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Sterling, 2022
Copyright © The Gift Box, 2023
Todos os direitos reservados.
Direção Editorial:
Anastacia Cabo
Preparação de texto:
Mara Santos
Revisão final:
Equipe The Gift Box
Arte de capa:
Bianca Santana
Tradução e diagramação:
Carol Dias
Nenhuma parte do conteúdo desse livro poderá ser reproduzida em
qualquer meio ou forma – impresso, digital, áudio ou visual – sem a
expressa autorização da editora sob penas criminais e ações civis.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas ou acontecimentos reais é
mera coincidência.
Sumário
Início
Ela está morta
Continua tomando conta de nós
Acho que somos ricas agora
Poderia ser pior
Dos Estados Unidos
Jantar de encontro
Então… a Irlanda é divertida
Eu quero esta mulher
Um maldito príncipe
As falésias de Moher
A Irlanda é inspiradora
A contagem regressiva começou
Não acredito que tenho que ir embora
Preciso dela
Reconheceria aquele sotaque em qualquer lugar
Epílogo
Sobre a autora
Sobre a The Gift Box
ELA ESTÁ MORTA
CELESTE
Não acredito que ela está morta.
Quer dizer, eu sabia que isso aconteceria, mas ainda assim…
a perda real da vida dela foi como um choque para o sistema.
Eu basicamente dei uma pausa na minha própria existência
depois de voltar para casa, nos subúrbios de Dallas, para ficar com
minha mãe em suas últimas semanas com câncer. Supondo que
fosse apenas por pouco tempo, não tive nenhum problema em me
afastar da vida que criei em Austin. Mas o que começou como uma
licença no meu trabalho de professora do ensino fundamental
rapidamente se transformou na necessidade de desistir
completamente. Eu não tinha ideia de quando voltaria para lá, se é
que algum dia voltaria.
Aquelas semanas em casa com a minha mãe se
transformaram em meses, que eventualmente se transformaram em
um ano, mas, na verdade, não me arrependia. Nem mesmo no final,
quando vi minha outrora linda mãe deixar de ser uma luz tão
brilhante e se transformar em nada além de uma concha vazia que
mal conseguia manter os olhos abertos. Foi doloroso testemunhar,
em um nível que não poderia ser descrito, mas teria me odiado se
não tivesse feito isso. Eu não poderia ter vivido com a culpa se
tivesse deixado minha mãe sair desta terra sozinha ou com um
estranho ao seu lado, que só estava lá porque era o seu trabalho e
ele estava sendo pago.
Felizmente, minha irmã mais nova, Tyra, também voltou para
casa perto do fim.
E agora que minha mãe se foi, tudo que tínhamos era uma a
outra. Sempre fomos nós três, desde que éramos capazes de
lembrar. Nosso pai foi embora quando éramos crianças e
aparentemente nunca olhou para trás. Ele fugiu com alguém do
trabalho. Pelo menos essa foi a história que nos contaram. Casou-se
novamente e deu todo o seu dinheiro para sua nova família,
esquecendo-se completamente daquela que já tinha, deixando-nos
para trás para nos defendermos sozinhas.
Minha mãe trabalhou duro para cuidar de duas meninas e
nos dar uma vida boa. E ela conseguiu.
Ela merecia muito mais do que alguma doença de merda que
a consumiu até matá-la. Merecia estar viva para quando suas filhas
se casassem e lhe dessem netos. Agora, ela nunca veria nada disso.
— Estou tão brava — disse Tyra, com raiva, enxugando as
lágrimas que pareciam nunca parar de cair dos nossos olhos.
— Eu sei. Eu também — concordei, passando um braço
protetor em volta dela e apertando.
— Não é justo. — Ela exalou um longo suspiro antes de se
virar para mim. — O que fazemos agora?
Era uma pergunta muito carregada, que continha muitas
respostas, opções e responsabilidades. Nenhuma de nós morava
mais em Dallas. Eu me mudei para Austin anos atrás e Tyra foi para
Houston logo após o ensino médio. Estávamos ambas abrindo
nossas asas, por assim dizer, buscando o tipo de independência que
só a mudança poderia proporcionar. É verdade que não havia
necessidade de se afastar tantas horas de casa, mas parecia a coisa
certa naquele momento.
Agora, nada parecia certo.
Tudo estava confuso. Bagunçado. Errado.
Embora nós duas estivéssemos aqui há meses, nesta casa,
era quase como se estivéssemos sonâmbulas o tempo todo. Nossos
corpos estavam aqui, mas o resto de nós não estava totalmente
presente. Estávamos tão concentradas em nossa mãe, no que ela
precisava e em como poderíamos ajudá-la, que todo o resto era
apenas um borrão de cores e formas.
De repente, senti como se estivesse abrindo os olhos pela
primeira vez em mais de um ano e finalmente pude ver o que havia
diante de nós. A casa de nossa infância, repleta de anos de
pertences e lembranças, parecia muito avassaladora agora, em vez
de reconfortante. Talvez só desse uma sensação assim antes porque
ela ainda estava viva.
Mas nossa mãe não estava mais aqui. E nós duas sabíamos
disso. O espírito dela não estava naquela casa velha, esperando que
decidíssemos como seguir em frente e o que fazer a seguir.
— Tenho certeza de que mamãe fez um testamento —
comentei, minha cabeça já entrando no modo de organização.
Minha mãe era toda organizada. Eu sabia que ela teria feito
tudo o que pudesse para facilitar isso para nós. Ela estava sempre
nos colocando em primeiro lugar.
Tyra ergueu a cabeça loira para trás. Nós duas não
poderíamos ter parecido mais opostas se tivéssemos tentado de
propósito. Eu, com um metro e setenta e dois, cabelo escuro e olhos
castanhos. Ela, uma coisinha miúda, que mal chegava a um metro e
sessenta, com cabelo loiro e olhos azuis, que sempre presumimos
que tivessem vindo de nosso pai ausente, já que nossa mãe tinha
olhos castanhos como os meus.
— Um testamento? Quem se importa com testamento,
Celeste? — retrucou, e eu sabia que era porque ela estava
emocionalmente sobrecarregada. Nós duas estávamos.
Estávamos segurando nossos sentimentos por tanto tempo,
tentando ser fortes enquanto mamãe ainda estava aqui conosco,
que, no segundo em que ela deu seu último suspiro, nós desabamos
e a exaustão tomou conta. Isso foi há pouco mais de uma semana e
ainda parecíamos zumbis que mal sobreviveram ao apocalipse.
Mamãe não queria um funeral. Essa foi a única coisa que ela deixou
bem clara e me forçou a não apenas ouvir, mas repetir para ela. Ela
queria ser cremada e disse que, se quiséssemos celebrar a vida, ela
gostaria, mas que não precisávamos nos sentirmos obrigadas a fazer
nada.
— Eu só quis dizer que talvez mamãe tenha feito alguns
pedidos que não conhecemos. Como o que ela queria que
fizéssemos com a casa.
— Você nunca perguntou a ela?
Neguei com a cabeça, sentindo-me burra. Eu deveria ter
pensado nesse tipo de coisa, para poder pelo menos conversar com
minha mãe sobre tudo isso antes de ela morrer. Mas eu estava tão
envolvida em simplesmente estar presente que deixei os detalhes
dolorosos de lado para discutir outro dia. Mesmo quando ela tentava
tocar no assunto, eu a forçava a parar. Era uma tentativa de evitar
de forma covarde e clássica, mas parecia mais fácil na época fingir
que talvez ela tivesse uma recuperação milagrosa e que eu nunca
mais precisaria pensar em coisas como o que fazer com a casa em
que crescemos.
Observei minha irmã se sentar em um das cadeiras da nossa
antiga mesa da cozinha, aquela que tínhamos desde que éramos
crianças, com a cabeça entre as mãos, e soluçar. Senti-me
impotente, incapaz de aliviar sua dor. Eu tinha a minha. Além disso,
não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer para trazer nossa mãe
de volta.
E quando você sentava lá e pensava sobre o que significava
perdê-la — que não tínhamos mais pais — era incrivelmente solitário
e assustador, para dizer o mínimo. Tirei tudo isso da cabeça,
recusando-me a sentir pena de mim mesma mais do que o
necessário.
Tyra fungou alto, enxugando o nariz com as costas do braço
antes de me olhar, com os olhos inchados e vermelhos.
— Deveríamos vendê-la? A casa, quero dizer?
Dei de ombros.
— Não sei. Nenhuma de nós mora mais aqui. Mas, Tyra, se
você quiser a casa, vou garantir que possamos ficar com ela, ok?
Eu estava oficialmente no modo irmã mais velha agora. Ser
quatro anos mais velha não era muito, porém, às vezes parecia uma
vida inteira em termos de experiência. Sem mencionar o fato de
que, embora fôssemos apenas nós duas, caímos nos papéis sociais
como se tivessem sido feitos para nós. Eu, a sempre obediente irmã
mais velha, que sempre cuidou dela e tentou mantê-la longe de
problemas, responsável em todos os momentos. E havia Tyra, a
caçula da família, a favorita que não fazia nada de errado, embora
cometesse erros o tempo todo.
Ela ultrapassava os limites enquanto eu permanecia dentro
deles.
— Você não quer ficar com ela? — perguntou, quase
parecendo esperançosa.
Quase esqueci que Tyra era a mais sentimental de nós duas.
Ela tinha muita dificuldade em abrir mão das coisas. Só podia
imaginar o que desistir desta casa faria com ela. Na verdade, eu não
tinha certeza se ela sobreviveria à perda de mais uma coisa.
— Não sei. Eu realmente não pensei sobre isso — admiti,
com raiva novamente por não planejar melhor e estar mais atenta
quando tive a chance.
— Você não tem mais seu apartamento em Austin —
acrescentou Tyra, como se eu não pudesse voltar lá e conseguir um
novo assim que saísse daqui.
Mas eu sabia o que ela queria dizer. Tecnicamente, nenhuma
de nós tinha onde morar. Nós duas fizemos as malas e cancelamos
nossos respectivos contratos de aluguel para voltar para casa. E
agora estávamos aqui… sem mãe.
— Eu preciso de uma bebida. — Tyra levantou-se da cadeira,
o som dela arranhando a superfície de madeira me fazendo
estremecer.
Minha mãe odiava aquele som. Ela sempre inclinava a cabeça
para o lado e estreitava os olhos, certificando-se de que Tyra
soubesse que ela desaprovava, sem nunca dizer uma palavra.
— Droga. Mamãe estaria me dando aquele olhar agora
mesmo — atestou, se arrastando em direção aos armários da
cozinha e começando a abrir o da direita. — Por favor, me diga que
você não jogou fora todas as bebidas boas.
— Eu não joguei nada fora. Por que eu deveria? — reclamei,
sentindo-me um tanto desrespeitada por minha irmã pensar tão
pouco de mim.
Nunca fui de jogar álcool fora, e uma olhada naquela
prateleira diria isso a qualquer um. Algumas delas eram realmente
antigas — tão antigas que a bebida não era mais produzida —, mas
lá estava, em nosso armário, apenas esperando sua chance. Tinha
que estar intragável a essa altura.
Observei Tyra manobrar as garrafas, puxando-as uma de
cada vez para ver o que estava escondido atrás delas. A maioria das
pessoas tinha um armário de bebidas, todo bonito e exposto, mas
nós não. Não. Tínhamos apenas um armário antigo cheio de tudo o
que acumulamos ao longo dos anos.
— Graças a Deus! — exclamou Tyra, tirando uma garrafa de
Vodka Belvedere.
Eu me perguntei de onde isso tinha vindo e há quanto tempo
estava lá. Belvedere não era caro, mas também não era
necessariamente barato. Mamãe não costumava fazer alarde com
coisas boas, como ela costumava chamar.
— Tem suco de laranja e cranberry na garagem — apontei,
como se Tyra já não soubesse disso. Era isso que a morte de alguém
fazia ao seu cérebro? Você passava a contar às pessoas informações
inúteis que elas já sabiam, como o fato de que havia suco na
garagem quando foi ela quem comprou no supermercado comigo
outro dia?
Comecei a andar sem ter ideia do que deveria fazer —
começar a fazer as malas ou revisar as coisas e decidir do que me
livrar. Mesmo que de alguma forma mantivéssemos a casa, ela ainda
precisaria ser limpa.
O quarto da mamãe basicamente foi transformado em um
leito de hospital. Já se foram os tempos em que, quando crianças,
ficávamos sentadas em sua cama enquanto ela lia para nós até
adormecermos. Ou nas noites em que corríamos para o quarto dela
durante uma tempestade. Ou choramos em seus braços pelos
meninos que partiram nossos corações e ela nos dizia que algum dia
eles não significariam nada.
Agora, era um quarto cheio de memórias de dor, medicação,
lágrimas e dificuldade para respirar. Precisava ser arejado e coberto
com uma nova camada de tinta. Meus pensamentos estavam
acelerados quando ouvi meu celular tocando em algum lugar da
casa.
— Está aqui! — Tyra gritou, e me virei para vê-la balançando
meu telefone na mão e olhando para ele. — Sem nome. Apenas um
número local — explicou, me entregando.
Eu respondi, hesitante. Geralmente era uma chamada de
spam sempre que era um número que eu não reconhecia ou que
não tinha programado no meu telefone.
— Olá?
— É Celeste Finnegan? — a voz masculina mais velha
perguntou do outro lado da linha, mas eu não cairia tão facilmente.
— Talvez — disse, minha resposta curta e hostil.
— Ok, talvez senhorita Celeste Finnegan. Aqui é Charles
Edwin. Eu cuidei do testamento de sua mãe. Ela pediu que você
viesse se encontrar comigo. Sua irmã mais nova não. Só você.
— Por que só eu? — perguntei.
— Porque você é a executora do testamento. Você pode vir
ao meu escritório em breve?
— Não tenho certeza — respondi, sendo difícil só porque
estava com vontade.
— Celeste, este é um assunto muito urgente. Preciso pedir
que você reserve um tempo para vir. O mais rápido possível.
Caramba. Esse cara pode diminuir um pouco o tom
melodramático?
— Beleza. Posso ir agora mesmo.
— Parece bom. Tenho seu endereço de e-mail, então pedirei
à minha assistente que lhe envie nosso endereço físico e quaisquer
detalhes adicionais que precisarmos.
A ligação terminou tão abruptamente quanto começou, e me
virei para encontrar Tyra olhando para mim, preparando sua bebida
de vodca e cranberry. Bem, tinha que ser principalmente vodca,
porque a mistura era apenas rosa-clara, o que significava que ela só
colocou um pouco de cranberry.
— Quem era?
— O advogado da mamãe, eu acho. Ele precisa que eu vá ao
escritório e revise o testamento.
Tyra colocou o copo em cima do balcão.
— Vou pegar minhas coisas.
— Não, Ty — eu disse, interrompendo-a. — Ele pediu para
apenas eu ir. Algo sobre ser a executora.
Ela parecia perturbada e quase pensei que fosse discutir
comigo sobre isso, mas Tyra pegou o copo novamente e tomou um
gole gigante sem vacilar.
— Vá então — falou, me mandando embora com um aceno
de mão.
Corri para o meu quarto, peguei minha bolsa junto com as
chaves do carro e saí pela porta.
CONTINUA TOMANDO CONTA
DE NÓS
CELESTE
Sentei-me no banco do motorista do meu carro e soltei um
longo suspiro. Abrindo o aplicativo no meu telefone, carreguei-o,
esperando que o e-mail do senhor Charles Edwin tivesse chegado. O
testamento da mamãe era na verdade algo que me deixou
supercuriosa, mas também queria acabar com isso o mais rápido
possível. Quanto menos coisas legais tivéssemos que resolver,
melhor.
O e-mail estava esperando na minha caixa de entrada,
exatamente como eu imaginava, informando o endereço e trazendo
um documento com foto para fins de identificação. Copiei e colei o
endereço em meu aplicativo de navegação e saí da garagem com
cuidado. O escritório do senhor Edwin ficava a apenas alguns
minutos de distância e, embora esta fosse uma cidade pequena, na
minha opinião, não era tão pequena a ponto de todos se
conhecerem. Eu nunca tinha ouvido falar de Charles Edwin antes na
minha vida e me perguntei como mamãe o encontrou.
Antes mesmo de perceber, estava entrando em um complexo
comercial e estacionando meu carro na seção de visitantes
claramente sinalizada. Tranquei a porta com meu controle remoto
antes de ir em direção às portas de vidro fumê. Eu sabia pelo e-mail
que eles estavam no segundo andar, mas verifiquei a lista mesmo
assim, só para ter certeza. Sala 231.
Subi as escadas, uma de cada vez, notando como o prédio
estava silencioso. Passando por todas as portas até chegar à porta
certa, não tinha certeza se deveria bater ou entrar imediatamente.
Agarrei a maçaneta e girei, abrindo a porta para ver um saguão
pitoresco e o que parecia ser uma área de check-in atrás de um
acrílico.
A mulher por trás disso sorriu gentilmente para mim.
— Posso ajudar? — perguntou.
Limpei a garganta.
— Estou aqui para ver o senhor Edwin. Meu nome é Celeste
Finnegan — informei, e seu rosto se contorceu em uma mistura de
reconhecimento e tristeza.
Ela sabia quem eu era; estava me esperando. Mas também
sabia por que eu estava lá.
— Sinto muito pela sua mãe — começou, suavemente, e eu
agradeci. — Vai levar um momento. Deixe-me dizer ao senhor Edwin
que você chegou.
Ela desapareceu e fiquei sozinha nesta sala pintada de
branco demais e decorada de maneira muito simples. Imaginei que
os escritórios de advocacia não foram feitos para serem
aconchegantes. Eles eram focados em negócios. E esse negócio era
duro, exigente e frio.
— Ele está pronto para você. — Ela reapareceu em uma
porta, segurando-a aberta para eu passar. — Por aqui — convidou,
enquanto caminhávamos em direção ao final do longo corredor. Ela
colocou só a cabeça para dentro. — Senhor Edwin, a senhorita
Finnegan está aqui para vê-lo.
Charles Edwin era um homem mais velho, com cabelos
grisalhos e óculos que combinavam perfeitamente com seu rosto.
Ele parecia bastante agradável, mesmo que o negócio com o qual
lidava não fosse tão agradável assim.
— Olá, Celeste. É um prazer conhecê-la pessoalmente.
— Obrigada. Também é um prazer te conhecer.
— Você não sabia nada sobre isso, não é? — perguntou, de
uma maneira quase jovial, como se a coisa toda fosse um pouco
cômica. O que, eu imaginei, de certa forma, era.
— Não. Eu não tinha ideia — comecei a dizer antes de
acrescentar: — Quer dizer, presumi que minha mãe teria um
testamento, mas apenas pensei que seria algo escrito em um
pedaço de papel que encontraria em casa.
Ele riu.
— Provavelmente em giz de cera, certo?
Eu sorri em resposta.
— Sua mãe queria tudo legal e feito de acordo com as
regras. Foi a única coisa em que insistiu.
Ele falava dela com tanto carinho que eu sabia que eram
amigos.
— Você a conhecia — afirmei, com naturalidade. Não era
uma pergunta.
Charles assentiu uma vez, um sorrisinho brincando em seus
lábios.
— Trabalhei com ela há muito tempo.
— No supermercado? — Fiquei surpresa, porque Charles não
parecia o tipo de cara que trabalharia em um supermercado.
Mas devia ser lá, porque a loja foi o único lugar onde minha
mãe já trabalhou. Ela começou no ensino médio em um verão e
continuou até chegar a uma posição de gerente, adorando cada
segundo disso. Minha mãe sempre disse que a maioria das pessoas
estava de bom humor quando entrava na loja. E aqueles que não
estavam geralmente saíam do caixa com um sorriso no rosto em vez
de uma carranca.
— Trabalhei no açougue durante as férias por um ano. Mas
continuamos amigos no Facebook.
Essa resposta me fez rir alto. Minha mãe adorava seu
Facebook; ela o baixou em seu telefone e o atualizava
constantemente.
— Você conheceu meu pai então? — Essa foi uma pergunta.
Ele também havia trabalhado com ela por um breve período
na loja, até onde eu sabia.
— Não. Ele já havia deixado vocês quando comecei a
trabalhar lá. Eram apenas Josie e suas duas filhas.
O sorriso não saiu do meu rosto, mesmo quando perguntei
sobre meu pai ausente.
— Sabe, tentei convencer sua mãe a sair comigo. Perguntei a
ela umas vinte vezes — revelou, com uma risada.
Tentei imaginar nossa vida com Charles como nosso
padrasto. Ele parecia bastante gentil, mas não enxergava — ele com
ela. Mamãe era muito despreocupada, muito feliz, muito caprichosa,
e Charles parecia um pouco tenso demais.
— Ela nunca disse sim, presumo?
— Sem chance — ele disse, com um aceno de cabeça, mas
eu já sabia disso.
Minha mãe nunca teve um namorado enquanto Tyra e eu
éramos crianças, porque ela dizia que a deixava desconfortável
trazer um homem estranho para uma casa onde moravam duas
lindas meninas. Ela sugeriu que isso era um convite a problemas,
então colocou sua vida pessoal em espera até que nós duas nos
mudássemos.
— Bem, se isso faz você se sentir melhor, ela nunca namorou
ninguém enquanto morávamos com ela.
— Acabei entendendo isso — garantiu e acrescentou: —
Facebook.
Minhas emoções cresceram dentro de mim quando ouvi esse
homem falar com tanta familiaridade sobre minha mãe.
Foi agradável. Reconfortante.
— Acho que deveríamos começar a trabalhar então. Tenho
certeza de que você tem outras coisas para fazer — sugeriu, e me
peguei encolhendo os ombros.
— Na verdade, não. Mas tenho certeza de que minha irmã
mais nova provavelmente está enlouquecendo agora, querendo
saber o que está acontecendo, então… — expliquei, e ele levantou a
mão.
— Não diga mais nada. — Charles pegou a pasta que já
estava em sua mesa e a abriu, retirando papéis, um de cada vez. —
Ok. Esta é a última vontade e testamento da sua mãe. Você quer ler
você mesma ou quer que eu repasse com você?
Engoli em seco, me perguntando por que mamãe poderia
precisar de um testamento legal. Nunca tivemos muita coisa. Não
que passássemos dificuldade ou realmente quiséssemos as coisas.
Nós simplesmente não éramos ricas.
— Você pode repassar comigo? Receio que se eu pegar e
levar para casa, terei dúvidas ou não saberei o que metade significa.
Ele sorriu, seus olhos enrugando nas bordas.
— Claro.
Charles começou a falar sobre assuntos jurídicos antes de me
informar que Josie Finnegan havia deixado tudo igualmente para
Tyra e para mim. Agora éramos orgulhosas proprietárias de uma
casa — já éramos há mais de um ano e nem sabíamos disso. A casa
havia sido quitada, os impostos sobre a propriedade e o seguro
residencial pagos durante o período.
Todas as suas economias, suas duas aposentadorias,
deveriam ser divididas igualmente entre nós. Assim como o valor do
seguro de vida, que ele alegou não ser muito alto, porque ela o
adquiriu após ser diagnosticada. Não era uma merda que quando
você precisava de seguro para cuidar de sua família porque sabia
que ia morrer, ninguém queria te dar nenhum? Como se eles não
conseguissem imaginar realmente ter que pagar uma indenização.
— Eu nem sabia que ela tinha essas coisas. As duas
aposentadorias — falei, surpresa.
— Josie trabalhou naquela loja por quase trinta anos. Ela
conseguiu guardar bastante dinheiro — explicou, empurrando um
pedaço de papel em minha direção para que eu pudesse ver a
quantia em dólares.
Meu cérebro girou dentro da cabeça. Como nunca tinha
considerado isso antes?
— Isso é uma piada? — Eu nem conseguia compreender ter
tanto dinheiro, e aqui estava ele, sendo entregue a mim por
nenhuma outra razão a não ser o fato de eu ainda estar viva e ela
não.
— Ela fazia muitas horas extras, ganhava férias, trabalhava
em dobro aos domingos… esse tipo de coisa. Ela planejou o futuro
dela e o seu futuro e de Tyra também.
— Tyra vai pirar — soltei, sem pensar.
Duzentos e cinquenta mil dólares para cada uma era muito
dinheiro. Sem falar que tínhamos que ficar com a casa também e,
ainda por cima, ela estava paga.
— Normalmente, você teria que ir até o banco e assinar a
papelada para conseguir tudo isso, mas eles abriram uma exceção
para sua mãe. Como seu administrador, assim que ela ficou
incapacitada do ponto de vista financeiro, pude assinar tudo em seu
nome. O dinheiro será transferido para suas contas assim que você
preencher esta papelada.
Ele moveu outro formulário em minha direção e comecei a
preencher as informações da minha conta.
— Não sei as informações bancárias de Tyra.
— Eu imaginei isso. É por isso que todo o valor irá para você,
e você distribuirá para ela — explicou, como se não fosse grande
coisa que quinhentos mil dólares aparecessem na minha conta um
dia.
— O dinheiro irá apenas para minha conta bancária? —
perguntei, ainda perplexa com todas essas notícias. — Sim. Meu
sócio aqui na empresa é especialista financeiro. Sei que isso é muito
dinheiro para receber de uma vez, então, se vocês precisarem de
alguma ajuda ou conselho financeiro — ele engoliu em seco — se
quiserem começar a investir ou algo assim, é só me avisar, e eu
arrumo um encontro para vocês com ele, ok?
— Tudo bem — respondi, escrevendo os dois últimos
números da minha conta bancária no formulário, assinei e deslizei de
volta em sua direção.
— É basicamente isso. O carro dela está quitado e você pode
mantê-lo ou vendê-lo. Ela disse que não se importava e imaginou
que nenhuma de vocês iria querer. O documento está na pasta. —
Ele fechou o arquivo depois de colocar cuidadosamente todos os
papéis de volta dentro e me entregou. — Tenho outra coisa que
você precisa assinar — prosseguiu. — Apenas reconhecendo que nos
encontramos, que revisei o testamento com você e lhe dei todo o
conteúdo listado na seção dois.
— Tudo bem — garanti, minha mão tremendo enquanto
pegava uma caneta. Passando para a seção dois, li o índice,
certificando-me de estar ciente de cada item listado, e assinei meu
nome em três lugares.
Fiquei de pé, apertando a mão de Charles e agradecendo-lhe
por tudo o que ele tinha feito — tanto por minha mãe quanto por
minha irmã e por mim.
Quando me virei para sair, sua voz me parou.
— Ah, droga. Há uma última coisa — disse ele, estendendo
um grande envelope pardo em minha direção. — Quase esqueci. Sua
mãe teria voltado à vida só para me matar se eu não lhe desse isso.
Peguei com cautela, me perguntando o que poderia ser
quando reconheci a letra da minha mãe na frente do envelope na
cor de seu marcador verde favorito.
Para minhas meninas.
— Você sabe o que é isso? — perguntei, e vi seus olhos
começarem a lacrimejar antes de ele esfregá-los rapidamente.
— Eu sei. Desculpe, normalmente não sou tão emotivo. Sua
mãe era uma pessoa maravilhosa. Eu simplesmente odeio a forma
como tudo terminou para ela — declarou, e senti meus próprios
olhos se encherem de lágrimas.
— Obrigada por dizer isso.
Eu também odiava. Foi uma besteira total e nem
remotamente justa.
— Você me avisará se precisar de alguma coisa ou se eu
puder ajudar, certo? — perguntou, quando passei pela porta e entrei
no corredor.
— Aviso. Obrigada mais uma vez — eu disse, mas nós dois
sabíamos que eu não faria isso.
ACHO QUE SOMOS RICAS
AGORA
CELESTE
Fiquei sentada em meu carro estacionado por dois segundos
antes de pegar o envelope, a pasta de arquivo, minha bolsa e as
chaves e praticamente correr em direção à varanda da frente. Tyra
realmente iria enlouquecer por causa do dinheiro e da casa. Eu
esperava que ela não fizesse nada estúpido, como comprar um
monte de coisas novas que ela não precisava, mas você nunca
poderia ter certeza quando se tratava da minha irmã caçula.
Às vezes, ela era incrivelmente calma e controlada, mas, em
outras, era a pessoa mais impulsiva que eu conhecia. Não ficaria
surpresa se ela me ligasse em duas semanas para me dizer que
comprou um bar com o dinheiro… ou um clube… ou um salão de
cabeleireiro ou algo assim.
Talvez eu devesse ligar de volta para Charles Edwin e pedir
para me encontrar com seu conselheiro.
Entrei na casa e a porta de tela se fechou atrás de mim,
alertando Tyra da minha presença.
— Celeste?! — ela gritou, um pouco surtada, e me perguntei
quantas vodcas com um único toque de cranberry ela tinha bebido
enquanto eu estava fora.
— Sou eu. Onde você está?
— Ainda na cozinha. Literalmente não me mexi desde que
você saiu — respondeu e começou a rir. Quando me virei no
corredor, a encontrei exatamente no mesmo lugar onde a deixei.
— É pedir demais que o que está em sua mão seja a mesma
bebida de antes?
— É pedir demais. Você se foi há, tipo, uma hora. Quem leva
uma hora para tomar uma bebida?
— Justo. Você não está bêbada, certo? — perguntei, porque
a última coisa que eu queria era entrar nos assuntos da mamãe com
Tyra num estado de espírito alterado. Eu odiaria ter que passar por
tudo isso novamente pela manhã.
— Eu não estou bêbada — argumentou, com firmeza. —
Ainda. Agora, me diga o que o advogado figurão, o senhor Eu Tenho
o Testamento da sua Mãe disse.
— Faça-me um desses primeiro. — Decidi me juntar a ela. —
Mas com muito mais cranberry. Gosto da minha cor vermelha de
verdade, obrigada.
— Fraca — sussurrou baixinho, e eu sorri enquanto a
observava encher meu copo quase até o topo com o suco antes de
adicionar a vodca.
— Espertinha — reclamei, zombando, mas tomei um gole
saudável quando ela deslizou para mim. — Ah, isso está bom.
Ela se curvou em uma reverência antes de pegar seu copo e
acenar com a cabeça em direção à mesa. Nós duas nos sentamos,
olhando uma para a outra, e percebi que ela estava um pouco
nervosa, ou ansiosa, ou algo assim.
Ela tomou outro gole saudável de sua bebida.
— Você pode me dizer agora. Estou preparada.
Ocorreu-me então que Tyra poderia estar pensando que
tínhamos ficado sem nada, desoladas e forçadas a desistir da casa.
— Mamãe realmente cuidou de nós, Ty — comecei, antes que
todas as emoções começassem a jorrar de mim em forma de
lágrimas.
— O que você quer dizer? Como assim? — Ela se encostou na
mesa, seus olhos fixando-se nos meus e segurando-os.
— Ela nos deixou a casa. Está toda paga. O carro dela
também. E ela economizou um monte de dinheiro que deveríamos
dividir.
Esperei que ela me questionasse quanto dinheiro,
imaginando que seria a próxima pergunta lógica, mas não.
Ela recostou-se na cadeira, pegou sua bebida e bebeu.
— Nós podemos ficar com a casa? — foi tudo o que ela quis
saber quando finalmente falou, com a voz trêmula, as lágrimas
escorrendo pelo seu rosto.
Eu não tinha percebido até aquele momento o quanto esta
casa realmente significava para ela. Pensei que entendia, mas vê-la
assim realmente me tocou.
— Ela fez muito por nós. — Tyra enxugou o rosto.
— Ela fez tudo por nós — concordei.
Nossa mãe realmente tinha feito. Colocou sua vida em espera
até que nós duas nos mudássemos e começássemos nossas próprias
vidas. Acabou ficando doente logo depois, mas nunca contou a
nenhuma de nós. Eu gostaria de pensar que foi porque imaginou
que se curaria do câncer e nenhuma de nós jamais saberia. Mas a
vida não seguiu os planos que traçamos e ela foi obrigada a nos
contar porque o câncer a consumia, pedaço por pedaço.
— Há mais uma coisa — avisei, e Tyra se recompôs
momentaneamente para me lançar um olhar questionador.
— O que mais poderia haver?
— Ela nos deixou isso. — Peguei o envelope pardo e deslizei-
o sobre a mesa em direção a ela.
— O que é isso? — perguntou, vendo a caligrafia familiar da
mesma forma que eu vi no escritório do advogado. — Posso abrir?
— Tyra já estava trabalhando na cola adesiva no verso, tentando
desfazê-la antes mesmo de eu responder. Ela engasgou e cobriu a
boca com uma das mãos.
— O que é? — perguntei, querendo saber tudo.
— É uma carta. — Ela começou a despejar o conteúdo do
envelope em cima da mesa. — E passagens?
Minha cabeça estava girando e eu não tinha certeza se eram
todas as emoções, a vodca ou uma combinação das duas.
— Leia. Leia a carta — insisti, e ela pegou-a e começou a
desdobrá-la. Então, leu as palavras em voz alta.
br/
Minhas queridas filhas,
br/
Sempre falamos em conhecer lugares novos, não é? Vivendo grandes aventuras onde ninguém
sabia nada sobre nós, exceto o que lhes contávamos. Sempre pareceu tão emocionante e, para
ser sincera, eu estava planejando fazer acontecer. Uma viagem especial com minhas meninas.
Lamento não termos tido a oportunidade. Mas só porque minha vida acabou, não significa
que a de vocês acabou. Todas nós sabemos que suas vidas estão apenas começando. Há
tantas novidades que vocês ainda terão. Então, Celeste, Tyra, VÃO VIVER. Vocês não
fazem isso há muito tempo, cuidando de mim. E, embora eu agradeça mais do que vocês
jamais imaginarão, é hora de vocês duas fazerem algo por si mesmas.
Sei que deve ser muito difícil e doloroso para vocês me verem definhar, mas adorei tê-las por
perto. Isso é egoísta? Provavelmente.
É por isso que estou... sem interesse... hã... enviando vocês duas para a Irlanda. Sabem que
estarei lá em espírito, seguindo vocês. Caramba, provavelmente já estou lá agora, esperando
ambas aparecerem. As passagens estão aqui junto com seu itinerário. Está tudo planejado.
Tudo pago. Não há mais nada que vocês precisem fazer por mim. Exceto esta última coisa.
Vivam. Vivam com todo o seu coração. Comecem em nossa terra natal.
Sinto a falta de vocês mais do que poderão imaginar.
Mas não se esqueçam: estarei observando. Não quebrem os corações de todos os irlandeses
enquanto estiverem lá.
Beijos,
Mamãe
br/
— O quê? — arrastei a palavra. Justo quando pensei que não
aguentaria nem mais um pingo de choque, meu corpo se apertou
ainda mais. — Leia de novo. Leia a carta de novo.
— Não. Você lê de novo. — Ela jogou em minha direção e
pegou o que presumi serem as passagens de avião e tudo mais que
havia no envelope. — Silenciosamente. Leia em silêncio, Celeste.
Caramba, nós vamos para a Irlanda!
Li a carta mais cinco vezes até praticamente memorizá-la.
Quando olhei de volta para a mesa, Tyra havia empurrado o
itinerário na minha cara e, em vez de ficar triste, eu estava
começando a ficar animada.
— Celeste? — Tyra disse meu nome suavemente.
— Sim?
— Partiremos em três dias — disse ela, e meu queixo caiu
quando meu coração começou a disparar.
— Três dias? — perguntei, de repente me sentindo
estressada antes que uma calma estranha tomasse conta de mim, e
então eu sabia que minha mãe estava aqui comigo, me dizendo que
tudo ficaria bem.
— Vou fazer as malas. — A cadeira dela rangeu contra o chão
de madeira ao empurrá-la para trás e desaparecer no corredor.
Percebi que nunca contei a ela quanto dinheiro cada uma de
nós tinha agora, mas isso poderia esperar. As irmãs Finnegan
estavam indo para a Irlanda.
PODERIA SER PIOR
CELESTE
Mamãe realmente havia planejado tudo. Voamos na primeira
classe com assentos que reclinavam totalmente e basicamente
viravam uma cama. Uma cama em um avião! Achei que Tyra iria
acampar com sua máscara e nunca mais iria embora.
— Esta é a melhor coisa do mundo — afirmou, durante o
voo, enquanto tomava um coquetel e assistia a um filme em sua
própria TV. — Acho que nunca mais poderei viajar de econômica.
Quase lhe disse que provavelmente não precisaria fazer isso
se não quisesse, mas algo me impediu. Eu não tinha certeza do quê
ou por quê, mas ainda não tinha contado a quantidade de dinheiro
que possuíamos no momento, e ela nunca mais me perguntou sobre
isso.
O valor total chegou à minha conta bancária esta manhã,
pouco antes de embarcarmos, e quase comecei a engasgar quando
vi o número na tela do meu telefone. Agi com calma, fechando o
aplicativo antes que Tyra pudesse olhar por cima do meu ombro e
ver e surtar adequadamente.
Pensei em lidar com todos os detalhes do dinheiro,
transferindo a metade dela para ela assim que voltássemos para
casa, nos Estados Unidos. No momento, queria que fizéssemos o
nosso melhor para aproveitar a vida em outro país, tudo graças à
mamãe.
O avião pousou com um solavanco, atingindo a pista com
mais força do que eu estava acostumada, mas Tyra nem se mexeu.
Ela estava dormindo profundamente, com tampões nos ouvidos,
aquela maldita máscara de dormir sobre os olhos. Estendi a mão em
meu enorme assento/cama para tocá-la e mal consegui alcançá-la.
Cutuquei a perna dela com o dedo e continuei fazendo isso até que
ela se mexeu, tirando lentamente a máscara dos olhos e piscando
para mim.
— O que você quer? — perguntou, com um gemido, tirando
os protetores de ouvido.
— Chegamos — avisei, um sorriso repentino tomando conta
do meu rosto.
Caramba, estamos na Irlanda!
— Chegamos? — Ela se endireitou e começou a esticar os
braços sobre a cabeça. — Que horas são?
Dei de ombros.
— Acho que são dez da manhã.
— Estou tão feliz por ter dormido. Talvez eu não tenha jet
lag.
Esse era o plano. Dormir durante a noite para que quando
finalmente desembarcássemos aqui nos sentíssemos um tanto
normais, para que pudéssemos tentar nos acostumar com a
diferença de horário sem perder um dia inteiro. Li um monte de
dicas e truques para voos internacionais on-line antes de partirmos.
Um deles disse para nos forçarmos a ficar acordadas pelo menos até
às sete da noite, se possível, por mais cansadas que estivéssemos.
Eu não tinha certeza se estava pronta para o desafio, mas planejei
dar tudo de mim.
Bocejei e Tyra fez um som de desgosto para mim.
— Não. É melhor você ter dormido durante o voo.
— Eu dormi. Só não tanto quanto você.
Saímos do avião e lemos as placas, gratas por estarem em
inglês, enquanto navegávamos por longos corredores até a
alfândega.
— O que faremos a seguir?
— O itinerário diz que alguém estará esperando para nos
levar ao nosso destino. Eles provavelmente estarão esperando na
esteira de bagagens como fazem em casa — eu disse, esperando
estar certa.
Depois de passar pela alfândega, o que levou quinhentos mil
anos, não tivemos que esperar muito pelas nossas malas. Outra
vantagem da primeira classe era descer pela rampa antes de todos
os outros. Arrastei minha mala atrás de mim, as rodas travando de
vez em quando enquanto eu examinava as pessoas que esperavam
na área comum, procurando por quem poderia ser nosso misterioso
passeio.
Tyra se inclinou em minha direção e sussurrou:
— Lá. — E apontou para longe.
Um cara, que parecia bonito demais para aquela hora da
manhã, estava de pé, segurando nossos nomes em uma placa
escrita à mão. A escrita estava confusa, mas não havia como negar
que ele estava esperando por nós.
— Vi primeiro — disse minha irmã mais nova.
À medida que nos aproximamos, percebi que ele estava
definitivamente mais próximo da minha idade do que da dela.
— Vi primeiro o caramba — sussurrei baixinho, mas sabia que
ela tinha me ouvido. — Meu Deus, Ty. Se todos os homens na
Irlanda se parecerem com ele, talvez nunca mais iremos embora —
decretei, com uma risada, e continuamos nos aproximando do que
quer que fosse feito esse lindo espécime de homem.
Ele era alto, sombrio e lindo. Classicamente assim. Com uma
barba rala que delineava seu rosto e acentuava suas feições
marcantes. Já fazia muito tempo que não sonhava com um cara,
mas no segundo em que seus olhos verdes se fixaram nos meus,
pensei que meus joelhos poderiam fraquejar.
Minha respiração ficou presa no peito e me vi sem palavras
em vez de estar cheia delas, como de costume.
— Celeste e Tyra? — perguntou, falando tão rápido que era
difícil decifrar. Seu sotaque também soava… estranho. Não apenas
irlandês, mas como se estivesse misturado com algo totalmente
diferente.
Aparentemente, me tornei especialista em dialetos durante o
voo.
Assenti em resposta à sua pergunta, enquanto Tyra não
perdeu tempo em se aconchegar ao lado dele em alguma tentativa
de reivindicar o direito que ela disse ter momentos atrás. Ele me
lançou um olhar que não consegui decifrar, mas os arrepios que isso
causou na minha espinha não puderam ser negados. Deu-me um
sorriso malicioso e juro que meu coração disparou dentro do peito.
— Eu sou Patrick. Vou levá-las para a pousada. — Sua voz
era profunda e sexy.
E mesmo que fosse um pouco difícil entender o que diabos
ele estava dizendo, decidi que não me importava. Se esse homem
quisesse conversar comigo a noite toda, lendo sua lista de compras,
eu ouviria.
Minha voz ainda estava perdida em algum lugar bem dentro
de mim. Cada vez que eu abria a boca para falar ou dizer algo em
resposta, nenhum som saía.
— Tiveram um bom voo? Você precisa usar a casa de banho?
Aquele maldito sotaque, tão forte e quase confuso, mas
ainda sexy como o inferno, saindo daquela boca.
Essa boca…
Tyra parou de andar e lançou-lhe um olhar engraçado,
tirando-me do transe autoimposto.
— O que você acabou de dizer?
— Sim, você perguntou se precisávamos usar a casa de
banho?
Tyra e eu nos entreolhamos, com sorrisos em nossos rostos.
Acho que encontrei minha voz, afinal.
Quem diabos diz casa de banho?
— Desculpe, eu quis dizer, o toalete. Quero dizer, o banheiro.
Temos uma pequena viagem e está caindo uma pancada lá fora.
Odiaria termos que parar no caminho de volta se não fosse
necessário.
Eu não pude deixar de rir. Presumi que a pancada significava
que estava chovendo, mas não me lembrava de ter visto chuva pela
janela do avião.
— Está chovendo? — perguntei.
— Ah, sim. — Ele assentiu. — Começou quando cheguei para
buscá-las.
Seguimos Patrick para fora e em direção ao estacionamento,
onde presumi que seu carro estava esperando para nos levar aonde
quer que fôssemos — e não para sermos assassinadas e nossos
corpos jogados na Irlanda, onde ninguém saberia que estávamos
desaparecidas ou jamais viria nos encontrar.
Quando chegamos a um Audi cinza, o porta-malas se abriu e
Patrick pegou nossa bagagem e colocou dentro como se não
pesassem nada, já que Tyra e eu tivemos dificuldade para levantá-
las.
— Nós duas vamos sentar atrás — sussurrei para minha irmã
mais nova, sabendo muito bem que ela planejava sentar na frente,
ao lado de Patrick. Eu não aceitaria nenhuma de suas travessuras
agora.
Entramos no carro, Patrick sentado na minha frente — do
lado errado do carro. Então me lembrei de que eles faziam isso aqui:
dirigiam do lado errado da estrada e sentavam do lado errado do
carro.
— Não é difícil dirigir no lado errado da estrada? — Tyra
perguntou, com a voz séria, e Patrick riu.
— Não é o lado errado para mim, amor — disse ele, e juro
que ela quase desmaiou com o uso do apelido e me deu um soco na
coxa.
Fiquei com ciúmes na hora, o que foi absolutamente insano,
mas lá estava eu, furiosa por ele tê-la chamado de amor. Se eu
tivesse que passar toda essa viagem como vela de algum caso de
amor, eu iria… não sabia o que iria fazer, mas não seria nada bonito.
Patrick pagou pelo estacionamento e rapidamente nos
conduziu para longe do aeroporto e em direção à grande metrópole
ao longe. Dublin.
— Então — comecei a dizer quando os olhos de Patrick
encontraram os meus no espelho retrovisor — seu sotaque. — Os
lados de seus olhos enrugaram e eu sabia que ele devia estar
sorrindo.
— É um pouco foda, certo?
— Acho que você pode dizer isso. — Eu ri da palavra. —
Simplesmente não parece completamente irlandês.
Tyra bateu na minha perna novamente.
— Por que você diria isso? — ela me repreendeu e se inclinou
para frente, esticando o cinto de segurança o máximo que podia. —
Acho que é sexy. E parece perfeitamente irlandês para mim.
Revirei os olhos. Não pude evitar.
— Mas sua irmã está certa. Fui criado na Inglaterra. Só estou
na Irlanda há cerca de seis anos. Então, meu sotaque é uma mistura
dos dois.
— Bem, eu acho que é adorável — Tyra acrescentou e se
recostou em seu assento novamente, e concentrei minha atenção
em tudo o que podia ver pela janela e através da chuva.
Tudo era tão grande e movimentado e, embora
definitivamente encantador à sua maneira, não era nada do que eu
esperava quando chegamos. Não tinha ideia de por que
simplesmente presumi que Dublin seria uma cidade pequena e
idílica, com nada além de ruas de paralelepípedos, onde todo mundo
se conhecia, mas não era nada disso. Menos as ruas de
paralelepípedos. Eu definitivamente vi algumas.
Mas Dublin era grande. Enorme, na verdade. E movimentada.
Superlotada. E, por mais legais que fossem os prédios, me senti
grata por não estarmos hospedadas lá. Por alguma razão, não queria
estar cercada pela agitação da vida cotidiana que poderia vivenciar
em casa. Queria me sentir como se estivesse em outro país, e não
como se nunca tivesse saído do meu.
— Então, para onde estamos indo exatamente? — perguntei,
mesmo que o nome da cidade estivesse no documento de Word que
minha mãe havia fornecido.
— Tecnicamente, estamos indo para Kilkenny — respondeu,
como se eu tivesse alguma ideia do que isso significava ou onde era.
Eu nem tinha verificado um mapa antes de partirmos para a
viagem, muito exausta e sobrecarregada com tudo em geral.
— A que distância isso fica daqui? — Tyra já parecia
impaciente. — Estou cansada de ficar sentada — explicou ainda
mais, e balancei a cabeça em compreensão. Eu também estava
cansada de ficar sentada.
— Cerca de uma hora e meia de carro. Fiquem à vontade
para tirar uma soneca — sugeriu, e nós duas rimos, gritando uma
por cima da outra.
— Já dormi o suficiente — disse Tyra.
— Não quero deixar de ver nada — acrescentei, olhando pela
janela para a paisagem ondulada que passava por nós.
Nossa viagem continuou, em uma das menores estradas que
já vi, quando um rio apareceu do nada antes de desaparecer de
vista novamente. E, de vez em quando, escondido por ervas e
árvores crescidas, eu via o que pareciam ser restos de antigos
castelos ou igrejas — não tinha certeza de quais. O trabalho em
pedra, mesmo em estado de decomposição, era de tirar o fôlego.
Rivalizava com algo que eu só tinha visto em filmes antes, mas
estava aqui e era real. A Irlanda era mágica. Era tudo que tinha que
ser.
Depois de ficar no carro por quase duas horas — ficamos
presos atrás de um homem puxando uma carroça por um tempo —,
Patrick conduziu seu Audi por uma estrada de terra e, antes que
percebesse, estávamos passando por um prédio de paralelepípedos
cinza, com venezianas vermelhas escuras revestindo cada janela. Era
absolutamente encantador e diferente de tudo que eu já tinha visto
antes.
— É aqui que vamos ficar? — Tyra saltou, aparentemente tão
animada quanto eu.
Uma placa que dizia Pousada do Príncipe estava pendurada
em um braço de ferro preto, anunciando o nome.
— Sim. Lar doce Lar. — O sotaque de Patrick percorreu meus
ossos mais uma vez.
— Pousada do Príncipe — falei, dizendo o nome em voz alta.
— Você vive aqui?
— Sim, vivo. Na verdade, isso aqui é meu — esclareceu.
— Você é o dono da pousada? E foi nos buscar? —
questionei, surpresa.
A maioria dos proprietários nos Estados Unidos teria
contratado outra pessoa para fazer o transporte.
— Serviço completo, querida.
Querida. Ninguém com menos de sessenta anos havia me
chamado de querida antes. Mas eu gostei. Um pouco demais.
E agora entendi como Tyra se sentiu quando ele se referiu a
ela como amor. Eu queria que Patrick me chamasse de querida toda
vez que falasse comigo… o que eu esperava que fosse muito.
DOS ESTADOS UNIDOS
PATRICK
Já conheci muitas mulheres dos Estados Unidos antes.
Especialmente depois que aquela série Outlander, ou seja lá qual for
o nome, se tornou popular no país. Eu sabia que se passava na
Escócia, mas as mulheres de lá estavam à procura de algo sensual e
estrangeiro. E essa caçada também as levou para a Irlanda. Já
recebi propostas mais vezes do que gostaria de admitir. Não que isso
não fosse lisonjeiro, mas tenho lidado com mulheres tentando me
levar para a cama durante toda a minha vida.
Não era algo que eu realmente gostava.
Então, eu tinha menos de zero expectativas quando apareci
no aeroporto hoje. Por que eu deveria? Tyra e Celeste eram apenas
mais um par de clientes que vinham aqui para Deus sabe o quê.
Curtir a vida? Uma transa rápida? Uma aventura irlandesa? Era
sempre a mesma história: elas vinham para cá, conheciam alguns
moradores locais, bebiam nossa cerveja e depois voltavam para
casa, nos Estados Unidos, e nunca mais olhavam para trás.
Sempre tinha esperança de que, se elas voltassem, ficariam
na minha pousada novamente. Esse era o propósito de eu ser um
anfitrião acima da média. O retorno dos clientes. Mas isso era difícil
quando a maioria estava fazendo uma viagem única na vida. O
melhor que eu poderia esperar nessas situações era o boca a boca e
ótimas críticas on-line.
Quando me tornei um idiota?
Eu estava ocupado assistindo um casal se reunindo no
aeroporto e quase não a vi. Ela era atipicamente bonita, mas linda
mesmo assim. Seu cabelo longo e escuro precisava de uma
escovação e ela parecia cansada, mas era mais do que apenas o
voo. Havia uma tristeza em seus olhos que reconheci
instantaneamente, porque eu também tinha. Nos meus.
E mesmo que a loira fosse animada, amigável e um pouco
sedutora demais, fui atraído pela outra. Havia um peso pesando
sobre seus ombros, não importa o quanto ela tentasse esconder. Ela
estava sobrecarregada com a perda. Foi uma loucura a maneira
como a encontrei no meio da multidão, agora que tive tal
experiência.
No segundo em que meus olhos se fixaram nos dela, lutei
contra a vontade de tomá-la em meus braços e salvá-la da dor que
carregava. Mas eu sabia que ela precisava passar por isso sozinha.
Era a única maneira. E, claro, eu estava fazendo um monte de
suposições agora, mas senti que minha intuição estava certa.
Descobri que quem eu queria se chamava Celeste.
Quem eu queria? Que merda é essa?
Já poderia dizer que ficar longe dela seria um desafio. Ser
tentado por estranhos não era meu modus operandi habitual, mas
tudo nela era diferente. Ou talvez fosse meu maldito complexo de
salvador. Ver pessoas com dor tendia a me machucar e, por algum
motivo, ver Celeste com dor era como ser estripado por uma lâmina
enferrujada.
Essa garota seria o meu fim.