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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Para onde vão os personagens de Mrs. Dalloway?

Curso de Correntes Críticas, Prof.


Dr. Samuel Titan

Douglas José Mattos de Moraes nº 8977807

São Paulo

Junho – 2018
As ruas, os passos, as lojas, os relógios, que horas são, as pessoas que param, que
passam, que olham, que esperam – e pelo quê? –, flores, a festa, a batida do relógio, a batida
na rua, batiam-se os carros?, estouravam pneus, Victoria Street, as flores da festa, a festa!,
Peter Walsh voltou, poderiam ter se casado, e sua Elizabeth, tão oriental, poderia perdê-la
para Miss Kilman, ria-se, ria-se, a achariam frívola, tola, como poderiam, suas festas não
poderiam ser senão oferendas, ofertas a quem, a que, a tudo, a tudo aquilo que ela era, todas
as pessoas, as afinidades, a parte de si que, fora de si, sobreviveria – ao mundo, ao tempo, à
morte. A si?
Aonde vai Mrs. Dalloway?
Mrs. Dalloway “é uma anfitriã, e ela é extremamente confiante, e vai dar uma festa…
talvez, porque ela é confiante, todo mundo acha que ela está bem. Mas não está”. Isso foi dito
por uma mulher que não estava nada bem, e tendo a concordar com ela. Trata-se de Laura
Brown, personagem de Julianne Moore no filme As Horas.1
Não me arrisco a tentar definir a protagonista melhor ou diferente de como o faz
Laura, mas talvez tentar entender os caminhos e a corrida de Clarissa seja tão difícil quanto
defini-la. Personagem misteriosa, de beleza herege e imprópria, tão bem desenhada no
conjunto de seus gestos, dotada de uma absurda capacidade de perceber-se e perceber-se pelos
olhos dos outros, trivial e irrepreensivelmente profunda, alguém que acreditava ter como
único dom “conhecer as pessoas quase por instinto” 2, uma mulher consciente de… de tantas
coisas. Tentar descrevê-la ou ao seu percurso seria repetir aqui quase todas as páginas do
livro, sem tanto sucesso quanto o faz Auerbach ao reescrever-analisar a cena de Ao Farol.
Fadados a fracassar, deixemos Clarissa Dalloway de lado.
Vejamos. “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.” Certo. “Além
disso, pensou Clarissa Dalloway, que manhã – fresca como de encomenda para crianças na
praia.” Rememora então: estava “de pé, olhando, até que Peter Walsh falou: ‘Cismando entre
as plantas?’ – foi isso? – ‘Prefiro gente a couves-flores’ – foi isso?” Peter Walsh… Vejamos.
Então a porta se abriu e entrou – por um segundo ela não conseguiu lembrar
como ele se chamava! tão surpresa estava em vê-lo, tão alegre, tão tímida,
tão absolutamente atônita que Peter Walsh viesse inesperadamente vê-la de
manhã! (Não tinha lido a carta dele.)
– E como vai você? – disse Peter Walsh, realmente tremendo; tomando-lhe
as duas mãos; beijando-lhe as duas mãos. Ela envelheceu, pensou, sentando.
Não vou comentar nada, pensou, pois ela envelheceu.

Não é bem isso…

1
“Oh, it’s about… this woman who is incredibly… well, she is a hostess, and she is incredibly confident, and
she is going to give a party… and maybe because she is confident everyone thinks she is fine. But she isn’t.” O
diálogo em torno do livro ocorre aproximadamente entre os minutos 38:05min e 38:35min.
2
Foi lida para este trabalho uma versão digital do livro, feita para e-readers, então não será possível indicar as
páginas exatas em que os trechos a serem citados se passam. Quanto à edição, trata-se da tradução de Denise
Bottmann, da editora L&PM.
Há também Richard Dalloway, que dá a Clarissa a pequena liberdade, a independência
um do outro de que todo casamento precisa, o que dela ele também recebe. Mas a princípio,
dele sabemos apenas que fica “quase louco de exasperação com Hugh”, e só. Já Hugh
Whitbread entra em cena “deixando às costas os edifícios do governo, muito decoroso,
portando uma pasta de documentos com o brasão real impresso, quem senão Hugh Whitbread,
seu velho amigo Hugh – o admirável Hugh!”
Sally, veja-se Sally Seton; por quem teve amor, como não? Sally já não gostava de
Hugh, tiveram desavenças. Sally “estava sentada no chão – foi aquela sua primeira impressão
de Sally – estava sentada no chão com os braços rodeando os joelhos, fumando um cigarro.
Onde teria sido?”
Mas ainda não é isso. Voltemos para mais próximo das primeiras páginas.
Septimus Warren Smith, que se via impedido de passar, ouviu.
Septimus Warren Smith, com cerca de trinta anos, rosto pálido, nariz
pontudo, de sapatos marrons e um sobretudo surrado, com olhos castanho-
escuros que tinham aquele ar de apreensão que deixa apreensivos até os mais
completos estranhos.

Ah, agora sim.


Septimus aparece no romance diferentemente de todos os outros personagens. A
apresentação destes é ativa, já chegam sentindo, agindo, pensando. Ele, porém, é descrito
como um objeto. Interrompe-se a narrativa – aliás, interrompe-se o trajeto dele também – e,
por um momento estático, vislumbramos sua aparência. A presença de Septimus é, logo de
cara, um distúrbio para a fluxo do enredo. A interrupção em seu caminho, inclusive, não é
nada casual para a representação do personagem, mas sintomática de algo além. E ele, e
Septimus… aonde vai?
Para onde foi.
E, disse ela, nada iria separá-los. Sentou ao lado dele e o chamou pelo nome daquele falcão ou corvo
que, sendo traquinas e grande destruidor de lavouras, era precisamente ele. Ninguém poderia separá-los,
disse ela.
Então levantou para ir ao quarto e preparar as coisas deles, mas ouvindo vozes no andar de baixo e
pensando que talvez fosse dr. Holmes em visita, desceu correndo para impedir que subisse.
Septimus podia ouvi-la falando com Holmes na escada.
— Minha cara senhora, venho como amigo — dizia Holmes.
— Não. Não vou deixar que veja meu marido — disse ela.
Podia vê-la, como uma pequena galinha, com as asas estendidas barrando a passagem dele. Mas
Holmes perseverava.
— Minha cara senhora, permita-me... — disse Holmes, afastando-a de lado (Holmes tinha uma
constituição vigorosa).
Holmes estava subindo a escada. Holmes ia irromper pela porta. Holmes ia dizer: “Uma crise,
hein?”. Holmes ia pegá-lo. Mas não; nem Holmes; nem Bradshaw. Levantando a cambalear, de fato
saltando num pé e depois no outro, considerou a bela faca de pão lisa de Mrs. Filmer com “Pão”
entalhado no cabo. Ah, mas não se devia estragá-la. O gás? Mas agora era tarde demais. Holmes estava
vindo. Navalha poderia usar, mas Rezia, que sempre fazia aquele tipo de coisa, tinha guardado. Restava
apenas a janela, a grande janela da pensão de Bloomsbury; a questão cansativa, problemática e um tanto
melodramática de abrir a janela e se atirar por ela. Era a ideia de tragédia deles, não sua nem de Rezia
(pois ela estava com ele). Holmes e Bradshaw gostavam daquele tipo de coisa. (Sentou no parapeito.)
Mas ia esperar até o último instante. Não queria morrer. A vida era boa. O sol, quente. Afora os seres
humanos? Descendo a escada em frente um velho parou e o fitou. Holmes estava à porta.
— Isso é para você! — exclamou e se arremessou vigorosamente, violentamente sobre as grades da
área de Mrs. Filmer.
— O covarde! — gritou dr. Holmes, irrompendo pela porta. Rezia correu à janela, viu; entendeu. Dr.
Holmes e Mrs. Filmer se abalroaram. Mrs. Filmer pegou a ponta do avental e fez com que ela cobrisse
os olhos até o quarto. Houve uma grande correria nas escadas. Dr. Holmes entrou – branco feito um
lençol, tremendo de cima a baixo, com um copo na mão. Ela devia ser corajosa e tomar alguma coisa,
disse ele (O que era? Algo doce), pois seu marido estava horrivelmente machucado, não ia recuperar a
consciência, ela não devia vê-lo, devia ser poupada ao máximo possível, teria o inquérito para enfrentar,
pobre moça. Quem poderia ter previsto? Um impulso repentino, ninguém tinha a menor culpa (disse ele
a Mrs. Filmer). E por que diabos fez aquilo, dr. Holmes não conseguia imaginar.
Parecia-lhe enquanto bebia aquela coisa doce que estava abrindo grandes janelões, saindo para
algum jardim. Mas onde? O relógio estava batendo – uma, duas, três: como era sensato o som;
comparado a todos esses sussurros e baques surdos; como o próprio Septimus. Estava adormecendo.
Mas o relógio continuou batendo, quatro, cinco, seis, e Mrs. Filmer abanando o avental (não iam trazer
o corpo aqui dentro, iam?) parecia fazer parte daquele jardim; ou uma bandeira. Uma vez ela tinha visto
uma bandeira ondulando devagar num mastro quando esteve com a tia em Veneza. Assim eram
saudados os homens mortos em batalha, e Septimus tinha atravessado a guerra. Suas lembranças eram
na maioria felizes.
Ela pôs o chapéu e correu pelos trigais – onde podia ter sido? – até alguma colina, em algum lugar
perto do mar, pois havia barcos, gaivotas, borboletas; sentaram num penhasco. Em Londres, também, lá
se sentavam e, meio entre sonhos, veio-lhe pela porta do quarto o som da chuva caindo, sussurros,
agitações entre espigas secas, a carícia do mar, como lhe parecia, escavando-os em sua concha arqueada
e murmurando a ela deitada na praia, espargindo-se, sentia, como uma florada esvoaçante sobre alguma
tumba.
— Ele morreu — disse sorrindo para a pobre velha que a velava com seus cândidos olhos azul-
claros fitos na porta. (Não iam trazê-lo aqui dentro, iam?) Mas Mrs. Filmer reagiu. Oh não, oh não! Já o
estavam levando embora. Não deveriam avisá-la? Um casal deveria ficar junto, pensava Mrs. Filmer.
Mas tinham de fazer como o médico disse.
— Deixe-a dormir — disse dr. Holmes, sentindo-lhe o pulso. Ela viu o largo contorno escuro de seu
corpo contra a janela. Então aquele era dr. Holmes.

Para tentarmos entender tão drástico destino ao que chega o personagem, precisamos
pensar um pouco em toda a sua trajetória. O que buscava esse “herói” romântico, espectro
outro da protagonista? Acaso sabia o que procurava? Soube antes de se jogar da janela – ou
foi procurar do outro lado dela, no chão, na morte? E enfim encontrou-o lá? Vamos devagar.
“Septimus tinha atravessado a guerra”. O personagem é um retrato da fragmentação,
do torpor e da falta de propósito do povo inglês, senão da Europa ou mais, decorrente da
Primeira Guerra Mundial. Essa desintegração está interessantemente expressa já no entorno
de sua primeira aparição no romance, quando passa o avião no céu soltando fumaça, as letras
sem parecer formar mensagem alguma, e as pessoas vão se indagando e encontrando palavras
que não fazem sentido algum. Falha terrivelmente a comunicação. O avião, talvez transmissor
de alguma propaganda, de alguma mensagem, porta-voz de alguma instituição, certo índice de
mídia e/ou de mercado, não se faz entender.
Sua própria presença nessa cena já nos chama atenção: por um lado, remete
diretamente aos bombardeios da guerra; por outro, o espanto da população parece espelhar a
tensão do momento em que se ouve o som vindo dos céus. A guerra já acabou, as pessoas
buscam retomar a vida cotidiana e o vão fazendo, mas não podem evitar a comoção causada
pela presença do aeroplano, uma interrupção no correr do dia.
Tudo isso em uma cena em que Septimus é o foco narrativo, observação
imprescindível. Ele está sempre nos lembrando da guerra, tendo participado ativamente dela,
carregando narrativas traumáticas por todo o romance, tecendo fragmentos incongruentes:
“assim, no todo, ele era um caso indefinido, nem uma coisa nem outra”.
O reconhecimento desses traumas vem a lume no romance nas mãos de dr. Holmes e
dr. Bradshaw. O primeiro, médico geral, não parece tão capaz de entender o personagem,
recomendando-lhe repouso apenas, e nada demais. Já o segundo, psiquiatra renomado (muito
renomado, repete Rezia a si mesma), identifica melhor os sintomas que ele apresenta,
recomendando internação prontamente. “Ele viu na hora em que entraram na sala (os Warren
Smith, chamavam-se eles); teve certeza no instante em que viu o homem; era um caso de
extrema gravidade. Era um caso de completo colapso – completo colapso físico e nervoso”.
É interessante que nos atentemos também a certos acontecimentos envolvendo
Septimus nos entornos da guerra – ao ir, durante e, como vemos, depois.
Septimus foi um dos primeiros a se apresentar como voluntário. Foi à França
para salvar uma Inglaterra que consistia quase inteiramente em peças de
Shakespeare e em Miss Isabel Pole de vestido verde andando por uma
praça. Lá nas trincheiras a mudança que Mr. Brewer desejava quando
aconselhou o futebol se produziu instantaneamente; ele desenvolveu
virilidade; foi promovido.3

A narrativa sugere que o personagem tenha problemas quanto ao comportamento


masculino hegemônico, já que, aos olhos de Mr. Brewer, faltava-lhe a virilidade que tão
“felizmente” desenvolveu mal esteve participando na guerra. Em seguida, temos a outra face
desses acontecimentos, que vêm corroborar a ideia de rompimento de Septimus com a
masculinidade.
Atraiu a atenção, na verdade a afeição de seu oficial, de nome Evans. Eram
como dois cães brincando num tapete da lareira; um mascando um
pedaço de papel, rosnando, abocanhando, dando uma mordiscada, de vez
em quando, na orelha do mais velho; o outro deitado sonolento, pestanejando
ao fogo, erguendo uma pata, virando e rugindo de bom humor. Tinham de
estar juntos, de compartilhar, brigar entre si, discutir entre si.

Esse trecho é a imediata continuidade do anterior, e nele não apenas segue a questão
da masculinidade como fica sugestionado um sentimento homoafetivo entre Septimus e
Evans. Esse é mais um detalhe, inclusive, que reforça a acepção de que o personagem é um
duplo de Mrs. Dalloway, considerando suas experiências com Sally Seton. “Sua relação nos
velhos tempos com Sally Seton. Não tinha sido amor, afinal?” Já falamos disso.
Vemos assim um personagem que se delineia fora de uma série de padrões sociais,
antes da guerra por ser pouco viril, depois dela por não conseguir retomar a vida “normal”, o

3
Todos os grifos feitos em recortes do livro são meus.
cotidiano, o dia-a-dia. Ele fica preso àquela experiência toda, com a mente cindida entre o
sentir tudo e o não sentir nada.
Quando Evans foi morto, logo antes do armistício, na Itália, Septimus, longe
de mostrar qualquer emoção ou reconhecer que ali estava o fim de uma
amizade, congratulou-se por sentir muito pouco e muito sensatamente. A
guerra o ensinara. Era sublime. Tinha atravessado todo o espetáculo, a
amizade, a guerra europeia, a morte, fora promovido, ainda não tinha trinta
anos e estava destinado a sobreviver. Estava bem ali. As últimas bombas não
o acertaram. Olhava-as explodindo com indiferença.

Septimus não sentiu e não sente nada, sente muito pouco, muito sensatamente… mas
está preso a isso, está preso ao luto: Evans mesmo aparece-lhe vez e outra, de repente, no
meio do parque, em meio à multidão. Septimus não consegue descolar-se do passado4, daquilo
que não lhe feriu fisicamente, mas que aparentemente o rompeu por completo em sua psique.
Isso, é claro, não deixa de ser mais uma fraqueza – coisa absurda e inaceitável aos moldes da
“boa masculinidade”. Essa questão atravessa sua história até à última palavra que dirigem a
ele antes de se matar:
“O covarde!”, grita dr. Holmes, o próprio médico, aquele que vinha lhe tolher a
liberdade, levá-lo para a internação recomendada por Bradshaw – Rezia quer impedi-lo, ele
está bem, ele melhorou, eles estão bem. E agora Rezia entende Septimus, “então aquele era
dr. Holmes”. E ele sabia, ou acreditava, que a tinha consigo: “A questão cansativa,
problemática e um tanto melodramática de abrir a janela e se atirar por ela. Era a ideia de
tragédia deles, não sua nem de Rezia (pois ela estava com ele).
E o que é a melhora, a destrava que Septimus parece ter pouco antes de sua derradeira
cena? Riem-se, riem-se, ele e a esposa riem do chapéu, da filha casada de Mrs. Filmer, que
encomendou o chapéu. A vida, agora... A vida é bela, o sol é quente. Tudo parece ótimo,
talvez afora as pessoas – que são em grande medida insuportáveis mesmo, convenhamos.
Não há registro do mais que pensasse o personagem, nem o narrador – bem típico da
autora – se impõe aqui, controlador, para nos dizer tudo o que sabe e o que se deu – pois não
sabe, na verdade. Não saberemos o que Septimus encontrou, mas podemos tentar entender
que efeito, que consequências seu suicídio provoca no romance.
A morte do personagem constitui uma expressão final, um último grito, brado de
liberdade, a rejeição por fim de todas as imposições sociais que recaíam sobre si. “Mas ia
esperar até o último instante. Não queria morrer.”
“Isso é para você!”, gritou contra Holmes. Sua mensagem está clara quando vemos
essas relações em torno de Septimus. Seu suicídio está muito mais no campo da libertação do
que do dramático, um ato de liberdade que lhe dá a possibilidade de comunicar-se como antes
não conseguia: era um insano, pensavam, estava fora de si, suas ações e dizeres não faziam
sentido; ele estava quebrado. E no entanto, seu fim é clara, direta e assertiva mensagem.

4
Vale notarmos aqui, ainda que não nos debrucemos sobre este ponto também, o fato de que Clarissa também
sente uma ligação muito forte com seu passado, sobretudo nas figuras de Peter e Sally. Seria, assim, mais uma
relação que reforça o espelhamento da protagonista e de Septimus.
Não podemos saber, afinal, se Septimus encontrou o que buscava ao se jogar, se perfez
sua trajetória, sua busca irresolvível – romântica, como não podia deixar de ser –, nem se ele
encontrou a si próprio na morte. Mas sua mensagem-efeito ao se suicidar foi forte, alcançando
o outro extremo de seu eixo: seu duplo, Mrs. Dalloway, é claro. Voltamos, enfim, à
protagonista – mas não mantenhamos grandes expectativas.
O rapaz tinha se matado; mas não tinha pena dele; com o relógio batendo as
horas, uma, duas, três, não tinha pena dele, com tudo isso em andamento.
Pronto! A velha dama tinha apagado a luz! a casa toda estava agora às
escuras com isso em andamento, repetiu, e lhe voltaram as palavras, Não
temas mais o calor do sol. Precisava voltar a eles. Mas que noite
extraordinária! Sentiu-se de certa forma muito parecida com ele – com o
rapaz que tinha se matado. Sentiu-se alegre que tivesse feito aquilo; se
lançado com tudo enquanto eles continuavam a viver. O relógio estava
batendo. Os círculos de chumbo se dissolveram no ar. Mas precisava voltar.
Precisava reunir. Precisava encontrar Sally e Peter. E entrou vinda da saleta.

Mrs. Dalloway escolhe a vida. É possível morrer, em certa medida é parecida com o
rapaz que tinha se matado e, no entanto, preferiu – ou melhor, decidiu – viver. Até o relógio,
até a expressão “uma, duas, três” horas se apresenta aqui como na cena do suicídio:
Parecia-lhe enquanto bebia aquela coisa doce que estava abrindo grandes
janelões, saindo para algum jardim. Mas onde? O relógio estava batendo –
uma, duas, três: como era sensato o som; comparado a todos esses sussurros
e baques surdos; como o próprio Septimus.

O paralelismo fica mais e mais evidente a cada novo detalhe em que prestamos atenção.
Ocorre, então, que Septimus – amando a vida, querendo-a, deixando o suicídio para o
último instante, para quando fosse irrevogável a necessidade máxima de liberdade – Septimus
decide se matar; e Clarissa, que se parecia muito com ele de certa forma, que não sentiu pena,
que estava alegre por ter feito aquilo que eles – que ela – talvez não tivessem coragem de
fazer, decide viver. Um abre mão da própria vida, como ato último de amor por ela, olha-a
“nos olhos, sempre nos olhos, sabe-a pelo que é, enfim sabe; ama-a pelo que é e, então, a
descarta”5. A outra, inspirada pelo ato do primeiro, volta-se à vida, à festa, como… como o
que?
Encontra na vida, enfim, seu próprio perfazer? Entende que está o fim de sua busca na
própria trajetória, entende e sabe a vida agora, ou ainda busca algo? Achou-se na festa, no
retorno aos entes queridos, aos entes passados? Com eles distrai-se de sua busca, pois talvez
tenha visto o que procura pelo vão da fechadura, pela fresta da porta, pela janela; ou segue em
direção deles justamente para retomar sua busca, ver se neles há aquilo – ou ao menos indício
daquilo – de que tanto sente falta – como todos sentimos falta de algo que não bem sabemos?
E haverá de encontrar isto? Encontrou-o já?
(Peter, talvez.)
5
O trecho não se trata de citação exata, mas de uma tradução livre que fiz de uma das últimas falas de Woolf no
livro/filme As Horas. No original: “To look life in the face. Always to look life in the face and to know it for
what it is. At last to know it. To love it for what it is, and then, to put it away.”
— Estou indo — disse Peter, mas continuou sentado por um instante. O que
é este terror? O que é este êxtase? pensou consigo mesmo. O que é isso que
me enche de uma emoção extraordinária?
É Clarissa, disse ele.
Pois ali estava ela.

Acabou. Como no caso de Septimus, talvez jamais saibamos atrás de que vai Mrs.
Dalloway.

LEITURAS DE REFERÊNCIA
AUERBACH, E. A meia marrom. In: ______. Mímesis. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
p. 471-498.

BAKHTIN, M. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In: ______.


Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 2. ed. Trad. Aurora F. Bernardini.
São Paulo: Hucitec; Unesp, 1990. p. 397-428.

BRADSHAW, D. Mrs Dalloway and the First World War. Discovering Literature: 20th
century, London, 25 maio 2016. Disponível em:
<https://www.bl.uk/20th-century-literature/articles/mrs-dalloway-and-the-first-world-war>.
Acesso em: 18 jun. 2018.

HJERSING, C. Representations of Clarissa and Septimus in Virginia Woolf’s Mrs Dalloway:


a deconstructive approach combined with aspects of feminist and psychoanalytical criticism.
2009. Monografia – School of Languages and Media Studies, Dalarna University, Falun,
2009. Disponível em: <http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:du-4172>. Acesso em: 18 jun.
2018.

THE HOURS. Direção: Stephen Daldry. Produção: Robert Fox; Scott Rudin. USA; England:
Paramount Pictures; Miramax; Scott Rudin Productions, 2002. (110 min).

WOOLF, V. The common reader: first series. London: Hogarth Press, 1957.

________. Mrs. Dalloway. [e-book]. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: L&PM, 2012.

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