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PROGRAMA Políticas Públicas

de Saúde e
DE EDUCAÇÃO
Reforma Sanitária
PERMANENTE
EM SAÚDE
DA FAMÍLIA

UNIDADE
A Reforma
2
Sanitária brasileira
e o processo de
institucionalização
do SUS

Cipriano Maia de Vasconcelos


José Adailton da Silva
Aula 1: As mudanças na política de saúde
e a institucionalização do SUS

Nesta unidade, continuamos nossa viagem no “trem da história” e vamos conhecer os acon-
tecimentos da política de saúde a partir do processo constituinte. Vamos nessa?

Partimos, então, acompanhando os principais acontecimentos associados à implantação


do SUS como sistema, com base na leitura de novos trechos selecionados da narrativa de
Vasconcelos (2012).

O processo de implementação de mudanças institucionais no campo da


saúde, orientadas pelos princípios da reforma sanitária, inicia-se ainda
antes da aprovação na nova constituição com a experiência das Ações
Integradas de Saúde (AIS), em 1984, e dos Sistemas Descentralizados
de Saúde (SUDS), em 1987, iniciando ações racionalizadoras que
visavam promover a integração, a descentralização e a ampliação do
acesso (VASCONCELOS, 1997).

Contudo, decorridos mais de 20 anos da regulamentação do SUS e do início de sua implan-


tação, muitos dos seus propósitos ainda enfrentam dificuldades em se efetivar, por razões
que serão discutidas a seguir.

Mas, primeiro, vamos entender o que é o SUS. Por que Sistema Único de Saúde? Acesse a
Unidade 2 do nosso módulo no AVASUS e assista ao Vídeo 3 para compreender melhor:

Vídeo 3

Políticas Públicas de Saúde e Reforma Sanitária 2


A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
Compreendendo mais sobre o SUS
Integram o SUS, nos termos da Lei 8.080, as instituições públicas federais, esta-
duais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos,
medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para a
saúde. Os serviços privados de saúde, em caráter complementar, podem o integrar
funcionalmente para a prestação de serviços aos usuários do sistema, quando
contratados ou conveniados para tal fim (BRASIL, 1990).

O SUS foi instituído com o objetivo de coordenar e integrar as ações de saúde das
três esferas de governo, até então dispersas, e pressupõe a articulação de subsis-
temas e redes verticais (de vigilância e de assistência à saúde) e sistemas de base
territorial — estaduais, regionais e municipais — para atender adequadamente
as demandas por atenção à saúde.

SUS, um sistema complexo


Então, o SUS não se resume a um sistema de prestação de serviços assistenciais.
É um sistema complexo que tem a responsabilidade de articular e coordenar ações
promocionais e de prevenção como as de cura e reabilitação. Nessa medida, não
pode ser comparado com seguros e planos de natureza privada, que operam na
modalidade seguro, com base na lógica de mercado, e em geral estabelecem sua
ação exclusivamente no campo assistencial.

A incorporação à base jurídico-legal do SUS de uma concepção ampliada de


saúde, que incluiu os condicionantes econômicos, sociais, culturais e bioecoló-
gicos, e uma visão abrangente e integrada das ações e dos serviços de saúde,
busca superar a visão dominante de enfocar a saúde pela doença, sobretudo nas
dimensões biológica e individual. Sem negar o peso e a importância das doenças
na configuração de sistemas de saúde e na consequente oferta de ações e de
serviços, o entendimento ampliado sobre a produção da saúde apresenta uma
série de novos desafios para o sistema de saúde brasileiro, exigindo-lhes novas
concepções e modos de operação.

O SUS é integrante do Sistema Brasileiro de Proteção Social e juntamente com


o Sistema de Previdência Social e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
compõem o tripé da Seguridade Social, nos termos do artigo 194 da Constituição.
Todavia, no processo de implantação e implementação do SUS constata-se que
os preceitos constitucionais e legais de unicidade do Sistema não se efetivaram.
Verifica-se, na realidade, a persistência de um sistema dual, ou duplicado, com
uma vertente pública e outra privada, em que a clientela da vertente privada é
privilegiada com acesso aos serviços dos dois sistemas, dificultando a viabilização
do princípio da equidade (OCKÉ-REIS, 2011).

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
Alicerces do SUS
O SUS está alicerçado em fundamentos constitucionais e legais que definem seus
princípios e objetivos, as atribuições e competências dos entes federados, suas
diretrizes operacionais e seus mecanismos de financiamento.

Dos ditames constitucionais que orientam a ação do Estado na saúde destacam-se


a inclusão da saúde como direito do cidadão e dever do Estado e a compreensão
de que a garantia da saúde se fará “mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, con-
substanciando uma noção ampliada de saúde (BRASIL, 1988).

Visto que você imergiu ainda mais no SUS, vamos estudar um pouco sobre os seus funda-
mentos legais, princípios e diretrizes. Que princípios legitimam o SUS? Quais as diretrizes
que orientam a organização do SUS? Vamos compreender esses questionamentos a partir
do Infográfico 1 que está nesta Unidade.

Infográfico 1

O Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001) define diretriz


como sendo uma linha reguladora do traçado de um caminho ou
de uma estrada; conjunto de instruções ou indicações para se tratar e
levar a termo um plano, uma ação etc. Por princípio entende-se a
origem, começo; elemento predominante na constituição de um corpo;
proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento
posterior dessa ciência deve estar subordinado.

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
O uso do planejamento como instrumento de previsão de ações e racionalização de recur-
sos e de mobilização dos sujeitos está previsto em todo o ordenamento jurídico do SUS que
preconiza uma lógica ascendente e participativa, do município até a União, e a aprovação
dos planos e programas nas instâncias de controle social nas 03 esferas de gestão.

O planejamento em processos descentralizados, em direção às esferas subnacionais e em âmbi-


to regional, deve ser capaz de reconhecer a diversidade e as desigualdades locorregionais, sem
perder de vista a integração sistêmica. Ofertar racionalidade ao sistema, incorporando interes-
ses e necessidades dos sujeitos, apresenta-se como enorme desafio para a sociedade brasileira.

Objetivos, atribuições e competências


dos entes federados
O SUS tem como objetivo principal formular e implementar a política nacional de saúde des-
tinada a promover condições de vida saudável, prevenir riscos, doenças e agravos à saúde
da população, e assegurar o acesso equitativo ao conjunto dos serviços assistenciais para
garantir atenção integral à saúde (BRASIL, 1990).

A Lei nº 8.080/90 define as atribuições comuns e as competências das três instâncias governa-
mentais na gestão do SUS. Entre as atribuições comuns aos três entes federados destacam-se:
o planejamento das ações, com a formulação e a atualização do plano de saúde; a articulação
de planos e políticas, e a coordenação das ações; o financiamento, a orçamentação, a admi-
nistração e o controle dos recursos financeiros; a avaliação e a fiscalização sobre as ações e
os serviços de saúde; a elaboração de normas atinentes à saúde; a organização e a coorde-
nação dos sistemas de informação; a realização de estudos e pesquisas na área de saúde;
a implementação de políticas específicas, como a do sangue e a dos hemoderivados; a partici-
pação na formulação e na execução da política de formação e o desenvolvimento de recursos
humanos para a saúde; a participação na formulação e na execução das políticas de sanea-
mento e meio ambiente com ênfase nas ações que repercutem sobre a saúde da população.

As competências específicas estão definidas com base no pressuposto da descentralização


que atribuiu ao município a responsabilidade pela execução da maioria das ações de saúde,
e aos estados e à União funções supletivas e de coordenação.

A Constituição Federal (art. 30) estabelece que a prestação de serviços de


atenção à saúde da população é competência dos municípios e a Lei (8.080)
determina que à direção municipal do SUS compete, além das atribuições
comuns, a gerência e a execução dos serviços públicos de saúde, a execução
das ações de vigilância em saúde, a participação na organização da rede
regionalizada de atenção à saúde em articulação com a direção estadual
do SUS, a implementação das políticas definidas no âmbito nacional e a
colaboração na efetivação das competências estaduais e federais.

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
As competências da direção estadual do SUS estão situadas no campo da coordenação do
sistema estadual de saúde, com ênfase na promoção da descentralização das ações e dos
serviços e na oferta de apoio técnico e financeiro aos municípios; na coordenação das redes
assistenciais, das ações e dos subsistemas de vigilância em saúde; na análise da situação de
saúde; e na execução supletiva de ações e serviços de saúde que os municípios não tenham
condições de fazê-lo. Incluem-se nesse rol a participação na formulação e na execução das
políticas de caráter intersetorial, a normatização suplementar em relação à saúde e a cola-
boração com a direção nacional do SUS no exercício de suas competências.

À direção nacional do SUS compete: a formulação e a implementação da política e do plano


nacional de saúde; o financiamento; a normatização das ações e dos serviços de saúde, públicos e
privados; a coordenação das redes nacionais de atenção à saúde e dos subsistemas de informação
e de vigilância em saúde; a cooperação técnica e financeira com estados e municípios; a avaliação
e o controle das ações e dos serviços de saúde; o desenvolvimento de políticas científicas e
tecnológicas para o setor saúde; a ordenação da formação de recursos humanos para a saúde; e
a participação nas políticas e nas ações intersetoriais voltadas para a promoção da saúde.

Ao qualificar as ações e os serviços de saúde como de relevância pública, e atribuir ao Poder


Público sua regulamentação, fiscalização e controle, fortaleceu-se a orientação do predomínio
do interesse público e da ação do Estado em assegurá-lo. Entretanto, ao definir que a assistên-
cia à saúde é livre à iniciativa privada sem estabelecer os limites e os mecanismos de regulação
estatal eficazes para garantir o primado do público, evidenciaram-se as contradições do texto
constitucional com repercussões negativas ao processo de construção do Sistema Único.

Ao qualificar as ações e os serviços de saúde como de relevância pública,


o legislador realçou a essencialidade do direito à saúde e legitimou as
ações do Ministério Público e do Poder Judiciário na defesa desse direito,
em situações de omissão dos órgãos estatais e dos serviços privados.

A configuração do SUS
Em relação à configuração do SUS, o texto constitucional preceitua que “as ações e serviços
públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada” e estabelece a descentrali-
zação, o atendimento integral e a participação da comunidade como diretrizes organizativas do
sistema. Já o financiamento integra o orçamento da seguridade social dos três entes federados.

O ordenamento constitucional da Saúde e do SUS no âmbito da Federação foi complementa-


do nas constituições estaduais e nas leis orgânicas dos municípios que incorporaram e deta-
lharam os princípios da Lei magna do país. Em relação à regulamentação infraconstitucional

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
do SUS, esta foi estabelecida com a edição da Lei 8080, complementada pela Lei 8.142 (ambas
sancionadas em 1990), que especificaram os princípios e as diretrizes contidos na constituição
e detalharam a organização e o funcionamento do sistema.

Os vetos presidenciais apostos na sanção da Lei 8080 comprometeram de partida as condi-


ções estruturais para implantar o novo sistema, particularmente na supressão da política de
recursos humanos, na restrição do financiamento e na eliminação dos mecanismos de par-
ticipação social, só parcialmente recuperados na edição da Lei 8142. Ao longo das últimas
décadas, sucessivas leis têm complementado o arcabouço jurídico da Saúde ou adendado
complementos ao teor da Lei 8080. Dentre essas destacam-se:

• a Lei 8.689/1993, que prevê a extinção do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Pre-
vidência Social, órgão do Ministério da Previdência e Assistencial Social, responsável no período
de 1978 a 1993, pela organização da oferta e do financiamento dos serviços de saúde à população
segurada pela previdência social, no país) e a criação do Sistema Nacional de Auditoria;

• a Lei 9.836/1999 que institui o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena; a Lei 10.424/2002 que
estabelece o atendimento e a internação domiciliar;

• a Lei 11.108/2005, que preconiza o direito ao acompanhamento ao parto;

• a Lei 12.401/2011, que regulamenta a Assistência Terapêutica e a Incorporação Tecnológica no SUS;

• a Lei 12.466/2011, que reconhece as Comissões Intergestores como espaço de pactuação; a Lei
9.787/1999 que estabelece o medicamento genérico;

• a Lei 9.782/1999, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e cria a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA);

• a Lei 9.961/2000, que cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar;

• a Emenda constitucional 29 e a Lei complementar 141/2012, que regulamentam o financiamento


da saúde.

O ordenamento jurídico do sistema é complementado pelas legislações estaduais e munici-


pais que regulamentam, em seus âmbitos, aspectos do funcionamento do sistema previstos
nas leis federais, que precisam ser instituídos e adequados aos contextos estadual e muni-
cipal, a exemplo dos fundos de saúde e dos conselhos de saúde.

Comissão Intergestores Tripartite-CIT


A normatização infralegal do processo de implantação do SUS, desde o ano de 1991, ocorreu
por meio de Portarias do Ministério da Saúde que editou sucessivas Normas Operacionais
(NOB e NOAS) com base nos acordos estabelecidos na negociação tripartite, entre os ges-
tores municipais, estaduais e federal, no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite-CIT.
Acordos que demandavam subsequente negociação no âmbito estadual, entre os gestores
municipais e estadual, no espaço das Comissões Intergestores Bipartite-CIB, em cada estado.

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
A Comissão Intergestores Tripartite (CIT) é integrada pela repre-
sentação do Ministério da Saúde, dos Secretários Estaduais de Saúde,
por meio do CONASS (Conselho Nacional de Secretários de Saúde dos
estados), e dos Secretários Municipais de Saúde, através do CONASEMS
(Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde).

A Comissão Intergestores Bipartite (CIB) é integrada pela repre-


sentação da Secretaria Estadual de Saúde e pela representação dos
Secretários Municipais de Saúde, por meio do Conselho dos Secretários
Municipais de Saúde (COSEMS), em cada estado.

A operacionalização do sistema também se orientou pelas resoluções e deliberações do


Conselho Nacional de Saúde e das Conferências Nacionais de Saúde, e das conferências e
dos Conselhos de Saúde nos estados e municípios.

Esse processo normativo infralegal, mediante portarias ministeriais, tem sido criticado pelo
seu excesso, pela sua extensividade e pelo detalhismo, bem como pela uniformidade das
prescrições que não consideram as diferenças existentes entre os municípios e entre os esta-
dos, dificultando o seu cumprimento, e fundamentalmente por subtrair a autonomia dos
municípios na definição de suas prioridades de saúde (PASCHE, 2003; VASCONCELOS, 2005).

Em 2011, o Ministério da Saúde promoveu a regulamentação da Lei 8.080, por meio do


Decreto-Lei 7.508/2011, com o propósito de: dirimir questões relativas ao direito à saúde;
aprimorar a articulação interfederativa e proporcionar mais segurança jurídica na assunção
dos compromissos dos entes federados, com a introdução do contrato organizativo das ações
públicas de saúde (COAP); dinamizar o planejamento em saúde; e promover a reestruturação
do sistema fortalecendo e organizando as redes regionalizadas. O sentido da regulamentação
indica um aprimoramento do Pacto pela Saúde ancorada em instrumentos normativos mais
consistentes para sua efetivação no campo administrativo.

O texto legal atualizado da Lei 8.080/90 está acessível para consulta


neste link.

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
Aula 2: A descentralização e a organização
do sistema de base municipalista

Agora que compreendemos melhor os princípios, os atributos e as competências dos


entes federados no SUS, vamos estudar mais sobre a descentralização enquanto diretriz
com ênfase na municipalização da gestão dos serviços e das ações de saúde. A diretriz da
descentralização é enfatizada porque constitui-se em uma mudança mais significativa no
aspecto político-administrativo da reforma do Sistema de Saúde no Brasil. Contudo, o papel
do município na Política de Saúde depende do regime político e administrativo do país.
Vamos, então, compreender esse aspecto macro?

A arquitetura dos sistemas de saúde nos diversos países apresenta-se diversificada em fun-
ção da dimensão geográfica, do porte populacional, da estrutura do Estado e do regime
político. Para que possamos compreender melhor, vamos observar como é essa estrutura
em alguns países no Infográfico 2 que está no AVASUS.

Infográfico 2

Os Estados unitários e de menor porte mostram-se mais efetivos na integração das ações,
na direção e na coordenação dos seus sistemas. Os Estados federativos e de dimensões con-
tinentais apresentam mais dificuldade na integração e na coordenação dos seus sistemas,
visto que dependem de uma adequada definição de responsabilidades e atribuições e da
cooperação entre os entes federados na realização de ações, programas e projetos. A des-
centralização de responsabilidades e atribuições, a autonomia dos entes, as modalidades
de cooperação e as formas de financiamento são condições decisivas para o sucesso ou o
fracasso no desempenho dos sistemas de saúde. No Brasil, a opção pela descentralização
com ênfase na municipalização mediante transferência de responsabilidades e recursos,
da União e dos estados aos municípios, foi responsável pela configuração do sistema atual,
com aspectos positivos e negativos que repercutem no cotidiano dos serviços.

Vamos prosseguir na leitura da narrativa do professor Vasconcelos (2012) para entender


como a descentralização se operou e como foi se conformando o sistema que temos hoje.

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A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
O processo de descentralização
e a conformação do Sistema
Os primeiros passos e o processo de habilitação
A descentralização da Saúde, inicialmente marcada pela experiência de ‘estadua-
lização’ da gestão, no programa SUDS, avançou de forma decisiva nos anos 1990
com a municipalização da gestão de ações e de serviços e teve continuidade no
novo milênio. O processo foi marcado pela tutela federal e pelo gradualismo com
estímulo e indução financeira aos municípios e estados a assumirem responsabi-
lidades de gestão mediante o cumprimento de requisitos para adesão a uma das
condições de gestão, previstas nas Normas Operacionais, que lhes asseguravam
certas prerrogativas na gestão dos recursos transferidos (ARRETCHE, 2002).

A edição da Norma Operacional Básica (NOB) 01/1993 – em um contexto de mudança


no governo federal, após o impeachment do presidente Collor, possibilitou um
impulso à municipalização ao prever um processo de transição em que os municípios
e os estados iriam assumindo a gestão dos seus sistemas de saúde, de modo pro-
gressivo, em função de suas capacidades técnica, financeira e de gestão, pautados
na negociação federativa. Nesse que foi o primeiro movimento de habilitação dos
entes federados para assumir as responsabilidades de gestão e receber os recursos
transferidos pela União na modalidade “Fundo a Fundo” estabeleceu-se como gra-
dação para os municípios três condições de gestão – incipiente, parcial e semiplena
– e para os estados uma das duas últimas condições (SANTOS; ANDRADE, 2007).

Na continuidade do processo, ocorreram mais 02 movimentos de habilitação


e certificação de estados e municípios que apontavam para a ampliação das res-
ponsabilidades e das prerrogativas de gestão. O primeiro orientado pela NOB 96,
só implementado a partir de 1998, que instituía apenas duas modalidades de ges-
tão para os municípios: gestão plena do sistema e gestão plena da atenção básica.
O segundo pela Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS – 01/2002,
que apostou na qualificação da atenção básica e na implementação da regionalização
com estímulos à organização de sistemas funcionais de saúde. Essa norma buscou
reforçar o comando único sobre os serviços em cada território, a organização dos
mecanismos de regulação do acesso com a utilização de sistemas informatizados e a
definição de Planos Diretores de Regionalização (PDR) que explicitassem o desenho
de regionalização assistencial, assentado em módulos assistenciais, microrregiões e
macrorregiões, assim como do Plano Diretor de Investimentos (PDI) para assegurar
os investimentos necessários à (re)organização da rede assistencial.

As responsabilidades assumidas
A assunção da gestão plena do sistema pressupunha que o gestor assumisse a respon-
sabilidade pela regulação do conjunto de serviços existentes no seu território, efetivando

Políticas Públicas de Saúde e Reforma Sanitária 10


A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
o comando único, e organizasse a oferta das ações e dos serviços de saúde em todos
os níveis de complexidade, garantindo acesso aos seus cidadãos e aos usuários de
municípios da região, mediante pactuação via Programação Pactuada e Integrada (PPI).

A gestão da atenção básica atribuía aos municípios a responsabilidade pela gerência


de todos os serviços básicos de saúde e pela oferta das ações de vigilância e controle
de doenças inerentes a esse nível de atenção. A adoção da estratégia de Saúde da
Família pelo Ministério da Saúde, a partir do ano de 1994, com a criação de incen-
tivos financeiros aos municípios que a adotam, contribuiu para que essa estratégia
assumisse a principal forma de organização da atenção básica nos municípios.

Além de garantir a oferta da atenção básica, os gestores municipais também se


responsabilizam pela garantia de acesso de seus munícipes aos outros níveis de
atenção por meio da integração do sistema municipal de saúde à rede regionali-
zada de atenção à saúde.

Nessa direção, os estados, como coordenadores do sistema estadual de saúde,


deveriam ofertar supletivamente os serviços que os municípios não dispunham,
coordenar o processo de regionalização e assumir a regulação do acesso aos serviços
especializados, em articulação com os municípios em gestão plena, além de oferecer
apoio técnico e financeiro aos municípios.

A criação de novas estruturas


Nesse período, os estados e a maioria dos municípios, em atendimento às exi-
gências legais e às normativas, instituíram ou adequaram a estrutura básica de
gestão do Sistema de Saúde que passou a contar com uma Secretaria de Saúde ou
órgão equivalente , um Fundo de Saúde e um Conselho de Saúde, cuja dinâmica de
funcionamento e complexidade variou de acordo com o porte, a disponibilidade
de recursos e a condição de gestão do município.

O debate e o rearranjo nas relações federativas


na saúde com o pacto pela saúde
As mudanças na condução do governo federal e dos governos estaduais, a partir de
2003, oportunizaram uma renovação do debate sobre a descentralização e as relações
federativas na saúde, no qual os representantes dos gestores estaduais e municipais,
na CIT e no Conselho Nacional de Saúde, manifestavam seu descontentamento com os
limites do financiamento e com as amarras da gestão descentralizada, estabelecidas no
processo de habilitação, que tolhia a autonomia dos municípios na definição de suas
prioridades de saúde. Nos debates travados, sobressaiu-se a necessidade da superação
dos vícios burocratizantes da descentralização “tutelada” e a defesa de radicalização
do processo de descentralização, em meio ao conflito federativo e à consciência de

Políticas Públicas de Saúde e Reforma Sanitária 11


A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
esgotamento do padrão incremental que vigorou até então. O desdobramento dessa
discussão, que ecoou na XII Conferência Nacional de Saúde e ocupou a agenda da CIT
e do Conselho Nacional de Saúde, até 2006, produziu o Pacto pela Saúde.

O Pacto pela Saúde representou um novo momento no processo de pactuação no


SUS ao prever, no Pacto de Gestão, a superação das habilitações e ao instituir os
termos de compromissos de gestão como instrumentos de contratualização de res-
ponsabilidades e metas a ser assumidas pelos gestores, com apreciação, aprovação
e avaliação pelos Conselhos de Saúde.

Nos seus três componentes – Pacto pela Vida, Pacto em defesa do SUS e Pacto de
Gestão – apontava-se para: a repolitização da saúde e a mobilização da sociedade
na defesa do direito à saúde e da efetivação do SUS como política de Estado, com
garantia do financiamento público e suficiente; o fortalecimento do compromisso
dos gestores com a busca de resultados sanitários em torno de prioridades defi-
nidas na CIT e no CNS; a superação dos entraves acumulados no processo de
descentralização, qualificando as relações federativas e promovendo inovações
institucionais com vistas a consolidar a regionalização, precisar as responsabili-
dades sanitárias, revitalizar o planejamento, alterar as formas de transferência
de recursos, melhorar a gestão e a qualificação dos trabalhadores e fortalecer o
controle social, tudo isso na perspectiva de aprimorar o funcionamento das redes
de atenção à saúde para responder melhor à demanda dos usuários (BRASIL, 2006).

A institucionalização do Pacto pela Saúde se fez mediante um conjunto de portarias


ministeriais, negociadas na CIT, que regulamentou os mecanismos de adesão ao pacto
e modificou diversas questões relativas ao financiamento das ações, ao processo
de regionalização, ao planejamento e à regulação das ações, bem como a algumas
políticas específicas como, por exemplo, a Política de Atenção Básica à Saúde.

Uma análise do pacto pela saúde revelou uma significativa aceitação dessa modali-
dade de pactuação entre os gestores e obteve a adesão da totalidade dos estados
e do distrito federal, e de 4.589 municípios, representando 82,5% do conjunto dos
municípios do país, até maio de 2012 (Portal Saúde, CIT, 2012). Todavia, avaliações
realizadas por gestores do SUS (DOBASHI; BRETAS JR.; SILVA, 2011) convergem com
apreciações acadêmicas e percepções de trabalhadores e conselheiros de saúde de
que as iniciativas de mudanças trazidas pelo Pacto são positivas, mas enfrentam
dificuldades de se efetivar. Constata-se uma distância significativa entre os obje-
tivos e as metas inseridos nos termos de compromisso de gestão de municípios,
estados e da União e a sua efetivação. Os compromissos assumidos no Pacto não
têm se traduzido em propostas de ação nos planos e na programação anual de
saúde, nem redundaram em novos compromissos financeiros por parte dos entes.

Em síntese, aponta-se na análise para: a incipiência na descentralização das decisões


para as CIB; a morosidade nos processos de construção das redes regionalizadas de

Políticas Públicas de Saúde e Reforma Sanitária 12


A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
atenção à saúde com atraso na elaboração dos planos de ação e na programação
regional; as dificuldades em consolidar o financiamento tripartite nas regiões; a
insuficiência e a fragilidade nos mecanismos de regulação, controle e avaliação; os
limites do apoio e da cooperação solidária para a qualificação da atenção básica
nos municípios, por parte dos estados e da União; e a ausência de propostas para
equacionar o crítico problema da disponibilidade, da contratação e da gestão de
pessoal nos municípios, principalmente dos médicos.

Inovações recentes no processo


de institucionalização
As mais recentes inovações no campo das relações federativas e nos arranjos e
mecanismos de gestão compartilhada na saúde foram introduzidas pelo Decreto
7.508/2011 que regulamentou aspectos da Lei Orgânica da Saúde, reconheceu e
delimitou o funcionamento das comissões intergestoras, na sequência regulada
pela Lei 12.466/2011, e incorporou definições e conceitos já integrantes do Pacto,
detalhando aspectos operacionais relacionadas à regionalização, à hierarquização,
ao planejamento e à assistência à saúde.

Dentre as inovações destaca-se a introdução do mapa de saúde, nos âmbitos regio-


nal, estadual e nacional, como recurso analítico do planejamento na identificação
dos serviços, públicos e privados, e das ações de saúde, e elemento orientador
para a definição de metas sanitárias. Nesse sentido, instituiu-se a Relação Nacional
de Ações e Serviços de Saúde – RENASES – e se ratificou a Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais – RENAME – como instrumento de padronização dos
medicamentos no SUS, nos termos da Lei 12.401/2011.

No intuito de se garantir mais segurança jurídica na fixação das responsabilidades


pactuadas entre os entes federados, o decreto instituiu o Contrato Organizativo
da Ação Pública de Saúde (COAP) como instrumento jurídico para regular a orga-
nização e a integração das ações e dos serviços de saúde nas regiões de saúde, de
modo a contribuir para a consecução das redes integradas de saúde. Por sua vez,
os contratos (COAP) incorporam na sua estrutura, integrada por quatro partes, as
responsabilidades organizativas, executivas, orçamentário-financeira e avaliativas
que constavam dos termos de compromisso de gestão do Pacto.

Uma análise da trajetória


Ao rememorar essa trajetória de institucionalização do SUS, observam-se suces-
sivos movimentos de alteração no arcabouço normativo que apontam para um
aumento no grau de responsabilização dos entes. A complexificação dos processos
burocráticos da gestão compartilhada aumentou as exigências para os estados

Políticas Públicas de Saúde e Reforma Sanitária 13


A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS
e os municípios que, em função da diversidade de condições e de capacidade
de governo, enfrentam grandes dificuldades em atendê-las. Por conseguinte,
deduz-se que o sistema está em permanente movimento de mudanças na busca
de adequação às diretrizes organizativas instituídas em Lei em função das priori-
dades de governo e do contexto político institucional do setor.

Nesse processo de conformação do SUS, foi se configurando um conjunto de orga-


nizações, políticas específicas, sistemas, redes e programas nacionais de atenção,
que, operando em articulação com os estados e municípios, vem consolidando o
sistema nacional de saúde. Nesse desenvolvimento do sistema podemos desta-
car: a organização do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde; a consolidação do
Programa Nacional de Imunizações; a criação da Política Nacional de Promoção
da Saúde; a implementação do Programa Nacional de DST/AIDS; a consolidação
da Rede Nacional de Laboratórios de Saúde Pública; a instituição da Política e do
Subsistema de Saúde Indígena, com a criação da Secretaria de Saúde Indígena
no Ministério da Saúde; a implantação e a dinamização do Sistema Nacional de
Transplantes e do Sistema Nacional de Sangue e Hemoderivados; a criação do
SAMU no contexto de organização da Rede de Urgência e Emergência; a implanta-
ção e contínua qualificação da Política Nacional de Atenção Básica que privilegia a
Estratégia de Saúde da Família; a instituição da Política Nacional de Alimentação e
Nutrição; a implantação e implementação da Política e da Rede de Saúde Mental;
a modernização e a integração dos sistemas nacionais de informação em saúde;
a definição de diretrizes para a atenção hospitalar e especializada; a criação da
Política Nacional de Humanização; a definição da Política e de programas de qua-
lificação da Assistência Farmacêutica; a formulação e a implementação da Política
Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação no SUS e da Política de Gestão
Participativa, com a criação de Secretarias específicas no Ministério da Saúde; a
criação da ANVISA, que coordena o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e da
ANS que regula a assistência privada à saúde.

A Reforma Sanitária no Brasil pode ser considerada complexa. Você deve estar refletindo
como isto ocorreu na sua cidade, estado ou países vizinhos. Aproveite este momento para
realizar a atividade avaliativa da Unidade 2 e até a próxima aula!

Políticas Públicas de Saúde e Reforma Sanitária 14


A Reforma Sanitária brasileira e o processo de institucionalização do SUS

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