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ENSAIO

Por um processo de descentralização que


consolide os princípios do Sistema Único de Saúde*

In Search of a Decentralization Process which


Consolidates the Principles of the Unified Health System (SUS) in Brazil

Luiz Roberto Barradas Barata


Secretário de Estado da Saúde de São Paulo
Oswaldo Yoshimi Tanaka
Secretário Adjunto de Estado da Saúde de São Paulo
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP
José Dínio Vaz Mendes
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo-SP

Resumo
A descentralização, desde a Constituição Federal de 1988, tem sido uma das diretrizes organizacionais mais enfatizadas no
processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. A implantação da descentralização opõe-se à tradição
centralizadora da assistência à saúde no Brasil e vem promovendo a noção de que o município é o melhor gestor para a questão
da saúde, por estar mais próximo da realidade da população do que as esferas estadual e federal. Embora a municipalização
tenha avançado bastante no Estado de São Paulo nos últimos anos, o processo suscita novas questões acerca do sistema público
de saúde. A consecução de alguns dos princípios do SUS, tais como a universalidade do sistema, a integralidade e a eqüidade
da assistência, também dependem da implementação, hoje ainda precária, dos princípios de regionalização e hierarquização,
bem como de uma melhor definição do papel do gestor estadual e da divisão de responsabilidades entre ele e os gestores
municipais no atendimento às demandas do sistema de saúde.
Palavras-chave: política de saúde; Sistema Único de Saúde; descentralização; municipalização; diretrizes do SUS.

Summary
The decentralization strategy, initiated by the Federal Constitution of 1988, is one of the public organizational
directives mostly focused on the process of construction of the Unified Health System (SUS) in Brazil. This
decentralization process differs from the tradition of centralized health care in Brazil, and has promoted the concept
that local levels (municipalities) are the best managers of public health matters, because of their close proximity to the
population compared to the state or federal levels. Although the municipalization process has made substantial
progress in São Paulo State in recent years, this process results in new questions about public health. These questions
about SUS relate to principles such as the universality and integrality of the system, and the equity of care. In addition,
other important considerations are the evolution of SUS (still precarious in some areas), regionalization and
hierarchizing principles, as well as a better definition of the state role as a manager of SUS and the responsibilities
shared by the state and local levels of the Brazilian federation related to public health policy.
Key words: health policy; Brazilian Health System; decentralization; municipalization; directives for the Unified
Health System (SUS)

* Texto elaborado para o XIX Congresso Nacional de Secretários Municipais de Saúde, realizado em Belo Horizonte-MG, entre 26
30 de abril de 2003, sob o tema “Saúde: Direito de Todos e Dever do Estado - 15 Anos”

Endereço para correspondência:


Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 188, Cerqueira César, São Paulo-SP. CEP: 04403-000
E-mail: lbarradas@saude.sp.gov.br

[Epidemiologia e Serviços de Saúde 2004; 13(1) : 15 - 24] 15


Descentralização e os princípios do SUS

A descentralização entre os - a regionalização e a hierarquização da


princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) rede de serviços assistenciais; e
- a participação da população na formulação
Os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), e acompanhamento das políticas do sistema.
fixados na Constituição Federal (CF) de 1988 e deta- Entretanto, para ambos os grupos, podemos desta-
lhados na Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080/90) e car situações históricas que condicionaram a oportuni-
na Lei no 8.142/90, foram o resultado de um longo dade e a importância política de implementação dessas
processo histórico-social que buscava interferir nas diretrizes.
condições de saúde e na assistência prestada à popu-
lação brasileira.
Suas principais diretrizes, discutidas e desenvolvidas A concentraç ão dos serviços nos
no movimento de reforma sanitária, foram consagradas grandes centros urbanos e nos
pela VIIIª Conferência Nacional de Saúde de 1986, sendo Estados mais desenvolvidos gerou
hoje consideradas conquistas sociais definitivas.
Diversos autores1-3 propõem a divisão dos princí- desigualdades no acesso da
pios fundamentais do SUS em dois grandes grupos: população à Saúde.
• doutrinários (ou éticos), que se referem aos ob-
jetivos finalísticos do sistema e incluiriam: Com relação à universalidade do direito à saúde, sa-
- o direito universal à saúde, entendido não bemos que, durante grande parte do século passado, os
só como a oferta de serviços e ações de saúde, serviços de assistência médica e odontológica só eram
mas abrangendo também, em seu conceito, garantidos aos beneficiários da previdência social e
“políticas sociais e econômicas que visem à provisionados pelo Ministério da Previdência Social, que
redução do risco de doença e de outros agra- gerenciava recursos financeiros muito superiores aos da
vos” (CF), incluindo como “fatores determi- área de Saúde Pública, privilegiando a assistência médica
nantes e condicionantes, entre outros, a ali- curativa e os produtores privados de serviços de saúde.
mentação, a moradia, o saneamento básico, Certamente, esse tipo de desenvolvimento da rede
o meio ambiente, o trabalho, a renda, a edu- assistencial ocasionou grandes disparidades regionais.
cação, o transporte, o lazer e o acesso aos No que se refere aos recursos de saúde existentes, a
bens e serviços essenciais; os níveis de saúde concentração dos serviços em grandes centros urba-
da população expressam a organização so- nos, especialmente nos Estados com economias mais
cial e econômica do País” (Lei no 8.080/90); avançadas, gerou desigualdades no acesso da popu-
- a eqüidade, compreendida como o reconhe- lação aos serviços, com carências acentuadas justa-
cimento das diferenças existentes nas necessi- mente nos locais com os piores indicadores de saúde,
dades de saúde, quer regionais ou individuais, justificando amplamente a preocupação com a eqüi-
com o desenvolvimento de ações objetivando dade no SUS.
a justiça social, isto é, que reduzam a exclusão Da mesma forma, a separação entre os serviços
e beneficiem, prioritariamente, aqueles que previdenciários e as demais ações de Saúde Pública frag-
possuem piores condições de saúde; e mentavam o setor Saúde e impediam avanços no senti-
- o atendimento integral à saúde, mediante a do da integralidade do sistema. O Ministério da Saúde
articulação de ações e serviços preventivos e cu- e as secretarias estaduais e municipais de saúde não
rativos, individuais e coletivos, necessários à efeti- dispunham, entre as suas principais atribuições, a de
va melhoria dos níveis de saúde da população. garantir assistência médica integral à população. Ao
• organizacionais (ou operativos), referentes setor público competia, tão-somente, a realização dos
aos processos que permitirão o cumprimento das serviços tradicionais: vigilância sanitária, controle de
principais diretrizes do SUS: endemias, vacinação, puericultura, atendimento pré-
- a descentralização de ações e serviços de saú- natal e assistência médica aos doentes mentais,
de, com direção única em cada esfera de go- hansenianos e tuberculosos. E com dificuldade, é bom
verno e ênfase na municipalização; lembrar, pois os orçamentos eram sempre mínimos.

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Com relação aos princípios organizacionais, a racionalização do sistema, também visam modificar
descentralização foi impulsionada na vertente da a situação anterior. Até então, os serviços de saúde,
municipalização.4 Entre as principais razões que funda- públicos ou privados, não trabalhavam de maneira
mentavam essas propostas, podemos salientar: integrada mas isoladamente, sem o estabelecimento
• A descentralização era uma resposta à estrutura an- de referências formais e exigindo da própria popu-
terior da assistência à saúde, extremamente lação o exercício de descobrir onde obter o atendi-
concentradora e autoritária nas decisões, obviamente mento de que necessitasse.
inadequada para um país do tamanho e complexi-
dade do Brasil. Um breve histórico do
• Somente em um sistema descentralizado, seria pos- desenvolvimento da descentralização
sível a maior participação de todos os interessa- do SUS no Estado de São Paulo
dos na formulação da política e na implantação de
serviços e ações de saúde, adaptados às diferentes No Estado de São Paulo, o processo de descentra-
regiões e realidades de saúde. lização e municipalização vem de longa data, anterior à
• A noção de que o município é o mais adequado Constituição Federal de 1988. Entre as suas primeiras
âmbito para tratar a questão da saúde de maneira realizações, podemos apontar o Programa Metropoli-
direta, uma vez que é o ente federado mais próxi- tano de Saúde (PMS), cuja elaboração teve início em
mo da população, capaz, portanto, de identificar 1982. O PMS foi um projeto de reestruturação da rede
as peculiaridades e as diversidades locais e adap- de serviços de saúde da Região Metropolitana de São
tar as estratégias para a superação dos problemas Paulo, abrangendo, principalmente, as áreas mais ca-
de saúde, de forma integral. rentes. O programa implementou, entre outros pontos,
• A associação dessas duas razões implica e eviden- a construção de unidades básicas de saúde (UBS) e de
cia a responsabilidade do gestor municipal, mais hospitais, muitos dos quais, após concluídos, tiveram
acessível à participação, avaliação e fiscalização sua gestão transferida para os municípios.
dos cidadãos, usuários diretos do sistema. Logo a seguir, em 1983, surgiu o programa AIS,
• Nesses moldes, a descentralização também seria ou Ações Integradas de Saúde, destinado a promo-
uma solução para outro problema herdado do ver a integração dos serviços públicos acompanha-
sistema de saúde anterior ao SUS: direções múlti- da de discussões e movimentos sociais, desencadea-
plas e desintegradas, cuja situação exemplar era o dos no período de redemocratização do país, que
duplo comando decorrente da divisão de funções passavam a exigir saúde como direito do cidadão.
e recursos entre os serviços do Ministério da Pre- Tais fatos propiciaram o surgimento de propostas
vidência Social, de um lado, e do Ministério da mais amplas de descentralização das ações de saúde
Saúde, de outro. e mudanças na sua operacionalização, como foi o
• Daí, a ênfase do texto constitucional, como na Lei caso do Sistema Unificado e Descentralizado de Saú-
no 8.080,5 sobre a “descentralização, com dire- de (SUDS), em 1987.
ção única em cada esfera de governo”. Àquela época, a Secretaria de Estado da Saúde de
O princípio da participação popular surge nesse São Paulo passava a dirigir a superintendência esta-
contexto, como reação às práticas tecnocráticas e dual do Inamps, iniciava a municipalização de UBS
excludentes do período autoritário e ferramenta fun- estaduais no interior e recebia a gerência – estadua-
damental para a adequação do SUS às verdadeiras lização – dos serviços hospitalares e ambulatoriais
necessidades coletivas de saúde. Somente com a de- próprios da Previdência.
mocratização e maior participação social no setor, seria No período de 1987 a 1994, a maioria das unidades
possível romper, gradativamente, com o modelo ante- de saúde estaduais que prestavam serviços de atenção
rior, cujas políticas eram determinadas pelo poder eco- primária, como as UBS e os laboratórios locais, foi repas-
nômico e pelos serviços existentes, não pelo perfil de sada à gerência dos municípios do interior do Estado e
problemas de saúde da população. da Grande São Paulo, com exceção da Capital.
Os princípios organizacionais da regionalização e O Município de São Paulo, contrariamente ao ocor-
da hierarquização de serviços, imprescindíveis para a rido durante a implementação do PMS, não apresen-

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tou avanços no processo de municipalização, exceto manecendo 398 municípios sem nenhuma forma de
pela transferência de 51 UBS estaduais para a prefei- habilitação nas gestões previstas.
tura da cidade, entre 1990 e 1992. A política de descentralização foi reforçada após a
Em 1996, o governo paulistano optou pelo desen- edição, em 1996, de uma nova norma operacional
volvimento do Plano de Atendimento à Saúde (PAS), básica, a NOB-SUS 1996,7 que atribuia ao gestor mu-
um sistema desvinculado do SUS. Por esse motivo, a nicipal a responsabilização pela situação de saúde de
Secretaria de Estado de Saúde manteve com ela a ge- sua população e pela organização e desenvolvimento
rência e gestão das UBS, ambulatórios e hospitais ge- das ações no sistema municipal de saúde, estabelecen-
rais próprios, situados na Capital, bem como deu iní- do a Gestão Plena de Sistema de Saúde Municipal (GPSM)
cio ao Programa de Saúde da Família (Qualis/PSF) na e a Gestão Plena de Atenção Básica de Saúde para os
suas regiões periféricas. municípios.
Até então, apesar dos avanços institucionais, prin- No Estado de São Paulo, desde 1995, foi grande o
cipalmente políticos, alcançados na área da Saúde no avanço do processo de descentralização coordenado
país, os municípios ainda tinham um papel restrito, pela Secretaria de Estado da Saúde em parceria com o
limitando-se à gerência de alguns serviços de atenção Conselho de Secretários Municipais de Saúde
primária. A rede de serviços da previdência não havia (COSEMS). Em 2003, já eram 161 municípios gestores
sofrido modificações importantes em sua organiza- plenos de saúde e 482 gestores plenos de atenção
ção, pois as Secretarias Estaduais davam continuida- básica, restando apenas dois municípios não
de aos contratos e convênios existentes, sem alterar habilitados.
significativamente a gestão do sistema. A Capital permaneceu sem habilitação até o final
Embora o processo de municipalização dos servi- de 2000. Em 2001, pleiteou e conseguiu a sua clas-
ços de atenção primária estadual já tivesse ocorrido na sificação na Gestão Plena de Atenção Básica em Saú-
maior parte do Estado, o desenvolvimento da gestão de, após comprovar as condições de acesso a essa
municipal de saúde chegou mais tarde e de forma mais categoria, marcando seu pleno retorno ao SUS. Até
lenta, iniciando-se apenas em 1993, quando o Ministé- meados de 2002, todas as unidades de atenção pri-
rio da Saúde editou a Norma Operacional Básica. mária, inclusive as do Qualis/PSF, foram transferidas
A NOB-SUS 19936 criou as formas alternativas de para a gestão municipal. Hoje, podemos afirmar que,
gestão: incipiente, parcial e semiplena. Apenas neste no Estado, a atenção primária é totalmente gerida pela
último nível, os municípios assumiam responsabilida- esfera municipal.
des e tinham maior controle da gestão do sistema. A
norma também estabeleceu as comissões intergestoras Por uma visão crítica das propostas
(tripartite e bipartite) e previu as transferências de de comando único municipal –
recursos fundo a fundo, conforme o tipo de gestão. a conciliação entre a descentralização
e os demais princípios do SUS
Entre as formas de gestão, A implementação da NOB-SUS 1996, ao criar as
incipiente, parcial e semiplena, categorias de gestão municipal, permitiu inegáveis avan-
criadas pela NOB-SUS 1993, ços no processo de descentralização, como é o caso
apenas a última atribuía do financiamento per capita do sistema, decorrente
da implementação do Piso da Atenção Básica (PAB)
ao município responsabilidades
para as ações de atenção primária desenvolvidas pe-
e maior controle da los municípios. A mesma NOB ainda introduziu incen-
gestão do sistema. tivos específicos para áreas estratégicas do sistema,
aumentando a transferência de recursos fundo a
No início de 1995, São Paulo tinha apenas 11 mu- fundo.
nicípios habilitados na gestão semiplena em saúde, 23 Por outro lado, os municípios que se habilitaram
com gestão parcial e 123 com gestão incipiente, per- na gestão plena de sistema passaram a assumir o con-

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trole de todos os serviços de saúde que atendiam a 2001,10 republicada em 2002,11 que propôs, para o
sua população, recebendo, diretamente para o Fun- aprimoramento do processo de descentralização, uma
do Municipal de Saúde, os recursos federais (tetos estratégia de regionalização mediante a elaboração e
financeiros) destinados a esses serviços, rompendo implementação de um Plano Diretor de Regiona-
com a lógica de pagamento por serviços prestados. lização. Esse plano define as áreas geográficas
Porém, a descentralização traz novos desafios, a (módulos), os fluxos e pactuações entre os gestores –
serem levados em conta, para que o desenvolvimen- Programação Pactuada Integrada, ou PPI –, para or-
to do sistema possa atingir o seu objetivo de garantir ganizar, efetivamente, uma rede hierarquizada e
o acesso universal e eqüitativo da população à regionalizada.
saúde.
De fato, no próprio texto da NOB-SUS 1996, men-
A descentralização traz novos
ciona-se, ao lado das vantagens da responsabilização
dos gestores municipais, “o elevado risco de desafios para o desenvolvimento
atomização desordenada dessas partes do SUS, per- do sistema e alcance dos objetivos
mitindo que um sistema municipal se desenvolva finais de acesso universal e
em detrimento de outro, ameaçando, até mesmo, eqüânime aos serviços de saúde.
a unicidade do SUS.”
Mendes8 aponta problemas reais ocorridos no pro-
cesso de municipalização em diversas regiões do Bra- Se, por um lado, o processo de planejamento de-
sil, em que os municípios expandem a atenção médica sencadeado em 2002 pela NOAS-SUS no Estado de
sem nenhuma articulação regional, o que gera des- São Paulo representou um avanço, ao situar o plano
perdício de recursos públicos por ineficiência regional como unidade de planejamento assistencial,
assistencial, com serviços de saúde (hospitais) apre- a efetivação de seu desenvolvimento e o sucesso de
sentando baixa taxa de ocupação, aparelhos de apoio suas premissas ainda dependem da definição mais cla-
laboratorial (ultra-som, por exemplo) trabalhando ra de papéis e mecanismos para o acompanhamento
com ociosidade, entre outros problemas. e aperfeiçoamento do novo desenho organizacional e
A descentralização não tem conseguido, por si só, funcional da assistência à saúde.
determinar transformações significativas no modelo Quando da edição da primeira versão da NOAS, em
assistencial adotado nas regiões, repetindo, na escala 2001, a importante questão do comando único já se
municipal, erros anteriores. destacava e continua sendo objeto de mal-entendidos e
Os conflitos do gestores municipais entre si e com o interpretações variadas entre os gestores e técnicos que
gestor estadual, muitas vezes limitados à discussão so- participam do debate do planejamento da Saúde.
bre a divisão de tetos financeiros do SUS (insuficientes Entre as estratégias propostas pela NOAS-SUS 2001,
para o Estado de São Paulo), refletem, entre outros conforme vemos descrito em sua introdução, “cabe
pontos, a imprecisão na definição do papel do gestor aos municípios o planejamento no âmbito muni-
estadual9 e a ausência de um desenho de regionalização cipal e a relação direta com os prestadores em seu
do sistema. Tais fatos dificultam a atribuição de respon- território, visando ao comando único sobre o sis-
sabilidades sobre as ações de saúde regionais, inclusive tema de saúde em cada esfera.” Na explicitação do
aquelas prestadas por um município com gestão plena, seu desenho, vemos que, no caso de municípios habi-
destinadas não só a seus munícipes, mas, também, aos litados em gestão plena de sistema de saúde municipal
cidadãos de municípios vizinhos. (GPSM), todos os serviços, independentemente da
Assim, pode-se dizer que o avanço na regiona- complexidade, devem estar sob gestão municipal,
lização e na hierarquização da rede de serviços do SUS “...exercendo o mando único, ressalvando as uni-
não acompanhou, adequadamente, o processo de dades estatais de hemonúcleos/hemocentros e os
municipalização no Estado, tal como ocorreu no país. laboratórios de saúde pública...”
O problema foi reconhecido pelo Ministério da O próprio Ministério da Saúde detectou proble-
Saúde e tornou-se objeto principal da Norma mas no desenho de regionalização proposto pela
Operacional da Assistência a Saúde, a NOAS-SUS NOAS-SUS 2001. Tanto é que, quando da publicação

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da NOAS-SUS 2002, essa questão foi revista no item postas podem ser discutidas para a gestão dos serviços
referente à Política de Atenção de Alta Complexidade/ de abrangência regional, metropolitana ou estadual.
Custo no SUS, possibilitando que o comando único
fosse municipal ou estadual.
Sem pretender aprofundar-se em interpretações
A Secretaria de Estado da Saúde de
legais ou jurídicas sobre as disposições de Comando São Paulo tem procurado desenvolver
Único da NOAS, pois este não é o objetivo do presente um processo de descentralização
trabalho, lembre-se, entretanto, que a norma do Mi- gradativo e consensual, com a
nistério da Saúde não pode se sobrepor à Constitui-
participação de todos os setores
ção Federal ou à Lei no 8.080/90, cujo texto estabele-
ce “descentralização, com direção única em cada municipais interessados.
esfera de governo”, não havendo qualquer determi-
nação, naqueles diplomas legais, que obrigue o co- Os municípios não são obrigados a contar com equi-
mando único de todos os serviços e ações de saúde, pe técnica para o planejamento e gestão da atenção à
na área geográfica de um município, por uma das saúde de alta complexidade/custo, que transcende, ge-
esferas de governo. ograficamente, os limites e as necessidades municipais.
Notamos, ainda, que a Lei no 8.080, diferentemen- Também não há garantia de que a municipalização da
te da NOAS, estabelece, como competência da dire- gestão de serviços de saúde mais complexos desenca-
ção estadual (art. 17º), não só “coordenar a rede deie, no poder municipal, interesse em atender às de-
estadual de laboratórios de saúde pública e mandas de cidadãos de outros municípios e regiões ou
hemocentros, e gerir as unidades que permane- mesmo facilite a sua participação na formulação ou no
çam em sua organização administrativa” (inciso controle da política regional de saúde.
X), mas “identificar estabelecimentos hospitalares Essa situação é evidente nas regiões metropolitanas
de referência e gerir sistemas públicos de alta do Estado, que possuem grandes hospitais universitári-
complexidade, de referência estadual e regional” os estaduais dotados de serviços de abrangência não
(inciso IX). apenas regional, como estadual e, em alguns setores,
A princípio, a forma como a questão foi apresentada até nacional. Também são dignos desse exemplo outros
pela NOAS-SUS 2001, com ênfase no comando único hospitais especializados sob gestão estadual, que com-
municipal, permitiu, infelizmente, o surgimento de posi- põem a rede hierarquizada do Estado, para atendimen-
ções que representam uma “disputa” pela gestão de ser- to de câncer, transplantes, cirurgias cardíacas, etc.
viços de alta complexidade entre o gestor estadual e os É por essas razões que a Secretaria de Estado da
municípios em GPSM. Tal abordagem é inadequada, pois Saúde de São Paulo tem procurado desenvolver um
não leva em consideração a importância dos diferentes processo de descentralização gradativo e consensual
papéis dos gestores no SUS, da racionalidade na organi- no Estado, com a participação de todos os gestores
zação do sistema e das condições objetivas para a defini- municipais interessados. Em municípios como Cam-
ção da melhor gestão desses serviços. pinas, sede de uma região metropolitana, o processo
Vários aspectos devem ser ponderados, antes de de descentralização, feito de comum acordo entre os
se alcançar uma solução acertada para a questão. Deve- gestores, manteve, até o presente momento, a gestão
se ter sempre, como horizonte, que a descentralização estadual conjunta com a municipal, com resultados
– com ênfase na municipalização – é uma estratégia satisfatórios para o SUS.
de organização do sistema de saúde que busca, em O gestor estadual também já recebeu manifesta-
última análise, a garantia do acesso da população aos ção de inúmeros representantes dos municípios da
serviços, sem prejuízo para a consecução dos demais região metropolitana da Capital, expressando a ne-
princípios da universalidade, integralidade e eqüida- cessidade de planejar e discutir, com maior
de preconizados para o SUS. detalhamento e cuidado, a questão da possível
Assim, se a gestão municipal deve ser responsável municipalização da gestão de serviços estaduais, de-
pela atenção à saúde de seus próprios cidadãos, pe- corrente da proposta de gestão plena de sistema de
las razões já apontadas neste documento, outras pro- saúde municipal da cidade de São Paulo.

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Tal como ocorrera em Campinas, a Secretaria de ser fundamentais para garantir a ampliação do acesso
Estado da Saúde de São Paulo iniciou discussões com a da população a serviços de saúde de qualidade, a de-
Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo em 2003, mocratização e a participação dos usuários no legíti-
conseguindo chegar a um consenso sobre as propostas mo exercício da cidadania na área da Saúde.
de gestão plena municipal, tendo, como pano de fundo,
a preocupação com a garantia de acesso aos serviços
para todos os cidadãos dos municípios da Região Me- A ampliação do acesso da
tropolitana. população somente será possível se
Pactuou-se, entre o Estado e a prefeitura, que os os serviços e ações de saúde
hospitais estaduais localizados na área do Município de
estiverem integrados em uma
São Paulo não teriam a sua gerência municipalizada,
tal como já ocorrera com as unidades básicas de saú- verdadeira “rede de saúde”,
de, permanecendo sob gerência estadual. regionalizada e hierarquizada, ao
Entretanto, a gestão dos hospitais (sejam próprios alcance das pequenas comunidades
do Estado, sejam filantrópicos) seria municipalizada providas de escassos recursos.
sempre que mais de 90% das internações e atendimen-
tos fossem de munícipes da Capital; assim, suas vagas
passariam a ser geridas por uma Central de Vagas Antes, pretendemos sugerir que a municipalização
Municipal, integrando-os completamente ao sistema somente atingirá os seus objetivos plenamente se for
municipal de saúde. acompanhada da aplicação dos demais princípios do
Aqueles hospitais que atendessem a munícipes da SUS, principalmente os doutrinários, sem que dela se
Capital em um percentual inferior ao citado, perma- exija, isoladamente, a solução de todos os problemas
neceriam sob gestão estadual e com seus leitos inscri- de saúde da população.
tos na Central de Vagas Metropolitana da Secretaria de Como é do conhecimento de todos, existem gran-
Estado da Saúde. des diferenças de desenvolvimento econômico e soci-
A Secretaria de Estado da Saúde extinguiu o sistema al entre os municípios e as regiões, exigindo, ao lado
de agendamento direto por telefone para pacientes nos da municipalização da gestão, medidas que
ambulatórios de especialidade estaduais, vigente até a implementem os serviços de saúde nas áreas menos
habilitação do município na gestão plena. Pactuou-se que privilegiadas. Fazer progredir a eqüidade entre os mu-
somente os distritos de saúde municipais poderiam mar- nicípios é uma das funções do gestor estadual, tal como
car consultas nos ambulatórios estaduais, tendo como a eqüidade entre os Estados deve ser preocupação do
porta de entrada as UBS municipais, que encaminhariam gestor federal do sistema.
os pacientes, quando necessário, após o atendimento É necessário impulsionar os princípios organiza-
médico na rede de atenção primária. cionais do SUS menos desenvolvidos até o momento:
Dessa forma, considerando a experiência adquiri- a regionalização e a hierarquização. A ampliação de
da no processo de descentralização desenvolvido no acesso da população das diferentes regiões do Estado
Estado e em respeito às necessidades de maiores estu- somente será possível se os serviços e ações de saúde
dos e discussões, entendemos que o comando único, estiverem integrados em uma verdadeira “rede de saú-
recomendado pela NOAS-SUS 2002, não deve ser apli- de”, tendo em conta, principalmente, a estrutura mu-
cado imediatamente, apenas no sentido de obedecer nicipal existente no Estado, em que a maioria dos mu-
ao texto da norma. Ainda há situações não equa- nicípios contam com população pequena e escassos
cionadas, do ponto de vista da divisão das responsabi- recursos para a Saúde.
lidades assistenciais entre os gestores estadual e mu- Por um lado, a coordenação desse planejamento
nicipais, que podem ocasionar prejuízo à população regional é papel indiscutível da Secretaria de Estado
no acesso aos serviços de saúde. da Saúde, que não se encontra completamente prepa-
Isso não significa qualquer oposição à estratégia rada para a tarefa e necessita reorganizar a sua estru-
de descentralização e municipalização do sistema. tura, reciclar e capacitar o seu pessoal para tanto. Por
Entendemos que esses princípios eram e continuam a outro, não será possível obter sucesso sem a partici-

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Descentralização e os princípios do SUS

pação ativa de todos os municípios, que poderão con- que assumiu a função de ordenar o fluxo de pacientes
tribuir para o planejamento e a construção do SUS em e garantir o acesso à rede hospitalar. O Sistema de
suas respectivas regiões. Atendimento Médico de Urgência (SAMU) foi agrega-
Assim, a participação municipal no SUS não pode do à CURM e suas viaturas dotadas de recursos
se limitar à melhoria de atendimento no âmbito local, tecnológicos e pessoal preparado para oferecer su-
embora tal fato seja fundamental. Também deve abran- porte avançado de vida, bem como garantir a transfe-
ger uma área mais ampla, incorporando a questão rência de pacientes graves das unidades de saúde e
regional no horizonte de suas preocupações e bus- do domicílio para os hospitais.
cando contribuir, decididamente, para a evolução do A equipe técnica da CURM passou a racionalizar a
sistema. Afinal, o estabelecimento da rede hierar- utilização dos recursos hospitalares, preservando os
quizada e regionalizada de serviços beneficiará a tota- espaços aptos a atender a alta complexidade e garan-
lidade dos cidadãos do Estado. tindo o atendimento imediato às situações que colo-
Podemos citar, como exemplo de medidas que abor- cam a vida em perigo iminente. Assim, pacientes que
daram o problema de regionalização e hierarquização não demandam investigação e procedimentos
da atenção médica, a experiência da região de Ribeirão especializados, em geral, não são mais encaminhados
Preto na implantação, bem sucedida, de um sistema de ao Hospital das Clínicas. A Unidade de Emergência do
referência e contra-referência entre o hospital universi- Hospital das Clínicas (UE/HC) assumiu, perante o sis-
tário e demais serviços do SUS, para o atendimento às tema, a referência para os cuidados aos casos mais
urgências e emergências em âmbito regional. complexos de uma região que abrange cerca de 4
Tal como ocorria – e ainda ocorre – em outros milhões de pessoas.
serviços de saúde universitários do Estado, o Hospital A redução do número de consultas médicas na UE/
das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão HC foi significativa, passando de 114 mil no ano de 1999
Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP/USP) para 50 mil em 2001.
apresentava excessiva demanda de pacientes da cida- A percentagem de ocupação de leitos na Unidade de
de e de outros municípios da região, que buscavam Emergência, antes do início das atividades da Central
diretamente o seu pronto-socorro como porta de en- Única de Regulação Médica, era inaceitável: em 1999,
trada para consultas ambulatoriais ou internações. atingiu 113%. Havia pacientes mal acolhidos,
Na sua maioria, esses casos não supunham doen- subavaliados e subtratados, ocupando macas e cadei-
ças de maior complexidade e poderiam ser atendidos ras de roda pelos corredores do hospital. No ano 2000,
em outras unidades do SUS na região; entretanto, pro- a taxa média de ocupação foi de 97,1%; e no ano de
vocavam filas no HCFMRP/USP, dificultando o atendi- 2001, de 88,4%. O número de internações na UE/HC
mento daqueles pacientes que realmente necessita- reduziu-se, de 14 mil em 1999 para 11 mil em 2001.
vam do hospital terciário. Os ajustes realizados, além de resgatarem o papel
Com o objetivo de organizar a atenção às urgências, do Hospital Universitário no atendimento de urgênci-
em 1998, iniciaram-se entendimentos entre o as/emergências, beneficiando toda a população da
HCFMRP/USP, a Direção Regional de Saúde de Ribei- região, contribuíram para o início, há dois anos, do
rão Preto da Secretaria de Estado da Saúde de São processo de humanização no atendimento de urgên-
Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão cia da UE/HC. Com a redução da superlotação na Sala
Preto e demais entidades envolvidas com a Saúde. Pre- de Urgência, foi organizado um espaço de acolhimen-
liminarmente, foram mapeados os recursos to social e psicológico dos pacientes e familiares afeta-
assistenciais de urgência, com a definição da dos por agravos agudos à saúde.
hierarquização, do acesso e da capacidade assistencial Essa experiência somente foi possível pela adequa-
oferecida pelos prestadores de serviço. Ficou pactua- da adesão dos demais serviços de saúde locais, mu-
do entre os gestores, os prestadores e a população, nicipais ou filantrópicos. Já foram iniciadas e encontram-
que as unidades básicas e os centros de saúde passari- se em andamento discussões com os demais hospitais
am a ser a porta de entrada para o sistema de urgência. universitários sob gestão estadual, para que estudos e
Ademais, com os recursos já existentes, organi- propostas semelhantes possam ser aplicadas, racionali-
zou-se a Central Única de Regulação Médica (CURM), zando o uso dos escassos recursos públicos do SUS.

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Luiz Roberto Barradas Barata e colaboradores

Contudo, o planejamento regional não pode ser rantia da integralidade sem a universalidade, como é
entendido como a simples reorganização dos fluxos o caso de municípios e regiões com grande concen-
de referência e contra-referência entre os serviços de tração de serviços que beneficiam, prioritariamente,
saúde, embora essa questão seja importante. A regio- sua população, ao lado de outros sem acesso aos re-
nalização e a hierarquização devem avançar com o cursos mais complexos.
estudo e a reestruturação do próprio sistema existen- Ou em condição ainda mais injusta: freqüente-
te nas regiões, modificando o papel e as funções dos mente, o SUS tem sido obrigado, por mandatos judici-
serviços de saúde, inclusive verificando a sua viabili- ais, a atender necessidades terapêuticas especiais,
dade e funcionalidade. Ainda mais, quando sabemos muitas vezes com medicamentos de efeito duvidoso
que os serviços regionais e de referência são, geral- do ponto de vista científico, por evidente influência da
mente, os de maior complexidade e custo para o siste- indústria farmacêutica interessada em comercializar
ma: terapia renal substitutiva, quimioterapia e radiote- novos e caros produtos; e para pouquíssimos pacien-
rapia, exames especializados (tomografia, ressonân- tes que têm facilidade de acesso às medidas legais,
cia, etc.), atendimento de urgências e emergências, justamente por possuírem melhores condições
unidades de terapia intensiva, atendimento à gestação socioeconômicas. Tal prática resulta em alto custo fi-
e aos neonatos de alto risco, cirurgias de maior com- nanceiro para o sistema e prejudica a grande maioria
plexidade, entre outros procedimentos. dos cidadãos, que não conseguem ou não podem
As necessidades epidemiológicas regionais devem pagar por serviços judiciais equivalentes.
ser utilizadas como parâmetros de reorganização, no
lugar da simples oferta de serviços que, historicamen-
te, orientou o estabelecimento da rede de assistência à As necessidades epidemiológicas
saúde. Somente com a utilização de outra lógica regionais devem ser utilizadas
organizadora para a rede, que incorpore os aspectos como parâmetros de reorganização,
epidemiológicos, a racionalidade e a otimização do
uso dos recursos, será possível aproximarmo-nos do
no lugar da simples oferta
objetivo de garantir a universalidade e a integralidade de serviços que sempre orientou
da atenção à saúde oferecidas aos pacientes. a assistência à saúde.
Atualmente, encontramo-nos na oportunidade de
conciliar a descentralização e a municipalização com
a universalidade, a integralidade e a eqüidade no SUS. Entre os demais problemas que permeiam o su-
Para isso, devemos buscar a construção efetiva da rede cesso efetivo do processo de descentralização e
regionalizada e hierarquizada, prevista pela Constitui- municipalização, destacamos aqueles relativos aos re-
ção Federal de 1988. cursos humanos, indiscutivelmente, o mais importan-
O desenvolvimento do sistema descentralizado te “insumo” da Saúde.
comporta o perigo de atingir a universalidade sem a Esse setor apresenta diversas questões ainda não
integralidade: é aquela situação que poderia ser de- solucionadas, como a dos funcionários “muni-
nominada de “SUS para pobres”, em que temos ape- cipalizados”, que podem sofrer prejuízos salariais e
nas o atendimento básico universal, sem conseguir na carreira pública. É o caso daqueles que não rece-
estruturar serviços de média e alta complexidade que bem sequer a substituição de prêmios, assegurada aos
dêem cobertura suficiente e adequada para todos. demais profissionais da Secretaria de Estado da Saú-
Fenômeno que, de fato, ocorre na maioria das regi- de, como o prêmio de incentivo, por exemplo.
ões do país, obrigando pessoas a longas peregrina- Outros pontos a serem enfrentados são: a existên-
ções – até para outros Estados –, em busca do trata- cia em um mesmo serviço ou função para profissio-
mento de que necessitam, na maioria das vezes en- nais com diferentes remunerações e regimes de tra-
frentando filas e exagerado tempo de espera por aten- balho, o que dificulta, sobremaneira, a administração
dimento. do serviço; a necessidade de soluções mais adequa-
Por sua vez, o desenvolvimento do sistema sem a das à legislação existente no setor público, para a
aplicação criteriosa da eqüidade pode resultar na ga- contratação de agentes de saúde do Programa Saúde

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Descentralização e os princípios do SUS

da Família (PSF), bem como para os demais profissi- integração de esforços que otimize e racionalize os
onais da equipe; a Lei da Responsabilidade Fiscal e recursos existentes, construindo uma rede regio-
suas limitações para o gasto com pessoal, uma vez que nalizada e hierarquizada de serviços que aten-
a maior parte das despesas do setor Saúde envolve da as questões de saúde, relevantes de um ponto de
recursos humanos. vista epidemiológico, em cada região. A regionalização
Todos esses obstáculos evidenciam as dificulda- e hierarquização desses serviços exige a discussão, o
des e contradições entre os princípios do SUS e a rea- esclarecimento e o fortalecimento do papel do gestor
lidade vivida no país. Sabemos que, mesmo com o estadual, sem o qual se torna difícil visualizar a conti-
cumprimento integral, pelos governos municipal, es- nuidade de desenvolvimento do SUS e a viabilização
tadual e federal, das determinações da Emenda Cons- integral de suas premissas.
titucional no 29/00, os recursos financeiros do SUS Muito já foi conseguido no Estado, nos últimos anos,
serão sempre insuficientes diante das demandas de com a construção do SUS. Modificações significativas são
saúde. A racionalização no uso dos recursos do siste- evidentes nas funções e relações das esferas públicas
ma também deve levar em conta a impossibilidade de envolvidas. Com a mesma perseverança que tem caracte-
o SUS realizar tudo para todos. É necessário esta- rizado aqueles que lutam na área de Saúde Pública, cre-
belecer prioridades. mos que estamos no caminho correto e que o sistema,
Portanto, a conquista da universalidade, da que já é um dos maiores e mais complexos do mundo,
integralidade e da eqüidade não depende apenas da conseguirá atingir os seus objetivos últimos, garantindo
descentralização e da municipalização, mas da plenamente os direitos de cidadania na Saúde.

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