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Florentino de Carvalho

Anarquismo e Sindicalismo

Apresentação e Notas por

Rogério H. Z. Nascimento
Imprensa Marginal
2008
Apresentação
Rogério H. Z. Nascimento

Gostaria de me expressar, nas primeiras linhas desta apresentação, de um


modo inconfundível. Mais que isto. Quem me dera que as letras pudessem
manifestar, de uma maneira bastante intensa e contundente, meus pensamentos e
sentimentos em relação ao texto abaixo, afirmando ter o leitor em mãos um escrito
que, definitivamente, não é para ser lido! “Como assim? Não estou entendendo
nada! Como é possível que, logo de início, no primeiro parágrafo, o próprio
apresentador não recomende a leitura do texto que deveria ter maior importância e
para a qual a 'apresentação', por ele redigida, deveria necessariamente conduzir?”
poderá alguém, com razão de sobra, perplexo, questionar.
Peço um pouco de paciência e entenderá minhas ponderações. Existem
escritos que podem ser abordados de uma forma mais descontraída e mesmo pouco
atenta sem grandes prejuízos para sua compreensão. As narrativas comportam
graus diferentes de densidade, requisitando abordagens também diferenciadas.
Esta diversidade deve-se a vários fatores entre eles destaco, pelo menos, os
objetivos do escritor ou a complexidade da matéria. O tema aqui proposto pelo
autor – anarquismo e sindicalismo –, apesar do relativo conhecimento nos meios
anarquistas atuais, é um destes assuntos de significativa complexidade, a depender
da perspectiva do articulista.
Por isto afirmei que este texto não é pra ser lido. Este é um escrito a ser
estudado tal é a profundidade, abrangência e densidade com que o autor aborda o
assunto. O autor articula diversas áreas do conhecimento neste escrito. Por isso o
estudo atento deste documento possibilita ao estudioso do assunto um maior
aproveitamento do pensamento do autor. Com esta disposição, o texto torna-se ao
leitor de melhor apreensão, favorecendo-lhe um melhor entendimento de suas
concepções e perspectiva analítica.

Logo no primeiro parágrafo encontramos anunciada a disposição do escritor:


expor seu pensamento sem a preocupação de ser bem recebido na sociedade ou
entre os mais próximos. Esta atitude expressa bem o grau de altivez e de
consciência de si nutrido pelo autor. O segundo parágrafo como que intensifica sua
intenção iconoclasta inicial, relacionando o “desejo de saber” com a primeira
transgressão humana, segundo o relato exposto no texto do mito de origem cristão.
Ainda em suas palavras iniciais, o autor reflete sobre a existência de uma
significativa fartura de escritos e debates em torno do assunto por ele proposto, o
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que poderia levar uns e outros a acreditarem ser este apenas mais um texto tratando
do tema. Afirmando seu respeito a todas as demais opiniões, o autor sustenta
preferir continuar encarando a vida como algo em constante mutação. Com esta
assertiva enfatiza o sentido da novidade que pode aparecer quanto se debate temas
conhecidos e aparentemente esgotados. Nesta altura o autor apresenta sua
concepção de anarquismo ao mesmo tempo em que apresenta a existência de
múltiplas definições do anarquismo possivelmente na mesma medida de quantos
anarquistas existam. Entende, porém, ter sido o anarquismo frequentemente
apresentado de maneira unilateral, de acordo com as inclinações, aptidões e
preferências de uns ou de outros.
O autor não levanta a bandeira de existir uma pretensa verdade unívoca ou
um grau maior de veracidade em alguma de suas expressões. Sustenta, outrossim,
serem todas as definições possuidoras de uma parcela da verdade, de uma verdade
restrita, parcial, sobre o significado, extensão e profundidade do multiverso do
anarquismo. Nesta direção apresenta o anarquismo como constituído pelo conjunto
de suas expressões particulares, esboçando um perfil mais vasto e mais adensado.
O ensejo para o surgimento do anarquismo, assevera o articulista, é o resultado da
“luta milenária contra a iniqüidade social, da insurgência permanente do débil
contra o forte, do oprimido contra o opressor, do deserdado contra o
monopolizador dos meios de trabalho e da riqueza acumulada por este...”
Com o objetivo de melhor construir um quadro de sua exposição, o autor se
propõem a percorrer a História, incorporando em suas ponderações, várias
manifestações das lutas crescentes pela liberdade, como provas do aumento,
difusão e maior clareza entre os segmentos populacionais, acerca da concepção de
liberdade. Neste sentido começa por apresentar uma crítica a Tomas Carlyle,
segundo o qual a História deveria comportar exclusivamente simples descrições
dos feitos dos homens notáveis. Para Carlyle, através destes grandes homens o
deus cristão agiria na Terra. A crítica elaborada pelo autor a Carlyle se sustenta na
idéia de que este esquecera completamente de considerar em seus estudos a
inequívoca existência histórica de uma pluralidade bastante considerável de
movimentos de resistência a poderosos e de libertação da opressão. Estes
acontecimentos foram desconsiderados pela perspectiva de história carlyliana,
tendo sido esta a referência a grandes feitos de homens da pátria, os beneméritos
da nação ou ilustres patriotas. O autor considera em seus estudos e análises, a
qualidade volitiva da ação humana e encerra a segunda parte de seu escrito com
sugestões, apelos, propostas, encorajamento à ação direta.
Depois de, ainda na segunda parte, arrolar no espaço e no tempo episódios
insurgentes, e de ter registrado o surgimento da bandeira negra no século XVI, o
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autor intitula, no início da terceira parte, sua perspectiva – inédita se considerarmos


o predomínio da abordagem carlyliana nos estudos históricos – como “Filosofia
das ações humanas”. Ao lado deste enfoque voltado para um necessário
conhecimento das lutas populares ao longo da história, o autor evidencia também
a importância de se conhecer, na mesma medida de relevância, o que denominou
de “evolução das ciências”, “progresso do pensamento filosófico”, “história das
investigações científicas” e “história da filosofia”. Estas dimensões da vida social
dos povos se apresentam em relações complexas, imbricadas, implicadas,
contagiadas, misturadas. Por vezes se justapondo, por vezes se sucedendo.
O socialismo surge como resultado do caldeamento destes fenômenos
sociais. Procede, na quarta parte, a análise das “mais próximas raízes que deram
origem ao seu nascimento.” Neste sentido apresenta os profetas bíblicos,
Demócrito, Epicuro, os primeiros cristãos, os essênios, os anabatistas, Etiene de
La Boetie, amigo de Montaigne, Thomas Morus, Campanella entre outros. Hobbes,
os enciclopedistas, Quesnay e Tugot, criadores da escola fisiocrata e Comte
aportaram outras importantes contribuições ao surgimento dos primeiros ensaios
socialistas no século XVIII. A esta altura a questão evidenciada pelo autor era: para
a instauração de uma nova sociedade, se deveria reformar ou destruir o “Estado
histórico e todas as instituições de natureza autoritária”? Para responder a esta
questão, o autor se propõe analisar as duas respostas possíveis colocadas no século
XIX: o caminho marxista perante o anarquismo. Na quinta parte compara estas
duas expressões do socialismo. Estas ponderações estabelecem como significativas
à qualidade volitiva da ação humana. O socialismo, portanto, comporta realizações
e concepções possíveis por conta da vontade e não por fatalidades sociais,
históricas ou econômicas. Socialismo consiste numa “doutrina econômico-
filosófica que constitui o expoente de um desejo de equidade social”.
O autor questiona: é possível “realizar-se a socialização anunciada sem
destruir as formas orgânicas da sociedade capitalista?” O marxismo e o anarquismo
deram respostas antagônicas a esta indagação. Sobre o marxismo o autor
problematiza seu caráter pretensamente científico. Economicismo, fatalismo e o
“desconhecimento da vontade individual no desenvolvimento da vida coletiva” são
aspectos criticáveis no marxismo. Aqui o autor evidencia uma grave contradição
no pensamento de Marx. Isto porque ao reduzir o largo espectro da vida social às
causas econômicas e ao estabelecer a nulidade da ação humana como fator
relevante do desenrolar das transformações sociais, Marx teria apelado para a
vontade no aceleramento e conseqüente esgotamento do modo de produção
capitalista.
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Depois de enumerar três conclusões críticas sobre o pensamento social de


Marx, o autor sustenta enfaticamente que “o socialismo não podia caber dentro das
quatro paredes de tão acanhado edifício”. Passa à refutação dos erros do marxismo
destacando a importância da vontade humana “como agente criador de um mundo
novo”. Finaliza esta quinta parte afirmando taxativamente não ser possível a
“realização da idéia e da vontade socialistas sem que o ensaio duma nova vida
social tenha por base o principio associacionista e federalista da liberdade”. A
liberdade e não a autoridade caracteriza as modalidades da vida social humana.
Enquanto a primeira remete à complexidade, diversidade e transformação, a
segunda, pelo contrário, remete à simplificação, imobilização e estagnamento. O
Estado constitui a máxima expressão da vida social orientada pelo princípio de
autoridade. Qualquer modalidade de Estado representa diferentes gradientes da
centralização do poder e, assim, da diminuição do grau de liberdade individual e
coletiva. A guerra de 1914 surge, em sua análise, como fruto da sociabilidade e da
educação estatista, cristã, marxista e nacionalista que disseminaram na sociedade
a vontade de servir.
A ruptura deste ciclo vicioso só é possível através do contágio de “homens e
mulheres para a reivindicação imediata da liberdade pessoal e para a causa da
justiça”. A sua proposta é bastante direta e radical: “Há que começar desde já a
viver a vida à margem de toda a noção autoritária”. Igreja, Estado e Capitalismo
constituem numa tríade retrógrada, atualizando antigos procedimentos de
escravização dos povos. Diante desta trindade, sustenta o autor, os anarquistas são
“materialistas e ateus perante todas as religiões, antiautoritários contra o Estado e
socialistas em frente ao capitalismo.”
A noção de liberdade veio sendo mais bem definida ao longo do tempo e em
diversas localidades. O anarquismo surge como corolário de idéias e movimentos.
No século XVIII surge o primeiro formulador das idéias anarquistas, William
Godwin. As idéias anarquistas foram recebendo contribuições diversas ao longo
dos dois séculos seguintes. O autor inicia a sétima parte de seu escrito expondo sua
proposta: refletir sobre o socialismo, comunismo, sindicalismo e anarquismo.
Neste sentido reafirma, de início, o principio de liberdade por comportar variedade,
multiplicidade e a dimensão volitiva da ação pessoal na configuração das formas
sociais. Rejeita terminantemente concepções homogeneizantes e uniformizantes
de vida social. Para ele “A uniformidade não existe nem na natureza nem na vida;
este fenômeno só se dá no cérebro anquilosado das mentalidades autoritárias.”.
Na perspectiva analítica do autor, o capitalismo só é possível ladeado pelo
cristianismo e pelo estatismo. Constituem a já referida trindade escravizadora de
consciências e corpos. Descristianizar e descapitalizar a sociedade sem remover o
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Estado resulta em procedimento equivocado, pois esta instituição se tornaria em


novo deus e em patrão único, inaugurando novas formas de dominação e
exploração. O marxismo, por sua vez, aparece em sua análise enquanto igreja, com
seus expedientes de anátemas e excomunhão dos discordantes.
Diante das concepções autoritárias de vida social, o anarquismo configura
noções impermeáveis à centralização do poder. Suas palavras neste particular,
encerrando a sétima parte, são bem mais eloqüentes. Vejamos:

Infere-se de tudo que fica dito que o anarquismo não é uma


doutrina de gabinete, que as doutrinas anarquistas não
constituem fórmulas elaboradas para que sirvam de decálogo às
gerações do futuro.
O anarquismo é o postulado ideal que trata de interpretar a vida
em toda a sua diversidade. A anarquia será a sociedade futura
em que, livre a humanidade, ou uma parte desta, dos grandes
obstáculos que impedem a livre canalização das paixões
humanas e o máximo desenvolvimento das aptidões do homem,
será começado um novo ciclo de verdadeira civilização.
De nenhuma maneira será um sistema cerrado e uniforme a
organização da vida que os anarquistas preconizam. Logo a
associação do homem na federação das agrupações livres não
pode estar exposta à falência como esteve e estará sempre
destinado à bancarrota o “Estadoprisão”.

Destaquei esta definição por entender ser ela significativa da contribuição


pessoal do autor no conjunto do pensamento anarquista. Do que circula atualmente
sobre o pensamento anarquista, reverbera uma homogeneidade de manual, de
receituário. Os autores anarquistas mais referidos desenham em seus escritos um
anarquismo universalista, catequista e messiânico. Em que pese à importância no
anarquismo de figuras como, por exemplo, Elyseo de Carvalho, Neno Vasco,
Edgar Leuenroth e José Oiticica, suas concepções do anarquismo e da
sociabilidade humana encerram o oposto do que afirmado pelo autor deste escrito.
Isto porque seus escritos estabelecem uma dimensão central, seja o indivíduo, o
sindicato ou a comuna, enquanto unidades definitivas da vida social humana.
A oitava parte é iniciada com uma referência ao pensamento de Reclus. Para
este importante personagem do anarquismo, a transformação constitui uma
constante na vida natural e social. O anarquista francês concilia as noções de
evolução e de revolução, o que constituía num sacrilégio para os evolucionistas
vitorianos e para demais positivistas. As mudanças quando lentas são por ele
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denominadas “evolução” e quando rápidas “revolução”. O Estado retorna nas


análises de Florentino de Carvalho como “a iniqüidade menos humana que cabe
imaginar, a maior monstruosidade que se pode conceber”. Isto porque o Estado é
“triplicemente monopolizador – monopólio das riquezas, de tudo que foi criado
pelo esforço produtor, das liberdades e das iniciativas”. De maneira não menos
contundente o autor afirma que “O Estado é para a sociedade o que para o individuo
é a prisão.”.
Na nona parte deste seu escrito o autor inicia afirmando ser o anarquismo não
apenas o resultado de exercício de abstração intelectual e cerebral, mas antes
“pensamento, sentimento e ação: é o movimento de vontades e a filosofia de todas
as potencias individuais e sociais postas em dinamismos tendentes à consecução
da máxima liberdade para o indivíduo e ao aumento constante do bem estar geral.”
Neste sentido recusa veementemente a pretensa noção de livre arbítrio dos teólogos
como também as idéias de determinação social pelo econômico como defendido
pelos “ideólogos do ‘socialismo cientifico’”. Para ele “o anarquismo é, antes que
um postulado doutrinário, um movimento voluntarista.” Para o autor cabe então
melhor orientar as vontades numa direção libertária. Analisou o socialismo e o
comunismo com esta intenção. Debruça-se nesta parte sobre o sindicalismo.
Depois de propor uma visão em panorama do industrialismo e a formação do
operariado como um de seus resultados, o autor critica o novo vocábulo criado por
militantes operários franceses – sindicalismo. O movimento operário constituía
uma expressão orgânica desde, pelo menos, 1864 com a criação da Associação
Internacional dos Trabalhadores em Londres. O autor ao mesmo tempo em que
reconhece a importância do surgimento desta associação, aponta nela uma grave
limitação exposta claramente na máxima elabora por Marx: “Trabalhadores do
mundo, uni-vos!” Trata-se da natureza corporativa das agremiações operárias,
acentuada em alguns segmentos do movimento operário de fins do século XIX.
Para esta associação concorreu a ação de Marx. Mas nesta mesma associação
a cisão acontecera quando não se tornara mais viável a convivência entre uma ala
autoritária com uma outra libertária. Marx e Bakunin encarnam estes atritos. Acusa
os sindicalistas franceses Pouget, Ivevot, Theilier, Pelloutier, Tortilier entre outros
de praticarem desnecessárias “aparatosidades lingüísticas e complicações
inobjetivas da vida e do pensamento”. Sua crítica não procura alcançar apenas o
“defeito da logomaquia infiltrado na esfera do pensamento revolucionário”, mas
antes “as complicações levadas ao terreno das determinações e da atividade
quotidiana.” Sua análise estende as implicações desta prática para os tempos do
medievo.
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Para que, então, novas classificações gramaticais? O verbalismo


em nossas atividades intelectuais é uma funesta herança do culto
latino à Retórica e do tributo rendido na Idade Media à
Metafísica, cujas conseqüências confusionistas haveremos de
suportar por muito tempo ainda.

Inicia a décima parte aludindo ao sindicalismo como um instrumento ausente


de natureza própria. O sindicato pode ser social-democrata, fascista, católico,
bolchevique ou anarquista, tendo a orientação que a ele for dada pela ‘mentalidade’
e ‘temperamento’ das “minorias ativas que o orientam”. No entanto o movimento
operário sofreu, no entender do autor, um processo de involução em todos os paises
quando os franceses criaram este novo vocábulo – sindicalismo. A concepção de
sindicato, segundo os franceses, definiu-se como uma agremiação de resistência
puramente econômica, alheia às questões políticas e filosóficas. Mais além, o
sindicato constituía para eles o instrumento da revolução como também o novo
centro de gravidade regulador da vida social da chamada sociedade futura.
O autor critica acidamente tanto o automatismo como o neutralismo sindical.
Esta sua crítica vem de longa data. Desde os anos dez do século XX que tomou o
sindicato como um campo de análises e reflexão, sempre apontando no
sindicalismo estas insuficiências: corporativismo, exclusivismo, reducionismo,
fruto do industrialismo, fator de gestão da mão de obra favorável ao capitalismo e
ao estatismo, fomentador de sentimentos exclusivistas como o espírito de corpo ou
o nacionalismo. Em sua opinião, haveria antes que incentivar a todos a agirem
diretamente e diluírem as fronteiras criadas no industrialismo para melhor
submeter e explorar a população. O autor encerra esta parte criticando
veementemente os sindicalistas e suas pretensões de neutralidade na questão
social.

Falar aos trabalhadores da necessidade de traçar-se o propósito


decisivo de evadir-se deste imenso cárcere – destruindo-o – tem
equivalido para os sindicalistas imaculados a uma
fantasmagoria filosófica que distrai aos trabalhadores sem que a
possam compreender.

Na décima primeira parte continua apresentando severas críticas ao


sindicalismo. Na verdade, intensifica seu tom de recusa aos postulados do
sindicalismo francês. Antes disso demonstra como os sindicatos tomam a forma
que lhes são dadas pelas minorias ativas. Se estas minorias têm concepções
autoritárias, os sindicatos serão orientados de maneira favorável ao capitalismo,
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segundo, pelo marxismo, ou, por fim, de acordo com os sacramentos de alguma
religião ou Estado. Cita como exemplos do primeiro a “Federação Americana do
Trabalho”, do segundo as “Trade-Unions inglesas, sindicatos vermelhos da
Rússia” e dos terceiros as “Corporações gremiais católicas, fascistas, etc.”.
Diferentemente destas, o anarquismo orientou, entre outras, a C.N.T. espanhola, a
F.O.R.A. (Argentina) e a F.O.S.P. do Brasil.
O autor é ciente de que a média dos sindicalizados possuem uma percepção
bastante estreita das possibilidades de transformação através das associações
operárias, procurando apenas minimizar a crueza de sua condição de trabalhador.
Daí a importância da ação de minorias ativas para reverter este quadro
desalentador. Mas antes desta questão, o autor evidencia sua crítica do culto ao
mundo do operário, como feito pelos sindicalistas. Em seu entendimento, o
operariado deveria ser abolido junto do industrialismo e do capitalismo.

A cada sindicato profissional concorrem os operários


considerados como elementos de um ofício determinado:
alfaiates, sapateiros, pintores, padeiros, tecelões, etc. Mas
haveriam de ser subjugados na oficina e na fábrica, pela
profissão, e escravos fora dela por uma sempiterna mania
profissional?
Lopes Arango disse com grande acerto: o indivíduo vale pelo
que pensa e não pelo que produz. Quer dizer, seu valor distintivo
está no que o homem supõe como unidade consciente e
determinante do progresso e não como fator cego e forçado da
produção.
Não terão os operários padeiros, por exemplo, um valor nem
individual nem coletivo para a marcha ascendente de um povo,
pelo fato de prepararem as massas do pão, de trabalhar até ao
esgotamento, atendendo com seu esforço uma necessidade
iniludível da população. Mesmo sentindo o orgulho de elaborar
o manjar mais indispensável à vida, não passaria, quem tal
necessidade sofrera – se não tivesse outra virtude – de
instrumento de trabalho, de motor de sangue, de animal de tiro
no carro da produção.
Hoje, na época do maquinismo galopante, o trabalho, para quem
aspira a uma sociedade sem parasitas, é um timbre de dignidade;
mas para o autômato de cérebro e de coração, é envilecedor.
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Outra interpretação equívoca do sindicalismo em relação ao anarquismo é,


segundo o autor, a que define o primeiro como estando voltado para a ação e o
segundo voltado para o pensamento. Esta disjunção surge na analítica do autor
como um absoluto despropósito.

Tem-se dito: o sindicalismo é a doutrina da ação como o


anarquismo o é do pensamento.
O sindicalismo é o braço, enquanto que o anarquismo é o
cérebro da revolução.
O sindicalismo libertário será, é já de fato, o veículo em que
devemos embarcar-nos; a anarquia é o longínquo e luminoso
ponto do horizonte ao qual nos devemos dirigir.
Ungüento de retórica, incenso literário, verborragia!
Por acaso a doutrina da verdadeira ação revolucionária não é o
pensamento anarquista, e este não se traduz em sentimentos e
em fatos como já temos dito e provado mais de uma vez?
O anarquismo não é um fluído etéreo que se corrompe em
contato com as coisas dos mortais e se converte em pó e lodo
quando desce das alturas.

Em seguida o autor se refere a um “dever dos anarquistas”.

O descontentamento momentâneo e circunstancial dos


explorados deve ser convertido em raciocínio critico, em
sentimento criador, e projetado em aspirações de liberdade:
deve traduzir-se no desejo constante de chegar a uma
fundamental transformação das relações econômicas e morais.
Eis ai o dever dos anarquistas.

Ao que pergunta em seguida, já respondendo na própria indagação:

Onde deverão cumprir esse dever senão em todos os lugares em


que prestem o concurso de sua atividade pessoal?

O anarquista é convidado a ser anarquista onde ele estiver e não nuns espaços
específicos e noutros não. A abolição constante da noção de autoridade deve se dar
intensamente em cada ocasião que surjam autoritarismos. Se o sindicalismo
francês preconizava um pretenso campo de neutralidade, isto se apresentava para
o autor enquanto embuste favorável à manutenção do estado atual das coisas. Para
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os sindicalistas franceses uma organização operária não poderia se afirmar


anarquista, mesmo que a esmagadora maioria de seus integrantes o fosse, por
macular ideologicamente um organismo puramente de resistência econômica. O
autor discorda profundamente deste raciocínio lembrando que todo e qualquer
agrupamento humano será incompleto e falho dentro de quaisquer que sejam seus
referenciais.

Que tais instituições têm defeitos equivalentes cada um a uma


negação das idéias? Mas, por acaso, não os há igualmente no
grupo em mais ou menos quantidade? Não é também defeituoso
cada individuo ainda que se chame e de fato seja anarquista?
Nós não coincidimos com os que em nome do realismo
levantam altares a Sancho Pança, nem compartilhamos o
pensamento dos que, fazendo da anarquia uma deidade,
substituem velhos absurdos com dogmas novos.
Parece-nos que as persistentes invocações da idéia pura, não
representam senão uma litania libertária que converte o
anarquismo em doutrina religiosa.
E de igual modo às especulações antifilosóficas de alguns
aspirantes a filósofos, soam-nos como as últimas salmodias do
marxismo decadente postas em solfa sindicalista, tal o ensino
negativo que nos oferecem em Espanha os teóricos do
possibilismo, os devotos do praticismo, os “trinta” semideuses
destronados.

Na décima segunda parte o autor encaminha o encerramento de suas


ponderações, com o adendo de ter parado por questões de espaço no jornal, mas
que retomaria quando a ocasião se desse. Nesta parte conclusiva circunscreve as
divisões de opiniões sobre a matéria proposta em dois pólos: um representado por
Neno Vasco e outro pela União Anarquista Portuguesa – UAP. Para o primeiro “‘o
anarquismo é sindicalista desde o berço’ e que ‘quanto mais anarquista, mais
sindicalista. ’”
A UAP vai à direção oposta da manifesta por Neno Vasco, salienta o autor.
O sindicalismo, segundo esta união, fomenta o egoísmo nos trabalhadores, estando
“imbuído de autoridade!” As opiniões e apreciações sobre o sindicalismo são
diversas entre os trabalhadores, havendo quem veja no sindicato o princípio, meio
e fim da revolução, como também quem condene totalmente o sindicato como
meio incompatível com uma pretendida transformação social no sentido da justiça,
da liberdade e da equidade social. Apesar de suas reservas com o sindicalismo, o
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autor não converge com nenhum dos dois pólos em questão. Para ele, neste como
noutros campos da reflexão e da ação social, não existem manuais nem códices
absolutos.

As distintas tendências sobre o assunto têm sido atenuadas e


também exageradas. Alguns viram no sindicato atual o Alfa e
Ômega da revolução social, a panacéia do presente e do porvir,
como os sindicalistas franceses Pierre Besnard e Huart; e outros,
ao contrário, como alguns dos elementos conhecidos em nosso
meio social – repetem constantemente, até à saciedade, que cada
núcleo de organização gremial deve significar qualquer coisa
assim como asilo de inválidos, como um refugio de mendigos,
como se fossem monturos de exhomens.
Não coincidimos nem com os segundos e muito menos com os
primeiros. Ainda que incorramos no perigo de ser exagerados,
insistiremos em que não temos fé nalguma palingenesia social;
não acreditamos que possa haver ou que chegam a descobrirem-
se caminhos únicos ou fórmulas salvadoras.
Parece-nos que não deixa de ser uma ilusão desconcertante o
pensar que determinada corrente, grupo ou opinião individual se
creia estar no mesmo plano daquela idéia com que um louco
estampava na capa de um livro seu: – “A fórmula justa do Bem
estar Social”. Não seria mais viável entender que a verdade é
sempre relativa, e que, sobretudo, não devemos ter a pretensão
de querer monopolizá-la?
Em vez de oficiarmos no papel de dominós e afirmarmos com
ênfase que os outros estão errados, melhor seria que, com
modéstia e tolerância exaltássemos as outras vontades para que,
na multiplicidade das manifestações, lutassem sem cessar e cada
dia mais intensa e amplamente, pela liberdade e pelo bem estar
de todos os progressos sociais, contra o autoritarismo e contra o
mal. Neno Vasco, muito mais os sindicalistas franceses e
espanhóis contemporâneos que se esforçam por fazer do
sindicalismo uma nova igreja, afirmam que a missão das
organizações é mais pós que pré-revolucionária. Nós
opinamos o contrário.
Assim como a vida econômica e social presente revasa os
limites das leis convencionais e dos códigos absurdos, do
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mesmo modo e com maiores proporções nos parece que a


convivência futura dos homens não poderá ser encaixada nos
moldes acanhados que os engenheiros do sindicalismo preparam
na atualidade para as gerações vindouras.
Por isso mesmo é que o livro de Besnard, “Os sindicatos e a
Revolução Social”, nos parece algumas vezes um “catecismo
sindicalista” – expressão feliz de um mestre das idéias – e outras
uma infantilidade, própria de uma criança próxima aos 50 anos,
enérgico defensor das suas opiniões.

O autor se encaminha para o fim deste seu escrito evidenciando ser o


sindicato um campo possível de atuação anarquista não por conta de alguma sua
qualidade imanente, mas antes porque se as pessoas nos sindicatos agirem de
maneira libertária, os sindicatos terão uma feição anarquista. O autor insiste em
recusar “tudo o que signifique unilateralidade”. Por esta razão não condena a ação
nas associações de classe como não faz a apologia do sindicalismo. Para ele, a ação
anarquista, venha ou não com este rótulo, se caracteriza por ter como objetivo a
liberdade, mas também por se realizar através de meios libertários.

Duas palavras a mais sobre algumas questões relativas ao texto apresentado.


Primeiro, sobre a autoria. Seguramente o autor deste texto é Primitivo Raymundo
Soares (1883-1947), mais conhecido por Florentino de Carvalho. Vários indícios
apontam para esta conclusão. Apresentarei alguns. Antes de mais nada o uso do
pseudônimo consistiu em recurso amplamente utilizado pelos trabalhadores
individualmente como em coletividade. No caso de Primitivo Soares, desde o ano
de 1910, quando de sua primeira deportação, adotou o pseudônimo Florentino de
Carvalho, pelo qual ficou conhecido no Brasil e no exterior. Outros pseudônimos
por ele utilizados foram Anhaguerra, João Crispim, Graco, G. de Mortillet, C.
Denoy, entre muitos outros.
Quando fora deportado a segunda vez, no ano de 1912, para Portugal, voltou
clandestinamente para o Brasil. Enquanto atuava no movimento operário e
anarquista, escrevia na imprensa assinando com seu nome, Primitivo Soares,
anunciando ter escrito de Portugal. Ao mesmo tempo escrevia artigos assinando
como Florentino de Carvalho deixando evidente estar no Brasil. Este estratagema
assegurou sua integridade física por um bom período de tempo, uma vez ser ele
alvo seleto aos olhos discricionários dos governantes.
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Nos anos trinta adotou procedimento semelhante. Escreveu em 1933 uma


“Carta aberta aos trabalhadores”, assinada por Florentino de Carvalho, na qual
anunciava sua saída dos meios sindicais e explicava sua atitude. Encontrei este
artigo recortado dentro de seu prontuário individual na seção do DOPS no Arquivo
Público do Estado de São Paulo. Seu prontuário é o de número 144. O serviço de
inteligência da polícia acompanhava a imprensa operária a fim de melhor controlar
questões relativas ao movimento operário e à manutenção da “ordem social”. Após
este episódio, rareiam cada vez mais artigos assinados por Florentino de Carvalho.
Esta estratégia parece ter funcionado. No entanto artigos com uma identidade
impressionante com as idéias, categorias, termos e vocabulário utilizados por
Florentino de Carvalho surgem ao longo da década de trinta assinados com outros
nomes ou com iniciais. Este é o caso da série de artigos aqui apresentada. Todo o
arcabouço conceitual exposto, sobretudo nas citações incorporadas no texto desta
apresentação como nas endentadas, são idênticas ao pensamento de Primitivo
Soares como encontrado em outras ocasiões.
Cito, a título de exemplo, a análise elaborada por I. M. quanto ao sindicalismo
em face do anarquismo. Debates deste teor e nesta mesma disposição, Primitivo
Soares travou com o anarcossindicalista Neno Vasco no ano de 1913 através de
uma série de artigos publicados em alguns números do jornal anarcossindicalista
carioca A Voz do Trabalhador. Aqui Primitivo Soares assinou como João Crispim.
Em 1916 Primitivo Soares, com o pseudônimo Florentino de Carvalho, estabelece
polêmica com Ângelo Bandoni, seu companheiro no coletivo editorial do jornal
anarquista La Guerra Sociale de São Paulo. Ângelo Bandoni defendia
terminantemente a saída imediata dos anarquistas dos sindicatos por conta das
insuficiências inerentes ao sindicalismo, como afirmei mais acima. Essas
insuficiências já tinham sido apontadas por Primitivo Soares. A discordância se
daria por conta de Primitivo Soares ser avesso ao que chamou de “unilateralidade”,
ou seja, a confecção de fórmulas, códigos e normas absolutas.
Também a definição de anarquismo, socialismo e comunismo é idêntica no
texto assinado por I. M. e nos escritos de Primitivo Soares. A análise extremamente
ácida do marxismo é outro aspecto presente neste escrito existente também no
pensamento de Primitivo Soares. Tratar da ausência de um centro na Natureza,
como encontrado no atual texto, remetendo a sua ausência também na vida social
constitui um outro ponto a favor da assertiva de autoria deste escrito atribuída a
Primitivo Soares. O conceito de “vida de relação” presente no texto de I. M. e nos
escritos anteriores de Primitivo Soares coloca em foco a inexistência de
centralidade à ação e à reflexão; também enquanto forma de arruinar análises e
atuações reducionistas, exclusivistas, simplistas, determinantes. Por fim, sua
15

ênfase ao que chamou de “determinismo psicológico”, considerando a vontade


pessoal enquanto dimensão relevante nas transformações sociais, também serve de
indicativo da autoria de Primitivo Soares para o texto aqui apresentado.
Poderia seguir apresentando outros indícios desta afirmativa, mas acredito
ser por demais enfadonho e desnecessário. O leitor, caso queira proceder a uma
análise por si só, poderá fazê-lo tomando o seu primeiro livro, “Da Escravidão à
Liberdade”, escrito em 1927, o seu segundo livro, “A Guerra Civil de 1932 em
São Paulo”, escrito em 1932, ou minha dissertação de mestrado tornada livro no
ano de 2000. Seu título é “Florentino de Carvalho, pensamento social de um
anarquista” e foi publicado pela Editora Achiamé do Rio de Janeiro.
O trabalho de reunir artigos ao longo dos jornais é mais custoso para o leitor
casual. Este trabalho de garimpagem é relativamente lento e mais exigente. Mas
seria o ideal, enquanto não existem publicações mais acessíveis de livros e
coletâneas de artigos da imprensa. Organizar coletâneas de artigos destes
anarquistas segundo critérios temáticos com textos de apresentação, mediando
aspectos relevantes na leitura dos escritos com o mundo do leitor contemporâneo,
facilitaria em muito o conhecimento de um pensamento social original e riquíssimo
como o elaborado no movimento operário no Brasil em seus primeiros períodos.
Estes escritos constituem atualmente documentos históricos de valor inestimável
disponíveis em diversos arquivos públicos.
Quero deixar bastante claro que apesar de serem documentos históricos, são
antes emanações de pessoalidades. Neste sentido, não estão condenados a ficarem
presos num passado pretérito, mas antes podem atualmente ter algo a nos
comunicar. Por exemplo, se o mundo atualmente caminha cada vez mais
intensamente num diapasão disciplinar e disciplinador, criando um ambiente
crescentemente sufocante com um conservadorismo exarcebado, estes documentos
históricos nos deixam entrever sociabilidades indisciplinadas, cultivando
liberdades através de múltiplos experimentos, fomentando a diversidade e a
imediata ruína da hierarquia e das fronteiras.
Muitos dos problemas vivenciados na sociedade contemporânea foram vistos
antecipadamente em muito destes escritos, numa tentativa de provocar
significativo deslocamento no crescente rumo na centralização social do poder. Os
riscos para as liberdades individual e coletiva com o crescente processo de
facistização da sociedade no Brasil e no mundo fora denunciado veementemente
pelos anarquistas através de palestras, jornais, revistas e livros publicados ao longo
das décadas iniciais do século XX.
Acredito que uma releitura destes escritos pode auxiliar numa compreensão
mais larga das opções incrementadas pela sociedade ao longo das décadas do
16

século passado e no início deste. O movimento operário, por exemplo, foi reduzido
a quê expressão depois de décadas sob a injunção da política institucional e do
anêmico sindicalismo vigente? Observe bem leitor e acompanhe a envergadura do
texto que se segue e veja como, desde a virada do século XIX até hoje, os
movimentos sociais no Brasil e no mundo deram incríveis saltos... para trás!
Apenas um conselho: abandonar a perspectiva disciplinar, disciplinada e
disciplinadora naturalizando a idéia de tempo, procedendo canhestramente
homegeneizando o anarquismo e que parte da superstição cientificista defendendo
a existência de idéias obsoletas, anacrônicas ou ultrapassadas. Em minha tese de
doutoramento intitulada Indisciplina: experimentos libertários e emergência de
saberes anarquistas no Brasil, sobre jornais e revistas operárias, reflito mais
detidamente sobre estas questões. Para quem queira saber mais sobre o tema
conforme tenho abordado, ela está disponível nos sites <www.sapientia.puc.sp> e
<www.dominiopublico.gov.br>.
A segunda palavra que gostaria de dar sobre o texto trata dos ajustes
realizados. Neste sentido, procurei interferir o menos possível, mas corrigi alguns
erros de concordância, de grafia de palavras e nomes pessoais. À época, era comum
traduzir os primeiros nomes das pessoas. Atualizei a maneira de referir-se a pessoa
usando sempre o nome tal qual se encontra em sua língua. Atualizei também alguns
poucos vocábulos antiquados em demasia.
*

Para finalizar, gostaria apenas de lembrar terem sido estes escritos publicados
num jornal operário! A série de artigos aqui apresentados foi publicada em São
Paulo, nos números 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 38 e 39 no que os editores
denominaram ‘nova fase’ do jornal anarquista A Plebe. Isto se deu entre os meses
de maio a setembro do ano de 1933. Este jornal fora criado no ano de 1917, tendo
atravessado diversas fases até início dos anos cinqüenta do século passado.
Considerando o editorial do primeiro número em que Edgar Leuenroth afirma ser
A Plebe a continuação do jornal anticlerical A Lanterna, fundado em 1901, A Plebe
remonta ao início do século XX. Este periódico foi sem sombra de dúvida o mais
importante jornal operário publicado no Brasil. Em suas diversas fases foi semanal
e quinzenal, chegando a ser publicado diariamente no ano de 1919.
A Plebe foi um impresso publicado a partir da iniciativa voluntária e dos
esforços dos próprios trabalhadores, sem subsídio estatal nem imposto sindical.
Lembro deste “detalhe” para que o leitor contemporâneo tenha uma idéia da
modalidade de convivência experimentado entre os trabalhadores, do nível de
discussão, da densidade das leituras como também da amplidão de horizontes
17

cultivados entre simples “operários”. Esta observação serve como aviso sobre os
limites estreitos da escolarização atual, uma vez que é a partir dela que os
pesquisadores contemporâneos têm se debruçado sobre este campo. Como dar
conta de um caldeamento de experimentos e concepções que transbordam com os
referenciais disciplinares utilizados, via de regra, enquanto aporte conceitual na
esmagadora maioria das pesquisas sobre o anarquismo desde os anos cinqüenta?

Anarquismo e Sindicalismo

Estamos certos de que se o nosso pensamento tivesse de bater sempre em


consonância com o último eco que nos chega das opiniões alheias, nos faríamos
credores do infeliz qualificativo de bons cidadãos e algumas vezes até de... bons
amigos.
Afortunadamente, porém, aprendemos a reivindicar a nossa pequena porção
da herança coletiva do pecado original: alenta-nos incessantemente o desejo de
saber e para realizá-lo não nos sujeitamos a cânones. Convencidos de que a
rebeldia é condição indispensável para pôr em prática o método mais eficaz de
investigação, consideramos funesto, atingida a maioridade, submetermo-nos
voluntariamente à tutela mental de qualquer pensamento estranho.
Uma circunstância de exíguo mérito nos determinou a formular as
considerações que antecedem e a concluí-las com esta reflexão: a dependência
intelectual que revelam os exegetas de opiniões que não lhes pertencem, parece-
nos uma expressão de escravidão voluntária, tão odiosa como qualquer outra. A
nossa independência de ajuizar deixa de existir quando é aplicada à consideração
geral ou, o que é pior ainda, quando é vendida ao mísero preço de alguma amizade
pessoal.
E para evidenciar que a obcecação e o hermetismo não é o que nos move,
passamos a opinar do terreno da tertúlia pessoal para a tribuna, onde tem acolhida
as mais diversas expressões do pensamento anarquista.
Temos ouvido afirmar repetidas vezes em tom de apótema de que “nada há
de novo debaixo do sol”. E costumam acrescentar alguns dos nossos que pelo que
respeita às manifestações da propaganda, já tudo foi dito e escrito.
Com a tolerância que devemos às apreciações divergentes, declaramos que
não partilhamos da mesma opinião. Não porque nos sintamos capazes de dizer
alguma coisa de novo, de acrescentar uma só vírgula a quanto já foi escrito.
Pensamos modestamente que se a vida é mutação constante, as idéias anarquistas
menos que quaisquer outras não escaparão à lei universal de transformação. Eis aí,
18

pois, a manifestação do novo, senão na natureza e essência das coisas, pelo menos
nas mudanças ininterruptas destas, na mutabilidade das instituições humanas, dos
costumes, das correntes e esferas dos pensamentos contrapostos, de idéias
encontradas em pugna perene, etc.
O tema que hoje, por exemplo, nos ocupa foi já estampado e em torno desses
dois tópicos fizeram-se infinidade de considerações em nossos diários, periódicos
e revistas.
Estamos persuadidos de que nós, ao tratá-lo outra cousa não lograremos que
mais uma vez dar voltas à nora.
Mas teríamos de interromper a propaganda para fugir à repetição de tópicos
e não incorrer em redundâncias?
Há, a nosso ver, quase tantas maneiras de definir o anarquismo e de expressar
a natureza das suas idéias, como indivíduos o interpretam e se chamam anarquistas.
E cada definição tem o caráter e a orientação que são peculiares aos homens que a
exteriorizam. É em virtude desta e também à parte do temperamento, segundo o
grau de cultura de cada propagandista, que se incorre muitas vezes em apresentar
o anarquismo como um postulado de justiça e um anelo de liberdade, ora como um
movimento de luta provocado fatalmente pela divisão da espécie humana em
classes e castas. Outros como um produto da evolução da ciência e do progresso
mecânico ou, para não nos estendermos mais, como resultado final ou superação
da filosofia e de uma interpretação dia a dia menos transcendente, mas inspirada
na natureza dos modernos sistemas de ética.
Tais apreciações concebidas em tão diversíssimos casos determinam
naturalmente que a idéia anarquista seja apresentada a quantos a desconhecem de
maneira unilateral e incompleta.
É em razão da influência de fatos devidos ao temperamento, à educação e à
cultura, que se ouve repetir por um lado que o anarquismo é um problema de
escolas racionalistas, a outros que é uma questão de multiplicação de grupos afins,
de difusão de publicações, de edições de livros, do fomento de um movimento
operário inspirado em nossos propósitos, etc., etc.
Recordamos a este respeito às objeções atiladas que no prólogo de uma
edição espanhola de “A Ciência e a Anarquia” fez o camarada Ricardo Mella ao
autor da mencionada obra, P. Kropotkin. Considera o prologuista e expõe ao velho
mestre que a sua qualidade de homem de ciência, evidencia no livro em questão
uma concepção excessivamente mecanicista da história do pensamento filosófico
e das idéias anarquistas.
19

Há, inclusive, no concurso das interpretações pessoais, os que sem deter-se


nas definições, afirmam com Bóvio que “anárquico é o pensamento e para a
anarquia caminha a história”.
Não faltam materiais de documentação que possam ser aproveitados para
argumentar em favor de qualquer tendência que se costuma criar e fomentar
inspirada em uma das referidas definições fragmentárias.
Deve-se isto indubitavelmente a que, como sempre se disse e se repete, a
verdade não é patrimônio de nenhuma escola nem de nenhuma tendência
determinada.
E a verdade anarquista, como as restantes verdades, não pode ser exclusiva
de nenhuma tendência, nem monopólio dos que intentam orientar o movimento
revolucionário prefixando-lhe uma trajetória única.
O anarquismo é simultaneamente tudo o que de uma maneira parcial,
monofásica, querem que seja os distintos homens e os diversos grupos humanos
que pelo seu conhecimento e pelas inquietudes que ele irradia, ininterruptamente
ativam e trabalham.
É um sentimento de justiça que pugna por traduzir-se em realidade na
convivência das agrupações humanas. Por conseqüência não pode deixar de
manifestar-se como um movimento de vontades, como uma corrente de energias
que combate em aberta luta contra a injustiça, contra todas as formas de
explorações e tiranias.
É nesta luta milenária contra a iniqüidade social, da insurgência permanente
do débil contra o forte, do oprimido contra o opressor, do deserdado contra o
monopolizador dos meios de trabalho e da riqueza acumulada por este, onde o
anarquismo encontra as suas premissas mais fundamentais.

II

Quase todos os espíritos independentes coincidem em que a história tem sido


feita em todos os povos e em todas as épocas de maneira deficientíssima:
prevaleceu quase sempre um critério carliliano1 na mentalidade dos analistas e
narradores. Apesar de todas as investigações de caráter histórico tecidas
infinidades de vezes em torno das grandes ações dos heróis felizmente também
foram feitos estudos interessantíssimos informando-nos sobre os grandes gestos

1 Referência a Thomas Carlyle (1795 - 1881), historiador e ensaísta nascido na Escócia. Para ele, a história expressava a
vontade de Deus. Vontade esta manifesta na vida dos chamados homens notáveis. Conservador ao extremo, defendeu a
instituição da escravidão. Religioso fervoroso combateu o liberalismo ao mesmo tempo em que propunha o retorno à Idade
Média. Escreveu vários livros entre eles um sobre a revolução francesa, interpretando este acontecimento como um castigo
de Deus por conta dos pecados da França.
20

dos povos. E inspirando-se nestes movimentos foi analisado o processo das idéias
de liberdade e da rebelião dos oprimidos frente a frente dos seus tiranos.
Cento e vinte anos antes da era vulgar já se conhece o movimento agrário dos
Gracos. Caio foi assassinado em um motim produzido por estas lutas no ano 121.
Quase dois séculos depois Espártaco é o personagem insubmisso que começa como
protagonista o primeiro capitulo na história das atitudes e das idéias subversivas.
A partir de então a pugna dos povos pela liberdade manifesta-se
intermitentemente, porém, com continuidade ininterrupta.
Como resultado conseqüente de conscienciosas investigações, historiadores
modernos há que assinalaram como precursores dos anarquistas contemporâneos
aos anabatistas centro-europeu.
São conhecidos os movimentos de grande envergadura social sustentados no
século XVI pelos camponeses alemães, austríacos e boêmios contra os príncipes
germânicos e os senhores da Igreja Católica.
O nosso camarada R. Rocker publicou há alguns anos, no “Suplemento” de
“La Protesta” de Buenos Aires, uma magnífica monografia apologética da
personalidade mais vigorosa daqueles grandes episódios: Tomaz Munzer.
Posteriormente à grande cruzada em que se içou como símbolo
revolucionário o lábaro das reivindicações econômicas e morais em que se liam os
expressivos termos de Bunchuad (Sapatorra de camponês) Quoese Breder (Pão
e Queijo) e em que ondeou pela primeira vez a bandeira negra, a historia registra
inúmeras insurreições.
O estado aristocrático e a sociedade cristão-capitalista rivalizaram sem cessar
perpetrando contra os rebeldes insurgidos as mais ferozes repressões.
O frade Agostinho – justamente vituperado como traidor por Munzer, –
Martinho Lutero, ante Deus, descarrega de remorsos a sua consciência por ter feito
“servir de bainha a seu punhal os pescoços dos camponeses”.
Todas as insurreições são estranguladas pela força, afogados todos os gestos
manumissores pelo ferro e pelo fogo. Mas, malgrado as mais ignominiosas
crueldades, a luta dos povos por suas reivindicações nunca foi totalmente
interrompida, e a vontade rebelde das multidões e dos heróis jamais pode ser
definitivamente aniquilada.
Da cinza de todos os incêndios e de entre os escombros das mais brutais
destruições, ressurgiu, esvoaçando serena sobre os campos e cidades de cem povos
distintos, a ave Fênix do pensamento livre.
E não é evidente que este anelo de independência, de vida sempre mais livre,
se expressou antes na luta quotidiana, na ação dinâmica das vontades, que na
concepção filosófica da idéia?
21

* * *

Todo o batalhar incessante da humanidade através de mais de cem séculos


(incluímos civilizações anteriores á cristã) tem eclosão numa epopéia culminante
na história: a grande Revolução Francesa.
Os servos do campo subjugados pelo trabalho excessivo, pelas gabelas
crescentes de dia para dia e pela fome, levantados em armas contra os senhores dos
castelos feudais; os descamisados dos bairros de Paris, acicatados pela miséria e
em rebeldia contra uma monarquia oprobriosa e decrépita, os Jacques de toda a
França, em um gesto enérgico, em uma ação decisiva, iniciam no ano de 1789 um
novo ciclo de vida social para o mundo ocidental dos povos europeus e americanos.
A partir dessa data, sobre a base da nova estrutura política de um povo, uma
nova fase de vida coletiva começa no desenvolvimento da economia, nas
expressões da literatura, na evolução das ciências, na conexão destas com as
atividades do trabalho pela aplicação da técnica.
E o pensamento filosófico, que havia pressentido toda a multiplicidade de
realizações, confirmando-se pela realidade de diversos fatos concretizados, nutre-
se destes, e, por indução do presente, esboça um ideal de futuro todavia não
verificado.
Daquele grande caudal de energias consagradas a esmagar o infame,
daquela erupção gigante de vontades, surge uma legião de espíritos clarividentes
(Roux, Chaumette, o mesmo Bafeuf, etc.) que pretendem impulsar para mais longe
os acontecimentos e cortar mais pela raiz as instituições pretéritas. Os bons anelos
não prosperam, mas que importa? A semente da ação para realizar um propósito
ficou no sulco e a planta do ideal insinuado brotará amanhã mais vigorosa.
Sucede à era das lutas pela liberdade a desforra das forças cegas do
autoritarismo. O mundo da reação, levantando sobre as cabeças o sabre e a cruz,
lança-se arrogante uma vez mais sobre os povos. Não há mal, porém, que perdure
indefinidamente.
Assim em 1830 as vontades aferrolhadas começam de novo a desprender-se
das suas cadeias, e com elas a ciência e a filosofia tornam a reconquistar passo a
passo com perseverança o terreno perdido.
E a partir de então, em 1848, em 1871, na ultima década do século passado e
no que decorreu do presente, não mantêm os povos inusitada pugna para plasmar
nos fatos uma transformação verdadeiramente fundamental nos costumes, nas
idéias e nos métodos de convivência coletiva?
Resulta, portanto, um fato convincente que o conteúdo substancial das lutas
mencionadas e das mil e uma que o espaço não nos permite sequer enumerar, tem
22

tido em infinidade de ocasiões uma significação profundamente progressiva,


eminentemente revolucionária.
O coeficiente moral das contendas humanas a que temos feito alusão,
expressou sempre através de todos os tempos e em todos os lugares, (a sublevação
dos cipaios na Índia em 1857, a dos taipings na China, a guerra dos boers insurretos
em fins do século passado contra a dominação inglesa etc., entre outros exemplos),
um desejo de equidade social nunca satisfeito, uma aspiração manumissora de
projeções abarcativas.

* * *

Urge reagir contra uma sociedade que fez a história mais ou menos defeituosa
das elucubrações do pensamento – não do pensamento fecundo e construtivo – e
tem feito o panegírico e pretendido assegurar a perpetuidade da paralisia das
vontades.
Hoje mais que nunca devemos consagrar o máximo empenho em libertar-nos
do jugo funesto da metafísica.
É preciso estimular nos outros e em nós mesmos a vontade renovadora, em
todos os terrenos, nas mais diversas manifestações da vida. O edifício do progresso
material e moral têm sido levantados, invertendo nisso um manancial enorme de
energias revolucionárias.
Em frente da avalanche autoritária que invade todos os campos estrangulando
as iniciativas espontâneas é necessária uma reação vigorosa das vontades
progressivas.
Propiciemos um movimento social tão vasto e multiforme no qual possam ter
ubiquação todos os espíritos independentes.
Importa sobremaneira que cada um creia em suas próprias forças e confie,
educando-as simultaneamente, em suas faculdades pessoais.
Alegremo-nos de que os temperamentos e as inclinações sejam múltiplas. O
que interessa, acima de tudo, é que aumente sem interrupção à vontade de fazer,
seguindo sempre as diretivas anarquistas.
Reivindiquemos a atividade beligerante pelas boas causas das gerações
predecessoras mais heróicas.
É tempo já de deixar escrita com fatos a verdadeira história das ações
criadoras.
23

III

Temos falado apenas duma maneira demasiado sumária, excessivamente


resumida, de uma só das expressões da atividade humana entre todas as que
contribuíram à elaboração do progresso e da cultura: foi esta, como tentamos
consignar, a inversão constante, por parte das minorias ativas, de ingentes esforços
e de ações criadoras, evidenciando-se sempre no curso da história num sentido de
mais liberdade e de superação constante.
As considerações expostas correspondem ao que sendo a verdadeira história,
inédita todavia, poderia chamar-se Filosofia das ações humanas.
É inegável que a vida da humanidade é complexíssima e que não há solução
de continuidade entre todas as suas múltiplas e distintas manifestações.
É assim que, paralelamente ao processo das lutas por um desenvolvimento
dia a dia mais amplo na organização das sociedades humanas, se produz outro
movimento também de importância transcendental que é o da evolução das
ciências. E simultaneamente, ainda que algumas vezes precedendo-o e outras o
seguindo, elabora-se, identificando-se com todas as restantes atividades sociais, o
progresso do pensamento filosófico.

* * *

É fecunda em ensinamentos a história das investigações científicas e a


história da filosofia que, inspirando-se sempre na experimentação e ajustandose
aos métodos indutivos, mantêm, à medida que a cultura da razão avança, mais
estreitos vínculos com a primeira.
Assim constatamos como nascem ao mesmo tempo na Grécia e entre os
árabes as ciências físicas e as exatas, e justamente nestas duas civilizações é
iniciada também a concepção das idéias filosóficas expurgadas de fantasias
espiritualistas e tendendo em seus princípios e em seus postulados morais a uma
aproximação às leis da natureza.
Mentalidades geniais da sociedade helênica são as que, recolhendo a herança
das verdades e experiências adquiridas pelos povos do Oriente, colocam em um
esforço atrevido a primeira pedra do edifício do saber humano.
Sócrates coloca ao homem mesmo como fim da filosofia e esta, despojada de
toda a finalidade teista, deve consagrar-se a estudar as normas da moral e as regras
da conduta.
Aristóteles é o fundador da Psicologia e da Lógica.
24

Euclides e Pitágoras começam o trabalho das ciências matemáticas, sem cujo


poderoso auxilio não teríamos chegado ao portentoso desenvolvimento técnico da
cultura moderna.
Arquimedes é o obreiro infatigável que estabelece os alicerces da Física.
Heródoto empreende longas viagens pelos povos antigos, obtendo copiosas
observações e recolhendo as suas tradições e lendas é o criador da História.
Ao meritíssimo trabalho deste no referido estudo, seguiu-se em importância
a monumental obra “Vidas Paralelas” de Plutarco.
As atiladas sugestões do mestre de Platão foram fundamentadas num amplo
sistema de filosofia natural e em uma Ética antiteológica por Zenon e Epicuro.
E para não estendermos a inquirição das fontes do progresso tão remotas,
acrescentaremos com Reclus que outro homem genial, Diógenes o Cínico, dois mil
antes da Internacional, foi o primeiro precursor das idéias anarquistas.
Também poderíamos mencionar a Sófocles, Esquilo e Eurípides; a Fidias,
etc., na literatura, no teatro e na arte, na ação sempre perseverante e no pensamento
cada vez mais metódico, que constituíram um impulso vigoroso para ulteriores
desenvolvimentos do progresso humano.
Poderíamos fazer semelhantes considerações, se não temêssemos incorrer em
redundâncias e roubar espaço a estas colunas, acerca da cultura romana, se bem
que esta não haja tido tanta originalidade, nem fosse, em grau igual, fundamental
e vigorosa.
Com a invasão dos Godos e Vândalos no mundo latino produz-se um fato
tristemente notável: desarticula-se o aparelho de dominação do cesarismo romano
e esta derrota do seu antigo rival é convertida em uma de suas mais significativas
vitórias pela Igreja Católica. Quebrou-se, pois, só um dos dois grandes males que
ambicionavam perpetuar-se através da história na “Cidade Eterna”.
O selvagem Atarico, o saqueador de cidades, o digno antecessor de Átila, é
um convertido à fé nos novos deuses e, portanto, um fiel instrumento do
catolicismo. Tudo então, se produziu de maneira favorável para impor ao mundo
o domínio absoluto da Igreja de Pedro.
Depois da queda de Rômulo Augusto depressa se converte em fato brutal o
desejo cristão de submeter a um silêncio de túmulo a todos os povos do Ocidente
europeu.
O sonho, porém, de imobilizar a estrutura política dos grupos humanos e
muito menos o empenho de paralisar o pensamento no cérebro de cada individuo
não podiam ser alcançados.
Porém o império do fanatismo, da morte decretada contra a iniciativa pessoal
quebra-se da mesma forma que havia perdido sua férula sobre os homens o
25

absolutismo dos césares. E o renascimento surge exuberante proclamando a


liberdade do pensamento e “a reabilitação da carne”.
Roger Bacon e depois Francis Bacon proclamaram o método experimental2
na ciência. A estes se segue Descartes com igual método mais evoluído e completo.
Posteriormente reforçam a heresia antiaristotélica3. Copérnico que é
anatematizado por discrepar das Sagradas Escrituras. Galileu morto no presídio
com os olhos arrancados. Campanela que sofre 27 anos, enterrado vivo em um
calabouço imundo. Kepler cuja perseguição alcança à própria mãe. Pirre Ramus
que é degolado na famosa “noite de S. Bartolomeu”, sob o reinado da
devotadíssima Catarina de Médicis.
E definitivamente alcança a sua primeira vitória o pensamento da liberdade
expressado na ciência, na filosofia e na arte, contra as atrocidades da Inquisição e
por cima dos pregadores da morte.
Depois daquele grande impulso dado à evolução dos conhecimentos por
homens como os citados, por mentalidades fortes como Newton, por pensadores e
humanistas como Erasmo, por moralistas austeros como Espinosa, as idéias que
levam aos espíritos um fermento de rebeldia se depuram e adquirem maior impulso
em outro grande crisol que se denomina na história com a qualificação de Reforma.
Wiclef, João Huss, Tomaz Munzer, João de Leidêr, e muitos outros são as
novas vitimas.
A rebelião de um frade provoca este importante movimento: o interessante,
porém, é que a rebelião alarga-se, adquirindo contornos das maiores projeções
naqueles que são determinados por motivos mais sérios que as intrigas ou as
subtilezas religiosas.
(Não devemos esquecer que a feroz intolerância de S. Paulo está presente no
espírito dos reformadores cristãos. Calvino queimou a Servet e, como já dissemos,
Lutero, o atormentado, pelo fantasma de Belzebu, degolou em massa aos
camponeses).
Realizado este grande ciclo de esplendor em todos os departamentos mentais,
novamente é humilhado por sua altivez o pensamento.
Mas já não se consegue escurecer as fontes da idéia rebelde: esta corre sem
cessar por entre as montanhas do autoritarismo como as águas geradoras da vida
de um arroio fecundo.

2 Em franco combate à explicação teológica do mundo físico e humano, o pensamento científico opôs à revelação divina a
razão humana. O conhecimento do mundo passaria pela capacidade humana de observação e experimentação e não pelos
dogmas do cristianismo.
3 Aristóteles (384-322 a. c.) forjou a noção de causa para explicar o movimento. Quatro seriam as causas: material, formal,

eficiente e final. A causa primeira de tudo seria Deus, a forma pura, privada de matéria. Aristóteles afirmava ser Deus ‘motor
imóvel` de onde partiria, encadeando-se, todos os movimentos e toda a existência tinha como objetivo chegar a Deus.
26

* * *

Como continuadores da pugna incessante na atividade do pensamento e no


trabalho paciente da elaboração da ciência, sucede aos fautores dos grandes
movimentos mencionados, uma geração de potentes mentalidades no século
XVIII.
Com Buffon começa a escola naturalista, cujos trabalhos são prosseguidos
depois por Lamarck, Geofroy de Saint-Hilaire, Darwin, Lubok, Russell, Wallace,
etc.
Herbert Spencer é o cérebro abarcativo que edifica a filosofia evolucionista
com os materiais oferecidos por esta escola.
Laplace e Euler – este homem abnegado que continua consagrado ao trabalho
depois de cego aos sessenta anos – completam a obra de seus predecessores na
astronomia e nas matemáticas.
Franklin, Jaime Watt, Volta, Faraday, etc., são posteriormente os que
cumprem a missão importantíssima de aplicar as investigações do saber ao trabalho
e à técnica.
Ao mesmo tempo, os economistas ingleses, os Mill, Smiles, Bentham, etc., e
os enciclopedistas franceses4, Diderot, D’Alembert, Voltaire, Rousseau,
Montesquieu, Morelli, Mably, e tantos outros dão um novo impulso aos
conhecimentos humanos abrindo o caminho à primeira República burguesa.
E como corolário da revolução de si, do desenvolvimento cientifico e
filosófico e do progresso geral humano, aparece no cenário da vida social, das
idéias, o pensamento socialista.

____________________

A partir da primeira metade do século passado começou, pois, o mundo


chamado civilizado a elaborar metodicamente um novo conceito da vida
associativa e do direito a que deve ser credor o individuo no seio do novo grupo.
No capitulo seguinte ocupar-nos-emos da moderna idéia e da estrutura social
que neste ideal se inspira e os militantes da mesma projetam.

4Enciclopédia ou Dicionário Lógico das Ciências, Artes e Ofícios foi publicada na França em 28 volumes entre 1751 e 1772.
Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond d`Alembert (1717-1783) dirigiram a realização desta iniciativa bastante
significativa para o pensamento ocidental, coordenando a colaboração de nomes expressivos do iluminismo francês.
Inicialmente pensado para ser um simples dicionário, a Enciclopédia se tornou uma importante obra de combate ideológico.
27

IV

Ainda que de modo rapidíssimo tenhamos ensaiado nos trabalhos


precedentes um inventário exato, melhor diremos, um resumo, um sumário dos
esforços criadores da vontade e das atividades diversas do pensamento,
consagrados uns e outras ao desenvolvimento da idéia de liberdade e ao
engrandecimento do progresso.
De todas essas energias canalizadas para o bem comum, as gerações
posteriores obtiveram o fruto de uma nova idéia: o pensamento econômicomoral
denominado Socialismo.
Examinemos, todavia as mais próximas raízes que deram origem ao seu
nascimento.

* * *

Como já mencionamos, tem já uma história remota a reivindicação do direito


à terra.
Os chamados profetas da civilização da Judéia, Isaias, Malaquias, etc., já
falaram de um reinado de igualdade para os seres humanos, sem que em sua
linguagem se fizesse referência – como se pretendeu falsear depois – a um paraíso
de ultratumba.
Sabe-se também que entre os Essênios era desconhecida a propriedade.
De diversas influências recebidas neste mesmo sentido, toma seu caráter e
natureza comunista a propaganda social da primeira e segunda geração dos
militantes e adeptos do cristianismo.
É igualmente conhecido a este respeito o pensamento dos denominados
primeiros pais da Igreja Católica.
Este sentimento, reivindicado mais tarde pelos anabatistas e por outros
movimentos de rebelião, e – o que é mais importante – praticado por muitos povos
contra a cobiça dos príncipes e sacerdotes e contra as prédicas usurpadoras do
código romano, sobreviveu, apesar de todos os embates recebidos, até aos tempos
modernos.
E chega a incorporar-se mais vigoroso porque se associa ao pensamento livre
em novas lutas que são travadas por ambos.
Assim encontramos, pela metade do século XVI, a um pensador original que
advoga energicamente para que em nome da justiça cheguem a ter realização um
e outro. Pode-se obter comprovação deste asserto em Etiene de La Boetie no seu
“Discurso sobre a servidão voluntária”.
28

Referindo-se ao modo como deveríamos viver em sociedade e em harmonia


com as leis naturais, escreveu o amigo de Montaigne: “Esta boa mãe deu-nos a
todos a terra por morada, e fez-nos do mesmo barro, a fim de que cada um se possa
mirar e reconhecer no seu semelhante; e, por último tendo querido unificar-nos,
não resta a menor dúvida de que todos somos livres por natureza, porque todos
somos companheiros, e não pode caber em humano entendimento que a natureza
haja colocado a determinados homens em servidão, tendo-os a todos posto na
sociedade”.
Simultaneamente, na época de haver formulado este principio de ordem
geral, Tomaz Mórus dá a conhecer a sua famosa “Utopia”, livro em que apresenta
com caráter de fato concreto a idéia de igualdade. Ao utopista decapitado por
Henrique VIII, sucede outro atrevido pensador, como este também vítima das iras
de um rei fanático e cruel. Tomaz Campanella, o rebelde atormentado durante
tantos anos pelo sombrio Felipe II, concebe também a sua não menos interessante
“Cidade do Sol”.
A estas ideações de uma vida igualitária segue-se o “Telêmaco” de Fenelón.
E após estes aparecem entre os enciclopedistas, os homens que com especial
predileção, com mais precisos conhecimentos e com maior profundeza de conceito,
começam a elaborar o que, em termos não bem precisos ainda, se entende por
filosofia social.
Até aqui, mesmo que o pensamento haja tido sempre um fermento libertário,
quase sempre foi exposto partindo de princípios autoritários.
Mas, por fim, as energias impetuosas da idéia renovadora chegaram a quebrar
os artificiosos canais, os rígidos moldes do autoritarismo.
Em suas duas obras “Brasiliada” e “Codigo da Natureza”, concebe e expõe
Morelly um novo sistema de convivência social em que cada membro integrante
do mesmo encontre o “livre exercício das paixões, encaminhadas para o bem”.
Proclama, entre outros, estes princípios: “A unidade indivisível do solo e da
habitação comum”. “Estabelecimento do uso comum das ferramentas do trabalho”.
“Uma educação completa a todos acessível”. “Distribuição dos empregos e
funções segundo os gostos e as aptidões, o trabalho segundo as forças e os produtos
segundo as necessidades”.
Semelhantes afirmações também às faz Mably ainda que, usando uma
linguagem em que invoca o Estado, revelando, às vezes, por conseqüência, um
espírito menos amplo.
Porém em outros momentos, transpondo estes limites, que sem dúvida a
educação lançou na sua mente, estabelece que as causas do mal estar social residem
na desigualdade de condições econômicas, nos governos com os seus males deles
29

derivados: a política e as leis. E assinala duma maneira bem precisa que a mais
funda raiz da árvore funesta que deverá ser cortada, é a propriedade privada.
Assim como estes, outros reforços recebeu até agora a idéia do socialismo
incipiente, como “Nova Atlântida” de Bacon, etc., e igualmente receberá a seguir
concreções mais firmes pelo concurso de mentalidades ainda mais videntes e pela
contribuição de vontades laboriosas.

* * *

À luz da Enciclopédia e aproximando-se da viva experiência revolucionária,


a idéia socialista adquiriu contornos mais precisos e fez-se conhecer com linhas de
mais relevo.
Sem embargo, não saiu ainda de seus primeiros começos.
Estão-se agora adquirindo novos materiais para uma elaboração mais
completa. Quesnay e Turgot da escola fisiocrata5, assentam uma nova premissa em
matéria política: Diderot e Holbach retomam a rota materialista 6 do pensamento,
aberta 20 séculos antes por Demócrito e Epicuro.
À anterior escola segue-se o Positivismo7 de Comte e seus discípulos.
O desenvolvimento destas escolas, juntamente com o novo conceito da moral
imanente8 estabelecido por Hobbes e outros, as investigações etnográficas, da
biologia, da antropologia e da psicologia modernas oferecem, por fim, uma base
incomovível para alicerçar sobre ela a sociologia verdadeira.

* * *

5 François Quesnay (1694-1774) nascido na França e renomado médico da corte de Luis XV, é considerado por muitos
economistas como o criador da primeira escola de economia, em que pese alguns economistas atribuírem este fato à Escola
Clássica. Talvez este entendimento se deva ao fato da influência dos fisiocratas ter sido breve, ao contrário da Escola Clássica.
Fisiocracia significa governo da natureza. Os quatro postulados desta escola são: ordem natural, laissez-faire e laissez-passer,
ênfase na agricultura e reforma tributária. “Quadro Econômico” é o título do livro escrito em 1758, em que expõe suas idéias
para uma organização da economia. Pierre Samuel du Pont de Nemous publicou em 1767 uma coleção dos textos de Quesnay
com o título “A Fisiocracia ou a constituição natural do governo a mais vantajosa para o gênero humano”. Anne-Robert-
Jacques Turgot, um dos principais seguidores de Quesnay, enquanto ministro das finanças da França, procurou aplicar em
1774, as idéias de seu mestre. Com a recusa dos proprietários, Turgot foi exonerado, ocasião para o fim da fisiocracia.
6 Para estes filósofos, a matéria era composta por pequenas partículas indivisíveis, os átomos. Suas reflexões se dirigiram na

direção de explicações materiais dos fenômenos naturais, discordando da orientação transcendental defendia por outros
filósofos.
7 O Positivismo do francês August Comte (1789-1857), personagem importante na constituição da Sociologia, possui como

uma de suas características mais destacadas a ênfase na razão e, por conseguinte, na observação e exame humano como forma
de conhecer os fenômenos naturais e os fenômenos humanos.
8 O inglês Thomas Hobbes (1588-1679) foi rejeitado por monarquistas e republicanos. Recusava a idéia de direito divino

como base da monarquia, no que desagradou aos monarquistas ao mesmo tempo em que era crítico da idéia republicana. Para
ele as instituições humanas eram resultados da vontade humana e não frutos de algum ser transcendental.
30

Uma vez esboçado em seus princípios e aspirações, mais ou menos bem


determinadas, o socialismo começa a manifestar-se em um propósito de
realizações efetivas.
Encontramos em primeiro lugar os conspiradores contra a República de
93, chamados “Os Iguais”; Graco Babeuf, Silvain Marechal, Miguel Angelo
Buonarroti e os seus amigos que propagavam doutrinas niveladoras e quiseram
levá-las a efeito pela revolução.
Ouçamos o que neste sentido disse o sábio historiador Max Nettlau: “A
Revolução francesa foi a primeira sacudida social de grande envergadura, e daí em
diante as concepções socialistas inspiram-se na esperança de verdadeira realização,
quer pela via revolucionária – pois a revolução tinha demonstrado a possibilidade
disso mediante grandes golpes que saltaram etapas – quer por meio do raciocínio
– cujo caminho tinha sido assinalado pelo período dos filósofos ingleses e
franceses do século XVIII, pensadores intrépidos que diziam todo o seu
pensamento e exerciam influencia nos espíritos livres de todos os paises – já por
experimentações e realizações que este período havia também tornado viáveis ao
atacar a uma parte do número de crueldades legadas pelos séculos (tortura,
escravidão, prisões, casas de alienados, sistema eleitoral inglês), inspirando
vontades para combatê-la, Babeuf, Godwin e Robert Owen representam estes três
gêneros de esforço, e a vida de cada um deles reflete em seus planos (Babeuf), suas
concepções (Godwin), suas realizações (Owen)”.
O segundo destes não sabemos que haja intentado sair do terreno da teoria,
mas tem o mérito de expurgar de suas concepções socialistas toda a intromissão
autoritária: é o primeiro expositor das doutrinas anarquistas.
Sucede a estes Saint-Simon que “auxiliado pela sua experiência da América
e os seus conhecimentos das grandes ações políticas, industriais e financeiras do
período de Napoleão I, formou o seu socialismo tão adequado a estas origens e a
este meio...” (Refere-se M. Nettlau ao “pensamento social francês, modelado no
quadro da utopia cezarista realizada naquela época”. (“O Socialismo
individualizado e a ciência social”. “Revista Blanca” nº 180).
Charles Fourier e Estevam Cabet continuam elaborando as teorias socialistas
e fazendo cada qual um ensaio construtivo em seu falansterio de Condè-Sul-
Vesgres, (França) e o segundo nas margens do Mississipi, em Nabuco, Estados
Unidos).
O trabalho dos mencionados e de seus discípulos, como os sansimonianos
Considérant, Blanqui, Leroux, etc., foi prosseguido pelo grande economista Karl
Marx, auxiliado eficazmente por Engels e outros da escola alemã.
31

E simultaneamente e ainda antecipando-se-lhes, Pierre-Joseph Proudhon foi


a mentalidade formidavelmente abrangedora e profunda que havia de demolir os
princípios todos por imutáveis, inspirados no terreno da ética em absurdas
sugestões religiosa, e, no aspecto econômico, no brutal e anticientífico direito
romano.
A partir desta fase da evolução das ciências, da filosofia e do espírito dos
povos, apresenta-se às vontades e ao pensamento universal o seguinte dilema:
Deve reformar-se o velho sistema social mudando as suas formas
tradicionais, ou, pelo contrário, deverá ser destruído o Estado histórico e todas as
instituições de natureza autoritária construindo, com o concurso de todas as
iniciativas pessoais e com todos os conhecimentos adquiridos uma nova sociedade
em sua essência e na sua estrutura externa?
No seguinte capitulo exporemos em face à concepção marxista da vida e da
história, o significado das idéias anarquistas como tendência e como doutrina em
resposta à interrogação formulada.

Todas as revoluções através da história têm sido feitas depois de ter-se


operado previamente uma transformação mais ou menos fundamental nos
costumes e nas idéias.
Pois bem: essa mudança foi eficaz e resultou verdadeira em maior ou menor
grau na medida em que recebeu a sua inspiração em anelos de liberdade e em
desejos de progresso.
É por isto que em virtude de tantos fracassos e após muitas observações e
experiências, os povos, tantos séculos oprimidos e os espíritos emancipados teriam
de sentir a necessidade e apresentá-la de mudar o rumo da história para destinos de
superior convivência.
Ao socialismo que se tinha nutrido de todas as investigações do
conhecimento e constituiu, ao incorporar-se à vida do pensamento, a expressão das
vontades humanas, lutando sem cessar pela redenção dos oprimidos, devia caber a
enunciação e a solução teórica, no principio pelo menos, de tão magno problema.

* * *

Expostas as origens da idéia socialista, definamos a sua significação para


melhor compreensão do assunto que tratamos.
32

O Socialismo é a doutrina econômico-filosófica que constitui o expoente de


um desejo de equidade social, afirmado pelos povos através do tempo e de unidade
moral através do espaço.
Expressado de outro modo: O socialismo é a idéia moderna que propicia
perante os homens e ante os grupos humanos a realização de uma nova
convivência, cuja base associativa terá de ser a socialização de todas as riquezas
obtidas pelo esforço comum, de todas as fontes destas, de todos os meios de
trabalho e dos utensílios de distribuição e de intercâmbio.
O processo da cultura em todas as suas manifestações valorizou a firme
consistência desta idéia e o desenvolvimento da técnica contemporâneo veio a
confirmar a praticidade e a excelência racional da mesma.
Mas apresenta-se, ante a precedente afirmação, a interrogação seguinte:
pode realizar-se a socialização enunciada sem destruir as formas orgânicas da
sociedade capitalista?
Desta consideração tiveram origem duas correntes distintas.
A partir de Marx e de suas teorias econômicas e pretendidamente cientificas,
têm-se vindo elaborando e reafirmando uma concepção que até ao aparecimento
desta escola foi julgada como empírica.
Estabelecendo como premissa fundamental o conceito materialista a que
temos feito referência e limitando este, não sabemos em virtude de que razões
cientificas, a uma exegese meramente econômica. Marx e seus cooperadores
chegam a alicerçar as suas teorias sobre um silogismo falso.
Depois de estudos conscienciosos em que foi analisado detidamente o influxo
da vida econômica dos povos sobre as restantes manifestações ativas, termina-se
tão pouco sabemos em razão de que ciência infusa – por deduzir uma conclusão
mais extensa que as premissas.
Restabelece-se como principio o seguinte apótema: não é a maneira de ser
social a que determina o processo e as contingências da vida econômica, se não
que esta é a determinante do desenvolvimento e de todas as alternativas da vida
política. Daqui deriva o principio errôneo do marxismo, consistente na
interpretação materialista, ou dito mais exatamente, da explicação economista da
história. De tal forma de compreender o desenvolvimento da vida social da espécie
ininterrupta e quotidiana, haviam de desprenderem-se inevitavelmente outros erros
fundamentais: o fatalismo introduzido na filosofia social e aplicado à realidade da
história e o menosprezo do homem, o desconhecimento da vontade individual no
desenvolvimento da vida coletiva.
Infere-se do que fica exposto que, sociologicamente falando, o importante
para o marxismo teria de consistir em acelerar (primeiro paradoxo, ou melhor,
33

ainda, contradição flagrante, posto que ao formular esta expressão, se apela


abertamente para a vontade dos homens) a marcha da produção, para que esta por
sua vez impusesse uma evolução forçosa às instituições políticas que lhe são
consubstanciais, ainda que sempre superposta em cada época.
Dos primeiros marxistas tão enfaticamente qualificados pelos seus próprios
autores e divulgadores, de científicos, inferem-se os primeiros corolários: 1º O
homem é produto e instrumento cego do meio; este influi nos sentidos e orienta
em todos os momentos e circunstâncias as faculdades e inclinações volitivas do
individuo, sem que nunca possa produzir-se o fenômeno inverso. (Cremos que é
Sorel quem afirma que “as invocações ao direito e à justiça não farão adiantar um
só passo no caminho da historia.”).
2º - Que em maior grau que o meio material, é o ambiente econômico e os
órgãos criados pelas necessidades do mesmo, os que fazem do individuo um
prisioneiro, impondo-lhe um cometimento inevitável e obrigando-o a ser servo
voluntário ou involuntário para a realização iniludível dos fins de cada ciclo
histórico. (Idéia mecanicista esta última, tomada em parte de Comte e de Spencer
e requentada para ser encaixada em um molde ou sistema mais estreito).
3º - Que os males existentes reconhecidos como tais, engendrados pela
estrutura social de cada período, só podem ser superados por um processo de tempo
durante o qual se opera o desgaste natural dos mesmos em virtude das mudanças
trazidas pelo progresso que é a negação constante do ponto de partida. (Filiação
hegeliana do marxismo).
Pois bem: daquilo que laconicamente deixamos dito, não se torna já
presumível que haveria de ser demasiado estreita a base filosófica onde os teóricos
do determinismo econômico9 quiseram levantar o seu sistema pretensamente
cientifico?
Vejamos como o socialismo não podia caber dentro das quatro paredes de tão
acanhado edifício.

* * *

Negar a independência – sempre relativa, como todas as demais coisas da


vida – do homem ante o meio circunstancial que o rodeia, apagar duma penada a
sua autodeterminação, o fator denominado determinismo psicológico, desconhecer

9 Os autores deterministas explicam o conjunto da experiência humana a partir da primazia de alguma instância social sobre
as demais. Desta maneira os deterministas geográficos explicam as criações humanas a partir do meio ambiente; os
deterministas biológicos elaboram seus estudos dos grupos humanos a partir dos caracteres do fenótipo e da idéia de raça; os
deterministas religiosos o fazem a partir do pensamento como elemento intrinsecamente religioso. O determinismo econômico
procura elaborar explicações da vida social humana a partir da dimensão econômica da sociedade. Assim, as instituições
jurídicas, políticas e ideológicas da sociedade humana seriam abordadas enquanto frutos de sua base econômica.
34

que o individuo, além de motivos externos, também é movido por suas paixões,
idéias e sentimentos, implica tanto como anulá-lo, ante a mais elevada
consideração, como agente criador de um mundo novo.
E se o individuo não há de constituir o alicerce firme de uma nova ordem
social; a pedra angular duma sociedade renovada, muito perto estaremos de
pronunciar sem esforço que a sociedade, segundo o ritmo fatal da sua metamorfose,
é tudo e a célula, o átomo integrante dela, nada significa.
Não deveremos concluir então, sendo lógicos com os raciocínios do fatalismo
econômico, que se deve geral reconhecimento e servidão voluntária ao capitalismo
e ao Estado como instituições históricas impostas aos homens pelo processo
material da história nas diversas latitudes do globo terrestre?
Assim o admitiu o marxismo e seguem-no reafirmando as suas distintas
escolas e tendências políticas ao render tributo ao postulado que considera
iniludível a transitoriedade do Estado, não somente durante o “período de
supercapitalização” mas também depois da revolução expropriadora, para os que
olvidando as suas doutrinas aceitam à priori a utilidade deste fato.
É por isto que os senhores marxistas, sendo conseqüentes com o seu falso
principio de sacrificar à sociedade o individuo, não podiam deixar de seguir a
tradição histórica da sociedade autoritária que, com imperturbável obstinação,
desconhecem sempre a autonomia de cada um de seus membros, estrangulou a
existência soberana da individualidade e conspirou em todos os momentos e
circunstâncias contra tudo que significasse direito individualizado, independência
do homem no conjunto social, afirmação da consciência particular.
Porém, ante as reflexões precedentes, é possível que se nos objete: “Perdeste-
vos numa bizantina digressão, estais em absoluto fora do lugar, porquanto o
socialismo não passa de ser uma noção econômica que apresenta à consideração
geral a necessidade de organizar a produção e a distribuição de forma que o
resultado de suas vantagens e benefícios seja de proveito comum”.
Refutamos esta objeção respondendo: não é possível a realização da idéia e
da vontade socialistas sem que o ensaio duma nova vida social tenha por base o
princípio associacionista e federalista da liberdade.

VI

De quanto temos argumentado pode já obter-se uma conclusão geral: que o


progresso foi mais efetivo em todos e em cada um dos povos na medida em que a
vontade coletiva e o sentimento de cada individuo pode, com a menor interposição
de obstáculos, traduzir-se em ação. O nível progressivo e, portanto, a verdadeira
35

vida associativa da humanidade, estão na razão direta da liberdade e, por


conseqüência, na razão inversa do principio de autoridade.
Afirmar o primeiro destes postulados é ter da vida uma compreensão ampla,
diversa, multiforme e complexa; implica tanto como concebê-la com um critério
dinâmico, reconhecer que tudo na natureza, coisas e seres viventes e homens, se
movem seguindo um ritmo de transformação constante, que a vida do homem em
sociedade deve ajustar-se igualmente à mesma lei universal de mutação eterna.
A autoridade, ao contrário, encarnada em seus representantes, nos sacerdotes,
nos magistrados, em todas as organizações estatais, tem pretendido sempre opor
diques ao progresso, interromper as correntes da energia humana com uma muralha
de baionetas; anular com leis humanas de imobilidade a lei natural do movimento;
opor à iniciativa pessoal a violência organizada, ao esforço criador a doutrina cristã
e todas as máximas religiosas do renunciamento; sempre opuseram o dogma contra
o gênio inventivo: em face à atividade espontânea que é a vida, a disciplina do
pensamento e das ações humanas que é a morte.
E terá que seguir-se sucessivamente este caminho? É isso o que, segundo
temos conseguido demonstrar, ----- -------- a -------------10 universal, medida por
séculos de experiência e medida em suas convicções por todas as fontes do
conhecimento.
O próprio Marx, antes de enveredar, impelido pelo método dialético11, na
rigidez de seu simplismo econômico, conveio em admitir, com lúcidos raciocínios,
que enquanto a espécie continue enclaustrada nos velhos sistemas autoritários, não
poderão ser apagadas da face da terra a servidão e a miséria.
Pois bem: não foi e não continua sendo o Estado a mais forte entidade
representativa da força, atravessada eternamente ante a marcha progressiva do
gênero humano e obstaculizando as vontades rebeldes na atividade construtiva de
uma verdadeira civilização?
Concluamos, pois, afirmando definitivamente: nem um minuto mais, nem
uma palavra, nem uma linha pela defesa nem sequer pela justificação do
autoritarismo, nem em suas formas orgânicas conhecidas, nem em qualquer outra
das suas exteriorizações possíveis e distintas.

10
Palavras ilegíveis.
11Dialética é uma palavra grega, dialegein, que significa discutir. Marx tomou de empréstimo a Hegel o seu sistema dialético,
afirmando fazer deste um uso inverso de seu mestre. Hegel entendia ser o mundo uma expressão da idéia e Marx afirmava
exatamente o oposto. Para Marx, portanto, as idéias eram antes frutos do mundo material. Em sua dialética a noção de embate
de contrários é fundamental, saindo desta luta uma síntese superior ao estado anterior. Este método utilizado para o estudo da
sociedade estabelecia que as mudanças aconteceriam apenas na medida em que todas as capacidades de um certo estágio
social fossem esgotadas. No caso, com a primazia da infra-estrutura econômica sobre as demais dimensões sociais, haveria
que ocorrer o esgotamento de um modo de produção para que o seguinte fosse estabelecido.
36

* * *

O Estado foi através de todas as épocas e em todos os povos a resultante nos


fatos dos impulsos violentos da animalidade no homem primitivo; a consagração
do fato brutal, como fenômeno natural e como realidade iniludível e insuperável
da divisão em castas e do predomínio duma minoria sobre o conjunto da espécie
humana.
Claro está que as classes beneficiárias de tão absurdas situações históricas,
enquanto elaboravam a teoria da dominação do homem pelo homem, viram-se
sempre obrigadas a conter os embates da evolução e do progresso pela efusão de
sangue e pela moral do escarmento, para fixar na mentalidade das criaturas a mais
irracional e cega fé na invulnerabilidade das tradições passadas e dos princípios
herdados. Daqui as lutas intermitentes entre a liberdade e o autoritarismo.
O Estado, como instituição orgânica, tem sido, pois, o Ideal convertido em
principio de realidade, da violência organizada, e os modernos sistemas, intitulados
fascista e comunistas, representam o supremo esforço do trogloditismo
sobrevivente para plasmar nos fatos a utopia autoritária.
Eis aqui a senha de Moscou e a palavra de ordem do histrião de camisa preta:
“tudo para o Estado, nada contra o Estado ou fora do Estado”.
Até 1914, excetuando alguns instantes turbulentos na história moderna, não
se havia tido a pretensão brutal, o propósito ousado, de desconhecer ao individuo
de modo absoluto, de estrangular tudo o que fosse autonomia na ação, liberdade
do pensamento e respeito à exteriorização do mesmo.
Depois, porém, da mais sangrenta e desapiedada das guerras, o autoritarismo
ressurgiu agigantado e impetuoso: uma grande calamidade, talvez a maior do
século XX, serão as ditaduras sem exceção, como resultado fatal e lógico da
educação cristã, marxista, da cultura estatista, do fomento da servidão voluntária
nas multidões e da exaltação da força nas trincheiras, durante a bestial matança de
1914-18.
Apesar disso, como se se tratasse de uma ironia cruel, segue-se não obstante
oferecendo o incenso da cultura e pedindo o tributo das energias e o holocausto
das vidas humanas para alimentar e render culto a esse monstro feroz que as mais
equilibradas individualidades humanas têm vindo abominando.
Não sejamos, porém, impenitentes na necessidade de viver eternamente
surpreendidos: devemos descontar por demasiado sabido que os chacais se
alimentam das vísceras fumegantes e as hienas se alimentam de cadáveres.
37

Permaneçamos firmes em o nosso verdadeiro centro de convencidos


revolucionários: alimentemos em nosso peito e no coração de todos os oprimidos
a chama viva da confiança em nossos próprios destinos.
Em frente ao capitalismo que esgota em seu proveito todas as energias
criadoras; em frente ao Estado estuprador de todas as potências da vontade e das
faculdades do intelecto, perseveremos em atrair a um número cada vez mais
crescente de homens e mulheres para a reivindicação imediata da liberdade pessoal
e para a causa da justiça.
Há que começar desde já a viver a vida à margem de toda a noção autoritária.
A Igreja, o Estado e o Capitalismo constituem a fatídica trilogia que impediu a
marcha no caminho sem fim do progresso. Em rebeldia contra cada uma dessas
instituições do passado levantou-se o anarquismo, advogando pela emancipação
moral, pela independência intelectual e pela libertação física do escravo moderno.
É por essas considerações bem meditadas que os anarquistas se definiram
ante a sociedade: materialistas e ateus perante todas as religiões, antiautoritarios
contra o Estado e socialistas em frente ao capitalismo.

* * *

É de uma comprovação evidente que em mais de uma centúria de hesitações


democráticas, a luta social dos povos, longe de interromper-se ou atenuar-se, tem
sido, pelo contrário, intensificada e alargada.
Nesse período de tempo, justamente, é que se desenvolveu a filosofia
libertária.
Desde Godwin a Proudhon, desde Dejacques e Courderoy a Kropotkin, desde
Most, Parsons, Spies, Ling, etc., a Ferrer e Landauer, desde Stirner e Tucker a
Reclus e Louise Michel, durante a vida larga e austera de
Dumartheray, fecunda e dinâmica de Mella e Malatesta; de Bakunin a Bertoni,
Rocker e Max Nettlau12 (e quantos nomes, símbolos de laboriosidade, abnegação
e heroísmo haveria que citar!) veio-se concebendo com uma percepção dia a dia
mais clara e precisa e apresentando com uma compreensão mais exata as idéias
inspiradas nos princípios de que fizemos menção.

12Existem atualmente disponíveis no Brasil poucos escritos de alguns destes autores. Proudhon, Kropotkin, Bakunin e
Malatesta são os que mais foram publicados, sem que isto signifique existir uma publicação próxima de ser completa da
produção de cada um deles. Proudhon, por exemplo, publicou cerca de quarenta livros dos quais apenas dois foram publicados
completamente no Brasil. Suas correspondências foram publicadas na França em catorze volumes. A editora L&PM de Porto
Alegre publicou nos anos oitenta do século passado uma coleção chamada “Biblioteca Anarquista” com artigos e extratos do
pensamento de Proudhon, Malatesta, Kropotkin e Bakunin. A mesma editora publicou também outra coletânea intitulada
“Grandes Escritos Anarquistas” contendo extratos do pensamento de diversos anarquistas, alguns deles presente na referência
acima. Esta antologia foi introduzida por
38

A ação, pois, persistente na multiplicidade das manifestações do trabalho há


de romper indefectivelmente tudo quanto seja centralização e moldes únicos; o
livre curso das iniciativas espontâneas há de acabar com o monopolismo na
inversão e no aproveitamento das energias produtoras; o exercício pleno dos
direitos individuais há de terminar definitivamente com a mecanização autoritária
do homem e com todos os dogmas impostos pelo catecismo e pela lei escrita.

VII

Existe uma confusão lamentavelmente errônea na mentalidade da maioria das


pessoas quanto à interpretação das quatro denominações genéricas com que é hoje
enunciado o problema social: socialismo, comunismo, sindicalismo e anarquismo.
Temos tentado demonstrar que sem o livre jogo das paixões do individuo,
sem as condições necessárias para o desenvolvimento pleno das faculdades e das
inclinações particulares, toda a organização não passará dum conglomerado sem
verdadeiros vínculos de conexão entre os seus componentes; sem os estreitos laços
da solidariedade não haverá possibilidade de uma sociedade harmônica e estável.

George Woodcock. De Reclus apenas o livro “A Evolução, a Revolução e o Ideal


Anarquista” foi editado no Brasil em 2001 pela Editora Imaginário de São Paulo.
Antes disso a Editora Ática publicou, nos anos oitenta na Coleção Grandes
Cientistas Sociais, uma coletânea de textos de Reclus com uma apresentação
elaborada pelo geógrafo Manuel Correia de Andrade. Nesta mesma coleção há um
volume com textos de Proudhon introduzidos por Edson Passetti e Paulo-Edgar
Resende. Verve – Revista do Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP tem
publicado tanto artigos de alguns destes anarquistas – como Proudhon, Bakunin,
Stirner – como sobre estes e outros anarquistas. Em seu número cinco (maio de
2004), Verve publicou de William Godwin o Livro VII de seu “Um Inquérito
Concernente à Justiça Política” publicado em 1793. A Editora Imaginário de São
Paulo tem publicado Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Stirner. A Editora
Achiamé publicou um livro com os depoimentos dos chamados Mártires de
Chicago na ocasião de seu julgamento, com uma introdução feita por Ricardo
Mella. Se atualmente, entre interessados pelo tema como por anarquistas, o
conhecimento do pensamento destes pensadores é bastante restrito, é fácil observar
nos jornais operários anarquistas do período aqui tratado haver por parte dos
trabalhadores um conhecimento mais largo em torno das obras dos referidos
autores. Nas colunas dos jornais e revistas anarquistas havia sempre uma seção
intitulada “Leituras Recomendadas”, “O que se deve ler”, “Leituras sugeridas” ou
algum termo equivalente. Havia assim a possibilidade de o leitor adquirir os livros
39

comprando-os junto ao coletivo de editores. Para tanto os editores estampavam,


em geral, a listagem dos livros da biblioteca do grupo com os respectivos preços.
Português, espanhol e italiano eram os idiomas mais divulgados nos jornais do eixo
Rio-São Paulo. Muitos jornais, sobretudo em São Paulo, publicavam a maioria dos
artigos em português, mas com seções em italiano e espanhol. Alguns jornais
foram publicados todos em italiano, tamanho era o número de operários oriundos
da Itália.
A uniformidade não existe nem na natureza nem na vida; este fenômeno só
se dá no cérebro anquilosado das mentalidades autoritárias. Por conseguinte, as
diretivas únicas em qualquer ensaio de convivência, serão sempre impositivas e
forçosamente falsas.
Decorre daqui que o socialismo embutido no sapato duro do Estado, não nos
ofereça outra evidencia que a comprovação de uma solene mentira e que o
comunismo de quartel ou de convento constitua a negação mais redonda, o
atentado mais iníquo ao respeito do individuo e aos interesses da comunidade.

* * *

O regime cristão-estatal-capitalista deu à humanidade uma terrível lição: a


demonstração de que a escravização das consciências, o predomínio sobre o
pensamento e a dominação corporal, a exploração do esforço muscular dos
homens, sempre converterá num inferno dantesco a vida social e apressará cada
vez mais a degradação progressiva da espécie.
O Estado é uma entidade que se converte sempre em horrível realidade
quando temos à vista e podemos examinar detidamente qualquer de seus agentes
ou representantes: o juiz, o burocrata, o gendarme, o político profissional.
Descristianizai e descapitalizai a atual ordem de coisas e convertei o Estado
em Deus e em patrão único.
Obtido este propósito, terá sido resolvida a grande questão?
Toda a gama de tipos autoritários, dogmáticos, cegos executores da lei,
autômatos obrigados a cumprir inexoravelmente o dever de sua função, ficam de
pé. O mal que se pretende eliminar, longe de conjurar-se, aumentou-se, porque a
instrução estatal e monopolista estenderam aos membros ativos que a sustentam
suas atribuições omnimodas.
Suponhamos por um instante que tivesse sido realizado na Rússia o mentido
comunismo do Estado. Haveria quem fascinado ante este fato tivesse a ousadia de
afirmar que simultaneamente teria mudado a sorte do povo? Conseguir-se-á
quando muito, seguindo esta via, solucionar em mais ou menos tempo o problema
40

econômico. Mas poderiam, no fim de contas, os doutores da ciência econômica, os


catedráticos da economia política, afirmar seriamente que a felicidade do homem
há de concretizar-se no que poderíamos chamar o ideal do porco, que consiste em
só engordar?
O homem não é um animal indômito ao que há que domesticar e cujas
necessidades se reduzem à satisfação apenas de simples instintos biológicos.
Não o tendes assim admitido e estipulado para vós mesmo, senhores super-
homens de todos os matizes do autoritarismo, traficantes da cultura e profissionais
da indústria da legislação.
O ser humano em geral – não só o que pertence a uma casta privilegiada – é
um ente moral que tem necessidades superiores além dos imperativos fisiológicos
de nutrição. E não terá efetividade na manifestação das idéias e dos fatos a
personalidade humana enquanto que, ajustando-se à natureza intrínseca e
complexa do homem, não haja sido estabelecido e organizado, segundo as
situações mutáveis, o meio social correspondente.
Não estamos vendo, como última experiência cruel na história, de que modo
a sombra da Rússia se ostenta ameaçadora sobre as cabeças do mundo
revolucionário?
Dentro dos limites até onde alcança o poder do Estado bolchevista, é
demasiado sabido que pela ameaça de Solowiezky e de Sibéria e pela sugestão da
boca dos mausers foi obtido peremptoriamente o sonho que acompanhou até o
túmulo o inválido Tamerian: o acatamento absoluto dos dogmas do Kremlin. E
para os que mais além das fronteiras do Soviete, não queiram submeter-se
voluntariamente à sua bestial ditadura, fica reservado, imitando o sistema de todas
as igrejas, o anátema fulminante da excomunhão.
Os césares romanos e Napoleão intentaram conquistar o mundo levando a
guerra a todos os povos que não quiseram submeter-se à sua vontade. Assim a
Igreja “comunista” de Moscou, que deu à humanidade a impostura vermelha e a
quem cabe a triste primazia de proclamar a excelência da ditadura sobre o valor da
idéia de liberdade, condenou à morte, por agonia lenta, ou ao exílio perpétuo, aos
anarquistas russos e estrangeiros de todos os seus domínios, aos heterodoxos do
pensamento oficial e a todos os suspeitos de heresia. E com o mesmo espírito
dominador e jesuítico, Lênin e Trotzky aconselharam a calúnia da qualidade de
anátema contra os inimigos do exterior.
Não são arautos da discórdia em todas as reuniões a que assistem os
catecúmenos da investidura vermelha?
41

É como todos os autoritários do presente e do passado têm a contumácia de


impor ao conjunto social as suas fórmulas estreitas, a sua orientação unilateral e
exclusivista.
Não podemos crer, em conclusão, que pelo meio consistente no atentado
máximo de expropriar à humanidade de todos os bens, se possa chegar ao fim da
justiça.
Só, unicamente pelo resgate e a volta do solo e do subsolo, das matérias
primas, dos instrumentos do trabalho e dos produtos elaborados, às mãos do povo,
que é o seu proprietário legitimo, poderão ter consagração eficiente o socialismo,
o comunismo e todas as formas imagináveis de socialização.
* * *

Infere-se de tudo que fica dito que o anarquismo não é uma doutrina de
gabinete, que as doutrinas anarquistas não constituem fórmulas elaboradas para
que sirvam de decálogo às gerações do futuro.
O anarquismo é o postulado ideal que trata de interpretar a vida em toda a
sua diversidade. A anarquia será a sociedade futura em que, livre a humanidade,
ou uma parte desta, dos grandes obstáculos que impedem a livre canalização das
paixões humanas e o máximo desenvolvimento das aptidões do homem, será
começado um novo ciclo de verdadeira civilização.
De nenhuma maneira será um sistema cerrado e uniforme a organização da
vida que os anarquistas preconizam. Logo a associação do homem na federação
das agrupações livres não pode estar exposta á falência como esteve e estará
sempre destinado à bancarrota o “Estado-prisão”.

VIII

O grande geógrafo Elisée Reclus13 representou a evolução e a revolução com


uma figura simples e completa: o progresso nas sociedades humanas é um rio
caudaloso que deve correr sempre. As suas águas não deixam de caminhar; se um
obstáculo se interpõe à sua marcha, será arrastado se não tiver suficiente firmeza

13Apesar da importância de Reclus no pensamento social, os cursos de humanidades, sobretudo Ciências Sociais e Geografia,
nada vêem sobre sua contribuição particular. Ainda mais pelo fato dele ter sido também um homem de ação, tendo participado,
de armas na mão, na Comuna de Paris em 1871. Os cursos de Ciências Sociais, por exemplo, quando apresentam os pensadores
evolucionistas, limitam-se aos “evolucionistas vitorianos” deixando de lado os “evolucionistas revolucionários”, como Reclus
e Kropotkin se definiam. Estes evolucionistas discordavam das concepções de evolução linear, da idéia de progresso
necessariamente lenta recusando revoluções e retrocesso como estabelecido pelos vitorianos. Para Reclus a evolução não
exclui a revolução, constituindo apenas no mesmo dinamismo transformador dado em ritmos diferentes. Eles não concebem
a estagnação na vida social humana. Assim a evolução e a revolução traduzem mudanças que podem ser lentas e podem ser
rápidas. A evolução não é unilinear e comporta possibilidades de retrocesso. Ainda mais, a evolução pode ser violenta ou
pacífica, do mesmo modo que a revolução. Suas monumentais obras intituladas “Geografia Universal” e “O Homem e a
Terra” não tem publicação no Brasil.
42

estática, e, em caso contrário, mais tarde ou mais cedo, as águas sairão do leito e
transbordarão. Assim é o rio crescente das energias humanas; quando os
engenheiros de diques, quando os arquitetos de muros para contê-las tenham
julgado realizada a sua idéia quimérica de estancá-las, sobrevirá a catástrofe
inevitável; serão arrasados os estreitos canais do capitalismo e saltará feita em
pedaços a velha muralha do Estado.

____________________

Três necessidades fundamentais, inerentes à sua própria natureza e sentida


dia a dia de maneira mais intensa e categórica há de o homem satisfazer em
sociedade: a manutenção da própria unidade humana, a de continuidade no tempo
e no espaço e a do domínio que incessantemente deve ser mais completo do mundo
exterior em suas adversas condições. Diremo-lo de outro modo, empenhados como
estamos em ser entendidos:
Este animal que há em cada um de nós sente e deve atender, sob pena de
atentar contra a sua própria natureza, o imperativo insubornável de dois instintos
fisiológicos: a necessidade de nutrição e a de reprodução. E como racional que é,
como animal de costumes superiores, se agrada mais esta expressão, sente também
o desejo natural antiteológico, de superação intelectual e moral.
Permita-se-nos agora perguntar: pode o animal humano, o homo sapiens,
acanalhados herdeiros da Metafísica, 14 – recitadores autômatos da Retórica! –
exercer sem freio na sociedade atual ou em qualquer regime autoritário, seu pleno
direito à subsistência no amplo sentido requerido pela dignidade humana?
Por conseguinte essa pirâmide egípcia, com absurdos biológicos e morais que
os jacobinos15 de todas as escolas intentam edificar, esse engendro estatal –
sonhado por comtistas e marxistas – triplicemente monopolizador – monopólio das
riquezas, de tudo que foi criado pelo esforço produtor, das liberdades e das
iniciativas, – esse estado elevado à máxima potencia, constituiria, se chegasse a sê-
lo, a iniqüidade menos humana que cabe imaginar, a maior monstruosidade que se
pode conceber.

14 Aristóteles elaborou sua obra dividida em Filosofia primeira e Filosofia segunda. Tratam as duas, respectivamente, de deus
e do imutável e do mundo físico. No século I Andrônico de Rodes classificou a obra de Aristóteles colocando a parte da
Filosofia primeira depois da Filosofia segunda. Desde então metafísica é a parte da filosofia que trata do que está além do
mundo físico.
15 Os jacobinos compunham um grupo de conspiradores que, durante a Revolução Francesa de 1789, defendiam uma reforma

da sociedade a partir de concepções centralizadoras e autoritárias.


43

Antes de impor a todos esse ignominioso truste, esperamos de todos os


estadistas que nos resolvam em teoria o seguinte problema moral: a
compatibilidade do Estado “perfeito” com a verdadeira soberania individual.

* * *

O Estado é para a sociedade o que para o individuo é a prisão.


Nesta o homem deforma-se psiquicamente; para a imensa maioria degenera
progressivamente a sua fisionomia moral. E quanto mais metódica seja a sua
disciplina, quanto mais rígidos os seus regulamentos, quanto mais sábios os
cálculos dos seus diretores para prever o desconhecido e submeter a vida à ideal
uniformidade, tanto mais se extinguirá a dignidade dos seres que ali sentem e
pensam, em maior grau terão sido exterminadas a consciência e a personalidade.
De modo igual acontecerá à atividade e ao pensamento sociais, vertida aquela em
moldes inventados por uns poucos e sujeitos este a padrões exclusivos.
Na vida e na Natureza não se registra o menor sintoma de estatismo: se se
persiste no extravio mental de encerrar em sistemas estáticos, autoritários à
humanidade, esta após uma agonia lenta, estará condenada irremediavelmente a
perecer.
É necessário que insistamos, porém, ainda mais: seriam capazes os sacerdotes
da sociologia oficial de oferecer-nos as provas daquilo que Hobbes não pôde
provar?
Se o homem é um ser sociável como a ciência demonstra e eles mesmos
tiveram que admitir porque há de ser submetido para viver em comunidade a um
contrato social arbitrário e violento, concebido e estabelecido por meia dúzia para
que seja acatado e cumprido desde o berço até à tumba, sem análise nem objeção,
por toda a coletividade?
A melhor demonstração de falsidade do “homo, hominis lupus”, como tipo
comum na mesma humanidade de hoje, podemos encontrá-la no fato incontestável
de que, com desconhecimento de legislações e códigos, saibam ainda os homens
viver na solidariedade que permite a exaltação do utilitarismo burguês e na esfera
de harmonia não quebrada de qualquer modo pela violência estatal.
A solidariedade é uma lei universal que se mantém por cima das caprichosas
conveniências, de sórdidas ambições e de convencionalismos absurdos, impostos
no passado e no presente com caráter de lei.
A ajuda mútua é um fato mais extenso e universal que a cobiça e a pirataria.
Kropotkin demonstrou-o até a saciedade aos doutores apergaminhados de
economia política e aos catedráticos do tresnoitado direito de espoliação.
44

Quereis convencer-vos, inquisidores de todas as igrejas religiosas e políticas,


de como os povos são capazes de remover e colocar em seu verdadeiro centro o
mundo social? Deixai que apóiem a alavanca de seus sentimentos solidários e de
suas positivas faculdades cultivadas no exercício do trabalho; concedei-lhes, ao
menos por uma semana, completa liberdade.
Ficai com a sabedoria dos vossos códigos, com as maravilhas de vossos
inventos mortíferos, com o cretinismo de vossas cerimônias, com a sarna moral de
vossas almas, com a hipocrisia das vossas relações, com a degenerescência dos
vossos costumes, com a vossa obsessão de espíritos dominantes, com a vossa
impotência de ventrudos sibaritas. Deixai-nos passar, deixai-nos fazer e agir.
Assim não haverá revolução, deste modo não correrá sangue; com diferente
atitude vossa, tereis aumentado o terrorífico fantasma da guerra. A tal atitude de
tolerância de vossa parte, prometemo-vos corresponder apagando da face da terra
o roubo e a violência glorificados em vossos símbolos: a águia e a balança, a espada
e a cruz.
Permiti-nos nada mais que experimentar, para não reivindicarmos com a
força o direito de iludir a vossa opressão.
Convidamos-vos, inclusive, a colaborar na nova organização racional a que
aspiramos.
Se no prazo de um ano não tivermos conseguido mais bem estar geral,
superior ao nível econômico e moral das condições presentes – atrevemo-nos a
interpretar a vontade coletiva de todos os anarquistas: – ficai certos de que
declinaremos da atitude que tendes qualificado de louca pretensão. E quase vos
asseveramos também que solicitaremos a vossa tutela sempiterna, a que até à data
ninguém vos ofereceu no sufrágio universal.
Recusais o que vos temos proposto, estais obcecados em seguir explorando e
oprimindo?
Quereis então a revolução.
Não vos restam mais que duas perspectivas: ou matais os revolucionários à
medida que forem aparecendo no campo social ou o cataclismo cuja idéia vos
atormenta, privilegiados e autoritários, sobrevirá.

* * *

Não temos podido fazer mais sincera confissão.


O Anarquismo, ao contrário do que dizem os corações mesquinhos da classe
média, ao contrário do que dizem as almas taradas pelo vicio hereditário da
submissão, não é um ideal de vingança nem uma paixão mórbida de inveja ou de
terror.
45

É a idéia universal de justiça contida em todos os movimentos de rebelião, é


a ânsia reparadora da multidão. É a liberdade do individuo e do gênero humano
cujo extermínio a Santa Inquisição não conseguiu com as suas fogueiras; é a
verdade da ciência, o fruto do trabalho, a luz do pensamento que hão de ser
convertidos em comum patrimônio de toda a humanidade.
IX

A idéia anarquista não é, segundo temos podido constatar, uma simples


abstração de intelecto, não é uma quimera sem possibilidade de admitir sequer o
menor contato com a realidade.
O anarquismo, na mesma hora que vivemos, é de fato e pensamento,
sentimento e ação: é o movimento de vontades e a filosofia de todas as potências
individuais e sociais postas em dinamismo tendentes à consecução da máxima
liberdade para o individuo e ao aumento constante do bem estar geral.
No mundo, porém, não há somente fatos fatais, produzidos pela mecânica
universal e complexa da vida. Nem as idéias que põem em movimento as energias
humanas são sempre um resultado forçoso imposto à consciência individualizada
e seguindo uma direção unilateral.
No cosmos social são igualmente absurdos o livre arbítrio dos teólogos e o
fatalismo econômico proclamado pelos rastejantes ideólogos do “socialismo
cientifico”. Existe como fenômeno subseqüente às leis inexoráveis da Natureza, a
vontade humana como fator importantíssimo da evolução e criação.
As energias cósmicas agem sobre o homem como ente natural que é, e este,
pelo poder da sua consciência e do seu raciocínio, transforma em ações reflexas
aquelas forças, aplicando-as à vida em suas três grandes manifestações, natural,
social e moral.
Um dos grandes fundamentos da filosofia anarquista é constituído pelo
principio cientificamente comprovado que se denomina determinismo
psicológico.
Negada a possibilidade de uma relativa autodeterminação da vontade em
cada um dos seres pensantes, não poderá ser concebida uma sociologia da
liberdade.
Tenhamos, pois, em conta esta premissa, depois de estabelecida a sua
veracidade, como um fato cientificamente aceitado.

* * *

Temos confirmado que o anarquismo é, antes que um postulado doutrinário,


um movimento voluntarista.
46

Vejamos de que modo orientar com mais acerto esta vontade, quais meios
práticos e que métodos serão mais eficazes para que as vontades socialista-
anárquicas possam influir sobre as presentes condições sociais como uma potência
de transformação.
Ao expormos as idéias anarquistas numa síntese geral, mencionamos as
quatro grandes denominações com que é enunciado e conhecido o problema social
na Europa e na América.
Formulamos uma breve critica das duas primeiras correntes enumeradas, das
duas escolas mal qualificadas de socialista e comunista.
Analisamos agora a terceira dessas grandes manifestações: o sindicalismo.

* * *

Desde meados do século passado, em que o capitalismo – aproveitando


invenções mecânicas, novos e mais técnicos processos dos métodos de produção –
iniciou um novo ciclo de prosperidade, um novo fato social se apresenta na vida
moderna: o aparecimento do proletariado.
Os operários industriais, aglomerados nas grandes fábricas dos centros de
população, vitimas de uma maneira cada vez mais intensa da “férrea lei do salário”,
tosquiados e oprimidos dum modo sem cessar crescente em celeridade e em
extensão, chegam por fim, depois de cruéis sofrimentos, a sentir-se irmanados pela
dor.
Determinados por esta situação econômica e moral, os trabalhadores da
Europa ocidental realizaram no período de 1830 a 1860 a primeira etapa de um
movimento associativo que depois se tornaria geral. Organizações de proletários
de diversas profissões foram constituindo-se neste decurso de tempo com fins de
apoio mútuo e defesa comum.
Como resultado deste processo de fatos e de vontades, sobreveio em 1864 à
formação da Associação Internacional dos Trabalhadores.
A partir daqueles anos, o movimento operário que associa aos explorados
para resistir aos embates da exploração, seguiu com incremento e demonstrando
constantemente mais vigor em seus vínculos de solidariedade.
Mas note-se bem: a velha A. I. T. foi edificada sobre uma base puramente
corporativa. Karl Marx pronuncia a famosa expressão: “Trabalhadores do mundo,
uní-vos”. Esta proclamação oferece-nos, com uma face bem clara, a fisionomia
moral da 1ª Internacional.
O mesmo homem, alentador deste grande movimento unionista, quebrantará
depois o propósito indefinido da associação, querendo encaminhar as ações que a
integram pela estrada do reformismo e da conquista do poder.
47

Tal orientação que implicava num desvio flagrante, numa claudicação da


rebeldia exteriorizada contra o jugo patronal e contra a dominação autoritária,
devia encontrar uma resistência. Os operários espanhóis, jurassianos, italianos,
etc., possuindo uma compreensão mais ampla dos fins que o proletariado
organizado devia traçar-se, expressaram a sua rebeldia, a sua inconformidade
contra o pensamento tortuoso do Conselho Geral daquela entidade. Mikhail
Bakunin sustentou, interpretando o pensamento de todos, a oposição mais rude e
tenaz.
É indubitável que toda agrupação humana, cujos membros se associaram
determinados por uma vontade sentida, deverá traçar-se também uma finalidade.
Lógico era, pois, que sendo um desejo revolucionário o que unia aos trabalhadores
de todos os países, se propusessem como objetivo comum chegar a uma
transformação profunda, preparar as condições indispensáveis para uma revolução
social.
O movimento orgânico dos trabalhadores que se tem inspirado, com
declarações mais ou menos precisas, em um ideal inovador, cujos componentes
aspiram a uma mudança fundamental das bases e da estrutura orgânica da
sociedade, é o que se tem qualificado com o termo sindicalismo.
Pois bem; permita-se-nos perguntar: este nome vai mais além de uma simples
e convencional denominação?
Ninguém ousará negar que antes de conhecer-se este termo – antes que os
camaradas anarquistas da França prestassem, inventando-o, um fraco serviço às
idéias – não existisse o movimento operário, as organizações proletárias, ou bem
seguindo uma trajetória reformista ou inspirada num anelo de revolução.
Para que, então, novas classificações gramaticais? O verbalismo em nossas
atividades intelectuais é uma funesta herança do culto latino à Retórica e do tributo
rendido na Idade Media à Metafísica, cujas conseqüências confusionistas
haveremos de suportar por muito tempo ainda.
É de lastimar que os nossos companheiros franceses, Pouget, Ivevot, Theilier,
Pelloutier, Tortilier, etc., não tivessem em conta as lições de sadia reação contra
tudo que significa aparatosidades lingüísticas e complicações inobjetivas da vida e
do pensamento, seguindo o exemplo do mestre das letras francesas e nosso grande
precursor François Rabelais!
Temos impugnado nas linhas precedentes, não só o defeito da logomaquia
infiltrado na esfera do pensamento revolucionário, mas também – e o que é pior –
as complicações levadas ao terreno das determinações e da atividade quotidiana.
Que esta observação corresponde a uma lamentável verdade comproválo-
emos ao examinar as direções que tem seguido a vontade de fazer, inspirada e
48

alentada pelo pensamento anarquista, que por sua vez – não há que esquecê-lo –
foi concebido e elaborado recolhendo experiências e consultando fatos.
X

Que o sindicalismo não tem natureza própria – ao contrário do que não há


muito afirmava um camarada – prova-o o fato de que pode ser socialdemocrata ou
bolchevista, fascista ou católico, anarquista, etc. Não sendo mais que o nome dado
ao movimento operário, ele terá o caráter que lhe infundam com a sua mentalidade
e o seu temperamento as minorias ativas que o orientam.
As discrepâncias de pensamento suscitadas no seio da Internacional
motivadas pela orientação que devia dar-se às “sociedades de resistência”
apresentaram um importante problema aos militantes das mesmas: a escolha dos
meios conducentes ao fim comum de transformar a sociedade.
É conhecida a diferença de critério a este respeito, quanto aos métodos de
luta a seguir entre os chamados marxistas e bakuninistas, entre autoritários e
libertários.
O congresso anti-autoritário, celebrado em Setembro de 1872 em SaintImier,
representa a rebeldia da liberdade – que inspirou a fundação da A. I. T. – contra o
dogma autoritário e o espírito de dominação, encarnado em Karl Marx e os seus
amigos.
Desde então até hoje, a separação das organizações proletárias em todos os
países, seguiram direções diferentes, é inevitável.
Muito empenho foi posto e muito boas intenções têm sido consagradas ao
propósito de retornar à unidade.
Grande número de companheiros anarquistas tem sofrido, obsessionados por
esta idéia, de excessiva ingenuidade.
Felizmente, parece que as duras lições oferecidas pelo tempo chegaram a
dissuadi-los do intento vão de estabelecer um acordo dentro dum mesmo marco de
luta para alcançar o ideal comum de emancipação.
É sabido que, quando estava pra fazer-se a luz, uma nova corrente de
vontades fez a sua aparição, pretendendo incorporar às idéias socialistas, com a
denominação de Sindicalismo, uma nova doutrina social.
Cerrando os olhos ante a investigação serena do passado, ante a realidade
instrutiva do presente e em face aos verdadeiros destinos do futuro, anunciou-se
ao mundo operário, a descoberta de uma nova orientação. Para alcançar o fim, em
cuja direção tinha que se encaminhar, rotas diferentes às já conhecidas haveria que
seguir. E para não sofrer extravio, dispor-se-ia também de uma bússola especial.
49

O novo horizonte de onde, a seguir, viria à luz e ao qual havia que se dirigir,
era o sindicalismo como fim, as organizações corporativas como órgãos da
revolução e da futura sociedade.
O mundo distinto constituí-lo-ia a precedência absoluta, o isolamento de toda
a influência política, filosófica e religiosa; e como bússola infalível, como pedra
filosofal, a consciência de classe.
Pretendiam conjurar em principio o perigo de que se repetissem sem cessar
as velhas disputas tendenciosas e intentava-se, como máxima finalidade, conseguir
de novo o irrealizável: a fusão dos trabalhadores em um só movimento
internacional.
Acreditou-se, portanto, se haver encontrado um novo centro para equilibrar
sobre ele toda a ação revolucionária mundial: a luta de classe sem a pressão
externa, sem o influxo perturbador de ideologias estranhas.
Que significação tem tido no movimento revolucionário a intitulada escola
sindicalista?
Em nossa opinião, provocou em quase todos os países um processo de
involução, cujas projeções alcançam às lutas atuais e cujas conseqüências
irremediáveis até hoje seria difícil calcular.
Perante o juízo e a comprovação de todos oferecem-se, por exemplo, a
situação do proletariado francês e as tortuosas atitudes do bloco possibilista
espanhol durante quinze anos, se não se quer dar crédito à nossa opinião.
Segundo o nosso entender, o sindicalismo, malgrado as suas pretensões de
nova teoria, não representou senão a volta ao primitivo e estreito conceito
corporativista da A. I. T.
Posteriormente estudaremos as suas pretendidas concepções e o seu sistema
para o futuro, com mais extensão.

* * *

Temos lido e ouvido repetidíssimas vezes definições expostas neste teor: “o


sindicalismo é o movimento corporativo das classes trabalhadoras em luta
permanente contra o seu inimigo natural, o capitalismo”.
“Sindicalismo é a denominação com que se conhecem as lutas da classe
operária na defesa de seus interesses contra o capital. É o resultado fatal da
concentração de jornaleiros nas grandes fábricas dos centros de população
industrial. A passagem do artesanato à manufatura e a transmissão desta aos
estabelecimentos de dispositivos mecânicos, facultaram as condições de
dissociação entre produtores legítimos e produtores nominais: a máquina quebrou
50

os velhos vínculos morais que caracterizavam a vida da oficina; o binômio patrão


e assalariado expressa a característica da moderna face econômica da sociedade”.
A pugna biológica, de defesa instintiva dos interesses encontrados de cada
setor inimigo, entenderam, os sindicalistas neutros, que era a única manifestação
atendível da guerra social contemporânea.
A beligerância das idéias, das opiniões, do pensamento, que cada cérebro
pode conceber e expor, relacionados com os fins e com a atividade conseqüente
das coletividades gremiais, em nada poderia perturbar o rígido curso do
sindicalismo 100x100.
O ponto ideal em que devia situar-se o “sindicato” era, pois, o da
eqüidistância entre o socialismo e o anarquismo. Dilucidar questões de doutrina,
propagar os princípios de socialização da terra e da riqueza em geral, aconselhar a
luta impostergável contra a burguesia e o Estado sob qualquer de suas formas,
manifestar-se contra a autoridade do sacerdote, do legislador e do patrão no templo
sindical, era – Pestaña, de cabeça já encanecida, asseguranos doutoralmente que é,
apesar de tudo, – fazer política, desviar com sugestões do intelecto, a realidade
econômica, do seu leito natural.
Falar aos trabalhadores da necessidade de traçar-se o propósito decisivo de
evadir-se deste imenso cárcere – destruindo-o – tem equivalido para os
sindicalistas imaculados a uma fantasmagoria filosófica que distrai aos
trabalhadores sem que a possam compreender.

XI

Convenhamos ante o exposto em que o sindicalismo – o movimento operário


considerado como tal – é algo muito semelhante ao que foi o corpo de Adão antes
de infundir-lhe o padre eterno o sopro vital; um montão de barro dutil e maleável,
suscetível de submeter-se a qualquer aplicação e forma.
Examinemos o problema.
Em anteriores capítulos temos constatado que a humanidade não vive com os
regimes atualmente imperantes no melhor dos mundos.
Por esta causa os escravos modernos procuram atenuar o seu mal-estar
somando e elevando a potência coletiva às vontades individuais para a defesa
comum.
Dito de outra maneira: uma organização social sustentada pela violência e
pelo engano para a exploração e a servidão teria de provocar fatalmente a
desconformidade explícita dos explorados e servos com as causas que os
submetem à condição de tais.
51

Tal descontentamento constitui o primeiro motivo gestor das associações


proletárias.
Pois bem; dita atitude de rebeldia incipiente poderá projetar-se numa reta sem
limites, ou poderá ser desviada numa curva que volva ao ponto de partida. Neste
caso, estão os sindicatos orientados por tendências autoritárias, bem como os
submetidos à égide do capitalismo (Federação Americana do Trabalho) ou sob a
influência do Marxismo (Trade-Unions inglesas, Sindicatos vermelhos da Rússia);
ou patrocinados por qualquer religião ou qualquer Estado. (Corporações gremiais
católicas, fascistas, etc.).
Distintamente, na primeira de tais situações, as organizações inspiradas pelo
anarquismo e propulsionada a sua atividade por vontades anarquistas
(Confederação N. do Trabalho de Espanha, F. O. R. Argentina, Federação Operária
de S. Paulo, Brasil, etc.)

* * *

Já o temos insinuado: cada proletário que se agrupa aos demais nas


sociedades gremiais, faze-o, na maioria dos casos, alentados por um propósito
defensivo. Não se propõe destruir a cadeia da exploração, libertar o pescoço da
gargalheira do salário; crê religiosamente que aquela será eterna e aspira
simplesmente a conseguir maiores forças para que lhe resulte menos pesada; deseja
unicamente não ser estrangulado por este. Conforma-se em permanecer jungido ao
carro da miséria, desejando apenas não suportar o jugo da fome.
É esta a que poderíamos qualificar de matéria prima, com que em suas bases
estão formados os sindicatos.
A cada sindicato profissional concorrem os operários considerados como
elementos de um ofício determinado: alfaiates, sapateiros, pintores, padeiros,
tecelões, etc. Mas haveriam de ser subjugados na oficina e na fábrica, pela
profissão, e escravos fora dela por uma sempiterna mania profissional?
Lopes Arango disse com grande acerto: o indivíduo vale pelo que pensa e
não pelo que produz. Quer dizer, seu valor distintivo está no que o homem supõe
como unidade consciente e determinante do progresso e não como fator cego e
forçado da produção.
Não terão os operários padeiros, por exemplo, um valor nem individual nem
coletivo para a marcha ascendente de um povo, pelo fato de prepararem as massas
do pão, de trabalhar até ao esgotamento, atendendo com seu esforço uma
necessidade iniludível da população. Mesmo sentindo o orgulho de elaborar o
manjar mais indispensável à vida, não passaria, quem tal necessidade sofrera – se
52

não tivesse outra virtude – de instrumento de trabalho, de motor de sangue, de


animal de tiro no carro da produção.
Hoje, na época do maquinismo galopante, o trabalho, para quem aspira a uma
sociedade sem parasitas, é um timbre de dignidade; mas para o autômato de cérebro
e de coração, é envilecedor.
O fato de rebelar-se como explorado e de pensar numa sociedade mais
humana, de lutar por um principio de equidade, constituirá, sem dúvida, um
verdadeiro mérito social; não de igual modo a ação mais ou menos mecânica de
produzir.
Por ventura a maioria dos trabalhadores não se submete à situação de tais
porque as circunstâncias não lhes são propícias para mudar o seu papel pelo do
mais vulgar e desumano explorador?

* * *

São incontáveis as tolices que se têm intentado fazer passar por princípios
filosóficos.
Calino pretendeu, às vezes, valorizar as de menos sentido e de menos bom
gosto, ilustrando-as, para maior compreensão, com alguma estupidez.
Algo disto ocorreu com respeito ao assunto de que nos estamos ocupando.
Tem-se dito: o sindicalismo é a doutrina da ação como o anarquismo o é do
pensamento.
O sindicalismo é o braço, enquanto que o anarquismo é o cérebro da
revolução.
O sindicalismo libertário será, é já de fato, o veículo em que devemos
embarcar-nos; a anarquia é o longínquo e luminoso ponto do horizonte ao qual nos
devemos dirigir.
Ungüento de retórica, incenso literário, verborragia!
Por acaso a doutrina da verdadeira ação revolucionária não é o pensamento
anarquista, e este não se traduz em sentimentos e em fatos como já temos dito e
provado mais de uma vez?
O anarquismo não é um fluído etéreo que se corrompe em contato com as
coisas dos mortais e se converte em pó e lodo quando desce das alturas.
O descontentamento momentâneo e circunstancial dos explorados deve ser
convertido em raciocínio critico, em sentimento criador, e projetado em aspirações
de liberdade: deve traduzir-se no desejo constante de chegar a uma fundamental
transformação das relações econômicas e morais. Eis ai o dever dos anarquistas.
53

Onde deverão cumprir esse dever senão em todos os lugares em que prestem
o concurso de sua atividade pessoal?
Apresenta-se na vida, tanto aos indivíduos como às coletividades um dilema
de cujos termos não é muito fácil escapar: ou se está com a reação ou pela
revolução. (Claro que isto não quer dizer que estejam contra nós quantos não nos
acompanhem na ação. Não se deve esquecer que são muitos os paralíticos da
vontade).
E se há sindicatos, organizações proletárias que estão pela revolução, que
mantêm uma beligerância revolucionária, e cujos militantes são anarquistas, por
que não hão de serem anarquistas em maior ou menor grau tais agrupações
gremiais?
Que tais instituições têm defeitos equivalentes cada um a uma negação das
idéias? Mas, por acaso, não os há igualmente no grupo em mais ou menos
quantidade? Não é também defeituoso cada individuo ainda que se chame e de fato
seja anarquista?
Nós não coincidimos com os que em nome do realismo levantam altares a
Sancho Pança, nem compartilhamos o pensamento dos que, fazendo da anarquia
uma deidade, substituem velhos absurdos com dogmas novos.
Parece-nos que as persistentes invocações da idéia pura, não representam
senão uma litania libertária que converte o anarquismo em doutrina religiosa.
E de igual modo às especulações antifilosóficas de alguns aspirantes a
filósofos, soam-nos como as últimas salmodias do marxismo decadente postas em
solfa sindicalista, tal o ensino negativo que nos oferecem em Espanha os teóricos
do possibilismo, os devotos do praticismo, os “trinta” semideuses destronados.

* * *

Quer-se um materialismo grosseiro e rastejante, senhores sindicalistas


catalães?
Em resposta a tão mesquinha pretensão, aconselhamos – permita-se-nos este
atrevimento – a leitura do folheto de R. Rocker “A maldição do praticismo”.
Entretanto, aplaudimos aos anarquistas espanhóis que, depois de repelir o
marxismo pela porta, não permitiram que penetrasse no movimento operário pela
janela.
Pelo contrário vós, anarquistas, quereis a idéia sem mancha?
A posse desta só pode ser privilégio de raras individualidades: de um Reclus,
de Louise Michel, Fermino Salvochea, E. Malatesta. Poderá encontrar-se integra
em um Max Netlau, mas nunca em agrupamentos humanos.
Não estejamos iludidos.
54

XII E ÚLTIMO (*)

No movimento revolucionário de língua portuguesa encontra-se, como nos


demais países uma considerável diversidade de opiniões sobre a atitude dos
anarquistas ante os sindicatos operários. Poderemos polarizar em dois extremos as
diversas e distintas opiniões:
Neno Vasco de um lado e a União Anarquista Portuguesa de outro.
O primeiro disse que “o anarquismo é sindicalista desde o berço” e que “quanto
mais anarquista, mais sindicalista”.
Para o camarada desaparecido, o sindicalismo era o Centro coligador de todas
as vontades revolucionárias, de todos os elementos de produção, enquanto
desempenham somente esta função. Mas até aqui, é, todavia mínima a sua
importância.
Traduzindo o pensamento de Varlin, um dos elementos assassinados pelos
versalhêses da Comuna de Paris, e identificando-se com ele, diz: “... pois são elas
que formam os elementos naturais da edificação social do futuro; são elas que
poderão facilmente transformar-se em associações de produtores; são elas que hão
de poder utilizar a ferramenta social e organizar a produção”.
Refere-se às sociedades corporativas e de resistência, como naquele tempo
se dizia.
Posteriormente os anarquistas portugueses fizeram afirmações contrárias.
Vejamos o que dizia, há dez anos a U. A. P., com respeito à sua atitude em
face do sindicalismo:
“O anarquista, homem livre e inteligente, culto e idealista, não suporta
naturalmente o meio criado nas organizações sindicais; e se lá dentro pretende
exercer a sua ação, ou é absorvido ou é deslocado...”
Depois de algumas considerações deste teor, chega a conclusões como estas:
“O sindicalismo revolucionário, que apenas possui objetivos materiais e
exclusivos, desenvolve o egoísmo natural das massas”; “o sindicalismo
revolucionário, pela sua estrutura orgânica e processos de luta, está imbuído de
autoridade!”
..............................................................................................................................
.....................
Como acabamos de comprovar, as corporações gremiais, mesmo sendo de
caráter abertamente revolucionário, tem tido as mais diversas apreciações, quanto
ao seu valor.
55

Para alguns anarquistas constituem os atuais sindicatos as células


embrionárias da Sociedade futura...
O IV Congresso da A. I. T., realizado em Basiléia em 1869, deu impulso e
expansão à idéia de que as “sociedades de resistência” criadas desde já por uma
necessidade da luta contra o atual mundo de monopólio e exploração, seriam os
órgãos de uma nova estrutura social no porvir.
As distintas tendências sobre o assunto têm sido atenuadas e também
exageradas. Alguns viram no sindicato atual o Alfa e Ômega da revolução social,
a panacéia do presente e do porvir, como os sindicalistas franceses Pierre Besnard
e Huart; e outros, ao contrário, como alguns dos elementos conhecidos em nosso
meio social – repetem constantemente, até à saciedade, que cada núcleo de
organização gremial deve significar qualquer coisa assim como asilo de inválidos,
como um refugio de mendigos, como se fossem monturos de ex-homens.
Não coincidimos nem com os segundos e muito menos com os primeiros.
Ainda que incorramos no perigo de ser exagerados, insistiremos em que não temos
fé nalguma palingenesia social; não acreditamos que possa haver ou que chegam a
descobrirem-se caminhos únicos ou fórmulas salvadoras.
Parece-nos que não deixa de ser uma ilusão desconcertante o pensar que
determinada corrente, grupo ou opinião individual se creia estar no mesmo plano
daquela idéia com que um louco estampava na capa de um livro seu: – “A fórmula
justa do Bem estar Social”. Não seria mais viável entender que a verdade é sempre
relativa, e que, sobretudo, não devemos ter a pretensão de querer monopolizá-la?
Em vez de oficiarmos no papel de dominós e afirmarmos com ênfase que os
outros estão errados, melhor seria que, com modéstia e tolerância exaltássemos as
outras vontades para que, na multiplicidade das manifestações, lutassem sem
cessar e cada dia mais intensa e amplamente, pela liberdade e pelo bem estar de
todos os progressos sociais, contra o autoritarismo e contra o mal.
Neno Vasco, muito mais os sindicalistas franceses e espanhóis
contemporâneos que se esforçam por fazer do sindicalismo uma nova igreja,
afirmam que a missão das organizações é mais pós que pré-revolucionária. Nós
opinamos o contrário.
Assim como a vida econômica e social presente revasa os limites das leis
convencionais e dos códigos absurdos, do mesmo modo e com maiores proporções
nos parece que a convivência futura dos homens não poderá ser encaixada nos
moldes acanhados que os engenheiros do sindicalismo preparam na atualidade para
as gerações vindouras.
Por isso mesmo é que o livro de Besnard, “Os sindicatos e a Revolução
56

Social”, nos parece algumas vezes um “catecismo sindicalista” – expressão feliz


de um mestre das idéias – e outras uma infantilidade, própria de uma criança
próxima aos 50 anos, enérgico defensor das suas opiniões.

* * *

Insistamos pela última vez: o sindicato – ou como se queira chamar –


enquanto está no seu papel de agrupação de homens que estão vinculados
estreitamente à vida social, como elementos indispensáveis à sociedade capitalista,
julgamo-lo um dos meios mais eficazes de atividade revolucionária.
Naturalmente quando homens de pensamento e de temperamento
revolucionário e dinâmico influam na sua orientação.
Vejamos: se os assalariados agrupados nas associações proletárias; se os
escravos do capitalismo, ligados pelo interesse comum e estimulados pela
solidariedade na luta, se declaram em rebeldia contra o capital, não será afetado o
seu equilíbrio de uma forma mais real dentro das atuais condições de vida?
Se o Estado quer impor aos trabalhadores uma lei mais ignominiosa que as
demais, com as mesmas forças de ação anti-capitalista poderá ser travada a luta
anti-estatal.
Assim que seja à força, estamos ligados, como trabalhadores que somos, ao
regime que pretendemos destruir.
O vínculo que nos une (o Trabalho) – quem o ignora? – pode ser convertido
numa ferramenta utilíssima de luta defensiva e ofensiva, sabendo-a esgrimir.
O que nos une e confunde com o mundo atual na qualidade de anarquistas?
No primeiro caso, ainda que tentássemos por de lado uma das partes, ou
mesmo que tentássemos por simultaneamente as duas, não haveria possibilidade
de solução de continuidade entre nós e o nosso inimigo.
Que atitude negativa equivalente à greve, por exemplo, poderíamos assumir
no caso de uma luta defensiva num movimento anarquista especificado contra o
capitalismo ou contra o Estado?
Contam os anarquistas e simpatizantes nalguma parte do mundo em nalgum
pais com forças para declarar a guerra ao mundo burguês e incitar depois a todos
os que o não são à luta pela Revolução Social?
Mesmo que os anarquistas pudessem sozinhos fazer a revolução e por temor
ao fracasso ou por negligência não se decidissem a começá-la, que outra coisa
poderão fazer hoje – enquanto não se descubram novos métodos e procedimentos
mais profícuos de propaganda e combatividade – do que aquilo que já fizeram
ontem?
57

Se nos vimos repelidos pelos que vivem satisfeitos com a sua escravidão,
aonde iremos senão aonde se encontram os descontentes e predomina mais ou
menos o estado de revolta, ainda que os rebeldes não saibam explicar-nos O
PORQUÊ da sua rebeldia?
Camaradas que acusais aos sindicatos de não ser cada um deles mais que uma
fábrica de lágrimas: esperamos que algum dia nos tire deste atoleiro onde nos
colocam as interrogações que acabamos de formular.

* * *

Cremos que se haverá compreendido, pelo que acabamos de expor, que a


nossa intenção é somente expressar o nosso descontentamento por tudo que
signifique unilateralidade.
Ao contrário, entendemos que é preciso seguir todos os caminhos, recusando-
nos, claro está, a seguir aqueles que por experiência ou por razões de consciência
temos a certeza de que nos irão extraviar.
Não poderemos resistir a este respeito, à tentação de dar a palavra ao nosso
mestre e sábio Max Netlau.
Ouçamos o que ele diz com mais profundidade de conceitos e com maior
beleza de expressão:
“Uma idéia viva não pode ser nunca acabada, aperfeiçoada, sublimada em
quintessência, numa fórmula, num programa ou numa plataforma, encarnada num
homem.
Isto significa precisamente encerrá-la numa prisão onde languescesse em vez
de florescer, abrir-se e estender-se. A idéia libertária tem necessidade a cada
instante de ser alimentada em terrenos novos e amplos, pela experiência de
aplicações novas; imaginar-se que partindo de alguns grupos e periódicos ela irá
um belo dia, em linha reta, a regenerar a humanidade, é de um simplismo
apergaminhado. Não; a sua missão e trabalho a defrontam no grande mundo, onde
ainda há, apesar dos maus tempos, uma grande quantidade de homens cheios de
vitalidade, que saberão ser-lhe tão úteis fiéis guardiões, mas que não devem
converter-se em seus seqüestradores, pretendendo monopolizar as idéias.
Levemo-la ao grande mundo dos progressos humanos que é o seu ambiente
fraternal e favorável.
Não devemos recear que se desnaturalize ao contato do ar livre; teria mui
pouco valor se qualquer contato pudesse prejudicá-la”.
Identificamos o anelo comum de estabelecer um mundo novo?
É nosso fim a Liberdade e são libertários os nossos meios? Isso basta.
58

Sem nos perdermos em doutrinarismos artificiosos, sem contradizer o nosso


pensamento com atitudes de criticômanos e de dogmáticos, empenhemo-nos em
somar cada dia maior número de vontades para a causa do progresso.
É mais urgente a multiplicação das consciências livres e a formação de
caracteres fortes que a superprodução de aparatos sindicais, ou de utopias
anárquicas.
Sem nos perdermos em doutrinarismos artificiosos, sem contradizer o nosso
pensamento com atitudes de criticômanos e de dogmáticos, empenhemo-nos em
somar cada dia maior número de vontades para a causa do progresso.
Anarquismo? Sindicalismo? Prescindi, se assim o quereis, de vos definirdes
por qualquer destes termos.
Lutai para que o homem seja mais humano, mais tolerante e mais digno.
Trabalhando todos neste sentido, a Anarquia não será amanhã um belo sonho
e uma esperança vã.

_______________________
(*) N. do A.: Era nosso propósito comentar e opinar sobre outros aspectos em torno deste tema, que, de maneira improvisada,
temos vindo analisando. Mas a limitação das possibilidades para a saída regular de “A Plebe” nos obriga a desistir. Não
devemos ocupar com um escrito pesado, por extenso, um espaço que se torna indispensável, agora mais do que nunca, para
tratar de assuntos de maior atualidade. Em todo o caso voltaremos a dar nossa opinião, quando as circunstâncias o requeiram,
sobre estes problemas que oferecem – quanto se criticam ao menos opiniões desatinadas – algum interesse.
59

Imprensa Marginal
Uma breve apresentação

Há tempos a cultura, a informação e as idéias criadas pelo ser humano são


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apenas um valor coerente ao seu custo real – referente à cópia, montagem e auto-
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