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Ivan Ducatti∗
Terezinha Martins dos Santos Souza•
Para Dallari (1998), qualquer ação humana que tenha reflexo sobre as pessoas e seu
ambiente deve implicar reconhecimento de valores. O primeiro valor é a própria pessoa, em suas
manifestações materiais, psíquicas e espirituais. Ignorar essa valoração ao praticar atos sobre a
pessoa, diretamente ou modificando seu meio, é reduzir à condição de coisa, retirando a
dignidade. Isso vale para ações de governo, de empreendimentos econômicos, de indivíduos e
grupos e criação de qualquer atividade no campo da ciência. Entre os valores inerentes à
condição humana, está a vida, que tem sido historicamente pensada por todas as civilizações. As
necessidades humanas são materiais e espirituais. Como valor ético, a vida passou a ser
respeitada, mediada por particularidades culturais. No convívio social, cada pessoa é
condicionada por esse valor, tendo que respeitá-lo. Consciente ou não do mesmo.
Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), ONU, 1948, e seus
Pactos de Direitos Humanos, 1966, ONU, proclamam a existência de uma dignidade essencial e
intrínseca, inerente à condição humana. Mais que uma vida física, é uma vida com dignidade,
sendo esse o alcance da exigência ética, presente em todas as sociedades humanas (desejo de
sobrevivência). A ética de um grupo social é um conjunto de costumes formados por valores. A
partir daí, estabelecem-se normas, cuja obediência é considerada necessária ou conveniente. O
comportamento antiético ocorre quando alguém contraria alguma norma, sujeito à sanção.
Porém, ao discutir os temas ‘direitos humanos’ e comportamento ético, uma questão se
faz necessária. Em história, devemos analisar o contexto do qual emerge a preocupação com a
dignidade humana e gerações futuras, à luz dos fatos que levam a humanidade aos
questionamentos dos comportamentos sócio-históricos frente à ciência e à tecnologia. O século
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Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor e Coordenador de História
da Fundação Municipal de Educação de Niteroi (RJ).
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Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora
Adjunta/Coordenadora do Curso de Bioética do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
XX é um marco para as normatizações em nível internacional que colocarão limites eticamente
aceitáveis para pesquisa em seres humanos. As experiências em seres humanos devem envolver a
discussão que incorpore não só o profissional de saúde, mas os filósofos, educadores, juristas e
cientistas sociais, entre outros. Vale lembrar, no entanto, que nas ciências biomédicas, faz-se
pesquisa em seres humanos, ao passo que em ciências humanas, faz-se pesquisa com seres
humanos (envolve o pesquisador e os sujeitos).
Afinal, depois da prática catastrófica dos experimentos humanos durante o nazismo, pode-
se falar de uma ciência ética? Em outras palavras, é possível realmente interpor limites éticos na
pesquisa científica em seres humanos? Para responder a essas outras questões, analisemos, então,
a partir da história. Primeiro, deve-se reconhecer que os avanços tecnológicos têm possibilitado
novas interferências na vida humana, e que estes podem representar vantagens ou grande
prejuízo. A primeira advertência formal sobre riscos inerentes ao progresso científico foi feita
pela ONU, 10/11/75, proclamando-se a Declaração sobre Utilização do Progresso Científico e
Tecnológico no Interesse da Paz e ao Benefício da Humanidade, a qual reconhece os benefícios
mas chama a atenção para problemas sociais que podem ser causados. Chama a atenção para que
os Estados estejam atentos e protejam sua população diante da utilização indevida de avanços
tecnológicos.
Nessa linha de preocupação tem-se desenvolvido a bioética. Na implantação do Comitê
Internacional de Bioética, UNESCO, 1993, foi assinalado que este fora criado em decorrência das
preocupações éticas suscitadas pelos progressos científicos e tecnológicos relacionados à vida,
sobretudo no âmbito da genética. A extensão da reflexão bioética tem se ampliado ao pensar a
vida humana e sua relação com os outros seres e ambientes.
Outro passo importante para a fixação de parâmetros para a aplicação de novos
conhecimentos e novas possibilidades nas áreas da biomedicina é a Convenção sobre Direitos
Humanos e Biomedicina (Conselho de Ministros da Europa, 19/11/96) em que se afirma que o
mau uso da biomedicina pode conduzir a práticas de atos que ponham em risco a dignidade
humana, sem deixar de reconhecer, no entanto, que essa ciência pode trazer benefícios. Nessa
Convenção, estabelece-se que os interesses sociais se sobrepõem aos individuais e que as
pesquisas devem ter relevância social.
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A partir dessas considerações, pode-se pensar na vida humana como valor jurídico. Para a
consideração da vida como valor jurídico, é adequada a observação do tratamento à pessoa
humana e suas características ao longo do tempo. Quanto mais se conhecem as peculiaridades dos
seres humanas mais se torna possível de estes se desenvolverem interiormente, transformar a
natureza e estabelecer novas formas de convivência. Dotado de especial dignidade, os seres
humanos precisam de proteção e apoio para sua satisfação de necessidades básicas para o
desenvolvimento, sobre suas possibilidades físicas e intelectuais. Para a garantia desses fatores,
externaram-se as faculdades naturais como direitos fundamentais da pessoa.
Durante séculos, a proteção da vida se dava de forma reflexa, i.é, a aplicação de sanções a
quem atingisse a lei. Explicitamente, no Brasil o direito à proteção à vida se deu na Constituição
de 1988. A nascente burguesia, comerciante, bancária e credora da nobreza, também receava a
tirania absoluta dos nobres. O excesso de agressão à vida, à integridade física e à dignidade
humana despertou reações no plano das ideias e no âmbito da ação material. Assim, surgiram
teorias e movimentos revolucionários que contribuíram para a tomada de consciência de sua
dignidade, essencialmente e dos direitos a ela inerentes.
Tomás de Aquino, século XIII, afirma que por vontade de Deus deve-se condenar a
violência e discriminações, afirmando que os seres humanos têm Direitos Naturais. Nos séculos
XVII e XVIII, no campo das ideias surgem filósofos que reafirmam a existência de direitos
fundamentais da pessoa humana (liberdade e igualdade), cuja natureza é dirigida pela razão. A
independência dos EUA (1776) e a Revolução Francesa (1789) são marcos desse processo de
destruição dos privilégios do Antigo Regime. Com a Revolução Francesa, publica-se a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em que se afirma que “todos os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direito”, porém admitindo distinções sociais, pretexto
para se criar novas sociedades discriminatórias, como o Estado liberal-burguês:
o mínimo possível de interferência nas atividades econômicas e sociais;
o plena liberdade contratual;
o garantia de propriedade como direito absoluto sem responsabilidade social;
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o ocupação de cargos e funções mais relevantes apenas homens ricos.
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conceituais entre esse novo pensamento ocidental e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) têm sido entendidos de formas muito diversas.
A bioética e os direitos humanos podem ser vistos como campos relativamente próximos,
a ponto de haver certa confusão entre ambos, quando, por exemplo, da abordagem sobre a
tragédia dos experimentos nazistas, a partir dos quais o Código de Nuremberg aparece como
reconhecimento dos direitos humanos que haviam sido violados e também como ponto de partida
histórico da bioética.
A tese da vinculação entre direitos humanos e bioética no campo da investigação
biomédica se observa quando de seu artigo 7, posteriormente adotado pelas Nações Unidas na
década de 1970, que afirma que ninguém será submetido à experimentação médica ou científica
sem seu livre consentimento.
Resumindo, os direitos humanos e a bioética andam juntos, pois as intervenções sobre a
pessoa humana devem subordinar-se a preceitos éticos. Os avanços biomédicos exigem vigilância
constante (respeito humano e dignidade). A DUDH marca um novo período na história. E a
bioética está inserida no amplo movimento de recuperação de valores humanos por ela
desencadeados.
A conquista dos direitos humanos é uma conquista fundamental da humanidade. A
bioética está inserida nessa conquista e é instrumento valioso para dar efetividade aos seus
preceitos numa esfera dos conhecimentos e ações humanas, diretamente relacionadas com a vida
– valor e direito fundamental da pessoa humana.
Mas esta concepção de uma relação plena sobre bioética e direitos humanos não é algo
unânime. Podemos afirmar que existe até mesmo uma desvinculação entre bioética e direitos
humanos, o qual pode ser observado na distinção entre direito moral e direito legal à atenção da
saúde que se realiza no âmbito da bioética nos Estados Unidos. Nesse país a concepção de
bioética predominante é de uma bioética francamente liberal (em que o papel do Estado deve ser
praticamente nulo), de várias matizes. Uma corrente é conhecida como bioética principialista, em
que se aplicam, nas decisões de saúde frente a problemáticas como aborto, reprodução assistida,
distanásia, etc, os quatro princípios considerados fundamentais: beneficência, não-maleficência,
autonomia e justiça. Em relação à questão do modelo principialista, trata-se de um modelo
dedutivista, individualista e linear, que, em vista de um conflito moral, decide-o a partir de
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princípios éticos previamente definidos. Consiste num padrão bioético assentado no uso de
princípio, enquanto balizador hermenêutico e de resolução dos conflitos morais, sobretudo quanto
às pesquisas biomédicas. Outra corrente é o consequencialismo. Este é um rótulo atribuído às
teorias que sustentam que as ações são certas ou erradas de acordo com a ponderação de suas
consequências boas e más. O ato correto é o que produz melhor resultado global, conforme
determinado por uma perspectiva impessoal que confere pesos iguais aos interesses de cada uma
das fases afetadas. O utilitarismo (principal teoria consequencialista) aceita somente um princípio
básico da ética: utilidade. Deve-se sempre produzir equilíbrio máximo de valor positivo sobre o
desvalor.
Na América Latina, surgem tendências contrárias ao pensamento dominante norte-
americano (principialismo), como a bioética de proteção ou a bioética de intervenção, o que nos
permite pensar novamente na relação bioética e direitos humanos como aproximação necessária
e, principalmente, como fruto e concepção de modelos políticos. Essas posturas veem como
positivas a interferência do Estado no tocante à saúde e ao meio-ambiente. Para Schramm &
Kottow (2001), um tema crucial dos países do terceiro mundo é a saúde pública, em grande
medida desatendida por uma bioética anglo-saxônica centrada em conflitos individuais. Com
efeito, a ênfase na autonomia da relação interpessoal médico-paciente deixa sem amparo a
atenção exigida pelos problemas biomédicos sociais; por outro lado, cai em divagações
escolásticas sobre casos individuais que carecem de relevância social. A bioética centrada na
autonomia se atém mais a problemas como o direito de não ter nascido do que a debater sobre o
direito universal à atenção médica.
Apesar dessas posições consideradas extremas – levando ora ao reducionismo ou à
desvinculação entre bioética e direitos humanos –, a associação explícita entre esses termos que
se expressam nos documentos internacionais tem crescido a tal ponto que, em 2005, culminou
com o surgimento da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco.
Podemos afirmar que a relação entre bioética e direitos humanos tem sido, assim, definitivamente
estabelecida.
A partir das discussões sobre bioética na América Latina, tem sido possível pensar em
basicamente duas teses de sustentação da bioética dos direitos humanos. A primeira afirmar que a
bioética é um campo plural de reflexão ético-normativa que admite distintas singularidades de
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pensamento e, portanto, diversas bioéticas, mas a partir de um modo indissociável em respeito à
moral universal dos direitos humanos, que incluem o respeito à diversidade cultural e linguística
(firme postulado contra o fundamentalismo do neoliberalismo pragmático); trata-se de uma tese
histórico-sociológica. Um outro pensamento sustém que toda concepção teórica da bioética deve
dar conta do lugar que ocupam a moral do senso comum, dos valores, dos princípios e das
virtudes na dimensão ética da teoria, mas deve fundamentar as relações que a racionalidade moral
tem com outras racionalidades, como a jurídica, científica e tecnológica, estética, no conjunto do
campo normativo denominado bioética. É uma tese filosófico-normativa.
Retomando novamente as produções sobre bioética na América Latina, cujas produções
ganham grande relevância no Brasil em várias instâncias acadêmico-científicas, partilhamos das
reflexões aí construídas que levam em consideração o fator político de concepções socializantes
como elemento central e determinante para uma bioética que possa, de fato, se manifestar como
instrumento da proteção da dignidade humana. Para tanto, o papel do Estado para o
desenvolvimento de tal teoria ou ciência é parte fundamental da construção de um pensamento
que rompa com a lógica neoliberal de mercado e, consequentemente, do fazer científico e
universal. O Estado é o canal organizador da saúde pública e coletiva.
A preocupação com a saúde é contemporânea ao aparecimento do Estado. A conquista e a
preservação da saúde pressupõe limitações às condutas nocivas para a vida social. Documentos
da Antiguidade (Código de Hamurabi – Babilônia; Código de Manu – direito hindu) possuem
entremeados preceitos morais e religiosos, regras que implicam o reconhecimento da saúde como
o indispensável à dignidade humana.
Na Idade Média, com o predomínio da religião católica, foi estabelecida a obrigação da
caridade. A Igreja foi responsável pelo desenvolvimento de instituições que lhes eram destinadas
(obrigação moral). Nos últimos séculos, observa-se a influência lenta do poder comunal na
assistência pública aos desfavorecidos (defesa social): processo de transformação da obrigação
moral em dever legal.
O liberalismo alterou o comportamento social em relação à saúde. Nesse período, ocorre a
construção do direito à saúde. A urbanização, em consequência do processo de industrialização,
foi a causa da assunção, pelo Estado, da responsabilidade pela saúde do povo. É inestimável o
papel da proximidade espacial na organização da reivindicação operária. Próximos aos
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industriais, os operários passaram a almejar o padrão de vida semelhante. E organizaram-se para
tal. O empresariado percebeu a necessidade de manter os operários (minimamente) saudáveis
para a linha de montagem não sofresse interrupção. Percebem também o perigo de contaminação
de doenças. Assim, o Estado deve se responsabilizar pela saúde do povo, o que significava
também garantir a saúde dos próprios industriais.
Historicamente, o Estado passou a se responsabilizar pela fiscalização das condições de
saúde no trabalho. À época da Revolução Francesa, a caridade era incompatível aos tempos
modernos. O individualismo permaneceu dominante nas sociedades que se sucederam às
revoluções burguesas. No Estado liberal, sua função restringe-se à preservação da ordem, da
moralidade e da saúde pública.
No socialismo que fora vigente até a queda do Muro de Berlim, sendo o papel do Estado
mais abrangente, em oposição ao Estado liberal capitalista, o valor das liberdades clássicas
(respeito aos direitos individuais da Constituição Francesa) não foi ignorado. Atualmente, o
equilíbrio entre interesses dos indivíduos e coletivos é grande na atual configuração do Estado.
Hoje, luta-se por direitos de titularidade coletiva: direito ao desenvolvimento e direito do meio
ambiente sadio.
Assim, O aumento de recursos em saúde significa a possibilidade imediata de salvar
vidas; a atenção à saúde não deve ser considerada como questão de defesa racional. Por serem
públicas, as prioridades coletivas devem ser indicadas pelas iniciativas populares e da
moralidade. Cabe ao Estado dirigir a opinião pública quando o injusto e o moralmente defeituoso
se manifestar nas prioridades.
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