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DO OUTRO LADO DO OCEANO

LAÍS RODRIGUES

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Texto adaptado à nova ortografia da Língua Portuguesa, Decreto


n° 6.583, de 29 de setembro de 2008.

Direção Geral: Chirlei Wandekoken

Direção de arte: Eduardo Barbarioli

Revisão: Luciana Raymundo

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Prólogo

Backhan, agosto de 1815.

A chuva e o vento gélido chocavam-se contra a sua pele; ainda


assim, o sangue de Catherine pulsava forte, fazendo-a corar do
calor que inexplicavelmente não deixava seu corpo. Não. Lady
Catherine podia ser muitas coisas, mas recusava-se a ser hipócrita.
Ela sabia exatamente o que – ou melhor, quem – era responsável
por fazer seu coração acelerar enlouquecidamente, por deixá-la
quente ao ponto de parecer que iria entrar em combustão a
qualquer instante.

Ele.

Como a fazia se sentir daquele jeito? Não deveria detestá-lo?


Decerto, ela vinha acumulando muitos motivos para tal; infelizmente,
seu coração não parecia capaz de escutar sua razão. Nos últimos
meses, ele vinha fazendo muito isso.

Tudo começou quando se viram pela primeira vez. Já havia


paixão entre eles desde aquele primeiro momento. Lady Catherine
nunca havia sentido aquilo antes por nenhum cavalheiro e, por isso,
havia confundido sua atração por irritação. Bem, a culpa não era só
dela; ele podia ser, de fato, muito irritante.

No entanto, sua ignorância a deixou cega; ela precisou ter seu


coração despedaçado para perceber que não mais lhe pertencia. O
coração dela era dele. Ela era dele.

Não que fosse deixá-lo saber dessa informação, é óbvio.

Buscando abrigo debaixo de uma macieira, Lady Catherine


colocou as mãos sobre os joelhos, tentando recuperar o fôlego. No
que estava pensando? Ir até ali, escondida, no meio da noite, em
um bosque escuro, para se encontrar com um cavalheiro (e sem
uma dama de companhia!), bem debaixo do nariz de seus pais, por
causa de um bilhete que ele lhe entregara em segredo?

Depois de tanto tempo ausente, sem lhe oferecer qualquer


explicação por sua saída repentina, ela nem deveria mais ouvi-lo.
Nem deveria querer saber dele. Porém, seus instintos continuavam
a ignorar sua razão; quando se deu conta, Catherine já havia saído
pela porta dos fundos de Greenwoods House.

— Cathy?

Seu apelido soava como mel nos lábios dele. Ainda assim, ela
não deveria permitir que a chamasse assim. Ele deveria tratá-la
como Lady Catherine.

A jovem virou-se lentamente para encará-lo, aquele homem com


olhos escuros que pareciam saber todos os segredos dela. Seu
coração parou por alguns segundos, e ela inspirou fundo antes de
dizer:

— O que você quer?

O queixo dela foi automaticamente para cima, mas seu tom de


voz, ao invés de frio, era doce, quase uma súplica.

Em vez de responder, ele deu alguns passos na direção dela. Ao


contrário de Catherine, o cavalheiro estava vestido adequadamente
para o frio. Retirou seu casaco sem pronunciar nem uma palavra
sequer e colocou-o em volta dos ombros dela.

Catherine, orgulhosa que era, estava prestes a negar qualquer


favor daquele homem que a abandonara sem se despedir; ao invés
disso, calou-se, ao sentir o conforto do calor que o casaco dele
proporcionou. Imediatamente, sua tremedeira passou. Ela nem
havia percebido que tremia e não sabia dizer se era apenas o frio
que tinha aquele efeito sobre ela. Por dentro, o sangue de Catherine
continuava correndo por suas veias como lava de vulcão, algo que
só piorava quando ele estava por perto, encarando-a daquela
maneira, com olhos famintos e lábios irresistíveis.

Ela decidiu que não deveria encará-lo; se quisesse recuperar


qualquer tipo de controle da situação, tinha que olhar para baixo,
mirar os próprios pés. Baixar o rosto, entretanto, teve o efeito
contrário do desejado, pois seu nariz agora estava colado ao tecido
que a cobria, e Catherine inspirou um aroma.

O casaco tinha o cheiro do dono, de hortelã e sabão.


Delicadamente, aquele homem segurou Cathy pelo queixo,
levantando sua cabeça, levando os olhos dela de volta para o rosto
dele. Não usava luvas – detestava-as, já lhe havia dito antes
inúmeras vezes –, e seu toque quase a fez se esquecer de onde
estava. O que fazia ali mesmo?

— Estou aqui por você — ele disse, como se essa declaração


explicasse tudo.

Por um momento, Catherine não soube do que ele estava


falando e teve de se forçar a lembrar da própria pergunta. Como ele
conseguia controlar o corpo dela com apenas um simples toque?

— Lady Catherine?

Ela ouviu a voz inconfundível da Sra. Smith. Ainda estava


distante, mas não tardaria a encontrá-los. A mulher parecia ter uma
bússola que apontava exatamente a direção de Catherine, onde
quer que estivesse.

— Cathy, por favor, me escute — ele disse, e segurou seus


ombros, um pedido para que voltasse sua atenção para ele.
Rapidamente, a jovem cobriu a boca dele com a mão; ao contrário
dela, ele não havia se preocupado em manter o tom de voz baixo, e
a governanta tinha ouvidos de felino.

Mal sabia a moça, porém, um leve toque seu também tinha um


efeito devastador naquele homem, que fechou os olhos, saboreando
o gesto inesperado, segurando um gemido na garganta.
Percebendo a reação, Catherine afastou a mão e gaguejou, o
sangue subindo para o rosto.

— V-você conhece a Sra. Smith — Lady Catherine sussurrou,


aproximando-se ainda mais dele.

Seus rostos agora estavam a apenas alguns centímetros de


distância; se ele quisesse, poderia beijá-la. E ela provavelmente não
teria forças para repeli-lo, como seria apropriado. Catherine engoliu
seco e continuou:

— Se ela encontrá-lo aqui, contará para os meus pais. E só


Deus sabe o que papai faria se descobrisse que você invadiu a
propriedade. De novo.

As palavras dela podiam ser duras e acusatórias, mas seu tom


era suave. Enquanto ela falava, as mãos deslizaram para cima, dos
seus ombros para cada lado de seu delicado rosto. Se tivesse que
enfrentar o pai de Catherine, assim o faria. Qualquer coisa para tê-
la, o que fosse necessário para poder chamá-la de sua.

No entanto, antes de mais nada, precisaria do perdão da moça.


E o fato de ela ter ido encontrá-lo no meio da noite já era um indício
de que ele estava no caminho certo, não? Afinal de contas, se não
nutrisse qualquer afeição por ele, não teria se arriscado tanto.

Estava ainda mais linda do que ele se recordava. A pele de


porcelana, que contrastava tão sensualmente com seus lábios
vermelhos. Ela respirava por eles, e não pelo nariz. Sua respiração
estava curta e acelerada, mais um indício de que também tinha
sentimentos por ele. Será que desejava beijá-lo como ele desejava
beijá-la?

— Eu sei que seus pais e a Sra. Smith ficariam furiosos se me


encontrassem aqui. Provavelmente, iam exigir minha prisão. Mas
por que a senhorita veio ao meu encontro, sabendo do risco? Por
que não está brava comigo?
— E quem disse que eu não estou brava com o senhor? — ela
respondeu, exasperada.

A Sra. Smith gritou por ela novamente e estava mais próxima.


Desta vez, Catherine mal a ouviu.

— Talvez, isso seja uma cilada. Talvez, eu grite e o entregue —


ela ameaçou, apesar de estar óbvio, pela forma como encarava os
lábios dele, que o ultimato não era verdadeiro.

— E quem disse que eu não vou calá-la se tentar gritar? — ele


ameaçou de volta, mas seu tom era sedutor, o tom que fazia as
pernas de Catherine tremerem e sua garganta fechar.

Ela teve que se forçar para continuar respirando. Ele se


aproximou ainda mais dela, e Catherine precisou olhar para cima
para continuar a encará-lo. Ele era muito mais alto que ela.

— Lady Catherine!

A voz da Sra. Smith os alcançou. Ela não podia estar a mais de


quinze metros de distância. A sombra da macieira e a escuridão da
noite ainda os protegiam, e o som da tempestade abafava suas
vozes. Porém, ainda assim, ela poderia encontrá-los. A mulher era
pior que uma raposa.

— Você precisa ir embora — Catherine implorou.

Provavelmente, não teria a força física (ou de espírito) para


afastar-se dele, então ele teria que sair por vontade própria.

— Vou embora, milady, se a senhorita me prometer uma coisa.

— O que quer que eu prometa? — ela demandou.

Estavam tão próximos que a jovem conseguia sentir dele o calor


do corpo e a respiração contra sua face. A cabeça dele estava
inclinada para frente; a dela, para trás. Estava tão próximo que
protegia o rosto dela da chuva. Tão próximo que ela podia jurar que
ouvia os batimentos do coração dele.

— Preciso que prometa que vai tentar. Tente me perdoar, Cathy.


É tudo que peço. — ele falou e agarrou as mãos dela, sua voz
trêmula de nervosismo.

Ao contrário do que ela imaginara, ele não viera para lhe


oferecer desculpas pelo que tinha feito. Não havia tentado se
justificar. Queria apenas que ela lhe desse alguma esperança.
Sabia, pela forma que a encarava, pelo desespero em sua voz e em
seus olhos, que ele ficaria satisfeito com um “talvez”.

Todavia, mesmo um “talvez” seria muito para ela. Tanto havia


acontecido desde que se viram pela primeira vez; tantos segredos,
tantas mentiras, tantos desentendimentos.

Suas mãos ainda seguravam as dela, e ele colocou as delicadas


mãos da moça sobre seu coração para que ela sentisse como batia
forte contra seu peito. Ele acariciou uma mecha de cabelo ruivo que
havia se soltado da trança. Catherine jamais usava touca para
dormir, e a trança frouxa que fizera no cabelo se desfazia
rapidamente. Ele alojou uma mecha ruiva atrás da pequena orelha
de Catherine, e, depois de concluída a tarefa, seus dedos
continuavam em contato com a pele dela.

Seus longos dedos passaram pelo pescoço da moça,


contornaram sua mandíbula, parando apenas quando encontraram
seus lábios vermelhos, que estavam semiabertos. Estaria ela
chocada com o toque íntimo, ofendida pelo fato de que uma
verdadeira lady não se permitiria ser tocada de tal maneira, ou
desejando aquele toque tanto quanto ele? Teria ela a força de que
ele não dispunha para se distanciar?

Os olhos dele deixaram os dela, examinando todos os detalhes


de seu rosto, de seu corpo. Só então, ao ser observada tão de perto
por aquele irresistível cavalheiro, Lady Catherine lembrou-se do que
estava vestindo: sua roupa de dormir. Além do casaco que ele
emprestara, usava uma chemise de linho branca e um roupão, que
estavam encharcados. O casaco cobria parte de seu corpo, mas
não a frente. E a jovem sabia que as finas camadas de tecido
estavam coladas às suas curvas, quase que completamente
transparentes.

Os olhos dele escureceram-se ainda mais ao perpassar pelo


corpo dela, com tal intensidade que a moça sentia como se a
tivesse tocando com o olhar.

— Lady Catherine? — chamava a mulher, bem perto agora.

— Vá! Agora! — ordenou Catherine.

Ele nem se mexeu quando ela o empurrou. Só sorriu, mostrando


aquele sorriso perverso que a fazia esquecer seu próprio nome.

— Eu prometo, seu tolo!

Satisfeito com a resposta e rindo da fraca tentativa de ofendê-lo,


ele aproximou seus lábios dos de Catherine. Ela prendeu a
respiração, esperando o contato, que não chegou. Ele parou no
meio do caminho, encarando os olhos dela, com uma paixão que a
deixou totalmente paralisada.

De repente, mudou o curso de seus lábios e a beijou no canto de


sua boca, naquela parte tão sensível de sua pele, fazendo todos os
pelos do corpo dela arrepiarem-se. Não foi um beijo longo ou
apaixonado, mas foi o suficiente para fazer o coração dela acelerar
enlouquecidamente. Ele saiu sem dizer outra palavra.

Sua governanta a descobriu no instante em que ele havia


desaparecido na escuridão do bosque. A mulher advertiu
furiosamente que Catherine teria uma pneumonia se ficasse lá fora,
na chuva. E a jovem seguiu a Sra. Smith sem prestar atenção em
suas palavras ou em seus sermões.
Seu coração estava concentrado nos centímetros de pele que
tinham sido tocados pelos lábios dele.

Londres, 14 de agosto.

Dias atuais.

— Cathy!

Ela precisou respirar fundo e concentrar-se na sua realidade


para conseguir afastar os dedos do teclado. Embora seu coração
estivesse despedaçado, sua inspiração continuava ofegante, e as
palavras quase que se escreviam sozinhas na tela de seu
computador.

Algumas sensações não podem ser explicadas. Como a de uma


mãe ao ver o rosto de seu filho pela primeira vez, ou a aquela de
rever um amigo de infância depois de muitos anos afastados, ou o
sentimento quando se consegue passar na universidade com a qual
sempre sonhara.

Cathy simplesmente não conseguia explicar o sentimento por


trás da sensação de escrever. Simplesmente fazia parte dela, algo
de que precisava tanto quanto respirar. Teclava em seu notebook
como um músico tocaria em seu precioso piano.

Entretanto, uma hora ela teria que deixar seus mundos


fantasiosos e voltar para seu mundinho real, por mais cinzento que
ele tivesse sido naquelas últimas semanas. Ao contrário das
heroínas de suas histórias, Cathy não era uma aristocrata inglesa,
uma garota com poderes sobrenaturais ou uma grande guerreira.
Ela era uma jovem normal, de uma cidade normal, com uma vida
irritantemente normal.
Às vezes, Cathy gostaria que sua vida imitasse sua arte.
Capítulo 1

“Muitas vezes perdemos a possibilidade de felicidade de tanto


nos prepararmos para recebê-la. Por que então não
agarrá-la de uma vez?”

(Jane Austen)

Sunset Valley, 25 de junho.

Para Catherine Murray, todo mundo era especial à sua maneira.

Sua mãe, por exemplo, tinha o dom da paciência, e não era


mera coincidência que se tornara uma querida professora de escola
primária. Seu pai, por outro lado, era excelente com números e com
detalhes, o que o levara a se formar em contabilidade. Seu irmão,
James, era especial por uma série de motivos, desde seu charme
com as moças ao seu talento na quadra de basquete, mas ele era
particularmente bom em informática.

Mas o que fazia de Catherine Murray uma pessoa notável?


Fisicamente, seus cabelos ruivos eram considerados sua marca
registrada. Seus grandes olhos castanho-claros também eram
bastante admirados. Em relação à sua personalidade, ela
conquistava quase todos com seu jeito doce e sua bondade sincera.

Porém, Cathy se sentia especial por causa de suas palavras.

Desde muito jovem, gostava de criar histórias. Em vez de


rechear seus diários com situações enfadonhas do dia a dia,
completava as páginas com contos de amor, aventuras cheias de
suspenses e dramas, capazes de fazer o mais duro dos homens
encher os olhos d’água.
Um dia, seu irmão, desejando provocá-la, roubou seu diário na
expectativa de descobrir alguns de seus segredos (afinal de contas,
Cathy parecia conhecer todos os dele), apenas para se surpreender
com o talento da irmã. No intuito de incentivá-la a continuar com a
escrita, James lhe fez uma surpresa: usou suas próprias habilidades
com o mundo digital — as quais lhe garantiriam, anos mais tarde,
uma bolsa integral para estudar no Instituto de Tecnologia da
Califórnia, o Caltech — para criar um site literário para Cathy, onde
ela poderia publicar seus textos.

O plano de James foi um sucesso. No início, sua irmã temia ser


descoberta. Ela já sofria na escola por ser pálida demais para os
padrões californianos, por preferir ouvir os debates dos adultos do
que se divertir com as crianças de sua idade nas festas de
aniversário, por ler livros que os professores não indicavam ou
cobravam em provas, por não ser particularmente boa em qualquer
esporte (Cathy vencia qualquer um nos jogos de futebol no
videogame do irmão, mas aquilo não contava)...

Talvez, sonhava Cathy, se ela vivesse no Vale do Silício em vez


de Sunset Valley, seria uma das garotas mais populares da região.
Contudo, morava em uma pequena cidade protegida por altas
montanhas e banhada pelo Oceano Pacífico, conhecida por seu
belo pôr do sol, onde o legal era saber surfar, manter a pele
bronzeada, conquistar os turistas mais bonitos e usar a roupa da
moda. Em outras palavras, se lessem seus textos, os alunos da
Escola do Vale a achariam ainda mais estranha.

Ao longo dos anos, depois de James deixar sua casa para


estudar no Caltech, a identidade de Cathy continuava a ser uma
incógnita, mas seu site, que ela nominara de “A Garota da
Califórnia”, ganhava novos seguidores a cada dia. Porém, seu
primeiro grande sucesso viria de uma traição. As duas melhores
amigas de Cathy, Lucy e Luiza, haviam inscrito em segredo um dos
contos dela em um concurso literário, e Cathy acabou sendo a
grande vencedora.
— Agora todos saberão que eu sou a Garota da Califórnia! —
Cathy gritava, ao ver seu nome completo em um site oficial do
Estado, com sua idade e cidade de origem.

— E daí que vão saber? — argumentou Lucy, orgulhosa da


amiga (e de seu plano). — Você agora será a queridinha de Sunset
Valley!

Realmente, quando uma jornalista de Los Angeles foi até a


cidade para entrevistar a jovem promessa da literatura californiana,
Cathy virou uma celebridade local do dia para a noite. A grande
expectativa dos residentes de Sunset Valley em relação aos textos
de Cathy a incentivou a escrever mais e melhor, o que a levou,
eventualmente, ao que ela passou a chamar de “O Dia do Convite”.

Quando completou dezoito anos, a jovem recebeu duas notícias


que, mal sabia ela, mudariam seu futuro. A primeira era que fora
aceita no curso de ciência política da Universidade de Stanford, seu
grande sonho. Era uma boa notícia, sem dúvida, mas longe de ser
perfeita: Cathy não havia conseguido bolsa de estudos, e seus pais,
por mais que desejassem ver a filha na instituição que escolhera,
tinham condições de pagar apenas uma pequena parte dos custos.
A segunda novidade era que Catherine vencera um curso nacional
de contos, o mais conceituado do país.

Poucas semanas depois de o prêmio ser publicado, o telefone da


casa de Cathy tocou em uma tarde quente. Ela atendeu ao
telefonema imaginando que seria mais um morador de sua pequena
cidade lhe parabenizando por suas vitórias.

Catherine Murray não poderia estar mais enganada a respeito


daquela ligação.

São Paulo, 27 de junho.

— Não tem nada a ver com você, o problema sou eu.


Henrique sentiu-se enjoado no momento em que proferiu
aquelas palavras mentirosas. Claro que tinha tudo a ver com ela. De
fato, o que ele queria dizer é que não era culpa de Letícia: fora ele
quem havia continuado a namorá-la sem nunca tê-la amado. E,
após sete anos de términos e reconciliações (pelos seus cálculos,
eles haviam passado mais tempo separados que juntos naquele
período), ele decidiu colocar um ponto final na relação.

Para ser sincero, Henrique deveria ter feito isso muito tempo
antes. Somente começou a sair com Letícia por pressão do pai. Ela
era tudo o que o senador Tilney desejava em uma nora: filha de
grandes amigos seus, herdeira de uma fortuna, de família
tradicional, aluna de Direito, daquelas com carreira promissora,
submissa aos desejos dos pais (assim como Henrique fora durante
quase toda a vida em relação ao senador). O namoro com Letícia
era o último resquício da intromissão do pai na vida do rapaz. E,
afinal de contas, o que mais o homem poderia fazer com o filho?

Anos antes, tudo era diferente. Henrique temia o pai, tinha uma
necessidade doentia de receber sua aprovação. Foi assim que
começou a cursar economia, na Mackenzie. Orgulhoso, o pai já
havia planejado todo o futuro de Henrique: durante a faculdade, ele
faria estágios em bancos e empresas de amigos de Tilney. Quando
se formasse, Henrique faria MBA em alguma faculdade de renome
no exterior. E, após seu retorno ao Brasil, conseguiria um emprego
como alto executivo em uma grande multinacional e se casaria com
Letícia, em uma cerimônia desmedida, cujo custo seria o
equivalente ao valor de um imóvel.

Durante o primeiro semestre do curso, Henrique seguiu, como


sempre, as ordens do pai. Porém, no segundo semestre de
faculdade, algo estava claramente errado. Por mais que tentasse
prestar atenção, dormia durante as aulas. Buscava se recuperar
estudando em casa, mas sempre acabava tirando um livro de
história da estante, enquanto o material sobre estatística se
empoeirava em sua mochila.
Tudo mudou quando conheceu um americano durante uma
viagem a Búzios, uma cidade litorânea do Rio de Janeiro. Seu nome
era Charles, e ele era um simpático dono de restaurantes nova-
iorquinos. Havia abandonado a faculdade (nada menos que
Harvard) e brigado com a família — a qual desejava que ele se
tornasse, um dia, o presidente de sua empresa de petróleo — para
seguir o próprio sonho. O começo foi difícil, o americano admitiu,
porém, aos poucos, as coisas foram se ajeitando.

Algo se acendeu dentro de Henrique. Tudo parecia claro.


Inspirado por aquele caso de sucesso, decidiu seguir o exemplo de
Charles: estudaria história, se especializaria na ditadura militar
brasileira e no processo de redemocratização no país, pois sempre
acreditara na democracia como melhor forma de governo; seria
professor universitário, viveria uma vida simples e reconfortante,
ensinando aos outros. Não seguiria a vida que o pai queria para ele,
mas sim a vida que desejava para si.

No entanto, o senador Tilney se mostrou ainda mais inflexível do


que Henrique imaginava. Assim que foi informado da mudança de
carreira do filho — de executivo brilhante a professor universitário
—, sua primeira atitude foi tirar-lhe a mesada. Henrique conseguiu
um emprego de meio período como professor de inglês para ajudar
a pagar as contas. Dois meses depois, irritado com a felicidade de
Henrique na faculdade de História da USP (pois ainda nutria a
esperança de que o filho, após começar as aulas do novo curso,
perceberia o quanto aquelas matérias eram monótonas e inúteis), o
senador o convidou a sair de casa.

Foi Elena, a irmã caçula de Henrique, quem apareceu como um


anjo da guarda com a solução. Quando falecera, anos antes, a mãe
deles deixara um imóvel para cada um dos três filhos, a fim de
garantir o bem-estar deles. Então, Elena ofereceu ao irmão do meio
que ficasse no apartamento que pertencia a ela. Enquanto isso, o
jovem se sustentaria com os aluguéis de seu próprio imóvel. Fábio,
o filho mais velho do político, como sempre, preferiu não se
intrometer na situação.
O pai, agora furioso com a filha, sentiu-se traído e ofendido por
ela, sentimento que a moça conseguiu minimizar ao escolher a
faculdade que o pai tanto desejava: Medicina. Nada disse Elena
sobre o fato de que nunca suportara ver sangue.

— Bem, talvez possa focar na área da psiquiatria — ela disse a


Henrique, esperançosa.

Seis anos se passaram, e Henrique já estava formado e com


mestrado concluído quando, enfim, decidiu dar um fim ao seu
relacionamento com Letícia. Já prevendo a reação enraivecida do
pai, decidiu aceitar o convite de Sara, sua prima — a qual recebera
todo apoio de seus próprios pais quando decidiu largar os estudos
para se dedicar à carreira musical —, para ficar no apartamento
dela, em Londres. Ele tiraria um ano sabático (como agora isso
parecia moda, Henrique iria aproveitá-lo) antes de começar o
doutorado. E sabia que, além de desfrutar do maravilhoso
apartamento da prima, teria bastante privacidade, pois era bem
provável que Sara passasse a maior parte do tempo na casa de sua
noiva, Krista.

Henrique sabia que aquilo era ingenuidade, mas algo lhe dizia
que aquele ano mudaria a sua vida.

Sunset Valley, 29 de junho.

Sunset Valley era uma daquelas cidades em que qualquer


acontecimento ligeiramente fora do comum virava a notícia do mês.
Caso fosse considerado escandaloso, tornava-se o episódio mais
comentado do ano.

Quando o uso medicinal da maconha foi liberado na Califórnia,


por exemplo, a cidade testemunhou manifestações semanais —
algumas poucas favoráveis, e a esmagadora maioria contra —
durante quase um ano. Cathy assistia, horrorizada, aos embates
que ocorriam em supermercados, em praças e até na igreja! Ou na
ocasião em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi
autorizado pela Suprema Corte americana. Ela não aguentava mais
ter de escutar alguém lhe dando sermão e lendo a Bíblia toda vez
que ela admitia ser favorável à decisão. Eram os momentos em que
mais desejava sair de Sunset Valley sem olhar para trás.

— Em qualquer lugar você encontrará pessoas que não


concordarão contigo, Cathy — sua mãe lhe dizia, com ar sábio que
somente mães conseguem ter sem parecerem arrogantes. — O ser
humano tem o costume de desrespeitar as crenças do outro, suas
escolhas, seus costumes, mas reclama quando o mesmo é feito
contra ele próprio...

Catherine se lembrava das lições de sua mãe e tentava manter a


paciência quando uma nova fofoca surgia em Sunset Valley. No
entanto, nem todas as intromissões nas vidas alheias eram ruins.
Cathy nunca se sentiu tão popular como quando seus contos foram
classificados em primeiro lugar em um concurso estadual e em outro
nacional. Ou quando moradores formaram fila à porta de sua casa
para parabenizar seu irmão James pela bolsa integral para estudar
no Caltech. Na época em que sua tia ficou doente, vários
semidesconhecidos se revezavam para garantir que ela e seus
familiares não ficassem sozinhos no hospital.

Se, por um lado, os cidadãos daquela pacata cidade brigavam


ferozmente quando o tema era controverso, por outro, se uniam
para se apoiar mutuamente. Você não era deixado sozinho em
momento algum, fosse ele bom ou ruim.

E não poderia ser diferente quando Cathy recebeu a visita da


elegante Krista Allen. Ela chegou em uma limusine preta, daquelas
que os pais da jovem escritora não conseguiram alugar nem para o
próprio casamento. Os moradores da cidade aproximaram-se do
carro, na esperança de que se tratasse de alguma celebridade de
Hollywood. Cathy e a mãe estavam esperando pela visita ilustre no
portão da casa, ambas com seus sorrisos encantadores e idênticos.
Dias antes, a Srta. Allen havia feito uma ligação que mudaria a
vida daquela jovem. Cathy soubera, na ocasião, que havia sido
aceita na universidade que queria, mas não lhe ofereceram bolsa de
estudos. Seus pais não tinham condições de pagar o que lhes era
cobrado, então ela se viu em um beco sem saída. Mesmo se
passasse o ano seguinte trabalhando como garçonete ou vendedora
de loja, não conseguiria dinheiro suficiente. Não sabia o que fazer.

Foi quando atendeu ao telefone e ouviu a voz sensual com


sotaque inglês do outro lado da linha:

— Bom dia. Quem fala é Krista Allen. Eu procuro a senhorita


Catherine Murray, a vencedora do Concurso Nacional de Jovens
Escritores, autora do conto “Além do Arco-Íris”. Ela se encontra?

Cathy sempre fora fã do sotaque britânico: achava-o chique,


muito mais bonito que aquele seu sotaque de cidade pacata da
Califórnia. Adorava os filmes da Keira Knightley e do Hugh Grant,
apesar de não entender metade do que diziam. Às vezes, até
colocava legenda para assistir a filmes ingleses.

Quando ouviu a voz da Srta. Allen, Cathy ficou imediatamente


encantada. Como de costume, não entendeu quase nada do que a
mulher lhe dissera, mas achava que ela havia dito seu nome e havia
falado algo sobre seu conto premiado. No entanto, em vez de
responder com o mesmo tom firme e a eloquência da desconhecida,
tudo o que Cathy conseguiu pronunciar foi uma palavra, de forma
nada elegante:

— Quêêêêê?!

Foram necessários quinze minutos para que a história fosse


esclarecida. Krista Allen era uma das editoras mais conhecidas da
Inglaterra, e estava viajando pelos Estados Unidos nas últimas
semanas por conta do lançamento do novo livro de um de seus
clientes mais bem-sucedidos.
Em um dos eventos do qual participou, alguém lhe falou sobre o
blog literário “A Garota da Califórnia”, de uma moça que havia ficado
no primeiro lugar de um dos concursos mais concorridos do país.
Krista Allen leu o conto premiado e ficou tão impressionada que
decidiu ler os demais escritos no site de Cathy. Sendo assim, ela
gostaria de conhecer a autora (fora a primeira pessoa a definir
Cathy assim!) pessoalmente, a fim de lhe fazer uma proposta.

A Srta. Allen era claramente alguém importante. Isso era


perceptível por sua postura, pelo jeito que andava, pelo sorriso
seguro que oferecia à mulher e à filha que a aguardavam
ansiosamente. Seus cabelos loiro-prateados, cuidadosamente
presos em um coque, seu rosto fino e elegante, sua pele alva, seus
olhos azul-piscina e seu terninho salmão, feito sob medida,
contrastavam com o estilo de praia dos moradores de Sunset Valley.

Após as apresentações iniciais, Krista Allen falou, sem mais


rodeios, da proposta que a levara até aquela pequena cidade. Ela
gostaria de convidar Cathy para passar um ano com ela, com o
objetivo de incentivar a jovem a escrever um romance.

— Catherine consegue escrever muito bem gêneros diversos,


como fantasia, romance, mistério e temas políticos. E eu creio que
ela tem potencial para escrever um livro, com enredo consistente,
envolvendo todos esses elementos. Mas precisa de um guia,
alguém que supra sua falta de experiência.

Mais uma vez, Catherine teve dificuldade para entender a


poderosa editora. Todavia, compreendeu o suficiente: era o seu
ponto da virada, um raro momento da sua vida em que ela poderia
se arriscar e conseguir tudo, ou se acomodar e... ficar em Sunset
Valley pelo resto da vida...

— Sei que pode parecer bizarro, e nada ortodoxo, mas sou


conhecida por descobrir jovens talentos. Foi o que me tornou
editora-chefe da Editora New Horizons.
Com efeito, o que a mulher dizia era verdade. Cathy havia feito
uma extensa pesquisa sobre a editora nos dois longos dias entre a
ligação da visitante e sua chegada. Aos vinte e quatro anos, Krista
Allen — que já tinha graduação e mestrado em Literatura por Oxford
— começou a trabalhar na New Horizons como assessora de um
famoso editor. Aos vinte e sete, foi promovida a editora. E, nos cinco
anos seguintes, comprou os direitos dos livros que viriam a ser os
mais vendidos da história da empresa. Hoje, aos quarenta e três
anos, era conhecida por identificar autores com grande potencial,
além de ser a editora-chefe da New Horizons.

— Antes que vocês digam ‘não’, deixem-me fazer de minha


proposta algo irresistível: caso Catherine escreva uma obra que me
satisfaça nesse período, estou disposta a lhe oferecer uma quantia
considerável pelos direitos de publicá-la. Se não escrever nada, vai
ter passado um ano comigo, em Londres, com todas as despesas
pagas, conhecendo famosos autores e outros editores também.
Então, o que acham?

Olívia e Catherine Murray não eram mulheres facilmente


impressionáveis. Podiam ser de uma cidade esquecida pelos
mapas, podiam ser pouco viajadas, podiam ser pessoas cujas vidas
eram simples e calmas. Mesmo assim, era necessário muito mais
do que a população de Sunset Valley exigia para chocar as duas.
Contudo, naquele momento, as bocas de ambas se escancararam
sem qualquer cerimônia. Ou bons modos.

Vinte e quatro horas mais tarde, Cathy empurrava sua mala de


vinte quilos para o outro lado do balcão da companhia aérea,
enquanto seu pai e a Srta. Allen consolavam uma Olívia
emocionada. Cathy pôde ver a dúvida estampada nos olhos da mãe
enquanto se despedia dela.

— Conversei com seu irmão, e ele vai lhe visitar em breve,


querida.

Foram as últimas palavras que Olívia conseguiu pronunciar


antes de soluços tomarem conta de sua garganta.
Pela primeira vez na vida, Catherine Murray deixaria os Estados
Unidos. Atravessaria o oceano e passaria o ano seguinte na casa de
uma estranha, sem saber que destino a aguardava.

Cathy não poderia estar mais animada!

Londres, 1º de julho.

Henrique mal acreditava que estava de volta ao Reino Unido,


onde não ia desde a morte de sua mãe, mais de uma década antes.
Ao sair de Heathrow, lembrou-se por que não sentira saudade do
clima britânico: era verão no hemisfério norte, e, mesmo assim, o
céu londrino estava cinzento, a chuva constante molhava seus
cabelos negros, e o vento gelado atravessava suas roupas e seus
ossos.

Sem se preocupar com a opinião alheia, tirou uma calça de


moletom da mala e enrolou-a em volta do pescoço. Se Elena
estivesse ali, ela certamente o mataria pela falta de estilo.
Felizmente, a irmã só chegaria dentro de um mês. Havia trancado o
curso de Medicina por um semestre. Ela se formaria no ano
seguinte e, em seguida, começaria a residência. Portanto, quando o
irmão lhe falou sobre o ano sabático, Elena decidiu fazer o mesmo,
mas por seis meses.

— Um ano inteiro é demais para mim, Rico — ela dissera ao


irmão. — Por outro lado, não posso recusar alguns meses de
descanso. A faculdade está me matando.

No entanto, em vez de ir diretamente à Inglaterra, Elena passaria


o mês seguinte viajando por alguns países do Leste Europeu, ideia
que nem os gritos raivosos do pai conseguiram lhe tirar da cabeça.

— Você e suas amigas serão sequestradas! Vendidas a


milionários russos como escravas sexuais! E nem toda a fortuna da
família será suficiente para achá-la! —esbravejara o senador Tilney,
repetidas vezes.

Em geral, um grito era suficiente para calar Elena. Desta vez, no


entanto, ela não desistiria. Cursava uma universidade que
detestava, seguiria uma carreira que jamais a deixaria feliz, apenas
para satisfazer as vontades do pai. Não poderia ter sequer um mês
para si mesma?

O senador não se importara que fosse à Inglaterra (até porque


acreditava que Elena ficaria de olho em Henrique para ele), mas
Budapeste? Praga? De jeito nenhum sua princesa iria passar quatro
semanas inteiras viajando por esses lugares apenas com duas de
suas amigas mais tontas!

— Pai, você se esquece de que moramos em uma cidade cujo


risco de sequestro não é exatamente baixo. E, apesar de se
preocupar comigo em São Paulo, nunca me proibiu de ir a qualquer
lugar!

As palavras escaparam de sua boca antes que pudesse contê-


las. Podia ver a cara de espanto do senador. Elena nunca lhe
respondera antes, sempre baixava os olhos e concordava com o
que dizia.

— Mas isso é diferente! Aqui estou em meu território, ninguém


jamais ousaria fazer mal a uma filha minha! — argumentou o
senador Tilney, ao recuperar-se do susto.

— Sinto muito, papai. O dinheiro é meu, a vida é minha, e o


senhor deve lembrar-se de que tenho idade suficiente para tomar
minhas próprias decisões — Elena continuou, com uma coragem
inédita, que chocou ela própria. — Não se preocupe, eu vou me
cuidar. Vou mantê-lo informado de tudo que acontecer durante a
viagem, ok? E, se eu achar que corro qualquer risco, pegarei o
primeiro voo para Londres.
A voz aveludada de Elena sempre funcionara como mágica com
o pai. Henrique dizia que, quando ela entrava em seu modo “filha
perfeita”, era capaz de convencer o pai a deixá-la se casar com
Hitler. E não foi diferente dessa vez. Aos poucos, a respiração do
pai voltou ao normal, suas feições relaxaram, e seu ânimo mudou.
Ele a abraçou e concordou em deixá-la ir, contanto que lhe
telefonasse todos os dias e ficasse em bons hotéis.

Quando Elena relatou o ocorrido a Henrique, ele chorou de tanto


gargalhar.

— Somente você, Leninha, consegue fazer o senador Teixeira


(ops, quero dizer, senador Tilney) sorrir até quando um elefante
senta em sua cabeça.

Pensando naquela última conversa com a irmã, a saudade lhe


atravessou o corpo como o frio fazia. Era a primeira vez em muitos
anos que passaria mais de uma semana longe de Elena. Balançou a
cabeça e correu até a rua. Iria congelar se ficasse ali, perdido em
seus pensamentos. Não havia muitas pessoas fora do aeroporto, o
que não era de todo inesperado, pois eram seis horas da manhã.
Mas nunca faltavam táxis em Londres.

Em segundos, já estava no conforto do veículo preto, ícone


daquela cidade, e adormeceu ao som aconchegante do aquecedor.
Ao acordar, meia hora mais tarde, viu a esquina do Hyde Park à
esquerda. Estava próximo de seu destino. Henrique nunca visitara o
apartamento da prima, mas sabia exatamente onde ficava: na Rua
Cockspur, um pouco depois da embaixada brasileira, em um prédio
tocado pela sombra da Coluna de Nelson, da Trafalgar Square.
Graças à sua boa memória das ruas de Londres (e com uma
ajudinha do Google Maps), Henrique conhecia muito bem o edifício
onde Sara comprara o imóvel.

O prédio tinha uma longa história. Já tivera diversas finalidades,


tendo sido desde embaixada a clube de cavalheiros, apesar de
agora ser apenas um edifício residencial. Suas paredes haviam
testemunhado de tudo: aristocratas se divertindo ao tomar uísque,
autoridades em sérias discussões de Estado, amantes encontrando-
se às escondidas.

O apartamento de Sara tinha o mesmo charme do edifício, sem


deixar de refletir a personalidade de sua nova dona em alguns
detalhes. A sala era coberta por painéis de carvalho, mas aqui e ali
estavam penduradas nas paredes fotos de instrumentos musicais
raros, uma das muitas paixões dela. Prateleiras em cima da lareira
branca sustentavam o peso das infinitas coleções de enciclopédias
de sua prima favorita (e, Henrique tinha que admitir, mais
excêntrica).

Sara também estava presente na cozinha: sempre adorara


cozinhar para a família e amigos e preparara o ambiente
exatamente para esse fim. Os eletrodomésticos eram de última
geração, e havia todo tipo de utensílio que se podia imaginar. A
avançada tecnologia da cozinha do século XXI quebrava o estilo de
século XIX da sala.

Após um rápido lanche, Henrique se arrastou até o quarto. Não


dormira um minuto sequer no avião, e agora a noite em claro
pesava sobre seus olhos. Descansaria por algumas horas e já
estaria bem por volta da hora do almoço.

— Rico. Rico! Você tem que acordar, primo. Os convidados


estão chegando.

Henrique sabia a quem pertencia a bela voz rouca: Sara.


Aparentemente, ela havia feito planos para o almoço. Seu estômago
roncou tão alto que fez os dois gargalharem. Quando Henrique
finalmente conseguiu abrir os olhos (apesar de sua fome já estar
bem acordada, aparentemente), ele verificou que já estava escuro lá
fora.

— Que horas são, Sara?


— Quase oito. Você estava em um sono tão pesado que não
quis acordá-lo antes. Estava precisando dormir, né? Eu até deixaria
você aqui descansando, mas o pessoal está começando a chegar,
Rico. Krista já está aqui e está louca para ver você. Vá tomar uma
ducha e venha para a sala. Só não vá tomar um dos seus banhos
de princesa, hein? — Sara concluiu e saiu com seu sorriso maroto.

Ainda sonolento, Henrique dirigiu-se até o banheiro. O cômodo


era quase do tamanho do quarto. Não que isso o surpreendesse, já
que sabia muito bem do fetiche de Sara por banheiros. As paredes
do cômodo eram cobertas por uma bela pedra preta com detalhes
brancos. A “ducha” não tinha nada de simples: ficava acima de uma
grande banheira para duas pessoas. A prima brincara sobre os
longos banhos de Rico, mas estava claro que era Sara quem
gostava de se banhar como um membro da realeza.

Enquanto a água massageava suas costas, Henrique lembrou-se


do sonho que teve. Estava em uma praia, daquelas que vemos
apenas em fotos nas paredes de agências de viagem, com mar
límpido e calmo, a areia fina e branca. Mas não era o azul infinito
que atraía a sua atenção. Ele encarava cabelos avermelhados
esvoaçantes. A moça a quem pertenciam estava de costas para ele,
permitindo que pudesse admirá-la sem ser notado. Ela usava um
vestido branco de renda, o qual deixava descobertas suas pernas
alvas e delicadas. Henrique sabia que já a havia visto. Mas onde? O
sonho estava tão presente, tão próximo, que fez seu coração
acelerar.

Somente o grito de Sara, pedindo-lhe pressa, foi capaz de tirá-lo


de seu estado de coma acordado e trazê-lo de volta a Londres.

Entre Nova York e Londres, 1º de julho.

O voo até Nova York durou mais de cinco horas. A fim de


garantir o máximo de conforto possível, a Srta. Allen comprara dois
bilhetes de classe executiva. Havia diversas opções de refeição e
filmes de todos os gêneros.

No entanto, tudo o que Cathy conseguia fazer era pensar no ano


que teria pela frente. Entre seus devaneios e conversas puxadas por
Krista Allen, Cathy mal notou o tempo passar.

O trajeto de Nova York a Londres foi diferente. Bem diferente. A


Srta. Allen adormeceu apenas alguns minutos após a decolagem,
deixando Cathy sozinha para imaginar as possíveis tragédias que
poderiam acontecer a ela bem ali, no meio do Atlântico. Não
entendia como alguém conseguia se sentir seguro o suficiente
enquanto sobrevoava quilômetros e quilômetros de água. O que
fariam caso o avião sofresse uma pane? Se um motor tivesse algum
problema? Quanto tempo levaria para serem resgatados caso
tivessem de fazer um pouso de emergência na água? Será que
aquele avião podia pousar na água?

Infelizmente, para Cathy, um documentário a que assistira


semanas antes sobre as piores catástrofes aéreas da história estava
bem fresco em sua mente. Será que desapareceriam no Triângulo
das Bermudas, para nunca mais serem encontrados, como
aconteceu com Amelia Earheart? Ou uma falha mecânica, ocorrida
por conta de uma manutenção malfeita, derrubaria o avião? E se a
cabine, por algum motivo misterioso, despressurizasse?

Cathy tentava se acalmar a cada pergunta que fazia a si mesma,


mas, sempre que conseguia garantir à sua imaginação sem limites
que não havia riscos, uma nova questão se punha à sua frente. Pelo
menos, nenhum mal ocorreu durante o voo, e o avião chegou com
todas as suas partes e seus passageiros intactos a Heathrow.

Mesmo na segurança da pista de pouso, a respiração de Cathy


continuava levemente acelerada, e ela apenas se sentiu segura
quando as portas da aeronave se abriram.

Resumindo: foram as sete horas (e meia) mais longas da sua


vida.
O mesmo não podia ser dito de Krista Allen. Assim que o
comandante avisou que estavam quase em Londres, ela despertou,
foi ao banheiro e saiu de lá como se estivesse preparada para ir a
uma cerimônia do Oscar. Seus cabelos estavam perfeitamente
penteados embaixo dos óculos Chanel, não havia um amarrotado
sequer em seu terninho cinza Armani, e a mulher parecia muito
confortável em seus sapatos Louboutin com quinze centímetros de
salto.

Por sorte, a Srta. Allen não havia gostado de Cathy por seu jeito
de se vestir...

Os jeans surrados da garota precisavam desesperadamente de


uma máquina de lavar, enquanto suas botas compradas em um
bazar deveriam estar na lixeira. Cathy sabia que tinha bolsas
escuras embaixo dos olhos, e seu cheiro não estava nada atraente.
Precisava de um bom banho e uma boa cama. Mas Krista Allen não
parecia reparar. Ou se importar.

O vento cortante de Londres foi a primeira impressão que Cathy


teve da cidade. Isso e o céu cinzento. Sua careta não passou
despercebida pela atenta Krista Allen, que lhe garantiu que a capital
britânica tinha muito mais a oferecer do que condições climáticas
desfavoráveis.

No desembarque, um senhor com uma plaquinha em que se lia


“Srta. Allen” aguardava por elas com um sorriso simpático. O
homem levou as duas até o elegante carro de Krista Allen, e Cathy
sabia que dali elas seguiram até a casa da editora em Chelsea, mas
não tinha qualquer memória daquilo, pois apagara no segundo em
que sua cabeça tocou o encosto de couro da cadeira.

Horas mais tarde, foi acordada pela Srta. Allen em um quarto


decorado com um delicado papel de parede florido, em tons de rosa,
azul e amarelo. Sua cama, com dossel, fez Cathy sentir-se em um
romance inglês do século XIX, o que lhe trouxe alívio naquele
momento de incertezas.
O restante do quarto era igualmente adorável. Todos os móveis
eram de madeira clara e feitos sob medida. À direita de sua cama
ficavam enormes janelas, com uma vista (de tirar o fôlego) do jardim
da casa. Embaixo delas, uma delicada escrivaninha, com uma
cadeira cujo forro combinava com a estampa do papel de parede.
Em frente à sua cama de princesa, armários e estantes cobriam a
parede. A emoção de Cathy foi gigantesca ao constatar que deveria
haver ali ao menos uma centena de livros. À esquerda, duas portas.
Uma delas estava aberta, e a jovem pôde ver que dava acesso ao
corredor. E a outra? Seria um banheiro? Só para Cathy?

— Sei que está cansada, Cathy, mas vai anoitecer em algumas


horas, e temos um compromisso hoje à noite. Já deixei sua banheira
preparada, e Mary está fazendo algo para você lanchar, querida.

A Krista Allen que a acordou não era a mesma que Cathy


conhecera nos Estados Unidos. Em sua casa, ela parecia mais
relaxada, mais gentil, mais humana. Seu sorriso era doce, e suas
feições expressavam carinho e preocupação.

Mas era Cathy quem deveria estar preocupada: olhando de


esguelha para a tela do celular, notou que havia sete ligações
perdidas e quatro novas mensagens! Ela se esquecera totalmente
de avisar à mãe que chegara sã e salva a Londres... E pagaria caro
por isso...

— Estou bem, Srta. Allen. Apenas cansada. Mas um banho será


ótimo! Depois que eu responder às mensagens dos meus pais,
claro... — Cathy lhe disse com toda a animação que conseguiu
reunir e ficou contente ao notar que o sorriso de Krista Allen se
expandiu ainda mais.

— Pode me chamar de Krista, querida. E tenho mais uma


novidade: tem uma pessoa que mal pode esperar para conhecê-la.
Alguém que virou fã de seus contos também.

Como sempre, Cathy não conseguiu manter uma postura


respeitável e arregalou os olhos de surpresa de uma maneira nada
polida. A palavra “fã” a deixava nervosa.

— É minha noiva, Cathy. Seu nome é Sara.

— Eu tenho uma fã?

— Mais de uma, porque eu também sou uma fã. E, em breve,


seremos muitos!

Krista Allen ofereceu a Cathy um sorriso caloroso, que foi


retribuído à altura.

— Pode ficar à vontade, Cathy. Vamos sair em algumas horas,


então você ainda tem tempo de relaxar, tomar um longo banho,
arrumar suas coisas....

E escrever, Cathy pensou, já se sentindo animada e energizada.


Ela não escrevia histórias de amor havia tempos, porém uma ia se
concretizando em sua mente. Uma que ela começaria a escrever
assim que Krista deixasse seu novo quarto.


Capítulo 2

“Metade do mundo não consegue entender os prazeres da outra


metade.”

(Jane Austen)

Backhan, junho de 1815.

Lady Catherine Morland havia sido criada para ser doce,


recatada e submissa às vontades de seu pai, como uma verdadeira
dama deveria ser. Entretanto, seu coração parecia não conseguir
obedecer aos ensinamentos que a sociedade lhe impunha.

Ela gostava de saber sobre as últimas notícias da política pós-


guerras napoleônicas e do Congresso de Viena, quando deveria se
interessar apenas pela última moda em Londres. Enquanto as
moças de sua idade se preocupavam com bailes, pedidos de
casamento e cartões de dança, ela passava horas por dia lendo
sobre política, filosofia e história. Quando rapazes conversavam
com ela nas poucas ocasiões em que seu pai a levava para eventos
sociais, pensava, totalmente entediada, em suas caminhadas pela
propriedade da família.

Era por isso que Lady Catherine era considerada excêntrica,


apesar de ser, sem sombra de dúvida, a maior beldade de Backhan,
uma pequena cidade no interior de Derbyshire. Era também por isso
que seu pai ainda não a havia apresentado formalmente à
sociedade londrina.

Numa bela tarde de verão, enquanto Catherine planejava sua


caminhada antes do jantar pelos vastos parques de Greenwoods
House, ela viu, pela janela da biblioteca do pai (cômodo que usava
infinitamente mais que ele), uma carruagem se aproximar pela
estrada de acesso à propriedade.
Mesmo de longe, reconheceu o brasão dos Chatsworth em uma
das portas, e logo calculou que dentro do veículo estaria Lorde
John, filho mais velho do duque, que vinha lhe dando atenção
demais para o seu gosto nas últimas vezes em que se viram. O pai
de Catherine adorava o pretendente, mas ela o achava um tédio,
além de prepotente.

Logo planejou sua escapatória: sabia que, caso saísse


caminhando, em pouco tempo a Sra. Smith a encontraria, pois, a
carruagem não estava a mais de dez minutos de distância.
Entretanto, caso fosse cavalgar, talvez conseguisse escapar de
meia hora de conversa chata, na qual seu pai nem sequer permitia
que ela desse suas opiniões, por não ser “adequado para uma
dama”, como ele insistia em dizer.

Correndo até os estábulos, Catherine ordenou ao cocheiro que


preparasse um cavalo. Ao contrário dos demais membros de sua
família, ela não tinha um animal de preferência, já que cavalgar não
era seu forte. Desconfiado de sua urgência, mas sem a coragem de
desobedecer à lady da casa, o cocheiro rapidamente selou seu
cavalo mais manso, sabendo que a moça não estava acostumada a
galopar pelas estradas sinuosas da propriedade.

Ela montou o animal com a ajuda do cocheiro, agradeceu-o da


forma mais gentil que conseguia em sua pressa e, com uma
pressão dos calcanhares contra a barriga do cavalo, saiu em um
trote. Tomou a primeira estrada que avistou do parque, já escutando
a aproximação da carruagem. Seria agora ou nunca.

Pressionou o animal até que o trote virasse um galope.


Catherine sabia que corria grande risco, uma vez que, além de ser
péssima em equitação, os costumes da época a obrigavam a
cavalgar com ambas as pernas de um lado do animal, o que
prejudicava terrivelmente seu equilíbrio.

Sentiu algumas gotas de água atingirem seu rosto e soltou um


palavrão que faria seu pai ter um ataque cardíaco. Por sorte, estava
distante da casa e sozinha, tendo apenas as árvores como
companhia. Então, ninguém ouviria o quanto ela estava irritada com
a chuva que começava a cair.

O estreito caminho de terra logo se tornou lamacento, fazendo o


cavalo escorregar e seu pouco equilíbrio sobre o animal
desaparecer. Começou a ficar desesperada e puxou as rédeas do
bicho, apenas fazendo-o ficar mais agitado.

— Pare, seu idiotaaaaaaaaaa! — ela ordenou, batendo no pobre


cavalo com seus tornozelos, o que o fez, obviamente, correr mais.

De tão ansiosa que estava em controlar o animal para que


pudesse desmontá-lo, Catherine não ouviu que alguém se
aproximava dela, por trás, cavalgando velozmente. Apenas
percebeu que não mais se encontrava sozinha no bosque quando o
cavaleiro a alcançou, em uma montaria claramente superior à sua e,
felizmente, infinitamente mais veloz.

— Fique calma, senhorita! — pediu o desconhecido, o que a


deixou ainda mais irritada.

— Calma?! O senhor ousa me pedir para ficar mais calma


quando esse bicho está prestes a me derrubar? — ela respondeu
aos berros, algo indigno para uma dama. Todavia, se ele a escutara
momentos antes, decerto já sabia que não se tratava de uma
perfeita dama.

— Senhorita, vou ajudá-la, se me permitir...

— Ajudar? Como, senhor? — ela questionou-o furiosamente,


sem se dar ao trabalho de olhar sobre o ombro para o homem. —
Por acaso vai pular na minha sela e controlar este idiota?

Apesar das boas intenções do desconhecido, e de seu tom


conciliador, quanto mais ele falava, mais irritada ela ficava.

— Sim, senhorita. É exatamente isso que pretendo fazer.


Antes que Catherine pudesse acusá-lo de ser tão tolo quanto o
animal que ela montava, o jovem passou uma das pernas sobre a
sela, de modo que agora ambas estavam voltadas para o mesmo
lado, o corpo dele virado para a moça a quem pretendia salvar.
Calculou com os olhos a distância e pulou, montando atrás dela,
agarrando-a pela cintura para equilibrar-se.

— Solte-me, seu bandido! — Cathy gritou, exasperada,


duvidando das intenções do homem.

— Bandido? — ele questionou, enquanto tirava as rédeas das


mãos dela. — Estou arriscando a minha vida para salvar a sua,
senhorita.

— O que está fazendo na propriedade do meu pai? — ela


perguntou, em um tom arrogante, querendo deixar claro que não era
uma donzela em perigo, apesar de sua situação dizer exatamente o
contrário.

— Mudei-me há pouco tempo e acabei... me perdendo — o


homem admitiu, pela primeira vez soando insegurança.

Foi também a primeira vez que Catherine notou seu sotaque.


Sim, falava como um cavalheiro, mas seu sotaque era exótico. Seria
ele de outro país? Ela não desejava que ele notasse sua
curiosidade, então engoliu a pergunta que queimava em sua
garganta.

— O que pensa que está fazendo, cavalgando neste tempo? —


ela quis saber.

— Eu poderia perguntar o mesmo à senhorita.

Ela não via seu rosto, mas sabia que o homem sorria.

— Humph!
Foi a resposta mal-humorada dela. Não devia explicações ao
homem. É verdade que ele provavelmente salvara sua vida, porém,
aquele cavalheiro estava na propriedade de seu pai sem
autorização.

— Se o seu pai é dono destas terras, a senhorita deve morar em


Greenwoods House, não? — perguntou ele em tom amigável,
fazendo o cavalo virar para o lado oposto.

O belo garanhão dele seguia os dois, como um cachorro faz com


seu dono. A jovem jamais vira um cavalo comportar-se assim.

Catherine respondeu com um aceno de cabeça, tentando


imaginar quem seria aquele estrangeiro. Se fosse adepta às fofocas
das moças de Backhan, provavelmente já teria ouvido falar dele;
saberia seu nome, o de sua família, por que estavam em Derbyshire
e se era ou não solteiro. No entanto, sendo quem era, não tinha
ideia de quem poderia ser o homem e certamente não violaria seu
orgulho ao indagar o nome dele, especialmente considerando que
ele já sabia onde ela morava.

— Estava fugindo de alguém? Um pretendente, talvez?

A pergunta dele era irônica, e ela decidiu ignorá-lo. O


desconhecido aguardou alguns momentos e apertou a cintura dela
com uma das mãos, quando percebeu que a jovem não
responderia.

— Não me toque! — ela falou e deu um tapa na mão dele, que o


cavalheiro retirou com uma gargalhada.

Ao sentir o peito do desconhecido chacoalhando de rir, Lady


Catherine sentiu o sangue ferver em suas veias. Como ousava rir
dela? Aquele idiota! Ela cruzou os braços sobre o peito, tentando
afastar-se dele o máximo possível na sela. O homem simplesmente
a agarrou e a colocou de volta entre suas longas pernas, o braço em
torno de sua cintura. As costas dela estavam agora coladas ao torso
dele, e, mesmo com as muitas camadas de tecido entre os dois, a
moça conseguia sentir o calor que emanava do corpo dele

— Juro que se não me soltar eu vou...

— Se a senhorita não parar de se mexer vai cair do cavalo, e na


lama. E eu não estou inclinado a ter que assistir novamente, e sujar
minhas botas.

Novamente, ela odiou o tom sarcástico da voz dele. Mas tinha de


admitir que ele tinha razão; a chuva havia cessado, todavia a
estrada permanecia lamacenta. Se caísse, iria sujar seu vestido
lilás. Caso o fizesse, a Sra. Smith não lhe daria apenas um sermão,
mas vários. Era um dos vestidos favoritos de sua governanta, que o
havia oferecido de presente para Catherine em seu último
aniversário.

— Humph!

Novamente, foi o que ela conseguiu rebater.

— A senhorita tem nome? — perguntou ele, decidindo ignorar a


clara impaciência dela.

— Tenho certeza de que meu nome em nada interessa ao


senhor, já que, depois que me deixar em casa, jamais nos veremos
novamente.

— Infelizmente, devo discordar da senhorita. Acredito que nos


veremos muitas vezes no futuro.

Sabendo que já havia sido malcriada o suficiente, Catherine


decidiu segurar a resposta, e eles continuaram a lenta cavalgada
em silêncio. Contra seu bom senso, ela foi, aos poucos, relaxando
nos braços do desconhecido. Ia ficando cansada à medida que a
adrenalina de sua breve aventura deixava seu corpo, além de sentir
frio por conta das roupas molhadas. Sem lhe dizer nada, o homem
usou o próprio casaco para cobri-la, e ela sentiu o cheiro de chuva e
sabão nas vestimentas dele, um aroma bem agradável. Catherine
olhou em volta e, verificando que não havia nenhuma testemunha
para mais essa atitude inapropriada, deixou-se ser enrolada pelo
calor do cavalheiro.

— Não se preocupe, senhorita. Não é um casaco que vai fazer


sua reputação ser destruída — ele comentou, e Catherine não
gostou do fato de ele ter notado sua inquietação. — A reputação da
senhorita será, no entanto, dizimada se a virem cavalgando sozinha
no colo de um homem que não é seu prometido.

— Eu não estou no colo do senhor! — ela defendeu-se, tentando


se afastar, em vão. O braço dele a segurou com mais força,
impedindo que se movesse sequer um milímetro.

— Ah, mas é assim que a fofoca será contada — ele murmurou


em seu ouvido, fazendo os pelos do pescoço dela eriçarem. —
Quando o seu noivo descobrir...

— Eu não tenho noivo! — ela esbravejou.

Catherine queria virar para olhar nos olhos dele para fazê-lo
entender quão ofendida ela estava com suas acusações, mas ele
não permitiu que se virasse. Na realidade, agora que ela pensava
no caso, ainda não havia examinado o rosto dele de perto. Apenas
sabia que era alto, com ombros largos, e que seu corpo era
estranhamente quente, como se estivesse febril.

— Que bom — ele respondeu calmamente.

Foi quando ela entendeu: o homem a havia tirado do sério para


descobrir se ela tinha algum compromisso. Bem, de fato não tinha,
mas qual diferença faria para ele, já que, como ela havia deixado
claro momentos antes, não mais se encontrariam? Catherine estava
formulando uma réplica quando avistou os estábulos de
Greenwoods House.
— Pode me deixar aqui, senhor — ela pediu educadamente,
esperando que ele não fosse desafiá-la.

Não queria arriscar ser vista da casa, e, de onde estavam, as


árvores os protegiam de olhares curiosos. O cavalo do
desconhecido estava a poucos metros de distância. Então, o
visitante saltou do animal da jovem e caminhou até o dele. Assim
que o homem se afastou, Catherine sentiu falta de seu calor e
mentalmente se censurou por aquele sentimento inapropriado.

— A senhorita realmente não vai me dizer seu nome? — ele


perguntou, depois de montar seu garanhão.

— Obrigada pela ajuda, senhor, e espero que tenha uma ótima


vida — Catherine agradeceu sem olhar para ele e ordenou ao seu
animal que voltasse a se mexer.

— Lady Catherine!

Era a voz da Sra. Smith a chamá-la de longe.

— Onde você está?

— Tenha um ótimo dia, Lady Catherine — o homem disse, já de


costas para a moça. — Espero revê-la em breve.

Como Catherine estava sem qualquer entusiasmo para o baile


daquela noite, deixou que a Sra. Smith escolhesse seu vestido
enquanto colocava seu chemise e vestia as anáguas de algodão,
que dariam forma à sua saia e a protegeriam do frio.

Ela detestava usar espartilhos, então fingiu esquecer-se de


colocar a peça. A Sra. Smith, como sempre convencional, exigiu que
a pusesse e fez questão de apertá-la mais que de costume para
lembrar Catherine como uma verdadeira dama deveria vestir-se, por
mais que aqueles itens jamais fossem vistos por qualquer cavalheiro
que não seu marido.

A Sra. Smith voltou ao árduo trabalho de escolher uma roupa


que fosse digna da filha do barão de Northanger, título que o pai de
Catherine herdara do avô dela. Escolheu um vestido esverdeado
com flores bordadas na saia, mangas curtas e uma faixa de cor
creme logo abaixo dos seios. Era um dos favoritos de Catherine,
mas nem isso foi capaz de animá-la.

Desde a aventura com o cavalo mais idiota da Inglaterra, quando


conhecera o misterioso estrangeiro, uma semana antes, nada mais
de interessante ocorrera. Claro, John Cleavand, o filho do duque de
Chatsworth, aparecera outras duas vezes em sua casa, sempre com
desculpas estapafúrdias, como o desejo de fumar charuto com seu
pai e tomar um chá com sua mãe.

As desculpas de Catherine para evitá-lo foram igualmente


absurdas. Num dia, uma dor de cabeça apoderou-se dela no
momento em que o nome do rapaz foi anunciado pelo mordomo dos
Morland. Na outra ocasião, Catherine foi ainda mais sagaz: ao
descobrir, por meio de uma das camareiras, que sua mãe esperava
por Lorde John, Catherine fingiu ter dor de barriga, o tipo de
indisposição que sua mãe jamais questionaria nem sonharia contar
para o pretendente da filha.

Porém, chegou o dia em que ela iria a um baile na casa dele. E,


embora conhecida como excêntrica, nem mesmo Lady Catherine
teria coragem de cometer a indelicadeza de recusar uma dança com
o filho do anfitrião e homem mais importante da região.

A Sra. Smith arrumou o cabelo de Cathy com cachos, adornando


seu rosto, e escolheu um simples colar de pérolas para enfeitar seu
pescoço. Antes de sair, Catherine pingou algumas gotas de colônia
de violetas, sua fragrância favorita, em seus pulsos e atrás das
orelhas, ganhando um sorriso de aprovação da Sra. Smith, que era
sua rígida governanta em casa e sua inseparável dama de
companhia em eventos públicos.
Como de costume, eles foram os últimos a chegarem à
propriedade do duque, o pai segurando, orgulhoso, a filha pelo
braço, mal contendo a ansiedade de casá-la com o filho de um dos
seus melhores amigos.

— Lorde John me contou que pretende convidá-la para ser sua


parceira nas primeiras duas danças, Catherine — o pai dela avisou.

Em seguida, apertou seu antebraço, interrompendo-a, e olhou


em seus olhos.

— Não ouse inventar uma torção no pé, mal-estar ou tonteira


para evitá-lo nesta noite. Você dançará com ele. Entendeu?

— Sim, senhor. Entendi — balbuciou ela, decepcionada.

Já tinha planejado a queda que a faria machucar o pé e impedi-


la de dançar com os tolos do baile.

— Mas ele precisa me convidar antes, não?

— Acredite, Catherine. Ele vai convidá-la.

John Cleavand, também conhecido como o filho mais novo do


duque de Chatsworth, era um jovem de dezenove anos recém-
completados que desejava provar seu valor ao pai, uma vez que,
por conta de sua idade, não conseguira lutar pelo país nas guerras
napoleônicas.

Seu irmão mais velho, William, conseguira a proeza de ser herói


nacional por duas vezes, ambas ao lutar ao lado do marechal Arthur
Wellesley, mais conhecido como o duque de Wellington. Como
major, havia sido peça muito relevante na Batalha de Vitória, de
1813. A volta à Inglaterra, já como tenente-coronel, fora um grande
orgulho para sua família, mas foi seu papel na Batalha de Waterloo,
em junho daquele mesmo ano, que o fez entrar para a história
britânica.

Ninguém esperava o retorno de Napoleão; porém, assim


acontecera. E o futuro da Europa foi decidido naquela batalha. Por
diversas ocasiões, William acreditara que seriam derrotados. Em
nenhum momento, entretanto, pensara em abandonar o marechal,
como muitos fizeram nos momentos de desespero.

Depois de Waterloo, William retornara à própria casa como herói,


com a patente de coronel e com o título de barão de Haster, além de
ser o herdeiro do ducado do pai. Como era de se esperar, William
imediatamente tornou-se o cavalheiro mais cobiçado de Backhan.
Entretanto, aos vinte e cinco anos, ele não parecia especialmente
interessado em nenhuma das moças solteiras da região. Foi aí que
John viu sua oportunidade: ele se casaria antes de William, e com a
moça mais desejada da cidade. Decerto, tal façanha agradaria a seu
pai.

Por sorte, Lady Catherine Morland, a maior beleza da região,


parecia ver William como um irmão mais velho, e nada mais.
Verdade que ela não demonstrara qualquer interesse romântico por
John, tampouco, mas ao menos ele não teria que duelar com o
próprio irmão pela mão da jovem. Lorde John dizia a si mesmo que
não desejava brigar com o irmão por amor fraterno, mas a verdade
é que ele sabia que não seria páreo para William.

Nos últimos meses, Lorde John vinha fazendo tudo para


conquistar Cathy: sempre buscava agraciá-la com elogios; oferecia
charutos raros ao seu pai e enviava flores à sua mãe com
frequência; visitava Greenwoods House semanalmente; convidava
os pais dela para os eventos mais exclusivos de todo o condado.

Nada parecia atingi-la. E, quanto mais ela o ignorava, mais os


sentimentos dele pela moça cresciam. Àquela altura, Lorde John já
nem sabia mais se estava preocupado com a aprovação do pai em
relação ao casamento. Queria Lady Catherine mais do que jamais
quisera qualquer outra coisa em sua vida.
Infelizmente para ele, Catherine não era uma coisa.

Mal eles entraram no salão, após longos minutos atravessando a


elegante galeria de entrada, o barão e a baronesa de Northanger já
estavam cercados por pessoas, todos apreciando suas vestes da
última moda londrina e sua bela filha, que raramente fazia aparições
públicas, especialmente em bailes.

Apesar de seu título não ser um grande diferencial na capital, em


Backhan, o barão era o segundo homem mais importante da cidade,
atrás apenas do duque, seu amigo próximo. Claro, havia também
Christine Allen, a condessa de Fullerton, mas, desde a morte de seu
marido, o conde de Fullerton, ela deixara de ter qualquer
importância na sociedade de Backhan.

Além disso, quando suas fortunas eram avaliadas, os Morland


poderiam ser considerados mais abençoados que os Allen, e até
mesmo que os Cleavand, apesar de o barão jamais admitir que
parte de sua riqueza viera do comércio, algo inaceitável para
verdadeiros membros da nobreza.

Muito habilidoso, Morland conseguiu evitar que qualquer


cavalheiro convidasse sua filha para as duas primeiras danças antes
que John Cleavand tivesse oportunidade de fazê-lo. Contudo, o
caminho até o rapaz e seus pais estava repleto de obstáculos, um
dos quais ele não via havia mais de dois anos.

A condessa de Fullerton estava no baile de Higgins Hall. E não


mais usava o preto de luto. Em vez disso, usava um vestido carmim
e segurava o braço de um homem.

— Quem é aquele senhor que acompanha a Viúva Negra? — ele


discretamente perguntou à esposa.

— Você não sabe? — ela perguntou, estranhando o fato de o


barão estar por fora da maior fofoca da temporada. —
Aparentemente, eles se conheceram durante a viagem da condessa
a Paris. Aquele é seu novo marido.

— Coitado.

— Condessa!

Catherine ignorou o olhar gélido do pai e caminhou rapidamente


até Christine Allen, que abriu um gentil sorriso ao vê-la. O gesto
aqueceu o coração da jovem, que não via a amiga sorrir havia muito
tempo.

— Lady Catherine!

Christine soltou-se do braço do marido e deu alguns passos à


frente para aproximar-se de Catherine, segurando suas mãos
enluvadas com carinho.

— Quanto tempo, minha querida!

— Senti sua falta, condessa!

Ela já teria que tolerar o desapontamento do pai, o olhar


acusador da mãe e ao menos um sermão da Sra. Smith. Não
precisava adicionar mais problemas à sua longa lista ao chamar sua
amiga pelo primeiro nome, como se tratavam em geral.

— Ficou demasiado tempo em Paris.

— Minha querida, acredito que não tenha ficado tempo


suficiente.

Ambas olharam em volta, notando que várias pessoas no salão


as encaravam de forma nada cordial.

— Meu retorno somente é alegrado por sua presença. Também


senti falta da sua companhia.
— Posso visitá-la quando for conveniente para a condessa, para
tomarmos um chá? — perguntou Catherine, que mal podia esperar
para conversar com Christine.

Desde que a condessa se fora, não tinha outras amigas com


quem pudesse debater assuntos considerados inapropriados para
damas. Felizmente, Christine jamais se importara muito com regras
de etiqueta ou comportamentos esperados de uma mulher com seu
título. Ironicamente, havia sido exatamente aquela característica que
havia conquistado o coração de seus dois maridos.

— Eu adoraria, minha querida. Amanhã?

Era uma grande demonstração de afeto por parte de Christine


convidar a amiga para sua casa naquela mesma semana. Afinal de
contas, a condessa havia retornado de viagem poucos dias antes.
Devia estar cansada e, ao mesmo tempo, ansiosa para colocar a
propriedade em ordem.

— Seria perfeito, condessa.

Catherine segurou o tom de voz. Não desejava que seus pais ou


outros curiosos soubessem de sua agenda.

— No horário habitual?

— Certamente, Lady Catherine. Tenho muito a contar-lhe.

Quando a condessa disse essas palavras, o homem que a


acompanhava, o qual Catherine não conhecia, se moveu para perto
da amada. O foco da jovem, entretanto, continuou sendo sua amiga.
Estava tão feliz e tão surpresa de ver Christine ali que todo o resto
se perdeu em seu campo de visão.

— Pois eu tenho pouquíssimo a relatar... — Catherine comentou,


desanimada.
A jovem queria mesmo ter conhecido Paris com sua amiga, mas
essa simples ideia faria seu pai cair duro no chão. E, claro, ela
receberia intermináveis sermões da Sra. Smith.

— Sim... Ouvi dizer que seu pai ainda não conseguiu convencê-
la a se casar com o filho mais novo do duque — ela falou baixinho
para Catherine, com um sorriso irônico no rosto.

— Deus me livre! — Cathy não conseguiu evitar dizer, revirando


os olhos de forma teatral, gesto inaceitável para uma dama.

Atrás da condessa, alguém riu. Não foi uma daquelas risadas


educadas de cavalheiros que fingem achar graça das piadas uns
dos outros, nem um daqueles risinhos praticamente inaudíveis de
jovens damas ao contar para as amigas sobre as peripécias que
fizeram com algum pretendente.

Não. Tratava-se de uma risada escandalosa. E


escandalosamente masculina.

Imediatamente, Catherine reconheceu o som. Nem precisava vê-


lo para saber quem era. Seu coração parecia que ia explodir no
peito, e ela sabia que suas bochechas deviam estar
vergonhosamente rosadas. E tudo aquilo porque acabara de
descobrir que o estrangeiro estava na festa.

Respirando fundo e lentamente, Catherine, enfim, conseguiu


controlar as batidas do seu coração. Havia fugido como uma
covarde, mas, ao menos, ninguém (a não ser o próprio estrangeiro)
havia notado seu desconforto com a presença daquele homem.

Ela nem sequer havia ficado o suficiente para vê-lo; assim que
percebeu que ele estava no recinto, inventou uma desculpa ridícula
para a condessa, afirmando que precisava deixá-la por um
momento. Christine avisou que queria lhe apresentar a alguém e
que Catherine deveria retornar até ela assim que resolvesse seus
“problemas femininos”. E ela o faria, desde que o estrangeiro
estivesse bem longe de sua amiga francesa.

Por sorte, a Sra. Smith tinha ido ajudar a mãe de Cathy a


consertar a barra do vestido, que tinha sofrido uma pisada
momentos antes, situação que permitiu à jovem fugir sozinha, sem
ser notada. Ela atravessou, cabisbaixa, a galeria da entrada,
passando por trás dos arranjos de lavandas e rosas brancas, até
alcançar o corredor que lhe levaria para o lado oposto da casa.
Passou rapidamente pelos cômodos que conhecia de cor, a sala da
família, o quarto de jogos, a sala de jantar informal.

Quando alcançou o escritório do duque, virou à direita pelo


corredor e chegou até a porta que procurava, aquela que lhe dava
acesso a um jardim lateral da casa, onde apenas família e amigos
próximos costumavam ir. Concluiu que estaria adequadamente
escondida do estrangeiro naquela parte da propriedade até decidir o
que fazer a respeito do homem.

Se ele estava no baile de Higgins Hall, isso significava que era,


no mínimo, alguém de importância, um cavalheiro. E ela havia se
comportado tão mal! Oh, e se ele contasse tudo ao barão? Decerto,
o pai dela a trancaria em Greenwoods House pelo resto do verão,
obrigando-a perder as melhores caminhadas do ano!

— Lady Catherine?

Alguém a chamou da porta que ela acabara de atravessar.

Em vez de responder, Catherine acelerou o passo para se


esconder atrás de um arbusto. Estava a pouco menos de vinte
metros de onde John Cleavand a havia chamado, porém, como o
céu estava encoberto, as sombras a haviam ocultado.

Olhando discretamente por cima das folhas, ela observou John


dando passos lentos pelo jardim, na direção oposta de onde ela
estava escondida. A noite mal havia começado, mas ele já parecia
embriagado; seus passos eram cambaleantes, e ele mal conseguia
andar em linha reta.

Considerando que homens bêbados e damas desacompanhadas


em um canto escuro do jardim não combinavam, ela decidiu sair de
fininho dali e retornar ao baile. E estava a poucos passos da porta
quando uma mão pousou sobre seu ombro.

— Lady Catherine. Estava procurando pela senhorita.

Notando a preocupação no rosto dela, ele perguntou:

— A senhorita está bem?

— Boa noite, John.

— Apesar de ele sempre chamá-la de Lady, ela se habituara a


chamá-lo sem grandes formalidades, tendo sido os dois conhecidos
desde a infância.

— Na realidade, não estou muito bem. Devo retornar à Sra.


Smith. Ela ficará muito incomodada se me descobrir aqui sozinha.

— A senhorita não está sozinha. Está comigo.

— Ele deu alguns passos na direção de Catherine, e agora a


proximidade deles se tornara perigosa.

— Você sabe muito bem o que eu quis dizer, John. Estou sem
minha acompanhante, a sós com um cavalheiro. Se alguém nos vir
nesta posição...

— Se alguém nos vir, vão apenas pensar o óbvio: que você,


muito em breve, será oficialmente anunciada como minha noiva.

John estava à frente da porta, bloqueando a entrada para


Catherine. Ela estava calculando uma forma de fugir dali, mas as
palavras ditas fizeram sua atenção voltar-se ao rapaz embriagado.
— O que disse?

Seu tom deveria ter sido firme e seco, mas sua voz estava
trêmula. Eles jamais haviam conversado sobre o tema, mas ela bem
sabia que casamento devia ser o assunto favorito entre John e o
barão de Northanger.

— Eu disse que não há nada de inapropriado em uma dama ser


vista a sós com seu futuro noivo.

— Eu jamais aceitei ser sua noiva! Então não ouse fazer tais
suposições! — ela respondeu, dando alguns passos para trás.

Mas ele agarrou seu braço.

— Suposições? Todos sabem que vamos nos casar um dia,


Catherine, e...

— Solte-me agora! E, para o senhor, sou Lady Catherine!

Agora ele havia conseguido. Havia tirado a jovem do sério.

John a tocara no braço, em uma parte exposta da pele dela.


Felizmente, ainda estavam separados pela camada de tecido da
luva dele; entretanto, se alguém visse os dois naquela situação, em
uma discussão calorosa típica de amantes, ela teria de desposá-lo.

— Pare de se debater! — disse ele, que tropeçou para frente,


deixando-os ainda mais próximos.

Catherine tentou correr, mas foi agarrada pelo braço com ainda
mais força.

— Vou parar de me debater quando o senhor me soltar!

Catherine considerou suas opções. Se gritasse, conseguiria


ajuda, mas sua reputação seria destruída; afinal de contas, ela não
deveria ter ido ao jardim desacompanhada. Poderia também
acalmá-lo, com palavras doces que as damas da sociedade diziam
aos seus pretendentes; porém, naquele momento, seu humor
estava azedo demais para mentiras amorosas. Além disso, caso
desse àquele homem qualquer tipo de incentivo, ele, como estava
embriagado, poderia tentar beijá-la. Então, seria obrigada a matá-lo
no jardim da casa dele.

Oh, ser uma dama era irritantemente cansativo!

— Solte a dama — uma voz grave e seca ordenou.

Catherine viu uma forma surgir das sombras, da porta que agora
estava escancarada. Estivera tão focada em sua briga com John
que não notara os movimentos vindos da casa.

— Quem diabos é o senhor? — John indagou com o mesmo tom


seco, mas retirou a mão do braço de Catherine, que imediatamente
se afastou dele, movendo-se rapidamente para a porta, obrigando
seu salvador a sair do caminho.

Ao entrar na casa, ela percorreu os cômodos rapidamente,


parando no corredor que levava até a galeria de entrada. Catherine
não ouvira a resposta do homem que a salvara, mas sabia quem
era: o estrangeiro acabara de resgatá-la de uma nova enrascada.

Ela alisou as saias e usou o reflexo de uma janela para ajeitar os


cabelos ruivos; estava aceitável para retornar à festa. Inspirou
profundamente e virou-se para o salão, quando uma voz a
paralisou.

— Boa noite, Lady Catherine.

Ele pronunciou seu nome lentamente, com prazer. Catherine


conseguia sentir o calor dele atrás dela, mas se manteve imóvel.

— Nem sequer mereço um agradecimento?

— Muito obrigada, senhor — ela respondeu entredentes. — O


Sr. John Cleavand esqueceu-se da pessoa com quem estava
lidando.

— Sim, creio que esqueceu mesmo. Estou na dúvida se foi a


reputação da senhorita que salvei ou a vida do cavalheiro — o
estrangeiro comentou, em tom sarcástico.

Cathy permanecia de costas para o estrangeiro; e ele, apesar de


mover-se para perto dela, não fez qualquer tentativa de mudar a
posição dos dois.

— A senhorita estava com um olhar assassino.

— Damas não possuem olhares assassinos — ela afirmou com


arrogância.

— Nós dois sabemos que a senhorita não é exatamente uma


dama.

Lady Catherine sentiu o hálito quente daquele homem em sua


nuca e foi quando notou que ele estava muito mais próximo do que
ela imaginara.

— Graças aos céus — provocou o estrangeiro.

— Quem o senhor acha que é para dizer algo tão escandaloso?

As pequenas mãos dela se fecharam em punhos de cada lado


do seu corpo, e ela sentia o sangue subir-lhe ao rosto. Desta vez,
era de raiva.

— A senhorita vai me atacar? É assim que vai provar que é uma


perfeita dama da sociedade?

Ela virou-se para encará-lo. Imediatamente, arrependeu-se. O


rosto do estrangeiro estava quase que completamente escondido
sob as sombras do corredor mal-iluminado, já que a única fonte de
luz era um pequeno castiçal, vários metros atrás dele. Mesmo
assim, a força do olhar do homem foi suficiente para fazê-la
esquecer-se de respirar.
— Eu...

Catherine ficou sem palavras, o que era extremamente raro. Um


dos cantos dos belos lábios dele voltou-se para cima, e ela fechou
os olhos por um momento a fim de se recompor.

— Quem é o senhor?

— Além de seu herói?

Ela revirou os olhos para ele, que virou a cabeça e deu uma
risada. O som fez os pelos do corpo dela se arrepiarem.

Ela precisou de alguns segundos para demandar novamente.

— Exijo saber o seu nome, senhor.

— Ah, exige? — ele respondeu com ironia.

— Sim. Imediatamente.

Sentindo-se mais segura, ela deu um passo à frente e precisou


inclinar a cabeça para cima para continuar olhando nos olhos
daquele homem. Ele pareceu surpreso com a atitude dela, mas não
se afastou. Apenas manteve o sorriso cínico no rosto.

— Fui apresentado a muitas senhoritas nesta noite. Se quiser


descobrir o meu nome, basta perguntar a uma delas.

Com isso, ele passou por ela, atravessou a porta de acesso à


galeria, e a deixou sozinha no corredor.


Capítulo 3

“Cair em desgraça aos olhos do mundo, assumir a aparência da


infâmia quando o seu coração era todo pureza, suas ações
inocentes e o mau comportamento de outrem, a verdadeira origem
de sua degradação, é uma dessas situações que pertencem
curiosamente à vida da heroína.”

(Jane Austen)

Sunset Valley, dois anos atrás...

Catherine Murray nunca fora uma criança popular. Desde bem


pequena, por ser a menor da turma e a mais tímida, era a última a
ser escolhida para os times nas sofridas aulas de educação física.
Por ser uma aluna exemplar, era a queridinha dos professores, o
que a tornava ainda mais distante dos demais colegas. E, para
piorar, Cathy não era bonita, ao menos não para os padrões
californianos.

Sua pele era branca demais; seus olhos, desproporcionalmente


grandes para seu rosto; seu corpo mais parecia uma tábua de
passar roupa. E, é claro, a turma mais popular do colégio não a
deixava esquecer sua falta de qualidades físicas.

Todavia, com o tempo, sua beleza foi aparecendo, como uma flor
ao desabrochar na primavera. Claro que a timidez continuava, assim
como sua falta de autoestima. Enquanto Cathy continuava se
considerando uma adolescente feia e desengonçada, alguns dos
rapazes da cidade começaram a notá-la.
Assim, Catherine Murray tornar-se-ia uma heroína, mesmo sem
nem sequer saber que o era.

Tudo começou quando Lucas Martin, um dos caras mais


conhecidos e populares da cidade, filho do prefeito Thomas Martin e
de Lisa Martin, ex-Miss Califórnia, reparou as mudanças na caçula
dos Murray. Ele era um dos melhores amigos de James e conhecia
Cathy desde que ela era uma garota franzina e sem graça. No
entanto, aos dezesseis anos, ela havia se tornado uma moça muito
bela, e Lucas poderia até mesmo chamá-la de linda!

Como James agora estava no Caltech, Lucas não tinha muitas


desculpas para visitar os Murray. Portanto, começou a cercar sua
nova presa no caminho do colégio. Depois, almoçava na mesma
mesa que ela no refeitório, uma honra digna de muitas fofocas. Aos
domingos, Lucas sentava-se ao lado dos Murray na igreja.

Logo, o interesse crescente de Lucas em Cathy já era o assunto


de Sunset Valley. Quando eles assumiriam o namoro? Quando se
casariam? Que vestido Cathy usaria? Quantos filhos teriam?

Enquanto alguns discutiam as bodas de Catherine, a própria mal


havia notado as intenções de Lucas. Ela imaginava que sua atenção
era devida à bondade. Lucas sabia que a ida de James ao Caltech
deixara a irmã um tanto quanto solitária (ainda que o rapaz visitasse
regularmente a família, uma vez que Pasadena ficava a apenas
duas horas de Sunset Valley). Claro, Cathy tinha suas duas
melhores amigas, Lucy e Luiza, mas não era a mesma coisa sem
James, e Lucas sabia disso. Portanto, para Cathy, estava claro que
Lucas apenas estava tentando cuidar dela como James fazia.

Até o dia em que ela se tornou heroína.

Lucas convidou Cathy para ir ao cinema. Como ele era


conhecido de longa data dos Murray, os pais de Cathy não viram
qualquer problema no passeio, contanto que os dois estivessem de
volta antes da meia-noite. No entanto, os jovens nunca chegaram a
assistir a qualquer filme naquele fatídico dia.
Ao saírem da casa dos Murray, Lucas pegou uma rota diferente.

— Para onde estamos indo? — Cathy questionou


inocentemente.

— Quero lhe mostrar algo. É uma surpresa! — Lucas respondeu.

Foram até o ponto mais alto de Sunset Valley, de onde podiam


ver o pôr do sol mais famoso da região. Estacionaram em um lugar
vazio, e, antes que Cathy pudesse saber o que estava acontecendo,
Lucas já havia tirado seu cinto de segurança e estava sobre ela.

A jovem gritou, implorando-lhe para parar, dizendo-lhe que eles


eram praticamente irmãos, que nada assim deveria acontecer entre
os dois, que ela somente o enxergava como amigo. Lucas, por sua
vez, não parou e, quando notou que ela não correspondia aos
beijos, simplesmente lhe disse:

— Você deveria agradecer aos céus por um cara como eu querer


ficar com uma ninguém como você.

Foi o nascimento de uma nova Catherine Murray. Uma Catherine


que não aceitaria ser beijada à força, ou humilhada, ou levada a um
lugar contra a sua vontade. E, com uma joelhada contra a virilha de
Lucas, ela disse ao mundo a que viera.

Sem um dos sapatos e com a blusa rasgada, foi até a delegacia,


onde o xerife chamou os Murray e ouviu os relatos da jovem,
chocado. Obviamente, horas mais tarde, os pais do rapaz já haviam
espalhado para a cidade que Cathy era uma mentirosa, que o
adorável Lucas jamais faria algo assim.

No dia seguinte, Catherine não foi à escola. Nem no outro. Até


que, inesperadamente, na manhã do terceiro dia de humilhação,
Nina, uma garota um ano mais velha que ela, foi à delegacia e
contou uma história sobre Lucas, bem parecida com aquela de
Cathy. Depois, foi outra. E aí, mais outra. Ao final da semana, já
havia mais de uma dúzia de queixas contra o filho do prefeito.
Se Lucas não tivesse deixado a região — ou melhor, fugido —,
ele provavelmente teria sido linchado pelos pais indignados. No ano
seguinte, o prefeito Thomas Martin perdeu a eleição. E muitas
garotas de Sunset Valley nunca deixaram de agradecer à Catherine
Murray, a heroína da cidade, pela sua coragem.

Apesar de ter sido superado por Cathy, o episódio deixou uma


marca na jovem. Desde então, ela abandonou os contos românticos
e passou a escrever sobre mistérios (e se tornou especialista em
assassinatos de rapazes arrogantes).

Foi assim que Catherine passou a desconfiar de todos os


homens no mundo. Exceto seu pai, James, e de Harry Potter, é
claro.

Levaria dois anos para Cathy deixar algum homem se aproximar


dela novamente. O responsável por essa mudança? Um belo
brasileiro de olhos escuros...

Londres, 1º de julho.

Ainda sonolento, Henrique começou a ouvir as vozes no


momento em que deixou o quarto de visitas. A sala já estava
abarrotada de gente, e ele teve dificuldade para chegar até o bar,
onde pegou duas cervejas.

— Como senti falta de você, futura prima!

Henrique deixou as bebidas sobre a mesa da sala e agarrou


Krista pela cintura. Ela estava de costas para ele e gargalhou com o
gesto inesperado. Alguns dos convidados ficaram ainda mais
surpresos que a famosa editora. Afinal de contas, não era qualquer
um que abraçava Krista Allen com tamanha intimidade.

— Ricooooo! — ela gritava, com seu sotaque inglês e com uma


postura completamente diferente da que seus amigos estavam
habituados. Aparentemente, não era apenas Sara que a fazia se
transformar em outra mulher.

Krista lhe perguntava sobre as novidades, quando havia


chegado, quanto tempo ficaria, mas Henrique lhe respondia
automaticamente, pois sua atenção se voltou para os cabelos ruivos
idênticos àqueles de seu sonho. Era ela. Henrique tinha certeza. E
estava conversando com Sara.

De repente, Henrique estava sendo levado em direção à moça


misteriosa, puxado por Krista, que lhe contava algo que ele não
ouvia com muita animação. O rosto da ruiva era ainda mais belo do
que ele imaginara; sua pele parecia porcelana, em perfeito contraste
com seus lábios grossos e vermelhos. Seus olhos, redondos e
vivos, lhe encaravam, mas Henrique não conseguia dizer nada.

— Que houve, Rico? Você está encarando a gente como se


fosse um psicopata!

O comentário de Sara fez a moça de cabelos vermelhos


gargalhar, de forma nada lisonjeira, com um som entre um ronco de
porco e tosse, o que Henrique achou estranhamente adorável.

— Rico! Acorda! Já está bêbado? Enfim, esta é Catherine


Murray. A Garota da Califórnia! Lembra-se do blog dela? Enviei o
link para você na semana passada.

Ah, claro! Ele havia sonhado com uma foto que vira no blog de
Catherine! Henrique, que até então não conseguira emitir nem um
som sequer, voltou a si e esperava que a Garota da Califórnia não o
achasse um idiota.

— Ah, claro. Olá, Catherine. Eu sou o Henrique, primo da Sara.


Mas pode me chamar de Rico.

Ela lhe ofereceu um sorriso tímido que quase o fez engasgar. Ele
pausou por uns momentos e, quando teve certeza de que não iria
sofrer um enfarto, continuou.
— Eu... Hã... Li alguns de seus contos. Eles são bárbaros. Não é
de surpreender que a Krista aqui logo te descobriu. Você é
realmente ótima.

— Obrigada.

A voz da jovem escritora era ainda mais aveludada que a de


Elena. Henrique ficou na dúvida se não estava ainda em seu sonho
e discretamente beliscou a própria perna.

— E pode me chamar de Cathy. Apenas o reverendo Karl me


chama de Catherine.

Todos gargalharam com o comentário, deixando as bochechas


de Cathy incrivelmente rosadas. Mais uma vez chocando seus
convidados, Krista, que já havia ingerido mais Martinis do que
conseguia contar (ou, àquela altura, lembrar), usou um dos braços
para abraçar a tímida jovem.

— Ela não é a pessoa mais adorável? Acho que este ano será
maravilhoso, Cathy!

Com isso, uma canção de Sade começou, e Sara puxou a noiva,


abrindo espaço no meio da sala, ameaçando usar a violência contra
aqueles que não saíssem de seu caminho.

— Nada me impedirá de dançar com a minha Krista! — ela


afirmou, com o teor alcoólico perigosamente mais alto do que
aquele de sua companheira de dança.

Notando que Catherine fora deixada de lado por suas anfitriãs,


Henrique convidou-a para dançar. Cathy sussurrou, com a voz mais
doce do que nunca:

— Devo alertá-lo: não sou grande dançarina.

Ele simplesmente riu e pegou sua mão, e seguiram para a pista


de dança improvisada no meio do apartamento. Como era uma
música lenta, Henrique pôs as duas mãos de Cathy sobre cada um
de seus ombros e segurou-a pela cintura. Inicialmente, ele notou
que os músculos dos ombros de Cathy estavam tensos. Aos
poucos, contudo, eles foram relaxando à medida que a pista ia se
enchendo.

— E aí? O que está achando de Londres? É a sua primeira vez


aqui, não é mesmo? — perguntou Henrique, que teve que se
aproximar de Cathy para ser ouvido.

A música estava consideravelmente alta. Ele notou, contente,


que ela não se afastou. Também notou que estava incrivelmente
cheirosa. Inspirou profundamente enquanto ela respondia.

— É a minha primeira vez fora dos Estados Unidos. E, até agora,


minha opinião daqui não é lá das mais favoráveis. Posso resumir
Londres em dois adjetivos: fria e cinzenta.

Eles se conheciam havia menos de uma hora, e Cathy já


conseguira fazê-lo gargalhar duas vezes.

— Não fique presa às primeiras impressões. Posso lhe garantir:


Londres vai surpreendê-la. O que você planeja fazer amanhã?

Os olhos de Cathy, que já eram naturalmente grandes para seu


delicado rosto, aumentaram ainda mais.

— Sara não conversou contigo?

Henrique negou com a cabeça, divertindo-se com a expressão


de timidez da garota. Quando ela ficava com vergonha, suas
bochechas ficavam adoravelmente rosadas, e até seus lábios
ficavam mais vermelhos. Ele nunca havia conhecido uma moça que
ficava corada com tanta facilidade. Henrique teria que resistir ao
desejo de deixá-la encabulada outras vezes.

— Ela e Krista estarão muito ocupadas amanhã, e ela ia pedir ao


primo recém-chegado do Brasil (ou seja, você) para fazer alguns
passeios comigo.

— Sei...

Foi tudo que Henrique conseguiu dizer, pois estava distraído


demais pela confusão fascinante daqueles olhos inocentes. Cathy,
ainda mais sem graça, achou que a falta de palavras dele era
devido à falta de animação de passear com ela pela cidade. Talvez,
ainda estivesse cansado da viagem ou com jet lag.

— Claro, se você não estiver com vontade, eu entendo. Sara


comentou que você morou na Escócia alguns anos atrás e vinha
muito a Londres. Deve estar enjoado de visitar os pontos turísticos.

— Na realidade, eu estava aqui pensando em como sou um cara


de sorte.

— Como assim?

Cathy estava mais perplexa (e adorável) do que nunca.

— Bem, se Krista e Sara não estivessem tão ocupadas, eu


talvez não teria o dia inteirinho com você, não é mesmo?

— Então...

Cathy podia sentir as bochechas quentes. Ela tinha certeza de


que todo o sangue de seu corpo havia subido para seu rosto. Tinha
que mudar o rumo da conversa.

— Você morou onde exatamente na Escócia? — continuou a


jovem.

— Acredite se quiser, na abadia da família.

— Uma abadia?

Novamente, o olhar surpreso de Cathy tirou o fôlego de Rico,


que demorou alguns segundos para formular uma resposta. Do que
estavam falando mesmo?

— Ah, sim. A Abadia de Kingsway — respondeu ele.

Percebendo a curiosidade da moça, resolveu aguçá-la ainda


mais.

— É um lugar isolado, daqueles conhecidos por suas lendas e


mistérios.

— Mistérios?

A animação de Cathy era tanta que ela respirava pela boca. Rico
usou todo o seu autocontrole para não beijá-la. Qual era o problema
dele? Parecia um adolescente! Fechou os olhos por alguns
segundos e, quando os abriu, decidiu focar nos cabelos da escritora
norte-americana. Não era uma boa ideia: pareciam sedosos, e ele
sentiu uma vontade ardente de tocá-los. Limpou a garganta e,
enfim, respondeu:

— Sim. Há muitos mistérios envolvendo a abadia — falou e


ofereceu um meio sorriso maroto quando viu a cara de espanto
dela. — Mortes não explicadas, amores secretos, traições
sangrentas, tudo o que você imaginar.

— Eu adoraria conhecer a Escócia! E a Abadia de Kingsway!

— E eu adoraria mostrá-la a você. Assim como vou adorar


mostrar Londres amanhã. Agora, vamos parar de dançar? Se você
der mais um pisão no meu pé, acho que não terei condições de
caminhar por uma semana...

Catherine riu uma risada acanhada, como se estivesse na dúvida


se Henrique estava brincando ou não (em relação ao comentário de
querer levá-la à Escócia, é claro). Cathy sabia muito bem que era
um desastre dançando. Ela pisara no pé dele ao menos seis vezes.
Henrique, por sua vez, ficou ainda mais encantado com ela. Ao
contrário das belas mulheres que conhecia, que sabiam que eram
lindas e usavam os dotes físicos a seu favor, Cathy parecia não ter
ideia da própria beleza e certamente não tinha noção de como seu
jeito genuinamente tímido e doce o afetava. Ela era muito melhor do
que seu sonho.

Londres, 2 de julho.

A noite anterior era agora um borrão. Naquela manhã, com olhos


pesados e a cabeça latejando (consequência das duas taças de
vinho que havia tomado), levantar-se da cama era doloroso, uma
missão quase impossível.

Uma lembrança (ou seria sonho?) de repente amenizou a tontura


de Cathy: o primo de Sara, Henrique, lhe prometera um dia de muita
caminhada (atividade que adorava, quando não estava com
enxaqueca). Ele passaria para pegá-la por volta das dez.

Sem perceber, a boca de Catherine se abriu em um sorriso


genuíno. Henrique era completamente diferente dos rapazes aos
quais ela estava habituada. E ele parecia tratá-la de forma diferente
das demais pessoas, como se ela fosse especial para ele.
Espirituoso, brincalhão e muito sarcástico com todos ao seu redor,
mas incrivelmente gentil e atencioso em relação a ela.

E, para finalizar, era absolutamente lindo. Seus olhos eram tão


pretos quanto seus cabelos e pareciam saber tudo sobre Cathy. Ele
tinha pele morena, e não era fruto de exposição ao sol: era um belo
tom natural. Seu sorriso a deixava tonta toda vez que surgia em
seus lábios. E suas mãos? Cathy sentiu o calor subindo às
bochechas ao se lembrar de como ele a segurara (ou agarrara)
durante aquela dança!

No entanto, Cathy não se deixaria levar pelo aparente


entusiasmo de Henrique por ela. Provavelmente, Sara e Krista
haviam pedido que ele não a deixasse sozinha. Toda aquela
simpatia, portanto, nada mais era do que zelo pela garota americana
de cidade pequena que estava totalmente perdida na Inglaterra.

Por outro lado, ele não precisava tê-la segurado daquele jeito ao
som de Sade, não é mesmo? E Cathy percebeu que, apesar de a
música estar muito alta, Henrique não precisava ter se aproximado
tanto para falar com ela. E ela podia jurar que ele a havia cheirado.
Teria ele segundas intenções? E, caso tivesse, ela gostava disso ou
não?

Catherine não teve muito tempo para refletir sobre o assunto,


pois, enquanto terminava de tomar seu café na cozinha impecável
de Krista Allen, com vista para o perfeito jardim inglês, Henrique
chegou. Ela somente conseguiu tomar uma decisão: enquanto não
tivesse certeza sobre os verdadeiros interesses dele e os
sentimentos dela própria, somente iriam a lugares públicos e,
preferencialmente, lotados.

Mal sabia Cathy que seu desejo não seria nada difícil de se
tornar realidade. Era começo de julho, início das férias escolares e
da alta temporada londrina. Ou seja, todos os museus, restaurantes,
estações de metrô e pontos turísticos estavam abarrotados de
gente. O dia, pelo menos, amanhecera ensolarado (para padrões
ingleses, pois Cathy ainda considerava o céu demasiado cinzento) e
sem chuva, permitindo que fizessem passeios ao ar livre.

Henrique sugeriu que fossem, primeiramente, ao Regent’s Park,


um dos parques reais e, segundo ele, um dos mais belos de
Londres. Saíram pela estação do metrô com o mesmo nome do
local que iriam visitar, e Cathy não conseguiu segurar seu
entusiasmo. Ela havia visto apenas uma minúscula parte dos
trezentos e noventa e cinco acres de parque e já estava
apaixonada.

Quando Henrique lhe falou sobre o Jardim da Rainha Maria com


suas milhares de rosas de centenas de espécies diferentes, sobre a
fonte de granito em estilo gótico, sobre os pássaros e os mamíferos
que lá viviam, Cathy teve certeza de que levaria ao menos uma
semana para conhecer o parque inteiro.

Passearam por lá durante quase três horas, nas quais


admiraram seus jardins elegantemente cuidados, as belas fontes,
visitaram o zoológico e até mesmo assistiram a uma peça
improvisada de Shakespeare.

Cathy, que nunca lera nada do dramaturgo (apenas assistira à


adaptação de Romeu e Julieta com o Leo DiCaprio), nem sequer
atreveu-se a dizê-lo, para não parecer uma iletrada perante
Henrique, que havia elogiado seu talento literário na festa. Portanto,
fez sua cara mais intelectualizada e focou nos atores à sua frente.

Aos poucos, ela foi sendo absorvida pelas cenas, pelos elfos,
pelas fadas e por outros seres encantados. As falas pareciam ter
musicalidade, e Cathy, que no início entendia apenas uma palavra a
cada dez, ao final já conseguia compreender o contexto e o sentido
das frases. Eram poesia e melodia, sonho e realidade.

— Sonhos de uma noite de verão — Henrique comentou, em


meio aos aplausos que acompanharam o final do último ato.

— Ah, essa eu não conhecia — admitiu Cathy, com lágrimas nos


olhos (apesar de sua confissão não ter esclarecido que ela jamais
lera qualquer das peças shakespearianas). — É linda.

— Verdade, muito melhor que o filme. Apesar de ter sentido falta


da Michelle Pfeiffer, ao vivo é muito mais emocionante, não? Achei o
filme um tanto quanto chato, devo admitir.

— Peraí. Você nunca leu a peça, Henrique? — perguntou ela,


incrédula.

— Nunca, e não venha me acusar de ignorante, Cathy! — ele


comentou, em tom de brincadeira. — Juro que tentei ler algumas
delas, mas a única que consegui terminar foi “Romeu e Julieta”, e
somente porque, na adolescência, fiquei caidinho pela Claire Danes
vestida de anjo. Agora, pela sua cara, você me excluirá de seu
círculo de amigos, não é mesmo? Não vai querer se envolver com
alguém que jamais leu Shakespeare.

Cathy gargalhou, e foi uma risada natural e desengonçada. As


pessoas podiam ser tão tolas! Nunca entendeu como alguém podia
dizer uma coisa quando, na realidade, pensava outra
completamente distinta.

Ela sempre havia criticado pessoas hipócritas: a professora


Linda, que lhes obrigava a ler Faulkner, enquanto se deliciava com
Nicholas Sparks (algo que Cathy invejava); o Prefeito Johnson, que
vencera as eleições garantindo que processaria e prenderia todos
os corruptos da cidade, e acabou por perder o mandato ao se
envolver em um escândalo de desvio de dinheiro público; ou o Sr.
Leeson, que pregava pela cidade que o álcool era um pecado, mas
que foi hospitalizado, algumas vezes, exatamente por ser esse tipo
de pecador.

A realização de que ela, naquele momento, era tão hipócrita


quanto as pessoas que costumava criticar, e que Henrique era o
oposto de tudo aquilo, a fez rir descontroladamente. Quando
finalmente conseguiu parar, seu abdômen já doía, e Cathy teve de
sentar-se a fim de recuperar o equilíbrio. Henrique a olhava
atentamente, como se estivesse hipnotizado.

— Desculpe-me, Henrique, mas acontece que jamais li


Shakespeare e temia que você me considerasse uma ignorante.

— Pode me chamar de Rico — ele pediu.

A risada de Catherine, com toda a sua espontaneidade, havia


sido um dos sons mais eróticos que ele escutara na vida. Como
alguém podia ser tão inocente e sensual ao mesmo tempo?
Obviamente, o maior charme de Cathy era exatamente o fato de ela
não ter noção de quão irresistível ela era.
— A única pessoa que me chama de Henrique é meu pai. E,
acredite em mim, ele é a última pessoa em quem quero pensar
agora.

Os olhos escuros dele expressavam a mais absoluta admiração


pela pessoa que encarava. Cathy não entendeu bem o comentário;
só sabia que também não queria que Henrique pensasse no pai (ou
em qualquer outra pessoa) enquanto estava com ela.

Ao deixarem o Regent’s Park, e antes de pararem em um


restaurante na Baker Street para almoçarem batata e peixe fritos,
visitaram o Museu de Sherlock Holmes. Ficava em um edifício
branco, com grades pretas e detalhes em verde. Por dentro, era
exatamente como Cathy imaginava pelos livros: as paredes eram
cobertas por papel de parede vinho, os móveis eram elegantes; e os
cômodos, entupidos de trambolhos. Eles viram dezenas de
cachimbos, o violino do detetive, os objetos que Sherlock usava
para testar suas teses.

Ali, Cathy sentiu-se em casa, pois os livros de Sir Arthur Conan


Doyle foram algumas de suas principais inspirações para contos de
suspenses e mistérios. Conversaram longamente sobre o tema, e,
mesmo quando deixaram o museu e seguiram para o almoço, as
perguntas de Henrique não cessaram.

O personagem de fato vivia em Baker Street? A frase


“Elementar, meu caro Watson” era originalmente dos livros? Em
quem o autor se inspirou para criar o personagem? A cada resposta
de Catherine, a curiosidade de Henrique aumentava.

Sherlock Holmes somente deixou de ser o tópico da conversa


quando chegaram ao Hyde Park. Aí foi a vez de Cathy fazer infinitas
perguntas ao seu guia-historiador. Nada lhe escapava: queria visitar
todas as estátuas, memoriais e monumentos, tinha de saber a
origem de tudo, as histórias e curiosidades.
Sem perceber, Cathy agarrou a mão de Henrique, a fim de
arrastá-lo com mais rapidez aos locais que desejava visitar, e, ao
notar o que fizera, tentou retirá-la, mas ele apenas a segurou com
mais força.

Ao final do dia, já na casa de Krista, Catherine não suportava


mais ficar de pé. Foi até seu quarto, incluiu as fotos dos passeios do
dia em seu perfil no Facebook, falou com os pais pelo Skype,
mandou e-mails a Lucy e Luiza (que já haviam deixado meia dúzia
de mensagens para ela, reclamando da falta de fofocas) contando
tudo sobre Rico e escreveu em seu blog sobre a mágica Londres.

Naquele momento, nem se recordou de que o céu era cinzento e


de que ficara quase meia hora debaixo de chuva. Sua lembrança
mais vívida era a mão macia e forte que a guiou durante toda a
tarde.

Londres, 4 de julho.

— Vocês não podem fumar cachimbo aqui dentro!

O segurança do museu de Sherlock Holmes estava prestes a


expulsá-los dali, e foram necessários vinte minutos para Sara lhe
explicar que não era o caso, o cachimbo nem sequer estava aceso.

Henrique estava inquieto: não via Cathy havia dois dias e mal
podia esperar para encontrá-la naquela noite, quando ele, a prima,
Krista e a Garota da Califórnia iriam juntos ao teatro.

Quando Sara lhe pediu o favor de ajudá-la nas gravações,


Henrique não conseguiu pensar em qualquer desculpa que pudesse
justificar sua ausência sem expor seu interesse crescente em Cathy.
Além disso, sua amizade com a prima não permitiria que lhe
dissesse não. Sem contar que fora ele quem dera, mesmo que
acidentalmente, a Sara a ideia de fazer um vídeo ali.
Ao ouvir os comentários dele sobre o passeio que ocorrera dias
antes, a prima se deu conta de que ainda não havia feito qualquer
filmagem no museu de Sherlock Holmes. Sua fama no YouTube era
devida a dois elementos: suas canções originais, nas quais buscava
usar um instrumento ou idioma diferente; e as locações de seus
vídeos, que eram sempre imprevisíveis.

Muitos anos antes, quando o YouTube era recém-fundado, seus


canais ainda poucos e seu conteúdo, na maioria das vezes,
extremamente amador, Sara combinou dois talentos seus – a
música e a edição de vídeos – para se tornar, em pouco tempo, uma
sensação da internet. Nem todos de sua família apoiaram, mas os
pais acreditavam em Sara tanto quanto ela apostava em sua ideia.

Felizmente, não foram somente eles que enxergaram seu


potencial; logo em seguida, apareceram patrocinadores, que
pagariam por viagens dela pelo mundo, a fim de gravar seus vídeos
e conhecer novos músicos, em troca de publicidade de alguns
produtos. Alguns meses depois, a renda com o marketing já era
suficiente para ter uma vida confortável.

Além de uma famosa YouTuber, Sara também havia se tornado


uma artista respeitada e querida pelo público. Cantava em
português, inglês, francês e espanhol, alcançando cada vez mais
fãs. Sempre buscava um parceiro com algum talento excepcional
para tocar com ela.

Sua voz rouca e sensual e seu visual exótico também ajudavam


sua fama. Desde adolescente, ela mantinha o cabelo vermelho-vivo,
na altura dos ombros, o que contrastava com sua pele alva e seus
olhos escuros. Tatuagens espalhadas pelos braços completavam
seu estilo.

Sara tinha vinte e um anos quando recebeu, mais uma vez, o


apoio incondicional dos pais: foi quando decidiu lhes contar que
estava apaixonada por uma mulher. Os primos já sabiam, é claro,
mas mantinham segredo. Novamente, seus pais demonstraram que
o amor pela filha ia muito além de preconceitos sociais, o que lhes
custou novas brigas com diversos membros da família (em especial,
o senador Tilney).

Muitas paixões, corações despedaçados e novos seguidores


depois, um objetivo de Sara nunca mudou: sua eterna busca por
novos locais para as filmagens. Por isso, assim que ouviu sobre o
museu no número 221B da Baker Street, ficou curiosa. Ao visitá-lo,
teve certeza: qualquer vídeo que fizesse ali seria um sucesso.
Portanto, decidiu que faria três.

Agora, finalizando as filmagens do terceiro vídeo, Henrique


encontrava-se mais ansioso do que nunca; eles tinham trabalhado
quatorze horas por dia nos últimos três dias, o que não havia
permitido que ele fizesse nem uma visita sequer a Cathy. Ao menos,
a hora de vê-la estava próxima; eles já até tinham vindo para o
museu arrumados para o teatro; Krista não permitia atrasos.

— Acabou!

A palavra nunca soara tão deliciosamente libertadora, e


Henrique quase arrastou a prima até Chelsea. Chegaram
exatamente às oito horas, e Krista já os esperava na sala de estar.

— Cathy foi apenas pegar o casaco e já está descendo.

Henrique sentiu o coração bater forte contra o peito, mas


conteve-se. Afinal de contas, não poderia se envolver com ela, não
é mesmo? Catherine era jovem e inocente demais para ele.
Henrique não teria coragem de ter qualquer tipo de romance com
ela e, depois, retornar ao Brasil para não reencontrá-la. Isso a
magoaria, com certeza.

O corpo dele, no entanto, não parecia concordar com sua mente.


Sua respiração parou quando a viu adentrando o cômodo. Cathy
usava um vestido longo de seda azul-marinho, com decote em V,
expondo a pele de porcelana de seu colo. Tinha mangas curtas de
renda e um discreto laço na cintura. Naqueles primeiros dias,
Henrique havia admirado o rosto e os cabelos de Catherine, mas
agora o vestido permitia que notasse suas belas curvas.

Os grandes olhos dela o encaravam com expectativa, mas ele


manteve o silêncio. Foi Krista quem finalmente quebrou o feitiço:

— Se não sairmos neste segundo, vamos nos atrasar! — ela


reclamou, ansiosa pela partida.

Rico aproveitou a chance de ajudar Cathy a entrar no táxi para


segurar a pequena mão dela, que permaneceu bem protegida
dentro da mão dele durante todo o trajeto. O rapaz notou que os
pelos do braço da jovem escritora ficaram eriçados durante o
percurso, enquanto ele desenhava círculos na palma da mão dela.
Usou seu sobretudo para esconder o toque da vista de Sara, que
estava sentada do outro lado. Não adiantou: sua prima percebeu o
que se passava entre o casal.

Quando ouviu Krista pedir ao motorista que lhes levasse ao


Shakespeare’s Globe, Henrique percebeu que não tinha ideia de
qual era a peça a que assistiriam. Notando sua curiosidade, Cathy
lhe explicou:

— Depois que eu contei a Krista que adoramos “Sonhos de uma


noite de verão”, ela se lembrou de que está sendo apresentada, no
Shakespeare’s Globe, uma versão moderna da peça.

— É mesmo? — ele perguntou para Cathy por educação, pois


estava mais preocupado em admirá-la melhor.

Henrique mal a conhecia, mas havia sentido muita falta dela nos
últimos dias.

— Sim, — Krista respondeu, muito animada e orgulhosa de sua


ideia — a peça está muito elogiada. Parece que a adaptaram para o
século XXI e se passa em Nova Orleans. Contrataram uma banda
de jazz e tudo!
— Vamos todos nos sentar juntos? — Henrique estava mais
preocupado em passar a noite ao lado de Cathy do que com a peça
em si.

— Claro! — Krista respondeu.

A satisfação de Henrique foi tanta que ele apertou a mão de


Cathy. E ela respondeu chegando mais perto, acomodando seu
pequeno corpo de porcelana ao dele.

Ah, como o brasileiro estava em apuros!

Ao chegarem ao Shakespeare’s Globe, Henrique ficou


encantado com o interesse infinito de Cathy: cada canto do teatro
histórico merecia seu olhar, cada detalhe recebia sua admiração.
Ele lhe contou tudo o que sabia a respeito e passou boa parte do
primeiro ato admirando a atenção de Cathy, que mal se mexia de
tão compenetrada que estava na peça.

Krista havia conseguido lugares de frente para o palco, no


segundo andar. No térreo, no meio do teatro circular, os
espectadores que ficavam em pé se mexiam desconfortavelmente,
esticando o pescoço, para garantir uma boa vista. No palco, os
atores cantavam e moviam-se com naturalidade e coordenação
típicas de quem ensaiou as cenas centenas de vezes.

Durante o intervalo, Henrique se viu em uma situação inédita: ao


perceber que alguns rapazes não tiravam os olhos de Catherine, se
sentiu muito desconfortável.

— Aqui, Cathy, você parece estar com frio — falou e, sem


pensar muito, enrolou o próprio cachecol no pescoço da jovem,
cobrindo o decote do vestido.

— Na realidade, estou até confortável. Krista me emprestou...


— Deixe de ser teimosa! Claro que está com frio! Veja só, está
até azul! — ele disse, agora colocando o próprio sobretudo (grande
demais para ela, por sinal) sobre os ombros da ruiva.

— É a cor do meu vestido, Rico! — disse Cathy, que estava


ficando irritada, prestes a tirar o casaco, quando, quase como um
milagre, uma brisa fria soprou do Tâmisa. — Hummm, pensando
bem, acho que você tem razão. Esfriou um pouco...

— Está vendo? Você sempre deve ouvir a voz da experiência,


Cathy! Morei tanto tempo na região a ponto de conseguir prever
quando o tempo vai virar... — Henrique sentia-se triunfante,
especialmente quando ela passou a olhá-lo como se fosse o homem
mais genial do planeta.

Agora que a moça estava devidamente coberta, Rico passou os


minutos seguintes encarando — de uma maneira nada simpática —
os rapazes que observavam sua Cathy. Estava com o braço em
volta dos ombros dela. E não levou muito tempo para que os outros
se afastassem.

Qual era o problema dele? Henrique nunca foi daquele tipo de


homem ciumento que acha que mulher é sua propriedade! No
entanto, não conseguia suportar a ideia de outros homens
reverenciando a beleza de Catherine. Por sorte, o objeto da
confusão nada notou, pois iniciou uma conversa animada com
Krista.

— Dando uma de macho-alfa possessivo, Rico? Não é a sua


cara...

Como sempre, sua prima havia percebido o que acontecera.


Sara lia muito bem as pessoas, especialmente os filhos do senador
Tilney. Seu sorriso irônico lhe dizia que ela sabia da atração de
Henrique por Catherine. Talvez até mais do que ele próprio estava
preparado para admitir.
— Não sei do que está falando — ele afirmou, sem qualquer
convicção, enquanto retornavam aos seus lugares para o segundo
ato.

— Não se preocupe, primo. Seu segredo está a salvo comigo —


o tom dela era cheio de ironia.

— Não é nada disso... — foi a resposta de Henrique, tão baixa


que foi quase inaudível, mas nem ele mesmo acreditou nela.

O resto do espetáculo foi mais satisfatório para Henrique. Cathy


começou a tremer levemente, o que permitiu que ele, com ar de
cavalheiresca inocência, oferecesse a ela proteção contra o frio com
um dos braços ao redor de seu corpo. Ficaram assim, abraçados,
até o final da peça. Óbvio que ele teve que aguentar os olhares
divertidos e o sorriso maroto de Sara pelo resto do espetáculo. Seus
olhos pareciam dizer: “Não é nada disso mesmo?”

Como retornariam a endereços distintos, foram Krista, Sara e


Cathy em um táxi; e Henrique, em outro. Na despedida, o rapaz,
que segurava a mão de Cathy, ficou na dúvida do que seria melhor
fazer: deveria beijá-la no rosto? Abraçá-la? Apenas desejar “boa
noite”? E o sorriso sarcástico de Sara, que ainda o encarava
desavergonhadamente, em nada o auxiliou.

Enxergando a timidez nos olhos de Catherine, ele se viu,


involuntariamente, beijando a parte interna de seu pulso. Virou-se e
foi embora, sem observar que reação havia causado.

— Cathy? Ainda está acordada? — Krista perguntou do outro


lado da porta.

Rapidamente, a jovem fechou o laptop e escondeu-se embaixo


dos cobertores. Krista abriu um pouquinho a porta, achou que
Catherine estivesse dormindo, e fechou a porta novamente. Cathy
não queria esconder seu novo livro de Krista, mas também não
estava preparada para admitir a principal razão (ou melhor, pessoa)
para sua inspiração...

Sempre que ela se encontrava com Rico, páginas e páginas


praticamente se escreviam sozinhas em sua mente... Ao mesmo
tempo que os sentimentos por ele a inspiravam, eles também a
deixavam um tanto quanto ansiosa: e se não fosse correspondida?

Bem, ao menos Lady Catherine não precisaria se preocupar com


isso...
Capítulo 4

“Devo ater-me a meu próprio estilo e seguir meu próprio


caminho. E, apesar de eu poder jamais ter sucesso desse modo,
estou convencida de que falharia totalmente de qualquer outro.”

(Jane Austen)

Backhan, julho de 1815.

Quando a viu pela primeira vez, Catherine achou que Christine


Allen parecia um anjo. Alguns cachos dourados escapavam do seu
coque trançado, seus olhos azul-piscina eram vivos e curiosos; seus
lábios, vermelhos curvados para cima, em um sorriso que era, ao
mesmo tempo, amigável e irônico.

Ela era uma dama completamente diferente de todas aquelas


que Catherine conhecia, e era exatamente por isso que a mulher
logo despertou o interesse da menina. Christine era uma francesa
de família abastada, mas não nobre. Se sua nacionalidade e falta de
sangue aristocrático não eram motivos suficientes para gerar
fofocas das mais ofensivas entre os habitantes de Backhan, então o
fato de a nova condessa ser quinze anos mais jovem que seu rico
marido de sangue real, certamente era.

A nova condessa de Fullerton nem havia se mudado para a


residência oficial do conde, a antiga abadia, e a cidade inteira já
havia inventado diversas histórias sobre ela. Cada vez que ouvia
alguma teoria nova, Catherine ficava ainda mais curiosa para
conhecer a mulher. Deveria ser um escândalo de dama. E era
exatamente por isso que a garota mal podia esperar para se tornar
sua amiga.

E Lady Catherine Morland não poderia ter ficado mais


encantada. A condessa era engraçada, de um jeito sarcástico,
adorava falar de política e economia e provocava o marido sem
qualquer discrição ou cerimônia. Ele, por sua vez, sempre a olhava
com admiração, gargalhava de suas provocações, escutava
seriamente suas opiniões e – o que mais chocou Catherine –
demonstrava em público carinho pela esposa.

Foi naquela manhã de outono, aos dez anos de idade, quando


conheceu a condessa e mal reconheceu o conde de Fullerton, que
Catherine decidiu: somente se casaria se seu relacionamento
pudesse ser escandalosamente romântico. Oito anos e incontáveis
cavalheiros enfadonhos e arrogantes mais tarde, a jovem já havia
aceitado seu futuro como uma solteirona.

Pelo menos, seria uma solteirona rica com Christine Allen como
amiga. Para ela, era suficiente.

— A senhorita não pode ir sozinha até a abadia!

O sermão da Sra. Smith a trouxe de volta a Greenwoods House.

— A condessa tem convidados em sua propriedade.


Cavalheiros, pelo que ouvi dizer. A senhorita precisa estar
acompanhada para visitá-la!

Como a Sra. Smith não suportava longas caminhadas, menos


ainda longas cavalgadas, e a carruagem da família estava sendo
usada pela baronesa de Northanger, a mulher queria evitar a todo
custo a visita à propriedade da Viúva Negra. Havia outra razão
também para seu desconforto: os aldeões diziam que a abadia era
amaldiçoada, um lugar onde vários condes haviam morrido de
males súbitos e misteriosos.

Ou seja, a Sra. Smith teria que insistir para que Lady Catherine
não fosse visitar a amiga, pois de jeito algum ela iria visitar a Abadia
da Morte, como era apelidada a residência da condessa de
Fullerton.
— Eu marquei um compromisso com a condessa — a moça
persistiu.

— Compromissos podem ser desmarcados.

A Sra. Smith também não desistiria facilmente.

— Em cima da hora assim? Seria uma falta de etiqueta


imperdoável, não é isso que a senhora sempre me diz?

Catherine usou o veneno da Sra. Smith contra a própria.

— Mas... Mas... Há cavalheiros lá!

— E agora eu não posso mais ir a lugares onde há cavalheiros?


Então devo dizer ao papai que não vou mais a bailes? — perguntou
ela, em tom de deboche.

— Não, não foi isso que eu quis dizer, e a senhorita sabe muito
bem disso — disse a Sra. Smith entredentes, as bochechas
vermelhas de raiva. — Eu quis dizer que uma lady não deveria ficar
a sós com cavalheiros a quem jamais foi apresentada.

— Pois a senhora se esquece de que, caso haja de fato


convidados na casa da condessa, eu serei apresentada a eles. E eu
não estarei sozinha em nenhum momento, pois, além da condessa,
a senhora também estará lá.

— Eu me recuso a ir até aquele lugar! Se você insistir em fazer


essa visita, terá que fazê-la sem mim!

Mal sabia a Sra. Smith que era exatamente isso que Catherine
desejava.

Até onde Lady Catherine sabia, a propriedade dos Allen não


tinha um nome oficial. Ao menos, não um nome de que as pessoas
de Backhan se lembrassem. Muitos acreditavam que se tratasse da
primeira construção da região, que havia servido de abadia alguns
séculos antes.

Desde que mortes estranhas começaram a acontecer no local,


muitos anos atrás, quando o conde de Fullerton ainda era o bisavô
do falecido marido de Christine, os moradores da região passaram a
apelidar o lugar de Abadia da Morte.

O marido de Christine sempre achara graça daquele apelido, ria


sempre que o ouvia sendo sussurrado por um dos serviçais, e sabia
que seu pai, que tinha um humor mórbido como o dele, também
devia gargalhar sobre aquilo.

Catherine imaginava se ele acharia aquele nome tão engraçado


se soubesse que ele próprio seria uma vítima de sua casa,
especialmente se tivesse conhecimento de que muitos iriam culpar
sua amada esposa por sua morte inexplicável.

A jovem lembrava-se, com pesar, de como sua amiga ficara após


a morte do conde de Fullerton. Nos últimos dois anos, os sorrisos
haviam se tornado uma raridade nos lábios de Christine, seus olhos
haviam perdido o brilho; suas palavras, o humor. Ela mal saía de
casa, apenas o fazia para ir à missa ou para caminhar até a
sepultura do marido, e evitava as pessoas de Backhan, exceto
Catherine.

Seis meses antes, ela havia deixado a cidade para passar um


tempo com sua irmã mais velha em Paris. O que quer que tivesse
se passado em seu país de origem a havia ajudado. A condessa
que ela havia visto na noite anterior, mesmo não havendo ainda
reconquistado o espírito de outrora, tinha ao menos recuperado
parte de sua alegria.

— Bom dia, Milady — disse o mordomo da condessa, Philip, que


abriu a porta com um sorriso afável.
Ela sempre gostara do homem, que parecia estar eternamente
sereno.

— Bom dia! Há quanto tempo não o vejo! — ela comentou com


animação.

— Sim, senhorita. Tempo demais. Esta casa sempre fica mais


alegre com a presença de milady e da condessa.

Ele parecia ter sinceramente sentido a falta delas.

— Obrigada, Philip.

Catherine ouviu o som inconfundível da gargalhada da dona da


casa, deu uma olhada no hall de entrada, que estava vazio, então
voltou os olhos para ele.

— Tenho um compromisso com a condessa.

— Sim, milady. Ela já a aguarda na sala de visitas — Philip falou


e limpou a garganta antes de continuar. — Ela a espera juntamente
de seu marido.

— Catherine!

Como sempre, Christine estava lindíssima. Usava um vestido


azul-escuro que contrastava com sua pele alva e seus cabelos
claros. A roupa tinha mangas curtas e bordados na barra da saia.
Delicadas pulseiras de diamante adornavam os braços da
condessa, e uma tiara combinando decorava o topo de sua cabeça,
fazendo-a parecer uma princesa.

Atrás dela, um rapaz sorridente (e muito atraente, de um jeito


bem exótico, Lady Catherine logo notou) encarava-a com uma
mistura de admiração e paixão. Ele tinha pele morena, olhos
escuros e cabelos negros, um queixo forte, ombros largos e uma
postura imponente. Certamente, não era inglês.

— Christine!

Catherine aceitou com prazer o abraço da amiga. A anfitriã


afastou-se um pouco e segurou-a pelos braços.

— Quero apresentá-la a alguém — disse Christine, virando-se


para o rapaz, que ainda a observava com olhar de adoração. —
Este é Sebastião Teles. Meu marido — ela anunciou, orgulhosa.

Catherine ficou surpresa e feliz ao ver que a mesma adoração


que vira nos olhos dele agora estava espelhada nos dela.

— Christine falou-me muito da senhorita, Lady Catherine.

O marido da condessa segurou levemente a mão enluvada da


visitante e a beijou rapidamente. Apesar do gesto formal, o sorriso
que o homem a oferecia era caloroso. Ele se mostrava
verdadeiramente contente em conhecê-la.

— Assim como meu irmão. Estava muito curioso para descobrir


se a senhorita seria como eu imaginava.

— Por favor, chame-me de Catherine — ela respondeu de forma


simpática, até digerir o que o Sr. Teles acabara de lhe dizer.

Ela havia escutado errado? Havia ele dito...

— Seu irmão, senhor?

— Por favor, pode me chamar de Sebastião.

Ela nem reparou no sorriso dele desta vez, apenas queria


assegurar-se que o havia escutado corretamente.

— Sobre o meu irmão, acredito que o tenha conhecido assim


que nós chegamos aqui. Apesar de as circunstâncias não terem
sido... ideais...

Com isso, a condessa virou a cabeça para cima e gargalhou.


Catherine geralmente divertia-se com as risadas escandalosas de
Christine; não desta vez. Em vez disso, imaginava quem seria o
irmão misterioso de Sebastião, e a resposta, a essa altura já clara e
óbvia para todos os leitores, ainda assustava demais a moça para
que ela pudesse aceitá-la.

Não pode ser ele; não pode ser ele, ela mentia para si mesma.
Por favor, ele não, ela implorava, desejando ter rezado com mais
frequência, como a Sra. Smith sempre lhe pedia.

— Qual é a piada? — uma voz familiar perguntou atrás de


Catherine, uma voz rouca, com sotaque exótico, e tom debochado.

Era ele. O estrangeiro.

Apenas a visão da Lady já o fazia estremecer. Ele jamais sentira


tamanha atração por uma dama antes. Obviamente, desejo e paixão
jamais lhe faltaram em relação ao sexo feminino.

Mas aquela química, aquele desejo de beijá-la toda vez que seus
lábios franziam quando ela estava irritada; aquela vontade
irresistível de tocá-la sempre que sua pele corava; a necessidade,
que se espalhava como fogo por seu corpo, de se aproximar quando
a via; não, jamais sentira aquilo por ninguém.

Ela o desafiava, o irritava e fazia questão de demonstrar sua


superioridade. Comportava-se muitas vezes como uma garotinha
mimada e orgulhosa, mal-agradecida e debochada. Ao mesmo
tempo, exibia uma independência de mente e de espírito que ele
admirava profundamente.

Como se tudo isso não fosse suficiente para deixá-lo


profundamente fascinado pela moça, Lady Catherine ainda por cima
havia nascido com todos os atributos físicos que ele desejaria em
uma mulher. Se fosse imaginar sua mulher dos sonhos, não
conseguia pensar em como poderia ser mais bela e mais
encantadora que aquela jovem.

E, naquele momento, Catherine estava especialmente linda.

Usava um vestido de caminhar azul-claro, com mangas


compridas e uma faixa azul-escura presa sob o busto. Os cabelos
estavam presos em um coque simples, e algumas mechas de
cabelos ruivos caíam em volta de seu rosto. Felizmente, ela já havia
tirado da cabeça um chapéu horroroso, repleto de enfeites e flores,
conforme a moda vigente (que ele detestava, por sinal). Assim, ele
podia admirar melhor seus cabelos sedosos.

Uma dama da sociedade ficaria em pânico por ser vista por um


cavalheiro solteiro em condições tão pouco comportadas; Lady
Catherine, entretanto, não parecia estar nem um pouco preocupada
com seu estado. Demonstrava surpresa, irritação, o que a deixava
ainda mais deslumbrante.

— Aparentemente, você é a piada, irmão — Sebastião comentou


depois de limpar a garganta. Seus olhos iam da amiga de sua
esposa ao seu irmão. — Catherine, deixe-me apresentá-la a meu
irmão, Henrique Teles.

Sem palavras, respirando rapidamente pela boca e com as


bochechas muito rosadas, Catherine ofereceu a mão a Henrique,
sem olhá-lo nos olhos. Pelo contrário: seus grandes olhos castanho-
claros analisavam cada centímetro dele, o que o divertiu. Então,
também está interessada, ele pensou.

Sabendo que arriscava sofrer rejeição por parte da moça,


Henrique segurou sua mão com mais força do que era aceito pela
sociedade; pelas regras da boa etiqueta, ele mal deveria tocar seus
dedos. Apesar de a pele dela estar coberta pelo tecido da luva,
Henrique podia sentir o calor emanando do corpo da jovem,
aquecendo-o. Felizmente, ele havia retirado as suas próprias luvas
no momento em que retornou da cavalgada matinal, senão suas
mãos estariam separadas por duas camadas de tecido.

Mais uma vez contrariando os bons modos, passou mais tempo


que o devido com os lábios contra o tecido que cobria a delicada
mão da Lady, o suficiente para que ela percebesse, não o bastante
para ser escandaloso.

— É um prazer finalmente ser apresentado formalmente à


senhorita, Lady Catherine — Henrique comentou com um olhar
diabolicamente divertido, o que fez o rubor nas faces de Catherine
aumentar.

Por sorte, a moça estava virada de costas para seus anfitriões,


que não perceberam o que se passava entre os dois.

— Enfim, descobri o seu nome, Sr. Teles.

Catherine fez questão de ser formal e tratá-lo sem a intimidade


que rapidamente adquirira com o irmão dele. O gesto não passou
despercebido por Henrique, que desejava receber da moça
autorização para dirigir-se a ela pelo primeiro nome, ao menos em
privado, como Sebastião acabara de fazer.

Por outro lado, a tentativa de Catherine de tratá-lo com frio


distanciamento apenas o deixou mais instigado a se aproximar.

— Vejo que sim, milady.

A condessa e seu marido não entenderam muito bem a


conversa, mas a troca de olhares entre o irmão de um e a amiga da
outra foram suficientes para indicar a eles que havia ali muito mais
do que estava sendo dito. O breve intercâmbio foi interrompido por
Philip e uma jovem criada, que traziam chá, sanduíches e bolos.

— Por favor, sirvam-se — a condessa ofereceu.


Henrique notou, com uma risada interna, que a Lady se sentou
no pequeno sofá ao lado da amiga, com o claro intuito de evitar
sentar-se ao lado dele. Como se isso fosse me impedir de ficar
próximo a ela, ele pensou.

Serviu-se de alguns sanduíches e acomodou-se em uma


poltrona de tecido com listras douradas e azuladas, que combinava
com as cortinas e estava posicionada em frente ao sofá. Moveu-se
discretamente até deixar a poltrona com o ângulo perfeito, voltado
diretamente para Lady Catherine. E não tirou os olhos dela.

A jovem passou a hora seguinte conversando animadamente


com a condessa e seu novo marido, respondendo de forma
monossilábica às indagações de Henrique, o que apenas o deixou
mais motivado a chamar a atenção dela.

Depois de algumas tentativas fracassadas de iniciar uma


conversa com a moça, ele decidiu que seria suficiente, naquela
tarde, apenas apreciar sua beleza, seus gestos, a forma como seus
lábios alargavam-se em sorrisos doces, a maneira como suas
expressões demonstravam seu prazer em conversar com a
condessa, o brilho em seus olhos sempre que Sebastião lhe dizia
algo divertido.

Sim, Lady Catherine era definitivamente a mulher mais atraente


que ele jamais conhecera.

— Poderia ao menos disfarçar seu interesse, Henrique? —


Sebastião falou após caminhar até o irmão quando este se levantou
para se servir de bolo. — Catherine fez de tudo para demonstrar sua
indiferença.

— E é precisamente por isso que eu sei que ela não me é


indiferente, Sebastião — Henrique respondeu, com um sorriso de
satisfação, enquanto o irmão revirava os olhos.

Sim, ela não me é indiferente. Se ela fosse tão indiferente, não


precisaria de tamanho esforço para fingir que não estou no cômodo.

— Conseguiu resolver aquele problema da herança, Christine?

— Você quer dizer, do bastardo?

Apesar de a condessa parecer muito à vontade na frente do


marido, Catherine não estava certa de que poderia conversar com
Christine sobre um tema tão sensível. Por isso, evitara mencionar o
falecido conde e as questões legais envolvendo a herança dele na
presença de Sebastião e do irmão dele.

Sensível à necessidade das mulheres em falar a sós, Sebastião


havia convidado Henrique para fumar um charuto com ele em outro
aposento, convite que seu irmão havia relutado em aceitar. Por fim,
ambos saíram da sala de visitas, deixando a anfitriã e sua jovem
amiga no conforto da companhia uma da outra.

— Sim, do... bastardo.

Quando o conde faleceu, deixando uma esposa sem filhos


homens, Catherine teve medo de que algum parente distante
pudesse aparecer, exigindo o título e as propriedades de Edward
Allen, o conde de Fullerton.

De fato, alguém havia enviado uma carta bem grosseira e


ameaçadora ao escritório londrino do Sr. Clayton, o advogado do
conde e da condessa. Uma antiga amante de Edward, com quem
ele tivera um caso antes de herdar o título ou de se casar,
demandara que o filho se tornasse o novo conde.

Como era fruto de uma relação ilegítima, o rapaz recebera


apenas aquilo que o conde lhe havia deixado explicitamente em
testamento: uma casa modesta, porém, confortável, onde morara
desde que Edward soubera da gravidez da amante; algum dinheiro
que sustentaria o filho e a mãe pelo resto da vida, senão com luxo,
ao menos com conforto; e alguns animais que viviam nas terras
agora pertencentes ao jovem.
Os bens deixados à mãe e ao filho haviam sido uma exigência
da condessa, que pedira que eles fossem incluídos no testamento
quando o conde resolvera reescrevê-lo, após o casório.
Infelizmente, a herança deixada não satisfizera, nem de longe, as
exigências da antiga amante, que esperava ver o filho como
proprietário titular da abadia.

— O Sr. Clayton conseguiu resolver tudo, graças aos céus. Não


que aquela mulher tenha facilitado o trabalho dele. Enviava-lhe
cartas quase que diariamente, durante meses, cada uma com uma
nova ameaça ou ofensa.

— Você chegou a conhecê-los?

Como a condessa jamais conseguira engravidar do conde, ela


demonstrara o interesse em adotar, nem que informalmente, o filho
ilegítimo de Edward. Tal atitude, se levada a cabo, teria se tornado o
escândalo mais comentado da década. Entretanto, a mãe do rapaz
vetou qualquer interação com o casal.

O próprio conde não via o filho havia muito tempo, desde que o
menino tinha doze ou treze anos, época em que o nobre fazia visitas
rotineiras à propriedade dada à antiga amante. Segundo o conde, a
mulher sempre fora doce e gentil, mas algo mudara ao longo do
tempo. À medida que o garoto crescia, a mãe passara a proibir as
visitas do pai, e Edward se mantivera longe deles desde então.

Catherine sabia que, por um lado, Christine havia ficado


arrasada com a decisão da mulher de afastar o conde do filho. Por
outro, entendia que era melhor assim: a condessa de Fullerton já
atraía fofocas demais para si, não precisava de novas fontes para
mais acusações.

Após a morte de Edward, Christine havia confessado a Catherine


que ainda planejava conhecer o rapaz. Desejava tentar algum tipo
de relação com ele, em nome do falecido marido, que morrera com
o desgosto de não ter insistido mais em manter uma relação com
ele. O conde sempre fora do tipo de homem que preferia respeitar o
desejo das mulheres. A condessa, por outro lado, sempre estivera
habituada a satisfazer seus próprios desejos.

— Infelizmente, não. Não que eu faça questão de conhecer


aquela mulher. Mas eu ainda nutria esperança de, um dia, conhecer
o único filho de Edward.

Ao ouvir aquelas palavras, Catherine viu, pela primeira vez


desde que retornara de Paris, tristeza no rosto de Christine.

— O Sr. Clayton achou melhor não insistirmos no assunto para


evitar que aquela mulher ficasse ainda mais enfurecida. Estúpida! —
completou a condessa.

— Sim, ela não percebe que está prejudicando mais o filho do


que a qualquer outro. Aqui, ele poderia ter uma educação muito
superior àquela que deve ter tido com a mãe.

— Eu não o educaria aqui; ele teria os melhores instrutores que


Londres tem a oferecer, depois iria às melhores instituições de
ensino da Europa — Christine comentou, indignada. — Mas, ao
menos, minha consciência está limpa. Eu fiz o que pude.

Catherine concordou com a cabeça, e sua admiração pela


condessa cresceu ainda mais. Que outra pessoa seria tão generosa
a ponto de insistir em cuidar de alguém que não apenas não era seu
filho como era o filho ilegítimo do marido, sem se preocupar com os
escândalos que aquele ato poderia gerar? Seus pais provavelmente
nem sequer receberiam o rapaz em casa, muito menos criá-lo.
Catherine queria falar mais sobre o assunto, mas as lágrimas nos
olhos da condessa não permitiram que assim o fizesse. Ela virou o
rosto para oferecer um tempo para a amiga se recompor, olhando
para o relógio de pêndulo de mogno que ficava no canto do cômodo
e assustou-se com o horário. Em menos de uma hora, o jantar seria
servido, e seus pais não permitiam atrasos. Ademais, se eles
descobrissem que saíra sem uma dama de companhia, ela
provavelmente ficaria presa em casa pelo resto do verão.
— Perdoe-me, Christine, mas devo ir.

A condessa de Fullerton pareceu acordar de seus devaneios,


levou alguns segundos para recuperar-se da tristeza que a tomou
por um momento, e respondeu:

— Ah, claro.

— Se eu me atrasar para o jantar... E ainda preciso passar no


chalé...

Catherine queria deixar claro que ia contra sua vontade. Se


pudesse, ficaria uma quinzena inteira hospedada na casa da amiga.
Não que lhe faltassem convites para fazê-lo. Faltavam-lhe apenas
pais compreensivos para permiti-lo.

— Use a minha carruagem.

— Não, não precisa — Catherine negou, apesar de o céu indicar


que a chuva estava próxima. — Não quero incomodá-la.

— Não é incômodo algum. Robert ia à cidade de qualquer forma


para comprar algumas coisas para o jantar.

Robert, o cocheiro oficial dos Fullertons, era um homem de meia-


idade, apaixonado por seus cavalos e extremamente cuidadoso com
as carruagens da família. Na cidade, diziam que ele as tratava com
mais carinho do que tinha com as próprias filhas. Era famoso por já
ter se recusado a levar pessoas da alta sociedade de Backhan
devido ao fato de temer que sujassem os preciosos forros das
carruagens. Ele, no entanto, adorava Catherine. E ela, preocupada
que estava com o horário, não negaria o favor que a amiga lhe
oferecia.

— Muito obrigada, Christine — disse Catherine e deu-lhe um


beijo em cada bochecha.
— De nada, minha querida. Agora, vá logo. Quero poder vê-la
em breve. E sei que isso não ocorrerá se você se atrasar.

Catherine seguiu as ordens da condessa de imediato: pegou de


volta as luvas, que havia retirado para comer sanduíches e bolos;
recolheu o chapéu, que estava caído na poltrona (estranhamente,
parecia amassado, como se alguém houvesse sentado em cima
dele); e recebeu de Phillip o casaco curto de casimira que havia
trazido consigo por insistência da Sra. Smith. O mordomo abriu a
porta para ela, e Robert, numa carruagem, a aguardava em frente à
entrada.

— Quanto tempo, Lady Catherine! — Robert a cumprimentou


com um sorriso afável.

— É muito bom revê-lo, Robert — ela falou e sorriu de volta.

— Devo deixá-la em Greenwoods House? — ele perguntou já


abrindo a porta da carruagem para ela.

— Não. Preciso ir ao Chalé de Greenwoods antes de voltar para


casa — respondeu a jovem, antes de subir no veículo.

O cocheiro chegou a se movimentar para oferecer ajuda, mas,


como Catherine ainda não havia calçado de volta as luvas, ele a
observou entrar sozinha na carruagem. Deixou que a moça se
acomodasse, fechou a porta e foi até o banco de onde guiaria os
cavalos. Estava prestes a dar a ordem aos animais, quando uma
voz o interrompeu.

— Robert! Espere!

Não, Catherine pensou. Não pode ser. Talvez, ele esteja aqui
apenas para dar um recado a Robert, ela tentou se acalmar. Talvez,
tenham se esquecido de dar dinheiro para Robert comprar os itens
para o jantar, ela imaginou.

— Vou com você até a cidade.


NÃO!!!

Uma coisa era ignorar o Sr. Henrique Teles enquanto estava


cercada de outras pessoas. Outra situação completamente diferente
era sentar-se com ele pelos próximos quinze minutos. A sós. Em
uma carruagem apertada.

— Que bom, Sr. Teles. Se não for incômodo, vou passar no


Chalé de Greenwoods antes.

— Não, não é incômodo algum — Henrique disse, ao abrir a


porta e dar de cara com Catherine.

— Lady Catherine está dentro da carruagem — o cocheiro


anunciou o óbvio.

— Ah, eu sei — Henrique respondeu, em um tom de voz que


apenas Catherine podia ouvir. — Por que acha que decidi ir até a
cidade?

Como sempre acontece em situações constrangedoras, todas as


circunstâncias apenas as deixam ainda mais constrangedoras.
Óbvio que não bastava Catherine ter que ficar sozinha com
Henrique em uma pequena carruagem por quinze minutos. Ah, não.
Essa carruagem tinha que estar com um dos encostos cheios de
sacolas com vestidos da condessa a serem enviados ao costureiro,
deixando apenas um pequeno espaço ao lado de Catherine vazio.
E, quando esta autora diz que o espaço ao lado da Lady era
pequeno, ela quer dizer... minúsculo. Totalmente insuficiente para
um homem com o porte do Sr. Teles, o que não pareceu incomodar
o cavalheiro nem um pouco. Muito pelo contrário. Sem conseguir
disfarçar o sorriso, Henrique ajeitou-se ao lado de Catherine, de tal
maneira que ela quase teve de se sentar sobre seu colo
(novamente), e fechou a porta atrás dele, fazendo sinal para que
Robert começasse a viagem.
— Não há espaço para nós dois aqui, senhor! — Catherine
protestou, praticamente cuspindo fogo, tentando, em vão, afastar-se
do homem.

— Se a senhorita parar de se mexer tanto, verá que cabemos os


dois confortavelmente — ele disse em tom irônico.

— Onde, senhor? Um sobre a cabeça do outro? — ela


esbravejou, irritada.

Como se já tivesse feito isso dezenas de vezes, Henrique a


agarrou pela cintura e a colocou sobre uma das pernas,
espalhando-se pelo único banco vago.

— Melhorou, senhorita?

— Senhor, não podemos viajar assim! É absolutamente


inapropriado, alguém pode nos ver e...

Henrique inclinou-se e, deixando um dos braços firmes em torno


da cintura da moça, evitando que escapulisse, fechou a cortina
direita. Depois, colocando-a sobre a perna oposta, trocando o braço
que usava para segurá-la, fechou a outra cortina.

— Está melhor assim? Sua reputação ficará segura.

— Solte-me! Isso é um absurdo! — ela queria esbofeteá-lo, mas


mal conseguia vê-lo, enxergava apenas um vulto.

— Por que essa conversa parece tão familiar?

— Porque o senhor já me desrespeitou antes, se não se recorda.

Henrique apertou a cintura de Catherine antes de dizer:

— Ah, recordo-me sim. Foi naquela vez que eu salvei a vida da


senhorita. E de um inocente cavalo, se me lembro bem.
— Abra as cortinas! AGORA! — ela ordenou, ainda tentando sair
do abraço do cavalheiro.

— Claro — ele sussurrou no ouvido da moça, o que a fez parar


de se movimentar. Não queria admitir, mas, no fundo no fundo, ela
havia desejado que ficassem naquela posição novamente, por mais
comprometedor que aquilo fosse. — Entretanto, se eu abrir as
cortinas, alguém pode nos ver, e, como já tivemos essa conversa
anteriormente, reputações podem ser danificadas.

— Humph! — a Lady cruzou os braços e fez beicinho, mesmo


que Henrique não pudesse vê-la.

— Agora, se a senhorita preferir, posso ir para o lado oposto da


carruagem e sentar-me sob os vestidos de Christine. — Catherine
sentia o hálito dele soprando contra sua nuca, deixando-a arrepiada.

Se fosse uma verdadeira dama, ela teria obrigado o cavalheiro a


sentar-se à sua frente. Provavelmente, nem sequer teria permitido
que Robert seguisse viagem enquanto estivesse sozinha com um
homem, sem dama de companhia. No entanto, já deve estar mais
que claro para os leitores que Lady Catherine era tudo, menos uma
perfeita dama. Portanto, sua resposta foi:

— Humph.

Ela conseguia sentir o sorriso de Henrique atrás de si, e a


respiração dele contra a pele dela. Na metade do caminho, ao
passar por um buraco, a carruagem balançou violentamente.
Catherine segurou-se nas pernas de Henrique a fim de buscar
equilíbrio, e para descobrir que o homem parecia ser
completamente feito de músculos.

Sim, ela havia finalmente tido a chance de analisá-lo. E, sim,


havia notado que Henrique, apesar de esbelto, era bastante
musculoso. E sim, o toque dele a fazia derreter por dentro. E, sim,
ainda estava agarrada às coxas dele, o que só percebeu quando
Henrique limpou a garganta.
— A senhorita está bem? — perguntou ele à moça, quando a
questão deveria ter sido dirigida a ele próprio.

Ele não deveria ter entrado na carruagem. Controlar-se perto de


Catherine era uma tarefa infinitamente mais difícil do que ele
imaginara inicialmente. Henrique queria apenas provocá-la, e,
agora, o provocado era ele. Não deveria ter colocado ambos
naquela posição, na qual ele arriscava a reputação de uma moça
inocente. Como pôde ser tão egoísta, se comportar de forma tão
irresponsável com uma dama inexperiente e desacostumada com os
desejos e as ânsias masculinas?

Agora, teria de sofrer as consequências de suas próprias


artimanhas. Iria ficar imóvel até chegarem ao Chalé de Greenwoods.
E depois... E depois a evitaria. Jamais ficaria a sós com ela
novamente. Senão, colocaria a reputação dela em risco. Outra vez.

Henrique já tivera casos com diversas mulheres, mas jamais


uma moça na posição de Catherine, tão jovem e inocente. Ele não
poderia dar mais nenhum passo. Não poderia – não iria – se
aproveitar da vulnerabilidade dela. A não ser que a Lady tocasse em
suas pernas novamente. Aquilo quase o matara de desejo. E o pior:
ela não tinha ideia, não tinha noção do efeito que causava nele.

— O Chalé de Greenwoods! — Robert anunciou do lado de fora,


e Henrique suspirou, aliviado.

De repente, uma pergunta surgiu em sua mente.

— Por que Robert vai deixá-la aqui?

Henrique quis saber, desconfiado. Teria a moça saído de casa


escondida, de forma que não pudesse retornar com a carruagem da
condessa? Em vez de admitir suas suspeitas, ele decidiu provocar a
jovem:

— Por acaso é um convite para que eu vá com a senhorita, para


ficarmos a sós neste “chalé”?
— Seu tolo arrogante! — ela o acusou, fazendo-o rir. A porta
estava semiaberta, mas o braço dele estava firme em volta da
cintura de Catherine, e ela sabia que não seria solta enquanto não
se explicasse. — Vou visitar a Sra. Wilson, nossa antiga cozinheira.
Eu tento visitá-la todos os dias para lhe fazer companhia.

— Ela está enferma?

Henrique estava impressionado. Não conhecia muitas damas da


sociedade que se preocupassem tanto com seus criados.

— Ela ficou cega alguns anos atrás, em um... acidente bastante


bizarro.

— Que tipo de acidente?

Notou a moça remexendo-se desconfortavelmente, e sua


curiosidade logo se transformou em suspeita. Respirou fundo,
tentando ignorar o fato de que o jeito como Catherine movimentava-
se em seu colo o deixava com um desejo quase insuportável de
tomá-la em seus braços, e perguntou novamente:

— Catherine, que tipo de acidente?

— É Lady Catherine para o senhor — ela disse, entredentes, e


ele apertou, mais uma vez, sua cintura.

A jovem decidiu explicar de uma vez, senão se atrasaria para o


jantar e não teria tempo de ver a pobre Sra. Wilson.

— Pouco tempo depois de o conde adoecer, a cozinheira da


abadia deixou o local sem explicações. Papai, que era muito
próximo ao conde, enviou-lhe a Sra. Wilson para ajudar, enquanto
eles não encontravam uma substituta. Uma noite, ela disse ter
escutado um barulho na cozinha, e, quando adentrou o cômodo, um
homem desconhecido teria jogado água escaldante em seus olhos.

— Meu Deus! Ele jamais foi encontrado?


— Não. E a ajudante de cozinha que encontrou a Sra. Wilson
também alegou não ter visto nenhum homem desconhecido na
casa, e o único barulho que teria ouvido foi quando a Sra. Wilson
caiu no chão. O médico que a atendeu acredita que ela pode ter
ficado confusa, pois sua cabeça bateu com força quando ela caiu.

— Que terrível!

Henrique começou a se questionar se a abadia não merecia, de


fato, a fama de mal-assombrada da qual todos na cidade falavam.

— Sim. A Sra. Wilson insiste em sua versão da história até hoje.

— O acidente com a Sra. Wilson chegou a ser investigado?

— Sim, mas tampouco encontraram vestígios de um estranho


ali... Então, o caso foi esquecido... Assim como a Sra. Wilson... —
Catherine comentou, com tristeza na voz.

— Ao menos, a senhorita não a esqueceu. Faz questão de visitá-


la todos os dias. É muito gentil da sua parte — Henrique observou,
tentando animá-la.

— Não é qualquer inconveniente. A Sra. Wilson é adorável — ela


virou o rosto para trás para respondê-lo, e, quando Henrique
encarou seu sorriso, a poucos centímetros de distância, seu coração
quase parou.

Se ficasse mais um momento rodeado por Catherine, teria de


tocá-la, beijá-la, e...

Espere um instante. Ela havia aproveitado sua distração para se


desvencilhar dele e agora estava saindo da carruagem sem se
despedir? Ah, não! Como por mágica, o controle dele foi por água
abaixo, e Henrique segurou a mão dela, a porta da carruagem
entreaberta. Sentiu uma corrente ao tocá-la, e foi quando notou que
nenhum dos dois usava luvas.
— Foi um prazer, Lady Catherine — ele disse, depois de limpar a
garganta algumas vezes. A voz saiu rouca e baixa.

Catherine o encarou atônita, sem conseguir pronunciar nem uma


palavra sequer. Ele sentiu uma vontade arrasadora de percorrer
todas as veias de seu corpo, gritando-lhe, que desejava beijá-la.

Não, preciso me controlar, disse a si mesmo. Tirou os olhos da


boca da jovem e encarou sua delicada mão, que parecia uma
miniatura dentro da dele. Virou-a até que o pulso alvo de Catherine
estivesse voltado para cima. Sem pensar, abaixou a cabeça e tocou
o pulso dela com seus lábios. Catherine prendeu a respiração.

Com esforço, Henrique afastou-se, soltando-a. Ela deixou a


carruagem sem dizer uma palavra, com um olhar surpreso e o rosto
rosado. Se o tivesse olhado com raiva, teria sido mais fácil. Se o
tivesse desprezado, ele teria se convencido de que deveria ficar
longe dela. Ao invés disso, Henrique mal podia esperar para tocá-la
novamente.


Capítulo 5

“Aquele, homem ou mulher, que não sente prazer na leitura de


um bom romance deve ser insuportavelmente estúpido.”

(Jane Austen)

São Paulo, 25 anos atrás...

A primeira vez que Henrique disse “Eu te amo” foi para uma
pequena menina de bochechas rosadas que começou a chorar no
momento que ele a pegou no colo.

Quando Elena estava na barriga da mãe, Henrique a detestava:


ela era a única culpada de ele ter sido obrigado a abandonar seu
quarto (o qual fora, logo em seguida, decorado com infinitos — e
tenebrosos — tons de rosa) para dividir o do irmão mais velho.

No entanto, quando os olhos verdes de sua irmã caçula


encararam os seus, toda a raiva se dissipou de imediato, e ela
tornou-se sua pessoa favorita. Foi amor à primeira vista. Para
Henrique. Elena parecia gostar tão-somente dos braços de sua
mamãe.

À medida que os anos se passaram, e a pequena Elena


aprendeu a andar, falar e brincar, ela conseguiu, enfim,
corresponder à amizade do irmão. Tornaram-se inseparáveis.

Na adolescência, começou o gosto dela por filmes de comédia


romântica. Henrique, no início, fingia detestá-los, mas fato era que
se divertia tanto quanto a irmã ao assisti-los. Mesmo depois de
Elena enjoar-se um pouco do gênero, Henrique a arrastava às
estreias de “Bridget Jones” e a fazia assistir de novo e mais uma vez
ao “Feitiço do Tempo”.

Quando os amigos zoavam seu gosto, chamava-os de idiotas.


“Pessoas inteligentes não dispensam uma boa comédia romântica”,
defendia-se, com a sabedoria típica de um rapaz de dezessete
anos.

Contudo, Henrique jamais vivera uma grande história de amor.


Ainda dizia com frequência “eu te amo” a Elena; as palavras eram
dirigidas também à mãe em ocasiões especiais. Havia paquerado,
namorado e saído com algumas garotas e mulheres desde então,
mas nenhuma delas lhe havia despertado o desejo (ou o
sentimento) que justificasse pronunciar aquelas três palavras.

Se parasse para refletir, Henrique perceberia que a culpa


também era dele, uma vez que, ao preocupar-se demasiadamente
com o que o pai pensaria das mulheres com quem saía, deixou de
verificar o que ele próprio queria. Namorara Letícia para agradar ao
pai e, nos momentos de revolta, terminava com ela e saía com
aquelas que deixariam o pai furioso.

Ou seja, vivera sua vida romântica em função da opinião alheia e


não por vontade própria. Até agora. Pois, de alguma forma,
Henrique pressentia que a Garota da Califórnia seria capaz de
mudar isso.

Londres, 8 de julho.

— Vossa Senhoria vai, enfim, permitir que eu passeie com a


Srta. Catherine Murray, então?

— Nossa, Henrique, cuidado, você vai babar sarcasmo daqui a


pouco. E que exagero, não? Apenas quis aproveitar meus dias de
merecida folga com minha convidada americana. Posso?

Cathy estava confusa ao chegar à sala de estar, mas ouvira o


bastante para compreender que ela era o tópico da discussão.
Apesar de Krista e Henrique estarem sorrindo, Cathy quase podia
ver fogo saindo de suas narinas. Enquanto isso, Sara estava em pé,
em frente à cozinha, com uma xícara de café na mão, claramente
segurando a gargalhada.

— Bom dia, Cathy — ofereceu Krista, sem tirar os olhos de


Henrique. — Você acabou de ser sequestrada, pelo visto. Henrique
comprou tíquetes para vocês dois. E enfatizo “dois”, porque ele fez
questão de excluir a mim e Sara do passeio, logo no dia que eu
havia planejado uma ida ao London Eye e à Torre de Londres. E
tudo para quê? Um tour pelo estúdio onde foi filmado Harry Potter?!
Ridículo!

— Como? — Cathy perguntou, abismada.

Krista não podia ver, pois estava concentrada em encarar


ferozmente Henrique, mas os olhos de Catherine brilharam. Seu
coração batia tão forte que parecia querer escapar de seu peito.
Suas mãos começaram a suar, e ela teve de esfregá-las nas laterais
das calças jeans. Ninguém podia ver, mas seus dedos dos pés se
contorciam de emoção dentro de seus tênis vermelhos. Seria
possível? Ela iria ao Grande Salão de Hogwarts? À estação de trem
9 ¾? Veria o Chapéu Seletor?

— Como mesmo! — disse Krista, que havia interpretado a


surpresa muito positiva de Cathy por choque. — E o pior, Catherine:
ele nem sequer se deu ao trabalho de lhe perguntar antes. De me
perguntar antes. De verificar se já tínhamos algo planejado. De
saber se você gosta do maldito do Harry Potter!

— Na realidade — respondeu Henrique, com ar de superioridade


—, eu sei, sim. A questão é: como você, a grande Krista Allen, que a
descobriu e que se considera uma fã do blog de Cathy, não sabia?
Ela escreveu diversos textos falando sobre os livros e os filmes de
Harry Potter.

— E quem nunca leu Harry Potter?! Eu já li, já resenhei, já


escrevi crítica literária, e você não me vê fantasiada de aluna da
porcaria da Grifinória para visitar o estúdio do filme!
— Você pode ser que não, mas Cathy sim! Vi as fotos no perfil
dela do Facebook! Ela foi a todas as estreias de Harry Potter a
caráter! E apenas para você saber: foram oito!

Todos os olhos finalmente se voltaram para Cathy, que estava


tão vermelha quanto seus calçados. Henrique vira as fotos! Cathy
vestida de Harry Potter, de Dumbledore, de Dobby, o elfo-doméstico!
Como se não fosse suficiente, Sara buscou as fotos reveladoras no
perfil de Cathy no próprio celular e engasgou com o café ao
encontrá-las.

— O que é isto? Você está aqui dentro? — perguntou Sara, já


chorando de tanto rir. O café esquecido, esparramado no chão.

Cathy havia esquecido a pior fantasia de todas: Fofo, o cachorro


de três cabeças. Ela e as duas melhores amigas, Lucy e Luiza,
usaram aquela fantasia juntas e caíram no meio do cinema. A foto
era das três, de pernas para o alto, gargalhando do próprio mico.
Ah, se ela soubesse que, um dia, um garoto lindo analisaria
cuidadosamente sua posição comprometedora...

— Por favor, não se zangue comigo, Cathy — disse Henrique,


preocupado com a situação que havia gerado. — Queria apenas
fazer uma surpresa. Eu não ia dizer nada das fotos, mas Krista
estava tão... tão...

— Krista? — ajudou Sara, tentando apaziguar os ânimos.

Porém, Cathy não mais pensava na vergonha que sentia. Ela


agora só tinha olhos para dois casacos negros com capuz,
cuidadosamente dobrados sobre o encosto do sofá. Em cima da
mesa de centro, outros objetos clamavam sua atenção: duas
varinhas de madeira e duas gravatas com listras amarelas e
vermelhas. Ele havia pensado em tudo: não apenas visitariam os
estúdios de Harry Potter, como o fariam vestidos como alunos de
Hogwarts.
Emocionada, abraçou Henrique com força, sem mais se importar
com a presença das outras duas. Somente conseguiu pronunciar
uma palavra:

— Obrigada.

Leavesden, 8 de julho.

— Nossa, quando eu vi as serpentes se movendo na porta da


Câmara Secreta, eu tinha certeza de que tudo havia sido feito no
computador. Nem acredito que ela existe mesmo! E o Beco
Diagonal? Tão grande, tão lindo! E a vontade que tive de pegar
algum objeto de souvenir no escritório do Dumbledore?

Bebendo cerveja amanteigada (da qual Henrique não gostou


nem um pouco, mas nada disse, para não estragar o clima), Cathy
suspirava mais do que nunca. Tinham conhecido cada canto do
estúdio, e ela agora repassava — pela segunda vez — todas as
fotos que havia tirado durante o passeio.

Naquele momento, Henrique tinha a sensação de que conhecia


Catherine havia anos, desde sempre, e não há apenas alguns dias.
Ele já conhecia muitos de seus gestos, seus tipos de sorriso, os
significados de seus olhares. Claro, ela sempre conseguia
surpreendê-lo, às vezes ficava tímida em sua presença, mas
também havia uma familiaridade deliciosa entre eles.

Porém, havia uma pergunta que vinha martelando a cabeça dele


desde o momento em que conhecera a Garota da Califórnia...

— Por que você aceitou a proposta de Krista?

Cathy, que estava no meio de um comentário sobre o Nôitibus


Andante, piscou algumas vezes antes de assimilar a pergunta.
— Acho que a resposta esperada é que se trata de uma
oportunidade única. E é. Mas a verdade é que eu não tinha outra
opção. Eu fui aceita na faculdade que queria. Mas não consegui
bolsa de estudos integral. E, infelizmente, por mais que queiram me
ver estudando em Stanford, meus pais não podem mais se
endividar, e eles não têm o suficiente.

Foi a primeira vez que Cathy mencionou dinheiro. Henrique


percebera que Krista pagava quase tudo para ela e notara que a
garota era bastante cuidadosa com seus gastos, mas não tinha
qualquer ideia das condições financeiras de sua família. Por algum
motivo, sua resposta o deixou mais curioso.

— Sem querer me intrometer muito, mas seu irmão não


frequenta uma faculdade bem cara?

— Sim, é verdade, mas ele tem bolsa integral. Além disso,


trabalha em um café para ajudar a pagar as contas. E também não
é culpa de meus pais.

Por algum motivo, Cathy não suportava a ideia de Henrique


pensar que seus pais eram negligentes com ela ou com o irmão.

— Eles tinham uma poupança exatamente para esse fim, porém,


alguns anos atrás, houve um... problema de saúde na família, e
acabaram tendo que gastar tudo com outras coisas... Até tentaram
juntar dinheiro novamente, mas, sejamos sinceros: faculdade para
dois filhos? É uma pequena fortuna — completou Catherine.

— Essa é uma daquelas questões sem resposta — comentou


Henrique, pensativo.

— Como assim?

— Bem, minha situação é o oposto da sua. Na minha família,


sobra dinheiro, mas meu pai se recusa a me ajudar financeiramente,
pois estou seguindo uma carreira com a qual ele não concorda.
Então, pergunto a você: o que é pior? Ter pais que desejam apoiá-
lo, mas não têm condições para tal, ou ter pais que escolhem não
ajudá-lo, porque não acreditam (ou não se importam) com os
sonhos dos filhos?

No fundo, Henrique sentia uma pontada de inveja de Cathy, por


ter pais que incentivavam sua carreira literária, por poder contar com
eles, se não financeiramente, ao menos em todos os demais
quesitos, por saber que eles se orgulhavam dela e estariam ao seu
lado sempre que precisasse.

Ele definitivamente jamais teria isso com o senador Tilney.

Londres, 10 de julho.

Cathy considerava-se uma pessoa sortuda: tinha uma família


que a amava, fazia aquilo de que gostava, tinha boas amigas e,
apesar de o dinheiro nunca ter sobrado, também nunca faltou
(exceto, é claro, para pagar a faculdade que desejava cursar, mas
certamente não era caso de vida ou morte).

Porém, Catherine Murray era amaldiçoada. Tudo bem que sua


maldição somente dava as caras de vez em quando, mas a
traumatizava cada vez que aparecia. Cathy tinha o infortúnio de
flagrar pessoas em momentos... constrangedores.

Quando tinha apenas oito anos, flagrou a esposa do padeiro com


o diretor de sua escola, em uma posição, no mínimo, suspeita. Aos
treze anos, foi a vez de pegar os pais na cama. Foi definitivamente
— e vergonhosamente — traumático. O pior veio a seguir: sua mãe,
Olívia, decidiu conversar sobre o que ela havia visto e ficou chocada
ao ouvir que a filha entendia muito bem o que era aquilo.

— Como assim, Cathy? Você por acaso já...? — perguntou-lhe


Olívia, preocupada.
— Internet, mamãe, internet... — foram as únicas palavras
pronunciadas por uma Cathy totalmente abalada pelas cenas
testemunhadas momentos antes.

Naquela manhã milagrosamente ensolarada na capital inglesa,


Cathy sentiu que, mais uma vez, a maldição se aproximava,
preparando-se para o próximo ataque. Sabendo que Sara dormira
na casa em Chelsea nos últimos dias, Cathy decidiu logo sair dali
para evitar constrangimentos. Gritou o nome dela e o de Krista
algumas vezes, a fim de se certificar de que não estavam nos
corredores ou nos cômodos pelos quais passava até a porta
principal.

Ao chegar à rua, o alívio. Decidiu que valia a pena ir logo à


Trafalgar Square, onde se encontraria com Henrique e fariam um
tour em um ônibus anfíbio. Segundo ele havia lhe contado, era um
passeio bem interessante, que começava nos principais pontos
turísticos de Londres, e, de repente, o ônibus entraria no Rio Tâmisa
e realizaria o restante da viagem por via aquática!

Para o deleite de Cathy, Henrique preocupava-se em fazer com


ela programas variados e fora do comum. Na noite anterior, ele a
havia levado para assistir ao filme Casablanca, e a tela estava
estrategicamente montada em frente ao Palácio de Kensington, que
um dia fora a residência oficial de ninguém menos do que a
Princesa Diana!

Ela suspirava com a lembrança: eles haviam se entupido de


pipoca e refrigerante, dividiram cobertor com um casal da Irlanda, de
lá foram a um pub com um grupo de marroquinos! E, quando
Henrique foi deixá-la na casa de Krista, ele segurou o rosto dela
com cada uma das mãos. Cathy estava tão certa das intenções dele
que chegou a molhar os lábios e fechar os olhos.

Mas ele apenas a beijou delicadamente na ponta do nariz.

Sacudindo aqueles pensamentos para fora da cabeça, como se


pudesse mudar o final da noite, Cathy tocou a campainha do
apartamento de Sara. Ela havia lhe emprestado uma chave, mas,
ainda com medo da maldição, acreditou ser mais seguro esperar
que Henrique abrisse a porta.

No entanto, foi uma mulher robusta com cabelos azuis quem o


fez. Ela se apresentou como May, editora dos vídeos de Sara.

— Vim apenas pegar alguns equipamentos. Henrique está no


quarto de visita. É a primeira porta à direita.

Cathy foi até o local indicado e, notando que a porta estava


entreaberta, entrou no cômodo, quando...

— AHHHHHHHHHHH! — gritou, ao perceber que havia, por fim,


sido atacada pela maldição. Henrique estava sem qualquer roupa,
como veio ao mundo, esfregando uma toalha em seus cabelos
molhados.

— Bom dia — ele disse, e havia divertimento em sua voz.

Nada fez para se cobrir, entretanto.

— NÃO ACREDITO! Logo você? Por que tinha de ser você,


Rico? Preferiria mil vezes ter flagrado Sara e Krista! Oh, não! Isso é
terrível! Nunca mais poderemos nos ver! Está tudo terminado! Como
terei coragem de encarar você novamente?

— Você ainda está me encarando, Cathy. Poderia, por favor, se


virar enquanto eu me visto?

Rapidamente, a jovem escritora fechou os olhos com força. Não


precisou nem se ver no espelho para saber que estava vermelha:
pôde sentir todo o calor do corpo subindo para seu rosto.

— Você não está olhando? — ele lhe perguntou, em tom


sarcástico.

— NÃO!
— Tem certeza, Cathy? Você parecia estar bem interessada no
que viu... — Henrique continuou, rindo.

A garota apenas mostrou a língua, sem saber se a ofensa atingiu


seu destinatário.

— Bem, para garantir que você não se entregará à curiosidade,


vou cobrir seus olhos — afirmou o rapaz.

Em alguns segundos, Cathy sentiu um leve tecido vendando-lhe


os olhos, sendo amarrado atrás de sua cabeça. Sentiu a mão de
Henrique envolvendo a sua, levando-a até uma poltrona, onde ele
insistiu que se sentasse. Enquanto o ouvia caminhando de um lado
para o outro do quarto, seu coração batia com tanta força que ela
tinha certeza de que até Rico conseguia escutá-lo.

E aí, tudo caiu no silêncio.

— Henrique? — ela sussurrou.

— Hummm?

Apesar de não poder vê-lo, Cathy sabia que estava próximo.


Conseguia sentir a respiração dele contra seu rosto.

Ele se aproximou ainda mais. Seu estômago estava agora


encostado nos joelhos dela. Cathy tremia levemente. Henrique usou
o polegar direito para levantar o queixo dela, e os narizes dos dois
quase se encostaram.

— Não é muito prazeroso estar vulnerável, não é mesmo?

Ele queria soar amedrontador, sua intenção era assustá-la um


pouco. Porém, a reação de Cathy foi surpreendente: ela umedeceu
os lábios e aguardou, respirando pela boca. Era mais do que
Henrique seria capaz de resistir.

E, de repente, ele tirou-lhe a venda, afastando-se, com a


respiração ofegante.
— Isso é por você ter dito que está tudo acabado entre nós. Nós
mal começamos, Cathy. Você ainda tem algo a dizer?

Ela sorriu um sorriso inédito para Henrique. Pois, apesar de


ainda guardar um pouco de sua timidez, havia algo diferente nele.
Provocação, talvez? Sim, Catherine Murray, a inocente Garota da
Califórnia, estava prestes a desafiá-lo.

— Sim, eu tenho algo a dizer. Está tudo terminado entre nós.

Liverpool, 12 de julho.

Admirando a vista do Porto de Liverpool e dando-se ao direito de


sair da sua rigorosa dieta, Krista degustava o café da manhã no
quarto, repleto de geleias, croissants, uma torta de amoras e
chocolate quente.

Eles estavam hospedados em um dos hotéis mais agradáveis da


cidade, o Titanic. Felizmente, a viagem deles, até o momento, tinha
sido um sucesso. A não ser pelo pequeno contratempo da noite
anterior.

Ela, Sara, Cathy e Henrique haviam acabado de retornar do


Remora, onde puderam se deliciar com comida indiana. Seguiram
cada um para o seu quarto, quando Sara sentiu o estômago
reclamar dos pratos apimentados. Krista, que havia se esquecido de
levar sal de frutas para a viagem, foi ao quarto de Cathy para
verificar se ela tinha.

Foi quando os flagrou: Henrique e Cathy entre sussurros e


risadinhas abafadas, muito próximos, com inconfundível intimidade
de casal. Ao verem que estavam acompanhados, afastaram-se, ele
cabisbaixo e ela com a face ruborizada. Krista, por sua vez, apenas
retornou à sua própria suíte, sem saber direito o que fazer.
— Krista? E então, Cathy tinha algum remédio para o estômago?
— perguntou-lhe Sara, já presa ao banheiro.

— Nem perguntei.

— Como assim? E a minha dor de barriga, Kris?

Mas Krista Allen já não estava mais no cômodo. Desceu até o


bar, onde encontrou um pensativo Henrique, encarando um copo de
uísque à sua frente, os cotovelos apoiados sobre a bancada. Desta
vez, a coragem não lhe escapou, e ela se sentou ao lado dele.

— O que você pensa que está fazendo, Rico? — Krista


perguntou em tom acusatório, e nem precisou explicar a que se
referia.

— Nada aconteceu, eu juro e...

— É apenas uma questão de tempo. Posso não ser a mãe de


Cathy, mas ela está sob minha proteção. De uma certa forma, a
minha responsabilidade pode ser até maior do que aquela dos pais,
pois estou cuidando da filha dos outros. Além disso, gosto muito de
Cathy, Rico.

— Eu também.

— Então, o que está fazendo? Ela pode ser legalmente uma


adulta, mas é apenas uma garota. Apesar de ser incrivelmente
inteligente, é ingênua, inexperiente e impressionável. Já deve estar
cheia de expectativa em relação a vocês dois.

— Espero que assim seja, porque eu também tenho minhas


esperanças em relação a um futuro com Cathy.

— Como, Rico? Dentro de um ano, ela vai embora, assim como


você, cada um para um país distinto. Que futuro vocês poderiam
ter?
— Não sei, mas quero descobrir. Eu nunca me senti assim em
relação a ninguém, Krista. Sempre me aproximei de pessoas que
atingiriam meu pai ou que o satisfariam. Desta vez, estou
conhecendo alguém porque é ela que eu quero.

Foi o fim do argumento de Krista. Porque ela sabia exatamente


como Henrique se sentia.

Enquanto a editora estava na casa dos vinte, sua família oferecia


todo o apoio à sua carreira: cada nova promoção era comemorada
por todos, cada novo contrato com autores era celebrado como um
feriado nacional. No entanto, à medida que o tempo ia passando, e
a idade ia avançando, os comentários começaram. No começo,
eram apenas brincadeiras. Depois, foram os conselhos. E, quando
completou trinta e cinco anos, as críticas rolavam soltas.

— Nunca serei avó? — sua mãe a acusava.

— Você está jogando fora os melhores anos de sua vida — seu


tio ameaçava.

— Quando você se tornará uma esposa respeitável? — seu avô


questionava, sem vergonha de soar ofensivo.

Entretanto, a culpa não era de Krista! Ela sabia exatamente seu


tipo ideal: um homem de negócios bem-sucedido, porém, sem ser
muito vaidoso, cujo intelecto deveria ser, no mínimo, razoável; um
cara interessante, mas daquele tipo que não se levava muito a sério;
uma pessoa carinhosa com a família e com os menos afortunados.

No entanto, todos os seus namorados, ao fim, tinham algum


problema que tornava o convívio com Krista simplesmente
insuportável: Rick roncava quando bebia; Jonas passava ferro nas
calças jeans; Leo gostava mais de vinho branco que de vinho tinto;
e Peter preferia Flaubert a Camus!

Foi então que ela conheceu Sara e notou que o problema não
era o fato de não conseguir encontrar o grande amor de sua vida. A
questão era que a pessoa perfeita que ela buscara desde sempre
era, na realidade, a pessoa que sua família desejava para ela.

Sara preferia assistir a filmes de zumbi que ler um livro. Mexia-se


o tempo todo enquanto dormia. Tinha a mania de lavar duas vezes
todas as suas roupas. Recusava-se a usar vestidos longos em
festas de gala. Torcia o nariz para escargot. Não sabia distinguir um
Pinot Noir de um Chardonnay.

Mas nada disso incomodava Krista Allen.

Quando já estava empanturrada com o café da manhã, Krista foi


até piscina de hidroterapia do hotel e viu que Rico, Cathy e Sara já
estavam lá. A cena que presenciou a paralisou: enquanto Henrique
esfregava o chão à beira da piscina, com um garçom que insistia
não precisar de ajuda, Cathy e Sara gargalhavam no conforto da
água morna.

— Sério, Rico, você deve ser a pessoa mais desastrada do


mundo! — dizia Sara.

— É o mais desastrado que eu conheço! — Cathy respondeu


animada. — Pior até mesmo do que eu. É oficial: Henrique é o rei
dos desastres, senhoras e senhores.

— Ah, Cathy, mas eu não sou pior do que você mesmo! — ele
comentou, ainda agachado, tentando limpar o suco que havia
derrubado.

— Quer apostar? — ela disse, com um ar de desafio que Krista,


cuja presença passara despercebida pelos demais, jamais vira.

Henrique encarou Cathy, os olhos negros como os de um


tubarão, decidindo se entraria no jogo ou não. Não conseguiu
resistir.
— Sara, sabe o jantar na sua casa? Quando você reclamou que
alguém derramou vinho no seu tapete persa? Pois é... — ele
confessou, fazendo cara de inocente, enquanto apontava o
indicador na direção de Cathy.

— Ah, é? Eu tenho uma melhor! — Cathy acusou, tentando tirar


o foco de si. — Quando estávamos passeando no Hyde Park, Rico
foi tirar uma foto, só que acabou tropeçando e caindo em uma fonte!

— No estúdio do Harry Potter, quando estávamos bebendo


cerveja amanteigada, Catherine riu tanto de uma piada que fiz que o
líquido saiu pelo nariz dela!

— Você me prometeu que ninguém saberia disso, Henrique!

— Hum, posso ter prometido, mas tenho provas... — ele


ameaçou, indicando a câmera fotográfica como sua testemunha.

— Henrique derrubou refrigerante na própria virilha quando


estávamos assistindo a um filme. Só para constar: era a céu aberto
e fazia muito frio!

Neste momento, Sara declarou que Henrique era o vencedor:


ganhara o título de rei dos desastres. Ele, no entanto, disse que
deixara sua carta coringa para o final, dirigindo um olhar bem
maldoso a Cathy.

— Eu tenho uma história melhor.

— Henrique, Rico... Essa não... — Cathy, que havia notado as


intenções do rapaz, saiu lentamente da piscina, aproximando-se
dele.

— Ah, quer dizer que agora sou Rico? Pois eu vou lhe contar o
maior mico do ano, Sara. Uns dias atrás, Catherine me flagrou
pelado e simplesmente não conseguia desgrudar os olhos do meu...
— Ok! — Cathy gritou, enquanto tapava a boca de Henrique com
as mãos. — Você venceu!

Durante o passeio pelas ruas de Liverpool e sob inspiração da


cidade onde o grupo musical The Beatles foi criado, algumas cenas
para o próximo capítulo de seu romance secreto começaram a
surgir na mente de Cathy.
Capítulo 6

“Não quero que as pessoas sejam muito gentis; pois tal poupa-
me o trabalho de gostar muito delas.”

(Jane Austen)

Beckhan, julho de 1815.

Ao ver a carruagem se aproximar do portão de entrada, Lady


Catherine saiu do seu quarto em disparada, correndo para a sala de
estar do primeiro andar; sua querida amiga se aproximava.

Não via a condessa de Fullerton desde sua visita à abadia,


quase uma semana atrás. Haviam trocado alguns breves bilhetes
desde então, mas nada que superasse o prazer que a companhia
de Christine lhe trazia.

Por um segundo, Catherine se pegou ansiando que a visitante


estivesse acompanhada de Henrique, apenas para se repreender
um momento depois pelo pensamento nada adequado para uma
dama. Ele havia sido completa e absolutamente grosseiro em seu
último encontro, tomando liberdades que um cavalheiro de boa
criação não deveria tomar.

Porém, um canto bem escondido da alma de Catherine havia


adorado todas aquelas liberdades escandalosas, por mais que ela
negasse com veemência ter tido qualquer deleite ao ser tocada por
Henrique. Pare de pensar naquele tolo, ordenava a si mesma.

Depois de avisar a Jane, uma das camareiras, que Christine se


aproximava de Greenwoods House, Catherine ouviu a moça
ordenando pelos corredores que trouxessem sanduíches e chá
imediatamente. Em geral, Jane, assim como os demais empregados
da casa, detestava visitas não anunciadas com antecedência, mas
sua admiração pela condessa a fazia perdoar eventuais deslizes de
etiqueta.

A própria Catherine jamais se chateava quando a amiga passava


em sua casa sem avisar. Pela etiqueta inglesa, o ideal seria que ela
antes combinasse com sua anfitriã uma visita ou esperasse ser
convidada, mas aquelas regras restritas não se aplicavam a Christie
Allen. Graças aos céus, Catherine pensava. Sentia-se prisioneira de
todas aquelas normas estúpidas de sua sociedade.

— Jane disse-me que a carruagem da condessa de Fullerton


está chegando.

Lady Catherine não havia notado que a Sra. Smith adentrara a


sala de estar. Suas feições sérias e a linha entre seus olhos
indicavam que ela não gostara nada daquela surpresa. Bem,
surpresa ou não, a Sra. Smith jamais gostara da presença da
condessa.

— Eu não sabia que receberíamos visitas hoje — continuou a


governanta.

Apesar de não se importar com a falta de aviso de Christine,


Catherine sabia que a Sra. Smith não gostaria nem um pouco de
saber que a vinda da condessa a pegara desprevenida. Por isso,
decidiu acobertá-la.

— Sim, combinei essa visita com a condessa no nosso último


encontro. Perdoe-me, eu havia esquecido de avisá-la.

— Temos que arrumá-la, e depressa; certamente a baronesa


detestaria saber que a filha recebeu convidados em um estado tão
deplorável.

Catherine já estava acostumada a ser chamada de largada,


deplorável, insolente e vários outros adjetivos nada carinhosos pela
Sra. Smith. Não se importava mais com eles. Entretanto, o
comentário da mulher a fez olhar rapidamente para o espelho. De
fato, não se assemelhava à Lady Catherine que aparecia em
sociedade.

Seus cabelos ruivos estavam presos em um coque frouxo, com


várias mechas soltas em volta do rosto. Seu vestido de musseline e
estampa floral rosa e azul-claro estava meio amassado na saia e um
pouco decotado, pois Catherine detestava usar mangas compridas
em casa, especialmente em dias quentes de verão.

Porém, sabia que nada disso importaria para Christine. Sendo


assim, prendeu algumas das mechas rebeldes de volta no coque,
passou a mão pelas saias para alisá-las um pouco, calçou luvas
curtas (apenas para agradar a Sra. Smith) e foi até a porta da sala
de estar.

Ouviu o mordomo dos Morland, o Sr. Carter, passando pelo


corredor, e soube que a carruagem havia chegado.

— Lady Catherine, o que pensa que está fazendo?

— Ora, estou aguardando minha visita.

— Já disse à senhorita que não deve receber convidados neste


estado... — a Sra. Smith veio atrás dela.

— Deplorável. Sim, eu sei — Catherine a interrompeu. — Tenho


certeza de que minha visita não se importará.

A Sra. Smith estava prestes a argumentar, mas Catherine disse,


antes que a mulher começasse um de seus sermões:

— Além disso, a carruagem da condessa já está aqui. Consigo


ouvir o Sr. Carter abrindo a porta.

Reconhecendo que havia sido derrotada, a Sra. Smith caminhou


até o outro lado do cômodo, onde uma porta secundária lhe daria
acesso ao corredor que ia até a cozinha.
— Sim, também o escutei. Vou verificar por que demoram tanto a
trazer o chá. Apenas espero que a condessa venha sozinha ou
acompanhada somente do marido. Não seria nada agradável que
aquele irmão dele viesse junto. O barão não iria gostar nada disso.

— O que isso quer dizer, Sra. Smith?

Sua governanta nem havia falado o nome do cavalheiro, mas


apenas de mencioná-lo Catherine já sentia o sangue subir-lhe à
face.

— Se eu notei como aquele homem a encarava no baile de


Higgins Hall, a senhorita não acha que seu pai também notou?

— E como ele me encarava, Sra. Smith?

Catherine agora sentia uma gota de suor percorrendo o meio de


suas costas. Era incrivelmente embaraçoso o poder que a simples
menção ao Sr. Henrique Teles tinha sobre ela.

— Perdoe-me a vulgaridade, Lady Catherine, mas o cavalheiro a


encarava como se a senhorita fosse uma sobremesa.

— E por que ele ficaria tão preocupado com um homem que nem
sequer é meu pretendente? Eu mal o conheço!

Catherine queria saber. Ela sabia exatamente o que havia feito


de errado e escandaloso com Henrique. Entretanto, ninguém mais
sabia (ou assim ela esperava). Portanto, não entendia por que o pai
se preocupara tanto com ele.

— Bem, ele não havia dado muita atenção ao cavalheiro no


início do baile — a Sra. Smith disse, baixando a voz, quase
inaudível, e Catherine deve que se aproximar dela para escutá-la —,
mas eu escutei o barão comentando com a baronesa que o Sr. John
Cleavand lhe disse que não gostara nada da forma como o novo
cunhado da condessa olhava para a senhorita.
— E o que exatamente Lorde John tem a ver com a forma como
os homens me olham?

Catherine de repente foi tomada pela raiva. Felizmente, não


tivera que suportar a companhia detestável do Lorde desde a
situação lastimável no baile do pai, em Higgins Hall. Só de se
lembrar do episódio já tinha ânsia de vômito.

— A senhorita sabe muito bem que o barão deseja que se case


com o Sr. John Cleavand! — afirmou a Sra. Smith, que não gostava
da impertinência de Lady Catherine e não escondia isso. — Agora,
vou até a cozinha. Seus convidados vão entrar a qualquer instante.

Antes que Catherine pudesse se recompor, o mordomo anunciou


que ela tinha convidados. Porém, no lugar da condessa de Fullerton,
o Sr. Carter lhe avisou que outra pessoa estava ali.

O senhor Henrique Teles.

— Boa tarde, milady. Perdoe-me por vir sem avisar.

Henrique abaixou a cabeça levemente ao cumprimentá-la, sem


que seus olhos deixassem os dela.

Ele tinha um olhar divertido, quase diabólico, que, em uma


situação normal, faria os joelhos de Lady Catherine estremecerem.
Ela, no entanto, ainda estava abalada e enfurecida pela conversa
que tivera com sua governanta e, por conta disso, não notara o
olhar dele.

— Não sei por que se preocupa em pedir desculpas, senhor —


ela respondeu, em um tom tão seco que o assustou.

Apesar de todas as trocas de farpas, a dama jamais havia se


dirigido a ele de forma tão fria. Imediatamente, o visitante soube que
havia algo de errado.
— Peço desculpas porque meu comportamento não foi
adequado — ele comentou, com uma sobrancelha arqueada.

As bochechas de Catherine estavam adoravelmente rosadas,


como sempre, mas, desta vez, o motivo do rubor não era atração
por ele ou timidez. Ela estava com raiva de algo. Henrique esperava
que não fosse dele.

— Pffffff.... — ela arfou sarcasticamente. — Se é assim, o senhor


deveria me pedir desculpas a cada trinta segundos que passa em
minha companhia. Sempre está fazendo algo inapropriado comigo.

— Estou me comportando como um perfeito cavalheiro agora —


ele comentou, em tom amigável.

Deu alguns passos em direção à moça, mas parou quando ela


lhe dirigiu um olhar duro. Nossa, como Lady Catherine ficava bela
irritada. Era decididamente irresistível de qualquer maneira, ele
concluiu.

— O senhor? Um perfeito cavalheiro? Ah! Que piada!

O tom dela continuava sarcástico, e a jovem começou a


caminhar de um lado para o outro da sala. Henrique segurou seu
braço para que parasse, agradecendo aos céus porque usava suas
luvas. Se tocasse a pele de porcelana dela, enquanto Catherine
estava tão irresistivelmente respondona, não conseguiria largá-la.
Virou-a de frente, ficando em silêncio até que ela o encarasse.
Quando os olhos dela se voltaram para os seus, ele soltou seu
braço e disse, em tom desafiador:

— Se a senhorita continuar a me ofender assim, serei obrigado a


mostrá-la quão libertino eu posso ser quando quero.

Os olhos dela se arregalaram de maneira quase cômica.


Henrique quis rir e beijar a boca da moça, agora aberta de choque,
mas se segurou. Se assim fizesse, ganharia da dama um tapa na
cara. Valeria a pena, é óbvio, mas ela nunca mais o deixaria se
aproximar. E Henrique decidira, desde que estiveram juntos na
carruagem, que não conseguiria ficar longe dela por muito tempo.

Aos poucos, a expressão de Catherine mudou, e ele viu tristeza


em seu olhar. Algo a preocupava. Profundamente.

— O mundo é muito injusto, senhor. Os cavalheiros podem ser


libertinos quando bem entendem, casar-se com quem bem
entendem, praticar atos escandalosos e continuar com a reputação
intacta. Ou quase intacta. Enquanto nós, damas da sociedade,
somos obrigadas a nos submetermos a todos os desejos dos
homens à nossa volta. Primeiro dos nossos pais; depois, dos
nossos maridos.

— E qual é o desejo que seu pai quer impor à senhorita?

Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e Catherine virou-se de


costas, encarando a vista de uma das janelas da sala. De repente,
Henrique quis saber do que se tratava. Sentiu necessidade de
consolá-la, de buscar uma solução para qualquer que fosse o seu
problema.

Por mais tentadora que a Lady ficasse quando estava com raiva,
vê-la triste lhe dera um aperto no coração, e o estrangeiro sabia que
o quer que lhe havia deixado assim a machucava muito.

Desde quando começara a se importar com os problemas da


dama? Já não bastava sentir uma atração avassaladora por ela? A
resposta veio de sua mente: não. Precisava fazê-la feliz, colocar um
sorriso em seu rosto ou até mesmo deixá-la irritada. Triste, jamais.
Não suportava vê-la triste.

Sim, ele estava em sérios apuros.

— O que o senhor veio fazer aqui mesmo? — Catherine


questionou, ignorando a pergunta anterior dele.
Apesar da tentativa de frieza da anfitriã, Henrique podia ouvir em
sua voz que a moça estava à beira das lágrimas.

— Sabia que não é nada educado visitar pessoas sem ser


convidado, principalmente na presença de uma dama sem
companhia?

— Foi a sua amiga, a condessa de Fullerton, quem solicitou


minha vinda — ele respondeu, em um tom neutro.

Sabia que seria melhor do que obrigá-la a dizer o que estava


errado, apesar de sua curiosidade crescente. Seu instinto lhe dizia
que era algo relacionado ao idiota do baile, o tal John Cleavand.
Apenas o pensamento já o deixou enciumado.

— Além disso, nem a senhorita pode me culpar pela falta da


dama de companhia.

Lady Catherine ainda estava de costas para ele, tentando


recuperar-se do desespero que tomou conta dela quando começou
a pensar no inevitável casamento com o detestável John. Inspirou
profundamente e virou-se, apenas para dar de cara com o peitoral
de Henrique. Ela não percebera que ele se aproximava, e o
cavalheiro agora estava a menos de um metro dela, uma distância
que sua governanta consideraria totalmente escandalosa, ela sabia.

— O que pensa que está fazendo? — Catherine perguntou.

Ela olhou para cima e encontrou os olhos escuros dele


encarando-a. Henrique não tinha mais qualquer divertimento no
olhar, somente preocupação.

— Por que a senhorita está assim? Quem a deixou tão... triste?

O estrangeiro notou cada mudança nas feições de Catherine. A


tristeza deixou seus olhos abruptamente, sendo substituída pelo ar
desafiador de que ele tanto gostava.
— Não me lembrava de ter intimidade com o senhor para lhe
falar abertamente de meus problemas.

— Pois eu posso me lembrar muito bem de algumas intimidades


que compartilhamos... Especificamente em cima de um cavalo bem
estúpido e dentro de uma carruagem bem apertada.

— Grrrrrrrr...

Catherine estremeceu de raiva. John Cleavand já estava


totalmente esquecido: tudo em que ela pensava era em como o Sr.
Henrique Teles a tirava do sério.

— A senhorita acabou de grunhir para mim?

O divertimento retornara à sua voz, e ele sabia que sua ironia


apenas a deixaria mais irada.

— Eu o desprezo profundamente, senhor — Catherine afirmou,


sem verdadeira convicção.

— E eu a admiro ardentemente, senhorita — ele respondeu, em


um tom que quase fez as pernas dela cederem sob seu corpo.

Lady Catherine deu um passo para trás e sentiu o frio do vidro


da janela às costas. Se não saísse dali naquele momento, seria uma
dama arruinada; sentia sua pele aquecendo sob o olhar faminto de
Henrique e, por mais inexperiente que fosse, sabia como era o olhar
de um homem quando estava prestes a beijar uma mulher. Ela já
havia visto aquele olhar algumas vezes.

Entretanto, ao contrário do que lhe acontecera no passado,


Catherine não queria repelir aquele beijo. E era exatamente isso o
que a assustava.

Uma das mãos enluvadas dele foi até seu rosto, enquanto a
outra segurou sua cintura. Ela deveria dizer alguma coisa, ou
melhor, deveria gritar alguma coisa, mas nenhum som saiu de sua
garganta. Em vez disso, para seu choque, sua cabeça pendeu para
trás, e seus olhos se fecharam.

Maldito corpo traidor, ela pensou, enfurecida.

Todo o resquício de controle que ainda havia em Henrique se


evaporou quando ele notou que Catherine se preparava para ser
beijada. Ele soltou um gemido quando ela entreabriu os lábios
vermelhos e os umedeceu com a língua. Meu Deus, esta mulher
será meu fim!

A mão que estava acariciando o rosto dela voou para o pescoço,


e Henrique puxou-a para seus próprios lábios, ao mesmo tempo em
que ouviu o som de passos de alguém se aproximando.

— Maldição! — ele xingou em voz alta, usando cada fibra de seu


corpo para conseguir afastar-se da moça.

Catherine jamais imaginaria que chegaria a esse ponto, mas a


Sra. Smith acabara de salvá-la de um momento de loucura.
Geralmente, era a mulher a responsável por deixá-la louca. Pela
primeira vez, Catherine reconhecia a importância de uma dama de
companhia. Henrique quase a beijara! E a jovem não apenas o
permitira como o havia incentivado, deixando-se levar pela atração
que sentia!

Nossa, como ele era irritantemente sedutor! Mesmo estando


Henrique do outro lado do cômodo, sentado em uma das poltronas,
seu sorriso irônico fazia o coração dela acelerar.

A Sra. Smith havia ficado claramente surpresa ao entrar no


cômodo e ver o Sr. Teles ali. Ela parou abruptamente, quase
fazendo com que Jane esbarrasse nela, derrubando as bandejas de
biscoitos, bolos e chá.
— Perdoem-me pela demora com o chá. Houve... um atraso na
cozinha.

O olhar da Sra. Smith para Jane era assassino. A jovem abaixou


a cabeça e viu o rosto dela ficar vermelho como um pimentão.

— A culpa foi minha, Sra. Smith — Catherine comentou,


tentando apaziguar os ânimos. — Eu pedi que Jane descobrisse se
ainda tinha torta de amoras para a condessa. É a favorita dela.

Henrique percebeu que Catherine havia mentido para proteger a


garota que trouxera a comida: a condessa detestava amoras. O
olhar de agradecimento da moça a Catherine apenas confirmou as
suspeitas de Henrique, fazendo-o admirá-la ainda mais.

Jane arrumou a comida e o chá em cima de uma grande mesa


de canto e deixou o cômodo sem olhar novamente para seus
ocupantes.

— A condessa não veio? — a Sra. Smith interrompeu o silêncio


depois de limpar a garganta algumas vezes.

Se a baronesa soubesse que a governanta havia deixado sua


filha sozinha com um cavalheiro por mais de dez minutos, a
funcionária decerto perderia o emprego.

— Infelizmente, a condessa está um pouco indisposta. Nada


sério — Henrique garantiu quando notou a tensão de Lady
Catherine —, mas ela não pôde fazer o convite pessoalmente.

— Convite? — a Sra. Smith perguntou, enquanto Catherine


estava calada.

Ela notou que a moça estava um pouco pálida. Pensou que


devia ser fome, então serviu os sanduíches e o chá.

Henrique retirou as luvas e pegou um sanduíche, mas Catherine


permaneceu imóvel. A Sra. Smith levou um pedaço de bolo e uma
xícara de chá até ela e a guiou até o sofá, onde as duas se
sentaram.

— Sim, um convite — Henrique respondeu depois de dar uma


mordida em seu sanduíche e tomar um gole de chá. — A condessa
está organizando um baile e fez questão de que eu viesse convidar
Lady Catherine. Ela gostaria de contar com a ajuda da senhorita
para fazer a lista de convidados, já que está fora da cidade há
alguns meses.

— Mas é claro, será um prazer ajudá-la — Catherine disse, com


um sorriso tímido.

A Sra. Smith estranhou: a dama podia ser muitas coisas, mas


tímida certamente não era.

— Que bom — Henrique falou e retribuiu o sorriso da moça. —


Nesse caso, a condessa me pediu que lhe perguntasse quando
poderia ir até a abadia para resolverem esse assunto. Ela viria até a
senhorita, porém, como já lhes informei, não está bem o suficiente
para deixar a propriedade.

— Pode ser amanhã pela manhã — Catherine respondeu. —


Quando ela pretende fazer o baile?

— Pelo que entendi, deve ser dentro de uma semana, Lady


Catherine — Henrique informou.

— Tão rápido? — comentou a Sra. Smith.

A governanta gostava de ter muitas semanas de antecedência


para ajudar a baronesa a se preparar para seus famosos bailes, e
Catherine sabia disso. Ela e Henrique compartilharam um sorriso ao
ouvir a pergunta.

— Sim, Sra. Smith. Ela quer apresentar formalmente seu marido,


meu irmão Sebastião Teles, à sociedade de Backhan o mais
rapidamente possível — disse o visitante em tom cordial.
— O senhor se importa de levar um bilhete à condessa? —
Catherine perguntou de repente.

Teve uma ideia brilhante, porém, não podia falar dela na frente
da Sra. Smith, que a olhava desconfiada.

— Nem um pouco, senhorita.

O olhar de Henrique também era desconfiado, mas com um tom


de divertimento. O que a moça aprontaria agora?

— Com licença — Catherine pediu e se retirou rapidamente da


sala de estar para buscar papel, pena e tinteiro na biblioteca de seu
pai.

Enquanto escrevia, ouviu alguém entrar no cômodo e parar de


frente para a escrivaninha do pai, onde ela estava sentada.

— A senhorita me garante que ficará ao lado da condessa


enquanto estiver na abadia?

O tom gélido da Sra. Smith a assustou.

— Sim, claro.

Catherine segurou o sorriso. A pergunta de sua governanta


indicava que ela não iria acompanhá-la até a casa de Christine.

— Exatamente como fiz da última vez — completou a jovem.

— Não pode ficar a sós com o cavalheiro! — a governanta


ordenou. — Deveria ter me avisado de que ele viria. Disse-me que a
condessa a visitaria, não ele!

— Eu não disse nada disso — Catherine defendeu-se


calmamente.

Sabia que a Sra. Smith a acusaria de lhe ter mentido, colocaria a


culpa nela por ter ficado em uma situação tão comprometedora. Já
se preparando para a acusação, a dama havia passado os últimos
minutos repassando a conversa que tivera com sua governanta, a
fim de se certificar de que não havia deixado claro que Christine iria
visitá-la.

— Em nenhum momento eu afirmei que era a condessa que


viria; apenas disse que era a carruagem dela.

— Ainda assim... — a Sra. Smith começou, e Catherine a


interrompeu.

— Ademais, como eu poderia adivinhar que a condessa estaria


indisposta e enviaria seu cunhado?

— Mesmo assim, se a baronesa descobrir, será um escândalo.

— E por que descobriria? O Sr. Teles nem sequer chegou perto


de mim.

Primeira mentira.

— E comportou-se como um perfeito cavalheiro, falando apenas


de temas banais.

Segunda mentira.

Catherine imaginou se ela seria castigada com um raio sobre


sua cabeça. Esperou alguns segundos, e nada aconteceu.

— Portanto, não há qualquer razão para mamãe saber dessa...


situação.

— Sim... Creio que tem razão.

A Sra. Smith ainda não parecia completamente convencida.

— De qualquer maneira, é melhor a senhorita trocar de roupa.


Se a baronesa a vir vestida e penteada assim, e souber que
recebemos visita, ficará extremamente chateada. A senhorita parece
uma servente! — afirmou a Sra. Smith, que pronunciou a palavra
como se fosse um insulto imperdoável. — Sua aparência está
abominável!

Com essa observação carinhosa, a governanta deixou a biblioteca.


Catherine riu para si mesma e terminou o bilhete. Dobrou-o e não se
preocupou em selá-lo com cera. Não havia segredos ali dentro,
apenas um pedido que não queria compartilhar com a Sra. Smith.
Deixou o cômodo e, quando estava no corredor que conectava com
a sala de estar, esbarrou-se em Henrique.

— Ah, estava indo lhe entregar o bilhete — disse ela,


estendendo-lhe o papel sem, contudo, o olhar nos olhos.

— Sim, perdoe-me pela saída brusca, mas preciso ir. A


condessa pediu-me que lhe resolvesse outros assuntos antes do
jantar.

Ele havia recolocado as luvas, mas ela não. Mesmo com a


camada de tecido entre eles, Catherine sentiu o calor dos dedos que
roçaram nos dela ao tomar o bilhete de suas mãos. E prendeu a
respiração.

— Obrigada, Sr. Teles — ela agradeceu formalmente e se


despediu com uma reverência, ainda sem levantar os olhos para
ele. O corredor até a entrada parecia vazio, mas ela sabia que, em
casas como aquela, as paredes tinham ouvidos. Literalmente, pois
muitas das empregadas gostavam de ficar escutando atrás delas.

Quando a moça se virou para deixá-lo, Henrique a segurou pelo


antebraço. Foi então que ela o encarou, e ele aproximou os lábios
do ouvido dela, fazendo os pelos do seu pescoço eriçarem.

— Não há nada que a senhorita pudesse vestir que a deixasse


abominável — ele sussurrou.

Catherine enrubesceu ao perceber que ele havia escutado a


conversa que ela e a Sra. Smith tiveram.
— A senhorita poderia vestir trapos e, ainda assim, seria a moça
mais bela da Inglaterra — ele inspirou profundamente e concluiu —,
e a mais cheirosa também.

— Maldito libertino! — ela falou sem pensar, as pernas já se


transformando em pudim.

Detestava como ele a fazia se sentir, completamente vulnerável


ao seu toque e às suas palavras. Henrique gargalhou antes de
responder:

— Um libertino que a senhorita defendeu prontamente. Mal


posso esperar para comportar-me, da próxima vez que encontrar a
senhorita, como um perfeito cavalheiro.

Depois, soltou o braço da moça e saiu da casa, com um sorriso


malicioso estampado no rosto. Uma parte de Lady Catherine queria
esbofeteá-lo por seu atrevimento. A outra, que se tornava cada vez
mais dominante, mal podia esperar para vê-lo novamente.

Ridícula. Era assim que Lady Catherine se sentia. E


ridiculamente atrasada, ela percebeu, irritada, ao ouvir uma das
empregadas, ao passar do lado de fora de seu quarto, comentar
sobre o horário. Ela estava experimentando roupas para ir à abadia
havia quase três quartos de hora! E tudo isso por causa do libertino!

Dando um sermão em si mesma, Catherine jogou o vestido de


seda lilás em cima da cama e pegou o de musselina verde, que
tinha mangas longas e um delicado bordado na barra da saia. Era
mais adequado para um passeio durante o dia. Pediu a Claire, sua
camareira, que lhe ajudasse a fazer um coque simples, mas que
colocasse algumas flores para enfeitá-lo.

A Sra. Smith havia arranjado um “compromisso importantíssimo”


na cidade assim que o sol aparecera. Os pais de Catherine, por
sorte, não haviam retornado na noite anterior; ficariam alguns dias
em Lockwell, uma cidade no Sul de Derbyshire, na casa de amigos.

Portanto, ninguém saberia (além de todos os empregados de


Greenwoods House, da abadia, da condessa, do seu marido e
cunhado, mas nenhum deles jamais contaria) que Lady Catherine
Morland estava, mais uma vez, visitando a abadia da Morte sem
uma dama de companhia.

Por sorte, a condessa de Fullerton havia sido muito gentil e


enviara uma carruagem para buscá-la. A jovem havia sido avisada,
quase dez minutos antes, de que Robert a aguardava: mais uma
lembrança do quanto estava atrasada.

— Está adorável, Catherine — Claire lhe disse quando


terminaram.

A Lady insistia para que os empregados de Greenwoods House


a chamassem pelo primeiro nome, desde que a Sra. Smith e seus
pais não estivessem por perto, é claro.

— Se o Sr. Teles a chamou de mulher mais linda da Inglaterra


ontem, nem sei o que ele dirá hoje.

Claire jamais diria algo tão indiscreto na frente da Sra. Smith.


Entretanto, sabia que a jovem não se sentia superior a qualquer dos
empregados e, provavelmente, acharia divertido que as camareiras
tivessem escutado os adjetivos dirigidos a ela pelo belo estrangeiro
que a visitara.

Dito e feito: Catherine virou a cabeça e gargalhou de uma forma


nada apropriada para uma dama da alta sociedade. Pouco se
importava; aproveitava cada segundo de ausência dos pais e da
Sra. Smith para ser ela mesma. Uma parte dela estava
envergonhada por querer ser admirada por aquele homem, mas a
forma como Claire lhe falou do assunto – com uma sobrancelha
arqueada e ar de quem estava armando um plano conspiratório – a
fez rir como raramente fazia em casa.
— Quem estava escutando? — Lady Catherine quis saber.

— Eu e Jane.

O ar conspiratório de Claire continuava, insinuando que, àquela


altura, todos na casa já sabiam do teor da conversa.

— E fomos nós também que organizamos (ou melhor,


desorganizamos) o chá e os bolos na cozinha para garantir que a
Sra. Smith ficasse o maior tempo possível longe daquela sala de
estar. E, depois, arranjamos uma desculpa para que ela também
ficasse longe do primeiro andar, e o cavalheiro pudesse se despedir
sem empecilhos. Valeu a pena... — confidenciou Claire.

Catherine não conseguiu segurar outro riso.

— Vocês são terríveis! E como sabiam que seria o Sr. Teles


quem me visitaria?

— Não sabíamos, mas imaginávamos que, mesmo que fosse a


condessa, você gostaria de alguns momentos de privacidade com
ela. No início da conversa, digo. Ao final, já sabíamos exatamente
quem estava naquela sala de estar.

Aquele gesto de amizade emocionou a jovem. Apesar de


estarem a muitas camadas sociais de distância, Lady Catherine,
filha de barão e baronesa, sentia-se muito mais próxima daquelas
duas moças, filhas de pessoas sem qualquer título, que de qualquer
filha da nobreza inglesa. Achava tolo como a amizade delas tinha
que ser escondida da sociedade e até de seus pais, que ficariam
escandalizados se soubessem a liberdade com a qual camareiras e
ajudantes tratavam Catherine quando eles não estavam por perto.

— Tenho que ir, Claire. Veja se não vai aprontar muito enquanto
eu estiver fora.

— Já tenho tudo planejado, Catherine — a moça sussurrou,


como se fosse lhe contar um segredo de Estado. — Um dos
cavalariços da abadia passará aqui mais tarde, e vamos descobrir
tudo o que há para saber sobre os estrangeiros. Não se preocupe —
ela concluiu, com uma piscadela —; todas as informações serão
passadas a você assim que retornar.

Com outra risada e Catherine despediu-se de Claire.

— Catherine, você poderia pegar um novo tinteiro na biblioteca,


por favor?

Christine Allen era uma mulher que raramente adoecia. E,


quando isso acontecia, ela detestava que as pessoas à sua volta a
tratassem como inválida. Era precisamente por isso que sua amiga
estava preocupada com ela. A condessa não parecia doente; longe
disso. Além de um pouco de palidez e menor apetite, ela estava
normal. Melhor que normal, Catherine calculou. Estava muito
animada para o baile.

Elas estavam, enfim, terminando a lista de convidados, mas a


tinta havia acabado. Catherine levantou-se com um sorriso e foi até
a biblioteca. Além do tinteiro, traria uma nova pena também.

A biblioteca da abadia era, pelo menos, duas vezes maior do que


a de Greenwoods House. E infinitamente mais usada também.
Enquanto Catherine era a única responsável por tirar a poeira das
dezenas de livros de sua biblioteca, muitos dos moradores da
abadia liam as centenas de livros de sua coleção.

A escrivaninha da abadia era igualmente impressionante; uma


mesa de mogno que, se fosse de jantar, acomodaria ao menos oito
pessoas. Catherine sabia, por uma conversa que tivera com o conde
anos antes, que a mesa possuía diversas gavetas escondidas. Ele
até mesmo a havia ensinado a abrir algumas delas. Assim como a
condessa, seu marido tinha um coração enorme. E, aparentemente,
o novo marido de Christine seguia o mesmo caminho.
— A senhorita parece uma princesa com esse vestido — uma
voz sedutora a tirou de seus devaneios.

— Oh! Não o vi aí.

Henrique estava acomodado em uma poltrona abaixo de uma


das grandes janelas da biblioteca, com um grande volume na mão.

— O que faz sozinho aqui? — completou Catherine.

Um sorriso divertido surgiu nos lábios dele.

— Não é óbvio? Eu estava esperando pela senhorita — e


continuou, com o sorriso mais largo, quando viu a confusão no rosto
da dama —; Christine proibiu-me de ficar na sala de estar com
vocês. Disse que não queria que eu a distraísse. Então, eu fiquei
aqui, sozinho e amargurado, esperando a senhorita sair.

A cara de cachorro abandonado do cavalheiro quase fez


Catherine se esquecer de respirar. Ele era irresistível, não importava
a expressão que fizesse. Ela fechou os olhos, a fim de se concentrar
em normalizar sua respiração. Tinha que mudar o rumo daquela
conversa, ou ela se veria em outra situação inapropriada com
aquele homem libertino. Olhou para o livro que estava nas mãos
dele e ficou surpresa.

— O senhor gosta de Ann Radcliffe? — questionou Catherine.

— Como não gostar? — ele respondeu, sorrindo.

— Muitos cavalheiros diriam que é estúpido — ela comentou,


desconfiada da resposta dele, que costumava ser sarcástica.

— Estúpido é o cavalheiro que afirma uma tolice dessas.

Ah, como é difícil detestá-lo, pensou Catherine.

Aproveitando a quietude da moça, Henrique aproximou-se, até


que seus corpos estivessem separados por meros centímetros de
ar. O ato íntimo chocou Catherine, mas ela recusou-se a afastar-se.
Seria por desafio ou por gostar da proximidade? Ela conseguia
sentir o cheiro do estrangeiro, uma mistura de hortelã, de sabão e
do charuto que ele fumara mais cedo. Conseguia até mesmo sentir
o calor emanando de seu corpo.

— Pode afastar-se, por favor? — ela finalmente pediu, com a voz


trêmula.

— E por que eu faria isso? Talvez devesse me aproximar mais. A


senhorita está cheirando a violetas, sabia? E violeta é a minha flor
favorita. Hum... E algo cítrico também...

— Eu o desprezo!

— E eu a quero — ele respondeu, com um desejo tão profundo


nos olhos que a deixou tonta.

Mais uma vez, o choque das palavras diretas dele a deixou


paralisada, como se Catherine tivesse criado raízes ali, bem no
centro da biblioteca. Henrique deixou o livro sobre a escrivaninha e,
com seus longos dedos, desenhou o contorno dos lábios dela.
Longos dedos que estavam sem luvas para protegê-los.

Ao sentir seu toque, o coração de Catherine saltou


enlouquecidamente em seu peito. Ela queria sentir mais dele,
quando deveria querer afastar-se. Novamente, seu corpo tomou
conta de sua razão, e seus lábios se abriram, fazendo com que sua
língua entrasse em contato com os dedos dele. Um gemido saiu da
garganta de Henrique, e sua mão foi até o pescoço dela, para puxá-
la para ele, para que pudesse finalmente tomar seus lábios.

— Eu acredito que a minha esposa foi bastante explícita ao pedir


que você ficasse longe de Catherine hoje, irmão — uma voz os
interrompeu da entrada da biblioteca.

Catherine estava de costas para ele, portanto Sebastião não


podia ver seu rosto queimando de vergonha. Ele podia, no entanto,
ver os ombros da moça tensos.

— Na realidade — falou Henrique, que se afastou da moça em


questão para responder ao irmão, com um olhar severo —, Christine
solicitou que eu ficasse longe da sala de estar, o que eu fiz.

— Elas ainda têm que terminar a lista de convidados, Henrique.

O tom de Sebastião era seco e sério.

— Sim, é verdade — Catherine foi quem respondeu.

Cabisbaixa, ela agarrou o tinteiro e uma pena e saiu


apressadamente do cômodo.

Seguro de que a moça não mais podia ouvi-los, Sebastião


caminhou até o irmão, com as sobrancelhas franzidas de desgosto.

— Ela não é o tipo de garota com quem você pode se envolver


sem se casar, Henrique.

— Eu bem sei — o outro respondeu, ainda encarando o lugar por


onde Catherine havia passado.

— Então, o que você está fazendo?

Sebastião agarrou o braço do irmão para forçá-lo a ficar cara a


cara com ele.

— Para você, isso pode ser um jogo. Mas não é para ela —
destacou o marido da condessa.

— E quem disse que isso é um jogo? — Henrique questionou,


agora olhando o irmão nos olhos. — Quem disse que minhas
intenções não são nobres?

— Você está dizendo que... pretende se casar com ela?


Sebastião estava incrédulo. Seu irmão havia noivado apenas
uma vez, e foi por pura pressão do pai.

— Sim — a resposta de Henrique foi firme e direta, fazendo até


ele mesmo se surpreender com a firmeza de sua intenção.

— O pai dela jamais permitirá — Sebastião insistiu.

Henrique jamais poderia se casar com a filha do barão de


Northanger, mesmo se quisesse. Era algo em que Sebastião não
acreditava. Seu irmão estava apenas atraído pela moça, era só isso.

— Pois eu vou fazer com que ele permita — Henrique afirmou


com tal convicção que quase convenceu seu irmão de suas
intenções.

Quase. Henrique pouco se importava se Sebastião acreditava ou


não nele: a única pessoa que ele desejava convencer estava
retornando à biblioteca com um ar de preocupação.

— Sebastião, onde está Christine? — Catherine quis saber, já


ansiosa.

— Ah, ela passou mal, mas já deve voltar. Está assim desde
ontem. Não consegue comer nada.

O rosto de Catherine repentinamente perdeu a cor.

— Ah, não — ela disse, antes de perder o equilíbrio.

— Catherine, garanto-lhe que minha esposa tem apenas uma


indigestão. Não é o que você está pensando. — Sebastião lhe
afirmou carinhosamente, oferecendo chá à moça, que estava
deitada no sofá.
— O que a senhorita achou que era? — Henrique estava
perdido.

Quando notou que Catherine estava prestes a desmaiar, ele


havia alcançado a porta da biblioteca em passos largos, tomado a
moça nos braços, e a carregado até o sofá da sala de estar. Ela
precisou de alguns minutos até abrir os olhos novamente.

— Ela achou que Christine estivesse com o mesmo mal do


conde — Sebastião explicou ao irmão.

— Como você sabe? — Catherine questionou.

— E que mal seria esse? — Henrique perguntou ao mesmo


tempo.

Ele estava completamente por fora do assunto. Sabia que o


conde morrera de forma mal explicada, mas pouco sabia dos
pormenores.

— Minha esposa e eu não temos segredos — Sebastião


respondeu a Catherine, com um sorriso apaixonado, virando-se para
o irmão em seguida. — Acredita-se que a morte do conde não tenha
sido natural. Alguém o teria deixado doente.

— Quando ele ficou enfermo, seus primeiros sintomas eram


vômitos e mal-estar. — Catherine complementou.

Toda aquela situação parecia um grande déjà vu do que ocorrera


com o conde.

— Sim — Sebastião levantou a mão para interromper uma nova


inquisição de Henrique —, mas, desta vez, o mal-estar é culpa
minha. Eu pedi que a cozinheira fizesse um prato português antes
de ontem. Creio que foi forte demais para Christine; ela está
enjoada desde então.
— Você não me disse que o conde havia sido assassinado —
Henrique falou ao irmão em tom de acusação.

— É apenas uma mentira maldosa! — Catherine sentou-se para


dizer.

Ela detestava quando diziam isso.

— E quem, de acordo com essa fofoca, o teria matado? —


Henrique insistiu, desconfiado, afinal, tinham escondido o assunto
dele.

Catherine e Sebastião se entreolharam. A moça tinha lágrimas


nos olhos quando o irmão de Henrique finalmente respondeu:

— Christine.


Capítulo 7

“A amizade é decerto o melhor bálsamo contra as dores da


decepção amorosa.”

(Jane Austen)

Londres, 16 de julho.

Ao retornar de Liverpool, Henrique recebera uma ligação da


irmã, dizendo que estava em Paris e que precisava que ele fosse ao
seu encontro imediatamente. Na mesma tarde, ele já estava a
caminho da Cidade-Luz, deixando Cathy para trás, com a promessa
de que lhe enviaria notícia assim que possível.

Três longos, torturantes e desesperadores dias depois, e nada.

O mundo digital criara novos meios de comunicação e, com eles,


mais maneiras de falar com alguém. Ou, no caso de Catherine,
novas formas de levar um fora de alguém. Ela havia enviado
mensagem via WhatsApp, recado pelo Facebook e e-mail. E ainda
havia deixado uma mensagem de voz no celular de Henrique.
Apenas para não receber qualquer resposta de quatro jeitos
diferentes!

E o pior é que os conselhos de suas amigas Lucy e Luiza mais


atrapalhavam do que ajudavam.

— Cathy, você deveria ir a Paris atrás dele! E aí, quando


encontrá-lo, finja surpresa e indiferença! — Lucy sugeriu, com um
largo sorriso.

A jovem escritora viu que as amigas se empurravam para


caberem na tela do computador.

— Sério, Lucy? E qual é a desculpa que vou dar para estar em


Paris?
— Cathy, quem não quer conhecer Paris? — foi a resposta (nada
sábia) da amiga.

— Ignore Lucy, Cathy! — desta vez, era Luiza (e pela primeira


vez, Cathy concordava com algo dito naquela conversa via Skype).
— Eu tenho uma sugestão bem melhor! E que envolve ele correndo
atrás de você, e não o contrário!

O coração de Cathy se acelerou na mesma medida de sua


esperança.

— Você tem que tirar um monte de fotos de caras aleatórios (e


gatos) pelas ruas de Londres e postar na sua página do Face —
disse Luiza.

— Hã?! Para que eu faria uma idiotice dessas? — perguntou


Cathy, cuja esperança murchou como as flores no início do verão.

— Para deixar o gato com ciúmes, amiga! — Luiza disparou e


virou os olhos, como se estivesse tendo que explicar algo óbvio. —
Você disse que ele viu fotos suas fantasiada de Harry Potter na sua
página, não foi?

Enquanto Cathy respondia afirmativamente, Lucy, às


gargalhadas, gritava:

— Que micoooooooo!

— Então — Luiza continuou —, com certeza ele anda


acompanhando seu Face. Vá por mim, se ele vir que você está se
divertindo com outros gatos em Londres, vai voltar correndo atrás de
você!

Apesar de dizer que pensaria no assunto, Cathy havia desligado


o computador desanimada. Não queria que Rico lhe desse atenção
por ela estar com outros rapazes. Queria que ele fosse atrás dela
por ela. E ponto.
E o pior era que ela não tinha outras ideias... Estava totalmente
perdida...

Cathy estava sentada em um banco de madeira no jardim da


casa de Krista, sem conseguir parar de olhar para a tela do celular,
como se, ao encará-la, conseguisse fazer com que uma mensagem
de Rico aparecesse magicamente. Como se tivesse lido seus
pensamentos, Sara comentou:

— As coisas eram mais simples antes, não? Ligávamos para a


casa de alguém. Se ele estava, ótimo. Caso não estivesse,
deixávamos recado para que nos retornasse quando pudesse. Fim
da história. Agora, não mais. Ligamos, teclamos, gravamos,
enviamos e muitos outros verbos que indicam nossa tentativa de
falar com alguém. Caso a pessoa não nos responda em, no
máximo, cinco minutos, ficamos histéricos. Nunca fomos tão
carentes!

De alguma forma, saber que não estava sozinha em sua


paranoia trouxe algum alívio para Cathy. Pelo menos, ela conseguiu
ficar treze minutos inteiros sem olhar para a tela do celular.

— Cathy, por favor, não me diga que você está com essa cara
por causa de Rico! — reclamou Krista, ao alcançá-las no jardim. —
Querida, é difícil acreditar nisso, porque somos programadas a
acreditar em príncipes encantados, mas sua felicidade independe de
ter um homem ao seu lado. Não existem contos de fada; e, mesmo
que existissem, aqueles relacionamentos não têm amor verdadeiro.

Finalmente, a atenção de Cathy voltou-se a algo que não era o


simples e claro fato de estar sendo ignorada por Henrique.

— Como assim? E os contos de fada da Disney?

— Ah, querida, cite um desenho animado da Disney que envolva


um amor de verdade, em que a mulher e o homem estão em igual
posição.

— A Bela Adormecida — respondeu Cathy, segura de si (e da


infância feliz que teve, ao sonhar, todas as noites, que seria
acordada pelo Príncipe Phillip na manhã seguinte).

— Em que país do mundo civilizado é considerado romântico um


homem tocar (e beijar) em uma mulher que não conhece enquanto
ela está desmaiada?! Certamente, ele deveria ser enviado à cadeia!

Cathy, boquiaberta, repensou o filme em apenas alguns


segundos, enquanto Krista a fitava com ar de quem havia vencido a
discussão. Sara manteve-se calada, sob o risco de explodir em
gargalhada se ousasse abrir a boca.

— E a Pequena Sereia? Ela ficou com o Príncipe Eric por sua


conta e risco!

— E por que é sempre a garota quem tem de abandonar a


família, que tem de deixar de ser quem ela é de verdade para ficar
com o príncipe? Por que o bonitão não se transformou em salmão e
foi nadar com ela pelos oceanos?

Novamente sem resposta, e ainda estarrecida, Cathy pensou


muito, até que se lembrou de uma história real de amor! Desta vez,
nem a inteligente Krista Allen poderia convencê-la do contrário!

— A Bela e a Fera! Ah! Desta vez, você não terá argumentos!

— Ah, Cathy! — disse Krista, com sarcasmo. — Você acabou de


me entregar a faca e o queijo. Essa é a mais fácil de todas. O
monstrão sequestra a bonitinha, e ela se apaixona por ele, por mais
grosseiro e insuportável que ele seja. Nem preciso ser psiquiatra
para saber que se trata de um caso típico de Síndrome de
Estocolmo! Mais algum desenho fofinho?

— De jeito nenhum. Nesse ritmo, até o final da manhã você já


terá destruído todos os meus sonhos de infância...
— Você prefere a ignorância, então?

— Veja bem, Krista — suspirou Cathy —, às vezes, a ignorância


é uma bênção...

Amersham, 17 de julho.

— Eu venderia um rim por esses sapatos.

Isabella Thorpe era conhecida pelo exagero de seus comentários


e pelas contradições de suas opiniões. Verdade seja dita, ela
também era famosa por seu vício em artigos de luxo, culpa de uma
personalidade um tanto quanto supérflua, combinada à
vulnerabilidade ao merchandising capitalista, que tornavam esses
itens, absolutamente dispensáveis e irrelevantes, em compra
prioritária.

Porém, nem mesmo a frívola DJ seria capaz de arrancar um


órgão do próprio corpo para satisfazer seus gostos caros. Apesar de
suas leviandades, de seu objetivo de vida de ser uma rica dondoca
que trabalhava por prazer, não por necessidade, Bella sempre
colocou sua família em primeiro lugar. E, se sua vida era cercada
por mudanças de opinião e amizades de interesse, ao menos isso
era constante: o amor e a dedicação à mãe e aos seus irmãos.

Na época da morte do pai, sua mãe não trabalhava havia anos:


quando estava esperando Anne, a caçula dos Thorpe, sua gravidez
fora complicada, e a Sra. Thorpe se dedicava exclusivamente à
família desde então. Quando o Sr. Thorpe, um homem que ganhava
bem como gerente de uma das maiores lojas de departamento em
Londres, se foi, deixou sua esposa e seus filhos com muito pouco.
Tiveram que vender o apartamento em Westminster, pois não
conseguiam mais bancar a hipoteca, e compraram uma pequena
casa em Amersham, uma cidade a quarenta quilômetros de
Londres, com menos de quinze mil habitantes. Ao menos, pensava
Bella, como seu irmão mais velho, Johnny, vivia nos Estados
Unidos, ela podia ter seu próprio quarto.

Johnny fora para o outro lado do oceano para estudar na


Caltech. Logo trancou o curso e passou a trabalhar em tempo
integral. Bella, que havia acabado de ser aceita no curso de moda
da Universidade de Artes de Londres, teve de postergar seu sonho.
Algumas noites por semana era DJ em uma boate de amigos, além
de uns bicos que fazia como garçonete em bares e restaurantes
durante o dia. Sua mãe voltou a dar aulas de literatura no colégio da
nova cidade. Assim, os três ajudavam nas contas e a manter Anne
em uma boa escola.

Se alguns anos antes Bella apenas desejava ser uma designer


de sucesso, hoje ela se contentaria com um bom marido que
pudesse lhe oferecer o conforto que sabia merecer. Estava cansada
das longas jornadas de trabalho, de ter vários empregos sem futuro,
de esforçar-se ao máximo para ter uma poupança, mas, ao final de
cada mês, raramente havia sobras (e o que não era gasto em
despesas domésticas usava para comprar roupas e acessórios de
marca).

Com um suspiro, Bella avaliou-se no espelho. Como sempre,


estava muito atraente. Era uma daquelas jovens que ficavam bem
com qualquer coisa. Mas ela ficava melhor ainda quando estava
bem produzida.

As sombras escuras deixavam seus olhos ainda mais azuis, e a


camiseta preta apertada realçava seus seios. Seus longos cabelos
loiros estavam soltos e escovados, e suas pernas pareciam mais
torneadas com os saltos altos. Isabella Thorpe estava pronta para a
festa. Porém, os convidados estariam prontos para ela?

Levou quase uma hora e meia para chegar ao local: o


restaurante Babylon, na Kensington High Street. Bella já havia
pesquisado qual seria o jantar daquela noite: mousse de queijo feta
de entrada, risoto de cogumelo de prato principal e pavê de
chocolate belga, de sobremesa. Ela certamente não teria grana para
pagar uma refeição no restaurante com vista para os belos jardins
suspensos, mas estava segura de que arranjaria alguém para
bancar sua conta.

Além disso, não poderia perder a oportunidade de encontrar-se


com Sara Vasconcelos, ou Sara V, uma das YouTubers mais
famosas do mundo! Aparecer em um de seus vídeos por alguns
segundos já garantiria a Bella muitos meses de shows como DJ nas
melhores casas noturnas inglesas!

Todavia, assim que entrou no ambiente festivo, logo sentiu algo


gelado contra o estômago. Olhou para baixo e verificou, estarrecida,
que alguém havia derramado bebida na sua camiseta! Bella não
conseguia ver o rosto da culpada, apenas cabelos vermelhos, e uma
voz com um sotaque irritantemente americano lhe pedindo
desculpas.

Ela estava prestes a dar um empurrão na ruiva desengonçada,


quando Sara V surgiu repentinamente atrás dela, às gargalhadas.

— Já fez uma nova vítima, Cathy? Ah, é você, Bella! —


cumprimentou Sara. Isabella mal conseguia acreditar que aquela
famosa cantora poderia ser próxima de uma criatura tão patética
quanto a americana à sua frente.

Por outro lado, agora que estava novamente de bom humor


(afinal de contas, Sara lembrava-se dela!), poderia até admitir que a
moça não era de todo desagradável. Parecia, de fato, ser sincera ao
lhe pedir desculpas, ao contrário das falsas invejosas às quais
estava habituada.

— Não se preocupe, Cathy. É esse o seu nome? — perguntou a


DJ.

Quando a ruiva timidamente respondeu que sim, ela se


apresentou formalmente:
— Sou Isabella Thorpe. Mas pode me chamar de Bella.

Londres, entre 17 e 18 de julho.

Cathy sempre se impressionava com as coincidências da vida.


Nem sequer queria comparecer à festa de aniversário do amigo de
Sara. Estava ainda meio para baixo, pois Henrique continuava
ignorando sua existência.

No entanto, parecia que o universo conspirara a seu favor: pouco


depois de chegar ao restaurante, ela derrubou seu suco de morango
em uma garota. Até aí, nenhuma novidade, apenas mais um caso
de humilhação. Somente quando a desconhecida disse seu nome
completo, Cathy notou que não era a primeira vez que o escutara.

— Isabella Thorpe? — o nome soava doce na boca de Cathy. —


Nem acredito! Sou a irmã de James Murray!

— Oh! — Bella exclamou, pois estava verdadeiramente contente


com a coincidência. — Sendo assim, tenho certeza de que seremos
muito amigas, Cathy. Tenho grande admiração pelo seu irmão!

Isabella Thorpe era irmã de Johnny Thorpe, que era, por sua
vez, muito amigo do irmão de Cathy, James. Logo que James
chegou a Pasadena, foi Johnny quem o ajudou a encontrar um
trabalho, convidou-o a morar no quarto extra de seu apartamento,
deu várias dicas sobre os melhores professores da Caltech e
basicamente salvou a vida de James!

Bella passara o verão anterior com Johnny e James, e ela e o


irmão de Cathy logo começaram a sair. James havia contado a
Cathy que estava se apaixonando por Bella, porém, não tinha
coragem de lhe pedir para ficar mais tempo para que pudessem
descobrir se aquele caso poderia se tornar algo mais sério, mais
duradouro.

E foi o fim do quase-relacionamento de James Murray e Isabella


Thorpe.

Ou não? Cathy, que apesar de suas próprias decepções


amorosas, ainda era uma romântica incorrigível, acreditava que
aquele encontro era um plano do destino, que acabara de lhes
oferecer uma segunda chance. James sempre se arrependera de
não ter apresentado Bella à sua irmã caçula, e agora ali estavam
elas, conversando sem parar, como melhores amigas!

Tudo bem que Bella falava bem mais do que Cathy, mas isso
não importava: ela estava se divertindo (na maior parte do tempo),
não estava mais pensando em Rico (ou quase) e acabara de
conhecer alguém novo em Londres!

Estavam jogando um jogo criado por Bella, e Cathy gostava de


metade dele. Como ela era uma daquelas pessoas que veem o
copo meio cheio, tentou ignorar as partes da brincadeira que não lhe
agradavam.

O jogo funcionava assim: cada pessoa que passava por elas era
julgada. Caso fosse um rapaz, elas deveriam lhe dar uma nota e
dizer qual era a característica física dele que mais as atraía. E, se
possível, dizer algum ator parecido com ele.

— Este é nota 7,5 — Bella comentou quando um moreno careca


passou por elas. — Adorei os ombros largos... Parece o Vin Diesel!

No início, Cathy achou a ideia até interessante, pois, além de se


divertir, ela era obrigada a admitir para si mesma a existência de
outros rapazes interessantes, além de Henrique. Vamos ignorar o
fato de que, a cada homem atraente que ela via, Cathy sempre
chegava à conclusão de que não superavam seu Rico. Espere um
instante, ele não era dela! Nem sequer lembrava de sua existência!
— Vamos agora fazer a avaliação dessa garota!

Esse outro lado do jogo não cativava Cathy. Quando uma mulher
passava pelas duas, elas deveriam identificar o maior defeito nela. A
despeito de alguns comentários ofensivos feitos por Bella, Cathy
decidiu que a maior parte da brincadeira fora interessante e,
portanto, deveria simplesmente apagar o resto da memória.

Ao se despedirem no começo da madrugada, Bella deu um beijo


afetuoso no rosto da norte-americana e lhe prometeu que se
encontrariam mais tarde na Torre de Londres. Depois, soltou uma
frase que deixou Cathy pensativa:

— Você terá uma grande surpresa amanhã, Cathy! Estou louca


para ver a sua cara quando descobrir!

“Descobrir o quê?” Foi a pergunta que Cathy se fez durante todo


o caminho de casa, e que a obrigou a se virar na cama durante
longos minutos, antes de apagar e ter sonhos inapropriados para
menores de idade com um belo moreno de olhos irresistivelmente
escuros e sotaque latino.

Londres, 18 de julho.

Ela sente o tecido macio aveludado do opulento manto real


contra sua pele. O topo de sua cabeça é adornado com a pequena
coroa de diamantes que um dia pertenceu à Rainha Vitória. Esses
dois itens da realeza são as peças que separam a Rainha Catherine
da nudez completa.

Seu coração bate mais forte em seu peito quando escuta sons
preocupantes vindos do final do corredor, do outro lado das
gigantescas portas de mogno. Pelo barulho, ela identifica que há
pessoas lutando com espadas. Ela demanda a seus soldados o que
está acontecendo, em tom soberano e decisivo. Nenhuma resposta.
Os poucos homens no cômodo apenas lhe oferecem uma
respeitosa referência e se retiram, deixando-a sozinha, entrando na
luta.

Os sons parecem chegar mais perto da porta. Relutantemente, a


Rainha Catherine deixa o conforto do trono vermelho, encontrando o
frio congelante do piso negro como ébano. Caminha, ainda resoluta,
até as portas fortemente guardadas.

Ainda há soldados do outro lado? Será isso um sequestro? Uma


rebelião contra a Rainha?, ela se questiona.

De repente, ela ouve as dobradiças rangendo, e a última barreira


contra o invasor abrindo-se. Ele é alto, atlético, de pele morena e
olhos escuros como seus cabelos. Ela o conhece: Henrique, o maior
líder da rebelião. Ele arranca sua coroa e sua capa, a toma nos
braços e...

— Cathy?! Você está bem? Está vermelha como uma cereja!

A voz de Bella surgiu do nada, tirando-a de seu sonho. Sonho?


Ah, sim. Estava na Torre de Londres, admirando as joias da coroa.

— Sim, sim — Cathy respondeu timidamente. — Apenas com


um pouco de calor.

Satisfeita com a resposta de Cathy, Bella retomou seu discurso,


explicando quanto valia cada item que admiravam.

Quando a Torre de Londres abriu naquela manhã, às nove horas


em ponto, Bella e Cathy já estavam em frente ao arco de pedra,
aguardando ansiosamente. Enquanto esperavam, Cathy aproveitou
para admirar e fotografar a edificação do século XI, construída por
ordem de William, o Conquistador. A Torre era formada por duas
muralhas concêntricas, a torre principal, de vinte e sete metros de
altura, e outras vinte torres, que foram erguidas ao longo dos
inúmeros reinados.
Enquanto elas visitaram apressadamente a Torre Branca, a
coleção de armaduras, e a prisão, uma vez que essas partes do
passeio não geravam qualquer interesse por parte de Bella, já fazia
quase uma hora que estavam no amplo cômodo que guardava as
joias da coroa, cercadas por dezenas de turistas curiosos.

Cathy tentava se concentrar nas palavras da nova amiga, de


verdade. Todavia, voltava à sua mente a imagem do belo invasor,
que tirava seu manto, se aproximava para beijá-la e para...

— Você voltou a ficar vermelha, Cathy! Vamos embora daqui,


está abafado e lotado de gente. Quer tomar um sorvete?

Sem fôlego, Cathy apenas acenou com a cabeça. Bella então


começou a falar de um lugar bem agradável que conhecia, com
muitas opções de sabor e vista para o Rio Tâmisa e a Tower Bridge.
Enquanto as duas aguardavam o semáforo ficar vermelho para que
pudessem atravessar, Cathy sentiu duas mãos tapando seus olhos
por trás.

— LADRÃO! FUJA, BELLA! — a ruiva gritou com toda a força


que possuía, dando um pisão no pé do suposto assaltante.

Ele soltou um urro estranhamente familiar, mas Cathy só


pensava em correr. Ela já esperava que algo assim ocorresse: sua
mãe lhe alertara diversas vezes que cidades grandes como Londres
eram extremamente perigosas, em especial em locais turísticos. Ela
podia ser uma garota de cidade pequena, mas era precavida.

— CATHY!

Apenas quando ouviu Bella chamar seu nome, virou-se, temendo


que a amiga não tivesse conseguido fugir. E aí entendeu seu erro:
seu irmão, James, estava agachado ao lado de Isabella, enquanto
um rapaz servia de apoio para James, tentando segurar a
gargalhada.

Oh. Meu. Deus!


Ela acabara de atacar o próprio irmão? Aí vai uma boa razão
para um pai deserdar uma filha...

— James! Nossa, eu sinto muito.

Com um abano de mão, ele lhe informou que estava bem,


apesar de, aparentemente, ainda não estar bem o suficiente para
falar. Ou respirar.

— Ela é realmente adorável, James. Inofensiva também... —


disse o rapaz ao lado dele, sem esconder o sarcasmo.

Cathy logo adivinhou que era Johnny, o irmão de Isabella. Era a


versão masculina de Bella, o que significava que era um gato.
Daqueles caras que fazem as mulheres virarem a cabeça quando
passavam. Daqueles caras que faziam as moças tropeçarem
enquanto o encaravam. Antes que Cathy conseguisse se recompor
do incidente, Johnny começou a conversar, animado.

— Acho que James conseguiu o que queria, não é mesmo? Ele


estava louco para surpreendê-la!

Quando o irmão de Cathy lhe mostrou um dedo de forma


ofensiva, Johnny simplesmente o ignorou e continuou falando:

— Eu sou o irmão de Bella, Johnny. Pelo que ela me contou,


vocês duas já se tornaram grandes amigas, não? E o que achou da
Torre de Londres? As joias certamente são impressionantes. Você
sabia que o cetro com a pomba na ponta vale mais ou menos...

E foi assim até a sorveteria, enquanto tomavam sorvete (na


realidade, Johnny nem conseguiu experimentar o seu, pois derreteu
antes que ele parasse de falar), ao andar pela ponte mais conhecida
da cidade. Cathy nunca conhecera alguém que conseguia falar tanto
sem respirar. Era incrível. Se participasse de algum concurso (será
que havia concurso para os maiores tagarelas do planeta?), Johnny
Thorpe certamente entraria para o livro dos recordes.
Ouvindo menos da metade do que era dito por Johnny, Cathy
seguiu com o passeio, perdida em seus pensamentos, já com um
novo capítulo de seu querido romance secreto em mente.
Certamente, Johnny não entraria em sua história. Talvez nem
mesmo Bella ou James participariam. Ela achava que já tinha
personagens suficientes, e eles poderiam trazer desvios
indesejáveis à história central.

Desejava conversar com James, pedir a opinião dele, contar


sobre seu romance e saber dele como estavam as coisas na
Caltech, mas ele estava entretido (ou seria enfeitiçado?) em uma
conversa animada com Bella.

James parecia feliz, o que foi suficiente para Cathy decidir dar
uma chance a Johnny. Respirou fundo e tentou transformar o
monólogo do rapaz em uma conversa, uma vez que não teria a
atenção do irmão mais velho tão cedo. Aos poucos, Johnny foi
deixando Cathy falar e parecia, em alguns raros momentos, estar
interessado no que ela tinha a dizer.

A Garota da Califórnia estava quase afirmando para si mesma


que o rapaz podia ser uma companhia agradável, que podia até
mesmo chegar a ser seu amigo, quando veio o comentário
bombástico:

— Você é fã de Harry Potter?! Sério? Uma escritora como você?


Quanta tolice! Harry Potter nem deveria ser considerado literatura
de verdade.

Cathy contou até dez. De frente para trás e de trás para frente.
Continuava furiosa. Johnny já havia mudado o tema da conversa
(falava alguma tolice sobre Jane Austen), mas Cathy continuava
irritada. Focou-se em seus filmes favoritos, em momentos
agradáveis com o irmão, em suas idas à biblioteca com a mãe, em
suas tardes de pescaria com o pai.

Quando, ao fim de quase quinze minutos, Catherine havia,


enfim, se acalmado, começou a relatar para Johnny os lugares que
havia visitado. Não era possível alguém fazer observações
desagradáveis sobre passeios turísticos, não é mesmo? Bem, Cathy
descobriu que, de fato, era possível, sim.

— Levaram você ao Museu do Sherlock Holmes? Ah, que perda


de tempo. Nunca pensei que alguém seria tonto o suficiente para
desperdiçar dinheiro com aquilo.

— Dez, nove, oito, sete, seis… — contava mentalmente Cathy,


concentrada, sempre mantendo um sorriso postiço no rosto e se
certificando de que não ouviria mais nem uma palavra sequer que
saísse dos lábios venenosos de Johnny Thorpe. Nem sabia como
achara aquela boca bonita, apenas momentos antes.

Enquanto encarava os olhos azuis de seu falante companheiro,


Cathy somente conseguia pensar onde estaria um belo dono de
olhos negros...

Londres, 9 de agosto.

— EURECA!

A palavra que dera origem àquela nova viagem fora pronunciada


por Krista Allen, pela primeira vez, na cozinha de sua casa em
Chelsea. A famosa editora estava muito satisfeita com sua jovem
aprendiz, que, desde que chegara a Londres, havia escrito meia
dúzia de ótimos contos passados na cidade, além de dar início a um
romance de época, embora não tivesse deixado que ela sequer
passasse seus olhos pelo prólogo.

Enquanto Sara fazia o café da manhã, uma ideia brilhante


iluminou o dia de Krista: e se ela fizesse uma antologia, com a
temática londrina, juntando os contos de Cathy e de outros autores
de sua editora? Seria divino: isso traria publicidade à sua pupila,
além de colocar alguns dos maiores nomes da literatura
contemporânea em um mesmo volume. Certamente, um sucesso
em construção!

Comentou sua ideia com Sara, que achou ótima, mas ainda
havia algo que a perturbava: apesar dos contos escritos, o fato era
que Cathy produzira muito pouco nas últimas semanas, desde que
Henrique deixara Londres e a jovem conhecera Isabella Thorpe.
Apesar de não saber como andava o livro que sua autora iniciante
escondia a sete chaves, a editora desconfiava que a obra também
não estava recebendo a devida atenção.

Foi quando a segunda ideia genial de Krista Allen surgiu: Cathy


precisava afastar-se de Bella, ao menos por um tempo. Seria difícil
separar as duas novas melhores amigas enquanto ambas
estivessem em Londres. Todavia, se fizesse uma breve viagem,
Cathy poderia se concentrar em escrever e, quem sabe, deixaria
Krista dar uma espiadinha em seu romance? E que melhor lugar
para se inspirar que Derbyshire, uma das regiões mais bonitas da
Inglaterra? Cathy poderia conhecer a Chatsworth House, que
certamente adoraria, e passar alguns dias calmos no campo, com
nada para fazer, a não ser longas caminhadas, e escrever!

Entretanto, havia apenas um empecilho: Krista não poderia sair


de Londres nos próximos dias por conta de inúmeros compromissos
inadiáveis. E, assim, como por um milagre, ela teve mais uma ideia:

— Sara, o que acha de fazer alguns vídeos em Derbyshire?

Derbyshire, 11 de agosto.

Cathy não sabia como Krista fazia isso, mas ela sempre parecia
saber exatamente do que a jovem escritora precisava. Apesar de ter
conseguido escrever algumas páginas de seu romance desde que
Henrique deixara Londres, sua inspiração andava bem difícil, o que
atrapalhava sua performance. Havia bastado um dia de caminhada,
passeios e refeições deliciosas em Derbyshire, para que a mente de
Cathy voltasse a funcionar a todo vapor. De tão animada que
estava, ela escreveria um capítulo inteiro de seu livro naquela noite.


Capítulo 8

“Qualquer selvagem sabe dançar.”

(Jane Austen)

Beckhan, entre julho e agosto de 1815.

Dois anos atrás, em uma noite fria e tempestuosa, trovões


assustadores haviam despertado Lady Catherine. Ela acordara
sobressaltada e sentira uma pontada no estômago, algo que lhe
acontecia esporadicamente desde criança. Quando pequena, ela
não compreendia o que aquilo significava, mas já aprendera a
decifrar aquela incômoda dorzinha.

Algo muito ruim havia acontecido.

Sua mão fora até a testa, coberta por uma fina camada de suor.
Catherine concentrou-se por alguns momentos, tentando regularizar
sua respiração, e a resposta lhe veio: a condessa de Fullerton
precisava de sua ajuda.

Silenciosamente, Lady Catherine vestira o roupão mais quente


que possuía e calçara botas de cavalgar. Rezava para que não
fosse vista; seus pais nunca mais a deixariam dormir
desacompanhada se descobrissem o que ela estava prestes a fazer.
Com cuidado, caminhara nas pontas dos pés pelo corredor,
passando pelos diversos quartos do corredor mal-iluminado.

Por sorte, seus pais haviam reservado uma ala da casa apenas
para os cômodos deles, do lado oposto de onde ficavam os dela. E,
como não havia convidados hospedados em Greenwoods House,
ela estaria segura. Isto é, se não desse o azar de cruzar com algum
empregado pelo caminho.

Quando alcançara a escadaria, Catherine apoiara-se no


corrimão, curvando-se para frente até visualizar a entrada da casa.
Tudo vazio. Ela, portanto, desceu os degraus, que pareciam
intermináveis, já que precisava superar essa etapa silenciosamente.
Abrira a grande porta de entrada com muito cuidado e deixara a
casa, tomando a direção da tempestade.

A noite estava escura; o céu, encoberto por nuvens densas. As


únicas fontes de luz eram aquelas ocasionadas pelos raios. Aquilo
não incomodava Catherine: ela conhecia tão bem o caminho até a
abadia que não precisava da luz para guiá-la.

O frio, porém, era um assunto completamente diferente. Nem


mesmo o exercício era capaz de aquecer o corpo da jovem. Seu
rosto ardia com o vento gélido, e, a cada vez que ela respirava, uma
espessa fumaça branca era expelida de suas narinas e de sua boca.

Quando alcançara a ponte de madeira que dava acesso à


propriedade da amiga, reparara em uma figura solitária sobre o frágil
corrimão da ponte. Seria um animal? No meio da chuva e da noite,
era impossível saber, mesmo que os olhos da dama já tivessem se
acostumado, àquela altura, à escuridão quase absoluta.

Somente quando estava a menos de vinte metros da construção,


identificara a figura como sendo de uma mulher, usando um vestido
branco fino, a saia esvoaçando em volta de pernas longas e
magras, os pés descalços apoiados sobre o corrimão de madeira,
que balançava de forma preocupante. Catherine notara que toda a
ponte balançava levemente com o vento.

A mulher estava de costas para ela, encarando o rio, que corria


bravo sob a ponte. Se ela caísse, a jovem não tinha qualquer
esperança de que fosse resgatada com vida. Não precisava ver seu
rosto para saber quem era.
— Christine! O que está fazendo? — Catherine bradou, correndo
na direção da amiga, o desconforto causado pelo frio totalmente
esquecido.

A condessa de Fullerton não se moveu.

— Christine!!! — a Lady bradou novamente, alcançando a ponte,


mas sem se aproximar demais da amiga, temendo assustá-la,
temendo causar, de alguma maneira, a queda fatal. — Desça agora!

A condessa virara o rosto lentamente na direção da amiga:


estava irreconhecível. Não parecia a mulher alegre, confiante e
determinada que Catherine conhecia. Parecia um animal enjaulado,
inconsolável e desesperado. O coração de Catherine acelerara com
a visão; o desespero era perigoso para a saúde mental de qualquer
pessoa.

Christine a encarara em silêncio por vários momentos, como se


não a reconhecesse, como se nem sequer soubesse onde estava. A
Lady aproveitara a distração da amiga e, em uma atitude arriscada,
dera alguns passos até ela, colocara os braços em volta das pernas
da outra, e puxando-a com toda a força que possuía. As duas
caíram de costas sobre a ponte, e a jovem pôde ouvir a madeira
rangendo sob elas. Rezara para que a estrutura não cedesse, senão
ambas morreriam afogadas.

Saíra de baixo da condessa, que permanecera imóvel, e, de


joelhos, encarara Christine, sacudindo-a pelos ombros.

— Christine! O que houve?

A condessa, parecendo em choque, mantivera seus olhos presos


aos dela por longos segundos, olhos repletos de dor.

— O conde... Edward... Ele... Ele...

Ela não conseguira terminar a frase. O choro e os soluços a


impediram. Não que precisasse dizer mais nada; a dama soubera,
no momento que Christine pronunciara o nome do conde, que ele
estava morto. Ela puxara a amiga em um abraço, tentando consolá-
la com palavras doces.

— Por que você fez isso, querida?

— É minha culpa! Ele morreu, e é minha culpa!

Com o entediante John Cleavand em uma viagem de negócios a


Londres, e seus pais em uma nova visita a amigos, desta vez em
Bath, Lady Catherine estaria livre no Baile de Fullerton. Isto é, ela
estaria apenas com sua governanta como dama de companhia.
Tentando enxergar o copo meio cheio, Catherine disse para si
mesma que um incômodo seria melhor do que quatro, então...

Escolheu um dos seus melhores vestidos, branco de musselina,


rendado e com uma delicada faixa de seda azul-clara embaixo do
busto. Usou luvas brancas compridas, que iam até o cotovelo;
algumas flores nos cabelos, entre os cachos ruivos; e uma
gargantilha simples de veludo no pescoço.

Ela desejava usar violetas, que tinham seu aroma favorito;


porém, já usava sua água de colônia feita sob medida, com violetas
e limão. Não desejava que o cheiro de violetas ficasse exagerado,
muito menos gostaria que um arrogante estrangeiro achasse que
usava violetas para agradá-lo... Sendo assim, Claire acabou por
decorar seu delicado penteado com flores silvestres e alguns
pequenos diamantes de sua mãe.

— A baronesa autorizou que usasse suas joias? — a Sra. Smith


perguntou, ao adentrar o quarto de Catherine. — Ela tem muita
afeição por esses diamantes.

— Mamãe sempre aprova quando eu me visto de forma


apropriada. Ela gosta que eu esteja bem para os meus
pretendentes.
Sua governanta não parecia ter notado o tom de ironia em sua
voz; Claire, no entanto, percebera, e seus ombros sacudiram
quando ela tentou controlar o riso.

— Achei que o Sr. Cleavand não estaria no baile — a Sra. Smith


comentou, séria e pensativa.

— Mas William estará lá — Catherine respondeu de pronto,


mentindo para a Sra. Smith e para si própria. — Será bom
impressionar o irmão de meu pretendente.

Qualquer um que a conhecesse minimamente saberia que ela


pouco se importava em parecer bonita para William, ou para
qualquer outro homem de Backhan. Sim, ela estava mais bem-
vestida que de costume aquela noite, mas não era para um
cavalheiro inglês.

— É verdade! — respondeu a Sra. Smith, que agora tinha um


sorriso no rosto, algo raro que deixava Catherine em pânico. — O
barão de Haster decerto contará para o irmão sobre sua beleza.
Deveria dançar com ele também.

— Claro — afirmou a Lady.

Se havia um cavalheiro de Backhan com quem Catherine


adorava dançar era William. Além de serem amigos de infância, ela
tinha segurança de que ele não tinha qualquer interesse romântico
por ela.

— Se ele me convidar... — completou a jovem.

— Certamente o fará — a Sra. Smith respondeu confiante,


enquanto colocava uma capa de veludo azul-escuro sobre os
ombros de Catherine. — Vamos, estamos atrasadas.

Quando a Sra. Smith deixou o cômodo, Claire foi até a jovem


dama e lhe disse, ao pé do ouvido:
— Espero que um outro cavalheiro também a chame para
dançar.

As palavras da moça fizeram Lady Catherine arregalar os olhos.


Estaria Claire falando de quem ela estava pensando?

— Um belo cavalheiro que comentou como a senhorita é a


mulher mais linda da Inglaterra. Eu faria de tudo para ver a cara dele
hoje, quando a encontrar — completou a camareira.

O coração de Catherine palpitava enlouquecidamente, mas tudo


que ela respondeu, com um sorriso irônico, foi:

— Não tenho ideia a quem está se referindo, Claire.

Rosa era a flor favorita da condessa. Catherine sabia disso.


Ainda assim, ficou surpresa com a quantidade de rosas que
Christine usara para decorar a abadia. Pelos céus, parecia que a
sua amiga havia usado todas as rosas da Inglaterra!

— Lady Catherine!

Ela ouviu o seu nome. A Sra. Smith, ao ver quem a chamava,


avisou-lhe que ia entrar, pois estava com frio.

— Olá! Que prazer em vê-las!

Catherine sorriu com a visão das irmãs Clinton. Elas eram


conhecidas como as solteironas de Backhan.

As irmãs Clinton não tinham títulos, riquezas ou terras, mas eram


duas das pessoas mais queridas da região. Já tinham sido
governantas dos principais herdeiros de Backhan, e, quando
chegaram a uma idade em que não era mais possível cuidar de
crianças, sua aposentadoria havia sido garantida pelas mesmas
famílias a quem se dedicaram toda a vida.
Lady Catherine jamais havia sido tutorada por elas, porém, fazia
questão de visitá-las semanalmente, levando sempre tortas,
biscoitos e frutos de Greenwoods House. Ela passara muitas
manhãs felizes em Higgins Hall, onde as irmãs Clinton foram
responsáveis pela educação dos rapazes durante a infância deles.

Por conta da intimidade delas com as famílias mais importantes


de Backhan, as duas, em geral, eram convidadas para os eventos
mais relevantes da cidade. Porém, Catherine não se recordava de
jamais tê-las visto chegando com uma carruagem dos anfitriões, e
fora Robert quem as trouxera.

— Minha querida! — a Sra. Clinton mais velha a cumprimentou e


deu-lhe um afável beijo no rosto.

— Você está adorável, como sempre! — disse a caçula Sra.


Clinton, exatamente onze meses mais nova que a irmã, e segurou
sua mão.

— Percebo que vieram com a carruagem da condessa —


Catherine indicou a carruagem com a cabeça.

— Sim, ele foi tão gentil! — a mais velha falou, ao mesmo tempo
que abanava o rosto com o leque, apesar do vento frio.

— E tão atencioso... Ah, se eu fosse vinte anos mais nova... —


comentou a irmã caçula, cujas bochechas ficaram rosadas.

Catherine queria gargalhar; certamente, o marido de Christine


era muito bonito e charmoso. As duas senhoras devem ter se
apaixonado por ele. Especialmente se Sebastião lhes havia
oferecido sua própria carruagem.

— Você quer dizer quarenta anos mais nova, não? — a mais


velha virou-se para a irmã e disparou.

As duas começaram uma discussão acalorada, que Catherine já


havia testemunhado inúmeras vezes. Como a moça começava a
tremer de frio, decidiu interrompê-la.

— Sim, o marido da condessa é muito gentil, de fato. Pena que é


casado. Vamos entrar?

— Mas nós não estamos falando do marido da condessa — a


Sra. Clinton mais velha comentou.

— Não, de forma alguma! — a mais jovem concordou.

Catherine estava confusa.

— Estamos falando do irmão dele.

— O solteiro.

— Ah — foi tudo o que Catherine conseguiu dizer.

Nem haviam falado o nome dele, mas ela já sentia o peito


apertar.

— A senhorita o conhece? O Sr. Henrique Teles? — a Sra.


Clinton mais velha quis saber, com um brilho nos olhos.

— Sim, já fomos apresentados — Lady Catherine resumiu, logo


tensa.

— Ele nos perguntou muito de você — a mais jovem comentou,


e as duas observaram de perto a reação de Catherine.

— Nossa, como está frio! Vamos entrar logo? — Catherine disse


após alguns segundos incômodos de silêncio, virou-se e caminhou
até a entrada principal da abadia.

— Prevejo um casamento em breve, irmã — a Sra. Clinton mais


nova sussurrou.

— E o que mais é novidade? — a mais velha respondeu,


revirando os olhos.

Ele estava dançando com Lady Margareth.

Não que Lady Catherine se importasse muito com quem o Sr.


Henrique Teles dançava ou deixava de dançar. Ademais, de todas
as moças que conhecia, Lady Margareth sempre fora a mais
agradável. Ela não vivia em Backhan, mas visitava os primos
William e John Cleavand constantemente.

Como tinha a mesma idade de Catherine, as duas passaram a


infância e a juventude grudadas nos verões, estação do ano em que
a moça ficava hospedada em Higgins Hall. Ao contrário de
Catherine, Margareth parecia ver algo de interessante em seu primo
John e, apesar de sempre negar, Catherine sabia que ela não
recusaria uma proposta de casamento dele. Infelizmente, por
enquanto, o rapaz parecia só ter interesse em Lady Catherine.

Mesmo sabendo que Lady Margareth Carson casar-se-ia, mais


cedo ou mais tarde, com John Cleavand, Catherine não pôde deixar
de soltar um grunhido bem vulgar ao vê-la rindo enquanto dançava
com seu Henrique Teles.

Seu Henrique Teles? Não, ele era apenas o Sr. Henrique Teles,
nada mais.

Notando que um cavalheiro se aproximava, provavelmente para


convidá-la para dançar, e que a Sra. Smith conversava
distraidamente com a dama de companhia de Margareth, Catherine
usou uma porta lateral do salão de baile para escapulir. Iria até a
biblioteca por alguns momentos, até se recompor. Quem sabe
conseguiria encontrar Christine e Sebastião, que não vira desde que
chegara. Certamente, sua amiga querida conseguiria tirar da sua
mente os sorrisos de Henrique dirigidos a Margareth.

Caminhando rapidamente por corredores laterais, a fim de evitar


cruzar com algum cavalheiro, ela alcançou a biblioteca em passos
longos e, após fechar a porta atrás de si, inspirou e expirou
lentamente.

Quando as batidas do seu coração voltaram a um ritmo normal,


ela deu uma volta pelo espaço mal-iluminado, deliciando-se com os
cheiros de livros e o calor da lareira. Avistou o volume de Os
Mistérios de Udolpho e começou a folheá-lo. Era um de seus livros
favoritos e o conhecia quase de cor. Ainda assim, a história sempre
a prendia quando decidia relê-la.

Catherine estava tão distraída com as viagens de Emily e seu pai


pelo sul da França que não ouviu quando outra pessoa entrou no
cômodo.

— A senhorita está irresistivelmente linda.

O sussurro de Henrique a fez derrubar o livro.

— Como sempre — ele completou.

Com as mãos tremendo e o calor repentino deixando seu rosto


vermelho, Catherine agachou-se para pegar o livro, sem olhar para
trás. As mãos dela alcançaram o livro ao mesmo tempo que as dele,
e seus dedos tocaram-se. Mesmo com as luvas, o toque fez o
coração de Catherine acelerar novamente.

— O senhor fala irritantemente como um libertino — ela


respondeu, ainda sem olhá-lo nos olhos, levantando-se. — Como
sempre.

Henrique gargalhou, e Catherine não conseguiu manter-se séria.


Um sorriso brotou de seus lábios; e ele, sem pensar, passou os
dedos enluvados por eles.

— Eu adoro o seu sorriso. Pena que raramente sorri para mim.

Ela deveria afastar-se, mas, como sempre, ficou paralisada.


— A senhorita sempre sorri quando está com Christine. E Lady
Margareth disse-me que sempre gargalha com ela.

O sorriso de Catherine imediatamente dissolveu-se. Por que ele


mencionava Lady Margareth?

— Sim, percebi que o senhor e Lady Margareth pareciam bem


próximos na dança. — afirmou a jovem, num tom glacial.

— Está com ciúmes, por acaso?

— Humph!

Catherine recusava-se a responder à tamanha tolice. Ciúmes?


Daquele libertino? Sim, provavelmente sentia mesmo. Mas jamais o
deixaria saber disso. Passou por ele sem dizer outra palavra e
dirigiu-se até a porta.

Mas um braço em torno de sua cintura não permitiu que saísse


da biblioteca.

— Não precisa sentir ciúmes, Cathy.

Quando ele a chamou por aquele apelido carinhoso, que soava


como melodia nos seus lábios, os joelhos dela estremeceram. Por
sorte, ele a segurava firme; as costas dela estavam totalmente
coladas no fronte dele.

— Quis dançar com Lady Margareth quando descobri que vocês


eram amigas. E, de fato, ela ficou muito animada em falar a seu
respeito.

Catherine sentiu-se aliviada, mas simplesmente disse:

— Pouco me importa os interesses do cavalheiro em relação à


Lady Margareth. Pode pedi-la em casamento se assim o desejar!

— Pare com isso, Cathy — ele sussurrou mais uma vez, fazendo
Catherine derreter por dentro.
Os lábios dele roçaram contra a orelha dela, e Lady Catherine,
instintivamente, inclinou a cabeça para o lado, expondo seu delicado
pescoço.

— A senhorita sabe muito bem que desejo apenas uma lady. E


certamente não é Lady Margareth.

Mesmo sabendo que alguém poderia flagrá-los a qualquer


instante, Catherine se pressionou ainda mais para trás, fazendo
Henrique gemer em seu ouvido. Ele passou os lábios pelo seu
pescoço, deixando a pele dela fervendo no caminho.

Ao ouvirem vozes do outro lado da porta, Catherine tentou


afastar-se, finalmente voltando para a realidade.

— Solte-me, seu libertino! Agora! — ela esbravejou, mas ele


continuava agarrando-a com força.

— Agora eu sou libertino novamente? — Henrique afirmou num


tom animado e parecia zombar dela. — Vou deixá-la ir, mas apenas
se me prometer uma dança.

Lady Catherine estava preparada para dar-lhe um pisão no pé,


mas aí o libertino poderia gritar e atrair a atenção de quem quer que
estivesse do lado de fora. Sendo assim, decidiu aceitar a exigência
dele.

— A senhorita não vai se arrepender — ele comentou, ao soltá-


la. — Sou um excelente dançarino. Vai ficar impressionada.

Ela já estava com a mão sobre a maçaneta da porta quando


respondeu:

— Duvido muito que conseguirá me impressionar, senhor. Afinal


de contas, qualquer selvagem pode dançar.

Com isso, deixou Henrique sozinho na biblioteca, com um sorriso


nos lábios, desejo nos olhos e uma decisão na mente: agora, só
faltava descobrir se Lady Catherine aceitaria o que ele tinha a
propor.

— Posso ter a honra desta dança, Catherine?

A Lady estava preparada para inventar alguma desculpa,


juntamente com um olhar severo ao cavalheiro que acabara de
tratá-la de maneira tão íntima. Até virar-se e dar de cara com um par
de olhos verdes que a encarava com divertimento e uma
sobrancelha arqueada.

Ela não conteve o sorriso que apareceu em seus lábios e se


espalhou pelo resto do rosto. William Cleavand, ou o barão de
Haster, fazia moças suspirarem por onde passava. Com seu porte
atlético, seu queixo forte e quadrado, seus olhos verdes e cabelos
loiros encaracolados, além de sua fama de herói de guerra e do fato
de ser herdeiro de um ducado, William era o sonho de consumo de
todas as mulheres solteiras de Backhan.

Bem, exceto por Catherine, que nutria por ele o amor de um


irmão.

Ela nem sequer o respondeu; ofereceu-lhe a mão e seguiram


juntos para a pista de dança, sob o olhar aprovador da Sra. Smith. A
mulher chegara a sorrir. Catherine tinha certeza de que jamais a vira
sorrindo duas vezes em um mesmo dia. Bem, milagres de fato
aconteciam.

Eles iam dançar a valsa, uma dança em que os casais ficavam


bem próximos, permitindo que conversassem com privacidade.
Quando a valsa chegou à Inglaterra, poucos anos antes, foi
considerada escandalosa. Aos poucos, no entanto, a dança foi
conquistando os bailes ingleses e agora já era uma forma aceitável
nos bailes mais civilizados.
Catherine sentiu-se aliviada de dançar a valsa com William; não
se sentiria confortável dançando-a com os demais cavalheiros do
salão, a não ser...

— O que acha do Sr. Teles? — William perguntou, como se


tivesse lido seus pensamentos.

— O marido da condessa? É simpático e gentil e parece muito


dedicado a ela.

Catherine olhou em volta e não os viu. Havia conversado


brevemente com eles minutos antes e achou Christine um pouco
pálida. Ela passaria a tarde com a amiga na quinta-feira, quando se
encontrariam para um chá na abadia, e descobriria se estava tudo
bem.

— Sim, Sebastião é muito agradável — William concordou. —


Mas eu falava do irmão dele, o Sr. Henrique Teles.

— É tolerável, suponho.

Catherine tentou manter um tom neutro, mas William a conhecia


havia tempo demais para se deixar ser enganado. Ele tinha
reparado que um mal conseguia tirar os olhos do outro durante o
baile. Notou que Henrique estava, naquele momento, encarando-a
do buffet. E não parecia estar com fome de comida.

— Tolerável, é? Sei... Creio que meu irmão ficará muito


decepcionado quando retornar de Londres. Apesar de que você
sempre deixou claro que jamais se casaria com ele — William disse,
em tom divertido.

Vendo a testa franzida de Catherine, decidiu mudar de assunto.

— Quantas propostas de casamento já recebeu hoje?

— Nenhuma, graças aos céus.


A resposta fez William gargalhar, o que trouxe vários olhares
curiosos na direção deles. Desde o retorno de William a Backhan,
era raro vê-lo rindo.

— Você teve que pisar nos pés de quantos cavalheiros nesta


noite para evitar que lhe fizessem uma proposta?

Sim, William a conhecia bem. Até demais. Catherine tinha várias


táticas para evitar dançar com cavalheiros. Porém, quando era
obrigada a fazê-lo, tinha mais outras tantas estratégias para evitar
que falassem sobre casamento, ou noivados, ou quaisquer assuntos
direta ou indiretamente românticos. Uma das suas táticas favoritas
era pisar no pé do parceiro de dança quando o assunto sobre o qual
conversavam começava a ficar perigoso.

— De três — ela respondeu séria, e seu franzido ficou ainda


mais profundo quando William gargalhou (mais uma vez) de sua
resposta. — O que você esperava que eu fizesse? Eles estavam
sendo absolutamente inapropriados e irritantes.

— Sei. E por que dançou com eles, então? Por que não fingiu
uma torsão, ou cansaço, ou indisposição, como costuma fazer?

O sorriso não deixava os lábios de William. Às vezes, Catherine


detestava que eles se conhecessem tão bem.

— É que... — ela falou enquanto pensava em algumas


desculpas, mas ele descobriria seu segredo, de um jeito ou de outro
sempre o fazia. — Eu prometi a um cavalheiro que dançaria com
ele.

— Hum... Deve ser um cavalheiro muito especial. Nunca soube


de você aceitar dançar com ninguém, a não ser sob ameaça dos
seus pais.

O tom de William ainda era divertido, e ele ganhou um olhar


severo dela, fazendo os lábios se abrirem em um sorriso brincalhão.
O barão de Haster adorava a companhia de Catherine; ao contrário
das moças da alta sociedade, ela era espontânea e brutalmente
honesta, características que ele admirava profundamente.

— Foi para o Sr. Henrique Teles que prometeu uma dança?

— Como sabe? — ela perguntou, e suas bochechas ficaram


imediatamente rosadas.

— Conversamos bastante sobre você no clube, Catherine. Gosto


muito dele, por sinal. Um cavalheiro direto, inteligente e sem a
pretensão aristocrática dos nossos pais. Ele queria saber muito
sobre você.

— Como? E o que lhe disse?

— A verdade. Que o seu pai e o meu pai desejam que você se


case com meu irmão.

A jovem lady arregalou os olhos, e o amigo segurou mais uma


risada. Como era fácil para ele ler os sentimentos dela em seu rosto.

— Mas não se preocupe; eu deixei claro que você não tem


qualquer interesse em John.

— Você traiu o seu irmão?

Catherine ficou estupefata. De fato, jamais se casaria com John,


mas não entendia por que William estava dificultando ainda mais o
caminho para o próprio – e único – irmão.

— Estou fazendo um favor para ele, Catherine — e antes de


continuar, o rapaz deu um rodopio em sua dança. — John jamais a
faria feliz. E creio que você também não o faria feliz.

— Verdade — ela foi obrigada a concordar, pois não faziam


qualquer sentido como casal.

— Mas, voltando ao Sr. Teles. Eu não vi vocês dançando juntos.


William olhou em volta e notou que Henrique já não se
encontrava no salão.

— Estranho, reparei que ele pouco ficou no salão hoje. E não


vejo a condessa e o marido há algum tempo — comentou William.

— A condessa está um pouco indisposta hoje, e eles a estão


ajudando — Catherine disse, entredentes.

Não teria dançado com aqueles palhaços se não tivesse


prometido ao Sr. Henrique Teles que dançaria com ele. Afinal de
contas, seria uma situação constrangedora se ela inventasse
desculpas para recusar convites de cavalheiros e depois aparecer
valsando com Henrique, não é mesmo?

No entanto, toda vez que uma nova música começava a tocar,


Henrique sumia do salão, para reaparecer quando algum cavalheiro
enfadonho já a havia convidado.

Ao menos, havia dançado com William. Sentia falta dele.

— Depois desta dança, vou ver se eles precisam da minha ajuda


— afirmou o jovem barão.

— Mentira — Lady Catherine afirmou, fazendo os olhos de


William a encararem com surpresa. — Você pode até estar
preocupado com a condessa. Mas eu também conheço suas táticas,
Will, e isso é só uma desculpa para não precisar dançar com outras
damas.

— Ou ser cercado pelas mães das damas — ele complementou,


rindo.

Também sabia de que não adiantava tentar mentir para


Catherine. Ela o lia tão bem quanto ele a lia.

— Pois eu sei exatamente como você pode se livrar das damas


solteiras e de suas mães ao mesmo tempo — Catherine comentou,
com ar de superior inteligência.

— Como? — questionou William, com um tom esperançoso.

— É só escolher uma delas e casar-se logo, Will! — ela logo riu


da própria piada, mas notou que o semblante dele estava sério; e
seus olhos, repletos de tristeza. — Perdoe-me, estava apenas
brincando, não queria me intrometer...

O silêncio que reinou entre os dois foi desconfortável. Catherine


queria morder a própria língua por tê-lo deixado tão triste com suas
palavras inapropriadas. Ela não sabia o que se passava na vida
romântica de William, mas, o que quer que fosse, o afetava
profundamente.

Pensou em mil coisas que poderia dizer para acabar com aquele
clima mórbido entre eles, quando os olhos do rapaz retornaram para
os dela, cheios de lágrimas contidas.

— E se eu já escolhi a mulher com quem quero passar o resto


da minha vida, e ela não me quis?

— Quem é essa tola?

— Ela não é tola.

— Se ela lhe disse não, então é uma tola, sim.

— Ela jamais me disse não.

— Mas eu achei que você tivesse dito...

Catherine estava confusa. E irritada. Quem seria a tola que teria


deixado seu querido amigo William naquele estado? Como alguma
mulher poderia não querer se casar com ele? Catherine era uma
exceção, pois foram criados como irmãos.

O agora barão de Haster sempre fora gentil com todos ao seu


redor. Lembrava-se de ele brincando com ela e com John,
pequenos, apesar de saber que deveria ser insuportavelmente chato
para William, que era alguns anos mais velho. Ele poderia passar
seus dias no clube, bebendo e fazendo o que quer que os
cavalheiros faziam nesses clubes. Mas não. Sempre fizera questão
de divertir John e Catherine.

— Eu jamais cheguei a pedi-la em casamento, Catherine. Ela


estava com outro.

— Mas... Mas... Nenhum outro seria melhor que você, Will!

Ele abaixou a cabeça, balançando-a, como se discordasse dela.


Catherine decidiu insistir. William era um homem gentil e simpático,
mas, em relação a mulheres, era extremamente reservado. Se
falara daquela tola, era porque se importava verdadeiramente com
ela. Apesar de ser uma tola. Então, Catherine teria de convencê-lo a
não desistir.

— Se ela jamais disse não, como você sabe que ela não diria
sim?

— Como eu disse, ela estava com outro e...

— Talvez estivesse com outro, pois não sabia que você queria se
casar com ela!

Ele encarou Catherine como se não tivesse pensado naquela


hipótese, o que a fez revirar os olhos para ele.

— Você nem sabe, não é? Agora creio que o tolo seja você, Will!

— Calma, calma — pediu ele, com um sorriso que voltara


timidamente aos seus lábios. — Acho que o que diz pode ter algum
sentido...

Ela revirou novamente os olhos, como se dissesse: “Óbvio que


faz todo o sentido, seu tolo!”, e o sorriso tímido de William tomou
conta de seu semblante. Catherine notou que a valsa se aproximava
do fim, e que algumas mães-de-damas-solteiras-da-alta-sociedade
já se aproximavam dos dois, com olhos famintos encarando William.

— Precisamos sair daqui, Will. E rapidamente.

Ele olhou na direção que Catherine encarava e concordou, sério:

— Eu te disse.

— Bem, se conseguir uma carruagem para levar as irmãs Clinton


de volta para casa, ajudo-o a fugir do salão — ela propôs.

— Negócio fechado — ele aceitou, mas logo depois pensou um


pouco. — Mas o que houve com a sua carruagem?

— Vê a Sra. Smith em alguma parte? — Catherine o desafiou.

— Não, não a vejo. Estranho, ela estava aqui agora há pouco.

Sim, decerto estava. Porém, assim como conhecia bem o


comportamento de William, também conhecia o da Sra. Smith. Ela
detestava bailes, especialmente na Abadia da Morte. Além disso, as
irmãs Clinton estavam ali, e provavelmente a Sra. Smith as havia
pedido para ficarem como damas de companhia de Catherine.

Vendo que sua protegida estava sendo vigiada pelas atentas


irmãs, dançando com o irmão de seu pretendente, e considerando
que os pais de Catherine não estavam na cidade, a governanta
havia se sentido confortável o suficiente para retirar-se. Assim,
Catherine teria que usar a carruagem da condessa para voltar para
casa.

William assentiu à medida que a amiga lhe explicava, mas um


ponto o continuou intrigando.

— Eu posso levar as irmãs Clinton na minha carruagem. Mas


não entendo por que elas não podem ir com a senhorita na
carruagem da condessa.
— Vê as irmãs Clinton?

Ela indicou as senhoras discretamente, e William sorriu a vê-las.


Estavam conversando e gargalhando com um grupo de rapazes
com menos da metade da idade delas. Os rapazes de Backhan
adoravam as lendárias irmãs, e elas sempre ficavam cercadas de
moços e moças intrigados com suas infindáveis e hilárias histórias
nos bailes.

— Elas parecem dispostas a ir embora?

— Nem um pouco — William respondeu, rindo —; não dentro


das próximas duas horas.

— Pois é. Eu estou cansada. Se a condessa não tiver retornado


de seu quarto, vou embora e deixo um bilhete para ela.

— Não se preocupe.

Assim que a dança cessou, eles caminharam juntos em direção


à saída do salão.

— Vou explicar a situação às irmãs. Vou deixá-la na carruagem.


Mas como vai me ajudar a me livrar das mães e das damas? —
indagou William.

— Eu lhe mostro onde é meu esconderijo secreto, onde


nenhuma das mães-das-damas-solteiras o encontrará: a biblioteca
— disse em tom conspiratório.

— A senhorita vai embora sem dançar comigo?

Catherine acordou com um sobressalto, tentou levantar-se com o


susto e bateu a cabeça contra o teto da carruagem. Henrique entrou
no veículo, e, segundos depois, a carruagem começou a andar. Ele
fechou as cortinas e aproximou-se dela antes que Catherine
pudesse expulsá-lo.

— O que pensa que está fazendo?

Ela tentou se afastar, mas suas costas já estavam grudadas na


outra porta da carruagem. Não havia para onde fugir.

— Vim cobrar minha dívida — ele avisou, com ardor nos olhos,
aproximando-se ainda mais dela, de forma que suas coxas estavam
encostadas.

— Foi o senhor quem desapareceu do baile — Catherine se


defendeu.

— O baile ainda não terminou, senhorita — Henrique lembrou-a,


puxando-a para si, colocando-a em seu colo. — E, se não terei
minha dança, a senhorita terá que pagar sua dívida de outra
maneira.

— De que maneira?

A jovem não tentou sair de seu colo, e muito menos o rejeitou.


Em vez disso, encarou seus lábios, umedecendo os próprios com a
língua. A visão destruiu qualquer resquício de razão que Henrique
poderia ter.

— Assim — ele respondeu, segurando-a pela nuca e beijando a


lateral do pescoço dela.

Ele fez uma trilha de beijos pelo belo pescoço de Catherine,


gemendo quando sentiu o cheiro de violetas. Como ele adorava o
cheiro dela! Alcançou o lóbulo de sua orelha direita e o puxou entre
os dentes. Catherine o agarrou pelos ombros, e, pela forma como
suas unhas se enterravam nas costas do estrangeiro, Henrique
supôs que ela estivesse adorando aquele carinho.

Que bom.
Segurou-a pelos quadris e virou-a, posicionando-a de forma que
cada coxa estivesse de um lado da cintura dele. A cabeça da jovem
estava um pouco acima da dele agora, e a Lady a virou para trás,
expondo seu pescoço perfeito. Henrique não segurou um gemido
alto; sabia que Catherine jamais tivera um momento de intimidade
com qualquer homem. Ainda assim, entregava-se como se fosse
dele. Sim, ele garantiria que jamais se entregaria daquela ou de
qualquer outra forma para nenhum outro cavalheiro. E sim, ele era
extremamente possessivo quando se tratava de Lady Catherine
Morland.

Henrique beijou o contorno de sua mandíbula, mordiscando-a de


leve sempre que ela apertava seus ombros com mais força. As
coxas dela o enjaularam no assento; não que ele desejasse estar
em qualquer outro lugar do mundo. A Lady usava uma gargantilha,
que o estrangeiro arrancou de seu pescoço para conseguir explorar
livremente cada milímetro de pele macia.

Seus lábios desceram para o colo de Catherine, e, quando


alcançou a ponta do vestido, ele encostou a língua contra a pele
dela, que estava quente. Catherine tirou as mãos de seus ombros e
o agarrou pelos cabelos, puxando-o ainda mais para perto de si.

A língua dele passou lentamente pelo colo dela, sob suas


clavículas, e, quando ouviu um gemido saindo dos lábios perfeitos
de Catherine, Henrique beijou sua pele, fazendo-a arquear as
costas, em direção a ele. O visitante sabia que já haviam passado
dos limites, mas não conseguia parar.

Ele tirou os lábios da pele de Catherine para arrancar as próprias


luvas com os dentes e fez o mesmo com as dela. Queria tocar-lhe a
pele e ser tocado por ela. Assim que teve as luvas retiradas, a
jovem afastou-se um pouco e, com seus dedos, delineou os
contornos da boca daquele homem.

O calor e a pressão de Catherine sentada em seu colo, com os


cabelos desfeitos por ele, respirando pela boca, e certamente tão
cheia de desejo quanto ele, quase o fizeram arrancar-lhe o vestido.
Mas ele não se mexeu. Controlou a enorme vontade de tê-la,
enquanto ela passava os dedos quentes pelos lábios dele, por sua
mandíbula, pelo seu queixo, pelo seu pescoço.

Delicadamente, ela deixou os dedos trêmulos passarem do rosto


dele para seus cabelos escuros, deixando que se enrolassem em
seus fios. Puxou-o para seu rosto, e Henrique prendeu a respiração.
Ela iria beijá-lo? Ele sentiu o hálito doce dela, aproximando do dele.
Ela iria beijá-lo!

A carruagem parou de repente, e Henrique ouviu a voz de


Robert avisando:

— Greenwoods House.

— Inferno! — ele exclamou, possesso.

Aproveitando a distração do irresistível libertino, Catherine


escapuliu do colo dele. A tênue luz do candeeiro externo de
Greenwoods House, mostrou os cabelos da dama desgrenhados, os
quais ela ajeitou e calçou as luvas, sem acreditar no que quase
fizera, e no que permitiria que o homem fizesse com ela! Os olhos,
assustados, olhavam para o vestido, avaliando seu estado.

Ela estava irresistivelmente amassada, como se tivesse sido


agarrada por um cavalheiro em uma carruagem. O pensamento fez
Henrique sorrir. Quando ela o flagrou encarando-a, seus olhos
encheram-se de raiva.

— Seu libertino descarado! Deixa-me neste estado e ainda ri?


Por sorte, meus pais não estão aqui, e todos na casa devem estar
dormindo, senão...

Ele a puxou de volta para o colo dele e disse, em seu ouvido:

— Pelo que notei, a senhorita não ficou nem um pouco ofendida


com os meus toques. E, se não falar mais baixo, Robert vai saber
exatamente o que aconteceu nesta carruagem.
Os olhos dela arregalaram-se com choque, ao perceber que o
cocheiro provavelmente escutara tudo.

— Se bem que, quando vir a senhorita sair da carruagem, e


depois eu, ele vai saber exatamente o que se passou aqui dentro.

— Deixe-me ir! — ela ordenou, mas ele tinha mais uma coisa a
dizer antes de soltá-la.

— Amanhã, às três horas da tarde, no lugar onde nos


conhecemos. Vá sozinha — ele cochichou.

— Libertino arrogante! Nem morta eu irei encontrá-lo! — ela


afirmou e saiu às pressas da carruagem.

Com um sorriso, ele fechou a porta e pediu a Robert que


retornasse à abadia. Henrique estava muito satisfeito: pela forma
como ela havia se comportado, ela iria ao encontro, ele tinha
certeza.

Lady Catherine passou a noite em claro, jurando para si mesma


que jamais deixaria o maldito libertino tocá-la novamente. Quando o
sol nasceu no horizonte, tinha quase certeza de que não iria àquele
encontro vulgar. Ao tomar seu café da manhã, estava na dúvida se
deveria ou não ir.

Às duas da tarde, estava decidida: iria ao encontro com o


libertino estrangeiro, mas apenas para deixar claro que, daquele dia
em diante, ele seria um perfeito cavalheiro perto dela.

Claro que, no fundo no fundo, ela desejava que ele não fosse.


— Só mais cinco minutos.

Catherine assegurou a si mesma. Já dizia isso havia vinte


minutos. Henrique estava atrasado. Bem atrasado. E, a cada minuto
que se passava, Catherine questionava a si própria se deveria estar
ali, o que diria caso ele viesse, e o que significaria se ele não
aparecesse.

Uma leve chuva começou a cair enquanto ela discutia consigo


mesma sobre seus próximos passos. Xingou em voz alta, olhou em
volta e, certificando-se de que ainda se encontrava sozinha, voltou a
prometer que somente esperaria mais cinco minutos.

Sua espera se revelou acertada quando ela avistou uma figura


escura sobre um cavalo que trotava na direção dela. Ajeitou a capa
em volta do vestido, tentando proteger-se da chuva e do vento.
Estava distante demais para ver o rosto do cavaleiro, mas a figura
parecia mais baixa que Henrique. E mais robusta na cintura
também.

Não. Tinha que ser Henrique. Quem mais estaria cavalgando por
aqueles bosques?

— Lady Catherine? — a figura chamou, com uma voz masculina


que não pertencia a Henrique.

Diabos! Era Robert, o cocheiro da condessa de Fullerton. O


coração de Catherine deu pulos de ansiedade quando ela pensou
nos possíveis motivos para Robert ter vindo ao seu encontro no
lugar do Sr. Teles. Estaria Henrique machucado? Ou a indisposição
da amiga havia piorado? A Lady havia recebido um bilhete de
Christine naquela mesma manhã garantindo-lhe que se sentia
melhor, mas agora a jovem imaginava o pior dos cenários.

— O que houve, Robert? A condessa está bem? E o Sr. Teles?

Robert saltou do cavalo quando estava a dez metros de


Catherine.
— A condessa está bem, senhorita. E acredito que o Sr. Teles
também, onde quer que esteja.

Onde quer que esteja? O que Robert queria dizer com aquilo?

— O que está dizendo, Robert? Onde está o Sr. Teles?

— Ele recebeu uma carta esta manhã, senhorita. Não sei do que
se tratava, mas sei que era urgente. Pedia-lhe que fosse a Paris.

— Paris? — Seria aquilo possível?

Teria Henrique deixado a Inglaterra sem ao menos se despedir


dela? Depois da última noite? Depois das últimas semanas? Talvez
Catherine não precisasse tê-lo chamado de libertino tantas vezes,
mas ela o deixou tomar diversas liberdades com ela, de maneira
que jamais havia permitido qualquer outro homem! Não era aquilo
prova suficiente de seus sentimentos, por mais que ela própria
preferisse negá-los?

— Sim, senhorita. Ele partiu ainda nesta manhã para Paris.

— E quando volta?

— Não sei, senhorita. Isso ele não me disse.

Robert de repente olhou para baixo, incomodado com a tarefa


indigna que lhe tinha sido atribuída. Não queria ser portador de más
notícias, especialmente a alguém tão doce e adorável como Lady
Catherine. E via a decepção nos olhos da moça. Rezava para que
ela não chorasse; detestava ver mulheres aos prantos, pois nunca
sabia como agir. Sempre acabava dizendo a coisa errada.

— Mas quem mandou essa carta? — perguntou a jovem.

Robert viu uma lágrima descer pelo rosto delicado de Catherine,


e seu coração apertou.

— Também não sei, senhorita. Sei apenas que foi uma mulher.
— Uma mulher?

Como sempre, Robert havia dito a coisa errada, ele percebeu ao


ver que as lágrimas tinham aumentando e jorravam livremente pelo
rosto da jovem. Ele buscava algo para dizer, para tentar consolá-la,
mas nada lhe ocorreu, e a moça montou em seu cavalo, com certa
dificuldade, e lhe agradeceu pelo recado, pela discrição, e foi-se
embora, deixando-o onde estava, com aquela sensação estranha de
que tinha falhado.

Ela, por sua vez, alheia aos sentimentos do pobre cocheiro, tão
concentrada em seus próprios, saiu cavalgando no meio da chuva, e
Robert a viu sumir entre as árvores, desolado por ter-lhe causado
aquela tristeza.

Catherine retornou tão irritada de sua cavalgada que a Sra.


Smith nem ousou perguntar-lhe o que houve. Provavelmente, não
gostara nada de ter de cavalgar na chuva. A governanta
simplesmente ordenou que Claire fosse ajudar a moça a despir-se e
que lhe preparasse o banho; o chá seria servido em breve.

Claire encontrou Catherine chorando na cama. A razão daquelas


lágrimas era tão óbvia para a criada como fora a razão de a moça
decidir cavalgar sozinha em um dia nublado: o Sr. Henrique Teles.

— O que houve, Catherine?

— Ele tem uma noiva! Uma noiva! — ela exclamou, a voz


abafada pelo travesseiro.

— O Sr. Teles? — Claire questionou, sentando-se sobre a cama.

Catherine afirmou com a cabeça.

— Ele lhe contou isso?


— Não! É um covarde! Enviou Robert para me contar! — a Lady
explicou, aos soluços.

— Robert lhe disse que o Sr. Teles está noivo? — Claire tentava
entender, enquanto passava a acariciar os cabelos de Catherine.

— Não! Você não está prestando atenção no que lhe digo,


Claire?

Catherine deixou a pobre camareira ainda mais confusa. Não


fora exatamente aquilo que havia acabado de lhe dizer?

— ElefoiparaParis! Aquelelibertino! Euoodeio!


Nuncamaisquerovê-lonaminhafrente!

Catherine falava depressa, o rosto ainda no travesseiro, mas


Claire pôde entender as palavras Paris, libertino e frente. Teria o Sr.
Teles ido a Paris para praticar libertinagens na frente de algum
lugar? Não, aquilo não fazia qualquer sentido. E o que Paris teria a
ver com o noivado do cavalheiro estrangeiro?

Aquilo já fora longe demais. Claire virou Catherine pelos ombros,


até que estivesse com as costas na cama e o rosto virado para ela.
Em seguida, ajudou-a a se sentar e ofereceu-lhe um copo de água.
Finalmente, perguntou-lhe o que havia acontecido.

— Ele — soluço! — foi — mais um soluço! — para Paris —


soluços múltiplos — encontrar-se com sua noiva! — disse Catherine
e voltou a chorar.

Daquela vez, Claire não permitiria que ela se escondesse no


travesseiro.

— Como sabe que o Sr. Teles foi ao encontro de sua noiva?

— Robert — novo soluço — disse-me — soluço — que ele foi se


encontrar com uma mulher!
— Mas em nenhum momento ele disse que era a noiva do Sr.
Teles — Claire afirmou calmamente, o que fez Catherine, enfim,
cessar o choro.

— Que outra mulher faria um cavalheiro deixar um país às


pressas, Claire?

— Pode ser uma amiga... — comentário que fez Catherine


revirar os olhos —; até mesmo a mãe dele! A senhorita deveria
esperar pelo retorno do cavalheiro. Decerto terá uma boa
explicação.

— Esperar? Nunca mais quero ver aquele libertino egoísta! Eu o


odeio! Eu o detesto! Ele me enoja!!!!

Com isso, Catherine voltou a chorar com o rosto enterrado no


travesseiro. E Claire voltou a acariciar seus cabelos ruivos, com um
sorriso nos lábios. Pela primeira vez, a Lady da casa estava
apaixonada.


Capítulo 9

“Não posso fixar a hora ou o lugar. Isto já foi há muito tempo. Eu


já estava no meio e ainda não sabia que tinha começado.”

(Jane Austen)

Derbyshire, entre 13 e 14 de agosto.

— Cathy, acorde! — A voz rouca de Sara fez Cathy pular da


cama.

Onde estava mesmo? Em Bakewell, próxima a Chatworth


House, para onde foram dias antes. Estava no século XXI, não no
século XIX. Estava tudo bem. Sorriu para Sara um daqueles sorrisos
que iluminavam seu rosto, e Sara sorriu de volta. Lembrou-se de
que estava muito feliz ali.

Desde que chegaram, dias antes, já escrevera dois contos, que


foram muito elogiados por Sara. Conseguira também escrever mais
um capítulo do seu romance, mas essas palavras ela continuava
escondendo de Krista.

— Você estava fazendo uns sons esquisitos enquanto dormia —


comentou Sara, trazendo Cathy de volta à realidade. Com o que
Cathy sonhava mesmo? Ah! Com o Sr. Henrique Teles e Lady
Catherine, e alguns momentos íntimos que eles passaram na
carruagem...

Sara observou Cathy com cuidado, e, como se tivesse acabado


de descobrir um segredo, sorriu-lhe maliciosamente.
— Hummmmm... Foi um sonho proibido para menores de idade,
né?

— Foi mais do que um sonho, Sara — respondeu-lhe Cathy, com


um sorriso tímido. — Acho que está se tornando um ótimo romance.

Entre Paris e Londres, 16 de agosto.

Um mês. Havia se passado mesmo todo aquele tempo?


Enquanto Henrique observava o painel de idas e vindas de trens à
sua frente, encarando a realidade temporal que o afastara de
Londres (e de certa americana que deixara sua impressão nele), o
brasileiro sentia um vazio no peito.

O que diria a Cathy? Sabia que Krista lhe daria uma — merecida
— bronca por sumir sem nada dizer. Tinha certeza de que, no
momento em que visse o senador Tilney, Sara entenderia de
imediato o que acontecera. Mas como explicaria seu sumiço
repentino, as mensagens não respondidas, as ligações não
retornadas de Cathy?

Fora um covarde, isso era fato. Quando recebeu o telefonema da


irmã, solicitando que fosse imediatamente a Paris, temeu pelo bem-
estar dela. Estaria Elena em perigo? Teria se acidentado? Jamais
imaginava que o senador em pessoa estaria à sua espera no
desembarque da Gare Du Nord. Ao sair do trem, não conseguia ver
outro rosto que não o do pai.

Por que o senador estava na França? Decerto, havia se


envolvido em algum escândalo no Brasil e saíra do país por uns
tempos, como fizera tantos anos atrás. Como desconhecia por
completo o motivo que levou o pai à Europa, Henrique
simplesmente não teve coragem de falar com Cathy; não sabia
como explicar sua longa ausência e, principalmente, não tinha ideia
de quando – e se – retornaria a Londres. Não desejava, de forma
alguma, decepcioná-la. E foi exatamente o que ele acabou fazendo,
ao não dar notícia.

Nas últimas quatro semanas, Henrique havia feito pesquisas na


internet e ligações para amigos em São Paulo. Nada. De fato,
estava ocorrendo uma grande operação da Polícia Federal no país,
mas o nome do pai não estava envolvido. Pelo menos, não ainda.

No entanto, Henrique e os irmãos (pois, Fábio também chegara


a Paris no começo de agosto) sabiam que havia algo de errado, pois
o senador, mais uma vez, estava usando um nome diferente: desta
vez, registrara-se no hotel com o sobrenome da avó paterna de
Henrique, Ferreira.

E, tão de repente quanto chegou, o senador Tilney decidiu deixar


a Cidade-Luz e seguir até Londres.

Henrique pensou no que diria a Cathy enquanto arrumava as


malas da suíte duplex do Hotel Raphael, o favorito do pai na capital
francesa. Sua irmã admirava a vista para a Champs-Élysées da
varanda do quarto luxuoso, e de tempos em tempos lhe perguntava
se estava tudo bem. “Sim, está”, ele respondia de forma automática.
Porém, não havia como enganar Elena.

Continuava quebrando a cabeça quando foram tomar café da


manhã, no terraço do hotel. Nem a vista da Torre Eiffel foi capaz de
inspirá-lo. Na ida para a estação de trem Gare Du Nord, Henrique
teve algumas ideias ao passar pelo Arco do Triunfo, pela Place de la
Porte Maillot e pelo Palácio do Congresso. Entretanto, ao chegar à
estação de trem, já havia descartado todas.

Chegaram a Londres. O céu estava nublado, como a mente de


Henrique. Deixaram suas coisas em uma casa em Chelsea, que
pertencia a um amigo do pai, bem próxima à casa de Krista.

— O que direi a ela, Leninha?


A essa altura, Henrique já havia contado tudo a Elena. Nem
sabia por que não o fizera antes.

— Conte a verdade.

Henrique sabia que ela diria isso, mas mesmo assim o conselho
fez a bile subir à garganta.

— Ao menos é um problema que tem conserto. Nem todos têm


sua sorte.

Mais uma vez, Henrique sentiu-se um idiota. Ali estava ele, se


lamentando por uma dificuldade cuja solução dependia única e
exclusivamente dele mesmo, enquanto a irmã não tinha esperança
(pelo menos, não se quisesse continuar falando com o pai).

Anos antes, no começo da faculdade de Medicina, Elena


conhecera um rapaz no curso. Paulo vinha de família humilde, havia
morado a vida inteira em uma favela. Ele conseguira bolsa em
algumas escolas particulares, empenhara-se nos estudos, lia o dia
inteiro enquanto a mãe sustentava a casa sozinha com o emprego
de faxineira.

Elena o admirava. Era raro isso acontecer com alguém do seu


grupo: os rapazes que conhecia desde criança eram mimados,
acostumados a ter tudo o que desejavam sem o menor esforço,
eram presunçosos e preconceituosos. Ela começou a sair com
Paulo pouco tempo depois de terem sido apresentados, mas um dos
filhos de amigos do senador Tilney contou sobre o caso ao pai de
Elena, que logo separou os dois.

Henrique ainda ficava de coração partido ao se lembrar do


estado melancólico da irmã quando o namoro acabou. Realmente,
ele não tinha direito de reclamar.

Mal havia voltado ao presente quando percebeu que já estavam


na porta da casa de Krista. Quem atendeu foi uma sorridente Sara,
que os recebeu com o carinho de uma prima saudosa.
— Não precisa se justificar para mim, Rico — Sara disse,
quando Henrique começou a falar —; eu conheço o seu pai o
suficiente para saber que teve dedo dele na história. Mas Cathy
merece algum tipo de explicação.

Como se tivesse sido atraída para a conversa dos primos,


Catherine apareceu na esquina da rua. Estava acompanhada de
uma moça loira e esbelta, um rapaz com o mesmo sorriso de Cathy
(Henrique imaginou que fosse James, o irmão mais velho dela) e
outro sujeito alto, que não tirava os olhos de Cathy. Rico notou que
a ruiva arregalou os olhos ao vê-lo, fazendo-o prender a respiração.
Mas continuou conversando com o grupo como se nada tivesse
acontecido.

Os três acompanhantes despediram-se de Cathy a alguns


metros da casa de Krista (Henrique percebeu, já enraivecido, que o
desconhecido alto levou tempo demais beijando o rosto dela) e
cumprimentaram Sara de longe, antes de se virarem e tomarem
outro rumo.

— Eles estavam atrasados para um compromisso da Bella, por


isso não vieram até aqui falar contigo, Sara — disse Cathy ao se
aproximar, ignorando Henrique e a irmã por completo.

O silêncio constrangedor reinou no grupo, até que Elena decidiu


quebrá-lo.

— Você deve ser Cathy, não é mesmo? Sou Elena, irmã do Rico.
Ele me falou muito de você.

— Ah, é um prazer conhecê-la!

Cathy ficou logo animada, pois chegou a pensar que a moça


fosse a nova namorada de Henrique. No entanto, ao ver que o
sorriso de Henrique se alargou, o lado heroico de Catherine Murray,
que surgia quando ela mais precisava, tomou controle de sua boca.
— Engraçado que ele tenha falado de mim para você, Elena, já
que ele fez questão de ignorar minha existência nas últimas
semanas.

Cathy entrou, então, na casa, com a cabeça erguida e a coluna


ereta, deixando para trás Henrique boquiaberto, Elena surpresa e
Sara a ponto de gargalhar.

— Gostei dela, Rico. — Foi tudo o que Elena disse.

— Ela é maravilhosa, não é mesmo? — comentou Sara.

As primas entraram abraçadas na casa de Krista, seguidas pelo


homem cabisbaixo.

É, Henrique teria de se esforçar bastante se quisesse


reconquistar Cathy.

Sara e Elena alcançaram Cathy no jardim, momento em que


Elena aproveitou para defender o irmão.

— Cathy, você tem todos os motivos do mundo para estar


chateada com Rico. Mas não deveria, porque a culpa é toda minha.

Catherine, que caminhava até um banco de madeira, parou ao


ouvir aquelas palavras. Elena estava prestes a ir contra seu próprio
conselho sobre Rico contar a verdade à ruiva.

— Eu tive alguns problemas pessoais em Paris e pedi que Rico


viesse me ajudar. Eu o fiz prometer que não contaria a ninguém o
motivo de sua ida brusca à França, e ele, por não querer mentir para
você, acabou não tendo coragem de retornar suas ligações.

— E mensagens! — complementou Cathy, ainda chateada,


porém menos revoltada.

— E mensagens ... — confirmou Elena, sorrindo. — Ele me falou


muito de você, Cathy, e eu estava louca para conhecê-la.
E foi assim que Elena mudou completamente o foco da
conversa. Começaram a falar sobre o blog de Cathy, seus contos, o
romance que ela estava escrevendo, seus passeios em Londres.
Em menos de meia hora, as duas já estavam se tratando como
velhas amigas. Antes de sair, Elena, sabendo que o irmão precisava
de uma boa oportunidade para se reaproximar de Cathy, convidou-a
para um passeio no dia seguinte.

— Já que você gosta tanto de fazer trilhas, podemos passar o


dia em alguma parte do North Downs Way, um caminho muito
conhecido para os amantes de trilhas e natureza.

— Eu adoraria! — Cathy respondeu, animada.

— Temos que sair por volta das oito da manhã. Vamos torcer
para não chover, porque senão não vai rolar... O que acha?

— Acho perfeito!

A animação de Cathy era tanta que contaminou até mesmo


Henrique, que a observava da cozinha, enquanto ouvia — ou fingia
ouvir — o monólogo ininterrupto de Krista Allen sobre sua ausência
inexplicável.

Entre Londres e Saint Albans, 17 de agosto.

Sete e meia: rezas para os deuses do sol, palavras


reconfortantes de Krista, garantia da previsão meteorológica de que
a chuva cessaria até oito da manhã.

Oito horas: chuva se intensificou, unhas foram roídas, roupas


foram substituídas meia dúzia de vezes, mensagens foram trocadas
com Elena.

Oito e meia: com o coração batendo rápido, mais algumas trocas


de roupa, Krista ordenou que ela se acalmasse, pois, Elena quase
estava desistindo do passeio.

Às nove e meia, a chuva ainda estava forte, quando Catherine


recebeu uma mensagem de Elena, avisando que deveriam remarcar
a caminhada para outro dia.

Desanimada, Cathy pegou aleatoriamente um livro na estante da


sala de estar, deitou-se no sofá de seda branca com detalhes florais
e começou a folheá-lo, sem prestar atenção nas palavras.

— Você corre sério risco de vida, Cathy — ironizou Sara. — Se


Krista lhe flagrar com seus tênis surrados sobre o sofá precioso
dela, não sei se conseguirei salvar sua delicada pele de porcelana...

— Humm? Ah, tudo bem... — ela falou e retirou lentamente os


pés do sofá.

Notando o olhar desanimado de Cathy, que se preparara desde


a noite anterior para o grande passeio, Sara tentou mudar seu
humor.

— Pelo menos, a chuva parou — Sara comentou, olhando pela


janela. — Pode ser tarde demais para ir a North Downs Way, mas
quem sabe você e Elena não podem passar a manhã no Hyde
Park? Melhor ainda: por que você, Elena e Rico não vão ao Hyde
Park?

— Humph! — reclamou Cathy com um som gutural, ao ouvir o


nome de Henrique, mas sorriu por dentro e pulou do sofá, já ansiosa
para saber o que Elena acharia da ideia.

Antes que pudesse enviar a mensagem com o novo convite,


ouviu o som de motos se aproximando da casa e batidas na porta
em seguida.

— Vamos a Saint Albans! — disse-lhe James, após


cumprimentar Sara com pressa.
Cathy estava na dúvida se toparia o convite: teria que ir na
garupa da moto de Johnny, já que a de seu irmão já tinha dona
(Bella). Porém, James a conhecia bem e sabia convencê-la, quando
assim desejava. Ao ouvir que visitariam locais com vestígios de
construção romana, uma catedral medieval, além do famoso
mercado da cidade, Cathy não tinha outra escolha a não ser aceitar.

— Eu estava prestes a convidar Elena e o irmão para dar uma


volta. Acho que eles vão adorar a sugestão!

Era uma ótima ideia, pensou Cathy. Nada melhor do que irem
todos juntos. Elena havia comentado que tinham um carro à
disposição, do amigo do pai. Ou seja, ela nem precisaria ir de
carona com Johnny: poderia ir no carro com Elena e Henrique!
Johnny, o único que ainda estava na sala, pois James e Bella
estavam conversando com Sara na cozinha, fez uma cara de
desgosto.

— Ih, Cathy, seria uma boa mesmo, mas eu vi os primos da Sara


caminhando na direção oposta daqui. Estávamos tomando café na
padaria da esquina, há mais ou menos meia hora, quando eles
passaram. Disseram que iam visitar uns conhecidos...

Um pouco decepcionada por seu plano perfeito não ter dado


certo, Cathy foi até a cozinha apressar Bella e James. Logo os
quatro saíram, um casal em cada moto, e somente ao subir no
veículo Cathy notou o que vestia. Ela havia tirado a roupa de
caminhada e colocado um vestido branco simples, quando Elena
cancelou o passeio. Insistiu que deveria se trocar, que precisava
colocar calças, mas Bella disse-lhe que estavam atrasados e, para
evitar que a amiga passasse frio, emprestou seu casaco de couro
branco sintético.

Cathy segurou a cintura de Johnny com uma das mãos e a barra


do vestido com a outra. Quando estavam saindo da Upper Cheyne
Row para virar na Rua Oakley, ouviu alguém chamando seu nome.
Era Elena! Ela e Henrique estavam descendo a rua, na direção da
casa de Krista!
— Johnny, acho que eles desistiram de visitar os amigos! Estão
logo ali! Pode vê-los? Encoste aqui para que eu possa falar com
eles!

Ao invés de parar, no entanto, Johnny acelerou a moto e


continuou até que não conseguissem mais ver os irmãos. Cathy
reclamou e pediu que parasse, enquanto acenava para Henrique e
Elena, um gesto claro de que os havia visto e que iria voltar para
encontrá-los. Mas Johnny simplesmente não parava.

Cathy tinha certeza de que, antes de sumirem de seu campo de


visão, ela viu Elena acenando simpaticamente e depois começando
a rir, enquanto Henrique cruzava os braços. E, quando Cathy lhes
deu tchau, ele tropeçou e quase caiu.

A mão que acenava para os irmãos agora batia no braço de


Johnny, reclamando por ele não ter parado. A jovem escritora da
Califórnia levou alguns momentos até fazer as contas: uma mão
segurava a cintura de Johnny, e a outra acenou para os brasileiros e
agora batia no ombro do irmão de Bella. Ou seja: não havia
nenhuma mão segurando a barra de seu vestido!

Cathy olhou para baixo, e, para sua vergonha, o vestido estava


esvoaçando para todos os lados, expondo sua calcinha! Enquanto a
moto corria ferozmente na direção de Saint Albans, ela pensava em
sua falta de sorte, que piorou em muitos níveis o seu mico: por que,
exatamente naquele dia, escolhera usar uma calcinha de
unicórnios?

Londres, 17 de agosto.

— Que diabo! Por que eles ainda não chegaram? Será que se
acidentaram? As estradas estão úmidas e ainda está chuviscando!
Que ideia de jerico: viajar de moto neste tempo!
O humor de Henrique piorava perceptivelmente a cada vez que
ele olhava no relógio. Durante a última ligação entre Sara e Cathy,
duas horas antes, a ruiva lhe garantira que estava tudo bem.
Demoraram a retornar de Saint Albans porque queriam evitar a
chuva. Mas já eram quase oito da noite, e tiveram tempo suficiente
para fazer o trajeto até Londres, mesmo que devagar.

Bastou Henrique ameaçar sair com o objetivo de procurá-los


pelas estradas para os quatro surgirem à porta da casa de Krista.
Cathy estava ensopada, o vestido grudado em sua pele, quase
transparente, deixando muitas de suas curvas à mostra.

Johnny não disfarçava os olhares para Cathy, algo que deixou


Henrique furioso de imediato: não apenas pelo ciúme, mas, em
especial, pela falta de respeito e de consideração. Aquele idiota
havia deixado Cathy na chuva, no frio e agora se aproveitava de sua
vulnerabilidade?

Henrique pegou um dos casacos longos de Krista no armário do


hall de entrada e o colocou em volta de Cathy, tentando não olhá-la.
A jovem agradeceu a ele sem olhá-lo nos olhos e aproveitou a
aproximação da irmã do rapaz para explicar o que acontecera mais
cedo: tentara parar, pedira a Johnny que o fizesse, mas ele apenas
acelerara a moto. Cathy estava prestes a convidar Elena e Henrique
a ir com o grupo a Saint Albans, mas Johnny lhe jurara que vira os
dois saindo, meia hora antes.

— Viu, Rico? — comentou Elena, certificando-se de que


ninguém mais além do irmão e Cathy a escutavam. — E você
passou o dia se mordendo de ciúmes achando que ela preferiu sair
com o loiro bonitão...

Se Henrique fosse um pouco menos moreno, todos poderiam


testemunhar suas bochechas ficando vergonhosamente rosadas.
Antes que ele ou Cathy pudessem fazer novos comentários, Elena
levou a escritora até o andar de cima para que se trocasse.
Quando voltou a prestar atenção na conversa alheia, Henrique
descobriu, para seu descontentamento, que Bella, James e Johnny
também jantariam na casa de Krista. Desejava conhecer melhor o
irmão mais velho de Cathy, assim como sua nova amiga
(especialmente ao saber que, quando James voltasse à América,
Bella iria com ele), mas a companhia de Johnny era, para ele,
simplesmente insuportável.

Se não fosse suficiente, minutos mais tarde, Fábio ligou para


avisar que iria ao jantar. Com o pai.

— Sara e ele não se falam há anos, Fábio — comentou


Henrique, preocupado.

Temia pela reação da prima e também não estava preparado


para apresentar o senador a Cathy.

— Ele quer acertar as coisas, pedir desculpas para Sara —


respondeu Fábio.

A estranheza em torno das ações do senador Tilney apenas


aumentava. Henrique relatou a Elena e Sara o que seu irmão mais
velho lhe dissera. Enquanto a primeira apenas fez uma careta, a
segunda disse com seu ar sarcástico habitual:

— Um pedido de desculpas? Apenas vendo para crer, primo.

E eles tiveram que crer. Porque o senador, do momento que


chegou ao momento de sua despedida, não foi nada além de gentil.
Abraçou Sara com carinho de tio protetor (se foi falsidade, nem
mesmo ela conseguiu notar); parabenizou a sobrinha e Krista pelo
noivado, oferecendo-lhes um vinho raro de presente; fez piadas com
Catherine; foi atencioso com os irmãos Thorpe, mesmo sabendo
que jamais seriam seus eleitores e muito menos patrocinadores de
campanha.

Depois de se convencer de que o pai se comportaria no jantar,


Henrique começou a observar Cathy. Notou que Johnny lhe dava
excessiva atenção e não escondia seu interesse por ela. Percebeu
também que, apesar de a norte-americana responder às perguntas
dele e sorrir de vez em quando, estava entediada com o falatório
ininterrupto de Thorpe. Além disso, para sua satisfação, ela olhava
de canto de olho para Henrique, quando acreditava que não seria
descoberta.

Ao longo da noite, Henrique se incomodou com algumas coisas


(além da atenção irritante que Johnny dirigia a Cathy): Isabella
Thorpe, que se dizia loucamente apaixonada por James Murray,
olhava para Fábio Teixeira com muito mais interesse que para o
próprio namorado; James Murray, que parecia ser um jovem de
quem Henrique poderia se tornar um grande amigo, acabou por
notar a interação visual entre sua namorada e o irmão mais velho de
Henrique, e parecia devastado com aquilo.

Porém, o fim do jantar foi o que o definiu como um sucesso para


Henrique. Pois, enquanto o senador Tilney convidava todos os
presentes a fazerem um passeio pelo Rio Tâmisa no dia seguinte no
barco de seu amigo, uma bela moça de cabelos avermelhados e
grandes olhos castanho-claros sorria para Rico de forma
convidativa.

Pouco importava se fosse resultado das duas taças inteiras de


champanhe que ela bebera. Catherine dissera com os lábios que iria
ao passeio de barco. Com os olhos, dissera que iria por Henrique.

Naquela noite, enquanto o efeito do champanhe passava, Cathy


escreveu algumas páginas do seu romance secreto. Enquanto
escrevia, pensava, com um tímido sorriso, que sua heroína poderia,
ao fim, ter um final feliz.

Obviamente, Lady Catherine teria que superar vários obstáculos


e imprevistos primeiro.
Capítulo 10

“Ela queria saber o que naquele momento estava passando em


sua mente, de que maneira ele pensava nela e se, ao arrepio de
tudo, ela ainda era querida por ele.”

(Jane Austen)

Beckhan, agosto de 1815.

Lady Catherine acordara naquela manhã quente com esperança;


ela pressentia que aquele dia traria boas notícias. Usou seu vestido
de passeio favorito, verde-claro, com uma estampa delicada de
pequenas flores silvestres, feito de musselina e com mangas curtas.
Por cima dos braços nus, colocou a jaqueta mais fresca que
possuía, uma vez que o dia estava quente, sem uma nuvem sequer
no céu, algo muito raro em Beckhan.

Ela caminhou alegremente pela trilha que levava até a abadia.


Apenas desacelerou ao atravessar a ponte, como sempre fazia.
Desde o acidente com a condessa, nunca mais passara ali sem se
lembrar daquela noite. Sacudiu a cabeça, como se o movimento
fosse expulsar os pensamentos negativos, ergueu o queixo e voltou
a caminhar até a casa de sua amiga, cantarolando enquanto dava
passos largos.

Quem abriu a porta principal da abadia foi Sebastião em pessoa,


com um largo sorriso, como se mal pudesse conter sua felicidade no
corpo. Catherine instintivamente sorriu-lhe de volta, apesar de ter
sentido uma pontada de tristeza; as feições do marido de Christine
eram muito semelhantes àquelas de...

Nem ouse pensar no nome daquele libertino maldito!


Irritada consigo mesma por ter o autocontrole de uma criança
com um doce na mão, Catherine forçou-se a falar:

— Bom dia, Sebastião. A condessa está...

— Sim, ela está à sua espera! — ele interrompeu, de tão ansioso


que estava.

Mal podia esperar para contar a novidade para a melhor amiga


de sua esposa. Já havia enviado uma carta a Paris, mas não tinha
certeza de que Henrique já a havia recebido.

— Perdoe-me, Catherine — Sebastião desculpou-se pela


grosseria, convidou-a a entrar, ajudou-a a tirar o casaco e guardou-o
com o chapéu dela.

Catherine olhou em volta e notou que a casa parecia vazia.

— Onde está Philip?

A Lady não conseguiu segurar a curiosidade. A casa estava


estranhamente silenciosa.

— Está de folga. Demos folga para todos os empregados! — ele


explicou, sorridente.

— Folga? — perguntou Catherine, que não poderia estar mais


confusa.

Acreditava que os empregados mereciam folgas, mas isso não


era um hábito comum entre a aristocracia de Backhan.
Especialmente dar folga a todos os empregados ao mesmo tempo.
Imaginou como seus pais se comportariam se nenhum dos
inúmeros empregados fosse trabalhar em Greenwoods House.
Provavelmente, causariam um incêndio na propriedade logo na
primeira noite.

— Sim, para comemorar!


— Comemorar o quê, exatamente?

Agora Catherine começava a ficar desconfiada.

— Não ouse contar, Sebastião! Traga a minha amiga aqui! —


gritou Christine da sala de estar, sendo ouvida por Catherine.

A jovem foi rapidamente até sua amiga, agora angustiada para


saber o que estava acontecendo. Ela ficou um tanto quanto
surpresa com a visão de Christine. Sua amiga usava um simples
chemise de dormir, com um roupão ainda mais simples por cima.
Seus longos cabelos dourados estavam soltos e despenteados,
caindo-lhe pelos ombros. Seu rosto, porém, não poderia parecer
mais saudável: seus lábios estavam vermelhos, suas bochechas
estavam rosadas; e seus olhos, brilhantes.

— Christine? Qual é a notícia?

Os olhos azuis de Christine lhe contavam o segredo, mas... seria


possível? Depois de tentar tantos anos em vão com o conde, estaria
sua melhor amiga...

— Grávida! — Christine exclamou. — Eu estou grávida!

Catherine não conseguiu pronunciar palavras, tamanha era sua


emoção, mas sentou-se ao lado de Christine no sofá e abraçou a
amiga. Em segundos, ambas estavam aos prantos, sendo
observadas com admiração por Sebastião.

— Quando? Como? — Catherine finalmente falou, entre soluços.

— Sobre quando: nós descobrimos ontem. Foi por isso que


Christine tem andado tão indisposta — Sebastião respondeu, ao
notar que sua esposa não estava ainda em condições de fazê-lo. —
Quanto ao “como”... Bem, vou deixar que sua amiga lhe explique —
ele provocou Catherine, fazendo-a gargalhar e morrer de vergonha
ao mesmo tempo.
— Sebastião! — sua mulher o repreendeu, com um sorriso
malicioso.

— Eu estou muito feliz por vocês dois. Meus parabéns! —


Catherine disse com sinceridade.

— Mas não foi só para contar essa novidade maravilhosa que


nós a convidamos aqui, Catherine — Christine comentou, após
enxugar as lágrimas com um lenço. — Queríamos lhe pedir uma
coisa.

— Qualquer coisa! — ela respondeu de pronto.

— Queremos que você seja a madrinha do nosso bebê —


Christine anunciou, emocionada.

Em vez de responder, Catherine abraçou sua amiga outra vez, e


as duas voltaram a chorar. Após alguns minutos, já recomposta, a
jovem dama aceitou o pedido.

— E quem será o padrinho?

Foi Sebastião quem respondeu:

— Meu irmão. Eu já enviei a carta a Paris nesta manhã.

Catherine ficou muda. Não queria ouvir aquele nome, saber


daquele nome, ver o dono daquele nome novamente. O que fizera
com ela era imperdoável. Ele a havia enchido de esperanças, a
fizera ter momentos totalmente inapropriados, e para quê? Para
abandoná-la na primeira chance que tivera. Provavelmente, a
mulher com quem se encontrara em Paris era sua noiva, alguém de
quem ele jamais falara.

Maldito libertino!

A Lady se recusava a falar dele e havia jurado para si mesma


que nunca mais dirigia a palavra ao homem, mas e agora? Como se
manteria longe dele quando seriam padrinho e madrinha da mesma
criança? Ela estava perdida em seus devaneios, quando ouviu a voz
de Christine.

— Catherine? Você está bem? Ficou pálida de repente.

— Sim, sim — ela garantiu à amiga. — Foi a emoção da notícia,


acho eu.

Catherine só não esclareceu a que notícia estava se referindo.

— Ele voltou!

Jane entrou no quarto aos berros, dando um susto em Claire,


que sem querer puxou os cabelos ruivos de Catherine, fazendo-a
gritar de dor.

— Quê? — questionou Claire.

— Quem? — quis saber Catherine.

— O Sr. Henrique Teles! — Jane disse animada, até ver a cara


da lady da casa.

— Eu já pedi que não pronunciem esse nome na minha


presença — Catherine avisou, entredentes.

No início, ela ficara triste. Arrasada, na realidade. Entretanto, um


mês depois de o estrangeiro deixar a Inglaterra sem dar notícias,
tudo o que Catherine sentia agora por ele era raiva. Como ousara
tratá-la assim, depois de tudo?

De fato, ele jamais havia prometido nada a ela, mas a havia


usado, e da pior forma possível! Henrique a fizera acreditar que se
importara com ela, que iria pedi-la em... Bem, não só não pediu
como foi embora sem despedir-se e nem sequer se preocupara em
lhe enviar uma carta com alguma explicação. Provavelmente,
porque não havia uma.

— Mas, Catherine, ele retornou com...

— Eu. Não. Quero. Saber! — Catherine levantou-se da cadeira,


o coque desmanchando-se enquanto caminhava raivosamente pelo
cômodo. — Não quero saber mais daquele homem. Entendido?

Jane abriu a boca para responder, mas Claire colocou a mão


sobre o braço dela, interrompendo o que quer que ela fosse dizer.

— Sim, Catherine — Claire finalmente afirmou. — Nunca mais


falaremos dele.

— Muito obrigada — ela retornou à sua cadeira. — De qualquer


forma, duvido que nos cruzemos. Prometi a Christine que iria ao
batizado do filho dela, mas que não me encontraria com esse
homem em qualquer outra ocasião.

A condessa também tentara conversar com Catherine sobre o


Sr. Henrique Teles. Diversas vezes. Porém, ao notar que o assunto
não fazia bem à amiga e que ela própria nada poderia fazer para
apaziguar a raiva referente a seu cunhado, simplesmente decidiu
parar de falar dele.

Se Henrique desejasse reconquistar Catherine, teria de fazê-lo


sozinho.

— Mas você vai acabar esbarrando com ele na cidade — Jane


comentou com a Lady, ganhando um beliscão de Claire.

— Sou precavida, Jane — Catherine afirmou, convicta. — Antes


de ir à cidade, perguntarei se ele está na abadia.

— E como saberá disso? — Jane falou e mais uma vez ganhou


um beliscão de Claire.
— Muito simples. Você descobrirá isso para mim — virando-se
na cadeira para encarar Jane, Catherine continuou — ou você acha
que eu não sei da sua... amizade com aquele jardineiro... Como se
chama mesmo, Claire?

— Creio que James — Claire entregou, e foi ela quem recebeu


um beliscão de Jane daquela vez.

— Sim, sim. James — Catherine repetiu, com um meio sorriso


nos lábios. — Você já o viu hoje, Jane?

A moça nem precisou responder. Suas bochechas rosadas a


entregaram de imediato.

— E, então, onde está a família nesta manhã?

— E-eu ouvi dizer que estão em casa — ela comentou,


cabisbaixa. — E não devem sair pelo restante do dia.

— Ótima notícia! — Catherine comemorou e juntou as mãos, a


animação estampada em seu rosto. — Veem? Posso ir até a cidade
sem me preocupar em encontrar determinados... membros daquela
família. Se sempre me mantiver informada, Jane, eu jamais
precisarei ver aquele homem novamente!

Lady Catherine viu o Sr. Henrique Teles naquele mesmo dia.

Ela deixava a biblioteca da cidade, após passar algumas horas


vasculhando as prateleiras com as novidades mais recentes.
Adorava os suspenses, em especial aqueles com elementos
sobrenaturais, mocinhos sedutores e mocinhas inteligentes. Deu
três passos pela rua principal de Backhan, quando ouviu alguém lhe
chamando.

— Lady Catherine!
Não.

NÃO!

Não podia ser. Menos de uma hora antes, Jane lhe havia
assegurado de que o dono daquela voz passaria o dia na abadia.
Longe da cidade. Longe de Catherine. O que faria? Sem olhar para
trás, achou que seria mais seguro simplesmente seguir em frente e
fingir que não o havia escutado.

— Lady Catherine! — o Sr. Henrique Teles a chamou


novamente.

Apertando o passo, ainda mantendo a expressão mais neutra


possível, Catherine dirigiu-se até o pequeno armazém do Sr. e da
Sra. Collins, onde buscaria um esconderijo para despistar Henrique.
Apenas quando ele a perdesse de vista, ela iria até a Rua Bedel,
onde sua carruagem a aguardava.

Logo na entrada, deu de cara com um par de olhos que lhe eram
bastante familiares, apesar de não conseguir identificar sua dona. A
pobre moça carregava um cesto de cerejas selvagens em uma mão
e um grande saco de farinha na outra.

— Bom dia, Lady Catherine — a voz rouca e baixa da moça lhe


desejou.

— Bom dia! — ela respondeu com simpatia, ganhando um


sorriso tímido da moça, que, em seguida, mirou os olhos para o
chão.

— Espero que visite a condessa em breve — a moça comentou,


quase em um sussurro.

Condessa? Ah! Mas é claro! Aquela moça era uma das


ajudantes da cozinha. Como ela podia ter se esquecido? Ela
garantiu à tímida moça que iria visitar a abadia assim que pudesse
e, quando estava prestes a sair, deu de cara com um outro par de
olhos. Olhos que a encaravam com divertimento. Olhos que
pertenciam ao libertino mais sedutor que Catherine jamais
conhecera.

— Olá, Lady Catherine. Não me ouviu chamando-a?

A voz parecia veludo contra sua pele. Ela desejava resistir


àquele homem, ser imune a ele, mas mal conseguia fazer seu
cérebro voltar a funcionar.

Por um momento, olhou por cima do ombro de Henrique e


finalmente notou que não estava desacompanhado. Havia uma
moça de cabelos escuros logo em seu encalço. Como ele ousava
falar com ela em um tom tão sedutor quando estava acompanhado
de sua noiva? Maldito libertino!

Catherine ficou tão chocada com a situação que deu alguns


passos para trás instintivamente, obrigando a jovem funcionária da
abadia a dar alguns passos para o lado, a fim de evitar uma colisão
com a dama. A moça acabou por perder o equilíbrio, e, em sua
queda, tudo o que segurava caiu de suas mãos. Os frutos
distribuíram-se pelo chão do estabelecimento, enquanto a farinha
espalhava-se pelo ar.

Assustada, Catherine olhou para si própria e respirou em alívio


ao notar que apenas a barra de seu vestido havia se sujado com o
pó branco. Nem todos, entretanto, tiveram sua sorte.

A funcionária da abadia ficou coberta de farinha.

Henrique ficou coberto de farinha.

A noiva de Henrique também ficou coberta de farinha.

Sem querer verificar quem mais havia sido vítima do desastre


causado por ela, Catherine simplesmente pediu desculpas à moça
(seu nome era Fanny? Não estava certa) e lhe deu algum dinheiro
para repor os itens que haviam sido derrubados. Em seguida, saiu
em disparada do lugar e entrou na primeira carruagem que viu.

— Catherine? — uma voz divertida perguntou.

— Lady Catherine? — uma voz séria indagou.

Foi quando ela olhou para os ocupantes da carruagem. Claro,


havia invadido a carruagem dos irmãos Cleavand. Enquanto John a
encarava estupefato, William se segurava para não gargalhar.

— Bom dia, senhores — ela desejou, séria, o que fez com que
William tossisse para disfarçar o riso e John a olhasse como se
estivesse louca.

Ela sacudiu a saia para tirar a farinha; não poderia ter feito algo
mais insensato; o pó espalhou-se pelo pequeno espaço da
carruagem. Oh, céus. Não havia limites para sua falta de jeito?

— Eu... Hum... Tive um pequeno acidente no armazém dos


Collins e pensei que poderiam me dar uma carona até Greenwoods
House.

— Mas é claro, Lady Catherine. A senhorita está machucada? —


perguntou John, que tentou verificar o estado da moça, mas era
uma tarefa difícil, tendo em vista a cortina de pó branco que se
formara entre eles.

— Melhor perguntar quem ela machucou lá dentro — William


brincou, ganhando um olhar assassino de Catherine e um leve soco
no ombro do irmão. — Que foi? A última vez que Catherine teve um
de seus acidentes na cidade, ela derrubou um prédio!

— A que se refere, William? Lady Catherine jamais derrubou um


prédio — John afirmou, mas ficou na dúvida ao ver a cara da moça.
— Derrubou?
Lady Catherine estava prestes a defender sua honra (com uma
desculpa bem esfarrapada, por sinal), quando ouviu alguém chamar
seu nome.

— Ah, vejo que suas vítimas estão à sua procura — William


comentou, olhando pela janela e tendo os olhos semicerrados em
reconhecimento. — Por acaso aquele ali é...

— Ninguém de importância! — Catherine terminou a frase de


William, notando que, desde que entrou na carruagem, o veículo
estava parado em frente ao armazém. — VAMOS! — ordenou ao
bater com força no teto.

O grito nada elegante dela deixou John e William – mais uma


vez – boquiabertos, mas pelo menos o motorista seguiu sua ordem.

Eles seguiram o caminho em silêncio: William sempre prestes a


rir quando a olhava; John em choque, tentando buscar algo a dizer,
mas sem conseguir pensar em nada; Catherine, xingando
mentalmente o estrangeiro de nomes que fariam seu pai deserdá-la
se escutasse seus pensamentos. Ela até mesmo havia esquecido
que ainda estava chateada com John por conta do episódio no
jardim.

Quando, enfim, chegaram a Greenwoods House, foi William


quem saltou da carruagem para ajudá-la. Ele também aproveitou
para lhe fazer um convite:

— Daremos um jantar em Higgins Hall depois de amanhã.

Catherine abriu a boca para inventar uma desculpa qualquer


para não ir, mas William a interrompeu.

— Será apenas um jantar informal para alguns amigos íntimos,


Catherine. E, se não for, serei obrigado a contar a todos sobre...
esta situação — adiantou William, indicando as saias dela, ainda
cobertas de farinha.
— Está me ameaçando, Will? — ela disse, entredentes, o
indicador apontando para o nariz dele.

— Sim. Estou. E tem também aquela história da torta de cereja...


E aquela outra da casa de campo... E eu me lembro de uma um
tanto engraçada com um pônei... — ele coçou o queixo, fingindo
estar pensativo, enquanto Lady Catherine ficava cada vez mais
vermelha. — Sim, caso não vá, serei obrigado a entreter os
convidados com as suas histórias...

— Não é muito educado de sua parte me ameaçar para que


aceite seu convite!

Uma linha formou-se entre os grandes olhos de Lady Catherine.

— Infelizmente, preciso fazê-lo para garantir o prazer da sua


companhia — o barão de Haster levantou uma sobrancelha, e a
amiga teve que reconhecer sua razão: Catherine era,
provavelmente, a pessoa mais antissocial de Backhan.

— Sim, eu vou — ela finalmente prometeu, sentindo-se


derrotada.

Ele despediu-se dela com um sorriso e voltou para a carruagem.


Catherine decidiu dar a volta na casa e entrar pelos fundos; decerto,
se a Sra. Smith a visse naquele estado, jamais a deixaria ir à cidade
apenas com Claire novamente.

Claire!

Naquele tumulto, ela havia deixado Claire, a carruagem e o


motorista para trás. E tudo por culpa do estrangeiro libertino! Oh,
como ela esperava nunca mais vê-lo!

Lady Catherine viu o Sr. Henrique Teles no dia seguinte.


Morrendo de saudades de sua amiga mais querida, Catherine
pediu que Jane tentasse descobrir com seu pretendente secreto se
o Sr. Teles estava na abadia. Uma hora mais tarde, Jane retornava
com uma boa notícia: o marido da condessa e seu irmão ficariam no
clube de cavalheiros até o jantar naquela noite.

Depois de convencer a Sra. Smith de que iria passar o dia no


chalé (decerto iria visitá-lo, no retorno da abadia), Catherine deixou
a casa com uma animação que não sentia desde que soubera da
gravidez de Christine. Calculando o tempo que levaria para ir e
voltar da abadia a pé, além da hora que pretendia passar no chalé,
decidiu que seu plano teria melhor chance de sucesso (e de não ser
descoberto por sua governanta) se fosse a cavalo.

A contragosto, a Lady pediu ao cocheiro que escolhesse para ela


o animal mais manso; não queria correr o risco de perder o controle,
como da última vez que cavalgara. Só de lembrar-se do incidente
com Henrique, o rosto dela enrubesceu.

— A senhorita está bem? — o cocheiro temeu que a moça


desmaiasse.

— Estou bem — ela garantiu —, apenas com um pouco de calor.

— Essa é a Lua — ele mostrou a égua com orgulho, passando a


mão por seus pelos brancos.

Era um animal muito bonito, Catherine reconheceu; tinha a


pelugem completamente branca, exceto pelo focinho, pela crista e
pela cauda, que eram acinzentados.

— Ela é calma? — Catherine quis certificar-se.

— Até demais, senhorita — o cocheiro garantiu, com um meio


sorriso. — Lua foi comprada pela baronesa, mas esta raramente a
monta, pois a acha muito lenta.

— Perfeito! — Catherine respondeu, entusiasmada.


Aceitou a ajuda do homem para montar o animal e, depois de
agradecê-lo pela colaboração, saiu com Lua pela trilha que levava
até o chalé. Por sorte, aquela mesma trilha também levava até a
abadia.

Onde Catherine deveria virar à direita para seguir até o Chalé de


Greenwoods ela seguiu em frente, e, em alguns minutos,
começaram a subida. A abadia dos Allen ficava em um pequeno
vale, em uma ilha rodeada por alguns montes e pelo Rio Winter, que
tinha esse nome por um motivo nada criativo: era no inverno que o
rio ficava mais bravo.

Muito lentamente, a jovem cruzou a ponte de madeira. A


estrutura chiou bastante embaixo de Lua e chegou a sacolejar
levemente em alguns pontos. Essa ponte não vai durar muito tempo,
Catherine pensou. Poderia usar a passarela de pedra que ficava do
lado oposto da propriedade, mas seriam ao menos mais quinze
minutos de cavalgada, e ela estava ansiosa para ver a condessa.

Estava a caminho do estábulo, quando escutou uma gargalhada.


Ainda montando Lua, puxou as rédeas até que o animal caminhasse
na direção do som melódico da risada de Christine e de outra
mulher. Com quem a condessa conversava de forma tão intimista?
Não gargalhava assim na frente de qualquer conhecido.

Uma pontada de ciúmes atravessou o coração da dama quando,


pela janela da sala de estar, observou a intimidade entre sua grande
amiga e a noiva do Sr. Teles. Via apenas seu perfil, mas era óbvio
que a moça era belíssima. Não apenas isso, mas agia com tamanha
espontaneidade e olhava para Christine com tanto carinho e
admiração que a Lady desejou que pudesse ser também ser sua
amiga.

Aquele pensamento lhe trouxe enorme tristeza. Como poderia


ser amiga de uma moça de quem guardaria um grande e terrível
segredo? Ela havia, sem qualquer intenção, traído a noiva de
Henrique, pois tivera momentos com ele que apenas marido e
mulher deveriam compartilhar.

Se já estava enfurecida com o homem, agora tinha mais um


motivo para detestá-lo! Ele era a causa de todas as suas
inquietações! Se não bastasse tê-la abandonado, depois de lhe dar
falsas esperanças, agora sua atitude inapropriada não lhe permitiria
fazer uma nova amiga.

E, pela forma que a condessa conversava com a moça, ela


parecia ser simpática e divertida. Decerto, não era uma daquelas
entediantes damas da sociedade, ou Christine não estaria tão
confortável em sua presença.

Distraída que estava com a situação que se passava dentro da


abadia, Catherine não notou o que acontecia do lado de fora; um
cavalheiro se aproximava.

Quando finalmente avistou o homem, que estava do outro lado


da ponte de madeira, como se retornasse de Greenwoods House,
Catherine imediatamente ordenou que Lua caminhasse para o lado
oposto. Àquela distância, era impossível identificar o homem, que
usava um casaco que lhe cobria o corpo e uma cartola que deixava
seu rosto oculto sob as sombras.

Todavia, a montaria dele era inconfundível. Lady Catherine


Morland jamais se esqueceria do garanhão de propriedade do Sr.
Teles. Afinal de contas, era o animal que ele montava quando se
conheceram. A jovem usou os calcanhares para que Lua fosse mais
rápida. Aparentemente, o cocheiro não havia exagerado; a égua
era, de fato, lenta demais.

Quando sua lerda montaria finalmente alcançou a ponte de


pedra, Catherine já podia ouvir a voz de Henrique chamando atrás
dela:

— Lady Catherine! Espere, preciso conversar com a senhorita.


Conversar? A dama ficou enraivecida com a audácia do homem,
que ousara se dirigir a ela. Já não havia deixado mais do que claro
que não desejava falar com ele?

— Não tenho nada a falar com o senhor. Tenha um bom dia —


ela gritou por cima do ombro, sem olhar para trás.

— Catherine, preciso explicar algumas coisas — ele insistiu, e foi


um choque para a Lady perceber que Henrique estava muito mais
próximo do que ela supunha.

— É melhor me chamar de Lady Catherine, seu libertino! —


exaltou-se a jovem, empurrando mais os calcanhares contra a égua,
que continuava em seu ritmo normal, ou seja, quase parando.

— Ah, Catherine, pode começar a rezar para eu não alcançá-la!


— o cavalheiro ameaçou, em tom divertido.

— É Lady Catherine! — ela exclamou, lívida.

— Então é Sr. Teles para a senhorita. Não libertino — rebateu, e


ela sabia que estava zombando dela.

Quando Catherine atravessou a ponte de pedra, a construção


que avistou próxima era a Igreja do Sagrado Coração, única igreja
católica da região. Por um tempo, ficou sem padre e missas, até que
Christine se mudou para a abadia com o conde. Como ela era
católica, o marido providenciou para que a igreja voltasse a
funcionar e chegou a pagar por algumas reformas.

É para lá que eu vou, Catherine teve a brilhante ideia, sabendo


que Henrique não ousaria fazer-lhe nada enquanto estivessem ali.
Imaginava que ele também deveria ser católico por ser a religião
mais popular de Portugal, seu país de origem.

Milagrosamente, chegou antes que ele, deixou Lua seguramente


amarrada a uma árvore em frente à igreja e entrou apressada.
— O que pensa que está fazendo? — ela o ouviu perguntar
enquanto atravessava a entrada arqueada.

Não era a primeira vez que Catherine entrava naquele lugar, e


muito menos era a igreja católica mais luxuosa que jamais vira.
Ainda assim, alguns detalhes a impressionavam, por serem tão
contrastantes com a simplicidade do templo protestante aonde
costumava ir aos domingos. Admirava algumas das estátuas de
santos que adornavam o ambiente quando ouviu passos atrás dela.

Viu que havia na igreja apenas uma mulher, que estava


ajoelhada, rezando. Então sentou-se bem atrás dela, sabendo que o
Sr. Teles não teria coragem de atrapalhar suas preces. Entrelaçou
os dedos, posicionou as mãos sobre o colo, abaixou a cabeça e
fechou os olhos, como se estivesse também concentrada em
oração.

Não precisou abrir os olhos; sentiu a aproximação do cavalheiro,


que, sem qualquer cerimônia, se sentou ao seu lado, tão próximos
que suas pernas se encostaram.

— Desde quando a senhorita é católica?

Ainda sem abrir os olhos, Catherine respondeu:

— Serei madrinha de uma criança católica em breve — dito isso,


manteve o tom baixo e gélido, o que não foi suficiente para
afugentá-lo.

— Precisamos conversar. Eu deixei Backhan sem qualquer


explicação e...

— Não me deve qualquer explicação, senhor — ela o


interrompeu. — Pode fazer o que bem entender de sua vida.

— Claro que devo, senhorita! — ele exclamou, mais alto do que


o apropriado.
A mulher ajoelhada em frente a eles os encarou por cima do
ombro, com lábios franzidos e uma expressão de que estavam
incomodando.

— Aqui não é lugar para conversar, senhor — Catherine


sussurrou.

Seu tom advertia que a Lady não mais queria falar com ele.
Porém, Henrique seria insistente.

— Eu bem sei, mas tenho buscado conversar com a senhorita


em outros lugares, e parece que... está sempre tentando fugir de
mim.

— Claro! Nas últimas ocasiões em que tive o infortúnio de ficar a


sós com o senhor, sua atitude foi absolutamente inapropriada, e
forçou-se sobre a minha pessoa da maneira menos cavalheiresca
possível!

— Forcei-me sobre a senhorita? Se não me falha a memória,


estava muito receptiva aos meus toques!

Henrique, daquela vez, não conseguiu segurar o tom de voz e


recebeu um “SHHHH!” nada simpático da mulher à frente deles. As
bochechas de Catherine ficaram rosadas, e a jovem finalmente abriu
os olhos. Encarou Henrique com tamanha frieza que ele se
assustou. Onde estava o desejo que vira antes naqueles belos
olhos?

Lady Catherine inspirou fundo, e ele sabia que uma dinamite


estava prestes a explodir.

— Se não fui clara o suficiente antes sobre as minhas intenções


em relação ao senhor, deixe-me ser absolutamente transparente
agora: não desejo ter qualquer tipo de relacionamento com o
senhor. Infelizmente, seremos padrinho e madrinha da mesma
criança. Porém, fora isso, não quero falar com o senhor, ouvir o que
tem a dizer ou nem sequer vê-lo. Tenha uma ótima vida — ela
finalizou e levantou-se antes que a mulher reclamasse com eles
outra vez.

Depois, caminhou em direção à porta de entrada.

O Sr. Teles, daquela vez, não ousou segui-la. Colocou a cabeça


entre as mãos, imaginando se conseguiria convencer Lady
Catherine a perdoá-lo. Pois, depois do mês que passara longe dela,
tivera certeza de que a queria para sempre em sua vida.


Capítulo 11

“Conheça sua própria felicidade, você só precisa de paciência...


ou dê-lhe um nome mais fascinante: chame-a de esperança.”

(Jane Austen)

Londres, 18 de agosto.

— Escolha logo a BOSTA do vestido! É um passeio de barco e


não a PORCARIA da premiação do Oscar!

Não era raro Sara xingar. Ela nunca se preocupara em ser a


dama perfeita e muito menos em não soar ofensiva aos ouvidos
sensíveis — e conservadores — de senhores hipócritas. No
entanto, era extremamente raro Sara perder a paciência com
atrasos. Isso era coisa de Krista Allen. Claro que sua explosão
contra Cathy, que estava dezoito minutos atrasada, tinha pouco a
ver com a indecisão da jovem sobre o que vestiria para o passeio.

— Este está bom? — Cathy rodopiou pela sala com um vestido


lilás estampado de gatinhos pretos.

— Acho que prefiro o verde — avaliou Krista. — Ele é de


cashmere e tem mangas compridas. Hoje está um pouco frio. O que
acha, Sara?

— Pouco me importa se ela for nua! VAMOS LOGO!

O tom de Sara assustou Cathy, mas Krista sabia que não era a
ruiva quem deixara Sara a ponto de explodir, então optou por
ignorá-lo. O que estava deixando Sara louca (na verdade, seu
estado já se qualificava como de paranoia) era sua confusão em
relação à postura inédita do senador Tilney. Primeiro, ele veio à
Europa sem qualquer explicação. Depois tratou Sara como sua
sobrinha favorita. E, para terminar, conseguiu conquistar todos no
jantar, inclusive Krista, que não era facilmente manipulável.

E por quê?

Era isso que desesperava Sara: ela não sabia. Passara a noite
inteira em claro, procurando cuidadosamente qualquer notícia do
Brasil que pudesse justificar aquela mudança abrupta. Nada.
Nenhum escândalo (ao menos, nenhum que envolvesse o nome do
senador).

Naquela mesma manhã, telefonara a um de seus advogados


(pouco se importando que ainda era madrugada no Brasil), pedindo-
lhe todas as informações que conseguisse sobre o homem. O dr.
Maximiliano acabara de lhe responder: até onde sabia, não havia
processos ou investigações em curso que envolvessem o senador.

Mesmo com tudo indicando a inocência do tio, Sara


simplesmente não conseguia, não poderia acreditar que não havia
segundas intenções por trás da transformação do senador Tilney. O
mesmo homem que fizera questão de humilhá-la, de tentar separar
seus próprios primos dela, quando soube que Sara gostava de
mulheres, agora queria ser seu padrinho de casamento?

— O amor de duas pessoas não pode ser julgado por opção


sexual, por raça, religião ou cultura. Quando o amor é verdadeiro,
nada disso importa. Ele atravessa barreiras, rompe preconceitos,
cria novas fronteiras, quebra paradigmas.

O discurso hipócrita do senador no jantar deixou Sara enjoada,


nojo que piorou ao verificar que todos os presentes estavam
encantados com as palavras daquele homem, sem saber quem ele
era de verdade. Falso. Pilantra. Homofóbico.

Ela tinha testemunhado quem o senador era de verdade bem de


perto, alguns anos antes. As lembranças daquela noite estavam
vívidas na sua memória, como uma mancha que nunca saía, nunca
diminuía, nunca se apagava. Sara e seus pais foram a um jantar na
casa do senador Tilney, em comemoração ao aniversário de Elena.
A própria aniversariante decidiu que seria o momento adequado
para contar ao restante da família (os pais de Sara e seus primos já
sabiam) que Sara estava em uma relação séria com outra mulher.

O fato de precisar “pedir permissão” à família para ser o que ela


era já a incomodava muito. Por que precisava explicar sua
orientação sexual a alguém? Henrique nunca precisou dizer: “Pai,
mãe, tenho que contar uma coisa muito séria para vocês. Eu gosto
de mulheres”. Elena jamais precisaria escutar “Ah, mas você tem
certeza de que gosta de homens?” ou “Creio que isso seja apenas
uma fase, Elena”.

Mesmo consciente da injustiça, Sara sabia que teria de passar


por aquele processo opressor mais cedo ou mais tarde... Então,
ficou assim combinado: Sara apresentaria Paula (com quem estava
na época) não como sua amiga, e sim como namorada. Afinal de
contas, o senador não teria coragem de provocar um escândalo na
frente de seus convidados, não é mesmo?

— Sua ingrata egoísta! Você ousa sair do armário na minha


casa, bem no aniversário da minha filha?

Pronto. Sara não precisava de mais nada. Ela O-DI-A-VA a


expressão “sair do armário”. Ficou possuída. Derrubou mesas,
quebrou garrafas, empurrou pessoas. Não escutou os nomes
ofensivos dos quais o senador a chamou. Felizmente, porque senão
o estrago teria sido maior.

Desde então, nunca mais o vira. Mas de uma coisa tinha certeza:
um homofóbico radical não se tornava um simpatizante LGBT da
noite para o dia.

O senador sabia muito bem ser gentil com seus eleitores. Sabia
até ser um amor de pessoa com os patrocinadores de suas
campanhas. Entretanto, jamais se daria ao trabalho de ser
minimamente cortês com pessoas das quais não precisasse.
Sendo assim, Sara sabia que ele estava escondendo alguma
coisa, e não descansaria até descobrir o que era. E, se ela não
conseguira informação da internet ou de seu advogado, ainda havia
uma fonte: o filho mais velho do senador, Fábio. Certamente, ele
saberia de algo.

Apenas por conta disso Sara aceitara o seu convite: iria


aproveitar o passeio de barco para fazer um longo interrogatório
com seu primo. Enquanto o senador pilotaria a embarcação, ela
colocaria Fábio contra a parede. Seus planos já poderiam estar em
andamento, se Cathy já tivesse decidido o que vestiria e tivesse
colocado a DROGA da roupa!

— CATHERINE MURRAY! SE VOCÊ NÃO DESCER NESTE


EXATO MOMENTO, EU VOU TE ARRASTAR PELAS ESCADAS!

— Estou pronta! Estou pronta!

— Onde está seu admirador? Nem me lembrava mais como


você é adorável sem aquele falatório andante grudado em você...

O silêncio durou menos de um segundo, mas, para Henrique,


pareceu uma eternidade. Ele apostou alto, falando com Cathy de
forma tão direta e com tamanha intimidade. Porém, eram poucos os
momentos que tinham a sós, e ele aproveitaria ao máximo cada um
deles.

— Sua irmã me disse que você não era ciumento. Parece que
não o conhece tão bem assim.

— Leninha está certa. Nunca fui ciumento antes, mas apenas


porque nunca havia conhecido alguém de quem valesse a pena
sentir ciúmes.

Era a hora da verdade. Henrique sabia que sua deixa não tinha
sido lá das melhores, mas era suficientemente clara para verificar se
o interesse que Cathy demonstrara na noite anterior era apenas
efeito do álcool ou se ele ainda tinha alguma chance com ela.

Enquanto o coração de Henrique batia forte em seu peito, as


feições de Cathy iam mudando da confusão para a timidez, da
timidez para a discreta (porém inconfundível) satisfação. Ela nada
respondeu em palavras, mas sua linguagem corporal não poderia
ser mais precisa: compreendera e gostara do comentário de
Henrique.

— Preciso falar com você, Cathy. A sós.

Mais uma vez arriscando a rejeição, Henrique agarrou a mão da


jovem escritora, levando-a até a parte interna do barco, onde não
havia ninguém. Ela não ofereceu qualquer resistência. Sentaram-se
no pequeno sofá de couro bege da cabine. A falta de espaço, neste
momento, foi uma bênção: ofereceu a oportunidade a Henrique de
ficar muito próximo a Cathy.

— Então, sobre o que queria falar? — a norte-americana tentou


soar firme e fria, no entanto, sua voz aveludada e um pouco trêmula
a entregou.

— Percebi que a minha ausência não foi muito sentida — ele


disse, com ar provocador, usando as costas da mão para acariciar o
braço dela.

— E por que diz isso? — Cathy ficou arrepiada e irritou-se pela


forma como seu corpo reagia a Henrique, por menor que fosse o
toque.

— Fez amigos e notei que sai bastante com eles — Henrique


tirou a mão que a acariciava, passando-a pelos próprios cabelos,
sem conseguir encará-la.

— E o que você esperava? Que eu ficasse trancada na casa de


Krista enquanto você não retornava?
Henrique respondeu ao comentário com um meio sorriso e
começou a alisar os cabelos de Cathy com as pontas de seus
dedos. O ato íntimo a distraiu por breves momentos, mas ela
manteve sua orgulhosa postura de heroína.

— Além disso, Bella vai voltar com James aos Estados Unidos.
Eles vão morar juntos, sabia? Quero aproveitar o pouco tempo que
tenho para conhecê-la melhor e para curtir a companhia do meu
irmão.

— Mas não é só de Bella e James que você não desgruda.

A mão de Henrique moveu-se. Seu dedo indicador agora


acariciava a bochecha de Cathy, deixando um rastro de calor por
onde passava. Ela podia ouvir as ondas batendo contra o casco, as
pessoas conversando no convés, alguém caminhando acima deles.
Mas sentia apenas a presença de Henrique, como se os sons ao
redor fizessem parte de um sonho, e apenas ele estivesse em sua
realidade.

Cathy sabia bem que era exatamente este o plano de Henrique:


deixá-la confusa para descobrir qual era sua relação com Johnny.
Mas não seria tão fácil assim.

— Você deve estar se referindo a Johnny Thorpe. Sabia que ele


é um dos melhores amigos do meu irmão? Tirou James do sufoco
quando o convidou para dividir seu apartamento e arranjou um
trabalho para ele em um café próximo à Caltech.

— Sim, isso certamente justifica a proximidade de James e


Johnny. Mas não estou falando do seu irmão. Estou falando de
você.

Diante do silêncio de Cathy e de suas bochechas cada vez mais


vermelhas, Henrique não conseguiu se conter: sim, estava com
ciúmes; sim, estava sendo ridículo, mas tinha que descobrir o que
havia entre Catherine e o intolerável Johnny. Portanto, fez a
pergunta que vinha lhe corroendo desde que retornou à Inglaterra:
— Você e Johnny estão namorando?

Dizer o nome do sujeito já era suficiente para deixá-lo irritado.


Assim que a pergunta fugiu de sua garganta, depois de dias
enclausurada, Henrique desejou que não a tivesse libertado. E se a
resposta de Cathy fosse aquela que ele temia?

— Que nojo! — além da palavra, a careta da jovem expressava a


ojeriza que sentia por Johnny.

— Nojo?

Ele queria que ela negasse por completo, apesar de que a


resposta dada já havia feito um pingo de esperança iluminar
Henrique.

— Como você pôde achar isso, Rico? Sério? Nossa, ele é


insuportável!

E lá se foi o plano de Cathy de se fazer de difícil, de deixar


Henrique enciumado, de fazer mistério quanto a seu relacionamento
com Johnny. Seria demais para ela ter que dizer, com todas as
letras, que estava romanticamente envolvida com aquela criatura
chata.

— Devo admitir que fico aliviado com essa notícia.

Henrique aproximou-se ainda mais de Cathy, enquanto seu dedo


seguia o contorno dos lábios dela. A respiração dela parou; e a dele,
acelerou. Os olhos dela arregalaram; e os dele, escureceram. Os
cheiros dos dois misturaram-se no ar, uma combinação de perfume
de rosas e loção de barbear com sabão.

O baque foi repentino e forte. A água gelada invadiu a cabine,


inundando tudo em segundos. Cathy e Rico já estavam
encharcados, ela aos berros, certa de que morreriam de forma
trágica; ele tentando levá-la de volta para fora do barco, jurando-lhe,
por tudo que era mais sagrado, que não havia tubarões no Tâmisa.
Ao sair, Henrique percebeu que o barco afundava
assustadoramente rápido. Estava tudo um caos: o senador Tilney
brigava ferozmente com Johnny, acusando-o de não saber pilotar
como afirmara; Sara e Fábio calados e cabisbaixos, ela pálida, ele
pensativo; Isabella chorando, buscando refúgio nos braços de um
rapaz que não era seu namorado; James e Krista ajudando os
tripulantes com os botes salva-vidas.

E Elena? Quando se Henrique virou para verificar onde estava


sua irmã, ele acabou empurrando acidentalmente Cathy, que perdeu
o equilíbrio. Ela caiu sobre um dos lados de uma mesa retangular,
com tampo solto, fazendo com que a outra ponta do tampo
levantasse e acertasse a cabeça de alguém. Eles ouviram um grito
abafado, e, menos de um segundo mais tarde, o som de algo se
espatifando na água.

— Homem (ou mulher) ao mar! — gritou Rico, enquanto ajudava


Cathy a se levantar.

Deram a volta na mesa para poderem chegar à borda da


embarcação e checar quem caíra. Na água, um dos tripulantes já
recuperava a vítima de Henrique e Catherine. Ela estava
desacordada, com um fio de sangue escorrendo por sua testa. Ao
reconhecer a pobre criatura, os olhos de Cathy se esbugalharam
tanto que pareciam estar fugindo de seu crânio.

— OH. MEU. DEUS! — ela gritou, agarrando o braço de


Henrique (sabia que não era hora de notar uma coisa dessas, mas
ele tinha músculos muito bem definidos). — Nós matamos a sua
irmã!

— Eu detesto sangue.

Os olhos de Cathy mantiveram-se bem fechados, mesmo


quando a enfermeira solicitou gentilmente que os abrisse. A jovem
sabia muito bem o que aconteceria se obedecesse àquela ordem:
veria sangue e provavelmente desmaiaria. Apenas o fato de estar
no hospital, com uma agulha no braço e sentindo cheiro de formol,
já era motivo de enjoo.

Apesar de a queda de Elena não lhe ter causado danos


permanentes, ela teria que passar a noite no hospital. Enquanto
seus curativos estavam sendo feitos, James teve a ideia de doar
sangue. Isabella e Henrique decidiram seguir seu exemplo, e Cathy
não teve coragem de dizer “não”. Ao menos, não teriam a
companhia do senador Tilney, que estava resolvendo a questão do
seguro da embarcação, nem de Johnny, que desapareceu no
instante em que pisou em terra firme. Sara e Krista ficaram para trás
no quarto com Elena.

— Está quase acabando, querida — a simpática enfermeira


disse a Cathy, ao notar seu rosto cada vez mais pálido. — Somente
mais alguns instantes. E não se preocupe: se passar mal, vamos
cuidar de você.

Mesmo com as garantias da enfermeira, Cathy foi ficando mais


tonta e achou mais prudente manter os olhos fechados. James,
Henrique e Isabella conversavam sobre suas más experiências em
médicos e hospitais, o que não ajudou em nada a condição dela. A
agulha já saíra de seu braço, mas toda aquela conversa sobre
doenças, exames, radiografias e remédios deixava-a extremamente
incomodada. Ela passara tempo suficiente ouvindo conversas sobre
hospitais.

Anos antes, sua tia descobrira que tinha um tipo raro de câncer.
Foram anos entrando e saindo de clínicas, salas de médicos e
hospitais. Contas altíssimas, que seus pais ajudaram a pagar, e, por
isso, não tinham mais a poupança para pagar a faculdade dela e do
irmão. Seus cinco primos tiveram que viver, durante um longo
período, apertados com ela, James e os pais na casa de três
quartos dos Murray. E tudo isso com chances mínimas de sua tia se
curar.
Felizmente, ela sobrevivera. Assim como a família Murray.
Porém, Catherine passou a evitar aquele tópico a qualquer custo.

— Vamos falar de algo mais alegre? — interrompeu Cathy, ainda


sem olhá-lo.

Os três calaram-se imediatamente, pois o tom dela fora


inesperadamente duro.

— Rico, estava pensando em alugar alguns filmes para


assistirmos com Elena nesta noite, já que ela vai passar a noite
aqui.

Cathy não podia ver o sorriso de Henrique, que se alargou ao


ouvir suas palavras. No entanto, antes que ele pudesse aceitar sua
proposta, foi Bella quem respondeu:

— Catherine Murray! Não acredito que você esqueceu! Antes de


sairmos do barco, Johnny me contou que vocês haviam combinado
de jantar juntos nesta noite!

O espanto de Cathy foi tamanho que ela, por um milésimo de


segundo, ignorou onde estava. Naquele rápido momento em que
abriu os olhos para gritar “O QUÊ?!”, viu bolsas de sangue ao seu
redor. Imediatamente, tudo ficou escuro...

— Cathy, você está bem?

Ela podia escutar a voz masculina, assim como podia sentir uma
mão acariciando sua testa, enquanto a outra envolvia a sua própria.
Seria Henrique? Não, aquelas mãos não eram tão fortes quanto as
dele, nem a voz era rouca como a de Rico.

— Não se preocupe, Cathy. Eu estou aqui. Vim assim que Bella


ligou. Fiquei tão preocupado que, mesmo estando na maior correria,
fiz questão de largar tudo para vir vê-la. Passarei a noite a seu lado,
se for necessário.

Argh. Johnny. Falando sem parar. Não podia ser! Era Rico quem
estava no cômodo quando ela desmaiou!

Lentamente, Cathy abriu novamente os olhos. Estava em um


quarto típico de hospital: paredes em tom pastel, cama metálica,
poltrona próxima à pequena janela. Johnny estava sentado na ponta
da cama, à direita de Cathy, próximo demais para o gosto dela. E
havia mais alguém ali, na poltrona. Ela estreitou os olhos até vê-lo:
Rico, com cara emburrada e braços cruzados sobre o peitoral.

Notando que a atenção de Cathy estava direcionada ao outro


homem do quarto, Johnny segurou suas duas mãos e foi
aproximando seu rosto do dela.

— Senti a sua falta hoje no barco, Cathy. Onde você se meteu?

Ele se aproximava ainda mais, à medida que falava.

— O que você está fazendo, Johnny? Quero que você me solte


agora! — Cathy disse, mas ele era demasiado forte para ela,
especialmente naquele estado.

— Ei! Você não ouviu? Ela pediu que você a solte! — Henrique
disse, levantando-se e caminhando na direção dos dois.

No entanto, Johnny continuava a se aproximar, e Cathy se


desvencilhou da única maneira que conseguiu, rolando para o lado
oposto da cama. Ela rolou, rolou, rolou e... caiu. Virada para o chão.
Sentiu uma brisa em suas costas, ouviu a discussão entre os dois e
o som inconfundível de uma mão fechada contra um rosto. Aí tudo
foi ficando escuro... De novo...

Cathy despertou ansiosa, temendo que Rico tivesse se


machucado durante briga. Os rostos sorridentes de Krista e Sara
logo a acalmaram. Henrique estava novamente na poltrona e
aproximou-se ao verificar que ela acordou.

— Oi, Cathy! Está se sentindo melhor, querida? — Krista parecia


preocupada, segurando a mão dela com um carinho maternal.

— Você nos deu um susto, hein? — Sara parecia cansada,


mesmo com o sorriso sincero no rosto. — Vai ter que passar a noite
aqui em observação, porque sua pressão ainda está muito baixa.

— Mas não se preocupe, Cathy — Krista quis acalmá-la ao ver


que uma linha se formava entre os olhos da ruiva. — Sara e
Henrique vão ficar aqui no hospital, e já expulsamos aquele garoto
falador do quarto.

— O que ela quis dizer é que o babaca chato não vai mais
incomodar você — emendou Sara. — Ah, e Rico tem uma surpresa.

Seguindo a ideia de Cathy, Henrique alugara uns vídeos para


assistirem todos juntos no hospital, no computador que Krista
acabara de trazer. Cathy ainda estava tonta, mas disse “obrigada”,
com a voz aveludada e um sorriso tímido; foi a melhor coisa que
aconteceu a ele naquela noite. E olha que ele tinha deixado Johnny
com o olho roxo, o que fora, Rico tinha de admitir, muito gratificante.

Aos poucos, o tópico mudou, e começaram a falar sobre o


acidente de barco daquela manhã. Aparentemente, Johnny levara a
embarcação para um local raso demais, e o casco bateu em uma
rocha, levando ao naufrágio em poucos minutos. Enquanto
fofocavam sobre os detalhes sórdidos do incidente, Cathy lembrou-
se da última coisa que sentira antes de apagar pela segunda vez. A
brisa em suas costas.

Pela primeira vez, deu-se ao trabalho de ver o que vestia: uma


camisola de hospital. Discretamente mexendo nela, notou outras
duas coisas: era daquelas camisolas abertas nas costas e ela não
vestia calcinha. E Cathy havia caído virada para baixo, deixando
toda a parte de trás do corpo exposta!
Krista e Sara estavam muito distraídas para perceber, mas Rico
observou divertidamente os olhos de Cathy se esbugalhando e suas
bochechas ficando rosadas por conta da descoberta. Ele, então,
disse em seu ouvido:

— Agora estamos quites, Cathy.

Dover, 21 de agosto.

Ao notar que Elena estava prestes a despertar, Cathy afastou-se,


soltando abruptamente a mão de Rico, que a havia segurado
durante quase todo o trajeto de uma hora e oito minutos entre
Londres e Dover. A maciez morna da pele dele foi substituída pela
frieza áspera do tecido velho da poltrona.

A irmã caçula de Rico cochilara poucos instantes após a partida


do trem. Era uma sorte tremenda, pois ele mal podia esperar para
ficar a sós com Cathy. Ela ficara desconfiada, de início. Parecia até
que os irmãos haviam planejado o cochilo de Elena para dar
privacidade aos dois. Todavia, foi realmente uma mãozinha da sorte.

— Posso ajudar? — Rico ofereceu, ao observar os dedos


trêmulos de Cathy falhando repetidamente na tentativa de arrumar
seus volumosos cabelos em uma trança.

Ela lhe lançou um olhar questionador, descrente de suas


habilidades com penteados femininos.

— Fiz muitas tranças nos cabelos de Elena. Especialmente


desde que mamãe... — ele se interrompeu, mas o argumento já fora
aceito por Cathy, que se virava de costas para Rico, oferecendo-lhe
livre acesso a suas mechas avermelhadas.

Mais um talento oculto de Rico, ela pensava, deliciando-se com


os dedos dele desembaraçando cuidadosamente seus cabelos
antes de começar a trançá-los. O penteado acabou rápido demais
para o gosto de Cathy, mas Rico não parou de tocá-la. Dos cabelos,
os seus dedos passaram a investigar cada curva de seu pescoço,
cada detalhe de seus ombros, cada pelinho dos seus braços (os
quais estavam vergonhosamente arrepiados, reação que deixou
Rico contente).

O passeio da mão de Rico terminou na delicada mão de Cathy, e


os dedos dos dois entrelaçaram-se imediatamente, em perfeita
sincronia, como se já tivessem feito aquilo centenas de vezes. Rico
usou sua outra mão para investigar melhor os traços do rosto da
garota, admirando as belas feições que vinham invadindo os sonhos
dele com grande frequência.

Os olhos castanho-claros arredondados de Cathy tinham uma


mistura de esperança e timidez quando ele a encarava daquele
jeito, suas bochechas adquiriam um tom adoravelmente
avermelhado, contrastando com a palidez de sua pele. Seus lábios
perfeitamente desenhados começaram a tremer levemente quando
ela notou que os olhos dele agora os encaravam, famintos. Como se
houvesse um magnetismo, eles aproximavam-se um do outro,
inconscientemente, até a camada de ar entre seus corpos se tornar
praticamente nula.

O encanto foi quebrado quando Elena acordou, ao sentir que o


trem começava a desacelerar, indicando que se aproximavam do
destino. Cathy soltou a mão de Rico, praticamente pulando para o
mais longe possível dele.

Finalmente haviam conseguido ir para North Downs Way. Eles


caminhariam por apenas um pequeno trecho dela, uma vez que a
trilha completa tinha duzentos e quarenta e seis quilômetros, e eles
precisariam de, pelo menos, dez dias para completá-la.

Elena sugeriu que passassem o dia em Dover, já que aquela


parte da trilha tinha um cenário espetacular e Cathy ainda não
conhecia a região. Ao deixarem a estação de trem, conseguiram um
táxi para levá-los até a entrada do North Downs Way. O cheiro
inebriante do mar logo alcançou Cathy, que estava cansada do ar
poluído de cidade grande.

A vista era uma verdadeira obra de arte: a trilha ficava entre


suaves morros verdes e o movimento bravo das águas do Canal da
Mancha. O céu estava milagrosamente azul e límpido.

Enquanto Rico e Elena terminavam de arrumar suas mochilas,


Cathy aproveitou para encarar o infinito do mar. Forçou os olhos o
máximo que conseguia, tentando ver um pedacinho de terra do
outro lado, um pouquinho do território francês. Segundo seus
companheiros de viagem, se nadassem em linha reta, chegariam a
Calais, uma cidade portuária no norte da França.

Uma brisa quente soprou contra Cathy, lembrando-a de que o


verão inglês também podia ser terrível. Infelizmente, usava um
casaco pesado com um top preto por baixo, pois acreditava que
sentiria frio ali. Depois de vinte minutos de caminhada, o tecido já
estava encharcado, colando em suas costas, e ela decidiu que não
suportaria mais o calor: tirou o casaco e o amarrou na cintura.

Elena, que vestia um short curto e camiseta apertada, nem notou


que agora a barriga e boa parte dos seios de Cathy estavam
completamente expostos. No entanto, o mesmo não ocorreu com
Rico, que observava discretamente (ou nem tanto) cada novo
detalhe em Cathy. Quando ela o flagrou encarando-a como um lobo
faz com uma presa, ele teve de inventar uma desculpa.

— Acho melhor você passar protetor, Cathy. Sua pele não está
acostumada com este sol.

A ideia acabou sendo pior, porque agora Rico tinha que observá-
la passar lentamente creme por todo o corpo, sem poder tocá-la.
Elena aproveitou para usar o banheiro, o que lhe ofereceu a
oportunidade de se deliciar com aquela cena sem ser, mais uma
vez, descoberto.
— Poderia passar nas minhas costas? — Cathy pediu
timidamente. Henrique caminhou até ela, disfarçando ao máximo
seu contentamento.

Obviamente, foi diligente em sua tarefa. Nenhum milímetro de


pele foi negligenciado por Rico, que também aproveitou para
reforçar o protetor solar sobre os ombros e os braços de Cathy. Ela,
por sua vez, não reclamou enquanto ele passava a segunda
camada do creme. Ou a terceira. Muito menos quando ele
aproveitou para fazer uma massagem no pescoço. Cathy suspirava
alto quando Elena retornou.

— A gente veio para caminhar ou para ficar esfregando protetor


solar uns nos outros?

Cathy deu um pulo para frente, separando as mãos de Rico de


sua pele. Tentou agir naturalmente, mas com as bochechas
vergonhosamente rosadas e a voz trêmula era impossível.

— V-vamos? — Cathy disse.

A primeira hora de trilha foi agradável e divertida. Henrique e


Sara contaram sobre suas viagens pela França, país que fascinava
Cathy desde criança, e respondiam a todas as perguntas dela com
paciência e carinho. Ao repousarem sob uma macieira, Cathy retirou
um caderninho da mochila e começou a fazer anotações. Notando
que o irmão esticava o pescoço para tentar ler o que americana
escrevia, Elena decidiu acabar com a curiosidade dele.

— Ideias para o novo livro, Cathy?

— Exatamente! — a jovem respondeu sorrindo, sem levantar o


rosto, e ainda escreveu mais alguns minutos antes de continuar. —
Este é o cenário ideal para o primeiro beijo do casal protagonista.
Como vocês sabem, a cena do beijo deve ser sempre dramática e
absolutamente perfeita! Como em “E o vento levou...” — ela disse,
suspirando com a lembrança da cena entre Scarlett O’Hara e Rhett
Butler.
— Verdade, é um beijo clássico. O meu favorito é o de “A um
passo da eternidade”. E o seu, Rico? Qual seu beijo favorito?

— O beijinho do macarrão em “A Dama e o Vagabundo”.

Isso gerou um “Ohhhhh” por parte das moças, exatamente o


efeito desejado por Henrique.

— Também adoro a cena do beijo de “Titanic” — Cathy citou.

— A cena final do beijo em “Bonequinha de Luxo” também é o


máximo!

Agora, aquilo havia virado praticamente uma competição.

— “Meu primeiro amor” é melhor — afirmou Rico, mais uma vez


arrancando o “Ohhhhh” quase interminável de Cathy e Elena.

— Ah, mas o beijo clássico mais esperado de todos os tempos


sem dúvida é aquele entre o Rony e a Hermione. Tivemos que
esperar até o último filme da saga “Harry Potter”! — Cathy já estava
com os olhos lacrimejados.

— Sério? — comentou Elena, rindo. — Esse é um beijo


clássico?

A boca de Cathy abriu-se ferozmente, e seus olhos pareciam os


de um cão raivoso. Antes que ela falasse, porém, Rico interrompeu:

— Leninha está apenas brincando, Cathy! — afirmou, enquanto


dava um beliscão no braço de Elena. — Claro que esse é um dos
beijos mais clássicos de todos os tempos!

Cathy prosseguiu falando de outras cenas, sorridente e aliviada


que sua amiga estava de gozação, enquanto Elena ria com os olhos
para o irmão. Quando retornaram à trilha, Rico deixou a irmã se
afastar um pouco, para fazer um último comentário sobre o tema no
ouvido de Cathy:
— Nosso primeiro beijo já foi interrompido por minha incerteza,
por sua timidez, pelo aparecimento surpresa de Krista, pelo
despertar de Elena e até mesmo por um incidente (quase fatal) de
barco. Mas não desistirei. Mal posso esperar pelo momento em que
nada vá nos interromper. Certamente, será o melhor beijo da minha
vida.

— Eu também te amo.

Essas foram as últimas palavras que Cathy ouviu Elena


pronunciar para seu namorado secreto, Paulo. Rico lhe explicava
que o senador não aprovava o namoro, então Leninha se vira
obrigada a terminar tudo com o rapaz. A dor da saudade a forçou a
procurá-lo meses mais tarde, e eles agora se comunicavam
escondidos do pai dela.

Como o político estava sempre de olho na filha caçula, Elena


tinha que aproveitar os momentos sem a vigilância constante para
falar com seu amor proibido.

Era romântico demais para Cathy! Sua curiosidade permitiu que


ouvisse parte da conversa, mas agora ela e Rico já estavam
distantes demais do banco de madeira onde Elena estava.

— Nem precisa me pedir segredo, Rico. Vou fingir que nem sei
do caso, ok?

Após alguns momentos em silêncio, Cathy teve uma ideia:

— Você acha que Elena se importaria se eu usasse a história


dela como inspiração para o meu livro? Sem identificá-la, é claro!

A resposta de Rico foi uma gargalhada, enquanto ele continuava


caminhando na direção do que parecia ser uma clareira no meio do
bosque. O Canal da Mancha não podia mais ser visto, mas eles
continuavam escutando as ondas batendo ferozmente contra as
rochas no desfiladeiro, assim como alguns pássaros cantando no
alto das árvores.

Ao alcançarem a borda da clareira, a vista deixou Henrique e


Cathy boquiabertos: eles depararam com um belo campo de grama
baixa, coberto por flores que ele imediatamente identificou como
sendo corn roses, uma espécie típica de Essex.

— É muita sorte encontrá-las aqui em Kent! — o rapaz


comentou.

— Como você as conhece, assim, tão de longe? — Cathy


questionou, enquanto desciam por um caminho íngreme, a fim de
admirarem as flores de perto.

Rico explicou que aquelas flores com pétalas em tom vermelho


vivo e base preta eram as favoritas de sua mãe. Elas tinham vários
nomes, mas ele costumava chamá-las de corn roses. Ficaram
conhecidas durante a Primeira Guerra Mundial, quando floresceram
bem no meio das trincheiras.

Eles caminharam entre as flores durante um bom tempo, até


avistarem um grande lamaçal, em um dos cantos da clareira,
provavelmente fruto da chuva do dia anterior.

— Que tal uma aposta? Quem conseguir sujar mais o outro de


lama tem direito a um pedido. Se você vencer, pode incluir a história
de Leninha no seu livro.

— E se você vencer, Rico? O que vai pedir?

— Adivinha...

Sentindo que sairia vencedora daquele jogo de qualquer


maneira, Cathy abandonou a mochila sobre um tronco de árvore e
correu até o lamaçal. Fez uma bola de lama e a jogou contra o
abdômen de Henrique. Ele conseguiu desviar, fazendo com que
apenas parte de seu braço, coberto por um fino casaco alaranjado,
fosse vítima da lama.

O rapaz jogou a própria mochila sobre o gramado e despiu-se do


casaco, deixando Cathy boquiaberta ao revelar braços musculosos,
completamente expostos pela regata branca que ele usava por
baixo. A escritora ficou distraída tempo suficiente para Henrique
acertar uma bola de lama em seu ombro direito. Cathy tropeçou com
a força da colisão, mas se recuperou rapidamente. Fez uma nova
bola, maior ainda, e a jogou contra o rosto de Rico. Queria deixar
aqueles braços definidos limpos e visíveis pelo maior tempo
possível...

Aparentemente, ela usou força excessiva, já que Henrique caiu


para trás com o impacto contra seu rosto e se manteve deitado na
lama, imóvel.

— Rico? Rico?! — Cathy gritava, ao mesmo tempo em que se


aproximava de sua vítima. Como o rapaz se recusava a abrir os
olhos ou dizer alguma coisa, ela abaixou-se, colocando uma perna
de cada lado da cintura dele.

— Rico! — continuou chamando, balançando violentamente seus


ombros.

Em seguida, aproximou-se de seu rosto, com o intuito de


verificar se ele ainda respirava. Foi quando Rico abriu um pouco os
olhos.

— Que é isso, Cathy? Vai tentar me agarrar aqui, bem no meio


da lama?

Ela bateu em seu peito, rindo de forma adorável, ao perceber


que era tudo fingimento. A risada cessou de imediato ao ver que os
olhos dele escureciam.

— Você sabe o que acontece com garotas más que se


aproveitam de inofensivos cavalheiros em perigo?
— Não, mas gostaria de descobrir...

Sem acreditar nas palavras que ouvia, e muito menos sem


querer perder aquela oportunidade única, Rico agarrou a cintura de
Cathy, fazendo com que ela se sentasse completamente sobre ele.
Mantinha uma mão firme nas costas dela e a outra em seu pescoço,
puxando-a ainda mais para baixo, garantindo que cada centímetro
do corpo dela estivesse grudado no dele.

Encarou seus olhos castanho-claros. Eles estavam surpresos,


mas ansiosos, tão famintos quanto os dele. Segurou a nuca da
jovem com força e esmagou os lábios dela contra os seus, beijando-
a com o desejo que vinha se acumulando desde a primeira vez que
a vira. No início, a inexperiência de Cathy fez com que ela ficasse
imóvel, mas logo se ajustou ao ritmo dele, deixando sua boca ser
invadida; e seu corpo, acariciado.

Rico inverteu as posições e passou para cima de Cathy, e as


mãos dela, agora livres, agarraram os cabelos sujos de lama dele,
depois desceram lentamente por suas costas, fazendo-o soltar
murmúrios de prazer. Quando ela alcançou a barra da camiseta
dele, Rico sentiu um momento de hesitação. Sentou-se sobre o
quadril da ruiva, deixando o peso sobre suas próprias pernas, e
levantou os braços.

Cathy arrancou a camisa dele em velocidade recorde, com um


desejo tão intenso nos olhos que o fez puxá-la novamente para si,
beijando-a com paixão até que ambos ficassem sem fôlego.

Apenas quando se afastaram um instante para respirar, Rico viu


uma menininha, que não devia ter mais de seis anos de idade,
encarando-os com olhos assustados. Ela segurava um cone em
uma das mãos, enquanto a bola de sorvete jazia derretida a seus
pés. A pobrezinha estava paralisada.

Foi quando o brasileiro finalmente se deu ao trabalho de verificar


o estado em que se encontravam. Exceto por seus rostos, ele e
Cathy estavam completamente cobertos de lama, com um aspecto
nojento e abominável. Levantou-se devagar, para não assustar a
pequena, e começou a se aproximar dela, afirmando que estava
tudo bem. E a criança soltou o grito mais estridente que Henrique já
ouvira na vida.

— MAMÃEEEEE! SOCORROOOOO! É O MONSTRO DO


PÂNTANOOOO!

Enquanto escrevia um novo capítulo de seu romance, Cathy


suspirava sem parar ao se recordar do que acontecera mais cedo.
Por mais que tentasse, era impossível resistir aos encantos de Rico.
Bem, ao menos o Sr. Teles ainda teria de se esforçar bastante para
reconquistar Lady Catherine.


Capítulo 12

“Como bom cristão, tendes a perdoá-los, mas jamais deveis


admiti-los em vossa presença ou permitir que os seus nomes sejam
mencionados diante de vós.”

(Jane Austen)

Beckhan, agosto de 1815.

Mais de um dia inteiro sem vê-lo, ouvir falar dele ou ter de falar
com ele. Lady Catherine dizia a si mesma que era exatamente
aquilo que quisera: que o Sr. Teles a deixasse em paz para que ela
pudesse seguir com sua vida. Então, se ele cumprira o que ela lhe
pedira na igreja, por que se sentia tão vazia por dentro?

Decidida a não mais pensar no assunto naquela noite, pingou


algumas gotas de colônia nos pulsos e no pescoço e desceu as
escadas. Teria uma noite agradável com os irmãos Cleavand. Talvez
não com John, mas certamente seria agradável passar a noite
conversando com William.

O duque e a duquesa de Norfolk iriam jantar em Greenwoods


House com os pais de Catherine e alguns outros amigos. William
havia solicitado que eles tivessem privacidade em seu jantar, que
dificilmente seria “informal” se o duque e o barão estivessem
presentes. Nada disse o rapaz, entretanto, que a condessa estaria
presente. Apenas queria evitar as conversas insuportavelmente
aristocráticas daqueles homens.

Esperançoso de que aquele jantar fosse uma excelente


oportunidade para sua filha se aproximar ainda mais de John (quem
sabe o rapaz não conseguiria, enfim, fazer o pedido?), o barão de
Northanger instruiu que a Sra. Smith ficasse em casa.

— Não será inapropriado que Lady Catherine vá


desacompanhada, barão?

— Tolice! — ele garantiu. — Ela estará acompanhada de


diversas damas da sociedade. O barão de Haster confirmou
presença de várias moças das melhores famílias de Backhan.

Sem novos argumentos, a Sra. Smith escusou-se da presença


do barão e da baronesa e foi até o quarto de Catherine, onde
escolheu, para ela, a roupa mais conservadora para noite; um
vestido de musselina azul-claro com mangas compridas e detalhes
dourados e um xale de caxemira listrado em branco e azul-escuro.
Deixou a faixa abaixo dos seios levemente frouxa para que não
chamasse atenção para os contornos do corpo da dama. Insistiu
também que Catherine usasse um chemise a mais por baixo da
roupa, com o argumento de que seria uma noite fria quando, na
realidade, buscava se certificar de que o vestido não ficaria nem um
pouco transparente.

A Sra. Smith desaprovava a moda daquela época. Achava os


vestidos demasiado reveladores. Entretanto, moda era moda, e não
poderia escapar dela, mesmo que fosse para deixar Lady Catherine
com aspecto mais respeitável. Teria de fazê-lo sem desrespeitar as
regras vigentes.

Ao fim de seu trabalho, verificou o estado de Catherine no


espelho e ficou satisfeita. A jovem estava bela, porém recatada.

— Lembre-se, senhorita — a governanta deu um último conselho


a Catherine antes de se despedir dela —, jamais fique a sós com
qualquer cavalheiro, mesmo que seja um dos irmãos Cleavand.

Lady Catherine concordou com um balançar de cabeça,


ganhando um raro sorriso de aprovação da Sra. Smith; era incomum
a moça aceitar seus conselhos sem argumentar. Talvez, pensou a
Sra. Smith, Lady Catherine estivesse finalmente se tornando uma
grande dama inglesa.

Mal sabia ela que a moça estava distraída, pensando em coisas


que uma verdadeira dama jamais deveria pensar.

William beijou sua mão com afeto, como um irmão querido faria,
mas John apenas fez uma reverência formal para ela. Catherine mal
notou; apenas queria que William a distraísse de seus próprios
pensamentos.

Retirou o xale dos ombros e começou a abanar-se com um leque


que, por sorte, havia trazido consigo.

— Está com calor, Catherine? — William perguntou, com uma


sobrancelha arqueada.

Ela confirmou com a cabeça.

— Não fico surpreso. Este seu vestido é mais apropriado para o


inverno, não?

— Nem me diga — Catherine revirou os olhos, fazendo William


rir. — A Sra. Smith achou que muitas camadas de vestido
afastariam os cavalheiros.

— Ela ficou muito ansiosa para deixá-la vir sozinha?

Catherine sempre fazia William rir, por mais que seu coração
estivesse despedaçado. De todas as mulheres de Backhan, apenas
Catherine tinha o poder de deixá-lo à vontade e se esquecer dela,
nem que fosse por apenas algumas horas.

— Ansiosa? Mais para desesperada. Por sinal, não posso ficar a


sós com nenhum cavalheiro. Nem com você. Aparentemente, na
cabeça da Sra. Smith, todos vocês são libertinos imprestáveis.
William virou a cabeça e gargalhou com vontade, atraindo a
atenção de alguns dos empregados, que raramente viam o filho
mais velho do duque comportar-se daquela maneira. Ele sempre
fora um rapaz feliz e brincalhão. Porém, desde que retornara da
França, nunca mais fora o mesmo, exceto quando estava na
companhia de sua amiga de infância.

— Vamos entrar?

Catherine dirigiu-se à sala de jantar onde o duque recebia


convidados, mas William a parou e disse:

— Não, vamos jantar na sala de jantar da família.

Dirigindo-lhe um olhar surpreso, Catherine perguntou:

— O duque aprovou a escolha do cômodo?

— Vê o duque aqui por acaso, Catherine? — William respondeu


com um meio sorriso.

— Não se preocupe, Will — Catherine sussurrou-lhe, com um


tom conspiratório, —, seu pai não descobrirá nada por mim.

— Agradeço-lhe pela discrição — ele disse, tomando o braço


dela no seu, levando-a até a sala correta.

— Quem mais vem? — Catherine agora estava curiosa: não era


qualquer um que tinha acesso àquela parte mais familiar de Higgins
Hall.

— Apenas pessoas que você aprovaria — ele assegurou.

Vendo que sua acompanhante não parecia convencida, ele


começou a citar os convidados: os Blackwoods, a Srta. Lindson e, é
claro, a condessa e família.

Um sorriso alcançou os lábios de Catherine assim que William


anunciou que sua amiga iria, mas ela gelou quando ele falou sobre
a família dela. Se apenas Sebastião tivesse sido convidado, ele teria
dito “a condessa e seu marido”. O que significava que,
provavelmente, William convidara o Sr. Henrique Teles e sua noiva
também.

Malditos bons modos de William!

— William, a condessa já chegou com o marido e o cunhado —


John informou-lhe, afobado, confirmando as suspeitas de Catherine.

— Importa-se de ficar sozinha apenas alguns instantes? —


William quis saber, quando o irmão saiu apressado da sala de jantar
informal.

— Não — ela parou para pensar em uma desculpa para evitar o


temido encontro, —, vou tomar um ar no jardim.

— Claro. Desde que não haja farinha envolvida — ele piscou


para Catherine, que ficou vermelha como um pimentão do
comentário.

Ele saiu da sala, deixando-a acompanhada de seus temores.

Henrique sabia que ela estava ali. Os irmãos Cleavand nada lhe
haviam dito, e ele ainda não a vira, mas conseguia sentir sua
presença. Como Lady Catherine conseguira, em tão pouco tempo,
deixá-lo tão enfeitiçado?

Tentara distrair-se nas últimas vinte e quatro horas, pensar em


algo que não fosse ela, que não tivesse qualquer ligação com ela,
mas Catherine parecia não deixá-lo em paz mesmo nos sonhos. Ele
sonhara com seus belos lábios sorrindo para ele, acariciando-o,
sussurrando-lhe juras de amor. Acordara de sobressalto, sentindo
um estranho aperto no peito ao notar que nada fora real.
Elena havia aconselhado que ele se mantivesse distante, que ele
fizesse exatamente o que Catherine lhe ordenara, que ele lhe desse
tempo e espaço. E ele fizera isso. Por vinte e quatro longas e
torturantes horas. Hoje, entretanto, passariam um jantar inteiro no
mesmo cômodo e com poucas pessoas de companhia.

Ou seja, nesta noite Lady Catherine não conseguiria fugir do Sr.


Teles.

Lady Catherine fugira dele.

Caminhando de um lado para o outro em um pequeno cômodo


ao lado da sala de jantar, Henrique esperava o retorno de sua irmã,
que se prontificara a ir ao jardim em busca da fugitiva Lady
Catherine. Provavelmente, só quem não havia calculado que
Catherine fugia de Henrique era o Sr. Cleavand mais jovem, John,
que imaginava que a moça apenas precisava de um pouco de ar
fresco.

Momentos transformaram-se em minutos; minutos


transformaram-se em um quarto de hora; o jantar estava para ser
servido, e sua irmã e Catherine ainda não haviam retornado. Por
uma das janelas, Henrique pôde ver as moças juntas, conversando
em pé ao lado de uma fonte de mármore.

De que tanto falam?, Henrique questionou-se.

Enfim, elas se viraram em direção à casa e começaram a


caminhar, de forma que Henrique pôde ver seus rostos. Estavam
ainda escondidos por sombras, mas ele achava que elas estavam...
rindo? Seria possível aquilo? Em um quarto de hora, Elena
conseguira uma reação que levara dias para ele extrair da difícil
Lady Catherine?

Sim, agora que estavam próximas, ele conseguia ouvir a risada


melódica de Catherine, fazendo seu coração bater mais forte. Será
que ela voltaria a rir assim com ele? Achava difícil, pela frieza com a
qual o havia tratado na última vez que se encontraram.

— Encontrei a dama perdida — brincou Elena, fazendo todos na


sala de jantar rirem, inclusive a própria foragida.

— Então, podemos iniciar o jantar! Não poderíamos fazê-lo sem


Catherine e Elena para nos animar, não é mesmo? — William
comentou, e seu jeito intimista impressionou Catherine.

Ela não via o barão confortável daquele jeito havia algum tempo.
A taça de vinho em sua mão poderia ser, em parte, responsável por
isso.

— Catherine, creio que já tenha sido apresentada ao meu irmão


— Elena disse com sarcástica doçura, quando a pessoa a quem se
referia adentrou o cômodo.

O Sr. Henrique Teles gelou dos pés à cabeça quando Lady


Catherine olhou para ele a contragosto. Seu olhar era
definitivamente assassino.

— Sim, já fui — ela respondeu a Elena e depois sussurrou,


novamente encarando o cavalheiro com olhos vingativos —,
infelizmente.

Henrique Teles ficou boquiaberto, mas sua irmã apenas riu. Ele
sabia que Elena adorava moças da alta sociedade que não se
importavam em falar exatamente o que pensavam e gostava ainda
mais de damas com personalidade.

— Senta-se do meu lado hoje, Catherine? — convidou Elena.

Henrique notou, com algum ciúme, que a dama não se


incomodava com a irmã chamando-a pelo nome.

— Claro, será um prazer — Catherine sorriu para Elena, mas o


sorriso desmanchou-se quando ela verificou o salão e não
encontrou alguém. — Onde estão Christine e Sebastião? — ela
sussurrou para Elena, mas Henrique, que estava no encalço das
duas, pôde ouvi-la.

— Meu irmão está um pouco indisposto, e Christine não quis


deixá-lo sozinho. Uma tolice, na minha opinião.

— In-indisposto?

As mãos de Catherine começaram a suar, e ela nem reclamou


quando Henrique puxou a cadeira para que as duas se sentassem.
Em seguida, ele sentou-se de frente para a Lady. Mais uma vez, ela
nem pareceu perceber. Estava demasiadamente preocupada com o
marido de sua amiga.

— Não precisa se preocupar, Catherine! — Elena lhe assegurou,


mas a moça continuava a encará-la com olhos esbugalhados. —
Sebastião sempre teve um estômago sensível. Ainda não deve ter
se adaptado à comida inglesa. Em poucos dias estará galopando
pelos bosques da abadia, acredite em mim.

— Do que tanto falaram durante o jantar? — Henrique puxou a


irmã para um canto, enquanto os convidados foram levados até a
sala de estar, e perguntou.

O Sr. Teles não era o tipo de homem que se preocupava com as


fofocas femininas. Muito menos ficava tão focado em ler os lábios
de moças para tentar compreender o assunto de que falavam.
Entretanto, ao ver seu nome nos belos lábios vermelhos de
Catherine, ele chegou a derrubar o garfo. Ele tinha certeza de que
haviam conversado sobre ele, e o que quer que tenha sido fizera,
inicialmente, sua irmã rir, mas, ao final, ela ficara mortalmente séria
e o encarara com olhar de desaprovação.

— De você, meu irmão.


— Do quê, exatamente? — ele insistiu, notando que Elena não
estava inclinada a lhe oferecer detalhes.

— Sei de suas aventuras na carruagem de Christine, Henrique


— ela comentou com ironia, deixando-o vermelho.

Mas depois ficou em silêncio. Quando a irmã voltou a


movimentar-se, para ir ao encontro dos demais, ele a interrompeu,
colocando a mão sobre o ombro dela.

— O que mais ela disse, Elena?

E enxergando a relutância da irmã em seus olhos castanhos, ele


continuou:

— Eu sei que ela lhe contou mais que isso. Eu vi como você
ficou séria de repente.

— Acho... eu sei que você a machucou, Henrique.

O olhar de decepção de Elena quase partiu o coração do


cavalheiro.

— O que ela lhe disse? — ele falou, sacudindo os ombros da


irmã. Sabia que havia agido mal, mas queria saber a extensão da
raiva de Catherine.

— Ela me disse que, a seu pedido, foi até o bosque. Que você
jamais foi. Que enviou Robert em seu lugar.

Os olhos de Elena encheram-se de lágrimas.

— Como você fez isso com ela, Henrique? Sabe o que ela
arriscou para ir ao seu encontro? Sozinha? Sem uma dama de
companhia?

— Eu havia acabado de receber sua carta, Elena. Estava


desesperado. Tinha que ir a Paris para assisti-la.
— E que diferença algumas horas fariam?

Uma lágrima rolou pela face de Elena, e Henrique a enxugou


com os dedos enluvados.

— Ela achou que você iria pedi-la em casamento, Henrique.


Como pôde enganar uma moça tão inocente? Enchê-la de
esperança apenas para decepcioná-la? Não esperava isso de você!

— Eu planejava pedi-la em casamento naquela manhã.

— O quê? — perguntou Elena.

Ela não podia acreditar. Henrique jamais acreditara em


casamentos. Teria mudado de ideia por causa de Catherine? Se
bem que... Mal a conhecera, mas Elena já havia percebido que era
uma moça especial, diferente das demais. Talvez...

— Eu quero me casar com Lady Catherine, Elena. Mas não sei


se ela vai me querer ainda.

— Jamais descobrirá se não tentar, irmão — Elena lhe


respondeu com sorriso tímido, deu-lhe um beijo afável na bochecha,
como fazia quando eram pequenos, e o deixou na sala de jantar.

Sim, ele iria tentar. Nem que arriscasse tudo. Pois sabia que, se
não reconquistasse o coração de Lady Catherine, passaria o resto
da vida lamentando-se. Foi discretamente até a biblioteca,
encontrou papel, pena e tinteiro e começou a escrever um bilhete.

Os cabelos ruivos de Catherine foram a primeira coisa que ele


viu ao entrar na sala de estar. William, que já estava um tanto
bêbado, veio cumprimentá-lo com um sorriso largo.

— Onde estava, meu amigo? — ele quis saber — Só faltava


você.
— Precisei tomar um ar — ele mentiu, mas seu rosto não
permitiu que William insistisse. — Vou me sentar em frente à lareira
para ver se Elena precisa de algo.

— Elena ou a beldade que está com ela? — William provocou,


conseguindo arrancar um discreto sorriso de Henrique. — Só para
você saber, Henrique: Catherine não é uma dama como as outras.

— Eu bem sei — ele disse com admiração.

— E ela é uma amiga de infância. Eu a amo como uma irmã


caçula — dito isso, a expressão de William mudou de repente. — Se
machucá-la, terei que matá-lo, meu amigo.

Por um momento, Henrique achou que William estaria brincando,


até ver a feição séria dele. Admirando-o mais por seu cuidado com
Catherine, Henrique lhe garantiu:

— Farei de tudo para que isso não aconteça.

William deu um breve aceno e se afastou de Henrique, deixando-


o livre para ir até a poltrona de frente para o sofá em que as novas
amigas conversavam animadamente.

Aos poucos, Henrique entrou nas conversas, mas, por mais que
tentasse tirar algo de Lady Catherine, ela o respondia de forma
monossilábica apenas. Bem, ao menos agora lhe dirigia a palavra.
Ademais, notava como ela o olhava sorrateiramente, quando
acreditava que ele não notaria. Mas ele notava tudo que dizia
respeito a Lady Catherine Morland. Seus olhares furtivos apenas lhe
deram mais esperança.

Ao final da noite, ela já lhe respondia com quatro ou cinco


palavras juntas, o que ele considerou uma grande vitória. Elena, boa
irmã que era, ofereceu uma carona à moça, que aceitou
prontamente. Henrique não sabia se era porque desejava continuar
sua divertida conversa com Elena (o mais provável) ou se era para
ficar mais próxima a ele.
De uma forma ou de outra, a situação lhe deu a oportunidade de
lhe entregar discretamente o infame bilhete quando ele a ajudou a
sair da carruagem.

— O que é isso? — ela perguntou, desconfiada.

— Esperança, Lady Catherine. Apenas esperança — ele


respondeu com ardor e retornou à carruagem.

Enquanto deixavam Greenwoods House, Henrique ousou olhar


para trás. Catherine estava onde ele a havia deixado, com uma
expressão confusa. Entretanto, mesmo a distância, pôde ver um
leve sorriso se formando em seus lábios.

Sim. Ele ainda tinha esperança.


Capítulo 13

“Seus olhos erravam por aqui, por lá, por toda parte,
maravilhados. Ela viera para ser feliz e já se sentia feliz.”

(Jane Austen)

Londres, 25 de agosto.

— Nem por cima do meu cadáver!

Já era demais seus primos forçarem (como eles vinham fazendo)


a presença do senador Tilney na casa de Sara e de Krista. Mas
nada pior do que o novo pedido de Rico: queria que Sara
convencesse a noiva a deixar Cathy ir com ele, Elena e o senador à
Abadia de Kingsway? De jeito nenhum!

— Se eu pudesse, impediria que você e sua irmã fossem à


abadia! Tenho certeza de que seu pai esconde alguma coisa! Mais
cedo ou mais tarde, o mistério dessa vinda repentina dele à Europa
será revelado, e o escândalo vai explodir na cara de todos que
estiverem próximos!

— Você não pode provar que ele fez algo de errado, Sara! Eu
tenho pesquisado, investigado, lido tudo que tem sido noticiado na
mídia brasileira. O nome de meu pai permanece limpo!

— Rico, não me faça de idiota: Fábio me contou sobre o diário


de sua mãe. Eu sei que o senador pode ser tudo, mas limpo ele
certamente não é! E, de qualquer forma, qual foi a desculpa que ele
deu para vocês? Como é que ele está aqui, tirando umas férias, não
no Congresso, onde foi eleito para trabalhar?

— Ele está de licença médica — Rico respondeu, cabisbaixo.


— Ah, jura? E qual é a doença dele mesmo? Porque ele parece
muito bem para mim!

Era óbvio que Tilney escondia alguma coisa. Porque doente


decerto não estava. Rico havia invadido o quarto do pai dias antes.
Talvez, pensara ele, o senador estivesse com algum problema
psicológico, e por isso seus sintomas não fossem visíveis. Henrique
procurou no criado-mudo, revirou as malas, investigou cada
recipiente no banheiro. Nada. O único remédio que encontrou foi
para dor de cabeça.

Mesmo sabendo que o pai certamente aprontara alguma,


Henrique teria de acompanhá-lo à abadia, pois Elena estava
resoluta em relação à sua ida. Como o senador declarou que
passariam alguns meses lá, Henrique decidiu que não mediria
esforços para levar Cathy, que o encantava cada dia mais. Não
conseguia suportar a ideia de separar-se dela, especialmente
depois do dia perfeito que passaram em Dover.

Ter que defender o senador perante Sara era quase doloroso,


mas não tinha outro jeito: se ele declarasse suas suspeitas, se
admitisse que concordava com ela, aí perderia qualquer chance de
passar as próximas semanas com Cathy. Portanto, Henrique mudou
de estratégia.

— Sara, o voo de St. Andrews até Londres dura uma hora. E a


abadia está a menos de uma hora de carro de St. Andrews. Ou seja,
se eu desconfiar de algo, se notar que alguma coisa está prestes a
acontecer, levarei Cathy e Elena embora de lá, e estaremos aqui em
duas horas. Você pode não confiar nas intenções do meu pai, mas
será que não confia nas minhas?

— É esse o problema, Rico. Suas intenções são egoístas. Você


está interessado em Cathy e por isso não quer desgrudar dela.

— Eu não estou interessado em Cathy. Estou apaixonado por


ela.
“Merda”, pensou Sara. Ela não tinha argumentos contra aquela
resposta.

Entre Londres e York, 27 de agosto.

— Escócia? E para a abadia da sua família? Ela fica perto de St.


Andrews? Não foi na universidade de lá que o Príncipe William
estudou? Oh! Não foi lá que ele conheceu Kate?!

Cathy estava tão animada que se esqueceu de respirar entre


uma pergunta e outra. Seus olhos brilhavam; seu sorriso estava
congelado no rosto; as mãos, batendo palminhas de alegria; os pés,
remexendo-se sem parar dentro das sapatilhas douradas. A saia
rosada com bordados na barra balançava de um lado para o outro,
enquanto ela caminhava sem parar pela cozinha.

No final das contas, Sara nem precisou convencer sua noiva:


Krista adorou a ideia, achava que a ida à Escócia e a permanência
na abadia seriam perfeitas para que Cathy desse prosseguimento
ao seu romance de época. Além disso, a famosa editora teria de ir a
Nova York a trabalho e adoraria aproveitar a oportunidade para
fazer uma viagem romântica com Sara quando seus compromissos
profissionais acabassem.

Quando Cathy soube, preparou sua bagagem em tempo recorde,


sem se preocupar em esconder a animação. A Abadia de Kingsway
certamente seria o local perfeito para sua história! E o melhor: ela
passaria alguns meses com Rico, em um lugar romântico, onde
teriam várias oportunidades para ficar a sós! Ficou acertado que
Cathy, independentemente da data de retorno de Rico e Elena,
deveria estar em Londres antes do Natal.

O trem da Virgin East Coast partiu exatamente às quatro e


cinquenta e cinco da tarde. Tilney viajara em um avião fretado
naquela manhã, mas Elena sugeriu que fossem de trem para que
pudessem curtir uma noite em York e seguir até St. Andrews no dia
seguinte.

Diante desses planos, as perguntas de Cathy mudaram. A


escritora queria saber tudo a respeito da cidade em Yorkshire: onde
ficariam, qual era a sua história, que passeios fariam... Esse
interesse inesgotável não cansava nem um pouco os irmãos. Muito
pelo contrário: o amor de ambos por História e por viagens tornava
Elena e Rico quase tão sedentos pelas perguntas de Cathy quanto
ela por suas respostas.

— Que tal fazermos um passeio de canoa por aquela parte mais


tranquila do Rio Ouse, Lena?

— De jeito nenhum! Vai levar um tempo até eu aceitar entrar em


uma embarcação com vocês dois novamente, Rico! — ela
respondeu, em tom sério e de brincadeira ao mesmo tempo.

— Então, podemos ir ao Museu dos Vikings...

Os olhos de Cathy brilharam com aquela ideia.

— Rico, nós vamos chegar a York depois das seis! O museu já


estará fechado nesse horário... Mas não se preocupe, Cathy —
Elena comentou ao notar a cara de decepção da amiga —,
podemos ir ao museu e a vários outros lugares amanhã. Teremos o
dia inteiro. Por hoje, sugiro que visitemos The Shambles! O que
acham?

Cathy não tinha ideia do que seria o tal de Shambles, mas a cara
de satisfação de Henrique foi suficiente para ela topar a sugestão de
imediato. Será que aquela visita lhes daria uma oportunidade de
ficar novamente a sós? Passar todos aqueles seis dias sem um
momento sozinha com Rico era excruciante! Desde o beijo perfeito
(mesmo que o final com a garotinha de seis anos histérica e a
guarda florestal questionando o que faziam naquele lamaçal não
tenha sido tão perfeito assim, o beijo fora) não tiveram uma chance
de repeti-lo!
E o dia inesquecível em North Down Ways começava a reprisar.
Pouco tempo depois de deixarem a estação de trem, Elena
adormeceu. As mãos de Rico mal podiam esperar: no mesmo
instante em que a irmã fechou os olhos, voaram do colo dele para a
cintura de Cathy. Ele posicionou a delicada moça sobre seus
joelhos, deixando-a corada.

— Rico, sua irmã! — a garota californiana cochichou no ouvido


dele.

— Eu me comportei direitinho, Cathy: você pediu para manter


segredo sobre nós dois, e eu fiquei quieto. Mas, enquanto Elena
estiver dormindo, você é minha.

A jovem escritora tinha uma resposta inteligente e criativa na


ponta da língua. Mas aí uma das mãos de Rico começou a alisar
suas costas. A outra passou discretamente para a coxa dela, os
lábios dele passeavam por seu pescoço, fazendo Cathy se
esquecer... Da resposta... Do tema da conversa... De Elena... Até
mesmo de onde estavam...

Os dedos dele foram magicamente para baixo da camiseta dela,


delicadamente acariciando sua cintura, sua barriga, enquanto os
lábios se aproximavam cada vez mais dos dela.

— Vai me atacar de novo, Rico? — Cathy brincou, mal


conseguindo pronunciar as palavras.

— Atacar? Você quer dizer beijar? Porque, se for isso, posso


afirmar que atacamos um ao outro. E muito.

— Com licença. Seus bilhetes, por favor — disse uma voz seca e
fria.

O cobrador interrompeu os dois, estragando o clima e acordando


Elena. Henrique pensou em várias maneiras de esganar o homem,
mas se segurou. Sabia que teria muitas oportunidades com Cathy
na abadia. Seria paciente. Porém, não resistiu ameaçá-la em seu
ouvido, enquanto a irmã procurava distraidamente pelo seu bilhete:

— Como me acusou injustamente de atacá-la, eu agora só vou


lhe beijar quando você implorar, Cathy.

A ruiva empinou o queixo e soltou um “humph” de puro


desprezo, mas Rico viu a dúvida nos olhos dela e, em seguida, para
sua satisfação, as sobrancelhas de Cathy juntaram-se no meio da
testa, expressando involuntariamente a preocupação da moça.

York, 27 de agosto.

Ele não a havia tocado nas últimas três horas. Cathy duvidara,
inicialmente, da promessa que ele fizera, mas começava a levá-la a
sério. O que Rico esperava? Que ela implorasse por um beijo?
Nunca na vida!

A temperatura caíra drasticamente desde que chegaram a York e


deixaram as mochilas no hotel (pois o senador, felizmente, levara as
malas dos três com ele no avião), mas Rico não encostara em
Cathy quando colocou o próprio casaco sobre os ombros dela.

— Chegamos! — disse Elena animada, arrancando Cathy de sua


melancolia.

The Shambles, no final das contas, não era um museu,


monumento ou restaurante. Era uma rua estreita, preenchida de
ambos os lados por casas pitorescas de estilo antigo. Cathy
reconhecera o lugar da televisão: a tocha olímpica de 2012 havia
passado por ali. As lojas tinham janelas envidraçadas com molduras
coloridas e ar convidativo. As baixas construções eram de tijolos
vermelhos aparentes e desgastados.

Notando sua curiosidade, Rico lhe explicou que os edifícios


datavam do século XV, o que fazia de The Shambles a rua mais
antiga de que se tinha conhecimento na cidade, além de ser
considerada a rua medieval mais bem preservada da Europa.

Para provocá-la, ele fazia questão de falar bem perto de seu


ouvido, de maneira que Cathy podia sentir o hálito dele contra seu
pescoço, mas não seu toque. A americana, por sua vez, decidiu
oferecer ao brasileiro um pouco do próprio veneno. Passou a
encarar a boca do rapaz, enquanto umedecia, de tempos em
tempos, a sua própria.

— Rico, sua irmã está lhe chamando! — Cathy comentou, cínica,


quando Elena gritava o nome de Henrique pela quinta vez.

De fato, agora que ele voltava à realidade: depois de sonhar


acordado com aqueles belos lábios vermelhos, Henrique escutava
alguém gritando seu nome.

— Rico! Estou morrendo de fome e louca por uma cerveja!


Vamos comer aqui? — Elena pediu, ao mesmo tempo em que
apontava para uma velha porta vermelha com uma placa de
madeira logo acima, em que se lia “Rilley’s”.

O calor do ambiente logo invadiu os corpos dos três. A lareira a


lenha era suficientemente grande para aquecer a cidade inteira. O
ambiente, mal-iluminado, tinha um aspecto íntimo. A decoração era
simples e dava um ar de conforto ao local: mesas de madeira
ficavam posicionadas em torno do salão, encostadas nas paredes,
enquanto os garçons corriam de um lado para o outro no centro do
restaurante. As paredes eram cobertas de fotos de grupos
sorridentes, que Cathy acreditava serem os fregueses do Rilley’s.

O som das gargalhadas era quase tão alto quanto o dos copos
se chocando em brindes (muitos dos quais se quebrando), e o
cheiro de carne assando deixou os recém-chegados com água na
boca. Um dos garçons mais jovens aproximou-se, mas nada disse.
Apenas encarou Elena por uns bons trinta segundos, antes de Rico
interrompê-lo:
— Oi? Você trabalha aqui, por acaso? Ou vai ficar babando a
minha irmã a noite inteira?!

— Rico, que desagradável, o rapaz estava apenas...

— Encarando você como se fosse um prato de cordeiro bem


suculento? Enfim, foi você quem disse que estava morrendo de
fome.

Os irmãos trocaram as farpas em português, mas agora Rico


voltaria ao inglês para se dirigir ao funcionário enfeitiçado pelos
encantos exóticos de Elena.

— Vamos querer a carne assada, acompanhada de batatas e


cervejas para todos. Você vai beber cerveja, Cathy?

— Sim! — ela respondeu, mais animada do que gostaria.

O ar quente da lareira já deixara suas bochechas rosadas, e


seus olhos percorriam cada milímetro do lugar.

Ao verificar que o garçom se afastou, e Elena fora até o toalete,


Rico continuou provocando a moça de cabelos vermelhos.

— Não se preocupe, Cathy: não vou me aproveitar de você se


ficar com teor alcoólico acima do razoável. Hoje à noite, você pode
implorar o quanto quiser: não vou encostar em um fio de cabelo seu.

— Humph! Acho bom mesmo, Henrique!

Foi tudo o que Cathy disse. Estava tão carente por um toque
dele que não conseguiu elaborar nenhuma outra frase. Porém,
recusava-se a ser a primeira a admiti-lo.

O simpático garçom retornou com as bebidas. Cada copo devia


conter um litro de cerveja, Cathy tinha certeza. O rapaz deixou
outros três copos menores ao lado dos gigantes. O líquido dentro
dos pequenos era transparente e grosso, com forte cheiro de álcool.
Apenas quando Elena retornou do banheiro, o garçom explicou do
que se tratava.

— Esta é uma bebida local. Espero que gostem. Trouxe


especialmente para a mesa com a moça mais bonita da cidade... —
pronunciou a última frase com um tom de voz consideravelmente
mais baixo, os olhos esperançosos encarando Elena, que apenas
conseguiu lhe oferecer um tímido meio sorriso em agradecimento, o
qual deixou o homem nas nuvens.

Apenas de cheirar a bebida Henrique ficou um pouco tonto. Mas,


ao ver sua irmã e Cathy virando as delas com tanta coragem,
nenhuma opção sobrou para ele a não ser repetir o gesto das duas.
Maldito machismo e obrigação masculina de beber mais (ou, no
mínimo, a mesma quantidade) que as mulheres!

Meia cerveja e outros dois copos daquela bebida demoníaca


depois, e Cathy estava no colo de Henrique. Elena já conversava
animadamente com um casal norueguês na mesa ao lado, como se
fossem velhos amigos. O garçom, que se juntara a eles a partir da
segunda dose, já nem lembrava mais que estava no serviço.

Coube a Henrique pegar a carne assada dos três na cozinha do


estabelecimento e servi-la (sem comentários para o fato de que o
garçom deles, Peter, comeu metade do prato de Rico). Apenas
quando notou um grupo de torcedores do Manchester
encarando/admirando/babando Cathy, ele voltou toda sua atenção
para a Garota da Califórnia.

Ela estava linda. Na realidade, Henrique considerava Catherine a


mulher mais bonita que conhecera na vida, mas ela estava
especialmente adorável naquela noite. Seu sorriso era contagiante,
o brilho nos olhos mostrava o quanto sua animação era genuína, e o
rosto vermelho avisava a Rico que ela havia bebido demais. Mas o
principal era que Cathy estava claramente — e completamente —
feliz.
Antes que a ruiva virasse o quarto copinho da bebida mágica de
Peter, no entanto, Rico a conteve, perguntando se ela não estava
sentindo os efeitos do álcool.

— Humph! Não extou xentindo nada, xe quer xaber! Tenho uma


exxelente tolerânxia ao álcool. Max axo que prexiso xixi.

Ao tentar se levantar para ir ao banheiro, o mundo girou em


torno de Cathy. Suas pernas viraram gelatina, sua visão ficou
embaçada, seu corpo estava tão leve que ela sentiu que levitaria a
qualquer instante.

Henrique ficou imediatamente preocupado, pois o rosto de Cathy


começou a ficar pálido, e seus lábios, do tom saudável de vermelho,
passaram a um mórbido azul. Pegou-a no colo e levou-a para o lado
de fora do restaurante. Mal teve tempo de colocá-la no chão: tudo o
que Cathy havia ingerido nas últimas horas foi parar no meio-fio de
The Shambles.

— É, Cathy. Você acabou de deixar sua marca em York...

Entre York e a abadia, 28 de agosto.

A luz que entrava pela janela quase a cegou. A cabeça parecia


pequena demais para o cérebro, que martelava violentamente,
desejando escapar de seu corpo. A garganta estava seca, como se
estivesse no meio do deserto do Saara, não na úmida Inglaterra. O
estômago embrulhava, vazio e revoltado, reclamando de fome e de
enjoo ao mesmo tempo. As pernas não seguiam suas ordens de se
levantar, permanecendo imóveis — e inúteis — sobre a cama.

— Estou morrendo... — a voz rouca de Cathy disse.

— Não, Cathy, você não vai morrer. Isso se chama ressaca —


Rico repetia calmamente, pela centésima vez naquela manhã.
— Você passou a adolescência inteira sem sentir ressaca? —
Elena comentou.

— Já tive ressaca, mas nunca assim! Não consigo entender por


que as pessoas bebem tanto! Argh! Nunca mais coloco uma gota de
álcool na boca!

Era a milésima vez que Cathy fazia aquela promessa desde que
acordara. Os irmãos apenas se entreolharam com o riso preso na
garganta. Os efeitos da bebida misteriosa da noite anterior foram
fortes em Elena, mas nada comparado ao estado de quase-coma-
histérico de Cathy.

Somente conseguiram sair do hotel por volta do meio-dia, depois


de Cathy comer sanduíche de queijo e iogurte com frutas vermelhas
e tomar um longo banho. Sentia-se, por um lado, humilhada por
precisar ser alimentada por Rico com colheradas na boca, mas, por
outro, nunca fora tão mimada.

Rico a pegou pela mão e a levou até o banheiro, onde Cathy


percebeu que deviam estar no melhor hotel de York: o cômodo tinha
piso e paredes cobertos por um belo mármore rosado, decorado
com um delicado armário branco antigo, cuja cuba arredondada era
feita da mesma pedra do piso. No canto esquerdo do amplo
banheiro, bem abaixo da janela, havia uma clássica banheira
vitoriana, com pés cromados cheios de detalhes encravados.

Olhando para o próprio corpo pela primeira vez desde a noite


anterior, Cathy notou que não usava mais a blusa e a saia com as
quais saíra de Londres. Agora vestia uma camiseta branca dos
Rolling Stones, grande demais para ela.

— Juro que fiz de tudo para não olhar — Rico explicou-se,


enquanto enchia a banheira, mesmo antes de a ruiva lhe fazer a
vergonhosa pergunta. — Se Elena não estivesse quase tão bêbada
quanto você, teria pedido que ela fizesse esse trabalho. Não que eu
tenha detestado tirar a sua roupa e... Nossa, estou falando um
monte de besteira. O que quero dizer é o seguinte: sim, eu tirei sua
roupa e vesti você com uma camiseta minha; não, não tive qualquer
outra opção, pois você estava coberta de... bem, você sabe; sim,
você é ainda mais linda do que eu imaginava.

Essa última frase deixou Cathy nas nuvens, a ponto de ela


quase perdoá-lo por ter trocado suas roupas sem autorização. Ao
olhar por baixo da camiseta, para seu alívio, ainda usava as
mesmas roupas de baixo do dia anterior. E o melhor: elas não eram
vergonhosas, nada de calcinha com arco-íris ou sutiã com
hipopótamos. Ela usava um de seus conjuntos favoritos, azul-claro
com rendinhas. Se não fosse pelos pequenos corações brancos na
estampa, seria sexy. Mas chegava bem perto...

A água estava quente; e o banheiro, incrivelmente cheiroso:


enquanto Cathy vegetava na cama, Rico comprara sais de banho,
velas aromáticas e óleo para o corpo. O ambiente estava com um
delicioso perfume de lavanda. Cathy abaixou a cabeça, mordendo o
lábio inferior, com o sangue do corpo subindo para sua face.

— Sei exatamente o que está passando por essa sua cabecinha,


Cathy. Você está pensando como aqui seria o local perfeito para um
segundo beijo perfeito — ele provocou, deixando-a ainda mais
vermelha. — Bem melhor do que o lamaçal, não? E mais cheiroso
também. Pena que você ainda não está pronta para implorar...

Saiu do cômodo sem olhar para trás, deixando Cathy


boquiaberta e com o estômago ainda mais embrulhado.
Lentamente, ela entrou na banheira, encostou a cabeça na borda e
fechou os olhos, deixando a água relaxar seus músculos e o
delicioso cheiro cercá-la. Assustou-se, minutos depois, com o
barulho de água se movimentando.

— Rico?! O que você está fazendo aqui? — Cathy perguntou, ao


mesmo tempo que verificava se a espuma na superfície da água
cobria tudo o que deveria estar coberto.

— Você estava tão quietinha que decidi checar se ainda estava


respirando... — Seu meio sorriso enigmático estava grudado no
rosto. A satisfação era óbvia no momento em que ele mexia
delicadamente a superfície da água.

Henrique não encostara nela, mas o corpo inteiro de Cathy


formigava, ao mesmo tempo que ela se mantinha hipnotizada pelos
movimentos da mão dele. Estava tão perto... Se ele afundasse um
pouco a mão, se encostasse um pouquinho mais na borda da
banheira... ela conseguiria senti-lo...

De repente, o vácuo. Onde estava calor, ficou frio. Henrique


afastara-se da borda da banheira com a mesma rapidez com que se
aproximara.

— Não se esqueça do nosso acordo de ontem, hein? — ele


comentou, já do lado de fora do banheiro. — Você vai ter que me
implorar...

Aparentemente, a batalha — ainda — não havia acabado...


Cathy sentia estar a ponto de perder, mas jamais diria isso a
Henrique, que apenas ficaria mais arrogante. Por que ele tinha que
beijar tão bem?

Bem alimentada, de banho tomado e com menos dor de cabeça,


Cathy finalmente conseguiu deixar o hotel, na companhia de Rico e
Elena. Como o trem deles sairia às cinco, ainda tinham tempo de
fazer alguns passeios.

Foram primeiro à Torre de Clifford, também conhecida como o


castelo de York, uma fortificação viking de nove séculos.
Inicialmente, era um complexo de edifícios com residências, prisões,
cortes judiciais. No entanto, uma explosão no século XVII tornara a
construção inabitável. A ruína, com formato arredondado, ficava
bem no alto de um morro, com uma vista privilegiada da cidade e do
Rio Foss.

Mesmo durante o verão, o vento que soprava no local era frio, e


Cathy, mais uma vez despreparada para aquele clima, usando um
vestido curto e de alcinhas, branco estampado com margaridas,
começou a tremer levemente. Henrique, mais uma vez, ofereceu
seu casaco e um cachecol. Por sorte, vestia uma camisa
razoavelmente quente, de mangas compridas.

— Acho que terei de trazer sempre dois casacos ao sair contigo,


Cathy.

— Não pensei que estaria tão frio aqui! — ela justificou. —


Trouxe apenas alguns vestidos e roupas de verão... Deixei meus
agasalhos na mala que seu pai levou à abadia.

— Ah, mas quem manda se preocupar mais em trazer


conjuntinhos azuis com rendinhas e corações brancos do que
casacos de verdade?

Rico resistira o quanto pôde, mas simplesmente adorava ver o


rosto de Cathy ficando vermelho como seus cabelos, seu sorriso
aparecendo encabulado e os grandes olhos brilhando. Aquela
mistura de timidez com desejo era a perfeição para ele.

— Teria trazido roupas quentes se tivessem dito que aqui fazia


tanto frio! — ela defendeu-se.

— Finalmente você ofereceu seu casaco a Cathy, Rico! —


interrompeu Elena. — Ela já estava ficando azul... A culpa é nossa:
deveríamos ter avisado sobre o clima de York!

Enquanto Elena se afastava, dizendo que deveriam seguir para a


catedral, Cathy olhou para Henrique de forma arrogante,
orgulhosamente vencedora daquela curta batalha.

Ao terminarem o breve passeio por York e chegarem à estação


de trem, um pouco do enjoo de Cathy havia retornado, assim como
sua dor de cabeça. Pelo menos, ela pensou, conseguiram visitar,
além da Torre de Clifford, o centro viking, a catedral e o museu do
castelo, além de tirar dezenas de fotos.
Apesar de sua promessa de não tocá-la a menos que ela
implorasse, Rico posicionou a cabeça de Cathy sobre seu ombro e
passou a viagem acariciando seus cabelos. Quando já estavam em
St. Andrews, notando que a ruiva dormia profundamente, ele a
carregou até o carro que os levaria à abadia. Enquanto isso, uma
sorridente Elena tinha certeza de que o irmão estava, pela primeira
vez, verdadeiramente apaixonado por alguém.

E era pela adorável Garota da Califórnia.

— PAREM!

Era a segunda vez que Cathy pedia que parassem o veículo, a


fim de poder colocar para fora a pouca comida que colocara para
dentro horas antes...

O trajeto entre St. Andrews e a Abadia de Kingsway não era


longo, menos de uma hora de carro. No entanto, a estrada era
repleta de curvas e ladeiras, gerando movimentos que não apenas
haviam acordado Cathy, como também a deixaram enjoada após
dez minutos de viagem.

— Quanto falta?! Quanto falta?! — Cathy dizia esbaforida,


agachada, recuperando o fôlego, já sem a vergonha inicial de ter
como testemunhas o cara de quem gostava, a irmã do cara de
quem gostava e um estranho de cabelos grisalhos, barriga saliente
e bochechas eternamente vermelhas, cuja mania de acender um
cigarro no outro e pigarrear a cada trinta segundos apenas piorava
seu enjoo.

— Falta pouco, Cathy. Eu juro — Rico respondeu calmamente,


como se falasse com uma criança.

— Você já disse isso! Há quase cinco minutos! — a californiana


respondeu exatamente como uma criança faria.
— O que a jovem bebeu? — perguntou o motorista. Ao ouvir a
resposta de Elena, foi até o veículo, em busca de algo no porta-
luvas. Elena foi atrás do homem, enquanto Rico continuava
segurando o cabelo da ruiva, sem saber se ela voltaria a passar
mal.

— É só mais um pouco, Cathy. Nós estaremos lá logo — Rico


lhe disse ao ouvido, ao mesmo tempo que passava os dedos
carinhosamente por suas mechas avermelhadas. — Mas, para isso,
precisamos voltar para o carro.

— Beba isso e ficará melhor! — aconselhou o motorista, que


retornara com uma pequena garrafa de vidro transparente na mão.

O líquido dentro dele era branco e com um aspecto pegajoso.


Por conta do trauma da noite anterior, Cathy não estava muito
disposta a aceitar bebidas misteriosas de estranhos, mas fazer o
quê? Se ainda tinha de aguentar mais de meia hora daquela
estrada, não havia outra alternativa.

A bebida a acordou de imediato, como se fosse um shake de


café com Red Bull. Ao entrar no carro, já se sentia melhor: a cor
retornara às suas bochechas, e a cabeça rodava bem menos.

— Não quer saber o que acabou de beber, Cathy? — perguntou


Elena.

— Nunca na vida, Leninha. Talvez eu tenha que tomar isso


novamente!

Todos gargalharam, no mesmo momento em que Cathy


finalmente descobriu a vista da janela. Estava no paraíso. Ou o mais
perto possível do paraíso. A estrada ficava ao redor de uma grande
montanha, que, àquela época do ano, ainda mantinha a vegetação
verde e algumas árvores floridas. Do lado oposto, havia um
penhasco, que parecia chegar ao infinito. Apesar de seu pavor de
altura, ao invés de medo, tudo o que Cathy sentiu foi paz. Ela
conseguia ver pouco da superfície, pois já estava escurecendo. Mas
ainda era possível distinguir, a distância, algumas luzes e
construções baixas.

— St. Andrews está naquela planície, na beira do mar.

— Tão longe assim? Mas faz tão pouco tempo que saímos de lá!

— Tempo mais do que suficiente quando se dirige em estradas


boas e com um motorista como Matthew. Ele costuma afirmar que
homens de verdade não dirigem a menos de cem por hora.

O motorista devia dirigir bem mesmo, pois, para Cathy, parecia


que não estavam a mais de sessenta por hora. As curvas eram
feitas com suavidade, as subidas nem pareciam tão íngremes... Ela
estava praticamente flutuando... Oh! Meu! Deus! O que havia
naquela bebida abençoada?!

Depois de alguns minutos, eles chegaram ao que parecia ser o


topo da montanha, uma vez que não havia mais ladeiras. Seguiram
no plano por uns cinco minutos até chegarem a uma estrada com
pinheiros enfileirados de ambos os lados. Parecia que haviam
entrado em um túnel, de tão escuro que ficara de repente.

Porém, Cathy conseguia ver luzes ao longe. Subitamente, os


pinheiros desapareceram, e a vista era deslumbrante: a Abadia de
Kingsway era uma construção em estilo medieval, com gigantescas
janelas em forma de arco, belíssimos vitrais e uma torre em seu
centro. O sol se punha atrás do magnífico edifício, dando-lhe uma
cor quase alaranjada.

À medida que se aproximavam da abadia, Cathy podia observar


melhor seus detalhes, ficando mais impressionada. A porta de
entrada tinha, pelo menos, três metros de altura, e era feita de
madeira maciça, com centenas de criaturas angelicais entalhadas.

No entanto, eles não usaram aquela entrada, e sim contornaram


o edifício, até chegarem à parte lateral. Foi quando Cathy notou que
havia outra construção na parte de trás, completamente diferente da
fachada, o que a deixou ainda mais curiosa.

O prédio de trás tinha um estilo de século XIX e, apesar de não


ser tão imponente quanto a abadia medieval, Cathy tinha de admitir
que em nada devia no quesito beleza. A casa, que estava unida à
abadia por um corredor de vidro, tinha três andares, todos cobertos
por elegantes janelas retangulares, cada uma com mais de dois
metros de altura. As paredes do primeiro andar tinham sido
invadidas por trepadeiras que ali cresceram ao longo das décadas e
agora faziam parte da construção. A jovem escritora conseguia ver
ao menos quatro chaminés, e, no terraço, existia uma espécie de
mirante, onde havia algo que Cathy calculou ser um telescópio.

Tilney saiu da mansão com um semblante orgulhoso, sabedor da


impressão que a propriedade era capaz de causar nos visitantes.
Deu as boas-vindas a Cathy da maneira mais cordial possível,
conversando rapidamente com os filhos em português.

Era engraçado ouvi-los falando em seu idioma natal. Por vezes,


Cathy se esquecia de que a primeira língua da família não era o
inglês. Entendia melhor o sotaque deles do que o britânico, como se
fizesse parte de seu destino relacionar-se com um brasileiro...

Felizmente, Cathy não entendia uma palavra sequer do


português, porque o assunto do qual os três tratavam certamente
não a alegraria.

— Como assim, o Fábio não veio, pai?

— Não posso obrigar seu irmão a fazer o que quero, Elena —


ele respondeu, sem gostar do tom da filha.

— Mas você sabe o motivo da permanência dele em Londres?


— a filha insistiu.

— Fábio não foi específico, mas creio que a razão seja uma DJ
loira de olhos azuis... Por isso não insisti que viesse. Ele tem
trabalhado demais no Brasil, merece uma folga. Ao contrário de
certas pessoas.

O comentário era obviamente dirigido a Henrique, que fingiu


ignorá-lo.

— De qualquer forma, apesar de sentir por Cathy, temos que


admitir que o irmão dela não tem muita chance, não é? Não quando
o concorrente dele é Fábio.

O senador Tilney piscou para os filhos, como se estivesse


orgulhoso do primogênito. Voltou sua atenção a um dos
funcionários, passando-lhe instruções sobre o jantar. Os irmãos
entreolharam-se, estranhando a notícia do pai.

Enquanto isso, ignorante daquele discurso bombástico, Cathy


encarava sua moradia para os próximos meses, com uma pergunta
martelando na cabeça: “Qual é a história da Abadia de Kingsway?”

Abadia de Kingsway, muitos anos atrás...

Aquela planície elevada, com vista privilegiada do Mar do Norte


e acesso difícil (durante o inverno, praticamente impossível), seria o
local perfeito para a construção de uma abadia.

Foi assim, em uma manhã agradável da primavera de 1193, que


o Rei Ricardo I, mais conhecido como Ricardo Coração de Leão, fez
um acordo com o então Rei da Escócia, Guilherme I, que lhe
ajudara na campanha contra o próprio pai e agora em sua cruzada.

Os soberanos concordaram em construir, naquele local


paradisíaco, uma grande abadia, onde haveria um convento para
moças de ambos os países. Chamaram-na de Abadia de Kingsway,
pois o local foi encontrado enquanto os dois reis estavam a caminho
da negociação sobre o abandono do Tratado de Falaise.
O ápice da Abadia de Kingsway foi no século XV, quando teve
muitas moças famosas entre suas freiras. A filha mais nova do
duque de Norfolk, por exemplo, viveu mais de vinte anos lá. A irmã
viúva do Rei Henrique V disse que a abadia foi o único lugar capaz
de lhe oferecer verdadeiro conforto após ser rodeada de mortes. A
prima da Rainha Margarida da Dinamarca também foi uma de suas
célebres moradoras.

Foi na mesma época que a ala sul da abadia passou a receber


nobres e membros da realeza da Inglaterra e da Escócia que
viajavam pela região. As freiras que administravam o convento,
inicialmente, não viram qualquer problema naquelas estadias, uma
vez que a ala sul era separada do restante da construção e muito
distante da ala norte, onde ficavam os quartos das moças.

No entanto, após poucos meses, as freiras perceberam que a


hospitalidade de suas jovens noviças era demasiada: algumas delas
apareciam grávidas, enquanto outras apareciam... desaparecidas,
foragidas com algum dos hóspedes ilustres.

Toda aquela alegria descontrolada, no entanto, teria um fim


trágico: em uma tarde de domingo, enquanto era comemorado o
Natal, um terrível incêndio alastrou-se da cozinha, que ficava na ala
leste, até a ala norte, onde ficavam os cômodos de todas as
moradoras. Por sorte, a maior parte delas estava na missa, na ala
oeste, a única parte da abadia que resistiu ao fogo. Todas
abandonaram a construção nos dias seguintes, e a abadia
permaneceu inabitada por mais de dois séculos.

Até os dias atuais, dizem que o incêndio foi uma punição pelos
muitos pecados cometidos dentro daquelas paredes antigas.

Apenas em 1713 a Abadia seria redescoberta. Foi durante uma


viagem da Rainha Ana — responsável por unir Inglaterra e Escócia
em um único estado soberano, a Grã-Bretanha — pela região. Ela
ficou encantada com a construção e exigiu que reformas fossem
feitas à ala oeste, além da construção de uma nova ala, para abrigar
cozinhas e quartos.
Seus planos nunca foram concluídos, pois a Rainha Ana faleceu
no ano seguinte. Apenas as reformas foram feitas, mas novas
construções nunca foram realizadas. Mais uma vez, a abadia
entraria no ostracismo. Foi outra monarca que transformou a abadia
no que ela é hoje: a Rainha Vitória.

Mais uma vez, uma mulher poderosa ficou impressionada com o


edifício e o local magnífico onde estava situado. Portanto, ordenou
que fosse construída uma casa digna de uma família nobre atrás da
parte remanescente do edifício original. Ofereceu a propriedade a
um amigo da corte, Henry Tilney, mais conhecido como o duque de
Moonrise.

A partir daí, a abadia permaneceu na família Tilney, geração


após geração. Em 1949, Carl Tilney, segundo filho, não herdou o
ducado do pai, porém tornou-se sua a propriedade de que tanto
gostava na Escócia, além de algumas outras em Londres e em
Paris. Aos dezenove anos, ele já era um rico órfão, depois que os
pais foram vítimas de um acidente automobilístico fatal.

Durante uma viagem ao Brasil, apaixonou-se loucamente por


uma bela carioca. Casou-se e teve dois filhos, ambos nascidos no
Rio de Janeiro: Lana Tilney e Carl Tilney Jr. Viveram anos muito
felizes, mas nunca chegaram a envelhecer juntos. O Sr. e a Sra.
Tilney, como se fosse uma obra maligna do destino, também
morreram jovens, em um acidente de barco em Angra dos Reis.

Ficou acordado entre os irmãos que Lana ficaria com a abadia


(onde passava todas as suas férias de verão) e com apartamentos
em São Paulo, enquanto Carl herdaria uma casa em Londres, outra
em Paris e o apartamento dos pais no Rio de Janeiro.

Apesar de inseparáveis quando jovens, Lana e Carl foram se


distanciando com o tempo, especialmente quando a irmã começou a
namorar um rapaz que seu irmão detestava: o Teixeira, conhecido
por ser arrogante, interesseiro e de uma família envolvida com
política e corrupção no interior de São Paulo. Carl fazia questão de
evitar o namorado de Lana a qualquer custo, nunca o conhecendo
pessoalmente (apenas pelos boatos mais pavorosos).

Mesmo sabendo o quanto o irmão desaprovava seu escolhido,


Lana mudou-se para São Paulo assim que terminou a faculdade de
Direito e casou-se com Teixeira. O irmão não foi à cerimônia, e os
dois passaram longos anos sem se comunicar.

Foi apenas quando Lana já era mãe de três filhos que decidiu
convidar o irmão e sua família para passar alguns meses na Abadia
de Kingsway. Ela agora sabia com quem havia se casado e entendia
que Carl conseguira ver em seu marido algo que ela nunca fora
capaz de enxergar. Carl teve a esperança de que recuperaria a
irmã, de que nunca mais se separariam.

Mal sabia ele que já era tarde demais para Lana.

Abadia de Kingsway, entre 28 e 29 de agosto.

O jantar fora servido precisamente às vinte horas e trinta


minutos. De entrada, eles comeram sopa de cenoura com gengibre
e uma salada com queijo brie; arroz de pato como prato principal; e
torta de mirtilo de sobremesa. Tudo acompanhado de um delicioso
vinho francês.

Cathy deliciara-se com a comida e com a conversa do senador,


que lhe contou, pacientemente, toda a história da abadia. Ele
também havia oferecido a ela ajuda na escolha de alguns livros da
biblioteca da propriedade que contassem mais detalhes sobre a
longa história da construção e reconstrução do antigo edifício.

Estranhou, no entanto, o fato de Elena e Rico terem ficado


calados durante toda a refeição. Eles mal comeram; Cathy também
percebeu. Será que alguma coisa havia acontecido? Com certeza,
não era nada com a família, pois o senador Tilney parecia bem
disposto. Ao final da noite, a norte-americana convenceu a si
mesma de que deveriam estar apenas cansados. Afinal de contas,
ela havia dormido até meio-dia; eles, não.

Em seu quarto, passou boa parte do tempo analisando os


cômodos antigos, a vista de sua janela, os detalhes da decoração.
Estava tão inspirada que, mesmo com todo o cansaço da ressaca e
da viagem, decidiu escrever algumas páginas antes de adormecer
profundamente.


Capítulo 14

“Conhecer você e não ficarmos juntos seria um pesadelo.”

(Jane Austen)

Beckhan, agosto de 1815.

Lady Catherine estava atrasada. Henrique tentou convencer-se


de que talvez não fosse exatamente uma recusa da dama, afinal de
contas, ele havia pedido que ela deixasse o conforto de sua casa no
meio da noite, e, para piorar, chovia torrencialmente.

Ademais, fora uma grande ousadia, por parte dele, convidá-la


depois de tudo que fizera e depois de a dama deixar claro que não
tinha quaisquer sentimentos pelo cavalheiro.

Porém, na noite passada, Henrique vira algo em seus olhos.


Quer dizer, algo além da raiva. Teria ele visto fervor? Desejo?
Talvez, quem sabe, até mesmo amor? Não, seria pedir demais.
Mesmo que Lady Catherine ainda sentisse algo por ele, depois de
ter sido abandonada, certamente não o amava.

Pouco importava: se o português ao menos conseguisse fazer


com que o desejasse novamente, como ocorrera nos poucos
momentos que tiveram a sós antes de ele deixar a Inglaterra, talvez
conseguisse convencê-la a desposá-lo. Melhor ele que o entediante
John Cleavand, argumentaria.

Henrique passou a mão pelos cabelos encharcados de chuva,


beirando o desespero. O que faria se a dama não o aceitasse? Se
Catherine, de fato, o rejeitasse e nunca mais o perdoasse? O que
faria sem ela?
Conhecia-a havia pouquíssimo tempo, mas nenhuma mulher
jamais o fizera sentir-se daquela maneira, como se estivesse
debaixo d’água, nadando, em busca da superfície, sem jamais
encontrá-la, sem conseguir respirar, até ser salvo por ela, tocado por
suas delicadas mãos. Ele se afogaria se não tivesse Catherine em
seus braços novamente.

De repente, faltou-lhe ar. Usou uma árvore de apoio, e foi


quando a viu: Lady Catherine. Antes de se aproximar, observou,
maravilhado, cada detalhe dela. A jovem usava apenas um chemise
de dormir e um roupão por cima. Não que fizessem qualquer
diferença: estavam absolutamente encharcados, permitindo a
Henrique que admirasse as curvas femininas dela. Desejou tocar
seus sedosos cabelos ruivos, presos por uma trança frouxa, e seus
lábios perfeitos, que tremiam de frio. Poderia passar toda a noite
apenas observando-a, bebendo cada gole da beleza dela, mas não
queria que ficasse ali sozinha nem mais um momento, naquela
tempestade congelante.

— Cathy? — a forma carinhosa de chamá-la deixou seus lábios


sem que ele pudesse se conter.

Quis chamá-la pelo apelido carinhoso desde a primeira vez que


descobrira seu nome, e assim a chamava em seus sonhos, quando
ele cobria o corpo desnudo de Catherine com o seu próprio.

Ela virou-se lentamente para encará-lo, e Henrique pôde notar


incerteza em seu olhar. E outra coisa. Novamente, a esperança
voltou ao coração daquele cavalheiro, porque ele tinha certeza de
que vira desejo nos belos olhos castanho-claros de Lady Catherine.

— O que você quer? — disse a moça.

O queixo dela foi automaticamente para cima, mas seu tom, ao


invés de frio, era doce, quase uma súplica, fazendo o corpo dele
todo estremecer. Era extremamente difícil não tocá-la.
Como não estava ainda em condições de falar, ele deu alguns
passos na direção dela. Ao contrário de Catherine, Henrique estava
vestido adequadamente para o frio. Queria colocá-la em seus
braços, aquecê-la com o calor de seu próprio corpo, mas havia
prometido a si mesmo tentar ser um perfeito cavalheiro naquela
noite. Portanto, retirou seu casaco sem pronunciar nem uma palavra
sequer e o colocou em volta dos ombros dela.

Viu a reação dela. Sabia que Catherine calculava se deveria ou


não aceitar qualquer favor dele, orgulhosa que ela era. Quis rir, mas
esforçou-se para se manter sério; se ela achasse que caçoava dela
o abandonaria na escuridão do bosque. Ao fim, a dama aceitou o
casaco, e Henrique segurou um gemido que estava em sua
garganta ao ver a reação de prazer de Catherine com o pequeno
conforto que a peça lhe proporcionava.

A Lady baixou a cabeça, quase enterrando-a no casaco. Estaria


com tanto frio assim? Agora, ele se sentia péssimo; havia exigido
demais de Catherine. Mais uma vez, pedira que ela o encontrasse
em segredo, sem dama de companhia, arriscando sua reputação. E,
para piorar, ainda havia colocado a saúde da moça em perigo. O
que ele faria se ela tivesse uma gripe ou pnemonia? Tinha que dizer
logo o que viera dizer para que a moça pudesse retornar ao calor de
Greenwoods House.

Delicadamente, ele a segurou pelo queixo, levantando sua


cabeça, levando os olhos dela de volta para o rosto dele. Henrique
não usava luvas – detestava-as, sentia-se preso com elas –, e o
contato direto com Catherine fez seus pelos eriçarem. Aquele
simples toque já o fazia perder-se em tudo que era Lady Catherine
Morland.

— Estou aqui por você — ele finalmente disse, a voz rouca e


embargada de desejo.

— Lady Catherine?
Ouviram a voz inconfundível da Sra. Smith. Ainda estava
distante, mas não tardaria a encontrá-los, Henrique tinha certeza.
Ele não teria mais que alguns segundos a sós com sua amada.

— Cathy, por favor me escute.

Ele a segurou pelos ombros, uma súplica de que ela voltasse


sua atenção para ele, para o que precisava lhe dizer. Em seu
desespero, acabou falando em um tom mais alto que deveria.
Rapidamente, ela cobriu sua boca com a mão.

Oh, ela não sabe o efeito devastador que seu toque tem em
mim, Henrique pensou, desta vez não conseguindo segurar um leve
gemido.

— Você conhece a Sra. Smith — Catherine sussurrou,


aproximando-se ainda mais dele.

Seus rostos agora estavam a apenas alguns centímetros de


distância; se quisesse, poderia beijá-la, Henrique considerou. Mais
uma vez, lembrou-se de sua própria promessa e, com dificuldade,
deixou que a dama concluísse a frase.

— Se a Sra. Smith encontrá-lo aqui, contará para os meus pais.


E só Deus sabe o que papai faria se descobrisse que você invadiu a
propriedade. De novo.

As palavras de Catherine podiam ser duras e acusatórias, mas


seu tom era suave. Enquanto ela falava, as mãos dele haviam
deslizado para cima, dos seus ombros para cada lado de seu
delicado rosto. Se tivesse que enfrentar o pai de Cathy, assim o
faria. Qualquer coisa para tê-la, o que fosse necessário para poder
chamá-la de sua.

No entanto, antes de mais nada, precisaria do perdão da moça.


E o fato de ela ter ido encontrá-lo no meio da noite já era um indício
de que ele estava no caminho certo, não? Se a jovem não nutrisse
qualquer afeição pelo Sr. Teles, não teria se arriscado tanto.
Ela estava ainda mais linda do que ele se recordava. A pele de
porcelana, que contrastava tão sensualmente com seus lábios
vermelhos. Cathy respirava por eles, e não pelo nariz. Sua
respiração estava curta e acelerada, mais um indício de que ela
ainda nutria sentimentos por Henrique, mesmo que não desejasse
admitir.

— Eu sei que seus pais e a Sra. Smith ficariam furiosos se me


encontrassem aqui. Provavelmente, iriam exigir minha prisão. Mas
por que a senhorita veio ao meu encontro, sabendo do risco? Por
que não está brava comigo?

— E quem disse que eu não estou brava com o senhor? — ela


respondeu, exasperada.

A Sra. Smith gritou pela dama novamente e estava mais


próxima. O cavalheiro mal escutou a mulher; seu foco estava
completamente concentrado na ruiva à sua frente, na dama que ele
esperava chamar de esposa em breve.

— Talvez, isso seja uma cilada. Talvez, eu grite e o entregue — a


Lady o ameaçou, apesar de estar óbvio, pela forma que encarava os
lábios dele, que o ultimato não era verdadeiro.

— E quem disse que eu não vou calá-la se tentar gritar? —


Henrique ameaçou de volta, mas seu tom era sedutor; e o corpo
dele quase pegou fogo ao notar que Catherine gostara daquele tom.

Ele se aproximou ainda mais dela, e a jovem teve que olhar para
cima para continuar a encará-lo.

— Lady Catherine!

A voz da Sra. Smith os alcançou. Maldição!, Henrique pensou,


irritado.

— Precisa ir embora — Catherine implorou.


— Vou embora, milady. Se me prometer uma coisa...

Era agora ou nunca. Ele sabia que Lady Catherine não faria tal
loucura novamente.

— O que quer que eu prometa?

— Preciso que prometa que vai tentar. Tente me perdoar, Cathy.


É tudo que peço.

Sr. Teles agarrou as mãos dela, sua voz trêmula de nervosismo.


E colocou as delicadas mãos da moça sobre seu coração, para que
ela sentisse como batia forte contra seu peito. Ele acariciou uma
mecha de cabelo ruivo que havia se soltado da trança. Alojou os fios
vermelhos atrás da pequena orelha de Catherine, e, depois de
concluída a tarefa, seus dedos continuavam em contato com a pele
de porcelana dela.

Seus longos dedos passaram pelo pescoço dela, contornaram


sua mandíbula, parando apenas quando encontraram seus lábios
vermelhos, que estavam semiabertos. Estaria ela chocada com o
toque íntimo, ofendida pelo fato de que uma verdadeira lady não se
permitiria ser tocada de tal maneira, ou desejando aquele toque
tanto quanto ele? Teria ela a força de que ele não dispunha para se
distanciar?

Os olhos dele deixaram os dela, examinando todos os detalhes


de seu rosto, de seu corpo. Os olhos dele escureceram-se ainda
mais ao perpassar pelo corpo dela, e ela o encarava de volta com
tal intensidade que ele quase a agarrou para tomar a sua boca ali
mesmo, naquele canto escuro do bosque.

— Lady Catherine? — A mulher estava bem perto agora.

— Vá! Agora! — ele nem se mexeu quando Catherine o


empurrou; só sorriu, seu sorriso perverso que geralmente a deixava
nervosa — Eu prometo, seu tolo idiota!
Satisfeito com a resposta e rindo da fraca tentativa de ofendê-lo,
Henrique aproximou seus lábios dos de Catherine. Ela prendeu a
respiração, esperando o contato, que não chegou. Ele parou no
meio do caminho, encarando os olhos dela, decidindo terminar sua
missão como um – quase – perfeito cavalheiro. Beijou-a no canto de
sua boca, naquela parte tão sensível de sua pele, esperando que
ela sonhasse com ele.

Obrigando-se a se afastar de Cahterine, saiu sem dizer outra


palavra.

Não sabia quanto tempo levaria, quantos obstáculos teria, quão


difícil seria convencer o pai de Catherine, mas de uma coisa ele
tinha certeza: ela seria sua.

Henrique acordou satisfeito; havia semanas não dormia tão bem.


Sonhou com sua bela Catherine, com seus lábios vermelhos, sua
respiração descontrolada, seu coração acelerado quando ele a
tocou, seus olhos cheios de paixão.

A noite anterior fora melhor do que ele esperava. Infinitamente


melhor. Eles não haviam trocado muitas carícias, e a jovem
certamente não estava tão receptiva aos seus toques quanto
estivera anteriormente, mas já era o suficiente para que Henrique
ficasse muito bem disposto. E tinha certeza de que a recente
amizade de Elena e Catherine também ajudaria seus planos.

Ele desceu alegremente pelas antigas escadas da abadia,


cantarolando uma melodia que aprendera com sua falecida mãe
quando ainda era uma criança. Não viu ninguém no caminho, mas
não estranhou até chegar à sala onde cosumavam tomar o café da
manhã. Estava deserta, sem comida servida. Havia se atrasado
tanto assim?

Por sorte, o mordomo da casa, Philip, que parecia saber de tudo


que acontecia na propriedade, passou por ele.
— Philip! — Henrique o chamou e ficou alarmado ao ver a
palidez do homem. — O que houve? Onde estão todos? Vim comer,
e não havia ninguém aqui.

— Perdoe-me, senhor — Philip respondeu, parecendo chateado


com a falha. — Passamos a manhã bem ocupados por conta... do
Sr. Teles.

— Sebastião? O que houve com ele?

Logo Henrique esqueceu-se da fome.

— Ele piorou, senhor. Agora tem febre, mal consegue falar de


tão rouco que está, e sua pressão está baixa. Robert foi até a
cidade buscar o boticário. A Srta. Teles está com ele, e a condessa,
desde essa madrugada... — Philip interrompeu-se a si mesmo, e
olhando para baixo, parecendo desolado, continuou: — A condessa
não descansa ou come desde ontem, senhor.

Henrique imediatamente teve uma ideia. Apenas uma pessoa,


além de Sebastião, conseguiria convencer Christine a descansar e
comer alguma coisa.

— Philip, poderia verificar com um dos ajudantes quem poderia ir


até Greenwoods House e pedir a Lady Catherine que venha? Acho
que ela poderá nos ajudar com a condessa.

Os olhos de Philip brilharam, e Henrique soube que teve a ideia


certa. Ele sabia que, apesar de não demonstrar muito, o mordomo
tinha muito carinho pela condessa e provavelmente estava mais
ansioso pela saúde dela e do bebê do que pela de Sebastião, algo
que ele compreendia e não julgava.

— Sim! — Philip concordou. — Eu mesmo vou até lá! Não


podemos perder nem um minuto sequer, Sr. Teles!


— O que houve? Onde está Christine? Como está Sebastião? E
Elena?

Quando Philip chegou a Greenwoods House, suando frio e


pálido como um cadáver, Lady Catherine soube que Christine não
estava bem. Temeu que tivesse algo a ver com o bebê, mas Philip
logo negou. Eles foram até a abadia com a carruagem dos pais de
Catherine. Daquela vez, a Sra. Smith teve de acompanhá-la, pois
seus pais estavam em casa e não permitiriam que ela fosse
desacompanhada até a casa da condessa de Fullerton.

Pela primeira vez, Catherine não se importou em ter a Sra. Smith


a tiracolo. A mulher, compadecida de sua preocupação, tentou
assegurá-la de que ficaria tudo bem, enquanto Philip explicava
sobre a doença repentina do novo marido de Christine.

Nem o mordomo nem a governanta ousaram dizer em voz alta,


mas Catherine conseguiu ver em seus olhos o medo que ela própria
sentia. Toda aquela situação lhes lembrava de outra doença súbita e
misteriosa: a doença que tirara a vida do conde de Fullerton.

— Não sei por que ela está tão preocupada, sinceramente —


Elena mencionou, sem notar que seu comentário fizera o sangue
drenar do rosto de Catherine. — Eu acredito que se trata de uma
gripe forte, combinada com algum tipo de intoxicação alimentar, algo
que não é incomum, considerando que ele acabou de se mudar
para um país com clima e comida bem diferentes daqueles a que
estamos acostumados.

Henrique tinha uma ideia da ansiedade da condessa. Porém, sua


irmã não estava em Backhan tempo suficiente para ter ouvido as
fofocas maldosas sobre a morte do conde. Ele próprio sabia muito
pouco; após a fatalidade, a condessa ficara tão desconfiada dos
empregados da abadia que demitiu quase todos, exceto por alguns
poucos de confiança. Mesmo aqueles que estavam no lugar na
época da tragédia evitavam falar do assunto, mas sempre
reiteravam como acreditavam na inocência da condessa de
Fullerton.

— Jamais vi uma esposa ser tão dedicada ao marido enfermo.


Eles se amavam de verdade. E o povo de Backhan tinha inveja
deles! — Robert, o cocheiro, oferecera como explicação para as
mentiras criadas sobre a condessa.

— Nunca vi uma viúva tão triste em toda a minha vida. Quem a


visse depois do ocorrido jamais ousaria acusá-la de ter qualquer
envolvimento com a morte do marido. Foi uma terrível tragédia,
apenas isso — disse Philip, o fiel mordomo do conde de Fullerton,
que também parecia certo da inocência de Christine.

E, para Henrique, bastava saber que seu irmão confiava nela.


Por isso, jamais procurou descobrir detalhes sobre a morte do
conde. Entretanto, sabia que Catherine era muito próxima a
Christine na época; deveria ter sentido na pele as dores da amiga.

— Acha que consegue animá-la um pouco, Lady Catherine? —


Henrique decidiu ser mais formal, por não saber como a dama
reagiria a ele na manhã seguinte ao encontro furtivo.

— Espero que sim, Sr. Teles.

Ele ficou decepcionado ao ser tratado com tamanha formalidade,


até que viu os olhos dela se enchendo de lágrimas. Naquele
momento, não queria nada além de confortá-la.

— Mas os sintomas de Sebastião são tão parecidos com os de...


Vocês sabem...

— Não, eu não sei — disse Elena, que tinha uma ruga entre as
sobrancelhas, sem entender a troca de olhares entre seu irmão e a
moça. — Do que está falando, Catherine?

— Bem, você já sabe que a condessa é viúva — Catherine


respondeu, cabisbaixa.
— Sim, sei do conde de Fullerton. Mas o que isso tem a ver com
o que está acontecendo?

As bochechas de Catherine ficaram rosadas, e seus lábios


começaram a tremer. Aflita por sua nova amiga, Elena repousou sua
mão sobre a de Catherine, desejando acalmá-la.

— Está tudo bem, querida. Apenas me explique o que está


acontecendo — perguntou a Srta. Teles.

— O conde de Fullerton adoeceu subitamente, e a causa de sua


morte jamais foi explicada.

— Sim, isso infelizmente ainda é bem comum. Muitas vezes não


conseguimos identificar — Elena tentou soar compreensiva.

Por conta de seu gênero, jamais se tornara médica, mas sempre


teve interesse na matéria, já que seu espírito era altruísta, e seu
maior prazer era ajudar os outros. Sempre que podia, auxiliava os
enfermos que não contavam com ajuda médica. Outras vezes,
apoiava os próprios médicos, quando requeriam assistência.

Nos últimos anos, vira diversas mortes por enfermidades


desconhecidas. Ainda assim, não explicava por que a condessa e
Catherine estavam tão ansiosas.

— Pois bem — a voz de Catherine era agora um sussurro, e


Elena teve que se aproximar mais para conseguir ouvi-la. — Os
médicos não têm certeza, mas alguns afirmam que o conde morreu
por envenenamento.

— Que terrível! Quem poderia tê-lo envenenado? Algum


inimigo?

Elena estava em choque. Jamais imaginaria uma história


daquelas em uma cidade tão pacata. Novamente, estranhou a troca
de olhares entre Catherine e seu irmão.
— Há suspeitos? — questionou a jovem portuguesa.

— Apenas uma, Elena — foi Henrique quem falou. —


Infelizmente, dizem as más línguas que nossa querida cunhada o
teria envenenado.

— Que maldade!

Elena estava exasperada. Podia conhecer Christine havia pouco


tempo, mas tinha convicção de que ela não cometeria assassinato.
Muito menos contra o próprio marido.

— Mas não é por isso que Christine está tão preocupada, Elena
— Catherine disse, as lágrimas rolando pelo rosto.

— E por que está assim então?

— Bem, quais são os sintomas que Sebastião apresenta


mesmo?

— Ele está com garganta seca, náuseas e febre. E, desde essa


madrugada, sua pressão está bem baixa. Por quê?

— Porque, até o momento... Esses sintomas são exatamente os


mesmos do conde.


Capítulo 15

“Não é o que dizemos ou pensamos que nos define, mas o que


fazemos.”

(Jane Austen)

Abadia de Kingsway, 29 de agosto.

O assobio assustador de criaturas sobrenaturais a acordou de


seu sonho maravilhoso.

— Droga! — ela xingou baixinho: nem sequer havia beijado Rico


em seus sonhos! Ou melhor, o alter ego dele, o Sr. Henrique Teles...

Cathy levou um tempo até perceber que o barulho que a


despertara era, na realidade, o forte vento passando pelas frestas
das janelas seculares. Depois da ventania, veio a chuva, batendo
ferozmente contra o vidro, parecendo ser forte o suficiente para
quebrá-lo e invadir o quarto de hóspedes.

Respirou fundo e voltou a fechar os olhos, repetindo um mantra


consigo: “Não há furacões aqui. Não há furacões aqui. Não há
furacões aqui. Não há furacões aqui”. Ela detestava a época de
tempestades na Califórnia, pois sempre gerava estragos, sempre
havia mortes.

As luzes dos relâmpagos que cortaram os céus foram tão claras


que as pálpebras de Cathy não foram capazes de proteger seus
olhos. Ela passou o cobertor por cima da cabeça, ficou em posição
fetal, esperando pelo inevitável estrondo. O trovão veio em seguida,
poderoso, ensurdecedor. A garota saltou da cama com o susto e
ficou consciente de que não voltaria a dormir tão cedo.

Colocou um roupão quente por cima da fina camisola rosa


rendada que havia comprado dias antes da viagem. Deixou o quarto
nas pontas dos pés. Elena e Henrique lhe haviam prometido mostrar
a mansão no dia seguinte, uma vez que chegaram muito tarde, mas
ela tinha quase certeza de que havia passado pela biblioteca da
qual o senador falara, no primeiro andar.

A escada de granito verde-escuro estava gelada sob seus pés,


fazendo o frio atingir sua espinha. Um novo trovão quase obrigou
Cathy a gritar, mas não poderia pagar um mico logo em sua primeira
noite na abadia.

Por sorte, alguns abajures espalhados pelos corredores estavam


acesos, permitindo que a jovem achasse, sem dificuldade, a porta
que procurava. Quando ela adentrou no espaço, suas suspeitas se
confirmaram: era, de fato, a biblioteca, e uma das mais belas que
Cathy conhecera. As estantes de livros cobriam todas as paredes,
exceto pelos espaços onde havia janelas, e eram feitas de uma
madeira escura que, àquela hora, parecia ser preta.

A escrivaninha era gigantesca: ia de um lado ao outro do


cômodo, quase ocupando todo o espaço em seu centro. Tinha
muitas gavetas em um dos seus lados, cada qual com uma cabeça
de leão entalhada, que servia como abridor. Sobre a impressionante
mesa de trabalho, havia um relógio digital, cujo estilo moderno
ficava estranhamente inadequado naquele ambiente, claramente
mobiliado séculos antes. A ruiva verificou que já passava das duas
da manhã.

Cathy deixou a porta entreaberta: uma lâmpada acesa bem do


lado de fora da biblioteca lhe oferecia a luz de que precisava para
achar algum livro na estante mais próxima. O cheiro do ambiente
era simplesmente inebriante. Aquele aroma de livros antigos era
convidativo. Era como se eles estivessem pedindo para ser lidos,
como se tentassem seduzir seus leitores a abri-los, descobri-los,
devorá-los.

Seria mais fácil escolher uma estrela favorita no céu do que


apenas uma obra entre tantas. Então, Cathy simplesmente pegou o
primeiro livro a seu alcance, cuja capa de couro vermelho
desgastado e título escrito em um elegante tom de dourado logo
chamaram a sua atenção.

Um novo trovão, que parecia ainda mais poderoso do que os


anteriores, a obrigou a se alojar debaixo da escrivaninha. Seu lado
racional lhe dizia que aquele gesto era uma estupidez, que um
trovão do lado de fora jamais poderia machucá-la ali dentro.
Infelizmente, quem ganhava aquela batalha era seu lado medroso,
que desejava a presença de Rico para confortá-la.

Como se suas preces tivessem sido ouvidas, Cathy escutou a


voz de Henrique se aproximando. Estaria chamando por ela? A
ruiva estava prestes a sair de seu esconderijo para se jogar nos
braços de seu herói quando notou que ele não estava sozinho.
Estava com o senador. E parecia que estavam brigando.

Como a heroína destemida que era, Cathy voltou correndo para


seu refúgio, rezando para que não a descobrissem.

Quanto mais seu pai negava, maior a certeza de Rico de que


havia algo errado. Ele já estava de mau humor antes de ouvir
acidentalmente a conversa suspeita do pai ao telefone. Afinal de
contas, aquela maldita tempestade havia interrompido um sonho
maravilhoso com uma bela ruiva de olhos grandes e lábios perfeitos.

Porém, quando percebeu que o pai conversava com um


advogado no Brasil, preocupado com uma investigação da Polícia
Federal, Henrique decidiu finalmente confrontá-lo. O senador, como
sempre, ofereceu respostas evasivas, tão vazias e falsas quanto
seus discursos. Como bom político, era um mentiroso nato e usava
suas técnicas de manipulação contra os próprios filhos.

Desta vez, Henrique não se deixaria ser enganado. Seguiu o


senador até a biblioteca, enchendo o homem de perguntas, cada
vez mais diretas e acusatórias.
— O que a Polícia Federal tem contra você agora?

— Como ousa falar assim com seu próprio pai?

— Como ousa mentir para seu próprio filho?

— Você está me chamando de mentiroso? Quem você pensa


que eu sou?

— Você é um mentiroso. Nada sobre a sua pessoa é verdadeiro.


Seu nome, suas promessas, nem o seu rosto é verdadeiro.

— Acho melhor você parar de me acusar assim! A menos que


tenha provas!

— Posso não ter agora. Ainda. Mas já li o diário de mamãe. Sei


exatamente o que você fez. O que sua família fez. Sei exatamente
por que fugiu do Brasil, quando éramos pequenos. E,
principalmente, sei o que você fez com mamãe.

Ao ver o sangue fugindo do rosto do senador, Henrique percebeu


que tinha a vantagem. Foi até a cadeira da escrivaninha, sentando-
se com a maior calma possível. Coincidentemente, um trovão
estrondoso foi ouvido no mesmo momento. E Henrique podia jurar
que ouvira, também, um gritinho abafado.

Enquanto o pai se distraía com seus próprios pensamentos,


provavelmente elucubrando uma nova mentira para justificar ao filho
o que ele lera nos cadernos da mãe, Henrique passou os olhos
pelos cantos do cômodo, procurando pela dona da voz que já lhe
era tão familiar.

Levou alguns segundos até encontrar sua pequena mão


embaixo da escrivaninha. Sem pensar duas vezes, encostou a
cadeira na escrivaninha, suas longas pernas pressionando Cathy
contra o fundo da mesa.

— Ai! — ela gemeu alto.


— Você disse algo? — o senador parecia desconfiado.

— Não. Estou cansado. Continuamos essa conversa amanhã —


Henrique disse, firme. Era uma afirmação, não um convite.

— Vou responder às suas perguntas amanhã, mas quero uma


resposta em troca.

Henrique não queria parecer fraco, especialmente agora que


conseguira enfrentar o pai. Mas havia um problema (muito mais
agradável, por sinal) que precisava resolver com urgência. Por isso,
foi obrigado a balançar a cabeça afirmativamente.

— O que há entre você e Catherine?

— Não é da sua conta — Henrique nem piscou ao falar, apesar


de o interesse do pai tê-lo pego de surpresa.

— Você vai apenas decepcionar a moça. Ela parece ser uma


boa garota, mas muito ingênua. O que acha que acontecerá a ela
quando você retornar ao Brasil e voltar com Letícia? Catherine ficará
arrasada! Nenhum de vocês precisa passar por esse
constrangimento.

— E o que faz você pensar que voltarei a namorar Letícia?

— Henrique, é sempre assim: vocês terminam e, um tempo


depois, retomam o juízo e voltam. Espero apenas que, da próxima
vez que voltarem, você tenha consciência e peça logo Letícia em
casamento. Sabemos que esse é o seu futuro mesmo...

— Pois saiba que não tenho qualquer intenção de voltar com


Letícia.

— Por quê? Por causa de uma garotinha boba?

— Não fale assim de Cathy! — Henrique esmurrou a


escrivaninha, esquecendo-se de que o objeto da discussão estava
ali embaixo. Assustada, Cathy agarrou suas pernas, pedindo-lhe,
silenciosamente, para deixar para lá.

— Qual é o seu problema? Perder sua cabeça assim por uma


garota que mal conhece?

— Mal conheço? Há poucas pessoas no mundo que conheço tão


bem quanto Cathy. E há ainda menos pessoas no mundo que me
entendem como ela. Esse é o problema de homens como você.
Vocês resumem as pessoas a um currículo, ao nome de suas
famílias, ao tamanho da conta bancária. Para mim, o que vale é o
que está no coração, nas ações, no caráter. E posso lhe garantir
que jamais conheci, exceto por Elena, uma mulher tão bondosa
quanto Cathy. Sim, ela é inocente. Mas a inocência não deveria ser
uma característica a ser menosprezada, e sim valorizada, pois é tão
rara nos dias de hoje... A pureza do coração é uma dádiva em um
mundo repleto de crueldade e mentiras. Portanto, não considero
Cathy tola por ser inocente. Considero-a um milagre em minha vida
exatamente por isso.

— Merda — seu pai disse quase para si mesmo, deixando a


biblioteca —, você está apaixonado por ela...

De repente, a tempestade foi esquecida. As batidas de seu


coração eram tudo o que conseguia escutar. O senador achava que
Rico estava apaixonado por ela? Escutara bem? Poderia ser
verdade?

E quem era a tal de Letícia?! Cathy descobriria, com certeza.

Antes que pudesse refletir melhor sobre a briga que


testemunhara, sentiu as pernas de Rico afastando-se, sendo
substituídas pelo rosto dele.

— Seus pais nunca lhe ensinaram que é feio ficar escutando


conversas alheias?
— Eu... — ela começou, mas não sabia como continuar.

O lábio inferior de Cathy ficou trêmulo, suas bochechas estavam


mais quentes que um vulcão, seus olhos arregalavam-se cada vez
mais. O que ela poderia dizer? Como poderia explicar? Depois da
discussão que testemunhara, dos segredos que escutara, das
acusações trocadas, ela não sabia o que dizer.

— Por outro lado, sua falta de educação até que veio a calhar...
— Rico disse, com olhos famintos e um sorriso ameaçador
aparecendo em seus lábios.

Cathy limpou o suor das mãos no roupão que vestia.

— Sabe com que eu estava sonhando antes de essa tempestade


insuportável me acordar?

Mas ele não respondeu. Muito menos deixou Cathy tentar


adivinhar. Em vez disso, passou a demonstrar com o que sonhara.

Agarrou a escritora pelos calcanhares, arrancando-a de seu


esconderijo, posicionando-a sobre o tapete de pele atrás da
escrivaninha. Desamarrou o roupão da jovem em menos de um
segundo, revelando suas belas pernas, seu delicado busto e uma
camisola rosa toda rendada...

— Ah, Cathy. Estou achando que você usa essas roupinhas só


para me provocar...

Ela não poderia estar mais vermelha. Sua gargalhada ressoou


pelo cômodo, mais alta que a violenta tempestade. Sua risada
estampava todos os seus sentimentos: nervosismo, timidez, alegria
e, principalmente, vontade de ser tocada, beijada, desejada por
Rico.

Henrique fez uma trilha de beijos que começou pelos dedos de


Cathy. Ela sentiu sua pele formigando onde os lábios dele a
tocavam. Passou pela palma de sua mão, explorando por um bom
tempo a parte interna do pulso dela. Rico beijou seu antebraço, seu
ombro, sua clavícula. Quando sentiu a língua dele em seu pescoço,
Cathy ficou completamente arrepiada.

As pernas dela rodearam o quadril dele, trazendo-o para próximo


de si, no mesmo momento que ele segurou a cintura dela com
ambas as mãos, como se ela fosse considerar uma fuga daquele
paraíso. Enquanto Rico continuava a investigar cada milímetro de
seu pescoço, Cathy, sentindo uma ousadia que não pertencia a ela,
colocou as mãos por baixo da camisa dele, acariciando suas costas,
levando-o a gemer alto.

Os lábios dele passaram para o rosto dela, beijando


delicadamente suas bochechas, seus olhos, seu nariz, os cantos de
sua boca e... só. Depois de aguardar, impacientemente, mais alguns
momentos, a jovem abriu os olhos, encarando Henrique com o ar
mais irritado possível.

— Ué, Cathy. Por que está fazendo essa cara? — ele comentou,
o cinismo claro em seu tom de voz.

Continuou, sussurrando no ouvido dela:

— Quer que eu a ataque? Então vai ter que implorar...

Ela não implorou. Nem esperou a reação dele. Tirou a mão das
costas de Rico e a usou para puxar o pescoço dele para si. Se ele
se recusava a atacá-la, então seria ela quem iria fazê-lo.

Parecia ser impossível, mas o segundo beijo foi ainda melhor


que o primeiro. Cathy agora conhecia o ritmo de Rico, e eles já
começaram em perfeita sincronia. Em poucos segundos, o beijo já
era profundo, o mundo havia sumido, havia apenas os dois. Corpos
entrelaçados, o movimento das respirações cada vez mais
acelerado, quatro mãos perdendo-se em carinhos mútuos.

De repente, a fome de Rico por mais de Cathy se tornou


irresistível. Suas mãos passaram a acariciar as coxas dela,
agarraram a barra de sua camisola, levantando-a lentamente.
Quando o vestido rosa já estava na cintura, um barulho de explosão
assustou-os.

Olharam em volta e notaram que a única fonte de luz vinha da


janela. Acabara a energia da mansão. Em poucos minutos, ouviram
passos pelos corredores: todos na casa haviam acordado.

— Parece que fomos interrompidos mais uma vez — ele


continuou, encarando-a com um olhar sedutor. — Mas tenha certeza
de que não vou desistir.

Seguiram até o quarto dela despercebidos. Quando já estavam à


porta, Rico lhe fez um pedido, antes de lhe dar um leve beijo de boa
noite.

— Poderia esquecer o que ouviu durante a discussão com meu


pai, Cathy?

A ruiva apenas lhe ofereceu um tímido sorriso, tudo que era


capaz de fazer naquele momento. Ele se deu por satisfeito e, sem
qualquer vontade de fazê-lo, deixou-a. Cathy fechou a porta
satisfeita e certa de duas coisas: ela e Rico teriam muitos outros
momentos como aquele; e, a partir do dia seguinte, ela começaria
uma investigação sobre o senador Tilney.

A jovem escritora fechou os olhos, e o sono que lhe havia


escapado agora voltava com força total. Outro sonho invadiria sua
mente. Porém, desta vez não seria tão agradável...

A grama estava úmida, consequência da chuva de momentos


antes. O cheiro de mata molhada era delicioso, e Cathy passou
alguns momentos ali, parada, com os olhos fechados, inspirando o
ar limpo, quando ouviu gritos.
De repente, notou onde estava: no bosque próximo à abadia.
Mas não conseguia enxergar a construção. Sabia também de onde
vinha o pedido de socorro, contudo não tinha ideia se a abadia
estava na mesma direção. Era uma noite escura, as estrelas
estavam invisíveis, escondidas sob as nuvens, e a lua minguante
quase não podia ser vista entre as árvores.

Correu. Ouviu corujas, viu esquilos, espantou insetos que


insistiam em voar perto de seu rosto. Correu. Sentiu alguns pingos
de chuva, percebeu que a temperatura caíra; mesmo assim, as
gotículas de suor surgiram em sua testa. Correu. Os gritos pareciam
se aproximar cada vez mais, e Cathy finalmente questionou se
deveria estar indo tão confiante para o que poderia ser uma
armadilha.

Parou bem no limite das árvores e viu uma mulher agachada, de


costas para ela, usando um longo vestido branco, bem no meio da
clareira, ao lado de uma roseira. Um aroma irresistível de rosas
atingiu Cathy. Considerando que a mulher misteriosa não se tratava
de uma ameaça, foi até ela, constatando, ao se aproximar, que a
pessoa tremia fortemente.

Seus longos cabelos castanhos estavam soltos, quase


selvagens, como se não fossem escovados por muito tempo,
brilhando à pouca luz da lua. Seu rosto era belo, mas pálido, e ela
encarava Cathy com olhos desesperados.

— A senhora está bem? — a jovem californiana questionou,


delicadamente.

Não desejava assustá-la. A mulher negou, movimentando a


cabeça de um lado para o outro.

— A senhora está machucada?

— Por favor, salve-me — a mulher disse, sua voz tão baixa


quanto a leve brisa que passava por elas. — Ele vai me destruir.
— Quem vai destruir você? Salvá-la de quem? — Cathy segurou
o braço da mulher, ajudando-a a levantar-se. Ficou preocupada com
a frieza da pele dela.

— Salve-me. Dele.

Lentamente, a mulher levantou o braço, indicando uma janela no


terceiro andar. Havia um homem encarando-as. Cathy apertou os
olhos até reconhecê-lo: era o senador Tilney.

Abadia de Kingsway, alguns anos antes...

Ela deixara sua vida para trás por ele. Sua família, sua casa, seu
país. E para quê? Adorava a abadia no verão, quando a
temperatura era agradável e as centenas de turistas que visitavam o
local diariamente a faziam esquecer-se de como a propriedade
podia ser solitária e fria no inverno.

E a solidão piorava a cada dia. Primeiro foram os filhos, que


passavam a semana na escola em St. Andrews, ficando na mansão
dos pais apenas aos finais de semana.

Depois foi o próprio marido, que no início ainda se esforçava


para manter a cama do casal devidamente aquecida, sua esposa
alegremente apaixonada, a família unida. Porém, aos poucos, as
desculpas começaram, e ele foi sumindo da vida dela, tornando-se,
ao longo dos anos, quase um estranho.

E o que Lana mais temia aconteceu. Ou melhor, voltou a


acontecer: as traições. Ele prometera, quando deixaram São Paulo
em um outono tanto tempo antes, que seria um marido melhor na
Escócia. E fora, por um tempo. Mas, pouco a pouco, ia perdendo —
novamente — o interesse na esposa, tendo olhos apenas para
mulheres muito mais jovens.
Para piorar, sua discrição desaparecia à medida que se tornava
claro que o casamento estava terminado. O que mais machucava
Lana era o fato de o marido nem sequer fazer questão de esconder
suas amantes dos filhos. Rezava para que eles fossem ingênuos o
suficiente para não entender o que se passava.

Após alguns anos de casamento infeliz, quando o marido ficava


quase o ano inteiro em Londres, com suas amantes, Lana decidiu
que era hora de restabelecer contato com seu único irmão. Não
falava com Carl havia anos, mas esperava que ele a perdoasse.

— Deveria ter lhe escutado... — ela repetiu diversas vezes para


o irmão, quando ele passou um verão inteiro na abadia, com a
esposa e a filha, Sara.

— Abandone-o, Lana. Você ainda é jovem, tem propriedades,


administra com zelo seus bens — ao menos nisso Lana tinha sido
inflexível: o marido não tocava em um centavo dela sem sua
expressa autorização — e tem três filhos maravilhosos. Para quê
precisa dele?

De fato, ela não precisava. Entretanto, havia alguma força


sobrenatural, um magnetismo irresistível que sempre a obrigava a
perdoá-lo. Apenas quando descobriu a mentira que ele contara,
sobre a verdadeira razão da fuga deles do Brasil, que a palavra
divórcio foi verdadeiramente plantada em sua mente e em seu
coração.

Infelizmente, Lana nunca teve tempo de colocar sua decisão em


prática. Pois, a partir do momento que começou a desvendar o
mistério que rodeava a família do marido, teve início seu fim.

Abadia de Kingsway, 1º de setembro.

A confusão gerada pela tempestade finalmente começara a se


apaziguar. A energia fora restabelecida, e os moradores da mansão
voltavam à sua rotina habitual. Para Cathy, era um grande alívio.
Sem os irmãos para distraí-la (pois estavam ocupados em garantir
que teriam energia o quanto antes), sem acesso à internet (somente
em St. Andrews teria esse privilégio, algo que quase fez Cathy voltar
correndo para Londres quando descobriu), a ruiva tinha apenas o
sonho de noites anteriores para lhe fazer companhia.

Tentava justificar o que vira. Sobre a mulher misteriosa, ficou


claro que se tratava da mãe de Rico e Elena, Lana. Mas como ela
reconheceu o rosto de alguém que nunca vira? Havia uma foto da
mulher logo no saguão de entrada da mansão, e a imagem
provavelmente ficara em seu inconsciente, pois passara por ela em
sua primeira noite na abadia.

E o bosque? Após muita reflexão, Cathy lembrou-se de um


comentário de Elena, quando se aproximaram da propriedade,
sobre a paixão de sua mãe pelas trilhas daquele bosque.

Por último, o mistério mais fácil de ser solucionado. Por que


Lana, em seu sonho, estava com medo do marido? Provavelmente
foi por causa da discussão entre Rico e o pai que Cathy escutara
momentos antes de dormir. As acusações feitas por Henrique eram,
no mínimo, preocupantes, e decerto impressionaram a moça a
ponto de surgir em seu sonho.

Mas nada conseguia explicar como a jovem escritora sabia da


roseira bem do meio da clareira, com vista para as janelas da suíte
do senador. Apesar de estarem hospedados no segundo andar, em
quartos relativamente próximos, o cômodo dele ficava do lado
oposto do dela, e ambos tinham vistas diferentes. Ademais, Cathy
tinha certeza de que não havia visitado a roseira do jardim até
aquela manhã, quando Elena a convidou para uma caminhada ao
redor da propriedade.

— Este era o lugar favorito de mamãe na abadia — comentou


Elena, sem perceber que sua amiga estava perdida em seus
próprios pensamentos.
Era a primeira vez que Elena mencionava sua mãe para a jovem
americana. Apesar da surpresa, a visitante aproveitou a menção
para se aprofundar melhor naquele tópico.

— Entendo porque ela gostava deste local. É lindo. E o aroma


dessas rosas é simplesmente indescritível. — E Cathy continuou
quando notou que Elena sorria com uma expressão de nostalgia: —
Sente muito a falta dela, não é?

— Demais. Embora eu fosse muito jovem quando ela faleceu,


mamãe sempre foi muito presente, muito próxima. Às vezes, sinto
uma vontade enorme de contar para ela alguma coisa que
aconteceu comigo ou de pedir um conselho. Ela era daquele tipo de
pessoa com quem era tão fácil conversar, se abrir... E quando ela se
foi... Foi tão de repente, nem pude me despedir. Eu estava no Rio,
na casa dos pais da Sara... Cheguei a tempo para seu funeral, pelo
menos...

— Nossa, que terrível. Mas ela teve uma doença grave ou algo
assim?

— Foi um mal que até hoje não consigo explicar. Acho que
ninguém jamais conseguirá. O mais estranho é que ela teve uma
consulta com um médico muito próximo a nós duas semanas antes.
E ele não notou nada de diferente...

Cathy podia ver que Elena estava agora à beira das lágrimas.
Então decidiu mudar de assunto, apesar de se manter,
indiretamente, no mesmo tópico.

— Por que você e Rico usam o sobrenome Teixeira, não Tilney?


Preferem usá-lo por ser da família de sua mãe?

— Na realidade, é o contrário. Por mais estranho que pareça,


Teixeira é o nome da família de meu pai. Tilney é da família de
mamãe. Ele adotou o sobrenome dela quando viemos para a
Escócia. Acho que tem alguma coisa a ver com a família dele, que
mexia com política no Brasil, e tinha um histórico complicado, sabe?
Ele me diz que não era justo ter fama ruim por coisas erradas que
seus parentes fizeram. Tinha medo de que isso pudesse prejudicar
a carreira política dele.

Acidentalmente, Cathy acabara de descobrir muitas informações


que a ajudariam em sua investigação sobre o senador Tilney. Fez
anotações mentais para que pudesse pesquisar mais a fundo
quando fossem a St. Andrews. Mais uma razão para acessar a
internet.

— E como está James? Tem falado com ele?

Cathy estranhou um pouco a mudança abrupta do rumo da


conversa, ainda mais quando notou que havia preocupação no
semblante de Elena. Por que estaria preocupada com seu irmão?

— Ele está bem, acho. Tem me enviado algumas mensagens e


fotos, mas acredito que está um pouco ansioso com o retorno aos
Estados Unidos. Afinal de contas, nunca morou com uma mulher
antes.

A fala de Cathy fez a linha no meio da testa de Elena se


aprofundar ainda mais. O que estava acontecendo?

— E a namorada de seu irmão, Bella? Alguma notícia dela?

— Apenas palavras monossilábicas, para dizer a verdade... Mas


ela deve estar muito ocupada, se preparando para a mudança... —
Cathy afirmava aquilo para si mesma, com o intuito de não pensar
muito nas razões que poderiam justificar a frieza abrupta com a qual
Bella a vinha tratando recentemente.

Preferia acreditar que Bella estava com muitos afazeres. Não


desejava pensar na possibilidade da distância estranha dela ter
alguma coisa a ver com a perda de interesse em Cathy... Muito
menos em seu irmão.
Elena estava formando uma nova pergunta em sua mente, mas
foi interrompida pelo toque do seu celular. Ela e Cathy já haviam
saído da clareira e se encontravam dentro do bosque. Temendo que
a amiga se perdesse, indicou a ela o caminho de volta e lhe pediu
que a esperasse na roseira.

Adivinhando que quem estava ligando era o namorado secreto


de Elena, Cathy rapidamente pegou a trilha em direção à mansão,
sem questionar a amiga. Levou apenas dez minutos para chegar à
clareira, mas a imagem que viu a paralisou.

Agachada, em frente à roseira, havia uma mulher, toda de


branco. Apenas uma pequena mecha de seus cabelos castanhos
estava visível, pois ela usava uma máscara. Cathy tentou retornar
silenciosamente para a proteção das árvores, mas um galho estalou
sob seus pés, fazendo a mulher notar a presença de Cathy.

Droga!

A mulher levantou-se e começou a caminhar na direção da


jovem, murmurando algo incompreensível. A ruiva ficou lá, imóvel,
como se os pés tivessem criado raízes, as mãos úmidas e a testa
suada. Se ela gritasse, Elena ouviria?

“Deixa de ser ridícula, Catherine Murray!”, seu lado racional


esbravejou, impaciente com o seu medo crescente. “Foi apenas um
sonho, Lana está morta!”, sua razão continuava a lhe gritar, no
fundo de sua mente, até que Cathy começou a se acalmar um
pouco. Porém, o pouco de racionalidade que ela tinha evaporou
quando viu uma faca gigante na mão da mulher misteriosa.

— AHHHHHHHHHHHHHHH! — o grito saiu de sua garganta,


descontrolado, desesperado, irracional e absolutamente covarde.

Elena veio correndo, o rosto repleto de preocupação, agarrando


Cathy pelos ombros, perguntando-lhe o que aconteceu.
Antes que a escritora respondesse, a mulher assassina tirou a
máscara e revelou... o rosto mais simpático que Cathy já vira na
vida. Falou, com seu forte sotaque escocês:

— Está bem, querida? Perdoe-me, não queria assustá-la. Estava


aparando a roseira.

Quando ela mencionou isso, Cathy enfim percebeu que a faca


em sua mão era, na realidade (e para seu absoluto vexame) uma
tesoura de jardinagem.

— Não acho seguro vocês duas andarem por essas partes sem
proteção. Tenho visto muitas abelhas por aqui. Elas já picaram a
cozinheira e o outro jardineiro. Eu tenho alergias e por isso acho
melhor me proteger quando venho cuidar das rosas — completou a
mulher mascarada.

Se houvesse um buraco por perto, Cathy estava certa de que


sua cabecinha de vento já estaria bem enterrada nele... A vergonha
foi tanta que não conseguiu encarar Elena pelo resto da manhã.
Precisava conversar com alguém sobre seu sonho, admitir suas
suspeitas. Certamente, essa pessoa não poderia ser ninguém
daquela casa.

Ansiosa por uma voz amiga que não fosse da família Teixeira-
Tilney, Cathy ligou para o irmão. Ele não atendeu, o que era muito
raro. Lembrou-se da preocupação estampada na testa de Elena
quando lhe perguntou sobre James e Bella e ficou curiosa para
saber o que estava acontecendo em Londres naquele momento.

Londres, 1º de setembro.

Sara estava feliz e ansiosa com a viagem aos Estados Unidos.


Era a primeira vez que fariam uma viagem internacional como um
casal, sem a sua equipe técnica ou os assessores bajuladores de
Krista.
Durante os primeiros dias de viagem, sua noiva teria que
participar de alguns coquetéis, eventos e lançamentos de livros,
mas, a partir da segunda semana, seriam apenas as duas.

O barulho dos carros presos no engarrafamento não incomodava


Sara. Ela mal sentia a leve — e ininterrupta — chuva gelada. Muito
menos reparava no cheiro de poluição do ar.

Para Sara, havia apenas o aroma das flores que ainda


desabrochavam, as pessoas que lhe davam bom dia ao passar, as
lojas de rua lotadas, os turistas sorridentes e maravilhados, os
prédios antigos misturando-se aos modernos. E, finalmente, seu lar,
doce lar.

Abriu a porta arqueada de carvalho enquanto a admirava,


cantarolando uma canção de Vinícius de Moraes. A vida não
poderia ser melhor, pensava Sara. Mal sabia o quanto estava
enganada.

— AHHHHHHHHHHHHHHHH!

O grito foi gutural, quase animalesco. Mesmo assim, não


expressava o pânico e nojo que Sara sentiu ao ver aquela cena.

— Que bosta! O que vocês estão fazendo?!

— Sara, posso expli...

— Em cima do meu sofá, Fábio? — ela interrompeu, antes que o


primo pudesse concluir a frase. Como poderia explicar o fato de que
estava seminu com uma mulher igualmente com pouca roupa, em
uma posição inconfundível?

— Sara, posso apenas...

— Como ousa se agarrar com essazinha no meu sofá?! — ela


continuou, ignorando (ou sem se preocupar) que a “essazinha”
estava bem na frente dela, ouvindo a discussão. — Onde eu assisto
à TV com Krista? Onde me reúno com minha equipe? Onde eu tiro
umas sonecas?! NUNCA MAIS VOU USAR ESSE SOFÁ!

— Calma, não precisa...

— NÃO ME MANDE TER CALMA! Seu desgraçado! Era o meu


sofá favorito! E é de couro legítimo! Vai ter que me dar outro igual!

— Prima querida, com certeza lhe darei outro sofá de presente.


Mas não será de couro legítimo. Você sabe que sou absolutamente
contra couro legítimo.

Ele sabia. Conhecia Sara. Testemunhara suas explosões. Tinha


consciência de que não poderia fazer uma piada. Não naquele
momento. Mas as palavras lhes escaparam antes que pudesse
segurá-las. O rosto da prima ficou vermelho, sua boca contorcia-se
loucamente. Ela parecia alguém prestes a ser internada em um
hospício.

— SEU FILHO DA P...

— Sara, minha saudosa mãezinha não lhe fez qualquer mal. Por
que ofendê-la?

— SEU BABACA MAL-AGRADECIDO! SEU ESCROTO!

— Ah, Sara... Realmente precisa mencionar meu sistema


digestivo? — ele simplesmente não conseguia parar! Será que não
tinha amor pela própria vida?

A raiva de Sara chegou ao ápice. Alguns xingamentos ofensivos,


os quais a autora se recusa a incluir nesta obra, passaram pela
cabeça de Sara. Em português, espanhol, francês e, finalmente,
inglês. Se desejasse, Sara poderia escrever um dicionário
multilinguístico de xingamentos.

Porém, com a raiva em seu ápice, ela não era mais capaz de
falar, gritar, ofender ou acusar. Assim, restou-lhe apenas uma coisa
a fazer: pegar todo e qualquer objeto a seu alcance e jogar contra
seu primo e contra a traíra que estava com ele.

— Sara, não vou pagar pelo estrago que você está fazendo... —
ele disse, seguro atrás do sofá com a “essazinha”, a qual estava, ao
contrário de Fábio, aterrorizada.

O novo insulto do primo apenas deixou Sara mais enraivecida.


Jogou porta-retratos, vasos e até a pobre da samambaia contra ele.
Somente parou quando um copo de vidro atingiu o braço de Fábio,
causando-lhe uma sangrenta ferida.

— Você mereceu — Sara comentou entredentes, enquanto fazia


um curativo em Fábio, minutos mais tarde. — No que você estava
pensando?

Nada. Nenhuma palavra. Nenhuma piada. Ele baixou os olhos e


disse baixinho para ela a fim de que a “essazinha” não escutasse.

— Acredite em mim, prima: fiz um favor para o rapaz.

— Então você vai ter que contar para James e Cathy. Você e
essazinha.

— Então vamos contar — disse Bella Thorpe (também


conhecida como “essazinha”). — Não fizemos nada de errado, Sara.
Estamos apaixonados.

— Queridinha — Sara começou, as narinas tão dilatadas quanto


seus olhos —, não sei o que você sente por Fábio. Até porque, não
sei se você é capaz de sentir algo. Mas uma coisa eu posso lhe
garantir: meu primo não está apaixonado por você.


Capítulo 16

“Onde há predisposição para antipatia

jamais faltará motivo.”

(Jane Austen)

Beckhan, setembro de 1813.

— Condessa, a senhora precisa dormir! Por favor!

Christine sabia que a voz era familiar, mas não conseguia se


lembrar de quem era.

A cada novo dia, sua memória ficava mais fraca. Ela ficava mais
fraca. Só o que importava era ele. Seu marido. Que estava havia
dias preso à gigantesca cama de dossel no quarto dele. Parecia tão
pequeno e frágil, com uma palidez e um fedor que lembrava morte a
Christine.

Nem parecia o homem ativo e forte por quem se apaixonara. A


última vez que ele abrira os olhos tinha sido dois dias antes. Desde
então, Christine não deixara seu lado nem para se refrescar. Talvez
não fosse uma vontade consciente, mas, se seu marido morresse,
uma parte dela queria que ele a levasse consigo.

— Não vou deixá-lo — ela respondeu.

Quando uma mão pressionou seu ombro, ela se virou para


encarar quem a incomodava. Era uma das ajudantes da cozinha,
Jenny. Depois que a cozinheira da abadia os abandonou, e a Sra.
Wilson foi atacada por um louco e perdeu a visão, a jovem Jenny
acabou sendo obrigada a cuidar de todos os afazeres daquela parte
da casa com a ajuda de pouquíssima gente.
Àquela altura, poucos ainda não haviam abandonado a abadia
por medo da “maldição” de que tanto se falava ou tinham sido
demitidos pela condessa, que desconfiava de todos. Jenny, Robert e
Philip foram três de um pequeno grupo que continuava a trabalhar
freneticamente na propriedade.

— Precisa comer algo. E descansar — a moça insistiu, falando


bem baixo para não despertar o doente. — Prometo que não sairei
do lado do conde enquanto a senhora não retornar, condessa.

— E se você precisar comer ou dormir? — Christine queria ter


certeza de que o marido não seria deixado sozinho nem um
momento sequer.

— Pode ficar despreocupada, condessa. Caso eu precise me


ausentar, Robert ou Philip ficarão no meu lugar. Eles estão à
disposição do conde. Todos estamos à disposição do conde — a
moça concluiu em sussurros, cabisbaixa.

Ela tinha os olhos grudados nos pés e o rosto parcialmente


bloqueado por algumas mechas escuras que se soltavam de sua
touca. Ainda assim, Christine pôde ver as bolsas escuras embaixo
dos olhos de Jenny. Pobre, menina! Não deve ter nem dezoito anos
e está assim por minha causa! Estou deixando todos exaustos!, a
condessa pensou, sentindo-se culpada.

Sem mais argumentos, deixou o cômodo do marido com o


coração apertado e um breve aceno a Jenny, dirigindo-se à cozinha
para comer algo. Apenas conseguiu engolir alguns pedaços de pão
e de queijo com a ajuda de muitos goles de vinho. Em seguida,
retornou ao seu aposento, onde se banhou com água fria e se jogou
sobre a cama apenas com um chemise fino e um pouco molhado,
deixando-se perder na escuridão de um sono necessário.

Christine não sabe por quanto tempo dormiu. Uma hora? Doze?
Quarenta e oito? Somente sabe quem foi acordá-la: Robert, o
cocheiro. Seu rosto estava úmido com suas lágrimas, e Christine
logo soube que algo ocorrera.

Correu até o quarto do marido, mal notando o cheiro de


putrefação ou a presença de Philip, Jenny e outros escassos
empregados ali, sem se importar com o que vestia, e jogou-se sobre
o corpo sem vida do conde de Fullerton, o amor da sua vida.

Por longos minutos, Christine o sacudiu, o chamou, lhe implorou


para que voltasse. Nada funcionou. Alguém colocou um roupão por
cima dos ombros dela, mas a condessa nem notou quem o fez. Com
os olhos embargados pelas lágrimas e o coração despedaçado, a
agora viúva deixou a abadia decidida a acabar com a própria vida.

Foi até a ponte de madeira e encarou a escuridão profunda das


águas abaixo dela. Era noite? Somente agora ela reparava naquele
detalhe; era noite, porque as águas estavam negras. E chovia. Sim,
ela sentia a chuva contra seu corpo. Que forma mais perfeita de se
entregar à escuridão! Nunca mais precisaria sentir aquele vazio
deixado pelo seu grande amor.

— Christine! O que está fazendo? — alguém a chamou, mas a


mulher mal escutou. — Christine!!!

Veio o berro novamente, desta vez mais próximo. A condessa


estava prestes a virar-se para ver quem era, mas deparou com o
rosto do marido na superfície das águas tormentosas abaixo de si.
Ele lhe sorria, queria que ela pulasse.

— Desça agora!

Christine conhecia a dona daquela voz? Por mera curiosidade,


nada mais, virou o pescoço lentamente na direção da moça que lhe
gritava. Mal conseguia vê-la. Pouco se importava também. Aqueles
cabelos ruivos deviam significar alguma coisa para ela? Em outra
vida, talvez. Não agora.
Voltou o rosto para o rio que passava abaixo da ponte e logo
sentiu que alguém a puxava para trás. Caiu sobre um corpo macio e
gelado, e, de repente, parecia ter saído de alguma espécie de
estado hipnótico. A moça saiu debaixo dela e começou a sacudi-la
pelos ombros.

— Christine! O que houve?

A condessa levou longos segundos para reconhecê-la.


Catherine?

— O conde... Edward... Ele... Ele...

Ela não conseguiu terminar a frase. O choro e os soluços a


impediram.

— Por que você fez isso, querida Christine?

Christine já não sabia mais do que Catherine estava falando,


então respondeu aquilo que sentia, aquilo que mais a machucava
naquele momento.

— É minha culpa! Ele morreu, e é minha culpa!

Sim, ela o havia abandonado quando ele mais precisara dela. E


agora estava morto.

Beckhan, setembro de 1815.

— Condessa, a senhora precisa dormir! Por favor!

Christine sabia a quem pertencia a voz, mesmo sendo falada em


sussurros. Mas não importava. Daquela vez, não seguiria os
conselhos ou apelos de ninguém. Somente deixaria aquele quarto
quando Sebastião saísse da cama. Não abandonaria o marido.
Desta vez, ela ficaria com ele até o fim, mesmo que isso
significasse o seu próprio.

— Com certeza foi ela. Matou o primeiro e agora matará o


segundo marido — alguém sussurrou.

— SHHHH! — Catherine ordenou que se calasse.

Seu pai segurou sua mão para que não se comportasse daquela
maneira. Estavam no meio do sermão do Sr. Torbeman, o reitor da
Paróquia de Backhan, que falava sobre o amor ao próximo.

Lady Catherine estava cansada das indiretas sobre a condessa e


das fofocas maldosas sobre a causa da misteriosa doença de
Sebastião. Ela apenas desejava que as pessoas buscassem, por
um momento, ter empatia pela pobre mulher, que já sofrera o
suficiente com a morte do primeiro marido.

— Não sei por que essa mulher ainda não foi presa — outra
pessoa disse atrás de Catherine.

— “Este é o meu mandamento. Amem-se uns aos outros” — o


reitor lia calmamente sua Bíblia, apesar de Catherine estar certa de
que era possível que ele ouvisse os comentários absurdos.

— Qual é o problema de vocês? — ela levantou-se de repente,


ignorando o puxão que o pai lhe deu para que se sentasse. —
Estamos ouvindo o mesmo sermão?

A Lady fez questão de olhar para todos e notou, satisfeita, que


muitos baixavam a cabeça quando os encarava. Sim, eles sabiam a
que ela estava se referindo.

— Deus fala em amar as pessoas, não em julgá-las sem


qualquer prova!
— Cale-se imediatamente! — seu pai sussurrou, alto o suficiente
para que os paróquios o escutassem.

Queria que todos soubessem o quanto ele desaprovava a atitude


da filha.

— E por que ela deve se calar? — uma voz grave interrompeu o


silêncio.

Era William. Seu pai também não parecia nada satisfeito com o
filho.

— Lady Catherine está certa! Se vocês fossem verdadeiros


cristãos, estariam orando pela saúde do Sr. Teles e da condessa de
Fullerton, não jogando acusações pelos ares! E dentro de um
ambiente sagrado! Deveriam se envergonhar!

Muitos ficaram vermelhos, se de raiva ou de vergonha, Catherine


não pôde dizer. De qualquer forma, ela se sentiu agradecida por
William. Como heroi nacional, suas palavras certamente surtiriam
muito mais efeito do que as dela. Até mesmo o pastor estava
vermelho como um pimentão.

— Sim. O barão e a Lady têm razão. Vou pedir um momento a


todos para que oremos pela saúde desses dois cidadãos de nossa
comunidade — afirmou Sr. Toberman, baixando a cabeça e sendo
imitado por muitos.

Catherine aproveitou o momento para buscar o olhar de William.


Ao garantir que ele também a encarava, ofereceu-lhe seu mais largo
sorriso e um aceno em agradecimento. Os olhos dele estavam
mareados, assim como os dela.

Sim, ainda havia esperança em Backhan.


A Sra. Smith estava enlouquecendo com Lady Catherine: a moça
não conseguia ficar quieta, caminhava sem parar pela sala de estar.
Depois da situação na paróquia, seus pais a haviam deixado em
casa, tendo ido sozinhos almoçar com os Cleavand. Catherine não
parava de pensar no que acontecia, naquele momento, na abadia, e
começava a desenvolver algumas teorias conspiratórias sobre o
caso.

Infelizmente, a Sra. Smith não queria ouvir falar mais da abadia,


de seus ocupantes, suas lendas ou doenças misteriosas.

— Se não consegue ficar calma e sentar-se como uma lady,


podemos caminhar um pouco — o tom da mulher indicava que ela
não tinha qualquer disposição para exercício físico.

— Não, Sra. Smith. Pode ficar. Eu vou caminhar sozinha e


prometo ficar por perto. — Catherine propôs.

Precisava, de fato, de alguns momentos a sós.

Meio contrariada, a Sra. Smith aceitou a proposta. Afinal de


contas, a moça não sairia das terras dos pais, e, caso preciso, ela
poderia enviar um dos cocheiros para buscar a jovem.

— Pode ir, Lady Catherine. Por favor, retorne antes do chá — a


governanta solicitou, e a moça aceitou seus termos com um aceno
de cabeça.

A cabeça de Catherine estava tão cheia que ela temia que


pudesse explodir. Sabia que todo o caso nada mais era que um
quebra-cabeça, e ela apenas precisava encaixar as peças na ordem
certa para conseguir enxergar o todo.

Entretanto, a Lady tinha a sensação de que havia algumas peças


faltando, e eram exatamente essas que lhe davam tanta dor de
cabeça. O que não estou vendo?, perguntava a si mesma, de novo
e de novo. Precisava descobrir a verdade e prevenir que Sebastião
tivesse o mesmo destino do conde, porque ela sabia que sua melhor
amiga não aguentaria outra perda tão grande.

Um barulho de galho se partindo a arrancou de suas divagações.

— Quem está aí? — ela perguntou em volta.

— Sou eu, Lady Catherine.

Ouviu a voz inconfundível – e irresistível – do Sr. Henrique Teles.


Não o encontrava havia alguns dias, desde a visita à abadia,
quando contou para Elena sobre as fofocas maldosas que cercavam
a morte do conde de Fullerton.

— Não pretendia perturbá-la. Parecia concentrada.

— E o senhor, como sempre, parece que se perdeu nas terras


do meu pai — para alívio de Henrique, o tom dela estava longe de
ser frio; parecia quase que conciliador.

— Não estou perdido, senhorita; vim agradecê-la.

— Agradecer a mim? — Catherine ficou imediatamente confusa.


— Pelo quê, exatamente?

— Soube o que falou da condessa e do meu irmão na paróquia


hoje.

— As notícias realmente voam aqui... — a Lady comentou em


tom de ironia, impressionada pela rapidez com que ele soube do
incidente, que acontecera menos de duas horas antes.

— Na realidade, foi Philip quem nos contou. Ele sempre vai à


paróquia aos domingos.

A explicação fez Catherine sorrir.


— Acho que ganhou um grande admirador hoje, senhorita. Não
que me surpreenda: há muito o que admirar mesmo.

Enquanto ouvia aquelas palavras, Catherine notou algo se


acendendo nos olhos de Henrique, como fogo começando a crepitar
em uma lareira, cujas chamas vão rapidamente crescendo, até
espalhar calor por todo um cômodo.

E era isso que Lady Catherine sentia agora: Henrique não a


havia tocado, nem sequer estava muito próximo a ela, mas suas
palavras a aqueceram, deixando-a febril.

— Como está seu irmão? — a jovem achou mais prudente


mudar de assunto.

— Não muito bem — Henrique admitiu, o fogo dissipando-se ao


pensar em Sebastião. — Mas, honestamente, estou mais
preocupado com Christine e o bebê. Meu irmão é forte, vai superar.
Entretanto, jamais vi Christine tão fragilizada. E o fato de estar
grávida só torna a situação mais perigosa para a saúde dela.

— Posso visitá-la mais vezes — Catherine ofereceu, recebendo


um sorriso de aprovação de Henrique. — Mesmo assim, não sei se
consigo ajudá-la. Das últimas vezes que fui à abadia, ela nem
sequer desceu para me receber. Apenas sua irmã o fez...

Apesar de não ter encontrado Henrique nos últimos quatro dias,


a Lady havia visitado a abadia mais de meia dúzia de vezes, no
intuito de buscar animar sua amiga. Seus esforços, até o momento,
tinham sido em vão.

— Christine tem tido... dificuldades em deixar o leito de meu


irmão... Porém, estou seguro de que, se a senhorita insistir em vê-
la, conseguirá convencê-la a comer e descansar um pouco.

O cavalheiro inspirou profundamente; depois completou,


encarando Catherine mais uma vez com uma paixão que não mais
conseguia esconder:
— Não creio que haja algo no mundo que não consiga fazer,
senhorita.

— Ah, há muito sim, acredite em mim — Catherine respondeu


tristonha.

— Como o quê, por exemplo? — Henrique a desafiou, colocando


o indicador no queixo da moça para que ela voltasse a atenção para
ele.

— Não consigo encaixar todas as peças...

— Que peças, senhorita? — Henrique mal podia esperar para


chamá-la de Catherine de novo, ou de Cathy, mas havia convencido
a si mesmo a somente fazê-lo quando a dama o permitisse.

— Desse quebra-cabeça, desse jogo doentio que começou a ser


montado quando o conde faleceu.

A sobrancelha de Henrique arqueou-se, e a moça explicou


melhor sua teoria:

— E se o conde de fato foi envenenado? E se a mesma pessoa


que o fez tentou o mesmo com Christine no mês passado?

Dizer aquelas teorias em voz alta dava um toque de realidade a


elas e fez os pelos do corpo de Catherine arrepiarem-se. Ela
ignorou as sensações mórbidas que aquela conversa lhe trazia e se
concentrou na resposta de Henrique.

— Lady Catherine — ele falou, colocando as mãos em seus


ombros, em um esforço para acalmar seus ânimos, mas não
funcionou bem: os joelhos da moça tremeram muito mais com o
toque. — Eu sinto muito que o conde tenha falecido em condições
tão... mal explicadas. Mas não vamos transformar isso em algo
maior do que é. Christine teve alguns sintomas estranhos algumas
semanas atrás, mas o boticário e o médico já nos garantiram que
foram causados pela gravidez.
— E se não foram? — ela soltou-se dos braços dele e começou
a caminhar em círculos. — E se alguém sempre quis se vingar de
Christine, matou o conde, tentou matá-la e, como não conseguiu,
agora quer vitimar Sebastião? Quem sabe esse mesmo alguém
pretende culpá-la pelos dois assassinatos? A cidade já o faz...

E, com isso, Lady Catherine desabou. As lágrimas começaram a


rolar quentes sobre suas bochechas; lágrimas não de tristeza, mas
de raiva. Caso houvesse alguém fazendo todas aquelas maldades
com sua amiga, ela queria saber quem era e destruir aquela pessoa.

Depois de tudo que passou, Christine merecia ser feliz, merecia


envelhecer com uma família amorosa, merecia amigos confiáveis e
empregados leais, merecia paz e alegria, não segredos e tristezas.

Sem conseguir manter-se longe, Henrique abraçou Catherine,


passando um braço por sua cintura para evitar que caísse, e o outro
em volta de seu pescoço, acariciando seus cabelos ruivos e lhe
sussurrando palavras de conforto.

— O que quer que esteja acontecendo, tenho certeza de que a


pessoa mais capacitada para ajudar a condessa será a senhorita,
Lady Catherine.

Como detestava falar com ela com tamanha formalidade! Como


desejava poder tocá-la como fizera na carruagem! Como queria
poder chamá-la de sua! Assim, todas as inquietações dela seriam as
dele também e teria o direito de consolá-la!

— Pode contar comigo, senhorita. Para o que precisar.

Quando os soluços da dama cessaram, Henrique lhe entregou


seu lenço e esperou que ela se compusesse antes de afastá-la. Era
difícil distanciar-se dela, mas também necessário. Queria que
Catherine confiasse nele, que não temesse seus toques, que
soubesse que o que ele sentia por ela ia muito além de atração, que
não apenas a desejava como mulher, mas também a respeitava
como amiga.
— Obrigada, Henrique.

Ele se surpreendeu ao ouvi-la pronunciar seu nome e não


conseguiu se segurar: aproximou-se novamente dela e lhe deu um
beijo casto na testa.

— Não há de quê, Lady Catherine.

O cavalheiro esperou a reação dela, mas a moça afastou-se e


começou a caminhar em direção a Greenwoods House.

— Henrique? — ela disse por cima do ombro, alguns metros à


frente.

— Sim, Lady Catherine?

Ele se orgulhou de conseguir cumprir sua promessa.

— Por favor, pode me chamar pelo primeiro nome — disse a


jovem e, completamente de costas para ele, complementou: — ou
vou acreditar que se tornou mais um desses cavalheiros
entediantes.

— O que faz aqui sozinha? — Lady Catherine perguntou a Elena


quando a viu no jardim dos fundos da abadia, com o olhar perdido.
— Está tudo bem?

— Sim, sim...

A resposta fraca de Elena não a convenceu.

— Não é nada com a condessa ou meu irmão, Catherine. É


que... Um amigo da família finalmente chegou.

— O médico de que Henrique tanto fala? Aquele que é amigo de


infância de vocês?
— Exatamente esse.

Cahterine não entendeu a reação da amiga; Henrique estava


muito esperançoso com a chegada do médico. Aparentemente,
além de ser muito próximo aos Teles, era também considerado um
grande talento, com vasta experiência em doenças difíceis de curar.
Poderia ser a solução de que vinham precisando para o mal
misterioso de Sebastião.

O marido de Christine continuava nas mesmas condições: tinha


náuseas e vômito, o corpo enfraquecido e mal conseguia sair da
cama. A saúde da condessa de Fullerton também continuava sendo
fonte de preocupação. Catherine convencera a amiga a comer
regularmente, mas não conseguia tirar a mulher do quarto do marido
para descansar. E logo em um momento da gravidez em que o
descanso era essencial.

Desde que o amigo dos Teles respondera ao pedido de Henrique


avisando que iria à Inglaterra tentar ajudar seu irmão, os ânimos
pareceram melhorar na abadia. Porém, Elena demonstrava estar
devastada, como se a chegada do homem carregasse más notícias.
Teria o médico feito um prognóstico pessimista em relação a
Sebastião?

— O médico já sabe o que há de errado com seu irmão, Elena?

Quando a moça sacudiu os ombros em resposta, Catherine


decidiu ser mais direta:

— Por favor, diga-me o que há de errado. Está tão abatida...

— Eu e Paulo, digo, o Sr. Paulo Assis, temos um histórico...


complicado...

Ah, agora a tristeza de Elena estava clara. Por “histórico


complicado”, Catherine logo entendeu que havia um passado
romântico com final infeliz entre os dois. Era tão fácil ler uma mulher
apaixonada, mas, por algum motivo, a Lady não conseguira
perceber que sua nova amiga tinha um coração partido até aquele
momento! Andava tão distraída com a situação de Sebastião e da
condessa que não dera atenção aos detalhes que estavam óbvios.

— Tem alguma coisa a ver com sua carta, de Paris, para


Henrique?

Pelo olhar que Elena dirigiu a ela, Catherine soube que estava
no caminho certo.

— Sim... Eu... — Elena disse, olhando para os próprios pés, e


Catherine sentou-se ao seu lado em um banco de pedra, colocando
a pequena mão sobre a dela para lhe incentivar a continuar sua
história. — Eu estava noiva de um rapaz escolhido por meu pai...
Juro que tentei seguir o conselho de papai, Catherine, mas não me
casei com ele! Como podia? Eu não o amava! Sempre amei Paulo.

— O Sr. Assis sabe que você deixou seu noivo por ele?

— Não. Ainda não tive coragem de contar... Afinal de contas, eu


deixei Paulo antes para me casar com outro homem. Não sei se ele
me perdoaria.

Elena parecia tão frágil naquele momento que Catherine sentiu


seu coração apertar pelo sofrimento da amiga.

— Claro que ele vai perdoá-la! Ele vai entender: você quis fazer
exatamente aquilo que todas as mulheres são ensinadas a fazer
desde pequena, que é obedecer aos nossos pais.

— Eu queria ter sido mais como Henrique!

Algumas lágrimas escaparam dos olhos de Elena.

— Ele sempre soube dizer não a papai, mesmo que isso o


deixasse em sérios problemas — completou a Srta. Teles.

— Como assim?
Catherine agora estranhava a razão pela qual Henrique jamais
mencionara seu pai. Sempre falava com muito carinho da mãe, que
morrera anos antes, mas nunca do pai.

— Assim como fez comigo, papai também escolheu uma noiva


para Henrique — Elena explicou —; meu irmão, no entanto, não
aceitou se casar com ela e acabou sendo expulso de casa.
Henrique nunca teve muita inclinação para o casamento. Na
realidade, jamais o ouvi falar no assunto, exceto quando...

— Quando o quê? — perguntou a jovem.

O coração de Catherine parecia querer se soltar do peito. Ela


sentia-se estúpida: bastava a menção do nome de Henrique e da
palavra casamento na mesma sentença para ela ficar assim?

— Bem, ele começou a falar bastante de casamento desde que


chegou à Inglaterra... Não sei se isso tem relação com alguém que
tenha conhecido aqui... — Elena respondeu, com um sorriso cheio
de palavras não ditas.

Se ela não fosse ter seu final feliz, ao menos desejava que o
irmão tivesse. E, pelo jeito sonhador que Catherine agora
demonstrava, Elena acreditava que essa felicidade estava bem
próxima.

Meia hora de conversa depois, Lady Catherine conseguiu


convencer a Srta. Teles de que ficar do lado de fora da abadia seria
tolice, além de desperdício de tempo. Mais cedo ou mais tarde, ela
teria de encarar o Sr. Assis. Melhor que fosse o quanto antes.

O encontro foi claramente desconfortável tanto para Elena


quanto para o jovem médico, mas Catherine não pôde deixar de se
divertir. Primeiramente, porque, apesar das alegações de sua amiga
de que o rapaz jamais a perdoaria, ele estava claramente
apaixonado por Elena, talvez ainda mais que ela própria por ele.
Ademais, a Lady tinha de reconhecer que o amado de Elena era
bem agradável de se olhar.

Ele tinha o mesmo aspecto exótico dos irmãos Teles, mas o Sr.
Paulo de Assis era ainda mais diferente aos olhos ingleses e pouco
viajados de Catherine. Primeiramente, tinha a pele mais escura que
ela já vira na vida. Era um tom muito bonito, caramelado, como uma
mistura de café com leite. Os cabelos dele eram muito lisos e
negros, e seus olhos eram tão escuros quanto. Ele era alto e esguio,
mas tinha ombros largos, como se tivesse feito trabalho braçal ao
longo da vida. Tinha uma postura elegante e um sotaque muito
agradável.

Catherine ficou satisfeita ao observar, em poucos minutos, que


se tratava de um homem educado e inteligente, que estava
sinceramente preocupado com o bem-estar de Sebastião e da
condessa e que talvez amasse Elena ainda mais do que ela o
amava.

Também foi interessante notar que a postura de bom moço que o


Sr. Henrique Teles adotara desde que retornara de Paris não o
fizera olhá-la menos. Ou com menos ardor nos olhos. Quando ela
entrou na sala de estar da abadia, onde o médico e Henrique
conversavam seriamente, ele parou o que estava dizendo no meio
da palavra e a encarou com tamanha paixão nos olhos que
Catherine sentiu uma trilha de fogo sobre sua pele por onde os
olhos dele passavam.

— A senhorita sabe se a condessa tem algum inimigo?

Lady Catherine estava tão distraída com os olhos famintos de


Henrique que não ouviu direito a pergunta do Sr. Paulo de Assis.

— Perdão?

— A condessa. Ela tem algum inimigo?

— Por que a pergunta?


Catherine poderia listar algumas pessoas (entre as quais, muitos
dos fofoqueiros de Backhan), mas, antes de apontar dedos e
suspeitos, queria entender a razão para aquela linha de
questionamento. Será que já haviam contado ao médico sobre a
morte do conde?

— Não consigo dizer ao certo, mas, ao que parece, Sebastião


sofreu algum tipo de envenenamento. Não tenho indícios ou
sintomas suficientes para precisar qual foi o veneno e não disponho
de estrutura aqui para conduzir testes. De qualquer forma,
inicialmente, eu acreditei que o envenenamento pudesse ser
acidental, já que não o matou, até ouvir uma das camareiras
comentando que o conde de Fullerton faleceu de doença
semelhante.

— O senhor não pode estar desconfiando de Christine... — ao


dizer isso, Catherine sentiu o sangue gelar de repente, os olhares
de Henrique completamente esquecidos.

— De jeito algum, Lady Catherine! — o Sr. Assis negou


veementemente. — Mesmo que ainda não tenha tido o prazer de
passar tempo suficiente com a condessa para conhecer seu caráter,
tenho certeza de que se trata de uma pessoa íntegra.

Todos encaravam o médico confusos, sem entender aonde ele


queria chegar.

— O que quero dizer é: por que ela mataria o segundo marido da


mesma forma que o primeiro, atraindo todas as suspeitas para si?

— Exatamente! — Catherine concordou com a lógica do médico;


ela própria vinha defendendo a amiga com o mesmo argumento. —
E ela já era suspeita, injustamente, que fique claro, da morte do
conde. Teria que ser muito tola para matar o segundo marido da
mesma maneira e acreditar que não seria descoberta.

— Precisamente, Lady Catherine — o Sr. Paulo de Assis


concordou. — Então, considerando que Sebastião foi envenenado
(já que, até o momento, é o que seus sintomas indicam), há duas
hipóteses: ou ele foi envenenado acidentalmente, e, nesse caso, é
provável que seja uma causa ambiental, pois o mesmo problema
tirou a vida do conde; ou alguém próximo ao casal tentou envenená-
lo. Neste segundo caso, o mais lógico seria que se tratasse de
algum inimigo da condessa, uma vez que o conde também foi vítima
dessa pessoa. Se a senhorita pudesse me oferecer alguns
suspeitos, eu poderia criar desculpas para fazer visitas médicas a
essas pessoas e ver se descubro algo estranho em suas
residências. Algo que poderia ser usado como veneno.

Lady Catherine pensou e pensou. De fato, havia algumas


pessoas na cidade que tinham um desgosto exagerado pela
condessa; entretanto, Catherine não acreditava que seriam capazes
de matar alguém. De qualquer forma, ofereceu um par de nomes ao
médico, exceto o nome da pessoa cujo ódio por Christine e pelo
conde poderia tê-la levado a se tornar uma assassina.

— A pessoa teria que estar fisicamente próxima ao casal para


envenená-los? — Catherine perguntou ao médico antes de lhe
entregar a lista.

— Como eu disse, ainda não sei precisar qual é o veneno, mas é


bem provável que sim.

— Sendo assim, há alguém que prefiro não incluir na lista, por


enquanto — Catherine explicou ao médico quando lhe entregou o
pedaço de papel com a pequena lista. — Tenho antes que verificar
algumas informações sobre essa pessoa. Não desejo incomodar
alguém desnecessariamente. Especialmente alguém que detesta a
condessa.

— Entendo — o médico respondeu calmamente, mas os irmãos


Teles não pareciam convencidos.

— Se essa pessoa detesta Christine, mais uma razão para


investigarmos! — Henrique ponderou.
— Sim, tem razão. Porém, se eu estiver errada sobre essa
pessoa, ela vai infernizar a vida da minha amiga. E é a última coisa
de que precisamos neste momento — justificou-se a Lady.

Henrique invadiu a biblioteca sem qualquer pudor; Lady


Catherine já estava havia quase meia hora no cômodo, para onde
fugiu quando alegou que precisava escrever uma carta a alguém.
Recusara-se a dizer quem era o destinatário, mas deixou escapar
que se tratava de um homem.

Mesmo repetindo para si mesmo que não havia com o que se


preocupar, que Catherine escrevia sobre a tal pessoa suspeita de
envenenar seu irmão, e não uma carta de amor, ele não conseguiu
diminuir o sentimento irritante de ciúme que o consumia. Quando
sua paciência se esgotou, levantou-se abruptamente do sofá,
deixando sua irmã sozinha com Paulo. O semblante dela era de
desespero, mas ele sabia que Elena precisava conversar a sós com
o médico.

Abriu a porta da biblioteca com tanta força que Catherine chegou


a derrubar a pena com o barulho. Sem dizer nada, caminhou na
direção dela, agachou-se e pegou a pena. Sem resistir aos encantos
da moça, encostou levemente o braço na perna dela enquanto se
levantava e notou que ela prendeu a respiração quando o fez.

Ficou satisfeito em saber que, mesmo através do tecido, seu


toque ainda tinha forte poder sobre a jovem. Porém, temia que o
efeito dela nele ainda fosse infinitamente maior. Ao aproximar-se de
Catherine, sentiu seu cheiro inebriante, e o desejo de aproximar o
nariz do pescoço da Lady foi quase irresistível.

— Terminou sua carta secreta?

— Não é secreta — ela afirmou, com o queixo erguido, ainda


sentada à escrivaninha, calmamente dobrando o papel. — Apenas
não creio que seja prudente identificar o destinatário ou minha
suspeita. Ainda.

— Mas a senhorita já está me oferecendo vários indícios a esse


respeito — Henrique a provocou, com um sorriso malicioso,
fazendo-a corar levemente.

— Claro que não estou! — Catherine colocou a carta embaixo de


um livro para que o cavalheiro não lesse o endereço e o nome do
destinatário.

— Claro que está!

O Sr. Teles, antes ao lado dela, foi para trás da cadeira,


colocando as mãos sobre o encosto acolchoado. E, inclinando-se
para frente, sussurrou em seu ouvido:

— Pelo que acabou de dizer, já sei que sua suspeita é uma


mulher. E que seu destinatário é um cavalheiro. Corresponde-se
sempre com esse cavalheiro, Catherine?

— Por que quer saber? Está com ciúmes? — agora era ela
quem o provocava, inclinando a cabeça para que ele tivesse maior
acesso ao seu pescoço.

— Cathy... — o apelido dela saiu como um gemido dos lábios de


Henrique.

— Permiti que me chamasse de Catherine, não de Cathy — ela


mencionou quase com escárnio, usando um tom sedutor. — E, se
estiver pensando em beijar meu pescoço, devo avisá-lo de que
pretendo gritar bem alto caso ouse fazê-lo.

O Sr. Teles queria muito tocá-la, sentia os lábios e as mãos


formigando para que o fizesse. Porém, era exatamente o que ela
queria; Catherine estava respirando pela boca, os olhos
semicerrados, certa de que ele não resistiria. E era exatamente o
que ele faria. Era o que precisava fazer se quisesse reconquistá-la.
— Senhorita — ele falou baixinho em seu ouvido, com falsa
formalidade —, eu somente a tocarei novamente se pedir. Na
realidade, se implorar.

— Humph! — Catherine ficou ereta. — Pois então jamais me


tocará novamente — ela falou e ofereceu um olhar gélido por cima
do ombro antes de levantar-se e deixar o cavalheiro sozinho na
biblioteca.

Duvido muito, Cathy. Duvido muito, ele pensou, com um sorriso


no rosto.


Capítulo 17

“Se eu a amasse um pouco menos,

poderia ser capaz de falar mais sobre isso.”

(Jane Austen)

Abadia de Kingsway, 3 de setembro.

Quando viu que o ponteiro do elegante relógio dourado marcava


dez e sete da manhã, Cathy praticamente saltou da cama. Enquanto
trocava de roupa, olhou em volta do quarto: já se sentia
praticamente em casa ali. As paredes eram cobertas por diversas
fotografias de belos jardins, quase impossibilitando ao visitante
vislumbrar o azul-claro por trás delas.

Quando abertas, as grandes janelas retangulares traziam o


aroma das flores, do bosque, da chuva. A cama, apesar de não ter
dossel, como aquela da casa de Krista Allen, era magnífica, com
sua cabeceira de madeira composta por delicadas rosas esculpidas.

Ao pé da cama, um baú, no mesmo estilo da cabeceira,


guardava as roupas de Cathy. E, do outro lado do cômodo, uma
delicada escrivaninha, uma cadeira com estofado de flores coloridas
e uma pequena estante com livros clássicos completavam a mobília
de seu quarto na abadia.

Quando já estava no corredor, usando um vestido creme


estampado com borboletas azuis, a escritora sentiu cheiro de bacon
sendo frito. Seu estômago lembrou-lhe, com um vergonhoso rugido,
que ela não tinha ingerido nada por mais de doze horas.

Enquanto cruzava os corredores e descia as escadas que davam


acesso à cozinha, a jovem estranhou o fato de não ter visto nenhum
dos inúmeros empregados. A mansão parecia estranhamente vazia
naquela manhã.
Não havia ninguém na cozinha também, apenas alguns pratos
com pães, queijos, bolos e bacon sobre a ilha no meio do cômodo.
Cathy acomodou-se em uma das banquetas e começou a devorar
tudo o que via pela frente. Para sua sorte, os pães e o bacon ainda
estavam quentinhos, como se alguém tivesse acabado de prepará-
los especialmente para ela.

— Bom dia, Cathy — a voz animada do senador Tilney alcançou


seus ouvidos antes que ela pudesse vê-lo.

— Bom di... — ela começou a responder, sorridente, ao se virar


em direção ao seu anfitrião, quando viu seu estado.

A voz da garota falhou. As palmas de suas mãos ficaram


imediatamente suadas. Os pelos de seu pescoço levantaram-se. E,
em sua mente, ela ouvia alguém lhe dizendo: “FUJAAAAAAAAA!”.

O senador usava um avental branco, e ele estava coberto de...


sangue?! Pois é exatamente isso que parecia. O homem estava
com aquele líquido vermelho nas mãos, na roupa e até nos cabelos
grisalhos! Fazendo uma rápida verificação, Cathy percebeu que o
senador não estava machucado. O sangue tinha que ser de outra
pessoa.

Uma lembrança do dia anterior atingiu a hóspede como um raio.


Elena e ela foram visitar a vizinha. Na realidade, não era
exatamente uma vizinha, mas sim a propriedade mais próxima da
abadia. A Sra. Callway era uma simpática mulher de meia-idade,
com um sorriso largo e gentil e sempre com um assunto a ser
discutido.

Apesar do falatório interminável da Sra. Callway (especialmente


quando começou a falar com Elena sobre os diferentes tipos de
adubo que deveriam usar na roseira da abadia), Cathy conseguiu,
enfim, usar a internet. Achou que não sobreviveria muito mais tempo
sem acesso ao mundo.
Depois de conversar com os pais pelo Skype, de postar algumas
fotos novas no Facebook (inclusive uma lindíssima dela com Rico,
Lena e o senador em frente à abadia), de enviar algumas fofocas a
Lucy e Luiza por e-mail, de mandar novas mensagens a James e
Bella e de incluir alguns posts em seu blog, a ruiva resolveu
finalmente começar a investigação sobre o passado do político.

Não demorou muito para descobrir alguns fatos no mínimo


suspeitos. Pouco mais de duas décadas antes, o Prefeito Teixeira,
de uma das cidades mais ricas de São Paulo, fora acusado de
roubar boa parte do dinheiro que seria usado para construção de
uma escola e para reforma do hospital da região.

Logo depois do início das investigações, foi encontrado um


bilhete em que o prefeito assumia seus crimes e se despedia da
família. Alguns moradores estavam certos de que ele se jogara no
rio da ponte mais alta da cidade. Alguns cidadãos juravam que o
haviam avistado caminhando na direção de uma propriedade
abandonada. Ainda havia aqueles que acreditavam ter sido ele
vítima de assassinato.

Ou seja, existiam inúmeras teorias, mas nada de concreto. Ao


ver a foto do homem, Cathy tinha certeza de que se tratava de um
parente próximo do senador Tilney. O rosto era diferente, mas
aqueles olhos... E, de fato, uma das reportagens (graças aos céus
pelo Google Tradutor, que possibilitava a Cathy lê-las) falava sobre
como toda a família do prefeito era suspeita de estar envolvida em
um grande esquema de corrupção. Mas as provas haviam
desaparecido com o político em questão.

No artigo mais recente sobre o caso que Cathy encontrara, um


relato a deixou apavorada: meses após o sumiço do Prefeito
Teixeira, e quando os parentes mais próximos dele já haviam
deixado a cidade, foi descoberto um galpão abandonado, onde
havia uma poça gigante de sangue seco no chão. A amostra era
mais do que suficiente para comprovar que o sangue pertencia ao
Prefeito. E os maiores suspeitos eram seus próprios parentes.
Seria Tilney um desses familiares? Teria sido por isso que ele
adotara o nome de família da esposa? Estaria ele envolvido em um
assassinato no Brasil? Agora, vendo-o daquele jeito na cozinha da
abadia, a escritora tinha certeza de que sim.

O senador aproximou-se dela, sério. Pegou uma faca na mesa e


lhe perguntou, apontando o objeto de forma ameaçadora para ela:

— Está tudo bem, Cathy? Está passando mal?

Apesar de toda a tensão em seu pescoço, ela conseguiu


responder afirmativamente. A mão livre do senador aproximou-se
ainda mais dela, e a Cathy nada mais restou: teve que gritar.

Elena e Rico entraram no cômodo correndo pela porta dos


fundos, enquanto a cozinheira, Lilly, saiu às pressas do porão com
uma garrafa de azeite na mão. A mão do senador estava paralisada
sobre a cesta de pães.

— O que houve, Cathy? — comentou Elena, ao aproximar-se.

Como a irmã de Henrique não estava assustada? Não havia


notado que o pai estava coberto de sangue? Surpreendentemente,
Elena molhou o dedo com o líquido vermelho sobre o avental do
senador e colocou-o na boca.

— Você não consegue fazer geleia de amoras sem se sujar, pai?

— Mil desculpas, senador — comentou Cathy, o coração ainda


acelerado —, achei que havia uma aranha sobre seu ombro.
Detesto aranhas.

Lilly, Elena e o político riram da confusão de Cathy. Mas uma


linha surgiu no meio da testa de Rico. Ele a conhecia melhor do que
ela imaginava: sabia que estava mentindo. Mais cedo ou mais tarde,
a questionaria sobre aquele incidente.
E Rico tinha o poder de fazer aquela jovem admitir o que
quisesse, ela pensou, com um suspiro...

St. Andrews, 3 de setembro.

— E aí, princesa! Já achou seu príncipe?

A pergunta o incomodou, mas foram as gargalhadas que lhe


atingiram como um soco no estômago.

Por que havia aceitado a aposta? Não bastava ter que fazer o
passeio sobre como William e Kate haviam se conhecido na
Universidade de St. Andrews? Teria que fazê-lo vestido de
princesa? Segundo Cathy, aquele vestido azul ridículo cheio de
brilhantes e a coroa que ele usava eram de uma princesa da Disney.
Uma tal de Frozen...

A situação não podia ser pior...

— Henrique Teixeira?

O dono do nome paralisou onde estava. Cathy e Elena


começaram a rir baixinho. Sim, podia ser pior, é claro.

Joe, o rapaz que testemunhou o mico de Henrique, tinha sido


seu colega de colégio, muitos anos atrás. Imediatamente, ele
arrancou o celular do bolso, tirou uma foto do brasileiro e gargalhou
durante três minutos inteiros.

— O que você está fazendo vestido assim, Rico? — Joe


finalmente perguntou, enquanto secava as lágrimas.

Nada de “Como você tem estado?” ou “Como foram os últimos


dez anos da sua vida?”.
— Uma aposta — ele respondeu entredentes, os olhos raivosos
encarando Cathy, que ainda sorria. Ah, ela pagaria mais tarde... —
Eu cometi o erro de apostar com uma certa ruiva que conhecia
Game of Thrones melhor do que ela. Como é óbvio, perdi.

— Mas se você topou se vestir de princesa por causa dela —


comentou Joe, com um sorriso malicioso nos lábios, admirando a
beleza da jovem que estava ao lado de Elena —, ela deve ter
prometido a você algo muito bom caso perdesse.

— Claro que sim.

Rico podia ser um idiota, mas não era um idiota completo. Cathy
ficava mais provocadora a cada dia. Quando estabeleceram a
aposta, ela lhe prometera que, caso perdesse, iria jantar no quarto
do rapaz naquela noite, usando nada além da camisola rendada
rosa.

No começo, ele estava indo superbem, respondendo às


perguntas corretamente. O problema é que a Garota da Califórnia
também estava acertando todas as questões dele. No entanto,
Cathy começou a titubear. Não errara nada, mas ficara em dúvida
duas vezes. Henrique já estava se sentindo vitorioso, pensando em
todas as coisas que faria com sua hóspede, com sua camisolinha
rosa, com seus lábios vermelhos, quando...

“Qual é o lema da Casa Martell?” Cathy atirara a pergunta como


uma adaga contra o coração (e as intenções) de Henrique. Ele
simplesmente não conseguia se lembrar da resposta. E a escritora
vencera.

— Rico, o tour vai começar! — chamou Elena, já na porta da


universidade.

Ele se despediu de Joe com um abraço amistoso, mas, ao se


virar, seu amigo voltou a gargalhar.
— Cara, esse seu vestido é ainda mais ridículo de costas! Bom
demais! — Joe comentou, enquanto tirava outra meia dúzia de
fotos. — Manda um beijinho para a câmera, princesa!

Rico mostrou-lhe o dedo do meio. Ao se aproximar de sua irmã e


de Cathy, notou que nenhuma das duas ria. Elena estava séria, e
Cathy estava com os olhos lacrimejados.

— O que houve, Cathy?

— James finalmente respondeu às minhas mensagens. Agora


sei por que nem ele nem Bella me respondiam. Está tudo acabado
entre eles. James está retornando aos Estados Unidos sozinho.
Aparentemente, Bella agora está saindo com Fábio.

— Que Fábio? Nosso Fábio?! — Henrique respondeu,


atordoado. Nem notou que um grupo de meninas, todas com idade
em torno de seis anos, puxavam a saia de seu vestido, chamando-o
de Elsa.

— Sim, o irmão de vocês. Sabem o que é pior? Eu sabia que


havia algo errado!

Ditas essas palavras, a culpa tomou conta de Cathy. Como pôde


ser tão egoísta? Simplesmente foi para a abadia e deixara o irmão
em Londres. E James foi ao Reino Unido apenas por ela...

Mais uma vez, a jovem escritora não conseguiu segurar as


lágrimas, que caíam pelo seu rosto e molhavam a gola de sua
camisa.

Elena levou a amiga até um café, onde pediu três cappuccinos.


Henrique livrou-se da famigerada fantasia de princesa, jogou-a
(junto da coroa de plástico) para as menininhas histéricas que não o
deixavam em paz e seguiu as duas até o estabelecimento. Por
sorte, havia pensado em colocar jeans e camiseta por baixo do
vestido.
Enquanto Elena se sentou em uma poltrona de couro marrom,
Cathy e Rico espremeram-se em um pequeno sofá de veludo
vermelho. O calor da pequena lareira aqueceu um pouco o coração
de Cathy, porém as lágrimas continuavam a brotar de seus olhos.

Rico colocou a moça em seu colo e posicionou a cabeça dela na


curva entre seu pescoço e ombro. Quando Elena trouxe as bebidas,
começou a explicar:

— Cathy, não sei por que seu irmão e Bella terminaram, mas
certamente poderia ser pior. Imagina se eles tivessem brigado nos
Estados Unidos? Ao menos, eles se separaram enquanto ainda
estavam aqui, e cada um vai poder seguir seu caminho.

— Além do mais — continuou Rico, complementando o


argumento da irmã —, seu irmão é bonito, simpático, inteligente.
Não vai demorar até conhecer outra garota. E, desta vez, será uma
mulher que o merece.

— Mas ele passou a vida inteira sem gostar de ninguém de


verdade! — respondeu a norte-americana, entre soluços. — E se ele
nunca mais se abrir para ninguém? Se nunca mais quiser se
apaixonar?

— Eu acho que é o tipo de coisa que ele não tem como escolher,
Cathy — disse carinhosamente Elena, segurando a mão da amiga.

— E por que o irmão de vocês faria isso? Por que ele separaria
James e Bella?

— Por mais que eu deteste defender Fábio, tenho que dizer: ele
não separou ninguém. Não foi ele quem traiu seu irmão e sim
Isabella Thorpe — afirmou Henrique.

O rapaz sabia que não era a verdade amarga que Cathy


desejava ouvir. Mas não poderia lhe contar uma doce mentira.
— Mas ele sabia que Bella era comprometida! Por que foi atrás
dela? Por que quis namorar logo essa moça?

— Cathy, assim como Rico, sei que Fábio não é perfeito, mas
posso afirmar que não foi ele quem correu atrás dela — Elena
explicou.

— Como você pode ter certeza? — Cathy estava atordoada.

— Vou lhe contar. Mas você precisa prometer segredo — quando


Cathy afirmou com a cabeça, Elena continuou: — Às vezes, Fábio
até sai com algumas mulheres. Chega a ir para a cama com elas.
Mas tudo isso é apenas para despistar nosso pai.

— E irritar Sara — Rico complementou.

— Como assim? — perguntou Cathy, olhando de um irmão para


o outro.

— Fábio não gosta de mulheres — esclareceu Rico. — Ao


menos, não para relacionamentos amorosos.

Oceano Atlântico, 4 de setembro.

Idiota. Cego. Palerma.

Era assim que James se sentia. Como não percebera? Enquanto


deveria estar assistindo ao novo filme de Tarantino, ele repassava
mentalmente os momentos com Bella em Londres antes da
descoberta da traição. Claro que algo estava errado, mas ele não
quis admitir. Preferira mentir para si mesmo e deixar Isabella
enganá-lo descaradamente.

Ao menos, não precisaria ouvir Johnny o voo inteiro defendendo


a irmã: por sorte, James havia recebido um upgrade e viajava na
classe executiva. Certamente, a simpática aeromoça havia
percebido seu estado emocional, teve pena dele e ofereceu um
lugar na melhor parte do avião. Havia notado que ela o encarava,
com olhar preocupado, quando entrou na aeronave.

O favor, que deveria tê-lo deixado animado, fez James sentir-se


ainda pior. Detestava que tivessem pena dele. E estava certo de que
era esse o motivo da gentileza da jovem aeromoça.

Estava bem enganado...

Amanda, a aeromoça simpática, de fato percebera que James


estava triste. Mas o que a levou a lhe oferecer um assento mais
confortável foi outra coisa. Ela jamais acreditara em amor à primeira
vista, mas o que sentiu ao ver o rapaz de cabelos castanho-escuros
e olhos acinzentados, da cor do céu em dia de tempestade, foi bem
mais do que mera atração.

No entanto, apesar de todos os seus esforços, o passageiro não


a olhava nos olhos. Quando ela o convidou para ficar na classe
executiva, ele mal esboçou um sorriso, e seus olhos mantiveram-se
fixos no chão quando respondeu, baixinho: “Obrigado”. Ao receber o
jantar, espaguete à bolonhesa, James nem tocou no prato. Apenas
virou a taça de plástico com vinho californiano e pediu outra. E mais
outra.

E virou taças de vinho até perder as contas, até seus olhos


ficarem vermelhos e pesados, até o rosto de Isabella Thorpe ficar
borrado em sua mente. Mesmo assim, a tristeza o atingia no
coração como um taco de beisebol, martelando contra seu peito,
lembrando-o de como havia sido enganado.

Olhava para o prato de comida com o estômago vazio, mas,


estranhamente, sem qualquer vontade de comer. De repente, um
pequeno broche de avião apareceu à sua frente, envolvido por uma
mão morena com unhas vermelhas.

Ele olhou para cima e finalmente a viu: a simpática aeromoça.


Notou, para sua surpresa, que era muito bonita. A aeromoça lhe
disse que o modelo do avião do broche era o mesmo em que
viajavam.

— Posso retirar seu prato? — Amanda perguntou, depois que


ele se manteve calado, e James afirmou com a cabeça. — Precisa
de mais alguma coisa, senhor?

— James. É estranho demais ser chamado de senhor por


alguém da minha idade. — ele falou e ofereceu apenas um meio
sorriso, mas foi suficiente para dar ânimo à moça para continuar a
conversa.

— Eu me chamo Amanda — ela comentou timidamente. E


continuou: — Sei que não é da minha conta, mas ela não merece
você.

— Como?

— Se você está assim por causa de uma garota, ela


definitivamente não lhe merece.

Amanda saiu assim que pronunciou as palavras. Foi atender um


casal algumas poltronas atrás de James. O comentário dela o
despertou de seus devaneios, e o rapaz aproveitou que ela estava
ocupada para observá-la melhor.

A cor vermelha do uniforme da companhia aérea contrastava


bem com sua pele morena. Amanda tinha um corpo curvilíneo,
cabelos negros, cheios e longos. Ela riu de algum comentário que o
passageiro fez, e o coração de James acelerou imediatamente. Seu
sorriso era lindo e alcançava seus olhos castanhos.

Possuído por um ciúme inexplicável, James virou-se mais para


checar quem era o passageiro que a fazia gargalhar daquela
maneira. Notou que havia um casal, claramente muito apaixonado,
conversando animadamente com a aeromoça. O homem era alto,
com pele alva que contrastava com seus cabelos escuros e seus
olhos azuis. A mulher, muito bela, era morena, com olhos cor de
mel.

— Pois é, Amanda. Acredite se quiser: minha esposa não adotou


meu nome quando nos casamos. Ou seja, não pode chamá-la de
Sra. Darcy.

— Com licença, Frederick! — a passageira respondeu, rindo.

Seu sotaque exótico era parecido com aquele dos irmãos


Teixeira, James reparou.

— Posso não ter seu nome no papel, mas faço questão de que
Amanda me chame de Sra. Darcy. Mas pode também me chamar de
Lizzie.

— Você também vai querer champanhe? — a aeromoça


perguntou para Sra. Darcy.

— Não — ela respondeu com um sorriso mais largo ainda,


enquanto colocava a mão sobre o estômago —, não posso beber
álcool no momento.

Por algum motivo, a felicidade estampada nos rostos do casal


fez James sentir-se, ao mesmo tempo, mais alegre e mais triste. Ele
sempre ficava satisfeito quando via um casal verdadeiramente
apaixonado. Mas imaginava Isabella ao seu lado, olhando para ele
como a Sra. Darcy olhava para o Sr. Darcy, e aquele sentimento
doeu como uma facada no coração.

— Também gosta de The Walking Dead? — Amanda perguntou-


lhe, tão repentinamente que o assustou.

James olhou para a pequena tela presa nas costas da poltrona à


sua frente. Nem se lembrava de que havia trocado o filme de
Tarantino pela série de zumbis (a sua favorita, por sinal).
— É a minha série predileta — a comissária afirmou, quando ele
manteve o silêncio. James olhou surpreso para ela: será que
conseguia ler seus pensamentos?

— Eu... também é a minha série favorita...

Conversariam durante as horas restantes do voo sobre as séries


de que gostavam, seus diretores favoritos, livros que estavam lendo
pela milésima vez...

Chegariam a Nova York naquela noite. O avião pousaria, e


James se despediria de Amanda com um sorriso. Ele ficaria na
saída do avião, com uma pergunta em sua garganta. No entanto,
em vez de fazê-la, ele deixaria a aeronave.

Como é óbvio, momentos mais tarde, já no avião da escala que


o levaria à Califórnia, James sentiria uma forte pontada de
arrependimento por não ter pedido a Amanda seu telefone. Tiraria,
do bolso da calça, o broche que ela lhe dera e começaria a girá-lo
na mão. Seria nesse momento que ele descobriria um pequeno
pedaço de papel preso na parte de trás do objeto.

Era um número de celular. James sorriria, sentindo algo renascer


dentro dele. De alguma maneira, uma fagulha de esperança
reapareceria das cinzas.

Los Angeles, 25 de setembro.

Nas últimas semanas, James pensava em apenas uma coisa: no


que Isabella Thorpe estaria fazendo do outro lado do mundo. Estaria
arrependida da traição? Estaria feliz com Fábio? Estaria preocupada
com as finanças de sua família? Estaria com saudades dele?

Ao descobrir no Facebook de Johnny que Isabella já estava com


outra pessoa, um famoso surfista australiano, James decidiu que
era hora de também seguir em frente e pensar em si próprio. E em
outra mulher.

Encarou diversas vezes o número de celular que a bela


comissária deixara para ele, mas simplesmente não conseguia
discá-lo. Ele não tinha ideia do que dizer à moça, nem sabia se
conseguiria ser divertido como fora outrora.

Será que seu coração poderia ser inteiro novamente e amar


outra depois de ter sido despedaçado por sua primeira grande
paixão?

De repente, uma ideia iluminou seus pensamentos obscuros: ele


vasculhou a internet até encontrar o número que desejava. Depois
de conseguir as informações necessárias, preparou a plaquinha
com as frases mágicas, pediu o carro de um amigo emprestado e foi
até o aeroporto de Los Angeles.

A viagem de Pasadena até Los Angeles pareceu rápida demais:


as mãos de James ainda não haviam parado de suar, e seu coração
palpitava quando viu a torre abobadada de arquitetura futurista de
um dos maiores aeroportos do mundo.

Foi até o terminal indicado pela companhia aérea e, ao checar


um dos telões do desembarque, descobriu que o avião que
esperava já havia aterrissado.

Ficou em frente ao portão do desembarque e aguardou.


Dezenas de pessoas passaram por James até ele avistar um grupo
de mulheres com uniformes vermelhos. Então, posicionou a placa
contra o peito e abriu um largo sorriso assim que a viu.

Os olhos achocolatados de Amanda ficaram arregalados de


surpresa ao vê-lo, e os cantos de seus lábios curvaram para cima
enquanto a jovem lia a placa que ele segurava:
“A nova temporada de The Walking Dead já está disponível.
Quer assistir comigo?

Obs.: pipoca amanteigada e chocolate por conta da casa!”

— Opa! Eu topo! — um estranho sorridente dirigiu-se a James,


sem acreditar no que lia, e perguntou: — Você dá carona também?

— Senhor, acho que o convite era para mim — Amanda interveio


com sua calma profissional de comissária de bordo.

— Humph! Por que diz isso? O rapaz não colocou nomes! É um


convite aberto ao público!

O olhar de desprezo do homem para Amanda indicava que ele


não desistiria tão facilmente.

— Ela tem razão — finalmente James reencontrou sua voz —; o


convite era para ela.

— Humph! — o homem rabugento exclamou, antes de virar-se


para Amanda, e completar: — Você é uma garota de sorte! Um cara
que gosta de assistir a TWD é precioso!

— Eu sei...

O homem já os havia deixado quando ela pronunciou as


palavras.

Segurando a mão macia de Amanda, James deixou o aeroporto


com um sorriso bobo. Desde o retorno dele aos Estados Unidos,
sua irmã caçula afirmava que o rapaz seria feliz de novo. No
entanto, ele somente começou a acreditar nessa possibilidade
naquele momento.

A saudade de sua ruiva favorita deu um aperto no coração dele.


Cathy ficaria em êxtase ao saber o que o irmão acabara de fazer;
ela sempre acreditara em finais felizes. James desejava
imensamente que ela também tivesse o seu.

Abadia de Kingsway, 29 de setembro.

As semanas seguintes ao retorno de James aos Estados Unidos


passaram como um borrão. Se no início ele praticamente não
atendia às ligações dos seus pais ou de sua irmã caçula, aos
poucos a ferida parecia cicatrizar, e ele voltava a ser o bom e velho
James.

Enquanto isso, os bosques em volta da abadia mudavam de cor,


à medida que o verão dava lugar ao outono. As folhas, de verdes,
tornaram-se alaranjadas; as pétalas das flores caíam, assim como a
temperatura.

A melhora do humor de James, juntamente com a mudança de


estação, parecia ter trazido novo fôlego a Cathy, que escrevia em
um ritmo impressionante. Não poderia ser muito diferente, com os
irmãos Teixeira como seus maiores fãs, críticos e conselheiros. Rico
e Elena sempre lhe ofereciam sugestões quando ela estava sem
ideias; conselhos quando ela tinha dúvidas; palavras de incentivo
quando o cansaço a atingia.

E, quando não estava escrevendo, caminhando pelos bosques


da abadia ou passeando por St. Andrews, a ruiva era (alegremente)
sequestrada em cantos escuros da antiga propriedade por um
moreno irresistível. O melhor: ele também a considerava assim.

Nem precisamos comentar que pouca energia sobrava a Cathy


para investigar melhor o senador. Não, todo o foco dela era
aproveitar cada momento que passava na Escócia.

E foi exatamente por isso que, quando o dia amanhecera


ensolarado, os três inseparáveis decidiram caminhar pela trilha
favorita de Lana. Ao chegarem à borda do bosque, já escondidos
pelas sombras das árvores, Elena lhes disse para prosseguirem
sem ela. Aquele era o sinal para que Cathy e Henrique lhe
oferecessem a privacidade necessária para Elena falar com seu
amor proibido, Paulo.

— Que trilha é aquela, Rico? Acho que nunca caminhamos por


ela — a jovem escritora apontou para um caminho de pedregulhos
além de uma pequena clareira.

— É a trilha que vai para o chalé de Lucas e Lilly, a mais ou


menos meia hora daqui...

O caseiro e a cozinheira da abadia pareciam estar sempre na


mansão, então Cathy surpreendeu-se com o fato de que não viviam
lá, como a maior parte dos funcionários.

A curiosidade de Cathy a atingiu como um raio quando a palavra


“chalé” foi mencionada. Pensou nos romances do século XIX que
adorava: Jane Eyre; O Morro dos Ventos Uivantes; Norte e Sul...
Sentiu-se uma daquelas grandes heroínas!

— Podemos visitá-lo, Rico? O chalé, quero dizer?

— Você realmente acha que eu teria coragem de dizer não a


você?

Ele agarrou a mão da garota, que estava começando a esfriar, e


colocou dentro da sua, que ainda estava quente. Enquanto seguiam
pela trilha, conversaram animadamente sobre as origens do chalé e
não notaram, entre os grandes vidoeiros e faias do bosque, que o
céu se tornava cada vez mais cinzento.

A sonhadora Cathy imaginara uma simples construção, com


apenas um cômodo e uma pequena chaminé, no meio de uma
clareira como aquela que acabara de atravessar. Acertou apenas no
último aspecto: quando o bosque se abriu em um espaço circular de
mata baixa, a ruiva ficou chocada ao descobrir que o “chalé” de
Lucas e Lilly era uma casa maior que a sua na Califórnia, apesar de
ter somente um andar.

Cada parede tinha janelas com molduras delicadas, embaixo das


quais jardineiras floridas coloriam o ambiente. Era uma construção
charmosa, com tijolos aparentes pintados de branco e com telhado
vermelho. Era simples, entretanto, passava um ar de conforto e
romantismo.

— Temos que voltar, Cathy — Rico comentou, olhando para o


alto. — As nuvens estão se aproximando. Vai chover a qualquer
instante.

Apesar de decepcionada por não ter tido muito tempo para


explorar o local, a jovem também não desejava pegar meia hora de
chuva. Em menos de cinco minutos de caminhada, pingos grossos e
gelados atingiram suas cabeças. Em seguida, vieram os raios.

Enquanto seguiam para o chalé, a trilha estava em descida,


então a caminhada fora rápida e fácil. No entanto, agora a
inclinação, com o terreno molhado e escorregadio, trabalhava contra
eles, e a escritora temia cair na lama a cada passo.

— Acho melhor darmos meia volta e entrarmos no chalé, Cathy!


Está perigoso ficar aqui fora. A tempestade está piorando, e ainda
estamos longe demais da abadia!

— Imagina, Rico! É só uma chuvinh... AAAAAH! — ela gritou,


apesar de querer transparecer coragem, quando um raio atingiu
uma árvore próxima. — Sim, chalé, ótima ideia!

A porta branca estava destrancada; e o ambiente, tão frio quanto


o exterior. Imediatamente, e com a familiaridade de alguém que
passara muito tempo naquela casa, Rico pegou duas toalhas em um
armário no corredor, entregando uma para Cathy e jogando a outra
sobre os próprios ombros. Foi rapidamente até a lareira, a fim de
acendê-la, buscando algum calor naquele ambiente que ficava cada
vez mais frio.
Felizmente, de tanto acender as antigas lareiras da abadia nas
últimas semanas, Henrique não demorou muito para conseguir
produzir chamas na do chalé, arrancando o sobretudo molhado do
corpo ao mesmo tempo. Cathy sentou-se ao seu lado, os cabelos
pingando, os lábios tremendo, as mãos geladas, o nariz vermelho, já
sem o casaco de lã, que ficara encharcado no trajeto.

Foi assim, em um instante, que a imagem dela ficou nítida para


Rico: ele detestava sentir que estava se aproveitando da
vulnerabilidade da jovem, mas não conseguiu deixar de notar como
a camiseta branca grudava no corpo dela, o tecido agora
transparente, deixando a curva dos seios à mostra.

Completamente esquecido do frio, Rico a pegou no colo e a


levou até o quarto de visitas.

— Rico? O que está fazendo? Quero ficar perto da lareira! Estou


com frio!

— Não se preocupe, Cathy. No quarto de visitas tem aquecedor.


Tem cobertores também. E, se nada disso for suficiente para
aquecer você, bem... estou aqui.

Se essas palavras não tinham deixado suficientemente claras


suas intenções, então seus olhos escuros, encarando Cathy com
uma paixão ardente, foram nítidos. Ela poderia ter parado por aqui,
mas não queria. Desejava o mesmo que Henrique. E, se havia
sentido frio momentos antes, agora seu corpo formigava de desejo
pelo homem que a carregava.

O aquecedor foi ligado enquanto Cathy ainda estava no colo de


Rico. Ele a colocou delicadamente no chão, ao pé da cama. A jovem
havia abandonado os tênis encharcados à porta da casa. As toalhas
de ambos já haviam sido esquecidas na sala.

Rico deslizou as mãos pelos braços de Cathy, depois por sua


cintura e finalmente por suas pernas. A respiração dele contra o
pescoço dela a deixou arrepiada. Quando ele alcançou a barra da
camiseta, parou. Encarou-a, pedindo permissão. Ela parecia
nervosa, mas firme, ao lhe dizer:

— Eu também quero você, Rico.

Henrique arrancou a camiseta e as calças dela em tempo


recorde, puxou Cathy para si, segurando seu pescoço enquanto
devorara os lábios dela com os seus, com um desejo desenfreado,
fazendo com que o beijo fosse quase doloroso. Ela se deixou ser
invadida, enquanto tirava a camisa dele.

Quando Cathy tentou desabotoar as calças de Rico, seus dedos


trêmulos não permitiram que concluísse a tarefa. Ele se afastou
dela, o espaço criado entre os dois causando-lhes calafrios, e livrou-
se do par de jeans olhando para ela. A respiração deles estava
acelerada, e Rico não levou mais de alguns dolorosos minutos para
retornar aos lábios dela, as mãos acariciando suas costas, seus
cabelos ruivos, os corpos se tornando um só.

Rico aprofundou o beijo, e a pressão que fez contra Cathy foi


tamanha que a derrubou sobre a cama. Ele não a deixou cair
sozinha: ficou por cima dela, o peso equilibrado sobre seus braços,
e Cathy enroscou suas próprias pernas nas dele.

Sabendo que não seriam interrompidos, certos de que os donos


do chalé somente retornariam à noite, Rico decidiu parar, garantir
que ela queria aquilo tanto quanto ele, mesmo que tirar seus lábios
dos dela lhe causasse imenso sofrimento.

— Você tem certeza de que quer continuar, Cathy? Podemos


parar quando quiser.

O rosto dela estava completamente vermelho; os lábios,


inchados; seus grandes olhos castanho-claros, semicerrados; seu
peito subia e descia rapidamente, enquanto ela inspirava e expirava
pela boca. Cathy estava convidativa, adorável, perfeita. Era difícil
para Rico aguardar sua resposta.
E se ela dissesse não? O que ele faria? Provavelmente, teria
que se refrescar na chuva congelante durante as próximas horas.
Mas não importava: mesmo sendo uma missão quase impossível,
ele não continuaria sem ter certeza de que Cathy estava pronta.

Os dedos dela deixaram o pescoço dele e exploraram seus


ombros, seu peito, os músculos contraídos de seus bíceps.
Passaram o que pareceu uma eternidade desenhando os contornos
do abdômen dele. Rico já não sabia mais quanto tempo resistiria,
quando ela finalmente disse, a voz rouca de desejo:

— Eu quero isso mais do que já desejei qualquer coisa.

Cathy sentia-se completa. Era como se um grande vazio que


existia dentro dela, e que ela própria desconhecia, tivesse sido
preenchido. Claro que já ouvira falar sobre o que acabara de fazer
com Rico (pesquisara sobre o tema na internet diversas vezes com
Lucy e Luiza), mas nada poderia ser comparado às sensações de
fazê-lo. Era simplesmente mágico.

Quando ele se levantou da cama, ela sentiu a face ruborizar.


Poderia já ser uma adulta, em todos os sentidos da palavra, mas
ainda não se acostumara a ver um homem daquela forma (e que
forma!). Rico colocou o lençol em volta da cintura e saiu do quarto.

Sentindo o frio deixado no espaço que ele preenchia na cama e,


ao mesmo tempo, querendo manter intacto o orgulho de uma
heroína que jamais assume sentir falta do herói, ficou na dúvida se
gritava ou não por aquele homem, se lhe pedia ou não que
retornasse à cama.

Antes que Cathy pudesse decidir sobre o próximo passo, o


objeto de seus devaneios retornou ao quarto de hóspedes. Trazia
consigo uma bandeja com prato de frios, cesta de pães, uma taça e
uma garrafa de vinho. Ela riu ao pensar que a fome pela comida era
quase tão grande pela fome que tinha por ele...
— Está rindo de quê, Cathy?

Os olhos de Rico já escureciam, ao ver as suas bochechas


vermelhas e seu sorriso tímido.

— Nada... — Cathy comentou enquanto preparava sanduíches


para os dois. — Eles não vão se importar? Os donos da casa, digo?

— Já liguei para avisar que estamos aqui. A tempestade piorou,


Cathy. Estamos ilhados.

— Alguém virá nos buscar de carro? Eu não vi nenhuma estrada


por perto...

— E não há. Esta propriedade só é acessível a pé.


Provavelmente, eles devem permanecer na abadia até amanhã. E
nós vamos ter que dormir aqui...

— Dormir aqui? E vamos fazer o que até amanhã?!

Ah, ela fazia aquilo para provocá-lo, Rico tinha certeza. Aquelas
bochechas rosadas, aqueles lábios perfeitamente vermelhos, os
olhos adoravelmente esbugalhados. Ele abriu um sorriso
enigmático, que transformava as pernas de Cathy em gelatina, ao
responder:

— Muito mais daquilo que temos feito desde que chegamos ao


chalé...

Abadia de Kingsway, as semanas seguintes...

Nas semanas após a visita ao chalé, guardaram o que fizeram


entre os dois (e Elena percebeu o que acontecera no momento em
que viu o irmão e a amiga chegarem à abadia na manhã seguinte).
No entanto, o segredo não os impediu de repetir muitas vezes o que
acontecera durante aquela tempestade.
Se algum empregado passasse pelos corredores onde ficavam
os quartos à noite, poderia ver uma ruiva correndo para o quarto do
filho do senador ou um moreno alto invadindo o quarto de hóspedes.

Duas semanas depois do evento no chalé, Rico — em sua cama


e no meio da noite — finalmente questionaria a escritora sobre o
que vinha acontecendo entre eles.

— Quando vamos assumir que estamos juntos, Cathy? Estamos


juntos, não estamos? — como sempre, temia que a resposta da
Garota da Califórnia não fosse aquela que ele esperava; nunca era.

— Eu gosto das coisas do jeito que estão, Rico. Sinto que, por
ser um segredo nosso, é muito mais valioso.

Era verdade, mas havia outro motivo para Cathy temer que seu
relacionamento se tornasse público: ela escutara a discussão entre
pai e filho na biblioteca e sabia que o senador não aprovaria o
envolvimento dos dois.

— Cathy, eu realmente gostaria de fazer isso do jeito certo. Do


jeito que você merece.

— E de que jeito eu mereço?

Ficou imediatamente curiosa. Os olhos de Rico lhe imploravam


que não fizesse essa pergunta, como se ele fosse libertar algo que
estava havia muito tempo preso em sua garganta.

— Você merece ser tratada com carinho e com respeito. Merece


que o homem ao seu lado saiba que cada momento que passa
contigo o torna o maior sortudo do planeta. Merece ser a prioridade,
sempre e para qualquer situação. Merece alguém que lhe traga café
da manhã na cama quando você estiver cansada, alguém que lhe
dê chocolate quando você está naqueles dias (enquanto finge que
nem sentiu sua mudança de humor), alguém que enxugue suas
lágrimas e lhe garanta que vai ficar tudo bem, alguém que leia seus
textos e reconheça seu talento neles, alguém que valorize sua
inocência e faça de tudo para preservá-la (na medida do possível, e
desde que permita que esse alguém continue invadindo seu quarto
à noite). Mas talvez eu seja um pouco egoísta. Porque eu também
quero coisas. Quero que seu rosto seja a primeira coisa que eu veja
todas as manhãs. Quero poder beijá-la sem me preocupar se
estamos sendo observados. Quero poder pagar mico e fazer uma
serenata de amor à sua janela. Quero poder gritar aos quatro ventos
que pertencemos um ao outro. Quero dizer “eu te amo” sem medo
de não ser correspondido.

Foi então que o rosto de Cathy se transformou. Ela sorriu. Com


os lábios, com os olhos, com o corpo, com a alma. Ela era a
escritora, mas ele, naquele momento, era infinitamente superior com
as palavras. E a jovem conseguiu dizer, simplesmente:

— Eu também te amo, Rico.


Capítulo 18

“Os seus sentimentos são tão guardados que parecem não


existir realmente”

(Jane Austen)

Backhan, entre outubro e novembro de 1815.

Mais de três semanas haviam se passado desde que Catherine


enviara a carta ao advogado de Christine, o Sr. Clayton. Esperava
que ele lhe respondesse logo, até porque a condição de Sebastião,
apesar de estável, não melhorara, mesmo com todos os esforços do
Sr. Assis.

Ela havia deixado claros a gravidade da situação e os motivos


que a levavam a desconfiar da mulher que era alvo de suas
acusações. Catherine, entretanto, dependia de algumas
confirmações por parte do advogado para ter certeza de que suas
suspeitas tinham fundamento.

Caminhava pela sua propriedade pensativa, sem rumo e sem


companhia, quando começou a chover. Olhando em volta, notou
que havia passado tanto tempo distraída que adentrara, sem querer,
nos terrenos de Christine, estando mais próxima da abadia que de
Greenwoods House. Correu, então, até a casa da amiga.

Henrique não deveria ter duvidado da teimosia de Lady


Catherine. Desde a troca de farpas deles na biblioteca, não havia
chegado mais perto dela. E a jovem não demonstrava ter se
importado muito. Pelo contrário: parecia adorar provocá-lo com
olhares e comentários sarcásticos, sabendo que ele não faria nada
na companhia de outras pessoas.

Ele bem que tentara ficar a sós com ela ao longo de suas visitas
nas últimas semanas, mas Catherine parecia adivinhar seus planos
e sempre usava artimanhas para estar acompanhada de alguém.

Frustrado com suas tentativas infrutíferas de não pensar nela


naquela manhã, o cavalheiro decidiu buscar, na biblioteca, algum
título para distraí-lo. Foi quando viu exatamente o objeto de seus
pensamentos. Catherine corria pelos jardins da abadia, na chuva.

Irritado pela atitude irresponsável da moça, que poderia pegar


um resfriado, ele foi apressadamente até a porta principal da abadia.
No caminho, quase esbarrou com uma camareira e aproveitou para
pegar um lençol que ela carregava. Henrique alcançou a porta
quando Catherine estava prestes a anunciar sua chegada.

— O que acha que está fazendo? — ele perguntou enquanto a


puxava para o lado de dentro, jogando o lençol em volta dela,
tentando secá-la. — O que passava pela sua cabeça quando
decidiu sair para caminhar na chuva?

— Não estava chovendo quando eu saí, seu tolo! — ela


respondeu, irritada, apertando o lençol em volta de si.

— Estava nublado desde cedo! E vou ter que castigá-la por me


chamar de tolo!

— Sempre está nublado na Inglaterra! — a dama gritou de volta,


depois de espirrar algumas vezes.

Ela tentou a sair dos braços de Sr. Teles, mas ele afastou as
pequenas mãos dela e continuou a secá-la. Philip, que escutou o
burburinho, ao ver o que acontecia, fingiu não ter notado a chegada
da visitante e deixou o lobby antes de ser notado pelo casal.
— É tudo aquilo de que eu precisava agora. Ter mais uma
enferma para cuidar — ele comentou de forma esnobe.

— Não preciso que cuide de mim! — um espirro — Assim que a


chuva passar vou embora — outro espirro —, e o senhor se livrará
de mim!

— E quem disse que eu quero me livrar de você? — Henrique


mudou completamente de tom ao dizer aquilo, passando os braços
em volta da cintura da moça, aproximando-a dele.

— Talvez eu queira me livrar do senhor, então — ela respondeu


em tom petulante, o que deu mais vontade a ele de calá-la com os
próprios lábios.

Como de deixa, trovões começaram a cruzar os céus, e a chuva


virou uma grande tempestade. Tomando Catherine pela mão,
Henrique a guiou até a biblioteca, onde a lareira estava acesa. Eles
ficaram parados, de frente para a janela, assistindo à tempestade
tornar-se cada vez mais forte, a ponto de não conseguirem mais
enxergar dez metros à frente do jardim.

— Acredito que não vá se livrar tão cedo de mim, Catherine.

De fato, Lady Catherine não conseguiria se livrar do Sr. Teles tão


cedo. Na realidade, ela nem sequer conseguira deixar a proteção
das paredes centenárias da abadia durante todo o dia. Os dois
acessos à propriedade não podiam ser usados no momento: a ponte
de madeira fora destruída, levada pela tempestade, e a ponte de
pedra estava submersa nas águas do rio por que passava.

Por mais que insistisse, Elena não havia convencido Christine a


deixar o leito do marido. Portanto, decidira ficar com ela de
companhia, tentando, ao menos, fazê-la alimentar-se e distrair-se
com livros e jogos de cartas. O Sr. Assis também passava boa parte
do tempo nos quartos de Sebastião, descendo apenas para fazer as
refeições com Catherine e Henrique e para buscar algum livro
médico na biblioteca.

Enquanto isso, Henrique passou a se esforçar em sua estratégia


de ficar a sós com Lady Catherine. E conseguiria atingir seu objetivo
naquela noite, após o jantar.

Catherine, o Sr. Teles e o Sr. Assis decidiram ouvir um pouco de


música depois do jantar. Após muita insistência dos cavalheiros, a
dama aceitou tocar para eles por alguns momentos. Apesar de não
ser grande pianista, Catherine tinha um talento natural para a
música e concentrou-se nos sons que seus dedos produziam ao
dançar pelo teclado do instrumento.

Em pouco tempo, ela havia se perdido na música, em suas


variações e ritmo e nem notou, um quarto de hora mais tarde, que o
médico saiu do cômodo, deixando-a sozinha com um libertino mal-
intencionado...

O coração de Henrique acelerou quando Paulo lhe disse, em


uma voz baixa para apenas ele ouvir, que iria verificar Sebastião e
Christine. Esperou até que o médico fechasse a porta para se
levantar. Silenciosamente, caminhou até o instrumento; Catherine
tocava com tal elegância que ele mal notava alguns poucos erros
que ela cometia. A jovem estava de costas para ele, a cabeça
incinada para o lado, expondo seu pescoço de forma graciosa e,
para ele, sensual.

Sem conseguir se segurar, o Sr. Teles abaixou a cabeça,


inclinando o corpo para a frente, e beijou o pescoço da dama.
Imediatamente, a música cessou, e ambos congelaram. Henrique
afastou um pouco seus lábios da pele de porcelana, mas sua
respiração continuava a cariciar o pescoço dela. Esperou a reação
de Catherine com o coração acelerado.
Cada momento o deixava mais inseguro. Ela lhe daria um tapa
na cara? Gritaria? Afastaria-se dele? Talvez ele devesse ter se
comportado melhor. Talvez ela não estivesse pronta ainda para
perdoá-lo. Talvez ele tivesse que fazer logo a proposta que
queimava em sua garganta, mesmo que arriscasse ser rejeitado.

Estava prestes a falar quando Lady Catherine fez um discreto


movimento. Inclinou levemente a cabeça, expondo seu belo
pescoço ainda mais para ele. Os lábios de Henrique estavam sobre
a pele dela logo em seguida; as mãos dele, sobre seus braços
delicados, esfregando-os freneticamente, querendo tocá-la mais,
querendo tê-la mais para si.

Quando Catherine não conseguiu segurar um gemido, Henrique


perdeu todo o autocontrole que ainda tinha, abriu a boca e puxou a
pele dela, as mãos agora buscando os contornos voluptuosos de
seus seios. Em vez de afastar-se, a moça arqueou as costas,
facilitando o acesso dele. O Sr. Teles desejava que todas aquelas
camadas de tecido não estivessem entre eles, mas, mesmo através
delas, conseguia sentir a pele da jovem queimando sob seus
toques.

— O que está fazendo comigo, Cathy?

Ele perguntou, mas a resposta veio sob a forma de um gemido


incoerente. Ele a agarrou, um braço sob as coxas dela e o outro, em
volta de sua cintura, e, com ela no colo, a levou até o sofá
posicionado de frente para o piano. Encarou-a por meio segundo
antes de retornar os lábios ao pescoço dela; o ardor de seus olhos
castanho-claros apenas o fez desejá-la mais, se é que isso fosse
possível.

Colocou-a deitada de costas sobre o sofá e deitou por cima dela,


o peso dele sobre seus braços. Pôs uma das mãos sob seu
pescoço, enquanto a outra delineava os contornos dos lábios
vermelhos e inchados de Catherine. As pernas dele estavam entre
as dela, em suas saias. Se alguém entrasse naquele momento, a
reputação dela seria destruída, e eles teriam de se casar.
Bem, talvez fosse uma boa ideia que alguém os flagrasse
daquele jeito, Henrique pensou, antes de beijá-la na boca. Os lábios
dela tinham o gosto do vinho que tomaram mais cedo e de mel. Ele
a beijou longamente, pacientemente esperando que ela encontrasse
seu ritmo. A Lady havia ficado parada, em razão da surpresa, por
alguns segundos, mas logo o beijou de volta e abriu a boca para
que ele pudesse invadi-la.

Enquanto a beijava alucinadamente, as mãos de Henrique foram


até os tornozelos dela, cobertos por tecido, e logo começaram a
subir. Ele acariciou suas panturilhas, seus joelhos e, ao chegar às
suas coxas, finalmente encontrou a pele macia de Catherine. As
saias dela já estavam amontoadas em suas coxas, mas a dama não
parecia se importar nem um pouco. Muito pelo contrário: quanto
mais as mãos dele subiam, com mais força ela o beijava.

Percebendo que, se não parasse, iriam acabar tendo intimidades


de marido e mulher na sala de estar de Christine, Henrique afastou-
se abruptamente. Encarou-a e viu, nos olhos dela, tamnha
decepção que teve de se segurar para não voltar a beijá-la e
acariciá-la.

— Muito em breve, Catherine, eu vou lhe fazer uma pergunta. E


eu acho melhor a senhorita me responder sim — ele ameaçou,
antes de se levantar, baixar as saias da moça e sair do cômodo com
passos largos e a respiração descontrolada.

Era extremamente difícil ser um perfeito cavalheiro perto de Lady


Catherine.

— Bom dia, Robert. Poderia por favor me levar até Greenwoods


House?

Lady Catherine mal comera no café da manhã. Assim que viu


que a tempestade se fora e ouviu um dos empregados comentar
que o nível do rio havia baixado, permitindo que se passasse pela
ponte de pedra novamente, ela desejou voltar para casa.
Certamente, parte dela queria esperar até o Sr. Teles acordar, para
ver como reagiria após o encontro dos dois na noite anterior;
entretanto, a necessidade de descobrir o que acontecia a Sebastião
era maior. Ela precisava retornar e ver se o advogado de Christine,
o Sr. Clayton, já havia enviado alguma resposta.

— Claro, Lady Catherine. Vou buscar a carruagem — ele


comentou, sorridente.

— Robert, podemos ir de tilbury?

Quando viu o semblante preocupado do condutor, ela explicou:

— Gostaria de lhe perguntar algumas coisas, e seria mais prático


se nos sentássemos lado a lado.

Ela bem sabia que um tilbury não seria adequado para


transportá-la, já que o espaço era reduzido, e Robert era um
funcionário da abadia. Porém, ela pouco se importava com aquelas
regras sociais e esperava que ele também as relevasse, já que a
conhecia desde que era uma pequena criança travessa.

Felizmente, ele não fez qualquer comentário e retornou até a


entrada da abadia com o veículo solicitado por Catherine. Após
ajudá-la a subir, o cocheiro perguntou:

— O que a senhorita gostaria de saber, Lady Catherine?

— Tudo o que puder me contar sobre os empregados que


trabalhavam aqui na época que o conde faleceu — ela respondeu
seriamente.

Lady Catherine tinha uma forte suspeita de que a pessoa


responsável pela morte do conde e pela doença misteriosa de
Sebastião era alguém do passado do nobre. Entretanto, mesmo que
essa pessoa tivesse, de fato, orquestrado tudo aquilo, precisaria da
ajuda de alguém de dentro da abadia. Por isso perguntara a Robert
sobre os funcionários do conde e da condessa de Fullerton.

— Além de mim e de Philip, somente uma outra pessoa


trabalhava aqui na época que o conde morreu. É Jenny, a ajudante
de cozinha. Ela devia ter por volta dos dezoito anos quando ele
faleceu.

— Jenny!

Catherine lembrou-se de que era a mesma moça com quem


havia tido um encontro desastroso no mercado, quando derrubou,
acidentalmente, um saco de farinha. Por conta da idade, não podia
ser a mulher de quem desconfiava, mas podia muito bem estar em
coluio com ela.

— O que aconteceu com ela quando o conde faleceu?

— Ela deixou a abadia alguns meses depois.

Robert ficou pensativo, como se estivesse se esforçando para


lembrar dos detalhes. E continuou:

— Acho que foi cuidar de uma tia doente no norte ou algo assim.
Tem pouco tempo que ela retornou. Parece que a tia faleceu,
deixando Jenny praticamente na miséria, com muitas contas
médicas para pagar. Ela é bem quieta e tímida, mas é uma boa
menina.

Sobre o último comentário, Catherine nada disse. Mas perguntou


quando foi que Jenny retornou à abadia. Para sua surpresa, foi
quando a condessa retornou da França com Sebastião, semanas
antes de o homem adoecer misteriosamente. Aquilo apenas
aumentou as suspeitas de Catherine. Porém, como poderia provar
que Jenny trabalhava para a mulher que a dama acreditava ter
envenado os dois maridos de Christine?

Ao chegar perto de Greenwoods House, Lady Catherine


agradeceu a Robert e pediu que a deixasse a uma distância segura
para que não fosse vista. Entrou correndo em sua casa, pela porta
dos fundos, encontrou Claire em seu quarto e pediu que ela não
contasse a ninguém que estava de volta.

— Preciso que me faça um favor, Claire.

— Além de mentir para o Sr. Carter sobre seu retorno? — Claire


claramente não estava confortável com a situação.

— E para os meus pais e a Sra. Smith. — Catherine


complementou.

Ninguém poderia saber que havia retornado da abadia.

— Está com sorte: seus pais foram visitar os Hale ontem.


Aparentemente, eles também ficaram ilhados por conta da
tempestade — Claire contou.

— Os Hale?

Aquela era uma ótima notícia! O Sr. Hale era o pastor da cidade
vizinha. Fora ele quem casara o barão e a baronesa de Northanger.
A casa deles não era muito distante, ficava a apenas duas horas de
carruagem de Backhan. Entretanto, a estrada era ruim e ficava
perigosamente lamacenta com chuvas. Provavelmente, como a
tempestade fora feroz, somente voltariam em um ou dois dias. Isso
é, se não chovesse mais.

— Sim. E a Sra. Smith foi com eles. Sabe como ela gosta dos
Hale. Como você estava sempre indo à abadia para visitar a
condessa e o marido, ela achou que poderia aproveitar para visitá-
los.

Estava com demasiada sorte, pensou Lady Catherine.


— Isso é ótimo, Claire — Catherine comemorou sua fortuna. —
Sobre aquele favor: preciso que pegue a minha correspondência.
Sem que o Sr. Carter perceba.

Claire virou os olhos com a ordem, fazendo Catherine rir. Mesmo


assim, obedeceu-a. A Lady esperou ansiosamente pelo retorno de
Claire e descobriu, para seu alívio, que o Sr. Clayton havia, enfim,
lhe escrito. Aparentemente, o homem viajara a Bath nas últimas
semanas e por isso demorara tanto a responder.

Ela leu rapidamente a carta, que concretizou ainda mais suas


desconfianças. De fato, ele não tinha notícias da mulher de quem
Catherine suspeitava havia alguns meses e jamais conhecera a
mulher ou seu filho pessoalmente. A única informação que poderia
lhe oferecer era um endereço, o único que possuía dela.

Imediatamente, Catherine calculou quanto tempo levaria até o


local indicado pelo advogado. Constatou que talvez conseguisse
investigar a mulher e retornar sem que seus pais soubessem de sua
ausência.

— Claire, preciso que você faça mais um favor — antes que a


moça pudesse protestar, ela continuou —; preciso que você vá até a
abadia, sob o pretexto de me buscar de volta, e diga que estou com
uma forte gripe, por conta da tempestade.

— Mas a senhorita... — Catherine a interrompeu.

— Preciso que diga ao Sr. Carter que ficarei lá até melhorar um


pouco. Se meus pais retornarem antes de mim, vou precisar que
diga o mesmo a eles.

Notando a dúvida estampada no rosto de Claire, ela explicou:

— É caso de vida ou morte, Claire. Não pediria a você se não


fosse muito importante.
— Tudo bem. Se é importante, claro que assim o farei — Claire
respondeu, convicta.

Não sabia o que sua dama estava aprontando, mas logo


imaginou que era para ajudar a condessa. Juntas, saíram
discretamente de Greenwoods House e foram até a abadia.
Catherine havia convencido Claire a ajudá-la e agora precisaria
convencer outra pessoa também.

A pergunta era: o que o libertino iria querer em troca do grande


favor que estava prestes a pedir?

— Vai viajar até Yorkshire?

— Sim. Gostaria de visitar a propriedade que pertencia a Edward


e pretendo ir ainda hoje — Catherine explicou calmamente para
Henrique, na biblioteca da abadia.

— Por que diabos quer deixar Backhan? Vai deixar Christine? —


o Sr. Teles queria perguntar “Vai me deixar?”, mas seu orgulho não
permitiu.

— Estou fazendo isso exatamente por ela.

— Como assim? — ele ficou ainda mais confuso.

— Lembra-se de que eu disse que suspeitava de uma mulher?


— e prosseguiu, quando o Sr. Teles afirmou com a cabeça — Pois
bem, o último endereço conhecido dessa mulher é nessa
propriedade em Yorkshire.

— Quem exatamente é essa mulher de quem suspeita,


Catherine?

— Ela é a ex-amante de Edward. É mãe do único filho dele.


— Edward tinha um bastardo?

Sebastião jamais contara para o irmão sobre o passado do


conde. Acreditava que o segredo não era dele para contar, e aquela
história sempre deixava Christine imensamente triste.

— Sim. E a mãe dele passou um longo tempo ameaçando o


advogado da condessa, escrevendo-lhe quase que diariamente
durante meses, desejando que o filho herdasse o título e os bens de
Edward.

— E ela conseguiu algo? — Henrique quis saber.

— Não, apenas o que Edward lhes deixou em testamento —


Catherine explicou.

— A propriedade de Yorkshire — Henrique adivinhou. — Não a


deixarei ir, Catherine.

Ela estava prestes a lhe dizer onde ele podia enfiar suas ordens,
quando ele explicou:

— Não a deixarei ir se não for comigo.

Milton, novembro de 1815.

A viagem até o pequeno vilarejo em Yorshire não foi das mais


confortáveis. A chuva retornou na mesma manhã em que Catherine
decidiu ir até Milton, onde ficava a propriedade que Edward deixara
para sua ex-amante e seu filho. A Lady e Henrique deixaram
Backhan no início daquela mesma tarde, quando as estradas já
estavam lamacentas e esburacadas.

Ao menos, pensou Catherine, o barão e a baronesa de


Northanger, assim como a Sra. Smith, também não poderiam deixar
a casa dos Hale. Pois, se a estrada que ela e o Sr. Teles pegaram a
Yorkshire estava naquele estado deplorável, a estrada bem mais
estreita e íngreme que seus pais precisariam pegar para retornar a
Backhan estaria intransitável.

Robert lhes havia conseguido um condutor para levá-los até


Milton; era um rapaz de uma cidade próxima a Yorkshire que, por
sorte, conhecia bem aquela região. Pegaram emprestado uma das
carruagens da condessa de Fullerton, acreditando que não lhe faria
falta nos dois dias em que pretendiam ficar ausentes, já que ela
pouco havia saído da suíte do marido nas últimas semanas.

Em condições normais, a viagem deveria levar meio dia em uma


boa carruagem. Eles, no entanto, chegaram à cidade pouco depois
da meia-noite, o que não lhes permitiria ver a propriedade que
desejavam. O condutor deles, Lewis, levou a dupla diretamente para
uma pousada confortável, e ambos conseguiram não apenas dois
quartos, um ao lado do outro, como também um delicioso jantar,
apesar do horário.

— Espero que você e a sua esposa gostem da comida, Sr. Teles


— disse a dona da pousada com um largo sorriso no rosto.

Lady Catherine imediatamente quis corrigi-la, mas Henrique foi


mais rápido.

— Certamente gostaremos. Muito obrigada, Sra. Jonsen. Tenha


uma boa noite.

A mulher se despediu deles e se retirou, deixando-os a sós na


pequena sala de jantar que separava as suítes deles.

— O que estava pensando ao deixá-la acreditar que somos


casados? — Catherine demandou, furiosa.

— Queria que ela acreditasse que viajamos juntos sem sermos


casados? Isso certamente ajudaria nossa reputação... — ele tinha
razão, mas Catherine estava cansada demais (e orgulhosa demais)
para admiti-lo.

Aproveitando o silêncio dela, ele continuou:

— Fico contente que tenha me escolhido para acompanhá-la,


por sinal.

Os olhos da moça subiram rapidamente para os dele; ele a


encarava de uma forma sedutora e divertida ao mesmo tempo.
Estaria zombando dela?

— Pfffffff... Deus me livre! Eu não o escolhi, senhor — primeira


mentira. — Na realidade, queria que William me acompanhasse —
segunda mentira.

Ela não havia cogitado ninguém além do Sr. Henrique Teles. Mas
ele jamais saberia disso.

— No entanto, Will viajou. Acho que foi à França.

Primeira verdade: William deixara Backhan alguns dias antes


para uma missão misteriosa. Apenas havia dito a Catherine que ela
torcesse para que tivesse um final feliz; ela não tinha ideia do que
ele estava falando.

— Eu estava sem saber a quem pedir que me acompanhasse —


outra mentira de Catherine — quando o senhor me ameaçou de me
impedir de vir se não viesse comigo. Eu jamais escolheria uma
companhia tão...

— Atenciosa? Irresistível? Agradável? — ele ofereceu.

— Libertina — ela completou, entredentes.

— Começo a acreditar que é exatamente isso que gosta em


mim.
— Eu. Não. Gosto. Do. Senhor — ela pronunciou lentamente,
ficando vermelha.

— Ah, mas os beijos que trocamos me contam uma história bem


diferente.

— Boa noite, senhor! — ela desejou, irritada, levantando-se da


mesa.

Rindo, ele a agarrou pela cintura e a colocou em seu colo. Ela se


debateu contra ele até que Henrique sussurrou em seu ouvido,

— Cathy, pare de resistir. Em pouquíssimo tempo, eu lhe farei


uma pergunta e, quando você disser sim, será minha.

— E se eu disser não? — ela o provocou.

Ele nada respondeu. Apenas puxou o pescoço dela para si e,


enquanto a comida deles esfriava, demonstrou para ela exatamente
o que faria se ousasse lhe dizer não.

Ela seria sua de uma forma ou de outra.

— Como assim ela está morta?

Apesar de terem ido dormir tarde, Catherine insistira que


acordassem cedo para irem, o quanto antes, à propriedade da ex-
amante do conde de Fullerton. O lugar não ficava muito distante de
onde estavam hospedados, e chegaram lá em menos de meia hora.

A casa parecia vazia, e o jardim havia muito não era cuidado


apropriadamente. Foram em busca de vizinhos que pudessem dar
informações sobre mãe e filho.

— Estão à procura de Beth? Sinto informar, mas ela faleceu — a


Sra. Cornwell, que era vizinha da mulher desde que se mudara para
lá, lhes informou, com suspeita no olhar.

Catherine não se deu por satisfeita. Estava certa de que a ex-


amante de Edward estava, de alguma forma, relacionada com a
morte dele e com a doença misteriosa de Sebastião. Tinha também
forte suspeita de que Jenny era a pessoa que havia possibilitado o
envenenamento; afinal de contas, tinha não apenas acesso à
abadia, como também à comida dos dois senhores. Talvez a notícia
da morte de Beth ainda não alcançara sua comparsa.

— Ela faleceu há quanto tempo?

— Por volta de cinco anos atrás.

Aquilo havia sido um soco no estômago de Catherine. Se estava


morta havia tanto tempo, então não podia ser a responsável pela
doença de Sebastião ou do conde. Ambas ocorreram anos após a
morte dela. Lady Catherine estava prestes a agradecer à Sra.
Cornwell pelo seu tempo, quando a mulher voltou a falar.

— Uma morte muito suspeita, se me perguntarem.

— Como assim? — o coração de Catherine acelerou.

— Beth sempre foi uma mulher saudável e estava muito bem


naquela época até que um dia, do nada, começou a passar mal. Foi
piorando e, poucos dias mais tarde, morreu.

— Não sabem a causa de sua morte? — Henrique agora estava


intrigado.

Ele tivera dúvidas quando Catherine lhe contou sobre suas


suspeitas, especialmente depois de saber da morte de Beth. Porém,
com essa nova informação, o contexto mudara completamente.

— Não — a mulher respondeu.

— Sabe dizer se ela vivia com uma moça chamada Jenny?


Catherine calculou outra possibilidade. E se Jenny tivesse
descoberto sobre a fortuna do ex-amante de Beth e decidira ficar
com tudo para ela, passando-se pela mulher? Mas isso não faria
sentido... Jenny não conseguiria nada, a menos que tivesse em
conluio com...

— Beth vivia sozinha com seu filho, Matthew.

Sim! Agora Catherine tinha outra hipótese! E se fosse Matthew


quem estivesse em conluio com Jenny todo aquele tempo?

— Matthew por acaso tinha uma noiva? Ou uma moça por quem
tivesse interesse romântico?

Parecia que Henrique estava chegando às mesmas conclusões


que Catherine.

— Não, que eu saiba ele jamais se deu bem com qualquer moça.

A Sra. Cornwell parou de falar, como se tivesse calculando se


deveria ou não continuar. Respirou fundo e disse:

— As moças da cidade tinham medo dele.

— Medo dele? Por que motivo?

Matthew estava se tornando o suspeito perfeito. Por que


Catherine nem sequer havia pensado nele?

— Perdoem-me a intromissão, mas posso perguntar por que têm


tanto interesse neles? Ninguém jamais perguntou por Beth ou
Matthew...

— Sim, podemos explicar — Henrique respondeu.

Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, a Sra. Cornwell iria
querer entender a relação deles com os moradores.

— É uma longa história.


Quando terminaram de contar sobre o conde de Fullerton e o Sr.


Sebastião Teles, a Sra. Cornwell parecia estar prestes a desmaiar.
Ela precisou se sentar sobre um tronco caído em seu jardim, onde
estava conversando com aqueles estranhos que haviam aparecido
do nada com perguntas ainda mais estranhas.

Sempre desconfiara da morte de sua querida vizinha. Dissera


aquilo ao marido, que fez pouco caso de suas suspeitas. Algumas
pessoas da cidade confessaram que também acreditavam que havia
algo muito mal-explicado na doença misteriosa que Beth sofrera,
mas a péssima reputação do filho lhes impedira de fazer algo a
respeito.

Matthew era calado e discreto, mas muitos haviam presenciado


seus ataques de fúria. A Sra. Cornwell via nos olhos de Beth como
ela temia o filho, e muitas vezes notou hematomas e machucados
nela, apesar de Beth tentar escondê-los ao máximo. Como a vida do
irmão do cavalheiro com quem conversava estava em risco, a Sra.
Cornwell decidiu lhes contar sobre o que sabia.

— Meu Deus! — Henrique disse, estupefato. — O rapaz atacava


a própria mãe. É um monstro.

— Sabe onde ele está? — Catherine perguntou.

— Eu evito aquela casa desde que Beth se foi, então não sei
precisamente quando ele veio pela última vez, pois passa mais
tempo fora do que aqui. Mas posso lhes garantir que não vem para
essas redondezas há pelo menos três meses.

— Sei que deve ser doloroso — Catherine disse com cautela —,


mas poderia nos falar um pouco mais da doença misteriosa de
Beth?

A Sra. Cornwell inspirou profundamente antes de responder, com


uma voz rouca e olhos marejados. E detalhou:
— No começo, ela ficou com a garganta seca e bem enjoada.
Então, achei que era um simples caso de gripe.

A mulher não viu a troca de olhares entre Catherine e Henrique e


continuou:

— Entretanto, alguns dias mais tarde, os sintomas pioraram, e


ela teve febre, sua pressão ficou muito baixa, e apareceram umas
manchas estranhas no corpo.

— Manchas no corpo? — Henrique estranhou.

Era o único sintoma que não se encaixava com o quadro de


Henrique.

— Sim, o conde também as teve — Catherine disse, entristecida.


— Ele também ficava com as pupilas dilatadas. E, nos últimos dias,
começou a alucinar também...

— O mesmo ocorreu a Beth antes de ela... — a Sra. Cornwell


não precisou concluir a frase. — Eu não entendo muito de doenças,
mas sempre desconfiei que Beth foi envenenada.

Com aquilo, a Sra. Cornwell começou a chorar. Depois de


acalmá-la um pouco, eles decidiram deixá-la em paz. Agradeceram
por sua ajuda e retornaram até a casa de Beth e Matthew. Ao se
aproximarem da construção simples e mal-cuidada, Henrique
perguntou o que fariam a seguir.

— Simples — Catherine disse. — Vamos invadir a casa de Beth


e Matthew. Qualquer que tenha sido o veneno usado para matar o
conde e Beth e para adoecer seu irmão ele deve estar lá dentro.


Capítulo 19

“Em cada personalidade há a tendência a algum mal particular...


Um defeito natural, que nem a melhor educação pode superar.”

(Jane Austen)

Abadia de Kingsway, 13 de novembro.

A neve interminável prendia Cathy às paredes da abadia havia


quase três dias. No início, ela achara o máximo todo aquele branco,
inexistente em Sunset Valley, que parecia cobrir toda a superfície da
Escócia. Brincara de bolas de neve com Rico, construíra bonecos
de neve com Elena, escorregara pelas montanhas de neve que se
formavam em torno da propriedade.

Estava tudo indo perfeitamente bem. Cathy nem se importava


que o acesso à cidade estava fechado, muito menos ligava quando
a luz acabava (uma vez que as lareiras não precisavam de energia
elétrica), tampouco a chateava a falta de internet. Aqueles pequenos
luxos mundanos nada eram comparados à atenção exclusiva de
Rico para com ela.

Desde que o senador deixara a abadia, quase vinte dias antes,


Rico e ela não se preocupavam mais em manter segredo. Podiam
namorar livremente em seus quartos, na sala, na cozinha, na
biblioteca...

Será que aquela sensação deliciosa algum dia passaria ou seria


apenas o sentimento de novidade, que felicitava Cathy como uma
brisa fresca do verão californiano? Pensando bem, a escritora
sempre sentiria prazer com as brisas que a refrescavam durante o
calor infernal do verão... Talvez o mesmo se aplicasse a Henrique
Teixeira, o Mago dos Prazeres de Catherine Murray...
O problema é que a ausência repentina de Tilney, que deveria ter
sido uma bênção para Rico e Cathy (e os demais moradores da
mansão, que estavam claramente mais relaxados sem a sua
presença opressora), acabou por ser o motivo que deixava o rapaz
estressado naquele dia.

Aparentemente, o pai não dava notícias a Elena desde o dia


anterior, e ela e Rico logo pensaram no pior. Enquanto ligavam para
todos os conhecidos do senador no Brasil e na Europa (e a lista era
incrivelmente longa, para desespero de Cathy), a ruiva estava
sozinha na biblioteca, olhando a neve cair pela janela, desejando
que a tempestade derrubasse as linhas telefônicas.

A neve não era tão divertida quando não se tinha ninguém com
quem aproveitá-la...

Entediada, de saco cheio, prestes a virar Jack Torrance em “O


Iluminado” (bem à la Jack Nicholson), a californiana decidiu que, já
que tinha tempo de sobra e falta de companhia, iria retomar as
investigações sobre Tilney. Já havia conversado com alguns dos
funcionários e descobrira que nenhum deles trabalhava na
propriedade na época em que Lana faleceu. No entanto, sabia de
uma fofoca.

Supostamente, as causas da morte da Sra. Tilney foram, no


mínimo, suspeitas, e alguns até mesmo falavam que a esposa do
senador havia sido envenenada. Durante um jantar na cozinha na
noite anterior, quando Elena e Henrique se retiraram mais cedo para
tentar contato com o pai, Cathy embebedara Lilly o suficiente para
esta admitir que conhecera a cozinheira anterior, Beth. Essa
funcionária dizia que Lana descobrira segredos sobre o passado do
senador e ameaçara entregá-lo à polícia. Pouco tempo depois, teria
morrido de maneira suspeita.

Com essa nova informação/fofoca/teoria conspiratória em mãos,


Cathy vasculhara os quartos de todos os irmãos Teixeira e também
o do senador naquela manhã, enquanto Rico e Elena ainda estavam
trancados na sala de estar, ligando para todos os conhecidos deles.
Em sua defesa, aquele tinha sido um dia insuportavelmente
monótono, que fez com que a jovem escritora jogasse para o alto a
educação que seus pais lhe haviam dado. Estava à procura de
alguma pista, e nada.

Horas mais tarde, Cathy decidiu que ultrapassaria a última


barreira da falta de vergonha: visitaria o quarto da mãe de Rico,
Lana. Desde que ouvira uma das empregadas comentando que o
cômodo era mantido exatamente como a dona o deixara, a
curiosidade se impregnara na sua alma.

Ela respirou fundo e subiu lentamente as largas escadas da


abadia.

Após verificar se o segundo andar estava vazio, Cathy


prosseguiu, entrando no longo corredor onde ela e seus anfitriões
estavam hospedados. Passou pelo seu quarto, que era o primeiro à
direita, pelos quartos dos irmãos Teixeira, também à direita, e o do
senador, o único à esquerda, até chegar ao fim do corredor, que
dava em uma porta. A suíte de Lana ficava atrás dessa última porta.

Tremendo, a ruiva virou a maçaneta arredondada com


dificuldade, as mãos suando. E a vista a paralisou. Ela esperava um
lugar sombrio, o cheiro de mofo pairando no ar, as paredes
descascando, as lembranças de morte e tristeza presentes. Em vez
disso, adentrou no quarto mais belo que jamais vira.

Toda a parede de frente para a porta era coberta por janelas, e a


vista era, na falta de palavra melhor, estupenda. Cathy conseguia
ver o caminho de pinheiros que levava à estrada, tudo coberto de
neve, a planície mais distante, após o penhasco, com St. Andrews
em sua ponta e, além da cidade, o mar.

Uma corrente de ar fechou a porta atrás da jovem americana


com um baque. O terror voltou a se instalar nela. Afirmando para si
mesma que estava tudo bem, foi verificar de onde vinha a corrente
de ar. Certamente, não era o fantasma de Lana tentando expulsá-la
de seu quarto! Ou seria?!

Enquanto tentava descobrir a fonte do vento misterioso, notou o


restante do ambiente. As demais paredes eram cobertas por um
papel de parede bege, com uma delicada estampa floral em cinza. A
cama com dossel era simples, porém elegante, rodeada por uma
cortina branca, quase transparente. Uma penteadeira, adornada
com detalhes prateados, ficava em um canto do quarto, os perfumes
de Lana ainda ali em cima, como se sua proprietária fosse usá-los a
qualquer momento. Acima do móvel, um belo espelho veneziano
decorava a parede.

Rico comentara que a mansão fora completamente reformada


quando eles se mudaram para lá, muitos anos antes, mas o quarto
de Lana parecia que tinha acabado de ser renovado. Nada estava
fora do lugar.

No que pareceu um longo período depois, Cathy chegou ao


banheiro. Descobriu que o ar entrava por sua pequena janela,
provavelmente esquecida aberta pela faxineira. O banheiro era de
cinema, muito parecido com aquele de York, mas, no lugar de
mármore rosa, a pedra era branca como a neve lá fora.

A hóspede olhou para a própria roupa, um vestido curto de


cashmere vermelho e com mangas, combinando perfeitamente com
o tom de seus cabelos. Imaginava a imagem dela própria naquele
banheiro, vista de cima. Como sangue sobre a neve. Por algum
motivo, aquele pensamento a deixou arrepiada.

— Cathy? O que está fazendo aqui?

O sangue da norte-americana gelou em suas veias. O que Rico


faria se ela desmaiasse ali mesmo e fingisse amnésia quando
despertasse, no conforto do quarto de hóspedes? Também poderia
alegar estar bêbada e perdida, afinal de contas, tomara três taças
de vinho no almoço (fora uma, mas talvez Rico não tivesse
reparado)! Talvez ela pudesse dizer que escutara um barulho
estranho vindo dali e entrara apenas para verificar se estava tudo
bem.

— Cathy, eu fiz uma pergunta.

Rico agora estava ao seu lado, segurando seu braço. Ele não
usava muita força, mas ela sentia que ele tentava controlar a raiva.

— O que você está fazendo no quarto da minha mãe?

A escritora decidiu usar a última desculpa e preparou-se


mentalmente enquanto se virava para Rico. Foi quando viu os olhos
dele. Ela já esperava raiva e talvez até tristeza, mas encontrou algo
que a surpreendeu: viu vergonha nele. Por quê?

Como sempre, a maldita curiosidade a atacou, e ela acabou


desembuchando tudo: suas suspeitas, sua investigação, o que já
havia descoberto na internet, suas teorias sobre o caso... Tudo.

— Foi por isso que você gritou aquele dia, quando estava
sozinha na cozinha com meu pai? Teve medo dele?

— Sim! Foi estranho, eu me senti como num episódio de Dexter!

Aquele era o tipo de comentário que faria Rico rir, mas ele se
manteve sério. No que Cathy estava pensando, fazendo piada numa
hora dessas?

— Se você acha que meu pai é um assassino, então por que


veio?

— Eu não desconfiava quando estávamos em Londres. Minhas


suspeitas surgiram na abadia.

— Então por que não foi embora? Por que não voltou à
segurança da casa de Krista?

— Eu achei que fosse óbvio — Cathy olhou para as próprias


mãos, pois era difícil encarar Rico naquela situação. — Foi por você.
— Você quer saber a verdade sobre a morte de minha mãe?
Mesmo que isso mude tudo entre nós dois? Se bem que já mudou,
depois de você assumir a suspeita de que meu pai a matou.

Mesmo sabendo que aquela sua curiosidade era paranoica e


mórbida, Cathy queria SIM saber o que se passara naquela
mansão, tantos anos antes. Ela nem imaginava o quanto se
arrependeria dessa decisão.

O rapaz passou a mão pelos cabelos, encarando o chão de


mármore. Agarrou a jovem pelo braço e a arrancou dali, levando-a
para o quarto dele. A ruiva já conhecia cada centímetro daquele
cômodo: o piso de madeira escura, contrastando com as paredes
azul-claras e os pôsteres de filmes de Steven Spielberg. A
escrivaninha de carvalho, com a superfície cheia de riscos. Os
carrinhos de brinquedo espalhados pelas prateleiras. Um quarto de
adolescente, que Rico deixara intacto desde que se mudara de volta
para o Brasil; um quarto no qual Cathy passara noites incríveis nas
últimas semanas.

No entanto, naquele momento, tudo que ela desejava era correr


dali, mas a curiosidade a obrigava a ficar. Rico sentou-se na cama,
mantendo a maior distância possível de Cathy. Ainda cabisbaixo,
começou:

— Era uma noite ainda mais fria do que esta. Naquele ano, a
neve chegou bem mais tarde, já em dezembro, então eu e Fábio
passávamos mais tempo lá fora que aqui dentro. A gente só entrava
em casa quando já estávamos prestes a virar picolé — ele riu com a
lembrança, mas era um sorriso triste. — Também queríamos evitar
as brigas. Meus pais nunca se deram muito bem, não que eu me
lembre. Mas naquela época estava bem pior. E nossa mãe... Ela
parecia cada vez mais triste. Eu raramente a via sorrir. E ela era do
tipo de pessoa que tinha uma gargalhada deliciosa, daquelas que
fazem o quarto tremer, fazem a casa acordar, sabe? Todos nós
ríamos com ela, era quase impossível não acompanhar suas
risadas. Mas enfim... Quando cheguei à cozinha, a antiga
cozinheira, Beth, me disse que mamãe não comia nada desde
aquela manhã. Tive uma ideia para animá-la e chamei Fábio.
Leninha não estava na Escócia, estava no Rio com Sara e os pais
dela. Eu e Fábio (com a ajuda de Beth, é claro) preparamos um
jantar para mamãe, seu prato favorito: espaguete ao molho de
quatro queijos. Beth levou horas para encontrar o vinho de que
mamãe gostava e colocou um pouco de mousse de chocolate belga
na bandeja também. Nós estávamos tão animados, enquanto
subíamos pelas escadas, corríamos pelos corredores, para fazer a
surpresa. Até que chegamos à suíte dela. Aquela que você invadiu.

Cathy esperava um tom de acusação, mas ele não usou. Havia


apenas tristeza agora em sua voz. E aquela mesma vergonha que a
escritora não conseguia explicar. Rico ficou em silêncio por tanto
tempo que ela imaginou se ele teria esquecido do que falava, se
havia se perdido em suas próprias lembranças. Porém, o rapaz
continuou:

— Quando entramos no quarto, ela estava estirada na cama.


Pela palidez dela, notamos que havia algo de muito errado.
Derrubamos a bandeja no chão, o que fez um barulho estridente
capaz de acordar as pessoas em St. Andrews. Mas ela nem se
mexeu. Estava morta, com uma caixa vazia de soníferos na mão.

Rico agora olhou diretamente para Cathy, as lágrimas descendo


pelas maçãs do rosto.

— Ninguém pode ter certeza de que ela tirou a própria vida,


apesar de ser o mais provável. Na verdade, preferiria acreditar na
sua teoria, de que meu pai a matou. Pelo menos, eu saberia que ela
não abandonou os três filhos com esse monstro. Porque sim, ele
pode ser meu pai, pode não ser um assassino, mas é um monstro.
E ela sabia exatamente quem ele era. Você não tem ideia, não é
mesmo? Posso lhe garantir que não há forma pior de perder uma
pessoa que ama do que saber que ela tirou a própria vida. Saber
que aquela pessoa escolheu abandonar você, por mais que
precisasse dela. Saber que você não foi bom o suficiente para
mantê-la ao seu lado, para convencê-la de que valia a pena viver.
Nós, que ficamos para trás, somos eternamente perseguidos pela
culpa, pelo “e se”. E se eu tivesse lhe dado mais carinho, teria feito
diferença? E se eu tivesse chegado mais cedo, poderia tê-la
salvado? E se eu lhe tivesse dito “eu te amo” mais vezes, ela ainda
assim teria escolhido a morte?

Rico parou novamente de falar. Levantou-se e foi até a janela.


Cathy não sabia o que fazer, mas achou melhor ficar paradinha,
exatamente na posição em que se encontrava. Ele claramente não a
queria por perto ou então teria se aproximado, não se afastado dela.
Quando Rico voltou a falar, a voz estava rouca, quase
irreconhecível.

— A saudade, aos poucos, diminui. A dor vai aliviando. Mas a


culpa? Nunca nos deixa. Há sempre aquela amargura na garganta,
aquela sensação estranha na boca do estômago, aquela vozinha
desgraçada que fica perguntando em sua mente: “Você tem certeza
de que não poderia ter feito nada para ajudá-la?”. Sabe o que
também não muda? A pena nos olhos das pessoas ao descobrirem
que você é filho de uma suicida. Enquanto eu viver, sempre vou
repetir para mim mesmo que ela nunca tiraria a própria vida, que ela
nunca nos deixaria. Mas a verdade é provavelmente aquela que eu
mais temo.

Com isso, ele abandonou o quarto, deixando Cathy sozinha, sem


chances de se desculpar, a curiosidade desaparecida, as lágrimas
escorrendo pelas maçãs do rosto e pelo pescoço.

Abadia de Kingsway, 14 de novembro.

O elegante relógio dourado marcava cinco e trinta e dois da


manhã. Cathy não conseguira pregar os olhos. Sabia que Rico
retornara à abadia por volta da meia-noite: ele saíra logo depois da
discussão. Parou em frente ao quarto dela, ficou ali durante alguns
minutos, enquanto a jovem encarava a sombra dos pés dele pelo
vão da porta com o coração palpitando no peito. Mas Rico não
ousara tocar na maçaneta ou bater na porta. Sumira com a mesma
rapidez com que se aproximara.

Apesar de ser madrugada, quase de manhã, o céu lá fora estava


negro, deixando o quarto de hóspedes cheio de sombras, repleto de
cantos escuros e formas estranhas. Cathy não conseguia parar de
pensar no que acontecera no dia anterior e mal conseguia elaborar
uma frase completa para dizer a Rico quando o encontrasse
novamente.

Foi quando ouviu o som inconfundível de passos se


aproximando. A americana vestia pijamas com mangas compridas e
calças, mas mesmo assim sentia frio. Decidida a encarar Rico,
levantou-se, vestindo por cima da roupa de dormir um roupão
quente e botas de neve (porque o piso de granito das escadas
estava quase tão frio quanto a neve).

Todavia, nenhuma das vozes que cochichavam no corredor


pertencia a ele. Nem a Elena. Ou a qualquer funcionário da abadia.
Eram vozes graves, cujos donos pareciam muito tensos (ela achava
que escutava pelo menos quatro vozes distintas). Foi quando tudo
ficou claro para Cathy: tratava-se de um roubo ou até mesmo de um
sequestro.

Ela retornou à cama, de roupão e botas, arrancando o relógio


dourado do cabo de energia. Enrolou-se nas cobertas, preparando-
se. Não era mais aquela garotinha ingênua que foi enganada por
Lucas. Desde então, aprendera a se preparar e, principalmente, fora
ensinada a se defender. Poderiam tentar sequestrá-la, poderiam até
mesmo conseguir, mas Catherine Murray não cairia sem uma luta
digna das grandes heroínas.

Quando a maçaneta finalmente virou, ela ficou de costas para a


entrada do cômodo e fechou os olhos. Pelos passos, sabia que
somente um homem entrara. Quando ele estava a um braço de
distância de Cathy, e antes que pudesse avisar aos demais que
encontrara alguém naquele quarto, ela usou o pesado relógio antigo
para bater o mais forte possível contra a sua cabeça.
O sequestrador despencou na cama, sobre as pernas de Cathy,
com um som abafado. Ela levou alguns segundos para conseguir se
soltar, mas finalmente estava livre. Correu na direção das escadas,
quando ouviu um grito: Elena. Momentos mais tarde, ouviu a voz de
Rico, firme e confiante, ordenando aos homens que largassem sua
irmã.

Cathy admirava a coragem de Rico, mas sabia que não havia


nada a ser feito. Ela notara que o homem que invadira seu quarto
portava uma automática. E se tinha uma coisa que todo americano
reconhecia era uma arma de fogo poderosa.

Quando a discussão entre Rico e um dos homens se tornou


acalorada, a consciência de Cathy pesou, e ela fez exatamente o
oposto do que deveria: retornou ao corredor onde estavam os
quartos da família.

Escondida atrás de uma mesa de canto que ficava em frente ao


seu quarto, ela viu quatro homens vestidos de preto, apenas seus
rostos descobertos. Um deles, provavelmente aquele que tentou
atacá-la, estava sentado no chão do corredor, as costas apoiadas
na parede. Sua cabeça estava abaixada, entre suas mãos. Ah, ela o
havia machucado de verdade, pensou com satisfação. O Reverendo
Karl lhe daria um sermão se visse aquela cena, mas a jovem não se
importava. O homem invadira seu quarto, portanto merecia o
ferimento.

O homem mais alto do grupo era negro e o mais musculoso do


grupo. Sua voz grave provavelmente poderia ser ouvida de St.
Andrews. Uma ruga entre seus olhos se aprofundava enquanto ele
conversava com... o senador Tilney? Quando ele havia retornado?
Os dois homens de preto restantes seguravam Rico e Elena.

Quando o senador e o homem maior entraram no quarto do


primeiro, Cathy sabia que seria sua única oportunidade. Agarrou o
abajur de latão que estava em cima da mesa de canto (por sorte,
tratava-se apenas de uma peça decorativa, então estava desligado)
e caminhou na direção dos irmãos Teixeira.
Aproveitando que tanto Rico e Elena quanto os homens que os
seguravam estavam prestando atenção no que se passava no
quarto do senador, a escritora foi em direção ao homem que ousara
entrar em seu quarto. Sim, ele teria o que merecia. De novo.

Ao se aproximar para lhe dar outro golpe na cabeça — desta vez


com um abajur —, o homem levantou os olhos para ela, e Cathy
poderia jurar que os lábios dele formaram uma frase antes que ele
caísse estirado no chão: “Você de novo não!”. Mas ela não teve
tempo para pensar naquilo, porque o barulho do impacto fez com
que os outros dois bandidos se virassem para ela.

Rápida como um raio, Cathy bateu com o abajur contra o


estômago do sequestrador que estava ao alcance dela, aquele que
segurava o braço de Elena. Ele soltou um “UHHHH” de surpresa e
dor e agachou-se, soltando a irmã de seu amado.

Sentindo-se tão poderosa quanto Joana D’Arc, Catherine Murray


seguiu para o terceiro invasor. Ele era um pouco mais velho, deveria
ter por volta dos quarenta anos, os cabelos das têmporas grisalhos
e linhas de expressão salientes em volta dos olhos, que eram azuis
como o céu em um dia ensolarado. Ele era muito ágil, no entanto.
Conseguiu desviar do abajur de latão quando ela o jogou contra a
cabeça dele e agarrou o braço de Cathy, virando-a de forma que
suas costas estavam grudadas contra a frente dele. O malfeitor,
então, usou o outro braço para prendê-la pela cintura.

— Cathy, pare! — implorou Rico.

Isso a enfureceu. Ele não achava que ela poderia dar conta
daqueles três babacas? A raiva lhe deu ainda mais força.
Principalmente quando viu que Elena encarava, horrorizada, o
homem desmaiado no meio do corredor.

— Vou parar quando este brutamonte me soltar! Seu covarde!


Machucando uma garota com metade do seu tamanho!
— Moça, foi você quem derrubou dois dos meus homens. Não
sou eu a ameaça, mas você sim!

— Cathy, pare de se contorcer. Ele vai acabar machucando você


sem querer — disse Rico, com olhar de pura preocupação.

Como se Cathy fosse uma boneca de porcelana, prestes a


quebrar. Humph! Precisaria de muito mais para machucá-la!

Os irmãos Teixeira poderiam ter aceitado a derrota. Mas teriam


que derrubar Catherine antes de ela se dar por vencida! Ainda usou
uma das pernas para dar um chute para trás, como um coice,
acertando bem na virilha de seu sequestrador. O homem urrou alto,
as mãos abandonando-a, seguindo instintivamente para o local
atingido.

— Então, esta é a menininha que está causando tanta comoção?

O tratante maior, aquele que estava com Tilney, já saía do


cômodo. Suas palavras eram sarcásticas, mas sua voz expunha sua
irritação e um pouco de admiração também. Sacou a arma do coldre
e mirou na perna de Cathy. Enquanto Rico jogava-se na direção da
ruiva, e Elena gritava “NÃOOOOOO!”, a bala deixou o cano da
automática e atingiu a Garota da Califórnia. Mas o sangue não
jorrou, como acontecia nos filmes. Em vez disso, tudo ficou preto ao
redor dela.

Antes, porém, de ser envolvida pela escuridão, ela ouviu a voz


acusatória do senador:

— Eu sabia! Eu sabia que essa garota só iria trazer confusão!

Londres, 14 de novembro.

O cérebro de Cathy martelava contra seu crânio. A dor parecia


aquela da ressaca. A jovem precisou de alguns momentos para se
recordar do que havia acontecido antes de apagar.

A luz do ambiente fazia seus olhos arderem. Ainda assim,


forçou-se a abri-los. Estava em um espaço sem janelas, apenas um
grande espelho à esquerda, uma câmera presa no teto, à sua frente,
uma mesa de metal e duas cadeiras. Seu pulso estava preso à
mesa por algemas.

— Se você prometer que não vai tentar me atacar novamente,


tiro suas algemas. — veio uma voz rouca atrás dela.

Era o homem mais velho do grupo de bandidos, aquele que


havia levado o chute no meio das pernas.

— Eu sempre vou atacar quem tentar me sequestrar.

— Nós não tentamos sequestrá-la, senhorita Murray. Somos da


Scotland Yard.

Cathy ainda sonhava? Por que a Scotland Yard, a polícia


londrina, invadiria a abadia? Na Escócia? Nesse momento, um
segundo homem entrou na sala. Era aquele que lhe dera um tiro
(que a essa altura a americana sabia ser de tranquilizante). Os dois
sentaram-se nas cadeiras à sua frente, na outra ponta da mesa.

— Não me importa de onde são. Tirem essas algemas de mim


ou vou processá-los!

Os dois entreolharam-se, o mais velho com um sorriso nos


lábios, e comentou baixinho para o outro: “americana”. O alto negro
aproximou-se de Cathy e retirou as algemas. Ela esfregou o pulso
automaticamente, mas não estava machucado. O homem mais
velho continuou:

— Sou o Detetive Andrews. Este é o Detetive Lewis — ele


mencionou, apontando para o outro. — A Polícia Federal brasileira
está à procura de Flávio Azevedo Teixeira há anos. E, graças a
você, conseguimos finalmente ajudá-la a capturá-lo.
— Eu não conheço nenhum Flávio — Cathy mal conseguia
pronunciar aquele nome. — Deve haver algum engano.

— Você o conhece como senador Tilney. Mas esse não é seu


nome verdadeiro. Mais de duas décadas atrás, foi descoberto um
desvio do equivalente a mais de quinze milhões de dólares na
prefeitura de uma cidade no interior de São Paulo, no Brasil.

Eu sei onde fica São Paulo, Cathy quis dizer, mas manteve-se
calada.

— Comprovou-se que o principal responsável pelo esquema era


o prefeito da cidade. À época, o homem sumiu sem deixar vestígio,
e muitos acharam que estava morto. Agora sabemos o que
aconteceu: ele fugiu para a Escócia, com a esposa e os três filhos
pequenos, mudou de nome, fez cirurgia plástica no rosto para não
ser reconhecido e, uma década mais tarde, retornou ao Brasil, desta
vez com o sobrenome Tilney. É senador desde então.

Ao ouvir a odisseia do pai de Rico, o primeiro pensamento de


Cathy foi como aquela história daria um ótimo livro. Mas outro
pensamento logo tomou conta de sua mente: Rico sabia? De fato,
ele havia chamado seu pai de monstro no dia anterior. Será que se
referia a isso? E, caso soubesse, era cúmplice?

Aparentemente, a história — ainda — não havia terminado, pois,


após uma curta pausa, o Detetive Andrews prosseguiu:

— Alguns meses atrás, a Polícia Federal iniciou outra


investigação, sem qualquer ligação com aquela de São Paulo. Desta
vez, tentavam acabar com um esquema de lavagem de dinheiro
com frutos ilegais de corrupção. Essa nova investigação nos
envolveu, pois houve vários suspeitos que supostamente haviam se
refugiado em Londres (entre os quais, o próprio senador), e boa
parte do dinheiro apreendido estava na Suíça e em paraísos fiscais.
Foi um dos delatores, que admitiu ser comparsa do senador Tilney
de longa data, quem revelou sua verdadeira identidade. Mesmo
sabendo quem ele era, a Polícia Federal brasileira não conseguia
encontrá-lo. Foi quando nos acionaram para ajudá-la a descobrir
seu paradeiro.

— Mas não era óbvio que ele estava na abadia? Ela está no
nome dos Tilney, afinal de contas.

Cathy deveria ficar calada, sabia muito bem, mas não resistira.
Esses caras não deveriam ser os melhores investigadores do
mundo? Depois do FBI e da CIA, é claro.

Para sua surpresa, o Detetive Lewis engasgou, tentando conter


uma gargalhada. Quando recebeu um duro olhar de reprovação do
Detetive Andrews, voltou à sua fachada séria original.

— Sim, é óbvio. Foi o primeiro lugar em que procuramos — o


Detetive Andrews respondeu, enfim. — Nossos contatos na polícia
escocesa informaram que a família não visitava a propriedade havia
muitos anos, então concluímos que o senador não seria estúpido o
suficiente para ir à abadia. E, de fato, não foi sua primeira opção. A
polícia brasileira chegou a rastreá-lo em Paris, e, depois, nós
descobrimos onde estava hospedado em Londres. A partir daí, ele
desapareceu. Novamente. Foi quando um dos nossos viu uma foto
dele em frente à abadia, com dois dos filhos e você. Foi uma foto
que publicou no seu perfil do Facebook, senhorita Murray.

Cathy gelou, finalmente compreendendo a acusação que o


político fizera na abadia antes de ela apagar.

— Jamais imaginávamos que o senador Tilney, ou melhor, o Sr.


Teixeira, voltaria àquele local. Ficamos de plantão na estrada que
vai à abadia nos últimos quinze dias, certos de que ele, mais cedo
ou mais tarde, retornaria, nem que fosse para buscar os filhos.
Aparentemente, acabaram os amigos dispostos a escondê-lo da
polícia. Desta vez, ele não conseguiu escapar. E vai passar muitos
anos na cadeia.

Muitas perguntas passaram pela cabeça de Cathy ao mesmo


tempo. Por outro lado, sentiu que o Detetive Andrews estava
cansado de falar, e que, muito em breve, seria a vez dela de
responder às suas perguntas. Portanto, escolheu aquela mais
urgente:

— E o que acontecerá a Elena e Henrique?

— Todos os três filhos do Sr. Teixeira estão sob custódia e


retornarão ao Brasil, a fim de serem questionados pela Polícia
Federal brasileira. Acreditamos que não estivessem diretamente
envolvidos com os esquemas do pai, mas a participação deles
precisa ser melhor investigada. Especialmente depois das
revelações feitas pela mãe deles, a Sra. Lana Tilney, em seus
diários.

— Vocês encontraram os diários dela?

— Não. Foi Henrique Teixeira quem nos entregou.


Voluntariamente. Ele insistiu que deveríamos soltá-la de imediato,
senhorita Murray. Foi seu único pedido. E vamos fazê-lo, não se
preocupe — ele emendou, quando viu os olhos de Cathy se
esbugalhando, sem saber que a surpresa dela era pela defesa de
Rico, não pelo fato de que seria liberada em pouco tempo. —
Apenas gostaríamos de fazer algumas perguntas.

— Mas eu não sei de nada! Juro!

— Nós estamos cientes de que não tinha qualquer relação,


direta ou indireta, com o esquema de corrupção. Mas a senhorita
tem acompanhado a família nos últimos meses. Talvez tenha
conhecimento de fatos relevantes para nossa investigação, e nem
sabe da sua importância.

Cathy respondeu a todas as perguntas dos investigadores. Foi


paciente e meticulosa (na medida do possível, porque depois de
duas horas todas as suas fibras desejavam sair daquele local).
Aguentou centenas de perguntas, que eram feitas de centenas de
formas diferentes. Tudo para, ao final, pedir aos detetives para falar
com Rico.
— De jeito nenhum! — foi a única resposta que recebeu de nove
detetives diferentes.

Caixa de entrada do e-mail de Rico, 17 de novembro.

Querido Rico,

Nem sei se ainda me considera uma pessoa querida para você,


mas saiba que, independentemente do que aconteça, sempre será
especial para mim. Queria ter feito isso pessoalmente, porém não foi
possível (e eu juro que tentei! Nove vezes!).

O que queria dizer, na verdade queria pedir, é perdão. Odeio o


que fiz a você. Não consigo parar de pensar no que disse sobre o “e
se” e como ele nos persegue.

E se eu tivesse deixado as minhas suspeitas sobre o seu pai


para lá, como você pediu? E se, ao desconfiar que havia algo de
errado, eu tivesse conversado contigo? E se tivesse lhe dito que os
sentimentos de sua mãe por você e seus irmãos nada têm a ver
com a morte dela? E se, naquela noite, no seu quarto, eu tivesse
dito que, quando olho para você, sinto amor, carinho e desejo,
jamais pena?

Inclusive, foi um “e se” que martela sem parar em minha cabeça


o responsável por este e-mail. Meu coração insiste em me perguntar
diariamente: “E se você enviar um e-mail para ele, explicando como
se sente, ele poderia lhe perdoar?”.

Espero com todo o meu coração que a resposta seja sim.

Sempre sua,

Cathy


São Paulo, 21 de novembro.

“Querida Cathy”. Tudo que ele conseguira escrever nas últimas


duas horas. E nem essas palavras pareciam adequadas para o que
ele queria dizer. Depois de tudo o que acontecera, Cathy queria o
perdão dele? Se alguém deveria se desculpar, esse alguém era ele!

Elena ria ao se lembrar de como Cathy tentou defendê-los


bravamente, mas Rico sentia apenas raiva. Raiva do pai, por ter
feito todos eles passarem por aquilo. Raiva da Scotland Yard, por
invadir a abadia daquela maneira. Raiva de si próprio, por conta das
últimas palavras que dissera a Cathy. Palavras cheias de mágoa, de
ressentimento. Totalmente diferentes do amor que sentia por ela.

Quando Cathy lhe contara sobre suas suspeitas, Rico sentiu


tristeza e vergonha. Porque ela estivera, até certo ponto, certa. Se
teve alguém capaz de levar Lana a tirar sua própria vida, esse
alguém era o senador Tilney. Então, de uma certa forma, fora seu
pai quem matara sua mãe.

E, quando Rico ficou enfurecido, não foi para proteger a honra


do pai. O homem nunca merecera sua compaixão, e muito menos
seu respeito. Na verdade, desejava somente manter a memória da
mãe intacta.

Agora, além de ter sido o responsável pela perda da mãe, o pai


de Rico também lhe havia tirado a liberdade. A liberdade de sair do
país, de correr atrás de Cathy onde quer que ela estivesse. Seus
advogados juravam que o juiz iria decidir a favor dele e dos irmãos,
pois somente tinham provas contra o pai. No entanto, até fim do
processo, eles não poderiam sair do Brasil, o que poderia levar
muitos meses, até mesmo anos.

Era isso que tornava tão difícil escrever aquele e-mail. Rico teria
que ser o homem que Cathy merecia que ele fosse, e isso queria
dizer que teria que abrir mão de sua relação com ela e admitir que
não tinham futuro. Como poderiam ficar juntos se ele nem sequer
poderia estar ao seu lado?
Resoluto, Rico escreveu o e-mail. Escreveu sobre a
investigação, escreveu sobre o que ele próprio descobrira sobre o
pai e, especialmente, escreveu sobre ele e Cathy. Como ela não
deveria esperar por ele. Como ela deveria focar na sua carreira
literária. Como ela seria uma escritora maravilhosa. Como ela
conheceria alguém que poderia apoiá-la quando ela mais
precisasse, de uma forma que ele não podia.

Ao tocar o botão de enviar, Henrique sentiu uma dor no coração,


como se uma faca o perfurasse. Ele acabara de dizer à única
mulher que havia amado que eles não tinham um futuro.

O problema era: Rico não conseguia imaginar um futuro sem


ela...

São Paulo, 22 de novembro.

Henrique Teixeira não era o tipo de pessoa que rezava. Ele fora
batizado, catequizado e criado católico, entretanto, quando ia à
missa aos sábados, ouvia os sermões dos padres, por vezes
considerava suas palavras, mas raramente rezava.

Todavia, naquela tarde, ele ajoelhou-se no genuflexório de


madeira no momento em que entrou na Igreja de Santa Ifigênia. Foi
sob seu o teto abobadado, decorado com pinturas medievalistas
multicoloridas, e cercado por belos vitrais venezianos e crentes
fervorosos que Rico pediu, a quem quer que estivesse ouvindo, que
Cathy o perdoasse.

Horas antes, enviara o e-mail para a norte-americana,


basicamente dizendo que não teriam qualquer futuro juntos, mas,
mesmo assim, pedindo seu perdão. Já que não ficaria com a
escritora, ao menos queria que ficassem em bons termos. Quem
sabe poderiam se tornar amigos?
Se ele fosse honesto consigo mesmo, admitiria que desejava
muito mais que amizade dela: queria que ela a esperasse, por mais
egoísta que aquele desejo fosse.

— Rico?! — surpreendeu-se Elena com a atitude incomum do


irmão. — O que você está fazendo?

— Shhh! Estou rezando! O que mais faria em uma igreja?! — ele


replicou, mas não levantou os olhos enquanto se dirigia à irmã.

— Na realidade, nós três deveríamos estar nos perguntando o


que fazemos aqui — comentou, pensativo, Fábio, que vinha se
aproximando cada vez mais dos irmãos desde os acontecimentos
na abadia.

— Como assim? — Elena voltou sua atenção para o primogênito


da família.

— Eu nunca fui católico. Acredito em ações, não em sermões. E,


quando sinto a necessidade de rezar, prefiro infinitamente fazê-lo na
paz de minha própria casa. Na realidade, se eles soubessem quem
eu realmente sou, talvez nem me aceitassem nesta igreja!

A moça abriu a boca, mas, antes que ela pudesse dizer algo, ele
continuou:

— E você, Elena? Você é ainda menos católica que eu! Nem vou
falar de Rico: nos vinte e sete anos que o conheço, esta é a primeira
vez que o vejo rezar! Garanto: certamente tem algo a ver com
Catherine.

Rico já se levantara novamente, e a missa já começara. Algumas


pessoas olhavam para Fábio de canto de olho, mas ele parecia —
ou fingia — não notar.

— Pronto, Fábio — Rico disse —, parei de rezar. Satisfeito?


—Não, não estou satisfeito. Nunca estive satisfeito. Nós só
estamos aqui porque era uma exigência dele, porque ele nos
obrigou desde pequenos.

À medida que sua raiva aumentava, o tom de sua voz ficava


consideravelmente mais alto. Seus irmãos o encaravam
boquiabertos: Fábio nunca se comportara de tal maneira, sempre
preferia os cantos aos holofotes.

— E onde ele está agora? Na cadeia! Para onde quase nos


levou com ele por causa de seus esquemas de corrupção.

O rapaz estava com a respiração acelerada e seu rosto coberto


por uma fina camada de suor. Elena percebeu que as mãos do
irmão tremiam. Isso tudo seria raiva?

— Fábio... — Elena começou, mas foi interrompida.

— Cansei. Cansei de seguir as regras dele, de ser quem ele


queria que eu fosse, de fazer tudo da maneira dele. Sabe de uma
coisa? Agora serei Fábio Teixeira, não mais o filho do senador
Tilney!

Ouviam-se algumas reclamações e pedidos de silêncio, e até


mesmo o padre os encarava com olhos duros do altar. No entanto,
Henrique sabia se tratar de um momento inédito e de grande
importância para o irmão e, portanto, não pôde deixar de oferecer
apoio:

— Fico muito feliz por você, Fábio — ele disse, colocando a mão
sobre o ombro do outro. — Concordo plenamente: você tem que se
preocupar com a sua felicidade, não com a dos outros. Seja quem
você quiser, quem você é de verdade. Não importa o que aconteça,
eu e a Elena estaremos sempre aqui para apoiar você.

Isso pareceu oferecer grande conforto a Fábio, que olhou para o


irmão com emocionada gratidão e os olhos cheios de lágrimas.
Henrique e Elena respiraram aliviados: aparentemente, ele já
dissera o que estava engasgado em sua garganta.

Grande engano.

— EU SOU GAY!

O berro de Fábio fez com que os vitrais da igreja vibrassem. De


repente, houve um silêncio absoluto, que foi quebrado apenas pelos
passos dele em direção à saída. Antes de deixar o local, ele olhou
para trás, encarando os irmãos. Os olhos de Elena brilhavam com
uma rebeldia há muito acumulada.

— EU SOU BUDISTA! — ela gritou, deixando seu banco e indo


até a nave da igreja, tomando a direção da porta. Porém, seus
olhares estavam fixos em Henrique.

Não acredito que vou fazer isso, ele pensou. Sim, ele faria.

— EU TIREI A VIRGINDADE DE UMA MOÇA!

Foi a única coisa que poderia dizer depois das revelações de


seus irmãos. Sentindo-se culpado por sua colocação, pôs-se a
explicar:

— Mas, apenas para esclarecer, não quero me aproveitar dela e


muito menos partir seu coração, porque Cathy...

— HENRIQUE! VAMOS! — Elena ordenou-lhe, já à porta da


igreja.

Ele saiu correndo do recinto, sentindo o peso de dezenas de


olhos julgadores sobre si. Do lado de fora, Fábio conversava
animadamente com Elena.

— Queria fazer isso há tempos! Li em um site que um cara fez o


mesmo em uma igreja nos Estados Unidos!
— Em um site? — a caçula dos Teixeira dobrou-se ao meio de
tanto rir, mas seus irmãos não sabiam se era de nervoso pelo que
acabara de acontecer ou porque de fato achara graça sobre os
acontecimentos de momentos antes.

— Enfim, o que vamos fazer agora? — Fábio levantou as


sobrancelhas e olhou para os irmãos, com uma mistura de
ansiedade e excitação em seu rosto.

— Acho que temos que comemorar que você finalmente se


revelou! Que tal uma boate gay?

Quando Rico viu a cara de estranhamento da irmã, prosseguiu:

— Qual é, Elena! Deixa de ser pudica! Vai ser divertido! Tipo, a


Gaiola das Loucas!

Agora foi a vez de o irmão mais velho se dobrar ao meio de tanto


gargalhar, enquanto Rico piscava para uma Elena chocada. Ele
sabia como a sua caçula ficava com falas politicamente incorretas.
O choque dela apenas fez Fábio gargalhar mais.

— Ai, Jesus Cristo! — ela sussurrou, as bochechas ficando


vermelhas.

— Elena! Que absurdo! — Rico exclamou teatralmente, fazendo


cara de quem estava indignado — Você não era budista?

A coragem de Elena estava em seu auge: se ela não fizesse isso


agora, nunca mais o faria. Se Fábio podia expor sua sexualidade no
meio de uma missa católica, por que não poderia ela expor seus
sentimentos no meio de uma palestra de medicina?

Deixou (ou, como Rico descreveu, praticamente abandonou) os


irmãos no metrô mais próximo e seguiu de carro até o gigantesco
campus da USP. Ao caminhar até o edifício-sede, sentiu-se sendo
engolida por seus portões, sentiu-se enclausurada entre suas
paredes claras, e, ao subir pela escada central de mármore, era
como se Elena estivesse adentrando a barriga da baleia.

Apenas escutava o barulho dos saltos sobre o chão de mármore


e os sons abafados de uma das salas do segundo andar. Aos
sábados havia poucas aulas, e somente a palestra ocorria naquele
prédio.

Apesar do nervosismo, manteve os passos seguros e a decisão


firme, até abrir a porta da sala que procurava. Sessenta e sete
cabeças viraram-se para ela, inclusive a do palestrante. O alvo de
sua revelação estava na segunda fileira.

— EU TE AMO!

Após o grito, o alívio. E a sensação de vexame, é claro.


Enquanto seu amado a encarava boquiaberto, claramente
precisando de alguns momentos para se recompor (e beliscar a
própria perna, a fim de garantir que aquilo não era um sonho), outro
rapaz, que estava sentado na primeira fileira, dirigiu-se a Elena.

— Nossa, gata. Que surpresa. Eu me diverti muito naquelas


nossas saídas, com certeza toparia sair contigo de novo. Mas
“amor” é uma palavra muito forte, não? Além do mais... —
Fernando, um rapaz com quem Elena saíra algumas vezes no
começo da faculdade, foi interrompido por um livro que se chocou
contra a lateral de seu rosto. — Ah! Paulo, você tá maluco?

— Ela está falando comigo, seu idiota! — o rapaz estava


praticamente cuspindo fogo de ciúmes.

De repente, a dúvida pairou sobre seus olhos, e ele voltou a


encarar a louca que interrompera a palestra.

— Foi comigo que você falou, não foi? — certificou-se Paulo.


Sem conseguir segurar as lágrimas, Elena afirmou com a
cabeça. Claro que era com ele.

— Aham — um senhor que certamente já passara dos setenta


anos e que estava à frente do pequeno auditório limpou a garganta.
— Os doutores se importariam de terminar esta conversa lá fora?

Paulo deixou a sala correndo, mas sabia que deveria conter sua
emoção: não era a primeira vez que Elena se declarava para, pouco
tempo depois, terminar com ele por conta da reprovação do pai.

— Por que você fez isso, Elena? Eu achei que fui bem claro na
nossa última conversa: não podemos continuar assim.

Ela se aproximou lentamente dele, arrancando a mochila de


seus ombros e a colocando sobre o chão. Depois, colocou suas
mãos dentro das dele. Adorava o contraste entre as duas
tonalidades de pele: apesar de ser morena, quando estava próxima
de Paulo sua pele parecia branca. Os olhos acinzentados dele
estavam da cor do céu em dia de tempestade, encarando-a com
expectativa.

— Não vamos continuar assim. Vamos continuar do jeito certo:


nada mais de telefonemas sussurrados, encontros às escondidas ou
namoro secreto. Isto é, se você ainda me quiser.

Ainda sério, ele estendeu os braços e a envolveu com eles,


puxando-a até que os corpos de ambos se tornassem um só.

— Jamais vou querer nenhuma outra.

Londres, 25 de novembro.

A sensação de vazio era devastadora; Rico havia deixado claro


que não haveria nenhum futuro para eles. E por e-mail! Ele havia
dito que não havia o que perdoar, que era ela quem deveria perdoá-
lo, o que fez a esperança crescer em seu peito. Talvez tivessem sim
algum futuro. Porém, durante todo o restante do e-mail, ele tentou
convencê-la de que não deveriam ficar juntos, o que a despedaçou.

Talvez não era para ser, ela disse para si própria. Talvez não
deveriam mesmo ficar juntos. Talvez uma amizade entre os dois
seria o suficiente.

Ao menos, Cathy tinha Lady Catherine e o Sr. Henrique Teles. E


eles dois teriam um final feliz.


Capítulo 20

“Não tenho medo de mostrar meus sentimentos e de fazer coisas


imprudentes, pois acredito que o que não se mostra não se sente.”

(Jane Austen)

Milton, novembro de 1815.

Catherine havia encontrado as cartas que o Sr. Clayton havia


enviado para quem acreditava ser Beth. Ela e Henrique ainda não
conseguiam acreditar que tinha sido o próprio filho do conde quem
havia feito as exigências para o advogado de Christine. Era difícil
também digerir o fato de que, se eles e a Sra. Cornwell estivessem
certos, Matthew seria responsável pela morte de ambos os pais.

O que eles não haviam conseguido encontrar era qualquer prova


que vinculasse Jenny e Matthew. Como a vizinha deles havia
sugerido, não havia qualquer evidência de que uma mulher além de
Beth tivesse jamais adentrado aquela casa. Eles encontraram
diversas correspondências dirigidas a Matthew, mas nenhuma delas
era feminina e muito menos romântica.

E, sem alguém na abadia para ajudá-lo, seria difícil para


Matthew ter conseguido se infiltrar sem ser descoberto.

Catherine sugeriu que estava na hora de entrar nos quartos, pois


até agora haviam apenas verificado a sala de estar e a cozinha,
quando Henrique sentiu um cheiro familiar.

— O que houve? — a jovem perguntou quando viu o Sr. Teles


parado no meio da sala. — Achou algo?

— Acho que sim... Esse cheiro... — ele caminhou até uma das
janelas, olhou para fora e saiu correndo da casa, em direção a uma
pequena horta que ficava nos fundos da propriedade.

Ao alcançá-lo, a Lady viu que ele examinava uma planta que ela
não conhecia, apesar de seus frutos escuros parecerem familiares.

— São cerejas selvagens? — a dama tentou adivinhar.

— Não. São confundidas com cerejas selvagens, mas são muito


perigosas.

Havia uma linha entre os olhos de Henrique. Ele encarou a moça


e disse:

— Não acredito que não as reconheci antes. Sei agora o que


matou o conde e deixou meu irmão doente. Beladona.

— Beladona? — Catherine jamais ouvira falar naquela planta. —


É tóxica?

— Sim. Esses frutos que você confundiu com cerejas são os


mais perigosos, pois parecem bem inocentes. E têm um sabor
adocicado, também. Quando eu era pequeno, comi um
acidentalmente e passei muito mal.

— Oh! — Catherine exclamou, de repente se lembrando de onde


vira os frutos pela última vez. — Naquele dia que esbarrei com
Jenny no mercado, ela estava carregando esses frutos! E eu me
lembro de já ter visto Edward comendo torta de cerejas diversas
vezes! Era a sobremesa favorita dele!

— Jenny deve ter incluído alguns frutos de beladona. Ele jamais


notaria — Henrique concluiu.

— E, provavelmente, fez o mesmo com Sebastião — Catherine


complementou.

— Sim, lembro-me agora de tê-lo visto comendo torta de cerejas.

— Por que você e Christine jamais passaram mal?


Afinal de contas, a torta era servida a todos, Catherine pensou.

— Eu detesto doces — ele explicou —, e Christine não gosta de


cerejas. Como seu primeiro marido era viciado nos frutos, ela
acabou enjoando deles.

— Graças aos céus! — Catherine comentou. — Imagina se


todos estivessem doentes por causa da beladona?

— Porém, nunca mais vi tortas de cerejas na abadia. Jenny deve


ter achado outra forma de dar os frutos a Sebastião. Ela foi muito
esperta: se Paulo tivesse visto o fruto, certamente teria reconhecido
de imediato que era de beladona. Eu apenas reconheci quando vi a
planta — Henrique pareceu chateado por não ter pensado naquilo
antes.

— Isso faz muito sentido... E também explica por que os efeitos


foram diferentes em Edward e em Sebastião.

— As manchas vermelhas? — o conde e Beth apresentaram


esse sintoma; mas Sebastião, não.

— Sim, mas tem mais. Quando o conde adoeceu, ele faleceu


pouco mais de uma semana depois, assim como Beth, e Sebastião
está doente há muitas semanas. O que é lógico: Edward comia
muitas e muitas cerejas, mesmo quando estava nauseado, então
deve ter sido muito mais fácil para envenená-lo com os frutos da
beladona. Beth, por sua vez, era alimentada pelo filho, dependia
dele, então ele deve ter achado meios de colocar o suco da
beladona em sua bebida, por exemplo, sem que ela desconfiasse.

— Agora que estou pensando no assunto, Sebastião de fato


parou de comer tortas de cereja quando adoeceu, por conta das
náuseas — Henrique seguiu a lógica de Catherine. — Deve ser por
isso que a toxina da beladona ainda não o matou: Jenny deve estar
com dificuldade para lhe dar o fruto sem que ninguém desconfie.
Especialmente na frente de um médico.
— Como assim?

— Muitos boticários e médicos usam beladona para alguns


males — o cavalheiro explicou. — É por isso que Paulo certamente
identificaria o fruto caso o visse.

— Talvez ela tenha conseguido espremer o suco do fruto em


alguma bebida dele... Mas não muito, para que Sebastião não
identificasse o gosto... — Catherine pensou em voz alta.

— Talvez... — o Sr. Teles concordou. — O mais importante é que


sabemos qual é o veneno. Assim, Paulo saberá como tratá-lo.

— Ainda há cura para Sebastião? — a jovem fez a pergunta


mais difícil de todas.

— Espero que sim. Vamos pegar as cartas do Sr. Clayton e


vamos logo para Backhan. Temos que garantir que Jenny não vai
mais tocar na comida do meu irmão.

— Bem, isso não será necessário — Catherine disse.

Antes de deixar a abadia, a dama havia explicado ao Sr. Assis e


a Elena sobre suas suspeitas. Como eles não tinham provas, não
podiam fazer nada a Jenny, mas, ao mesmo tempo, não queriam
arriscar que ela prejudicasse ainda mais Sebastião. Sendo assim,
eles próprios dariam comida ao enfermo, sem levantar as suspeitas
sobre a ajudante de cozinha. À medida que Catherine contava a
Henrique o que fizera, um sorriso ia surgindo em seus lábios.

— Você pensou em tudo, não é mesmo?

— Vamos. Quero dar mais uma olhada na casa — ela comentou,


corando. — Ainda precisamos descobrir a relação entre Jenny e
Matthew.


Lady Catherine parou de respirar ao ver a imagem. Seria
possível? Como ele havia enganado a todos? Como ninguém havia
desconfiado? Henrique, percebendo a palidez dela, a segurou pelos
ombros. Estavam no meio do quarto de Beth, e Catherine encarava,
atônita, uma pintura de mãe e filho. Matthew devia ter por volta de
doze anos.

— Catherine? — o Sr. Teles a abraçou quando notou que ela


agora tremia. — O que houve?

— É ele! — ela exclamou, uma lágima caindo de seus olhos. —


É ele!

— Matthew? — Henrique olhou para o quadro. O rapaz lhe


parecia estranhamente familiar, mas não conseguia lembrar de
onde. Será que o havia visto em Backhan?

— Ele é ela! Essa é a ligação entre eles! Oh! Como não notei
antes?

— Notou o quê? Cathy?

Percebendo que a moça estava prestes a desmaiar, Henrique a


colocou sobre a cama. Ao sentar-se, Catherine levantou poeira do
colchão; claramente o quarto não era usado havia muitos anos.

— Matthew é Jenny! — Catherine gritou, e Henrique pediu para


que ela repetisse o que dissera.

Teria ele entendido errado? Havia ela acabado de dizer...

— Matthew é Jenny! Ele colocou uma peruca e se vestiu de


mulher! É ele!

Henrique olhou para a pintura com mais cuidado. O rapaz estava


bem jovem, mas aqueles olhos... Seria possível? Teriam todos eles
convivido tanto tempo com Jenny sem perceber que era um homem
vestido de mulher?
Agora que o cavalheiro pensava naquilo, fazia sentido; Matthew
era bem magro e tinha traços delicados. E Jenny raramente falava;
quando o fazia, era em sussurros. Ele sempre acreditara que se
tratava de timidez, mas agora percebera que era seu jeito de
disfarçar a voz masculina.

— Meu Deus! — Catherine exclamou, como se tivesse se


lembrado de algo urgente. — Agora eu entendo. Agora todas as
peças se encaixaram!

— Por favor, me explique — o Sr. Teles implorou, as mãos nos


ombros da moça.

— Eu sempre me questionei sobre o acidente da Sra. Wilson.


Como não fazia sentido os fatos da forma que ela narrara.

— A Sra. Wilson? A cozinheira de Greenwoods House que ficou


cega na abadia? — Henrique precisou concentrar-se para se
lembrar dos fatos que Catherine lhe relatara.

— Sim! Lembra-se de como lhe contei que ela sempre afirmou


ter visto um homem antes de ser atacada com água quente? Como
Jenny a encontrou e jurou que jamais vira nenhum homem? O
homem era Jenny! — Catherine resumiu, e agora era ela quem
sacudia os ombros de Henrique. — A Sra. Wilson deve ter visto
Matthew quando não estava disfarçado, e ele teve que cegá-la
antes que percebesse que ele e Jenny eram a mesma pessoa!
Provavelmente, a antiga cozinheira também deve tê-lo descoberto!
Por isso ela deixou a abadia sem qualquer explicação! Ele deve tê-
la ameaçado!

— Céus!

Henrique passou a mão pelos cabelos, sem acreditar em tudo


que ouvia. O pior é que fazia sentido, de uma forma muito doentia.
O rapaz era, de fato, um monstro!
— Vamos voltar para a pousada! Precisamos escrever à abadia
imediatamente!

Quando, enfim, eles haviam cumprido sua missão e almoçado, já


era o meio da tarde.

Ao retornar para a pousada, Henrique escreveu à irmã,


relatando-lhe tudo, aconselhando-a a não demonstrar nada para
Matthew/Jenny até que as autoridades competentes fossem buscá-
lo. Enquanto isso, Cathy escrevera duas cartas, uma para o
advogado de Christine, o Sr. Clayton, e outra para o magistrado de
Backhan, o Sr. Douglas, para que pudessem iniciar as investigações
e processos formais contra Matthew.

Em seguida, Catherine e Henrique procuraram um mensageiro


que pudesse levar as cartas a Backhan de imediato, a cavalo, que
seria muito mais rápido que eles. Felizmente, a chuva estava fraca,
e o mensageiro lhes assegurou que conseguiria fazer o percurso em
menos de cinco horas.

Apenas depois de tudo resolvido, foram comer na pousada onde


estavam hospedados.

— Gostaria de retornar a Backhan ainda hoje, Henrique —


Catherine lhe avisou, quando terminaram a saborosa refeição.

— Hoje?

— Sim, hoje — ela respondeu, sem entender a aparente


reticência dele.

Não estava ele ansioso para retornar a Backhan e garantir que


as coisas seriam resolvidas?

A questão era que Henrique decidira, naquela mesma tarde, que


vinha postergando seus planos havia tempo demais. Se fosse
esperar que retornassem a Backhan e as coisas na cidade se
acalmarem, era bem possível que jamais chegasse o momento
apropriado para lhe fazer a proposta!

Sendo assim, ele pretendia aproveitar a privacidade oferecida


em Yokshire para lhe fazer a pergunta que queimava em sua
garganta praticamente desde o momento em que conhecera a bela,
teimosa e impossível Lady Catherine. Portanto, precisaria tentar
convencê-la a ficar.

— Não está um pouco tarde?

— Se a estrada ficar muito escura, podemos parar em algum


lugar no meio do caminho e continuar ao amanhecer — ela sugeriu.
— Dessa forma, estaremos em Backhan, no mais tardar, amanhã
ainda pela manhã.

— Sim, é uma boa ideia!

Na realidade, era uma ideia formidável.

Henrique conhecia um lugar muito agradável em Derbyshire, a


menos de duas horas de Backhan. Poderia combinar o trajeto com o
condutor, em troca de uma farta gorjeta, e passar a noite naquele
local romântico. Talvez ele até mesmo conseguisse algum outro
mensageiro disposto a levar uma correspondência para a
propriedade onde pretendia passar a noite; assim, sua proprietária
poderia deixar tudo pronto para eles.

Lady Catherine sorriu, satisfeita que o Sr. Teles não a tivesse


contrariado. Ele, por seu lado, levantou-se e, com um sorriso no
rosto, foi checar um objeto que havia escondido em um dos bolsos
de sua casaca. Ali dentro, estava um anel que pertencera à sua
mãe, um anel que desejava ver, muito em breve, no dedo delicado
da dama mais teimosa que jamais conhecera.


— Por que a carruagem parou?

Catherine olhou pela janela, desconfiada. Estava um breu lá fora;


ela não conseguia ver vinte metros à frente. Apenas as estrelas
indicavam o caminho que deviam seguir.

— Talvez esteja escuro demais para continuar.

— Já está escuro demais há horas! — Catherine reclamou, já


ficando irritada. — Por que ele vai parar logo agora que estamos tão
próximos? Não podemos estar a muito mais de uma hora de
Backhan!

— Talvez a carruagem esteja com algum problema... — Henrique


insinuou, mesmo sabendo que aquela era uma mentira.

O condutor parara porque ele lhe pagara uma grande quantia


para que parasse naquele local.

— O que é aquele lugar? — Catherine perguntou, olhando pela


outra janela da carruagem.

— Parece um chalé... — Henrique soou calmo, apesar de seu


estômago estar dando reviravoltas. — Talvez consigamos dormir
aqui.

— Hmmmm... — Catherine observou o lugar por um tempo e,


enfim, disse: — Parece bem confortável. Se tivermos que realmente
parar aqui...

— Lewis — o Sr. Teles dirigiu-se ao condutor, já pulando para


fora da carruagem —, imagino que a carruagem esteja com
problemas e por isso parou aqui.

— Sim, senhor — Lewis recitava o texto que seu contratante o


fizera decorar. — Acho que as rodas precisam de manutenção. Vou
deixá-los nesse agradável chalé para que possam passar a noite.
Vou vir buscá-los amanhã cedo.
— Exatamente que problema nas rodas? Ei!

Catherine queria entender o que havia de errado com a


carruagem, mas Henrique a agarrara pela cintura e por trás dos
joelhos e a carregava para dentro do chalé.

— Está ótimo, Lewis. Vamos aguardá-lo amanhã de manhã bem


cedo.

O condutor tirou, correndo, a bagagem do casal da carruagem e


a colocou em frente à porta do chalé.

— Sim, senhor. Boa noite, Lady Catherine — ele desejou à


senhorita, com um aceno de cabeça, antes que ela pudesse
reclamar.

O Sr. Henrique Teles abriu a porta do chalé com um chute, ainda


com Lady Catherine no colo.

— O que pensa que está fazendo?

Ela sabia que Henrique era um libertino, mas invadir propriedade


privada daquela maneira? Entrar em uma casa com ela no colo,
como se fossem recém-casados? Jamais testemunhara tamanha
falta de decoro!

— Hã.... — o cavalheiro pausou por alguns segundos. —


Conheço os donos da propriedade. Estou certo de que não ficarão
ofendidos se usufruirmos da hospitalidade deles por uma noite
apenas.

Quanta mentira! Deveria estar irritadíssima, deveria ter exigido


que a colocasse no chão. No entanto... não o fez. Estava curiosa
para saber o que o Sr. Teles estava aprontando. Porque,
certamente, aquela história de rodas com defeitos e um chalé vazio
esperando por eles era uma grande ladainha.
Ele a colocou no chão assim que entraram no chalé e foi buscar
as bagagens deles, do lado de fora. Catherine ficou deslumbrada.
Decerto, tratava-se de um lugar simples, mas era incrivelmente
charmoso e confortável.

Se tinha dúvidas sobre aquela parada ter sido acidental, agora


tinha certeza de que não fora: o lugar havia claramente sido
preparado para a chegada deles! A lareira estava acesa, e ela
sentia um cheiro delicioso de comida vindo de uma pequena sala de
jantar.

— Se quiser se refrescar e se trocar antes de jantarmos, os


quartos ficam no andar de cima — Henrique informou, apontando
para a estreita escada de madeira. — Deixarei suas coisas no
primeiro quarto à direita. É o maior.

— O senhor parece bem familiarizado com a propriedade — a


jovem disse, entredentes, irritada por ainda não ter descoberto o
plano do libertino; o que ele pretendia?

Ele lhe ofereceu um sorriso nervoso por cima do ombro.


Enquanto Henrique subia as escadas com as bagagens, ela notou
um objeto caindo do casaco dele. Catherine começou a falar, mas
decidiu que iria verificar antes. Talvez aquele objeto fosse uma pista
sobre a verdadeira razão de estarem ali.

Caminhando lentamente, ela procurou o objeto nas escadas.


Encontrou-o rapidamente, por conta de seu brilho. Era um belíssimo
anel, coberto de diamantes delicados e com uma grande esmeralda
na frente.

— Oh!

De repente, Lady Catherine entendeu tudo. Um sorriso apareceu


em seus lábios. Era ela agora quem iria surpreender o libertino.


Henrique estava suando frio; nenhuma mulher jamais fora capaz
de deixá-lo daquele jeito. Até aquele momento, havia desenhado
seu plano sem pensar na hipótese de Catherine rejeitá-lo. E se ela o
fizesse? Eles passariam o resto da noite naquele chalé romântico,
sem nada para dizer um ao outro.

Não importa! Mesmo que ela me rejeite, eu preciso tentar!


Preciso perguntar se ela deseja passar o resto de sua vida ao meu
lado como eu pretendo passar a minha ao seu!

— Henrique? — Catherine lhe deu um susto.

Tão distraído que estava com suas dúvidas, não havia escutado
o objeto de seus devaneios se aproximando.

— Está bem? — ela perguntou.

— Sim, sim... — ele respondeu, notando, com estranheza, que


os lábios vermelhos da dama se abriram em um meio sorriso
sedutor.

Sedutor? Ele engoliu com dificuldade.

— A senhorita quer que eu saia para se trocar? — o cavalheiro


questionou, ao notar que estava no quarto onde a moça dormiria.

— Na realidade, preciso de sua ajuda — ela disse e virou-se


abruptamente de costas para ele. — Preciso que me ajude com os
botões.

— B-botões?

Henrique havia escutado direito? Decerto, Catherine o


provocava... Ele adorava as provocações dela, mas agora queria
conversar seriamente, não era hora para brincadeiras e jogos entre
eles.

— Sim. Como o senhor pode ver, esse vestido tem botões atrás
— a Lady continuou de costas para ele, então o Sr. Teles não podia
ver o rosto dela.

Por sorte, ela também não via o dele. Certamente, os olhos dele
estavam negros; suas bochechas, rosadas; sua testa, suada.

— E, a menos que haja uma camareira escondida aqui em


algum lugar, o senhor precisará me ajudar a despi-lo — completou a
senhorita.

Oh, céus! Lady Catherine Morland queria que ele a despisse?


Lentamente, caminhou até ela. Se nem a dama queria que se
comportasse como um cavalheiro, não seria ele quem insistiria para
manter as regras sociais naquele cômodo. Sabia que tinha uma
pergunta a fazer para ela, mas a questão se dissolveu em sua
mente no instante em que tocou a pele suave de Catherine.

Com dedos trêmulos, desabotoou cada um dos botões de seu


vestido, tomando cuidado para não estragá-lo. Desfez o nó da faixa
e, depois do que pareceu uma eternidade, concluiu sua tarefa. Não
resistiu e encostou o nariz no pescoço de Catherine, inspirou fundo
e... afastou-se.

— Posso ajudá-la com mais alguma coisa, senhorita? — ele


perguntou, a garganta fechando, os dedos formigando para tocá-la
novamente.

— Senhorita? De todas as noites para se comportar como um


cavalheiro, foi escolher justamente esta? — instigou ela.

Henrique ia lhe dizer algo, mas manteve-se calado. Continuava


encarando as costas da moça e quase teve um ataque cardíaco
quando o vestido começou a deslizar, expondo os ombros dela.

— Se eu for me tornar sua esposa, poderia ao menos me


chamar de Catherine.

— Como? — ele não podia acreditar no que ouviu.


Havia feito o pedido de casamento e nem sequer se lembrava
disso?

Segurou Catherine pelos ombros e a virou para ele. Os olhos


dela estavam divertidos, e um sorriso sedutor dançava por seus
lábios. Em sua pequena mão, a jovem segurava um objeto brilhante.
O anel.

Henrique não sabia como a joia havia parado na mão dela, mas
pouco importava. O momento mais importante da vida dele, enfim,
chegara. Henrique ajoelhou-se, segurou uma das mãos dela e
disse, o coração palpitando tão forte em seu peito que ele achou
que iria explodir:

— Minha querida Cathy, eu havia preparado um longo discurso


para este momento. Porém, eu me esqueci de que estou lidando
com uma mulher que prefere ação às palavras. E é exatamente por
isso que a amo tanto e quero ter a honra de chamá-la de esposa.
Agora só me resta saber se a senhorita aceitará dividir o resto de
sua vida ao meu lado.

— Depende.

Henrique ficou paralisado com a resposta inesperada. Como


assim, depende?

— Sinto informar que apenas poderei aceitar a sua proposta


quando o senhor terminar de me ajudar a tirar essas roupas.

Imediatamente, um sorriso apareceu no rosto de Henrique. Um


sorriso tão diabólico e divertido quanto o dela. Aparentemente, havia
dois libertinos naquele quarto.

Eles ainda não haviam fechado os olhos quando o sol começou


a surgir no horizonte. Irritado com a rapidez com que a noite
passara, Henrique avisou a Catherine que Lewis chegaria a
qualquer momento.

— Chegou a hora de enfrentarmos nosso maior desafio — ele


disse para sua noiva, enquanto a ajudava a se vestir.

Aproveitou a proximidade para fazer um trilha de beijos entre seu


ombro e seu pescoço. Será que algum dia se cansaria de beijá-la,
de tocá-la? Se a primeira noite juntos fosse uma referência, ele
acreditava que não.

— Desafio maior do que encontrar o assassino do conde, salvar


seu irmão do envenenamento e conseguir tirar uma proposta de
casamento do senhor? — ela provocou, e ele mordiscou seu ombro.

— Melhor se comportar. Posso facilmente arrancar este vestido


da senhorita e ensiná-la como deve se comportar com seu marido.

— Noivo. Ainda não casamos, senhor — ela continuou


provocando, ganhando mais uma mordida; desta vez, no pescoço.

— E é exatamente esse o nosso grande desafio. Pedir


permissão para seu pai para me casar com a senhorita.

— Não se nós nos casarmos antes de retornar a Greenwoods


House — ela disse simplesmente, como se tivesse pensado
longamente no assunto. — Assim, ele não será questionado se
aceita nosso casamento, apenas será informado de que o mesmo já
aconteceu.... e já foi consumado... diversas vezes...

Henrique quase se esqueceu do assunto da conversa ao pensar


na noite que haviam acabado de passar. Forçou-se a se concentrar.

— Como vamos nos casar tão rapidamente? Esses


procedimentos geralmente duram semanas! — ele exclamou, dando
a volta para encará-la.
— Digamos que o pastor Larry me deve um favor. Um grande
favor... — ela comentou, com um sorriso desafiador nos lábios.

O noivo sorriu de volta e, voltando sua atenção para o vestido de


Catherine, começou a desabotoá-lo.

— O que está fazendo? — ela questionou, rindo. — Lewis deve


estar à nossa espera.

— Pois ele vai continuar esperando — Henrique respondeu,


enquanto a carregava até a cama.

O barão de Northanger, conforme previsto, detestou a novidade.


Saíra de casa com uma filha solteira e retornara a Greenwoods
House para descobri-la casada! E seu novo marido nem sequer era
John Cleavand!

— Nunca mais colocará o pé nesta casa! — ele avisou, enquanto


o Sr. Teles apertava a mão da sua Sra. Teles.

O que eles haviam feito? Henrique estava desesperado, suando


frio, com as mãos trêmulas e a garganta seca. Olhou de soslaio sua
bela mulher e ficou chocado ao verificar a serenidade das feições de
Catherine. Como ela permanecia tão calma enquanto seu pai
esbravejava ofensas e juras de ódio aos dois?

— Nunca mais será recebida por ninguém da aristocracia


inglesa!

— Nesse ponto, preciso discordar, papai — ela comentou,


calmamente.

O Sr. Teles então percebeu: Catherine tinha um plano em mente.

— Nunca mais me chamará de pai e... — o barão digeriu as


palavras da moça. — Como assim, discorda?
Ele estava gritando sem parar com o casal havia quase meia
hora. Aquela era a primeira vez que Catherine abrira a boca depois
de anunciar seu casamento com o Sr. Henrique Teles. Portanto,
deveria ser algo relevante. Ela não se atreveria a discordar de seu
pai se não tivesse um bom motivo.

— Duvido muito que algum cavalheiro ou dama da sociedade


inglesa vá ser descortês com um membro da realeza portuguesa —
ela comentou sarcasticamente, frisando a palavra realeza, sabendo
ser aquele o calcanhar de Aquiles do pai.

Realeza? Henrique a questionou com o olhar. Do que ela estava


falando?

— Realeza portuguesa? — o barão fez a questão em voz alta.

Catherine sorriu antes de responder:

— Sim, papai. O Sr. Teles é primo do Príncipe Regente de


Portugal.

Henrique quase esmagou a mão da esposa. Ela sorriu ainda


mais em resposta.

— O gordo que está na colônia? — o barão levantou uma das


sobrancelhas, sem acreditar.

— Vamos ser respeitosos com o soberano de meu marido, papai


— ela respondeu seriamente.

Henrique teve que segurar a gargalhada.

— Sim, o príncipe que está no Brasil.

— Primos? — o barão olhou para Henrique, que balançou a


cabeça uma vez em sinal afirmativo.

Bem, nada se comparava um primo de um príncipe europeu


desimportante a um filho de um grande duque inglês. Mas mesmo
ele tinha de admitir que era alguma coisa para a sua filha.

— Isso mesmo, papai.

O barão de Northanger passou alguns momentos em silêncio,


pensativo. A Sra. Smith sorria, enquanto a baronesa, pela primeira
vez desde que a conversa começara, deu-se ao direito de tomar um
gole de seu chá.

— Vamos, como é óbvio, oferecer um baile no próximo mês em


homenagem ao casamento de vocês — o barão disse, rapidamente.
— É óbvio que nada diremos sobre esse segredo. Apenas
avisaremos a todos que nós decidimos realizar uma cerimônia
intimista, apenas para os familiares, e a festa não deixará ninguém
pensar que eu desaprovava essa relação.

Discutiram os detalhes do baile durante a hora seguinte, e o


casal deixou Greenwoods House, senão com a aprovação total do
barão, ao menos com um pouco menos de rancor.

— Você sabe muito bem que meu grau de parentesco com Dom
João VI praticamente não existe! Somos primos muito, muito, mas
muito distantes! — Henrique chamou a atenção da jovem esposa,
que apenas lhe ofereceu um sorriso maroto em troca.

— Eu jamais disse a papai que eram primos de primeiro grau!


Não menti: vocês têm sim algum parentesco.

— Boa parte do país tem algum grau de parentesco com a


realeza, Cathy! Só de bastardos deve haver centenas, até mesmo
milhares de...

— Sim, mas meu pai não sabe disso — e assim a Sra. Teles
encerrou o assunto.

A partir daquele momento, o Sr. Teles passou a ser conhecido


em Backhan como parte da realeza portuguesa. Alguns diziam que
era o Embaixador de Portugal no Brasil; outros, que até mesmo
estava na linha sucessória ao trono de Portugal. Alguns chegaram a
insinuar que ele teria se negado a casar com uma princesa
espanhola para ficar com Lady Catherine.

O Sr. e a Sra. Teles jamais confimaram qualquer boato. Porém,


também jamais os negaram.

Backhan, os meses seguintes...

A aproximação do novo casal de Backhan com o barão e a


baronesa de Northanger foi lenta e difícil, mas gradual. Para a
surpresa geral, Catherine encontrou o apoio mais inesperado: a Sra.
Smith ficou do seu lado e conseguiu, aos poucos, acalmar os
ânimos dos seus patrões em relação ao matrimônio.

Na abadia, a reação foi completamente oposta. Elena mal foi


informada do casório e já foi correndo atrás da Sra. Smith para
ajudar nos preparativos do baile em homenagem ao Sr. e à Sra.
Teles.

Elena desejava comemorar mais do que o casamento do irmão e


da bela Lady Catherine: assim que recebera a carta de Henrique,
ela e Paulo tinham começado a ajudar Sebastião a tirar a beladona
do sistema, e, naquela mesma manhã, ele já apresentava alguma
melhora.

Matthew também teve o fim que merecia. Foi preso e condenado


pela morte do conde de Fullerton e pelo envenenamento de
Sebastião. A morte de Beth, entretanto, não pôde ser investigada
pelo tempo que havia passado e pela falta de provas do caso.
Christine também logo recuperou o peso e, em poucos meses,
deu à luz um menino saudável. Os padrinhos do pequeno Edward
foram, é claro, Catherine e Henrique. Ao ouvir os gritos da amiga
durante o longo parto, a Sra. Teles jurou para si mesma que jamais
teria filhos. Mal imaginava ela que, naquele mesmo momento, já
estava esperando uma menina, a quem daria o nome de Margareth.
E a pequena Margareth ganharia outros dois irmãos pouco tempo
depois.


Capítulo 21

“Sou metade agonia, metade esperança.”

(Jane Austen)

Londres, 31 de maio do ano seguinte.

A mão de Cathy parecia prestes a explodir de tanto autografar.

Conforme previsto, o livro de contos que Krista imaginara ficara


maravilhoso. A antologia se chamava “Um Ano em Londres” e
continha quatro histórias de amor que se passavam na capital
inglesa, cada uma em uma estação do ano diferente, escrita por um
autor diferente.

A Cathy foi atribuída a primavera, sua estação favorita, apesar


de que sempre parecia ser inverno em Londres, mesmo agora,
quase no verão. Fazia menos de um ano que viera à cidade pela
primeira vez, mas já parecia que havia se passado uma década.

Desde então, ela concluíra seu romance de época, com boas


doses de mistério, e a breve história para a antologia, sobre uma
americana e um brasileiro que se apaixonam durante a estação das
flores, enquanto viajam pela Inglaterra. Seu texto, obviamente,
chamava-se “A Garota da Califórnia”.

Krista Allen não poderia estar mais satisfeita com Cathy: já havia
enviado seu romance para a revisão e prometia que o lançamento
deveria ocorrer antes do Natal daquele mesmo ano.

Além disso, conseguira reunir autores excelentes para


escreverem sobre as demais estações de “Um Ano em Londres”, e
o livro já era um sucesso de vendas e críticas. Ironicamente, apesar
de a obra se passar na capital inglesa, a cidade foi a última a
receber o lançamento, com seus quatro autores.

A editora olhava para Cathy, tão jovem e tão promissora, e


quase sem aquele vestígio de tristeza que guardara nos últimos
meses. Toda a situação que se passara na Abadia de Kingsway fora
extremamente traumática, e Krista chegou a temer que aquelas
feridas nunca se fechassem.

Porém, sua querida protegée mostrara-se uma mulher forte e


usara sua frustração como combustível para deixar seu romance de
época simplesmente irresistível. A raiva, o mistério e as traições
envolvendo a personagem principal transformaram sua trama em
uma das mais cativantes que Krista Allen jamais lera.

Para melhorar, apesar de ser assinada pela escritora menos


conhecida entre os autores da antologia, a história de Cathy era a
mais elogiada. Até o jornal The New York Times reconhecera os
talentos da californiana, chegando a chamá-la de “nova promessa
literária americana”.

Krista olhou para os pais da moça — que usaram parte de suas


economias para ir à Inglaterra e ver a filha lançar seu livro — tão
orgulhosos e felizes, e os lábios da editora se abriram em um sorriso
involuntário.

O Sr. Murray não tirava a mão do ombro de Cathy, perguntando,


de tempos em tempos, se ela precisava de alguma coisa, se queria
água, se não estava cansada. A Sra. Murray (ou Olívia, como
preferia ser chamada), por sua vez, tirava fotos de cada fã de Cathy,
de cada livro que a escritora assinava, de cada sorriso da filha. E, a
cada cinco minutos, pegava, discretamente, um lenço do bolso da
calça e secava uma lágrima fujona. Lágrimas de felicidade,
claramente.

James Murray também estava lá, e era todo sorrisos. Apesar de


não ser tão próxima dele quanto era de Cathy, Krista gostava muito
do rapaz também e ficara imensamente feliz ao conhecer sua
namorada, Amanda. Ficara encantada ao descobrir que os dois se
conheceram na volta dele aos Estados Unidos.

— Ela chegou, Kris!

Sara lhe disse no ouvido, as mãos dela na cintura da famosa


editora. O sorriso de Krista aumentou ainda mais, fazendo com que
leves linhas de expressão aparecessem ao redor dos seus olhos
azuis. Ela ajeitou o terninho azul-pastel da Chanel, deu um beijo no
rosto de Sara e foi na direção que ela lhe indicou.

Ao ver sua convidada mais especial, com um amplo sorriso no


rosto, Krista disse-lhe, animadamente:

— Vamos falar com Cathy. Mal posso esperar para ver a cara de
surpresa dela!

Aproximaram-se da ruiva sem que ela notasse, já que


autografava um livro para uma fã bem animada, que não parava de
repetir o quanto amara seu conto “A Garota da Califórnia”. No
entanto, os pais perceberam a presença da convidada ilustre. O Sr.
Murray abriu a boca sem conseguir dizer nada, enquanto
cumprimentava a autora favorita de Cathy; e Olívia chorava mais do
que nunca, enquanto lhe agradecia pela presença.

Em poucos momentos, a atenção de todos se voltava para a


recém-chegada. Cathy levantou os olhos, curiosa com aquele
burburinho. Foi quando a viu.

— J. K. Rowling?! — Foi tudo o que conseguiu dizer, enquanto


suas mãos ficavam imediatamente suadas e as pernas tremiam
furiosamente, quase impedindo a ruiva de ficar em pé.

— Olá, querida! Por favor, me chame de Joanne!

A mulher, muito simpática, ofereceu-lhe um meio abraço.


— É um grande prazer finalmente conhecê-la! Krista não para de
me falar de você! Eu li o seu conto! É lindo!

A boca de Cathy despencou. Seus olhos saltaram do crânio, e as


bochechas se tornaram violetas.

— V-v-você leu meu c-c-conto?

Um jornalista, faminto por fotos da criadora de Harry Potter,


atraiu a atenção de J. K. Rowling e de Krista Allen. Foi quando
Cathy voltou a respirar: nem notara que seus pulmões estavam
desesperados por oxigênio. Os pais, o irmão e Sara aproximaram-
se de imediato, a fim de lhe oferecer apoio e congratulações.

— Mana, não vai desmaiar agora, hein? — comentava James.

— Filha, ela é maravilhosa! Viu que simpática, pedindo a você


que a chamasse pelo primeiro nome? — as lágrimas de Olívia
continuavam rolando pelas bochechas.

— Ela leu seu conto, Cathy! É uma honra! — seu pai estava
quase tão animado quanto Krista.

Mas Cathy não escutava nada, apenas as fortes batidas de seu


coração, que martelava furiosamente em seu peito. Foi Sara, com
uma mão forte sobre o ombro da jovem escritora, que a tirou do
meio da confusão, levando-a até um cômodo onde ficava a
administração da livraria.

— Cathy, eu achei que este seria o momento perfeito para lhe


dar um presente.

— Um presente, Sara? Não precisava!

— Não é meu — Sara respondeu, apontando para um arranjo de


flores em cima da escrivaninha no meio do ambiente.

Era um vaso com belas flores vermelhas com base preta que a
americana conhecia muito bem.
— Não sei se as conhece, Cathy — sussurrou Sara, como se
estivesse contando um segredo. — São...

— Corn roses — a ruiva completou a frase.

— Ah, você as conhece. Então deve saber quem pediu que eu


as entregasse a você.

Quando Cathy confirmou com a cabeça, sem tirar os olhos das


flores, Sara colocou um envelope em sua mão.

— Ele também pediu que eu lhe entregasse isto. Vou ficar


esperando lá fora, ok?

Cathy, agora — quase — completamente esquecida de quem


acabara de conhecer, rasgou o envelope, arrancando a carta lá de
dentro como se precisasse dela para respirar. Sabia que, não
importava o que houvesse nela, lhe daria a força de que tanto
precisava para conseguir conversar com sua autora favorita de
todos os tempos sem pagar mico ou gaguejar muito.

Querida Cathy,

Faria qualquer coisa para estar contigo, segurando a sua mão,


participando deste seu momento de glória, sentindo-me o homem
mais orgulhoso do mundo por estar ao seu lado, dizendo em seu
ouvido a heroína que você é.

Porque você é uma heroína, Cathy. Enquanto a maior parte das


pessoas que passa por situações semelhantes à sua se torna
amarga e desconfiada de todos, você mantém seu otimismo quase
utópico e ousa sonhar.

E, a meu ver, esse é o verdadeiro sentido da coragem: é muito


mais do que a bravura ao lutar; é atrever-se a ir mais longe que os
demais, é traçar novos caminhos em lugares desconhecidos, abrir
novas fronteiras, é pensar além do que os outros aventuraram
alcançar.

Lembre-se sempre disso, Cathy: embaixo de todas as suas


camadas de adorável timidez, você é uma desbravadora, feroz,
invencível e incansável quando sabe o que quer. É a mulher mais
admirável que já tive a honra de conhecer.

Sempre seu,

Henrique Teixeira

Enquanto lia a carta de Rico, a postura de Cathy foi mudando.


Os ombros baixos de cansaço foram para trás, os olhos assustados
ganharam um brilho de orgulho, a linha profunda no meio da testa
relaxou até desaparecer, o queixo ergueu-se, e os lábios formaram
um meio sorriso. Um sorriso de heroína.

Ela deixou o cômodo uma mulher diferente daquela que entrara,


segura agora para encarar seus desafios e falar, de igual para igual,
com sua autora favorita. Sara notou a diferença no instante em que
Cathy atravessou a porta do escritório para a livraria.

— O que havia naquela carta, querida?

A ruiva apenas lhe ofereceu um olhar e um sorriso dignos de


uma estrela de Hollywood e seguiu até a frente da loja, onde
fotógrafos e jornalistas ainda estavam concentrados em J. K.
Rowling e Krista Allen.

As duas a receberam calorosamente, e as três mulheres


posaram juntas para muitas fotografias.

Mais tarde, quando as coisas estavam mais tranquilas, Cathy


recomeçou a conversa com J. K. Rowling, ou melhor, Joanne.
— Sei que o evento foi cansativo — comentou Cathy. —, mas
estou muito curiosa para saber o que achou do meu conto. Tem um
tempinho para um café?

— Não bebo café — Joanne disse, seriamente.

O coração de Cathy quase parou. Foi quando a ruiva notou que


os olhos da grande autora ainda sorriam.

— Porém, adoraria um chá com biscoitos!

Nova York, 17 de dezembro.

Os lábios de Cathy tremiam, seu nariz estava vermelho e


escorrendo, ela mal conseguia sentir os dedos das mãos, e uma
nuvem branca saía de suas narinas quando respirava. Mesmo
assim, a ruiva não queria deixar a pista de patinação do Rockefeller
Center.

Sempre ouvira falar da mágica Nova York no Natal. Todavia, não


estava preparada para aquilo. Enquanto patinava na pista de gelo,
com a vista deslumbrante de arranha-céus a seu redor e a famosa
árvore de Natal, a ruiva aproveitava para observar os casais que
praticamente dançavam na pista. Ela sentiu uma pontada de inveja,
pois também desejava estar acompanhada. Não havia se
interessado por ninguém desde... o único homem de quem gostara.

— Cathy, temos que ir! — veio a voz familiar de Krista.

A editora, assim como a Garota da Califórnia, decidiu vestir


vermelho para entrar no clima natalino. No entanto, enquanto a loira
usava um terninho chique composto por blusa de seda e calças
vermelhas, além de um sobretudo de pele branco, Cathy usava um
vestido de veludo justo vermelho, que ia até os joelhos e tinha
mangas compridas, meias grossas cor da pele e sapatilhas pretas.
Seu casaco de couro, o mais bonito que tinha, fora um presente de
Sara.

Krista insistira para que a escritora fosse maquiada e penteada


por profissionais e, quando ela se viu pronta no espelho, apenas
conseguia pensar em como os olhos de Rico escureceriam ao vê-la
daquele jeito.

— Eu sei que você estava se divertindo, querida — Krista


comentou, enquanto elas passavam pelo caminho de anjos
dourados para deixar o Rockefeller Center. — Mas me ligaram da
Barnes & Noble. Já tem uma fila de pessoas à sua espera!

Cathy sabia que a editora dizia aquelas coisas para animá-la,


mas saber que havia pessoas querendo vê-la, tirar fotos com ela e
elogiar seu livro ainda a deixavam nervosa, com aquela sensação
de ter milhares de borboletas batendo as asas em seu estômago.

Caminharam pela 50th Street até avistarem a Catedral de St.


Patrick, um dos pontos turísticos de que Cathy mais havia gostado
na cidade. Em seguida, viraram na Quinta Avenida, descendo
alguns quarteirões até chegarem à tradicional livraria.

Inconscientemente, a jovem prendeu a respiração ao avistar o


letreiro dourado da Barnes & Noble. A loja estava mais lotada que
de costume, afinal de contas, estavam a apenas três dias do Natal.
Krista levou Cathy até o segundo andar, onde havia uma mesa para
ela assinar seus livros, com um painel verde da livraria atrás de si e
vários exemplares de sua obra ao redor, formando pequenas
árvores natalinas.

Sua editora falara a verdade: já havia uma fila monstruosa no


segundo andar, com dezenas de pessoas, todas segurando a obra
recém-lançada.

Esta era a terceira cidade em que realizavam o lançamento do


romance de época: já haviam feito o mesmo em Sunset Valley, por
insistência da autora, e em São Francisco, onde a antologia “Um
Ano em Londres” estava na lista dos títulos mais vendidos desde
que o livro fora publicado, meses antes.

A delicada mão de Cathy estava cheia de calos de tanto assinar


livros, mas saber que aquelas pessoas estavam esperando por ela
havia horas deu-lhe forças para autografar muitos mais.

Krista criara um esquema interessante para agilizar os


autógrafos. Cathy recebia, de um assistente da livraria, o exemplar
que deveria autografar acompanhado de um papelzinho com o
nome que ela deveria colocar na dedicatória. Depois, o dono do livro
se aproximava da autora para tirar uma foto. E assim por diante.

Cathy perdera muito tempo antes a conta de quantos


exemplares já tinha assinado, quando finalmente Krista lhe disse
que a fila havia, enfim, terminado. A escritora abaixou-se para pegar
a bolsa, onde guardara o celular: certamente, sua mãe telefonara
dezenas de vezes. Fora o único lançamento em que seus pais não
puderam estar, e eles ligavam a cada cinco minutos para saber
como estava tudo.

— Poderia assinar mais um livro, Cathy? Um dos seus fãs


acabou se atrasando. — a voz de Sara era carinhosa; e seu pedido,
irrecusável.

— Claro! — Cathy respondeu, sem levantar a cabeça, pegando


automaticamente o livro e o papelzinho. — Onde você estava, Sara?
Achei que viria mais cedo!

Ao dizer aquelas palavras, ela leu o nome escrito no papel


entregue. Henrique Teixeira.

— A culpa foi minha, Cathy. Ela foi me pegar no aeroporto.

Sara já havia deixado o local, a autora percebeu ao levantar a


cabeça. Agora, olhava para o rosto sorridente de Rico. Seu Rico.
Eles haviam trocado alguns e-mails desde a confusão na abadia,
mas ele nunca lhe dera esperança de se verem novamente. Ao
contrário: depois de praticamente terminar tudo com ela por e-mail,
ele demonstrava sempre um tom de amizade e tentava incentivá-la
a sair com outras pessoas. Cathy chegou a pensar que Rico já
estava namorando alguém no Brasil.

Porém, a forma como ele olhava para ela dizia que não.

— Acabou? Digo, o processo? Você está livre? Pode deixar o


Brasil quando quiser? E como está Elena? Ela também tem o
passaporte novamente?

Cathy perguntava sem parar, enquanto Rico balançava a cabeça


afirmativamente para todas as questões da ruiva, o olhar movendo-
se entre os olhos e os lábios dela. Satisfeita com as respostas, ela
tinha apenas mais uma pergunta a fazer. Abriu seu sorriso mais
sedutor, enquanto questionava com sua voz aveludada:

— E agora?

Finalmente, a Garota da Califórnia fizera a pergunta que ele


queria ouvir. Ele a pegou no colo e a levou até a porta da livraria,
onde uma limusine os aguardava. Rico responderia àquela pergunta
ao longo dos dias, dos meses, dos anos seguintes, mas não
precisaria de palavras.


Epílogo

As pernas de Cathy já haviam se acostumado às ruas em


ladeiras de São Francisco. No entanto, com o verão no auge, o suor
descia pelas costas da ruiva, e suas coxas começavam a dar sinais
de cansaço. Antes de entrar em seu apartamento, que ficava no
segundo andar de uma casa vitoriana no Pacific Heights, Cathy
tomou uns momentos para admirar a vista.

Ela e Rico haviam se mudado para a cidade havia mais de um


ano, mas o cenário espetacular que via do alto de sua rua ainda era
capaz de tirar-lhe o fôlego. Ela via muitas ruas encontrando-se e
separando-se em serpentinas, casas vitorianas, em sua maioria
brancas ou em tom pastel, os arranha-céus do centro financeiro e o
mar além da cidade. A proximidade do Parque Lafayette era
tamanha que Cathy podia jurar sentir o aroma dos eucaliptos e dos
pinheiros, úmidos por conta da chuva de algumas horas antes.

O apartamento dos dois ficava na parte dos fundos, com a vista do


jardim da propriedade. Apesar de a casa ser dividida em quatro
apartamentos, Cathy sentia como se o prédio inteiro fosse seu lar.

Em pouco tempo, o casal ficou próximo de seus vizinhos: a Sra.


Kells, que vivia no térreo com seus dois gatos; Tom e Rick, o casal
supersimpático e estiloso que morava ao lado de Cathy e Rico, e
que os ajudou a decorar o próprio apartamento; e Jane e Mark, os
moradores do terceiro andar da casa, que tinham dois gêmeos fofos
e milagrosamente silenciosos.

Cathy deixou as frutas frescas, que comprara na feira do Píer 39,


em cima do balcão da cozinha gourmet. O apartamento deles era
pequeno: uma cozinha integrada à sala; dois quartos, sendo um do
casal e outro era o escritório de Cathy; e um banheiro.

Apesar de o espaço ser limitado, era um imóvel adorável. Seu


proprietário, um senhor de oitenta anos que não podia mais subir
escadas, o havia reformado anos antes, mas mantivera as principais
características do original.
O cheiro que saía do forno era inebriante, uma mistura de carne
com uma sensação adocicada, indicando que Rico estava
terminando de preparar o almoço.

— Costelinha de porco com molho de vinho — ele comentou,


como se tivesse adivinhado os pensamentos de Cathy. —
Conseguiu as amoras para a torta? Quero começar logo a fazer a
sobremesa.

— Sim! — ela lhe deu um beijo no rosto e provou um pouco do


molho. Estava delicioso, a ponto de Cathy fechar os olhos e soltar
um som de prazer.

— Adoro quando você faz isso — Rico já estava atrás dela,


cheirando seus cabelos ruivos, as mãos segurando sua cintura. —
Sabe aquela viagem que você está me prometendo há séculos?

— Hummmmm... — a escritora mal conseguia se concentrar,


especialmente quando Rico começou a morder levemente sua
orelha direita.

Os meses anteriores haviam sido uma correria, com o


lançamento do seu segundo romance. Os últimos dois anos e meio
tinham sido extremamente produtivos para ambos: a antologia e o
romance de estreia de Cathy foram sucessos de crítica e de vendas.
No caso de “Um Ano em Londres”, a obra se tornara uma série de
televisão, retratando as quatro histórias do livro.

No entanto, nem sequer chegara perto do sucesso de seu novo


romance, que narrava a trajetória de uma garota que,
misteriosamente, conhecia o seu personagem favorito da literatura.
Ela ficava presa entre o mundo imaginário fantástico e repleto de
aventuras e sua vida monótona em Manhattan.

Em pouco mais de três meses, o livro já estava na lista dos mais


vendidos nos Estados Unidos e na Inglaterra. E alguns críticos
indicavam que seria uma ótima obra para ser adaptada às telonas.
Imagina, uma história minha em Hollywood?, ela pensava,
sonhadora.

Por mais que não tivesse fãs como Cathy, Rico também trilhava
um caminho de sucesso, à sua maneira. Desde o reencontro dos
dois, ele se mudara para os Estados Unidos, para Sunset Valley e,
no ano anterior, fora aceito em um programa de doutorado na
Universidade da Califórnia em São Francisco.

Inicialmente, Cathy ficara receosa com a distância dos dois, até


que ele foi à casa dos Murray com uma caixinha de joia nas mãos.
Ela irritou-se, imaginando por que ele daria uma joia para ela numa
hora daquelas, quando tudo o que a ruiva desejava era ficar perto
de Rico. Mas, dentro da caixa, não havia uma pedra preciosa ou um
cordão de ouro: havia uma chave, com um convite para morarem
juntos em São Francisco.

Para melhorar tudo, no mês anterior, Elena lhes contou que se


casaria com seu namorado de longa data, Paulo, que havia muito
deixara de ser um segredo. Rico não conseguia conter a felicidade
por ambos. Cathy, por sua vez, mal podia esperar para conhecer o
Brasil, aonde viajariam para o casamento de Elena.

— Cathy! Estou falando contigo! — Rico sussurrou.

— Você está falando da nossa viagem ao Brasil? Mas o


casamento de Leninha será apenas em dezembro!

— Não, Cathy. Estou falando de uma viagem para nós dois.


Apenas nós dois — ele colocou um envelope na mão dela.

O coração dela acelerou de imediato. A Garota da Califórnia já


viajara muitas vezes desde que conhecera Rico; porém, mal havia
começado a conhecer seu próprio país, e havia muitos lugares no
mundo que desejava explorar.

Para onde Rico a levaria? Para alguma praia no Caribe? Para as


pirâmides no Egito? Não, Cathy preferiria, desta vez, ir a algum
lugar nos Estados Unidos. Será que visitariam os vulcões do Havaí?
Ou talvez os cassinos de Las Vegas?

Por maior que fosse sua imaginação, Rico, de alguma forma,


sempre conseguia surpreendê-la.

Ele a levaria para a Louisiana. Para a cidade do jazz. Para Nova


Orleans!

As mãos de Cathy começaram a suar quando Rico lhe avisou


que estavam chegando a Royal Street. Era a rua mais conhecida do
French Quarter, o bairro francês, e a jovem escritora estava louca
para visitá-la.

O que viu primeiro em Royal Street foi o charmoso edifício


LaBranche, com suas paredes de cor de terra, suas típicas janelas
francesas do século XIX, rodeado por varandões com grades
ornamentadas com folhas de carvalho de ferro batido, pintadas de
um tom azulado.

Eles passaram por diversos prédios históricos e com o mesmo


estilo elegante do LaBranche até chegarem a uma construção
amarelada, cujas janelas e portas eram arqueadas e com molduras
brancas. No segundo andar do edifício, acima da pequena varanda,
havia um grande letreiro, com os dizeres Jazz & Bossa. Cathy
percebeu que haviam chegado a seu destino da noite.

Dentro, o clima era intimista e agradável. O ar-condicionado


estava forte, trazendo alívio à ruiva, cujo vestido de verão verde-
oliva já estava grudado às costas, mesmo sendo curto e de
alcinhas, tendo até mesmo merecido um elogio nada discreto de
Rico.

As paredes eram cobertas por painéis de madeira com molduras,


e o piso de pedra era de um tom areia. À direita, havia um bar
gigante, que deveria ter uns trinta bancos, todos preenchidos. Atrás
dele, dezenas de prateleiras espelhadas separavam centenas de
garrafas de bebidas de seus consumidores. À esquerda, estavam as
mesas, todas iluminadas por velas, nenhuma para mais de duas
pessoas. Quase não havia espaço entre elas, e também pareciam
estar todas lotadas de casais apaixonados.

— Rico, acho que não vai ter mesa para nós...

— Não se preocupe. Eu reservei uma especial.

Rico disse seu nome à hostess, uma linda mulher cujo sorriso
branco contrastava com a pele negra. Ela sorriu para eles e os levou
até o final do salão, onde havia, para a surpresa de Cathy, um palco.
A banda já estava lá, preparando-se para o show.

— Rico, está tudo bem? Você parece um pouco nervoso... —


Cathy comentou, depois que já estavam acomodados e um
simpático garçom trouxera champanhe.

— Claro. Só estou ansioso para ver o show da noite. Falei com


um amigo que já veio aqui algumas vezes. Segundo ele, este
restaurante tem ótimos shows com música que mistura jazz com
bossa nova, um estilo muito conhecido no Brasil.

— Hummm. Tipo Garota de Ipanema? — Cathy tentava ler mais


sobre o país do seu namorado, mas, em questões musicais, era um
desastre.

Então, mencionara a única música de cujo título se lembrava.

— Isso mesmo! — Rico parecia orgulhoso. — Hoje quem vai se


apresentar é a Valentina, e dizem que é a melhor cantora daqui.

— Ah, então você está assim por causa dessa Valentina?

— Está com ciúmes, Cathy? — ele perguntou, os olhos já


escurecendo, as mãos puxando a amada para o seu colo; e
continuou falando em seu ouvido — Eu vou lhe mostrar mais tarde
por que não precisa ter ciúmes.

A risadinha de Cathy foi abafada pelo aviso de que o show iria


começar. Relutantemente, ela voltou à sua cadeira e bebeu todo o
conteúdo de sua taça com apenas um gole.

Valentina era uma mulher deslumbrante: sua pele negra fazia um


belo contraste com seus olhos claros, que tinham uma cor entre mel
e verde; seus lábios, grossos e vermelhos, tinham formato de
coração; seus cabelos eram negros e cacheados, balançando em
volta de seus ombros enquanto ela andava até o centro do palco;
ela era alta, devia ter mais de um metro e oitenta, e seu corpo era
esguio, exceto pelos quadris, que eram largos. Usava um vestido
dourado com paetês justo, sem mangas, que ia até a metade das
coxas. A visão era de tirar o fôlego.

Quando Valentina começou a cantar, Cathy ficou ainda mais


encantada, pois a voz conseguia ser ainda mais bela que sua dona.
Ela mal notou que havia algo brilhando em sua taça quando Rico a
preencheu novamente com champanhe.

Somente quando a primeira música acabou, Cathy voltou a


respirar novamente. Ofereceu um sorriso a Rico antes de voltar a
degustar a bebida.

— Cathy! Cuidado! — ele começou a dizer, mas era tarde


demais.

Um objeto duro com uma ponta cortante estava preso na entrada


de sua garganta. Como se não fosse óbvio que a jovem havia se
engasgado, ela começou a apontar para a própria garganta,
enquanto seus lábios iam ficando azuis.

Antes mesmo que Cathy pudesse notar o que acontecia à sua


volta, um dos garçons foi até ela, posicionando-se às suas costas, e
apertou seu estômago com os braços. A ruiva deu um pisão no pé
do homem, que caiu para trás, urrando de dor. Cathy poderia estar
sufocando, mas não permitiria que nenhum desconhecido se
aproveitasse dela!

— Cathy, o garçom só queria ajudar você! — Rico comentou,


enquanto se posicionava atrás da namorada. Assim como o outro
homem, colocou os dois braços em volta de Cathy, na altura do
peito dela, e apertou.

Foram necessários três daqueles apertões incômodos para que


o objeto deixasse a boca de Cathy e voasse até a bebida de um
homem que estava sentado bem em frente ao palco.

O desconhecido olhou para o objeto com interesse, sorriu e o


levou até a mesa de Rico, dentro do copo de uísque em que a peça
em questão havia caído.

— Boa noite. Devo lhe parabenizar ou a moça recusou? — ele


comentou, com ar divertido. — Eu insistiria caso ela tenha recusado.
Não é nada agradável quase sufocar com o pedido.

Por sorte, Cathy havia deixado a mesa e corrido até o banheiro


assim que o objeto sufocante deixou que ela voltasse a respirar.

— Eu ainda não fiz o pedido. Acho que ela nem sequer viu com
o que engasgou — Rico respondeu, com o ar preocupado. — Já
estou pensando se não seria melhor deixar para outro momento.

— E tem momento ou local mais agradável que este? Sei que,


por ser meu estabelecimento, minha opinião é um pouco
tendenciosa. Mas posso lhe garantir que, de todos os pedidos desse
tipo que foram feitos aqui, nenhum jamais foi recusado.

— Verdade?

A esperança voltava a Rico.

— Peraí. Você é o dono?

Quando o estranho confirmou com a cabeça, Rico continuou:


— Nossa, peço desculpas pela confusão. E, olhe, adorei este
lugar. Especialmente a cantora. Ela tem a voz de um anjo. Cathy, a
minha namorada, mal conseguia respirar durante a apresentação.

— Sim, Emma é encantadora — o proprietário comentou,


olhando para a cantora com orgulho.

— Emma? Ah, então Valentina é apenas seu nome de palco, é


claro.

Notando que a atenção do homem ainda estava voltada para a


mulher no palco, o brasileiro decidiu concluir aquela conversa o
mais rápido possível. Cathy deveria estar voltando.

— Bem, de qualquer maneira, muito obrigado. E meu nome é


Henrique.

— Claro, não se preocupe. Se precisar de algo, eu me chamo


George. Mas o pessoal aqui me conhece como Knightley.

Antes que Henrique pudesse tecer novos comentários, Cathy


retornou, enquanto Knightley se afastava, com um aceno e um
sorriso encorajador.

— Nossa! O que enfiaram na minha bebida? Será que estão


tentando nos drogar, Rico? Mas aqui parece ser um lugar tão bom,
tão chique. Será que entregaram a bebida com a “surpresa” na
nossa mesa por engano?

Claramente, Cathy já estava bem e sem qualquer obstáculo na


garganta. Interrompeu-se, no entanto, ao ver o que havia no copo
de uísque em cima da mesa.

— Rico? O que é isso?

— Foi com isso que você se engasgou, Cathy. Não era assim
que eu queria começar este pedido, mas enfim... Nada entre nós
acontece do jeito que planejamos, não é mesmo?
Com dedos trêmulos, Henrique tirou o anel do copo. Era simples,
delicado e gracioso, exatamente como Cathy. Havia apenas uma
pedra, azul, e o anel era de ouro branco. A ruiva estava boquiaberta
olhando para ele, e, mesmo sem saber se isso era um bom ou mau
sinal, Rico prosseguiu:

— Desde que a conheci, minha vida tem sido uma aventura.


Nada aconteceu conforme planejado ou da forma que eu imaginava.
Mas você me ensinou que, muitas vezes, o inesperado é
infinitamente melhor do que aquilo que passamos anos planejando
ou até mesmo daquilo que achávamos que queríamos para nós
mesmos. Nossa vida juntos está apenas começando, Cathy, e já
temos muitas histórias para contar. Mas a questão é que quero
passar o resto da minha vida assim, sempre em uma nova aventura.
E não consigo mais enxergar a minha felicidade sem você ao meu
lado. E você? Quer passar o resto da sua vida comigo?

Os olhos de Cathy brilhavam com lágrimas contidas. Ela tremia


dos pés à cabeça, e o coração parecia querer escapar do peito.

— O que você acha? — ela respondeu, enquanto grudava seus


lábios nos dele.

Em frente ao palco, George Knightley sorria com a vista.


Ninguém jamais foi recusado no Jazz & Bossa, ele pensava,
confiante. Olhou para Emma, que continuava a cantar como
Valentina. Knightley secretamente esperava que aquela regra
também valesse para ele próprio, um dia. Quando tivesse a
coragem necessária para fazer o pedido.

FIM!
SOBRE A AUTORA

Laís Rodrigues é uma advogada de 32 anos que lê desde


criança. Ao contrário da maior parte dos autores, nunca havia
sonhado em escrever. No entanto, depois que começou, apaixonou-
se totalmente pela escrita, e, para a sorte do leitor, não consegue
mais parar. Além de Do Outro Lado do Oceano, é dela também
Primeiras Impressões, ambas adaptações contemporâneas de
obras de Jane Austen, de quem é grande fã. Ela também é autora
de Heart of Fire, fantasia para jovens adultos que faz parte da série
The Elements. Laís é baiana e mora no Rio de Janeiro com o
marido e três gatos, pois acabou de resgatar outro, há três meses.

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Instagram: @laisrodriguesauthor

Facebook: Laís Rodrigues

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