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2º ANO
DISCIPLINA DE BIOÉTICA
TRABALHO ONLINE I
O QUE É A BIOÉTICA
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TRABALHO ONLINE I
O QUE É A BIOÉTICA
1. INTRODUÇÃO
Bioética. Trata-se de uma palavra composta pela junção do prefixo bio (do grego
bios, referente ao vivente) à palavra ética (ainda do grego ethos, originalmente costume,
hábito, que evolui depois para conduta, carácter, com sentido de justiça e legalidade).
Neste binómio revela-se ainda numa adição de domínios: o domínio do biológico,
referente ao que é vivo, e a noção de ética, disciplina que no seu senso mais lato, se
dedica ao estudo do agir do ser humano, propondo-se consignar um conjunto de normas
e práticas (deontologias) que devem nortear essa mesma agência humana, na sua relação
com os semelhantes e enfim, no seu senso ainda mais alargado, com o mundo vivo. Dito
de um modo simplificado, ainda que não simplista, pode dizer-se que a bioética estuda a
aplicação da ética (necessariamente humana, já que não nos é dado conhecer outra) à
relação com o vivente, em particular à inter-relação entre humanos.
3
Antiguidade Clássica. O famoso Juramento de Hipócrates, que remonta a 500 A.C., é
certamente um dos paradigmas da ética médica e ainda hoje se actualiza no ritual de
acesso à profissão, que se entroniza o jovem médico recém-licenciado no poder que é o
acto médico, exercido sobre um outro, o paciente, em geral dependente e diminuído,
também o confronta com a responsabilidade, de agir sobre esse outro, que deposita nele
a sua confiança, segundo códigos (deontológicos) bem determinados e consistentes,
comummente aceites pela sociedade do seu tempo1. Recuando ainda mais, podem citar-
se as recomendações para a prática da medicina contidas no Código de Hamurabi (1750
A.C.), como exemplo preclaro da antiguidade do pensamento ético sobre as práticas da
medicina.
Mas é isto, este conjunto de preocupações e regras de conduta, uma boa definição de
bioética?
Para Sass (2007)2 deve-se a Fritz Jahr, em três artigos datados de 1927, 1928 e 1934,
que se debruçam sobre as implicações éticas que decorrem do uso de animais e plantas
na investigação científica, a proposta da designação “Bio-Ethik” e a primazia no uso do
conceito «imperativo bioético»3 que pretende expressar o «respeito por cada ser vivo,
por princípio, como fim em si, tratando-o em conformidade, sempre que possível» .
Mais tarde, nos anos 70 do século passado, o bioquímico americano e especialista em
cancro, Van Rensselaer Potter, influenciado pela trabalho do ético e conservacionista
Aldo Leopold, publica um artigo «Bioética, a Ciência da Sobrevivência» (1970) em que
propõe o termo bioética para descrever as ligações da biologia, ecologia e medicina,
com a ética4. O aprofundamento da investigação leva-o a propor, em novo artigo
1
Refira-se a este propósito a contribuição de Thomas Percival, em publicação de 1803, «Ética Médica»,
em que preconizava um código de ética para os profissionais de saúde, que esteve na base de muitos
códigos deontológicos na Europa e no Novo Mundo.
2
Sass, H. M., «Fritz Jahr’s Bioethischer Imperativ». 80 Jahre Bioethik in Deutschland von 1927 bis 2007.
Bochum: Zentrum für Medizinische Ethik, 2007.
3
A ressonância kantiana está longe de ser coincidência (Lolas, Fernando, «Bioethics and animal research:
A personal perspective and a note on the contribution of Fritz Jahr» (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/
pmc/articles/PMC2997650).
4
Levine, C., «Analizing Pandora’s box. The history of Bioethics», in Eckenwiler, Lisa A. and Felicia G.
Cohn, eds. The Ethics of Bioethics. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2007., p. 3.
4
«Bioética: uma ponte para o futuro» publicado no ano seguinte, a bioética como um elo
privilegiado entre os campos das ciências (naturais) e as humanidades5.
5
Que Potter virá mais tarde, aquando do crescimento crescente da Bioética com a problemática
emergente da relação genética/tecnologia, a rebaptizar como bioética global (Potter, 1998).
6
Levine, C., «Analizing Pandora’s box. The history of Bioethics», in Eckenwiler, Lisa A. and Felicia G.
Cohn, eds. The Ethics of Bioethics. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2007, p. 3.
7
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Comissão Nacional da
Unesco – Portugal, «Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos», UNESCO, 2006.
5
«…a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética condensados num texto
único...» texto que consigna as «…questões éticas suscitadas pela medicina, ciências
da vida e tecnologias associadas na sua aplicação aos seres humanos…» e incorpora
princípios e regras que visam nortear «…o respeito pela dignidade humana, pelos
direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ao consagrar a bioética entre os
direitos humanos internacionais e ao garantir o respeito pela vida dos seres humanos,
a Declaração reconhece a interligação que existe entre ética e direitos humanos no
domínio específico da bioética.». Note-se ainda que em conjunto com a Declaração, a
Conferência Geral da UNESCO adoptou uma resolução em que insta os estados-
membros a desenvolver esforços no sentido da efectiva aplicação dos princípios
enunciados na Declaração.
8
JONAS, H. «The Imperative of Responsibility: In Search of Ethics for the Technological Age», Trad.
Hans Jonas & David Herr, The Chicago University Press Paperback Ed. 1985.
6
tudo e em primeiro lugar, que haverá humanidade no futuro. Esta parece ser também,
ainda que de outro modo, a preocupação da bioética.
A bioética, como o seu próprio nome parece indicar, constitui uma área particular de
acção da ética, que se interessa pelo mundo vivo de uma maneira geral, pela biosfera, e
pelo que é humano, em particular. Para o Kennedy Institute of Ethics por exemplo, a
designação bioética surge como uma síntese de “biomedical ethics” sendo o prefixo bio
aqui bastante mais restritivo9 do que em outras interpretações que lhe são posteriores.
A verdade é que para um bioético exercer o seu julgamento sobre uma questão concreta,
deverá necessariamente alicerçar o seu pensamento sobre uma fundação teórica e
filosófica suficientemente sólida, sendo essa fundação necessariamente uma moral, que
pode ser uma deontologia de cariz kantiano, como pode ser utilitarista, ou de matriz
essencialmente cristã, ou ainda ter um cunho marcadamente positivista. Esta posição, e
o recurso a determinada posição filosófica e não outra, é talvez a mais sensível da
decisão em ética, em geral, e na bioética em particular. Mas a verdade é que, quando
chamado a pronunciar-se sobre determinada questão objectiva, o profissional de
bioética tem a responsabilidade de fazer a sua reflexão com transparência, expondo
objectivamente o que o leva a essa posição, e não outra, sendo certo que a sua
fundamentação não deve alicerçar-se estrita e unicamente nas suas crenças ou
convicções, associadas a uma determinada cultura, mas antes guiar-se por normativas e
concepções universais. De outro modo, cair-se-á no relativismo moral e/ou numa
desculpabilização antropológica, na apreciação de situações em manifesta contradição
com os valores universalmente aceites. Casos como a excisão do clitóris das jovens
púberes, na África Subsaariana por exemplo, são paradigmáticos desse tipo de situação.
A preocupação central do bioético será assim, ao debruçar-se sobre o caso particular que
se lhe depara, e independentemente do fundamento axiológico, metafísico, ou outro em
que alicerça a sua decisão, de conformar-se com as normativas comummente aceites e
que orientam a reflexão sobre essa matéria, evitando sempre (embora não absolutamente
porque tal não será nunca possível) sobrepor as suas crenças e convicções, à ponderação
9
DUWEL, M., «Bioethics, Methods, Theories, Domains», Ed. Sheila McLean, Biomedical Law and
Ethics Library, Routledge, London, 2013, p. 27.
7
consciente e informada, ainda que naturalmente eivada de uma determinada linha de
pensamento em ética, que é necessariamente o seu.
8
mesma sociedade. É assim compreensível e natural que uma decisão em contexto laico,
seja diversa de outra em contexto religioso (islâmico por exemplo), e que os resultados
finais de uma reflexão sejam por isso diversos. No caso das sociedades ocidentais, cuja
matriz é judaico-cristã, questões de bioética como o direito à interrupção voluntária da
gravidez, o vulgar aborto, a fertilização in vitro, a inseminação artificial ou a eutanásia
em situações de grande sofrimento ou vida vegetativa, suscitam debates acesos, com
partidários de um e de outro campo, divergências que muitas vezes só se conseguem
ultrapassar através de consultas populares (referendos).
A ética médica14, a mais antiga e indubitavelmente a mais relevante, que lidera a prática
e a investigação fundamental na disciplina, cuja certidão de nascimento se pode assumir
como o Juramento Hipocrático, que consigna desde 500 A.C. os três mandamentos da
prática médica que ainda hoje vigoram: o princípio da não maleficência (“primum non
nocere”); o princípio da beneficência (“salus aegroti suprema lex”) e o princípio de
confidencialidade, na relação médico-paciente, com proibição de exploração (incluso
sexual) do paciente. A ética médica preocupa-se com o estabelecer de um conjunto de
práticas que permitam responder de forma o mais objectiva possível à pergunta clássica
da ética em geral “O que devo fazer?” neste caso, perante uma determinada situação
concreta do foro da ciência médica. Há indubitavelmente um amplo conjunto de
questões que carecem de resposta neste âmbito, consideradas durante muito tempo e
ainda nos dias de hoje como fracturantes no sentido em que as posições da sociedade
divergem substancialmente. Para além das já referidas questões essenciais da vida e da
morte, como o aborto e a eutanásia, também à medida que avançam as linhas de
investigação nas áreas da genética humana e da clonagem humana, a ética médica é
chamada a reflectir sobre a legitimidade, e os riscos “morais” inerentes a estes avanços,
carecendo de igual aprofundamento teórico e profunda reflexão, no campo da bioética.
Também na regulação da prática médica, o acompanhamento é hoje em dia de maior
proximidade e tem-se assistido à institucionalização de comités de ética, que assistem
parlamentos nacionais, governos, hospitais de referência e universidades que trabalham
14
Bioética – Internet Encyclopedia of Philosophy (https://www.iep.utm.edu/bioethic/) pp. 7-8, (07/11/19).
9
em domínios de ciência médica e biotecnologia, nas decisões éticas complexas, em
geral compostos por médicos e investigadores, filósofos e/ou teólogos e juristas15.
10
paisagens, e no limite toda a biosfera e o cosmos. É claro que regras de conduta e
orientações sobre como lidar com a natureza, respeitando-a e acarinhando-a enquanto
casa comum, são tão antigas quanto a própria humanidade. Mas é apenas nos anos 70 do
século passado que se pode falar propriamente de uma ética ambiental, enquanto
disciplina académica firmemente estabelecida e isto na senda da progressiva
consciencialização da sociedade para com os enormes riscos incorridos com o
descontrolo da industrialização, e no terror de um eventual conflito nuclear. Cabe aqui
mencionar de novo o trabalho pioneiro e precursor de Hans Jonas, para quem urge
encontrar uma variante ao imperativo categórico que reflicta a nova condição da
humanidade, que pode formular-se, na sua versão afirmativa por “Age de tal modo que
o princípio da tua acção seja compatível com a permanência indefinida de uma
autêntica vida humana”, mas também numa versão de negação “Age de modo a não por
em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terra”. Este novo imperativo é,
como o precedente kantiano, igualmente categórico, na medida em que se funda na
obrigação cósmica de garantir a perenidade da vida humana. Hoje em dia podem
distinguir-se pelo menos duas tendências fundamentais neste campo: os
antropocêntricos, que reclamam a prioridade do homem enquanto ser moral por
excelência, sem prejuízo da sua responsabilidade de cuidar da natureza, mediante regras
deontológicas e éticas da virtude. Reclamam que apenas o homem é objecto moral e a
preservação e cuidado com a natureza devem ser instrumentais (ao serviço do homem e
para o seu bem estar e perenidade); já os não-antropocêntricos ou fisiocêntricos,
argumentam pelo contrário que se podem distinguir valores intrínsecos próprios da
natureza (e dos animais) que têm valor moral per se, independentemente do bem que
possam significar para o homem. Muitas sub-tendências e movimentos existem ainda
neste campo, como o ecofeminismo, biocentrismo, ecocentrismo, pathoscentrismo, etc.
cuja discussão todavia, não cabe no âmbito deste trabalho19.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
11
de próteses de alta performance, que permitem antecipar a prazo, possibilidades que
eram até há pouco tempo do domínio da ficção, como o cyborg (meio homem, meio
robot), até às mais desmedidas ambições, que se estendem ao aventar da possibilidade
de descarregar uma memória humana para um computador quântico. Estas conquistas
não sendo boas, nem más, em si, propiciam, pela amplitude com que alteram a
capacidade de intervenção do homem na natureza (na sua, e na do seu meio ambiente)
uma necessidade acrescida de reflexão que possa enquadrar eticamente as práticas e
estabelecer limites a essa mesma intervenção humana. É por isso natural que os temas
da ética e da bioética em particular, assumam hoje – infelizmente não com transparência
que seria desejável – um papel de grande relevo na agenda política, económica e
mediática.
Será inevitável que o homem, com a tremenda pressão da ciência, ceda a última
fronteira que é o seu património genético, e se veja a manipular, qual demiurgo, as
gerações futuras? Qual o papel da inteligência artificial, outra fronteira que uma vez
atravessada poderá significar o não retorno da espécie humana, pelo menos como a
conhecemos até aqui?
12
Lisboa, 11 de Novembro de 2019
13
BIBLIOGRAFIA
LEVINE, C., «Analizing Pandora’s box. The history of Bioethics», in Eckenwiler, Lisa
A. and Felicia G. Cohn, eds. The Ethics of Bioethics. Baltimore: The John Hopkins
University Press, 2007., pp. 3-23.
LOLAS, Fernando, «Bioethics and animal research: A personal perspective and a note
on the contribution of Fritz Jahr» (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/
pmc/articles/PMC2997650) (08/11/2019)
TAXONOMY BIOETHICS,
https://plato.stanford.edu/entries/theory-bioethics/supplement.html (03/11/2019)
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