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Sobre a história da saúde pública: idéias e autores

ARTIGO ARTICLE
On the history of public health: ideas and authors

Everardo Duarte Nunes 1

Abstract The aim of this report is to outline Resumo O trabalho tem como objetivo tra-
a first approach on the studies dealing with çar uma primeira aproximação com os estu-
public history in Brazil. This presentation does dos que tratam da história da saúde pública
not intend to embrace all the literature on this no Brasil. Não pretende abarcar toda a litera-
subject, either regarding diseases or institu- tura que trata da saúde pública em sua ver-
tions. Reports were limited to those emphasiz- tente histórica, mas enfatizar os trabalhos, que
ing historical periods and presenting a gener- ao destacar períodos históricos, oferecem um
al view of the public health development. Af- panorama geral da saúde pública, sem deta-
ter considering the installation of Brazilian so- lhar estudos sobre doenças ou instituições. Após
cial medicine project – from colonial periods tratar de como se instaura o projeto da medi-
to the first decades of nineteenth century – we cina social brasileira, desde o período colonial
analyzed studies comprising the public health até as primeiras décadas do século XIX, traba-
history from 1870-1930. The period from 1889- lha-se com os estudos que abarcam a história
1930, also known as Old Republic, with very da saúde pública entre 1870 e 1930. Destaca o
specific characteristics in Brazilian socioeco- período de 1889-1930, também conhecido co-
nomic and public history, has been stressed. mo República Velha, que tem características
Key words Social Medicine; Public Health, específicas na história socioeconômica e polí-
History; Historical Studies; Brazil; XIX-XX tica brasileira.
Centuries Palavras-chave Medicina Social; Saúde Pú-
blica; História; Estudos Históricos; Brasil; Sé-
culos XIX-XX

1 Departamento
de Medicina Preventiva
e Social, Faculdade
de Ciências Médicas
da Universidade
de Campinas, Cidade
Universitária Zeferino Vaz,
13081-970, Campinas, SP
rnunes@correionet.com.br
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Nunes, E. D.

Introdução crescentemente conscientes da relação entre a


saúde e o processo de desenvolvimento, pare-
O objetivo deste trabalho é traçar uma primei- ce, agora, apropriado examinar a saúde públi-
ra aproximação sobre os estudos que têm pro- ca e higiene em sociedades pré-industriais.
curado reconstituir a história da saúde públi- Através de tais estudos os historiadores médi-
ca no Brasil. Mesmo considerando a impor- cos podem determinar o impacto dos avanços
tância das tendências históricas do perfil epi- da saúde européia e americana sobre outros
demiológico, que muitas vezes fazem parte das países. Além disso, especialistas regionais en-
análises sobre as práticas sanitárias, ou mes- tenderão melhor os fatores sociais, econômicos
mo constituem objeto per se de análises histó- e políticos que influenciaram a ação ou a pas-
ricas, esta apresentação estabelece um recor- sividade governamental em saúde pública den-
te bastante definido, referindo-se somente a tro de suas áreas de interesse” (Blount, 1971).
alguns poucos “estudos de casos”, que tomam Também Luz (1982) argumenta, ao apre-
como referência os trabalhos que analisam de sentar o plano de pesquisa dos discursos mé-
maneira global o desenvolvimento das práti- dicos sobre a saúde que se estendem dos anos
cas sanitárias, em determinados períodos his- 70 do século XIX aos anos 20 do século XX, no
tóricos, em uma perspectiva que se pode de- sentido de apreender como ocorreu a consti-
nominar de história social. Nesse sentido, é tuição das instituições de saúde, a existência
oportuna a consideração feita por Meihy e Ber- de uma “limitada bibliografia em que se pos-
tolli Filho (1990) quando assinalam que “não sa basear para situar a questão da história ins-
se situando como uma espécie historiográfi- titucional da saúde”. Acrescentava que, “gros-
ca, nem se alargando nos cômodos preparos so modo, poderíamos dizer que o fato histó-
que apelam indefinidamente para a “pluri”, rico, no Brasil, ainda é em grande parte trata-
“multi” ou “trans” disciplinaridade, a história do como sucessão de nomes, datas e fatos im-
da saúde pública se coloca como uma varia- portantes, relações mecânicas de causas e con-
ção ou ramo da história social, espaço útil pa- seqüência, que fazem ressurgir e reafirmar a
ra se refletir sobre a continuidade e/ou ruptu- providência divina ou o Estado como agentes
ra das relações entre o poder, as atitudes médi- estabelecedores da ordem, nos momentos em
cas vinculadas à população em geral e as im- que os indivíduos ou grupos tentam desvir-
plicações íntimas, constantes na prática da éti- tuar o povo “ordeiro, pacífico e trabalhador”
ca política. Trata-se de uma história da circu- dos rumos a ele destinados”. Em resumo: “O
lação da vontade governante manifestada nos saber histórico se confunde com o mito his-
cuidados médicos e nas aceitações populares”. tórico, cansado “mito” que ainda resiste e con-
Na medida que foram definidos os limites funde o pensar histórico”.
deste trabalho, procurou-se situar na biblio- Outro estudioso das origens e desenvolvi-
grafia brasileira as pesquisas que se enquadras- mento das práticas sanitárias no Estado de São
sem na temática apontada. A primeira verifi- Paulo, Mehry (1985), lembra que “a maioria
cação é que, excetuando-se trabalhos espar- dos estudos sobre saúde pública realizados no
sos, escritos em datas anteriores, a preocupa- Brasil apresentam, como característica princi-
ção com o assunto despontou nos anos 70 e pal, o fato de considerarem o objetivo das prá-
tem maior florescimento na década de 1980. ticas sanitárias como anistórico, ao mesmo
Já em 1971, Blount abre a sua tese sobre o mo- tempo que conferem uma dada historicidade
vimento sanitário em São Paulo com o seguin- a este campo de práticas, a partir da história
te: “Pesquisadores no comparativamente no- dos meios de realização deste objetivo. O que
vo campo da história da saúde pública têm diferencia as etapas históricas, nesses estudos,
tentado concentrar seus estudos em nações é a evolução científica destes meios ao longo
que primeiro implementaram programas go- do tempo, ou seja, o que caracteriza os suces-
vernamentais de sanitarismo e mais tarde con- sivos períodos é a incorporação de um maior
tribuíram para as descobertas bacteriológicas ou menor grau de cientificidade e/ou racio-
das últimas décadas do século XIX. nalidade àqueles meios”.
Consequentemente, regiões subdesenvol- Interessante é a observação de Moraes
vidas da África, Ásia e América Latina têm si- (1983), quando diz “a ausência da questão da
do negligenciadas em favor das nações indus- saúde na bibliografia histórica brasileira, no
trializadas na Europa e América do Norte. Na que diz respeito às condições de vida e de tra-
medida que os cientistas sociais tornam-se balho e de seus aspectos institucionais, pode
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nos conduzir a pensar numa negligência em colonial até as primeiras décadas do século
considerar e analisar este tema. Se observar- XIX. É considerado um texto pioneiro na “ca-
mos, entretanto, jornais, peças teatrais, músi- racterização da medicina como poder discipli-
cas e textos produzidos principalmente por nar cuja ação recairia sobre a vida social urba-
anarquistas, de forma bastante difusa, e por na” (Carvalho e Lima, 1992). Assim, os estu-
socialistas – um pouco mais sistematicamen- diosos evidenciam a emergência de um proje-
te, vamos concluir que as condições de existên- to de medicina social para o início do século
cia das populações urbanas não eram esque- XIX, vinculado, sobretudo, à higiene pública
cidas nas duas primeiras décadas deste século, e medicalização do espaço urbano, e isto irá
ao menos por artistas e militantes políticos”. ocorrer no quadro de transformações que se
Sem dúvida, mesmo com todas as dificul- impôs com a transferência da Corte portugue-
dades inerentes aos estudos históricos em saú- sa, em 1808.
de, há esforços em realizar pesquisas nesse Segundo Machado e colaboradores (1978),
campo e já despontam algumas análises sobre “a administração portuguesa não se caracteri-
as próprias tendências predominantes nesses zou, pelo menos até a segunda metade do sé-
estudos. Nesse sentido, são referências impor- culo XVIII, pela organização do espaço social,
tantes: Luz (1982), Carvalho e Lima (1992). visando um ataque planificado e continuado
Como assinalado no início, esta apresen- às causas de doença, agindo, por isso, de mo-
tação não pretende dar conta de toda literatu- do muito mais negativo que positivo, no que
ra que vem tratando da saúde pública em sua diz respeito à saúde”. O estudo detalhado de
vertente histórica, quer seja em relação à doen- documentos, periódicos, cartas, ofícios e teses
ça, ou às instituições, mas aos trabalhos que, irá evidenciar que o tema da saúde, por si mes-
ao destacarem períodos históricos, fornecem mo, não forma parte do projeto colonial, e so-
um panorama geral do desenvolvimento da mente pode ser registrado no momento em
saúde pública. Carvalho e Lima (1992) salien- que, a medicina se volta sobre a cidade, dispu-
tam que uma forma de aproximar-se dos di- tando um lugar entre os organismos de con-
lemas presentes na produção do conhecimen- trole da vida social. Considera, assim, que em-
to em ciências sociais, e da história quando a bora a saúde da população, especialmente no
referência é à saúde coletiva, é verificar qual é combate à lepra e à peste, e a existência de al-
o significado que os trabalhos produzidos atri- gum controle sanitário em relação aos portos,
buem à reconstrução histórica. ruas, casas e praias, tenha sido objeto de aten-
ção da administração portuguesa em fases an-
teriores, a transformação do objetivo da me-
Reconstruindo a história dicina, da doença para a saúde, irá ocorrer so-
mente no século XIX, quando “o conhecimen-
A medicina social brasileira: to da colônia é colocado como fundamento ne-
a instauração de um projeto cessário para uma intervenção dirigida para o
aumento da produção, para a defesa da terra,
Inegavelmente, quando se fala em recons- para a saúde da população” (Machado et al.,
truir a história da medicina brasileira a fim de 1978).
demarcar a emergência de um projeto de me- Nessa época são desenvolvidas ações regu-
dicina social, o texto de Roberto Machado e ladoras, incluindo as atividades dos cirurgiões,
colaboradores (1978) torna-se referência obri- e a criação das primeiras escolas de medicina:
gatória. Entre outros motivos, porque, como na Bahia é criada a Escola de Cirurgia, em 1808;
será visto adiante, existe uma concentração de e no Rio de Janeiro, a cátedra de anatomia no
estudos que destacam um determinado perío- Hospital Militar, seguida pela de medicina ope-
do da história brasileira – o da Proclamação ratória, em 1809. Porém foi em 1829, com a
da República, entre 1889 e 1930, também co- criação da Sociedade de Medicina e Cirurgia
nhecido como período da República Velha; e do Rio de Janeiro, “que lutará, de diversas ma-
este originalíssimo estudo dedica-se a desco- neiras, para impor-se como guardiã da saúde
brir como surge a tematização da saúde como pública” (Machado et al., 1978), que se inicia
objeto da medicina, em lugar da doença e, ao a implantação da medicina social no Brasil,
mesmo tempo, como ocorreu o processo de que lutará também pela defesa das ciências
medicalização da sociedade brasileira. Traça médicas. Desde a sua fundação pode-se obser-
um extenso panorama que abrange o período var a influência que a sociedade irá exercer so-
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Nunes, E. D.

bre as decisões governamentais, no que se re- tanto, “Enquanto projeto de medicina que se
fere à saúde pública. Ela irá apresentar um am- ocupa do espaço urbano, sua atenção estará
plo programa que se estende desde a higiene voltada principalmente para a força de traba-
à medicina legal; educação física das crianças; lho urbano”. Como afirmam Machado e cola-
a questão dos enterros nas igrejas; denunciará boradores (1978) “No momento de sua cons-
a carência de hospitais; estabelecerá regula- tituição, a medicina social brasileira não é uma
mentos sobre as farmácias; medidas para me- medicina do trabalho ou do proletariado, mas
lhorar a assistência aos doentes mentais; de- uma medicina urbana”.
nunciará também as casas insalubres e reple- Facilmente pode-se constatar que este tra-
tas de pessoas; e dará destaque ao saneamento. balho continua a tradição inaugurada por Mi-
Era necessário, como escreve Oliveira (1983), chel Foucault, não somente em relação à orien-
“um discurso que desse conta das condições tação “arqueológica” por ele criada e desen-
de saúde nos centros urbanos, que já nessa volvida (Foucault, 1978), mas na sua interpre-
época havia alcançado uma importância cres- tação das origens da medicina social européia
cente, no comércio e na produção, além de ser (Foucault, 1979). Em especial, quando este au-
a sede do poder do Estado, um importante con- tor analisa o processo de medicalização e con-
servador das doenças”. seqüente disciplinarização da vida social no
Destaca-se que o conhecimento do meio é que denominou, no caso da França, de “me-
básico, para o qual concorre a influência da dicina urbana”. Carvalho e Lima (l992), depois
teoria miasmática. De um modo geral, esse de uma aprofundada análise do binômio ci-
pensamento irá ser permeado por duas cate- dade/saúde e da força explicativa que assumiu
gorias de análises: o natural e o social. Assim, na historiografia européia e posteriormente
“diagnosticada a desordem urbana, a medici- estendeu-se aos países do Terceiro Mundo, ou
na compreendeu que era determinada por cau- seja, a associação causal entre “doença” e “cida-
sas naturais – a situação geográfica em geral e de massiva”, passam a levantar alguns proble-
os acidentes geográficos como pântanos e mon- mas quanto ao estudo de Machado e colabo-
tanhas – e sobretudo, como provenientes de radores.
causas sociais – tanto no nível macrossocial, Dentre os pontos levantados salientam o
do funcionamento geral das cidades, como no do papel atribuído à medicina como configu-
nível microssocial das instituições” (Oliveira, radora do projeto de higienizar e disciplinar a
1983). Dessa forma, o exame minucioso do ur- cidade e seus habitantes, que é visto “como por-
bano será complementado com a análise dos tador de um sentido que transcenderia a in-
espaços específicos que representam perigo de tervenção médico-sanitária sobre o espaço ur-
doença e de desordem. Medicalizar as institui- bano, constituindo-se em elemento essencial
ções – hospitais, cemitérios, escolas, quartéis, ao desenvolvimento do capitalismo, uma vez
fábricas e prostíbulos – torna-se imperativo. que criaria as condições socioculturais de sua
Ao propor a ordem urbana, não se esque- emergência” (Carvalho e Lima, 1993). Pelo
cia que se estabelecia, também, “uma nova re- pouco esclarecimento das características da
lação: ordem–moral–saúde. Com esta nova re- população urbana e das relações sociais e pe-
lação, tenta-se generalizar e obter o acordo dos lo motivo apontado acima, as autoras são crí-
grupos sociais acerca da ordem e da moral, ne- ticas em relação à transposição do modelo ex-
cessária para a manutenção do poder do Esta- plicativo europeu e também pelo fato de “pri-
do” (Oliveira, 1983). vilegiarem como documento o discurso insti-
Fica claramente demonstrado, no estudo tucional, sem atenção para o contexto onde
de Machado, que o projeto de medicina social esse discurso é elaborado”. Mesmo com essas
que se implanta nesse momento, “tem sob sua críticas, reconhecem que a investigação traz
mira a transformação da cidade – e principal- importante contribuição ao conhecimento do
mente da Corte – promovendo seus habitantes projeto idealizado pelos intelectuais médicos
livres a indivíduos saudáveis e patriotas, per- na segunda metade do século XIX, tendo falta-
feitos cidadãos” (Machado et al., 1978). Oli- do esclarecer quais foram as condições que pos-
veira (1983), ao retomar este trabalho, acen- sibilitaram a sua emergência. De outro lado,
tua o fato deste projeto de medicina social ter não se pode deixar de reconhecer o que há de
sido organizado numa formação social cujo altamente positivo neste estudo, e alguns des-
grupo social mais importante é agrário-expor- ses pontos podem ser sintetizados na apresen-
tador, baseado em mão-de-obra escrava. Por- tação de Costa (1978), quando diz: “Não seria
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legítimo interpretar um texto que se quer tes- crise. Moraes (1983) sintetiza esse período no
temunha e não juiz da história”, como também qual o escravismo irá ceder lugar a outras for-
o de salientar o esforço dos autores “de provar mas de produção pré-capitalistas (nas regiões
que não há por que pensar poder e saber imo- Norte e Nordeste) e capitalistas (São Paulo e
bilizados numa polaridade maniqueísta”. Rio de Janeiro). A expansão cafeeira irá colo-
car como problema fundamental a substitui-
A questão da saúde ção da mão-de-obra escrava, que virá encon-
no período de 1870-1930 trar nos imigrantes europeus a constituição
de uma nova força de trabalho. A ocorrência
Na continuidade dos estudos que tentaram de um processo de modernização da capital
dar conta da reconstrução histórico-social da do Império será acompanhada de um proces-
saúde, verificou-se que havia necessidade de so político de centralização do Estado Impe-
aprofundar o conhecimento de um amplo pe- rial, que irá entrar em crise após 1870. Ocor-
ríodo da história brasileira – de 1870 a 1930. rências como o fortalecimento do Exército, a
Luz (1982), que orientou diversos projetos de crise entre a Igreja e o Estado, a crise e dete-
investigação histórica na saúde, acentuava o rioração do Partido Liberal, com o crescimen-
fato de que “a questão da saúde na formação to da ideologia republicana, pressões externas
brasileira adquire, no período de 1870-1930, e internas contra a escravidão, a política infla-
contornos mais nítidos e definidos que em ou- cionária dos anos 80, revelam a transição do
tras conjunturas, dada a particularidade do escravismo para o capitalismo e da Monarquia
momento de bruscas mudanças no conjunto para a República.
da sociedade”. São apontados pela autora, que João Cruz Costa (1967), em Contribuição
no plano interno, ocorre a crise do modelo im- à história das idéias no Brasil, escreveu: “O de-
perial escravagista e no externo uma redefini- cênio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável
ção da hegemonia nacional do capitalismo. Pa- de quantos no século XIX constituíram a nos-
ra este período definem-se 4 subconjunturas: sa vida espiritual. (...) Até 1868, o catolicismo
(1) 1870-1889, (2) 1889-1894, (3) 1894-1918 e reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais
(4) 1918-1930. leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e
Tomando esta orientação cronológica co- eclética, a mais insignificante oposição; a au-
mo ponto de partida são enumerados alguns toridade das instituições monárquicas, o me-
trabalhos que se dedicaram de diferentes ma- nor ataque sério por qualquer classe do povo;
neiras e com objetivos diversos a pesquisar as a instituição servil e os direitos tradicionais do
questões da saúde nessas conjunturas em dis- feudalismo prático dos grandes proprietários,
tintas realidades brasileiras: Mascarenhas a mais indireta opugnação; o romantismo, com
(1949), Blount (1971), Oliveira (1983), Mehry os seus doces, enganosos e encantadores cis-
(1985), Moraes (1983), Costa (1985), Bodstein mares, a mais apagada desavença reatora. Tu-
(1984), Bertolli Filho (1986), Santos (1987), do tinha adormecido à sombra do manto do
Ribeiro (1993), Telarolli Jr. (1993), Hochman príncipe feliz que havia acabado com o caudi-
(1998). lhismo nas províncias e na América do Sul e
Sem a pretensão de ser exaustivo na revi- preparado a engrenagem da peça política de
são, verifica-se, pela relação, que o tema, pau- centralização mais coesa que já uma vez houve
latinamente, vem atraindo o interesse dos es- na história de um grande país. De repente, por
tudiosos. Também, não se pretende tratar de- um movimento subterrâneo, que vinha de lon-
talhadamente de todas as obras citadas, mas ge, a instabilidade de todas as coisas se mos-
situar seus principais aspectos. Torna-se ne- trou e o sofisma do Império apareceu em toda
cessário, entretanto, de forma geral, delinear a sua nudez”.
alguns pontos que demarquem esse período Em realidade, duas questões que merece-
que vem merecendo tanta atenção daqueles riam uma análise mais detalhada, mas que fo-
que se dedicam ao estudo da saúde pública. gem ao nosso objeto, a questão militar e a
questão religiosa, serão cruciais nesse perío-
Características gerais do período do. Cumpre destacar que “O momento de cri-
se faz surgir propostas variadas. Os médicos,
Os historiadores são unânimes em analisar reunidos em associações corporativas, desen-
o período de vinte anos que antecedem a Pro- volvem modelos de cura da sociedade. Advo-
clamação da República como de transição e gados propõem novas relações jurídicas e de
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Nunes, E. D.

poder. Militares contestam o poder e o siste- rariado, como também há crescente aumento
ma hierárquico, etc.” (Moraes, 1983). Em re- do custo de vida e baixa salarial. Constantes
sumo: impunha-se uma estrutura de poder di- rebeliões irão ocorrer: 1912, 1914, 1915, 1930.
ferente da até então vigente – a República. Co- Época marcada por profundas mudanças e
mo escrevem Santos e colaboradores (1964), rupturas, com crescente complexificação da
“a República resultou das lutas travadas pelos vida urbana.
grandes contingentes urbanos das camadas Mehry (1985) lembra que, embora possam
médias apoiados por todos os setores popula- existir diferentes interpretações sobre o pri-
res da nação, da burguesia nascente e fração meiro período da República, “é de consenso,
do latifúndio do café que abandonara o tra- entretanto, que o processo de instauração da
balho escravo”. De fato, nesse momento, a par- República no Brasil reflete especificações pró-
ticipação do operariado, embora tenha esta- prias do desenvolvimento capitalista especifi-
do presente, será pequena, dado a sua insipiên- co nessa sociedade, não reproduzindo os mes-
cia, e o Exército “representou a vanguarda da mos passos do desenvolvimento social dos paí-
classe média e de todas as classes sociais que ses centrais. Portanto, as relações entre capi-
apoiava a mudança do regime”. As formas de tal industrial e agrário, entre burguesia e re-
resistência do operariado irão ocorrer mais in- volução democrática, obedecem a padrões pró-
tensamente no período que se estende de 1917 prios de desenvolvimento”.
e 1919, através de inúmeras greves, movimen-
to que recebeu detalhada análise por parte de
Soares (1985). Nesse estudo a autora situa, pa- Revendo os estudos
ra o período de 1890 a 1920, as reivindicações
de saúde feitas pelos trabalhadores. Dentro da linha de pesquisas inauguradas por
Das diversas conjunturas que formam a Machado e colaboradores, coloca-se o traba-
República Velha, a primeira, conhecida como lho de Oliveira (1983) que ao abranger o pe-
a “República da Espada”, os historiadores mar- ríodo de 1866-1896, busca esclarecer o papel
cam como sendo o período em que se estabe- dos intelectuais formuladores de discursos
lecem as alianças entre os militares e os cafei- científicos e políticos, em especial aqueles di-
cultores paulistas. Os primeiros, marcadamen- rigidos a promover a intervenção médica no
te positivistas, pretendem dar a característica corpo social. O pressuposto é que se podem
ideológica à República; os cafeicultores que- estudar “os projetos médico-sociais, como uma
riam o federalismo, o liberalismo econômico e das bases sobre a qual se apoiam tentativas de
político, uma nova Constituição; é uma épo- dominação de uma determinada fração ou
ca de crises, com sucessivas rebeliões milita- classe sobre as demais” (Oliveira, 1983). Para
res e quedas de ministros. Se, de um lado, o tal, há necessidade de articular ideologia po-
Exército defende a centralização político-ad- lítica e científica. A fim de tratar estes pressu-
ministrativa, de outro, os cafeicultores viam postos, o autor analisa a maneira como se es-
na descentralização a solução para os proble- truturou o modelo experimental que informa
mas. Em conseqüência, ocorre a ruptura da o sanitarismo no Brasil. Para isso, toma as pro-
aliança. postas desenvolvidas por dois grupos que eram
Esse período, que vai de 1889 a 1894, será contemporâneos: a Sociedade de Medicina e
sucedido por outra conjuntura, na qual os ca- Cirurgia do Rio de Janeiro e a “Escola Tropica-
feicultores aliam-se às oligarquias regionais lista Baiana”.
dominantes, em São Paulo e Minas Gerais, Como explica Oliveira, “No sentido de
com predomínio dos interesses da exploração apresentar o modelo de conhecimento de am-
do café sobre o conjunto da sociedade nacio- bas, tomamos, como exemplo, a ancilostomía-
nal. Esta conjuntura estende-se de 1894 a 1914, se, doença muito freqüente no Brasil. Procu-
no momento em que o Brasil se vê atingido ramos demonstrar como estes dois projetos
pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, com de medicina social, partindo de pressupostos
a diminuição das importações de café e bor- teóricos bastante diversos, ao trabalhar com
racha. A crise do modelo será a principal ca- os mesmos elementos – clima, habitação, cos-
racterística da conjuntura de 1914 a 1930, ou tumes, condições sociais, condições geográfi-
seja, a do modelo agro-exportador. Com ele cas – delineiam objetos e desenvolvem teorias
instala-se não somente um forte controle social também bastante diversas” (Oliveira, 1983).
e institucional das camadas médias e do ope- Outras doenças como o beribéri e o cólera são
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analisadas do ponto de vista da “Escola Tro- exclusividade do saber sobre a saúde”. A pros-
picalista”. A análise é completada com o estu- crição do charlatanismo é ponto de honra. De-
do da organização do ensino médico, através ve-se marcar, entretanto, que a sociedade es-
das duas primeiras instituições estatais cria- tabelece um discurso médico sobre as cidades,
das no pais: a de Salvador (Bahia) e a do Rio pois estas são consideradas como as causas de
de Janeiro. É também feito um relato sucinto doenças e de desordens (Oliveira, 1983). Em
sobre a medicina legal e antropologia, que co- relação à Academia Nacional de Medicina (foi
mo afirma, “progressivamente vão suplantan- em 21 de novembro de 1891, que o Governo da
do em importância política os estudos de hi- República, modificou a denominação da Aca-
giene propriamente ditos”. De um modo ge- demia Imperial, para Academia Nacional de
ral, com este estudo pretende-se avançar na Medicina), Moraes (1983) aponta que ela “não
investigação sobre as origens institucionais da consegue, nesse período [1914 a 1930], impor
medicina social no Brasil. seu projeto médico em face da sociedade”.
Trata-se de minucioso estudo do qual al- Qual era esse projeto? Com a palavra, Mo-
gumas conclusões são importantes: (1) o cará- raes (1983): “O discurso da ANM que fala em
ter inovador da Escola Tropicalista, ao divul- atenção à população não é um projeto de me-
gar o modelo anglo-germânico que se basea- dicina de massa; a ANM luta pela universali-
va no método experimental, incluindo a divul- zação da atenção médica que se transforma-
gação do microscópio, da estatística e da ana- va, em nosso período de análise, numa práti-
tomia patológica; (2) a não-dependência ex- ca especializadora e necessariamente clínica.
clusiva dos projetos de medicina social da pro- O modelo de intervenção da ANM é um mo-
dução econômica, na medida que podem sur- delo de intervenção individualizador e que im-
gir “num momento em que a fração de classe plica vultosos custos”.
que poderia apoiá-los não fosse dominante e, Num estado com uma ideologia liberal, a
como tal, não tivesse condições de implemen- medicina se identifica com ele, em sua prática e
tá-los” (Oliveira, 1983); (3) quanto à relação no seu modelo de medicina social. Como pros-
entre os interesses do Estado e os projetos de segue o autor, “O Estado, entretanto, vive outra
medicina social, percebe-se a presença da idéia realidade e representa outros setores e alian-
do controle social, tanto no momento em que ças sociais que não estão representadas na
predomina a perspectiva da higiene através do ANM. O Estado faz do sanitarismo seu proje-
controle sanitário da população, quanto no da to médico-social dominante, no período de nos-
medicina legal, através do controle jurídico- sa análise”. Tanto assim, que em 1923 é cria-
adminisitrativo. da, no Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira
O trabalho de Moraes (1983) irá também de Higiene e, em 1927, o Sindicato Médico do
procurar desvendar, numa conjuntura especí- Rio de Janeiro.
fica – o período de 1914-1930 –, o discurso da Qual é o projeto do Estado, em relação à
Academia Nacional de Medicina e da impren- saúde? É o campanhismo. O modelo de médi-
sa, através do jornal O Estado de São Paulo, so- co e de cientista é Oswaldo Cruz. O saber as-
bre a saúde, ou seja, a análise do discurso de senta-se na pesquisa e na experimentação. Ob-
uma instituição e sobre uma instituição. Ma- jetivo: combater as endemias e as epidemias.
chado (1978) já havia apontado que, desde Mil novecentos e dezoito é um ano marcado
1829, quando surge a Sociedade de Medicina e pela gripe espanhola e 1928 pelo ressurgimen-
Cirurgia do Rio de Janeiro e depois a Acade- to da febre amarela. Lembre-se que Oswaldo
mia Imperial de Medicina (instituída através Cruz desenvolveu toda a sua ação, que se ini-
de decreto regencial, em 8/5/1835), essas ins- cia em 1900, fora dos quadros da ANM, não
tituições estabelecem como seus objetivos a de- tendo esta se envolvido nas campanhas sani-
fesa da ciência médica e a preocupação com a tárias. O Instituto Oswaldo Cruz (esta deno-
saúde pública. Importante destacar a defesa minação foi dada pelo Governo Federal em
do saber médico e sua relação com o Estado, 1908), cujo nome anterior era Instituto Man-
na medida que “ao mesmo tempo em que a me- guinhos, tem a sua origem no Instituto Soro-
dicina enquanto medicina social oferece ao terápico Federal, inaugurado oficialmente em
Estado seus préstimos no combate às epide- 30 de julho de 1900. Interessante que em sua
mias, na elaboração da legislação, distribui- pesquisa, Moraes (1983) vai dialogar também
ção da justiça, urbanização, cobra dele a luta com a “opinião pública” quando exposta por
contra o charlatanismo e o reconhecimento da um órgão da imprensa, o jornal O Estado de São
258
Nunes, E. D.

Paulo – “um jornal que tem como compromis- ca em suas diversas áreas, o que levaria os Es-
so apaziguar as contradições e os conflitos so- tados mais capacitados a criarem inúmeros ór-
ciais sem despertar a população para os peri- gãos sanitários. Lembre-se, também, que a po-
gos que a ‘desordem’ representa”. lítica de Oswaldo Cruz deixa de lado a questão
Analisando conjuntamente o papel dos in- da tuberculose, primeira causa de morte du-
telectuais da Academia Nacional de Medicina rante todo o período de 1890 a 1934, e dedica-
e de O Estado de São Paulo, Moraes (1983), se às doenças epidêmicas, como pode ser vis-
conclui que “isolados social e politicamente, to no estudo de Bodstein (1984).
lutam por impor seus projetos, que têm em Mehry (1985) privilegia em seu trabalho o
comum a tutela da sociedade e a possibilida- Estado de São Paulo, que nesse momento já se
de de, com seus saberes e práticas, ajudarem a tornava o pólo econômico e social mais impor-
gerir a sociedade e o Estado. Os projetos médi- tante do Brasil. A proposta é exatamente saber
co-sociais no ESP e na ANM não expressam como o conjunto das práticas sanitárias con-
apenas o autoritarismo e a exclusão de seto- tribuiu para a organização da sociedade, se-
res populares em sua discussão ou imposição; gundo os interesses dominantes da oligarquia
eles têm em comum a busca do poder que de- agro-exportadora, cuja fração hegemônica era
veria acompanhar cada prática e saber”. ligada ao setor cafeeiro em Minas Gerais e São
Novamente, a referência à análise de Car- Paulo (Mehry 1985). Considere-se que esta
valho e Lima (1992) torna-se necessária, quan- perspectiva de análise irá questionar, como es-
do situam que o problema nesse trabalho é “o clarece o autor, as bases metodológicas de um
estabelecimento de correlações imediatas en- dos primeiros estudos sobre a administração
tre os modelos de conhecimento científico e sanitária em São Paulo, escrito por Rodolfo
interesses de grupos e classes sociais, que são Mascarenhas, em 1949. Nesse estudo, como nos
igualmente pouco qualificados”. Acrescentam, de Blount (1971), as práticas no campo da saú-
também, que “uma constante nesses trabalhos de pública são analisadas a partir do tipo de
parece ser a pouca historicidade conferida à conhecimento que se incorpora nas estruturas
noção de cidade no Brasil daquele contexto”. dos serviços e que acabam se concentrando no
Contemporâneos do trabalho de Moraes estudo da obra científica de “grandes” perso-
(1983) são os de Costa e de Mehry, apresenta- nagens históricos, considerados “portadores
dos inicialmente como dissertações de mestra- da ciência”, ou centrados na análise da organi-
do e publicados posteriormente. Ambos vol- zação institucional da saúde pública, ou seja,
tam-se para a análise do saber/práticas sani- passa-se a tentar entender o campo das práti-
tárias/instituições de saúde e suas relações, no cas através de instituições específicas.
espaço criado pelo impacto das transforma- Em resumo: identificar e solucionar os pro-
ções econômicas e políticas das três primeiras blemas sanitários é atribuição das ciências e
décadas deste século, ou seja, de como as polí- de seus portadores, os técnicos. Quando os
ticas de saúde responderam às demandas his- problemas persistem, a culpa é a inexistência
tóricas do capitalismo brasileiro. No caso de de um conhecimento naquele momento, ou se
Costa (1985), para demonstrar como se deu a deve “à irracionalidade da administração dos
ascensão da vertente sanitarista, o autor estu- meios necessários para efetivá-los” (Mehry,
da dois grandes momentos políticos: a “con- 1985). De outro lado, “O avanço histórico de
juntura Oswaldo Cruz”, inaugurando a organi- determinados conhecimentos científicos obe-
zação da saúde e moldes científicos com base dece a um sentido linear e evolutivo”, em es-
na bacteriologia e microbiologia, assim como pecial na medida que as pesquisas se realizam
das ações voltadas para a imanização através no quadro de referência do método científi-
de vacinas; e o período de 1918-1924, marca- co, nos padrões das ciências naturais (Mehry,
do pela criação do Departamento Nacional de 1985). Ou seja, tendo como base “a fé na ciên-
Saúde Pública e pelas Reformas Sanitárias de cia experimental biomédica”, como escreve Luz
Carlos Chagas. Coloca em evidência a ocor- (1982), ao se referir a Oswaldo Cruz e ao seu
rência, nesse período, de um processo de ins- projeto científico, que era também um proje-
titucionalização e rotinização de medidas sa- to político, traduzido no sanitarismo, como já
nitárias com a criação de diversos aparelhos foi referido em outro momento deste traba-
estatais de saúde pública. Deve-se mencionar lho.
que a Constituição de 1891 irá determinar que A base do conhecimento é a bacteriologia
os Estados são responsáveis pela saúde públi- e a personalidade que se destaca é Emílio Ri-
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bas, cujo papel, de 1897 até 1917, é marcante doutorado na Tulane University. Posterior-
frente à diretoria do Serviço Sanitário Esta- mente, o autor escreveu um resumo deste tra-
dual, e mostra “a consolidação da era pasteu- balho, publicado na Revista de Administração
riana da Saúde Pública paulista” (Mehry, de Empresas, em 1972. Seu estudo sobre o Ser-
1985). As suas práticas visam atingir algumas viço Sanitário do Estado de São Paulo cobre o
doenças infectocontagiosas e “confere-lhes período de 1892-1918, sendo bastante deta-
uma razoável capacidade para responder ade- lhado. O autor chama a atenção para o fato de
quadamente aos surtos epidêmicos” (Mehry, que “o movimento sanitário de São Paulo é in-
1985), mas, como é analisado, não há interfe- comum na história da saúde mundial, por cau-
rência nas condições determinantes da dete- sa da maneira como se desenvolveu e a rapi-
rioração das condições de vida e de trabalho. dez com que foi implementado. A campanha
Na medida que este modelo da atuação de ca- foi similar em alguns aspectos à política de
ráter campanhista e mesmo o arcaísmo do Có- saúde desenvolvida por Bismark na Alemanha”.
digo Sanitário, aliado à estrutura dos serviços, O período em estudo teve como fontes impor-
não conseguem ser suficientes, a saúde públi- tantes de informação três jornais que se tor-
ca começa a perder o monopólio dos serviços naram porta-vozes da causa republicana: O
(Mehry, 1985). Blount (1971), em sua tese, es- Estado de São Paulo, o Correio Paulistano e o
creve sobre “The Era of Emílio Ribas” e assi- Diário Popular.
nala que “de muitas maneiras, a campanha de A importância deste estudo revela-se, entre
Ribas (refere-se ao controle dos surtos de fe- outros aspectos, por ter chamado a atenção
bre amarela) em São Paulo precede e fornece para o fato que, tanto os políticos paulistas, co-
um exemplo para as campanhas sanitárias da mo os diretores de serviços, aceitaram e apli-
cidade do Rio de Janeiro por Oswaldo Cruz. caram rapidamente as descobertas da revolu-
As inovações paulistas em sanitarismo e higie- ção bacteriológica, demonstrando inclusive,
ne, e os políticos que apoiaram estes progra- pelo estabelecimento de um vasto complexo
mas de saúde, foram parcialmente responsá- institucional voltado para a pesquisa e produ-
veis pelo uso posterior de técnicas similares ção de vacinas. De outro lado, enfatiza que o
na capital nacional”. Isto comprovaria, segun- avanço da intervenção estatal em saneamen-
do Santos (1980), a tese da descentralização do to e higiene em São Paulo foi devido ao inten-
poder, no momento em que “mecanismos de so programa defendido pelos interesses dos
centralização estavam operando em escala na- proprietários paulistas em trazer imigrantes
cional”. Para este autor, endossando as obser- para o Brasil. Segundo Blount (1971), era ne-
vações de Blount (1971), há, entretanto, uma cessário que se tomassem medidas de saúde,
outra explicação: São Paulo, desde a época do pois a imigração aumentava a possibilidade de
Império, já encaminhava medidas sanitárias, doenças, mas estas, também, impediam que os
que teriam sido a base de “progressos subse- imigrantes se sentissem atraídos para locais
qüentes”. que se mantivessem insalubres. Santos (1980)
A partir dos anos 20, mudanças ocorrem; aponta que a hipótese que relaciona os inte-
entre elas, assiste-se à ascensão da assistência resses do café à imigração, em conseqüência
médica individual. No campo da saúde públi- ao movimento de saúde pública, necessita ser
ca, a reformulação viria com o dr. Geraldo Ho- melhor especificada. Não pode, segundo a sua
rácio de Paula Souza, designado diretor do Ser- visão, ser apontada como o único fator expli-
viço Sanitário Estadual, em 1922. Com ele cativo do movimento sanitário paulista.
inaugura-se, em 1925, a primeira reforma da Antes de se comentar a questão da imigra-
fase chamada “médico-sanitária”, onde o pro- ção é interessante assinalar algumas críticas
jeto de saúde estará claramente vinculado às feitas ao trabalho de Blount, que de certa for-
ações da Educação Sanitária, realizadas atra- ma, segue o sempre destacado estudo de Mas-
vés dos Centros de Saúde. Assim, a Saúde Pú- carenhas (1949). Para Telarolli Junior (1993),
blica deve ter um caráter social, promovendo o trabalho de Mascarenhas segue a tradição
e protegendo a saúde. que decorre de uma concepção de história do-
Quase todos os estudos sobre a saúde no minante no Brasil nos anos 40, ou seja, “de
período da República Velha citam a pesquisa uma sucessão linear de acontecimentos pro-
de Blount, também já referida nesta apresen- duzidos exclusivamente pela ação dos dirigen-
tação. Trata-se de um trabalho escrito no iní- tes políticos, administradores, médicos etc.,
cio dos anos 70 e apresentado como tese de que foram se sucedendo”. O que importa na de-
260
Nunes, E. D.

terminação dos acontecimentos é a qualifica- industrial com o capital comercial, ruptura na


ção individual dos dirigentes dos serviços sa- política de saúde” (Ribeiro). Encerra o traba-
nitários. Mesmo considerando que o estudo lho com a Reforma Paula Souza que, como já
de Blount aponta para algumas relações entre foi citado anteriormente, estabelece um novo
o modelo político e a organização dos servi- modelo de atuação – a ação educativa que, co-
ços sanitários, permanece a visão de que “re- mo conclui a autora, vai expor “de forma mais
duz a complexidade dos fatos às aliterações no clara, a ideologia e o autoritarismo da prática
arcabouço legal”. sanitária”. Escamoteando as diferenças de clas-
Quanto ao tema da imigração, este volta a se, reduzindo-as a diferenças educacionais –
ser detalhadamente explorado num dos mais “o doente é responsável pela doença por ser ig-
recentes textos que trata da saúde pública em norante” –, lança no campo da saúde pública
São Paulo. Refiro-me à tese de Maria Alice Ro- a nova personagem, a educadora sanitária.
sa Ribeiro, apresentada em 1991, e publicada Dentre outras sugestões, Santos (1980) ha-
em 1993. Conforme a autora, “A experiência via sugerido que um ponto a ser melhor estu-
pioneira de constituição do mercado de tra- dado relacionava-se à influência das idéias po-
balho é o ponto de partida deste estudo sobre sitivistas na aplicação e na difusão do conhe-
a saúde pública no Estado de São Paulo. A es- cimento científico. Este será um assunto que
colha desse ponto não é aleatória, já que en- Ribeiro (1993) irá abordar. Nesse trabalho fi-
tendo que o Estado ao assumir a responsabi- ca demonstrado que, em São Paulo, a influên-
lidade de criar o mercado de trabalho livre não cia do comtismo foi diferente da que se desen-
pode se restringir à organização da corrente volveu no Rio de Janeiro. O dr. Luiz Pereira
imigratória, tem que estender sua ação em di- Barreto, que viria a ser o primeiro presidente
reção à montagem de uma infra-estrutura ins- da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São
titucional para atender aos problemas coloca- Paulo (1905), formado na Europa e tendo so-
dos pelo rápido crescimento da população”. O frido as influências do positivismo, chegou a
trabalho não se limita a estabelecer esta relação divulgar as idéias de Comte no Brasil. Mas veio
de maneira mecânica, mas contextualiza as a divergir do positivismo ortodoxo, pregado
amplas transformações ocorridas com a cul- no Rio de Janeiro não tendo aderido à campa-
tura cafeeira, suas repercussões na situação de- nha contra a vacinação obrigatória, movida
mográfica e como ela definiu a política imi- pelo Apostolado Positivista; segundo ele, era
gratória, que como escreve a autora, “desenhou dever do cidadão submeter-se à vacina obri-
uma distribuição da população e fixou uma gatória contra a varíola. Lopes (1988) também
densidade populacional entre as regiões do Es- reporta sobre as divergências entre os positivis-
tado, e, por fim, trouxe problemas de saúde tas, citando a posição do dr. Pereira Barreto.
pública” (Ribeiro, 1993). Tanto a questão da vacinação como a do
Estende-se o estudo na compreensão do positivismo já foram estudadas pela literatu-
processo de urbanização, como um processo ra. Sevcenko (1984) analisa a Revolta da Vaci-
originário da própria expansão cafeeira e pos- na; Lopes (1988) retoma o tema, assim como
teriormente estimulado pela industrialização Meihy e Bertolli Filho (1990). No caso de Lopes
e que ocasionaria profundas transformações, (1988), a autora faz uma leitura da Revolta da
em especial na capital do Estado. O estudo co- Vacina, no Rio de Janeiro, a partir dos alvos
bre, em quatro capítulos, quatro conjunturas: de ataque dos cariocas. No seu dizer, “A apro-
a segunda metade da década de 1880 até 1890; priação das ruas, a quebra de bondes e a cons-
de 1890 até 1914, com ênfase nos aconteci- trução de barricadas formam uma experiên-
mentos na capital de São Paulo, lembrando cia singular de alguns habitantes no espaço ur-
que, em 1911, a reforma do Código Sanitário bano. Há uma recodificação da grafia urbana
de 1894 “se encarregará de forma mais enfáti- onde os símbolos da civilização são reapro-
ca dos problemas de urbanização desordena- priados e se transformam em táticas de luta
da da Capital” (Ribeiro, 1993); de 1914 a 1920 da população. Resistência física que atinge al-
“acompanha o retorno da população ao cam- vos precisos e expressa uma trajetória do dese-
po e às cidades, no interior do Estado”, sendo jo da população amotinada”. A revolta durou
que nesse período, em 1917, é elaborado o Có- do dia 10 a 23 de novembro de 1904. As forças
digo Sanitário Rural; os anos 20, “os anos da repressivas mapearam a cidade e o estado de
ruptura” — “ruptura com o academicismo, sítio foi decretado no Rio de Janeiro e Niterói.
ruptura com o século XIX, ruptura do capital Quando a revolta foi pulverizada, “A repressão
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aproveitou para fazer uma “limpeza” preven- de isolados do passado forem mesclados com
tiva nas áreas consideradas suspeitas pelas au- outras crises que também são considerações
toridades. Os presos, em torno de setecentos, episódicas”.
aguardaram na Ilha das Cobras antes de serem Assim, o próprio estudo de Meihy e Ber-
enviados para o Acre” (Lopes, 1988). tolli Filho (1990) procura entender a Revolta
Também o tema do positivismo é trazido da Vacina num contexto no qual se inter-rela-
pela autora, quando analisa o debate entre os cionam as ações do Estado, da medicina e saú-
clínicos positivistas e os adeptos da bacterio- de e do controle popular. Quanto ao trabalho
logia e da anatomia patológica. Como escre- de Telarolli Junior (1993), nas palavras do pró-
ve, “luta política sobre a forma de gestão dos prio autor “A investigação atravessa diversos
corpos e do meio”. Todo o trabalho é no senti- momentos, estando imersa na análise históri-
do de reconstruir as práticas sanitárias e o es- ca dos correspondentes quadros demógrafo-
paço urbano. Nesse sentido, são analisadas as sanitário, econômico e político privilegiando-
críticas positivistas à vacinação, à assistência se o ponto de vista das relações entre o Esta-
médico-hospitalar e ao papel biológico-políti- do federado e os municípios”. Especifica, ain-
co da mulher. Segundo a autora: “A campanha da, ao privilegiar o estudo da febre amarela,
contra o Código Sanitário, levada pelos posi- quando afirma: “As epidemias de febre ama-
tivistas, encontra eco junto à população que rela no período (1889-1911) são o aspecto des-
se sente violentada e privada de seus direitos, tacado do ponto de vista sanitário para a iden-
através de medidas como expurgos, seqüestro tificação e estudo do conjunto de conhecimen-
e internamento de doentes em hospitais de iso- tos subjacentes ao modelo tecno-assistencial
lamento, desapropriação e demolição de mo- campanhista/policial, bem como ao modelo ge-
radias tidas como insalubres, perseguição às rencial dos serviços de saúde no Estado de São
tinas das lavadeiras, proibição de romarias e Paulo”. Também no estudo da gripe espanho-
visita aos cemitérios em época de epidemias, la de 1918, como escreve Bertolli Filho (1986),
dentre outras”. busca-se compreender “a determinação social
Antes de um rápido resumo sobre a produ- da gripe espanhola”, as “respostas coletivas e
ção que se estende dos anos 30 até a atualida- as pessoais, a reação do governo e das institui-
de, deve-se destacar que, na produção sobre a ções públicas”, no sentido de entender o im-
saúde pública na República Velha, há algumas pacto da doença sobre a cidade.
pesquisas que embora tratem de “estudos de Fundamental para a compreensão da saú-
casos”, fazem-no de maneira bastante especial. de pública brasileira na Primeira República é
Refiro-me aos estudos de Bertolli Filho (1986) o trabalho de Hochman (1998). Nele, o autor,
sobre a gripe espanhola em São Paulo, de Tela- como escreve Renato Lessa, na Apresentação,
rolli Junior (1993) sobre a febre amarela na ci- “pretende demonstrar a centralidade assumi-
dade de Araraquara (SP) e de Meihy e Bertolli da pelas políticas de saúde e saneamento, no
Filho (1990) que trata da campanha da vacina Brasil da Primeira República, no processo de
em 1904 no Rio de Janeiro, de Matos (1992) construção do Estado Nacional. Em termos
sobre a malária em São Paulo. mais diretos, aquelas políticas são apresentadas
Sem pretender resumir estes trabalhos, de- como cruciais para o alargamento da presen-
ve-se considerá-los dentro de uma linha que, ça do Estado na sociedade e no território bra-
ao privilegiar aspectos específicos, não se li- sileiros” (Hochman, 1998). Através de deta-
mitam a uma historiografia sobre os eventos. lhada pesquisa histórica associada a um den-
Meihy e Bertolli Filho têm palavras bastante so quadro de referência sociológica, às quais
esclarecedoras quando destacam a importân- se junta a análise crítica de muitos autores que
cia dos “estudos de casos”. Para eles: “Os ‘estu- estudaram a saúde pública nesse período, o
dos de casos’ quase sempre ressaltam a inevi- autor alcança plenamente os objetivos por ele
tabilidade do conflito social. Aceitando o iso- colocados, ou seja, que “uma política nacio-
lamento de algumas situações, fica então im- nal de saúde pública no Brasil foi possível e
plícita a circunstancialidade do fenômeno e viável a partir do encontro da consciência das
suas superações. Esquecendo-se que na maio- elites com seus interesses, e suas bases foram
ria das vezes os estudos da saúde devem tra- estabelecidas a partir de uma negociação en-
tar de situações recorrentes e que deitam raí- tre os estados e o poder central, tendo o fede-
zes em longínquos tempos, os recortes temáti- ralismo como moldura político-institucional”
cos só ganham sentido explicativo se, depois (Hochman, 1998). Para o autor, “Este encon-
262
Nunes, E. D.

tro foi promovido pelo movimento sanitaris- especial a criação do Departamento Nacional
ta brasileiro que buscou redefinir, entre 1910 de Saúde Pública (DNSP), em 1919. Como es-
e 1920, as fronteiras entre os sertões e o lito- creve Hochman (1998), ao traçar as considera-
ral, entre o interior e as cidades, entre o Brasil ções finais sobre esse momento da sua análise,
rural e o urbano em função do que considera- “a reforma foi o resultado de um acordo po-
vam o principal problema nacional: a saúde lítico que envolveu um grande número de pac-
pública”. tuantes, os quais abriram mão, gradativamen-
Sem a pretensão de sumarizar o extenso te, de suas posições dogmáticas iniciais, fos-
trabalho feito por Gilberto Hochman, desta- sem baseadas na Constituição, no conheci-
co um aspecto inicial que me parece extrema- mento médico ou na penúria financeira”.
mente importante. Este aspecto refere-se ao A seguir, o autor analisa “o poder central
ponto de partida deste trabalho que está cal- como solução dos problemas sanitários” e co-
cado na compreensão do movimento da refor- mo os estados aderiram prontamente à polí-
ma da saúde pública, nas primeiras décadas tica do DNSP, avaliando que “os custos da alo-
do século XX, “como um dos elementos mais cação de atividades de saúde pública no Go-
importantes no processo de construção de verno central – perda de autonomia – pode-
uma ideologia da nacionalidade, com impac- riam ser toleráveis, diante dos benefícios ad-
tos relevantes na formação do Estado brasilei- vindos dela – saneamento e profilaxia rural –
ro”. Como diz o autor, embora muitos estu- e dos custos da doença transmissível” (Hoch-
diosos, como Costa (1985), Mehry (1985), Ri- man, 1998). Sem dúvida, é neste capítulo que
beiro (1993) partilhem desta interpretação o autor exemplifica toda a construção analíti-
mais geral, seus trabalhos enfatizam aspectos ca que sustenta a sua argumentação: da inter-
específicos das políticas de saúde: interesses dependência sanitária e os benefícios e os cus-
das classes dominantes, associados “à dinâmi- tos, como diz, “percebidos e experimentados”
ca do capitalismo, tanto do ponto de vista do- pelos estados brasileiros na estatização da saú-
méstico como internacional” e “consideram de, cujo contraponto é dado pelo Estado de
os principais atores públicos, especialmente São Paulo. Para Hochman (1998), as análises
os sanitaristas e dirigentes da saúde pública, que destacam São Paulo “como o caso mais
como intelectuais subordinados aos interes- bem-sucedido na implantação de serviços sa-
ses dos grupos dominantes, nacionais e estran- nitários estaduais, discutiram a especificida-
geiros” (Hochman, 1998). Vários são os mo- de paulista, sem relacioná-la com os dilemas
delos e conceitos que orientaram o autor: o nacionais que a tornaram possível” (....) “Mi-
crescimento da interdependência social e da nha hipótese é que São Paulo foi singular não
tomada de consciência a seu respeito de De porque se tenha alijado voluntariamente da
Swaan; o conceito de poder despótico e poder questão sanitária nacional, mas justamente
infra-estrutural, de Mann; o neoinstituciona- por se ter constituído como uma resposta aos
lismo histórico, de Skocpol e Immergut. problemas de interdependência sanitária en-
De outro lado, são básicas para este traba- frentados pelas elites brasileiras”.
lho as idéias desenvolvidas por Elisa Reis em
relação às políticas econômicas, como tam-
bém, as de Luís Antônio de Castro Santos, so- Considerações finais
bre o movimento sanitarista na Primeira Re-
pública. Da identificação da doença, como um Tendo tomado como orientação geral traçar
elo de interdependência social, à sua transfor- um quadro da produção que vem se elaboran-
mação em problema político, o autor salienta do sobre a história da saúde pública, o desta-
que “as propostas de minimização dos efeitos que foi em relação aos trabalhos que tratam do
negativos da interdependência indicam que a tema até os anos 30. Ficam para uma próxima
centralização administrativa e a autonomia revisão aqueles estudos que analisaram a his-
técnica eram consideradas soluções lógicas pa- tória nos anos que se seguiram à década de
ra o problema” (Hochman, 1998). Assim, o au- 1930, período que apresenta características
tor expõe de forma detalhada a organização bastante específicas. Nesse sentido, deve-se
sanitária do início da República até meados adiantar que a partir de 1930 “emerge e toma
da década de 1910, data em que se institui a forma uma política nacional de saúde, mais
Liga Pró-Saneamento do Brasil, e as propos- precisamente, instalam-se os aparelhos neces-
tas de reforma sanitária entre 1918 e 1920, em sários a sua efetivação” (Braga e Paula, 1981).
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Apresenta essa política, como analisam os au- partilhar a posição de Carvalho e Lima (1992),
tores, um caráter “restrito” em sua amplitude quando comentam que as ciências sociais, ao
de cobertura populacional, assim como em reorientarem os estudos sobre a República Ve-
seus aspectos técnicos e financeiros. O traba- lha, já trouxeram e poderão ainda trazer im-
lho de Braga e Paula (1981), embora com ên- portantes contribuições para as pesquisas na
fase nos aspectos econômicos, fornece um qua- área da saúde. De outro lado, as próprias pes-
dro analítico importante do período que se es- quisas aqui apresentadas mostram encaminha-
tende de 1930 até o início da segunda metade mentos diversos ao tema. Dentre eles aqueles
dos anos 70, com destaque à medicina previ- que situam o desenvolvimento das práticas sa-
denciária. nitárias da Primeira República como uma for-
Outra pesquisa que irá incluir período pos- ma de assegurar a reprodução da força de tra-
terior a 30 é de autoria de Iyda (1988). Analisa balho, que, no dizer de Carvalho e Lima (1992),
a saúde pública como parte integrante na cons- não revelam toda a diferenciação que existe
tituição de um Estado burguês, englobando o quando se analisam determinadas conjuntu-
período de 1889 a 1978, e se dedica, em espe- ras desse período. E como reforço dessa idéia,
cial, ao Estado de São Paulo. citam o trabalho de Santos (1987) que valori-
Em seu mais recente trabalho, Mehry za o “exame do sanitarismo enquanto ideolo-
(1992) se detém em analisar o período de 1920 gia de construção da nacionalidade”. O traba-
a 1948, onde procura fazer uma “leitura” das lho de Hochman (1998), como foi visto neste
políticas governamentais como modelos tec- ensaio de revisão coloca-se, também, dentro
no-assistenciais que se constituem em proje- de outra vertente nos estudos sobre a saúde
tos das forças sociais; procuram-se, também, os pública na Primeira República.
vínculos que esses modelos estabelecem não só Por último e recorrendo a um ponto abor-
com as chamadas correntes tecnológicas de pen- dado por Meihy e Bertolli Filho (1990), ou se-
samento do campo das ações sanitárias, mas ja, que se deve tomar com a devida precaução
também com as questões políticas mais amplas, tanto as “histórias gerais”, como os “estudos de
colocadas em seu campo especifico – arena de- casos”, quando se voltam para a história da saú-
cisória particular –, o qual define o significa- de pública. Pois os primeiros podem ser vagos
do social das referidas ações (Mehry, 1992). e generalizadores e os outros podem reduzir,
Retomando o objeto desta apresentação, em suas especificidades, problemas amplos e
são feitas algumas considerações finais que pa- complexos. Como escrevem: “Acredita-se que
recem pertinentes à bibliografia levantada. sem a perspectiva diacrônica da relação de po-
Em primeiro lugar, a importância crescen- der e das respostas sociais colocadas na pers-
te que vem sendo dada aos estudos históricos, pectiva da “longa duração”, seria impossível
com uma produção que alia o rigor da pesqui- entender o significado de alguns fenômenos
sa histórica a uma perspectiva analítica que se que vistos estruturalmente expõem o divórcio
volta para a compreensão mais completa dos entre o discurso especializado, a vontade do
contextos sociopolíticos de onde emergem as governo e a aceitação geral das normas do tra-
práticas sanitárias. Não se pode deixar de com- tamento médico”.

Referências bibliográficas
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