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CURSO DE FILOSOFIA B-LEARNING

2º ANO

DISCIPLINA DE BIOÉTICA

TRABALHO ONLINE I

O QUE É A BIOÉTICA

Aluno: José António do Amaral (nº 135 915 501)

1
2
TRABALHO ONLINE I

O QUE É A BIOÉTICA

1. INTRODUÇÃO

A pergunta que está na origem do trabalho é bem clara: “O que é a Bioética?”. E


nada mais adequado para início de uma resposta fundamentada, ainda que
necessariamente incompleta, dada a extensão do tema, do que analisar a etimologia do
vocábulo.

Bioética. Trata-se de uma palavra composta pela junção do prefixo bio (do grego
bios, referente ao vivente) à palavra ética (ainda do grego ethos, originalmente costume,
hábito, que evolui depois para conduta, carácter, com sentido de justiça e legalidade).
Neste binómio revela-se ainda numa adição de domínios: o domínio do biológico,
referente ao que é vivo, e a noção de ética, disciplina que no seu senso mais lato, se
dedica ao estudo do agir do ser humano, propondo-se consignar um conjunto de normas
e práticas (deontologias) que devem nortear essa mesma agência humana, na sua relação
com os semelhantes e enfim, no seu senso ainda mais alargado, com o mundo vivo. Dito
de um modo simplificado, ainda que não simplista, pode dizer-se que a bioética estuda a
aplicação da ética (necessariamente humana, já que não nos é dado conhecer outra) à
relação com o vivente, em particular à inter-relação entre humanos.

2. DAS ORIGENS AO PRESENTE

Considerando a amplitude do tema, tal como foi apresentado no parágrafo anterior, é


forçoso reconhecer que a preocupação com as implicações morais das práticas humanas
que se exercem sobre o mundo vivo, são muito antigas, e podem datar-se desde a

3
Antiguidade Clássica. O famoso Juramento de Hipócrates, que remonta a 500 A.C., é
certamente um dos paradigmas da ética médica e ainda hoje se actualiza no ritual de
acesso à profissão, que se entroniza o jovem médico recém-licenciado no poder que é o
acto médico, exercido sobre um outro, o paciente, em geral dependente e diminuído,
também o confronta com a responsabilidade, de agir sobre esse outro, que deposita nele
a sua confiança, segundo códigos (deontológicos) bem determinados e consistentes,
comummente aceites pela sociedade do seu tempo1. Recuando ainda mais, podem citar-
se as recomendações para a prática da medicina contidas no Código de Hamurabi (1750
A.C.), como exemplo preclaro da antiguidade do pensamento ético sobre as práticas da
medicina.

Mas é isto, este conjunto de preocupações e regras de conduta, uma boa definição de
bioética?

Na verdade, o pensamento estruturado e fundamentado que configura o que se pode


entender por bioética, como se veremos mais adiante, é algo mais, e a sua origem deve
ser procurada em tempos mais recentes.

Para Sass (2007)2 deve-se a Fritz Jahr, em três artigos datados de 1927, 1928 e 1934,
que se debruçam sobre as implicações éticas que decorrem do uso de animais e plantas
na investigação científica, a proposta da designação “Bio-Ethik” e a primazia no uso do
conceito «imperativo bioético»3 que pretende expressar o «respeito por cada ser vivo,
por princípio, como fim em si, tratando-o em conformidade, sempre que possível» .
Mais tarde, nos anos 70 do século passado, o bioquímico americano e especialista em
cancro, Van Rensselaer Potter, influenciado pela trabalho do ético e conservacionista
Aldo Leopold, publica um artigo «Bioética, a Ciência da Sobrevivência» (1970) em que
propõe o termo bioética para descrever as ligações da biologia, ecologia e medicina,
com a ética4. O aprofundamento da investigação leva-o a propor, em novo artigo

1
Refira-se a este propósito a contribuição de Thomas Percival, em publicação de 1803, «Ética Médica»,
em que preconizava um código de ética para os profissionais de saúde, que esteve na base de muitos
códigos deontológicos na Europa e no Novo Mundo.
2
Sass, H. M., «Fritz Jahr’s Bioethischer Imperativ». 80 Jahre Bioethik in Deutschland von 1927 bis 2007.
Bochum: Zentrum für Medizinische Ethik, 2007.
3
A ressonância kantiana está longe de ser coincidência (Lolas, Fernando, «Bioethics and animal research:
A personal perspective and a note on the contribution of Fritz Jahr» (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/
pmc/articles/PMC2997650).
4
Levine, C., «Analizing Pandora’s box. The history of Bioethics», in Eckenwiler, Lisa A. and Felicia G.
Cohn, eds. The Ethics of Bioethics. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2007., p. 3.

4
«Bioética: uma ponte para o futuro» publicado no ano seguinte, a bioética como um elo
privilegiado entre os campos das ciências (naturais) e as humanidades5.

Refira-se ainda que a proeminência e maior visibilidade da vertente aplicada à


prática médica, quando se fala de bioética, associação que é de longe a mais corrente e
divulgada, se deve, ainda que não exclusivamente, ao grande incremento da
investigação na área das biotecnologias e do aprofundamento do conhecimento em
direção ao desvendar dos “grandes mistérios da vida”, que requerem igual prudência no
uso e nas práticas que lhe são associadas, quando se fala de seres humanos. Há no
entanto que salientar que esta relevância da ética médica para a bioética, radica no
trabalho desenvolvido na década de 70, por Sargent Shriver, que propõe o termo
bioética nos seus debates com André Hellegers, médico e padre jesuíta, debates que
estiveram na origem da fundação do Kennedy Center for the Study of Human
Reproduction and Bioethics, mais conhecido como Kennedy Institute of Ethics, pioneiro
no domínio da investigação da ética aplicada à prática médica, balizando o campo e o
desenvolvimento futuro desta área de investigação6, que muito devido às crescentes
preocupações com o potencial de intervenção humana no destino da humanidade, se
tornou uma preocupação central das sociedades modernas e ocupa hoje um lugar
importante na agenda mediática internacional. A essa proeminência não será alheio
ainda, o trauma provocado pela descoberta dos horrendos crimes de guerra perpetrados
por “conscienciosos” e proficientes médicos nazis, nos campos de concentração durante
a segunda guerra, cuja expiação em Nuremberga, se traduziu também por uma
preocupação acrescida com a regulação ética da prática da medicina, e sobretudo da
investigação médica.

Um passo decisivo para a internacionalização das preocupações com as implicações


éticas da progressão exponencial do potencial transformador proporcionado pelo
notável desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos anos, foi sem dúvida a
consagração pela UNESCO, em 2005, da Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos7. Nesta declaração os estados-membros comprometem-se, citando

5
Que Potter virá mais tarde, aquando do crescimento crescente da Bioética com a problemática
emergente da relação genética/tecnologia, a rebaptizar como bioética global (Potter, 1998).
6
Levine, C., «Analizing Pandora’s box. The history of Bioethics», in Eckenwiler, Lisa A. and Felicia G.
Cohn, eds. The Ethics of Bioethics. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2007, p. 3.
7
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Comissão Nacional da
Unesco – Portugal, «Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos», UNESCO, 2006.

5
«…a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética condensados num texto
único...» texto que consigna as «…questões éticas suscitadas pela medicina, ciências
da vida e tecnologias associadas na sua aplicação aos seres humanos…» e incorpora
princípios e regras que visam nortear «…o respeito pela dignidade humana, pelos
direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ao consagrar a bioética entre os
direitos humanos internacionais e ao garantir o respeito pela vida dos seres humanos,
a Declaração reconhece a interligação que existe entre ética e direitos humanos no
domínio específico da bioética.». Note-se ainda que em conjunto com a Declaração, a
Conferência Geral da UNESCO adoptou uma resolução em que insta os estados-
membros a desenvolver esforços no sentido da efectiva aplicação dos princípios
enunciados na Declaração.

A Declaração dirige-se fundamentalmente à prática médica e investigação nos


campos da medicina e das ciências da vida, e visa proteger a dignidade da vida humana,
exprimindo todavia, nos seus Art.º 16º e 17º, igual preocupação com as gerações futuras
e com o meio ambiente (biosfera e biodiversidade). Preconiza igualmente metodologias
de aplicação dos princípios que enuncia, sugere práticas transnacionais e mecanismos
para avaliação e gestão de riscos.

Esta preocupação com o meio ambiente (lato senso) recorda a investigação do


filósofo e teólogo alemão Hans Jonas na sua inovadora (à época) proposta de uma
“Ética da Responsabilidade8” que continua mais que nunca, na ordem do dia. O seu
livro pioneiro e fundamental «The Imperative of Responsibility in Search of the Ethics
for the Technological Era», constitui até hoje, a mais fecunda e sólida reflexão sobre o
carácter da acção humana e suas consequências sobre a natureza, resultantes do poder
da tecnologia e a necessidade de encontrar um novo modelo, que permita incorporar no
pensamento ético, a projecção do acto contemporâneo no futuro longínquo, ponderando
igualmente a incerteza da previsão possibilitada pela ciência. Este modelo de grande
actualidade e de uma enorme riqueza e profundidade, permite oferecer não só uma
resposta adequada ao liberalismo desenfreado, como também aos modelos semi-
totalitários herdeiros da via comunista, propondo um refrescamento do imperativo
kantiano, adaptado à realidade tecnológica actual e à necessidade de assegurar, acima de

8
JONAS, H. «The Imperative of Responsibility: In Search of Ethics for the Technological Age», Trad.
Hans Jonas & David Herr, The Chicago University Press Paperback Ed. 1985.

6
tudo e em primeiro lugar, que haverá humanidade no futuro. Esta parece ser também,
ainda que de outro modo, a preocupação da bioética.

3. BIOÉTICA, FUNDAMENTOS TEÓRICOS E FILOSÓFICOS

A bioética, como o seu próprio nome parece indicar, constitui uma área particular de
acção da ética, que se interessa pelo mundo vivo de uma maneira geral, pela biosfera, e
pelo que é humano, em particular. Para o Kennedy Institute of Ethics por exemplo, a
designação bioética surge como uma síntese de “biomedical ethics” sendo o prefixo bio
aqui bastante mais restritivo9 do que em outras interpretações que lhe são posteriores.

A verdade é que para um bioético exercer o seu julgamento sobre uma questão concreta,
deverá necessariamente alicerçar o seu pensamento sobre uma fundação teórica e
filosófica suficientemente sólida, sendo essa fundação necessariamente uma moral, que
pode ser uma deontologia de cariz kantiano, como pode ser utilitarista, ou de matriz
essencialmente cristã, ou ainda ter um cunho marcadamente positivista. Esta posição, e
o recurso a determinada posição filosófica e não outra, é talvez a mais sensível da
decisão em ética, em geral, e na bioética em particular. Mas a verdade é que, quando
chamado a pronunciar-se sobre determinada questão objectiva, o profissional de
bioética tem a responsabilidade de fazer a sua reflexão com transparência, expondo
objectivamente o que o leva a essa posição, e não outra, sendo certo que a sua
fundamentação não deve alicerçar-se estrita e unicamente nas suas crenças ou
convicções, associadas a uma determinada cultura, mas antes guiar-se por normativas e
concepções universais. De outro modo, cair-se-á no relativismo moral e/ou numa
desculpabilização antropológica, na apreciação de situações em manifesta contradição
com os valores universalmente aceites. Casos como a excisão do clitóris das jovens
púberes, na África Subsaariana por exemplo, são paradigmáticos desse tipo de situação.

A preocupação central do bioético será assim, ao debruçar-se sobre o caso particular que
se lhe depara, e independentemente do fundamento axiológico, metafísico, ou outro em
que alicerça a sua decisão, de conformar-se com as normativas comummente aceites e
que orientam a reflexão sobre essa matéria, evitando sempre (embora não absolutamente
porque tal não será nunca possível) sobrepor as suas crenças e convicções, à ponderação

9
DUWEL, M., «Bioethics, Methods, Theories, Domains», Ed. Sheila McLean, Biomedical Law and
Ethics Library, Routledge, London, 2013, p. 27.

7
consciente e informada, ainda que naturalmente eivada de uma determinada linha de
pensamento em ética, que é necessariamente o seu.

4. SOBRE A PRAXIS DA BIOÉTICA

A bioética, enquanto ferramenta interdisciplinar eminentemente prática, que possibilita


a tomada de decisões objectivas através da aplicação de princípios éticos, e de um
pensar ético de um problema determinado, não pode todavia ser olhada como um
instrumento de cálculo, à semelhança da álgebra ou da geometria. De facto, este tipo de
abordagem (top-down, na literatura anglo-saxónica) pode à primeira vista sugerir que
em ética aplicada, se pode recorrer a um corpus de conhecimentos comprovado e
perfeitamente claro e distinto, que se aplica sempre da mesma forma e sempre com
resultados idênticos, porque ancorado num sólido edifício teórico, composto de
axiomas, teoremas, etc., que lhe dão a previsibilidade desejada. Isso é algo que apenas
ocorre nas ciências exactas10 e de modo algum se pode esperar da ética, em qualquer dos
seus domínios de aplicação prática.

Em bioética, como em geral, em ética aplicada, a reflexão sobre um determinado


problema, recorrendo a uma (ou várias) teorias, como a deontologia 11 ou o utilitarismo12
por exemplo, conduz muitas vezes a levantar outras e mais complexas questões, que por
sua vez suscitam outras, à semelhança de um nodo de uma rede neuronal, que liga um
conjunto de outros nodos, que por sua vez se multiplicam indefinidamente, analogia que
parece aqui bastante apropriada 13. A resolução de um determinado problema pode ser
assim, em bioética, de especial exigência e complexidade, mobilizando conhecimentos
em áreas muito diversas e a consulta de múltiplas fontes e especialistas de forma a
aclarar o mais objectivamente possível, o contorno ético e as várias nuances de que se
reveste um problema particular. Por outro lado, ao contrário das ciências exactas, que
exibem uma certa neutralidade política e ideológica, a prática da bioética inscreve-se
num contexto político-ideológico e sociológico, que determina em grande medida, o seu
exercício objectivo, independentemente dos conhecimentos científicos ao dispor dessa
10
E mesmo nesses domínios a mecânica quântica veio demonstrar que a previsibilidade apenas é válida
para um determinado patamar da realidade.
11
Seja ela mais fundamental e próxima da matriz kantiana, ou um código deontológico de uma qualquer
profissão ou actividade.
12
A posição do utilitarismo postulado por Bentham, J. e Stuart Mill, J., defende o princípio da utilidade,
que pretende determinar em cada momento concreto, a posição que maximiza o bem-estar de todos (da
sociedade), sendo esta a posição a adoptar perante essa questão ética determinada.
13
Bioética – Internet Encyclopedia of Philisophy (https://www.iep.utm.edu/bioethic/) p. 7, (05/11/19).

8
mesma sociedade. É assim compreensível e natural que uma decisão em contexto laico,
seja diversa de outra em contexto religioso (islâmico por exemplo), e que os resultados
finais de uma reflexão sejam por isso diversos. No caso das sociedades ocidentais, cuja
matriz é judaico-cristã, questões de bioética como o direito à interrupção voluntária da
gravidez, o vulgar aborto, a fertilização in vitro, a inseminação artificial ou a eutanásia
em situações de grande sofrimento ou vida vegetativa, suscitam debates acesos, com
partidários de um e de outro campo, divergências que muitas vezes só se conseguem
ultrapassar através de consultas populares (referendos).

Em termos práticos pode sectorizar-se a bioética em três campos fundamentais:

A ética médica14, a mais antiga e indubitavelmente a mais relevante, que lidera a prática
e a investigação fundamental na disciplina, cuja certidão de nascimento se pode assumir
como o Juramento Hipocrático, que consigna desde 500 A.C. os três mandamentos da
prática médica que ainda hoje vigoram: o princípio da não maleficência (“primum non
nocere”); o princípio da beneficência (“salus aegroti suprema lex”) e o princípio de
confidencialidade, na relação médico-paciente, com proibição de exploração (incluso
sexual) do paciente. A ética médica preocupa-se com o estabelecer de um conjunto de
práticas que permitam responder de forma o mais objectiva possível à pergunta clássica
da ética em geral “O que devo fazer?” neste caso, perante uma determinada situação
concreta do foro da ciência médica. Há indubitavelmente um amplo conjunto de
questões que carecem de resposta neste âmbito, consideradas durante muito tempo e
ainda nos dias de hoje como fracturantes no sentido em que as posições da sociedade
divergem substancialmente. Para além das já referidas questões essenciais da vida e da
morte, como o aborto e a eutanásia, também à medida que avançam as linhas de
investigação nas áreas da genética humana e da clonagem humana, a ética médica é
chamada a reflectir sobre a legitimidade, e os riscos “morais” inerentes a estes avanços,
carecendo de igual aprofundamento teórico e profunda reflexão, no campo da bioética.
Também na regulação da prática médica, o acompanhamento é hoje em dia de maior
proximidade e tem-se assistido à institucionalização de comités de ética, que assistem
parlamentos nacionais, governos, hospitais de referência e universidades que trabalham

14
Bioética – Internet Encyclopedia of Philosophy (https://www.iep.utm.edu/bioethic/) pp. 7-8, (07/11/19).

9
em domínios de ciência médica e biotecnologia, nas decisões éticas complexas, em
geral compostos por médicos e investigadores, filósofos e/ou teólogos e juristas15.

A ética animal16, ramo relativamente recente, que corresponde à derradeira extensão do


objecto da moral, cuja progressiva ampliação na sociedade europeia foi evoluindo ao
longo do tempo, do cidadão (na Grécia Antiga, apenas os homens com origem
diferenciada17, o que deixava de lado as mulheres e grandes franjas da população) para
se estender às mulheres, aos escravos e mais recentemente, aos animais sencientes. Esta
ideia de que os animais sencientes (não racionais e não auto-determinados, mas ainda
assim capazes de sentir e sofrer) devem ser incluídos na comunidade moral,
desenvolveu-se sobretudo no contexto de uma ética utilitarista no Séc. XIX, para cuja
divulgação muito contribuiu Jeremy Bentham, com o seu famoso discurso em que
argumenta que não importa se os animais podem raciocinar, importa outrossim que são
capazes de sofrer. Mais tarde, já no Séc. XX, nos EUA e na Europa, desenvolveram-se
fortes movimentos civis a favor dos direitos dos animais, e hoje em dia está na ordem
do dia a criminalização dos maus-tratos sobre os animais e a sua equiparação, em
direitos, que não em deveres, por maioria de razão, ao homem. Certamente que a Teoria
da Evolução das Espécies de Darwin terá contribuído para amaciar a fractura moral
entre homem e animal (entenda-se mamífero superior) ajudando a incluí-lo no
repertório dos seres morais (neste caso e mais uma vez, como membros passivos, uma
vez que não são dotados de livre-arbítrio);

Refira-se finalmente a ética ambiental18, que é hoje um domínio em franca expansão e


ebulição, considerando os problemas com que se debate a sociedade contemporânea.
Assiste-se hoje a um certo extremar de posições, com campos bem marcados de
partidários de mais e melhor controlo, ou mesmo de uma desaceleração da
modernização tecnológica, e outros que se opõem terminantemente a esta posição. A
ética ambiental trata da dimensão moral da relação do homem com o seu meio
ambiente, designadamente com os animais, plantas, recursos naturais, ecossistemas,
15
DUWEL, M., «Bioethics, Methods, Theories, Domains», Ed. Sheila McLean, Biomedical Law and
Ethics Library, Routledge, London, 2013, p. 13.
16
Bioética – Internet Encyclopedia of Philosophy (https://www.iep.utm.edu/bioethic/) pp. 8-10,
(07/11/19).
17
Grandes filósofos como Aristóteles ou Kant olhavam todavia os animais como coisas desprovidas de
direitos e passíveis de exploração ilimitada, posição que aliás veio a marcar o olhar sobre os animais e a
natureza durante séculos. Também o conceito de res extensa em Descartes, na mesma linha, contribui
decisivamente para este estado de coisas.
18
Ibidem, pp. 10-12.

10
paisagens, e no limite toda a biosfera e o cosmos. É claro que regras de conduta e
orientações sobre como lidar com a natureza, respeitando-a e acarinhando-a enquanto
casa comum, são tão antigas quanto a própria humanidade. Mas é apenas nos anos 70 do
século passado que se pode falar propriamente de uma ética ambiental, enquanto
disciplina académica firmemente estabelecida e isto na senda da progressiva
consciencialização da sociedade para com os enormes riscos incorridos com o
descontrolo da industrialização, e no terror de um eventual conflito nuclear. Cabe aqui
mencionar de novo o trabalho pioneiro e precursor de Hans Jonas, para quem urge
encontrar uma variante ao imperativo categórico que reflicta a nova condição da
humanidade, que pode formular-se, na sua versão afirmativa por “Age de tal modo que
o princípio da tua acção seja compatível com a permanência indefinida de uma
autêntica vida humana”, mas também numa versão de negação “Age de modo a não por
em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terra”. Este novo imperativo é,
como o precedente kantiano, igualmente categórico, na medida em que se funda na
obrigação cósmica de garantir a perenidade da vida humana. Hoje em dia podem
distinguir-se pelo menos duas tendências fundamentais neste campo: os
antropocêntricos, que reclamam a prioridade do homem enquanto ser moral por
excelência, sem prejuízo da sua responsabilidade de cuidar da natureza, mediante regras
deontológicas e éticas da virtude. Reclamam que apenas o homem é objecto moral e a
preservação e cuidado com a natureza devem ser instrumentais (ao serviço do homem e
para o seu bem estar e perenidade); já os não-antropocêntricos ou fisiocêntricos,
argumentam pelo contrário que se podem distinguir valores intrínsecos próprios da
natureza (e dos animais) que têm valor moral per se, independentemente do bem que
possam significar para o homem. Muitas sub-tendências e movimentos existem ainda
neste campo, como o ecofeminismo, biocentrismo, ecocentrismo, pathoscentrismo, etc.
cuja discussão todavia, não cabe no âmbito deste trabalho19.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento científico e tecnológico fenomenal dos últimos anos tem registado


avanços extraordinários das biociências e das ciências médicas, na área da genética
fundamental e médica, interferindo com a própria matéria da vida; dos sistemas de
prolongamento artificial da vida, para além do que alguns julgam razoável; da criação
19
Bioética – Internet Encyclopedia of Philosophy (https://www.iep.utm.edu/bioethic/) pp. 10-12,
(07/11/19).

11
de próteses de alta performance, que permitem antecipar a prazo, possibilidades que
eram até há pouco tempo do domínio da ficção, como o cyborg (meio homem, meio
robot), até às mais desmedidas ambições, que se estendem ao aventar da possibilidade
de descarregar uma memória humana para um computador quântico. Estas conquistas
não sendo boas, nem más, em si, propiciam, pela amplitude com que alteram a
capacidade de intervenção do homem na natureza (na sua, e na do seu meio ambiente)
uma necessidade acrescida de reflexão que possa enquadrar eticamente as práticas e
estabelecer limites a essa mesma intervenção humana. É por isso natural que os temas
da ética e da bioética em particular, assumam hoje – infelizmente não com transparência
que seria desejável – um papel de grande relevo na agenda política, económica e
mediática.

No campo da genética, um dos maiores desafios da bioética, será certamente o de tornar


a informação genética compreensível e relevante para o paciente, sobretudo quando isto
envolve decisões sobre terapia genética, ou intervenção sobre os embriões humanos em
fase de gestação. Tornar o processo de decisão mais transparente, será outro dos grandes
desafios, sobretudo no que respeita á relação causa-efeito. Filósofos contemporâneos
como Peter Sloterdijk20 por exemplo falam já abertamente de selecção genética das
gerações futuras, considerando que o problema se resume apenas em fazer essa selecção
de forma responsável, na esperança de que o zoológico humano, assim seja gerido com
prudência pelo seu pessoal. Este abandono do determinismo genético que conhecemos
desde sempre, e a possibilidade que se abre de planear os seres do futuro, carece
necessariamente de uma profundíssima reflexão filosófica, sem a qual se corre o risco
de lançar a humanidade em experiências de eugenia de triste memória.

Será inevitável que o homem, com a tremenda pressão da ciência, ceda a última
fronteira que é o seu património genético, e se veja a manipular, qual demiurgo, as
gerações futuras? Qual o papel da inteligência artificial, outra fronteira que uma vez
atravessada poderá significar o não retorno da espécie humana, pelo menos como a
conhecemos até aqui?

Estas e outras perguntas carecem naturalmente de resposta em muitos domínios, mas a


contribuição da bioética será sem dúvida uma das mais relevantes.
20
SLOTERDIJK, P., «Rules for the human zoo: a response to the letter on humanism», in Environment
and Planning. Society and Space, Vol 27, Tomo 1, 2011, pp.12-28.

12
Lisboa, 11 de Novembro de 2019

José António Amaral

13
BIBLIOGRAFIA

BIOETICA E POLITICA (https://www.thehastingscenter.org/briefingbook/bioethics-


and-policy-a-history/), (05/11/2019).

BIOETICA – Internet Encyclopedia of Philosophy (https://www.iep.utm.edu/bioethic/),


(07/11/2019).

DUWEL, M., «Bioethics, Methods, Theories, Domains», Ed. Sheila McLean,


Biomedical Law and Ethics Library, Routledge, London, 2013.

JONAS, H. «The Imperative of Responsibility: In Search of Ethics for the


Technological Age», Trad. Hans Jonas & David Herr, The Chicago University Press
Paperback Ed. 1985.

LEVINE, C., «Analizing Pandora’s box. The history of Bioethics», in Eckenwiler, Lisa
A. and Felicia G. Cohn, eds. The Ethics of Bioethics. Baltimore: The John Hopkins
University Press, 2007., pp. 3-23.

LOLAS, Fernando, «Bioethics and animal research: A personal perspective and a note
on the contribution of Fritz Jahr» (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/
pmc/articles/PMC2997650) (08/11/2019)

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),


Comissão Nacional da Unesco – Portugal, «Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos», UNESCO, 2006.

SASS, H. M., «Fritz Jahr’s Bioethischer Imperativ». 80 Jahre Bioethik in Deutschland


von 1927 bis 2007. Bochum: Zentrum für Medizinische Ethik, 2007.

TAXONOMY BIOETHICS,
https://plato.stanford.edu/entries/theory-bioethics/supplement.html (03/11/2019)

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