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The meanings of social construction: the constructionist invitation to


Psychology

Article  in  Paidéia (Ribeirão Preto) · April 2005

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0 30

2 authors:

Emerson Rasera Marisa Japur


Universidade Federal de Uberlândia (UFU) University of São Paulo
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21
Paidéia, 2005, 15(30), 21-29

OS SENTIDOS DA CONSTRUÇÃO SOCIAL: O CONVITE CONSTRUCIONISTA PARA A


PSICOLOGIA 1

Emerson Fernando Rasera 2


Universidade Federal de Uberlândia
Marisa Japur
FFCLRP-Universidade de São Paulo

Resumo: O construcionismo social é um movimento que tem ganhado destaque na literatura interna-
cional em Psicologia na última década e encontra seus primeiros passos no Brasil. O objetivo deste texto é
descrever os múltiplos sentidos do convite construcionista, apresentando as histórias da origem deste movi-
mento, suas contribuições e as principais tensões e questionamentos aí produzidos. Partindo de um conjunto de
críticas ao fazer científico, as propostas construcionistas buscam ressaltar a especificidade cultural e histórica
das formas de conhecermos o mundo, a primazia dos relacionamentos humanos na produção e sustentação do
conhecimento, a interligação entre conhecimento e ação e a valorização de uma postura crítica e reflexiva.
Estas propostas convidam assim a uma prática científica que se implique culturalmente e que promova a
ampliação dos vocabulários relacionais.

Palavras-chave: construcionismo social; ciência; Psicologia; teoria.

THE MEANINGS OF SOCIAL CONSTRUCTION: THE CONSTRUCTIONIST INVITATION


TO PSYCHOLOGY

Abstract: The social constructionist movement has been in prominence in the international psychological
literature in the last decade and it is now rising in Brazil. The objective of this text is to describe the multiple
meanings of the constructionist invitation through the histories of its origin, its contributions and the main
tensions and debates produced. Considering a set of critics to scientific practice, constructionist’s proposals
emphasize the historical and cultural specificities of our ways of knowing the world, the primacy of human
relationships in the production and maintenance of knowledge, the link betweeen knowledge and activity and
the valorization of a reflexive and critical stance. These proposals invite a culturally sensitive scientific practice
that promotes the enhancement of our relational vocabularies.

Key-words: social constructionism; science; Psychology; theory.

O construcionismo social é um movimento tidos do convite construcionista, apresentando as his-


que tem ganhado destaque na literatura internacional tórias da origem deste movimento, suas contribuições
em Psicologia na última década e encontra seus pri- e as principais tensões e questionamentos relativos
meiros passos no Brasil (Spink, 1999; Grandesso, 2000; às propostas construcionistas.
Rasera & Japur, 2001, 2003). Buscando contribuir
com a difusão da perspectiva construcionista no Bra- Histórias da origem
sil, o objetivo deste texto é descrever os múltiplos sen-
A tentativa de definir o que vem a ser o
1
Artigo recebido para publicação em 18/03/2004; aceito em 04/05/ construcionismo social tal como presente na literatu-
2005.
2
Endereço para correspondência: Marisa Japur, Faculdade de Filoso-
ra em Psicologia é uma tarefa difícil, seja pelas ques-
fia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo tões envolvidas, seja pela crescente produção que
– Departamento de Psicologia e Educação, Avenida dos Bandeiran- tem ocorrido. É possível tentar iniciar esta tarefa afir-
tes, 3900, CEP: 14090-910, Ribeirão Preto – SP, E-mail:
mjapur@ffclrp.usp.br
mando que não há uma definição única, amplamente
2 2 Emerson Fernando Rasera
aceita, do que vem a ser o construcionismo social. rária, as quais absorvem o objeto de tais descrições,
Alguns definem o construcionismo como um movi- fazendo-o perder seus status ontológico, sua indepen-
mento (Gergen, 1985, 1997), outros afirmam que os dência do processo descritivo. Em paralelo aos estu-
autores considerados construcionistas têm entre si dos literários, a investigação retórica aponta as for-
apenas uma ‘semelhança familiar’ (Burr, 1995), e mas pelas quais tais descrições ganham seu poder
outros ainda afirmam não existir uma psicologia persuasivo, através do uso de determinadas metáfo-
construcionista social (Potter apud Nightingale & ras, e formas específicas de apresentação da relação
Cromby, 1999). autor/leitor e do objeto descrito. Ela desloca a inves-
O surgimento do construcionismo na Psicolo- tigação do objeto para os meios de sua apresentação.
gia é, segundo alguns autores (Burr, 1995), datado de A partir desta crítica, o texto científico fica então aber-
1973, com a publicação do artigo de Kenneth Gergen to para análise de suas metáforas, as quais não são
“Social psychology as history” (Gergen, 1973). Con- derivadas da observação, mas “servem como estru-
tudo, este mesmo autor questiona a possibilidade de turas retóricas através das quais o mundo observa-
circunscrever desta forma o surgimento do constru- cional é construído” (Gergen, 1997, p. 41).
cionismo. Segundo ele, a história do construcionismo Assim, estas três críticas redimensionam as
social está inserida no contexto do desenvolvimento teorias científicas, explicitando seu caráter compro-
da ciência, pautada por três críticas ao fazer científi- metido, sua determinação histórico-cultural e enfra-
co que contribuíram para a construção de uma con- quecendo uma visão da ciência como uma descrição
cepção alternativa ao pressuposto do conhecimento objetiva e acurada da realidade, na qual a linguagem
como posse do indivíduo: a crítica social, a ideológica é sustentadora da verdade. É no bojo do pensamento
e a retórico-literária. pautado por estas críticas que emerge o constru-
A crítica social emergiu de autores tais como cionismo. Para Gergen (1997), buscar uma história
Marx, Weber, Scheler e Karl Mannheim, os quais da gênese do construcionismo é remontar à história
estavam preocupados com a gênese social do pensa- de cada um destes empreendimentos. Dado que esta
mento científico, ou seja, de como o conhecimento é tarefa está para além dos objetivos deste trabalho, é
cultural e historicamente situado. De particular im- importante retornar agora para as idéias que carac-
portância para o construcionismo foram os estudos terizam o construcionismo social.
dos processos micro-sociais presentes na produção
científica, seja na construção do fato científico, nas Congruências descritivas nas perspectivas
práticas discursivas de autolegitimação, ou na influ- construcionistas
ência do grupo na forma como os dados são interpre-
tados. Neste texto, o construcionismo se refere a uma
Já a crítica ideológica possui uma forte identi- perspectiva multifacetada e a um discurso que busca
ficação com ‘teoria crítica’ da Escola de Frankfurt - se articular em torno de algumas questões centrais.
Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamim e outros. Apesar da dificuldade em determinar um conjunto
Esta crítica, para além de sua orientação marxista único de descrições que agregue todos aqueles que
original, está presente atualmente em diversos seto- possam ser chamados de construcionistas, parece
res das ciências humanas. Ela busca explicitar os vi- haver um certo consenso entre diversos autores (Burr,
eses presentes na construção de determinadas teori- 1995; Nightingale & Cromby, 1999; Gergen, 1999)
as, decorrentes de seu compromisso com grupos soci- em torno de quatro descrições centrais para o desen-
ais específicos. Dessa forma, a teoria crítica rejeita a volvimento de uma perspectiva construcionista, quais
idéia de neutralidade na ciência e sua possibilidade sejam:
de descrição objetiva e acurada do mundo. 1. A especificidade cultural e histórica das
A crítica retórico-literária, por sua vez, busca formas de se conhecer o mundo.
mostrar como as descrições e explicações científicas A realidade não demanda formas específicas
são determinadas pelas regras de apresentação lite- de descrevê-la. Ou seja, não há uma relação de ne-
Os sentidos da construção social 2 3
cessidade entre as palavras e a realidade que elas 4. A valorização de uma postura crítica e
descrevem. Contudo, ao se utilizar determinada pala- reflexiva.
vra em uma situação dada, realiza-se uma opção que Ao considerar o conhecimento como sendo
define tal realidade de formas específicas. Para os relativo e dependente do conjunto de práticas e con-
construcionistas, as descrições do mundo não guar- dições sócio-históricas no qual surge o constru-
dam correspondência com uma realidade situada para cionismo, o mesmo promove uma postura crítica cons-
além das formas de dizê-la, mas são, elas próprias, tante sobre as formas de descrever o mundo. É ne-
maneiras de construção desta realidade. Assim, a lin- cessário repensar aquilo que é dado como certo nas
guagem não reflete um mundo independente, mas o formas de pensar e perceber o mundo: compreender
constrói a todo momento. Esta construção da reali- o mecanismo de determinadas descrições e manei-
dade através da utilização de determinadas descri- ras de pensar, para que servem, em que situações e
ções e explicações se dá a partir das condições só- para quem. Gergen (1999) alerta que neste exercício
cio-históricas concretas dos sistemas de significação. é importante não perder de vista que ele sempre é fei-
Assim, estudos sociológicos, antropológicos e históri- to a partir da inserção em uma tradição que possui
cos mostram de que maneira o que vem a ser enten- determinados valores e promove determinadas ações
dido como, por exemplo, criança, beleza, maternida- e formas de viver. A própria tradição deve ser então
de pode variar conforme o tempo e o lugar. analisada através de uma postura reflexiva, que convi-
2. A primazia dos relacionamentos humanos de a múltiplas descrições das coisas, que suspeite do
na produção e sustentação do conhecimento. óbvio, e que legitime outras tradições, afirmando-as tal
As explicações sobre o mundo são resultado como a sua própria, apenas enquanto uma tradição.
da coordenação da ação humana, ou seja, dos signifi- Como vários autores apontam (Burr, 1995;
cados construídos em relacionamentos. Para os Gergen, 1997, 1999), estas descrições constru-
construcionistas, o significado das palavras é decor- cionistas têm uma série de implicações, das quais
rente do seu uso social, das formas pelas quais são pode-se destacar:
utilizadas nos relacionamentos existentes. Segundo a. O antiessencialismo. À medida que o
Gergen (1999, p. 48), “o relacionamento antecede tudo construcionismo destaca o processo de construção
que é inteligível”. Assim, as descrições sobre o mun- do mundo social, ele se posiciona contrário à visão de
do não são o resultado da observação objetiva da que haja uma essência no interior das coisas que de-
natureza, mas a construção de uma comunidade lin- termina e explica o que estas coisas são. Vale desta-
güística que, a partir de processos sociais - negocia- car que o essencialismo pode se apresentar sob a
ção, comunicação, conflito e consenso -, pode produ- forma de determinações biológicas ou culturais, ambas
zir significados locais duráveis no tempo. questionadas pelo construcionismo social.
3. A interligação entre conhecimento e ação. b. O anti-realismo. Esta postura se traduz pela
As diferentes formas de descrever o mundo rejeição da idéia de que o conhecimento possa ser
implicam diferentes formas de ação social. Confor- produzido por uma apreensão direta da realidade, a
me Nightingale e Cromby (1999), “nós procuramos qual existe independente de nossa percepção e pode
ativamente explorar aspectos do nosso mundo, de ser acessada através de determinados procedimen-
formas específicas segundo motivos específicos, e tos que revelarão a verdadeira natureza do real. Para
assim o fazendo criamos conhecimento, o qual então os construcionistas, o conhecimento é gerado por pro-
tomamos como a ‘verdade’ sobre o mundo” (p. 05). cessos sociais que constroem o real a partir de dife-
Estas descrições e explicações compartilhadas, ‘ver- rentes descrições.
dadeiras’, servem para sustentar determinadas for- c. A linguagem como forma de ação social. Os
mas de viver e agir no mundo, determinadas institui- construcionistas não definem a linguagem como meio
ções, e tradições. Assim, a manutenção de determi- passivo de expressão e transmissão de informações,
nadas tradições depende do processo contínuo de mas a consideram em seus aspectos performáticos,
produção de sentido. Nas palavras de Gergen (1999), de construção ativa do mundo. À medida que se des-
“o passado não garante nada”(p. 49). crevem determinadas situações usando um vocabu-
2 4 Emerson Fernando Rasera
lário e uma forma específica, daí decorrem diferen- Segundo alguns autores (Gergen, 1997;
tes ações e construções do real. Grandesso, 2000), as duas principais semelhanças
d. O foco na interação e nas práticas sociais. entre as perspectivas construtivistas e
Dadas as implicações anteriores, o construcionismo construcionistas são: a) a ênfase na natureza
privilegia as interações sociais, os relacionamentos entre construída do conhecimento, a partir da qual ambas
as pessoas como foco de investigação. São nestas re- questionam a possibilidade de garantias fundacionais
lações que as negociações sobre as definições a res- para a ciência empírica; e b) a crítica à visão da
peito do mundo ocorrem e, portanto, onde se pode apre- mente humana como refletindo um mundo indepen-
ender o processo de construção social do mesmo. dente, o que as leva a questionar a construção do
e. O foco no processo. Decorrente desta últi- conhecimento como algo edificado na mente isola-
ma implicação, a pesquisa construcionista não des- da através da observação.
creve o que as coisas são, mas o processo pelo qual Já as diferenças se iniciam pela definição de
são ativa e continuamente construídas entre as pes- mente e mundo, as quais constituem as bases do
soas. O foco deixa de ser as estruturas relativamente construtivismo, enquanto para o construcionismo nem
estáveis do indivíduo ou da sociedade, para ser os pro- à mente, nem ao mundo é garantido status ontológico,
cessos de construção do conhecimento e do mundo. pois estas são expressões construídas nos relaciona-
mentos, constituintes de práticas discursivas, que são
Construcionismos sociais: diferenças e seme- negociadas entre as pessoas. Além disso, segundo
lhanças Gergen (1997), o construtivismo preserva a tradição
individualista, buscando os processos intrínsecos ao
Este conjunto de descrições e implicações per- indivíduo, enquanto o construcionismo enfatiza as ori-
mite circunscrever relativamente os autores constru- gens sociais do conhecimento, mantendo um foco nos
cionistas como um grupo que partilha um conjunto de processos micro-sociais.
posicionamentos. Na tentativa de definir melhor este Esta busca pelas semelhanças e diferenças
grupo, é possível buscar pelas semelhanças e dife- entre estas perspectivas e o debate sobre as ques-
renças que ele tem em relação a outros pensadores, tões aí subjacentes têm causado grandes polêmicas
bem como entre si. neste campo. Uns olham apenas para a semelhança
Entre o grupo de autores que se aproximam do entre tais perspectivas, ou simplesmente, não fazem
construcionismo e merecem uma maior atenção, distinção entre ambas, tais como Efran e Clarfield
pode-se destacar aqueles que se filiam a um pensa- (1998) e Niemeyer (1998). Outros afirmam a impor-
mento construtivista. O construtivismo, tal como o tância em se ressaltar a diferença, tais como Hoffman
construcionismo, constitui uma alternativa às dificul- (1990), Leppington (1991), Dickerson e Zimmerman
dades trazidas pelo pensamento empirista e racio- (1996), Fried Schnitman e Fuks (1996), e Anderson
nalista. O construtivismo busca redefinir a relação (1997). Gergen (1997), apesar de propor uma descri-
sujeito-objeto, ressaltando o papel ativo do conhece- ção do construcionismo como diferente do constru-
dor no processo de construção do conhecimento. Entre tivismo, alerta para o cuidado em se estabelecer for-
as diferentes versões de construtivismo tem-se o mulações fixas e finais, nas quais se impeça o diálogo
construtivismo radical, o crítico, o moderado, o com o outro. Ele ressalta que o exercício da pureza
dialético, o social, o terapêutico, o epistemológico e o conceitual pode, às vezes, ser importante, mas na
hermenêutico (Grandesso, 2000). Cada uma destas maioria delas, ele não se faz necessário e uma visão
diferentes versões enfatiza ou subestima um ou outro híbrida pode ser útil e produtiva.
aspecto do processo de construção do conhecimen- O próprio Gergen (1997) aponta que em rela-
to, seja, por exemplo, na definição de conhecimento, ção, especificamente, ao construtivismo social, é pos-
como correspondendo, ou como se adaptando ao real; sível reconhecer uma semelhança no que se refere à
seja, no fato de considerar a realidade no processo visão do conhecimento como determinado por pro-
de construção do conhecimento, afirmando-a ou ne- cessos sociais, tal como no construcionismo. Contu-
gando-a. do, para ele, os autores do construtivismo social ain-
Os sentidos da construção social 2 5
da objetificam um mundo mental específico, diferen- responsivo-retórico. Shotter, baseado em uma visão
temente do proposto pelo construcionismo. dialógica tal como proposta por Bakhtin, afirma que é
Além destas diferenças com outros grupos, há através do estudo de momentos interativos entre as
também as diferenças internas ao próprio constru- pessoas, nos quais elas têm que continuamente rea-
cionismo. As diferenças entre os diversos autores gir umas às outras espontaneamente e praticamente,
construcionistas podem ser observadas através de através de uma compreensão ativa e responsiva, que
algumas classificações de seus trabalhos propostas será possível compreender como as pessoas se cons-
por Danziger (1997) e Zuriff (1998). troem. A ênfase é posta no estudo do processo de
Danziger (1997) em uma análise de onze li- conhecer e responder ativamente às outras pessoas.
vros da coleção ‘Inquiries in Social Construction’ pro- Conforme apontam Rasera, Guanaes e Japur
põe uma classificação dos textos produzidos nesta (2004), em uma análise das descrições do processo
coleção como ‘light constructionism’ e ‘dark de construção do self na obra de Gergen e Harré,
constructionism’. O primeiro se refere àqueles auto- ambos auto-intitulados e reconhecidos como
res para os quais a vida pode ser transformada atra- construcionistas, esses autores apresentam diferen-
vés de uma abertura à multiplicidade do discurso, não tes descrições do que vem a ser ciência, Psicologia,
havendo muitas referências a questões de poder, e construcionismo e self, alertando para o cuidado de
estruturas sociais, e privilegiando o nível microssocial se situar o construcionismo do qual se fala, de forma
para o estudo da construção do conhecimento. Já os a evitar a afirmação de uma única versão e reconhe-
autores classificados dentro do ‘dark constructionism’ cer a multiplicidade existente nesse campo.
enfatizariam os aspectos não-discursivos dos relaci-
onamentos humanos, especialmente aqueles relativos Críticas e reflexões sobre as propostas
às questões de poder. Estes autores buscam então construcionistas
analisar de que maneira o corpo e as estruturas soci-
ais se constituem em locais de produção deste poder, O conjunto de diferenças, sejam elas internas
privilegiando as estruturas macrossociais no estudo ou externas, que foi apontado até o momento, anteci-
da produção do conhecimento. pa as principais divergências e tensões existentes em
A classificação proposta por Zuriff (1998) di- torno do construcionismo (Parker, 1998; McNamee,
vide o construcionismo em duas partes: o constru- no prelo). O conjunto de críticas e defesas do
cionismo empírico e o construcionismo metafísico. O construcionismo ao mesmo tempo em que o coloca
construcionismo empírico distingue o mundo natural no centro das discussões atuais, levando à publica-
do mundo construído e considera os resultados da ção de dois números especiais da revista Theory and
pesquisa em Psicologia como descrições do mundo Psychology (junho/2001 e outubro/2002), parece ge-
natural. O construcionismo metafísico nega estas rar um aprisionamento em um ritual de teoria-crítica-
posições, rejeitando a visão de que o mundo natural e-debate interminável (Shotter & Lanamman, 2002).
consiste de uma realidade externa, objetiva e inde- Evitando trazer para este trabalho os labirintos deste
pendente da mente humana. A proposta de Zuriff está debate, serão apresentadas as considerações de
acompanhada de uma crítica na qual o autor propõe Gergen (1997, 1999) a respeito dessas críticas que
que se deva eliminar o construcionismo metafísico permitem entender os principais questionamentos
em favor de um construcionismo empírico. Ela afir- postos ao construcionismo social. Dentre eles desta-
ma que a maior parte dos trabalhos construcionistas cam-se aqueles referentes:
são empíricos apesar de muitas vezes serem consi- 1) Ao lugar da experiência pessoal. Aqueles
derados metafísicos. Trata-se de uma classificação que defendem a primazia da experiência pessoal se
que aponta para algumas tensões existentes neste viram ameaçados frente às proposições
campo, e explicita algumas interpretações diferentes construcionistas de uma ontologia relacional, na qual
de uma proposta construcionista. a mente individual perde sua base ontológica, trans-
Além disso, outra forma de construcionismo é formando todos os constituintes do self em constru-
a proposta por Shotter (1993), o construcionismo ções culturais historicamente contingentes. Para
2 6 Emerson Fernando Rasera
Gergen, contudo, esta proposição construcionista não ne outras teorias, mas incentivam o questionamento
torna ilegítima a preocupação teórica e cotidiana com contínuo sobre como estas teorias contribuem para os
a experiência pessoal, mas redefine esta preocupa- relacionamentos humanos.
ção como um discurso utilizado para desenvolver os 4) Ao relativismo moral. Uma forma feroz de
relacionamentos humanos e não como uma afirmação crítica ao construcionismo tem sido feita por aqueles
da verdade referente a um outro plano da realidade - o que afirmam que ele desencoraja o comprometimen-
mundo mental. to com qualquer conjunto de valores, incentivando uma
2) À definição do real. Muitos afirmam que o permissividade generalizada. A consistência desta
construcionismo nega a realidade e qualquer preocu- afirmação é, contudo, questionável: uns afirmam que
pação com esta. Porém, como diz Gergen, o o construcionismo é feminista, outros, o contrário; uns
construcionismo é ontologicamente mudo. Ele nem destacam os legados marxistas, outros os rejeitam;
nega a realidade, nem faz qualquer afirmação sobre uns o percebem como profundamente moral, outros
a mesma. Para os construcionistas não há uma des- como promotor de uma irresponsabilidade moral.
crição fundacional sobre o mundo, e sempre que há Apesar de não haver defesas explícitas sobre um
uma busca por fazê-la, ocorre a entrada no mundo do conjunto de valores nos escritos construcionistas, é
discurso, em um processo de construção lingüística fácil reconhecer alguns valores existentes em suas
permeado pelas condições sociais, históricas e cultu- concepções. Contudo, segundo Gergen (1997), “a pos-
rais daquele momento. Com isto, o construcionismo tura construcionista não defende um conjunto de con-
afirma que não há uma descrição universalmente cepções morais sobre outro” (p. 81). Ao fazer isto,
melhor. Cada descrição é sempre produto de con- ela não deveria ser criticada, pois não há fundamen-
venções locais, pois está inserida em uma tradição, tos de uma moralidade bem definida e amplamente
em uma comunidade que privilegia certas formas de aceita contra a qual opor o relativismo construcionista.
vida, que utiliza determinados vocabulários, que in- Ao adotar tal postura, de abandono de fundamentos
centiva práticas definidas e promove valores especí- transcendentais sobre a realidade e a moralidade, o
ficos. Aqueles construcionistas insatisfeitos com es- construcionismo convida a uma deliberação moral,
tas explicações de Gergen, tais como Nightingale e buscando refletir sobre as posições morais vigentes
Cromby (1999), buscam incorporar questões relati- em nossa sociedade.
vas à materialidade, à corporeidade e ao poder em 5) Ao relativismo conceitual. Dado que o
seus trabalhos . construcionismo convida a uma multiplicidade de for-
3) Ao relativismo ontológico. Alguns pesquisa- mas de descrição do mundo, questionando qualquer
dores criticaram o construcionismo acusando-o de in- possibilidade de se estabelecer uma ontologia de base,
coerente, afirmando que as idéias por ele promovidas ou uma base epistemológica para um priorizar uni-
também eram simplesmente construções, não carre- versal de qualquer realidade, alguns críticos afirma-
gando um status de verdade. Em acordo com seus crí- ram a impossibilidade de se reconhecer as diferen-
ticos, para os construcionistas, suas idéias são artefa- ças entre diversas construções ou formas de pensar.
tos sociais, construções histórico-culturais utilizadas por Frente a esta crítica, Gergen propõe duas respostas.
um conjunto de pessoas ao se relacionarem. Assim, Primeiro, se por um lado, os críticos afirmam que o
tais críticos, ao buscarem estabelecer o caráter social- construcionismo não permite uma clara distinção das
mente construído das explicações construcionistas só diferenças, por outro lado, eles próprios também não
contribuíram para afirmar o que propõe esta perspec- têm como afirmar o conhecimento de semelhanças
tiva. Por outro lado, para os construcionistas, a busca compartilhadas universalmente, o que só seria possí-
de uma verdade objetiva transcendental é irrelevante vel, conforme Gergen (1997), a partir de “uma visão
para a aceitação de suas idéias, mesmo porque “não do olho de Deus do verdadeiro e do racional”(p. 83).
há teoria do conhecimento que possa coerentemente Segundo, para o construcionismo, que privilegia uma
fornecer garantias de sua própria verdade ou valida- visão pragmática da linguagem, o significado dos ter-
de” (Gergen, 1997, p. 77). As concepções constru- mos é dependente do seu uso social. Assim, afirmar
cionistas não buscam uma verdade superior que elimi- a semelhança ou a diferença entre sistemas de signi-
Os sentidos da construção social 2 7
ficado depende de acordos locais que variam sócio- 7) Ao perigo de elitismo. Se por um lado, o
historicamente, e não de fatos empíricos. “Declara- construcionismo aponta para o risco de se estabelecer
ções construcionistas de diferenças contextuais não uma descrição única do real através de um conjunto
se baseiam em fatos empíricos, mas são simplesmente específico de teorias que se pretendem verdadeiras e
mais compatíveis com nossas formas contemporâne- superiores, por outro, este mesmo risco pode ser atri-
as de argumentação do que o seu contrário” (Gergen, buído às contribuições construcionistas, com seus pro-
1997, p.84). ponentes afirmando o que é semelhante e isolando pers-
6) Ao problema do progresso científico. À me- pectivas diferentes. Frente a este risco, Gergen (1999)
dida que o construcionismo questiona as visões destaca três aspectos da perspectiva construcionista
fundacionais sobre a racionalidade científica, o pro- que podem contribuir para preveni-lo: a) a despretensão
gresso da ciência e o estabelecimento de provas da construcionista por buscas fundacionais, o que não lhe
teoria através da observação, os críticos perguntam fornece justificativas transcendentais, nem a afirma-
como ele explica o desenvolvimento da ciência, as ção de supostas superioridades; b) o interesse nas
novas tecnologias e produtos criados nas últimas dé- potencialidades de orientações alternativas existentes
cadas. Primeiramente, Gergen (1997) afirma que o em diferentes tradições; e c) o reconhecimento da fra-
construcionismo não nega que aconteçam fatos na gilidade dos significados e seu caráter negociado, o que
ciência, mas questiona o processo de descrever algo dificulta a afirmação de limites rígidos e estáveis entre
como se este resultasse num reflexo do que está as formas de pensamento e proporciona a ampliação
sendo descrito, como se ele informasse sobre a na- do diálogo.
tureza do real. Em segundo lugar, ao analisar o pa- Além destes questionamentos, aos quais
pel da teoria na ciência, Gergen (1997) afirma que Gergen (1997, 1999) busca responder, há uma crítica
em um contexto de predição, esta funciona como específica, não considerada por ele, que seria impor-
um jargão comum que possibilita aos cientistas de- tante apontar. Esta crítica se refere à inter-relação
senvolverem relacionamentos uns com os outros. entre os níveis micro e macrossociais. Danziger (1997),
Neste sentido, uma teoria não faz previsões, mas é ao estabelecer as diferenças entre o ‘light’ e o ‘dark
valorizada por suas capacidades pragmáticas, pos- constructionism’, aponta que o primeiro se preocupa
sibilitando critérios específicos para sua avaliação. com o nível microssocial e o segundo com o macro,
Em terceiro lugar, Gergen (1997) questiona o que não havendo, contudo, nos estudos construcionistas,
chamamos como ‘progresso’ científico. Segundo ele, uma reflexão mais atenta sobre a relação entre estes
o construcionismo mostra que a ciência não busca dois níveis.
uma proximidade com a ‘verdade’, que não há uma Michael (1997) faz o mesmo tipo de alerta ao
teoria científica que ‘capture os contornos’ do que realizar sua crítica à definição de mudança nos tex-
existe e que o abandono desta retórica de progresso tos construcionistas. Para este autor, muitos traba-
pode ser vantajoso, ao evitar a postura competitiva lhos construcionistas que descrevem a construção do
na ciência e promover uma consideração pelas prá- self em um contexto local, institucional e histórico,
ticas e disciplinas desacreditadas pela ausência de apesar de apontarem a conexão entre os diferentes
progresso. Conforme Gergen (1997). níveis, não teorizam a inter-relação entre os mesmos.
Este autor defende então que o construcionismo deve
“Apesar de nossas teorias não se produzir uma teoria microssocial da mudança na qual
moverem inexoravelmente em di- se enfatize o aspecto criativo deste nível da interação
reção a uma maior fidelidade com humana, para além do processo de reprodução de
a natureza e nós não chegarmos certas práticas discursivas.
mais perto da ‘verdade’ neste pro- A preocupação destes autores, diferente de
cesso, oferecemos então para a uma crítica que busca apontar contradições ou pro-
cultura (...) uma amplitude cres- blemas nas proposições construcionistas, convida a
cente de inteligibilidades e práti- uma reflexão radical sobre o significado do contexto
cas” (p. 92). relacional na construção da realidade. Neste sentido,
2 8 Emerson Fernando Rasera
suas indagações apontam para a necessidade de se Dickerson, V. & Zimmerman, J. (1996). Myths,
teorizar a inter-relação entre esses diferentes con- misconceptions, and a word or two about politics.
textos, e trazem o desafio de analisar as implicações Journal of Systemic Therapies, 15, 79-88.
e reverberações mais longínquas das negociações do
Efran, J. S. & Clarfield, L.E. (1998). Terapia
contexto local.
construcionista: sentido e contra-senso (C. O.
Dornelles, Trad.). Em S. Mcnamee & K. J.
Considerações finais
Gergen (Orgs.), A terapia como construção so-
cial (pp.239-260). Porto Alegre: Artes Médicas.
Estas definições, distinções e críticas aqui apre-
sentadas visam ajudar a mapear o campo de vocabu- Fried Schnitman, D. & Fucks, S. I. (1996). Metáfo-
lários e questões no qual o construcionismo social está ras da mudança: terapia e processo (J. H.
inserido. Este mapeamento não abrange a riqueza e Rodrigues, Trad.). Em D. F. Schnitman (Org.),
a pluralidade aí existentes, mas serve como orientador Novos paradigmas, cultura e subjetividade
na compreensão dos diferentes textos e propostas (pp. 377-391). Porto Alegre: Artes Médicas.
construcionistas. Gergen, K.J. (1973). Social Psychology as history.
No campo da produção do conhecimento, a Journal of Personality and Social Psychology,
proposta construcionista é a de produzir inteligibilidades 26, 309-320.
teóricas que sustentem a coordenação da ação hu-
mana a partir de valores e convenções já legitimados Gergen, K.J. (1985). The social constructionist
socialmente, bem como promover uma série de críti- movement in modern psychology. American
cas às convenções sociais, seja através de uma críti- Psychologist, 40, 266-275.
ca da prática científica, ou de outras práticas da cul- Gergen, K.J. (1997). Realities and relationships.
tura, ou mesmo de uma crítica que leve à ruptura Cambridge: Harvard University Press.
geral do convencional.
Dessa forma, o construcionismo promove o Gergen, K.J. (1999). An invitation to social
reconhecimento da imersão cultural dos conhecimen- construction. Londres: Sage.
tos científicos e das práticas por eles sustentadas, e Grandesso, M. (2000). Sobre a reconstrução do sig-
convida à transformação e inovação cultural. É neste nificado. São Paulo: Casa do Psicólogo.
contexto que o construcionismo enfatiza a responsa-
bilidade relacional (McNamee & Gergen, 1999) do Hoffman, L. (1990). Constructing realities: an art of
pesquisador, questionando sua retórica da verdade e lenses. Family Process, 29, 1-12.
a autoridade aí pretendida. Como ciência e prática Leppington, R. (1991). From constructivism to social
profissional, cabe à Psicologia uma reflexão crítica constructionism and doing critical therapy. Human
sobre as teorias por ela promovidas, e uma redescrição Systems, 2, 79-103.
de conceitos que enfatizem a construção relacional
Mcnamee, S. (no prelo). Bridging Incommensurate
das pessoas e do mundo, ampliando os vocabulários
Discourses: A response to Mackay . Theory in
existentes e as formas de relacionamento possíveis.
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