Você está na página 1de 165

1

http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

1
2

ÁRVORE DO CÉU

2
3

Volume III

A SEMENTE ESCARLATE

Título original: The Heaven Tree III- The Scarlet Seed

CAPÍTULO UM
Parfois, Shrewsbury, agosto de 1232

As espadas de torneio, de ponta arredondada, entrechocaram-se, fragmentando a luz


do sol em lúgubres farpas azuladas. O choque sacudiu-o do pulso até o ombro, mas Harry
conseguiu manter a posição e, polegada a polegada, afastou da cabeça a lâmina do adversário.
Se o golpe tivesse atingido o alvo, no mínimo Harry teria abandonado o terreiro das lutas
atordoado, ainda que escapasse de ser retirado com a cabeça quebrada. O velho Nicholas
Stury nunca era brando. Às vezes Harry suspeitava que ele sentisse prazer em machucar e
encher de nódoas negras os jovens homens de armas que se submetiam às suas lições e não
havia dúvida de que muitos deles o temiam.
Sob o impulso do ataque e da parada os dois adversários giraram sobre si próprios,
mudando de posição em dois passos rápidos. O círculo de rostos atentos dos espectadores
acompanhou os movimentos de ambos, as vozes abafadas sussurraram previsões e
comentários febris. Harry os conhecia bem demais para acreditar no seu apoio. Eram bastante
tolerantes com ele e, ao longo dos meses que passara na sua companhia, alguns tinham
mesmo se tornado seus amigos, mas quando se tratava de um torneio não podiam desejar a
vitória deste prisioneiro galês mesmo que o adversário fosse Stury, a quem eles detestavam
profundamente. Apesar do mau gênio, o velho Nicholas era um homem de Parfois, era um
deles e podia contar com o seu apoio contra um estranho.
Nicholas Stury era grande adepto daquele ataque devastador à cabeça do adversário,
talvez porque gostasse de ver o efeito aterrador que este produzia antes de atingir o alvo ou de
ser desesperadamente parado. Se lhe desse tempo tentaria outra vez, mas Harry conhecia mais
de uma maneira de lhe fazer frente. Desviou-se prudentemente para a direita, repeliu dois ou
três golpes que não passavam de fintas, ensaiou por sua vez alguns não menos falsos e então o
ataque repetiu-se, forte e fulminante, destinado a colocá-lo sem sentidos com uma pancada
sobre o elmo de treino, acolchoado. Desta vez, porém, em vez de recuar e erguer a espada
para afastar da cabeça a arma do adversário, Harry abaixou-se, deu um salto lateral por baixo
da lâmina e, ao passar pelo adversário, flanco direito com flanco direito, inverteu a posição da
espada e desferiu um golpe nas costelas de Stury, com tal força que este emitiu um som rouco.
Em seguida, para que não restassem dúvidas, enterrou a ponta rombuda da espada no flanco
descoberto do mestre de armas, a fim de mostrar que, num combate sério, o teria ferido
facilmente.
Os jovens saudaram ruidosamente o toque. Empoleirado no parapeito da janela do
armeiro mais próxima, um dos pajens gritou:
─ Tocou!
A alegria sincera daquele grito tocou o coração de Harry. Segundo parecia contava
com pelo menos um apoiador. Walter Langholme, o escudeiro do senhor de Parfois, repetiu o
grito com autoridade e, quando Stury se preparou para prosseguir o combate, interpôs-se e

3
4

encostou-lhe ao peito a ponta rombuda de uma lança de torneio.


─ Basta. Talvace venceu, Nicholas. Reconheça que foi derrotado.
Admitir a derrota era um ato difícil para um mestre de armas experiente, em qualquer
circunstância; mais difícil ainda quando o aluno dotado demais era um cativo estrangeiro e,
além do mais, um adolescente de dezessete anos que, por capricho do seu senhor, se exibia
pelo castelo e estava autorizado, por um favor especial, a participar nos torneios organizados
pelos jovens da corte.
─ Ele mal me tocou ─ protestou Stury, afastando a lança do peito largo com uma mão
tão dura como a pedra sobre a qual fora construído o castelo de Parfois. ─ Chama aquilo de
“um toque”? Se o meu pé não houvesse escorregado, ele nunca teria escapado ao meu golpe.
Harry afastou-se para a sombra do armeiro e deixou cair a espada sobre a beirada de
pedra que se estendia por baixo das janelas. Desapertou o elmo acolchoado, tão simples e
destituído de ornamentos quanto os elmos cerimoniais de torneio eram elaborados e
trabalhados, descobrindo o rosto afogueado. O pajem que se encontrava empoleirado na
janela atirou-lhe um lenço e Harry limpou o suor do rosto e do pescoço com satisfação. Em
seguida, sem se voltar, desafiou Stury:
─ Se o senhor põe em discussão este toque, conceda-me outro assalto. Para mim tanto
faz, posso voltar a fazer a mesma coisa.
Não era sensato dizer tal coisa naquelas circunstâncias; a impertinência atiçou contra
ele a lealdade dos presentes, mesmo das raras pessoas que lhe manifestavam maior simpatia e
provocou um coro agressivo de incitamento entre os partidários de Stury. Para falar a verdade,
Harry não estava de modo nenhum seguro de ser capaz de honrar a bravata. Uma coisa era
inverter a relação de forças, era apenas uma questão de paciência e cautela; outra bem
diferente era repetir a façanha, pois Stury agora estava de sobreaviso e de cabeça quente,
devido à derrota que sofrera, e não era homem para se deixar enganar. No entanto, era tarde
demais para pensar duas vezes: só lhe restava enfrentar a situação. Harry pegou no cântaro
que se encontrava sobre a beirada de pedra e bebeu com avidez enquanto os outros discutiam
ruidosamente e Langholme batia com a lança no solo e gritava para restabelecer a ordem.
Então, vinda da sombra do arco que dava para o pátio interior do castelo, uma voz
forte e clara proclamou:
─ Talvace foi o vencedor, não há qualquer dúvida. Alguém contesta essa vitória?
O clamor cessou de imediato. Como conseguira Isambard se fazer ouvir no meio de
tamanho burburinho era um mistério para Harry. Talvez as suas primeiras palavras houvessem
sido mais pressentidas do que ouvidas, abrindo caminho até aos nervos tensos como um
daqueles sons irritantes que nos fazem rilhar os dentes. Fosse como fosse, a sua intervenção,
embora breve, gerou silêncio à sua volta e todos os que se encontravam diante do armeiro se
puseram de pé numa atitude respeitosa. Quando o seu senhor se aproximava só tinham olhos
para ele, fitando-o com uma ansiedade e uma atenção a que Harry se habituara há muito.
Entre todos os que estão aqui, sou o único que não tem medo dele, pensou. Mas, logo
em seguida, corrigiu aquela estimativa apressada: Langholme também já não o temia embora
há algum tempo isso tivesse sido verdade. Cuida-lhe do corpo há tanto tempo que superou o
medo; ambos devem ter chegado a tal ponto de compreensão mútua que o receio desapareceu.
Walter não aspira a ser armado cavaleiro e não deseja obter de Isambard mais do que aquilo
que já tem; e Lorde Isambard sabe que Langholme não é ambicioso e dá-lhe mais valor do
que a qualquer um destes.
Harry observou a figura alta e esguia do senhor de Parfois que, a passos lentos, se
afastava da sombra do arco e se aproximava rodeado pelo silêncio que provocara. Não se
apressava por causa deles como nunca se detivera nem se apressara diante de reis. O calor de
agosto fizera-o desembaraçar-se do casaco e abrir a gola da camisa larga de linho, deixando a
garganta descoberta, magra e ereta, na qual as veias sobressaíam tensas como as cordas de um

4
5

arco, sob a pele tisnada. Isambard adorava o sol. Mandara abrir grandes janelas lanceoladas
nas paredes da torre dos seus antepassados para que o sol entrasse nos aposentos que
escolhera e tudo indicava que o sol lhe retribuía a devoção como um bom amigo. Ano após
ano o verão queimava-lhe a pele e reavivava a sua sombria beleza de outrora e libertando-o,
ao mesmo tempo em que ele se libertava dos brocados de Flandres, de uns bons quinze dos
seus sessenta e oito anos. O sol não podia voltar a escurecer os cabelos grisalhos, fortes e
encaracolados como os de um adolescente, mas dourava e polia as maçãs do rosto e os
maxilares, a rocha desgastada da testa e expulsava do seu corpo a rigidez do inverno. Parecia
natural então vê-lo mover-se como um jovem gamo e brilhar como o sol no zênite em pleno
agosto.
─ Um belo golpe ─ comentou. ─ Bem poderia ter lhe trespassado o coração. Parece
que você o ensinou bem demais. Agora ele conhece de cor todos os seus movimentos.
─ Ele nunca me teria atingido, senhor, se o terreno fosse de relva. Mas não questiono o
toque.
Não podia fazê-lo, pensou Harry descontente, porque Isambard o fitava olhos nos
olhos e proclamava num tom absoluto, aquilo que era a pura verdade. A obstinação de Harry
contra todos os que o rodeavam tornou-se mais forte; no fundo eram todos seus inimigos e
diabos o levassem se estivesse disposto a pactuar com qualquer um deles.
─ Propus a Stury um novo combate, senhor, já que ele não está satisfeito. Não quero
uma vitória que ele diz não ter passado de um golpe de sorte. Se eu conseguir repetir o feito
talvez possamos chegar a acordo.
Segurando o cântaro ora com uma mão ora com a outra, Harry despejou um pouco de
água fria sobre os pulsos e deixou que o ar quente do meio da manhã os secasse. Sabia que
aquilo era uma tolice, mas ao fim de sete meses estava farto de se mostrar sensato e de
suportar pacientemente as pressões do isolamento no meio de toda aquela gente. Se Stury
fosse capaz de provar ser o melhor, que o fizesse. Ele não ia recuar diante do mestre de armas,
a não ser pela força. Nem diante do próprio Isambard. Todos os que viviam no castelo tinham
medo dele, mas Harry não pertencia à casa de Isambard. Ia provar-lhes que ser um estranho e
um prisioneiro lhe dava uma capacidade superior à deles. Sem pestanejar sustentou o olhar
dos olhos escuros que o perscrutavam sem sorrir, do outro lado do círculo e limpou as mãos
lentamente, flexionando os dedos impacientes, prontos para voltar a empunhar a espada,
apesar dos efeitos daquele forte impacto inicial ainda não terem passado por completo.
─ Com a sua permissão, senhor. Estou à disposição do mestre Stury.
Isambard, que tirara a espada de torneio da mão de Stury, segurou o punho com a mão
magra de dedos compridos, encostou a ponta rombuda da arma ao solo e apoiou nela o peso
do corpo, experimentando-a.
─ O comprimento não é o ideal para mim, mas serve. Se você está assim com tanta
vontade de esgrimir sempre pode me proporcionar um pouco de exercício.
Portanto Isambard não queria que o velho Nicholas fizesse figura de tolo, pensou
Harry sem surpresa e sem grande ressentimento. E eu vou apanhar uma surra de outra
maneira. Bem, vamos levar as coisas mais longe já que, pela primeira vez, ele consente em
oferecer-me uma luta. Harry firmou bem os pés fortes no solo e lançou a Isambard um olhar
flamejante e hostil num desafio claro que talvez houvesse escapado aos presentes, mas que
por certo não escapara ao destinatário.
─ Não há qualquer litígio entre o senhor e eu. Foi o mestre Stury quem pediu uma
satisfação.
Deu-se conta do movimento e dos sorrisos de todos os jovens escudeiros de Parfois,
encantados por o verem baterem retirada tão rapidamente. Um deles, próximo de Isambard,
soltou uma gargalhada escarninha. Deixe que se divirtam, pensou Harry sem desviar os olhos.
Contudo, Isambard não se movera nem sorrira; sopesava a pesada espada e observava Harry

5
6

através dos raios de luz sem manifestar a mínima impaciência. Sabia que ele ainda não dissera
tudo.
─ Mas se quiser pôr-me à prova com espadas normais, senhor, ficarei encantado por
lhe proporcionar o melhor combate que puder.
Os presentes suspenderam a respiração, chocados por tamanha insolência,
encolerizados contra Harry em nome da dignidade de Parfois; mas também maravilhados
diante da sua ousadia e vagamente apiedados da sua loucura. Por seu turno, Harry sentiu o
coração apertar-se ao ouvir as próprias palavras, mas continuou a ostentar uma expressão
impenetrável. Apenas Isambard não deu indícios de ter ouvido mais do que uma observação
normal, que qualquer dos presentes poderia ter feito. Nem por um instante, os dedos
compridos, que seguravam o punho tosco da espada com uma delicadeza desenvolta,
tremeram ou se crisparam; ergueu a cabeça num movimento calmo e lento e o longo olhar
pensativo que fixou no rosto de Harry não demonstrou nenhuma emoção aos olhos de todos
os que o observavam atentamente, à espera de vê-lo esmagar ou matar o jovem atrevido,
dependendo do humor do momento.
Harry esperava uma recusa pura e simples e uma parte do seu espírito, sensível a um
medo físico bem natural, a teria aceitado de boa vontade. Mas os grandes olhos do senhor de
Parfois, que ardiam serenamente nas órbitas fundas, sorriam ligeiramente não deixando
transparecer cólera nem impaciência. Não que isso eliminasse o perigo de havê-lo enfrentado;
Isambard não precisava de uma nem de outra para ser capaz de matar.
─ Traga duas espadas de combate, Walter.
A voz era calma. Ninguém ousou manifestar consternação. Sem uma palavra
Langholme afastou-se e, com passos pesados, dirigiu-se para a armaria.
─ Não há pressa, Harry ─ disse Isambard ao ver o jovem estender a mão para o elmo.
─ Descanse. Você ainda mal teve tempo para recuperar o fôlego.
─ Vai usar armadura, senhor? ─ perguntou Harry, pronto a detectar qualquer afronta e
a mostrar-se ofendido.
─ Não se preocupe. Vamos combater em perfeita igualdade.
Aproximou-se da pilha de armaduras de couro e, com um movimento casual do pé, as
foi afastando por serem pequenas demais, depois do que se dirigiu à armaria atrás de
Langholme. Quando Isambard deixou de poder ouvi-los, os presentes voltaram por fim a
respirar e lançaram, em surdina, uma chuva de insultos e conselhos dirigidos a Harry. Aqueles
que nutriam por ele alguma simpatia amaldiçoavam-no por haver sido um tolo e desafiado a
morte em vão e incitavam-no a recuar, mesmo que de forma indigna, enquanto era tempo;
aqueles que não nutriam qualquer simpatia por ele prenunciavam com satisfação um resultado
acima de qualquer expectativa, no mínimo uma humilhante lição de esgrima, na pior das
hipóteses uma mutilação. Nenhum deles pensava em morte. Tinham a certeza de que
Isambard o queria vivo, uma vez que o deixara viver durante dois anos, quando poderia muito
bem tê-lo liquidado e não duvidavam igualmente de que, já que a morte não fazia parte dos
planos de Isambard para o rapaz, este não poderia invocá-la. Isambard faria dele gato e
sapato, lhe uma sova para que se arrependesse da sua presunção, faria correr algum sangue ou
o marcaria para o resto da vida, conforme lhe agradasse e depois o deixaria em paz.
Harry fez-se de surdo, curvou os ombros para se proteger tanto dos insultos como dos
conselhos e ficou teimosamente à espera, a massagear a mão dormente para recuperar a
sensibilidade. Que sabiam eles das boas razões que o levavam a ter medo do que fizera? Nem
sequer eram capazes de perceber o que se passara diante dos seus olhos. Só ele sabia até onde
podia chegar aquele jogo perigoso e, em vez de recuar, sentia crescer em si o desejo de se
lançar nele. Também sentia medo, o medo de não estar à altura e o medo sensato de qualquer
homem diante da morte. Mas Harry não queria reconhecer esses medos e, antes mesmo de
Isambard voltar da armaria já os expulsara, deixando fluir apenas o ódio e o orgulho.

6
7

Empunhando a lança de torneio em posição transversal, Langholme empurrou os


corpos que se agrupavam em volta do pátio batido para arrumar espaço para os dois
combatentes. Os dois desferiam golpes longos. Apesar de ter cinco ou seis polegadas a mais
do que o pai, Harry era, ainda assim, mais baixo do que Isambard umas três ou quatro e tinha
ossos mais leves do que este último. Era preciso pelo menos dar-lhe espaço para recuar se
Lorde Isambard decidisse infligir-lhe um castigo. Descontente, Langholme manobrou a lança
sem grande delicadeza. Quem havia de dizer que ia acontecer uma coisa daquelas, num
combate sem importância?
─ Dêem-nos espaço ─ ordenou Isambard que, pela viseira do elmo de treino, lançou
em torno de si um olhar aguçado, mais eficaz do que a lança de Walter. ─ Você, Nicholas, tire
esta porcaria de baixo dos nossos pés ─ acrescentou, empurrando com o pé as armaduras de
couro.
Depois que elas foram levadas, voltou-se para Langholme:
─ Você será o árbitro do combate, Walter. Então, Harry? Está pronto?
─ Até o primeiro toque, senhor? ─ perguntou Langholme com alguma esperança,
fitando o seu senhor antes deste fechar a viseira.
─Me darei por satisfeito com o que o Harry decidir ─ respondeu Isambard.
Os seus olhos brilhantes estavam cobertos por uma sombra e o tom natural da sua voz
nada revelava.
─ Até o golpe decisivo ─ cortou Harry, tendo o cuidado de não dizer “até à morte”.
Era um segredo entre ele e Isambard e nenhum dos dois queria revelá-lo diante de
terceiros.
Agora, tudo dependia deles; só havia uma saída e apenas para um dos dois. Langholme
baixou o cabo de uma lança dando o sinal para o início do combate e ambos se aproximaram,
num movimento duplo, flexível e cauteloso, que fazia lembrar o de um só homem diante de
um espelho. O círculo de rostos atentos, o anel de olhos ávidos, desapareceu como velas que
se apagam, o murmúrio de vozes tensas que não ousavam falar alto esvaiu-se no silêncio. Os
dois ficaram sozinhos no mundo como, de certa maneira, sempre haviam estado, defrontando-
se de armas na mão, desde o dia do primeiro encontro: o jovem, reclamando um ajuste de
contas pelo destino do seu pai; o homem, consciente das inúmeras dívidas que tinha para
saldar.
Enquanto observava os movimentos do braço comprido que testava as suas defesas,
Harry evocava mentalmente as razões do seu ódio e acalmava o coração, lutando contra os
ímpetos de vingança. Foi o senhor quem trouxe para cá o meu pai e o seu irmão adotivo,
Adam Boteler. Fez dele o seu mestre canteiro para construir uma grande igreja. Não lhe deu o
que o senhor havia pedido? Não executou o que lhe fora mandado construir? Sabe bem que
não! Foi na igreja que o encontrei pela primeira vez e bem o vi olhar para a obra do meu pai.
Sei que a considera perfeita. O senhor mesmo me disse. Como foi então que ele o traiu?
Como o ofendeu? Tirou-lhe das mãos uma criança de nove anos, um príncipe galês que o
senhor havia feito prisioneiro e que ia executar por ordem do Rei João. E mandou o Adam
levá-lo de volta ao seu pai adotivo, o Príncipe Llewelyn. Foi apenas isto! Privou o Rei João
do cadáver de Owen ap Ivor e poupou-lhe o cumprimento de uma tarefa ignóbil que o
repugnava, mas que, não obstante, o senhor estava disposto a cumprir. Depois disso o meu pai
regressou e entregou-se em suas mãos porque havia jurado não partir antes de terminar a sua
obra-prima. E terminou-a, acorrentado. Depois, quando foi desmontada a última tábua dos
andaimes, o senhor ordenou que ele fosse conduzido diante da sua própria igreja, para sofrer
ali uma morte de traidor, uma morte atroz. “Vou arrancar-lhe o coração do peito, vivo”
disse. E assim teria sido se Madonna Benedetta, que tinha vindo consigo de Paris, Madonna
Benedetta, que o senhor amava, não tivesse em segredo conseguido que lhe fosse dado um
fim melhor, rápido e limpo, pela mão de John o Frecheiro, o arqueiro que a servia. Mas nem

7
8

mesmo então o senhor foi capaz de deixá-lo em paz! Nem a Madonna Benedetta, porque ela o
amava e o poupara a uma morte terrível. O senhor a despiu e atou o seu corpo vivo ao corpo
morto do meu pai, atirando ambos ao Severn para que apodrecessem para todo o sempre nos
braços um do outro. E assim teria sido se John o Frecheiro não os houvesse encontrado e
levado para terra, dando a uma a vida e ao outro um túmulo tranqüilo, em Strata Marcella.
Mas o senhor ainda não estava satisfeito. Tinha descoberto o rasto de Madonna Benedetta e o
local onde nos havia escondido, a mim e à minha pobre mãe, ainda tão fraca de me haver
dado à luz, e nos perseguiu até a fronteira de Gwynedd, até um refúgio que não poderia ter
previsto, até o domínio e à proteção paternal do Príncipe Llewelyn. Pensava que eu não
voltaria? Pensava que havia se desembaraçado do último Talvace? Que a história iria acabar
assim?
Mas Harry viera cedo demais, aos quinze anos apenas; escalara a ravina de pedra e
escondera-se na igreja, na esperança de entrar furtivamente em Parfois e satisfazer a sua sede
de vingança. Mas fora na igreja que encontrara Isambard, fora ali que fizera tudo o que estava
ao seu alcance para matá-lo, custasse o que custasse, mesmo que para tal tivesse de morrer.
Harry lembrava-se da dura luta na galeria, do salto desesperado que dera na tentativa de
arrastar o inimigo atrás de si, de uma altura de trinta pés, até às lajes de pedra.
Ainda sentia a mão fina que lhe apertara impiedosamente o pescoço, agarrando casaco,
camisa e carne, puxando-o para trás e atirando-o contra a parede, abaixo dos medalhões que o
seu pai esculpira. Com uma cólera que lhe fez afluir o sangue ao rosto, recordou as três
bofetadas brutais e deliberadas, desferidas pela mesma mão que agora empunhava a espada
diante de si e testava as suas defesas. E ouviu a voz fria dizer: “Isto é por ter desprezado a
própria vida, grande tolo.” Depois veio a cela por baixo da torre e o longo cativeiro, aquele
imenso tormento que ainda não tivera fim.
Desde então, nunca mais se haviam defrontado; até aquele dia Isambard nunca
consentira em enfrentá-lo.
Todos os rancores acumulados ao longo daqueles anos concentraram-se na mão de
Harry e propagaram-se ao metal da espada. Se desperdiçasse aquela oportunidade, não teria
outra. O enorme peso do momento fez-lhe tremer e doer o braço por um instante, antes de
mão, arma e braço se fundirem num relâmpago inteligente.
As espadas tocaram-se e deslizaram, silvando, giraram e bateram uma na outra à altura
da cabeça, voltando depois a afastarem-se, inofensivas. Quantas vezes Harry observara
Isambard enquanto ele esgrimia e contemplara aquele rosto espantoso, mais grave e mais
imóvel do que nunca, avaliando o esforço despendido como se fosse de outra pessoa e não o
seu. Naquele momento Harry entreviu os olhos que o fixavam através da abertura da viseira e
os viu sorrir. Conhecia este golpe, havia-o visto centenas de vezes, admirara a sua sutileza,
estudara-o atentamente para encontrar uma forma de apará-lo. E de pulso firme e olhar
seguro, aparou-o. Nesse instante os olhos negros e trocistas brilharam como ferro ao rubro. E
continuavam a rir quando Harry atacou a fundo e se voltou acompanhando a estocada, mais
rápido do que o eco do aço; a espada raspou o ombro de Isambard no momento em que este
recuava de um salto.
Por um instante o círculo de rostos ressurgiu no vazio que os rodeava, soltou um
suspiro trêmulo de espanto e admiração e voltou a desaparecer.
Harry engoliu o sangue que tinha na boca e sentiu uma náusea; a impaciência levara-o
a morder a língua. Com isso, perdera a oportunidade de tirar partido daquele sucesso
inesperado. Nunca pare para ver o resultado do golpe que você desferiu, desfere outro de
imediato, depois outro antes dele ter tempo para pensar no primeiro. Isambard é um velho,
tem sessenta e oito anos, você pode cansá-lo, deixá-lo esgotado até a mão lhe falhar ou o pé
resvalar. Ele sabe que você quer ir até ao fim e concordou. Você disse: até o golpe decisivo,
mas ele ouviu a palavra que você não pronunciou e respondeu “me darei por satisfeito”.

8
9

O braço comprido de Isambard lançou um ataque forte e rápido à cabeça de Harry.


Este reagiu com algum atraso, mas aparou o golpe embora a parte chata da lâmina lhe tivesse
atingido o ombro. Os seus músculos contraíram-se sob o choque, mas conseguiu controlar a
dor e deu um passo atrás para recuperar o fôlego. Então o pânico momentâneo transformou-se
de imediato numa frieza de aço. Repeliu os violentos ataques que se seguiram com a firmeza
de uma rocha; por nada deste mundo voltaria a recuar diante do seu inimigo. O seu olhar era
tão arguto como o do velho senhor, o seu braço igualmente firme e podia sem dúvida contar
com uma maior resistência física. Tudo o que lhe faltava era a longa experiência dos campos
de batalha, o terrível talento que permite criar novos golpes a partir daqueles que vão sendo
parados, a capacidade de invenção que permite sempre criar uma surpresa. Observar e estar
preparado, não havia outro caminho. Evocar todos os ataques que vira Isambard desferir ao
longo daqueles dois anos e, se este fraquejasse por um instante que fosse, ganhar a luta porque
a oportunidade não se apresentaria uma segunda vez.
Contudo, Harry não confiava nem sequer nessa oportunidade única e ainda bem,
porque Isambard nem por um instante diminuiu a concentração. Dava o melhor de si em tudo:
mão, olhos, jogo de pés. E o mesmo olhar crítico que guiava a espada ria e aprovava a
intensidade ponderada do adversário, que não pestanejava, cruzava imperturbavelmente ferro
contra ferro, esperando com uma paciência feroz a mínima brecha nas suas defesas.
Os dois escorriam suor, os músculos dos seus braços gemiam sob o peso das espadas e
do esforço, as coxas tensas crispavam-se e até as solas dos pés estavam doloridas. Contudo,
nenhum deles queria mostrar o mínimo sinal de fadiga. Os choques violentos das espadas
repercutiam nos ombros e nos flancos, mas os olhos de ambos não se desviavam e os assaltos
sucediam-se sem tréguas.
O círculo de rostos reaparecera no seu campo de visão, os murmúrios haviam se
tornado mais insistentes e quase receosos. Langholme agitava-se inquieto, com os nervos à
flor da pele, sem saber se devia intervir ou deixar correr. Harry tinha uma vaga consciência de
tudo isto, mas não podia permitir-se desviar a atenção. Foi Isambard quem, sentindo a
agitação nas suas costas, lançou um breve olhar para o lado, como que para avisar os
espectadores que não interviessem naquilo que não compreendiam.
Harry deu-se conta do ínfimo movimento de cabeça do adversário, da desconcentração
momentânea dos olhos que o fitavam. Avançou como uma fúria, com a espada em diagonal,
mergulhando sob a lâmina da espada de Isambard, que reagiu habilmente, sobressaltado, para
desviá-lo. Apesar da rapidez da sua reação, o senhor de Parfois não tinha outra opção que não
fosse recuar, uma e outra vez, diante daquele assalto, até conseguir ter espaço de manobra
para manter o jovem à distância. Seguro da sua vantagem, Harry manteve a pressão
empurrando o adversário com o seu assalto, em direção ao círculo de espectadores atônitos,
que se afastaram para lhes dar espaço.
Então, de repente, Isambard caiu por terra! Um grande passo atrás, junto ao muro, e a
correia de um elmo que ali ficara rolou sob o seu pé, fazendo-o cair. Caiu sobre o joelho e o
quadril, na terra batida, a espada quase lhe saltando da mão, caiu com a agilidade inimitável
de um gato, conseguindo firmar-se nas pernas num movimento vivo. Mas com o impulso que
levava, Harry caiu sobre ele sem lhe dar tempo para se levantar e apontou-lhe a espada à
garganta.
Ficaram estáticos por um instante e o mundo em volta deles parou, numa imobilidade
e num silêncio que lhes permitiu ouvir o suor a escorrer-lhes da testa e a contração dos
músculos do braço do jovem, que corrigia a posição da espada, e do corpo do homem que, por
terra, aguardava o golpe sem pestanejar.
As respirações suspensas dos presentes soltaram-se num clamor súbito e Langholme
correu para os dois combatentes, seguido de perto por Nicholas Stury. No entanto a sua
intervenção não era necessária; o momento passara. Com as pernas tremendo, Harry dera

9
10

meia-volta e afastara-se para o extremo do pátio; com a ponta da espada fincada na terra,
esperava que o seu inimigo se levantasse. Ouviram-se gritos de protesto; não fora uma
vantagem; se a correia não se encontrasse no chão, Lorde Isambard não teria caído. Uns dez
braços estenderam-se para ajudá-lo a se erguer. Como se ele precisasse de ajuda! Antes de
terem tempo para lhe tocar, ele já se levantara, recusando tal solicitude com impaciência e
desprezo.
Sempre pronto a tentar cair nas boas graças do seu senhor, o jovem Thomas Blount
gritou na sua voz clara e provocadora:
─ Seria melhor se o deixasse entregue aos martelos e cinzéis, senhor. Ele luta como
um canteiro.
Harry ouviu a observação à distância, mas este não veio acrescentar nada à longa lista
dos seus ressentimentos contra Thomas. Quanto a Isambard, o mais provável era não ter
ouvido nada. Com a espada recuperada a balançar na mão, olhava fixamente para o jovem que
aguardava, de cabeça obstinadamente baixa, do outro lado do pátio.
─ Não houve vantagem ─ disse Langholme, com a voz ainda vibrante de uma emoção
que já caminhava para as fronteiras da irrealidade.
Em breve todos pensariam ter sonhado com a ponta da espada encostada à garganta do
seu senhor, a mão de Harry crispada sobre o punho, os corpos tensos como cordas de arco.
Em breve estariam convencidos de que, devido ao impulso que levava Harry não poderia ter
parado a tempo diante do adversário caído por terra.
─ Eu não proclamei vantagem ─ atalhou Harry.
─ Então se o senhor se dá por satisfeito... ─ começou Walter.
Walter Langholme queria acabar com aquilo; desde o início que o duelo lhe
desagradava. De todos os presentes talvez fosse o único a perceber a torrente tumultuada
correndo por baixo da superfície aparentemente calma, que arrastava consigo os dois
antagonistas, ligados tão fortemente pelo ódio como dois amantes estão ligados pelo amor.
─Você se dá por satisfeito, Harry? ─ perguntou Isambard numa voz neutra, pois não
queria influenciá-lo.
─ Nenhum de nós levou a melhor até agora, senhor. ─ Louco, você é um louco,
pensou Harry, furioso com o tremor que lhe agitava o corpo, agora esgotado pela surpresa e
pelo choque. Mal consegue segurar a espada. De que serve convidá-lo a matá-lo? No entanto,
cerrou os dentes e endireitou o corpo; não queria recuar de modo nenhum. Morte por morte
era a dívida que tinha para com o seu inimigo e ninguém iria poder acusá-lo de não ter
cumprido o seu dever.
─ Como queira ─ replicou Isambard com a sombra de um sorriso a iluminar-lhe por
um instante o olhar, ao detectar no tom obstinado de Harry o tremor que não era visível nas
pernas retesadas. ─ Em guarda!
Harry fez o melhor que pôde. O corpo obedecia-lhe, embora com menos convicção do
que desejaria, como se já não acreditasse no rancor dos seus propósitos. Por três vezes, tarde e
com ansiedade, afastou a lâmina que procurava atingi-lo, lutando simultaneamente contra a
falta de firmeza da sua mão e contra a segurança da mão do adversário. Em seguida recuperou
o alento e voltou a replicar com maior vigor. Tudo o que acontecera não podia ser em vão.
Não podia. O velho senhor estava cansado, já não levava os assaltos até o fim, os seus
movimentos eram mais lentos, evitava as aproximações excessivas.
Harry respirou fundo e avançou. Isambard recuou deliberadamente um passo e,
sentindo-se encorajado, o jovem seguiu-o, esquivou-se à lâmina que procurava o seu flanco
esquerdo e lançou-se num assalto, com todo o seu peso. Isambard passou sob a lâmina e
aproximou-se, prendeu o punho da espada de Harry com o seu e o fez se desequilibrar,
empurrando-o com o quadril. A execução final da manobra foi feita sem pressa. Isambard
recuou com toda a calma e, enquanto Harry tentava recuperar o equilíbrio, lançou um golpe

10
11

bem calculado à espada do adversário, arrancando-a de sua mão sem qualquer esforço inútil.
A espada caiu no chão a três jardas de distância e a lâmina tilintou como a corda de um arco
ao rebentar.
Pela segunda vez, ouviu-se um enorme suspiro coletivo, afastando a tensão
acumulada. Desta vez um suspiro de contentamento, pois o fim fora o que desejavam. O
jovem Thomas Blount até riu, uma gargalhada clara e sonora, ostensiva, tão estudada como a
de uma moça. Um riso humilhante que chegou aos ouvidos de Harry no momento em que este
se abaixava penosamente para apanhar a espada. Contudo, quando ergueu o rosto Harry
apresentava uma expressão impenetrável, Thomas não teria o prazer de vê-lo perder a
compostura.
Ainda de espada na mão, Isambard voltou-se e fitou Thomas.
─ Ah, Thomas! Você achou a exibição assim tão má?
Apesar do seu rosto apresentar uma expressão amável e sorridente, a voz e o gesto de
Isambard estalaram como um chicote.
─ Sendo assim venha mostrar ao Harry quais foram os seus erros. Dê-lhe uma lição de
esgrima. Me agradaria muito vê-los medir forças ─ acrescentou, segurando a própria espada
pela lâmina e entregando-a a Thomas. ─ O Harry não se furtará a aprender com um mestre.
Por entre os ombros dos homens de armas, Harry viu o rosto de Thomas empalidecer
de consternação. O pajem ainda tentou sorrir, mas o sorriso transformou-se num esgar que
contorceu lamentavelmente os traços harmoniosos do seu rosto e logo desapareceu ao ver que
Isambard não dava indícios de retirar a espada que lhe oferecera. Todas as cabeças haviam se
voltado para ele e muitos dos homens de armas sorriam. Teria sido bem melhor mostrar-se
prudente com o riso; este é traiçoeiro e muda facilmente de campo.
─ O Harry não está em condições de travar outro combate, senhor ─ protestou
Thomas, apelando para a pouca segurança que lhe restava. ─ Olhe para ele! Não seria justo.
─ Cabe a ele decidir. Ainda se sentes com fôlego para mais um, Harry?
─ De boa vontade, senhor! ─ replicou Harry com uma expressão simultaneamente
alegre e grave.
─ Ouviu, coração ousado? Aproxime-se e me mostre o que pretende ensinar-lhe.
─ Senhor, ele tem de obedecer às suas ordens ─ disse Thomas, com um trejeito
nervoso no rosto pálido e recuando diante da espada estendida. ─ Num combate desses, ele
não perderá glória e eu não a ganharei. O senhor não me pediria para enfrentar um homem
cansado e ferido!
Os olhos denotavam ansiedade, mas a voz petulante deixava transparecer uma candura
indignada. Thomas conseguia sempre arranjar uma maneira de fugir graciosamente de todas
as situações que não lhe agradavam e, até então, o seu senhor nunca deixara de rir e de deixá-
lo escapar. Por que haveria de ser diferente desta vez?
─ Muito bem dito, meu nobre Thomas, modelo da cavalaria. Com efeito, não posso
pedir-lhe que cometa tal atentado à sua honra ─ respondeu Isambard com um sorriso que nada
tinha de ameno, ao mesmo tempo em que passava a espada de uma mão para a outra. ─
Adiemos o combate para um momento mais adequado ─ acrescentou enquanto o seu sorriso
se transformava num trejeito diabólico. ─ Para amanhã, quando o Harry estiver tão
descansado como você e ambos tiverem tanta glória a perder como a ganhar.
Por um instante, Isambard fitou nos olhos o seu pajem favorito sublinhando a ameaça;
em seguida, deu meia-volta e, com um gesto imperioso, estendeu a espada a Walter
Langholme.
─ Amanhã não deixe de me lembrar, Thomas ─ disse antes de se afastar a grandes
passadas, em direção ao arco que dava para o pátio interior.
O som seco e ameaçador da sua gargalhada lançada por cima do ombro, chegou
claramente até eles.

11
12

A partida de Isambard trouxera de novo o sangue às faces de Thomas, numa onda de


alívio, mas aquela gargalhada transformou o alívio em consternação, fazendo-o corar
violentamente. O suspiro coletivo de alívio resultante da libertação das tensões transformou-
se ostensivamente numa vaga de risinhos irônicos e os sorrisos abertos dos homens de armas
atingiram a dignidade ofendida de Thomas, como ácido derramado sobre uma ferida.
─ Tenha calma, rapaz ─ aconselhou Langholme, que segurava com resignação as duas
espadas de combate. ─ Ele não vai obrigá-lo a nada. Amanhã, não abre a boca, fique longe
dos olhos dele e Lorde Isambard não vai se importar de esquecer do que disse. O mais
provável é nunca ter sido sua intenção levar as coisas até o fim.
Nunca as palavras de conforto foram mais humilhantes. Tremendo de raiva e despeito,
Thomas mordeu os lábios e lançou um olhar furioso aos companheiros sorridentes. Até então
o seu estatuto de favorito dera-lhe certa influência sobre alguns deles. Iria perdê-la sem luta?
Para voltar a impor-se, antes que fosse tarde demais e o descrédito o manchasse para sempre,
atacou.
─ Ainda bem! Lorde Isambard pode rebaixar-se lutando com operários e canteiros, se
quiser, mas não pode pedir aos outros que façam o mesmo.
A voz de Thomas era aguda e vibrava de fúria. Chegou aos ouvidos indiferentes de
Harry, que se voltou momentaneamente hesitante, sem saber se devia ou não ofender-se. Teria
Thomas Blount importância suficiente para um homem lhe dar a honra de brigar com ele? Por
vezes, Harry suspeitava que fosse o desdém e não a amizade, a origem da atitude de Isambard
para com Thomas e da liberdade que lhe dava. E se Isambard era capaz de deixar passar em
branco certas coisas, Harry também podia fazê-lo. Para que desperdiçar em seres menores
como Thomas a intensidade do ódio que pertencia apenas ao seu senhor? Assim sendo voltou
às costas para Thomas.
Ao ver afastar-se a túnica de lã, Thomas interpretou mal o motivo do afastamento e,
imprudentemente, comentou:
─ Os canteiros são uns reles talhadores de pedra. Uns míseros cortadores de pedra!
Tal pai, tal filho!
Estas palavras fizeram Harry voltar para trás: sem pressa mas de cabeça baixa, o que
nele era muito mau sinal. Thomas não bateu em retirada. Langholme estava ali e também uns
doze homens mais velhos. Com certeza não permitiriam que as coisas fossem longe demais.
─ Você falou no meu pai - disse Harry, com cortesia. ─ Mas não ouvi bem o que
disse. Quer fazer o favor de repetir?
A distância entre ambos era de três jardas e como uma advertência Langholme já
avançara um ombro e lançara um olhar ao mestre de armas, indicando-lhe que se preparasse
para intervir do outro lado. Thomas avaliou os riscos e resolveu aventurar-se.
─ Chamei-o reles cortador de pedra. Como o filho. ─ Thomas calculara mal o grau de
proteção que poderia esperar dos mais velhos. Langholme, atingido por uma cotovelada
recuou algumas jardas cambaleando pelo pátio e Thomas Blount se viu estendido por terra,
esmagado sob o peso de Harry. Os dois rolaram pelo solo, rosnando como cães de briga e
antes de Nicholas Stury e mais uns doze homens terem conseguido segurá-los e separá-los,
Isambard voltara atrás, de olhos faiscantes e sobrancelhas franzidas, como uma nuvem de
tempestade.
─ O que vem a ser isto? Vocês se lançam ao pescoço um do outro, mal eu viro as
costas? Estavam com menos vontade de lutar ainda há pouco. Será que os meus pátios vão se
transformar em terrenos de luta para crianças turbulentas? Quem foi que começou, Walter?
Como aconteceu isto?
Langholme contou a história com honestidade e à sua voz juntou-se mais meia dúzia
de outras, que descreveram o que se passara palavra por palavra.
─ Então foi isso que aconteceu ─ resmungou Isambard. ─ Acredite em mim, Thomas,

12
13

há homens que não gostam que falem mal dos pais, embora eu saiba que é bem pouca a
estima que você sente pelo seu.
─ Ainda que eu possa ter expressado livremente demais o que penso, senhor, não era
motivo para ele me atacar de surpresa.
─ Ele estava me olhando nos olhos quando o ataquei, senhor ─ contrapôs Harry, com
desprezo. ─ Não sei onde está a surpresa.
─ Poupem o fôlego, pois vão precisar dele. É necessário que este assunto seja
resolvido já e de uma vez por todas.
─ Com as armas que ele quiser ─ lançou Harry em tom insolente.
─ Com as armas que eu quiser ─ corrigiu Isambard com um olhar flamejante. ─ E eu
quero um combate de mãos nuas. Não quero mortes nem feridas fatais, mas podem se servir
dos braços à vontade. Três quedas na terra e o assunto fica resolvido. Afastem-se ─ ordenou
Isambard aos presentes, com um gesto imperioso da mão. ─ Recuem e dêem espaço.
Coloque-os em posição, Walter.
Não havia apelo para aquela voz e para aquela expressão. Harry despiu a túnica
alegremente e sorrindo dirigiu-se para o seu lugar. Com as mãos trêmulas Thomas despojou-
se dos seus brocados e em silêncio, com relutância, encaminhou-se para o seu. Era um ano
mais velho do que o adversário e mais pesado, tinha uma altura e um alcance iguais, mas não
era um lutador. Harry precisou apenas de dois minutos para derrubá-lo e prendê-lo contra o
chão pelos ombros, bem aos pés de Isambard.
No primeiro assalto Harry esqueceu a fadiga e a dor. No segundo esqueceu a cólera.
No terceiro lançou Thomas por terra quase docemente, como teria feito num treino com um
adversário bem mais novo.
─ Para um reles cortador de pedra você foi muito delicado ─ observou Isambard, num
tom crítico. ─ Muito bem, Thomas. Você teve aquilo que mereceu. Isto põe termo à sua
disputa. O assunto está encerrado.
Thomas ergueu-se lentamente e, também lentamente, coxeou até ao local onde deixara
a roupa. A dor não era grande e coxear era, sobretudo, uma forma de se confortar e justificar.
Enquanto limpava a poeira do rosto não olhou para ninguém e manteve os olhos baixos.
Alguns dos seus companheiros, uns movidos por uma fidelidade obstinada, outros por
mera compaixão, rodearam-no e esforçaram-se generosamente por fazê-lo esquecer a derrota,
falando sobre outras coisas. Contudo, Thomas não disse uma palavra nem olhou para eles. Só
ergueu os olhos uma vez: quando Isambard passou por ele sem um olhar e se afastou em
direção ao pátio interior. Nesse momento Thomas ergueu a cabeça despenteada e os seus
olhos azuis lançaram um longo e velado olhar rancoroso à silhueta alta. Depois voltou a fixar
os olhos no chão. No entanto Harry surpreendera aquele olhar glacial e amargo como o
inverno, sob as compridas pestanas louras. O assunto não estava encerrado. Thomas Blount
nunca iria perdoar a ninguém e muito menos ao senhor de Parfois, a humilhação e a perda do
seu posto.
Isambard entrou na sala de desenho ao pôr do sol, à hora em que a luz baixa iluminava
toda a superfície da mesa de trabalho junto à janela e fazia brilhar os nós dos dedos das mãos
de Harry enquanto este trabalhava. A própria pedra apresentava uma tonalidade idêntica à da
pele tisnada e bem esticada sobre os ossos, que acompanhava o ritmo dos movimentos das
articulações. Mãos douradas e pedra dourada formavam um único foco de luz, como que
fundidas numa vida única. Aprisionado na pedra, de asas arqueadas e pescoço estendido, um
falcão tentava freneticamente escapar àquele cativeiro; as mãos pacientes trabalhavam com
delicadeza na sua libertação. Isambard aproximou-se, mas Harry não lhe prestou atenção. A
cadência dos golpes leves e ternos do macete sobre o cinzel não sofreu a mais ligeira
alteração.
A pedra era um fragmento de um dos últimos blocos que havia restado, após a

13
14

magnífica e terrível conclusão da igreja de Parfois e a morte estranha e atroz do seu criador. O
jovem manuseava-a com amor e respeito, com uma paciência infinita e pouco habitual,
porque a pedra endurecera com os anos e trabalhá-la exigia agora todo o seu talento, ainda
não plenamente desenvolvido. Harry passou um dedo sobre os contornos da ave e soprou a
leve poeira que voou em mil partículas luminosas.
─ Então, está contente com a sua vitória? ─ perguntou Isambard junto ao seu ombro.
─ Não, senhor.
Harry trocou o cinzel por outro mais fino e começou a trabalhar nas penas da asa do
falcão.
─ Você é difícil de contentar. Por que não? Fez o que era devido.
─ Eu estava em vantagem. O Thomas é arrogante demais e acha que a luta não é um
esporte digno de um cavalheiro. Mas eu poderia vencê-lo com qualquer arma que o senhor
tivesse escolhido.
Isambard riu, afastou algumas das ferramentas que se encontravam sobre a mesa e
sentou-se.
─ O que você disse é verdade, embora não seja prova de modéstia.
─ O senhor deveria nos ter dado espadas de torneio. Ele se orgulha da sua habilidade
como esgrimista.
─ E mesmo assim você conseguiria derrotá-lo? É bem possível, mas nesse caso ele
teria sofrido ainda mais, só para satisfazer a sua vaidade. Onde está a piedade pelo seu
inimigo? ─ perguntou Isambard sorrindo.
Harry franziu as sobrancelhas para a sua obra e afastou-se um pouco para observá-la
com um olhar mais crítico. Depois, sem erguer a cabeça, disse abruptamente:
─ O senhor faria bem em ter cautela com ele.
─ Ter cautela com ele? Com o Thomas?
─ Se até agora não era nosso inimigo, passou a sê-lo ─ respondeu Harry, num tom
sério. ─ Tanto seu como meu.
─ Ora, aí está pelo menos uma coisa que temos em comum. Mesmo que seja a única.
Isambard pegara num cinzel fino e brincava distraidamente com ele, testando a ponta
com o polegar enquanto os seus olhos continuavam fixos, avaliadores, no rosto de Harry.
─ Vamos ver se entendo você ─ disse abruptamente. ─ Tanto quanto sei, chegou aqui
faz dois anos para vingar a morte do seu pai. E não foi culpa sua não ter saldado a sua dívida
no nosso primeiro encontro. Juro por Deus que você fez tudo quanto estava ao seu alcance.
Ao longo destes dois anos, esteve à espera de uma nova oportunidade de aproveitar a força
que agora já possui. Será que estou certo? Será que fui realmente eu quem deu a morte a
mestre Harry? Será que você veio mesmo procurar-me, de adaga em punho, na sua igreja?
Será que senti prazer em reter você aqui, todos estes meses, atormentando-o com falsas
esperanças de liberdade? Será que recorri a mil artimanhas para arrancar o segredo do local do
túmulo do seu pai?
Sem largar o martelo, subitamente silencioso, Harry disse:
─ Para desenterrá-lo. Como o chacal que é.
Fora bem cruel a artimanha que Isambard usara então contra Harry: fazê-lo crer que,
depois de todas as tentativas de persuasão haverem falhado, deixara escapar o segredo durante
o sono e depois encarregando Thomas (com a sua enganadora cara de anjo e a sua simpatia
hipócrita) de lhe prometer a fuga e de levá-lo para fora de Parfois, na calada da noite. Na sua
ansiedade desesperada Harry caíra de cabeça na armadilha e, como um pássaro de volta ao
ninho, levara-os até o túmulo sem nome junto aos muros de Strata Marcella. Lembrava-se
bem do rosto sorridente de Isambard iluminado pelo luar, dos seus dedos seguindo os
contornos da folha esculpida na pedra, da sua voz satisfeita ordenando: “Levem-no. Já me
disse o que eu queria saber.”

14
15

─ Ah, bom! Começava a pensar que você havia esquecido. Estou vendo que está tudo
vivo na sua memória. Como no dia em que aconteceu... quando jurou matar-me por isso.
Lembra-se?
─ Lembro-me muito bem ─ respondeu o jovem em tom sombrio.
Voltando as costas ao seu interlocutor, Harry retomou o trabalho e ouviu claramente a
sua voz gritar: “Não há nome suficientemente vil, para aqueles que, como o senhor, se
vingam até nos mortos”.
─ E não mudou de idéia?
As batidas do macete quebravam o silêncio a intervalos regulares.
─ Então por que não me matou quando a oportunidade se apresentou, como faria
qualquer homem sensato?
Por um instante o ritmo abrandou, mas depois, obstinadamente, foi retomado.
Isambard insistiu:
─ Pensa que Deus vai me atirar aos seus pés, de joelhos, todos os dias? Foi ingratidão
recusar a oferta que Ele lhe fez. Por que eu estou vivo ainda? Diga-me!
─ Eu não podia aproveitar-me de um velho ─ respondeu cruelmente Harry.
─ Não vale a pena tentar ofender-me. É muito difícil, quando quero saber alguma
coisa. Eu sou velho. Sabe muito bem que pode dizê-lo cem vezes sem que isso faça de você
meu mestre de esgrima. Por enquanto ainda não! Por que estarei ainda aqui, aborrecendo
você? Irei descobrir.
─ Foi por mero acaso que o senhor caiu ─ respondeu Harry ofendido. ─ Não queria
tirar-lhe a vida nessas condições.
Isambard lançou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada.
─ Finalmente, palavras dignas de um Talvace. Nisso eu acredito. O seu pai nunca
aceitaria favores, fossem de um homem ou de Deus e nisso você é tão igual a ele como um
carvalho é igual a outro. No entanto ─ prosseguiu Isambard, retomando subitamente um tom
grave e seco ─ essa não é também a verdade toda. Se estivéssemos num campo de batalha,
você não teria desferido um golpe contra o seu inimigo por que a cilha da sela dele ter se
partido?
─ Não estávamos num campo de batalha ─ argumentou Harry.
Contra a vontade afastou as mãos da pedra; a luz já era já fraca e o tom dourado do
pôr-do-sol transformara-se num ocre crepuscular. Pousou as ferramentas com todo o cuidado,
como se temesse que um som demasiado agudo pudesse perturbar a superfície tranqüila do
seu universo quotidiano e despertar os demônios da incerteza. Por trás dele, o silêncio tornou-
se mais intenso.
─ Achas que não? ─ perguntou Isambard em voz baixa. ─ Onde nós estamos desde o
dia em que nos conhecemos, Harry? Quando você me olhou nos olhos e me convidou para
algo que era mais do que um jogo, julga que eu não sabia que era um duelo até à morte? Deus
sabe há quanto tempo você esperava por esse momento. Porque renunciou a ele, quando se
apresentou?
O crepúsculo mergulhara na sombra o rosto de Isambard, transformando-o numa
forma lúgubre sobre o fundo pálido da janela. A imobilidade do seu corpo, o tom abafado e
pausado da sua voz indicou a Harry que ele estava prestes a explicar aquilo que viera dizer.
─ Não precisava você se refrear, por medo das conseqüências. Já dei as minhas ordens
e obriguei De Guichet e Walter a jurar que as respeitariam. Se você me matar num combate
leal, não será alvo de represálias. Terá ganhado honestamente a sua liberdade.
Com uma expressão determinada Harry abaixou as mangas arregaçadas e começou a
arrumar as ferramentas.
─ Deveria ter me dito isso antes ─ comentou em tom sombrio.
─ Amanhã lhe dou outra oportunidade.

15
16

O momento crucial passara e a voz de Isambard começava a voltar ao habitual tom


trocista e corrosivo. Mais um minuto e voltaria a proferir as palavras como sempre, cada uma
delas uma chicotada.
─ Você não quer recuperar a liberdade? A Princesa de Aberffraw e David, seu irmão e
seu príncipe, já se encontram em casa do bispo, em Shrewsbury. A cavalo são apenas duas
horas de caminho. Só o meu velho corpo se interpõe entre você e os braços deles.
Harry aprendera a controlar o tremor das mãos e a manter uma expressão
impenetrável, qualquer que fosse a provocação. Não seria por estes meios que Isambard lhe
arrancaria qualquer reação, embora sentisse o coração apertado, ao pensar que a Princesa Joan
e David se encontravam tão perto e ele não podia ir encontrá-los nem sequer mandar-lhes uma
mensagem de amor e lealdade. Ah, se queria recuperar a liberdade! Durante o dia conseguia
cansar o corpo e controlar o espírito com alguma facilidade, mas de noite, na cama, a angústia
do seu desejo de liberdade dilacerava-lhe as entranhas a ponto de levá-lo a morder o braço
para substituir aquela dor por uma outra, mais suportável.
Tinha dezessete anos e estava prisioneiro há quase dois; a difícil trégua entre a
Inglaterra e o País de Gales, a trégua de um ano que impedia Llewelyn de tentar fosse o que
fosse para libertar o filho adotivo mantinha-se apesar da longa lista de acusações de ambas as
partes e das numerosas violações de território, tudo indicando que viria a ser prorrogada por
mais um ano. Naquele mesmo momento os enviados do Rei Henrique e do Príncipe Llewelyn
estavam descarregando os respectivos animais de carga e se instalando em Shrewsbury, onde
passariam em revista as suas causas, preparando-se para o encontro marcado para dali a três
dias, no castelo de Shrewsbury. Desta vez tratava-se apenas de chegar a um acordo quanto à
sessão do tribunal papal que, ainda nesse ano, se pronunciaria sobre as muitas alegações de
violação de fronteiras. Mas é claro que iam chegar a um entendimento e no inverno quando o
tribunal se reunisse também se mostrariam dispostos a concordar: o Rei Henrique tinha outras
coisas em mente, motivo pelo qual precisava que o País de Gales continuasse pacificado; e o
Príncipe de Aberffraw queria garantir plenamente a sucessão do filho, a qual não podia pôr
em perigo com um ato de guerra prematuro. Sim a trégua era para continuar e com ela o seu
cativeiro. Isambard encarregava-se de mantê-lo bem-informado; sabia o pouco que tinha a
esperar dos homens. Ora, Deus apresentara-lhe a garganta de Isambard desprotegida, ao
alcance da ponta da sua espada e Harry recusara a oferta. Por quê? Saberia ele próprio o por
quê? Por medo de ser enforcado? Harry forçou-se a rever o momento, a fim de apreender a
verdade, mas não lhe parecia que as coisas pudessem ter sido diferentes mesmo se já soubesse
o que Isambard acabara de lhe dizer. E Isambard, que não dizia nem fazia nada sem uma
finalidade, acenava-lhe agora com algo mais sedutor do que a própria liberdade. Só este velho
corpo se interpõe entre ti e os braços deles! Harry procurava perceber que intenção se
ocultaria por trás daquelas palavras. Havia sido tentado a faltar à palavra dada; estaria agora
sendo tentado a cometer um assassínio?
─ O senhor poderá transmitir-lhes a minha estima e os meus respeitos quando for
amanhã se juntar à corte do rei ─ disse em voz firme. ─ Não poderia desejar um mensageiro
mais escrupuloso.
─ Basta uma palavra e você mesmo poderá dar-lhes a mensagem ─ insistiu Isambard.
─ Se me der a sua palavra de que voltará comigo, poderá ir a Shrewsbury na minha comitiva.
─ Não, senhor. Não lhe darei a minha palavra nem agora nem nunca. Quando a
ocasião e os meios de escapar se apresentarem, partirei. Sem nenhuma promessa que me
impeça de fazê-lo.
─ Harry, Harry! Quando aprenderá a seguir a direção do vento? Quantas vezes já
tentou fugir-me?
─ Pelas minhas contas cinco vezes. Mas haverá outras oportunidades.
─ E nessas cinco vezes você foi apanhado antes mesmo de chegar à ravina. Aliás, pelo

16
17

menos uma das vezes foi uma sorte você ter sido puxado para terreno firme com os ossos
todos inteiros. Há quanto tempo já não é dada a você uma oportunidade para pensar sequer em
tal aventura? Com dois arqueiros colados aos calcanhares para onde quer que vá? Desista,
Harry: não é possível fugir de Parfois. Aproveite a possibilidade que estou oferecendo para
você sair a cavalo pela porta principal.
─ Não ─ respondeu Harry, obstinado.
E enrolou os pergaminhos onde traçara os seus esboços. Aprendera a não desperdiçar
energia gritando; a recusa era tão absoluta como a morte e igualmente silenciosa.
Isambard suspirou, ostensivamente.
─ Como queira. Não posso dar-lhe aquilo que não quer aceitar. Mas lembre-se das
minhas palavras. Da próxima vez, se conseguir de novo ter-me sob seu poder depois do susto
que me pregou, desfere o golpe. Em Parfois ninguém cortará o seu pescoço por ter cortado o
meu. Alguns serão até capazes de agradecer a você ─ acrescentou, descendo da bancada e
sacudindo o pó de pedra do casaco carmesim com um gesto firme.
Isambard já se dirigia para a porta quando se ouviu o som rouco e profundo de
ferraduras apressadas sobre as tábuas da ponte. A profunda ravina de pedra que separava o
rochedo onde se erguia o castelo de Parfois do planalto verdejante onde fora edificada a
igreja, absorvia os sons e os refletia em ecos abafados entre as paredes rochosas. Mal os
cavaleiros chegaram às pedras por baixo do arco da porta da fortaleza, o ruído das ferraduras
deixou de ser audível; os ecos, semelhantes a um trovão distante, foram esmorecendo e
deixaram no ar uma ligeira vibração.
Isambard parara de ouvido à escuta. Era raro chegarem a Parfois cavaleiros
apressados, sobretudo de noite; naquele momento, com a corte se instalando solenemente em
Shrewsbury devia tratar-se apenas da visita de um dos senhores das fronteiras que se dirigia
ao encontro do rei. Harry não se mostrara menos atento do que Isambard. Qualquer
acontecimento inesperado poderia representar uma esperança.
O resfolegar de cavalos cansados no pátio exterior, o estalar de arreios de couro, botas
batendo sobre as pedras, palavras urgentes trocadas em voz baixa. O ouvido apurado de
Isambard reconheceu de imediato a voz familiar.
─ Walter! ─ exclamou erguendo a cabeça como um cervo que pressente estranhos.
Não podia ser. Por que teria Langholme voltado para trás depois de ter partido para
Shrewsbury no princípio da tarde, para preparar a casa da cidade sobre o Wyle para a chegada
do seu senhor, arejar a roupa de cama e arear as travessas? E se, por qualquer razão
desconhecida, fosse forçado a regressar, porque viera com tanta pressa e acompanhado por
pelo menos um estranho? Isambard ouvira uma voz que não reconhecia como a de um dos
seus homens; uma voz áspera e baixa, enrouquecida pela poeira do caminho e por uma
enorme fadiga.
Em três passadas alongadas chegou à porta e deu de cara com os recém-chegados.
Langholme sabia onde podia encontrar o seu senhor àquela hora.
─ Trago notícias urgentes, senhor ─ anunciou com voz entrecortada devido à pressa.
─ Deixei tudo encaminhado em Shrewsbury e voltei correndo para cá com o mensageiro.
O rosto do homem que se mantivera ao lado de Langholme estava cinzento de cansaço
e os seus olhos eram febris. Isambard olhou bem para ele e reconheceu-o: era um cavaleiro
menor da corte do Conde de Kent, um homem de confiança. Por várias vezes fora portador de
mensagens entre os três castelos de De Burgh em Gwent e este posto avançado sobre o
Severn, na fronteira com Gales. Mas dessas outras vezes envergara a libré verde e vermelha,
as cores da casa do corregedor do reino. Agora, vinha envolto num manto anônimo.
Com os olhos flamejantes, Isambard segurou o braço do homem e puxou-o para
dentro.
─ Entre aqui! Feche a porta, Harry.

17
18

─ Posso retirar-me, senhor? ─ perguntou Harry, apressando-se a obedecer à ordem


que lhe fora dada.
─ Não, fique. Não vale a pena dar o alarme já. Agora fale homem e depressa. Sim,
pode falar diante do rapaz; ele conhece todos os meus piores segredos. O que o trouxe ao
norte com tamanha pressa? E vestido desse modo?
A ausência da libré falava por si.
─ Hoje, senhor, ninguém enverga as cores do Conde de Kent se puder evitá-lo. É mais
seguro! Ele caiu em desgraça e perdeu o cargo, senhor. Há seis dias, diante de todo o
conselho, o rei desautorizou-o, acusou-o de atos monstruosos, afastou-o de si e retirou-lhe
todos os poderes. Foi destituído para toda a vida. Stephen Segrave, que ajudou a derrubá-lo, é
agora o corregedor do reino.
Portanto, tinha acontecido. Hubert De Burgh, o grande conde conselheiro do rei caíra
do pedestal, fora destituído e o chão tremia debaixo dos pés de muitos outros. Os seus rivais
do Poitou haviam alcançado os seus fins. Peter De Roches, bispo de Winchester, segurara
com certeza o braço do Rei Henrique, dando-lhe coragem para se voltar contra o seu mais fiel
servidor. Apesar dos seus defeitos, e esta catástrofe não fazia dele um santo nem um mártir,
De Burgh fora indiscutivelmente o administrador mais capaz, mais devotado e honesto da
Inglaterra, o homem que melhor compreendera aquilo que a Inglaterra era e devia ser. No
passado Isambard perdoara-lhe muita coisa por causa dessa qualidade, da visão que ele tinha
da Inglaterra, que ultrapassava os limites do domínio feudal e aspirava fazer dela uma nação,
uma unidade indivisível, protegida por um mar invencível.
O chão sob os seus pés estaria também estremecendo levemente sobre os alicerces de
pedra de Parfois?
─ Vim preveni-lo, senhor ─ disse o mensageiro, cuspindo a poeira dos pulmões. ─
Trate de se precaver, pois todos os que o apoiaram outrora hoje correm perigo. É preciso
cautela!
─ Assim farei ─ garantiu Isambard e um sorriso de lado aflorou-lhe aos lábios como
um relâmpago súbito.
Por alguns instantes manteve a cabeça inclinada para trás e as sobrancelhas franzidas,
recordando melancolicamente aquela época dourada que agora desaparecera como um
cometa, num eclipse perpétuo.
─ Sente-se aqui e me conte tudo ─ disse, dirigindo-se ao mensageiro. ─ Preciso saber
tudo. E você Harry, vá buscar vinho para ele.
─ Trago-o eu mesmo? ─ perguntou Harry, inseguro.
─ Pensas que quero aqui algum linguarudo como o Thomas, grande insensato?
Despache-se!
Por que motivo, diante de palavras tão bruscas, ele se apressava a cumprir a ordem de
Isambard? Atravessou o pátio correndo, com o coração batendo com toda a força, de
excitação e espanto, atraído a contragosto pelos assuntos conturbados da Inglaterra, que o seu
espírito e a sua educação insistiam em considerar um país estrangeiro, mas para o qual o seu
sangue o puxava irresistivelmente numa aliança involuntária. E porque se sentia curioso
voltou correndo com um pouco menos de precipitação, trazendo o vinho e lamentando as
palavras que perdera.
Os três homens voltaram a cabeça quando ele entrou na sala de desenho e, satisfeitos
ao verem quem era, retomaram a conversa. Por que o fato teria lhe provocado um
estremecimento de prazer? Aqueles homens não eram seus amigos nem ele era amigo deles.
Por que sentiria prazer em merecer a confiança dos seus inimigos? Serviu-lhes o vinho com
uma espécie de deleite consciente nos gestos calmos e precisos, que não interromperam o fio
da conversa.
─... domínio por domínio. Nas últimas semanas, para cada doação feita a De Rivaulx

18
19

havia outra para o meu senhor. No começo do mês passado encontraram-se todos no castelo
do meu senhor em Norfolk e, no priorado de Bromholm, o rei prometeu que tanto o meu
senhor como os de Poitou conservariam todas as terras e títulos que lhes havia concedido. O
compromisso foi selado com um juramento solene diante de Deus, que vinculava também os
herdeiros do rei.
─ Isso é o que ele costuma fazer, quando pretende renegar o juramento e o homem a
quem este o liga ─ observou Isambard, sombriamente.
─ Mas... o juramento foi feito a todos. Como o conde poderia desconfiar? Pensamos
que o perigo passara e que a disputa estava resolvida. Mas mesmo que o conde houvesse
previsto o que iria acontecer, como poderia impedi-lo? Que poderia fazer a não ser fugir de
mãos vazias? E Lady Margaret e a filha? Alguma vez poderia libertá-las das mãos do rei?
Ouça o que se passou depois! No fim de julho estava marcada uma grande távola redonda e
Londres estaria cheia de nobres. Que fez então o rei? Preparou uma ordem, a proibiu e
determinou que todos os que pretendiam participar dela deviam, em vez disso, preparar-se
para escoltá-lo a Shrewsbury para o encontro com os galeses. Tudo foi feito com pressa e
emitidos os salvo-condutos para a Princesa de Gales e respectiva comitiva, para esvaziar
Londres e desviar os olhos de todos das outras intenções do rei até estar tudo concluído.
─ E não devem ter faltado bispos dispostos a colocar-se ao seu lado, a clamar que os
torneios são um pecado e apoiando a ordem ─ comentou Isambard, que passeava de um lado
para o outro, em longas passadas nervosas. ─ Isso partiu da cabeça de Winchester, não da
cabeça do rei.
─ É verdade, senhor. O bispo pronunciou-se contra a távola redonda, antes do rei ter
agido.
─ Depois de ter preparado o cenário, não foi assim? Há seis dias, você disse, no
conselho... Quem abriu as hostilidades contra o corregedor? De Roches ou Rivaulx?
─ Eu não estive presente, senhor, mas Gilbert Basset esteve e foi ele quem me contou.
O bispo de Winchester permaneceu sempre sentado ao lado do rei, mas parece que a
tempestade rebentou num céu aparentemente sem nuvens e foi o próprio rei quem a
desencadeou. Voltou-se para o meu senhor conde num ataque de raiva, como se estivesse
desvairado, como quem acredita de fato naquilo que está dizendo...
─ E acredita mesmo ─ interrompeu Isambard imobilizado no meio do seu vaivém
frenético por um súbito e violento ataque de riso. ─ É esse o seu segredo. Quando quer, o rei
consegue entregar-se a uma cólera arrebatada e acreditar nela como se fosse o evangelho. Eu
já o vi fazer isso para satisfazer os seus propósitos, por uma simples jóia que desejava possuir.
─ ... e acusou-o de não sei quantos crimes e monstruosidades, exortando aqueles que
quisessem confirmar esses crimes e enormidades ou apresentar queixas contra o meu senhor a
falar livremente e sem medo. E não faltou quem falasse! Não apenas De Roches e Rivaulx,
mas muitos outros. Por que não? O sinal havia sido dado e eles sabiam como agradar ao rei
para subir na hierarquia das suas graças... humilhando o conde. Naquele dia ele foi uma
espécie de degrau para muitos ambiciosos à procura de um cargo. Em seguida o rei declarou-o
solenemente destituído de todas as suas funções e nomeou Segrave para o cargo de
corregedor do reino.
─ Por Deus, homem! De Burgh não se defendeu?
─ O rei não quis ouvi-lo. É certo que ele falou, jurou que era tão leal como qualquer
outro ao seu rei e senhor e que nada fizera que fosse contrário ao seu dever e à sua
consciência. Mas foi vaiado. Contaram-me que o rei foi quem mais gritou.
─ O divino ataque de cólera estava no auge e o rei não receava nada. De Roches deve
ter gasto muita astúcia e persuasão para levá-lo a decidir-se, mas depois que as velas foram
enfunadas pelo vento, o rei é bem capaz de navegar sozinho. Já assisti a isso! E então? Foi
mandado para a Torre? Mesmo no auge da exaltação o rei não ousaria!

19
20

─ Não, senhor, o conde continua em liberdade, mas só Deus sabe por quanto tempo. O
Rei Henrique baniu-o da sua casa e ordenou-lhe que se mantivesse à sua disposição para
responder às acusações. Mas nem assim o deixaram em paz. Passados dois dias, exigiram-lhe
que prestasse contas de todas as receitas do reino e de todas as suas possessões oficiais desde
o reinado do defunto Rei João. Fizeram da Inglaterra um poço sem fundo e queriam contas
rigorosas!
─ Havia uma carta de quitação do Rei João que isentava De Burgh de prestar essas
contas. Eu sei disso!
─ Foi o que o meu senhor argumentou, mas o bispo de Winchester voltou a soprar ao
ouvido do Rei Henrique, dizendo que por morte do Rei João essa carta é nula. Assim,
elaboraram uma lista de acusações contra ele e convocaram-no para responder por elas, diante
do Conselho em Lambeth, a 14 de setembro próximo. Depois de ter preparado a ruína do meu
amo, o rei arrastou a corte para Shrewsbury, para longe do caminho dos homens do Poitou,
até estes acabarem de fechar a armadilha em volta do meu senhor. De que lhe serviria
defender-se, quando os seus juizes são aqueles que o acusam?
─ Onde ele está agora? Foi-lhe dada liberdade de movimentos?
─ Não, senhor. É vigiado dia e noite e não pode deslocar-se. Mas deixaram que se
retirasse para o priorado de Merton, perto de Wimbledon, a fim de preparar a sua resposta às
acusações e enquanto lá estiver, ficará a salvo pelo menos da violência. Lady Margaret
encontra-se em Bury St Edmunds e, graças a Deus, até agora ninguém a incomodou. Espero
que não se atrevam a fazer algo contra a irmã do rei dos escoceses.
─ Então, a situação é essa! De Rivaulx detém o controle das contas da casa real com
poderes ilimitados e o tesouro está sob guarda dos seus amigos. Se não nos mexermos este
país vai ser saqueado, eu lhes digo. Ainda não há muito tempo, contei o número de comarcas
de que ele é administrador e cheguei à conclusão de que são vinte e uma. Vamos ver os
grandes cargos de Estado serem atribuídos aos membros do conselho do rei e a pequena
nobreza e os burgueses ficarem sem voz e sem direitos. Um dos sustentáculos da casa caiu ao
que parece e ninguém levantou a mão para segurá-lo. Ninguém falou em defesa de De Burgh?
Não houve um único homem capaz de denunciar essas mentiras?
─ Nem um. Chester não estava lá, senão teria falado alto e bom som. Odeia o conde,
mas com um ódio honesto. E odeia ainda mais as conspirações e as injustiças. Dizem que está
velho e doente. Não estava lá.
─ Quais são afinal as acusações? ─ perguntou Isambard, parando abruptamente diante
do extenuado mensageiro.
Harry observava a cena suspendendo a respiração, estupefato perante a calma, a quase
exuberância de Isambard. Decerto só um demônio seria capaz de fazer um repasto da
desordem e da aflição e de sorrir diante delas com tamanha serenidade. O choque provocado
pelas notícias e o choque por ver a sua Inglaterra empurrada para fora da sua rota já haviam
sido aceitos e dominados. Fosse o que fosse que decidisse fazer agora para se proteger seria
feito, não de forma exaltada e irrefletida, mas de forma determinada e precisa. Harry julgava
que o senhor de Parfois amava de fato a Inglaterra. No entanto, naquele momento reunia as
suas forças em defesa própria e, sem escrúpulos, deixava a Inglaterra à deriva ao sabor de
correntes perigosas.
─ Preciso conhecer todas as acusações para poder agir. Todas as acusações.
O cavaleiro de De Burgh, ninguém pronunciara o seu nome, talvez por esquecimento,
ergueu as pálpebras inchadas e levou a mão à cabeça num esforço para se recordar de todos os
pormenores.
─ Todos os membros da sua Casa são vigiados. Eu parti durante a noite e juntei-me a
um dos primeiros grupos que se dirigiam para Shrewsbury onde havia amigos que me dariam
guarida. Assim, pude avisar três ou quatro senhores que, como o senhor, podem ser acusados

20
21

por haverem partilhado o modo de pensar do meu senhor. As acusações... agora já deve haver
mais, porque eles andam batendo nos arbustos para fazê-las saltar como coelhos... acusam-no
de ter escrito ao Duque da Áustria, quando o rei tinha em mente casar com a filha dele,
aconselhando-o a desistir de tal aliança.
─ Santo Deus! ─ exclamou Isambard, rindo entre dentes. ─ Devem pensar que a nossa
memória é curta. A idéia do casamento caiu por si mesma e o rei nunca se mostrou muito
entusiasmado.
─ Também o acusam de ter refreado a ação do rei na campanha pela reconquista da
Normandia.
─ Ah, isso é diferente. Ambos interviemos e ainda bem para o rei que foi assim
porque, senão, teria perdido também o reino da Inglaterra. Prossiga!
─ E de seduzir Lady Margaret quando ela estava sob sua guarda, no tempo do Rei
João, por querer casar com ela para que os seus herdeiros fossem reis da Escócia.
─ Céus, mesmo que isso fosse verdade, quem podia se queixar disso era Alexandre e
não Henrique! Essa acusação não merece crédito como eles sabem muito bem.
─ Mas é mais uma para juntar à lista e tudo conta. Também há uma história sobre o
meu senhor ter roubado uma pedra preciosa do tesouro real, uma pedra que torna quem a usar
invencível e invulnerável às feridas, e tê-la mandado secretamente ao Príncipe de Aberffraw.
─ Ah, essa é engenhosa... só pode haver sido inventada por um soldado ressabiado.
Um golpe de mestre para arranjar uma desculpa para as proezas de Llewelyn e mais uma
flecha contra Hubert.
─ Há quem acredite nessa história, senhor. E também vão acreditar que o Conde de
Kent escreveu ao príncipe Llewelyn, perdoando a execução de William De Breos, depois
deste ter sido apanhado com a Princesa Joan.
À menção daquele acontecimento distante no tempo e quase cicatrizado na sua
memória, mas ainda doloroso ao mínimo toque, Harry estremeceu e corou. A reação foi tão
inesperada que receou que Isambard tivesse reparado nela. Mas este se limitou a dizer num
tom sonhador:
─ Não duvido que ele tenha reconhecido o direito do príncipe de fazer justiça. Não
conheço ninguém que o tenha negado. Mas acho muito estranho alguém haver reconhecido
esse direito por escrito. É tudo?
─ Há mais uma coisa, senhor, a acusação mais perigosa e mais difícil de refutar. Foi o
Bispo de Winchester quem primeiro a lançou. Segundo ele, o conde andou estes anos todos
cuidando do aconchego do seu próprio ninho, apropriando-se indevidamente do tesouro do
reino.
─ Qual dos que até agora esteve lá e não o fez? ─ perguntou Isambard, com uma
careta irônica. ─ Não nego essa possibilidade, mesmo no caso de Hubert. Ninguém ignora o
seu apetite por castelos. Mas no conjunto, penso que roubou menos do que a maior parte e deu
mais em troca. Pelo menos isso ─ acrescentou ─ não pode ser usado contra mim. Nunca lidei
com fundos do tesouro, nem tive qualquer cargo que pudesse dar oportunidade para pilhagens.
Agora já sei tudo. E pensar que não houve ninguém que erguesse a voz para defendê-lo!
─ Tudo aconteceu depressa demais e houve muitos que seguiram a corrente. Também
houve muitos que aproveitaram para vingar velhos rancores, sem pensar que correm o risco de
alimentar ressentimentos ainda mais graves contra os de Poitou. Espero que alguns pensem
melhor, com a cabeça mais fria, e venham a manifestar as suas dúvidas.
─ Que o Céu o ouça ─ replicou Isambard. ─ Agradeço-lhe por me avisar, meu amigo.
Amanhã poderia dirigir-me para Shrewsbury sem fazer idéia do que me espera e ser apanhado
desprevenido. ─ Voltando-se para Langholme que observava ansiosamente a expressão
sombria do seu senhor, acrescentou: ─ Cuide para que ele seja bem tratado e bem alojado,
Walter. E você, meu amigo, pode ficar ou partir conforme desejar e escolher um cavalo nas

21
22

minhas cavalariças. Estou em dívida para consigo. Quanto à ida a Shrewsbury, Walter, mudei
de planos.
─ Não irá, senhor? ─ perguntou Langholme cheio de esperança.
─ Vou sim, Walter. Com uma escolta dobrada e um esplendor três vezes maior. Mas
primeiro, trate de alojar o nosso hóspede. Ele precisa dormir. Depois, venha falar comigo e
veremos que providências é necessário tomar.
Langholme e o mensageiro saíram e o silêncio abateu-se sobre os dois que ficaram na
sala de desenho. De repente ambos perceberam que anoitecera enquanto as suas mentes se
encontravam ocupadas em outras coisas. A noite ocultava os contornos da bancada, das mesas
de desenho e dos blocos de pedra.
─ Que vai fazer, senhor? ─ perguntou Harry, dividido entre a reserva e a curiosidade.
─ Que vou fazer, Harry? Vou a Shrewsbury, servido como um príncipe, para servir o
meu rei, como é meu dever. ─ Vinda do escuro, a voz ponderada acrescentou: ─ E irei falar
com o rei. Quer ele queira quer não, Harry, quer ele queira quer não.
Antes da ceia, o Rei Henrique concedeu audiências nos grandes aposentos de hóspedes
da abadia de Shrewsbury, sentado numa cadeira dourada colocada sobre um estrado
ornamentado com brocados e veludos dourados e vermelhos contra um fundo de tapeçarias
descarregadas menos de duas horas antes, tiradas da sua imponente bagagem. Estava de bom
humor e exageradamente elegante, mesmo para uma pessoa como ele: usava jóias nas orelhas
e nos dedos compridos e delicados. Depois de terem tocado levemente com os lábios leais o
seu anel de rubis, os nobres das fronteiras rodeavam cautelosamente a barra das roupas
suntuosas do rei. No ar pairava ainda o eco de certa queda formidável e sentindo no ambiente
a poeira que esta levantara os senhores sustinham a respiração. O rei dava-se conta da tensão e
do temor provocava neles e o fato provocava-lhe uma saborosa excitação. Conseguira; era
uma realidade e não apenas um desejo pungente, um anseio por satisfazer; eles eram a prova
disso. Havia dado o primeiro passo, o mais difícil; o segundo e o terceiro seriam fáceis. Quem
iria agora ousar tentar detê-lo?
Tinha vinte e cinco anos e estava livre de qualquer tutela. A embriaguez do poder
espalhava-se pelo seu sangue como vinho e Henrique sentia-se invadido por um ódio
triunfante contra todos aqueles velhos, com a sua experiência e segurança, com a sua
determinação férrea em dificultar e contrariar todas as suas ações pessoais. Homens velhos,
cansados, cautelosos, lentos na ação, mas decididos a dar-lhe conselhos, a provocá-lo, a cercá-
lo de proibições e avisos. Pensou no momento em que se libertara das correntes e o seu
coração encheu-se de uma alegria colérica ao recordar o espanto atarantado, deprimente e
ridículo nos olhos envelhecidos do corregedor do reino. De Burgh não queria acreditar que o
seu mundo estava desfeito, que o seu passarinho havia saído do ninho, que o seu tempo havia
acabado. Uma época longa, áurea, que finalmente terminava num ribombar de trovão.
Graças a Deus, pensava o rei saboreando a alegria da liberdade, e ao meu santo
patrono que vela por mim e pôs na minha boca as palavras da justiça. Bendito seja Santo
Eduardo, meu bom confessor. Este ano, no seu dia, haverá mais novos cavaleiros do que
houve alguma vez e, na minha capela, os religiosos cantarão o “Christus vincit”. Fique a meu
lado mais um pouco e me mostre como confundir os meus inimigos. Sopre o vento da cólera
de Deus nos rostos daqueles que se erguem contra mim e afaste-os do meu caminho, arraste-
os para a destruição, como o Conde de Kent. Para a ruína!
Agora, pensava o rei exultante, a minha Casa ficará em ordem e nela eu serei o único
senhor. Eu e não De Burgh, com a sua gaiola sufocante de leis, costumes e direitos, nem estes
velhos enclausurados nos seus privilégios feudais, nem os meus turbulentos barões das
fronteiras. Eu como chefe e os oficiais da minha casa como instrumentos da ordem estável
que nos rodeará. Oh, meu bom Santo Eduardo, fique comigo e eu lhe mostrarei o que é a
realeza.

22
23

Por alguns instantes o rei cerrou os olhos, abandonando-se ao êxtase daquela prece,
cego à multidão colorida que enchia a sala de audiência. Quando voltou a abri-los, ainda
sorrindo de prazer devido aos seus pensamentos, se deparou com um rosto semelhante a uma
máscara de morte, belo e assustador que, como um pesadelo avançava para ele sorrindo, entre
as fileiras de clérigos e cortesãos.
Em silêncio Henrique invocou o seu patrono infalível e o esplendor que se
encaminhava na sua direção e reavivava terríveis recordações diminuiu um pouco à evocação
do santo, materializando-se em seguida num casaco de cerimônia reluzente de fios de ouro,
sobre uma roupa castanho dourada, envergados por um corpo humano real e não por uma
imagem sonhada. Um corpo alto e magro, reto como um salgueiro, encimado por uma cabeça
formidável que esboçava um sorriso frio ao inclinar-se sobre a sua mão. Henrique estendera a
mão num gesto de terror, mas transformou-o rapidamente num gesto majestoso e estendeu os
dedos cobertos de jóias para receber o beijo do senhor de Parfois.
Um velho. Mais um velho. Não era fácil escapar deles; apareciam para onde quer que
se virasse. Ralf Isambard, senhor de Mormesnil, Erington, Fleace e Parfois e de uns cinqüenta
outros domínios e castelos espalhados por toda a Inglaterra. O que ele pretenderia com todo
aquele aparato? Com que direito se apresentava com aquele passo arrogante e soberbo, com a
morte a espreitar pelos seus olhos pretos, profundos, preocupados, insaciáveis e com um
brilho vermelho? A testa alta, outrora lisa, deixava agora entrever o brilho polido do crânio
sob a pele, as maçãs salientes do rosto sobressaíam nas faces finas e o queixo de aço,
barbeado à velha maneira normanda, destacava-se sob a pele tisnada. A cabeça da morte.
Quem pensaria, no entanto, que a ossatura austera podia ser tão bela?
─ Bem-vindo à nossa corte, Lorde Isambard ─ cumprimentou o rei.
Os seus dedos encolheram-se ao contato daqueles lábios secos que mal lhe roçaram os
anéis, como se houvessem sentido a sua repulsa e a aceitassem com indiferença. Com raiva
lembrou-se de que aquele era mais um dos velhos cujos conselhos ele aceitara docilmente
demais durante muitos anos. Em todos os assuntos relacionados com as fronteiras do País de
Gales, a palavra de Isambard havia tido o valor de um ato régio. Ainda no último ano,
defendera que a tutela dos domínios de De Breos fosse retirada de Richard da Cornualha e
entregue a Hubert De Burgh. A recordação do fato deixou Henrique tenso; estava disposto a
detectar traição em todos os velhos. Todos, exceto talvez o Bispo de Winchester, que o
ajudara a libertar-se por fim das cadeias que os velhos lhe impunham.
─ Estou sempre à disposição e ao serviço de Vossa Majestade ─ disse Isambard.
Dizendo isto voltou a erguer-se, afastando-se da mão sensível e irresoluta e observou o
rosto pálido e gracioso do rei, um pouco melancólico quando em repouso, um pouco petulante
quando falava. A barba castanha e curta fora cuidadosamente encaracolada como sempre e a
cabeleira farta meticulosamente penteada e perfumada. Henrique era de estatura mediana e
magro, mas era forçoso admitir que pudesse passar por rei.
Era uma pena, contudo, que aquela pálpebra descaída conferisse uma expressão
manhosa e vulgar a uma criatura de expressão tão transparente. Um jovem frívolo e tagarela,
que passava da fúria ardente à frieza de gelo, incapaz de meios-termos, que tão depressa nos
encostava a cabeça ao ombro como nos espetava a adaga nas costas. No entanto ainda pairava
em volta dele uma espécie de inocência, como uma roupagem infantil já usada, que não ficava
bem num homem adulto, mas desarmava traiçoeiramente quem se sentisse tentado a tratá-lo
como um homem e a exigir dele uma atitude de homem.
─ Espero que a viagem de Vossa Majestade tenha sido agradável ─ disse Isambard,
com afabilidade.
Os seus olhos, emboscados no fundo das órbitas fundas como lobos
momentaneamente pacíficos, passearam devagarzinho pelos rostos dos cortesãos, detendo-se
vagarosamente nos rostos daqueles que se encontravam mais perto do rei.

23
24

─ E em boa companhia ─ acrescentou, em voz melosa. Deviam ter deixado De


Rilvaux em Londres para vigiar de perto a caçada em curso e impedir que a caça escapasse do
terreno. E Winchester era hábil demais para andar sempre atrás do rei. Mas Brian De Lisle
estava presente, a fim de representá-lo e contribuir com o seu peso e a sua autoridade de velho
vassalo fiel do Rei João, entre os novos rostos jovens e ambiciosos. De Craucombe,
intendente da casa real, pairava perto da cadeira de Henrique, Passelewe mantinha-se logo
atrás, numa posição mais discreta; o escrivão do rei par excellence, a nova eminência parda
dos assuntos do reino, ainda sem terras mas ansioso por possuí-lo, sem os pergaminhos de um
bom nascimento mas já se cercando dos meios que assegurariam um título aos seus
descendentes.
Os antigos baronatos estavam sendo desmembrados de mansinho, em proveito de
homens como aquele. Se os barões não se erguessem para defender os seus direitos, o Grande
Conselho da Terra seria deixado a apodrecer, inofensivamente, e ficaria à margem da corrente
do governo, enquanto o ímpeto era desviado para fazer girar os moinhos destes conspiradores
que rodeavam o rei e todas as fontes de receitas do rei convergiam para as mãos deles. De
Rilvaux já era o responsável pelo tesouro e também pela bolsa comum da Casa real e quem
tinha essa bolsa tinha o poder. As coisas tinham sido muito bem feitas; nem um gesto contra
De Burgh até estar tudo preparado e o rei pronto a agir e levado ao transe necessário para
passar à ação.
Ali também se encontravam homens honestos, pares e contemporâneos de Isambard. E
eram muitos. O senhor de Parfois voltou-se para saudar três ou quatro conhecidos, virou-se de
novo, varrendo a sala com o olhar, e fixou mais uma vez os olhos no rei.
─ Mas onde está o Conde de Kent? ─ perguntou, elevando a voz de modo a fazer-se
ouvir mesmo no recanto mais distante da grande sala. ─ Não vi ninguém no pátio com as suas
cores.
O silêncio caiu como uma pedra, glacial e esmagador. As cabeças voltaram-se quase
furtivamente e a vistosa assembléia suspendeu a respiração.
O rosto do rei empalideceu de apreensão, de choque e de um assomo inicial de raiva
defensiva. Agarrou-se nervosamente aos braços da cadeira, olhou de lado para De Lisle, à
espera de uma deixa e forçou-se a fitar Isambard, furioso, consciente da necessidade
desesperada de, por uma vez, apoiar-se apenas em si mesmo.
─ Não posso acreditar que o senhor ignore os acontecimentos relacionados com o
Conde de Kent ─ respondeu.
─ Chegaram-me aos ouvidos certos rumores, mas não lhes prestei atenção. A menos
que ouça da boca de Vossa Majestade que tenha tratado desse modo o seu mais devotado
servidor, repugna-me acreditar no que ouvi. Não seria a primeira vez que o meu rei foi
caluniado por rumores. Deveria eu apressar-me a concluir que Vossa Majestade é injusto e
ingrato, presa fácil para os ambiciosos que invejam a posição que o conde alcançou?
No rosto eloqüente demais do rei, o rubor da mortificação substituiu a palidez da
consternação. Henrique sentiu o vermelho da vergonha tingir-lhe as faces e, não podendo
permitir-se ou admitir sentir vergonha, empenhou-se, a todo o custo, em transformá-la no
rubro da cólera.
─ Na verdade fui vítima dos ambiciosos ─ respondeu, em voz fina e aguda. ─ E
durante tempo demais. Mas isso acabou, percebi o meu engano. O Conde de Kent não foi
vítima de nenhum erro nosso. Recebeu aquilo que merecia e nada mais. O que merecia, disse
eu? Na verdade, beneficiou-se até de clemência; ainda está em liberdade e foi-lhe dado tempo
para responder àqueles que o acusam.
─ É isso então que Vossa Majestade tem para me dizer? Devo então admitir que seja
verdade aquilo que me contaram? Que o corregedor do reino foi destituído do cargo e
acusado de não sei que traições?

24
25

─ Assim é, Lorde Isambard, e com toda a justiça. Com toda a justiça!


─ E foi privado das honras que Vossa Majestade recentemente lhe concedera?
Despojado dos castelos e feudos reais que com tanta generosidade lhe havia atribuído?
Também isso é verdade? E do cargo vitalício que Vossa Majestade lhe atribuiu há tão pouco
tempo, sob juramento?
Isambard viu o rosto do rei empalidecer e, por um instante, perguntou a si mesmo se o
medo supersticioso poderia criar raízes naquele solo fértil de auto persuasão. Por um instante,
suavizou a dureza da sua voz, para dar-lhe tempo de germinar.
─ Sou seu vassalo, Majestade, um vassalo tão leal como qualquer outro nesta terra,
longe de mim querer ofendê-lo. Mas para o bem da sua alma, não permita ao senhor mesmo
cometer ofensa. Vossa Majestade está sendo levado a cometer erros que o tempo voltará
contra si. Pense melhor e desfaça o que foi feito enquanto ainda é tempo.
Contudo, Isambard interpretara com muita generosidade aquilo que, afinal, era apenas
o começo de uma terrível fúria. A palidez extrema, de brancura igual à de uma chama pura,
varreu totalmente a cor do rosto do rei e até dos olhos, que ficaram cinzentos e vidrados. É
melhor assim, pensou Isambard, entregando-se a uma satisfação perversa. Sou velho demais
para mudar e não seria capaz de engolir tudo isto, se não estivesse no fio da navalha, à espera
de cair.
─ Está defendendo-o? ─ perguntou o rei, em voz entrecortada. ─ Um celerado que,
durante tantos anos, roubou o nosso tesouro em proveito próprio? Que se atravessou no nosso
caminho, quando queríamos reconquistar a nossa província da Normandia? Que serviu melhor
o Rei de França do que a mim? O Conde de Kent vai responder por tudo isto. Pensar melhor,
eu? Poderei pensar melhor na clemência que mostrei para com ele e exigir o pagamento total
da sua dívida e não apenas de metade. Ele fez coisas muito piores do que pilhar as minhas
rendas. Prejudicou a minha reputação e o meu espírito, conseguindo influência sobre mim por
meio de bruxarias. Bebi com ele, confiei nele... Duvida de mim? Verá confirmadas todas as
acusações, verá como todas serão provadas.
Ora ali estava o pretexto e a justificativa da sua longa tolerância. Já que era preciso
alguém para carregar o fardo da inconstância e da fraqueza do rei, valia mais fazer recair o
seu peso sobre os ombros de um só homem. Bruxaria! Aquele homem simples e realista, que
se fizera à sua própria custa, aquele colecionador de castelos, aquele administrador
incansável, devotado, ávido, generoso! Haveria mais acusações? Tudo indicava que tinham
andado muito ocupados a desenterrar coisas que pudessem ser lançadas contra ele.
─ Um assassino discreto, que usou veneno. Acha certo? Envenenou o velho William
de Salisbúria e também Pembroke... e o nosso bom arcebispo...
O quê? Grant também? Na Itália? Eram vôos cada vez mais descontrolados da
imaginação e Henrique estava se lançando deliberadamente num frenesi do qual poderiam
resultar imagens ainda mais fantásticas. De pé diante dele, Isambard observava sem emoção
os tremores e sobressaltos daquele corpo jovem, que apenas as mãos crispadas sobre os braços
da cadeira pareciam conter. O seu patrono, pensou Isambard, tinha as visões calmamente, com
a simplicidade de uma criança. Este solta os demônios para buscá-las contra a sua própria
vontade.
─ ... para não falar da horrível impiedade que cometeu contra a Santa Igreja, na pessoa
daqueles padres italianos, a quem nós quisemos conceder benefícios no nosso país. Porque foi
ele, está provado, quem incitou William Wither, aquele blasfemo do Yorkshire, a cometer tais
atos de violência. Foi ele quem, com tanta severidade e dureza, reprimiu os tumultos na nossa
cidade de Londres e matou injustificadamente, quando poderia ter mostrado piedade...
─ E posto em perigo o reino ─ replicou Isambard secamente. ─ No meu entender,
Majestade, o senhor tem motivos para se sentir contente por De Burgh ter mostrado coragem
para agir como agiu. Aliás, no que se refere a esse assunto, o senhor sempre soube de tudo

25
26

quanto pode ser invocado contra ele. É um pouco tarde para acusá-lo.
─ Nunca é tarde demais para fazer justiça. O braço da lei deve ser, e será,
suficientemente longo para atravessar os tempos. Tratarei de que lhe sejam aplicadas as penas
correspondentes aos seus crimes. Existem outros e repito, existem outros, Lorde Isambard,
que fariam melhor em ver onde põem os pés e em ter cautela com a língua.
Os gentis-homens do séqüito haviam-se aproximado ligeiramente de ambos em
silêncio e observavam o rosto do rei como quem observa o espelho da própria conduta.
Isambard fitou-os calmamente, sem pressas, e leu neles uma reserva que De Burgh não
avaliara com o devido cuidado. A antipatia não era motivo suficiente para justificar aquelas
bocas firmemente fechadas para que delas não saísse uma palavra de defesa. O que emudecia
nelas a compaixão era o fato de De Burgh ser um estranho. De Burgh não era nem nunca fora
um deles. As terras daqueles homens pertenciam-lhes por direito e eles as usavam como quem
usa uma peça de roupa. A nobreza do seu nascimento era inquestionável. O Conde de Kent
chegara ao meio deles sem terras, mas cheio de ambições, subindo à fortaleza até então
inviolada daqueles homens, ansioso, peremptório, zeloso do protocolo. Era o primeiro e mais
solitário dos homens novos. Sendo um deles, mas mais poderoso do que qualquer deles,
nunca fora aceito. A nobreza nunca o invejara ou reconhecera tampouco lhe estenderia a mão
agora que caíra em desgraça. De Burgh não lhes importava. E a mim? pensou Isambard,
admirado por se ver confrontado com a fortaleza inexpugnável do seu nascimento e do seu
sangue. Será que me importa, Santo Deus?
─ Agradeço, Majestade, as suas palavras de advertência, pois como tal as entendi.
Todavia, permita-me mais uma palavra? Há algo que gostaria de dizer a favor do Conde de
Kent, antes que o senhor tome a decisão final.
Isambard não esperou pela permissão do rei; era melhor considerar como concedido
aquilo que podia ser negado. E desta vez não se dirigiu apenas ao rei. Ainda não chegara ao
meio da sua declaração e Henrique já saltara da cadeira com o rosto tão violentamente
congestionado que Isambard lançou um olhar frio e avaliador à guarda da espada de
cerimônia e à mão elegante que dela se aproximava. Ranulf De Chester não se encontrava ali
para, se necessário, proteger Isambard da espada de Henrique como um dia protegera o seu
inimigo De Burgh. A explosão de raiva pela tramóia com a qual Henrique pretendia invadir a
Normandia, a mais cara das suas ambições, não se encontrar preparada apresentava-se agora
como um vislumbre profético de um ódio profundo e formidável e não uma explosão infantil,
como então se pensara.
Quem sabe? pensou Isambard. Talvez eu ainda venha a morrer pelas mãos de um rei.
Num gesto desdenhoso, afastou as pregas douradas do seu casaco, a fim de mostrar que não
trazia à cintura nem sequer uma adaga ornamental.
─ ... e peço-vos, Majestade, que pense no que isto poderá parecer àqueles que, na
Europa, têm os olhos postos no senhor e no que poderão dizer do senhor nos círculos reais.
Julga que poderá fazê-los acreditar que o Conde de Kent foi desleal, quando conhecem as
suas obras tão bem como Vossa Majestade e as compreendem melhor? Digo-lhe que o Conde
de Kent lhe garantiu o lugar quando mais ninguém podia fazê-lo e lhe dedicou muitas vezes a
própria vida. Deus é testemunha de que, se serviu a sua causa, serviu também a do senhor e o
instalou solidamente no trono. Deveria agradecer-lhe por isso e lembrar-se dele nas suas
orações. Ele é um homem e, portanto, falível. Mas creio que, de todos os homens, Vossa
Majestade é o que tem menos direito de se queixar, pois ele não poupou esforços ao seu
serviço. Pense naquilo que os outros irão pensar. Está se expondo a que digam que o rei da
Inglaterra é ingrato e desumano por tratar assim os seus amigos. A menos que digam ─
acrescentou Isambard, erguendo a voz para se fazer ouvir sobre o grito que viu formar-se na
garganta do rei ─ mais caridosamente, que Vossa Majestade nem sequer é capaz de perceber
quem são os seus amigos.

26
27

A mão do rei tremeu e crispou-se sobre a guarda da espada. O seu pé calçado de


veludo bateu, impotente, no estrado oco e a voz que lhe saiu da garganta era rouca e distorcida
pela fúria.
─ Aconselhei-o a não avivar bem demais a minha memória, Lorde Isambard ─ disse o
rei, sorvendo uma lufada de ar. ─ Também o senhor... também o senhor... estava na
Normandia quando fui impedido de fazer qualquer tentativa para recuperar um reino perdido.
Eu imobilizado no campo e os meus homens desperdiçando a coragem e a ação no jogo... que
desonra! Lembro-me muito bem! O senhor e De Burgh eram unha com carne. O senhor
sempre foi um dos homens dele. Acautele-se ou poderá vir a pagar o mesmo preço por isso.
─ Desde a morte do seu pai, Majestade, que não sou o homem de ninguém a não ser
de mim mesmo ─ replicou Isambard em voz alta e clara. ─ Agi como considerei ser melhor
para o senhor e para a Inglaterra e se o meu julgamento coincidiu muitas vezes com o do
Conde de Kent, por que se espanta por eu recordar agora os seus bons serviços? Ainda bem
que fomos à Normandia para impedi-lo de praticar um ato que teria impelido o rei de França
para o campo de batalha. Sem isso, Vossa Majestade poderia ter perdido lá o seu reino da
Inglaterra e provavelmente a própria vida. Cuidamos para que a sua loucura não custasse mais
do que o necessário. Seja grato por isso!
Foi então que se ouviu o grito, um grito feroz, inarticulado. De rosto contorcido num
esgar o rei deu um salto em frente e Passelewe, por trás da cadeira real inclinou-se, pegou-lhe
o braço e sussurrou-lhe alguma coisa ao ouvido. Várias vozes ergueram-se num murmúrio
agitado e alguns fidalgos mais velhos aproximaram-se do trono, mas com um gesto colérico
da mão o rei mandou-os se afastar. Impávido Isambard observava a cena com o habitual
sorriso dissimulado.
─ Lorde Isambard...
Henrique continuava a tremer, mas recuperara o controle da voz. Sabia sempre até
onde ir e quando parar os seus acessos de cólera.
─ O senhor acusa a si mesmo de traição, Lorde Isambard e não demonstra o mínimo
de vergonha. Estou mostrando para consigo uma clemência que não pude mostrar para com o
Conde de Kent. Aceite-a reconhecidamente e cuide de não voltar a pôr à prova a minha
tolerância, pois não voltarei a reter o braço da minha justiça. Não tolerarei possíveis traidores
junto de mim ─ acrescentou numa voz mais alta, aguda como a de uma mulher ferida. ─ Está
dispensado, Lorde Isambard. Regresse ao seu castelo de Parfois e fique lá até eu chamá-lo à
minha presença. Pode ser que o mande chamar quando voltar a Shrewsbury para o tribunal
papal. Até lá, reflita nas palavras que me dirigiu e preze o fato de ainda se encontrar em
liberdade. Vá! ─ gritou Henrique, num ímpeto de raiva exaltada, como um homem
invulnerável no mais sólido dos seus castelos. ─ Saia das minhas vistas! Volte ao seu retiro!
─ Como quiser, Majestade!
Isambard fez uma vênia profunda e recuou até o meio da sala sem desviar os olhos. Os
que o fitavam viram o sorriso dissimulado transformar-se num trejeito entre o desdém e o
puro divertimento. As faces morenas não coraram; as maçãs do rosto salientes e as sombras
abaixo delas pareciam talhadas em pedra. Quando se virou e se dirigiu para a porta com
movimentos deliberados entre as fileiras de fidalgos que se afastaram para deixá-lo passar, as
abas do seu casaco esplendoroso ondularam à sua volta, num fulgor de bordados dourados. O
senhor de Parfois não olhou para trás. Os seus cavaleiros, que o haviam aguardado sem uma
palavra e sem um gesto, se alinharam atrás dele e seguiram-no. No pátio, os palafreneiros da
sua escolta acorreram para servi-los e os jovens escudeiros seguraram-lhes os estribos,
montando a seguir. Era uma escolta disciplinada, orgulhosa, esplendidamente equipada; uma
escolta digna de um príncipe. Parecia a partida de um exército.
O rei ouviu-os se afastarem e foi percorrido por um arrepio de ódio. Como ousavam?
Como ousavam retirar-se depois da sua repreensão com a segurança e a disciplina de

27
28

conquistadores? Como ousava aquele homem, aquele memento mori enfatuado, afastar todas
as honras que os uniam com um gesto da sua mão ossuda e deixar para trás o seu senhor tão
atormentado e denegrido?
Isambard montava descontraidamente, com as rédeas frouxas na mão e o sorriso ainda
colado aos lábios. Estavam já fora da vista de Shrewsbury, cavalgando a passo pela beirada
coberta de erva da estrada romana, quando, de repente, lançou a cabeça grisalha para trás e
soltou uma gargalhada. Tudo aquilo por De Burgh!
─ Pelas chagas de Cristo! ─ exclamou Isambard erguendo os olhos para o céu
crepuscular suspenso sobre a sua cabeça como uma teia de aranha prateada. ─ Dir-se-ia que
eu gostava daquele homem!

28
29

CAPÍTULO DOIS

Parfois, Shrewsbury, dezembro de 1232

Nesse ano a neve apareceu cedo, mas um pouco relutante, cobrindo as colinas
próximas do Severn com um manto tão fino que deixava transparecer a erva adormecida, de
um verde pálido e gelado. De pé sobre o terraço de chumbo da Torre do Rei, Harry,
embrulhado na capa de lã para se proteger do vento cortante, olhava para o vale longínquo lá
em baixo, do amontoado de telhados de Pool, a montante, até às paredes cinzentas de Strata
Marcella, a jusante. O seu reduzido mundo não ia mais longe; a neve enchia a paisagem de
sombras, parecia afastar dele as colinas e tudo quanto conseguia ver do País de Gales era a
margem, brilhante e gelada, e a primeira linha escura das árvores no início da encosta. Os
braços menos profundos do rio estavam gelados e refletiam um brilho fosco sob a luz pálida;
só a corrente principal corria ainda, ladeada pelo gelo, sombriamente, em direção a Breidden,
rolando as águas escuras ao longo do sopé da Long Mountain, muito abaixo das torres de
vigia de Parfois.
Harry olhou longamente para a margem galesa que lhe parecia a paisagem de um
sonho, sempre fora do seu alcance. Ao abrigo das paredes cinzentas daquela abadia, Harry
abraçara a campa intacta do pai, revelando-a, permitindo assim, sem se dar conta, que ela
fosse violada. Que teria Isambard feito daqueles infelizes ossos sem descanso? Os teria
despedaçado e atirado outra vez ao Severn, para consumar a sua vingança abortada? Harry
atravessara o rio por aquele vau, perceptível sob a água marrom revolta, para cavalgar atrás do
seu príncipe e do seu irmão adotivo, quando Isambard alargara a comprida rédea da tentação e
o libertara para ir cumprir o seu dever na guerra do ano anterior. Regressara pelo mesmo vau,
conforme prometera, quando a guerra acabara e a sua liberdade ficara de novo comprometida.
Agora, na quietude gelada do inverno a terra desejada ficava cada vez mais longe, escondida
pelas nuvens cor de chumbo e Harry quase não conseguia acreditar que alguma vez pudesse
voltar a percorrer aquelas colinas no verão. Estavam separados por uma simples faixa de rio,
mas ele não podia atravessá-la. As aves que à noite regressavam dos campos galeses onde se
alimentavam, para seus pousos noturnos nas terras mais quentes de Parfois, faziam a viagem
sem dificuldade. Harry as via ir e voltar e invejava as suas asas; lá bem no fundo o nó
doloroso e incessante da saudade ficava um pouco mais apertado.
Sem asas não havia nenhuma maneira de descer daquele ninho, nem sequer até a
Inglaterra, nem mesmo até à clareira invisível lá embaixo, no meio dos bosques onde Aelis
continuava à espera de notícias dele, que nunca mais chegavam.
Devia muito a Aelis e ao pai. Quando fugira de Aber e viera rondar em torno de
Parfois procurando vingança, eles o haviam recebido e hospedado sem fazer perguntas,
julgando-o fugitivo da justiça ou de algum amo severo. Muitos fugitivos já haviam passado
pelas suas mãos e não receavam os fora-da-lei. Aelis ajudara-o em tudo: dera-lhe de comer,

29
30

remendara-lhe a roupa, mostrara-lhe os carreiros que subiam pelas escarpas por baixo do
castelo. Quando soube que fora feito prisioneiro mandara uma mensagem para Castell Coch,
para que a notícia chegasse a Llewelyn, em Aber. E enquanto fora tempo, enquanto estivera
com ela, Harry nem sequer havia sido muito gentil para com ela! Agora, daquele ninho
empoleirado lá no alto revia a si mesmo lá embaixo, infinitamente pequeno, ingrato e indigno.
Mesmo quando fora libertado para poder tomar parte na guerra e dormira naquela última noite
sob o teto do pai dela, tratara-a como uma criança e contara-lhe apenas meia verdade,
guardando a outra meia para o regresso. Mas o orgulho, a consciência ou o que quer que o
impulsionasse, haviam-lhe pregado uma partida no último momento e Aelis ficara sem
receber conforto.
Ela nem sequer sabia, nem sequer suspeitava que ele estivesse tão perto! Julgava-o
livre e certamente esquecido dela. Talvez já tivesse deixado de gostar dele, talvez já nem
pensasse nele. O coração de Harry revoltou-se, furioso com a idéia, lutando contra a dor, mas
o medo continuava a dominá-lo e não conseguia deixar de senti-lo. Por acaso merecia melhor
sorte?
─ Então, Harry, continuas querendo deixar-me? ─ perguntou Isambard com uma
suavidade piedosa, atrás dele.
Quando queria Isambard movia-se com mais suavidade do que um gato, mas já não
conseguia assustar Harry. Aquele jogo cruel fora jogado muitas vezes. Era aquela a sua
posição favorita, debruçado sobre o seu prisioneiro sussurrando-lhe ao ouvido como um
demônio tentador.
─ Será melhor adiar esse vôo até o tempo se mostrar mais clemente. Não gostaria de
ser obrigado a retirar você do gelo do Severn.
─ Por que não? ─ replicou Harry. ─ O senhor atirou o meu pai lá para dentro, porque
não faria o mesmo comigo?
─ Ainda não acabei com você Harry. Continua a agradar-me. Por enquanto!
E devia ser verdade, porque poderia facilmente tê-lo matado naquele dia de verão, em
vez de forçá-lo simplesmente a largar a espada.
─ Não deveria antes olhar para a Inglaterra? ─ perguntou Isambard, apoiando os
cotovelos envoltos no manto sobre a pedra gasta pelo tempo, ao lado de Harry. ─ O Príncipe
David e sua mãe estão novamente em Shrewsbury. Daqui a dois dias a comissão papal reúne-
se em Saínt Mary. Não gostaria de estar lá para ver?
─ E o senhor? O Rei Henrique está no priorado de Wenlock, segundo ouvi dizer. Não
quer vestir a sua túnica de ouro e ir prestar-lhe homenagem?
─ Boa resposta, Harry! ─ disse Isambard numa gargalhada. ─ Você não deixa
ninguém sem resposta! Estou tão perto de voltar a cair nas boas graças do meu rei como você
de ser devolvido ao seu príncipe. No entanto, duvido que você sofra mais do que eu com este
afastamento.
─ Até agora, senhor, até agora...
Harry lançou um olhar curioso por cima do ombro observando o perfil aquilino que
fitava tranquilamente o vale do rio, sem conseguir entrever um estremecimento de pena ou de
mal-estar naquelas linhas severas e delicadas. Seria verdade que não se importava? Que não
sentia vergonha nem medo por ter caído em desgraça?
Parfois tremera sobre as suas fundações de rocha quando Isambard regressara de
Shrewsbury no meio da noite, em seu esplendor de proscrito. Harry lembrava-se bem das
correrias e dos sussurros, das especulações ansiosas, das tochas flamejantes. De Langholme,
pálido e reduzido ao silêncio, ajudando o seu senhor a deitar-se. De como, no meio de
tamanha agitação, Isambard, eficiente e calmo, parecendo não se dar conta da tempestade que
semeara, se levantara como um ídolo pagão dourado, retirara os anéis dos dedos com um
bocejo e chamara à ordem com aspereza o primeiro criado desatento, para demonstrar que

30
31

nada mudara. A sua mão continuara a ser tão pesada como antes, embora não mais. Ninguém
pagou pela sua desgraça, nem ninguém se aproveitou dela: Isambard cuidou para que isso não
acontecesse.
E pouco a pouco, enquanto os dias foram diminuindo o espanto que os submergira, a
história da audiência com o rei tornara-se conhecida, quando os cavaleiros que haviam
escoltado Isambard abriram os seus corações perturbados aos que não haviam estado
presentes. Determinada e deliberadamente, instigara a sua perda, por orgulho, por ira, pela sua
cruzada de vingança contra a vida, que o levava a caminhar sempre à beira do abismo
desafiando a morte a levá-lo consigo. Ou talvez tivesse feito a sangue frio, com a intenção de
assustar o Rei Henrique; dizia-se que este se assustava com facilidade diante de homens
autoritários, e de obrigá-lo a mudar de atitude, abrandando a pressão sobre o Conde de Kent.
Se fora assim, teria Isambard errado o alvo tanto como parecia? Olhando bem, De
Burgh estava em extrema má situação: acossado, espoliado, sem conseguir obter refúgio,
empurrado de um lado para o outro, roubado, feito prisioneiro e, por fim, fechado e guardado
numa reclusão austera, em Devizes. Seria isto falhar? Ou, pelo contrário, seria um feito De
Burgh ainda estar vivo? Dizia-se que as tropas de Londres haviam sido lançadas contra ele
por ordem do rei e que apenas o velho Ranulf de Chester se opusera e obrigara Henrique a
chamar a matilha. Cinco semanas depois o velho Ranulf morria; contava-se que, no meio do
seu infortúnio, De Burgh chorara e rezara com fervor pela alma do seu antigo inimigo. E se
Isambard houvesse desempenhado o mesmo papel antes e se houvesse esquivado a uma morte
mais discreta?
─ Não deposite demasiadas esperanças na minha queda, Harry ─ aconselhou Isambard
com um sorriso irônico por cima do ombro esguio. ─ Não duvido que o rei gostasse de me
atacar, mas o mais que se atreve a fazer já está feito e como você vê foi bem pouco. Não sou
nenhum De Burgh para me deixar derrubar como uma árvore. Não possuo domínios dados por
ele, que possa me tirar de cada vez que é tomado por um ataque de mau gênio. Não sou
guardião de nenhum castelo real nem nunca cobicei nenhum. Ele não pode me despojar de um
furlong* de terra que seja. A minha linhagem é mais antiga do que a dele e tudo quanto
possuo é meu por herança. Nunca exerci nem me candidatei a nenhum cargo, nem administrei
os impostos do rei ou o dinheiro do reino que é a principal arma que eles possuem contra o
infeliz e amargurado Hubert. Eu sou inatacável. A única coisa de que o rei pode me privar é
da sua presença e passo tão facilmente sem ela como ele a nega.
─ E quanto à sua vida? ─ argumentou Harry.
─ É muito mais provável você vir a ser a causa da minha morte, Harry, do que o rei
Henrique.
─ Conforta-me, senhor, saber disso. Medite nessa promessa e tome cuidado consigo.
Harry hesitou por alguns instantes, envolvendo-se mais no tecido de lã, sem deixar
transparecer se o fizera para se proteger do vento gelado ou para ocultar o rosto. A biqueira do
seu sapato começou a bater irrequieta contra as pedras do parapeito em que se apoiava.
─ Há quem já ande lambendo os beiços ─ explodiu.
─ Por que me coloquei em fase de eclipse temporário? Não duvido. Julga que já houve
alguém cuja queda em desgraça não tenha dado conforto e prazer a outro? Sou tão odiado
como a maioria e muito mais do que alguns. Para mim isso não é novidade.
─ Harry teria parado por ali de boa vontade, mas a sua língua tinha mais coisas para
dizer. Com muito custo acabou por dizer:
─ Há pessoas que são próximas do senhor e que andam muito pensativas desde o seu
regresso de Shrewsbury. A fidelidade de alguns membros da sua Casa não é lá muito segura.
Logo que estejam certos de que a sua época acabou, sairão ao encontro dos novos senhores.
Sorridente, Isambard levantou os olhos da contemplação do rio cinzento de aço.
─ Os novos senhores ─ repetiu apreciando a frase. O tom da sua voz, suave e absorto,

31
32

mostrava claramente que havia entendido. Os que mais afirmavam, indignados, a sua
devoção, já começavam a lançar olhares especulativos para a estrela em ascensão dos novos
homens de De Rivaulx, esses competentes escreventes e funcionários da Casa que tinham
vindo com o seu senhor.

*furlang - Presentemente, corresponde a cerca de 201 metros. A palavra arcaica furlang


(furrow-long) significava “o comprimento de um sulco cavado num campo”. (N. da T.)
Um dos mais próximos, dizia-se, era William Isambard, o filho mais novo do velho,
cujas roupas de criança haviam sido arrumadas para Harry, quando este ficara prisioneiro em
Parfois. Fazia muito tempo que William esperava pela sua herança, mas o velho não dava
mostras de querer morrer tão cedo, nem mesmo de ficar senil. Na verdade ainda nem tomara
consciência de que envelhecera. O fogo do desagrado do rei podia ser útil; podia, inclusive,
ser alimentado com mais lenha, se começasse a esmorecer.
Será que Isambard nunca pensara nisso? Era impossível dizer; o seu controle sobre o
próprio rosto era tão absoluto que ninguém era capaz de ler os seus pensamentos, a menos que
ele quisesse deixá-los transparecer e ele gostava de confundir e espantar as pessoas. Harry
gostaria de ter ficado calado. Por que havia de avisá-lo? Que lhe importava que Isambard
fosse traído?
─ Quem são essas serpentes que acolho no meu seio, Harry? ─ perguntou a voz suave,
persuasiva. ─ Diga-me os nomes e verá que, como qualquer outro homem, sou capaz de ser
muito grato quando me dão razões para tal.
─ Não! ─ exclamou Harry, afastando-se bruscamente do olhar indagador daqueles
olhos sem ilusões. ─ Não sou seu espião!
─ Nem mesmo a troco da sua liberdade, meu rapaz? Diga os nomes deles e poderá
colocar a chave na fechadura e sair em liberdade. A princesa o receberá de braços abertos
ainda esta noite em Shrewsbury e você voltará para casa a cavalo, ao lado de David. Que mais
posso oferecer-lhe?
Oh, como eram doces, insuportavelmente doces, aquela voz e aquela promessa! E o
olhar acariciador dos olhos profundos tão próximos, sorrindo-lhe tão tentadoramente, tão
ternamente. Graças a Deus, já conhecia as suas manhas, já se dominava sem sequer ficar
abalado.
─ Perde o seu tempo, senhor. Sabe que de mim não arrancará qualquer nome.
Em outras ocasiões Harry teria ficado furioso e insultado Isambard como se atirasse
pedras a um inimigo ameaçador. Subitamente tomou consciência disto e sentiu-se orgulhoso
por ter amadurecido. Havia pelo menos uma coisa que devia a Isambard: depois dele seria
inútil que outros, menos experientes, o tentassem.
─ Recusa, Harry? Então ouça e veja se erro por muito. Isambard começou a nomeá-
los, um por um com perfeita exatidão até chegar a Thomas Blount, que não passou de um
simples adendo, uma nota trivial já no fim.
─ E De Guichet, evidentemente ─ disse, sem amargura.
Ao ver que o jovem, que até aí se mantivera impassível, se virava de boca aberta ao
ouvir o nome do senescal de Parfois, Isambard riu.
─ Não estava na sua lista? Então lhe faltou o chefe. ─ Levantou-se da pedra fria,
espreguiçou-se e acrescentou:
─ Já estou velho demais para aprender a ser cauteloso, Harry. É preciso jogar as cartas
à medida que vão aparecendo na mesa. Nunca se convença de que me iludo sobre o amor que
os meus homens me devotam. Há muito que vivo com eles e os conheço muito bem.
─ Vejo que não necessita da minha ajuda ─ disse o jovem, magoado. ─ Nem em
relação ao seu senhor, nem aos seus servos.
─ O meu senhor? Ah, o Rei Henrique! Para ser franco, Harry, embora eu seja seu

32
33

vassalo, quer ele o creia ou não, Henrique não é senhor de ninguém, nem sequer de si mesmo.
O pai sim, era um homem, apesar de ser como era e de todos os seus defeitos. Este é um poço
de ódios e preconceitos. Até usa as poucas virtudes que possui, a piedade e a caridade, como
contrapartidas para regatear com Deus.
Harry virou a cabeça rapidamente, alarmado, à procura dos seus dois guardas que
deviam estar encostados em algum recanto bem abrigado, no alto das escadas.
─ Senhor, não fale tão alto!
─ Estão muito longe para ouvir, Harry. Por que haveriam de seguir você até este lugar
ventoso? Sabem que não vai saltar para a morte; você é um partidário da vida.
─ Ninguém dirá o mesmo do senhor. Pense bem. Já não se expôs o suficiente? ─
Harry reprimiu o espanto, ao notar a irritação ilógica que sentia. ─ Não deveria falar assim do
rei na frente de ninguém.
─ Nunca o faço ─ replicou Isambard sorrindo, enquanto lhe pegava o braço e o
voltava para o poço escuro da escada onde os arqueiros aguardavam. ─ Só na presença dos
meus inimigos, Harry ─ acrescentou baixinho ao ouvido deste. ─ Um homem está sempre a
salvo junto dos seus inimigos honestos. Acha que não conheço você? Nunca me entregaria à
justiça do rei, como também nunca me poupará à sua.
A magnífica assembléia reunida na igreja de Saint Mary no sexto dia de dezembro se
dispersou quase ao cair da noite e todo o povo de Shrewsbury se acotovelou na frente da
igreja para vê-la partir.
Primeiro foram os legados do Papa, senhores graves e reverendos, encapuzados até os
olhos nos mantos e capas, pois o seu sangue italiano suportava mal o frio e a umidade daquele
clima inóspito. Os seus criados de libré eram mais vistosos do que os legados e desfilaram
numa procissão pomposa, caso se desse desconto aos seus passos cautelosos e incertos sobre
as pedras geladas do pátio. Seguiu-se o rei e o seu séqüito: na rua apinhada ecoaram os nomes
ilustres à medida que os cavalos iam passando. Ralf Neville, Bispo de Chichester e chanceler
da Inglaterra; Segrave, o novo corregedor do reino; De Lacy, Conde de Lincoln e
administrador de Chester, desde a morte do velho Ranulf. O nobre alto, de rosto franco e
sorriso austero era Richard, conde marechal, o novo Conde de Pembroke, que havia mais de
um ano fora elevado inesperadamente ao título. Era o segundo de cinco irmãos saudáveis e
nunca pensara herdá-lo, mas o irmão mais velho morrera sem filhos e Richard, instalado havia
muito nos seus domínios franceses, fora chamado para casa com pressa, para preencher o
lugar. Ainda que fosse mais estrangeiro do que inglês já corriam rumores na corte de que ele
não morria de amores pelos oficiais do Rei Henrique originários do Poitou e também sobre o
seu respeito, muito inglês, pela ordem e pelos costumes do reino, que aqueles oficiais
prometiam desmembrar.
Composta por barões, condes e funcionários, bispos e prelados, senhores de
estandartes e insígnias e simples cavaleiros, a nobre cavalgada desfilou até o Wyle, rodeando
o jovem Rei Henrique, em toda a sua glória e dignidade, aspectos que este nunca desprezava.
Shrewsbury não recebera muitas personagens ilustres desde os tempos do Rei João, a quem,
em troca de dinheiro e lealdade, a cidade extorquira tantos e tão úteis aforamentos e
privilégios. Os negócios floresciam no caminho da Coroa; os burgueses gritavam aclamações
com grande contentamento, batendo com os pés frios no solo gelado e remexido, assoprando
fanfarronices de vapor prateado para o ar cintilante. Mesmo quando foi a vez dos galeses
desfilarem, as pessoas que assistiam não fizeram ares irritados e esticaram os pescoços com a
mesma curiosidade. Os galeses tinham muitas vezes semeado o terror nas fronteiras e, desde
que se lembravam, uma vez já haviam saqueado e ocupado a cidade de Frankwell. Mas faria
sentido olhá-los como inimigos quando quase todas as famílias do burgo tinham parentes na
margem ocidental do Severn? As fronteiras eram reconhecidas e zelosamente guardadas pelos
reis, mas a gente comum não podia fazer os seus negócios quotidianos sem atravessá-las

33
34

livremente, deixando com imparcialidade as suas pegadas dos dois lados e, uma vez por outra,
descendentes acidentais.
Os galeses vinham a pé, pois era apenas uma curta caminhada da residência citadina
do abade onde estavam alojados até à capela real de Saint Mary. A Princesa de Aberffraw,
senhora de Snowdon, mulher de Llewelyn e filha do Rei João, saiu do pátio de braço dado
com o filho, afastando-se da sombra da torre atarracada de pedra e aproximou-se do portão
iluminado pelos archotes, onde se deteve alguns momentos para segurar a sua saia comprida e
enrolá-la sobre o braço. Era uma mulher alta e grave, de movimentos enérgicos e rosto calmo.
Caminhava com segurança, sem sorrir, imperturbável, e a sua expressão não permitia calcular
se regressava para junto do marido, em Aber, com uma vitória ou uma derrota. Durante toda a
sua vida, estivera exposta à luz dos archotes e aos olhares indagadores, sabendo moderar o seu
próprio olhar naquele mundo de homens de Estado e príncipes, por amor de Llewelyn; sabia
como refrear e proteger a razão e o coração. No entanto, há pouco mais de um ano, como
todos na Inglaterra e em Gales sabiam, estivera detida na prisão do marido por infidelidade e
o seu amante, De Breos, fora enforcado em Aber; um preço elevado demais para qualquer
mulher, mesmo uma princesa.
Esticaram o pescoço para vê-la e consideraram que não merecia tanto risco; tinha os
cabelos grisalhos, sob a coroa de ouro, as faces pálidas e uns olhos tristes. Não voltaria a ter
quarenta anos. E De Breos tão jovem, tão galante! Que ele teria visto nela que eles não viam?
Joan suportou o fardo daqueles olhares, sem sentir a angústia que experimentara da
primeira vez que voltara a enfrentar as luzes. Quando se ocupava dos assuntos de Llewelyn,
passava a ser Llewelyn; a sua voz assumia a autoridade da voz dele, escolhia as palavras que
ele teria escolhido e até os gestos reproduziam o ardor e a magnificência dos gestos largos e
generosos do príncipe. Não havendo razões para ele mostrar timidez ou vergonha, ela não
podia perder a compostura. Levantara-se diante dos legados nos degraus da capela e falara por
mais de uma hora, em termos corajosos e ponderados, especificando, sem se alterar, as muitas
violações das fronteiras, as repetidas quebras das condições da trégua de que Llewelyn
acusava os seus vizinhos ingleses. Voltara a sentar-se com a mesma expressão impassível
para ouvir as contra-acusações e fora a primeira a insistir em concessões e novas
demonstrações de boa-vontade de ambos os lados, oferecendo compensações sempre que
estas fossem julgadas devidas pelo País de Gales e reclamando-as com cortesia sempre que
devidas pela Inglaterra. Algum dos homens presentes teria feito melhor? Llewelyn estava
presente no coração e no espírito de Joan como uma águia das montanhas de Snowdon que,
do seu ninho no espírito da princesa, olhasse através dos olhos dela.
David, seu filho e o herdeiro confirmado de Llewelyn caminhava à sua direita. Era alto
e delgado como a mãe e tinha o mesmo ar grave, quase triste, mas também um sorriso súbito e
radioso, raro e breve, que herdara do pai. A esquerda de Joan seguia um homem mais velho,
que devia ser Ednyfed Fychan, homem de confiança e confidente de Llewelyn há muitos
anos. E o jovem robusto e moreno que vinha logo atrás deles, diziam os mais conhecedores
entre a multidão, era o irmão adotivo do Príncipe David, Owen ap Ivor ap Madoc, ele próprio
um nobre senhor dos feudos de Arfon e Ardudwy.
Avançaram sobre as pedras geladas da rua com os guardas de honra à sua frente, a
abrir caminho. Chegaram e passaram, seguidos pelo seu séqüito de nobres das tribos
selvagens, morenos e fortes. Na curva do Wyle, a multidão de espectadores agitou-se numa
convulsão da qual irrompeu uma figura delgada, envolta numa capa, que se atravessou no
caminho. Um dos guardas estendeu a vara para impedi-la de passar, mas ela, rápida como um
esquilo, rodeou-o e agarrou-se ao braço de Owen ap Ivor antes que alguém conseguisse
interpor-se.
─ Espere, senhor! Senhor Owen!
Este olhou para baixo, sobressaltado, e viu um rosto oval e alegre, rosado devido ao

34
35

frio e emoldurado pelo capuz marrom. Uns olhos azuis, orlados por longas pestanas infantis,
fitavam-no com uma expressão imploradora.
─ Senhor Owen, não se lembra de mim? Sou a Aelis!
O guarda agarrara-a por um braço e a teria afastado com um empurrão, se Owen não a
segurasse pelo pulso e afastasse o homem, com uma mão tranqüilizadora.
─ Deixe-a, é inofensiva. Deixe-a falar.
Aquela agitação momentânea chegou aos ouvidos de Joan, que se voltou para ver o
que se passava.
─ O que é? Se essa criança quer nos pedir alguma coisa, que esta não lhe seja negada.
O dia correra bem para o País de Gales, era dever deles dar esmola a quem a pedisse.
Voltou atrás, no seu passo comprido e impetuoso e olhou com atenção para o rosto da moça.
Muito jovem, não mais de dezesseis anos, um corpo delgado, embrulhado e informe dentro da
capa áspera que todos os camponeses usavam. Agora parecia assustada e tentava recuar, mas
Owen segurou-a passando-lhe um braço pelos ombros com receio de que ela escapasse das
suas mãos e desaparecesse na multidão.
─ Senhora, é esta a jovem de quem lhe falei que uma vez nos mandou notícias de uma
pessoa que perdemos.
Era hábito de Owen não declarar nomes. Mas alguém teria ouvido falar de Harry
Talvace naquele burgo fronteiriço tão confiante?
─ Posso convidá-la a vir a nossa casa? ─ perguntou muito depressa, ao ver a chama de
compreensão que iluminara o rosto de Joan.
─ Sim, com certeza. Acompanha-nos até aos nossos alojamentos, minha filha, e obterá
o que pedir, seja lá o que for.
A criaturinha era tão arisca como uma corça selvagem e teria fugido se Owen não
continuasse a segurá-la. Joan voltou-se e continuou o seu caminho em passo apressado, para
deixá-los sozinhos. A moça conhecia Owen e confiaria nele; se o seu anseio fosse
suficientemente forte iria querer concretizá-lo. Aquele rosto impetuoso e inocente comovera
Joan: ardente de paixão e tão desesperadamente jovem... Ela acabaria vindo! Mesmo que
Owen a soltasse, mesmo que se atemorizasse e se escondesse como um veado na floresta,
ainda assim viria ter com eles.
─ Segue-nos até a casa ─ disse rapidamente Owen, falando para a massa de cabelos
cor de trigo que escapava, em ondas suaves, do capuz grosseiro. ─ Espero por você no pátio,
vá lá falar comigo.
Os grandes olhos da moça lançaram-lhe um olhar arisco e desconfiado, mas a boca
esboçou um assentimento mudo. Em seguida afastou-se bruscamente dele e perdeu-se na
multidão. Quando olhou para trás, em direção ao portão da casa da abadia, Owen a viu
deslizar silenciosamente ao longo da parede, seguindo-os, discreta, rápida e tímida como uma
gata da cidade, caçando ao cair da noite. Quando entraram no pátio, Aelis vinha logo atrás dos
pajens mais jovens e o seu passo era tão leve que ninguém a ouviu, ninguém a interpelou. O
portão fechou-se atrás dela, o que a fez virar-se; parecia capaz de abrir caminho a unhadas se
pudesse, num ataque de pânico, mas era tarde demais.
Owen correu para ela e agarrou-a pelos ombros, segurando-a com força ao sentir que
ela queria soltar-se.
─ Por que, Aelis? Isto é uma tolice. Você me conhece, chamou por mim. Venha
comigo, diga-nos o que tem a dizer. Que foi que eu fiz para você ficar com medo?
─ Não sabia ─ disse ela, atabalhoadamente. ─ Nunca pensei que você fosse um
parente da senhora. Só queria falar com você a sós, nunca pretendi uma coisa destas.
Sob as suas mãos, Owen sentiu o corpo dela distender-se e acalmar-se, e a moça não
opôs resistência quando começou a conduzi-la em direção a casa.
─ Tem medo da princesa? Não precisa ter medo; mesmo que não fosse a bondade em

35
36

pessoa ela tem para com você uma dívida de gratidão, como todos nós.
─ Não tenho medo ─ replicou Aelis, indignada. Empurrou-o com decisão e caminhou
à sua frente até o salão.
Os archotes, já acesos nas cavidades das paredes, assoviavam e exalavam um cheiro
de resina. Na lareira, os troncos ardendo lançavam reflexos de luz e sombras sinuosas sobre os
lambris acastanhados e sobre a princesa, enquanto esta despia o manto e aproximava os pés
frios das brasas. Havia duas ou três camareiras em volta dela, desatando-lhe os sapatos e a
entregando o vestido de usar em casa, mas quando ouviu a lingüeta da porta e viu a moça
atemorizada, curiosa e envergonhada no umbral da porta, Joan mandou-as parar com um
erguer da mão e dispensou-as.
─ Senhora ─ anunciou Owen, mal a porta se fechou atrás das saias que roçavam no
chão. ─ esta é Aelis, filha do Robert que, no ano passado, quando o Harry desapareceu, nos
mandou notícias dizendo que ele fora feito prisioneiro e levado para Parfois. Ela e o pai
cuidaram dele durante algumas semanas sem saber quem ele era e foram muito bons para
Harry. Se não fosse Aelis, não saberíamos tão depressa o que lhe acontecera.
Aelis fez uma vênia e desviou os olhos, lançando olhadelas rápidas sob as pestanas
louras, primeiro em direção a Joan e depois ao jovem príncipe que saíra das sombras e estava
de pé atrás da cadeira da mãe. Ambos estavam ricamente vestidos, ainda que com cores
escuras: usavam jóias, veludos e brocados, pois vinham de uma cerimônia de Estado, na qual
o fausto era uma arma temível na armadura de cada facção. Aelis receava que Owen a tivesse
feito parecer uma mendiga que vinha pedir recompensa e que a senhora tirasse do dedo um
dos seus anéis para lhe pagar os serviços prestados. Não que Aelis não gostasse de pegar
aquela pedra vermelha brilhante e enfiá-la no dedo, mas nunca como quitação da parte de
Harry Talvace que lhe pertencia.
Mas Joan disse apenas:
─ Parece que contraímos uma profunda dívida para com você, Aelis. E julgo que
talvez consigamos pagá-la de algum modo, pois você vinha pedir-nos algo. Faça o seu pedido
e, se estiver ao nosso alcance, você terá o que pretende.
─ Eu só queria perguntar ao Senhor Owen se podia me dar notícias do Harry ─
respondeu Aelis, afastando para trás dos ombros as pregas da capa cor de ferrugem.
Notícias de Harry por notícias de Harry era uma troca justa e digna.
─ Quando ele saiu de Parfois ─ acrescentou a moça, agora com mais ardor e ansiedade
─ esteve em nossa casa, passou a noite lá e prometeu voltar quando pudesse. Desde então
nunca mais recebi notícias dele. Vim a Shrewsbury pensando que ele pudesse vir no séqüito
de Vossa Senhoria e que conseguisse ao menos vê-lo para ter certeza de que está bem. Talvez
mesmo falar com ele ─ continuou, corando de repente, irritada por ter mostrado o seu desejo e
a sua saudade diante de todos. ─ Nem Harry me deve nada e nem eu quero pedir-lhe nada, só
queria saber se está bem. Mas como não o vi e o senhor Owen passou tão perto, atrevi-me a
chamá-lo só para pedir notícias.
Aelis viu a forma como se entreolhavam e interrogou-se sobre o que seria aquela
sombra que passava nos olhos de todos deles. Reteve a respiração com medo de que só
houvesse más notícias; num ano e meio muita coisa podia acontecer! E ela sem saber se Harry
estava vivo ou morto...
─ E você não soube de nada? ─ perguntou Owen. ─ Ele esteve com você e não disse
nada?
Joan viu o rosto jovem ficar gelado de aflição e os grandes olhos, mais azuis do que
miosótis, dilatarem-se e escurecerem com um terror que ela compreendia muito bem.
Podemos dominar o medo por nós próprios, pois chega um momento em que este deixa de
fazer sentido, mas o medo por alguém a quem queremos mais do que a nós mesmos não tem
cura, por mais corajoso que seja o espírito, por mais nobre que seja a alma.

36
37

─ Harry está vivo ─ disse Joan, procurando palavras de conforto que fossem
abrangentes e imediatas ─ e, se Deus quiser, de boa saúde. Se ainda não cumpriu a sua
promessa é porque ainda não chegou o tempo, não porque tenha quebrado o juramento. Nunca
o vi faltar à sua palavra, minha filha, e não creio que venha a fazê-lo.
Viu as faces da jovem voltarem a ganhar cores e a luz sorridente da felicidade
despontar-lhe nos olhos aliviados e receou o que ia continuar a dizer; mas fora ela quem
começara a falar e não podia deixar que fosse Owen a dar as más notícias.
─ Harry devia ter falado a verdade quanto à sua liberdade ─ prosseguiu. ─ Era apenas
liberdade condicional, até o fim da guerra. Ele prometeu regressar ao cativeiro logo que esta
acabasse. Deu a sua palavra e a manteve.
Aelis levantou a cabeça olhando-a fixamente com uns grandes olhos que não
conseguiam decidir-se entre a gratidão e o desgosto. A capa escorregou-lhe dos ombros sem
que percebesse e ela ali ficou ela de pé, delgada e imóvel, com o seu vestido de lã
acinzentado, os cabelos despenteados pelo capuz pesado a escaparem-se das tranças. As
madeixas lisas tinham um brilho de ouro escuro, revestindo-a de um esplendor muito próprio.
─ Voltou para Parfois! ─ disse Aelis num murmúrio amargo, deixando escapar um
profundo suspiro.
─ Há mais de um ano.
─ Devia ter vindo falar comigo quando regressou ─ acrescentou a jovem debilmente,
com desgosto. ─ Devia ter confiado em mim.
─ Com certeza confia em você, minha filha. Também não veio visitar-nos em Aber
antes de regressar. No momento em que foi libertado e foi correndo falar com você, julgo que
lhe parecia dispor de todo o tempo do mundo. Só quando chegou o momento de cumprir com
a sua palavra é que o Harry deve ter se dado conta de como eram pesadas as condições a que
se obrigara. Tinha prometido voltar para o cativeiro assim que a paz fosse firmada. E manteve
a sua promessa escrupulosamente. Ainda que você estivesse apenas uma milha fora do seu
percurso, o seu orgulho era muito e estava ferido demais para lhe permitir desviar-se e ir vê-
la. É assim que os homens nos tratam ─ disse Joan, com um sorriso triste ─ se estivermos
dispostas a viver com eles, é preciso aceitá-los como são.
A moça ficou silenciosa, estremecendo ligeiramente, inconsciente da eloqüência dos
seus olhos. De novo em Parfois lamentavam-se, de novo prisioneiro e eu que não ganhei nada
ao fim deste ano de espera. Tão perto... e não senti nada... tão desgraçado... e cheguei a
amaldiçoá-lo... Mas não se esqueceu, exultavam os olhos, se não veio foi porque não pôde.
─ Senhora, que podemos fazer? ─ suplicou.
─ Muito pouco além de esperar e ter esperança.
Aos dezesseis anos não há nada mais difícil, aos dezesseis anos o tempo é tão pouco...
─ Volte para Parfois ─ aconselhou Joan, com doçura ─ e vigie o melhor que puder
tudo o que se passa por lá. Se acontecer alguma coisa estranha, alguma coisa de que
devêssemos ser informados, manda um recado ao castelão de Castell Coch, como já fez uma
vez e ele chegará até nós. É preciso que você acredite que o Harry não faltou à promessa que
lhe fez. Irá cumpri-la quando lhe for possível.
Joan observou a face radiosa, a boca vulnerável, os olhos cintilantes da jovem, uma
beleza ainda por despertar, e doeu-lhe o coração por causa da tirania do tempo. Ela, que já
deixara para trás a juventude, dispunha de todo o tempo, de sobra mesmo. Não, pensou, Harry
não esqueceu!
─ Esse lugar, essa tua moradia ao pé do Severn, fica muito longe daqui. Como você
veio até aqui?
─ Vim a pé ─ respondeu Aelis sorrindo.
De que outro modo julgavam eles que as pessoas pobres se deslocavam?
─ Sozinha? ─ perguntou Owen. ─ Ou o seu pai também está aqui na cidade?

37
38

─ Como poderíamos vir os dois e deixar a vaca e as galinhas? Não, vim sozinha. Não
tenho medo ─ disse Aelis. ─ Os salteadores não dão atenção a pessoas como eu, não trago
comigo nada que eles possam cobiçar.
─ Mas não pode regressar sozinha. Owen, diga ao Madoc que prepare um cavalo e
mande dois homens de confiança acompanhar Aelis até a sua casa. E você, David, peça à
Margaret que lhe dê alimento antes da partida.
Os dois saíram obedientemente para cumprir estas incumbências e as duas mulheres, a
sós na sala confortável, aquecida pela lareira e iluminada pelas tochas, olharam longa e
discretamente uma para a outra, e permaneceram em silêncio durante algum tempo.
─ Você o ama tanto assim? ─ perguntou Joan por fim, de forma súbita e brusca,
quebrando o silêncio.
─ De Harry só quero o que ele me quiser dar de sua livre vontade ─ respondeu Aelis
com altivez.
─ Acredito que sim. Mas não foi isso que perguntei. Quase escondidos pelo cabelo
louro escuro os olhos azuis ergueram-se, desafiadores, para Joan.
─ Sim, eu o amo ─ respondeu Aelis.
Os legados partiram, a ilustre assembléia de nobres, bispos e príncipes começou a se
dispersar; a época áurea do inverno de Shrewsbury terminara. Partiram com cordialidade e em
boa ordem. O rei já aprovara e ratificara o acordo estabelecido pelo tribunal; afirmara
insistentemente o desejo de paz de ambas as partes e criara uma comissão de arbitragem para
dirimir todas as questões que pudessem surgir entre elas. Os dois lados haviam se
comprometido a aceitar as decisões desta comissão e concordado com os nomes propostos. Os
legados haviam entregado solenemente os seus poderes a esta nova instância e partido para
Londres, abençoando a continuação da paz.
Se não tivesse o espírito ocupado com outros assuntos, teria Henrique sido tão
maleável? Neste momento o País de Gales estava praticamente invisível aos seus olhos, só via
o que ele próprio e esta nova ordem das coisas podiam fazer pela Inglaterra. Nunca reservara
espaço para mais do que uma paixão de cada vez.
Assim, tendo tirado partido das preocupações do rei e dado graças a Deus por isso, a
representação galesa deixou a residência citadina do abade e tomou a estrada de inverno para
Aber.
Nesse dia Harry estivera trabalhando na sua bancada até tarde, recusando-se a sair dali
para ir jantar, mesmo depois de não haver luz suficiente. O salão devia estar cheio, as tochas
proporcionariam uma luz reveladora demais e ele não queria aparecer ainda. Mesmo que
conseguisse disfarçar o seu sofrimento aos olhos dos outros, não conseguia deixar de sofrer.
Tinham estado tão perto dele... mas era como se um mundo os separasse. Harry ficou
sentado à bancada, enrolado sobre si mesmo, no escuro, acariciando desesperadamente o
trabalho inacabado para preencher o espírito e ganhar coragem, mas sem conseguir deixar de
ver a princesa diante dos olhos. Agora, voltava a vê-la como a vira pela última vez, sentada na
cadeira de Llewelyn, debruçada sobre as ordens de Llewelyn, tão diferente e tão quieta depois
daquele ano perdido, grisalha e envelhecida, necessitada de todas as pessoas que a amavam.
Naquele momento, estava se afastando dele milha a milha, cavalgando ao lado de David e
Owen, desmontando para passar a noite, talvez em Valle Crucis, e partindo de manhã para
uma nova jornada, arrastando com ela as cordas retesadas do coração de Harry. Voltavam
para casa, para junto da sua mãe, do príncipe que fora como um pai para ele, de Adam que,
com tanto amor e paciência, preenchera o lugar de mestre Harry desde que o filho deste viera
ao mundo. E Harry era obrigado a ficar ali sofrendo, com o coração despedaçado, numa
situação sem fim à vista, sem qualquer sinal de que um dia pudesse ter fim. A paz era sagrada
e a herança de David não podia ser posta em perigo. Ali estava ele, Harry, o preço desta paz...
Subitamente rompeu em lágrimas de frustração, de desespero e solidão, mas logo esfregou o

38
39

rosto com a manga áspera, furioso, para apagar rapidamente aquela vergonha. Tinha de passar
aqueles momentos na escuridão mesmo que ficasse sem jantar. Ainda não se sentia capaz de
enfrentar os outros.
Então, enquanto Harry continuava agachado no meio das ferramentas, a acariciar a
pedra inacabada em busca de algum conforto, soou um ribombar distante de cascos
atravessando a ponte, na esplanada da igreja, que o fez levantar a cabeça em alerta e lhe
paralisou o sentimento de tristeza, captando imediatamente a sua atenção. Àquela hora, além
dos guardas não devia ter muita gente lá fora, no terreiro exterior. A curiosidade foi suficiente
para fazê-lo deslizar da bancada e procurar, às apalpadelas, a saída da sala de desenho para
ver quem seriam aqueles cavaleiros. A corte ainda estava na abadia de Shrewsbury. Em
Parfois, havia mais de um ouvido atento e ansioso tentando perceber se Isambard voltara a
cair nas boas graças do rei. Se isto fosse uma convocação do rei, haveria quem se apressasse a
voltar à sua postura anterior.
Meia dúzia de cavaleiros estava desmontando no pátio das cavalariças. À luz das
tochas só conseguiu vê-los fugazmente; silhuetas trêmulas contra o brilho pálido do gelo
sobre a neve fina. Homens bem agasalhados, bem montados, com vozes fortes e andar
confiante, bem podiam vir da corte. Os palafreneiros acorreram para se ocuparem dos cavalos
e dois ou três pajens apressaram-se a segurar-lhes os estribos. O oficial da guarda mostrava-se
extremamente respeitoso e atento para com o chefe do grupo que desmontara e começara a
bater com os pés gelados no chão. Harry aproximou-se de ouvido alerta para os nomes, já que
não havia esperança de identificar os rostos. Contudo o rosto do desconhecido identificou-o.
O visitante era um homem alto e bem constituído, com uma barba farta e boas roupas.
Apesar da barba, apesar dos lampejos de luz e sombra só o mostrarem por alguns instantes, as
semelhanças eram suficientes para lhe atribuir um nome. Era mais encorpado e não possuía a
mesma astúcia, o mesmo fulgor ou a mesma beleza, mas parecia-se muito com o pai.
Então este era o William Isambard cujas roupas Harry havia usado; o filho mais novo,
o cortesão, o novo homem, o homem de De Rivaulx. Embora cuidasse de seguir a tendência
ascendente, parecia que encontrara coragem suficiente para visitar o pai, que não podia ir vê-
lo.
Subitamente, com um silvo de madeira resinosa, uma das tochas flamejou e por um
longo minuto lançou um clarão sobre o rosto do visitante. Uns olhos ardentes, vivos e
decididos, abarcaram Parfois numa olhadela, pesando, medindo e avaliando até os arreios e os
demais apetrechos de montar no pátio. Sorria com um sorriso daqueles que não se partilham
com ninguém. Os breves passos que deu sobre as pedras do pátio mostravam toda a segurança
de um proprietário.
De Guichet apareceu apressado, vindo ao encontro de William ainda fora do arco que
conduzia ao pátio interior. O que ele estava fazendo fora do salão àquela hora? Ninguém
ainda correra a levar a notícia, ninguém o chamara. O senescal devia permanecer ao lado do
seu senhor.
Ao lado do seu senhor? Talvez agora estivesse. Aproximou-se diligentemente,
manifestando uma surpresa efusiva, fazendo uma vênia, ainda que não obsequiosa demais, ao
filho do seu amo, mas a sua voz alta e clara na primeira saudação admirada logo se
transformou num murmúrio confidencial quando os dois ficaram perto um do outro. Isto não
teria qualquer significado, não seria mais do que uma impressão, um frêmito da sua
imaginação, mas o fato ficou gravado com ácido no espírito de Harry, deixando uma marca
indelével. Ainda não havia um compromisso, era cedo demais; apenas um reconhecimento
tênue e prudente para se assegurar do lado para o qual pendia a balança. Esta não era, com
certeza, uma embaixada do rei: William vinha tratar de assuntos seus.
Inesperadamente, Harry lembrou-se de Isambard sentado à mesa de honra no salão
apinhado de gente, dos mais de mil cavaleiros, escudeiros, criados e homens de armas

39
40

reunidos à sua volta, da luz implacável que lhes revelaria todas as emoções, todas as
alterações do seu rosto. Isambard proclamava não se importar com o exílio, não era? Não
alimentar grandes esperanças de voltar a cair nas boas graças do rei? Todos veriam, todos
perceberiam como se importava! Veriam reacender-se a esperança, se continuava
secretamente a alimentar alguma, e veriam como esta se esfumava; mesmo que conseguisse
passar incólume no teste, Isambard iria imaginar um castigo para Harry, para devolver o
golpe.
Começou a correr com o coração a bater-lhe na garganta, quente e vingativo, e
deslizou por baixo do arco imerso em sombras à frente dos visitantes, chegando antes deles
aos degraus do salão. Ao entrar, foi invadido pelo rumor das vozes, pela fumaça e pelo calor.
Passou entre os copeiros apressados, numa trajetória rápida em direção à mesa de honra.
Podia perfeitamente ter dado a volta e murmurado a mensagem ao ouvido de
Isambard, mas não era essa a sua intenção. Aproximou-se dos degraus do estrado e subiu com
ousadia, tomando posição num dos extremos da mesa de onde tinha uma panorâmica geral do
salão e deixava Isambard exposto aos olhos de todos os presentes.
─ Meu senhor!...
Fez uma pausa até as vozes se calarem. Queria que todos o ouvissem; não apenas os
cavaleiros, mas todos os presentes, até o último criadinho postado ao fundo do salão.
─ Senhor, chegaram mensageiros de Shrewsbury para falar com o senhor. Vêm da
corte.
O tempo escasseava, não podia contar com mais de dois minutos antes dos visitantes
entrarem e arruinarem o seu esquema, mas dois minutos seriam suficientes. A babel de vozes,
que se calara para ouvi-lo recomeçou, agora num tom mais baixo e mais cauteloso,
interrogativa, excitada, esperando pela confirmação. O corpo esticado de Isambard não se
retesou na cadeira, as mãos não apertaram os braços estofados; só os olhos se dilataram
ligeiramente enquanto erguia as sobrancelhas e olhava para Harry com ar especulativo, por
cima da mesa repleta. Não como se não acreditasse nele, mas como se estivesse se
perguntando o motivo que estaria por trás daquele anúncio. Se ficara contente e aliviado, se
sentira um breve e agradecido impulso de triunfo e de exaltação, escondera-o com grande
perícia. Se poderia dizer que estava avaliando as possibilidades e esperava pelo desenrolar dos
acontecimentos com um interesse despido de ilusões e sem sinais de preocupação.
Não, Isambard não mordera a isca. Se Harry esperara alguma revelação, ela estava ali:
relanceou um olhar em volta da mesa de honra e contou os rostos inexpressivos, fechados
como janelas, contou os pares de olhos que brilharam por instantes de inquietação e
consternação para logo se tornarem impenetráveis, resguardando as emoções que lhes
atravessavam o espírito. Rápida e cuidadosamente estavam reavaliando a situação e
apresentavam uma face indecifrável para disfarçar a agonia. Os vira-casacas estavam a ajeitar
os casacos sobre os ombros, prontos para virá-los na direção para a qual o vento soprasse.
Harry ficou mudo de espanto quando percebeu que eram muitos.
─ Então os convide a entrar. São bem-vindos ─ disse Isambard. A secura daquela voz
fez corar o mensageiro.
─ Ei-los, meu senhor.
Estava feito e não havia como voltar atrás. Afastou-se para o lado, para junto do
estrado, no momento em que De Guichet entrava pela porta principal, alegre e diligente como
competia a um portador de boas novas, seguido de perto por William Isambard.
Todos os olhares se voltaram para eles, fixando-se no recém-chegado. Um enorme
suspiro ecoou no ar e terminou no mais absoluto silêncio, à medida que William caminhava
ao encontro do pai, se inclinava sobre a mão estendida e beijava a face magra. Os dois rostos
uniram-se por momentos; as semelhanças e as violentas diferenças entre eles foram um
choque para Harry. Tudo fora feito com tanta ternura, com tanta devoção filial... Harry ouviu

40
41

o cumprimento afável, no meio do silêncio reinante.


─ Meu querido pai e senhor, lamento vê-lo tão infeliz.
─ É assim que me vê, William? ─ replicou Isambard, com o habitual sorriso retorcido.
─ Pensei que estava com um ar radiante. Pelo que vejo você está com muito boa disposição.
Agora que veio até aqui, vai ficar algum tempo conosco?
─ Ficaria se pudesse, mas o rei deixa Shrewsbury amanhã e tenho que regressar a
tempo. Só me foi dada licença para me ausentar por umas horas.
─ Podia emprestar a você metade da minha, que é uma licença ilimitada. Sente aqui
junto de mim enquanto pode e me conte as notícias que você traz.
Arranjou lugar para o filho à sua direita e os pajens correram a servir-lhe comida e
bebida. Por cima da mesa, Isambard lançou um olhar sardônico a Harry Talvace, mudo e
parado contra a parede.
─ Vá para o seu lugar, Harry ─ ordenou, com suavidade. ─ Desempenhou bem a sua
missão. Eu próprio não teria feito melhor.
Harry passaria muito bem sem aquele elogio, mas não podia dizer que não fora
merecido. Com as pernas tremendo afastou-se, sentindo os olhos de De Guichet a queimarem-
lhe as costas. O senescal não se atrevia a perguntar ao seu amo de que missão se tratava, mas
era rápido para raciocinar e tirar conclusões. Talvez se interrogasse agora sobre de que lado
estaria aquele ser solitário e se Isambard não estaria escondendo sob a capa de uma pretensa
intimidade, que o utilizava como espião para rondar pelos pátios do castelo. Harry sentiu as
complicações da intriga se colarem aos seus dedos e a sensação teve o sabor de uma afronta,
como se houvesse sido fisicamente conspurcado por uma sujeira que não conseguia limpar.
Mesmo depois de se sentar-se à mesa inferior ao lado dos jovens homens de armas de
condição igual à sua não conseguia deixar de ouvir as vozes que provinham do estrado.
Parecia que Isambard estava apostando em manter a conversa num tom alto e claro, para ser
ouvido até ao fundo do salão, por centenas de testemunhas. Na presença deste nobre
convidado inesperado os jovens do séqüito reduziam as suas conversas a sussurros e Harry
não podia deixar de ouvir tudo.
─ E como estava Sua Graça quando você o deixou? ─ perguntou calmamente
Isambard, inclinando o copo de vinho para captar a cor de rubi à luz das velas que
iluminavam a mesa. ─ Está satisfeito com esta trégua prolongada?
─ Está muito satisfeito e de excelente humor. Vai passar o Natal em Worcester.
─ Você vai com ele, William?
─ Terei essa honra. Como agora sou um oficial da sua casa...
─ Pois é, não havia me esquecido. Mas faça o favor de tranqüilizar a minha Casa,
homem; será que ele mandou me chamar de novo à corte?
─ Infelizmente não, meu pai, ainda não. Dá-lhe tempo e ele via se acalmar. Sua Graça
ficou muito magoado com as suas censuras, mas eu sei que vieram do seu coração leal e da
preocupação que o senhor sente pelo rei. Seja paciente, ele vai perdoá-lo. Estarei sempre ao
lado do rei e cuidarei para que o senhor não seja esquecido.
─ Nunca duvidei disso ─ respondeu Isambard, com um sorriso diabólico. ─ Você será
o meu defensor e falará a meu favor, não é, meu filho? Sobre a honestidade das minhas
intenções e a fidelidade inquestionável que dedico ao rei?
─ Sabe que sim, meu senhor. Com muita freqüência.
─ Com muita freqüência! ─ repetiu Isambard devagar, rolando as palavras na língua
como se elas tivessem um paladar mais forte e mais agradável do que o vinho. ─ Estou
espantado, William, por Henrique tê-lo autorizado a passar uma hora comigo, você que ele
tanto preza. Vejamos, você já é xerife de três comarcas... ou serão quatro? Não consigo
lembrar-me.
─ São quatro, senhor.

41
42

─ E Sua Graça ainda lhe concedeu outro castelo pelos seus serviços, segundo ouvi
dizer.
─ Sim, senhor... Burhythe, no Suffolk. Ainda nem o vi. Quando a corte se mudar para
o sul, irei vê-lo.
─ Palavra de honra, estou muito satisfeito por um de nós estar na curva ascendente.
Nunca duvidei da sua energia nem da sua eficácia. Se continuar do meu lado, acabarei por
conseguir recuperar a minha posição.
─ Meu pai, fiz o melhor que pude e com todo o empenho, mas convém deixar
amadurecer a situação. O rei está muito ressentido com De Burgh, como eu próprio muito
bem compreendo. Aguarde com paciência, espere e confie em mim. Não o decepcionarei.
─ É uma grande generosidade da sua parte ─ disse Isambard ─ uma vez que você não
concorda comigo sobre a questão do Conde de Kent.
Seria deliberada ou se deveria ao hábito, aquela insistência em empregar o antigo
título, agora retirado ao nome do estadista caído em desgraça?
─ Não concordo. Mas reconheço a honestidade dos seus pontos de vista e sei que o
senhor é leal ao rei; isso me basta.
─ Como estava o Conde de Kent quando você saiu de Londres? Que notícias havia
dele?
Duas vezes seguidas não era um acaso, era perversidade. Isambard manifestava o seu
desprezo pela sentença e o seu respeito inalterado pela vítima, em público e de modo
provocador.
William contou mais do que seria necessário, descrevendo toda a triste história com
tão boa vontade que Harry não pôde deixar de sentir naquela narrativa uma ameaça e um
aviso velados. Por que motivo iria William manifestar-se sobre a maldade e a crueldade da
demorada perseguição que proclamava de forma gritante a falta de caráter do rei, mesmo
quando o narrador apresentava desculpas para toda a perfídia deste? Nunca um homem fora
perseguido com tanta impiedade como De Burgh. Até o momento em que este devia estar
presente ao conselho do rei, em Lambeth, estava sendo reunida tal quantidade de acusações
contra ele e havia tanta gente sedenta do seu sangue que não era de admirar que De Burgh
temesse pela vida.
Para culminar tinham violado o direito de asilo e quando, num arroubo de santa
indignação, os bispos os forçaram a devolver De Burgh à igreja, fizeram-lhe um cerco durante
os quarenta dias do prazo necessário para poderem declará-lo um fora-da-lei, negaram-lhe as
visitas do seu confessor e proibiram os criados que lhe levavam a comida de falar com ele,
destruíram solenemente o seu selo privado, tiraram-lhe o livro de orações e, depois dos
quarenta dias, triunfantes e presunçosos da sua legitimidade, retiraram-lhe a comida e os
criados, não lhe deixando outra opção senão render-se ou morrer de fome. Seria este
comportamento digno de um rei, ou antes, de uma criança vingativa, roída pela inveja?
Depois deste tratamento, a Torre de Londres devia ter lhe parecido um doce refúgio.
Ainda assim, Henrique não mandara matá-lo. E por quê? Seria por Isambard primeiro
e Ranulf de Chester depois, terem falado em nome de uma enorme e temível corrente de
opinião que não podia ser ignorada? Pelo menos quando Hubert se apresentara perante a
comissão de nobres e o corregedor do reino, em Cornhill, a acusação fora menos rigorosa do
que seria de prever tendo em vista os acontecimentos anteriores. Com certeza já farto e
enjoado de toda aquela luta pela sobrevivência, parecia que De Burgh se recusara com
firmeza a submeter-se ao julgamento e a apresentar a sua defesa, tendo simplesmente se
colocado à disposição do rei para que este fizesse o que entendesse. Conservara as terras que
lhe pertenciam por herança ou por aquisição, mas perdera todas as que detinha em nome da
coroa, bem como o título de conde; os quatro condes que compunham a comissão, Richard de
Pembroke, Lacy de Lincoln, Richard da Cornualha e o conde de Surrey, o mantinham sob a

42
43

sua custódia protetora em Devizes. Detido, pensou Harry, observando o rosto de William
Isambard enquanto este descrevia os pormenores atrozes daquela longa perseguição, ainda
assim mais civilizada do que o rei desejaria, se houvesse conseguido fazer prevalecer a sua
idéia.
─ Fico-lhe muito grato, meu filho ─ disse Isambard, estendendo as mangas de veludo
sobre as tábuas da mesa ─ por você ter se dado ao trabalho de me pôr a par de todos esses
pormenores. Saberei interpretar o aviso. Sou um homem acomodado, William, estou
envelhecendo.
O fulgor do seu secreto divertimento fazia-o parecer dez anos mais novo; ou então o
vinho corria com maior abundância do que era habitual na mesa de honra. Nunca, como
naquele momento, o lobo vagueara com tanta liberdade e alegria nos olhos levemente
sorridentes de Isambard.
─ E é minha firme intenção continuar a envelhecer em sossego e em liberdade ─
acrescentou com muita ênfase, presenteando o filho com um arremedo muito pessoal das
manifestações de afeição e deferência que William lhe dedicara.
A primeira vista, não havia grandes semelhanças entre os dois, mas no fim do
demorado jantar depois de tê-los observado com atenção Harry já não estava muito certo de
que o filho não saísse ao pai. A sua argúcia era diferente, mas também ele era arguto. A sua
maneira e tal como o velho sempre fizera, William ia direto ao que queria, com ousadia,
passando por cima de quem se atravessasse no seu caminho, com a mesma falta de
compaixão. Todavia, as suas ambições, terras, insígnias, dinheiro, poder, eram
compreensíveis e, por conseguinte, previsíveis com alguma certeza. William nem mesmo se
importava que fossem conhecidas desde que não pudessem ser impedidas. Sabia com certeza
que o pai estava rindo dele, mas não se preocupava com isso, nem isso o desviaria do seu
propósito. Por outro lado, quem adivinharia os desejos do velho lobo, quem conseguiria
prever os meios tortuosos que utilizaria para conseguir os seus fins? Terras, insígnias,
dinheiro e poder haviam caído em suas mãos há muito tempo. Estas questões não o
atormentavam e não era por causa delas que atormentava os outros.
─ Lamento de todo o coração ─ disse William, quando por fim se levantou da mesa ─
não poder proporcionar-lhe outro conforto ou ficar com o senhor por mais tempo. Preciso
partir com o primeiro grupo, amanhã, para preparar tudo para a chegada do rei. Da próxima
vez que vier visitá-lo espero ser portador de boas novas.
Pareceu hesitar por momentos e baixou ligeiramente a voz quando prosseguiu, mas
não tanto que impedisse os convivas sentados à mesa dos cavaleiros e alguns dos que estavam
na mesa inferior de ouvi-lo.
─ Se desejar enviar uma mensagem, serei seu portador de boa vontade.
Ao ouvir isto todos os sentidos de Harry se retesaram numa resistência silenciosa,
como se, ao enrijecer o corpo, pudesse gritar um alerta. Isambard, porém, levantou-se,
esticou-se sem pressa ao lado do filho, que o ultrapassava em altura por duas ou três
polegadas, deixou o convite como que rolar pela sua testa, semelhante a uma pedra gasta pela
erosão e sorriu.
─ Ora essa, já que é tão gentil, pode transmitir ao rei as minhas respeitosas saudações
e a minha lealdade.
Saíram juntos e a ironia desta partida foi quase superior às forças de Harry; com toda a
ternura, William ofereceu ao pai o braço forte e atlético e por pura malícia o velho aceitou-o e
apoiou-se pesadamente nele durante todo o percurso até o pátio interior e além dele, enquanto
atravessavam a passagem gelada que levava ao arco e ao pátio das cavalariças.
Nem que o matassem Harry saberia dizer por que motivo os seguira. Tanto fazia que
um deles destruísse o outro, ele queria era ver toda a família morta e enterrada, mas não
conseguia deixar de segui-los, furioso consigo mesmo, mas sem deixar de acompanhá-los

43
44

com os ouvidos alerta e o coração ansioso, até ver o grupo de Shrewsbury partir a cavalo. Viu
William dobrar-se sobre a mão do velho e, em seguida, endireitar-se e inclinar-se sobre a face
magra, depositando mais uma vez o beijo respeitoso de um filho afetuoso e fiel.
Uma punhalada de angústia profética pregou Harry contra a parede, fazendo-o torcer-
se de agonia nas sombras que o protegiam. Enterrou as unhas na pedra, subitamente esmagado
pela vergonha, como se tivesse visto e instigado uma traição terrível e obscura.
Fumaça de tochas, murmúrios de vozes e alguém que chegara, todo ele afeição e
lealdade, com um beijo e um propósito.
Partiram. A ponte rangeu antes da sua passagem e ressoou como um trovão depois
dela; durante alguns minutos ouviram-se os ecos gelados e ásperos das patas dos cavalos,
vindos da esplanada da igreja, antes da cavalgada ser engolida pelo silêncio ao descer a rampa
até o posto avançado da guarda.
Endireitando-se com a graciosidade fluida de um gato, depois daquela imitação do
andar cuidadoso de um velho, Isambard afastou os seus acompanhantes e voltou sozinho,
atravessando o arco escuro. Quase esmagou Harry contra a parede e, num gesto de boa-
vontade estendeu um braço, bem-humorado, para impedi-lo de cair.
─ Então Harry, não acha que já fez o suficiente para uma só noite?
Não havia desagrado na sua voz, apenas um leve e longínquo eco de riso, embora não
estivesse rindo. Segurou-o por alguns momentos, observando-o de perto sob a luz gelada das
estrelas que os tornava, aos olhos um do outro, estranhamente prateados, mais transparentes
do que à luz do dia.
─Não fique assim tão envergonhado, rapaz ─ disse, dando-lhe uma palmada no
ombro. ─ Por que motivo baixa a cabeça? Não foi você que o educou, fui eu.
Deu mais dois passos e deteve-se subitamente, olhando para trás. Voltara a ser ele
mesmo, os olhos cheios de demônios, a boca dura.
─ Os desígnios de Deus são sempre justos ─ comentou. ─ Cada um tem os filhos que
merece.

44
45

CAPÍTULO TRÊS
Aber, Strata Marcella, agosto de 1233

Acima do último cercado de pedra, acima dos flancos avermelhados pela urze, onde a
erva das colinas das terras altas amarelecia ao sol, milha após milha ondulante, havia um
velho calvário em madeira sob um telheiro de tábuas e, ao lado deste, dois retiros de eremitas:
à esquerda o do Santo Clydog, feito de estacas, juncos e barro, parecido com uma colméia,
com uma entrada estreita virada para leste;
à direita, a casa de pedra da mulher santa de Aber, com uma cantaria trabalhada e uma
janela em arco, virada para o sul. Em toda a volta, não se avistava mais nada senão a erva
tenra, as ovelhas pastando e, nas raras depressões, os arbustos baixos e emaranhados por cima
dos trilhos dos coelhos. No silêncio daquele dia de agosto chegava até ali, flutuando no ar
calmo, o som do mar e o ruído longo e lento das ondas a rebentar nos pântanos salgados de
Aber, muito lá embaixo, fora do alcance da vista. Por vezes, no fim da tarde podiam ouvir-se,
débeis e longínquos, todos os sinos repicando nos pequenos oratórios de Ynis Lanog dos
santos, do outro lado do canal prateado. O Santo Clydog e a mulher santa estavam sob a
proteção direta do Príncipe Llewelyn e podiam pedir-lhe tudo o que quisessem para viver
confortavelmente; mas nunca pediam nada. O que lhes mandava todos os meses, pelo seu
mensageiro, era mandado de sua livre vontade, antes mesmo deles terem sentido alguma falta.
Muitas coisas eram partilhadas com os pássaros, com os pequenos animais selvagens das
colinas, com os raros viajantes que passavam ali pelos trilhos das terras altas. O santo já quase
se esquecera de que tinha um corpo e só se lembrava de alimentá-lo para impedi-lo de gritar
com fome, pois isso perturbava as suas orações. A mulher, que em outros tempos fora alta,
intrépida e forte como uma torre, tornara-se nos últimos três anos uma labareda, pura e dura
como o aço, com o corpo consumido por dentro e por fora. Os olhos pareciam satisfeitos e
calmos, sempre fixados num ponto um pouco mais além do que os outros conseguiam ver.
Tinham a cor profunda e clara dos lírios roxos, que a luz forte do meio-dia transformava num
cinzento lustroso. A gente da região dizia que o Santo Clydog via o futuro, mas ninguém
sabia o que a Madonna Benedetta via, exceto que não era nada deste mundo. O resto do rosto
dela, porém, não era feito para o repouso, para uma vida retirada e uma morte santa: tinha
uma silhueta ampla e ousada, uma boca arqueada como uma flor, brilhante e determinada.
Nos contos antigos as rainhas tinham rostos assim e olhar para Benedetta trazia à memória os
desgostos e os amores dessas rainhas, o que conferia uma nova estranheza e um novo
significado ao nome que lhe atribuíam, pois o grande sofrimento e o grande amor são terríveis
e sagrados.
Benedetta nunca falava do passado. Não havia necessidade, na solidão e no silêncio
das colinas e os pastores que lhe levavam leite e ovos à porta não eram curiosos. Já estava ali
há dezesseis anos e, para estes, podia estar lá desde sempre, como a urze de Moei Wnion ou

45
46

os afloramentos rochosos por cima do riacho; não se interrogavam a seu respeito. Que lhes
importava que tivesse vindo da Itália para a França com um mercador parisiense que
enriquecera com as Cruzadas, ou que tivesse vindo da França para a Inglaterra na companhia
mais distinta do senhor de Parfois e da Inglaterra tivesse por fim chegado a Gales, fugindo
desse amante temível? Para que fazer perguntas depois da semente transportada pelo vento ter
criado raízes e florido na quietude e na santidade, entre as ervas nativas da região?
Contudo havia coisas a respeito dela que eram conhecidas. Na sua fuga trouxera
consigo uma dama, um criado e uma criança e obtivera para eles a poderosa proteção do
Príncipe Llewelyn. A dama casara com o mestre canteiro do príncipe, que era inglês e irmão
adotivo do seu primeiro marido e, dizia-se, era também há muito seu amigo e protetor; o filho
desta tivera dois pais, o artesão e o príncipe, e fora amado e estragado com mimos pelos
príncipes, seus irmãos adotivos. Apesar de tudo era um bom rapaz. Tinha sido uma confusão
dos diabos quando o rapaz fugira da sua vida privilegiada em Aber para se lançar na busca
tresloucada do assassino de seu pai. A sombra da sua perda ainda pairava sobre a corte e o seu
resgate tardava.
Embora não houvesse feito votos a mulher santa de Aber mantinha-se no seu lugar,
imóvel como o cume da montanha, cumprindo o compromisso silencioso que firmara com
Deus, sem um olhar de reprovação, sem soltar uma queixa, sem deixar espaço para anseios.
Só nas raras vezes em que a mãe do rapaz ia visitá-la, trazendo-lhe de volta o seu antigo
mundo na voz fresca e vibrante e nos olhos brilhantes de desgosto, só então o sangue subia às
faces de Benedetta devido ao agitar de que recordações só Deus sabia.
Naquele momento estava sentada sobre a erva que cobria uma depressão da colina,
acima das cabanas com Gilleis ao seu lado observando os homens que cortavam juncos
frescos na curva do riacho, mais abaixo. Adam Boteler, mestre canteiro do príncipe, era alto,
agradável à vista e louro; a esta distância, não era possível distinguir quais dos seus espessos
caracóis eram louros e quais eram brancos. Cada vez que os seus olhos pousavam nele a
expressão de Gilleis suavizava-se e sorria secretamente, com ternura. Os segundos maridos
têm o seu lugar próprio nos corações generosos, onde há espaço de sobra para eles sem que os
direitos do primeiro sejam infringidos. Em todo o caso, os dois homens haviam sido
inseparáveis em vida e dormido lado a lado, muito antes de terem posto alguma vez os olhos
em Gilleis Otley. Havia quem se perguntasse se Gilleis sabia sempre qual dos dois tinha nos
braços ou até se fazia distinção entre eles.
─ O Adam sente tantas saudades dele como eu ─ disse Gilleis. ─ Alguma vez a
senhora poderia imaginar que quase desejo que haja guerra? Nunca quis mal a nenhuma
criatura, inglesa ou galesa, mas agora até tenho vergonha de sentir o sangue correr mais
rápido nas veias quando se fala de desordens no sul e de que o Conde de Pembroke está
reunindo os descontentes em Gwent. De que outra maneira iremos recuperar o Harry? O
príncipe jurou ir buscá-lo pela força das armas, mas enquanto durar esta trégua não pode fazê-
lo.
─ Mas como pode a guerra civil na Inglaterra ajudá-lo? ─ perguntou Benedetta,
levantando os olhos do bordado que tinha no colo. ─ Ele não pode tomar o partido do conde
ou do rei sem alguém atacar os seus territórios.
─ Ah, mas os domínios de Pembroke penetram de tal forma no País de Gales que
dificilmente o rei poderá atacá-lo sem violar território galês. Se uma dessas escaramuças se
transformasse num ato de guerra, haveria motivo suficiente para intervirmos. E não duvido
que, mal tenha as mãos livres, o príncipe vá cumprir a sua palavra! Ah, Benedetta, sinto-me
tão mal por desejar isto... Há outras mulheres que têm filhos, que são tão queridos a elas como
o meu é para mim. Como posso desejar que sofram para que eu tenha o meu filho de volta?
─ Deus me livre de alguma vez querer pregar paciência a um homem ─ disse
Benedetta. ─ Pode ser que Deus tenha outros meios para trazê-lo de volta.

46
47

─ Outros meios? Ele não aceita um resgate, nunca o vai dar nem vender. “Como
poderia eu fazer um preço para um Talvace?”, diz ele. Phillip contou-nos que disse isto
sorrindo. O meu filho está ficando um homem ─ acrescentou Gilleis chorosa ─ e há dois anos
que não o vejo.
Fazia quase quatro anos que Benedetta não o via, mas não disse isso. De que servia
medir o amor em meses e em dias? Uma hora, uma noite podia conter tanto amor que, mesmo
que o milagre nunca se repetisse até à hora da morte, a vida teria ficado cheia até a borda.
─ Ah, agora me lembro de que Harry não veio visitá-la da última vez ─ desculpou-se
Gilleis, estendendo a mão, cheia de remorsos, para tocar na manga de Benedetta. ─ Era sua
intenção vir, mas resolveu cumprir a sua promessa tão à risca que não se permitiu qualquer
indulgência. Aquele desgraçado orgulhoso! Meu pobre cordeirinho! “Fosse ele outra
pessoa!" disse-me, “mas a esse homem pagarei aquilo que devo até ao último quinhão, até o
último real.”
─ Bem sei ─ disse Benedetta muito calma. ─ O príncipe transmitiu-me o recado. Bem
sei!
─ “Não há preço, seja em dinheiro ou outro, que o príncipe possa pagar”, disse
Isambard a Rhys, quando ele foi levar a última mensagem do príncipe “e que eu esteja
disposto a aceitar em troca de Harry Talvace. Não pedirei nenhum e não terei em conta
nenhuma oferta, sejam terras, falcões ou homens.” E pensar como se diverte brincando com
ele! Ai, Benedetta, quando o Harry me contou da vez que ele foi à sua cela e lhe tirou a
comida, a bebida e a luz, uma por uma, que mandou pô-lo no cavalete...
─ Mas não chegou a usá-lo ─ argumentou subitamente Benedetta com ar estranho,
levantando os olhos cinzentos límpidos para a extremidade da pastagem, onde os falcões
descreviam grandes círculos preguiçosos.
─ ... sempre a tentá-lo e a pô-lo à prova, para conseguir que ele dissesse onde estava
enterrado o pai, até arrumar um artifício para levá-lo a revelar o lugar. E depois arrancou o
meu amor do túmulo... Nem quero pensar que o homem que foi capaz de fazer tal coisa ao pai
tem agora o filho nas mãos e não pode ser obrigado a devolvê-lo.
─ Conte-me o que o Harry disse sobre o seu cativeiro ─ pediu Benedetta de repente,
cruzando as mãos sobre o seu trabalho. ─ Conte-me tudo. O príncipe transmitiu-me fielmente
a mensagem, mas nunca me contou essas coisas. Estou ansiosa por todas as migalhas do
Harry, dê-me de comer.
Gilleis aproximou-se e relatou a estranha e comprida história. O rapaz gravara a sua
acesa desconfiança, o seu ódio arrebatado no espírito da mãe e encontrara aí um terreno fértil.
Esta descreveu todas as provas e tentações a que Harry fora submetido, todas as maldades,
todos os vexames, mesmo aquela surpreendente libertação para lutar ao lado do príncipe
durante a guerra, dois anos antes. Com certeza desejara que Harry faltasse à sua palavra e
nunca mais voltasse, pois seria a melhor forma de humilhar o rapaz, de levar a melhor sobre a
sua família e o seu sangue, de destruir por fim de uma só vez o pai e o filho.
─ Onde acabará isto? ─ lamentou-se Gilleis. ─ Se não consegue levá-lo a desonrar-se,
que outras coisas será capaz de lhe fazer? Se Isambard não houvesse mandado aquela
mensagem por Rhys eu até recearia pela vida de Harry, mas apesar da promessa de não lhe
fazer qualquer mal como posso estar certa de que não o fará? Sei que nunca faltou à sua
palavra, é quase a sua única virtude, mas há uma primeira vez para tudo...
─ Mas é verdade que jurou? Jurou mantê-lo são e salvo?
─ “Venham quando quiserem”, disse ele, “venham buscá-lo se forem capazes. Até lá,
eu o manterei são e salvo.” Mas como podemos ter certeza de que Isambard cumprirá este
juramento?
─ É muito tarde para mudar ─ disse Benedetta voltando a pegar o trabalho.
As suas mãos eram firmes, mas os olhos estavam perdidos no horizonte, fixos numa

47
48

luz que os deslumbrava e cegava.


Os homens regressavam do riacho; John o Frecheiro transportando no ombro os juncos
cortados, Adam trazendo as ferramentas. Todos os anos a modesta cela do Santo Clydog era
arrumada, mas ele não deixava que lhe construíssem um abrigo de pedra. Ele também estava
velho demais para mudanças. Benedetta virou a cabeça e desceu o olhar ao longo da colina até
onde o santo estava sentado acariciando o terço e imerso nos seus pensamentos insondáveis,
parecendo quase um tufo de erva amarelecida sobre o cimo emaranhado de Moei Wnion.
Parecia estar ali desde o início dos tempos e lá continuaria quando ela já não se encontrasse
ali. Não fora o que ele disser, naquela noite em que uma visão irrompera dentro dele e o
forçara a soltar um grito que a fizera correr ao seu encontro?
O mensageiro de Llewelyn estava selando de novo os cavalos lá embaixo, ao pé da
encruzilhada. Adam aproximou-se e deixou-se cair na erva ao lado das duas mulheres,
queimado pelo sol, gentil e corado devido ao esforço.
─ É melhor não demorarmos muito, mulher. O sol está começando a baixar. Já acabou
essa conversa de mulheres?
Adam sabia qual fora o tema da conversa, era o que preocupava a todos. Já estavam
exauridos de tanta preocupação. Adam passou o braço pelos ombros da mulher a puxou-a para
ele; ela encostou-se satisfeita e agradecida, embora ele pudesse sentir a dor que lhe provocava
a falta do rapaz, cujo lugar ele não podia preencher.
─ Então era conversa de mulheres? ─ brincou Benedetta. ─ Estávamos discutindo
assuntos de Estado. Ouvi dizer que o conde marechal se retirou do conselho do rei arrastando
consigo muitos outros nobres igualmente descontentes com o novo regime. É verdade que já
se combate no sul?
─ Ora, depois da queda de De Burgh e do modo como ele caiu, nenhum homem na
Inglaterra acredita que a lei possa protegê-lo de uma sorte igual ─ replicou Adam. ─ Se
aconteceu ao Kent, também pode acontecer ao Pembroke. Não pode se levar a mal ele ter se
colocado fora do alcance do rei. Desde que ele se tornou no arauto dos que não se atrevem a
falar contra os do Poitou, o rei é bem capaz de estar planejando apanhá-lo e cobri-lo de
acusações, tão obstinadamente como fez com o outro. Os acusados poderiam agarrar-se ao
costume e às leis feudais para se protegerem da justiça sumária, mas o costume e as leis estão
sendo afastados dos tribunais. Se os documentos já não significam nada, então um homem
tem de defender os seus direitos o melhor que puder.
─ Mas como é possível essa discórdia ter se transformado em violência? Parece-me
que, como disse a Gilleis, se o rei mandou reunir a tropa em Gloucester, a fase das queixas
está ultrapassada. Caminhamos a passos largos para a guerra. Que pretende fazer o rei com o
seu exército, a partir de Gloucester?
─ Dizem que quer levá-lo para a Irlanda e atacar Marshall através das suas terras de
Leinster. Alguns disseram que o sobrinho do De Burgh que está por lá, também teria
desertado e tomado o partido do tio, mas parece que Marshall e esse não morrem de amores
um pelo outro; é provável que Richard De Burgh se mantenha fiel ao rei. Afinal, talvez
Henrique possa dar o que fazer ao seu exército mais perto de casa. Este incêndio nasceu de
uma pequena fagulha, mas agora está bem aceso. E a questão não é de pouca importância, se
quisermos que reste alguma coisa da lei. Existia um castelo que pertencia a Gilbert Basset, de
Wycombe, e que o rei queria dar a um dos seus servidores; pois o Basset foi desapossado sem
passar por nenhum tribunal. “Por ordem do rei” é lei suficiente nos tempos que correm.
Richard Marshall defendeu o Basset e, num abrir e fechar de olhos, vieram avisá-lo de que
Henrique queria confiscar-lhe os bens e arruiná-lo da próxima vez que ele se apresentasse no
grande conselho. Por isso Richard nunca mais apareceu. Até pode não ser verdade, mas o
exemplo de De Burgh aí está para mostrar como as coisas são feitas e mesmo um conde só
tem uma vida para perder. Assim ele fechou-se em Pembroke e convocou todos os seus

48
49

aliados. Agora o rei está metido em grande preocupação para manter vigias por todo o lado e
pediu reféns aos barões das fronteiras, como fez o pai. E como Basset já foi castelão de
Devizes e conhece bem demais o castelo, corre também o boato de que ele está se preparando
para libertar Hubert De Burgh do cativeiro e levá-lo para junto dos aliados do conde marechal
em Gales. O rei já colocou os seus próprios guardas em Devizes e duvido que o desgraçado
consiga desfrutar de algum repouso, mesmo que não o ponham a ferros. Uns dizem que o
Bispo de Winchester está tentando convencer o rei a pôr Hubert sob sua vigilância; outros
dizem que está insistindo para que seja executado. Duvido que uma solução seja melhor do
que a outra; foram ter com o bispo da primeira vez que a turba começou a perseguir Hubert,
pedindo ajuda, e ele repreendeu-os por terem interrompido as suas orações e fechou-lhes a
porta na cara.
─ Mas o que acontecerá se o rei invadir as terras galesas do conde marechal? O que
fará o príncipe?
Adam abanou a cabeça.
─ Se conseguir, penso que de boa vontade resistirá à tentação. Este governo nunca o
ameaçou e se a paz puder ser duradoura tanto melhor para ele. Mas se o rei quebrá-la e o
príncipe for obrigado a tomar partido, com certeza apoiará o conde marechal.
─ Então a questão do Harry pode ficar resolvida por si mesma ─ comentou Benedetta
─ pois Isambard com certeza estará ao lado do rei. Sempre foi fiel ao rei, mesmo quando o
coração e a razão estavam no campo oposto. João bem se esforçou em decepcioná-lo, mas
Isambard manteve-se fiel até a sua morte e se o filho de João apelar à sua fidelidade, ele irá
com o seu exército. Até já deve estar a caminho de Gloucester.
─ Iria se o rei o tivesse chamado ─ disse Adam em voz lamentosa. ─ Mas da maneira
como as coisas estão, aposto a minha cabeça que a convocação do rei não seria obedecida.
Viu a expressão de surpresa no rosto pálido e ardente e os olhos cinzentos abrirem-se
de espanto.
─ A senhora não sabe que Isambard caiu em desgraça? O rei proibiu-o de se
apresentar na sua presença e ordenou-lhe que se mantivesse em Parfois até ele considerar
conveniente chamá-lo. Já faz um ano. Ninguém nunca se lembrou de dizer-lhe?
Pensando bem, não era de admirar. Só iam visitá-la duas ou três vezes por ano e
existiam muitos outros assuntos para conversar. Isambard já lhes causara desgostos
suficientes no passado; o seu nome nunca voltaria a ser mencionado se o jovem Harry não
tivesse renovado aquela dor antiga, trazendo-o de novo à memória e para o primeiro plano das
suas preocupações.
Benedetta levantou-se organizando os pensamentos como exércitos, por trás do olhar
cinzento e profundo.
─ Como foi que ele chegou a essa situação?
─ Segundo ouvimos foi logo depois da queda de De Burgh, quando o rei Henrique
veio a Shrewsbury. Isambard foi até lá com grande aparato e disse ao rei em audiência
pública, que este fora desonesto e ingrato, que o Conde de Kent era um leal servidor do rei e
não merecia tal tratamento. Disse na cara do rei e não retirou uma palavra do que dissera,
apesar da fúria de Henrique.
─ Isso me parece verdade ─ observou Benedetta, analisando as suas próprias
recordações. ─ Ele seria bem capaz de fazer isso, ainda mais se fosse ameaçado. Então caiu
em desgraça e foi banido da corte?
─ Até o rei decidir chamá-lo de volta. Há quem pense que nunca o fará. Quanto a mim
─ disse Adam, enquanto os três desciam a colina lado a lado, até onde os cavalos os
esperavam ─ estou certo de que dificilmente o rei convocará Isambard para lutar contra o
Conde Richard, se achar que ele está do lado de De Burgh. Por causa da inimizade que ambos
dedicam aos do Poitou, embora Deus saiba que essa é quase a única coisa que os une, os

49
50

partidários de Pembroke e De Burgh são vistos como um todo. Não, Isambard vai continuar a
dormir tranqüilo em Parfois. O rei nem se atreve a intimá-lo a cumprir as suas obrigações,
nem a avançar contra ele.
─ E o Harry vai ficar por lá apodrecendo sob estreita vigilância ─ acrescentou Gilleis
com amargura.
Ouviu Benedetta reter a respiração num assomo de dor e virou-se para abraçá-la, cheia
de remorsos.
─ Ai, é maldade da minha parte estar me queixando quando a senhora ama e sente a
sua falta tanto quanto eu. Os melhores anos da vida dele foram-nos roubados! Quem vai
ajudá-lo a se tornar um homenzinho? Quem ficará feliz com os seus progressos, quem lhe
desculpará os erros, quem recompensará as suas boas ações?
─ Deus ─ replicou Benedetta, olhando fixamente a palidez do céu, se não houver mais
ninguém. E Deus pode mandar-lhe alguém, se quiser.
Benedetta não dormiu a noite toda; o morto veio até o seu leito e deitou-se com ela.
Abraçou-o e ele foi ao mesmo tempo pai e filho, duplamente querido. Acariciou-lhe a cabeça,
cobriu-o com o manto do seu cabelo ruivo agora salpicado de prata pela poeira dos anos e a
tempestade que a agitava batalhou contra a calma que a rodeava durante as longas horas de
escuridão, com palavras que não eram voz, antes silêncio. Meu querido, meu amor, meu
pequenino, meu doce amigo. Será chegada a hora? Afinal o mundo ainda precisará de mim?
Esta criança precisará de mim? Deus precisará de mim? Tenho sido fiel a Ele durante todo o
tempo que estive isolada aqui ou terei faltado à palavra dada? Minha alma, meu amor, que
devo fazer? Já uma vez me ajoelhei diante de Isambard; beijei-lhe os pés, supliquei pela sua
vida e ele recusou. Eu não podia oferecer-lhe nada que valesse a sua vida, só me restava
resgatá-lo à força e assim fiz. E se agora estiver mais rica? Se puder lhe oferecer por esta
criança um resgate que nem mesmo ele possa recusar? Se implorar mais uma vez e for
ouvida? Me dará a sua aprovação ou me voltará as costas? Meu amor, meu querido, sinto-me
perdida. Ilumine-me! Você é a minha única luz.
Apenas uma vez na vida o tivera nos braços como agora, na noite antes dele morrer.
Fora bastante fácil convencer o velho capelão a recordar ao seu senhor que sempre havia sido
hábito conceder aos condenados uma última vontade antes da execução; diante do salão cheio
de gente, Isambard prometera conceder tudo menos a liberdade. Benedetta ainda se lembrava
da máscara aterradora com que Isambard ouvira a resposta trêmula: “Senhor, ele pede... que
Deus lhe perdoe!... ele pede que Madonna Benedetta passe a noite com ele.” Havia
prometido e não podia voltar atrás com a palavra dada. A sorrir... a sorrir!... ela tinha se
afastado dele devagar, tendo o cuidado de deixá-lo perceber que se regozijava com a sua
angústia e a sua impotência. “É pela sua honra. Eu não sou nada, comparada com o valor
sagrado da sua palavra!”
Olhava-o nos olhos agora, por cima do sono do seu amado, mantendo-o à distância
sem sorrir. Alguma vez lhe menti antes desse dia? Disse-lhe desde o princípio, quando me
convidou a acompanhá-lo a Parfois, que dera o meu amor a outro para sempre, ainda que esse
outro não me amasse ou desejasse, nem nunca fosse querer-me. Ainda assim o senhor me
quis, ou aquilo que de mim restava, mesmo nessas condições. Vim consigo e cumpri o nosso
acordo. “Até que ele ou a morte chamem por mim”, disse-lhe eu, “ou o senhor me mande
embora.” Harry e a morte chamaram-me a uma só voz e então o senhor pensou que havia
entendido tudo. Tolo, bastava ter ouvido as primeiras palavras que lhe disse quando ele me
estendeu as mãos: “Ela está em segurança, está bem, manda-lhe todo o seu amor.” Se nos
houvesse visto! Passamos a noite como bons amigos, a única noite em que tive o meu amor
nos braços! Só lhe falei da Gilleis e da criança que iria nascer, prometi-lhe que não seria
torturado, que a sua morte estava nas mãos de Deus e não nas suas.
Então, como agora, Harry dormira enquanto ela contava as horas, amorosa, livre de

50
51

pecado, até de manhã, quando o acordara com um beijo para que se preparasse para morrer.
Que sabia Gilleis, Adam ou qualquer outra pessoa sobre a da terra, daquela inexprimível
ligação? Só Deus sabia dela, só Deus podia afastar o tempo e devolver-lhe aquela hora, para
lhe dar firmeza de ânimo enquanto buscava o seu caminho. Onde estaria agora aquele corpo
ágil e delgado, as mãos intrépidas, o rosto moreno e obstinado? Arrancado do túmulo secreto,
possivelmente atirado ao Severn pela segunda vez para completar a vingança, segundo a
convicção amarga de Adam, mas ainda não perdido; talvez Deus quisesse devolver-lhe esta
ínfima parte dele.
Mal a escuridão começou a diminuir antes da alvorada, Benedetta levantou-se do leito
sem ter dormido e subiu até o alto da colina onde o vento principiava a despertar, onde os
gemidos do mar lhe chegavam aos ouvidos; as ondas da maré-alta pareciam grandes suspiros
provocados por um desgosto antigo que finalmente se houvesse aquietado depois de muito
sofrimento. Soltou os seus longos cabelos e silenciosa, concentrada, excitada, à espera de um
sinal, passou o resto da noite a andar de um lado para o outro, como um cão de caça seguindo
um rasto sobre a erva desbotada. Ao amanhecer desceu da colina aparentando uma calma tão
perfeita como uma escultura acabada de talhar, de uma forma e de um primor impossíveis de
ser alterados, tal a admiração suscitada pela sua absoluta integridade.
John o Frecheiro, forte, curvado e escuro como um carvalho, estava enrolando a manta
que usara para dormir, atravessado na soleira da porta dela. Benedetta passara por cima dele
durante a noite e ele nem se mexera, e por isso estava aborrecido consigo mesmo e com
Benedetta. De que servia um guarda se ela conseguia escapar da sua vigilância com tanta
facilidade?
─ Então já está aí? ─ resmungou, afastando-se da entrada para deixá-la passar. ─ Que
foi que lhe deu para andar por aí de noite? Se precisava alguma coisa bastava pedir-me para
eu lhe levar o recado. Afinal, para que eu sirvo?
─ Para me confortar, me fazer companhia e muito mais do que isso. Precisava de ar e
de sossego, o que poderá existir nesta colina que me faça mal?
─ Ainda por cima não calçou os sapatos para não apanhar frio logo de madrugada ─
disse John zangado.
Foi buscar os sapatos de couro com cadarços e obrigou-a a calçá-los, aquecendo-lhe os
pés com as mãos calejadas antes de lhes ocultar a brancura.
─ Quer ficar doente e ter só a mim por enfermeiro?
─ Podia ser pior, John.
Há muito tempo John cuidara dela com grande ternura e persistência, arrancando-a
quase contra a vontade do umbral da morte. Benedetta lembrava-se das mãos rudes que lhe
seguraram a cabeça e lhe enxugaram as lágrimas provocadas por aquele segundo nascimento.
Também recordava a caneca de leite ainda quente, acabado de ordenhar, e uma camponesa de
cabelo louro escuro e olhos meigos; já morrera, segundo diziam, depois de ter gerado uma
filha que era o seu retrato vivo. Benedetta sentiu aquele tempo passado rodeá-la, como se
fosse um amigo chegado, nunca esquecido. Este novo dia que se abria diante dela reunia todos
os dias da sua vida, tal como acontece no momento da morte, num coração em paz.
─ Mas agora tenho uma missão para ti ─ disse estendendo a mão e acariciando-lhe o
cabelo grisalho e espesso, enquanto ele lhe amarrava os sapatos. ─ Preciso escrever e mandar
uma carta. Depois de comer qualquer coisa, você pode levá-la?
─ Até hoje, não me lembro da senhora ter conseguido dizer tudo o que queria à
senhora Boteler quando ela vem aqui ─ comentou John, tolerante. ─ Imagino que se esqueceu
de pedir aquelas linhas, com tantas outras coisas em que pensar. Eu vou levar a sua carta, vá
escrevê-la.
─ Desta vez não é para a Gilleis, John. A cavalgada que eu peço será mais longa.
Deixe-me escrever primeiro e já conversamos.

51
52

Ele lançou-lhe um olhar demorado e penetrante, mas não fez mais perguntas. Nunca
recusaria fazer nada que ela lhe pedisse, incluindo calar-se e afastar-se, se fosse esse o seu
desejo. Deixou-a só com uma pena acabada de afiar que ele tinha o cuidado de manter em
bom estado e uma folha nova de pergaminho tirada da arca. Ela pôs-se a escrever com
determinação, ponderando as palavras e, quando terminou, depois de selar cuidadosamente o
rolo, ele já estava à espera com leite, pão fresco e mel de urze. Num vale mais baixo, John
tinha três colméias num local resguardado e cuidava amorosamente dos enxames durante o
inverno, para que nunca faltasse mel a Benedetta.
─ Quer que sele já o cavalo? Vejo que já acabou de escrever.
─ Vai precisar levar comida ─ disse ela, abordando o assunto com suavidade ─ e
dinheiro para pagar o pernoite pelo caminho. Já disse que é uma jornada longa.
John se aprumou, assaltado por dúvidas e temores.
─ Onde a senhora quer que eu vá?
─ A Parfois, John, falar com Lorde Isambard.
Estava dito. Benedetta viu as mãos fecharem-se cerradas sobre os flancos e as
recordações antigas brilharem nos olhos inteligentes como labaredas. John não esquecera e
não perdoara coisa alguma. Outros poderiam perdoar, ele nunca. Certa vez a sua vida estivera
ameaçada sem razão e ela salvara-o, mas não era essa cena que John via, viva e nítida depois
de tantos anos, quando o nome de Isambard era mencionado. Via o Severn, a torrente forte e
escura abaixo da Long Mountain e um homem morto atado a uma mulher viva, ambos nus e
arrastados pela corrente em direção a Breidden, enrolados numa cascata de cabelos ruivos.
─ Por acaso não quer mandar-me fazer alguma coisa no inferno? ─ perguntou. ─ Lá
existem companhias melhores.
─ Harry está em Parfois, John ─ disse ela com suavidade. ─ Você irá?
─ Bem me parecia que era isso que a senhora tinha em mente. Sabe bem que irei onde
me mandar, mas a esse lugar não o farei de boa vontade ─ replicou ele sombriamente. ─ Acho
que a senhora não ganhará nada com esse pedido. Espere, deixe que o príncipe vá buscá-lo na
ponta da espada. Prefiro não vê-la rebaixada, suplicando, para ser repelida.
─ E se não for? Como posso recusar-me a tentar, John, se apesar do que você diz
existir uma possibilidade dele me devolver o rapaz?
─ Outros já pediram. Outros já suplicaram, ofereceram resgates e sei lá mais o que, e
em troca só receberam desprezo. Por que tem a senhora de se sujeitar ao mesmo?
─ E por que não irei sujeitar-me ao mesmo? Quem sou eu para me julgar acima dos
outros? Ah, John ─ exclamou Benedetta num grito breve e súbito ─ dê-me o seu apoio, só
estou cumprindo a minha obrigação.
─ Eu vou ─ respondeu ele resignado.
Pelo menos ela não teria de assistir ao triunfo de Ralf Isambard. Se pudesse trazer de
volta só uma recusa, pelo menos pouparia a Benedetta a parte mais cruel.
─ Deus bem sabe que preferia cortar-lhe o pescoço a falar com ele, mas farei o que me
pede. E que Deus lhe poupe ao sofrimento por eu ter cedido. Dê-me essa carta. O que devo
fazer quando chegar a Parfois?
─ Diga aos guardas do posto avançado que deseja ver Lorde Isambard para quem leva
uma mensagem de Benedetta Foscari. E para provar que vai realmente da minha parte, leva-
lhe isto ─ disse ela.
Benedetta tirou um anel do dedo mindinho da mão esquerda. Muitas vezes havia se
perguntado por que conservava aquela opala solitária no seu aro de ouro. Era a única coisa
que ele não lhe tirara quando a despira e mandara lançar ao rio. Uma coisa tão pequena que
nenhum dos dois se lembrara dela, caso contrário Benedetta com certeza o teria atirado aos
pés de Isambard. Este lhe dera aquele anel em Paris antes de atravessarem o mar a caminho de
Parfois, ele com o coração preso a ela, ela com o coração cheio de Harry Talvace.

52
53

─ Isambard reconhecerá esse anel sem sombra de dúvida ─ disse ela.


John recebeu-o na palma da mão morena e calejada e pegou-o cuidadosamente, como
se tivesse medo de se queimar ou de parti-lo ao apertá-lo.
─ E se ele mandar me matar sem esperar nada? ─ perguntou com algum fundamento.
─ Se receber você na qualidade de mensageiro, não lhe fará mal. Para o bem e para o
mal, foi sempre escrupuloso. Se deixá-lo entrar, a sua vida será sagrada. Ele próprio mataria
quem o tocasse ou o ofendesse.
─ E depois de entrar?
─ Dá-lhe a minha carta e traga-me a resposta, por palavras ou por escrito. Deus o
acompanhe, John, e favoreça os meus planos.
─ Amém ─ resmungou John sem muita fé.
Depois que ele preparou tudo, Benedetta seguiu-o e observou-o enquanto amarrava as
sacolas e a capa à sela. Sob o calvário de madeira, o Santo Clydog nunca virou a cabeça idosa,
mas Benedetta sentiu que ele já sabia o que se passava e daria a sua opinião quando julgasse
oportuno.
─ John!... ─ segurou-o pelo arreio do estribo, quando ele ia partir. ─ Está zangado
comigo?
Olhou-a lá de cima; por baixo da barba hirsuta ela viu-lhe o sorriso, trêmulo de
carinho por ela.
─ Não se zangue comigo ─ pediu Benedetta como uma criança. ─ Se não fosse você,
que seria de mim?
─ Deus a ajude! ─ exclamou John emocionado. Afastou-lhe o capuz com uma mão e
acariciou, desajeitado, a cabeleira farta. ─ Minha menina! ─ disse, afastando-se dela, e
metendo as esporas no cavalo lançou-se pela colina abaixo.
Quando o prior de Strata Marcella regressou da Primeira Hora, algum tempo depois
das sete da manhã, encontrou um dos auxiliares do irmão hospedeiro à espera à porta da sua
cela com ar ansioso, para pedir uma audiência da parte de um hóspede importuno.
─ Dormiu aqui esta noite, padre, e não nos pediu nada. Mas esta manhã veio falar
comigo e rogou-me que o senhor o recebesse por causa de um assunto muito sério. Diz que é
um caso de vida ou de morte.
─ Que espécie de homem pareceu-lhe? ─ perguntou o prior franzindo a testa.
─ Um criado, padre, um criado de confiança. Já pernoitou aqui outras vezes. Serve
aquela dama que trouxe o corpo do mestre Talvace para ser enterrado aqui. O chamam de
John o Frecheiro.
─ Diga-lhe que entre ─ disse o prior.
Porque os assuntos da Madonna Benedetta, ainda que ela se esforçasse por se esconder
dos olhos e da memória num refúgio das colinas do norte de Gales, estavam relacionados com
o importante principado de Llewelyn e interligados com o generoso patrocínio que este
concedia à ordem de Cister, nesta margem do Severn. O prior não podia dar-se ao luxo de não
receber um enviado dela.
John o Frecheiro entrou na cela de pedra fria e ajoelhou-se para beijar a mão do
sacerdote. Os dedos finos deram-lhe a bênção.
─ Meu filho, sei que quer pedir-me alguma coisa. Eu o ouvirei.
John levantou-se, reto, forte e moreno como o tronco de uma árvore. Segurava a carta
de Benedetta com as duas mãos, mantendo o rolo de pergaminho bem seguro.
─ Padre, preciso contar-lhe esta história à minha maneira, pois necessito da sua ajuda
e o senhor deve conhecer todos os pormenores. Há três dias a minha ama escreveu esta carta,
deu-me o seu anel como salvo-conduto e pediu-me que a levasse a Ralf Isambard, de Parfois,
a entregasse nas mãos dele e lhe trouxesse a resposta. Como bem sabe, padre, este homem
mantém prisioneiro o jovem Harry Talvace, que é filho adotivo do Príncipe Llewelyn e muito

53
54

querido da minha ama. Foi ela que o levou para fora da Inglaterra, são e salvo, juntamente
com a sua mãe, quando ele era apenas um recém-nascido. Sei disso porque fui eu que a
acompanhei nessa jornada. Sirvo-a desde então e continuarei a servi-la até morrer. Que iria eu
pensar, padre, quando ela me mandou levar uma carta a Isambard?
O prior meditou por momentos na pergunta aparentemente simples, sem perceber a
sombra que obscurecia o rosto gasto pelo tempo que tinha à sua frente.
─ Penso que a Madonna Benedetta quer interceder pela libertação do rapaz, por julgar
ser capaz de comover um coração que, em outros tempos, dava todo o valor aos desejos dela.
Acho que ela pensa poder convencê-lo, apesar de outros que ofereceram resgates terem
falhado.
─ E acha sensata esta esperança, padre?
─ Não parece provável, mas não é insensata. Não há nada a perder em tentar.
─ Então até aqui estou desculpado ─ disse John, sombrio ─ pois pensei assim também.
Por isso peguei a carta e pus-me a caminho sem maus pensamentos, mas sem esperar nada de
bom.
Estava certo de que o pedido seria recusado e de maneira cruel, pois o demônio que
lhe empresta a esperteza, sempre lhe emprestou mais do que a necessária. Mas ainda havia
uma réstia de esperança dele se comover. Durante todos estes anos Isambard não recebeu
notícias dela e duvido que saiba com certeza se ela está viva ou morta. Ter outra vez na sua
mão o anel dela, assim de repente, sem aviso... pensei que até uma pedra iria se comover.
Todavia, padre, precisamos lembrar-nos daquilo que ele fez a Madonna Benedetta. Acha que
lhe daria o que ela quer, depois de tê-la atirado viva ali no Severn, com o mestre Harry nos
braços, para ela apodrecer agarrada a um cadáver insepulto? Nunca! Se ele soubesse de
alguma coisa que ela ainda quisesse, de qualquer coisa que ela estivesse disposta a implorar,
seria uma alegria para ele servir-se dessa coisa para feri-la e humilhá-la. Por que confiei nela?
Por que acreditei? Mas até agora ela nunca me mentiu; leve a carta, disse ela, e traga-me a
resposta. Fui eu que peguei aquele escrito sem lhe perguntar o que dizia.
─ Era seu dever fazê-lo ─ disse o prior severamente. ─ Continua a ser o seu dever.
─ O meu dever como seu criado. Mas também sou um homem; antes do mais, sou um
homem. Cumpro o meu dever para com ela o melhor que posso como seu criado. Mas como
homem, amo-a mais do que a minha vida ou o meu dever. Ela cobriu-me com o seu manto e
salvou-me a vida... a vida do homem, não do criado! Devo deixá-la caminhar para a morte
para ficar livre de culpas?
─ Você leu a carta! ─ exclamou o padre, levantando-se indignado.
─ Padre, se soubesse ler não precisava vir falar com o senhor. Não preciso que me
diga o que devo fazer ─ disse, dando um passo em direção do sacerdote, segurando o
pergaminho à sua frente. ─ Padre, sonhei com a Madonna Benedetta durante a noite. Eu
estava na margem do Severn, que havia subido e corria escuro, forte e rápido, e as pranchas
do ancoradouro rangiam e separavam-se devido à corrente. Já tive este sonho muitas noites,
mas nunca foi tão claro. E, tal como naquele dia, lá vinha ela arrastada pela corrente, pálida e
nua com um homem nos braços e, como naquele dia, entrei na água e puxei-os para a
margem. Só que desta vez o homem levantou-se quando o desatei e afastou-se de nós vivo e
são; vi que era o jovem Talvace, o rapaz que ela quer libertar. Desta vez ela estava nos meus
braços e eu soprei-lhe para dentro da boca, aqueci-a contra o peito, mas ela não se mexeu.
Apertei-a contra o meu coração e estava morta, padre. Quando acordei percebi que Deus me
mandara este sonho e que levava comigo a morte dela, selada com o seu próprio selo.
A voz rouca fora diminuindo cada vez mais até se tornar num murmúrio áspero; as
palavras saíam lentamente, tão carregadas de horror e de fé que não sobrava espaço para a
paixão. Quando acabou, levantou a cabeça descaída e fitou o prior nos olhos, aproximando o
pergaminho que segurava nas mãos como se fosse uma oferenda.

54
55

─ Padre, me leia isto. Preciso saber o que ela quer fazer para poder saber o que irei
fazer.
O padre recuou um passo para evitar o contacto.
─ Não posso quebrar o selo da sua ama, homem. Como pode pedir-me tal coisa?
─ Não há necessidade, já descolei o selo. Posso arrumá-lo outra vez. Só preciso de
uma faca afiada e de uma vela.
─ Abriu a carta? Como foi capaz de trair a sua ama? O que você fez?
O prior sabia que estava falando para o ar, era melhor pedir a uma árvore enraizada
nas montanhas para se sentir culpada por crescer laboriosamente conforme era sua natureza. E
como ele podia pretender, diante de um amor e um pavor tão intenso, orientar este assunto de
acordo com as regras da sociedade? Este homem iletrado possuía, naquele momento, o dom
da eloqüência; talvez fosse ele a ver a verdade com maior clareza.
─ Fiz aquilo que devia. Nunca lhe pediria para fazê-lo. Prestarei contas a Deus pelos
meus atos no dia do juízo final. Se Ele decidir condenar a minha alma, a minha boca não se
abrirá, desde que a alma dela continue no seu corpo até Deus querer vir buscá-la e levá-la para
Si. Achas que eu viria falar com o senhor com alguma coisa de que me envergonhasse, padre?
Que importância tenho eu? Para que me serve a honra? A minha honra é manter a minha
senhora longe de perigos e sofrimentos. Não possuo nem quero outra.
O prior começou a estender o braço para pegar a carta, mas hesitou e voltou a retirá-lo.
─ Padre, leia esta carta. Podia ter pedido a um dos seus noviços para fazê-lo, mas vim
falar com o senhor porque preciso da bênção de Deus para a minha deslealdade, que para mim
é lealdade. Não lhe escondi nada nem quero o seu perdão. Diga-me apenas o que ela escreveu.
─ Em nome de Deus ─ disse o prior segurando o pergaminho com firmeza e
desenrolando-o.
O silêncio tornou-se longo e pesado, carregado pelo fardo insuportável dos olhos
ansiosos, agonizantes, daquele homem. Por aquele silêncio percebeu tudo, exceto as palavras
que Benedetta usara; conhecendo-a como a conhecia até podia adivinhá-las. Entretanto o prior
começou a ler, numa voz baixa e calma:
“Ao mui nobre e poderoso Ralf Isambard, senhor de Mormesnil, Erington, Fleace e
Parfois, digo:
Senhor, tem em seu poder a pessoa de Harry Talvace, filho de Harry Talvace, de
quem certamente se recorda, mais ainda por ter a sua cópia fiel constantemente diante dos
olhos. Eu sou possuidora do corpo e da vida de Benedetta Foscari, que outrora o senhor bem
conheceu. O corpo já não é um bem tão raro que possa se considerar valioso para o senhor.
Quanto à vida, se lhe dá algum valor, como uma vez me deu motivos para crer, está ainda
intacta e posso dispor dela como entender. Se quiser aceitar a troca do seu prisioneiro por
esse corpo, concluirei um trato consigo nestes termos. Não estabeleço condições para a
troca, à exceção desta: qualquer dívida e queixa contra Harry Talvace será considerada
saldada para sempre e ele será libertado, tendo direito a um cavalo, roupa e todos os seus
pertences. Se o senhor aceitar, poderá dispor da minha pessoa e da minha vida como quiser.
Mande-me a sua resposta, sim ou não, e se for sim irei imediatamente para Parfois.
Na esperança e na expectativa de vê-lo em breve cara a cara, poupo-me aos
cumprimentos e acrescento apenas um voto: de que Vossa Senhoria possa viver o tempo
suficiente e com a bondade de espírito suficiente para me abrir de novo as suas portas,
depois de tantos anos.
Entregue em mãos pelo meu querido e fiel John o Frecheiro, neste décimo dia de
agosto de 1233.
Benedetta Foscari”
O tom manteve-se ininterrupto até o fim, embora a voz baixa houvesse vacilado ao
perceber o significado da frase “Quanto à vida...”; quando chegou ao ponto “querido e

55
56

fiel...”, John ergueu as mãos grosseiras, impotente, num gesto despropositado de dor e de
saudade, e mergulhou os dedos na barba. Terminada a leitura fez-se silêncio por alguns
momentos e os ruídos do exterior começaram a ouvir-se debilmente; os cânticos da primeira
missa, os balidos esparsos das ovelhas nas pastagens ao pé do rio, os trinados agudos dos
pássaros.
─ Eu não lhe disse? ─ perguntou John, a custo, através do nó de angústia na garganta.
─ Ela vai dar a sua vida a alguém que a tratou como ele a tratou, vai voltar para ele para ser
despida, humilhada e afogada outra vez, só para libertar o rapaz. Ai, minha ama, acha justo
utilizar-me para isto? Acha justo?
─ Deus irá resolver tudo! ─ observou o prior num murmúrio perturbado, com o
pergaminho a tremer-lhe nas mãos. ─ Você não vai entregar esta carta, não é? Esta troca não
pode acontecer.
─ Deus irá resolver tudo, mas da minha parte farei o que puder.
Estendeu a mão firme como uma rocha agora que já conhecia a pior parte. Por alguns
instantes o seu coração impelira-o a virar o cavalo e voltar para trás, furioso e horrorizado,
para enfrentar Benedetta e censurá-la por tê-lo usado daquela maneira; mas esse impulso
passara. Existiam outras formas de resolver o assunto agora que sabia tudo.
─ Dê-me a carta outra vez, padre. O senhor fez o seu papel e eu agradeço. O resto é
comigo.
─ Mas não vai entregá-la, não é?
O prior observou-o, enquanto John enrolava cuidadosamente o pergaminho,
manuseando com uma delicadeza amarga o selo quebrado que ainda precisava arrumar.
John não lhe deu resposta; limitou-se a esconder a carta no peito, sob o casaco e a
retirar-se com passos suaves em direção à porta. Os seus olhos brilhavam com dureza, muito
além da dor; John já não precisava de ninguém.
─ Reze por nós, padre ─ pediu, já à porta. ─ Reze por nós todos, para conseguirmos
sair ilesos de tudo isto.

56
57

CAPÍTULO QUATRO
Parfois, agosto de 1233

Revigorado pela cavalgada e de bom-humor, Isambard descia do alto de Long


Mountain com os cabelos grisalhos descobertos, ao sol e ao vento, acompanhado por uma
escolta de meia dúzia de jovens gentis-homens que cavalgava alegremente atrás dele. Ao
fundo do carreiro ascendente que ia dar a Parfois, feliz e descontraído, sem pressa de regressar
à cavalariça, o alazão começou a andar a passo e Isambard deixou que as rédeas pendessem
sobre o pescoço do animal para que este avançasse no seu próprio ritmo. Cavalo e cavaleiro
entendiam-se às mil maravilhas. Harry sentia-se, sem dúvida, irritado por ver o seu
Barbarossa trotar tão alegremente transportando o seu inimigo, mas conseguia dominar o
desgosto e, por vezes, agradecer a Isambard pela excelente saúde do animal e pelos cuidados
que este recebia. Desempenhava essa tarefa desagradável sem um sorriso e de cabeça erguida,
mas com lisura e firmeza, como convinha ao homem em que se transformara e fitando o seu
captor nos olhos.
Os cavaleiros chegaram ao local onde o carreiro se tornava mais estreito e o arvoredo
mais cerrado, ocultando o precipício rochoso, do lado esquerdo, e a encosta coberta de erva,
do lado direito.
A primeira torre acabada do posto avançado da guarda surgiu diante deles e também
os materiais de construção empilhados ao lado da rampa, ao longo de umas vinte jardas: pedra
não talhada, tábuas, vigas, armações de andaimes, cordas, tapumes e a brancura estonteante da
cal. A segunda das antigas torres já fora demolida e o entulho ainda estava por ser recolhido.
O espaço para os alicerces da nova torre que iria substituí-la, encontrava-se demarcado com
cordas brancas, do lado oposto da primeira, já construída. Fora preciso escavar até à rocha
para abrir alicerces suficientemente sólidos para suportar todo aquele peso, mesmo junto à
orla da encosta escarpada. Os reflexos da luz do meio da manhã dançavam e refletiam-se
sobre a pedra esbranquiçada.
Isambard recordou-se de um outro espaço desobstruído, preparado para a construção.
Ao lado da grande cicatriz aberta os primeiros carregamentos de pedra da longínqua pedreira
de Bryn, recém-chegados da viagem de barco pelo Severn eram cinzentos, de um cinzento
pálido com reflexos dourados e continham todo aquele esplendor de beleza, todas aquelas
formas de adoração e maravilha seladas e seguras dentro de si. A sua memória não evocava
nunca a pedra talhada, já pronta; o seu pensamento ia sempre para as grandes folhas abertas
da igreja de mestre Harry, reunidas em copas triunfantes e rígidas que sustentavam a abóbada
do céu e todo o mundo para além dele.
─ Senhor! ─ chamou Thomas Blount que se encontrava sempre ao seu lado. ─ A
sentinela fez-lhe sinal. Deve ser algum mensageiro; aquele cavalo não é nenhum dos nossos.

57
58

Parece um cavalo de montanha.


Isambard expulsou da mente as imagens interiores que, desde a chegada de Harry, tão
frequentemente o assaltavam e olhou para a torre onde o guarda segurava as rédeas de um
animal baixo e possante, de abundante pêlo castanho e comprido. O cavaleiro que se
preparava para desmontar era também ele baixo e forte, dotado de uma barba hirsuta que
começava a embranquecer e de fartos cabelos encaracolados que tinham uma certa
semelhança com a pelagem do cavalo. Os olhos, vivos e brilhantes, quase fechados por causa
do sol, espreitavam-no por baixo das sobrancelhas grossas.
Uma imagem fugaz atravessou-lhe o espírito, mas não pelo tempo suficiente para fazê-
lo lembrar-se do que teria aquele camponês robusto a ver consigo; todavia, o coração remetia-
o sem apelo para o passado.
─ Aqui está um homem, senhor ─ anunciou o guarda, aproximando-se
respeitosamente ─ que diz trazer uma carta para Vossa Senhoria, de alguém que o senhor
conheceu bem no passado. Não quer dizer o nome e pretende entregar-lhe a carta
pessoalmente. Afirma trazer consigo uma prova que lhe dará satisfação. Irá falar com ele?
Isambard fez avançar lentamente o alazão e, pensativo, fitou durante algum tempo o
homem que o aguardava, sem falar nem fazer qualquer vênia. Os olhos impenetráveis
sustentaram o seu olhar.
─ Por acaso o conheço?
─ Não cabe a mim dizer se sim ou não, senhor. Mas eu o conheço ─ respondeu John o
Frecheiro.
A voz cumpriu o seu papel. Duas chamas rubras acenderam-se nos olhos de Isambard.
Não era ainda um reconhecimento, mas apenas a sensação de que o tempo voltara para trás e
mandara o passado bater-lhe à porta. Libertou o pé direito do estribo e, num acesso de zelo,
Thomas saltou do cavalo para lhe segurar no outro estribo. Nos últimos tempos mostrava-se
ainda mais devotado nos seus serviços; estava sempre presente, sempre pronto, sempre por
perto, tão por perto que quase não havia palavra que escapasse aos seus ouvidos atentos.
Com um franzir de sobrancelhas e sem desviar os olhos do rosto curtido do
mensageiro, Isambard indicou-lhe que se afastasse.
─ Não foi um dos meus homens, outrora?
─ De corpo e alma, senhor. Pertencia-lhes mais do que o cavalo que o senhor monta.
A resposta fez brotar um sorriso. Isambard acariciou o pescoço reluzente do alazão,
mas os seus olhos continuaram a sondar o rosto carrancudo e o olhar opaco, em busca da
imagem fugidia. Avançara um grande passo; o homem conhecia o cavalo de Harry Talvace e
não receava proclamar esse conhecimento.
─ Disse ter consigo uma prova que eu reconhecerei. Deixe-me vê-la.
John meteu a mão por baixo da roupa e tirou de lá um anel. O pequeno anel de ouro,
tão pequeno que até Benedetta tivera de usá-lo no dedo mindinho, oscilou suavemente na mão
rude e a opala captou a luz e absorveu-a, cintilando com um brilho melancólico, velado de
azul.
Antes de reconhecer o anel Isambard estendera a mão para pegá-lo e o súbito tremor
que lhe percorreu os dedos e os imobilizou no ar provocaram uma reação de espanto e de
receio em todos quantos observavam a cena. Prontos a defenderem-se, os espectadores
desviaram os olhos do anel para o rosto de Isambard em busca de indícios de uma explosão de
cólera. O senhor de Parfois era sempre imprevisível e, neste caso, não sabiam o que pensar. A
sua imobilidade era tal que eles não faziam idéia do que poderia resultar dela. Sustiveram a
respiração, remexendo-se inquietos, na agonia da expectativa, mas Isambard não tinha mais
consciência da presença deles do que da brisa que lhe agitava os cabelos. O seu rosto
apresentava a rigidez da morte, contudo sem a serenidade que esta traz consigo; ainda era
capaz de exprimir dor e raiva, amor e ódio nas suas rugas profundas e só Deus sabia o que se

58
59

ocultava por trás das pálpebras descidas.


─ Reconhece os seus próprios presentes, senhor? ─ perguntou John o Frecheiro.
Sim reconhecia, reconhecia ambos: o anel e o homem. Dezoito anos é muito tempo. O
tempo faz um homem mais baixo, torna-lhe o andar menos seguro, enruga-lhe o rosto,
embranquece-lhe os cabelos, mas não lhe rouba ao olhar o brilho que traduz a plenitude do
seu ódio, nem ao coração a amargura que transpira nas suas palavras.
Isambard mergulhou num poço de recordações. Aquele era o homem que Benedetta
salvara das presas do cão em Paris e tomara ao seu serviço; o mesmo que escapara com ela
para o País de Gales quando tudo acabara, que a ajudara a salvar Gilleis e o bebê e a entregá-
los aos cuidados de Llewelyn. Fora ele ainda quem disparara a flecha que roubara a presa ao
carrasco gascão. Era estranho o modo como as imagens voltavam à memória; as que menos
importavam voltavam mais rapidamente e com maior nitidez, com todos os pormenores e
todas as cores. Lembrava-se perfeitamente do gascão: um homem magro e elegante, que
parecia um prelado bem-nascido e se vangloriava de ser capaz de estripar um condenado e de
deixá-lo com voz suficiente para se lamentar. As imagens dos próprios guardas que tinham
vigiado mestre Harry durante o cativeiro encontravam-se perto da superfície da memória,
prontas para emergir se fossem invocadas. Só a imagem de Benedetta permanecia remota e
vaga. Isambard conhecia de cor todos os seus traços e, no entanto, os olhos do espírito
procuravam e sondavam em vão; ela recusava-se a materializar-se.
A mão, que se imobilizara a meio do gesto, pegou delicadamente no anel.
─ Dou-me por satisfeito ─ disse Isambard em voz baixa e amena.
─ Então, concede-me uma audiência privada, para eu lhe entregar a carta da minha
senhora.
─ Pode seguir-me até à igreja.
Não até um dos pátios. Ainda não. Àquela hora, Harry Talvace podia andar ali fora,
fazendo exercício com os mais novos ou trabalhando ao sol diante da sala de desenho com a
sua pedra e as suas ferramentas. Fosse qual fosse o conteúdo da mensagem trazida por aquele
intruso vindo do passado, seria uma loucura deixar que o rapaz o visse antes de tempo.
─ Deixe-o nos acompanhar ─ ordenou Isambard ao guarda, voltando-se para montar
Barbarossa de novo.
O zeloso Thomas apressou-se a segurar-lhe o estribo, fitando-o com os seus olhos
azuis e límpidos que tão bem sabiam fingir inocência, ainda que um pouco brilhantes demais
naquele momento, devido à curiosidade que a misteriosa dama do anel nele havia despertado.
Mas de nada lhe serviram os olhares atentos, de esguelha, por baixo das pestanas compridas; o
rosto do seu senhor manteve-se calmo e impenetrável. Ao segurar o anel entre o polegar e o
indicador, Isambard quebrara a tensão e afastara de si com autoridade os estilhaços do
incidente. Contudo, Thomas viu-o guardar o anel no interior da roupa e achou interessante a
forma como o fez.
Subiram a rampa a trote moderado e, ao chegarem à esplanada da igreja, Isambard
mandou embora os companheiros.
O sol já ia alto e sob a muralha de Parfois as sombras eram esguias e os telhados, que
pareciam pretos quando havia nuvens, apresentavam agora uma brilhante cor de cobre.
Quando Isambard abriu a portinhola da porta ocidental e entrou, à frente, dentro da igreja, os
raios diretos do sol entravam quase na vertical pela janela e derramavam jóias coloridas nas
paredes; a grande embarcação invertida que era a nave central estava inundada de luz refletida
que iluminava até a mais remota bossagem, ao fundo da viga mestra do telhado. O ar vibrava
sob a luz como o último eco, quase inaudível, de uma nota de música. A luminosidade e o
espaço pareciam elevar os passos dos dois homens acima das lajes do chão, fazendo-os flutuar
em direção à abóbada.
─ Dê-me a carta ─ ordenou Isambard.

59
60

Pegou o pergaminho quebrando o selo sem hesitar e John voltou a respirar: o primeiro
obstáculo fora superado. Observou o rosto grave de Isambard, até que a luz multicor por trás
da cabeça imóvel se alterou sob a intensidade do seu olhar e o perfil anguloso que se recortava
contra ela se tornou negro, por contraste.
Depois de ler algumas linhas, Isambard deu meia-volta e dirigiu-se para o fundo da
nave com o pergaminho na mão. Ali chegado parou, de costas, e leu a mensagem até o fim,
deixando-se depois ficar imóvel e silencioso durante muito tempo. Não se ouvia qualquer
som, apenas o tremor da luz vibrante que parecia entoar um cântico mudo. A certa altura,
John ouviu estalar o pesado fecho de ferro da portinhola, como se esta houvesse sido tocada
por uma mão ou um corpo se encontrasse encostado a ela. O som fora tão fraco que só lhe
chegara aos ouvidos porque na igreja reinava um silêncio absoluto; John não lhe prestou
atenção e esqueceu-o em seguida.
Mesmo que Isambard não conhecesse tão bem aquela caligrafia, larga, ousada e
decidida como a de um homem, as frases contidas na mensagem teriam bastado para despertar
a imagem dela na sua memória. Atrás desta vieram muitas recordações insuportáveis. Nítido e
ardente, o rosto de Benedetta surgiu diante dele: os olhos grandes e afastados, os traços
altivos, a boca apaixonada e audaciosa, o longo manto de cabelo ruivo escuro. Dezoito anos!
Como teria o tempo passado por ela?
Em longas passadas, firmes e tranqüilas, Isambard regressou para junto de John. O seu
rosto não exprimia triunfo, vergonha ou desgosto, nada. Apenas se notava uma ligeira
contração nos lábios e as janelas dos olhos encovados estavam bem fechadas.
─ Diga à sua senhora que a proposta foi aceita. Diga-lhe: sim, venha.
─ É só essa a sua resposta, senhor?
─ Bastará. E em troca da prova que me enviou, entrega-lhe isto.
Era o anel de rubi que usava no dedo, tão raramente retirado que Isambard teve
dificuldade em fazê-lo passar pela articulação. Uma marca branca ficou visível sobre a pele
tisnada.
─ Ela o reconhecerá ─ prosseguiu Isambard, olhando para a mão com um sorriso
sombrio. ─ E não precisará de mais palavras.
─ Já que aceita as suas condições, senhor...
Isambard ergueu a cabeça com brusquidão; os seus olhos voltaram a apresentar um
brilho perigoso.
─ Sabe o que ela escreveu, não é verdade?
─ A minha senhora confia em mim ─ respondeu John, em tom abrupto, revirando a
faca na ferida.
─ É provável. Tanto quanto me lembro, tem boas razões para isso. E então?
─ Visto que o senhor aceita as suas condições, atrevo-me a pedir-lhe um favor que ela
mesma não pediu. Sabe que pode confiar na palavra dela, do mesmo modo que ela confia na
sua. Se pretende entregar-lhe o rapaz, o entregue agora. Deixe-o regressar comigo e dá-lhe a
alegria de vê-lo são e salvo, antes de se colocar em suas mãos, no lugar dele.
─ Não ─ replicou Isambard de imediato. ─ Não posso fazer isso.
─ Sabe bem que ela cumprirá o que prometeu.
─ Bem sei. Mas o rapaz é outra questão. Pensa que iria aceitar esse acordo entre mim e
ela, sem ter uma palavra a dizer? Veria que ele teria muito para dizer, alto e bom som ─ disse
Isambard, secamente. ─ Eu o conheço Bastaria vê-lo aqui e ouvir-me dizer: “Está livre. Parte
com ele.” Pensa que o Harry não iria perceber quem comprara a sua liberdade? E pensa que se
calaria até saber em que condições?
John ficou de boca aberta, sem argumentos. O que Isambard dissera era verdade, ele
próprio devia ter se lembrado disso. Não era possível fazer Harry sair de Parfois daquela
maneira. Se isto falhasse tudo teria falhado e apenas lhe restaria deixar Benedetta entregar-se,

60
61

ou mentir-lhe, abandonando Harry ao seu cativeiro. Se ao menos conseguisse entregar o rapaz


a Llewelyn, poderia contar com o poder do príncipe para impedir Benedetta de cumprir a sua
promessa. Claro que isso acarretaria inúmeras discussões e denúncias de má-fé. Mas que
importava? Seria ele, e só ele, a ser acusado de faltar à palavra dada e de traí-los a todos. O
resto poderia ser resolvido através de um resgate, de uma arbitragem ou da mediação da
comissão da trégua... por qualquer meio que não fosse entregar de novo o filho adotivo. John
previra todas as dificuldades, exceto a mais elementar: a recusa de Harry.
─ É só um rapaz ─ argumentou teimosamente, apesar do que lhe dizia o coração. ─
Não é preciso dizer-lhe a verdade, mesmo que ele faça perguntas.
─ Você é um tolo. Crê que consegue que ele atravesse a ponte, sem lhe dar uma
resposta que o satisfaça? Ou que pode fazê-lo dar um passo que seja depois de lhe responder?
Ele não sairia do mesmo lugar. Não, o Harry fica aqui até a sua senhora vir libertá-lo. Vá e
transmite-lhe a minha resposta.
A audiência terminara; nenhum rei poderia ser mais explícito.
─ Quer entrar em Parfois para se refrescar e à sua montaria antes de voltar a partir? ─
perguntou Isambard. ─ Não podia convidá-lo a entrar antes do Harry se encontrar longe do
nosso caminho, mas agora já deve estar fora da vista.
─ Faz muitos anos que comi a minha última refeição à sua mesa, senhor. Não quero o
seu teto sobre a minha cabeça nem o seu pão na minha boca.
─ Como queira ─ disse Isambard com um suspiro e um encolher de ombros. ─ Nesse
caso, não oferecerei nenhuma recompensa pelo seu trabalho, pois receio que a atire em minha
cara. Quanto aos meus agradecimentos, temo que nada signifiquem para você e não valha a
pena apresentá-los. Ainda assim, agradeço-lhe.
Estava feito. De nada servia continuar ali perdendo tempo. John afastou-se para a
penumbra do pórtico deixando o senhor de Parfois na nave central da sua igreja, alto, imóvel e
sombrio sob a luz cintilante que cantava à sua volta, um carrilhão de cores trementes como as
da água batida pelo sol ou a vibração de asas em pleno vôo. A figura rodeada pela luz mais
parecia uma figura de pedra. Como de pedra era o busto que a representava e que encimava o
umbral da porta por onde saiu para emergir no prado batido pelo sol do meio-dia. Das duas
imagens, aquela que o mestre Harry esculpira era a mais eloqüente. Mesmo depois de dezoito
anos de erosão, não era possível dizer se a dureza da pedra poderia rivalizar com a dureza do
homem de carne e osso.
A cinqüenta jardas de distância, no prado, com um braço sobre a sela do cavalo que
pastava, Thomas Blount seguia os movimentos do animal; o seu rosto infantil estava tão
sereno e inexpressivo como o céu de verão.
Aelis voou ao encontro de John assim que este passou pela pequena porta do cercado.
Estivera a ordenhar a vaca, tinha a saia arregaçada até aos joelhos e os cabelos amarrados
atrás para não a incomodarem.
─ Você o viu? Ele está bem?
A jovem agarrara as rédeas do cavalo e conduzia-o para o estábulo; era mais prudente
não deixá-lo lá fora na clareira, pois alguém poderia o animal e reconhecê-lo. Os viajantes
eram poucos por aqueles caminhos, mas Parfois ficava perto demais e podia ser um perigo.
Carrancudo, John abanou a cabeça.
─ Nem de longe. Deixe-me entrar, menina. Preciso falar com o seu pai. Não, voltei de
mãos vazias. Ele não pode sair dos pátios e não me autorizaram a entrar lá. Pelo menos até o
terem escondido em algum lugar.
─ Mas você falou sobre ele, não falou? ─ insistiu Aelis, segurando-o pelo braço. ─ É
verdade que ele está vivo, não é? Pelo menos isso é certo?
Seria mesmo certo? Alguém podia alguém ter certeza de uma coisa que não vira,
ouvira ou tocara com os seus próprios sentidos? Mas preferiu tranqüilizá-la:

61
62

─ Está vivo. E tanto quanto sei, está bem.


─ Mas não pode libertá-lo ─ disse ela num tom obstinado e um pouco agressivo,
apesar de não ter ficado verdadeiramente desapontada, já que alimentara poucas esperanças.
─ Não, minha filha. Vai ser preciso esperar mais um pouco. ─ Que mais poderia dizer-
lhe? Nem ele mesmo sabia o que faria a seguir. A única certeza que tinha era que não ia voltar
para Aber nem levar o anel e a mensagem a Benedetta, deixando que ela cumprisse o
prometido. Acontecesse o que acontecesse, ela não voltaria a cair nas mãos de Isambard.
Podia regressar e mentir-lhe dizendo que a oferta fora rejeitada, mas isso seria impedir o
resgate de Harry. Além disso, receava confrontá-la com uma mentira. Ela conhecia-o há tanto
tempo que lia nele como num livro aberto; iria ver a falsidade a enrolando-se na sua garganta
como um corpo estranho que o denunciaria mal fosse pronunciada. Ao ver a sua expressão de
cão abandonado podia até mesmo adivinhar que ele a traíra, que violara a sua carta e fizera
tudo para contrariar a sua vontade. Sem a confiança da sua senhora a vida não era vida. Não
podia voltar para junto dela de mãos vazias. Se houvesse outro meio era preciso encontrá-lo.
Se rezasse Deus iria ouvir as preces de um homem caído nas malhas da traição e da
deslealdade? Talvez ouvisse as preces da moça, talvez até falasse pela sua boca. Aelis pelo
menos estava isenta de pecados.
─ Mas o que aconteceu? ─ insistia ela. Os olhos azuis brilhavam no rosto decidido. ─
O que foi que lhe disseram?
─ Vamos falar com o seu pai, menina, e já conto tudo.
Recolheram o cavalo e foram para casa, onde já se encontrava Robert. John contou-
lhes a história toda.
─ Não pode voltar para junto da sua senhora apenas com a palavra dele ─ disse
Robert.
─ Antes morrer. Só nós três sabemos que ela quis comprar a liberdade do rapaz. Eu
teria dado meia-volta e recusado entregar aquela carta, se não houvesse pensado que podia
convencer Isambard a deixar Harry partir, confiando na palavra dela. Quando soubesse disto a
minha senhora iria querer pagar o preço prometido, mas eu contava com Llewelyn para
impedi-la de fazer isso. Fui um grande tolo ao pensar que tudo poderia se resolver assim.
Isambard está certo: o Harry nunca deixaria que nenhum de nós carregasse o seu fardo.
Mesmo que conseguisse enganá-lo e convencê-lo a voltar para Aber comigo, ele regressaria a
Parfois mal soubesse a verdade. E duvido que o príncipe tentasse dissuadi-lo. O mais certo era
beijá-lo e deixá-lo partir com a sua bênção. Portanto, voltamos ao ponto de partida. A única
diferença ─ acrescentou com amargura ─ é que eu faltei ao meu dever para com a minha
senhora. E para nada! Para nada!
─ O que vai fazer? ─ perguntou Robert em voz baixa.
─ Sei lá! Se ao menos Deus me indicasse um caminho! Tem de haver algum. E temos
de encontrá-lo.
Aelis estava acocorada no chão, com o queixo entre as mãos e os olhos fixos no vazio.
Em que pensaria? Talvez tivesse vendido dez vezes Madonna Benedetta para libertar Harry
do cativeiro. Talvez sentisse o desdém da maior parte das mulheres pelos absurdos da honra,
que levavam os homens a dar a vida em nome de escrúpulos e forçavam um rapaz obstinado a
regressar voluntariamente à prisão em vez de gozar a liberdade e aceitar o descrédito por
faltar à palavra dada. Mas ela amava esse rapaz com os seus valores e as suas virtudes, talvez
mesmo com os seus defeitos. Não, nunca seria capaz de culpá-lo. Aceitava o fato de ele ter
cumprido o seu dever. O seu espírito vagueava por outros caminhos.
─ Se o velho lorde morresse acabavam as nossas preocupações ─ disse subitamente.
Aelis não teve consciência do que dissera. Para ela o silêncio, que fazia lembrar a John
o silêncio que se seguia ao trovão, não tinha qualquer significado terrível. Em tom
melancólico, prosseguiu:

62
63

─ Se ele morresse ninguém mais pensaria em manter o Harry cativo. O seu príncipe
podia pagar o resgate sem precisar regatear muito. É o velho quem o prende para atormentá-
lo. Se fosse o filho a decidir iriam ver que o deixava partir sem grandes problemas. O filho
não conheceu o mestre Harry e não sabe nada do Harry. Que significa um Talvace para ele?
Vendia-o de boa vontade, para evitar complicações.
Aelis ergueu a cabeça e fitou John com olhos inocentes de qualquer intenção
malévola, sem ver a distorção do entendimento refletido nos olhos dele.
─ Dizem que o rei não quer mais inimigos, pois já tem suficientes. E os novos
favoritos do rei também não estão interessados em arranjar mais, quando tantos senhores
pegaram em armas contra eles. O filho de Lorde Isambard é um dos homens do rei. E há
muito a perder se os seus inimigos arranjarem aliados em Gales. Ele entregaria Harry ao
Príncipe Llewelyn para lhe dar satisfação e manter a paz na fronteira.
É da boca das donzelas e das crianças que saem as verdades. John virou a cabeça para
o lado ocultando o quase insuportável brilho de esperança que lhe queimava os olhos e
inflamava a mente. Aelis estava certa; apontara o dedo para o único caminho a seguir e até
onde este levava. Agora William Isambard era um oficial do reino, unha com carne com De
Rilvaux e um dos seus conselheiros mais próximos. Se os do Poitou caíssem em desgraça ele
também cairia e tinha muito a perder: favores, poder e posição. Se herdasse Parfois seria do
seu interesse impedir que o Príncipe de Aberffraw se juntasse aos aliados do conde marechal,
reforçando assim as fileiras dos inimigos de De Rilvaux. Bastaria um pedido de Llewelyn e o
seu filho adotivo seria libertado são e salvo. Que importava se em troca de dinheiro ou como
oferenda? William ficaria muito contente ao descobrir que era detentor de um trunfo tão
valioso e, se pedisse um resgate, seria um resgate simbólico. Faria tudo para conquistar a
gratidão de Llewelyn e para impedi-lo de desencadear qualquer ação hostil.
Tanto quanto se sabia, pai e filho também não morriam de amores um pelo outro.
William esperava há muito tempo pela sua herança. Ficaria bastante contente se o velho fosse
afastado deste mundo.
─ Tudo isso está muito certo, mas ninguém morre só por nós querermos ─ observou
Robert. ─ Sem contar com Deus, há muita gente à espera da sua morte. Mas receio que seja
preciso esperar que chegue a hora dele.
Seria preciso? Seria preciso mesmo esperar? Aquelas mãos haviam disparado a flecha
que matara mestre Harry antes que o carrasco pudesse tocar nele. Nas aldeias dizia-se que
fora Deus que o levara e que a flecha partira de bem mais alto do que o cimo da torre da
igreja. Não poderia Deus voltar a servir-se das mesmas mãos e da mesma destreza? Ia precisar
de alguns dias para se preparar, para escolher o local e o momento. Robert e Aelis não podiam
saber de nada. Que necessidade havia de implicá-los naquilo? Se tudo corresse bem o segredo
ficava mais seguro na posse de uma pessoa do que de três; se as coisas corressem mal, era
melhor que fosse apenas um a sofrer as conseqüências.
E pensar que, naquele mesmo dia, estivera sozinho com ele na igreja e não aproveitara
a ocasião que se apresentava; Isambard de costas, os escudeiros dispensados, o caminho livre
para poder fugir! Todavia a adaga que usava à cinta não atraíra a sua mão; esta se mantivera
inerte e John deixara escapar a oportunidade. Nunca mais voltaria a ser tão fácil cumprir a
tarefa e escapar com vida. Mas que importava? Renunciaria à vida de boa vontade se a sua
morte servisse a Benedetta.
─ Eu sei ─ disse Aelis com um suspiro. ─ É um pecado mortal pensar em tais coisas.
Mas de repente dei-me conta de como tudo podia ser simples se ele morresse.
John ficou à espera de algum sinal novo que lhe iluminasse o caminho, mas Deus
deixara de falar pela boca de Aelis. O fardo pesava agora apenas sobre os seus ombros e John
aceitou-o, pois sabia que tinha força suficiente para suportá-lo. Era pecado mortal pensar em
tais coisas, dissera ela; mais ainda pô-las em prática. Já se sentindo livre do peso da própria

63
64

vida, libertou-se igualmente do peso da alma, não por desafio, mas com resignação e
humildade. A paz de espírito de Benedetta valia bem a condenação eterna de um homem.
─ Passa esta noite aqui? ─ perguntou Robert delicadamente ao vê-lo perdido nas suas
reflexões solitárias.
─ Passo sim, Robert, muito obrigado. Mas amanhã tenho de partir.
Não disse para onde, não disse que seria para bem perto e Robert nada perguntou.
Eram ambos da mesma opinião. Era melhor não saber.
Os preparativos de John demoraram três dias. Pediu emprestado um arco na armaria de
Castell Coch usando o nome de Owen ap Ivor para obtê-lo, embora o criado da mulher santa
de Aber gozasse de crédito suficiente em todo o território sob o domínio do príncipe. Também
se serviu dos alvos que havia ali, para desenferrujar os músculos dos braços envelhecidos e
exercitar os olhos, pois pouco praticara nos últimos anos. Para justificar o empréstimo e o
empenho posto nos treinos contou uma história de uma disputa e de uma aposta com um
inglês fanfarrão de Shrewsbury, o que bastou para lhe darem tudo quanto pediu e ainda
muitos e variados conselhos para ajudá-lo a ganhar do inglês. John vivia a tanto tempo
daquele lado da fronteira que todos haviam esquecido onde ele nascera; o próprio John quase
o esquecera também.
A destreza das mãos e a força dos ombros voltaram com facilidade. Os olhos nunca
haviam perdido a acuidade nem a capacidade de calcular distâncias. Quando se sentiu
satisfeito com a sua arma, voltou a atravessar o Severn pelo vau de Pool, escondeu o arco e as
flechas num maciço de arbustos junto à escarpa da rampa de Parfois e pôs a montaria a pastar
presa por uma corda numa clareira perto do rio. Manteve-se afastado dos carreiros por onde
Robert passava habitualmente e evitou os locais onde ele costumava montar as armadilhas.
Uma vez ou duas, durante aqueles dois dias, avistou Robert esgueirando-se furtivamente entre
as árvores e, em outra vez, viu Aelis de madrugada retirando as linhas de pesca do rio.
Naquele momento já não sentia a falta deles; a sensação de solidão estava tão profundamente
enraizada em si que o isolamento lhe parecia ser a sua condição natural e eterna; era como se
não desejasse que o silêncio voltasse a ser quebrado. Também não voltou a treinar em Castell
Coch e o terreno desbravado acima do moinho não o atraía. Tudo deixara de existir a não ser
o ato que pretendia praticar. Se sobrevivesse seria o mesmo que regressar como estrangeiro a
uma terra estranha onde teria de reaprender tudo, incluindo falar.
Na primeira noite passada no bosque do sopé da montanha, dormiu por baixo dos
arbustos, enrolado na capa. Depois disso não voltou a dormir. Passou os dias observando os
arredores de Parfois e em busca do local com melhor visibilidade de onde pudesse cobrir o
posto avançado da guarda. Só escalando poderia subir até um ponto mais alto, mas não
possuía a agilidade dos nativos do País de Gales nem cabeça para as alturas. Além disso,
queria manter-se num lugar que lhe desse pelo menos uma possibilidade razoável de bater
rapidamente em retirada depois da tarefa estar cumprida. Não sentia o menor desejo de perder
a vida; se fosse necessário oferecê-la ao menos que fosse como uma coisa valiosa e apreciada
como tal. Deus não poderia queixar-se de que a Sua criatura desperdiçara a dádiva que lhe
fizera.
Isambard montava a cavalo duas vezes por dia, pelo menos enquanto o clima de verão
convidasse a fazê-lo. Umas vezes cavalgava com escolta, rodeado pelas cores vivas dos seus
gentis-homens e dos seus falcoeiros e caçava na charneca junto à antiga fortaleza de terra
batida. Outras vezes montava quase sozinho, com Langholme atrás, a alguma distância;
ocasionalmente vinham também dois jovens favoritos autorizados a acompanhá-lo para fazer
exercício, desde que não perturbassem a sua disposição solitária. Uma das vezes em que
Isambard saiu assim, ereto, soturno e sozinho, John encontrava-se em boa posição, mas
retraiu-se porque a distância era muita para permitir um tiro certeiro. No terceiro dia estaria
no local escolhido e poderia disparar sem pressa, sem receio de falhar ou de provocar apenas

64
65

um ferimento ligeiro.
O arvoredo era denso, na beirada da rampa abaixo do posto avançado da guarda, do
lado do vale onde os alicerces da nova torre haviam sido profundamente escavados através da
turfa e da terra até à rocha. As pilhas de pedra para a construção e o entulho que continuava à
espera de ser levado dali formavam uma muralha irregular entre o caminho e a encosta. Nesse
local um homem podia saltar de uma das árvores e, correndo e saltando de arbusto em
arbusto, descer a encosta íngreme até o rio, enquanto os seus perseguidores precisariam
escalar a barreira de pedra para irem atrás dele e abrir caminho entre cordas, tábuas e
tapumes.

A árvore mais alta proporcionava uma visibilidade plena do espaço delimitado pelas
duas torres e do caminho além delas, pelo qual os cavaleiros de Parfois eram forçados a
passar. Estava-se no auge do verão e a proteção da folhagem era suficiente para ocultar um
exército. John escolheu um olmeiro que estendia os ramos sobre o caminho e sobre as pilhas
de pedra cinzento-pálido. A forquilha do tronco oferecia espaço bastante para passar a noite
ali com algum conforto e aos primeiros raios da alvorada passou para um dos ramos e postou-
se numa posição firme voltado para a rampa descendente.
O fim da tarde teria lhe dado melhores perspectivas de despistar os perseguidores nos
bosques e junto ao rio; mas a cavalgada da manhã garantia-lhe a melhor luz para a sua tarefa.
Na véspera a comitiva havia parado durante algum tempo observando os pedreiros, enquanto
Isambard conferenciava com o mestre-de-obras. Poderia ter sido então, se John estivesse bem
posicionado, mas nessa hora encontrava-se no chão, no meio de arbustos que obstruíam a
visibilidade e cujo barulho o teria denunciado, antes de poder disparar. Desta vez um
momento como aquele não seria desperdiçado. Assim, se Deus o oferecesse, John estava
pronto para aceitá-lo.
A luz aumentava e refulgia. Primeiro chegaram os aprendizes, depois os pedreiros;
bocejando ao sol a sentinela ficou a vê-los preparar e medir as pedras. Sentados na beira do
caminho, dois ou três operários jovens talhavam pedra, salpicando as pálidas ervas de agosto
de lascas brilhantes de granito, finas como geada. Uma carroça subiu a encosta rangendo, para
descarregar uma carrada de pedras de cal viva, que formaram um monte branco acinzentado
ao lado do caminho. Mestre Edmund saiu do castelo com o seu escrevente quando o Sol já ia
alto e parou para assistir à colocação das primeiras pedras sobre a rocha desnuda. A atividade
diária de Parfois desenrolava-se em bom ritmo e o homem escondido no olmeiro aguardava
sem impaciência. Com um dia tão bonito, Isambard não deixaria de sair a cavalo.
Passava das oito horas quando apareceu, uma hora tardia para ele, mas por fim a
cavalgada matinal começou a descer o caminho da plataforma da igreja e as cores vivas
espalharam-se por entre as árvores, parecendo suspensas dos ramos como se fossem flores. O
martelar suave das ferraduras fazia tremer o solo. Naquele dia Isambard vinha muito bem
escoltado por meia dúzia de cavaleiros, além dos escudeiros, pajens e homens de armas,
segundos filhos de famílias de cavaleiros, jovens e ambiciosos, que treinavam para uma vida
dura, na qual apenas sobreviveriam os melhor preparados, pois os fracos seriam empurrados
para o lado e desprezados. Encaravam a dura aprendizagem com bastante despreocupação e
alegria, aperfeiçoavam os seus talentos de cortesãos e a sua destreza com as armas, esperando
que lhes fosse atribuído um pequeno feudo em troca dos seus serviços.
Segundo parecia ainda não haviam começado a abandonar o seu senhor. A posição
deste era considerada inatacável e os problemas atuais do rei haviam levado os indecisos a
agir com moderação e a considerar a possibilidade de Isambard recuperar a sua influência. Se
De Burgh podia cair em desgraça de forma tão rápida e estrondosa, o mesmo podia acontecer
a Winchester quando o vento mudasse. Não havia maneira de prever como terminaria o
presente confronto. Amanhã Isambard podia estar de novo no topo; os do Poitou podiam levar

65
66

a melhor e Winchester seria final e definitivamente empurrado para o lado dos vencidos.
Contudo, no momento os oportunistas ávidos de cargos e de terras refreavam-se. Se Isambard
caísse sem remissão, os sinais surgiriam algum tempo antes. Os cavaleiros sem terras seriam
os primeiros a partir, seguidos dos segundos filhos que queriam fazer carreira. Langholme
podia muito bem ser o último. Por que iria um homem ser leal para com outro, insensível à
amizade?
O homem escondido no olmeiro firmou cautelosamente o joelho contra o ramo no qual
estava apoiado e passou a mão por cima do ombro para pegar uma flecha, sem desviar os
olhos da cabeça altiva que passeava com uma arrogância natural, sobre os ombros retos,
vestidos de negro, do senhor de Parfois. A luz do sol envolvia-o, tingindo de bronze e ouro as
arestas salientes do seu rosto. Não parecia ter mais de cinqüenta anos. O alazão que montava
era o Barbarossa de Harry Talvace. Pela última vez, pensou John, movendo-se com cautela
para não agitar a folhagem da árvore.
Suavemente ajustou a flecha à corda do arco e, suavemente, esticou um pouco a corda
e ficou à espera. A ponta da flecha penetrou docemente entre as folhas, avidamente apontada
para o peito de Isambard, no lugar onde o casaco preto, aberto, deixava ver a camisa branca
sobre o coração.
Não havia pressa. A cavalgada descia a passo dançante. Ainda dispunha de tempo para
contar as cabeças dos acompanhantes mais jovens e ágeis, com quem seria preciso contar
durante a fuga e para dar graças a Deus por terem saído sem os cães. Com um movimento
circular certificou-se de que havia espaço suficiente para os movimentos do seu braço de tiro.
Aproximavam-se. Langholme vinha logo atrás do seu senhor, os jovens espalhados à
esquerda e à direita, mas nenhum deles cavalgava ao seu lado. Isambard ia sempre sozinho, à
frente das comitivas. As vozes alegres e as cores vivas das vestes dos membros da sua corte
seguiram-no até à torre avançada da guarda. Ali chegados, Isambard parou para falar com
mestre Edmund e depois percorreu a passo as novas fundações. Então desmontou e entregou
as rédeas de Barbarossa a Langholme. Ainda bem. Assim seria um alvo mais fácil, desde que
os pedreiros não se aproximassem demais. Mas o medo que Isambard inspirava erguia à sua
volta uma espécie de parede invisível, que os deixava para trás. Portanto, à exceção de mestre
Edmund, Isambard estava sozinho.
Habituados às suas paradas e desconhecendo quanto tempo iria durar aquela, alguns
dos cavaleiros da comitiva haviam desmontado também. Isso iria dificultar os movimentos
daqueles que ainda se encontravam a cavalo, pelo menos por alguns instantes. No entanto o
grupo tinha alguns arqueiros. Era preciso agir depressa, enquanto as fileiras se aproximavam
tranquilamente, antes de se reagruparem junto à torre. O alcance do tiro era curto e seguro, a
luz perfeita. Se ao menos o velho mestre-de-obras se afastasse!
Naquele momento exato, ardendo de impaciência e orgulho, mestre Edmund afastou-
se do seu senhor, a fim de medir a passos a base da futura muralha exterior e de mostrar a
espessura desta com uma pegada sua. Isambard ficou sozinho, de cabeça virada para
acompanhar os movimentos do velhote, o peito descoberto voltado para o caminho, exposto à
flecha que procurava a sua carne como se tivesse vida própria.
─ Cristo me ajude! ─ murmurou John, por entre os lábios secos.
E com toda a sua força, com toda a sua paixão e toda a sua destreza, disparou.
Foi a força do ódio que o traiu. No último instante, sob a pressão extrema do seu
joelho, o ramo estalou e cedeu; fendendo o ar com um gemido, a flecha seguiu uma trajetória
descendente e malograda. Lá em baixo os homens ouviram a vibração, a sentiram na carne e
olharam para cima espantados, antes mesmo da flecha se cravar, zunindo e tremendo, na terra
aos pés de Isambard. A menos de seis polegadas dos sapatos bicudos, a flecha oscilava e
palpitava com um silvo furioso. Por uma vez incapaz de reagir prontamente ao perigo,
Isambard voltara-se e olhava à sua volta. O seu espírito devia andar bem longe daquele local e

66
67

dos assuntos do dia-a-dia para se deixar ficar ali, petrificado, exposto, vulnerável a um
segundo assalto.
A voz aguda de um adolescente gritou:
─ Lá! No olmeiro!
Langholme saltara para puxar o seu senhor pelo braço e pô-lo a salvo. Por um
momento ficaram os dois indissoluvelmente unidos e, numa agonia, John manteve o arco
retesado, à espera que se separassem. Os seus dedos apertavam a flecha em busca da posição
mais firme, tinha os pés bem assentados e os joelhos esticados quando, lá de baixo, os
arqueiros apontaram e dispararam. Os disparos foram quase simultâneos, mas John disparou
um segundo tarde demais. Poderia haver trespassado os dois, enquanto estavam enlaçados e
inseparáveis, mas Langholme nunca lhe fizera qualquer mal ou aos seus.
Uma das flechas atingiu-o no peito, numa explosão de fogo, choque e dor, que o atirou
para trás, fazendo estalar as folhas da árvore. O ar fustigou-lhe o rosto, impedindo-o de
respirar e, depois de um instante que lhe pareceu durar um ano, um acesso de dor, de terror e
escuridão envolveu-lhe o corpo e o espírito, como um jato de chamas.
Os outros o viram cair e soltaram um grito, chocados pelo ruído atroz dos ossos que se
esmagavam contra as pedras empilhadas. Dando uma volta sobre si durante a queda, John
bateu contra a barreira de granito com um baque medonho e foi atirado como um boneco
desarticulado para o monte de cal.
Isambard continuava imóvel e silencioso, de olhos muito abertos e sem expressão,
olhando sem compreender. Contudo, rugindo como uma matilha, os homens que o rodeavam
correram para o local onde o intruso caíra. Antes de Isambard ter conseguido arrancar-se ao
torpor que o atingira, haviam caído sobre a sua vítima com pedras, paus, espadas, tudo quanto
servisse para bater, mutilar, matar.
Isambard ouviu o grito horrível, inarticulado e, com um empurrão, libertou-se de
Langholme. No seu olhar aturdido reacendeu-se uma chama. Gritando bem alto, enraivecido,
chicoteando com o pequeno chicote de montar aqueles que se lhe atravessavam no caminho,
correu para o ferido.
─ Deixem-no! Para trás! Deixem-no em paz!
Aqueles a quem a fúria assassina não impedia de ouvir e compreender se afastaram
confusos, largaram as armas e se colocaram fora do seu alcance. Servindo-se do chicote,
Isambard meteu-se no meio deles, furioso, mandando-os se afastar como se fossem cães, até
eles se desviarem e fugirem, acovardados, deixando-o aproximar-se do pobre ser alquebrado
que se agitava e gemia sobre a cal fumegante.
Em torno do ferido o sangue fervilhava e o calor bateu no rosto de Isambard quando
este se inclinou para ver. Por um momento a máscara de bronze não se mexeu e os olhos
mantiveram-se fixos e velados. A seus pés o destroço humano quase despedaçado, gemia
lamentosamente e agitava-se em contorções espasmódicas. Intactos no rosto esfacelado, os
dois olhos azuis-claros brilhavam de loucura e fitavam Isambard com um olhar insuportável;
reconheceram-no e foram reconhecidos.
Os artífices da morte lenta não poderiam ter concebido coisa pior e, no entanto, os
olhos viviam, animados por uma consciência tenaz e ardente que o deixaria acorrentado
àquele pesadelo de dor durante horas intermináveis.
Isambard deitou a mão à adaga que trazia à cinta e lançou-se como um falcão sobre a
garganta exposta e palpitante.
Um derradeiro espasmo de ódio agitou o moribundo, um derradeiro sobressalto de
desafio o fez erguer-se um pouco. Escavando com as unhas ao lado do corpo mutilado,
encheu as duas mãos de cal e atirou-a ao rosto que avançava para ele. Isambard ergueu o
braço, mas era tarde demais. A cal acertou-lhe em cheio no rosto, entrando-lhe nos olhos, nas
narinas e na boca. Às cegas, arfando, caiu e rolou sobre o corpo em convulsões de John o

67
68

Frecheiro. Ouviu passos aproximarem-se correndo, sentiu mãos agarrarem-no, mas apesar da
situação extrema em que se encontrava, a cuspir espuma fervilhante e devorado pela dor,
Isambard gritou:
─ Para trás! Deixem-nos sozinhos!
Aparentemente a sua voz não perdera a autoridade. Cego, com a boca a arder, os olhos
abrasados, Isambard arfava sobre o corpo do inimigo, sacudindo a cabeça para afastar a dor
que o dilacerava. Apesar disso obedeceram-lhe. Apavorados, os homens formaram um círculo
à sua volta, mantendo uma certa distância, receosos de desrespeitar a sua proibição.
Próximo dos seus ouvidos, uma respiração árdua e rouca e um som animal,
desesperado, horrível, o fez estremecer de terror, por pensar que poderia estar saindo da sua
boca. Cerrou os dentes sobre o braseiro interior que o torturava e o som pungente continuou a
fazer-se ouvir. Com a mão esquerda, tateou na direção do som e encontrou tecido, subiu ao
longo de um ombro até o peito dilacerado e encontrou sangue quente. Os músculos da
garganta estavam tensos, a cabeça mutilada atirada para trás. Isambard pousou os dedos sobre
a carne trêmula e passou a lâmina da adaga entre eles, rápida e eficaz.
Um jato de sangue molhou-lhe as mãos. O lamento terrível foi interrompido por um
gorgolejo, seguido por um suspiro e depois pelo silêncio. O corpo mutilado parou de se agitar,
estremeceu debilmente durante um minuto interminável para logo relaxar e, por fim, ficar
inerte.
Isambard soltou a adaga e rolou para longe da sua presa, cobrindo o rosto com as
mãos. Pôs-se de joelhos, mas à sua volta o silêncio e a imobilidade se mantiveram. Tinham
medo de se aproximar antes dele ter dado ordem e Isambard não podia descerrar os dentes,
com medo de gritar de dor. Não via nada além da cortina de lágrimas ardentes que lhe
queimava os olhos e escorria fervente, através das pálpebras cerradas, pelas cavidades da
máscara dourada. Afastou uma das mãos dos olhos e, através da abertura da camisa, enterrou
as unhas na carne rija do peito, a fim de provocar uma dor mais suportável e, por entre os
dentes, articulou:
─ Os meus olhos... água... Os meus olhos ardem...
Então eles reagiram e ouviu-se um murmúrio horrorizado que mais parecia o zunido
de um enxame de abelhas. Alguns correram, outros gritaram aos que se encontravam mais
perto do castelo que corressem a chamar mestre Hilliard, o médico. Entre aquela confusão de
sons, Isambard não ouviu nenhum que lhe desse conforto e a sua mão cansada tateou em
volta, erguendo para a luz o rosto contorcido, os olhos fechados e molhados, os lábios
inchados.
─ Walter...!
─ Estou aqui, senhor!
Langholme ajoelhara-se junto dele e amparava-o com os dois braços.
─ Ajude-me a levantar, Walter. Leve-me para casa... para longe do olhar desta gente.
Os lábios queimados murmuravam desajeitadamente, mas as palavras eram claras.
Agarrado ao braço sólido do seu escudeiro, apoiou um pé no chão e conseguiu erguer-se.
─ Descanse aqui, senhor... deite-se à sombra e espere até o mestre Hilliard chegar.
Não pode andar. Vamos trazer uma liteira.
Langholme estava tão emocionado e perturbado que os seus dentes batiam.
─ Não, leve-me para o castelo. Não estou doente. Posso montar. Leve-me até ao
Barbarossa e ajude-me a subir para a sela. Não quero ficar aqui, à vista de todos...
Tremendo de aflição Langholme conduziu-o pelo braço as poucas jardas que os
separavam do local onde o cavalo pastava tranquilamente, já calmo após a breve agitação.
Isambard caminhava como se estivesse embriagado, agitando a cabeça em busca de um alívio
impossível, do frescor da brisa que, afinal, transformava em fogo tudo o que tocava. Os dedos
ossudos cravavam-se cada vez com mais força no braço de Langholme até que este acabou

68
69

por deixar escapar um queixume; os dedos abrandaram a pressão de imediato, apoiando-se na


manga com leveza, mas a sua rigidez, que fazia lembrar a rigidez dos dedos de um morto, era
visível.
─ Magoei-o, Walter. Perdoe-me.
─ Não, não! ─ protestou Langholme, quase desejando voltar a sentir a pressão. ─ Aqui
estão as rédeas, senhor.
Tateando a mão de Isambard encontrou as rédeas, agarrou-as com firmeza e esboçou
uma carícia brusca no pescoço brilhante do animal.
─ E aqui está o estribo. O seu pé... assim.
Isambard içou-se para a sela, cerrou os joelhos e, pela primeira vez desde o acidente,
respirou fundo.
─ Dê-me um lenço, Walter. E fique perto de mim.
De cabeça baixa levou o lenço aos olhos como uma mulher enlutada e subiu a passo
até o meio da rampa. Ao seu lado, ansioso e atento, Langholme viu que os dentes do seu
senhor mordiam com força o lenço dobrado e que o maxilar se destacava pálido e rígido sob a
pele tisnada.
Chocados e mudos, os jovens da comitiva afastaram-se do caminho para deixá-los
passar e colocaram-se atrás deles com moderação e disciplina, falando apenas em sussurros.
Falcoeiros, pajens, cavaleiros e palafreneiros seguiram-nos em filas ordeiras, atravessando a
plataforma da igreja e a ponte levadiça de Parfois. Escoltaram-no pelos pátios até os seus
aposentos, na Torre da Rainha. O médico corria à frente da procissão, De Guichet acorreu
apressado e solícito, amparando o seu senhor, levando-o quase nos braços para ajudá-lo a
subir a escadaria de pedra.
A porta fechou-se, isolando-o da multidão. Agora, podiam murmurar, manifestar
espanto ou gritar, conforme lhes agradasse, podiam mesmo exultar, se quisessem: estava fora
do alcance deles. Podia finalmente descobrir o rosto dilacerado e relaxar a pressão férrea que
era obrigado a exercer sobre qualquer coisa ou qualquer pessoa, para se manter em silêncio.
Podia gemer, praguejar e fazer o que lhe apetecesse; tudo menos chorar. Se chorasse, as
lágrimas salgadas lhe fariam o rosto arder, como alcatrão fervendo.
Deixou que o deitassem na cama, que lavassem o sangue e a poeira com água e a cal
com leite. Não conseguia comer, mas foi obrigado a engolir ovos crus para aliviar o ardor da
boca e da garganta. Fecharam as janelas para protegê-lo da luz. Recostado em almofadas
entregou-se aos cuidados deles, aceitando docilmente as mãos do médico e obedecendo a
todas as ordens. Todas as suas energias estavam concentradas em conter e habituar-se à dor,
pois sabia que ia ter de viver com ela durante muito tempo. A não ser isso, apenas uma coisa
requeria a sua atenção, mas podia esperar pelo menos uma hora até acabarem o que tinham a
fazer e o deixarem em paz.
O velho médico e De Guichet até falaram dele à sua cabeceira como se Isambard
estivesse dormindo ou morto, como se fosse uma criança ou um animal doente. Diante aquilo
os lábios inchados sorriram, mas apenas ligeiramente para não aumentar a dor.
─ Está gravemente queimado, mestre Hilliard? Vai ficar com marcas?
Que importância tinha? Aquela velha máscara tivera os seus dias e podia muito bem
viver os últimos sem beleza.
─ Serão poucas, penso eu, muito poucas. Ele é forte e não tem febre. Se seguir os
meus conselhos e ficar em repouso. Claro que os olhos...
Justiça lhe fosse feita, o médico hesitou e baixou um pouco a voz, antes de prosseguir:
─ Os olhos são um problema mais sério. Ainda não se pode dizer nada. Resta-nos ter
esperança.
Os olhos são um problema mais sério! Para um homem que usa o olhar como uma
arma para impor a sua autoridade, os olhos são um problema muito mais sério. Sob o tecido

69
70

molhado que lhe cobria a boca, Isambard disse:


─ Agora, retirem-se. Quero descansar um pouco. Deixem apenas o Walter.
─ O Walter vai ficar, senhor. Alguém tem de ficar para manter esses panos
umedecidos com leite. Banhe os olhos de Lorde Isambard, mestre Langholme, e cuide para
que os panos estejam sempre úmidos. Mande chamar-me se houver algum sinal de febre.
Saíram todos exceto Langhome, que se manteve imóvel e silencioso ao lado da cama.
A calma e a dor envolveram-no e Isambard deixou que se apoderassem de si, sem se queixar.
O que estava feito, feito estava e nada poderia fazê-lo regressar às primeiras horas daquele dia
e viver tudo de novo. Era necessário aproveitar o melhor possível o que restara.
─ Walter!
─ Estou aqui, senhor.
─ Walter, quero confiar-lhe uma tarefa mais importante do que umedecer com leite os
panos nos meus olhos. O pobre diabo que está lá embaixo... que eu matei... trouxe-me uma
carta faz alguns dias e dei-lhe a resposta que deveria levar. Mas parece que quis conquistar
um troféu mais aceitável do que aquele que lhe entreguei. O meu anel, o meu anel de rubi,
está na posse dele. Irá entregá-lo em seu lugar?
─ Tudo o que me pedir, senhor ─ respondeu Langholme com fervor.
─ A uma dama de quem deve se lembrar. Madonna Benedetta Foscari. Matei-a, mas
ela recusou-se a morrer, Walter. Tornou-se galesa e penso que se encontra escondida, em
algum lugar não muito longe do castelo de Llewelyn, em Aber. Infelizmente, não perguntei ao
pobre infeliz onde ela vivia nem o que fazia, mas creio que você a encontrará se perguntar por
ela nos arredores de Aber.
─ Que deverei dizer-lhe, senhor, quando lhe entregar o anel?
─ Diga-lhe que eu disse: “Sim, venha, a sua oferta foi aceita.”
Aquelas palavras deram-lhe algum conforto. Chegara o momento de acabar com
aquilo; não podia conservar indefinidamente aquela alegria emprestada.
─ Apenas isso. Ela entenderá. E conta-lhe o que aconteceu com o seu servo. Diga-lhe
a verdade; Madonna Benedetta compreenderá. Conhecia-o melhor do que eu, e eu o conhecia
muito bem. Que repouse em paz!
─ Ele tentou matá-lo ─ argumentou Langholme em tom sombrio.
─ E eu a ele, por duas vezes. Quem sabe se o mal que me infligiu não será uma parte
do pagamento pelas minhas dívidas? Conte tudo a Madonna Benedetta.
Langholme hesitou relutante em abandonar a cabeceira do seu senhor.
─ Devo partir já?
─ Agora, Walter. Agradeço que me mande um dos pajens, mas que fique do lado de
fora da porta. Chamarei se precisar dele.
Ouviu os passos hesitantes dirigirem-se para a porta e então o chamou:
─ Walter... depois de recuperar o meu anel... cuide para que se ocupem do corpo. Diga
a De Guichet que quero que ele tenha um funeral decente.
Harry, que acabava de regressar da cavalariça, trouxera a sua obra para o exterior da
sala de desenho para trabalhar ao sol, quando ouviu a cavalgada; um grupo tão grande só
podia ser o que saíra para caçar. Ergueu a cabeça para vê-los passar, espantando por estarem
de volta tão cedo. Apesar de todos os seus defeitos, Isambard não era caprichoso. Harry só
chegara a tempo de ver alguns dos jovens que cavalgavam em boa ordem e inusitadamente
quietos, sem que nada na sua atitude indicasse ter acontecido um acidente. Voltou ao trabalho,
mas o pensamento de que Barbarossa fora privado do seu passeio impedia-o de se concentrar.
Por isso, tristonho mas resignado, pousou o cinzel e dirigiu-se mais uma vez à cavalariça, a
fim de pelo menos escová-lo e fazer-lhe festas ou, se possível, arranjar-lhe outro cavaleiro.
Era verdade que Barbarossa se entendia bem com Isambard e galopava alegremente com ele,
mas qualquer outro podia passeá-lo. Durante o dia devia ter muitas coisas serem feitas fora de

70
71

Parfois e Walter daria ouvidos ao seu pedido.


Os estábulos estavam cheios de cavaleiros recém regressados; uns mostravam-se
pálidos e silenciosos, outros tagarelavam febrilmente, mas nenhum deles se encontrava no seu
estado normal. Harry olhava de um grupo para outro, sem entender nada.
─ O que foi? Que aconteceu?
Três ou quatro jovens voltaram-se e começaram a falar ao mesmo tempo, dando
versões tão diversas que Harry ficou muito abalado, mas não esclarecido.
─ Como? Dispararam uma flecha contra Lorde Isambard? De uma árvore? E ele está
ferido?
Era a única explicação para o seu regresso; Isambard nunca voltaria para trás apenas
por causa de uma flecha perdida. Ansioso Harry olhou em torno em busca de Barbarossa.
─ E o cavalo dele? O meu cavalo!
Barbarossa encontrava-se ali, batendo no solo diante da baia, as rédeas seguras por um
palafreneiro. Harry abraçou a cabeça brilhante e soltou um suspiro de alívio; nem um
arranhão, nem uma mancha de suor. Fez um ar de surpresa.
─ Ninguém ficou ferido? Lorde Isambard não foi atingido?
─ Pela flecha, não. O homem que disparou contra ele foi abatido e ele acabou com o
que restava do homem com as suas próprias mãos. Mas foi surpreendido com um arremesso
de cal nos olhos. Quando o trouxemos para o castelo, chorava como uma viúva num enterro.
Depois, fecharam as janelas do quarto e chamaram o médico.
─ Está muito mal? ─ perguntou Harry, inseguro.
─ Ainda não se sabe. Pelo menos, está mal o suficiente para se manter quieto durante
algum tempo.
─ E o homem que disparou contra ele está morto? Quem era?
Nenhum deles sabia. Na região da fronteira havia muitos homens desesperados que
tinham razões de queixa suficientes para matar Isambard. Quem poderia dizer qual deles
arriscara a vida de um modo tão insensato?
─ Mas morto... morto é uma maneira de dizer! Se você o tivesse visto! Alguns
arqueiros lançaram-se sobre o homem até que ele os afastou e cortou o pescoço do pobre
diabo. Não queria que tocassem na sua presa!
─ E foi levado para o leito?
Aquilo era uma coisa tão inconcebível que Harry se sentiu abalado. Isambard alguma
vez se poupara ou fora descansar com o pretexto de estar doente ou fraco? Sem deixar de
pensar naquele mistério Harry escovou o cavalo e, com um estranho aperto no coração, foi
ouvindo a confusão de sussurros, rumores e comentários que zuniam à sua volta.
Nessa noite Isambard não apareceu no salão para o jantar e nem De Guichet ou
Langholme. Harry foi em busca de alguém que pudesse saber a verdade e estivesse disposto a
contá-la. Walter ainda se encontrava no quarto de Isambard. Harry sentou-se ao fundo das
escadas e ficou à espera. Viu De Guichet e o médico descerem do quarto do doente e
afastarem-se, atravessando o pátio interior. Falavam em voz baixa e os seus rostos ostentavam
expressões sombrias. Não lhes perguntou nada; não eram amigos seus. Pouco depois ouviu
passos nas escadas, olhou para cima e viu Langholme que se aproximava. Levantou-se de um
salto e interpelou-o:
─ Walter! Como está ele? Ouvi contar o que aconteceu. Está muito mal?
─ Bastante mal ─ respondeu Walter sem rodeios. ─ Queimado e cheio de dores. Mas
apesar disso continua senhor de si e continua, também, a ser o nosso senhor. Aliás, incumbiu-
me de uma missão. Por isso não me retenha.
Langholme começou a afastar-se, mas Harry correu atrás dele e colocou-se ao seu
lado, continuando a fazer perguntas.
─ O homem que disparou contra ele... quem era, Walter? O Roger disse que, pelo arco

71
72

e pelas roupas, devia ser galês. Era mesmo galês?


Ao ver a ansiedade nos olhos azuis-esverdeados de Harry, Langholme parou
abruptamente. O jovem sentia e pensava que aquela morte tinha alguma coisa a ver com ele.
─ Pode muito bem ser galês, mas em minha opinião não tem nada a ver com você. Era
portador de uma mensagem de uma dama para Lorde Isambard e deveria levar-lhe a resposta.
Porém, por qualquer razão que só ele conhecia, decidiu ficar e atentar contra a vida do meu
senhor. Havia rancores antigos. Nada a ver com você ─ acrescentou, numa voz mais amena.
─ Vá talhar as suas pedras, filho, e deixa correr. Ele está vivo e irá sobreviver, ainda que, por
enquanto, isso lhe seja penoso.
Harry insistiu, segurando o braço que, sem brutalidade, tentava afastá-lo. Os ecos que
lhe agitavam o coração eram demasiados: um galês, uma dama, velhos rancores.
─ Que dama? ─ perguntou. ─ O senhor sabe, Walter, tem que me dizer.
─ Uma dama que você deve conhecer muito bem, mas garanto que isto nada tem a ver
consigo. É uma história antiga, de antes de você ter nascido.
─ Que dama, Walter? Preciso saber o nome dela.
─ Madonna Benedetta, já que tanto quer saber.
A cor fugiu do rosto de Harry, que ficou tão branco como a cal da parede. Soltou a
mão do braço de Langholme para apalpar o seu próprio rosto e olhou-o fixamente, os olhos
verdes muito abertos, sem expressão.
─ Madonna Benedetta ─ repetiu num murmúrio. ─ John o Frecheiro! Oh, meu Deus!
John! E ele matou-o... cortou-lhe o pescoço.
Langholme virou-se e agarrou-o pelos braços com firmeza, obrigando-o a encará-lo.
Não podia deixá-lo naquele estado. Se ficasse sabendo tudo o que se passara poderia avaliar
melhor a situação e cair em si.
─ É verdade que Lorde Isambard o matou. Mas, por Deus, ouve o que digo. Eu vi
tudo. Lorde Isambard estava cego e queimado, com os olhos e a boca cheios de cal, mas
tateou em busca da garganta do homem e matou-o. Não lhe contaram? O homem havia caído
de uma árvore em cima das pilhas de pedras... seria de espantar que tivesse algum osso
inteiro... e, além disso, os homens de armas haviam-se lançado sobre ele com pedras, paus e
tudo o que puderam pegar. Se quiser saber, penso que Lorde Isambard os afastou à chicotada
para tentar salvar o homem, mas quando conseguiu chegar junto dele era tarde demais. Então
o matou. Vi tudo e sou eu que lhe digo: foi mais um ato de compaixão para com um animal
agonizante, que ele apreciava, do que a execução de um inimigo. Sabe a última coisa de que
me encarregou? De ordenar a De Guichet que o mande enterrar dignamente. E é isso que vou
fazer.
Langholme soltou os braços de Harry e foi executar as suas tarefas. Tremendo de
espanto, Harry refugiou-se no seu canto, na sala de desenho deserta e ninguém mais o viu
nessa tarde. Quando saiu de lá, foi direito à Torre da Rainha e, com humildade e um certo
constrangimento, perguntou se Lorde Isambard poderia fazer o favor de recebê-lo.
Harry nunca vira o quarto de dormir de Isambard. Era uma divisão ampla e luxuosa,
com as paredes cobertas de tapeçarias e enfeitadas com ramos de plantas que davam à
atmosfera um bom odor de floresta, doce e quente. Pairava também no ar um leve cheiro de
doença, acre e atemorizante e, sob o lençol de linho, o homem deitado na cama estava tão
imóvel que dava a impressão de ter sido preparado para o sono derradeiro. A cabeça
magnífica fixava o teto com uns olhos de linho, redondos e brancos, dos quais escapava um
ligeiro vapor. O pano que lhe cobria a boca fora retirado e os lábios deformados, inchados e
vermelhos, estavam hermeticamente fechados. Harry olhou para o peito, grande e ossudo, que
subia e descia, reparando na respiração irregular cujo ritmo era quebrado pela dor.
Harry não sabia por que viera. Não tinha nada para dizer, o importante era estar ali,
mas agora lhe parecia que só uma loucura incompreensível poderia tê-lo levado a pensar que

72
73

vir até ali falaria por si. Fechou a porta atrás de si com suavidade, apesar do homem deitado
não estar dormindo e, lentamente, arrastando os pés, aproximou-se do leito.
─ É mesmo você, Harry? ─ perguntou Isambard, soçobrando por entre os lábios
rígidos. ─ É uma honra que eu não esperava.
─ Não foi ver-me nem me mandou chamar, senhor ─ respondeu Harry na defensiva,
desempenhando o seu papel de prisioneiro. ─ Por isso, vim vê-lo.
─ Ah, pensou que eu queria o meu relatório diário sobre o que você fez?
Mesmo distorcida, a voz do senhor de Parfois conservava aquela doçura de mel,
acariciante e insidiosa, que ele tão bem sabia usar; até os lábios inchados continuavam a ser
capazes de esboçar o habitual sorriso.
─ Que tal correu o seu dia sem mim, Harry?
─ O seu, senhor, parece não ter sido muito bom ─ replicou Harry ousadamente.
Não fora sua intenção manter aquele tom. Mas o hábito estava de tal modo enraizado
que era difícil abandoná-lo e as palavras amargas brotavam-lhe dos lábios, mesmo contra a
sua vontade. Contudo não tentou adoçá-las. Ficou vendo adensarem-se as sombras nas faces
cavadas e o leve esgar da boca, que indicava um sorriso.
─ Mais uma razão para o dia correr bem ao meu melhor inimigo. ─ Então Isambard
lembrou-se de que Harry conhecia o homem de Benedetta desde que nascera e
suficientemente de perto para lhe dedicar afeição.
─ Mas correu ainda pior para outra pessoa ─ acrescentou com uma ponta de remorso.
─ Para um amigo seu. Alguém contou a você?
Da escuridão que o rodeava, a voz baixa e amarga respondeu:
─ Sim.
Com os olhos da mente Isambard via claramente o rosto preocupado e grave, um
pouco obstinado até, os olhos solenes pousados na cabeça do seu inimigo prostrado. Não
havia alegria naquele olhar, antes um ligeiro desconcerto por não sentir alegria. Harry era
ainda suficientemente criança para isso, apesar da criança já estar cedendo lugar ao homem.
─ Disseram quem era? Bem, talvez não, porque nenhum deles sabia quem era ele. Era
o homem da Benedetta, o arqueiro que lhe ofereci para servi-la. Esqueci o nome dele...
─ John o Frecheiro ─ esclareceu Harry em voz muito baixa.
─ Ah, sim. John.
Inspirou penosamente e ergueu-se um pouco sobre as almofadas.
─ Vejo que você está sabendo... ─ Como não obtivesse resposta, Isambard prosseguiu:
─ Também contaram que eu o matei?
A voz prudente, as palavras laboriosamente articuladas atingiram-no no coração. Era
como se, até então, a morte e a perda se encontrassem alojadas em algum lugar na fronteira da
consciência de Harry, conhecidas, mas ainda não completamente assimiladas, e Isambard
houvesse de repente atingido o mais profundo do seu ser, para depositar ali essa afirmação.
Harry abriu a boca para responder, mas não foi capaz. Tinha os olhos cheios de lágrimas e
fazia um enorme esforço para contê-las.
─ Por minha fé, filho, lamento ─ disse Isambard.
─ Eu também, senhor.
Harry tinha dificuldade para respirar e mais ainda para fala, mas o pior era o receio de
que o homem deitado no leito pudesse detectar as vibrações da luta que se travava dentro de
si. O rosto de Isambard estava ligeiramente voltado sobre a almofada, os seus olhos tapados
erguidos para o visitante, como que apelando a um outro tipo de visão. Apesar de privado de
um dos sentidos, Isambard continuava a ler demasiado bem na alma dos outros para estes se
sentirem tranqüilos. Mesmo sem olhos, continuava a ver.
─ Lamenta que ele não tenha atingido o alvo?
A pergunta não obteve resposta. Os cantos da boca do jovem deviam estar um pouco

73
74

descaídos, a sua expressão devia ser obstinada e carrancuda, os olhos deviam estar fixos em
alguma coisa inofensiva e inanimada que não pudesse devolver-lhe o olhar; os tapetes de pele,
a cadeira dourada, os antepassados normandos representados na tapeçaria com os seus elmos
cônicos e as suas cotas de malha compridas. Isambard sentia que o olhar verde o abandonara,
mas não se afastara muito. Já começava a aprender como orientar-se pelos ligeiros
movimentos de quem estava por perto; até o ligeiro roçar de uma manga possuía significado.
─ Tenho sede, Harry. Há um cântaro em cima da arca. Dê-me de beber.
Harry assim fez. Calma e eficientemente como um pajem bem treinado colocou leite
numa taça, aproximou-se e soergueu Isambard com um dos braços, enquanto a outra mão lhe
levava a taça à boca. Por um momento, o senhor de Parfois ficou apoiado no ombro do seu
inimigo e sentiu contra a face as batidas impetuosas do coração do jovem, que o odiava com
franqueza e coragem, mas que honrava fielmente as suas obrigações.
─ Obrigado, Harry, você foi muito cuidadoso.
O braço que o soerguia voltou a colocá-lo cautelosamente sobre a almofada assim que
Isambard deu sinal de ter acabado e afastou-se, sem manifestar qualquer sinal de alívio ou
aversão. Os olhos, os olhos cujos tons marinhos inconstantes eram contrariados pela fixidez
agressiva, haviam voltado a fitá-lo. Isambard sentiu-os avaliar, com temor e espanto, os
pormenores da sua mutilação e os panos de linho que lhe cobriam os olhos, como as moedas
que se põem nos olhos dos mortos.
─ É verdade ─ disse pensativo. ─ Eu deveria ter morrido se cada um de nós recebesse
aquilo que merece. A sorte dos maus é que, neste mundo, isso raramente acontece. Mas
lamento que você tenha perdido um amigo. Eu o teria poupado de boa vontade, se pudesse.
Iria o jovem debruçar-se sobre ele e perguntar aquilo que ansiava saber? Harry
percorrera um longo caminho desde o primeiro interrogatório numa das masmorras sob a
Torre da Guarda, durante o qual o jovem mantivera fechada a boca assustada e obstinada,
resguardando-se atrás de uma muralha de silêncio. Mas não perdera a obstinação nem mudara
muito. Afinal, o crescimento é mais uma questão de maturação do que de mudança e o que
mais se altera é o grau de clareza com que vemos os outros. Foi preciso ter perdido os olhos
para conseguir vê-lo como tanta clareza? pensou Isambard. Não, ele não vai perguntar.
E Harry não perguntou. John o Frecheiro fora portador de uma mensagem de
Benedetta e o senhor de Parfois dera-lhe uma resposta para ele transmitir. Mas John não a
transmitira e agora estava morto. Era tudo quanto sabia. Não tinha como saber se a mensagem
tinha ou não algo a ver consigo, nem o que iria acontecer agora. Nesse momento o assunto
fora posto de lado. Viera até ali com outra intenção. O problema era que, apesar de todos os
seus esforços, não sabia dizer com exatidão qual era essa intenção, nem como levá-la avante.
Sabia somente que o obrigara a ir até ali quase contra a sua vontade e que não poderia aplicar
as suas energias a mais nada, até ter satisfeito o que lhe era exigido.
─ Lamento o seu infortúnio, senhor ─ acabou por dizer em voz baixa, tenaz e brusca.
─ Lamento muito o seu sofrimento.
Dizer aquilo representou um enorme esforço, mas conseguiu dizê-lo. O grande suspiro
que soltou representava bem a medida do alívio que o seu coração experimentava, por ter
finalmente sido libertado do seu fardo.
Imóvel, Isambard esboçou um sorriso deformado na direção das tábuas do teto, onde a
obscuridade começava a adensar-se. A sua mão magra e comprida, estendida sobre o lençol
ao lado do corpo, acolheu com muita cautela aquela dádiva inesperada, como se esta fosse um
pássaro que tivesse ido ao seu encontro por vontade própria e que a honra proibia de prender
numa gaiola, ou de reter por mais tempo do que aquele que ele decidisse permanecer na palma
da sua mão. Mas também era preciso não se mover ou falar cedo demais para não espantá-lo.
Isambard ficou imóvel por tanto tempo que o jovem começou a sentir-se inquieto e
aproximou-se para ver se ele adormecera.

74
75

─ Harry! ─ chamou por fim, baixinho, a voz vinda da cama.


─ Senhor?
─ Lave os meus olhos antes de ir embora.
Harry foi buscar a pequena tigela de leite e infusão de ervas que se encontrava em
cima da arca e, com gestos receosos, suspendendo a respiração, retirou os panos dos olhos de
Isambard. A visão das pálpebras inchadas, vermelhas e em carne viva deixou-o sem
respiração, acabrunhado pela destruição de algo onde indiscutivelmente houvera beleza. E
isso Isambard compreendeu também.
─ Ah, isto vai curar-se ─ disse, submetendo-se aos cuidados atentos do jovem.
Os dedos de Harry eram leves e tímidos e a sua respiração regular e contida aflorou a
face de Isambard, quando se aproximou. No fim do tratamento Isambard abriu os olhos pela
primeira vez e olhou para o rosto de Harry.
Uma forma esbatida e pálida, com traços vagamente visíveis e o brilho indefinido de
uns olhos grandes. Nada mais que isso. Então, como uma advertência, a luz feriu-o e ele
voltou a recostar-se e a fechar as pálpebras sobre a imagem fugaz do seu pássaro
domesticado. Não havia dúvida de que não era uma pomba, era antes um jovem falcão, aliás
bastante selvagem. Não era de esperar que viesse ao seu encontro muitas vezes, nem que
ficasse muito tempo junto de si. Mas se não cedesse à tentação de fechar a mão, talvez antes
de levantar vôo ele lhe deixasse duas ou três penas da sua plumagem jovem.

75
76

CAPÍTULO CINCO
Parfois, setembro de 1233

A febre abandonou-o na quarta noite e os seus sentidos despertaram claros e frios, a


mente como uma espada nova, mas o corpo tão fraco que, quando tentou erguer a mão, esta
não lhe obedeceu. A luz de uma vela iluminava o quarto. Para Isambard essa luz era apenas
uma auréola pálida e difusa à volta de um ponto branco, separando a escuridão da claridade;
mas a via. Algumas formas vagas, tão vagas como nuvens, permitiam-lhe identificar os cantos
do quarto. Alguém dormia e ressonava numa cadeira de madeira junto à cama. Segundo
parecia a morte ainda não queria nada com ele. Regressava ao mundo sem lamentos, mas
também sem ilusões. Dali em diante este mundo não seria fácil para ele.
Os seres humanos eram sombras que se moviam, os objetos eram sombras fixas. E
algumas vezes, umas e outras se confundiam; também se dava conta de que algumas sombras
imóveis que se interpunham entre ele e a luz se moviam e se dispersavam mal demostrava ter
consciência delas. Então, compreendeu que era do seu interesse conservar e privilegiar os
sentidos que lhe restavam, pois ia precisar muito deles; com a satisfação de um jogador, deu
graças a Deus por ser o seu ouvido naturalmente tão apurado como o de um gato selvagem e
poder ainda ser melhorado até chegar ao nível da excelência agora que tinha necessidade dele.
As tendências manifestadas pelas sombras móveis constituíam avisos bem claros; hesitações
em obedecer a uma ordem, o silêncio que se adensava na sua presença, aquela atenção
palpável e implacável de que sentia ser objeto. O mais ínfimo pormenor adquirira um
significado profundo, todos os aspectos do comportamento humano podiam ser
esclarecedores, se aproveitassem as oportunidades que se lhe deparavam.
Claro que as vozes continuavam a ser ponderadas, inquietas, alerta, obsequiosas;
sabiam bem que não perdera a audição. Mas no segundo dia depois de ter saído do delírio
começou a reparar que o pajem encarregado de servi-lo não era muito rápido em obedecer às
suas ordens. Quando lhe pedia água, pois continuava a ter uma sede insaciável, o rapaz,
seguro de que ele não lhe perguntaria o nome e de que o seu rosto não passava de uma sombra
que podia pertencer a qualquer outro jovem da casa, demorava um tempo e servia-o com
indiferença e desatenção. Consciente de que mal conseguia erguer uma mão e muito menos
castigar o rapaz como ele merecia, Isambard ia deixando passar. Mas gravou na memória a
voz aguda, sabendo que seria capaz de distingui-la entre dezenas de outras que, até então, não
lhe pareciam muito diferentes. Mais seis ou sete dias de convalescença, um pouco de
paciência para esperar o momento certo e a dívida seria paga como exemplo para todos os que
pudessem ser tentados a cometer o mesmo erro.
Nessa tarde deixaram Harry entrar. A cabeça que repousava na almofada soergueu-se
ao som dos seus passos, o rosto voltou-se para o jovem, alerta como um cão de caça.

76
77

─ Harry! ─ exclamou Isambard com satisfação.


Não estava se interrogando, mas afirmando a sua intuição. Depois de ficarem sozinhos
e da porta ter ser fechado, acrescentou:
─ Ainda bem que você veio. Chegue aqui e me deixe apoiar no seu braço para sair
desta cama. Já estou mais do que farto dela.
─ Pode matar-se, senhor ─ respondeu Harry espantado, estendendo o braço mais para
retê-lo na cama do que para ajudá-lo a sair dela. ─ Há apenas dois dias que deixou de ter
febre.
─ Ah! Então você perguntou por mim enquanto estive inconsciente?
Harry pedira todos os dias para ser admitido no quarto do doente e, em todas às vezes,
o seu pedido fora rejeitado; só naquele dia, depois de Isambard ter recuperado as faculdades e
afirmado a sua vontade, parecera ser melhor política não dar a idéia de que estavam a
submetê-lo a uma vigilância rigorosa demais. Se ele queria ver o rapaz, deixariam.
─ O senhor não pode ficar de pé ─ disse Harry com firmeza, evitando responder à
pergunta. ─ Deve ficar deitado uma semana ou mais, antes de voltar a pôr os pés no chão.
─ Não posso permitir-me esperar uma semana, Harry. Daqui a uma semana, vão dar-
me autorização para me levantar e andar, com a bênção de mestre Hilliard, e haverá uns cem
pares de olhos à espreita, para me verem fazer uma triste figura. Quero dar-lhes boas razões
para pensarem duas vezes. É capaz de guardar um segredo?
O silêncio obstinado que lhe respondeu fez Isambard soltar uma gargalhada.
─ Sendo assim, quem melhor para servir os meus propósitos? ─ prosseguiu. ─
Dispensa-me um pouco da sua paciência e da sua teimosia... sei que você dispõe de mais do
que a necessária... e serei capaz de correr, antes deles perceberem de que consigo andar.
Apoiando uma das mãos no colchão e a outra no braço de Harry, girou as pernas para
fora da cama. Harry sempre conhecera Isambard como um homem de corpo seco e músculos
rijos sobre uma ossatura magnífica; a febre consumira metade desses músculos e deixara-lhe
cavidades azuladas no pescoço, nos ombros e no tronco. Mas o senhor de Parfois levara uma
vida rigorosa, de atleta, e a estrutura da sua força, agilidade e graça não desaparecera; estava
preparada e desejosa de ser posta à prova.
─ Sempre fui senhor do meu corpo ─ declarou Isambard, vestindo o roupão, sentado
na beira da cama. ─ Vamos ver se ainda sou capaz de fazê-lo cumprir as minhas ordens, antes
de fazê-las cumprir aos corpos dos outros.
O jovem recuou indeciso, observando-o. Agora que o fogo nos seus olhos arrefecera e
que as queimaduras à volta dos lábios haviam desinchado e secado em cicatrizes escuras e
lisas, Isambard não parecia muito mudado. Havia marcas idênticas na testa e nas faces, mas
sobre o tom de bronze da sua pele não eram chocantes. O seu antigo esplendor era apenas
tornado um pouco feio pelos olhos, ainda inflamados, vermelhos por fora e escuros por dentro
e pelas pálpebras inchadas e deformadas. O sorriso dissimulado aflorava hesitante à boca
ligeiramente desfigurada. As mãos que tateavam as roupas eram garras de falcão sem
destreza, porque Isambard ainda estava muito fraco e movia-se com a deliberação calculada
de quem conhece as suas próprias fragilidades.
Isambard percebera o motivo do silêncio persistente de Harry. Ergueu vivamente a
cabeça numa atitude de desafio.
─ Está com piedade de mim? ─ perguntou numa voz em que transparecia a dureza do
aço.
─ Não, senhor. Conhece alguma razão para que eu tenha piedade do senhor?
─ Conheço todas as razões pelas quais não deveria ─ respondeu Isambard, taciturno.
─ Se eu vislumbrar uma luzinha que seja de piedade nos seus olhos, juro por Deus que o
chicoteio, sem querer saber se já é um homem ou não.
─ Quando puder erguer um chicote ─ replicou Harry, num tom amargo, para expulsar

77
78

para longe de ambos a palavra “piedade”. ─ Neste momento, seria difícil empunhar um. Quer
ou não o meu apoio?
Harry colocou o ombro e o braço à disposição de Isambard, mas recusou-os sem
hesitar quando entendeu que o corpo debilitado estava à beira da exaustão. No primeiro dia,
ele fez apenas uma tentativa de se manter de pé e dar alguns passos hesitantes em torno do
leito. Mas, dia após dia, Isambard sujeitou o seu corpo conformado a esforços cada vez mais
intensos, até conseguir andar de um lado para o outro no quarto como um tigre enjaulado.
Quando mestre Hilliard o autorizou cerimoniosamente a levantar-se da cama, estava
preparado para intimidar a todos com o seu vigor.
Esperavam um inválido titubeante, que se deixaria conduzir, transportar para o sol e
permitiria que o sentassem numa cadeira almofadada onde ficaria tão prisioneiro como na
cama onde ardera em febre, sob as ordens das mãos que dele cuidavam. Isambard vestiu-se
com esmero e elegância e saiu dos aposentos no seu antigo esplendor, pisando confiantemente
o chão irregular de madeira e descendo as escadas sem se apoiar nem vacilar. Quando mestre
Hilliard protestou que era uma loucura aventurar-se tão longe, Isambard riu na cara dele.
Quem seria capaz de adivinhar que ele só via uma massa difusa e sombria, recortada contra
um halo de luz? Pelo aspecto dos seus olhos era impossível saber se via ou não; os seus
movimentos levavam a pensar que sim. O jovem escudeiro que avançou para lhe oferecer o
apoio do seu ombro parecia servir mais como decoração do que como amparo.
Para acompanhá-lo às cavalariças e ao canil escolheu com todo o vagar o pajem
indolente, designando-o com um sinal imperioso do indicador, entre uma dúzia dos seus
companheiros. Quem poderia saber que o escolhera apenas pela voz, localizando uma sombra
entre outras sombras, graças a um ouvido apurado? O rapaz ficou um pouco espantado e, em
parte por bravata e em parte devido à certeza de que não poderia ser detectado, quando se
dirigiam para o canil colocou-se um passo atrás de Isambard e divertiu os companheiros com
uma breve imitação do porte altaneiro e arrogante do seu senhor. Isambard ouviu o tremor
infinitamente pequeno de risos contidos atrás de si e, com satisfação, determinou a sua
origem. Virou-se com a vivacidade de um galgo e, por pura sorte, agarrou o rapaz pelo braço,
que este erguera para proteger a cabeça, embora o cabelo também tivesse servido. Atirou-o de
joelhos com um empurrão, já a balir como um cordeiro assustado.
─ Você está cheio de vontade de nos divertir, meu amigo ─ observou Isambard com
um sorriso melancólico. ─ Pois bem, terá a oportunidade de fazê-lo. Vamos ver se também
sabe cantar.
Ordenou que o pajem fosse chicoteado ali mesmo e deixou-se ficar, a fim de se
certificar de que a ordem era cumprida.
Dali em diante todos os pajens se mostraram consideravelmente mais diligentes e
respeitosos. Foi necessária apenas mais uma demonstração para restabelecer a qualidade do
silêncio que sempre o acompanhara nas suas deslocações pelos terreiros do castelo. Quando
um dos mestres dos canis maltratou uma cadela de caça e se mostrou hesitante em justificar os
seus atos, Isambard aproveitou a ocasião para derrubá-lo com um murro que abriu a face do
homem. Desferiu o golpe enquanto o homem titubeava, guiando-se pela voz para lhe atingir o
rosto que quase não conseguia discernir e o esforço que empenhou no golpe quase o fez cair
por cima da sua vítima. Conseguiu, no entanto, guardar para si o segredo do estratagema e só
quando regressou sem contratempos aos seus aposentos e fechou a porta, reconheceu
finalmente a dimensão da sua insuficiência. Estendeu-se na cama, contemplando as trevas que
se adensavam e que nada tinham a ver com o fim daquele dia de setembro.
Era muito bonito demonstrar publicamente a sua força, uma ou duas vezes, com uma
grande dose de sorte, para provar que ainda era preciso contar com ele. Mas quanto tempo
mais poderia ganhar por estes meios? Não ousava aparecer no salão, não podia comer com os
outros, cavalgar ou voltar a manejar a espada; fazê-lo equivaleria a revelar que não conseguia

78
79

ver mais do que luz e sombras. Todas as pequenas tarefas que o corpo faz diariamente sem
pensar, gestos simples como servir vinho ou selar uma carta, teriam de ser realizadas fora das
vistas dos outros, por trás daquela porta fechada, até ser capaz de aperfeiçoar uma técnica
intrincada que lhe permitisse desempenhá-las dissimulando a sua deficiência. E por mais
engenhosos que fossem os seus estratagemas, por mais que treinasse os ouvidos e os dedos no
desempenho das tarefas que cabiam aos olhos, mais cedo ou mais tarde um pormenor
qualquer acabaria por traí-lo. Iria chegar uma hora em que até luz e trevas seriam a mesma
coisa. Havia sinais infalíveis de que assim seria.
Vou ser um velho cego, admitiu, face a face consigo mesmo naquela escuridão em
que, recorrendo à memória, ainda era capaz de imaginar os contornos e as cores que os olhos
não captavam. Um velho cego e desajeitado, que tateia os alimentos e entorna o vinho. Darei
ordens e eles dirão que sim, educadamente, durante algum tempo, mas não obedecerão, pois
sabem que não poderei persegui-los. Dentro em breve nem se darão ao trabalho de me
responder ou de me prestar atenção. Hoje consegui abalar-lhes as certezas; vão encolher as
garras por alguns dias. Por quanto tempo? Uma semana? Duvido.
Não pelo tempo suficiente para Benedetta chegar a Parfois e voltar a partir com o
presente que reservara para ela. Até agora Isambard recusara-se a enfrentar essa verdade, mas
não podia continuar a negá-la. Chegara a hora de limpar o terreno à sua volta para não arrastar
ninguém consigo na sua queda. Que proteção podia um cego dar a Benedetta e a Harry? Era
preciso afastar todas as pessoas de quem eles pudessem servir-se para influenciá-lo e todas as
pessoas contra quem pudessem utilizá-lo como arma. Neste último campo de batalha não
podia deixar nada que servisse para o inimigo se aproximar sem ser detectado. Quando Walter
voltasse, lhe confiaria uma nova tarefa, que o levasse para o mais longe possível, para mantê-
lo afastado do confronto que se aproximava. Harry tinha que partir e Benedetta não podia vir.
Resolvido isto, postos a salvo os inocentes e pagas as dívidas, poderia dedicar-se a fortalecer a
sua posição e apreciar a sua derradeira peleja.
─ O que dizem eles de mim, agora? ─ perguntou quando Harry foi vê-lo nessa noite.
─ Dizem que o seu amigo diabo lhe emprestou um novo par de pernas e mais dois
olhos ─ respondeu Harry com uma admiração involuntária.
─ Ah sim? Ótimo! Fico contente por não ter arriscado inutilmente a minha vida
naquelas escadas. Mas receio que esse empréstimo seja de curta duração.
─ O que eles não dizem, mas que eu sei ─ acrescentou Harry intencionalmente ─ é
que ontem De Guichet mandou um correio com uma carta ao acampamento do rei, em Usk.
O tom utilizado por Harry fora de tal modo ambíguo que Isambard ficou
imediatamente alerta e disfarçou a reação que a notícia lhe provocara. Era preciso cuidado no
modo de lidar com o rapaz. O seu olhar penetrante já se tornara inquisitivo demais.
─ Então sabe disso também? Como foi que deixaram você partilhar esse segredo?
Colocou as mãos abertas nos braços do cadeirão, a fim de tornar patente a sua
tranqüilidade. Afinal, pelo menos durante algum tempo, não era muito difícil enganar o
mundo exterior, através de pequenas astúcias cuidadosamente planejadas. Mas, dia após dia,
Harry ajudara-o a caminhar pelo quarto e tivera boas oportunidades de usar os olhos e a
cabeça.
─ Eu saí tarde da sala de desenho e fui à cavalariça depois de escurecer, para passar
um tempo com o Barbarossa antes de ir dormir. O jovem Clifford estava lá, selando um
cavalo, e o senhor deve concordar que, àquela hora, isso era estranho. Uma das correias do
selim quebrara-se e ele estava com pressa. Por isso, levou emprestada uma das minhas e
prometeu devolvê-la quando regressasse de Usk. Como era pouco provável que fosse portador
de uma mensagem para entregar ao Conde de Pembroke, que está preso dentro do castelo, a
mensagem devia ser para alguém da tropa do rei, que cerca o castelo. O Clifford saiu correndo
para ir buscar o despacho e não pensou mais em mim. Fiquei à espera que voltasse e vi que

79
80

De Guichet veio despedir-se dele, à porta da torre da guarda. Vi o Clifford guardar um


pergaminho junto ao peito, por baixo do casaco, antes de montar. No escuro ─ acrescentou
Harry, sombriamente ─ não foi muito difícil aproximar-me. Agora já conheço Parfois
perfeitamente.
─ Está muito interessado nessa carta ─ observou Isambard sorrindo. ─ Quer que eu
relate o seu conteúdo?
─ Não é preciso. Eu mesmo posso fazê-lo. Talvez não palavra por palavra, mas com
exatidão suficiente para se entender. “Se deseja agir”, diz a carta, “este pode ser o momento
certo. O velho lobo que nos abstivemos de caçar foi ferido e já nada temos a temer dele...
como está cego...”
Harry interrompeu-se ao ver os dedos esguios de Isambard crisparem-se sobre os
braços da cadeira e o seu rosto empalidecer.
─ Pensava que eu não sabia? ─ perguntou, em voz baixa e trêmula. ─ Houve uma
noite em que o senhor só não queimou a mão numa das velas porque eu a afastei. Nem se deu
conta. Pode enganar aos outros, lá fora, conhecendo como conhece todas as pedras dos pátios,
mas não os deixe se aproximar muito do senhor. Aliás, o que fará quando recuperar a saúde e
deixar de ter uma desculpa para manter junto a si um pajem em quem se apoiar, que lhe conte
os degraus das escadas e lhe demonstre, pelos seus próprios movimentos, em que momento
deve dar a volta?
─ Por minha fé, filho! ─ respondeu Isambard com um suspiro, já relaxado. ─ Faço a
mim mesmo essa pergunta.
Tudo se ajustava para reforçar a sua decisão. Era tempo e mais que tempo, de pôr a
casa em ordem. Recostou-se no cadeirão dourado, organizando com calma todas as suas
faculdades, como um general previdente organiza as suas tropas antes de uma batalha difícil.
─ Então é verdade? ─ perguntou Harry, confuso. ─ O senhor não vê nada?
Apesar das suas certezas, quase esperou uma negativa categórica, uma prova de que
estava enganado.
─ Distingo uma ligeira diferença entre o dia e a noite ─ respondeu Isambard.
Se dissesse toda a verdade, teria de acrescentar que, de dia para dia, essa diferença era
cada vez menor. Afastou este pensamento com um gesto da mão e concentrou-se nas armas de
que ainda dispunha. Cego ou não, precisava tomar uma decisão e lutar. Se De Guichet
mandara uma mensagem a William na véspera, hoje deveria ter ficado com algumas dúvidas
quanto à sensatez da iniciativa. Mas bastariam essas dúvidas para mandar o mensageiro
regressar? Não era provável. Os dados estavam lançados e não tinha remédio. Se limitariam a
observá-lo atentamente até a resposta chegar. De Guichet não corria grandes riscos, pois
nunca se expusera publicamente. Quando o poder mudasse de mãos seguiria a onda.
─ Você falou em Usk ─ disse finalmente Isambard, franzindo as sobrancelhas na
expressão habitual de quando refletia, como se o seu olhar arguto ainda pudesse ajudá-lo. ─
Pembroke instalou lá uma boa guarnição e armazenou provisões. Disse que foi aí que o rei
resolveu atacá-lo?
Até então, os dois lados tinham evitado lançar ações irrevogáveis; Henrique
provavelmente por indecisão e incompetência; o conde marechal por lhe repugnar travar uma
batalha em defesa de uma questão que acreditava poder ser resolvida através de reformas. Não
havia homem que menos ambicionasse tornar-se um rebelde, e chefe de rebeldes, mas as
circunstâncias e o seu sentido pessoal do dever o tinham arrastado para essa situação e não
podia recuar.
─ Por aquilo que ouvi dizer, o rei decidiu apoderar-se de Usk como demonstração de
força, para obrigar o conde a pôr-se de joelhos. Antes de ter montado cerco ao castelo,
cancelou as suas obrigações feudais para com o conde e todos os seus aliados. Por seu turno,
Pembroke renunciou a prestar homenagem ao Rei Henrique. Basset, Siward e os outros todos

80
81

fizeram o mesmo.
─ Portanto não se trata de castigar um vassalo rebelde nem de capturar um fora-da-lei
─ observou Isambard. ─ É uma guerra, aberta e digna, entre dois homens. O rei despojou-se
da sua melhor arma, mas percebo que dificilmente poderia lançar a primeira ação sem cortar
esse laço. E Pembroke refreou-se com grande paciência. Henrique ainda podia ter hesitado e
mudado de rumo, mas nunca soubera ficar quieto e esperar.
─ Mas não foi bem sucedido em Usk. Pelo menos é o que se diz. Hoje também
constou que ele pensara melhor e mandara enviados ao conde propondo os termos de uma paz
honrosa. Se o conde aceitar à rendição formal de Usk, o rei promete devolver-la dentro de
quinze dias e dar-lhe um salvo-conduto para a reunião do próximo Conselho, na qual serão
atentamente examinados todos os seus motivos de queixa e decididas reformas onde estas
forem necessárias.
─ Ah! Esse é o Rei Henrique que eu conheço! ─ exclamou Isambard com uma
gargalhada curta e seca. ─ É capaz de prometer este mundo e o outro para que Deus lhe
permita salvar a face. Mas quando sentir que a sua dignidade foi salva é melhor o conde
arranjar um bom advogado, para obrigá-lo a cumprir as suas promessas e não afastar a mão da
adaga durante a discussão. Sabe se Richard aceitou a palavra dele?
─ Não conseguimos saber mais nada, senhor.
─ Vai aceitar. Sendo como é não pode fazer outra coisa. Pode duvidar da honestidade
do rei, mas não pode deixar escapar a oportunidade. Henrique podia até encerrar o assunto
sem descrédito e desarmar os seus inimigos, se cumprisse o prometido. Mas aposto a minha
alma que os quinze dias vão passar sem ele dizer uma palavra sobre a devolução do castelo a
Pembroke. Quanto às reformas, nunca mais voltaremos a ouvir falar nelas. Quando alguém
lhe dá a mão, por magnanimidade, ele conclui que quem o faz é um imbecil ou um covarde e
agarra o braço todo. Já levou algumas palmadas nas mãos por causa disso, mas não aprende.
Ora Richard não é tolo nem covarde ─ acrescentou Isambard pensativo. ─ Bem então é assim
que as coisas estão, não é? Dentro de um mês toda a região das fronteiras estará do lado do rei
e o País de Gales não pode ficar de fora. Vão digladiar-se para ver quem é o primeiro a atear a
fogueira. E um castelo de fronteira não pode ser deixado em mãos suspeitas quando as
fronteiras estão ardendo.
Isambard sorriu. Era o seu antigo sorriso de lobo; cabeça erguida para farejar a
fumaça, orelhas atentas para ouvir os sons da batalha. No entanto guardou para si os seus
pensamentos.
Em tempo de crise, um castelo de fronteira numa posição avançada como Parfois tinha
de estar nas mãos de um castelão de confiança. Guerra era guerra e os direitos antigos
estabelecidos tinham de ceder à necessidade. Em nome do rei, em nome da Inglaterra, em
nome da cupidez de William, era preciso que Ralf Isambard, cego, à beira da senilidade e já
comprometido pela defesa que fizera de Hubert De Burgh, o infortunado prisioneiro em
Devizes, fosse plausivelmente despojado da sua autoridade e confiado à custódia protetora do
filho; tudo isto sem a mínima objeção por parte do melhor e mais magnânimo dos monarcas.
Cautelosamente claro; os seus domínios eram muito dispersos e era necessária discrição, não
fossem algumas das guarnições distantes sentir ser seu dever contestar o afastamento do seu
senhor. Podiam mesmo querer que ele fosse apresentado vivo, o que não seria bom para a
reputação do rei, mesmo que este acedesse a esse pedido. Era preciso evitar o escândalo. Mas
as exigências da guerra podem cobrir muitas irregularidades.
O rei se prestaria a este tipo de manobra? Era uma pergunta difícil. Henrique seria
cauteloso e não ia querer ter conhecimento de procedimentos que, na verdade, podiam ser
considerados criminosos. Cobriria os olhos com as duas mãos para não ver as irregularidades,
mas era razoável deduzir que espreitaria por entre os dedos. Se o pior acontecesse,
denunciaria as traições cometidas contra si e manifestaria uma cólera santa e honesta, a fim de

81
82

provar que era a parte ofendida. Quem conseguiria descobrir até que grau aquela mente
peculiar era capaz de se enganar a si mesma?
─ Ainda está aí, Harry?
O silêncio que reinava no quarto era tal que, por um momento, Isambard julgara
encontrar-se sozinho.
─ Estou aqui, senhor.
Era preciso começar pelo princípio. Deixemos William falar ao ouvido de De Rilvaux
e De Rilvaux ao ouvido do rei, para combinarem as coisas entre si, à sua maneira. O passo
seguinte ali em Parfois, era claro. Isambard culpava-se por não ter pensado nisso já há muito
tempo, no próprio dia da morte de John o Frecheiro. Nunca deveria ter mandado Walter com
o anel, depois desse caminho lhe ter sido vedado outrora com um sinal tão claro e ameaçador.
Mas o coração recusara-se a reconhecer aquilo que, agora, a cabeça percebera muito bem: que
não devia ter esperanças e nunca mais devia tentar voltar a ver Benedetta.
─ Há muito tempo que deseja ir para casa, Harry.
O silêncio da desconfiança caiu entre ambos como uma cortina, mas os obstáculos não
prejudicam os olhos atingidos pela cegueira. Isambard viu o rosto do jovem erguer-se e
animar-se, viu os seus olhos a observá-lo avidamente, em busca de alguma armadilha por trás
daquelas palavras.
─ E é isso que vai fazer ─ acrescentou com determinação. ─ Esta noite prepare-se para
partir. Junte as suas coisas... as ferramentas também, se quiser, pelo menos aquelas que possa
transportar facilmente... amanhã de manhã, tratarei de que abram as portas.
Um cavalo, roupas e todos os seus haveres, escrevera Benedetta. Tudo quanto é dele e
mais do que aquilo que trouxera.
─ Partir? ─ perguntou Harry num sussurro espantado, vindo do outro lado do quarto.
─ Partir, sim, filho. Ouviu muito bem o que eu disse. E sabe que estou falando sério.
Vá preparar as suas coisas e não receie; desta vez não se trata de nenhuma armadilha. Você
está livre.
O silêncio pareceu não ter fim. Isambard sentiu o sobressalto e o impulso do jovem
coração impetuoso em direção à liberdade, ouviu por um instante os batimentos impacientes
das asas quase abertas, até estas serem acalmadas, fechadas, silenciadas. A luta que agitava a
carne e o espírito do jovem vibrou através do próprio corpo de Isambard, deixando-o
comovido e espantado.
─ Não vou! ─ declarou Harry em voz forte e brutal.
Feliz e contente, para que precisava ele agora dos olhos? Para que precisava de mais
anos de vida? Estes não lhe trariam nada melhor nem mais inesperado do que isto. Nunc
dimittis, pensou, emudecido por um doce espanto e sorrindo para a escuridão. Permita,
Senhor, que este Seu servo parta. Em paz? Duvido, admitiu, continuando a sorrir. Alguma vez
conhecera a paz? Mas pelo menos tranqüilo e satisfeito.
Portanto Harry também sentira crescer a insegurança e a receava, não por si, mas por
aquele homem velho e cego, subitamente vulnerável entre os seus antigos amigos dos belos
tempos, que lhe voltariam às costas mal o vento mudasse. Como seria possível um homem
abandonar alguém, ainda que fosse um inimigo, numa situação como aquela? E como
confessar isso a esse inimigo?
─ Não vou ─ repetiu Harry, desafiando o silêncio.
Não era a sua voz mais atraente, era uma voz amarga, obstinada, irracionalmente
furiosa, como a de uma criança que se vê arrastada para uma situação falsa por meios injustos
e que descarrega todo o peso da sua honestidade e do seu desgosto sobre os mais velhos. Uma
voz que, na infância, devia ter lhe valido alguns puxões de orelhas. Porém, agora era preciso
manobrar com brandura o homem, não a criança. Aquela voz era um recuo e uma defesa. Por
trás dela era possível chegar ao homem, pois as palavras, como o coração indignado de onde

82
83

estas haviam brotado, eram dele. Harry acabaria por escutar a voz da razão. Era desnecessário
recear uma recusa definitiva. Seria condescendência demais retê-lo só por um instante, antes
de deixá-lo ir?
─ Vai sim, Harry. Não por que eu ordeno, mas porque é preciso que vá. Há razões de
sobra.
Harry esperara e temera uma reação de espanto seguida de várias perguntas e, não fora
as complicações causadas pela perplexidade e pela angústia, estaria preparado para responder
num tom que poderia ser considerado insolente. De certo modo, ser entendido sem
necessidade de palavras era ainda mais vexatório do que ser forçado a dar explicações.
Ninguém gosta que leiam em si como num livro aberto. Todavia, sentiu-se aliviado por não
precisar justificar a sua mudança de atitude, depois de ter lutado com unhas e dentes pela
liberdade que agora recusava.
─ Não há escolha, Harry ─ disse Isambard afavelmente. ─ Houve uma coisa que eu
não disse a você. Se você se recusar a partir, Madonna Benedetta virá até Parfois para se
entregar no seu lugar. Se não estou seguro de poder continuar a assegurar-lhe proteção, como
posso garantir a dela?
Ao ouvir aquelas palavras Harry atravessou o aposento numa corrida ligeira, ajoelhou-
se ao lado do braço da cadeira e agarrou a mão comprida e esguia.
─ Madonna Benedetta? Aqui? Mas como... que acordo é esse? E eu sem saber de
nada! De nada! Era essa a mensagem que o John lhe trouxe? ─ Harry tremia de cólera e de
despeito. ─ Como o senhor ousou? Não tinha esse direito... nenhum direito!...
─ Ela tampouco, mas foi isso que fez. Ofereceu a sua pessoa em troca de você e eu
aceitei a oferta. O seu John, paz à sua alma, quis arrancar você das minhas mãos de outra
maneira para anular o acordo. Assim teria acontecido se ele fosse bem sucedido, mas não foi e
teremos de viver com aquilo que temos. Depois da morte dele, mandei o Walter no seu lugar,
para oferecer o meu anel e a minha promessa a Benedetta, sem imaginar que, pouco tempo
depois, iria desejar reaver um e a outra. Penso que o Walter deve ter preferido evitar Aber e
desperdiçado algum tempo à procura dela, mas neste momento a sua missão já deve estar
cumprida. Se você não a detiver no caminho, ela virá a Parfois pagar o seu resgate. E logo
numa hora em que já não estou seguro da minha capacidade para mantê-la a salvo. ─
Fechando os dedos sobre a mão lisa e vigorosa do jovem, acrescentou: ─ É por isso que você
tem de ir, já que eu não posso. É preciso que a intercepte no caminho, lhe diga que tanto você
como ela estão livres de todas as dívidas e compromissos para comigo e que a leve para casa,
sã e salva.
─ O senhor podia mandar outra pessoa ─ objetou Harry, abalado e a tremer.
─ Não há ninguém, nem mesmo entre os mais velhos que a conheceram outrora, que
possa reconhecê-la agora com tanta segurança como você. E mais ninguém pode apresentar-se
diante dela como sendo o prêmio que ela vinha resgatar. Quanto ao resto... olha para aqueles
que me servem, Harry. Sem ser o Walter, a quem mais poderia eu confiar essa missão? Não,
não pode fugir ao seu dever; é preciso que vá.
Num gesto de impotência, Harry pousou a testa sobre a mão crispada no braço do
cadeirão, enquanto o seu coração tentava precipitadamente, numa agonia, separar o que
desejava fazer daquilo que devia fazer. Do seu esconderijo, uma voz abafada perguntou, com
desespero:
─ Mas como eu posso deixá-lo?
A dignidade e a reserva já não faziam sentido e Harry não sentia que houvesse
comprometido ou perdido qualquer delas. Simples e cruas, as palavras haviam brotado da sua
boca e sentia-se aliviado por tê-las dito.
─ Pode porque é necessário que o faça. Se quiser uma razão mais egoísta da minha
parte, porque, salvo quanto ao privilégio da sua presença, me arranjarei melhor sem você do

83
84

que consigo. O Walter não vai demorar e poderei contar com dois ouvidos e uma língua
honesta. Que mais poderia você fazer se ficasse aqui? A melhor ajuda que me pode dar é
salvar Benedetta do perigo. Não receie por mim ─ acrescentou Isambard, espantado com a
serenidade da própria voz. ─ Eu sou um velho guerreiro. Sou capaz de manter a minha
posição no meu próprio terreno. Vá preparar as suas coisas e amanhã, depois do desjejum,
vem falar comigo aqui. Eu próprio o porei a caminho.
Era necessário que fosse assim. Quem sabe se De Guichet não se lembraria de que era
melhor reter o rapaz, que talvez pudesse depois ser usado como uma moeda de troca valiosa?
─ Então Harry, você irá?
A testa macia encostada em sua mão moveu-se, o rosto atormentado ergueu-se
lentamente para ele. Isambard adivinhou o olhar ansioso dos olhos verde-mar que o fitavam e
soube que ganhara a partida. Harry partiria porque era necessário que partisse. Não era
preciso tentar confortá-lo. A vida em breve se encarregaria disso.
─ Eu vou ─ disse Harry.
Chegaram juntos à porta do castelo no momento em que os raios alongados e dourados
do sol da alvorada começavam a incidir no pátio exterior. Isambard ergueu a mão esquerda e
os guardas, que haviam lançado um olhar desconfiado ao prisioneiro, recuaram
obedientemente e deixaram-nos passar.
Avançaram sobre as tábuas da ponte; as ferraduras de Barbarossa produziam um som
rouco que ecoava ao longo do precipício rochoso, lá embaixo. Diante deles sobre a sua
plataforma elevada coberta de erva, flanqueada por árvores que cresciam ao longo dos dois
lados das escarpas, a igreja de Parfois erguia-se para o céu como uma lança dourada. A luz
harmoniosa infiltrava-se em todos os desenhos esculpidos na pedra que enquadrava o pórtico
e o grande vitral do leste e fazia vibrar as linhas puras da torre como se fossem as cordas de
uma harpa.
Foi para aqui que ele avançou naquele dia, pensou Isambard, mergulhado nas suas
trevas. Ela segurava-lhe a mão e, subitamente, soltou os dedos e deixou-se ficar para trás.
Disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e ele olhou para o alto. Vi claramente o rosto dele, ainda
hoje o vejo, admirado e encantado com a sua obra. E depois tombou. Tombou aqui,
precisamente aqui, e ela amparou-o nos braços e caiu ao chão com ele, apertou-o contra o
coração enquanto ele morria. Levou tão pouco tempo a morrer, mal deu tempo para ela beijá-
lo na boca. Quando o tiramos de cima dela, nada mais podia atingi-lo. O despimos junto ao
rio. Nu e de pele tisnada, parecia um daqueles camponeses das margens do Severn, que
aprendem a nadar ao mesmo tempo em que aprendem a andar. Esguio, musculoso, jovem. E
morto.
─ Aconteceu alguma coisa, senhor? ─ perguntou Harry, olhando para o perfil de
falcão ao seu lado, surpreendido pelo aperto da mão delgada que se cerrara sobre o seu braço.
─ Nada, Harry. Estava lembrando do passado. Os velhos costumam fazer isso.
A sua voz continuava a assumir um tom sardônico quando se referia a si mesmo como
um velho. Apesar de todos os golpes que recebera o seu corpo recusava-se a admitir que
perdera a juventude. Entre os dois havia ainda uma morte e a profanação de uma sepultura.
Talvez o assunto viesse a ser abordado e, apesar de não lhe agradar saldar essa conta no
momento em que iam separar-se, Isambard não se esquivaria. Mas Harry caminhava ao seu
lado em silêncio, alinhando as passadas ágeis de jovem pelas passadas calculadas e cautelosas
do seu companheiro, desviando-o das pedras e obstáculos do caminho. Barbarossa aspirava o
ar fresco da manhã e arquejava de alegria.
Quando se aproximaram da torre, da cicatriz pálida dos alicerces, rodeada pelas
muralhas iniciadas, ouviram as vozes dos pedreiros, o arranhar das pás na argamassa, o som
do martelo e do cinzel contra a pedra. Encontrava-se ali muita gente, algumas pessoas da casa
além dos operários e dos guardas. De Guichet estava lá, falando com mestre Edmund.

84
85

Isambard distinguiu-lhe a voz entre as outras e sorriu. De Guichet esperava a chegada de um


homem e não a partida de outro.
─ Quando a encontrar, diga-lhe que todas as suas dívidas estão saldadas. Sabe qual é o
caminho por onde virá?
─ De Aber até aqui só há um caminho bom e direto, senhor.
─ Ótimo! Então, posso deixá-la em suas mãos, em segurança. Já chegamos ao posto da
guarda?
─ Faltam umas cinqüenta jardas, senhor.
─ Leve-me para lá do posto, antes de montar, Harry. Quero levá-lo além dos limites
do meu castelo. O que você lê nos rostos deles?
─ Penso que ainda o temem, senhor. Continuam o que estavam fazendo, mas estão
olhando para nós pelo canto do olho. Os guardas afastaram-se para lhe dar passagem.
Então ainda era o seu senhor, ainda inspirava receio. E eles ainda não tinham certeza,
certeza total quanto ao lado para o qual iria soprar o vento.
─ Ainda bem. Já passamos?
─ Sim, senhor.
─ Então é aqui que nos despedimos.
Pararam estranhamente indecisos. Impaciente, ansioso por galopar, Barbarossa puxava
pela rédea. Harry voltou-se, para acalmá-lo.
─ Estão todos olhando para nós. Alguns pararam de trabalhar. Penso que estão
simplesmente surpreendidos.
─ Deixe-os estar. Salte para a sela e galope. Não perca tempo. Que Deus o
acompanhe. E apresenta os meus respeitos a Madonna Benedetta.
Harry virou-se para montar, mas não foi capaz. Olhou por cima do ombro e voltou
atrás com o coração dividido.
─ Não posso, senhor...
─ Que fedelho mais arrogante ─ ralhou Isambard. ─ Pensa que ninguém pode passar
sem você? Vá embora. Não preciso de você...
Com a sua figura ainda imponente, ativa, cuidadosa e ricamente vestida, rosto acabado
de barbear, Isambard conseguira até o momento derradeiro da despedida, imprimir a todos os
seus movimentos a segurança de alguém cuja visão se mantivera intacta. Mas, de repente
vacilou, deu um passo repentino para a frente e, no gesto impotente de um cego, ergueu uma
mão hesitante para o prisioneiro que partia. E esquecendo tudo menos que aquela mão
procurava o seu rosto, Harry segurou-a e guiou-a para a sua face. A outra mão juntou-se à
primeira, sem ajuda, e segurou-lhe o rosto. A bela cabeça de perfil de falcão inclinou-se e os
seus lábios duros e cobertos de cicatrizes afloraram ligeiramente a face do rapaz.
Mudo e trêmulo Harry aceitou aquele beijo de parente e, quando Isambard o soltou,
avançou impulsivamente o rosto para retribuí-lo, com o ardor desajeitado de uma criança.
─ Que Deus o guarde, senhor.
Nada mais. Nem uma palavra. Explicar era impossível, justificar-se não era necessário
e a compreensão encontrava-se em algum lugar dentro de si, no fundo do coração; quisesse ou
não se tornara parte de si e não podia ser posta em dúvida. Colocou o pé no estribo e montou.
Barbarossa escavou alegremente o solo e lançou-se num galope desenfreado em direção ao
vale; a deslocação do ar, avivada pelo frescor matinal, fustigou a face de Harry onde Isambard
depositara um beijo.
Haviam partido. Estava terminado. Agora, podia fixar a mente naquilo que ainda
faltava fazer. O medo, pelo menos no sentido em que o concebia, passara. Ainda ia disputar
um jogo de vida e de morte, mas agora as jogadas estavam sob o seu controle e o jogo não
tinha mais importância do que a que devia ter. Ficou à escuta até o som das ferraduras sobre o
chão coberto de erva ter desaparecido no vale. Então se voltou e deu um passo na direção das

85
86

torres da guarda avançada; de repente sentiu-se só, sem luz e sem pontos de referência, num
cenário uniforme e de pesadelo.
Tentou ouvir o som dos martelos, mas os martelos haviam parado; ficou à espera de
ouvir vozes, mas estas se haviam calado. Era preciso subir a encosta. Mas ao tatear
cautelosamente com a ponta do pé, não foi capaz de determinar em que direção ficava a
encosta. Perdera o seu guia e não tomara medidas para substituí-lo. Contudo, aquele silêncio
ocultava algo mais do que a curiosidade disfarçada dos seus homens pelos seus movimentos e
caprichos. A intensidade dos olhares deles pesava sobre Isambard. As palmas das suas mãos
ficaram cobertas de suor. Que teria feito? Um gesto revelador, irrevogável, que traíra a
fragilidade da sua situação. Porque eles sabiam que se encontrava impotente. Sabiam que
estava cego.
Subitamente compreendeu. Estavam todos olhando para ele no momento em que
levantara a mão e tateara em busca do rosto de Harry. Não fosse isso e poderia manter a farsa
mesmo agora, chamar mestre Edmund, inventar um pretexto qualquer para tê-lo ao seu lado,
de modo a poder servir-se dele durante a primeira etapa do trajeto de regresso e depois levar
consigo um dos homens dele. Mas era tarde demais; eles sabiam. Haviam acabado os
fingimentos. Harry segurara-lhe a mão, quando esta se desviara num gesto infeliz e a guiara
para o rosto. Eu não disse que ele ainda havia de ser a causa da minha morte? pensou.
Agora podia escolher entre fazer o trajeto a tatear, perigosa e ridiculamente só, ou
pedir ajuda, admitindo aquilo que eles já sabiam e a sua própria perda. Tinha consciência dos
muitos espectadores que o observavam: nenhum comovido, muitos satisfeitos e nem um único
que corresse a ajudá-lo. Mesmo quando, num tom categórico, exigiu um ombro sobre o qual
se apoiar, apenas o silêncio e a imobilidade lhe respondeu. Então percebeu a medida da sua
solidão.
─ Mestre Edmund! Onde está mestre Edmund? Um de vocês que lhe diga que venha
ter comigo! Mexam-se!
Lentamente, contra a vontade, mexeram-se. Apenas um homem, de algum lugar do
lado dos alicerces da torre, deixou cair alguma coisa que tinha na mão, que produziu um som
de madeira contra a pedra da muralha começada e correu, num passo envergonhado, a
segurar-lhe o braço. O contato daquela mão revelou-lhe uma sensação desconhecida. Nunca
até então, havia despertado a compaixão. Era necessário um período de adaptação para aceitá-
la, mesmo naquela situação, mas Isambard conseguiu-o logo ao primeiro passo que deram
juntos. O desconhecido conquistara o seu reconhecimento; só um ingrato o teria recusado.
─ Por aqui, senhor.
A mão fê-lo voltar-se e guiou-o para a parte menos acidentada do caminho.
─ Apóie-se em mim. Quer voltar para os seus aposentos?
Uma voz afável de um homem ainda novo que, em outras circunstâncias, teria receado
dirigir a palavra ao senhor de Parfois. Os passos cuidadosos que acompanhavam as longas
passadas de Isambard eram de um homem baixo e o braço em que se apoiava era magro. Os
olhos da mente que haviam nascido dentro de si elaboraram um retrato, a partir deste contato:
o de um homem novo, de trinta e quatro ou trinta e cinco anos, de altura inferior à média,
aspecto modesto e simpático e modos suaves. Não era pedreiro; faltava-lhe a musculatura e os
seus dedos não possuíam a destreza de quem está habituado a manejar ferramentas. A manga
tinha a textura áspera da lã, mas o pulso era macio.
─ Meu amigo... ─ começou Isambard.
Novas situações requeriam um novo vocabulário; o senhor de Parfois saboreava as
lições da velhice com intensidade igual àquela com que saboreara as da juventude.
─ Penso que devia conhecê-lo. Está ao meu serviço há muito tempo?
─ Perto de vinte anos, senhor. Tenha cuidado aqui. Há muitas pedras.
─ Trabalha na torre, não é verdade? Como escrevente, não é?

86
87

─ Sim, senhor.
Se trabalhava como escrevente há vinte anos nas obras de Parfois, devia ser apenas um
rapaz quando mestre Harry Talvace tombara, ferido pela flecha de Deus e de John o
Frecheiro. Ali, naquele mesmo local onde o sol matinal iluminava a esplanada verdejante
antes da ponte. Existira um rapaz na sala de desenho, um rapaz que andava sempre colado aos
calcanhares de mestre Harry, envolvendo-o num olhar de adoração; limpava-lhe os
pergaminhos, bebia as suas palavras e os seus golpes de cinzel como um idólatra e chorara a
sua morte com um desgosto imenso. A delicadeza apaixonada de mestre Harry havia-se
transmitido, trêmula e muda, à mão que guiava o carrasco de mestre Harry de volta ao seu
refúgio.
─ Agora já sei quem você é ─ disse Isambard. ─ Você se chama Simon, tanto quanto
me lembro. Era o escrevente dele.
─ Era sim, senhor.
Como Simon soubera, sem pensar e sem fazer perguntas, quem era o “ele”?
Respondeu prontamente, sem a menor surpresa diante da conclusão do seu senhor. O Harry
está tão vivo para ele como para mim, pensou Isambard, espantado. E é igualmente atemporal.
─ Chegamos à ponte, senhor. Levante um pouco mais o pé. Mestre Edmund nada
fizera para promover Simon. O velho mestre sempre manifestara aversão por aqueles que,
outrora, haviam sido próximos de Harry, pensou Isambard. E, enquanto atravessavam o pátio
exterior, ocorreu a Isambard reparar essa injustiça menor. No entanto, ao chegar diante da
porta a lucidez levou-o a concluir com clareza, que os seus favores já não fariam nada por
ninguém, a menos que fosse empurrá-lo para uma morte prematura.
Nos velhos tempos Isambard costumava contemplar, do alto da cobertura de chumbo
da torre, as colinas azuladas do centro do País de Gales, que se estendiam em direção a oeste,
para lá do vale largo e verde, entrelaçado de prata; Pool, a montante, e Strata Marcella, a
jusante, defrontavam-se à luz do sol, pedra cinzenta contra pedra cinzenta. Agora, apesar da
cegueira, um pouco da antiga sensação de liberdade apoderou-se dele. O vento soprava das
altas turfeiras e dos brejos de garças das terras altas e trazia consigo o cheiro das urzes e das
ervas murchas do outono, cujas sementes haviam amadurecido e caído para a terra.
Em algum lugar, além daquelas formas fluidas de nuvens e neblina que guardava na
memória, Benedetta e Harry cavalgavam agora lado a lado, sem pressa, a caminho de casa.
No regresso a Parfois Walter não encontrara Harry, porque viera por Shrewsbury, para saber
notícias das manobras insidiosas do Rei Henrique em Usk. Mas com certeza, naquele
momento, a mulher e o jovem já estariam perto de Aber. O coração de Isambard estava
descansado quanto a eles.
Walter relatara fielmente aquilo que não compreendia:
“Entreguei-lhe o anel e penso que Madonna Benedetta ficou contente, até ter lhe
contado o que acontecera ao seu servo. Ficou calada durante muito tempo, mas não chorou
nem clamou. Disse que assumia a culpa pela morte dele, que deveria ter sido franca com ele.
E também disse que haverá tempo para falarem nisso.”
Mais nada. O resto guardara para quando viesse e prometera pôr-se a caminho, logo
que tomasse algumas providências quanto ao velho que morava perto da sua casa. Agora,
nunca ouviria o que ela pretendia dizer-lhe. Poderia ter tempo para falarem de todas as coisas
que se encontravam em suspenso entre ambos, mas agora já não era possível. Pelo menos
neste mundo.
Tanto melhor. Ela estava a salvo e havia recuperado o ser que lhe era tão querido.
Quanto a ele, a casa do seu espírito estava arrumada e a fortaleza da sua solidão bem
aprovisionada. Walter fora enviado para Fleace, a pretexto de preparar a chegada próxima do
seu senhor; Simon, o escrevente, fora com ele, recomendado para entrar ao serviço do
canteiro Humphrey Paunton, que trabalhava no novo salão do castelo. Mais um inocente

87
88

afastado, posto a salvo dos golpes perdidos que podiam cair sem olhar onde. Nos dias que se
seguiriam, Parfois não seria um local seguro para pessoas que se compadecem dos seus
inimigos quando estes ficam velhos e cegos e os levam pela mão evitando os caminhos mais
perigosos.
O vento tornou-se mais frio e Isambard afastou-se da sua contemplação cega do País
de Gales. Os degraus superiores da torre eram estreitos e estavam gastos. Em geral era um dos
pajens que o levava lá em cima e depois ficava à espera que ele o chamasse para descer. Mas
naquele fim de tarde de final de setembro Isambard chamou, mas nenhum pajem acorreu.
Esperou e voltou a chamar, menos pacientemente. Apurou o ouvido, mas não escutou
qualquer ruído de passos, qualquer voz que lhe respondesse. Mas havia outros sons, que
subiam do pátio numa lenta espiral de esplendor. O ruído cerimonioso de ferraduras em
procissão, um murmúrio de vozes excitadas e impacientes. Tudo ao longe, tudo no mundo lá
de baixo. Um som filtrado por acres dourados de ar. Chegaram visitantes. Os jovens da casa
continuavam a sair a cavalo e a caçar. Todos os dias havia grande atividade de cavaleiros no
pátio exterior e junto às cavalariças. Mas estes sons eram diferentes, estranhos e alegres.
Esperou que viessem lhe contar o que se passava, mas ninguém apareceu. Não ficou
surpreendido nem despeitado, porque já não esperava nada. Passado alguns momentos,
contente por que o servo que devia acompanhá-lo tinha desertado para correr a juntar-se aos
outros no pátio exterior, encontrou o caminho até à porta, tateando ao longo dos parapeitos e
começou a descer sozinho. Degrau a degrau, com a devida atenção aos degraus gastos,
demorou bastante tempo a descer os primeiros lances, mas não tinha importância. Dispunha
de muito tempo.
Entre as paredes espessas estava isolado do mundo e os únicos sons que ouvia eram os
produzidos pelo seu próprio corpo; os seus pés pisando cautelosamente os gastos degraus de
pedra, a respiração regular, as batidas cadenciadas do coração dentro do peito magro. Diante
de cada seteira do poço da escada, uma corrente de ar fresco e doce acariciava-o e, em cada
novo patamar estreito, a obscuridade parecia mais densa. Agora já não distinguia formas nem
sombras. A escuridão era total.
Ao chegar ao nível dos seus aposentos estacou, de ouvido à escuta, a cabeça lançada
para trás. Dentro da torre, não havia agitação nem vozes. Do exterior chegava até ele um ruído
abafado, no qual transparecia ainda uma certa nota de excitação. Em seguida, perto de si,
sentiu mais do que ouviu os movimentos ritmados de uma respiração. Não a sua, cujo ritmo
conhecia agora intimamente. Vinha de uma divisão próxima cuja porta se encontrava aberta.
Uma respiração pausada. A regularidade e calma daquela respiração indicavam que quem ali
se encontrava tinha consciência da sua presença.
Isambard tateou ao longo da parede e atravessou o espaço até a entrada do seu quarto.
A porta que ele fechara ao sair, cerca de uma hora antes, estava quase aberta. Abriu-a por
completo e entrou sem se esconder e em passadas seguras, porque ali ele conhecia todos os
nós e irregularidades das tábuas do chão. Com toda a calma caminhou até o centro do quarto e
lentamente voltou o rosto imperioso, aquela lanterna apagada de ossatura magnífica, para a
esquerda e para a direita, até se fixar na direção onde sentira uma presença palpável. Então se
imobilizou, seguro de si, com uma calma infinita e sorriu ligeiramente.
Alguém estava alguém sentado no seu cadeirão num ato de usurpação que, pelo
menos, assinalava o fim do fingimento. O seu sorriso acentuou-se. Sem pressa ponderou sobre
as identidades possíveis do usurpador. Uma respiração forte e confiante, a sensação de
volume, de um corpo de boa estatura e robusto, mas pouco à-vontade sob o olhar cego, pois se
mexera ligeiramente sobre as almofadas até que, num movimento que surpreendeu e fez
Isambard rir, se pôs de pé. Então Isambard pensou tê-lo reconhecido. Ocupar a cadeira do seu
senhor e em seguida abandoná-la combinava perfeitamente com o seu caráter e era bastante
revelador.

88
89

─ De Guichet? ─ perguntou, desapontado e desdenhoso.


─ Não ─ respondeu uma voz vinda das trevas diante de si, uma voz suave, sorridente,
controlada. ─ Não é De Guichet.
─ Ah, é você? ─ observou Isambard, com um longo suspiro de contentamento. ─ Meu
bom e querido filho. Porque demorou tanto? Há dez dias que estou à sua espera.

CAPÍTULO SEIS

Aber, outubro de 1233

O Santo Clydog acordou do seu longo sono e deparou com um céu encoberto por
nuvens baixas e cinzentas sobre Moei Wnion, o gemido desolado e distante do mar, uma
cabana vazia, uma lareira apagada, um coração desabitado e um jovem muito agitado,
acocorado diante de si sobre a erva alta. O jovem segurava-lhe os joelhos com as mãos
grandes e tisnadas e fitava-o com uns olhos suplicantes que ele já vira em outros tempos, num
outro rosto. Uma voz desesperada martelava insistentemente os seus sentidos relutantes,
repetindo um nome, obstinada, suplicante, ameaçadora, sedutora, arrastando-o de volta para
um mundo de que o santo já não queria saber. Tentou tapar os ouvidos e fechar o espírito, mas
aquelas mãos agarravam-no cruelmente, enquanto a voz batia como o punho de uma adaga
nas portas fechadas, recusando-se a deixá-lo em sossego.
─ Onde está Madonna Benedetta? Ouça! Ajude-me! Preciso encontrá-la. Onde está
Madonna Benedetta?
O velho abriu os olhos e, com uma dor infinita, regressou aos frágeis limites do seu
corpo, aquela pequena gaiola onde, com o coração prestes a explodir, a grande ave esvoaçava
fracamente, com as asas dobradas e o coração prestes a explodir. Então, lembrou-se daquele
rosto; era o rapaz por quem Benedetta partira.
─ Foi embora ─ respondeu, encolhendo-se sob as mãos jovens que o apertavam,
inconscientes da própria força.
─ Eu tenho olhos, já percebi que ela foi embora.
A manta áspera estava dobrada em cima da estreita enxerga de palha, a pedra da
lareira estava fria, a janela em arco voltada para o sul estava fechada.
─ Quando partiu? Por que foi que não cruzei com ela no caminho?
Ajoelhado sobre as ervas Harry prendia os joelhos idosos do santo entre as duas mãos
e perscrutava-lhe o rosto, que não passava de uma mancha fluída e acinzentada, sob a barba
que fazia lembrar uma sebe de cactos, iluminada por dois olhos azuis pálidos e distantes.
─ Ajude-me, meu bom santo! Preciso encontrá-la. Trago uma mensagem para ela.
─ Foi para Parfois ─ disse o Santo Clydog numa voz subitamente clara e alerta. ─
Esteve aqui um escudeiro com uma resposta à mensagem que Benedetta havia enviado. Ela
pediu um rapaz para cuidar de mim e depois seguiu viagem.
─ Para Parfois? Mas eu venho de Parfois. Perguntei por ela em todas as fazendas e
hospedarias do caminho e ninguém sabia de nada. Não passou por aquela estrada. Pensei que
ainda estivesse aqui.
Harry debruçou-se sobre o santo e agarrou-lhe as mãos, pequenas e frágeis como

89
90

borboletas, que este tinha pousadas no colo.


─ Foi sozinha? Com certeza levou uma escolta de Aber! O príncipe nunca a deixaria...
Harry interrompeu-se no meio da pergunta. Melhor do que ninguém Benedetta sabia o que o
príncipe a deixaria ou não fazer. Vê-la abandonar o seu retiro voluntário seria o mesmo que
ver o sol inverter o seu curso do zênite para a aurora. Os seus mais ínfimos movimentos
suscitariam uma torrente de perguntas.
─ Ela nem sequer se aproximou de Aber ─ acrescentou em voz alta, amargurado,
furioso com a sua própria estupidez. ─ Diga-me depressa, bom santo, que caminho tomou
ela? Quem a acompanhou?
Em Aber nem sequer deveriam saber que Benedetta partira.
─ Foi pela estrada da montanha, por Bangor ─ respondeu o Santo Clydog olhando por
cima da cabeça do jovem, como se estivesse a vê-la caminhar pela encosta da montanha. ─
Pediu ao Bispo Martin um rapaz para cuidar de mim e para ela um cavalo e um servo a cavalo
para acompanhá-la até Parfois. E não voltei a vê-la. Mas o rapaz veio falar comigo. Está lá em
baixo, junto ao regato, pescando. É um bom rapaz, embora jovem e estranho. Eu estava
habituado ao John o Frecheiro ─ acrescentou pensativo.
─ Então ela foi pela estrada que sai de Bangor?
O que queria dizer que, depois de Dolgynwal, seguiria pelo mesmo caminho por onde
Harry passara a toda a velocidade. Se Benedetta tivesse partido um dia mais cedo ou ele um
dia mais tarde, teriam com certeza se cruzado.
─ Quando foi que ela saiu daqui? ─ perguntou Harry, puxando violentamente pela
manga castanha. ─ Há quantos dias?
─ Há três dias... ou seriam quatro? Estava chovendo quando ela partiu. Choveu
durante dois dias e depois o sol voltou. Isso foi ontem. Portanto foi há quatro dias.
─ E o rapaz... quando ele chegou?
─ Ao cair da noite um dia depois dela me deixar. É um bom rapaz. Sossegado ─
acrescentou o Santo Clydog, deixando inconscientemente cair tênues lágrimas de velho sobre
a barba emaranhada. ─ Onde há mulheres, não há paz. Estão sempre a ir e vir. Eu sempre
soube que ela não passaria aqui o resto da sua vida.
Harry ergueu-se sobre a relva como um pássaro prestes a levantar vôo. Supondo que
dormira uma noite em Bangor antes de se pôr a caminho, Benedetta levava apenas três dias de
vantagem. Com certeza se encontraria agora para lá de Dolgynwal, enquanto ele corria para
ali, seguro de que se cruzariam no caminho direto. Ainda podia alcançá-la. Virou-se para
agarrar as rédeas de Barbarossa, mas lembrando-se das boas-maneiras voltou impulsivamente
para trás a fim de se ajoelhar diante do santo e pedir a sua bênção.
─ Reze por mim, senhor! Para que eu a encontre a tempo!
A mão enrugada tocou-lhe na cabeça e ali ficou por um momento, como uma folha
seca enleada nos seus cabelos despenteados.
─A tempo para quem? ─ perguntou o Santo Clydog com tristeza. ─ Para Deus ou para
ti?
Harry desceu a encosta escarpada ao longo do curso de água e a silhueta imponente do
castelo do príncipe surgiu diante dos seus olhos, recortada contra as colinas, dominando a
estreita faixa de rios e prados acima do nível do mar. A linha escura e extensa da muralha
circundava o salão, os estábulos e as zonas residenciais, a cozinha, os canis e as cavalariças, a
torre baixa dos aposentos reais sobre os subterrâneos espaçosos e a torre principal em madeira
sobre o aterro elevado. Fora da muralha estendia-se a aldeia, encostada a esta para se proteger,
e o riacho envolvia o castelo numa fita prateada antes de se lançar no mar. O coração de Harry
agitou-se no peito, sôfrego por se encontrar ali.
Poderia ter feito Barbarossa dar a volta e percorrido mais uma vez o caminho por onde
viera. Mas ocorreu-lhe a tempo que iria precisar de ajuda e que mais homens em cavalos mais

90
91

repousados tinham maiores chances de sucesso. A primeira coisa a fazer antes de voltar a pôr-
se a caminho era contar toda a história a Llewelyn. Não teria que recear a necessidade de
longas explicações, nem de interrupções por pura incompreensão. O seu pai adotivo apreendia
as situações com a mesma facilidade com que as árvores se inclinam para o sol. Bastaria dizer
aquilo que precisava e as explicações ficariam para um momento mais oportuno.
Depois do moinho a estrada se alargava e era menos inclinada. Harry esporeou o
cavalo e franqueou a galeria a trote moderado. O peso do desafio que o esperava dissipou-se
diante dos gritos de reconhecimento e alegria. À medida que ia passando inclinava-se para
apertar a mão a velhos amigos, gritando-lhes que estava com pressa. O escuro portal da alta
muralha de madeira engoliu-o, devolvendo-o à luz do dia no pátio onde parou diante do salão.
Uma mulher que se encontrava perto do poço reconheceu-o, largou o cântaro e partiu
correndo para espalhar a nova. Acorreram muitos homens, homens com quem Harry praticara
luta, subira às montanhas e brincara desde a infância, que o cercaram, o fizeram descer do
cavalo, crivaram de perguntas, tocaram, passando-o de uns para os outros com gritos de
júbilo. Harry afastou-os, sufocado.
─ O príncipe... primeiro preciso falar com o príncipe. Preciso mesmo! Não me
retenham!
Em algum lugar no fundo do seu coração, uma criança turbulenta chorava de alegria e
emoção e ansiava por ir ao encontro da mãe, não do príncipe. Mas iria ter de esperar.
Harry lançou-se numa corrida em direção aos degraus do salão, mas as vozes e as
mãos orientaram-no para os aposentos privados de Llewelyn e muitos correram atrás dele para
acompanhá-lo com as suas aclamações. Levado pela impaciência Harry acabou por se
distanciar deles e chegou à porta da torre do príncipe sozinho. Subiu as escadas em quatro
passadas largas, como um cão de caça, abriu a porta pesada da sala de audiências privada,
atirando-a contra a parede e ficou face a face com Llewelyn.
Os três homens sentados à mesa, de cabeças juntas e expressões graves e
concentradas, levantaram a cabeça ao mesmo tempo, espantados e preocupados. Um deles,
um desconhecido, levou a mão à adaga com uma rapidez e uma destreza espantosas. Ednyfed
Fychan pôs-se de pé, de sobrancelhas franzidas e abriu a boca para interpelar aquele intruso
sem maneiras. Llewelyn, que se encontrava de costas para a porta, voltou a cabeça com um
trejeito de desagrado e de impaciência; mas numa fração de segundo o seu rosto iluminou-se e
ele soltou um brado:
─ Harry!
Violentamente empurrada para trás a cadeira bateu contra a parede e Llewelyn correu
para Harry de braços abertos para apertá-lo contra o peito.
Harry correu também, lançou-se aos pés do príncipe, agarrou-lhe a mão direita que
beijou fervorosamente e, por um instante, encostou a cabeça aos joelhos de Llewelyn, antes de
ser agarrado pelos braços e erguido do chão.
─ É você, Harry? É mesmo você?
Os braços compridos estreitaram-no contra o peito largo, vestido de brocado. Harry
sentiu as batidas fortes do coração do príncipe pulsarem no seu próprio corpo, abalando-o até
à medula dos ossos. Os lábios barbudos de Llewelyn beijaram-lhe a face e a testa, as suas
mãos afastaram-no para poder devorá-lo com os olhos negros e penetrantes que brilhavam de
riso e de prazer. Uma palma forte ergueu-lhe o queixo para poder ler-lhe o rosto.
─ Levante para podermos ver você, rapaz. Deixe-me olhar bem para você. Bem,
juraria que está mais alto do que o Owen e quase a apanhar o David!
Voltando-se para o seu senescal, ordenou de olhos brilhantes:
─ Corra, Ednyfed, vá chamar a minha senhora e diga-lhe que traga a dama Gilleis
consigo... diga-lhe que o Harry está aqui, são e salvo. Chame também o David e o Owen... e o
Adam Boteler, se conseguir encontrá-lo. Depressa!

91
92

Em seguida, dirigindo-se ao desconhecido que se afastara cortesmente para um canto


da câmara e que os observava com um sorriso grave e interrogativo, acrescentou:
─ Perdoe-nos, mas não é todos os dias que se recupera um filho. Este é o meu filho
adotivo, Harry Talvace, que há muito se encontrava prisioneiro de Ralf Isambard em Parfois.
Há quase dois anos que não o víamos e nunca houve uma palavra ou um sinal de que
poderíamos voltar a vê-lo entrar aqui dentro, desta maneira... tão impetuoso como sempre.
Saúda Alan Delahaye, meu filho. É o enviado do Conde de Pembroke.
Harry fez uma vênia e apresentou as suas desculpas, ainda mais excitado e confuso
pela menção do conde marechal. Que poderia Pembroke querer discutir com o Príncipe de
Aberffraw que não fossem questões da paz e da guerra?
─ Peço-lhe que me perdoe por tê-los interrompido tão abruptamente, senhor. Não
deveria ter me permitido entrar aqui sem ser anunciado, mas há um assunto que não pode
esperar. Posso falar senhor? ─ perguntou, dirigindo-se ao príncipe.
─ Pode e deve ─ respondeu Llewelyn. ─ Estou à espera de ouvi-lo. A que devemos o
prazer de tê-lo de volta? Está livre de vez? Fugiu?
─ Seria o primeiro a fugir de Parfois ─ observou Delahaye num tom seco.
─ Não, não fugi.
Ao todo tentara sete vezes e não era preciso nenhum inglês para lhe ensinar que
Parfois era inexpugnável.
─ Ele libertou-me, mas...
─ O quê? Ainda há algum “mas”? O que foi que Isambard engendrou desta vez para
magoá-lo? Se as coisas continuarem assim, sou eu quem vai ajustar contas com ele.
─ Não é o que o senhor pensa. Mas fui encarregado de uma missão que ainda não
pude cumprir e, até lá, não estou livre. Madonna Benedetta... partiu do seu retiro e preciso
encontrá-la.
─ A Madonna Benedetta saiu do seu retiro? O que vem a ser isso? Uma missão? Ele
encarregou-o de uma missão? ─ vociferou Llewelyn, caindo sobre aquela palavra como um
falcão sobre a sua presa. ─ E junto dela!
Voltou para a sua cadeira e obrigou Harry a sentar-se num tamborete aos seus pés sem
lhe soltar as mãos.
─ Conte-me!
Harry respirou fundo e contou a história toda. As mãos grandes e poderosas do
príncipe nunca soltaram as suas, não estremeceram nem se crisparam.
Contudo, antes da história ter terminado chegaram aqueles que o príncipe mandara
chamar, ansiosos por confirmar com os próprios olhos que Harry estava de volta, por lhe tocar
e por abraçá-lo. Gilleis parecia vir voando com as saias puxadas para cima como uma jovem
endiabrada e lançou-se sobre ele, numa torrente de lágrimas de alegria e incredulidade. Harry
abraçou-a sem interromper a sua história e Llewelyn soltou-o, continuando a escutá-lo com
toda a atenção. Gilleis ajoelhou-se ao lado do filho, beijou-lhe a boca entre duas palavras e
ficou abraçada a ele até o fim da história. Em seguida entraram Owen, radiante com a boa
nova, e David, corado e de olhos brilhantes de alegria, depois apareceu Adam Boteler que se
inclinou e beijou docemente a testa do enteado. Por fim, chegou a princesa e o jovem,
distraído, ia erguer-se para se ajoelhar aos seus pés, mas Joan levantou a mão indicando-lhe
que ficasse onde estava e ele beijou-lhe as pontas dos dedos entre as sílabas do nome de
Benedetta.
─ Cometi um erro. Agi depressa demais e sem pensar. Se tivesse cavalgado mais
devagar, com certeza teria cruzado com ela no caminho. Como vê, preciso voltar para trás,
não posso descansar enquanto não encontrá-la e trazê-la para casa. Oh, mãe, permita que me
ausente por mais uns dias...
Gilleis fê-lo calar, pousando-lhe a palma da mão sobre os lábios. A altura de Harry e a

92
93

largura dos seus ombros, a penugem castanho-dourada do seu queixo e a sua voz grave, a
expressão dos olhos, mesmo quando lhe sorria por entre as lágrimas, perturbado pelo
acolhimento caloroso de que estava a ser alvo, haviam lhe indicado que, se quisesse conservá-
lo, teria de lhe dar liberdade plena e total. Os anos que perdera nunca poderiam ser
substituídos. E mesmo aqueles que iria ganhar agora seriam, em breve e cedo demais, cedidos
a outra mulher. Mas cada coisa a seu tempo. Harry estava livre, era senhor de si mesmo e para
que tanto o coração dele como o seu encontrassem a paz era preciso encontrar Benedetta.
─ Pensa que há alguma coisa que eu possa negar a Benedetta? Vá com a minha
bênção. Eu própria iria, se conseguisse ser mais rápida do que você.
─ Deixe-me ir em seu lugar ─ ofereceu Owen, vendo o cansaço que se ocultava por
trás do brilho ardente dos olhos de Harry. ─ Você não descansou. Já dormiu depois de ter
saído de Parfois?
─ Deixe-o ir ─ interveio Llewelyn, que conhecia bem os jovens. ─ Esta missão é dele
e não sua. Vá com o David escolher seis homens valentes que conheçam a mulher santa e
cuida de lhes arranjar boas montarias. É melhor mandar dois pelo caminho de Bangor Hal,
para seguirem a pista na estrada que tomou. E leva os outros quatro com você, pelo caminho
da montanha, para apanhar a estrada em Dolgynwal. Se conseguir saber que ela passou por
ali, tanto melhor. Se não, segue em frente com dois homens e os outros que se juntem aos que
vão por Bangor, até obterem a confirmação da sua passagem. Levará uma ordem minha para
obter os cavalos, os homens e a ajuda necessária até a fronteira. Vai. Vá à cavalariça escolher
um cavalo e pode pedir tudo o mais que quiser ou precisar. Com a ajuda de Deus, não iremos
perder Benedetta.
─ Um bom rapaz ─ disse Llewelyn pensativo, olhando para a porta que acabara de se
fechar. ─ Apesar dos seus defeitos é um dos melhores rapazes que já conheci.
─ Segundo parece, um dos melhores aliados do rei na sua fronteira está lutando com
problemas próprios mais do que suficientes ─ observou Delahaye. ─ Se decidir avançar para
o sul, senhor, e aliviar o flanco das tropas do conde nada terá a recear de Parfois.
─ Parfois não me faz medo. Jurei diante de Deus que, quando chegasse a hora,
conquistaria e destruiria Parfois para vingar os Talvace... pai e filho. E não estou vendo nada
que me liberte dessa jura. O filho está livre, mas o pai está morto e a sua sepultura foi violada.
Ainda assim... cego! ─ disse Llewelyn, abanando a cabeça e franzindo as sobrancelhas ─
Preferia que Isambard estivesse em plena posse das suas faculdades.
─ Não precisa atacá-lo, a menos que o deseje ─ observou Delahaye. ─ Para nós basta
que Isambard esteja fora de jogo; parece que o pobre diabo que ele matou tratou disso. O
conde preferiria que o senhor imobilizasse Brecon, deixando-lhe assim as mãos livres para
limpar o vale do Usk. No entanto, se optar por cumprir o seu juramento, o fato de se juntar a
nós lhe dará pelo menos essa oportunidade.
─ Não acredita que seja possível? ─ perguntou Llewelyn. Os seus olhos refletiram um
brilho dourado, como os de um falcão e ergueu a cabeça com altivez, como se contemplasse
com prazer antecipado a doce tentação de um feito quase impossível. Mas expulsou a tentação
do espírito. Havia outras considerações a ter em conta. Se partisse para a guerra pela última
vez, e seria por certo a última vez, pois os derradeiros anos da sua vida teriam de ser
totalmente dedicados a consolidar o reino que forjara para o filho, teria de ser por razões mais
sérias do que a satisfação de um desejo pessoal e pueril. Havia ainda coisas a conquistar e a
acrescentar à herança de David; era necessário consolidar mais firmemente a sua posição
como vizinho da Inglaterra e afirmar de forma incontestável o seu direito de nascimento. Os
ingleses possuíam um gosto notório e um grande apreço pelos precedentes e pelos princípios
de direito e do costume; era por essa tradição que Pembroke lutava, fossem quais fossem os
erros pessoais que haviam desencadeado aquela guerra inesperada. Por ela e por um modelo
de integridade nas relações entre os homens e os governantes, tão solidamente estabelecido e

93
94

respeitado que seria impossível um rei cata-vento desrespeitá-lo.


Além de todas as outras razões de interesse, era esta a razão decisiva e irrefutável para
aceitar a proposta de aliança de Pembroke; ao contrário do Rei Henrique, Pembroke tinha com
ele a razão. Além da atribuição das culpas menores, como quem desferira o primeiro golpe ou
quem sofrera o primeiro revés, olhando o conflito no seu conjunto, Pembroke estava coberto
de razão.
─ Deus dispõe, senhor ─ disse Delahaye sorrindo. ─ Eu não diria que haja alguma
fortaleza que não possa ser conquistada.
O pensamento de Llewelyn já estava tão longe da questão do caráter inexpugnável de
Parfois que foi necessário algum esforço e alguma reflexão para voltar a ela.
─ Duvido que a questão alguma vez seja colocada ─ disse um pouco decepcionado. ─
Se Deus quiser o Harry vai trazer a Madonna Benedetta de volta sã e salva e então já não
haverá nada que justifique atacar Parfois. Deus, que tudo ordena, terá de decidir o que fazer
de mim e do meu juramento. Um arqueiro armado com uma mão cheia de cal viva pode
revelar-se tão eficaz como um anjo armado de uma espada flamejante. ─ Afastando
resolutamente estes pensamentos perturbadores, Llewelyn acrescentou: ─ Está seguro de que
o aviso que o conde recebeu quando ia a caminho do sul para o Conselho e que o fez voltar a
Gwent... é fundamentado? O rei o destituiu? Havia-lhe dado garantias há tão pouco tempo que
não podem ter sido esquecidas tão cedo.
─ O rei também deu garantias a De Burgh, sob juramento prestado sobre a relíquia de
Bromholm, menos de um mês antes de derrubá-lo como quem derruba uma árvore. E quem
mandou o aviso disse a verdade sobre as intenções do rei quanto a Usk. O tempo estipulado já
passou há muito e ele não fez sequer menção de devolver o castelo. E isto era algo que
também havia garantido. Uma boa medida para o valor das suas promessas.
─ Isso é certo. Mas apesar do rei não ter conseguido conquistá-lo ─ acrescentou
Llewelyn com um sorriso radioso ─ Usk não é inexpugnável.
─ Penso que foi por isso que Turbeville saiu de lá e o conde conseguiu recuperar
aquilo que lhe pertencia. Cansou-se de esperar que Henrique cumprisse a palavra dada.
Todavia, o descrédito do rei é tal ─ comentou Delahaye raivosamente ─ que nenhum homem
honrado pode deixar de pôr em dúvida a sua palavra. Talvez isso não seja verdade em todos
os casos, mas ninguém ousaria correr o risco, com receio de que pudesse ser verdade. A que
ponto chegou a coroa para se poder dizer isto sobre ela!
Um homem não é necessariamente melhor advogado de uma causa por acreditar
apaixonadamente nela. Mas a sua confiança ou a sua aliança estreita com Richard Marshall
dotara Delahaye de uma convicção que, aos ouvidos de Llewelyn, suplantava a eloqüência.
Havia uma outra prova, que se podia comparar à primeira, e o contraste era notório. Se
Pembroke lhe houvesse feito uma promessa, mesmo sem jurar sobre o crucifixo de Bromholm
ou sobre qualquer outra relíquia, ele, Llewelyn, acreditaria sem hesitar no seu cumprimento. E
se alguém o viesse advertir de que Pembroke se preparava para traí-lo na sua própria corte, ele
teria rido e seguido o seu caminho sem hesitar. A prova da honestidade de qualquer homem é
poder apostar a própria vida nela. Quem apostaria a vida na honestidade do Rei Henrique?
Ainda estava em tempo de reconsiderar. Caso se aliasse a eles, os seguiria até o fim.
Não haveria condições separadas, não haveria uma paz separada. Que aconteceria se todos os
senhores das fronteiras tomassem o partido do rei? Que aconteceria se Henrique mandasse vir
cada vez mais mercenários estrangeiros, como o Conde De Guisnes e os seus flamengos? De
Rivaulx cuidara para que todas as fontes de receitas convergissem para as suas mãos e,
enquanto detivesse o cargo, Henrique podia permitir-se comprar tropas no estrangeiro. Bem
financiado, o rei faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para impor o seu domínio,
libertando-se do Conselho, do costume e da tradição. E se levasse a melhor, trataria os seus
inimigos sem piedade.

94
95

Era preciso pensar no fim do conflito antes dele começar. Não era a sua própria vida
nem o seu próprio destino que estavam em jogo agora; era o reino de David, o sonho do País
de Gales. Caso se aliasse a eles agora, os seguiria até o fim, venceria ou seria derrotado com
eles. Seja! E agora, pensou satisfeito com a sua decisão, vamos nos concentrar nos
pormenores, para sermos nós os vencedores e não os vencidos.
─ Vou precisar de algum tempo para colocar o meu exército no terreno ─ disse
calmamente. ─ Mas não de tanto como Henrique irá precisar para reunir os senhores das
fronteiras. No fim do mês estarei preparado para cobrir o flanco do seu senhor contra um
ataque lançado a partir de Shropshire e Herefordshire, sem deixar as minhas terras
desprotegidas.
Feliz, entusiasmado e pronto para a ação, Llewelyn colocou as mãos sobre a mesa e
empurrou a cadeira para trás.
─ Pode dizer ao Conde de Pembroke que a minha resposta é sim. Antes do fim de
outubro anunciarei a minha aliança com ele e conduzirei Gwynedd para a guerra.
─ Eu sabia que podíamos contar com o senhor ─ declarou Delahaye, inflamado como
uma fogueira de tojo*.
Restava apenas garantir que seriam bem sucedidos. De olhos brilhantes Llewelyn
pensou nas semanas seguintes, avaliando as tropas de Corbett, Lacy e FitzAlan, nas suas
fronteiras. Todas menos as de Parfois. Se Harry estivesse certo, Harry era bastante esperto e
não havia faltado oportunidade para ele avaliar a situação, Parfois abrigava no seu seio as
sementes de uma guerra interna. Se Ralf Isambard mantivesse a sua posição, Henrique nunca
o chamaria para o seu serviço; não sabia avaliar os homens e não confiava nele. Mas se Ralf
Isambard deixasse a sua autoridade escapar-lhe entre os dedos...
─ Cego! ─ exclamou Llewelyn, chocado com a imagem inconcebível de uma
escuridão total. ─ Deus sabe que nem nos piores momentos lhe desejei tal sorte!
A brisa fria do cair da tarde sobre os contrafortes de Moei Wnion trazia consigo o odor
salgado e o lamento melancólico da maré vazante sobre as areias de Lavan. Do outro lado do
estreito todos os sinos dos oratórios de Ynys Lanog repicaram, num coro tênue e hesitante,
que era uma vaga reminiscência de um sonho distante de sinos.
O Santo Clydog estava junto à soleira da porta quando os ouviu e, por um momento,
ficou ali parado, sem saber se lhe diziam que avançasse ou recuasse. O som possuía uma
doçura semelhante à de uma promessa de felicidade, ainda que muito distante, mas também
possuía uma tristeza semelhante à da derradeira convulsão de um desgosto não esquecido. O
Santo Clydog perscrutou a obscuridade, na qual palpitava a promessa de luz, mas os seus
olhos ainda eram terrenos demais e não conseguia ver a claridade além dela. Olhou por cima
do ombro, para crepúsculo, mas a sua visão já fora perturbada por aquela imagem de luz irreal
e as formas do mundo real lhe escapavam.
Afinal não havia mais qualquer razão para continuar ali. As formas do mundo eram as
formas do vazio e da perda. Não havia luz na cabana de pedra, nem ruído de passos na soleira
da porta, nem vozes de madrugada. Não havia mais nada para dizer, mais nada para fazer,
mais ninguém por quem esperar. Fora inútil ter esperado por Harry.
O mar lamentava-se, a noite caía, o frio, a solidão e o desgosto montavam guarda
silenciosamente nas suas costas. E o anjo que vigiava o seu sono e o seu despertar o fez passar
a soleira da porta, confortando-o ternamente, dizendo-lhe que a mulher o seguiria em breve. O
Santo Clydog não voltou a olhar para o local desolado onde ela vivera. Seguiu em frente,
surdo às vozes que o incitavam a voltar, insensível às mãos que o seguravam, livre de todas as
preces, aliviado das ofertas, vigílias e visões. Franqueou a porta das trevas, cruzou o limiar do
seu túmulo ainda por abrir e o tempo fechou-se atrás de si, tão suavemente que ninguém
soube o momento exato em que o trinco se fechou.
Uma hora mais tarde, ao chegar lá em cima para deitá-lo, o rapaz que o servia

95
96

encontrou apenas um monte de ossos de passarinho, caído sobre a relva.

* Tojo – planta espinhosa de flores amarelas (N. da T.)


CAPÍTULO SETE

Parfois, outubro a novembro de 1233

Encontraram o seu rastro em Dolgynwal e o seguiram ao longo de uma boa parte do


caminho, galopando a toda a velocidade e tirando todo o partido da ordem de Llewelyn, para
trocar de montaria sempre que as suas se mostravam cansadas e houvesse outros cavalos
disponíveis. Em Meifod, Madonna Benedetta levava apenas algumas horas de avanço e Harry
começou a acreditar que acabariam por alcançá-la. Por que ia ela tão depressa? Era-lhe difícil
acreditar que uma mulher pudesse manter a dianteira que levava, tendo ele cavalgado Gales a
fora de dia e de noite, sem dormir, a não ser por alguns breves instantes de repouso roubados
aqui ou ali. O coração dizia-lhe que ela se apressava assim por sua causa e isso ainda o
impelia a ir mais depressa.
De repente, em Strata Marcella, perderam-lhe o rasto. Seria possível que a tivessem
ultrapassado enquanto ela descansava numa fazendola? Harry mandou dois dos seis homens
voltarem para procurarem por ela de um lado e do outro do caminho; ordenou a outros dois
que seguissem em frente diretamente para o sopé da rampa que conduzia a Parfois e
observassem de perto todas as pessoas que se aproximassem do posto avançado da guarda.
Ele próprio e os dois homens que restavam rumaram para o sul, em direção a Castell Coch,
depois de Pool, não fosse ela ter escolhido atravessar o Severn pelo vau sul e não pelo vau
norte. Furioso contra si mesmo, culpando-se pela pressa, pelo ardor e pela devoção de
Madonna Benedetta e pelo seu próprio atraso, Harry chegou a Castell Coch ao cair da noite,
oscilando sobre a sela. Sim, Madonna Benedetta passara por lá; não, já não estava lá. Não
quisera dormir ali e voltara a partir um pouco antes do crepúsculo, ou seja, fazia uma hora.
Harry fez o cavalo dar meia-volta e seguiu para o vau de Pool. O Severn ainda mal
ultrapassava o seu nível habitual de verão. Passaram para a outra margem e atravessaram os
charcos prateados da zona alagadiça; mal o solo se tornou mais firme Harry lançou-se
novamente a galope pelo caminho verdejante que subia do rio até chegar aos contrafortes de
Long Mountain e depois pela rampa que ia dar a Parfois. Ali um dos seus homens saltou do
meio das árvores e fez-lhe sinal para parar.
Apesar de toda a sua pressa, haviam chegado tarde demais. Madonna Benedetta
estivera sempre à frente deles e já entrara em Parfois.
─ Meu querido e amado filho ─ suspirou Isambard. ─ Você está desperdiçando o seu
tempo e o meu. Não que esteja me queixando; disponho de todo o tempo e, pensando bem,
posso dispensar-lhe algumas horas de boa vontade. Mas se espera obter de mim aquilo que
ambiciona, não vai consegui-lo por estes meios. Avisei-o logo que chegou, de que não darei
nada... aquilo que você quer de mim, só o obterá pela força. Pedir não lhe serve de nada.
Pensa bem, caríssimo: se assinasse e selasse a sua herança ficaria privado destes consolos

96
97

diários, da sua doce companhia, da sua solicitude filial. Gosto de ouvir a sua voz mesmo que
o assunto seja sempre um só.
─ Há mais de uma maneira de fazer perguntas como você ainda poderá perceber,
meu bem-amado pai. O seu avô legou-nos um belo equipamento de meios de persuasão e eles
ainda estão ali, debaixo da torre da guarda. Pode acontecer que eu tenha necessidade de
recorrer a eles.
─ Não me parece. Se ousasse fazê-lo, você já os teria utilizado a muito. Não que
houvesse ganhado alguma coisa com isso, eu lhe garanto. Não, penso que você desistiu de
quebrar-me os ossos ou de flagelar-me a carne pela mesma razão que o impede de me atirar
para um buraco onde eu me transformaria num velho tonto e mal cheiroso, ou de me fazer
passar fome até eu ouvir a voz da razão. É porque, a qualquer momento, você pode ser
obrigado a mostrar-me aos olhos do mundo, são, salvo e reconhecível. Se Paunton, d'Enville
ou qualquer outro dos meus castelões não exigir ver-me, pode muito bem acontecer que essa
exigência seja feita por um enviado do Rei Henrique que passe por aqui. Em qualquer um
desses casos você ficaria numa posição embaraçosa se não me mantivesse apresentável todos
os dias, a toda a hora.
─ O senhor está muito enganado em me ameaçar com o Rei Henrique ─ observou
William, com um sorriso sardônico. ─ É bem sabido qual de nós goza dos seus favores. O rei
autorizou-me a tomar Parfois e a colocar aqui uma guarnição para lutar contra os galeses, com
ou sem o seu consentimento. Ainda pensa que ele mexeria um dedo pelo senhor?
─ Por mim não, William. Por mim não... mas por ele próprio, como você vai ver. Ah,
claro que Henrique não ficaria descontente se você me maltratasse um pouco. Mas ficaria
certamente embaraçado, se você fosse obrigado a mostrar-me ao mundo numa padiola, por
alguns dos meus ossos estarem fora do lugar. Ele comprometeu-se com você, William, ao
nomeá-lo seu castelão em Parfois, mas é melhor que você não o comprometa muito, nem de
forma irrevogável demais.
Isambard passou os dedos compridos sobre o queixo bem barbeado, bocejou,
continuou a fitar a cadeira do filho e, com um sorriso exasperante, acrescentou:
─ Envolve-o num assassínio quando ele, expressamente, só autorizou você a cometer
um roubo e verá como o cordeiro se transforma em tigre para se defender. Você ainda não o
conhece tão bem como eu, William. Se o comprometer, ele o perseguirá até à morte.
─ Isso poderá não ser necessário. Há muitas maneiras de justificar um ferimento. Uma
queda... às vezes, os cegos aventuram-se demais e caem ─ replicou William, num tom
pensativo e bem disposto.
Os ecos daquele quarto pequeno e nu, no alto da torre, ainda não haviam se tornado
familiares aos ouvidos de Isambard, acostumados aos vastos aposentos do andar de baixo que
durante tantos anos ocupara. Era característico de William ter se apropriado precisamente
desses aposentos entre tantos que poderia haver escolhido; mas não se tratava só de vaidade
ou despeito. Daqueles aposentos era possível controlar aquela escada isolada e o quarto bem
guardado que ficava no alto delas. Ninguém tinha acesso a ele sem autorização de William.
─ E, quando caem costumam deslocar os pulsos e os tornozelos ou esmagar alguns
dedos? Não, você não é nenhum imbecil. O rumor de um escândalo bastaria para o rei tirar o
tapete debaixo dos seus pés e deixá-lo pagar o erro sozinho. Você sabe disso. Além disso, não
é o que você deseja. Você quer o título e o direito de usá-lo de um modo tão claro que
ninguém possa apontar-lhe o dedo. O rei pode entregar a você o comando do meu castelo em
nome da segurança de Inglaterra, mas não pode lhe conceder o título. Enquanto for vivo, só eu
posso dá-lo. Só eu! ─ repetiu Isambard com enorme contentamento.
Em seguida soltou uma gargalhada ao ouvir o rugido da seda quando William saltou
da cadeira e começou a andar de um lado para o outro. O rosto cego acompanhou-lhe os
movimentos.

97
98

─ E não o darei ─ acrescentou Isambard.


─ Tem certeza, meu bem-amado pai? Juro que acabará por fazê-lo e ainda me
agradecerá por isso. Cederá os seus direitos em vida e em plena consciência, por um
documento assinado e selado. Ofereci-lhe boas condições: um retiro honroso em Erington,
Mormesnil ou outro domínio à sua escolha, uma casa com pessoal suficiente e tudo quanto
pudesse precisar. Mas retiro a oferta.
Os passos nervosos pararam abruptamente. Uma mão agarrou o pulso do velho e sacudiu-o
com força. Isambard sentiu a sombra corpulenta do filho inclinar-se sobre si.
─ Agora o senhor me cederá os seus bens, pertences, terras e homens, segundo as
minhas novas condições, e viverá o que lhe resta viver da minha caridade. Ainda verei a sua
assinatura e o seu selo apostos ao documento, por mais tormentos que isso lhe possa custar e
por mais aborrecimentos que isso possa me trazer. Está ouvindo?
Mas William sabia que não o faria. Ameaçar era fácil, mas havia uma boa dose de
verdade nas palavras do velho. Henrique podia desejar que Isambard morresse, mas para sua
própria proteção se voltaria contra quem o matasse; Henrique podia acariciar a idéia de
infligir um sofrimento moralizador ao homem que o admoestara diante da sua corte, mas seria
o primeiro a soltar exclamações de horror diante do ato consumado e, se os fatos viessem à
luz do dia, soltaria os cães para dar caça a quem o consumara. De que outro modo poderia
furtar-se à vergonha e ao perigo de se ver envolvido num assassinato? Henrique nunca fora de
confiança quando as coisas corriam mal e também não seria de confiança agora.
Isambard libertou-se da mão desagradável de William com uma torção violenta e
limpou o pulso para eliminar os vestígios daquele toque.
─ Já ouvi as suas bravatas ─ disse com desdém. ─ Vamos ver se você é capaz de
colocá-las em prática. Aqui me tem. Obrigue-me a fazer o que você quer!
Há quantos dias desafiava a mesma ameaça? As trevas em que vivia haviam-no feito
perder a conta dos dias e os criados que o vestiam, lavavam e barbeavam escrupulosamente,
que lhe davam de comer e de beber e lhe satisfaziam as necessidades tinham recebido ordens
para não lhe fornecer nada que não fosse necessário. Uma notícia, uma mensagem do exterior,
uma arma, coisa que, aliás, nunca pedira, pois sabia que não a dariam. Alguma vez pedira
favores a alguém? Podia muito bem subsistir tal como estava, sem amigos. Era melhor assim.
Qualquer que fosse a pressão, seria exercida apenas sobre ele. Por isso, o impasse era total.
Não podia impedir William de estabelecer a sua autoridade sobre Parfois e William não podia
arrancar-lhe a concessão que daria a força do direito àquela expropriação ilegítima. Não
assinara nada nem colocara o seu selo em documento algum. Na torre principal do seu espírito
solitário continuava a ser o senhor de Parfois.
Bateram à porta. Duas batidas leves como era costume de De Guichet. Isambard foi o
primeiro a ouvi-las e susteve a respiração para captar e decifrar os sons que eram agora as
únicas formas de comunicação do seu ser mergulhado nas trevas com o mundo exterior.
Ninguém suspeitava de como o seu ouvido se tornara apurado, senão evitariam até mesmo
sussurrar perto dele.
─ O Blount diz que tem notícias para o senhor. Uma coisa importante...
─ Agora não. Ele que espere.
─ Senhor, diz respeito a...
A frase ficou em suspenso, a menos que o significado do silêncio a concluísse. Um
olhar lançado na sua direção, um arquear de sobrancelhas. Isambard agarrou com força os
braços da cadeira, tenso como um arco. Diz respeito a mim; diz respeito à questão entre mim
e o William. Porque porta esquecida eles tentam entrar agora?
A porta fechou-se atrás de William e De Guichet. Isambard pôs-se de pé de um salto,
como um gato, e atravessou o quarto estendendo a mão esquerda para detectar e contornar a
mesa, a palma da mão direita bem aberta diante de si para encontrar as almofadas da porta.

98
99

Encostou o ouvido à madeira e ficou escutando, mas eles haviam tomado a precaução de se
afastar da sua prisão e apenas conseguia ouvir o ligeiro movimento da sentinela que deslocava
o peso do corpo ora para um pé ora para outro, diante da porta. Com todos os sentidos alerta
tentou captar o menor ruído, uma mera palavra. O murmúrio não era muito distante, mas era
baixo demais para possuir qualquer significado. Então, subitamente, a voz de William ergueu-
se colérica acima dos sussurros:
─ Idiota! O que você sabe disso? Mal tinha nascido ainda. Por mais que se esforce só
o fará rir. Que mal poderá fazer-lhe que ele já não tenha feito a si mesmo?
Thomas. Sempre Thomas, o incansável Thomas, o ambicioso Thomas! Graças a Deus,
a voz dele era aguda como a de uma moça, tornando-se esganiçada quando sentia medo ou
indignação e ouvia-se muito melhor do que a voz de baixo de De Guichet. Naquele momento
Thomas estava assustado e indignado, pipilava como um pássaro espavorido e eriçado.
─ Eu estava lá, senhor. Vi muito bem a cara dele.
Uma voz de quem sente esperança, veemente, segura de si apesar das dúvidas que
inspirava.
─ Se aquilo era ódio...
A voz de Thomas foi abafada, alguém lhe ordenou que baixasse o tom. Mas um
instante mais tarde voltou a gritar:
─ Pelo menos experimente isso!
Um silêncio, uma imobilidade que não era necessário tentar interpretar; experimente
isso... fosse o que fosse, por que não? Fosse o que fosse eles não tinham mais nada.
Iam voltar. A sentinela colocou a mão na fechadura e girou a chave pesada. Era aviso
suficiente. Isambard tateou o caminho de volta ao assento e, cautelosamente, afixou no rosto
uma máscara inexpressiva, destinada a convencer a eles e a si mesmo. Ninguém melhor do
que ele sabia até que ponto as tensões do corpo podem nos trair.
Quando entraram ele estava preparado. O ruído da tranca de madeira, o estalido surdo
e denso da porta, os passos. Quantos? Isambard contou três maneiras de andar diferentes. O
jovem Thomas ganhara a sua recompensa; fora autorizado a entrar, colado aos calcanhares do
seu novo senhor, para regalar os olhos perante a impotência do seu antigo senhor. Já era um
grande favor, mas se a sua armadilha, fosse ela qual fosse, desse resultado, não havia
alternativa senão passarem a confiar nele. Se não resultasse então podiam ameaçá-lo ou
descartar-se dele. Seria melhor William não subestimar Thomas, pensou Isambard, com um
sorriso um pouco amargo, recordando-se do aviso de Harry. Ao seu inimigo, santo Deus! Os
doutores de todas as escolas encontrariam matéria de debate para uma vida inteira se
tentassem compreender como podia a essência do combate de um homem escapar debaixo dos
pés, levando-o a defender o seu inimigo contra o mundo inteiro; mas Harry deixara-se arrastar
pelo seu coração confiante, fizera aquilo que este lhe aconselhara e a sua sabedoria e
simplicidade estavam além do alcance dos filósofos. Isambard tateou a face magra com a
ponta dos dedos e percebeu como o seu sorriso era crispado. Pouco importava. Com as janelas
dos olhos fechadas, as possibilidades de se trair eram menos numerosas e menos perigosas.
─ Parece que perdemos o nosso tempo discutindo formas e meios ─ disse William
numa voz suave, calculada, sorridente.
Justiça lhe fosse feita; se duvidava da arma de que dispunha não o deixava
transparecer; movia-se com a tranqüilidade e a calma de um senhor.
─ Chegou uma visita que vai alterar o seu estado de espírito, sem qualquer esforço da
minha parte. Uma visita para o senhor, meu querido pai. Lembra-se de tê-la convidado? Uma
certa dama que, em outros tempos, o conheceu bem demais para sua própria segurança e que
achou melhor refugiar-se em Gales. Ah, estou vendo que se lembra!
William não via nada, porque não havia nada para ver. Nem um músculo da máscara
de bronze se moveu até Isambard permitir que as suas sobrancelhas arrogantes se erguessem

99
100

numa interrogação muda; nada mais.


─ Não é seu hábito falar por enigmas, William. Vamos direto ao assunto, para que eu
possa responder com conhecimento de causa. Não estou à espera de nenhuma visita e não
convidei ninguém.
─ Foi na igreja, senhor, eu ouvi tudo ─ interveio Thomas, impaciente. ─ Ele mandou-
lhe uma mensagem dizendo para ela se entregar no lugar de Harry Talvace. E mandou-lhe o
anel como penhor. Como o mensageiro foi morto ele deve ter enviado outro.
Outro mensageiro! Então eles não sabiam de nada e, graças a Deus, as informações de
que dispunham não haviam sido dadas por Walter. O incansável Thomas, por trás do portal da
igreja com o ouvido colado à porta, armazenando todas as migalhas que talvez um dia
pudessem servir para destruir o seu bem-amado senhor. Era essa a origem da informação,
pensou Isambard, na esperança de que eles só dispusessem de informação. A armadilha era
bastante grosseira, uma vez que bastava um olhar arguto para perceber o que significara para
ele ouvir o nome dela e ver o seu anel. “Eu estava lá, senhor. Vi bem a cara dele. Se aquilo
era ódio...” E William, que algumas vezes se sentara à mesma mesa que Benedetta e lhe
guardava rancor pelos presentes que o pai lhe oferecia; William que sabia como tudo
terminara: "Idiota! O que você sabe disso? Mal tinha nascido ainda. Por mais que se esforce
só o fará rir. Que mal poderá fazer-lhe que ele já não tenha feito a si mesmo?”
Isambard reconheceu a verdade do ataque, mas respirou melhor, tinha quase certeza
de que se tratava de um truque. Não ia precisar ceder uma polegada. Não chegara nenhuma
visita. Como seria possível? O Harry a encontrara no caminho e a levara a salvo para casa.
─ Idiota! O que você sabe disso? Mal tinha nascido ainda. Por mais que se esforce só
o fará rir. Que mal poderá fazer-lhe que ele já não tenha feito a si mesmo?
─ Ela trouxe de volta o seu penhor ─ anunciou William numa voz doce como o mel.
Agarrando a mão do pai, abriu-a. Isambard sentiu uma coisa pequena e dura cair-lhe
na palma da mão e, involuntariamente, os seus dedos fecharam-se sobre ela. O
reconhecimento foi imediato e doloroso. As facetas do rubi morderam-lhe a mão como presas
de um animal. Como era possível? Walter entregara o anel; como ele voltara até ali? Teria
alguma outra explicação além daquela que se recusava a admitir? E se Benedetta se
encontrava em Parfois qual seria o melhor modo de manipular a relação ambivalente de amor
e ódio de forma a convencê-los de que haviam errado os cálculos e o seu instrumento era
ineficaz?
─ Ah, isso! ─ disse, recuperando o controle das mãos e fazendo o anel girar na palma
da mão, antes de colocá-lo no dedo. ─ Tinha me esquecido. Agora as pequenas vinganças já
não importam muito. Quase não valeria a pena desforrar-me dela. Acabei libertando o Harry
sem exigir resgate. Que mensagem ela mandou com o anel? Disse que me perdoa? Se a
memória não me falha ela sempre quis ter a última palavra.
Riu-se. Não foi difícil; o silêncio deles parecia-lhe tão estúpido, os seus sobressaltos
de dúvida tão palpáveis. O anel não passava pela articulação do dedo. O fez girar com um
gesto indiferente, voltou a tirá-lo e, suavemente, rolou-o sobre a mesa.
─ As minhas articulações estão velhas e inchadas. Afinal você sempre vai herdar
alguma coisa, William. Trouxe este anel de Acra, quando regressei da Cruzada... a pedra é
boa. Fique com ele, se lhe servir. Ou pode dá-lo como pagamento ao Thomas, se achar que a
história dele vale isso. Quanto a mim, penso que seria uma recompensa excessiva.
Assolados pela dúvida, os três sondaram-lhe longamente o rosto; o próprio Thomas
estava abalado.
─ Idiota ─ disse William, lançando um olhar carrancudo ao jovem pajem. ─ Eu não
disse que isto não ia abalá-lo?
─ Ele está mentindo, senhor ─ defendeu-se Thomas.
A apreensão tornara ainda mais aguda a sua voz efeminada; não eram propriamente

100
101

rubis o que poderia esperar se a sua história se revelasse inútil.


─ Eu vi a cara dele e ouvi a sua voz naquele dia. Sei que ele estava inquieto por causa
dela. Seja o que for que tenha acontecido entre ambos, outrora, seja o que for que ela lhe
tenha feito ou ele a ela, ainda a traz no coração.
─ Ainda podemos pôr isso à prova ─ disse De Guichet em voz muito baixa.
Aquelas palavras destinavam-se apenas ao seu senhor, mas Isambard ouviu-as. O mais
terrível era que, não lhe sendo destinadas, deviam ser verdadeiras. Era então verdade que
Benedetta estava ali nas mãos deles? Ou seria aquele sussurro destinado aos ouvidos de
Isambard? Não, a sutileza de De Guichet não ia tão longe.
─ É verdade ─ concedeu William, mais calmo. ─ É muito fácil pôr a sua indiferença à
prova, meu querido pai. Não podemos deixar marcas no senhor, mas nada nos impede de
deixá-las nela. Que diria o senhor de ir conosco às celas da torre da guarda, para
convencermos a dama a implorar a sua assinatura e o seu selo? Assim poderíamos descobrir
até que ponto ela lhe é indiferente.
─ Julgava que você já sabia ─ suspirou Isambard, bocejando. ─ Disseram muitas
coisas curiosas a meu respeito, mas penso que nunca ninguém afirmou que era meu costume
atirar os amigos ao Severn.
─ Então, se a sua disposição continua a ser a mesma, podemos todos nós passar uma
ou duas horas bastante agradáveis. É certo que os seus olhos já não lhe permitem ver, mas
cuidaremos para que ouças bem. E ─ acrescentou William ternamente ─ levaremos conosco o
documento de cessão para o caso da emoção o aconselhar a assinar de livre vontade, por
caridade para com uma mulher que odeia.
William poria em prática a ameaça? Por que não, uma vez que desejava a todo o custo
obter aquilo que queria? Ela estava à mercê de William e nada o impedia de se servir dela;
aliás, entre o rebuliço da guerra civil, quem viria questionar suficientemente os seus atos para
fazê-lo pagar por eles? Talvez naquele momento William já soubesse que não precisava ir
muito longe.
Por um momento Isambard manteve-se em silêncio ponderando, escondido sob uma
expressão calma e fechada, os caminhos que lhe restavam e pareceu-lhe que as suas defesas
exteriores haviam caído por terra no momento em que Benedetta passara pela porta do
castelo. Poderia comprar-lhe mais do que uma segurança precária, renunciando ao título?
Duvidava. Se descobrissem o valor de Benedetta como arma, nunca a deixariam partir
enquanto precisassem manter o domínio sobre ele e enquanto ela estivesse nas mãos deles
poderiam obter dele tudo o que quisessem. Eles ainda não sabiam isso, mas ele o sabia e tinha
de levar em conta esse fato. Isambard sorriu. Se lhe fosse concedido um tempo de vida
suplementar, talvez aprendesse a seguir a voz do coração tão impetuosamente como Harry, e,
como este, sem questioná-la ou contrariá-la.
Só havia duas coisas a fazer. Em primeiro lugar certificar-se, sem margem para
dúvidas, de que Benedetta se encontrava em poder deles; em segundo lugar dar o que fosse
necessário para protegê-la se não conseguisse libertá-la. Entregar o seu feudo em documento
selado e assinado. Prometer-lhes a sua própria submissão e o seu bom comportamento
enquanto eles a tratassem bem e lhe dessem provas disso.
─ Ainda não acredito que Madonna Benedetta esteja aqui ─ disse em voz decidida. ─
Se é assim, traga-a a minha presença.
─ Ah, não! Isso não, meu querido pai. Respeito demais os seus talentos para deixá-lo
falar com ela.
─ Santo Deus, William! Pensava que você possuía controle suficiente sobre mim. Que
mal posso fazer se falar com ela?
─ Isso eu não sei e esse é o problema. Se me permite, não vou correr o risco de vê-lo
trocar segredos debaixo do meu nariz. Perdoe-me a crueza, mas no estado em que o senhor se

101
102

encontra, não posso mostrá-la de uma janela.


─ Então a traga aqui para que eu possa ouvir você falar com ela e me darei por
satisfeito.
─ Por que não? ─ interveio De Guichet após um instante de reflexão silenciosa. ─ Ela
está lá embaixo na sala grande. O levamos até o alto das escadas e assim poderá ouvir-lhe a
voz sem ela desconfiar. Vá lá para baixo ao encontro dela e deixe a porta aberta. Assim ele
terá a prova que deseja.
Chamaram os guardas para o agarrarem pelos braços antes mesmo dele se levantar da
cadeira, pois ainda temiam a sua força e a sua sagacidade. Isambard acompanhou-os
docilmente, desceu com hesitação a escada de pedra em espiral, tateando com os dedos dos
pés em busca da parte mais larga dos degraus e apoiando-se nos guardas; era melhor mostrar-
se mais impotente do que na realidade estava. Thomas ia à frente, num passo ligeiro, satisfeito
consigo mesmo e já seguro da sua recompensa.
Obrigaram o prisioneiro a parar junto ao corrimão de pedra do lance inferior das
escadas, diante da porta do que outrora fora o seu quarto e, com uma simpatia instintiva, um
dos guardas guiou-lhe a mão hesitante para o corrimão. Isambard ouviu William descer os
últimos degraus sem pressa, ouviu abrir-se a porta da sala grande. Mentalmente reviu as
tapeçarias desbotadas que absorviam e amorteciam a luz que entrava pelas frestas, as cadeiras
trabalhadas, altas e pesadas, que mais pareciam fantasmas nos cantos mais escuros. E
Benedetta no meio da sala, voltada para a porta, esperando o homem que não iria ver.
Naquele momento viu-a claramente: uma figura alta e imponente, de movimentos
amplos e generosos, de uma calma régia que imprimia grandeza e valor a tudo quanto fazia,
pensava ou dizia; uma mulher, uma torre, um mundo.
─ Seja bem-vinda a Parfois, senhora ─ saudou William numa voz que ecoava
ligeiramente no vasto aposento de tetos altos.
Ela disse: ─ Agradeço-lhe.
Foi quanto bastou. Mesmo após tão longa ausência a sua voz inconfundível não
mudara, continuava clara.
─ Vim por desejo do seu pai. Não esperava encontrá-lo aqui. Ele ainda está muito
doente?
─ Não gravemente ─ respondeu William, certamente com um sorriso dissimulado nos
olhos, se ela soubesse como interpretá-lo. ─ O seu correio não disse o que lhe aconteceu? O
meu pai perdeu a visão.
─ Disse-me que era de recear que isso acontecesse ─ disse Benedetta em voz baixa. ─
Posso vê-lo?
─ Lamento, mas por ora não. Ele ainda não está suficientemente bem para receber
visitas e eu estou aqui como castelão do rei, no seu lugar. Vou mandar preparar os seus
aposentos e, se a senhora for paciente e esperar um pouco, com certeza ele ficará melhor.
Um momento de silêncio; não de indecisão, mas de reflexão. Depois a voz clara
observou calmamente:
─ No entanto a sua mensagem era bem lúcida, uma mensagem de alguém consciente
dos seus atos. E isso foi no dia em que foi ferido.
─ Sofre de febre desde então ─ replicou William, um pouco depressa demais. ─ Logo
que esteja restabelecido a senhora poderá vê-lo.
─ Você veio agora da sua cabeceira? ─ perguntou Benedetta num tom tão doce e tão
seco, que a ironia era evidente. ─ Fico satisfeita por ele poder contar com um filho tão
devotado, que o aliviou do fardo dos seus deveres.
Benedetta estava desconfiada, não acreditava em William. Não se esquecera de nada,
não perdera a sua sagacidade, continuava a ser capaz de ler num homem como num livro
aberto e de pô-lo a nu.

102
103

─ Lorde Isambard fez um acordo comigo ─ disse ela. ─ Espero que você o honre em
seu nome. Prometeu que, se eu viesse para Parfois para ocupar o seu lugar, libertaria Harry
Talvace. Pergunte-lhe e ele confirmará. Pergunte-lhe e mande o rapaz embora.
As mãos de Isambard crisparam-se sobre a pedra. Ela não sabia. Em qualquer ponto do
caminho, Benedetta e Harry haviam passado um pelo outro sem se verem. Por que obra do
acaso, não era capaz de adivinhar. E viera para libertar o jovem, acabando por encontrar o
captor feito cativo. Que angústia não estaria ela experimentando agora pela criança recém-
nascida que, tantos anos antes, levara nos braços até Shrewsbury, a fim de colocá-la sob a
proteção de Llewelyn! E William nada lhe diria! Iria guardar a nova arma em reserva no
arsenal das suas armas invisíveis para usar mais tarde, se necessário.
─ Com certeza poderemos discutir isso amanhã. Agora a senhora deve estar fatigada e
mais um dia ou dois não fará diferença. Amanhã poderemos falar com o meu pai sobre o
rapaz.
─ O Harry está bem? ─ perguntou Benedetta, irritada e receosa.
─ Está muito bem.
─ Posso vê-lo?
─ Mais tarde, depois de ter descansado.
Iria Benedetta contentar-se com aquela resposta, dormir descansada e repetir a mesma
pergunta, dia após dia, obtendo apenas por resposta um “talvez”, “mais tarde”, “amanhã”, até
as evasivas resultarem na certeza de que algum mal acontecera a Harry? Podia pelo menos
poupá-la, tranqüilizando-lhe o espírito e o coração quanto à sorte do jovem. Isambard
calculou os segundos e as palavras, o tempo que uma mão demoraria a deslocar-se do seu
braço até à sua boca. Quantas palavras poderia ter a frase da sua derradeira comunicação com
ela? Talvez estivesse aumentando ligeiramente o perigo que Benedetta corria, mas aquilo que
agora se perdesse poderia ser recuperado quando ele entregasse o seu selo e se despojasse de
tudo; no entanto ela poderia dormir serenamente e dar graças a Deus por Harry se encontrar
longe daquela guerra.
Isambard debruçou-se sobre a balaustrada e, subitamente, abriu os braços fazendo os
seus guardas se desequilibrarem. Então, em voz sonora, gritou para o poço das escadas:
─ O Harry está a salvo. Eu mandei-o...
Apenas aquelas palavras e logo uma mão lhe tapou a boca. Sacudindo-a, conseguiu
acrescentar:
─ ... mandei-o ao encontro...
Foi tudo. Arrastaram-no para trás pelos dois braços, um braço forte dentro de uma
manga de tecido amordaçou-lhe a boca. De Guichet agarrou-o pelos cabelos, puxando-lhe a
cabeça para trás. Benedetta gritou:
─ Ralf!
Isambard ficou pelo menos sabendo que ela o ouvira. Lá em baixo soaram passos
apressados e uma porta bateu. Em seguida foi derrubado de costas sobre as lajes de pedra e
eles lançaram-se sobre ele; com as forças que lhe restavam ele riu, apesar de ter a boca tapada
com uma prega do seu próprio casaco. Uma mão atingiu-o no rosto num golpe tão patético e
maldoso que só poderia ter partido de Thomas. Por que haveria Thomas de privar-se daquele
pequeno prazer?
Levaram-no pelas escadas acima sem grandes delicadezas. Atiraram-no para cima da
cadeira e tremendo, amaldiçoando-o em voz baixa e rancorosa, fecharam a porta.
Isambard limpou um fio de sangue do canto dos lábios e endireitou o casaco. Mal
havia recuperado o fôlego suficiente para voltar a falar e já William estava à porta e se
precipitava sobre ele. A sua raiva era perceptível embora conseguisse dominá-la. Numa voz
baixa e sufocada pelo esforço de controle, limitou-se a dizer:
─ Pensa que o que o senhor fez foi sensato?

103
104

─ Sensato não foi, mas pelo menos foi honesto ─ concordou Isambard, continuando a
limpar o lábio. ─ Agora estou pronto para me dedicar à sensatez se você conseguir me provar
que vale a pena. Onde você alojou Benedetta?
─ Onde o senhor não voltará a ouvi-la ─ respondeu William com a respiração pesada.
─ Ah, mas vou precisar ouvi-la ou você não obterá nada de mim. Prometo que não
volto a falar-lhe nem tentar chamar a sua atenção se, pela sua parte, você me der garantias de
que está viva e de boa saúde e de que não foi molestada. Leve-me até onde eu possa ouvi-la
falar uma vez por semana e isso bastará.
─ O senhor pensa que pode permitir-se impor condições?
─ Penso e posso. Se eu sou obrigado a ceder-lhe o meu título e tudo quanto possuo,
preciso obter em troca uma garantia sua e também que você jure que agirá de acordo com ela.
Isambard ouviu o filho respirar fundo, satisfeito, já seguro do seu poder e do valor da
sua refém.
─ A minha palavra não basta? ─ perguntou William com uma indignação hipócrita.
─ Não, meu muito querido filho ─ respondeu Isambard docemente. ─ Já que me
pergunta, eu não arriscaria a vida de um cão contra a sua palavra. É necessário que me jure
que não fará mal a Madonna Benedetta, que a tratará como deve ser e que lhe dará alguma
liberdade de movimentos... ah, não se preocupes, não estou a falar de uma liberdade que lhe
permita vir falar comigo. Já não lhe prometi que não me aproximaria dela?
Nem mesmo ia pedir a libertação de Benedetta. Sabia que esta não seria nem poderia
ser concedida, pelo menos enquanto a abdicação dos seus direitos não fosse pública e aceita,
talvez nem mesmo antes dele estar clara, notória e respeitavelmente morto.
─ Jure que satisfará as minhas exigências em relação a Benedetta ─ disse Isambard
com determinação ─ e você poderá entrar na posse dos meus bens quando quiser. Assino o
documento e entrego-lhe o meu selo.
Harry teria entrado em Parfois atrás de Madonna Benedetta, não fora uma dúvida
surda que lhe queimava violentamente o coração como se fosse uma ferida e que o levou a
esperar pela manhã. Se as coisas em Parfois estivessem como as tinha deixado, nada o
impediria de ir lá e de trazê-la de volta consigo. Mas o desespero que o impelira a correr atrás
dela como correra constituía, em si mesmo, um sinal de que não acreditava que as coisas em
Parfois não houvessem mudado.
Passou a noite enrolado no manto debaixo de uns arbustos, dormitando de vez em
quando por alguns minutos, voltando a acordar em sobressalto e a recriminar-se mais uma vez
por cada instante perdido. Aos primeiros raios de luz da alvorada, levantou-se e subiu entre os
arbustos para fazer o reconhecimento do posto avançado da guarda. Os homens que ali se
encontravam eram desconhecidos; também nunca vira antes o oficial, apesar de ter vivido
quase quatro anos da sua vida naquele castelo e aprendido a conhecer todos os homens da
guarnição. Passou toda a manhã de vigia; já era mais de meio-dia quando viu um cortejo
colorido que descia alegremente por entre as árvores e se abrigou por trás da vegetação mais
densa para vê-lo passar.
Três falcoeiros, dois dos quais conhecidos e um desconhecido, cavaleiros, escudeiros e
pajens cujos rostos reconheceu; a corte de Parfois rodeava o seu novo senhor numa postura
bastante cerimoniosa. No centro de todo aquele esplendor vinha o homem que Harry já
avistara à luz de uma tocha subindo para a sela no pátio exterior, depois de ter dado um beijo
de despedida ao pai como qualquer filho afetuoso.
Imponente e confiante como senhor e proprietário de pleno direito, voltando a cabeça
para passear os olhos pelo seu domínio e sorrindo diante da excelência deste, William
Isambard partiu para uma caçada, no alto de Long Mountain. Ao seu lado, atento e devotado,
presenteando o seu senhor com sorrisos e conversa, vinha Thomas Blount. Thomas, que
nunca dava ponto sem nó. Um e outro irradiavam glória.

104
105

Portanto, não devia precipitar-se para Parfois sob o risco de, se os seus receios
tivessem fundamento, se transformar em mais um refém, em mais uma espada apontada à
garganta do velho. Isso não ajudaria Madonna Benedetta nem serviria para libertá-la; apenas a
privaria de um aliado que ainda podia ser útil se conservasse a liberdade de ação. Tentar
salvar a própria consciência através de um ato de heroísmo desprezível e vão serviria apenas
para agravar o perigo que corriam as pessoas que desejava proteger.
Teria William destituído o pai da sua posição? Ou estaria agindo com prudência,
contentando-se por enquanto com ser apenas o seu mandatário agora que o velho senhor já
não podia ocupar-se dos seus próprios assuntos? A atitude de William era a de um
conquistador. Em qualquer dos casos, os oportunistas o cortejariam como seu senhor de fato.
Teria ele ousado ir ao ponto de depor tão depressa o pai? Antes de qualquer coisa, Harry
precisava de certezas. Não podia ser ele mesmo a entrar e sair de Parfois para ouvir os
rumores, mas tinha quem pudesse fazê-lo. Alguns homens das aldeias tinham parentes dentro
do castelo. Harry não sabia quem eram nem como conquistar a sua confiança, mas conhecia
quem soubesse.
Harry mandou os seus homens descansarem e esperarem por ele em Castell Coch e
seguiu sozinho pelo carreiro junto ao rio, que tão bem conhecia. Ao avistar ao longe, entre as
árvores, o pequeno cercado verdejante e quando sentiu um ligeiro odor de fumaça da lareira,
Harry deteve-se em silêncio no caminho. Aelis estava no pátio tirando as cinzas do fogo, sob
o forno de tijolo onde assara o pão.
Ao vê-la o seu coração se encheu de uma imensa ternura, tão densa que se sentiu
revigorado e exaltado por ter de carregá-la, como um homem incumbido de transportar o
mundo nos ombros. O cabelo louro escuro de Aelis caía-lhe sobre o ombro, preso numa trança
grossa. Estava mais alta e a sua figura esguia, inclinada para a tarefa que executava em gestos
amplos, suaves e ligeiramente cansados, era agora a figura de uma mulher, bela e intimidante.
O seu rosto pensativo apresentava uma expressão misteriosamente triste. Com um misto de
humildade e vaidade, juntou aquela tristeza ao rol das suas culpas. Alguma vez lhe dera
alegria ou conforto? Desde o dia em que ela e o pai o haviam acolhido só lhe causara
preocupações, desgostos e trabalhos.
Harry desejava chamá-la, mas por qualquer razão que não era capaz de compreender, a
idéia de perturbar a concentração delicada com que ela se dedicava à sua tarefa provocava-lhe
medo e vergonha. Como se esperasse que Aelis se voltasse para ele à primeira palavra, como
se ela devesse deixar o que estava fazendo e correr a ajudá-lo. Sabia que estava prestes a
descarregar sobre ela todas as suas preocupações, toda a sua fadiga, para que o confortasse,
quando deveria ter lhe trazido um presente mais agradável, algo que lhe desse prazer e lhe
iluminasse o rosto, em vez de querer as atenções dela. Apesar de orgulhoso demais ou egoísta
demais para fazê-lo abertamente, vinha sempre pedir-lhe alguma coisa; e, no entanto, o seu
ser ansiava por dar em vez de pedir.
Aelis ouviu estalar um ramo sob a ferradura do cavalo, ergueu-se vivamente e voltou-
se para a cancela, alerta, de cabeça erguida, os olhos bem abertos e fixos na abertura entre a
vegetação onde o cavaleiro iria aparecer. O cavalo era de Meifod e ela não o reconheceu.
Imóvel e atenta esperou até poder ver melhor o cavaleiro. Por um momento as folhas e as
sombras ocultaram-no, mas em seguida percebeu quem era. Por qual movimento do seu corpo
cansado sobre a sela, por qual inclinação da sua cabeça, por qual gesto ou postura, quem
poderia saber? Harry continuava a ser apenas um vulto em cima de um cavalo malhado a
umas trinta jardas de distância no carreiro estreito. No entanto, Aelis o reconheceu.
Deixando cair a pá que conservara na mão, por breves instantes Aelis pareceu alongar-
se e crescer, como que para se libertar das altas ervas do tempo que o haviam ocultado dela.
Então, subitamente, o seu rosto iluminou-se de alegria, uma alegria silenciosa mas tão intensa
que Harry não quis acreditar ser ele a sua causa direta e tentou encontrar um motivo melhor:

105
106

piedade fraterna pelo prisioneiro e contentamento por este ter sido libertado, felicidade
altruísta pela sua boa sorte. Não, nem mesmo a sua mãe olhara para ele daquele modo ou
ficara imobilizada por tal arrebatamento de alegria, uma alegria que tinha de ser para ele, pois
não podia ser por causa dele. Por que haveria alguém de sentir uma alegria tão pura por causa
de Harry Talvace?
Sempre que atingia o auge da arrogância ou da aflição, os elogios perturbavam-no.
Diante da exaltação que leu nos olhos que o contemplavam com deleite, o chão pareceu fugir-
lhe sob seus pés e todo o seu corpo estremeceu num arroubo de humildade. Desceu
desajeitadamente da sela, devido à pressa e ao cansaço, correu para ela e caiu-lhe aos pés
como um pássaro ferido em pleno vôo. Aelis lançara-se ao seu encontro, mas Harry deixou-se
escorregar entre os seus braços, segurou-lhe as mãos e encostou-as às faces, à testa, às
pálpebras.
─ Oh, Aelis! Aelis! ─ murmurou Harry numa voz que não passava de um sopro
quente sobre a palma da mão dela.
─ É você mesmo, Harry? Desta vez é verdade? Foi libertado?
Num acesso de ternura, soltou as mãos das dele para melhor lhe acariciar o rosto e,
num gesto maternal de mãos que não muito tempo antes eram as de uma criança, afastou-lhe
da testa uma madeixa de cabelo castanho.
─ Ainda não. Não completamente. Havia uma coisa que me incumbiram de fazer e eu
falhei. Agora, preciso reparar o meu erro...
─ Mas não precisa voltar para lá, não é? ─ perguntou Aelis numa voz premente e
assustada em que transparecia o ciúme, pegando-lhe o queixo e erguendo-lhe o rosto para fitá-
lo nos olhos. ─ Não foi libertado só para ir para a guerra como da outra vez, não é? Ah, por
que foi que você mentiu aquela vez? Esperei, esperei, e nem uma palavra. Não seria capaz de
me fazer isso outra vez, não é? Se você tivesse de voltar para Parfois me diria?
─ Diria sim, claro que lhe diria. Mas desta vez, é diferente. Foi-me concedida a
liberdade, mas não estou livre.
Eram tantas as coisas que tinha para lhe contar que o sentido das palavras que Aelis
pronunciara só lentamente lhe penetrou no espírito. Quando por fim as compreendeu, o
choque de excitação e ardor foi brutal, levando-o a pôr-se de pé de um salto.
─ Ir para a guerra, você disse? Então rebentou? Já estamos em guerra?
─ Era o rumor que corria hoje em Castell Coch. O moleiro foi lá levar farinha e trouxe
a notícia. Dizem que o seu príncipe tomou o partido do conde marechal e levou a sua tropa
para o sul, para Builth. Acha que é verdade? Pode ser verdade?
─ Pode ─ respondeu Harry momentaneamente distraído, absorvido pelas incertezas do
futuro.
Se o príncipe pegara em armas, o seu filho adotivo tinha um exército atrás de si.
─ Sim, pode ser verdade ─ acrescentou, estremecendo.
Só tarde demais reparou na tristeza serena, de mulher, visível nos olhos de Aelis que,
sem se queixar, já se preparava para uma nova espera. A princesa a avisara. Se quisermos
conservá-los é preciso aceitá-los como eles são.
─ É melhor você entrar e me contar o que tem que fazer ─ disse ela num tom
determinado. ─ O meu pai foi a Forden, mas deve estar em casa daqui a uma hora ou duas;
vai ficar contente por ver você inteiro e em liberdade. Pode passar a noite aqui, pelo menos? E
se precisar de alguma coisa de nós antes de partir...
─ Ah, não! ─ exclamou Harry, subitamente abalado pelo peso da ternura que quase
lhe fazia explodir o coração. ─ Não vou deixar você já! Ainda não! Preciso da sua ajuda para
saber aquilo que preciso saber, mas mais do que isso, preciso de você, minha pomba, minha
querida.
Tomou-lhe o rosto entre as mãos e voltou-o docemente para si. Presa naquele gesto

106
107

Aelis corou e estremeceu. Harry beijou-lhe a curva suave da face, da têmpora ao queixo,
beijou-lhe as pálpebras fechadas, alisou com os lábios o arco dourado das suas sobrancelhas.
─ Se voltar a partir será por pouco tempo. Por mais longe que precise ir, vou voltar.
Amo você... ─ murmurou, deixando a boca deslizar pela face até à dela, que beijou como um
homem esfomeado.
E ao sentir o gosto salgado das lágrimas de Aelis fechou os olhos para conter as suas.
Uma mão a tocar-lhe de leve no ombro arrancou Harry a um sonho de perseguições
vãs. Acordou instantaneamente, como um cão de caça, os ouvidos atentos, as narinas
frementes, sentindo o cheiro de um estranho. Antes de Aelis conseguir segurar-lhe no pulso,
para tranqüilizá-lo, já levara a mão ao punho da adaga e dobrara o joelho, pronto para se
levantar.
─ Calma. Não há perigo. Chegaram notícias para você.
A chama de um pedaço de vela tremeluzia perto da lareira, lançando sombras
flutuantes sobre as traves enegrecidas do teto. Robert estava de pé e fechava cautelosamente a
porta sobre a escuridão profunda da noite de novembro. Enrolado em mantas diante do fogo
da lareira, abafado para durar toda a noite, encontrava-se um homem tremendo de frio, com
um braço nu estendido para a caneca que Aelis lhe oferecia. Enquanto bebia os seus dentes
batiam contra a beirada da caneca. O cabelo e a barba lisos estavam molhados. Os trapos que
despira haviam formado uma poça de água nas tábuas do chão. Por cima da beirada da caneca
os seus olhos alucinados fitavam Harry, hostis e amedrontados.
─ Calma ─ aconselhou Robert ao ver a reação de ambos. ─ Estamos entre amigos.
─ Quem é este? Que se passa?
─ Ele é de Leighton. Veio rio abaixo como outrora o seu pai, mas vivo. É um dos três
que ontem à noite foram apanhados na floresta privativa de Isambard. Conseguiu fugir, mas
quebraram-lhe um braço antes dele se jogar na água. Ajude-me a segurá-lo enquanto coloco-
lhe o osso no lugar.
Harry ajoelhou-se e soergueu o corpo gelado do homem, apoiando-o contra si. Não era
o primeiro ferido que Robert tratava nem o primeiro fugitivo a quem dava guarida, antes de
levá-lo para a outra margem do Severn durante a noite.
─ Um dos guardas florestais bateu-me com o bastão quando comecei a correr ─ disse
o homem, por entre os dentes cerrados para impedi-los de bater. ─ Se não fosse isso eu teria
conseguido atravessar o rio sem precisar de um barco. Mas só com um braço não podia nadar
contra a corrente. A única coisa que pude fazer foi deixar-me levar pela corrente e arrastar-me
até à margem assim que fiquei longe das vistas deles.
─ Vão persegui-lo ─ observou Harry, lançando um olhar alarmado a Robert.
─ Não. Pensam que me afoguei. Fiquei escondido debaixo de uns arbustos até eles
irem embora.
Lá fora a noite estava gelada. O homem bem poderia ter morrido de frio ao fugir para
o rio.
─ Pelo menos por um dia vai ficar a salvo aqui ─ disse Robert, cujas mãos grandes
manejavam suavemente o braço do homem, tão tisnado e musculoso como o seu. ─ Segure-o
bem agora! E você, Aelis, põe a atadura aqui.
Aelis estivera rasgando e enrolando pano de linho, junto à vela. Aproximou-se,
ajoelhou-se ao lado de Harry e colocou a atadura no lugar indicado. O osso rangeu
ligeiramente e o corpo ferido arqueou-se entre os braços de Harry, enquanto o homem virava
a cabeça e cravava os dentes numa dobra da manta em que estava enrolado. Depois, voltou a
distender-se e suportou o resto sem um estremecimento ou um queixume.
─ Amanhã à noite levamos você para Gales ─ disse Robert, apertando-lhe firmemente
a atadura em volta do antebraço. ─ Este teve a sua conta dos senhores de Parfois, Harry. Peça-
lhe que conte o que sabe. Foram estranhos, e não homens de Shropshire, que o apanharam

107
108

com a caça.
─ Estranhos? ─ repetiu Harry com brusquidão. Num relance, percebeu tudo. ─
Homens de William!
─ Homens de William, que afirmavam ser os guardas florestais de Parfois. E prontos
para prová-lo.
─ Levaram-nos para Leighton ─ contou o caçador clandestino, virando a cabeça
fatigada contra o ombro de Harry. ─ A mulher do Wilfrid nos viu chegar e teve a boa idéia de
ir chamar o administrador. Ele veio e tentou defender-nos dizendo que não era direito deles
nos atirarem nas masmorras de Parfois, pois não possuíam autorização do velho senhor. Que a
floresta era dele e não do filho e que, sem verem uma ordem dele com o seu selo, não os
deixariam levar-nos. “Mandaremos chamar o juiz”, disse ele. “E quem quiser acusá-los
deverá fazê-lo de acordo com a lei.” Toda a aldeia viu e ouviu o que se passava, eram uns
quatro para cada um dos homens deles por isso foram obrigados a pensar duas vezes.
Afirmaram que Lorde William era o castelão do rei em Parfois, mas o velho Harald, que Deus
o abençoe, não quis saber disso; disse que só o senhor do feudo podia levar-nos sob custódia
privada. Então, eles afirmaram que também tinham esse direito, porque Lorde Ralf cedera o
feudo ao filho. E Harald disse abertamente que só acreditaria nisso se lhe fosse apresentada a
prova, com a assinatura e o selo do velho senhor. Até lá, disse, ficaríamos sob sua guarda e só
nos entregaria quando lhe fosse mostrado a devida autorização. Harald não podia fazer mais
nada; quando eles nos apanharam, levávamos conosco os dois animais que havíamos caçado.
Não podíamos negar. Só um homem corajoso iria tão longe como ele foi. Nos últimos tempos
tínhamos sido deixados em paz nos bosques e abusamos da sorte. A verdade é que o velho
Harald pensava que aquilo não passava de uma bravata dos homens do filho de Lorde
Isambard, que estava tirando partido da doença do pai. Por isso, não nos deixou ir e os outros
foram embora proferindo ameaças.
─ Mas voltaram ─ interrompeu Harry, mudando de posição para colocar o ferido
numa posição mais confortável.
Harry olhou para Aelis, que o observava com uma expressão inquieta e pesarosa; ela
já sabia como aquilo iria terminar.
─ À noite. E o senescal De Guichet vinha com eles. Trazia consigo um pergaminho,
que quis que Harald lesse em voz alta, diante de toda a aldeia. Depois nos levaram. Ninguém
podia fazer nada sem correr o risco de ser enforcado e Deus sabe que não queríamos tal coisa.
Então pensei nas masmorras de Parfois, em como um homem pode apodrecer por lá e quando
íamos passando pelo bosque eu fugi. Se não fosse o golpe que sofri, teria atravessado o rio
sem problemas.
─ Então o seu administrador obteve a prova que pedira? Ele sabe ler? Você disse que
foi ele mesmo quem leu o pergaminho.
Para quê agarrar-se àquela ínfima parcela de dúvida quando o seu coração sabia já o
que acontecera e como? Eles tinham percebido o valor de Madonna Benedetta e estavam
servindo-se dela. De que outro modo poderiam ter arrancado tais concessões de Isambard? Se
fosse a sua própria segurança que se encontrasse ameaçada ele teria rido na cara deles.
─ Sabe ler, sim. E melhor que muitos escreventes. Se houvesse encontrado a menor
justificativa para isso, teria mandado alguém chamar o juiz. Mas não havia nada. Leu em voz
alta, como lhe haviam dito, com o De Guichet atrás dele e mostrou o selo e a assinatura para
que todos os reconhecessem. Não é mentira. O velho lobo fez aquilo que nunca pensei que
fizesse, doente ou não... dar todas as suas terras ao filho... de livre vontade, escreveu ele, de
sua própria e livre vontade. Abdicou de tudo quanto possuía a favor de Lorde William,
assinou o documento por seu próprio punho e pôs-lhe o selo. Agora, está sentado num canto
qualquer, ao calor, como um velho cão cego, à espera da morte.

108
109

CAPÍTULO OITO

Brecon, Aber, Parfois, começo de dezembro de 1233

Harry pensara encontrar Llewelyn em Builth, mas o príncipe já partira para o sul, para
cercar o castelo e o burgo de Brecon e assim imobilizar dentro das muralhas a grande
guarnição que o rei pretendia usar como reserva para as suas devastadas companhias. A
fronteira encontrava-se em estado de alerta, embora no momento se mantivesse numa
imobilidade surda e inquietante. No entanto, Basset e Siward já haviam avançado sobre
Devizes para arrancar De Burgh da prisão e o tinham passado para o outro lado do estuário do
Severn, instalando o conde marechal a salvo no seu castelo de Striguil enquanto o próprio
Conde Richard avançava por Gwent como o fogo numa mata. Abergavenny, Newport e
Monmouth haviam caído em suas mãos e, numa madrugada glacial de novembro, o conde
atacara o acampamento do rei, obrigando-o a fugir de Grosmont. John de Víonmouth
enfrentara sérias dificuldades para reorganizar as forças do rei e, naquele momento, as
mantinha prudentemente na retaguarda enquanto o conde marechal consolidava as suas
conquistas e reabastecia os seus castelos. Apesar de precoce, o inverno não conseguira
extinguir o fogo. A camada de neve era delgada sobre Mynydd, semelhante a um véu de renda
estendido sobre a cabeleira invernal e descolorida da montanha. As quedas de neve ainda não
eram suficientemente fortes nem o vento suficientemente gélido para desviar Harry para os
caminhos do vale. Seguiu pelo caminho do planalto depressa e, antes do crepúsculo, do alto
dos penhascos de Usk avistou o brilho das chamas e a cortina de fumaça sobre Brecon.
A fumaça coroava os contornos do castelo, que se desenhavam contra o brilho
palpitante das chamas que devoravam o burgo. Como um lenço de gaze flutuando levemente
ao sabor do vento, a fumaça agarrava-se à torre compacta e às paredes sólidas da igreja do
priorado. Harry seguiu com o olhar a linha extensa e elevada do telhado da igreja e ficou
contente por ele estar intacto, mas se sentiu envergonhado dessa alegria pela sobrevivência da
pedra ao ver as ruínas fumegantes das casas das pessoas. Tudo o que a população de Breacon
construíra depois da última destruição fora arrasado e os destroços enegrecidos jaziam junto
às águas gélidas do rio. Era um cenário desolador, povoado apenas pelos mortos. Amontoados
e encurralados nos pátios do castelo os sobreviventes juntavam a água e os alimentos que lhes
restavam, esperando o socorro que os mercenários flamengos do Rei Henrique não lhe trariam
de Gloucester. Dia após dia mantiveram-se de vigia junto às muralhas, mas não avistaram
nenhum sinal de estandartes ou de lanças reluzentes nas colinas cobertas de neve.
Naquele crepúsculo triste os pequenos fogos esmoreciam e extinguiam-se, crepitando
por vezes em súbitas chamas agitadas, quando as traves calcinadas tombavam sobre eles.
Nas colinas sobranceiras à margem do Honddu, cercando de perto o castelo renitente,
as linhas de contravalação e circunvalação* do campo de Llewelyn desenhavam-se em negro

109
110

sobre a neve e as catapultas e trabucos, de silhuetas sinistras, continuavam a massacrar


intermitentemente as muralhas danificadas.

* contravalação e circunvalação - Rede dupla de trincheiras e paliçadas construídas pelos


sitiantes. As primeiras (linhas de contravalação) destinavam-se a proteger os sitiantes de
ataques de eventuais reforços e a impedir as saídas dos sitiados; as segundas (linhas de
circunvalação) destinavam-se a bloquear a fortificação alvo do cerco, impedindo as
comunicações dos sitiados com o exterior. (N. da T.)
Era inútil aumentar a pressão do assalto porque a ajuda não podia chegar aos sitiados e
os campos ao redor tinham sido despojados de todas as provisões. Além disso, Llewelyn,
assim como agora os sitiados, não acreditava no desejo do rei de socorrê-los. Podia
perfeitamente mantê-los imobilizados sem perder seus homens enquanto o Conde Richard
prosseguia em seu avanço pelos vales do Usk e do Wye, levando tudo diante de si.
Os cavaleiros vindos de Builth foram bruscamente detidos nos limites do
acampamento, pois chegavam a galope, com as capas puxadas para o rosto e os capuzes
caídos sobre os olhos para se protegerem da neve fina que caía. Harry desceu da sela com os
membros rígidos de cansaço e pediu para ser recebido pelo príncipe. A sentinela reconheceu-o
de imediato e saudou-o alegremente. Abrindo caminho por entre os muitos amigos que lhe
davam as boas-vindas seguiu pela ruela estreita, atulhada de provisões, armas, gado e cavalos
que rodeava o burgo sitiado e chegou à tenda de Llewelyn.
Da noite fria e escura desembocou num espaço onde reinava um calor abafado e
azedo. Sentados no leito de campanha baixo e coberto de mantas os seus dois irmãos adotivos
gritaram o seu nome e levantaram-se alegremente para recebê-lo. Apesar do acolhimento ter
confortado o seu coração, Harry afastou-os quase rudemente, lançou-se de joelhos aos pés de
Llewelyn e beijou a mão que se estendera para levantá-lo.
─ Seja bem-vindo, Harry e me dê um abraço! Muito nos fez esperar por notícias suas!
Harry ergueu para ele um rosto marcado pelo cansaço da viagem. Sob as pálpebras
inchadas e vermelhas devido à falta de sono, os olhos verdes fitavam o príncipe, aterrorizados.
Subitamente sentia-se confrontado com a impossibilidade de exprimir aquilo que vivera sem
compreender. Llewelyn reparou na sua expressão de desorientação, desespero e súplica e
beijou-o afetuosamente.
─ Como correu a sua missão?
A sensação de impotência que se colara à língua de Harry como geada derreteu e as
palavras saltaram-lhe da boca sem subterfúgios ou algum plano.
─ Muito mal, senhor. Deixei que Madonna Benedetta me escapasse entre os dedos.
Fomos o mais depressa que pudemos, mas Madonna Benedetta conservou sempre a dianteira
que levava. Apesar de todos os esforços ela está em Parfois.
Com desagrado percebeu que aquelas palavras soavam como uma desculpa e não era
seu desejo atenuar minimamente a culpa que sentia.
─ A culpa é minha ─ acrescentou, rejeitando orgulhosamente a compaixão deles.
─ A julgar pela velocidade com que você saiu de Aber ─ observou David com
simpatia ─ se Madonna Benedetta foi mais rápida do que você é porque cavalgou como uma
noiva a caminho do casamento.
─ É verdade que fui depressa ─ admitiu Harry tremendo. ─ Pelo menos pensava que
era assim. A perdemos por não mais de uma hora, mas a perdemos e aquilo que eu fiz pode ter
sido bem-intencionado, mas não foi o suficiente. E isto não é o pior. Eu poderia ter entrado
em Parfois e perguntado por ela... ele deixaria trazê-la de volta comigo... mas também era
tarde demais para isso. Quando chegamos lá, os homens que se encontravam no posto
avançado da guarda eram estranhos. Nos escondemos e ficamos de vigia à porta. De manhã
vimos William Isambard sair a cavalo rodeado pelos seus falcoeiros e cavaleiros, como um

110
111

príncipe. Todos aqueles que mais bajulavam o pai voltaram as suas atenções para o filho.
Vimos tudo e calculamos o que acontecera, mas não podíamos ter certeza. Portanto, esperei
até dispor de provas, antes de vir contar-lhe.
Harry quisera consertar com a sua energia e devoção aquilo que considerava ser culpa
sua, quisera recuperar pelas suas próprias mãos aquilo que perdera. Levara os cavalos quase
ao esgotamento e ele próprio não descansara pelo caminho, pensou Llewelyn. Vai encarar
como um inimigo qualquer um que tente confortá-lo.
─ Enviamos homens às aldeias, mas lá ninguém sabia mais do que nós. Estavam
também esperando obter respostas. Pensei que podia ficar sabendo alguma coisa através de
um homem que a Aelis conhece e que entra e sai de Parfois, onde vai buscar o entulho da
torre velha. Pedi-lhe que procurasse Langholme e lhe entregasse uma mensagem, mas na volta
ele disse que Langholme partira, que fora mandado para algum lugar, tratar de assuntos do seu
senhor e não voltara. O Walter nunca teria deixado Isambard por vontade própria. E se ele o
mandou embora, sei muito bem por quê. Não queria nenhum de nós por perto, para não
virmos a sofrer por sua causa. Se ele ainda mandasse em Parfois teria mandado Madonna
Benedetta de volta para casa com uma escolta para acompanhá-la e protegê-la pelo caminho.
O coração dizia-me que as coisas iam de mal a pior no castelo. Foi então que apareceu aquele
homem, de noite. Era um caçador furtivo apanhado em flagrante com dois companheiros na
floresta de Isambard. Depois disso ficamos com a certeza.
Harry respirou fundo antes de contar a história do caçador furtivo, que abreviou.
─ Foi o próprio administrador quem leu o pergaminho em voz alta e reconheceu o selo
e a assinatura. A ordem do rei, nomeando William castelão, não lhe bastava. Mas aquilo era
um documento de abdicação assinado por Isambard. E Madonna Benedetta foi o instrumento
de que eles se serviram para obtê-lo. Foi para proteção dela que ele cedeu o feudo ao filho e,
enquanto a tiver em seu poder, William poderá obrigar o pai a fazer o que quiser.
─ O que você está dizendo é muito estranho ─ observou Owen franzindo as
sobrancelhas, confuso. ─ Vai desculpar-me, Harry, mas a sua conversa mudou. Eu pensava
que Isambard queria fazer mal a Madonna Benedetta. Todos nós assim pensávamos. As
dívidas antigas nunca foram pagas. De tudo quanto sabemos sobre ele e de tudo o que você
nos contou, ela só podia esperar dele uma nova humilhação e a morte. É certo que ele desistiu
dos seus piores intentos, visto que mandou você ao encontro dela para levá-la para um lugar
seguro. Mas você quer que acreditemos que ele se despojou de tudo para protegê-la?
Harry ergueu os olhos verdes ansiosos para Llewelyn e respondeu apaixonadamente:
- ─Só Deus sabe, senhor, se era intenção dele fazer mal a Madonna Benedetta quando
aceitou a proposta dela e a sua vinda para Parfois. Mas eu sei que ele era capaz de morrer para
impedir que ela sofresse às mãos de William. E se William ainda não sabe isso, vai saber em
breve e tirará partido da situação. Abdicar de tudo para protegê-la... sim, posso jurar que
Isambard o fez. E receio que ele próprio seja neste momento prisioneiro por causa dela. Se os
outros quiserem obter mais alguma coisa dele vão voltar a servir-se dela para pô-lo de joelhos.
─ Se Isambard já abdicou de tudo quanto era seu, que mais eles poderão querer dele?
─ observou David com toda a razão. ─ Que importância tem para nós as querelas dos
Isambard? Parece-me que podíamos muito bem negociar diretamente com esse novo senhor
de Parfois e acertar com ele a libertação de Madonna Benedetta. Já não precisa dela. Por que
haveria de querer mantê-la refém por mais tempo?
─ Não! ─ protestou Harry.
Tinha a cabeça entre as mãos porque a sentia tão pesada do calor e da fumaça da
braseira que mal conseguia mantê-la direita.
─ Se lhe propusermos um resgate, William vai começar a interrogar-se sobre o que já
saberemos sobre as suas tramóias e o que mais ela poderá contar. Pensam que ele hesitaria em
matar se temesse que a sua traição fosse conhecida?

111
112

─ Estás sonhando, Harry! ─ tranqüilizou-o David, colocando um braço sobre os seus


ombros e sacudindo-o num gesto fraternal. ─ Mesmo que receie o que ela possa contar,
William receará ainda mais matá-la depois que o Príncipe de Aberffraw a tiver reclamado.
Nunca ousaria tocar-lhe.
─ A ela não! A ele! ─ Furioso, Harry afastou o braço afetuoso. ─ Quanto tempo você
pensa que ele viveria se eles temessem que alguém fizesse perguntas demais sobre ele? ─
perguntou, tremendo de cólera, desconforto e desespero. ─ Uma iniciativa nossa, um visitante
enviado pelo rei, um velho amigo que passe por lá e peça para vê-lo, qualquer destas coisas
pode ser a sua morte. Estou cheio de medo, cheio de medo de que isso possa acontecer em
breve! Nos seus outros castelos, há pessoas que não acreditarão facilmente que Isambard
tenha cedido o feudo. Apesar da assinatura e do selo essas pessoas vão querer que seja ele a
dizê-lo pessoalmente e de livre vontade. Enquanto ele for vivo William não terá paz. E basta
um passo em falso num degrau... não é muito difícil matar um cego.
Os outros o fitavam com os olhos dilatados de espanto, prontos a pronunciar dolorosas
palavras de surpresa e dúvida. Amavam-no e não queriam magoá-lo, mas o que eles sabiam
de Parfois? O que eles sabiam do longo, estranho e difícil companheirismo que se
desenvolvera e afirmara nele, à sua própria revelia, e que o levara a voltar atrás e a confrontar,
como se fosse a primeira vez, o seu velho inimigo? Como poderia esperar que eles
compreendessem se ele mesmo não compreendia? Harry seguira o que lhe ditava o coração e
confiara em que este sabia o que estava fazendo. Que mais poderia fazer?
─ O Harry está certo! ─ atalhou Llewelyn erguendo a cabeça.
Os seus olhos haviam começado a brilhar, diante da perspectiva de ação. Estendeu a
mão para o ombro de Harry, puxou-o para si e acrescentou:
─ Ao primeiro gesto nosso para resgatar a refém, a vida de Isambard não duraria mais
de uma hora. Mas nós podemos fazer melhor. William Isambard diz ser o guardião desta
fronteira em nome do rei, não é verdade? Vamos pôr à prova as suas qualidades de comando.
David e Owen lançaram-lhe olhares de consternação e incompreensão profundas,
idênticos aos que haviam lançado a Harry ao ouvi-lo. O próprio Harry fitou o príncipe com
espanto quase igual, ao qual se juntava uma centelha de esperança e de ardor que lhe aqueceu
o coração.
─ Vá procurar Madoc, Owen. Peça-lhe que venha falar comigo dentro de meia hora e
que traga os seus capitães. Amanhã vou mandá-lo embora de Brecon. Penso que esta
guarnição já sofreu um cerco suficientemente longo. Vão ter muito trabalho para fazer aqui e
isso os afastará do caminho do Conde Richard pelo menos durante umas semanas. Só há uma
maneira, ou pelo menos eu só conheço uma maneira de me aproximar de Parfois sem levantar
suspeitas: em armas.
O príncipe voltou os olhos brilhantes para o filho, viu a sua expressão de surpresa e
sorriu.
─ Vá com ele, David. Deixe-nos a sós por algum tempo.
David e Owen obedeceram sem discutir, mas também sem compreender. Aceitavam e
aprovavam a decisão de Llewelyn, mas o raciocínio por trás dela estava além da sua
compreensão.
─ Não se preocupe com eles ─ aconselhou Llewelyn, depois que os dois jovens
tinham saído. ─ Quando Deus entender que chegou a hora, ficarão sabendo o que você não
disse. Ainda são novos e procuram uma explicação e uma razão para tudo. Mas gostam
demais de você para discutir. Confie neles sempre que precisar e eles apoiarão você.
─ Eu sei, senhor ─ respondeu o jovem, tremendo.
O que poderia, contudo, dizer do príncipe, que vencera o fosso da incompreensão de
um só salto e até o aliviara do fardo das interrogações e da angústia? Sentou-se no chão, ao
lado da cadeira de Llewelyn e com um enorme suspiro de gratidão apoiou a cabeça nos

112
113

joelhos do príncipe, sem dizer palavra. Depois de alguns momentos o seu corpo se agitou
suavemente em soluços silenciosos.
Llewelyn acariciou-lhe os cabelos castanhos e manteve a mão sobre a cabeça de
Harry.
─ Eu sei! Eu sei! Os seus esforços não bastaram, mas ninguém podia ter feito melhor.
Nenhum homem consegue atravessar a vida sem falhar. Você precisa aprender a viver com os
seus erros. Como fazem os príncipes. Como eu faço.
Harry ergueu a cabeça, num gesto de negação breve e violento. Llewelyn tranqüilizou-
o segurando a sua cabeça com ternura entre as palmas das mãos e sorrindo com alguma
amargura ao recordar as suas próprias memórias.
─ Como ele faz ─ acrescentou Llewelyn suavemente, comovendo-se ao ouvir o
suspiro de alívio e apaziguamento que lhe respondeu. ─ Você pensa que ele o acusaria por ter
falhado?
Nunca era preciso contar-lhe nada; Llewelyn possuía o dom especial de penetrar no
coração das pessoas que amava. Naquele momento sentia na própria mente os anseios e as
angústias que agitavam o ser fechado daquele seu filho emudecido. No entanto, certa vez, essa
clarividência do amor lhe faltara, o que custara a todos eles um ano de desolação. Harry
também se lembrava.
─ Se a sua interpretação estiver correta, ela está em segurança. Se ainda precisam dela
como refém para obterem a aquiescência de Isambard, vão cuidar bem dela. E mesmo que
Madonna Benedetta já tenha servido aos fins deles, não há nada que possam lucrar se lhe
fizerem mal, nem motivo para lhe desejarem mal. Quanto a Isambard... penso Harry, que se
não aparecer ninguém para colocar em discussão o título e o direito de William ou a descobrir
os seus segredos, ele não vai apreciar a idéia de mandar já o pai deste mundo para o outro.
Você não precisa se preocupar com o tal passo em falso nas escadas. Isso aconteceria
depressa demais, logo após a abdicação, e levantaria dúvidas em muitos espíritos. O Rei
Henrique não pode estar rodeado de homens comprometidos e não daria um cargo nem seria
tolerante para com William, se começassem a serem ouvidos murmúrios a seu respeito. Não,
se puder ele vai deixar passar algumas semanas ou mesmo alguns meses. Não nego que deseje
a morte do pai. Tal como a você, isso me parece evidente. Mas com alguma discrição por
medo de chamar sobre si as atenções que pretende evitar. E não agora! Ainda não!
─ Senhor! ─ exclamou Harry agarrando-se a Llewelyn como quem se agarra a um
rochedo num mar agitado. ─ Vejo as coisas tão mudadas! Ele nunca me fez mal nem deixou
que ninguém fizesse. Nem faltou à palavra dada.
Numa voz surpreendida que soava abafada pelas dobras da capa do príncipe, Harry ia
soltando pequenos pedaços da verdade, à medida que os ia descobrindo.
─ Uma vez bateu no De Guichet. Por minha causa. Quando eu estava prestes a me
desesperar, ele me impedia. Quando eu estava abatido, dava-me ânimo. E no entanto... e no
entanto ele...
─ E no entanto arrancou o seu pai da sepultura ─ concluiu Llewelyn, pronunciando
docemente aquilo que Harry não era capaz de dizer.
Subitamente o jovem começou a chorar desesperadamente. Aquilo era a única coisa
que não mudara, a única coisa que ele não suportava.
─ Filho, filho ─ murmurou Llewelyn, acalmando-o com carícias um tanto rudes, como
faria a um cão de que gostasse muito. ─ Você pensa que é o único que não entende? Estamos
todos às escuras. Espere até Deus decidir clarear o céu. Você pode, porque dispõe de tempo.
─ Sinto-me tão perdido, senhor! Não entendo nada!
─ Espere a sua hora, Harry, espere a sua hora. Tem muito tempo à sua frente. Mas
tempo é uma coisa com que William não poderá contar. Porque antes dele se dar conta, nós
estaremos junto às suas muralhas e vai ter mais em que pensar do que na herança roubada.

113
114

Não pediremos a libertação da nossa mulher santa. Não vamos oferecer um preço; você e eu
não vamos dar-lhe o menor sinal de que sabemos o que se passa ou que nos importamos com
a sorte de Lorde Isambard. No apresentaremos em armas e nos apoderaremos do castelo, dos
prisioneiros e dos usurpadores. E será das suas mãos que Isambard receberá, primeiro a sua
liberdade e depois tudo o que lhe pertence. Você fica contente assim?
As graças de Deus são maravilhosas, insondáveis, apropriadas, pensou o príncipe,
contemplando a cabeça do jovem que repousava sobre os seus joelhos. Foi a isto que Ele
reduziu a sua vingança, Harry, e a minha. Eu jurei conquistar e destruir Parfois por sua causa
e, se Deus quiser, assim farei, mas não do modo como pensei quando fiz o juramento. E
quantas promessas o seu coração não fez ao seu jovem pai de vingar a sua morte, matando
Isambard? Sem nunca pensar na estranha emoção que se apossaria de você quando finalmente
tivesse a vida dele nas mãos e a devolvesse de livre vontade, juntamente com um pedaço do
seu coração, metamorfoseado num traidor. Traidor pelas regras deste mundo, mas eu penso
que você abriga no peito um guia melhor do que qualquer outro que o mundo pudesse lhe dar.
Não o ponho em questão. Deus sabe o que faz.
Harry não respondera, a menos que se considerasse resposta o suspiro profundo que
soltara e o fato de haver soltado das mãos as dobras da capa de Llewelyn e do seu corpo,
encostado aos joelhos de Llewelyn, ter se tornado menos rígido. Justificado, tranqüilizado,
aceito, encorajado, Harry deixou de resistir e mergulhou num sono profundo, que o aguardava
e lhe estendia os braços desde o dia em que saíra de Parfois. Estava plenamente confiante.
Estava satisfeito.
Llewelyn inclinou-se e pegou no jovem ao colo com a mesma brusquidão e afeto que,
muito tempo antes, mostrara ao pegar na criança cansada de tanto brincar para deitá-la na sua
própria cama, seguro de que nem mesmo um trovão o acordaria.
─ Como você cresceu, rapaz! ─ observou ao erguer Harry do chão, para deitá-lo no
leito de campanha.
Com um enorme suspiro de prazer Harry estendeu-se na cama e enterrou o rosto nas
mantas. O calor da voz distante chegou até ele e ele arrastou-o consigo, sorrindo, para o poço
sem fundo do sono. Cobriu o rosto com um braço, para protegê-lo da claridade, estremeceu da
cabeça aos pés e depois não se mexeu mais.
─ Pode ficar bem quieto! ─ disse Llewelyn, cobrindo-o. ─ Nenhum dos meus filhos de
sangue me deu tanto trabalho como você. Só Deus sabe, filho, se conseguiremos salvá-lo
como você quer ─ acrescentou, observando a respiração suave e compassada de Harry com
um sorriso triste. ─ Mas juro por Deus que vamos tentar.
Llewelyn sentou-se ao lado da cama refletindo sobre o empreendimento tão
confiantemente entregue em suas mãos. O homem propõe e o homem executa, mas Deus faz
sacudir o chão sobre o qual o homem coloca os pés e o leva a fazer coisas que nunca pensara
fazer. O homem parte para destruir o seu inimigo e chega para libertá-lo. Então, que assim
seja. Deus sabe o que faz.
Os aspectos práticos de tal tarefa não estavam em discussão: capitães e engenheiros
diriam, a uma só voz, que o assalto a Parfois era impossível. Ótimo, está decidido, pensou
Llewelyn, exaltado e inquieto, fitando o rosto calmo e confiante do jovem. Agora, vamos ver
como executar a tarefa.
─ Pois é! ─ disse Gilleis dividida entre o riso e a irritação, dirigindo-se à princesa por
cima do ombro do filho. ─ O que eu tinha lhe dito? O príncipe devolve o meu filho por uma
hora e depois leva também o meu marido. O que vamos fazer com estes homens?
─ Melhor dizendo ─ respondeu Joan com um sorriso pesaroso ─ o que nós vamos
fazer sem eles? Passamos mais tempo sem eles do que com eles. Você e eu, Gilleis, vamos
preparar as nossas bagagens e vamos ao encontro deles em Castell Coch no Natal. Se
ficarmos aqui é óbvio que passaremos o Natal sozinhas.

114
115

─ Se não fosse por Benedetta eu não lhe emprestaria o Adam. Ele é um mestre
canteiro e não um soldado. Mas por ela... se me pedisse o sangue das minhas veias, o que eu
poderia fazer senão estender o braço para a faca? Oh, Harry, se ao menos você pudesse
lembrar-se daquela cavalgada que fizemos juntas até Shrewsbury, quando você tinha apenas
duas ou três semanas. Ela vestida com as roupas de Robert e você dormindo nos braços dela,
como quem dorme numa cama. Você confiava tanto nela... e bem podia confiar. ─ Puxando-o
contra o peito Gilleis acrescentou: ─ Oh, Harry, tire-a de lá sã e salva!
Ter o filho junto de si, apesar de tão mudado e amadurecido, de tão menos dependente
dela, rejuvenesceu Gilleis em vários anos: os seus olhos grandes e negros brilhavam e o seu
rosto estava corado como o de uma jovenzinha. Harry sentiu-se mais velho do que ela e
amou-a mais ainda por isso.
─ Faremos o que estiver ao nosso alcance, mãe. O príncipe diz que, por algum tempo,
Madonna Benedetta estará em segurança em Parfois. E está avançando bem depressa em seu
socorro. A vanguarda partiu de madrugada antes que eu acordasse. Madoc e os seus homens
devem estar agora atravessando o Severn, a montante e a jusante de Parfois, e o príncipe e o
seu exército já partiram de Brecon para se juntar a eles.
No seu espírito reapareceu a imagem do casco vazio, calcinado e fumegante do burgo,
as muralhas destruídas do castelo, também a fumegar. Mais de metade das forças galesas já
deveriam estar em marcha, antes dos sitiados perceberem que a longa provação por que
haviam passado chegara ao fim e ousarem aventurar-se em prudentes explorações entre as
cinzas do burgo. Pouco ou nada iriam encontrar ali, assim como pouco ou nada iriam
encontrar nos campos das redondezas. De Brecon não seria lançada qualquer perseguição,
nenhuma surtida que ameaçasse a retaguarda. Os defensores teriam forças suficientes apenas
para caçar o que comer, não podendo desperdiçá-las contra os seus inimigos.
─ Faremos o que for humanamente possível ─ garantiu Harry. ─ E vamos precisar do
Adam como engenheiro. Foi o príncipe quem pensou nisso e mandou-me buscá-lo aqui. Disse
que Adam conhece a pedra, conhece Parfois e sabe guerrear tão bem como qualquer outro
homem. Se não conseguimos subir até eles, vamos fazê-los descer até nós com castelo e tudo,
foi o que disse o príncipe. Os homens que precisaram de pedra para construir edifícios
derrubaram montanhas e transformaram em cavernas penhascos maiores do que Parfois.
Porque não iremos nós de fazer outro tanto por Madonna Benedetta? Como a senhora vê,
mãe, não pode recusar-nos o Adam. “Durante quatro anos”, disse-me o príncipe, “você
tentou arranjar uma maneira de escapar de Parfois. Se existir um ponto fraco no interior,
você o encontrará e se existir um acesso a partir do exterior, o Adam nos indicará o caminho.
Pensem bem os dois, pelo caminho, e quando atravessarem o Severn tragam muitas idéias
alinhavadas ou eu os coloco a trabalhar nas cozinhas do acampamento, pois não servem
para mais nada.”
─ E tem toda a razão ─ disse Gilleis afetuosamente, abraçando-o com o coração cheio
de orgulho, dor e felicidade. ─ Claro que o Adam vai socorrer Madonna Benedetta e com a
maior boa vontade. Vá filho, vá procurar o seu pai e lhe conte tudo. Ele está nos cercados das
ovelhas.
Harry deu-lhe um beijo rápido e saiu correndo como um galgo.
─ Pai, irmão adotivo ─ murmurou Gilleis ternamente, vendo-o se afastar. ─ Santo
Deus! Hoje em dia nem sei com qual deles estou a falar!
Atravessaram o Severn pelo vau de Pool, às primeiras horas de um dia gélido e escuro.
As primeiras nevascas e os primeiros degelos haviam feito subir o nível das águas, que agora
cobriam todos os charcos da zona alagadiça. Depois disso a geada, que se tornava mais dura
noite após noite e que, durante o dia e mesmo ao meio-dia, quase não derretia, havia
transformado os charcos em placas de gelo. O curso principal do rio, ladeado nas duas
margens por faixas de algumas jardas de gelo escuro e traiçoeiro, corria com violência,

115
116

castanho e sombrio, arrastando pedaços de gelo quebrado, o que tornava arriscada a sua
travessia. No meio da corrente, os cavalos perderam o pé e foram obrigados a nadar. Conduzi-
los para a margem foi uma tarefa perigosa, porque em todos os lugares onde eles o
experimentaram, o gelo se quebrava sob o seu peso, deixando-os a debater-se contra
superfícies denteadas, que formavam verdadeiras barreiras de facas à altura do peito dos
animais. Harry desmontou com dificuldade sobre a superfície escura e procurou um lugar
abrigado onde uma saliência de terra emergisse da corrente. Encontrou-o e, com toda a
cautela, Adam e Harry conseguiram fazer os animais extenuados avançarem sobre gelo sólido
e, por fim, conduzi-los a resfolegar até à margem.
Tremendo, Barbarossa deixou-se levar ao longo da língua de terra sólida e encontrava-
se praticamente a salvo sobre a erva alta e coberta de neve quando, de repente, deu um salto
para o lado ao ver uma mancha de cor na água gelada. Harry teve sérias dificuldades em
acalmá-lo e fazê-lo passar por aquilo, não lhe restando tempo para se interrogar ou olhar, até
cumprir essa tarefa. Mas quando foram ver o que espantara o animal ficaram sem respiração,
tão assustados como ele.
Por baixo do gelo brilhava um escudo com as cores vermelho e ouro de Isambard e um
rosto os fitava de olhos esbugalhados, os longos cabelos grisalhos colados à cabeça quebrada.
A pouca luz que havia naquela hora refletia as cores e assinalava pequenos pontos brilhantes
sobre o ombro de uma cota de malha. Foi assim que descobriram o primeiro dos mortos de
Parfois. Analisando então as proximidades com um olhar mais atento, detectaram os vestígios
da breve batalha travada junto ao vau.
Um elmo aqui, uma espada quebrada ali, jazendo na margem do Severn. Arrastados
para a margem num ponto onde a corrente abrira uma cova funda jaziam mais quatro corpos,
todos ingleses. Se houvera mortos galeses, os galeses os tinham levado para enterrá-los,
enquanto os ingleses tinham abandonado os seus. Ao chegarem às ervas altas, Harry e Adam
tropeçaram num arco de corda esticada, quase enterrado na neve. Flechas quebradas, um
pedaço de tecido ensangüentado de um casaco branco, rígido como aço, cujas manchas
haviam desbotado para um rosa pálido. Finalmente, na orla da floresta, no meio de um maciço
de arbustos, depararam com um corpo forte e musculoso, arqueado sobre uma espada
quebrada, na posição em que ficara depois de ter se arrastado até ali rastejando, antes de
morrer. Viraram-no para lhe ver o rosto e o corpo voltou-se todo, inteiriço, como se fosse um
bloco, uma gárgula grotesca de pedra: a barba farta e a expressão severa pertenciam ao velho
Nicholas Stury, o mestre de armas.
Harry contemplou-o longamente e no seu coração abriu-se um minúsculo vazio de
consternação, que lhe doía como uma ferida. No entanto, a imagem que contemplava nada
tinha de novo; já vira outros corpos, alguns de homens que ele próprio matara e nunca pensara
muito neles. Por que iria perturbá-lo a visão de um rosto que lhe era familiar, agora que se
encontrava em território inglês? Por que chorar por Stury, um homem de quem nunca gostara,
por quem nem sequer sentira simpatia, um velho fanfarrão com mau gênio, que sentia prazer
em castigar os discípulos mais tímidos durante os exercícios e não suportava ser vencido? No
entanto os dois tinham se cruzado todos os dias durante cerca de quatro anos, na rotina ordeira
de Parfois e, mesmo contra as respectivas vontades, tinham feito parte da vida um do outro.
Um homem com quem, durante tanto tempo, se partilharam idas e vindas passa a ser um dos
nossos, com as suas excentricidades e humores e, queiramos ou não, nos é mais próximo do
que um estranho. Harry fez-lhe o sinal da cruz sobre a testa fria e afastou-se, deixando-o ali.
─ Alguém que você conhecia? ─ perguntou Adam, já na sela, ao reparar no olhar fixo
e sombrio de Harry.
─ Sim ─ limitou-se a responder Harry.
─ Ele foi bom para você? ─ perguntou Adam, num palpite bem distante da realidade.
─ Não. Nem para nenhuma outra pessoa, que eu saiba. Mas estava vivo e, à maneira

116
117

dele, gostava tanto de viver como qualquer homem bondoso...


Com um encolher de ombros Harry lançou o problema do velho Nicholas para trás das
costas, montou e atravessou a faixa de pradaria em direção ao bosque. Era melhor habituar-se
à idéia de que iriam encontrar outros mortos.
As nuvens eram tão baixas, espessas e escuras que da margem inglesa não se avistava
a margem galesa e a silhueta da Long Mountain era apenas uma massa púrpura escura de
árvores, que se diluía na bruma. Porém as suas narinas agora apuradas estremeciam com o
odor forte que pairava sobre a floresta; Harry e Adam perceberam que pelo menos metade da
obscuridade que cobria o mundo não era devida à bruma, mas à fumaça. O frio glacial podia
impedir que os cadáveres cheirassem mal, mas nada podia contra o odor acre do fogo. Sob a
neve fresca os dois começaram a pisar mato queimado e, aqui e ali, as árvores eram apenas
troncos enegrecidos com restos de ramos quebrados. Espinheiros, arbustos e fetos tinham sido
queimados em muitos lugares e os animais haviam fugido daquela desolação. Alguns pássaros
já estavam de regresso, saltitando e bicando a neve. Eram as primeiras criaturas a fugir de
medo e as primeiras a arrumar coragem para voltar, os mais frágeis e mais resistentes filhos
da floresta.
Harry e Adam passaram por uma fazenda incendiada, onde os restos escurecidos das
paredes da casa se destacavam sobre a neve. Encostado a ela, polvilhado de branco pela
última queda de neve, jazia o camponês com uma flecha galesa quebrada cravada nas costas.
Aquilo era um presságio bem claro do que iriam encontrar à chegada ao lugarejo abaixo de
Leighton: um amontoado de esqueletos carbonizados de casas, estábulos vazios, dois ou três
cães mortos e um infortunado aldeão que preferira ficar e defender as suas provisões de
inverno do que fugir rapidamente. Os outros teriam procurado refúgio em Parfois antes da
passagem dos invasores ou fugido para os confins da floresta com os seus animais, para
sobreviver como pudessem ou morrer de fome. Todos os grãos de trigo, todas as vacas e todas
as galinhas já tinham sido levados para engordar a manutenção militar do acampamento de
Llewelyn. O primeiro posto avançado do exército galês os fez parar e deu-lhes notícias do
príncipe.
Este dispusera as máquinas de cerco e o grosso das suas tropas de modo a simular um
ataque frontal pela encosta de Parfois e manter a guarnição na expectativa e no receio da
queda do posto avançado da guarda, enquanto os homens das montanhas inspecionavam o
rochedo sobre o qual se erguia o castelo. As linhas de contravalação e circunvalação haviam
sido instaladas em volta da única via de acesso e seria lá, na aldeia de cerco, que encontrariam
o quartel-general do príncipe. Em toda a volta de Parfois estendiam-se linhas móveis de
posições fortificadas galesas que isolavam o castelo do mundo. Ninguém podia entrar lá, mas
ninguém podia também sair de lá. Mesmo que dispusessem de vinte passagens escondidas por
onde sair como coelhos das suas tocas, os sitiados iriam sempre encontrar-se no meio do
cordão de estrangulamento das tropas inimigas e teriam de combater para passar por ele.
─ Não deixamos um porco, uma galinha ou uma punhado de trigo para eles comerem
─ contou a sentinela sorrindo. ─ Caímos sobre eles tão depressa que nem tiveram tempo para
abastecer a despensa. Se não conseguirmos obrigá-los a sair de outra maneira, vão sair pela
fome.
─ E a população? O que foi feito deles? ─ perguntou Harry, olhando para as ruínas das
casas.
─ A maior parte deles fugiu. Alguns para o castelo, onde vão aumentar o número de
bocas para alimentar, outros para os bosques. Fomos obrigados a matar os tolos que nos
enfrentaram.
Que outra coisa seria de esperar? Era a guerra e fora ele quem a desencadeara. Uma
guerra eficaz, uma guerra com uma finalidade mortal e não um jogo de estratégia. Saltara de
alegria quando o príncipe propusera aquela ofensiva; vira nela um meio de cumprir as suas

117
118

obrigações e aliviar a alma. Mas eram outros que pagavam por ela. Assistira à rendição de
Cardigan, vira Brecon ardendo, mas lá aceitara as coisas sem problemas, entrara no jogo e só
ocasionalmente o seu coração se sentira perturbado pela revelação da vida e da morte.
Assistira a tudo como criança e como estranho. Agora ali ele era um homem, um vizinho, e
todas as mortes o perturbavam.
Lançou um olhar desnorteado aos celeiros saqueados, aos estábulos pilhados. Adam
contara-lhe uma vez que ele e o seu pai haviam ajudado os camponeses daquelas aldeias nas
colheitas, quando muitos dos homens tinham sido recrutados à força para servir no exército do
Rei João. O seu pai defendera corajosamente os direitos daqueles mesmos camponeses,
rendeiros livres e servos, contra o seu senhor, sofrera com as injustiças cometidas contra eles
e imortalizara na pedra a afirmação da sua humanidade. Agora o filho vinha despejar-lhes os
celeiros, matar-lhes o gado e pregar o camponês à porta da sua própria casa, com aço. E não
podia recuar. Ele, mais do que qualquer um, estava comprometido; tudo aquilo começara por
sua causa.
─ E a gente que vive na floresta? ─ perguntou, com o coração apertado de medo.
Aelis estaria a salvo com certeza. Se David, que só a vira uma vez, se esquecesse,
Owen cuidaria para que ela e o pai saíssem incólumes de tudo aquilo e os levaria para um
lugar seguro, como prometera. Todavia, não podia descartar as suas responsabilidades
descarregando-as sobre Owen. Deveria ter previsto o que significariam a guerra e o cerco, as
casas destruídas, a floresta em chamas.
─ Fugiram para buracos que só eles conhecem ─ respondeu a sentinela, encolhendo os
ombros despreocupadamente. ─ Alguns dos que viviam na floresta preferiam viver em tocas
de raposa a procurar abrigo em Parfois. Outros talvez tivessem ido para lá, mas faltou-lhes a
oportunidade. Atravessamos o rio antes que eles dessem por isso. Apanhamos os seus animais
antes de poderem mudá-los de lugar. Se vivessem com tão pouco como nós disporiam de mais
tempo para fugir.
Harry fez Barbarossa dar meia-volta e afastou-se, angustiado pelo medo. E quando,
sem fazer perguntas, forçou a marcha para acompanhar a de Harry e lhe olhou o rosto, Adam
leu nele o desgosto e um enorme arrependimento.
─ Eu devia ter avisado você ─ disse Adam quando diminuíram a marcha porque o
caminho se tornara íngreme.
─ Eu devia saber. De que outro modo nós poderíamos cercar e conquistar Parfois? Oh,
Adam ─ acrescentou. ─ Começo a perceber que nasci inglês.
─ Agora já não há nada a fazer, Harry ─ disse Adam com tristeza. ─ Temos de ir em
frente.
Já chegou a esse ponto? pensou consigo mesmo. O Harry havia de amar você ainda
mais por isso.
─ Precisamos libertar Benedetta ─ acrescentou, contendo-se a tempo de evitar proferir
o nome de Isambard.
─ Não me esqueci. Fui eu quem começou isto e vou ter que levá-lo até ao fim.
Gostaria de falar de Aelis para aliviar o coração, mas não foi capaz, nem mesmo com
Adam, que a conhecia, que dormira na casa de Robert e que comera pão amassado por ela. O
medo secou-lhe a boca, impedindo-o de pronunciar o nome dela. Então cravou as esporas no
cavalo e partiu colina acima em direção ao troar esparso e abafado dos trabucos. Nos lugares
onde precisavam de proteção, os galeses tinham deixado ficar as árvores e só o portentoso e
ininterrupto duelo entre catapultas e trabucos quebrara alguns ramos que juncavam de
fragmentos o solo coberto de neve. Em pouco tempo Harry e Adam chegaram às linhas
exteriores e viram-se rodeados por paliçadas que os conduziram à estreita aldeia de cerco,
fervilhante de homens e animais. E lá estava Owen, saudando-os alegremente de um alpendre
encostado à muralha.

118
119

Harry saltou da sela ao seu encontro. Sem ouvir uma palavra do que Owen começara a
dizer, perguntou brutalmente:
─ Onde está a Aelis?
─ Só Deus sabe, Harry! ─ respondeu Owen com toda a honestidade, a alegria do
reencontro já apagada do rosto. ─ E Deus sabe que lamento não ter uma resposta melhor para
lhe dar. As coisas não correram como planejamos e não a encontrei. Mandei alguns dos meus
homens procurá-la...
─Devia ter tomado providências ─ gritou Harry, sacudindo-o furiosamente. ─ Você
prometeu! Ou acha que eu podia vir com a vanguarda e ir a Aber ao mesmo tempo? Eu
pensava que você ia à procura dela logo que atravessasse o Severn. Pensava que você a
colocaria e ao pai a salvo em Castell Coch, antes de soltar os seus homens. Santo Deus! Que
foi que você os deixou fazer?
─ Mas eu também não vim com a vanguarda. Como podia prever o que se passou? As
ordens deles eram esperar e cobrir o vau até eu me juntar a eles, mas por mero acaso,
esbarraram com uma companhia de soldados de Parfois que perseguia um servo fugitivo na
margem galesa. Lutaram com eles e empurraram-nos para o lado de cá. O efeito de surpresa
estava perdido, que mais poderia Madoc fazer senão avançar com energia e colocar mãos à
obra? Quando atravessei o vau na manhã seguinte, a floresta estava em chamas e as aldeias
em ruínas.
─ E não tentou encontrá-la ─ arquejou Harry. ─ Deixou que a perseguissem como
uma raposa, até à toca... não se preocupou com ela...
Soltou Owen e, num gesto de angústia e descrença, juntou as mãos que ardiam de
desejo de esmurrar o rosto ansioso de Owen. Este agarrou os punhos cerrados, passou um
braço nos ombros de Harry e puxou-o para si, para acalmá-lo.
─ Deus é testemunha Harry, de que me preocupei com ela e que fui procurá-la logo
que pude. Mas o mal já estava feito. A casa estava reduzida a cinzas e a vaca morta... O que
você queria? Os nossos homens tiveram de agir depressa e não havia nada que distinguisse a
casa de Robert de qualquer outra.
A verdade daquelas palavras atingiu Harry como uma facada. Na realidade, em que
diferiam a sua amargura e a sua perda das de qualquer outro homem? A mulher do camponês
morto lá em baixo, tinha tantas razões de estar triste como ele. Para cada morte havia alguém
que sofria a mesma cólera e a mesma dor que agora o revolviam.
─ E eles tinham partido? Tentou encontrá-los?
─ Que espécie de homem você pensa que eu sou, Hal? Por mais de dois dias os meus
homens os procuraram e a cabana continua sob vigilância para o caso deles voltarem. Havia
rastos e tentamos segui-los...
─ Não foram para Parfois? Claro que não, eles sabiam...
─ Não, foram para a floresta. Ambos eu juro, Hal. Eu vi as pegadas. Mas havia caído
neve nessa noite e perdemos a pista. Peço desculpa. Acalme-se. Eu dava uma mão para trazê-
los de volta sãos e salvos.
─ De que serviria isso? ─ perguntou Harry num tom cortante. Libertando-se de Owen
com um gesto tenso, afastou-se de ambos. O seu rosto estava tão cinzento como a neve
pisada.
─ Onde está o príncipe? Preciso lhe pedir licença para partir. Preciso ir encontrá-la.
─ Encontrá-la? Onde, santo Deus? Por esta altura já podem estar em Shrewsbury.
Acreditaria realmente nisso? Harry não acreditava. Os galeses ocupavam os dois
flancos de Long Mountain. Quem ousaria tentar atravessar as suas linhas depois do que já se
passara?
─ Onde está o príncipe? ─ repetiu Harry num tom agressivo. Mal ouviu a resposta,
rodou sobre os calcanhares e afastou-se.

119
120

─ Espere. Eu vou com você ─ gritou Owen, transtornado e aflito.


─ Deixe-o ─ interveio Adam. ─ Julga que não quero ir com ele? Mas ele não quer
nenhum de nós.
─ Não! ─gritou Harry, voltando-se para detê-los com um gesto furioso. ─ Não quero
ninguém. Vou sozinho.
Não havia tempo para suavizar a recusa; eles que pensassem o que quisessem.
Perseguida, despojada de tudo e cheia de medo Aelis não apareceria a ninguém senão a ele e
mais facilmente ainda, se viesse de mãos vazias e sozinho. Harry fugiu de Adam e Owen e
chegou à presença de Llewelyn tenso e sem fôlego. De joelho em terra pronunciou apenas as
palavras estritamente necessárias.
─ Cumpri a missão que me confiou, senhor. O Adam está aqui. E aqui tem as cartas da
minha senhora. Agora, senhor, dê-me permissão para ir em busca de Robert e Aelis, que me
alojaram e ajudaram quando estive sozinho aqui. Eles fugiram para a floresta, para escapar
aos nossos homens, e a casa deles foi queimada. Dispense-me até eu encontrá-los e lhes dar
abrigo, como eles deram a mim.
Harry ergueu a cabeça e fitou os brilhantes olhos de falcão que o fixavam sem espanto,
compreensivos e perspicazes; não havia nada que não se pudesse dizer a um homem que era
imune à surpresa.
─ Não é um pedido feito sem pensar, senhor ─ acrescentou Harry, arrebatadamente
grave. ─ Eu amo Aelis do fundo da minha alma e pretendo casar com ela.
A cerca fora derrubada, a horta arrasada pela neve e a casa abandonada. Restavam
apenas as vigas encurvadas do telhado, queimadas e enegrecidas, alinhadas como dentes
quebrados. Os dois homens de Owen tinham quebrado o forno de barro de Aelis para fazer
uma lareira e alimentavam o fogo com o que restava das gaiolas das galinhas.
─ Vigiamos dia e noite e nem sinal de vida ─ lamentaram-se. ─ Estamos perdendo
tempo aqui. Eles não vão voltar.
Harry era da mesma opinião; não voltariam, pelo menos enquanto aqueles dois
estivessem ali.
─ Deixem este lugar e vão ao encontro dos seus companheiros ─ disse Harry.
─ Não quero arriscar a pele se Owen ap lvor ouvir falar nisso ─ objetou o mais velho
dos dois, fitando-o com um ar carrancudo. ─ As ordens dele eram ficarmos aqui de vigia.
─ Não se preocupem com isso. Vão e digam-lhe que Talvace os dispensou da sua
missão. Eu responderei por vocês e Owen não os acusará de nada. Apaguem o fogo antes de
partirem e levem tudo com vocês. Se alguém estiver à espreita, quero que entenda que a
vigilância acabou.
Satisfeitos com aquela garantia os dois homens não se fizeram rogar; apagaram o fogo
no forno quebrado, pegaram as provisões que lhes restavam e partiram alegremente em
direção ao acampamento. Harry ficou sozinho no local, agora desolado, onde Aelis vivera.
Naquele momento era inútil chamá-la, pois ela não viria. Se Aelis estivesse viva e
escondida num lugar qualquer daquela floresta violada, seria preciso persegui-la e apanhá-la
como se apanha um animal selvagem. A princípio, pensou Harry angustiado, Robert e Aelis
deveriam ter encarado sem receio a chegada dos galeses, calculando que fora ele quem os
trouxera e que nada havia a temer. Mas depois, antes de terem tempo de entender o que estava
acontecendo, os soldados haviam desembainhado as espadas, disparado flechas e lançado
tochas contra o telhado. Talvez, antes de ceder ao medo, Aelis tivesse visto a vaca ser levada
e as primeiras galinhas degoladas. Talvez Robert tivesse gritado que os deixassem em paz e se
tivesse atravessado no caminho dos soldados; talvez estivesse ferido quando, finalmente,
fugira. E ela... Não, porque viriam eles de livre vontade ao nosso encontro, depois de tamanha
traição? Nem mesmo ao meu encontro! Muito menos ao meu encontro, se ela não me amasse.
Pobre Aelis! Sou eu a causa de tudo isto. Que Deus me perdoe e me ajude a reparar os meus

120
121

erros.
Para onde teriam fugido quando, por fim, o terror se apoderara deles? Não para o topo
de Long Mountain, porque lá ficava Parfois e então estariam encurralados entre o diabo e o
inferno. Aqueles dois fugitivos tinham tão bons motivos para se manterem longe de Parfois
como para fugirem dos galeses. Também não teriam seguido os carreiros habituais, situados
nos terrenos planos abaixo do topo, porque lá os cavaleiros podiam circular facilmente e em
breve seriam apanhados. Deviam ter ido na direção do rio onde ficariam longe dos dois
exércitos, numa estreita faixa de terra que ninguém cobiçava. Ali podiam pelo menos ter
esperança de escapar à terrível luta, mesmo que isso lhes custasse dias e noites de marcha. Ou
podiam atravessar o vau em Buttington e procurar refúgio em Strata Marcella, onde os frades
não interrogariam um necessitado, antes de recolhê-lo.
A floresta densa ao longo do rio, onde não havia caminhos, não fora atingida pelo
fogo. Harry prendeu Barbarossa, embrenhou-se no mato e, com uma paciência mesclada de
receio, começou a busca ao longo da margem, em direção a jusante. Por duas vezes avistou
corpos que jaziam entre emaranhados de ervas geladas, para onde a corrente os arrastara,
emparedados pelo gelo e, com o coração na boca, aproximou-se. Mas nenhum desses corpos
era das pessoas que procurava; respirando fundo, seguiu em frente, tenazmente. Não voltaria
sem ela.
O moinho não escapara aos galeses; fora saqueado e incendiado e o corpo do moleiro
jazia no charco gelado. Porém, os soldados não haviam esperado até a destruição ser completa
e um vento contrário havia poupado o porão e o telhado. Aquele era o primeiro abrigo que
encontrava e Harry percorreu as ruínas febrilmente, mas estas não abrigavam qualquer ser
vivo. Algumas jardas adiante, sobre o gelo escuro, encontrava-se o barco, imobilizado,
encalhado e inútil.
Durante todo o dia, hora após hora, sem consciência da fome, da sede, do frio e do
cansaço, Harry prosseguiu a busca em direção a jusante, depois de Buttington, até o coração
lhe dizer que aquela esperança se esgotara e era preciso voltar atrás, procurar em outro lado.
No entanto, ao dirigir-se para montante, manteve-se junto à margem do rio como antes,
confiando no seu raciocínio: mesmo confuso e em pânico, Robert saberia o que fazer e se
manteria à beira do rio, o único caminho por onde podia esperar escapar à perseguição e evitar
encontros fortuitos. Apesar de gelado de corpo e de espírito, Harry continuou obstinadamente
a procurá-los. Quando a luz do dia quase desaparecera e o crepúsculo pesado do inverno
começava a instalar-se, chegou mais uma vez às proximidades do moinho, a uma língua de
terra onde a vegetação densa não fora atingida pelo fogo e onde podia movimentar-se sem ser
visto.
Harry parou subitamente e ficou olhando. Uma frágil silhueta escura saiu do barco e
dirigiu-se para o moinho. Aelis, sempre tão reta, ágil e ousada, caminhava curvada sobre o
gelo, coxeando como uma criança doente ou um aleijado. Mas Harry reconheceu-a pela
estocada instantânea de dor que lhe atingiu o coração e fez as lágrimas chegarem aos seus
olhos e pela alegria por trás da angústia, que o levou a murmurar silenciosamente, entre os
lábios trêmulos, palavras de agradecimento a Deus.
Ela estava viva e se mexia. Por mais que lutasse, ele a apanharia e a acalmaria, ia
segurá-la com as mãos, impedindo-a de fugir, ia apertá-la com força nos braços para não
deixar que se machucasse debatendo-se de terror, até o seu contato enternecê-la e apaziguá-la,
mesmo contra a vontade dela, até ela ouvi-lo e ficar quieta, cansada demais para continuar a
ter medo, esgotada demais para continuar a lutar; até as suas palavras e as suas carícias
atingirem a percepção dela e conseguirem alisar as penas eriçadas, até o coração e o corpo
dela o reconhecerem e se voltarem para ele. Mesmo contra a vontade dela!
Com o maior cuidado avançou entre as árvores, perdeu-a de vista antes que ela
chegasse à terra, apressou o passo com uma angústia surda e voltou a avistá-la quando ela

121
122

subiu do gelo para a margem. Em pequenas passadas cautelosas, sempre com medo de ser
traído pelo estalido de um galho ou pelo movimento de um ramo, aproximou-se dela e chegou
à cerca pouco segura que rodeava o terreno em torno do moinho.
Por que não examinara aquele local com o mesmo cuidado com que examinara o
moinho, quando se dirigira para jusante? Se o tivesse feito, não poderia deixar de notar os
sinais de ocupação humana e teria sabido que Aelis estava ali e se escondia dele, se escondia
de todos os homens horríveis que tanto mal lhe haviam feito. Agora Aelis julgava-se sozinha,
protegida pela noite que caía e saíra do esconderijo para continuar o seu trabalho. Tremendo e
quase cego pelas lágrimas, Harry viu que Aelis trouxera uma picareta do moinho e estava
tentando cavar no solo duro como pedra. Há quanto tempo ela já trabalhara naquilo, para ter
conseguido escavar aquela irrisória trincheira superficial, desenhada em preto sobre a neve?
Enrolara as mãos e os pés em pedaços de tecido de sacos e, sobre os ombros, por cima
do vestido grosseiro, os farrapos de uma saca de farinha; devia ter fugido sem nem mesmo
pegar a capa. O cabelo comprido estava descuidadamente enrolado na nuca para não lhe
dificultar os movimentos. Não conseguia ver-lhe o rosto, em parte por causa da obscuridade,
em parte por causa da sombra do cabelo. Harry saiu do seu esconderijo por trás dela, saltou
por cima das estacas de madeira e aproximou-se como um gato.
Apesar de todas as cautelas, Aelis ouviu-o. Rápida e silenciosa virou-se, deu um salto
para trás e brandiu a picareta para bater na sua cabeça. Os seus olhos, enormes no rosto
torturado e magro apresentavam um brilho selvagem, que tornava impossível dizer se ela o
reconhecera ou se ainda possuía juízo suficiente para se lembrar dele. O rosto rígido e sem
expressão da jovem parecia um pedaço arrancado ao gelo que cobria o rio, os seus olhos eram
chamas azuis de medo e horror. Harry desviou-se da pancada, mas o cabo da picareta bateu-
lhe no ombro, deixando-lhe o braço dormente. Os dedos de Harry só conseguiram agarrar a
bainha da saca que servia de capa a Aelis e esta se desviou violentamente, deixando-o com a
saca na mão. Em seguida largou a arma e correu a toda a velocidade, como um veado ferido,
para o abrigo das árvores.
Harry desatou imediatamente a correr atrás dela e nem mesmo o desespero poderia
levar Aelis a correr mais do que ele. Alcançou-a junto à cerca e segurou o seu vestido,
agarrando ao mesmo tempo um pouco do seu cabelo, o que a fez soltar um grito queixoso, que
encontrou eco num soluço estrangulado da garganta de Harry. Mas ele não podia nem ia soltá-
la. Aelis voltou-se, cravou-lhe os dentes no pulso e os dois caíram sobre a neve. Ela caiu com
a leveza quase imaterial de uma folha de árvore, tão franzina e delicada sob o seu corpo que
Harry se sentiu inundado por uma torrente inconsolável de desgosto, horror e vergonha. No
entanto ele não tinha outra opção; continuou deitado por cima dela com todo o seu peso,
segurando-a contra o solo até ela ficar cansada, lutando com ela até conseguir dominá-la;
apenas a cabeça da jovem continuava a oscilar de um lado para o outro para evitar o olhar
dele, como se aquele olhar também tivesse o poder de machucar e matar.
Ao sentir que, debaixo de si, o corpo de Aelis se aquietava, Harry abrandou um pouco
a pressão e, num instante, ela libertou um braço e as suas unhas rasgaram arranhões profundos
no rosto dele. Harry prendeu-lhe o pulso e voltou a colocar todo o seu peso sobre ela, não
ousando correr esse risco outra vez. Encostou mesmo a cabeça à dela, face contra face, e
pousou a testa na neve para mantê-la quieta. Aelis suspirava e respirava em arquejos longos e
trêmulos e o contacto com a fraqueza, a frieza e o ódio dela desencadeou em Harry uma
convulsão de desejo e angústia, uma ânsia quase insustentável do seu corpo por ela.
─ Aelis! Aelis!
Harry quase não tinha voz para pronunciar o seu nome, mas repetiu-o várias vezes,
num murmúrio junto ao ouvido da moça. Nenhum tremor de conhecimento, nenhum
afrouxamento, nenhum reconhecimento no corpo rígido por baixo dele. No entanto, Aelis
estava consciente de uma coisa que ele não sabia; Harry chorava em grandes soluços, que

122
123

entrecortavam as sílabas do nome dela. A curiosidade penetrou através da estreita fenda do


seu espanto humano e a piedade que a seguiu de perto hesitou, intimidada. A intensidade da
imobilidade de Aelis alterou-se. Quando Harry ousou erguer a cabeça e voltar a fitá-la, nos
olhos grandes, fixos e dilatados pelo choque despontava uma pequena chama de dúvida e
entendimento, que o encorajou a acreditar que a alma e a mente de Aelis ainda viviam dentro
dela.
─ Não me reconhece, Aelis? O Harry? Não lute comigo, não fuja. Vim procurar você
para levá-la comigo. Aelis, meu amor, minha querida, não tenha medo de mim...
Ainda era cedo demais. Para ela, aquelas palavras não passavam de um som distante,
não desagradável e, dessa vez, não era um som ameaçador. Seria preciso esperar muito tempo
antes que ela voltasse para ele, mas pelo menos dera a primeira olhadela por cima do ombro.
Por fim, sempre com muita precaução, tirou uma das mãos de cima dela, soltou a
corrente que lhe prendia o manto e deixou-o cair sobre ela. Em seguida, deslocando
cautelosamente o próprio peso, soergueu-a com um braço antes dela se dar conta do que ele
fazia, bloqueou-lhe os dois braços acima do cotovelo e enrolou o manto à volta dela,
apertando-o bem para impedi-la de se debater. Aelis assustou-se e, assolada novamente pelo
pânico tentou lutar, mas o esforço não durou muito. A sensação de calor penetrou no seu
espírito e confundiu-a; pela primeira vez Aelis sentiu que talvez as mãos que a envolviam e os
braços que a mantinham prisioneira fossem gentis.
Harry conseguira por fim dominá-la, ela estava impotente. Pegou-a no colo e levou-a
para o porão do moinho. Encontrou os restos de um monte de palha a um canto; sentou-se no
chão com ela, arrumou um ninho para acomodá-la, procurou tranqüilizá-la com palavras
doces sem deixar de segurá-la bem nos seus braços, com medo de que ela se libertasse e
voltasse a fugir dele.
─ Vim logo que pude, logo que soube. Agora ninguém mais vai fazer mal a você.
Tomarei conta de você. Vou levá-la para um lugar seguro. Vou levá-la para junto da minha
mãe...
Disse-lhe o que ia em seu coração várias vezes; acariciou-a e mimou-a, várias vezes. A
rigidez do corpo dela abrandou um pouco; a palidez gélida do seu rosto atenuou-se. Harry
beijou-a na testa e ela estremeceu e ergueu para ele um olhar espantado e nostálgico,
lembrando-se de outras carícias. Então, lenta e suavemente, Harry beijou-a nos olhos, nas
faces, na garganta e, por fim, na boca. A boca dela despertou ao toque dos lábios dele, moveu-
se e, com grande suspiro, comprimiu-se contra a dele.
Agora o corpo de Harry estava mais tranqüilo, tomado por uma onda de ternura e já
não de paixão. Ia saber esperar a sua hora. Abraçou-a com força até a exaustão e a surpresa a
submergirem como uma onda do mar e Aelis adormecer nos seus braços. Depois disso Harry
esperou muito tempo até ter certeza de que ela não iria acordar, e então aconchegou-a na
palha e saiu silenciosamente do abrigo. As dobradiças da porta estavam quebradas, mas esta
era pesada. Harry fechou-a, certo de que Aelis não seria capaz de deslocá-la. Havia coisas que
precisava fazer.
Primeiro, avançou prudentemente sobre o gelo, com a luz da lua que despontava a
indicar-lhe onde se encontrava o barco. Sobre os bancos estava estendida uma velha lona com
uma das pontas levantada como ela a deixara. E Harry descobriu aquilo que, no fundo, já
sabia que iria encontrar: o corpo hirto de Robert jazia ali onde morrera, com as feridas no
peito e no braço coladas aos panos que Aelis rasgara da própria camisa. A capa dela também
estava lá, ternamente colocada sobre o corpo do pai. Quase nua naquele frio glacial, Aelis
empreendera a árdua tarefa de cavar uma sepultura para o pai na terra gelada. Podia pelo
menos poupá-la disso. Robert tinha agora um filho; tarde demais para ajudá-lo em vida, mas
pelo menos a tempo de enterrá-lo.
Harry ajoelhou-se sobre o gelo e rezou uma oração pela alma do defunto. Então, de

123
124

repente, o fardo das suas responsabilidades e o peso da culpa o esmagaram por um momento e
os soluços o sacudiram como o vento sacode uma faia. Mas foi um momento breve, que o
deixou mais calmo e senhor de si. Ergueu-se, regressou à margem e, tão depressa quanto lhe
foi possível, voltou ao lugar onde deixara Barbarossa. Levou o animal consigo até ao moinho
e o fez entrar, impaciente, nervoso e indignado, no abrigo onde Aelis dormia. Os alforjes
continham pão, carne e vinho e o grande corpo do cavalo faria às vezes de fogueira contra o
frio da noite.
Aelis dormia na posição em que a deixara. Harry tocou-lhe, porque já não havia luz
que lhe permitisse vê-la, e ela não se mexeu. Contudo, quando levantou um pouco o manto, se
deitou ao lado dela e voltou a enrolá-lo bem à volta de ambos, Aelis espreguiçou-se e
suspirou. E quando a tomou nos braços, puxando-a para si a fim de partilhar com ela o calor
do próprio corpo, ela voltou-se para ele confiantemente e aninhou-se contra o seu peito.
Harry ficou acordado a noite toda com Aelis nos braços. De manhã ela abriu os olhos
inchados que o sono fizera recuperar o azul límpido e puro das flores do campo e, num tom de
incerteza e melancolia, como se tivesse sonhado com ele, exclamou:
─ Harry!
─ Estou aqui ─ respondeu ele tenso, mas vibrando de esperança. E depositou-lhe na
face um beijo suave, tranqüilizador, um beijo igual ao que daria a uma criança.
De repente Aelis lançou-lhe os braços à volta do pescoço e puxou-o para si com toda a
força. A barreira da solidão que a impedira de chorar, fora quebrada e as lágrimas brotaram,
numa torrente de desgosto que escorreu com gratidão sobre o peito de Harry.
Harry cuidou dela, alimentou-a, acendeu fogueiras para aquecê-la, tomou-a nos braços
durante a noite e, durante o dia, escavou a cova de Robert na terra gelada, como penitência.
Ao fim da tarde do segundo dia, depois de haver construído uma espécie de trenó e nele ter
transportado o corpo para a terra, para enterrá-lo, Aelis levantou-se e foi ao seu encontro de
livre vontade. De rosto pálido, mas maravilhosamente calmo, ajudou-o a colocar o pai na
sepultura. Rezou ao lado de Harry, e o seu desgosto era um desgosto humano e suportável, as
lágrimas corriam-lhe suavemente pelo rosto, não devido a um horror inconcebível, mas
devido a uma mágoa compreensível que o tempo ajudaria a sarar.
No terceiro dia, abandonaram o moinho e atravessaram o vau em Pool. Agora, já não
era difícil: a superfície do rio estava gelada entre as duas margens. Harry enrolou as
ferraduras de Barbarossa em pedaços de pano e conduziu-o para a outra margem, sem perigo.
Chegaram às portas de Castell Coch perto do meio-dia. Menos de uma hora antes tinham
chegado outros viajantes e, no terreiro, reinava uma grande atividade de descarga das
bagagens. Harry avistou o brasão de cores vivas de Gwynedd, contou o número de
palafreneiros, escudeiros e camareiros e concluiu que a princesa cumprira a sua promessa e
viera cedo para a fronteira, a fim de passar o Natal perto do seu senhor. O fato tirava-lhe um
peso dos ombros e deixava-o contente porque assim poderia confiar Aelis à mais segura de
todas as guardas. Mas ao mesmo tempo despontara nele um novo e inesperado instinto que o
fazia sentir-se constrangido e preocupado e o advertia de que não era assim tão simples
comunicar à mãe que já era um homem e tinha uma noiva, sem tê-la advertido previamente e
sem ter pedido a sua permissão.
Gilleis, que saíra dos aposentos da princesa para orientar o transporte da bagagem
pessoal de Joan, parou nos degraus da casa senhorial ao avistar o cavalo alazão que se
aproximava carregando duas pessoas. Esqueceu-se do que viera fazer, esqueceu-se dos
aborrecimentos da viagem e do alívio da chegada. Viu apenas aquele homem jovem, forte e
gentil, um estranho de olhar grave e resoluto, de queixo coberto por uma barba loura de três
dias, que abraçava a moça que transportava diante de si como se esta fosse um cálice de ouro
do qual receasse deixar cair uma gota de néctar. Gilleis ficou vendo Harry desmontar,
afastando o braço da figura esguia com enorme doçura e relutância e teve um momento de

124
125

exasperação ao ver que, com o tempo que fazia, Harry vinha sem manto... uma exasperação
que duplicou quando percebeu que, na verdade, ele trazia um manto, mas que era a jovem
quem o usava. Apesar da palidez, da magreza e da sua idade, a moça usava-o como se este
fosse púrpura e quando Harry lhe estendeu os braços para ajudá-la a descer, inclinou-se para
ele com uma adoração total e confiante que mesmo os reis raramente inspiram. A despeito da
dor que sentia, esta devoção provocou em Gilleis um impulso de ternura.
A hora que receava chegara cedo demais. Harry ainda não completara dezenove anos,
estivera privada dele durante quatro anos e agora ia perdê-lo para aquela jovem de cabelos
dourados, rosto esquivo e inocente e olhos azuis como flores silvestres numa seara por ceifar.
Harry pousou a jovem no chão com toda a delicadeza como se a terra pudesse machucá-la.
Entregou as rédeas a um palafreneiro e voltou-se para a casa senhorial com um braço sobre os
ombros da companheira. Então viu a mãe ali parada e compreendeu que ela estivera a
observá-lo.
Gilleis apelou para toda a sua coragem e para todo o seu amor e avançou para ele para
abraçá-lo.
─ Ainda bem que a senhora está aqui, mãe ─ disse Harry. ─ Trago comigo uma pessoa
que gostaria de confiar aos seus cuidados, uma pessoa que foi boa para mim e ficou órfã por
minha culpa. Esta é Aelis, filha de Robert, de quem já lhe havia falado. Acabamos de enterrar
o pai dela.
Aelis recuara um pouco para não se intrometer no reencontro dos dois e Harry voltou a
passar-lhe o braço sobre os ombros e, com uma expressão grave no rosto corado, a fez
avançar de novo.
─ É a minha noiva que trago para junto da senhora, mãe. Acolha-a e cuide dela até eu
voltar. Tirando a senhora e eu, não tem mais ninguém neste mundo.
Harry exprimira-se num tom prudente, orgulhoso e sereno, mas por um momento
Gilleis viu espreitar nos olhos dele a criança que já desaparecera, dividida entre o desafio e a
súplica; depois o homem voltou a enfrentá-la com o seu olhar altivo e imperioso. Deus
abençoe este rapaz, pensou Gilleis, salva pelo riso irresistível que as atitudes solenes e
ingênuas dos homens sempre lhe provocavam, será que pensa que eu ambicionava casá-lo
com alguma princesa galesa que trouxesse um ou dois feudos como dote? Ou será que Deus
lhe ensinou esta astúcia de se apresentar assim diante de mim, sabendo que eu só o entregaria
de bom-grado a uma pobre criatura sem nada de seu? Se isto tinha de acontecer, que me resta
fazer senão aceitar? É melhor entregá-lo de livre vontade do que vê-lo ser arrancado à força.
Olhou para a moça e viu-lhe as olheiras, a palidez das faces enregeladas, a pobreza do
vestido. Tão jovem e tão só, sem nada de seu, sem família, quem poderia censurar a forma
decidida como se agarrava ao mundo, à esperança, à promessa de felicidade?
─ E a quem você a confiaria senão a mim? ─ perguntou Gilleis vivamente.
Afastando Aelis de Harry, abraçou-a, beijou-a afetuosamente e acrescentou:
─ Bem-vinda, minha filha. Deus sabe que lamento a perda que você sofreu, mas estou
contente com o que acabo de ganhar.
Que Deus inclua esta mentira na conta dos meus méritos e não na dos meus pecados,
pensou. E me ajude a transformá-la em verdade.
─ Saiam do frio vocês dois, e venham se aquecer à lareira, pois parecem enregelados.
Venham ver a princesa e contar-lhe as novidades. Ela vai ficar contente.
Aliviado de um peso e ansioso por ir cumprir o seu dever, Harry recusou. Mas Gilleis
teve direito a uma recompensa: Harry abraçou-a e beijou-a com a exuberância da alegria por
terem terminado os seus problemas e tudo estar correndo bem. É como todos os homens,
pensou Gilleis: alegre e radioso, quando faz prevalecer a sua vontade. E riu de si mesma e de
Harry, tomada pela sua velha alegria de viver, ainda viva e pura. O que levara Harry a ter
dúvidas? O que a levara a ter medo? Por acaso o pai dele pedira autorização a alguém, quando

125
126

a escolhera para ser sua mulher? E ela tinha esquecido a sua própria audácia quando, entre
todos os homens, elegera Harry Talvace e apostara a vida em como o conquistaria, correndo o
risco de perder tudo?
─ Não posso ficar, mãe. Preciso voltar, pois tenho trabalho à minha espera. Eu
conheço Parfois por dentro e eles precisam de mim lá. Tome conta de Aelis e eu ficarei
contente. E ame-a, minha mãe ─ acrescentou num murmúrio suplicante, junto ao ouvido de
Gilleis. ─ Porque eu a amo do fundo do coração.
─ Quem melhor poderia tomar conta dela do que uma mãe? ─ replicou Gilleis,
abraçando-o ternamente. ─ Quem poderia amá-la mais? Vá então, se é necessário que vá e
não se preocupe conosco. Ficaremos muito bem juntas, falando mal de você até a sua volta.
Há muitas coisas que preciso lhe ensinar a seu respeito! Vá, filho, ponha-se a caminho, já que
precisa ir. Dê-lhe um beijo e deixe-a aos meus cuidados.
Harry beijou-a, pegou o manto e satisfeito com o destino das suas mulheres pôs-se a
caminho, ao encontro dos homens entrincheirados em torno de Parfois, que procuravam uma
falha, uma fenda no rochedo por onde o calor, o frio ou o ferro pudessem penetrar.
Gilleis e Aelis ficaram a vê-lo se afastar, num silêncio breve e perigoso e, quando ele
desapareceu da vista, olharam pela primeira vez uma para a outra, de um modo atento e
inquisitivo.
─ Eu a obedecerei e serei grata, senhora ─ disse Aelis, medindo aquela que poderia vir
a revelar-se uma adversária de peso. ─ E aprenderei com a senhora a melhor forma de servi-
lo. Mas desde já lhe digo que não vou desistir dele.
Quem diria, à primeira vista, que o coração daquela jovem abrigava tanta coragem?
Gilleis estudou-a longa e pensativamente e, por trás da palidez provocada pelo frio, pelas
privações e pela dor, detectou a determinação e a serenidade daquele rosto de traços puros, o
brilho intenso dos olhos que sustentavam tão honestamente o seu olhar, reparou no modo
como a boca em forma de botão de flor formava e terminava cada palavra, pronunciando-a
com a clareza cortante de uma espada. Aelis sabia o que dissera e era isso mesmo que queria
dizer. O desafio fora lançado e restava apenas aceitá-lo ou deixar correr: ela não mudaria. O
aviso fora honesto, sem ressentimento nem malícia, mas se tivesse de lutar por Harry, não
daria tréguas.
─ Porque penso ─ acrescentou Aelis numa voz ponderada, os olhos azuis brilhantes e
diretos como duas espadas ─ que não sou aquela que a senhor escolheria para ele.
─ Deus é testemunha, minha filha, que começo a pensar que é ─ respondeu Gilleis
com um súbito sorriso resplandecente.

126
127

CAPÍTULO NOVE
Parfois, dezembro de 1233

De noite, no silêncio enganador da natureza estática e gelada, Parfois repousava tão


imóvel e imaculado como as estrelas do céu. Apesar da escassez das reservas de velas havia
bastante luz no salão e apesar de terem que poupar os alimentos, a cerveja e o vinho para fazer
face às necessidades de um cerco demorado, não passavam muito mal. Na sua vigília noturna,
William Isambard passeava de um lado para o outro no terraço da Torre da Rainha,
observando a luz fraca das fogueiras distantes, no sopé da montanha, minúsculos elos de uma
cadeia que o mantinha prisioneiro no interior das suas próprias defesas deixando, no entanto,
aquela aparência de paz. A própria espera era difícil de suportar. Por três vezes tentara reduzi-
la através de saídas com forças de soldados bem armados, mas as baixas sofridas haviam-no
ensinado a abster-se de procurar alívios tão vexatórios. O posto avançado da guarda era
defendido a todo o custo; a torre danificada fora reforçada com uma barreira tripla, erguida
com toda a pressa com as pedras destinadas à construção de mestre Edmund e era guardada
por metade da guarnição. Se ocupasse a rampa de acesso o inimigo poderia trazer as máquinas
de guerra para o planalto da igreja e atacar o próprio castelo de perto. Mas enquanto as
primeiras defesas não cedessem, Parfois continuaria a ser inexpugnável e a sua conquista
impossível. Dali do alto William o contemplava: intacto, em boa ordem, tranqüilo, inviolado,
inviolável.
Lá em baixo, como coelhos, como toupeiras, os galeses martelavam incansavelmente
no rochedo sobre o qual se erguia a fortaleza, devorando pedaços de rocha, palmo a palmo.
Que quereria aquilo dizer? Que esperavam conseguir fazer? Era melhor tentar esvaziar o rio
com conchas de sopa.
Ficava furioso quando o mestre canteiro insistia em lhe apresentar um relatório diário
sobre a sua obsessão persistente e quando De Guichet o seguia até ali, à noite, e achava
necessário se referir também àquela atividade ridícula. Que lhe importava se os tolos dos
galeses quebrassem os dentes a moer a terra? Todos sabiam que os galeses eram hábeis em
escaladas, todos reconheciam que eram capazes de escalar o rochedo e passar o barranco que
separava a plataforma de Parfois da plataforma da igreja. E depois? Não podiam trazer para
ali as máquinas de guerra e também não havia posições praticáveis, mesmo para os seus
arqueiros. E ainda que conseguissem chegar até a base das muralhas não poderiam encostar as
escadas. Deixem-nos escavar!
─ O mestre Edmund diz que continua a ouvi-los, senhor. Por baixo das torres de vigia
e, com maior clareza ainda, por baixo da armaria e da sala de desenho. Ele jura que os galeses
estão escavando por baixo dos nossos pés.
─ Deixe-os! Que benefícios podem tirar disso? A única abertura que poderia ser
perigosa está selada com pedras e as portas aqui dentro estão bem guardadas. Se o louco do

127
128

meu pai não a tivesse usado para as suas artimanhas, nem isso teríamos necessidade de
sacrificar. Eles nunca a encontrariam do lado de fora, se o rapaz já não a conhecesse. E não há
mais galerias.
─ É certo, senhor. Mas há fendas e grutas. E o Príncipe de Aberffraw também dispõe
de pedreiros, que sabem cortar a pedra tão bem como o mestre Edmund.
─ E você pensa que eles são capazes de abrir um túnel para entrar em Parfois? Em
quantos anos? Deixe-os escavar! Dê cabo deles sempre que puder e pare de me importunar.
No alto das torres de vigia, no caminho da ronda e até em todas as galerias da muralha
daquele lado, tinham sido colocados arqueiros em alerta. De tempos em tempos, um homem
dos clãs mais incauto aparecia a descoberto e pagava por isso, mas ultimamente tinham
aprendido a manterem-se protegidos e as saliências proporcionavam uma boa cobertura. Pelo
menos uma vez, durante a noite, os galeses tinham se aproximado em número superior ao
habitual e haviam sido detectados; os sitiados tinham lançado óleo e depois tochas para o
barranco, ateando um fogo que arrancara vários homens em chamas dos seus esconderijos
para serem alvejados com toda a facilidade pelos arqueiros postados nas muralhas. Mas eles
aprendiam depressa. Agora se mantinham colados ao rochedo e saíam um a um, em silêncio.
Talvez eles tivessem alargado suficientemente os seus buracos para se manterem longe do
alcance do fogo. Todavia, que importância tinha isso? Deixaria que eles andassem às
apalpadelas, no escuro, até ficarem tão cegos como o velho. Que mal podiam fazer lá em
baixo?
─ Como desejar, senhor. Fazemos o que é possível. O rapaz, se o senhor bem recorda,
também é pedreiro. Aprendeu com o mestre Edmund...
─ Deixe isso, eu disse. Há mais alguma coisa para contar?
─ Nada de novo, senhor. O velho senhor, seu pai, voltou a pedir para passear um
pouco no pátio interior durante a manhã. Eu disse que lhe perguntaria. Está ficando doente por
estar fechado a tanto tempo, depois da vida que levou. O senhor bem podia deixá-lo apanhar
um pouco de ar de vez em quando ─ respondeu De Guichet.
O breve mas significativo olhar que lançou a William acrescentava “... se quer que ele
continue vivo.”
Esta observação provocou um sorriso de alívio. O fato daquele demônio de arrogância
ter sido obrigado a solicitar os seus favores representava o reconhecimento de que os papéis
haviam se invertido.
─ Meu pai pode sair desde que seja vigiado de perto. Ninguém deve se importar com
ele. E não é preciso ninguém para acompanhá-lo. Se ele quer passear, que passeie sozinho
como puder. Mas cuide para que ele não saia do pátio interior. A mulher está bem segura no
pátio exterior e não pode ir falar com ele. Ela costuma perguntar por ele?
─ Não pergunta por ele nem pede nada.
Benedetta nunca pedia nada. Não parecia uma prisioneira; passava os seus dias em
silêncio, mergulhada nos seus pensamentos, serena, totalmente insensível à tormenta que se
desenrolava à sua volta. Às vezes quase tinham medo dela. Os seus olhos afastados
denotavam uma tranqüilidade assustadora e uma profunda sabedoria sobre a loucura dos
homens, à qual ela era imune. Se a morte viesse procurá-la, ela a encararia com a mesma
impassibilidade e a acompanharia prontamente. A mulher santa de Aber, a cortesã veneziana,
a aventureira trazida para Parfois como troféu de guerra das Cruzadas, vira e vivera tanto que
o espanto já não conseguia atingi-la. Agora já não tinha qualquer importância. Preocupado
com aquela guerra, William ficaria contente em se ver livre dela, mas ela estava ali e não
havia nada a fazer. Aliás, talvez pudesse vir a ser útil ainda: Benedetta era o único estímulo
capaz de forçar o velho, se este voltasse a tornar-se obstinado.
─ Cuide para que ele se mantenha afastado dela.
─ Assim fará, senhor, porque foi o que prometeu.

128
129

─ Cuide disso, disse eu. Não confio nele nem nela. Com quem ela passa o tempo?
Com ninguém. Ou com todos. Respondia prontamente quando falavam com ela e, no
entanto, não precisava da companhia de ninguém.
─ Umas vezes com as mulheres, outras com os músicos. Ela toca e canta. Dizem que
bem. E com aquele velhaco de Reichenau, que parece ter alguns conhecimentos... fala com ele
sobre livros.
Mais um hóspede sem o qual passariam muito bem, aquele monge desertor com a sua
língua afiada e os seus olhos manhosos, que viera do sul, de Chester, com o seu bornal e as
suas histórias, para vender ao velho um fragmento duvidoso da cruz de São Pedro. Em outros
tempos, Ralf Isambard tornara-se conhecido como colecionador daquele gênero de relíquias e
qualquer homem com boa conversa conseguia obter dele alojamento, comida e uma
recompensa generosa, mesmo que a mercadoria fosse suspeita. Diretamente da Terra Santa,
dizia ele, acabado de desembarcar e ainda pálido devido à acidentada travessia desde a
França, em pleno inverno. Viera até Parfois e em Parfois continuaria, por força das
circunstâncias, até os galeses baterem em retirada. E como ele se lamentava, alto e bom som,
da sua má fortuna por vir cair nesse vespeiro assim que pusera de novo os pés na Inglaterra,
depois de tantos anos.
─ Nunca suportei essas mulheres eruditas. Elas são obras do diabo. Mas apesar de toda
a sua fé de cruzado, o meu pai sempre mostrou gosto pelas obras do diabo.
Subitamente William voltou-se para as escadas da torre.
─ O que é isto? Quem vem lá? Não ordenei que não os deixasse me incomodar a esta
hora?
─ Todos sabem dos seus desejos, senhor. Ninguém ousaria... ─ Alguém subia os
degraus de pedra com toda a pressa e os seus passos provocavam um eco rouco.
─ ... sem um forte motivo ─ acrescentou De Guichet, apressando-se a ir ao encontro
do intruso.
Na estreita abertura das escadas apareceu um camareiro quase sem fôlego, que
tropeçou ao chegar à soleira e se apressou a fazer uma vênia humilde diante de William.
─ Me perdoe, senhor! É urgente demais para poder esperar. O poço... o poço grande,
aquele no pátio exterior...
─ Imbecil! Será preciso me dizer onde ficam os meus poços? O que se passa com o
poço?
Dentro das muralhas havia dois poços: um deles, o mais antigo e que há muitos anos
era insuficiente para as necessidades do castelo, situado no centro do pátio interior; o segundo
mais recente e com mais água, ficava no pátio exterior, não muito longe das torres de vigia, e
era sobretudo dele que a guarnição dependia.
─ Está seco, senhor!
─ Seco? Como pode estar seco, idiota? Alguma vez esteve seco?
Roxo de fúria William agarrou o homem pelos ombros e virou-o, de maneira que ele
ficasse iluminado pelo luar.
─ Você está bêbedo para vir até aqui com tamanho disparate? Quem foi que lhe disse
isso?
─ Os moços de cozinha que foram lá buscar água contaram ao mordomo chefe que
contou a mim, senhor. Mas não acreditei neles e eu mesmo fui verificar. Infelizmente é
verdade, senhor. Fizemos o balde descer cada vez mais e não encontramos nada senão rocha.
No fundo do poço há apenas uma poça de água. Venha comigo e verá o senhor mesmo.
Mas William já o soltara, correra para as escadas e descia os degraus quase num vôo,
como um falcão que se lança sobre a presa.
No seu cômodo fechado e guardado, o cego ouviu o clamor que passava e virou a
cabeça, de ouvido à escuta, para apanhar as poucas palavras que deixassem escapar ao passar

129
130

diante da sua porta. Era tão rápido para ouvir como para compreender. Por vezes a sua
capacidade de percepção causava medo aos homens que o guardavam. Bastou-lhe captar a
palavra “poço” e o tom agitado das vozes deles para saber o que acontecera. Na escuridão em
que vivia, dispunha de tempo para raciocinar e não precisava correr para confirmar. Pensou
nas pessoas da casa, mais de mil almas com a água racionada em pequenas quantidades; na
resistência dos homens limitada aos recursos do poço velho. Tiveram grandes problemas,
mesmo em verões pacíficos, antes de abrirem o segundo poço.
Quem, levianamente e com desprezo, troçara das laboriosas escavações dos galeses,
chamando-os de coelhos e toupeiras? Os frenéticos gritos de raiva de William, amaldiçoando-
os, soavam agora bem altos. O que os galeses podiam fazer, não era verdade? Pois bem, eles
tinham lhes mostrado o que eram capazes de fazer. Eram capazes de calcular a posição exata
do poço porque entre eles existiam homens que a conheciam, mais jarda menos jarda. Eram
capazes de colocar os seus pacientes artesãos no barranco e de colocá-los a trabalhar
escondidos da saliência das torres de vigia, escavando a rocha, alargando com pés-de-cabra
todas as fendas, todas as fissuras que pudessem levá-los na direção do poço, abrindo caminho
a martelo até chegarem lá. E o primeiro fio de água lhes diria que tinham atingido a nascente.
Depois, era fácil alargar a abertura e deixar escorrer a seiva vital de Parfois numa série de fios
prateados sobre o rochedo, a caminho do regato e do rio, lá embaixo.
Quando amanhecesse talvez os sitiados pudessem ver das torres de vigia o novo
afluente do Severn correndo sobre a rocha mais abaixo, longe do seu alcance e da sua sede.
Por uma noite ou duas até a pressão abrandar e restar apenas a quantidade regular da nascente,
a corrente deveria ser suficientemente forte para não gelar.
─ Bem pensado, Harry! ─ comentou Isambard rindo no escuro. ─ De toupeira para
toupeira, foi um trabalho bem feito.
Três dias depois que o poço foi esvaziado, o monge renegado de Reichenau, que fora
obrigado a trabalhar carregando tábuas para reparar as barricadas do posto avançado da
guarda, caiu duas vezes sob o peso da carga, queixando-se de dores e mal-estar. Foi forçado a
levantar-se pela ponta de uma lança, por terem pensado que ele estava fingindo para escapar
ao trabalho, porque fugia do trabalho como o diabo foge da água benta. Mas quando, por fim,
o grupo atravessou a ponte para entrar em Parfois, o monge renegado encostou-se à beira do
poço vazio, dobrado em dois com cãibras terríveis e, passado um momento, endireitou-se e
caiu para a frente, rígido como um pedaço de pau, deu um salto e rolou, também como um
pedaço de pau, de boca aberta e a escorrer saliva sobre a neve.
Um pajem, suficientemente jovem e inocente para sentir piedade, correu para ele, mas
um homem de armas puxou-o para trás por um braço.
─ Deixe-o! Não toque nele! Não sabemos qual é o mal dele.
Outros que haviam hesitado recuaram apressadamente, ao ouvir isto, olhando pouco à
vontade para o homem caído, que se debatia e gemia debilmente. O homem abriu os braços e
os que se encontravam mais perto deram um salto para trás. Sobre a neve, ao lado da sua
boca, via-se agora um fio de sangue.
Madonna Benedetta, que saía da torre da guarda, atravessou o pátio com as suas
passadas longas e decididas e ajoelhou-se ao lado do doente. Ninguém disse “deixe-o” nem
tentou retê-la. Embora prisioneira, os seus atos só diziam respeito a ela.
─ Paulinus!
O monge renegado usava o nome de um dos mais doces cantores do mundo antigo,
embora Benedetta desconfiasse de que era o nome que ele escolhera para si e não o nome que
os pais lhe haviam dado no batismo. Na verdade, apesar das suas velhacarias, Paulinus era
ainda dotado de uma certa doçura sem graça e a sua voz tinha um toque de verdadeiro frescor
que, por vezes, até o surpreendia. Benedetta tocou-lhe o ombro e ele abriu os olhos. No
círculo da antiga tonsura, o cabelo era mais grisalho e ralo, o cabelo irregular de um velho. O

130
131

seu rosto apresentava as marcas da vida que levara; era verdade que fugira do convento e se
tornara um nômade, mas o mundo fora bastante cruel com ele.
─ Que foi, Paulinus? Onde é que dói?
Paulinus encostou a cabeça à manga dela, incapaz de falar.
─ Ajudem-me ─ ordenou Benedetta, olhando com ar autoritário para os que os
rodeavam. ─ É preciso levá-lo para a cama.
Eles a fitaram com desconfiança e, em vez de avançarem, recuaram em pequenos
movimentos furtivos. Um deles disse:
─ Não sabemos de que mal ele sofre. É melhor deixá-lo como está. A senhora pode ser
a próxima.
E começaram a murmurar entre si.
Não se podia contar com eles e, se Paulinus ficasse ali no gelo, com certeza morreria.
Não havia tempo a perder em suposições nem discussões. Agarrando-o pelas axilas, ergueu-o
energicamente e, baixando a cabeça, passou-lhe um braço em torno do pescoço e amparou-lhe
o corpo.
─ Consegue levantar-se? Apoie-se em mim e tente. Não é muito longe e eu o ajudo.
Não pode ficar aqui.
Paulinus fez o melhor que pôde. Com dificuldade ajoelhou-se e colocou um pé por
baixo do corpo. O seu rosto estava escuro como se, por baixo da pele, o sangue tivesse
adquirido um tom púrpura. Gemeu e levou uma das mãos à garganta e ao peito, abrindo a
túnica como se não conseguisse respirar. Foi então que se viram claramente as manchas
vermelhas sobre a sua pele. No peito e pelo pescoço acima, as manchas vermelho-vivo se
alastravam e inchavam; ele coçou-as e fez sangue.
A multidão recuou ainda mais, entre uma balbúrdia de gritos e advertências. Até
aquele momento Benedetta não percebera que eram tantos, em redor dela, todos olhando para
ela; e outros chegavam vindos de todos os lados; até o próprio De Guichet apareceu correndo
para ver o motivo de tamanha agitação. Estava abrindo caminho em direção a eles quando
alguém murmurou pela primeira vez:
─ Peste!
A palavra produziu o mesmo efeito que uma faísca sobre a palha. Num instante
propagou-se e foi repetida por todos os cantos, em gritos enlouquecidos. Já não era uma
palavra, mas um rugido animal. De Guichet conseguiu chegar junto deles vociferando e
recuou mais depressa do que viera ao ver o corpo e o rosto coberto de manchas. Então foi
agarrado por várias mãos de pessoas que protestavam e imploravam.
─ Peste! Ele trouxe a peste de além-mar. Deus tenha piedade de nós! A peste está
entre nós!
─ Isto não é peste ─ gritou Benedetta em tom categórico, continuando a amparar
Paulinus, que oscilava ao seu lado. ─ Eu sei o que é a peste, já vi peste e não é isto. Deixem-
me levá-lo para dentro e perguntem ao seu próprio médico.
Estas palavras foram acolhidas com um grito de “não”. Já era suficientemente mau o
homem estar dentro das muralhas, não podia ser alojado no meio deles como um homem são.
─ E ela também não ─ guinchou uma das mulheres. ─ Ela pegou nele, tocou-o, está
tão suja como ele. Deus nos ajude a todos se a deixarmos andar à vontade entre nós.
─ Ponham os dois para fora ─ começaram a gritar várias vozes que o terror tornava
quase inumanas. ─ Fora de Parfois! Não os queremos dentro das muralhas. Expulsem os dois
lá para fora!
─ Isto não é peste ─ repetiu inutilmente Benedetta. ─ Se o expulsarem, a culpa da sua
morte recairá sobre vocês. Morrerá de frio e não da peste e Deus lhes pedirá contas pela sua
vida.
Os gritos abafaram a sua voz. Benedetta viu, à sua volta, uma dança fantástica de

131
132

rostos aterrorizados, foi atingida por uma onda de gritos agudos e excitados. A cabeça do
doente rolou sobre o seu ombro. Ela o manteve de pé ao mesmo tempo em que, com os seus
olhos enormes e ardentes, afastava os inimigos assustados. Mas viu a morte aproximar-se de
Paulinus e a sombra desta também a atingia. Virou rapidamente a cabeça em busca de um
rosto, um só, que se mantivesse calmo e não tivesse perdido a humanidade, alguém que
pudesse ser um aliado, a quem ela pudesse apelar. Contudo, o demônio do pânico, mais
contagioso do que a peste, apoderara-se de todos aqueles rostos, transformando-os em
máscaras grotescas e anônimas.
─ É peste, senhor... ─ disse, por trás dela, a voz trêmula e horrorizada de De Guichet
─ temos a peste entre nós.
Benedetta voltou-se e viu William Isambard. Com certeza ouvira o burburinho e saíra
furioso para perguntar o motivo, em voz portentosa e com bastante aparato; no entanto se
deparara com um clamor terrível que não lhe permitira se fazer ouvir. Quando começou a
distribuir murros ao acaso como era seu costume, os atingidos perceberam quem gritava nas
suas costas e se afastaram para lhe dar passagem. Foi assim que William Isambard
desembocou bruscamente na primeira fila, cara a cara com Paulinus e ainda sem saber o que o
esperava. Benedetta voltara-se a tempo de vê-lo recuar com um salto tão violento que fez
oscilar os que se encontravam mais perto. Viu-lhe o rosto, no momento da compreensão,
empalidecer e imobilizar-se num esgar de asco, viu os seus olhos ficarem vidrados como
lanternas vazias até o medo tomar cor e voltar a iluminá-los.
Diante disto, Benedetta sorriu e William viu-a sorrir. Aquela mulher, que estreitava a
pestilência com um braço e tinha a mão da morte pousada no seu ombro, aquela mulher ainda
tinha a coragem de rir dele. A cólera regressou para se juntar com o medo. Mas que
importava? William não tinha qualquer poder, ia para onde era obrigado a ir, para onde as
circunstâncias o empurravam. Ninguém podia esperar a sua ajuda.
─ Como foi que isto aconteceu? Há quanto tempo está ele assim?
─ Só Deus sabe, senhor! Talvez tenha sido contaminado no navio. Foi só agora
quando ele caiu que nós vimos...
Todos se agrupavam em torno do seu senhor e aqueles que ousavam agarravam-se às
mangas dele, suplicantes.
─ Salve-nos, senhor! Mande-os embora antes de contaminarem a todos nós.
─ Pelo amor de Deus, senhor!
─ Olhe para ela! Agora a marca dele também está nela e ninguém pode limpá-la.
Mande-os embora depressa... mande a peste embora daqui ou estaremos perdidos como ela.
─ Que devemos fazer com eles, senhor? ─ perguntou De Guichet tremendo. ─ Se na
verdade é peste...
A multidão clamou que era peste, que esta se espalharia por Parfois como fogo em
palha seca e transformaria o castelo num cemitério, ainda mais este estando cercado e sendo a
comida e a água escassas. William gritou impondo silêncio e fez calar os gritos mais
próximos com murros.
─ Tenham cautela nessas línguas tolas! Pensam que eu quero a pestilência na minha
casa? Terei menos a perder do que vocês? Seja peste ou não, não quero dar-lhe abrigo. Vamos
pô-los daqui para fora num instante.
─ Este homem vai morrer, se o deixar no frio ─ argumentou Benedetta. ─ Pelo amor
de Deus, dê-lhe pelo menos um abrigo onde eu possa cuidar dele. Uma cabana fora das
muralhas onde não possamos contagiá-los, qualquer coisa desde que haja um teto sobre a
cabeça dele.
─ Vai ter um teto sobre a cabeça e bastante espaço ─ replicou William.
Os seus olhos frios e assustados, que tinham se enchido de ódio quando ela rira
encontraram algum conforto ao vê-la inclinar-se numa súplica, apesar desta ser feita no tom

132
133

de alguém que se julga com direitos.


─ Levem os dois e os fechem na igreja, De Guichet. Tranque bem as portas. Todas as
portas. E fechem as janelas mais baixas.
─ Sim senhor.
─ Se eles fugirem você pagará com a sua cabeça. Leve-os logo, leve-os para fora do
castelo, não importa como. Você conta com homens suficientes para tal.
Aliviado William recuou sem desviar os olhos da mulher e do seu fardo arquejante.
Benedetta viu-o estremecer tomado pelo mesmo medo e pela mesma repulsa que transformara
em monstros os homens de Parfois, homens que não eram piores do que os outros homens
quando não estavam mortalmente assustados. William enrolou bem o manto de pele em torno
do corpo e colocou uma distância segura entre si e a fonte de contágio, mas ficou esperando
as suas ordens serem cumpridas. Não tinha apenas uma vida a perder como qualquer outro
homem; competia-lhe proteger e resguardar uma guarnição em guerra e tanto o seu castelo
como o seu poder dependiam de que ele fosse capaz de mantê-los a salvo, não apenas da
doença, mas também do pânico da doença. No fundo Benedetta não o culpava muito e, apesar
de ter aberto a boca para formular nova súplica acabou por não dizer nada. Os uivos da
multidão não permitiriam que ele a ouvisse e, mesmo que a ouvisse, William não a atenderia.
─ Erga-se, meu amigo, pelo bom nome de todos os eruditos ─ disse ao ouvido do
monge renegado ao mesmo tempo em que colocava o ombro por baixo do ombro dele, para
ampará-lo.
Os olhos de Paulinus rolaram e fitaram os dela; a mente arguta continuava a habitar o
corpo debilitado. Nos lábios contorcidos Benedetta reconheceu um sorriso irônico, um sorriso
igual a quase todos os sorrisos que o destino lhe arrancara durante a vida e muito apropriado
para saudar a sua morte.
─ Irei para onde você for ─ prometeu Benedetta. ─ Até um lugar gelado parece mais
quente quando é partilhado.
Como era possível a crueldade indesejada do medo transformar-se tão rapidamente no
fogo brutal do ódio? Os homens de armas tinham corrido em busca de lanças e apesar do
terror aproximavam-se quase com satisfação, brandindo o aço. Benedetta virou-se, interpondo
o seu corpo entre eles e o doente, arreganhando os dentes para os que estavam mais perto,
como um cão de guarda.
─ Sejam homens? Afastem-se! Se tocarem nele juro por Deus que soprarei a peste
pelas suas gargantas abaixo, nem que seja preciso subir pelas suas lanças para alcançá-los.
Cravem as suas lanças em mim e, com peste ou sem ela, irão pegar no meu cadáver com as
suas próprias mãos. Deixem-nos em paz e partiremos o mais depressa que pudermos. Se
usarem as suas armas vocês serão obrigados a nos enterrar.
Apesar da balbúrdia eles a ouviram e hesitaram. As lanças ficaram suspensas, algumas
a tocar-lhe o peito. Em vez de recuar Benedetta avançou ligeiramente, tanto quanto lhe
permitia o peso que sustentava sobre o seu ombro e comprimiu o corpo contra as pontas das
lanças, de olhos muito abertos e brilhantes fitos nos rostos dos guardas mais ansiosos. O aço
recuou diante dela sem lhe fazer um arranhão sequer. Se Paulinus estivesse sozinho eles o
teriam espetado porque era a única maneira de empurrá-lo para fora das portas. E se morresse
pelo caminho o teriam trespassado com as lanças, atirando-as depois com o cadáver para o
barranco, para propagar a peste entre os galeses. Mas com ela o caso era diferente. Com a
ajuda dela ele seria capaz de caminhar para o seu túmulo, poupando-os à necessidade de tocar
nele, mesmo à distância de uma lança. Não havia dúvidas de que Benedetta os obrigara a
pensar duas vezes. Quem poderia saber? Afinal a mulher podia ser santa como afirmavam os
galeses. A cólera de Deus podia desabar sobre eles por intermédio dela. Rodearam-na com as
lanças em riste enquanto ela iniciava a melancólica jornada para fora de Parfois, mas apesar
dos gritos e ameaças evitaram derramar sangue.

133
134

Ao lado de Benedetta, Paulinus arrastava os pés com a respiração arquejante e rouca.


Caminhava o melhor que podia e quando era obrigado a parar por alguns instantes, Benedetta
rodeava-lhe o corpo com os braços e apoiava-o contra si, os olhos flamejando avisos por cima
do ombro até ele estar preparado para se arrastar por mais algumas jardas no caminho da
morte. Foi uma jornada lenta, difícil e amarga, com os perseguidores colados aos calcanhares
e o coro de vozes excitadas e cruéis a entrar-lhes pelos ouvidos. Toda a gente de Parfois
correu atrás deles, seguiu-os pela ponte-levadiça, apinhou-se nas beiradas do caminho estreito
que conduzia à igreja. Até alguns homens dos postos da guarda dispostos em toda a volta do
planalto abandonaram a vigilância e correram, arfando de excitação, para ver e fazer
perguntas, juntando as suas vozes àquele burburinho ensurdecedor.
Assim os conduziram à porta ocidental e os forçaram a entrar, tão logo Benedetta
voltou-se para encará-los e com um olhar calmo e uma voz tranqüila, disse:
─ Por caridade, nos deixem ao menos comida e água.
Água? Restava-lhes apenas um poço, insuficiente para manter vivas mil almas, por
que desperdiçar uma gota que fosse com duas já condenadas à morte? Comida? Quem sabia
por quanto tempo mais iria o cerco durar? Não podiam dispensar nada.
Fecharam-lhe a porta na cara. Em torno da igreja de mestre Harry, os homens de
Parfois cansaram-se a fechar as portas, indo buscar tábuas, pregos e martelos para isolar o
interior da igreja do mundo exterior, selando o túmulo.
O jovem Thomas Blount voltou do aprisionamento e, escondido dos parapeitos da
muralha, aproximou os lábios do ouvido do seu senhor.
─ Está feito, senhor ─ informou com voz doce, satisfeita e orgulhosa da própria
esperteza. ─ Estão tão bem fechados que nunca conseguirão sair.
─ Ainda bem ─ respondeu William.
Sem desviar os olhos do vale do rio onde reinava uma calma enganadora, ficou à
espera do resto. O tom de voz de Thomas indicava que havia mais novidades.
─ No entanto, senhor... ─ acrescentou Thomas, aproximando mais a cabeça loira para
sussurrar -... lá dentro ficaram três e não dois.
Só então William virou a cabeça por um instante, para lançar um olhar penetrante e
gelado ao rosto resplandecente. Os arqueiros que patrulhavam a muralha não estavam muito
longe. William olhou-os pensativamente e, quase sem mover os lábios, perguntou:
─ Quem é o terceiro?
─ Quando o alarme foi dado, senhor, o velho cego estava dando o seu passeio. Os
homens que vigiavam a porta esqueceram-se dele e correram atrás dos outros. Ele ouviu e
seguiu-os. Vi-o colado à retaguarda da multidão. O velho percebeu quem tinha as lanças
apontadas contra si e para onde eram levados. Não voltei a vê-lo nem a pensar nele até termos
rodeado a igreja. Eu fui o primeiro a chegar à porta sul e vi o que mais ninguém viu.
Sorridente e seguro do efeito que ia produzir, Thomas Blount pronunciou docemente as
palavras junto ao ouvido impaciente que se inclinara para ele:
─ Ele foi ao encontro dela. Eu o vi entrar. Está fechado na igreja com os portadores da
peste.
Houve um momento de silêncio, durante o qual o rosto barbudo de William manteve
uma impassibilidade de pedra. Depois, por um instante, os seus olhos brilharam de interesse e
satisfação. Em voz baixa perguntou:
─ Você está certo disso?
─ Absolutamente certo, senhor.
─ E mais ninguém reparou nele?
─ Ninguém, senhor. Todos estavam de olhos postos naquilo que era preciso fazer.
Ninguém. Ninguém a não ser o sagaz Thomas Blount que via tudo e sabia muito bem
como fazer uso daquilo que via para cair nas boas graças do seu senhor.

134
135

─ Você não contou a mais ninguém?


─ Não, senhor, juro que não.
─ Não é preciso, rapaz, não é preciso. A sua palavra basta. Portanto, isto é um assunto
só entre nós dois. E nós não vimos nada... não é, Thomas?
─ Absolutamente nada, senhor. Quando os guardas finalmente se atreverem a
confessar que não sabem do prisioneiro, vou tremer tanto como eles.
─ Assim é que se fala, Thomas! Não me esquecerei da sua dedicação.
─ Sirvo-lhe o melhor que posso, senhor.
─ E não deixará de obter a sua recompensa. Venha falar comigo na torre esta noite e
darei a você a prova da minha gratidão. Venha sozinho e cedo, antes que o De Guichet suba
para me apresentar o relatório. Não quero que ele fique sabendo do nosso segredo.
─ Confie em mim, senhor! É melhor ter dois que não viram nada do que três.
E o jovem afastou-se, contente por ter cumprido bem o seu dever e por ter conquistado
a merecida gratidão do seu senhor. Que mais poderia desejar do que continuar satisfeito
consigo mesmo, até o fim dos seus dias?
A mão que apontava para as fogueiras galesas lá no vale, a mesma mão que apenas
uns momentos antes lhe oferecera um presente generoso, deslizou de repente pela beira de
uma fresta entre o parapeito onde a capa da última neve atingia uma altura considerável,
abatendo-se depois como aço sobre o seu rosto, enchendo-lhe a boca e as narinas de neve
gelada. O braço pousado amigavelmente sobre os seus ombros desceu, agarrou-o pelas coxas
e levantou-o do chão. Thomas nem teve tempo para se segurar à pedra quando foi içado sobre
ela. Sufocado pelo frio ele caiu sem soltar um grito. Durante a queda as palavras de louvor e
de afeto ainda ecoavam nos seus ouvidos.
William debruçou-se, sondando a escuridão ligeiramente prateada pela luz das
estrelas, antes da lua nascer. Arrumou as mangas e ficou à escuta, esperando ouvir o impacto
lá em baixo, mas este tardou a chegar e quando veio soou abafado e surdo. Era pouco
provável que chegasse a algum outro ouvido. Com lentidão, William apagou os traços dos
seus dedos sobre a neve, voltando a dar a forma primitiva à aresta da fresta, desgastada pelo
vento. A Torre da Rainha erguia-se a pique sobre a falésia. Os galeses, refugiados lá no fundo,
na orla de arbustos e árvores, eram os únicos que talvez viessem a tropeçar nos restos mortais
de Thomas Blount e a interrogar-se sobre a forma como deixara este mundo. Era uma pena
perder o broche; não precisava ter sido tão generoso. Talvez dali a uma semana um galês
usasse um broche de ouro para prender a sua capa esfarrapada.
É uma pena, mas não importa. Agora não há ninguém que possa acusar-me de saber
do ato suicida do meu pai e de não ter feito nada. Estou inocente. O velho tolo obstinado
recusou-se a aceitar uma morte limpa e normal, apropriada à sua idade; foi uma escolha sua. E
quem sou eu para me intrometer nos desejos do meu pai? Serei por acaso seu senescal para ir
interromper-lhe as orações? Ou seu confessor para me interpor entre ele e a amante? Acaso
dei alguma ordem relacionada com ele, que não fosse para lhe proporcionar mais liberdade?
Estava lá quando ele se escondeu na igreja? Toda a gente de Parfois sabe que não estava. Não
vi nada e não sei de nada. E agora, Thomas, é melhor um do que dois.
Quando De Guichet subiu para apresentar o seu relatório de todas as noites, William
estava sozinho e andava de um lado para o outro no terraço da torre como era seu hábito,
mergulhado nos seus pensamentos.
Caminhando penosamente, Benedetta chegou ao portal oeste, o corpo dolorido por ter
vindo a arrastar o peso do moribundo. No entanto, quando entrou e as mãos da nave central,
erguidas em oração, formaram um arco sobre a sua cabeça, Benedetta endireitou as costas
como se uma força a impelisse a isso, abriu a boca e bebeu até se saciar do inesgotável
esplendor do ar dentro daquele espaço.
Sob o altar-mor o coro de crianças esculpido na grande pedra frontal enchia os

135
136

pulmões jovens e fortes e erguia para a luz os belos rostos arrebatados e as bocas abertas,
redondas como maçãs rosadas. Mais acima as grandes janelas lanceoladas elevavam-se como
flechas acabadas de disparar. Em todo o comprimento da nave central, dos pilares esguios
brotavam as folhas maravilhosas e vivas, em espirais e em cachos, as folhas da árvore
sagrada, a árvore da esperança, a árvore da promessa, a árvore do amor. As vigas do telhado
pareciam irromper da tensão trêmula de energia das folhas e arquear-se para conter aquele
espaço imenso, um espaço de beleza e oração; uniam-se na parte inferior e as bossagens
luminosas que as ligavam pareciam notas de música, gritos de alegria, o som inaudível do
calor de mãos enlaçadas.
Os martelos tinham cessado o seu coro de pica-paus contra as portas exteriores, os
coveiros haviam partido; agora já chegavam até ela sons mais suaves como o apelo ansioso
dos pássaros; frio e lamentoso o fragmento de uma canção de bêbedo vindo de um dos postos
de guarda sobre a escarpa, os passos lentos e vacilantes de um homem, o deslizar hesitante do
couro sobre a pedra.
Então, Benedetta ergueu a cabeça e prestou atenção, porque aquele som era próximo e
estranho; vinha de algum lugar à sua frente e não atrás. Paulinus não podia tê-la ultrapassado
sem ela dar por isso e também não acreditava que, alguma vez, ele voltasse a andar com
passos tão cadenciados e firmes. Mas não havia mais nenhum homem; não podia haver.
Benedetta esperou e os passos recomeçaram e voltaram a parar como a respiração que alguém
retém, num compasso de espera idêntico ao dela própria.
Foi então que ela o viu. Viera da porta sul e confundia-se de tal modo com uma das
esguias hastes ascendentes do corrimão que os olhos de Benedetta só deram por ele quando se
mexeu. Alto, tão magro que parecia macilento, sobriamente vestido em tons de castanho, ouro
no cinto e ao peito, o corpo sem idade ainda ereto como um junco, a cabeça ainda bela, bem
moldada, orgulhosa. Nem mesmo a idade conseguira estragar a forma daquela ossatura
imortal, nem adulterar os contornos imaculados da massa de cabelo grisalho que cobria o
crânio altivo. O rosto, magro e imóvel, interrogava às cegas o espaço, procurando localizá-la.
Lia-se nele uma paciência terrível e admirável que, pela sua humildade e simplicidade, se
adaptava de forma estranha naquelas feições arrogantes e esplêndidas. Excetuando os olhos,
mergulhados nas trevas, ele não mudara; apenas as chamas se haviam extinguido e
transformado em carvão sob a testa alta e tisnada.
─ Senhor?!
A abóbada absorveu a voz baixa em que Benedetta pronunciara a palavra e difundiu-a
por todos os cantos como se a pedra falasse.
Isambard voltou imediatamente a cabeça na direção onde ela se encontrava. Benedetta
pôde então ver-lhe por completo o rosto, os olhos sem vida que se voltavam para ela, os
lábios a abrirem-se num sorriso.
─ Senhora!
Isambard largou o apoio do corrimão e, com a cabeça ligeiramente atirada para trás e
uma expressão concentrada, avançou para ela, mas parou a curta distância, de novo à espera,
em sinal de cortesia, receando poder parecer querer impor os seus direitos sobre ela, ele que já
só recebia do mundo aquilo que lhe era oferecido por caridade.
─ Que faz aqui, senhor?
─ Vim para escutar a sua voz, senhora, e louvar a Deus. E também para morrer,
segundo creio.
Era a mesma voz, a antiga voz, mas por vontade própria aquela voz abandonara o tom
de comando em favor dos argumentos da alma. Não por penitência; Benedetta já vira
penitentes e Ralf Isambard não o era. Aceitava a velhice como uma experiência e uma
riqueza, com a mesma paixão sincera com que vivera os feitos da juventude e examinava com
uma curiosidade total, sem recuar, tudo quanto era novo e estranho para si, mesmo a

136
137

humilhação e a morte. Os penitentes retrocedem; ele ia em frente. E aquilo que ia deixando


pelo caminho era perdido porque ele passava adiante e não porque se arrependesse.
─ Graças a Deus, a senhora não pode mandar-me embora ─ comentou sorrindo. ─
Toque-me, respire na minha direção, contagie-me.
─ Porque o senhor desprezou a sua vida? ─ protestou Benedetta em tom de acusação.
─ Não bastavam dois?
─ Eu não desprezei a minha vida. Eu a conservarei o melhor que puder, enquanto
puder. Limitei-me a depô-la onde Deus poderá levá-la, se quiser. E se Ele a poupar, eu a
retomarei com alegria e a transportarei por mais uma milha ou duas. Não quer aceitar a minha
mão, Benedetta?
Ao ouvir o seu nome da boca de Isambard, Benedetta sobressaltou-se como se alguém
que a muito estava ausente a houvesse chamado. Pousou a mão na dele porque não podia
deixá-la ali, estendida e vazia, e quando os dedos compridos e magros dele se fecharam sobre
os seus a paz voltou a invadi-la.
Isambard escolhera morrer com ela; era algo que ela sabia. Embora cego ele fizera
aquela escolha de olhos bem abertos. Ninguém lhes traria comida nem água, ninguém lhes
abriria as portas. Não era possível fazer Parfois render-se pela fome a tempo para que eles se
salvassem e continuava a acreditar que o castelo não podia ser tomado de assalto. Tudo o que
ela sabia, Isambard sabia ainda melhor, porque ele era Parfois, o sangue e a vida de Parfois,
independentemente de quem o tivesse roubado.
─ Este é o único lugar suficientemente grande para eu poder estar de pé e que me
proporciona ar suficiente para encher o corpo ─ disse Isambard. ─ Não me recrimine por esta
fuga, pois estive confinado durante demasiado tempo. Além disso, há um homem doente de
quem cuidar e que bem precisa de alguém como eu, que arrasta consigo os seus próprios
flagelos e não receia qualquer outro. Onde o deixou?
─ À entrada. Não consegui trazê-lo mais longe. Vim ver onde poderia instalá-lo.
─ Dispomos de um mundo inteiro ─ respondeu Isambard, abarcando com o olhar
vazio o seu último domínio. ─ Dispomos da casa dos arcanjos e das florestas do céu. De
capelas suficientes para escolhermos um leito de morte para ele, um retiro para a senhora com
toda a privacidade que necessitar e um local de encontro, o mais belo da Inglaterra. Graças a
Deus que, nos meus tempos, fiz grandes ofertas, embora se por piedade ou por orgulho, só Ele
poderá saber. Seja como for poderemos nos beneficiar delas agora. Há um baú cheio de vestes
sacerdotais, toalhas de altar e panos ricos. Venha, tire aquilo que precisar para deitá-lo e
escolhe o lugar onde quer instalá-lo. Eu transportarei o doente. É peste?
Soltando-lhe a mão, Isambard começou a caminhar à frente dela com a segurança de
um homem no seu reino, mas voltou-se para trás com um sorriso dissimulado, quando ela
tardou a responder.
─ Para Deus e para mim tanto faz. Limitei-me a perguntar.
─ Penso ─ respondeu finalmente Benedetta seguindo-o ─ que ele trouxe consigo do
Oriente uma febre intermitente e que o mal se agravou por ter ingerido comida estragada. Mas
é o que chega. Acho que vai morrer.
─ Como todos nós, livres ou prisioneiros ─ replicou Isambard. ─ Quanto a isso não
podemos lamentar-nos. Mas pelo menos que morra coberto e quente. Vai fazer muito frio aqui
durante a noite.
Com a segurança de quem conhece cada pedaço gasto de cada pedra da sua igreja,
conduziu-a até junto do grande baú trabalhado, onde estavam guardados os panos do altar.
Ergueu a tampa e voltou para ela o rosto cego, permanentemente inquisitivo.
─ Tire o que quiser.
Benedetta não hesitou em encher os braços de panos.
─ Paulinus está cheio de sede. Geme por água.

137
138

─ Mas temos água ─ respondeu Isambard imediatamente. ─ Há água nas pias de água
benta e as paredes não a deixam gelar. Melhor ainda, há vinho na sacristia. É uma pena não
ter comida. Se ele puder morrer menos penosamente bêbedo do que sóbrio, por que não, santo
Deus? Penso que a misericórdia divina não vai culpá-lo se disser o último ato de contrição
numa voz mais pastosa. Venha ver onde quer deitá-lo e eu o trago. Os olhos são a única coisa
que me falta. Utilize as minhas mãos como desejar.
Benedetta assim fez. Lado a lado, os dois trataram, com uma simplicidade um pouco
irreal, dos assuntos da vida e da morte. Juntos fizeram um leito largo de tapeçarias, brocados e
bordados, na pequena capela das missas encomendadas, do lado sul do altar-mor, protegida
das correntes de ar por paredes onde a soma do calor dos três poderia pelo menos temperar o
rigor do frio. Juntos eles transportaram Paulinus de Reichenau, deitaram-no e envolveram-no
em veludos, cujo toque a sua pele gasta de aventureiro nunca havia sentido. Juntos eles foram
buscar cálices e velas na sacristia e, preparando-se para a noite, levaram-nos para o seu
refúgio, Isambard tentou desajeitadamente esfregar um pedaço de sílex contra um pedaço de
ferro, mas Benedetta tirou-os das suas mãos e foi ela mesma quem soprou a faísca que
acendeu a mecha e conseguiu obter uma pequena chama. Comoveu-a que isambard tivesse
pensado em luz para eles quando ele próprio já não precisava dela.
─ Há uma luminária de pedra lá ao fundo, no coro, e outra na entrada ocidental, mas
duvido que haja mais óleo do que aquele que há nelas, pois costumam guardar o óleo lá fora.
Posso trazer a menor aqui para o canto. Sempre dá calor, além de luz.
Isambard trouxe a luminária de pedra, arrastando-a atrás de si sobre um pedaço de
veludo, com receio de riscar ou quebrar os ladrilhos de mestre Harry. A luminária tinha treze
taças, entre as quais haviam sido cinzeladas folhas de videira.
─ Obra dele, como tudo o que há aqui ─ disse Isambard, passando suavemente as
pontas dos dedos pelos contornos das folhas. ─ Tudo quanto possuímos agora é duplamente
emprestado: primeiro por Deus, tal como as nossas vidas, e depois por ele. Vamos acendê-la?
Empreste-me os seus olhos. Não sou muito de confiança com fogo.
─ Se isto é tudo com o que podemos contar ─ disse Benedetta com senso prático ─
faríamos melhor em poupar para um momento pior. Vamos ficar aqui bastante tempo.
Isambard voltou ligeiramente a cabeça como se estivesse olhando para o doente que
tremia deitado, de olhos muito abertos e em silêncio, envolto nos tecidos principescos. A sua
respiração rouca e entrecortada e a sua carne escaldante eram suficientemente eloqüentes
mesmo para quem não via.
─ Pode ser. Mas penso que o tempo dele é curto. Guarde-a então para quando ele tiver
mais necessidade.
Num movimento desinteressado mediu a altura do óleo nas taças redondas com a
ponta do dedo, que depois limpou nos tecidos bordados de púrpura e ouro.
─ Pouco podemos fazer por ele, mas pelo menos podemos poupá-lo de morrer no
escuro.
Ao sentir sobre si o olhar perspicaz e arrependido de Benedetta, acrescentou:
─ A verdade é que eu não vou precisar de luz. O que são as trevas para mim? Vivo
com elas e não as receio. Não tenho medo de nada, Benedetta ─ disse ainda, em voz baixa e
calma. ─ Exceto de poder acordar em outro lugar qualquer sem a senhora e de concluir que
isto foi apenas um sonho que sonhei no cativeiro.
─ Não é um sonho ─ respondeu Benedetta em voz suave e comovida. ─ Eu sei que
estou aqui e o senhor é um homem bem real, pois posso vê-lo e tocá-lo. Também creio que,
para o bem e para o mal, não nos separaremos enquanto formos vivos.
─ Ouvi-la é um conforto para mim ─ disse Isambard. Onde estavam agora os anos que
os haviam separado de corpo, alma e espírito, onde estavam as tensões e os terrores, os
ressentimentos e as vinganças? Para onde haviam ido as recordações irrenunciáveis de

138
139

ofensas e desgostos, o amor não retribuído, as ofensas não ressarcidas? Os dois ocupavam-se
tranquilamente dos arranjos do seu derradeiro lar e nos cuidados para com o seu último
hóspede, sem sentir necessidade de falar do passado. O perdão fora mútuo, se é que era
perdão olhar para trás sem sentir qualquer dor, sem fazer perguntas nem dar respostas, sem
nada a expiar.
Benedetta e Isambard estavam além de tais necessidades, sentiam-se apaziguados
depois de todos os ódios e todas as angústias terem desaparecido. De todos os amores
também? Só Deus sabia! O amor tem tantos rostos...
Paulinus de Reichenau passou dois dias e duas noites ardendo em febre enquanto a
carne escaldante se evaporava dos seus ossos trêmulos; Benedetta e Isambard cuidaram dele,
velaram-no sem interrupções e o mantiveram bem agasalhado nas coberturas. No terceiro dia
a febre baixou diante da aproximação da morte e Paulinus abriu os olhos, maravilhado com o
estranho paraíso que era a sua cela. Os esguios pilares de pedra da capela arqueavam-se sobre
a sua cabeça formando uma abóbada semelhante a uma estrela dupla. Estava envolto em
veludos e sedas, púrpuras, dourados e azuis, tudo cores dignas de um rei. Ao seu lado ardiam
velas em altos candelabros de ferro e, a um canto, na luminária de pedra luziam treze
pequenas chamas, alimentadas pelas últimas gotas de óleo. O ligeiro odor da fumaça fez-lhe
tremer as narinas que, no entanto, não sentiam o cheiro forte do próprio suor e da própria
doença. De um lado estava sentada a mulher segurando entre as dela uma das suas mãos. Do
outro, um desconhecido de rosto altivo e distante como o da morte, fitava-o com uns olhos
velados e sem brilho, mas a sua atitude austera era calma e não ameaçadora. Apesar disso ele
sentiu medo.
Murmurou um pedido e a mulher debruçou-se para ouvi-lo porque a sua voz era
apenas um fio que o silêncio quase absorvia.
─ Um padre... quero aliviar o meu fardo.
─ Não há nenhum padre aqui ─ respondeu Benedetta. ─ Apenas Deus. Fale comigo e
não tema. O ouvido de Deus é mais apurado do que o meu.
Paulinus apertava-lhe a mão com todas as suas forças e, no entanto, Benedetta tinha a
sensação de segurar apenas no pé de um pássaro morto. Já perto do silêncio final, Paulinus
conseguiu falar numa voz onde havia mais substância do que o seu corpo diminuído.
─ Não fui um grande pecador... só um pecador perseverante... estudei muito para me
aperfeiçoar.
Viu Benedetta sorrir e aquele sorriso tranqüilizou-o. Por mais miserável que ele seja,
qualquer homem deve ter vergonha de ter vergonha da obra do seu criador. Paulinus fez a sua
confissão hesitante palavra após palavra, conforme as forças lho permitiam e arrastou-a por
muito tempo.
─ Até aquele meu crucifixo... uma falsificação, embora uma boa falsificação... um
trabalho meu. Para dizer a verdade era um fragmento de um tonel de vinho que encontrei em
Angers. Lorde Isambard... nunca teria notado a diferença. Todos esses fidalgos são uns tolos...
O homem que se encontrava ao seu lado atirou a cabeça para trás e soltou uma
gargalhada sonora, como qualquer pessoa inconseqüente ao ouvir uma história das que se
contam nas tabernas ou uma criança encantada ao ver um cavaleiro pretensioso cair do cavalo,
num dia em que o chão estivesse lamacento. Que havia para recear se a morte ria daquela
maneira? Atônito mas reconfortado, Paulinus tentou rir também e engasgou-se. Benedetta
soergueu-o e ele morreu nos seus braços, apagando-se tão suavemente como uma vela que
chegou ao fim.
─ Morreu ─ anunciou Benedetta.
Estava contente por ter sido assim; Paulinus não estava preparado para uma morte
difícil.
Juntos eles rezaram por Paulinus. Depois, usando como alavanca a ponta de um dos

139
140

gigantescos candelabros de ferro, Isambard abriu o túmulo do coro onde já fazia dois anos que
repousava o velho padre Hubert e, juntos, depuseram o monge renegado e falsificador de
relíquias ao lado do capelão de Parfois, sepultando-o ali.
─ Duvido que o velho padre apreciasse a companhia ─ comentou Isambard, corado e
quase sem fôlego depois de ter baixado a pedra. ─ Mas não lhe dar abrigo em sua Casa não
seria cristão. Que repouse em paz! Morrer rindo não é uma má morte.
Agora, tinham ficado a sós.
─ O que é isto? ─ perguntou Benedetta, que acordara a meio da noite com o ruído
surdo de rocha a deslizar e a cair.
─ Nada que nos possa causar receio. São só as toupeiras galesas roendo as fundações
de Parfois.
Isambard ajeitou melhor as coberturas à volta dela e afastou-lhe os cabelos do rosto
magro e marcado pelo tempo.
─ Se continuarem a roer assim acabarão por derrubar as muralhas. O peso das torres
de vigia pode ser fatal. E é lá que o barranco é mais raso. Se a entrada fortificada cair, abre-se
uma brecha na muralha e eles podem usá-la como escada e entrar por aí.
─ E se as torres caírem em cima deles? ─ perguntou Benedetta aterrorizada.
─ Que vergonha, minha querida! Pensa que Adam Boteler não sabe do seu ofício?
Quantos anos ele passou talhando pedra para mim, na pedreira de Byrn? Alguma vez você
ouviu dizer que ele tivesse perdido um homem que fosse?
Com espanto e esforço Benedetta concentrou-se nas tensões que agitavam o mundo
exterior, onde continuava a haver disputas e contendas entre exércitos e príncipes.
─ Serão capazes de acelerar as coisas desse modo? É possível conquistar Parfois dessa
maneira?
─ Totalmente impossível. Mas também era impossível abrir uma brecha no poço e
secá-lo, mas eles conseguiram. Quem sabe se não desafiarão de novo as previsões?
A leve respiração que lhe aquecia a garganta era pausada e calma, o corpo dela
permanecia tranqüilo nos seus braços, mas receando que Benedetta voltasse a cair no suplício
da esperança, Isambard acrescentou, doce e cautelosamente:
─ Mas não chegarão a tempo de nos libertar, minha querida. Não podemos acreditar
nisso.
─ Eu estou bem ─ respondeu ela. ─ Não espero nenhuma libertação.
Desejaria na verdade a libertação? Benedetta sondou o seu coração e não encontrou
nele qualquer desejo, a não ser, talvez, o impossível anseio de voltar a ver o jovem Harry. No
entanto, dia após dia, ela - os olhos e Isambard as mãos - haviam explorado todas as aberturas
da sua prisão tentando libertarem-se como criaturas empenhadas em viver se isso fosse
possível. Mas todas as portas estavam seladas e todas as janelas baixas trancadas; não havia
qualquer saída. Quando ainda tinham forças e a fome apertava mais, aquela pesquisa ajudara-
os, nos piores momentos, a ocultar delicadamente um do outro as dores provocadas pelos
lobos que lhes roíam as entranhas. A matilha já se retirara, saciada, deixando atrás de si
apenas uma dor surda e uma prostração que lhes dizia que os seus dias estavam se esgotando.
Durante a noite deitavam-se estreitamente apertados nos braços um do outro, num abraço
casto, enquanto se entregavam a um sono leve e povoado de sonhos.
─ Perdoe-me por tê-la conduzido a isto ─ pediu Isambard. ─ Deus sabe que a senhora
não me devia uma segunda morte.
─ Eu vim por minha própria vontade ─ respondeu Benedetta. ─ Não há nada a
perdoar. Fui eu quem lhe pediu que voltasse a abrir-me a sua porta. O senhor se limitou a
conceder-me o que pedi. Mais do que pedi! Nunca ousei supor que me aceitaria de novo na
sua cama!
A boca sardônica comprimida contra o cabelo dela tremeu por um instante num riso

140
141

breve e silencioso.
─ Ah, Benedetta, Benedetta! Nunca ousei esperar que a senhora viesse. Era minha
intenção entregar-lhe o Harry livremente. Eu o teria levado ao seu encontro na porta do
castelo sem ele suspeitar. A senhora não precisaria passar a soleira da minha porta, a menos
que quisesse, por sua iniciativa, conceder-me essa honra.
─ Acredito no senhor. Seja como for, penso que teria entrado. E pago o preço que
oferecera por ele, quisesse o senhor ou não.
─ Por que é como o rapaz e não quer ficar me devendo nada? ─ perguntou Isambard
com brusquidão. ─ Ou por que eu estava velho, ameaçado e cego e tem dó de mim?
─ Dó do senhor? Não. O meu juízo nunca esteve mal a esse ponto. Foi mais porque
estava ficando velha, seca e estéril, sem o senhor. E porque o coração me dizia que chegara a
hora e que o senhor se encontrava na mesma encruzilhada que eu. Não conseguia tirar da
cabeça que ainda existia alguma coisa que teríamos de fazer juntos, antes que a história dos
nossos dias chegasse ao fim. Só não sabia que era morrer. Mas morro de boa vontade, melhor
com o senhor do que com qualquer outra pessoa ─ concluiu, dizendo o que lhe ia na alma,
com a antiga generosidade grandiosa e resoluta.
Benedetta sempre possuíra o dom de usar as palavras com majestade. Se houvesse um
canteiro para gravá-la na pedra, pensou Isambard, seriam estas as palavras que mandaria
gravar no meu túmulo. “Morro de boa vontade, melhor com o senhor do que com qualquer
outra pessoa!” Na vida, na morte, minha querida, minha bem-amada, no céu ou no inferno,
antes com a senhora do que com qualquer outra pessoa!
─ Benedetta!
─ Senhor?
─ Gostaria de lhe dizer duas ou três palavras agora durante a noite, quando a senhora
está tão cega quanto eu. Ainda há uma coisa que me pesa na consciência.
─ Estou ouvindo ─ respondeu Benedetta. ─ E estou cega.
─ Nunca me perguntou ─ disse Isambard em voz baixa e neutra, junto ao ouvido dela
─ o que fiz com ele, depois de tê-lo retirado da sepultura.
Benedetta permaneceu imóvel e susteve a respiração por um instante. Súbita e
suavemente, como se alguém houvesse afastado uma cortina que se interpusesse entre ela e a
luz, a verdade surgiu diante dela. Fora assim que passara aquela noite distante, deitada com
Harry nos seus braços enquanto a morte esperava pacientemente à porta. O tempo completara
outro círculo incomensurável e restabelecera o equilíbrio perdido do amor.
─ Eu sei o que o senhor fez com ele ─ respondeu com simplicidade. ─ Ele está onde
devia estar. Está aqui conosco, debaixo do altar.
Isambard deixou escapar um profundo suspiro e a pressão das suas mãos tornou-se
mais suave. Não lhe perguntou como soubera. Naquela eloqüência maravilhosa de silêncio e
imobilidade, deixara de ser necessário. Cada inspiração trazia-lhes maior compreensão e
tranqüilidade, até que todas as perguntas desapareceram como sombras tragadas pela luz.
─ Abri o túmulo sozinho, com estas mãos ─ disse, depois de um silêncio longo e
perfeito. ─ Era o lugar que deveria ser meu, mas eu o cedi, porque ele tinha mais direito a
esse lugar do que eu. Ergui a pedra com uma das alavancas de ferro que tinham sido dele e
fiquei muito surpreendido ao ver quanta inteligência e arte são necessárias para isso, quando
se faz o esforço sozinho. Levei-o nos meus braços, depositei-o no lugar que lhe cabia, dei-lhe
uma mortalha de ouro e fechei o túmulo para que repousasse em paz.
Benedetta sentiu a paixão que tremia sob a imobilidade das mãos compridas de
Isambard, como se, naquele momento, elas não abraçassem a sua carne frágil e branca, mas os
ossos jovens, esguios e resistentes de Harry.
─ Sei que era seu desejo que um dia as mãos do amor o colocassem ali ─ disse
Isambard, com amargo arrependimento. ─ Perdoe-me ao menos por isso.

141
142

─ Não é necessário ─ replicou Benedetta. ─ Dou-me por satisfeita.


As pontas dos dedos dele percorreram-lhe docemente a face, detendo-se nos seus
lábios.
─ A senhora sorri! ─ observou maravilhado.
─ Preferia que eu chorasse? ─ perguntou ela. ─ Era bem capaz de chorar.
─ Ah, não! Alguma vez eu a vi chorar? A senhora riu quando me destruiu e foi ao
encontro dele. A senhora riu quando foi arrastada para a morte por ele.
─ Chorei quando me arrastaram de novo para a vida.
─ Acredito. A vida sem ele não apresentava muitos atrativos. Só Deus sabe se eu
invejava mais a senhora por causa dele ou a ele por causa da senhora. Depois que ele morreu
nunca mais senti prazer com a morte de ninguém. Nunca derramei sangue que não fosse o
sangue dele, nunca enforquei nem mesmo o criminoso mais infame sem que a corda fosse
apertada à volta do pescoço do Harry. Nunca estive prestes a expulsar um vassalo ou a
chicotear um servo sem ouvi-lo discutir comigo e sem que ele me detivesse a mão. Se me
esquecia do seu rosto, aqui ele me enfrentava-me constantemente e se me esquecia do prazer
que lhe dava o contato com os outros homens, voltava a vê-lo nas pedras desta casa e não
havia nenhuma maneira de escapar dele. O Harry, que não era capaz de parar de cortar e
esculpir mesmo depois de morto, contaminou-me o sangue. Quantas vezes o amaldiçoei por
isso e lutei para me livrar dele! Em vão. E sabia que o havia destruído! Apesar de não sentir
culpa, sabia que o havia roubado ao mundo e me mutilara a mim próprio. Em troca da vida
que lhe tirara não tinha nada que pudesse oferecer, senão a minha. Se era uma dívida, queria
pagá-la, mas faltava-me a clarividência para julgar e a coragem para abandonar covardemente
aquilo que talvez não fosse devido, embora não retirasse dela a menor alegria. Mas sempre
que pude ofereci-a, de modo a que Deus a tomasse e nunca estendi a mão para retê-la. Todas
às vezes Ele recusou-a. É estranho, Benedetta, mas de cada vez que a oferecia para ser levada,
mais valor lhe dava e mais a queria. Depois de morto o Harry me ensinou a amar a vida e a
aprendizagem foi dura. Quanto mais ela se tornava cara para mim, maior era a agonia quando
a expunha, mas não podia recuar. Por isso, feitas as contas, talvez eu tenha pagado algumas
das minhas dívidas.
No silêncio momentâneo, a estrutura da igreja e a rocha por baixo dela foram abaladas
por mais um desmoronamento lento e ressonante. Benedetta e Isambard sustiveram a
respiração e ficaram à escuta, até tudo haver acabado. Enquanto o tremor abrandava, os dedos
dele percorreram-lhe o rosto e tocaram-lhe nas pálpebras bem fechadas, nas pestanas úmidas.
─ Benedetta! Ah, minha querida, por mim não! Por quê?
─ Continuai ─ disse ela numa voz que mais parecia um sopro suave contra a palma da
mão dele. ─ O senhor tem outras coisas para me dizer.
─ À senhora ou a Deus, embora Deus já saiba de tudo antes que eu fale. E agora vejo
que existe bem pouco de mim que a senhora não saiba.
Apesar disso, Isambard recomeçou a falar docemente, com grandes pausas, como se o
afluxo das recordações oscilasse entre o deslumbramento e o esquecimento, arrastando-o para
longe de tudo, mesmo dela.
─ Depois surgiu o jovem Harry. Apareceu subitamente aqui, diante de mim, uma
réplica perfeita do pai. Não podia deixá-lo partir. Precisava descobrir se ele possuía o mesmo
valor, se eu estava vivendo aquela agonia em vão, se Deus estava brincando comigo. Só lhe
bati uma vez, quando ele tentou sacrificar a própria vida para tirar a minha... com quinze anos
apenas, o mundo ao alcance da mão e ele a dar-lhe tão pouco valor! Mas penso que, no fundo,
ficou até contente pelas palmadas que lhe dei, porque lhe doeram e o fizeram sentir-se bem
vivo. Nunca mais precisei discipliná-lo desse modo, mas à minha maneira fui duro para com
ele. Algumas vezes fui mais violento do que queria, mas Harry nunca se deixou vergar.
Magoei-o e ele a mim, o melhor que sabia, mas nunca consegui domesticá-lo. E por fim a

142
143

roda deu a volta completa porque, tal como o pai ele arriscou a vida e a liberdade para não
abandonar uma criança ameaçada que não era nada dele. Mas desta vez... oh, Benedetta,
imagine bem... desta vez a criança era eu! Concedi-lhe a liberdade, pedi-lhe que fosse embora.
Mas ele não queria! Recusava-se a abandonar-me por estar preocupado por minha causa, por
ter medo por mim, que estava cego e indefeso diante dos meus inimigos.
A longa noite estava acabando, o primeiro lampejo de forma e proporção desenhava-se
e aumentava sobre as cabeças de ambos. Antes da visão, surgia a forma, a dilatação da paz, a
marca da tranqüilidade. Em breve a altura da abóbada penetraria na sua consciência;
Benedetta a veria, Isambard a sentiria através das mãos, do corpo e do sangue, lembraria do
que ela estava vendo e partilharia o seu deleite. Os pormenores viriam depois, quando a
aurora voltasse a esculpi-los, como todos os dias acontecia.
─ Agora que vivi um milagre, sei que estes acontecem doce e naturalmente neste
mundo. Tornei-me parte do Harry contra minha vontade e o Harry tornou-se parte de mim
contra sua vontade. Uma boa parte do que sabe fui eu quem lhe ensinou. Fui eu quem fez
parte do que ele é. Estou-lhe no sangue como o seu pai estava no meu e, se Deus quiser, para
um destino feliz. Porque, Deus é minha testemunha, fiz dele herdeiro de tudo quanto de bom
possuía para legar. ─ Sorrindo, o rosto denotando uma alegria tranqüila, Isambard concluiu: ─
E Deus sabe quanto o apreciei e o amei.
Benedetta abriu os olhos ao meio-dia, quando a luz do sol lançava reflexos trêmulos
sobre a abóbada da nave principal. Nas bossagens os anjos batiam as asas douradas e
cantavam louvores a Deus.
Repousava sobre brocados e sedas que já estavam sujos, o seu rosto era apenas um véu
de pele diáfana que deixava ver os ossos salientes da face, os olhos grandes refulgiam,
arrebatados, o corpo estava reduzido a um pequeno monte de ossos e o esqueleto brilhava
através da pele. A luz celeste inclinava-se para ela, leve como tule, resistente como a pedra.
Não, mais duradoura do que isso, longa como a memória, resistente como o amor.
Porque a criação não residia na pedra, apesar da pedra ter florescido sob as mãos dele.
Ainda que o invólucro que contém esta forma de esplendor se quebre, pensou Benedetta,
maravilhada, o milagre continuará aqui para sempre porque, um dia, ele o concebeu e lhe deu
vida. Tal como a alma sobrevive ao corpo, a sua obra sobreviverá à pedra. Os olhos que
alguma vez a contemplarem passarão a encarar todas as coisas de um modo diferente, pois
terão conhecido a dimensão da plenitude. E aquilo que aprendemos nós vamos com certeza
transmitir a outros e as revelações que recebemos vamos de algum modo comunicar a outros
num “dar as mãos” perpétuo. Se esta igreja for arrasada, nem por isso o Harry terá deixado de
mudar o mundo numa medida ainda desconhecida.
Para o espírito audacioso de Benedetta o mais maravilhoso de tudo era ver que a
perfeição não é o fim da energia, que a paz não é o fim da ousadia. Uma e outra são o
princípio, não da estagnação nem da fadiga, mas de um ardor inconcebível de paixão, que
eleva a força ao máximo e estende os anseios do coração além da derradeira fronteira do
conhecimento. Nem uma nem outra conhecem limites, prolongam-se até ao infinito; o tempo
não tem significado para elas, o agora é sempre, o aqui está em toda a parte. Não ir a lugar
nenhum, não fazer qualquer esforço, esperar: aqui todas as coisas vêm ao nosso encontro,
entram dentro de nós, formam uma unidade conosco.
O corpo de Benedetta estava gasto e enfraquecido, mas a sua mente continuava clara e
calma como a água de um lago da montanha, refletindo as mudanças vibrantes da
luminosidade. Sonhava muitas vezes com água, desde que, apesar do muito que pouparam, as
pias de água benta haviam secado, restando-lhes apenas umas gotas de vinho para enganar a
sede. Agora só se mexia quando era necessário; dormia muito e sonhava muito. Conhecia a
precariedade das suas forças e guardava-as para os esforços que precisava fazer. O esforço de
alisar e prender o grande volume dos seus cabelos extenuava-a, falar era o mesmo que

143
144

levantar chumbo, as roupas que vestia pesavam tanto como o mundo. Refugiava-se na
imobilidade e o seu espírito conservava a capacidade de se maravilhar. Espere, não vá a lugar
nenhum, aqui todas as coisas vêm ao seu encontro e formam um todo consigo.
Com os olhos ainda ofuscados pela luz celeste e deslumbrante que parecia puxá-la
para a abóbada, estendeu a mão frágil e procurou Isambard ao seu lado. Nenhuma mão, rápida
e atenta, veio ao encontro da sua. Então olhou em volta e os contornos das coisas terrenas
tremeram na claridade que a rodeava: o rendilhado dos ornamentos da capela, a luminária de
pedra já a muito apagada, as cores quentes do leito agora na sombra. Isambard não estava a
seu lado. Há quanto tempo? Benedetta perdera a noção do tempo; sabia apenas que se estava
no meio do dia, mas de que dia, só Deus podia dizer.
Ficou escutando e ouviu sons que fizeram vibrar uma corda interior e despertaram
uma memória de solenidade e piedade. O arranhar do metal contra a pedra, uma respiração
longa e profunda que alternava com um silêncio profundo, um arquejar violento que terminou
num gemido de esforço e alívio. Uma pausa e, mais uma vez, o tatear e o arranhar por baixo
da pedra e, desta vez, polegada a polegada, a pedra saiu do seu lugar e Benedetta ouviu o
arrastar de pedra contra pedra. Então compreendeu. Isambard a deixara dormindo e fora abrir
uma sepultura para ela.
Sozinho ele não consegue, pensou Benedetta consternada, agarrando-se a um dos
pilares esguios da capela para se pôr de pé. Vai partir os ossos, arrebentar o coração e morrer.
Agarrando-se e abraçando um pilar após outro, saiu da capela para o coro e, instintivamente,
os seus olhos voltaram-se para o local do túmulo do velho padre Hubert, que abrigava
também o inesperado hóspede de Reichenau. Onde, senão ali, poderia Isambard procurar um
local de repouso eterno para ela? A pedra ainda mal assentara e podia ser encostada à madeira
sólida dos bancos do coro sem grande risco de se partir. Mas o canto estava deserto e a pedra
intocada. Mais adiante, do lado do altar, uma outra pedra estava sendo cuidadosamente
erguida, polegada a polegada. Benedetta ouviu o arfar profundo que o esforço arrancava a um
coração extenuado, as longas pausas durante as quais ele recuperava forças para mais um
assalto. E tudo isto sem ver, usando os dedos como olhos, em movimentos dolorosos,
pacientes e perigosos! Os olhos de Benedetta, que nunca choravam, encheram-se de lágrimas.
Às cegas, dirigiu-se para o local onde ele se encontrava, segurando-se aos bancos e, ao chegar
aos degraus do presbitério, as suas escassas lágrimas secaram deixando-lhe novamente clara a
visão e o avistou.
A fugaz luz do sol, fria e gelada como neve, atravessava as lancetas da janela oriental
e derramava pedras preciosas sobre as lajes do chão. Entre aquela cascata de verdes, dourados
e escarlates, Isambard caíra de bruços sobre as suas ferramentas improvisadas, inspirando
penosamente. Quebrara dois candelabros pesados, ferira e rasgara os dedos até o osso, que já
furava a pele, mas terminara o que decidira fazer.
Sob o altar-mor, sob a grande pedra ornada com o coro de crianças, a pedra central
fora erguida e encostada às outras pedras e as estrelas e losangos de luz cintilante caíam como
flores de inverno sobre o túmulo de pedra de Harry Talvace.
Nas escadas, o corpo traiu-a e Benedetta caiu de joelhos; de joelhos arrastou-se pelo
espaço amplo até junto de Isambard. O latejar do sangue nos ouvidos impediu-o de ouvi-la
chegar. Arquejando, Isambard estava deitado de bruços com a testa encostada à pedra; a sua
mão aberta deixara cair uma gota de sangue sobre a beira da sepultura. Só ergueu a cabeça
quando ela o tocou, voltando para ela a ruína brilhante e orgulhosa da sua beleza, a máscara
pálida e ambígua de demônio e de anjo, amarela como latão, os olhos sem vida sob as
pálpebras arrogantes e magras, todo o esplendor petrificado da morte que, todavia, mesmo à
beira do fim, continuava a irradiar vida e paixão.
─ Vai mandar-me de novo partilhar o leito com ele? ─ perguntou Benedetta,
acariciando-lhe a testa coberta de poeira com os dedos frágeis como hastes de flores murchas.

144
145

─ Onde mais poderia ser? ─ replicou ele. ─ Onde eu poderia colocá-la para o repouso
eterno? Se a senhora partir antes de mim... perdoe-me... perdoe-me!
Isambard deitou a cabeça no colo dela, rodeou-lhe o corpo com os braços esqueléticos
e ficou imóvel. Benedetta envolveu com as mãos a coroa grisalha dos seus cabelos e olhou
para dentro da sepultura, por cima do ombro dele. Não era muito funda. A pedra estava
perfeitamente seca e o fulgor do tecido dourado permanecia quase inalterado. Sob a mortalha
brilhante viam-se os contornos dos ossos delgados; a cabeça, visível sob o véu principesco,
mostrava o rosto de um homem adormecido. Benedetta lembrou-se da masmorra de Parfois e
da cabeça amada, de cabelos escuros, que repousara contra o seu peito durante toda a noite.
Segurou a cabeça de Isambard entre as mãos cansadas, ergueu-lhe o rosto e beijou-o
na testa.
─ Uma vez o senhor quis o coração dele ─ disse. ─ Estenda a mão e tome-o. Agora ele
não o recusará.

145
146

CAPÍTULO DEZ
Parfois, dezembro de 1233 a janeiro de 1234

Durante três dias o fogo devorou as profundezas da rocha sob Parfois. Do caminho da
ronda entre as torres de vigia, os sitiados ouviam no silêncio da noite o estalar contínuo e
abafado dos ramos e arbustos ardendo, o assovio e o sopro do vento à medida que as chamas
consumiam o ar. Durante o dia, embora estes sons longínquos se perdessem na agitação
quotidiana da vida debaixo de cerco, havia outros sinais que lhes recordavam o prodígio.
Logo na primeira manhã, antes mesmo da aurora ter qualquer reflexo de cor a anunciá-la, uma
das sentinelas correra, aos gritos, avisando o seu oficial de que saía fumaça do poço vazio,
que debaixo de Parfois tinha um inferno ardendo e era chegado o Dia do Juízo. Irromperam
pelos aposentos de William Isambard com esta história e este os insultou, chamando-os de
idiotas, mas correu a ver o que se passava. A chaminé de Adam fumegava em direção ao céu
cor de chumbo, cuspindo ar quente numa coluna negra e os estalidos do fogo vindos do
interior da rocha eram aterrorizadores como uma ameaça do demônio. Durante a noite um
brilho tênue pairava sobre a abertura, redobrando a inquietação de todos. Por mais que
explicasse e tentasse fazê-los compreender, William não conseguia convencer os homens de
que tudo aquilo eram fenômenos naturais e quando se fechou no quarto, a sós com os seus
pensamentos, nem mesmo ele estava muito convencido.
O vento agreste e moderado que se infiltrava pela ravina favorecia Llewelyn,
mantendo o fogo a arder e o calor intenso por mais tempo do que Adam ousara esperar. Na
segunda noite, Parfois foi abalado por súbitos e retumbantes desmoronamentos no coração da
rocha. Só então a gente de Parfois percebeu o que estava acontecendo à fortaleza. A terra
tremia sob os seus pés. Atemorizados eles continuaram as suas tarefas sobre aquele chão
pouco seguro, tentando evitar que o peso dos próprios corpos se firmasse completamente
nele, baixando a voz com receio de que um grito fizesse desmoronar as muralhas. A fumaça
rolava ao longo do barranco e não lhes permitia ver o vale. O regato gelado voltara a correr,
mas mudava de curso a cada dia, à medida que os desabamentos de terra se estabilizavam e
todas as noites o gelo aprisionava no silêncio mais alguns trechos de água, enquanto o fogo
abrandava e a rocha ia esfriando.
Na quarta noite a geada recuperou os seus direitos e agarrou-se com ferocidade aos
locais já devastados pelo fogo. Era o vigésimo segundo dia de dezembro e a pior noite
daquele inverno. Já quase de manhã toda a gente em Parfois saltou da cama aterrada, ao ouvir
o rugido da rocha e da alvenaria que ruíam ao mesmo tempo, quando a falésia sob a entrada
fortificada se fendeu como que atingida por um raio e a torre ocidental, cujos alicerces foram
subitamente arrancados, se abriu de alto a baixo e caiu quarenta pés mais abaixo, sobre o

146
147

barranco. A torre oriental ficou de pé com a ponte-levadiça pendendo, como que embriagada,
de uma só corrente; mas as muralhas caíram e começaram a abrir grandes fendas em
ziguezague e quando o vento afastou o pó do desmoronamento, ficaram à vista por baixo
delas grandes blocos de rocha em equilíbrio precário, prontos a desabar a um simples toque.
William arrastou os sobreviventes para fora e, à força de pancada e impropérios,
conseguiu pôr os homens a trabalhar na construção de uma nova ponte, reforçou o posto
avançado da guarda e colocou junto à brecha todas as criaturas disponíveis capazes de
empunhar uma arma, numa expectativa febril, temendo que Llewelyn lançasse um ataque
enquanto reinava a confusão. Ainda que se sentisse tentado, Adam não era tolo e Llewelyn
tinha a sensatez suficiente para se deixar guiar num domínio que para ele era novidade. A
rocha ainda não esfriara: haveria novos desmoronamentos antes do fim do dia e estaria
desafiando a morte se mandasse os seus homens escalarem aquela massa instável e vacilante,
antes de deixá-la assentar pelo menos um dia. Deste modo, William teve um dia de trégua e
tempo para meditar sobre o caráter inexpugnável de Parfois.
No alto da sua torre, roeu as unhas até o sabugo, sentindo aquela massa altaneira ainda
vibrando sob os seus pés. Era tempo de admitir a dúvida que, até então, nunca fora real: a
muralha sofrera uma brecha, o poço fora furado e os seus homens encontravam-se em estado
de choque. William enfrentava um amanhã tão sombrio como o vale gelado, lá em baixo. Se
Parfois agüentasse, ainda poderia enfrentar a situação, conservar o título e esfregá-lo nas
barbas do desconfiado Humphrey Paunton; qual teria sido o seu erro, que teria levado o velho
idiota de Fleace a eriçar-se todo e a exigir garantias? Poderia descobrir o terceiro cadáver na
igreja que abrigava a peste com protestos convincentes de inocência e desgosto, enterrá-lo
diante de todos com grande pompa e continuar a ter a bênção do rei e a sombra protetora do
rei a justificar os seus atos. Depois do encargo que Henrique lhe confiara, com as fronteiras da
Inglaterra para defender a todo o custo, esta falha não seria posta em dúvida. Como poderia
ele, William, adivinhar onde tinha o velho tonto ido esconder-se, quando fugira durante o
alarme? Como poderia ir procurá-lo fora das muralhas de Parfois, se estava preso dentro
delas, cercado por um forte cordão galês? Supusera que o pai caíra das rochas na sua cegueira
e chorara a sua morte; tinha se dado ao trabalho de criar uma boa imagem de ansiedade filial.
Como poderia imaginar que Isambard se escondera na igreja? Ninguém podia acusá-lo;
William tomara as medidas necessárias. Se Parfois agüentasse, se William continuasse a ser
útil ao rei e cuidasse do seu castelo, tudo poderia se arranjar.
Mas ali estava ele, súbita e duramente confrontado com a realidade de que Parfois não
era inexpugnável. E depois? Que aconteceria se Llewelyn conquistasse Parfois e abrisse a
igreja selada? Quando encontrasse o corpo de Ralph Isambard, faria tal alarido que nenhuma
eloqüência conseguiria abafar o primeiro grito de parricídio. A bela alegação que William
elaborara e sabia na ponta da língua seria desmistificada logo no início e a sua causa estaria
perdida antes mesmo de ser defendida. O velho sabia bem do que estava falando quando
dissera que, ao primeiro rumor de escândalo, Henrique retiraria a sua proteção e deixaria o seu
servidor pagar as custas sozinho. Não haveria futuro para um homem acusado de parricídio
pelo Príncipe de Aberffraw. Ainda lhe parecia ouvir a voz do pai, irritantemente confiante e
divertida, dizer: “Se você o comprometer, ele o perseguirá até à morte.”
Dentro dele uma resolução começou a fortalecer-se: os corpos que se encontravam
dentro da igreja não podiam ser encontrados, pelo menos de uma forma identificável. Poderia
mandar tirar os selos das portas e enterrá-los em segredo? Não, os homens desmoronariam se
o terror renovado da peste viesse juntar-se aos que já eram obrigados a suportar.
Contudo, já que os galeses tinham utilizado o fogo, por que não poderia aproveitar-se
disso e atribuir-lhes a culpa? Dentro da igreja, havia madeira suficiente; com aquele frio,
arderiam tão vivamente como a fornalha subterrânea de Llewelyn. Ali ao lado estava
guardado o óleo para as lamparinas e as luminárias. O vento soprava de oeste e era bastante

147
148

forte. Dois ou três homens, escolhidos por não serem muito espertos podiam fazer o trabalho a
partir das janelas do lado ocidental, sem entrar na igreja e julgando estar expurgando os
últimos vestígios da peste. Depois, Llewelyn poderia fazer o que entendesse com os ossos
carbonizados e irreconhecíveis.
Antes da alvorada, na véspera de Natal, os homens de Llewelyn, já levantados,
armados e prontos para o ataque, ergueram os olhos para a fortaleza mutilada de Parfois e
viram uma nova e alta língua de fogo a elevar-se com o vento, desenrolando-se como um
comprido estandarte, orlado de fumaça. Ficaram estáticos observando; Llewelyn saiu com
pressa da tenda, ao ouvir o alarido, e Harry, correu a agarrar-se ao braço de Adam, com um
grito de fúria e desespero:
─ A igreja! Botaram fogo na igreja, Adam!
Como uma tocha ou um farol, a altiva torre de mestre Harry destacava-se naquela
aurora enevoada, carregada de uma luz enfurecida. Das suas janelas mais altas emergiam
pequenas chamas ondulantes, que eram arrastadas para oeste pela brisa e se assemelhavam a
longos cabelos ruivos.
Nessa véspera de Natal os galeses tomaram Parfois.
O ataque em três frentes havia sido planejado com precisão, mas foi efetuado algumas
horas antes da hora prevista, com grande pressa. Llewelyn, com aproximadamente um terço
do total das suas tropas, lançou por fim o ataque frontal há muito aguardado; sem qualquer
bombardeamento prévio pelas máquinas de guerra, as fileiras dos seus cavaleiros lançaram-se
sobre a torre e as barricadas do posto avançado da guarda. Cobertos pela escuridão, David e
as suas companhias tinham subido pela boca da ravina e os seus melhores arqueiros tinham
procurado nichos na rocha de onde pudessem controlar a brecha aberta na muralha e alvejar
qualquer defensor que se expusesse. Para os atacantes o principal perigo era a insegurança do
terreno, a massa oscilante que podia, com toda a facilidade, rolar sob os seus pés se alguém
atirasse um pedregulho lá do alto. Os homens restantes de David abrigaram-se como puderam,
prontos a lançar uma segunda onda de assalto assim que os seus camaradas da frente oeste
completassem a escalada. Estes, que constituíam o principal corpo de ataque, mantiveram a
sua posição até o alarido na rampa ter feito aparecer os reforços, que se amontoaram na ponte
improvisada para repelir as cargas repetidas e arrasadoras de Llewelyn, e o clamor entre as
árvores ter se transformado na música selvagem e constante do auge da batalha. Então Owen
mandou-os avançar e eles saíram dos abrigos e lançaram-se como um enxame para o barranco
cheio de rochas amontoadas.
Harry foi o primeiro a atingir as bordas traiçoeiras do desmoronamento e, sem hesitar,
começou a subir pelo monte oscilante de rochas, seguindo pela encosta íngreme em direção à
brecha na muralha. Lá no alto, os defensores não se atreviam a aproximar-se da borda do
desmoronamento com medo da falta de solidez; das posições recuadas que ocupavam a sua
pontaria não era muito precisa. Para Harry era mais perigosa aquela escada de pedra vacilante
por onde subia do que os ataques do inimigo. Por duas vezes, colocou o pé numa pedra que
cedeu e o fez cair e de outra vez provocou um deslizamento que começou a arrastá-lo e o teria
feito cair, espatifando os ossos nas pedras caídas mais abaixo se não fosse alguém, que o
seguia de perto, tê-lo puxado para o lado e agarrado com unhas e dentes, até o pó assentar e a
superfície vacilante estabilizar.
─ Calma, rapaz, calma! ─ aconselhou a voz de Adam ao seu ouvido. ─ É melhor
cuidar de manter vivo o filho do seu pai. A igreja pode esperar.
Com o resquício de consciência que podia dispensar naquele momento, Harry
perguntou a si mesmo o que faria Adam ali colado a ele, tão oportuno, Adam que era artífice e
não soldado e que não tinha nada que se lançar no ataque à muralha com os homens de armas.
Contudo, não teve tempo para mais do que uma olhadela e uma palavra rápida, antes de se
levantar e recomeçar a subir como um esquilo.

148
149

Se os homens de De Guichet, postados lá no alto, no pátio, não receassem aventurar-se


perto da beira, poderiam, embora com algumas baixas, ter enfrentado muito mais homens do
que os que Owen lançara contra eles, pois hes bastava fazer rolar as primeiras pedras para
varrer os galeses, como se fossem seixos arrastados pela corrente. Mas estavam desalentados
e abalados: a terra firme do terreiro exterior estava rasgada por fendas que, a cada choque, se
alargavam a olhos vistos e bastava-lhes pôr o pé naquela superfície rachada para senti-la
tremer. Só quando Harry e os seus companheiros da vanguarda já estavam tentando encontrar
pontos de apoio para os pés e as mãos para galgar a borda instável, os defensores conseguiram
ultrapassar um terror para enfrentar outro, mais urgente; os mais ousados avançaram para
golpear as mãos e as cabeças desprotegidas que se içavam sobre a borda e entravam no seu
campo de visão e para soltar os blocos de pedra e alvenaria ainda em equilíbrio, na borda do
desmoronamento.
Tarde demais. Lá de baixo, os arqueiros, que haviam estado à espera deles numa
espera numa expectativa febril, dispararam contra todos os alvos possíveis e foi um corpo
rolando, não uma pedra, que desencadeou o primeiro desabamento. Harry não conseguiu
apoiar-se e escorregou uma ou duas jardas, ferindo o rosto; lançou-se de novo para cima e viu
um dos blocos da torre da guarda oscilando por cima de si e, de relance, viu o próprio De
Guichet inclinado, apoiando-se sobre o ombro, tentando empurrá-lo. Por alguns momentos
ficaram a olhar um para o outro, olhos nos olhos através da grelha das viseiras fechadas, e a
morte hesitou entre um e outro. Mas um dos arqueiros de David disparou sem pressa, de um
nicho na parede oposta da ravina e De Guichet caiu e ficou abraçado ao seu projétil com uma
das mãos pendentes, inerte. Devido à pressão do seu pulso, levantou-se uma pequena nuvem
de poeira que deslizou inofensivamente como um sopro de vento. A pedra oscilou suavemente
e permaneceu no lugar.
Depois daquele instante de puro terror, Harry respirou de alívio e pulou para o lado,
para deixar caminho aberto ao obstáculo ao mesmo tempo em que gritava avisos aos que se
encontravam mais abaixo. Nem todos haviam tido tanta sorte como ele; ouviu, à sua direita, o
barulho das rochas caindo e rezou pelos homens de David.
Já completara a subida, já galgara a borda num redemoinho de poeira. Naquela manhã
clara, esta se espalhara por todo o lado como um nevoeiro cerrado de fumaça, de pó e de fedor
de queimado. O fogo abalara a rocha e a geada estava a pulverizá-la. O gosto da pedra se
agarrara à sua garganta quando atravessou correndo as poucas jardas de solo rachado que o
separavam das fileiras de Parfois. Colados aos seus calcanhares, assim que desembainhou a
espada os homens de Gwynedd correram para lhe proteger os flancos e reforçar o ataque,
conduzindo-o para longe do terreno perigoso e mantendo à retaguarda um espaço por onde os
companheiros pudessem ir subindo sem perigo.
Quando o solo firme fosse conquistado, Parfois estaria conquistado. Foi apenas uma
questão de continuar em frente, de lutar até a resistência ser vencida e de não recuar um passo
diante das tentativas desesperadas que procuravam empurrá-los por cima da borda.
Atrás vieram os homens de David, com mais calma e maior cuidado, pois já não
teriam de enfrentar o perigo mais imediato. No barranco os arqueiros abandonaram as suas
posições, atravessando a ravina e procurando abrigo do lado de dentro, de onde podiam varrer
o planalto da igreja ou, pelo menos, acertar em qualquer um que fosse suficientemente tolo
para se expor perto da borda. Os defensores postados no topo das muralhas e das torres
tinham a tarefa dificultada pela batalha campal no pátio abaixo deles, onde amigos e inimigos
se misturavam de modo tão próximo que as setas poderiam ferir uns ou outros sem distinção.
Antes do meio-dia, o combate travava-se corpo a corpo. Escudo contra escudo, peito contra
peito, os galeses abriram caminho através da brecha, como círculos provocados por uma pedra
atirada a um lago. Esvaziaram o pátio exterior e agora podiam começar a esvaziar as torres. O
arco que desembocava no pátio interior esteve teimosamente bloqueado durante algum tempo,

149
150

até que os invasores conseguiram abrir caminho para a torre da guarda e, espalhando-se
rapidamente ao longo da muralha, encarregaram os seus arqueiros de varrer o terreno de todos
os ângulos. Arrombaram a porta do castelo e conseguiram entrar.
Seguros do seu controle eles separaram-se; Owen seguiu em frente para limpar o pátio
interior, enquanto David mandava metade das suas tropas voltar atrás, atravessar a ponte e
atacar a retaguarda das forças que ainda opunham resistência ao avanço de Llewelyn. A
batalha já se deslocara do meio das árvores para o terreno aberto do planalto e bastou o alerta
da aproximação de David para lhe pôr fim. Do que restava das forças de Parfois, uma parte se
dispersou e fugiu e a outra depôs as armas e rendeu-se ao primeiro adversário que parou o
tempo suficiente para aceitar a rendição. O castelo estava perdido e nenhum heroísmo de
última hora poderia recuperá-lo.
Harry foi um dos primeiros a passar pelo arco e a entrar no pátio interior e, palmo a
palmo, dirigiu-se para a Torre da Rainha. Empurrados para os braços dos inimigos, lutaram
pelo pátio numa confusão tremenda, num corpo a corpo tão próximo que tiveram de pôr de
lado as espadas e de utilizar os braços como se fossem lutadores. Os brasões de Parfois, as
cores dos cavaleiros e o tom pardo das vestes dos homens de armas dançavam diante dos
olhos ofuscados de Harry. Afastou violentamente um ombro revestido de malha metálica que
se atirara contra o seu peito e conseguiu espaço para manobrar a espada; o homem que
afastara avistou o brilho do aço e girou instintivamente, de cabeça baixa, para evitar a
estocada. A sua viseira e uma comprida tira da proteção do pescoço de malha metálica tinham
sido arrancadas e o seu rosto estava manchado de sangue. Harry encontrou-se cara a cara com
William Isambard.
Encararam-se enraivecidos como cães e atiraram-se um ao outro como cães. Harry
deixou de ver a confusão à sua volta, a sua visão concentrada naquele combate singular.
Estavam os dois sós neste mundo, em torno deles não havia ninguém, apenas objetos que
limitavam e obstruíam o terreno de luta, frustrando o maior alcance do homem e dificultando
a velocidade e a rapidez arrebatadas do jovem.
William Isambard era um espadachim temível, para quem o combate não era uma
brincadeira, mas um jogo mortal; por que se permitira aquele momento de fraqueza e deixara
que a lâmina oscilante passasse tão perto do seu corpo? O físico do adversário, os seus
movimentos longos, o equilíbrio dos golpes que o mantinham à distância, tudo lhe despertava
nos sentidos uma sensação de familiaridade que era quase uma dor física. Harry conhecia
aquela esquiva rápida, a estocada fulminante que lhe seguia inesperadamente, e o mergulho
instantâneo sob a parada quase conseguida. Mas também conhecia as respostas. Ambos
haviam aprendido com o mesmo mestre, agora se saberia qual dos dois fora o aluno mais
dotado e aplicado.
Aquela estocada inicial que lhe provocara um instante de hesitação em memória do
pai, havia valido ao filho o primeiro sangue. A manga da sua cota de malha deixara a
descoberto o pulso estendido e agora a luva estava cheia de sangue, o punho da espada
escorregadio. Por poucos instantes, alguns rostos destacaram-se entre a multidão, corpos
aproximaram-se e o atrapalharam, movimentos de luta dificultaram-lhe os movimentos do
braço que empunhava a espada. Harry afastou a todos e concentrou-se no adversário, com um
olhar fixo e feroz e uma pontaria rápida e organizada.
Quando sentiu a confusão da batalha afastar-se nas suas costas, recuou um passo como
se estivesse cansado ou intimidado. O adversário acompanhou-o de perto, com um olhar
ardente, animado por este sinal. Harry lançou um ataque experimental ao flanco esquerdo de
William, mas este afastou o ferro e girou subitamente com todo o seu peso.
Harry deu um salto e passou por baixo da espada, cruzou punho com punho para
manter a lâmina afastada do rosto e lançou o homem e a espada para a frente, ao mesmo
tempo, por cima do quadril bem apoiado. Não havia tempo, não havia espaço para o golpe

150
151

bem medido com que, certa vez, Isambard o desarmara. Em vez disso, o jovem atirou-se com
todas as suas forças sobre o adversário cambaleante, o fez cair entre os pés dos combatentes e
esmagou sob o seu corpo o braço que não largara a arma. Harry havia largado a espada para
libertar as mãos e, antes que William conseguisse empurrá-lo, empunhara a adaga e encostara
a ponta ao pescoço do adversário, abaixo da orelha, onde a cota de malha fora arrancada.
─ Onde estão eles? ─ arquejou furiosamente. ─ O que você lhes fez? Onde está a
Madonna Benedetta?
Sentiu um joelho agitar-se debaixo de si tentando atingi-lo no ventre, mas o peso da
cota de William dificultou-lhe o movimento. Harry forçou a adaga até sentir a carne encolher-
se sob o contato.
─ Onde está ela? E o seu pai? Fale ou morrerás! Se você lhes fez mal...
William cuspiu as palavras por entre os dentes:
─ Procure-os!
Gritou e gemeu ao sentir a ponta da adaga enterrar-se, mas esta não se desviou e os
olhos verdes, tão próximos, nunca vacilaram.
─ Por Deus, eu vou descobrir! Você irá confessar! Onde?
─ Na igreja!
As palavras foram arrancadas, num gemido mordaz, aos lábios contorcidos num esgar
de raiva e ódio. Que loucura ter admitido algum conhecimento! Por que dizer a verdade? Lia-
se a morte na voz e nos olhos do rapaz, estava decidido a matar ou a saber e a carne anseia por
viver.
─ A igreja! ─ exclamou Harry, erguendo-se num sobressalto horrorizado, vendo de
novo as chamas diante dos olhos.
Largou a garganta desprotegida, tirou o peso de cima do braço ainda capaz e
traiçoeiro, esqueceu tudo menos o horror que o dominava. Pôs-se em pé de um salto,
afastando-se do seu prisioneiro sem uma palavra, sem se lembrar da sua existência, tentando
abrir caminho por entre a multidão e correr para a cobertura resplandecente da igreja de seu
pai.
Uma mão estendida agarrou-lhe o tornozelo e o fez tombar pesadamente, tirando-lhe o
fôlego. Instintivamente rolou sobre a adaga para mantê-la fora de alcance com o próprio corpo
até conseguir libertar o braço. Em vez de soltar a adaga, permitiu que as mãos vingativas lhe
agarrassem o pescoço e meio cego, meio sufocado, tateou com os dedos encurvados o
pescoço de William e atingiu-o sob o ângulo do maxilar, enterrando profundamente a lâmina.
Agora, em sã consciência não queria matar ou nem mesmo ferir alguém, apenas libertar-se de
forma definitiva e ir procurar os seus.
O sangue jorrou sobre a sua mão e o seu braço, o corpo que o abraçava agitou-se e
contorceu-se numa imensa convulsão, as mãos que lhe agarravam a garganta abrandaram a
pressão e caíram inofensivas, ficando a estremecer no chão. Ainda arquejando, com os olhos
turvos, Harry libertou-se e conseguiu abrir caminho entre a multidão, começando a correr,
desesperadamente, passando por baixo do arco para o pátio exterior. Uns braços o detiveram e
o agarraram, por alguns momentos lutou para se libertar até que reconheceu a voz de Adam e
ergueu para ele uns olhos enormes e frenéticos.
─ A igreja! Eles estão na igreja!
─ Eles quem? ─ perguntou Adam, apanhando a pergunta no ar,
─ Benedetta... e Isambard... obriguei-o a me contar... Agora corriam os dois juntos,
Harry chorando sem se dar conta e, mesmo que tivesse percebido isso, não se importaria. As
forças de Llewelyn estavam atravessando a ponte para entrar em Parfois, pouco a pouco e
com grande cuidado para não obrigar as traves de madeira a suportar grandes esforços. Harry
atravessou-a correndo precipitado na frente dos cavaleiros cheios de precauções e segurou as
rédeas de Llewelyn.

151
152

─ Meu senhor, ele matou-os... a igreja... estavam na igreja...


Não conseguia falar por causa da garganta ferida e foi Adam quem gritou a notícia de
modo que todos a compreendessem. Llewelyn saltou da sela e começou a gritar ordens, antes
ainda de Adam acabar de falar; com espadas, machados e todas as ferramentas que
conseguiram encontrar, apressaram-se a derrubar as barricadas que selavam as portas da
igreja.
O incêndio extinguira-se enquanto lutavam, pois o vento mudara e empurrara as
chamas em direção a oeste. Os vitrais da nave central estavam quebrados, as canaletas de
chumbo pareciam riscar a pedra, a fumaça a enegrecia; lá dentro o que restava das vigas ainda
ardia. Quando abriram a porta e tentaram entrar o calor empurrou-os para trás, mas
conseguiram ver o céu a olhá-los, onde uma parte da abóbada caíra. A torre era uma casca
vazia sem janelas, sem telhado. O incêndio devia ter atingido o coro antes que o seu ímpeto
diminuísse quando o vento mudara. Quando deram a volta aos despojos fumegantes para o
lado leste viram que os vidros das grandes lancetas da janela do altar se encontravam intactos,
a pedra quase não estava maculada e a pequena porta que dava para a sacristia estava inteira e
sem qualquer marca.
─ Abram aqui ─ ordenou Llewelyn.
Harry foi o primeiro a enterrar um cinzel na madeira para fazer saltar os pregos
compridos. Sujo de cinza, de pó e de sangue, arrancou o último obstáculo e se deparou com
uma porta trancada e sem chave; foi buscar um machado e atacou-a até rebentar a tranca e ser
atirado para dentro da sacristia.
O teto do presbitério estava enegrecido e o ar ainda vibrava com o calor, mas não era
insuportável. Tiraram os elmos e entraram calados e temerosos. Frágeis nuvens de fumaça
enrolavam-se na abóbada e o cheiro de queimado que descia do coro os envolveu. No coro, os
contornos dos bancos carbonizados ainda eram salientados por algumas brasas ardentes,
depois do calor que os destruíra. Mas o chão de laje do presbitério deixara-os passar
incólumes sobre as suas pedras e o altar com o seu coro angélico mantinha-se belo e
imaculado. Por baixo dele, um retângulo de escuridão aberto no chão chamou-lhes a atenção.
Espantados e assustados, aproximaram-se e olharam com medo para dentro do túmulo aberto.
No fundo da cavidade de pedra Benedetta jazia sobre veludo. O cabelo comprido
rodeava-lhe a cabeça como uma auréola de fogo extinto e o corpo estava coberto com uma
toalha de altar, bordada a ouro. As mãos finas e tranqüilas se apoiavam sobre flores coloridas
e o rosto era um molde de pele cor de marfim bem esticada sobre o desenho puro dos ossos
bem modelados. Alguém havia fechado cuidadosamente as grandes pálpebras arqueadas e
arrumado, com amor e reverência, o corpo pálido. Todos a reconheceram; todos os que ali se
encontravam a reconheceram, apesar de ser agora uma sombra da mulher que recordavam.
Mas de quem seria a forma dourada que jazia ao seu lado, que fora levantada e
deslocada para deixar espaço para ela? Homem ou mulher? Tão delgada, não mais alta do que
ela, e ela não era alta, e morta há muito tempo já, pois o tecido dourado deixava perceber a
forma frágil dos ossos que cobria. Enterrado com grandes honras, como um príncipe ou um
cardeal, mas com objetos humildes e estranhos a seus pés, um macete de pedreiro, um cinzel,
outro cinzel fino, as ferramentas vulgares da sua arte.
E atravessado sobre o brilho destes dois, inesperado e terrível como um anjo caído,
uma forma alongada e escura mergulhara de cabeça entre eles: tinha a testa apoiada na curva
de um braço dourado, as mangas largas estendidas como asas sobre os defuntos ilustres e os
braços compridos os abraçavam, unindo os três vultos. Nos dedos finos, que mesmo na morte
os agarravam com paixão intensa, os anéis pendiam frouxo entre os nós dos dedos inchados.
Fraco demais para voltar a sair do túmulo depois de terminar a sua obra, caíra ali e ali
morrera. As mãos ainda agonizavam sobre os dois corpos que enterrara, mas sobre o coração
despedaçado no sudário dourado, a cabeça repousava tão suavemente como se dormisse.

152
153

O fogo, a geada, o verão e o inverno nunca mais poderiam perturbar aqueles três seres
ou criar animosidade entre eles.
O rapaz permaneceu mudo e parado aos pés da sepultura, de olhos baixos, fitando
aturdido e apavorado a dimensão da sua perda e a magnitude do que ganhara. Ficou quieto
durante tanto tempo que os outros começaram a temer por ele, mas ninguém ousou tocar-lhe.
Sob a capa de pó, suor e lágrimas, a sua palidez extrema só era comparável à extrema calma
que o invadira. Quando levantou o olhar, procurou os olhos graves e cheios de compaixão do
príncipe, que se inclinava para ele de uma distância cortês.
─ Você tem aqui parentes chegados ─ disse Llewelyn com doçura. ─ Mais chegados a
você do que a qualquer outra pessoa.
─ Sim ─ respondeu Harry num sussurro.
Estaria o príncipe falando de um só ou de dois? Ou de todos eles? Sempre conseguira
compreender os meandros dos corações dos filhos, mesmo quando estes se sentiam perdidos.
─ E a você compete dizer o que quer que se faça aqui. Nós faremos aquilo que você
entender ser melhor.
A cabeça de Harry ergueu-se subitamente para analisar o rosto do príncipe com os
olhos verdes angustiados. Abriu a boca para responder e começou a tremer.
─ Com todo o respeito, senhor... há alguém em Castell Coch que tem mais direitos do
que eu. Gostaria que ela visse o que nós vimos ─ disse em voz baixa.
─ É bem lembrado e uma prova de devoção filial ─ disse Llewelyn. ─ Adam, corre até
Castell Coch e pede à dama Gilleis o favor de vir até aqui. Diga-lhe que, pela graça de Deus,
encontramos o corpo de mestre Harry.
Gilleis chegou ainda de dia, pálida e silenciosa, acompanhada por Adam.
Abaixo de Parfois ainda perdurava o caos da batalha, com os cadáveres caídos por
todo o lado, mas o príncipe já se encontrava nos aposentos suntuosos de William Isambard e
este jazia na capela, num cavalete em frente ao altar, lavado e limpo do sangue que Harry
fizera correr, com as moedas dos mortos sobre os olhos. Gilleis passou pela torre destroçada
do posto avançado da guarda sem um olhar e foi abrindo caminho entre os destroços de
arreios e despojos humanos que enchiam a rampa, sem nem mesmo vê-los. Os seus olhos
estavam virados para dentro, para o passado. Na vida ou na morte, nunca recordara o rosto de
Harry tão nitidamente como agora. Como marés contraditórias, os velhos ódios e amores
assaltaram-na de novo, dolorosamente.
No planalto Llewelyn aguardava e o jovem Harry veio segurar-lhe o estribo e ajudá-la
a desmontar. Os olhos verde-mar e o abraço reservado foram como punhaladas no coração de
Gilleis; desde que assumira aquela expressão séria e grave, de homem feito, não havia lugar
para dúvidas, era bem o filho de seu pai, de corpo e alma. Harry beijou-lhe a mão, depois a
face, deu-lhe o braço e conduziu-a para o esqueleto da igreja de Parfois. Adam deixou-se ficar
para trás, para lhes permitir entrarem sozinhos.
Quando chegaram junto ao túmulo, Harry soltou o braço da mãe e ficou ao seu lado.
Gilleis olhou para a cavidade de pedra e susteve a respiração com força, como que a sufocar
um grito; em seguida ficou em silêncio, pálida e imóvel, por longos minutos, com os olhos
fixos nas duas formas brilhantes e nos braços abertos que os cobriam como uma cruz.
Viu a luz das tochas oscilar sobre o sudário dourado, como se os ossos queridos que
escondia tivessem estremecido por um instante, diante da evocação da vida e quisessem
levantar-se para ir ao seu encontro. Viu o braço delgado e escuro envolvendo o corpo do
marido e a mão, a mesma mão que o envolvera no sudário principesco, a segurar--lhe o braço
com os dedos finos num gesto ciumento e terno. Toda a agonia, todo o ódio e todo o amor, as
ofensas e as vinganças tinham acabado por se concentrar docemente naquele pequeno espaço.
Gilleis ergueu por fim o olhar e viu, do outro lado do túmulo aberto, o rosto do filho, pálido
de emoção, a observá-la. Estava muito mais próximo da plenitude da sua herança do que no

153
154

dia anterior e queria alguma coisa dela, mas dominava-se para não deixar transparecer esse
desejo nos olhos, receando que, por amor dele, ela consentisse em algo que não desejava. Oh,
Harry, pensou, diga-me o que devo fazer! Mas ele não o faria. Isto era um assunto que teria de
resolver sozinha.
Contudo, a dor pungente que gritava por trás do seu rosto calmo calou-se
envergonhada quando olhou para o filho. A verdadeira marca de Harry, o único legado que
lhe deixara era a dádiva. Bastava dá-lo de livre vontade e nunca o perderia ou sentiria a sua
falta. E seria ela tão pobre que não pudesse dispensar um canto do túmulo de Harry àqueles
dois, que tanto necessitavam de repouso?
Teria que continuar a haver expulsões, divisões e sepulturas violadas?
─ Tampe-os! ─ disse Gilleis.
Imediatamente viu surgir no rosto do filho um clarão de alegria, nos olhos um impulso
apaixonado de gratidão.
─ Tampe-os e que repousem em paz.
No último momento, quando os homens da retaguarda já batiam com os pés gelados
na neve no alto da rampa e David chamava por ele da ponte com impaciência, Harry tirou o
pé do estribo e voltou à sala de desenho.
Nessa altura metade do chão do pátio exterior estava retalhado por fendas e todos os
dias havia pequenos pedaços insignificantes de pedra que deslizavam suavemente para a
ravina. Era tempo de partir. Um novo pedaço da muralha desabara durante a noite e, quando
chegasse a primavera, Parfois estaria entregue aos corvos.
Era mais que tempo de partir e eles eram os últimos a sair. As senhoras tinham
iniciado o regresso a Aber no quarto dia depois do Natal, com Adam a acompanhá-las e a
caravana com as bagagens e o saque de Parfois arrastava-se sobre a neve atrás delas, por meia
milha. Harry cavalgara com elas até o vau para ajudá-las a atravessar em segurança e, antes da
partida, beijara Aelis diante de todos, para selar os seus direitos. Para dizer a verdade, sentia
agora por ela uma admiração ciumenta; assumira perigosamente a sua feminilidade desde que
passara a usar o cabelo preso sob o toucado e os vestidos da mãe de Harry. As duas estavam
muito ligadas e partilhavam uma certa cumplicidade: costumavam trocar olhares e sorrir por
sua causa quando julgavam que ele não estava a vê-las ou, o que era ainda mais assustador,
quando sabiam muito bem que estava a observá-las. Teria que ter muito cuidado com elas,
pois poderiam aliar-se para lhe controlar a vida.
Dois dias após a partida da princesa e do seu séqüito, os vencidos, desarmados, saíram
de Parfois com as roupas que traziam no corpo, os seus pertences pessoais e uma pequena
provisão de alimentos. Além de todos os apetrechos militares, também os melhores cavalos,
falcões e cães de caça haviam ficado para os vencedores, mas os membros da guarda
sentiram-se felizes por ser permitido que partissem com vida e em liberdade, depois de terem
jurado não voltar a pegar em armas contra Llewelyn. Alguns rumaram para Fleace, levando
cartas corteses do Príncipe de Aberffraw para Humphrey Paunton, pelas quais lhe dava
conhecimento da forma como o seu senhor morrera e fora enterrado, de maneira que, em seu
devido tempo, a notícia chegasse na íntegra aos ouvidos do Rei Henrique. Outros se dirigiram
a Erington, na fronteira do Herefordshire. Os muitos e dispersos domínios de Isambard
pertenciam agora ao filho mais velho, Gilles, que estava na Normandia, se o rei resolvesse
conceder-lhe o título, mas depois do trabalho que Richard Marshall lhe dera, era pouco
provável que Henrique quisesse atribuir uma posição tão poderosa, na Inglaterra, a outro
potentado normando, vassalo do rei da França. Deixe-os disputar esses domínios como
quiserem; Ralph Isambard continuaria a descansar tranquilamente.
Assim terminava uma grande linhagem e fora ele, Harry Talvace, quem cortara o
último ramo dessa árvore formidável. Após a partida dos vencidos, as pompas mundanas
pareciam vãs e efêmeras naquele Parfois despovoado.

154
155

Depois dos vencidos, os vencedores. Partiram na véspera de Ano Novo, o príncipe e


todos os seus capitães, dirigindo-se com toda a pressa para Breídden, em pé de guerra, e
deixando David encarregado de se juntar a eles com a retaguarda. Toda a fronteira estava à
mercê de Llewelyn, pois no dia seguinte ao Natal, o conde marechal derrotara
estrondosamente John de Monmouth numa batalha campal perto da cidade à qual este fora
buscar o nome e não havia agora soldados do rei entre os inimigos deste e os seus intranqüilos
súditos das fronteiras.
─ Deixemos o Herefordshire para o rapaz ─ disse Llewelyn quando recebeu os
despachos. ─ Bem o mereceu. Iremos para o norte e o leste e conquistaremos o coração do
Shropshire. Dezenove anos depois de Benedetta ter vindo ter comigo a galope, às portas de
Shrewsbury, Harry, e ter entregado você para mim, para mal dos meus pecados está me dando
vontade de ir bater-lhes à porta de novo, mesmo que isso venha a me custar uma penitência
igual.
Com estas palavras Llewelyn partira, despreocupada mas decididamente, para a sua
pilhagem. Deus ajudasse os aldeãos do sopé de Breidden e os burgueses preocupados de
Shrewsbury, pois a guerra implicava morte. A guerra matara Parfois. Mesmo que alguém
aparecesse e tentasse reconstruir a fortaleza arrasada, nunca poderia ter êxito. A rocha estava
estilhaçada e o coração silenciado. O homem que havia sido o espírito de Parfois morrera;
morrera e fora enterrado sob o altar da sua igreja, com a sua amada e o amor da sua amada,
com os seus feitos tenebrosos e os seus atos notáveis. Deus iria acertar essas contas, mais
ninguém tinha esse direito. O seu maior inimigo mandara rezar missas pela sua alma, o seu
prisioneiro mais implacável rezara ardentemente pela paz da sua alma.
As últimas companhias já estavam partindo, os homens dos clãs sob as ordens de
David, impacientes e ferozes, queriam ir atrás das suas presas e o próprio David não lhes
ficava atrás; tinha uma fronteira para consolidar e se agora forçasse esse reconhecimento pelo
terror, mais fácil seria depois manter o controle. Os derradeiros ruídos de cascos tinham
deixado de ecoar na ponte e foram abafados pela neve do planalto. Só Harry Talvace ficara
para trás, o último a deixar o terreno inseguro do seu cativeiro de quatro anos.
O silêncio rodeou-o como uma capa espessa, isolando-o do mundo. A luz crua da
manhã de janeiro, trespassada por raios de sol avermelhados que emergiam oblíquos por entre
as nuvens, bordava de vermelho os parapeitos da muralha. A porta da torre da guarda e os
portais da armaria, dos estábulos e das cavalariças estavam abertos para os interiores vazios.
Não se via ninguém em movimento, não se ouvia uma voz, onde antes se ouviam tantas, nem
sequer um cão ficara para trás para recordar o mundo dos vivos. Restava apenas ele, Harry
Talvace, a atravessar com cuidado o chão do pátio, retendo a respiração com receio daquele
silêncio, empurrando a porta da sala de desenho que se abriu para um chão desigual e
rachado, permanecendo na soleira do compartimento abandonado olhando em volta, para as
compridas mesas de desenho onde mestre Harry havia elaborado os seus projetos ambiciosos,
para a bancada onde ele depositara os cinzéis e esboçara na pedra as suas idéias. Tinham
desfigurado a sua obra pelo fogo, mas nunca conseguiriam destruí-la.
Harry ficou parado olhando, sentindo a sala cheia de ecos, rápidos e pungentes, que
lhe feriam o coração: “Não posso me comparar a ele!” “Não confia em você mesmo o
suficiente para ser nada menos do que o melhor? Quantos podem se comparar com ele?” E,
naquele momento em especial, ecos tão significativos, tão comoventes: “Os desígnios de
Deus são sempre justos. Cada um tem os filhos que merece.” Por que tinha sido tantas vezes
incapaz de ouvir ou entender as coisas que lhe diziam?
As lembranças desenharam, contra a janela, os contornos dos ombros eretos e magros,
a cabeça altiva, o sorriso sombrio e dissimulado, e reavivaram a voz na sua antiga suavidade
atormentadora. Ali, pela primeira vez, havia recebido as ferramentas de seu pai e os
fragmentos de pedra que ele deixara para trás, quando da sua morte inesperada. Ali, havia

155
156

sido ensinado a trabalhar duramente, sem se sentir compelido pela provocação e até essa lição
aprendera por fim. Se o trabalho que fizera não podia comparar-se, nunca poderia comparar-
se, à obra do pai, não teria suficiente confiança em si próprio para ser nada menos do que o
melhor? Veria que sim, que sabia trabalhar com humildade e fidelidade onde esta era
merecida.
Olhando agora para trás com espanto, para aqueles quatro anos, não sentia que tivesse
sido infeliz, o que era bastante estranho depois de tanto sofrimento. Mais estranho ainda era
olhar calmamente para a sua ansiedade, os seus planos, a sua luta pela liberdade e ser incapaz
de sentir que tinha sido um prisioneiro.
Atravessou a sala em silêncio até à bancada a qual lhe fora permitido chamar sua e ali
num canto encostado à parede, encontrou um esboço de pedra que mestre Harry havia feito
para a última cabeça que colocara na galeria da igreja de Parfois. Harry julgara ser um último
auto-retrato, mas Isambard é que tinha razão: “Isto não é a assinatura na conclusão da obra,
é uma profecia no seu início. Você não se reconhece?”
Não se reconhecera, mas acreditara nele. Mesmo então, mesmo naquele tempo, por
sua vontade ou contra a vontade, confiara em Isambard: sabia que ele estava dizendo a
verdade. Ainda agora Harry não se reconhecia; aquela cabeça intimidava-o, desnorteava-o e
excitava-o com a sua promessa e a sua clareza, mas continuava a acreditar. Ainda tinha um
longo caminho a percorrer, mas já colocara os pés no caminho que o levaria àquela identidade
e, na hora certa, chegaria lá.
Estranhamente deslumbrante, pensara então, ao acariciar os esboços daquela cabeça
tão jovem estranhamente deslumbrante, é uma grande responsabilidade. Mais uma vez
rodeou-a com as mãos e a mesma mescla apaixonada de orgulho e humildade voltou a
inundar-lhe o coração.
Pegou um grande pedaço de pano com que mestre Edmund costumava embrulhar os
seus pergaminhos e embrulhou apressadamente a cabeça, seguro de que David já estaria
ficando impaciente e iria mandar alguém buscá-lo. O embrulho era pequeno mas pesado; iam
achá-lo louco por sobrecarregar Barbarossa com mais esse peso quando tinham pela frente
uma dura cavalgada. Pouco importava, não a deixaria ali.
Lançou um último olhar apressado àquela sala, sabendo que poderia não voltar a vê-la,
e saiu com o seu precioso troféu debaixo do braço, fechando a porta atrás de si. Lá estava
Owen desmontando bem ao lado de Barbarossa e atirando as rédeas sobre o pescoço do
cavalo.
─ Que diabo, Harry, o que deu em você para ainda andar vagueando por aqui? O que
queria? O David partiu sem nós.
─ Vamos alcançá-lo ─ disse Harry, guardando rapidamente o embrulho malfeito na
sacola da sela, o que fez Barbarossa agitar-se indignado ao sentir aquele volume pesado e
disforme. ─ Lembrei-me de uma coisa que prefiro não deixar aqui.
─ Então se mexa, homem, e vamos atrás deles. É melhor sairmos daqui ─ disse Owen,
varrendo com os olhos as rochas inseguras que se inclinavam para a ravina. ─ Quando vier o
degelo metade desta falésia vai desmoronar e eu prefiro estar longe de Parfois quando isso
acontecer.
Harry montou e dirigiu o cavalo para as traves estreitas da ponte, já livre da
necessidade de olhar para trás. O passado estava resolvido, o futuro oscilava dentro da sacola
da sela. Assim que passaram a ponte e se lançaram a trote pelo planalto em direção às árvores,
Owen colocou-se ao lado de Harry e inclinou-se curioso para tocar no embrulho.
─ O que você leva aí, Harry?
Bateu com a mão na sacola e admirou-se com o peso, deu-lhe um murro e praguejou,
por ter machucado o punho.
─ Céus, que peso é esse que você leva no pobre animal? Uma pedra? O que vai fazer

156
157

com esse trambolho? Há pedra em todo o lado, tem mesmo que carregar essa com você por
toda a fronteira?
─ É um esboço do meu pai ─ disse Harry apaziguador, contando apenas meia verdade.
─ Pensei que talvez eu seja capaz de copiá-lo, um destes dias.

EPÍLOGO
Parfois, julho de 1233

Seis meses mais tarde, Harry percorreria uma vez mais o mesmo caminho.
Voltavam sobre os próprios passos no regresso da grande reunião de Myddle onde fora
assinada a paz triunfal que coroava os feitos de Llewelyn e sancionava a obra de toda a sua
vida. A guerra de Richard Marshall fora perdida e ganha e a sua vida breve, admirável e
tempestuosa, estranha para um homem que apenas desejara ordem e justiça, terminara na hora
da sua vitória. Um prelado mais eminente e melhor do que Winchester afastara Winchester do
poder; uma ordem mais sólida do que aquela que mesmo o eficiente De Rilvaux era capaz de
impor tornara dispensáveis os serviços distintos de De Rilvaux. De um modo geral a
Inglaterra afirmara a sua vontade severa e sensata e Gales vira confirmadas todas as suas
conquistas, gozava de paz no interior das suas fronteiras e de respeito fora delas. Não era de
espantar que David regressasse a Aber juntamente com o seu séqüito, na melhor das
disposições. Passaram por Knockin. Entre Parfois e Shrewsbury haviam incendiado, matado e
pilhado, mas em parte alguma com maior ferocidade do que ali, à volta do fosso daquele
castelo mártir.
Isso acontecera em janeiro; agora, em julho, metade dos campos estava por cultivar,
devido à falta de homens para fazer esse trabalho e as mulheres labutavam penosamente até
depois do anoitecer para arranjar alguma comida para os filhos. Ao cruzar o olhar com os das
viúvas de Knockin, Harry não se sentia orgulhoso. Talvez houvesse aprendido da maneira
mais dura, mas a lição ficara bem gravada; agora, sabia o que queria fazer da sua vida.
Um capítulo inteiro de uma crônica fora escrito nas fronteiras, desde a campanha de
janeiro. Esta correra tão bem, tinham se estabelecido tão solidamente como senhores das
fronteiras, que o Conde Richard sentira que a sua posição no País de Gales estava segura e
partira para a Irlanda, a fim de recuperar os castelos que os homens do rei lhe haviam roubado
em Leinster. Entregara o comando de Striguil a Hubert De Burgh, Basset e Siward e fizera-se
ao mar rumo a Leinster, em começos de fevereiro. Nesse mesmo mês, Edmund de Abingdon,
tesoureiro de Salisbúria, vira confirmada pelo rei a sua eleição para o arcebispado de
Cantuária e assistira ao Grande Conselho.
Que pensaria Henrique do seu novo arcebispo? Confirmara-o no cargo de boa vontade
ou de má vontade, relutantemente, por falta de coragem para resistir? Porque antes mesmo de
ser nomeado, Edmund de Abingdon iniciara as suas funções colocando-se à cabeça dos bispos
na exigência de demissão dos odiados ministros de Henrique e do retorno ao estado de direito
e à Carta. Henrique exaltara-se, protestara e tentara ganhar tempo; mas eles haviam insistido e
enviado imediatamente para a fronteira os bispos de Lichfield e Rochester com a missão de

157
158

apresentar a Llewelyn um plano de conciliação e paz. Não tinham encontrado dificuldades;


Llewelyn estava disposto a ouvi-los uma vez que tudo indicava que o ponto essencial para ele
iria ser concedido. Após as necessárias idas e vindas relacionadas com os termos, no final de
março fora acertada uma trégua e marcada uma reunião para o segundo dia de maio, na qual
em que seria estabelecido um tratado permanente.
Com tamanho sucesso tático, fortalecido por esta evidente tolerância e boa vontade
por parte de um príncipe que poderia muito bem ter explorado a vantagem que detinha e
imposto condições mais extremas, o arcebispo Edmund chegara ao conselho de abril com
todos os bispos da província da Cantuária a apoiá-lo, com exceção do lobo solitário
Winchester, que eles tinham intenção de demitir. Henrique já não podia proteger os seus
favoritos sem que isso envolvesse riscos para ele mesmo e, por outro lado, também nunca se
comprometera ao ponto de não poder voltar atrás. Corria o rumor de que, após o conselho de
fevereiro, levara consigo para um retiro monástico Winchester, De Rilvaux e Segrave, o que,
a avaliar pela forma como tratara De Burgh, constituía um indício seguro de que estes nada
podiam esperar de bom, logo que os seus próprios interesses o aconselhassem a abandoná-los.
Fosse como fosse, quando os bispos o pressionaram, Henrique anunciara a demissão dos seus
ministros, prometera reformas e o retorno à Carta; tudo quanto lhe fora exigido. Ainda sem
saber naquela hora, pois ninguém na Inglaterra sabia, que o seu inimigo já se encontrava no
leito de morte.
Porque o Conde Richard se deixara persuadir a ter um encontro com os homens do rei
nos prados de Kildare, no primeiro dia de abril, e ninguém sabia como nem pela mão de
quem, fora atacado à espada e ferido mortalmente. Traição, diziam alguns, uma traição que
envolvia as mais altas figuras do reino. Outros atribuíam o ataque a uma exaltação de ânimos,
quando a discussão se tornara mais acesa, porque Richard queria recuperar os seus castelos e
havia quem não quisesse ser privado daquilo de que se apoderara. Fosse como fosse, Richard
Marshall fora transportado de Curragh para uma cama da qual não mais se levantou e duas
semanas depois estava morto. Aquele homem de caráter nobre que nunca quisera entrar em
guerra contra o seu rei morria depois de ter ao alcance da mão a vitória, as reformas e os seus
domínios.
A notícia caiu como um raio na Inglaterra, abalando profundamente a todos, incluindo
o próprio Rei Henrique. Teria ele encorajado secretamente o assassinato do conde? Ou teriam
De Roches e os seus companheiros mais próximos agido por conta própria, lançando sobre o
rei a suspeita injusta de cumplicidade? Fosse qual fosse a verdade, Henrique procurou
defender-se com a maior rapidez, voltando-se como um tigre contra os seus ministros.
Até então parecera possível que estes fossem autorizados a retirar-se honrosamente;
tinham sido obrigados, durante algum tempo, a experimentar o destino que haviam reservado
a De Burgh, sendo perseguidos por toda a parte, denunciados e proscritos, até os bispos que
haviam sido responsáveis pela sua queda se interporem entre eles e o monarca, que estava
num impulso de retidão, e lhes estenderem a mão para ajudá-los a se reerguer. Foram criadas
comissões para ouvir as queixas apresentadas contra eles, os investigadores esmiuçaram os
mais ínfimos pormenores da sua conduta enquanto detinham os cargos e verificaram todo o
dinheiro que tinha lhes passado pelas mãos. De Burgh estava vingado.
No entanto o conde marechal estava morto. Quando soube da notícia, Llewelyn
decidiu não participar na reunião de maio. O homem que deveria ser o negociador por parte
da confederação inglesa morrera; até todos os seus partidários terem obtido termos de paz
satisfatórios, Llewelyn não aceitaria nenhum. E a proteção que estendera sobre eles com este
ato, revelara-se efetiva ao ponto de apressar uma conciliação geral. Em maio Gilbert, o novo
conde marechal, conseguira salvo-condutos para ele próprio e para os irmãos, para De Burgh,
Basset e Siward e para todos os outros confederados, a fim de que todos pudessem deslocar-se
a Gloucester, participar no conselho sob a proteção do arcebispo e pedir a graça do rei.

158
159

Invalidada a sua proscrição, obtidos o perdão e a devolução das suas terras e tendo eles
próprios sido reconduzidos aos favores reais, alguns deles até nos antigos cargos, tinham bons
motivos para estarem gratos a um aliado tão temível e leal como o Príncipe de Aberffraw.
─ Se ele pudesse ver como tudo acabou, riria até às lágrimas ─ disse Harry de repente,
concluindo em voz alta um fluxo de pensamentos que o ocupara em silêncio.
─ Ele? ─ perguntou David distraído, lançando um olhar inquiridor ao jovem irmão
adotivo. Contudo, ao concluir rapidamente quem devia ser o “ele”, prosseguiu: ─ Você está
falando do fato de De Burgh ter sido readmitido no conselho e de Winchester e De Rivaulx
terem sido surpreendidos pela mesma medida com que o haviam atacado? E do príncipe meu
pai ter voado em socorro do seu mais antigo inimigo sem deixar de cumprir o juramento de
conquistar e destruir Parfois... sim, suponho que qualquer homem encontraria bons motivos
para rir de tudo isto, se tivesse coragem para tanto. Sempre ouvi dizer que ele era um homem
de De Burgh.
─ Era um homem de coragem ─ respondeu Harry, veementemente. ─ E não era
homem de ninguém, era senhor de si mesmo.
─ O mais engraçado ─ comentou Owen ─ é que, se vier a reclamar os seus domínios
na Inglaterra, o tal Isambard francês de quem você fala terá de passar sem o castelo de
Parfois. Segundo os termos do acordo, não poderá reconstruí-lo.
Era verdade: Parfois recebera deles um golpe mortal. O acordo que Llewelyn assinara
em Myddle na presença do arcebispo baseava-se na situação existente na data em que
começara a guerra do Conde Richard. Cada uma das partes conservava o que se encontrava
em sua posse nessa altura, ainda que recentemente conquistado; Builth e Cardigan
continuavam a ser propriedade dos Príncipes de Gwynedd, o que representava um ganho
considerável. Mas não podiam ser construídos novos castelos, nem reconstruídos os que se
encontrassem em ruínas. Adeus, Parfois! E talvez fosse apropriado que Parfois não
sobrevivesse a Ralf Isambard.
A trégua fora assinada por dois anos apenas; a partir daí poderia ser renovada por
consentimento mútuo, ano após ano. Mas quem ousaria agora tentar arrancar Builth e
Cardigan das garras do leão? Llewelyn mostrara para a Inglaterra, de uma vez por todas,
quem mandava ao longo das fronteiras enquanto ele fosse vivo e fizera tudo quanto estava ao
seu alcance para garantir que, depois da sua morte, David fosse encarado com o mesmo temor
e o mesmo respeito. À sombra do castelo de Myddle, entre as tendas coloridas espalhadas
pelos prados de verão, haviam assistido à apoteose de Gwynedd e, sem dúvida alguma, ao
verdadeiro nascimento de um principado de Gales. Faltava apenas que este nascesse em
segurança e essa era uma tarefa dos estadistas, não dos soldados.
─ Senhor...
Harry limpou a garganta, preparando-se para fazer a declaração que tinha em mente
desde a partida de Myddle. Corou e hesitou, diante do tom formal daquele preâmbulo, quando
se encontravam os três sozinhos, longe dos ouvidos dos outros.
─ Senhor! ─ troçou David, alegre e gentilmente. Alegravam-no o verão, o bom tempo,
o triunfo alcançado, até mesmo o vestuário de cerimônia, mas sobretudo o prazer de cavalgar
sem o incômodo da armadura metálica. Não estava com disposição para atitudes graves, mas
assumia de boa vontade uma atitude gentil.
─ Agora que estamos em paz ─ disse Harry sem abandonar o tom solene ─ e que, se
Deus quiser, continuaremos em paz nos próximos anos, desejava falar com o senhor sobre o
meu futuro. A sua herança está consolidada. Se alguma vez necessitar me chamar, sabe bem
que eu acorrerei com a maior boa vontade. Mas enquanto o senhor não necessitar de mim,
peço-lhe que me deixe abandonar a sua companhia e dedicar-me ao meu ofício.
Não era capaz de exprimir claramente aquilo que mais o perturbava, o mal-estar que
sentia diante do preço da vitória: as aldeias incendiadas, os cadáveres espalhados pelo chão, o

159
160

gado abatido, os campos que deveriam estar dourados e estavam por cultivar, a terra
improdutiva que deveria estar dando frutos. Inglês por nascimento e criado como galês, o seu
coração e o seu espírito combatiam dos dois lados. Como poderia derramar sangue galês ou
sangue inglês sem se sentir sangrar? Mas não se tratava apenas disso. A negação da vida, a
frustração da esterilidade, tudo isso era contrário aos seus instintos mais profundos. Harry não
tinha vocação para massacrar; era contra a sua natureza.
─ O seu ofício? ─ perguntou David, a rir e atônito. ─ Tantas vezes vi o Adam tentar
obrigá-lo a pegar nas ferramentas, quando era pequeno, em Aber, e você fugir mal ele voltava
às costas, para participar de uma luta. E Você até levava bastante jeito! Que foi que deu em
você, assim de repente?
─ Não foi de repente. Foi há muito tempo e, desde então, trabalhei com o mestre
canteiro de Isambard, em Parfois. Também vi a obra do meu pai e isso bastou para me dar
vontade de seguir os passos dele. Não podia pedir-lhe para partir enquanto estivesse em
guerra, mas agora sei o que quero. A carreira das armas é gloriosa, mas não é uma carreira
que me satisfaça ─ disse Harry com firmeza. ─ Eu sou canteiro como o meu pai e é isso que
quero ser. Se o senhor me permitir, evidentemente.
─ Como com certeza você já sabe, terá sempre a minha permissão para fazer o que
quer, Hal. E o Adam vai ficar contente por ver você amansado. Mas é uma pena ─
acrescentou David desconsolado. ─ Você se portou muito bem em Parfois. Devia ter ouvido
os elogios que o príncipe fez, quando você não estava por perto. Já lhe disse o que tenciona
fazer?
─ Já sim, senhor, antes de partirmos. Disse-me para falar como o senhor. Também me
disse que devia fazer tudo o que pudesse para satisfazer o meu coração e que, desde que me
empenhasse em dar o melhor de mim, poderia contar com a sua bênção. Mas o senhor é o
meu príncipe e meu irmão e eu desejaria obter a sua.
─ Como eu poderia recusá-la? ─ replicou David calorosamente. ─ Faz o que o seu
coração ditar e não se preocupe. Ser um bom espadachim é sempre útil, mesmo que o
espadachim seja também canteiro.
─ Ouça então mais um pedido meu ─ disse Harry empalidecendo um pouco, tanta era
a intensidade do seu desejo. ─ Posso continuar para o sul na encruzilhada e ir a Parfois? Não
vou demorar-me, prometo, só quero voltar a ver Parfois mais uma vez. Antes que o senhor
chegue a Oswestry, estarei de novo consigo.
Owen abriu a boca para se oferecer para acompanhá-lo, mas voltou a fechá-la sem ter
formulado a oferta. Sabia o quando Harry desejava ficar sozinho. Assim ele separaram-se na
encruzilhada de Knockin: Harry seguiu para o sul em direção a Breidden; os irmãos seguiram
para o norte em direção de Oswestry, acompanhados pelo seu séqüito. O canteiro partiu
sozinho, como queria. Há muito que Adam dissera ter chegado a hora dele assumir a sua
condição.
Aqueles eram os campos que os galeses haviam arrasado, a caminho de Shrewsbury e,
para onde quer que olhasse, a destruição lá estava a desafiá-lo. Nas aldeias os sobreviventes
haviam regressado às ruínas das suas casas, tinham até erguido cabanas de ramos para se
abrigarem durante o verão ameno e estavam trabalhando duramente na construção de abrigos
mais sólidos para o inverno. Tanta destruição, tanto sofrimento, tanto desperdício; tudo
afronta à paixão de afirmação que sentia dentro de si, ao seu anseio pela vida, pela alegria,
pela criação e pela realização. Quisera Deus que não houvesse mais campanhas como aquela!
Que aqueles homens e mulheres conservassem aquelas casas e reclamassem aqueles campos
abandonados! Que tivessem outros filhos e fizessem a terra voltar a dar frutos! A tenacidade
com que haviam reatado os fios da vida era em si mesma um reconforto. Os seres humanos
não se deixam abater assim tão facilmente.
Harry atravessou o rio em Buttington; um rio de verão, agora verde devido aos limos,

160
161

branco devido às plantas floridas que flutuavam na superfície, sorridente e sonolento. Depois,
seguiu pela margem, pelo caminho do moinho, passou pelo casebre arruinado e as
recordações revolveram a sua memória, numa momentânea contorção de dor. Cavalgou junto
ao sopé do rochedo de Parfois e, de repente, o caminho desapareceu. Pedaços de rocha e de
alvenaria bloqueavam-lhe a passagem. Então seguiu pelo bosque junto à água, contornando
laboriosamente o obstáculo; a disposição do terreno impedia-lhe de ver mais adiante. Só ao
alcançar as colinas verdejantes abaixo do carreiro que conduzia à rampa conseguiu avistar o
ondeado das ameias da muralha e da torre recortando-se contra o céu e a luz que se filtrava
pela ravina que separava o castelo da igreja.
O seu coração revoltou-se e gritou dividido entre o desgosto e a exaltação, tão
repentina e violenta fora a visão do caráter efêmero do poder e da glória deste mundo. O
dominador das fronteiras tinha caído. Nenhuma lança de luz atravessava as sombras da
ravina; o degelo súbito e a neve pulverizada de fevereiro haviam feito desabar a rocha
profanada por baixo da muralha até o solo fragmentado não conseguir mais sustentar o
enorme peso que suportava e, jarda a jarda, pedra a pedra, a muralha cedera, deslizara e
desmoronara-se, tombando pela ravina, enchendo o vão por baixo da ponte e espalhando
gradualmente pedaços de rocha e entulho pelas bordas da falésia. A ponte deslizara como o
resto e detivera-se, inofensiva e inútil, alguns pés abaixo do seu nível normal. Agora qualquer
pessoa podia subir a rampa e entrar em Parfois sem necessidade de pontes. Entrar no que
restava de Parfois!
Contudo, a destruição podia não ficar só nisso ali porque, entre o que restava das
construções e os alicerces sobrecarregados por baixo destas, a rocha ainda não estabilizara. O
equilíbrio e a tensão que sustentavam o conjunto haviam sido perturbados e a desintegração
não podia ser contida. Os anos e as intempéries iriam escavar pedra após pedra, as sementes
se instalariam entre os degraus inseguros e as rachaduras do chão; delas nasceriam arbustos
que explodiriam as paredes. Jovens carvalhos cresceriam e lançariam raízes nos vastos
aposentos de Isambard, os corvos fariam ninho no esqueleto denteado da Torre do Rei. Dentro
de cinqüenta anos, Parfois não passaria de um nome ligado a um local desolado, a um lugar
plano onde, antes, existira um rochedo imponente e uma grande Casa.
A torre da guarda caíra e, ao morrer, lançara a sua enorme cabeça sobre o barranco e
enterrara profundamente a testa na superfície coberta de erva do planalto. A sala de desenho
ruíra juntamente com todas as construções pegadas ao lado sul da muralha. Os choques
sucessivos tinham, inclusive, desmoronado as beiradas do planalto e algumas árvores
arrancadas jaziam entre o entulho lá embaixo. Do local onde se encontrava, a densa folhagem
de verão das árvores que ainda restavam impedia Harry de ver a torre da igreja. Assustado,
receoso, com o silêncio e a desolação a gelarem-lhe o coração, fez Barbarossa dar a volta e
começou a subir o carreiro.
Na curva apertada onde começava a rampa, Harry reparou, e por alguns instantes não
conseguiu persuadir o seu cérebro atônito daquilo que acabara de ver, nos sulcos profundos
que rodas de carroças haviam aberto na erva. Por que andariam por ali carroças, quando já
não havia homens esfomeados para alimentar e abastecer? Alguém que viera buscar madeira?
Não, não havia sinais de que tivesse sido levada madeira; em geral, viam-se lascas e serragem
no lugar onde a madeira estivera. Lenha para a lareira? Em pleno verão? Não, ninguém seria
tão esperto e previdente naquelas aldeias enlutadas, onde todos os sobreviventes em
condições de trabalhar eram forçados a trabalhar incansavelmente para fazer face às
necessidades do dia-a-dia. No entanto as marcas das rodas sobre a erva continuavam pelo
caminho acima. Não eram recentes. Em alguns pontos haviam esmagado a erva e sulcado a
terra até à rocha. Carroças que transportavam cargas pesadas. Harry podia agora deduzir o que
eram essas cargas. Não haviam sido apenas o vento, as intempéries, a neve e o degelo a
contribuir para o desabamento de Parfois.

161
162

A torre solitária do posto avançado da guarda, derrubada durante o cerco, jazia entre
escombros de argamassa sobre a erva alta que havia crescido dos lados do caminho. As raras
pilhas dispersas de pedras eram muito poucas para serem os restos de uma fortificação
imponente como aquela. Os contornos da torre nova estavam cobertos por espinheiros e tojos.
As pedras talhadas das barricadas, preparadas para a nova construção, haviam desaparecido
todas.
Harry chegou ao topo da rampa onde o arvoredo era menos denso e se deteve,
suspendendo a respiração para não soltar um grito. Ao cair, a torre da guarda projetara para
longe o seu topo pesado. A esguia torre da igreja recebera o impacto na base e tombara para o
oeste, sobre a abóbada da nave central, esmagando-a. A haste dourada, o caule da árvore
sagrada, estava quebrada. Todo aquele esplendor delicado, aquela construção de beleza sutil,
estriada de tensões vibrantes de luz e sombra, recuando, andar a andar, em proporções
encantadoras que arrastavam com ele os olhos e o coração, tudo se perdera, tudo ficara
desfigurado para sempre, sem possibilidade de recuperação. A grande abóbada caíra com a
torre, e o vitral oeste com os seus ornatos de cordas de harpa onde a luz tocara tantas
melodias, erguia-se solitário sobre um caos de pedras quebradas.
Harry desmontou com uma pressa febril como se, por um momento, as suas mãos
tivessem sonhado que a recuperação era possível. Escalou os belos arcos imóveis da nave
central, tocando-os e acariciando-os, à beira das lágrimas, mas a consternação que lhe
dilacerava o coração era como um poço escuro, fundo demais e pavoroso. Lançou-se de
joelhos junto ao túmulo de mestre Harry, por cima do qual a abóbada do presbitério ainda
permanecia intacta e as nove imagens de Owen quando criança, continuavam a inclinar as
suas cabeças seráficas sobre os saltérios e instrumentos, cantando e tocando para glória de
Deus.
Mas para que? Para que, se aquilo era tudo o que restava? A prece que iniciara
morreu-lhe na garganta, quase o sufocando. Seria preciso tão pouco tempo, afinal, para que
castelos e igrejas tombassem em ruínas, depois que os homens os tivessem abandonado?
Quantas obras-primas do seu pai já não teriam sido levadas pelas carroças? Se tivesse aberto
os olhos, teria visto sinais evidentes do que acontecera. Ao roubarem ininterruptamente as
pedras do castelo e da igreja, os homens estavam contribuindo para a ruína de ambos. Todas
as aldeias num raio de dez milhas deviam estar participando naquele desmantelamento
discreto. Tudo quanto os habitantes dessas aldeias possuíam tinha sido perdido durante a
campanha do último inverno, queimado, arrasado, chacinado. Ali ao alcance da mão e pronta
para ser carregada existia uma grande reserva de pedra já talhada, com a qual podiam
construir novas casas, novos cercados, novos pátios, novos estábulos, novos celeiros, tudo o
que precisavam. Depois de terem usado o que caíra por terra, derrubariam o resto. Sem
nenhum Isambard em Parfois, quem poderia impedi-los? A demolição iria demorar algum
tempo, mas dentro de dez ou vinte anos tudo estaria arrasado. Tudo dilapidado, tudo perdido,
toda a obra do seu pai apagada da memória como se nunca houvesse existido. Não seria então
a criação mais duradoura do que a destruição? Seria este o destino não apenas dos
destruidores, mas também dos criadores? Para que então o esforço, para que a paixão?
Com uma expressão rígida e dura, sombria como o inverno sob o sol suave e
luminoso, Harry aproximou-se de Barbarossa. Montou, voltou às costas à igreja de Parfois e
cavalgou rampa abaixo sem olhar para trás. O fato de que os homens a destruíram altera o
valor de uma obra? Será esta menos válida, se não for reconhecida ou se for pervertida? Não
restaria nada dela? Nem um eco no fim de uma música tão bela?
Não sentia nenhum desejo de seguir pelo mesmo caminho e voltar a ver aquela
desolação, lá no alto, recortada contra o céu. Assim, seguiu em direção a Leighton para
atravessar o rio no vau de Pool e apanhar a estrada do norte, em direção a Oswestry, ao
encontro dos irmãos.

162
163

Agora que os seus olhos estavam preparados para vê-los, detectou aqui e ali pedaços
roubados da estrutura de Parfois. Ao atravessar a aldeia, viu-os, sólidos e incompatíveis,
inseridos nas paredes de novas casas que estavam sedo construídas. Quando o sol batia nela,
acordando o dourado suave que dormia no cinzento claro e quente, a pedra de mestre Harry,
vinda da pedreira de Bryn, era inconfundível. Descortinou esse brilho aqui e ali, e a ferida no
seu coração reabria-se a cada descoberta. Contudo, ao chegar ao extremo da aldeia, um súbito
sobressalto de surpresa e deslumbramento o fez parar e ficar olhando, sentindo o seu
desespero abalado pela primeira vez.
O ferreiro de Leighton decorara os postes do pátio da sua moradia com dois pequenos
capitéis: os dois pilares toscamente construídos, mas não desproporcionados, eram coroados
por dois grupos gêmeos de folhas radiantes e vivas, que haviam sustentado a abóbada da
capela das missas encomendadas de Isambard. Seria uma profanação assim tão grande? Se
não tivesse visto neles alguma coisa que lhe tocara o coração, o ferreiro teria se dado ao
trabalho de transportá-lo por uma distância tão grande e de colocá-los ali, onde apenas
serviam para seu prazer?
Pensativo, Harry seguiu lentamente o seu caminho, interrogando-se sobre o que lhe ia
na alma e sobre os atos dos aldeãos. Mais adiante, numa pequena fazenda, a parede do
estábulo era encimada pelas pedras lavradas das cornijas da torre e na entrada o muro era
coroado pelo segmento de uma coluna. Desperdício? Profanação? Perda? Aquilo que Parfois
perdera fora encontrado por alguém mais humilde.
Ainda desconfiado e contra a sua vontade, o coração de Harry se reanimou. Ainda
magoado no seu amor, guardava-lhes ressentimento por terem se apoderado de pedaços
isolados daquilo que deveria ser um todo de propriedade de todos os homens e culpava-os
pela desintegração a que se haviam associado, ainda que inconscientemente e pressionados
pela necessidade. As pobres pedras furtadas brilhavam ao sol, douradas como espigas de trigo
caídas. Harry seguiu em direção à margem do rio, ainda a debater-se com as suas dúvidas,
apesar de que a criança dentro de si estava ardendo de desejo de ser consolada.
Os maciços de salgueiros que começavam a ficar vermelhos resplandeciam ao longo
da margem do rio, a jusante do vau. Ali perto havia uma cabana em ruínas onde um cesteiro
praticava o seu ofício; varas brancas já sem casca estavam empilhadas sobre as ervas e, ao
lado destas, pregada ao chão, encontrava-se a armação de uma canoa, metade da qual já
coberta por varas. Pela abertura sem porta da cabana, perpendicular ao rio, Harry divisou
pilhas de varas e cinco ou seis cestos compridos e armadilhas para a pesca de enguias, ainda
por estrear, mas o som que lhe despertara a atenção era estranho numa oficina como aquela.
Era um som diligente, absorto e satisfeito; a batida continuada de metal contra pedra.
Para que precisariam de um martelo numa cabana de cesteiros? Orgulhavam-se de conseguir
prender com juncos tudo o que fosse preciso prender. Por pura curiosidade e porque aquele
martelar diligente lhe despertava memórias muito queridas, Harry desmontou de Barbarossa e
dirigiu-se silenciosamente para a cabana.
Um rapaz magro e de aspecto rude, aparentando onze ou doze anos, debruçava-se
concentradamente sobre alguma coisa que empoleirara num tosco bloco de madeira sob a luz
do vão da janela. A cabeleira farta inclinava-se amorosamente sobre o seu trabalho sem se
importar com a canoa abandonada.
Assim que o pé de Harry fez estalar os juncos, o rapaz soltou um grito de medo e
virou-se com um braço levantado para proteger a cabeça. Uma das suas mãos segurava uma
pedra achatada e pesada e a outra um prego comprido de ferro.
─ Calma, calma! ─ disse Harry apaziguador. ─ Não sou o diabo nem o seu amo e não
quero lhe fazer mal.
Sob a massa de cabelo escuro, um rosto moreno e sujo fitou-o com desconfiança. Esta
criança estava habituada a levar pancada, esperava golpes que podiam vir de qualquer lado,

163
164

mas os seus olhos vivos deixavam transparecer mais do que medo: demonstravam uma
coragem desesperada e firme. Manteve o corpo pequeno entre Harry e o que quer que fosse
que guardava ali, no seu refúgio e continuou empunhando os estranhos objetos que,
claramente, não desejava utilizar como armas.
─ O que você tem aí? ─ perguntou Harry, surpreso e curioso.
─ É meu.
O rapaz estendeu os braços na defensiva, com uma chama a acender-se nos olhos
escuros.
─ Fui eu que a trouxe para cá. Não roubei. Se os outros podem tirá-las, eu também
posso.
Harry pegou-lhe num ombro e afastou-o com delicadeza. Ao sentir a sua mão, o rosto
do rapaz pareceu alongar-se, numa ousadia alegre, e ficou de pé, tranqüilo, já sem tentar
esconder o seu tesouro. Aqueles de quem habitualmente precisava se defender não lidavam
com ele daquela maneira. Não gostara de ser observado e interrompido, mas não tinha nada a
temer e caso se mostrasse despreocupado o intruso partiria mais depressa.
Um bloco da pedra amarelada de mestre Harry - com aqueles braços finos como
conseguira o rapaz trazê-lo até ali? - estava colocado sobre um tronco de madeira. Os outros
tinham se dedicado às pedras talhadas, mas esta criança trouxera uma por talhar. A pequena
pedra e o prego faziam às vezes de macete e de formão. Quem lhe teria ensinado quais as
ferramentas necessárias ou como começar a dar forma a este material pouco maleável?
Aquelas mãos pequenas e sujas haviam aproveitado ao máximo os instrumentos toscos, os
tinham empunhado com convicção e ardor. Sobre a pilha de juncos, onde com certeza os
escondia dos mais velhos e dos inimigos naturais, equilibrava-se um fragmento quebrado de
um dos medalhões da nave lateral sul: um ramo encurvado, o rosto velhaco de um camponês,
o focinho de um cão de caça parado, a apontar a presa.
Havia começado a copiá-la, com crueza e vivacidade; mas depois, ao chegar à
inclinação da face cautelosa do caçador furtivo, a mão ambiciosa do escultor sentira um
desejo próprio e a sua imaginação desabrochara. O homem agachado ainda parecia irromper
dos arbustos, o cão saltava. Toscos e desastrados, mas vivos, saíam dos seus refúgios para
correr atrás da presa e, ainda que desenhados nos traços inseguros de uma criança, havia neles
alegria e habilidade. Com uma pedra e um prego, Deus do céu! E sabendo que,
provavelmente, ninguém da sua família, ninguém à sua volta deixaria de lhe dar um sopapo e
atirar aquela porcaria no rio, se fosse apanhado em flagrante. Mas o rapaz encontrara algo de
que não estava disposto a desistir facilmente. O rosto ardente falava por si, o seu olhar intenso
e a sua mão hábil eram eloqüentes. Descobrira um abismo de fogo dentro de si e não deixaria
que o apagassem.
─ Quem ensinou você a fazer isto? ─ perguntou Harry.
─ Ninguém. Fui tentando. Olhei para o outro e tentei.
─ Você já tinha visto coisas como estas?
─ Como estas, não! Você já esteve lá? Lá existem rostos! Eles parecem vivos como o
da minha mãe! Nunca vi outras assim. Não consegui tirá-las, mas encontrei esta na erva junto
da muralha e a escondi. Você acha que pode ter árvores, animais e pessoas dentro da pedra?
─ Pode existir tudo dentro da pedra ─ disse Harry. ─ Todas as criaturas de Deus.
Quem, melhor do que você pode saber isso? Você fez nascer dela dois seres que nunca tinham
vivido antes.
─ Eu queria era fazer algumas coisas destas ─ disse o rapaz. ─ Ainda vou fazer mais e
melhores ─ acrescentou, e o seu rosto tão jovem tornou-se duro como a pedra.
─ Se você tiver força de vontade suficiente, irá fazê-las. Criaturas tão vivas como a
sua mãe e igrejas como aquela.
E se Deus quiser, pensou Harry, bebendo profundamente de uma fonte de revelação,

164
165

de gratidão e alegria, será bem capaz de fazê-las, tem a chama brilhando dentro dele, um olhar
puro e a mão ousada.
─ Que Deus ajude você em seu trabalho ─ disse ao rapaz e saiu para a luz do dia com
o coração mais leve.
O rapaz ficou vendo Harry montar e afastar-se, de olhos ardentes vagamente
agradecidos, mas sempre com um ar distante e independente. Se tivesse trazido consigo
algumas ferramentas, Harry as daria de boa vontade, mas vestia as suas melhores roupas e não
tinha nada para dar; embora, na verdade, esta alma única e obstinada não quisesse nada dele,
nem sequer um estímulo. Chegaria aonde pretendia e nada o deteria ou o faria desviar do seu
caminho. Era como uma tocha acesa por uma fagulha daquele foco de incêndio agora tão
espalhado, um rebento verde da semente escarlate do sangue, da vida e da paixão de mestre
Harry, essa semente indestrutível que fora semeada por toda a região.
Este era apenas o primeiro fruto da colheita.
Harry apertou com os joelhos os flancos de Barbarossa e lançou-se para frente, pelos
caminhos do vau. No meio da corrente, redes flutuantes de plantas agitavam-se e oscilavam à
sua passagem, as minúsculas flores brancas estremeciam nos seus caules delicados. O sol que
lhe batia no rosto aqueceu-o até o fundo do coração; e no seu íntimo sentiu os mortos
agitarem-se, todos os mortos de cuja semente ele era o fruto vivo.
Este pensamento não o afligiu. Pelo contrário, o seu espírito elevou-se,
acompanhando-o, obstinado e animado. Em Aber, Aelis e as ferramentas do ofício que
escolhera estavam esperando por ele. Era um bom ofício, que fora o de seu pai e valia tanto
como outro qualquer.
Plácida e verdejante, a margem galesa do rio aguardava-o, convidativa. Atrás de si, o
pequeno sino persistente retomara o seu toque altaneiro.

http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

165

Você também pode gostar