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LIVROS

Ciências Sociais e Saúde


Organizado por Ana Maria Canesqui
São Paulo: Ed. Hucitec/ABRASCO, 1997
287 páginas
Nilson Moraes
Departamento de Medicina Preventiva - UNIPJO - Rio de Janeiro

Em duas ocasiões, por Ninguém duvida ou questio- Na década de 70, os pro-


iniciativa da ABRASCO, o na que as mudanças estão fissionais de saúde, empe-
debate sobre Ciências So- por toda a parte, desafiando nhados em influenciar ou
ciais e Saúde reuniu cente- as razões, teorias, formas de recuperar o debate, utiliza-
nas de interessados no tema. representação e metodolo- ram-se dos conhecimentos
Nestes momentos, o rigor gias. Reaprender a olhar e das Ciências Sociais, que for-
científico, a inovação e ou- reordenar os fatos, bem como neceram ou influenciaram a
sadia intelectuais conviveram a reorientar-se neste mundo, adoção de ferramentas teóri-
com a militância, o experi- tornaram-se desafios de so- cas e metodológicas para a
mento e as expectativas uti- brevivência. discussão e o encaminhamen-
litárias do conhecimento. O Brasil, dos anos 80, to das estratégias do movi-
Nas duas últimas déca- produziu uma armadilha his- mento sanitário, muitas vezes
das, os ventos e eventos da tórica e institucional que em prejuízo do conteúdo
História sopraram, com inten- permitiu à Saúde Coletiva analítico. Estudando a histó-
sidade e dramaticidade, em viabilizar uma possibilidade ria da incorporação das Ciên-
todas as direções, sem nun- única: intervir e modificar cias Sociais à Saúde, encon-
ca se acalmar. Para as Ciên- diversos planos do real e, ao tramos uma relação entre os
cias Sociais, eles tiveram o mesmo tempo, produzir co- acontecimentos institucionais,
efeito de um inesperado fu- nhecimento, condenando-nos o debate intelectual e a
racão. Foram ventos que não a repensar a trajetória inicia- militância social ou corpora-
atingiram apenas as Ciências da pela Saúde Coletiva, e os tiva, e a forma como as cate-
Sociais e a Saúde Coletiva, parâmetros que orientaram gorias ou os conceitos cientí-
mas também a todos os sa- este agir e pensar. Um desa- ficos foram considerados se-
beres, práticas, modelos fio que a Epidemiologia en- gundo conveniências conjun-
relacionais e utopias que frentou com êxito, incorpo- turais e filiação ideológica ou
orientaram algumas gerações. rando novos caminhos. partidária, permitindo com-
o preender a lógica que permi-
pensamento Ciências Sociais,
e construiu o a formula-
ção tiu a introdução
de de temas,políticas
seu caminho. A idéianoe o uso setor. A
produção teorias e metodologias no
das das Ciências Sociais pelos
Ciências So-
ciais campo. em profissionais
Saúde da Saúde, bem sempre se
caracterizouNo Brasil, da mesma for- como a por
prática decorrente permitir
enfoques ma que nos demais países eda deste processo trouxeram
motivações di-
versas. América Latina, a Saúde tem diversas e contraditórias re-
constituído um tema funda- percussões sobre o campo do A Saúde Coletiva não
mental para os estudiosos conhecimento. É importante seguiu um caminho linear,
das tramas modernas que enfatizar que este campo, ao tranqüilo, homogêneo. A
atingem, de diferentes modos menos até a segunda metade hegemonia discursiva que
e intensidade, as populações, dos anos 80, esteve perma- orientou os profissionais de
instituições e políticas destes nentemente sujeito às críticas saúde e militantes do movi-
países, permitindo a produ- e à desconsideração de seg- mento sanitário não passou
ção de diferentes expectati- mentos da corporação dos de mais um generoso e
vas, projetos e discursos sociossanitários.
cientistas sociais, que viam abrangente projeto, derrota-
apenas "militância" no en- do em meio a tantas lutas
Com toda segurança, é frentamento temático. sociossanitárias.
possível afirmar que a análi- A Saúde Coletiva, apre- Canesqui, com base no
se da Saúde pelas Ciências endida como uma construção debate realizado durante o I Encontro
Sociais ajudou a provocar, histórica, dotada de cotidia- ciais e Saúde, realizado em
nas duas últimas décadas, nidade, atores individuais e Belo Horizonte, publicou
inovações teóricas e contri- coletivos em diferentes lutas Dilemas e Desafios das
buições históricas sobre nos- e projetos, fez-se complexa e Ciências Sociais na Saúde
sa sociedade e seus dilemas, tensa, terreno em constantes Coletiva, Hucitec/ABRASCO,
como ocorreu com poucos e inesperados movimentos, em 1995, onde observou
temas e disciplinas. não convivendo com qual- que as c o n c e p ç õ e s e abor-
Neste trabalho, Ciências quer possibilidade de per- dagens da Saúde Coletiva
Sociais e Saúde, organizado ceber seu objeto c o m o uni- estavam "perpassadas por
por Ana Maria Canesqui e direcional e unidimensio- questões relativas ao campo
lançado pela Hucitec/ nal, o que facilitaria a bus- do conhecimento e às
ABRASCO, observa-se que as ca de construção de cami- inflexões de natureza políti-
sucessivas incorporações teó- nhos alternativos e bases de ca e ideológica, refletindo
ricas e temáticas demonstram sustentação em disciplinas seus efeitos na seleção de te-
que, além de uma problemá- nas quais a interdisciplina- máticas à pesquisa, na pro-
tica rica, estamos diante de ridade estivesse claramente dução do conhecimento, na
um tema complexo, em rela- definida, num campo inte- forma de incorporação das
ção ao qual as pistas e mar- lectual e técnico em que ciências sociais e nas relações
cas do tempo e lutas institu- tudo é recente, emergente com outros camposdisciplinaresno âmbito da
cionais, sociais e discursivas e urgente. tiva". A autora observou, ain-
insistem em provocar novos A natureza do objeto das da, que tal procedimento
problemas e possibilidades Ciências Sociais não admite garantia uma perspectiva es-
analíticas. a hegemonia de nenhuma pecializada e peculiar ao tra-
balho do cientistaAsocial,
Saúde Coletiva, nos temática ou olhar, demons-
anos 70, empunhando alguns trando as transformações e
conceitos e métodos das tendências que influenciaram
empenhado em um "esforço expressivos de um longo e tas, apontando que a cons-
pluridisciplinar". tenso debate, demonstram trução intelectual do campo,
No I Congresso Brasilei- a riqueza atual do debate, sua institucionalização e
ro de Ciências Sociais em Saú- bem como as armadilhas co- novos objetos exigem uma
de, organizado em Curitiba locadas ao pensamento e à inquietude e capacidade de
pela ABRASCO, no ano de intervenção no sistema de articulação com outros sa-
1995, Ana Maria Canesqui saúde. As tradicionais o p o - beres e discursos que tor-
constatou ser característica sições entre objeto e sujei- nam as análises dos anos
da produção das Ciências to, idealismo e materialis- 80 uma realidade intelectual
Sociais em Saúde, no Bra- mo, e t c , foram substituídas distante no tempo e desejo.
sil, a extremadesconcentraçãotemática, de
pelametodolo-
complexidade do apro- Tema que não diz respeito
gias e teorias adotadas. fundamento analítico e da apenas ao Brasil, mas ao
Outra característica é a plu- especificidade histórica. Os cenário latino-americano,
ralidade de profissionais temas tradicionais renova- obrigando o campo a bus-
oriundos de diferentes cam- ram-se pela revisão biblio- car originais no enfrenta-
pos de especialização, o gráfica, documental, e a in- mento de novos objetos que
que reforça umacaracterística-síntesedeste campo de
corporação de novas técni- desafiam a sobrevivência da
conhecimento, c o m o possi- cas de recuperação das fon- capacidade de reprodução
bilidade de constituição interdisciplinar.
tes e informações. da ordem social excludente.
Reafirmando a interdis- A segunda parte, "Polí-
ciplinaridade c o m o "marca" tica de Saúde", aborda dife-
das Ciências Sociais na Saú- rentes armadilhas criadas
Com base neste Con- de Coletiva, Canesqui, em pelo desafio de, numa con-
gresso, Canesqui organizou Ciências Sociais e Saúde, juntura de profunda deses-
o livro Ciências Sociais e considera que ela se impõe, perança e de reorganização
Saúde, tendo c o m o pano de "a despeito das tensões e das esferas sociais, apresen-
fundo os debates e temáti- conflitos que se manifestam tar respostas objetivas às
cas enfrentados naquela no plano do saber, institui- demandas da sociedade,
oportunidade. A obra pos- ções e das relações de força diante da ênfase do olhar
sui organicidade e lógica implicadas nos cerceamen- econômico e mercadológico,
entre as suas unidades te- tos disciplinares". que evita enunciar ou ad-
máticas. O itinerário pro- A primeira parte do li- mitir qualquer política que
posto apresenta distintas vro, Ciências Sociais e Saú- não seja de exclusão social,
maneiras de compreender e de: Reflexões sobre o Campo desinteressado que está o
explicar o universo social e do Conhecimento (1995), é Estado das conseqüências
sanitário. Trata-se de uma um convite à reflexão. Par- sanitárias e de produzir
ferramenta necessária para tindo da construção do saúde e democracia simul-
a compreensão e consolida- campo da Saúde, remete à taneamente.
ção do campo nas últimas própria natureza da crise e É possível perceber que
décadas, retomando uma das possibilidades científi- a tarefa de pensar e intervir
série de problemas de na- cas contemporâneas. Em no sistema de saúde corres-
tureza pluridisciplinar que seus cinco artigos, fica de- ponde a um esforço de com-
alimentam e revigoram o monstrado que a saúde não preensão de um cenário que
pensamento social. convive mais com a ilusão custou a muitos envolvimen-
A seleção e a organiza- de soluções e análises des- to e d e c e p ç õ e s , com graves
ção dos textos, fragmentos contextualizadas ou simplis- efeitos para a democracia,
para a reorganização insti- convive com a cidadania, ram o movimento social em
tucional, com a explicitação mas com o discurso de um saúde, ainda não foram des-
de diferentes concepções te- suposto direito que explici- montadas, tanto no plano
rapêuticas e assistenciais, ta apenas a lógica da pró- intelectual como no institu-
que em nada melhorou a pria política pública. cional. Ao contrário, as aná-
saúde da população. As te- Na quarta e última par- lises desenvolvidas nos
ses que insistiram em cen- te da obra, "Cidade e Saú- anos 70 e 80 não chegaram
tralizar no Estado suas es- de e Questões Relativas à a tocar no cerne das ques-
tratégias, deixaram em se- Saúde Coletiva", somos le- tões, exigindo novas leitu-
gundo plano a sociedade e vados a compreender por ras, enquanto outros desa-
demonstraram incapacidade que tropeçamos em cada fios foram somados. As
de perceber que Estado e rua, praça ou espaço públi- metodologias e objetos das
poder não são sinônimos, co, nos efeitos do padrão Ciências Sociais, particular-
nem garantia de eficácia mente
de desenvolvimento sociossanitário. sobre saúde, mos-
política ou assistencial. Ain- tram-se subutilizados, e a
da mais quando se acres- Os indicadores e meto- falta de diálogo entre os
centa ao cenário um violen- dologias utilizados nas di- pesquisadores, instituições
to processo de crise fiscal, ferentes análise traduzem e linhas de pesquisa prova
gerencial e de governabili- apenas alguns detalhes pre- que as dificuldades para
dade. sentes na realidade. A cida- produzir conhecimento não
A terceira parte do li- de transformou-se em resu- dizem respeito apenas à
vro, "As Ciências Sociais e mo, síntese e visibilidade de questão dos méritos ou
os Serviços de Saúde", re- diversos agravos, compro- vontades individuais.
mete a algumas das armadi- vando a necessidade de re- Colocando lado a lado
lhas que historicamente pensar os conceitos e cate- os livros organizados por
marcaram os m o d e l o s de gorias usuais em Saúde Ana Maria Canesqui em
compreensão do campo. É Coletiva, e as formas de 1995 e 1997, observamos
demonstrada a necessidade intervenção dos profissio- que há continuidade entre
de reconceituar a ação es- nais de saúde. os temas e modelos de aná-
tatal, considerando os me- Considerado em seu lise, ajudando a compreender
canismos de pactuação das conjunto, o livro empenha- o campo e a lógica históri-
demandas, de definição das se em apresentar e discutir ca das transformações
ações e políticas, bem como os processossociossanitáriosem sua setoriais. Ana Maria Canes-
complexidade
do estabelecimento das po- e especificidade, superando qui compreendeu que, para
líticas de controle social, a realidade apreendida as Ciências Sociais e Saú-
que, em verdade, tem-se ca- como antagônica, tendo ain- de, não há outra possibili-
racterizado apenas por con- da a preocupação em re- dade; trata-se de repensar
trole parcial e localizado de pensar o novo cenário mun- com ousadia velhos proble-
ações e políticas estatais. dial e suas formas de com- mas e incorporar novos
Os serviços de saúde, iden- preendê-lo e enfrentá-lo, objetos e realidades. Ciên-
tificados pela população particularmente em relação cias Sociais e Saúde de-
como o sistema médico es- à Saúde. monstra que ainda pode-
tatal, transformaram-se mos nos surpreender dian-
numa ameaça que não re- Igualmente, o livro re- te dos desafios de nosso
conhece nenhum respeito vela que as armadilhassociopolíticas,
t eque
m p o mobiliza-
e das a r m a d i l h a s
ou direito. Não produz ou para superá-los.

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