Você está na página 1de 8

DOI: 10.1590/1413-812320202512.

17982020 4715

História, ciência e saúde coletiva

artigo article
History, Science, and Collective Health

Gilberto Hochman (https://orcid.org/0000-0001-7834-336X) 1

Abstract The article analyzes the presence of the Resumo O artigo analisa a presença da história
history of health in the “ Journal Ciência & Saúde da saúde no periódico “Revista Ciência & Saúde
Coletiva” from 1996 to 2020, exploring relations Coletiva” entre 1996 e 2020. Discute as relações
between the disciplinary field of history and the entre o campo disciplinar da história e a multi-
multidisciplinary field of public health and exa- disciplinaridade da saúde coletiva, suas tensões,
mining their tensions, commonalities, and poten- convergências e potenciais sinergias. Apresenta a
tial synergies. It shows how the history of health trajetória do tema da história da saúde nos artigos
has featured in the journal’s articles and issues e fascículos ao longo dos 25 anos de existência da
over the course of the journal’s twenty-five years revista, as principais iniciativas, resultados e te-
and describes the main initiatives, results, and máticas abordadas. Faz um balanço crítico e dis-
topics addressed in this realm. The article then cute caminhos para incrementar presença da his-
offers a critical evaluation and discusses pathwa- tória em artigos e números temáticos de “Revista
ys for boosting the presence of history in articles Ciência & Saúde Coletiva”.
and thematic issues of “Journal Ciência & Saúde Palavras-chave História, Saúde pública, Perió-
Coletiva”. dicos científicos, Ciências humanas, Políticas de
Key words History, Public health, Scientific pe- saúde
riodicals, Human sciences, Health policies

1
Casa de Oswaldo Cruz,
Fiocruz. Av. Brasil 4365,
Manguinhos. 21040-900
Rio de Janeiro RJ Brasil.
gilberto.hochman@fiocruz.br
4716
Hochman G

Introdução tiva em uma direção semelhante, mas com obje-


tivo inverso, isto é, o de transformar o presente
A história é parte do campo da saúde coletiva no em histórico. O esforço de parte da disciplina tem
Brasil desde a conformação deste no último quar- sido se aproximar das questões contemporâneas
to do século XX, compondo o movimento das nas quais o historiador é testemunha e analista,
ciências humanas e sociais em saúde. A partir do a partir de seus recursos metodológicos específi-
início deste século, os historiadores têm se apre- cos. Desse modo, a história estaria também auto-
sentado com uma identidade disciplinar mais rizada a falar sobre o presente, desenhando-se um
distintiva fruto de inúmeros processos de insti- quadro que, potencialmente, pode gerar mais a
tucionalização, tanto da história, bem mais lon- competição do que o diálogo.
gevo, como da saúde coletiva, mais recente. Essa Contudo esses “usos da história” não são te-
associação tem sido positiva do ponto de vista in- mas pacificados. Este campo disciplinar tende a
telectual e político, mas seus caminhos merecem recusar a ideia de aprendizado, ou de uma “his-
ser escrutinados. O modo pelo qual a saúde co- tória mestra da vida” ou a história como escola
letiva interagiu e incorporou a história tem sido do presente, mesmo quando se reconhece a intri-
bastante diverso e sua dinâmica pode ser em par- cada relação do presente com o passado. O histo-
te apreendida no conjunto dos artigos publicados riador inglês Quentin Skinner ao escrever sobre
em Revista Ciência & Saúde Coletiva desde 1996. o “lugar da história na vida pública” ressalta que,
Como arena multidisciplinar, a saúde coletiva mesmo reconhecendo que a história pode servir
demanda a compreensão sobre espaço/tempo de a propósitos públicos, espera que os historiadores
seus processos e também aciona a história para não transformem essa aspiração em seu objetivo
conferir legitimidade ao presente, celebrar con- principal4. Como frisa Rosenberg, os historiado-
quistas, reforçar identidades profissionais, relem- res sentem-se desconfortáveis com prognósticos
brar eventos e perscrutar marcos do passado com que são, justamente, uma das maiores expecta-
o intento de dar sentido às narrativas do presente tivas dos formuladores de políticas3. Contudo,
e proposições de futuro1. E, muitas vezes, busca as alertados pelo debate teórico sobre o presentis-
“lições da história”, principalmente em momen- mo, sobre a especificidade dos contextos e do
tos de crise política e sanitária como nos eventos passado e sobre o perigo das analogias históricas
epidêmicos. A reconstrução intelectual e política e as distorções que uma certa “história pública”
das filiações e origens progressistas da reforma pode produzir, um conjunto crescente de histo-
sanitária e do Sistema Único de Saúde foi um dos riadores reafirmam que a história importa tanto
esforços mais prolíficos na direção da história como disciplina acadêmica quanto como para o
da saúde coletiva. A história seria, para muitos, debate público e para os formuladores, decisores
tanto a reconstrução de uma linhagem política e e implementadores de políticas5. Essa é uma ten-
intelectual como um território de aprendizagem são relevante para se compreender as relações da
que poderia informar escolhas e ações no campo história como campo disciplinar e profissional e
da saúde pública2. a saúde coletiva, geneticamente multiprofissional
Trazer o passado de volta ao presente como e pluridisciplinar.
elemento da análise das políticas e ações de saú- Todavia, foram nessas inquietudes e expec-
de, para além de seu papel na formação profis- tativas que se conformou a perspectiva históri-
sional, tem sido uma reivindicação daqueles que ca dos fenômenos da saúde e da doença que está
compreendem que “política pública é sempre consolidada como um campo – história da saúde
história”3 e, por conseguinte, saúde pública se- – no Brasil. Este campo não é monopolístico e
ria história. Para o historiador norte-americano esta perspectiva está presente em diferentes áreas,
Charles Rosenberg, a maior contribuição da his- associações, instituições e periódicos científicos.
tória para as políticas de saúde seria o seu funda- Ele se beneficia por não importar o debate euro-
mental sentido de contingência e complexidade peu e estadunidense sobre definições de história
da experiência individual e social com a saúde e da medicina, história médica, história da saúde,
a doença. De modo reflexivo, ressalta que a inte- história da saúde pública e história das doenças,
ração com a saúde coletiva impediria que histo- sobre suas nebulosas fronteiras ou mesmo em
riadores produzam contextos despolitizados3. A suas variações como história social6. A elastici-
história seria simultaneamente conhecimento e dade conceitual e política desse campo permite
ação política. compreendê-lo, na sua gênese e consolidação, a
A resposta de parte dos historiadores profis- partir de inúmeras facetas e, por sua vez, a natu-
sionais a essa demanda tem sido, portanto, posi- reza da saúde coletiva convida a esse diálogo.
4717

Ciência & Saúde Coletiva, 25(12):4715-4721, 2020


A saúde coletiva foi construída por uma mul- A história da História na Revista Ciência
tiplicidade de indivíduos, grupos e instituições & Saúde Coletiva
em várias áreas do conhecimento e de prática
profissional, situados no Brasil e também no A presença de uma perspectiva histórica em
exterior. Esse foi um processo historicamente artigos da Revista Ciência & Saúde Coletiva entre
polifônico e polissêmico que, por isso mesmo, 1996 e 2020 representa 2% do total, isto é, 104
constrange monopólios – sejam eles interpreta- artigos em um universo de 5.033. Estes artigos
tivos, metodológicos, institucionais ou políticos. foram selecionados primeiro, a partir de busca
Do ponto de vista da compreensão dos seus pro- por diferentes termos e descritores (título, re-
cessos constitutivos esse diálogo com a história sumo, palavras-chave, texto completo) e, segun-
ajudou a matizar duas vertentes sobre o lugar e o do, a leitura dos artigos resultantes dessa busca
papel dos médicos e profissionais de saúde muito para confirmar a pertinência ou descartar os não
presentes nos trabalhos inaugurais da saúde co- apropriados. Há interseções significativas com
letiva em perspectiva histórica entre o fim da dé- outros campos disciplinares, como as ciências so-
cada de 1970 e meados dos anos 1980: uma visão ciais, a educação, a nutrição, a enfermagem, a psi-
mais heroica e reformista da medicina social de- quiatria e a filosofia e perspectivas metodológicas
calcada da obra de George Rosen e Henry Sigerist como histórias de vida e história oral, análise de
e uma concepção mais crítica da medicina social políticas públicas e análise comparada. A leitura
e das tramas do biopoder extraída dos trabalhos permitiu definir com mais precisão uma centena
de Michel Foucault7. de artigos que têm claramente uma perspectiva
O lugar da história na saúde coletiva e na Re- histórica.
vista Ciência & Saúde Coletiva foi construído ao A contribuição da história da saúde coletiva
longo de mais de duas décadas durante as quais à revista foi sendo construída ao longo dos 25
esse campo se institucionalizou também como anos. Esses artigos foram escritos por historiado-
parte das chamadas ciências sociais e humanas res, mas também por cientistas sociais, médicos,
em saúde. São trabalhos marcados pela democra- biólogos, sanitaristas e profissionais de saúde que
tização do Brasil e intimamente associados aos incorporam a sensibilidade histórica. A maior
estudos sobre a reforma sanitária em seus pri- parte dele, cerca de 60%, concentra-se em núme-
meiros anos e, depois, nos seus impasses, sobre ros temáticos e seções especiais e mais de 95% foi
o lugar das humanidades na saúde coletiva bra- publicada a partir do ano 2000. Até esse ano, ape-
sileira e na formação dos profissionais de saúde. nas 4 artigos tinham sido publicados com uma
Indicadores desse processo de institucionalização adesão à perspectiva histórica. O aumento do nú-
estão nas crescentes revisões bibliográficas que mero de fascículos anuais da revista (trimestral
vêm sendo publicadas desde a década de 1990, em 2002, bimestral em 2007 e mensal a partir de
em particular sobre história da saúde pública/ 2011) possibilitou também mais espaço editorial
coletiva e sobre o lugar da história e das ciências para artigos e números temáticos em diversas
sociais na saúde8-11. Esses balanços foram menos áreas, inclusive para a história da saúde coletiva.
frequentes para o campo profissional da história Em 2000, por ocasião das comemorações so-
à exceção de trabalhos que discutem a produção bre 500 anos da descoberta, ou invasão, do Brasil,
no campo da história institucional das ciências ou de encontro de civilizações, a Revista Ciência
que tem interseções com a saúde pública, suas & Saúde Coletiva publicou seu primeiro núme-
instituições e profissões12. Por outro caminho, ro com tema histórico organizado por Everardo
têm emergido análises sobre o que já se poderia Duarte Nunes como editor convidado. Também
denominar de uma interpretação historiográfica marcava a primeira década de um Sistema Único
da reforma sanitária brasileira13,14. A produção de Saúde (SUS) ainda em construção e um século
brasileira mais recente tem sido referenciada em de saúde pública no Brasil. Nunes foi, certamen-
artigos e livros que fazem revisões da literatura te, o autor que mais publicou artigos em perspec-
relativa aos temas da história da saúde, da doença tiva histórica nos primeiros anos da revista. Sob o
e da medicina na América Latina e no Caribe15-20. título de 100 anos de saúde coletiva (volume 5, nº
Essa produção acadêmica tem se expressado em 2) a revista abriu-se mais claramente para a pers-
parte nas páginas da Revista Ciência & Saúde Co- pectiva histórica em geral e para historiadores em
letiva. particular. Em seu editorial, Nunes apresentava a
senha para um diálogo interdisciplinar necessá-
rio da saúde coletiva no e do século XXI:
4718
Hochman G

… a saúde será, neste século objeto de infin- no pós-Segunda Guerra Mundial O resultado da
dáveis, mas necessárias, discussões. Não é tarefa chamada de artigos incorporou autores de dife-
fácil abordar a complexa rede de relações na com- rentes instituições em diversos países com textos
preensão do problema saúde, nos aspectos que nos em inglês, espanhol e português. Este número
interessam: o social, o coletivo e o público. Nesse ajudou a aprofundar a dimensão internacional
sentido, é imprescindível a perspectiva interdisci- da história da saúde na revista e da própria Re-
plinar quando se cruzam conhecimentos históricos, vista Ciência & Saúde Coletiva. Outro aspecto a
sociológicos, antropológicos, políticos, biológicos, ser ressaltado é o caráter crítico da perspectiva
demográficos, estatísticos, ecológicos. E, para isso, histórica no campo da saúde. Ela deve ser “he-
somente a participação de um grupo de especialis- rética e incômoda” mesmo quando celebra uma
tas é que torna possível recuperar, mesmo que de conquista da saúde global conforme a carta dos
forma incompleta, aquilo que vem constituindo a editores convidados:
construção da saúde pública brasileira21. A análise histórica produz conhecimento e re-
Na esteira do crescimento e institucionaliza- flexão crítica ao abrir as caixas-pretas dos sucessos
ção do campo da história da saúde no Brasil cres- da saúde pública nacional e global, ao desvelar as
ceu a demanda pela perspectiva histórica na saú- tramas sociais e culturais envolvidas na imuniza-
de coletiva e na revista18. Em 2008 foi publicado o ção, ao investigar as redes de interesses políticos e
número temático A história dos trabalhadores da econômicos que a envolvem e apontar a diversida-
saúde. Esse número temático (volume 13, nº 2) de e a assimetria entre países, atores e instituições.
aprofundou a presença da perspectiva histórica Nesse sentido, a maior contribuição da história
em Revista Ciência & Saúde Coletiva promoven- para a saúde pública é o seu fundamental senti-
do o diálogo entre história, profissões e trabalha- do de temporalidade, espacialidade, contingência e
dores da saúde estimulada pelo Relatório Mun- complexidade24.
dial da Saúde de 2006: “Trabalhando juntos pela Essas iniciativas editoriais e as agendas exem-
Saúde”22. Uma característica importante nesse plificadas nos editoriais dos números temáticos
número foi o aprofundamento das contribuições fazem parte do processo de institucionalização do
sobre outras experiências nacionais, como dos campo da história da saúde no Brasil em diferen-
EUA, México, Argentina e Índia, em inglês e es- tes instituições de pesquisa e ensino, sociedades
panhol, denotando uma característica desse cam- científicas e associações profissionais e nos perió-
po que é a sua intrínseca internacionalização. Na dicos, em diversas áreas do conhecimento. Revista
apresentação os editores convidados atualizaram Ciência & Saúde Coletiva contribuiu ativamente
a agenda da história da saúde coletiva na revista: ao abrir espaço crescente para colaborações no
A história como instrumento de conhecimento campo da história. Por sua vez estas auxiliaram
e reflexão crítica tem estado presente no campo da no adensamento do próprio campo da saúde co-
saúde pública desde os seus primórdios. A agenda letiva com impacto na revista. Um indicador de
internacional hoje reforça esta presença, expressa reconhecimento desse processo de mão dupla
pela reivindicação manifestada por historiadores, foi a criação a partir de 2014 de uma editoria es-
outros especialistas e gestores, de um encontro ati- pecífica de História e Saúde, uma distinção em
vo da história com a saúde, visando à compreen- relação a outros periódicos no campo da saúde
são presente e futura das reformas dos sistemas de coletiva no Brasil e mesmo no exterior. Revistas
saúde. Ao analisar processos no tempo e no espaço, importantes como The Lancet e o Journal of Epide-
contextualizando-os e inserindo saúde e doença na miology and Community Health publicam artigos
sociedade e na cultura, historiadores podem infor- de história de saúde mas de modo intermitente. A
mar sobre práticas passadas, iluminar opções, pos- iniciativa da série aproxima a revista da Abrasco
sibilitar comparações23. da American Journal of Public Health (AJPH), da
Em 2011 foi publicado um novo volume te- argentina Salud Colectiva e da colombiana Revista
mático articulando desta vez saúde global e his- de Ciencias de la Salud que têm estimulado e pu-
tória por ocasião dos 30 anos da erradicação da blicado artigos de história e historiadores, inclu-
varíola em campanha coordenada pela Organi- sive com editorias especializadas.
zação Mundial da Saúde (OMS) e anunciada em Por ocasião dos 20 anos de Revista Ciência &
maio de 1980. Sob o título de Imunização, vaci- Saúde Coletiva em 2015, criou-se a série “Cons-
nas: passado e futuro (vol. 16, nº 2) foram reu- trutores da Saúde Coletiva” editada por Gilber-
nidos artigos sobre diferentes experiências histó- to Hochman e Everardo Nunes Duarte. Foi uma
ricas de vacinação e imunização desde o século iniciativa inédita com poucos similares nacionais
XIX com ênfase na experiência da erradicação e internacionais como, talvez o único exemplo
4719

Ciência & Saúde Coletiva, 25(12):4715-4721, 2020


similar, a seção “Voices from the Past” da AJPH. res à institucionalização do campo que tem como
Ao longo deste ano publicou-se 12 artigos sobre marco fundamental a criação da Associação Bra-
diferentes atores considerados fundamentais na sileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em 1979 o do
arquitetura intelectual e na prática da saúde co- Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
letiva desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Não em 1976. E, fundamentalmente, incorpora os ar-
se restringe apenas a personagens brasileiros, quitetos e os intelectuais da saúde coletiva como
mas, também, a latino-americanos e europeus, “intérpretes do Brasil” agora no campo de estu-
cuja ideias e ações tiveram influência intelectu- dos do Pensamento Social Brasileiro26.
al e institucional na saúde coletiva brasileira. Os As temáticas que frequentaram essa centena
editores convidados advertiam os leitores que de artigos estão associadas em grande parte às
nesta seção: chamadas para esses fascículos temáticos e se-
Não se trata de ratificar ou erigir um panteão. ção: campanhas sanitárias, educação médica e
Ao contrário, devemos sim celebrar nossos constru- em saúde pública, profissões, instituições e prá-
tores, mas situando-os criticamente em seu tempo, ticas de cuidado e cura, saúde global, políticas e
na história. Pretende-se também iluminar perso- sistemas de saúde, psiquiatria, reforma sanitária,
nagens que são menos visíveis, alguns efetivamente epidemias e endemias, técnicas e tecnologias e
esquecidos, nas narrativas mais assentadas sobre história das doenças e das disciplinas médicas e
a reforma sanitária e sobre a criação do Sistema científicas. Também aparecem artigos em pers-
Único de Saúde25. pectiva histórica em fascículos dedicados à co-
A perspectiva histórica e crítica como vetor memoração reflexiva de marcos como a criação
foi mais uma vez reforçada: do SUS, a Atenção Primária em Saúde, Reforma
Os Construtores da Saúde Coletiva foram Psiquiátrica e Reforma Sanitária. Cabe destacar
homens e mulheres que, de diferentes maneiras, o papel de Everardo Duarte Nunes ao longo dos
pensaram, escreveram, discursaram, agiram, or- 25 anos da revista como autor mais prolífico e
ganizaram, administraram e, fundamentalmente, incentivador da interdisciplinaridade, da história
desejaram e imaginaram instituições, associações, do campo da saúde coletiva e das ciências sociais
políticas e sistemas de saúde mais públicos, nacio- em saúde.
nais, inclusivos e igualitários. Imaginação e prá-
ticas que foram eivadas de contradições, conflitos
e diferenças profundas sobre os caminhos a serem Considerações finais
seguidos, em momentos e lugares diversos. As pró-
prias terminologias que identificaram o campo são O lugar da história na Revista Ciência & Saú-
parte desse processo: higiene, saúde pública, medi- de Coletiva foi se estabelecendo a partir do ano
cina preventiva, medicina social, saúde coletiva. 2000. Ele conformou-se por dois movimentos.
Foram legados e escolhas situadas no tempo e es- Por um lado, o crescimento do campo das ciên-
paço26. cias humanas e sociais em saúde do qual a revis-
A partir de 2016 se tornou uma seção da edi- ta é o seu principal porta-voz. Por outro, a ins-
toria de história e recebe contribuições em fluxo titucionalização da área de história da saúde na
contínuo. Até 2020 a seção conta com 19 artigos saúde coletiva e também no campo da história a
entre publicados e aprovados. O objetivo de sua partir de inúmeros departamentos universitários
continuidade é estimular a reflexão no campo de história e em institutos de pesquisa, grupos e
da saúde coletiva sobre a sua história a partir de linhas de pesquisa, museus, espaço em periódicos
uma análise crítica da trajetória de seus princi- e congressos de sociedades e associações. A no-
pais construtores e, desse modo, tornando a pre- vidade do século XXI é o diálogo da saúde com
sença da história mais diuturna e atraente para o métodos e teorias e um exaustivo compromisso
amplo espectro de pesquisadores e profissionais com documentos e fontes que a profissionaliza-
da saúde coletiva. Ao ampliar-se no tempo, a sé- ção da história da saúde passou a requerer. Isso
rie tem publicado não apenas artigos sobre os complexifica o desafio de um diálogo em cons-
que estão no “Panteão” da saúde coletiva e não trução dada as expectativas, por vezes divergentes
apenas médicos, mas os esquecidos e os incômo- como vimos, sobre os usos e o papel da história
dos e, também, mulheres e negros que são sub para cada campo disciplinar e profissional.
-representados nas narrativas mais consagradas. A presença ainda tímida da história da saúde
Nessa ação pedagógica a série também amplia a na Revista Ciência & Saúde Coletiva é derivada
concepção de história da saúde coletiva incorpo- de fatores, alguns já indicados, que se referem
rando trabalhos sobre atores e processos anterio- tanto ao funcionamento de processos editoriais
4720
Hochman G

como das diferenças de comunidades epistêmi- submetidos demandando um papel mais ativo à
cas e profissionais em permanente crescimento e editoria na consolidação das demandas por revi-
transformação. Para um crescimento nos próxi- são e resubmissão.
mos anos é necessário compreender esses fatores O desafio de tornar mais permanente tempo
e superá-los com ações editoriais. Do ponto de e espaço como elementos constituintes dos de-
vista editorial mais geral, um periódico de ciên- bates, dos processos, das ideias, das práticas, das
cias humanas e sociais em saúde compete com políticas, dos agentes e das agências da saúde co-
periódicos de história na atração de artigos em letiva foi superado. Porém, há, ainda, caminhos
perspectiva histórica. Com a vantagem de que a serem trilhados para que o lugar da história
nestes últimos os formatos de citação, notas e da saúde se expresse de modo mais saliente em
bibliografia são mais amigáveis para os textos de Revista Ciência & Saúde Coletiva. Entre estes ca-
historiadores que, na maioria das vezes, utilizam minhos, a maior articulação entre as editorias
fontes primárias em vários suportes que são mais associadas, a proposição de debates, o incentivo
difíceis de serem referenciadas no modelo Van- a números temáticos em perspectiva histórica,
couver. O tamanho dos artigos também constitui maior divulgação de artigos publicados e temas
uma questão, pois em revistas disciplinares de de história nas redes sociais e formas de comuni-
histórias aceitam submissões em torno de 10-12 cação pública da Abrasco e da revista.
mil palavras, um número mais atraente para tra- Em tempos dramáticos e trágicos, como o
balhos com material empírico que caracteriza os da pandemia de Covid-19, o papel das ciências
resultados de pesquisa histórica. Por último o sis- humanas e sociais, das quais a história faz par-
tema de avaliação de periódicos na pós-gradua- te, é fundamental para sua compreensão e para
ção brasileira (Qualis), até recente exclusivamen- as respostas públicas e da sociedade à emergên-
te por área de conhecimento, também diminuiu cia sanitária. O dicionário público da pandemia
os incentivos a se publicar artigos sobre história é o das humanidades e da história: afastamento,
da saúde em periódicos de saúde coletiva. O ca- contágio, crise, cuidados, desigualdade, discri-
ráter multidisciplinar da história da saúde coleti- minação, distopia, doença, gênero, insegurança,
va ainda provoca incompreensões, mencionadas interação, isolamento, limpeza, máscara, medo,
anteriormente, que por vezes têm impacto nos morte, ocultamento, políticas, práticas, remédios,
processos avaliativos de originais submetidos resistência, resiliência, risco, ruptura, saúde, siste-
à editoria de História e Saúde. Avaliadores com ma, violência entre dezenas de outros vocábulos.
formações diferentes têm expectativas e exigên- A história em Revista Ciência & Saúde Coletiva
cias muitas vezes distintas em relação aos artigos continuará a fazer parte desse empreendimento.
4721

Ciência & Saúde Coletiva, 25(12):4715-4721, 2020


Referências

1. Brown TM, Fee E. A role for public health history. Am 15. Armus D, López-Denis A. Disease, medicine and he-
J Public Health 2004; 94(11):1851-1853. alth. The Oxford Handbook of Latin American History.
2. Silva LMV. O Campo da Saúde Coletiva - Gênese, Oxford: Oxford University Press; 2011. p. 424-453.
Transformações e Articulações com a Reforma Sanitária 16. Birn AE, Necochea R. Footprints on the future:
Brasileira. Rio de Janeiro, Salvador: Editora Fiocruz, looking forward to Latin American medical history in
Edufba; 2018. the Twenty-First Century. Hisp. Am. Hist. Rev 2011;
3. Rosenberg CE. Anticipated consequences: historians, 91(3):503-527.
history, and health policy. In: Stevens RA, Rosenberg 17. Hochman G, Di Liscia MS, Palmer, S. Patologías de la
CE, Burns LR, editors. History and Health Policy in the patria: una introducción al tema. In: Hochman G, Di
United States. Putting the past back in. New Brunswick, Liscia MS, Palmer S. Patologías de la patria: enferme-
London: Rutgers University Press; 2006. p. 13-31. dades, enfermos y nación en América Latina. Buenos
4. Quentin S. The place of history in public life. History Aires: Lugar Editorial; 2012. p. 13-27.
& Policy, 08 november 2005 [acessado 2020 Fev 12]. 18. Espinosa M. Globalizing the history of disease, me-
Disponível em: http://www.historyandpolicy.org/po- dicine, and public health in Latin America. Isis 2013;
licy-papers/papers/the-place-of-history-in-public-life 104(4):798-806.
5. Woolcock M, Szreter S, Vijayendra R. History, Histo- 19. Cueto M, Palmer S. Medicina e saúde pública na Amé-
rians and Development Policy: A necessary dialogue? rica Latina: uma história. Rio de Janeiro: Editora Fio-
Manchester: Manchester University Press; 2011. cruz; 2016.
6. Huisman FG, Warner JH, editors. Locating Medical 20. Teixeira LA, Pimenta TS, Hochman G, organizadores.
History. The Stories and their Meanings. Baltimore: História da Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec Edi-
John Hopkins University Press; 2004. tora; 2018.
7. Hochman G, Pimenta TS, Teixeira LA. História da 21. Nunes ED. Sobre a história da saúde pública: ideias e
Saúde no Brasil: Uma breve história. In: Teixeira LA, autores. Cien Saude Colet 2000; 5(2):251-264.
Pimenta TS, Hochman G, organizadores. História da 22. Organização Mundial da Saúde (OMS). Trabalhando
Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec Editora; 2018, p. juntos pela saúde. Brasília: Ministério da Saúde (MS);
9-26. 2007.
8. Lima NT, Carvalho MAR. O argumento histórico nas 23. Hochman G, Pires-Alves F, Lima NT. A história dos
análises de saúde coletiva. In: Teixeira SF, organizador. trabalhadores da saúde como política pública. Cien
Saúde coletiva? questionando a onipotência do social. Saude Colet 2008; 13(3):816-816.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1992. p. 117-142. 24. Hochman G, Bhattacharya S. Imunização, vacinas:
9. Mota A, Schraiber LB. Medicina sob as lentes da histó- passado e futuro. Cien Saude Colet 2011; 16(2):372-
ria: reflexões teórico-metodológicas. Cien Saude Colet 372.
2014; 19(4):1085-1094. 25. Hochman G, Nunes ED. Abertura de uma nova seção
10. Nunes ED. Sobre a história da saúde pública: ideias e na RC&SC. Cien Saude Colet 2015; 20(1):137-137.
autores. Cien Saude Colet 2000; 5(2):251-264. 26. Hochman G, Lima NT, organizadores. Médicos Intér-
11. Vieira-da-Silva LM, Pinnel P. The genesis of collective pretes do Brasil. São Paulo: Hucitec Editora; 2015.
health in Brazil. Sociol. Health Illn 2014; 36(3):432-
446.
12. Kropf SP, Hochman G. From the beginnings: debates
on the history of science in Brazil. ‎Hisp. Am. Hist. Rev
2011; 91(3):391-408.
13. Paiva CHA, Teixeira LA. Reforma sanitária e a cria-
ção do Sistema Único de Saúde: notas sobre contex-
tos e autores. Hist. Cienc. Saude-Manguinhos 2014;
21(1):15-36.
14. Sophia DC. Saúde e Utopia - o Cebes e a Reforma Sa- Artigo apresentado em 28/05/2020
nitária Brasileira (1976 – 1986). São Paulo: Hucitec Aprovado em 02/06/2020
Editora; 2015. Versão final apresentada em 04/06/2020

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

Você também pode gostar