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DOI: 10.1590/1413-81232015209.

06022015 2615

Ética em pesquisa na dinâmica do campo científico: desafios

ARTIGO ARTICLE
na construção de diretrizes para ciências humanas e sociais

Research ethics in the dynamic of scientific field: challenges


in the building of guidelines for social sciences and humanities

Iara Coelho Zito Guerriero ¹


Maria Lúcia Magalhães Bosi ²

Abstract The development of guidelines on re- Resumo A elaboração de diretrizes para a apre-
search ethics for social science and humanities ciação ética de pesquisas em ciências humanas e
(SSH) takes place in the scientific field, marked by sociais (CHS) se efetiva no campo científico, es-
disputes aimed at the establishment of hegemonic paço marcado por disputas voltadas ao estabele-
scientific standard. In Brazil, the National Health cimento do padrão hegemônico de cientificidade.
Council is responsible for approving these guide- No Brasil, cabe ao Conselho Nacional de Saúde
lines, which involve certain specificities. Based aprovar essas diretrizes, o que envolve certas es-
on the authors’ experience in the SSH Working pecificidades. Com base na vivência das autoras
Group of the National Commission on Research no Grupo de Trabalho CHS da Comissão Nacio-
Ethics (GT CHS / CONEP), this article presents nal de Ética em Pesquisa (GT CHS/CONEP),
the process of development of guidelines for SSH, este manuscrito apresenta o processo de elabo-
and some its challenges: the distance between the ração de uma resolução para CHS e alguns dos
statutory guarantee and the effective execution seus desafios: a distância entre a garantia legal e
of guidelines; the biomedical hegemony and the a efetivação de diretrizes; a hegemonia biomédica
marginal position of the SSH in the CEP / CO- e a posição marginal das CHS no Sistema CEP/
NEP system; the inadequacy of the current res- CONEP; a inadequação da atual resolução ante
olution facing the research features in CHS; the as características da pesquisa em CHS; e o empre-
use of the concept of risk in guidelines aimed at go do conceito de risco, em diretrizes voltadas a
SSH in the health area. Some interfaces and ten- CHS no espaço da saúde. Discutem-se ainda in-
sions in the debate between scientific merit and terfaces e tensões no debate entre mérito científico
ethical evaluation are also discussed. The analy- e avaliação ética. A análise evidencia importantes
sis highlights important impasses and difficulties impasses e dificuldades concernentes ao diálogo
regarding inter-paradigmatic dialogue in health interparadigmático na pesquisa em saúde, consi-
1
Instituto de Medicina research, considered the characteristics of the dif- deradas as características das distintas tradições, a
Tropical, Universidade de ferent traditions, the CONEP’s heavily relying on ancoragem da CONEP na perspectiva positivista
São Paulo. Av. Dr Eneas
Carvalho de Aguiar 470,
the positivist perspective and the defense of that e a defesa da hegemonia dessa tradição.
Centro. 05403-000 São paradigm hegemony. Palavras-chave Ética em pesquisa, Pesquisa qua-
Paulo SP Brasil. iara. Key words Research ethics, Qualitative research, litativa, Epistemologia, Saúde coletiva
guerriero1@gmail.com
2
Faculdade de Medicina,
Epistemology, Public health, Collective health
Universidade Federal do
Ceará.
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Guerriero ICZ, Bosi MLM

Introdução Além das dificuldades geradas no âmbito es-


trito do campo cientifico, quando projetos são
Pesquisadores das ciências humanas e sociais recusados e deixam de ser realizados pelos pro-
(CHS) vêm afirmando a inadequação das nor- blemas assinalados, a sociedade não pode desfru-
mas sobre ética em pesquisa, inspiradas nas ci- tar dos resultados de pesquisas que seriam funda-
ências biomédicas e aplicadas indevidamente em mentais para a compreensão de fenômenos que
outros domínios1,2. As consequências dessa ina- envolvem complexas relações sociais, processos
dequação são inúmeras e têm sido amplamente de atribuição de significados e questões políticas
discutidas sem, contudo, terem sido equaciona- que ultrapassam a mera descrição e mensuração,
das. Uma rápida consulta à literatura aponta uma dentre muitos outros objetos de que se ocupa
ampla produção sobre o tema, tanto no país1-11 esse enfoque. Evidencia-se o efeito de retração
como na literatura internacional12-21. operado na produção do conhecimento. Para
No Brasil, como consequência das normas ilustrar apenas com um exemplo já documenta-
ora em vigor, pesquisas relevantes sofrem atrasos do, após o inicio do trabalho dos CEP canaden-
ou mesmo ficam inviabilizadas pela demora ou ses, as dissertações de mestrado em sociologia19
mesmo recusa pelo sistema atual, formado pelos e em antropologia21 mudaram os temas estuda-
mais de 600 Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) dos, a geração e a análise dos dados e a metodo-
e pela Comissão Nacional de Ética em Pesqui- logia para adequá-los às demandas dos CEP. As
sa (CONEP). E, o que se mostra mais grave, a entrevistas passaram a ser utilizadas como única
maioria dessas pesquisas não apresenta qualquer técnica, e diminuiu abruptamente o número de
inadequação ética que justifique essa retenção. observações participantes.
Tais assertivas se fundamentam não somente em No que concerne ao campo no qual atuamos
publicações4,5, mas, sobretudo, em décadas de e serve de base nesta discussão, a Saúde Coletiva
vida acadêmica. Ao longo desse percurso, vimos (SC) , consoante análises voltadas à sua configu-
testemunhando esses e outros problemas, tanto ração epistemológica como campo de produção
em nossa experiência pessoal quanto no diálogo de conhecimento que se compõe por certas for-
com importantes instâncias e coletivos, como o mações disciplinares23 ou núcleos de conhecimen-
Fórum de Coordenadores de Pós-graduação em to24: epidemiologia; planificação e gestão em
Saúde Coletiva, grupos e comissões da Abrasco e saúde; e ciências humanas e sociais, sendo este
outras associações. Acrescente-se a participação último arcabouço o referencial que opera uma
contínua em vários congressos onde o tema foi ruptura epistemológica inaugural do que hoje
objeto de debate, com incontáveis depoimentos e se concebe como SC, em contraste com a saú-
relatos que sustentam o que ora afirmamos. de pública tradicional. A dinâmica desse campo
A concepção positivista de ciência ainda he- ilustra de forma emblemática as tensões paradig-
gemônica nas resoluções sobre ética em pesquisa máticas aludidas nesta explanação. Mais que isso,
e a própria composição do sistema CEP/CONEP aponta para inquietantes desfechos, sobretudo, se
resultam num contexto adverso para as CHS: re- vislumbrarmos a efetiva implantação e consoli-
soluções inadequadas são utilizadas como refe- dação no país de um sistema de saúde pautado
rência para avaliação ética, na maioria das vezes, na integralidade, humanização, desdobradas na
realizadas por grupos pouco familiarizados com qualidade do sistema, considerada em sua mul-
a análise de projetos que operam fora do para- tidimensionalidade, intrínseca e extrínseca25, as-
digma positivista. Ao nos referirmos ao positivis- pectos de que se ocupam as CHS. Assim, como
mo, vale dizer, o fazemos no sentido amplo do desconsiderar as especificidades das CHS em
termo, o que inclui pós-positivismo e neopositi- saúde, em qualquer das esferas de práxis, sendo a
vismo, uma vez que estes paradigmas são comen- apreciação ética uma delas?
suráveis entre si22. A hegemonia desse paradigma
sobre os demais no campo da saúde, fenômeno
amplamente documentado na literatura, implica A Construção de diretrizes:
prejuízos para pesquisadores das CHS, ante a di- recuperando o contexto
ficuldade, por vezes, paralisante, de responder a
questionamentos que, se válidos para o enquadre Muitos foram os anos de luta, até que a primei-
positivista, não se adequam em termos ontoepis- ra publicação brasileira, elaborada com a parti-
temológicos a outros enfoques, como é o caso cipação de associações nacionais de pesquisa e
dos estudos fundamentados nos enfoques com- pós-graduação em CHS, o relatório da Secretaria
preensivos ou qualitativos. Municipal de Saúde de São Paulo (2007)26, fosse
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enviado à CONEP, afirmando a necessidade de ção das áreas de CHS, por representantes do CNS
normas específicas para CHS. Lamentavelmente, e do MS (Departamento de Ciência e Tecnologia
a CONEP nunca se manifestou sobre essa propos- (DECIT), Secretaria de Ciência, Tecnologia e In-
ta. Somam-se a essa iniciativa as moções aprova- sumos Estratégicos (SCITIE). Todos os pesquisa-
das em reuniões científicas, além das manifesta- dores indicados por suas respectivas associações
ções das seguintes entidades: Associação Nacio- são bastante expressivos academicamente em
nal de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia seus campos, muitos deles autores de publica-
(ANPEPP); Rede Nacional de Ensino e Pesquisa ções em importantes periódicos nacionais e in-
em Terapia Ocupacional (RENETO); Associação ternacionais sobre aspectos éticos envolvidos nas
Brasileira de Antropologia (ABA); Associação pesquisas em CHS. Trata-se, portanto, de um GT
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ci- qualificado para cumprir a complexa missão de
ências Sociais (ANPOCS); Sociedade Brasileira elaborar uma resolução congruente com as es-
de Sociologia (SBS) e da Associação Brasileira de pecificidades das CHS, em sua diversidade, man-
Ciência Política (ABCP), na consulta pública do tendo o foco na proteção dos direitos humanos
texto que resultou na Resolução 466/12 do CNS27, dos participantes de pesquisas.
reconhecendo em seu discurso a necessidade de A primeira reunião desse GT realizou-se em
uma resolução especifica para CHS: 14 de agosto de 2013 e desde esse encontro até
As especificidades éticas das pesquisas nas ciên- julho de 2015, contabilizam-se 23 reuniões, além
cias sociais e humanas e de outras que se utilizam das 5 reuniões conjuntas com os demais GT da
de metodologias próprias dessas áreas serão con- CONEP, o que evidencia a intensidade do esforço
templadas em resolução complementar, dadas suas desse coletivo e a amplitude do desafio. Os en-
particularidades (XIII.3) contros se realizaram em Brasília, financiados
Junho de 2013 viria marcar um momento pelo DECIT/MS. Desse trabalho resultou uma
importantíssimo para a construção do sistema Minuta28 que, conforme os prazos estabelecidos,
de revisão ética no país, por duas ocorrências: a seria apresentada à consulta pública em janeiro
publicação da Resolução 466/12 e a primeira reu- de 2015, sem que isso tenha ocorrido até aqui (7
nião do Fórum CHS, organizado e composto pe- de julho de 2015).
las associações nacionais dessas áreas de conhe- Em 28 de janeiro de 2015, o GT CHS recebeu
cimento. Esse Fórum inicia um trabalho junto uma carta-resposta29 à minuta, elaborada pela
ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação CONEP, gerando impasses ainda não soluciona-
(MCTI) visando a organizar um sistema de re- dos, ainda que tenham ocorrido avanços, e que, a
visão sobre ética específico para as pesquisas em nosso ver, colocam o embate entre os paradigmas
CHS, tanto em termos da estruturação de CEP, no centro do debate ético em curso, atualizando,
quando da elaboração de normas. em mais uma esfera, a disputa entre biomedicina
O MCTI que, vale recordar, naquele mo- e CHS.
mento tinha um ministro formado em Ciências Para a elaboração da minuta, o GT CHS efe-
Sociais, foi receptivo a essa proposta. Entretanto, tuou um amplo estudo, partindo de uma extensa
num segundo momento, após ser procurado por consulta a documentos internacionais sobre ética
um representante do Ministério da Saúde (MS), nas pesquisas em CHS, elaborados por distin-
recuou e decidiu que já existia uma instancia bra- tos países, dentre os quais o Canadá, que cabe
sileira com essa missão, recomendando que os re- mencionar pelo fato de ser exemplo de um en-
presentantes do Fórum CHS trabalhassem junto caminhamento respeitoso e democrático dessa
ao MS. Simultaneamente e, ao que tudo indica, situação. Em 2008, no momento da revisão das
após o dialogo entre MCTI e MS, a CONEP or- diretrizes canadenses, que resultou no Tri-Coun-
ganiza um grupo de trabalho (GT) com a missão cil Policy Statement: Ethical Conduct for Research
de elaborar a resolução para CHS e convida re- Involving Humans (TCPS-2)30, foi organizado um
presentantes do Fórum e de outras associações. grupo de trabalho, composto por pesquisadores
Não sem reservas, sobretudo no que concer- das CHS, que elaborou um capítulo específico do
ne ao intuito de construção de uma resolução TCPS-2. O TCPS -2 foi elaborado pela Secretariat
especifica fora da CONEP/MS, diversas associa- on Responsible Conduct of Research and the Panel
ções importantes das CHS aceitaram o convite, on Research Ethics, que considerou os relatórios
apostando em um diálogo promissor, nomeando elaborados pelos diversos grupos de trabalho,
e indicando representantes. O GT CHS é assim dentre os quais se incluem: ciências humanas e
criado no âmbito da CONEP, composto por 18 sociais; pesquisa com povos indígenas; pesqui-
associações nacionais de pesquisa e pós-gradua- sa clínica, entre outros. O capítulo introdutório
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Guerriero ICZ, Bosi MLM

desse documento define os princípios a serem tuna, não apenas pela relevância do seu conteúdo,
observados em todas as pesquisas com seres hu- mas porque se configura num documento que
manos, seguindo-se os capítulos específicos, cada registra o discurso oficial da CONEP. Para além
um definindo as características das pesquisas de de uma disputa entre grupos ou instâncias, esse
que tratam, as questões éticas envolvidas e os documento ilustra de forma emblemática a difí-
procedimentos. Não há relação de subordinação cil e tensa interlocução entre os paradigmas bio-
entre os GT, nem o TCPS-2 subordina um ca- médico (positivista) e das CHS já antes aludida.
pítulo ao outro. A definição do TCPS-2 foi feita Focalizaremos, na sequência, a distância entre a
após duas rodadas de consulta pública, realizadas garantia no plano legal e a efetivação de diretrizes;
no Canadá durante dois anos. Esse processo é tão a hegemonia biomédica e a posição marginal das
intenso no Canadá, que uma nova versão foi pu- CHS no Sistema CEP/CONEP; a inadequação da
blicada em 2014. atual Resolução ante as características da pesquisa
No Brasil, as resoluções sobre ética em pes- em CHS; a problemática do emprego do conceito
quisa têm sido elaboradas na estrutura de uma de risco, em diretrizes voltadas a CHS no espaço
resolução-mãe e as demais, consideradas com- da saúde, além de interfaces e tensões no debate
plementares, focadas em temas específicos. Nessa entre mérito científico e avaliação ética.
lógica, a Resolução para CHS, ora em elaboração,
seria complementar à Resolução 466. Na prática, Diretrizes: de direito e de fato?
isso significa que a revisão ética das pesquisas em
CHS, realizadas pelo sistema CEP/CONEP, deve- Começaremos destacando que chegar a uma
ria se basear nessas duas resoluções. Para evitar Minuta, intencionando legitimá-la como re-
que isso acontecesse, uma vez que o paradigma solução, aponta uma via importante, mas não
positivista está impregnado na 466, o GT CHS suficiente para um processo de transformação.
considerou necessário garantir que a resolução Aqui precisamos recuperar a clássica afirmação
CHS não se omitiria em nenhum ponto da 466. de Bobbio31 quanto a ser [...] função prática da
Isso resultou numa Minuta28 longa, como alter- linguagem dos direitos, a de emprestar força par-
nativa à elaboração de uma resolução que focasse ticular às reivindicações [...] ao mesmo tempo em
nos princípios éticos e não nos procedimentos que a torna enganadora e obscurece a diferença en-
deles decorrentes. Quanto mais detalhada a Mi- tre o direito reivindicado e o direito reconhecido e
nuta, maior a dificuldade de que as CHS, em sua protegido. São por demais conhecidas, sobretudo
diversidade paradigmática e teórico-metodológi- por aqueles que atuam em esferas como educa-
ca chegasse a consensos. ção e saúde no Brasil, os desafios que se apresen-
Ao elaborar esse texto, observamos a lamen- tam à materialização em práticas das conquistas
tável falta de publicização desse trabalho, que a estabelecidas no plano legal. Garantir na letra da
nosso ver deveria ser divulgado no site da CO- resolução já significa muito no caso de diretri-
NEP. Essa comissão precisaria transparecer a zes éticas especificas para CHS, mas não é tudo, a
existência do GT, sua composição, a Minuta, a exemplo do nosso texto constitucional. A Cons-
carta CONEP, entre outros, para permitir o con- tituição brasileira é uma das mais avançadas do
trole social do seu trabalho. A ausência dessa di- mundo, em especial no que se refere aos direitos
vulgação, nos motivou a construir este texto, de no campo da saúde, mas ainda há uma distância
modo a apresentar essas informações, cabendo a expressiva entre o discurso e a concretização do
ressalva de que não há aqui a pretensão de repre- que nele está “garantido”.
sentar o GT ou falar em seu nome. Trasladando essas premissas para o contexto
Recuperados esses aspectos contextuais, in- de diretrizes éticas especificas para as CHS, evi-
dispensáveis à compreensão do percurso em que dencia-se a necessidade de, para além de acionar
se inscreve esta reflexão e do momento crucial um novo discurso, desencadear um processo que
em que essa construção se situa no Brasil, neste conduza à efetivação de tais diretrizes. Tal pro-
artigo apresentaremos alguns elementos que nos cesso engloba dois aspectos fundamentais: um
soam muito estratégicos no processo, considera- primeiro, concernente à construção de uma nova
dos, como o título antecipa, na dinâmica própria cultura no interior, não somente da CONEP, mas
do campo cientifico. Dados os limites do texto, das centenas de CEP brasileiros e na própria co-
elegemos pontos centrais, esclarecendo que boa munidade acadêmica; o segundo aspecto, intrin-
parte deles se inspira nas críticas dirigidas à Mi- secamente associado ao primeiro, refere-se a uma
nuta construída pelo GT28 no documento elabo- ação comunicativa em vários outros planos como
rado pela CONEP29. Tal opção parece-nos opor- mecanismo crucial no referido processo. Eviden-
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cia-se, portanto, a necessidade de manutenção de Sistema CEP/CONEP
um grupo de trabalho, devidamente qualificado, e a hegemonia biomédica
como uma liderança fundamental na mudança
paradigmática necessária à passagem da letra à Para analisar a composição da CONEP, re-
ação no cotidiano das apreciações éticas sob a corremos à configuração do Conselho Nacional
égide de diretrizes especificas aos distintos enfo- de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
ques de pesquisa e visões de ciência. (CNPq)34, composto por várias Coordenadorias
Para que tal conquista se processe é funda- de pesquisa, dentre elas, duas de especial interes-
mental o espaço micro representado por relações se para o tema aqui discutido: a Coordenação do
cotidianas, como as que se estabelecem no inte- Programa de Pesquisa em Ciências Humanas e
rior dos comitês; entre estes e as instituições de Sociais – COCHS e a Coordenação do Programa
pesquisa, além de relações desenvolvidas entre de Pesquisa em Ciências Sociais Aplicadas e Edu-
várias outras instâncias. O cotidiano enquan- cação – COSAE. Tomando por base essa classifi-
to espaço de experiência viva é o lugar no qual cação elaborada pelo CNPq, e sem o propósito
os atores sociais constroem suas percepções, ao de ratificá-la tampouco questioná-la, portanto,
mesmo tempo em que representa um espaço de tomando-a apenas como fonte, identificamos 26
luta, de exercício de poder, poder aqui entendido disciplinas incluídas sob a ampla denominação
como prática social e como tal constituída histo- Ciências Humanas e Sociais, e Ciências Sociais
ricamente; podendo-se nele distinguir um nível Aplicadas e Educação. Uma comissão nacional,
macro e outro micro de exercício32, ambos atu- como a CONEP, que pretende elaborar normas
antes nesse processo. éticas para pesquisas que envolvem seres hu-
Seria ingênuo supor que a materialização de manos, dirigidas para todas as áreas do conhe-
diretrizes especificas para certos membros de cimento, inclusive para pesquisas externas ao
uma comunidade escaparia à dinâmica de poder, âmbito da saúde, que seria sua atribuição legal,
sobretudo àquela característica de um campo pressupõe uma composição de grande amplitu-
fortemente autônomo como é o campo cientifi- de, se adequada a esse propósito. Não é isso o que
co. Quanto a isso, é útil retomar, uma vez mais, se observa ao se analisar a composição da CO-
a lúcida formulação de Bourdieu33 ao afirmar NEP, tomando por base as informações oficiais
a indissociabilidade entre ciência e política. O que constam do site dessa Comissão35. Dos atuais
percurso de construção das diretrizes, ainda no 30 membros titulares da CONEP, 6 são indica-
interior da CONEP já apontou, em vários mo- ções do CNS, sendo 4 representantes de usuários,
mentos, embates aparentemente epistemológi- 2 dos trabalhadores e 2 indicações do Departa-
cos, mas encobrindo posturas políticas distintas mento de Ciência e Tecnologia (Decit/SCTIE/
relativas ao processo de construção do conheci- MS), como estabelecido pela Resolução 446/1136.
mento e a outros interesses, deixando claro que Entre os 22 que foram selecionados a partir das
novos embates advirão. Foi justamente pensando indicações feitas pelos CEP, 18 são profissionais
nas diretrizes como processo vivo que a Minuta28 com graduação na área biomédica, ciências bio-
do GT incorporou, no artigo 35, a composição de lógicas e ciências da saúde e apenas 4 membros
um GT objetivando garantir a continuidade do tem graduação nas áreas Ciências Humanas, So-
processo já iniciado: ciais e Sociais aplicadas. Dos 5 suplentes, 4 são da
A CONEP, após aprovação desta Resolução, área biomédica.
criará um Grupo de Trabalho de Ética em Pesquisa Ante esse cenário, preocupa-nos a dissonân-
em Ciências Humanas e Sociais, com a participação cia da expertise esperada para a consecução de ta-
dos seus membros titulares das Ciências Humanas e refa de tamanha envergadura e emerge a seguinte
Sociais, de representantes das associações científicas indagação: qual a legitimidade (em termos epis-
nacionais de Ciências Humanas e Sociais, de mem- temológicos) de um colegiado assim composto
bros de CEP de Ciências Humanas e Sociais e de para deliberar sobre uma resolução para CHS?
usuários, para implementação, acompanhamento e Ou, mais que isso, para vetar – conforme a carta
atualização das normas previstas nesta Resolução, resposta da CONEP a proposta elaborada pelo
bem como propostas de capacitação na área. GT CHS, considerando sua expertise? O que es-
Sem isso, tornar-se-á difícil a implementação perar no que se refere à compreensão e à efetiva-
dos avanços almejados pelo esforço do GT CHS/ ção das diretrizes resultantes do árduo e profícuo
CONEP. Uma análise da composição do Sistema trabalho realizado pelo referido GT? Os dados
CEP/CONEP tornará mais claro o que ora afir- falam por si e demonstram haja vista a não ga-
mamos. rantia da necessária diversidade e mesmo a massa
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crítica interdisciplinar exigida para a tarefa a ser [...] parece incoerente propor que 50% da com-
enfrentada. posição da CONEP sejam de membros da área de
A carta da CONEP29 evidencia um desconhe- CHS, quando há expectativa de que a maioria dos
cimento até mesmo do que seja o domínio das estudos desta área não se enquadre futuramente no
Ciências Sociais, Humanas e Sociais aplicadas, que se chamará de “pesquisa de risco elevado” [...].
usando a terminologia do CNPq. Na página 7 Entendeu-se, portanto, que os artigos 34 e 35 da Mi-
do referido documento lê-se: Contudo, não seria nuta da Resolução GT-CHS são incongruentes com
prudente estimular a composição de Comitês de o Sistema CEP/CONEP”. Entretanto, esses artigos
Ética em Pesquisa sem a necessária e salutar vi- são imperativos para um sistema CEP/CONEP
são multidisciplinar. Cabe lembrar que a Norma que saiba identificar e, mais que isso, respeitar as
Operacional CNS nº 001/2013 define, no item diferentes tradições de pesquisa, bem como os as-
2.2, que o CEP [...] Poderá variar na sua composi- pectos éticos implicados em cada uma. Da forma
ção, de acordo com as especificidades da instituição como a CONEP se posiciona nesse documento,
e dos temas de pesquisa a serem analisados. Terá, mantém-se a já aludida hegemonia biomédica,
sempre, caráter multidisciplinar, não devendo ha- positivista, sobre as demais vertentes de pesquisa.
ver mais que a metade dos seus membros perten- A importância de uma CONEP paritária é
cente à mesma categoria profissional, participando porque cabe a ela, como instância de regulação,
pessoas dos dois sexos. Poderá, ainda, contar com elaborar e atualizar as resoluções sobre ética em
consultores “ad hoc”, pertencentes, ou não, à insti- pesquisa e não, como se lê na carta CONEP, ava-
tuição, com a finalidade de fornecer subsídios téc- liar protocolos de pesquisa, o que se vincularia
nicos. Entende-se, portanto, que o aspecto mul- a um raciocínio quantitativo sobre número de
tidisciplinar dos Comitês de Ética em Pesquisa é protocolos desta ou daquela área/campo. A pro-
conditio sine qua non. (grifos conforme original). posta de composição paritária da CONEP, visa
Esse excerto evidencia a crença em que, todas justamente a que as decisões sobre as diretrizes
as disciplinas que compõem o amplo conjunto éticas a serem seguidas no país sejam tomadas
das ciências humanas, sociais e sociais aplica- por um grupo composto por pesquisadores que
das constituem-se em uma única disciplina. É trabalham em diferentes paradigmas. Entretanto,
amplamente conhecido (ou deveria sê-lo em se é um imenso desafio garantir essa diversidade.
tratando de instâncias reguladoras de pesquisas) Por falta de opção melhor, a Minuta propõe que
que as CHS têm como marca a diversidade pa- a CONEP tenha composição paritária entre Ci-
radigmática, o que no plano das vertentes ana- ências biomédicas e CHS. Sabendo, de antemão,
líticas, faz com que a literatura se refira a um que nas CHS existem pesquisadores que traba-
efeito “Babel”37 haja vista a diversidade interna. lham no paradigma positivista, e que entre os
Esta não pode ser equalizada às “especialidades” biomédicos existem os que trabalham em outros
biomédicas, em relação isonômica, dado que tais paradigmas. Entretanto, entendemos que não
especialidades se, por um lado, se distinguem pe- seria operacionalizável escrever na Minuta que
los objetos de que tratam, por outro, se unificam a composição da CONEP deveria ser paritária,
pela adesão ao crivo positivista em que repousam entre pesquisadores positivistas e pesquisadores
todas as especialidades, unificando-as epistemo- que trabalham nos paradigmas críticos, constru-
logicamente naquilo que concebemos como mo- tivistas e participativos.
delo ou paradigma biomédico. Não obstante a recusa à paridade expressa na
A carta CONEP parece considerar que um carta resposta à Minuta, cabe salientar que hoje,
CEP composto por representantes de distintos ante a forte resistência do GT CHS e a mobili-
domínios (subcampos) das CHS não seria mul- zação por ele efetivada no interior dos coletivos
tidisciplinar, mesmo se incluísse historiadores, que representam, desdobradas em um diálogo
filósofos, psicólogos, sociólogos, antropólogos, contando com a mediação da mesa diretora do
assistentes sociais, pedagogos etc. Tal desconhe- CNS ao qual o GT também se reportou, a coor-
cimento expresso no documento impacta distin- denação da CONEP já sinaliza para a progressiva
tas esferas, evidenciando-se tensões entre as duas equidade, a ser alcançada até 2017, começando
instâncias: CONEP e GT CHS. Vejamos algumas. pelas indicações que ocorrerão ainda neste ano.
A CONEP manifesta-se nesse documento, Trata-se de um avanço importante haja vista
contrária a que sua composição seja paulatina- que a composição majoritariamente biomédica
mente paritária entre ciências biomédicas e ciên- da CONEP, se mantida, impediria que pesquisa-
cias humanas, sociais e sociais aplicadas, como se dores representantes das CHS assumissem posi-
observa no trecho abaixo: ções que lhes permitiriam efetivamente partici-
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par da construção de um sistema CEP/CONEP, participante da pesquisa e não necessariamente
congruente com as especificidades dos diferentes do ponto de vista técnico. Cabe retomar Santos39
campos disciplinares que o compõem. Uma bre- quando discute a dupla ruptura epistemológica,
ve retomada da Resolução 466/12 pode ajudar na afirmando que após a primeira ruptura que dis-
visualização dos desafios que ora se colocam para tanciava a ciência do senso comum, o desafio atu-
um efetivo diálogo entre a biomedicina e as CHS. al seria almejar que o conhecimento cientifico se
transforme, ele próprio, num novo senso comum,
A inadequação da Resolução 466/12 num senso comum mais informado39.
para Ciências Humanas e Sociais Conforme se observa, no trecho citado da
466, a visão do participante da pesquisa, é ex-
Cabe citar alguns trechos que ilustram a ina- cluída. Mais que uma concepção positivista de
dequação da resolução 466/12 para CHS. Por ciência, que se opunha ao senso comum, eviden-
exemplo, o item III.2 que trata dos aspectos éti- cia-se uma contradição: uma resolução que visa à
cos das pesquisas em qualquer área do conheci- proteção do participante de pesquisa, ao mesmo
mento, e inclui os seguintes subitens: tempo, desqualifica seu saber. Esse é apenas um
r) levar em conta, nas pesquisas realizadas em exemplo de uma visão de mundo impregnada
mulheres em idade fértil ou em mulheres em todo texto da resolução 466/12, não sendo
grávidas, a avaliação de riscos e benefícios e as possível assumi-lo operando apenas mudanças
eventuais interferências sobre a fertilidade, a gra- pontuais. Por isso, o GT CHS, acertadamente,
videz, o embrião ou o feto, o trabalho de parto, o incluiu o artigo 33 que informa que apenas os
puerpério, a lactação e o recém-nascido; itens que tratam do sistema CEP/CONEP serão
s) considerar que as pesquisas em mulheres válidos para CHS.
grávidas devem ser precedidas de pesquisas em Finalmente, gostaríamos, de, ao menos,
mulheres fora do período gestacional, exceto quan- mencionar o tema da avaliação do mérito cien-
do a gravidez for o objeto fundamental da pesquisa; tifico e da avaliação ética, por vezes, objeto de
t) garantir, para mulheres que se declarem ex- mal-entendidos e, com frequência considerados
pressamente isentas de risco de gravidez, quer por como aspectos independentes. Ora, mesmo con-
não exercerem práticas sexuais ou por as exercerem siderando a questão apenas no âmbito restrito
de forma não reprodutiva, o direito de participa- das CHS, um pesquisador nesse domínio que
rem de pesquisas sem o uso obrigatório de contra- trabalhe num referencial teórico-metodológico,
ceptivos. poderá encontrar dificuldades para avaliar ade-
A inadequação desses itens a pesquisas das quadamente o mérito científico de um projeto
CHS é tão evidente que torna desnecessária de CHS orientado por outro referencial. Assim,
qualquer justificativa ou comentário. Se apli- evidencia-se a necessidade de que o sistema CEP/
cados, para respeitar esse item, as avaliações de CONEP mantenha sua preocupação em garantir
serviços de saúde deveriam ser realizadas apenas o mérito cientifico dos projetos, uma vez que um
com mulheres fora do período gestacional, para projeto que não tem esse mérito não é eticamente
depois incluir as grávidas. Isso não faz nenhum adequado; contudo, isso deve ser feito através da
sentido. Como nortear as apreciações com uma exigência da comprovação que tal avaliação foi
resolução que, a todo o momento, imporia res- feita por instâncias competentes já existentes no
salvas, exceções, outros critérios? país, sejam elas, bancas de qualificação; comissões
Entretanto, há pontos mais sutis e que eviden- de pesquisa; agências de fomento e outros proce-
ciam o fundamento da 466 no solo da concepção dimentos devidamente qualificados. A avaliação
positivista de ciência. O item X trata dos proce- de mérito científico feita de maneira inadequada
dimentos da análise ética e no item X.3.2 lê-se: os não identifica corretamente as implicações éticas
CEP e a CONEP poderão contar com consultores de uma pesquisa. Além disso, é bom recordar,
ad hoc, pessoas pertencentes, ou não, à instituição/ essa vem sendo uma das principais queixas dos
organização, com a finalidade de fornecer subsídios pesquisadores em CHS nesses quase 20 anos de
técnicos. Essa redação é um retrocesso em rela- funcionamento do sistema CEP/CONEP.
ção à res 196/9638, onde no item VIII.2, que trata
da composição da CONEP, lia-se: Poderá contar O desafio no diálogo com a
também com consultores e membros ad hoc, assegu- biomedicina acerca da classificação de risco
rada a representação dos usuários. Esse trecho da
196 previa a possibilidade de que um ad hoc fosse Outro ponto central na discussão sobre nor-
alguém que falasse a partir do ponto de vista do matização ética em pesquisa, diz respeito à de-
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Guerriero ICZ, Bosi MLM

finição de “riscos” ou nível de risco, novamente, acepção quantitativo-positivista, na construção


objeto de dissensos entre as CHS e a biomedici- da gradação de risco e procedimentos afins. O
na. Ao longo do intenso processo de construção processo de diálogo restabelecido entre o GT
de uma resolução específica, sob o encargo do CHS e a CONEP, já descrito, teve resultado mui-
GT CHS, em vários momentos apresentaram-se to positivo também nesse aspecto: será elaborada
desconfortos, não somente quanto à definição uma resolução sobre tipificação de risco e trami-
dos assim denominados “níveis de risco”, como, tação no sistema CEP/CONEP, que conterá dois
em certo momento, em relação ao emprego do capítulos, sendo um específico para CHS.
termo/conceito “risco”. Tal como discutido em
uma das reuniões do GT, por uma das autoras
deste manuscrito e objeto desenvolvido em outro Considerações finais
artigo neste temático40, risco assume na SC sig-
nificados peculiares, sendo problemático e, em Uma das críticas que a minuta de resolução re-
alguns casos, incongruente nesse processo, preci- cebeu durante o Encontro Nacional de Comitês
samente, dadas as inconciliáveis distinções entre de Ética em Pesquisa (ENCEP), realizado em
as modalidades de pesquisa biomédica e social novembro de 2014, foi a de que ela estaria con-
em saúde. No campo da saúde, em especial na trária à transdisciplinaridade. Questionava-se se
saúde coletiva, reitera-se em uma vasta bibliogra- a existência de uma resolução para CHS e CEP
fia a preponderância da ideia de cálculo e proba- voltados para essas áreas, poderia levar ao distan-
bilidade, portanto, previsibilidade. Sendo assim, ciamento das disciplinas. Porém, é fundamental
torna-se bem complexa a tarefa de construir uma registrar que a transdisciplinaridade rompe os
“tipificação de risco” que atenda aos códigos de muros entre as disciplinas e articula diferentes
ambas as áreas, na tentativa de um “pareamento”. saberes e conceitos para a compressão de obje-
Também aqui, não obstante as declarações no tos complexos. Não há uma relação hierárquica
sentido de uma multi ou interdisciplinaridade, entre disciplinas, que passam a se articular e a
revelam-se muitas dificuldades de diálogo entre construir o objeto de estudo durante o proces-
as culturas hard e soft, sobretudo para pesquisa- so da pesquisa41. E aqui tocamos em mais um
dores que desenvolvem pesquisa social em saúde, argumento da carta CONEP que afirma que o
em especial, no enfoque qualitativo. Não por aca- pesquisador deve desenvolver o projeto conforme
so, sustentou-se em uma das reuniões um efetivo delineado [...]. Se estivermos no âmbito da trans-
distanciamento do conceito de risco no âmbito diciplinaridade, como delinear previamente o
dessas diretrizes. O emprego do conceito de risco projeto se o próprio objeto se move e vai sendo
em diálogos desdobrados com atores oriundos do construído no processo?
campo da saúde, a despeito das acepções quali- Mas, conforme a carta CONEP salienta, a
tativa e quantitativa presentes nas teorias sociais, busca dessa comissão é pela multidisciplinarida-
aciona o raciocínio matemático-probabilístico, de, portanto muito aquém da proposta de trans-
hegemônico nesse domínio, mesmo quando rela- disciplinaridade. Pela prática do sistema CEP/
tivo a situações onde a incerteza e a imprevisibili- CONEP e pela composição da CONEP, pode-se
dade são inerentes, como nas pesquisas em CHS. identificar, na verdade, o modelo da interdisci-
Tal argumento, embora aceito em suas bases plinaridade auxiliar42, no qual diferentes discipli-
pelo GT não obteve força suficiente para blo- nas seriam integradas por um campo disciplinar
quear o emprego e substituí-lo por outro con- hierarquicamente superior, no caso o biomédico.
ceito que, salvaguardando seu significado, não Trata-se, portanto de uma proposta bem distante
carreasse a dificuldade semântica já apontada. da transdisciplinaridade. O que parece ocorrer
Avaliou-se que seria mais favorável ao diálogo entre o sistema CEP/CONEP e o GT CHS é a
manter o conceito no texto, mas, pelo que viria previsível impossibilidade de diálogo interpara-
a ocorrer, questionamos se tal manutenção efeti- digmático, ao que se soma uma postura “coloni-
vamente contribuiu para superar as dificuldades zadora”, determinada pelo crivo positivista, con-
ou se as acentuou ao admitir um entendimento siderado como o único legitimo, e que pretende
conflitante com o solo epistemológico em que se submeter os pesquisadores das CHS aos seus pa-
fundam as diretrizes propostas. Uma vez que o râmetros. Inclusive quando demanda a utilização
GT sempre teve claras as dificuldades de entendi- do conceito de risco em uma acepção distinta da-
mento acerca das diferenças entre procedimentos quela congruente com os fundamentos das CHS,
das ciências biomédicas e as CHS, não se espera- e mais ainda, que seja elaborada uma única clas-
ria outro desfecho, que não a repetição de certa sificação de risco para CHS e a área Biomédica.
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Ciência & Saúde Coletiva, 20(9):2615-2624, 2015


Salienta-se a importância de que um GT
CHS/CONEP continue trabalhando após a apro-
vação da resolução CHS, estabelecendo mandato
para os membros, e assuma a liderança do pro-
cesso de mudança paradigmática necessária à
passagem da letra à ação no cotidiano das apre-
ciações éticas sob a égide de diretrizes especificas.
Tal avanço depende de um diálogo efetivo, que
implica no estabelecimento de relações não hie-
rárquicas, na escuta da diversidade, no respeito
à alteridade e não na postura que busca se im-
por ao que é diferente, divergente e instituinte no
contraste com sua própria visão de mundo.

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