minha desilusão tornou-me cruel. Sou um tolo
ciumento, ao ver-vos juntos agora mesmo... — Abanou então a cabeça. —
Não era nada disto que te queria dizer quando te voltasse a ver. Tinha tudo
planeado, um discurso sincero sobre como me sentia grato por não me teres
deixado morrer às mãos gentis da Dama Hualing. Suponho que agora deves
estar arrependida disso.
Um sorriso triste passou-lhe pelos lábios.
— Talvez — respondi rigidamente, pouco disposta a abrir mão da
minha fúria, sentindo-a a dissipar-se com as suas palavras.
— Na Floresta da Primavera Eterna, naquela maldita caverna... senti-me
exultante quando te vi, mas aterrorizado que pudesses morrer. — Falava
lentamente, como se a memória lhe fosse dolorosa. — Devo-te a minha
vida. Obrigado por a salvares.
— Não me deve nada — disse-lhe eu. — A escolha foi minha. A
decisão foi minha.
— Podia teres-te salvado, mas ficaste. Enquanto eu... eu quase te
matei... — Parou de falar, ofegante. — Nunca me esquecerei da expressão
no teu rosto quando desferi o primeiro golpe. Vai assombrar-me para o resto
dos meus dias.
Parte de mim, uma parte imprudente, queria abraçá-lo. Queria deixar
que nos reconfortássemos um ao outro até conseguirmos arrancar todas as
memórias vis da sua espada a derramar o meu sangue. Da minha magia a
drenar-lhe a vida.
O meu peito ardia como se estivesse repleto de carvão em brasa, mas
tudo o que disse foi:
— Sei que não foi por vontade tua.
Ele ficou então em silêncio, o seu olhar fixo no meu.
— Foi verdade o que disseste na caverna? Que ainda me amas?
Falou num tom tão baixo que era quase um sussurro.
— Sim.
Respirei fundo, tentando conter o tremor no meu coração. Talvez fosse
algo que estaria ali para sempre; começava a aprender que o amor não
desaparece só porque queremos.
— Mas quis dizer o que disse a seguir, que acarinharia sempre o que
tivemos. E que te desejo felicidade na tua vida, mesmo não fazendo mais
parte dela.
Ele cravou as unhas na palma da mão e uma gota de sangue caiu sobre a
asa dourada de uma garça.
— Pensei que, se sobrevivêssemos à Dama Hualing, talvez tivéssemos
uma oportunidade de nos reencontrarmos. Mas estava enganado, que
arrogância a minha ao pensar que o teu caminho apenas levaria até mim.
As suas palavras sobressaltaram-me. Seria possível... teria ele pensado
que eu o pediria como recompensa do talismã?
Ele prosseguiu, numa voz carregada de arrependimento.
— Desejo-te toda a felicidade. Apesar de ele não te merecer. Apesar de
desejar que as coisas tivessem sido diferentes entre nós.
— Obrigada. — O agradecimento soou estranho nos meus lábios.
Arrepiada, apesar do sol, cruzei os braços diante de mim. — Ainda me
odeias por não te ter dito?
— Eu nunca te conseguiria odiar. E fui eu que fui estúpido, recusando-
me a deixar-te ir quando não tinha qualquer direito de te reter.
Engoliu em seco, como se tivesse algo mais a dizer.
— Partes amanhã? — perguntou por fim.
Assenti.
— Vou contigo.
— Porquê?
Ele encolheu os ombros, voltando ao tom distante e educado que me
magoava mais do que gostava de admitir.
— Pela mesma razão por que vieste comigo à floresta. A tua vida está
entrelaçada com a minha, estejamos juntos ou não. Vou ajudar-te porque
quero, não porque sou obrigado. E não há necessidade de ajustar contas; o
que me deves, o que te devo, tais dívidas não têm valor entre nós.
Fiquei sentada no banco de mármore muito depois de ele partir. Uma
rajada de vento varreu os salgueiros, os seus ramos a tocar no lago. As
folhas restolharam, como se estivessem a sussurrar ao mundo os segredos
que eu revelara. Aquilo parecera um sonho impossível, reclamar a minha
identidade e ver-me livre das mentiras do passado. E agora estava um passo
mais próxima de libertar a minha mãe, de regressar ao lar. Acreditara que
aquela oportunidade me traria uma alegria sem limites, mas dei por ela
temperada com uma amargura incompreensível.
Lanternas vermelhas e redondas, orladas de seda amarela, pendiam
sobre as ruas de pedra. Árvores restolhavam, lançando sombra sobre as
paredes claras dos edifícios, as treliças diagonais de portas e janelas em tons
gastos de vermelho e verde. Telhas cinzentas confundiam-se com a
escuridão, uma escolha prática, dado o clima temperamental do mundo
mortal. Aquela aldeia podia parecer lúgubre à noite, mas as lanternas
luminosas davam-lhe um brilho encantado.
Uma centena de aromas pairava no ar, a comida, perfumes e mortais. As
pessoas apinhavam as ruas, a maioria vestida com túnicas simples de
algodão, enquanto os mais prósperos usavam lustrosos brocados ou sedas.
Ornamentos pendiam das cinturas, alguns adornados com contas de jade ou
discos de um metal precioso. Estalidos fortes sobressaltaram-me, quando
faúlhas brilhantes, réstias de papel vermelho e fumo espesso rebentaram no
ar. Fogo de artifício. Haveria algum festival nessa noite? Os rostos dos
aldeões estavam iluminados de excitação, tal como quando os observava ao
longe, da lua.
Liwei e Wenzhi pararam diante de um edifício grande. Uma sólida placa
preta pendia diante da entrada, com caracteres pintados a branco:

POUSADA LAGO DO OESTE

Lanternas em forma de cabaça tombavam de cada lado das portas


vermelhas de madeira. As janelas estavam abertas para o ar fresco da noite,
deixando a música e o riso sair para a rua. Um estabelecimento animado,
mas a minha cabeça começou a latejar com o ruído incessante.
Passaríamos ali a noite antes de seguirmos viagem até Changjiang, o rio
onde o Dragão Longo estava preso havia séculos sob uma montanha.
Quando Wenzhi propusera que parássemos naquela aldeia, concordei logo,
ansiosa por ver como viviam os mortais. Não fosse um capricho do destino,
eu poderia ter sido um deles.
Ao ver-nos, o estalajadeiro abanou a cabeça para nos mandar embora.
Estaria a pousada cheia? A vila estava decididamente buliçosa. Wenzhi não
falou, apenas pousou um tael de prata em cima da mesa. Funcionou tão bem
como qualquer encantamento, o rosto do estalajadeiro iluminou-se quando o
guardou na manga. Disse algo em voz baixa a Wenzhi, mas as palavras
foram abafadas por uma erupção de riso de um cliente próximo.
Uma rapariga jovem, talvez a sua filha, levou-nos até uma mesa de
madeira junto da janela. Afastou-se então e regressou pouco depois,
carregando um tabuleiro com travessas de cogumelos salteados, costeletas
de porco grelhadas, pequenos peixes fritos e uma taça grande de sopa
fumegante.
— Que entretenimento temos hoje? — perguntou Wenzhi à rapariga,
acenando para o palco elevado no meio da sala.
Ela fez-lhe uma vénia, com o rosto corado.
— Um contador de histórias, Jovem Mestre. Um dos melhores da
região.
Jovem Mestre? Contive uma risada. Wenzhi devia ter o dobro da idade
do avô dela, mas a sua pele lisa e feições regulares não davam o mais
pequeno sinal da sua idade.
A meio da nossa refeição, o contador de histórias chegou. Uma longa
barba cinzenta crescia-lhe no rosto enrugado, olhos brilhantes sob
sobrancelhas grossas. Depois de se sentar numa cadeira de bambu, pousou
no chão um bastão retorcido de madeira. Aceitando uma moeda de um
cliente, clareou a garganta antes de começar a sua história, sobre um nobre
rei traído pela sua concubina favorita, uma espia ali colocada por um reino
inimigo. Quando o par malfadado morreu no final trágico da história, o
público encantado suspirou e aplaudiu, alguns limpando lágrimas com
lenços e mangas. Reprimi um suspiro, sentindo apenas repugnância pela
desonestidade da concubina e impaciência com a tolice do rei.
Com um sorriso divertido, Wenzhi atirou uma moeda de prata ao
contador de histórias, que a apanhou com uma agilidade surpreendente,
guardando-a na bolsa.
— Jovem Mestre, que história deseja ouvir? — perguntou o contador de
histórias com deferência.
— Os Quatro Dragões — respondeu Wenzhi.
Endireitei-me na cadeira, subitamente atenta.
— Ah! Um clássico. O Jovem Mestre deve ser um estudioso — elogiou
o contador de histórias.
Vários ocupantes da pousada resmungaram, esperando provavelmente
mais histórias impúdicas sobre reis libertinos e lindas donzelas. Mas quando
o contador de histórias ergueu a mão, todos ficaram em silêncio, o prateado
da sua barba a brilhar como a moeda agora na sua bolsa.
Ele começou numa voz mais suave do que o melhor vinho.
— Há muito tempo, quando o mundo ainda era novo, não havia lagos
nem rios. Toda a água estava nos Quatro Mares e as pessoas dependiam da
chuva que caía do céu para cultivarem as suas colheitas e matar a sede. O
Mar do Leste era o lar dos quatro dragões. O Dragão Longo era o maior de
todos, com escamas vermelhas como fogo, enquanto o Dragão das Pérolas
cintilava como o gelo no inverno. O Dragão Amarelo brilhava mais
intensamente do que o sol e o Dragão Negro era mais escuro do que a noite.
Duas vezes por ano, os quatro dragões erguiam-se do mar para voar no céu
acima.
O contador de histórias ergueu a voz, sobressaltando os ouvintes.
— Um dia, ouviram choros e lamentos vindos do mundo abaixo.
Curiosos, voaram mais baixo, escutando as preces desesperadas do povo
por chuva que pusesse fim a uma longa seca. As roupas pendiam dos seus
corpos magros e tinham os lábios rachados de sede. Destroçados com o
sofrimento dos mortais, os dragões imploraram ao Imperador Celestial que
enviasse chuva aos mortais. O imperador concordou, mas uma calamidade
divina fez com que se esquecesse e passaram mais semanas sem chuva.
Fez então uma pausa e levou a sua taça à boca. Quando prosseguiu, a
sua voz era um sussurro controlado. Dei por mim a esforçar-me para ouvir,
apesar de conhecer bem aquela lenda. Era a mesma que eu propusera contar
ao Príncipe Yanming, a que ele desdenhara.
— Incapazes de suportar a miséria da população faminta, os dragões
voaram até ao Mar do Leste. Encheram a boca com água salgada e
aspergiram-na pelo céu. A sua magia transformou-a em água doce, que
choveu sobre a terra ressequida abaixo. As pessoas prostraram-se de
joelhos, festejando e agradecendo aos deuses. Mas o Imperador Celestial
ficou furioso por os dragões terem excedido a sua autoridade e aprisionou-
os, cada um sob uma montanha de ferro e pedra. Contudo, antes de serem
presos, cada dragão sacrificou o seu imenso poder para fazer brotar um rio
caudaloso e garantir, assim, que o mundo nunca mais teria falta de água. A
partir desse dia, quatro grandes rios atravessam a nossa terra, de oeste para
leste, batizados com o nome dos dragões em honra do seu nobre sacrifício.
O público aplaudiu, se bem que com menos entusiasmo do que antes.
Uma mulher atirou rapidamente uma moeda ao contador de histórias e
gritou o seu pedido.
Não ouvi o que pediu, perdida nas memórias que pairavam sobre mim.
Aquela lenda era uma das minhas preferidas na infância e muitas vezes
pedira à minha mãe que ma contasse. Fechando os olhos, quase me
conseguia imaginar deitada na minha cama de cânfora, os dedos a roçar as
cortinas brancas e macias que esvoaçavam com a brisa. Não precisava de
uma lâmpada, pois as estrelas brilhavam no céu e as lanternas deitavam o
seu brilho perlado pela minha janela.
Adorava essa lenda, mas o final deixava-me perturbada. Um dia,
perguntei à minha mãe: “Porque se esqueceu o imperador de levar a chuva
para os mortais?”
“O imperador tem muitas preocupações e responsabilidades; governar
os domínios acima e abaixo não é fácil. Todos os dias analisa inúmeros
pedidos e petições.”
“Então, porque puniu os dragões por ajudarem os mortais, em vez de
lhes agradecer?”, quis saber.
A sua mão acariciou o meu rosto, o toque fresco acalmando a minha
inquietação.
“Dorme, Estrelinha. É só uma história”, respondera-me, esquivando-se
facilmente à pergunta.
Só agora percebia que não havia uma resposta satisfatória. Pelo menos,
uma que não ofendesse o Imperador Celestial.
O papel do imperador enchia-me de apreensão, como um espinho
cravado no calcanhar. Mais ainda quando recordava a admiração do
Príncipe Yanxi pelos dragões, das lendas que ouvira sobre a sua
benevolência. Se os dragões não quisessem cooperar, seria capaz de lutar
com eles pelas pérolas? Seria sequer capaz de derrotar um deles, quanto
mais quatro? Era uma missão sem esperança, uma tarefa ingrata, na qual o
sucesso exigiria o sacrifício da minha honra e o fracasso seria a minha
morte.
— Xingyin, o que se passa?
A pergunta de Wenzhi acordou-me dos meus devaneios.
— Estou cansada — retorqui, apesar de não ter motivos para estar.
— Porque não dorme? — sugeriu Liwei, sem erguer o olhar da sua taça.
— Vamos demorar um dia inteiro a caminhar até Changjiang, mesmo se não
pararmos para descansar.
Desde que faláramos no Pavilhão da Canção do Salgueiro, uma certa
frieza descera sobre nós. Teriam as palavras que trocáramos cortado o laço
que nos unia? Ou teria sido a intimidade que testemunhara entre mim e
Wenzhi? Qualquer que fosse a causa, Liwei era sempre impecavelmente
cortês, mas distante. E apesar de isso ser exatamente o que lhe pedira,
deixava-me vazia por dentro.
A filha do estalajadeiro veio limpar a nossa mesa. Enquanto levantava
cada prato para o seu tabuleiro com uma lentidão exasperante, deitava
olhares furtivos para Wenzhi e Liwei. Os seus olhos saltavam de um para o
outro, de um para o outro, como se não conseguisse decidir de qual gostava
mais. Para dizer a verdade, não tinham muito concorrência naquele sítio.
Mesmo vestidos com roupas simples e as suas auras contidas, Wenzhi e
Liwei tinham sobre os corações mortais o mesmo efeito que sobre os
imortais.
Levantei-me, ansiosa por sair dali. Apenas partilhar uma refeição com
os dois deixara-me os nervos em franja.
— Onde fica o meu quarto?
Wenzhi fez uma careta e apontou para o andar de cima.
— A pousada está cheia. Vamos ter de partilhar um quarto os três. —
Quando reparou na minha expressão horrorizada, acrescentou: — Podes
ficar com a cama, claro. Tenho a certeza de que Sua Alteza consegue passar
sem uma cama durante uma noite.
A sua voz tinha uma nota de sarcasmo.
— Certamente — respondeu friamente Liwei. — Mas tenciono estar
presente no quarto de qualquer modo.
Seria um aviso? Estaria a ler demasiado no seu tom de voz? Não
importava. Mesmo que a pousada tivesse as camas mais macias do reino,
relva molhada seria preferível a passar a noite assim.
— Ah, afinal não estou assim tão cansada. — Afastei-me da mesa,
como a covarde que era. — Depois de comer tanto, acho que vou dar um
passeio. É a primeira vez que estou numa povoação mortal.
O banco de Wenzhi raspou no chão quando se levantou.
— Faço-te companhia.
Abanei a cabeça, sorrindo para suavizar a recusa. Queria ficar um pouco
a sós. E por algum motivo, não queria sair com Wenzhi e deixar Liwei
sozinho.
Atravessei a pousada apressadamente, saindo pelas traseiras. Essa rua
era mais pequena do que a outra por onde viéramos, mas não menos
animada. Vários aldeãos assistiam enquanto artistas de rua rodavam pratos
em cima de paus ou cuspiam labaredas de fogo. Parei para ouvir um idoso a
tocar um er-hu, um violino de madeira com duas cordas. A melodia
lamentosa adequava-se ao meu estado de espírito. Quando terminou, deixei
cair um tael de ouro na sua taça, onde tilintou contra as moedas de cobre.
Mesmo àquela hora tardia, crianças corriam por ali, perseguindo cães a
ladrar ou juntando-se à volta das bancas. Algumas traziam insetos e
borboletas tecidos com erva seca, enquanto outras agarravam paus repletos
de bolas lustrosas de um doce vermelho. Curiosa, comprei um para mim,
trincando a carapaça dura de rebuçado para chegar à baga ácida de pilriteiro
no interior. Enquanto lambia os restos de açúcar dos dedos, alguns aldeãos
olhavam para mim, intrigados talvez com o meu entusiasmo por uma
guloseima tão comum. Teria a minha mãe gostado também daqueles doces?
Ergui a cabeça para o céu, desejando poder perguntar-lhe.
A orbe luminosa da lua era mais pequena do que parecia no Reino
Celestial, mas igualmente impressionante contra a escuridão da noite.
Ocorreu-me que, se o meu pai não tivesse sido agraciado com o elixir, se a
minha mãe não o tivesse tomado, talvez vivêssemos numa aldeia assim.
Numa casa com paredes brancas, um telhado verde-musgo marcado pelos
elementos e portas de madeira. A nossa família, junta. Por um momento,
não consegui respirar, perdida no sonho. Ou talvez estivesses morta,
sussurrou a minha mente.
A minha mãe ainda olharia aqui para baixo com saudade? Estaria o meu
pai ainda vivo? Culparia a minha mãe pela escolha que fizera? A mim, por
pôr em perigo a vida dela? Se pelo menos o pudesse procurar, mas não
sabia por onde começar. E não me atrevia a testar a paciência do imperador
mais do que já fizera.
Virei para uma viela calma. Não andara cinquenta passos quando senti
aquele arrepio que me dizia que havia perigo por perto, como quando o
arqueiro atirara sobre mim na Floresta da Primavera Eterna. Era impossível
que ele estivesse ali, no Domínio Mortal. O mais provável era ter morrido,
derrubado pelos soldados de Liwei. Mas isso não mudava o facto de estar a
ser observada.
Fingindo ignorância, prossegui pela viela. Apesar de duvidar que algo
aqui me pudesse ferir, tinha dois punhais escondidos, pelo seguro. O Arco
do Dragão de Jade estava pendurado às minhas costas, envolto num pano
para não chamar atenção. Quando Wenzhi sugeriu que o trouxesse, pareceu
uma ideia sensata.
No sossego do meu quarto, praticara o uso do arco. No início, conseguia
segurar as flechas apenas por breves momentos, mas com o passar do tempo
o meu domínio ficou mais firme. Há muito que desejava testar o seu poder,
deixar voar a flecha de luz coruscante, mas nunca me atrevera. Onde no
Reino Celestial poderia uma pessoa soltar uma flecha de fogo-celeste sem
ser vista?
Ao ouvir passos atrás de mim, lembrei-me de que os imortais estavam
proibidos de usar magia no Domínio Mortal, a não ser em casos de extrema
necessidade. Dragões hostis decididamente enquadravam-se nessa
categoria, mas naquele momento, as minhas habilidades físicas teriam de
chegar.
— Onde vai com tanta pressa? — chamou um homem. — Gostaria uma
dama tão bonita de ter companhia?
Três homens gingaram na minha direção e rodearam-me. Usavam
roupas finas e toucados de prata e jade, mas os vapores pungentes do vinho
assolaram-me as narinas. Deviam estar mesmo bêbedos para me chamarem
bonita, pensei sarcasticamente. Pelas expressões lascivas, não era difícil
adivinhar as intenções.
Cerrei os punhos.
— Não o tipo de companhia que têm em mente — respondi friamente,
virando-lhes costas.
Uma mão pesada caiu-me sobre o ombro e virou-me para trás.
— Não seja tímida. Porque andaria por aqui sozinha, se não quisesse ser
encontrada? — balbuciou o mais alto na minha cara.
Tinha um hálito azedo, a feder com os restos da última refeição, a sua
mão agora a debater-se com a gola da minha túnica.
— Sabe quem somos? Temos dinheiro para...
Fúria e repugnância irromperam-me pelas veias. Agarrei-lhe no pulso e
atirei-o de costas ao chão. Ele gritou em agonia, segurando a mão. Estaria
partida? Não fora essa a minha intenção, mas parte de mim esperava que
estivesse. Os dois amigos vociferaram e atacaram-me ao mesmo tempo.
Esquivei-me das mãos estendidas, agarrei-os pelo pescoço e bati com as
cabeças uma contra a outra com um baque sonoro. Dois pontapés atiraram-
nos ao chão. Antes que se conseguissem levantar, segurei um punhal em
cada mão contra os seus pescoços.
— Suponho que não é a vossa primeira vez — sibilei, pressionando as
lâminas até fazer correr dois finos fios de sangue. — Se algum de vocês
sequer pensar em voltar a cometer um crime tão vil, eu volto e cravo os
meus punhais nos vossos corações.
Deitei-lhes um olhar desdenhoso antes de assentar o meu pé nas costas
deles, estendendo-os ao comprido com os meus pontapés.
— Demónio! Dama demónio! — exclamou um deles, de olhos
arregalados ao fugir.
Não propriamente, pensei para mim mesma. Mas estava mais perto do
que alguma vez desconfiariam.
Com a minha ira ainda por aplacar, soltei uma rajada de magia cintilante
que rasgou o ar atrás deles. Talvez a minha transgressão menor passasse
despercebida. Foi precipitado da minha parte, mas fiquei enojada com as
suas intenções. E com a forma como tentaram culpar as minhas opções pelo
comportamento desprezível deles.
Alguém se riu. Virei-me para trás e dei com Wenzhi encostado a uma
parede próxima, com uma expressão divertida no rosto.
— Bom trabalho — elogiou-me. — Até te teria ajudado, mas não
parecias precisar.
— Ainda bem que achaste divertido.
Limpei os punhais antes de os guardar nas bainhas. Um brilho perigoso
cintilou-lhe nos olhos.
— Se não tivesses tratado deles, tratava eu com todo o gosto. A seguir,
não teriam conseguido caminhar, muito menos correr. Foste muito branda
com eles — criticou-me.
— Não te disse que mais fiz. As feridas deles não vão sarar durante
meses; as nódoas negras vão continuar a doer, os cortes vão continuar a
sangrar. Tão cedo não vão esquecer esta noite, o que tentaram fazer e o que
lhes fiz. Acho que não vão conseguir voltar a olhar para uma mulher,
quanto mais abusar dela.
Wenzhi ergueu as sobrancelhas.
— Lembra-me de nunca cair nas tuas más graças.
Afastou-se então da parede e aproximou-se de mim, estendendo as mãos
para a minha cintura. A minha pulsação acelerou quando ergui o rosto para
o dele, com um arrepio de antecipação a percorrer-me a pele. Os seus olhos
ardiam com uma emoção insondável ao curvar a cabeça, pressionando os
lábios contra os meus. Luz irrompeu pela minha mente como uma chuva de
estrelas. Por um momento, ficámos ali parados, completamente imóveis, os
nossos corpos fundidos. Então, os seus lábios apartaram os meus, a sua
boca urgente e sôfrega, a sua respiração a entrar na minha, quente e doce.
Calor percorreu-me o corpo, ardente, brilhante, correndo-me pelas veias,
deixando-me em chamas. A sua mão percorreu-me o arco das costas, os
dedos enrolados no meu cabelo quando me puxou a cabeça gentilmente
para trás. Lábios frios deslizaram pela curva do meu pescoço, deixando um
rasto incandescente. Eu estava ao rubro. Vencida. Todos os pensamentos
desapareceram-me da mente quando o abracei com mais força, encostando-
o a mim até a batida do seu coração ecoar ao lado da minha.
Quando as suas mãos se afastaram, não pude conter o suspiro que me
deslizou da garganta. Abracei o peito com os braços, um pequeno conforto
para o vazio que sentia dentro de mim. As nossas respirações ficaram
ofegantes no silêncio súbito que caiu sobre nós.
— Não vim atrás de ti para te seguir. Queria mostrar-te algo — disse-
me.
Caminhámos até chegarmos à margem de um rio próximo. Estava
apinhado de pessoas a acenderem lanternas e a soltarem-nas na água. Ao
contrário das lanternas de seda na aldeia, estas eram feitas de papel
colorido, habilidosamente dobrado em forma de lótus. Uma vela ardia no
centro de cada flor, luminosa na escuridão.
— Achei que o Festival das Lanternas podia interessar-te — observou
ele.
Os rostos dos aldeãos eram solenes e graves, alguns a chorar
abertamente. A tristeza pairava no ar como um vento frio de inverno.
— O que estão a fazer? — interroguei-me.
— A rezar aos antepassados por orientação. A honrar e a recordar as
pessoas amadas que partiram. As lanternas também guiam espíritos
perdidos de volta para o seu domínio.
Wenzhi tirou então uma lanterna da manga larga e ofereceu-ma.
Olhei para ele.
— Para que é isto?
— Enfrentar um dragão não é coisa pouca. Talvez também devas pedir
orientação aos teus antepassados.
Olhei para ele, com ternura a desabrochar no meu peito. Com aquilo, ele
reconhecia as minhas raízes mortais e o meu lugar naquele mundo. Foi
então que percebi o quanto gostava de mim. E eu dele.
Peguei na lanterna e acendi a vela, baixando-me para a soltar no rio. A
lanterna vacilou instavelmente por um momento, antes de se endireitar e
afastar. Não pedi orientação, a quem podia pedir? Não sabia se o meu pai
ainda estava neste mundo ou no próximo. Nem sequer sabia os nomes dos
meus antepassados. Mas esperava que, onde quer que estivessem, vissem a
lanterna que eu acendera em sua honra e soubessem que eram recordados.
Sob o céu noturno, ficámos parados em silêncio. O rio brilhava com a
luz de centenas de lanternas, um caudal de fogo vivo que fluía com a
corrente na direção de um horizonte desconhecido.
O sol apagara-se até uma orbe ténue de luz carmesim. Na luz
minguante, as águas do rio Changjiang cintilavam enquanto serpenteava
como uma cobra de fogo pelo vale esmeralda, estendendo-se bem para lá de
onde a vista alcançava.
Estreitei os olhos e procurei na zona envolvente o sítio onde se dizia que
estava aprisionado o Dragão Longo, o mais poderoso dos dragões. Liwei
apontou para uma montanha de pedra cinzento-azulada, o pico envolto em
neblina. Campos de flores amarelas cresciam na base. Contra o céu a
escurecer, uma luz pálida irradiava da montanha, tão fraca que não podia ser
vista por olhos mortais.
Os meus dedos desataram o cordão da minha bolsa e tiraram o Divino
Selo de Ferro. O metal, antes frio, emanava agora calor. O meu coração
batia com força quando ergui o selo para a montanha alta. Iria a montanha
desfazer-se em pó e o dragão elevar-se pelos ares, grato por ser libertado da
sua prisão?
Contudo, nada aconteceu. O vale permaneceu calmo, com apenas os
grilos a cantarem a sua serenata noturna.
— Como funciona isto? — perguntei a Liwei.
Ele pegou no selo, inspecionou as marcas gravadas e devolveu-mo.
— É uma chave. Só temos de encontrar a fechadura.
Olhei para a montanha enorme, interrogando-me quanto tempo
demoraria a procura.
— Isto conta como necessidade urgente? — arrisquei.
Um sorriso ligeiro passou-lhe pelos lábios.
— O meu pai não a censuraria quando está a realizar uma tarefa às suas
ordens.
Use os meios que achar necessários. As palavras do imperador
voltaram a ecoar nos meus pensamentos. Pondo de lado a minha
inquietação, canalizei a minha magia, e uma luz saiu-me da palma da mão
até envolver o metal baço. O dragão esculpido irrompeu em chamas,
contorcendo-se como se estivesse vivo. Um vento quente atingiu-me o rosto
quando o selo disparou pelo ar, circundando a montanha como um farol
incandescente antes de mergulhar e desaparecer de vista. Antes que tivesse
tempo para ficar preocupada, o selo reapareceu no horizonte, voando para a
minha mão com uma força tal que cambaleei para trás e quase caí ao chão.
Quando olhei para o selo, o fogo apagou-se e o dragão regressou ao seu
estado original de ferro sem vida.
O chão estremeceu. Desequilibrei-me e quase deixei cair o selo quando
o voltei a guardar na minha bolsa. Um rugido tonitruante quebrou o
silêncio. A minha cabeça virou-se para o pico da montanha quando uma
fenda enorme o partiu ao meio. Pedras voavam em todas as direções, várias
passando disparadas por mim quando me baixei e fiquei agachada no chão.
Línguas de fogo carmesim emergiam do coração da montanha, escorrendo
pelas fendas como um vulcão no limiar de uma erupção.
Com um grito ensurdecedor, uma criatura enorme emergiu para o ar,
levantando nuvens de pó revolto do seu corpo. Escamas vermelhas como
rubis brilhavam como metal acabado de fundir. As patas enormes
terminavam em garras douradas afiadas como foices, e a sua juba e cauda
fluíam em lustrosas madeixas escarlate. O seu rosto teria sido aterrador,
com cornos brancos como osso e presas afiadas e curvas, se não fossem os
olhos cor de âmbar que irradiavam sabedoria.
Ficámos parados, petrificados, quando o dragão arqueou o pescoço para
o céu. O seu olhar varreu o vale e recaiu sobre nós. Sem uma pausa, voou
na nossa direção, o corpo poderoso a ondular pelo ar. Como era gracioso o
seu voo, sem necessidade de asas! Contudo, quando a criatura grandiosa se
aproximou, o meu coração batia com tanta força que pensei que fosse
romper pelas minhas costelas. Xiangliu, o polvo gigante, o Diabo de Osso...
nenhum desses monstros me intimidara tanto.
Quem me libertou da minha prisão? Quero um nome. O tom do dragão
era perfeitamente afinado, nem alto nem baixo, nem agudo nem grave.
Sobressaltada, percebi que as suas maxilas se mantiveram fechadas
quando falou, a sua voz reverberara na minha mente como se fôssemos um
só. Virei-me e olhei para Liwei e Wenzhi, ambos igualmente aturdidos e
perplexos. Não o imaginara; o dragão também falara com eles.
O Dragão Longo inclinou a cabeça magnífica para o lado. Estaria à
espera de uma resposta à sua pergunta?
Clareei a garganta, tentando soltar uma cãibra súbita.
— Venerável Dragão, chamo-me Xingyin, filha de Chang’e e Houyi.
Soltei-vos a pedido do Imperador Celestial, que vos pede que lhe cedais a
vossa pérola.
O meu orgulho ao dizer o nome dos meus pais foi esmagado pela
natureza vergonhosa da minha missão.
Um rosnar profundo perfurou o silêncio. Os seus olhos estreitaram-se de
forma ameaçadora e fumo saiu-lhe das narinas dilatadas. Não, não era
fumo, era uma neblina, fresca como uma madrugada de outono. Abalada
pela sua hostilidade, dei um passo para trás, soltando o Arco do Dragão de
Jade do seu embrulho.
Com que direito vem exigir-me a minha essência espiritual?, tonitruou o
dragão.
— A vossa essência, não — respondi rapidamente, tentando acalmar os
seus receios. — O imperador apenas quer a vossa pérola.
Enquanto falava, uma semente de dúvida germinou dentro de mim. No
Reino Celestial, onde as joias eram tão abundantes como flores, para que
quereria o imperador aquelas pérolas?
Faíscas dispararam das narinas do Dragão Longo quando a sua voz
irrompeu na minha mente. As nossas pérolas contêm a nossa essência
espiritual. Quem possuir as nossas pérolas, controla-nos! Espera que
troquemos de livre vontade aprisionamento por escravidão? A quem nos
aprisionou por trazermos chuva aos mortais? Podíamos ter lutado com ele
então, podíamos ter fugido para os oceanos para lá do seu alcance, mas
isso teria rompido os céus e revolvido a terra, colocando mar e terra um
contra o outro. E isso não podíamos suportar.
Senti o coração a cair-me aos pés e virei-me para Liwei.
— Tinha consciência disto?
— Não — respondeu-me secamente. — Os dragões desapareceram do
Domínio Imortal há séculos. Nada nos nossos textos fala disso.
Eu devia ter percebido que ele não esconderia algo assim de mim.
Percebi então que fora enganada pelo imperador. Ele pedira-me as pérolas
sem mencionar a essência dos dragões. Não fora isso que eu aceitara... mas
fora o acordo que fizera. Como podia fazer aquilo? Como podia forçar os
dragões a abdicarem da sua liberdade em troca da liberdade da minha mãe?
Contudo, como podia não o fazer?
Não era a mesma coisa, lembrei-me, mas era uma verdade dura de
suportar. Aprisionamento não era o mesmo que escravidão. Dar ao
imperador um tal poder sobre os dragões, forçá-los a vergarem a sua
vontade à vontade dele... como podia fazer algo tão monstruoso?
— Já haveis servido antes às ordens do Imperador Celestial. Ele deve
ter um bom motivo para voltar a requerer os vossos serviços.
Procurava à toa uma solução pacífica, agarrando-me àquela fiada ténue
para salvar a minha consciência, apesar de me detestar por o fazer.
Os olhos do Dragão Longo coruscaram e a sua cauda chicoteou no ar.
Nunca servimos o Imperador Celestial. Outrora fomos governados por um
imortal bem mais digno. A ele confiámos a nossa lealdade, até ele devolver
as pérolas à nossa guarda.
As suas palavras esmagaram os últimos vestígios de esperança.
Virando-me para Wenzhi e Liwei, li uma determinação sombria nos seus
rostos.
Os meus dedos procuraram o meu medalhão de jade, puxaram-no para
fora e apertaram-no para sentir conforto. Não conseguia olhar para o
dragão, sentindo um aperto ardente a espalhar-se pelo peito.
— Lamento, mas preciso das vossas pérolas.
O Dragão Longo expôs os dentes, mais afiados do que lanças. Abriu
então as mandíbulas e um jorro de neblina branca disparou na minha
direção. Luz irrompeu de Liwei e Wenzhi, ao mesmo tempo que eu erguia o
meu escudo... tarde de mais, a neblina envolveu-me, colando-se à minha
pele, que queimava como gelo. Mas o desconforto desapareceu
abruptamente, deixando apenas uma frescura agradável abaixo do pescoço.
O meu medalhão? Levantei-o e olhei para o motivo esculpido. A rachadela
desaparecera; o jade estava de novo intacto. Teria sido obra da respiração do
dragão?
O Dragão Longo recuou, olhos arregalados e neblina de novo a sair-lhe
das narinas. Voltaria a atacar? Uma onda de terror tomou conta de mim
quando empunhei o arco, fogo-celeste a estralejar entre os meus dedos.
Senti um aperto no estômago quando fiz pontaria à criatura. Pensei
desesperadamente na minha mãe, invocando a força, a impiedade, para
fazer o que precisava de fazer. Só tinha de soltar aquela flecha...
Sem aviso, a memória do dragão de papel do Príncipe Yanming surgiu-
me no pensamento. Que os dragões a protejam nas suas viagens. O meu
coração estremeceu com uma súbita explosão de angústia quando ergui o
arco, para longe do dragão, e soltei a flecha para o céu. Veios brancos de luz
iluminaram os céus. Uma desilusão esmagadora tombou sobre mim,
temperada com um alívio inegável. Não podia alvejar o dragão e, no fundo
do coração, sabia que a minha mãe também não o quereria. Qualquer que
fosse o custo para nós.
Atrás de mim, Liwei inspirou abruptamente. O Dragão Longo inclinou o
pescoço para mim, fitando o arco. Algo passou pelo seu olhar dourado, algo
como reconhecimento.
O Arco do Dragão de Jade. Como é isso possível? A sua voz soava
novamente calma.
Antes que eu pudesse responder, Wenzhi deu um passo à frente.
Também devia ter ouvido a pergunta do dragão.
— O arco escolheu-a. Agora empunha-o ela.
Isto é muito inesperado. O suspiro do Dragão Longo era como o vento a
soprar com força pelo meio das árvores. Pode emprestar-me o Divino Selo
de Ferro? Usá-lo-ei para libertar os meus irmãos, pois preciso de
conferenciar com eles. Dou-lhe a minha palavra de que regressaremos aqui
e que nada de mal acontecerá a qualquer um de vós.
Wenzhi puxou-me para o lado e falou-me num sussurro.
— Pede ao dragão que entregue a sua pérola primeiro. Se lhe deres o
selo, ele vai libertar os outros e podemos nunca mais o ver. Viemos tão
longe. Se perdermos o selo agora, vamos acabar sem nada.
O seu conselho era sensato. Num confronto, Wenzhi era sempre
vigilante e implacável, razão pela qual era tantas vezes vitorioso.
Mas os dragões não eram meus inimigos.
Quando desviei o olhar, os meus olhos encontraram os de Liwei.
— A decisão é sua, Xingyin — disse-me, num tom mais gentil do que
contava.
Devia ter seguido o conselho de Wenzhi, mas os meus instintos
levaram-me por outro caminho. Acreditei que o Dragão Longo não me
enganaria. Como poderia conquistar a sua confiança se hesitava em confiar-
lhe a minha?
Lentamente, estendi o braço, o selo pousado na palma da mão.
Luz irrompeu da pata do dragão e envolveu o selo, que flutuou até ele.
Quando as garras se fecharam sob o selo, as mandíbulas enormes do dragão
ergueram-se. Num só salto, elevou-se pela noite.
Wenzhi fitou em silêncio o vulto cada vez mais distante. Estaria
desagradado? Eu não possuía a sua imensa experiência, mas confiava na
minha intuição.
Estendi a mão e toquei-lhe no braço, pressionando os dedos contra a sua
manga.
— Ele vai voltar.
— Como podes ter a certeza?
— Porque sou mais sábia do que a minha idade aparenta.
Falei levianamente, tentando disfarçar as minhas dúvidas crescentes. Ele
soltou uma gargalhada, um som rico e pleno.
— És mesmo. Apesar de seres nova, para uma imortal.
— Então, esclarece-me, Venerado Ancião — disse-lhe com um sorriso.
— Que querias dizer quando disseste que o arco me escolheu? Porque não
falaste disso antes?
Ele debruçou-se para prender uma madeixa solta atrás da minha orelha,
a sua mão a demorar-se antes de se afastar.
— Foi algo que li na biblioteca no Mar do Leste. Não me pareceu
importante, pois parecia óbvio que o arco fizera a sua escolha.
— Não para mim — admiti. — Pensei que fosse coincidência, que
talvez tivesse sido a primeira pessoa a tocar no arco. Que fosse apenas uma
guardiã.
— Devia ter-te dito, mas escapou-me do pensamento até agora. As
palavras do dragão devem ter-me acordado a memória — disse ele
ironicamente.
— Descobriste mais alguma coisa? — quis eu saber.
— Apenas que o Arco do Dragão de Jade só reconhece um mestre de
cada vez. Não sabia se essa parte era verdadeira — respondeu com um ar
pensativo. — Contudo, a reação do Dragão Longo parece confirmar isso.
— Nunca ouvi falar dessa arma — observou Liwei, ao juntar-se a nós.
— O que não é de surpreender, dado que não estudamos os dragões. Posso
pegar nele?
E estendeu a mão.
Antes que lho pudesse oferecer, o arco tremeu na minha mão, como que
em protesto. Liwei recuou e abanou a cabeça.
— Não serei tolo a ponto de insistir.
Não sabia quanto tempo esperámos ali, até o céu ficar escuro, até aos
últimos vestígios do calor do dia se evaporarem da terra. Até que, por fim,
me deixei cair ao chão, exausta, abraçando os joelhos. Teria sido um erro
confiar nos dragões? Ter-me-ia enganado acerca da sua honra? Não me
atrevia a olhar para Wenzhi. Apesar de saber que ele não me iria elogiar ou
recriminar, tinha consciência de que o desiludira. E fui tomada por terror
quando imaginei o que faria o Imperador Celestial quando eu regressasse de
mãos a abanar, sem pérolas nem selo... Quando me preparava para admitir a
derrota, a lua e as estrelas desapareceram como se tivessem sido engolidas
pela noite, tapadas pelas silhuetas de quatro criaturas a voar acima.
Os dragões pousaram diante de nós e o chão tremeu com a força da sua
aterragem. Pedaços de solo ergueram-se no ar quando as garras douradas se
cravaram no chão, as caudas a chicotear o ar atrás dos pescoços compridos
arqueados para o céu, os cornos a emanar um brilho branco-prateado. As
suas auras eram tão poderosas que o ar parecia tremer com a sua força. Os
outros três eram mais pequenos do que o Dragão Longo, mas não menos
magníficos. Um brilhava como o luar, com uma juba branca como neve.
Outro era tão deslumbrante como o sol, uma fiada de espigões dourados a
estenderem-se pelas costas. E o último confundia-se perfeitamente com as
sombras, com exceção das presas de marfim, que brilhavam como facas de
osso.
Na margem do rio mais longo do mundo mortal, os Veneráveis Dragões
estavam novamente reunidos. Olharam fixamente para mim, os olhos
iluminados com sabedoria eterna. Sem saber porquê, caí de joelhos e dobrei
o corpo até tocar com a testa no chão.
A voz do Dragão Longo vibrou na minha mente. Estamos gratos por
estarmos livres, por voltarmos a sentir o vento no rosto. A vida é de novo
preciosa. Os seus olhos cintilaram, neblina saía-lhe das narinas. Contudo,
não desejamos servir o Imperador Celestial. Não lhe daremos as nossas
pérolas.
Um peso abateu-se sobre mim quando me ergui. Wenzhi parou ao meu
lado, como se quisesse dar-me apoio. Acharia que eu lutaria agora contra os
dragões? Não podia. Não era por medo que hesitava, apesar de eles me
poderem desfazer em pedaços se assim quisessem, mas eu simplesmente
não podia. O que significava que falhara. A minha mãe continuaria uma
prisioneira. E tudo o que fizera em prol do Reino Celestial não valera de
nada.
A voz do Dragão Longo voltou a ecoar dentro de mim. Vamos dá-las a
si.
— O quê? Porquê? — repeti, incrédula, convencida de que ouvira mal,
enquanto Liwei e Wenzhi se viravam para mim.
Quando o Dragão Long ergueu a cabeça, a juba agitou-se no ar como
uma chama sedosa. Há muito tempo, quando éramos novos, um feiticeiro
poderoso roubou-nos a essência espiritual. Teríamos morrido, se não fosse
um guerreiro corajoso que nos salvou. Contudo, estávamos demasiado
fracos para recuperar as nossas essências e o guerreiro vinculou-as a
quatro pérolas. A ele jurámos lealdade. Quando partiu do Mar do Leste,
devolveu-nos as pérolas, mas demos a nossa palavra de honra que lhas
daríamos de novo se ele nos pedisse, ou alguém em seu lugar. Aqui, o
Dragão Longo fez uma pausa. O Arco do Dragão de Jade era a sua arma
favorita e obedecia apenas a ele. E agora escolheu-a.
A minha mente rodopiava. Sabia que o arco era poderoso, mas não fazia
ideia de que suscitava tanta reverência entre os dragões. E menos ainda que
eu seria a sua legítima dona. E que os dragões me reconheceriam como...
— Mas eu não sou o imortal que vos salvou — disse, num tom
hesitante. — Não sei nada dele. A minha mãe e o meu pai nasceram
mortais.
Os títulos são herdados, o talento pode vir no sangue, mas a verdadeira
grandeza jaz dentro de cada um, disse o Dragão Longo. Há uma razão para
o arco a ter escolhido. Pode ser uma razão da qual não tem ainda
consciência, que só se tornará clara quando as nuvens se apartarem. O
nosso juramento deve ser cumprido. Vamos honrar a escolha do arco e dar-
lhe as nossas pérolas, se for esse o seu desejo.
O Dragão Longo fixou em mim o seu olhar dourado. Contudo, há algo
mais que deve saber. Se aceitar as nossas pérolas, pedimos-lhe que jure,
como fez o nosso amo, que nunca nos forçará a agir contra a nossa
inclinação e que salvaguardará a nossa honra e a nossa liberdade. Somos
criaturas de paz. Não podemos permitir que o nosso poder seja usado para
causar morte e destruição, ou a nossa força desvanecer-se-á e morreremos.
Apesar da noite fria, a minha pele cobriu-se de suor. Senti-me tomada
por horror ao imaginar o que exigiria o imperador dos dragões e o que lhes
custaria. O que os dragões me ofereciam era uma honra imensa e também
um fardo aterrador. Um que não sabia ao certo se merecia ou se ser
suficientemente forte para suportar.
— Veneráveis Dragões, podeis vós libertar a minha mãe, a Deusa da
Lua? — perguntei numa voz fina.
Se pudessem, não precisaria do perdão do imperador. Não precisaria das
pérolas. Não precisaria de pesar a minha honra contra a liberdade da minha
mãe.
Os olhos cor de âmbar do Dragão Longo escureceram. Mesmo durante o
nosso aprisionamento, ouvimos a história de Chang’e e Houyi. O
imperador governa os corpos celestiais no céu e Chang’e está ligada à lua.
A sua imortalidade deriva do elixir, uma dádiva do imperador. Assim sendo,
Chang’e é sua súbdita e o castigo, apesar de severo, está dentro das
prerrogativas do imperador. Não podemos desfazer o encantamento. Se a
tentássemos libertar, estaríamos a desafiar o Reino Celestial. Um ato de
guerra. Não podemos lutar com eles, pois isso destruir-nos-ia.
O peso da minha indecisão quase me esmagava. Não desejava trair os
dragões, mas, e se a minha mãe fosse ameaçada? Conseguiria resistir à
terrível tentação de os trocar pela sua segurança? E se depois os dragões
perecessem ao serviço do imperador? Conseguiria viver com a minha
consciência?
Parte de mim gritava que recusasse aquele fardo, mas como podia
deixar escapar aquela oportunidade? Se pelo menos houvesse uma forma de
utilizar o poder dos dragões sem os pôr em perigo. Se pelo menos
conseguisse manter os dragões e a minha mãe a salvo. Não sabia se era
possível, mas só havia uma maneira de descobrir.
Juntei as mãos diante de mim, como uma taça, e fiz uma vénia.
— Aceito as vossas pérolas.
Os dragões inclinaram as cabeças. Seria desilusão que lhes toldava os
rostos? Senti a culpa a trespassar-me, cortante e profunda. Acrescentei de
imediato:
— Em troca, juro nunca vos forçar a agir contra a vossa inclinação, a
salvaguardar a vossa honra e a vossa liberdade. E vou devolver-vos as
pérolas.
A minha voz tremia com a solenidade do voto. Os dragões não me
pediram a última promessa, mas no fundo do coração sabia que era a coisa
certa a fazer.
A noite estava tão calma que conseguia ouvir a erva a tremer, o estalido
de uma folha a soltar-se do seu ramo. Por fim, o Dragão Longo aproximou-
se de mim. As mandíbulas enormes abriram-se e o ar encheu-se de neblina.
Entre os dentes brancos e brilhantes, sobre a língua vermelha como sangue,
repousava uma pérola com uma chama carmesim. Quando baixou a cabeça,
a sua língua pousou a pérola delicadamente na minha mão. Um a um, os
restantes imitaram-no, até quatro pérolas reluzirem na minha mão, cada
uma da cor da criatura que a oferecera. Vibravam com poder contra a minha
pele, incandescentes, como se estivessem repletas de luz solar.
Os nossos destinos estão nas suas mãos, filha de Chang’e e Houyi,
entoou gravemente o Dragão Longo. Sempre que nos queira invocar, segure
nas nossas pérolas e chame o nosso nome.
Os meus dedos fecharam-se sobre as pérolas, o pagamento que o
Imperador Celestial exigira.
— Agradeço a vossa confiança — sussurrei.
Agradecemos a sua promessa. O Dragão Longo soltou um suspiro de
saudade. Agora desejamos banhar-nos nas águas frescas do Mar do Leste,
das quais estamos apartados há demasiado tempo. Sem mais uma palavra,
saltou pelo ar e atravessou o firmamento. O Dragão das Pérolas e o Dragão
Amarelo seguiram logo atrás.
Ficou apenas o Dragão Negro, o seu olhar perturbadoramente brilhante.
Quando falou, a sua voz soava como um sino tocado com força. Filha de
Chang’e e Houyi. Durante os meus anos sob a montanha, ouvi os mortais
que se banhavam no meu rio falar do maior arqueiro que alguma vez viveu.
— Tendes notícias do meu pai?
Não me atrevia a ter esperança, mas não consegui conter o coração a
bater com força no meu peito.
O Dragão Negro hesitou. Falavam da sua sepultura não muito longe
das margens do meu rio. No sítio onde dois rios se juntam, há uma colina
coberta de flores brancas. Ali encontrará o seu último repouso.
O meu pai... morreu? No fundo do coração, sempre acalentara a
esperança de que estivesse vivo. Mesmo com a vida curta dos mortais,
podia estar ainda no início do inverno da vida. Destroçada a minha última
esperança, chorei pelo pai que nunca conhecera. Quanto à minha mãe, que
ainda o esperava, aquilo partir-lhe-ia o coração, destruiria o sonho a que se
agarrara ao longo de todo esse tempo. A força fugiu-me dos membros e caí
de joelhos na erva coberta de orvalho, afundada em desespero.
Wenzhi baixou-se ao meu lado, puxando-me para o seu abraço. Pelo
canto do olho, vi Liwei a estender a mão para mim, dobrando os dedos
antes de deixar o braço cair.
O Dragão Negro soltou um suspiro. Desejava ter notícias mais alegres.
Lamento muito a sua perda. Com um salto gracioso para a noite, afastou-se
a voar.
O braço de Wenzhi apertou-me o corpo. Quando olhei para ele,
pestanejei de surpresa. As suas pupilas já não eram pretas, mas de um
cinzento prateado, como a chuva no inverno. Tentei soltar-me, empurrando-
o quando uma nuvem desceu e nos levou pelo céu, erguendo-se tão depressa
que mal conseguia respirar com o ar a bater-me na cara. Debati-me contra
os braços de Wenzhi, invocando furiosamente a minha energia, apesar do
frio atordoante que se espalhava pelo meu corpo como geada a formar-se
numa folha. Não me conseguia mover, não conseguia resistir. O grito de
Liwei penetrou no meu torpor, seguido pelo choque de metal com metal,
que logo se tornou um eco distante.
— Lamento.
Um sussurro distante que o vento levou, tão suave que o podia ter
imaginado. Olhos de prata, ensombrados de remorso... e depois tudo ficou
escuro.
Um aroma intenso infiltrou-se nos meus sentidos, opulento e doce como
uma floresta exótica. Sândalo, sussurrou a minha mente, despertada do
nevoeiro que a envolvia. Abri os olhos. Sentada, pressionei os dedos contra
a cabeça a latejar, a dor a piorar assim que olhei para o quarto com mobília
de mogno, chão de mármore verde e cortinas de seda dourada. Fios de um
fumo fragrante erguiam-se de um queimador de incenso assente num tripé.
Algo frio queimou-me as mãos. Quando olhei para baixo, senti um calafrio.
Pulseiras de metal escuro cingiam-me os pulsos, feitas do mesmo material
que fora usado para aprisionar Liwei na Floresta da Primavera Eterna.
Tentei tirá-las, mas estavam bem presas, círculos infindáveis de metal
imutável sem fechos nem dobradiças. Tentei tocar na minha energia, mas
esta fugia de mim, como quando os meus poderes ainda não estavam
treinados. Como no Pico Sombrio.
O medo toldou-me a mente quando cambaleei até às portas e puxei por
elas. Trancadas. Deixei-me cair sobre um banco em forma de barril, a fúria
a crescer dentro de mim. Seria eu prisioneira? A minha magia estava
suprimida? Onde estava Liwei? Wenzhi? E as pérolas? As minhas mãos
tremiam quando abri a bolsa, despejando o conteúdo para cima da mesa. A
flauta de jade rolou para fora, juntamente com o dragão de papel do
Príncipe Yanming. Corri para a cama e puxei as cobertas para trás,
espreitando por baixo da mobília antes de começar a abrir arcas e gavetas.
Mas não vi o mais pequeno sinal das pérolas ou do meu arco.
Lembrei-me do tom glacial das pupilas de Wenzhi, o sussurro no vento
antes de perder a consciência. Estaria possuído por algum espírito maléfico?
Teria um demónio assumido a sua forma? Também estaria em perigo? Senti
um aperto no peito quando uma suspeita repugnante começou a rondar a
periferia da minha mente.
As portas abriram-se. Ergui a cabeça. Uma jovem serva entrou a
carregar um tabuleiro. Surpreendida pela minha expressão soturna, hesitou
antes de fazer uma vénia apressada.
— Vossa senhoria, está acordada. Eu... eu vou informar Sua Alteza
imediatamente.
Pousou então o tabuleiro na mesa e apressou-se para fora do quarto,
fechando as portas ao sair.
— Espere!
Corri até às portas e puxei, em vão.
— Que sítio é este? Quem é “Sua Alteza”?
Não houve respostas, apenas passos a desvanecerem-se até ao silêncio.
Voltei a sentar-me no banco, reprimindo o impulso de descarregar a
frustração na mesa. Por falta de mais que fazer, levantei a tampa da taça de
porcelana e olhei sem interesse para o caldo límpido salpicado com
sementes de sésamo. O aroma quente e apetitoso subiu às minhas narinas,
mas pus a taça de lado.
Uma brisa atravessou o quarto, cortando através do incenso asfixiante.
Corri até à janela e inalei profundamente o ar fresco. O sol brilhava
intensamente, mas o solo abaixo estava tapado por nuvens violeta. Telhas
iridescentes cintilavam no telhado com um brilho de arco-íris. Observei
mais de perto as paredes de obsidiana, reparando em saliências
suficientemente fundas para segurar com os dedos. Subindo a saia do
vestido, passei um pé pela janela... e bati com força contra uma barreira
invisível, dura como pedra.
Cerrando os dentes, chamei a minha energia com mais força do que
antes. Mas as manchas de luz fugiam em todas as direções, como se as
espalhasse o vento. Voltei a revistar o quarto, esvaziando as gavetas e os
armários, deixando um rasto de seda e brocado, de livros amontoados no
chão. Se tivesse de lutar para escapar dali, precisaria de uma arma, nem que
fosse a perna de uma mesa. Remexendo numa caixa cheia de joias, tirei
todos os alfinetes de cabelo, enfiando dois no cabelo e guardando os
restantes na faixa à volta da minha cintura.
As portas rangeram atrás de mim. Preparei-me para o que aí vinha
quando me virei, com um alfinete de ouro escondido na mão. Wenzhi
entrou para o quarto, vestindo uma túnica de brocado verde com folhas
outonais, em tons que variavam do carmesim ao dourado. O cabelo estava
preso por um anel de jade e caía-lhe sobre o ombro. Um fogo percorreu-me
as veias quando lhe vi os olhos, não mais pretos, mas daquela estranha cor
prateada. Um impostor! Atirei-lhe o alfinete de cabelo à cara e corri para a
porta. Ele rodou para o lado e agarrou-me pela cintura, enquanto eu me
debatia e dava-lhe pontapés. Quando lhe acertei na coxa, o seu corpo ficou
tenso e o braço apertou-me com mais força. No instante em que dobrei o
joelho para lhe acertar na barriga, ele desviou o golpe com agilidade. Agora
frenética, empurrei-lhe o peito com as palmas das mãos e afastei-me dele,
apenas para bater com a nunca na parede. Estúpida, sibilou a minha mente
pelo entre a dor, com faíscas intermitentes na visão.
Pestanejei, atordoada, e deixei o corpo ficar mole, como se tivesse
desmaiado. Um dos seus braços segurou-me pelos ombros e o outro abaixo
dos joelhos quando pegou em mim e me segurou com força. Carregou o
meu corpo uma distância curta até me pousar na cama. De olhos fechados,
senti com uma clareza assombrosa os dedos calejados a tocar na minha
pele, a afastar-me o cabelo da cara com uma ternura inesperada.
Estremecendo por dentro, mantive a expressão apagada, mesmo enquanto
procurava um alfinete de cabelo na minha faixa. Quando uma sombra recaiu
sobre mim, fiquei tensa e alerta, abrindo os olhos subitamente quando tirei o
alfinete da faixa e o apunhalei com ele. Os seus dedos seguraram-me o
pulso, parando a ponta afiada do alfinete a um cabelo do seu pescoço.
Os seus lábios torceram-se num sorriso.
— Xingyin, como estás sanguinária esta manhã.
Um calafrio percorreu-me a espinha. A sua voz grave entrou-me pelos
ouvidos com uma familiaridade dolorosa, mas agora ele era um
desconhecido para mim. Quando me tirou o alfinete de prata trabalhada
com a outra mão, debati-me contra o seu domínio com forças renovadas.
Ele baixou as mãos e o sorriso desapareceu.
— Não tenhas medo.
— Os teus olhos...
Não consegui dizer mais, tentando levantar-me, os joelhos encostados
ao peito. Como cintilavam, tal qual os da Dama Hualing. Um arrepio
percorreu-me o corpo. Até descobrir do que era ele capaz, teria de proceder
com cautela.
Ele encolheu os ombros como se não fosse importante.
— Um disfarce. Para evitar perguntas desnecessárias.
— Quem és tu? — quis eu saber.
— A mesma pessoa que sempre conheceste. A pessoa que sempre fui
contigo.
Endureci o tom de voz.
— Chega de jogos de palavras. Diz-me quem és.
Ele observou-me atentamente.
— Não te aceitei quando te revelaste como filha da Deusa da Lua?
Xingyin, tu e eu sabemos tudo o que precisamos de saber acerca um do
outro.
Senti um aperto dentro de mim, como se fosse um peão que acabara de
ser jogado. Tudo o que ele dizia era uma defesa ou uma diversão, calculado
para aplacar a minha fúria e beliscar-me a consciência. A unir-nos um ao
outro, a fazer de nós uma e a mesma coisa. O que ele fizera devia ser
verdadeiramente terrível.
— Nem sequer nos compares — protestei, furiosa. — O meu logro não
te afetou minimamente, enquanto tu... tu trancaste-me num quarto e
roubaste os meus pertences.
Ele cerrou o maxilar e virou-me costas, caminhando até à janela.
— Que sítio é este? — perguntei, detestando o tremor na minha voz,
aquela nova incerteza que sentia à sua volta, aquele medo.
— O meu lar. A Muralha Nebulosa.
Um toque de calor humano entrou-lhe momentaneamente na voz, antes
de retomar ao registo frio e distante.
— Mas os demais preferem chamar-lhe o Reino Infernal. Um
estratagema astucioso por parte dos celestiais para fazer de nós o inimigo,
dignos de repulsa e medo até entre aqueles que nunca nos viram.
Impossível. Aquilo não podia ser o Reino Infernal. E ele não podia ser
um infernal, eles estavam proibidos de entrar no Reino Celestial.
Certamente alguém o teria descoberto durante todos aqueles anos que serviu
no exército.
— Isso é uma piada?
Saltei da cama e o meu cotovelo bateu numa jarra de esmalte. A jarra
caiu ao chão com força e o baque metálico reverberou pelo quarto.
As portas abriram-se de rompante e dois soldados entraram a correr,
usando uma armadura preta com arestas de bronze. Um tinha o nariz fino e
o queixo pontiagudo de uma doninha, o outro era mais alto, com pele pálida
e olhos redondos. Borlas pretas decoravam as lanças cintilantes que
empunhavam. Ao verem Wenzhi, fizeram uma vénia, batendo com o cabo
das lanças no chão.
— Vossa Alteza, ouvimos um estrondo — disse o soldado pálido.
Ergui a cabeça ao ouvir a saudação do soldado, ao lembrar-me das
palavras da serva. O pai dele seria mesmo o Rei Infernal, o monarca
intriguista que todos os celestiais temiam e desprezavam? Queria deixar-me
cair na cama e fechar os olhos, esperando que tudo não passasse de um
pesadelo do qual acordaria. Mas lembrei-me da voz do dragão a ecoar na
mente, das pérolas a fervilhar na minha mão, do vento a soprar no rosto
quando fui levada para longe...
Aquilo não era um sonho.
Os soldados fizeram uma vénia para Wenzhi, obedecendo a uma ordem
que eu não ouvira. Quando se ergueram, olharam para mim com uma
curiosidade descarada.
— Deixem-nos a sós — ordenou friamente Wenzhi.
Os soldados recuaram de imediato e fecharam a porta ao sair. Apertei as
mãos, desejando estar a segurar uma arma.
— Vossa Alteza — resmunguei. — Como te atreves a trazer-me para cá
contra a minha vontade?
Ele encostou-se ao parapeito da janela, agora virado para mim.
— Contra a tua vontade? Tu concordaste em vir comigo.
— Não fiz tal coisa.
— Fizeste, sim. Disseste que vinhas comigo, para o meu lar.
Mal podia pensar, com uma fúria que me deixava esganada. O seu logro
transformou as nossas promessas de amor numa farsa. Eu julgara que ele
era do Mar do Oeste; nunca imaginara que o Reino Infernal fosse o seu lar!
Nunca teria concordado com isso. Cerrei os punhos, mas forcei-me a
abri-los; aquele não era o momento de dar largas à minha raiva. Ele era um
mentiroso sem rival, mas saber isso só me podia ajudar.
Precisava de descobrir mais.
— Como pudeste fazer-me isto?
A minha voz estava rouca de raiva contida.
Ele atravessou o quarto e sentou-se num dos bancos junto à mesa.
Erguendo o bule de porcelana, serviu duas taças de chá, oferecendo-me
uma, como costumava fazer. Deitei-lhe um olhar pétreo, até ele levar a
chávena à boca e beber.
Então, franziu a testa.
— Boa decisão, está frio.
Uma pequena fração do seu poder envolveu as taças e a fragrância do
jasmim ergueu-se pelo ar, enquanto a cor do chá passava de um castanho
baço para um dourado rico.
— Eu podia ter feito isso, só que não posso. O que me fizeste?
Saltei para fora da cama e estendi os braços para ele, o metal escuro
contra a minha pele.
— Apenas uma precaução, para garantir que não fazes nada insensato.
Fui tomada por uma vontade de lhe bater.
— A única coisa insensata que fiz foi confiar em ti. Como passaste
pelas barreiras do Reino Celestial? Porquê a farsa de te juntares ao exército?
Porque me trouxeste para cá?
— Tantas perguntas, Xingyin. Respondo ao que puder, se te sentares.
E gesticulou para o banco ao seu lado.
Deitei-lhe um olhar zangado e sentei-me ao seu lado, as minhas costas
mais rígidas do que uma tábua.
— As barreiras do Reino Celestial já não têm a força de outros tempos.
Talvez porque os celestiais já não têm a capacidade de sondar as mentes dos
seus inimigos? Foi apenas uma questão de as enfraquecer mais, de me
esconder com magia.
— És um deles. Praticas as artes proibidas.
Não consegui conter um tremor.
— Sim, mas aqui não são proibidas. Aqui, são um dom.
— Seu traidor — vociferei, recordando os espíritos-raposa que tinham
penetrado as barreiras e ferido Shuxiao. — Não queres saber de toda a dor
que causaste?
— E todos aqueles que salvei? Os monstros e inimigos que ajudei o
Reino Celestial a derrotar? — contrapôs ele. — Mas agora estamos a falar
em círculos; esta conversa não vai a lado nenhum. Não fizeste também
segredo da tua linhagem, Xingyin? Tu, mais do que qualquer outra pessoa,
devias compreender a minha posição. — A sua voz tomou-se trocista. —
Não sejas tão pudica. Também não és leal ao Reino Celestial.
O frágil domínio que mantinha sobre as minhas emoções quebrou.
— Independentemente do que fiz, nunca fui uma espia. Tinha de
proteger a minha família. A minha vida. Em momento algum pus em perigo
alguém que não eu própria. — E acrescentei num tom cáustico: — E as tuas
lealdades? Que bem fingias preocupar-te com os soldados celestiais quando
intimamente te alegravas com os seus ferimentos.
A sua aura ficou mais forte, revolta como nuvens de tempestade.
— Eu preocupo-me sempre com todos aqueles às minhas ordens,
lamentei cada vida perdida. Mas fiz o que tinha de fazer. Não importava se
gostava de o fazer.
— Como fizeste comigo?
— O quê? — soltou bruscamente, parecendo apanhado de surpresa. —
Não, isso não. Nunca.
— Então, porquê? — indaguei, avistando uma fenda na sua compostura.
Não pensei que me fosse responder. E mesmo que respondesse, contava
apenas com mais mentiras. Contudo, quando falou, o seu corpo
demonstrava uma tal tensão, mostrando que o que tinha em mente afetava-o
profundamente.
— Aqui, o segundo filho do rei tem poucas oportunidades. Tudo foi
dado ao meu meio-irmão, Wenshuang. Apesar de ser menos capaz do que
eu e os seus poderes inferiores aos meus, sem o mais pequeno talento para a
nossa magia, o pilar da nossa força. Contudo, ele foi nomeado Príncipe
Herdeiro pelo único motivo de ser o primogénito. — A sua boca torceu-se
num sorriso amargo. — Por isso, fui ter com o meu pai e fizemos um
acordo. Não muito diferente do acordo que fizeste com o imperador.
— Tudo isto só para ficares com o lugar do teu irmão? — pronunciei,
incrédula.
Talvez uma parte de mim ainda esperasse que ele tivesse sido
empurrado para aquela situação contra a sua vontade. Mas por ganância e
ambição... Nunca pensara que pudesse ter tais motivações. Ele não era
quem eu pensara; não tinha honra. Contudo, essa centelha de crueldade,
esse desejo de vencer a todo o custo, sempre estivera lá, eu apenas não a
reconhecera como a ambição desenfreada que era.
Os seus dedos apertaram a taça em cima da mesa, os nós dos dedos
brancos com o esforço.
— Não sabes nada sobre o meu meio-irmão.
— Nem sequer sabia que tinhas um irmão.
— Para lá dos laços de sangue, ele não é família para mim. Desde a
nossa infância, demonstrou-me apenas crueldade e ódio. O quanto sofri às
suas mãos, sovas, castigos e insultos. Não podia fazer nada contra ele, não
porque eu fosse mais fraco, mas porque ele era o herdeiro. Os poucos
amigos e servos leais que tinha na juventude também me foram retirados
por ele, e cedo aprendi a não mostrar favoritismo por ninguém. A única
maneira de me proteger, e àqueles de quem gostava, era erguer-me acima
dele e reclamar o trono.
Esmaguei um impulso de piedade, tentando ignorar a dor na sua voz.
Sabia-se lá se não seriam mais mentiras para suscitar a minha simpatia? Os
meus olhos trespassavam-no quando lhe perguntei:
— O que tem isso que ver com o Reino Celestial? Com as pérolas?
Comigo?
— O sonho do meu pai é derrotar o Reino Celestial. O seu ódio contra o
imperador é profundo. Por demonizar a nossa magia e virar o Domínio
Imortal contra nós. Por aqueles que perdemos na guerra. Mas não podíamos
quebrar as tréguas; não éramos suficientemente fortes para os derrotar e aos
seus aliados.
— A vossa magia é desprezível.
Palavras duras, motivadas pela memória do tormento de Liwei às mãos
da Dama Hualing. Pelo meu sofrimento às mãos do Governador Renyu.
— Não, não é. A nossa magia pode curar doenças da mente, acalmar o
sofrimento, detetar mentiras, revelar más intenções. Pode ser usada de
formas desprezíveis, tal como a Água, o Fogo, a Terra e o Ar foram
canalizadas em atos grotescos de morte e destruição. É fácil de demonizar
porque é o menos compreendido dos Talentos. Acima de tudo, porque é
temido pelas pessoas no poder: o imperador e os seus aliados.
— Controlar a mente de alguém, retirar-lhe o livre-arbítrio, é um ato vil.
O seu rosto ficou ensombrado.
— Essa magia raramente era aplicada antes da guerra, não era tolerada
nem entre nós... até sermos forçados a usá-la para nos defendermos. Não
culpes o instrumento, mas quem dirige a melodia. Talvez fosse esse o
objetivo do imperador, para consolidar o seu poder no Domínio Imortal.
Não há maior motor de unidade do que um perigo comum. Se assim foi, a
profecia que criou cumprir-se-á sozinha e será o seu fim. Perseguir-nos no
exílio apenas nos deixou mais fortes, deu-nos uma causa. E numa guerra, a
linha que separa o bem do mal fica difusa.
Os meus pensamentos estavam todos emaranhados. Entre Wenzhi e o
imperador, não confiava nem num nem noutro. Ou seria apenas a habilidade
de Wenzhi que me fazia sentir assim, a sua capacidade de distorcer tudo até
eu não conseguir distinguir o norte do sul?
Quando fiquei em silêncio, ele continuou:
— Prometi ao meu pai que, se me nomeasse herdeiro, eu ajudá-lo-ia a
derrubar o Reino Celestial. Procuraria a arma mais poderosa contra o
imperador, uma arma que ele temia tanto que a trancara no Domínio Mortal.
— Os dragões — disse eu num sussurro estrangulado. — Tiraste-me as
pérolas. O que vais fazer com elas?
Ele encolheu os ombros.
— Talvez eles queiram vingar-se contra quem os aprisionou durante
tanto tempo.
— Nunca! — gritei. — Ouviste o que eles disseram. Os dragões são
pacíficos. Permitiram que os aprisionassem para evitar derramamento de
sangue. Vão morrer se os forçares a fazer tal coisa.
As minhas palavras caíram em orelhas moucas. O seu rosto era uma
máscara de determinação fria, talhada em pedra. Ignorando o aperto no meu
peito, insisti. Tinha de descobrir até que ponto se estendia a sua deslealdade.
— O minério do Pico Sombrio. Mineraram-no para forjar isto?
Abanei as pulseiras diante dele.
— Precisamos de nos defender, seja de que forma for.
— No Mar do Leste, orquestraram a revolta dos tritões?
Os seus lábios apertaram-se numa linha fina.
— Uma semente plantada que deu mais problemas do que valia a pena.
Sempre quisera visitar a biblioteca do Mar do Leste, mas eles protegiam tão
ferozmente o seu conhecimento. Particularmente tudo o que estivesse
relacionado com os dragões. Os nossos espiões falaram-nos das suas forças
complacentes e do governador ambicioso. Providenciámos que um
medalhão fosse oferecido ao Governador Renyu para semear discórdia,
sabendo que o Mar do Leste pediria a ajuda do Reino Celestial ao primeiro
sinal de problemas. Quem recusaria um favor a um salvador? Mas os planos
do governador foram para lá do que tencionávamos. Não queríamos que ele
usurpasse o trono do Mar do Leste, que alargasse as suas ambições aos
Quatro Mares. A nossa inimizade é apenas contra o Reino Celestial.
Forcei-me a ouvir com uma calma reservada, apesar de me enojar a
ideia de que ele fingira preocupação pelos mortos desse dia. Não me atrevia
a analisar com profundidade as suas respostas; não me conseguiria conter se
o fizesse. Olhando para cima, deparei com o seu olhar fixo em mim, um
cinzento pálido e cintilante. Algo se agitou no meu interior, um eco vago de
reconhecimento. Do arqueiro na floresta, o arqueiro com olhos prateados
que me atacou tão implacavelmente.
— Tu atacaste-me! No pagode! — Quase me encolhi com a dor que me
cortava o coração. — Tu estavas por detrás do rapto da Princesa Fengmei.
Ele desviou o olhar. Seria por vergonha ou culpa?
— Eu avisei-te para não ires. Estava a tentar proteger-te. Só atirei sobre
ti para te manter a salvo, para te manter dentro do pagode, longe da
emboscada. E se ficasses ferida, talvez fugisses à procura de segurança.
A sua flecha de penas pretas abatera realmente o meu atacante, mas isso
não fez nada para aplacar a minha ira.
— Como foste capaz? Tens noção do inferno que sofremos ali?
Ele inalou com alguma trepidação.
— Eu ordenei à Dama Hualing que não te fizesse mal. Ela concordou,
mas tu, Xingyin, tens um dom para evocar emoções fortes nas pessoas com
quem te cruzas. Tanto para o bem como para o mal.
Estremeci ao ouvir o tom íntimo com que falava comigo.
— Um plano honroso — felicitei-o com um sarcasmo corrosivo. —
Raptar uma rapariga inocente e manipular a dor de uma imortal
amargurada, levando-a a fazer a tua vontade sem teres de sujar as mãos.
Não tens vergonha?
O seu rosto crispou-se com a minha troça.
— As minhas décadas de serviço, que me deram acesso aos mais
íntimos círculos do poder no Reino Celestial, não me providenciaram a
chave para os dragões. O meu pai começava a ficar impaciente, por isso
decidi regressar com um presente, em vez dos dragões.
— Liwei.
Senti uma pontada de dor ao pensar nele. Teria conseguido regressar ao
Reino Celestial? Estaria a perguntar-se onde estava eu?
Wenzhi soltou um suspiro.
— Qualquer um teria sido suficiente: a força vital do Príncipe Herdeiro
ou o colapso da aliança com o Reino da Fénix. Foi uma pena teres destruído
o anel da Dama Hualing. O meu pai ficou muito desagradado com a sua
perda.
Algo dentro de mim partiu-se ao ouvir a sua falta de remorsos, o último
vestígio de... qualquer réstia de esperança a que ainda me agarrava que
aquele não fosse ele, que nada daquilo fosse real. Tudo o que eu fizera
desde que abandonara a minha mãe, tudo o que conseguira fazer, manchado
pela sua iniquidade.
Bílis subiu-me à garganta, quente, amarga, ácida. Tentei manter a calma
e falhei miseravelmente quando a minha fúria irrompeu. A palma da minha
mão acertou-lhe na cara com toda a força que consegui invocar. Ele não
estremeceu nem tentou parar-me quando a sua cabeça virou para o lado com
um estalo sonoro. A minha mão ardia como fogo, mas a marca vermelha no
seu rosto deu-me uma satisfação feroz.
— Xingyin, sei que estás zangada. Mas não voltes a bater-me.
— Zangada? Não há palavra para descrever como me sinto neste
momento. Como te desprezo.
Ele debruçou-se para mim, a sua voz a baixar para um sussurro
insidioso.
— A escolha foi tua. Tu aceitaste as pérolas dos dragões. Não negues
que também querias o poder deles.
Recuei da verdade inegável das suas palavras, mas estava errado acerca
de mim. Sim, eu queria o poder dos dragões. Mas não pelas razões que ele
queria. Então, o meu coração colapsou com uma compreensão súbita.
— Fingiste gostar de mim porque sabias da herança do Arco do Dragão
de Jade? Porque suspeitavas que eu o conseguia controlar... e através dele,
os dragões?
— Não — respondeu sem hesitar. — Não posso negar que fiquei
intrigado com a tua ligação ao arco. E o que aprendi no Mar do Leste deu-
me motivos para te manter por perto. Ao princípio, como aliada, e mais
tarde... — Um rubor ténue passou-lhe pelo rosto. — O que existe entre nós
começou antes disso. Despertaste algo em mim na primeira vez que te vi a
atirar com o arco. Não esperava sentir o que senti. Foi parte da razão por
que decidi desistir das pérolas e regressar a casa. Não queria mais mentiras
entre nós.
Mesmo agora, uma parte de mim sentia a dor da sua confissão, mas não
o deixaria transparecer. Ele nunca saberia o quanto me magoara.
— Quase desejo que o imperador não te tivesse dado esta tarefa —
continuou. — Nunca quis posicionar-me como teu adversário. Contudo,
num daqueles caprichos do destino, durante a tua audiência com o
imperador, ele revelou precisamente a informação pela qual eu esperara
todos aqueles anos. Uma coincidência afortunada que não podia ignorar.
— Não tão afortunada para mim. — Observei-lhe o rosto, mas não vi
qualquer sinal de que aquilo que me fizera lhe causara algum sofrimento. —
Sabias que precisava das pérolas para salvar a minha mãe. Sabias o que
sofri para as obter, e mesmo assim tiraste-mas. — Fiz um esforço para me
controlar, de forma a lançar um último apelo. — Se gostas de mim como
dizes gostar, devolve-me as pérolas e deixa-me partir.
Com um passo, ele diminuiu a distância entre nós e envolveu-me nos
seus braços. Contra a minha pele ardente, as suas mãos pareciam gelo.
— As pérolas são essenciais para a sobrevivência do meu povo, para
podermos afastar a ameaça perpétua do Reino Celestial. Com os dragões
sob as nossas ordens, vamos derrotá-los facilmente. Quando isso acontecer,
juro que encontrarei uma forma de libertar a tua mãe. Teremos tudo o que
sempre quisemos, que nunca sonhámos ser possível. Família, poder e um ao
outro. Só precisas de confiar em mim.
Libertei-me do seu abraço. O seu toque arrepiava-me a pele, quando
apenas um dia antes o desejara ardentemente. A sua visão para o nosso
futuro... como me repugnava.
— Dei a minha palavra aos dragões. A minha promessa tem valor para
mim, ao contrário das tuas, que não valem nada para ti.
Podia ter dito mais. Podia ter gritado com ele, tê-lo amaldiçoado, mas
um cansaço dorido tomou conta de mim, um mal-estar no coração. Virei-lhe
costas, querendo sair dali, incapaz de suportar a sua presença por um
momento mais.
O seu suspiro soou pesado, envolto em arrependimento.
— Demora o tempo que for preciso a pensar no que te disse. De uma
forma ou de outra, não vais sair daqui. — Caminhou então até às portas e
abriu-as. — Não adianta tentares fugir. Se continuares a agir como uma
idiota, não vou ter escolha a não ser tratar-te como uma.
As portas fecharam-se atrás dele. Dominada pela raiva, peguei na sua
taça e arremessei-a à parede, partindo a porcelana delicada em mil pedaços,
deixando-a impossível de voltar a ser inteira.
Apesar do aviso, tentei escapar. Tinha de tentar. Mas as janelas estavam
seladas e as portas firmemente trancadas. Certa vez, saí de rompante pelas
portas, quando uma serva veio trazer-me a refeição, mas dei de caras com
os guardas no exterior. Infelizmente, eram veteranos experientes, não
recrutas verdes que eu pudesse apanhar desprevenidos. Lutei com eles com
toda a minha força, mas dominaram-me facilmente e atiraram-me de volta
para o quarto.
Sentada no banco, os meus dedos tamborilavam um ritmo incessante na
mesa. Como poderia sair daquele maldito lugar? Como poderia recuperar as
pérolas? E a minha mãe... a minha esperança de a libertar reduzira-se a uma
fantasia desesperada, tal como quando trabalhava na Mansão do Lótus
Dourado. Num só golpe, Wenzhi desfizera os meus sonhos e o meu coração.
As minhas unhas cravaram-se na mesa, arrancando finas lascas de madeira.
Uma dor atormentava-me, intensa e constante, precisamente quando me
considerava imune à sua traição. A minha mente vagueava até ao tempo que
passáramos juntos; as memórias eram dolorosas, mas não estava com
disposição para ser gentil comigo mesma. Recordei tudo o que ele disse e
fez: a sua insistência em que mantivéssemos segredo sobre o Arco do
Dragão de Jade; o seu passeio noturno no Pico Sombrio; a maneira como
me despachou na biblioteca do Mar do Leste. Nada alarmante por si
mesmo, mas todas estas coisas juntas formavam um quadro mais sinistro.
Até a sua renitência em falar de si próprio devia ter sido um aviso, para
mim mais do que para qualquer outra pessoa. Mas estava tão emaranhada
nas minhas emoções, ambições e desejos que não reparara em mais nada. A
culpa também era da minha vaidade, não posso negar que fiquei ofuscada
pela sua reputação e lisonjeada pela atenção que me dedicava. Queria tanto
que ele fosse honrado, alguém em quem pudesse confiar, e vira todos os
seus atos sob essa luz. Ele enganara-me, mas eu deixara-o. Se pelo menos
tivesse dado ouvidos ao conselho da Mestra Daoming, que uma mente
perturbada por emoções levava ao desastre. E agora era tarde de mais.
As portas abriram-se. Levantei-me num salto, vasculhando o quarto à
procura de algo que pudesse usar como arma. Desde a última vez, Wenzhi
ordenara que retirassem todos os alfinetes de cabelo. Não precisava de
armas para dominar um servo, mas desde a minha tentativa de fuga, eram
soldados que traziam as refeições.
Não era um guarda. Wenzhi entrou, a túnica de brocado índigo a roçar-
lhe à volta dos pés. Um cinto de pano cravejado de âmbar cingia-lhe a
cintura. No seu cabelo repousava uma coroa de jade branco, encastoada
com uma esmeralda reluzente. Os meus olhos estreitaram-se ao ver o
ornamento precioso, o preço da sua honra.
Voltei a sentar-me, recusando-me a reconhecer a sua presença.
Instintivamente, os meus dedos arranharam o metal à volta dos meus
pulsos. Por muito que puxasse pelas pulseiras ou batesse com elas contra as
paredes, permaneciam sempre intactas, apenas a minha pele ficava magoada
e arranhada.
Quando o seu olhar recaiu sobre os meus braços, escondi-os atrás de
mim. Ele veio ter comigo e puxou-os para si. Uma frescura relaxante passou
dos seus dedos para os meus braços, e as marcas na minha pele
desapareceram.
Soltei os braços com brusquidão. Não lhe agradeci. Não olhei para ele.
Ele sentou-se à minha frente.
— Não te magoes a ti mesma. A minha paciência não é ilimitada.
Virei-me para ele, com a voz a escorrer veneno.
— Que mais me podes fazer? Além de me raptares, suprimires a minha
magia e roubares as minhas posses?
A joia na sua coroa brilhou mais intensamente, talvez canalizando a sua
ira. Contudo, a expressão manteve-se inescrutável quando se debruçou para
mim.
— O que posso fazer para te deixar à vontade? — perguntou-me, como
se ele fosse um anfitrião gracioso e eu a sua honorável hóspede.
Ergui para ele os pulsos agrilhoados. Um canto da sua boca curvou-se.
— Receio que não. Pelo menos, enquanto não ganhares juízo.
— Eu ganhei juízo — ripostei. — Agora que te vejo como és: um
mentiroso e um ladrão.
Ele recuou com uma expressão fechada. Se as minhas palavras o
magoaram, tanto melhor.
— Ocorreu-me algo — disse-lhe. — Tu, um Príncipe Infernal,
enganaste o Imperador Celestial. Infiltraste-te no Reino Celestial, nos
círculos mais íntimos da sua corte e espiaste-os. Isso não viola a trégua?
Certamente, os aliados do Reino Celeste virão em seu apoio contra vós.
Ele encolheu os ombros, mostrando-se menos preocupado do que
esperara.
— Uma pessoa podia argumentar que os servi bem. Pelo menos,
enquanto agia sob as suas ordens.
Mordi o interior da boca ao lembrar-me que ele fora, de facto, o soldado
mais reputado do Exército Celestial.
— Mas foste tu quem enfraqueceu as barreiras, quem instigou os
tumultos no Mar do Leste, quem planeou o rapto da Princesa Fengmei...
— Xingyin, só tu sabes isso — interrompeu ele com uma calma
irritante. — Os celestiais não sabem quem sou aqui, pelo menos, por
enquanto. Acreditam que sou apenas um espião, como os que enviaram para
infiltrar a nossa corte, em vão. Além disso, o imperador não vai querer
admitir que foi enganado todos estes anos; o seu orgulho é demasiado
grande. Por enquanto, ele vai procurar uma forma de salvaguardar a sua
dignidade, em vez de convocar os seus aliados para uma guerra que não
deseja. Pelo menos, enquanto o equilíbrio de forças for tão incerto. — Um
sorriso passou-lhe pelos lábios. — Apesar de agora estar claramente a
pender para o nosso lado.
As pérolas, vociferei em silêncio.
Parecendo não reparar na raiva que fervia dentro de mim, ele tirou uma
tangerina da taça e descascou-a. Ofereceu-me então o fruto, mas nem me
dignei a responder.
— E eu? — perguntei-lhe. — Certamente é uma violação da vossa
preciosa trégua raptar um soldado celestial e roubar as pérolas que o
imperador queria para si. — A minha voz vibrava com triunfo; tinha a
certeza de que dessa vez acertara no alvo. — Liberta-me, devolve-me as
minhas posses e não lhes direi o que fizeste.
Negociar com ele feria o meu orgulho, mas não estava em posição de
ser esquisita.
Ele enfiou o fruto na boca, um gomo de cada vez, mastigando com
grande concentração. Estaria a evitar responder-me? Não se apercebera
disso antes? Pouco provável, dada a sua astúcia.
Por fim, apoiou os cotovelos na mesa e cruzou os dedos.
— Teria preferido que não descobrisses isto.
— Que não descobrisse o quê?
Um arrepio percorreu-me a pele. Não me parecia que fosse gostar de
ouvir o que ele diria a seguir.
— A Corte Celestial acredita que és a minha honorável convidada, a
minha futura noiva. A impostora astuciosa que persuadiu o imperador a dar-
lhe o selo, tomou as pérolas dos dragões e fugiu para cá de livre vontade.
Não me podem criticar por te dar asilo; não viola os termos das tréguas se
eu não souber dos teus crimes.
— Seu monstro — praguejei entre dentes. — Isto foi tudo obra tua.
Ninguém acreditaria que eu... que nós...
Senti um aperto na barriga ao recordar os rumores que nos rodeavam.
Que eu desprezara, achando que essas bisbilhotices não eram importantes.
Estava errada, tão errada. As palavras têm poder; tornam falsidades em
realidades, constroem reputações ou destroem-nas. Foi por isso que confiei
tão rapidamente em Wenzhi. Era por isso que tantos acreditavam agora que
eu fizera aquilo, uma reconhecida mentirosa que escondera a sua identidade
de todos os que a conheciam. Quem confiaria em mim, com a minha honra
enlameada?
— Liwei — disse eu. — Ele acreditaria em mim. Ele estava lá...
A minha esperança frágil esboroou-se quando algo me avivou a
memória. Os gritos que ouvira quando Wenzhi me levara embora, o choque
de metal... Liwei fora atacado? Teria sido ferido? Ele teria tentado ajudar-
me. Teria tentado vir atrás de mim. A não ser que tivesse sido impedido de
o fazer.
— O que lhe fizeste? — perguntei. — Quando uma expressão irada
passou pelo rosto de Wenzhi, senti uma onda de alívio. — Ele escapou —
afirmei com convicção.
— Mesmo que ele fale em tua defesa, poucos vão acreditar nele. As
provas contra ti são irrefutáveis e é bem sabido que ele tem um fraquinho
pela sua antiga companheira. — Fez então uma pausa, como se estivesse a
pesar as próximas palavras. — Xingyin, lamento que isto te cause angústia,
mas é melhor assim. Um novo começo. Esquece o Reino Celestial. Não há
lá nada para ti.
Ele falou gentilmente e nesse momento... odiei-o. A enormidade do que
ele fizera tombou sobre mim, o meu corpo tenso de terror. Se o imperador
acreditasse que eu o traíra, o que faria à minha mãe? Honraria ainda a
promessa de não lhe fazer mal? Tinha de regressar para repor a verdade.
Wenzhi abriu a boca para falar de novo, mas então um soldado entrou a
correr e fez uma vénia profunda.
— Vossa Alteza, o Exército Celestial... — começou num tom urgente.
— Agora não — vociferou Wenzhi.
O soldado ficou hirto, deu meia-volta e apressou-se a sair, fechando as
portas atrás de si.
— O Exército Celestial?
A minha voz tinha um tom de interesse moderado, apesar de estar em
pulgas para saber. Um breve instante de hesitação foi o único sinal do seu
desconforto.
— Apenas os problemas habituais na fronteira.
Fingi indiferença, apesar de a minha mente correr desenfreadamente,
tentando fazer sentido de tudo o que ouvira. Aquele soldado apressara-se a
trazer notícias do Exército Celestial. E a resposta brusca de Wenzhi não era
nada normal para ele. Aquilo não era um mero caso de tropas truculentas na
fronteira. Algo mais sério estava a acontecer, algo que ele queria esconder
de mim.
Como mentia bem, percebi com um aperto no coração. Mas eu já não
era tão fácil de enganar.
Assim que ele saiu, corri para as portas. Eram feitas de ébano, com um
painel de madeira sólida na parte de baixo e uma treliça na parte de cima,
num padrão de círculos sobrepostos forrados com seda branca. Baixei-me
para esconder a minha silhueta do outro lado.
A voz de Wenzhi chegou aos meus ouvidos, baixa e abafada.
— Dupliquem a guarda. Se acontecer algo inesperado ou ela tentar
fugir, informem-me imediatamente.
Seguiu-se o tilintar de armadura, talvez os soldados fizessem uma vénia.
A ideia de ver a minha guarda duplicada enfureceu-me. Como poderia
escapar agora? Arregaçando a saia comprida, deixei-me cair no chão. O
mármore era duro e frio, mas talvez conseguisse ouvir algo importante.
Devo ter passado horas ali sentada, com as costas contra as portas, até
me doer o pescoço e sentir cãibras nas pernas. Por duas vezes levantei-me
num salto e fugi a correr ao ouvir a madeira a ranger. O sol baixou no céu e
o meu quarto ficou mergulhado em sombras. Contudo, não descobrira nada,
além das refeições preferidas dos guardas, as suas histórias familiares, os
imortais de quem gostavam. Com um suspiro, ergui e comecei a deambular
pelo quarto, tentando acalmar os protestos constantes da minha barriga.
Junto à janela, parei. Mais de mil soldados estavam reunidos abaixo, a
armadura preta a brilhar como um oceano de noite. Wenzhi erguia-se num
palanque diante deles, dirigindo-se às tropas como costumava fazer antes de
um confronto iminente... mas ficava agoniada só de pensar que agora
planeava a perdição daqueles ao lado de quem lutara. Fiz um esforço para
ouvir, mas nada atravessava a barreira, nem mesmo o suspiro da brisa que
passava por ela. Esmurrei a barreira até me doerem os punhos. Se pelo
menos pudesse ouvir o que estava a dizer, isso responderia às perguntas que
me queimavam a mente.
Abaixo, um grupo de soldados deu um passo em frente. A um aceno de
Wenzhi, ergueram as mãos. O ar cintilou com magia quando uma extensão
de nuvem violeta se transformou em areia dourada.
Porquê? Encostei-me à barreira, mas os soldados dispersaram pouco
depois. Um sentimento de inquietação caiu sobre mim, como se estivesse
parada numa ponte frágil que podia ceder a qualquer momento, lançando-
me para o desfiladeiro. A noite caíra e apaguei a lâmpada, mergulhando o
quarto na escuridão. Talvez os soldados ficassem menos alerta se
acreditassem que eu estava a dormir.
Regressei ao meu posto junto da porta, baixando-me e abraçando os
joelhos. Aproximava-se um confronto, disso tinha a certeza. Mas quando?
Qual o envolvimento do Exército Celestial? E porque tinham transformado
as nuvens em areia?
Ouviram-se passos do lado de fora. Armadura a tilintar.
— Sua Alteza quer um relatório.
Uma voz de mulher dessa vez.
A mulher falava tão baixo que tive de fechar os olhos e esforçar-me para
ouvir. Como fizera quando atirara ao arco vendada na floresta de
pessegueiros.
— Tudo em ordem. Hoje esteve calma e deitou-se cedo. Talvez esteja
finalmente a perceber como as coisas são.
Alguém se riu. Cerrei o maxilar ao ouvir o som trocista.
— Capitão Mengqi, perdemos o discurso de Sua Alteza — disse outro
num tom respeitoso. — Tem notícias para nós?
Abri as orelhas. Alguém com o posto de capitão? Podia estar mais bem
informada.
— As nossas fontes dizem que o Príncipe Herdeiro do Reino Celestial
vai juntar-se ao exército amanhã. Vão marchar no dia seguinte, de
madrugada.
Liwei vinha para cá? Porquê? A minha esperança afundou-se em medo
quando me interroguei sobre o que faria Wenzhi? De alguma forma,
conseguiria torcer a situação a seu favor. O que significava... que era uma
armadilha e eu era o isco.
Alguém clareou a garganta.
— Está tudo em ordem? — perguntou um soldado, um pouco nervoso.
— Assim que atravessarem a fronteira, a nossa vitória está garantida.
A voz da capitão vibrava com satisfação e as suas palavras foram
recebidas com sons de aprovação.
Pouco depois, a Capitão Mengqi afastou-se. Quando os seus passos
deram lugar ao silêncio, encostei-me à parede, tentando reprimir um ataque
de pânico. Porque estaria aqui o Exército Celestial? Não podia ser por
minha causa, o imperador não moveria um dedo em minha defesa, muito
menos depois das mentiras que Wenzhi espalhara. Deviam estar ali por
causa das pérolas. Mas porque viriam sozinhos, sem sequer reunirem os
seus aliados? Certamente, não tencionavam atacar e quebrar a trégua, não
por uma guerra para a qual não estavam prontos e não desejavam. Para lá
das alegações de Wenzhi, sentia que isso era verdade. No Exército Celestial,
parecia haver pouca vontade de voltar a lutar com o Reino Infernal. Os
soldados não falavam triunfalmente da guerra anterior, mas em sussurros
tingidos de temor. Tinham partido para a guerra esperando uma vitória
rápida, apenas para coxearem de volta com uma trégua frágil.
Não, os celestiais não cruzariam a fronteira. Liwei nunca seria tão
imprudente, nem mesmo se fosse provocado. Eu estudara com ele; sabia
como pensava. Perdas desnecessárias de vidas eram algo que não aceitaria.
Seria isto um estratagema, para distrair o Reino Infernal enquanto
procuravam as pérolas? Mas Wenzhi devia saber que o Exército Celestial
não tencionava invadir, dissera isso mesmo. Qual seria o seu plano? Com as
pérolas em sua posse, Wenzhi controlava os dragões. Era do seu interesse
provocar um confronto agora, perto do seu reino. Contudo, se atacassem os
celestiais sem um motivo, o resto do Domínio Imortal virar-se-ia contra
eles.
A minha cabeça latejava enquanto tentava juntar os fragmentos dos
meus pensamentos. A Muralha de Nuvem ficava para lá do Deserto
Dourado. Os soldados tinham transformado as nuvens violeta em areia.
Estariam a criar uma nova fronteira? A ilusão de uma fronteira? A súbita
compreensão deixou-me gelada.
Era uma armadilha, mas muito pior do que imaginara.
Os celestiais seriam atraídos para dentro do Reino Infernal com uma
fronteira falsa. Assim que atravessassem, estariam a violar a trégua e
vulneráveis a retaliação. Nem mesmo os aliados do imperador poderiam
criticar o Reino Infernal por algo que fizessem em defesa do seu território.
Uma emboscada esperava os celestiais, disso tinha a certeza, e nada seria
deixado ao acaso. Um plano astucioso, odioso.
Levei a mão à boca para abafar um grito. Oh, se pelo menos não me
tivessem tirado as pérolas! Mas eu fora tentada pelo poder, desesperada por
encontrar uma forma de salvar a minha mãe sem pagar o preço do
imperador. Como fui gananciosa ao querer ter tudo. Como fui arrogante, ao
pensar que os podia proteger quando nem sequer me conseguia proteger. E
agora, a devastação iminente, a morte de milhares, ficaria na minha
consciência.
Uma onda de escuridão abateu-se sobre mim, privando-me das minhas
últimas forças. Fechei os olhos, mas só conseguia ver o solo encharcado de
sangue, a cintilar com a armadura de celestiais caídos em combate. O olhar
vazio de Liwei. O corpo sem vida de Shuxiao. Os rostos de todos com quem
servira passavam-me pela mente, todos a marchar para a sua perdição.
Mordi com força o nó de um dedo, até quebrar a pele e um jorro quente de
ferro e sal verter para a minha boca. A minha visão ficou turva com as
lágrimas quentes que me enchiam os olhos quando tombei para o chão, o
meu corpo enrolado numa bola apertada, mãos cerradas em punhos que
nada podiam fazer a não ser bater no chão de mármore frio.
Não podia deixar que Liwei e o Exército Celestial caíssem na armadilha
mortal que os esperava. Não os podia deixar morrer por minha causa.
Que podia eu fazer para o evitar? Se tivesse a minha magia e o Arco do
Dragão de Jade, podia ter arriscado uma fuga. Mas sem poderes, sem armas,
sem amigos, as minhas esperanças de fuga eram tão ténues como as de um
rato preso nas garras de um tigre. Por agora, só podia confiar na minha
astúcia. E recordei que nem todas as batalhas podiam ser vencidas com
força bruta; às vezes, era a água que demolia a pedra.
Descarregara a minha raiva sobre Wenzhi como uma criança, magoada,
zangada e impetuosa. A minha atitude de desafio apenas o deixara
desconfiado, o que tomara a fuga mais difícil. Precisava de o convencer de
uma mudança de ideias para o levar a baixar a guarda. Só então conseguiria
recuperar as pérolas e escapar. Mas ele não seria facilmente enganado. As
lágrimas podiam ser úteis, mas Wenzhi já me vira a matar monstros sem
pestanejar. Implorar não funcionaria; a sua ambição não admitia piedade.
Nem seria fácil mentir-lhe, ele conhecia-me demasiado bem. Pelo menos,
pensava que sim; a ira ardeu em mim ao lembrar-me das suas presunções
arrogantes. Como podia ter imaginado que eu alinharia nos seus planos
desprezíveis?
Mas talvez eu pudesse usar contra ele o que ele sabia sobre mim, para o
fazer pensar que ele me persuadira a passar para o seu lado. Ele tentara usar
a libertação da minha mãe para me convencer. Acreditava que eu faria
qualquer coisa para a salvar, tal como ele fizera para garantir a sua posição.
Estava errado, eu não era como ele. A minha honra era preciosa para mim, e
eu sabia como era também preciosa para a minha mãe.
Ainda estava escuro, mas atirei as cobertas para o lado e levantei-me
para me preparar, o estômago a roncar como sempre fazia na manhã de uma
batalha. Dessa vez, contudo, não tinha armas, além de sorrisos e palavras,
nenhuma das quais eu era hábil a manejar. E em vez de armadura, estaria
vestida de seda. Vasculhei o armário, repleto de roupas requintadas em
cores vivas. Como me parecia trivial e errado preocupar-me com vestuário
naquele momento. Contudo, uma aparência exterior cuidada poderia ser
uma distração das mentiras descaradas que tencionava pronunciar.
Determinada a seguir esse rumo, tirei um vestido preto que condizia bem
com o meu estado de espírito. Garças estavam bordadas na saia e quando
toquei numa asa branca, a ave esvoaçou e ergueu-se pela seda preta como a
noite. Se pelo menos eu conseguisse fazer o mesmo.
Passaram horas, o sol ergueu-se no céu e Wenzhi não veio. Pensei
amargamente que talvez estivesse demasiado ocupado a planear o massacre
do dia seguinte. A preparar as armadilhas, a urdir planos e estratagemas,
enquanto tudo o que eu conseguira fora raspar um buraco considerável na
mesa. Não, não podia ficar ali sentada à espera enquanto aqueles de quem
gostava corriam perigo. Se ele não vinha até mim, eu iria procurá-lo, antes
que fosse tarde de mais.
Fui até às portas e bati alto na madeira. Vozes sussurradas ouviram-se
através dos painéis forrados a seda.
— Não respondas, é outro truque — sussurrou uma das vozes.
— E se ela se magoou ou tem algum problema?
Uma fungadela desdenhosa.
— Magoou-se? Nós é que nos vamos magoar se abrirmos as portas.
Franzi a testa ao ouvir as suas suspeitas, fundamentadas que eram. Nas
minhas tentativas de fuga, arranhara, pontapeara e praguejara como se não
houvesse amanhã.
— Preciso de falar com o Príncipe Wenzhi — exigi, impaciente.
O título soava estranho nos meus lábios.
O meu pedido foi recebido com silêncio. Quando começava a pensar
que o meu pedido seria recusado, que teria de forçar a passagem, as portas
abriram-se. Um escudo cintilava à volta dos soldados, lanças apontadas para
mim.
Mesmo na situação difícil em que me encontrava, tive de reprimir a
vontade de rir. Achar-me-iam assim tão temível?
— Podem levar-me ao Príncipe Wenzhi? — perguntei no meu tom mais
doce, tentando não me engasgar nas palavras.
Os guardas trocaram olhares perplexos. Depois de sussurrarem entre si,
um deles afastou-se apressadamente. Iria chamar reforços? Pouco depois,
uma militar alta apareceu a caminhar pelo corredor. Tinha feições atraentes,
apesar da desconfiança nos olhos castanhos e límpidos. Não se parecia nada
com os infernais que imaginara a partir das lendas de Ping’er, nenhum deles
se parecia. Por muito que me custasse admitir, a palavra “infernal” alterara-
me as perceções, fazendo-me pensar o pior deles quando não eram
diferentes do resto de nós.
— Sou a Capitão Mengqi, da guarda pessoal do Príncipe Herdeiro
Wenzhi. Sua Alteza deixou ordens para não ser incomodado hoje —
anunciou a recém-chegada, com uma determinação severa.
Mas eu não regressaria docilmente ao meu quarto, não seria
desencorajada assim tão facilmente.
— O Príncipe Wenzhi disse-me que podia falar com ele sempre que
desejasse — menti descaradamente, surpreendida com a minha ousadia.
Um soldado jovem e pálido protestou:
— Sua Alteza está a meditar antes da bat...
Um olhar feroz da Capitão Mengqi fê-lo calar-se e recuar um passo.
Suspirei, alisando um vinco inexistente no meu vestido.
— O Príncipe Wenzhi ficará muito desagradado quando souber disto. —
Arregalei então os olhos, como se me tivesse ocorrido uma ideia súbita. —
Porque não me levam até ele? Se ele se recusar a receber-me, podemos
voltar para cá. — Ao ver os olhos da capitão a estreitarem-se com suspeita,
acrescentei: — Sete soldados armados não conseguem conter uma
prisioneira sem armas nem poderes?
Falei-lhes em tom de desafio e com uma nota de desdém, erguendo os
pulsos para mostrar o metal maldito que os envolvia.
Com um gesto de cabeça, a Capitão Mengqi indicou-me que a seguisse.
Ela liderava o grupo com uma passada rápida, enquanto os outros guardas
seguiam atrás de mim. A cada passo, conseguia sentir os seus olhares no
meu crânio, as lanças apontadas às minhas costas.
Apressei-me a acompanhar a capitão, estudando o percurso, esperando
encontrar uma saída. O aroma intenso a sândalo pairava no ar, emergindo de
queimadores de incenso em bronze espalhados pelo corredor. Treliças
trabalhadas a ouro decoravam os pilares de ébano e o chão de mármore
verde tinha grossos veios de prata.
Para lá das portas de madeira ao fundo do corredor, entrámos para um
jardim luxuriante. Ali, a fragrância das flores abafava o aroma intenso do
incenso. Parei, olhando em redor como se estivesse em transe, enquanto
procurava algo que pudesse aproveitar. O jasmim era por vezes usado como
sedativo, mas era demasiado fraco.
Apanhei algumas folhas de gingko, que causa tonturas e dores de
estômago, embora ainda não soubesse o que tencionava fazer. Apesar da
abundância de plantas e ervas medicinais, não conseguia encontrar nada
útil, nem sequer um cogumelo com propriedades alucinogénias. Se pelo
menos tivesse sido uma aluna mais dedicada! Mas então parei, ao avistar as
flores azuis com pétalas bicudas a espreitar no meio da relva. Já as vira
antes... no meu primeiro dia na Câmara da Reflexão. A memória do nosso
instrutor irado surgiu-me na mente, e de Liwei a fingir dormir. Baixei-me e
apanhei uma, fingindo admirá-la enquanto apertava as pétalas entre os
dedos até ficarem pegajosos com seiva. Quando inalei o cheiro, senti uma
tontura de sono. Larguei logo a flor e limpei os dedos à saia. Lírios-estrela.
Misturados com vinho, podiam mergulhar qualquer um num sono profundo.
Atrás de mim, um soldado pigarreou, impaciente. Ergui o olhar e reparei
que a Capitão Mengqi já saíra do jardim. Fiquei contente, pois ela parecia
mais difícil de enganar. Ao levantar-me, fingi perder o equilíbrio e caí,
raspando a mão numa pedra até sangrar. Enquanto os soldados olhavam,
consternados, a minha outra mão escondeu-se atrás das costas para apanhar
um punhado de flores.
— Sou tão desastrada.
Deitei-lhes um sorriso patético. Mal podia acreditar que dissera a
primeira mentira apenas alguns anos antes. Odiara mentir a Liwei e
Shuxiao, mas aquele logro despertou algo novo em mim. Uma satisfação
inesperada, uma alegria interior, ou quase, por enganar os meus captores,
por pagar a Wenzhi na mesma moeda.
Sacudi a terra da minha saia, enquanto escondia as flores na minha
bolsa. Quando uma sombra caiu sobre mim, olhei para cima e deparei-me
com um desconhecido parado ao nosso lado. As suas roupas eram
magníficas, quase sumptuosas, cravejadas de pedras preciosas que
cintilavam contra o brocado púrpura. Pareceu-me familiar, com maçãs do
rosto elevadas, maxilar forte e lábios finos. Algumas pessoas poderiam
achá-lo atraente, mas a astúcia inquieta na sua expressão repugnou-me.
— Vossa Alteza.
Os soldados saudaram-no com uma vénia.
Outro príncipe?, pensei para mim mesma. Não era de surpreender, pois
o Rei Infernal não era casado e dizia-se que tinha dezenas de concubinas,
muitas das quais faziam o que podiam para gerar filhos que consolidariam a
sua posição e influência.
Ele ignorou os outros, a sua atenção fixa em mim.
— E quem é você?
O seu tom era agradável, mas os olhos amarelados faziam-me lembrar
uma serpente à caça da presa.
Não respondi, sem saber o que dizer, convencida de que não encontraria
um aliado ali. Felizmente, a Capitão Mengqi apareceu, caminhando na
nossa direção. Franziu a testa ao avistar o desconhecido, mas saudou-o com
uma vénia respeitosa.
— Capitão Mengqi. Como é raro vê-la afastada do meu irmão mais
novo. Sabe dizer-me quem ela é?
E gesticulou para mim.
Irmão mais novo? Sobressaltada, olhei-o com mais atenção. Seria o
Príncipe Wenshuang? O irmão que Wenzhi detestava?
— É convidada do Príncipe Herdeiro Wenzhi — respondeu a Capitão
Mengqi, num tom calmo.
Um ar ameaçador passou pelo rosto do homem. A menção do título de
Wenzhi enfurecera-o assim tanto? E a Capitão Mengqi fizera-o para o
antagonizar, para evitar que nos detivesse ou pelos dois motivos?
O Príncipe Wenshuang prendou-me com um sorriso encantador,
desaparecidos todos os sinais da sua ira.
— Ouvi falar de si. É mesmo do Reino Celestial?
Incomodada pelo seu olhar, assenti brevemente.
— Perdoai-nos, Vossa Alteza, mas temos de seguir caminho.
A Capitão Mengqi fez uma nova vénia, o corpo tenso quando se ergueu.
O Príncipe Wenshuang torceu os lábios e gesticulou com a mão para nos
dispensar. Enquanto nos afastávamos, sentia o olhar dele cravado nas
minhas costas.
Passámos um portão circular de pedra até um pátio onde se erguia um
enorme edifício rodeado de pinheiros, altos e verdes. O ar era fresco e doce,
o aroma a agulhas de pinheiro misturado com a brisa noturna... reminiscente
do próprio odor de Wenzhi, mas suprimi esse pensamento indesejado.
Pilares de mármore preto flanqueavam a entrada, esculpida num padrão em
espiral marchetado a ouro. As portas fechadas eram painéis sólidos de
ébano, não dando qualquer pista sobre o que estaria do outro lado.
A Capitão Mengqi bateu com os nós dos dedos na madeira. Seguiu-se
um breve silêncio e o som de passos do outro lado.
— Dei instruções claras de que não queria ser incomodado — reagiu
friamente Wenzhi, do interior.
A capitão deitou-me um olhar zangado.
— Peço desculpa pela intromissão, Vossa Alteza. Vamos embora
imediatamente.
Eu não.
— Eu insisti que a Capitão Mengqi me trouxesse até cá — disse em voz
alta.
Ele não respondeu. Sustive a respiração enquanto a Capitão Mengqi
soltava um suspiro e os soldados trocavam olhares ansiosos.
Então, as portas abriram-se. Wenzhi estava parado à entrada, a túnica
verde-escura quase a roçar o chão. O cabelo caía-lhe sobre os ombros, solto.
Ao ver-me, arregalou os olhos e depois estreitou-os, com desconfiança,
pensei eu. Mas deu um passo para o lado para me deixar entrar.
Entrei para o quarto e ouvi as portas a fecharem-se atrás de mim com
um baque ominoso. Endireitei as costas, olhando em redor para os
aposentos espaçosos, para as paredes de madeira, o teto elevado e as janelas
altas. Queimadores de incenso em ouro flanqueavam a entrada, felizmente
apagados, deixando-me grata pelo ar sem aromas intensos. Uma cama de
mogno erguia-se numa plataforma elevada no meio do quarto, envolta em
cortinas brancas que pendiam da estrutura de madeira. Livros e rolos
estavam empilhados sobre uma secretária grande junto da janela, que devia
ter uma bela vista para o pátio, se não tivesse as portadas fechadas. Várias
espadas pendiam da parede mais distante do quarto, em bainhas de ouro e
prata, madeiras preciosas e jade. Ao vê-las, fiquei quieta, tentando suprimir
um impulso de excitação.
Ele caminhou para mim, o seu olhar não me deixava mover. Os meus
dedos contorceram-se, mas forcei-os a ficarem relaxados junto ao vestido.
Se conseguisse manter a compostura, se ele julgasse que eu não sabia nada
dos seus estratagemas, tinha uma hipótese. Mas se revelasse as minhas
verdadeiras intenções, voltaria a ficar presa, sem esperança de fuga. E esse
seria o menor dos meus problemas.
O olhar dele deslizou dos meus chinelos de brocado, ao longo do meu
vestido, até ao pente de jade no meu cabelo.
— Porquê... isto? Apesar de a cor te ficar bem.
Encolhi os ombros.
— Estava aborrecida.
Um sorriso passou-lhe pelos lábios.
— Sentiste a minha falta hoje?
Reprimi a vontade de lhe rosnar. Palavras duras não me trariam nada a
não ser um momento de satisfação infantil, desfazendo todos os meus
esforços para chegar até ali. Em vez disso, ergui o queixo, deitando-lhe um
olhar desafiador.
— Mesmo que tivesse sentido, nunca o admitiria.
— Porque estás aqui, Xingyin? — perguntou-me bruscamente.
— Quero respostas — ripostei no mesmo tom. — Tens as pérolas. O
Arco do Dragão de Jade. Já não sou útil para ti. Porque me manténs aqui?
Ele ficou em silêncio por um momento, como se estivesse a decidir o
que dizer.
— Não é óbvio? Os meus sentimentos por ti não mudaram.
Pensei que não sentiria nada por ele a não ser repugnância. Contudo,
aquela confissão expressa em termos simples agitou algo dentro de mim.
Fraca, era isso que eu era, e amaldiçoei-me. Apesar da ternura das suas
palavras, nunca me esqueceria das coisas terríveis que fizera. Alegara gostar
de mim e depois tirara-me tudo o que me era querido. Se o seu amor era
isso, não o queria.
Olhei para o chão, tentando parecer confusa. Dividida. Indecisa.
— O que disseste antes... sobre nós. Sobre o nosso futuro. Sobre a
minha mãe. Estavas a falar a sério?
Ele inclinou-se para mim, tão perto que uma madeixa do seu cabelo
tocou no meu rosto.
— Já não estás zangada comigo?
Apesar da voz gentil, o seu olhar observava e avaliava. Respirei fundo,
tentando acalmar-me.
— Antes estava zangada. Furiosa. Como podia não estar, depois do que
fizeste? — Erguendo o queixo, olhei-o nos olhos. — Mas tinhas razão. O
que importa é libertar a minha mãe. Foi por isso que me juntei ao exército,
que trabalhei todos aqueles anos. Além disso...
Deixei a frase por acabar, esperando, contudo, que a implicação fosse
óbvia. Que ele confundisse o rubor na minha cara com desejo, e não a
vergonha que era.
— Disseste que me podias ajudar a libertá-la. Como? — perguntei com
urgência, como se estivesse a tentar testar a sua sinceridade, em vez de o
convencer da minha.
Ele não contaria que um adversário em desvantagem passasse ao ataque,
ao invés de se defender. Seria um movimento imprudente, até mesmo
insensato. Mas o que importava isso quando não tinha mais nada a perder?
— Quando derrotarmos o Reino Celestial, com o poder dos dragões do
nosso lado, nada ficará fora do nosso alcance.
O seu tom era reservado, mas os olhos tinham um brilho assombroso.
Forcei-me a assentir, fervendo por dentro por ele acreditar que podia
comandar os dragões. Mesmo contra a vontade deles, mesmo que pudessem
morrer por o servir. Como se a batalha do dia seguinte fosse justa, em vez
das táticas desonestas que tencionava usar para emboscar os soldados com
quem lutara antes.
Enterrei a minha repugnância atrás do sorriso doce nos meus lábios.
— Dás-me a tua palavra?
Como doía deixá-lo acenar na minha cara a coisa que mais desejava em
todo o mundo. Mais ainda, porque continuava fora do meu alcance.
Ele pestanejou lentamente, parecendo incrédulo. Contudo, a sua mente
continuava arguta como sempre.
— Estás disposta a cortar todos os laços com o Reino Celestial? —
contrapôs, procurando a mais pequena fissura na minha compostura.
Estaria a falar de Liwei? Pus uma máscara de indiferença.
— O Reino Celestial não significa nada para mim. O imperador prendeu
a minha mãe. A imperatriz tratou-me com rancor e desdém. Quanto ao
filho... — Naquele momento, deixei que uma nota provocadora me tingisse
a voz. — Ainda tens ciúmes dele? Ele magoou-me uma vez e só o ajudei
porque esperava que ele falasse a favor da minha mãe.
Era o que Liwei me acusara de fazer. Algo em que Wenzhi poderia
acreditar, dada a sua falta de escrúpulos. Dei um passo na direção dele, até a
seda das nossas vestes se tocar.
— Tu foste a minha escolha, mesmo antes de partirmos ao encontro dos
dragões. A minha ira nos últimos dias não tem nada que ver com ele, mas
contigo: o que fizeste, como me mentiste, como traíste a minha confiança.
— Suavizei o tom, agora numa voz grave repleta de promessa, e atirei a
cabeça para trás. — Oh, ainda não te perdoei... vai demorar algum tempo.
Mas depende...
— De quê? — quis saber ele.
— Se consegues resolver as coisas entre nós.
Ele olhou para mim, braços cruzados sobre o peito. Conhecia aquele
olhar, perdido em pensamentos, pesando cada palavra proferida contra o
que ele sabia. Lembrar-se-ia da frieza entre mim e Liwei no Domínio
Mortal? A promessa que lhe fizera no telhado? As melhores mentiras
tinham as suas raízes na verdade.
Por fim, ele baixou os braços e suavizou a expressão do rosto.
— Fica comigo e prometo-te que libertamos a tua mãe assim que
derrotarmos o Reino Celestial. A tua família também vai ser minha.
Proferiu as palavras com a gravidade de um juramento, uma promessa
que há poucos dias me traria uma alegria imensa, mas que agora me dava a
volta ao estômago. Contudo, também me dava a esperança de que ele
estivesse a acreditar nas minhas mentiras. Que ainda tivesse uma hipótese.
— Não deixarei que esqueças.
Enunciei suavemente cada palavra.
Os seus olhos brilhavam como prata derretida quando ergueu uma mão
para me acariciar o rosto. O nosso abraço na aldeia dos mortais passou-me
pela mente, quando ansiava o seu toque e desejava mais. Mas agora sabia o
que ele queria de mim e não lho daria. Não podia voltar a beijá-lo; não
mentia assim tão bem.
— Vamos fazer um brinde? Para celebrar? — sugeri.
— Se quiseres.
Baixou a mão e ergueu a voz para chamar uma serva, que entrou com
uma vénia reverente.
— Vinho de jasmim — pediu Wenzhi, lembrando-se da minha bebida
preferida.
Contudo, tal atenção era agora irrelevante; precisava de algo mais forte
para disfarçar o sabor amargo do lírio-estrela. Quando os meus dedos
tocaram a pele fria do seu pulso, tentei não tremer.
— Apetece-me algo diferente. Vinho de ameixa, talvez?
Ele assentiu para a serva, que fez uma vénia antes de sair. Quando as
portas se fecharam atrás dela, ele deu um passo na minha direção, o seu
olhar intenso de intenção. Os meus olhos percorreram o quarto, procurando
alguma coisa, qualquer coisa, para o distrair desses pensamentos. Um qin
estava pousado numa mesa baixa a um canto, um instrumento lindo, a
madeira lacrada de vermelho marchetada a madrepérola.
— Tocas? — perguntei-lhe.
Mais uma lembrança de como não o conhecia de todo.
— Um pouco.
— Quem diz “um pouco”, normalmente, quer dizer “muito bem”. Tens
talento?
A minha voz retinia em desafio. Os cantos da sua boca ergueram-se
ligeiramente.
— Um pouco.
Baixou-se então diante do instrumento, a testa franzida em
concentração. A sua canção começou num sussurro tantalizante, suave e
doce. À medida que dedilhava as cordas, as notas subiam e desciam com
uma beleza fantasmagórica. Tocava com tanta intensidade, com tanta paixão
que, mesmo sabendo tudo o que sabia sobre ele, aquela música tocou-me
profundamente.
Quando a última nota se desvaneceu, limpei a palma das mãos à saia do
vestido. As pétalas amassadas de lírio-estrela caíram discretamente para o
chão, a seiva espremida para o vinho que a serva trouxera. Erguendo o jarro
de porcelana, enchi uma taça de vinho e ofereci-lha com ambas as mãos.
Ele aceitou-a com um sorriso, mas quando a levou aos lábios, parou.
Ergui-lhe a minha taça.
— Aos dias futuros?
Ele aceitou o brinde e esvaziou a taça. A sua expressão era de surpresa,
até mesmo de perplexidade. Estaria a estranhar o sabor?
— Tocas bem — elogiei, um pouco depressa de mais, tentando desviar-
lhe a atenção.
— Não tão bem como tu tocas flauta.
A única vez que me ouvira tocar fora no banquete de Liwei, a música
que lhe oferecera. Wenzhi nunca me pedira para tocar para ele e interroguei-
me se seria por isso. Para comprar tempo precioso, tirei a minha flauta e
inclinei a cabeça para ele numa pergunta sem palavras.
— Seria uma honra — disse ele num sussurro.
Já não tocava havia algum tempo. Soprei algumas escalas para me
familiarizar de novo com o instrumento, vasculhando a minha mente à
procura da canção que queria. A minha respiração deslizou para dentro do
jade oco, controlada e calma, as notas lânguidas e relaxantes. Enquanto
tocava, pensava na cascata no Pátio da Tranquilidade Eterna, na água a cair
sobre as pedras, a embalar-me no meu sono. Na lua a brilhar no céu escuro,
na luminosidade que reconfortava inúmeros mortais antes de fecharem os
olhos para dormir. Nos lírios-estrelas, esmagados no vinho de Wenzhi, uma
poção soporífera mais potente do que meia dúzia de jarros de vinho, que
agora mesmo lhe corria no sangue.
A sua mão agarrou a flauta, afastando-a dos meus lábios. Senti a
pulsação a acelerar quando lhe deitei um olhar inocente. Tirei o instrumento
dos seus dedos enfraquecidos e guardei-o na minha bolsa. Apressadamente,
peguei no qin e dedilhei a primeira canção que me ocorreu, uma melodia
vibrante e animada. Estava destreinada e tinha menos talento do que ele,
mas era suficiente para disfarçar a sua voz para os soldados no exterior.
Ele pestanejou lentamente, como se estivesse a lutar contra uma onda de
fadiga que, esperava eu, em breve o afundaria num sono profundo.
— Xingyin, o que fizeste?
As palavras soavam arrastadas, o tom furioso misturado com mágoa.
— Nada que não mereças.
Os meus dedos deslizaram sobre o qin, dedilhando acordes vibrantes
que culminaram num crescendo triunfal, uma sátira dos apuros em que ele
se encontrava.
Um arquejo estrangulado saiu-lhe da garganta, como se estivesse a
tentar chamar os guardas, enquanto uma nova melodia fluía dos meus
dedos, agora lamentosa, com notas prolongadas e fúnebres que abafaram os
seus gritos.
— Porquê? — conseguiu perguntar.
Deitei-lhe um olhar trocista.
— Achavas mesmo que podia perdoar tudo o que fizeste? Que a minha
promessa aos dragões seria quebrada assim tão facilmente? Que eu trairia
os que me são queridos apenas para atingir os meus objetivos? Eu não sou
como tu.
Ele levou a mão à cintura, mas não tinha qualquer arma. Voltou a tentar
chamar os guardas, a sua voz pouco mais do que um sussurro rouco.
— Isto não vai mudar nada.
— Talvez não — sibilei, os meus dedos a deslizar sobre as cordas sem
parar. — Mas sei tudo sobre a tua armadilha para o Exército Celestial.
Tinha de fazer alguma coisa, ou nunca seria capaz de viver comigo mesma.
— Eles já cá estão. É tarde de mais. — A sua boca mantinha uma
expressão dura, mesmo quando os olhos se fechavam. — Eu sabia que ele
viria. Por ti ou pelas pérolas. Não importava por que motivo, mas eu sabia
que ele viria. — A sua voz era agora uma respiração forçada. — Tal como
suspeitava que irias para junto dele, se pudesses. Esperava que não, mas...
Cambaleou onde estava, pestanejando rapidamente antes de fechar os
olhos e cair no chão.
Continuei a tocar até ao fim da canção; parar agora convidaria suspeitas.
A melodia pesarosa era uma despedida adequada a tudo o que perdêramos.
Assim que a última nota se esvaneceu, levantei-me num salto. Não sabia
ao certo quanto tempo tinha até o soporífero perder o efeito. Pegando numa
espada da sua coleção, com um punho de jade branco cravejado de rubis,
olhei para a porta e abanei a cabeça. Não podia fugir antes de encontrar as
pérolas; não as podia deixar na posse de Wenzhi. Olhei de relance para o
corpo imóvel, para a túnica verde-escura estendida pelo chão, para cabelo
espalhado à sua volta como um lago de tinta. O sono relaxava-lhe as feições
severas, beliscando-me a consciência, tomada pela vergonha naquele
momento.
Que, tal como ele, também eu agora enganava com facilidade.
As pérolas estavam ali, tinha a certeza. Wenzhi manteria algo tão
precioso ao seu alcance, especialmente na véspera de uma batalha. Abri as
gavetas da secretária, mas encontrei apenas alguns selos em jade e metal,
um tinteiro e folhas soltas. As estantes só tinham livros e rolos, enquanto o
armário estava repleto de roupa que tombou para o chão na minha busca
frenética.
O sol baixou no céu e o quarto ficou mais escuro. Acendi as lanternas
de seda, que lançaram o seu brilho suave sobre as paredes. Wenzhi dormia
profundamente e a sua respiração rítmica quebrava o silêncio. Quanto
tempo teria até passar o efeito do soporífero? Ele pedira para não ser
incomodado, mas até quando ficaria essa ordem em vigor? E se alguém lhe
trouxesse uma refeição ou um relatório? E não conseguia parar de pensar no
que achariam os guardas que estávamos a fazer aquele tempo todo.
As minhas unhas cravaram-se na palma das minhas mãos. Forcei-me a
acalmar, a pensar. No covil de Xiangliu, eu conseguira sentir a presença do
Arco do Dragão de Jade. Fechando os olhos, foquei-me e tentei ignorar a
pulsação poderosa da aura de Wenzhi, estendendo os meus sentidos como
quando tentava acertar num alvo especialmente difícil. Premi as têmporas
com os dedos, tentando acalmar o bater do meu coração, silenciar o medo, a
frustração, assim como a esperança, recorrendo aos ensinamentos da Mestra
Daoming. Quando a calma caiu sobre mim, respirei mais facilmente e a
tensão abandonou o meu corpo. A toda a volta estendia-se uma escuridão
reconfortante, permeada de vislumbres de luz.
Abri os olhos. Lá estava, aquela sensação elusiva a roçar-me a
consciência, um sussurro, uma brisa passageira. A chamar por mim, como
fizera quando me levara até à caverna escondida no Pico Sombrio.
Certamente, as pérolas estavam guardadas no mesmo sítio do Arco do
Dragão de Jade.
Era como encontrar o caminho às cegas durante a noite, tirando um fio
de teia de aranha entre os meus dedos como guia. Passo a passo, segui a
atração até um pequeno armário lacado num canto do quarto. Na minha
procura frenética, devia ter-me escapado... ou estaria encantado para não ser
avistado? Corri para o armário e puxei as portas, descobrindo que estavam
trancadas com um pesado cadeado de latão. Impaciente, saquei da espada e
serrei as dobradiças com toda a minha força. A madeira era sólida e
demorou tempo, com farpas a furarem-me a pele quando finalmente
consegui soltar o painel de madeira.
Alguém pigarreou atrás de mim, um som deliberado a exsudar ameaça.
Virei-me para trás, receando dar com Wenzhi acordado, mas deparei-me
com os olhos amarelos do Príncipe Wenshuang.
Não o ouvira entrar, tão concentrada que estava na minha tarefa. Só
agora dava conta da mudança no ar, a pulsar com o calor da sua aura.
Entrou e fechou as portas, enquanto eu suprimia o instinto de gritar. A sua
presença encheu-me de temor, mas receava ainda mais alertar os guardas.
Se eles entrassem no quarto, nada que eu dissesse poderia convencê-los da
minha inocência. Mas ele era apenas um homem e eu estava tão perto, se
pelo menos conseguisse ver-me livre dele.
— O meu irmão sabe o que está a fazer?
Falou num tom agradável, com um sorriso nos lábios.
Não lhe respondi, sem saber o que dizer. Tamborilando com um dedo no
queixo, varreu o quarto com o olhar. Estava imaculado quando entrei, mas
agora parecia que passara ali um tornado, espalhando à toa as posses de
Wenzhi.
Então, respondeu à sua própria pergunta:
— Creio que não.
A minha pulsação acelerou quando dei um passo casual para o lado,
tentando tapar-lhe a vista do vulto adormecido de Wenzhi. O seu olhar
seguiu-me, iluminando-se de forma sinistra quando caiu sobre o corpo do
irmão. Senti-me tomada por desespero, pela certeza que daria o alerta. Não
teria escolha a não ser atacá-lo, e os guardas entrariam pelo quarto ao
primeiro choque de metal com metal. Seria aprisionada ou morta, deixando
os dragões escravizados e a minha mãe presa para sempre. E Liwei e o
Exército Celestial pereceriam.
Sem aviso, a sua magia irrompeu pelo ar e as paredes do quarto
brilharam com uma luz translúcida que se embrenhava nas fendas entre
portas e janelas. Um calafrio partiu do meu estômago, como se tivesse
engolido um pedaço de gelo. Conhecia aquele encantamento; já o invocara,
para impedir que a minha música se ouvisse no Pátio da Tranquilidade
Eterna. Eu podia gritar até ficar rouca e os guardas lá fora ouviriam apenas
o vento a soprar.
Essa ideia encheu-me o coração de esperança e terror.
— O que estais a fazer?
Fiquei contente por a minha confusão mascarar o meu medo e ajudava
que não tivesse de fingir. Apesar de o quarto estar envolto em silêncio e o
meu arco estar a um salto de distância, não podia correr o risco de ele
descobrir as pérolas. Não enquanto ele irradiasse magia e a minha
continuasse suprimida.
— Tem os meus mais profundos agradecimentos. Há muito que anseio
por este momento. Como se não bastasse que o meu irmão mais novo fosse
reverenciado e elogiado por todos, também tinha de roubar o meu direito de
primogenitura.
As suas mãos cerraram-se em punhos ao lado do corpo.
Afastei-me dele, aproximando-me do armário lacado.
Ele inclinou a cabeça para mim.
— Estou tão grato que até a vou deixar fugir. Poupa-me o trabalho de
me livrar de si e dará força à minha história.
Fiquei paralisada.
— História?
— Todos chorarão ao ouvir o relato trágico. Como a espia celestial, por
quem o idiota do meu meio-irmão se apaixonou, o traiu e assassinou.
Os seus lábios curvaram-se num sorriso cruel.
— Ides... matá-lo? Ao vosso irmão? E deitar as culpas em mim?
Apesar da raiva que sentia por Wenzhi, senti um aperto no coração.
— Meio-irmão — corrigiu friamente, fazendo eco do desdém de Wenzhi
pelo seu parentesco. — Qual é o problema? Não quer fugir? Não o odeia?
Não foi por isso que fez tudo isto?
E indicou o quarto com o braço.
Sem esperar pela minha resposta, desembainhou a espada e começou a
caminhar para Wenzhi.
A minha mente mergulhou no mais completo caos. Eu odiava Wenzhi,
recordei a mim mesma. Por tudo o que fizera, por tudo o que planeava
fazer. Odiava-o e desprezava-o, e só queria fugir dali. Contudo, podia
mesmo ficar ali parada e deixar que o assassinassem sem se poder
defender? Ele só estava vulnerável porque eu o enganara. A sua morte
ficaria na minha consciência, tão certo como se tivesse sido eu a cravar-lhe
a espada. Memórias indesejadas inundaram-me a mente, de quando ele me
defendeu contra o Governador Renyu, de quando suportou o ataque de
Xiangliu, das muitas vezes que nos protegemos mutuamente. Oh, como ele
me mentira e enganara; nunca poderíamos voltar ao que éramos. Mas eu
também não podia fingir que tudo fora apagado entre nós. Odiava-o agora
porque o amara antes.
Movi-me para diante do Príncipe Wenshuang, bloqueando-lhe a
passagem. Os meus dedos seguravam o punho de jade da espada com tanta
força que os rubis me magoavam a mão.
— Não posso deixar que façais isso.
As suas pupilas eram fendas de fogo amarelo.
— Afinal, talvez seja melhor se não sobreviver.
Ataquei-o de espada em riste. Ele bateu a espada para o lado e voou na
minha direção. Rodei para o lado e atirei-lhe um pontapé. Ele esquivou-se,
eu falhei. Quando a minha espada fez um arco na direção do seu peito, ele
baixou-se, lento de mais, e a minha lâmina golpeou-lhe uma orelha. Sangue
começou a escorrer-lhe pelo pescoço e um rugido irrompeu da sua garganta.
Voltei a atacá-lo, o ar a cintilar com a sua energia quando ficou envolvido
por um escudo reluzente. A minha espada chocou com a barreira, o meu
braço a doer quando cambaleei com o ressalto. Antes que eu conseguisse
recuperar o equilíbrio, ele agarrou-me no pulso e torceu-o com uma força
tal que deixei cair a arma ao chão.
O seu punho atingiu-me na cabeça e os anéis cortaram-me a pele.
Arquejei quando a dor me explodiu na cabeça. A escuridão rodeou-me e
debati-me com o vazio que chamava por mim. Se desmaiasse agora, Wenzhi
e eu morreríamos. O Príncipe Wenshuang atacou-me, tão rápido que fui
apanhada de surpresa, os seus braços a agarrarem-me pela cintura, a
apertarem o meu corpo contra o dele, forçando-me a um abraço repugnante.
A fúria na sua expressão transformou-se em algo mais perverso, que me deu
vontade de vomitar o conteúdo do estômago. Se pelo menos tivesse os meus
poderes, tê-lo-ia arremessado contra a parede até conseguir partir cada osso
no seu corpo imortal. E mesmo assim, não teria sido suficiente.
Em vez disso, golpeei com as pernas e o meu joelho acertou-lhe na
barriga. Ele estremeceu, mas não afrouxou o abraço. Debati-me e ele
torceu-me o braço atrás das costas, virando-me e atirando-me ao chão com
uma força avassaladora. A minha cabeça bateu dolorosamente no mármore,
e meu corpo estatelou-se no chão. Quando se baixou sobre mim, segurou-
me firmemente pelas omoplatas enquanto eu me debatia.
— Se pudesse contar isto ao meu irmão mais novo... Infelizmente para
ele, nunca mais acordará.
Estava tão perto de mim que salpicos de saliva me cobriram o rosto.
Engasguei-me, tentando libertar-me dele. Os seus dedos cravavam-se
com força na minha carne, o seu hálito quente e intenso no meu pescoço.
Medo torturava-me quando um pensamento me passou pela mente... que
talvez a morte fosse, afinal, uma forma de piedade.
Não, afastei esse pensamento da mente, inalando antes de gritar a plenos
pulmões. Os guardas que venham, pensei freneticamente, podem capturar-
me. Preferia ser uma prisioneira do que ficar à mercê daquele monstro. Mas
era em vão, o escudo de privacidade do príncipe bloqueava todo o som.
Contudo, não podia parar. O que começara como um grito vazio de medo
tornou-se um brado de raiva pura, queimando o meu terror, acendendo em
mim uma chama de... resistência.
O Príncipe Wenshuang afastou-se de mim, talvez desconcertado pela
ferocidade na minha voz. Foi só por um piscar de olhos, mas o suficiente.
Ataquei então, acertando com a nuca na sua cara com toda a força de que
era capaz. Um estalido encheu o ar. Ele largou-me, a praguejar, premindo a
mão sobre o nariz para travar o fluxo de sangue. Levantando-me num salto,
apanhei a espada do chão e ataquei-o. Ele ficou vermelho de raiva quando
luz lhe irrompeu da palma da mão, um raio de chamas já a caminho de
mim. A minha espada ergueu-se e bloqueou o ataque, fios de fogo a estalar
sobre a lâmina, que se estilhaçou em mil pedaços prateados. Não parei,
baixando-me para deslizar pelo chão de mármore, acertando-lhe um
pontapé nas pernas. Ele caiu com um baque, a gemer no chão. Procurei
freneticamente outra arma, não me atrevendo a desviar o olhar dele, vendo-
o a levantar-se com uma expressão de fúria assassina. A minha lâmina fora
destruída, mas o punho de jade na minha mão era pesado e estava cravejado
com joias. Erguendo-o no ar, acertei-lhe no lado da cabeça com toda a
força, e voltei a acertar-lhe. O punho atingiu-o com um estalido doentio e os
seus olhos arregalaram-se antes de se fecharem de vez.
Ofegante, fiz um esforço para não vomitar quando larguei o punho da
espada. Sangue escorria do golpe na testa de Wenshuang. Se ele fosse
mortal, o meu golpe ter-lhe-ia esmagado o crânio como se fosse um ovo.
Não senti pena dele, contudo, por ter planeado matar o irmão desmaiado,
pelo que me tentara fazer. Parte de mim interrogou-se se o deveria matar.
Bastaria uma flecha do meu arco.
Corri para o armário e abri cuidadosamente o que restava da porta, pois
não podia baixar a guarda. Com o príncipe inconsciente, a barreira de
privacidade dissipara-se. Os meus dedos tocaram no jade do arco, que tirei
imediatamente para fora. Empurrando os destroços para o lado, mergulhei a
mão mais fundo no armário e encontrei uma pequena caixa de madeira.
Quando abri a caixa, as pérolas cintilaram para mim, luminosas e brilhantes.
Podia ter rido alto com o alívio. Pegando numa que emanava o fogo da
meia-noite, segurei-a e sussurrei o nome do Dragão Negro, rezando para
que o vento levasse as minhas palavras rapidamente até ao Mar do Leste.
Um gemido chamou-me a atenção. Virei-me e vi Wenzhi a mexer-se,
abanando a cabeça de um lado para o outro como se estivesse a ter um
sonho agitado. O soporífero estava a passar! Apertei os dedos à volta do
arco, resistindo à tentação. Não seria melhor do que o seu irmão se fizesse
isso. E o mais certo era os guardas entrarem ao ouvirem o som,
encurralando-me dentro do quarto. Preparada para o pior, saí de rompante
pelas portas e corri através do pátio. Gritos de sobressalto ouviram-se atrás
de mim, dos soldados apanhados de surpresa pela minha fuga súbita. O
espanto não durou muito; feixes de poder voavam para mim, tentando
apanhar-me. Pior ainda, uma voz familiar chamou o meu nome num grito
desesperado. Wenzhi. Completamente desperto e a correr atrás de mim, as
suas pernas compridas a ganharem vantagem a cada passo. O ar tremia com
a sua magia, flocos de gelo a cintilar no ar...
Virei bruscamente para outro caminho, evitando o seu encantamento,
mas uma parede erguia-se diante de mim, a pedra lisa impossível de escalar.
Os passos soavam mais alto; estavam quase em cima de mim. Dei um salto
e trepei por um dos pilares de mármore, apoiando os pés nas treliças
ornamentais. Treinara o suficiente a fazer o mesmo no Palácio de Jade.
No telhado, empunhei o Arco do Dragão de Jade, quase chorando ao
sentir o estalido familiar do seu poder. Com a minha energia ainda
suprimida, a corda era tão rígida que me cortava os dedos e o fogo-celeste
era uma sombra do seu antigo poder. Só podia rezar que fosse suficiente
quando apontei o arco para baixo, para o inimigo que apareceria a qualquer
momento, tensa por dentro só de pensar em ter de soltar a flecha.
Mas então, os pinheiros estremeceram, vergados por uma rajada de
vento que lhes arrancou as agulhas fragrantes, cobrindo a relva abaixo. A
lua minguante desapareceu, escondida pela criatura sombria que descia para
mim, os olhos cor de âmbar a reluzirem como duas estrelas no céu. O
Dragão Negro, a sua forma imensa a ondular enquanto pairava acima de
mim.
Wenzhi apareceu, trepando com uma agilidade elegante. Moveu-se para
mim, parando apenas ao ver a flecha luminosa apontada ao seu peito.
— Devia cravar esta flecha no teu coração perverso.
O olhar dele trespassou o meu quando deu mais um passo.
— Então, porque não o fazes?
Agarrei o arco com mais força, mantendo a flecha firme. Teria sido tão
fácil soltá-la. Ele estava acordado, estava a provocar-me; não seria uma
desonra. Contudo, porque hesitava? Gritos vindos de baixo chamaram-me a
atenção. Nuvens desceram do céu, invocadas pelos soldados. Em breve,
poderiam erguer-se no ar e perseguir-me.
O céu já não estava impenetravelmente escuro, rasgado por faixas de
luz. A alvorada estava quase sobre nós. Em breve, o Exército Celestial
marcharia... e eu estava a ficar sem tempo.
Os meus dedos afrouxaram a corda. A flecha desapareceu. Rodei num
calcanhar e corri pelo telhado, saltando quando cheguei ao fim, as minhas
pernas a arquearem pelo ar. A minha mão agarrou uma garra dourada e
esforcei-me por me segurar enquanto a cauda do dragão se enrolava à volta
da minha cintura para me pousar nas suas costas. Pelo tecido delicado do
meu vestido, as suas escamas eram duras e frias como pedra.
O Dragão Negro ergueu-se pelo céu. Mais rápido do que qualquer ave,
mais rápido até do que o vento. Olhando para baixo, vi pela primeira vez o
Reino Infernal, a cidade pousada num banco infinito de nuvens violeta.
Lanternas de seda flutuavam por todo o lado, lançando um brilho etéreo
sobre as casas de ébano e pedra. Os telhados eram arqueados, com beirais
subidos em cada esquina, reluzindo em cores brilhantes, como joias na
noite. Acima das casas erguia-se o palácio de onde escapara, as lajes de
pedra iridescente a cintilar com a beleza elusiva de um arco-íris.
A cidade estava tranquila, embalada nos braços do sono. Contudo, por
muito que tentasse, não conseguia tirar da minha mente a voz de Wenzhi e a
angústia com que chamou o meu nome. O corpo poderoso do Dragão Negro
cobriu vastas distâncias em meros momentos. Em tempo nenhum, o Reino
Infernal desapareceu da minha vista, como se fosse um pesadelo do qual
acordara, exceto pelas memórias profundamente gravadas na minha mente e
pela dor que atormentava o meu coração.
O ar vibrava com um poder semelhante ao de uma tempestade. Olhei
para baixo e senti um arrepio. Mil ou mais soldados de armadura preta
deslizavam em nuvens violeta, uma sombra rastejante pelo céu. Avançavam
num silêncio sinistro, não se ouvia nem o chocalhar das armaduras nem o
restolhar das roupas. Amaldiçoei-os pela forma astuta como camuflavam os
seus movimentos.
O dragão voou adiante até quase os ultrapassarmos. Os soldados na
dianteira usavam capacetes de bronze com pedras de ónix. Quando
ergueram a palma das mãos, ondas cintilantes de energia irradiaram para a
frente. A energia que pulsava no ar ficou mais densa, uma neblina opaca
com clarões carmesim nas suas dobras como salpicos de sangue. Rodopiava
no ar da noite e fiapos ténues tentavam agarrar-me o vestido. Uma doçura
intensa inundou-me os sentidos, misturada com uma nota desagradável de
fruta podre, entupindo-me os pulmões como se estivesse a sufocar com
fumo. Um torpor tomou conta da minha mente. Estremeci e abracei o meu
corpo, abanando a cabeça de um lado para o outro enquanto tentava
perceber a área pouco familiar à minha volta.
Onde estava? Como chegara ali? E que luzes eram aquelas a voar pelo
ar como gotas de chuva escarlate? Senti um aperto na barriga ao avistar a
criatura que me transportava tão velozmente, as escamas pretas como tinta e
as garras douradas, os bigodes a esvoaçar como fitas de seda. Magnífico,
aterrador, mas estranhamente familiar. Talvez tivesse visto uma imagem?
Para onde me levava? Procurei o arco para me defender, para exigir uma
resposta, mas a criatura ganhou altitude, erguendo-se até onde o céu era
preto e límpido. Meia gelada de medo, agarrei-me instintivamente, o vento
a bater-me na cara enquanto respirava com esforço. Como era fresco o ar
que agora me enchia os pulmões, expulsando a doçura sufocante.
Os meus pensamentos ficaram novamente claros, apesar de ainda sentir
os efeitos do choque.
— Eu... eu não vos conhecia — disse eu ao dragão. — Pensei que
fosseis um inimigo. Quase atirei sobre vós.
A voz prateada soou na minha mente. A neblina alucinante é um
encantamento da Mente. As vítimas não conseguem distinguir amigos de
inimigos, e ficam com as memórias baralhadas assim que a inalam. Apesar
de ser menos poderoso do que a compulsão, este encantamento pode ser
espalhado por uma área maior.
— Sobre um exército inteiro.
Os celestiais estariam indefesos contra aquela magia, presos como
borboletas numa rede.
— Como nos podemos proteger? Com um escudo?
Apenas os escudos mais fortes funcionariam; a neblina consegue
penetrar pelas mais pequenas fendas ou fissuras. Não é um encantamento
fácil de anular, mas pode ser evadido, dispersado ou limpo a partir dos
céus.
Abaixo de nós, o deserto refletia um brilho dourado, o vasto crescente
de terra que separava o Reino Infernal do resto do Domínio Imortal.
Centenas de luzes piscavam adiante, fogueiras a desaparecerem na
madrugada. Senti uma onda de alívio por não ser tarde de mais, por o
Exército Celestial não ter ainda marchado. Quando descemos, as cabeças
dos soldados viraram-se para o Dragão Negro, o seu medo misturado com
espanto, e pousámos numa nuvem de areia revolta. Deslizei das costas do
dragão e tombei para o chão. Só então os soldados se viraram para mim,
como se só então reparassem na minha presença.
Espere, ordenou o Dragão Negro. Abriu as mandíbulas e o seu hálito
claro espalhou-se como gelo sobre as pulseiras que me prendiam. O metal
estilhaçou e caiu em pedaços para a areia. Esfreguei os pulsos para os
aquecer. Como estavam maravilhosamente leves, finalmente livres.
— Obrigada. Por tudo — despedi-me com gratidão.
O Dragão Negro inclinou a cabeça em resposta. Com um salto gracioso
para o ar, levantou voo na direção do Mar do Leste, as escamas a refulgir
como brasas à luz do sol nascente.
Só então reparei nos soldados que me rodeavam. A saudação morreu-
me nos lábios ao ver os seus rostos, carregados de suspeita e repugnância.
— Traidora — sibilou alguém, um soldado que servira às ordens de
Wenzhi, no Mar do Leste. — Estavas a planear desertar aquele tempo todo,
enquanto comias as tuas refeições na tenda do capitão?
— Porque estás aqui? — gritou outro. — Volta para o teu lugar no meio
dos infernais!
Um coro de concordância ergueu-se dos restantes. Não eram todos
desconhecidos; reconheci vários com quem treinara, outros da companhia
de Wenzhi. Batalháramos lado a lado, as minhas flechas a trabalhar em
uníssono com as suas lanças e espadas. Não sabia o que esperava. Haveria
alguma surpresa, claro. Perguntas, certamente. Mas assim que me
explicasse, não ficariam contentes por eu ter escapado? Contudo, agora só
via olhares hostis e armas em riste. No tumulto, quase me esquecera dos
rumores que Wenzhi espalhara. A facilidade com que acreditaram nas
mentiras sobre mim.
— Seus idiotas — bradou uma voz familiar.
Era Shuxiao, abrindo caminho pela multidão, o cabelo comprido preso
sob um capacete dourado.
Fiquei logo animada, mas não me atrevi a correr para ela, não me atrevi
a manchá-la com a minha intimidade.
Shuxiao, contudo, não tinha tais escrúpulos e passou um braço pelo
meu.
— Não acreditem em tudo o que ouvem, especialmente se vier do Reino
Infernal. O Príncipe Liwei disse-nos que Xingyin foi raptada. Ela nunca
teria ido para lá de livre vontade.
A seguir, murmurou ao meu ouvido:
— Pelo menos, é bom que assim seja. Devias mesmo ter-me deixado ir
contigo procurar os dragões. Terias tido menos problemas.
— Quem me dera — disse-lhe com sinceridade.
Ela apertou-me o braço com um pouco mais de força antes de me soltar.
— Estás bem?
— Agora estou.
Não estávamos fora de perigo, mas ocorreu-me que estava livre. Com
uma súbita clareza, percebi como esse sentimento era precioso. Como nos
podia ser retirado com facilidade. E o quanto o cativeiro custara à minha
mãe e aos dragões.
A multidão de soldados afastou-se quando Liwei veio ao meu encontro,
parando a um passo de distância. A sua armadura branca e dourada refulgia,
uma capa de brocado escarlate a esvoaçar-lhe aos ombros. Nem uma
palavra me passou pelos lábios e nesse momento bastou-me olhar para ele,
salvo, ileso, vivo. Lentamente, como quem acorda de um sonho, Liwei
reduziu a distância entre nós e abraçou-me. A sua armadura pressionou a
minha pele, mas abracei-o também, numa indulgência egoísta, o calor do
seu abraço a afastar a angústia e o terror, a derreter a frieza que emergira
entre nós.
Nesse momento, não pensei no perigo iminente nem na fúria do
imperador. Até que uma tosse me sobressaltou, uma lembrança dos
soldados atentos que nos rodeavam. Liwei deixou cair os braços e eu dei um
passo rápido para trás.
— O que aconteceu? Quem é Wenzhi? — quis saber Liwei.
— O filho do Rei Infernal.
Mesmo agora, essa afirmação soava obscena aos meus ouvidos. Shuxiao
soltou um assobio.
— O Capitão Wenzhi? Um infernal? Mas tu e ele não...
Lançou então um olhar furtivo a Liwei.
— Impossível. As nossas barreiras nunca permitiriam a passagem de um
infernal — declarou Liwei.
— Ele disse-me que as barreiras já não são tão fortes como eram. E os
seus poderes são formidáveis.
Lembrei-me das pupilas dos seus olhos, cintilantes como joias
prateadas. Não descera ao ponto de me controlar por meios tão
desprezíveis, mas depois do que eu fizera, poderia não voltar a demonstrar
uma tal contenção.
— O que queria ele? — perguntou Liwei, num tom lúgubre. — Posso
bem imaginar.
— As pérolas, para garantir a sua posição como herdeiro.
Não elaborei mais. As outras coisas que me dissera... ficariam apenas
entre nós.
Liwei cerrou o maxilar e engoliu em seco, como se estivesse a conter o
impulso de fazer mais perguntas.
— Esperem, tenho algo para vos mostrar.
Invoquei a minha energia, com o alívio de sentir os meus sentidos
novamente apurados, e deixei o meu poder fluir numa onda cintilante para
dissipar o encantamento do Exército Infernal. A uma centena de passos, a
terra começou a tremer como um lago varrido pelo vento. Ouro tornou-se
violeta, areia tornou-se nuvem.
— Uma fronteira falsa! — exclamou Liwei, num tom horrorizado.
— Uma armadilha. Para vos levar a quebrar o tratado.
— Se o tivéssemos feito, poderiam ter retaliado sem receio de
repercussões. Ter-nos-iam apanhado desprevenidos. Não estamos
preparados para combater; a nossa presença aqui é apenas uma diversão
enquanto procurávamos por ti.
— Por mim? — repeti, incrédula.
O imperador nunca teria ordenado ao exército que marchasse por minha
causa. A não ser que fosse para me levar de volta e fazer-me enfrentar a sua
ira.
A boca de Liwei torceu-se num sorriso sarcástico.
— Para o meu pai, o essencial é recuperar as pérolas, claro. Mas, para
mim, o único motivo era encontrar-te.
Uma ternura brotou dentro de mim, preciosa e frágil como os primeiros
raios de sol depois de um nevão. Tínhamos percorrido aquele trilho tantas
vezes antes; sempre que eu julgava que a porta se fechara, voltava a abrir-
se. Mas não leria demasiado nas suas palavras; ele teria feito o mesmo pela
Princesa Fengmei. Proteger-me-ia melhor desta vez. Estava cansada de
desgostos no amor.
— Como conseguiste escapar? — perguntou Liwei.
Sorri para ele, o meu primeiro sorriso sincero desde que fora raptada.
— Lembras-te dos lírios-estrela? Numa das nossas aulas, quando me
deste a resposta e me salvaste de um sermão? Essa manhã na Câmara da
Reflexão parecia ter acontecido noutra vida. — Felizmente, eras um aluno
aplicado. De outra forma, eu nunca teria sabido acerca dessas flores.
Ele assentiu, parecendo um pouco confuso.
— Usei-as para pôr Wenzhi a dormir.
Um silêncio tenso caiu sobre nós. Se ele se interrogou como o fizera,
como levara Wenzhi a beber o soporífero, não me perguntou. Também não
sei se lhe teria dito.
— É pena que não tivesses acónito, para um sono mais permanente.
Os olhos dele brilharam perigosamente assim que os seus dedos tocaram
com uma ternura dolorosa o inchaço no lado da minha cabeça e os cortes na
cara e no lábio. Quando pegou na minha mão, a sua energia fluiu por mim
como um calor efervescente, fazendo desaparecer os últimos vestígios de
desconforto.
— Ele magoou-te? — perguntou-me.
— Não! Foi o irmão dele.
Senti um aperto no estômago, nauseada pela memória do corpo do
Príncipe Wenshuang encostado ao meu, da sua respiração no meu pescoço.
Shuxiao passou-me um braço pelos ombros num conforto silencioso,
talvez pressentindo a minha angústia.
Liwei cerrou os punhos.
— Tudo isto é culpa minha. Os soldados de Wenzhi atacaram-me. Não
me livrei deles suficientemente depressa. Só mais tarde descobrimos onde
estavas. Lamento... não te ter encontrado mais cedo.
— Escapei sã e salva. Tu também — disse eu, tentando dissipar o nosso
constrangimento. — E tenho as pérolas. Isso é o mais importante.
O ar agitou-se, carregado de poder, a rolar de oeste, dos lados do Reino
Infernal.
Envolta em terror, agarrei o braço de Liwei. Aquilo não acabara.
— Temos de partir. Agora. O exército de Wenzhi está próximo. Assim
que passassem a fronteira, planeavam soltar uma névoa encantada sobre o
nosso exército, uma névoa que nos confundiria. Ainda o pode fazer; não se
deterá perante nada para recuperar as pérolas. Aqui tão longe, quem saberia
a verdade? Sem testemunhas, Wenzhi pode alegar o que quiser.
Amaldiçoei-me por não pensar nisso antes.
Liwei deu meia-volta e chamou os seus comandantes; vários soldados
partiram à procura deles. Após uma breve espera, três generais apressaram-
se até nós, o sol a brilhar nos seus capacetes adornados com longas borlas
de seda vermelha. Eram mais velhos do que Liwei, um deles um imortal de
ar distinto com madeixas brancas no cabelo, o General Liutan, que várias
vezes enviara os seus soldados para observar os meus treinos de tiro ao
arco. A um só tempo, fizeram uma vénia a Liwei com a palma da mão sobre
o punho fechado.
— É uma emboscada. Reúnam as vossas tropas e retirem imediatamente
— ordenou-lhes com autoridade.
Os olhos dos generais deslizaram para mim, estreitados com
desconfiança. Ergui o queixo mais alto, suprimindo o impulso de me
encolher. Não fizera nada de errado; arriscara a minha vida para os avisar.
O mais baixo dos três deu um passo em frente.
— Vossa Alteza, quem vos disse isso? As ordens do vosso pai são para
ficarmos na fronteira até recuperarmos as pérolas dos dragões.
O maxilar de Liwei contraiu-se quase impercetivelmente.
— A Arqueira-Mor Xingyin trouxe-nos a notícia.
Alguém fungou com desdém, não vi quem. O General Liutan deitou-me
um olhar acusador.
— Vossa Alteza, pedimos-vos que tenhais cautela. Ela é uma espia do
Reino Infernal.
— Não sou uma espia — ripostei, no tom mais firme de que fui capaz,
apesar do quanto me magoava aquela incredulidade e aquele desdém. —
Essas mentiras foram espalhadas para afastar a culpa do Reino Infernal no
roubo das pérolas.
Bem que podia não ter dito nada, pelo bem que fez. A expressão do
General Liutan manteve-se inalterada.
— Vossa Alteza, os espiões são exímios a protestar a sua inocência. O
vosso pai...
— Chega — cortou Liwei, num tom afiado como uma lâmina. —
Confio a minha própria vida à Arqueira-Mor Xingyin, que ela salvou mais
do que uma vez. Desafia a minha ordem, General Liutan?
O rosto do general assumiu um cinzento pouco saudável. Os três
generais ajoelharam-se imediatamente.
— Obedecemos às vossas ordens, Vossa Alteza.
Liwei fez-lhes sinal para que se levantassem.
— Não há tempo a perder. Os infernais vão lançar uma névoa para nos
confundir. Não ataquem se puderem evitar. Conservem as energias das
tropas para fugir e para erguerem escudos.
— Os escudos devem ser fortes e bem apertados. — Os generais não
olharam para mim quando falei. Senti uma onda de raiva, mas continuei a
minha explicação, ignorando o seu desdém. — Voar é o caminho mais
seguro, mas a névoa pode ser limpa com vento ou chuva. Não a respirem.
Uma única inalação é suficiente para ficarmos confusos.
A minha voz tremeu ao recordar a minha própria desorientação e como
quase atacara o dragão.
O General Liutan hesitou.
— As pérolas, Vossa Alteza. Onde estão? Não poderá ser um truque
para nos fazer partir de mãos a abanar?
— Estão comigo — respondi, impaciente, para silenciar as suas
dúvidas, arrependendo-me imediatamente ao avistar o brilho nos seus olhos.
— Mas não por muito mais tempo, se não nos despacharmos.
— Passem a palavra. Não mais de dois ou três por nuvem, a velocidade
é essencial — ordenou Liwei.
Os generais fizeram uma vénia e afastaram-se, quase correndo na sua
pressa.
— Liwei, também devias partir — aconselhei.
— Só quando o acampamento estiver levantado. Mas... deves partir já
com as pérolas — disse-me num tom grave.
Os meus dedos tocaram na bolsa de seda. Não queria deixar Liwei ali,
em perigo. Mas ele tinha razão, não podia deixar que Wenzhi voltasse a
capturar as pérolas. Aceitara aquele fardo, e só eu o podia carregar.
— Tem cuidado. Não demores muito ou voltarei para te buscar — disse-
lhe, com mais furor do que tencionava. O canto da sua boca tremeu num
sorriso torto.
— Isso é uma promessa ou uma ameaça? Confesso que o meu orgulho
ficará gravemente ferido se voltares a salvar-me.
— Antes ferido que morto.
O tom leviano disfarçava o meu medo, mas confiava nele para tomar
conta de si próprio e havia coisas mais importantes em jogo.
Nuvens desciam do céu. Exalei com alívio quando soldados celestiais
começaram a saltar para elas e voar para longe. Mas quando uma familiar
doçura enjoativa me chegou às narinas, virei-me para trás e o meu corpo
contraiu-se de terror.
Acabara-se o tempo.
Um exército feito de noite voava para nós, liderado por Wenzhi, severo
e sombrio. Como tínhamos chegado àquele ponto? Poucas semanas antes,
lutáramos lado a lado; agora, ele era o inimigo.
— Depressa, Xingyin!
Shuxiao estendeu a mão, a irradiar luz. Quando uma nuvem desceu, ela
puxou-me para cima dela.
O vento fustigava-me a pele, o meu cabelo esvoaçava atrás de mim. À
medida que nos afastávamos da fronteira, o deserto estendia-se diante de
nós como uma peça de cetim desenrolada. Estiquei o pescoço, procurando
Liwei entre os celestiais em fuga, desanimando ao não ver o mais pequeno
sinal dele.
— Temos de voltar — disse eu. — Algo deve ter corrido mal.
Shuxiao olhou por cima do meu ombro e o seu corpo ficou hirto.
— Xingyin, algo está a correr mal.
Atrás de nós, a névoa maldita rastejava pelo meio dos soldados,
iluminada por estrelas da cor do sangue à medida que tapava o céu. A cada
momento ficava mais perto, fiapos longos a agarrarem todos ao seu alcance.
Felizmente, a nuvem de Shuxiao era veloz; conseguimos ficar do lado de
fora, à justa. No entanto, mesmo àquela distância, uma onda de tontura
ainda me atingiu. Apressadamente, teci um escudo sobre nós, selando-o tão
bem que nem um fio do maldito encantamento conseguiria entrar. Os
celestiais mais perto de nós seguiram o nosso exemplo, envoltos em
escudos cintilantes enquanto voavam pelo ar. Mas observei com horror
quando a maioria do exército atrás de nós, onde a neblina era mais espessa,
parou de avançar.
— Ergam escudos! — gritei para eles, mas as minhas palavras
perderam-se no tumulto.
Os seus olhos ficaram vidrados, os seus movimentos erráticos e
incertos. Senti um calafrio na barriga quando alguns começaram a abanar a
cabeça, confusos, arranhando o pescoço. Alguns caíram, contorcendo-se
enquanto atiravam os capacetes para longe e puxavam o cabelo. Uma
cambaleou até ao limite da sua nuvem e então, sem hesitar, continuou a
andar, mergulhando no espaço vazio abaixo. O meu grito rasgou o ar e
lancei o meu poder atrás dela. Mas foi tarde de mais e ela desapareceu de
vista, um baque abafado a erguer-se do solo.
Baixei a mão, a tremer.
— Shuxiao, temos de...
Como se tivesse lido os meus pensamentos, ela virou a nuvem para trás,
na direção da névoa.
— O que é isto? — estremeceu Shuxiao, apontando para diante.
— Magia da mente. Uma das suas manifestações mais grotescas.
— Não admira que seja proibida — disse ela ferverosamente.
Assim que nos aproximámos, a verdadeira dimensão do horror foi
revelada. Resisti à tentação de fugir do pesadelo perante nós. No meio da
névoa revolta, celestiais arremessavam uns aos outros raios de gelo e de
fogo, enquanto outros atacavam com armas. Um cravou a sua lança no
ombro da camarada de armas, a ponta encharcada em sangue a sair-lhe da
carne. Mas a vítima não gritou nem estremeceu, atirando todo o seu peso
sobre o atacante quando caíram, rolando para o limite da nuvem. Noutra
nuvem, três celestiais golpeavam-se mutuamente com um desapego
metódico, rostos inexpressivos, aparentemente imunes à dor, apesar do
sangue que lhes manchava a nuvem.
Agoniada, uma vontade de vomitar tomou conta de mim. Ao contrário
do que alegara Wenzhi, aquela magia era de uma desumanidade para lá de
qualquer outra. Com amigo a atacar amigo, as crueldades infligidas eram
duas vezes piores. Um tormento perverso que condenava os sobreviventes a
uma vida de remorso e mágoa.
Porque não se protegiam, onde estavam os seus escudos? Porque não se
vislumbrava qualquer tentativa de dissipar a neblina? Seriam lentos de
mais, presos no encantamento antes de terem a oportunidade de se porem a
salvo? Ou teriam os generais omitido o meu aviso? Os seus rostos
desconfiados passaram-me pela mente. Talvez tivessem mesmo acreditado
que eu era uma traidora e Liwei um idiota ingénuo.
A névoa ficou mais espessa, espalhando o seu brilho malévolo até o céu
parecer encharcado em sangue. Em breve, engoliria até os soldados na
periferia, infiltrando-se nos escudos e lançando-os em desordem. Mais
gritos rasgaram o ar, juntamente com brados de horror. Eu estava a salvo da
neblina, ainda assim a sensação de impotência deitou-me abaixo. Odiava
que ali não houvesse um monstro para matar, um alvo para atingir. Para que
servia o meu arco contra aquele maldito inimigo? Uma coisa nebulosa e
inquieta, com uma voracidade impossível de saciar.
Shuxiao agarrou-me, cravando os dedos no meu braço.
— O General Liutan! — gritou, apontando para diante.
Virei-me e vi o general de cabelo branco, o que me acusara de ser uma
espia, rodeado de dezenas de soldados confusos. Estava envolto num
escudo, mas os soldados pressionavam-no, não lhe deixando espaço para
fugir. Senti um aperto na barriga quando os soldados atacaram o general, o
seu rosto tenso com o esforço de manter a barreira.
Um celestial voou para nós, capa escarlate a esvoaçar atrás de si. Liwei.
Quase chorei de alívio ao vê-lo.
— Vou ajudar o General Liutan. Ponham quantos puderem a salvo. —
Fez então uma pausa e olhou para mim. — Tenham cuidado.
Sem aguardar por uma resposta, voou na direção dos soldados,
iluminando o céu com o sol que batia na armadura dourada. Contudo, no
seio do exército reinava apenas caos; celestiais a contorcerem-se, confusos,
atacando-se uns aos outros com magia, punhos e armas. Nunca imaginara
uma calamidade assim. Uma violência tão brutal. Quando fiquei confusa,
apenas me queria defender, não magoar mais ninguém. Agora, no entanto, a
fúria dos soldados emanava em ondas. Teria o tumulto agravado a sua
confusão, sabendo que estavam em combate, mas incapazes de distinguir
amigo de inimigo?
Eles sofrem por tua causa, acusou uma voz severa dentro de mim.
Nunca devias ter aceitado as pérolas dos dragões. Vê só ao que levou a tua
ganância e a tua arrogância. Senti a dor do remorso como uma faca
cravada no peito, mas havia ali outras forças em jogo: a sede de poder do
imperador e a ambição implacável de Wenzhi. Não pagaria sozinha o preço
na minha consciência. E não me afundaria agora em culpa, não quando
ainda havia uma oportunidade de travar aquela catástrofe.
Uma ideia insidiosa surgiu-me na mente, que podia facilmente emendar
tudo aquilo. E se chamasse os dragões para nos ajudarem? Invocara o
Dragão Negro para me pôr a salvo. Porque não usá-los para expulsar o
inimigo? Num só golpe, podia salvar o Exército Celestial e vingar-me de
Wenzhi pela sua traição. Com o seu poder às minhas ordens, podia
extorquir ao imperador a liberdade da minha mãe. A minha visão mudou de
foco: vi-me com uma coroa na cabeça, elevando quem me foi leal,
derrubando quem me fez mal. Só então abdicaria das pérolas. Só precisava
de dizer os nomes dos dragões...
A minha mão deslizou para a minha bolsa. Debatendo-me com a
tentação, afastei a mão. Não, tal ato destruiria os dragões, destruir-me-ia.
Nunca me perdoaria. Fizera-lhes uma promessa, que tencionava cumprir,
que iria cumprir. Não me atrevia a enveredar por um trilho do qual podia
não conseguir encontrar o caminho de regresso, pelo menos enquanto
houvesse outros trilhos por percorrer.
Virei-me para Shuxiao.
— Vento. Chuva. Qualquer coisa para clarear o céu.
Ela assentiu e fechou os olhos, concentrada, com veias salientes no
pescoço. Invoquei tanta energia quanto fui capaz, o poder a percorrer o meu
corpo.
— Agora! — gritei.
Magia irradiou das nossas mãos. Uma rajada de vento atravessou as
nuvens, retirada de uma tempestade de verão no mundo mortal, carregada
de poeira e calor. Algo sacudiu a nossa nuvem e cambaleei, equilibrando-
me para alimentar o vento voraz, o ar revolto que se transformava numa
ventania furiosa que soprava pelo céu, dissipando a neblina daqueles mais
perto de nós.
Contudo, o nosso alcance não era suficiente; centenas continuavam em
perigo. Pior ainda, os infernais começaram a contrariar os nossos esforços,
forçando a névoa para cima de nós. Durante quanto tempo conseguiríamos
suportar aquilo? Os nossos escudos não aguentariam indefinidamente;
mesmo agora, começávamos a cansar-nos. Se não dissipássemos a neblina
rapidamente, ela voltaria com mais força, envolvendo-nos a todos.
Adiante, um grupo de infernais passou a voar, liderados por Wenzhi.
Hesitei por um momento antes de chamar uma nuvem e partir em seu
encalço.
— O que estás a fazer? — gritou Shuxiao.
— Vou atrás deles.
— Estás louca? — gritou ela, gesticulando para a horda de celestiais
confusos à sua frente.
— Não, é precisamente por causa deles que tenho de fazer isto. —
Apontei para Wenzhi. — A presença dele aqui não é coincidência. Talvez
encontre uma maneira de pôr um fim a tudo isto.
Seguindo Wenzhi pelas nuvens, voei num percurso tortuoso para não ser
detetada, apesar de haver poucas hipóteses de ele sentir a minha aura no
meio daquela vasta multidão de imortais. Tirei das costas o Arco do Dragão
de Jade e preparei-o. Ali, a névoa era tão densa que mal conseguia ver para
lá do brilho difuso do pó carmesim. Quando senti uma sugestão do seu
perfume intoxicante — a mel e podridão —, sustive logo a respiração e
apertei melhor o escudo. Não podia agora perder o controlo, quando um
momento podia fazer a diferença entre a vida e a morte. Entre matar um
inimigo ou um ente querido.
A pouca distância estava Liwei, invocando um vento forte para limpar o
ar. Estava a funcionar, os soldados começavam a despertar do torpor e a
afastar-se do General Liutan. Mas então Wenzhi caiu sobre Liwei como um
falcão que avista a sua presa. Fora Liwei o seu alvo aquele tempo todo? Ele
falharia, decidi, voando atrás dele com o coração aos saltos no peito.
Liwei olhou para cima, como se tivesse sentido a aproximação de
Wenzhi. Por um momento, fitaram-se um ao outro, olhos tão brilhantes, tão
perigosamente estreitados. Senti um calafrio. De espadas desembainhadas,
caíram um sobre o outro com uma ferocidade desenfreada. As lâminas
chocavam, faíscas tombavam num chuveiro de fogo e gelo, as nuvens
tremiam com a força dos seus golpes. Por um momento, não me consegui
mover, presa no abraço do medo, extasiada pela graça violenta do talento de
ambos, pelos movimentos fluídos daquele combate impiedoso.
Sentia os dedos rígidos quando puxei o arco, o fogo-celeste a estralejar
na minha mão. Preparei-me para soltar a flecha, lembrando-me que Wenzhi
era o inimigo. Mas eram ambos tão rápidos, com as lâminas a voltear, os
corpos a girar e rodopiar. E se falhasse?
Então, Liwei baixou-se, esquivando-se a um golpe de espada de Wenzhi
que lhe passou acima da cabeça, e rolou para a frente, apontando a espada
ao peito de Wenzhi. Wenzhi rodou o corpo e volteou a espada num arco
aberto, atravessando a armadura de Liwei, sangue a espirrar pelo ar. Liwei
arquejou, levando a mão à ferida.
Quando Wenzhi se ergueu acima dele, de espada em riste, algo quebrou
dentro de mim. Não podia usar o arco, não tão perto, o fogo-celeste podia
magoar Liwei também. Rajadas de ar saíram-me das mãos, atingindo
Wenzhi. Ele dobrou-se como se tivesse levado um murro na barriga,
cambaleando para o limite da sua nuvem. Recuperando o equilíbrio,
envolveu o corpo com um escudo.
Virou-se então para mim.
— Xingyin, vejo que tens os teus poderes de volta.
— Não graças a ti — resmunguei.
— Mas chegaste tarde de mais.
A sua voz tinha uma nota de arrependimento quando voltou a erguer a
mão, punhais de gelo apontados a Liwei...
Saltei pelo ar, interpondo-me entre eles, erguendo uma barreira à volta
de mim e de Liwei; o ataque de Wenzhi estilhaçou-se contra o meu escudo
sem causar danos. Algo despertou na minha mente, uma memória da
ocasião em que Wenzhi e eu estávamos na Câmara dos Leões, quando me
ensinara a usar os meus poderes. Não me parecia que ele esperasse que a
sua lição viesse a ser usada assim.
O rosto de Wenzhi ficou tenso, seria de fúria? Desilusão? Ao recuar, o
ar rolou com a sua energia, chocando contra o meu escudo. A barreira
tremeu e eu preparei-me, mantendo a força do escudo, mas então os seus
soldados atacaram, soltando a sua magia sobre nós. O meu escudo rompeu,
lascas de gelo e madeira e chamas caíram sobre mim. Finquei os dentes na
língua, contendo um grito. Algo assobiou atrás de mim e fogo irrompeu
sobre os soldados infernais, invocado por Liwei. Virou então a mão para
Wenzhi, as línguas de chamas carmesim a jorrar para ele, tão quentes que
pareciam tiradas do sol.
O escudo de Wenzhi rompeu. Ele foi arremessado para trás, abaixo da
sua nuvem, mergulhando para as profundezas abaixo. O meu coração...
parou. Corri até ao limite da minha nuvem e vi os seus soldados a voar atrás
dele, o poder deles pondo-o em segurança. Um emaranhado de emoções
tomou conta de mim, uma das quais era inegavelmente alívio.
— Já perdi a conta das vezes em que me salvaste — observou Liwei.
— Pensei que não estávamos a contar. — Voltei a olhar para baixo,
quase temendo ver Wenzhi a emergir. — Ainda não acabou, Liwei. Temos
de nos apressar.
À nossa volta, a névoa estava mais espessa; os esforços prévios de
Liwei não serviram para nada. Mais uma vez, os soldados aproximaram-se
do General Liutan, que tinha o cabelo encharcado em suor e começava a
não conseguir suportar o escudo.
A minha magia já estava a fluir para invocar um vendaval, a energia de
Liwei fundiu-se com a minha em feixes contínuos de luz. Suor escorria-me
da cara e tremiam-me os joelhos com o esforço. A neblina dissipou um
pouco, mas ainda pairava sobre os celestiais encurralados, que começavam
a olhar para nós. Chamas saíram das mãos de um. Baixei-me, evitando por
pouco ser queimada. Outro arremessou uma lança a Liwei, mas ele defletiu
o ataque sem dificuldade. O General Liutan estava agachado na sua nuvem,
suportando a maioria dos ataques.
Adiante, avistei os soldados infernais com pedras de ónix nos capacetes,
os mesmos que vira de cima do Dragão Negro, só agora visíveis no centro
da névoa. Os Talentos da Mente que tinham gerado a névoa, os olhos a
brilhar enquanto ondas de luz carmesim saíam da palma das suas mãos.
Contudo, os rostos pareciam tensos e cobertos de suor.
Estavam tão cansados como nós, o que significava que podiam ceder.
Senti uma onda de esperança ao gesticular na direção deles.
— Liwei, vou atacar os Talentos da Mente. Mantém o encantamento
aqui.
Ainda não terminara a frase e já o seu poder aumentara para suportar o
meu fardo. Vento soprou pelo ar, uma tempestade a rebentar sobre os
celestiais.
Uma flecha de fogo-celeste saiu da minha mão, atingindo um Talento da
Mente. Ele soltou um grito, o corpo em convulsões com a pele envolta em
luz. Quando tombou, a névoa que saía das suas mãos dissipou. Não parei,
não havia tempo para triunfo ou remorso, a minha nuvem a voar pelo ar
enquanto abatia um segundo e um terceiro. Os Talentos da Mente gritavam
e apontavam para mim, torrentes da sua magia a saltar na minha direção. O
meu escudo tremeu antes de ceder, mas outro surgiu no seu lugar, com um
brilho dourado.
— Xingyin, cuidado! — avisou Liwei.
Assenti em agradecimento, outra flecha já a sair dos meus dedos. O
infernal esquivou-se, mas a flecha seguinte atingiu-o no ombro. Quando fiz
pontaria ao quinto, os Talentos da Mente quebraram fileiras e fugiram.
A névoa permaneceu atrás deles. Contudo, a maioria das celestiais
acordou do torpor e mais juntaram-se a nós. O meu cabelo ficou livre dos
últimos fiapos de neblina, o meu vestido preto esvoaçava furiosamente
quando o nosso vendaval ganhou força, uivando ao soprar pelos céus,
varrendo cada recanto do firmamento. A névoa dissipou, as luzes carmesim
perderam brilho como estrelas ao nascer do sol, até desaparecerem como se
nunca tivessem existido. O céu tinha a mesma calma que surge após a
tempestade e as nossas nuvens rolaram para a segurança do Reino Celestial.
Estávamos salvos, os infernais tinham partido. Mas a minha pulsação
continuava acelerada, a minha respiração brusca, só de pensar no que me
esperava na audiência com o imperador. As minhas opções diminuíam
rapidamente. Agora que os generais sabiam que as pérolas estavam comigo,
tinha de as entregar ao imperador ou desafiá-lo abertamente, recusando-me
a entregá-las. Uma escolha agonizante, se é que era mesmo uma escolha.
Qualquer uma das opções era uma traição, uma perda de algo infinitamente
precioso, ou a liberdade da minha mãe, ou a dos dragões. Pior ainda era o
medo que o imperador punisse novamente a minha mãe pela minha
desobediência. Ou que me tirasse as pérolas à força, tal como me ordenara
que as tirasse aos dragões.
Sentia a cabeça a latejar. Se pelo menos conseguisse salvar ambos! Essa
opção era impossível, a não ser que... houvesse uma maneira de cumprir o
acordo sem fazer mal aos dragões. Uma ideia começou a formar-se na
minha mente, frágil e nova. Louca e indubitavelmente perigosa.
— Xingyin — chamou Shuxiao, quando parou ao meu lado. — Vamos
embora.
— Não posso — respondi. — Ainda não.
Não disse mais, não me atrevia a revelar o meu plano, se é que lhe podia
chamar isso; era mais uma sequência de ideias e palpites. Essa informação
pô-la-ia em perigo, colocando-a numa posição insustentável, a mesma em
que eu própria me colocava, dividida entre aqueles que amava e a minha
honra.
— Fazes algo por mim? — perguntei-lhe numa voz soturna.
— Tudo o que puder.
— Não lhes digas que não regressei. Diz a todos que me perdeste de
vista durante a batalha.
Talvez isso pudesse adiar as suspeitas do imperador.
— Só isso? Estava à espera que me desses um desafio a sério —
desdenhou.
— Hoje em dia, tudo à minha volta é um desafio. Mas se as coisas não
correrem como planeado, talvez consigas lembrar-te de uma maneira de
conter a ira de Sua Majestade Celestial?
Falei a brincar, tentando esconder o meu medo. Ela fez uma pausa,
observando o meu rosto.
— Vai com cuidado. Vou fazer o que puder — disse por fim.
— Obrigada.
Não lhe disse mais nada, mas havia tanto mais para lhe dizer. Quando
voou na direção do Reino Celestial, virou-se para trás uma última vez e
acenou-me.
— Xingyin, o meu pai aguarda por ti.
Olhei para Liwei e afastei o cabelo da testa, ganhando coragem para lhe
dizer:
— Não posso entregar as pérolas dos dragões ao teu pai. Dei-lhes a
minha palavra.
Ele não falou logo, com os olhos escuros e solenes.
— O que vais fazer?
Hesitei. Atrevia-me a confiar nele? Quereria ele as pérolas para o seu
pai? Se assim fosse, tentaria impedir-me? Mas quando olhei para o seu
rosto, iluminado com o calor que ainda me assombrava, soube que as
minhas preocupações eram infundadas. Ele podia discutir comigo, podia
tentar dissuadir-me, mas nunca me trairia.
— Os dragões disseram que era um encantamento que prendia a sua
essência espiritual às pérolas. Segundo a Mestra Daoming, nenhum
encantamento é inquebrável. E se este puder ser desfeito? Não sei se é
possível, mas tenciono descobrir. E acrescentei, num tom hesitante: —
Assim, posso manter o acordo com o teu pai, mas apenas o que acordei com
ele e nada mais.
Um sorriso ténue formou-se nos seus lábios.
— Queres dizer as pérolas e nada mais?
Assenti, apesar da dúvida que me atormentava. O imperador tencionava
obter de mim mais do que o acordado. E agora receberia exatamente o que
lhe fora prometido, que não era de todo o que queria. Podia não funcionar;
havia demasiadas coisas que podiam correr mal. Talvez o encantamento não
pudesse ser quebrado. Talvez o imperador não aceitasse as pérolas sem a
essência; ficaria certamente furioso. Mas que escolha tinha eu? Nenhuma
que fosse capaz de fazer.
Quando a sua nuvem chegou mais perto, Liwei saltou para a minha e
deu-me a mão.
— Não temos muito tempo.
Nesse momento, respirei com uma calma que não sentia havia anos,
desde que partira do Pátio da Tranquilidade Eterna. Não estava sozinha e,
apesar de tudo o que acontecera entre nós, ele ainda era meu amigo.
Contudo, não sentia prazer algum em arrastá-lo para o meu plano. O
meu esquema colocaria Liwei contra o pai, incorrendo no seu desprazer e
incitando a sua ira. Mas agora não recusaria a sua ajuda, não quando era tão
bem-vinda como a chuva em terra seca. Não quando havia tanto em jogo.
— Para onde vamos? — perguntou ele.
— Para o sítio onde os dragões nasceram.
O Palácio de Coral Fragrante reluzia como uma pérola rosada na sua
concha. Naquele dia, as águas mutáveis eram de um azul brilhante, as ondas
coroadas de espuma branca. Quando atravessámos a ponte cristalina, algo
apertou o meu coração, inundada pelas memórias indesejadas da última vez
que ali estivera.
Os guardas do palácio fizeram uma vénia a Liwei, reconhecendo-o de
imediato. Os guardas também me conheciam, mas a presença de Liwei
ajudou-nos a obter rapidamente uma audiência, apesar da nossa falta de
boas maneiras ao aparecermos sem anúncio prévio. Fomos conduzidos a
uma sala espaçosa enquanto um servo partia à procura do Príncipe Yanxi.
Através da parede transparente, Liwei admirava um magnífico recife de
coral, resplandecente em tons iridescentes. Peixes de cores vivas nadavam
no recife, receosos das sombras maiores que passavam acima, predadores
em busca de presas. A sua expressão era sombria, contemplando a situação
impossível para que eu o arrastara.
— Sei que não é o que queres. Obrigada por teres vindo comigo —
disse-lhe.
— Muitos vão discordar do que estás a planear. — O seu olhar recaiu
sobre mim, tão opaco como as águas lá fora. — Mas terás sempre o meu
apoio.
Palavras simples faladas numa voz calma, mas que conseguiram tocar-
me.
As portas abriram-se e entrou o Príncipe Yanxi. Vestia uma túnica de
brocado cor de pérola trabalhada a ouro, com um cinto de lápis-lazúli a
cingir-lhe a cintura. Pressionei discretamente a palma das mãos contra o
meu vestido, numa tentativa fútil de alisar os vincos do tecido. Pelo menos,
a cor escura escondia as nódoas de lama, suor e sangue.
Yanxi cumprimentou Liwei antes de se virar para mim.
— Arqueira-Mor, decidiu finalmente trocar as terras frias do Reino
Celestial pelas nossas costas soalheiras?
Abanei a cabeça pesarosamente.
— Infelizmente, vimos cá em circunstâncias menos desejáveis, Vossa
Alteza.
A urgência das minhas palavras baniu a leveza da sua voz.
— Se precisar de algo, só tem de pedir — garantiu-me, sentando-se e
convidando-me a fazer o mesmo.
Permaneci de pé, os meus dedos a desatarem os cordões da minha bolsa
antes de despejarem as pérolas para a palma da minha mão. A vibrarem
contra a minha pele, pulsando com um fogo interior.
O Príncipe Yanxi debruçou-se para ver melhor e ergueu bruscamente a
cabeça.
— São as pérolas dos Veneráveis Dragões?
— Sim.
— Onde as encontrou? — perguntou, maravilhado.
— Foram-me dadas.
As palavras saíam aos tropeções, hesitantes e incertas. Não estava
habituada a revelar os meus segredos assim tão facilmente. Mesmo naquele
instante, uma parte de mim temia ter cometido um erro ao ir ali, que o
Príncipe Yanxi se visse obrigado a entregar-nos ao Reino Celestial.
Talvez pressentindo o meu desconforto, Yanxi ficou hirto e recuou.
— Quem lhas deu? Quem tem esse direito?
— Os dragões — respondi, um pouco magoada pela sua dúvida.
Mas recordei o quanto ele admirava os dragões. E eu própria ainda não
podia crer que me tinham confiado as suas pérolas.
— O meu pai incumbiu Xingyin de lhe trazer as pérolas dos dragões.
Foram libertados do Domínio Mortal usando o seu selo — explicou Liwei.
O Príncipe Yanxi levantou-se num salto, com um brilho no rosto.
— Os dragões estão livres! Tenho de informar o meu pai.
Pus-me à sua frente.
— Vossa Alteza, o vosso pai saberá a devido tempo. Por agora, há um
assunto mais urgente para o qual necessitamos da vossa ajuda.
— Urgente?
— Precisamos de lhe perguntar algo sobre estas pérolas.
O seu olhar perscrutou-me, de novo cauteloso quando voltou a sentar-
se.
— Não posso deixar de me interrogar porque deseja agora o Imperador
Celestial as pérolas. E que motivo teriam os dragões para abdicar delas.
— Não posso falar sobre as intenções de Sua Majestade Celestial.
Quando concordei, não tinha consciência do que as pérolas significavam
para os dragões. Ficai descansado, prometi aos dragões que protegeria a sua
liberdade.
Yanxi não respondeu, cabeça inclinada para o lado, como se ainda não
tivesse decidido se podia confiar em nós.
Respirando fundo, prossegui o meu relato.
— O encantamento que prende a essência espiritual dos dragões às
pérolas... pode ser desfeito?
O meu coração batia com força enquanto aguardava a sua resposta.
— Porquê?
Ele olhava para mim como se eu fosse um enigma que estava a tentar
deslindar.
— Quero devolver a essência aos dragões. Nunca mais ficarão sujeitos a
mais ninguém.
— Porque quer fazer isso? Porque não se limita a devolver as pérolas
aos dragões? — indagou Yanxi, sempre percetivo.
Pensei na minha mãe, de quem o Príncipe Yanxi podia não saber ainda.
— Na verdade, também estou a ser egoísta. Se devolver as pérolas aos
dragões, terei falhado na minha tarefa. Não desejo isso. O imperador
prometeu-me algo que desejo muito.
Ele ergueu um sobrolho.
— Deve ser algo importante, Arqueira-Mor.
— Nada é mais importante do que a família — disse eu num sussurro.
— Como bem sabeis, Vossa Alteza.
A expressão do Príncipe Yanxi suavizou-se quando se reclinou na
cadeira. Estaria a pensar no irmão? Nos pais?
— O encantamento de que fala é poderoso — respondeu, coçando o
queixo, pensativo. — O selo foi formado com sangue e magia, só assim
pode ser quebrado. E apenas pelo dono legítimo das pérolas.
Era possível. Ainda havia uma hipótese. Todos os encantamentos
requeriam magia, mas não consegui conter um arrepio ao ouvir falar de
sangue.
Yanxi hesitou, olhando de relance para Liwei.
— Fale à vontade, Vossa Alteza. Está entre amigos, ninguém ficará
ofendido — disse Liwei.
O Príncipe Yanxi entrelaçou os dedos, com os cotovelos apoiados na
mesa.
— Arqueira-Mor Xingyin, foi apenas a si que os dragões ofereceram as
pérolas?
Quando assenti, a sua testa franziu-se ainda mais.
— Sabe-se pouco sobre o seu mestre, o guerreiro que os salvou. Alguns
creem que era parente do Imperador Celestial. Se assim fosse, porque não
ofereceriam os dragões a sua lealdade a si ou ao seu pai? — perguntou
Yanxi a Liwei.
As esculturas douradas no telhado do Palácio de Jade, os bordados nas
vestes imperiais... seria o rumor verdadeiro ou seriam apenas símbolos para
perpetuar um mito poderoso? Teria o imperador cobiçado o poder dos
dragões todo aquele tempo? Dever-se-ia a punição à sua recusa em se
submeterem a ele?
— No Reino Celestial, não temos muita informação sobre os dragões.
Tudo o que sabemos é que não desejam servir o meu pai. Deixaram isso
bem claro quando foram libertados — lembrou Liwei, fazendo uma pausa.
— Porque pergunta?
O Príncipe Yanxi soltou um suspiro.
— Libertar a essência dos dragões não é simples. Requer um grande
sacrifício, idêntico ao que o guerreiro pagou para ligar a essência dos
dragões às pérolas. Metade da sua força vital para completar o
encantamento. — Então, debruçou-se sobre a mesa na minha direção: — Os
dragões deram-lhe as pérolas, o que significa que a consideram a sua
verdadeira mestra. Por isso, cabe apenas a si pagar esse preço.
As palavras ecoaram na minha mente. Metade da minha força vital? Ao
contrário da minha energia, que podia ser recuperada com repouso, podia
demorar décadas a recuperar a força vital. Talvez séculos. Ficaria
enfraquecida, imensamente enfraquecida. Usar o Arco do Dragão de Jade
seria um desafio. Como poderia proteger aqueles que mais amava? Como
me poderia defender?
Liwei pegou na minha mão e segurou-a com força.
— Xingyin, não faças isso. Tem de haver outra maneira.
Soltei a minha mão, consciente do olhar penetrante do Príncipe Yanxi.
Teria sido tão fácil afastar-me, deixar que o destino seguisse o seu rumo.
Deixar que me tirassem a decisão das mãos, em vez de me debater com a
escolha certa. Mas estivera tão perto de perder as pérolas antes, não queria
voltar a correr esse risco. Não sabia quanto mais tempo tinha. Nesse preciso
momento, as tropas de Wenzhi podiam estar a aproximar-se de nós. E o
imperador devia estar cada vez mais impaciente com a minha ausência.
Mordi o interior do lábio, fazendo mais e mais força até a carne macia
ceder dolorosamente, o sabor quente do sangue a encher-me a boca. Se o
Príncipe Yanxi estivesse errado, ou se o encantamento falhasse, ter-me-ia
enfraquecido para nada. E se não entregasse as pérolas ao Imperador
Celestial, tomar-me-ia o alvo da sua inimizade eterna. Honraria a promessa
de não fazer mal à minha mãe? Quanto a mim...
Um arrepio percorreu-me o corpo.
Mas a magia não era a única força que possuía; vivera sem ela antes.
Enganara Wenzhi com as minhas palavras e uma mão-cheia de pétalas,
derrotara um príncipe infernal com os poderes suprimidos. Se aquilo
funcionasse, num só golpe conseguiria libertar os dragões e regressar com
as pérolas, cumprindo à letra o acordo com o imperador. Ainda teria uma
hipótese de libertar a minha mãe.
— Vou fazer isso. — Tinha as mãos a tremer quando guardei as pérolas
na minha bolsa e atei os cordões. — Vossa Alteza, agradeço a vossa
assistência.
Agora que a decisão fora tomada, estava ansiosa por prosseguir.
— Vai precisar de uma arma — disse Yanxi. — Uma arma poderosa. O
sangue vai levantar o selo e a sua força vital vai abrir o caminho, mas a
essência dos dragões precisa de ser expulsa das pérolas. Se a sua arma for
demasiado fraca, vai drenar mais a sua força. Uma vez iniciado o
encantamento, não pode ser parado.
Por dizer ficou o aviso: pode morrer.
O Arco do Dragão de Jade era um peso reconfortante nas minhas costas.
— Isto serve? — perguntei, tirando o arco do ombro e pousando-o em
cima da mesa.
O Príncipe Yanxi seguiu com reverência as linhas intrincadas esculpidas
no arco. Quando o arco se agitou ao seu toque, afastou logo as mãos.
— Empunha o Arco do Dragão de Jade? Como é isso possível?
— Não sei ao certo — respondi honestamente. — É o arco que permite
que eu o use.
— Foi por isso que os dragões lhe deram as pérolas — observou Yanxi.
— Eles não queriam — confessei, sentindo em mim o calor da
vergonha. — Mas deixei-me tentar pelo seu poder e fui arrogante, pensando
que os podia proteger. Estava errada.
Levantei o arco da mesa.
— Vossa Alteza, peço perdão pela nossa pressa, mas não há tempo a
perder. Há algum sítio isolado aqui perto, onde possamos invocar os
dragões?
Yanxi pôs-se de pé.
— O extremo sul tem uma extensão sossegada de terra. Se não tiver
objeções, posso levar-vos lá pessoalmente. — Um sorriso brincou-lhe nos
lábios. — Confesso que sempre desejei ver os Veneráveis Dragões.
Podemos ser lendas para os mortais, mas os dragões são lendas para todos
nós.
***
A nuvem do Príncipe Yanxi levou-nos até à praia, a pouca distância do
palácio. Ladeada por penhascos altos e rochas inacessíveis, não era de
admirar que estivesse deserta, apesar das águas pristinas. Quando pousámos
na areia branca, fitei as pérolas na minha mão. Funcionaria? Descobriria em
breve. Respirando fundo, sussurrei os nomes dos dragões para as pérolas,
com fogo a arder nas suas profundezas lustrosas.
Durante um batimento de coração, tudo ficou quieto; o mar e o céu
fundidos num só. Com um sussurro, as águas passaram de azuis a verdes, as
ondas ficaram mais altas, coroadas de espuma branca ao correrem para a
praia. No horizonte, abriu-se um redemoinho, rodando cada vez mais largo,
até ameaçar engolir todo o oceano. Das profundezas emergiram os quatro
dragões, erguendo-se pelo céu. Água fria caiu sobre nós, as gotas a reluzir
com a luz do sol. O ar vibrava com poder quando os dragões pousaram na
praia diante de nós, as garras douradas afundadas na areia.
O Príncipe Yanxi cambaleou para trás, boquiaberto. A sua túnica estava
molhada, o cabelo colado à testa. Quando limpei a água do meu rosto, tentei
não sorrir ao ver o príncipe imaculado tão desarranjado e encharcado.
Os corpos imensos dos dragões deixavam a praia à sombra, mas os seus
passos eram leves e graciosos quando se aproximaram de nós.
O olhar de âmbar do Dragão Longo caiu sobre mim e a sua voz
reverberou na minha mente. Xingyin, filha de Chang’e e Houyi. Porque nos
invocou?
O Príncipe Yanxi inalou bruscamente. Teria o Dragão Longo falado para
todos nós? Deitei-lhe um olhar de desculpas. Fora uma convidada muito
pouco educada, mantendo-o na ignorância até agora.
De bom grado teria ficado ali parada, a deliciar-me com a visão dos
dragões em toda a sua glória, mas não me atrevia a desperdiçar mais tempo.
— Veneráveis Dragões, desejo libertar a vossa essência espiritual das
pérolas e devolvê-la a vós. É isso que desejais também?
Falei com simplicidade, direta ao cerne da questão.
Os dragões ergueram as cabeças e o ar estalava de excitação. A voz do
Dragão Longo soou entre os meus ouvidos. Desejamos isso mais do que
nadar no mar e voar no ar. Não lho podíamos pedir; esse sacrifício tem de
vir de um coração predisposto.
Senti um aperto no coração a ver a esperança nos seus olhos, que
emanavam um brilho dourado.
— Então, vou tentar.
Os dragões dobraram os pescoços compridos num aceno gracioso, os
olhares fixos nas pérolas na minha mão.
O Príncipe Yanxi desembainhou um punhal com punho em lápis-lazúli.
— Está pronta?
Assenti, estendendo-lhe a palma da mão. Mas Liwei interpôs-se entre
nós e agarrou-me o pulso. O seu rosto estava pálido de ansiedade.
— Xingyin, tem cuidado. Se não parares na altura certa, vais...
— Ela tem de fazer isto sozinha — avisou o Príncipe Yanxi. — Não
pode interferir assim que o encantamento começar. Se o fizer, ela morre.
Liwei ignorou-o, falando apenas para mim.
— Tens a certeza de que queres fazer isto? Não tens de decidir agora.
— Já decidi — respondi calmamente. — Esta é a minha escolha.
Liwei ficou em silêncio e tirou, por fim, o punhal da mão de Yanxi.
Quando assenti, os nós dos seus dedos ficaram brancos à volta do cabo do
punhal ao passar a lâmina pela palma da minha mão. Um bom corte, um
corte limpo, nem muito raso nem muito fundo. O metal frio atordoou a dor
quando a pele se apartou e o sangue quente jorrou. Fechei os dedos num
punho cerrado e rodei o pulso, deixando o sangue pingar sobre as pérolas
como chuva carmesim.
Senti um aperto dentro de mim só de pensar no que tinha pela frente.
Fechando os olhos, segui o trilho de luzes no meu corpo até chegar ao
núcleo luminoso da minha força vital, resguardado na minha cabeça. Com
um puxão forte, rasguei-o ao meio, e como me pareceu errado, uma
violação de mim mesma, mas não parei, a minha força vital a fluir
livremente, correndo pelas minhas veias como um rio irreprimível. Forte,
indomável, repleto de poder. Mais brilhante do que as estrelas infinitas,
mais luminoso do que a lua. Mas quando a minha força vital fluiu das
minhas mãos para as pérolas, uma fraqueza súbita tomou conta de mim, a
força a esvair-se dos meus membros. Cambaleei, quase caí. Cerrando o
maxilar até me doer, firmei os joelhos e resisti ao impulso instintivo de
parar o fluxo de energia. A minha força vital deslizava sobre as pérolas,
fazendo cintilar o meu sangue, antes de ser sugada como água por uma
esponja. As pérolas ergueram-se da minha mão e pairaram no ar, a radiância
dentro delas a brilhar com mais força até cada uma se tomar uma esfera de
chama pura.
Só então parei o fluxo da minha força vital, deixando-me cair de joelhos
na areia, arquejos estrangulados a saírem da minha garganta. Suor escorria-
me pelo rosto e uma exaustão entorpecedora rastejava por pernas e braços.
Pior ainda era o vazio doloroso no meu interior, como se uma parte
intrínseca de mim tivesse sido arrancada. Só podia esperar que tivesse sido
suficiente.
Liwei baixou-se e segurou as minhas mãos. A sua energia correu para
dentro de mim e percorreu o corpo. Ao contrário de outras vezes em que ele
me curara, no entanto, o seu calor era oco e o conforto fraco. Seria eu
incapaz de canalizar o poder que ele me dava, como se estivesse a verter
água para uma taça já de si cheia?
Não havia tempo para ponderar isso, o encantamento ainda não acabara.
Soltei-me das suas mãos e levantei-me, arquejante. Cambaleando uns
passos para trás, ergui o Arco do Dragão de Jade. Outrora curvava-se nas
minhas mãos como seda, mas agora a corda nem se mexia, cortando-me os
dedos até ficar escorregadia de sangue. Contraí os músculos, mas não
desisti, até que, finalmente, uma pequena flecha de fogo-celeste refulgiu.
Senti uma pontada de angústia ao ver a sua força diminuída, mas não era
altura para autocomiseração. Fazendo pontaria à pérola vermelha, soltei o
relâmpago sobre o seu centro flamejante. A flecha acertou com um clarão
ofuscante e uma nuvem de ouro irrompeu da pérola. O Dragão Longo
inclinou o pescoço para a frente, abrindo as mandíbulas para sugar as
manchas cintilantes para dentro do seu corpo. O seu peito brilhou como se
tivesse engolido uma estrela, antes de voltar a escurecer.
A pérola carmesim caiu para a areia. Intacta, mas o seu fogo interior
estava extinto. Os outros dragões viraram-se para mim, os seus rostos
iluminados com antecipação. Três vezes puxei a corda do arco, disparando
três flechas para as três pérolas restantes. De cada vez uma nuvem dourada
irrompeu, erguendo-se para as mandíbulas expectantes de um dragão. A
minha energia estava quase drenada, os meus dedos cortados
profundamente e o meu sangue espalhado pela areia branca como flores de
ameixeira na neve.
Quatro pérolas jaziam no chão. Baixando-me, recolhi-as nas minhas
mãos: brilhante como o sol, vermelha como o fogo, branca como o gelo,
preta como a noite. Eram lindas, mas algo vital nelas se perdera. Depois de
ver a lua cheia, o quarto crescente perdia o seu encanto.
Os olhos dos dragões refulgiam com um brilho dourado quando as suas
bocas se curvaram num sorriso. As suas vozes reverberaram como uma só,
o som mais requintado do que qualquer música em todo o mundo. Tem a
nossa gratidão. Estamos de novo completos, de novo mestres de nós
mesmos.
Humilde e demasiado exausta para falar, fiz-lhes uma vénia.
Com a garra, o Dragão Longo tirou uma escama brilhante do corpo,
perfeita como uma pétala de rosa. Inclinando a cabeça, ofereceu-me a
escama.
Se alguma vez precisar de nós, mergulhe-a num líquido e viremos ter
consigo.
Peguei na escama e apertei-a com força. Sem mais palavras, os dragões
deram meia-volta e mergulharam na água. Quando a última onda das suas
caudas desapareceu, o mar ficou calmo, espelhando novamente o céu
acima.
Liwei apertou a minha mão, a sua magia já a percorrer-me o corpo,
curando-me a carne torturada, mas não havia nada que pudesse fazer pelo
vazio doloroso dentro de mim. Encostando-me a ele, fitei o oceano,
sentindo-me estranhamente despojada. O Príncipe Yanxi estava parado ao
nosso lado, imóvel como uma estátua, o olhar perdido na distância.
— Vossa Alteza, obrigada pela vossa ajuda — disse-lhe.
O seu sorriso era radiante.
— Sou eu quem lhe agradece, filha da Deusa da Lua. O que vi hoje vai
aquecer-me o coração para toda a eternidade.
Corei, cheia de um orgulho intenso ao ouvir aquelas palavras. Mas a
minha mãe era ainda uma prisioneira, os nossos destinos num balanço
precário. Não me arrependia de nada; estava satisfeita com o que que fizera,
mas não podia ignorar a sombra que se erguia sobre mim, o confronto que
tinha pela frente. O Imperador Celestial não era famoso pela sua
misericórdia, e depois deste dia dera-lhe amplas razões para não me mostrar
nenhuma.
A nossa nuvem deslizava pelo céu, levada por uma brisa suave. Estava
um dia bonito e conseguíamos ver até ao mundo mortal abaixo; mas eu
olhava para a frente sem expressão. Ao longe, a luz do sol cintilava nos
dragões dourados empoleirados no telhado do Palácio de Jade.
Soldados de armadura preta apareceram no horizonte, voando
velozmente em nuvens violeta para nos cortarem o caminho até ao Reino
Celestial. Rodearam-nos num instante, abrindo caminho apenas para deixar
passar Wenzhi. Ele parou diante de mim, a túnica cinzento-escura a
esvoaçar-lhe à volta dos tornozelos, a esmeralda na sua coroa a refulgir com
o brilho do jade. Apesar de não usar armadura, trazia uma espada à cintura.
Liwei ficou hirto ao meu lado, fúria a emanar dele em ondas.
— Traidor. Veio confessar os seus crimes?
— Não há nada para confessar. Nem ouvi acusação alguma vinda da
Corte Celestial.
O tom suave de Wenzhi era deliberado para enfurecer.
— Sabe bem o que fez, tal como eu. E vai pagar pelas suas ofensas —
ameaçou Liwei.
— Talvez. Mas hoje, não. E certamente não às suas mãos.
Wenzhi desviou deliberadamente o olhar, fitando-me.
— Não vim aqui hoje para lutar contigo.
Gesticulei para as flechas e lanças que os seus soldados apontavam para
nós.
— Isto parece indicar o contrário.
— Não disse nada acerca dele. — Wenzhi indicou Liwei com a cabeça,
mas não parou de olhar para mim. — Dá-me as pérolas — disse ele, como
se estivesse a pedir-me um dos alfinetes no meu cabelo.
Não lhe daria nada meu, nem agora nem nunca.
— É tarde de mais. As pérolas já não te servirão de nada.
Ele franziu a testa e observou o meu rosto.
— O que queres dizer?
— A essência dos dragões desapareceu; devolvi-a aos dragões.
Wenzhi sibilou entre dentes.
— Não mintas, Xingyin. Não te fica bem.
— Não estou a mentir.
Falei num tom grave. Se ele não acreditasse em mim, se voltasse a levar
as pérolas, levaria a última esperança de liberdade da minha mãe. Tirando
as pérolas da minha bolsa, pu-las na palma da mão e aproximei-me da orla
da minha nuvem.
— Viste como elas eram antes. Parecem-te iguais?
A minha pulsação batia um ritmo errático. Apesar de querer que ele
visse como as pérolas estavam diminuídas, era precisamente o que temia
que o imperador descobrisse, punindo-me por causa disso.
Ele fitou as pérolas, sem falar.
— Porquê? — conseguiu dizer por fim.
A sua voz vibrava com tanto choque, desânimo e desilusão; era música
para os meus ouvidos. Não esperava que uma satisfação tão intensa me
percorresse o corpo, aquele triunfo exultante por, apesar do que ele fizera,
da trama intrincada em que me enredara, tudo isso não servir de nada.
— Por tua causa — respondi-lhe.
— O quê?
— Quero agradecer-te por me mostrares o que precisava de ser feito, o
que aconteceria se as pérolas caíssem nas mãos erradas. Não podia permitir
que isso voltasse a acontecer. — Deixei cair as pérolas na minha bolsa. —
Agora que viste que não temos nada que queiras, deixa-nos passar.
Em vez disso, a sua nuvem aproximou-se mais, a raiva a desaparecer da
sua expressão. Preparei-me para mais mentiras.
— E se te dissesse que não vim aqui só por causa das pérolas? —
perguntou.
— Não me podia importar menos com o que vieste aqui fazer.
Liwei aproximou-se de mim, os nós dos dedos brancos à volta do punho
da espada. Agarrei-o pela manga.
— Liwei, não o ataques.
— Depois de tudo, ainda queres saber dele? — perguntou Liwei,
incrédulo.
— Como podes pensar isso? — vociferei, largando-o. — Estou pelos
cabelos de sangue, terror e mágoa. A nossa melhor hipótese é convencê-lo a
deixar-nos ir. Se o atacares, os soldados dele vão atacar-nos. E se ele voltar
a magoar-te — ergui a voz para Wenzhi ouvir bem —, vai levar com um
relâmpago no coração.
— Já o partiste, Xingyin. Que mais estragos achas que pode fazer? —
disse Wenzhi, em voz baixa.
O meu riso soou áspero e alegre.
— Terei todo o gosto em tentar.
No momento seguinte, tinha o arco nas mãos, fogo-celeste a estralejar
entre os meus dedos, inegavelmente mais fraco do que antes.
O olhar de Wenzhi estava fixo no sangue a escorrer-me da mão, de
velhas feridas reabertas.
— O que te aconteceu? Porque estás tão fraca?
A sua voz soava rouca de urgência.
Lutáramos juntos tantas vezes, não era muito surpreendente que ele
conseguisse sentir a minha força diminuída. Não respondi, contendo um
silvo de dor.
— Não te canses — avisou Liwei.
— Baixa a tua espada, Príncipe Infernal — disse eu na minha voz mais
ameaçadora. — Chama os teus soldados e deixa-nos passar. Em troca, não
te assento esta flecha no peito. Apesar de ser bem merecida.
Um momento de silêncio pulsou entre nós, inviolado por palavras ou
mesmo pelo mais pequeno suspiro.
Os olhos de Wenzhi refulgiram com um brilho prateado.
— Xingyin, perdeste o juízo? Se retiraste o poder às pérolas, como
podes regressar ao Palácio de Jade? Confias assim tanto na misericórdia de
Suas Majestades Celestiais?
Fiquei eriçada com a sua troça, mas por baixo detetei algo mais. Seria
alarme? Pela minha segurança? Não importava, pois eu lembrava-me da sua
falsidade sem limites e ergui o queixo, desafiadora.
— Mais do que na tua. Que ganhei eu por confiar em ti? Mentiras e
cativeiro. A minha magia reprimida e as minhas posses roubadas.
Não consegui conter um tremor ao lembrar-me.
Wenzhi estendeu-me a mão.
— Não precisas de confrontar o Imperador Celestial. Vem comigo, vou
manter-te a salvo. Não serás uma prisioneira desta vez. Farei o que puder
para te ajudar, e à tua mãe... sem condições.
A oferta apanhou-me de surpresa, bem como a sua preocupação. Mas
palavras eram fáceis de dizer. O que importava era a conduta de cada um e
nunca mais voltaria a confiar nele. Segurei a minha arma com firmeza, sem
desviar o olhar dele.
— Não irei contigo. E consigo manter-me a salvo sozinha.
Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
— Tens noção do que te espera na Corte Celestial? Dá-te por feliz se
apenas te prenderem como fizeram à tua mãe!
— Ela tem o meu apoio. Ao contrário de si, eu nunca a trairei —
declarou friamente Liwei.
Antes que pudesse falar, uma chuva de flechas voou pelo ar e uma
cravou-se no meu ombro. Uma dor intensa percorreu-me o corpo quando
suprimi um grito e o arco caiu-me das mãos. Seria uma armadilha?
Enquanto Liwei puxava a flecha e curava a minha ferida, deitei um olhar
zangado a Wenzhi. Contudo, a sua expressão era estranhamente desolada.
— Não atirem — bradou aos seus soldados.
As suas pupilas eram cinzentas como o mar varrido pelo vento quando
se virou para mim.
— Sei o que o meu irmão te disse. Ofereceu-te a tua liberdade e a minha
morte. Recusaste. Porquê?
Conseguia sentir Liwei a olhar para mim, a sua surpresa silenciosa. Não
lhe contara isso. Por algum motivo, não lhe quisera contar.
— Não foi por tua causa — disse orgulhosamente. — Não o podia
permitir, porque nem o meu pior inimigo merece ser morto daquela
maneira. Não teria sido... honrado.
Os seus lábios curvaram-se num sorriso sem alegria.
— Fico grato pela tua honra. Salvaste-me nessa noite. De certa forma.
— Então, respirou fundo. Quando soltou a respiração, o som estava
carregado de arrependimento. — Não voltarei a reter-te contra a tua
vontade. O teu ódio e ressentimento não são o que quero.
Olhou então para Liwei com uma expressão de desdém.
— Para pagar a minha dívida para com ela, vou deixá-lo partir em
liberdade. Não terá tanta sorte da próxima vez.
A voz de Liwei escorria desprezo.
— O sentimento é recíproco.
Fitei Wenzhi, incrédula. Seria um truque? Iria mesmo deixar-nos partir?
E a sua ambição? O acordo que firmara com o pai? Enquanto uma parte de
mim esperava que ele fizesse aquilo, nunca acreditara de verdade que o
faria.
Mantive esses pensamentos para mim quando um vento soprou,
cintilando com a energia de Liwei quando levou a nossa nuvem para longe.
E apesar de resistir ao impulso de olhar para trás, conseguia sentir o olhar
de Wenzhi a seguir-nos.
Quanto mais nos aproximávamos do Palácio de Jade, mais profundo se
tornava o meu terror. A minha pele parecia gelo, o meu coração saltava só
de pensar na fúria do imperador. Não duvidava que ele sentiria a mudança
nas pérolas, que eu ainda esperava apresentar como prova da realização do
nosso acordo. Acusar-me-ia de desonestidade? Castigar-nos-ia? Afundei a
cabeça nas mãos, a minha respiração a entrar e a sair a um ritmo frenético.
Dedos quentes envolveram-me os pulsos. Tão gentilmente como se
estivesse a segurar um dos seus pincéis, Liwei afastou-me as mãos da cara.
— Tens as pérolas. Cumpriste a tua tarefa. Vou estar ao teu lado.
Não me largou até pousarmos no Salão da Luz Oriental. A luz do sol
refulgia sobre as paredes de pedra, luminosa e brilhante. Tão oposta ao
temor que se escondia dentro de mim. Tomou-me um impulso de fugir, de
desaparecer até o meu nome ser esquecido. Mas como todos os desafios
difíceis por que passara — Xiangliu, o Governador Renyu, lutar com Liwei
na Floresta da Primavera Eterna —, também aquilo era algo que tinha de
enfrentar.
Assim que entrei para o salão, todas as cabeças se viraram para mim,
corpos hirtos, olhares duros. Mas isso não era nada comparado com os
sussurros que me rodearam como o sibilar de serpentes. Fragmentos de
“traidora”, “mentirosa” e “infernal” chegaram-me aos ouvidos. Os olhares
de piedade eram todos lançados a Liwei, interrogando certamente como
podia ele ter sido enganado por mim. Senti um aperto por dentro com
aquela receção tão hostil, uma fúria que ardia em mim por ser condenada
sem sequer ter uma oportunidade de me defender. E também por Liwei, em
cujo discernimento deviam ter mais fé.
Hirta como uma lança, caminhei até ao palanque. Não olhei uma única
vez para os cortesãos, não por arrogância, mas para garantir que o peso da
sua censura não esmagava a minha fachada de coragem. A minha única
defesa era não ter feito nada de errado, por isso não me atrevia a mostrar o
mais pequeno vislumbre de dúvida.
Diante de Suas Majestades Celestiais, caí de joelhos e dobrei o corpo
até tocar com a testa e a palma das mãos nas lajes de jade. Fui recebida com
silêncio; o imperador não me convidou a levantar. Hesitante, ergui a cabeça
na direção dos tronos, o meu olhar a deslizar pelos sapatos encrustados de
pérolas e a seguir para as bainhas das túnicas de brocado da cor da noite.
Dragões bordados a fio dourado moviam-se pelas vestes do imperador,
enquanto fénix prateadas dançavam no vestido da imperatriz. O olhar do
Imperador Celestial perscrutou o meu rosto quando se debruçou para a
frente, os fios de pérolas a tilintarem na sua coroa.
— Dizem-me que é uma traidora. Que levou as pérolas dos dragões para
o Reino Infernal e as entregou ao seu amante. Não é uma história difícil de
acreditar, apesar de o meu filho ter falado energicamente em sua defesa.
Contudo, o que me deixou pensativo foi a paixão com que antes implorou
pela sua mãe. Certamente, não a condenaria a um destino ainda pior com os
seus crimes. Certamente, nenhum filho faria isso a uma mãe querida.
Certamente, a minha confiança em si não fora despropositada.
A sua voz era suave, mas eu não era idiota ao ponto de ignorar o perigo
nas suas palavras. A ameaça à minha mãe cortou-me profundamente. Oh, eu
estava grata por ter escapado do Reino Infernal, por me poder defender
perante o imperador. Os meus instintos estavam corretos, ele teria castigado
a minha mãe em retaliação pelos meus crimes imaginados. O que também
era claro, contudo, era que aquela provação estava apenas a começar.
— Vossa Majestade Celestial é sábia. Eu nunca faria tal coisa.
Custou-me proferir tais lisonjas, mas não me atrevia a antagonizá-lo
com as nossas vidas em jogo. O imperador reclinou-se no trono, o ar entre
nós carregado de expectativa desenfreada.
— Onde estão as pérolas dos dragões?
Os meus dedos tremiam quando abri a minha bolsa. Mas forcei-os a
ficarem firmes quando estendi a mão para mostrar as pérolas.
Um servo tirou-mas da mão e deu-as ao imperador. Ele pegou numa de
cada vez, entre o polegar e o indicador, erguendo-as para a luz. Quando me
fitou com aqueles pedaços de gelo negro sob as sobrancelhas franzidas,
fiquei gelada por dentro, com o frio cortante do inverno.
— Como se atreve a tentar enganar-me com truques? — vociferou o
imperador.
Sob o meu vestido, as minhas pernas tremiam. A sua ira era mais
aterradora precisamente porque antes sempre exibira controlo total. Mas
amedrontar-me e implorar misericórdia seria uma admissão de culpa. E isso
eu não podia fazer.
— Vossa Majestade Celestial, não se trata de um truque. Essas são as
pérolas dos dragões, que me haveis ordenado que vos trouxesse.
— Isso é que não são!
— Honorável Pai, ela fala a verdade.
Liwei permanecera ao meu lado, em vez de assumir a sua posição no
palanque.
Uma luz branca irradiou da palma das mãos do imperador, rodopiando
em volta das esferas lustrosas.
— Onde está a essência dos dragões?
Enunciou cada palavra lentamente, numa voz mais baixa, mas o seu tom
emanava ameaça. Devia ter ficado aterrorizada, mas em vez disso sentia-me
furiosa. Não fora coincidência; o imperador tencionara usar-me para forçar
a submissão dos dragões. Olhei-o nos olhos sem hesitar.
— Foi-lhes devolvida, pois não pertence a mais ninguém. Vossa
Majestade Celestial, tudo o que me haveis pedido foram as pérolas na vossa
mão. A minha parte do nosso acordo está cumprida.
O seu punho bateu no braço do trono.
— Os dragões deviam estar às minhas ordens. Deviam submeter-se à
minha autoridade!
— Os dragões não concordam.
Palavras imprudentes, ralhei a mim mesma. Mesmo não sendo mais do
que a verdade.
Os cortesãos afastaram-se de mim num rodopio de seda e brocado.
Como se eu tivesse a peste e eles não fossem imortais.
— Honorável Pai, os dragões não desejam ficar às ordens de ninguém
— insistiu Liwei. — Era demasiado perigoso deixar as pérolas como
estavam. E se voltassem a cair na posse dos nossos inimigos? Xingyin
correu perigo de vida para as recuperar. Imagine a destruição que os
infernais nos infligiriam com os dragões às suas ordens!
Ouviram-se exclamações chocadas entre os cortesãos, que ficaram em
silêncio quando a Imperatriz Celestial me apontou um dedo.
— Excedeu grosseiramente as suas responsabilidades — acusou, os seus
dentes brancos como osso atrás dos lábios carmesim. — De algum modo,
com as suas manhas traiçoeiras, enganou o meu filho para ele a defender.
Mas é uma traidora e deve ser punida como tal. Voltou para cá porque foi
rejeitada? Foi enganada pelo seu amante? Esperava voltar a insinuar-se nas
boas graças do meu filho?
Palavras tão vis afastaram os últimos vestígios de contenção em mim.
Duplamente cruéis, pois eu fora enganada, mas não da forma que ela
descrevia.
Estiquei as pernas e pus-me de pé. Uma grave violação de etiqueta, mas
isso não era nada em comparação com as palavras que saíram dos meus
lábios.
— Eu não sou uma traidora. Realizei a tarefa e obtive as pérolas dos
dragões; e arrisquei a vida para as recuperar. Fiz o que me haveis ordenado
e agora apenas vos peço que liberteis a minha mãe como haveis prometido,
como exige a honra.
— Fala de honra? Não tem respeito por Sua Majestade Celestial?
Ponha-se de joelhos e implore misericórdia! — criticou uma voz dura. —
Outros morreram por menos.
Virei-me e vi o Ministro Wu a avançar, olhos arregalados em aparente
indignação. Senti um nó na barriga. Já provara não ser meu amigo, nem da
minha mãe, e naquele momento não era exceção.
O ministro fez uma vénia diante dos tronos.
— Vossa Majestade Celestial, haveis sido muito clemente com esta
mentirosa e ela enganou-vos, vezes e vezes sem conta. Quem sabe se ela
devolveu mesmo a essência aos dragões e não ao traidor no Reino Infernal?
Por um momento, não consegui falar, chocada com a acusação
maliciosa.
— Isso não é verdade — consegui dizer por fim.
— Pode prová-lo? — contrapôs o Ministro Wu.
Liwei deitou-lhe um olhar zangado.
— A minha palavra basta? Porque eu estava com Xingyin quando ela
foi raptada e quando lutou ao nosso lado contra o Exército Infernal. Estava
ao lado dela quando devolveu a essência aos dragões. Ministro Wu, também
questiona a minha honra?
Cada palavra foi arremessada como um desafio. O ministro fez uma
vénia para Liwei, mas a sua expressão era de ceticismo.
— Vossa Alteza, sois gentil e misericordioso. Todos sabemos da vossa...
amizade especial com a Arqueira-Mor. Haverá alguma coisa que não digais
para a proteger?
A insinuação provocou alguns risinhos abafados. Houve até quem se
risse abertamente. As palavras do ministro foram calculadas para incitar a
ira do imperador, recordando-lhe o que desprezava como sendo as
“fraquezas” de Liwei, quando, na verdade, eram as suas maiores forças.
Antes, interrogara-me se a antipatia do ministro por mim se deveria à minha
linhagem, ao seu desprezo por mortais. Mas a sua hostilidade, a maneira
como se esforçava por virar o imperador contra nós, tinha de ser mais do
que isso. Será que eu o ofendera sem dar conta? Guardaria rancor aos meus
pais?
A energia no salão mudou, flocos de gelo a pairar no ar quando cruzei
os braços para me manter quente. Murmúrios sussurrados calaram-se, um
momento antes de um silêncio engolir o espaço amplo, como se eu tivesse
sido transportada para a terra dos mortos. O rosto do Imperador Celestial
estava mais frio do que o coração de um glaciar. Ergueu uma mão e
estendeu-a, faíscas brancas a estalar na ponta dos dedos, mais brilhantes
ainda do que a luz do meu arco, disparando para mim a uma velocidade
alucinante. Medo envolveu-me numa tempestade de gelo e neve. Não me
conseguia mover, nem mesmo para afastar o olhar da beleza terrível do
fogo-celeste, uma batida de coração antes de me atingir com uma pontaria
impiedosa.
uma dor explodiu dentro de mim. Incandescente, abrasadora. Mil
agulhas ao rubro a perfurarem-me a pele, vezes e vezes sem conta numa
agonia interminável. Não me senti a tombar para o chão, lágrimas a caírem
dos meus olhos para as lajes de jade, limpas da mais pequena gota de
sangue. Aquela tortura não era a do corpo a ser cortado ou trespassado, mas
dos nervos a serem arrancados da carne por um mar de luzes a estralejar
sobre a minha pele. Nunca sentira uma agonia assim, não com o ácido de
Xiangliu, não com o veneno do escorpião-do-mar, nem mesmo quando
Liwei cravou a sua espada em mim. Nada nos meus piores pesadelos ou nos
meus medos mais sombrios me poderia ter preparado para aquele tormento
dilacerante que ameaçava destruir o meu ser.
Arquejos estrangulados saíam-me da boca. O meu corpo entrou em
espasmos e vomitei em seco. Entrara de cabeça erguida, mas agora não me
podia importar menos com a multidão de estranhos ali parada a assistir à
minha humilhação total.
Então vieram os meus gritos, quebrando o silêncio. Trinquei a língua
tarde de mais para me impedir de gritar, sangue a escorrer-me da boca. Era
bem-vindo, uma lembrança de que ainda estava viva. No meu torpor, uma
voz chegou-me aos ouvidos, Liwei, a sua angústia a torcer o meu coração,
mesmo quando me afogava em agonia.
Passaram-me pela mente relances de uma vida por viver, caminhos por
seguir, evocando mil arrependimentos e saudades. Se pelo menos pudesse
ter voltado para o meu lar, para a minha mãe. Se pelo menos eu e Liwei
nunca nos tivéssemos separado. Se pelo menos Wenzhi não me tivesse
traído. Se pelo menos... aquilo não fosse o fim.
Combati a vontade de fechar os olhos, de me deixar afundar no
esquecimento que chamava por mim. Seria possível sobreviver àquilo?
Esperei por uma faísca de fúria, que a minha vontade enrijecesse e
renovasse a minha força... mas não havia nada, para lá do cansaço que
descia até aos ossos.
Morreria ali; sabia-o agora. Não havia piedade nem misericórdia na
expressão do imperador, apenas uma satisfação frívola por aplicar a sua
justiça. Mas não me fecharia numa ignorância abençoada. Partiria de olhos
abertos. Veria tudo, do rosto do meu amado ao esgar do meu algoz.
O meu corpo estremeceu quando pressionei a palma das mãos contra as
lajes de jade, erguendo a cabeça centímetros acima do chão. Cada
respiração era um tormento agonizante. O meu medalhão deslizou das
dobras do meu vestido, o disco de jade a tilintar contra as lajes.
Passaram apenas alguns segundos? Parecera toda uma vida de
sofrimento.
— Pai!
O grito de Liwei voltou a trespassar os meus ouvidos, juntamente com
aquele estalido ominoso no ar.
Olhei para ele, atordoada, quando uma brilhante barreira de luz dourada
me envolveu. Tal como quando me protegera dos soldados infernais, o
fogo-celeste do imperador dissipava-se quando atingia o escudo. O meu
corpo desfaleceu de alívio por aquela dilação, apesar de o escudo se quebrar
um momento depois. Liwei adiantou-se, pondo-se entre mim e os tronos, o
rosto pálido, suor a escorrer-lhe pela testa. Ele viera em meu auxílio, como
eu sempre soube que viria.
— Liwei, afasta-te. Não mostrarei clemência se me voltares a desafiar.
A voz do imperador era tão hostil que mais parecia que estava a falar
para um inimigo e não para um filho.
A imperatriz desceu a correr do palanque, tropeçando na sua pressa. As
flores douradas do seu toucado tremiam como se tivessem sido apanhadas
num vendaval.
— Liwei, esta rapariga traiçoeira não merece a tua proteção. As suas
ações ameaçaram-nos a todos.
E puxou-lhe o braço para o afastar.
Quando Liwei se soltou da mãe, o imperador assentiu para os guardas,
que correram para ele. Queria dizer-lhe para se afastar, mas sentia uma
alegria violenta por ele se recusar a sair. Estava tão fria que achava que
nunca mais voltaria a sentir calor, mas ao vê-lo a bater-se por mim, uma
centelha acendeu-se no meu interior e estendi o braço sobre o chão, numa
tentativa fútil de o alcançar.
O olhar do imperador recaiu sobre mim quando ergueu a mão. O meu
corpo torturado não suportaria outro ataque, mas forcei-me a abrir os olhos.
E os seus dedos voltaram a refulgir.
O tempo parou. Fogo-celeste voava para mim com uma velocidade
alucinante, mas também com uma lentidão agonizante. O grito de Liwei
quebrou o meu torpor. Abanei a cabeça, um grito a irromper da minha
garganta quando ele se soltou dos guardas e saltou para a frente, para me
escudar com o seu corpo, enquanto eu estendia a mão para o empurrar para
o lado. Mesmo sabendo que era tarde de mais.
— Não.
Um sussurro rouco quando ele me segurou as mãos. Quando os meus
olhos fitaram os seus, a transbordar de carinho e amor, não me podia
arrepender dessa última visão.
Luz branca encheu-me a visão. Preparei-me para morrer.
Contudo, nenhuma dor lancinante me perfurou a pele... nenhuma agonia
incandescente rasgou a minha carne. Em vez disso, estava envolta num
casulo luminoso, tão suave e macio como a neblina matinal. Os meus olhos
procuraram os de Liwei. Estava são e salvo, tal como eu. Foi então que
senti uma frescura a percorrer-me o peito. Puxei a minha mão da mão de
Liwei e segurei o medalhão do meu pai, que vibrava contra a minha pele
envolto em radiância. A mesma luz que nos protegera do perigo. Contudo,
desapareceu de imediato, o jade a aquecer entre os meus dedos quando a
pedra lisa se rachou, tal como estava antes de o Dragão Longo o reparar.
O Imperador Celestial... não o reconheci nesse momento. Pálido de
choque, vermelho de raiva. Sentiria algum remorso por quase matar o filho?
Eu não sentiria remorsos por ele. Quando o seu olhar pétreo se voltou para
mim, forcei-me a fitá-lo de volta — suportaria a sua aversão e devolver-lhe-
ia a minha.
Liwei afastou as abas da túnica e ajoelhou-se no chão.
— Honorável Pai, a vossa ordem foi que vos trouxéssemos as pérolas
dos dragões em troca de revogar a condenação da Deusa da Lua. Não
mencionastes a essência espiritual dos dragões. Se errámos, apelo a que nos
mostreis misericórdia. Contudo, as quatro pérolas estão diante de vós,
entregues como prometido. Falta cumprir apenas um dos lados do acordo. O
vosso.
A sua voz chegou a todos os cantos do salão, acordando a corte do seu
torpor. Alguns cortesãos, os mais corajosos, assentiram o seu acordo.
Sussurros eram trocados atrás de mangas erguidas. É claro que sabiam
pouco sobre as pérolas e o grande poder que outrora contiveram. Aos seus
olhos, eu concluíra a tarefa, apenas para ser recompensada com um
relâmpago no peito.
O Imperador Celestial ficou imóvel. Teriam as palavras de Liwei
recordado de quantos olhares especulativos observavam? Línguas
silenciosas que se podiam manter ali em silêncio não seriam tão contidas
quando regressassem a casa. Seria considerado justo e benevolente? Ou
caprichoso e cruel? Quando a mim, Liwei unira irrevogavelmente os nossos
destinos. As “minhas” escolhas tomaram-se as “nossas” escolhas. O meu
castigo também seria o dele. Eu lutara por Liwei na Floresta da Primavera
Eterna, tal como ele lutava ali por mim. Abanei então a cabeça para banir
tais pensamentos. Como ele me dissera antes, tais acertos de contas não
eram necessários entre nós. Por muito que os nossos caminhos divergissem,
o laço entre nós permanecia intacto.
A voz acetinada do Ministro Wu voltou a rastejar pelo ar:
— Vossa Majestade Celestial. Aconselho-vos humildemente a esmagar
imediatamente qualquer sinal de rebelião. Esta rapariga e a sua mãe vão
fazer do Reino Celestial um alvo de troça. Não vos esqueçais que Chang’e
escondeu de vós a existência da criança, precisamente a filha vos tenta
enganar agora. E se outros acreditarem que o podem enganar e escapar
incólumes?
Liwei virou-se para o ministro, apontando para o chão onde eu estava
tombada.
— Incólume? Acha que consegue suportar o fogo-celeste como ela o
fez? Ela mais do que pagou qualquer ofensa...
— Silêncio! — vociferou o imperador, agarrando os braços do trono.
O ar estava abafador, pesado com tensão. Ninguém se atrevia a mover,
nem mesmo a imperatriz, que fitava Liwei com olhos arregalados de
incredulidade.
A boca do Imperador Celestial apertou-se numa linha fina. Gelo voltou
a pairar no ar e o meu corpo estremeceu só de se lembrar do tormento,
preparando-se para o abraço da morte.
O som de botas nas lajes quebrou o silêncio. Uma aura aproximou-se,
firme, resoluta e forte, a aura do General Jianyun. Parou diante do palanque
e ajoelhou-se.
— Vossa Majestade Celestial. Antes de pronunciardes o vosso
julgamento, é o dever deste vosso servo leal recordar-vos que hoje a
Arqueira-Mor salvou o Exército Celestial da odiosa armadilha do Reino
Infernal. Os soldados desejam mostrar a sua gratidão e aguardam no
exterior neste preciso momento.
E ergueu a cabeça, indicando a entrada do salão.
Ergui o olhar, incrédula, e pus-me de pé, ignorando a dor causada por
cada movimento. Lentamente, virei-me para trás, seguindo a direção da
mão do General Jianyun. Os cortesãos diante de mim afastaram-se,
sussurrando entre si.
Shuxiao estava parada perto da entrada e atrás dela, fora do salão, estava
um mar de soldados celestiais, que se estendia até onde a minha vista
alcançava. A um só tempo fizeram uma vénia, o sol refletido na sua
armadura, uma onda de fogo branco-dourado. O meu coração ficou preso na
garganta e a dor no corpo desapareceu. Lágrimas vieram-me aos olhos e fiz-
lhes uma vénia em resposta.
Eu não era leal ao Reino Celestial. Mas era leal aos meus amigos;
àqueles ao lado de quem lutara, que tinham sangrado comigo. Quando me
endireitei, o meu olhar cruzou-se com o de Shuxiao. Ergui-lhe a mão em
saudação. Desconfiava que tinha muito pelo qual lhe agradecer. Quem mais
teria informado o General Jianyun e levado o exército até ali?
O exército do Imperador Celestial.
Senti um arrepio na nuca. Lembrando-me de onde estava, virei-me para
a frente e caí de joelhos. Não imploraria; não serviria de nada.
— Vossa Majestade Celestial, não sou traidora. Cumpri os termos do
nosso acordo e aguardo a vossa justiça.
As minhas palavras eram deselegantes, a minha voz rouca de tanto
gritar, mas independentemente do que viesse a seguir, estava em paz por
saber que fizera tudo o que podia.
Os murmúrios no salão ficaram mais intensos, vários cortesãos
abanando a cabeça. Por seu lado, os soldados não dispersavam, parados à
entrada do salão.
O rosto do Imperador Celestial era uma máscara de pose régia, sem o
mais pequeno vestígio da veemência e da raiva de momentos antes. E
quando falou, a sua voz soou calma e firme.
— Arqueira-Mor Xingyin. Em agradecimento do seu nobre serviço,
concederemos o seu desejo. Chang’e está perdoada e poderá doravante sair
da lua. Contudo, não poderá descurar as suas responsabilidades. Como
Deusa da Lua, continua a caber-lhe assegurar que a lua se ergue todas as
noites, sem exceção.
Um momento de silêncio. Então, os aplausos irromperam, dentro e fora
do Salão da Luz Oriental. Se havia quem não concordasse, como a
imperatriz ou o Ministro Wu, os seus protestos caíram em orelhas moucas.
Deixei-me cair sobre os meus calcanhares, sentindo a tensão a abandonar o
meu corpo e a mente a andar à roda. O perdão do imperador era generoso.
Magnânimo. Completamente inesperado. Ele sabia, tal como eu, que eu não
cumprira verdadeiramente a tarefa; não fizera o que ele queria. Estava no
seu direito negar a sua parte do acordo, quando também era o meu juiz. A
sua graça foi bem calculada, lendo o estado de espírito da corte e dos seus
soldados, para preservar a sua honra e reputação. E ouvi também a ameaça
nas suas palavras. Não estava tudo bem. E não haveria misericórdia numa
segunda vez.
Quando o imperador acenou com a mão, um selo apareceu diante de
mim, cintilante como uma estrela. Envolvi-o com os dedos, baixando o
corpo e encostando a cabeça ao chão de pedra fria. Não havia um grão de
humildade ou gratidão nos meus ossos, mas desempenharia o meu papel
naquela farsa. A dor percorria cada centímetro do meu corpo e não
conseguia afastar o receio de que tudo aquilo pudesse ser um truque. A
confiança era algo que aprendera a não conceder facilmente. Contudo, a
minha alegria não podia ser contida, jorrando por mim como os raios do sol
através do céu infinito.
Regressaria, por fim, ao meu lar.
A minha mente já percorrera esse caminho umas mil vezes, apesar de o
ter feito apenas uma vez. Vi primeiro a floresta de jasmineiros brancos, o
loureiro cintilante ao longe. O amplo telhado prateado e depois as paredes
de pedra brilhante do Palácio da Luz Pura. O meu lar. Fechando os olhos,
inalei o aroma inebriante da madeira de cânfora. Se fosse um sonho, então
não queria acordar.
Parei a nuvem e saltei para o chão, luminoso devido ao brilho das
lanternas. A qualquer momento, a minha mãe e Ping’er sentiriam a presença
alarmante de uma visita. Mal dera dois passos quando as portas se abriram e
emergiu uma mulher elegante vestida de branco, com uma peónia vermelha
no cabelo. Estava pálida e tinha os lábios franzidos. As visitas eram uma
ocorrência rara ali, normalmente um anúncio de infortúnio ou más notícias.
Eu já não era a criança que fugira, com medo do desconhecido e
agarrada a Ping’er. Contudo, ali o tempo não passara; tê-la-ia reconhecido
em qualquer lado. Um sorriso abriu-se no meu rosto e os pés voaram pelo
caminho de pedra. Nunca os sentira tão leves. E o meu coração... o meu
coração estava incandescente, mais brilhante do que todas as estrelas do
firmamento.
— Mãe! — Envolvi-a com os meus braços, agora era mais alta do que
ela. — Regressei.
O corpo dela ficou hirto e afastou-me, observando o meu rosto.
Desconfiaria de algum truque para a apanhar desprevenida? O seu olhar
vasculhou a minha face, bebeu dos meus olhos, seguiu para a fenda no meu
queixo. Inalou bruscamente, um momento antes de os seus dedos me
acariciarem a cara, os olhos a brilhar como o luar refletido na água. Em
seguida, os seus braços envolveram-me, abraçando-me com força como
fazia nos meus sonhos.
— Xingyin, Xingyin — sussurrava.
Uma vez e outra vez, sempre mais alto do que na anterior. E quanto
mais dizia o meu nome, mais acreditava que era verdade.
Outra figura apareceu à entrada, atraída talvez pela comoção. Ficou
parada junto de uma coluna de madrepérola, esticando o pescoço. Um
sussurro ténue saiu-lhe dos lábios:
— Estrelinha?
A minha alcunha de infância trespassou-me com uma doçura súbita. Os
anos desapareceram; era como se nunca tivesse partido. Na verdade, o meu
coração ficara sempre ali.
— Ping’er! Sou eu! — gritei.
Ela correu para mim, abraçou-me como costumava fazer.
— Todos estes anos, fiquei tão preocupada! — As suas palavras
tombavam como se estivesse a retê-las durante muito, muito tempo. — Eu...
eu falhei naquele dia. Foi demasiado lenta. Sinto-me tão...
Abracei-a com mais força.
— Não, Ping’er. Eu nunca teria escapado se não fosses tu. Como
escapaste dos soldados?
Da última vez que a vira, o seu corpo sem vida afastava-se em cima da
nuvem.
— Quase esgotei o meu poder, pensei que estava morta. Felizmente,
levantou-se um vento que me levou para segurança. Voltei para o Reino
Celestial para a procurar, mas não sabia para onde tinha ido. Foi então que
os soldados me mandaram parar. — O seu rosto ficou pálido. — Ficaram
desconfiados de mim e, desde então, não posso sair daqui sem permissão.
Uma leveza espalhou-se pelo meu peito.
— Eu sabia que tentarias encontrar-me. Quando não me encontraste, era
porque não podias.
Ficámos ali fora até o luar começar a enfraquecer. Rimos e chorámos
juntas, as nossas mãos apertadas, nenhuma de nós a querer largar. Até
então, não me apercebera de como sentia falta dessa sensação, de união com
a família, de amor incondicional. Não me queria mover, não queria fazer
nada que pudesse abalar a perfeição daquele momento, aquela renovação da
minha alma. Como são raros, momentos assim, até numa vida imortal.
Quando a felicidade é absoluta, silenciando os murmúrios constantes que
nos atormentam. Com a minha mãe e Ping’er ao meu lado, no solo do meu
lar, não me faltava nada naquele momento, o meu coração cheio até
rebentar.
Só quando a noite deu lugar ao brilho suave da alvorada entrámos
finalmente pelas portas prateadas. O meu olhar demorou-se nas paredes
claras, nas lâmpadas de jade branco, em cada pilar esculpido. Nada
comparado com os tesouros do Palácio de Jade, ainda assim cem vezes mais
precioso para mim. O sossego era mais profundo do que me lembrava, bem
como a tranquilidade que permeava o ar. Mas após tudo por que passara,
deixava-me feliz.
Deixei-me cair numa cadeira, os meus dedos a acompanharem os veios
da madeira. Estou em casa, segredei a mim mesma, olhando para a minha
mãe, receando que ela pudesse desaparecer se desviasse o olhar. Que tudo
aquilo pudesse desvanecer-se, deixando-me sozinha na minha cama no
Reino Celestial. Talvez tivesse sido atormentada por demasiados pesadelos,
talvez me tivesse habituado à desilusão; ali continuava, aquele grão de
medo no meu peito, de que tudo aquilo fosse uma ilusão. Belisquei-me até
aparecerem crescentes vermelhos no meu braço, apreciando a dor que me
dizia que aquilo era real.
Ping’er pôs-me nas mãos uma taça quente de chá fragrante. Em seguida,
vieram as perguntas: Como tens estado? Feliz? Por onde andaste? O que
fizeste?
Respondi às perguntas com tanto detalhe quanto podia, tentando
satisfazer anos de ansiedade e curiosidade. Enquanto algumas memórias,
como o tempo que passara na Mansão do Lótus Dourado, eram difusas,
outras cortavam mais do que desejaria. Quando falei da minha entrada no
Palácio de Jade, a minha mãe puxou-me pela manga.
— O Imperador Celestial descobriu a tua identidade?
Olhou então por cima do ombro, como se esperasse ver soldados
armados a irromper pelas portas.
— Não nessa altura — garanti-lhe.
Antes que ela pudesse indagar mais, descrevi rapidamente o meu treino
em magia, combate e tiro ao arco.
— Tiro ao arco? — Havia algo estranho na sua voz. — Tal como o teu
pai — concluiu com orgulho.
Senti um nó na garganta. Durante tanto tempo, vivera com medo de
quem era, nunca dizendo o nome dos meus pais, fingindo para o mundo
exterior que eles não existiam... como se eu fosse uma erva daninha que
crescera num campo de cultivo. Agora, queria gritar quem eu era para todo
o mundo.
Uma vez, a minha mãe interrompeu-me. Descontraída no meu lar, a
minha voz encheu-se de carinho quando mencionei o nome de Liwei.
— Qual é a tua relação com o Príncipe Herdeiro? — perguntou-me.
Reparei na pequena ruga que lhe apertava o sobrolho.
— Somos... amigos — tartamudeei, sentindo a cara a corar.
— Esse Capitão Wenzhi também é teu amigo?
O tom da minha mãe era enganadoramente suave.
— Não — repliquei, com mais veemência do que tencionava.
Seguiu-se uma pausa incómoda, quando a minha mãe trocou um olhar
preocupado com Ping’er, e fiquei contente quando não fizeram mais
perguntas. Apressadamente, comecei a descrever as batalhas em que
participara, as criaturas e os inimigos com que lutara ao serviço do Exército
Celestial.
Antes esses monstros do que os fantasmas que residiam na minha
mente.
Ping’er estremeceu ao ouvir a minha descrição de Xiangliu, cruzando os
braços sobre o peito.
— Não teve medo?
— Sempre.
Alguns podiam achar-me covarde, mas não tinha vergonha em admiti-
lo. Não era um desses heróis valentes que saltavam destemidamente para o
perigo. Sentira um medo terrível de me ferir, de falhar e, o pior de todos, de
morrer. De não voltar a ver a minha mãe ou aqueles que amava. De me
arrepender de tudo o que não dissera ou fizera. De deixar a minha vida...
por viver. Fora louvada pela minha coragem, mas eu sabia a verdade, que
fizera tudo aquilo apesar do meu medo. Porque não o fazer assustava-me
ainda mais.
Ficaram espantadas ao ouvir como salvara a vida de Liwei. Não lhes
contei as coisas horríveis que a Dama Hualing nos forçou a fazer; não tinha
grande vontade de desenterrar essas memórias dolorosas nem as queria
deixar mais perturbadas. Contudo, o rosto da minha mãe ficou lívido
quando lhe falei da revelação da minha identidade e do acordo que firmara
com o imperador.
— Como pudeste fazer uma coisa assim? Correr um risco assim? —
Levantou-se num salto e começou a caminhar pela sala, as mãos apertadas
com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. — E se fosses
sentenciada à prisão? À tortura? À morte?
— Na altura, eram possibilidades bem reais — ri-me, mas o
divertimento esfumou-se quando lhe vi o rosto sério. — Mãe, eu ganhara o
Talismã do Leão Carmesim. O favor imperial. Não havia melhor momento
para lhe fazer esse pedido. Se não o tivesse feito, hoje não estaria aqui.
Passaria o resto dos meus dias a lamentar a oportunidade perdida, desejando
ter tentado. E esse seria um destino pior.
Fiz então uma pausa, observando-lhe o rosto.
— Também correste um risco, Mãe, quando bebeste o elixir. — Ela
ficou tão quieta que quase me arrependi dessas palavras. — Na altura,
salvaste a minha vida e agradeço-te por isso.
Um sorriso ténue formou-se nos lábios da minha mãe, enquanto
lágrimas lhe corriam pelo rosto.
— Ah, já chega de tristeza — disse Ping’er, limpando os olhos com a
manga. — É um dia feliz. O mais feliz dos dias. Não vamos chorar mais.
— E como podem ver, estou bem — garanti-lhes, pondo-me de pé e
estendendo os braços.
Os seus olhos pairaram sobre mim até ficarem convencidas de que eu
não tinha qualquer ferimento. Mas não lhes falei da trama de cicatrizes
brancas que me percorria o peito. As feridas, ainda doridas, do fogo-celeste
do imperador. Não me parecia que alguma vez fossem desaparecer; estava
marcada para sempre. Mas que importava isso? Algumas cicatrizes não
eram nada comparadas com o que recuperara.
Quando a minha mãe ouviu que o honorável Capitão Wenzhi era do
Reino Infernal, encolheu-se de horror.
— Xingyin, como te sentiste? — perguntou ela, com uma perspicácia
penetrante.
Abanei a cabeça, sem saber o que dizer; a sua perfídia ainda era difícil
de suportar. Agora que estava a salvo, começava a sentir o peso da traição
de Wenzhi. Uma dor diferente de quando Liwei e eu nos separámos, não
que estivesse disposta a sofrer de alguma delas de livre vontade. Com
Liwei, tinham sido as circunstâncias que nos tinham separado. Ele era o
Príncipe Herdeiro, com obrigações para com o reino. Já com Wenzhi...
foram a falsidade e as escolhas dele que me magoaram tanto. A minha dor
misturava-se com remorso, por ter sido tão descuidada, tão imprudente, ao
ponto de acreditar nas suas mentiras. E também havia amargura, por ele ter
abalado a minha confiança em mim mesma. Por me ter arrastado até tão
baixo, até às profundezas da sua hipocrisia, quando fingi afeto por ele para
o poder drogar e fugir. Não tinha vergonha do que fizera, mas também não
sentia orgulho.
Felizmente, Ping’er tinha perguntas mais importantes para mim.
— O que aconteceu às pérolas? E aos dragões?
Procurei em vão as palavras para fazer justiça à sua beleza etérea, ao seu
poder e à sua graça. Quando falei de restaurar a essência dos dragões, a mão
da minha mãe cobriu a minha. Não havia recriminações por pôr em perigo a
minha vida e a sua liberdade, apenas orgulho reluzia na sua cara.
— Os dragões estão livres — sussurrou Ping’er. — Julgava-os perdidos
para sempre.
Continuei a contar a minha história, respondendo às perguntas o melhor
que podia, hesitando apenas quando era demasiado doloroso, quando não
era capaz de esconder os meus sentimentos. Quando terminei, o sol ia alto
no céu azul.
Foi então que abri a minha bolsa. Os meus dedos fecharam-se sobre o
selo que o Imperador Celestial me dera, frio como um punhado de neve. O
meu coração batia tão depressa que mal podia respirar assim que saí da
minha cadeira e me ajoelhei diante da minha mãe.
— Xingyin, porque estás de joelhos?
Soou confusa quando se debruçou para a frente, estendendo as mãos
para me levantar...
Em vez disso, ergui as mãos para ela. Na palma das minhas mãos estava
o selo, a cintilar como gelo iluminado pelo sol. Estava a tremer tanto, não
sabia porquê; seria medo, excitação, esperança, ou tudo isso? Funcionaria?
Como rezava que funcionasse.
Ela levantou o selo das minhas mãos e ergueu-o.
— O que é isto?
Antes que eu pudesse responder, algo reluziu no metal, feixes de uma
luz prateada vindos das suas profundezas, envolvendo a minha mãe na sua
radiância ofuscante. Ping’er e eu tapámos os olhos, quase cegas com o
brilho intenso, que desapareceu abruptamente, o selo agora escuro como um
pedaço de carvão.
A minha mãe estava imóvel como uma estátua de mármore. Quando se
virou para mim, os seus olhos irradiavam espanto, brilhando mais do que as
mil lanternas acesas.
— O encantamento foi anulado. Sou livre.
Quando Ping’er se levantou, exclamando alegremente, o meu corpo
desfaleceu de alívio. Até àquele momento, temera algum truque cruel do
imperador. Mas ele mantivera a sua palavra. Um manancial de emoções
varreu os nós nas profundezas do meu ser, banindo as sombras escuras,
soltando a minha mágoa, todo o meu ser cheio naquele momento com uma
leveza refulgente.
Finalmente, as nossas vidas podiam começar de novo.
Na minha infância, o nosso isolamento não era um grande fardo. Não
tinha amigos nem companheiros, e não lhes sentia falta; a minha mãe e
Ping’er eram companhia suficiente. Mas agora, após algumas semanas
imersa naquela tranquilidade, dei por mim com saudades dos meus amigos
no Reino Celestial e para lá dele.
O meu desejo foi concedido mais cedo do que imaginava. Antes do
nascer do sol no dia seguinte, Ping’er anunciou que Liwei chegara. Tinha os
olhos pesados de sono, mas uma onda de energia percorreu o meu corpo só
de pensar em vê-lo. Saltei da cama e lavei rapidamente a cara, antes de
escolher um vestido azul; a sua cor favorita, observou a minha mente
perversa antes de eu a silenciar. Passando um pente pelo cabelo, enrolei
parte dele e prendi-o. Os meus passos eram rápidos e impacientes, e disse a
mim mesma que era pela alegria de rever um amigo, qualquer amigo,
depois de tanta solidão. Quando entrei para o Salão da Harmonia Prateada,
deparei com a minha mãe sentada junto dele, a conversarem com uma
familiaridade cordial. Ping’er estava de pé ao lado deles, a servir chá. Como
normalmente nós próprias nos servíamos, desconfiava que a presença dela
se devia a querer ver de perto o Príncipe Herdeiro.
Fiquei com a respiração presa na garganta quando o vi. A túnica de
brocado azul-escuro estava cingida com uma tira de tecido preto, borlas de
seda e jade pendiam-lhe da cintura. O cabelo comprido estava preso por um
anel de ouro e caía-lhe sobre as costas. Estava sentado com a palma das
mãos apoiada nos joelhos, com uma postura descontraída que não lhe via há
muito tempo. Quando se levantou para me cumprimentar, o seu sorriso era
mais radiante do que o sol.
— Estás... estás aqui — tartamudeei, subitamente privada de
pensamentos coerentes.
Ele estendeu o braço e segurou-me a mão.
— Uma visita inesperada. Mas não indesejada, espero eu?
Tal intimidade apanhou-me de surpresa, bem como a ternura expressa
no seu olhar.
— Não, nunca indesejada — consegui dizer por fim.
Com sentido de oportunidade, a minha mãe e Ping’er declararam que
eram precisas noutro sítio. Ao deixar-me a sós com ele, a minha mãe
comunicou-me a sua total aprovação de Liwei, apesar das suas reservas
anteriores. Ele tinha um dom para pessoas, uma sinceridade que atraía os
outros antes mesmo de saberem quem ele era. Tal como quando nos
conhecêramos.
— Tens estado bem? — perguntou-me.
— Melhor do que esperava — respondi com sinceridade.
Sono repousante livre de pesadelos. Uma existência despreocupada sem
responsabilidades. Ninguém para me incendiar o coração ou afogá-lo em
mágoa. Tais luxos faziam maravilhas à constituição de uma pessoa. Desde o
meu regresso, a minha força vital também recuperara. A lua possuía uma
poderosa energia rejuvenescedora de que nunca me apercebera, talvez
porque a minha magia estava suprimida. Demoraria algum tempo até
recuperar a minha força, mas poderia ser mais cedo do que antecipara.
Apesar de o meu corpo estar a sarar, o meu espírito estava inquieto.
Havia um limite para o número de passeios pelos jasmineiros que alguém
consegue fazer. Para o número de horas passadas com leitura e música.
— Tens estado bem? — ecoei.
Senti um temor ao recordar como desafiara o pai. E senti vergonha
também, por o ter deixado sozinho para lidar com a ira dos pais. Tudo o que
me consumia após aquele confronto fatídico era uma vontade desesperada
de regressar ao lar, de abandonar o Reino Celestial, receando que o
imperador pudesse mudar de ideias e exigir a devolução do selo.
Liwei apertou-me a mão com força e os seus olhos escuros prenderam-
me onde estava.
— Nada que não tenha suportado antes.
Mordi o lábio, querendo perguntar mais. No entanto, a intensidade do
seu olhar, a sua proximidade, fez-me hesitar. Haveria hoje algo de diferente
nele? Era quase como se tivesse voltado a ser o Liwei de antigamente, antes
de... Afastei esse pensamento. Ele estava ali, isso deixava-me feliz. E tinha
um favor para lhe pedir, para nos levar a mim e à minha mãe ao Domínio
Mortal. Para nos levar até ao meu pai.
Não sem egoísmo, esperara antes de dar a notícia à minha mãe. Queria
que apreciássemos uns dias de felicidade pura, em regozijo pela nossa
reunião e pela liberdade recém-adquirida. Mas sabia que ela estava ansiosa
por voar até ao Domínio Mortal e procurar o meu pai. Uma noite, quando
não podia adiar mais, apertei a sua mão na minha.
“Mãe, tenho algo para te dizer.” Palavras indesejadas, repletas de mau
agoiro. Ou teria sido o tremor na minha voz que lhe deixara o rosto lívido?
A sua mão fria soltou-se da minha. “Não quero ouvir.”
A súplica infantil trespassou-me o coração. Interroguei-me se devia
deixar tudo como estava. Metade esperança, metade negação. Algo em mim
estremeceu. Era melhor cortar o laço num golpe rápido, em vez de o deixar
desfiar-se até ao final inevitável.
“Lamento. O Dragão Negro disse-me que... o Pai morreu.” A minha voz
fraquejou quando senti um aperto na garganta.
Ela cedeu então, tombando para o chão com o corpo a tremer. Abracei-a
com força, tentando não estremecer com o seu choro angustiado. As minhas
palavras tinham posto fim a toda a esperança, como uma faca que corta uma
planta doente ainda agarrada à vida. Eu perdera um pai que nunca
conhecera, mas a minha mãe perdera um marido que ainda amava.
Voávamos agora juntos até ao Domínio Mortal. O rosto da minha mãe
estava pálido e repuxava as mangas de nervosismo. Havia muito tempo que
não saía da lua. Felizmente, a nuvem de Liwei deslizava tão suavemente
como uma ave pelo ar.
O Dragão Negro descrevera bem o local. Onde os dois rios se uniam,
encontrámos uma colina pequena coberta de flores brancas. No ponto mais
alto erguia-se um grande túmulo circular feito de mármore. Caracteres
gravados a ouro formavam o nome:
HOUYI

A toda a volta viam-se pinturas dos feitos do meu pai; as batalhas que
vencera, os inimigos que derrotara. Era um túmulo magnífico, digno de um
rei naquele mundo. Contudo, entristecia-me que não houvesse referências a
tempo até recuperar a minha força, mas poderia ser mais cedo do que
antecipara.
Apesar de o meu corpo estar a sarar, o meu espírito estava inquieto.
Havia um limite para o número de passeios pelos jasmineiros que alguém
consegue fazer. Para o número de horas passadas com leitura e música.
— Tens estado bem? — ecoei.
Senti um temor ao recordar como desafiara o pai. E senti vergonha
também, por o ter deixado sozinho para lidar com a ira dos pais. Tudo o que
me consumia após aquele confronto fatídico era uma vontade desesperada
de regressar ao lar, de abandonar o Reino Celestial, receando que o
imperador pudesse mudar de ideias e exigir a devolução do selo.
Liwei apertou-me a mão com força e os seus olhos escuros prenderam-
me onde estava.
— Nada que não tenha suportado antes.
Mordi o lábio, querendo perguntar mais. No entanto, a intensidade do
seu olhar, a sua proximidade, fez-me hesitar. Haveria hoje algo de diferente
nele? Era quase como se tivesse voltado a ser o Liwei de antigamente, antes
de... Afastei esse pensamento. Ele estava ali, isso deixava-me feliz. E tinha
um favor para lhe pedir, para nos levar a mim e à minha mãe ao Domínio
Mortal. Para nos levar até ao meu pai.
Não sem egoísmo, esperara antes de dar a notícia à minha mãe. Queria
que apreciássemos uns dias de felicidade pura, em regozijo pela nossa
reunião e pela liberdade recém-adquirida. Mas sabia que ela estava ansiosa
por voar até ao Domínio Mortal e procurar o meu pai. Uma noite, quando
não podia adiar mais, apertei a sua mão na minha.
“Mãe, tenho algo para te dizer.” Palavras indesejadas, repletas de mau
agoiro. Ou teria sido o tremor na minha voz que lhe deixara o rosto lívido?
A sua mão fria soltou-se da minha. “Não quero ouvir.”
A súplica infantil trespassou-me o coração. Interroguei-me se devia
deixar tudo como estava. Metade esperança, metade negação. Algo em mim
estremeceu. Era melhor cortar o laço num golpe rápido, em vez de o deixar
desfiar-se até ao final inevitável.
“Lamento. O Dragão Negro disse-me que... o Pai morreu.” A minha voz
fraquejou quando senti um aperto na garganta.
Ela cedeu então, tombando para o chão com o corpo a tremer. Abracei-a
com força, tentando não estremecer com o seu choro angustiado. As minhas
palavras tinham posto fim a toda a esperança, como uma faca que corta uma
planta doente ainda agarrada à vida. Eu perdera um pai que nunca
conhecera, mas a minha mãe perdera um marido que ainda amava.
Voávamos agora juntos até ao Domínio Mortal. O rosto da minha mãe
estava pálido e repuxava as mangas de nervosismo. Havia muito tempo que
não saía da lua. Felizmente, a nuvem de Liwei deslizava tão suavemente
como uma ave pelo ar.
O Dragão Negro descrevera bem o local. Onde os dois rios se uniam,
encontrámos uma colina pequena coberta de flores brancas. No ponto mais
alto erguia-se um grande túmulo circular feito de mármore. Caracteres
gravados a ouro formavam o nome:

HOUYI

A toda a volta viam-se pinturas dos feitos do meu pai; as batalhas que
vencera, os inimigos que derrotara. Era um túmulo magnífico, digno de um
rei naquele mundo. Contudo, entristecia-me que não houvesse referências a
família ou descendentes. Vivera sozinho até ao fim?
A minha mãe segurou-se ao meu braço, os seus passos vacilantes. Fitou
o túmulo, uma expressão de mágoa no rosto.
— Podemos partir, se quiseres — sussurrei-lhe, superando a dor no meu
peito.
— Não — respondeu-me fervorosamente.
Arregaçou então as mangas compridas, pegou na vassoura e começou a
varrer energicamente. Por um momento, pensei no que pensariam os
mortais se vissem a venerada Deusa da Lua a varrer tão atarefadamente
como qualquer aldeã. Então, apercebi-me de que eles, mais do que
ninguém, compreenderiam o respeito que ela queria demonstrar pelo
marido. Mostrar-lhe que, até na morte, ainda o honrava. Baixei-me e usei o
meu lenço para limpar o pó e a sujidade do mármore, polindo os caracteres
até brilharem de novo. No início, Liwei ficou para trás, mas depois baixou-
se para apanhar as ervas daninhas.
Quando o túmulo ficou imaculado, a minha mãe trouxe as oferendas de
fruta e bolos que preparara pessoalmente, amontoados em pratos de
porcelana. Acendi os paus de incenso e estendi-lhe três, as pontas
vermelhas com uma chama ténue. Segurando-os diante de nós, ajoelhámo-
nos perante o túmulo e fizemos três vénias. Uma esposa e uma filha a
fazerem luto pela maior de todas as perdas. Depois da última vénia, cravei
firmemente os paus de incenso no pequeno queimador de latão. Fios finos
de fumo aromático ergueram-se pelo ar.
Toquei-lhe na mão, despertando-a do seu devaneio.
— Mãe, quando caminhas pela floresta à noite, em que pensas?
Quisera perguntar-lhe isso tantas vezes.
Ela fechou os olhos, um sorriso sonhador nos lábios.
— Em ti, quando eras criança. No teu pai. Na nossa vida juntos. Como
desejava que ele estivesse connosco, que não tivesse ficado para trás. —
Baixou então a cabeça, sussurros trémulos a caírem-lhe dos lábios. — As
vezes pergunto-me... e se os médicos estivessem errados? E se não tivesse
bebido o elixir? Teríamos vivido todos estes anos juntos, no mundo abaixo.
Teria agora o cabelo grisalho, mas teríamos sido felizes.
A mão dela apertou a minha com força.
— Quando ascendi aos céus, virei-me para trás e vi-o à janela, a sua
mão estendida, tanta angústia no seu rosto. Regressara tarde de mais. Há
noites em que me atormento, interrogando-me como se terá sentido ao ver‐
me voar para longe. Terá entendido porque o fiz? Ter-se-á sentido traído?
Será que... me odiava? Nessas noites, também me odeio. — Ela olhou em
frente e engoliu em seco antes de prosseguir. — No momento em que ergui
o elixir, só conseguia pensar em ti e em mim, em como queria que
vivêssemos. Quando o bebi, escolhi a morte do meu marido em vez da
minha. Escolhi uma vida sem ele. Escolhi-nos a nós. — A sua voz tremeu
com uma emoção súbita. — Nunca me verei livre da minha mágoa.
Contudo, voltaria a fazer igual, mesmo sabendo o que vinha a seguir.
Porque significaria que te tinha.
Lágrimas caíam-lhe dos olhos como um aguaceiro. Amaldiçoei-me pela
minha pergunta irrefletida. Por tê-la feito, apesar de saber que lhe causaria
dor. Mas não podíamos continuar a esconder e enterrar a nossa mágoa,
especialmente daqueles que amávamos. Aprendera que, para lá da dor,
encontrávamos perdão, amadurecimento e, por fim, a cura das nossas
feridas. Apercebi-me então que talvez eu e a minha mãe fôssemos mais
parecidas do que imaginara. Ambas tínhamos aproveitado a oportunidade
quando nos surgiu, ambas tínhamos escolhido viver.
Lentamente, os seus dedos deslizaram da minha mão, como se tivesse
esquecido a minha presença. O seu olhar estava fixo nos caracteres
reluzentes do nome do meu pai no túmulo, os seus lábios enunciando-o em
silêncio. O seu legado e os seus feitos gravados em pedra imutável. Para
sempre inscritos na memória do mundo que salvara, enquanto houvesse
livros para ler e canções para cantar. Nunca seria esquecido. Mas era um
conforto vazio para aqueles que o amavam.
Pondo-me de pé, fui ter com Liwei, na margem do rio. Ficámos parados
em silêncio, vendo a água a refletir a luz do sol enquanto a brisa brincava
com o nosso cabelo. O ar no mundo mortal estava carregado com uma
miríade de odores; flores a desabrochar, folhas em decomposição, a água
terrosa do rio a fervilhar de vida.
Então, virou-se para mim.
— Pedi à Princesa Fengmei para me libertar do noivado.
Olhei para ele, incrédula, sem saber o que dizer.
— Porquê? Quando? — perguntei por fim.
Ele prendou-me com um sorriso triste.
— Precisas de perguntar porquê? Depois de partires, visitei a Princesa
Fengmei. Disse-lhe a verdade, o que lhe devia ter dito há muito tempo. Ela
merecia mais do que eu tinha para lhe oferecer: um coração que nunca seria
seu. Ela foi muito compreensiva. E pediu-me para te dizer que espera que
encontremos a felicidade juntos. Acho que ela sabia desde o dia em que a
salvaste.
Lembrei-me do seu olhar límpido quando recaíra sobre as nossas gotas-
celestes, quando percebera que eram um par a condizer. Não desejava a sua
mágoa... mas, oh, não podia negar a alegria que desabrochava dentro de
mim agora.
— E a aliança?
— O Reino da Fénix reafirmou o seu apoio ao Reino Celestial. Apesar
de não ser um laço tão forte como se houvesse um casamento,
permanecerão nossos amigos e aliados. Tanto a rainha como a princesa
continuam gratas pela nossa ajuda.
Pegou então na minha mão e pressionou-a contra o seu peito, onde o
coração batia com tanta força como o meu. Os seus olhos brilhavam com
uma emoção sem limites. Quando a outra mão afagou a curva do meu rosto,
encostei-me inconscientemente, atraída pelo seu calor tão familiar.
— O meu coração é teu, sempre foi teu — declarou. — Não tens de
responder já. Sei que precisas de tempo para estar com a tua mãe e pensar
na tua vida. Eu estava errado antes; não lutei por nós como devia. Mas
nunca voltarei a falhar-te.
Pronunciou as últimas palavras solenemente, como um juramento.
As emoções que corriam pelo meu corpo não me deixavam falar. Era
como se o sol tivesse aparecido de trás das nuvens, iluminando o céu. As
sombras podiam regressar, mas por enquanto deliciar-me-ia com a sua
radiância.
Quando o crepúsculo se acercou, voámos de volta para a lua. Antes de
partir, Liwei ajudou-me a erguer barreiras de proteção. O nosso lar já não
estava interdito a imortais; apesar de acolhermos visitas de bom grado,
também precisávamos de ter cuidado. Juntos, tecemos a nossa magia numa
trama de poder que se estendia a toda a volta do Palácio da Luz Pura.
Quando tive de parar, exausta com o esforço, Liwei prosseguiu sozinho.
Fechou os olhos e a sua energia irrompeu numa onda de luz, envolvendo as
nossas barreiras antes de desaparecer.
— Acrescentei uma camada adicional de proteção para detetar aqueles
que disfarçam a sua forma, sejam infernais, espíritos ou celestiais. Não
impede que entrem, mas espero que vos avise com antecedência —
explicou.
O sangue fugiu-me do rosto ao ouvir a gravidade da sua voz.
— Celestiais? — repeti, tropeçando na palavra.
Julgava que estávamos livres de intrigas, perigo e medo. Uma sombra
passou pelo rosto de Liwei.
— Não tenho conhecimento de qualquer intriga. Contudo, os meus pais
estão desagradados com a intervenção do exército a teu favor. Rumores
chegaram aos seus ouvidos de que a sua capitulação neste assunto está a ser
vista por muitos como um sinal de fraqueza. Alguns começam a questionar
de novo a sabedoria de decisões passadas, como aprisionar os dragões,
exilar a Deusa da Lua. Permitir que as aves solares vagueassem
desenfreadamente.
Um arrepio percorreu-me o corpo.
— Eu só queria voltar para casa e libertar a minha mãe. Nunca tencionei
desafiá-los. Só quero viver aqui em paz.
— Não podemos controlar o que outros temem. Mas não vais ficar
sozinha. Vou ficar contigo o tempo que me deixares. — Liwei pegou nas
minhas mãos geladas, levou-as aos lábios e soprou o seu hálito quente sobre
elas. — Estou só a ser cauteloso. São apenas murmúrios e rumores, nada
que nos deva preocupar por enquanto.
Assenti rigidamente. Murmúrios e rumores nos ouvidos errados podiam
ter consequências graves.
Nessa noite, depois de Liwei partir, virei-me e revirei-me na cama antes
de adormecer. E nem no sono encontrei descanso, perdida num sonho
vívido em que estava de pé numa varanda, a olhar para o céu. As nuvens
tinham uma cor estranha, quase violeta. Quando um vulto alto pousou ao
meu lado, a sua túnica verde esvoaçava com a brisa.
Ele olhou para mim com olhos prateados, como se estivesse à espera
que eu falasse.
— Obrigada por nos deixares partir. Mas isso não apaga tudo o que
fizeste — declarei rigidamente.
— Fui sincero no que disse. Que nunca mais te forçaria contra a tua
vontade. — Havia uma nota melancólica na sua voz, que nunca lhe ouvira
antes. — Não percebi o que tínhamos até o perder. Se pudéssemos começar
de novo, faria tudo de forma diferente.
Não lhe respondi. Não sabia o que dizer.
— Há algo que te quero perguntar.
— Podes perguntar, mas posso não responder — contrapus, pouco
disposta a ser arrastada para uma conversa que me trazia tantas más
memórias.
O seu sorriso tinha um quê de vazio.
— Faz-me a vontade? Sinto falta da tua companhia.
— Não sinto falta da tua.
Meia verdade, meia mentira. Lembrei-me que aquilo de que sentia falta
era a ilusão do nosso companheirismo, não a realidade da sua mentira.
Os seus olhos refulgiram.
— No telhado, antes de o dragão te levar, terias atirado sobre mim?
Perguntara-me isso inúmeras vezes. E agora sabia finalmente a resposta.
— Não.
A sua honestidade não merecia menos da minha parte. Ao ouvir essa
palavra, ele exalou profundamente, a tensão a soltar-se dos seus ombros.
— Conseguirias amar o infernal como amaste o celestial?
— O celestial nunca existiu. Foste sempre o infernal.
Sem saber como, mantive a voz firme, ignorando o aperto que sentia no
peito.
Ele inclinou a cabeça gravemente.
— Talvez. Vejas-me como me vires, vou esperar.
— Vais esperar o quê?
— Que voltes a amar-me. — Os seus dedos tocaram-me na cabeça,
acariciaram-me o cabelo. — Ou, pelo menos, que deixes de me odiar.
Antes que me pudesse afastar, com uma resposta cortante na língua, ele
desaparecera.
Acordei na manhã seguinte abatida e com os olhos irritados. O sonho
fora tão vívido, as emoções evocadas tão reais, que fiquei algum tempo
perdida nos meus pensamentos. Alternando entre ultraje, por ele ter
invadido os meus sonhos, e ressentimento, por ainda ficar perturbada
quando pensava nele. Por fim, levantei-me e vesti-me. Diante do espelho,
fiquei paralisada ao ver o alfinete de prata no meu cabelo, esculpido com
um padrão de nuvens. Os meus dedos agarraram o metal frio, puxaram o
alfinete para fora e atiraram-no para uma gaveta.
Peguei no Arco do Dragão de Jade e pendurei-o ao ombro antes de sair
do quarto. O tempo que passara no exército ensinara-me a ser cautelosa; a
ter sempre uma arma à mão. Quando saí do palácio, voltei a testar as
barreiras que Liwei e eu tínhamos tecido. Fios de ouro e prata entrelaçados
numa trama apertada, delicada como uma teia de aranha, mais forte do que
ferro. Num espírito de desafio, pensei que, se inimigos surgissem no
horizonte, eu estaria pronta.
Nessa noite, não sonhei com Wenzhi. Fiquei perturbada, sem saber o
que sentir, mas pressentia que não fora a última vez que o veria.
***
Os meus dias caíram numa rotina. Desde do castigo da minha mãe ter
sido anulado, muitos imortais vinham visitar-nos. Alguns para expressar o
seu respeito, outros para satisfazer a sua curiosidade, mais interessados no
escândalo da nossa história do que motivados por atenção genuína.
Desejava mostrar-lhes a porta da rua ao fim do primeiro sorvo de chá, mas o
olhar severo da minha mãe reprimia os meus impulsos mais rudes. Contudo,
para lá dessas ligeiras irritações, era maravilhoso estar em casa. Sentir-me
segura e livre e amada. Fiel à sua promessa, Shuxiao era uma visita
frequente, muitas vezes aparecendo sem avisar. Ficava sempre contente
com a sua companhia e por ouvir notícias do reino. Minyi também vinha
visitar-nos, e até a Mestra Daoming e o General Jianyun. Essas eram as
minhas alturas preferidas, quando partilhava o meu lar com os amigos que
fizera, quando ouvia as suas vozes e o seu riso a espalhar-se pelas salas do
palácio. Companhia assim nunca perturbava a nossa paz, apenas a
aumentava.
Contudo, nenhuma visita era tão frequente como Liwei. Dávamos
longos passeios pela floresta de jasmineiros, vagueando pelo meio das
lanternas luminosas, sob o céu estrelado. Quando eu tocava qin ou flauta,
ele ficava sentado ao meu lado, a desenhar ou a pintar. Às vezes, eu erguia o
olhar e deparava com os seus olhos escuros presos em mim com uma
intensidade tal que os meus dedos falhavam uma nota. Mas já não me
afastava do seu toque nem sentia aquela pontada de culpa quando a minha
pulsação acelerava ao vê-lo. E a minha mente, mais uma vez, atrevia-se a
sonhar com o nosso futuro.
Certas noites, depois de Ping’er se ir deitar, fazia companhia à minha
mãe quando ela saía para a varanda do nosso lar. Estávamos juntas, mas
cada uma perdida nas suas memórias, as dela, no domínio abaixo, as
minhas, nos céus acima. Entendia agora, com uma clareza surpreendente,
porque não queria ela ser incomodada naqueles momentos. E apesar de não
falarmos, encontrávamos algum conforto na companhia uma da outra, em
partilhar a nossa mágoa, uma mágoa que eu não podia compreender na
minha infância. Muitas vezes, sobressaltava-me ao dar por mim sozinha,
não me tendo apercebido da sua saída, tão embrenhada estava nos meus
pensamentos, tentando responder à pergunta que não me saía do
pensamento.
Poderíamos eu e Liwei esquecer verdadeiramente tudo o que acontecera
para nos separar? Poderiam os laços rompidos ser repostos? Na
tranquilidade do meu lar, esperava ter tempo para desenvencilhar os nós
complicados da minha vida. Contudo, apesar de sermos imortais, eu não
podia continuar assim para sempre, afastando-me do amor, receando fazer a
escolha errada, com medo de me magoar. Nunca acreditara ser uma pessoa
volúvel, mas a verdade é que já não sabia o que queria o meu coração.
Sempre pensara que a vida era uma estrada, torcendo-se e retorcendo ao
sabor dos caprichos do destino.
Sorte e oportunidade, dádivas fora do nosso controlo. Ao olhar para a
noite sem fim, apercebi-me de que os nossos caminhos eram traçados pelas
escolhas que fazíamos. Aproveitar uma oportunidade ou deixá-la passar. Ser
levado pela mudança ou manter os pés firmes. À superfície, a minha vida
dera uma volta completa. Contudo, já não precisava de me esconder nas
sombras, de enterrar o meu passado e temer pelo meu futuro. Nunca mais
teria de esconder quem era e os nomes do meu pai e da minha mãe. Correra
palavra pelos oito reinos do Domínio Imortal que eu era a filha da Deusa da
Lua e do mortal que matara as aves solares.
Na escuridão, as mil lanternas acenderam-se. O céu estava límpido. As
estrelas infinitas. A luz da lua estava cheia e brilhante. Numa noite assim, o
meu coração ficava contente, à espera da promessa do amanhã.
Agradecimentos

Filha da Deusa da Lua começou como um sonho louco que nunca teria
sido possível sem o amor e apoio da minha família e dos meus amigos, bem
como de todos os que acreditaram no livro e em mim. Sinto-me
verdadeiramente abençoada por poder incluí-los aqui.
A David Pomerico, o meu brilhante editor na Harper Voyager US, vou
lembrar-me sempre da nossa primeira chamada, que mudou o rumo da
minha vida, quando soube que o meu livro encontrara o seu lar. É uma
honra trabalhar consigo, foi um defensor incrível da Filha da Deusa da Lua.
A sua visão para o livro e as observações penetrantes (o humor foi muito
apreciado) levaram-me a tomar uma escritora melhor e a história ficou mais
forte por sua causa.
A Vicky Leech, a minha espantosa editora na Harper Voyager UK, estou
verdadeiramente contente por trabalhar consigo! Obrigada por ser uma
maravilhosa defensora e pelas ideias inspiradoras que nos levaram por
caminhos que nunca me imaginara a trilhar, pelo qual lhe fico grata.
Gratidão eterna para a minha incrível agente, Naomi Davis, por
acreditar numa escritora desconhecida que vivia no outro lado do mundo e
com pouca experiência, por trabalhar comigo para melhorar a minha escrita.
É maravilhosa e combativa, a minha guia e parceira durante todo o processo
com a sua visão, experiência e empatia.
Os meus sentidos agradecimentos à equipa incrível da Harper Voyager
US com quem tive a felicidade de trabalhar: DJ DeSmyter, Sophie Normil,
Ronnie Kutys e a equipa de vendas da HarperCollins, gostava de poder
nomear todos! Não consigo encontrar palavras para exprimir o meu apreço,
mas saibam que estou grata por tudo.
Kuri Huang, muito obrigada pela ilustração requintada da capa da
edição americana, e a Jeanne Reina pela direção inspirada. Mais do que
uma obra de arte, é a capa dos meus sonhos! Agradecimentos especiais a
Angela Boutin, Virgínia Norey, Rachel Weinick, Jane Herman e Mireya
Chiriboga, pela ajuda inestimável! E à incrivelmente talentosa Natalie
Naudus, obrigada por ser a voz de Xingyin, por lhe dar vida.
Também estou imensamente grata à maravilhosa equipa da Harper
Voyager UK: Natasha Bardon, Maddy Marshall, Jaime Witcomb, Susanna
Peden, Robyn Watts e Marta Juncosa, o vosso apoio é tão importante para
mim. Obrigada a Ellie Game, a espantosa designer da capa, e a Jason
Chuang, por criar a deslumbrante capa da versão inglesa da qual não
conseguia desviar o olhar, absolutamente perfeita para a história.
A todos os demais na HarperCollins em todo o mundo que apoiaram
Filha da Deusa da Lua, que ajudaram a que chegasse aos seus leitores, a
todos aqueles que não posso incluir aqui por falta de espaço, saibam que
aprecio tudo o que fizeram.
Cheguei ao mundo editorial sem conhecer ninguém e com o receio real
que ninguém fosse ler o meu livro. Estou eternamente grata aos autores
brilhantes que leram a primeira versão do manuscrito: Stephanie Garber,
Shelley Parker-Chan, Andrea Stewart, Shannon Chakraborty, Ava Reid,
Genevieve Gornichec, Tasha Suri e Elizabeth Lim. Não consigo dizer como
fiquei tocada pelas vossas palavras atenciosas e generosas, e sinto-me
afortunada por ter lido os vossos livros maravilhosos.
A Anissa de Gomery, estou tão contente por nos termos conhecido e
pela nossa amizade. Trabalhar consigo foi um dos pontos altos da minha
viagem como escritora e estou imensamente grata a si e à sua equipa
maravilhosa.
Ao meu querido marido, Toby, meu parceiro na vida, meu primeiro
leitor, meu mais feroz crítico e meu mais valioso apoiante, fico-te
etemamente grata por me encorajares a seguir o meu sonho e me aturares
quando fiz a transição para esta nova e inegavelmente exigente fase da
minha vida. Por tomares conta dos nossos filhos quando eu tinha prazos
para cumprir (uma boa parte de 2021), por dares ouvidos aos meus medos
quando tudo parecia impossível, por celebrares cada marco na viagem. Não
teria conseguido sem ti.
A Lukas e Philip, pela vossa excitação com o que começou por ser a
“ideia maluca” da mamã, pelos desenhos e rabiscos entusiásticos, pelas
perguntas sobre a história e, acima de tudo, por me deixarem trabalhar
quando tinha os auriculares postos. Amo-vos aos dois com todo o coração.
Não estaria aqui sem os meus pais. Obrigada à minha mãe, pelo amor e
apoio, por cultivar o meu fascínio de infância por dramas chineses de
fantasia e por me deixar ficar em casa a ler em vez de sair. Aquelas aulas de
flauta e guzheng não foram um desperdício completo! E ao meu pai, por
trabalhar tanto para nos dar uma vida melhor, pelo amor, humor e
entusiasmo por tudo o que fazíamos, e por me dar os livros que alimentaram
a minha paixão por histórias. Sinto a tua falta e gostava que ainda estivesses
entre nós.
À minha irmã, Ee Lynn, pelo amor e encorajamento, por estares ao meu
lado nos melhores e nos piores momentos, e por leres os meus primeiros
trabalhos. À minha prima Swee Gaik, pelos conselhos inestimáveis e por
me encorajares quando primeiro exprimi o desejo loucamente improvável
de me tornar escritora. Muito obrigada a ti e ao Dan!
Sonali, ficarei sempre grata por leres o meu terrível primeiro esboço e
por me dares a coragem de mergulhar no intimidante mundo editorial. A tua
fé em mim foi a faísca que ateou tudo isto. A Jacquie, pelo apoio
inabalável, pela bondade e por seres a voz da razão. Não sei como teria
passado por tudo isto sem ti. Estou tão grata por vos ter às duas na minha
vida, as melhores amigas que podia ter desejado, a minha calma no tumulto
do mundo editorial, da maternidade e da vida.
Lamentavelmente, não tenho talento suficiente para escrever um poema
chinês. Um agradecimento especial a Han Lihua pela maravilhosa
interpretação do poema de Xingyin na competição e por me ajudar a cunhar
os nomes perfeitos para os locais. A Yangsze Choo, pelos conselhos
generosos a uma nova escritora. E a Lisa Deng, pela paciência com as
minhas perguntas frequentes e aleatórias, desde discutir nomes até mitos e
cultura.
Aos meus queridos amigos em Hong Kong, àqueles que conheci na BA
e na HKIS. Estou tão grata a todos vós pelo encorajamento e apoio,
especialmente durante a loucura do primeiro ano. A vossa amizade é tão
importante para mim e tocaram a minha vida de tantas formas diferentes.
Ao professor mais inspirador que já tive, Puan Vasantha Menin,
obrigada por me inculcar um amor por literatura.
É um privilégio fazer parte dos incrivelmente talentosos #22Debuts e ter
tantos irmãos de agente que me ajudaram a manter a sanidade. A Kristen
(@myfriendsarefiction), Mike Lasagna, Daniel Bassett, Kelecto
(@panediting), Ellie (@faerieon-theshelf), CW, Kristin Dwyer, Lauren
(@fíctiontea), são todos espantosos e estou grata pelo vosso apoio.
Finalmente, mas não menos importante, um agradecimento infinito aos
leitores, livreiros, bibliotecários, bloggers, bookstagrammers e a toda a
comunidade dos livros pelo apoio a Filha da Deusa da Lua. E se estão a ler
isto, estou-vos muito grata por darem uma oportunidade a este livro, por
permitirem que partilhasse esta história convosco. Adorei escrevê-lo com
todo o coração e espero que também tenham encontrado nele algo para
amar.

Você também pode gostar