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Capítulo Três – Mar de lembranças.

Convento Saint Michel – Duas semanas atrás... 

- Há uma visita para você. 

Até então a mulher estava concentrada em sua leitura, quando ouviu a voz da freira atrás de si.
Sentada em frente a uma escrivaninha de carvalho e de costas para a entrada, olhou por sobre
os ombros quando uma das irmãs – uma velhinha amável de setenta e poucos anos de idade –
abriu mais a porta, dando passagem para outra pessoa entrar. 

O homem teve que se curvar ao passar pela porta, e por alguns centímetros não precisou
manter-se inclinado quando adentrou, evitando assim que batesse contra o teto do pequeno
quarto em que ela vivia.

A freira, no que lhe dizia respeito, estava mais que acostumada àquelas visitas incansáveis. No
entanto, por algum motivo havia mais de uma semana em que a menina parara de recebê-las, e
fora com espanto quando a irmã o viu novamente em sua sala naquela manhã ensolarada. 

- Terried! – ouviu a menina gritar. 

Um sussurro de alegria escapou de seus lábios antes que ela pudesse contê-los.
Instantaneamente a mulher pulou da cadeira e correu até ele. Mas então, lembrando-se da
presença da freira que a observava com um olhar de repreensão, ela parou no caminho,
dobrando-se em uma reverência. 

- É um prazer revê-lo, senhor. 

Quase riu da própria encenação. Perguntou que idéia faria a irmã se soubesse que há muito
tempo ela deixara de chamá-lo de senhor para usar expressões como “meu amor”. 

Terried fez uma exagerada mesura.

- O prazer é meu, Shanti. – o gesto cortês era tão desnecessário quanto à presença da freira ali.
Mas aceitou de bom grado, sem reclamar, pois sabia que no convento era a única permitida -
com supervisão, - receber visitas masculinas. Ainda mais uma que fosse tão bonita. 

Terried estava ainda mais lindo que da última vez que o encontrara, duas semanas atrás. A
túnica negra era justa aos ombros largos, e o desenho de uma cruz vermelha estava estampado
do lado esquerdo de seu peito - símbolo do brasão de seu clã. O rosto estava corado, o porte
impecável de um cavalheiro, mais forte e revigorante. 

– Será que... nós poderíamos caminhar um pouco nos jardins? – Terried perguntou a freira. 
Instintiva, Shanti olhou para ela, esperando permissão. Com um olhar de “fazer o quê”, a freira
concedeu o passeio. Terried era uma figura tão presente, que as voltas pelo jardim já era mais
do que um hábito. 

Já lá fora, condizente com o humor dela, o céu aquela manhã estava aberto, sem nuvens. O
clima da Inglaterra fora uma das coisas menos preocupantes da qual ela tivera que se
acostumar. Ao contrário de seu irmão, se adaptara com facilidade ao ambiente confuso e
oscilante. Quando, em uma hora o sol escaldante era capaz de derreter até mesmo uma geleira,
e quando no outro, o frio intenso era de matar. 

Os jardins do fundo, também chamado de “O Paraíso” pelas suas colegas do convento era seu
recanto preferido, fosse para os estudos ou para os passeios que costumava dar ao lado de
Terried. Do lado de fora do seu quarto, podia se ver o gramado de um verde intenso cuja várias
manhãs ela havia passado sentada ali, em um banquinho de madeira velha, concentrada nos
livros. 

Alexandre fizera questão que ela soubesse ler e escrever. Ela também. Acima de tudo, Mestre
havia exigido isso dela, como uma promessa há muito tempo feita para seu irmão. Shanti sabia
que poucas mulheres podiam se dar a esse luxo, e se orgulhava que fosse capaz disso. Com
todo o esforço ela se empenhara em não desapontá-los, e durante doze anos, fora se
aprofundando a ponto de tornar-se uma das mulheres mais instruídas da região. 

Doze anos. Era incrível como o tempo passava, pensou Shanti, enquanto ao lado dele, descia a
escadaria e atravessava um longo corredor que daria para o jardim. Depois de doze anos
convivendo na presença de soldados, onde seu próprio irmão era um, Shanti parecia ter
perdido o costume de olhar com espanto um homem tão alto como Terried. E pensar que,
quando criança, ele lhe emitia um medo tão grande que muitas vezes chegara a se esconder
para evitá-lo. E fora em uma delas, que subitamente esse medo desaparecera. 

O lar de Shanti era o convento, mas sempre a permitiam que fizesse visitas ao Castelo de seu
irmão. Quando mais nova, não entendia porque não poderia ir morar lá, ao lado dele. Alexandre
lhe dizia que só o convento daria a educação necessária para que se adaptasse a nova vida, e
que, em questão de ficarem longe um do outro, iria acontecer de qualquer forma uma vez que
ele próprio pouco parava no castelo. Seu irmão não relutava em esconder que a idéia de deixá-
la lá, sozinha, era inconcebível. 

Então, quando tinha seis anos fora passar uma noite ao lado dele. Para sua surpresa, o terrível e
temido soldado também estava lá. Sua atitude infantil fora sair correndo pela escadaria, e se
esconder atrás da tapeçaria. Mas, ao fazer isso, escorregou e acabou derrubando o candelabro
sobre ela. O fogo se alastrou, e o choro da menina que veio logo em seguida poderia ser capaz
de despertar uma legião de soldados. 

Para sua surpresa, não fora o irmão que viera socorrê-la, mas sim, Terried. Ele logo apagou o
fogo e a pegou no colo. E em vez de lhe passar um sermão como certamente ela esperava,
Terried olhou fundo naqueles belos olhos cinza, e sorriu. 

Era a primeira vez que o vira sorrir. 

- Você está bem, Shanti? – a voz de Alexandre veio atrás do homem que a sustentava sem o
menor esforço. Ela meneou a cabeça. 
- Alexandre, - Terried desatou a rir, o que a deixou ainda mais espantada - me lembre de
esconder as tapeçarias quando sua irmã estiver em meu castelo. 

- Me lembre de pedi-la para queimá-las Terried, e veremos se é tão engraçado. – disse


Alexandre, e deu meia volta, saindo irritado. 

Terried ainda a mantinha sobre seu colo quando sussurrou em seu ouvido. 

- Da próxima vez, sua pequena incendiaria, de preferência, tente queimar algo que seu irmão
esteja usando. Quem sabe, a túnica...

- Eu ouvi isso! – gritou a voz do irmão, no corredor. 

A partir daquele dia, ela começara a vê-lo com outros olhos. Não mais como um soldado
ameaçador. Aos dez anos já entendia suficiente para saber que Terried, apesar da beleza,
passava medo as camponesas que temiam ser escolhidas por ele como futura esposa. Mas a
Terried, nenhuma lhe agradara para desposar... até aquele momento. 

Olhando Shanti com curiosidade, ele parecia querer descobrir as mudanças que ela havia
sofrido naquelas quatorze dias em que estava longe. Era um olhar tão franco e sensual que ela
ficou desconcertada. Aquele silêncio já esta¬va começando a deixá-la nervosa.

- Você não vai dizer nada, meu amor? — perguntou.

- Está horrível nessa roupa. – argumentou ele, lançando um olhar de desaprovação ao abe em
que ela usava, e que deixava visível apenas a face. 

Ela riu com gosto. 

- Agora sei por que ainda permanece solteiro.

Ambos sorriram, e ver aquele sorriso lhe mostrou o quanto estava sentindo a falta dele. Agora
em que seu irmão estava longe, Terried era a única visita que conseguia lhe distrair a ponto que
a saudade de Alexandre não lhe doesse tanto. Nos três últimos anos as visitas de Terried
tinham-se transformado em uma rotina, onde ele sempre estava pronto a escutá-la, tanto
quando ela queria falar de seus ambiciosos projetos como quando queria lamentar alguma
coisa. Diferente dos outros homens que só sabiam falar de guerra, com ele sempre havia um
assunto novo. 

- Acho que depois de duas semanas, não sei bem o que dizer. Não sei por onde começar –
brincou ele, mas ela conseguiu captar a angustia em sua voz. Automaticamente, ela decidiu
fazer algo que agradasse aos dois. 

- Não precisa me dizer. Também senti sua falta – sussurrou ela. Então, passou as mãos em volta
do pescoço de Terried, pôs-se na ponta dos pés e beijou-o na face. Automaticamente ele a
abraçou pela cintura, apertando-a contra si. Logo ela se viu num abraço tão apertado que quase
a sufocou. Terried era um homem forte, mas jamais se esquecia disso quando estava ao seu
lado. Suas carícias costumavam ser sempre amáveis e delicadas. Quando Shanti soltou um
gemido de dor Terried relaxou o braço, soltando-a. 
Estava prestes a dizer que ele possivelmente havia esmagado alguns ossos seus, quando fixou
em seu rosto. O que viu dispensava comentários. Terried não fizera de propósito, mas sim,
queria-a contra si apenas para matar a saudade de um homem apaixonado. 

Um pigarro forte não passou despercebido, e, olhando na direção de onde viera o som, os dois
avistaram a mesma freira que entrara no seu quarto pouco antes, a apenas alguns metros,
observando. Por mais influencia que Terried tivesse, era claro que privacidade jamais fora um
privilégio. Shanti sentiu as faces se ruborizarem, e Terried voltou-se para observá-la.

- Ela não gosta de mim. 

- Não diga bobagens. - comentou - Ela mal o conhece. 

- Sorte a minha. – Terried disse, com sinceridade - Acho que ela mandaria um padre me
exorcizar se soubesse que sou um bruxo. 

A expressão no rosto de Shanti subitamente mudou. 

- Não brinque, Terried. – repreendeu ela, e Terried percebeu o quanto ela estava assustada -
Ouvi sobre os boatos que andam circulando. Estou preocupada com você. 

- Shhh. – disse ele, colocando um dedo em seu lábio, num gesto autoritário - Não vim aqui para
falar disso. É um assunto que estamos tratando de resolver. Por agora... – e segurou as duas
mãos delas, colocando-as de volta em seu pescoço - quero apenas saber sobre como tem
passado. 

Orgulhoso, mandão e obstinado. Eram essas as palavras que lhe passavam pela cabeça dela
naquele instante. Shanti queria persistir, saber mais sobre as coisas que andara ouvindo pelas
redondezas. Uma de suas amigas havia lhe contado sobre os campos queimados próximo aos
território dele, mas Terried talvez hesitasse em lhe falar. Sabia o quanto ele odiava em
preocupá-la. E ela, no quanto odiava que lhe deixassem de fora. Mas Shanti era paciente, e
sabia esperar a hora certa. 

- Estou bem. Passei a maior parte do tempo pensando em nosso casamento. – confessou ela,
lembrando-se das noites sonhando com o dia em que um padre os casaria. 

- Então, você quer mesmo se casar comigo? 

Ela moveu a cabeça, afirmando. 

- E... quanto tempo acha que vai levar para os preparativos? 

Um silêncio pairou sobre ambos até que as palavras dele entrassem em sua mente. Era comum
que fizessem planos para o casamento quando estavam juntos, mas ele jamais havia lhe
perguntado algo tão concreto. 

- Está dizendo... 

- Estou dizendo – interrompeu Terried, aproximando-se tanto que ela precisou se afastar se não
quisesse ouvir outro pigarro. Shanti pensou em repreendê-lo e relembrá-lo que estavam em um
convento, mas quando roçou seus lábios nos dela, esqueceu subitamente daquele pequeno
detalhe – Estou dizendo, meu amor, que me casarei com você. Sabe o quanto eu a amo, e não
agüento mais esperar. 

- Bom,- com um sorriso malicioso, ela começou a fazer desenhos invisíveis com a ponta do
dedo na túnica dele - Talvez podemos arranjar tudo dentro de dois ou três meses. 

No rosto dele, ficou evidente que desaprovava a idéia. 

- Terei que repetir a parte do “eu não agüento mais esperar”? 

- Um mês. – propôs Shanti. 

- Uma semana. 

Ela revirou os olhos. 

- Terried, por mais simples que seja ninguém consegue fazer um casamento em apenas uma
semana! É impossível. 

Mas ele ignorou seus protestos.

- Estamos planejando isso há meses, Shanti. Portanto, não estaremos fazendo nada em cima da
hora. 

- Você quer dizer “estávamos cogitando isso há meses”. Não é a mesma coisa! – queixou-se em
voz alta, mesmo sabendo que era inútil ao ver o sorriso ameaçador que se formava no rosto
dele. 

- Meu amor, se continuar insistindo serei obrigado a beijá-la de verdade para que consiga
manter essa sua linda boquinha fechada. Tenho certeza que as freiras apreciarão a cena. 

- É a sua palavra final? – perguntou ela, irritada. 

- Com certeza. 

Ela já deveria saber a muito tempo que não havia nada que Terried Remilly quisesse e não
poderia ter. Era quase um dilema impossível aos ouvidos daquele soldado tão teimoso. Shanti
duvidava que ele cumprisse com a palavra de beijá-la na frente das freiras, mas, para não correr
o risco de receber um sermão ou de até mesmo seu expulsa, manteve-se em silêncio, com um
olhar de poucos amigos. 

- Vamos, meu anjo, não fique assim. Vai me agradecer por ter antecipado tudo. Tenho uma
licença especial, e nos casaremos daqui a sete dias. Shanti – disse ele, com a voz carinhosa – sou
apenas um homem apaixonado que espera já há alguns anos para tê-la comigo 

Esquecendo-se por um momento de seu estado de indignação, ela lentamente abriu um sorriso
ao ouvir aquelas palavras. 

- Acho que nunca lhe perguntei uma coisa... – Trevor ficou em silêncio, e ela entendeu como um
incentivo para que continuasse – Quando soube que me amava? 
A reação dele era esperada: Olhou para o céu e grunhiu. 

- Pergunta típica de mulher. Bem... vejamos, - disse, fingindo-se pensativo, enquanto se


aproximava devagar até deixar apenas alguns centímetros restando entre eles. - Acho foi a
partir de seus doze anos de idade. Você se mostrou diferente de qualquer outra mulher que
tenha passado no meu caminho, Shanti. – o sorriso maroto se alargou naquele rosto magnífico
– Está satisfeita, ou deseja o dia e à hora exata também, moçinha? 

- Minha curiosidade se saciou. – respondeu ela, divertida. 

Ele a beijou na testa, igual a um pai faria com a filha. 

- Vai dar a notícia do nosso casamento para o seu irmão? Sabe, podemos ficar em silêncio e
fazer uma surpresa a ele quando voltar. – Terried sugeriu, dando ênfase nas palavras, como se a
idéia de esconder seu casamento de Alexandre fosse uma “brincadeira” tentadora demais para
ser recusada. 

Mas Shanti logo descartou essa hipótese. 

- Vou escrever uma carta a ele, contando todos os detalhes. Talvez demore uma ou duas
semanas para que ele a receba. Até lá, já estaremos casados. 

- Ótimo. – disse, com um sorriso forçado – Dê-lhe tempo para planejar minha morte. 

Shanti guardou silêncio ante aquele comentário. Três ou quatro anos atrás, então as palavras de
Terried teriam despertado nela uma preocupação com fundamentos. Para evitar os conflitos
entre seu irmão e o futuro marido, valia até mesmo adiar seu casamento para que o Alexandre
estivesse presente nele. 

Mas as desavenças entre os dois, com o passar dos anos, havia se tornado mais um passatempo
a algo do qual ela realmente poderia chamar de “inimizade”. Do ódio passaram a se aturar, e
com o casamento, Shanti esperava que a convivência entre os dois se tornasse ainda mais
pacífica com o passar do tempo. 

- Alexandre entenderá o que sinto por você. Acredito que será complacente – explicou ela,
ignorando o frio que percorreu seu estômago ao se lembrar que estaria casando sem o
consentimento do irmão. Uma vez órfã, seu Alexandre - que já possuía a idade a adulta, - era
inteiramente responsável sobre ela. 

- Não se preocupe – disse ele, lendo seus pensamentos. - Pedirei a permissão de meu Mestre.
Enquanto Alexandre estiver fora, é a ele quem devo me dirigir. 

Ela concordou em silêncio, e, em um gesto inconsciente, começou a acariciar os cabelos negros


de Terried. O afago durou alguns segundos, antes que, para a surpresa dela, ele se desvencilhou
de seu abraço. 

- Fiz alguma coisa de errado? – perguntou, confusa. 

- Não, não fez. 

- Então... – ela se aproximou para continuar, mas Terried novamente a afastou.


- Shanti, se continuar com isto estarei tentado a lhe arrancar daqui à força. 

Olhou para ele, atônita. Depois, caiu em uma risada contagiante. 

- Você não ousaria!

Ele arqueou uma sobrancelha: - Não me tente, minha querida. Ainda conseguirei esperar talvez
uma semana, se prometer é claro, parar de olhar para mim deste jeito. 

- Que jeito?! – perguntou ela, fingindo-se de inocente.

Ele se aproximou, beijando sua face. Em seguida, começou a brincar com uma mecha solta de
seu cabelo. 

- Uma semana, meu amor. Uma semana...

A promessa havia sido cumprida. Para o desgosto de Terried, aqueles sete dias tinham sido os
mais longos de sua vida. Nesse meio tempo, sabendo que era o sonho de toda mulher e
intencionado a agradar a sua, tentara de tudo para convencê-la a um casamento digno de uma
princesa. Um gesto em vão, pois cada vez em que iniciavam o assunto, Shanti lhe dizia que as
celebrações de magnanimidade não eram de suma importância; que, ao contrário do que ele
pensava, era a cerimônia pequena, íntima que a faria feliz. Dando-se por vencido Terried
atendeu ao seu pedido sem mais delongas. 

Chegado o dia, casaram-se na capela de seu castelo. Apesar de manter sua palavra e cumpri -
lá, era inconcebível que um soldado como Terried privasse seu próprio clã de assistir ao
momento em que Shanti tornaria-se mulher do homem cuja vida eles davam em lealdade, e
que, a partir de então, seguiriam igualmente fiéis a ela. Sem outra escolha, Shanti viu seu
casamento terminar em uma grande e preciosa festa do qual jamais tinha visto antes. 

Vários rostos conhecidos, e outros nem tanto se encontravam presentes. Como o esperado
Mestre havia comparecido a cerimônia, e mostrou-se contente ao ver que sua protegida se
casara com alguém de confiança. Só de pensar que fora aquele homem quem dera uma nova
vida ao seu irmão, já era mais que suficiente para admirá-lo e tratá-lo como um pai. E Shanti
sabia que o sentimento era recíproco, uma vez que ele mesmo sempre lhe dera o tratamento de
uma filha. 

Ao contrário das expectativas, ninguém parecia se horrorizar ao ver o rosto marcante de Mestre.
Apenas algumas mulheres, pouco costumadas, torciam o rosto na presença dele, mas logo
tratavam de esconder seus sentimentos de repulsa ao se lembrarem do homem que ele era.
Especial. Sombrio. E acima de tudo, um guerreiro respeitado até pelos próprios inimigos. 

O que era algo pequeno, então, havia se tornado um alvoroço de proporções quase
inimagináveis. Shanti pensou que para um casamento simples, só mesmo faltava o Rei
Guilherme I para completar a cena. 

Em um dado momento, após uma longa dança, Terried a levou até um canto do pátio, onde
poucos poderiam observá-lo. Quando passou por duas camponesas, pode ouvi-las cochichando
algo sobre tornar-se uma das mulheres mais invejáveis das redondezas. Ao que tudo indicava,
aquilo já estava acontecendo. 
Com a música alta e o falatório, Terried se aproximou para sussurrar em seu ouvido. 

- Meu anjo, acredito que já é hora de subirmos. 

Shanti vacilou, receosa. Tinha chegado o momento que tantas mulheres esperavam, e, ao
mesmo tempo, sentiam-se um tanto apavoradas. Ela esboçara um sorriso singelo para
demonstrar que estava segura de si, mas no íntimo desejava prolongar sua presença na festa
até que o último convidado fosse embora. Uma proeza obvia que dispensava qualquer
comentário. 

- É claro – concordou ela.

Subiram as escadas em silêncio, e, para sua sorte, naquele meio tempo ninguém notara falta
dos noivos. Toda a tensão que sentira só aumentaria se algum engraçadinho resolvesse pará-los
para animá-los ou dar conselhos ao noivo. E isso era, certamente, a última coisa da qual ela
precisaria. 

Terried abrira a porta de seus aposentos e se postou de lado, dando assim passagem para ela.
Depois que ela entrara, trancou a porta, enquanto Shanti observava o quarto em que estava. 

Era um dos aposentos mais lindos que já vira. Pouco poderia comparar a modéstia de seu
pequeno quartinho no convento ao tamanho e exuberância que aquele esbanjava. A cama era
imensa, com lençóis tecidos a fio de ouro e cortinas de veludo. Grande demais para que um
homem solitário dormisse ali, pensou ela, enquanto seus olhos corriam em torno das mesinhas
onde enormes castiçais jaziam acesas, dando um clima favorável ao ambiente. Instintivamente
lembrou-se do dia em que queimara a tapeçaria, e conseguiu distrair-se por um momento. 

Havia três armários enormes. Um para guardar as roupas, sem dúvidas, e outro talvez devesse
ser para ela. Mas o terceiro, foi o que lhe chamou à atenção. 

- Porque há fechaduras naquele armário? – perguntou, apontando para o outro extremo do


quarto – O que há aí dentro? 

- Meu tesouro. – respondeu ele, calmamente. 

- Você guarda sua fortuna aí? 

- Digamos... Que possam existir outros tipos de fortunas além de moedas. 

Ela ficou sem entender, mas não houve tempo de mais perguntas. Trevor já tratou de mudar o
assunto. 

- Eu já lhe disse o quanto está bonita esta noite? – argumentou ele, admirando-a de cima a
baixo 

- Hum... duas vezes – argumentou ela, contando nos dedos. Ao ver o que ele franzia o
semblante, acrescentou – Mas acho que poderei ouvir novamente. 

Não era do seu feitio que se mostrasse tão receosa quanto a alguma coisa. Tirando a cena do
candelabro aos seis anos de idade, nunca se lembrara de estar tão apavorada. Nem mesmo a
noite em que os bruxos haviam invadido o Egito fora tão alarmante. Talvez porque, naquele
instante, tudo o que mais desejava era que a noite saísse perfeita. Não queria fazer nada que
pudesse desagradá-lo. 

Uma jarra de vinho sobre a cabeceira próxima a cama parecia ser a solução de seus problemas.
Não estava acostumada a beber, mas talvez um ou dois goles do vinho... Adivinhando seus
pensamentos, Terried se encaminhou até o outro lado do quarto, enchendo duas pequenas
taças com um pouco da bebida. 

- Uma taça lhe fará bem. Mas gostaria de conversar com você antes. – disse ele, enquanto
pousava os copos de vinho sobre a mesa. Em seguida olhou para ela, fazendo um estudo
minucioso da mulher a sua frente. 

- Shanti, está tremendo. 

- Estou com frio – mentiu ela. 

Paciente, Trevor vagarosamente caminhou até ela. 

- Tentei fazê-la durante todos esses anos que me temesse para que se mantivesse a distância. –
vendo o espanto que se formava no rosto da esposa, ele explicou - Foi o meu modo de achar
que poderia afastá-la e tirar de mim o que sentia por você. Sabe, no começo, não aceitava que
pudesse estar apaixonado. E agora que está aqui, ao meu lado, não comece a fazer isso, tudo
bem? Agora que está aqui quero senti-la o mais próxima, sem medo ou receio. Não tem porque
começar a me temer, e será a última que um dia o fará. Prometo que nunca lhe darei motivos
para que isso aconteça. 

E para demonstrar o que havia dito em palavras, ele a abraçou, aninhando sua cabeça em seu
peito. 

- Sou o mesmo homem a quem você vem tem encantado com sua beleza, meu anjo – e beijou
uma lágrima de felicidade que brotou nos olhos dela, caindo sobre as faces rosadas. – O mesmo
homem que você atormentou desde que eu a vi pela primeira vez no Egito. Naquela época
talvez eu já soubesse que no futuro você seria minha. 

Ela deu uma risadinha, e se afastou um pouco para olhar em seu rosto. 

- Está se mostrando um tanto prepotente, marido. – disse, em tom divertido - Levando em


conta a minha idade de quatro anos, imagino que já era um perfeito galanteador. 

Terried sorriu, feliz ao vê-la mais a vontade. 

- Por isso esperei mais doze anos para tê-la. Consegue imaginar o dia em que passei a admirá-
la, mas ainda assim sabia que era nova demais para mim? Estava ficando maluco a cada dia. 

As palavras eram carinhosas, e Shanti sabia que tinham como único propósito acalmá-la. Um
sentimento de conforto e segurança emanou em seu corpo, respondendo as carícias verbais.
Qualquer que fosse o poder daquelas palavras, elas lhe diziam que, independesse do que ainda
fosse acontecer, Shanti já havia conquistado sua noite especial. 

E para não deixá-lo angustiado, começou a acariciar os ombros largos dele. 


- Já lhe disse esta noite o quanto eu o amo? 

- Hum... três vezes contando com esta. – e riu quando Shanti lhe deu um tapinha no ombro.
Depois, segurou o rosto dela com as palmas da mão, admirando-a – Mas acho que poderei
ouvir novamente. 

- Eu te amo. – ela sussurrou, e logo seus lábios se encostaram aos dele. 

A noite de núpcias havia sido como um sonho. Por trás do soldado de guerra onde sempre as
palavras “arrogância” e “frio caráter” o acompanhavam quando seu nome era mencionado, ela
conhecera o homem cujo amor era gentil e até sensível. Terried fora amável durante toda a
noite, e despertara os desejos mais profundos em seu íntimo. 

Estava quase amanhecendo quando finalmente Terried deixou-a dormir. Aconchegando Shanti
junto ao seu corpo, logo adormeceu também. 

Quando ela acordou, amanhecia e a temperatura estava esfriando rapidamente. Terried,


imaginando que ela ainda estaria desacordada e sentia frio, puxou-a mais para junto de si,
cobrindo ambos com o lençol. 

- Acha que algum bruxo inglês possa ter sido o responsável pelas queimadas?

- Pensei que estava dormindo. – disse ele. 

- Estava. E então?

Ouviu-o suspirar, de um modo que ela conhecia para saber que aquele assunto o deixava
aborrecido. 

- Suas amigas fofocam demais, Shanti. 

Ela se soltou do abraço apertado para poder olhá-lo. 

- Vai contar a Alexandre? 

- Não, não vou. Seu irmão não é um bruxo. Isso não é da conta dele. 

- Não se trata disso – afirmou ela, ignorando o súbito e esperado mau humor – Meu irmão
pode ajudá-lo, Terried. Quando voltar, terá que contar a ele. 

- Não vou preocupá-lo. Você está aqui agora, o que o deixaria ainda mais transtornado.
Alexandre seria capaz de pedi-la para ir morar um tempo com ele, e isso eu não permitirei. Seu
lugar agora é aqui, ao meu lado. 

O gesto possessivo pela primeira vez não a incomodou. Senti-lo preocupado com ela, era, ao
mesmo tempo gratificante e dava a segurança que precisava para não se amedontrar. Não que
fosse uma pessoa medrosa. Mas a idéia de lidar com bruxos perigosos causava certo receio.
Principalmente, quando não se era um deles. 

Ainda assim, ela insistiu. 


- Terried...

- Quer mesmo, discutir isso na noite de núpcias? – interrompeu-a - Shanti, é decididamente a


mulher mais difícil que já tentei conquistar. 

- O que me faz uma parceira perfeita para um cabeça-dura. - concluiu ela. – Será que ao menos
pode me responder quantos exatamente foram os ataques? Ou prefere que eu ouça através das
minhas amigas fofoqueiras?

Terried relutou em lhe dizer. 

- Dois ataques. 

- Então, foi obra de um bruxo?

- Temo que sim. – e em seguida balançou a cabeça, negando a pergunta que estava estampada
no rosto dela – Meus homens não fariam isso, Shanti. Nenhum deles. Todos sabem bem a
punição que teriam. 

A entonação na voz lhe disse que o assunto não se estenderia mais. Qualquer outra tentativa
seria inútil, e, sabendo disso, Shanti lhe deu o gostinho de pensar que ela esqueceria o ocorrido.
Mas sua mente já traçava planos para descobrir mais a fundo aquela história, e, de um jeito ou
de outro, fazer com que sei irmão ficasse sabendo das queimadas. Quem sabe, talvez, a
clarividência de Alexandre já não tivesse lhe indicado alguma coisa? 

Enquanto pensava, um silêncio prazeroso pairou sobre eles. Terried lhe afagava os cabelos num
gesto carinhoso, mas que ao mesmo tempo, era um incentivo para que ela dormisse. Antes de
ceder ao capricho dele, falou. 

- Terried.

- Sim?

- Só... não quero que me esconda algo, está bem? Mesmo que eu me preocupe, quero que o
diga. Não quero que haja segredos entre nós. 

Ele beijou sua testa. 

- Não vai haver mais segredos, e nunca esconderei nada de você meu amor. Nunca. Agora, trate
de dormir, meu anjo. Você passou a noite inteira em claro. 

Nunca. Ele nunca esconderia algo dela. Shanti adormeceu com aquelas palavras vagando em
sua mente, e como última visão, aquele armário fechado.

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