Você está na página 1de 4

O Baile

Depois de passar quase duas horas caminhando pelo salão e cumprimentando os


convidados, suas pernas doíam de cansaço. Ele só queria se sentar na poltrona por um
instante e pedir uma taça de vinho para aliviar a sequidão de sua garganta. Para piorar o
desconforto, fazia muito calor dentro daquele salão. Por mais que o teto fosse alto e as
janelas fossem projetadas para facilitar a circulação de ar, a multidão que ali dentro se
aglutinava e as milhares de velas colocadas para iluminar o local o tornavam um
verdadeiro forno.
Pedro era um homem alto e magro, com cabelos loiro-amarronzados bem curtos e
penteados com resina para ficarem brilhantes. Tinha uma barba longa, um pouco mais
escura que os cabelos e um par de olhos azuis tão claros que quase não eram visíveis.
Vestia naquela um fraque verde-escuro de algodão pesado com uma camisa branca de
linho fino e calças marrons, também de algodão. Ele próprio não tinha noção alguma de
moda, por isso sempre permitia que os camareiros escolhessem suas vestes para eventos
desta estirpe. Chegara ao baile vergando também uma gravata borboleta verde-escura,
mas já a desamarrada discretamente a guardara em um bolso interno do paletó. Se não
fizesse isso, sufocaria de tanto calor. Mas não era só a temperatura ambiente, ou o
barulho excessivo, o cheiro forte de suor ou a dor nas pernas que o incomodava. Era o
conjunto de tudo isso e mais um pouco.
A verdade é que Pedro detestava bailes, festas e todo tipo de evento social. Ele
detestara até mesmo a própria coroação e também sua cerimônia de casamento. Tendo já
vinte e oito anos de idade, ele ainda não se acostumara aos ossos de seu ofício. O
Imperador do Brasil, por mais que ocupasse um cargo que tinha como pressuposto a
interação constante com políticos e outros chefes de Estado, era em seu íntimo um
homem absolutamente recluso, afeito a leituras, conversas intelectuais e sonecas.
Infelizmente para ele, no entanto, suas obrigações eram diametralmente opostas aos
seus gostos. E elas ocupavam a maior parte do tempo que tinha.
Ele olhou para os lados rapidamente, e, percebendo que não havia mais ninguém
entrando em seu campo de visão para cumprimentá-lo, decidiu ir até sua poltrona e
sentar-se para descansar, nem que fosse por um breve instante. No entanto, logo antes
de virar o corpo, uma visão que o distraiu. Pedro tinha mais de um metro de noventa de
altura. Esta estatura avantajada lhe tornava um tanto desengonçado, mas também trazia
algumas vantagens. Uma delas era o privilégio de sempre enxergar tudo ao seu redor de
um ótimo ponto de vista, até mesmo em uma multidão. E foi isso que aconteceu naquele
momento.
A jovem que lhe apareceu era tão bela que parecia ter um facho de luz apontado
só para si. A primeira parte do corpo que chamou a atenção de Pedro foram seus
cabelos: eram negros, mas não em um tom comum. Eram mais escuros que qualquer
cabelo que ele já tivesse visto. Chegou a pensar, por um instante, que fosse uma índia,
mas o rosto que se revelou quando a moça se posicionou de frente para ele era de uma
mulher mediterrânea. Os olhos eram castanho-escuros, quase pretos, e a pele era de um
tom branco levemente bronzeado, que lembrava os povos do sul da Europa. Seu nariz
era fino e alongado, e a boca era maravilhosamente sensual, adornada por um batom
vermelho. Italiana¿ Grega¿ Pedro tentou adivinhar por um momento, mas estava
encantado demais para raciocinar.
Como que num instante, as duas ou três fileiras de pessoas que estavam entre eles
dois desapareceram, e a jovem estava um pouco mais perto do imperador. Ele estivera
tão hipnotizado que não chegara a perceber que ela vinha em sua direção para saudá-lo.
- Majestade.- Ela pronunciou em um português errático enquanto se curvava.
Ela usava um grande vestido azul-turquesa com um belo decote e gola alta. Por
uns poucos segundos, enquanto ela fazia a reverência, Pedro teve o privilégio de ver um
relance dos seios daquela moça. “Que seios maravilhosos!”, ele pensou imediatamente,
tomado de luxúria.
Tivesse aquilo acontecido oito ou dez anos antes, quando o imperador ainda era
recém casado, teria provocado um forte sentimento de culpa. A esta altura, no entanto,
Pedro já estava acostumado a sentir e, eventualmente, a ceder a este tipo de tentação.
Tereza Cristina era uma boa esposa, boa mãe e boa cristã, mas não tinha beleza física.
Pedro ainda se lembrava, com amargura, do dia em que conhecera a princesa do Reino
das Duas Sicílias que viria a ser sua consorte, ainda em 1843. A princesa era tão feia
que o fizera chorar, mas aquele jovem imperador mantivera sua postura e aceitara de
bom grado a união. Acima de suas preferências pessoais estava o dever para com o
Estado, conforme ele sempre aprendera.
Pedro sempre tratara sua esposa com respeito e dedicação, mas nem sempre era
fiel aos seus votos matrimoniais. Ele não era um garanhão desmensurado, como fora seu
pai, e nem permitia que seus episódios de adultério viessem a público, mas de fato tinha
momentos de fornicação com mulheres belas e inteligentes que conhecia em sua breve
vida social.
- Muito prazer, minha senhora. – Pedro cumprimentou a moça que lhe encantava.
– Posso saber quem é esta belíssima jovem¿
- Fico muito grata, Majestade. – Ela respondeu, corando. – Sou a princesa
Alexandra de Salamina, filha do príncipe Georgios e neta do rei Otto, soberano da
Grécia.
- Oh, é muito bom receber uma visita de tão longe, princesa. – Ele respondeu em
Grego. Gostava de falar com as pessoas em seus idiomas nativos, pois isso as deixava
mais confortáveis. – Fico feliz que tenha vindo prestigiar meu baile. – Concluiu com um
sorriso afável.
- Eu que agradeço pelo convite de Vossa Majestade. – Ela respondeu com um
sorriso mais aberto desta vez.
Pedro olhou para os seios dela mais uma vez. Foi uma olhadela acidental,
praticamente inevitável. Aqueles lábios, aquele sorriso, aqueles seios... Ele sentiu seu
coração palpitar.
- Está muito quente aqui, Princesa Alexandra. – Comentou, enquanto coçava a
barba e movia a cabeça levemente para os lados. – O que a senhorita acharia de
caminhar comigo pelos jardins¿ Tenho muitas perguntas para fazer sobre o Reino da
Grécia.
- Oh, seria uma honra, Majestade! – Ela respondeu com uma animação que
parecia sincera.
Pedro então dispensou os dois guardas que o acompanhavam e guiou a princesa
grega para fora do salão. Os conselheiros do imperador detestavam que ele andasse sem
escolta, mas o próprio se considerava seguro dentro dos muros do Palácio. Além de que,
para todos os efeitos, ele e a princesa precisariam de privacidade naquele momento.
A estratégia do passeio pelos jardins era eficiente, apesar de muito antiga. Ele
tinha certa habilidade para impressionar as mulheres com seus discursos encorpados
sobre ciências e artes, e também sabia agradá-las fazendo elogios e sempre ouvindo
atentamente suas opiniões. Após algumas dezenas de minutos de caminhada, ele diria
que está com sede e a convidaria para os seus aposentos. Naquela noite, tudo parecia
promissor.
Um trovão o fez acordar de sobressalto. Pedro levantou a cabeça rapidamente e
olhou em volta, como que para se certificar de onde estava. Para sua enorme tristeza,
não era mais 1853 ele nem estava nos jardins do Palácio. Era 1891, e o local era aquela
cabine minúscula naquele navio infernalmente desconfortável.
Pedro esbarrada com o pé em algum móvel com o susto que acabara de levar, e
por isso estava com uma dor forte no tornozelo. “Dormi nesta maldita cadeira de novo”,
ele resmungou em pensamento. Aquilo já acontecera um bocado de vezes: ele se
sentava à pequena mesa que havia em sua cabine para ler um pouco antes de dormir,
mas acabava por cair no sono ali mesmo. Sempre que isso acontecia, ele acordava com
fortes dores nas costas.
Mas hoje fora pior. Com aquela tempestade violenta caindo do lado de fora, ele
acordou assustado e com frio. Pedro fez um esforço para afastar a cadeira e se levantar,
procurando sua bengala em algum lugar por ali. Era um homem velho agora, perto dos
seus sessenta e seis anos, com cabelos brancos e ralos e uma imensa barba branca.
Naquela eterna escuridão, ele percebeu, não haveria chance de encontrar a bengala. Na
realidade, ele não conseguiria achar o objeto nem se o ambiente estivesse claro, pois,
conforme acabara de notar, também estava sem seus óculos. “Onde foi parar esta
porcaria¿”, ele pensou, enquanto se movimentava debilmente pela cabine, se apoiando
nas paredes.
Em algum momento, o navio balançou violentamente e Pedro se desequilibrou.
Tentou se segurar em alguma coisa, mas acabou agarrando a cadeira, o que o fez cair
com o móvel por cima de si. Sentiu tantas dores que nem era capaz de elenca-las. Suas
costas, braços, joelhos, cotovelos, todos latejando por causa do impacto. Ele mal
conseguia respirar, mas fez um esforço hercúleo para gritar por ajuda.
- Isabel! – Chamou uma primeira vez, mas sua voz estava baixa demais e não era
capaz de competir com o barulho da tempestade. – Isabel!- Gritou de novo, desta vez
um pouco mais alto.
Mas isso adiantaria¿ A quantos metros dali sua filha estaria dormindo¿ Pedro
sabia que a princesa estava perto da cabine da mãe, que se encontrava extremamente
doente, mas não fazia ideia de qual seria a distância até ali. Respirou fundo para tentar
gritar de novo, mas desistiu. Não conseguiria ajuda, pelo menos não agora. E também
não conseguiria se levantar com aquela cadeira em cima de si. Estirado no chão, Pedro
amaldiçoou a própria vida e velhice. Sentiu as lágrimas subirem aos seus olhos, mas não
soube dizer se eram de dor, de raiva ou de tristeza.

Você também pode gostar