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Kiera Cass
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Kiera Cass

A Seleção
The Selection

Marcador
Capítulo 1

Quando a carta chegou pelo correio, a minha mãe ficou em êxtase.


Nesse momento, decidiu que todos os nossos problemas estavam
resolvidos; tinham acabado para sempre. O grande empecilho no seu
maravilhoso plano era eu. Não me considerava uma filha particularmente
desobediente, mas neste aspeto era irredutível.
Não queria pertencer à realeza. Não queria ser uma Um. Nem sequer
queria tentar.
Escondi-me no meu quarto, o único sítio onde podia escapar das
conversas na nossa casa cheia de gente, enquanto procurava um argumento
que convencesse a minha mãe. Até agora, tinha uma lista fundamentada das
minhas opiniões sinceras... Mas não me parecia que ela fosse dar-me
ouvidos.
Não ia conseguir evitá-la por muito mais tempo. Eram quase horas do
jantar e, enquanto filha mais velha ainda em casa, tinha responsabilidades
culinárias. Arrastei-me para fora da cama e entrei no vespeiro.
A minha mãe lançou-me um olhar furioso, mas não disse nada.
Movemo-nos numa dança silenciosa pela cozinha e pela sala de jantar,
enquanto preparávamos o frango, a massa e as fatias de maçã e púnhamos a
mesa para cinco pessoas. Se eu erguesse os olhos de qualquer tarefa, ela
lançava-me um olhar feroz, como se conseguisse forçar-me a querer o
mesmo que ela. Era uma tática que usava de vez em quando. Como quando
eu não queria aceitar um determinado trabalho porque sabia que a família
que nos empregava era desnecessariamente mal-educada. Ou quando queria
que eu fizesse a limpeza geral porque não tínhamos dinheiro para pagar a
um Seis para vir ajudar-nos.
Às vezes resultava. Outras, não. E esta era uma situação em relação à
qual eu era irredutível.
Ela não me suportava quando eu era teimosa, mas nisso éramos
parecidas, portanto, não deveria surpreendê-la. No entanto, o problema não
tinha apenas a ver comigo. Ultimamente, a minha mãe andava tensa. O
verão estava a terminar e em breve enfrentaríamos o frio. E as
preocupações.
A minha mãe colocou o jarro do chá no centro da mesa com uma
pancada irritada. Senti água na boca só de pensar no chá gelado com limão,
mas tinha de esperar; seria um desperdício beber o meu copo agora e depois
ter de beber água durante o jantar.
— Morrerias se preenchesses o formulário? — disse ela, sem
conseguir conter-se mais. — A Seleção pode ser uma oportunidade
maravilhosa para ti, para todos nós.
Suspirei alto, pensando que preencher aquele formulário seria, na
realidade, um pouco como morrer.
Não era segredo que os rebeldes — as colónias clandestinas que
odiavam Illéa, o nosso vasto e relativamente jovem país — lançavam
ataques frequentes e violentos ao palácio. Já os víramos em ação, em
Carolina. A casa de um dos magistrados fora completamente incendiada e
os carros de alguns Dois tinham sido vandalizados. Houve até uma fuga
espetacular da prisão, uma vez, mas considerando que tinham libertado uma
adolescente que engravidara e um Sete pai de nove filhos, não pude deixar
de pensar que dessa vez tinham razão.
Mas, além do perigo potencial, sentia que só o mero facto de pensar
na Seleção acabaria por ferir o meu coração. Não consegui esconder um
sorriso, enquanto pensava em todas as razões para permanecer exatamente
onde estava.
— Os últimos anos têm sido muito difíceis para o teu pai — sibilou
ela. — Se tiveres um pingo de compaixão, pensa nele.
O meu pai. Sim, queria realmente ajudá-lo. E a May e o Gerad, até a
minha mãe, acho. Quando ela expunha assim a situação, não apetecia sorrir.
Há demasiado tempo que as coisas não eram fáceis para nós. Perguntei-me
se o meu pai encararia isto como um meio de fazer tudo voltar ao normal,
se alguma quantia em dinheiro poderia melhorar as coisas.
A nossa situação não era tão precária que tivéssemos de temer pela
nossa sobrevivência ou algo do género. Não éramos miseráveis. Mas
também não estávamos muito longe de o ser.
A nossa casta era a terceira a contar da mais baixa. Éramos artistas. E
os artistas e os músicos clássicos estavam apenas três degraus acima do pó.
Literalmente. O dinheiro era curto, esticado ao limite, e os nossos
rendimentos dependiam bastante da mudança de estações.
Lembro-me de ter lido num livro de História antigo que todas as festas
principais costumavam acontecer nos meses de inverno. Algo chamado
Halloween, seguido da Ação de Graças, depois o Natal e o Ano Novo.
Umas atrás das outras.
O Natal ainda era na mesma altura — não se pode mudar o
aniversário de uma divindade — mas quando Illéa assinou o grande acordo
de paz com a China, o Ano Novo passou a ser em janeiro ou fevereiro,
dependendo da Lua. Todas as comemorações individuais de agradecimento
ou de independência da nossa metade do mundo compunham agora
simplesmente a Festa da Gratidão, que se realizava no verão. Era a altura de
celebrarmos a formação de Illéa, de nos congratularmos por ainda
existirmos.
Não sabia o que era o Halloween. Desapareceu, simplesmente.
Assim, pelo menos três vezes por ano, toda a família tinha trabalho a
tempo inteiro. O meu pai e a May faziam as suas peças de arte, que os
clientes compravam para oferecer como prendas. A minha mãe e eu
atuávamos em festas — eu cantava e ela tocava piano aceitando todos os
trabalhos que conseguíssemos. Quando era mais nova, atuar em público
aterrorizava-me, mas agora procurava imaginar que era apenas música de
fundo. Era assim que éramos encarados por quem nos contratava:
estávamos ali para sermos ouvidos e não vistos.
O Gerad ainda não descobrira o seu talento, mas só tinha sete anos.
Ainda lhe restava algum tempo.
Em breve, as folhas das árvores mudariam de cor e o nosso pequeno
mundo tornar-se-ia novamente instável. Cinco bocas e apenas quatro
trabalhadores. Sem garantia de emprego até ao Natal.
Quando pensava nas coisas desta maneira, a Seleção parecia uma boia
de salvação, uma coisa segura à qual podia agarrar-me. Aquela carta
estúpida podia livrar-me da escuridão e eu podia libertar também a minha
família.
Observei a minha mãe. Era um pouco rechonchuda para uma Cinco, o
que era estranho. Não era comilona e, além disso, não tínhamos hipótese de
comer demasiado. Talvez fosse simplesmente assim que o corpo fica depois
de cinco filhos. Os seus cabelos eram ruivos, como os meus, mas cheios de
madeixas brancas brilhantes, que haviam aparecido abundante e
repentinamente, há cerca de dois anos. Rugas marcavam-lhe os cantos dos
olhos, embora ainda fosse bastante jovem, e à medida que circulava pela
cozinha reparei que tinha as costas curvadas, como se transportasse um
peso invisível sobre os ombros.
Eu sabia que a minha mãe andava sobrecarregada e sabia que era por
isso que se tornara particularmente manipuladora em relação a mim. Já
discutíamos o suficiente sem essa tensão extra, mas à medida que o outono
vazio se aproximava lentamente, ela ficava cada vez mais irritável. E eu
sabia que ela achava que eu estava a ser pouco razoável ao não querer
sequer preencher um formulariozito idiota.
Mas havia neste mundo coisas — coisas importantes — que eu
amava. E aquela folha de papel parecia um muro que se erguia entre mim e
aquilo que eu queria. Talvez quisesse coisas parvas, talvez nem sequer
fossem coisas que conseguisse ter, mas, ainda assim, eram coisas minhas.
Não me sentia capaz de sacrificar os meus sonhos, independentemente da
importância que a minha família tinha para mim. Além disso, já fizera
muito por eles.
Depois da Kenna se casar e do Kota se ter ido embora, eu era a filha
mais velha em casa e, por isso, assumira o meu papel o mais rapidamente
que consegui. Fazia tudo para ajudar. Organizámos os meus estudos em
casa de acordo com os meus ensaios, que ocupavam a maior parte do dia,
pois eu estava a tentar dominar vários instrumentos musicais, ao mesmo
tempo que aprendia a cantar.
Mas com a chegada da carta, todo o meu trabalho deixara de ter
importância. Na cabeça da minha mãe, eu já era uma rainha.
Se fosse esperta, teria escondido aquele aviso estúpido antes de o meu
pai, a May e o Gerad terem chegado, mas não sabia que a minha mãe já o
enfiara na roupa. A meio da refeição, tirou-o.
— Para a família Singer — cantarolou.
Tentei tirar-lhe o papel, mas ela foi mais rápida do que eu. Eles iriam
acabar por descobrir, mais cedo ou mais tarde, só que deste modo ficariam
todos do lado dela.
— Mãe, por favor! — implorei.
— Eu quero ouvir! — disse a May com um gritinho, o que não me
surpreendeu. A minha irmã era parecidíssima comigo só que três anos mais
nova e, embora a nossa aparência fosse praticamente a mesma, os nossos
feitios eram opostos. Ao contrário de mim, ela era extrovertida e otimista e,
atualmente, completamente louca por rapazes. Tudo isto iria parecer-lhe
uma história incrivelmente romântica.
Senti-me a corar de vergonha. O meu pai ouviu com atenção,
enquanto à May só lhe faltava saltar de alegria. O Gerad, abençoado,
continuou a comer. A minha mãe aclarou a voz e prosseguiu:
— «O último censo confirmou que uma mulher solteira, entre os
dezasseis e os vinte anos de idade, reside atualmente em vossa casa.
Gostaríamos de vos informar sobre uma oportunidade iminente para
honrarem a grande nação de Illéa.»
A May soltou outro gritinho e agarrou-me no braço:
— És tu!
— Eu sei, minha macaquinha. Larga-me, antes que me partas o braço.
— Mas ela limitou-se a agarrar-me na mão e a dar mais uns pulinhos.
— «O nosso amado Príncipe Maxon Schreave» — continuou a minha
mãe — «atinge a maioridade este mês e, ao iniciar esta nova fase da sua
vida, deseja prosseguir com uma companheira a seu lado; casar com uma
verdadeira Filha de Illéa. Se a vossa filha, irmã ou protegida elegível estiver
interessada nesta oportunidade de poder vir a ser a noiva do Príncipe
Maxon e a adorada Princesa de Illéa, por favor, preencham o formulário em
anexo e entreguem-no no Departamento de Serviços Provinciais da vossa
localidade. Uma jovem de cada província será escolhida aleatoriamente
para conhecer o príncipe. As participantes ficarão hospedadas no
encantador Palácio de Illéa, em Angeles, durante a sua estada. A família de
cada participante será generosamente recompensada... — A minha mãe pro‐
longou as palavras para criar um efeito dramático — ... pelo serviço
prestado à família real.»
Enquanto ela falava, eu revirava os olhos. Era assim que as coisas se
passavam no caso de um príncipe. As princesas nascidas na família real
eram negociadas em casamento, a fim de fortalecerem as nossas recentes
relações com outros países. Eu percebia por que razão o faziam —
precisávamos de aliados —, mas não me agradava. Nunca vira tal acontecer
e esperava nunca ver. Há três gerações que não nascia uma princesa na
família real. Os príncipes, contudo, casavam com plebeias para elevar o
moral da nossa, às vezes, volátil nação. Acho que a Seleção servia para nos
unir e para nos recordar de que a própria Illéa nascera praticamente do
nada.
Nenhuma das opções me parecia muito boa. E a ideia de entrar num
concurso no qual o país inteiro veria aquele palerma arrogante escolher a
rapariga mais bela e fútil do grupo para ser o rosto silencioso e bonito que
iria aparecer ao seu lado na televisão... Era o suficiente para me fazer gritar.
Poderia haver humilhação maior? Além disso, já passara tempo suficiente
nas casas de Dois e de Três para ter a certeza de não querer nunca viver
entre eles e muito menos entre os Um! Tirando as alturas em que
passávamos fome, sentia-me perfeitamente feliz por ser uma Cinco. A
alpinista social era a minha mãe, não eu.
— E é claro que ele iria adorar a America! Ela é tão linda — derreteu-
se a minha mãe.
— Mãe, por favor! Quanto muito, sou normal.
— Não és nada! — disse a May. — Eu pareço-me contigo e sou
bonita! — O seu sorriso era tão aberto que não pude deixar de me rir. E o
argumento era válido, a May era mesmo linda.
Mas era mais do que o seu rosto, mais do que o seu sorriso cativante e
olhos brilhantes. A May irradiava uma energia e um entusiasmo que nos
fazia querer estar onde ela estivesse. A May era magnética e, sinceramente,
eu não era.
— Gerad, o que achas? Sou bonita? — perguntei.
Todos os olhares se fixaram no membro mais jovem da nossa família.
— Não! As raparigas são horríveis!
— Gerad, por favor! — A minha mãe soltou um suspiro exasperado,
mas não muito convicto. Era difícil irritarmo-nos com ele. — America, tu
sabes que és uma rapariga muito bonita.
— Se sou assim tão atraente, por que razão nunca ninguém me
convida para sair?
— Ah, eles aparecem por aqui, mas eu espanto-os a todos. As minhas
filhas são demasiado bonitas para se casarem com um Cinco. A Kenna
conseguiu um Quatro e tenho a certeza de que te podes sair ainda melhor.
— A minha mãe tomou um gole do seu chá.
— O nome dele é James. Para de o chamar pelo número. E desde
quando é que os rapazes vêm cá a casa? — Conseguia ouvir a minha
própria voz ficar cada vez mais aguda. Nunca tinha visto um único rapaz à
nossa porta.
— Já há algum tempo — disse o meu pai, fazendo o seu primeiro
comentário desde o início da conversa. A sua voz tinha uma nota de tristeza
e ele olhava fixamente para o copo. Tentei perceber o que o perturbava
tanto. Os rapazes que vinham até cá? A mãe e eu a discutirmos outra vez?
A minha recusa em participar no concurso? A distância a que ficaria se
participasse?
O meu pai e eu éramos próximos. Acho que, quando nasci, a minha
mãe estava um pouco exausta, por isso o meu pai cuidava de mim a maior
parte das vezes. Herdei o temperamento dela, mas a compaixão dele.
Ele ergueu os olhos por uma fração de segundo e foi então que
percebi. Não queria pedir-me que participasse, não queria que fosse, mas
também não podia negar os benefícios que teríamos se eu conseguisse ficar,
ainda que por um dia, no concurso.
— America, sê razoável — disse a minha mãe. — Devemos ser os
únicos pais no país que precisam de convencer a filha a participar. Pensa na
oportunidade! Um dia, podes vir a ser rainha!
— Mãe, mesmo que eu quisesse ser rainha, o que não quero de todo,
existem milhares de outras raparigas na província que vão participar.
Milhares. E se, por acaso, fosse sorteada, ainda teria de competir com trinta
e quatro raparigas, todas certamente muito melhores a seduzir do que eu
jamais conseguiria fingir ser.
O Gerad apurou os ouvidos: — O que é seduzir?
— Nada! — respondemos em coro.
— É ridículo pensar que, considerando tudo isto, poderia sequer
ganhar — concluí.
A minha mãe empurrou a cadeira, levantou-se e inclinou-se sobre a
mesa na minha direção.
— Alguém vai ganhar, America. Tens tantas hipóteses quanto
qualquer outra. — Atirou o guardanapo para a mesa e afastou-se. — Gerad,
quando acabares, são horas do banho.
Ele respondeu com um gemido.
A May acabou de comer em silêncio. O Gerad pediu para repetir, mas
não havia mais comida. Quando se levantaram, comecei a tirar a loiça da
mesa, enquanto o meu pai continuava sentado, bebericando o seu chá. Tinha
de novo tinta no cabelo, uma mancha amarela que me fez sorrir. Levantou-
se, sacudindo as migalhas da camisa.
— Desculpe, pai — murmurei, enquanto retirava os pratos.
— Não sejas tonta, pequenina. Não estou zangado. — Ele sorriu
abertamente e colocou um braço à minha volta.
— Eu só...
— Não precisas de me explicar, querida. Eu sei. — Beijou-me na
testa. — Agora vou voltar ao trabalho.
Fui para a cozinha para começar a limpar. Cobri com um guardanapo
o meu prato praticamente intacto e escondi-o no frigorífico. Nos pratos dos
outros tinham restado apenas migalhas.
Suspirei e fui para o meu quarto preparar-me para dormir. Tudo aquilo
era enervante.
Por que razão é que a minha mãe me pressionava tanto? Não era feliz?
Não amava o meu pai? Porque é que isso não era suficiente para ela?
Deitada no meu colchão cheio de altos, procurei pensar racionalmente
sobre a Seleção. Não podia negar que tinha as suas vantagens; seria
agradável poder comer bem, pelo menos durante algum tempo. Mas não
havia razão para me preocupar; não iria apaixonar-me pelo Príncipe Maxon.
Pelo que tinha visto no Noticiário Oficial de Illéa, nem sequer iria gostar
dele.
A meia-noite parecia demorar uma eternidade a chegar. Havia um
espelho junto à porta e, antes de sair, dei uma olhadela ao cabelo para ver se
continuava tão bem como de manhã. Também pus um pouco de brilho nos
lábios, para dar alguma cor ao rosto. A minha mãe fazia questão de
guardarmos a maquilhagem apenas para quando tínhamos de nos apresentar
em palco ou aparecer em público, mas eu surripiava sempre um pouco em
noites como esta.
Entrei na cozinha, fazendo o mínimo barulho possível. Embrulhei as
minhas sobras do jantar: um pedaço de pão que estava quase a passar do
prazo e uma maçã. Era difícil voltar ao quarto em passos tão lentos a estas
horas tardias, mas se tivesse feito isto antes teria ficado demasiado ansiosa.
Abri a janela do quarto e olhei para o nosso pequeno quintal. A Lua
quase não se via, por isso tive de deixar que os meus olhos se adaptassem
antes de poder avançar. Do outro lado do relvado, a silhueta da casa da
árvore mal se via na escuridão da noite. Quando éramos mais novos, o Kota
atava lençóis aos ramos para que a árvore se parecesse com um navio. Ele
era o capitão e eu era sempre o seu imediato. Os meus deveres resumiam-se
geralmente a varrer o convés e a fazer a comida, composta por um monte de
terra e galhos enfiados nas panelas da minha mãe. Ele agarrava numa colher
cheia de terra e «comia», atirando a terra por cima do ombro. Isso sig‐
nificava que eu tinha de varrer outra vez, mas não me importava. Ficava
feliz só por estar no navio com o Kota.
Olhei em volta. Todas as casas da vizinhança estavam às escuras.
Ninguém estava a ver. Saí pela janela, com cuidado, rastejando. Costumava
ficar com nódoas negras na barriga quando o fazia da maneira errada, mas
agora era fácil, um talento cultivado ao longo dos anos. E não queria
estragar a comida.
Atravessei rapidamente o relvado, vestindo o meu pijama mais giro.
Podia ter mantido a roupa que usara durante o dia, mas sentia-me melhor
assim. Acho que não importava o que vestia, mas sentia-me bonita com os
meus calçõezinhos castanhos e a blusa branca justa.
Agora já não era difícil escalar só com uma mão as tábuas pregadas na
árvore. Também tinha aperfeiçoado essa técnica. Cada passo era um alívio.
A distância não era grande, mas aqui toda a confusão em minha casa
parecia estar muito longe. Aqui não precisava de ser a princesa de ninguém.
Assim que entrei naquela pequena caixa, o meu refúgio, soube que
não estava sozinha. No canto mais afastado, alguém se escondia na
escuridão da noite. A minha respiração acelerou; não consegui evitá-lo.
Pousei a comida no chão e semicerrei os olhos. A pessoa mexeu-se e
acendeu uma vela quase gasta. A luz era fraca — ninguém em casa
conseguiria vê-la —, mas era suficiente. Finalmente, com um sorriso
malicioso no rosto, o intruso falou:
— Olá, linda.
Capítulo 2

Avancei de gatas. A casa da árvore não era maior do que um cubículo


de 1,5 m² — nem sequer o Gerad conseguia ficar em pé lá dentro —, mas
eu adorava-a. Havia uma entrada pela qual só se podia passar rastejando e
uma janela minúscula na parede oposta. Tinha colocado um banco velho
num canto, para servir de apoio para a vela, e um tapete tão velho que era
pouco melhor do que estar sentado nas tábuas. Não era muito, mas era o
meu refúgio. O nosso paraíso.
— Por favor, não me chames linda. Primeiro a minha mãe, depois a
May e agora tu. Está a começar a irritar-me. — Pelo modo como o Aspen
olhava para mim, percebi que não estava a convencê-lo. Ele sorriu.
— Não consigo evitar, és a coisa mais bela que já vi na vida. Não
podes levar-me a mal por dizê-lo nos poucos momentos em que posso. —
Ele envolveu o meu rosto com as mãos e eu olhei-o profundamente nos
olhos.
Foi o suficiente. Os lábios dele pousaram nos meus e não consegui
pensar em mais nada. Não havia Seleção, nenhuma família miserável, nem
sequer Illéa. Havia apenas as mãos do Aspen nas minhas costas, puxando-
me para si, e a respiração dele no meu rosto. Enfiei as mãos no seu cabelo
preto, ainda húmido do banho — ele tomava sempre banho à noite — e
entrelacei os dedos. O Aspen cheirava ao sabonete que a mãe dele fazia. Eu
sonhava com aquele cheiro. Afastámo-nos e não consegui esconder um
sorriso.
Ele tinha as pernas abertas e eu sentei-me de lado no meio delas,
como uma criança que pede colo.
— Desculpa, não estou de bom humor. É que... recebemos aquele
aviso idiota hoje pelo correio.
— Ah, sim, a carta. — O Aspen suspirou. — Nós recebemos duas.
Claro. As gémeas tinham acabado de fazer dezasseis anos.
O Aspen observava cada detalhe do meu rosto enquanto falava. Fazia
isso quando estávamos juntos, como se quisesse gravar o meu rosto na
memória. Já passara mais de uma semana e ficávamos ambos ansiosos
quando estávamos mais do que alguns dias sem nos vermos.
Eu também o observava. O Aspen era de longe o rapaz mais bonito da
cidade, de todas as castas. Era moreno, tinha olhos verdes e um sorriso que
nos fazia pensar que guardava um segredo. Era alto, mas não muito e
magro, sem o ser demasiado. Notei, naquela luz fraca, que tinha olheiras;
sem dúvida que trabalhara até tarde a semana inteira. A sua t-shirt preta
estava puída em vários sítios, tal como as calças de ganga surradas que
usava quase todos os dias.
Se ao menos eu pudesse cosê-las... Essa era a minha maior ambição:
não queria ser a princesa de Illéa, queria ser a princesa do Aspen.
Custava-me ficar longe dele. Havia dias em que endoidecia, tentando
imaginar o que estaria a fazer. E quando não aguentava mais, praticava
música. Era ao Aspen que tinha de agradecer por ser a música que era. Ele
levava-me à loucura.
O que era péssimo.
O Aspen era um Seis. Os Seis eram trabalhadores servis e um pouco
melhores do que os Sete, apenas porque tinham mais educação e eram
treinados para trabalhos interiores. O Aspen era mais inteligente do que as
pessoas pensavam e avassaladoramente bonito, mas não era habitual uma
mulher casar com alguém abaixo da sua casta. Um homem de casta inferior
podia até pedir a mão dela, mas raramente recebia um «sim» como resposta.
E quando duas pessoas de castas diferentes se casavam, tinham de
preencher um monte de papelada e esperar cerca de noventa dias antes de
poderem prosseguir com os outros procedimentos legais necessários. Já
ouvira mais de uma pessoa dizer que isso acontecia para que o casal tivesse
uma oportunidade para mudar de ideias. Portanto, estes nossos momentos
íntimos bastante para além do recolher obrigatório de Illéa... podiam
arranjar-nos problemas sérios. Já para não falar no inferno pelo qual a
minha mãe me faria passar.
Mas eu amava o Aspen. Amava-o há quase dois anos. E ele amava-
me. Com ele ali sentado, a acariciar-me o cabelo, não conseguia sequer
pensar em participar na Seleção. Já estava apaixonada.
— O que achas disso? Quero dizer, da Seleção? — perguntei.
— Normal, acho eu. O coitado tem de arranjar uma rapariga de
alguma forma. — Notei o sarcasmo, mas queria mesmo saber a sua opinião.
— Aspen...
— Está bem, está bem. Por um lado, acho triste. O príncipe não sai
com ninguém? Será que não consegue mesmo encontrar alguém? Se tentam
casar as princesas com outros príncipes, porque não fazem o mesmo com
ele? Tem de existir alguma nobre por aí que sirva para ele. Não entendo.
Esse é um lado.
— Mas... — Ele suspirou. — Por outro lado, acho que é uma boa
ideia. É emocionante; ele vai apaixonar-se em frente de toda a gente. E
gosto da ideia de que alguém possa ter o seu conto de fadas no final.
Qualquer uma pode ser a próxima rainha. Isso dá uma certa esperança, faz-
me pensar que eu também posso ter um conto de fadas.
Ele acariciava os meus lábios com os dedos. Aqueles olhos verdes
penetravam fundo na minha alma e eu sentia aquela centelha de ligação que
só sentira com ele. Também queria o nosso conto de fadas.
— Então estás a incentivar as gémeas a entrar no concurso? —
perguntei.
— Sim. Já todos vimos o príncipe algumas vezes; parece ser um tipo
simpático, isto é, convencido, sem dúvida, mas amigável. E elas estão tão
entusiasmadas. É engraçado de ver. Andavam a dançar pela casa quando
cheguei do trabalho hoje. E ninguém pode negar que seria bom para a
família. A minha mãe está otimista, porque temos duas participantes em
casa em vez de uma.
Era a primeira boa notícia que ouvia relacionada com esta competição
horrível. Não podia acreditar que tinha estado tão concentrada em mim que
não me lembrara das irmãs do Aspen. Se uma delas passasse, se uma delas
entrasse...
— Aspen, tens noção do que isso significaria? Se a Kamber ou a Celia
ganhassem?
Ele abraçou-me com mais força, roçando os lábios na minha testa.
Uma das suas mãos subia e descia ao longo das minhas costas.
— Não pensei em mais nada hoje — disse. O tom rouco da sua voz
afastou qualquer outro pensamento. Tudo o que queria era que o Aspen me
tocasse, me beijasse. E era exatamente isso o que iria acontecer, quando o
seu estômago roncou e me distraiu.
— Oh, olha, trouxe um lanche para nós — disse eu, com ligeireza.
— Sim?
Notei que ele tentava não se mostrar entusiasmado, mas transpareceu
um pouco da sua impaciência.
— Vais adorar este frango, fui eu quem o fez.
Encontrei o meu pequeno embrulho e entreguei-lho e ele, honra lhe
seja feita, comeu devagar. Dei uma dentada na maçã, para que ele sentisse
que a comida era para ambos, mas depois pousei-a e deixei-o comer o resto.
Se as refeições eram uma preocupação em minha casa, na do Aspen
eram uma tragédia. O seu trabalho era muito mais constante do que o nosso,
mas ganhava bastante menos. Nunca havia comida suficiente para a sua
família. Era o mais velho de sete irmãos e, assim como cu começara a
ajudar em casa assim que pude, o Aspen pusera-se à margem; dava a sua
parte da pouca comida que tinham aos irmãos e à mãe, que estava sempre
cansada de tanto trabalhar. O pai morrera há três anos e a família dependia
dele para quase tudo.
Vi com satisfação o Aspen lamber dos dedos o tempero do frango e
começar a comer o pão. Não fazia ideia de quando fora a última vez que ele
tinha comido.
— És uma ótima cozinheira. Um dia vais fazer alguém engordar e ser
muito feliz — disse ele, com a boca cheia de maçã.
— Vou engordar-te a ti e fazer-te feliz. Tu sabes.
— Ah, poder ser gordo!
Rimo-nos e ele contou-me o que lhe tinha acontecido desde a última
vez que o vira. Estivera a fazer trabalho de escritório para uma fábrica, onde
iria continuar mais uma semana, e a mãe conseguira finalmente um trabalho
fixo como empregada de limpeza para alguns Dois da nossa zona. As
gémeas estavam ambas tristes porque a mãe as fizera desistir do clube de
teatro depois das aulas, para poderem trabalhar mais.
— Vou ver se arranjo um trabalho aos domingos para ganhar um
pouco mais. Não quero que abandonem uma coisa de que gostam tanto —
disse ele esperançoso, como se conseguisse mesmo fazê-lo.
— Aspen Leger, não te atrevas! Já trabalhas demasiado.
— Ah, Mer — sussurrou ele ao meu ouvido, fazendo-me ficar
arrepiada.— Tu sabes como são a Kamber e a Celia. Elas precisam de estar
com pessoas. Não podem ficar fechadas a limpar e a escrever o tempo todo.
Não faz parte da natureza delas.
— Mas não é justo que esperem que tu faças tudo, Aspen. Sei
exatamente como te sentes em relação às tuas irmãs, mas precisas de cuidar
de ti. Se amas mesmo as tuas irmãs, tens de tratar melhor de quem cuida
delas.
— Não te preocupes, Mer. Acho que o futuro vai trazer algo de bom.
Não vou trabalhar assim para sempre.
Mas trabalharia sim, porque a sua família iria sempre precisar de
dinheiro.
— Aspen, eu sei que eras capaz, mas não és um super-herói. Não
podes pensar que tens de dar tudo a todos os que amas. Simplesmente não
podes fazer tudo.
Ficámos em silêncio durante alguns instantes. Eu esperava que ele
estivesse a refletir sobre as minhas palavras, que percebesse que, se não
diminuísse o ritmo, acabaria por se desgastar. Não era raro ver um Seis, um
Sete ou um Oito morrerem de exaustão. Eu não poderia suportá-lo.
Aconcheguei-me ainda mais contra o seu peito, tentando afastar essa
imagem da mente.
— America?
— Sim? — murmurei.
— Vais participar na Seleção?
— Não! Claro que não! Não quero que ninguém pense que
consideraria sequer a hipótese de me casar com um estranho. Eu amo-te a ti
— disse eu, falando a sério.
— Queres ser uma Seis? Sempre com fome? Sempre preocupada? —
perguntou ele. Eu conseguia ouvir a mágoa na sua voz, mas também a
verdadeira questão: se tivesse de escolher entre dormir num palácio rodeada
de criados, ou no apartamento de três divisões com a família do Aspen, o
que é que eu preferiria?
— Aspen, nós vamos conseguir. Somos inteligentes. Vai correr tudo
bem — disse eu, desejando mesmo que assim fosse.
— Sabes que não vai ser assim, Mer. Eu continuaria a ter de sustentar
a minha família. Não sou do tipo de abandonar os outros. — Estremeci nos
seus braços. — E se tivéssemos filhos...
— Quando tivermos filhos. Só temos de ter cuidado. Não precisamos
de ter mais do que dois!
— Sabes que isso não é uma coisa que possamos controlar! —
Conseguia ouvir a raiva a crescer na sua voz.
Não podia culpá-lo. Os que tinham dinheiro podiam controlar o
número de filhos, mas os Quatro e as castas abaixo tinham de safar-se como
conseguissem. Este era o tema de muitas das nossas discussões ao longo
dos últimos seis meses, quando começámos a pensar seriamente numa
forma de ficarmos juntos. Os filhos eram uma incógnita; quantos mais
tivéssemos, mais haveria para trabalhar, mas, por outro lado, seriam tantas
bocas famintas...
Ficámos novamente em silêncio, ambos sem saber bem o que dizer. O
Aspen era emotivo; tinha tendência para se exaltar quando discutia.
Aprendera a conter-se antes de ficar demasiado irritado e eu sabia que era o
que estava a fazer agora.
Não queria preocupá-lo nem deixá-lo nervoso; acreditava mesmo que
seríamos capazes de lidar com a situação. Se planeássemos bem tudo o que
fosse possível planear, conseguiríamos ultrapassar aquilo que não
conseguíssemos prever. Talvez fosse demasiado otimista, ou talvez
estivesse demasiado apaixonada, mas acreditava mesmo que o Aspen e eu
conseguiríamos alcançar tudo aquilo que quiséssemos verdadeiramente.
— Acho que deverias fazê-lo... — disse ele, de repente.
— Fazer o quê?
— Participar na Seleção. Acho que deverias fazê-lo.
Encarei-o furiosa: — Tu estás doido?
— Mer, escuta. — A sua boca estava quase colada ao meu ouvido.
Não era justo; ele sabia que isso me distraía. Quando falou, a sua voz estava
ofegante e lenta, como se fosse dizer algo de romântico, embora o que
estivesse a sugerir fosse exatamente o contrário.
— Se tivesses uma oportunidade para melhorar a tua vida e não a
aproveitasses por minha causa, nunca iria perdoar-me por isso. Não
conseguiria suportá-lo.
— Isso é completamente ridículo — bufei, irritada. — Pensa nos
milhares de raparigas que vão participar. Nem sequer vou ser sorteada.
— Se não vais ser sorteada, qual é o problema? — Ele esfregava
agora os meus braços com as mãos. Eu não conseguia discutir quando ele
fazia aquilo. — Só quero que participes, que tentes. E se fores sorteada,
tudo bem. Se não fores, pelo menos não vou sentir remorsos por te ter
impedido.
— Mas, Aspen, eu não o amo. Nem sequer gosto dele. Nem sequer o
conheço.
— Ninguém o conhece. Mas a questão é essa: talvez pudesses gostar
dele.
— Aspen, para. Eu amo-te a ti.
— E eu a ti. — Ele beijou-me devagar para o confirmar. — E se me
amas fazes isto por mim, para eu não ficar doido a pensar no que poderia ter
acontecido «se».
Quando ele colocava as coisas desta fornia, eu não tinha hipótese. Não
podia magoá-lo. Já estava a fazer tudo o que podia para lhe facilitar a vida.
E eu tinha razão: não havia nenhuma probabilidade de ser escolhida. Assim,
só precisava de deixar que as coisas acontecessem. Todos ficariam
contentes e, quando não fosse sorteada, o assunto seria esquecido.
— Por favor? — Ele sussurrou ao meu ouvido, provocando-me
arrepios por todo o corpo.
— Está bem — murmurei. — Eu inscrevo-me. Mas fica sabendo que
não quero ser princesa nenhuma. Tudo o que quero é ser tua mulher.
Ele acariciou-me o cabelo:
— E hás de ser.
Devia ser por causa da luz, ou da falta dela, mas juro que os olhos
dele se marejaram quando o disse.
O Aspen já passara por muita coisa, mas só o vi chorar uma vez,
quando chicotearam o seu irmão no meio da praça. O pequeno Jemmy tinha
roubado fruta de uma carroça no mercado. Um adulto teria sido submetido a
um julgamento rápido e depois, dependendo do valor do artigo roubado, iria
para a prisão ou seria condenado à morte. O Jemmy tinha apenas nove anos
e, por isso, foi espancado. A mãe deles não tinha dinheiro para o levar a um
médico decente e, em resultado do incidente, o Jemmy ficou com enormes
cicatrizes nas costas.
Nessa noite, esperei ao pé da janela para ver se o Aspen iria à casa da
árvore. Quando apareceu, esgueirei-me para ir ter com ele. O Aspen chorou
nos meus braços durante uma hora, lamentando-se por não ter trabalhado
mais, por não se ter esforçado mais, para que o Jemmy não tivesse
precisado de roubar. Era tão injusto que o Jemmy sofresse porque ele havia
falhado.
Fora devastador principalmente porque não era verdade, mas não
podia dizer-lho; ele não me daria ouvidos. O Aspen carregava com ele as
necessidades de todas as pessoas que amava. E de alguma forma, como por
milagre, eu tornara-me uma dessas pessoas e por isso tentava pesar o
mínimo possível.
— Cantas para mim? Uma música bonita que me ajude a adormecer?
Sorri. Adorava cantar para ele. Aproximei-me mais e cantei-lhe uma
cantiga de embalar suave.
Deixou-me cantar durante uns minutos, antes de começar a mover
distraidamente os dedos sob a minha orelha. Puxou a gola da minha blusa e
beijou-me ao longo do pescoço e das orelhas. Em seguida, arregaçou-me a
manga e foi beijando o meu braço até onde conseguia chegar. Deixava-me
sem fôlego. Fazia isto quase sempre que eu cantava. Acho que gostava mais
do som da minha respiração ofegante do que do canto.
Não tardou muito a estarmos entrelaçados em cima do tapete sujo e
gasto. O Aspen puxou-me para cima dele e penteei-lhe o cabelo
desalinhado com os dedos, hipnotizada pela sensação. Ele beijou-me
ardentemente e com intensidade; podia sentir os seus dedos a apertarem-me
a cintura, as costas, as ancas, as coxas. Ficava sempre surpreendida por ele
não deixar marcas em forma de dedos por todo o meu corpo.
Éramos cuidadosos, parando sempre antes de chegarmos ao que
realmente queríamos, como se quebrar o recolher obrigatório não fosse já
suficientemente mau. Ainda assim, apesar de todas as nossas limitações,
não conseguia imaginar ninguém em Illéa mais apaixonado do que nós.
— Amo-te, America Singer. Amar-te-ei sempre enquanto viver. — A
voz dele transmitia uma emoção profunda e apanhou-me desprevenida.
— Amo-te, Aspen. Serás sempre o meu príncipe.
E ele beijou-me até a vela se apagar.
Deviam ter-se passado horas e os meus olhos começavam a pesar. O
Aspen nunca se importava com o seu próprio descanso, mas preocupava-se
sempre com o meu. Desci a escada, cansada, levando o prato e uma moeda.
O Aspen adorava ouvir-me cantar e, às vezes, quando tinha algum
dinheiro, dava-me uma moeda para pagar a canção. Eu preferia que ele
entregasse à sua própria família as moedas que conseguia ganhar — não
havia dúvida de que precisavam de cada cêntimo —, mas, por outro lado,
aquelas moedas — que eu era incapaz de gastar — eram como um lembrete
de tudo o que o Aspen estava disposto a fazer por mim, de tudo o que eu
significava para ele.
De regresso ao meu quarto, tirei do seu esconderijo o meu pequeno
frasco das moedas e escutei o alegre tilintar da mais recente caindo sobre as
anteriores. Esperei dez minutos à janela, até ver a silhueta do Aspen descer
a escada e correr pela estrada das traseiras.
Fiquei acordada mais um pouco, pensando no Aspen, no quanto o
amava e em como me sentia por me saber amada por ele: especial, sem
preço, insubstituível. Nenhuma rainha em nenhum trono poderia sentir-se
mais importante do que eu.
Adormeci com aquele pensamento firmemente gravado no meu
coração.
Capítulo 3

O Aspen estava vestido de branco. Parecia um anjo. Ainda estávamos


em Carolina, mas não havia mais ninguém por perto. Estávamos sozinhos,
mas não sentíamos a falta de ninguém. O Aspen fez-me uma coroa de
galhos e estávamos juntos.
— America — chamou a minha mãe, despertando-me do sonho.
Acendeu a luz, magoando-me os olhos. Esfreguei-os com as mãos,
procurando habituar-me à claridade.
— Acorda, America. Tenho uma proposta para ti. — Olhei para o
despertador: passava pouco das sete da manhã. Cinco horas de sono...
apenas.
— A proposta é poder dormir mais? — balbuciei.
— Não, querida. Senta-te. Temos um assunto sério para conversar. Fiz
um esforço para me sentar. As minhas roupas estavam amarfanhadas e tinha
o cabelo todo espetado.
A minha mãe batia palmas, como se com isso acelerasse o processo.
— Vá lá, America. Acorda.
Bocejei. Duas vezes.
— O que queres? — perguntei.
— Quero que te inscrevas na Seleção. Acho que darias uma excelente
princesa.
Era demasiado cedo para aquilo.
— Mãe, a sério, eu... — Suspirei, lembrando-me do que prometera ao
Aspen na noite anterior: iria pelo menos tentar. Mas agora, à luz do dia, não
tinha a certeza de conseguir forçar-me a fazê-lo.
— Sei que não concordas, mas pensei em fazer um acordo contigo
para ver se mudas de ideias.
Apurei os ouvidos. O que é que ela poderia propor-me?
— O teu pai e eu conversámos ontem à noite e decidimos que já tens
idade para aceitares trabalhos sozinha. Tocas piano tão bem quanto eu e, se
te esforçasses um pouco mais, serias perfeita no violino. E a tua voz... bem,
não há melhor na província, na minha opinião.
Sorri, um pouco grogue: — Obrigada, mãe. A sério. — Não tinha,
contudo, grande interesse em trabalhar sozinha e, portanto, não entendia
como é que isso poderia ser um incentivo.
— Mas não é só isso. Podes aceitar os teus próprios trabalhos,
sozinha, e... podes ficar com metade do que ganhares. — Ela fez
praticamente uma careta ao dizê-lo.
Arregalei os olhos.
— Mas só se te inscreveres na Seleção. — Ela sorria agora. Sabia que
deste modo me convenceria, embora ache que esperava um pouco mais de
luta da minha parte. Mas como poderia eu resistir? Já ia inscrever-me e
agora podia ganhar algum dinheiro só para mim!
— Sabes que só posso inscrever-me, certo? Não posso obrigá-los a
sortearem o meu nome.
— Eu sei, mas não custa tentar.
— Uau, mãe! — Abanei a cabeça, ainda em choque. — Está bem.
Preencho hoje o formulário. Estás a falar a sério sobre o dinheiro?
— Claro que sim. Mais cedo ou mais tarde, irias acabar por trabalhar
sozinha. E vai ser bom para ti seres responsável pelo teu próprio dinheiro.
Só não te esqueças da família, por favor. Ainda precisamos de ti.
— Não vou esquecer-me de vocês, mãe. Como poderia, contigo
sempre a chatear-me? — Pisquei-lhe um olho, ela riu-se e o acordo ficou
feito.
Tomei banho, enquanto tentava digerir tudo o que acontecera em
menos de vinte e quatro horas. Preenchendo simplesmente um formulário,
garantiria o apoio da minha família, deixava o Aspen feliz e passaria a
ganhar dinheiro para podermos casar!
Não me preocupava muito com o dinheiro, mas o Aspen fazia questão
de termos algum de lado primeiro. A parte burocrática era cara e queríamos
fazer uma festa pequena para a família depois da cerimónia. Eu achava que
não demoraríamos muito a poupar para esse fim, assim que tomássemos a
decisão, mas o Aspen queria mais. Talvez agora, se eu trabalhasse mais a
sério, ele acreditasse finalmente que não viveríamos sempre com
dificuldades.
Depois do banho, penteei o cabelo e pus um pouco de maquilhagem
para comemorar. Depois, abri o armário e vesti-me. Não tinha muito por
onde escolher, era quase tudo bege, castanho ou verde. Tinha alguns
vestidos melhores para o trabalho, mas já estavam irremediavelmente fora
de moda. Mas as coisas eram assim; os Seis e os Sete andavam quase
sempre vestidos de ganga ou com outros tecidos grosseiros. Os Cinco
usavam principalmente roupas genéricas, já que os artistas andavam sempre
de avental e os cantores e bailarinos só precisavam de se vestir bem para os
espetáculos. As castas superiores usavam cáqui ou ganga de vez em
quando, para mudar de visual, mas sempre de um modo que dava um ar
completamente diferente aos tecidos. Como se não bastasse terem tudo o
que queriam, ainda transformavam as nossas necessidades em artigos de
luxo.
Vesti uns calções de cáqui e uma túnica verde — de longe as melhores
roupas descontraídas que tinha — e dei uma olhadela ao espelho antes de ir
até à sala. Sentia-me bonita. Talvez fosse apenas o entusiasmo interior.
A minha mãe estava sentada à mesa da cozinha com o meu pai,
cantarolando. Levantaram ambos os olhos para mim um par de vezes, mas
nem sequer os seus olhares conseguiam perturbar-me.
Fiquei um pouco surpreendida ao pegar na carta; o papel era de
elevada qualidade. Nunca tinha sentido nada parecido: espesso e levemente
texturizado. Por um instante, o peso do papel deixou-me atónita,
recordando-me a magnitude do que estava a fazer. Duas palavras surgiram
na minha cabeça: E se?
Mas afugentei esse pensamento e comecei a escrever.
Era bastante simples. Preenchi o meu nome, idade, casta e in‐
formações de contato. Também tive de colocar a minha altura, peso, cor do
cabelo, dos olhos e tom de pele. Fiquei muito satisfeita por poder dizer que
sabia falar três idiomas. A maioria das pessoas falava pelo menos dois, mas
a minha mãe insistiu que aprendêssemos francês e espanhol, já que essas
línguas ainda eram usadas em algumas partes do país. Também ajudava em
termos do canto. Havia imensas músicas lindas em francês. Tínhamos de
indicar o nível de escolaridade mais elevado que concluíramos, o que podia
variar bastante, já que apenas os Seis e os Sete estudavam em escolas
públicas, onde existiam níveis escolares oficiais. Eu estava quase a terminar
os estudos. Na secção de «aptidões especiais», incluí o canto e todos os
instrumentos que tocava.
— Achas que a capacidade de dormir até tarde conta como aptidão
especial? — perguntei ao meu pai, fingindo indecisão.
— Sim, põe essa. E não te esqueças de escrever que consegues comer
uma refeição inteira em cinco minutos — respondeu ele. Ri-me. Era
verdade; eu aspirava praticamente a comida.
— Olhem, mas que dois! Por que razão não escreves que és uma
desgraça completa? — A minha mãe saiu tempestuosamente da sala. Não
podia acreditar que estivesse tão irritada; afinal, tinha conseguido
exatamente o que queria. Olhei interrogativamente para o meu pai.
— Ela só quer o melhor para ti, nada mais. — Ele recostou-se na
cadeira, descontraindo um pouco antes de começar a trabalhar numa peça
encomendada para o fim do mês.
— Tu também, mas nunca ficas assim tão furioso — comentei.
— Sim, mas a tua mãe e eu temos ideias diferentes sobre o que é
melhor para ti. — Fez-me um sorriso breve.
Eu tinha a boca do meu pai, tanto na aparência como na tendência
para dizer coisas inocentes que depois me causavam problemas. O
temperamento era o da minha mãe, mas ela era melhor a morder a língua
quando a situação o exigia. Eu não. Como agora...
— Pai, se eu quisesse casar com um Seis ou um Sete e ele fosse
alguém que eu amasse muito, deixavas-me?
O meu pai pousou a caneca na mesa e olhou para mim. Procurei fazer
com que a minha expressão não deixasse transparecer nada. Ele suspirou,
pesadamente, cheio de mágoa:
— America, se tu amasses um Oito, iria querer que te casasses com
ele. Mas precisas de saber que o amor às vezes desgasta-se com o stress da
vida de casados. Podes acabar por odiar alguém que pensas amar agora,
quando ele não conseguir sustentar-te. E seria ainda pior se não pudesses
cuidar dos teus filhos. O amor nem sempre sobrevive nessas circunstâncias.
O meu pai pousou a sua mão sobre a minha e ergui os olhos para ele.
Tentei esconder a minha preocupação.
— Mas independentemente de tudo o resto, quero que sejas amada.
Mereces sê-lo. E espero que possas casar-te por amor e não com um
número.
Ele não podia dizer o que eu queria ouvir — que iria casar por amor e
não com um número —, mas era o melhor que poderia esperar.
— Obrigada, pai.
— Tem paciência com a tua mãe. Ela está a tentar agir da melhor
maneira. — Deu-me um beijo na cabeça e foi trabalhar.
Suspirei e voltei à ficha de inscrição. Tudo isto me dava a sensação de
que a minha família achava que eu não tinha o direito de querer algo para
mim. Isso aborrecia-me, mas sabia que, no fundo, não podia recriminá-los
por isso. Não podíamos dar-nos ao luxo de ter vontades. O que tínhamos
eram necessidades.
Peguei no formulário preenchido e fui procurar a minha mãe no
quintal. Ela estava sentada a coser a bainha de um vestido, enquanto a May
fazia os trabalhos de casa à sombra da casa da árvore. O Aspen costumava
queixar-se da rigidez dos professores da escola pública, mas eu duvidava
seriamente de que fossem piores do que a minha mãe. Era verão, por amor
de Deus!
— Já acabaste? — perguntou a May, balouçando-se de joelhos.
— Sim.
— Porque mudaste de ideias?
— A mãe consegue ser muito convincente — respondi, sublinhando
bem as palavras. Mas a minha mãe não sentia obviamente qualquer
vergonha do seu suborno. — Podemos ir ao Departamento de Serviços
assim que estiveres pronta, mãe.
Ela fez um sorrisinho: — Linda menina. Vai buscar as tuas coisas e
vamos já. Quero que a tua inscrição entre o mais depressa possível.
Fui buscar a mala e os sapatos, como me tinha pedido, mas parei junto
ao quarto do Gerad. Ele estava a olhar fixamente para uma tela em branco.
Parecia frustrado. Continuávamos a experimentar várias coisas com o
Gerad, mas nenhuma parecia encaixar. Bastava olhar para a bola de futebol
gasta, no canto do quarto, ou para o microscópio usado que tínhamos
recebido como pagamento num Natal, e era óbvio que o interesse dele não
estava nas artes.
— Não te sentes inspirado hoje, é? — perguntei, entrando no quarto.
Ele olhou para mim e abanou a cabeça.
— Talvez devesses tentar a escultura, como o Kota. Tens umas ótimas
mãos. Aposto que serias bom nisso.
— Não quero esculpir nada. Nem pintar, cantar ou tocar piano. Quero
jogar à bola. — Ele deu um pontapé na carpete velha.
— Eu sei. E podes fazê-lo para te divertires, mas precisas de encontrar
uma arte em que sejas bom, para ganhares dinheiro. Podes fazer as duas
coisas.
— Mas porquê? — choramingou ele.
— Tu sabes porquê. É a lei.
— Mas isso não é justo! — O Gerad empurrou a tela para o chão,
fazendo o pó subir, visível na luz que entrava pela janela. — A culpa não é
nossa se o nosso bisavô, ou quem quer que fosse, era pobre.
— Eu sei. — Parecia de facto irracional limitar as opções de vida das
pessoas com base na capacidade dos seus antepassados para ajudarem o
governo, mas era assim que as coisas funcionavam. E talvez eu devesse
simplesmente dar graças por estarmos seguros.
— Acho que era a única maneira de as coisas funcionarem na altura.
Ele ficou calado. Soltei um suspiro e apanhei a tela do chão, voltando
a colocá-la no lugar. Esta era a sua vida e ele não podia simplesmente
apagá-la.
— Não precisas de desistir dos teus passatempos, querido. Mas queres
poder ajudar a mãe e o pai, e crescer e casar, não queres? — Dei-lhe um
beliscão.
Ele deitou a língua de fora, fingindo repugnância e rimo-nos os dois.
— America! — gritou a minha mãe, da entrada. — Porque estás a
demorar tanto?
— Já vou! — gritei de volta e depois continuei, olhando para o Gerad.
— Eu sei que é difícil, querido, mas as coisas são assim, está bem?
Mas eu sabia que não estava bem. Nada bem, mesmo.
A minha mãe e eu fomos a pé até ao departamento local. Às vezes,
quando íamos para longe ou estávamos a trabalhar, apanhávamos um
autocarro. Parecia mal se chegássemos todas suadas a casa de um Dois.
Eles já nos olhavam de lado, de qualquer modo. Mas o dia estava bonito e a
viagem não era assim tão longa.
Não éramos obviamente as únicas a pretender entregar a inscrição o
mais depressa possível. Quando lá chegámos, a rua em frente ao
Departamento de Serviços Provinciais de Carolina já estava apinhada de
mulheres. Conseguia ver à minha frente, na fila, várias raparigas do meu
bairro, à espera para entrar.
A fila tinha quase quatro pessoas de largura e dava meia volta ao
quarteirão. Todas as raparigas da província haviam decidido inscrever-se.
Não sei se devia sentir-me aterrada ou aliviada.
— Magda! — chamou alguém. Ao ouvirmos o nome dela, eu e a
minha mãe virámo-nos.
A Celia e a Kamber aproximavam-se com a mãe do Aspen. Esta devia
ter tirado um dia de folga para vir ao Departamento.
As filhas traziam a melhor roupa que tinham e estavam bem arran‐
jadas. Não muito, mas elas ficavam bonitas com qualquer coisa, tal como o
Aspen. A Kamber e a Celia tinham o mesmo cabelo escuro e o mesmo
sorriso bonito do irmão.
A mãe do Aspen sorriu-me e eu sorri-lhe também. Adorava-a. Só
tinha oportunidade de falar com ela de vez em quando, mas era sempre
simpática comigo. E eu sabia que não era por pertencer a uma casta acima
da sua; já a tinha visto dar roupas dos filhos, que já não lhes serviam, a
famílias que não tinham quase nada. Era simplesmente uma pessoa
generosa.
— Olá, Lena. Kamber, Celia, como estão, meninas? — cumprimentou
a minha mãe.
— Bem! — responderam em uníssono.
— Vocês estão lindas — disse eu, colocando um dos caracóis da Celia
para trás das suas costas.
— Queremos ficar bonitas para a fotografia — anunciou a Kamber.
— Fotografia? — perguntei.
— Sim — A mãe do Aspen falou em voz baixa. — Estive a limpar a
casa de um juiz, ontem. Parece que o sorteio não é bem um sorteio. É por
isso que estão a tirar fotografias e a recolher tantas informações. O que
interessaria saber quantas línguas alguém fala, se fosse tudo aleatório?
Também me tinha parecido estranho, mas pensei que fosse
informação para ser usada depois.
— Parece que a notícia se espalhou. Reparem, há várias raparigas
muito produzidas.
Passei os olhos pela fila. A mãe do Aspen tinha razão; havia uma
diferença clara entre os que sabiam e os que não sabiam. Logo atrás de nós
estava uma rapariga, com certeza uma Sete, ainda com as roupas de
trabalho. As botas cheias de lama não iriam provavelmente aparecer na
fotografia, mas o pó no macacão sim. Um pouco mais atrás, uma outra Sete
ostentava um cinto de ferramentas. O melhor que se poderia dizer sobre ela
é que tinha a cara lavada.
No extremo oposto, a rapariga à minha frente tinha penteado o cabelo
num coque, deixando umas madeixas encaracoladas
a emoldurar-lhe o rosto. A rapariga ao lado dela, claramente uma Dois
a avaliar pelas roupas, tinha um decote tão grande que parecia que ia
engolir o mundo. Outras tinham tanta maquilhagem que, a meu ver, mais
pareciam palhaços, mas pelo menos estavam a esforçar-se.
A minha aparência era razoável, mas não chegava aos extremos das
outras. Tal como as Sete, não fazia ideia de que teria de me preocupar com
isso. De repente, senti-me ansiosa.
Mas porquê? Parei e reorganizei os meus pensamentos.
Eu não queria isto e, portanto, não estar suficientemente bonita era
bom. Estava, pelo menos, um ponto abaixo das irmãs do Aspen. Elas eram
naturalmente bonitas e pareciam ainda mais encantadoras com um
toquezinho de maquilhagem. Se a Kamber ou a Celia ganhassem, toda a
família subiria na escala social e de certeza que a minha mãe não iria opor-
se a que me casasse com um Um só porque não era o príncipe. A minha
ignorância era na verdade uma bênção.
— Acho que tem razão — disse a minha mãe. — Aquela rapariga
parece que está vestida para uma festa de Natal. — Ela riu-se, mas percebi
que detestava o facto de eu estar em desvantagem.
— Não sei por que razão algumas raparigas exageram tanto. Olhem
para a America, é tão bonita. Fico contente por não teres seguido esse
caminho — disse a Sra. Leger.
— Não sou nada de especial. Quem é que me escolheria, ao lado da
Kamber ou da Celia? — Pisquei-lhes o olho e elas sorriram.
A minha mãe também sorriu, mas era um sorriso forçado. Devia estar
dividida entre ficar na fila ou obrigar-me a correr até casa para trocar de
roupa.
— Olha que tonta! Sempre que o Aspen volta para casa, depois de ter
estado a ajudar o teu irmão, diz sempre que a família Singer herdou mais do
que a sua quota de talento e beleza — disse a mãe do Aspen.
— A sério? Que rapaz simpático! — disse a minha mãe, encantada.
— É verdade. Não podia pedir um filho melhor. Apoia-nos imenso e
trabalha tanto.
— Um dia, vai fazer uma rapariga muito feliz — comentou minha
mãe, sem dar muita atenção à conversa. Ainda estava a analisar a
concorrência.
A Sra. Leger olhou rapidamente em redor: — Aqui entre nós, acho
que ele já deve ter alguém em vista.
Senti-me gelada. Não sabia se devia fazer algum comentário ou não.
Tinha medo de dizer alguma coisa que me denunciasse.
— Como é que ela é? — perguntou a minha mãe. Embora estivesse a
planear o meu casamento com um completo estranho, continuava a ter
tempo para um pouco de coscuvilhice.
— Não sei, nunca a vi. Só acho que ele anda a sair com alguém.
Parece mais feliz ultimamente — respondeu ela, radiante.
«Ultimamente»? Há quase dois anos que nos encontrávamos. Porquê
só «ultimamente»?
— Ele cantarola — acrescentou a Celia.
— Sim e também canta — concordou a Kamber.
— Ele canta? — exclamei.
— Oh, sim — confirmaram as duas em uníssono.
— Então, anda sem dúvida a sair com alguém! — alvitrou a minha
mãe. — Quem será?
— Não faço ideia. Mas deve ser uma rapariga maravilhosa. Ele tem
trabalhado muito mais do que o normal, nestes últimos meses, e anda a
guardar o dinheiro. Acho que está a tentar poupar para o casamento.
Não consegui conter uma exclamação. Por sorte, todas acharam que
era apenas por causa do entusiasmo geral causado pela notícia.
— Nada poderia deixar-me mais feliz — prosseguiu a Sra. Leger. —
Mesmo que ainda não esteja pronto para nos dizer quem é, já gosto dela.
Ele anda todo sorridente e percebe-se que está contente. Tem sido muito
difícil desde que perdemos o Herrick, e o Aspen assumiu tantas
responsabilidades que qualquer rapariga que o faça feliz assim já é uma
filha para mim.
— É uma rapariga de sorte! O seu Aspen é um ótimo rapaz —
observou a minha mãe.
Não podia acreditar. Aqui estava a família dele, a tentar fazer o
dinheiro esticar, e ele estava a poupar uma parte por minha causa! Não
sabia se devia pregar-lhe um sermão ou dar-lhe um beijo. Simplesmente...
não tinha palavras.
Ele ia mesmo pedir-me em casamento!
Só conseguia pensar naquilo: Aspen, Aspen, Aspen. Fui avançando na
fila, assinei no gnichet para confirmar que todas as informações no meu
formulário eram verdadeiras e tirei a fotografia. Sentei-me na cadeira,
sacudi os cabelos para ganharem mais vida e virei-me para o fotógrafo.
Não creio que existisse em Illéa alguma rapariga mais sorridente do
que eu.
Capítulo 4

Era sexta-feira, por isso o Noticiário Oficial de Illéa começava às


oito. Não éramos oficialmente obrigados a ver, mas era sensato fazê-lo. Até
os Oito — os mendigos, os vagabundos — encontravam uma loja ou uma
igreja onde pudessem ver as notícias. E com a data da Seleção a aproximar-
se, o Noticiário Oficial era mais do que uma obrigação; todos queriam saber
o que se estava a passar ali.
— Achas que vão anunciar as vencedoras hoje? — perguntou a May,
enfiando puré de batata na boca.
— Não, querida. Todas as selecionáveis ainda têm nove dias para
entregar o formulário. Provavelmente só vamos ficar a saber daqui a duas
semanas. — Há anos que a voz da minha mãe não soava tão calma. Estava
completamente descontraída, satisfeita por ter conseguido algo que queria
muito.
— Ah! Não aguento esperar mais! — queixou-se a May.
Ela não aguentava esperar? Era o meu nome que estava na taça!
— A tua mãe contou-me que estiveram um bom bocado na fila. —
Fiquei surpreendida por o meu pai querer entrar na conversa.
— Sim. Não estava à espera de tantas raparigas. Não sei por que razão
ainda vão dar mais nove dias para a inscrição, juro que toda a gente da
província já lá deve ter ido.
O meu pai soltou uma risadinha:
— Divertiste-te a analisar a concorrência?
— Nem me ralei — respondi com sinceridade. — Deixei esse trabalho
para a mãe.
Ela confirmou, anuindo com a cabeça:
— E analisei mesmo. Não consegui conter-me. Mas acho que a
America estava muito bem, bem arranjada, mas natural. E, realmente, tu és
tão bonita, querida. Se estão mesmo a avaliar as candidatas em vez de
escolherem ao acaso, tens ainda mais hipóteses do que eu pensava.
— Olha que não sei — disse, evasiva. — Havia aquela rapariga que
tinha posto tanto batom vermelho que parecia estar a sangrar. Talvez o
príncipe goste desse género.
Todos se riram e a minha mãe e eu continuámos a diverti-los com
comentários sobre as roupas que nos tinham chamado a atenção. A May
bebia as nossas palavras, ao passo que o Gerad sorria simplesmente por
entre garfadas. Às vezes era fácil esquecermos que, desde a altura em que o
Gerad tinha começado a perceber o mundo à sua volta, a vida em nossa casa
era difícil.
Às oito, juntámo-nos todos na sala — o meu pai na sua cadeira, a May
no sofá ao lado da mãe, esta com o Gerad ao colo e eu estendida no chão.
Ligámos a televisão no canal da rede pública — o único pelo qual não era
preciso pagar e que, portanto, até os Oito poderiam ver se tivessem uma
televisão.
Ouviu-se o hino nacional. Pode parecer uma parvoíce, mas sempre
adorei o nosso hino. Era uma das músicas que mais gostava de cantar.
A imagem da família real surgiu no ecrã. O Rei Clarkson encontrava-
se no alto do palanque e num dos lados estavam sentados os seus
conselheiros, que traziam anúncios sobre infraestruturas e problemas
ambientais. A câmara virou-se para os focar. Parecia que iria haver vários
anúncios esta noite. A rainha e o Príncipe Maxon apareciam no lado
esquerdo do ecrã, sentados nos seus lugares semelhantes a tronos, vestindo
roupas elegantes e ostentando um ar de nobreza e importância.
— Lá está o teu namorado, Ames! — anunciou a May. Todos se
riram.
Observei o Maxon com atenção. Talvez fosse de certo modo atraente,
mas não como o Aspen. O seu cabelo era cor de mel e tinha olhos
castanhos. Fazia lembrar o verão, coisa que acho que muita gente aprecia. O
seu cabelo era bem curto e estava perfeitamente arranjado, e o fato cinzento
ajustava-se perfeitamente ao seu corpo.
Mas parecia demasiado rígido sentado naquela cadeira e ex‐
tremamente formal. O seu cabelo elegante era excessivamente perfeito e o
seu fato feito por medida estava demasiado engomado. Parecia mais uma
pintura do que uma pessoa. Quase tive pena da rapariga que iria ficar com
ele; provavelmente teria a vida mais chata que se possa imaginar.
Concentrei a atenção na sua mãe. Parecia serena. Também estava
empertigada na sua cadeira, mas não tinha um aspeto gélido. Apercebi-me
então de que, ao contrário do rei e do Príncipe Maxon, ela não crescera no
palácio. Era uma gloriosa Filha de Illéa. Talvez tivesse sido alguém como
eu.
O rei estava já a falar, mas eu tinha de saber:
— Mãe? — sussurrei, tentando não distrair o meu pai.
— Sim?
— A rainha... era o quê? Quero dizer, de que casta era?
A minha mãe sorriu ao notar o meu interesse: — Quatro.
Uma Quatro. Passara a juventude a trabalhar numa fábrica ou numa
loja, ou talvez numa quinta. Perguntei-me como teria sido a sua vida. Será
que tinha uma família numerosa? Provavelmente não tivera de se preocupar
com o que comer enquanto crescia. Será que as suas amigas tinham ficado
com inveja quando fora escolhida? Se eu tivesse amigos realmente
próximos, será que ficariam com inveja de mim?
Mas que estupidez, eu não iria ser escolhida.
Procurei prestar atenção às palavras do rei.
— Esta manhã, outro ataque na Nova Ásia atingiu as nossas bases,
deixando as nossas tropas em ligeira desvantagem. Mas estamos confiantes
de que o recrutamento do próximo mês renovará o ânimo, para não
mencionar os novos reforços para as nossas forças.
Eu odiava a guerra, mas infelizmente o nosso país era jovem e tinha
de se defender de toda a gente. Não era provável que sobrevivêssemos a
outra invasão.
Depois de o rei nos informar sobre o recente ataque a um campo
rebelde, a Equipa das Finanças falou sobre a situação da dívida do país e o
chefe do Comité de Infraestruturas anunciou que planeavam começar a
trabalhar na reconstrução de inúmeras autoestradas daqui a dois anos.
Algumas dessas estradas estavam abandonadas desde a Quarta Guerra
Mundial.
Por fim, a última pessoa, o Mestre-de-Cerimónias, subiu ao palanque:
— Boa noite, senhoras e senhores de Illéa. Como todos sabem, foram
recentemente enviados pelo correio os avisos para participação na Seleção.
Acabo de receber o primeiro lote de inscrições e tenho o prazer de anunciar
que milhares de belas cidadãs de Illéa já colocaram o seu nome no sorteio
para a Seleção!
No canto, o Maxon mudou de posição na cadeira. Estaria a suar?
— Em nome da família real, quero agradecer-vos o vosso entusiasmo
e patriotismo. Com um pouco de sorte, no Ano Novo estaremos a celebrar o
noivado de nosso amado Príncipe Maxon com uma encantadora, talentosa e
inteligente Filha de Illéa!
Os conselheiros ali sentados aplaudiram. O Maxon sorriu, mas não
parecia estar à vontade. Quando os aplausos cessaram, o Mestre-de-
Cerimónias prosseguiu:
— É claro que teremos muitas horas de programação televisiva
dedicadas a conhecer as jovens da Seleção, incluindo transmissões especiais
sobre a sua vida no palácio. Não poderíamos imaginar ninguém melhor do
que o Gavril Fadaye para nos conduzir ao longo desses momentos
emocionantes!
Ouviu-se outra salva de palmas, mas esta veio da minha mãe e da
May. O Gavril Fadaye era uma lenda. Há cerca de vinte anos que
comentava os desfiles da Festa da Gratidão, os espetáculos de Natal e todos
os outros eventos realizados no palácio. Nunca vira uma entrevista com
membros da família real, ou pessoas próximas deles, que não tivesse sido
feita por ele.
— Oh, America, talvez conheças o Gavril! — cantarolou a minha
mãe.
— Lá vem ele! — disse a May, agitando os braços.
De facto, ali estava o Gavril, entrando no palco com o seu fato azul
engomado. Devia ter perto de cinquenta anos e estava sempre impecável.
Enquanto atravessava o palco, a luz refletiu-se no seu alfinete de lapela,
lançando um brilho dourado semelhante ao sinal de forte nas minhas
partituras de piano.
— Boooooooa noite, Illéa! — cantarolou ele. — Tenho de dizer que é
uma grande honra para mim fazer parte da Seleção. Que sorte a minha, vou
conhecer trinta e cinco mulheres lindíssimas! Quem é que não gostaria de
ter o meu emprego! — Piscou o olho para câmara. — Mas antes de
conhecer estas jovens encantadoras, uma das quais será a nossa nova
princesa, tenho o prazer de conversar com o homem do momento, o nosso
Príncipe Maxon.
Ao ouvir isto, o Maxon atravessou o palco alcatifado em direção a
duas cadeiras ali colocadas para ele e para o Gavril. Endireitou a gravata e
ajeitou o fato, como se precisasse de ficar ainda mais elegante.
Cumprimentou o Gavril com um aperto de mão, sentou-se à sua frente e
pegou no microfone. A cadeira tinha altura suficiente para ele poder apoiar
os pés na barra intermédia. Parecia muito mais informal assim.
— É um prazer voltar a vê-lo, Alteza.
— Obrigado, Gavril. O prazer é todo meu. — A voz do Maxon era tão
composta como o resto da sua pessoa. Irradiava formalismo. Torci o nariz
só de pensar em ficar na mesma sala que ele.
— Em menos de um mês, trinta e cinco mulheres irão hospedar-se em
sua casa. Como se sente?
O Maxon riu-se: — Para ser sincero, sinto-me um pouco nervoso.
Imagino que tantas convidadas significarão muito mais barulho, mas,
mesmo assim, estou ansioso para que tudo comece.
— Já perguntou ao seu estimado pai como conseguiu cativar tão bela
esposa no seu tempo?
Tanto o Maxon como o Gavril olharam para o rei e para a rainha,
enquanto a câmara mostrava o casal trocando olhares, de mãos dadas e
sorrindo. Pareciam sinceros, mas como é que poderíamos saber?
— Na realidade, não. Como sabe, a situação na Nova Ásia é cada vez
mais preocupante e temos estado a trabalhar juntos principalmente na
perspetiva militar. Não sobra muito tempo para falarmos de mulheres.
A minha mãe e a May soltaram uma gargalhada. Acho que talvez
fosse engraçado.
— Não temos muito mais tempo, por isso gostaria de lhe fazer uma
última pergunta. Como imagina que seria a mulher perfeita para si?
O Maxon pareceu surpreendido. Era difícil perceber, mas tive a
impressão de que corou.
— Para ser franco, não sei. Acho que essa é a beleza da Seleção. Não
haverá no concurso duas mulheres iguais em aparência, gostos ou
temperamento. E ao longo do processo de as conhecer a todas e conversar
com elas, espero descobrir o que quero. — O Maxon sorriu.
— Obrigado, Alteza. Excelente resposta. E julgo falar por todos em
Illéa ao desejar-lhe boa sorte. — O Gavril estendeu a mão para outro
cumprimento.
— Obrigado — agradeceu o Maxon. A imagem não mudou
imediatamente e pudemos ver o príncipe a olhar para os pais, como se
perguntasse se tinha estado bem. A câmara focou o rosto do Gavril, de
modo que não pudemos saber qual fora a resposta.
— Receio que hoje não tenhamos tempo para mais. Obrigado por
verem o Noticiário Oficial de Illéa e até à próxima semana.
A música do genérico começou a tocar e os créditos desfilaram pelo
ecrã.
— A America e o Maxon de mãos dadas... — cantou a May. Agarrei
numa almofada e atirei-lha, mas não pude conter o riso perante a ideia. O
Maxon era tão empertigado e parado. Era difícil imaginar alguém feliz ao
lado de um tipo tão palerma.
Passei o resto da noite tentando ignorar as provocações da May, até
poder refugiar-me finalmente na solidão do meu quarto. Só a ideia de estar
perto do Maxon Schreave me deixava inquieta. As piadinhas da May
ficaram na minha cabeça a noite inteira e tive dificuldade em adormecer.
Era difícil perceber de onde vinha o barulho que me acordou, mas,
assim que o senti, procurei inspecionar o quarto no mais absoluto silêncio,
no caso de estar ali alguém.
Toc, toc, toc.
Virei-me lentamente para a janela e ali estava o Aspen, a sorrir para
mim. Saí da cama e fui em bicos dos pés até à porta. Fechei-a e tranquei-a à
chave. Voltei para a cama e destranquei e abri a janela com cuidado.
Uma onda de calor, que não tinha nada a ver com o verão, subiu pelo
meu corpo quando o Aspen entrou pela janela e caiu na minha cama.
— O que estás a fazer aqui? — sussurrei, sorrindo na escuridão.
— Precisava de te ver — murmurou ele contra a minha face, enquanto
me envolvia com os braços e me puxava para baixo até estarmos deitados
lado a lado na cama.
— Tenho tanto para te contar, Aspen.
— Chiu, não digas nada. Se alguém ouvir, estamos perdidos. Deixa-
me só olhar para ti.
Obedeci. Fiquei ali, calada e imóvel, enquanto o Aspen me olhava nos
olhos. Uma vez satisfeito, começou a roçar o nariz contra o meu pescoço e
os meus cabelos. E depois as suas mãos subiram e desceram ao longo da
curva da minha cintura até às ancas, uma e outra vez. Senti a sua respiração
ficar cada vez mais ofegante, o que me atraía.
Os seus lábios, escondidos do meu pescoço, começaram a beijar-me.
A minha respiração acelerou. Não consegui evitá-lo. Os lábios dele subiram
pelo meu queixo até à minha boca, silenciando completamente os meus
suspiros. Enrosquei-me contra ele e as nossas carícias apressadas e a
humidade da noite cobriram-nos a ambos de suor.
Um momento roubado.
Por fim, os lábios do Aspen tornaram-se mais lentos, embora eu não
tivesse a mínima vontade de parar. Mas tínhamos de ser espertos. Se aquilo
fosse mais longe, deixando qualquer vestígio, acabaríamos na cadeia.
Era outra das razões pelas quais todos se casavam jovens: esperar era
uma tortura.
— Tenho de ir — sussurrou ele.
— Mas eu quero que fiques. — Os meus lábios roçavam a sua orelha
e eu conseguia sentir novamente o cheiro do seu sabonete.
— America Singer, um dia vais adormecer nos meus braços todas as
noites e acordar com os meus beijos todas as manhãs. E muito mais!
Mordi os lábios só de pensar.
— Mas agora tenho de ir. Estamos a abusar da sorte.
Suspirei e afrouxei o meu abraço. Ele tinha razão.
— Amo-te, America.
— Amo-te, Aspen.
Estes momentos secretos bastavam para me dar forças para enfrentar
tudo o que estava para vir: a deceção da minha mãe quando não fosse
escolhida, os trabalhos que teria de aceitar para ajudar o Aspen a juntar
dinheiro, a explosão que aconteceria quando ele pedisse a minha mão ao
meu pai e todas as outras batalhas que enfrentaríamos depois de casados.
Nada disso importava, desde que tivesse o Aspen.
Capítulo 5

Uma semana depois, cheguei antes do Aspen à casa da árvore.


Deu um pouco de trabalho levar tudo o que queria até lá acima em
silêncio, mas consegui. Enquanto organizava os pratos mais uma vez, ouvi
alguém subir à árvore.
— Buu!
O Aspen sobressaltou-se e depois deu uma gargalhada. Acendi a vela
nova que tinha comprado só para nós, ele aproximou-se para me beijar e,
depois de alguns instantes, comecei a falar sobre tudo o que acontecera
naquela semana.
— Nunca cheguei a contar-te como foi o dia da inscrição — disse,
entusiasmada com as notícias.
— Como foi? A minha mãe disse que estava apinhado.
— Foi uma loucura, Aspen. Devias ter visto o que elas vestiam! E de
certeza que sabes que a escolha não é tão aleatória como dizem. Eu tinha
razão: há raparigas muito mais interessantes do que eu para serem
escolhidas em Carolina, portanto, isto não vai dar em nada.
— Seja como for, obrigado por te inscreveres. Significa muito para
mim. — Os olhos dele continuavam pregados em mim. Nem sequer tinha
ainda olhado em volta da casa da árvore. Absorvia-me, como sempre.
— Bom, a melhor parte é que como a minha mãe não fazia ideia da
promessa que te fiz subornou-me para que me inscrevesse. — Não consegui
esconder um sorriso.
Durante a semana, algumas famílias tinham já começado a dar festas
em honra das filhas, certas de que elas iriam ser escolhidas para a Seleção.
Eu fora chamada para cantar em nada menos do que sete comemorações,
marcando duas por noite, só para receber aqueles pagamentos, e a minha
mãe cumpriu a sua palavra. Era libertador ter o meu próprio dinheiro.
— Subornou-te? Como? — O seu rosto iluminou-se com o
entusiasmo.
— Com dinheiro, claro. Olha, preparei-te um banquete! — Afastei-me
dele e comecei a pegar nos pratos. Tinha cozinhado comida a mais ao
jantar, de propósito, para guardar um pouco para ele, e andava há dias a
fazer bolos. A May e eu sempre tínhamos sido viciadas em doces e ela
estava radiante por eu ter decidido gastar o meu dinheiro deste modo.
— O que é isto tudo?
— Comida. Fui eu que fiz. — Estava toda orgulhosa do meu esforço.
Finalmente, esta noite, o Aspen podia encher a barriga. Mas o sorriso dele
diminuía à medida que reparava em cada prato.
— Aspen, está tudo bem?
— Isto não está certo. — Ele abanou a cabeça e desviou o olhar da
comida.
— O que queres dizer?
— America, sou eu quem tem de cuidar de ti. É humilhante vir até
aqui e ver que fizeste tudo isto para mim.
— Mas eu estou sempre a dar-te comida.
— As tuas sobras. Achas que não vejo a diferença? Não me sinto mal
por comer algo que não queiras. Mas que tu... Eu é que tenho de...
— Aspen, tu estás sempre a dar-me coisas. Tu cuidas de mim. Tenho
todas as minhas moe...
— Moedas? Acha que tocar nesse assunto agora é uma boa ideia?
Sinceramente, America, não sabes como odeio isso? Adorar ouvir-te cantar
e não poder pagar-te como todos os outros?
— Tu nem sequer devias pagar-me! É uma oferta. Tudo o que é meu é
teu também! — Eu sabia que tínhamos de falar baixo, mas nesta altura não
me importava.
— Não sou um pedinte, America. Sou um homem. É minha função
ser aquele que sustenta.
O Aspen enfiou as mãos no cabelo. Eu conseguia sentir a sua
respiração acelerada. Como sempre, estava a pensar no que dizer, mas desta
vez havia algo diferente nos seus olhos; em vez de a sua expressão ficar
mais concentrada, ele parecia mais confuso a cada instante. A minha raiva
passou rapidamente quando o vi naquele estado, parecendo tão perdido.
Senti-me culpada. A minha intenção era mimá-lo e não humilhá-lo.
— Amo-te — sussurrei.
Ele abanou a cabeça:
— Eu também te amo, America. — Mas continuava sem olhar para
mim. Agarrei num dos pães que tinha feito e pu-lo na mão dele. Estava
demasiado esfomeado para não dar uma dentada.
— Não quis magoar-te. Pensei que irias ficar contente.
— Não, Mer, eu adorei. Não posso acreditar que fizeste tudo isto por
mim. É só que... Não sabes como me incomoda não poder fazer o mesmo
por ti. Tu mereces melhor. — Felizmente continuava a comer enquanto
falava.
— Tens de parar de pensar em mim dessa maneira. Quando estamos
juntos, não sou uma Cinco nem tu és um Seis. Somos apenas o Aspen e a
America. Não quero nada neste mundo a não ser tu.
— Mas eu não consigo deixar de pensar assim. — Olhou para mim.
— Foi assim que fui educado. Desde pequeno que ouvia sempre «os Seis
nasceram para servir» e «os Seis não devem ser notados». Ensinaram-me a
ser invisível a vida inteira. — Agarrou com força na minha mão. — Se
ficarmos juntos, Mer, tu também vais ser invisível e não quero isso para ti.
— Aspen, já conversámos sobre isso. Eu sei que as coisas vão ser
diferentes e estou preparada. Não sei como ser mais clara. — Coloquei a
mão sobre o coração dele. — Quando estiveres pronto para pedir, eu estarei
pronta para dizer que sim.
Era assustador expor-me daquela maneira; deixar absolutamente clara
a profundidade dos meus sentimentos. Ele sabia o que eu queria dizer. Mas,
se a minha vulnerabilidade o deixasse mais forte, valia a pena. Os seus
olhos procuraram os meus. Se esperava um sinal de dúvida, estava a perder
tempo. O Aspen era a única certeza na minha vida.
— Não.
— O quê?
— Não. — A palavra era como uma bofetada na cara.
— Aspen?
— Não sei como fui capaz de me iludir pensando que isto podia
funcionar. — Passou de novo as mãos pelo cabelo, como se tentasse tirar da
cabeça todos os pensamentos que já tivera sobre mim.
— Mas tu acabaste de dizer que me amavas.
— E amo, Mer. Esse é o problema. Não quero que sejas igual a mim.
Não consigo suportar a ideia de te ver com fome, com frio ou com medo.
Não quero que sejas uma Seis.
Senti as lágrimas a assomarem-me aos olhos. Ele não estava a falar a
sério. Não podia estar. Mas antes de poder pedir-lhe que retirasse o que
tinha dito, o Aspen já rastejava para sair da casa da árvore.
— Onde... onde é que vais?
— Vou-me embora. Para casa. Desculpa ter-te feito passar por isto,
America, mas agora acabou.
— O quê?
— Acabou. Não vou voltar mais aqui. Não assim.
Comecei a chorar:
— Aspen, por favor. Vamos conversar. Tu só estás chateado.
— Mais chateado do que imaginas, mas não contigo. Não posso fazer
isto, Mer. Não posso.
— Aspen, por favor...
Ele abraçou-me com força e beijou-me — um beijo de verdade —
pela última vez e depois desapareceu na noite. E porque este país é como é,
por causa de todas as regras que nos fazem viver escondidos, nem sequer
pude gritar o nome dele. Não pude dizer que o amava, mais uma vez.
***
À medida que os dias passavam, a minha família notou que eu não
estava bem, mas pensaram que se tratava provavelmente de ansiedade por
causa da Seleção. Mil vezes quis chorar, mas contive-me. Arrastei-me até
sexta-feira, na expectativa de que tudo voltasse ao normal depois de o
Noticiário Oficial divulgar os nomes.
Já tinha imaginado tudo na minha cabeça. Iriam anunciar a Celia ou a
Kamber e a minha mãe ficaria desapontada, mas menos do que se fosse
uma estranha, enquanto o meu pai e a May se sentiriam contentes por elas,
porque as nossas famílias eram próximas. Sabia que o Aspen devia pensar
em mim, tal como eu pensava nele, portanto apostava que apareceria em
minha casa antes mesmo de o programa acabar, implorando perdão e
pedindo-me em casamento. Seria talvez um pouco prematuro, já que nada
estava garantido para as suas irmãs, mas era uma forma de aproveitar a
alegria generalizada do dia. Ajudaria provavelmente a derrubar muitos
obstáculos.
Na minha cabeça, tudo funcionava perfeitamente; todos estavam
felizes...
Faltavam dez minutos para o Noticiário Oficial começar e já
estávamos todos nos nossos lugares. Não devíamos ser os únicos a não
querer perder nem um segundo do anúncio.
— Lembro-me de quando a Rainha Amberly foi escolhida! Ah, eu
sabia desde o início que seria ela. — A minha mãe fazia pipocas, como se
fôssemos ver um filme.
— Participaste no sorteio, mamã? — perguntou o Gerad.
— Não, amor, a mãe tinha dois anos a menos do que a idade mínima
para se poder participar. Mas tive sorte, porque assim pude ficar com o teu
pai. — Ela sorriu e piscou-lhe o olho.
Uau! Devia estar de muito bom humor. Não conseguia lembrar-me da
última vez que vira a minha mãe a demonstrar carinho pelo meu pai.
— A Rainha Amberly é a melhor rainha de sempre. É linda e
inteligente. Sempre que a vejo na televisão, fico com vontade de ser igual a
ela — disse a May com um suspiro.
— É uma boa rainha — acrescentei suavemente.
Finalmente chegaram as oito horas e o emblema nacional de Illéa
apareceu no ecrã, acompanhado da versão instrumental do nosso hino. Eu
estava realmente a tremer? Estava desejosa de que tudo isto terminasse.
O rei surgiu e fez um breve anúncio sobre a guerra. As outras
mensagens também foram curtas. Pareciam estar todos de bom humor.
Suponho que a situação também devia ser empolgante para eles.
Finalmente apareceu o Mestre-de-Cerimónias e apresentou o Gavril,
que se aproximou da família real:
— Boa noite, Majestade — disse, cumprimentando o rei.
— Gavril, é sempre um prazer vê-lo. — O rei parecia quase excitado.
— Ansioso pelo anúncio, Majestade?
— Ah, sim. Ontem, estive na sala onde foram sorteadas algumas das
jovens; são todas encantadoras.
— Então Vossa Majestade já sabe quem são? — exclamou o Gavril.
— Só algumas, só algumas.
— Por acaso Sua Majestade partilhou essa informação com Vossa
Alteza? — disse o Gavril, dirigindo-se ao Maxon.
— De modo nenhum. Irei vê-las ao mesmo tempo que todas as outras
pessoas — respondeu o Maxon. Percebia-se que estava a tentar disfarçar o
seu nervosismo.
Notei que as minhas mãos estavam suadas.
— Majestade... — O Gavril dirigiu-se à rainha. — Algum conselho
para as Selecionadas?
Ela fez o seu sorriso sereno. Não sei como eram as outras mulheres
que tinham concorrido com ela na sua Seleção, mas duvidava que alguma
fosse mais graciosa ou encantadora do que a rainha.
— Aproveitem a vossa última noite como raparigas normais. Amanhã,
independentemente do que acontecer, a vida de todas vós mudará para
sempre. E é um conselho antigo, mas valioso: sejam vocês mesmas.
— Sábias palavras, minha rainha, sábias palavras. E agora vamos
revelar as trinta e cinco jovens escolhidas para a Seleção. Senhoras e
senhores, felicitem comigo as seguintes Filhas de Illéa!
O emblema nacional regressou ao ecrã, enquanto o rosto do Maxon
aparecia num quadradinho no canto superior direito. A ideia era mostrar as
suas reações perante as fotos que iriam surgindo no monitor. Estaria já a
avaliá-las, tal como todos nós em casa.
O Gavril tinha um conjunto de cartões na mão, pronto para ler o nome
das raparigas, cujas vidas, segundo a rainha, estavam prestes a mudar para
sempre. A Seleção começou naquele exato instante.
— Menina Elayna Stoles, de Hansport, Três. — A foto de uma jovem
delicada com pele de porcelana apareceu no ecrã. Parecia uma lady. O
Maxon sorriu animado.
— Menina Tuesday Keeper, de Waverly, Quatro. — Surgiu a fo‐
tografia de uma rapariga sardenta. Parecia mais velha, mais madura. O
Maxon murmurou algo ao rei.
— Menina Fiona Castley, de Paloma, Três. — Uma morena de olhos
flamejantes. Talvez tivesse a minha idade, mas parecia mais... vivida.
Virei-me para a minha mãe e para a May no sofá: — Ela não parece
um pouco...
— Menina America Singer, de Carolina, Cinco.
Olhei imediatamente para a televisão. Ali estava a minha fotografia,
tirada logo depois de ter descoberto que o Aspen estava a juntar dinheiro
para se casar comigo. Parecia radiante, esperançosa, linda. Parecia
apaixonada e algum idiota deve ter achado que era pelo Príncipe Maxon.
A minha mãe gritou junto ao meu ouvido, a May deu um pulo,
espalhando pipocas por todo o lado, o Gerad também ficou entusiasmado e
começou a dançar. O meu pai... é difícil dizer, mas acho que sorriu às
escondidas por trás do livro.
Não vi a expressão no rosto do Maxon. O telefone tocou.
E não parou de tocar durante vários dias.
Capítulo 6

Na semana seguinte, a nossa casa foi invadida por incontáveis


funcionários, para me prepararem para a Seleção. Primeiro veio uma
mulher intragável, que parecia pensar que metade do meu formulário era
mentira, e depois chegou um dos guardas do palácio, que veio definir as
medidas de segurança com os soldados locais e inspecionar a nossa casa.
Aparentemente, eu tinha de me preocupar com possíveis ataques rebeldes
mesmo antes de chegar ao palácio. Que maravilha...
Recebemos dois telefonemas de uma mulher chamada Sílvia, cuja voz
era ao mesmo tempo alegre e profissional, que queria saber se precisávamos
de alguma coisa, mas o meu visitante favorito era um homem magro, de
pera, que veio tirar-me as medidas para o meu novo guarda-roupa. Ainda
não sabia bem o que pensar quanto a ter de passar a usar sempre vestidos
tão pomposos como os da rainha, mas estava ansiosa pela mudança.
O último destes visitantes chegou na quarta-feira à tarde, dois dias
antes da minha partida. Era o responsável por rever todas as regras oficiais
comigo. Era de uma magreza impressionante, com um cabelo preto seboso
penteado para trás e suava constantemente. Assim que entrou em casa,
perguntou se havia algum lugar onde pudéssemos conversar em particular.
Foi a primeira pista de que alguma coisa se passava.
— Bom, podemos ir para a cozinha se não se importar — sugeriu a
minha mãe.
Ele passou um lenço pela cabeça e olhou para a May: — Na verdade,
qualquer lugar serve. Mas acho que talvez seja preferível pedir à sua filha
mais nova que nos deixe a sós.
O que é que ele teria para dizer que a May não podia ouvir?
— Oh, mãe...? — implorou ela, triste com a possibilidade de perder
alguma coisa.
— May, querida, porque não vais pintar um pouco? Não tens prestado
muita atenção ao teu trabalho esta semana.
— Mas...
— Eu vou contigo até a porta, May — propus, vendo os olhos dela
encherem-se de lágrimas.
Quando chegámos ao fim do corredor, onde ninguém podia ouvir-nos,
dei-lhe um abraço apertado.
— Não te preocupes — sussurrei. — Conto-te tudo logo à noite.
Prometo.
Felizmente não me desmascarou, desatando aos pulos como de
costume. Limitou-se a anuir tristemente com a cabeça e foi para o seu
cantinho no estúdio do meu pai.
A minha mãe preparou um chá para o Magricela e sentámo-nos à
mesa da cozinha para conversar. Ele tinha uma pilha de papéis e uma caneta
ao lado de uma pasta com o meu nome. Organizou cuidadosamente as suas
coisas e depois começou a falar:
— Lamento ter de ser tão discreto, mas preciso de mencionar certos
assuntos que não se prestam a ouvidos jovens.
A minha mãe e eu trocámos um olhar rápido.
— Menina Singer, isto pode parecer brutal, mas desde sexta-feira
passada é considerada propriedade de Illéa e, consequentemente, deve
passar a tomar certos cuidados com seu corpo. Tenho aqui diversos
formulários que deve assinar enquanto lhe transmito estas informações. É
meu dever informá-la de que qualquer falta sua no cumprimento destas
regras implicará a sua exclusão imediata da Seleção. Está a compreender?
— Sim — respondi, um pouco desconfiada.
— Muito bem. Comecemos pela parte fácil. Aqui tem umas
vitaminas. Visto que é uma Cinco, parto do pressuposto de que nem sempre
terá tido acesso a uma alimentação adequada. Deve tomar um comprimido
destes por dia. Aqui, está por sua conta, mas no palácio haverá alguém para
a ajudar. — Entregou-me um frasco grande juntamente com um formulário
para eu assinar em como o tinha recebido.
Tive de me conter para não rir. Quem precisa de ajuda para tomar
vitaminas?
— Tenho comigo o resultado dos exames feitos pelo seu médico. Não
há nada com que se preocupar. Parece estar de excelente saúde, embora ele
me tenha dito que a menina não tem dormido bem. É verdade?
— Mmh, bom... É difícil dormir com tanta excitação. — Era quase
verdade. Os dias eram autênticos corrupios de preparativos para a vida no
palácio, mas à noite, quando estava sossegada, pensava no Aspen. Era a
única altura em que não conseguia evitar que ele me povoasse os
pensamentos. Surgia simplesmente na minha cabeça e parecia não querer
sair.
— Entendo. Bom, posso pedir para lhe entregarem alguns calmantes
hoje, se precisar. Queremos que esteja bem repousada.
— Não, eu não...
— Sim — interrompeu a minha mãe. — Desculpa, querida, mas
pareces exausta. Por favor, arranje-lhe os calmantes.
— Sim, minha senhora. — O Magricela fez outra anotação na minha
ficha. — Continuando... Bom, sei que se trata de um assunto muito pessoal,
mas fui obrigado a falar sobre isto com todas as participantes, portanto não
se acanhe. — Fez uma pausa. — Preciso que me confirme que é, de facto,
virgem.
Os olhos da minha mãe quase que lhe saltaram das órbitas. Então era
por isto que a May tivera de sair.
— Está a falar a sério? — Não podia acreditar que mandassem alguém
perguntar aquilo. Pelo menos, podiam ter enviado uma mulher...
— Temo que sim. Se não o for, precisamos de saber imediatamente.
Argh! E logo em frente da minha mãe: — Eu conheço a lei, senhor.
Não sou estúpida. Claro que sou virgem.
— Pense bem. Se vier a descobrir-se que está a mentir...
— Por amor de Deus! A America nunca teve sequer um namorado! —
exclamou a minha mãe.
— É verdade. — Aproveitei a deixa na esperança de encerrar o
assunto.
— Muito bem. Só preciso que assine este formulário para confirmar a
sua declaração.
Revirei os olhos, mas obedeci. Estava grata por Illéa existir, já que
estas terras tinham estado à beira de se tornarem um monte de escombros,
mas estas regras começavam a sufocar-me, como se fossem correntes
invisíveis que me tolhiam os movimentos. Leis sobre quem podíamos amar,
formulários sobre a virgindade; era exasperante.
— Preciso de rever as regras consigo. São muito simples e não terá
dificuldade em cumpri-las. Caso tenha alguma dúvida, basta dizer.
Ele ergueu os olhos da sua pilha de papéis e encarou-me.
— Está bem — murmurei.
— Não pode deixar o palácio por sua vontade, terá de ser dispensada
pelo príncipe. Nem mesmo o rei ou a rainha podem obrigá-la a sair. Eles
podem dizer ao príncipe que não a aprovam, mas todas as decisões sobre
quem sai e quem fica são dele.
»Não existe um limite de tempo predeterminado para a Seleção. Pode
acabar ao fim de alguns dias ou durar anos.
— Anos? — perguntei, horrorizada. A ideia de ficar tanto tempo
longe deixava-me inquieta.
— Não se preocupe. E improvável que o príncipe permita que demore
tanto. Este e um momento em que precisa de demonstrar capacidade de
decisão e não lhe é favorável deixar que a Seleção se arraste por muito
tempo. Mas se ele decidir seguir por esse caminho, a menina terá de
permanecer no palácio o tempo que for necessário até o príncipe tomar a
sua decisão.
Devo ter deixado o receio transparecer no meu rosto, porque a minha
mãe inclinou-se e fez-me uma festa na mão. O Magricela, contudo,
permaneceu impassível.
— Não é a menina que determina os seus encontros com o príncipe.
Se ele o desejar, procurá-la-á para encontros a sós. Se estiver num evento
social onde ele se encontre presente, é diferente, mas não deve dirigir-se a
ele sem ser convidada.
»Embora ninguém espere que seja amiga das outras trinta e quatro
candidatas, são proibidas discussões e sabotagens. Se for descoberta a
agredir, provocar, roubar uma outra candidata, ou a fazer qualquer outra
coisa que possa prejudicar a relação desta com o príncipe, ele próprio
decidirá se a menina deve ser imediatamente dispensada ou não.
»A sua única relação romântica será com o Príncipe Maxon. Se for
apanhada a escrever cartas de amor a alguém no exterior, ou iniciar um
relacionamento amoroso com outra pessoa no palácio, tais atos serão
considerados traição e são puníveis com a pena de morte.
A minha mãe revirou os olhos quando ouviu isto, embora fosse talvez
a única regra que me preocupava.
— Se for descoberta a violar qualquer lei escrita de Illéa, será punida
de acordo com o crime cometido. O seu estatuto de Selecionada não a
coloca acima da lei.
»Não poderá usar roupas nem consumir alimentos que não lhe tenham
sido especificamente disponibilizados pelo pessoal do palácio. Trata-se de
uma medida de segurança, que será rigorosamente observada.
»Às sextas-feiras, estará presente nas emissões do Noticiário Oficial.
Em determinadas alturas, mas sempre com aviso prévio, existirão câmaras
ou fotógrafos no palácio. Deverá ser educada e permitir-lhes que
testemunhem o seu dia-a-dia com o príncipe.
»A sua família será recompensada por cada semana que passar no
palácio; entregar-vos-ei o primeiro cheque antes de sair. Além disso, no
caso de ser dispensada, ser-lhe-ão disponibilizados assistentes para ajudá-la
a adaptar-se à vida após a Seleção. A sua assistente auxiliá-la-á com os seus
preparativos finais antes de ir para o palácio, bem como a encontrar
posteriormente uma nova casa e um novo emprego.
»Caso consiga ficar entre as dez melhores candidatas, será con‐
siderada como pertencente à Elite. Assim que atingir esse estatuto, deverá
aprender os deveres e as funções específicas que poderá vir a ter como
princesa. Não está autorizada a procurar informação sobre esses
pormenores antes dessa altura.
»A partir deste momento, pertencerá à casta Três.
— Três? — exclamámos a minha mãe e eu em uníssono.
— Sim. Depois da Seleção, muitas jovens têm dificuldade em
regressar à sua vida anterior. As das castas Dois e Três adaptam-se bem,
mas as Quatro e inferiores costumam ter problemas. A menina é a partir
deste momento uma Três, mas a sua família permanece na casta Cinco.
Caso vença, serão todos elevados a Um, como membros da família real.
— Um. — A palavra escapou suavemente dos lábios da minha mãe.
— Caso chegue ao final da Seleção, casar-se-á com o Príncipe Maxon
e será coroada Princesa de Illéa, assumindo todos os direitos e
responsabilidades correspondentes ao título. Compreende?
— Sim. — Apesar da enormidade que implicava, essa era a parte mais
fácil de suportar.
— Muito bem. Agradeço que assine este formulário, indicando que
ouviu todas as regras oficiais. E, Sra. Singer, peço-lhe que assine este
comprovativo de que recebeu o cheque, por favor.
Não vi a quantia, mas fosse qual fosse fez com que os olhos da minha
mãe se enchessem de alegria. A ideia de partir destroçava-me, mas tinha a
certeza de que, mesmo que regressasse no dia seguinte, só aquele cheque já
nos proporcionava dinheiro suficiente para um ano bastante confortável. E
quando voltasse, todos iriam querer que cantasse para eles; teria bastante
trabalho. Mas será que seria autorizada a cantar enquanto Três? Se tivesse
de escolher uma das carreiras disponíveis para essa casta, acho que gostaria
de ensinar. Talvez assim, pelo menos, pudesse ajudar outros a aprender
música.
O Magricela reuniu os papéis e levantou-se para se ir embora,
agradecendo-nos o tempo dispensado e o chá. Ainda tinha de lidar com
mais um funcionário antes de partir, a minha assistente, a pessoa que me
ajudaria a ir de casa até à receção de despedida e depois para o aeroporto. E
depois... depois, ficaria sozinha.
O nosso hóspede pediu que o acompanhasse até à porta. A minha mãe
concordou, pois queria começar a preparar o jantar. Não me agradava a
ideia de ficar a sós com ele, mas o percurso não era longo.
— Mais uma coisa... — disse o Magricela, colocando uma das mãos
na porta. — Não é exatamente uma regra, mas seria imprudente ignorá-la.
Quando for convidada a fazer alguma coisa com o Príncipe Maxon, não
deve recusar. Não importa o que seja: jantar, sair, beijos... mais do que
beijos... o que for. Não se recuse.
— Desculpe? — Estaria este homem, o mesmo que tinha acabado de
me fazer assinar uma declaração afirmando a minha pureza, a sugerir que
eu devia deixar o Maxon fazer comigo o que quisesse?
— Sei que parece... indigno. Mas não lhe compete rejeitar o príncipe
sob nenhuma circunstância. Boa noite, menina Singer.
Senti nojo, revolta. Os regulamentos, a lei de Illéa, mandavam que
esperássemos até ao casamento. Era uma fornia eficaz de conter as doenças
e ajudava a manter intacto o sistema de castas. Os filhos ilegítimos eram
abandonados para se tornarem Oitos e a pena para quem fosse descoberto
— através de uma gravidez ou por denúncia — era a cadeia. Bastava
alguém ter uma suspeita e podíamos passar umas noites na prisão. É
verdade, a lei impedira-me de ter relações com a única pessoa que amava, o
que me incomodara, mas agora que o Aspen e eu tínhamos terminado,
estava feliz por ter sido obrigada a guardar-me.
Fiquei furiosa. Não tinha acabado de assinar um documento dizendo
que seria punida se desrespeitasse as leis de Illéa? Ele tinha dito que eu não
estava acima das leis, mas aparentemente o príncipe estava. Senti-me suja,
mais baixa do que um Oito.
***
— America, querida, é para ti — cantarolou a minha mãe. Eu ouvira a
campainha, mas não sentia pressa nenhuma de ir abrir a porta. Se fosse mais
alguém a pedir um autógrafo, acho que não aguentava.
Percorri o corredor e virei a esquina. Ali, com as mãos cheias de
flores, estava o Aspen:
— Olá, America.— A sua voz era contida, quase profissional.
— Olá, Aspen. — A minha era fraca.
— As flores são da Kamber e da Célia. Queriam desejar-te boa sorte.
— Ele aproximou-se e entregou-me as flores. Uma oferta das suas irmãs,
não dele.
— Mas que coisa tão simpática! — exclamou a minha mãe. Quase me
esquecera de que ela estava na sala.
— Aspen, ainda bem que estás aqui. — Tentei soar tão distante quanto
ele. — Virei o meu quarto do avesso quando estava a fazer as malas. Podes
ajudar-me a limpá-lo?
Com a minha mãe ali, ele tinha de aceitar. Regra geral, os Seis não
recusavam trabalho. Éramos semelhantes nesse aspeto.
Ele suspirou e assentiu com a cabeça.
O Aspen seguiu-me a certa distância até ao quarto. Lembrei-me de
quantas vezes tinha desejado isto: que o Aspen entrasse em minha casa e
viesse até ao meu quarto. Poderiam as circunstâncias ser piores?
Abri a porta do quarto e parei à entrada. O Aspen soltou uma
gargalhada:
— Foi um cão que fez as tuas malas?
— Cala-te! Tive alguns problemas para encontrar o que queria. —
Apesar de tudo, sorri.
Ele começou a trabalhar, endireitando as coisas e dobrando as roupas.
Eu ajudava, claro.
— Não vais levar nenhuma destas roupas? — murmurou ele.
— Não. A partir de amanhã, eles é que me vestem.
— Oh. Uau!
— As tuas irmãs ficaram desapontadas?
— Não, nada disso. — Ele abanou a cabeça, incrédulo. — Assim que
viram a tua cara, a casa inteira explodiu de alegria. Gostaram sempre muito
de ti, especialmente a minha mãe.
— Adoro a tua mãe. Foi sempre uma simpatia comigo.
Passaram-se alguns minutos em silêncio, enquanto o meu quarto
voltava lentamente ao normal.
— A tua fotografia... — começou ele. — Estavas linda.
Doía ouvi-lo dizer que eu estava linda. Não era justo. Não, depois de
tudo o que ele tinha feito.
— Era para ti — sussurrei.
— O quê?
— É que... pensava que irias pedir-me em casamento em breve. —
Tinha a voz embargada.
O Aspen ficou calado por alguns instantes, escolhendo as palavras.
— Tinha andado a pensar nisso, mas já não importa.
— Importa, sim. Porque não me disseste?
Ele esfregou o pescoço, enquanto decidia o que dizer:
— Estava à espera.
— À espera de quê? — Do que é que poderia estar à espera?
— Do recrutamento.
Esse era realmente um problema. Em Illéa, todos os rapazes podiam
ser recrutados a partir dos dezanove anos e era difícil decidir se preferiam
ser escolhidos ou não. Os soldados eram recrutados aleatoriamente duas
vezes por ano, a fim de se poderem apanhar todos os potenciais candidatos
num intervalo de seis meses após o seu aniversário, e serviam desde os
dezanove até aos vinte e três anos. E a data do próximo recrutamento
aproximava-se.
Tínhamos conversado sobre isso, mas não de fornia realista. Acho que
pensávamos que se ignorássemos o recrutamento, o recrutamento também
nos ignoraria.
O recrutamento era bom, por um lado, porque os soldados tornavam-
se automaticamente Dois e o Estado garantia treino e um ordenado para o
resto da vida. A desvantagem era que um soldado nunca sabia para onde
iria, apenas tinha a certeza de que nunca ficaria na sua província de origem.
Partia-se do pressuposto de que um militar teria tendência para ser mais
tolerante com as pessoas que conhecia, portanto, podia ir parar ao palácio
ou à força de polícia local de outra província. Ou podia acabar no exército,
enviado para a guerra. Poucos homens mandados para o campo de batalha
voltavam para casa.
Se um homem não era casado antes do recrutamento, quase sempre,
esperava até voltar. Na melhor das hipóteses, ficaria quatro anos longe da
mulher; na pior, ela poderia ficar viúva ainda jovem.
— Eu... queria poupar-te a isso — murmurou ele.
— Compreendo.
Ele endireitou-se, tentando mudar de assunto: — Então, o que vais
levar contigo?
— Uma muda de roupa para quando acabarem por me mandar
embora. Algumas fotografias e livros... Disseram-me que não vou precisar
dos meus instrumentos. Tudo o que eu quiser estará lá. Portanto, vou só
levar aquela malinha.
O quarto estava agora em ordem e, por algum motivo, a mochila
parecia enorme. As flores que ele tinha trazido pareciam tão coloridas na
minha secretária, ao lado dos meus pertences deslavados. Ou talvez tudo
parecesse simplesmente ter perdido a cor... agora que tudo terminara.
— Não é muito — comentou ele.
— Nunca precisei de muito para ser feliz. Pensei que soubesses isso.
Ele fechou os olhos: — Chega, America. Tomei a decisão certa.
— A decisão certa? Aspen, tu fizeste-me acreditar que éramos
capazes. Fizeste-me amar-te. E depois convenceste-me a entrar na porcaria
deste concurso. Sabes que estão a enviar-me para ser praticamente um dos
brinquedinhos do príncipe?
Ele olhou de imediato para mim: — O quê?
— Não lhe posso recusar nada. Nada mesmo.
O Aspen pareceu ficar transtornado, furioso. Cerrou os punhos:—
Mesmo... mesmo que ele não queira casar contigo... pode...?
— Sim.
— Desculpa. Não sabia. — Ele respirou fundo algumas vezes. — Mas
se ele te escolher... isso será bom. Mereces ser feliz.
Não aguentei mais. Esbofeteei-o. — És um idiota! — sussurrei com
força. — Odeio o príncipe! Amava-te a ti! Eras tu quem eu queria! Tudo o
que sempre quis eras tu!
Os olhos dele marejaram-se, mas não me importei. O Aspen tinha-me
magoado muito, agora era a minha vez.
— É melhor eu ir — disse, dirigindo-se para a porta.
— Espera. Ainda não te paguei.
— America, não precisas de me pagar. — Ele virou-se novamente
para sair.
— Aspen Leger, não te atrevas a mexer-te! — A minha voz soou
feroz. Ele parou, prestando-me finalmente atenção.
— Bom treino para quando fores Um. — Se não fosse a expressão dos
seus olhos, teria achado que era uma piada e não um insulto.
Limitei-me a abanar a cabeça e dirigi-me à secretária. Agarrei em todo
o dinheiro que ganhara sozinha, até ao último cêntimo, e coloquei-o nas
mãos dele.
— America, não vou aceitar isto.
— Vais, sim! Eu não preciso e tu, sim. Se algum dia me amaste
mesmo, vais aceitar. Será que o teu orgulho não fez já o suficiente por nós?
— Senti uma parte do Aspen desistir. Ele parou de argumentar.
— Está bem.
— E toma. — Enfiei a mão atrás da cama e tirei o meu frasquinho
com as moedas. Despejei-as todas nas mãos dele. Uma moeda rebelde, que
devia estar peganhenta, ficou colada no fundo do frasco. — Foram sempre
tuas. Usa-as.
Agora já não tinha mais nada dele. E assim que gastasse aqueles
cêntimos em desespero, também ele não teria mais nada meu. Senti a
mágoa crescer. Os meus olhos encheram-se de lágrimas e respirei fundo
para conter os soluços.
— Desculpa, Mer. Boa sorte. — Ele meteu o dinheiro e as moedas nos
bolsos e saiu a correr.
Não era assim que pensei que fosse chorar. Esperava soluços enormes
e estridentes e não pequenas lágrimas vagarosas.
Ia colocar o frasco numa prateleira quando reparei novamente na
moeda. Enfiei o dedo no frasco e consegui soltá-la. Chocalhou sozinha
contra o vidro. Era um som vazio e podia senti-lo ecoar no meu peito.
Sabia, para o bem e para o mal, que não estava realmente livre do Aspen.
Ainda não. E talvez nunca estivesse. Abri a mochila, pus o frasco lá dentro
e fechei-a.
A May esgueirou-se para o meu quarto. Tomei um daqueles calmantes
idiotas e dormi abraçada a ela, sentindo-me finalmente anestesiada.
Capítulo 7

Na manhã seguinte, vesti o uniforme das Selecionadas: calças pretas,


camisa branca e a flor da minha província — um lírio — no cabelo. Podia
escolher os sapatos. Escolhi umas sabrinas vermelhas gastas. Parecia-me
que devia deixar bem claro desde o princípio que não tinha nascido para ser
princesa.
Devíamos partir em breve para a praça. Cada uma das Selecionadas
iria ter, hoje, uma cerimónia de despedida na sua província, embora eu não
estivesse nada ansiosa pela minha — todas aquelas pessoas a olhar para
mim, enquanto me limitava a estar ali de pé. Logo para começar, a situação
parecia-me ridícula por ter de ser levada de carro até ao local, a uns meros
três quilómetros, por razões de segurança.
Comecei o dia pouco à vontade. A Kenna veio despedir-se de mim
com o James, o que era simpático da parte dela, já que estava grávida e
cansada. O Kota também veio, embora a sua presença provocasse mais
tensão do que descontração. Enquanto percorríamos o curto caminho entre a
minha casa e o carro que nos fora disponibilizado, o Kota era o mais lento,
deixando que os poucos fotógrafos e fãs o vissem bem. O meu pai limitou-
se a abanar a cabeça e mantivemo-nos todos calados no carro.
A May era o meu único consolo. Agarrou-me na mão e procurou
transmitir-me um pouco do seu entusiasmo. Ainda estávamos de mãos
dadas quando cheguei à praça a abarrotar de gente. Parecia que todos os
habitantes da província da Carolina tinham vindo despedir-se de mim, ou
simplesmente ver qualquer era o motivo de tanta euforia. Do alto do
palanque onde me encontrava, podia ver aquela enorme massa humana de
olhos pregados em mim.
De pé na plataforma, conseguia ver as fronteiras entre as castas. A
Margareta Stines era uma Três e, tal como os seus pais, fuzilava-me com o
olhar. A Tenile Digger era uma Sete e atirava-me beijos. As castas
superiores olhavam para mim como se lhes tivesse roubado alguma coisa,
enquanto os Quatro e os das outras abaixo torciam por mim — a rapariga
comum que fora elevada. Tomei consciência do que significava para
aquelas pessoas: era como se representasse algo para todos.
Tentei concentrar-me naqueles rostos, mantendo a cabeça erguida.
Estava determinada a fazer isto bem. Seria a melhor de todos nós, a Mais
Elevada dos Inferiores. Isso dava-me um propósito: America Singer, a
campeã das castas inferiores.
O Presidente da Câmara discursava com grandes floreados:
— E Carolina vai torcer pela bela filha de Magda e Shalom Singer, a
nova Lady America Singer!
A multidão aplaudia e incentivava. Alguns atiravam flores.
Deixei que o som me envolvesse por um instante, sorrindo e acenando
para todos. Depois, voltei a observar a multidão, mas desta vez com um
objetivo diferente.
Queria ver o rosto dele mais uma vez, se possível, mas não sabia se
iria aparecer. No dia anterior, dissera-me que estava linda, mas a sua atitude
fora ainda mais distante e reservada do que na casa da árvore. Eu sabia que
estava tudo terminado, mas quem ama uma pessoa durante dois anos não a
esquece de um dia para o outro.
Precisei de inspecionar a multidão algumas vezes, mas encontrei-o. E
desejei imediatamente não o ter visto. O Aspen estava com a Brenna Butler
à sua frente, com os braços displicentemente colocados à volta da cintura
dela e sorrindo.
Talvez algumas pessoas conseguissem esquecer de um dia para o
outro.
A Brenna era uma Seis e tinha mais ou menos a minha idade. Era
bonita, acho eu, embora não se parecesse nada comigo. Suponho que seria
ela a ter o casamento e a vida para a qual ele tinha poupado comigo. E,
aparentemente, o recrutamento já não o incomodava assim tanto. Ela sorriu-
lhe e voltou para junto da sua família.
Será que ele sempre tinha gostado dela? Seria ela a rapariga que ele
via todos os dias, enquanto eu era aquela que o alimentava e o cobria de
beijos uma vez por semana? Ocorreu-me que talvez todo aquele tempo que
ele omitia durante as nossas conversas furtivas não fosse apenas composto
por longas e aborrecidas horas a verificar inventários.
Estava demasiado furiosa para chorar.
Além disso, tinha admiradores aqui que queriam a minha atenção.
Assim, sem que o Aspen percebesse que o tinha visto, virei-me novamente
para aqueles rostos entusiasmados. Pus de novo um sorriso na cara, maior
do que nunca, e comecei a acenar. O Aspen não teria o prazer de voltar a
partir-me o coração. Estava ali por causa dele e agora iria aproveitar esse
facto.
— Senhoras e senhores, queiram juntar-se a mim na despedida a
America Singer, a nossa Filha de Illéa favorita! — exclamou o Presidente
da Câmara. Atrás de mim, uma pequena banda tocava o hino nacional.
Mais aplausos, mais flores. De repente, a voz do Presidente da
Câmara soou junto ao meu ouvido:
— Gostaria de dizer algumas palavras, minha querida?
Não sabia como recusar sem ser rude: — Obrigada, mas sinto-me tão
emocionada que acho que não seria capaz.
Ele envolveu as minhas mãos nas suas: — Claro, minha querida. Não
se preocupe. Eu trato de tudo. No palácio, irão prepará-la para este tipo de
situações. Vai precisar.
O Presidente da Câmara falou então à multidão sobre as minhas
qualidades, mencionando sub-repticiamente que, para uma Cinco, eu era
muito bonita e inteligente. Não parecia ser má pessoa, mas, às vezes, até os
membros mais simpáticos das classes superiores eram condescendentes.
Vi o rosto do Aspen mais uma vez, enquanto percorria a multidão com
os olhos. Parecia sofrer. Era o extremo oposto da expressão que exibira com
a Brenna uns minutos antes. Mais uma tática? Desviei o olhar.
O Presidente da Câmara terminou de falar, eu sorri e todos aplaudiram
como se ele tivesse acabado de pronunciar o discurso mais inspirador da
História da Humanidade.
E, de repente, era altura de dizer adeus. A Mitsy, a minha assistente,
pediu-me que fizesse as minhas despedidas de modo rápido e discreto e
depois ela acompanhar-me-ia até ao carro que iria levar-me ao aeroporto.
O Kota deu-me um abraço e disse que estava orgulhoso de mim.
Depois, sem grande subtileza, pediu-me que mencionasse a sua arte ao
Príncipe Maxon. Livrei-me daquele abraço o mais educadamente que
consegui.
A Kenna chorava.
— Já mal te vejo agora. O que vou fazer quando te fores embora? —
perguntou, entre lágrimas.
— Não te preocupes. Em breve estarei de volta.
— Ah, sim, claro! És a rapariga mais bela de Illéa. Ele vai apaixonar-
se por ti!
Por que razão é que toda a gente achava que tudo se resumia à beleza?
Talvez assim fosse. Talvez o Príncipe Maxon não precisasse de uma esposa
com quem conversar, mas apenas de alguém com boa aparência. Tremi
literalmente ao pensar que esse poderia ser o meu futuro. Mas, entre as
Selecionadas, havia raparigas muito mais atraentes do que eu.
Era difícil abraçar a Kenna, com a sua barriga de grávida pelo meio,
mas lá conseguimos. O James, que eu não conhecia assim tão bem, também
me abraçou. Depois, foi a vez do Gerad.
— Sê um bom menino, está bem? Experimenta o piano. Aposto que és
ótimo nisso. Quero que me contes tudo quando voltar.
O Gerad apenas assentiu com a cabeça, subitamente triste. Envolveu-
me com os seus bracinhos.
— Adoro-te, America.
— Também te adoro. Não fiques triste. Daqui a pouco, estou em casa.
Ele acenou de novo, mas cruzou os braços e fez beicinho. Não fazia
ideia de que fosse reagir assim à minha partida. A May era o oposto
completo. Dava pulinhos de alegria, completamente excitada:
— Oh, America, vais ser uma princesa! Eu sei que vais!
— Ah, cala-te! Preferia mil vezes ser uma Oito e ficar com vocês. Sê
uma boa menina por mim e trabalha bastante.
Ela assentiu com a cabeça e deu mais uns pulinhos. Então chegou a
vez do meu pai. Estava quase a chorar.
— Paizinho, não chores! — pedi, caindo-lhe nos braços.
— Ouve-me, pequenina. Quer ganhes ou percas, serás sempre uma
princesa para mim.
— Oh, paizinho... — Comecei finalmente a chorar. Foi o que bastou
para soltar o medo, a tristeza, a preocupação e o nervosismo — aquela frase
que dizia que nada daquilo era importante.
Se eu voltasse usada e rejeitada, ele continuaria a ter orgulho em mim.
Ser assim tão amada era um peso demasiado grande. Em breve iria
estar rodeada por filas de guardas no palácio, mas não podia imaginar um
lugar mais seguro do que entre os braços do meu pai. Afastei-me e virei-me
para abraçar a minha mãe.
— Faz tudo o que te mandarem. Procura parar de amuar e sê feliz.
Porta-te bem. Sorri. Escreve-nos. Ah, sempre soube que irias ser especial.
A intenção dela era carinhosa, mas não era o que eu precisava de
ouvir. Gostaria que me tivesse dito que Já era especial para ela, tal como
para o meu pai, mas acho que nunca iria parar de querer mais para mim,
mais de mim. Talvez todas as mães fossem assim.
— Lady America, está pronta? — perguntou a Mitsy.
Limpei rapidamente as lágrimas, de costas para a multidão.
— Sim. Estou pronta.
A minha mala estava à minha espera dentro do carro branco e
brilhante. Este era o momento. Aproximei-me das escadas no canto do
palanque.
— Mer!
Virei-me. Reconheceria aquela voz em qualquer lado.
— America!
Procurei e descobri o Aspen a acenar de braços no ar. Furava pelo
meio da multidão e as pessoas protestavam contra os seus empurrões nada
educados.
Os nossos olhares encontraram-se.
Ele parou e encarou-me. Não consegui ler a sua expressão.
Preocupação? Arrependimento? De qualquer modo, era demasiado tarde.
Abanei a cabeça. Estava cansada dos seus jogos.
— Por aqui, Lady America — indicou-me a Mitsy do fundo das
escadas. Demorei um breve segundo a assimilar o meu novo nome.
— Adeus, minha querida! — gritou a minha mãe.
E fui levada dali.
Capítulo 8

Fui a primeira a chegar ao aeroporto, sentindo-me aterrorizada. A


alegria esfuziante da multidão desaparecera e debatia-me agora com a
terrível experiência de voar. Ia viajar com três outras Selecionadas e
procurei controlar o meu nervosismo; não queria de modo nenhum ter um
ataque de pânico à frente delas.
Já tinha decorado os nomes, os rostos e as castas de todas as
Selecionadas. Primeiro, como exercício terapêutico, uma forma de me
acalmar. Costumava fazer o mesmo com escalas musicais e fragmentos de
cultura geral. No início, procurara rostos amigáveis, raparigas com quem
pudesse conversar enquanto estivesse no palácio. Nunca tivera uma
verdadeira amiga. Passara a maior parte da infância a brincar com a Kenna
e o Kota, enquanto a minha mãe se encarregava de toda a minha educação
escolar, e nunca tinha trabalhado com mais ninguém além dela. Quando os
meus irmãos mais velhos saíram de casa, voltei a minha atenção para a May
e o Gerad. E para o Aspen...
Só que o Aspen e eu nunca tínhamos sido apenas amigos; apaixonara-
me por ele desde o primeiro momento em que verdadeiramente o vi.
E agora ele andava de mãos dadas com uma outra rapariga.
Ainda bem que estava sozinha. Não teria conseguido lidar com as
lágrimas em frente das outras raparigas. Doía. Tudo em mim doía. E não
havia nada que pudesse fazer.
Como é que fora parar ali? Um mês antes, estava cheia de certezas em
relação a tudo na minha vida e, agora, todas as coisas que me eram
familiares tinham desaparecido. Uma casa nova, uma casta nova, uma vida
nova. E tudo por causa de um pedaço de papel idiota e de uma fotografia.
Queria sentar-me e chorar, lamentar todas as coisas que tinha perdido.
Questionei-me se alguma das outras raparigas também estaria triste
hoje. Acho que deveriam estar todas a comemorar. E eu também precisava
de, pelo menos, fingir que o mesmo se passava comigo, já que o país inteiro
estaria a olhar para nós.
Preparei-me mentalmente para lidar com tudo o que estava para vir e
incentivei-me a ser corajosa. Iria enfrentar o que quer que acontecesse. E
quanto a tudo o que deixava para trás, decidi que faria exatamente isso:
deixá-lo-ia para trás. O palácio seria o meu refúgio. Nunca mais pensaria
nele ou mencionaria o seu nome. Ele não tinha autorização para vir comigo.
Esta era a minha própria regra para esta pequena aventura.
Acabara.
Adeus, Aspen.
***
Cerca de meia hora depois, duas raparigas de camisa branca e calças
pretas, tal como as minhas, entraram pela porta com as suas próprias
assistentes transportando as suas malas. Ambas sorriam, confirmando a
minha teoria de que seria provavelmente a única Selecionada deprimida.
Era a altura de cumprir a minha própria promessa. Enchi-me de
coragem e levantei-me para as cumprimentar:
— Olá! — disse, num tom animado. — Sou a America.
— Eu sei! — disse a rapariga da direita, uma loira de olhos castanhos.
Reconheci-a imediatamente como sendo a Marlee Tames, de Kent. Uma
Quatro. Ela ignorou a minha mão estendida e avançou para me dar um
abraço.
— Oh! — deixei escapar. Não esperava por aquilo. Embora a Marlee
fosse uma das raparigas cujo rosto me parecera sincero e simpático, a minha
mãe passara a semana anterior a dizer-me para encarar todas estas raparigas
como inimigas e essa sua atitude agressiva tinha-me contagiado. Portanto,
aqui estava eu, esperando quando muito um cumprimento cordial de boas-
vindas por parte de raparigas que estariam preparadas para lutar comigo até
à morte por um homem que eu não queria e, em vez disso, recebi um
abraço.
— Chamo-me Marlee e esta é a Ashley. — Sim, a Ashley Brouillette,
de Allens, uma Três. Também tinha cabelo loiro, mas muito mais claro do
que o da Marlee, e os seus olhos eram muito azuis, dando ao seu rosto
pacífico um toque delicado. Parecia frágil ao lado da Marlee.
Eram ambas do Norte e talvez por isso tivessem chegado juntas. A
Ashley esboçou um leve aceno e sorriu. Nada mais. Não sei se era apenas
timidez ou se estava já a tentar descobrir quais as nossas intenções. Ou
talvez se devesse ao facto de ser uma Três por nascimento e, portanto, sabia
melhor como se comportar.
— Adoro o teu cabelo! — exclamou a Marlee, extasiada. — Quem me
dera ter nascido ruiva. Faz-te parecer tão viva. Ouvi dizer que os ruivos têm
mau génio. É verdade?
Apesar do meu péssimo dia, a atitude da Marlee era tão animada que
não pude deixar de sorrir: — Acho que não. Quero dizer, eu posso ser
difícil às vezes, mas a minha irmã também é ruiva e é um doce de pessoa.
Depois, começámos a conversar agradavelmente sobre as coisas que
nos irritavam e as que nos deixavam sempre de bom humor.
A Marlee gostava de filmes e eu também, embora raramente
conseguisse ir ver algum. Falámos sobre os atores que achávamos
irresistíveis, o que era um pouco estranho já que, afinal, estávamos ali para
sermos as namoradas do Maxon. A Ashley ria-se de vez em quando e nada
mais. Se alguém lhe perguntava alguma coisa, dava uma resposta rápida e
exibia novamente o seu sorriso reservado.
A Marlee e eu entendemo-nos logo bem, o que me deu esperanças de
talvez poder sair de toda esta situação com uma amiga.
Embora tenhamos conversado durante quase meia hora, o tempo
passou a voar. E não teríamos parado de falar se não fosse pelo bater
audível de saltos altos contra o chão. Virámos as cabeças ao mesmo tempo
e consegui ouvir a boca da Marlee abrir-se com um estalo.
Uma morena de óculos escuros caminhava na nossa direção. Usava
uma margarida no cabelo, mas esta tinha sido tingida de vermelho para
combinar com o seu batom. As suas ancas balouçavam enquanto se movia e
o som dos seus saltos de 7,5 centímetros acentuava o seu andar confiante.
Ao contrário da Marlee e da Ashley, não sorriu.
Mas não era por estar infeliz. Não, ela estava concentrada. A sua
entrada fora pensada para intimidar e funcionou. A bem-educada Ashley
murmurou um «oh, não» ao ver a recém-chegada a aproximar-se.
Esta rapariga, que reconheci como sendo Celeste Newsome, de
Clermont, uma Dois, não me incomodava. Ela supunha que estávamos a
lutar pela mesma coisa, mas ninguém consegue manipular-nos quando essa
coisa é algo que não queremos.
A Celeste chegou finalmente ao pé de nós. A Marlee soltou um «olá»
esganiçado, procurando ser simpática mesmo no meio de toda aquela
intimidação. A Celeste limitou-se a olhá-la de alto a baixo e soltou um
suspirou.
— Quando partimos? — perguntou.
— Não sabemos — respondi, sem um pingo de receio. — Tu tens
estado a atrasar tudo.
A Celeste pareceu não gostar nada do meu comentário e mediu-me
dos pés à cabeça. Não pareceu ficar impressionada.
— Desculpem, mas havia muita gente que queria despedir-se de mim.
Não pude evitar. — Fez um grande sorriso, como se fosse óbvio que todos a
adorassem.
Eu estava a prestes a ficar rodeada de raparigas como ela. Que
maravilha!
Como que aproveitando a deixa, um homem entrou pela porta à nossa
esquerda:
— Disseram-me que as nossas quatro Selecionadas já aqui estavam?
— Estamos, sim — respondeu a Celeste com doçura. A expressão do
homem demonstrou claramente que se derreteu um pouco. Ah, então era
este o jogo dela.
O capitão fez uma pausa momentânea e depois pareceu despertar: —
Bom, minhas senhoras, se tiverem a bondade de me acompanhar, vamos
embarcar no avião a caminho da vossa nova casa.
O voo, que só foi realmente assustador durante a descolagem e a
aterragem, durou poucas horas. Tínhamos filmes e comida à disposição,
mas eu só queria olhar pela janela. Observava o país de cima,
impressionada com o seu tamanho.
A Celeste preferiu dormir durante o voo, o que foi uma bênção. A
Ashley tinha uma mesinha desdobrável e começou a escrever cartas sobre a
sua aventura. Era inteligente da parte dela trazer folhas de papel. Aposto
que a May adoraria saber tudo sobre esta parte da viagem, embora ainda
não incluísse o príncipe.
— Ela é tão elegante — sussurrou a Marlee ao meu ouvido,
inclinando a cabeça na direção da Ashley. Estávamos sentadas frente a
frente, em assentos de veludo, na parte da frente do pequeno avião.
— Desde que nos conhecemos, tem sido absolutamente perfeita. Vai
ser uma concorrente muito forte — acrescentou, com um suspiro.
— Não podes pensar assim — respondi. — Sim, claro, queres chegar
até ao fim, mas não porque derrotaste alguém. Só tens de ser tu própria.
Quem sabe? Talvez o Maxon prefira uma pessoa mais descontraída.
A Marlee pensou um pouco: — Acho que é um bom argumento. É
difícil não gostar da Ashley. É muito gentil. E tão bonita. — Anuí com a
cabeça. Depois, a voz de Marlee baixou para um sussurro: — A Celeste,
por outro lado...
Arregalei os olhos e abanei a cabeça: — Eu sei. Só passou uma hora e
já estou desejosa de que se vá embora.
A Marlee tapou a boca com a mão para esconder uma gargalhada: —
Não quero falar mal de ninguém, mas ela é tão agressiva! E o Maxon nem
sequer está aqui. Deixa-me um pouco nervosa.
— Não fiques — tranquilizei-a. — Raparigas destas eliminam-se a
elas próprias da competição.
A Marlee soltou um suspiro: — Espero que sim. Às vezes, gostava...
— De quê?
— Bem, às vezes gostava que os Dois tivessem uma noção de como
nos sentimos quando nos tratam assim.
Assenti, concordando. Nunca me tinha considerado como sendo do
mesmo nível que uma Quatro, mas acho que estávamos numa situação
semelhante. Se não fôssemos Dois ou Três, éramos apenas variedades de
algo indesejável.
— Obrigada por falares comigo — disse ela. — Estava com receio de
que fosse cada uma por si, mas tu e a Ashley têm sido muito simpáticas.
Talvez isto possa ser divertido. — A voz dela animou-se com a esperança.
Não estava muito certa disso, mas sorri-lhe também. Não tinha razões
para evitar a Marlee ou ser mal-educada com a Ashley. As outras raparigas
podiam não ser tão descontraídas.
Quando aterrámos, o ambiente manteve-se silencioso durante todo o
percurso entre o avião e o terminal, para onde seguimos ladeadas por
guardas. Mas assim que as portas se abriram, fomos acolhidas por gritos
ensurdecedores.
O terminal estava cheio de pessoas aos pulos, aclamando-nos. Fora
aberto um caminho para nós, coberto por uma passadeira dourada e
limitado por barreiras de cordas no mesmo tom. Ao longo desse percurso, a
intervalos regulares, havia guardas que olhavam em volta inquietos, prontos
para atacar ao primeiro sinal de perigo. De certeza que deveriam ter coisas
mais importantes para fazer, ou não?
Por sorte, a Celeste ia à frente e começou a acenar. Percebi então que
essa era a reação certa e não encolher-me como pensara fazer. E, como as
câmaras estavam lá para captar cada movimento nosso, fiquei ainda mais
feliz por não ter sido eu a conduzir o grupo.
A multidão estava louca de alegria. Aquelas pessoas iriam ser os
nossos vizinhos mais próximos e estavam ansiosas por ver em primeira mão
as raparigas que chegavam à cidade. Uma de nós iria um dia ser a sua
rainha.
Em poucos segundos, virei a cabeça uma dezena de vezes, à medida
que as pessoas gritavam o meu nome em todos os cantos do terminal
apinhado. Havia também cartazes com o meu nome. Fiquei estupefacta.
Havia já gente ali — pessoas que não eram da minha casta nem da minha
província que esperava que fosse eu a escolhida. Senti um nó de culpa no
estômago por ir desapontá-los a todos.
Baixei a cabeça por um instante e vi uma menina prensada contra a
barreira. Não devia ter mais de doze anos. Nas mãos tinha um cartaz com a
frase «AS RUIVAS MANDAM!», com uma pequena coroa desenhada num
canto e estrelinhas por todos os lados. Eu sabia que era a única ruiva na
competição e notei que os meus cabelos e os dela tinham praticamente o
mesmo tom.
A menina queria um autógrafo. Ao lado dela, outra pessoa queria uma
fotografia e, do outro lado ainda, alguém queria apertar-me a mão. Acabei
por percorrer a fila toda, virando-me algumas vezes para falar também com
as pessoas do outro lado da passadeira.
Fui a última a sair, fazendo as outras esperarem pelo menos uns vinte
minutos. Para ser franca, provavelmente não teria saído tão depressa se o
próximo avião de Selecionadas não estivesse a chegar e pareceria falta de
educação usar o tempo delas.
Quando entrei no carro, a Celeste revirou os olhos, mas não me
importei. Ainda estava espantada por me ter adaptado tão rapidamente a
uma situação que me deixara tão assustada momentos antes. Conseguira
superar as despedidas, o encontro com as primeiras raparigas, o meu
primeiro voo e interagir com uma multidão de fãs, tudo sem cometer
nenhuma gafe.
Pensei nas câmaras que me tinham seguido no terminal e imaginei a
minha família a ver tudo aquilo pela televisão. Esperava que se sentissem
orgulhosos de mim.
Capítulo 9

Apesar da enorme concentração de boas-vindas no aeroporto, as


estradas que conduziam ao palácio também estavam ladeadas por multidões
de pessoas desejando-nos sorte. Mas, infelizmente, não podíamos abrir as
janelas do carro para lhes agradecer. O guarda no banco da frente dissera
que devíamos considerar-nos uma extensão da família real. Muitos
adoravam-nos, mas havia pessoas lá fora que não teriam qualquer problema
em nos ferir para atingir o príncipe. Ou a própria monarquia.
No carro, fiquei ao lado da Celeste. Era um modelo especial com dois
bancos de passageiros na parte de trás, virados um para o outro, e vidros
escuros. A Ashley e a Marlee iam sentadas à nossa frente. A Marlee sorria
radiante, enquanto olhava pela janela e o motivo era óbvio: o seu nome
estava escrito em diversos cartazes. Seria impossível contar quantos
admiradores tinha.
O nome da Ashley também aparecia aqui e ali, quase tanto quanto o
da Celeste e bem mais do que o meu. A Ashley, sempre educada, aceitou
graciosamente o facto de não ser uma das favoritas no concurso, mas dava
para perceber que a Celeste estava irritada.
— O que é que achas que ela fez? — sussurrou-me ao ouvido,
enquanto a Marlee e a Ashley conversavam sobre as suas cidades.
— O que queres dizer? — murmurei de volta.
— Para ser tão popular. Achas que subornou alguém? — Cravou um
olhar frio na Marlee, como se estivesse a medir mentalmente o seu valor.
— Ela é uma Quatro — respondi, cética. — Não teria dinheiro para
subornar ninguém.
A Celeste inspirou audivelmente:
— Por favor! Uma mulher tem outras formas de pagar por aquilo que
quer — disse e desviou o olhar, virando-se para a janela.
Demorei um momento a perceber o que ela queria dizer e senti-me
desconfortável. Não porque era óbvio que uma pessoa tão inocente como a
Marlee nunca seria capaz de pensar em dormir com alguém — ou sequer
ponderar violar uma lei — para obter uma vantagem, mas porque estava a
tornar-se claro que a vida no palácio poderia vir a tornar-se bem mais
mesquinha do que eu tinha imaginado.
À chegada, não consegui ver bem o palácio, mas reparei nos muros:
eram de estuque, pintados de amarelo-claro e extremamente altos. Havia
guardas colocados no cimo, de ambos os lados do grande portão, que se
abriu quando nos aproximámos. No interior estendia-se um longo caminho
de gravilha, que contornava uma fonte e conduzia à porta principal onde
alguns funcionários esperavam para nos receber.
Com um cumprimento rápido, duas mulheres agarraram-me pelos
braços e levaram-me para dentro.
— Desculpe apressá-la assim, menina, mas o vosso grupo está
atrasado — disse uma delas.
— Receio que a culpa tenha sido minha. Falei um bocadinho demais
no aeroporto.
— Conversou com a multidão? — perguntou a outra, surpreendida.
Trocaram um olhar que não compreendi antes de começarem a indicar
os locais por onde passávamos.
A sala de jantar ficava à direita, disseram-me, e o Grande Salão à
esquerda. Vislumbrei por um breve instante jardins extensos do outro lado
das portas de vidro e desejei poder parar. Antes de conseguir ter uma noção
de para onde íamos, empurraram-me para um salão gigantesco cheio de
pessoas atarefadas.
No meio daquela movimentação, pude ver filas de espelhos onde
profissionais penteavam os cabelos das candidatas e lhes pintavam as
unhas. Havia roupas penduradas em cabides e pessoas que gritavam coisas
como «Encontrei a tinta!» e «Isso fá-la parecer inchada».
— Aqui estão elas! — Uma mulher aproximava-se de nós, sem dúvida
a responsável. — Chamo-me Sílvia. Conversámos pelo telefone — disse
ela, à laia de apresentação, e começou imediatamente a trabalhar. —
Primeiro, precisamos das fotografias do «antes». Venham para aqui —
ordenou, indicando uma cadeira num canto em frente de um cenário. —
Não se preocupem com as câmaras. Vamos fazer uma emissão especial
sobre as vossas transformações, pois todas as raparigas de Illéa vão querer
ficar parecidas convosco quando tivermos terminado.
De facto, havia várias pessoas com câmaras pelo salão, filmando de
perto os sapatos das raparigas e entrevistando-as. Assim que as fotografias
foram tiradas, a Sílvia começou a disparar ordens: — Levem a Lady Celeste
para a estação quatro, a Lady Ashley para a cinco e... parece que acabaram
na estação dez. Levem a Lady Marlee para lá e a Lady America para a seis.
— Vejamos — começou um homem moreno e baixo, conduzindo-me
a uma cadeira com um seis na parte de trás. — Temos de conversar sobre a
sua imagem. — A sua atitude era completamente profissional.
— A minha imagem? — Não era simplesmente eu própria? Não fora
isso que me trouxera até ali?
— Que ar é que lhe podemos dar? Com esses cabelos ruivos, podemos
transformá-la numa sedutora, mas se preferir algo menos intenso, também
podemos fazê-lo — disse ele, sem rodeios.
— Não vou mudar completamente para agradar a um tipo que nem
sequer conheço. — Ou gosto, acrescentei mentalmente.
— Ora, ora. Será que temos uma com personalidade aqui? —
cantarolou ele, como se eu fosse uma criança.
— Não temos todas?
O homem sorriu: — Está bem. Não vamos mudar a sua imagem;
vamos apenas realçá-la. Preciso de a polir um pouco, mas a sua aversão a
coisas falsas pode vir a ser a sua grande vantagem aqui. Continue assim,
querida. — Deu-me uma palmadinha nas costas e afastou-se, enviando um
grupo de mulheres atarefadas na minha direção.
Não percebi que quando ele disse «polir» estava a ser literal. Uma
mulher começou a esfregar o meu corpo porque, aparentemente, eu era
incapaz de o fazer bem sozinha. Em seguida, cada pedacinho da minha pele
foi besuntado com loções e óleos, que me deixaram a cheirar a baunilha.
Segundo a rapariga que os aplicou, esse era um dos aromas favoritos do
príncipe.
Depois de me deixarem macia e suave, concentraram-se nas minhas
unhas. Apararam e limaram-nas e as cutículas mais difíceis foram
milagrosamente suavizadas. Quando lhes disse que preferia não pintar as
unhas, ficaram tão desapontadas que as deixei pintar-me as dos pés. Uma
das raparigas escolheu um bonito tom neutro, por isso não foi assim tão
mau.
A equipa que tratou das minhas unhas deixou-me para ir tratar de
outra rapariga e fiquei sossegadamente sentada na cadeira, à espera da
próxima ronda de embelezamento. Uma equipa de filmagens passou por
mim e focaram as minhas mãos.
— Não se mexa! — ordenou uma mulher. Franziu o sobrolho para as
minhas unhas. — Mas a menina não pôs nada nas unhas?
— Não.
Ela suspirou, fez a filmagem e afastou-se.
Suspirei também, profundamente. Pelo canto do olho, notei um
movimento brusco à minha direita. Olhei e vi uma rapariga de olhar perdido
agitando a perna, para cima e para baixo, sob uma grande capa que lhe
tinham vestido.
— Estás bem? — perguntei.
A minha voz acordou-a do seu transe. Suspirou: — Querem pintar-me
o cabelo de loiro. Disseram que ia combinar melhor com o meu tom de
pele. Acho que estou um pouco nervosa.
Brindou-me com um sorriso tenso, que retribuí.
— És a Sosie, certo?
— Sim. — Ela sorriu, verdadeiramente agora. — E tu és a America?
— Anuí com a cabeça. — Ouvi dizer que chegaste com aquela Celeste. Ela
é horrível!
Revirei os olhos. Desde que tínhamos chegado que o salão inteiro
podia ouvir a Celeste gritar com alguma frequência a alguma pobre criada
para lhe levar algo ou simplesmente para lhe sair da frente.
— Nem fazes ideia — resmunguei, e soltámos ambas uma risadinha.
— Ouve, acho que o teu cabelo é muito bonito. — E era mesmo. Espesso e
nem demasiado escuro ou demasiado claro.
— Obrigada.
— Se não quiseres mudá-lo, não deves ser obrigada a fazê-lo.
A Sosie sorriu, mas percebi que ela não estava bem certa se eu estava
a tentar ser simpática ou a prejudicá-la. Antes de ela poder dizer qualquer
coisa, chegaram mais pessoas para tratar de nós, dando instruções umas às
outras tão alto que não conseguimos terminar a conversa.
O meu cabelo foi lavado, amaciado, hidratado e alisado. Era comprido
e tinha um corte a direito quando cheguei — era a minha mãe quem o
cortava e era o melhor que ela conseguia fazer —, mas quando acabaram de
o arranjar, estava vários centímetros mais curto e escadeado. Gostei do
estilo, fazia-o refletir a luz de uma forma interessante. Algumas raparigas
fizeram uma coisa chamada madeixas e outras, como a Sosie, mudaram
completamente a cor do cabelo. Mas eu e as minhas assistentes
concordámos que, nesse aspeto, o meu cabelo devia ficar como estava.
Uma rapariga muito bonita maquilhou-me. Pedi-lhe que fizesse algo
simples e o resultado foi bom. Várias outras raparigas pareciam um pouco
mais velhas, ou mais novas, ou simplesmente mais atraentes depois da
maquilhagem. Eu ainda me parecia comigo mesma quando terminei e, é
claro, a Celeste também, uma vez que insistira em carregar bastante na
pintura.
Estive de roupão durante a maior parte do processo, mas assim que
acabaram de me arranjar, levaram-me para junto dos cabides das roupas. O
meu nome estava escrito por cima de um varão de onde pendiam vestidos
que davam para uma semana. Aparentemente, as candidatas a princesas não
usam calças.
Acabei por vestir um vestido de tom creme. Era em estilo caicai,
ajustava-se confortavelmente à minha cintura e terminava por cima dos
joelhos. A rapariga que me ajudou a vesti-lo chamou-lhe um vestido
informal. Disse-me que os vestidos de noite já estavam no meu quarto e que
os outros que estavam no varão também seriam levados para lá. Em
seguida, colocou-me no topo do vestido um alfinete prateado, onde
cintilava o meu nome. Por fim, deu-me uns sapatos de salto médio e
mandou-me de volta para o canto para tirar a minha foto do «depois». Dali,
pediram-me que me sentasse num dos quatro cenários pequenos alinhados
contra a parede. Cada um tinha uma cadeira com uma paisagem por trás e
uma câmara à frente.
Fiz o que me disseram e esperei. Uma mulher sentou-se à minha
frente com uma prancheta cheia de informações na mão e pediu-me um
pouco de paciência, enquanto procurava os meus papéis.
— Para que é tudo isto? — perguntei.
— É para o especial sobre a transformação. Logo à noite, vamos
transmitir um programa sobre a vossa chegada; as transformações são na
quarta-feira e, na sexta-feira, vão participar no vosso primeiro Noticiário
Oficial. As pessoas viram as vossas fotografias c conhecem um pouco do
que estava nos vossos formulários de inscrição — disse ela, enquanto
encontrava os papéis e os colocava em cima da prancheta. Depois,
entrelaçou os dedos e continuou: — Mas queremos que os espetadores
torçam realmente por vocês. E isso só vai acontecer se ficarem a conhecer-
vos melhor. Portanto, vamos fazer uma entrevista rápida aqui e depois
vocês darão o vosso melhor nos Noticiários Oficiais. E não sejam tímidas
quando nos virem pelo palácio. Não estaremos aqui todos os dias, mas
vamos aparecer bastante.
— Está bem — respondi obedientemente. Não queria ter de falar para
as câmaras, era tudo tão invasivo.
— Então, é a America Singer, certo? — perguntou ela, segundos
depois de uma luz vermelha se acender no topo da câmara.
— Sim — respondi, tentando não soar nervosa.
— Para ser sincera, não me parece que o seu visual tenha mudado
muito. Pode dizer-nos o que fez hoje na sua transformação?
Pensei um pouco: — Escadearam-me o cabelo, coisa de que gostei. —
Fiz deslizar os dedos pelas minhas madeixas vermelhas, sentindo a sua
suavidade depois dos cuidados profissionais. — E puseram-me loção de
baunilha no corpo. Cheiro um pouco a sobremesa — continuei, cheirando o
braço.
Ela riu-se:
— E está linda. Esse vestido fica-lhe mesmo muito bem.
— Obrigada — disse, olhando para as minhas roupas novas. —
Normalmente não costumo usar vestidos, por isso vou demorar um
bocadinho a habituar-me.
— É verdade — disse a minha entrevistadora. — Você é uma das ape‐
nas três Cincos na Seleção. Como tem sido a experiência até agora?
Revolvi o cérebro em busca de algo que descrevesse tudo o que tinha
sentido durante o dia, desde minha deceção na praça até à sensação de voar
e ao conforto de conhecer a Marlee.
— Surpreendente — respondi.
— Imagino que dias ainda mais surpreendentes virão — comentou
ela.
— Espero que sejam, pelo menos, um pouco mais calmos do que hoje
— repliquei, com um suspiro.
— O que pensa da sua concorrência até agora?
Engoli em seco:— As outras raparigas são todas muito simpáticas. —
Com uma notória exceção, pensei.
— Mmh... — disse ela, percebendo o que a minha resposta ocultava.
— E o que acha do resultado da sua transformação? Está preocupada com o
aspeto de mais alguém?
Ponderei a minha resposta. Dizer que não, pareceria arrogante e dizer
que sim soaria a insegurança. — Acho que os assistentes fizeram um
excelente trabalho e conseguiram realçar a beleza de cada uma.
Ela sorriu e disse: — Muito bem, acho que é o suficiente.
— Só isso?
— Temos de encaixar trinta e cinco entrevistas numa hora e meia, por
isso é mais do que suficiente.
— Está bem. — Afinal não fora assim tão mau.
— Obrigada pelo seu tempo. Pode dirigir-se para aquele sofá ali e
alguém irá ter consigo.
Levantei-me e dirigi-me para o grande sofá circular no canto. Duas
raparigas que ainda não conhecia já lá estavam sentadas, conversando
calmamente. Dei uma olhadela à sala e vi alguém anunciar que o último
grupo acabava de chegar. Mais correria nas estações. Estava tão atenta ao
movimento que quase não notei quando a Marlee se sentou ao meu lado.
— Marlee! O teu cabelo!
— Eu sei. Puseram extensões. Achas que o Maxon vai gostar? — Ela
parecia realmente preocupada.
— Claro! Que homem não gosta de uma loira estonteante? —
respondi com um sorriso brincalhão.
— America, tu és tão simpática. Todas aquelas pessoas no aeroporto
te adoraram.
— Oh, só estava a ser amigável. Tu também conheceste muita gente
— repliquei.
— Sim, mas bastante menos do que tu.
Baixei a cabeça, ligeiramente envergonhada por receber um elogio por
uma coisa tão óbvia. Quando a ergui novamente, olhei para as duas
raparigas sentadas junto de nós: Emmica Brass e Samantha Lowell. Ainda
não tínhamos sido apresentadas, mas sabia quem eram. Observei-as com
mais atenção. As duas estavam a fitar-me de um modo estranho. Antes de
ter tempo de descobrir porquê, a Sílvia aproximou-se:
— Muito bem, meninas, estamos prontas? — Olhou para o relógio e
depois encarou-nos, expectante. — Vamos fazer uma visita rápida ao
palácio e depois levo-vos aos vossos quartos.
A Marlee bateu palmas e levantámo-nos as quatro para sair. A Sílvia
disse-nos que aquele espaço que estava a ser usado para cuidarem de nós
era o Salão das Mulheres. Geralmente, a rainha, as suas aias e algumas
outras mulheres da família passavam ali os momentos de lazer.
— Habituem-se ao salão; irão passar lá grande parte do vosso tempo.
Bom, quando chegaram, passaram pelo Grande Salão, que é habitualmente
usado para festas e banquetes. Se fossem mais, seria lá que tomariam as
refeições, mas a sala de jantar normal é suficientemente grande para as
vossas necessidades. Vamos passar rapidamente por lá.
A Sílvia mostrou-nos onde a família real tomava as suas refeições,
numa mesa à parte. Nós ficaríamos sentadas em mesas compridas de cada
lado, o que dava à disposição um formato estilizado em «U». Os nossos
lugares já estavam distribuídos, indicados com marcadores elegantes. Eu
ficaria sentada entre a Ashley e a Tiny Lee, a qual tinha visto de passagem
no Salão das Mulheres, e à frente da Kriss Ambers.
Saímos da sala de jantar, descemos um lanço de escadas e seguimos
até à sala usada para as transmissões do Noticiário Oficial de Illéa. De volta
ao andar de cima, a nossa guia apontou para um corredor onde o rei e o
príncipe passavam a maior parte do tempo a trabalhar. Essa zona era-nos
interdita.
— Outra zona que vos é interdita: o terceiro andar. São os aposentos
privados da família real e não será tolerada qualquer intrusão. Os vossos
quartos situam-se todos no segundo andar. Vocês vão ocupar grande parte
dos quartos de hóspedes, mas não se preocupem, ainda há espaço para
algum visitante que surja.
»Estas portas dão para o jardim das traseiras. Olá, Hector. Olá,
Markson.— Os dois guardas junto à porta cumprimentaram-na com um
breve aceno de cabeça. Demorei um instante a reconhecer que a grande
arcada à nossa direita era a porta lateral para o Grande Salão, o que
significava que o Salão das Mulheres ficava já depois da esquina seguinte.
Fiquei orgulhosa de mim mesma por ter conseguido notar esse facto. O
palácio era uma espécie de labirinto opulento.
— Não podem sair do palácio em nenhuma circunstância — pros‐
seguiu a Sílvia. — Durante o dia, haverá ocasiões em que poderão ir até ao
jardim, mas nunca sem autorização. Isto é meramente uma medida de
segurança. Apesar dos nossos esforços, os rebeldes já conseguiram entrar
no palácio.
Um calafrio percorreu-me a espinha.
Virámos uma esquina e subimos as enormes escadas que davam para
o segundo andar. Os tapetes eram tão macios e espessos sob os meus pés
que tinha a impressão de me afundar a cada passo. As janelas altas
deixavam passar a luz e cheirava a flores e a raios de sol. Enormes quadros
decoravam as paredes, representando os reis do passado e alguns antigos
líderes americanos e canadianos. Pelo menos, era o que eu achava que
eram, já que nenhum usava coroa.
— As vossas coisas já estão nos vossos quartos. Se não gostarem da
decoração, basta dizerem às vossas aias. Cada uma de vocês tem três e elas
também já estão nos vossos quartos. Irão ajudar-vos a desfazer as malas e a
vestirem-se para o jantar.
»Hoje, antes do jantar, reunir-se-ão todas no Salão das Mulheres para
uma transmissão especial do Noticiário Oficial de Illéa. Na semana que
vem, serão vocês quem aparecerá no programa! Esta noite, poderão ver
algumas das imagens da vossa partida de casa e da chegada aqui. Promete
ser algo de muito especial. Saibam que o Príncipe Maxon ainda não viu
nada hoje. Irá ver o mesmo que toda a Illéa e, amanhã, irão conhecê-lo
oficialmente.
»Jantarão em grupo, para que possam conhecer-se melhor, e amanhã
começam os jogos!
Engoli em seco. Demasiadas regras, demasiada estrutura, demasiada
gente. Só queria ficar sozinha com um violino.
Percorremos o segundo andar, deixando as Selecionadas nos seus
quartos. O meu ficava escondido, depois de uma curva no corredor, num
pequeno vestíbulo, ao pé dos quartos da Bariel, da Tiny e da Jenna. Fiquei
feliz por não estar no meio da confusão, como a Marlee. Talvez assim
conseguisse ter um pouco de privacidade.
Assim que a nossa guia se afastou, abri a porta do meu quarto e fui
recebida pelas exclamações de entusiasmo de três mulheres. Uma estava a
costurar num dos cantos e as outras limpavam um quarto já perfeito.
Aproximaram-se rapidamente e apresentaram-se: Lucy, Anne e Mary, mas
esqueci-me quase imediatamente de quem era quem. Demorou um pouco a
convencê-las a deixarem-me sozinha. Não queria ser mal-educada, já que
elas estavam ansiosas por ajudar, mas precisava de algum tempo sozinha.
— Só preciso de uma sestazinha. Tenho a certeza de que o vosso dia
também foi longo, a prepararem tudo. O melhor que podem fazer por mim é
deixarem-me descansar e descansarem também um pouco. E depois, por
favor, venham acordar-me quando forem horas de descer.
Houve uma nova enxurrada de agradecimentos e vénias, que tentei
desencorajar, e fiquei finalmente sozinha. Não ajudou. Tentei estender-me
na cama, mas sentia cada milímetro do meu corpo tenso, como se não
quisesse que me sentisse confortável num lugar que obviamente não era
para mim.
Havia um violino num canto e também uma guitarra e um piano
lindíssimo, mas não conseguiram entusiasmar-me. A minha mochila
continuava bem fechada, esperando, aos pés da minha cama, mas também
isso me parecia ser demasiado extenuante. Sabia que tinham colocado
algumas coisas especiais para mim no armário e nas gavetas e também na
casa de banho, mas também não me sentia com vontade de explorar.
Fiquei ali deitada, quieta. Sabia que deviam ter passado horas, mas
pareceram-me apenas alguns minutos quando as minhas aias bateram
levemente à porta. Deixei-as entrar e, apesar de ser estranho, deixei-as
vestir-me. Estavam tão felizes por serem úteis que não podia voltar a pedir-
lhes que saíssem.
Usaram ganchos delicados para prender algumas madeixas do meu
cabelo e retocaram-me a maquilhagem. O vestido, que tal como o resto do
guarda-roupa fora criado pelas suas mãos, era verde-escuro e chegava ao
chão. Sem aqueles saltos médios, tropeçaria nele. A Sílvia bateu à minha
porta, pontualmente, às seis, para me levar a mim e às minhas três vizinhas
até ao salão. Esperámos pelas outras no vestíbulo ao pé da escadaria e
depois seguimos até ao Salão das Mulheres. A Marlee encontrou-me e
fomos juntas.
O som de trinta e cinco pares de saltos altos contra o mármore das
escadas parecia música feita por uma manada elegante. Ouviam-se alguns
murmúrios, mas a maior parte das raparigas permanecia em silêncio. Notei
que as portas da sala de jantar estavam fechadas quando passámos. Será que
a família real estava ali, talvez a tomar a sua última refeição a três?
Era estranho sermos suas convidadas e, no entanto, ainda não nos
termos encontrado com nenhum deles.
O Salão das Mulheres mudara na nossa ausência. Os espelhos e os
cabides tinham desaparecido e o espaço estava preenchido por mesas e
cadeiras, juntamente com alguns sofás de aspeto bastante confortável. A
Marlee olhou para mim e apontou com a cabeça para um deles. Sentámo-
nos juntas.
Depois de nos termos instalado todas, ligaram a televisão e vimos o
Noticiário Oficial. Fizeram os mesmos anúncios de sempre — atualização
dos orçamentos de vários projetos, a situação das guerras e outro ataque
rebelde no Leste — e depois a última meia hora foi ocupada com os
comentários do Gavril às imagens do nosso dia.
— Aqui vemos a menina Celeste Newsome a despedir-se dos seus
muitos admiradores em Clermont. Esta encantadora jovem precisou de mais
de uma hora para dizer adeus aos seus fãs.
Vi a Celeste a sorrir convencida quando se viu no ecrã. Estava sentada
ao lado da Bariel Pratt, que tinha o cabelo liso como uma régua e de um
loiro tão claro que parecia branco, caindo-lhe até à cintura. E não havia
nenhuma forma educada de o dizer: tinha uns seios enormes. Sobressaíam
no seu vestido caicai, desafiando todos a tentar ignorá-los.
A Bariel era linda, mas de um tipo comum. O seu estilo era parecido
com o da Celeste e não sei exatamente como, mas, ao vê-las às duas juntas,
veio-me à ideia a expressão «Mantenha os seus inimigos por perto». Acho
que cada uma encarou imediatamente a outra como a sua concorrente mais
direta.
— As restantes candidatas do Centro Leste alcançaram uma
popularidade semelhante. A atitude calma e elegante de Ashley Brouillette
distingue-a imediatamente. É uma lady. A sua expressão humilde e bela,
enquanto caminha por entre a multidão, faz lembrar a própria rainha.
— E Marlee Tames, de Kent, apresentava-se extremamente animada
hoje, no momento da sua partida, cantando o hino nacional juntamente com
a banda. — Apareceram no ecrã imagens da Marlee, sorrindo e abraçando
pessoas da sua província natal. — É uma das favoritas de muitas pessoas
que entrevistámos hoje.
A Marlee inclinou-se e apertou-me a mão. Pronto, estava decidido: eu
iria torcer por ela.
— Também viajando com a menina Tames encontrava-se America
Singer, uma das três Cincos que chegaram à Seleção. — Fizeram-me
parecer melhor do que realmente me sentia naquele momento. Tudo o que
me lembrava era de procurar tristemente alguém entre a multidão. Mas as
imagens que escolheram de mim a procurar fizeram-me parecer madura e
carinhosa. A imagem do abraço trocado com o meu pai era comovente,
bela.
Ainda assim, não era nada comparada com as minhas imagens no
aeroporto. — Mas sabemos que as castas nada significam na Seleção e
parece que Lady America não deve ser menosprezada. Assim que aterrou
em Angeles, transformou-se na preferida da multidão no aeroporto, parando
para tirar fotografias, distribuir autógrafos e conversar simplesmente com
quem estava por lá. A menina America Singer não tem medo de sujar as
mãos, uma qualidade que muitos creem ser necessária à nossa próxima
princesa.
Praticamente todas se viraram para olhar para mim. Nos seus olhos
notei a mesma expressão que recebera da Emmica e da Samantha. De
repente, aqueles olhares faziam sentido. As minhas intenções não
importavam, não sabiam que eu não queria nada disto. Aos seus olhos, eu
era uma ameaça e era notório que queriam que desaparecesse.
Capítulo 10

Mantive a cabeça baixa durante o jantar. No Salão das Mulheres,


podia ser corajosa porque a Marlee estava ao meu lado e ela achava-me
simpática, mas aqui, espremida entre pessoas cujo ódio contra mim era
quase palpável, não passava de uma cobarde. Levantei os olhos do prato
uma vez e vi a Kriss Ambers girando o garfo ameaçadoramente. E a Ashley,
sempre tão educada, mantinha os lábios apertados e não falou comigo. Só
queria fugir para o meu quarto.
Não percebia por que razão aquilo era tão importante. O público
gostava de mim, e depois? Não tinham qualquer poder no palácio; os seus
cartazes e aplausos não contavam.
No fim de contas, não sabia se devia sentir-me honrada ou
incomodada.
Concentrei as minhas energias na comida. A última vez que comera
um bife fora no Natal, há alguns anos atrás, e a minha mãe fizera o melhor
que sabia, mas não tinha nada a ver com este. Era suculento e tenro, tão
saboroso. Queria perguntar a alguém se este também era o melhor bife que
já tinham comido na vida. Se a Marlee estivesse por perto, ter-lhe-ia
perguntado. Dei uma olhadela em volta da sala. A Marlee conversava
tranquilamente com as raparigas que estavam perto dela.
Como é que ela fazia aquilo? Por acaso, a mesma emissão não a tinha
apontado como uma das favoritas? Como é que conseguia que as pessoas
ainda falassem com ela?
A sobremesa consistia em frutas variadas e gelado de baunilha. Nunca
tinha comido nada assim. Se isto era comida, o que é que tinha andado a pôr
na boca até agora? Pensei na May e em como ela adorava doces. Ter-se-ia
deliciado com esta sobremesa. Aposto que se daria muito bem aqui.
Ninguém tinha autorização para se levantar da mesa até todas terem
terminado e, depois disso, recebemos ordens estritas para irmos diretamente
para a cama.
— Afinal, vão conhecer o Príncipe Maxon de manhã e vão querer
estar radiosas — explicou a Sílvia. — Não se esqueçam de que ele é o
futuro marido de alguém que está nesta sala.
Algumas raparigas suspiraram perante a ideia.
Desta vez, o toque-toque dos sapatos a subir as escadarias foi mais
suave. Mal podia esperar para me livrar dos meus. E do vestido também.
Tinha na mochila uma muda de roupa minha e ponderei vesti-la só para me
sentir eu mesma por uns instantes.
O grupo dispersou-se no cimo das escadas e cada jovem foi para o seu
quarto. A Marlee puxou-me para um lado:
— Estás bem? — perguntou.
— Sim. É que algumas delas estiveram a olhar-me de lado durante o
jantar — respondi, tentando não soar queixosa.
— Estão apenas nervosas porque toda a gente gostou imenso de ti —
garantiu a Marlee, não dando importância ao comportamento das outras.
— Mas as pessoas também gostaram de ti. Eu vi os cartazes. Porque é
que não foram também mesquinhas contigo?
— Nunca passaste muito tempo com um grupo de raparigas, pois não?
— Ela tinha um sorriso entendido nos lábios, como se eu devesse saber o
que estava a acontecer.
— Não. Praticamente só estive com as minhas irmãs — confessei.
— Estudaste em casa?
— Sim.
— Bom, eu estudo em casa com várias outras raparigas da casta
Quatro e cada uma delas tem o seu modo de picar as outras. E apenas uma
questão de conhecermos a pessoa e percebermos o que mais a irrita. Muitas
raparigas fazem-me falsos elogios ou comentários venenosos, coisas assim.
Sei que pareço ser muito alegre e viva, mas no fundo sou tímida e elas
acham que podem atingir-me com palavras.
Franzi o sobrolho. Faziam isso de propósito?
— Agora tu, uma pessoa sossegada e misteriosa...
— Não sou misteriosa — atalhei.
— És um pouco. E às vezes as pessoas não sabem como interpretar o
silêncio, se como um sinal confiança ou de medo. Elas olham para ti como
se fosses um inseto, na esperança de que talvez te sintas assim.
— Mmh... — Fazia sentido. Comecei a pensar no modo como me
comportava, se não estaria, de certa forma, a provocar a insegurança das
outras. — O que é que tu fazes? Quero dizer, quando queres levar a melhor?
— perguntei à Marlee.
Ela sorriu: — Ignoro-as. Conheço uma rapariga na minha cidade que
fica furiosa quando não consegue provocar-nos e acaba por amuar. Por isso,
não te preocupes — continuou ela. — Tudo o que tens de fazer é não deixar
que percebam que estão a atingir-te.
— E não estão.
— Quase que acredito em ti mas não completamente. — Ela soltou
uma risadinha, um som cálido que se evaporou no vestíbulo silencioso. —
Acreditas que vamos conhecer o príncipe amanhã? — perguntou, passando
para o assunto que considerava mais importante.
— Na realidade, não. — O Maxon parecia um fantasma, assombrando
o palácio — sugerido, mas nunca realmente presente.
— Bem, boa sorte para amanhã. — Podia perceber que o seu desejo
era sincero.
— Melhor sorte para ti, Marlee. Tenho a certeza de que o Príncipe
Maxon vai ficar mais do que encantado quando te conhecer. — Apertei-lhe
a mão.
Ela sorriu, simultaneamente emocionada e tímida, e encaminhou-se
para o seu quarto.
Quando me dirigia para o meu, a porta da Bariel ainda estava aberta e
ouvi-a resmungar alguma coisa para a aia. Ela viu-me e fechou-me a porta
na cara.
Obrigadinha.
As minhas aias estavam no quarto, à espera para me despir e lavar. A
minha camisa de dormir verde, de tecido fino, estava já estendida na cama.
Felizmente, elas haviam tido a delicadeza de não tocar na minha mochila.
Eram eficientes e decididas. Tinham obviamente aperfeiçoado esta
rotina de fim do dia, mas não agiam com pressa. Acho que a intenção era
proporcionar calma, mas eu só queria que se fossem embora. Não podia
apressá-las enquanto me lavavam as mãos, desapertavam o vestido e
punham na camisa de dormir de seda o alfinete prateado com o meu nome.
E enquanto faziam todas estas coisas, que me deixavam incrivelmente
constrangida, iam perguntando coisas. Eu tentava responder sem ser
desagradável.
Sim, tinha finalmente visto todas as outras raparigas; não, elas não
falavam muito; sim, o jantar tinha sido fantástico; não, só iria conhecer o
príncipe no dia seguinte; sim, estava muito cansada.
— E ajudar-me-ia imenso a descontrair se pudesse ficar sozinha —
acrescentei no fim da última resposta, esperando que entendessem a deixa.
Elas pareceram ficar desapontadas. Tentei resolver a situação:
— Vocês ajudam-me imenso, mas estou habituada a ficar sozinha e
tenho estado rodeada de pessoas o dia inteiro.
— Mas, Lady Singer, estamos aqui para a ajudar. É o nosso trabalho
— disse a que aparentava ser a responsável. Eu deduzira que essa era a
Anne; parecia estar sempre a controlar tudo, a Mary era descontraída e a
Lucy parecia apenas tímida.
— Agradeço imenso o vosso trabalho e sem dúvida que vou querer a
vossa ajuda para começar o dia amanhã. Mas, esta noite, preciso
simplesmente de relaxar. Se querem ajudar, um pouco de tempo sozinha
seria bom. E se vocês estiverem bem repousadas, de certeza que tudo
correrá melhor amanhã, não acham?
Elas trocaram olhares. — Bem, imagino que sim — concordou a
Anne.
— Uma de nós deve ficar aqui enquanto dorme. Caso precise de
alguma coisa... — disse a Lucy, ansiosa, como se receasse a minha decisão,
qualquer que fosse. De vez em quando, ela parecia tremer um pouco.
Provavelmente era a timidez a transparecer.
— Se precisar de alguma coisa, toco a campainha. Não vai haver
problema. Além disso, não iria conseguir adormecer sabendo que havia
alguém a vigiar-me.
Olharam novamente umas para as outras, ainda não muito
convencidas. Havia uma maneira de acabar com isto, mas detestava ter de
usá-la:
— Vocês têm de obedecer a todas as minhas ordens, certo?
Elas assentiram com a cabeça, esperançosas.
— Então, ordeno que vão dormir agora e que venham ajudar-me de
manhã. Por favor.
A Anne sorriu. Acho que estava a começar a perceber-me:
— Sim, Lady Singer. Até amanhã, então. — As três fizeram uma
vénia e saíram silenciosamente do quarto. A Anne lançou-me um último
olhar. Acho que não era exatamente o que ela esperava, mas não parecia
estar aborrecida com isso.
Assim que saíram, descalcei os meus elegantes chinelos e estiquei os
dedos dos pés contra o chão. Era tão bom, tão natural estar descalça. A
seguir desfiz a mochila, o que foi rápido. Mantive a minha muda de roupa
no saco e guardei-o no meu gigantesco armário, dando uma olhadela aos
vestidos. Eram poucos, os suficientes para mais ou menos uma semana.
Devia ser igual para todas. Afinal, para quê fazer uma dúzia de vestidos
para uma rapariga que talvez saísse no dia seguinte?
Agarrei nas poucas fotografias que tinha da minha família e entalei-as
na moldura do espelho. Este era tão alto e largo que podia olhar para as
fotografias sem obstruir a visão do meu reflexo. Tinha uma caixinha com
coisas pessoais, brincos, laços e bandeletes que adorava. Provavelmente
aqui seriam considerados demasiado simples, mas eram todos tão pessoais
que não conseguira deixá-los em casa. Os poucos livros que trouxera
encontraram um lugar na útil prateleira colocada perto das portas que
davam para a varanda.
Espreitei pela porta da varanda e vi o jardim. Havia um labirinto de
alamedas com fontes e bancos. Cresciam flores por todo o lado e cada sebe
estava perfeitamente podada. Para além deste pedaço de terra, obviamente
tratado com cuidado, havia um pequeno campo aberto e mais adiante uma
enorme floresta. Era tão vasta que nem sequer conseguia perceber se estava
completamente contida entre os muros do palácio. Por um instante,
perguntei-me por que razão existiria e, depois, confrontei a última coisa que
trouxera de casa e que segurava agora na mão.
O meu pequeno frasco com a moeda tilintante. Fi-lo girar algumas
vezes nas minhas mãos, ouvindo a moeda deslizar pelo vidro. Por que
motivo trouxera aquilo? Para me lembrar de algo que não podia ter?
Esse simples pensamento — que o amor que construíra silenciosa e
secretamente durante anos estava realmente fora de alcance — fez com que
os meus olhos se enchessem de lágrimas. Depois de toda a tensão e emoção
daquele dia, não consegui aguentar mais. Não sabia onde iria guardar o
frasco, mas por enquanto deixei-o na mesinha de cabeceira.
Baixei as luzes, enrosquei-me em cima daqueles cobertores luxuosos e
olhei para o frasco. Deixei-me levar pela tristeza. Deixei que ele
preenchesse o meu pensamento.
Como é que podia ter perdido tanto em tão pouco tempo? Seria
normal pensar que deixar a família, ir viver para longe e separar-me da
pessoa que amava eram situações que demorariam anos para acontecer e
não sucedessem todas num só dia.
O que quisera ele dizer-me exatamente antes de eu partir? A única
coisa que conseguia deduzir era que não se sentira à vontade para o dizer
em voz alta. Seria sobre ela?
Olhei fixamente para o frasco.
Teria tentado pedir desculpa? Eu pregara-lhe um bom sermão na noite
anterior. Talvez fosse isso.
Que já tinha ultrapassado tudo? Bom, isso vira eu claramente,
obrigadinha.
Que não tinha conseguido esquecer-me? Que ainda me amava?
Afastei esse pensamento. Não podia deixar aquela esperança ganhar
terreno dentro de mim. Neste momento, precisava de o odiar. Essa raiva
ajudar-me-ia a continuar. Ficar o mais longe possível dele e durante tanto
tempo quanto conseguisse era metade do meu motivo para estar aqui.
Mas a esperança doía e, com ela, vieram as saudades de casa. Desejei
que a May entrasse às escondidas no meu quarto e se enfiasse na minha
cama, como fazia às vezes. E depois surgiu o medo de que as outras
raparigas quisessem que eu saísse, que pudessem continuar a tentar fazer-
me sentir minúscula; e o nervosismo por ser mostrada ao país inteiro
através da televisão enquanto estivesse aqui; e o terror de que alguém
tentasse matar-me como forma de protesto político. Depois de um dia tão
longo, tudo girava demasiado depressa para que a minha cabeça confusa
conseguisse processá-lo.
A minha vista turvou-se, nem sequer reparara que tinha começado a
chorar. Não conseguia respirar, estava a tremer. Saltei da cama e corri para a
varanda. O pânico era tanto que demorei um pouco para abrir o trinco, mas
consegui. Pensei que o ar fresco bastaria, mas não foi o suficiente. A minha
respiração continuava superficial e fria.
Não havia liberdade aqui. A grade da varanda mantinha-me presa e
podia ver os muros altos em volta do palácio, com guardas no topo.
Precisava de sair do palácio e ninguém iria deixar que isso acontecesse. O
desespero fez-me sentir ainda mais fraca. Olhei para a floresta. De certeza
que a única coisa que conseguiria ver ali era a vegetação.
Virei-me e comecei a correr. Sentia-me um pouco vacilante com as
lágrimas nos olhos, mas consegui sair do quarto. Corri ao longo do único
corredor que conhecia, sem ver as obras de arte, nem as tapeçarias ou as
decorações em ouro. Quase não vi os guardas. Não conhecia o castelo, mas
sabia que se descesse as escadas e seguisse pelo caminho certo iria
encontrar as enormes portas de vidro que davam para o jardim. Só queria
encontrar essas portas.
Desci a correr a imponente escadaria, com os meus pés descalços a
bater contra o chão de mármore. Havia mais alguns guardas ao longo do
percurso, mas nenhum me deteve. Até chegar ao lugar que procurava.
Tal como antes, dois homens estavam de guarda de cada lado das
portas e, quando tentei aproximar-me delas, um deles pôs-se à minha frente,
com o bastão em forma de lança a impedir a minha saída.
— Perdoe-me, menina, mas tem de regressar ao seu quarto — disse,
com autoridade. Embora não falasse alto, a sua voz parecia ribombar no
silêncio do elegante átrio.
— Não... não... Eu preciso... de sair... — As palavras atropelavam-se;
não conseguia respirar como deve ser.
— Menina, tem de voltar para o seu quarto, agora. — O segundo
guarda avançava na minha direção.
— Por favor. — Comecei a arfar. Pensei que ia desmaiar.
— Lamento... Lady America, certo? — Ele viu o meu alfinete. — Tem
de regressar ao seu quarto.
— Eu não... consigo respirar... — gaguejei, e caí nos braços do guarda
que se aproximava para me afastar. O seu bastão caiu no chão. Agarrei-me
debilmente a ele, sentindo-me tonta do esforço.
— Larguem-na! — Esta era uma voz nova, jovem, mas cheia de
autoridade. Virei a cabeça, quase pendendo na sua direção. Ali estava o
Príncipe Maxon. Parecia um pouco estranho devido ao ângulo da minha
cabeça, mas reconheci o cabelo e a sua postura rígida.
— Ela desmaiou, Vossa Majestade. Queria sair. — O primeiro guarda
parecia nervoso ao tentar explicar. Se me tivesse magoado, ele ficaria em
muito maus lençóis. Eu era agora propriedade de Illéa.
— Abram as portas.
— Mas... Vossa Majestade...
— Abram as portas e deixem-na sair. Já!
— Imediatamente, Alteza. — O primeiro guarda tratou de obedecer,
tirando uma chave. A minha cabeça continuava numa posição estranha,
enquanto ouvia o tilintar das chaves e o ruído de uma delas a deslizar na
fechadura. O príncipe olhou para mim, cauteloso, quando tentei pôr-me de
pé e, então, o cheiro doce do ar fresco tomou conta de mim, dando-me toda
a motivação de que precisava. Libertei-me dos braços do guarda e corri para
o jardim como se estivesse bêbada.
Cambaleava bastante, mas não me importei que isso me fizesse
parecer pouco graciosa. Só precisava de sair. Deixei o meu corpo sentir o ar
morno na pele, a relva sob os pés. De algum modo, até a natureza parecia
extravagante ali. Queria correr até às árvores, mas as minhas pernas só
conseguiram transportar-me alguns metros. Caí diante de um pequeno
banco de pedra e fiquei ali no chão, com a minha frágil camisa de noite
verde e a cabeça apoiada nos braços sobre o assento.
O meu corpo não tinha forças para soluçar, por isso as lágrimas
corriam em silêncio. Ainda assim, exigiam toda a minha concentração.
Como é que chegara até ali? Como é que deixara que isto acontecesse? O
que seria de mim ali? Será que um dia conseguiria recuperar alguma parte
da vida que tinha antes? Simplesmente não sabia. E não havia nada que
pudesse fazer.
Estava tão perdida nos meus pensamentos que só percebi que não
estava sozinha quando o Príncipe Maxon falou:
— Está bem, minha querida? — perguntou-me.
— Não sou a sua querida. — Levantei a cabeça e encarei-o, furiosa.
Era impossível não notar o desprezo no meu tom de voz ou nos meus olhos.
— Fiz algo que a ofendesse? Por acaso não lhe dei aquilo que mais
desejava? — Ele estava verdadeiramente confuso com a minha resposta.
Acho que esperava que o adorássemos e agradecêssemos às estrelas pela
sua existência.
Encarei-o novamente sem medo, embora o impacto fosse certamente
suavizado pelas minhas bochechas molhadas pelas lágrimas.
— Desculpe-me, minha querida, mas vai continuar a chorar? —
perguntou ele, parecendo muito incomodado com a ideia.
— Não me chame assim! Sou tão sua querida como as outras trinta e
quatro estranhas que mantém aqui na sua jaula.
Ele aproximou-se, sem parecer minimamente ofendido pelas minhas
palavras rudes. Apenas parecia... pensativo. Tinha uma expressão
interessante no rosto.
O seu andar era gracioso para um rapaz e ele parecia incrivelmente à
vontade enquanto se movia em meu redor. A minha coragem diminuiu um
pouco diante da estranheza da situação. Ele estava completamente vestido,
com o seu fato elegante, e eu estava encolhida e seminua. Se o seu estatuto
não me intimidava o suficiente, a sua atitude fazia-o. Ele devia ter uma
vasta experiência a lidar com pessoas infelizes, já que se manteve
extremamente calmo enquanto respondia.
— Essa afirmação é injusta. Todas vocês são queridas para mim.
Trata-se simplesmente de descobrir quem irá ser a mais querida.
— Não posso acreditar que disse «irá ser»!
Ele riu-se baixinho: — Receio que sim. Perdoe-me. É o fruto da
minha educação.
— Educação — resmunguei, revirando os olhos. — Ridículo.
— Perdão? — perguntou ele.
— É ridículo! — gritei, recuperando um pouco da minha coragem.
— O que é ridículo?
— Este concurso! Tudo! Será que nunca amou ninguém na vida? É
assim que quer escolher uma esposa? É realmente assim tão superficial? —
Virei-me um pouco, ainda sentada. Para me facilitar as coisas, ele sentou-se
no banco para que eu não precisasse de me torcer toda, mas estava
demasiado perturbada para sentir gratidão.
— Entendo que possa dar essa impressão, que tudo isto possa ser
encarado como entretenimento barato. Mas o meu mundo é muito fechado.
Não conheço assim tantas mulheres e as poucas que conheço são filhas de
diplomatas. Não costumamos ter muitos assuntos em comum, e isso quando
conseguimos falar a mesma língua.
O Maxon parecia achar tudo aquilo engraçado e riu baixinho. Não
achei graça. Ele aclarou a garganta:
— Dadas as circunstâncias, nunca tive a oportunidade de me
apaixonar. E você?
— Eu, sim — respondi simplesmente. Assim que as palavras me
saíram da boca, desejei morder a língua. Era um assunto pessoal e ele não
tinha nada a ver com isso.
— Então, teve muita sorte. — Havia inveja na sua voz.
Imaginem! A única coisa que podia atirar à cara do príncipe de Illéa
era exatamente aquilo que estava aqui para esquecer.
— A minha mãe e o meu pai casaram-se deste modo e são muito
felizes. Espero também eu encontrar a felicidade; uma mulher que toda a
Illéa possa amar, alguém que possa ser a minha companheira e que me
ajude a receber os líderes das outras nações. Alguém que possa ser amiga
dos meus amigos e minha confidente. Estou pronto para encontrar a minha
esposa.
Algo na sua voz me tocou. Não havia qualquer ponta de sarcasmo.
Aquilo que me parecia ser pouco mais do que um programa de televisão era
a sua única hipótese de ser feliz. Não podia tentar novamente com um
segundo lote de mulheres, bom, talvez pudesse, mas seria embaraçoso.
Estava tão desesperado, tão esperançoso. Senti que a minha antipatia por ele
diminuía. Um pouco.
— Acha realmente que isto é uma jaula? — Os olhos dele estavam
cheios de compaixão.
— Sim. — A minha voz saiu calma. Acrescentei rapidamente: —
Vossa Majestade.
Ele riu-se:
— Já me senti assim mais de uma vez, mas tem de admitir que é uma
bela jaula.
— Para si. Encha essa jaula com trinta e quatro homens todos a lutar
pela mesma coisa e depois veja se continua a ser agradável.
Ele ergueu o sobrolho.
— Já houve realmente discussões por minha causa? Será que não
percebem que quem escolhe sou eu? — disse, rindo.
— Na verdade, não é bem assim. Elas discutem por duas coisas:
algumas lutam por si, outras pela coroa e todas acham que já sabem o que
devem dizer e fazer para que a sua escolha seja óbvia.
— Ah, sim. O homem ou a coroa. Receio que algumas não consigam
ver a diferença. — Abanou a cabeça.
— Boa sorte com isso — respondi, secamente.
Depois da minha demonstração de sarcasmo, ficámos em silêncio
durante algum tempo. Olhei-o de soslaio, esperando que falasse. Ele fitava
um ponto na relva com o rosto carregado de preocupação; esta parecia ser
uma ideia que já o atormentava há algum tempo. Respirou fundo e virou-se
para mim:
— E você, por qual luta?
— Na verdade, estou aqui por engano.
— Engano?
— Sim. Bem, mais ou menos. É uma longa história e agora... estou
aqui. E não estou a lutar. O meu plano é desfrutar da comida até que me
mande embora.
Ele desatou às gargalhadas, rindo tanto que se inclinou para a frente
dando palmadas nos joelhos. Era uma mistura bizarra de rigidez e calma.
— Você é o quê? — perguntou.
— Como?
— Dois? Três?
Será que não tinha reparado mesmo em nada? — Sou Cinco.
— Ah, sim. Então a comida deve ser um bom motivo para ficar. —
Riu-se de novo e continuou: — Desculpe, não consigo ler o seu alfinete no
escuro.
— Chamo-me America.
— Ótimo. Perfeito. — O Maxon dirigiu de novo o olhar para a noite e
sorriu para o vazio. Alguma coisa no meio de tudo isto o divertia. —
America, minha querida, espero sinceramente que encontre algo nesta jaula
por que valha a pena lutar. Neste momento, não posso deixar de imaginar
como seria se realmente tentasse.
Levantou-se do banco e agachou-se ao meu lado. Estava demasiado
perto e eu não conseguia pensar. Talvez estivesse um pouco estonteada pela
sua importância ou ainda um pouco abalada pelo choro. Em todo caso,
estava demasiado espantada para protestar quando ele me pegou na mão.
— Se isso a deixar feliz, posso dizer ao pessoal que a menina gosta do
jardim. Assim, pode vir aqui à noite sem ser incomodada pelos guardas.
Mas prefiro que tenha sempre um deles por perto.
Isto era algo que eu desejava, qualquer tipo de liberdade me parecia
uma bênção, mas ele tinha de ficar bem ciente de quais eram os meus
sentimentos.
— Acho... acho que não quero nada de si. — Retirei os meus dedos da
sua mão.
Ele ficou um pouco surpreendido e magoado:
— Como queira.
Senti ainda mais arrependimento; lá por não gostar dele não
significava que quisesse magoá-lo.
— Vai voltar para dentro em breve?
— Sim — murmurei, olhando para o chão.
— Então, vou deixá-la com os seus pensamentos. Haverá um guarda
perto da porta à sua espera.
— Obrigada... Vossa Majestade. — Abanei a cabeça. Quantas vezes é
que me tinha dirigido incorretamente a ele nesta conversa?
— Querida America, pode fazer-me um favor? — Pegou novamente
na minha mão. Era persistente.
Semicerrei os olhos, sem saber bem o que responder:
— Talvez.
O sorriso voltou: — Não comente isto com as outras. Tecnicamente,
não devo conhecer-vos antes de amanhã e não quero aborrecer ninguém.
Embora não se possa dizer que tê-la aos gritos comigo seja propriamente
um encontro romântico, não acha?
Foi minha vez de sorrir:
— Claro que não! — Respirei fundo e acrescentei: — Não direi nada.
— Obrigado. — Ele ergueu a minha mão e tocou-lhe com os lábios.
Depois, antes de se afastar, pousou-a delicadamente no meu colo: — Boa
noite.
Olhei para o ponto cálido na minha mão, atónita por um instante.
Depois, virei-me para o observar enquanto ele se afastava, dando-me a
privacidade por que ansiara o dia todo.
Capítulo 11

Na manhã seguinte, não acordei com o barulho das aias a entrar no


meu quarto — elas já lá estavam — nem com o som da água a correr para o
meu banho — que já estava pronto. Despertei com a luz que entrou pela
janela quando a Anne abriu suavemente as cortinas ricas e pesadas. Ela
cantarolava baixinho, perfeitamente feliz com sua tarefa.
Ainda não estava pronta para me mexer. Demorara muito tempo a
acalmar-me depois de tanto nervosismo e mais tempo ainda a relaxar depois
de ter compreendido exatamente o que implicaria aquela conversa no
jardim. Se tivesse uma oportunidade, pediria desculpa ao Maxon. Seria um
milagre se ele me deixasse sequer aproximar-me.
— Menina? Está acordada?
— Nãoooo — resmunguei contra a almofada. Não tinha dormido o
suficiente e a cama era demasiado confortável. Mas a Anne, a Mary e a
Lucy riram-se do meu queixume, o que bastou para me fazer sorrir e decidir
começar a mexer-me.
Estas raparigas seriam provavelmente aquelas com quem seria mais
fácil dar-me no palácio. Perguntei-me se poderiam tornar-se uma espécie de
confidentes, ou se a sua formação e o protocolo as impediriam de tomar
sequer uma chávena de chá comigo. Embora tivesse nascido uma Cinco,
estava transformada agora numa Três e o facto de serem aias significava
que eram todas Seis. Mas isso não me importava, eu gostava da companhia
dos Seis.
Dirigi-me lentamente para a gigantesca casa de banho, cada passo
ecoando numa vastidão de azulejos e vidro. Pelos espelhos compridos vi a
Lucy reparar nas manchas de terra na minha camisa de noite, depois os
olhos cuidadosos da Anne também as detetaram e, por fim, a Mary.
Felizmente, nenhuma delas fez perguntas. Ontem, tinha pensado que
estavam a tentar intrometer-se na minha vida com tantas perguntas, mas
estava errada; estavam obviamente bastante preocupadas com meu
conforto. Perguntas sobre o que estivera a fazer fora do quarto — quanto
mais do palácio — seriam simplesmente embaraçosas.
Limitaram-se a tirar-me a camisa de noite com cuidado e conduziram-
me para a banheira.
Não estava habituada a despir-me diante de outras pessoas — nem
mesmo da minha mãe ou da May —, mas aparentemente não havia forma
de o evitar. Estas três iriam vestir-me enquanto permanecesse no palácio,
portanto teria de aguentar até me ir embora. Imaginei o que lhes aconteceria
quando partisse. Seriam destacadas para outras concorrentes que
precisassem de mais atenção à medida que a competição avançava? Teriam
outras funções no palácio, das quais haviam sido temporariamente
dispensadas? Parecia-me indelicado perguntar o que faziam antes, ou
sugerir que me iria embora em breve e por isso não disse nada.
A seguir ao banho, a Anne secou-me o cabelo, prendendo uma parte
no alto da cabeça com as fitas que eu trouxera de casa. Eram azuis e,
portanto, combinavam com as flores de um dos vestidos informais que
tinham criado para mim. Por essa razão decidi usá-lo. A Mary maquilhou-
me, tão ligeiramente como no dia anterior, e a Lucy aplicou loção nos meus
braços e pernas.
Tinha uma série de joias à minha disposição, mas em vez disso preferi
a minha própria caixa; trouxera um pequeno fio com um passarinho a
cantar, que o meu pai me tinha dado. Era prateado e portanto combinava
com meu alfinete. Escolhi um par de brincos do inventário real, mas eram
provavelmente os mais pequenos da coleção.
A Anne, a Mary e a Lucy olharam bem para mim e sorriram perante o
resultado. Encarei isso como um sinal de que estava suficientemente
decente para descer para o pequeno-almoço. Com vénias e sorrisos, as três
desejaram-me sorte antes de eu sair. As mãos de Lucy tremiam de novo.
Dirigi-me ao vestíbulo do segundo andar, onde nos tínhamos
encontrado todas ontem. Fui a primeira a chegar, por isso sentei-me num
pequeno sofá à espera das outras. Aos poucos, começaram a aparecer.
Percebi rapidamente que havia uma tendência. Todas estavam
espetaculares. Tinham os cabelos presos em penteados com tranças ou
caracóis complicados, a maquilhagem fora feita com esmero e os vestidos
estavam perfeitamente engomados.
Provavelmente, eu escolhera o meu vestido mais simples para o
primeiro dia, enquanto todas as outras tinham vestido algo com brilho. Vi
duas raparigas chegarem ao vestíbulo, perceberem que tinham vestidos
praticamente iguais e darem meia-volta para trocar de roupa. Todas queriam
destacar-se e todas o haviam conseguido, à sua maneira. Até eu.
Todas pareciam pertencer à casta Um. Eu parecia uma Cinco com um
vestido bonito.
Achava que tinha demorado muito tempo para me arranjar, mas as
outras demoraram muito, mas muito mais. Quando a Sílvia chegou para nos
acompanhar, ainda tivemos de esperar pela Celeste e pela Tiny, a qual,
fazendo jus ao seu nome1, teve de mandar apertar o seu vestido de manhã.
Quando estávamos finalmente reunidas, começámos a avançar em
direção às escadas. Havia um espelho dourado na parede e todas nos
virámos para ele para uma última olhadela antes de descermos. Vi-me
refletida ao lado da Marlee e da Tiny. Parecia completamente deslavada.
Mas pelo menos continuava a parecer eu mesma, o que era um
pequeno consolo.
Descemos as escadas, esperando ser levadas até à sala de jantar, onde
nos haviam dito que iríamos tomar as refeições, mas, em vez disso,
conduziram-nos ao Grande Salão, onde mesas e cadeiras individuais, cada
uma com pratos, copos e talheres, tinham sido dispostas em filas. Mas não
havia comida. Nem sequer um aroma que nos desse esperança. À nossa
frente, encaixados numa espécie de recanto, reparei num pequeno conjunto
de sofás. Alguns operadores de câmara espalhados pelo salão filmavam a
nossa chegada.
Entrámos em fila e sentámo-nos onde quisemos, já que não havia
lugares marcados. A Marlee estava na fila à minha frente e a Ashley ficou à
minha direita. Não me preocupei em procurar mais ninguém. Parecia que
várias raparigas tinham feito pelo menos uma aliada, tal como eu ganhara
uma na Marlee. A Ashley escolheu a cadeira ao meu lado, portanto assumi
que queria a minha companhia. Ainda assim, não disse nada. Talvez
estivesse aborrecida por causa do noticiário da noite anterior, mas, por outro
lado, já era calada quando nos conhecemos. Talvez fosse apenas o seu modo
de ser. Imaginei que o pior que podia acontecer era ela não me responder,
portanto resolvi pelo menos cumprimentá-la.
— Ashley, estás linda.
— Ah, obrigada — agradeceu suavemente. Olhámos ambas em redor
para confirmar que as equipas de filmagem estavam longe. Não que a nossa
conversa fosse secreta, mas ninguém queria tê-los sempre por perto. — Não
é divertido usar todas estas joias? Onde estão as tuas?
— Mmh, eram demasiado pesadas para o meu gosto. Preferi vir mais
leve.
— São mesmo pesadas! Sinto-me como se tivesse dez quilos em cima
da cabeça. Mas não ia perder a oportunidade. Quem sabe por quanto tempo
vamos cá ficar?
Que engraçado. A Ashley tinha demonstrado sempre uma confiança
tranquila desde o início e a sua aparência e o modo como se comportava
demonstravam que fora talhada para ser uma verdadeira princesa; por isso,
era estranho vê-la duvidar de si mesma.
— Mas não achas que vais ganhar? — perguntei.
— Claro — murmurou ela. — Mas é falta de educação dizê-lo! —
Piscou-me o olho e eu soltei uma risada.
Mais um erro meu. A minha risada chamou a atenção da Sílvia, que
acabara de entrar.
— Tss, tss. Uma senhora nunca levanta a voz acima de um murmúrio
suave.
Todos os sussurros cessaram. Perguntei-me se as câmaras teriam
captado o meu erro e as minhas faces escaldaram.
— Olá mais uma vez, minhas senhoras. Espero que tenham tido uma
primeira noite descansada, porque o nosso trabalho começa agora. Hoje,
começarei por vos ensinar comportamento e etiqueta, um processo que irá
continuar durante todo o tempo que estiverem aqui. Por favor, saibam que
qualquer erro da vossa parte será imediatamente comunicado à família real.
»Sei que parece cruel, mas isto não é um jogo qualquer. Alguém nesta
sala será a próxima princesa de Illéa. Não é uma tarefa fácil. Têm de
procurar elevar-se, independentemente da vossa condição anterior. Serão
transformadas em ladies de alto a baixo. E, esta manhã, vão receber a vossa
primeira lição.
»Os modos à mesa são muito importantes e, antes de poderem tomar
uma refeição na presença da família real, têm de conhecer a etiqueta
correta. Quanto mais depressa terminarmos esta lição, mais depressa
tomarão o vosso pequeno-almoço. Portanto, virem-se todas para mim, por
favor.
A Sílvia começou por explicar como seríamos servidas pela direita,
qual o copo que deveríamos usar para cada bebida e que nunca, jamais,
deveríamos agarrar numa fatia de bolo com as mãos. Devíamos usar sempre
uma tenaz. Quando não estávamos a usar as mãos, elas deviam permanecer
no colo, em cima do guardanapo dobrado, e não devíamos falar a não ser
que alguém falasse connosco. Podíamos conversar em tom baixo com os
vizinhos, mas sempre num timbre adequado ao palácio. Encarou-me, séria,
quando deu a última instrução.
A Sílvia continuou a falar no seu tom de voz elegante, provocando o
meu estômago. Embora fossem pequenas, estava habituada a fazer três
refeições em casa. Precisava de comer. Já estava a ficar um pouco irritadiça
quando ouvimos uma batida na porta. Os dois guardas afastaram-se e o
Príncipe Maxon entrou.
— Bom dia, minhas senhoras — cumprimentou.
A mudança no salão foi evidente: as jovens endireitaram as costas,
afastaram o cabelo do rosto e ajeitaram os vestidos. Não olhei para o
Maxon, mas sim para a Ashley, cujo peito se movia num ritmo acelerado.
Ela olhava para ele de tal maneira que fiquei envergonhada por ter
reparado.
— Vossa Majestade — cumprimentou a Sílvia, com uma vénia
profunda.
— Olá, Sílvia. Se não se importar, gostaria de me apresentar a estas
jovens.
— Com certeza. — Ela fez nova vénia.
O Príncipe Maxon percorreu o salão com o olhar e viu-me.
Os nossos olhos encontraram-se por um instante e ele sorriu. Não
estava à espera disso. Achava que teria provavelmente mudado de opinião,
durante a noite, sobre como agir em relação a mim e que seria repreendida
em frente de toda a gente pelo meu comportamento. Mas talvez ele não
estivesse irritado. Talvez me tivesse achado divertida. Sem dúvida que
devia aborrecer-se imenso aqui. Fosse qual fosse a razão, aquele breve
sorriso fez-me acreditar que, afinal, talvez esta experiência não fosse assim
tão má. Assumi a decisão que não tinha conseguido tomar na noite anterior
e esperei que o Príncipe Maxon ouvisse as minhas desculpas.
— Minhas senhoras, se não se importarem, irei chamar-vos uma de
cada vez para me conhecerem. Tenho a certeza de que estão com fome, tal
como eu, de modo que não vos tomarei muito tempo. E perdoem-me se não
decorar logo todos os vossos nomes; é que vocês são muitas.
Ouviu-se um rumor de gargalhadinhas. Ele dirigiu-se rapidamente à
rapariga na ponta direita da primeira fila e acompanhou-a até aos sofás. Os
dois conversaram durante alguns minutos e depois levantaram-se. Ele
inclinou-se diante dela, ela devolveu a reverência e depois voltou para a sua
mesa e disse alguma coisa à jovem ao seu lado. E o processo repetiu-se.
Estas conversas duravam poucos minutos e decorriam em voz baixa. Ele
estava a tentar ficar com uma ideia de cada jovem em menos de cinco
minutos.
— O que será que ele quer saber? — perguntou a Marlee, virando-se
para mim.
— Talvez queira saber quais os atores que achas mais bonitos. Faz
uma lista mental — sussurrei de volta, e tanto a Marlee como a Ashley se
riram baixinho.
Não éramos as únicas a conversar. Por todo o salão, as vozes
ondulavam em murmúrios suaves, enquanto tentávamos distrair-nos até
chegar a nossa vez. Para não falar nos operadores de câmara que saltitavam
de um lado para o outro, perguntando a todas como fora o seu primeiro dia
no palácio, se tinham gostado das aias e coisas do género. Quando pararam
perto da Ashley e de mim, deixei-a responder a tudo.
Continuei a olhar para os sofás, enquanto cada uma das Selecionadas
era entrevistada. Algumas permaneciam calmas e formais, enquanto outras
estremeciam de tanta excitação. A Marlee corou como um pimentão quando
chegou a sua vez de se aproximar do Príncipe Maxon e tinha um sorriso
radiante quando voltou. A Ashley alisou o vestido várias vezes, num tique
nervoso.
Eu estava quase a suar quando ela voltou, já que isso significava que
era a minha vez. Respirei fundo e controlei-me. Ia pedir um favor enorme.
Ele levantou-se e olhou para o meu alfinete quando me aproximei:
— America, certo? — perguntou, com um sorriso brincalhão nos
lábios.
— Sim. E sei que já ouvi o seu nome antes, mas podia refrescar-me a
memória? — disse, pensando se seria má ideia começar com uma piada,
mas o Maxon riu-se e indicou-me que me sentasse.
Depois, inclinou-se para mim e perguntou:
— Dormiu bem, minha querida?
Não sei qual foi a expressão no meu rosto quando me tratou assim,
mas os olhos dele brilhavam, divertidos.
— Continuo a não ser a sua querida — retorqui, mas desta vez com
um sorriso. — Mas sim. Assim que me acalmei, dormi muito bem. As
minhas aias tiveram de me arrastar para fora da cama. Era demasiado
confortável.
— Fico contente por se ter sentido confortável, minha... America —
corrigiu-se.
— Obrigada — respondi. Torci nervosamente uma ponta do meu
vestido, procurando encontrar as palavras certas. — Lamento imenso ter
sido mal-educada. Quando estava a tentar adormecer, percebi que, embora
esta seja uma situação estranha para mim, não posso culpá-lo. Não foi por
sua causa que me meti nisto e a Seleção nem sequer é uma ideia sua. E
depois, quando eu me sentia infeliz, tratou-me com simpatia enquanto eu
fui, bem, horrível. Podia ter-me expulsado ontem, mas não o fez. Obrigada.
O olhar do Maxon era terno. Aposto que todas as raparigas antes de
mim se tinham derretido quando olhou para elas deste modo. Eu teria ficado
incomodada com um olhar assim, mas era obviamente parte da sua
personalidade. Ele baixou a cabeça por um instante e, quando olhou
novamente para mim, inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos
joelhos como se quisesse fazer-me entender a importância do que ia dizer.
— America, tem sido muito sincera comigo até agora. É uma
qualidade que admiro profundamente e, por isso, vou pedir-lhe que tenha a
bondade de me responder a uma pergunta.
Assenti com a cabeça, um pouco receosa do que ele poderia querer
saber. Ele inclinou-se ainda mais na minha direção para murmurar: — Diz
que está aqui por engano, portanto suponho que não queira ficar. Há alguma
possibilidade de nutrir algum tipo de... sentimento romântico por mim?
Não consegui evitar mexer-me nervosamente. Não queria magoá-lo de
modo nenhum, mas também não podia continuar a fingir:
— Vossa Majestade é muito gentil e atraente e atencioso. — Ele sorriu
perante as minhas palavras. Baixei a voz e acrescentei: — Mas por razões
pertinentes, não creio que possa.
— Pode explicar porquê? — Não o demonstrava no rosto, mas a sua
voz revelou o desapontamento causado pela minha rejeição imediata.
Imaginei que não estivesse habituado a isso.
Não era algo que quisesse partilhar, mas não consegui pensar noutra
forma de o fazer entender. Baixando ainda mais a voz para um murmúrio,
contei-lhe a verdade:
— Receio que... o meu coração esteja noutro lado. — Senti os meus
olhos marejarem-se.
— Oh, por favor, não chore! — O murmúrio do Maxon estava
carregado de genuína preocupação. — Nunca sei o que fazer quando vejo
mulheres a chorar!
Isto fez-me rir e a ameaça das lágrimas desapareceu momenta‐
neamente. O alívio espelhado no seu rosto era óbvio.
— Gostaria que a deixasse voltar para junto do seu amor hoje? —
perguntou ele. Era evidente que a minha preferência por outro o
incomodava, mas em vez de ficar irritado, demonstrou compaixão. Esse
gesto fez-me confiar nele.
— O problema é esse... Não quero ir para casa.
— A sério? — Ele passou os dedos pelo cabelo e eu não pude deixar
de rir perante o seu ar perdido.
— Posso ser completamente sincera consigo? — perguntei.
Ele anuiu.
— Preciso de ficar aqui. A minha família precisa que eu fique. Se me
pudesse deixar ficar só uma semana, já seria uma dádiva para eles.
— Quer dizer que precisam do dinheiro?
— Sim. — Senti-me mal por admiti-lo. Dava a impressão de que
estava a usá-lo e, na verdade, acho que estava. Mas ainda havia mais: — E,
além disso, há... certas pessoas lá... — Ergui os olhos para ele. — ...que não
conseguiria encarar neste momento.
O Maxon assentiu com a cabeça, compreendendo, mas não disse nada.
Hesitei. Imaginei que o pior que poderia acontecer seria mandarem-
me embora, por isso continuei: — Se me deixar ficar, mesmo que por pouco
tempo, gostaria de lhe propor um acordo — acrescentei.
Ele ergueu o sobrolho: — Um acordo?
Mordi os lábios: — Se me deixar ficar... — Isto ia parecer tão
estúpido. — Enfim, vejamos, é o príncipe, está ocupado o dia inteiro a
ajudar a governar o país e tudo isso e ainda tem de arranjar tempo para
escolher uma esposa entre trinta e cinco candidatas, ou melhor, trinta e
quatro. É pedir muito, não acha?
Ele concordou. Conseguia ver a sua exaustão sincera só de pensar
nisso.
— Não seria muito melhor se tivesse alguém do lado de dentro?
Alguém para o ajudar? Tipo... uma amiga?
— Uma amiga? — perguntou ele.
— Sim. Deixe-me ficar e eu ajudo-o. Serei a sua amiga.
As minhas palavras fizeram-no sorrir.
— Não precisa de se preocupar em cortejar-me, já sabe que não sinto
nada por si, mas pode falar comigo quando quiser e eu tentarei ajudar.
Ontem à noite, disse que estava à procura de uma confidente. Bem, até
encontrar uma em definitivo, eu posso ser essa pessoa. Se quiser...
A sua expressão era afetuosa, mas reservada: — Falei com quase
todas as jovens neste salão e não consigo imaginar outra que pudesse ser
uma amiga melhor. Será um prazer deixá-la ficar.
Era impossível descrever o alívio que senti.
— Será que... — perguntou ele — ... posso continuar a tratá-la por
«minha querida»?
— De modo nenhum — sussurrei.
— Vou continuar a tentar. Não sou pessoa de desistir. — Acreditei
nele. Iria ser muito aborrecido se continuasse a insistir naquilo.
— Chamou-lhes isso a todas? — perguntei, apontando com a cabeça
para o resto do salão.
— Sim, e todas pareceram gostar.
— E exatamente por essa razão que não gosto. — Levantei-me.
O Maxon ainda se ria quando se levantou também. Normalmente, eu
teria franzido o sobrolho, mas até que era engraçado. Ele fez uma vénia, eu
respondi com uma reverência e depois regressei ao meu lugar.
Estava com tanta fome que me pareceu uma eternidade até o príncipe
terminar de entrevistar as raparigas das filas restantes. Mas, finalmente, a
última candidata regressou ao seu lugar e eu sonhava já ansiosamente com
o meu primeiro pequeno-almoço no palácio.
O Maxon aproximou-se do centro do salão:
— Aquelas a quem pedi que ficassem, por favor, permaneçam nos
seus lugares. As outras podem acompanhar a Sílvia até à sala de jantar.
Juntar-me-ei a vocês em breve.
Ele tinha pedido a algumas que ficassem? Seria um bom sinal?
Levantei-me juntamente com a maioria das outras e comecei a andar.
Provavelmente, só queria passar mais alguns momentos com essas
raparigas. Vi que a Ashley era uma delas. Era sem dúvida especial; só a sua
aparência indicava uma princesa. As outras eram raparigas que nem tinha
chegado a conhecer, não que elas me quisessem conhecer a mim. As
câmaras ficaram para trás para captar aquele momento especial — o que
quer que fosse — e o resto de nós seguiu o seu caminho.
Entrámos no Salão de Banquetes e ali, mais majestosos do que nunca,
encontravam-se o Rei Clarkson e a Rainha Amberly. Na sala estavam
também mais câmaras e técnicos, prontos para captar o nosso primeiro
encontro com o casal real. Hesitei, pensando se deveríamos voltar para a
porta e esperar que nos convidassem a entrar. Mas quase todas as outras,
ainda que de modo hesitante, continuaram a avançar. Dirigi-me rapidamente
para a minha cadeira, na expetativa de não ter atraído a atenção de ninguém.
A Sílvia entrou segundos depois e captou imediatamente a situação:
— Minhas senhoras — disse —, receio que não tenhamos chegado a
conversar sobre isto. Sempre que entrarem numa sala onde se encontrem o
rei ou a rainha, ou se Suas Majestades entrarem numa sala onde vocês
estiverem, a atitude correta é fazerem uma vénia. Depois, quando se
dirigirem a vocês, podem erguer-se e tomar os vossos assentos. Vamos fazê-
lo juntas, agora. — Fizemos todas uma vénia na direção da mesa.
— Bom dia, meninas — disse a rainha. — Por favor, sentem-se e
sejam bem-vindas ao palácio. É um prazer recebê-las. — A sua voz tinha
um tom agradável. Era calma, tal como a expressão do seu rosto, mas cheia
de vida.
Tal como a Sílvia dissera, os criados surgiram pelo nosso lado direito
e encheram os nossos copos com sumo de laranja. Os nossos pratos foram
trazidos em grandes travessas, cobertos com uma tampa que os mordomos
retiraram à nossa frente. Fui atingida no rosto por uma onda de vapor
perfumado vinda das panquecas. Felizmente, os murmúrios de admiração
em redor da sala abafaram os roncos do meu estômago.
O Rei Clarkson abençoou a nossa refeição e começámos a comer.
Minutos depois, o Maxon entrou na sala, mas antes que pudéssemos
mexer-nos, ele deteve-nos: — Por favor, minhas senhoras, não se levantem.
Desfrutem do vosso pequeno-almoço.
Dirigiu-se para a mesa principal, beijou a mãe no rosto, deu uma
palmadinha no ombro do pai e sentou-se à sua esquerda. Fez alguns
comentários para o mordomo mais próximo, que se riu discretamente, e
começou a comer.
A Ashley não apareceu. Nem nenhuma das outras. Olhei em volta,
confusa, contando para ver quantas faltavam. Oito. Oito raparigas não
estavam aqui.
Foi a Kriss, sentada à minha frente, quem respondeu à pergunta que
dançava nos meus olhos.
— Foram-se embora — disse.
Embora? Oh, embora...
Não conseguia imaginar o que poderiam ter feito em menos de cinco
minutos para desagradar ao Maxon, mas fiquei subitamente grata por ter
decidido ser sincera.
E assim, num abrir e fechar de olhos, estávamos reduzidas a vinte e
sete.
Capítulo 12

As equipas de filmagem deram uma volta pela sala e depois saíram,


deixando-nos a desfrutar do nosso pequeno-almoço em paz, mas não sem
antes filmarem o príncipe mais uma vez.
Sentia-me um pouco perturbada com aquela eliminação súbita, mas o
Maxon não parecia preocupado. Comia tranquilamente e, ao vê-lo, percebi
que era melhor terminar o meu próprio pequeno-almoço antes que
arrefecesse. Mais uma vez, era quase demasiado delicioso. O sumo de
laranja era tão puro que tinha de o beber em pequenos goles, só para
conseguir absorvê-lo. Os ovos e o bacon eram divinais e as panquecas
estavam perfeitas e não demasiado finas como as que eu fazia em casa.
Conseguia ouvir vários pequenos suspiros em redor da sala e percebi
que não era a única a desfrutar da comida. Sem me esquecer de usar a tenaz,
tirei uma fatia de tarte de morango do cesto que estava no centro da mesa.
Enquanto o fazia, percorri a sala com o olhar para ver como as outras Cinco
estavam a saborear a refeição. Foi então que notei que era a única Cinco
que restava.
Não sabia se o Maxon tinha consciência disso — ele mal parecia saber
os nossos nomes —, mas era estranho o facto de terem saído ambas. Se não
o tivesse conhecido antes de entrar naquele salão, será que também teria
sido expulsa? Ruminei essa ideia enquanto mordiscava a tarte de morango.
Era tão doce e a massa tão fina que me concentrei completamente no seu
sabor, esquecendo todos os meus outros sentidos. Não pretendia gemer
baixinho, mas aquela tarte era, sem dúvida, a coisa mais deliciosa que já
provara. Dei outra dentada antes mesmo de engolir o que tinha na boca.
— Lady America? — chamou uma voz.
Todas as cabeças se viraram na direção do dono da voz, que não era
outro senão o Príncipe Maxon. Surpreendeu-me que se dirigisse a mim, ou
a qualquer uma de nós, de modo tão informal à frente de todos.
Mas pior do que ter sido chamada assim, inesperadamente, era o facto
de a minha boca estar cheia de comida. Tapei-a com a mão e mastiguei o
mais rápido que consegui. Não devo ter demorado mais do que alguns
segundos, mas, com tantos olhares fixos em mim, pareceu-me uma
eternidade. Notei a expressão satisfeita da Celeste, enquanto eu tentava
engolir a tarte. Devia achar-me uma presa fácil.
— Sim, Vossa Majestade? — respondi, assim que engoli a maior parte
da tarte.
— O que acha da comida? — O Maxon parecia estar à beira do riso,
mas não sei se era devido ao meu ar estupefacto, ou porque mencionara um
pormenor da nossa primeira e completamente não autorizada conversa.
Procurei manter-me calma: — Excelente, Vossa Majestade. Esta tarte
de morango... bem, tenho uma irmã que gosta de doces ainda mais do que
eu e acho que choraria se a provasse. É perfeita.
O Maxon engoliu uma garfada do seu próprio pequeno-almoço e
recostou-se na cadeira: — Acha mesmo que choraria? — Parecia estar
divertidíssimo com a ideia. Tinha realmente sentimentos estranhos em
relação às mulheres e ao seu choro.
Pensei no que dissera: — Sim, acho que sim. Ela não consegue
controlar muito bem as emoções.
— Apostaria nisso, a dinheiro? — perguntou ele rapidamente. Reparei
que todas as outras viravam a cabeça de um para o outro, como se
estivessem a assistir a uma partida de ténis.
— Se tivesse dinheiro para apostar, sim, com certeza — respondi,
sorrindo perante a ideia de apostar sobre as lágrimas de alegria alheias.
— E o que estaria disposta a apostar em vez disso? Parece ter um
talento especial para fazer acordos. — Ele estava a gostar do jogo. Muito
bem. Eu também jogaria.
— Bem, o que gostaria que apostasse? — contrapus, tentando
imaginar o que poderia dar a alguém que já tinha tudo.
— Não, o que é que você gostaria de apostar? — replicou ele.
Ali estava uma pergunta fascinante. Quase tão interessante como
pensar no que poderia oferecer ao Maxon era imaginar o que ele poderia
oferecer-me a mim. Afinal, ele tinha o mundo inteiro aos seus pés, portanto,
o que é que eu queria?
Não era da casta Um, mas estava a viver como se fosse. Tinha mais
comida do que podia consumir e a cama mais confortável que podia
imaginar. Havia pessoas a cuidarem de todas as minhas necessidades,
independentemente de o desejar ou não, e se precisasse de alguma coisa
bastava-me pedir.
A única coisa que realmente queria era algo que fizesse com que este
lugar se parecesse menos com um palácio; ter a minha família por perto,
algures, ou não estar sempre tão bem vestida. Não podia pedir que a minha
família me visitasse, afinal, só ali estava há um dia.
— Se ela chorar, quero poder usar calças durante uma semana —
propus.
Todos se riram, mas de uma forma discreta e educada. Até o rei e a
rainha pareciam ter achado o meu pedido divertido. Gostei do modo como a
rainha olhou para mim, como se me tivesse tornado menos estranha aos
seus olhos.
— Combinado! — disse o Maxon. — E se ela não chorar, deve-me
um passeio pelos jardins, amanhã à tarde.
Um passeio pelos jardins? Só isso? Não parecia ser nada de especial.
Lembrei-me do que ele dissera na noite anterior, que era vigiado. Talvez
simplesmente não soubesse como pedir um encontro a sós com alguém.
Talvez esta fosse a sua forma de lidar com algo de estranho para ele.
Alguém ao meu lado fez um som de desaprovação. Ah! Percebi então
que, se perdesse, seria a primeira ali a ter um encontro oficial a sós com o
príncipe. Parte de mim quis renegociar, mas se era para o ajudar — como
lhe tinha prometido — não podia rejeitar a sua primeira tentativa de marcar
um encontro.
— Vossa Alteza apresenta condições muito severas, mas aceito.
— Justin? — O mordomo com quem ele tinha conversado antes
avançou. — Faça um embrulho com tartes de morango e envie-as à família
de Lady America. Peça a alguém que espere enquanto a irmã as prova e que
nos informe se ela, de facto, chora. Estou extremamente curioso.
O Justin assentiu e saiu.
— É melhor escrever um bilhete para acompanhar o pacote, dizendo à
sua família que está bem. Na realidade, todas vocês devem escrever às
vossas famílias. Façam isso depois do pequeno-almoço e garantiremos que
as cartas serão entregues ainda hoje.
Todas sorriram e suspiraram aliviadas, felizes por serem finalmente
incluídas na conversa. Terminámos o pequeno-almoço e fomos escrever as
cartas. A Anne arranjou-me papel e envelopes e escrevi um bilhete rápido à
minha família. Embora as coisas tivessem tido um início bastante estranho,
a última coisa que queria era preocupá-los. Tentei parecer alegre.

Queridos pai, mãe, May e Gerad,

Sinto tantas saudades vossas! O príncipe pediu-nos que escre‐


vêssemos para casa para dizer às nossas famílias que estamos bem e
em segurança. Eu estou. A viagem de avião foi um pouco assustadora,
mas, de certo modo, também foi divertida. O mundo parece tão
pequeno lá de cima!
Deram-me montes de roupa e coisas maravilhosas, e tenho três
aias amorosas que me ajudam a vestir, limpam o meu quarto e dizem-
me para onde devo ir. Assim, mesmo quando me sinto completamente
confusa, elas sabem sempre onde devo estar e ajudam-me a chegar a
horas.
A maioria das outras raparigas é tímida, mas acho que fiz uma
amiga. Lembram-se da Marlee, de Kent? Conheci-a a caminho de
Angeles. É muito alegre e simpática. Se tiver de regressar a casa em
breve, espero que ela fique até ao fim.
Conheci o príncipe e também o rei e a rainha. São ainda mais
majestosos em pessoa. Ainda não falei com eles, mas já conversei
com o Príncipe Maxon. É uma pessoa surpreendentemente generosa...
acho.
Tenho de me despedir, mas adoro-vos a todos e sinto saudades.
Escrevo de novo assim que puder.
Beijinhos,

America

Não achei que houvesse nada de surpreendente no texto, mas podia


estar errada. Imaginei a May a ler e a reler a carta, várias vezes, procurando
nas entrelinhas pormenores da minha vida. Será que iria ler antes de comer
as tartes?

P.S.: May, estas tartes de morango não te dão vontade de chorar


por mais?

Pronto. Era o melhor que podia fazer.


Mas, aparentemente, não foi o suficiente. Um mordomo bateu à minha
porta ao fim da tarde com uma carta da minha família e uma informação:
— Ela não chorou, menina. Disse que eram tão boas que davam
vontade de chorar por mais, como lhe disse, mas não o fez de facto. Sua
Majestade virá buscá-la ao seu quarto amanhã por volta das cinco da tarde.
Por favor, esteja preparada.
Não fiquei muito aborrecida por perder, mas teria gostado de poder
usar calças. Mas pelo menos tinha as cartas da minha família. Apercebi-me
de que era a primeira vez que me separava deles por mais do que algumas
horas. Não tínhamos dinheiro para viajar e, como não tivera muitos amigos
em pequena, nunca passara uma noite fora de casa. Se ao menos houvesse
um meio de poder receber cartas todos os dias... Talvez até fosse possível,
mas seria demasiado caro.
Li primeiro a carta do meu pai. Dizia várias vezes que eu estava linda
na televisão e que se sentia orgulhoso de mim. Dizia também que não devia
ter enviado três caixas de tartes porque a May iria acabar estragada com
mimos. Três caixas! Por amor de Deus!
Depois contou que o Aspen estivera lá em casa, a ajudar com a
papelada, e que levara uma das caixas para a sua família. Não tinha bem a
certeza de como me sentir em relação a isso. Por um lado, fiquei contente
por poderem comer algo tão supérfluo, mas, por outro, imaginei o Aspen a
partilhar a tarte com a sua nova namorada. Uma namorada que ele podia
mimar. Perguntei-me se teria ficado com ciúmes do presente do Maxon, ou
se estava feliz por se ter livrado da minha atenção.
Detive-me naquelas linhas muito mais do que gostaria.
O meu pai terminava dizendo que estava contente por eu ter feito uma
amiga, recordando-me que fora sempre tímida nesse aspeto. Dobrei a carta
e acariciei com o dedo a sua assinatura no exterior do envelope. Nunca
tinha reparado na maneira engraçada como ele escrevia o nome.
A carta do Gerad era curta e direta: tinha saudades minhas, dizia que
gostava muito de mim e pedia que mandasse mais comida. Dei uma
gargalhada.
A minha mãe era insistente. Mesmo por escrito, conseguia ouvir o seu
tom de voz, dando-me os parabéns, toda satisfeita por ter conquistado a
atenção do príncipe — o Justin informara-a de que eu fora a única a poder
enviar prendas para casa — e dizendo-me firmemente que continuasse a
fazer o que quer que fosse que estava a fazer.
Claro, mãe. Vou continuar a dizer ao príncipe que não tem qualquer
hipótese comigo e a ofendê-lo sempre que puder. Excelente plano.
Fiquei contente por ter guardado a carta da May para o fim.
Era extremamente alegre e viva. Admitia que tinha ficado com inveja
por saber que eu comia coisas daquelas o tempo todo e também se queixava
de que a mãe agora andava muito mais em cima dela. Eu sabia como ela se
sentia. O resto era uma torrente de perguntas: o Maxon era tão bonito
pessoalmente como na televisão? Que roupas é que eu usava agora? Será
que podia vir visitar-me ao palácio? O Maxon tinha algum irmão secreto,
disposto a casar-se com ela um dia?
Ri-me e abracei as cartas. Teria de me esforçar para responder em
breve. Devia haver um telefone algures, mas até agora ninguém nos tinha
dito onde. No entanto, mesmo que houvesse um no meu quarto, seria um
exagero ligar para casa todos os dias. Além disso, era divertido conservar
aquelas cartas. Seriam provas de que estivera realmente ali quando tudo isto
se transformasse numa vaga recordação.
Fui para a cama reconfortada por saber que a minha família estava
bem e esse sentimento caloroso embalou-me, ajudando-me a cair num sono
profundo, perturbado apenas pela ponta de ansiedade por saber que iria
ficar outra vez a sós com o Maxon. Não conseguia perceber o motivo dos
meus nervos, mas esperava que não fosse nada.
***
— Em nome das aparências, poderia apoiar-se no meu braço? —
pediu o príncipe, quando foi buscar-me ao quarto no dia seguinte. Hesitei
um pouco, mas acedi.
As minhas aias já me tinham enfiado num vestido de noite: era azul,
de linha império e mangas recortadas. Os meus braços estavam nus e
conseguia sentir contra a minha pele o toque do tecido engomado do fato de
Maxon. Havia algo em tudo isto que me deixava desconfortável e ele deve
ter notado porque tentou distrair-me.
— Lamento que ela não tenha chorado.
— Não lamenta nada. — O meu tom divertido deixou claro que não
estava aborrecida por perder.
— Nunca tinha apostado antes. Foi bom ganhar. — O seu tom de voz
continha uma desculpa implícita.
— Sorte de principiante.
Ele sorriu: — Talvez. Da próxima vez, vamos tentar fazê-la rir.
Comecei imediatamente a imaginar hipóteses na minha cabeça. O que
é que no palácio poderia fazer a May morrer de riso?
O Maxon percebeu que eu estava a pensar nela: — Como é a sua
família?
— Em que sentido?
— Nenhum em especial. A sua família deve ser muito diferente da
minha.
— Acho que sim. — Dei uma gargalhada. — Ninguém usa as coroas
ao pequeno-almoço.
O Maxon sorriu: — Preferem usá-las ao jantar?
— Claro.
Ele riu-se baixinho. Estava a começar a achar que o Maxon talvez não
fosse o snob que eu supusera.
— Bem, sou a filha do meio de cinco irmãos.
— Cinco!
— Sim, cinco. A maioria das famílias lá fora tem muitos filhos. Eu
teria vários, se pudesse.
— A sério? — O Maxon ergueu o sobrolho.
— Sim — respondi em voz baixa. Não sabia dizer bem porquê, mas
este parecia-me um pormenor bastante íntimo da minha vida. Só uma outra
pessoa soubera disto.
Senti um espasmo de tristeza, mas afastei-o:
— Bom, a minha irmã mais velha, a Kenna, é casada com um Quatro.
Ela trabalha agora numa fábrica. A minha mãe quer que me case com pelo
menos um Quatro, mas não quero ter de deixar de cantar. Adoro a música,
mesmo muito. Mas parece que sou uma Três agora, o que é esquisito. Acho
que vou tentar permanecer na música, se puder.
»A seguir, é o Kota. É um artista. Não o vemos muito atualmente.
Veio despedir-se de mim, mas nada mais.
»E depois sou eu.
O rosto de Maxon abriu-se num sorriso fácil: — America Singer —
anunciou —, a minha melhor amiga.
— Isso mesmo — respondi, revirando os olhos. Não era possível que
fosse, de modo nenhum, a sua melhor amiga. Ainda não, pelo menos. Mas
tinha de admitir que ele era a única pessoa em quem alguma vez confiara,
que não fazia parte da minha família nem era alguém por quem estivesse
apaixonada. Bem, também confiara na Marlee. Será que ele sentia o
mesmo?
Caminhávamos lentamente ao longo do corredor em direção à
escadaria. Ele não parecia ter pressa alguma.
— A seguir a mim, é a May. É a que me traiu e não chorou. Para ser
sincera, sinto-me defraudada; não acredito que não tenha chorado! A May é
uma artista e eu... eu adoro-a.
O Maxon analisava o meu rosto. Falar da May fazia-me sentir ternura;
já simpatizava mais com ele, mas ainda não sabia até que ponto queria
abrir-me:
— Por fim, é o Gerad. É o mais novo e tem sete anos. Ainda não
descobriu se gosta de música ou de arte. O que gosta mesmo é de jogar à
bola e estudar insetos, o que é bom, só que não pode ganhar a vida dessa
forma. Estamos a tentar fazer com que experimente mais coisas. E pronto,
já falei de todos.
— E os seus pais? — pressionou ele.
— E os seus pais? — repliquei.
— Já conhece os meus pais.
— Não. Conheço a imagem pública deles. Como é que são realmente?
— Dei-lhe um puxão no braço, o que em si já era uma façanha. Os braços
do Maxon eram enormes. Mesmo sob as camadas de roupa, conseguia
sentir os seus músculos fortes e sólidos. O Maxon suspirou, mas percebi
que não era de irritação. Parecia gostar de ter alguém a picá-lo. Devia ser
triste crescer neste sítio sem irmãos.
Ele ainda estava a pensar na resposta quando chegámos ao jardim.
Todos os guardas tinham sorrisos malandros no rosto à nossa passagem.
Um pouco mais adiante, uma equipa de filmagens esperava. É claro que
iriam querer estar presentes no primeiro encontro do príncipe. O Maxon
encarou-os e abanou a cabeça, e eles retiraram-se imediatamente. Ouvi
alguém soltar uma imprecação. Não estava com vontade nenhuma de ser
seguida por câmaras, mas achei estranho dispensá-los.
— Está bem? Parece tensa — comentou o Maxon.
— Você fica confuso com mulheres a chorar e eu com passeios com
príncipes — disse eu, encolhendo os ombros.
O Maxon riu-se baixinho, mas não insistiu. À medida que
caminhávamos para oeste, o Sol ia ficando oculto por detrás da enorme
floresta da propriedade, embora ainda fosse cedo. A sombra avançava sobre
nós como uma tenda de escuridão. Era ali que gostaria de ter ido, quando
procurara isolar-me na noite anterior. Parecia estarmos completamente
sozinhos, agora. Continuámos a caminhar, para longe do palácio e dos
ouvidos dos guardas.
— Porque a faço sentir-se confusa?
Hesitei, mas depois disse o que sentia: — O seu caráter, as suas
intenções. Não sei bem o que esperar deste nosso passeio.
— Ah... — Ele parou e encarou-me. Estávamos bastante perto um do
outro e, apesar da brisa quente de verão, senti um calafrio na espinha. — Já
deve ter percebido que não sou o tipo de homem que se põe com rodeios.
Vou dizer-lhe exatamente o que espero de si.
O Maxon deu um passo na minha direção.
Sustive a respiração. Acabava de me meter exatamente na situação
que mais temia. Sem guardas, sem câmaras, ninguém que evitasse que ele
fizesse o que queria.
Reagi automaticamente. Com o joelho. Dei uma joelhada na perna de
Sua Majestade. Com força.
O Maxon soltou um berro e dobrou-se todo sobre si mesmo, enquanto
eu recuava.
— Porque fez isso?
— Se me tocar, nem que seja com um dedo, faço pior! — ameacei.
— O quê?
— Eu disse que se me tocar...
— Não, sua louca. Ouvi bem à primeira. — Ele fez uma careta de dor.
— Mas que raio quer dizer com isso?
Senti o calor percorrer o meu corpo. Tinha pensado logo no pior e
preparara-me para lutar contra algo que obviamente não iria acontecer.
Os guardas apareceram a correr, alertados pela nossa briga. O Maxon
afastou-os com um gesto, ainda meio dobrado numa posição estranha.
Ficámos em silêncio durante alguns momentos e, depois de a dor ter
passado, o Maxon virou-se para mim:
— O que é que pensou que eu queria? — perguntou.
Baixei a cabeça e corei.
— America, o que é que pensou que eu queria? — Ele parecia
aborrecido. Mais do que isso: ofendido. Obviamente adivinhara-me os
pensamentos e não ficara nada agradado. — Em público? Você pensou...
Por amor de Deus! Sou um cavalheiro!
Começou a afastar-se, mas voltou para trás:
— Por que razão se ofereceu para me ajudar, se tem tão pouca
consideração por mim?
Nem sequer conseguia encará-lo. Não sabia como explicar que me
tinham preparado para estar à espera de um canalha, que a escuridão e a
privacidade me tinham deixado insegura, que só estivera sozinha com um
outro rapaz antes e que era assim que agíamos.
— Hoje jantará no seu quarto. Amanhã, resolverei isto.
Esperei no jardim, até ter a certeza de que todas as outras já estavam
na sala de jantar, e depois andei de um lado para o outro no corredor antes
de entrar no quarto. A Anne, a Mary e a Lucy estavam num estado de
completa excitação quando entrei. Não tive coragem de lhes dizer que não
passara aquele tempo todo com o príncipe.
O meu jantar já tinha chegado e esperava-me na mesa junto da
varanda. Estava com tanta fome que nem a minha humilhação me deteve.
Mas a minha longa ausência não era a única razão pela qual as minhas aias
estavam agitadas. Havia uma caixa enorme em cima da minha cama,
implorando para ser aberta.
— Podemos ver? — pediu a Lucy.
— Lucy! Que falta de educação! — censurou a Anne.
— Deixaram-na aqui assim que saiu. Temos estado curiosas este
tempo todo! — exclamou a Mary
— Mary! Que modos são esses? — ralhou a Anne.
— Não há problema, meninas. Não tenho segredos. — Quando
fossem expulsar-me na manhã seguinte, contar-lhes-ia tudo.
Fiz-lhes um sorriso amarelo e comecei a desfazer o grande laço
vermelho da caixa. Lá dentro havia três pares de calças. Umas de linho,
outras mais formais num tecido macio e um maravilhoso par de calças de
ganga. Em cima delas estava um cartão com o brasão de Illéa.

Você pede coisas tão simples que sou incapaz de recusar. Mas, por
mim, por favor, use-as apenas aos sábados. Obrigado pela sua
companhia.
O seu amigo,

Maxon
Capítulo 13

Não tive muito tempo para me sentir envergonhada ou preocupada.


Quando as minhas aias vieram vestir-me de manhã, sem qualquer sinal de
apreensão, presumi que a minha presença na sala de jantar seria bem-vinda.
O facto de o Maxon me deixar sequer aparecer ao pequeno-almoço era um
gesto de generosidade que não esperara: teria direito a uma última refeição,
um momento final como uma das belas Selecionadas.
Íamos a meio do pequeno-almoço quando a Kriss finalmente arranjou
coragem para me perguntar como correra o encontro.
— Como foi? — perguntou discretamente, tal como devíamos falar às
refeições. Mas essas duas palavrinhas chamaram a atenção de toda a gente
de ambos os lados da mesa. Todas à nossa volta aguçaram os ouvidos.
Respirei fundo e respondi: — Indescritível. Elas entreolharam-se,
estavam claramente à espera de mais.
— Como é que ele se comportou? — indagou a Tiny.
— Mmmh... — Procurei escolher cuidadosamente as palavras.
— De modo bem diferente do que eu esperava.
Desta vez, ouvi murmúrios em volta da mesa.
— Estás a fazer de propósito? — irrompeu a Zoe. — Se estás, é
mesquinho da tua parte.
Abanei a cabeça. Como poderia explicar? — Não. É que...
Mas o burburinho que vinha do corredor salvou-me de ter de formular
uma resposta.
Eram gritos estranhos. Na minha curta estada no palácio, não me
lembrava de ter ouvido qualquer som que pudesse ser considerado sequer
próximo de alto. Além disso, o ruído dos passos dos guardas, o abrir e
fechar das enormes portas e o toque dos talheres nos pratos tinham uma
espécie de música. Isto era diferente, era um caos absoluto e completo.
A família real pareceu ter compreendido tudo antes de nós.
— Senhoras, para o fundo da sala! — gritou o Rei Clarkson, correndo
para uma janela.
As raparigas, confusas, mas não querendo desobedecer, deslocaram-se
lentamente até junto da mesa principal. O rei fazia descer uma persiana,
mas não se tratava de uma persiana para filtrar a luz; era feita de metal e
rangia ao fechar. Ao lado dele, o Maxon baixava outra e, a seguir ao
Maxon, a gentil e delicada rainha apressava-se a descer a seguinte.
Foi então que uma onda de guardas invadiu a sala. Notei vários outros
perfilando-se do lado de fora pouco antes de as monstruosas portas serem
fechadas, trancadas e reforçadas com grades.
— Eles invadiram a propriedade, Majestade, mas conseguimos conter
o seu avanço. As senhoras deveriam sair, mas estamos muito perto da
porta...
— Entendido, Markson — respondeu o rei, interrompendo a frase.
Foi o suficiente para compreender tudo: havia rebeldes dentro dos
muros do palácio.
Já imaginava que isto pudesse acontecer. Tantas hóspedes no palácio,
tantos preparativos; é claro que alguém iria deixar escapar alguma coisa
algures e a segurança falharia. E mesmo que não fosse fácil penetrar no
palácio, esta seria uma altura perfeita para se montar um protesto. No seu
cerne, a Seleção era de certo modo perturbadora, portanto, de certeza que os
rebeldes a detestavam, tal como odiavam tudo o resto em Illéa.
Mas, fosse qual fosse a sua opinião, eu não iria render-me facilmente.
Levantei-me tão depressa que a minha cadeira tombou para trás. Corri
até à janela mais próxima para baixar a persiana de metal. Algumas das
outras raparigas, que perceberam a gravidade da ameaça, fizeram o mesmo.
Demorei um instante a descer aquela coisa, mas encaixá-la no lugar
era um pouco mais difícil. Tinha acabado de fixar o ferrolho quando algo
vindo de fora atingiu a placa de metal, fazendo-me saltar para trás com um
grito, tropeçar na cadeira tombada e cair.
O Maxon apareceu imediatamente:
— Está ferida?
Fiz uma investigação rápida. Teria provavelmente uma nódoa negra
na anca e estava assustada, mas nada pior do que isso.
— Não, estou bem.
— Para o fundo da sala. Já! — ordenou ele, enquanto me ajudava a
levantar. Correu pelo salão, agarrando as jovens paralisadas de medo e
empurrando-as para o canto mais afastado.
Obedeci e corri para o fundo da sala, em direção ao aglomerado de
raparigas encolhidas. Algumas choravam, outras, em choque, olhavam para
o vazio. A Tiny tinha desmaiado. A figura mais tranquilizadora era o Rei
Clarkson, que falava gravemente com um guarda junto à parede de trás,
suficientemente longe para não o ouvirmos. Tinha um braço protetor a
envolver a rainha, a qual permanecia calma e orgulhosamente ao seu lado.
A quantos ataques teria ela sobrevivido? Recebíamos notícias de que
ocorriam várias vezes por ano. Tinha de ser assustador; as suas hipóteses de
sobrevivência eram cada vez menores... assim como as do seu marido... e
do seu único filho. Com certeza que os rebeldes acabariam por descobrir o
conjunto de circunstâncias perfeitas para conseguir o que queriam. E, ainda
assim, ela permanecia ali, de queixo erguido e com uma calma serena
espelhada no rosto.
Observei as outras raparigas. Será que alguma delas tinha a força
necessária para ser uma rainha? A Tiny continuava inconsciente nos braços
de alguém. A Celeste e a Bariel conversavam. Eu sabia como ficava o rosto
da Celeste quando se sentia à vontade e não era com esta expressão. Ainda
assim, comparada com as outras, disfarçava muito bem as suas emoções.
Algumas estavam quase histéricas, ajoelhadas a chorar. Outras tinham
desligado mentalmente, bloqueando toda a situação. Os seus rostos não
tinham expressão e elas torciam inconscientemente as mãos, à espera de
que tudo acabasse.
A Marlee choramingava, mas não a ponto de parecer destroçada.
Agarrei-a por um braço e levantei-a:
— Enxuga os olhos e põe-te direita — ordenei-lhe ao ouvido.
— O quê? — guinchou ela.
— Confia em mim. Faz o que te digo.
Ela limpou as faces com a ponta do vestido e endireitou-se. Tocou em
vários pontos do rosto, suponho que para verificar se a maquilhagem não
estava esborratada. Depois virou-se para mim em busca de aprovação.
— Muito bem. Perdoa-me por ser assim tão mandona, mas confia em
mim, está bem? — Sentia-me mal por lhe dar ordens no meio de uma
situação tão perturbadora, mas ela tinha de parecer tão calma como a
Rainha Amberly. Com certeza que o Maxon iria esperar isso da sua rainha e
a Marlee tinha de ganhar.
Ela assentiu com a cabeça: — Tens razão. Quero dizer, por enquanto
estamos todos a salvo. Não devo ficar tão preocupada.
Acenei afirmativamente, embora ela estivesse completamente errada.
Não estávamos todos a salvo.
Os guardas esperavam ansiosos ao pé das enormes portas, enquanto
coisas pesadas eram atiradas contra as paredes e as janelas, uma e outra vez.
A sala de jantar não tinha um relógio e eu não fazia ideia de há quanto
tempo durava o ataque, o que me deixava ainda mais nervosa. Como é que
poderíamos saber se eles tinham conseguido entrar? Seria apenas quando
começassem a bater nas portas? Já teriam entrado e simplesmente não
sabíamos?
Não conseguia suportar a preocupação. Fixei o olhar num vaso de
flores ornamentais, cujo nome ignorava completamente, e comecei a roer
uma das minhas unhas perfeitamente tratadas. Fingi que aquelas flores eram
a coisa mais importante do mundo.
O Maxon acabou por se aproximar para verificar se eu estava bem, tal
como fizera com as outras. Parou ao meu lado e começou também a
observar as flores. Nenhum de nós sabia o que dizer.
— Sente-se bem? — perguntou ele finalmente.
— Sim — sussurrei.
Ele fez uma pausa: — Não parece muito bem.
— O que vai acontecer às minhas aias? — perguntei, manifestando a
minha maior preocupação. Sabia que estava a salvo, mas onde estavam
elas? E se uma delas estivesse no corredor quando os rebeldes entrassem?
— As suas aias? — questionou ele, num tom que dava a entender que
eu era uma idiota.
— Sim, as minhas aias. — Fitei-o nos olhos, obrigando-o a reco‐
nhecer que apenas uma minoria privilegiada entre a multidão que morava
no palácio tinha efetivamente proteção. Estava à beira das lágrimas, mas
não queria chorar e respirava com rapidez para tentar controlar as emoções.
O Maxon olhou-me nos olhos e pareceu perceber que me encontrava a
apenas um passo de ser, eu mesma, uma aia. Não era esse o motivo da
minha preocupação, mas parecia de facto estranho que um sorteio fosse a
principal diferença entre mim e uma pessoa como a Anne.
— Elas já devem ter-se escondido. O pessoal tem os seus próprios
locais onde aguardar o fim dos ataques. Os guardas são muito bons a avisar
rapidamente toda a gente. Elas devem estar bem. Normalmente temos um
sistema de alarme, mas na última invasão os rebeldes destruíram-no
completamente. Temos estado a tentar consertá-lo, mas... — O Maxon
suspirou.
Olhei para o chão, procurando aplacar todas as preocupações na
minha cabeça.
— America... — pediu ele.
Virei-me para ele.
— Elas estão bem. Os rebeldes foram lentos e todos aqui sabem o que
fazer em caso de emergência.
Assenti. Permanecemos ali, em silêncio, por um momento e percebi
que ele estava prestes a afastar-se.
— Maxon... — sussurrei.
Ele virou-se, um pouco surpreendido ao ser tratado com tanta
familiaridade.
— Em relação à noite passada... Deixe-me explicar. Quando nos
prepararam para virmos para aqui, houve um homem que me disse que
nunca poderia recusar-lhe nada. Não importava o que me pedisse. Nunca.
Ele ficou estupefacto: — O quê?
— Deu-me a entender que você poderia pedir certas coisas. E você
mesmo disse que não conviveu com muitas mulheres. Ao fim de dezoito
anos... E depois dispensou as câmaras... Quando se aproximou de mim,
assustei-me.
O Maxon abanou a cabeça, procurando processar tudo o que eu
dissera. O seu rosto, geralmente tranquilo, contorcia-se de raiva,
humilhação e incredulidade.
— Disseram isso a todas? — perguntou, parecendo chocado com a
ideia.
— Não sei. Não creio que haja muitas raparigas que precisem desse
tipo de aviso. Elas estão provavelmente à espera de uma oportunidade para
o atacar — comentei, apontando com a cabeça para o resto da sala.
Ele soltou uma risada sarcástica: — Mas você não, e portanto não teve
qualquer dúvida em dar-me uma joelhada na virilha, não é?
— Acertei-lhe na perna!
— Por favor! Um homem não precisa de tanto tempo para recuperar
de uma joelhada na perna — retorquiu ele, com a voz cheia de ceticismo.
Deixei escapar uma gargalhada. Felizmente, o Maxon acompanhou-
me. Nesse momento, outro projétil atingiu a janela e parámos ao mesmo
tempo. Por um instante, esquecera-me de onde estava. Precisava de um
pouco mais dessa amnésia; a minha saúde mental exigia-o.
— Então, como é que está a lidar com uma sala cheia de mulheres
chorosas? — perguntei.
A sua expressão assumiu uma perplexidade cómica: — Não há nada
no mundo mais enervante! — sussurrou ele veementemente. — Não faço a
mínima ideia de como as fazer parar.
E este era o homem que iria governar o nosso país: um tipo que era
derrotado pelas lágrimas. Era demasiado engraçado.
— Tente dar-lhes palmadinhas nas costas, ou no ombro, e diga-lhes
que vai correr tudo bem. Quando choram, as mulheres nem sempre querem
que lhes resolvam o problema, só querem ser consoladas — aconselhei.
— A sério?
— Sim.
— Não pode ser assim tão simples — disse ele, com um misto de
dúvida e interesse na voz.
— Eu disse «nem sempre» e não «nunca». Mas provavelmente é
capaz de resultar com muitas das raparigas aqui.
Ele fez um som de desprezo: — Não tenho tanta certeza. Duas delas já
me perguntaram se as deixava ir embora quando isto terminar.
— Pensava que não podíamos fazer isso. — Na realidade, isto não
deveria surpreender-me. Se ele me tinha autorizado a ficar como amiga, não
devia preocupar-se muito com pormenores técnicos. — O que vai fazer?
— O que posso fazer? Não vou manter ninguém aqui contra vontade.
— Talvez elas mudem de ideias — sugeri, esperançosamente.
— Talvez. — Ele fez uma pausa. — E você? Já está suficientemente
assustada? Também quer sair? — perguntou em tom quase brincalhão.
— Para ser sincera, estava convencida de que iria mandar-me embora
depois do pequeno-almoço — admiti.
— Para ser sincero, pensei fazer isso.
Trocámos um sorriso tranquilo. A nossa amizade — se é que
podíamos chamar-lhe assim — era obviamente estranha e cheia de falhas,
mas pelo menos era sincera.
— Não me respondeu. Quer ir-se embora?
Outra coisa atingiu a parede e a ideia pareceu tentadora. Em casa, o
pior ataque que alguma vez enfrentara tinha sido o Gerad a tentar roubar a
minha comida. Aqui, as raparigas não gostavam de mim, as roupas
sufocavam-me, havia pessoas a tentar ferir-me e, em geral, tudo, me
deixava desconfortável. Mas era bom para a minha família e era agradável
poder comer bem. Além disso, o Maxon parecia realmente um pouco
perdido e eu teria a possibilidade de ficar longe dele por mais algum tempo.
E, quem sabe, talvez pudesse ajudar a escolher a próxima princesa.
Olhei-o bem nos olhos: — Enquanto não me mandar embora, não saio
daqui...
Ele sorriu: — Ótimo. Preciso que me dê mais dicas, como isso das
palmadinhas no ombro.
Devolvi o sorriso. Sim, estava tudo ao contrário, mas alguma coisa
boa ainda iria sair daqui.
— America, será que podia fazer-me um favor?
Assenti.
— Para todos os efeitos, passámos muito tempo juntos ontem ao fim
da tarde. Se alguém perguntar, poderia dizer que eu não... que eu jamais...
— Claro. E lamento, muito mesmo, o que aconteceu.
— Eu devia saber que você seria a única capaz de desobedecer a uma
ordem.
Uma série de objetos pesados atingiu a parede ao mesmo tempo,
fazendo com que algumas das raparigas gritassem.
— Quem são eles? O que querem? — perguntei.
— Quem? Os rebeldes?
Anuí com a cabeça.
— Depende de a quem pergunta e de que grupo falamos — respondeu
ele.
— Quer dizer que há mais do que um? — Essa informação fez piorar
toda a situação. Se este era o ataque de um grupo só, o que poderiam fazer
juntos dois ou mais grupos? Parecia-me extremamente injusto não nos
explicarem o que se passava. Para mim, um rebelde era um rebelde, ponto
final, mas o Maxon dava a entender que alguns podiam ser piores do que
outros. — Quantos grupos existem?
— Normalmente dois: os Nortistas e os Sulistas. Os Nortistas atacam
com muito mais frequência. Estão mais perto de nós. Vivem na zona
chuvosa de Likely, perto de Bellingham, a norte daqui. Ninguém quer lá
viver, está praticamente tudo em ruínas, portanto eles estabeleceram-se ali,
de algum modo, embora eu pense que se movimentam de um lado para o
outro. Esta é uma das minhas teorias, à qual ninguém liga. Contudo, é raro
conseguirem invadir a propriedade e, quando o conseguem, os resultados
são... quase contidos. Acho que este ataque é obra dos Nortistas — explicou
o Maxon no meio dos estrondos.
— Porquê? O que os torna tão diferentes dos Sulistas?
O Maxon pareceu hesitar, duvidando se devia partilhar essa
informação comigo. Olhou em volta para ver se alguém poderia ouvir-nos.
Olhei também e vi várias pessoas a observar-nos. A Celeste, em especial,
parecia soltar fogo pelos olhos. Desviei rapidamente o olhar. Ainda assim,
mesmo com tanta gente a observar-nos, ninguém estava suficientemente
perto para nos ouvir. O Maxon chegou à mesma conclusão e inclinou-se
para me sussurrar ao ouvido:
— Os ataques dos Sulistas são muito mais... mortíferos.
Estremeci: — Mortíferos?
Ele assentiu com a cabeça: — Atacam apenas uma ou duas vezes por
ano, tanto quanto posso perceber pelos resultados. Acho que todos aqui
tentam proteger-me das estatísticas, mas não sou idiota; quando eles
atacam, há pessoas que morrem. O problema é que ambos os grupos
parecem semelhantes aos nossos olhos: esfarrapados, constituídos na maior
parte por homens magros mas fortes, sem insígnias que possamos
distinguir. Assim nunca sabemos quem está por trás dos ataques antes de
estes terminarem.
Passei os olhos pela sala. Muita gente estaria em perigo se o Maxon
estivesse errado e estes rebeldes fossem Sulistas. Lembrei-me novamente
das minhas pobres aias.
— Mas ainda não entendi. O que é que eles querem?
O Maxon encolheu os ombros: — Os Sulistas querem aparentemente
derrubar-nos. Não sei o motivo, mas imagino que estejam insatisfeitos,
cansados de viver à margem da sociedade. Afinal, tecnicamente nem sequer
são Oito, já que não fazem parte do tecido social. Mas os Nortistas ainda
são um mistério. O meu pai diz que só querem aborrecer-nos, perturbar o
governo, mas eu não penso assim. — Pareceu bastante orgulhoso de si
mesmo por um instante. — Também tenho outra teoria em relação a isso.
— E posso saber qual é?
O Maxon hesitou novamente. Desta vez, acho que não tanto por
receio de me assustar, mas por receio de talvez não ser levado a sério.
Aproximou-se de novo e sussurrou:
— Acho que andam à procura de alguma coisa.
— De quê? — indaguei.
— Isso não sei. Mas acontece sempre a mesma coisa quando os
Nortistas atacam: os guardas são derrubados, feridos ou amarrados, mas
nunca mortos. É como se os rebeldes não quisessem ser seguidos. Raptam,
no entanto, algumas pessoas, o que é preocupante. E os quartos — bem,
aqueles onde conseguem entrar — são todos vasculhados. Tiram as gavetas
todas, revolvem as prateleiras, viram os tapetes. Muitas coisas acabam
partidas. Nem imagina a quantidade de câmaras que tive de substituir ao
longo dos anos.
— Câmaras?
— Ah... — disse ele, embaraçado. — Gosto de fotografia. Mas, apesar
disso tudo, nunca levam muita coisa. O meu pai acha que a minha ideia é
uma parvoíce, claro. O que é que um bando de bárbaros analfabetos poderia
procurar? Ainda assim, acho que tem de ser alguma coisa.
Era intrigante. Se eu não tivesse um cêntimo e soubesse como invadir
o palácio, acho que levaria todas as joias que encontrasse, qualquer coisa
que pudesse vender. Aqueles rebeldes deviam ter algo mais em mente, além
de uma mera declaração política ou da sua própria sobrevivência diária,
quando invadiam o palácio.
— Acha que é uma parvoíce? — perguntou o Maxon, tirando-me das
minhas divagações.
— Não, não é. É estranho, mas não é uma parvoíce.
Sorrimos juntos. Dei-me conta de que se o Maxon fosse apenas
Maxon Schreave e não Maxon, o futuro rei de Illéa, seria o tipo de pessoa
que gostaria de ter como vizinho, alguém com quem conversar.
Ele aclarou a garganta: — Acho que é melhor ir ver como estão as
outras.
— Sim, imagino que muitas delas estejam a questionar por que razão
está a demorar tanto.
— E então, parceira, alguma sugestão de com quem devo falar a
seguir?
Sorri e olhei para trás, para verificar se a minha candidata a princesa
ainda se mantinha controlada. Mantinha.
— Está a ver aquela rapariga loira ali, de cor-de-rosa? É a Marlee. É
uma querida, muito simpática e adora filmes. Vá.
O Maxon soltou uma risadinha e dirigiu-se a ela.
***
O tempo pareceu demorar uma eternidade a passar, mas, na realidade,
o ataque durou pouco mais de uma hora. Descobrimos mais tarde que
ninguém conseguira entrar no palácio, apenas nos jardins. Os guardas só
dispararam contra os rebeldes quando estes se aproximaram da porta
principal, o que explicava os tijolos — arrancados das paredes do palácio
— e a comida estragada que haviam sido atirados contra as janelas durante
tanto tempo.
No final, dois homens aproximaram-se demasiado da entrada
principal, os guardas dispararam e os rebeldes fugiram. Se a descrição do
Maxon estivesse correta, deviam ser Nortistas.
Mantiveram-nos fechadas durante mais algum tempo, enquanto
revistavam as imediações do palácio. Quando tudo voltou ao normal,
pudemos regressar aos nossos quartos. Saí de braço dado com a Marlee.
Apesar de ter aguentado bem na sala de jantar, a tensão gerada pelo ataque
deixara-me exausta. Era bom ter alguém com quem espairecer.
— Ele deixou-te usar calças mesmo depois de perderes? — perguntou
ela. Eu tinha começado a falar sobre o Maxon assim que pude, ansiosa por
saber como correra a conversa entre eles.
— Sim, foi muito generoso.
— Acho encantador o facto de ele saber ganhar.
— Sim, sabe mesmo. E também consegue ser gracioso quando as
coisas lhe correm mal. — Como quando leva uma joelhada nas «joias
reais», por exemplo.
— O que queres dizer?
— Nada. — Não queria explicar o que se passara. — Sobre o que é
que conversaram hoje?
— Bem, perguntou-me se gostaria de sair com ele esta semana.
— Ela corou.
— Marlee! Isso é ótimo!
— Chiu! — disse ela, olhando em volta, mas as outras já tinham
subido as escadas. — Estou a tentar não criar demasiadas expetativas.
Ficámos em silêncio por um instante, até que ela explodiu:
— Quem é que estou a querer enganar? Estou tão entusiasmada que
mal consigo estar quieta! Espero que não demore muito a marcar o
encontro.
— Se já te perguntou, tenho a certeza de que vai marcá-lo em breve.
Quero dizer, assim que terminar o expediente diário de governar o país.
Ela riu-se:
— Mal posso acreditar! Afinal, eu sabia que ele era bonito, mas não
fazia ideia de como seria como pessoa. Tive medo de que fosse... sei lá,
pomposo, ou coisa parecida.
— Eu também. Mas, na realidade, ele é... — Como é que o Maxon
era, de facto? Um pouco pomposo, mas não de um modo irritante, como
tinha imaginado. Um príncipe, sem dúvida, mas ainda assim tão... tão... —
Normal.
A Marlee já não estava a prestar-me atenção. Seguia perdida nos seus
sonhos enquanto caminhávamos. Esperava que esse Maxon ideal que ela
estava a construir na cabeça correspondesse ao real. E também que ela fosse
o tipo de mulher que ele procurava.
Acenei-lhe em despedida quando chegámos à porta do quarto dela e
continuei até ao meu.
Os pensamentos sobre a Marlee e o Maxon desapareceram da minha
mente assim que abri a porta. A Anne e a Mary estavam agachadas ao lado
de uma Lucy extremamente abalada. Tinha o rosto vermelho e as lágrimas
corriam-lhe pela cara abaixo. Os seus pequenos tremores habituais tinham-
se transformado em violentos espasmos que lhe sacudiam o corpo todo.
— Acalma-te, Lucy. Está tudo bem — sussurrava a Anne, enquanto
lhe acariciava os cabelos despenteados.
— Já passou. Ninguém se feriu. Estás salva, querida — murmurava
carinhosamente a Mary, segurando-lhe na mão trémula.
Fiquei demasiado chocada para falar. Este era um momento privado
da Lucy; eu não deveria vê-la assim. Virei-me para sair do quarto, mas a
Lucy viu-me antes de eu poder recuar:
— P-p-perdão, minha senhora, p-perdão... — gaguejou. As outras
duas olharam para mim, apreensivas.
— Não se preocupe. Sente-se bem, Lucy? — perguntei, fechando a
porta para que mais ninguém visse.
A Lucy tentou falar novamente, mas não conseguiu formar os sons.
As lágrimas e os tremores dominavam o seu pequeno corpo.
— Ela vai ficar bem, menina — interveio a Anne. — Demora algumas
horas, mas acaba por se acalmar assim que tudo volta ao normal. Se
continuar neste estado, podemos levá-la para a ala hospitalar. — A Anne
baixou o tom de voz e acrescentou: — Só que a Lucy não quer isso. Se
acharem que não estamos em condições, enfiam-nos na lavandaria, ou na
cozinha, e a Lucy gosta de ser aia.
Não sei de quem a Anne achava que estava a esconder as palavras?
Estávamos todas à volta da Lucy, que podia ouvir perfeitamente o que ela
dizia, mesmo no estado em que estava.
— P-p-por favor, menina... Eu n-não... eu... — tentou ela.
— Chiu... Ninguém vai denunciá-la — garanti-lhe. Olhei para a Anne
e para a Mary: — Ajudem-me a deitá-la na cama.
Deveria ser fácil transportá-la entre as três, mas a Lucy tremia tanto
que os seus braços e pernas escorregavam-nos das mãos.
Foi preciso algum esforço para a deixarmos confortável, mas assim
que a instalámos debaixo dos cobertores, o conforto da cama pareceu ajudá-
la mais do que as nossas palavras. Os tremores da Lucy diminuíram e ela
fixou um olhar vazio num ponto do dossel.
A Mary sentou-se na beira da cama e começou a cantar baixinho,
fazendo-me recordar com saudade o modo como eu mimava a May quando
ela ficava doente. Puxei a Anne para um canto, longe dos ouvidos da Lucy.
— O que aconteceu? Entrou alguém aqui? — perguntei. Se fora esse o
caso, esperava que me informassem.
— Não, não — assegurou-me a Anne. — A Lucy fica sempre assim
quando os rebeldes atacam. Só o facto de falarmos neles faz com que desate
a chorar incontrolavelmente. Ela...
A Anne baixou os olhou para os seus sapatos pretos engraxados,
tentando decidir se devia contar-me alguma coisa. Não queria intrometer-
me na vida da Lucy, mas gostaria de compreender. Ela respirou fundo e
começou:
— Algumas de nós nasceram aqui. A Mary nasceu no castelo e os
seus pais ainda moram aqui. Eu sou órfã e fui acolhida porque o palácio
precisava de pessoal. — Ela ajeitou o vestido, como se pudesse sacudir essa
parte da sua história que parecia incomodá-la.— A Lucy foi vendida ao
palácio.
— Vendida? Como é possível? Não há escravos aqui.
— Oficialmente não, mas não quer dizer que isso não aconteça. A
família da Lucy precisava de dinheiro para uma operação para a sua mãe e,
por isso, ofereceram os seus serviços a uma família de Três, em troca de
dinheiro. A mãe nunca melhorou e eles não conseguiram pagar a dívida e,
então, a Lucy e o pai ficaram a viver com aquela família durante anos.
Segundo sei, pelo modo como os tratavam, a vida deles não era muito
melhor do que viver num estábulo.
»O filho dessa família gostou da Lucy e eu sei que às vezes o amor
não olha a castas, mas de um Seis para um Três é um grande salto. Quando
a mãe do rapaz descobriu as suas intenções, vendeu a Lucy e o pai ao
palácio. Lembro-me de quando ela chegou; chorou durante dias. Deviam
estar muito apaixonados.
Olhei para a Lucy. Pelo menos, no meu caso, um de nós tomara a
decisão. Ela não teve escolha quando perdeu o homem que amava.
— O pai da Lucy trabalha nos estábulos. Não é muito forte nem
rápido, mas é extremamente dedicado. E a Lucy é aia. Sei que pode parecer
uma parvoíce para si, mas é uma honra ser-se aia do palácio. Somos a linha
da frente. Somos aquelas que são consideradas suficientemente aptas,
inteligentes e bonitas para sermos vistas por qualquer visitante. Levamos o
nosso trabalho muito a sério e por um bom motivo: se fizermos alguma
asneira, somos mandadas para a cozinha, onde trabalhamos sem parar o dia
inteiro e as nossas roupas são disformes, ou podemos acabar a cortar lenha
ou a limpar os jardins com ancinhos. Sermos aias é importante.
Senti-me estúpida. Na minha cabeça, eram todos simplesmente Seis,
mas ainda assim existiam subdivisões e hierarquias que ignorava.
— Há dois anos, o palácio foi atacado durante a noite. Os rebeldes
vestiram os uniformes dos guardas e confundiram toda a gente. O alvoroço
foi tal que ninguém sabia quem atacar ou defender e os rebeldes passaram
pelo meio das linhas de defesa... Foi terrível.
Tremi só de imaginar. A escuridão, a confusão, a imensidão do
palácio. Comparado com o ataque desta manhã, parecia ser obra dos
Sulistas.
— Um dos rebeldes capturou a Lucy.— A Anne baixou os olhos por
um instante e pronunciou em voz muito baixa as palavras seguintes:—
Acho que não devem ter muitas mulheres por lá, se é que me entende.
— Ah...
— Não assisti a nada disso, mas a Lucy contou-me que era um
homem imundo. Disse que estava sempre a lamber-lhe a cara.
A Anne estremeceu ao imaginar a cena. O meu estômago deu uma
volta, ameaçando expulsar o pequeno-almoço. Era aterrorizador e consegui
perceber como alguém já tão martirizado como a Lucy podia descontrolar-
se durante um ataque daquele tipo.
Ele estava a arrastá-la para algum lado e ela gritava o mais alto que
podia, mas na confusão era difícil ouvi-la. Então, apareceu um guarda
verdadeiro que fez pontaria e enfiou uma bala na cabeça do homem. O
rebelde caiu em cima da Lucy e ela ficou presa debaixo dele. Estava coberta
de sangue.
Levei a mão à boca. Não podia imaginar a pequena e delicada Lucy a
passar por tudo aquilo. Não era de estranhar que reagisse desta forma.
— Trataram-lhe de alguns ferimentos, mas ninguém se preocupou
com a sua mente. Agora é um pouco nervosa, mas faz o possível por
disfarçar. E não é apenas por ela que o faz, mas também pelo seu pai. Ele
tem muito orgulho por a filha ser suficientemente boa para ser uma aia e ela
não quer desapontá-lo. Tentamos mantê-la calma, mas sempre que os
rebeldes aparecem, ela pensa que vai ser pior; que desta vez vão levá-la,
feri-la e matá-la. Ela tenta, menina, mas não sei quanto tempo mais irá
aguentar.
Assenti com a cabeça e olhei para a Lucy na cama. Tinha fechado os
olhos e adormecera, apesar de ser ainda bastante cedo.
Passei o resto do dia a ler, e a Anne e a Mary limparam coisas que não
estavam sujas. Mantivemo-nos sossegadas enquanto a Lucy recuperava.
Prometi a mim mesma que, no que dependesse de mim, a Lucy nunca
mais teria de passar por aquilo.
Capítulo 14

Tal como eu previra, as candidatas que tinham pedido para sair


mudaram de ideias assim que as coisas acalmaram. Nenhuma de nós sabia
exatamente quem eram, mas havia algumas — principalmente a Celeste —
que estavam determinadas a descobri-lo. Por enquanto, ainda éramos vinte
e sete.
Para o rei, o ataque tinha sido tão inconsequente que nem merecia ser
noticiado; no entanto, dado que nessa manhã estavam algumas equipas de
filmagens no palácio, parte do tumulto fora transmitida em direto.
Aparentemente, o rei não tinha ficado nada satisfeito e isso fez-me
questionar quantos ataques o palácio teria sofrido sem que ninguém
soubesse. Será que o local era bastante menos seguro do que eu imaginava?
A Sílvia explicou que, se o ataque tivesse sido mais grave, teríamos
sido autorizadas a telefonar às nossas famílias para dizer que estávamos
bem. Mas, neste caso, só nos deixaram escrever cartas.
Escrevi dizendo que estava bem, que o ataque provavelmente parecera
bem pior do que realmente fora e que o rei nos mantivera em segurança.
Pedi-lhes que não se preocupassem comigo e disse-lhes que tinha saudades
de todos, antes de entregar a carta a uma criada prestável.
O dia seguinte ao ataque decorreu sem qualquer incidente. Eu
planeara descer até ao Salão das Mulheres, a fim de promover o Maxon
junto das outras, mas depois de ver a Lucy tão abalada, preferi ficar no
quarto.
Não sabia como as minhas três aias ocupavam o seu tempo na minha
ausência, mas quando ficava no quarto, elas jogavam às cartas comigo e
deixavam escapar uma ou outra coscuvilhice.
Fiquei a saber que, por cada dúzia de pessoas que via no palácio,
havia cem ou mais nos bastidores. Sabia da existência das cozinheiras e das
lavadeiras, mas havia também pessoas cuja única tarefa consistia em manter
as janelas limpas. Era preciso uma semana inteira para fazerem este
trabalho e, quando terminavam, já o pó atravessara as paredes do palácio,
agarrando-se aos vidros limpos, que tinham de ser lavados novamente.
Havia também ourives escondidos algures, que fabricavam as joias para a
família real e presentes para os visitantes, e ainda várias equipas de
costureiras e compradores de tecidos, cuja missão era manter a família real
— e agora nós — impecavelmente vestidos.
Fiquei também a saber outras coisas: quais os guardas que elas
achavam mais bonitos e qual o novo e horrível modelo de roupa que a
governanta principal obrigava o pessoal a usar nos feriados comemorativos.
Soube ainda que parte do pessoal do palácio fizera apostas sobre qual seria
a Selecionada vencedora e que eu estava entre as dez favoritas. E que o
bebé de uma das cozinheiras estava gravemente doente, o que deixava a
Anne com lágrimas nos olhos. A mãe era uma grande amiga sua e o casal
há muito que desejava um filho.
Ao ouvi-las falar, intervindo na conversa quando tinha algo de
pertinente para dizer, apercebi-me de que não conseguia imaginar nada mais
interessante no andar de baixo e fiquei contente por ter a companhia delas.
O ambiente no meu quarto era calmo e feliz.
O dia fora tão agradável que decidi não descer também no dia
seguinte. Desta vez, deixámos ambas as portas abertas, tanto a do corredor
como a da varanda, e uma brisa morna circulava pelo quarto, envolvendo-
nos. Parecia fazer maravilhas, principalmente à Lucy, e interroguei-me com
que frequência é que ela teria oportunidade de sair lá para fora.
A Anne comentou brevemente que nada disto era apropriado — eu,
sentada com elas, a jogar com as portas abertas —, mas deixou logo cair o
assunto. Estava rapidamente a superar a mania de tentar transformar-me na
lady que aparentemente eu deveria ser.
Estávamos no meio de uma partida de cartas quando me apercebi de
uma silhueta pelo canto do olho. Era o Maxon, parado junto à porta aberta,
a olhar com uma expressão divertida. Quando os nossos olhares se
cruzaram, percebi a pergunta claramente estampada no seu rosto: que raio
estava eu a fazer? Levantei-me com um sorriso e aproximei-me dele.
— Ai, meu Deus! — murmurou a Anne, assim que reparou no
príncipe junto da porta. Enfiou imediatamente as cartas num cesto de
costura e levantou-se. A Mary e a Lucy fizeram o mesmo.
— Minhas senhoras — disse o Maxon.
— Vossa Majestade — disse ela, com uma vénia. — É uma grande
honra, senhor.
— Para mim, também — respondeu ele, com um sorriso.
As aias entreolharam-se, lisonjeadas. Permanecemos todos calados
por uns instantes, sem sabermos ao certo como agir.
De repente, a Mary exclamou:
— Já estávamos de saída.
— Sim, estávamos mesmo! — acrescentou a Lucy. — íamos...
mmmh... — Olhou para a Anne em busca de ajuda.
— Íamos terminar o vestido de Lady America para sexta-feira —
completou a Anne.
— Isso mesmo — disse a Mary. — Só faltam dois dias.
Com um grande sorriso estampado no rosto, as três passaram
lentamente por nós em direção à saída.
— Não quero atrapalhar-vos o trabalho — disse o Maxon, seguindo-as
com os olhos, completamente fascinado com o seu comportamento.
Quando chegaram ao corredor, fizeram vénias desajeitadas e afas‐
taram-se em passos rápidos. Assim que viraram a esquina, as risadinhas da
Lucy ecoaram pelo corredor, imediatamente seguidas do murmúrio da voz
de Anne a mandá-la calar.
— Tem aqui um belo grupo — comentou o Maxon, entrando no meu
quarto e olhando em redor.
— Mantêm-me alerta — respondi, com um sorriso no rosto.
— É óbvio que sentem afeição por si. E isso é difícil de encontrar. —
Ele parou de olhar para o meu quarto e encarou-me: — Não era assim que
imaginava o seu quarto.
Levantei um braço e deixei-o cair logo de seguida:
— Mas este quarto não é meu, pois não? Pertence-lhe a si; estou
apenas a usá-lo emprestado.
O príncipe fez uma careta:
— Mas disseram-lhe com certeza que podia mudar o que quisesse?
Uma cama nova, uma pintura diferente...
Encolhi os ombros:
— Uma camada de tinta não vai tornar este quarto meu. Raparigas
como eu não moram em casas com chão de mármore — gracejei.
O Maxon sorriu:
— Como é o seu quarto em casa?
— Mmh... O que é que veio fazer aqui exatamente? — Desviei o
assunto.
— Ah, tive uma ideia!
— Sobre?
— Bem — começou ele, continuando a andar à volta do quarto —,
achei que já que você e eu não temos o relacionamento normal que tenho
com as outras, talvez devêssemos ter... meios alternativos de comunicação.
— Parou diante do meu espelho e olhou para as fotografias da minha
família. — A sua irmã mais nova é igualzinha a si — constatou, divertido
com a descoberta.
Fui até ao centro do quarto:
— Dizem-nos isso muitas vezes. O que é que ia a dizer sobre meios
alternativos de comunicação?
O Maxon deixou as fotografias e dirigiu-se ao piano, no fundo do
quarto: — Já que está aqui para me ajudar, é minha amiga e isso tudo —
continuou ele, fitando-me significativamente —, talvez não devêssemos
recorrer aos tradicionais bilhetes entregues pelas aias, nem aos convites
formais para encontros. Estava a pensar em algo um pouco menos
cerimonioso.
Agarrou numa partitura que estava em cima do piano:
— Trouxe estas músicas consigo?
— Não, já aqui estavam. Se me apetecer realmente tocar qualquer
coisa, consigo fazê-lo de memória.
Ele ergueu o sobrolho:
— Impressionante. — E voltou a aproximar-se de mim sem terminar a
explicação.
— Poderia parar de bisbilhotar e completar o seu raciocínio, por
favor?
O Maxon soltou um suspiro:
— Está bem. Estava a pensar que poderíamos ter um sinal ou algo
assim, uma forma de indicar que precisamos de conversar, sem que os
outros notem. Talvez coçar o nariz? — propôs, esfregando a região por
cima dos lábios.
— Assim parece que tem o nariz entupido. Não é atraente. Ele lançou-
me um olhar ligeiramente perplexo e assentiu:
— Muito bem. Talvez possamos apenas passar a mão pelo cabelo.
Abanei a cabeça quase imediatamente:
— O meu cabelo está quase sempre preso com ganchos. E
praticamente impossível enfiar os dedos nele. Além disso, o que aconteceria
se estivesse a usar a sua coroa? Poderia fazê-la cair.
Ele abanou um dedo na minha direção:
— Excelente argumento. Mmh... — Passou por mim pensativo e
parou junto à minha mesinha de cabeceira. — E que tal mexer na orelha?
Ponderei a sugestão:
— Parece-me bem. É suficientemente fácil de disfarçar, mas não tão
comum ao ponto de o confundirmos com outra coisa. Mexer na orelha, está
combinado.
Algo tinha chamado a atenção do Maxon, mas ele virou-se e sorriu
para mim:
Ainda bem que concorda. Da próxima vez que quiser falar comigo,
basta mexer na orelha e virei assim que puder. Provavelmente depois do
jantar — concluiu, encolhendo os ombros.
Antes que eu pudesse perguntar como fazer no caso de ele precisar
que fosse ter com ele, o Maxon atravessou o quarto com meu frasco na
mão: — O que é isto?
Soltei um suspiro:
— Receio que não tenha explicação.
***
A primeira sexta-feira chegou e com ela a nossa estreia no Noticiário
Oficial de Illéa. A nossa participação era obrigatória, mas pelo menos, desta
vez, tudo o que tínhamos de fazer era ficar ali sentadas. Por causa da
diferença horária, entrávamos no ar às cinco da tarde, permanecíamos ali
durante uma hora e depois íamos jantar.
A Anne, a Mary e a Lucy vestiram-me com esmero. O meu vestido
era comprido e azul-escuro, quase violeta. Era justo até à cintura e depois a
saia abria num leque de ondas de cetim atrás de mim. Não podia acreditar
que estava a tocar numa peça tão bela. As aias abotoaram-me o vestido,
botão a botão, e prenderam-me no cabelo ganchos cravados de pérolas. Para
terminar, puseram-me uns pequenos brincos de pérola e um colar, cuja
corrente era tão fina e com pérolas tão espaçadas que pareciam flutuar sobre
a minha pele. Estava pronta.
Olhei-me ao espelho. Ainda parecia eu. Era a versão mais bela de
mim mesma que já vira, mas reconhecia aquele rosto. Desde que o meu
nome fora sorteado que temia tornar-me irreconhecível, tão coberta por
camadas de maquilhagem e atulhada de joias que teria de escavar durante
semanas para me encontrar a mim mesma. Mas, até agora, ainda era a
America.
E, fiel a mim mesma, descobri que estava coberta de suor enquanto
me dirigia à sala onde eram gravadas as mensagens no palácio. Tinham-nos
dito para chegarmos dez minutos mais cedo. Para mim, dez minutos
significavam quinze, mas para alguém como a Celeste eram cerca de três.
Assim, a chegada das raparigas foi acontecendo aos poucos.
Havia hordas de pessoas a correr por todos os lados, dando os últimos
retoques no cenário — o qual continha agora filas desniveladas de cadeiras
para as Selecionadas. Os membros do conselho, que reconheci depois de
anos a ver o Noticiário Oficial, estavam presentes, lendo os seus guiões e
ajustando a gravata. As Selecionadas miravam-se ao espelho e alisavam os
seus vestidos extravagantes. A sala vibrava num turbilhão de atividade.
Virei-me e testemunhei um dos instantes mais fugazes da vida do
Maxon. A sua mãe, a bela Rainha Amberly, alisava-lhe algumas madeixas
de cabelo rebeldes, colocando-as no lugar. O príncipe ajeitou o casaco e
disse-lhe qualquer coisa, a rainha assentiu com a cabeça e o Maxon sorriu.
Gostaria de ter visto mais, mas a Sílvia apareceu, em toda a sua glória, para
me conduzir ao meu lugar:
— É altura de se dirigir para as bancadas, Lady America — disse ela.
— Pode sentar-se onde quiser, mas saiba que a maior parte das
Selecionadas já ocupou toda a fila da frente. — A Sílvia parecia lamentar o
facto, como se estivesse a dar-me alguma má notícia.
— Ah, obrigada — agradeci, feliz por poder sentar-me na fila de trás.
Não gostei nada de subir aqueles degraus com um vestido tão justo e
sandálias de tirinhas. (As sandálias eram mesmo necessárias? Ninguém ia
ver os meus pés.) Mas lá consegui. Quando a Marlee chegou, sorriu,
acenou-me e veio sentar-se ao meu lado. Foi muito importante para mim
que ela escolhesse um lugar ao meu lado em vez de ir para a segunda fila. A
Marlee era leal. Seria uma excelente rainha.
O vestido dela era de um amarelo brilhante e, com o seu cabelo loiro e
a pele levemente bronzeada, parecia irradiar luz.
— Marlee, adoro o teu vestido. Estás fantástica!
— Ah, obrigada — disse ela, corando ligeiramente. — Estava com
medo de ter exagerado.
— De modo nenhum! Acredita em mim, é perfeito.
— Queria conversar contigo, mas não tens aparecido. Será que
podemos falar amanhã? — perguntou ela, sussurrando.
— Claro. No Salão das Mulheres, certo? É sábado — respondi no
mesmo tom.
— Está bem — disse ela, entusiasmada.
A Amy, que estava sentada à nossa frente, virou-se para trás: — Acho
que tenho os ganchos a cair do cabelo. Podem ver se está tudo bem?
Sem dizer uma palavra, a Marlee apalpou os caracóis da Amy com os
seus dedos esguios à procura de ganchos soltos: — Está melhor agora?
— Sim, obrigada — suspirou a Amy.
— America, tenho batom nos dentes? — perguntou a Zoe. Virei-me
para a esquerda e ali estava ela com um sorriso alucinado, expondo todos os
seus dentes imaculados.
— Não, estás bem — respondi, vendo pelo canto do olho a Marlee
acenar com a cabeça, confirmando.
— Obrigada. Como é que ele pode estar tão calmo? — perguntou a
Zoe, apontando para o Maxon, que falava com um dos membros da equipa.
Ato contínuo, ela enfiou a cabeça entre as pernas e começou a tentar
controlar a respiração.
A Marlee e eu entreolhamo-nos com os olhos arregalados, divertidas,
e procurámos não nos rir. Não seria fácil se continuássemos a olhar para a
Zoe, por isso percorremos a sala com o olhar e comentámos o que as outras
traziam vestido. Havia várias raparigas vestidas com vermelhos sedutores e
verdes vibrantes, mas ninguém de azul. A Olívia tinha chegado ao extremo
de usar cor-de-laranja. Admito que não sabia muito de moda, mas tanto a
Marlee como eu concordámos que alguém deveria tê-la impedido. Aquela
cor dava-lhe um tom esverdeado à pele.
Dois minutos antes de ligarem as câmaras, percebemos que não era o
vestido que a punha verde. A Olívia vomitou ruidosamente no caixote do
lixo mais próximo e desmaiou. A Sílvia apareceu de imediato e, com
alguma confusão, disfarçaram o suor na pele da Olívia e voltaram a sentá-
la. Foi colocada na fila de trás com um recipiente aos seus pés, por
precaução.
A Bariel estava sentada mesmo à sua frente e, embora do meu lugar
não desse para ouvir o que ela resmungou à pobre coitada, parecia pronta a
bater na Olívia caso esta repetisse o episódio perto dela.
Imaginei que o Maxon devia ter visto ou ouvido uma parte da agitação
e olhei para ele para ver se demonstrava alguma reação. Mas ele não estava
a olhar para a confusão; estava a olhar para mim. Rapidamente — tão
rapidamente que qualquer outra pessoa pensaria que estava apenas a aliviar
uma comichão — o Maxon mexeu na ponta da orelha. Fiz o mesmo e
desviámos o olhar.
Fiquei entusiasmada por saber que hoje, depois do jantar, o Maxon
passaria pelo meu quarto.
De repente, começou a tocar o hino nacional e o emblema nacional de
Illéa surgiu nos monitores espalhados pelo estúdio. Endireitei-me na
cadeira. Só conseguia pensar que a minha família iria ver-me hoje e queria
deixá-los orgulhosos.
O Rei Clarkson estava no palanque, a falar sobre o breve e frustrado
ataque ao palácio. Eu não o consideraria frustrado; no fim de contas, tinha
conseguido aterrorizar-nos a quase todas. Seguiram-se anúncios atrás de
anúncios e procurei prestar atenção a tudo o que diziam, mas era difícil.
Estava acostumada a ver o programa num sofá confortável, acompanhada
por um balde de pipocas e os comentários da minha família.
Muitas das notícias tinham a ver com os rebeldes, que eram
considerados culpados de várias coisas. A construção das estradas em
Sumner estava atrasada por causa dos rebeldes e o número de soldados
locais em Atlin diminuíra porque estes tiveram de ser enviados para St.
George, para ajudar a resolver uma perturbação causada pelos rebeldes.
Nem sequer fazia ideia de que essas coisas tinham acontecido. Entre tudo o
que vira e ouvira na infância e o que tinha aprendido desde que chegara ao
palácio, comecei a questionar o que sabíamos realmente sobre os rebeldes.
Talvez simplesmente não percebesse, mas não me parecia que eles
pudessem ser culpados por tudo o que acontecia de mau cm Illéa.
E então, como por magia, o Gavril surgiu no estúdio depois de ser
anunciado pelo Mestre-de-Cerimónias:
— Boa noite a todos. Hoje, tenho um anúncio especial. A Seleção
começou há uma semana e oito jovens já regressaram a casa. Restam agora
vinte e sete belas mulheres à escolha do Príncipe Maxon. Na semana que
vem, haja o que houver, a maior parte do Noticiário Oficial de Illéa será
dedicado a dar a conhecer estas extraordinárias jovens.
Senti gotículas de suor formarem-se na minha testa. Sentar-me ali e
fazer boa figura... isso eu conseguia fazer, mas responder a perguntas? Não
iria ganhar este jogo, mas essa não era a questão; o que eu não queria era
fazer papel de idiota perante todo o país.
— Mas antes de chegarmos às jovens, hoje iremos falar com o homem
do momento. Boa noite, Príncipe Maxon, como está Vossa Alteza? —
perguntou o Gavril, atravessando o palco. O Maxon foi apanhado de
surpresa. Não tinha microfone nem respostas preparadas.
Imediatamente antes de o Gavril lhe colocar o microfone à frente, os
nossos olhares cruzaram-se e pisquei-lhe o olho. Aquele pequeno gesto
bastou para o fazer sorrir:
— Muito bem, obrigado, Gavril.
— Está a gostar da companhia até agora?
— Sim! Tem sido um prazer conhecer estas jovens.
— São todas encantadoras e gentis como parecem? — quis saber o
Gavril. Sorri antes de o Maxon responder; já que sabia que ele diria algo
como «sim, mais ou menos».
— Mmh... — O Maxon desviou o olhar do Gavril e encarou-me. —
Quase todas.
— Quase todas? — O Gavril pareceu surpreendido. Virou-se para nós:
— Há aí alguma jovem malcomportada?
Por sorte, todas as raparigas soltaram risadinhas e consegui disfarçar.
Mas que traidor!
— O que é que estas meninas fizeram que não foi assim tão gentil? —
perguntou o Gavril ao Maxon.
— Ora bem, deixe-me contar-lhe. — O Maxon cruzou as pernas e
recostou-se confortavelmente na cadeira. Nunca o tinha visto tão
descontraído como naquele momento, sentado ali, a divertir-se à minha
custa. Gostei desta sua faceta. Seria bom se a mostrasse mais vezes. —
Uma delas teve a coragem de gritar comigo, com bastante intensidade, logo
da primeira vez que nos encontrámos. Recebi um verdadeiro sermão.
Atrás do Maxon, o rei e a rainha entreolharam-se. Aparentemente
estavam também a ouvir a história pela primeira vez. Ao meu lado, as
raparigas trocavam olhares confusos. Não percebi porquê até a Marlee falar:
— Não me lembro de ninguém gritar com ele no Grande Salão. Tu
lembras-te?
O Maxon devia ter-se esquecido que o nosso primeiro encontro era
para ficar em segredo. — Acho que ele está a exagerar para ter mais piada.
Eu disse-lhe algumas coisas bastante sérias. Acho que está a referir-se a
mim.
— Um sermão? Porquê? — continuou o Gavril.
— Sinceramente, não percebi bem. Saudades de casa, talvez. E foi por
essa razão que lhe perdoei, claro. — O Maxon estava descontraído e à
vontade, conversando com o Gavril como se não houvesse mais ninguém
no estúdio. Mais tarde teria de lhe dizer que estava a sair-se
maravilhosamente.
— Então, ela ainda está connosco? — O Gavril olhou para o nosso
grupo com um sorriso de orelha a orelha e depois virou-se para o príncipe.
— Oh, sim. Ainda cá está — afirmou o Maxon, sem tirar os olhos do
Gavril. — E tenciono mantê-la por perto durante algum tempo.
Capítulo 15

O jantar foi dececionante. Na próxima semana, teria de pedir às aias


para que me deixassem uma folga no vestido de forma a eu poder comer.
No meu quarto, a Anne, a Mary e a Lucy esperavam para me
ajudarem a despir, mas expliquei que precisava de continuar vestida durante
mais algum tempo. A Anne foi a primeira a adivinhar que o Maxon vinha
visitar-me, já que eu costumava estar sempre desejosa de tirar aquelas
roupas apertadas.
— Gostaria que ficássemos até mais tarde hoje? Não e problema —
disse a Mary, um pouco esperançosa demais. Depois da calamidade que
fora a visita do Maxon alguns dias antes, resolvi que o melhor a fazer era
dispensá-las o mais cedo possível. Além disso, não iria aguentar tê-las a
olhar para mim até ele aparecer.
— Não, não. Está tudo bem. Se tiver algum problema com o vestido
mais tarde, toco a campainha.
As três acabaram por sair, um pouco relutantes, e deixaram-me à
espera do Maxon. Não sabia quanto tempo ele iria demorar e não queria
começar a ler um livro e ter de parar ou sentar-me ao piano para ter de me
levantar logo a seguir. Acabei por me deitar em cima da cama, à espera.
Deixei a minha mente viajar: pensei na Marlee e na sua simpatia. Apercebi-
me de que, à exceção de alguns pormenores, sabia muito pouco sobre ela,
mas, ainda assim, confiava que os seus modos para comigo eram
absolutamente sinceros. E então pensei nas raparigas que eram
completamente falsas e perguntei-me se o Maxon saberia ver a diferença.
A experiência dele com as mulheres parecia ser, ao mesmo tempo,
muita e pouca. Era um cavalheiro, sem dúvida, mas quando se aproximava
demasiado, não sabia o que fazer. Era como se soubesse como lidar com
uma lady, mas não com uma namorada.
Bem diferente do Aspen.
Aspen.
O seu nome, o seu rosto, a sua lembrança. Veio-me tudo à mente tão
depressa que mal consegui processar. Aspen. O que estaria a fazer?
Aproximava-se a hora do recolher obrigatório em Carolina e ele ainda devia
estar a trabalhar, se tivesse trabalho para este dia. Ou talvez estivesse a
passear com a Brenna, ou com qualquer outra com quem tivesse decidido
passar o tempo desde o fim do nosso namoro. Parte de mim desejava
saber... mas a outra parte ficava destroçada só de pensar nisso.
Olhei para o meu frasco. Peguei nele e senti a moedinha a deslizar lá
dentro, solitária.
— Eu também — suspirei. — Eu também.
Seria estupidez guardar isto? Já tinha devolvido tudo, então para quê
guardar uma moedinha? Seria isto tudo o que me restava? Uma moeda
dentro de um frasco, para um dia mostrar à minha filha, quando lhe falasse
sobre o meu primeiro namorado, aquele de quem ninguém sabia.
Não tive tempo para ficar a matutar nas minhas mágoas. A batida
firme do Maxon na porta soou alguns minutos mais tarde. Dei por mim a
correr para a porta.
Abri-a de repente e o Maxon pareceu surpreendido por me ver.
— Onde é que estão as suas aias? — perguntou, passando os olhos
pelo interior do quarto.
— Foram-se embora. Dispenso-as sempre quando volto do jantar.
— Todos os dias?
— Sim, claro. Sou perfeitamente capaz de me despir sozinha.
O Maxon ergueu o sobrolho e sorriu, e eu corei. Não tivera intenção
de que as palavras soassem daquela maneira.
— Traga um agasalho. Está frio lá fora.
Seguimos pelo corredor. Estava ainda um pouco perdida nos meus
pensamentos e, por esta altura, já sabia que o Maxon não era muito bom a
iniciar uma conversa. No entanto, tinha enfiado quase imediatamente a
minha mão no seu braço. Gostava do facto de existir já uma certa
familiaridade nesse ponto.
— Se insistir em dispensar as suas aias, terei de pôr um guarda à sua
porta — disse ele.
— Não! Não gosto de ser tratada como uma criança.
Ele soltou uma risadinha: — Ele ficaria do lado de fora. Nem sequer
daria por ele.
— Daria, sim — protestei. — Conseguiria sentir a sua presença.
O Maxon simulou um suspiro cansado. Estava tão concentrada na
nossa discussão que não ouvi os sussurros até elas estarem praticamente à
nossa frente. A Celeste, a Emmica e a Tiny passaram por nós em direção
aos seus quartos.
— Minhas senhoras — cumprimentou o Maxon, inclinando
ligeiramente a cabeça.
Seria tolice imaginar que ninguém nos veria juntos. O meu rosto ficou
vermelho, embora não soubesse bem porquê.
As raparigas fizeram uma vénia e seguiram o seu caminho. Virei a
cabeça para as observar enquanto seguíamos em direção às escadas. A
Emmica e a Tiny pareciam curiosas. Em poucos minutos já teriam contado
o encontro às outras todas e no dia seguinte eu seria, sem qualquer dúvida,
bombardeada com perguntas. Os olhos da Celeste cravaram-se furiosos em
mim. Tinha a certeza de que ela considerava isto como uma ofensa pessoal.
Virei-me novamente para a frente e disse a primeira coisa que me
passou pela cabeça:
— Eu bem lhe disse que as raparigas que se assustaram com o ataque
acabariam por ficar. — Não sabia exatamente quem tinha pedido para sair,
mas corriam boatos de que a Tiny era uma delas.
Ela desmaiara. Constava que a Bariel também pedira, mas eu sabia
que era mentira. Seria preciso arrancar a coroa das mãos do seu cadáver
antes de isso acontecer.
— Nem imagina o alívio que foi. — Ele pareceu sincero.
Demorei um pouco para pensar numa resposta, já que não esperava a
sua reação, e ao mesmo tempo estava completamente concentrada em não
cair. Não sabia muito bem como descer escadas agarrada ao braço de
alguém e os saltos altos não ajudavam. Mas pelo menos, se escorregasse,
teria alguém para me agarrar.
— Pensava que isso poderia, de certa forma, ajudar — disse, quando
chegámos ao andar de baixo e recuperei o equilíbrio. — Quero dizer, deve
ser complicado ter de escolher uma rapariga entre tantas. Não seria mais
fácil se as circunstâncias eliminassem algumas?
O Maxon encolheu os ombros:— Talvez. Mas não foi isso que senti,
garanto. — Ele parecia de certa forma magoado. — Boa noite, senhores —
disse, cumprimentando os guardas que abriram as portas para o jardim sem
qualquer hesitação. Talvez eu devesse aceitar a proposta do Maxon e deixá-
los saber que gostava de ir lá para fora. A ideia de poder escapar com tanta
facilidade era tentadora.
— Não percebo — disse, enquanto ele me conduzia para um dos
bancos (o nosso banco), deixando-me sentar de frente para as luzes do
palácio. Ele sentou-se virado para o outro lado, de modo a ficarmos quase
frente a frente. Era mais fácil conversar assim.
Ele pareceu hesitar um pouco para se explicar, mas depois respirou
fundo e disse: — Talvez estivesse a ser demasiado convencido, pensando
que merecia que se arriscassem por mim. Não que deseje isto a ninguém!
— esclareceu. — Não é isso que quero dizer. É que... Não sei. Será que
vocês não veem tudo o que eu estou a arriscar?
— Mmh... não. Você está aqui com a sua família para lhe dar
conselhos e todas nós giramos à volta dos seus horários. Tudo na sua vida
continua igual, enquanto as nossas mudaram da noite para o dia. O que é
que poderia estar a arriscar?
O Maxon pareceu chocado:
— America, eu posso ter a minha família aqui, mas imagine o
embaraço de ter os seus pais a observar as suas tentativas de sair com
raparigas pela primeira vez. E não apenas eles, mas o país inteiro! E, para
piorar, nem sequer são encontros normais.
»E quanto a girar à volta dos meus horários, quando não estou
convosco, estou a organizar tropas, a criar leis, a afinar orçamentos... e
ultimamente faço tudo isso sozinho, enquanto o meu pai me vê tropeçar na
minha própria estupidez por não ter nem de perto nem de longe a
experiência que ele tem. E depois, quando inevitavelmente faço as coisas de
modo diferente do que ele faria, ele interfere e corrige os meus erros. E
enquanto tento realizar todas estas tarefas, você — todas vocês, quero dizer
— não me saem da cabeça. Sinto-me simultaneamente entusiasmado e
apavorado por todas vocês!
Nunca o vira gesticular tanto, agitando as mãos no ar e passando-as
pelo cabelo.
— E você acha que a minha vida não mudou? Que hipóteses pensa
que tenho de encontrar a minha alma gémea neste grupo? Terei sorte se
conseguir encontrar alguém que seja capaz de me aturar para o resto das
nossas vidas. E se já a mandei para casa por estar a contar sentir alguma
espécie de faísca que não senti? E se ela estiver à espera de me abandonar
ao primeiro sinal de problemas? E se não encontrar ninguém? O que faço
então, America?
O seu discurso começara cheio de fúria e paixão, mas no final as suas
perguntas já não eram retóricas. Queria realmente saber. O que faria se não
houvesse ninguém ali que estivesse sequer perto de ser alguém que ele
pudesse amar? E essa nem sequer parecia ser a sua maior preocupação;
estava mais angustiado com a hipótese de ninguém o amar.
— Maxon, acho que vai encontrar a sua alma gémea aqui.
Sinceramente.
— Acha mesmo? — A sua voz encheu-se de esperança com a minha
previsão.
— Não tenho qualquer dúvida. — Pus-lhe a mão no ombro. Ele
pareceu sentir-se confortado por aquele simples toque. Perguntei-me
quantas vezes as pessoas lhe tocariam simplesmente. — Se a sua vida está
assim tão de pernas para o ar, como diz, então ela tem de estar aqui algures.
Segundo a minha experiência, o amor verdadeiro é geralmente o mais
inconveniente — afirmei, com um sorriso débil.
Ele pareceu feliz por ouvir estas palavras, as quais também me
consolavam porque acreditava nelas. Se eu não podia ter um amor meu, o
melhor que podia fazer era ajudar o Maxon a encontrar o dele.
— Espero que você e a Marlee se entendam. Ela é muito doce.
O Maxon fez uma cara estranha: — Parece ser.
— Como? Ser doce não é bom?
— Não, não. É bom, sim.
Não acrescentou mais nada.
— O que tanto procura? — perguntou então, de repente.
— O quê?
— Os seus olhos não param quietos. Sei que está a ouvir-me, mas
parece estar à procura de alguma coisa.
Apercebi-me de que ele estava certo. Durante todo o seu pequeno
discurso, o meu olhar varrera tudo em redor: o jardim, as janelas e até as
torres das muralhas. Estava a ficar paranoica:
— Pessoas... câmaras... — Abanei a cabeça e dirigi o olhar para a
noite.
— Estamos sozinhos. Só está ali o guarda ao pé da porta. — O Maxon
apontou para a figura solitária iluminada pela luz do palácio. Ele tinha
razão, ninguém nos seguira e embora as janelas estivessem iluminadas, não
havia lá ninguém. Já tinha reparado nisso enquanto vistoriava tudo, mas
ajudava ter uma confirmação.
Senti a minha postura descontrair um pouco.
— Não gosta de ser observada, pois não? — perguntou ele.
— Não. Prefiro passar despercebida. É a isso que estou habituada,
sabe? — Observei o padrão gravado no bloco de pedra perfeito sob os meus
pés, evitando olhar para ele.
— Vai ter de se habituar. Quando se for embora, os olhos de todos vão
continuar virados para si durante o resto da vida. A minha mãe ainda fala
com algumas das mulheres que conheceu durante a sua própria Seleção.
São todas consideradas mulheres importantes. Ainda hoje.
— Perfeito! — gemi. — Mais uma coisa pela qual mal posso esperar
quando for para casa.
A expressão no rosto de Maxon era de quem pede desculpa, mas tive
de desviar o olhar. Estava a ser recordada, mais uma vez, de quanto esta
competição idiota me estava a custar, de como a minha ideia de «normal»
nunca mais voltaria a ser a mesma. Não parecia ser justo...
Mas contive-me. Não podia culpar o Maxon. Ele também era uma
vítima em tudo isto, tanto quanto nós, embora de um modo muito diferente.
Suspirei e voltei a olhar para ele. A sua expressão era determinada como se
tivesse tomado uma decisão:
— America, posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
— Talvez — esquivei-me. Ele fez um sorriso onde não havia ponta de
humor.
— É que... bem, consigo ver que não gosta mesmo nada de estar aqui.
Odeia as regras, a competição, a atenção, as roupas e a... não, da comida
gosta. — Ele sorriu e eu também. — Sente imensas saudades da sua casa e
da sua família... e suspeito que também de outras pessoas. Os seus
sentimentos são incrivelmente transparentes.
— Sim. — Revirei os olhos. — Eu sei.
— Mas está disposta a sentir saudades e a sentir-se infeliz aqui em vez
de voltar para casa. Porquê?
Senti o nó a crescer na garganta e procurei controlá-lo:
— Não estou infeliz... e você sabe porquê.
— Sim, às vezes parece estar bem. Vejo-a sorrir quando conversa com
algumas das outras raparigas e parece muito satisfeita durante as refeições.
É verdade. Mas há outras alturas em que parece tão triste. Será que poderia
contar-me porquê? A história toda?
— É só mais uma história de amor falhada. Não é nada de importante
nem emocionante. Acredite. — Por favor não insista, não quero chorar.
— Boa ou má, gostaria de conhecer uma história de amor verdadeiro,
além da dos meus pais. Uma que se tenha passado fora destes muros e longe
das regras e da rotina... Por favor?
A verdade é que guardava aquele segredo há tanto tempo que não me
imaginava a revelá-lo. E doía tanto pensar no Aspen. Será que conseguiria
dizer o nome dele em voz alta? Respirei fundo. O Maxon era meu amigo
agora. Tentava tanto ser bom para mim e fora totalmente sincero comigo...
— No mundo lá fora — apontei para lá dos muros —, as castas
cuidam umas das outras. Às vezes. O meu pai, por exemplo, tem três
famílias que compram pelo menos um quadro todos os anos e eu tenho
famílias que me contratam sempre para cantar nas suas festas de Natal. São
os nossos patronos, entende?
»Bom, nós éramos uma espécie de patronos da família dele. São Seis.
Quando podíamos pagar a alguém para ajudar nas limpezas ou se
precisássemos de ajuda para organizar o inventário, chamávamos sempre a
mãe dele. Conhecia-o desde que éramos crianças, mas ele era mais velho do
que eu, quase da idade do meu irmão. Eles gostavam de brincadeiras brutas
e, portanto, eu evitava-os.
»O meu irmão mais velho, o Kota, é um artista como o meu pai. Há
uns anos, uma escultura de metal em que trabalhara durante vários anos foi
vendida por uma fortuna. Talvez tenha ouvido falar dele.
O Maxon murmurou o nome Kota Singer e, ao fim de alguns
segundos, vi-o fazer a ligação.
Afastei os cabelos dos ombros e preparei-me para continuar:
— Ficámos todos muito contentes pelo Kota. Ele tinha trabalhado
bastante naquela peça e, na altura, precisávamos imenso do dinheiro. Toda a
família ficou eufórica. Mas o Kota ficou com o dinheiro quase todo para
ele. Aquela escultura catapultou-lhe a carreira; as pessoas começaram a
telefonar todos os dias, encomendando-lhe trabalhos. Hoje em dia, tem uma
lista de espera a perder de vista e cobra os olhos da cara porque pode. Acho
que está um pouco viciado na fama. Os Cinco normalmente não conseguem
este tipo de atenção.
Os nossos olhos encontraram-se por um momento muito significativo
e pensei mais uma vez em como jamais voltaria a passar despercebida na
vida, quer quisesse ou não.
— Bom, assim que os telefonemas começaram, o Kota decidiu
afastar-se da família. A minha irmã mais velha acabara de se casar, por isso
tínhamos perdido os rendimentos dela. Então, o Kota começa a ganhar
dinheiro a sério e abandona-nos. — Apoiei as mãos no peito do Maxon para
sublinhar o que estava a dizer. — Isso não se faz. Ninguém abandona a sua
família. Mantermo-nos unidos... é a única forma de sobrevivermos.
Vi compreensão nos olhos do Maxon. — Ele ficou com o dinheiro
todo? Queria comprar a sua ascensão?
Assenti com a cabeça: — Ele tem a ideia fixa de ser um Dois. Se
ficasse feliz com um Três ou um Quatro, poderia ter comprado o título e ter-
nos ajudado, mas está obcecado. É estupidez, realmente. Ele tem uma vida
mais do que confortável, mas quer a porcaria daquele rótulo. E não vai
parar enquanto não o conseguir.
O Maxon abanou a cabeça: — Isso pode demorar uma vida inteira.
— Desde que morra com um Dois gravado na lápide, acho que não se
importa.
— Presumo que vocês já não sejam muito próximos.
Suspirei: — Agora não, mas no início pensei que tinha percebido mal
alguma coisa. Achava simplesmente que o Kota só estava a mudar-se para
ser independente e não para se afastar de nós. No início, estava do lado dele
e, quando montou o seu apartamento e estúdio, ajudei-o. Ele chamou a
mesma família de Seis que contratávamos sempre e o filho mais velho, que
estava disponível e desejoso de trabalhar, foi ajudar o Kota a organizar as
coisas durante alguns dias.
Fiz uma pausa, recordando:
— E então, lá estava eu a desencaixotar coisas... e ele também. Os
nossos olhares cruzaram-se e ele já não parecia assim tão mais velho e
bruto. Há muito tempo que não nos víamos, sabe? Já não éramos crianças.
»No dia inteiro cm que lá estive, às vezes tocávamo-nos aciden‐
talmente quando movíamos as coisas de um lado para o outro. Ele olhava
para mim ou sorria, e eu senti-me viva pela primeira vez. Eu... Eu estava
simplesmente louca por ele.
A minha voz cedeu finalmente e as lágrimas que ansiava há tanto
tempo por libertar brotaram:
— Vivíamos bastante perto um do outro e, por isso, eu ia passear
durante o dia apenas para tentar vê-lo. E quando a mãe dele vinha ajudar-
nos, ele acompanhava-a às vezes e ficávamos ali a olhar um para o outro;
era tudo o que podíamos fazer. — Deixei escapar um soluço. — Ele é um
Seis e eu, uma Cinco, e há leis... e a minha mãe! Oh, ficaria furiosa se
soubesse. Ninguém podia saber.
Eu agitava as mãos espasmodicamente, libertando a tensão de todo
aquele segredo.
— Em breve começaram a aparecer bilhetinhos anónimos colados na
minha janela; diziam que eu era linda e que cantava como um anjo. E eu
sabia que eram dele.
»Na noite em que fiz quinze anos, a minha mãe deu uma festa e
convidou a família dele. Ele puxou-me para um canto, entregou-me um
postal de aniversário e disse-me para o ler quando estivesse sozinha.
Quando finalmente o fiz, vi que o postal não trazia o nome dele nem sequer
uma mensagem de «Feliz Aniversário»; apenas as palavras: «Casa da
árvore. Meia-noite.»
O Maxon arregalou os olhos: — Meia-noite? Mas...
— É bom que saiba que violo regularmente o recolher obrigatório de
Illéa.
— America, poderia ter ido parar à cadeia! — exclamou ele,
abanando a cabeça.
Encolhi os ombros: — Na altura, não parecia ser grave. Naquela
primeira vez, senti-me como se voasse. Conhecia a letra dele das outras
mensagens e fiquei contente por ter sido suficientemente esperto para
manter tudo em segredo. E conseguira arranjar uma maneira de ficarmos
sozinhos. Mal podia acreditar que ele queria ficar a sós comigo.
»Nessa noite, fiquei acordada no meu quarto a observar a casa da
árvore no quintal. Perto da meia-noite, vi alguém subir os degraus. Lembro
de que fui lavar novamente os dentes, por precaução. Esgueirei-me pela
porta das traseiras e fui até à casa da árvore. E ali estava ele. Era...
inacreditável.
»Não me lembro de como começou, mas em breve estávamos a
confessar o que sentíamos um pelo outro e não conseguíamos parar de rir de
tão felizes que estávamos por ambos sentirmos o mesmo. Não me ralava
com o recolher obrigatório nem com o facto de mentir aos meus pais e não
me importava de ser Cinco e ele Seis. Não me preocupava com o futuro,
porque nada podia ser mais importante do que o amor dele por mim...
»E ele amava-me, Maxon, amava mesmo...
Mais lágrimas. Apertei as mãos contra o peito, sentindo a falta do
Aspen como nunca. Dizer tudo aquilo em voz alta só tornava a situação
mais real. Não havia mais nada a fazer senão terminar a história:
— Encontrámo-nos em segredo durante dois anos. Éramos felizes,
mas ele estava sempre preocupado por termos de esconder-nos e com o
facto de não poder dar-me o que achava que eu merecia. Quando recebemos
a carta da Seleção, insistiu para que eu me inscrevesse.
O Maxon ficou de boca aberta.
— Eu sei. Era estupidez, mas ele ficaria para sempre com um peso na
consciência se eu não tentasse. E, honestamente, sinceramente, nunca
pensei que seria escolhida. Como poderia?
Levantei as mãos e deixei-as cair. Ainda me sentia perplexa com tudo
aquilo.
— Soube pela mãe dele que ele tinha começado a juntar dinheiro para
se casar com uma rapariga misteriosa. Fiquei tão entusiasmada. Fiz-lhe um
jantar surpresa com a intenção de lhe arrancar o pedido. Estava
completamente pronta para isso.
»Mas quando ele viu o dinheiro todo que eu gastara, ficou aborrecido.
É muito orgulhoso. Queria cuidar de mim, e não o contrário, e acho que
percebeu, naquele momento, que nunca seria capaz de o fazer. Então,
terminou tudo comigo...
»Uma semana depois, o meu nome foi selecionado.
Ouvi o Maxon murmurar alguma coisa que não consegui perceber.
— A última vez que o vi foi na minha despedida — solucei. — Ele
estava com outra rapariga.
— O QUÊ? — gritou o Maxon.
Cobri o rosto com as mãos:
— E isso deixa-me louca porque sei que há outras raparigas atrás dele.
Sempre houve. E agora ele não tem motivo nenhum para as afastar. Talvez
até esteja com a rapariga da minha despedida. Não sei. E não há nada que
eu possa fazer em relação a isso, mas só a ideia de voltar para casa e assistir
a tudo... Não posso, Maxon... Simplesmente não posso...
Desatei num choro convulsivo e ele deixou-me chorar. Quando as
lágrimas finalmente abrandaram, disse: — Maxon, espero que encontre uma
pessoa sem a qual não consiga viver. Espero sinceramente. E desejo que
nunca venha a saber como é tentar viver sem ela.
O rosto do Maxon era um eco distante da minha própria dor. Parecia
sentir profundamente a minha mágoa, mais do que isso, parecia furioso.
— Lamento imenso, America. Eu não... — A sua expressão mudou
um pouco. — Agora é uma boa altura para lhe dar palmadinhas nas costas?
A sua dúvida fez-me sorrir: — Sim, agora é uma ótima altura.
Ele parecia tão cético como no dia anterior, mas, em vez de me dar
apenas uma palmadinha nas costas, inclinou-se e envolveu-me
hesitantemente com os braços.
— A única pessoa que abracei na vida foi a minha mãe. Está bem
assim? — perguntou.
Ri-me: — É difícil enganarmo-nos num abraço.
Após um momento, falei novamente: — Mas entendo o que quer
dizer. Também só abraço a minha família.
Sentia-me exausta depois daquele longo dia com os vestidos, o
Noticiário, o jantar e as conversas. Era bom sentir o Maxon abraçando-me
simplesmente e acariciando o meu cabelo de vez em quando. Não estava
assim tão perdido como parecia. Esperou pacientemente até a minha
respiração acalmar e depois afastou-se e olhou-me nos olhos:
— America, prometo mantê-la aqui até ao último momento possível.
Sei que querem que reduza a Elite a três raparigas e que depois faça a
minha escolha, mas juro-lhe que a manterei aqui até só sobrarem duas. Não
vou mandá-la embora antes de ser necessário. Ou antes de você estar
pronta; o que acontecer primeiro.
Assenti.
— Sei que mal nos conhecemos, mas acho que você é maravilhosa e
não gosto de a ver sofrer. Se ele estivesse aqui, eu... eu... — O Maxon
estremeceu de frustração e depois suspirou: — Lamento tanto, America.
Abraçou-me de novo e eu encostei a minha cabeça no seu ombro
largo. Sabia que o Maxon manteria a sua promessa. E, assim, acomodei-me
naquele que era talvez o último lugar onde alguma vez pensara encontrar
consolo sincero.
Capítulo 16

Quando acordei na manhã seguinte, tinha as pálpebras pesadas.


Ao esfregar os olhos para me livrar daquele peso, senti-me feliz por
ter contado tudo ao Maxon. Parecia estranho que o palácio — a bela jaula
— fosse o único lugar onde podia ser realmente sincera em relação a tudo o
que sentia.
Durante a noite, senti-me embalada pela promessa do Maxon; tinha a
certeza de que estaria segura aqui. Todo o processo de reduzir trinta e cinco
mulheres até escolher uma demoraria semanas, talvez meses, e tempo e
espaço eram tudo o que eu precisava. Não tinha a certeza de conseguir
esquecer o Aspen — ouvira a minha mãe dizer que o primeiro amor
permanece para sempre, mas talvez este tempo de afastamento me ajudasse
a sentir-me normal mais cedo.
As minhas aias não me perguntaram nada sobre os meus olhos
inchados, apenas se limitaram a ajudar-me a disfarçar os estragos. E não me
questionaram sobre o meu cabelo despenteado, apenas o arranjaram.
Apreciei a sua atitude. Não era como em casa, onde todos notavam a minha
tristeza e não faziam nada para me ajudar. Aqui, conseguia sentir que todos
se preocupavam comigo e com o que quer que fosse que me afligia e, em
resposta, tratavam-me com extremo cuidado.
A meio da manhã, estava pronta para começar o dia. Era sábado, por
isso não havia rotinas nem horários, mas tínhamos de permanecer o dia
inteiro no Salão das Mulheres. O palácio recebia visitas aos sábados e
tínhamos sido avisadas de que algumas pessoas poderiam querer conhecer-
nos. Não era coisa que me entusiasmasse muito, mas pelo menos podia usar
pela primeira vez as minhas calças de ganga novas. É claro que, em toda a
minha vida, nunca tinha vestido umas calças que me caíssem tão bem.
Esperava que, já que o Maxon e eu estávamos a dar-nos às mil maravilhas,
ele me deixasse ficar com elas quando me fosse embora.
Dirigi-me devagar para o andar de baixo, um pouco cansada por me
ter deitado tarde. Antes mesmo de chegar ao Salão das Mulheres, já
conseguia ouvir o burburinho das vozes das outras. Assim que entrei, a
Marlee agarrou-me no braço e arrastou-me até junto de duas cadeiras no
fundo do salão.
— Finalmente! Estava à tua espera — exclamou ela.
— Desculpa, Marlee. Deitei-me tarde e dormi demais.
Ela olhou para mim, notando provavelmente os restos de tristeza na
minha voz, mas gentilmente decidiu falar sobre as minhas calças novas: —
São fantásticas!
— Eu sei. Nunca vesti nada assim. — A minha voz animou-se um
pouco. Decidi retomar a minha velha regra: o Aspen não era permitido aqui.
Expulsei-o da cabeça e concentrei-me na minha segunda pessoa favorita no
palácio. — Desculpa ter-te feito esperar. O que querias dizer-me?
A Marlee hesitou e mordeu os lábios enquanto nos sentávamos. Não
havia mais ninguém por perto. Devia ter um segredo.
— Na realidade, pensando bem, talvez não deva contar-te. As vezes
esqueço-me de que estamos a competir umas contra as outras.
Ah! Eram segredos relacionados com o Maxon. Isto, eu tinha de saber.
— Sei como te sentes, Marlee, mas acho que poderíamos ser grandes
amigas. Não consigo ver-te como uma inimiga, sabes?
— Sim. Acho que és um amor e as pessoas adoram-te, isto é, vais
provavelmente ganhar... — Ela parecia um pouco desalentada com a ideia.
Tive de me controlar para não tremer nem rir perante estas palavras.
— Marlee, posso contar-te um segredo? — perguntei, com a voz
meigamente sincera. Esperava que acreditasse nas minhas palavras.
— Claro, America. O que quiseres.
— Não sei quem vai ganhar isto tudo. A sério, pode ser qualquer uma
nesta sala. Acho que todas pensamos que vamos ser nós, mas sei que, se
não for eu a escolhida, quero que sejas tu. Pareces ser uma pessoa generosa
e justa. Acho que darias uma ótima princesa. Sinceramente. — Era
praticamente tudo verdade.
— Acho que tu és inteligente e simpática — murmurou ela. — Tam‐
bém serias excelente.
Baixei a cabeça. Era amoroso da parte dela pensar tão bem de mim,
mas sentia-me um pouco desconcertada quando falavam assim de mim... A
minha mãe, a May, a Mary... Era difícil acreditar na quantidade de pessoas
que pensavam que eu daria uma boa princesa. Será que era a única a notar
os meus defeitos? Não era sofisticada. Não sabia ser mandona nem
extremamente organizada. Era egoísta, tinha um feitio horrível e não
gostava de estar rodeada de muita gente. E não era corajosa e este era um
posto que exigia coragem. Sim, porque era disso que se tratava; não era
apenas um casamento, mas também um cargo.
— Sinto isso em relação a muitas das outras — confessou a Marlee.
— Que cada uma delas tem uma qualidade que me falta, que as torna
melhores do que eu.
— Aí é que está, Marlee. Podias provavelmente encontrar alguma
coisa de especial em cada pessoa neste salão. Mas quem sabe exatamente o
que o Maxon procura?
Ela abanou a cabeça.
— Por isso é melhor não nos preocuparmos com o assunto. Podes
contar-me o que quiseres. Eu guardarei os teus segredos se guardares os
meus. Vou torcer por ti e, se quiseres, podes torcer por mim. E bom ter
amigas aqui.
Ela sorriu e depois olhou em volta para garantir que ninguém podia
ouvir-nos:
— O Maxon e eu tivemos o nosso encontro — sussurrou.
— Foi? — perguntei. Sabia que parecia demasiado curiosa, mas não
consegui evitar. Queria saber se ele conseguira ser menos rígido com ela. E
queria saber se ele tinha gostado dela.
— Ele enviou um bilhete pelas minhas aias, perguntando se poderia
ver-me na quinta-feira. — Sorri enquanto a Marlee falava, lembrando-me
de como eu e ele tínhamos decidido eliminar essas formalidades no dia
imediatamente antes. — Respondi que sim, claro, como se fosse capaz de o
recusar! Ele veio buscar-me e demos uma volta pelo palácio. Falámos de
cinema e descobrimos que havia muitos filmes de que ambos gostávamos.
Então descemos as escadas para a cave. Já viste a sala de cinema que há lá?
— Não. — Na realidade, nunca estivera num cinema e mal podia
esperar que ela o descrevesse.
— Ah, é perfeito! As cadeiras são largas e reclináveis e até tem uma
máquina de pipocas. O Maxon fez pipocas só para nós os dois! Foi tão giro,
America. Ele mediu mal o óleo e queimou as primeiras. Teve de chamar
alguém para vir limpar e fazer mais.
Revirei os olhos. Bonito, Maxon, muito bonito. Mas pelo menos a
Marlee tinha achado encantador.
— Então vimos um filme e quando chegámos à parte romântica, no
fim, ele pegou-me na mão! Achei que ia desmaiar. Ele tinha-me dado o
braço quando caminhávamos, mas isso é o protocolo; ali, ele segurou-me na
mão... — Ela suspirou e recostou-se na cadeira.
Soltei uma risadinha audível. Ela parecia completamente caída por
ele. Sim, sim, sim!
— Mal posso esperar por outro encontro. Ele é tão bonito, não achas?
— perguntou ela.
Fiz uma pausa antes de responder: — Sim, é giro.
— Vá lá, America! Deves ter reparado nos olhos dele e na voz...
— Exceto quando se ri! — Só o facto de me lembrar do riso do
Maxon fazia-me sorrir. Era engraçado, mas esquisito. Ele empurrava a
respiração e depois inalava o ar aos repelões, fazendo um barulho quase
igual a outra risada.
— Sim, está bem, o riso dele é esquisito, mas é engraçado.
— Claro, para quem gostar de ouvir o encantador som de uma crise de
asma todas as vezes que contar uma piada.
A Marlee descontrolou-se e inclinou-se para a frente à gargalhada.
— Está bem, está bem — disse, recuperando o fôlego. — Mas tem de
haver, de certeza, alguma coisa nele que aches atraente.
Abri e fechei a boca duas ou três vezes. A minha vontade era
continuar a troçar do Maxon, mas não queria que a Marlee o visse de modo
negativo. Então pensei no assunto.
O que é que o Maxon tinha de atraente?
— Bem, quando se descontrai, é simpático. Como quando fala sem
prestar atenção às palavras ou quando o apanhas a olhar para alguma coisa
como... como se estivesse mesmo a tentar encontrar a sua beleza.
A Marlee sorriu e percebi que ela também tinha reparado nisso.
— E gosto do facto de ele parecer estar mesmo envolvido quando está
ali, sabes? Como se apesar de ter um país para governar e milhares de
coisas para fazer, se esquecesse de tudo quando está connosco. Empenha-se
naquilo que está diante dele. Gosto disso.
— E... bem, não contes a ninguém, mas... os braços dele. Gosto dos
braços dele.
Corei no final. Que estupidez... Porque não me limitara a falar de
generalidades positivas sobre a sua personalidade? Por sorte, a Marlee
pegou logo na deixa:
— Sim! Dá para senti-los debaixo daqueles fatos grossos, não é? Ele
deve ser incrivelmente forte — disse ela, extasiada.
— Porque será? Quero dizer, por que razão precisa de ser tão forte?
Ele faz trabalho de secretária. É estranho.
— Talvez goste de treinar diante do espelho — disse a Marlee,
fazendo uma careta e fletindo os seus bracinhos minúsculos.
— Ah, ah, ah! Aposto que é isso. Desafio-te a perguntares-lhe!
— Nem pensar!
Parecia que a Marlee se tinha divertido imenso. Porque seria que o
Maxon parecera tão relutante em falar disso ontem? A avaliar pela reação
dele, diria que o encontro nem sequer acontecera. Talvez fosse tímido?
Olhei em redor do salão e vi que mais de metade das raparigas
pareciam tensas ou tristes. A Janelle, a Emmica e a Zoe escutavam com
atenção algo que a Kriss estava a dizer. Esta parecia sorridente e animada,
mas o rosto da Janelle estava franzido de preocupação, ao passo que a Zoe
roía as unhas. A Emmica massajava distraidamente um ponto por baixo da
orelha, como se estivesse com dores. Perto delas, o par descoordenado,
Celeste e Anna, estava envolvido em mais uma intensa discussão. Como
sempre, a Celeste falava com um ar incrivelmente superior. A Marlee
percebeu o meu olhar e explicou o que estava a acontecer:
— As mal-humoradas são as que ainda não tiveram um encontro com
o príncipe. Na quinta-feira, ele disse-me que eu era o seu segundo encontro
naquele dia. Está realmente a tentar conhecer todas.
— A sério? Achas que é isso?
— Sim. Pensa bem, nós estamos contentes porque já tivemos um
encontro a sós com ele. Sabemos que gostou de nós o suficiente para nos
conhecer e não nos mandar embora logo a seguir. As notícias de quem
esteve com ele e quem não esteve vão-se sabendo, e elas temem que ele
esteja a demorar porque não está interessado e que, assim que tiver um
encontro com elas, as mande embora.
Por que razão é que ele não me dissera nada disto? Não éramos
amigos? Os amigos falavam sobre este tipo de coisas. Ele já estivera com,
pelo menos, uma dúzia de raparigas, a julgar pelos seus sorrisos. Tínhamos
passado grande parte da noite anterior juntos e ele só me fizera chorar. Que
tipo de amigo guarda os próprios segredos, enquanto me faz contar os
meus?
A Tuesday, que tinha estado a ouvir a Camille com uma expressão de
ansiedade no rosto, levantou-se da cadeira e olhou em volta. Descobriu-me
a mim e à Marlee no canto e aproximou-se rapidamente.
— O que é que vocês fizeram no vosso encontro? — perguntou
abruptamente.
— Olá, Tuesday — cumprimentou a Marlee, alegremente.
— Oh, cala-te! — gritou ela, e virou-se para mim: — Vá, America.
Fala.
— Já contei.
— Não. No encontro da noite passada! — Uma criada aproximou-se
para nos servir chá e eu estava pronta para aceitar, mas a Tuesday mandou-a
embora.
— Como...?
— A Tiny viu-vos juntos e contou-nos — disse a Marlee, tentando
explicar o mau humor da Tuesday. — És a única com quem ele já esteve a
sós duas vezes. Muitas das que ainda não estiveram com ele estavam-se a
queixar. Acham que é uma injustiça. Mas a culpa não é tua se ele gosta de
ti.
— Mas é completamente injusto — lamuriou-se a Tuesday. — Ainda
não o vi fora das refeições, nem sequer de passagem. O que é que vocês
fizeram?
— Nós... mmh... fomos outra vez para o jardim. Ele sabe que eu gosto
de estar lá fora. E conversámos, simplesmente. — Senti-me nervosa, como
se tivesse feito alguma asneira. O rosto da Tuesday tinha uma expressão tão
intensa que desviei o olhar e notei então que várias outras raparigas, nas
mesas mais próximas, estavam a ouvir.
— Só conversaram? — perguntou ela, cética.
Encolhi os ombros: — Sim.
A Tuesday bufou exasperada e dirigiu-se para a mesa da Kriss,
exigindo-lhe energicamente que contasse novamente a sua história. Eu,
contudo, estava atónita.
— Estás bem, America? — perguntou a Marlee, trazendo-me de volta
à realidade.
— Sim, porquê?
— Pareces perturbada. — Ela franziu o sobrolho, preocupada.
— Não. Não estou perturbada. Está tudo ótimo.
De repente, com um movimento tão rápido que eu não teria visto se
não estivesse tão perto delas, a Anna Farmer — uma Quatro que trabalhava
numa quinta — inclinou-se e esbofeteou a Celeste.
Várias pessoas soltaram uma exclamação de espanto, incluindo eu. As
que não tinham visto viraram-se e perguntaram o que acontecera. A Tiny foi
uma delas e sua voz aguda ecoou pelo silêncio que se instalara no salão.
— Oh, Anna, não... — lamentou a Emmica, com um suspiro.
Assim que isto aconteceu, a Anna começou lentamente a compreender
o que tinha feito. Iria ser mandada para casa; não podíamos agredir
fisicamente uma outra Selecionada. Os olhos da Emmica encheram-se de
lágrimas, enquanto a Anna ficou sentada em silêncio, perplexa. Eram ambas
raparigas que trabalhavam em quintas e tinham ficado logo amigas. Não
podia imaginar como me sentiria se a Marlee saísse de repente.
Só conhecia a Anna de passagem e ela sempre me parecera ser uma
criatura explosiva, mas sabia que não era da sua natureza procurar agredir
intencionalmente alguém. Durante grande parte do ataque dos rebeldes, ela
estivera de joelhos, a rezar.
Não havia dúvida de que fora provocada, mas ninguém estava sentado
suficientemente perto para o provar. Quanto ao que pudesse ter sido dito
entre as duas, seria a palavra da Anna contra a da Celeste, no entanto, a
Celeste tinha um salão inteiro que testemunhara a estalada que ela levara.
Talvez o Maxon fosse até forçado a mandar a Anna embora para dar o
exemplo.
Os olhos da Anna encheram-se de lágrimas. A Celeste disse-lhe
qualquer coisa em voz baixa e saiu rapidamente do salão.
Ao jantar, a Anna já não estava connosco.
Capítulo 17

— Quem era o presidente dos Estados Unidos durante a Terceira


Guerra Mundial? — A Sílvia fazia-nos perguntas.
Eu não sabia a resposta e, portanto, desviei o olhar na esperança de
que a Sílvia não me chamasse. Por sorte, a Amy levantou o braço e
respondeu: — O Presidente Wallis.
Estávamos mais uma vez no Grande Salão, a começar a semana com
uma aula de História. Bem, na realidade, era mais um teste de História. Esta
era uma daquelas áreas onde parecia sempre que o conhecimento das
pessoas era muito variado, tanto em relação aos factos como à quantidade
de informação a que haviam tido acesso. A minha mãe ensinava-nos sempre
História oralmente. Tínhamos páginas e fichas para aprender Inglês e
Matemática, mas no que dizia respeito à história dos acontecimentos do
nosso passado poucas eram as coisas de cuja veracidade eu não duvidava.
— Correto. O Presidente Wallis estava no poder antes do ataque
chinês e continuou a governar os Estados Unidos durante a guerra —
confirmou a Sílvia. Repeti o nome na minha cabeça: Wallis, Wallis, Wallis.
Queria lembrar-me disto para contar à May e ao Gerad, quando voltasse
para casa, mas estávamos a aprender tantas coisas que iria ser difícil
memorizar tudo. — Qual foi o motivo que levou a China a invadir o país?
Celeste?
A Celeste sorriu: — O dinheiro. Os americanos deviam-lhes muito
dinheiro e não conseguiam pagar.
— Excelente, Celeste. — A Sílvia presenteou-a com um sorriso
encantado. Como é que a Celeste conseguia dar assim a volta às pessoas?
Era tão irritante. — Quando os Estados Unidos não conseguiram pagar a
sua enorme dívida, os Chineses invadiram o país. Infelizmente para eles,
não conseguiram recuperar o dinheiro, já que os Estados Unidos estavam
completamente falidos. No entanto, conseguiram obter mão-de-obra
americana. E quando os Chineses ocuparam o país, qual foi o nome que
deram aos Estados Unidos?
Eu e algumas outras levantámos a mão. — Jenna? — chamou a Sílvia.
— O Estado Americano da China.
— Sim. O Estado Americano da China parecia-se com o país anterior,
mas era apenas uma fachada. Os Chineses mandavam em tudo nos
bastidores, influenciando os principais acontecimentos políticos e forçando
a aprovação de leis que os favorecessem. — A Sílvia caminhava devagar
por entre as carteiras. Sentia-me como um rato na mira de um gavião que
voava cada vez mais perto.
Olhei para o resto da sala. Algumas raparigas pareciam confusas,
apesar de eu achar que aquela parte era cultura geral.
— Alguém gostaria de acrescentar alguma coisa? — perguntou a
Sílvia.
A Bariel manifestou-se: — A invasão chinesa levou vários países,
principalmente europeus, a alinharem-se, estabelecendo alianças uns com
os outros.
— Sim — acrescentou a Sílvia. — Contudo, o Estado Americano da
China não tinha muitos amigos na altura. Foram precisos cinco anos para se
reorganizarem, o que já foi difícil, quanto mais tentarem fazer alianças. —
Ela tentou exprimir as dificuldades daquela época através de um olhar
exausto. — O EAC planeava retaliar contra a China, mas teve de enfrentar
outra invasão. Que país tentou ocupar o EAC, então?
Desta vez ergueram-se várias mãos. Alguém disse «Rússia» sem ter
sido chamada. A Sílvia olhou em volta à procura da infratora, mas não
conseguiu localizá-la.
— Correto — disse, um pouco desanimada. — A Rússia tentou
expandir o seu território em ambas as direções e fracassou completamente.
No entanto, este fracasso deu ao EAC uma oportunidade para retaliar.
Como?
A Kriss levantou a mão e respondeu: — Todo o território que
compunha antes a America do Norte se uniu para combater a Rússia, já que
era óbvio que esta queria mais do que o Estado Americano da China. E o
ataque à Rússia foi facilitado pela própria China, que também a atacou por
ela ter tentado roubar a sua propriedade.
A Sílvia sorriu orgulhosamente: — Sim. E quem comandou o ataque à
Rússia?
A sala inteira gritou a resposta: — Gregory Illéa! — Algumas
raparigas até aplaudiram.
A Sílvia assentiu: — E isso levou à fundação do nosso país. As
alianças que o EAC tinha conseguido formavam uma frente unida, e a
reputação dos Estados Unidos estava tão arruinada que ninguém queria
reaproveitar o nome. Assim, a nova nação foi formada sob o nome e a
liderança de Gregory Illéa. Ele salvou o país.
A Emmica levantou a mão e a Sílvia fez-lhe sinal para falar.
— De certa forma, somos um pouco como ele, ou seja, também temos
a oportunidade de servir o nosso país. Ele era apenas um cidadão comum
que doou o seu dinheiro e os seus conhecimentos, o que mudou tudo —
disse ela, com admiração.
— É uma linda ideia — comentou a Sílvia. — E, tal como ele, uma de
vocês será elevada à realeza. Gregory Illéa tornou-se rei quando a sua
família se uniu com uma família real, enquanto vocês vão entrar nesta por
casamento. — A Sílvia ficara enlevada, de modo que demorou a reparar
que a Tuesday levantara a mão.
— Mmh... Por que razão é que não existe nenhum livro com estas
coisas? Para podermos estudar? — perguntou ela, com um toque de
irritação na voz.
A Sílvia abanou a cabeça:
— Minhas queridas, a História não é algo que se estude. É algo que
devemos simplesmente saber.
A Marlee virou-se para mim e murmurou:
— Mas que obviamente não sabemos. — Riu-se da sua própria piada
e depois voltou a prestar atenção à Sílvia.
Pensei nesse ponto, no facto de todas nós sabermos coisas diferentes
ou termos de adivinhar a verdade. Por que razão não nos davam
simplesmente livros de História?
Lembrei-me de um episódio, ocorrido alguns anos antes, quando tinha
entrado no quarto dos meus pais, porque a minha mãe dissera que eu podia
ler o que quisesse para as aulas de Inglês. Enquanto procurava as opções
possíveis, reparei num livro velho e grosso, escondido no canto da estante e
tirei-o para fora. Era sobre a História dos Estados Unidos. O meu pai entrou
minutos depois e viu o que eu estava a ler. Disse-me que não havia
problema, desde que não contasse a ninguém.
Quando o meu pai me pedia para guardar um segredo, eu fazia-o sem
questionar. Além disso, adorava folhear aquelas páginas. Bem, pelo menos
as que ainda estavam legíveis; muitas haviam sido arrancadas e os cantos
do livro davam a impressão de que ele fora queimado. Mas foi nele que vi
uma foto da antiga Casa Branca e fiquei a saber quais eram os antigos
feriados nacionais.
Nunca pensara em questionar a ausência da verdade até ser
confrontada com esta situação. Porque seria que o rei deixava simplesmente
que adivinhássemos?
***
Os flashes dispararam novamente, captando o Maxon e a Natalie a
sorrir, radiantes.
— Natalie, baixe o queixo só um pouco. Isso mesmo. — O fotógrafo
tirou mais uma fotografia, enchendo a sala de luz.— Acho que é suficiente.
Quem é a próxima? — perguntou.
A Celeste aproximou-se e um grupo de aias movimentou-se à sua
volta antes de o fotógrafo recomeçar. A Natalie, ainda ao lado do Maxon,
disse qualquer coisa e atirou o pé para trás num movimento provocante. Ele
respondeu calmamente e ela soltou um risinho, enquanto se afastava.
Tinham-nos dito no dia anterior, a seguir à aula de História, que esta
sessão fotográfica era apenas para divertir o público, mas eu não conseguia
deixar de pensar que devia ser mais importante do que isso. Alguém
escrevera um editorial numa revista sobre o aspeto de uma princesa. Não li
o artigo, mas a Emmica e algumas das outras leram. Segundo ela, o texto
dizia que o Maxon devia encontrar alguém que tivesse uma aparência nobre
e que ficasse bem ao seu lado nas fotografias, alguém que ficasse bonita
num selo.
E assim, ali estávamos nós enfileiradas, todas com vestidos creme de
alças largas e cintura descaída e uma echarpe vermelha sobre os ombros,
tirando fotografias com o Maxon. As fotos sairiam todas na mesma revista,
onde a equipa editorial iria apresentar as suas escolhas. Sentia-me
desconfortável com tudo aquilo. Era isto que me preocupava desde o início:
a ideia de que o Maxon só estava à procura de uma cara bonita. Agora que o
conhecia, sabia que não era verdade, mas irritava-me que algumas pessoas o
vissem assim.
Suspirei. Algumas das outras andavam de um lado para o outro,
mastigando alimentos secos e conversando, mas a maioria, incluindo eu,
permanecia de pé junto do cenário que fora montado no Grande Salão. Uma
enorme tapeçaria dourada, que me fazia lembrar os panos que o meu pai
usava em casa para evitar os pingos de tinta no chão, cobria uma parede e
estendia-se pelo chão. De um lado havia um sofá pequeno e, do outro,
erguia-se um pilar. No meio, via-se o emblema de Illéa, dando a toda aquela
parvoíce um ar patriótico. Observávamos cada uma das Selecionadas
desfilar pelo cenário para ser fotografada, enquanto íamos murmurando o
que gostávamos e o que não gostávamos, ou o que planeávamos fazer
quando chegasse a nossa vez.
A Celeste aproximou-se do Maxon com um brilho no olhar, e ele
sorriu-lhe. Assim que chegou ao pé dele, ela murmurou-lhe algo ao ouvido.
Fosse o que fosse, o Maxon inclinou a cabeça para trás à gargalhada e
assentiu, concordando com o segredinho dela. Era estranho vê-los assim.
Como é que alguém que se dava tão bem comigo conseguia também dar-se
tão bem com ela?
— Muito bem, menina, vire-se para a câmara e sorria, por favor —
pediu o fotógrafo, sendo prontamente atendido pela Celeste.
Ela virou-se para o Maxon e colocou uma das mãos no peito dele,
inclinando a cabeça um pouco para baixo e fazendo um sorriso experiente.
Parecia saber como aproveitar a iluminação e o cenário em seu benefício e
passou o tempo todo a movimentar ligeiramente o Maxon ou a insistir em
mudar a pose de ambos. Enquanto algumas raparigas demoravam algum
tempo, fazendo a sua vez ao lado do Maxon durar o mais possível —
especialmente aquelas que ainda não tinham tido um encontro com ele —, a
Celeste parecia querer demonstrar a sua eficiência.
Despachou-se num abrir e fechar de olhos, e o fotógrafo chamou a
próxima. Eu estava tão absorta a ver a Celeste deslizar os dedos pelo braço
do Maxon ao sair, que uma aia teve de recordar-me educadamente de que
era a minha vez.
Abanei ligeiramente a cabeça e forcei-me a concentrar-me. Levantei a
ponta do vestido e avancei em direção ao Maxon. O seu olhar desviou-se da
Celeste para mim e, talvez fosse imaginação minha, mas o seu rosto
pareceu iluminar-se:
— Olá, minha querida — cantarolou ele.
— Não comece! — avisei, mas ele riu-se simplesmente e estendeu-me
as mãos.
— Espere um instante. A sua faixa está torta.
— Não me admiro. — O raio daquela coisa era tão pesada que a
sentia a deslizar a cada passo.
— Pronto, acho que já está — disse ele, com um tom brincalhão.
— Podiam pendurá-lo ao pé dos lustres — retorqui, tocando nas
medalhas cintilantes no seu peito. O seu uniforme, semelhante ao usado
pelos guardas, embora infinitamente mais elegante, também tinha ombreiras
douradas e uma espada à cintura. Era tudo um pouco exagerado.
— Olhem para a câmara, por favor — pediu o fotógrafo. Levantei a
cabeça e vi não apenas os olhos dele, mas os de todas as Selecionadas a
observar-nos. Fiquei logo nervosa.
Sequei as mãos húmidas de suor no vestido e respirei fundo.
— Não esteja nervosa — sussurrou o Maxon.
— Não gosto de ter toda a gente a olhar para mim.
Ele puxou-me para si e colocou a mão na minha cintura. Quis afastar-
me, mas o braço do Maxon manteve-me junto dele. — Olhe para mim como
se não me suportasse — sugeriu ele, fazendo um beicinho brincalhão. Foi o
suficiente para me fazer desatar a rir.
A câmara disparou naquele exato momento, apanhando-nos ambos a
rir.
— Viu? — disse o Maxon. — Não foi assim tão mau.
— Talvez. — Continuei tensa por alguns minutos, enquanto o
fotógrafo gritava instruções e o Maxon passava de um abraço apertado para
um mais solto, ou me virava de modo a que as minhas costas ficassem
contra o seu peito.
— Excelente — disse o fotógrafo. — Podemos tirar algumas no sofá?
Sentia-me melhor agora, que já estava quase a acabar, e sentei-me ao
lado do Maxon com a melhor postura que consegui. De vez em quando, ele
tocava-me ou fazia-me cócegas, e o meu sorriso rasgava-se até eu explodir
em gargalhadas. Esperava que o fotógrafo conseguisse captar os instantes
antes de a minha cara se franzir toda de riso, caso contrário ficaria um
desastre.
Pelo canto do olho, reparei numa mão a acenar e, quase a seguir, o
Maxon virou-se também. Estava ali um homem de fato, que procurava
claramente falar com o príncipe. O Maxon fez sinal para que se
aproximasse, mas o homem hesitou, olhando para o príncipe e depois para
mim, questionando evidentemente a minha presença.
— Pode falar diante dela — disse o Maxon, e o homem aproximou-se
e ajoelhou-se diante dele.
— Ataque rebelde em Midston, Vossa Majestade — disse ele. O
Maxon suspirou e baixou a cabeça, preocupado. — Queimaram colheitas e
mataram cerca de doze pessoas.
— Em que parte de Midston?
— A oeste, senhor, perto da fronteira.
O Maxon assentiu devagar, como se estivesse a associar esta
informação a outras na sua cabeça: — O que diz o meu pai?
— Na realidade, Vossa Majestade, ele quer saber a sua opinião.
O Maxon pareceu surpreendido por um instante e depois respondeu:
— Localize as tropas a sudeste de Sota e em toda a região de Tammins. Não
é necessário irmos para sul até Midston, seria uma perda de tempo. Vamos
ver se conseguimos intercetá-los.
O homem levantou-se e fez uma reverência:
— Perfeito, senhor. — A seguir, desapareceu tão depressa como
aparecera.
Devíamos prosseguir com a sessão fotográfica, mas o Maxon não
parecia estar muito interessado nisso agora.
— Você está bem? — perguntei.
Ele assentiu, sombrio:
— Fico a pensar em todas aquelas pessoas.
— Talvez devêssemos parar — sugeri.
Ele abanou a cabeça, endireitou-se, sorriu e pegou-me na mão:
— Um dos requisitos desta profissão é a capacidade de parecermos
calmos quando estamos muito longe de o estar. Por favor, sorria, America.
Endireitei-me e fiz um sorriso tímido para a câmara, enquanto o
fotógrafo disparava. No meio daquelas últimas fotografias, o Maxon
apertou-me a mão e eu fiz-lhe o mesmo. Nesse momento, senti que
tínhamos uma ligação, algo de forte e verdadeiro.
— Muito obrigado. A próxima, por favor? — cantarolou o fotógrafo.
Levantámo-nos, mas o Maxon não me largou a mão. — Por favor, não
diga nada. É importantíssimo que seja discreta.
— Com certeza.
O som de uns sapatos de salto alto a vir na nossa direção recordou-me
que não estávamos sozinhos, embora eu tivesse gostado de permanecer ali.
Ele apertou-me mais uma vez a mão e largou-me. Enquanto me afastava,
pensei em várias coisas: era bom saber que o Maxon confiava em mim o
suficiente a ponto de me deixar saber este segredo; e como, por um
momento, parecera que estávamos realmente sozinhos. Depois, pensei nos
rebeldes e em como o rei era habitualmente rápido a anunciar as suas
rebeliões, enquanto eu tinha de guardar segredo sobre estas informações.
Não fazia sentido.
— Janelle, minha querida — disse o Maxon, quando a rapariga
seguinte se aproximou. Sorri para mim mesma ao ouvir aquele estafado
termo de afeto. Ele baixou a voz, mas ainda assim ouvi-o: — Antes que me
esqueça, está livre esta tarde?
Senti um aperto no estômago. Acho que devia ser uma crise de nervos
adiada.
***
— Ela deve ter feito algo terrível — insistiu a Amy.
— Não foi isso o que deu a entender — rebateu a Kriss.
A Tuesday puxou pelo braço da Kriss: — O que é que ela disse
realmente?
A Janelle fora mandada para casa.
Era crucial para nós entendermos esta eliminação específica, já que
tinha sido a primeira eliminação isolada e que não fora motivada por um
incumprimento das regras. Não houve uma saída em massa baseada em
primeiras impressões, nem uma ameaça de autoexclusão relacionada com o
medo. Ela fizera algo de errado e todas queríamos saber o quê.
A Kriss, cujo quarto ficava em frente ao da Janelle, tinha-a visto
entrar e fora a única pessoa com quem ela falara antes de se ir embora. A
Kriss suspirou e repetiu a história pela terceira vez:
— Ela e o Maxon foram caçar, como vocês sabiam — começou,
gesticulando como se quisesse clarificar os pensamentos. O encontro da
Janelle era, de facto, do conhecimento geral. Depois da sessão de fotos do
dia anterior, ela gabara-se disso para quem quisesse ouvir.
— Foi o segundo encontro dela com o Maxon. É a única a ter dois —
comentou a Bariel.
— Não é, não — murmurei. Algumas cabeças viraram-se, reparando
na minha declaração. Mas era verdade, para além de mim, a Janelle fora a
única a ter dois encontros com o Maxon. Não que eu estivesse a contar.
A Kriss continuou: — Ela voltou a chorar. Perguntei-lhe o que se
passava e ela respondeu que ia para casa, que o Maxon a tinha mandado
embora. Dei-lhe um abraço porque ela estava muito transtornada e
perguntei-lhe o que tinha acontecido. Ela disse que não podia contar-me,
mas não percebi porque. Será que não temos autorização para dizer porque
fomos eliminadas?
— Não estava nas regras, pois não? — perguntou a Tuesday.
— Ninguém me disse nada a esse respeito — replicou a Amy, e várias
outras assentiram com a cabeça, confirmando.
— Mas, e o que é que ela disse? — insistiu a Celeste.
A Kriss soltou outro suspiro: — Disse que é melhor ter cuidado com o
que digo. Depois, entrou no quarto e bateu com a porta.
O salão ficou em silêncio por alguns minutos, enquanto refletíamos.
— Ela deve tê-lo insultado — sugeriu a Elayna.
— Bem, se esse foi o motivo da saída dela, é uma injustiça, já que o
Maxon afirmou que alguém neste salão o insultou na primeira vez em que
se viram — queixou-se a Celeste.
Começaram todas a olhar em redor, tentando identificar a culpada,
talvez na esperança de fazerem com que ela — eu — também fosse
expulsa. Lancei um olhar nervoso à Marlee e ela entrou em ação:
— Será que ela falou sobre o país? Sobre política ou algo assim?
A Bariel deu um estalido com a língua: — Por favor! Teria de ser uma
seca de encontro para começarem a falar de política! Por acaso alguém aqui
já conversou com o Maxon sobre o governo do país?
Ninguém respondeu.
— Claro que não — continuou ela. — O Maxon está à procura de
uma esposa, não de uma assistente.
— Não achas que estás a subestimá-lo? — replicou a Kriss. — Não
achas que ele quer alguém com ideias e opiniões?
A Celeste atirou a cabeça para trás e riu-se: — O Maxon consegue
perfeitamente governar o país, foi educado para isso. Além disso, tem
equipas de pessoas para o ajudarem a tomar decisões. Por que razão iria
querer mais alguém a dizer-lhe o que fazer? Se eu fosse a ti, começava a
aprender a ficar calada. Pelo menos até ele se casar contigo.
A Bariel pôs-se do lado da Celeste: — O que não vai acontecer.
— Exatamente — concordou a Celeste, com um sorriso. — Por que
razão é que ele se iria importar com uma Três armada em inteligente
quando pode ter uma Dois?
— Ei! — exclamou a Tuesday. — O Maxon não liga a números.
— É claro que liga — retorquiu a Celeste, como se falasse com uma
criança. — Por que razão achas que todas as abaixo de Quatro já se foram
embora?
— Eu ainda estou aqui — disse eu, levantando a mão. — Se achas que
já percebeste como ele pensa, enganas-te.
— Ah, é a menina que não sabe quando deve ficar calada —
comentou a Celeste, trocista.
Cerrei o punho, pensando se valeria a pena bater-lhe. Seria esse o seu
plano? Mas antes que pudesse mover-me, a Sílvia irrompeu pela porta.
— Correio, senhoras! — anunciou, e a tensão no salão desvaneceu-se.
Parámos todas, ansiosas por pegar no que a Sílvia trazia. Estávamos
no palácio já há quase duas semanas e, tirando a vez em que recebêramos
notícias de casa no segundo dia, este era o nosso primeiro contacto com as
nossas famílias.
— Vejamos... — disse a Sílvia, remexendo na pilha de cartas,
ignorando completamente a quase-discussão que tivera lugar segundos
antes da sua entrada. — Lady Tiny? — chamou, olhando em redor da sala.
A Tiny levantou a mão e avançou. — Lady Elizabeth? Lady America?
Avancei quase a correr e tirei-lhe a carta da mão. Estava faminta por
palavras da minha família. Assim que tive a carta em meu poder, refugiei-
me num canto para desfrutar de alguns momentos a sós.
Querida America,
Mal posso esperar para que chegue sexta-feira. Não acredito
que vais falar com o Gavril Fadaye! És tão sortuda.

Não me sentia nada sortuda. Amanhã à noite, o Gavril iria entrevistar-


nos a todas e eu não fazia ideia do que poderia perguntar-nos, mas tinha a
certeza de que acabaria por fazer figura de idiota.

Vai ser bom ouvir outra vez a tua voz. Sinto saudades de te ouvir
a cantar pela casa. A mãe não faz isso e a casa está demasiado
silenciosa desde que partiste. Será que podes dizer-me adeus no
programa?
Como vai a competição? Já tens muitas amigas aí? Falaste com
alguma das que já saíram? A mãe está sempre a dizer que, se saíres
agora, já não há problema. Metade das que voltaram para casa já
estão noivas dos filhos de presidentes da câmara ou de celebridades.
Ela diz que alguém vai escolher-te se o Maxon não te quiser. O Gerad
quer que te cases com um jogador de basquetebol em vez de um
príncipe aborrecido. Mas eu não me ralo com nada do que eles dizem.
O Maxon é tão lindo!
Já o beijaste?

Beijá-lo? Tínhamos acabado de nos conhecer. E, aliás, não havia


motivos para o Maxon me beijar.

Aposto que ele dá o melhor beijo do Universo. Afinal, é um


príncipe!
Tenho tanta coisa para te contar, mas a mãe quer que eu vá
pintar. Escreve depressa. Uma carta longa! Com toneladas de
pormenores! Adoro-te! Todos te adoramos.
May

Então, as eliminadas já estavam a ser agarradas por homens ricos. Não


sabia que ser-se a sobra de um príncipe nos transformava num bom
investimento. Dei uma volta pela sala, ruminando as palavras da May.
Queria saber o que se passava. Perguntava-me o que teria de facto
acontecido com a Janelle e estava curiosa por saber se o Maxon tinha outro
encontro esta noite. Queria muito vê-lo.
A minha mente começou a girar em busca de uma maneira de falar
simplesmente com ele e, então, reparei no papel nas minhas mãos.
A segunda página da carta da May estava quase toda em branco.
Rasguei um pedaço e afastei-me. Algumas das raparigas ainda estavam
concentradas nas cartas das suas famílias, ao passo que outras partilhavam
as notícias recebidas. Depois de dar uma volta pela sala, parei ao lado do
livro de visitas do Salão das Mulheres e peguei numa caneta.
Escrevi rapidamente no pedaço de papel:

Vossa Majestade,
Estou a coçar a orelha. Quando puder.

Saí do salão como se fosse simplesmente à casa de banho e olhei para


os dois lados do corredor. Estava vazio. Fiquei ali, à espera, até aparecer
uma criada com uma bandeja nas mãos.
— Desculpe — chamei-a discretamente. As vozes ecoavam nestes
corredores.
A rapariga fez-me uma vénia:
— Sim, menina?
— Por acaso vai levar essa bandeja ao príncipe?
Ela sorriu:
— Sim, menina.
— Poderia entregar-lhe isto, por favor? — Estendi-lhe o meu bilhete
dobrado.
— Claro, menina!
Ela agarrou entusiasmada no bilhete e afastou-se com uma energia
redobrada. Não tinha dúvidas de que o leria assim que estivesse longe da
minha vista, mas a frase críptica deixava-me tranquila.
Os corredores eram fascinantes; cada um deles era mais decorado do
que a minha casa inteira. O papel de parede, os espelhos dourados, os vasos
gigantes com flores frescas, tudo era lindíssimo. As carpetes eram luxuosas
e imaculadas, as janelas brilhavam e os quadros nas paredes eram
encantadores.
Algumas pinturas eram de artistas muito famosos — Van Gogh,
Picasso —, mas havia outras de autores que eu não conhecia. Havia
também fotografias de edifícios que já vira antes. Uma delas mostrava a
lendária Casa Branca. Pelas fotos que vira e pelo que lera no meu velho
livro de História, o palácio esmagava-a em termos de tamanho e luxo.
Mesmo assim, gostava que ainda existisse para poder vê-la.
Avancei um pouco mais no corredor e deparei-me com um retrato da
família real. Parecia antigo; o Maxon era mais baixo do que a mãe,
enquanto agora parecia um gigante ao seu lado.
Durante todo o meu tempo no palácio, só os vira juntos ao jantar e
durante a transmissão do Noticiário Oficial de Illéa. Será que eram
reservados? Será que não gostavam de ter todas estas estranhas em sua
casa? Será que apenas estavam aqui pelos laços de família e pelo dever?
Não sabia como interpretar esta família invisível.
— America?
Virei-me ao ouvir o meu nome. O Maxon percorria apressadamente o
corredor na minha direção.
Senti que estava a vê-lo pela primeira vez.
Ele despira o casaco e trazia as mangas da camisa branca arregaçadas.
A gravata azul estava folgada em volta do pescoço e o cabelo, quase sempre
puxado para trás, estremecia um pouco à medida que avançava. Num
contraste gritante com a pessoa de uniforme do dia anterior, ele parecia
mais jovem e mais real.
Gelei. O Maxon aproximou-se e agarrou-me nos pulsos:
— Você está bem? Há algum problema? — exigiu saber.
Um problema?
— Não, estou bem — respondi.
O Maxon soltou um suspiro de alívio. Não me apercebera de que ele
estava a reter a respiração.
— Graças a Deus. Quando recebi o seu bilhete, pensei que estivesse
doente, ou que algo tivesse acontecido à sua família.
— Oh! Não, não. Maxon, lamento imenso. Eu sabia que era uma ideia
idiota! Simplesmente não sabia se iria estar presente ao jantar e queria vê-
lo.
— Está bem, e para quê? — perguntou ele. Continuava a olhar para
mim com a testa franzida, como para se certificar de que eu estava mesmo
bem.
— Só para o ver.
Ele imobilizou-se e olhou-me nos olhos, encantado:
— Só queria ver-me? — Parecia alegremente surpreendido com a
minha resposta.
— Não fique tão chocado. Os amigos costumam passar algum tempo
juntos. — O tom da minha voz indicava que isso era óbvio.
— Ah, está aborrecida comigo porque tenho estado ocupado a semana
toda, não é? Não era minha intenção negligenciar a nossa amizade,
America.— Voltara a ser o Maxon formal de sempre.
— Não, não estou aborrecida, só estava a explicar-me. Mas você
parece estar ocupado. Volte para o trabalho e vemo-nos quando estiver
livre. — Reparei que ele ainda estava a segurar-me nos pulsos.
— Na verdade, importa-se que eu fique aqui alguns minutos? Está a
haver uma reunião de orçamento lá em cima e odeio esse tipo de coisas. —
Sem esperar por uma resposta, o Maxon conduziu-me para um sofá
pequeno de veludo, colocado por baixo de uma janela a meio do corredor.
Deixei escapar uma risadinha quando nos sentámos.
— Qual é a graça?
— Você — disse eu, com um sorriso no rosto. — É engraçado ver
como o seu trabalho o aborrece. Qual é o problema dessas reuniões?
— Ah, America! — disse ele, encarando-me. — Eles ficam ali, às
voltas. O meu pai faz um bom trabalho a acalmar os conselheiros, mas é tão
difícil conseguir que os comités avancem nalguma direção. A minha mãe
está sempre a insistir com o meu pai para dar mais dinheiro para a
educação; ela acha que quanto mais educação as pessoas tiverem, menor
será a probabilidade de se tornarem criminosas, e eu concordo com ela, mas
o meu pai nunca pressiona o suficiente para os levar a retirarem verbas de
áreas que passariam muito bem com menos recursos. É exasperante! E
como não sou eu que mando, a minha opinião é facilmente ignorada. — O
Maxon pousou os cotovelos nos joelhos e apoiou a cabeça nas mãos. Pare‐
cia cansado.
Eu começava a ter uma ideia do seu mundo, mas este continuava a ser
tão indecifrável como sempre. Como podia alguém rejeitar a opinião do seu
futuro soberano?
— Lamento. Mas veja o lado positivo das coisas: no futuro, terá mais
voz. — Passei a mão pelas suas costas, tentando encorajá-lo.
— Eu sei. Digo isso a mim mesmo. Mas é tão frustrante, porque
podíamos mudar as coisas agora se eles ao menos ouvissem. — Era difícil
ouvir o que ele dizia quando falava para a carpete.
— Não fique desmotivado. A sua mãe está no caminho certo, mas a
educação sozinha não vai resolver nada.
O Maxon levantou a cabeça:
— O que quer dizer com isso? — O seu tom era quase de acusação e
tinha razão. Esta era uma ideia que ele defendia e eu acabava de a rebater.
Tentei contemporizar:
— Bem, comparado com os tutores finos que uma pessoa como você
tem, o sistema de educação dos Seis e dos Sete é uma lástima. Acho que
melhores professores e instalações seriam excelentes para eles, mas e os
Oito? Não é essa a casta responsável pela maior parte dos crimes? Não
recebem qualquer educação. Acho que se sentissem que tinham alguma
coisa, qualquer coisa, talvez isso os motivasse.
»Além disso... — Hesitei. Não sabia se isto era algo que um rapaz que
nascera num berço de ouro poderia entender. — Já sentiu fome, Maxon?
Não apenas aquela fome de antes do jantar, mas fome de verdade? Se não
houvesse nenhuma comida aqui, nada para o seu pai ou a sua mãe, e você
soubesse que, se tirasse um pouco às pessoas que têm mais num dia do que
você a vida inteira, poderia comer... O que faria? Se a sua família estivesse
a contar consigo, o que é que faria por alguém que amasse?
Ele permaneceu em silêncio por instantes. Uma vez, quando
conversáramos sobre as minhas aias durante o ataque, tínhamo-nos
apercebido do abismo que nos separava. Agora, o tema era muito mais
controverso e percebi que ele preferia evitá-lo.
— America, não nego que a vida de algumas pessoas seja dura, mas
roubar é...
— Feche os olhos, Maxon.
— O quê?
— Feche os olhos.
Ele franziu o sobrolho, mas obedeceu. Esperei até os seus olhos
estarem completamente fechados e o seu rosto parecer descontraído antes
de começar:
— Algures neste palácio, está uma mulher que será a sua esposa.
Vi a sua boca mover-se, esboçando um sorriso de esperança.
— Talvez ainda não saiba quem é, mas pense nas raparigas naquele
salão. Imagine aquela que mais o ama. Imagine a sua «querida».
A mão dele estava ao lado da minha, no assento, e os seus dedos
tocaram nos meus por um segundo. Afastei a mão.
— Desculpe — murmurou ele, olhando para mim.
— Mantenha os olhos fechados!
Ele soltou uma risadinha e regressou à posição anterior.
— Imagine que esta mulher depende de si. Ela precisa que a acarinhe
e que a faça sentir que a Seleção nunca aconteceu. Se você tivesse caído de
paraquedas no meio do país e tivesse ido de porta em porta, ela continuaria
a ser aquela que você encontraria. Seria sempre aquela que escolheria.
O sorriso esperançoso diminuiu. Mais do que isso, começou a
desvanecer-se.
— Ela precisa que você cuide dela, que a proteja. E se chegasse a um
ponto em que não houvesse absolutamente nada para comer; em que você
nem sequer conseguisse dormir por causa dos barulhos do estômago dela...
— Pare! — O Maxon levantou-se rapidamente. Atravessou o corredor
e estacou, de costas para mim.
Senti-me um pouco desconfortável. Não imaginara que ele ficasse tão
perturbado.
— Desculpe — murmurei.
Ele assentiu com a cabeça, mas continuou a olhar para a parede.
Depois, virou-se para mim. Os seus olhos procuraram os meus, tristes e
cheios de dúvidas.
— É mesmo assim? — perguntou.
— O quê?
— Lá fora... Isso acontece mesmo? As pessoas têm muitas vezes
fome?
— Maxon, eu...
— Diga a verdade! — Ele apertou os lábios.
— Sim, acontece. Sei de famílias onde as pessoas dão a sua ração aos
filhos ou aos irmãos. Conheço um menino que foi chicoteado na praça da
cidade por roubar comida. Às vezes, as pessoas cometem loucuras quando
estão desesperadas.
— Um menino? De que idade?
— Nove anos — respondi, sentindo calafrios. Ainda me lembrava das
cicatrizes nas costas frágeis do Jemmy. O Maxon esticou as costas, como se
sentisse ele próprio as chicotadas.
— Você já... — Ele aclarou a garganta. — Já se sentiu assim? Com
fome?
Baixei a cabeça, o que já era uma resposta. Não queria falar-lhe disso.
— Foi muito mau?
— Maxon, isso só vai perturbá-lo mais.
— Provavelmente — disse ele, com um ar sério. — Mas só agora
começo a perceber o quanto desconheço em relação ao meu próprio país.
Por favor.
Suspirei:
— Já passámos por muito. Na maior parte das vezes, quando
chegamos ao ponto de ter de escolher, compramos comida e ficamos sem
eletricidade. O pior momento foi quando aconteceu perto do Natal, um ano.
Fazia muito frio e, por isso, usávamos montes de roupa, mas mesmo dentro
de casa continuávamos a conseguir ver a nossa própria respiração. A May
não percebia porque não podíamos trocar presentes nesse ano. Em geral,
nunca há sobras em minha casa. Há sempre alguém que quer mais.
O rosto do Maxon empalideceu e percebi, então, que não queria vê-lo
preocupado. Precisava de dar a volta à história, torná-la mais positiva.
— Sei que os cheques que recebemos nas últimas semanas têm
ajudado muito e a minha família sabe lidar muito bem com o dinheiro.
Tenho a certeza de que já puseram algum de lado para que dure muito
tempo. Você tem feito muito por nós, Maxon. — Tentei sorrir-lhe
novamente, mas a sua expressão permaneceu inalterada.
— Deus do Céu! Quando disse que só estava aqui pela comida, não
estava a brincar, pois não? — perguntou, abanando a cabeça.
— A sério, Maxon, a minha família tem-se saído muito bem
ultimamente. Eu... — Mas não consegui terminar a frase. Ele aproximou-se
e beijou-me na testa.
— Vemo-nos ao jantar.
Enquanto se afastava, ajeitou a gravata.
Capítulo 18

O Maxon disse que nos veríamos ao jantar, mas não estava presente.
A rainha entrou sozinha, enquanto todas nós esperávamos de pé atrás das
nossas cadeiras. Fizemos delicadamente as nossas vénias enquanto ela se
sentava e depois acomodámo-nos.
Percorri a sala de jantar com o olhar em busca de uma cadeira vazia,
assumindo que ele estava em algum encontro, mas todas as raparigas
estavam presentes.
Passara a tarde inteira a repetir mentalmente o que dissera ao Maxon.
Não admirava que eu não tivesse amigos, era obviamente péssima como
amiga.
Então, o Maxon e o rei entraram na sala. O Maxon vestira novamente
o casaco, mas o cabelo continuava encantadoramente despenteado. Ele e o
pai continuaram a conversar enquanto se aproximavam. Apressámo-nos
todas a levantar-nos. A sua conversa parecia animada; o Maxon gesticulava
para sublinhar o que dizia e o rei concordava mecanicamente com a cabeça,
ouvindo o filho, mas parecendo um pouco farto do assunto. Quando
chegaram à mesa, o Rei Clarkson, com uma expressão severa, deu uma
palmada firme nas costas do filho.
Assim que se virou para nós, o rosto do rei encheu-se subitamente de
entusiasmo:
— Ah, por favor, minhas senhoras, sentem-se. — Beijou a rainha na
testa e tomou o seu lugar.
O Maxon, porém, permaneceu de pé:
— Minhas senhoras, tenho um anúncio a fazer — declarou. Todos os
olhares se viraram para ele. O que poderia ter para nos dizer?
— Sei que foi prometido a todas uma compensação pela vossa
participação na Seleção. — A voz dele estava carregada de um tom de
autoridade imponente, que eu só tinha ouvido uma vez: na noite em que me
deixou ir para o jardim. Era muito mais atraente quando usava o seu
estatuto para algum fim. — Contudo, houve uma nova repartição de verbas.
No caso de serem Dois ou Três de origem, deixarão de receber
financiamento. As Quatro e as Cinco continuarão a receber uma
compensação, embora com um valor um pouco inferior a partir de agora.
Podia ver algumas das raparigas com a boca aberta de espanto. O
dinheiro era parte do acordo. A Celeste, por exemplo, parecia prestes a
explodir. Acho que, quando temos muito dinheiro, habituamo-nos a querer
sempre mais e a simples ideia de que alguém como eu pudesse ganhar
alguma coisa, enquanto ela não, devia deixá-la doida.
— Peço sinceras desculpas por qualquer inconveniente. Amanhã,
explicarei tudo durante o Noticiário Oficial. Acrescento que esta é uma
situação não negociável. Se alguém estiver insatisfeito com este novo
acordo e não quiser continuar a participar na Seleção, pode sair após o
jantar.
Sentou-se e retomou a conversa com o rei, que parecia mais
interessado no jantar do que nas palavras do filho. Fiquei um pouco
desiludida por a minha família ir receber menos dinheiro, mas pelo menos
ainda receberíamos alguma coisa. Tentei concentrar-me na comida, mas
passei a maior parte do tempo a questionar o que tudo aquilo significava. E
não era só eu. Ouviam-se murmúrios por toda a sala.
— Achas que isto tem que ver com alguma coisa? — perguntou a
Tiny em voz baixa.
— Talvez seja um teste — conjeturou a Kriss. — Aposto que algumas
pessoas só estão aqui pelo dinheiro.
Enquanto estava a ouvi-la, vi a Fiona dar uma cotovelada à Olívia e
inclinar a cabeça na minha direção. Virei o rosto para que não percebesse
que eu tinha notado.
As raparigas continuaram a alvitrar hipóteses e eu olhei para o Maxon.
Tentei chamar a sua atenção para mexer na minha orelha, mas ele não olhou
para mim.
***
A Mary e eu estávamos sozinhas no meu quarto. À noite, eu ficaria
frente a frente com o Gavril — e o resto do país — no Noticiário Oficial de
Illéa, para não falar do facto de que as outras iriam estar presentes o tempo
todo, observando-se umas às outras e criticando-se mentalmente. Dizer que
eu estava nervosa era um enorme eufemismo; não conseguia estar quieta,
enquanto a Mary listava algumas perguntas possíveis, coisas que ela achava
que o público talvez gostasse de saber.
«O que acha do palácio? Qual foi a coisa mais romântica que o
Maxon fez? Sente saudades da família? O Maxon já a beijou?»
Lancei um olhar à Mary quando ela me fez essa última pergunta.
Respondera automaticamente a tudo o que ela perguntava, tentando não
pensar demasiado, mas era óbvio que ela perguntara aquilo por pura
curiosidade. O seu sorriso provava-o.
— Não! Por amor de Deus! — Tentei soar irritada, mas a situação era
demasiado engraçada para ficar zangada. Acabei por fazer um sorriso
amarelo, que provocou risinhos na Mary. — Ora, porque é que... não vai
limpar alguma coisa?!
Ela desatou à gargalhada e, antes que pudesse mandá-la parar, a Anne
e a Lucy entraram pelo quarto adentro com um saco para fatos.
A Lucy parecia mais entusiasmada do que alguma vez a vira, ao passo
que a Anne tinha uma expressão ligeiramente maliciosa.
— O que é que se passa? — perguntei, enquanto a Lucy me fazia uma
vénia exagerada.
— Acabámos o seu vestido para o Noticiário Oficial, menina —
respondeu ela.
Franzi o sobrolho: — Outro vestido novo? Porque não posso usar o
azul que está no armário? Não acabaram de o fazer? Eu adorei-o.
As três entreolharam-se.
— O que é que vocês fizeram? — perguntei, apontando para o saco
que a Anne estava a pendurar no gancho perto do espelho.
— Nós conversamos com as outras aias, menina. Ouvimos muitas
coisas — começou a Anne. — Sabemos que a menina e Lady Janelle foram
as únicas que tiveram mais do que um encontro com Sua Majestade e, pelo
que pudemos perceber, talvez haja uma ligação entre as duas.
— Como? — perguntei.
— Pelo que ouvimos — continuou a Anne —, a razão pela qual a
mandaram embora foi por ter feito comentários maldosos sobre si. O
príncipe não gostou e dispensou-a imediatamente.
— O quê? — Levei a mão à boca na tentativa de esconder o meu
espanto.
— Temos a certeza de que é a favorita do príncipe. Quase toda a gente
diz o mesmo. — A Lucy suspirou, toda contente.
— Acho que vocês estão mal informadas — repliquei. A Anne
encolheu os ombros com um sorriso no rosto, não se ralando com a minha
opinião.
Então lembrei-me de como a conversa começara: — Mas o que é que
tudo isso tem a ver com o meu vestido?
A Mary aproximou-se da Anne e abriu o fecho do enorme saco,
revelando um estonteante vestido vermelho, que cintilava na luz fraca que
entrava pela janela.
— Oh, Anne... — murmurei, completamente maravilhada. — Você
esmerou-se!
Ela aceitou o elogio, inclinando ligeiramente a cabeça:
— Obrigada, menina, mas todas nós trabalhámos nele.
— É lindo. Mas ainda não percebi o que é que o vestido tem a ver
com o que estavam a dizer.
A Mary tirou o vestido do saco para o arejar, enquanto a Anne
explicava: — Como disse, muita gente no palácio acha que a menina é a
favorita do príncipe. Ele faz-lhe elogios e prefere a sua companhia à das
outras e parece que elas também já o notaram.
— O que quer dizer com isso?
— Nós costuramos a maior parte dos seus vestidos na sala de costura,
onde temos os materiais e um local onde fazer os sapatos, e a maioria das
outras aias também lá vai. Todas as jovens pediram um vestido azul para
esta noite e as aias pensam que é porque a menina usa quase sempre essa
cor. As outras estão a tentar imitá-la.
— É verdade — acrescentou a Lucy. — Lady Tuesday e Lady Natalie
não puseram quase joia nenhuma hoje. Como a menina.
— E a maioria delas começou a pedir vestidos mais simples, como os
que a menina prefere — afirmou a Mary.
— Isso ainda não explica porque me fizeram um vestido vermelho.
— Para que se destaque, claro! — esclareceu a Mary. — Oh, Lady
America, se ele gosta mesmo de si, tem de continuar a destacar-se. Tem
sido tão generosa connosco, especialmente com a Lucy. — Olhámos todas
para a Lucy, que confirmou com a cabeça e disse: — A menina é
suficientemente boa para ser uma princesa. Seria maravilhosa!
Comecei a procurar uma forma de me escapar. Odiava ser o centro das
atenções:
— Mas, e se as outras tiverem razão? E se o Maxon gosta de mim
justamente porque não sou exagerada como elas? Se vocês me enfiam numa
roupa assim, deitam tudo a perder!
— Todas as mulheres precisam de brilhar de vez em quando. Além
disso, conhecemos o príncipe a vida toda. Ele vai adorar este vestido. — A
Anne falava com tanta segurança que senti que não havia mais nada a fazer.
Não sabia como lhes explicar que todos os bilhetes que ele me enviara
e o tempo que passara comigo não passavam de amizade. Não podia contar-
lhes. Iria deixá-las tristes e, além disso, se queria ficar, precisava de manter
as aparências. E queria mesmo. Precisava de ficar.
— Está bem, vamos experimentá-lo — cedi, com um suspiro.
A Lucy começou aos saltos de alegria até a Anne lhe lembrar que isso
não era um comportamento correto. Enfiei o vestido de seda pela cabeça e
as três deram pontos em vários sítios, que ainda não estavam acabados. As
mãos habilidosas da Mary enrolaram o meu cabelo nas mais variadas
posições, para ver como ficaria melhor com o vestido, e meia hora depois
estava pronta.
O estúdio fora decorado de um modo ligeiramente diferente para o
programa desta noite. Os tronos da família real estavam num dos lados,
como sempre, e os nossos lugares ficavam do lado oposto, como da última
vez. Mas o palanque estava ligeiramente desviado do centro, deixando o
foco concentrado em duas cadeiras altas. Havia um microfone numa delas,
que seria usado para falarmos com o Gavril. Senti-me enjoada só de pensar
nisso.
De facto, o estúdio estava repleto de vestidos em todos os tons
possíveis de azul. Alguns aproximavam-se mais do verde e outros do
violeta, mas havia claramente um padrão. Senti-me imediatamente
desconfortável. Notei logo o olhar da Celeste e decidi ficar longe dela até
ter de ocupar o meu lugar.
A Kriss e a Natalie passaram por mim, depois de verificarem mais
uma vez a maquilhagem. Ambas pareciam um pouco descontentes, embora
no caso da Natalie isso pudesse ser difícil de perceber. A Kriss, pelo menos,
também se destacava da multidão: o seu vestido era de um azul quase
branco, sugerindo delicadas estalactites de gelo que deslizavam até ao chão.
— Estás maravilhosa, America — disse ela, num tom que era mais de
acusação do que de elogio.
— Obrigada. O teu vestido é lindíssimo.
Ela fez deslizar as mãos pelo corpo, como se alisasse rugas ima‐
ginárias: — Sim, também gostei dele.
A Natalie passou a mão por uma das alças largas do meu vestido:
— Que tecido é este? Vai mesmo brilhar debaixo das luzes.
— Não faço ideia. Nós, os Cincos, não costumamos ter coisas assim
tão elegantes — comentei, com um encolher de ombros. Olhei para o
tecido. Tinha pelo menos mais um vestido feito do mesmo material, mas
não me preocupara em fixar o nome.
— America!
Levantei os olhos e dei com a Celeste ao meu lado. Sorria.
— Celeste.
— Podes vir comigo um segundo? Preciso de ajuda.
Sem esperar pela resposta, arrastou-me para longe da Kriss e da
Natalie e levou-me para trás da pesada cortina azul que servia de pano de
fundo para o Noticiário Oficial.
— Tira o vestido! — ordenou, começando a desapertar o seu.
— O quê?
— Quero o teu vestido. Tira-o. Irra! Maldito fecho! — resmungou ela,
tentando livrar-se da roupa.
— Não vou tirar o meu vestido — retorqui, começando a afastar-me,
mas não fui muito longe. A Celeste cravou as unhas no meu braço e puxou-
me para trás.
— Ai! — gritei, levando a mão ao braço. Iria ficar com marcas, mas
felizmente não fez sangue.
— Cala-te! Tira o vestido. Já!
Permaneci imóvel, de rosto firme, recusando mexer-me. A Celeste iria
ter de aprender que não era o centro de Illéa.
— Se eu quiser, posso arrancar-to — sugeriu ela, friamente.
— Não tenho medo de ti, Celeste — disse, cruzando os braços. —
Este vestido foi feito para mim e vou usá-lo. Da próxima vez que escolheres
a tua roupa, talvez devas tentar ser tu própria em vez de mim. Oh, mas
espera... Se fizeres isso, talvez o Maxon descubra a peste que és e te mande
para casa, não é?
Sem hesitar, ela estendeu o braço e arrancou-me uma das alças do
vestido, afastando-se a seguir. Bufei de raiva, mas fiquei demasiado
atordoada para reagir. Olhei para baixo e fitei o pedaço de tecido rasgado,
pendurado pateticamente sobre o meu peito. Ouvi a Sílvia a chamar toda a
gente para os seus lugares e saí de trás da cortina o mais corajosamente que
consegui.
A Marlee tinha guardado um lugar para mim ao seu lado. Reparei na
sua expressão chocada quando me viu.
— O que aconteceu ao teu vestido? — sussurrou ela.
— A Celeste — respondi, aborrecida.
A Emmica e a Samantha, que estavam sentadas à nossa frente,
viraram-se para trás.
— Ela rasgou o teu vestido? — perguntou a Emmica.
— Sim.
— Tens de contar tudo ao Maxon — pediu ela. — Aquela rapariga é
um pesadelo.
— Eu sei — concordei, suspirando. — Digo-lhe da próxima vez que o
vir.
A Samantha falou com uma expressão triste no rosto:
— Quem sabe quando isso vai ser? Pensei que fôssemos passar mais
tempo com ele.
— America, levanta o braço — pediu a Marlee. Com destreza, enfiou
a minha alça rasgada no corpete do vestido, enquanto a Emmica arrancava
algumas linhas soltas. Não dava para notar que algo tinha acontecido e as
marcas das unhas estavam no braço esquerdo, escondidas da câmara.
Eram quase horas de começar. O Gavril revia as suas notas quando a
família real finalmente chegou. O Maxon vestia um fato azul-escuro com
um alfinete de lapela com o brasão nacional. Parecia elegante e calmo:
— Boa noite, minhas senhoras — disse, com um sorriso.
Um coro de «Vossa Alteza» e «Majestade» foi a resposta.
— Como sabem, farei um breve anúncio e depois apresentarei o
Gavril. Vai ser uma boa mudança; é sempre ele quem me apresenta! — Ele
riu-se e nós fizemos o mesmo. — Sei que algumas talvez estejam um pouco
nervosas, mas não há motivo. Por favor, sejam vocês mesmas. As pessoas
querem conhecê-las. — Os nossos olhares cruzaram-se algumas vezes
enquanto ele falava, mas não o tempo suficiente para adivinhar os seus
pensamentos. Ele não pareceu reparar no vestido. As minhas aias iriam ficar
desapontadas.
Desejou-nos boa sorte e aproximou-se do palanque.
Eu sabia que algo se passava. Presumi que este seu anúncio devia
estar relacionado com o que nos dissera ontem ao jantar, mas ainda assim
não conseguia perceber o seu significado. O mistério distraiu-me e fiquei
menos nervosa. Senti-me bem enquanto o hino tocava e a câmara focava o
rosto do Maxon. Desde criança que assistia ao Noticiário Oficial e nunca
tinha visto o Maxon falar à nação, não desta forma. Gostava de lhe ter
desejado também boa sorte.
— Boa noite, senhoras e senhores de Illéa. Esta é uma noite
empolgante para todos nós, pois o país vai finalmente conhecer melhor as
vinte e cinco jovens que ainda restam na Seleção. Mal posso exprimir o
meu entusiasmo por poderem conhecê-las. Estou certo de que todos
concordarão que qualquer uma destas incríveis meninas daria uma líder e
uma futura princesa maravilhosa.
»Mas, antes disso, gostaria de anunciar um novo projeto em que estou
a trabalhar e que é muito importante para mim. O contacto com estas jovens
tem-me exposto o mundo que existe fora do palácio, um mundo que
raramente tenho oportunidade de ver. Aprendi imenso sobre a incrível
bondade e a escuridão inimaginável que nele existe e, através das minhas
conversas com estas mulheres, senti a importância das massas para além
destes muros. Despertei para o sofrimento de alguns nas nossas castas
inferiores e pretendo fazer algo para resolver isso.
O quê? pensei.
— Precisaremos de pelo menos três meses para prepararmos tudo isto
adequadamente, mas, por volta do Ano Novo, todos os Gabinetes de
Serviços Provinciais oferecerão assistência alimentar. Qualquer Cinco, Seis,
Sete ou Oito poderá dirigir-se a um deles, ao fim do dia, para obter uma
refeição nutritiva e gratuita. Gostaria de vos informar que estas jovens que
aqui vemos sacrificaram total ou parcialmente a sua compensação para
ajudar a financiar este importante projeto. E, embora esta assistência talvez
não possa prolongar-se para sempre, vamos mantê-la enquanto pudermos.
Tentei engolir a gratidão e a admiração que sentia, mas deixei escapar
algumas lágrimas. Ainda estava suficientemente consciente do que iria
seguir-se para não me preocupar com a maquilhagem, mas sentia-me
completamente grata por isso, essa já não era a minha principal prioridade.
— Penso que nenhum bom líder pode deixar o povo passar fome. Illéa
é maioritariamente composta por estas castas inferiores e sinto que
ignorámos estas pessoas durante demasiado tempo. E é por esta razão que
vamos avançar e que peço a outros que se juntem a mim. Dois, Três,
Quatro... as estradas por onde passam não se constroem sozinhas. As vossas
casas não se limpam por magia. Esta é a vossa oportunidade para
reconhecerem esta verdade, fazendo uma doação ao vosso Gabinete de
Serviços Provinciais local.
O Maxon fez uma pausa: — Vocês nasceram abençoados e este é o
momento de reconhecerem essa bênção. Terei mais informações à medida
que o projeto avançar. Obrigado pela vossa atenção. Mas agora passemos ao
verdadeiro motivo da emissão desta noite. Senhoras e senhores, Gavril
Fadaye!
Ouviram-se aplausos em toda a sala, embora fosse óbvio que nem
todos estavam entusiasmados com o anúncio do Maxon. O rei, por
exemplo, batia palmas, mas não parecia muito animado, ao passo que a
rainha estava radiante de orgulho. Os conselheiros também pareciam
divididos quanto ao valor da ideia.
— Muito obrigado pela sua apresentação, Majestade! — agradeceu o
Gavril, entrando em cena. — Muito bem! Se o seu cargo como príncipe não
der certo, pode sempre considerar um emprego na televisão.
O Maxon riu-se enquanto regressava ao seu lugar. As câmaras
focavam agora o Gavril, mas continuei a olhar para o Maxon e para os seus
pais. Não percebia por que razão as suas reações eram tão diferentes.
— Povo de Illéa, temos um presente para vocês! Esta noite, vamos
descobrir os segredos de cada uma destas jovens. Sabemos que estão
mortos por conhecê-las e por ter informações sobre como estão a correr as
coisas com o Príncipe Maxon. Por isso, esta noite... vamos simplesmente
perguntar-lhes! E vamos começar com... — O Gavril olhou para as suas
notas. — A Menina Celeste Newsome, de Clermont!
A Celeste levantou-se do seu lugar na fila superior e desceu si‐
nuosamente as escadas. Antes de se sentar para a entrevista, beijou o Gavril
em ambas as faces. A sua entrevista foi previsível, assim como a de Bariel.
Ambas tentaram parecer sedutoras, inclinando-se para a frente várias vezes
para que as câmaras lhes filmassem o decote. Tudo parecia falso. Observei
os seus rostos nos monitores, enquanto olhavam fixamente para o Maxon,
piscando-lhe o olho. Ocasionalmente, como quando a Bariel tentou
humedecer sensualmente os lábios, eu e a Marlee olhávamos uma para a
outra e tínhamos de desviar logo o olhar para não nos rirmos.
As outras apresentaram uma melhor compostura. A voz da Tiny era
muito suave e ela parecia encolher-se à medida que a entrevista avançava.
Mas eu sabia que era muito querida e esperava que o Maxon não a
descartasse da lista apenas por não ser uma boa oradora. A Emmica era
elegante, tal como a Marlee. A principal diferença entre as duas era que a
voz da Marlee estava tão cheia de entusiasmo que ia subindo de tom à
medida que falava.
O Gavril fez diversas perguntas, mas havia duas que pareciam não
mudar: «O que acha do Príncipe Maxon?» e «Foi você que gritou com ele?»
Eu não estava com vontade nenhuma de revelar ao país que tinha pregado
um sermão ao futuro rei. Ainda bem que, tanto quanto todos sabiam, só o
tinha feito uma vez.
Todas pareciam orgulhosas por dizerem que não tinham sido aquela
que gritara com ele. E todas achavam que o Maxon era simpático. Usavam
quase sempre a mesma palavra: simpático. A Celeste disse que ele era
bonito. A Bariel comentou que ele emanava um poder silencioso, o que me
pareceu sinistro. O Gavril perguntou a algumas se o príncipe já as tinha
beijado e todas coraram e disseram que não. Depois da terceira ou quarta
resposta negativa, ele virou-se para o Maxon:
— Mas ainda não beijou nenhuma? — perguntou, parecendo chocado.
— Elas estão aqui há apenas duas semanas! Que tipo de homem pensa
que sou? — replicou o Maxon. As suas palavras saíram num tom jovial,
mas ele pareceu contorcer-se ligeiramente na cadeira. Será que alguma vez
beijara alguém?
A Samantha terminou, dizendo que a sua estada estava a ser
maravilhosa e, a seguir, o Gavril chamou-me. As outras aplaudiram quando
me levantei, como tínhamos feito com todas, e sorri nervosamente para a
Marlee. Concentrei-me nos meus pés enquanto caminhava, mas assim que
me sentei, reparei que era fácil olhar para o Maxon por cima do ombro do
Gavril. Ele piscou-me o olho quando agarrei no microfone. Senti-me
imediatamente mais calma. Não precisava de conquistar ninguém.
Apertei a mão do Gavril e sentei-me à sua frente. Assim de perto,
conseguia ver finalmente o alfinete na sua lapela. O pormenor perdia-se na
imagem, mas podia agora ver que não tinha apenas as linhas e as curvas de
um sinal de forte, mas também um «X» pequeno gravado no meio, fazendo
com que todo o desenho se parecesse com uma estrela. Era lindo.
— America Singer. Um nome interessante. Há alguma história por
trás disso? — perguntou o Gavril.
Suspirei aliviada. Esta era fácil:
— Há, sim. Parece que eu dava muitos pontapés quando a minha mãe
estava grávida. Ela disse que tinha ali uma lutadora e por isso batizou-me
com o nome do país que tanto lutou para se manter unido. É estranho, mas
devo reconhecer que ela tinha razão: nós as duas estamos sempre a discutir.
O Gavril riu-se: — Ela parece ser uma mulher determinada.
— E é. Herdei dela uma boa parte da minha teimosia.
— Então é teimosa? E com um pouco de mau feitio, talvez?
Vi o Maxon tapar a boca com as mãos, a rir.
— Ás vezes.
— Se tem mau feitio, não será por acaso a rapariga que gritou com o
príncipe?
Suspirei:
— Sim, fui eu. E a minha mãe deve estar a ter um ataque neste
momento.
— Faça-a contar a história toda! — disse o Maxon ao Gavril.
O Gavril olhou para ele, mas virou-se rapidamente para mim:
— Ah! E qual é a história toda?
Tentei lançar um olhar de censura ao Maxon, mas a situação era tão
ridícula que não funcionou.
— Na primeira noite, sentia-me um pouco... claustrofóbica e estava
desesperada por apanhar ar. Os guardas não me deixavam passar pelas
portas e eu estava prestes a desmaiar nos braços de um deles, quando o
príncipe apareceu e os mandou abrir as portas para eu sair.
— Oh... — comentou o Gavril, inclinando a cabeça.
— Sim, e depois o príncipe seguiu-me para ver se eu estava bem...
Mas eu estava tão nervosa que, quando ele falou comigo, acabei
basicamente por o acusar de ser convencido e superficial.
O Gavril soltou uma gargalhada ao ouvir isto. Olhei para o Maxon e
vi que também estremecia de riso, mas o mais embaraçoso era o facto de o
rei e a rainha também se estarem a rir. Não me virei para olhar para as
outras, mas podia ouvir algumas a dar risadinhas também. Ótimo. Talvez
agora parassem de me ver como uma ameaça. Eu era apenas alguém que o
Maxon achava divertida.
— E ele perdoou-lhe? — perguntou o Gavril, num tom um pouco
mais sério.
— Por incrível que pareça — respondi, encolhendo os ombros.
— Bem, e agora que já fizeram as pazes, que tipo de atividades têm
feito juntos? — O Gavril estava de volta ao tema da entrevista.
— Normalmente damos passeios pelo jardim, ele sabe que gosto de
passear ao ar livre, e conversamos. — A minha resposta parecia patética
comparada com o que algumas das outras tinham dito. Cinema, caçadas,
passeios a cavalo: tudo muito mais impressionante do que a minha história.
Então, de repente, percebi por que razão o Maxon passara a semana
anterior a sair em encontro atrás de encontro: as raparigas precisavam de ter
algo para contar ao Gavril. Ainda me parecia estranho que ele não me
tivesse dito nada disso, mas pelo menos agora sabia o motivo do seu
afastamento.
— Parece muito relaxante. Diria que o jardim é a sua parte favorita do
palácio?
Sorri: — Talvez. Mas a comida também é divina, por isso...
O Gavril riu-se de novo:
— Você é a última Cinco na competição, certo? Acha que isso diminui
as suas hipóteses de ser a próxima princesa?
— Não! — A palavra saltou-me dos lábios sem pensar.
— Ah! Você é mesmo determinada! — O Gavril parecia satisfeito por
ter obtido uma resposta tão enérgica. — Então, acha que vai vencer as
outras todas? Chegar ao fim?
— Não, não — Conhecia-me melhor do que isso. — Não é isso. Não
me julgo melhor do que as outras; são todas fantásticas. É que... não acho
que o Maxon fizesse isso; desprezar alguém por causa da sua casta.
Ouvi uma exclamação coletiva de surpresa. Repeti a frase
mentalmente. Demorei um instante a descobrir o meu erro: tratara o
príncipe por Maxon. Uma coisa era chamá-lo assim enquanto conversava
com outra Selecionada em privado, mas pronunciar o seu nome em público
sem a palavra «Príncipe» antes era extremamente informal. E eu tinha
acabado de o fazer, em direto, na televisão.
Olhei para o Maxon para ver se estava aborrecido, mas ele tinha um
sorriso calmo nos lábios. Não estava zangado... mas eu estava
envergonhada. Corei intensamente.
— Ah, parece que ficou realmente a conhecer o nosso príncipe. Diga-
me, o que acha do Maxon?
Tinha pensado em várias respostas enquanto aguardava pela minha
vez. Iria troçar do seu riso ou falar do termo carinhoso pelo qual ele queria
que a esposa o tratasse. Parecia que a única maneira de salvar a situação era
regressar à comédia. Mas ao levantar os olhos para fazer um desses
comentários, vi a expressão do Maxon.
Ele queria mesmo saber.
E eu não podia gozar com ele, não quando tinha a oportunidade de
dizer o que realmente começara a achar, agora que ele era meu amigo. Não
podia troçar da pessoa que me salvara de ter de enfrentar mágoas de amor
em casa; a pessoa que enviava caixas de doces para a minha família; que
vinha ter comigo a correr, preocupado, quando eu o chamava.
Um mês antes, olhara para a televisão e vira uma pessoa distante,
rígida e aborrecida — uma pessoa que não imaginava que alguém pudesse
amar. E, embora ele não se parecesse nem um pouco com a pessoa que eu
amava, era digno de ter alguém a quem amar na sua vida.
— O Maxon Schreave é a soma de tudo o que é bom. Vai ser um rei
fenomenal. Deixa raparigas que deviam usar vestidos usarem calças de
ganga e não se zanga quando alguém que não o conhece o julga
erradamente. — Fitei seriamente o Gavril, que sorriu. Atrás dele, o Maxon
parecia intrigado. — Aquela que se casar com ele será uma mulher de sorte.
E, independentemente do que me acontecer, será uma honra ser sua súbdita.
Vi o Maxon engolir em seco e baixei os olhos.
— America Singer, muito obrigado — concluiu o Gavril, estendendo-
me a mão. — A próxima é a Menina Tallulah Bell.
Não ouvi nada do que as outras disseram depois de mim, apesar de
manter os olhos nas duas cadeiras. Aquela entrevista tornara-se bastante
mais pessoal do que imaginara. Não tinha coragem de olhar para o Maxon.
Em vez disso, fiquei ali a relembrar mentalmente tudo o que dissera.
***
Às dez horas, bateram à porta. Abri-a e o Maxon revirou os olhos.
— Devia ter aqui uma aia durante a noite.
— Maxon! Oh, lamento imenso. Não tinha intenção de o chamar pelo
nome à frente de toda a gente. Fui tão estúpida.
— Acha que estou irritado com isso? — perguntou ele, entrando e
fechando a porta. — America, você chama-me assim tantas vezes que isso
iria acabar por acontecer. Preferia que tivesse sido num ambiente mais
reservado — continuou com um sorriso malicioso —, mas não vou castigá-
la por isso.
— A sério?
— Claro, a sério.
— Ai! Senti-me tão idiota hoje à noite. Não acredito que me fez
contar aquela história! — Dei-lhe uma ligeira palmada no braço.
— Esse foi o melhor momento da noite! A minha mãe achou imensa
graça. No tempo dela, as raparigas eram ainda mais reservadas do que a
Tiny e, de repente, ali está você a chamar-me superficial... Ela adorou.
Ótimo. Agora também a rainha achava que eu destoava. Atravessámos
o quarto até à varanda. Sentia-se uma brisa leve e morna, que trazia até nós
o aroma de milhares de flores do jardim. A Lua Cheia brilhava sobre nós,
juntando-se às luzes em redor do palácio e dando ao rosto do Maxon um
brilho misterioso.
— Bom, ainda bem que está tão divertido — disse eu, fazendo
deslizar os dedos pelo varandim.
O Maxon esticou-se para se sentar no varandim, parecendo
completamente descontraído:
— Você é sempre divertida. Habitue-se.
Mmh... Ele estava quase a ser engraçado.
— Bem... aquilo que você disse... — começou, hesitante.
— Qual parte? Quando lhe chamei nomes, quando disse que discutia
com a minha mãe ou quando sugeri que a comida era a minha motivação?
— Revirei os olhos.
Ele soltou uma risada: — A parte sobre eu ser uma boa pessoa...
— Ah! E o que tem? — Essas poucas palavras pareciam-me, de
repente, mais embaraçosas do que tudo o resto que pudesse ter dito. Baixei
a cabeça e torci uma ponta do vestido.
— Admiro que queira dar um ar de veracidade à situação, mas não
precisava de ir tão longe.
Ergui a cabeça. Como podia ele pensar isso?
— Maxon, não disse aquilo só porque estava no programa. Se me
tivesse perguntado há um mês qual era minha opinião sincera sobre si, a
minha resposta teria sido bem diferente, mas agora que o conheço, sei a
verdade. Você é tudo o que eu disse e mais ainda.
Ele ficou em silêncio, mas havia um pequeno sorriso no seu rosto.
— Obrigado — disse por fim.
— Ao seu dispor.
O Maxon aclarou a garganta: — Ele também vai ser um homem de
sorte. — Desceu do seu assento improvisado e aproximou-se do meu lado
da varanda.
— Hã?
— O seu namorado. Quando cair em si e implorar que o aceite de
volta — disse ele, sem rodeios.
Tive de me rir. Isso nunca aconteceria no meu mundo.
— Ele já não é meu namorado. Deixou bem claro que estava tudo
acabado comigo. — Até eu conseguia ouvir a ponta de esperança na minha
voz.
— Impossível. Já a deve ter visto na televisão e já se apaixonou outra
vez. Embora, na minha opinião, você continue a ser demasiado boa para o
traste. — O Maxon falava quase como se estivesse aborrecido, como se
tivesse visto isto acontecer um milhão de vezes.
— A propósito! — prosseguiu ele, elevando um pouco a voz. — Se
não quiser que me apaixone por si, vai ter de deixar de parecer assim tão
bela. A primeira coisa que vou fazer amanhã é mandar as suas aias
coserem-lhe uns sacos de batatas para vestir.
Dei-lhe uma palmada no braço:
— Cale-se, Maxon.
— Não estou a brincar. É demasiado bonita para o seu próprio bem.
Quando sair, vamos ter de mandar alguns guardas consigo. Nunca
sobreviverá sozinha, coitadinha — gracejou ele, fingindo pena.
Não posso fazer nada — suspirei. — Não posso evitar ter nascido
perfeita. — Abanei a mão à frente da cara como se fosse extremamente
cansativo ser tão bonita.
— Sim, acho que não pode evitá-lo mesmo.
Dei uma risadinha. Por um instante, não reparei que o Maxon não
parecia achar o seu comentário engraçado.
Olhei para o jardim e vi, pelo canto do olho, que o Maxon estava a
fitar-me. O seu rosto estava pertíssimo do meu. Quando me virei para lhe
perguntar para onde é que estava a olhar, fiquei surpreendida ao aperceber-
me de que ele estava suficientemente perto para me beijar.
E fiquei ainda mais surpreendida quando o fez.
Afastei-me rapidamente, dando um passo atrás. O Maxon recuou
também.
— Desculpe — murmurou, corando.
— O que está a fazer? — perguntei, com um sussurro estupefacto.
— Desculpe. — Ele virou-se ligeiramente, obviamente embaraçado.
— Porque fez isso? — perguntei, levando a mão à boca.
— É que... aquilo que disse no programa... E depois ontem quando me
procurou... o modo como agiu... Pensei que talvez os seus sentimentos
tivessem mudado. E eu gosto de si, achei que tinha percebido. — Ele virou-
se para me encarar. — E... Oh, foi horrível? Não parece nada satisfeita.
Procurei mudar a expressão do meu rosto. O Maxon parecia
mortificado:
— Lamento imenso. Nunca beijei ninguém antes. Não sei o que estou
a fazer. Eu só... Desculpe, America. — Ele respirou fundo e passou a mão
pelo cabelo algumas vezes, apoiando-se no varandim.
Inesperadamente, senti um calor crescer dentro de mim.
Ele queria que o seu primeiro beijo fosse comigo.
Pensei no Maxon que conhecia agora — um homem elogioso; capaz
de me dar o prémio de uma aposta que eu perdera; de me perdoar depois de
eu o ter magoado física e emocionalmente — e descobri que não me
importava que ele me beijasse.
Sim, ainda sentia algo pelo Aspen, não podia apagar isso. Mas se não
podia tê-lo, o que me impedia de ficar com o Maxon? Nada, além das
minhas ideias preconceituosas acerca dele, todas bem diferentes da pessoa
que ele era verdadeiramente.
Aproximei-me dele e esfreguei-lhe a testa com a mão.
— O que está a fazer?
— A apagar essa memória. Acho que podemos fazer melhor. —
Retirei a mão e coloquei-me ao seu lado, virada para o quarto. Ele não se
moveu... mas sorriu.
— America, acho que não podemos mudar a história. — Apesar
dessas palavras, a sua expressão era esperançosa.
— Claro que podemos. Afinal, quem vai saber além de nós?
O Maxon fitou-me por um momento, questionando-se claramente se
seria mesmo possível. Então, vi uma confiança cuidadosa tomar lentamente
conta da sua expressão, enquanto ele me olhava nos olhos. Permanecemos
assim por uns instantes antes de eu conseguir lembrar-me exatamente do
que dissera.
— Não posso evitar ter nascido perfeita — sussurrei.
Ele aproximou-se, envolvendo a minha cintura com o braço de modo
a ficarmos frente a frente. O seu nariz acariciou o meu e ele fez deslizar os
dedos pela minha face, com muita delicadeza, como se temesse que eu me
partisse.
— Sim, acho que não podes evitar mesmo — sussurrou.
Com a sua mão erguendo o meu rosto na direção do seu, o Maxon
inclinou a cabeça e deu-me o mais tímido dos beijos.
Algo no modo como hesitava fez-me sentir linda. Conseguia
compreender, sem precisar de palavras, como ele se sentia emocionado, mas
também assustado, com este momento. E por trás de tudo isso, sentia que
ele me adorava.
Então era assim que uma lady se sentia.
Depois de um momento, ele afastou-se e perguntou:
— Foi melhor?
Só consegui assentir com a cabeça. O Maxon parecia estar à beira de
desatar a dar piruetas, e no meu peito havia um sentimento parecido. Era
tudo tão inesperado, tão rápido, tão estranho. O meu rosto deve ter
denunciado a minha confusão, porque ele ficou sério:
— Posso dizer uma coisa?
Assenti outra vez.
— Não sou estúpido ao ponto de acreditar que já esqueceste o teu
antigo namorado. Sei pelo que passaste e que não estás aqui em
circunstâncias exatamente normais. Sei que achas que há outras aqui mais
adequadas para mim e para esta vida e não quero que te forces a sentires-te
feliz com nada disto. Eu só... só quero saber se é possível...
Era uma pergunta difícil de responder. Estaria eu disposta a tentar
viver uma vida que nunca quis? Estaria disposta a ficar a assistir, enquanto
ele tentava gentilmente marcar encontros com as outras para garantir que
não estava a cometer um erro? A assumir as responsabilidades de uma
princesa? Estaria disposta a amá-lo?
— Sim, Maxon — sussurrei. — É possível.
Capítulo 19

Não contei a ninguém o que aconteceu entre o Maxon e eu, nem


sequer à Marlee ou às minhas aias. Era um segredo maravilhoso, que podia
recordar no meio das aulas aborrecidas da Sílvia ou de mais um longo dia
no Salão das Mulheres. E, para ser sincera, pensei nos nossos beijos —
tanto o desajeitado como o doce — com mais frequência do que achava que
pensaria.
Sabia que não iria apaixonar-me pelo Maxon de um dia para o outro.
O meu coração não iria deixar-me, mas deparei-me de repente com uma
situação onde existia algo que talvez quisesse. Pensei então calmamente na
possibilidade, sozinha, embora me tivesse sentido tentada a revelar o meu
segredo mais de uma vez.
Especialmente três dias depois, quando a Olívia anunciou a um Salão
das Mulheres quase cheio que o Maxon a beijara.
Não conseguia acreditar na mágoa que senti. Dei por mim a olhar para
a Olívia, perguntando-me o que teria ela de tão especial.
— Conta-nos tudo! — insistiu a Marlee.
A maior parte das outras raparigas também ficou curiosa, mas a
Marlee era a mais entusiasta. No pouco tempo que decorrera desde o seu
último encontro com o Maxon, o seu interesse nos progressos de todas as
outras parecia ter crescido. Não conseguia perceber o que estava por trás da
mudança e também não tinha coragem para perguntar.
A Olívia não precisou de encorajamento. Sentou-se num dos sofás,
espalhando o vestido à sua volta. Tinha as costas bem direitas, sobretudo
em comparação com a sua postura habitualmente plácida, e colocou as
mãos no colo. Era como se estivesse a ensaiar para ser princesa. Fiquei com
vontade de lhe dizer que um beijo não queria dizer que estivesse a ganhar.
— Não quero entrar em pormenores, mas foi bastante romântico —
gabou-se ela, baixando a cabeça. — Ele levou-me até ao telhado. Há lá um
sítio que parece uma espécie de varanda e que aparentemente é usado pelos
guardas. Não percebi bem. Podíamos ver para lá dos muros e a cidade
inteira cintilava até onde a nossa vista alcançava. Ele não disse quase nada;
apenas me puxou para si e me beijou. — E o todo o seu corpo estremeceu
de alegria.
A Marlee suspirou. A Celeste parecia ter vontade de partir alguma
coisa. E eu fiquei ali, imóvel.
Repetia para mim mesma que não devia dar muita importância, que
tudo isto fazia parte da Seleção. E, aliás, quem disse que eu queria mesmo
ficar com o Maxon? Sinceramente, devia considerar aquilo um golpe de
sorte. Era óbvio que a Celeste tinha agora um novo alvo para a sua maldade
e, depois do episódio com o vestido — que afinal me esquecera de contar
ao Maxon —, ficava feliz por vê-la escolher outra vítima.
— Achas que ela foi a única que ele já beijou? — cochichou a
Tuesday ao meu ouvido. A Kriss, que estava ao meu lado, ouviu a pergunta
e interveio:
— Ele não ia simplesmente beijar qualquer uma. Alguma coisa ela
deve ter feito bem — lamentou-se.
— E se ele já beijou metade desta sala e estão todas a guardar
segredo? Talvez faça parte da sua estratégia — conjeturou a Tuesday.
— Não acho que qualquer uma que guardasse segredo o fizesse por
estratégia — rebati. — Talvez sejam apenas reservadas.
A Kriss respirou fundo:
— E se a história da Olívia for apenas uma jogada? Todas neste salão
se sentem agora preocupadas e, no fim de contas, ninguém pode
simplesmente chegar ao pé do Maxon e perguntar se ele a beijou mesmo.
Não há forma de sabermos se ela está a mentir ou não.
— Achas que ela faria isso? — perguntei.
— Se fez, só tenho pena de não ter pensado nisso primeiro — disse a
Tuesday, melancólica.
A Kriss suspirou: — Isto é muito mais complicado do que pensei que
seria.
— Nem me digas nada — resmunguei.
— Gosto de quase toda a gente nesta sala, mas quando ouço dizer que
o Maxon fez alguma coisa com alguém, só penso em descobrir como fazer
melhor do que ela — confessou a Kriss. — E não gosto de me sentir a
competir contra vocês.
— É mais ou menos o que eu dizia à Tiny outro dia — acrescentou a
Tuesday. — Sei que ela é um bocadinho tímida, mas é muito elegante e
acho que daria uma ótima princesa. Não consigo ficar zangada com ela se
tiver mais encontros do que eu, apesar de também querer a coroa.
Os meus olhos cruzaram-se com os da Kriss por um instante e percebi
que pensámos ambas a mesma coisa. A Tuesday dissera a coroa e não o
príncipe. Mas deixei passar porque parte do que ela dissera era-me familiar:
— A Marlee e eu falamos sobre isso o tempo todo: como conseguimos ver
ótimas qualidades uma na outra.
Entreolhámo-nos e algo pareceu ter mudado. De repente, já não me
sentia com tantos ciúmes da Olívia, nem irritada com a Celeste. Estávamos
todas a passar pelo mesmo de formas diferentes e, talvez até, por motivos
diferentes, mas pelo menos estávamos nisto juntas.
— Talvez a Rainha Amberly estivesse certa — disse eu. — O mais
importante é sermos nós mesmas. Prefiro que o Maxon me mande embora
por ser eu mesma do que manter-me aqui por agir como outra pessoa.
— Isso é verdade — concordou a Kriss. — E, no fim de contas, trinta
e quatro de nós vão ter de sair. Se eu fosse a última, gostaria de saber que
tinha o apoio das outras, por isso, vamos tentar apoiarmos também umas às
outras.
Concordei, assentindo com a cabeça. Ela tinha razão. E eu sabia que
era capaz de o fazer.
Foi então que a Elise irrompeu pelo salão, seguida pela Zoe e pela
Emmica. A Elise era geralmente lenta e calma e nunca levantava a voz.
Hoje, contudo, olhou em volta e deu um gritinho quando nos viu:
— Olhem para estes pentes! — exclamou, apontando para os dois
belos enfeites de cabelo incrustados com o que pareciam ser pedras
preciosas valiosíssimas. — Foi o Maxon quem mos deu. Não são lindos?
As suas palavras provocaram nova onda de agitação e desapon‐
tamento em todo o salão, e a minha confiança recém-conquistada
desapareceu.
Tentei não ficar dececionada. Afinal, eu também recebera presentes e
também fora beijada. Mas à medida que o salão se enchia de raparigas e as
histórias eram recontadas, só sentia vontade de me esconder. Talvez hoje
fosse um bom dia para passar algum tempo com as minhas aias.
Estava a pensar em deixar o salão quando a Sílvia entrou, parecendo
ligeiramente cansada e animada ao mesmo tempo:
— Senhoras! — chamou, tentando obter silêncio. — Estão todas aqui?
Respondemos que sim em coro.
— Graças aos céus! — disse ela, acalmando-se. — Sei que esta é uma
notícia de última hora, mas acabámos de saber que o rei e a rainha da
Noruécia vêm visitar-nos daqui a três dias e, como todas sabem, temos
laços de sangue com essa família real. Além disso, a restante família da
rainha também vem conhecer-vos na mesma altura, pelo que teremos uma
casa bastante cheia e pouquíssimo tempo para nos prepararmos. Portanto,
desmarquem tudo o que planeavam fazer durante a tarde. As aulas no
Grande Salão começam imediatamente após o almoço. — E com estas
palavras, a Sílvia saiu.
***
Qualquer pessoa pensaria que os funcionários do palácio haviam tido
meses para organizar tudo. Nos jardins foram armadas tendas gigantescas,
com mesas de comida e vinho espalhadas pelo relvado. O número de
guardas presentes era superior ao habitual, tendo-se juntado a eles vários
soldados noruecos que acompanhavam o seu rei e rainha. Acho que até eles
sabiam o risco que o palácio corria.
Uma das tendas abrigava tronos para o rei, para a rainha e para o
Maxon, bem como para os monarcas da Noruécia. A rainha norueca — cujo
nome era incapaz de pronunciar mesmo que a minha vida dependesse disso
— era quase tão bela quanto a Rainha Amberly e ambas pareciam ser muito
amigas. Estavam todos confortavelmente acomodados na tenda, exceto o
Maxon, ocupado a apresentar todas as raparigas aos seus parentes.
O Maxon parecia encantado por ver todos os seus primos, mesmo os
mais novos, os quais passavam o tempo a puxar-lhe pelo casaco, fugindo a
seguir. Trazia uma das suas muitas máquinas fotográficas e corria atrás das
crianças, tirando fotografias. Praticamente todas as Selecionadas
observavam a cena embevecidas.
— America — chamou alguém. Virei-me para direita e vi a Elayna e a
Leah a conversarem com uma mulher quase igual à rainha. — Vem
conhecer a irmã da rainha. — Algo de indecifrável no tom da Elayna me
deixou nervosa com o convite.
Aproximei-me e fiz uma vénia à senhora, que soltou uma gargalhada e
disse:
— Não, minha querida, eu não sou a rainha. O meu nome é Adele.
Sou a irmã mais velha da Amberly. — Estendeu-me a mão e soltou um
soluço enquanto nos cumprimentávamos. Falava com um ligeiro sotaque e
havia algo nela que me fazia sentir confortável, como se acabasse de chegar
a casa. Era rechonchuda e segurava um copo de vinho quase vazio, que, a
julgar pelo seu olhar pesado, não era o primeiro.
— De onde é que é? Adoro o seu sotaque — elogiei. Algumas das
outras raparigas do Sul falavam de um modo semelhante e as vozes delas
pareciam-me incrivelmente românticas.
— De Hondurágua. Mesmo junto à costa. Crescemos numa casinha
minúscula — contou ela, aproximando o polegar do indicador e deixando
pouco mais de um centímetro entre ambos. — E olhem para ela agora.
Olhem para mim — acrescentou, apontando para o seu vestido. — Que
mudança.
— Moro em Carolina e os meus pais levaram-me à costa uma vez.
Adorei — comentei.
— Ah, não, não, filha — disse ela, agitando a mão. A Elayna e a Leah
pareciam estar a conter o riso. Era óbvio que achavam que a irmã da rainha
não devia ser tão informal. — As praias do centro de Illéa são uma porcaria
quando comparadas com as do Sul. Tens de lá ir um dia.
Sorri e concordei, pensando que adoraria conhecer melhor o país, mas
era improvável que o conseguisse um dia. Pouco depois, um dos muitos
filhos da Adele aproximou-se e levou-a dali. A Elayna e a Leah desataram à
gargalhada:
— Não é hilariante? — perguntou a Leah.
— Não sei. Parece ser simpática — respondi, encolhendo os ombros.
— É muito vulgar — afirmou a Elayna. — Devias ter ouvido as coisas
que disse antes de chegares.
— O que é que tem de tão errado?
— Já deveria ter aprendido alguma etiqueta ao longo dos anos. Como
é que a Sílvia não lhe deitou a mão? — comentou a Leah, desdenhosa.
— Será que preciso de te lembrar que ela nasceu na casta Quatro. Tal
como tu — atirei.
O seu ar de superioridade desfez-se e ela pareceu reconhecer que não
era assim tão diferente da Adele. A Elayna, porém, era uma Três de origem
e continuou a falar:
— Podes ter a certeza de que, se eu vencer, a minha família ou
aprende a comportar-se, ou é deportada. Nunca permitiria que me
envergonhassem assim.
— O que é que aconteceu de tão embaraçoso? — perguntei.
A Elayna deu um estalo com a língua:
— Ela está bêbada. O rei e a rainha da Noruécia estão aqui. Deviam
trancá-la numa jaula.
Achei que já chegava e afastei-me para ir buscar um pouco de vinho.
Com o copo na mão, olhei em volta e, sinceramente, não vi um único sítio
onde me apetecesse estar. A festa era linda e interessante e completamente
enervante.
Pensei nas palavras da Elayna. Se eu acabasse a viver no palácio, será
que esperaria que a minha família mudasse? Observei as crianças a correr
por todo o lado e as pessoas em grupos, conversando. Será que não iria
querer que a Kenna continuasse a ser ela mesma? Que os seus filhos
desfrutassem de tudo isto, independentemente de como se portassem?
Quanto é que eu mudaria por viver no palácio?
Será que o Maxon queria que eu mudasse? Seria por isso que andava a
beijar as outras? Porque havia algo de errado comigo?
Será que o resto da Seleção ia ser assim tão enervante?
— Sorri.
Voltei-me e o Maxon tirou-me uma fotografia. Dei um salto para trás,
surpreendida. Essa fotografia inesperada acabou com o resto da minha
paciência e virei-lhe as costas.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou ele, baixando a câmara.
Encolhi os ombros.
— O que aconteceu?
— Hoje, não me apetece fazer parte da Seleção — respondi,
laconicamente.
Sem se deixar impressionar, o Maxon aproximou-se e baixou a voz:
— Precisas de alguém com quem falar? Posso coçar a orelha agora
mesmo — propôs.
Suspirei e tentei pôr um sorriso educado no rosto:
— Não, só preciso de pensar — respondi, e fiz menção de me afastar.
— America — disse ele em voz baixa. Parei e virei-me. — Eu fiz
alguma coisa?
Hesitei. Deveria perguntar-lhe sobre o beijo que tinha dado à Olívia?
Ou contar-lhe que me sentia tensa perto das outras, agora que as coisas
tinham mudado entre nós? Deveria dizer-lhe que não queria mudar nem que
a minha família mudasse para fazer parte disto? Estava prestes a desabafar
tudo, quando ouvi uma voz aguda chamar atrás de nós:
— Príncipe Maxon?
Virámo-nos e ali estava a Celeste, conversando com a rainha da
Noruécia. Era óbvio que ela queria continuar essa conversa de braço dado
com o Maxon. Acenou, convidando-o a juntar-se-lhes.
— Porque não vais ter com elas? — disse eu, deixando a minha
irritação transparecer novamente na voz.
O Maxon fitou-me e a sua expressão recordava-me que isto fazia parte
do concurso. Eu tinha de o partilhar com as outras.
— Cuidado com essa. — Fiz-lhe uma vénia rápida e afastei-me.
Segui em direção ao palácio e, a meio do caminho, deparei com a
Marlee sentada sozinha. Naquele momento, nem sequer me apetecia estar
com ela, mas reparei que estava sentada num banco perto da parede
posterior do palácio, sob o Sol escaldante. A sua companhia mais próxima
era um jovem guarda silencioso a apenas alguns metros de distância.
— Marlee, o que estás a fazer? Vai para debaixo de uma tenda antes
que queimes a pele.
Ela fez-me um sorriso de cortesia: — Estou bem aqui.
— Não, a sério — disse, pondo-lhe uma mão no braço. — Vais ficar
da cor do meu cabelo. Devias...
A Marlee afastou a minha mão com brusquidão, mas falou
suavemente:
— Quero ficar aqui, America. Prefiro assim.
Havia uma tensão no seu rosto que ela tentava disfarçar. Tinha a
certeza de que não estava zangada comigo, mas havia algo de estranho no
ar.
— Está bem. Mas tenta ir para a sombra daqui a pouco. As quei‐
maduras solares doem — disse, tentando esconder a minha frustração, e
segui para o palácio.
Uma vez lá dentro, decidi ir para o Salão das Mulheres. Não podia
ficar afastada por muito tempo e pelo menos esse salão estaria vazio. Mas
quando entrei, encontrei a Adele sentada à janela, a assistir às cenas que se
desenrolavam do lado de fora. Virou-se quando entrei e sorriu ligeiramente.
Aproximei-me dela e sentei-me ao seu lado:
— Está a esconder-se?
Ela sorriu: — Mais ou menos. Queria conhecer-vos a todas e ver a
minha irmã, mas odeio quando estas coisas se transformam em funções de
Estado. Deixam-me tensa.
— Também não sou grande fã. Não consigo imaginar-me a fazer este
tipo de coisas o tempo todo.
— Aposto que não — disse ela, indolentemente. — És a Cinco, certo?
O modo como o disse não era ofensivo. Era mais como se perguntasse
se eu pertencia ao clube. — Sim, sou eu.
— Lembro-me do teu rosto. Foste encantadora no aeroporto. É o tipo
de coisa que ela teria feito — afirmou, inclinando a cabeça na direção da
rainha. Suspirou: — Não sei como o faz. É mais forte do que a maioria das
pessoas julga. — Observei-a a agarrar num copo de vinho e bebericar.
— Ela parece ser muito forte, mas serena também.
A Adele sorriu orgulhosa:
— Sim, mas é mais do que isso. Olha para ela agora.
Observei a rainha e reparei que estava a olhar para alguma coisa do
outro lado do relvado. Segui a direção do seu olhar e vi que estava a
observar o Maxon. Ele conversava com a rainha da Noruécia, ao lado da
Celeste, enquanto um dos seus primos se pendurava na sua perna.
— Ele teria sido um irmão excelente — disse ela. — A Amberly
perdeu três bebés, dois antes dele e um depois, e disse-me que ainda pensa
nisso. E eu tenho seis filhos. Sinto-me culpada sempre que venho cá.
— Tenho a certeza de que ela não pensa nisso dessa forma. Aposto
que fica entusiasmada sempre que a visita — assegurei.
Ela virou-se para mim: — Sabes o que a deixa feliz? Vocês. Sabes o
que ela vê ali? Uma filha. Ela sabe que, quando tudo isto acabar, terá dois
filhos.
Olhei de novo para a rainha:
— Acha que sim? Ela parece um pouco distante. Ainda nem sequer
falei com ela.
A Adele acenou com a cabeça:
— Vais ver. Ela tem medo de se apegar a vocês e depois ter de vos ver
partir. Quando o grupo diminuir, vais ver.
Olhei novamente para a rainha e depois para o Maxon. A seguir, olhei
para o rei e terminei fitando novamente a Adele.
Uma imensidão de coisas passou pela minha cabeça. Como as
famílias são sempre famílias, independentemente das castas. Como todas as
mães têm as suas preocupações. Como cu, na realidade, não odiava
nenhuma das raparigas aqui, independentemente de quão desadequadas
pudessem ser. Como todos ali tinham de estar a usar uma máscara, por
qualquer razão. E, finalmente, como o Maxon me tinha feito uma promessa.
— Com licença. Preciso de falar com uma pessoa.
Ela bebericou o vinho e acenou-me alegremente. Saí a correr da sala e
voltei ao Sol ofuscante dos jardins. Olhei em redor por uns instantes e vi o
pequeno primo do Maxon a persegui-lo em volta de um arbusto. Sorri e
aproximei-me devagar.
Finalmente o Maxon parou, erguendo os braços em reconhecimento
da sua derrota. Ainda a rir, virou-se e viu-me. Ele estava a sorrir, mas
quando os nossos olhares se cruzaram, o sorriso desfez-se. Examinou o meu
rosto em busca de um sinal indicativo do meu humor.
Mordi os lábios e olhei para baixo. Era evidente que preocupar-me
com o que me aconteceria enquanto participante da Seleção implicava
processar uma série de outros sentimentos para os quais não me tinha
preparado. Independentemente de como me sentisse, precisava de ter
cuidado para não descarregar nos outros, especialmente no Maxon.
Pensei na rainha — a receber líderes estrangeiros, membros da família
e um bando de raparigas, tudo ao mesmo tempo. Geria eventos e apoiava
causas, apoiava o marido, o filho e o país e, subjacente a tudo isso, era uma
Quatro que lidava com as suas próprias dores e nunca deixava que a sua
antiga casta ou as mágoas atuais a impedissem de fazer tudo isso.
Olhei para o Maxon por entre as pestanas e sorri. Devagar, ele sorriu
de volta e disse alguma coisa ao rapazinho, que se foi imediatamente
embora a correr, Depois, mexeu na orelha. E eu fiz o mesmo.
Capítulo 20

A família da rainha ficou alguns dias connosco e os visitantes da


Noruécia uma semana inteira. O Noticiário Oficial exibiu uma peça sobre
as relações internacionais e as medidas para promover a paz em ambas as
nações.
Assim que todos partiram, chegou outro visitante: a paz. Fazia agora
um mês que chegara ao palácio e sentia-me completamente em casa; o meu
corpo estava confortável no novo clima. O calor que se sentia no palácio era
celestial, como se estivesse de férias. Estávamos quase no fim de setembro
e fazia frio à noite, mas era muito mais quente do que em casa. Os recantos
daquele espaço gigantesco já não eram um mistério. O som de saltos altos
no mármore, o tilintar de copos de cristal, os guardas a marchar — tudo isso
estava a tornar-se tão familiar quanto o barulho do frigorífico ou o som do
Gerad a pontapear uma bola contra a parede da casa.
As refeições com a família real e os momentos no Salão das Mulheres
já eram habituais na minha rotina, mas os momentos intermédios do meu
dia eram sempre novos. Dedicava mais tempo à música, já que os
instrumentos do palácio eram bastante melhores do que os que tinha em
casa. Era obrigada a admitir que estava a ficar mal-habituada porque a
qualidade do som era infinitamente superior. E até o Salão das Mulheres se
tornara mais interessante, pois a rainha já nos visitara pelo menos duas
vezes. Ainda não tinha realmente conversado com ninguém, mas sentara-se
numa cadeira confortável acompanhada pelas suas aias e observava-nos
enquanto líamos ou conversávamos.
Em geral, a animosidade também acalmara. Tínhamo-nos habituado
umas às outras. Descobrimos finalmente o top das nossas fotografias
elaborado pela revista. Imaginem o meu choque quando vi que era uma das
favoritas. A Marlee estava no primeiro lugar, seguida de perto pela Kriss, a
Tallulah e a Bariel. Ao saber disto, a Celeste não falou com a Bariel durante
vários dias, mas depois todas pareceram esquecer o assunto.
O que parecia causar mais tensão eram as informações atiradas para o
ar. Quem quer que tivesse estado recentemente com o Maxon não conseguia
deixar de se gabar do seu encontro. Pelo modo como todas falavam, parecia
que o Maxon iria acabar por escolher seis ou sete esposas. Mas nem todas
andavam felizes com a experiência.
A Marlee, por exemplo, teve vários encontros com o Maxon, o que
deixava todas as outras nervosas. Contudo, nunca mais voltou tão radiante
como depois do primeiro encontro.
— America, se te contar uma coisa, juras que não dizes a ninguém?
— perguntou ela, enquanto caminhávamos pelo jardim. Eu sabia que se
tratava de algo sério. Ela esperou até estarmos longe dos ouvidos atentos do
Salão das Mulheres e fora do alcance do olhar dos guardas.
— Claro, Marlee. Está tudo bem contigo?
— Sim, estou ótima. É que... Preciso da tua opinião sobre uma coisa.
— O seu rosto estava carregado de preocupação.
— O que se passa?
Ela mordeu os lábios e encarou-me:
— É o Maxon. Não sei se vai dar certo — disse, baixando os olhos.
— Porque dizes isso? — perguntei, preocupada. Agora que ela
confessara, continuámos a andar.
— Bem, para começar, eu não... não sinto nada, sabes? Não há
química, uma ligação.
— O Maxon pode ser um pouco tímido, é só isso. Tens de lhe dar
tempo. — Era verdade. Fiquei surpreendida por ela não ter reparado nisso.
— Não. O que quero dizer é que acho que não gosto dele,
— Ah... — Essa era uma situação bastante diferente. — Já tentaste?
— Pergunta idiota!
— Sim, e muito! Fico à espera do momento em que ele diga ou faça
algo que me indique que temos alguma coisa em comum, mas nunca
acontece. Acho que ele é atraente, mas isso não basta para se construir uma
relação. Quero dizer, nem sequer sei se ele se sente atraído por mim. Tens
alguma ideia daquilo que ele... sabes, do que ele gosta?
Pensei por uns instantes: — Na verdade, não. Nunca falámos do que
ele prefere em termos de atributos físicos.
— E depois há isso, também! Nós nunca conversamos. Ele conversa
contigo o tempo todo, mas comigo nunca tem nada para dizer. Passamos
grande parte do tempo em silêncio, a ver qualquer coisa ou a jogar às cartas.
Ela parecia cada vez mais preocupada.
— Às vezes, nós também não conversamos; ficamos só sentados, sem
dizer nada. Além disso, esse tipo de sentimentos não nasce de um dia para o
outro. Talvez vocês estejam a ir devagar. — Tentei dar-lhe confiança. A
Marlee parecia prestes a desatar a chorar.
— Sinceramente, America, acho que a única razão de ainda estar aqui
é porque as pessoas gostam muito de mim. Acho que ele respeita a opinião
dos seus súbditos.
Nunca tinha pensado nisso, mas, agora que ela o dissera, parecia-me
plausível. Antes teria descartado essa opinião, mas o Maxon amava o seu
povo. Este tinha mais influência na escolha da futura princesa do que
imaginava.
— Além disso — murmurou ela tudo entre nós parece tão... vazio.
E então as lágrimas caíram.
Suspirei e abracei-a. Queria muito que ela ficasse, que estivesse aqui
comigo, mas se ela não amava o Maxon...
— Marlee, se não queres estar com o Maxon, acho que deverias dizer-
lhe.
— Ah, não. Acho que não consigo.
— Tens de o fazer. Ele não quer casar-se com alguém que não o ama.
Se não sentes nada por ele, tens de lhe dizer.
A Marlee abanou a cabeça:
— Não posso simplesmente pedir para sair! Preciso de ficar. Não
posso ir para casa... não agora.
— Porquê, Marlee? O que te prende aqui?
Por um instante, perguntei-me se ela e eu partilhávamos o mesmo tipo
de segredo. Talvez ela também precisasse de ficar longe de alguém. A única
diferença nas nossas situações era que o Maxon conhecia o meu segredo.
Queria que ela confessasse! Queria saber que não era a única que tinha ido
ali parar devido a circunstâncias ridículas.
Mas a Marlee parou de chorar quase tão depressa como tinha
começado. Fungou algumas vezes e recompôs-se. Alisou o vestido,
endireitou os ombros e virou-se para mim. Fez um sorriso forte e caloroso e
disse:
— Sabes uma coisa? Aposto que tens razão. — Começou a afastar-se.
— Tenho a certeza de que, se deixar passar mais tempo, tudo vai correr
bem. Agora tenho de ir; a Tiny está à minha espera.
E correu praticamente até ao palácio. O que lhe teria dado?
No dia seguinte, a Marlee evitou-me. E no outro, também. Fiz questão
de me sentar no Salão das Mulheres, a uma distância confortável, e garantir
que olhava para ela sempre que se cruzava comigo. Queria que soubesse
que podia confiar em mim; não iria obrigá-la a falar.
Foram precisos quatro dias para ela me fazer um sorriso triste e cheio
de significado. Apenas assenti com a cabeça. Parecia que não haveria mais
nada a dizer quanto ao que se passava no seu coração.
Naquele mesmo dia, quando estava sentada no Salão das Mulheres, o
Maxon chamou-me. Seria mentira se dissesse que não estava absolutamente
radiante quando saí porta fora a caminho dos seus braços.
— Maxon! — suspirei, abraçando-o. Quando me afastei, ele pareceu
um pouco atrapalhado e eu sabia porquê. No dia em que abandonámos a
receção oferecida aos reis da Noruécia e entrámos no palácio para
conversar, confessei que estava a ter dificuldade em lidar com os meus
sentimentos. E pedi-lhe que não me beijasse até eu ter mais certezas.
Percebi que ficara magoado, mas assentiu e ainda não tinha quebrado a sua
promessa. Era demasiado difícil decifrar esses sentimentos se ele agisse
como se fosse meu namorado, quando claramente não o era.
Ainda restavam vinte e duas raparigas depois da partida de Camille,
Mikaela e Laila. A Camille e a Laila eram simplesmente incompatíveis e
saíram sem grande alarde. Já a Mikaela sentira tantas saudades de casa que
desatara num pranto durante o pequeno-almoço, dois dias depois. O Maxon
acompanhou-a até à saída da sala, dando-lhe palmadinhas no ombro o
tempo todo. Não pareceu desapontado com a sua saída e ficou contente por
poder concentrar-se nas suas outras opções, eu incluída. Mas ambos
sabíamos que seria uma tolice ele entregar-me o seu coração quando eu
ainda nem sequer sabia por onde andava o meu.
— Como estás hoje? — perguntou ele, dando um passo atrás.
— Ótima, claro. O que fazes aqui? Não deverias estar a trabalhar?
— O presidente do Comité de Infraestruturas está doente, por isso a
reunião foi adiada. Estou livre como um pássaro a tarde inteira — explicou,
com os olhos a brilhar. — O que queres fazer? — perguntou, dando-me o
braço.
— Qualquer coisa! Há tanta coisa no palácio que ainda não vi. Há
cavalos aqui, não há? E o cinema. Ainda não me levaste lá.
— Então, vamos fazer isso. Algo de relaxante far-me-ia bem. Que tipo
de filmes preferes? — perguntou ele, enquanto caminhávamos em direção
ao que eu imaginava ser a escadaria que dava para a cave.
— Sinceramente, não sei. Não tenho oportunidade de ver muitos
filmes. Mas gosto de livros românticos. E de comédia também!
— Romance, dizes tu? — Ele ergueu o sobrolho como se tivesse
segundas intenções. Tive de me rir.
Dobrámos uma esquina e continuámos a conversar. Quando nos
aproximámos, um destacamento de guardas do palácio afastou-se para
passarmos e os soldados saudaram o príncipe. Devia haver mais de uma
dúzia de homens naquele corredor. Já estava habituada à presença deles e
nem sequer um grupo tão grande era capaz de me distrair dos momentos
agradáveis que iria passar com o Maxon.
O que me fez parar foi a exclamação que alguém deixou escapar
enquanto passávamos. Tanto o Maxon como eu olhámos para trás.
E ali estava o Aspen.
Também eu soltei uma exclamação.
Algumas semanas antes, ouvira um administrador do palácio falar por
alto sobre o recrutamento. Lembrei-me do Aspen e perguntei-me como
estaria. Mas como estava atrasada para uma das várias aulas da Sílvia, não
tive muito tempo para especular.
Então, ele acabara por ser escolhido. E com tantos lugares para onde
poderia ter ido...
O Maxon percebeu o que se passava:
— America, conheces este jovem?
Tinha-se passado mais de um mês desde a última vez que vira o
Aspen, mas ele era alguém que eu passara anos a gravar na memória, aquele
que ainda habitava os meus sonhos. Reconhecê-lo-ia em qualquer lado.
Parecia um pouco maior, como se estivesse a ser bem alimentado — muito
bem alimentado — e estivesse a fazer bastante exercício. O seu cabelo
despenteado fora cortado muito curto, praticamente rapado. Estava
habituada a vê-lo com roupas em segunda mão, onde as costuras mal se
mantinham inteiras, e agora ali estava ele, vestindo um dos uniformes
brilhantes e bem ajustados da guarda do palácio.
Parecia estranho e familiar ao mesmo tempo. Muitas coisas nele
pareciam deslocadas, mas aqueles olhos... aqueles eram os olhos do Aspen.
Olhei para a chapa de identificação no seu uniforme:
SOLDADO LEGER.
Duvidava que tivesse passado um segundo.
Consegui manter a compostura para que ninguém percebesse a
tempestade que rebentara dentro de mim — o que só por si era um milagre.
Queria tocá-lo, beijá-lo, gritar com ele, exigir que saísse do meu refúgio.
Queria cavar um buraco e desaparecer, mas sentia-me completamente aqui.
Nada fazia sentido.
Aclarei a garganta:
— Sim. O Soldado Leger é de Carolina. Na realidade, é da mesma
cidade que eu — respondi, sorrindo para o Maxon.
Sem dúvida que o Aspen nos ouvira rir no corredor e notara que eu
continuava de braço dado com o príncipe. Ele que pensasse o que quisesse.
O Maxon pareceu entusiasmado por mim:
— Ora, mas que bom! Bem-vindo, Soldado Leger. Deve estar
contente por ver novamente a Campeã de Carolina. — O Maxon estendeu a
mão ao Aspen, que o cumprimentou.
O rosto do Aspen parecia de pedra:
— Sim, Majestade. Muito mesmo.
O que é que aquilo queria dizer?
— Tenho a certeza de que também está a torcer por ela — encorajou o
Maxon, piscando-me o olho.
— Claro, Vossa Majestade — concordou o Aspen, inclinando
ligeiramente a cabeça.
E o que é que aquilo queria dizer?
— Perfeito. Já que a America é da sua província natal, não consigo
pensar em ninguém melhor no palácio para tomar conta dela. Certificar-me-
ei de que é destacado para a sua guarda de turno. Esta jovem recusa-se a
manter uma aia no quarto durante a noite. Já tentei convencê-la, mas... — O
Maxon olhou para mim e abanou a cabeça.
O Aspen pareceu finalmente relaxar um pouco:
— Isso não me surpreende, Majestade.
O príncipe sorriu:
— Bem, estou certo de que têm um dia trabalhoso pela frente. Vamos
embora. Tenham um bom dia, soldados. — O Maxon fez um rápido aceno
com a cabeça e levou-me dali.
Tive de recorrer a todas as minhas forças para não olhar para trás.
Na escuridão do cinema, tentei pensar no que fazer. O Maxon tinha
deixado claro, na noite em que lhe contara sobre o Aspen, que odiava
qualquer um que me tratasse com tão pouca consideração. Se lhe dissesse
que o homem que acabara de designar para a minha guarda de segurança
era essa mesmíssima pessoa, será que o Aspen seria punido? Não tinha a
certeza de que não o fizesse. Ele criara um sistema de assistência para o
país com base nas minhas histórias de fome.
Não podia contar-lhe. Não iria contar-lhe. Porque, apesar de toda a
minha raiva, amava o Aspen. E não suportaria vê-lo sofrer.
Será que deveria ir-me embora? O meu coração ficou dividido. Podia
fugir do Aspen, afastar-me do seu rosto — aquele rosto que me torturaria a
cada dia em que o visse, recordando-me de que já não era meu. Mas, se
saísse, teria de deixar também o Maxon e ele era o meu melhor amigo,
talvez até mais do que isso. Não podia simplesmente partir. Além disso,
como iria explicar-lhe sem dizer que o Aspen estava ali?
E a minha família? Talvez os cheques que recebiam fossem agora
menores, mas pelo menos estavam a recebê-los. A May tinha escrito a dizer
que o pai prometera que, este ano, o Natal seria o melhor de todos, mas eu
sabia que isso significava que talvez nenhum outro Natal viesse a ser tão
bom. Se desistisse, quem sabe quanto dinheiro a minha fama passada
poderia trazer à minha família? Tínhamos de poupar o máximo possível
agora.
— Não gostaste, pois não? — perguntou o Maxon, quase duas horas
mais tarde.
— Hã?
— Do filme. Não te riste nem nada.
— Oh... — Tentei lembrar-me de qualquer informação, uma única
cena da qual pudesse dizer que tinha gostado. Nada surgia. — Acho que
estou um pouco distraída hoje. Desculpa se te estraguei a tarde.
— Que disparate... — O Maxon ignorou a minha falta de entusiasmo.
— Gosto simplesmente da tua companhia. Mas talvez devesses dormir uma
sesta antes do jantar. Estás um bocadinho pálida.
Assenti com a cabeça. Estava a pensar seriamente em enfiar--me no
meu quarto e nunca mais de lá sair.
Capítulo 21

Afinal, decidi não ficar escondida no quarto. Em vez disso, escolhi o


Salão das Mulheres. Habitualmente, passava os dias dentro e fora do salão,
a visitar as bibliotecas, dando passeios com a Marlee ou indo ao piso de
cima ver as minhas aias. Mas agora, estava a usar o Salão das Mulheres
como uma caverna. Nenhum homem, nem mesmo os guardas, tinha
autorização para lá entrar sem ordem expressa da rainha. Era perfeito.
Funcionou lindamente durante três dias. Com tantas raparigas no
palácio, era apenas uma questão de tempo até alguém fazer anos e o
aniversário da Kriss era na quinta-feira. Ela deve ter dito qualquer coisa ao
Maxon — que nunca deixava escapar a oportunidade de oferecer algo a
alguém — e o resultado foi uma festa obrigatória para todas as
Selecionadas. Assim, a quinta-feira foi um dia de loucura com todas as
raparigas a entrar e a sair a correr entre os quartos umas das outras,
perguntando o que iriam vestir ou interrogando-se sobre a grandiosidade da
festa.
Aparentemente, não era preciso levar presentes, mas mesmo assim
achei que devia preparar-lhe algo simpático.
No dia da festa, pus um dos meus vestidos informais favoritos e
agarrei no violino. Fui sorrateiramente até ao Grande Salão, espreitando a
cada esquina antes de avançar. Assim que cheguei ao salão, dei outra
olhadela em redor, observando os guardas de sentinela em volta da sala.
Felizmente, o Aspen não estava em lado nenhum e tive de me rir perante a
grande quantidade de homens de uniforme. Estariam à espera de uma
rebelião ou algo do género?
O Grande Salão estava maravilhosamente decorado. Havia vasos
especiais pendurados nas paredes com enormes arranjos de flores amarelas
e brancas, enquanto bouquets semelhantes enfeitavam taças espalhadas pela
sala. As janelas, as paredes, praticamente tudo o que não fosse móvel,
estava decorado com grinaldas. Tinham sido dispostas algumas mesas
pequenas, cobertas com toalhas de linho claro salpicadas de confettis
brilhantes. Laços intrincados adornavam as costas das cadeiras.
Num dos cantos, um bolo gigante com as cores do salão esperava para
ser cortado. Ao lado, uma mesa pequena com alguns presentes para a
aniversariante.
Um quarteto de cordas ocupava um dos lados da sala, tornando inútil
a minha tentativa de prenda para a Kriss. Havia ainda um fotógrafo que
circulava pelo salão, captando momentos para o público.
O ambiente na sala era descontraído. A Tiny — que até então só
conseguira aproximar-se da Marlee — conversava animadamente com a
Emmica e a Jenna como nunca a vira fazer antes. A Marlee mantinha-se
perto de uma das janelas, mais parecendo um dos vários guardas
posicionados ao longo das paredes. Não fazia o menor esforço para
abandonar o posto que escolhera, mas detinha qualquer uma que se
aproximasse, para conversar. Um grupo de Três — a Kayleigh, a Elizabeth
e a Emily — viraram-se, acenaram e sorriram. Devolvi o gesto. Hoje, todas
pareciam felizes e amigáveis.
As exceções eram a Celeste e a Bariel. Normalmente eram
inseparáveis, mas hoje estavam em extremos opostos do salão. A Bariel
conversava com a Samantha, e a Celeste estava sentada a uma das mesas,
sozinha, segurando um copo de cristal com um líquido vermelho escuro.
Obviamente, eu devia ter perdido alguma coisa entre o jantar de ontem e
esta tarde.
Apertei novamente a pega do estojo do meu violino e dirigi-me para o
fundo do salão para falar com a Marlee:
— Olá, Marlee. Isto está uma maravilha, não está? — comentei,
pousando o violino.
— Está mesmo. — Ela abraçou-me. — Ouvi dizer que o Maxon vai
passar por aqui mais tarde para desejar pessoalmente um feliz aniversário à
Kriss. Não é querido? Aposto que também vai trazer um presente.
A Marlee continuou com o seu modo entusiástico de sempre. Ainda
me perguntava qual seria o seu segredo, mas confiava suficientemente nela
para saber que abordaria o assunto se quisesse realmente falar nisso.
Ficámos à conversa por alguns minutos até ouvirmos um clamor coletivo na
parte da frente do salão.
Virámo-nos ao mesmo tempo e, enquanto ela permaneceu calma, eu
senti-me completamente desanimada.
A Kriss fizera uma escolha de vestido incrivelmente estratégica. Ali
estávamos todas nós com vestidos informais — curtos e juvenis — ao passo
que ela trazia um vestido de gala comprido. Mas o comprimento era o
menos, o que chamava a atenção era a cor, um tom de creme muito próximo
do branco. O seu cabelo estava preso no alto, enfeitado com uma fileira de
joias amarelas dispostas horizontalmente na parte da frente, sugerindo
subtilmente uma coroa. Ela parecia madura, nobre e matrimonial.
Apesar de ainda não saber ao certo onde estava o meu coração, senti
uma pontada de ciúme. Nenhuma de nós iria ter um momento semelhante.
Independentemente de quantas festas ou jantares acontecessem dali para a
frente, seria patético tentar imitar o aspeto da Kriss. Reparei na mão da
Celeste — a que não estava a segurar o copo — a cerrar-se num punho.
— Ela está mesmo linda — comentou a Marlee, enlevada.
— Mais do que linda — acrescentei.
A festa continuou e a Marlee e eu passámos a maior parte do tempo a
observar o que se passava à nossa volta. Para nossa surpresa — e
desconfiança — a Celeste colou-se à Kriss, falando sem parar, enquanto
esta circulava pelo salão, agradecendo a presença de todas, embora na
realidade não tivéssemos tido escolha.
Finalmente, ela aproximou-se do fundo do sala, onde a Marlee e eu
nos encontrávamos a absorver a luz quentinha do Sol que entrava pela
janela. A Marlee, com a sua simpatia habitual, deu um abraço entusiasmado
à Kriss:
— Feliz aniversário! — exclamou.
— Obrigada! — respondeu a Kriss, retribuindo o afeto e o entusiasmo
da Marlee.
— Então, fazes dezanove anos hoje, não é? — perguntou a Marlee.
— Sim. Não consigo imaginar uma maneira melhor de comemorar.
Estou tão feliz por estarem a tirar fotografias. A minha mãe vai adorar isto!
Ainda que vivamos bem, nunca tivemos dinheiro para fazer nada assim.
Está tudo tão lindo! — exclamou ela, emocionada.
A Kriss era uma Quatro, como a Marlee. Não tinham uma vida tão
limitada como a minha, mas imagino que uma coisa destas proporções seria
difícil de justificar.
— É mesmo impressionante — comentou a Celeste. — No meu
aniversário do ano passado, dei uma festa em preto e branco. Bastava um
pouco de cor e os convidados já não podiam passar da porta.
— Uau — sussurrou a Marlee, com um toque óbvio de inveja naquela
palavrinha.
— Foi fantástico. Comida gourmet, uma iluminação dramática e
música ótima! Bom, mandámos vir a Tessa Tamble de avião. Já ouviram
falar dela.
Era impossível não saber quem era a Tessa Tamble. Tinha, pelo
menos, uma dezena de canções de sucesso. As vezes víamos os seus vídeos
na televisão, apesar de a minha mãe não gostar nada. Achava que tínhamos
muito mais talento do que pessoas como a Tessa e irritava-a profundamente
que ela tivesse dinheiro e fama, e nós não, embora fizéssemos
essencialmente a mesma coisa.
— É a minha cantora preferida! — exclamou a Kriss.
— Bem, a Tessa é uma grande amiga da minha família e, por isso, deu
um concerto na minha festa. Não podíamos ter um grupo de Cincos
aborrecidos a estragar toda a animação.
A Marlee olhou-me de soslaio. Percebi que se sentia constrangida por
mim.
— Ups! — acrescentou a Celeste, olhando para mim. — Esqueci-me.
Não quis ofender.
A doçura melosa da sua voz era irritante. Mais uma vez, senti-me
tentada a dar-lhe um estalo... Era melhor que não repetisse.
— Não ofendeste — respondi, mantendo a compostura o melhor que
consegui. — E o que é que tu fazes exatamente como Dois, Celeste? Quero
dizer, nunca ouvi músicas tuas na rádio.
— Sou modelo — respondeu ela, num tom de voz que dava a entender
que era algo que eu devia saber. — Nunca viste nenhum dos meus
anúncios?
— Acho que não.
— Ah, bom, mas tu és uma Cinco. Acho que não podes comprar
revistas.
Aquilo doeu, principalmente porque era verdade. A May adorava
folhear revistas quando passávamos por alguma loja, mas não fazia sentido
nenhum comprá-las.
A Kriss retomou o seu papel de anfitriã e mudou de assunto:
— Sabes, America, andava para te perguntar o que fazias enquanto
Cinco.
— Era música.
— Um dia destes, tens de tocar para nós!
Suspirei: — Na realidade, trouxe o meu violino para tocar para ti,
hoje. Achei que seria uma boa prenda, mas já tens um quarteto, por isso...
— Oh, toca para nós! — implorou a Marlee.
— Por favor, America. É o meu aniversário! — insistiu a Kriss.
— Mas já tens uma... — Ninguém quis saber dos meus protestos. A
Kriss e a Marlee já tinham mandado calar o quarteto e chamaram todas as
outras para o fundo do salão. Algumas espalharam as saias e sentaram-se no
chão, enquanto outras puxaram algumas cadeiras para o canto. A Kriss
ficou em pé no meio do grupo, apertando as mãos de entusiasmo. A Celeste
estava ao seu lado, segurando o copo de vinho ainda intacto.
Assim que todas ficaram confortáveis, preparei o violino. O quarteto
masculino, que tinha estado a tocar, aproximou-se para me apoiar e os
poucos empregados que circulavam pelo salão pararam.
Respirei fundo e levei o violino ao queixo: — Para ti — disse,
olhando para a Kriss.
Suspendi o arco sobre as cordas por um instante, fechei os olhos e
deixei a música fluir.
Por alguns momentos, não houve qualquer Celeste perversa, nenhum
Aspen à espreita no palácio, nem rebeldes a tentarem invadir-nos. Houve
apenas uma nota perfeita que se prolongava até à seguinte, como que
receosas de se perderem no tempo uma sem a outra. Mas mantinham-se
juntas e, enquanto pairavam, este presente que era para a Kriss tornou-se
meu.
Eu podia ser uma Cinco, mas não era inútil.
Toquei a música — tão familiar como a voz do meu pai ou o cheiro do
meu quarto — por uns breves e belos instantes e depois deixei-a chegar ao
seu inevitável fim. Passei o arco uma última vez pelas cordas e levantei-o
no ar.
Virei-me para a Kriss, esperando que ela tivesse gostado do presente,
mas nem sequer vi o seu rosto. Atrás da plateia de raparigas estava o
Maxon. Vestia um fato cinzento e trazia uma caixa debaixo do braço para a
Kriss. As raparigas aplaudiam simpaticamente, mas nem ouvi o barulho.
Tudo o que conseguia ver era que o Maxon tinha uma expressão bela e
maravilhada no rosto, que se converteu lentamente num sorriso. Um sorriso
só para mim.
— Majestade... — disse eu, com uma vénia.
As outras apressaram-se a levantar-se para cumprimentarem o Maxon.
No meio de tudo isto, ouvi um grito chocado:
— Oh, não! Desculpa, Kriss!
Algumas raparigas que olhavam na mesma direção haviam soltado
exclamações e, quando a Kriss se virou, percebi o motivo. A frente de seu
belo vestido estava toda manchada do ponche da Celeste. A Kriss parecia
ter sido esfaqueada.
— Desculpa, virei-me muito depressa. Não tive intenção, Kriss.
Deixa-me ajudar. — Para um estranho, as palavras da Celeste talvez
soassem sinceras, mas a mim não me enganava.
A Kriss levou as mãos à boca, começando a chorar, e depois saiu
disparada da sala, pondo fim à festa. A seu favor, tenho de dizer que o
Maxon foi atrás dela, embora eu tivesse preferido que ficasse.
A Celeste explicava o que se passara a quem estivesse disposto a
ouvir, dizendo que tudo não passara de um acidente. A Tuesday
concordava, dizendo ter testemunhado toda a cena, mas os olhares
exasperados e os suspiros de desalento das outras mostravam que o seu
apoio era inútil. Guardei discretamente o meu violino e virei-me para sair.
A Marlee agarrou-me no braço:
— Alguém precisa de fazer alguma coisa em relação a ela.
Se a Celeste conseguia levar à violência alguém tão encantador como
a Anna, ou achar aceitável tentar arrancar-me o vestido do corpo, ou fazer
com que uma pessoa tão bondosa como a Marlee ficasse irritada, isso
significava que estava a mais na Seleção.
Tinha de tirar aquela rapariga do palácio.
Capítulo 22

— Estou a dizer-te, Maxon, não foi um acidente. — Estávamos


novamente no jardim, a passar o tempo até ao Noticiário Oficial. Tivera de
esperar um dia inteiro para arranjar um momento em que pudesse conversar
com ele.
— Mas ela parecia tão aborrecida e pediu tantas desculpas —
argumentou ele. — Como pode não ter sido um acidente?
Suspirei:
— É o que te digo. Vejo a Celeste todos os dias e aquela foi a sua
maneira matreira de arruinar o momento de glória da Kriss. Ela é
extremamente competitiva.
— Bem, se a intenção dela era afastar a minha atenção da Kriss,
falhou. Passei quase uma hora com ela e uma hora bem agradável, por sinal.
Não queria ouvir isto. Sabia que existia uma pequena e ténue ligação
entre nós e não queria saber de nada que pudesse alterá-la. Não até perceber
o que sentia.
— Então, e a Anna? — perguntei.
— Quem?
— A Anna Farmer. Ela bateu na Celeste e tu mandaste-a embora,
lembras-te? Sei que a Anna deve ter sido provocada.
— Ouviste a Celeste dizer alguma coisa? — Ele parecia cético.
— Bem... não. Mas eu conhecia a Anna e conheço a Celeste. Estou a
dizer-te, a Anna não era o tipo de pessoa que partisse logo para a violência.
A Celeste deve ter-lhe dito algo de muito mesquinho para ela reagir daquela
forma.
— America, estou ciente de que passas mais tempo com elas do que
eu, mas será que as conheces realmente bem? Sei que gostas de te esconder
no quarto ou nas bibliotecas. Ouso dizer que conheces melhor a
personalidade das tuas aias do que a de qualquer uma das Selecionadas.
Ele tinha provavelmente razão, mas eu não ia recuar:
— Isso não é justo. Eu estava certa em relação à Marlee, não estava?
Não achas que é simpática?
Ele fez uma careta: — Sim, ela é simpática, acho.
— Então porque não acreditas em mim quando digo que a Celeste
agiu de propósito?
— America, não é que pense que estejas a mentir. Tenho a certeza de
que, para ti, pareceu ser assim. Mas a Celeste pediu desculpa e tem sido
sempre agradável comigo.
— Aposto que sim — resmunguei em voz baixa.
— Já chega — disse o Maxon, com um suspiro. — Não quero falar
das outras agora.
— Ela tentou arrancar-me o vestido, Maxon — queixei-me.
— Já te disse que não quero falar dela — disse ele, ferozmente.
Foi o suficiente para me deixar irritada. Bufei e levantei as mãos,
apenas para as deixar cair contra as minhas pernas. Sentia-me tão frustrada
que só me apetecia gritar.
— Se vais agir assim, vou procurar alguém que queira realmente a
minha companhia. — E ele afastou-se.
— Ei! — chamei.
— Não! — Ele virou-se e falou com mais energia do que imaginei que
fosse capaz. — A senhora esquece-se de quem é, Lady America. Faria bem
em lembrar-se de que sou o príncipe herdeiro de Illéa. Para todos os efeitos,
sou o senhor deste país e não permitirei que me trate deste modo na minha
própria casa. Não precisa de concordar com as minhas decisões, mas há de
respeitá-las.
Virou-se e foi-se embora, não vendo ou não se ralando com as
lágrimas que me marejavam os olhos.
Não olhei para ele durante todo o jantar, mas era difícil ignorá-lo
durante o Noticiário Oficial. Apanhei-o a olhar para mim duas vezes e em
ambas mexeu na orelha. Não correspondi. Não queria falar com ele.
Imaginava que iria apenas levar outro sermão e não precisava disso.
A seguir ao programa, fui para o meu quarto, tão irritada com o
Maxon que mal conseguia pensar. Porque é que ele não me ouvia? Acharia
que eu era uma mentirosa? Ou pior, pensava que a Celeste não seria capaz
de mentir?
Talvez o Maxon fosse simplesmente um tipo normal e a Celeste era
uma rapariga bonita e, no fim de contas, só isso é que importava. Depois de
toda aquela conversa sobre querer uma alma gémea, talvez tudo o que
quisesse mesmo era uma companheira de cama.
E se esse era o tipo de pessoa que ele era, por que razão é que eu me
importava? Burra, burra, burra! E tinha-o beijado! E tinha-lhe dito que seria
paciente! E para quê? Eu só...
Voltei a esquina a caminho do meu quarto e lá estava o Aspen, de pé
ao lado da porta. Toda a minha fúria se desvaneceu, transformando-se numa
incerteza estranha. Normalmente, os guardas olhavam em frente e
mantinham-se em sentido, mas ele estava a olhar para mim com uma
expressão indecifrável no rosto.
— Lady America... — murmurou.
— Soldado Leger.
Apesar de não ser a sua função, ele inclinou-se para me abrir a porta.
Passei por ele, lentamente, quase com medo de lhe virar as costas, com
receio de que não fosse real. Por mais que tentasse expulsá-lo da minha
cabeça e do meu coração, só queria que estivesse comigo naquele momento.
Quando passei, ouvi-o respirar muito perto do meu cabelo. Provocou-me
um arrepio.
Ele fitou-me de novo e fechou a porta devagar.
Era inútil tentar adormecer. Rebolei-me na cama durante horas,
enquanto a estupidez do Maxon e a proximidade do Aspen se debatiam na
minha cabeça. Não sabia o que fazer em relação a nenhum dos casos. Os
meus pensamentos eram tão absorventes, que nem percebi que estivera a
ruminar neles até bastante depois das duas da manhã.
Suspirei. As minhas aias teriam de trabalhar bastante para me deixar
com boa aparência de manhã.
De repente, vi uma luz no corredor. Tão silenciosamente, que pensei
que estava a sonhar, o Aspen abriu a porta, entrou e fechou-a atrás de si.
— Aspen, o que estás a fazer? — sussurrei, enquanto ele atravessava
o quarto. — Se te apanham aqui, vais meter-te em sarilhos!
Ele continuou a avançar em silêncio.
— Aspen?
Ele deteve-se em frente da minha cama e, sem ruído, depositou no
chão a lança que trazia: — Ama-lo?
Olhei para os seus olhos profundos, quase invisíveis na escuridão. Por
uma fração de segundo, não soube o que dizer:
— Não.
Ele puxou os meus cobertores com um gesto ao mesmo tempo
violento e gracioso. Eu devia ter protestado, mas não o fiz. A sua mão
estava atrás da minha cabeça, levantando o meu rosto na direção do dele.
Beijou-me ardentemente e todas as coisas boas do mundo pareceram
regressar aos seus lugares. Já não cheirava a sabonete caseiro e estava mais
forte do que antes, mas cada movimento, cada toque, era familiar.
— Vão matar-te por fazeres isto — sussurrei por um breve instante,
enquanto os lábios dele passeavam pelo meu pescoço.
— Se não o fizer, morro na mesma.
Tentei reunir forças para o mandar parar, mas sabia que as minhas
tentativas não seriam sinceras. Havia uma quantidade imensa de coisas
erradas em relação àquele momento — estávamos a quebrar várias regras,
tanto quanto eu sabia ele tinha namorada, o Maxon e eu nutríamos
sentimentos um pelo outro... — mas não me ralava. Estava tão zangada com
o Maxon e o Aspen era tão reconfortante. Deixei que as mãos dele subissem
e descessem pelas minhas pernas.
Maravilhei-me com a diferença; nunca tínhamos tido tanto espaço
antes.
Mesmo com aquela distração, podia sentir os pensamentos
revolvendo-se na minha cabeça. Estava zangada com o Maxon, zangada
com a Celeste e até zangada com o Aspen. Caramba, estava zangada com
Illéa. Enquanto nos beijávamos, comecei a chorar.
O Aspen continuou a beijar-me e algumas das lágrimas também eram
dele.
— Odeio-te — disse eu.
— Eu sei, Mer. Eu sei.
Mer. Quando ele me tocava assim e me tratava por aquele nome...
sentia-me noutro mundo. Apesar de toda a raiva que sentia, o Aspen fazia-
me sentir em casa.
Estivemos assim durante quase quinze minutos, até ele cair em si:
— Tenho de voltar. Os guardas que fazem a ronda esperam ver-me ali.
— O quê?
— Há guardas que fazem rondas aleatórias. Posso ter vinte minutos.
Posso ter uma hora. Se for uma ronda curta, tenho menos de cinco minutos.
— Despacha-te! — apressei-o, levantando-me com ele para o ajudar a
ajeitar o cabelo.
Ele agarrou na lança e atravessámos o quarto juntos a correr. Antes de
abrir a porta, ele puxou-me para mais um beijo. Parecia que a luz do Sol me
corria nas veias.
— Não posso acreditar que estejas aqui — disse eu.
O Aspen abanou a cabeça: — Acredita, ninguém ficou mais sur‐
preendido do que eu.
— Duvido. — Sorri e ele também. — Como é que acabaste na guarda
do palácio?
Ele encolheu os ombros: — Parece que fui feito para isto. Todos os
recrutas são levados para um centro de treinos em Whites. America, estava
tudo coberto de neve e não eram aquelas nevascas leves que temos em casa.
Todos os soldados novos são alimentados, treinados e testados. Também
levamos injeções. Não sei o que tinham, mas cresci muito depressa. Sou um
combatente sólido e sou inteligente. Fiquei em primeiro na minha secção.
Sorri orgulhosa:
— Não me admiro. — E beijei-o mais uma vez. O Aspen sempre fora
demasiado bom para ter apenas a vida de um Seis.
Ele abriu a porta e olhou para o corredor. Parecia vazio.
— Tenho tanto para te contar. Precisamos de falar — murmurei.
— Eu sei. E falaremos. Pode demorar algum tempo, mas eu volto.
Não esta noite e não sei quando, mas em breve. — Beijou-me mais uma
vez, com tanta intensidade que quase doeu.
— Tive saudades tuas — sussurrou ele contra os meus lábios antes de
voltar para o seu posto.
Voltei para a minha cama, atordoada. Não podia acreditar no que tinha
acabado de fazer. Parte de mim — o lado furioso — achava que o Maxon
merecia. Se preferia poupar a Celeste e humilhar-me, então não ficaria na
Seleção durante muito mais tempo. Se ela podia dar a volta às regras, então
não havia mais nada que me detivesse. Problema resolvido.
Sentindo-me de repente exausta, adormeci em pouco tempo.
Capítulo 23

Na manhã seguinte, acordei a sentir-me um pouco culpada.


Assustada até. Lá porque ignorara o Maxon quando ele mexera na
orelha, isso não significava que ele não pudesse entrar no meu quarto
quando quisesse. Eu e o Aspen podíamos ter sido apanhados com tanta
facilidade. Se alguém desconfiasse do que eu fizera...
Era traição. E no palácio só havia uma maneira de lidar com traidores.
Mas uma outra parte de mim não se importava. Ao despertar, ainda
tonta de sono, revivi cada olhar do Aspen, cada toque, cada beijo. Sentira
tanto a falta de tudo aquilo.
Gostava que tivéssemos tido mais tempo para conversar. Precisava
mesmo de saber o que o Aspen pensava, embora ele me tivesse dado
algumas pistas na noite anterior. Era inacreditável pensar que — depois de
me esforçar tanto para não o querer mais — ele ainda pudesse querer-me a
mim.
Era sábado e eu devia ir para o Salão das Mulheres, mas não
suportava a ideia. Precisava de pensar e sabia que não conseguiria fazê-lo
rodeada da tagarelice incessante das outras. Quando as minhas aias
chegaram, disse-lhes que me doía a cabeça e que iria ficar na cama.
Elas foram muito prestáveis: trouxeram-me o almoço e limparam o
meu quarto sem fazer barulho. Quase me senti mal por estar a mentir-lhes,
mas precisava de o fazer. Não podia encarar a rainha e as outras — e talvez
o Maxon — com o pensamento tão preso ao Aspen.
Fechei os olhos, mas não dormi. Tentei esclarecer exatamente quais os
meus sentimentos. Contudo, antes de fazer grandes progressos, alguém
bateu à porta. Virei-me na cama e olhei para a Anne, cujo rosto me
perguntava silenciosamente se deveria abrir. Sentei-me rapidamente, ajeitei
o cabelo e assenti com a cabeça.
Rezei para que não fosse o Maxon — receava que ele conseguisse ler
os meus crimes no meu rosto —, mas não estava preparada para ver o
Aspen entrar. Dei por mim a sentar-me ainda mais direita e esperei que as
minhas aias não tivessem notado.
— Desculpe, menina — disse ele à Anne. — Sou o Soldado Leger.
Estou aqui para falar com Lady America sobre algumas medidas de
segurança.
— Claro — disse a Anne, com um sorriso mais aberto do que o
habitual, fazendo um gesto ao Aspen para que entrasse. No canto, a Mary
deu uma cotovelada à Lucy e esta soltou uma risadinha.
Ao ouvir o som, o Aspen virou-se para elas e fez continência: —
Senhoras...
A Lucy baixou a cabeça e as bochechas da Mary ficaram mais
vermelhas do que o meu cabelo, mas nenhuma das duas respondeu. A
Anne, embora também parecesse apreciar o bom aspeto do Aspen, manteve
a presença de espírito suficiente para dizer:
— Deseja que saiamos, menina?
Pensei um pouco antes de responder. Não queria ser demasiado óbvia,
mas gostaria de ter um pouco de privacidade:
— Só por uns minutos. Estou certa de que o Soldado Leger não vai
demorar muito — decidi, e as três apressaram-se a sair do quarto.
Assim que desapareceram e fecharam a porta, o Aspen falou:
— Acho que estás enganada. Vou precisar de ti durante muito tempo.
— E piscou-me o olho.
Abanei a cabeça: — Ainda não acredito que estás aqui.
Sem perder tempo, o Aspen tirou o chapéu e sentou-se na beira da
minha cama, colocando as mãos de modo que os nossos dedos mal se
tocavam: — Nunca pensei que iria encarar o recrutamento como uma
bênção, mas, se me der a oportunidade de te pedir desculpas, ficarei
infinitamente grato.
Permaneci em silêncio, atónita.
O Aspen olhou bem fundo nos meus olhos e prosseguiu: — Por favor,
perdoa-me, Mer. Fui um idiota completo. Arrependi-me daquela noite na
casa da árvore mal desci as escadas. Fui demasiado teimoso para dizer
alguma coisa e depois o teu nome foi sorteado... Não sabia o que fazer. —
Parou por um instante. Parecia ter lágrimas nos olhos. Seria possível que o
Aspen tivesse chorado por mim tal como eu por ele? — Ainda te amo tanto.
Mordi os lábios para conter as lágrimas. Tinha de me certificar de uma
coisa antes de poder pensar sequer nessa possibilidade:
— E a Brenna?
Os seus olhos arregalaram-se de espanto: — Quê?
Respirei fundo nervosa: — Vi-vos juntos na praça, durante a minha
despedida. Vocês terminaram?
Ele franziu o sobrolho, concentrando-se, e depois desatou às
gargalhadas. Tapou a boca com as mãos e caiu para trás na cama. Depois,
reergueu-se e perguntou: — Foi isso que pensaste? Oh, Mer, ela caiu.
Tropeçou e eu segurei-a.
— Tropeçou?
— Sim, a praça estava tão cheia, que havia pessoas umas em cima das
outras. Ela caiu em cima de mim e disse uma piada sobre ser uma
desastrada, o que no caso dela é verdade, mesmo em condições normais. —
Lembrei-me da vez em que a Brenna caíra na rua sem nenhum motivo
aparente. Porque é que não me ocorrera antes? — E assim que me afastei
dela, corri para o palco.
Lembrei-me daqueles momentos: o Aspen tentando desesperadamente
chegar perto de mim. Não era fingimento. Sorri: — E o que achavas que
irias fazer quando lá chegasses?
Ele encolheu os ombros: — Não faço ideia. Pensava implorar-te para
ficares. Estava disposto a humilhar-me, se com isso evitasse que entrasses
naquele carro. Mas tu parecias tão zangada... e agora percebo porquê. —
Ele suspirou. — Não fui capaz. Além disso, talvez fosses feliz aqui. — Ele
olhou em volta do quarto, reparando em todas as coisas lindíssimas que
eram temporariamente minhas. Conseguia perceber que ele pensasse assim.
— Então — continuou ele —, pensei que poderia reconquistar-te
quando voltasses. — De repente, a sua voz pareceu carregada de
preocupação. — Tinha a certeza de que irias querer voltar assim que
pudesses. Mas não voltaste.
Fez uma pausa e olhou para mim, mas, felizmente, não me perguntou
quão próximos eu e o Maxon éramos. Já tinha visto um pouco dessa
proximidade, mas não sabia que nos beijáramos ou que tínhamos um sinal
secreto. E eu não queria ter de explicar isso.
— Então houve o recrutamento e julguei que era injusto pensar sequer
em escrever-te. Eu podia morrer. Não queria tentar fazer com que me
amasses de novo e depois...
— Amar-te de novo? — perguntei, incrédula. — Aspen, nunca deixei
de te amar.
Com um movimento rápido, mas delicado, ele inclinou-se e beijou-
me. Pôs a mão na minha face, apertando-me contra o seu peito, e cada
minuto dos últimos dois anos preencheu o meu corpo. Sentia-me tão
agradecida por não terem desaparecido.
— Desculpa — murmurou ele entre os beijos. — Desculpa, Mer.
Afastou-se para me olhar nos olhos, com um ligeiro sorriso no seu
rosto perfeito. Os seus olhos perguntavam exatamente o mesmo que eu: o
que fazemos agora?
Nesse instante, a porta abriu-se e as minhas aias entraram, apanhando-
me bastante perto do Aspen. Senti-me gelada de pânico.
— Ainda bem que voltaram! — disse ele, encostando a mão com mais
firmeza contra a minha bochecha antes de a mover para a minha testa. —
Não me parece que tenha temperatura, menina.
— O que se passa? — perguntou a Anne, com o rosto carregado de
preocupação e correndo para a beira da cama.
O Aspen levantou-se: — Ela começou a dizer que se sentia esquisita.
Algo relacionado com a cabeça.
— A sua dor de cabeça piorou, menina? — perguntou a Mary. — Está
tão pálida!
Aposto que estava. Sem dúvida que ficara sem pinga de sangue
quando elas nos viram juntos. Mas o Aspen conseguira manter a calma
mesmo sob pressão e resolvera tudo num instante.
— Vou buscar o remédio — acrescentou a Lucy, correndo para a casa
de banho.
— Perdoe-me, menina — disse o Aspen, enquanto as minhas aias
punham mãos à obra. — Não quero incomodá-la mais. Voltarei quando se
sentir melhor.
Nos seus olhos, eu revia o mesmo rosto que beijara um milhão de
vezes na casa da árvore. O mundo à nossa volta era completamente novo,
mas o elo entre nós era o mesmo de sempre.
— Obrigada, soldado — disse, com a voz fraca.
O Aspen fez uma pequena vénia e saiu.
Pouco depois, as minhas aias afadigavam-se à minha volta, tentando
curar uma doença que nem sequer existia.
A minha cabeça não doía, mas o meu coração, sim. O desejo de sentir
os braços do Aspen à minha volta era tão familiar, que parecia nunca ter
desaparecido.
***
A meio da noite, acordei com a Anne a abanar-me com força.
— O que é?!
— Por favor, menina, tem de se levantar! — A sua voz era frenética,
carregada de terror.
— O que se passa? Está magoada? — perguntei.
— Não, não. Temos de a levar para a cave. Estamos a ser atacados.
Eu ainda estava atordoada e não tinha a certeza de a ter ouvido bem,
mas notei que atrás dela a Lucy chorava.
— Conseguiram entrar? — perguntei, incrédula.
O lamento aterrorizado da Lucy foi a confirmação de que precisava.
— O que fazemos? — perguntei. Um súbito pico de adrenalina fez
com que despertasse e saltei da cama. Assim que pus os pés no chão, a
Mary calçou-me os sapatos, enquanto a Anne me cobria com um roupão.
Eu só pensava numa coisa: Norte ou Sul? Norte ou Sul?
— Há uma passagem aqui, no canto. Conduz diretamente à sala de
refúgio na cave. Os guardas estão lá à sua espera. A família real já lá deve
estar, bem como a maioria das outras jovens. Rápido, menina. — A Anne
puxou-me para o corredor e empurrou uma parte da parede. Esta girou
como uma passagem secreta num qualquer livro de mistério. Por trás da
parede havia uma escada à minha espera. Enquanto ali estava, a Tiny
apareceu como um relâmpago, vinda do seu quarto, e correu pelos degraus
abaixo.
— Muito bem, vamos — disse eu. A Anne e a Mary arregalaram-me
os olhos. A Lucy tremia tanto que mal se aguentava em pé. — Vamos —
repeti.
— Não, menina. Nós vamos para outro sítio. Tem de se despachar
antes que eles cheguem aqui. Por favor!
Sabia que, na melhor das hipóteses, elas acabariam feridas se os
rebeldes as encontrassem; na pior, seriam mortas. Não suportava a ideia de
que alguém lhes fizesse mal. Talvez fosse um pouco arrogante, mas se o
Maxon se tinha esforçado tanto para fazer tudo o que já fizera até agora,
talvez elas fossem importantes para ele por também o serem para mim.
Ainda que tivéssemos discutido. Talvez estivesse a contar com demasiada
generosidade, mas não podia deixá-las ali. O medo fez com que agisse
depressa. Agarrei a Anne pelo braço e empurrei-a. Ela tropeçou e não
conseguiu evitar que eu agarrasse a Mary e a Lucy.
— Mexam-se! — ordenei.
Elas começaram a andar, mas a Anne protestou o caminho todo: —
Não vão deixar-nos entrar, menina! Este lugar é só para a família... Vão
mandar-nos embora! — Mas eu não me importava com o que ela dizia.
Independentemente de como fosse o esconderijo delas, não seria mais
seguro que o da família real.
A escada tinha luzes de tantos em tantos metros, mas mesmo assim
quase caí duas vezes com a pressa. A minha mente estava alterada de tanta
preocupação. Até onde é que os rebeldes já teriam chegado antes? Saberiam
da existência destas passagens secretas? A Lucy estava quase paralisada e
eu tinha de a puxar para nos manter juntas.
Não conseguiria dizer quanto tempo demorámos a chegar ao fim das
escadas, mas aquele caminho estreito desembocou finalmente numa caverna
artificial. Podia ver outras escadarias e outras raparigas, todas a correr em
direção ao que parecia ser uma porta com mais de meio metro de espessura.
Corremos para o esconderijo.
— Obrigado por acompanharem a jovem. Podem ir agora — disse um
guarda às minhas aias.
— Não! Elas estão comigo e vão ficar — disse eu, com autoridade.
— Menina, elas têm o seu próprio esconderijo — replicou ele.
— Muito bem. Se elas não entrarem, eu não entro. Tenho a certeza de
que o Príncipe Maxon gostará de saber que é o culpado da minha ausência.
Vamos, meninas. — Agarrei nas mãos da Mary e da Lucy. A Anne estava
tão chocada que nem se mexeu.
— Espere! Espere! Está bem, entrem. Mas se houver algum problema,
a responsabilidade é sua.
— Com certeza — disse eu. Dei meia-volta com as três e entrei no
abrigo de cabeça erguida.
Havia muita movimentação lá dentro. Algumas raparigas estavam
abraçadas umas às outras, a chorar, enquanto outras rezavam. Vi o rei e a
rainha sentados, sozinhos, rodeados por mais guardas. Ao lado deles, o
Maxon segurava a mão da Elayna. Ela parecia um pouco abalada, mas
sentia-se obviamente mais calma com o toque dele. Observei o sítio onde a
família real estava... tão perto da porta. Perguntei-me se tinha a ver com a
ideia de um capitão se afundar sempre com o seu navio. Eles fariam tudo
para manter o palácio de pé, mas se se afundasse seriam os primeiros a
morrer.
O pequeno grupo real viu a minha entrada e notou a minha
companhia. Reparei nas suas expressões confusas, fiz-lhes um breve aceno
e continuei a andar com a cabeça bem erguida. Achava que, se me
mostrasse confiante, ninguém me questionaria.
Estava enganada.
Dei mais três passos até a Sílvia aparecer. Parecia incrivelmente
calma. Certamente, esta situação não era novidade para ela:
— Ótimo. Temos gente para ajudar. Meninas, vão imediatamente
buscar água às reservas ali ao fundo e comecem a servir a família real e as
Selecionadas. Vamos! — ordenou.
— Não. — Virei-me para a Anne e dei-lhe a minha primeira
verdadeira ordem: — Anne, por favor, leve algo para beber ao rei, à rainha
e ao príncipe, e depois venha ter comigo. — Encarei a Sílvia: — As
restantes podem servir-se sozinhas. Escolheram abandonar as suas aias,
portanto podem ir buscar o raio da água sozinhas. As minhas aias vão ficar
sentadas ao pé de mim. Venham, meninas.
Sabia que estávamos suficientemente perto da família real para me
poderem ouvir. Na minha tentativa de mostrar autoridade, falara um pouco
alto demais. Mas não me importava que me achassem rude; a Lucy estava
mais assustada do que a maior parte das pessoas ali. Tremia dos pés à
cabeça e eu não iria permitir que, naquele estado, a mandassem servir gente
que não valia metade do que ela valia em bondade.
Talvez se devesse ao facto de ser, desde há vários anos, a irmã mais
velha, mas tinha de as manter a salvo.
Encontrámos um espaço pequeno no fundo da sala. Quem quer que
fosse o responsável pela manutenção do esconderijo não devia tê-lo
preparado para a chegada das Selecionadas, pois não havia cadeiras
suficientes. Mas reparei nas reservas de água e comida e notei que davam
para passarmos vários meses ali dentro, se necessário.
Era um conjunto bastante estranho de pessoas. Notava-se que muitos
funcionários haviam estado a trabalhar durante a noite, porque ainda
estavam de fato. O próprio Maxon estava vestido. Mas quase todas as
raparigas estavam de camisa de noite, um traje adequado para dormir nos
quartos aquecidos do segundo andar, e nem todas tinham conseguido
agarrar num roupão com a pressa de fugir. Eu própria sentia um pouco de
frio com o meu.
Várias raparigas tinham-se juntado na parte da frente da sala. Era
óbvio que seriam as primeiras a morrer se alguém entrasse, mas se não
houvesse invasão, calculem todo o tempo que teriam passado mesmo à
frente do Maxon! Algumas raparigas estavam mais próximas de nós e a
maioria delas encontrava-se no mesmo estado que a Lucy: tremiam,
choravam e estavam paralisadas de preocupação.
A Anne servia as bebidas, enquanto eu mantinha a Lucy debaixo de
um braço, com a Mary a aconchegá-la do outro lado. Não havia nada de
agradável para dizer sobre o esconderijo ou a situação e, por isso,
permanecemos algum tempo em silêncio, ouvindo o barulho geral na sala.
A confusão de vozes lembrou-me o meu primeiro dia no palácio, quando
nos fizeram as transformações. Fechei os olhos e aproveitei os sons do
abrigo para imaginar esse momento, numa tentativa de ficar tão calma
quanto aparentava estar.
— Sente-se bem?
Ergui os olhos e dei com o Aspen, imponente no seu uniforme. O seu
tom de voz era muito formal e ele não parecia nem um pouco abalado com
a situação. Suspirei:
— Sim, obrigada.
Não dissemos nada por alguns instantes, observando as pessoas
instalarem-se no abrigo. A Mary estava claramente exausta e adormecera
encostada ao ombro da Lucy, a qual estava relativamente calma, dada a
situação. Tinha parado de chorar e permanecia sentada, olhando para o
Aspen com uma expressão de admiração.
— Foi boa ideia trazer as suas aias. Nem toda a gente é tão generosa
com as pessoas que são consideradas inferiores — disse ele.
— Nunca dei grande importância às castas — afirmei, calmamente.
Ele fez-me um ligeiro sorriso.
A Lucy tomou fôlego como se fosse perguntar algo ao Aspen, mas um
grito retumbante ecoou pelo esconderijo. Um guarda na outra ponta da sala
rugia uma ordem para nos calarmos.
O Aspen afastou-se, o que até era melhor. Temia que alguém
conseguisse notar alguma coisa.
— Era o mesmo guarda de antes, não era? — perguntou a Lucy.
— Era, sim.
— Já o vi de guarda à sua porta. É muito simpático — comentou ela.
Tinha a certeza de que o Aspen devia falar com as minhas aias,
quando as via, com a mesma delicadeza com que falava comigo. Eram
todos Seis, afinal.
— É muito bonito — acrescentou a Lucy.
Sorri e pensei em dizer alguma coisa, mas o mesmo guarda pediu-nos
silêncio. Assim que alguns restos de conversas dispersas se dissiparam, caiu
sobre a sala um silêncio sinistro.
E então pudemos ouvir. Havia pessoas a lutar por cima das nossas
cabeças. Fiquei atenta ao som de tiros ou de qualquer outra coisa que
pudesse revelar a origem daquele grupo de rebeldes. Dei por mim agarrada
às raparigas mais próximas de mim, como se pudéssemos proteger-nos
umas às outras do que poderia acontecer.
Aquele som manteve-se durante horas. Os únicos movimentos no
abrigo eram feitos pelo Maxon, que dava diligentemente as suas voltas para
verificar como estava cada rapariga. Quando chegou ao nosso canto, apenas
a Lucy e eu permanecíamos acordadas. De vez em quando, trocávamos
umas palavras rápidas sussurradas, lendo os lábios uma da outra. Quando se
aproximou, o Maxon sorriu perante a pilha de pessoas apoiadas em mim.
Nesse momento, não notei nenhum vestígio da raiva causada pela nossa
última discussão, embora ainda quisesse esclarecer o que se passara. Em
vez disso, vi o seu sorriso agradecido. Sentia-se simplesmente feliz por eu
estar bem. Uma onda de culpa percorreu-me... Em que é que me tinha
metido?
— Está tudo bem? — perguntou ele.
Fiz que sim com a cabeça. Ele olhou para a Lucy e inclinou-se sobre
mim para falar com ela. Inalei o seu perfume. O Maxon não cheirava a nada
que pudesse vir num frasco: canela, baunilha, nem sequer — lembrei-me
rapidamente — a sabonete caseiro. Tinha o seu próprio cheiro, uma mistura
das essências que o seu corpo exalava.
— E você? — perguntou ele à Lucy.
Ela também fez que sim com a cabeça.
— Está surpreendida por estar aqui em baixo? — Ele sorriu para a
Lucy, aligeirando aquela situação inimaginável.
— Não, Vossa Majestade. Não com ela — respondeu a Lucy,
inclinando a cabeça na minha direção.
O Maxon encarou-me e o seu rosto estava incrivelmente próximo do
meu. Senti-me desconfortável. Havia demasiada gente apoiada em mim;
não conseguia mexer-me. E muita gente podia ver-nos, incluindo o Aspen.
Mas o momento passou rapidamente e ele voltou a olhar para a Lucy:
— Sei o que quer dizer. — Sorriu de novo. Parecia prestes a dizer
mais qualquer coisa, mas mudou de ideias e fez menção de se endireitar.
Agarrei-lhe rapidamente no braço e perguntei em voz baixa:
— Norte ou Sul?
— Lembras-te do dia da sessão fotográfica? — sussurrou ele.
Em choque, respondi que sim. Aqueles rebeldes que avançavam para
noroeste, queimando colheitas e massacrando pessoas pelo caminho.
Intercetem-nos, dissera ele. Aqueles rebeldes, aqueles assassinos, tinham
estado este tempo todo a aproximar-se lentamente de nós e não
conseguimos detê-los. Eram assassinos. Eram Sulistas.
— Não contes a ninguém. — Ele afastou-se e foi ter com a Fiona, que
soluçava encolhida.
Tentei respirar devagar, enquanto imaginava meios de escapar caso
eles chegassem até nós, mas estava a iludir-me. Se os rebeldes
conseguissem entrar ali, seria o fim. Não havia nada a fazer senão esperar.
O tempo demorava a passar. Não fazia ideia de que horas eram, mas
as pessoas que tinham dormitado começavam a acordar e aqueles que se
tinham mantido acordados começavam a esmorecer.
Os barulhos por cima de nós não pararam de repente, mas foram
diminuindo com o passar das horas. Por fim, tudo ficou em silêncio e assim
permaneceu.
A porta abriu-se e alguns guardas saíram para investigar. Passou ainda
mais tempo, enquanto o palácio era vistoriado. Então, regressaram.
— Senhoras e senhores — anunciou um dos guardas —, os rebeldes
foram subjugados. Pedimos a todos que regressem aos seus quartos pela
escada das traseiras. Há muita confusão e bastantes guardas feridos. É
melhor evitarem os salões e os corredores principais até estar tudo limpo.
As Selecionadas devem ir para os seus quartos e permanecer lá até nova
ordem. Já falei com os cozinheiros e ser-lhes-á servida comida dentro de
uma hora. Preciso que todo o pessoal médico se dirija à ala hospitalar.
Após essas palavras, as pessoas levantaram-se e começaram a mover-
se como se nada tivesse acontecido. Alguns até pareciam aborrecidos. Com
exceção dos rostos de pessoas como a Lucy, todos pareciam encarar o
ataque como se fosse normal, esperado.
O meu quarto fora saqueado. O colchão estava no chão, os vestidos
tinham sido tirados do armário e as fotografias da minha família estavam
rasgadas. Procurei o meu frasco e encontrei-o ainda intacto, com a
moedinha, escondido debaixo da cama. Tentei não chorar, mas os meus
olhos encheram-se de lágrimas. Não era apenas medo, embora estivesse
assustada, era o facto de detestar que um inimigo tivesse tocado nas minhas
coisas e as tivesse estragado.
Demorou algum tempo até arrumarmos tudo, também porque
estávamos bastante cansadas. Mas conseguimos. A Anne até arranjou fita
adesiva para colar as minhas fotografias. Mandei as minhas aias para a
cama assim que peguei na fita. A Anne protestou, mas não estava disposta a
ouvi-la. Agora que tinha descoberto a minha capacidade de dar ordens, não
tinha medo de a usar.
Assim que fiquei sozinha, deixei as lágrimas correrem. Embora já
tivesse praticamente passado, o medo ainda me dominava.
Agarrei nas calças de ganga que o Maxon me dera e na única camisa
que trouxera de casa e vesti-as. Sentia-me um pouco mais normal assim. O
meu cabelo estava todo despenteado depois dos acontecimentos da noite
anterior e parte da manhã e, portanto, enrolei-o no alto da cabeça, deixando
algumas madeixas soltas sobre o rosto.
Dispus os pedaços das fotografias em cima da cama, tentando
descobrir como juntá-los. Era como ter quatro quebra-cabeças diferentes na
mesma caixa. Conseguira reconstituir apenas uma das fotografias quando
alguém bateu à porta.
Deve ser o Maxon, pensei. Por favor, que seja o Maxon. Abri a porta
cheia de esperança.
— Olá, querida. — Era a Sílvia. Fez um beicinho, que presumi ser a
sua fornia de oferecer conforto, e passou rapidamente por mim, entrando no
quarto. Só então se virou e reparou no que eu vestia:
— Não me diga que também se vai embora? — lamentou-se. —
Sinceramente, isto não foi nada. — Fez um gesto com a mão, indicando que
todo aquele episódio não tinha importância.
Eu não chamaria àquilo «nada». Será que ela não via que eu tinha
estado a chorar?
— Não me vou embora — disse eu, pondo uma madeixa para trás da
orelha. — Algumas das outras vão para casa?
Ela suspirou:
— Sim. Três até agora. E o Maxon, abençoado, disse-me para deixar
sair quem quisesse voltar para casa. Está tudo a ser organizado agora. É tão
engraçado. É como se ele soubesse que algumas se iriam embora. Se
estivesse no seu lugar, pensaria duas vezes antes de sair por causa de uma
parvoíce como esta.
A Sílvia começou a cirandar pelo quarto, observando a decoração.
Parvoíce? A mulher era doida!
— Levaram alguma coisa? — perguntou ela, casualmente.
— Não, senhora. Viraram tudo do avesso, mas ainda não dei por falta
de nada.
— Muito bem. — Ela aproximou-se e estendeu-me um telemóvel
minúsculo. — É a linha mais segura do palácio. Telefone à sua família para
dizer que está bem. Mas não demore muito, ainda tenho mais meninas para
ver.
Olhei maravilhada para aquele objeto diminuto. Nunca tinha pegado
num telefone portátil. Já os tinha visto nas mãos de Dois ou de Três, mas
nunca pensei que viria a usar um. As minhas mãos tremeram de emoção.
Iria ouvir a voz deles!
Marquei os números, ansiosa. Depois de tudo o que tinha acontecido,
a situação fez-me sorrir. A minha mãe atendeu ao fim de dois toques.
— Está?
— Mãe?
— America! És tu? Estás bem? Temos estado loucos de preocupação.
Um guarda telefonou para avisar que podíamos não conseguir entrar em
contacto contigo durante alguns dias e nós sabíamos que aqueles malditos
rebeldes tinham conseguido entrar aí. Estávamos tão assustados. — Ela
começou a chorar.
— Oh, não chores, mãe. Está tudo bem. — Olhei para a Sílvia.
Parecia enfastiada.
— Espera um momento. — Ouvi alguma agitação em minha casa.
— America? — A voz da May estava abafada por causa das lágrimas.
Ela devia ter passado um dia terrível.
— May! Oh, May! Sinto tanto a tua falta! — disse, sentindo as
lágrimas marejarem-me os olhos.
— Pensei que tinhas morrido! America, adoro-te. Prometes-me que
não vais morrer? — choramingou ela.
— Prometo. — Tive de sorrir perante aquela promessa.
— Vais voltar para casa? Podes voltar? Não quero que fiques mais aí.
— A May quase implorava.
— Voltar para casa? — perguntei.
Senti tantas coisas ao mesmo tempo. Tinha saudades da minha família
e estava cansada de me esconder dos rebeldes. Estava cada vez mais
confusa em relação aos meus sentimentos pelo Aspen e pelo Maxon e não
sabia como lidar com a situação. O mais fácil seria sair. Mas ainda assim...
— Não, May. Não posso ir para casa. Tenho de ficar aqui.
— Porquê? — gemeu a May.
— Porque sim — respondi, simplesmente.
— Porque sim, porquê?
— Só... porque sim.
A May ficou em silêncio por um instante, pensando:
— Estás apaixonada pelo Maxon? — Era novamente a May que só
pensava em rapazes. Ela ia ficar bem.
— Mmh, não é bem isso, mas...
— America! Tu estás apaixonada pelo Maxon! Céus! — Ouvi o meu
pai gritar «O quê?», enquanto a minha mãe repetia «Sim, sim, sim!»
— May, eu não disse...
— Eu sabia! — A May ria sem parar. Num abrir e fechar de olhos,
todos os seus medos de me perder tinham desaparecido.
— May, tenho de desligar. As outras precisam do telefone. Só queria
que soubessem que estou bem. Escrevo em breve, prometo.
— Está bem, está bem. Conta-me coisas sobre o Maxon! E manda
mais doces! Adoro-te! — gritou ela.
— Também te adoro. Adeus.
Desliguei antes de ela poder pedir mais coisas. Mas assim que a sua
voz desapareceu, senti a sua falta mais do que antes.
A Sílvia foi rápida. Em poucos segundos, tirou-me o telefone da mão
e encaminhou-se para a porta:
— Linda menina — disse, e desapareceu no corredor.
Não me sentia nada uma linda menina, mas sabia que, assim que
percebesse como resolver as coisas com o Aspen e o Maxon, tudo ficaria
bem.
Capítulo 24

Poucas horas depois, a Amy, a Fiona e a Tallulah tinham-se ido


embora. Não fazia ideia se a rapidez se devia à eficiência da Sílvia ou ao
estado de nervos das raparigas. Agora éramos dezanove e, de repente,
parecia que estava tudo a progredir muito depressa. Ainda assim, não teria
sido capaz prever a velocidade com que as coisas iriam desenrolar-se dali
para a frente.
Na segunda-feira a seguir aos ataques, retomámos a nossa rotina. O
pequeno-almoço estava delicioso, como sempre, e dei por mim a pensar se
alguma vez chegaria o dia em que deixaria de apreciar aquelas refeições
espetaculares.
— Kriss, isto não é divino? — perguntei, trincando um fruto em
formato de estrela. Nunca tinha visto nada igual até chegar ao palácio. A
Kriss tinha a boca cheia, mas assentiu com a cabeça. Nessa manhã, sentia-
me preenchida por um caloroso sentimento de irmandade. Agora que
sobrevivêramos juntas a um grave ataque rebelde, parecia que os pequenos
laços que nos uniam se tinham tornado indestrutíveis. Sentada ao lado da
Kriss, a Emily passava-me o mel e, ao meu lado, a Tiny perguntava-me com
admiração onde tinha arranjado o meu fio com o passarinho a cantar. O
ambiente lembrava o dos meus jantares de família, há alguns anos atrás,
antes de o Kota se transformar num idiota e de termos perdido a Kenna para
o marido: alegre e cheio de pessoas e conversas.
De repente soube que, tal como o Maxon dissera que a mãe fazia,
manteria o contacto com estas raparigas ao longo dos anos. Iria querer saber
com quem se casariam e enviaria cartões de Boas Festas. E, dali a uns vinte
e poucos anos, se o Maxon tivesse um filho, telefonar-lhes-ia para saber
quem eram as suas favoritas na nova Seleção. E recordaríamos tudo aquilo
por que tínhamos passado e rir-nos-íamos como se tivesse sido uma
aventura e não uma competição.
Estranhamente, a única pessoa que parecia perturbada era o Maxon.
Não tocara na comida e, em vez disso, percorria com um olhar concentrado
as filas de raparigas. De vez em quando, parava a meio de um pensamento,
parecendo debater-se com qualquer coisa, e a seguir continuava.
Quando chegou à minha fila, apanhou-me a olhar para ele e fez-me
um sorriso débil. Tirando o breve diálogo na noite anterior, não
conversávamos desde a nossa discussão e havia algumas coisas que ainda
precisavam de ser ditas. Desta vez, era eu quem tinha de tomar a iniciativa.
Com uma expressão que revelava tratar-se de um pedido e não de uma
exigência, mexi na minha orelha. A sua expressão permaneceu tensa, mas
ele repetiu o gesto.
Suspirei aliviada e desviei o olhar para as portas da enorme sala.
Como suspeitava, outro par de olhos estava pregado em mim. Ao entrar na
sala, reparara no Aspen, mas tentei não o demonstrar. Acho que é
impossível ignorarmos alguém que amámos tanto.
O Maxon levantou-se. O movimento repentino fez a cadeira raspar
ruidosamente contra o chão e o barulho foi suficiente para atrair a atenção
de todas nós. Com todos aqueles rostos virados na sua direção, o Maxon
parecia desejar poder sentar-se novamente sem que ninguém percebesse.
Mas como isso não era possível, começou a falar:
— Senhoras... — disse, fazendo um leve aceno com a cabeça. Parecia
sinceramente aflito. — Receio que, após o ataque de ontem, tenha sido
obrigado a repensar profundamente o funcionamento da Seleção. Como
sabem, três de vós pediram para sair e eu concordei. Não quero ninguém
aqui contra vontade. Mas, além disso, não me sinto confortável mantendo
no palácio, sob ameaça de perigo constante, ninguém com quem tenho a
certeza de que não terei qualquer tipo de futuro.
Em toda a sala, a confusão deu lugar a uma compreensão clara e triste
do que se passava.
— Ele não vai... — murmurou a Tiny.
— Vai, sim — repliquei.
— Embora me entristeça tomar esta atitude, discuti o assunto com a
minha família e alguns conselheiros próximos e decidi reduzir a Seleção ao
grupo da Elite. Contudo, em vez de dez, decidi dispensar todas vós, à
exceção de seis — declarou o Maxon, num tom de voz oficial.
— Seis? — exclamou a Kriss.
— Não é justo — sussurrou a Tiny, começando a chorar.
Olhei em volta da sala de jantar, enquanto o burburinho das
reclamações aumentava e diminuía. A Celeste preparou-se mentalmente,
como se pudesse lutar por uma vaga. A Bariel fechou os olhos e fez figas,
talvez na expectativa de que aquela pose lhe angariasse alguma simpatia. A
Marlee, que admitira não estar interessada no Maxon, parecia extremamente
tensa. Por que razão é que ela queria tanto ficar?
— Não quero arrastar o assunto desnecessariamente e, portanto,
apenas as seguintes irão permanecer: Lady Marlee e Lady Kriss...
A Marlee suspirou aliviada e levou a mão ao peito. A Kriss ensaiou
uma dança contente e nervosa na cadeira e olhou para as raparigas à sua
volta, esperando que tivéssemos ficado felizes. E eu fiquei até me dar conta
de que duas das seis vagas já tinham sido preenchidas. Com a discórdia
pendente entre nós, o Maxon iria mandar-me para casa? Será que não via
qualquer futuro comigo? Será que eu queria que visse? O que faria se
tivesse de ir para casa?
Ao longo de todo este tempo, o poder de decidir quando sair estivera
nas minhas mãos. Naquele instante, percebi subitamente o quanto era
importante para mim ficar.
— ... Lady Natalie e Lady Celeste... — continuou ele, olhando para
cada uma delas. Estremeci ao ouvir o nome da Celeste. Ele não podia
mantê-la e mandar-me embora; mal podia acreditar que iria sequer deixá-la
ficar. Mas, seria esse um sinal da minha partida iminente? Tínhamos
discutido exatamente por causa da presença dela.
— ... Lady Elise...— continuou ele, e toda a sala susteve a respiração à
espera do último nome. Dei-me conta de que estava a agarrar a mão da
Tiny.
— ... e Lady America. — O Maxon olhou para mim e senti cada
músculo do meu corpo relaxar. A Tiny desatou imediatamente a soluçar e
não foi a única. O Maxon soltou um longo suspiro:
— A todas as restantes, peço imensa desculpa. Espero, contudo, que
acreditem em mim quando digo que fiz isto para o vosso bem. Não quero
alimentar inutilmente as esperanças de ninguém nem arriscar as vossas
vidas. Se alguma das que estiverem de saída quiser falar comigo, estarei na
biblioteca no fim do corredor. Podem vir ter comigo assim que acabarem de
comer.
O Maxon saiu da sala o mais depressa possível, quase a correr.
Observei-o até ele passar em frente do Aspen e, nesse momento, a minha
atenção desviou-se. O rosto do Aspen estava confuso e eu sabia o motivo.
Dissera-lhe que não amava o Maxon e, portanto, o Aspen supusera que eu
também não significava nada para o príncipe. Então, por que razão ficara
tão tensa em relação a sair ou ficar? E por que razão é que o Maxon me
queria ali?
Ainda nem sequer um segundo tinha passado e a Emmica e a Tuesday
já corriam atrás do Maxon, sem dúvida em busca de uma explicação.
Algumas raparigas choravam, claramente desgostosas, e as que restavam
tentavam confortá-las.
A situação era insuportavelmente desconfortável. A Tiny afastou a
minha mão com uma palmada e saiu a correr da sala. Esperava que não
ficasse magoada comigo.
Todas deixaram a sala em poucos minutos, já sem fome. Também não
me demorei muito, incapaz de lidar com aquela torrente de emoções.
Quando passei pelo Aspen, ele sussurrou-me:
— Hoje à noite. — Assenti discretamente com a cabeça e segui o meu
caminho.
O resto da manhã foi estranho. Nunca na vida tivera amigas de quem
sentisse saudades. Todos os quartos ocupados do segundo andar estavam de
portas abertas e as raparigas corriam de uns para os outros, trocando
bilhetes e recolhendo moradas. Chorámos juntas e rimos juntas e, à tarde, o
palácio tinha-se tornado um lugar bem mais sério do que quando chegámos.
Não restava ninguém na zona do corredor onde me encontrava, por
isso não se ouvia o barulho das criadas a andar de um lado para o outro nem
das portas a abrir e a fechar. Sentei-me à minha secretária a ler um livro,
enquanto as minhas aias limpavam o pó. Perguntei-me se o palácio tivera
sempre este ar de solidão. O vazio fez com que sentisse saudades da minha
família.
De repente, ouvimos bater à porta. A Anne acorreu a abrir, olhando
para mim para se certificar de que eu estava preparada para receber visitas.
Assenti com a cabeça.
Quando o Maxon entrou no quarto, pus-me de pé de um pulo.
— Senhoras — disse, olhando para as minhas aias —, reencontramo-
nos novamente.
Elas fizeram uma vénia e soltaram risinhos. Ele cumprimentou-as e
virou-se para mim. Não tinha percebido como estava ansiosa por vê-lo.
Fiquei imóvel, ao lado da mesa, aturdida.
— Perdoem-me, mas preciso de falar com Lady America. Podem dar-
nos um instante?
Mais vénias e risadinhas, e a Anne perguntou ao príncipe — com um
tom de voz que dava a entender a adoração que tinha por ele — se podia
trazer-lhe alguma coisa. O Maxon recusou e elas saíram. Ele tinha as mãos
nos bolsos. Permanecemos em silêncio por uns instantes.
— Pensei que não irias deixar-me ficar — admiti, por fim.
— Porquê? — perguntou ele, parecendo sinceramente confuso.
— Porque discutimos. Porque tudo entre nós é estranho. Porque... —
Porque apesar de tu teres mais cinco mulheres com quem sair, acho que
estou a trair-te, pensei.
O Maxon diminuiu lentamente a distância entre nós, pensando nas
palavras enquanto avançava. Quando finalmente chegou ao pé de mim,
pegou-me nas mãos e explicou tudo:
— Primeiro, deixa-me pedir-te desculpa. Não devia ter gritado
contigo. — O seu tom de voz era totalmente sincero. — É que alguns dos
comités e o meu pai andam a pressionar-me quanto a este assunto e eu
quero ser realmente capaz de tomar uma decisão por mim mesmo. Foi
muito frustrante deparar com uma outra situação em que a minha opinião
não era levada a sério.
— Outra situação? — perguntei.
— Bem, tu viste as minhas escolhas. A Marlee é a favorita do povo e
não posso desprezar isso. A Celeste é uma jovem muito poderosa, que vem
de uma família com a qual seria ótimo estabelecermos alianças. A Natalie e
a Kriss são encantadoras, ambas muito agradáveis, e as favoritas de alguns
membros da minha família. A Elise tem parentes na Nova Ásia e, como
estamos a tentar acabar com esta maldita guerra, isso é algo que tenho de
levar em consideração. Fui massacrado com opiniões e encurralado por
todos os lados nesta decisão.
Não apresentou nenhuma explicação para mim e quase não lha pedi.
Sabia que éramos amigos em primeiro lugar e que eu não tinha qualquer
utilidade política, mas precisava de ouvir as palavras para decidir por mim
mesma. Não consegui encará-lo:
— E por que razão é que ainda estou aqui? — A minha voz era pouco
mais do que um sussurro. Tinha a certeza de que iria sofrer. Bem no fundo,
tinha a certeza de que só estava ali porque ele era demasiado bom para
quebrar a sua promessa.
— America, achei que tinha sido claro — disse o Maxon calmamente.
Soltou um suspiro paciente e ergueu-me o queixo com a mão. Quando
finalmente o olhei nos olhos, ele confessou:
— Se o assunto fosse simples, eu já teria eliminado todas as outras.
Sei o que sinto por ti. Talvez seja impulsivo da minha parte ter tanta certeza,
mas estou seguro de que seria feliz contigo.
Corei. Podia sentir as lágrimas acumularem-se, mas contive-me. O seu
rosto tinha uma expressão tão apaixonada e eu não queria perdê-la.
— Há momentos em que penso que derrubámos todas as barreiras e
há outros em que penso que só queres ficar por conveniência. Se tivesse a
certeza de que eu, e apenas eu, era o motivo...
Ele fez uma pausa e abanou a cabeça, como se o fim da frase fosse
algo que não pudesse dar-se ao luxo de querer.
— Estaria errado se dissesse que ainda não tens a certeza em relação a
mim?
Não queria magoá-lo, mas tinha de ser sincera: — Não.
— Então, tenho de me proteger. Tu podes decidir sair, e deixar-te-ei
partir se assim o quiseres, mas eu preciso de escolher uma esposa. Estou a
tentar tomar a melhor decisão possível dentro dos limites que me foram
dados, mas, por favor, não duvides nem por um segundo de que gosto de ti.
Profundamente.
Não consegui conter mais as lágrimas. Pensei no Aspen e no que tinha
feito e senti-me tão envergonhada:
— Maxon... — Solucei. — Será que podes perdoar-me...? — Não
consegui terminar a minha confissão. Ele aproximou-se ainda mais e
começou a limpar-me as lágrimas do rosto com os seus dedos fortes.
— Perdoar o quê? A nossa discussão idiota? Já a esqueci. O facto de
os teus sentimentos serem mais lentos do que os meus? Estou preparado
para esperar — disse, encolhendo os ombros. — Acho que não há nada que
pudesses fazer que eu não possa perdoar. Preciso de te lembrar da joelhada
que me deste?
Não consegui conter o riso. O Maxon também se riu, mas depois ficou
sério de repente.
— O que foi? — perguntei.
Ele abanou a cabeça:
— Foram tão rápidos desta vez. — A voz dele estava carregada de
uma admiração contrariada pelo talento dos rebeldes. De repente,
interroguei-me o quão perto estivera da tragédia ao tentar salvar as minhas
aias.
— Estou cada vez mais preocupado, America. Nortistas ou Sulistas,
estão a ficar cada vez mais determinados. Parece que não vão parar até
conseguirem o que desejam e não fazemos a menor ideia do que seja. — O
Maxon parecia triste e confuso. — Temo que seja só uma questão de tempo
até destruírem alguém importante para mim.
Ele olhou-me nos olhos:
— Sabes, ainda podes escolher. Se tens medo de ficar, deves dizê-lo.
— Fez uma pausa, pensativo. — Ou se achas que nunca vais conseguir
amar-me, é melhor dizeres-me já. Deixo-te seguir o teu caminho e
continuaremos amigos.
Coloquei os meus braços à sua volta e apoiei a cabeça no seu peito. O
Maxon pareceu simultaneamente confortado e surpreendido com o gesto.
Demorou apenas um segundo a envolver-me com os braços.
— Maxon, não tenho a certeza do que somos, mas somos sem dúvida
muito mais do que amigos.
Ele deixou escapar um suspiro. Com a minha cabeça contra o seu
peito, eu conseguia distinguir os batimentos do seu coração através do
casaco. Parecia acelerado. A sua mão, delicada como sempre, acariciou-me
a bochecha. Ao olhar para os seus olhos, senti um sentimento impossível de
designar crescendo entre nós.
Com o olhar, o Maxon pedia-me algo pelo qual que ambos tínhamos
concordado esperar. Estava feliz por ele não querer esperar mais. Acenei
ligeiramente com a cabeça e ele aproximou-se ainda mais e beijou-me com
uma ternura inimaginável.
Senti um sorriso nos seus lábios, um sorriso que perdurou por muito
tempo.
Capítulo 25

Senti um toque no braço. Estava escuro e, portanto, ou era muito tarde


ou muito cedo. Por uma fração de segundo, pensei que tinha havido mais
um ataque, mas descobri que estava errada por causa da palavra que fora
usada para me acordar.
— Mer?
Estava de costas para o Aspen e demorei um pouco a compor os meus
sentimentos antes de me virar para ele. Na minha cabeça, sabia que
existiam coisas entre nós que tinham finalmente de ser faladas. Esperava
que o meu coração me deixasse dizê-las.
Virei-me na cama e deparei com os seus olhos verdes e brilhantes e
percebi que iria ser difícil. Foi então que reparei que ele deixara a porta do
meu quarto aberta.
— Aspen, estás doido? — sussurrei. — Fecha a porta.
— Não, eu pensei nisto. Com a porta aberta, posso dizer a quem
aparecer que ouvi um barulho e vim ver como estavas, o que é a minha
função. Ninguém vai suspeitar de nada.
Era simples e brilhante. Acho que às vezes a melhor maneira de
esconder um segredo é deixá-lo à vista.
Acenei com a cabeça, compreendendo: — Está bem.
Acendi o pequeno candeeiro da mesa de cabeceira, para deixar claro a
qualquer pessoa que passasse que não estávamos a esconder nada. Olhei
para o relógio: já passava das três da manhã.
O Aspen estava claramente satisfeito consigo próprio. O seu sorriso, o
mesmo que me costumava receber na casa da árvore, era rasgado.
— Guardaste-a — disse.
— Hã?
Ele apontou para a mesa de cabeceira onde estava o frasco com a sua
moeda solitária.
— Sim — confirmei. — Não consegui livrar-me dela.
A sua expressão ficou mais esperançosa. Ele olhou rapidamente para a
porta, como para se certificar de que não estava ali ninguém, e inclinou-se
para me beijar.
— Não — disse eu baixinho, afastando-me. — Não podes fazer isso.
A expressão dos seus olhos era um misto de confusão e tristeza e temi
que tudo o que tinha para dizer só fosse piorar as coisas.
— Fiz algo de errado?
— Não — respondi firmemente. — Tens sido maravilhoso. Fiquei tão
feliz por te ver novamente e por saber que ainda me amas. Isso mudou tudo.
Ele sorriu:
— Ótimo, porque eu amo-te mesmo e tenciono nunca mais te dar
motivos para duvidares.
Estremeci:
— Aspen, independentemente do que fomos ou do que somos agora,
não podemos sê-lo aqui.
— O que queres dizer? — perguntou ele, movendo-se ligeiramente.
— Faço parte da Seleção, agora. Estou aqui pelo Maxon e não posso
encontrar-me contigo nem nada do género enquanto a competição
continuar. — Comecei a torcer nervosamente uma ponta da minha manta.
Ele pensou por uns instantes: — Então mentiste-me? Quando disseste
que nunca deixaste de me amar?
— Não — garanti. — Estiveste sempre no meu coração. És o motivo
por que está tudo a avançar tão devagar. O Maxon gosta de mim, mas eu
não consigo gostar realmente dele por tua causa.
— Ah, que bom! — disse ele, sarcástico. — Alegra-me saber que
ficarias toda contente por estar com ele se eu não estivesse por perto.
Por detrás da raiva, eu conseguia ver que ele estava magoado, mas o
facto de as coisas terem chegado a este ponto não era culpa minha.
— Aspen? — chamei em voz baixa, fazendo-o olhar para mim. —
Quando acabaste comigo na casa da árvore, deixaste-me destroçada.
— Mer, eu já disse que...
— Deixa-me acabar. — Ele bufou de raiva e depois ficou calado.
— Levaste os meus sonhos contigo e o único motivo por que estou
aqui é porque insististe para que me inscrevesse.
Ele abanou a cabeça, irritado com a verdade.
— Tenho estado a tentar juntar os cacos. E o Maxon gosta realmente
de mim. Tu significas muito para mim, sabes disso, mas agora estou na
competição e seria uma estupidez se não visse até onde posso ir.
— Então, estás a escolhê-lo em vez de mim? — perguntou ele, num
tom infeliz.
— Não. Não estou escolhê-lo a ele nem a ti. Estou escolher-me a mim
mesma.
Essa era a verdade fundamental. Ainda não sabia o que queria, mas
não podia deixar-me levar pelo mais fácil ou por aquilo que os outros
achavam estar certo. Precisava de tempo para decidir o que era melhor para
mim.
O Aspen ruminou as minhas palavras por um momento, ainda
inconformado com o que eu dizia. Por fim, sorriu:
— Sabes que não vou desistir, não sabes? — O seu tom de voz era um
claro desafio e eu sorri, apesar da situação. Era verdade que o Aspen não
era pessoa para aceitar uma derrota.
— Este não é realmente o melhor lugar para lutares por mim. A tua
determinação é uma qualidade perigosa aqui.
— Não tenho medo daquele engomadinho! — zombou ele.
Revirei os olhos, um pouco divertida por estar deste lado do
relacionamento. Sempre vivera preocupada com a possibilidade de alguém
me roubar o Aspen e senti-me culpada por gostar de o ver preocupado com
a possibilidade de alguém me roubar, para variar.
— Está bem. Tu disseste que não o amavas... mas, deves gostar pelo
menos um pouco dele para quereres ficar, certo?
Baixei a cabeça: — Sim — respondi, com um ligeiro aceno. — Ele é
muito mais do que imaginava.
Ele ponderou as minhas palavras por um instante, assimilando-as.
— Acho que isso quer dizer que terei de lutar mais do que pensava —
disse, dirigindo-se para a porta.
Antes de a fechar, piscou-me novamente o olho:
— Boa noite, Lady America.
— Boa noite, Soldado Leger.
Ouvi a porta fechar-se e senti uma paz avassaladora. Desde o começo
que me preocupava da Seleção poder ser algo que arruinasse a minha vida.
Mas, naquele instante, não consegui pensar numa outra altura que me
tivesse parecido mais certa.
Mais cedo do que gostaria, as minhas aias entraram no quarto e
acordaram-me para um novo dia. A Anne abriu as cortinas e, quando a luz
me atingiu, senti que este era verdadeiramente o meu primeiro dia no
palácio.
A Seleção já não era uma coisa que estava simplesmente a acontecer-
me, mas algo onde eu era parte ativa. Pertencia à Elite. Afastei os
cobertores e abracei a manhã.

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