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Capítulo Um – Retorno ao lar.

Inglaterra - 1087 - Doze anos depois...

Não importava quantos anos pudessem ter se passado, Alexandre jamais teria se acostumado
aquele estranho nome que seu senhor havia lhe proposto. Quéops tinha todos os defeitos
imagináveis que o aborreciam profundamente: Era o nome mais estranho que já ouvira, e
ninguém jamais conseguia pronunciá-lo corretamente. Mas, acima de tudo, Alexandre achava
que não fazia jus ao homem que ele agora se tornara desde que saíra do Egito.

Zeus relinchou novamente. Era terceira vez que reclamava naquele dia. Alexandre acariciou a
crina do animal tentando cessar seus protestos, prometendo a si mesmo que levaria o cavalo
para um estábulo e cuidaria dele assim que chegassem.

Como esperava, seu companheiro de viagem aceitou o gesto de afeto com gosto, e
imediatamente acelerou o passo. Cavalgava a quase um dia inteiro, mas Alexandre tinha se
negado a dar um descanso ao animal já que estavam tão próximos de casa. Talvez em um ou
dois quilômetros, no máximo, estariam nas terras do seu clã. A ansiedade era aceitável, já que
há três verões estava fora por causa da guerra. Naquele instante Zeus trotou com ainda mais
força, como se adivinhasse os pensamentos de seu dono. Alexandre sorriu para o animal,
orgulhoso.

Tinha-o apelidado de Zeus no momento em que o recebera. Aos dezesseis anos, como um
presente de aniversário, Alexandre já via no animal presença e ferocidade que o destacaria dos
demais. Não fora fácil domá-lo. Zeus possuía uma pelagem negra e era de grande porte. Um
garanhão. Também tinha um gênio forte e era muito orgulhoso, o que impedia quase sempre
que outros homens se aproximassem muito. Ninguém além de Alexandre conseguia montá-lo.
Várias vezes, Shanti o lembrava de quão grande era a semelhança entre animal e dono.

- Deixe-me adivinhar – havia dito ele, quando a irmã decidira compartilhar aquela opinião pela
primeira vez – Sou forte, atraente e poderoso como Zeus?

- Acho que está mais para “relincha” e “resmunga” feito Zeus. É extremamente orgulhoso como
ele também, é claro.

- É claro. – respondeu ele, com um sorriso, aproximando ameaçadoramente dela.

Alexandre sorriu ante aquela lembrança. Naquela época, Shanti estava com cinco anos e o
irmão não desgrudava dela um só instante. Ainda era um menino miúdo e mirrado, mas sentia a
necessidade de protegê-la daquele estranho mundo a qual estavam agora. A vinda para a
Inglaterra tinha sido para ambos uma idéia aterradora, e Alexandre pensou que jamais
adaptariam suas vidas ali.

Mas tudo mudara radicalmente – Alexandre, mais do que qualquer um. Agora tinha vinte e sete
anos, e já não se parecia mais em nada com o garoto a quem seu mestre, Terried e os outros
“raptaram” naquela noite, há doze anos atrás. Jamais esqueceria o que havia acontecido no
Egito quando era apenas um garoto. Como poderia? Afinal, tudo o que havia se tornado, devia
aqueles homens.

Seu cavalo diminuiu o passo quando as primeiras cabanas começaram a aparecer. Ainda estava
amanhecendo, mas Alexandre já podia ver alguns moradores no alto da colina. Já estavam
prontos para o trabalho. Alguns moradores locais que tinham acabado de sair de suas casas
saudaram-no, com um gesto que demonstrava respeito pelo soldado. Alexandre precisou cobrir
parte do rosto com a mão para poder enxergá-los debaixo daquele sol forte, mas ficou
satisfeito com a hospitalidade pelo qual ainda tinha depois de três anos. Era a primeira vez que
ficava tanto tempo longe de casa, e, mesmo assim, os moradores não deixaram de reconhecê-lo
no mesmo instante em que voltava para casa.

Alexandre cumprimentou todos com um aceno na cabeça. Duas mulheres que passavam por ali
no exato momento observavam-no com um brilho diferente nos olhos. Alexandre controlou-se
para não se sentir arrogantemente orgulhoso de si mesmo. Era inacreditável que com o passar
dos anos, só o que fazia era aumentar os suspiros das damas a sua volta. As duas mulheres
respiraram profundamente quando ele passou por elas, e desapareceu pela estrada.

Não conseguia evitar, pensou, notando que novamente estava sendo arrogante. Afinal,
Alexandre tinha se tornado um homem mais do que atraente.

De todas as mudanças em sua vida, sua aparência certamente fora a que mais se afetara. Seus
cabelos negros tinham tomado a forma ondulada. Eram curtos, mas ainda assim se insistiam em
mostrar-se rebelde. Desistia de penteá-los sempre que os via desajeitado no momento depois
em que havia passado uma escova sobre eles. Uma franja rala caía sobre seus olhos, o que fazia
apenas que acentuasse um charme que muitos dos homens desejavam ter. Ainda não começara
surgir os primeiros fios brancos. Seu rosto era um tanto arredondado, e terminava em um
queixo quadrado. Tinha feito sua barba dois dias atrás mas já se via os pelos ralos crescendo
novamente. O dava o ar de ser ainda mais velho, mas jamais de acabado. Apenas uma rápida
observação em seus olhos era suficiente para perceber que existia ali toda a altivez de um
homem jovem e robusto. Eram dois belos pares de olhos, e os mais escuros que podia existir.
Chamavam-no atenção pela beleza, como qualquer outra parte de seu corpo.

Já havia ultrapassado um metro e oitenta com grande estilo, pois devido a sua compleição, suas
coxas e seus ombros eram tão musculosos que davam a impressão dele ser ainda maior. A capa
preta sobre os ombros largos cobria quase todo o seu corpo. Tinha uma camisa branca aberta
até a metade do peito, e botas pretas de cano longo sobre a calça de montaria. Certamente não
estava em seus melhores trajes apresentáveis, mas sua irmã não se importaria. Ainda mantinha
certos costumes do Egito que, para os Ingleses, talvez fosse considerado desapropriado

Mas estava certo de que sua presença ao lado de Shanti, infelizmente, não duraria muito. Claro
que estava mais do que contente por rever a irmã após longo três anos, mas Alexandre tinha
voltado com a intenção de servir a um outro propósito do Rei. Ou pelo menos, era assim que
Guilherme II pensava.

Fazia duas semanas que Guilherme II o tinha convocado para uma audiência. Aquela simples
reunião o fez estremecer da cabeça aos pés, pois sabia que o Rei só o convocaria para uma
reunião se algo não estivesse bem. Quando viu Guilherme II, sua conclusão fora correta. O que
tinham falado ali, Alexandre prometeu que juraria segredo.

Era a primeira vez que Alexandre não cumpriria uma promessa.

Precisava falar com alguém o quanto antes. E já sabia a quem deveria recorrer primeiro. Em
seguida, Alexandre teria uma conversa em particular com o seu mestre, para só depois saber se
deveria colocar seu clã a par da situação. Sim, seu mestre saberia como lidar com a notícia.

Alexandre quase considerava seu mestre como um pai. Só soubera o seu verdadeiro nome
quando fizera vinte anos, e aquele gesto fora mais do que uma prova de que, a partir daquele
dia, seu mestre o tinha sobre total lealdade. Ele não só cuidara de Shanti como havia prometido
como também manterá Alexandre sobre sua tutela até que atingisse a maioridade, assegurando
de que nada de ruim lhe causasse. Quase o considerava? Não, tinha-o como um pai. Era o único
homem a quem Alexandre abria uma exceção sobre seus pensamentos de jamais confiar em
alguém. E era uma pena que teria que saudá-lo com tantas más notícias assim que o visse.

Ninguém esperava pela sua chegada, e assim seria melhor. Seu mestre e vários de seus amigos
certamente estariam dispostos a saudá-lo com uma grande festa, mas Alexandre evitava aquele
tipo de exposição tanto quanto gostava de uma guerra. O que acontecia, era que estava
cansado demais, e sua volta não era motivo de festividade. Iriam perceber isso assim que
conseguisse falar com alguém. Depois disso, todos se dariam conta do quão grave era a notícia
que trazia.

Mas, por enquanto, tudo o que queria no momento, era ver sua irmã.

Fazia três verões em que não via Shanti, e imaginou como ela estaria agora. A curiosidade era
tanto que começou a fantasiar em sua cabeça a mulher vigorosa que estava se tornando sua
irmã. Tinha se transformado radicalmente com o passar dos anos, assim como ele. Imaginou
Shanti em sua mente, com seu agradável sorriso. Por um bom tempo Alexandre só tinha alegria
quando sua irmã estava alegre, mas não pode evitar em ranger os dentes, ao se lembrar do
motivo de sua alegria que ela descrevera na última carta. Tinha sido como uma bomba: Tinha se
casado com Terried.

Terried!

Alexandre não pode comparecer ao casamento, o que fora uma lástima. Claro, também não
tinha conseguido impedir que a irmã cometesse aquela loucura, e seria inevitável que agora
encontrasse uma aliança em seu dedo. Alexandre se considerava seu tutor, mas fora ao mestre
de ambos a quem Terried pedira a mão de Shanti. E para seu desagrado, seu mestre não
hesitara em assentir.

Terried tinha apenas um patamar acima do de Alexandre. Por amizade, Terried sempre o deixara
que considerasse todos os soldados que ele comandasse como se fossem o clã do próprio
Alexandre. Claro, não havia dúvidas de que Terried sempre tinha sido um bom amigo, apesar
das desavenças... mas cunhado... ainda teria que se adaptar aquele fato.

Mas acaso estava se dando por vencido? Não, Shanti ainda escutaria o sermão que havia
preparado para ela. Tinha sido uma grande loucura que se casa-se ainda tão jovem.

A um comando, seu cavalo foi refreando o passo até que parasse por completo. Estava em
frente ao castelo de Shanti, não havia dúvidas sobre o local. Respirou fundo, contente por
finalmente ter chegado. Zeus compartilhava do mesmo sentimento. Era ali que sua irmã estava
morando.

Alexandre abriu um largo sorriso. Como poderia ficar bravo com ela? Não... não era com ela
quem deveria ficar bravo. Afinal, ela só tinha dezessete anos. Deveria brigar com Terried. Sim,
deveria matá-lo pela sua insolência.

E enquanto pensava nas várias formas que poderia fazer isso, desceu do cavalo, atravessando a
distância até os portões do castelo, que naquele estante, encontrava-se aberto com a vigília de
dois fortes soldados. 

Shanti tinha passado quase todos os últimos doze anos sendo criadas por freias em um
convento, uma vez que ele não conseguia provir de tempo para que lhe desse uma educação
adequada. Fora seu próprio mestre que ordenara que Shanti fosse para um dos melhores
conventos da cidade. Alexandre como um bom irmão constantemente ia visitá-la, e, apesar de
saber que as freiras jamais tinham recebido tanto a presença de um homem ali, não se
importava quando fechavam a cara mostrando o seu desgosto. Alexandre riu e pensou de
repente no rosto das mesma senhoras que faziam caretas ao vê-lo, quando descobriram que
aquela menina a quem criaram com tanta rigorosidade na esperança que se devotasse a Deus,
tinha, de repente, se casado.

Ele se aproximou dos guardas, indo direto ao ponto.

- Sou Alexandre, irmão de Shanti Remilly. Gostaria de ver minha irmã.

Os guardas olharam um para o outro, duvidosos.


- O irmão de Shanti está na guerra senhor. A milady nos informou que ele chegaria apenas em
uma semana. Acaso acha que não saberíamos se fosse o senhor?

Alexandre os observou com um ar zombeteiro. Pelo menos os dois conseguiam provar o quanto
Terried estava se importando com a segurança de sua esposa. Mas, claro, não ficaria esperando
a tarde inteira do lado de fora da fortaleza do cunhado.

De repente, para a sorte daqueles dois, Shanti apareceu na porta. Alexandre arregalou os olhos,
surpreso. Aquela era sua irmã? Parecia que a cada viagem que necessitava fazer, fosse pela
guerra ou por negócios – e ficava anos fora, Shanti sofria uma metamorfose. Tranformava-se
exatamente como um lagarto.

Seus olhos cinzas tinham adquirido uma cor ainda mais claro, impressionando qualquer homem
com o efeito que produzia. Quase eram transparentes! Shanti era morena, e os cabelos negros
naquele momento estavam presos em um coque alto, deixando propositalmente escapar alguns
cachos que caíam até os seus ombros.

Seu vestido era de seda verde, que contrastava com sua pele. Não tinha jóias pelo corpo como
qualquer outra mulher da Inglaterra. Shanti mantinha o hábito de vestir jóias apenas quando
fosse a algum evento em especial. Sua desculpa era que sempre detestava sentir os objetos
pendurados em seu corpo, e imediatamente pensou que seu cunhado deveria ter grandes
dificuldades em satisfazê-la quando se tratasse de presentes. Shanti tinha apenas um pequeno
medalhão em volta do pescoço, e era tão fino e simples que quase não podia se ver. Mesmo
assim, aquela jóia fez com que ela se torna-se ainda mais elegante.

- Alexandre!

Shanti correu de encontro ao irmão sem se importar com os guardas. Quando já estava próximo
de Alexandre, quase pulou em cima dele. Ele sorriu e estendeu os braços para recebê-la em um
forte abraço.

- É bom vê-la também, princesa.

Ela se desvencilhou, percebendo o franzir do cenho que Alexandre fazia. Imediatamente, falou:

- Desculpe o meu comportamento. Certamente não é digno de uma dama. – e de repente, ela
puxou os dois lados de sua saia, se inclinando para frente.

- Shanti, vamos dispensar as formalidades.

Ela riu.

- O que as freiras iriam falar se vissem meu comportamento?

Alexandre não pensou em dizer o que tinha em mente. Shanti inclinou o rosto para olhar atrás
dele.

- Onde estão seus homens?

- Os dispensei. Permite que fossem direto para suas casas. Não terão muito tempo para ficarem
com a família depois que o rei souber da nossa volta.

- Alexandre, e o seu coração mole.

Ele deu ombros.

- Só achei que gostariam um pouco de sossego.

De repente, o relincho de seu animal chamou a atenção dos dois.


- Olhe, Zeus continua o mesmo exibido de sempre.

Virou-se para ela, arqueando a sobrancelha.

- Meu cavalo exibido só precisa de um lugar para descansar e um pouco de água. Precisei viajar
dois dias do cais até aqui e não dei uma folga para o pobre animal.

No mesmo instante, Shanti começou a dar ordens para que um dos soldados parado na porta
levasse o cavalo até o estábulo. O homem obedeceu imediatamente, claramente envergonhado
por não tê-lo reconhecido de imediato. Shanti segurou a mão de seu irmão, e o conduziu para
o interior do castelo.

Não tinha como não ficar impressionado com a suntuosidade do local. Era enorme, e não sabia
se era mais bonito por fora ou por dentro. Não tinha dúvidas de que a irmã mantinha uma vida
confortável ali, ao lado de seu marido. O pensamento em Terried o lembrou que teria que ter
uma longa conversa com a sua irmã.

Shanti o guiou diretamente para a biblioteca, onde sabia que ali teriam mais tempo e
privacidade para terem uma longa conversa a sós. Ali havia livros escritos por monges e as
trovas preferidas de sua irmã. Assim que entraram e ela fechou a porta, Alexandre deu um
abraço apertado na irmã, antes de afastá-la para observá-la melhor.

- Está cada dia mais linda, princesa.

Ela se ruborizou no mesmo instante, e Alexandre percebeu que ela ainda ficava vermelha com
facilidade. Alexandre murmurou:

- É uma jóia. Teria que ter talhado seu rosto há anos, sabia? – e vendo a expressão de
incredulidade que se formava no rosto da irmã, abriu um sorriso para mostrar que apenas
brincava - É muito bonita para sua própria segurança, Shanti. É tão bonita que qualquer sujeito
sem honra poderia se aproveitar de você.

- Tenho certeza que você não atravessou dois países para me dizer isso – interveio ela, no
mesmo instante. Abriu os olhos e disse, olhando para o irmão – Terried é um homem honrado.

- Sim, claro! - resmungou Alexandre, com ironia, enquanto observava o anel de safira que havia
no dedo dela. – E por falar nisso, como acha que iria reagir quando li sua carta? Deixe-me lidar
uma pequena idéia – disse, antes que ela responde-se – Fiquei imediatamente com o desejo de
sair e matar alguns inimigos no campo de batalha.

Shanti olhou carrancuda para o irmão.

- Sei que deve estar aborrecido por conta do casamento. Por favor, tente considerar a situação –
argumentou ela – Eu amo Terried, irmão. E ele também me ama.

- Shanti, você tem apenas dezesseis anos. Ainda não sabe o que é o amor. É só uma...

- Menina? Meu irmão, na Escócia estaria casada antes que completasse doze anos.

- Não estamos na Escócia. – advertiu ele, arrastando as palavras.

Shanti sentou-se no extremo no sofá, desistindo daquela luta verbal. Terried certamente seria o
último assunto para discutir depois de três anos sem vê-lo, mas Alexandre as vezes era tão
teimoso como uma mula. Não queria que o irmão se irrita-se tanto logo em sua chegada.
Então, deu um tapinha no lado esquerdo vazio do sofá, em um gesto para que Alexandre se
sentasse. Ele se acomodou, pousando o braço direito nas costas da irmã. Aquele gesto era tão
comum, que Shanti se aproximou mais, aconchegando-se em seu peito.
- É bom tê-lo de novo aqui de volta, irmão.

- Bom é vê-la novamente, princesa.

- Vai ficar por muito tempo? Poderia se hospedar em um de nossos quartos. É claro, - apressou-
se em dizer - a não ser que deseja ficar nos aposentos que o rei lhe oferecer.

- Não sei, não. Não acho que seu marido vá gostar tanto da minha companhia. Claro, o
sentimento é recíproco...

- Alexandre!

Ele deu de ombro ante a bronca dela. Esticou a perna e colocou as mãos atrás da cabeça,
fechando os olhos. Era a primeira vez que se sentia tão à vontade depois de três longos anos.

A conversa com Shanti fora mais do que agradável. Conversaram na sala por quase meia hora,
no qual Shanti passara a maior parte do tempo contando as novidades sobre os três anos em
que ele estivera fora da Inglaterra. Alexandre ouvia tudo com muita atenção, percebendo o
quanto estivera desatualizado nos últimos anos. Muita coisa havia mudado, e quando
finalmente, no final da tarde o assunto se voltou para ela, Shanti deu a idéia de cavalgarem nos
arredores para que pudesse lhe mostrar o local que agora chamava de lar. Havia tanta
felicidade em seu rosto que ele não pensou duas vezes, e aceitou seu convite.

- Está feliz. – disse ele, enquanto conduziam os cavalos para o lado oeste, rente as muralhas do
castelo.

Ela sorriu, sabendo que aquilo não tinha sido uma pergunta.

- Acho que nunca fui tão feliz. Confio minha vida em Terried.

Alexandre contemplou sua irmã por um longo momento, pensando em lhe advertir sobre o
acabara de dizer. Jamais gostara da palavra “confiança”. O irmão sempre lhe alertava que a
confiança poderia colocar um homem em perigo, e na guerra, era sua última aliada. Ele revirou
os olhos, irritado. Afinal, não importava se estava casada com um dos homens a quem seu
mestre considerava como braço direito. Acaso Shanti não aprendera nada enquanto viveram no
Egito? Ou nos primeiros meses que chegaram a Inglaterra? Não importava. De repente, viu
tanta felicidade no rosto da irmã ao dizer que confiava cegamente em Terried, que decidiu não
compartilhar seu pensamento naquele instante.

Shanti lhe mostrou quase toda a propriedade, apesar de que, quando a noite chegou, boa parte
ainda tinha faltado. O local era quase um castelo. O suntuoso palacete de Terried era uma das
propriedades mais bonitas que Alexandre tinha contemplado, e, depois de três anos vivendo
em uma guerra, tanta luxuria ainda era um desconforto. Shanti percebeu isso quando voltavam
para o estábulo.

- Sei que deve estar estranhando tudo isso – disse a irmã, enquanto colocava sua égua para
dentro – Se sentirá melhor com o passar dos dias.

Alexandre fez um gesto negativo com a cabeça.

- Recuperarei-me - disse. -Sempre faço.

Ela fez um meneio na cabeça.

Um silêncio agradável os acompanhou até a volta no salão principal. Claro, nenhum dos dois
desejaria falar sobre os três anos de guerra que haviam se iniciado contra os escoceses que
moravam nos extremos da Inglaterra. Alexandre, porque jamais queria que a irmã tivesse as
imagens horríveis que presenciava em batalhas. Shanti, porque sabia o quanto uma guerra era
capaz de afetar um homem.
Os dois entraram no salão principal no momento em que Terried atravessava o corredor para a
sala. Não ficou surpreso ao vê-lo, e Alexandre imaginou que algum dos empregados já o tinha
avisado sobre terem uma visita. Terried deu um simpático sorriso, mostrando-se receptivo.

Não havia mudado uma só parte do rosto mesmo depois de três anos.

Claro que estava mais velho. Dois anos a mais que Alexandre, especificamente. Mas seu rosto
continuava como daquele jovem que conhecera e sentira uma profunda antipatia no momento
que vira. Seus olhos verdes estavam ávidos, e o rosto expressava energia quase invejável.
Lembrava que antes de sair da Inglaterra Tierried ainda costumava arrancar suspiros das damas
que se aglomeravam ao seu redor. Esperava que aquela situação tivesse acabado quando a
notícia de seu casamento se espalhou.

- Pensei em ter ouvido sua voz Quéops. Achei que estava tendo um pesadelo. – disse, enquanto
se aproximava deles. Estendeu a mão e cumprimentou Alexandre, com um sorriso malicioso
grudado no rosto - Só o esperávamos daqui a uma semana. Estragou minha alegria, cunhado.

- Acredite, também estou feliz em vê-lo. – disse Alexandre, com o mesmo sorriso.
Então, de repente, os dois se abraçaram como se fossem dois grandes irmãos. Aquele gesto
deixou Shanti surpresa.

Terried se aproximou da esposa, depositando um beijo terno em seu lábios. Ao mesmo tempo,
a palma da mão esquerda acariciava sua face.

O casal quase tinha se esquecido da presença de Alexandre.

- Terried, pode tirar suas mãos de cima dela pelo menos enquanto eu estiver aqui?

- Não. – respondeu ele, com um brilho nos olhos. Separou-se de seus lábios, mas manteve uma
mão ao redor da cintura dela – É minha mulher, se não se lembra.

- E minha irmã, se não se lembra.

O rosto de Alexandre mostrou que estava prestes a estrangulá-lo. Terried olhou para ele
tentando não rir, e, finalmente, decidiu que seria melhor deixar que a vontade de seu cunhado
prevalecesse. Sua mão caiu ao lado do corpo, mas não manteve distância da sua esposa.

- Onde estão seus homens, Alexandre? Não vi ninguém lá fora.

- Estão em casa. – e então, rapidamente explicou para ele a situação.

- Fez bem, Alexandre. Eu o convidaria a ficar em meu castelo, mas talvez o Rei certamente exija
que fique em um dos aposentos do castelo.

- Penso que sim. De qualquer forma, minha estadia por aqui será apenas por alguns meses.

- Entendo. – respondeu.

Shanti não estava entendo muita coisa daquela conversa, e estava prestes a perguntar porque
Alexandre ficaria menos de um ano ao retorno de seu lar, quando percebeu que de repente
Terried olhava para os dois lados, como se desse conta de um fato que ninguém mais estava
vendo.

- Pelo amor de Deus, porque velas?

- Porque está de noite e porque você não estava, querido.


Ele de repente tirou a varinha debaixo da capa, e murmurou.

- Lumus!

Foi questão de segundos para que sua varinha iluminasse mais do que todas as velas que
estavam espalhadas sobre a sala de estar.

- Pronto, agora sim – afirmou, com certo ar de orgulho daquele gesto.

Alexandre olhava para varinha, com uma expressão impassível.

- Ainda se surpreende, não é mesmo?

- Acho que sim. – respondeu ele, com sinceridade - Tive que me acostumar por três anos com
velas acesas durante a noite. Quando dispúnhamos de algumas.

Terried respirou fundo.

- Alexandre... sei que deveria ter ido com você, mas Guilherme ordenou que eu ficasse. Sinto
muito.

- Não sinta. Você tem uma esposa agora, Terried. E nosso mestre precisa de você aqui.

- Alexandre, esse homem não tem um nome? – interrompeu Shanti.

- Se surpreenderia se eu disser que sim?

Ela balançou a cabeça.

- Terried nunca quis me dizer o nome dele.

- É porque ele não tem meu anjo. – respondeu Terried, revirando os olhos por terem aquela
discussão novamente – Assim, garante sua segurança. Já lhe expliquei isso. Todos o
conhecessem apenas por mestre.

- E os guerreiros?

- Meu senhor.

- E os inimigos?!

- Estorvo.

- Isso é ridículo!

Os dois homens trocaram olhares cúmplices antes de caírem na gargalhada. Shanti sorriu,
contente com aquela cena.

- Quéops, ele vai querer recebê-lo com uma festa. – avisou Terried. – Devia ter nos avisado.

- Acho que não. Não depois de ouvir as notícias que trago. Terried, tive uma audiência com o
nosso Rei na semana passado. Em particular – acrescentou, dando uma boa ênfase na última
palavra.

Não soube dizer no que estava pensando, pois Terried não demonstrou nenhuma reação. Talvez
precisa-se repetir as palavras novamente para que seu cunhado entende-se? Ou teria que
começar a falar tudo na presença de Shanti até que ele começasse a se tocar? Não precisou
usar suas opções, ao ver que Terried de repente se fechou em uma expressão dura, e virou-se
para a esposa.
- Shanti, meu amor, porque você não ajuda nos preparativos para o jantar? Afinal, temos um
convidado.

- Por favor! – exclamou ela no mesmo instante - Me recuso a ser tratada como uma mulher tola!
Se quiserem conversar sem a minha presença, podem ao menos pedir diretamente para que eu
me sinta um pouco melhor?

- Muito bem, quero que você saia para não ouvir nossa conversa.

- Assim está bem melhor. – disse ela, forçando um sorriso - Tenho alguma chance de protestar?

- Não! – responderam os dois, em uníssono.

Ela fez uma careta. Então, dirigiu-se a Alexandre dando-lhe um beijo na face. Ia sair em seguida,
quando Terried a puxou pelo braço, e a fez virar.

Beijou-a.

- Por favor, vou vomitar. – informou Alexandre.

- Então não olhe. – murmurou o cunhado, quando soltou Shanti – Deveria experimentar isso
Quéops. Chama-se “estar apaixonado”.

Alexandre revirou os olhos. Antes de Shanti sair, Terried a chamou novamente.

- Meu amor.

- Sim?

- Não ouça atrás da porta.

Shanti abriu a boca para protestar, mas pareceu mudar de idéia.

- Não o farei.

Quando Shanti desapareceu, Terried voltou-se para encarar Alexandre, preparado para a longa
conversa que iria ter com ele.

- Quéops, lembra quando pensava que éramos seu inimigo?

- Mudei meu pensamento, mas ainda continuo achando você meu inimigo.

- Quéops, acho que está na hora de aceitar este fato. Shanti cresceu.

- Você observou bem rápido, não é mesmo? Meu Deus Terried, você tem quase o dobro da
idade dela!

- Alexandre.

- O que é? – respondeu, sem se dar conta que estava gritando e que Terried não o tinha
chamado de Quéops.

Terried respirou fundo, e fechou os olhos.

- Amo sua irmã. Daria minha vida por ela.

Alexandre não precisava ouvir aquilo. Qualquer um saberia essa verdade no momento em que
vissem os dois juntos. Amavam-se. Alexandre estava feliz por saber que agora outra pessoa
também zelava pela sua irmã, e tentou mostrar sua amabilidade com Terried. Como poderia
explicar que era o simples extinto protetor que fazia com que ele jamais se desgrudasse dela?
Shanti, por longos anos, só tivera ele no mundo. E agora era uma mulher, uma linda mulher
feita, que sabia se cuidar e que, mesmo quando falhasse, haveria Terried para protegê-la.

Percebeu que era um fato que ainda tinha que assimilar aos poucos. Demoraria para digerir
aquela informação, mas sentiu-se satisfeito quando pensou que a irmã estava feliz, e era isso
que importava.

Mesmo que fosse casada com aquele homem.

- Não gostou de mim desde a primeira vez que nos vimos, não é mesmo? – perguntou Terried,
tirando-o de seus devaneios. Seu cunhado caminhou até uma mesinha onde uma jarra cheia de
vinho repousava. Ofereceu a Alexandre que recusou, e encheu apenas um copo.

- Na verdade, só o achei arrogante. – respondeu Alexandre - Não odeio você.

- Isso ameniza um pouco a situação. Mas não pedi que Shanti saísse para falarmos sobre ela.
Teremos algum tempo para fazermos isso nos próximos dias.

- Com toda certeza.

- Por favor, sente-se.

- Terried, eu preferia que nos falasse-mos quando estivesse com nosso clã novamente, na
presença de nosso mestre. É muito importante.

- Não confia em mim?

Alexandre ficou em silêncio, dando sua resposta.

- Você poderia responder a uma pergunta antes, Terried?

- Acaso responderá minha pergunta com a sua?

Ele deu de ombros

Terried tentou tirar sua vantagem:

- Falará sobre sua audiência com o Rei se eu disser que sim?

- Falarei tudo que estiver ao meu alcance.

- Nesse caso... – assentiu ele.

Alexandre esperou propositalmente Terried levar o vinho do copo a boca para que fizesse sua
pergunta. Pensou que assim, a reação de seu cunhado seria um pouco mais divertida aos olhos
dele.

- Terried, o que sabe sobre os Registros de Regis?

Exatamente como imaginara. No mesmo instante ele cuspiu, engasgando-se. Tentou tomar ar,
mas isso só piorou, pois começou a tossir, e precisou sentar-se no sofá rapidamente para que
pudesse recuperar o autocontrole. Ficou vermelho como um tomate. Era uma situação hilária e
acusadora. Teve uma súbita vontade de rir, mas não o fez.

- Devo presumir então, pelo que acabei de ver, que deve ter algum conhecimento sobre esses
Registros? – a voz tinha um divertimento que ele não conseguia esconder.
- Onde ouviu isso?

- Vai responder a minha pergunta? Ou não confia em mim?

Terried sabia o que ele estava fazendo.

- Não tente usar minhas palavras, Alexandre – novamente, ele não o chamava de Quéops, mas
Alexandre mal tinha notado – Sim, sei sobre esses Registros. Porque o interesse?

- Era o que estavam roubando naquela noite, não é mesmo?

Terried respirou fundo.

- Era só um garoto, Quéops.

- Não vou esquecer nunca.

Os dois ficaram em silêncio por algum tempo.

- Ele vai me cortar em pedaços se souber que estamos tenho essa conversa.

- Nosso mestre não vai saber – assegurou Alexandre - Eu disse que preferia conversar na
presença de todos. Você não me ouviu. – ele hesitou por um segundo, como se pensasse nas
palavras – Mas também, acho que está na hora de nós dois percebemos que estamos ligados
mais do qualquer outro pessoal de nosso clã. Você agora está casado com minha irmã. Devo
considerá-lo alguém confiável, assim como espero reciprocidade.

Terried levantou-se, e Alexandre estava certo de que aquelas palavras tinham causado o efeito
necessário. Possuía toda a intenção do mundo de conversar com Terried antes de se reunir com
os outros, mas claro, era uma questão de bom senso que não disse-se. Precisava primeiro que
Terried confiasse nele, para poder lhe dizer que estava em sua mente. Precisava saber a verdade
sobre todas as coisas que tinha ouvido durante sua audiência com o Rei. E certamente ninguém
lhe parecerá melhor para aquela tarefa, do que seu cunhado.

- Os Registros por acaso tem envolvimento com sua audiência com o Rei Ricardo?

- Talvez tenha.

- Quéops, pare de me enrolar.

- Terried, porque era tão importante que recuperassem esses documentos?

- Você não vai desistir não é?

- Acamparia aqui o ano inteiro se fosse preciso.

Terried se afundou novamente no sofá, em um gesto de rendição.

- Muito bem, Alexandre, alguma vez já ouviu falar dos Cavaleiros da Noite?

- Talvez...

- Sim ou não?

- Sim.

Terried parecia espantado. Certamente não era aquela resposta que deveria ouvir.

- Então... deve saber que esses cavaleiros foram os primeiros homens que se tenham
conhecimento que praticavam bruxaria. Bruxos, Alexandre, não feiticeiros.

- Sim. Mas também já me disseram que era só uma lenda que os mais velhos contam para seus
filhos.

Terried negou com a cabeça.

- Não, Alexandre. Eles realmente existiram. Intitularam-se como os Cavaleiros da Noite e


atuavam sempre depois que o sol se punha. Eram cinco homens ao todo. Poderia passar a noite
inteira aqui contando-lhe a história deles, mas vou resumir os fatos: Atuaram contra o seu
próprio país. Por um bom período, foram à vergonha da Inglaterra. Imagine todos os tipos de
crueldade, Alexandre. – disse, com a voz séria- Esses homens eram cruéis, matavam,
barbarizavam, cometiam as piores torturas contra as pessoas. Mas depois de um longo tempo
atuando contra a Coroa, decidiram de repente entregar toda sua lealdade ao Rei.

- Por quê? – interrompeu Alexandre, de repente.

Terried deu de ombros.

- Peso na consciência? Medo de serem pegos e levados a forca? Quem sabe.

- Você mesmo acabou de dizer que eram Bruxos. Uma simples corda no pescoço não os
impediria...

- Vai continuar a me interromper?

- Não. Claro que não. Me desculpe.

Terried retomou seu pensamento.

- Esses cinco homens decidiram entregar sua lealdade ao Rei, mas com isso, precisaram contar
o que eram capazes de fazer. O Rei ficou abismado ao ver quanto poder eles tinham. Eu não
preciso dizer que Guilherme I não hesitou um só segundo para tê-los como aliado.

- E então?

- Ele não podia espalhar por aí o que sabia. Seria mais do que arriscado. De modo que
providenciou que documentos fossem escritos para que explicasse a lealdade de seus homens
para as gerações seguintes. Se houvesse um Rei ou príncipe, de seu próprio país ou de outros,
que decidisse levantar um só dedo para travar uma guerra contra aqueles bruxos por os
acharem uma ameaça, os documentos intercederiam por eles. Guilherme tinha medo que seus
próprios filhos pudessem se voltar contra as armas que tinha na mão, mas era palavra de um
Rei escrita. Tinham a proteção dele, e só houve uma vez em que realmente precisaram usá-la.

- Deixe-me ver se eu entendi: Esse homens negociaram sua lealdade com o Rei, e como
compensação, ganharam documentos que diz que eram bons homens?

- Na verdade, tentavam assegurar a vida de todos os bruxos da época, e para aqueles que
nasceriam. Bruxaria ainda é um crime, Alexandre. Acaso inicie uma guerra por nós ou entre nós,
esses documentos são a prova de que estamos lutando a favor da Inglaterra. É um meio de
assegurar nossa convivência pacífica. Como você disse, são documentos a nosso favor. E é um
assunto que poucas pessoas conhecem, Quéops, de modo que duvido muito que tenha
escutado sobre os Cavaleiros na boca de pessoas comuns.

- Talvez...

- Se me responder com mais um “talvez”, juro que...

Alexandre o interrompeu com um gesto, pedindo desculpas.


- Você está certo quando diz que era isso que tentávamos pegar aquela noite.

- Por isso destruíram meu povo? – perguntou ele, um pouco aborrecido - Tem conhecimento
que agora existem menos de cem egípcios em todo mundo?

Terried arqueou uma sobrancelha, perguntando-se se aquilo realmente fazia alguma diferença.
Alexandre sempre tinha considerado os ingleses como seu povo, e jamais os egípcios.

- Nunca usamos a força se não soubéssemos que era uma necessidade, Quéops. Sabe muito
bem porque fizemos isso naquela noite. Tínhamos motivos o suficiente para acabar com aquela
cidade. Meu Deus, eles roubaram os Registros!

- Você tem certeza de que esses documentos são a favor dos bruxos?

- Absolutamente.

- Terried, alguma vez já viu esses documentos para provar sua certeza?

- Ninguém jamais os viu, Alexandre. Só o Rei e o escrivão que contratou na época. Por uma
“incrível coincidência”, o homem era mudo, e os documentos foram trancados em um baú com
uma fechadura que nem mesmo nossas varinhas conseguiram abrir.

- Há outra pessoa que os viu. – assegurou o cunhado.

Havia tanta certeza em sua voz, que Terried se virou no mesmo instante para olhá-lo.

- Como pode achar isso?

- Sei que Guilherme II o mostrou esse documento para mais uma pessoa. – afirmou ele.

- Quem?

Houve um grande silêncio, antes que Alexandre respondesse com um sorriso vitorioso.

- Eu.

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