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No prelo. Política linguística, política de línguas indígenas e línguas silenciadas.

In Estudos linguísticos na línguas minoritarizadas. 2021(no prelo)

Política linguística, política de línguas indígenas e línguas silenciadas


Tania Conceição Clemente de Souza
Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-graduação em Linguística e Línguas Indígenas- UFRJ

C’est donc par amour


que l’on devient ainsi
« fou de la langue » : par amour,
et d’abord par attachement premier
au corps de la mère,
quand son insistance prend
la forme d’un amour
de la langue-mère
ou de la langue maternelle.
Gadet e Pêcheux
Les hommes fous de leur langue

Introdução
Há muito tempo os povos indígenas enfrentam vários entraves para a
manutenção e fortalecimento de suas culturas e línguas. É fato que, ao longo deste
tempo, após muita luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas, os povos vêm
buscando formas de valorização e fortalecimento da língua. Um meio encontrado para
tal foi a conquista de escolas criadas dentro das próprias aldeias. Uma segunda opção
deste fortalecimento das línguas se institui por meio de iniciativas relacionadas à
documentação e registro, seja este escrito ou audiovisual, dos saberes e da língua destes
povos. Além dos projetos de co-oficialização.
É fato corrente, em termos mundiais, a preocupação de muitos linguistas com
um número considerável de línguas em perigo de extinção. Estima-se um total de 7000
línguas faladas no mundo, das quais aproximadamente a metade não mais será falada
após algumas gerações, que não estarão mais sujeitas a adquiri-las como primeira
língua. São estas as chamadas “LINGUAS AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO”.
São línguas minoritárias, faladas por grupos pequenos de falantes alocados,
muitas vezes, em comunidades isoladas. São muitos os fatores – de ordem natural,
econômica, política, social e cultural – que acarretam a marginalização dessas pequenas
sociedades, cujos falantes, estando sob pressão, acabam por adotar a língua de
dominação. O silenciamento das línguas não é isento de consequências: perde-se a
língua e perde-se o principal fator de constituição da identidade de um povo. A língua
guarda saberes milenares, lendas, crenças, valores éticos e morais. Constitui a
identidade de cada um e a relação de alteridade. Logo, quando se investe num trabalho
de salvaguarda linguística, investe-se num trabalho político de preservação da memória
não só de um grupo minoritário, mas de toda uma nação (Cf: SOUZA, 1994, 2011,
2021, entre outros).
Hoje em dia, no Brasil, há um total aproximado de 270 línguas indígenas, o que
representa em torno de três por cento das línguas indígenas que foram anotadas por
viajantes e cronistas, desde o século XVII. Nesse contexto, há de se registrar, ainda,
povos indígenas, cujas línguas estão em situação de totalmente silenciadas, ou
parcialmente silenciadas, quando contam ainda com alguns lembradores, os indivíduos
mais idosos. Há, ainda, dentro de um mesmo grupo linguístico, uma gama de falares –
como falas rituais, cânticos, nomes de artefatos, línguas sagradas, etc – que vêm sendo
preservados apenas por alguns sábios e lembradores. Logo, é premente o
desenvolvimento de projetos que invistam na sustentabilidade de patrimônios
imateriais, como são as línguas dos povos originários do Brasil.
De ordem político-jurídica, porém, o fator de grande importância em relação à
preservação das línguas, reside nos entraves ao reconhecimento por parte do Estado da
identidade étnica dos que se declaram indígenas. Em janeiro do corrente ano, a FUNAI,
através da norma complementar para auto declaração (28/01/2021), afirma não ser mais
suficiente a auto declaração étnica para reconhecimento jurídico identitário. Foram
retomados antigos critérios - “técnicos científicos, e cujas características culturais sejam
distintas na sociedade não índia” - para o reconhecimento, tais como a prática de
expressões culturais tradicionais e, sobretudo, o domínio da língua indígena.
Nossa proposta1 aqui é explorar a relação entre identidade étnica e identidade
discursiva, mas antes, porém, colocar em discussão as noções de línguas minoritárias,

1
Neste trabalho está incluído o texto da conferência de abertura do GT de Línguas Indígenas, durante o
XXXV ENANPOLL, 2020, sob o título “Política linguística, política de línguas indígenas e identidade
discursiva”. Nossa reflexão aqui abrange vários tópicos não explorados na conferência.
línguas minorizadas e línguas silenciadas. Essas noções, em largo alcance, acabam por
trazer à tona a forma como línguas são administradas e, ao mesmo tempo, deflagram o
jogo tenso que se institui estre as línguas em contato, e que vai dar lugar à constituição
de uma identidade discursiva.

Por uma política das línguas originárias do Brasil


Desde 2012, venho trabalhando no campo de Política Linguística, oferecendo
cursos de extensão2 e participando de Congressos Internacionais, com apresentação de
trabalhos e publicações nos anais desses Congressos e aqui no Brasil. O interesse maior
em investir na discussão sobre política linguística se atém, de imediato, à possibilidade
de se distinguir Política Linguística de Política de Línguas. E, a partir dessa distinção,
pensar em Política de Línguas Indígenas. Uma política de línguas caminha em várias
direções, seja com retomadas, ressurgências, ou co-oficalizações de línguas. Enquanto
as Políticas Linguísticas são planificadas pelo Estado, as políticas de línguas partem de
movimentos das comunidades linguísticas e falantes, que se engajam em projetos de
preservação e reconhecimento de suas línguas, sejam estas minoritárias, minorizadas ou
silenciadas.
Essas diferenças entre movimentos políticos e entre nomeação de línguas
decorrem de um gerenciamento e administração. Como se dá a administração dessas
línguas? Como diz Orlandi (2012; p.6), “não há país que tenha uma só língua, e não há
Estado que decreta sua(s) língua(s) oficiai(s), nacionai(s), sem que o faça no contato
com as muitas línguas.” Línguas, no caso, entendidas por nós como fato social em
funcionamento sob certas condições.
Voltando à pergunta: como se dá a administração dessas línguas? Pelas relações
de poder – quando se determina a língua oficial, a língua boa, a língua menor, a língua
de ensino... - e pelas relações entre as línguas entre si em condições historicamente
determinadas. A partir dessas relações, então, é que se reafirma a distinção entre Política
Linguística e Política de Línguas e que me permite explicitar todo um jogo de
silenciamento das línguas indígenas brasileiras.

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Destaque para o curso de extensão “Política Linguística e retomada/revitalização de línguas indígenas –
um tributo a Aritana Yawalapiti”, sob minha coordenação e em parceria com a professora Ana Suelly
Cabral da Universidade de Brasília. O curso foi oferecido (e está disponível) pelo canal labedis/youtube
no período de 23/10/2020 até 05/02/2021. Foram mais de 160 inscritos de todas as regiões do país e
foram mais de 10.000 visualizações.
Por que línguas minoritárias?
A denominação de línguas como minoritárias recobre uma relação mais de
confronto do que de contato, frente a uma língua de dominação, ou de prestígio. São
línguas que, com esta denominação, perdem em importância política por várias razões:
porque são substratos, ou porque são línguas autóctones. E perdem em importância
política porque seus falantes são em número menor frente aos falantes e usuários da
língua de dominação. Reside aí o estigma de se falar uma “língua menor” e reside aí
um dos fatores de, pouco a pouco, virem essas línguas ser silenciadas. Hamel (1988)
observa que as línguas minoritárias surgem a partir das “trocas linguísticas entre si, [d]o
surgimento de conflitos, [d]os processos de deslocamento e de resistência ao
ressurgimento dessas línguas minoritárias”.

E as línguas minorizadas?

As línguas minorizadas são aquelas que “ainda que dividindo o mesmo território
com outras línguas, não gozam de privilégio em relação ao uso, sendo assim excluídas
social e politicamente.” (ARACIL, 1983, apud PONSO, 2017; p. 193).
A diferença em termos discursivos entre minoritária e minorizada reside no fato
de que forjar uma denominação em termos numéricos – mesmo que isso não
corresponda à realidade de todas as populações3 - é encobrir o descaso do Estado com
relação ao reconhecimento de línguas e povos. “Minorizadas” denuncia a exclusão
social e política e denuncia como se planificam as políticas linguísticas.
Ambas as definições apontam como, em termos de política linguística, são
administradas essas línguas. Por isso mesmo, é necessário o enfrentamento por parte
daqueles que têm como língua materna uma língua indígena. Um enfrentamento na
ordem do discurso, investindo no movimento de política de línguas em várias direções,
seja com retomadas, ressurgências, ou co-oficalizações. Seja também no movimento dos
que se dedicam a estudar tais línguas.

Línguas e processos de silenciamento.

3
Há línguas indígenas com população de falantes acima de 15.000, como é o caso dos Yanomami, dos
Tikuna.
Lembro quando em 1984, minha primeira estada entre os Bakairi4, ao participar
do ritual Batizado do Milho, estava muito emocionada e achando que a tudo entendia. O
ritual se iniciava jogando grãos de milho na direção do sol nascente e repetíamos esse
gesto até percorrermos os quatro pontos cardeais, assim eu pensava. Mas o Conselheiro
bate em meu ombro e fala: “Karaiwa, a gente joga o milho nos cantos que corre o vento.
O vento espalha o milho por toda a terra [õrã] e do milho nasce Bakairi.” O Conselheiro
falava com palavras emprestadas dos Karaiwa, mas o discurso era Bakairi. (SOUZA,
1984; Diário de Campo) Ou seja, não importa a língua com que o indígena fale, seu
discurso será sempre o discurso indígena. Se as línguas se silenciam, estas não se calam.
Não se extinguem. Nem estão dormindo. Migram para outros lugares. Afinal, há as
línguas imaginárias, como as oficiais, e há as línguas fluidas, que estão sempre em
trânsito, como definem Orlandi e Souza (1988).
Línguas imaginárias são objetos-ficção. Línguas-sistemas, normas, coerções,
línguas sem história. É a sistematização que faz com que elas percam a fluidez e se
fixem em línguas-imaginárias. (ORLANDI e SOUZA, idem).
As línguas fluidas são as que podem ser observadas e reconhecidas quando
focalizamos os processos discursivos, através da história da constituição de formas e
sentidos, tomando os textos como unidades (significativas) de análise, no contexto de
sua produção. (idem) A língua fluida não pode ser contida no conjunto de normas e
sistematizações. Por isso, acrescento, as línguas se silenciam, mas ressoam na memória
de todos aqueles que um dia tiveram contato com a sua materialidade física.
Pelo viés da Análise de Discurso, todo e qualquer enunciado não escapa ao
político. Político, no sentido de disputa de sentidos, de partição na e pelas línguas. E é a
partir dessa definição de político, que gostaria de continuar em torno de duas questões:
por que falo de línguas silenciadas, e não de línguas extintas, ou mortas? e que relação o
sentido de línguas silenciadas tem a ver com política de línguas?

Línguas silenciadas
O conceito de língua silenciada vem sendo por mim elaborado em vários
trabalhos (SOUZA, 1994, 2016, 2018, dentre outros). A decisão de falar em línguas
silenciadas não é por uma questão de eufemismo, mas sim por razões de ordem política
e teórica. Retomo, aqui, que numa perspectiva discursiva “Silenciar não é calar, mas

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Até os dias atuais desenvolvo pesquisas junto aos Bakairi, assentados em terras Bakairi, em Mato
Grosso.
impedir que certos sentidos circulem.” (ORLANDI, 1992). Silenciar é impedir que
certos sentidos indesejáveis transitem no bojo do discurso social, definido como aquilo
que é permitido dizer, como assinala Pêcheux (1975). Se não podemos dizer x, dizemos
y. Assim, por qualquer razão, se não se pode falar numa determinada língua, falamos
em outra. Mas imprimimos nesta outra língua, a nossa identidade.
Neste ponto, gostaria de recuperar a discussão em torno da diferença entre
falante e usuário de uma língua. Orlandi (2012), a propósito da discussão sobre o
multilinguismo, trabalha essa distinção:

Se, com o Estado/Nação as noções que mobilizamos é de língua oficial,


língua nacional e cidadania, hoje, na nova forma social, falamos em
“usuários” (E. Orlandi, 2011), em múltiplas línguas, em falares, em dialetos,
em comunidades etc. Se antes devíamos abandonar o falar local, a língua
materna, pela noção de unidade, a nacional, hoje nos fragmentamos em falares
locais, dificilmente visíveis, pouco conhecidos (não gramatizados), enquanto do
outro lado, paralelamente, flui livremente, sustentado por uma enorme
quantidade de instrumentos linguísticos, e com toda a visibilidade e apoio
tecnológico a língua franca “universal” da comunicação e do conhecimento: a
língua única (nas condições atuais, o inglês). Língua dominante não só no
espaço digital, o espaço da multidão de usuários (ORLANDI, 2012; p.15)

Trazendo essa discussão ao âmbito do que nos interessa aqui, estendo a distinção
entre falante e usuário ao universo das línguas indígenas. Já apontamos que uma das
causas para o silenciamento das línguas indígenas reside – dadas as condições históricas
do confronto, enfrentamento do mundo indígena com o mundo karaiva5 - está na adoção
do português – língua de dominação – como língua franca e de comunicação no dia-a-
dia em nosso território. Falo de enfrentamento, de confronto entre povos e línguas – e
não de contato – por enveredar nossa reflexão pela ordem do discurso, e não no campo
na afetação entre línguas. E, nesse sentido, recupero aqui através de uma citação de um
aluno na abertura do seu memorial6, a polissemia do sentido de língua materna: “Sou
Baré e minha língua materna é nheengatu” (Emerson Chaves de Oliveira).
Nesse breve enunciado ecoa, a nosso ver, além da história do confronto, a
história da desterritorialização/reterritorialização (processo como definido em Deleuze e
Guatarri) do sujeito e suas línguas. Há muito que o baré é uma língua silenciada, mas o
sujeito se reconhece indígena por dois movimentos: pela reafirmação de sua etnia –
Baré – e pelo reconhecimento de sua identidade discursiva: a língua materna é o

5
Karaiva é a forma como os Bakairi denominam o não-índio.
6
Trata-se de memorial de Emerson Chaves de Oliveira, apresentado, em 2020, à seleção do Mestrado
Profissional em Linguística e Línguas Indígenas/Museu Nacional-UFRJ.
nheengatu. Nesse movimento de subjetivação num território em que “o sujeito se sente
em casa” (de novo Deleuze e Guatarri), não há espaço para o português. Vem à tona
sua filiação linguística étnica – língua baré – e sua identidade de língua materna – o
nheengatu – e apaga, neste enunciado, falar português. Processo complexo e paradoxal:
fala e escreve em português como usuário dessa língua outra, mas nomeia sua
identidade: forma-sujeito-índio. Que sentido de língua materna se inscreve nessa forma
de se apresentar num memorial? Não tem como não retomar o que dizem Gadet e
Pêcheux em um de seus escritos (Les hommes fous de leurs langues, 1981) sobre a
paixão dos homens por suas línguas: há os que se batem pela língua materna e há os que
se batem por escrever sobre as línguas. Falamos aqui sobre aqueles que estão em luta
pela língua materna. Que língua materna? A resposta não é a que dariam os sábios da
linguagem, mas sim: “Sou Baré e minha língua materna é nheengatu”. Enfim, as línguas
se silenciam mas não escapam à sua memória.
Ainda como esclarecimento, sublinhamos as condições de produção deste
enunciado. A língua baré é filiada à família linguística Aruak e o nheengatu é uma
língua de base Tupi, forjada pelos Jesuítas, chamada também de tupi jesuítico. Sobre os
Baré, há estudos que afirmam ter sido a língua silenciada devido ao trabalho dos
missionários. Como, há algum tempo, vem se instituindo o movimento de ressurgência
de povos indígenas, o nheengatu tem sido adotado na região do Alto do Rio Negro
como língua de pertencimento identitário. Em muitas das organizações sociais de povos
indígenas, a língua a ser falada, no caso de casamentos exogâmicos, é de linhagem
matrilinear. Sendo esta considerada a língua materna.

Língua, silêncio e significância


A migração das línguas se dá sem dúvida no trabalho contínuo de gestos
políticos de retomada, de revivência, recorrendo-se a sábios e lembradores. Nos gestos
de co-oficialização de diversas línguas, garantindo uma certificação jurídica. Esses
gestos – da ordem do político, da ordem do discurso – trabalham na contramão da
extinção e investem no silenciamento como linha de fuga, enfim como resistência.
Faço um parêntese para sublinhar que falar em línguas silenciadas não é uma
questão de relativização do olhar, mas sim de se apoiar numa sustentação teórica que
trabalha no bojo do materialismo histórico. Logo, não se trata de um “objeto visto de
várias perspectivas, mas de uma multiplicidade de objetos diferentes.” (Paul Veyne) Por
isso, são línguas silenciadas, mas línguas em potencial no lastro da sua historicidade.
As línguas se silenciam, mas são ouvidas na denominação dos povos indígenas –
Puri, Tupinambá, Mura, Baré... Ecoam o tempo todo toda vez que se repetem os nomes
dos povos. Se as línguas se extinguem, extinguem-se os povos, os saberes, a cultura de
todos que assim se nomeiam?
As línguas se silenciam, mas ressoam na memória de todos aqueles que um dia
tiveram contato com a sua materialidade física. Que lembram da avó, que ao final de
tarde ecoava alguma canção. Que lembram de serem embalados com a língua da qual,
certamente, reconhecem a sonoridade, o ritmo, inscritos no nome de alguma planta, de
um artefato qualquer, e até no nome próprio. São línguas que não precisam de um
significado imanente, basta a sua significância.
A questão dos aspectos inerentes à materialidade sonora não se encerra aí. Por
baixo da cada significante, muitos significados existem. São muitos e variados os
exemplos que nos permitem entrar nesse campo de discussão, como o caso dos antigos
cânticos. A "música dos antigos" - como dizem os Bakairi - é cantada com palavras
cuja significação já se perdeu7. Assim, o sentido se inscreve numa língua dita com
palavras cujo conteúdo não se define na relação significante/significado. Porém, se
define numa das formas de oralidade, expressa na sonoridade, na musicalidade, na
coreografia dos corpos, na pintura corporal, no comando do ritmo por aquele que é a
Música e no próprio rito. As palavras perdem o seu significado, mas elas existem como
enunciados, plenos de sentidos instaurados pela coreografia, pela sonoridade, e por
inúmeras outras formas entendidas como formas de escritura do arquivo de oralidade
(SOUZA, 1984 e 2016).
O significado das palavras antigas não depende de uma significação "literal", nem
de uma tradução na língua atual. Hoje em dia, os Bakairi dizem não saber o significado
de cada palavra dessas músicas antigas, mas eles as cantam, as repetem durante os
séculos. Não importa a tradução. O que importa é o sentido que se inscreve e se
reinscreve ao longo da história.
O importante a ressaltar aqui é que a sonoridade das palavras - e não o significado
em si - é que conta no processo de identificação. A ausência do significado não resulta
na ausência do sentido, instaura-se, então, a significância, quando o sentido se institui
pelos significantes, e não pela imanência do significado. Ao mesmo tempo que o

7
Desenvolvemos junto ao LACITO/CNRS, o projeto “Langue chantée, mémoire et discours”, cuja meta
principal é analisar a discursividade das letras dessas antigas canções e a sua função na organização
social d grupo.
sentido é instituído nas diferentes formas de escritura, a sonoridade preserva a
identidade desses enunciados como kura itanro8 'língua Bakairi'. Todo esse processo
revela, ainda, a possibilidade de se falar da passagem dessas expressões enquanto
palavras a formas de discursividade, construídas pela materialidade sonora e, ao mesmo
tempo, como enunciados, mas que historicamente parecem descartados como signos
linguísticos, em sentido estrito. Um signo instituído pela oralidade e pelo sentido
preservado num arquivo que vai desde a arte de se contar história até a coreografia, a
pintura corporal, etc. Lembro, aqui, Orlandi, “para que as palavras façam sentido, é
preciso que elas já tenham sentido”, um sentido que se constitui por palavras
atravessadas por uma memória que carrega a identidade da língua e do povo.

Línguas silenciadas e identidade discursiva


A história da colonização e dominação do país é pontuada pelas marcas dos
inúmeros conflitos entre as populações indígenas e o Estado. Esses embates, ao mesmo
tempo que revelam posturas antagônicas entre os dois lados, significam os movimentos
de resistência que vêm garantindo ao índio a preservação de sua identidade étnica. Hoje
em dia esses movimentos vêm rompendo fronteiras, quando se configura uma busca por
espaços que se projetam para além da demarcação oficial das terras indígenas. É a
situação, por exemplo, do movimento de índios de diversas etnias que vêm, em
diferentes rotas migratórias, se alojando em grandes centros urbanos, como no Rio de
Janeiro, Vitória, São Paulo, etc (SOUZA e ARAÚJO, 2010).
Pelas anotações de cronistas e viajantes, nos deparamos com a necessidade de os
indígenas se engajarem, já no século XVIII, no trabalho externo – extrativismo e
pecuária -, instaura-se assim uma dispersão entre os povos indígenas, resultando, como
se deduz, no silenciamento de muitas línguas. Em termos de situação linguística, tem-
se, por um lado, o silenciamento de um contingente grande de línguas indígenas e, por
outro, a retomada de línguas indígenas, como o exemplo do nheengatu, ou a
ressurgência de línguas consideradas extintas.
Desses movimentos na história, há em determinadas regiões situações
linguísticas complexas. Para exemplificar vou tomar o caso do baniwa. Rosário Baniwa

8
A tradução mais apropriada de kura itanro é ‘nossa língua’, considerando-se, porém, que kura é uma
marca dual de pessoa que recobre, apenas, o eu e o tu da mesma etnia, ou seja, só se aplica a indivíduos
Bakairi.
nos conta que “o que que aconteceu, é que, no tempo da colonização, quando a Sofia9
entrou, a maioria do pessoal de baixo, eles perderam a língua, que no caso é o baniwa.
Aí de Assunção pra lá eles permaneceram com o baniwa fluente, por causa dessa
entrada dos missionário evangélicos. Então, o pessoal de baixo fala nheengatu, e os de
Assunção falam baniwa.” (apud SOUZA, et al. 2020)
Com o depoimento de Rosário, mais uma vez atestamos o alcance da língua
nheengatu. O nheengatu, podendo ser considerada como língua Geral, foi, por dois
séculos, a língua mais falada no Brasil, tendo sido proibida pelo Diretório de Pombal,
em 1750. Hoje é falada por uma população aproximada de 20.000 indivíduos, na região
Amazônica. Em termos de situação linguística, se tem, por um lado, o silenciamento de
um contingente grande de línguas indígenas e, por outro, a retomada de uma língua
indígena (nheengatu) de caráter universal. Assim, nas terras Baniwa temos falantes de
nheengatu, falantes de baniwa e usuários do português, língua de comunicação entre os
Baniwa falantes de línguas diferentes.
Quanto à identidade indígena, esta em geral é discutida pelo viés étnico, quando
se constata a preservação de manifestações culturais, de organização social, de relações
de parentesco, de herança de espólio matrilinear ou patrilinear e da própria
denominação étnica. Levando em conta toda a situação das línguas indígenas instaurada
pelo confronto trazido pelo trabalho de colonização, em termos discursivos, podemos,
então, pensar numa constituição da identidade indígena por outro viés, que não seja
estritamente o étnico, mas sim pela(s) língua(s). Um dos critérios oficiais do Estado
para reconhecimento dos povos indígenas – e aí reafirmar os direitos destes previstos
na Constituição brasileira – é o domínio da língua indígena. Por esse critério, muitos
desses povos originários correm o risco de ficarem alijados das políticas indigenistas e
de seus direitos. A retomada da língua indígena (seja qual for) vem, assim, em
confronto com tal critério, num movimento político de reafirmação da identidade
indígena em termos linguísticos e discursivos, e não apenas pela etnia.
A ressurgência de povos e línguas nada mais é que um gesto pleno de
decolonização e que, ao mesmo tempo, denuncia o desrespeito imposto aos povos
originários, com a ausência de projetos em prol da preservação desse rico patrimônio
imaterial.

9
Sophia Müller, missionária americana que chega ao Brasil por volta de 1949, por mais de 40 anos
serviu no ministério ao Senhor Jesus na Amazônia Brasileira, evangelizando dois povos: Curipaco e
Baniwa.
Ainda o silenciamento
Não seria possível finalizar o tema em torno de política de línguas indígenas,
sem voltar ao ponto do silenciamento, como discutido em Orlandi (2012 e 2014),
quando põe em xeque o plurilinguismo ou multilinguismo e seu funcionamento no
contexto da Globalização.
Colocar em prática políticas de língua é para Orlandi (2014; p.22) tomar como
base “um princípio geral de línguas em contato, no plano das relações cotidianas, no
plano das políticas regionais, no plano das relações globais, no plano das relações
próprias ao mundo das ciências.” E é no escopo das relações globais que Orlandi põe
em xeque levar em conta o plurilinguismo, ou multilinguismo, ao não se considerar os
efeitos da Globalização:
Nas condições atuais, é, pois, preciso pensar os sentidos que se estão
produzindo a respeito desta questão. Não podemos deixar de observar que há,
contemporaneamente, um grande investimento no discurso do multilinguismo
que se acompanha, fortemente, do discurso da mundialização/globalização. Ao
contextualizá-lo em relação à globalização já estamos significando de uma
maneira específica as línguas em suas relações. Essa formação ideológica da
globalização, a que se agrega o multilinguismo, se constitui de uma
contradição entre seu discurso formal universalizante e sua prática concreta de
segregação. É uma formação ideológica que, frequentemente, produz a redução
das culturas a museus, museifica as relações com línguas locais, se prende a
um multiculturalismo empobrecedor, que faz idealmente a apologia da
diferença e da multiplicidade, mas impõe, na prática, um monolinguismo
fechado que silencia a pluralidade linguística necessária à dinâmica das
sociedades e dos sujeitos no mundo. (ORLANDI, 2012; p.7)

O que de pertinente recorto nas colocações de Orlandi abarca as consequências


da mundialização/globalização no silenciamento da pluralidade de línguas, resultando,
como já discutimos, o seu esvaziamento político na condição de línguas minorizadas e o
apagamento da diferença entre os movimentos dessas línguas. Há um movimento
emergente, como o da ressurgência ou retomada de línguas indígenas, que passa ao
largo das discussões teóricas a esse respeito. Mais uma vez, nos deparamos com a
segregação desses povos que estão em luta por sua identidade étnica e discursiva. Trata-
se de um movimento plural estendido por todo o território. São muitos os povos que,
uma vez tendo suas línguas silenciadas e na falta de uma documentação que favoreceria
a ressurgência da língua que um dia foi falada, retomam, por exemplo, o Tupinambá,
língua há muito considerada pelos linguistas como extinta. É o caso, a exemplo de
muitos, dos Tupiniquim no Espírito Santo, dos Potiguara no Rio Grande do Norte, dos
Tupinambá de Olivença, na Bahia, região onde antes havia os Tupinaki de Olivença,
massacrados e mortos. Ao mesmo tempo, temos a insurgência do nheengatu, objeto de
muitas retomadas de povos em movimento de reafirmação étnica e discursiva, cuja
função como língua franca entre povos de diferentes línguas ganha um lastro maior do
que o português.
Colocar em causa o multilinguismo, como faz Orlandi, é atestar uma forma de
política linguística “de domesticação da efervescência das línguas nas suas amplas
possibilidades de significar. É das múltiplas possibilidades de sentidos que o
monolinguismo oferece proteção.” (Orlandi, 2012. p. 15)
Por que a expressão "Multilinguismo é relacionada à globalização? Achei que
era o mesmo que polilinguismo10” (pergunta de uma aluna num dos cursos de extensão).
A resposta pode estar no funcionamento de como a Formação Ideológica [projeção(ões)
que institui(em) as posições discursivas na produção do sentido] da Globalização
produz apagamentos. Quando se globaliza, se massifica a cultura com a expressão, por
exemplo, multiculturalismo. Multi – por quê? por que são muitas as expressões
culturais? muitas as línguas? Ou porque são expressões culturais de todos e de qualquer
um? Ou porque, ao fim e a cabo, todos se “rendem” ao português? Por esse viés há uma
massificação, que apaga as diferenças. Multi – numa perspectiva discursiva – não
significa a diversidade, mas sim uma prática que, quando universaliza, segrega.
Uma prática que “faz apologia da diferença e da multiplicidade, mas que impõe,
na verdade, um monolinguismo fechado, silenciando a diversidade e a pluralidade.”

Considerações finais
Por fim, queria reafirmar que no movimento de todas as práticas discursivas aqui
sublinhadas, pode-se ainda perceber a história da forma-sujeito-índio, pensada não
como a forma-sujeito histórica do capitalismo, mas ainda assim com base em Pêcheux
(1975), afirmar que “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua
pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina, isto é na qual
ele é constituído como sujeito e diz: sou índio; eu falo”. (SOUZA, 1994).
E é por insistência dessa forma-sujeito-índio que o discurso indígena “toma a
forma de um amor da língua-mãe ou da língua materna”.

10
Polilinguismo é colocado por Orlandi (2012 e 214) em contraponto a multiculturalismo e
plurilinguismo.
Referências bibliográficas
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