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Carnaval
um conto de
Clarice Lispector
RESTOS DO CARNAVAL
Conto: Clarice Lispector.
Ilustração: Ana Raquel.
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Mas eu pedia a uma de minhas sobrou papel crepom, e muito. E
irmãs para enrolar aqueles meus a mãe de minha amiga – talvez
cabelos lisos que me causavam atendendo a meu apelo mudo, ao
tanto desgosto e tinha então meu mudo desespero de inveja,
a vaidade de possuir cabelos ou talvez por pura bondade, já
frisados pelo menos durante três que sobrara papel – resolveu fazer
dias por ano. Nesses três dias, para mim também uma fantasia
ainda, minha irmã acedia ao meu de rosa com o que restara de
sonho intenso de ser uma moça material. Naquele carnaval, pois,
– eu mal podia esperar pela saída pela primeira vez na vida eu teria
de uma infância vulnerável – e o que sempre quisera: ia ser outra
pintava minha boca de batom bem que não eu mesma.
forte, passando também ruge nas
minhas faces. Então eu me sentia Até os preparativos já me
bonita e feminina, eu escapava da deixavam tonta de felicidade.
meninice. Nunca me sentira tão ocupada:
minuciosamente, minha amiga e
Mas houve um carnaval eu calculávamos tudo, embaixo da
diferente dos outros. Tão fantasia usaríamos combinação,
milagroso que eu não conseguia pois se chovesse e a fantasia se
acreditar que tanto me fosse dado, derretesse pelo menos estaríamos
eu, que já aprendera a pedir pouco. de algum modo vestidas – à idéia
É que a mãe de uma amiga minha de uma chuva que de repente
resolvera fantasiar a filha e o nome nos deixasse, nos nossos pudores
da fantasia era no figurino Rosa. femininos de oito anos, de
Para isso comprara folhas e folhas combinação na rua, morríamos
de papel crepom cor-de-rosa, previamente de vergonha –
com as quais, suponho, pretendia mas ah! Deus nos ajudaria! não
imitar as pétalas de uma flor. choveria! Quanto ao fato de
Boquiaberta, eu assistia pouco a minha fantasia só existir por
pouco à fantasia tomando forma causa das sobras de outra, engoli
e se criando. Embora de pétalas com alguma dor meu orgulho,
o papel crepom nem de longe que sempre fora feroz, e aceitei
lembrasse, eu pensava seriamente humilde o que o destino me dava
que era uma das fantasias mais de esmola.
belas que jamais vira.
Mas por que exatamente aquele
Foi quando aconteceu, por carnaval, o único de fantasia,
simples acaso, o inesperado: teve que ser tão melancólico?
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De manhã cedo no domingo eu
já estava de cabelos enrolados
para que até de tarde o frisado
pegasse bem. Mas os minutos não
passavam, de tanta ansiedade.
Enfim, enfim! Chegaram três horas
da tarde: com cuidado para não
rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
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desencantavam pessoas, eu fora
desencantada; não era mais uma
rosa, era de novo uma simples
menina. Desci até a rua e ali de
pé eu não era uma flor, era um
palhaço pensativo de lábios
encarnados. Na minha fome de
sentir êxtase, às vezes começava
a ficar alegre mas com remorso
lembrava-me do estado grave de
minha mãe e de novo eu morria.
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