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vertente sanitária - das medidas coletivas para garantia da saúde

da população - assim como o foco na Medicina curativa indivi-


dual (que nos levaria à estruturação da atenção médico-hospitalar)
e voltaremos a atenção à organização dos serviços de saúde no
Brasil, a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) e os
dilemas que este traz para a Psicologia.

2. O SUS no contexto histórico da


atenção à saúde no Brasil
A atenção à saúde de âmbito público leva tempo para se orga-
nizar no país. Por muitos anos - ou séculos - tal atenção era relegada
às Santas Casas ou a serviços voluntários de várias naturezas. A pri-
meira organização estatal de serviços de saúde no Brasil data de
1923 (Lei Eloy Chaves) e trata, sobretudo, da seguridade social para
trabalhadores de setores organizados: são as "Caixas", uma estraté-
gia governamental para minimizar potenciais conflitos com as classes
trabalhadoras (Malloy, 1975; Donnangelo, 1976). Entretanto, sendo
estes basicamente mecanismos de seguridade social, a atenção mé-
dica, embora fornecida, era objetivo secundário. Várias tentativas
foram feitas de unificação e reorganização das Caixas, primeiramente
em um modelo verticalizado por setor de produção (os Institutos de
Aposentadoria e Pensão) e, a seguir, já em 1966, por meio da unifi-
cação da atenção médica no modelo do Instituto Nacional de
Previdência e Saúde, o INPS. Essa vinculação entre aposentadoria e
saúde também abre espaço para a atuação de psicólogos, mas ainda
na vertente do psicodiagnóstico e orientação vocacional para a
reinserção profissional no caso dos acidentes de trabalho.
Vale apontar, a título de informação histórica, que o INPS her-
dou uma estrutura de atenção à saúde bastante incipiente, tanto que
se viu obrigado a fazer convênios com empresas e instituições
de saúde que, por meio de seus planos de saúde ou de formas de
pagamento de serviços terceirizados, criaram o germe dos atuais
planos de saúde e de mais uma cisão na atenção à saúde: entre
assistência pública e assistência conveniada.
Muita água rolou por debaixo dessa ponte até chegarmos ao
SUS. Em termos de organização dos serviços de saúde, especial-
mente na década de 1970 (quando se tomou óbvia a falência do
modelo curativo), vamos assistir à expansão e consolidação da assis-
tência médica individualizada como componente dominante do setor
saúde. Porém, observamos, também, uma recuperação da Saúde
Pública, incorporando, agora, em seu campo de práticas, medidas
de atenção individualizada médico-sanitárias, resultando numa
revitalização do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de
Saúde, executoras das diretrizes fixadas por esse Ministério.
Segundo Sonia Fleury Teixeira, uma das poucas psicólogas
que refletem sobre as políticas de saúde nesse período, desde os
anos de 1970 acentuaram-se algumas tendências quanto à organi-
zação dos serviços de saúde no país, entre elas: a extensão da
cobertura previdenciária de modo a incluir toda a população urba-
na e parte da rural; a reorientação para uma prática médico-curativa
individual, em detrimento de medidas de Saúde Pública de caráter
preventivo e de interesse coletivo; a alocação preferencial de re-
cursos previdenciários para a compra de serviços de prestadores
privados, propiciando a mercantilização e empresariamento da
Medicina e a expansão da base tecnológica da rede de serviços e
de consumo de medicamentos (Teixeira, 1989, p. 202).
No final da década de 1970, esse modelo já demonstrava sua
inadequação em relação à realidade sanitária do país. Igualmente, a
partir de 1975 (com a vitória do partido oposicionista nas elei-
ções), começavam a ser visíveis os primeiros sinais do esgotamento
do modelo econômico dos governos militares. Tiveram início as
crescentes mobilizações visando à redemocratização do país que,
no que concerne à reformulação do modelo de saúde, encontrarão
um nicho importante no Movimento Sanitário, envolvendo: pro-
fissionais de saúde, intelectuais, organizações populares e membros
da própria burocracia estatal. Como rede organizadora de ações,
em 1976, foi criado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
(CEBES), que passou a organizar publicações e realizar eventos
agregadores da discussão sobre o modelo de saúde que pudessem
responder às questões sanitárias do país. Pouco mais tarde, em
1979, foi criada a Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(ABRASCO), que agregou o debate acadêmico de crítica ao mo-
delo assistencial e propor formas de construção do Sistema Único
de Saúde.
Esses debates e a crescente aceitação dos problemas do mo-
delo vigente de atenção à saúde levaram a uma série de medidas
intermediárias. Em 1975, buscando dar maior racionalidade aos
serviços de saúde, foi promulgada a Lei 6.229 que criou o Sistema
Nacional de Saúde, definindo-o como o complexo de serviços
(do setor público e privado) voltados às ações de interesse da
Saúde, abrangendo ações de promoção, proteção e recuperação
da saúde (embora mantendo a separação organizacional entre o
Ministério da Saúde e o da Previdência e Assistência Social). Em
1983/1984 foi formulado o projeto de Ações Integradas de Saú-
de que adotou os princípios de universalização, descentralização e
integração dos serviços de saúde, estabelecendo convênios entre
União, estados e municípios na perspectiva dos ideais da consti-
tuição de um sistema único e descentralizado. Em 1986 foi realizada
a 8a Conferência Nacional de Saúde, resultante de longo processo
de preparação e discussão sobre a questão da saúde envolvendo
profissionais de saúde, intelectuais, centrais de trabalhadores, mo-
vimentos populares e partidos políticos. Seu relatório final serviu
como subsídio para os deputados constituintes elaborarem o arti-
go 196 da Constituição Federal sobre a Saúde.
A Constituição de 1988, que muito deve ao Movimento Sani-
tário, reconhece a saúde como direito de todas as pessoas e dever
do Estado. Promove, ainda, a perspectiva de organização descen-
tralizada que possibilita que os diversos municípios elaborem políticas
pertinentes à realidade local. O texto constitucional referenda os
princípios básicos do SUS: universalidade, gratuidade, integralidade
e organização descentralizada. E, com base no texto constitucional,
em 1999 foi aprovada a Lei 8080 que dispõe sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
e o funcionamento dos serviços correspondentes.

3. A reorientação da assistência: a era


da promoção da saúde
Essa longa trajetória coincide com as transformações ocorri-
das na economia mundial que levaram do capitalismo clássico ao
neoliberal. A saúde, nessa perspectiva, é onerosa, especialmente
na vertente da recuperação após a doença. O sanitarismo do final
do século XIX e começo do XX, com sua ênfase na higiene, pas-
sou a ser reconfigurado como “preventivismo”. A chave para a
economia da saúde neoliberal contemporânea, obviamente, é
minimizar os custos da recuperação da saúde por meio da promo-
ção da saúde e prevenção do surgimento de doenças.
Coerentemente, os discursos sobre promoção à saúde pre-
sentes nos fóruns e documentos (internacionais e nacionais), desde
1970, anunciam uma importante reorientação da assistência, com
ênfase cada vez maior nos serviços básicos de saúde - uma dimen-
são de assistência simplificada que contou com o endosso da
Organização Mundial de Saúde (OMS). Vale apontar alguns mar-
cos desta reorientação. discutidos por Paim e Almeida Filho (1998):

- A definição de serviços básicos da OMS data de 1953.


- A Assembleia Mundial de Saúde realizada em 1977 ...
lançou a diretriz “Saúde para todos nos anos 2000” e,
na visão dos autores, assumiu, consequentemente, “uma
proposta política de cobertura dos serviços básicos de
saúde com base em sistemas simplificados de assistên-
cia à saúde” (p. 304).
No ano seguinte, em Alma Ata, na conferência Interna-
cional sobre Atenção Primária à Saúde, a saúde é
reafirmada “como direito do homem, sob a responsa-
bilidade política dos governos, e reconhece a sua
determinação intersetorial” (p. 305).

O documento essencial desta última Conferência, a Declara-


ção de Alma-Ata, define as atividades primárias que devem compor
o conceito de cuidados primários incluindo: a educação sanitária, a
assistência nutricional, o saneamento básico, a assistência matemo-
infantil, o planejamento familiar, as imunizações e a assistência
curativa para os problemas mais comuns.
A ênfase na promoção da saúde e prevenção da doença abre
uma nova dimensão na compreensão dos fenômenos da saúde e da
doença: a da determinação social da doença. O social se faz pre-
sente não apenas na explicação do processo saúde-doença, como
também na esfera do comportamento, trazendo para a discussão a
reflexão sobre a cultura de classe e significados do adoecimento. O
atendimento em nível primário, dependendo da aderência ao servi-
ço e/ou ao tratamento, torna premente a questão dos sentidos
polissêmicos da saúde e da doença e dos papéis desempenhados
por diferentes profissionais. A saúde toma-se multidisciplinar. Ob-
viamente, a noção de integralidade, assim, como a organização de
serviços básicos de saúde com base em equipe multiprofissional,
abre as portas desses serviços para a Psicologia, que passou a
integrar as equipes profissionais que atuavam nos centros de saúde
e nas unidades básicas de saúde.
Na década seguinte, o debate sobre saúde volta-se mais es-
pecificamente à promoção, com expansão progressiva dos
componentes da saúde que, para além dos aspectos biológicos do
adoecimento e das ações voltadas à prevenção, cura e recupera-
ção, passa a incluir na agenda o ambiente (físico, psicológico e
social), assim como o estilo de vida. São documentos-chave desta
proposta a Carta de Ottawa (1986) e o Projeto Cidades Saudá-
veis da OMS (1986/1995).
Nesse enquadre, abrem-se novas perspectivas para a pesqui-
sa e intervenção de caráter psicossocial que têm por fundamento
conceitos como risco, vulnerabilidade, coconstrução de sentidos;
por foco, a violência e a exclusão social e como prática, o uso de
estratégias diversificadas (como grupos e rodas de conversa) defi-
nidas em diálogo com a população atendida e com os demais
profissionais da saúde. De modo geral, entretanto, as novas inser-
ções criam tensões, uma vez que as ferramentas psi, de certo modo.
continuaram as mesmas.

4. Sobre a ressignificação exigida para


pensar a saúde na perspectiva coletiva:
contrastando Saúde Pública e Saúde
Coletiva
Birman (2005) propõe que Saúde Pública e Saúde Coletiva
constituíram-se como campos não homogêneos. A Saúde Pública
que se formata no final do século XVIII marca o “investimento po­
lítico da medicina e a dimensão social das enfermidades” (p. 11).
Tem como estratégia básica o esquadrinhamento do espaço urba-
no, adotando medidas sanitárias para combater as epidemias e
endemias, e toma impulso com as descobertas bacteriológicas de
Pasteur, “que representaram um avanço fundamental no conheci­
mento biológico das infecções” (p. 12). Em suma, para o autor, a

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