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Calidoscópio

Vol. 14, n. 3, p. 550-556, set/dez 2016


Unisinos - doi: 10.4013/cld.2016.143.18

Tradução

Sobre o discurso científico e sua midiatização1


About the scientific discourse and its mediatization
Patrick Charaudeau2
Tradução: Maria Eduarda Giering3 e Luciana Cavalheiro4

RESUMO – O artigo trata do discurso de divulgação científica, partindo ABSTRACT – This paper deals with the discourse of scientific popu-
do questionamento sobre se seria uma tradução, uma reformulação ou larization, discussing if it would be a translation, a reformulation or a
uma transformação do discurso científico. Utilizando o modelo do con- transformation of scientific discourse. Making use of the communication
trato de comunicação da semiolinguística, postula-se que o discurso de contract model from Semiolingustics, we claim that the discourse of
divulgação científica depende das condições da situação de comunicação scientific popularization depends on the conditions of the communicative
nas quais se insere. Ao aparecer na mídia, ele não seria uma tradução, situation in with it emerges. In the media, this discourse would not be a
mas uma construção dependente dos processos da encenação midiática. translation, but a construction dependent on the mediatic mise-en-scéne
O discurso de midiatização da ciência (DCM) tende a ser explicativo processes. The discourse of scientific mediatisation (DSM) tends to be
(discurso didático) e a apresentar suas próprias estratégias de captação explicative (didactic discourse) and to present its own captivation strate-
(discurso midiático). Após a apresentação das características do contrato gies (mediatic discourse). After presenting the characteristics of science
de midiatização da ciência, postula-se que o DCM produz uma ruptura mediatisarion contract, we assert that DSM produces a rupture in relation
em relação ao discurso científico. Esse discurso submete-se a quatro to scientific discourse. That discourse is subordinated to four types of
tipos de restrições discursivas: visibilidade, legibilidade, seriedade e discursive restrictions: visibility, legibility, seriousness and emotionality,
emocionalidade, as quais orientam sobre modos de organização do dis- which provide guidance on discourse organization modes, textual and
curso, composição textual e paratextual, seleção e organização temática. paratextual composition, selection and thematic organization.

Palavras-chave: divulgação da ciência, mídia, discurso, contrato, Keywords: scientific popularization, media, discourse, contract, dis-
restrições discursivas. cursive restrictions.

Introdução Este é particularmente o caso, em nosso mundo


moderno, das pesquisas sobre aquilo que o homem tem
Socialmente, a divulgação científica participa de de mais sagrado: a integridade genética. Com Auschwitz,
uma finalidade que consiste em tornar acessível a um gran- símbolo da Shoa, desaba a crença na solidariedade humana
de número de indivíduos (divulgar e difundir) os resulta- em nome do pertencimento a uma mesma humanidade;
dos das pesquisas científicas. Este ato de divulgação não se com a bomba de Hiroshima, cai por terra a ideia de que o
destina a tornar os indivíduos sábios ou especialistas neste progresso científico servirá ao crescimento do bem-estar
ou naquele tema científico, mas a lhes permitir melhor de todos, tantos foram os efeitos destrutivos; com a queda
conhecer os fenômenos do mundo que nos escapam, a fim do muro de Berlim, sucumbiram o sonho de uma sociedade
de poder debatê-los quando eles apresentam problemas de igualitária e a utopia de um mundo melhor. Atualmente,
ordem moral. Trata-se, então, de uma finalidade ao mesmo com a possibilidade de agir, de modificar ou de manipular
tempo educativa e cidadã. Na verdade, só se pode debater o que está na origem da vida do homem ou da natureza,
um problema da sociedade relativo às aplicações de uma desmorona um dos últimos mistérios, o da criação.
descoberta científica ou acerca da oportunidade de seguir Ao mesmo tempo, o aspecto de cidadania do
as pesquisas num domínio dado, caso se tenha algum co- trabalho de divulgação suplanta o caráter educativo.
nhecimento das origens e das consequências da pesquisa. Trata-se mais de debater um tema social do que de for-

1
Tradução de Charaudeau, Patrick (org). La médiatisation de la science: clonage, OGM, manipulations génétiques. Bruxelles, De Boeck, 2008.
2
Universidade de Paris XIII. Laboratório de Comunicação e Política (CNRS), Paris, França. E-mail: patrick.charaudeau@free.fr
3
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, 93022-750, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: eduardajg@gmail.com
4
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, 93022-750, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: lucianaca2009@hotmail.com

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução,
adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
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necer conhecimentos e de explicar de maneira rigorosa o uma posição a ser defendida), persuasão (apresentação de
funcionamento dos fenômenos da vida. Observa-se que as estratégias de provas), segundo um raciocínio hipotético-
grandes mídias de informação se baseiam nessas questões -dedutivo (ver mais além).
que outrora só apareciam nas revistas ditas de divulgação A identidade dos parceiros é aquela dos pares, de
científica. Não se trata mais, portanto, de “divulgação”, sujeitos dos quais se supõe tenham as mesmas referências
mas de “midiatização” da ciência, e isso tem repercussão de saber especializado e partilhem uma posição de neutra-
no discurso. lidade ideológica. Dessa forma, a instância de produção
Criticam-se com frequência os trabalhos de divul- do discurso científico poderá economizar explicitações
gação, acusando-os ora de deformarem o saber científico, e usar um vocabulário especializado que se presume ser
ora de só se interessarem pelos aspectos sensacionalistas conhecido da instância de recepção. É preciso dizer que o
da pesquisa. Pode-se ver nisso, porém, algo positivo na sujeito científico, ao se expressar oralmente ou por escrito,
medida em que todo debate da sociedade desemboca, sabe que se dirige a destinatários múltiplos, ainda que
em um momento ou outro, na questão da ética: a ciência esses se encontrem numa mesma comunidade de saber, a
tratada de modo a interrogar a cidadania. comunidade científica. Na verdade, os destinatários são
portadores de posicionamentos diversos apoiados em teo-
Sobre a situação e o contrato de comunicação rias diferentes. Em vista disso, o sujeito do discurso cien-
tífico deve levar em conta os diversos posicionamentos,
O discurso de divulgação científica só pode ser as- fazendo-o responder de antemão a algumas objeções que
sim denominado em relação à definição do que se entende lhe poderiam ser feitas. Disso advém o fato de conviverem
por discurso científico. Uma primeira questão se apresenta, ao mesmo tempo a citação e a oposição.
então, aqui, ou seja, a de saber se o discurso de divulgação O tema do discurso científico é, poder-se-ia dizer,
é uma tradução, uma reformulação ou uma transformação sempre o objetivo. Ele se inscreve num macrotema, que
de um discurso de base, que seria o discurso científico. se constitui, ao mesmo tempo, a questão. Por exemplo, o
O discurso de divulgação científica aparece, por macrotema da “procriação” pode ser estudado pela bio-
definição, em uma situação de comunicação distinta da- química, pela física de moléculas, ou por uma disciplina
quela em que surge o discurso científico, caso contrário, das ciências humanas e sociais (psicologia, sociologia
por que o divulgar? A questão aqui é conhecer as caracte- etc.); em cada um desses casos, ele se especificará em
rísticas das situações nas quais surgem discurso científico variante temática.
e discurso de divulgação científica. Quanto às circunstâncias materiais de produção,
Se, como nós vamos mostrar, o discurso de di- elas são monologais, numa exposição (oral ou escrita) por
vulgação científica depende, por suas características, meio de conferências ou artigos publicados em revistas
das condições da situação de comunicação na qual ele especializadas (ou online), ou dialogais (muito mais raras),
se insere, coloca-se a questão de saber se há um ou mais quando podem se produzir trocas em colóquios ou em
tipos de situação e se, dessa forma, há um ou mais tipos encontros de pesquisadores.
de discurso de divulgação científica.
Para responder a essas questões, vamos utilizar A situação de comunicação
o modelo do “contrato de comunicação” (Charaudeau, do discurso didático5
2004), que depende da maneira como pode ser concebida
a situação de comunicação e seu dispositivo. A finalidade da situação de ensino, considerada do
ponto de vista do sujeito que ensina, se caracteriza por uma
A situação de comunicação visada tripla: de informação, de captação e de avaliação.
do discurso científico A primeira consiste em transmitir um saber (que
será concebido como um saber-objeto de conhecimento ou
A finalidade do discurso científico se caracteriza um saber-fazer) para que o aprendiz passe de um estado
por uma visada demonstrativa, um querer estabelecer de não-saber a um estado de saber. O professor se inscre-
uma verdade para a qual é necessário desenvolver uma ve nessa finalidade como um mediador entre o saber de
atividade de argumentação que situa alguns tipos de ra- referência e o aluno, desempenhando, assim, o papel de
ciocínios (axiomas e regras) e a escolha de argumentos guia. Neste caso, o saber a transmitir é concebido como um
que devem desempenhar o papel de prova. Assim, desen- objeto pré-existente representando uma verdade (seja ela
volver-se-á um discurso segundo uma organização tripla: qual for) que é considerada boa para o ser humano (caso
problematização (apresentação de um questionamento), contrário, não seria ensinada). A segunda visada consiste
posicionamento (engajamento do sujeito argumentante em em fazer face aos obstáculos que são suscetíveis de se

5
Mais exatamente, seria falar de “situação de ensino”, o didático sendo uma forma de discurso que pode se encontrar em diversas situações.

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apresentar na ocasião do processo de ensino/aprendizagem que as conduzem a empregar estratégias de autenticação


e que provêm seja de um não-querer do aluno (recusa, es- dos fatos com a ajuda de testemunhos e de documentos;
quecimento, desatenção, tédio etc.), seja de um não-poder de revelação, com a ajuda de entrevistas, de enquetes ou
(inaptidões intelectuais ou psicológicas julgadas como tais de debates; de explicação sobre o porquê e o como do
por diferentes parceiros do sistema de educação). É pre- acontecimento. A visada de captação provém da situação
ciso, dessa forma, que o professor encontre as estratégias de concorrência econômica que enfrentam as mídias: por
para captar o interesse, na verdade, o desejo do aluno. razões de sobrevivência econômica, elas devem procurar
A terceira visada consiste em verificar os resultados da atender o maior número possível de leitores, ouvintes,
aquisição do saber que se concretiza por meio de notas e/ telespectadores. Para isso, as mídias utilizam diversos
ou de apreciações. O aluno se inscreve nessa finalidade procedimentos de encenação discursiva, que tendem a
trabalhando, isto é, respondendo as instruções dadas pelo apresentar os acontecimentos do mundo de forma dra-
professor (o contrato não supõe que o aluno não trabalhe). mática, apoiando-se em crenças populares e em emoções
A identidade dos parceiros é, como diz a finalida- coletivas6. Observe-se que a finalidade da comunicação
de, assimétrica. O professor está, de um lado, investido midiática, com sua dupla visada de informação e captação,
de um poder institucional, e, de outro, pressupõe-se que é assumida em meio a três lógicas: a democrática, a de
tenha uma competência de saber e de saber-fazer rela- mercado e a de influência.
cionada com a finalidade do contrato (ele tem um saber A identidade dos parceiros, considerando a instân-
a transmitir/ ele sabe transmitir). Aquilo que ele diz deve cia de produção e de recepção, não é a mesma: a relação
ser considerado pelo aluno como a palavra da verdade. entre as duas, contrariamente à do discurso científico, é
A instituição social coloca o aluno numa posição de não- assimétrica. Na verdade, a primeira deve preencher certo
-saber, mas também como tendo o desejo de aprender número de papeis, que estão ligados às visadas da finalida-
(disso resultam problemas quando ele não manifesta esse de: selecionar, reportar e comentar o acontecimento. Cada
desejo, ou seja, quando ele não respeita o contrato.) uma dessas visadas expõe uma problemática. Selecionar
O tema do discurso didático depende da disciplina apresenta a dupla questão da escolha de acontecimentos
ensinada, cujo objeto é fragmentado por meio de um pro- e da identificação das fontes, o que mergulha as mídias
grama, o qual representa, de qualquer forma, os “objetos no dilema de ter que optar entre o furo jornalístico ou a
de verdade” que devem ser ensinados. checagem; reportar coloca o problema da fidelidade à
As circunstâncias materiais são bastante variá- verdade; comentar remete ao problema da escolha do tipo
veis, já que é possível ensinar em diferentes situações de explicação, sabendo-se que essa não pode pretender
e com ajuda de diferentes suportes, cada qual incidindo nem a cientificidade (ela seria incompreensível), nem
sobre a maneira de ensinar: situação de sala de aula, a historicidade (falta de distância e ausência de meto-
com interação entre professor e aluno; manual escolar dologia), nem à didaticidade (muito austera). Quanto à
de acompanhamento ou de substituição, EAD, suportes instância de recepção, ela é heterogênea, constituída de
tecnológicos variados etc. um conjunto muito diversificado de situações de recepção
e de indivíduos com conhecimentos e crenças difíceis de
A situação de comunicação determinar; essa instância, chamada pública, é considera-
do discurso midiático da, na verdade, como a que representa diversos conjuntos
de opinião; ela é heterogênea.
A finalidade se caracteriza por uma dupla visada: A temática das mídias de informação, sobre o
de informação e de captação. A visada de informação que elas falam, diz respeito ao que acontece no mundo e,
consiste em transmitir a outro, o cidadão, um saber que ele mais particularmente neste caso, aos acontecimentos que
supostamente ignora. Mas esta visada não se destina exa- se produzem no espaço público. Caso se postule que não
tamente a fazer o destinatário a adquirir um saber, como é jamais a realidade em estado bruto que é comunicada,
no caso da situação de ensino, mas a lhe permitir formar mas uma construção dessa realidade7, compreende-se
uma opinião. Para que esse ato se justifique, é preciso que o que as mídias não transmitem o acontecimento em estado
saber em questão possa ser reconhecido como verdadeiro. bruto, mas um acontecimento construído por elas. Essa
A visada de informação obriga a “dizer a verdade”, não construção se faz segundo três princípios: um princípio
uma verdade que pretende ser a verdade, mas uma ver- de percepção (poder ver), um princípio de saliência (ser
dade que seja verossímil. As mídias de informação têm, surpreendido) e um princípio de pregnância (poder reen-
assim, que responder a uma questão de credibilidade, o contrar o já conhecido).

6
Lembremos o modo como as mídias trataram tanto a morte da princesa de Galles quanto as guerras na Bósnia e em Kosovo. Ver: Charaudeau (2001).
7
As mortes, na realidade bruta, são apenas mortes. Para que elas signifiquem homicídios, assassínios, vítimas de uma catástrofe ou genocídio, é
preciso um discurso que simbolize essa realidade, isto é, que lhe dê um sentido. Não há relação de transparência entre o discurso e o mundo, mas
relação de opacidade. É nessa opacidade que se constrói o sentido.

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As circunstâncias materiais são constituídas pelos A situação específica do discurso de


suportes de ajuda por meio dos quais se faz a transmis- midiatização da ciência
são da informação: o suporte escrito para a imprensa, o
áudio-oral para a rádio, o audiovisual para a televisão. Em relação ao discurso de divulgação, sabendo-se
As características de cada um desses suportes induzem que ele aparece em situações de comunicação didática ou
uma maneira particular de colocar em cena o discurso de midiática, é fácil compreender que ele toma em emprésti-
informação (Charaudeau, 2005). mo características de uma e de outra e, às vezes, das duas
Observemos, então, as diferenças entre esses três ao mesmo tempo. Na verdade, não há uma situação de
tipos de situação. Discurso científico, didático e midiá- comunicação própria ao discurso de divulgação, ou, se há
tico têm, todos os três, relação com a verdade, mas de situação de comunicação, ela será sempre híbrida. Dessa
modo diferente: o discurso científico busca estabelecer forma, é preciso distinguir o que se inscreve numa situação
uma verdade, daí ser predominantemente demonstrativo; de ensino daquilo que se situa numa situação midiática.
o discurso didático procura transmitir uma verdade já Pode-se mesmo dizer que, no primeiro caso, o discurso se
estabelecida, por isso seu discurso é predominantemente confunde com o discurso didático, partilhando a mesma
explicativo (e não demonstrativo); o discurso midiático finalidade, as mesmas posições identitárias dos sujeitos
intenta descobrir uma verdade, por isso é predominante- e o mesmo tipo de tema. Em contrapartida, aparecendo
mente narrativo. numa situação midiática, o discurso tem características
As identidades dos parceiros desses três tipos que lhe são próprias. Por isso, distinguir-se-ão discurso
de situação de comunicação são igualmente diferentes: de divulgação de discurso de midiatização da ciência.
relação de simetria na posição de saber para o científico, Em sua finalidade, o discurso de midiatização
de assimetria para os dois outros. Mas essas duas últimas partilha duas visadas: de informação (fazer saber) e de
se diferenciam entre elas na medida em que, na situação captação (suscitar o interesse), mas entre elas há uma re-
de ensino, o sujeito (aquele que ensina) é reconhecido, lação contraditória. Na verdade, não se trata aqui tanto de
em princípio, como portador do saber, enquanto que, na suscitar uma opinião como no discurso midiático, mas de
situação midiática, além de o sujeito ser apenas suposta- expor ao conhecimento do público fatos já estabelecidos,
mente especializado em um saber (o jornalista especia- como no discurso didático. Por outro lado, a perspectiva
lizado), esse saber não é mais que parcial. Isso faz com é mais ampla: digamos que ela seja educativa e cultural
que o sujeito da situação de comunicação de ensino não (ainda que não sempre) e não instrucional8. Pode-se até
se coloque a questão de sua credibilidade, enquanto que o mesmo supor que às vezes se trata de suscitar uma opinião
midiático deva apresentar provas a cada instante. Do lado quando o objeto da informação científica coloca em si
da instância de interpretação, é suposto do destinatário do questões de ordem moral; sabe-se, no entanto, que isso
discurso científico ter os meios intelectuais de compreen- pode não ter o mesmo efeito que haveria se fosse o caso de
der e de discutir o que propõe o enunciador científico; em dar a conhecer um acontecimento social ou político, pois
contraposição, não se supõe dos destinatários do discurso o que permite que se molde uma opinião não é da mesma
didático e do midiático um saber, no entanto, o primeiro ordem. Isso faz com que o discurso produzido, como será
lá está para se apropriar de um saber (voluntariamente observado, tenda a ser explicativo (discurso didático),
ou por obrigação), enquanto o segundo lá se encontra produzindo suas próprias estratégias de captação (discurso
simplesmente para conhecer a existência daquilo que se midiático), e sua credibilidade dependerá do modo como
informa e, eventualmente, ter uma opinião sobre isso. são dirigidas essas estratégias.
Enfim, se a tema é o resultado de um objeto de A identidade dos parceiros esclarece-nos mais sobre
valor visto por meio de uma disciplina nas situações de essa contradição. No que tange à instância de recepção, os
comunicação científica e didática, na situação midiáti- sujeitos podem ter níveis de conhecimento diversos. Mais
ca é um acontecimento em emergência e dá ao objeto esclarecidos são os leitores das revistas especializadas; bem
um tratamento que não obedece a nenhuma disciplina menos, talvez completamente leigos, são os leitores de jor-
em particular e, ainda, encontra-se encoberto por uma nais generalistas ou populares, ou ainda telespectadores, que
encenação dramatizante. Há, no entanto, uma diferença recebem apenas informações por meio da tevê. Do lado da
nas temáticas das duas primeiras situações: a da situação instância de produção, essa especificação de públicos deve
científica é constituída por um corpus de referência e uma ser levada em conta, e o discurso de divulgação variará em
linguagem comum aos parceiros da troca, o que não é o função dessa diversidade. Mas essa variação acontecerá tam-
caso na situação didática. bém conforme a identidade do sujeito produtor do discurso

8
“Educativa e cultural” na medida em que se trata de sensibilizar de forma recreativa um público para um saber especializado com fins cidadãos
diversos (interessar os jovens, prevenir contra um mal, desenvolver tecnologias etc.). A “instrução” é transmitir um saber para se apropriar dele e
o reproduzir.

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de divulgação, que pode ser um cientista divulgando seu tome dele emprestado alguns aspectos discursivos, devi-
trabalho, como pode ocorrer em revistas especializadas ou do à identidade (um professor não é um divulgador) e à
em entrevistas, ou um jornalista especializado lançando-se finalidade (ensinar é permitir a apropriação de um saber
numa tentativa de explicação de fatos científicos. Eviden- para o reproduzir e não para formar uma opinião). Por fim,
temente as características do discurso de divulgação não uma última questão: o discurso de divulgação em geral
serão as mesmas em cada caso. Por exemplo, o cientista e o discurso de midiatização da ciência em particular se
divulgador é levado a empregar termos que ele sabe que situam, ambos, em um contínuum do discurso científico,
não correspondem aos conceitos com os quais ele trabalha, como propõe D. Jacobi (1986)? A resposta não é simples.
o que provoca nele um estado de espírito que o jornalista di- Enquanto discurso que responde ao dever de fazer co-
vulgador desconhece. E isso tem incidência sobre o discurso nhecer o resultado de pesquisas científicas permitindo o
de explicação que o cientista produz. No entanto, pode-se debate social de ordem ética, os discursos de divulgação e
pensar que esses estados de espírito são compensados pelo de midiatização participam de uma preocupação democrá-
forte desejo de popularizar a ciência (por dever educativo, tica. Porém isso acarreta uma significativa transformação
pela busca de recursos financeiros, pelo desejo de notorie- do discurso científico de origem – não fosse assim, ele
dade etc.). Em compensação, o jornalista divulgador – que não poderia ser compreendido e validado por um grande
seria um especialista – só pode justificar seu trabalho de número de leitores – produzindo uma ruptura e uma não-
divulgação pensando que toda linguagem científica pode ser -continuidade entre o discurso científico de um lado, e o
despojada de sua terminologia esotérica e traduzida numa discurso de divulgação e de midiatização de outro.
linguagem mais simples ao alcance de todos.
As características do tema nos mostram o caráter As instruções discursivas do discurso
híbrido desse tipo de discurso. Na verdade, ele corres- de midiatização
ponde a um objeto de saber como no discurso científico
e didático, porém mais frequentemente ele está desatre- Como já foi dito, esse quadro de restrições fornece
lado da disciplina a que normalmente se vincula, pois se aos dois parceiros da troca instruções discursivas, as quais
supõe que o público não possua esse corpo de referência. é preciso entender mais como instruções de comporta-
Isso produzirá um discurso explicativo sem referência mento linguageiro do que como instruções de emprego de
possível ao domínio de conhecimento ao qual pertence. formas linguísticas específicas. A situação de comunicação
Em outras palavras, o discurso de divulgação não pode não pode, na verdade, dar instruções linguísticas ou semio-
se apoiar em nenhum discurso que funda esta ou aquela lógicas que indicariam quais palavras ou qual construção
disciplina9. E, além disso, devendo satisfazer à visada de gramatical empregar, qual imagem, qual grafismo, qual
captação midiática, esse objeto de saber é transformado cor ou qual gesto utilizar, pois isso diz respeito às esco-
em acontecimento e, em vista disso, tratado segundo as lhas do sujeito falante. Em compensação, ela dirá quais
mesmas estratégias de dramatização que um acontecimen- modos de organização do discurso (descritivo, narrativo,
to qualquer. Procede-se, assim, a uma dessacralização do argumentativo), qual composição textual ou paratextual,
discurso científico, que é às vezes compensada por uma qual seleção e organização temática empregar no discurso.
espécie de ética da popularização do saber científico. Por exemplo, as instruções dadas por uma situação de
Conclui-se que se trata de falar de um discurso de comunicação publicitária dizem que, de um modo ou de
midiatização, que é distinto do discurso de divulgação, outro, deve ser apresentado o produto, do qual se precisa
pois não há uma situação de comunicação própria. Em mostrar ou sugerir benefícios, num domínio temático
compensação, pode-se determinar situações específicas que se relaciona aos problemas que se pode encontrar
como variantes da situação global midiática, levando-se na busca de bem-estar individual (juventude, prestígio,
em conta a identidade dos sujeitos produtores e a dos saúde, aparência corporal, prazer da sedução etc.). Mas
sujeitos receptores, cuja especificidade repercute sobre a essas instruções não dizem como é preciso configurar o
finalidade, se privilegiará mais a visada de credibilidade slogan, como fazer para sugerir as qualidades do produto
ou a de captação. ou como se deve representá-lo iconicamente.
Tudo isso nos leva a afirmar que, passando pelas Devido ao fato de a divulgação científica se inscre-
mídias de informação, o discurso de divulgação não é tra- ver no contrato de informação midiática como subconjunto
dução de um discurso científico de origem escrito por au- específico, submete-se a quatro tipos de restrições, que
tores especialistas de uma disciplina que se dirigem a seus encontram sua tradução em certa organização discursiva
pares, mas um discurso construído por um órgão midiático e em alguns procedimentos linguísticos: restrição de visi-
em função da finalidade de seu contrato de comunicação. bilidade, restrição de legibilidade, restrição de seriedade,
Ele não se confunde com o discurso didático, ainda que restrição de emocionalidade.

9
Para a noção de “discurso fundador” ou “discurso constituinte”, ver Maingueneau e Cossuta (1995).

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A restrição de visibilidade resultados estatísticos (histogramas, gráfico de setores,


diagramas), e de fotos infinitamente pequenas (células,
Ela conduz o órgão de informação a selecionar ape- átomos) ou infinitamente grandes (o espaço, a abóboda
nas os fatos científicos que são julgados extraordinários, celeste). Além dos procedimentos que, na verdade, desem-
estranhos, insólitos (e a nunca falar sobre aquilo que é o penham o papel de argumento de autoridade.
comum da pesquisa científica), aqueles que são suscetíveis Porém, a restrição de seriedade pode ser igualmen-
de provocar um impacto mais ou menos imediato sobre a te marcada pelo emprego de certa pontuação (aspas) acom-
vida cotidiana dos indivíduos (sobretudo em tecnologia), panhada de torneios metalinguísticos (“caso se prefira...”,
os que tocam o destino da humanidade e que são suscetí- “dito de outra forma...”, “em outras palavras...”, “como
veis de introduzir um problema de ordem moral ou ético. se poderia dizer” etc.). Esse procedimento se destina a
Esta visibilidade será colocada em cena por meio mostrar que o enunciador do discurso de divulgação é
de alguma apresentação iconográfica (aqui a imagem é consciente da distância que existe entre a linguagem
preponderante) e pela escolha de um título ou slogan que científica e a compreensão de um público aberto e que,
tenha uma força de anúncio epifânico: “O homem e seu dessa forma, é um bom mediador, um bom transmissor do
duplo” (a propósito da clonagem), “Os bebês da última conhecimento científico, traduzindo a linguagem científica
chance” (sobre a procriação médica assistida); ou uma em linguagem comum.
força de dramatização ameaçadora: “A clonagem, rumo Esta restrição pode igualmente levar o sujeito
a um novo eugenismo?”. produtor a escolher um modo de organização do discurso,
ao mesmo tempo descritivo e explicativo, que, no invés
A restrição de legibilidade de satisfazer a condição de simplicidade, procede a uma
construção do texto em diferentes partes, empregando
Ela é marcada por duas obsessões que já estão subtítulos, tornando complexa a construção frásica, empre-
presentes no discurso de informação midiático em geral gando conectores lógicos, além de se valer de retomadas
e que estão particularmente salientes em todo discurso de e de reenvios anafóricos. Mais uma vez: isso depende do
divulgação: a simplicidade e a figurabilidade. grau de especialização do suporte.
A simplicidade se traduz por meio de duas caracte- Enfim, a restrição de seriedade pode igualmente
rísticas linguísticas: uma é a da construção frásica (frases aparecer, em dosagens variáveis, por meio de um jogo
simples em proposições independentes se sucedem em dialógico de referências científicas destinadas a lembrar
justaposição e não em subordinação, frases nominais, o leitor que ele se encontra num domínio que é, ao mes-
construções sintáticas simples etc.); a outra diz respeito mo tempo, reservado aos especialistas, a menos que esse
à escolha das palavras do léxico supostamente claras e jogo de referências seja mais filosófico, quando se trata
transparentes, que devem substituir as palavras técnicas de sugerir que uma determinada descoberta científica
(sinônimos, hiperônimos, glosas, perífrases), exceto se apresenta problemas de ordem ética. Resta ver como
o objetivo é, ao contrário, produzir um efeito de cien- se opera esse jogo de referência, variável conforme os
tificidade (ver mais adiante). Evidentemente, o grau de suportes de informação.
simplificação depende do grau de especialização do órgão
de informação: maior nos suportes populares, menor nas A restrição de emocionalidade
revistas científicas.
A figurabilidade (termo emprestado de D. Jacobi, Ela é marcada por numerosos procedimentos
que, por sua vez, o buscou em Freud) (Jacobi, 1986) se já evocados, mas, neste caso, eles privilegiam efeitos
traduz em procedimentos escrito-visuais de composição afetivos: uma iconografia organizada de tal maneira, que
semiológica paratextual, que consistem em dispor de tex- produza um efeito insólito ou de ameaça (há modos e
tos, títulos e subtítulos, imagens e grafismos de maneira modos de fotografar a ovelha Dolly); um jogo de títulos
a permitir, ao mesmo tempo, uma compreensão mais e subtítulos dramatizantes, como aquele já citado (“A
imediata (por isso, frequentemente, formas simplificadas clonagem, rumo a um novo eugenismo?”).
e esquemáticas) da questão tratada e a apreensão do in- Mas essa restrição também se caracteriza por uma
teresse do leitor. Evidentemente, trata-se de suposições organização descritiva e narrativa, que ora apresenta
realizadas pelo sujeito escritor desta encenação. a pesquisa científica como uma aventura em busca da
verdade, ora antropomorfiza os elementos da natureza
A restrição de seriedade ou os componentes químicos do organismo, concedendo-
-lhes intenções, convertendo-os em agentes ativos que
Esta restrição é marcada por alguns dos mesmos têm intenção e projeto de busca: “O embrião humano
empregos utilizados para assegurar a legibilidade do terá êxito ao impor sua vontade aos pesquisadores?”.
discurso de divulgação, a saber, a encenação de uma Da mesma forma, pode-se empregar um vocabulário me-
iconografia que apresenta tabelas, esquemas, figuras de tafórico e metonímico que transforme elementos inertes

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ou sem aptidão cognitiva em personagens de narrativas fonte esotérico, nem o traduz realmente. Ele o constrói por
mais ou menos míticas. meio da espetacularização, ele o mostra, ele o exibe sem
Com esse mesmo fim, desenvolve-se um discurso nunca o apagar”. É essa última linha que nós seguimos, já
explicativo que utiliza abundantemente a comparação e que consideramos que o discurso de divulgação, ao passar
a analogia, às vezes anunciadas por um “é como se...” pelas mídias, não é uma tradução do discurso científico,
mas uma construção dependente dos procedimentos da
Conclusão encenação midiática.9

A divulgação científica tem sido objeto de diversos Referências


estudos: a divulgação concebida como tradução de um
CHARAUDEAU, P. 2005. Les médias et l’information: l’impossible
texto científico fonte por um mediador que desempenha transparence du discours. Bruxelles, De Boeck-Ina, 250 p.
o papel de intermediário entre uma linguagem especia- CHARAUDEAU, P. 2004. Le contrat de communication dans une
lizada e uma linguagem comum, tese que prevalecia na perspective langagière: contraintes psychosociales et contraintes
discursives. In: M. BROMBERG; A. TROGNON (éds.), Psycholo-
sociologia da comunicação ao longo dos anos 1960; a gie sociale et communication. Paris, Dunod. Disponível em : http://
“retórica da divulgação”, que segue a posição prece- www.patrick-charaudeau.com/Le-contrat-de-communication-
dente, reforçando-a por meio de uma análise de modos -dans,89.html.
CHARAUDEAU, P. 2001 (éd.). La télévision et la guerre: Déformation
de reformulação de escritos científicos, procedendo a ou construction de la réalité ? Le conflit en Bosnie (1990-1994).
uma classificação que distingue esse tipo de discurso, ao Louvain-la-Neuve, De Boeck Supérieur, 168 p.
mesmo tempo, do discurso científico, do didático e do JACOBI, D. 1986. Diffusion et vulgarisation: itinéraires du texte scien-
enciclopédico; os trabalhos linguísticos mais recentes que tifique. Annales littéraires de l’Université de Besançon. Paris, Les
Belles Lettres, 186 p.
deixam entender (mais do que eles demonstram) que “o MAINGUENEAU, D ; COSSUTTA, F. 1995. L’Analyse des discours
discurso de divulgação científica não substitui o discurso constituints. Langages, 29(117):112-125.

10
Ver sobre isso: Jacobi (1986).

556 Patrick Charaudeau

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