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Regionalização da saúde no Brasil: uma

perspectiva de análise
Regionalization of health in Brazil: an analytical perspective

Ligia Schiavon Duarte Resumo


Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Núcleo de Serviços e Sistemas de Saúde. São Paulo, SP, Brasil. Este artigo visa a contribuir com o debate sobre a
E-mail: ligiaduarte@isaude.sp.gov.br política de regionalização do SUS e a constituição
Umberto Catarino Pessoto das regiões de saúde no Brasil. Compreendê-las
Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. pressupõe reconhecer a dicotomia entre saúde co-
Núcleo de Serviços e Sistemas de Saúde. São Paulo, SP, Brasil. letiva e saúde individual – que marca a história da
E-mail: umberto@isaude.sp.gov.br saúde pública brasileira – e identificar as diferentes
Raul Borges Guimarães racionalidades que conduzem esse processo. Tais
Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnolo- racionalidades permitem não apenas considerar
gia. Departamento de Geografia. Presidente Prudente, SP, Brasil. o legado da municipalização no atual processo de
E-mail: raul@fct.unesp.br
regionalização, como também estabelecer nexos
Luiza Sterman Heimann entre dois campos do conhecimento fundamentais
Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. para o debate, a epidemiologia e a geografia. A epi-
Núcleo de Serviços e Sistemas de Saúde. São Paulo, SP, Brasil.
demiologia clínica, ao privilegiar a saúde individual,
E-mail: luizash@isaude.sp.gov.br
fundamenta um modelo assistencial que prioriza a
José da Rocha Carvalheiro otimização de recursos. O reconhecimento da saúde
Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina de Ribeirão
no seu conceito ampliado, na epidemiologia social,
Preto. Departamento de Medicina Social. Ribeirão Preto, SP, Brasil.
Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
fundamenta um modelo de atenção voltado para os
Núcleo de Serviços e Sistemas de Saúde. São Paulo, SP, Brasil. determinantes sociais. Com a geografia, podem-se
E-mail: jrcarval@usp.br formular regiões funcionais, baseadas na teoria de
Carlos Tato Cortizo Christaller, ou regiões lablachianas, que reconhe-
Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. cem a estrutura social loco/regional, possibilitando
Núcleo de Serviços e Sistemas de Saúde. São Paulo, SP, Brasil. a intervenção nos determinantes ou condicionantes
E-mail: tato@isaude.sp.gov.br da maneira de adoecer e morrer das populações.
Eduardo Augusto Werneck Ribeiro Palavras-chave: Regionalização na Saúde; Regiões
Instituto Federal Catarinense. São Francisco do Sul, SC, Brasil. de Saúde; Municipalização na Saúde; Sistema Único
E-mail: eduardo.werneck@saofrancisco.ifc.edu.br de Saúde.

Correspondência
Ligia Duarte
Rua Santo Antônio, 590.
São Paulo, SP, Brasil. CEP 01314-000.

472 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.2, p.472-485, 2015 DOI 10.1590/S0104-12902015000200007
Abstract Um pouco da história da saúde no
This article aims to contribute to the debate on the Brasil
SUS regionalization policy and the establishment of A história da saúde pública brasileira é marcada
health regions in Brazil. Understanding them requi- pela dicotomia entre saúde coletiva e saúde indivi-
re to recognize the dichotomy between public health dual (Luz, 1978; Braga; Paula, 1986). Tal dicotomia
and individual health - which marks the history of possibilita evidenciar diferentes racionalidades na
Brazilian public health - and identify the different construção das políticas de saúde, ora privilegiando
rationalities that lead this process. Such rationali- o uso racional dos recursos disponíveis, que tem
ties allow not only to consider the legacy of munici- como objeto principal a organização da oferta de
palization in the current regionalization process, as ações e serviços de saúde, ora tendo como finalidade
well as to establish links between the two fields of a transformação das condições de vida da população
fundamental knowledge to the debate, epidemiology por meio de intervenções que vão além da oferta e
and geography. Clinical epidemiology, privileging acesso às ações e serviços de saúde. Essas racionali-
individual health, gives basis to a healthcare model dades se fazem presentes ora de forma complemen-
that prioritizes the optimization of resources. The tar, ora concorrente, apresentando preponderâncias
recognition of health in its broader concept, in the que podem, ou não, alterar-se ao longo do tempo.
social epidemiology, bases an attention model aimed Apreendê-las, na saúde pública, exige a compreensão
at social determinants. With geography, functional do momento histórico e a identificação dos atores
regions can be formulated, based on Christaller’s que conduzem o processo de construção da política.
theory, or lablachianas regions which recognize No Brasil, como já havia ocorrido nos países
the social loco / regional structure, allowing inter- industrializados, a saúde pública cumpriu função
vention in determining or conditioning the way of chave no processo de modernização social. Além
illness and death of populations. de conter as epidemias, também cabia às ações de
Keywords: Regionalization in Health; Health Re- saúde garantir a produtividade do trabalho e a ordem
gions; Municipalization in Health; Brazilian Natio- social (Luz, 1978; Braga; Paula, 1986; Carvalheiro;
nal Health System. Marques; Mota, 2013). Dessa forma, a política de
saúde brasileira vai sendo formulada em sintonia
com a lógica de estruturação do capitalismo no
território nacional.
Coerente com o processo de modernização
do país, Braga e Paula (1986) apontam o caráter
“restrito” da política de saúde, que ocorreu sem a
indução de movimentos populares transformado-
res, mas na acomodação social às novas formas de
produção (Luz, 1978; Braga; Paula, 1986). As ações
de saúde pública organizadas no período levaram a
intervenções de saúde pontuais e fragmentadas – so-
cialmente, setorialmente e territorialmente – não se
configurando em um projeto de integração nacional.
Além da fragmentação social e espacial, vale res-
saltar que um grande conjunto de ações concernen-
tes à saúde da população foi formulado e executado
em diferentes instâncias governamentais, algumas
vezes sob a influência de organismos internacionais.
O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), fundado
em 1942, foi criado a partir de acordo entre os gover-

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nos dos Estados Unidos e do Brasil. Os Institutos A despeito da contradição que se verifica entre o
de Aposentadoria e Pensões (IAP), vinculados aos aumento dos gastos públicos, resultante da pressão
sindicatos, sofriam grande influência dos interesses do recém-estruturado setor médico, e a piora da
específicos das categorias profissionais. Além disso, condição de saúde da população, a reforma na saúde,
diferentes ministérios exerciam ações de saúde pú- efetivada em 1968 com o “Plano de Coordenação das
blica “complementares ou coincidentes” conforme Atividades de Proteção e Recuperação da Saúde”,
apontam Singer, Campos e Oliveira (1978). aprofunda o modelo baseado na medicina previ-
Nesse processo de comando desintegrado e denciária e explicita, pela primeira vez, a dicotomia
resultados sociais e territoriais heterogêneos, a entre saúde coletiva e individual (Singer; Campos;
política de saúde nacional organizou-se a partir de Oliveira, 1978; Luz, 1978).
dois subsetores: o de saúde pública, baseado princi- Mesmo reconhecendo a existência de iniciativas
palmente no modelo sanitarista-campanhista, e o da regionais de desenvolvimento de ações calcadas
assistência médica, calcado no modelo assistencial- mais fortemente no modelo preventivista, como
-privativista (Carvalheiro; Marques; Mota, 2013). aquelas realizadas por Walter Leser na Secretaria da
Apesar da coexistência entre eles ao longo do tempo, Saúde Pública e Assistência Social do Estado de São
é possível afirmar que esse último, na perspectiva Paulo (Carvalheiro; Marques; Mota, 2013), o que se
da medicina previdenciária, se amplia a partir da observa é o fortalecimento do modelo assistencialis-
década de 1950, junto com a mudança do padrão de ta-privatista, com a reorganização do Ministério da
industrialização brasileiro, e passa a se constituir Previdência e Assistência Social (MPAS) e a criação
em um requerimento efetivo para o processo de do Instituto Nacional de Assistência Médica da Pre-
trabalho. vidência Social (Inamps).
O modelo de atenção que se desenvolveu nesse Além de todos os fatores críticos na Política
contexto tem como objeto de intervenção o indiví- Nacional de Saúde desse período, a década de 1980
duo, fortemente calcado no modelo flexneriano de começa marcada pela crise mundial gerada pelas
formação e atenção médica especializada (Pessoto, novas lógicas do movimento do capital que impõem
2010). Faz mister ressaltar que, mesmo no contexto à acumulação de capital produtivo uma dinâmica
de expansão do paradigma flexneriano, é possível orientada para a valorização por meio do capital
identificar nesse período diversas iniciativas, em fictício e que se evidencia principalmente a partir
diferentes países, que preconizavam as teorias do final dos anos 1970 (Chesnay apud Mendes, 2012).
preventivistas, conformando “um movimento de Mesmo não sendo objeto do artigo em tela, vale res-
articulação das abordagens interdisciplinares no saltar que tal mudança atravanca o financiamento
campo médico e de saúde ao tratar do processo público das políticas sociais por comprometer a
saúde-doença” (Carvalheiro; Marques; Mota, 2013, p. capacidade do Estado em se apropriar do excedente
10). Na América Latina esse movimento se expressa gerado na produção e por drenar os recursos pú-
no chamado “sanitarismo desenvolvimentista”, da blicos via dívida pública (Mendes, 2012). O cenário
Comissão Econômica para a América Latina e o Ca- econômico brasileiro do período resultou em uma
ribe (CEPAL), que fortalece o discurso preventivista década de superinflação, como resultado da não
no Brasil (Carvalheiro; Marques; Mota, 2013). consolidação de forças produtivas endógenas ca-
Apesar do fortalecimento do discurso preventi- pazes de se contrapor à expropriação imposta pelo
vista nesse período, o modelo que se consolida é o crescente capitalismo financeiro nacional e, princi-
da medicina previdenciária que, por ser fortemente palmente, internacional (Tavares, 2012).
calcada na assistência médica e no uso de tecnolo- É nesse contexto de arrocho salarial, desempre-
gia, acaba gerando a ampliação do gasto público e go, agravamento das desigualdades sociais e tran-
estimula a estruturação de uma avançada organiza- sição do regime militar para a Nova República, que
ção capitalista do setor (Braga; Paula, 1986), sem, no marcam a primeira metade da década de 1980, que
entanto, produzir a melhora da condição de saúde da são gestadas as bases do Sistema Único de Saúde
população (Singer; Campos; Oliveira, 1978). (SUS). A mobilização social se amplia conforme

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as bases políticas do antigo regime enfraquecem como condutor das ações de saúde, a partir de pro-
e o movimento sanitário1 ganha força na crítica ao postas baseadas no perfil epidemiológico, da regio-
modelo de assistência à saúde até então vigente. No nalização e hierarquização dos serviços públicos
debate da construção da política de saúde, emergem e privados, da valorização das atividades básicas,
as diferentes dimensões da vida social – alimenta- da garantia de referência e contrarreferência e da
ção, habitação, educação, renda, trabalho, acesso à descentralização do processo de planejamento e
terra, além do acesso a serviços de saúde. A saúde administração (Escorel, 2008).
passa a ser considerada como resultado da forma Estas diretrizes foram construídas à luz da di-
de produção social e não apenas como o estado de cotomia entre saúde coletiva e individual, que dá
ausência da doença. Assim, as questões sociais e a sinais de continuidade, definida pela racionalidade
construção democrática da política abrem espaço no uso dos recursos existentes e do conceito am-
para a valorização da saúde coletiva. pliado de saúde.
A formulação de diferentes planos e programas
que objetivavam o uso racional dos recursos disponí-
veis gerou a necessidade do fortalecimento do papel
A regionalização como legado da
dos estados e municípios de forma a possibilitar o municipalização
uso dos recursos públicos ociosos e a ampliação do O ideário da nova proposta para o setor de saúde
atendimento a toda a população, independente do nacional, refletido nos princípios doutrinários da
vínculo previdenciário. Ao mesmo tempo em que universalização, da integralidade, da equidade e da
ocorria o fortalecimento do papel do Estado como participação social, tem na diretriz da descentraliza-
condutor do sistema de saúde nacional, o embate ção o alicerce necessário para superar a fragmenta-
entre os diferentes atores que atuavam na esfera da ção social, territorial e de comando até então vigen-
saúde pública e da medicina privada foi estruturan- te. No entanto, o termo descentralização, no âmbito
do uma “forma de convívio harmonioso e eficiente” do SUS, carrega em seu bojo muitos significados,
entre o setor público e o privado (Escorel, 2008). que podem ser interpretados, também, a partir de
Assim, a busca da racionalidade no uso dos re- diferentes racionalidades. Estas, por sua vez, podem
cursos existentes respondia às demandas sociais fornecer elementos para a compreensão do processo
ao mesmo tempo em que continuava oferecendo um de regionalização da política de saúde que vem se
espaço de valorização do capital no setor de saúde. efetivando por meio dos diferentes mecanismos e
Carvalheiro, Marques e Mota (2013) afirmam que as instrumentos normativos da implementação do SUS.
mudanças no setor de saúde são marcadas por duas Conforme aponta Luz (2000), as propostas de
propostas políticas, uma ligada aos movimentos descentralização e de participação civil, de uma for-
democráticos e a outra, conservadora, que propunha ma geral e na saúde em particular, começaram a ser
o ajuste do modelo privado: formuladas a partir da segunda metade da década de
1950. A III Conferência Nacional de Saúde, realizada
A reforma constitucional de 1988 incorporou em 1963, já tem como proposta a municipalização
conceitos, princípios e diretrizes no setor que se dos serviços de saúde e a promoção de técnicas de
tornou uma mistura das duas propostas: a Reforma planejamento ascendentes no setor saúde (Escorel;
Sanitária e a do projeto neoliberal (Carvalheiro; Teixeira, 2008). Esse processo, interrompido pelo
Marques; Mota, 2013, p. 14). golpe militar, é retomado, inicialmente, baseado nos
mesmos atores (burocracia e profissionais da área
É nesse processo, de forma lenta e irregular, que de saúde e previdência) e nos mesmos fundamentos
ganha força a responsabilização do poder público (sanitarista e desenvolvimentista), aprofundando

1 Movimento de profissionais da saúde – e de pessoas vinculadas ao setor – que compartilha o referencial médico-social na abordagem
dos problemas de saúde e que, por meio de determinadas práticas políticas, ideológicas e teóricas, busca a transformação do setor da
saúde no Brasil em prol da melhoria das condições de saúde e de atenção à saúde da população brasileira, na consecução do direito de
cidadania (Escorel, 2008, p. 407)

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a ideia de participação social ao longo do tempo falta de cultura participativa da sociedade que não
(Luz, 2000). transformou os conselhos de saúde municipais em
De fato, a descentralização, no contexto da refor- legítimos condutores da política de saúde local;
ma sanitária, é entendida como uma estratégia de a herança deixada pela medicina previdenciária,
democratização e de incorporação de novos atores. cujos atores continuaram a influenciar a lógica de
Está fortemente atrelada ao movimento munici- organização do sistema.
palista que tomou força a partir do processo de Ainda assim, os progressos alcançados no sen-
redemocratização do país e da Assembleia Nacional tido de se efetivar a descentralização da política de
Constituinte de 1987. Os municípios são alçados ao saúde são, reconhecidamente, responsáveis pela
rol de entes federados a partir da Constituição Fede- ampliação do acesso da população aos serviços,
ral de 1988 e começa um período de tensionamento principalmente da Atenção Básica, e pelas melhoras
entre governo central e subnacionais na disputa por consideráveis nos indicadores de saúde nacionais.
funções e recursos na gestão pública, o que signifi- Segundo Paim et al. (2011), a descentralização do
cou avanços e retrocessos. sistema possibilitou a melhora no acesso à atenção
O fato é que a descentralização não era um ideal básica, com ênfase na Estratégia Saúde da Famí-
apenas dos movimentos democratizantes, mas tam- lia, resultando em efeitos positivos na cobertura
bém fazia parte das recomendações dos organismos universal de vacinação e assistência pré-natal, na
internacionais, como forma de melhorar a alocação redução da mortalidade infantil pós-neonatal e nas
de recursos e na criação de sistemas de accoun- internações desnecessárias. Vasconcelo e Pasche
tability (Oliveira, 2007). Esse aspecto também é (2006) ressaltam ainda a atuação dos agentes comu-
reconhecido no campo da saúde: nitários e os ganhos proporcionados pela adequação
das ações às necessidades da população local, bem
Os ideais de democratização e de redução do ta- como a capacitação de grande contingente de profis-
manho do Estado, ainda que fundados em bases sionais de atuação municipal habilitados a manejar
político-ideológicas diferentes, geraram um certo os instrumentos do SUS.
consenso acerca da descentralização e favoreceram Mesmo considerando as dificuldades na mensu-
o avanço desse processo no âmbito do SUS, ainda ração exata das melhoras decorrentes das ações e
que com contornos diferentes do projeto original serviços de saúde da gestão descentralizada, é certo
da Reforma Sanitária (Levcovitz et al., 2001 apud que tal processo representou avanços na formulação
Noronha; Lima; Machado, 2008 p. 454). das políticas públicas de saúde quando agregou
grande número de diferentes atores distribuídos por
No Brasil, a descentralização apresentou ta- todo o território nacional, sendo parte deles ligada
xas elevadas de adesão municipal no setor saúde à esfera municipal.
(Arretche, 2011). Mesmo sem a intenção de esgotar A despeito dos avanços proporcionados pela
o debate a respeito dos avanços e retrocessos do descentralização da política de saúde, não é con-
processo de descentralização nos moldes muni- senso entre os diferentes autores a adequação desse
cipalistas no setor saúde, é possível listar alguns processo para a continuidade da implementação de
problemas evidenciados ao longo dos últimos 25 um sistema de saúde universal. Para atender aos
anos de implementação do SUS: a desigualdade princípios da equidade e da integralidade, o sistema
de condições políticas, administrativas, técnicas, de saúde deve ser organizado em redes regionaliza-
financeiras e de necessidades de saúde identifica- das que garantam a eficiência e escala necessária
das nos municípios brasileiros tornou o processo na oferta de alguns bens e serviços (Andrade, 2002;
extremamente intrincado; a competição entre os Kuschnir; Chorny, 2010). No entanto, é amplamente
entes federados, em muitos casos, não possibilitou reconhecida a fragmentação do sistema de atenção à
a real autonomia municipal nem na gestão dos equi- saúde que poderia ser superada pela regionalização
pamentos existentes nos seus limites territoriais (Silva; Mendes, 2004; Wagner, 2006; Dourado; Elias,
nem nos recursos financeiros disponibilizados; a 2011). É nessa perspectiva, baseada principalmente

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na maior racionalidade no uso dos recursos, que o No caso da saúde, a regionalização, um dos
tema regionalização da saúde vem assumindo maior princípios organizativos do SUS, somente em fins
importância no debate do aprimoramento das polí- dos anos 90 e início dos anos 2000 entra na agenda
ticas no âmbito do SUS. como uma preocupação central dos gestores. E, como
proposta pela NOAS 2001 e 2002, tem como pressu-
posto a formação de regiões de saúde funcionais,
As regionalizações no SUS e seus ou seja, tem claramente a inspiração da Teoria das
fundamentos Localidades Centrais de Christaller.
A dicotomia entre saúde individual e saúde coleti-
va, problematizada no início do artigo, também se O processo de regionalização deverá contemplar
reflete na elaboração e operacionalização do princí- uma lógica de planejamento integrado, compreen-
pio da regionalização na saúde. Compreender esse dendo as noções de territorialidade, na identifica-
processo exige o esforço de estabelecer nexos entre ção de prioridades de intervenção e de conformação
dois campos do conhecimento, a epidemiologia e a de sistemas funcionais de saúde, não necessa-
geografia. riamente restritos à abrangência municipal, mas
Quer se observe pela perspectiva da organização respeitando seus limites como unidade indivisível,
dos serviços de saúde ou pela perspectiva do en- de forma a garantir o acesso dos cidadãos a todas
tendimento e da organização do espaço social que as ações e serviços necessários para a resolução de
a epidemiologia tentou operar dentro do campo da seus problemas de saúde, otimizando os recursos
saúde, os elementos teóricos e conceituais da Geogra- disponíveis (Brasil, 2002, p. 9).
fia foram mobilizados para dar sentido às formas de
ordenamento que o sistema de saúde deveria assumir A adjetivação de regionalização funcional nos
segundo seus protagonistas. Do plano da teoria para remete à matriz teórica do neopositivismo na Geo-
a prática efetiva nos órgãos públicos, a conceituação grafia. Segundo Haesbaert (2005):
de região ou a implementação dos processos de re-
gionalização sofrem contaminações das correntes a região é a que se vincula ao funcionalismo, vendo
teóricas que informam o campo da Geografia. o espaço como um sistema de fluxos onde cada
Esse processo de regionalização deve ser dividido parcela ou subsistema desempenha um conjunto
em dois momentos ou movimentos. Há o processo de específico de funções. Aparecem as regiões funcio-
regionalização dos serviços, que é a tentativa de se nais, inspiradas também na teoria do lugar central
organizar os serviços como forma de torná-los mais de Christaller, onde um centro polarizador urbano
eficientes e eficazes, ou seja, conseguir atingir os estende seu raio de influência sobre um espaço
objetivos do SUS de universalização, integralidade regional, admitindo zonas de sobreposição com
e equidade com maior qualidade e ao menor custo outras regiões funcionais (p. 12).
financeiro. Há, ainda, outro processo implícito de
regionalização, ou melhor, criação de regiões de Para Bezzi (2004):
saúde a partir das características epidemiológicas
de determinada população vivendo em determinados Christaller trabalha com conceitos bastante elabo-
espaço e tempo. Em verdade, ambos têm inspirações rados, como centralidade, região complementar e
distintas, no caso do movimento de organização dos hierarquia, que compõem os alicerces de sua Teoria
serviços, a inspiração é o que se pode chamar de “ins- do Lugar Central [...] uma teoria de localização para
piração ibegeana” (Guimarães, 2005, p.1021). Esta os serviços e instituições urbanas... (p. 158).
é a tradição do planejamento do estado brasileiro
no pós-guerra de 1945. Especificamente, o plane- A otimização dos recursos é uma lógica neces-
jamento dos serviços a partir da divisão territorial sária ao sistema, inclusive para não se autarquizar
em regiões funcionais ou polarizadas, conforme a própria região (e não o município), pois alguns
proposto em 1972 (Bezzi, 2004). procedimentos são raros e caros não sendo razoável

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que existam em todo e qualquer município, módulo de horizontalidade. Em razão disso, há um ganho de
e mesmo região. Mesmo porque, segundo Corrêa espessura em cada unidade espacial, tendo em vista
(2001, p. 102-103), ao estudar as redes urbanas no que o tempo de cada lugar é resultado da tensão com
Brasil a partir da teoria de Christaller, as relações o tempo social global, em um jogo sincrônico (dada
entre cidades e redes de cidades passaram a se reali- a simultaneidade dos eventos de diferentes lugares)
zar em diferentes direções, incluindo relações entre e, ao mesmo tempo, diacrônico (por se tratar de um
cidades de regiões não contíguas, fato que deriva da processo histórico de longa duração), conforme
complexificação da divisão territorial do trabalho Silva (1991).
que ocorre desde meados do século XX. Também se- Quando nos referimos à capilaridade das regiões,
gundo o autor, deve-se levar em conta que a rede ur- chamamos a atenção para suas fronteiras, uma vez
bana brasileira não se encaixa em um único padrão que as regiões de saúde estabelecidas pelo SUS
espacial, em virtude de haver cidades criadas em apresentam limites demarcados pelas unidades
diversos momentos e por razões e agentes distintos jurídico-administrativas da república federativa
(Corrêa, 2001, p. 96-7). Porém, esse é um complicador brasileira, o que separa uma unidade da outra (Gui-
na estruturação de uma rede regionalizada do SUS, marães, 2006). Tradicionalmente, estabelecemos
mormente quando se tem, como referência teórica, uma cadeia sinonímica entre essas duas ideias
estudos regionais de outros Estados nacionais com (limite e fronteira), pois a delimitação territorial
redes de cidades historicamente mais antigas e com do Brasil foi marcada por uma série de tratados in-
menor velocidade na criação de novas cidades como ternacionais que procuraram estabelecer os limites
ocorreu no Brasil nos últimos 30 anos. jurídico-administrativos do domínio português na
Associe-se a esse fato o Brasil ter no seu passado América do Sul, levando-nos a confundir o segundo
colonial uma contribuição na formação das redes de pelo primeiro. Mas a formação territorial do Brasil
cidades do tipo dendrítica. Nessa forma, a cidade também é resultado do alargamento desses limites
primaz se situa no litoral e entre essa cidade, que institucionais por meio da expansão de fronteiras,
concentra a maior parte dos serviços de grande o que ainda é um processo em marcha, conforme
escala, e o excessivo número de pequenos centros, nos ensina Machado (2006). Somente considerando
há “uma ausência de centros intermediários inters- essa dimensão histórica, podemos concluir que a
ticialmente localizados” (Corrêa, 2001, p. 44). Clara- idéia de fronteira revela uma realidade muito mais
mente, não podemos imaginar essa herança colonial permeável, uma zona de contato entre unidades
transposta em seu modelo puro para o século XXI, vizinhas, o que Santos (1996, p. 228) denomina de
porém, há que se estudar a permanência do modelo vetores da horizontalidade. A capilaridade também é
quando pensamos tanto o Brasil em sua totalidade, fruto de determinações e de processos de tomada de
quanto em como se estrutura o SUS. decisão cada vez mais distantes do espaço próximo,
No contexto da mundialização do capital2, com a constituindo vetores de verticalidade com força de
ampliação e aprofundamento da divisão internacio- transformar diferentes lugares conectados em rede.
nal do trabalho e o aumento exponencial da circu- Isso produz uma sincronia entre os lugares com
lação, a escolha dos lugares é estratégica e resulta profundas implicações na mobilidade populacional,
dos embates e das complementaridades entre as no fluxo de informações e nos padrões espaciais de
diferentes formas que assume o capital (industrial, morbi-mortalidade (Guimarães, 2006).
comercial e financeiro). Transformam-se as formas A Constituição de 1988 e as demais normaliza-
e conteúdos das regiões por meio da intensificação ções infraconstitucionais, quando discorrem sobre
da valorização do espaço (Santos, 1996). Os subes- a regionalização no SUS, têm como perspectiva
paços ganham cada vez mais capilaridade, fruto da uma lógica que é endógena aos serviços e tem como
combinação de diferentes vetores de verticalidade e parâmetro o fluxo dos pacientes internamente ao

2 Termo retirado de Marques e Nakatani (2009), baseado nos estudos de François Chesnais.

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sistema. A regionalização só tem sentido quando vertente gerencial, seria uma forma de viabilizar e
pensada com a hierarquização. Porém, a direção potencializar a articulação intersetorial no territó-
dessa regionalização/hierarquização deveria ter rio delimitado pelos SILOS, aumentando-se assim
dois sentidos, os chamados encaminhamentos de a eficiência e eficácia das intervenções (Pessoto,
referência e contrarreferência. Esse processo, distin- 2001, p. 65).
to do processo de distritalização que intervinha no
âmbito populacional, tem como unidade de conduta A construção dos distritos de saúde ou SILOS
o sujeito doente isoladamente, e, portanto, engen- comportava várias oficinas, uma das quais era a de
drará, nos trabalhadores concretos que operam o territorialização, que consistia no reconhecimento
fluxo no interior do sistema e nos seus gestores, do território do entorno dos serviços de saúde pelos
uma lógica de sistema em que, quando o paciente técnicos desses mesmos serviços. Eram feitos os le-
é curado nos níveis tecnológicos hierarquicamente vantamentos de barreiras geográficas, dos serviços
superiores, ele é dado como elemento de saída, que de transportes, do comércio, das habitações em áreas
não retorna aos níveis tecnológicos inferiores de de risco, dos outros equipamentos e serviços públi-
atenção. Com raríssimas exceções o sistema fun- cos. Também era feito levantamento, em prontuário,
ciona com a contrarreferência, o que leva a certa do local de moradia do usuário para verificar a área
autonomia dos elementos constituintes do sistema, de “influência” do serviço. Todos esses procedimen-
principalmente os com maior densidade tecnológica tos e suas informações derivadas eram condensados
agregada. nas oficinas de informações, que iriam subsidiar a
Entretanto, outra lógica também informou e negociação com os outros serviços na delimitação da
ainda informa as discussões e propostas de constru- área de abrangência e, por final, no distrito de saúde,
ção de regiões de saúde na história da formulação que abarcava várias unidades de saúde.
e implantação do SUS. Suas origens práticas nos Essas tentativas de organização dos serviços,
remetem aos processos de distritalização ocorridos como pensadas pelos sanitaristas que trabalhavam
em fins dos anos 1980 e início dos anos 1990. Essa nas unidades, principalmente, dos grandes centros
foi uma experiência abrangente e que procurou sis- urbanos, sofreram influência indireta de La Blache.
tematizar os trabalhos dos sanitaristas que atuavam O autor, no Brasil, que informou essas tentativas foi
nos serviços de saúde em diversos cantos do país, Milton Santos, principalmente na discussão acerca
que vinha de encontro com a denominada proposta da região ou do distrito de saúde, identificando o
dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS) da Organiza- lugar com a região. Embora sua formulação mais
ção Pan-Americana da Saúde (OPAS). fundamentada seja de 1996, ela já estava presente
Esta proposta, que buscava contrapor-se aos dita- anteriormente, mesmo que de forma embrionária
mes do Banco Mundial de ajuste estrutural de gastos no livro Metamorfoses do espaço habitado, de 1988.
do Estado, passa a recomendar o planejamento em Vejamos como é pensada a relação entre lugar e
saúde baseado em ações que não se restringissem região, por Santos, em 1996:
somente ao setor específico dos serviços de saúde,
mas que considerasse as condições sociais da saúde. Tanto a região quanto o lugar são subespaços
Os SILOS são formulados como estratégia de orga- subordinados às mesmas leis gerais de evolução,
nização dos serviços de saúde que possibilitassem onde o tempo empiricizado entra em condição de
responder às necessidades de saúde (Pessoto, 2001). possibilidade e a entidade geográfica preexistente
Em relação ao SILOS, Pessoto (2001) escreve: entra como condição de oportunidade. [...] A distin-
ção entre lugar e região passa a ser menos relevante
Nessa nova forma de organização dos serviços seria do que antes [...]. Na realidade, a região pode ser
possível integrar todos os serviços e ações disper- considerada como um lugar, desde que a regra da
sas que, via de regra, superpunham-se umas às ou- unidade e da continuidade do acontecer histórico
tras, duplicando intervenções e elevando os custos se verifique. E os lugares – veja-se o exemplo das
gerais do setor saúde. A ênfase no planejamento e cidades grandes – também podem ser regiões (San-
no desenvolvimento dos recursos humanos, na sua tos, 1996, p. 132)

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Em primeiro lugar, o que chama a atenção nessa de complexidade, por exemplo) que normatizam o
abordagem de Milton Santos é a impossibilidade de território e, portanto, a vida das pessoas.
pensar a região ou o lugar sem o tempo. A articulação Estas características da produção do espaço
destas duas dimensões humanas, do ponto de vista social já nos trariam muitos desafios teóricos para
geográfico, exige a empiricização do tempo, uma compreender o lugar do espaço no processo de re-
vez que o espaço de análise do geógrafo é o espaço gionalização. O trabalho realizado em cada lugar é
empírico. Desta forma, mantém-se a coerência me- cada vez mais fragmentado e faz parte de circuitos
todológica de associação do espaço e tempo sob um integrados a um mesmo sistema, que somente fun-
mesmo ponto de vista (Santos, 1985, p. 57). ciona pela regulação das atividades e unificação
Por sua vez, o elemento de ligação entre espaço e organizacional dos comandos. As inovações tec-
tempo é o objeto técnico (um equipamento de saúde, nológicas dos transportes e das telecomunicações
por exemplo), que guarda em si a memória de um fa- permitem estas articulações (Silveira, 2008). Por sua
zer estabelecido num dado lugar e época. Assim, “as vez, o poder de comando encontra-se cada vez mais
técnicas são um conjunto de meios instrumentais centralizado em instâncias superiores e distantes,
e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, verificando-se uma assimetria nas relações entre os
produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”, segundo atores sociais, localizados e articulados em níveis
Santos (1996, p. 25). Como diz este autor: escalares diversos. Em um nível mais amplo, quer
seja do Estado-nação ou mesmo do sistema mundial,
a relação que se deve buscar, entre o espaço e o fe- tem-se o lugar do comando, que é a escala das forças
nômeno técnico, é abrangente de todas as manifes- que definem as normas. No nível local ou regional,
tações da técnica, incluídas as técnicas da própria tem-se o lugar da realização do fenômeno (Santos,
ação [...] e como o objeto técnico define ao mesmo 1996, p. 121).
tempo os atores e um espaço (Santos, 1996, p. 31). A ideia da implantação dos distritos sanitários
seguindo o modelo dos sistemas locais de saúde
A técnica não é a adaptação do sujeito ao meio, (SILOS), como proposto pela OPAS, se aproxima
mas o contrário, a adaptação do meio aos seres hu- da concepção de região lablachiana/miltoniana: a
manos, uma vez que eles são os únicos portadores delimitação do distrito, principalmente nas regi-
de projetos e capazes de executá-los (Ortega; Gasset, ões metropolitanas, compreendia um movimento
1963). Logo, o meio, por si só, não existe, ele é meio de reconhecimento da “área de abrangência” e de
de algo ou alguém. Trata-se de um espaço relacional, atuação dos serviços e do sistema que deveria se
inseparável das experiências intersubjetivas, e que ater aos aspectos físicos e naturais do “entorno”,
avança juntamente com elas. Pensando sob este às facilidades ou dificuldades de circulação das
ponto de vista, todas as relações que se dão entre os pessoas, às características sociais e econômicas
seres humanos e o meio são técnicas, e daí deriva das populações residentes. O processo de trabalho
a maneira como objetos e ações estão configurados cunhado como territorialização, em verdade, segue a
em cada lugar. lógica do reconhecimento do espaço na perspectiva
Quando um objeto técnico é instalado num deter- da construção de uma região de saúde distinta das
minado lugar, as normas estabelecidas em lugares demais e, portanto, ensejando políticas de interven-
mais distantes se impõem, seja nos procedimentos ção específicas e singulares, para além das políticas
técnicos a serem adotados com os equipamentos, gerais do município, estado ou união.
assim como nas relações de trabalho que envolvem Obviamente que aqui se projeta a discussão em
o seu uso (Santos, 1996, p. 182). É por isto que a termos de lógica construtiva, não necessariamente
norma é um dos fundamentos principais da ordem como definição clássica de uma região lablachiana,
sistêmica. São os procedimentos organizacionais em que se insere o problema da escala mínima para
(como a regionalização da saúde pelos gestores do se afigurar uma área de distinção entre porções do
SUS) e os objetos técnicos instalados nos diferentes espaço físico ou paisagem.
lugares (serviços de saúde com diferentes níveis Em verdade, essa lógica de distritalização, que

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estamos entendendo aqui como uma variante da uma estabilidade regional longamente enraizada,
lógica da regionalização lablachiana, em razão de porque a criação, o desfazer e refazer das regiões se
ser atualizada no tempo do moderno capitalismo processam com enorme rapidez” (p. 193).
industrial e de proeminência urbana, atualiza um Enfim, o que importa não é a extensão do espaço
aspecto pouco acentuado na construção da região regional, mas não perder de vista sua função no
pelo teórico francês. Como afirma Lencioni (2003): planejamento territorial e seu sentido histórico.
Uma forma de discutir isso seria por meio do uso e
Afirmando a unidade dos aspectos físicos e huma- apropriação do território por inúmeros agentes so-
nos por meio do estudo regional, Vidal de La Blache ciais (Monken; Barcelos, 2007; Monken et al., 2008).
incorpora à Geografia o conceito de gênero de vida, Como esses problemas envolvem atores políticos
que se define como o resultado das influências fí- definidos, que são notadamente agentes públicos
sicas, históricas e sociais, presentes na relação do e estatais, são problemas de ordem de “geopolíti-
homem com o meio. (Lencioni, 2003, p. 103) ca interna” e não se restringem ao Brasil (Costa,
2008, p. 322). O problema da descentralização e da
Ainda segundo a autora, apesar de não ser cen- regionalização, segundo o autor, é um tema, como
tral na sua teoria, o conceito passou a ser corrente poucos, nitidamente interdisciplinar. E sua essência
a partir dos anos 90 do século XIX, mas era mais é a distribuição do poder político no “âmbito das
utilizado no estudo das sociedades primitivas, o que formações territoriais-nacionais” (Costa, 2008, p.
se levou a ressaltar “o viés ecológico, que sublinha 323). Porém essa distribuição assume configura-
como o homem tira partido do meio” (Lencioni, 2003, ções distintas conforme o país que se observa. Nos
p. 104). Porém, a atualização no tempo torna mais Estados Unidos da América, os estudos sobre o fe-
pertinente o segundo aspecto do conceito de gênero deralismo se centram na possibilidade da perda de
de vida, “aquele que considera as relações que os autonomia dos poderes locais, enquanto na França
homens tecem entre si. Esse último aspecto foi, re- o nó da questão está na quebra do centralismo do
lativamente, negligenciado” (Lencioni, 2003, p. 103). Estado em detrimento dos departamentos e comu-
A ideia central seria, a partir dessa síntese de nas (Costa, 2008, p. 322-323). No Brasil, o problema
inter-relações – própria da criação da região geo- é a dialética da relação entre as três esferas. Não se
gráfica –, criar a região de saúde com a perspectiva questiona a necessidade de descentralização e de
prática do que se denomina hoje de vigilância à desconcentração do poder da União para as unidades
saúde, isto é, o entendimento dos processos de federadas, o que se procura é equilibrar as forças
adoecimento e morte das populações adstritas a entre as esferas, sem que o que foi conquistado pela
determinados sistemas ou subsistemas de saúde, e esfera municipal seja perdido em nome de uma ra-
que seria responsabilidade desses mesmos serviços cionalidade econômica e política de mercado, o custo
ou (sub)sistemas a intervenção nos determinantes ótimo dos serviços, como querem os economistas e
ou condicionantes da maneira de adoecer e morrer os governos estaduais.
dessas populações. Não é um problema simples, como lembra Castro
Estamos diante de um problema concreto de (1997), “a expansão do Estado brasileiro na década
organização das regiões de saúde. Duas formas de dos 70 resultou na expansão da sua malha institu-
pensamento (planejamento dos serviços ou epide- cional e também na dificuldade de articulá-la eficien-
miologia) ou de foco no objeto (os serviços e o fluxo temente”. A expansão ocorreu em todas as escalas
interno dos pacientes; e o movimento extramuros administrativas, federais, estaduais e municipais.
dos agentes de saúde tentando reconhecer o entorno Esse fato deve ser visto em suas dificuldades sob
e a área de abrangência de sua responsabilidade) dois pontos de vista: a “dimensão territorial da ação
possibilitando a criação de duas regiões distintas estatal”, que dificulta a coordenação das ações dos
com lógicas distintas. Esse é um desafio que a Geo- governos por “suposição de áreas de influência”; e as
grafia impõe ao setor saúde. Mesmo porque, como próprias áreas de influência de cada escala territo-
lembra Côrrea (2001), “no Brasil não se verifica rial. Esses dois pontos de vista supõem a “definição

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de competências e limites das escalas territoriais” de O decreto 7.508/2011, que regulamenta a Lei
cada esfera de governo. No entanto, a escala regional 8.080/1990, dá ênfase à implantação das Redes
seria “mais um nível de gestão de recursos do que Regionais de Atenção à Saúde (RRAS), como estra-
propriamente de decisão”. (Castro, 1997, p. 39). Esse tégia para ordenar os diferentes níveis de atenção
é um problema central que a saúde coletiva procura – básica, média e alta complexidade –, sobreposta
resolver através do Pacto pela Gestão, um dos com- às regiões de saúde regulamentadas pelo Pacto de
ponentes do Pacto pela Saúde (além do Pacto Pela Gestão, cuja perspectiva era fortalecer o poder e
Vida e do Pacto em Defesa do SUS), assinado pelos a articulação entre os entes federados em territó-
governos federal, estaduais e municipais a partir rios delimitados a partir da dinâmica social loco/
de 2006 (Brasil, 2006), e que engendrou uma forma regional e suas necessidades de saúde. Inúmeros
colegiada de resolução de problemas no plano regio- mecanismos e instrumentos foram criados para
nal, o que se configurou como avanço real em relação a implantação dessa regionalização, tais como o
às Normas Operacionais de Assistência à Saúde de Contrato Organizativo da Ação Pública (COAP), os
2001 e 2002. De que maneira estão se estabelecendo Colegiados de Gestão Regional (CGR), os Comitês
as solidariedades territoriais é um bom campo de Gestores das Redes de Atenção à Saúde (CGRedes),
estudos para a Geografia política brasileira. É um os Grupos condutores, o Apoio Matricial, etc. Essas
processo em curso. iniciativas recentes na formulação da política, que
Não é demais lembrar que a complexidade deste tratam conjuntamente de redes assistenciais e da
processo conduz a propostas diversas de regionali- dinâmica social dos lugares para o reconhecimento
zação entre diversos países e entre diversos setores de necessidades de saúde, evidenciam as diferentes
econômicos, num mesmo país. A “crise hídrica” racionalidades dadas pela saúde coletiva e pela saú-
atual, presente em algumas regiões no Brasil, exige de individual. Cabe investigar a forma de convívio
a definição política de instâncias gestoras regionais entre essas racionalidades, suas complementari-
provisórias de diversos matizes: entre estados da dades, sobreposições e, principalmente, sujeições.
Região Sudeste com o Governo Federal; entre mu-
nicípios da Região Metropolitana com o Governo de
São Paulo. O exemplo mais lembrado da contradição
Considerações finais
entre uma racionalidade solidária e outra mercantil A despeito da importância da contribuição que as di-
na saúde foi o da banalização da generosa proposta ferentes racionalidades que conduzem esse processo
política da OMS de implantar Atenção Primária em têm, faz mister ressaltar a subordinação da saúde
Saúde (APS) como estratégia para atingir a Saúde individual frente à saúde coletiva para a construção
Para Todos (SPT/2000). Num primeiro momento a de uma política que busque a saúde no seu conceito
meta seria global, para todo o mundo. O indicador ampliado. Em outras palavras, é a transformação so-
primordial de sucesso, número de países que ade- cial o objeto da política e a racionalidade do modelo
riam politicamente à proposta, mostrou que a meta assistencial que busca legitimamente o uso eficaz
dificilmente seria atingida. Definiram-se novas e eficiente dos recursos, que deve ser orientada pe-
ações de saúde pública, enfatizando a parceria (ou los princípios doutrinários da universalização, da
mix) público/privado e a regionalização como novas integralidade, da equidade e da participação social.
maneiras de ver a APS. Medir o sucesso (relativo) da Como a regionalização é um processo em curso,
proposta SPT transferiu-se para o nível de distrito, e cabe-nos perguntar qual racionalidade prevalecerá?
este tinha uma definição operacional: “distrito é ins- Será a afirmação dos princípios doutrinários e or-
tância administrativa com alguma forma de governo ganizativos do SUS, que apontam para a construção
local que assume responsabilidades delegadas pelo de um estado de bem-estar social em que a saúde é
governo central; é considerado o ponto de interseção considerada como um direito humano e constitucio-
gerencial entre o planejamento vindo-de-cima (top/ nal? Ou o favorecimento da racionalidade da saúde
down) e a participação comunitária vinda-de-baixo como mercadoria, mantendo a dicotomia entre
(bottom-up)” (WHO, 1993). saúde coletiva e saúde individual?

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Contribuição dos autores


Duarte, Pessoto e Heimann foram responsáveis pela concepção da
ideia original. Duarte coordenou a elaboração do artigo. Todos os
autores participaram da redação e revisão do texto.

Recebido: 09/02/2015
Aprovado: 13/03/2015

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