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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

LUCCA MORO COSTA

A EUTANÁSIA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DE UMA


PERSPECTIVA DA BIOÉTICA PRINCPIALISTA

LISBOA

2023
Lucca Moro Costa

A EUTANÁSIA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DE UMA


PERSPECTIVA DA BIOÉTICA PRINCPIALISTA

Paper a ser entregue para a disciplina de Filosofia do Direito

Professor-regente: Fernando José Borges Correia Araújo

Professor-assistente: Nuno Alexandre Pires Salpico

Lisboa

2023

1
ÍNDICE

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………3
BIOÉTICA…………………………………………………………………………4
A MORTE CLINICAMENTE ASSISTIDA……………………………………….6
EUTANÁSIA E A BIOÉTICA PRINCIPIALISTA………………………………..11
EUTANÁSIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS………………………………….14
CONCLUSÃO……………………………………………………………………..16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………………..17

2
1 INTRODUÇÃO

O presente paper possui como escopo analisar como justificar o direito a uma morte
digna, mais especificamente referindo-se à eutanásia e ao suicídio assistido, como sendo, a
partir de um viés da bioética principialista de Tom Beauchamp e James Childress,
não-violadores de direitos fundamentais.

A partir de uma técnica de pesquisa bibliográfica e normativa-comparada e de um


método de procedimento descritivo e bibliográfico, abordar-se-á os conceitos de eutanásia e
suicídio assistido, bem como discutirá as legislações sobre o tema ao redor do mundo. Além
disso, central para este paper é abordar o campo científico da bioética e definir a bioética
principialista, a qual, com seus princípios basilares da autonomia, beneficência,
não-maleficência e justiça, pode apresentar uma justificativa para a eutanásia e o suicídio
assistido na prática médica contemporânea.

3
2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. BIOÉTICA

A bioética pode ser definida como um campo de estudos que busca guiar a tomada de
decisões na esfera médica e biomédica e em suas intervenções nos sujeitos. O primeiro
pesquisador a utilizar a expressão “bioética” foi o Prof. Van Rensselaer Potter1, que
apresentou uma definição de bioética como sendo a “ética da terra”. Potter defendia a
existência da bioética como sendo uma ética interdisciplinar entre as áreas das ciências e das
humanidades2

A ideia contemporânea de bioética possui fundamentos no pós-Segunda Guerra


Mundial. Os horrores dos experimentos médicos e científicos nos campos de concentração da
Alemanha nazista levou à edição do Código de Nuremberg (1947), que estabeleceu padrões
éticos para pesquisas científicas em seres humanos. Após a edição do código que serviu de
parâmetros para os julgamentos do Tribunal de Nuremberg, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, editada pela Organização das Nações Unidas (ONU), bem como o
surgimento de obras científicas que analisam questões de ética médica a partir da perspectiva
do paciente, serviram como marcos importantes na evolução do campo da bioética.

O professor Warren T. Reich3, em sua obra “Enciclopédia de Bioética”, define bioética


como “o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta
e políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de
metodologias éticas em um cenário interdisciplinar.”

A bioética, baseada nos princípios da autonomia, não-maleficência, beneficência e


justiça, rege a tomada de decisões dos profissionais da saúde em sua relação com pacientes,
promovendo uma atuação que busca garantir a confidencialidade médica e a privacidade do

1
Potter, V.R. (1970). Bioethics, the Science of Survival. Perspectives in Biology and Medicine 14(1), 127-153.
doi:10.1353/pbm.1970.0015.
2
idem 1
3
Reich WT. Encyclopedia of Bioethics. rev. ed. New York; MacMillan, 1995:XXI.

4
paciente e guiando o agir em questões e desafios morais. Atualmente, grandes grupos
hospitalares possuem um regramento e comitês bioéticos que buscam guiar e auxiliar os
médicos e pacientes na tomada de decisões éticas.

Atualmente, a bioética lida com questões como transplante de órgãos, engenharia


genética, aborto, prioridade em atendimentos médicos, experimentação em seres humanos e,
como será abordado neste trabalho, questões relativas ao fim da vida.

2.1.1. Princípios da bioética principialista

O consenso biomédico contemporaneamente estabelecido perpassa a ideia de ética


principialista, a qual se baseia em quatro princípios básicos: autonomia, não-maleficência,
beneficência e justiça.

A autonomia diz respeito à capacidade do paciente de tomar as suas próprias decisões,


se autogovernar. As teorias da autonomia comumente possuem em comum as ideias de
compreensão, raciocínio livre, deliberação e escolha independente.4 No caso da bioética, o
respeito à autonomia envolve colocar o paciente no centro da deliberação médica, respeitando
seus desejos, opiniões, cultura, crenças e credos. Autonomia, na bioética, está intimamente
ligada à ideia de consentimento informado.

A não-maleficência impõe que os profissionais de saúde ajam sempre com o intuito de


evitar o dano aos seus pacientes. Deste modo, realizar intervenções médicas seguras e
eficazes, de modo competente e considerando potenciais eventos adversos. Beauchamp e
Childress5 definem a não-maleficência, no cuidado médico, como sendo aplicável também de
modo a evitar a negligência médica, as quais poderiam ocorrer nos casos em que o médico
indevidamente expõe alguém a um risco evitável ou nos casos em que causa dano sem
intenção. A não-maleficência, portanto, envolve um dever negativo do profissional de se
abster de realizar condutas que prejudiquem diretamente ao paciente.

4
BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica. Loyola: 2013.
5
idem a 4
5
A beneficência difere da não-maleficência, na medida que impõe ao profissional o
dever de concretizar ações benéficas ao paciente, ao mesmo tempo em que respeita sua
autonomia. A beneficência impõe um dever positivo por parte dos profissionais de saúde em
promover condutas que efetivem o bem-estar do paciente. Alguns pesquisadores observam
que a beneficência pode gerar conflitos com a autonomia, na medida que a promoção do
bem-estar do paciente pode conflitar com princípios promotores da autonomia.

Cabe destacar aqui uma definição do conceito de beneficência em Beauchamp e


Childress a partir da obra de Luciano Maia Alves Ferreira6: “A beneficência é entendida como
o propósito de agir em benefício dos outros. Significa ato de compaixão, bondade, caridade
(amor, altruísmo, humanidade). Já o princípio de beneficência refere-se à obrigação moral
em agir em benefício do outro, promovendo seus interesses legítimos e importantes”. (...) Na
ética médica, as obrigações de ponderar e conceder benefícios, de prevenir ou reparar danos
é fundamental, mesmo que eles não sejam amplos o suficiente para incluir todos os outros
princípios”.

Por fim, a justiça está intimamente ligada à equidade e à justiça distributiva


aristotélica, a qual compreenderia uma distribuição justa, equitativa e apropriada na
sociedade. A justiça para Beauchamp e Childress segue a máxima aristotélica de “dar a cada
um o que é de seu”.

2.2. A MORTE CLINICAMENTE ASSISTIDA

A morte clinicamente assistida (medical assistance in dying, em inglês), ainda que de


modo bem rudimentar, é um conceito antigo na clínica médica e no campo da bioética.

Na Grécia Antiga, a versão original do “Juramento de Hipócrates” previa a proibição


aos exercentes da medicina de fornecerem drogas letais aos pacientes que assim requererem,
bem como a vedação ao aconselhamento à tomada de tal decisão. A própria origem do nome

6
LUCIANO MAIA ALVES FERREIRA. “Eutanásia e suicídio assistido: uma análise normativa comparada” / 1º
ed. 2018. pág.39.
6
“eutanásia” remonta ao grego, na medida em que “eu” significa “bom”, enquanto “Thanatos”
é a personificação da morte na Mitologia grega.

Já durante a Era Romana, Sêneca e os estóicos, bem como os epicuristas,


contemplaram diversas vezes o problema do suicídio, sendo que os últimos, com sua filosofia
de maximização do prazer, argumentaram que o suicídio poderia ser justificado como ultima
ratio para pessoas com sofrimento interminável. Ainda durante o Império Romano, com a Lei
das Doze Tábuas, em que há a especificação de uma ideia de suicídio piedoso com a eutanásia
de crianças que nasceram mal-formadas (Tábua IV, 1).

A ascensão do Cristianismo como principal religião na Europa Ocidental e a


consolidação da ética cristã levam a um repúdio ainda maior à ideia de suicídio, já que o
conceito de morte clinicamente assistida ainda não era algo completamente elaborado. São
Tomás de Aquino, na segunda parte de sua Summa Theologica, dispõe sobre a santidade e o
valor intrínseco da vida humana e sobre como esta seria um presente de Deus, de modo que
qualquer tentativa de tirar a vida seria vista como um pecado da mais alta ordem.

Com o advento do Renascimento e, posteriormente, do Iluminismo, com os quais as


ideias de autonomia e liberdade individual atingem um patamar elevado e com o contínuo
decaimento da ética cristã como estrela-guia universal do comportamento individual, a
discussão sobre a morte assistida gradativamente ganha terreno. Já no século XVI, Sir
Thomas More, em Utopia, descreveu que na comunidade utópica por ele envisionada, haveria
auxílio ao suicídio daqueles que assim desejassem e estivessem vivendo um sofrimento
incurável e intenso.

Todavia, durante o período da Segunda Guerra Mundial, a “eutanásia7” foi utilizada


como um programa de eugenia por parte do Estado alemão para a perpetuação de um
genocídio de minorias raciais e portadores de deficiências graves. Em 1939, o governo
alemão, então já amplamente comandado pelo Partido Nacional-Socialista, institui, em um
primeiro momento secretamente, o programa “Aktion T4”, em que profissionais de saúde

7
Utiliza-se a expressão “eutanásia” entre aspas, na medida em que o significado da palavra origina do grego
para “boa morte”, “morte serena, sem sofrimento”. A utilização da palavra sem o uso das aspas contribuiria para
uma deturpação do real significado da expressão, já que o Estado alemão fez uso da ferramenta para a
perpetuação de um genocídio em pessoas com o intuito de “purificação” da raça ariana.
7
eram forçados a reportar pessoas com deficiências mentais e físicas de natureza grave e
incurável que estivessem sob seus cuidados. Apresentada ao povo alemão como uma política
pública não apenas de purificação racial mas também como sendo de certa forma “piedosa”,
foi abandonada em 1941. Todavia, estima-se que o número de mortos por conta dessa política
de sistematização de uma suposta “eutanásia” seja de aproximadamente 250.000 pessoas, as
quais eram mortas em câmaras de gás instaladas dentro de hospitais e centros de tratamentos
paliativos com gás de monóxido de carbono.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, na medida em que os horrores do período nazista


na Alemanha e nos territórios ocupados passaram a ser amplamente conhecidos, ocorreu uma
revolução no campo da bioética que permitiu, anos depois, a introdução de mecanismos legais
para regulamentação da morte clinicamente assistida.

O advento de uma teoria bioética principialista, baseada nos princípios da autonomia


do paciente, da beneficência, da não-maleficência e da justiça, colocam a vontade do paciente
em um primeiro plano, permitindo o surgimento de legislações nacionais sobre o tema. Desde
então, diversos países adotaram legislação sobre o tema.

Na Europa, cuja experiência será abordada neste estudo, a Holanda, em 2002, foi o
primeiro país a permitir a morte clinicamente assistida, com a regulamentação da eutanásia e
do suicídio assistido. No mesmo, a Bélgica descriminalizou a prática da eutanásia em certos
casos. Desde então, Luxemburgo, Espanha e Áustria apresentaram legislação semelhante,
enquanto Suíça e Alemanha permitem o suicídio assistido por conta de omissão legal da
tipificação do crime de auxílio ao suicídio.

Passemos, neste momento, a uma análise dos conceitos bioéticos de suicídio assistido,
e eutanásia, os quais compõem, de modo basilar, a ideia de morte clinicamente assistida.

De acordo com o National Health Service 8 (NHS), sistema público de saúde do Reino
Unido, o suicídio assistido pode ser definido como “o ato de deliberadamente auxiliar outra

8
NATIONAL HEALTH SERVICE. Euthanasia and Assisted Suicide. Disponível em:
https://www.nhs.uk/conditions/euthanasia-and-assisted-suicide/

8
pessoa a tirar sua própria vida”. Já José Roberto Goldim9, um dos maiores especialistas
brasileiros em bioética e catedrático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dispõe
que o “o suicídio assistido ocorre quando uma pessoa, que não consegue concretizar sozinha
a sua intenção de morrer, solicita o auxílio de um outro indivíduo. A assistência ao suicídio
de outra pessoa pode ser feita por atos (prescrição de doses altas de medicação e indicação
de uso) ou, de forma mais passiva, através de persuasão e encorajamento. Em ambas as
formas, a pessoa que contribui para a ocorrência da morte da outra, compactua com a
intenção de morrer através da utilização de um agente causal.”.

Cumpre esclarecer que o conceito de suicídio assistido a ser aqui trabalhado envolve o
que é realizado no âmbito da morte clinicamente assistida, acompanhado por profissional da
saúde e realizado apenas mediante consentimento livre e informado de paciente acometido de
doença grave, incurável e que traz profundo sofrimento.

Definição mais adequada talvez possa ser encontrada no âmbito do Código de Ética da
Associação Médica Americana10, que define o suicídio medicamente assistido como: “aquele
que ocorre quando o médico facilita a morte do paciente ao providenciar os meios
necessários e/ou informações que permitam ao paciente realizar o ato de terminação da vida
(p. ex., o médico providencia pílulas soníferas e informações sobre a dose letal, ciente de que
o paciente poderá cometer suicídio).

Por outro lado, a eutanásia retira das mãos do paciente o ato de terminação da própria
vida e coloca a injeção do fármaco letal nas mãos do profissional de saúde. Luciano Maia
Alves Ferreira11, em sua obra “Eutanásia e Suicídio Assistido”, define a eutanásia como
aquele que “provoca também a morte antes da hora, porém de maneira suave e indolor, a
pedido de um paciente terminal e em sofrimento, sem perspectivas de melhora e justamente
por isso torna-se tão atrante para tantas pessoas.”

9
JOSÉ ROBERTO GOLDIM. Bioética: índice geral de textos, resumos, definições, normas e casos. Disponível
em: https://www.ufrgs.br/bioetica/suicass.htm

10
AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION, Code of Medical Ethics, from
https://code-medical-ethics.ama-assn.org

11
LUCIANO MAIA ALVES FERREIRA, Eutanásia e suicídio assistido: uma análise normativa comparada/ 1º
ed. 2018.

9
A eutanásia aqui analisada e que é a implementada nos países europeus, consiste na
eutanásia voluntária e com fins humanitários, sendo um protocolo médico de assistência à
morte de paciente em condição de terminalidade, impossibilidade de cura e sofrimento
intenso. Subtrai-se, portanto, do objeto de estudo do presente paper qualquer ideia sobre
eutanásia involuntária, a qual é completamente incompatível com ideais de direitos humanos e
respeito à dignidade humana.

Subscreve-se, portanto, à definição de eutanásia apresentada pela Associação Médica


Americana12, que dispõe: “eutanásia é a administração de um agente letal por outra pessoa a
um paciente com o propósito de aliviar o sofrimento intolerável e incurável deste paciente.”
O procedimento para consumação tanto da eutanásia quanto do suicídio assistido
sempre deve levar em conta a dignidade humana, de modo a garantir o menor sofrimento
possível ao paciente. Métodos cruéis e dolorosos jamais podem ser considerados, visto que
evitar a dor e diminuir o sofrimento são componentes importantes do direito a uma morte
digna, clinicamente assistida.

2.3. LEGISLAÇÕES SOBRE O DIREITO À MORTE DIGNA

Atualmente, oito países europeus regulamentam o direito à morte digna, seja por meio
da eutanásia ou do suicídio assistido, na Europa Ocidental. Alemanha, Áustria, Bélgica,
Espanha, Holanda, Luxemburgo, Suíça e, mais recentemente, Portugal.

A Holanda foi o primeiro país europeu a regulamentar o direito à morte assistida por
meio da aprovação de medida legal que autorizou a prática do suicídio assistido e da
eutanásia. Em seguida, no mesmo ano, a Bélgica aprovou diploma legal que regulamenta a
eutanásia, se tornando o seguindo país a regulamentar o tema. Em 2009, Luxemburgo
aprovou leis regulamentadoras da eutanásia e do suicídio assistido. Após um longo período
sem avanços sobre o tema na Europa Ocidental, a Espanha legalizou a eutanásia e o suicídio
assistido em 2021, sendo seguido, mais recentemente, por Portugal, que aprovou a

12
AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION, Code of Medical Ethics, from
https://code-medical-ethics.ama-assn.org
10
regulamentação da eutanásia apenas nos casos em que o paciente está fisicamente
impossibilitado de realizar o suicídio assistido.

Alemanha e Suíça possuem a prática reconhecida do suicídio assistido por meio de


omissão legal na não-penalização do auxílio/instigação ao suicídio. O Parlamento austríaco,
por sua vez, em 2021, aprovou legislação que despenalizou o auxílio ao suicídio na Áustria,
tornando o suicídio assistido possível.

Fora da Europa, alguns países ocidentais permitem a prática da eutanásia. A nível


nacional, Canadá e Nova Zelândia permitem a prática, sendo que a legislação neozelandesa é
recente, ainda de 2021. Por outro lado, apesar de quase todos os estados australianos
autorizarem (Territórios do Noroeste não permitem), a Austrália permite a prática do suicídio
assistido e da eutanásia em seu território.

Nos Estados Unidos há um número reduzido de estados que permitem o suicídio


assistido, são eles: California, Colorado, Hawaii, Maine, Montana, New Jersey, New Mexico,
Oregon, Vermont e Washington. Todavia, a eutanásia permanece ilegal em todos os estados da
União, sem exceção. Por outro lado, a Colômbia é o único país sul-americano que permite a
eutanásia, por meio de uma decisão do Tribunal Constitucional local.

2.3. EUTANÁSIA E A BIOÉTICA PRINCIPIALISTA

A complexidade da discussão sobre a possibilidade de legalização da eutanásia e de


outros procedimentos ensejadores do fim da vida leva a discussões acaloradas entre os
defensores e os opositores da medida. Ambas as partes argumentam que a proibição ou a
legalização da eutanásia levaria a graves violações de direitos fundamentais.

No caso dos argumentos dos opositores, o principal seria de que a eutanásia é


incabível por constituir uma violação do direito à vida. Em quase todas as culturas ao redor do
mundo, o direito à vida é visto como inalienável e de valor quase que absoluto. O direito à
vida seria inerente a todos os indivíduos e o Estado e terceiros deveriam atuar de modo
conjunto a garantir a vida de todos os seus cidadãos, não importando sua condição física e de

11
saúde. Este argumento possui um fundo também de natureza moral e religiosa, especialmente
sobre as concepções modernas de sacralidade da vida humana. Todavia, utilizar apenas de
argumentos religiosos para embasar uma política estatal numa sociedade secular e
democrática não é cabível.

Os opositores da eutanásia ainda, sempre com o direito fundamental à vida como


argumento principal, costumam arguir algumas dificuldades para assegurar que a autonomia e
vontade do paciente seja respeitada. Em que pese o argumento da autonomia seja utilizado de
forma veemente pelos defensores da medida, os opositores da eutanásia alegam algumas
dificuldades em aferir a autonomia e vontade real de pessoas debilitadas física e
emocionalmente e que possam estar suscetíveis a pressões de terceiros. Alguns fatores de
caráter emocional poderiam influir na tomada de uma decisão, o que afastaria o
consentimento livre e informado.

Além disso, críticos da eutanásia costumam argumentar que a legalização da medida


poderia levar a um desincentivo a pesquisas médicas na área da saúde envolvendo pacientes
terminais ou que possuem doenças debilitantes em caráter irreversível. Tais argumentos
seriam no sentido de que a legalização da eutanásia não garantiria que os doentes aguardem o
tempo suficiente para o desenvolvimento de um tratamento eficaz, de modo que a pesquisa
científica na área acabaria sendo desestimulada caso o acesso à eutanásia seja facilitado e
aberto.

Observa-se, portanto, que os argumentos contrários à legalização da eutanásia são,


basicamente, baseados na inviolabilidade do direito à vida. Em que pese é consenso
internacional de que o direito à vida é um direito humano da mais alta ordem e deve ser
protegido e estimulado, considerá-lo de modo altamente absoluto e inviolável pode acabar
conflitando com outros princípios de natureza extremamente importante, como o direito à
autonomia e autodeterminação e o direito a não ser submetido a tratamento cruel e
degradante.

A partir dos argumentos suscitados pelos opositores, surge a questão objeto de estudo
deste paper: como justificar o direito a uma morte digna - eutanásia e/ou suicídio assistido -
com base na bioética principialista, sem agredir direitos fundamentais?

12
Primeiramente, retomando os conceitos já anteriormente abordados em capítulo
anterior, a bioética principialista é baseada em quatro eixos/princípios: autonomia,
beneficência, não-maleficência e justiça.

Uma perspectiva principialista da bioética coloca a autonomia do paciente no centro


da discussão sobre qualquer dilema ético. No caso da eutanásia, a autonomia e
autodeterminação individuais são parte integral dos argumentos em favor da antecipação da
morte. Segundo um bioético principialista, a eutanásia é amplamente jusitificável na medida
em que coloca a vontade do paciente, compreendido como um ser livre e capaz de se
autodeterminar, no centro da discussão e das opções para um tratamento. Indivíduos
autônomos e capazes de expressarem a sua vontade devem poder decidir sobre o modo e
tempo de seu falecimento, ainda mais no contexto de estar passando por uma situação de dor e
vulnerabilidade extremas. Reconhecer a autonomia individual é reconhecer que cada pessoa
possui suas vontades, suas crenças e seus valores para decidirem o que quiserem sobre seu
próprio corpo e sua própria vida.

Passando ao princípio da beneficência, este também é facilmente visualizável no caso


da eutanásia. Uma ação benéfica é aquele que promove os melhores interesses e o bme-estar
do paciente. Garantir que pessoas em situação de terminalidade e sofrimento tenham acesso a
um modo de encerrar a sua vida de modo digno e indolor pode ser considerada uma ação de
caráter positivo e que promova o bem-estar do doente. Conforme destacado na definição de
Luciano Maia Alves Ferreira sobre o princípio da beneficência, este encompassa ações de
compaixão, bondade, caridade e altruísmo por parte do profissional médico. Ora, que ação
pode ser mais compaixosa do que aquela que atende aos interesses e vontades de uma pessoa
e acaba com o seu sofrimento prolongado e grave?.

Quanto à não-maleficência, que prega a possibilidade de evitar ações que prejudiquem


o paciente, impondo um dever negativo ao profissional, esta pode ser observada no caso da
eutanásia na medida em que imporia ao médico um dever de agir de modo a evitar o
sofrimento do paciente e acelerar uma morte inevitável e que, caso se omitisse, poderia ser
ainda mais dolorosa. A realização da eutanásia a partir de um sistema seguro, que garantisse a
dignidade e o consentimento do paciente, observando um processo de acompanhamento

13
psicológico e psiquiátrico a fim de garantir a autonomia da decisão, garantiria que a
não-maleficência fosse aplicada, garantindo a observância da vontade do doente.

Por fim, quanto ao princípio da justiça, o qual dispõe sobre a equidade e a adequada
distribuição de recursos, a eutanásia é possível de ser visualizada como justificável. É sabido
que manter uma pessoa em uma situação de terminalidade ou que sobrevive apenas com o
auxílio de suporte vital é um processo extremamente custoso do ponto de vista financeiro.
Cuidados paliativos e prolongados e de gerenciadores da dor não são financeiramente
acessíveis a todos, de modo que aqueles que conseguem ter acesso a esses são pessoas de
natureza mais afluente e que conseguem, por muitas vezes, ainda se manter conectados a
aparelhos e evitar o sofrimento prolongado e doloroso que acompanha uma situação como
essa. Enquanto isso, pessoas que não possuem condições financeiras para tanto não
conseguem ter acesso ao cuidado paliativo necessário e/ou aos medicamentos necessários para
pelo menos gerenciar a dor e torná-la um pouco menos insuportável. O que fazer com essas
pessoas que podem ficar anos condenadas a uma vida de sofrimento prolongado, doloroso e
irreversível enquanto aqueles que possuem condições para esses remédios conseguem levar
uma vida um pouco mais tranquila? Obviamente a resposta correta está em garantir que o
Estado forneça os tratamentos paliativos a todos os seus cidadãos, independentemente de sua
condição financeira, mas não seria relevante ao menos oferecer a todos, da mesma forma, a
possibilidade de antecipar o fim da vida de modo digno também?

2.3. EUTANÁSIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Por fim, abordar-se-á como justificar a eutanásia como não-violadora de direitos


fundamentais, a partir da perspectiva da bioética principialista já citada anteriormente. Os
direitos fundamentais aqui compreendidos e que seria protegidos e efetivados por meio da
legalização da eutanásia seriam: o direito à autonomia e autodeterminação, o direito à
não-discriminação, o direito a não ser submetido a tratamento cruel e degradanten e o direito à
privacidade.

A legalização da eutanásia garantiria e efetivaria que os indivíduos exerçam o direito


fundamental de decidir suas próprias ações e seu próprio futuro, portanto, de se

14
autodeterminar. Garantir que as pessoas possam dispor de seu próprio corpo e de sua própria
vida da maneira que melhor que acharem adequadas está de acordo com o referido princípio.
O sofrimento de estar numa situação de terminalidade ou de extrema dor é também uma
situação de violação da dignidade da pessoa humana, de modo que ao menos possuir a opção
de exercer o direito de dispor do próprio corpo e da própria vida de uma maneira digna é
efetivador do direito à autonomia e liberdade. O direito à privacidade também está
intimamente ligado à questão da autonomia, na medida em que exercer seu direito de
disposição do próprio corpo e da própria vida constitui também o direito à privacidade das
suas propriedades corporais, na medida em que apenas o paciente pode escolher o que fazer
com sua própria vida e/ou corpo, independemente das determinações do Estado ou dos
desejos de terceiros.

A proibição da eutanásia também pode configurar violação do princípio da


não-discriminação àqueles pacientes que não possuem condições de porem fim à própria vida
de maneira independente. Ante a não-criminalização do suicídio em muitos países do mundo,
indivíduos que possuam condições de pôr fim ao seu justificado sofrimento podem fazê-lo por
conta própria, enquanto muitos que sofrem de condições extremamente severas e incuráveis
podem, por limitações físico-motoras, estarem sem condições de exercer seu direito de dispôr
do próprio corpo. A legalização da eutanásia garantiria a aplicabilidade do princípio
principialista da justiça e também da autonomia, ao permitir que esses indivíduos possam
dispôr da própria vida de maneira segura e não-discriminatória.

Probir a eutanásia também pode configurar a violação do princípio da vedação ao


tratamento cruel e degradante, na medida em que o Estado-legislador, ao criminalizar a
questão, condena pessoas gravemente doentes e em situação de extremo sofrimento a uma
vida degradante e dolorosa. Muitas dessas pessoas estão em situação de extrema
vulnerabilidade física e psiquicamente, de modo que as dores e sofrimento que passam por
conta da situação, retiram toda a dignidade de sua vida, submetendo-as continuamente e
perpetuamente a um tratamento degradante.

15
3 CONCLUSÃO

Ante o exposto neste estudo, chega-se à conclusão de que é perfeitamente possível


justificar, a partir de uma perspectiva da bioética principialista, a existência de um direito a
uma morte dignificada.

A doutrina bioética de Tom Beauchamp e James Childress, a qual é basilar para o


principialismo bioético, cria uma baliza envolvendo quatro princípios que serviriam como
guia para a ação médico: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. A aplicação
desses princípios aos dilemas éticos envolvendo a eutanásia garantiria que o direito à vida dos
pacientes não fosse violado, na medida em que a decisão seria autônoma e a partir de um
consentimento informado claro e eficaz. Da mesma medida, a ação seria benéfica e
não-maléfica, garantindo dignidade ao paciente e que este pudesse encerrar a sua vida de
modo digno e indolor.

A não-violação de direitos fundamentais dessa prática é apenas uma esfera da questão,


na medida em que não apenas não violará esses direitos, mas garantiria a sua consecução ao,
efetivamente, proteger o direito à autonomia, à privacidade, a não ser submetido a um
tratamento cruel e degradante a o direito à não-discriminação.

Em síntese, a bioética principialista cria parâmetros para a tomada de decisões no


campo da ética médica que garantem a não-violação de direitos fundamentais no processo de
antecipação do fim da vida, bem como garante que a legalização desse procedimento levaria a
consecução de outros direitos fundamentais.

16
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Beauchamp, T. L.; Childress, J. F. (2002). Princípios de Ética Biomédica. 1. ed. São


Paulo: Loyola.

Ferreira, L. M. A. (2018). Eutanásia e suicídio assisitido: uma análise normativa


comparada. 1. ed. Curitiba: Appris.

Garcia, G. (2017). Considerations Regarding the Ethical Viability of Voluntary Active


Euthanasia [Review of Considerations Regarding the Ethical Viability of Voluntary Active
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https://soundideas.pugetsound.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1016&context=sounddecisio

Potter, V. R. (n.d.). Bioethics, the Science of Survival [Review of Bioethics, the


Science of Survival]. Perspectives in Bioethics and Medicine, 14(1), 127–153.
https://doi.org/10.1353/pbm.1970.0015.

Reich, W. T. (1995). Encyclopedia of Bioethics (MacMillan, Ed.; 21st ed.) [Review of


Encyclopedia of Bioethics]. MacMillan.

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Young, R. (1996). Voluntary Euthanasia. In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy.


Disponível em: <https://plato.stanford.edu/entries/euthanasia-voluntary/ .

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