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até encontrar o caminho que eu posso trilhar para ascender… e por que, se me amarrastes
ainda recém-nascido nas pedras da razão, com nós indesfazíveis?
Não é que tia Hillé tenha me traumatizado ou me feito mal. Nunca pensei muito sobre aquele
dia que falei em ser monge, até. Tenho pouca memória dos dias que sucederam, na verdade.
Sei que não foi nada demais. E agora, não entendo. Não entendo que ela lembre disso tão
forte, que me chame de monge, assim, como se eu fosse aprendiz de Deus, que quase me peça
a bênção, e eu nada, eu nada tia Hillé, eu só livros, literatura, Kafka, Borges, Clarice. Ser monge
era devaneio de meninice, coisa de pequeno, e eu que quis tanta coisa, mágico, cientista, rico
ou maestro. Eu não entendo o que ela quis dizer, o que havia por trás de tudo aquilo.
Fui trabalhar absorto esses dias, o olhar meio vagueante, as coisas de dentro em suspenso, o
respiro descompassado. Um silêncio quase absoluto, enquanto as engrenagens daqui iam se
reafixando. Hoje de manhã, duas semanas depois da alta de tia Hillé, ela ligou em casa. Mamãe
disse que
ela estava com uma voz estranha, como quem ofegava, mas respirava bem, vai entender, você
sabe como ela é filhinho, disse que quer te ver, acho que está ficando louca de vez, você tão
ocupadinho, né, disse-lhe que talvez um dia, mas que era difícil, que ia até sair de viagem
eu sei, eu sei, mas não quero que se inoportune com sua velha tia, ela
eu vou.
ora, você que sabe, pode ir quando quiser, ela disse, só não leve nada de porco! presunto,
salame ou mortadela ‒ nada!, viu? ela falou com uma ameaça, que minha nossa, se você
levasse era capaz de que, de que ela te matasse! ‒ vai saber! ‒ e, você sabe como ela
ah, ah,
Mas talvez eu não devesse ir. Que quer tia Hillé agora? E se me crê santo, beato. Não acredito
que esteja louca, mas e se estiver. E eu, que quero com isso, um café!, que inesperado.