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REFORMA SANITÁRIA

Reforma Sanitária

O termo Reforma Sanitária não é unívoco. Designa as mais variadas experiências de reformulação
normativa e institucional no campo da assistência à saúde dos cidadãos, em países do primeiro e do
terceiro mundo, como a Itália, a Espanha e o Brasil, como ainda em sociedades semiperiféricas1,
como Portugal.

Dentre essas experiências foi a italiana que mais fortemente marcou e inspirou o movimento da Re-
forma Sanitária no Brasil. Destaque-se nisso a participação de Giovanni Berlinquer em eventos na
área da saúde e a penetração de seus estudos nos meios universitário e profissional.

No Brasil, a noção de Reforma Sanitária vem sendo associada à de movimento. Isso traz implicações
importantes. Movimento significa processo, fenômeno dinâmico e inacabado. Sendo um processo em
curso e sem final predeterminado, demarcar seu início também é tarefa complexa.

Os estudos sobre o tema no mais das vezes datam o início do movimento em meados dos anos se-
tenta, na criação de uma série de instituições empenhadas na universalidade e equidade da assistên-
cia à saúde. É o caso do CEBES - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - de 1976, e da ABRASCO
-Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - de 1979.

Não obstante esses marcos institucionais, já naquela época havia um acúmulo significativo de conhe-
cimento sobre a questão da saúde, na busca de novos caminhos para sua compreensão. Já então
não se condenavam mais os fatos sociais a serem externos ao processo saúde-doença mas, reco-
nhecendo a especificidade deste, passava-se a concebê-lo também como parte integrante do social.

Da mesma forma, começam a ser desveladas as dimensões sociais, políticas e econômicas da prá-
tica médica e das medidas na área da saúde. Em suma, retira-se a saúde da esfera estritamente téc-
nica e rompe-se a dicotomia prevenção-cura na construção desse novo objeto de estudo - a medicina
social - na sua referência à realidade brasileira.

Ao tomar-se como marco significativo a produção de conhecimento nesse período reconhece-se o


papel importante que a universidade brasileira desempenhou na conjuntura política autoritária de en-
tão. Mais do que isso, registre-se o paradoxo desse conhecimento de natureza progressista gerado
no seio das retrógradas - até por tradição - escolas médicas.

Não é de subestimar-se a aspereza do confronto de idéias com o pensar estabelecido sobre a saúde
(que privilegia a doença) e do embate com os setores dominantes nessas instituições. Definitiva-
mente, no interior das escolas médicas os Departamentos de Medicina Social e/ou Preventiva nasce-
ram condenados à marginalidade e ao ostracismo.

Mas talvez tenha sido exatamente essa condenação ao ostracismo que tenha possibilitado essa refle-
xão pioneira no país: supõe-se, afinal, que os insanos, desde que confinados, não representam maior
perigo ao corpo social. E esse estigma de insanidade, por buscar a contaminação do entendimento
das questões técnicas da saúde pelas ciências sociais suscita uma notável capacidade de reação ao
saber dominante, mas não exime esse esforço dos riscos inerentes à condição que marca grande
parte da produção na área: a de ter nascido e se constituído como um saber militante.

Marcos Institucionais da Reforma Sanitária no Brasil

A Reforma Sanitária brasileira tem sido objeto de estudo de vários pesquisadores da área da Medi-
cina Social, que a partir de fins dos anos 70 passou a ser denominada, no Brasil, Saúde Coletiva. À
produção desse conhecimento realizada no âmbito das universidades e pulverizada pelas diferentes
unidades, associaram-se profissionais médicos militantes da rede pública de serviços na criação, em
76, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, na reunião daquele ano da SBPC, então um impor-
tante fórum político dos cientistas brasileiros no combate ao autoritarismo vigente, constituiu-se o CE-
BES com a proposta de criação de uma revista - Saúde em Debate.

O objetivo dessa publicação era veicular a nova perspectiva de análise da saúde, agora intimamente
relacionada aos processos histórico-sociais. Em seu primeiro número, a revista afirma seus propósi-
tos: "ampliar e levar adiante as discussões e análise do setor saúde como componente do processo

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histórico-social no sentido de reafirmar a íntima relação existente entre saúde e estrutura social. Nos-
sos colaboradores, de várias maneiras, acumulam experiências nessa área e têm, na defesa dos inte-
resses coletivos, a regra norteadora de suas realizações".

Essa entidade aglutina assim a academia e os profissionais dos serviços, elegendo como meta priori-
tária uma percepção das questões relativas à saúde, condizente com uma reformulação do sistema
de saúde então vigente, na busca de sua universalização e equidade sob a égide do setor público.

Para tanto, recupera experiências anteriores de profissionais envolvidos em programas como o PI-
ASS - Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento do Nordeste - de 1976, que per-
seguia a formulação de um novo modelo de atendimento à saúde da população, associada a sua ex-
tensão aos setores carentes.

É no decorrer dessa trajetória que o CEBES vai se convertendo, "na defesa dos interesses coletivos",
num interlocutor político importante nas arenas de discussão e formulação de políticas de saúde.

Trajetória semelhante percorre a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, tam-


bém da segunda metade dos anos setenta, e que gradativamente se constituiu num importante inter-
locutor político nos debates e embates das políticas de saúde, ao mesmo tempo que vem promo-
vendo a divulgação e intercâmbio de informações e estudos sobre a questão.

É a partir do surgimento dessa instituição que a área da Medicina Social passa a ser denominada Sa-
úde Coletiva. Buscava-se assim suplantar, no Brasil, a histórica distinção entre Medicina Social e Sa-
úde Pública, em que a primeira muitas vezes passava a ameaçar está, área tradicional de enfoque da
saúde no âmbito coletivo. A nova denominação deixaria marcas profundas na produção da área. Ao
substituir-se "Medicina" por "Saúde" amplia-se o objeto, tornando-o mais abrangente, o que passa a
exigir uma nova delimitação do campo.

E, ao substituir-se o Social pelo Coletivo, torna este mais inespecífico, exigindo que seja rastreado
em sua totalidade. Mas ao mesmo tempo, requer da Saúde Coletiva que incorpore a produção clás-
sica da Saúde Pública, agora no novo entendimento da relação entre o biológico e o social, a "caixa
preta" referida por Asa Cristina Laurell.

O desafio não é de pequena monta, e exige um outro olhar sobre o processo saúde-doença, a prática
medica, as políticas de saúde, o planejamento e a formação de recursos humanos. E em sua grande
parte ele é enfrentado e determinado pela ótica da resistência - durante o regime militar - e da busca
de negociação política - nos estertores daquele regime e na conjuntura da transição democrática.
Como consequência, o balanço dessa produção acaba por demonstrar o predomínio da militância so-
bre a pesquisa e da denúncia sobre um conhecimento propositivo para a reconstrução do setor.

Mas se isso hoje suscita a necessidade de se reverem os caminhos a serem trilhados pela "inteligent-
sia reformista", não resta dúvida de que essa ótica foi importante até recentemente para orientar es-
tratégias de ação política visando à reversão da lógica prevalecente no setor.

Os exemplos são numerosos e datam do início da década de 80. Nos anos 79/80 ocorre uma aguda
crise financeira da previdência social, principal fonte de financiamento do setor saúde. Nesse con-
texto, diante das ameaças de drásticas restrições dos gastos previdenciários com assistência médica,
vêm a público propostas alternativas de fortalecimento do setor público de saúde e de uma nova
forma de remuneração na compra dos serviços privados de assistência médica.

O PREV-SAÚDE propõe a reestruturação da rede pública de serviços de saúde no sentido da sua


universalização e racionalização. Trata-se de converter a rede básica de serviços na porta de entrada
do paciente no sistema de saúde, revertendo assim a característica hospitalar do atendimento. Origi-
nário dos escalões do Ministério da Saúde, o projeto sofre três redações, cria celeumas, mas não é
efetivado.

Vem cm seguida o Plano Conasp, com sede junto ao Ministério da Previdência e Assistência Social, e
que prevê convênios trilaterais entre esse Ministério, o Ministério da Saúde e as Secretarias Estadu-
ais de Saúde. Estes, por sua vez, deram origem às AIS - Ações Integradas de Saúde. Os convênios
AIS começam a ser assinados com as unidades da federação a partir de 83.

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A previdência social repassa recursos para os estados, e estes para os municípios, cabendo às res-
pectivas redes públicas de serviços o atendimento também aos previdenciários. Paralelamente, o
Plano propõe que a partir de então os serviços que o INAMPS compra da rede privada sejam pagos
pelo cálculo do custo global do procedimento médico, e não mais pela somatória dos atos fragmenta-
dos de cada atendimento: são as AIH - Autorização de Internação Hospitalar.

Mas enquanto as AIH provocaram forte reação do setor privado e dos profissionais médicos, elas e
sobretudo as AIS foram interpretadas pelos "reformistas" como a estratégia central para a constitui-
ção do Sistema Único de Saúde no país, proposta já formulada em 1978.

Enquanto isso, no interior do movimento da Reforma Sanitária continua a reflexão militante sobre es-
tratégias e modelos de engenharia institucional, c evolui-se para proposta do SUDS - Sistema Unifi-
cado e Descentralizado de Saúde. Os convênios SUDS começam a ser assinados com as várias uni-
dades da federação a partir de meados de 88. Prevêem, da mesma forma que as AIS, financiamento
tripartite - federal, estadual e municipal - e o reforço da autonomia desses últimos dois níveis na ges-
tão da saúde. O sentido é o da universalização do acesso aos serviços de saúde via fortalecimento
do setor público de serviços.

Ambas as experiências, no entanto, evidenciam a vulnerabilidade desses avanços institucionais aos


interesses políticos e clientelísticos. Não só os convênios são celebrados obedecendo a critérios dita-
dos por interesses políticos imediatos - a lógica da barganha - como a implementação prática das me-
didas de saúde, agora conforme o novo modelo, traduz-se das mais diferentes maneiras. A integra-
ção das AIS traduziu-se em grande medida num aumento da produção de serviços e a descentraliza-
ção do SUDS numa mera desconcentração. Assim, ambas as experiências pouco significam para
uma descentralização efetiva da competência das esferas de poder na gestão da saúde5.

Do ponto de vista do arcabouço institucional, no entanto, essas experiências representam significati-


vos avanços por relação à constituição do Sistema Único de Saúde, objetivo último da Reforma Sani-
tária. Já no caso das AIS, por exemplo, não só em tese ocorre uma integração do INAMPS com o Mi-
nistério da Saúde como são previstas diferentes instâncias de coordenação interinstitucional, as CIS,
CRIS, CLIS e/ou CIMS6 , tendo em vista o controle da sociedade sobre os rumos da saúde.

Resta, pois, a questão de como se concebe a Reforma Sanitária: alterações profundas no aparato
institucional, rupturas abruptas do modelo de atenção à saúde, ou um movimento com ampla mobili-
zação social e partidária? Noutros termos, o que caracterizaria de fato uma Reforma Sanitária como
um processo, interfacetado por certo, mas que, ao apresentar tais descompassos entre o institucio-
nal, o político, o social e o técnico, requer para sua concepção um padrão mínimo de articulação en-
tre esses níveis?

Teixeira7 entende Reforma Sanitária como um conceito que se "... refere a um processo de transfor-
mação da norma legal e do aparelho institucional que regulamenta e se responsabiliza pela proteção
à saúde dos cidadãos e corresponde a um efetivo deslocamento do poder político em direção às ca-
madas populares, cuja expressão material se concretiza na busca do direito universal à saúde e na
criação de um sistema único de serviços sob a égide do Estado".

Suficientemente amplo, este entendimento do que venha a ser Reforma Sanitária permite aplicá-lo às
diferentes realidades em que a política de saúde ganha destaque. No que diz respeito à realidade
brasileira, importa atentar para o significado "deslocamento do poder político em direção às camadas
populares", que implica a análise da natureza da transição democrática brasileira, bem como do real
peso efetivo da "transformação da norma legal e do aparelho institucional que regulamenta e se res-
ponsabiliza pela proteção à saúde". Atentar para essas questões resulta portanto em entender a Re-
forma Sanitária como um fenômeno intrinsecamente político, que exige estreito suporte técnico.

A Imagem Condizente

Os avanços na saúde até aqui apontados não se resumiram às reformulações no âmbito institucional.
Resultaram de uma militância e de uma estratégia política, envolvendo desde setores da categoria
profissional médica até movimentos sociais e sindicais de variada natureza.

Por outro lado, dois fatos são instigantes quando se busca reconstruir esse processo. O primeiro diz
respeito a terem origem predominantemente no Executivo as propostas e medidas no sentido dos

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preceitos reformistas. O segundo exprime-se na dificuldade da extensa literatura a respeito para iden-
tificar as forças políticas que compõem o movimento da Reforma Sanitária brasileiro.

De fato, a origem das propostas no poder central causa estranheza, pois é nele que se concretizam
as políticas de saúde no sentido da privatização dos serviços e da defesa dos interesses privados do
setor. Como então explicar essas propostas que vão no sentido oposto à sua prática política imedi-
ata?

Um fato dos mais significativos nesse contexto é a VIII Conferência Nacional de Saúde, convocada
pela Presidência da República e de responsabilidade do Ministério da Saúde. Trata-se de marco polí-
tico importante: é quando a saúde é trazida para a arena de um amplo debate público. Para além do
evento específico, ela envolveu uma série de debates prévios e de conferências posteriores por temá-
ticas específicas após sua realização, em março de 1986. Representou ela, ainda, a grande arran-
cada para o embate público que haveria quando da eleição e instalação da Assembleia Nacional
Constituinte.

Ademais de toda sua importância, ela espelha as contradições do próprio movimento da Reforma Sa-
nitária brasileira. Sua organização e presidência ficam a cargo de um eminente "reformista", tanto
pela sua envergadura intelectual quanto pela sua prática política: Sergio Arouca, então presidente da
Fundação Oswaldo Cruz, órgão do Ministério da Saúde.

Dela recusam-se a participar os representantes do setor privado da saúde, não a reconhecendo


ser esse um espaço legítimo de discussão, como igualmente é pequena a participação do Legislativo
e pouco institucionalizada, para não dizer nula, a participação daqueles partidos políticos que pelo
menos em princípio comungam nos preceitos reformistas. Finalmente, uma vez mais, a ABRASCO
desempenha papel de relevo na dinâmica do evento, formulando material prévio para debates prepa-
rativos da reunião8 e nela apresentando documento que em grande parte norteou a discussão e o
texto da Conferência, baliza mestra para o texto constitucional, do ponto de vista dos reformistas.

No entanto, é curioso notar que a maioria das análises sobre o tema evidenciam diferenças e oposi-
ções no interior do movimento da Reforma Sanitária, que viriam ou vieram à tona no período da tran-
sição democrática, mas não logram identificar claramente essas tensões. A título de exemplo, tem-se
que a meta do Sistema Único de Saúde "... durante tanto tempo tida como consensual no 'bloco sani-
tário', iria mostrar suas fissuras e contradições na medida em que saía do discurso oposicionista para
a prática da transição democrática".

E em texto mais recente, são identificadas duas posições presentes, em tese, no movimento da Re-
forma Sanitária: a socialdemocrata e a socialista. Ambas teriam em comum a tese da modernização
do setor e se diferenciariam no entendimento do que seria a sua democratização, bem como sua in-
serção no processo social mais amplo.

Afirmam os autores: "No tocante ao plano singular as diferenças são táticas e a tendência institucio-
nal se caracteriza pela priorização da intervenção política no interior do aparelho de Estado em detri-
mento daquele junto à sociedade civil, e a tendência societária pelo inverso. A opção por uma ou ou-
tra tem dado margem a mútuas críticas em relação a eventuais prejuízos estratégicos".

O enigma começa a ser deslindado quando se atenta para a não identificação dos atores sociais en-
volvidos no movimento enquanto os opositores da Reforma Sanitária são identificados com maior pre-
cisão - o setor privado da saúde e suas instituições representativas, o governo, a tradição privatista
do Estado brasileiro. Mas em ambos os casos existe um grande ausente: os partidos políticos.

Ademais, as referências a tensões e conflitos no interior do movimento reformista da saúde, jamais


explicitados enquanto forças políticas partidárias, não impedem um alto grau de consenso nas análi-
ses e interpretações sobre o movimento. E dessa forma repõe-se o enigma.

De imediato há que se registrar que a farta literatura a respeito apresenta no geral um tom ufanista na
avaliação do movimento, para além das efetivas conquistas por ele alcançadas. Em contrapartida, as
tensões e conflitos no seu interior vêm à tona de forma explícita, por exemplo, nas interpretações e
análises na revista Saúde em Debate, do CEBES, num terçar de escritos entre dois estudiosos do as-
sunto11.

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O título dos artigos, neste caso, já são significativos: "A Análise Necessária da Reforma Sanitária",
que tece considerações sobre um texto do autor de "A Reforma Sanitária Necessária"12, sendo res-
pondido no número seguinte através de artigo intitulado "Tréplica: o debate necessário à construção
de uma teoria sobre a Reforma Sanitária".

O que chama a atenção é a insistência no termo necessário. E remete imediatamente à indagação


"necessário para quê?". Para além da idéia de um debate necessário para a sua adequada compre-
ensão do tema, o próprio conteúdo dos textos aponta para um outro significado, marca militante da
produção intelectual da área. Trata-se de referir a noção de necessária à intervenção na realidade,
entendida a partir de recortes políticos de atuação partidária.

Esclareça-se, desde já, que não se trata de avaliar uma produção dessa natureza no confronto com
uma produção eminentemente acadêmica, mas sim de desvelar o fato dificilmente explicitado de essa
produção, ancorada em preceitos técnicos e conhecimento teórico, estar voltada para o calor da luta
do movimento reformista, que acolhe diferentes correntes políticas.

Por que, então, elas não se explicitam no interior do próprio movimento, e não vêm a público? A res-
posta a essa questão explica igualmente porque o modelo italiano, tão diferente por relação ao pro-
cesso brasileiro, é tomado como exemplar.

Encaminha uma resposta a circunstância de o movimento reformista sanitário brasileiro ter sua ori-
gem ainda durante o regime militar, com suas restrições aos partidos de esquerda. Mais que isso, du-
rante o autoritarismo o enfrentamento do inimigo comum não permitia explicitarem-se diferenciações
internas ao próprio movimento. E quando do período da transição democrática, vê-se o movimento
diante das suas diferenças internas e com enormes dificuldades para enfrentá-las, numa dinâmica
oscilante entre o interno e o externo. Interessante notar que nem mesmo o atual contexto das campa-
nhas eleitorais trazem para dentro do movimento essas diferenças. Tem-se a impressão de que o
conflito é insuportável por colocar em risco o movimento, que, por sua vez, enfrenta poderosos inimi-
gos externos.

Tanto assim é que o fato de no decorrer desse processo ter o Partido Comunista Brasileiro assumido
a sua liderança não é reivindicado na própria campanha. Existem explicações históricas para isso,
como existem as imediatas no que diz respeito à saúde. Neste caso, que aqui interessa mais de
perto, pode-se buscar explicação no principal, embora não consensual, estratégia adotada pelo movi-
mento da Reforma Sanitária, que foi a de "ocupação de espaços institucionais"13 e de criação de
"projetos institucionais", entendendo-se que "a partir da ocupação desses espaços institucionais por
pensamentos diferenciados contra hegemônicos, estes passam a ser palcos de luta, objeto de dis-
puta entre os diferentes interesses"14.

Começa a causar menos estranheza, portanto, o fato de a grande maioria das propostas progressis-
tas para a saúde ter origem no Executivo, merecendo contudo estudos aprofundados, razão pela qual
foi possível a este absorver essas demandas e proposições. Mas igualmente começa a ganhar signifi-
cado o apoio buscado no modelo italiano sem se deter com a merecida atenção nas reais diferenças
de ambos os processos.

E se a presença de Giovanni Berlinquer foi importante para o movimento reformista, não é ele sufici-
ente para explicar essa aproximação. Talvez a explicação resida exatamente nas propostas partidá-
rias - nunca explicitadas - da liderança do movimento que vê na experiência italiana um modelo. Se
quanto aos processos eles foram tão diferenciados - na Itália sendo um movimento com origem nos
trabalhadores, que passam a conquistar a incorporação de suas demandas pelos Estados enquanto
são frágeis as bases sociais efetivas do movimento -, a distinção acaba por respaldar a estratégia
adotada: a de ocupação de espaços institucionais.

Daí não só a análise necessária da Reforma Sanitária brasileira como também as versões "oficiais"
sobre a mesma15, no sentido do traço homogêneo das análises, como ainda a ênfase no modelo do
arcabouço institucional do setor para o cumprimento dos objetos almejados: universalidade e equi-
dade na construção do direito à saúde, sob a responsabilidade de um Sistema Único de Saúde com
comando único em cada esfera de poder, e sob a égide do setor público.

Assim é que projetos institucionais alternativos (PIASS, por exemplo) e propostas de reformulação da
organização dos serviços - AIS e SUDS, por exemplo - tem origem no poder central. Formulados a

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partir de um acúmulo de conhecimento produzido na área da Saúde Coletiva, essas propostas e me-
didas colocadas em prática, tendo em vista a estratégia utilizada acabam por revelar-se vulneráveis
às flutuações da conjuntura política. É esta a outra face da fragilidade, do enraizamento social do mo-
vimento sanitário.

Por outro lado, o embate político com os interesses contrários à reforma sanitária deixou sua marca:
uma hipertrofia da política em relação à técnica, ou seja, a ênfase na montagem de estratégias insti-
tucionais de ação em nome e para as classes subalternas em detrimento da formulação de um mo-
delo sanitário alternativo de atendimento à saúde.

A questão de fundo que perpassa todo o processo constitui, pois, a compreensão da relação Estado-
sociedade na constituição e consolidação de uma ordem democrática. A ênfase exagerada na dimen-
são institucional na defesa de determinados princípios para e pelas classes populares aproxima-se
perigosamente dos parâmetros do Welfare State, concebido como uma relação entre Estado e mer-
cado em nome da equidade e universalidade do direito à saúde, em que pesem os preceitos marxis-
tas que orientam a formulação e justificação dos projetos reformistas.

Da mesma forma, o que foi identificado como a vertente socialista16 do movimento sanitário, que im-
prime maior ênfase à mobilização popular, acaba por recair nos preceitos da democracia direta. Em
comum, ambas as vertentes participam do movimento reformista sob a figuração de um movimento
suprapartidário. Exemplo disso é a Plenária da Saúde que congrega diferentes instituições da socie-
dade civil numa mobilização que teve início no período de elaboração da Carta Constitucional.

Ambas as vertentes acabam por ter suas divergências e tensões não vindo a público, da mesma
forma que, antes da atuação junto aos partidos, se atua junto aos líderes de bancadas e representan-
tes no Legislativo.

Entre a democracia direta e a democracia representativa, ganham-se batalhas - como o atual texto
constitucional -longe estando a vitória da guerra. Uns superestimam seus aliados - as classes popula-
res - na luta pela saúde, e outros a força das mudanças da engenharia institucional. E se os princí-
pios do movimeto reformista unificam todas as forças progressistas - termo suficientemente neutro -,
isso possibilita às forças de oposição a identificação não de um movimento sanitário que enquanto tal
congrega diferentes correntes e forças políticas, mas de um partido sanitário como um grupo em que
a homogeneidade se sobrepõe à sua diferenciação interna.

Mas se as conquistas, sobretudo as de ordem institucional, foram significativas, elas mostram igual-
mente a fragilidade relativa do movimento. A estratégia do "inverso" para se contrapor aos interesses
hegemônicos no setor, perfeitamente conciliáveis com o padrão estatal de apropriação da coisa pú-
blica, ao se revelar pertinente para a conquista desses avanços foi igualmente reveladora do fato ób-
vio, mas crucial, de que a constituição da saúde como um direito implica a relação do Estado com a
sociedade, e a própria transformação desta.

Weffort assinala que "... o tema da construção institucional, isto é, o tema típico da democracia polí-
tica, leva ao tema da democracia social e, por consequência, ao tema de uma política de reformas
para a economia e a sociedade. Haverá, segundo os partidos, os interesses e as classes, diferentes
concepções sobre quais devem ser as reformas, sobre como devem ser realizadas e a quem deve
beneficiar".

Assinala, ainda, a partir de Przeworski, que "a democracia na América Latina, além de um resultado
contingente de conflitos, tem que ser um programa político. Não, pelo menos não necessariamente,
um programa partidário, mas certamente um programa de vários partidos, os quais, a despeito de
suas muitas divergências sobre outras questões, terão que inscrever a construção da democracia
como a primeira de suas prioridades".

À ênfase atribuída por Weffort aos partidos políticos na institucionalização da ordem democrática con-
trapõe-se a estratégia do "inverso". Esta teria consistido na ocupação de espaços institucionais no
interior do aparelho de Estado no processo de modernização das instituições responsáveis pelo setor
saúde, possibilitando a diferenciação dos tradicionais quadros aí encastelados.

Essa diferenciação, segundo algumas análises, possibilitou o desenvolvimento de projetos institucio-


nais que traduziam "a experiência acumulada do movimento sanitário em termos de propostas de

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transformação da organização dos serviços de saúde". E ao movimento reformista ê atribuída a cria-


ção desses "anéis burocráticos invertidos", que "lançaram mão do poder administrativo e técnico não
para a mercantilização da saúde como os anéis burocrático-empresariais da Previdência mas para o
fortalecimento da sociedade civil e, por vezes, dos movimentos populares. Mas são anéis permanen-
temente em tensão, já que representavam o discurso contra-hegemônico dentro de um espaço em
que o regime lançou mão para se legitimar e desta maneira manter a hegemonia".

A par a liberdade na qualificação do conceito de anéis burocráticos tal como formulado por Car-
doso19, interessa no momento contrastar essa estratégia do movimento reformista à questão demo-
crática. Não se trata só, para levar avante a Reforma Sanitária no Brasil, de construir e fortalecer a
consciência sanitária dos cidadãos, mas ela deve necessariamente estar articulada à exigência de
"uma cultura organizada", na exata medida em que a construção da democracia é também tarefa de
instituições intelectuais, culturais, religiosas, sindicais, e profissionais, dentre outras, como aponta
Weffort20.

Da mesma forma registra Moisés que "Embora saibamos que a democracia não produz por si só a
justiça social [que presume o direito à saúde], sabemos, no entanto, pela experiência dos países
onde esse sistema de governo está consolidado e tem uma longa tradição de continuidade, que a re-
lação entre democracia e justiça social também é objeto de construção política e institucional, o seu
grau de eficácia dependendo, em grande parte: (a) da natureza dos mecanismos c das regras de pro-
cedimento, cujo funcionamento torna ou não possível que as demandas da sociedade (em particular,
as pressões dos pobres e dos não-proprietários) tenham acesso ao sistema de tomada de decisões
para ali influir; e (b) de os interessados poderem (e quererem) se organizar e se representar para fa-
zer uso dessa possibilidade, cuja natureza, como sabemos, varia no tempo e no espaço"21.

Tais questões redimensionam o movimento da Reforma Sanitária brasileira e propõem desafios de


variada natureza. Dentre eles a necessidade de, na luta pela constituição da saúde como um direito
universal e equânime de todo cidadão, identificarem-se claramente os atores políticos, com suas dife-
renciações internas tanto no âmbito do movimento quanto nos interesses hegemônicos que consoli-
dam a privatização dos serviços de saúde. Se o período autoritário levou os reformistas a despreza-
rem sua diferenciação interna, é necessário agora que ela se explicite e venha a público.

Há, igualmente, que se defrontar com a fragilidade das bases sociais do movimento, ao contrário do
caso italiano. O modelo privado de saúde é forte atração para os diferentes segmentos das classes
populares, até por contraposição à herança do estilo patrimonialista do Estado brasileiro. Adverte
O'Donnell que "... o lado principal Ido estilo patrimonialista e prebendalista de fazer política e gover-
nar] consiste, sobretudo, na incapacidade de delimitar o público e o privado e, a partir disso, na
enorme dificuldade de construir as instituições e elaborar as regras a partir das quais seja possível
arquitetar as dimensões cívica e republicana, sem as quais jamais alcançaremos um regime demo-
crático. A resultante é, por sua vez, uma política sem mediações institucionais; na sua prática conver-
gem no interior do aparelho estatal - desde uma esfera pseudopública - aquele estilo patrimonialista e
- desde a sociedade - o assalto de interesses privilegiados que ... privatizam, pulverizando-o, o es-
paço público do Estado"22.

Priorizar em demasia, pois, a construção de uma nova engenharia institucional para a saúde, em de-
trimento da institucionalização efetiva da participação e representação políticas, traz à tona a dimen-
são da reforma sanitária como luta ideológica nos avanços e recuos dos diferentes atores em luta.
Significa descurar não só do efetivo enraizamento das demandas por saúde - que devem ir muito
além da demanda por assistência médica e requerem a construção de um novo modelo desta -como
do próprio estilo patrimonialista do Estado brasileiro e da cultura política do país.

Ao comparar as reformas sanitárias brasileira e italiana, Oliveira23 caracteriza aquela como "um mo-
vimento de dentro para fora, ou de cima para baixo" e esta como "um movimento de fora para dentro
em relação ao aparelho de Estado". Assinala ainda que no caso brasileiro a "fórmula Reforma Sanitá-
ria" surgiu a partir de um conjunto de técnicas ou de diferentes técnicas tendo em comum um pas-
sado progressista.

Esse informal "partido sanitário", a que os conservadores atribuem um sentido pejorativo, adquire
identidade quando confrontado com as forças opositoras, mas não define nem esclarece no seu inte-
rior suas diferenças internas enquanto projetos alternativos para a ordem social brasileira, dos quais a
saúde é parte. Para tanto, é mister que se explicitem as forças políticas em jogo, se identifiquem os

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atores sociais envolvidos e se assuma, na arena política, divergências e aproximações, reivindicando


cada um o que lhe é devido. Caso contrário perpetuar-se-á a ênfase em propostas macro-institucio-
nais, em princípios aglutinadores às custas do desconhecimento da prática institucional do cotidiano
dos agentes institucionais do setor saúde, que reproduzem e perpetuam o "estilo do Estado brasi-
leiro"; mais que isso, aumentará a defasagem entre o nível da elaboração de propostas institucionais
- mais próxima da dimensão política da reforma sanitária, e da capacidade técnico-sanitária de cons-
trução de um novo modelo de atendimento à saúde.

Nesse contexto assume papel de relevo, tal como no passado, a produção de conhecimento sobre a
questão da saúde, que seja crítica no sentido lato do termo. Nisto a universidade ocupa lugar dos
mais importantes, superando-se as "análises dualistas centradas na dicotomia 'pólo universidade ver-
sus pólo serviço' na luta pela ampliação de seu leque de compromissos com a maior parte possível
da sociedade cm que se insere".

Não se trata, pois, da produção de um conhecimento crítico - que responderia a uma já definida Re-
forma Sanitária - mas da recuperação da postura crítica pluralista na produção desse conhecimento,
refletindo o que Oliveira identifica como a existência tensa de projetos de hegemonia alternativos .
Que se recupere, nesse sentido, não a "análise necessária" da Reforma Sanitária, mas as possíveis
que um movimento - ou processo -dessa natureza comporta.

Impõe-se, assim, que se explicitem e enfrentem os dois termos da expressão Reforma Sanitária: o
político e o técnico, sem uma concepção dualista de oposição ou mesmo de negação entre ambos.
Mais do que sua expressão, os dois termos compõem as dimensões essenciais do "movimento da
Reforma", que demanda ser transformado num processo efetivo envolvendo as diferentes forças soci-
ais na luta pela democratização da saúde e da sociedade a partir mesmo das diferentes estratégias e
concepções que cada ator político reserve para a Reforma Sanitária. Caso contrário, resta sempre a
hipótese de os fundamentos e propostas prevalecentes no interior do "movimento reformista" terem,
sem o suspeitar, buscado inspiração nos preceitos do Welfare State.

É Berlinquer quem adverte: "Creio que deveríamos reivindicar uma maior participação na política de
saúde e menor participação dos políticos nas manobras de poder nas instituições sanitárias. O poder
político deveria estabelecer as finalidades, as tarefas fundamentais dos serviços e deixar mais res-
ponsabilidade para as pessoas encarregadas de executar essas tarefas criativamente27. Afinal, é
pela especificidade de sua dimensão sanitária que esse movimento logrará viabilizar a participação
política concreta, porque específica, dos cidadãos.

Introdução

As temáticas da reforma do Estado e da seguridade social estiveram ausentes da agenda e do dis-


curso das esquerdas no Brasil até os anos setenta, quando as mudanças na teoria e na prática polí-
tica introduziram temas como a cidadania e a institucionalidade democrática no centro das discus-
sões políticas.

Estas mudanças se refletiram a partir do forte engajamento dos movimentos sociais em luta pela de-
mocratização do país e na centralidade assumida pela Assembléia Nacional Constituinte, em 1977-
78, como arena pública privilegiada de enfrentamento de projetos em disputa por uma nova institucio-
nalidade.

Neste contexto, as opções pelo fortalecimento das políticas públicas e construção das bases de um
Estado do Bem-estar Social foram vistas como prioritárias, unificando as demandas dos setores mais
progressistas. A construção de um projeto de reforma sanitária foi parte das lutas de resistência à di-
tadura e ao seu modelo de privatização dos serviços de saúde da Previdência Social e pela constru-
ção de um Estado democrático social.

Esta reforma democrática, que se consubstanciou na institucionalidade projetada na Constituição Fe-


deral de 1988, foi duramente confrontada pela hegemonia assumida pelo discurso liberal, o predomí-
nio das decisões econômicas sobre a política e sobre a própria ordem constitucional e, por fim, a bem
articulada propagação de uma reforma gerencial do Estado.

O fracasso das reformas liberais, em especial onde elas foram mais que tudo um discurso que legiti-
mava a desconstrução do Estado nacional, não é suficiente para afastar da agenda a questão da re-

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REFORMA SANITÁRIA

forma do Estado. É necessário fazer um balanço do impacto das reformas liberais sobre a institucio-
nalidade desenhada pela reforma democratizante, em relação à seguridade social e ao sistema único
de Saúde, e buscar avaliar de forma crítica e criativa as demandas atuais de uma reforma que possa
retomar os princípios e diretrizes propugnadas na democratização, considerando o novo contexto de
agudização dos problemas que colocam em risco a coesão social e a necessidade de transformar os
direitos constitucionalizados em direitos em exercício. Para isto, mais além de direitos constitucionali-
zados, é necessária a existência de direitos institucionalizados, por meio de políticas públicas efetivas
e eficazes. Isto remete, uma vez mais, à existência de um processo permanente de reforma, tendo
em vista alcançar uma relação de forças que assegure a mudança na distribuição do poder, o que im-
plica a permanente construção de sujeitos políticos, ou subjetivação. Em outras palavras, trata-se de
enfrentar os dilemas entre instituinte e instituído no curso atual da reforma sanitária brasileira.

Trajetória da Proteção Social

As políticas sociais brasileiras desenvolveram-se, por um período de cerca de oitenta anos, configu-
rando um tipo de padrão de proteção social só alterado com a Constituição Federal de 1988. O sis-
tema de proteção social brasileiro, até o final da década de oitenta, combinou um modelo de seguro
social na área previdenciária, incluindo a atenção à saúde, com um modelo assistencial para a popu-
lação sem vínculos trabalhistas formais. Ambos os sistemas foram organizados e consolidados entre
as décadas de trinta e quarenta, como parte do processo mais geral de construção do Estado mo-
derno, intervencionista e centralizador, após a revolução de 1930. A construção do Estado nacional é
um processo sempre inacabado, no qual vão sendo desenhadas as relações de poder na instituciona-
lidade do aparato administrativo, seja ele voltado para a implementação do projeto econômico, seja
ainda responsável pela reprodução da força de trabalho e incorporador das demandas políticas dos
grupos subalternos.

A opção por um dado formato de política social, que se cristaliza na combinação de modelos distintos
para diferentes segmentos dos trabalhadores, indica o lugar que cada um deles ocupa em uma dada
correlação de forças, além das tendências internacionalmente preponderantes.

Os diferentes modelos de proteção social podem ser assim resumidos:

No modelo assistencial, as ações, de caráter emergencial, estão dirigidas aos grupos de pobres mais
vulneráveis, inspiram-se em uma perspectiva caritativa e reeducadora, organizam-se em base à asso-
ciação entre trabalho voluntário e políticas públicas, estruturam-se de forma pulverizada e descontí-
nua, gerando organizações e programas muitas vezes superpostos. Embora permitam o acesso a
certos bens e serviços, não configuram uma relação de direito social, tratando-se de medidas com-
pensatórias que terminam por ser estigmatizantes. Por isto, denomino a esta relação como de cidada-
nia invertida, na qual o indivíduo tem que provar que fracassou no mercado para ser objeto da prote-
ção social.

No modelo de seguro social, a proteção social dos grupos ocupacionais estabelece uma relação de
direito contratual, na qual os benefícios são condicionados às contribuições pretéritas e à afiliação
dos indivíduos a tais categorias ocupacionais que são autorizadas a operar um seguro. A organização
altamente fragmentada dos seguros expressa a concepção dos benefícios como privilégios diferenci-
ados de cada categoria, como resultado de sua capacidade de pressão sobre o governo. Como os
direitos sociais estão condicionados à inserção dos indivíduos na estrutura produtiva, Wanderley dos
Santos2 denominou a relação como de cidadania regulada pela condição de trabalho.

No período da democracia populista (1946-1963), a expansão do sistema de seguro social vai fazer
parte do jogo político de intercâmbio de benefícios por legitimação dos governantes, beneficiando de
forma diferencial os grupos de trabalhadores com maior poder de barganha, fenômeno este que ficou
conhecido como massificação de privilégios e implicou o aprofundamento da crise financeira e de ad-
ministração do sistema previdenciário.

A inflexão que vão sofrer os sistemas e mecanismos de proteção social a partir da instauração do re-
gime burocrático-autoritário em 1964 obedeceu a quatro linhas mestras: a centralização e concentra-
ção do poder em mãos da tecnocracia, com a retirada dos trabalhadores do jogo político e da admi-
nistração das políticas sociais; o aumento de cobertura incorporando, precariamente, grupos anterior-
mente excluídos, as empregadas domésticas, os trabalhadores rurais e os autônomos; a criação de
fundos e contribuições sociais como mecanismo de autofinanciamento dos programas; a privatização

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REFORMA SANITÁRIA

dos serviços sociais (em especial os sociais, como a educação universitária e secundária e a atenção
hospitalar).

Nos meados da década de setenta, a luta pela democratização das políticas adquire novas caracte-
rísticas e estratégias. Antes confinada às universidades, aos partidos clandestinos e aos movimentos
sociais, passa cada vez mais a ser localizada no interior do próprio Estado. Primeiramente, a partir
das experiências inovadoras desenvolvidas pelas prefeituras oposicionistas eleitas em 1974; em se-
gundo lugar, no interior dos órgãos centrais, responsáveis pelas políticas sociais, buscando aproveitar
a crise financeira e do modelo das políticas sociais para introduzir elementos de transformação; em
terceiro lugar, há um fortalecimento das capacidades técnicas dos partidos políticos e do parlamento,
que passam a tomar a problemática social como parte de suas plataformas e projetos de construção
de uma sociedade democrática.

O resgate da dívida social passa a ser um tema central da agenda da democracia, convergindo para
ele movimentos de natureza diversa. Este processo intensifica-se na década de oitenta através do
surgimento de um rico tecido social emergente a partir da aglutinação do novo sindicalismo e dos mo-
vimentos reivindicatórios urbanos, da construção de uma frente partidária da oposição, e da organiza-
ção de movimentos setoriais capazes de formular projetos de reorganização institucional, como o Mo-
vimento Sanitário.

Toda esta efervescência democrática foi canalizada para os trabalhos da Assembléia Nacional Cons-
tituinte, que se iniciaram em 1987. Em boa medida, a construção de uma ordem institucional demo-
crática supunha um reordenamento das políticas sociais que respondesse às demandas da socie-
dade por maior inclusão social e equidade. Projetada para o sistema de políticas sociais como um
todo, tal demanda por inclusão e redução das desigualdades adquiriu as concretas conotações de
afirmação dos direitos sociais como parte da cidadania.

A Constituição Federal de 1988 representa uma profunda transformação no padrão de proteção so-
cial brasileiro, consolidando, na lei maior, as pressões que já se faziam sentir há mais de uma dé-
cada. Inaugura-se um novo período, no qual o modelo da seguridade social passa a estruturar a orga-
nização e formato da proteção social brasileira, em busca da universalização da cidadania. No mo-
delo de seguridade social, busca-se romper com as noções de cobertura restrita a setores inseridos
no mercado formal e afrouxar os vínculos entre contribuições e benefícios, gerando mecanismos mais
solidários e redistributivos. Os benefícios passam a ser concedidos a partir das necessidades, com
fundamentos nos princípios da justiça social, o que obriga a estender universalmente a cobertura e
integrar as estruturas governamentais.

A Constituição de 1988 avançou em relação às formulações legais anteriores, ao garantir um con-


junto de direitos sociais, expressos no Capítulo da Ordem Social, inovando ao consagrar o modelo de
seguridade social, como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da so-
ciedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social"
(Título VIII, Capítulo II, Seção I, art. 194). A inclusão da previdência, da saúde e da assistência como
partes da seguridade social introduz a noção de direitos sociais universais como parte da condição de
cidadania, sendo que antes eram restritos à população beneficiária da previdência.

O novo padrão constitucional da política social caracteriza-se pela universalidade na cobertura, o re-
conhecimento dos direitos sociais, a afirmação do dever do Estado, a subordinação das práticas pri-
vadas à regulação em função da relevância pública das ações e serviços nestas áreas, uma perspec-
tiva publicista de cogestão governo/sociedade, um arranjo organizacional descentralizado.

A originalidade da seguridade social brasileira está dada em seu forte componente de reforma do Es-
tado, ao redesenhar as relações entre os entes federativos e ao instituir formas concretas de partici-
pação e controle sociais, com mecanismos de articulação e pactuação entre os três níveis de go-
verno. A organização dos sistemas de proteção social deveria adotar o formato de uma rede descen-
tralizada, integrada, com comando político único e um fundo de financiamento em cada esfera gover-
namental, regionalizada e hierarquizada, com instâncias deliberativas que garantissem a participação
paritária da sociedade organizada, em cada esfera governamental.

A Reforma Sanitária

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REFORMA SANITÁRIA

A reforma sanitária no Brasil é conhecida como o projeto e a trajetória de constituição e reformulação


de um campo de saber, uma estratégia política e um processo de transformação institucional. Emer-
gindo como parte da luta pela democracia, a reforma sanitária já ultrapassa três décadas, tendo al-
cançado a garantia constitucional do direito universal à saúde e a construção institucional do Sistema
Único de Saúde (SUS).

As bases teóricas que fundamentaram a construção deste projeto da reforma sanitária podem ser en-
contradas na revisão da concepção marxista do Estado e na elaboração de uma leitura crítica do
campo da saúde coletiva.

A concepção do marxismo contemporâneo sobre o Estado tem início com a ruptura que a obra de
Gramsci introduz; ao compreender o Estado, para além de suas funções repressivas de tutela de uma
sociedade de classes, como exercendo um papel fundamental em sua função pedagógica de constru-
ção, consolidação e reprodução da direção cultural da classe hegemônica. O Estado ético, ou civiliza-
tório, corresponderia à elevação das massas, por meio de políticas públicas, ao nível cultural corres-
pondente ao desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, o Estado cumpre um papel fundamen-
tal na consolidação dos avanços do processo civilizatório.

O resgate do Estado como um campo estratégico de lutas vai ser enfatizado por Poulantzas3, ao afir-
mar que as lutas políticas não são exteriores ao Estado enquanto ossatura institucional, mas, ao con-
trário, se inscrevem neste aparato, permitindo assim que ele venha a ter um papel orgânico na luta
política, como unificador da dominação. Nesta concepção do Estado, é possível percebê-lo, para
além de um conjunto de aparelhos e instituições, como campo e processo estratégicos, onde se en-
trecruzam núcleos e redes de poder que, ao mesmo tempo, articulam-se e apresentam contradições
e decalagens uns em relação aos outros.

Daí que a fragmentação constitutiva do Estado capitalista não possa ser tomada como inverso da uni-
dade política, mas como sua condição de possibilidade, o que assegura sua autonomia relativa. O
Estado, sua política, suas formas, suas estruturas, traduzem, portanto, os interesses da classe domi-
nante não de modo mecânico, mas através de uma relação de forças que faz dele uma expressão
condensada da luta de classes em desenvolvimento.

O conceito de Offe4 de seletividade estrutural do Estado explica a maneira como as demandas popu-
lares, mesmo quando adentram o aparelho administrativo, são destituídas de seu conteúdo político
nos meandros da burocracia estatal, preservando dessa forma os limites do sistema de acumulação,
ainda quando seja necessário contemplar também os requisitos da legitimação do poder.

Em sua última obra, Poulantzas3 discute as relações entre o Estado, o poder e o socialismo, a partir
da necessidade de se compreender a via democrática para o socialismo e a construção de um socia-
lismo democrático, a partir de uma transformação radical do Estado, articulando a ampliação e o
aprofundamento das instituições da democracia representativa e das liberdades (que foram conquis-
tas das massas populares) com o desenvolvimento das formas de democracia direta na base e a pro-
liferação de focos autogestores.

O problema que se coloca é de como desenvolver uma via democrática para um socialismo democrá-
tico - já que se considera que as instituições da democracia são necessárias para construção de um
socialismo democrático - cujas lutas sejam travadas tanto fora como no campo estratégico do Estado,
evitando os riscos de um mero transformismo, ou seja, da contínua e progressiva transformação esta-
tal que termina preservando as condições atualizadas da dominação?

Na medida em que se considera que a luta estratégica pelo poder atravessa o Estado, será necessá-
rio realizá-la neste espaço sempre com a necessidade de diferenciá-la da ocupação de posições nas
cúpulas governamentais e também do reformismo progressivo, que não passa de transformação es-
tatal. O que identifica a luta pelo socialismo, mesmo que no interior do Estado, será sua capacidade
de realizar rupturas reais na relação de poder, tencionando-a em direção às massas populares, o que
requer a sua permanente articulação com as lutas de um amplo movimento social pela transformação
da democracia representativa.

A construção do projeto da reforma sanitária fundou-se na noção de crise: crise do conhecimento e


da prática médica, crise do autoritarismo, crise do estado sanitário da população, crise do sistema de
prestação de serviços de saúde5. A constituição da Saúde Coletiva, como campo do saber e espaço
da prática social, foi demarcada pela construção de uma problemática teórica fundada nas relações

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REFORMA SANITÁRIA

de determinação da saúde pela estrutura social, tendo como conceito articulador entre teoria e prática
social, a organização da prática médica, capaz de orientar a análise conjuntural e a definição das es-
tratégias setoriais de luta.

Partindo da análise dos processos de trabalho e do conceito-chave de organização social da prática


médica, tal movimento opera uma leitura socializante da problemática evidenciada pela crise da medi-
cina mercantilizada, bem como de sua ineficiência, enquanto possibilidade de organização de um sis-
tema de saúde capaz de responder às demandas prevalecentes, organizado de forma democrática
em sua gestão e administrado com base na racionalidade do planejamento5.

As decorrências desta construção teórico-política apontam na direção da centralidade que a atuação


junto ao Estado passaria a ter como campo privilegiado de intervenção e desenvolvimento das lutas
políticas. No entanto, esta mesma concepção pode ser responsabilizada pela estruturação de um mo-
vimento social - o movimento sanitário - que se organiza desde diferentes lugares, tais como a univer-
sidade, os sindicatos de profissionais de saúde, os movimentos populares, o Congresso Nacional, em
torno de uma proposta comum.

A saúde passa a ser vista como um objeto concreto e complexo, síntese de múltiplas determinações,
cuja definição de Arouca6compreende:

. instituições organizadas para satisfazer necessidade;

. um espaço específico de circulação de mercadorias e de sua produção (empresas, equipamentos e


um campo de necessidades geradas pelo fenômeno saúde/enfermidade);

. a produção dos serviços de saúde com sua base técnico-material, seus agentes e medicamentos;

. um espaço de densidade ideológica;

. um espaço de hegemonia de classe, através das políticas sociais que têm a ver com a produção so-
cial;

. possuir uma potência tecnológica específica que permite solucionar problemas tanto a nível indivi-
dual como coletivo.

A questão política que se coloca a partir desta análise teórica é relativa às condições necessárias ao
processo de politização e democratização da saúde. A relação entre democracia e saúde é proposta
por Berlinguer7 ao postular que ambos são conceitos abstratos e, mais que isto, orientações ético-
normativas. Se bem seja necessário reconhecer os conflitos de interesses e a oposição entre as for-
ças conservadoras e as reformadoras, tanto no caso da democracia quanto no da saúde, tais confli-
tos não podem ser reduzidos a uma polarização classista. Por outro lado, do ponto de vista estraté-
gico, a luta pela universalização da saúde aparece como uma parte intrínseca da luta pela democra-
cia, assim como a institucionalização da democracia aparece como condição para garantia da saúde
como direito de cidadania.

A estratégia expansionista de uma hegemonia em formação consubstancia-se na saúde através dos


projetos da reforma sanitária, por meio dos quais se busca a concretização de:

. o reconhecimento político e institucional do Movimento Sanitário como sujeito e dirigente do pro-


cesso reformador;

. a ampliação da consciência sanitária de forma a possibilitar o consenso ativo dos cidadãos (usuários
e profissionais) em relação ao processo transformador no setor, bem como a natureza social das de-
terminações que incidem sobre o processo saúde/doença e sobre a organização do cuidado médico;

. o resgate da saúde como um bem de caráter público, embora contraditoriamente limitado pelos inte-
resses gerados pela acumulação de capital. Por conseguinte, trata-se de expressar o caráter de bem
público da saúde consubstanciando-o na definição de uma norma legal e do aparato institucional que
visam à garantia da sua universalização e equidade8 .

Para compreender o processo da reforma sanitária, foram levantadas as seguintes hipóteses explica-
tivas9:

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REFORMA SANITÁRIA

. a adoção de uma concepção ampliada de saúde, como resultante das formas de organização social
da produção, mas também como fruto das lutas populares cotidianas, ambas atuando na conforma-
ção de sua concretização histórica e singular;

. a democracia é o processo de reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos políticos a partir de


suas lutas, em um processo mútuo de auto e hetero reconhecimento de identidades sociopolíticas en-
tre diferentes sujeitos;

. a incorporação das demandas sanitárias por meio de um conjunto de dispositivos legais e institucio-
nais, configurando distintas cidadanias é, ao mesmo tempo, uma resultante da correlação de forças
existente e um elemento ativo na conformação de identidades políticas e sociais;

. as reformas sanitárias quase sempre emergem em um contexto de democratização e estão associa-


das à emergência das classes populares como sujeitos políticos, geralmente em aliança com setores
da classe média;

. são elementos deste processo reformador: a generalização da consciência sanitária; a construção


de um paradigma analítico fundado na determinação social da saúde e da organização das práticas;
o desenvolvimento de uma nova ética profissional; a construção de um arco de alianças políticas em
torno da defesa do direito à saúde; a criação de instrumentos de gestão democrática e controle social
do sistema de saúde;

. o caráter político da reforma sanitária será dado pela natureza da transição democrática experimen-
tada em cada contexto nacional, a saber, sejam elas transições pactuadas ou transições por colapso
do autoritarismo;

. o formato e o conteúdo político da reforma provirão da confluência de pelo menos alguns fatores,
tais como: o caráter político-ideológico da coalizão que impulsiona o processo de democratização e
seus embates com a coalizão conservadora; a articulação do processo da reforma sanitária com as
estratégias de transição à democracia; o timing da reforma em relação ao processo de democratiza-
ção; a capacidade de alterar a cultura política prevalecente em direção à universalização dos direitos
e a garantia de práticas administrativas participativas;

. a sustentabilidade do processo de reforma dependerá da capacidade de promover mudanças efeti-


vas ao nível do controle institucional, da qualidade dos serviços e da eficácia das ações e serviços, o
que garantirá a preservação do apoio social à reforma;

. a sustentabilidade do processo reformador dependerá da redução das restrições financeiras e de


ordem política à construção de um sistema amplo de proteção social; da capacidade de transacionar
os conflitos gerados pelo próprio processo reformador; da permeabilidade da burocracia e dos profis-
sionais de saúde às mudanças;

. as perspectivas da reforma sanitária derivam da capacidade apresentada pela coalizão reformadora


de imprimir mudanças efetivas e no tempo justo sobre as estruturas institucionais de forma a evitar
que o Estado filtre os aspectos racionalizadores da proposta e mine sua base política.

Em síntese, a reforma sanitária brasileira tomou como ponto de partida o caráter dual da saúde, en-
tendido como a possibilidade de ser tomada, ao mesmo tempo, como valor universal e núcleo subver-
sivo da estrutura social. Como valor universal, torna-se um campo especialmente privilegiado para a
construção de alianças suprapartidárias e policlassistas. Como núcleo permanentemente subversivo
da estrutura social, indica uma possibilidade sempre inacabada em um processo de construção social
de uma utopia democrática.

Reforma sanitária e Sistema Único de Saúde - dilemas entre o instituinte e o instituído

O movimento que impulsionou a reforma sanitária brasileira colocou-se como projeto a construção
contra-hegemônica de um novo patamar civilizatório, o que implica uma profunda mudança cultural,
política e institucional capaz de viabilizar a saúde como um bem público.

Os princípios que orientaram este processo foram:

. um princípio ético-normativo que insere a saúde como parte dos direitos humanos;

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. um princípio científico que compreende a determinação social do processo saúde doença;

. um princípio político que assume a saúde como direito universal inerente à cidadania em uma socie-
dade democrática;

. um princípio sanitário que entende a proteção à saúde de uma forma integral, desde a promoção,
passando pela ação curativa até a reabilitação.

No entanto, a construção do Sistema Único de Saúde, aprovado na Constituição Federal de 1988,


ocorreu em um contexto em que a disputa ideológica favoreceu amplamente o projeto neoliberal, re-
organizando as relações entre Estado e sociedade em bases distintas daquelas pressupostas pelos
formuladores do SUS.

Foram retomadas as orientações liberais que propugnam por uma forte redução da presença do Es-
tado, seja na economia seja nas políticas sociais. Para tanto, utilizaram-se instrumentos como a priva-
tização das empresas estatais e mesmo de serviços sociais, a redução da pauta e/ou valor dos bene-
fícios sociais juntamente ao aumento das dificuldades para alcançá-los, a introdução de mecanismos
da economia de mercado como a competição gerenciada na organização dos serviços sociais, a re-
dução do papel de provedor do Estado com a transferência desta competência a organizações civis
lucrativas ou não.

Ainda com relação ao aparato estatal, houve uma desmontagem das carreiras profissionais e dos nú-
cleos produtores de conhecimento e estratégias ligados ao projeto de desenvolvimento nacional, vis-
tos como comprometidos com a lógica, seja populista seja intervencionista, do modelo econômico an-
terior, visto como responsável pela crise fiscal do Estado.

O predomínio da lógica de acumulação do capital financeiro teve como consequência para as econo-
mias endividadas dos países menos desenvolvidos sua inserção como exportadores líquidos de capi-
tal por meio do pagamento dos juros sobre a dívida pública. A política pública passa a ter como obje-
tivo central a estabilização monetária, mesmo quando isto implicou o abandono do crescimento eco-
nômico como consequência de uma política de juros que promoveu uma absurda transferência de re-
cursos desde a área produtiva para o Estado, por meio do aumento da carga tributária e desde o Es-
tado para o capital financeiro, por meio do pagamento dos juros sobre a dívida e títulos públicos.

Cultural e socialmente, houve uma transformação que acentuou valores como o individualismo e o
consumismo, com as elites e setores das altas capas médias orientadas cada vez mais para um pa-
drão norte-americano de sociedade de consumo, em detrimento de valores como a solidariedade, a
igualdade e a participação cívica. O divórcio entre uma classe média alienada da realidade nacional e
a população marginalizada da globalização reflete-se na saúde na existência de um sistema de segu-
ros privados e um sistema público para os mais pobres, mas ao qual os assegurados recorrem em
várias situações.

O esgarçamento do tecido social com a forte presença dos movimentos sociais que começara a aflo-
rar em décadas anteriores, e a negação das expectativas solidificadas com a transição à democracia,
vão ter como consequências a ausência de mecanismos de integração social, seja por meio de um
mercado de trabalho cada vez mais informal, seja por meio de políticas de proteção social que não
alcançam combater a exclusão e a desigualdade, que marginalizam setores populacionais em situa-
ção de perigosa periculosidade e vulnerabilidades crescentes nas grandes cidades. O aumento e a
banalização da violência passam a ser o cotidiano das grandes cidades, revelando, paradoxalmente,
a incapacidade da democracia eleitoral de gerar mecanismos de coesão social.

Na área de políticas sociais, há uma substituição do modelo corporativo, de acesso limitado e frag-
mentado por setores ocupacionais, por um novo modelo que se baseia na individualização do risco.
Para aqueles que podem pagar por seus riscos sociais, há uma explosão da oferta de seguros sociais
em áreas como a saúde e as aposentadorias. Esta expansão do mercado ocorre seja com a anuência
e promoção do Estado, por meio de subsídios e renúncias fiscais, seja com a ausência de uma regu-
lamentação efetiva que possa conter os abusos e desrespeitos aos direitos dos consumidores. Só de-
pois de fortalecido este mercado, seria promovida sua regulamentação, ainda recente e precária, per-
mitindo que os portadores de seguros sejam também usuários do SUS, que termina funcionando
como um tipo de resseguro para alguns tratamentos.

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REFORMA SANITÁRIA

Para a população mais pobre, o princípio da individualização dos riscos vai se concretizar em progra-
mas de proteção focalizados, cujos benefícios em serviços ou transferências de renda implicam re-
querimentos de provas de necessidade e no cumprimento de certas condicionalidades impostas aos
beneficiários. Desta forma, a política social passa a funcionar como mecanismos simultâneos de pro-
moção e controle social, desvinculadas da condição de exercício de um direito social.

Na luta ideológica pela construção da saúde como um valor público, há um retrocesso importante, no
qual a saúde passa a ser vista como um bem de consumo e, mais do que isto, como um modelo de
consumo caracterizado pela ausência da dor e do sofrimento, a busca inesgotável do prazer e da
construção no próprio corpo de um padrão estético de beleza a ser atingido por meio de sucessivas
intervenções (das tatuagens às cirurgias plásticas, passando pelas vitaminas e anabolizantes).

Novamente, trata-se de um modelo social que prescinde de laços sociais, em que o outro se torna ob-
jeto e não é um sujeito que deva ser mais que tolerado, reconhecido como igual, ainda que diverso,
em um processo de comunicação na esfera pública.

Este contexto no qual o movimento da reforma sanitária constrói a sua institucionalidade é, pois, alta-
mente desfavorável e cheio de dilemas e contradições a serem enfrentados.

A construção e materialização do projeto da reforma se dão por meio de três processos que, embora
simultâneos, têm compassos distintos e tais descompassos geram novas tensões e algumas comple-
mentaridades. São eles os processos de subjetivação, de constitucionalização e de institucionaliza-
ção.

A subjetivação diz respeito à construção de sujeitos políticos, a constitucionalização trata da garantia


de direitos sociais e a institucionalização trata do aparato institucional - incluindo os saberes e práti-
cas - que implementam a política de saúde.

Touraine10 designa por sujeito a construção do indivíduo (ou grupo) como ator, através da associa-
ção de sua liberdade afirmada com sua experiência de vida assumida e reinterpretada. O sujeito é o
esforço de transformação de uma situação vivida em ação livre; introduz a liberdade no que aparece,
em primeiro lugar, como determinantes sociais e herança cultural. Ainda afirma que Um indivíduo é
um sujeito se, em suas condutas, consegue associar o desejo de liberdade com a filiação a uma cul-
tura e o apelo à razão; portanto, um princípio de individualidade, um princípio de particularismo e um
princípio universalista10.

Neste sentido, a primeira etapa de luta pela democracia foi também aquela em que predominou a
construção de sujeitos políticos capazes de formular e conduzir o processo da reforma sanitária. Se
nesta fase os atores políticos assumem um caráter de movimento social - o movimento sanitário em
suas várias expressões - à medida que ocorrem a institucionalização e a constitucionalização, novos
sujeitos emergem na cena política e passam mesmo a ter nela o predomínio.

Em outras palavras, o êxito da reforma como fruto das lutas deste ator político, movimento sanitário,
vai gerar, contraditoriamente, a superação deste caráter de movimento vindo da sociedade civil como
crítica ao Estado, em direção a atores políticos que são parte da institucionalidade estatal, tais como
os secretários municipais e estaduais de saúde, os promotores públicos, a burocracia reformadora.

Se a hipertrofia da subjetivação pode representar uma tendência seja à individualização anômica seja
ao "comunitarismo", a hipertrofia da constitucionalização tem como consequência a judicialização da
política e a hipertrofia da institucionalização implica a burocratização dos processos sociais.

Na fase intermediária da reforma, houve uma crescente normalização do processo de descentraliza-


ção, com um emaranhado de normas operacionais e mecanismos de repasses de recursos financei-
ros que terminaram por assegurar à burocracia central a preservação de poder, mesmo que isto te-
nha implicado o arrefecimento da política.

No entanto, o fortalecimento de atores políticos institucionais, como os secretários de saúde, gerou


tensões crescentes no exercício do poder compartilhado, acarretando conflitos que foram trabalhados
a partir das esferas de pactuação que haviam sido institucionalizadas, tendo gerado, no momento
atual, o Pacto da Saúde que inclui os importantes Pacto pela Vida e Pacto de Gestão11.

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No entanto, a desigual distribuição de recursos e poder entre os atores tende a favorecer sempre aos
grupos de gestores e aos grupos corporativos, impedindo que os ideais da reforma se concretizem e
garantam a centralidade do usuário cidadão.

Este é o maior desafio da fase atual da reforma, que implica não apenas a garantia do acesso dos
usuários, mas a reorientação das lógicas burocrática e profissional, que atualmente organizam o sis-
tema, em direção a outra lógica que, por ter o usuário como central ao sistema de saúde, garante a
exigibilidade de seus direitos, a humanização do acolhimento e a eficácia e resolutibilidade do cui-
dado.

Finalmente, caracteriza também a fase atual de implantação do SUS a presença marcante dos atores
jurídicos e até mesmo o desenvolvimento de um ramo do direito que ficou conhecido como direito sa-
nitário. Esta é uma consequência da constitucionalização do direito à saúde. No entanto, como a jus-
tiça tende a entender o direito à saúde como um direito individual e não como direito coletivo, ela age
em função daqueles pacientes que, por possuírem maior informação e maiores recursos, são capa-
zes de acioná-la quando têm seus direitos negados. Ao atender a estas demandas individuais, a jus-
tiça impede o planejamento das ações de saúde e, muitas vezes, canaliza os escassos recursos para
procedimentos individuais em detrimento de ações coletivas.

Neste sentido, é preciso retomar a perspectiva de difusão da consciência sanitária, como consciência
política do direito à saúde, já que está provado que não se cria a igualdade por decreto, somente por
meio da lei. Além disso, é necessário superar a compreensão do direito à saúde como parte do direito
dos consumidores e reinseri-lo no conjunto dos direitos humanos.

Com relação à institucionalidade, o SUS operou uma reforma democrática do Estado que, mesmo
tendo enfrentado todas as pressões dos governos que adotaram um modelo de reforma distinto e que
pressupunha o esvaziamento da função estatal de provedor, conseguiu não apenas se manter como
servir de modelo para a reorganização de sistemas de gestão compartilhada em outras áreas (como
a assistência social e a segurança pública).

O modelo de reforma do Estado embutido na institucionalização do SUS foi sustentável tanto por ter
conseguido manter uma coalizão reformadora orgânica e atuante, como por fazer o processo avançar
com base na legislação existente, ou seja, no que ficou conhecido como "o desafio de fazer cumprir a
lei". Neste sentido, subjetivação, institucionalização e constitucionalização funcionaram de maneira
sinérgica e complementar.

O SUS pode ser visto como um modelo de republicanismo cívico por sua capacidade, juntamente a
outros esforços, de permitir o revigoramento das instituições republicanas, seja no fortalecimento do
Legislativo com a atuação cada vez mais qualificada da Comissão da Seguridade Social e da Família
e com ação suprapartidária da Frente Parlamentar da Saúde; seja na Justiça ao desenvolver o direito
sanitário e a ação e organização dos procuradores públicos que atuam na saúde, seja no Executivo
ao introduzir um modelo de cogestão e de redes de políticas.

O SUS reorganizou o Executivo através dos seguintes instrumentos e processos:

. mecanismos de participação e controle social representados pelos Conselhos de Saúde, existentes


em cada uma das esferas governamentais, com representação paritária de 50% de membros do Es-
tado e 50% de membros da sociedade civil. Os Conselhos, para além de instrumentos de controle so-
cial, externos ao aparelho de Estado, devem ser entendidos como "componentes do aparelho estatal,
onde funcionam como engrenagens institucionais com vigência e efeitos sobre os sistemas de filtros,
capazes de operar alterações nos padrões de seletividade das demandas12";

. mecanismos de formação da vontade política, as Conferências de Saúde, realizadas periodica-


mente, em todos os níveis do sistema, que, em uma interação comunicativa e deliberativa, coloca to-
dos os atores sociais em interação em uma esfera pública e comunicacional, periodicamente convo-
cada. Além de mecanismos de aprendizagem e reconhecimento social, esta instância fortalece a so-
ciedade organizada que participa do processo de construção dos lineamentos políticos mais amplos
do sistema, embora sem caráter vinculativo;

. mecanismo de gestão compartilhada, negociação e pactuação entre os entes governamentais envol-


vidos em um sistema descentralizado de saúde. A suposição de interesses distintos e de câmaras
institucionais de negociação destas diferenças e de geração de pactos de gestão é uma das grandes

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inovações deste modelo federativo inovador que assume a diferenciação como realidade e a igual-
dade como princípio político e meta institucional.

Um federalismo diferenciado pelas desigualdades sociais e regionais existentes na sociedade brasi-


leira, mas igualado pela criação de mecanismos de descentralização, pactuação e participação que
geram novas capacidades e poderes locais.

A criação do SUS e sua revisão periódica de forma a enfrentar as diferenças internas e as ameaças
constantes representadas pela ausência de recursos financeiros necessários e pela crescente pre-
sença do mercado de seguros tem sido um desafio constante. Se bem se possa dizer que com isto se
tenha alcançado o objetivo de construir um valor público, de tal forma que a política de saúde seja
hoje mais uma questão de Estado do que de governos, certo é que a incapacidade de transformar as
práticas cotidianas que desqualificam o usuário e o destituem dos direitos humanos ao acolhimento
digno e a atenção eficaz seguem sendo um desafio para a democratização da saúde.

A incapacidade de implantar um modelo integral de atenção à saúde, de reversão da predominância


do modelo curativo para um modelo preventivo, a incapacidade das melhorias na gestão do sistema
gerar melhorias correspondentes na gestão das unidades, a falta de uma renovação ética nos profis-
sionais do sistema de saúde, a dependência de insumos e medicamentos cujos preços e condições
de produção por grandes empresas multinacionais fogem ao controle dos Estados nacionais, e mui-
tos outros mais, são desafios presentes no momento atual da reforma sanitária.

No entanto, a ênfase atual nos aspectos legais e institucionais termina por deixar de lado a necessi-
dade de retomar, permanentemente, o caminho da construção dos sujeitos políticos da reforma. A
formação de identidades, a difusão da consciência sanitária, a organização em coalizões sociais em
defesa de uma reforma radical é a única maneira superar os entraves atuais e aprofundar a democra-
tização da saúde.

O paradoxo da reforma sanitária brasileira é que seu êxito, ainda que em condições adversas e parci-
ais, terminou por, ao transformá-la em política pública, reduzir a capacidade de ruptura, inovação e
construção de uma nova correlação de forças desde a sociedade civil organizada. Em outras pala-
vras, o instituído se impôs ao institui-te, reduzindo o caráter libertário e transformador da reforma. A
constatação de que a iniquidade estrutural da sociedade brasileira atravessa hoje o sistema único de
saúde é a possibilidade de retomar o combate pelas idéias igualitárias que orientaram a construção
deste projeto. Para tanto, resta a questão da construção permanente do sujeito, aquele que poderá
transformar novamente o instituído em institui-te, para de novo institucionalizar-se.

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