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DE NELLO NUNO
Acima, sobre o fundo negro, um cachorro translúcido nos fita, tendo uma lua ao lado e
um pequeno sol ao fundo, que ilumina muito pouco.
Abaixo, sobre um fundo azul, outro cão, igualmente translúcido, nos olha, ladeado por
dois pássaros que tentam entrar nesse fundo azul, e por um gato, que também nos
olha de frente, tranquilamente postado na zona de fronteira entre o azul e o roxo.
Invade ainda o espaço azul pela direita um galho com folhas.
Um dos pássaros parece descer dos limites do quadrante superior para o quadrante
inferior, enquanto uma flor, com as raízes expostas, parece subir em sentido contrário,
para o quadrante superior. Como único elemento inteiramente fora dos dois
quadrantes aparece uma forma verde, à direita, que insinua a imagem de uma das
duas pedras do pico do Itacolomy, símbolo de Ouro Preto, cidade que o artista
escolheu para residir.
Paradoxal esta composição: o pássaro, ser alado e associado ao espaço livre e ao ar,
desce ao solo; a planta, ser incapaz de sair do lugar, enraizada ao solo, sobe ao ar e
rompe espaços, explodindo numa flor rosa, figura central do quadro pelo intenso
contraste entre sua cor e o negro do fundo.
Além do azul crepuscular que preenche o fundo do quadrante inferior, o artista usa
também de um recurso cromático para induzir a sensação da madrugada e do lusco-
fusco. O azul do fundo possui uma luminosidade praticamente idêntica aos verdes dos
pássaros e do galho com folhas. Para definir os limites de uma forma, nossa visão usa
principalmente das diferenças de luminosidade entre os tons. Como essa diferença é
quase inexistente nesse caso, o olho se confunde ao tentar precisar os contornos
dessas figuras. Basta comprimir um pouco os olhos diante do quadro que se percebe
como as figuras azuis e verdes se misturam. Este é mais um elemento do quadro que
induz percepções ambivalentes.
À exceção dos pássaros, pelo fato de terem um olho de cada lado da cabeça, todos os
outros bichos nos olham de frente, nos encaram de uma maneira muito intensa, com
seus olhos ressaltados por cores de grande contraste e brilho. São olhares
acusatórios? São olhares inquisidores? São olhares que nos remetem a nós mesmos,
como se quisessem sugerir que olhássemos para dentro de nós? Difícil precisar.
Como é próprio deste quadro há mais de um sentido possível nesses olhares.
Não há nenhuma pessoa no quadro. Os seres vivos que o compõem são animais ou
vegetais, induzindo a ideia de uma vivência regressiva, remetendo às historias infantis,
permeadas de bichos sobre os quais projetamos as atitudes e os sentimentos
humanos.
Chama a atenção a assinatura do pintor, por ter dois tons. Percebe-se que o
sobrenome foi pintado algum tempo depois da pintura do nome, tendo o autor usado
tom de azul diferente. O tom de azul do nome é idêntico ao tom de azul da raiz da flor.
Sabe-se que foi a primeira vez que Nello Nuno assinou em uma obra sua o seu
sobrenome Rangel. Em um quadro tão fluido e tão avesso diante de qualquer tentativa
de classificação taxativa e apressada, o artista elabora a própria identidade. E parece
sugerir que identidade possa ser algo mais próximo do fluido, da mudança, do que do
fixo e do imutável.
Essa pintura não aceita uma leitura dicotômica, dualista ou idealista. Seus elementos
constitutivos não permitem a classificação apressada, transmutando-se sempre que
tentamos aprisioná-los em estereótipos. São os cães que saltam aos olhos ou recuam,
que revelam ou escondem. É a flor que sobe e o pássaro que desce. São os olhares
que encaram sem permitir classificar seu sentido. É o sol que não ilumina e a flor que
o faz. É o animal e a planta que se metamorfoseiam ao ultrapassar fronteiras. Assim,
são muitos os elementos que indicam uma ambivalência de sentidos e dessa forma
nos lançam numa atmosfera de incerteza e indefinição.
Talvez, por isso mesmo, esse quadro traga em si a possibilidade de modificar algo em
nós, modificar algumas formas muito taxativas que temos de olhar para nós mesmos
(e consequentemente para os outros à nossa volta), ou até permitir uma
reconfiguração um pouco mais abrangente dentro de cada um, uma verdadeira
ressimbolização do modo de se ver e do modo de ver a realidade na qual vivemos.