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Ventos do Norte
Acácia
Saída de Emergência
Livro Um
O Idílio Do Rei
Capítulo 1
Thaddeus Clegg viu, assim que entrou na sala, que a mulher estava prestes
a desmaiar de exaustão. Encontrava-se no meio do aposento iluminado por
tochas, de frente para a parede mais afastada, com a silhueta delineada pelo
brilho alaranjado do fogo da lareira. Balançava-se de um lado para o outro com
os movimentos desajeitados e desequilibrados de alguém profundamente
fatigado. Tinha a roupa tão suja e amarrotada como a de uma camponesa, mas,
por entre a poeira acumulada e o encardido do manto, Thaddeus vislumbrou o
brilho da sua cota de malha. O solidéu apertado do elmo distinguia-se
perfeitamente com o seu único tufo de crina amarela no cimo.
— Mensageira, — pronunciou Thaddeus — perdoa-me por te ter feito
esperar em pé. Os meus criados prendem-se às formalidades mesmo perante os
factos mais óbvios.
Nos olhos da mulher surgiu um fulgor ao fitá-lo.
— Porque me mantiveram aqui, chanceler? A mensagem que trago é para o
rei Leodan, por ordem do general Leeka Alain, da Guarda do Norte.
Thaddeus virou-se para o criado, que o seguira como uma sombra enquanto
ele entrava na sala, e ordenou-lhe que trouxesse um prato de comida à
mensageira. Quando o criado saiu, Thaddeus indicou à mulher que se sentasse
num dos sofás atrás dele. Demorou um pouco a convencê-la, mas, quando ele se
sentou, a mensageira seguiu-lhe o exemplo. Ele explicou-lhe que ela se
encontrava ali precisamente por a mensagem que trazia ser para o rei. Como
chanceler, ele recebia em primeiro lugar todos os comunicados.
— Certamente saberás isso — disse ele, com um leve tom de reprimenda na
voz.
Com cinquenta e seis anos de idade, Thaddeus perdera já a beleza da
juventude. O sol constante dos verões acacianos esculpira-lhe profundas rugas
na pele, que pareciam multiplicar-se de cada vez que se via num espelho de mão.
Contudo, sentado sob a luz tremeluzente da lareira, de braços cruzados sobre o
colo e sob cetim vermelho escuro da capa de inverno que o envolvia, o chanceler
parecia perfeitamente à vontade no seu posto como confidente do governante do
maior império do Reino Conhecido. Nascera alguns meses depois de Leodan
Akaran, numa família quase tão nobre, mas desde cedo que lhe haviam dito que
Akaran, numa família quase tão nobre, mas desde cedo que lhe haviam dito que
a sua missão seria servir o futuro rei e não aspirar a tais alturas para si próprio.
Era um confidente leal, o primeiro a escutar qualquer segredo, os olhos que viam
o monarca como só aos familiares mais chegados do rei era permitido vê-lo.
Tinham-lhe destinado a missão e o estatuto desde a nascença, como fora o caso
das vinte e duas gerações de chanceleres antes dele.
O criado voltou, trazendo uma bandeja com pratos de ostras fumadas e
anchovas, uvas e dois jarros, um com água e o outro com vinho. Thaddeus
indicou à mulher que se servisse.
— Que não haja discórdia entre nós — disse ele. — Vejo que és um
soldado zeloso, e, pelo aspeto do teu traje, tiveste uma viagem difícil. O Mein
deve ser um tormento gelado nesta altura do ano. Bebe. Retempera forças.
Lembra-te de que te encontras no interior das muralhas de Acácia. E depois diz-
me o que tens a dizer.
— O general Alain envia...
— Sim, disseste-me que o Leeka te enviou. Não foi o governador que te
ordenou para vires?
— Esta mensagem vem do general Alain — respondeu a mensageira. —
Ele envia os seus cumprimentos e afeto mais dedicados, ao rei e aos seus quatro
filhos. Que tenham uma longa vida. Jura a sua lealdade, agora como sempre, e
pede ao rei que ouça as suas palavras com atenção. São a pura verdade, mesmo
que a sua mensagem possa parecer inacreditável.
Thaddeus olhou para o criado. Depois de este sair do aposento, o chanceler
disse:
— O rei ouve através de mim.
— Hanish Mein está a planear uma guerra contra Acácia. Thaddeus sorriu.
— Não é provável. Os Mein não são loucos. São poucos. O Império
Acaciano esmagá-los-ia como formigas debaixo de um pé. Quando é que Leeka
se tornou num...
— Senhor, perdoai-me, mas ainda não acabei o meu relato. — A
mensageira parecia triste por este facto. Por um momento, esfregou os olhos. —
Não é apenas com o Mein que teremos de lutar. Hanish Mein firmou uma
aliança com o povo de além dos Campos Gelados. Vieram pelo teto do mundo e
prosseguiram para sul, até ao Mein.
O sorriso do chanceler esmoreceu.
— Isso não é possível.
— Senhor, juro pelo meu braço direito que vieram até ao sul aos milhares.
— Senhor, juro pelo meu braço direito que vieram até ao sul aos milhares.
Pensamos que fizeram isso mediante um apelo de Hanish Mein.
— Ele saiu do Mundo Conhecido?
— Os vigias viram-nos chegar. São um povo estranho, bárbaro e cruel...
— Os estrangeiros são sempre vistos como bárbaros e cruéis.
— São mais altos do que um homem normal em mais de uma cabeça.
Cavalgam criaturas com muito pelo, com cornos, que esmagam os homens com
as patas. Vêm não só com soldados, mas com mulheres e crianças e os seus
idosos, trazendo carros enormes que parecem cidades em movimento, puxados
por centenas e centenas de animais que nunca antes foram descritos por
ninguém. Diz-se que trazem torres de cerco sobre rodas, e outras armas
estranhas, e conduzem grandes manadas de gado....
— Estás a descrever nómadas errantes. São invenções fantasiosas de um
mentiroso.
— Se são nómadas, não se parecem em nada com o que foi visto no nosso
mundo. Saquearam uma cidade chamada Vedus, no norte distante. Digo que
saquearam, mas, na verdade, simplesmente passaram sobre ela. Nada deixaram
atrás, agarrando em tudo o que fosse de algum valor e levaram-no com eles.
— Como sabes que Hanish Mein tem algo a ver com isto?
A mensageira fitou o chanceler nos olhos. Não devia ter mais de vinte e
cinco anos, mas havia mais do que sofrimento e perseverança no seu rosto.
Thaddeus acreditara muitas vezes que isto era patente em todas as mulheres-
soldado. Elas eram, na maioria, talhadas em aço mais fino do que um homem
comum. Ela sabia do que estava a falar, e ele deveria reconhecê-lo.
Thaddeus levantou-se e indicou à mulher um grande mapa do império que
se encontrava na parede mais afastada.
— Mostra-me essas coisas no mapa. Conta-me tudo o que puderes. Durante
a hora seguinte, os dois continuaram a conversar: um fazia as perguntas, cada
vez com mais gravidade, o outro ia respondendo com toda a convicção.
Thaddeus não podia deixar de imaginar a desolação do lugar de que falavam.
Nenhuma outra região do Mundo Conhecido era tão perturbadora como a
Satrapia do Mein. Era um planalto onde a vida era dura, no norte, um território
de invernos de nove meses, habitado por um povo de raça loura que conseguira
ali sobreviver. O planalto tinha o nome do povo que o habitava, mas os Mein
não eram originários daquela região. Haviam sido outrora um clã do Continente,
oriundo do sopé das Montanhas de Senival, não muito diferentes dos antigos
acacianos. Após uma expulsão anterior — às mãos dos antigos Akaran —
acacianos. Após uma expulsão anterior — às mãos dos antigos Akaran —
tinham-se estabelecido ali e haviam sido forçados a chamar àquelas terras o seu
lar, durante vinte e duas gerações, tal como os Akaran tinham feito de Acácia a
sua base durante o mesmo período de tempo.
Os Mein eram um povo tribal, guerreiro e brigão, tão duro e propenso à
crueldade quanto a paisagem que habitavam, com uma cultura erguida em volta
de um panteão de espíritos vingativos chamados Tunishnevre. Mantinham um
orgulho comum na sua ancestralidade partilhada, que protegiam, vivendo uma
existência isolada. Os casamentos ocorriam só dentro da sua raça e condenavam
o cruzamento com outras raças. Devido à sua pureza racial, qualquer homem do
Mein podia reclamar para si o trono, desde que o ganhasse através de um duelo
de morte chamado Maseret.
Este sistema causava mudanças rápidas no poder, com cada novo chefe
tribal a ter de ganhar a aprovação do povo. Uma vez coroado, o novo chefe
tomava o nome da raça para si, o que indicava que representava todo o povo. Por
conseguinte, o atual líder, Hanish, da linhagem Heberen, tornara-se Hanish
Mein, no dia em que combateu no seu primeiro Maseret e garantiu a coroa do
seu falecido pai. O facto de Hanish se roer de ódio por Acácia não era nada de
novo — certamente não o era para o chanceler. Porém, este soldado contava-lhe
acontecimentos que ultrapassavam a sua imaginação.
Instada por Thaddeus, a mensageira comeu toda a comida no prato. Foi-lhe
trazida mais, desta vez com queijo, do género muito duro que tinha de ser
cortado com uma faca afiada. O chanceler cortou fatias para ambos, e depois
recuou com a faca na mão. Contemplou o seu reflexo na lâmina enquanto a
escutava.
A mensageira tentou vencer a sonolência, mas, à medida que a noite se
transformava em madrugada, cerrou as pálpebras.
— Receio ela estar quase a adormecer, — proferiu por fim — mas
expliquei-lhe tudo. Posso agora ter uma audiência com o rei? Estas coisas são
para ele ouvir.
À menção do rei, Thaddeus teve um pensamento inesperado,
completamente diferente do que teria esperado naquele momento. Recordou-se
de um dia, no verão que passara, quando encontrara Leodan no
labirinto dos jardins do palácio. O rei estava sentado num banco de pedra
num recanto, emoldurado de ambos lados pela antiga pedra coberta de videira
que fora a fundação da primeira e mais modesta morada do rei. O filho mais
novo, Dariel, estava sentado ao seu colo. Juntos estudavam um objeto que o
rapaz tinha na mão. Quando Thaddeus se aproximou, o rei olhou para ele com
rapaz tinha na mão. Quando Thaddeus se aproximou, o rei olhou para ele com
uma expressão maravilhada e plena de alegria e disse:
— Thaddeus, anda ver. Descobrimos um inseto com asas pintalgadas.
Dissera aquilo como se fosse a coisa mais importante do mundo, como se
fosse tão criança quanto o seu filho. Thaddeus gostava mais do rei durante estes
momentos, da expressão tranquila, à luz do dia, com os olhos desanuviados da
brama que o atormentava à noite. Nesses noturnos momentos sombrios, podia
ser muito maçador estar perto dele, mas com os filhos... bem, com os filhos era
um louco que se lembrava da juventude. Um louco sábio capaz ainda de se
maravilhar com o mundo...
— Chanceler?
Thaddeus sobressaltou-se. Apercebeu-se de que tinham permanecido os
dois sentados em silêncio. A mensageira distraíra-se por estar tão cansada, tal
como ele fora apanhado no seu devaneio. Sentiu a ponta afiada da faca do queijo
contra um dedo.
— O rei terá de ouvir tudo isto de imediato. Dizes que o general Alain te
enviou diretamente para aqui? Não falaste sobre este assunto com os
governadores?
A mensageira respondeu num tom vivaz.
— A minha mensagem é para o rei Leodan.
— Tal como deve ser. — Thaddeus mexia num dos lóbulos da orelha. —
Fica aqui sentada um momento. Irei tratar de uma audiência com o rei. Fizeste-
nos um grande serviço.
O chanceler levantou-se. Agarrava ainda a faca, mas começou a afastar-se
como se se tivesse esquecido disso, levando-a na mão com ar ausente. Ao passar
pela cadeira da mensageira, parou atrás dela e voltou-se. Deslizou a faca nos
dedos e agarrou no punho com a mão cerrada e branca. No mesmo momento,
agarrou na fronte da mulher e rasgou-lhe a garganta de um lado ao outro. Não
tivera a certeza de que aquela ferramenta servisse para aquele propósito e usou
mais força do que a que teria sido necessária. Mas o trabalho estava feito. A
mensageira tombou para a frente sem uma palavra de protesto. Permaneceu um
instante atrás dela, com a faca apontada para um lado, e do punho que a agarrava
pingava lentamente um fio púrpura. Num esforço consciente abriu a mão. A
arma caiu no chão, tilintando, e depois parou.
Thaddeus não era o servidor inteiramente leal que parecia, e, pela primeira
vez na sua vida, demonstrava-o com um ato sangrento que não poderia anular. A
dura verdade deste facto espantou-o. Lutou por se manter firme e ordenar os
dura verdade deste facto espantou-o. Lutou por se manter firme e ordenar os
pensamentos, por se focar nos pormenores da ação. Teria de mandar embora os
criados, e depois livrar-se do corpo daquela mulher-soldado e arrumar a
confusão da sala. Levaria o resto da noite a fazê-lo, mas nem sequer teria de sair
da sua habitação. Havia um calabouço por debaixo da sala onde se encontrava
agora. Teria apenas de arrastar o corpo da mulher pela escadaria serpenteante
que lá ia dar; atirá-la lá para dentro; fechar a porta; e abandoná-la aos ratos,
insetos e vermes que lhe limpariam os ossos, imperturbados.
Lidar com as ramificações morais do que acabara de começar não seria
assim tão fácil.
Capítulo 4
A noite ia alta quando Leodan Akaran ouviu alguém entrar nos seus
aposentos privados. Não ergueu o olhar, mas sabia quem era. Os passos do
chanceler tinham um ritmo único, algo que o rei um dia atribuíra a uma certa
rigidez na perna direita. Um dos criados acabara de acender o seu cachimbo de
água e retirara-se. O cheiro acre da droga, a que chamavam bruma, era, naquela
altura, a única coisa que lhe importava. Ao longo do dia andara com um
fantasma a assombrar-lhe os pensamentos, uma criatura ávida que se lhe
assemelhava a um morcego que esvoaçava sinistro em redor do crânio, de garras
afiadas e finas como agulhas cravadas na sua carne até ao osso. Agarrara-o
durante as reuniões da manhã, deixara-o a sós por uma hora, enquanto estivera
com Corinn, mas regressara à noite com as garras ainda mais afiadas e
malévolas. Aguilhoara-o enquanto jantava e roera-o quando fora deitar Dariel.
Quando Dariel lhe pedira uma história, Leodan fitinha feito uma careta.
Fora somente por um instante, um segundo, em que enrugara a expressão e de
que se arrependera imediatamente. O menino nem sequer reparara, mas
continuava a sentir uma vergonha latente por aquela ânsia pelos seus próprios
vícios enquanto ainda estava na companhia dos filhos. Onde estaria ele sem os
filhos? Sem Mena que ainda — por alguns preciosos meses mais, talvez —
queria que ele lhe contasse histórias? E Dariel, que se agarrava às suas palavras
com uma certeza confiante que o pai sabia que o tempo iria destruir? Sem eles,
seria como uma concha vazia. Que vergonha sentia por deixar que um momento
com eles passasse com o cérebro distraído por outros pensamentos. Contou a
Dariel a história que o menino lhe pedira e, a seguir, permaneceu ainda mais
alguns instantes junto à porta do quarto do filho adormecido, escutando a sua
respiração calma e arrependido das suas fraquezas.
Tudo isso acontecera mais cedo; a sua débil penitência estava completa.
Agora, o cachimbo assentava sobre a mesa baixa à sua frente. Era uma intricada
confusão de tubos de vidro e compartimentos cheios de água e mangueiras de
couro, uma das quais o rei segurava entre as pontas dos dedos de ambas as mãos.
Colocou a parte mais estreita entre os dentes, tocando-lhe com a língua. Primeiro
inalou suavemente. Depois — ao sentir o sabor agridoce e nauseabundo do
vapor — inspirou fundo e as faces encolheram-se de encontro aos ossos do
maxilar. O cachimbo borbulhou e soltou faíscas. Permaneceu encostado para a
frente, de olhos fechados, consciente de que o chanceler se encontrava ao pé de
frente, de olhos fechados, consciente de que o chanceler se encontrava ao pé de
si, mas sem se importar. Isto não era nada que Thaddeus não tivesse visto antes.
Quando se recostou contra as almofadas do sofá, exalou lentamente o fumo
esverdeado. A criatura que o atormentava arrancou as garras do seu corpo uma a
uma. Sucumbiu, desvanecendo-se no nada, levando consigo o peso pardo que
carregara com ele como uma capa de granito ao longo de todo o dia. O opiáceo
entorpecia os limites do mundo. Não lhe sentia as farpas. Em vez disso, sentia-se
pleno de uma tranquilidade opaca, uma sensação quente, de ligação com os
milhões de pessoas por todo o seu império presas à mesma droga. Camponeses e
ferreiros, guardas municipais e coletores do lixo, mineiros, traficantes de
escravos; nesta única coisa, ele era igual a todos eles. Era — raciocinava com o
espírito apaziguado — uma oferenda secreta feita para o seu perdão.
Abriu os olhos, agora toldados e raiados de veias avermelhadas e castanhas.
— Que notícias me traz o chanceler?
Thaddeus sentara-se num divã ali perto. Tinha as pernas cruzadas pelo
joelho e um copo de vinho do Porto entre o dedo indicador e o polegar. O rei
contemplou a pequena taça, espantado por qualquer coisa no movimento do
líquido contra o copo, na mancha que ia deixando enquanto Thaddeus o girava.
Escutou o chanceler enquanto este o informava sobre os preparativos para a
delegação de Aushenia. Estavam preparados, dizia, para convencer os
estrangeiros tanto da sua força como da riqueza e para lhes estender uma mão
cautelosa de boas-vindas. Se os aushenianos confirmassem que reconheciam a
hegemonia de Acácia, tudo estaria no posto para lhes responder positivamente,
se tal fosse o desejo do rei.
Leodan assentiu com a cabeça. Era essa a sua vontade, mas sabia que várias
vezes antes Aushenia tinha quase estabelecido uma aliança com Acácia, apenas
para depois a deixar cair por uma qualquer disputa sem importância. Tudo o que
ouvira até agora dizer sobre o jovem príncipe, Igguldan, era prometedor, mas
ainda existiam aspetos dessa aliança em que ele não queria sequer pensar.
Mudou de assunto, apesar de os seus pensamentos não se desgarrarem das coisas
que o preocupavam.
— No outro dia a Mena perguntou sobre a Retribuição.
— O que lhe dissesteis?
— Nada. Porque teria ela de saber que lhe corre nas veias o sangue de
assassinos em massa? Foi há muito tempo, e já não somos assim.
— Tendes razão ao dizer que já foi há muito tempo — retorquiu Thaddeus.
— Há vinte e duas gerações... que criança conseguiria entender isso?
— Há vinte e duas gerações... que criança conseguiria entender isso?
O rei lembrou-se de que, quando Mena lhe fizera a pergunta, vislumbrara
uma sombra de dúvida nos olhos da filha, como se não aceitasse por completo as
suas explicações. E não fora aquilo astuto da parte dela? Ele, afinal de contas,
acabara por ter proferido outra mentira descarada. A Retribuição não tem
qualquer peso nas nossas vidas? Uma mentira flagrante dita com voz melosa.
Durante quanto tempo mais poderia aguentar estas coisas? Não fora somente
Mena, claro, que começara a fazer perguntas. Aliver andara durante algum
tempo com uma incerteza e desconfiança no olhar que parecia sempre estar
prestes a explodir.
O chanceler disse:
— Devo mencionar que o convénio pediu aos governadores que
intercedessem no caso que os mineiros de Prios levantaram contra...
— Terei de lidar com isso? Detesto tudo o que tenha que ver com as minas.
— Muito bem. Podemos deixar que os governadores tratem disso. Contudo,
há um assunto com o qual eles não podem lidar. — Thaddeus apertou os lábios,
e esperou que o rei o fitasse nos olhos. — Os representantes da Liga querem
confirmar que ireis mesmo rejeitar a exigência dos Lothan Aklun para aumentar
a Quota.
Estas palavras foram suficientes para aclarar a cabeça do rei dos efeitos
entorpecentes da droga. Os Lothan Aklun... O acordo conhecido como a Quota...
Estes dois assuntos eram o grande pecado escondido do império Akaran. Leodan
chupou o cachimbo. Sentiu um desejo momentâneo de que este assunto fosse
tratado pelos governadores. Na verdade, estes representantes das províncias,
sedeados na populosa cidade de Alecia, tratavam da maior parte dos assuntos
práticos do império. Porém, Tinhadin, o antigo rei, que fora, de muitos modos, o
arquiteto do império Akaran, escrevera as linhas orientadoras da Quota de modo
bastante simples e explícito. Controlo, autoridade, responsabilidade — tudo
assentava sobre os ombros do monarca, um segredo conhecido de muitos, mas
possuído apenas por ele. Por essa razão, a resolução deste assunto cabia ao
palácio. Era pago através de um orçamento separado e contabilizado à parte de
qualquer outro braço do governo. Não se falava disso, a não ser em círculos
fechados, e o seu real funcionamento ocorria muito longe dali, sem o rei ver,
embora muitas vezes o imaginasse. Por mais que estudasse os textos antigos, os
pormenores exatos de como o acordo fora alcançado pareciam confusos a
Leodan. A substância, no entanto, conseguia compreender.
Tinhadin, tendo herdado o trono recém-conquistado de seu pai e
sobrevivido aos irmãos, acabou por ter de fazer guerras em várias frentes. As
sobrevivido aos irmãos, acabou por ter de fazer guerras em várias frentes. As
Guerras da Distribuição, como eram chamadas, marcaram uma época tumultuosa
de grande tensão. O seu antigo aliado, Hauchmeinish do Mein, era agora um
inimigo. Já não confiava nos seus fiéis feiticeiros, os Santoth. As rebeliões nas
províncias deflagravam como incêndios nas colinas de Acácia durante o verão.
A sua própria compreensão do mundo era deformada e horrível, e lutava com a
ideia de que qualquer palavra proferida pela sua boca poderia mudar o curso da
existência. Ele era também um Santoth, o maior de todos eles, mas o fardo da
magia na sua língua era agora uma tortura para controlar.
Nisto surgiu uma nova ameaça vinda das Encostas Cinzentas. Existia um
poder, descobrira Tinhadin, maior do que o dele. Chamavam-se Lothan Aklun.
Eram das Terras Distantes, fora do Mundo Conhecido, separadas deste por um
vasto oceano. Constituíam um mistério completo para o antigo rei. Do poder
deles só se sabia que existia, mas Tinhadin não queria ter outro inimigo naquela
altura. Fez então propostas de paz com eles, sugerindo trocas comerciais e
ganhos mútuos em vez de conflitos. Os Lothan Aklun não só aceitaram a oferta
como propuseram especificidades que Tinhadin não teria conseguido sequer
imaginar sozinho.
O acordo devia ter parecido uma pechincha na altura. Os Lothan Aklun
prometeram não atacar os territórios devastados pela guerra e acordaram em
negociar unicamente e sempre com os Akaran. Tudo o que precisavam como
garantia desta preferência era uma remessa anual, por barco, de crianças
escravas, sem se fazerem perguntas, sem condições impostas sobre o que fariam
com elas e sem possibilidade alguma de as crianças alguma vez voltarem a ver
Acácia. Em troca disto, ofereciam a Tinhadin o opiáceo, um instrumento que,
como prometiam, ele iria achar da maior utilidade para sedar os seus rebeldes.
Mais tarde, o tratado viria a ser desenvolvido, mas, em termos gerais, o
acordo foi feito. Desde então, milhares e milhares de crianças do Mundo
Conhecido haviam sido embarcadas para cativeiro e milhões de pessoas sob o
domínio Akaran haviam trocado a vida, o trabalho e os sonhos pelas visões
fugazes trazidas pelo opiáceo. A mesma droga que Leodan consumia todas as
noites. Esta era a verdade de Acácia.
— Exigência? — perguntou por fim Leodan. — Chamas a isso uma
exigência?
— No tom, sim, meu amo, tem o tom de uma firme certeza para o ser.
— A agressividade dos Lothan nada tem de novo — retorquiu Leodan. —
Nada de novo... já possuem a alma do meu povo. Que mais quererão eles? Os
Lothan Aklun não são melhores do que qualquer canalha que nos rodeia: os
mineiros, os mercadores, a própria Liga. Nenhum deles fica contente de um
mineiros, os mercadores, a própria Liga. Nenhum deles fica contente de um
momento para o outro. Posso nunca ter posto os olhos num Lothan, mas
conheço-os bem. Diz à Liga que lhes leve esta mensagem: a Quota permanecerá
a mesma que sempre foi. O acordo foi selado como perpétuo, realizado antes do
meu tempo, há muito; não aceito qualquer mudança, nem agora nem nunca.
Pronunciou isto com determinação, mas não pareceu agradado com o
silêncio com que Thaddeus lhe respondeu.
— Há um outro assunto de que devemos falar — aventou Leodan. —
Recebi esta manhã uma missiva de Leeka Alain, da Guarda do Norte. Enviou-a
por um mercador da cidade baixa, que ma fez chegar através da casa dos criados.
Tudo isto é muito invulgar.
— Sim, é bastante estranho — Thaddeus pigarreou primeiro ligeiramente e
depois foi como que sacudido por vários ataques de tosse. — O que tem o
general a dizer?
— Foi uma carta estranha, cheia de urgência, mas vaga nos pormenores.
Queria saber se eu recebera uma mensageira que ele antes me enviara. A tenente
Szara. Pelo tom da carta, essa mensageira fora-me enviada com uma mensagem
importante.
Thaddeus observou o rei.
— Recebesteis essa mensagem?
— Conheces a resposta a isso. Teria chegado a mim através de ti.
— Claro, mas nada ouvi sobre tal assunto. Leeka revelou os pormenores da
mensagem na carta?
— Não. Ele não tem confiança na palavra escrita.
— E não deve ter. Uma vez escrita, qualquer um a pode ler.
O olhar do rei movimentou-se lento, pesadamente. Fitou o chanceler e
estudou-o, toldado pela bruma, mas, apesar de tudo, capaz de se concentrar. O
rosto do homem estava calmo, embora alguma tensão lhe assomasse na fronte.
— Sim, talvez... Interrogo-me por que razão terá ele escolhido
corresponder-se comigo em vez de através do governador. Sei que ele não nutre
grande afeto por Rialus Neptos, tal como eu próprio. Sabes que Rialus
costumava escrever-me, pelo menos duas vezes por ano, exaltando as suas
virtudes e sugerindo que ele próprio deveria ser chamado do Mein e confiado
qualquer cargo mais elevado aqui, em Acácia? Como se eu o quisesse por aqui
enfadado no palácio. Ele aponta que é de pura linhagem acaciana e diz que o
clima do Mein lhe faz mal à saúde. Não posso discordar disso, no fundo; aquilo
clima do Mein lhe faz mal à saúde. Não posso discordar disso, no fundo; aquilo
é um lugar miserável... De qualquer modo, Leeka desejava comunicar
diretamente comigo e isso desperta-me a curiosidade. Onde está essa Szara?
Thaddeus ergueu os ombros o mais que pôde e depois deixou-os cair.
— Nada sei sobre isso, mas, mesmo nestes tempos de paz, acontecem
coisas más. Estamos no fim do inverno. Isso aqui pouca importância tem, mas
nas terras altas do Mein o tempo deve estar terrível. Como ia ela viajar? Vinha a
cavalo ou pelo rio Ask?
— Não sei — respondeu o rei.
— Deixai-me tratar deste assunto — retorquiu Thaddeus. — Afastai-o do
espírito enquanto tento perceber o que se passa. Enviarei emissários armados ao
norte, ao encontro de Leeka. Com a vossa autorização, dar-lhes-ei carta branca
do rei, para que possam viajar depressa e ter sempre cavalos frescos. Teremos
notícias deles dentro de um mês, talvez menos, se embarcarem para Aushenia e
apanharem um atalho. Vinte e cinco dias, no máximo. Então sabereis tudo o que
se passa. — Thaddeus fez uma pausa e aguardou a resposta do rei. Foi pouco
mais do que um resmungo de afirmação, mas pareceu satisfazer o chanceler. —
E depois vereis que nada de grave se passou com certeza. Leeka sempre foi
desconfiado em relação ao Mein, mas desde quando é que isso já teve alguma
importância?
— As coisas estão diferentes agora — retorquiu o rei. — Heberen Mein era
um homem razoável, mas já morreu. Os seus três filhos são bem diferentes.
Hanish é ambicioso; vi-o nos seus olhos, mesmo quando era um rapazito,
quando visitou a cidade. Maeander é puro despeito e Thasren um mistério. O
meu pai tinha a certeza de que nunca poderíamos confiar neles. Fez-me jurar que
não cairia nunca nessa fraqueza — a confiança. Tu também costumavas dizer-
me que eu não me preocupava o suficiente. Juntos, tu e eu, concebemos planos
contra todo o género de acontecimentos trágicos, lembras-te?
Thaddeus sorriu.
— Claro que me lembro. É o meu trabalho. Quando era jovem via perigo
em todo o lado. Mas Acácia nunca esteve tão forte como agora. Digo-o
sinceramente, meu amigo.
— Sei que sim, Thaddeus. — O rei olhou para o teto. — Dentro em pouco
acordarei todos os meus filhos e levá-los-ei numa viagem. Iremos visitar todas as
províncias do império. Tentarei convencê-las de que sou o seu rei bondoso; elas
tentarão convencer-me de que são minhas leais súbditas. E talvez a ilusão
perdure por algum tempo ainda. Que me dizes?
— Parece-me muito bem — respondeu Thaddeus. — Isso deixará os vossos
— Parece-me muito bem — respondeu Thaddeus. — Isso deixará os vossos
filhos muito contentes.
— Claro que o «tio» deles nos acompanhará também. Eles gostam de ti
tanto como de mim, Thaddeus.
O outro homem levou algum tempo a responder.
— Honrais-me imerecidamente.
O rei permaneceu sentado, repetindo estas palavras na cabeça durante
algum tempo, e encontrando algum consolo nisso, mesmo enquanto se afastava
do seu contexto original. Dissera algo parecido um dia, a Aleera. O que fora?
Tu... amas-me imerecidamente. Fora isso que dissera. Por que razão o dissera?
Porque era verdade, claro. Explicara-lhe tantas coisas, numa noite, alguns dias
antes de casarem. Bebera demasiado vinho e ouvira demasiados discursos que o
louvavam. Já não conseguia suportar mais, por isso levara a noiva para um lado
e confessara-lhe que deveria saber coisas sobre ele antes de se casarem.
Confessara-lhe tudo o que sabia sobre os crimes do império, os antigos e os
novos, ainda feitos em nome de seu pai, os crimes que, provavelmente,
continuariam a ser cometidos em seu nome. Desabafou tudo, choroso, patético e
até agressivo, certo de que ela se encolheria de medo dele, quase esperançoso de
que ela se afastasse dele e o rejeitasse. Certamente que uma boa mulher o faria; e
ele não duvidava da bondade dela.
Que surpreendido ficara com a sua resposta. Ela aproximou-se dele e voltou
aquele rosto lindo de grandes olhos para ele. Não havia surpresa nas suas
feições, nem remorso ou juízos de valor. Respondera-lhe que um rei é o melhor e
o pior dos homens. Claro. Claro. Pousara os seus lábios nos dele de uma
maneira tão doce e ávida que lhe tirou a respiração. Esse, talvez, tenha sido o
momento em que verdadeiramente casaram, o momento em que fora selado o
acordo entre eles. Era difícil para ele decifrar agora qual dos aspetos do amor
dela o tocara mais. Seria o facto de ela lhe poder perdoar tudo isso e amá-lo,
porque compreendia a bondade que, no fundo, existia nele? Ou fora o facto de
ela se ter traído, de que era tão capaz de fazer vista grossa à verdade e viver uma
mentira quanto ele? De qualquer modo, o facto de lhe ter confessado tudo e de
ter tido a sua bênção fê-lo amá-la na plenitude. Nunca teria sido capaz de
cumprir a sua missão como monarca sem a aprovação dela. Isso talvez fosse, ou
não, algo de bom para o mundo, mas, para um homem inseguro como ele, a
devoção dela fora uma grande dádiva.
— Talvez o faça, Thaddeus — respondeu Leodan, algo tardiamente ,à
declaração do outro. — Talvez te honre indevidamente. Cometemos erros desses
por vezes. Mas que mal faz isso?
por vezes. Mas que mal faz isso?
Não ouviu a resposta do chanceler, se é que, de facto, este lhe respondeu.
Fechou os olhos e teve a sensação de estar a ser empurrado de encontro a uma
parede invisível. A bruma tinha-se consolidado nele e preenchia-o Agora o
momento de se afastar do mundo físico era finalmente dele. Este momento
atingia-o sempre como uma pressão, como se o seu peito jazesse plano contra
uma pedra e uma grande força atrás dele gradualmente o empurrasse contra ela.
Precisamente no momento em que sentia não conseguir aguentar mais o peso,
começava a atravessar a pedra, confundindo-se com ela e atravessando-a como
se ela fosse porosa e ele se encontrasse em estado líquido. Do outro lado, Aleera
esperava por ele, a ilusão temporária por que ele ansiava mais do que pela
verdadeira vida. Foi ter com ela com reverência.
Capítulo 7
Rialus Neptos acreditava ter encontrado um método pelo qual conseguia ter
conhecimento de toda a gente que entrava e saía da fortaleza do norte de
Cathgergen. Pensava que esta vigilância era essencial para um governador,
especialmente um governador tão atento ao poder quanto ele era. Pedira que
fabricassem uma única lâmina de vidro nas fornalhas na base da fortaleza.
Deitara abaixo uma parte da parede de granito do seu gabinete e colocara aí o
vidro, de modo a abrir uma enorme janela. A vidraça era mais alta do que um
homem e tão larga como os seus dois braços estreitos abertos de um lado ao
outro. A execução da obra fora imperfeita. Tinha uma espessura desigual, de um
tom leitoso, em algumas áreas, e salpicada de bolhas de ar. Porém, havia alguns
bocados de verdadeira transparência; Rialus localizara todos esses pontos após
longas horas de observação.
A sós nos seus aposentos, encostava a fronte à vidraça. Frequentemente o
toque no vidro fazia-o sentir frio e causava-lhe tosse, um tormento que afetara o
seu peito frágil toda a sua vida. Durante algum tempo chegava até a ter de se
esticar no chão. Uma faixa de vidro na parte inferior da vidraça distorcia o
mundo de tal maneira que ele podia estudar a entrada no quartel-general militar
nas suas horas de lazer e, por conseguinte, saber quem entrava e saía no mundo
de Leeka Alain. O lugar que lhe permitia ver melhor era do alto de um
tamborete, e olhava para baixo com um olho fechado que lhe proporcionava uma
vista de toda a muralha oeste e do portão no centro. Fora deste lugar que
observara as tropas do general Alain marcharem para fora da fortaleza,
desafiando as suas ordens diretas. Fora do mesmo lugar que observara a chegada
do segundo dos irmãos Mein, Maeander .algumas semanas mais tarde.
Rialus afastou-se da vidraça. Estava novamente com frio. A fortaleza era
aquecida através de piscinas de vapor de água quente que borbulhava em jorros
da terra. Uma rede intrincada de canos e de condutas de ar canalizavam o calor
para toda a estrutura labiríntica do forte. Os engenheiros de Cathgergen diziam
que se tratava de uma maravilha de construção, mas, na verdade, o lugar nunca
se encontrava suficientemente quente. Por vezes, desconfiava que os seus
aposentos eram propositadamente deixados com pouco aquecimento, mas não
tinha maneira de o provar.
Andou à volta da secretária e depois dirigiu-se à estante na parede,
Andou à volta da secretária e depois dirigiu-se à estante na parede,
passando um dedo sobre as lombadas dos volumes que ali se encontravam,
tomos poeirentos cheios de registos, documentos de contabilidade e diários
governamentais, mantidos ali desde que a hegemonia de Acácia se estabelecera
pela primeira vez na satrapia. O seu pai tratara estes registos com sóbria
reverência. Tentara incutir o mesmo no filho único, sem ter conseguido. Rialus
era somente a segunda geração da sua família a vigiar o Mein — não se tratava
portanto de muito tempo em funções, pelos padrões de Acácia. Com a extinção
da anterior família de governadores, o seu pai fora enviado para o norte, como
castigo por alguma malfeitoria de que Rialus já nem sequer se recordava. À
medida que os anos passavam, os outros governadores acabaram por ver a
família Neptos ali instalada como um dado adquirido. Os Akarans ignoravam-
nos. Irritava-o que esperassem fazê-lo pagar indefinidamente por um crime que
ninguém conseguia sequer nomear. Atormentava-o que o mundo lá fora não
compreendesse o seu espírito arguto, de algum modo cativo dentro da sua figura
atrofiada, traída em todas as ocasiões pela tendência do seu queixo de enregelar
precisamente nos momentos errados. Se, ao menos, os outros pudessem ver para
além destes defeitos da aparência exterior, compreenderiam que ele estava mal
aproveitado naquele posto.
Rialus gostava de dizer que o Doador recompensa quem valha a pena, mas
tinha ainda de ver alguma prova de que as forças divinas no mundo tinham
notado a sua existência. Após dez anos a ser posto de parte, ignorado, Rialus
tornara-se chão fértil para a intriga. O irmão mais velho dos Mein fora rápido a
aproveitar-se disso. Hanish era um orador eloquente, um homem bonito que
falava com tal compostura nos seus olhos cinzentos que não se conseguia evitar
confiar nele. Vindo da sua boca, o estranho sistema de crenças do Mein não
parecia de todo ridículo. O mundo dos vivos era transitório, explicara Hanish,
mas a força que constituía os Tunishnevre era constante. Os Tunishnevre eram
compostos por todos os homens valorosos da sua raça que tinham outrora vivido
e que já não estavam neste mundo. Era a sua força de vida que se prolongava já
fora dos seus recetáculos mortais. Era a energia palpável da sua raiva, prova de
que os mortos tinham mais importância do que os vivos. A vida era uma
maldição infligida sobre uma alma, antes de esta poder partir para outro plano
mais elevado. Tal como o corpo que é separado do espírito no seu íntimo, e
contudo causa ao espírito todo o género de dores, assim o destino dos vivos
causara ao cerne ancestral um sofrimento sem fim. Os vivos mantinham os
mortos acorrentados a si e, nesta ignorância, faziam da vida após a morte um
fardo, quando deveria ser a doce realização da viagem da vida. Os antepassados,
afirmara Hanish, imploravam-lhe que amenizasse a sua tortura.
Quando o governador perguntara o que era exatamente que queriam os
Quando o governador perguntara o que era exatamente que queriam os
Tunishnevre, e como seriam exatamente libertados deste sofrimento, Hanish
apertara-lhe o ombro como se fossem companheiros íntimos. Tinha um modo
peculiar de mudar de um estilo sério para um tom mais casual de um instante
para o outro.
— Sei que existem mudanças a fazer na ordem do mundo dos vivos. Foi
para essa missão que nasci. E tu, Rialus Neptos, és um agente do meu inimigo.
Isto fora dito também num tom ligeiro, mas a lista de crimes perpetuada
pelo domínio de Acácia parecia longa e imunda quando Hanish a pormenorizou.
Que nação não sofria sob o seu domínio? Dos pálidos homens o norte até aos
povos negros do Sul, de oriente a ocidente, tantos povos diferentes, dezenas de
raças humanas — todas sofriam graves injustiças sob aquele jugo. As gerações
haviam vivido e morrido sob o jugo da «paz» acaciana, mas o Mein nunca
esquecera quem era o seu inimigo. Agora, finalmente, Acácia tinha um rei
tornado tão fraco que poderiam atacar. Hanish acreditava que Leodan era o
herdeiro mais fraco de uma longa cadeia da sua história familiar. Uma nova era
poderia começar, com um novo calendário a assinalar o dia, com novos
conceitos de justiça, com a redistribuição da riqueza, com os privilégios por fim
nas mãos daqueles que haviam, durante tanto tempo, trabalhado para o proveito
de outros homens. Pouco havia nisto que Rialus pudesse refutar. Ele estava,
afinal de contas, numa posição privilegiada para saber a ferocidade com que
Acácia cobrava os impostos aos seus aliados.
Rialus nem sequer se lembrava da altura exata em que os irmãos Mein o
haviam tornado seu confidente, mas recordava-se, sim, da sua incredulidade
perante as afirmações de Hanish. Dissera que a sua liga de aliados era mais
poderosa do que a dos Akaran. Estavam cada vez mais frustrados com os Akaran
e furiosos com Leodan. Acreditavam que o rei queria acabar com a Quota e
abolir o comércio de ópio. Por causa disso, decidiram o seu destino. O rei seria
afastado do cargo e substituído por outro, mais propenso a ir de encontro às suas
necessidades. Hanish dissera que isto acontecera duas vezes antes, nas vinte e
duas gerações desde Tinhadin, mas que, desta vez, era diferente. O rei não seria
meramente afastado do trono de modo a que o filho — mais novo e mais
moldável e fácil de controlar — tomasse o seu lugar. Desta vez, os Lothan Aklun
queriam que toda a linhagem fosse extinta e estabelecida uma nova dinastia, com
os Mein no trono.
Era por isso que Hanish tinha à sua disposição um povo de uma raça
estranha desejosa de marchar através dos Campos Gelados e fazer guerra em
nome dos Mein. Era por isso que possuía armas novas que arremessavam bolas
de fogo como o Sol ou que catapultavam pedregulhos. Acrescentava-se a isto um
de fogo como o Sol ou que catapultavam pedregulhos. Acrescentava-se a isto um
exército escondido dos Mein, que estivera a treinar arduamente nas montanhas a
norte de Tahalian, às escondidas do mundo exterior. Com estes instrumentos e
diversas outras surpresas na manga, Hanish prometia derrubar um mundo que de
nada desconfiava e destroçá-lo totalmente.
Os irmãos tinham aludido a várias posições de relevo que Rialus poderia vir
a ocupar, no mundo remodelado que antecipavam, mas, até à data, ele não vira
recompensa alguma. Esperara poder mostrar-se útil. Infelizmente, este assunto
com Leeka não correra como gostaria. Sabia que o exército do general fora
misteriosamente massacrado, mas não tinha a completa certeza sobre se isto
daria a Maeander o prazer que deveria. Afinal de contas, a missão de Rialus fora
a de deter o general e fazer tudo o que pudesse para ocultar a chegada dos
estrangeiros. Fracassara em ambas as incumbências.
Maeander entrou nos aposentos do governador com visível desdém pelas
formalidades devidas a um funcionário acaciano. Passou pela secretária, que se
preparava para o anunciar, e irrompeu pela sala, com passadas firmes que
pareciam tanto naturais como propositadamente fortes para lascar as lajes sob as
pesadas botas. Maeander era alguns centímetros mais alto do que o seu anfitrião.
Tinha os ombros largos e ostentava força nos movimentos das coxas musculadas
e nas curvas vigorosas dos antebraços e nos contornos do pescoço. Usava o
cabelo comprido, abaixo dos ombros, e lavava as madeixas cor-de-palha dourada
diariamente em água gelada e depois penteava-se — algo invulgar, na maioria
dos homens do Mein, pois estes deixavam o cabelo emaranhar-se e andavam
com ele caído, de modo a parecer uma cascata de serpentes sobre os ombros. Ele
era, em toda a aparência exterior, uma figura modelo para os rudes e viris
homens da sua raça, envoltos em vestes de couro curtido e de pernas cobertas
por calças justas.
Maeander tirou as luvas forradas a pele e atirou-as para uma mesa, onde
caíram com um baque seco. Examinou rapidamente a sala, parando à janela.
— Então é esta a tua janela — disse, inspecionando a vidraça. Falava
acaciano com o sotaque gutural da sua língua materna, sons que sempre haviam
ofendido os ouvidos de Rialus. — Os guardas trocaram galhofas comigo quando
entrei. Quando lhes dei ordem para te avisarem da minha chegada, um deles
disse que já sabias, visto teres sempre um olho pregado a esta vidraça. Um outro
disse que parecias não compreender que tanto se pode ver de dentro para fora
como de fora para dentro. Tal impertinência, governador, não deveria ser
permitida.
Rialus corou. O simples facto de ser visível para as pessoas no exterior
nunca lhe ocorrera. Imaginou o absurdo da sua imagem vista de fora, retorcida
nunca lhe ocorrera. Imaginou o absurdo da sua imagem vista de fora, retorcida
em diferentes contorções, e os lá de baixo a vê-lo pelo canto do olho,
escondendo sorrisos afetados, zombando dele... E assim, daquela maneira, com
algumas palavras casuais, faziam-no sentir completamente idiota. Recordava-se
de uma época em que os irmãos Mein o tratavam como convinha ao seu cargo,
mas tudo isso mudara. Não fazia ideia de como poderia voltar a ganhar o seu
antigo estatuto. De facto, desconfiava cada vez mais de que nunca mais teria
estatuto algum.
Maeander virou-se da janela. Os olhos do homem eram notavelmente
cinzentos. Fixavam-se intensamente nas pessoas. Nunca, pensou o governador,
conhecera alguém que olhasse tão fixamente com tão indisfarçada má vontade.
Tinha o olhar de uma criança a fixar um besouro que estava prestes a esmagar
sob o tacão.
— Sabes o que aconteceu ao exército de Alain?
Rialus não era um conversador fluente. Perante Maeander, embrulhava-se
em graguejos embaraçados, que ele tinha a certeza de darem uma má impressão.
Felizmente, Maeander estava mais interessado em falar ele próprio do que em
fazer uma verdadeira pergunta. Contou então que os batedores de numrek
haviam sido enviados para limpar terreno, antes de o grosso do exército da sua
nação descobrir onde estava a coluna do general. Sem serem vistos, haviam-nos
seguido durante vários dias até encontrarem um sítio que lhes servisse para uma
emboscada. Atacaram-nos após o último vento de uma tempestade que findava e
chacinaram-nos até ao último homem e à última mulher.
— Deves ficar contente por saber que os numrek são tão destros a matar
como afirmam — disse Maeander. — Apreciaram a prova que o exército de
Alain lhes proporcionou. Serviu-lhes de aquecimento, dizem. — Virou-se e
deambulou pela sala, sem destino. Tinha três tranças que lhe pendiam do alto da
cabeça do lado esquerdo. Em duas delas estavam entretecidas fitas azuis e, na
terceira, um fio em cabedal com contas de prata. Rialus sabia que aquilo era uma
espécie de sistema de contagem primitivo: o azul correspondia a dez homens
mortos, a fita em cabedal a vinte. Ou seria ao contrário? O governador não se
lembrava.
— Nunca vi nada igual a este exército numrek. Devoram e cospem tudo o
que encontram. As crianças e as mulheres têm tanto prazer na chacina como os
homens. Duvido muito que as forças combinadas de Acácia se possam igualar a
eles em campo aberto.
— Então foi tudo pelo melhor — retorquiu Rialus. — O Doador ajuda os
valorosos. Um grande sucesso.
valorosos. Um grande sucesso.
Maeander não gostava de ser conduzido.
— Não sejas tão apressado. Fracassaste em manter o general prisioneiro.
Estavas aqui sentado à tua janela enquanto ele se punha em marcha para pôr em
causa tudo o que o meu irmão planeou durante todos estes anos. O resultado não
foi mau, mas forçaste-nos a acelerar os nossos planos. E é verdade que o teu
general enviou mensageiros — vários?
— Sim, enviou, mas não te preocupes. Persegui-os e matei-os a todos.
— Não é verdade. Um deles escapou. Um deles encontrou-se com o
chanceler do rei, Thaddeus Clegg.
— Oh — retorquiu Rialus.
— Sim. «Oh». Contudo, foste novamente salvo por um golpe de sorte. —
Fez uma pausa para deixar que Rialus se contorcesse um momento e depois
disse: — Thaddeus é... ambivalente o suficiente para talvez não ver os seus
interesses alinhados com os de Leodan.
A boca de Rialus formou uma oval.
— Ambivalente?
— Isso mesmo — retorquiu Maeander. Inclinou-se e passou as pontas dos
dedos pelas azeitonas na tigela colocada sobre a secretária de Rialus, iguaria
importada, difícil de encontrar no Mein. Enfiou algumas na boca e observou o
governador.
— Na verdade, Rialus, as razões do seu estado de alma ambivalente estão
relacionados com a tua própria situação. Estarás interessado em que te explique?
Rialus assentiu, hesitante, mas demasiado curioso para recusar. Maeander
foi falando enquanto mastigava. Pediu a Rialus para recuar no tempo com ele e
imaginar Leodan e Thaddeus tal como eram na juventude. Imaginar o jovem
príncipe: sonhador, idealista, indeciso em aceitar o poder para o qual estava a ser
preparado, tomado de amores por uma jovem beldade —Aleera — que parecia
ter mais importância para ele do que o trono. A seu lado, o seu chanceler:
resoluto, confiante, disciplinado, um espadachim talentoso, ambicioso de um
modo que Leodan não o era.
— Leodan nunca foi propriamente um tesouro aos olhos de seu pai — disse
Maeander, com um largo sorriso.
Gridulan, continuou, via o filho como um fraco. Mas um filho é um filho;
Gridulan não tinha outro. Não o podia negar. Foi por isso que Gridulan fez o
melhor que pôde para endurecer Leodan, mesmo quando observava Thaddeus
melhor que pôde para endurecer Leodan, mesmo quando observava Thaddeus
pelo canto do olho. Queria que o filho tivesse um chanceler forte, mas tinha as
suas razões para recear os talentos de Thaddeus. Thaddeus era um Agnate, afinal
de contas. Tinha uma linhagem que remontava ao próprio Edifus. Poderia, em
certas circunstâncias, reclamar legitimamente o trono para si. Isto tornou-se uma
grande ameaça — na perspetiva do velho rei — quando Thaddeus desposou uma
jovem, Dorling, também de uma família Agnate. No primeiro ano de casamento
tiveram um filho, um menino, exatamente dois anos antes de Aleera dar à luz
Aliver. Assim, ali estava o forte Thaddeus, oficial na Marah, com uma jovem
esposa e um filho, uma linhagem aristocrata, a adoração da populaça e o apoio
dos governadores — que viam o chanceler como um arguto defensor das suas
causas. Em resumo, Thaddeus tornara-se uma ameaça que Gridulan não podia
ignorar, mesmo se Leodan não tivesse consciência disso.
— Adivinha o que fez ele em relação a isso — instou Maeander. — Fazes
uma ideia?
Rialus não fazia ideia alguma, apesar de levar alguns instantes a convencer
Maeander disso.
— Então, terei de te contar — prosseguiu o homem do Mein. — Gridulan
conspirou com um dos seus companheiros. Por ordem do rei, este companheiro
adquiriu um veneno raro, do género usado pelos homens da Liga. Mortal.
Certificou-se pessoalmente de que Dorling consumiu uma dose que lhe
administrara no seu chá. O filho — ainda de mama — foi envenenado através do
leite da mãe. Ambos morreram.
— Foram assassinados por ordem do rei? — perguntou Rialus.
— Tal qual. Na altura ninguém soube da origem das mortes. Alguns
suspeitaram de assassínio, mas não se dirigiram acusações a ninguém — pelo
menos, não na direção certa. Gridulan foi o primeiro a apresentar as
condolências a Thaddeus. Leodan permaneceu a seu lado na dor. O próprio
Thaddeus suportou o seu sofrimento admiravelmente, mas nunca mais foi o
mesmo homem depois disso. Gridulan escolhera bem. Conseguira extinguir a
ambição de Thaddeus, embora deixasse o homem vivo para ajudar o filho.
Leodan não soube dos assassinatos até alguns anos mais tarde, depois de o pai
ter morrido e de ter lido os seus diários privados. Porém, que iria ele fazer com o
conhecimento de que o próprio pai matara a mulher e o filho do seu melhor
amigo, tudo a fim de o proteger?
— Talvez um homem moralmente forte tivesse confessado tudo ao amigo
— concluiu Maeander, encolhendo os ombros pois não parecia ter a certeza
desta questão. — Talvez. Em qualquer caso, Leodan manteve a boca calada.
Nada disse a ninguém, apenas dando um castigo ao homem que fora cúmplice de
Nada disse a ninguém, apenas dando um castigo ao homem que fora cúmplice de
seu pai, o homem que administrara o veneno. Fazes alguma ideia de quem era?
Maeander, desta vez, não esperou pela resposta de Rialus.
— Isso mesmo — proferiu. — O teu amado pai, Rethus, foi quem
administrou o veneno! É por isso que te encontras agora aqui à minha frente,
como governador miserável de uma miserável província. Estás a ser castigado —
como o foi teu pai antes de ti —pela lealdade para com Gridulan. Os segredos de
família são profundos, Rialus. Bem vejo pela perplexidade no teu rosto que
acabei, simultaneamente, tanto por te surpreender como por responder a velhas
perguntas.
Rialus precisou de um momento para recobrar ânimo suficiente para
perguntar:
— Como sabes de tudo isto?
Maeander olhou para um lado e cuspiu um caroço de azeitona.
— O meu irmão tem muitos amigos em posição de saber tais coisas. A
Liga, por exemplo, observa tudo isto com interesse, e alegra-se por fornecer
pequenas informações para nos ajudar a deitar achas para a fogueira. Acredita
em mim, Rialus, a história que acabei de te contar é verdadeira. Alguns meses
atrás o meu irmão partilhou a informação com o próprio Thaddeus Clegg. Este
ficou bastante perturbado com as notícias. Por causa disso, creio ser justo dizer
que ele não se encontra já completamente do lado de Leodan. Pensa na vida que
Thaddeus tem levado desde que Dorling e o filho morreram. Pensa no amor que
dedica aos filhos de Leodan e não aos seus. Pensa no modo como ele apoiou o
rei quando este enfrentou a morte — por causas naturais, claro — da sua própria
esposa. Pensa no que sentiria ao descobrir que tudo isso foi baseado numa
mentira, num assassinato, na traição. No seu lugar, não quererias ver os Akaran
castigados? A vingança é a mais fácil das emoções para compreender e
manipular. Não concordas?
Rialus concordou, embora quisesse desesperadamente tempo e solidão para
digerir tudo o que Maeander lhe revelara.
— Em qualquer caso, — disse Maeander, regressando ao assunto que
originara aquele desvio da conversa — não te matarei pelos teus erros, mas
receio que terás de pagar por eles. Prometi Cathgergen aos numrek. Quando
chegarem, entregar-lhes-ás a fortaleza. Confio que não irritarás o chefe deles,
Calrach; pelo que vi dele, não é muito dado ao perdão.
— Não queres dizer...
Maeander olhou-o, afrontado.
Maeander olhou-o, afrontado.
— Estás a protestar? Não quererias que lhes entregasse Tahalian, pois não?
Não há outra maneira. A fortaleza é deles, para descansarem e se reorganizarem.
Se quiseres, poderás deixar que o exército dê alguma luta e depois fugir para
qualquer que seja o destino que te espera. Não olhes assim para mim. Neptos,
nunca vi um homem que se parecesse tanto com um rato em tantos aspetos
diferentes. — Por instantes, a voz de Maeander soou com verdadeira fúria, mas
dominou-se e falou friamente. — Por enquanto podes continuar a viver, mas as
verdadeiras recompensas vão para aqueles que nos servem com eficiência.
— Acabaste de me condenar — contrapôs Rialus.
— Não te condenei. Se estás condenado, as sementes dessa condenação
foram plantadas antes de eu sequer te conhecer. É assim com todos nós. É tudo o
que tenho para ti.
Rialus conseguiu falar somente quando Maeander se voltou para sair.
— Esqueces-te de que eu... eu sou o governador desta fortaleza.
Maeander fitou-o estupefacto. Rialus mudou de tom, afastando-se da
sugestão de ameaça inerente àquela declaração. — Talvez ainda possa provar o
meu valor.
— Ah, és tão traiçoeiro como o teu pai? Como irias tu dar-me provas?
— Se o que tenho para te oferecer te agradar, terei de ter a tua garantia de
que serei recompensado. Posso entregar-te a família real — as suas cabeças,
quero dizer.
— Já tenho agentes preparados para atacar o rei. Talvez já o tenham morto.
Talvez essa notícia já vá a caminho de Hanish.
— Não, não... sei disso — retorquiu Rialus. Tinha quase vontade de sorrir,
sabendo que com toda a probabilidade acabara de encontrar a tábua de salvação
de que precisava. — Não estou a referir-me ao rei. A linhagem Akaran não
começa nem acaba com Leodan.
Capítulo 8
Corinn Akaran compreendia que havia ainda muito que desconhecia sobre o
mundo, muitos nomes e linhagens familiares e acontecimentos históricos que a
sua memória se recusava a reter. Não importava. Pouco daquilo tinha algum
peso na vida do dia-a-dia. O que ela acreditava ser significativo era o facto de ser
a filha mais velha do rei Leodan, a bela Corinn. Não herdaria o controlo do reino
do pai — que iria para Aliver — mas isso até lhe convinha. Não considerava
nada atraente a perspetiva de fazer malabarismos com tão complicado conjunto
de preocupações. Era muito melhor manter-se de fora e exercer a sua influência
na esfera das intrigas da corte. Tinha a certeza de que isso seria muito mais
interessante. O mundo poderia ser algo de muito mais vasto, de facto, mas a
parte que ela ocupava era pequena e, nesse mundo mais pequeno, poucas pessoas
estariam melhor posicionadas do que ela para encarar o futuro com sublime
otimismo.
Guardava, contudo, um segredo que ninguém próximo dela adivinharia.
Embora por natureza fosse uma pessoa jovial, com gosto por roupas sofisticadas,
bisbilhotice e pensamentos românticos juvenis, transportava em si uma
consciência da morte. Era como uma nuvem que pairava sobre o seu espírito,
sempre perto, sempre a ameaçar quando erguia os olhos para absorver coisas
maiores. A mãe morrera quando ela tinha dez anos. Desde então, a condenação
da mortalidade nunca estivera longe do seu espírito. Aleera Akaran deixara a
vida quando a primavera dava lugar ao verão. Fora roída por dentro por uma
doença que começara com uma dor nas costas e se tornara uma sanguessuga
insaciável que lhe sugara a vida.
Corinn recordava-se dos últimos momentos que passara junto da mãe em
doloroso pormenor. Em sonhos, sentava-se muitas vezes ao pé da sua cama
novamente, agarrando as pálidas e magras mãos da mãe. Estava tão devastada
pela doença que o seu corpo parecia fundir-se com o colchão. Por causa de o
tempo estar tão quente, repousava muitas vezes destapada, as pernas nuas
esticadas por debaixo da túnica, com os pés e os dedos destes parecendo
estranhamente grandes, agora que eram a primeira coisa que Corinn via ao entrar
no quarto. As semanas que permanecera presa à cama haviam tornado Aleera tão
fraca que não conseguia chegar ao seu tamborete junto à janela sem a ajuda da
filha. Já não conseguia andar. Corinn apoiava o frágil peso da mãe em cada
passo que ela dava, cambaleante, como o de uma criança que dá os primeiros
passo que ela dava, cambaleante, como o de uma criança que dá os primeiros
passos.
Tudo isto causou na menina a forte impressão de que o mundo guardava em
si, na realidade, coisas muito mais assustadoras do que ela conseguia imaginar
nos seus mais negros pensamentos. Onde, naquele quadro, estava a mãe todo-
poderosa que sabia sempre o que ia na alma da filha antes desta o pronunciar,
que ria dos medos que Corinn tinha de dragões, de cobras gigantes e de
monstros? Onde estava a heroína que afugentava estas criaturas pelo simples
facto de entrar no quarto, só com um sorriso, apenas por chamar por ela? Onde
estava a bela mulher em cujo colo Corinn se sentara enquanto ela se encontrava
atarefada com deveres oficiais, a mulher que a todos servia de exemplo? Ainda a
deixava atónita o modo como as coisas haviam mudado de modo tão célere, sem
sequer uma sugestão velada de que existia um sentido para tudo aquilo.
Por mais doloroso que fosse, agravava-se ainda mais pelo facto de ela se
ver a si própria em cada parte do corpo moribundo da mãe. A mãe dera-lhe a
forma do rosto, o jeito dos lábios, o padrão das linhas da fronte. Tinham as
mesmas mãos: a mesma proporção e comprimento, o mesmo tipo de
articulações, as mesmas unhas finas, a mesma inclinação do dedo mindinho. A
menina de dez anos agarrara entre as mãos uma envelhecida e desvanecida
imagem decadente de si própria, como se fosse uma estranha confluência do
passado e do presente ou do presente com o futuro.
Embora muitas vezes passasse os dias com um otimismo juvenil, parte dela
sentia-se importunada pelo medo de não sobreviver a esse ano. Ou, se
sobrevivesse, seria só para que primeiro ganhasse tudo, depois perdesse tudo e
depois morresse. Sentira-se assim quando tinha dez anos, e depois com onze e
doze anos, e por aí fora, mas o sentimento continuava tão forte como sempre. O
facto de contrabalançar estes pensamentos mórbidos com uma natureza
efervescente era tão confuso para ela própria quanto seria para aqueles que a
viam do exterior. Escondia as suas negras meditações o melhor que podia, tanto
por a alarmarem como por a envergonharem. Lembrava a si própria
frequentemente que todo o ser viva enfrentava a morte, e a poucos era oferecida
uma vida com tão rico potencial como a dela. Mas talvez estivesse enganada.
Talvez viesse a viver uma longa e feliz existência; talvez até encontrasse um
modo de viver para sempre, sem idade e jamais tocada pela doença.
Na manhã em que deveria dar as boas-vindas à delegação da nação de
Aushenia, Corinn olhou durante muito tempo para o espelho do toucador,
contemplando o seu reflexo. Inclinou-se sobre o tampo e pegou numa escova de
crina de cavalo usada para aplicar a maquilhagem. Mergulhou-a num pó feito de
conchas moídas e passou-a sobre as faces. Esperava que o brilho
conchas moídas e passou-a sobre as faces. Esperava que o brilho
complementasse o cintilar das fibras prateadas do vestido, elegante e da cor do
azul do céu, que lhe delineava a figura. Apesar dos pensamentos mórbidos,
estava agradada com as perspetivas dos próximos dias. Não tinha — como
Aliver — de suportar as loucas formalidades dos encontros oficiais. Porém, ao
contrário de Mena e de Dariel, já tinha idade suficiente para exercer funções em
algumas praxes oficiais. Desta vez serviria de anfitriã e guia ao príncipe de
Aushenia, Igguldan.
Apesar dos avisos da sua camareira de que o dia iria estar frio, usava apenas
uma fina combinação sob o vestido. Podia aguentar o frio, dissera; mas não
suportava ver-se deselegante. Como única concessão ao clima, decidiu vestir
uma peça nova que lhe fora enviada de Candovia, uma faixa de pele branca
enrolada ao pescoço e que prendeu com um alfinete. Achava que a écharpe lhe
conferia uma certa elegância. Esperava que sim, pois não era tão apta a vestir-se
para o tempo frio como era em lidar com as três estações quentes que Acácia
proporcionava.
Corinn encontrou-se com o príncipe de Aushenia nos degraus do salão de
Tinhadin. Ela estava de pé, rodeada por vários servidores, um tradutor, e alguns
ajudantes do gabinete do chanceler. Todos eles estavam emoldurados pelos
pilares de granito da fachada do salão, grosseiramente esculpidos e marcados
pela idade e pelas intempéries. Sendo de uma época arquitetónica mais antiga do
que a maior parte da cidade, o salão fora construído quando os líderes da nação
pareciam desdenhar as linhas suaves e os arcos de cidades refinadas, como as da
costa de Talayan, às quais futuras gerações iriam buscar inspiração.
O príncipe estava vestido de modo simples. Corinn talvez tivesse ficado
algo desiludida com isso, mas os modos do príncipe demonstravam tal cortesia
que ela teve de reconhecer que as suas maneiras eram irrepreensíveis. Caminhou
com o olhar baixo, de braços muito juntos ao corpo e palmas das mãos
estendidas na direção dela. Tanto ele como o seu séquito acertavam o passo
enquanto subiam, de modo a moverem-se como se fossem uma única alma.
Quando o jovem príncipe chegou ao degrau abaixo dela, parou. Ergueu os olhos,
encontrou os dela e manteve o olhar apenas ligeiramente mais tempo do que o
apropriado. Sentiu-se inclinada a perdoá-lo, tanto por causa do sorriso timorato
vincado que tinha como por saber que o seu vestido, a écharpe de pele branca ao
pescoço, o intrincado entrançado do seu cabelo e o pó de conchas brilhante que
lhe realçava as faces se combinavam para causar um efeito impressionante.
Os traços fisionómicos de Igguldan eram típicos de Aushenia: o cabelo cor
de palha tingido de acaju, os olhos intensamente azuis, como se fossem contas
de vidro iluminadas por dentro. Corinn pensara um dia que a pele pálida e
de vidro iluminadas por dentro. Corinn pensara um dia que a pele pálida e
sardenta nada era comparada com o tom moreno cremoso dos acácios ou a pele
quase negra dos talayanos, mas, ao olhar para Igguldan, sentiu-se atraída por
aquela tez. Apetecia-lhe estender a mão e tocá-lo, mesmo abaixo dos olhos, e
passar os dedos de sarda em sarda.
Levou o grupo numa visita guiada aos edifícios principais da área superior
da cidade, passando pelas várias alas do palácio, até junto dos campos de treino e
passando em redor dos edifícios governamentais. Os aushenianos ficaram mais
entusiasmados ao depararem com os macacos dourados que percorriam os
terrenos e até mesmo dentro do palácio. No seu reino não existiam tais animais,
explicaram. Corinn assentiu, pouco impressionada. Vira aquelas criaturas todos
os dias da sua vida. Eram pequenos, do tamanho de gatos, com pelo sedoso que
ia do amarelo até quase ao carmesim. Tinham um qualquer significado sagrado,
mas Corinn não se recordava de qual e não o mencionou.
Acabaram por ir dar às antigas ruínas que abrigavam as pedras da fundação
de uma das primeiras torres defensivas de Edifus. Os restos arruinados desta
estrutura estavam protegidos por um edifício moderno, uma espécie de pavilhão
empoleirado em colunas arqueadas e que permitia vistas para três das direções
da bússola. No centro havia uma estátua de Elenet quando jovem. Um dos
ajudantes do chanceler destacou-se do grupo para recitar a história do primeiro
feiticeiro, e que, de muitas formas, era também a história do Doador.
No princípio do mundo, entoou o ajudante, uma figura divina conhecida
como o Doador criara o mundo enquanto manifestação física da alegria. Esse
deus dera forma a todas as criaturas da terra, incluindo os seres humanos,
embora não diferenciasse os seres humanos das outras criaturas. Caminhou pela
terra cantando, enquanto tudo ia criando através do poder da palavra. A sua
língua era o fio, a agulha, o padrão pelo qual o mundo fora tecido. Nessa bem-
aventurança, contudo, penetrou a maldade. Um ser humano, um órfão de sete
anos, Elenet, viu um dia o deus passando pela sua aldeia. Aproximou-se do
Doador e ofereceu-se-lhe como servo, para que pudesse ficar próximo da graça
daquele ser divino. O deus, comovido, acolheu-o. Porém, Elenet não era como
os outros animais que seguiam o Doador. Elenet não podia deixar de ouvir a
canção do deus. Aprendeu as palavras da canção. Veio a compreendê-las e a
reconhecer o seu poder. Deleitava-se na possibilidade de ele próprio as usar.
Quando aprendeu o suficiente, fugiu.
— Tornou-se o primeiro Falante de Deus — explicou o ajudante. —
Ensinou o seu conhecimento a alguns outros escolhidos. Quando o Doador soube
do engano de Elenet, ficou desiludido. Virou as costas ao mundo e ficou
silencioso. Nunca mais foi visto a caminhar pela terra. Nunca mais cantou. É por
silencioso. Nunca mais foi visto a caminhar pela terra. Nunca mais cantou. É por
isso que o mundo agora é como é.
A julgar pelo modo como Igguldan se ajoelhou sobre uma perna e correu as
mãos sobre as fissuras da antiga pedra, murmurando algo para si próprio, o conto
já lhe era bem conhecido e afetava-o bastante. Corinn teve vontade de deitar um
olhar severo perante a sua sinceridade, mas, ao longo da hora seguinte, o
príncipe demonstrou ser um companheiro bastante agradável. Falava um
acaciano quase perfeito, como praticamente todas as pessoas do seu séquito.
Passado algum tempo, o intérprete e os ajudantes do chanceler foram ficando
para trás no grupo, que se dividiu em grupos mais pequenos, como se fossem
crianças nalguma excursão educativa.
— Penso por vezes — disse Igguldan — se será verdade que Edifus terá
sido um dia um dos discípulos de Elenet. Era um feiticeiro, ouvi dizer. Foi por
isso que ele — e Tinhadin a seguir a ele — tiveram um triunfo tão completo. O
que achais, princesa?
— Não pensei muito sobre isso, mas não vejo razão alguma para acreditar
em magia. Se o meu povo tivesse tido tal dom, então por que razão não o teria
ainda?
— Então não o tendes? — inquiriu Igguldan, sorrindo. — Não podeis, por
exemplo, lançar-me um feitiço e obrigar-me a fazer a vossa vontade?
— Dificilmente preciso de magia para fazer isso — respondeu Corinn, em
tom zombeteiro, proferindo estas palavras tão naturalmente mesmo antes de ter
pensado nelas. Sentiu o calor subir-lhe pelo peito até ao pescoço. —Talvez
tenhamos criado contos de magia mais tarde, como forma de explicar tudo o que
Edifus conseguiu. A grandeza é difícil de ser entendida pelas pessoas menores.
— Talvez seja assim... — O príncipe tamborilou com os dedos na pedra
envelhecida pelo tempo, pôs-se na ponta dos pés por um instante e contemplou a
paisagem que se espraiava lá embaixo, até ao oriente. — Creio então que serei
um homem de menor valor, porque amo as Velhas Histórias tal como são. A
vossa erudição, de facto, tem um grande papel nas nossas lendas. Em Aushenia,
não duvidamos de que os homens e as mulheres praticaram magia, outrora, e que
o vosso povo a usou para dominar o mundo. Existe um poema maravilhoso sobre
como os seres humanos adquiriram esse conhecimento. Não o recitarei agora por
receio de me enganar, mas talvez mais tarde venha a ter oportunidade de o
cantar.
— E onde está a magia agora? — perguntou Corinn. — Não vejo nenhum
feiticeiro por aqui.
O príncipe de Aushenia sorriu, mas nada mais disse. Quando saíram das
ruínas de Edifus, seguiram o caminho de volta na sua lenta subida até ao
Descanso do Rei e Corinn admitiu:
— Não conheço muito sobre o vosso povo. Como são os aushenianos?
— Iríeis achar Aushenia muito fria. Não tanto como o Mein — lá mal veem
o sol no inverno e pode nevar em qualquer dia do ano, mesmo no pino do verão.
Em Aushenia não é assim. É verdade que temos um verão curto, mas é vibrante.
Todas as criaturas e plantas aproveitam bem os poucos meses que têm. Na
primavera, os botões de flor e as novas sementeiras despontam de debaixo da
neve, como se por um dia o Doador lhes desse liberdade e, depois, nada os
pudesse deter. No verão, o tempo é bastante quente. Vamos nadar para os lagos,
a norte. Alguns até vão nadar no mar. Em Killintich, temos uma prova de
natação e de corrida, no solstício de verão, todos os anos. Os participantes
nadam do cais do castelo até um ponto do outro lado do porto. Depois, nadam de
volta até ao cais. Leva um dia inteiro.
Os dois pararam um momento junto ao último degrau da escadaria. Os
outros seguiam-nos a alguma distância. Corinn disse:
— É engraçado, num minuto dizeis que é fria e, no seguinte, falais-me em
botões a despontar e em natação. Qual é a verdade, príncipe?
— Num lugar tão a norte como Aushenia, não é o frio que mais nos afeta.
São os momentos em que o frio se afasta.
Corinn respondeu a isto com um aceno de cabeça e os dois permaneceram
alguns momentos em silêncio.
— Mas somos como a vossa nação, em muitos aspetos. O meu povo gosta
de aprender, tal como o vosso. Alguns dos nossos melhores alunos chegam a ter
formação em Alecia. Sabeis disso, tenho a certeza. Aushenia foi o primeiro país
do norte a aliar-se com Edifus contra o Mein. Infelizmente, a aliança não
sobreviveu depois de o conflito ter terminado. É por isso que o meu pai deseja
que o vosso nos honre com a sua presença. O meu pai não se encontra bem,
compreendeis. Não pode viajar, mas passou toda a sua vida a trabalhar para
chegar a uma aliança com o vosso povo. Ele acredita que seríamos mais fortes se
nos uníssemos.
Os outros ainda não os tinham alcançado, mas Igguldan subiu mais um
degrau e Corinn imitou-o. Subiram juntos, preservando a sua solidão um pouco
mais.
— E somos poetas — disse o príncipe.
— Poetas?
— Poetas?
— É desse modo que guardamos a nossa história, em poemas épicos
cantados pelos nossos bardos. Nos nossos tribunais, os casos são discutidos em
verso. É uma formalidade estranha, mas leva multidões aos casos mais
complicados.
— Que estranho — retorquiu Corinn, embora aquilo não lhe parecesse
realmente assim tão estranho. Não tinha paciência para procedimentos oficiais
de todo. Talvez se toda a burocracia governamental fosse falada em verso, ela
conseguisse suportá-la melhor.
— Sois o filho mais velho na vossa família? — perguntou Corinn. Igguldan
assentiu.
— Sou. Tenho três irmãos mais novos, e dois da segunda mulher de meu
pai.
Corinn tentou erguer uma sobrancelha, embora o que acontecesse foi que
ambas divergiram em direções erráticas.
— Uma segunda mulher?
— Bem... sim, o meu pai cumpriu os velhos códigos, tomando duas
mulheres para garantir um herdeiro. Não precisava de se ter dado ao trabalho,
mas... estava apenas a ser cauteloso.
— Compreendo. Também tendes tendência para ser cauteloso?
— Não. Casarei apenas uma vez.
Haviam chegado à varanda alta nas traseiras do Descanso do Rei. Corinn
pousou as pontas dos dedos na balaustrada de pedra e ergueu o queixo,
apontando-o para a vastidão límpida de mar verde-azulado que se espraiava
perante eles.
— Assim o dizeis. Deveis ter muitas beldades no vosso país — tantas que
um homem pode casar com mais do que uma.
— Estais enganada. Trata-se precisamente do modo contrário. As mulheres
têm metade das virtudes das mulheres de Acácia. Acreditai-me... — O príncipe
tocou nas costas da mão de Corinn. — Princesa, no dia em que tiverdes a
gentileza de visitar Aushenia, sereis saudada como a mais bela mulher no país, e
eu serei o primeiro dos vossos admiradores.
O príncipe não podia ter conjurado mais eficiente elogio para cativar o
agrado de Corinn. Com aquela simples frase, fizera-lhe um cumprimento,
aludindo à sua fidelidade duradoura, e prometera-lhe admiração universal. Ela
permaneceu muda durante alguns instantes, sentindo um formigueiro nos dedos,
permaneceu muda durante alguns instantes, sentindo um formigueiro nos dedos,
imaginando a possibilidade de poder passar a sua vida como um cisne rodeado
por patos. Respondeu ao príncipe de forma evasiva, e prosseguiu com a visita,
mas decidiu descobrir tudo o que pudesse sobre Aushenia. Talvez tivesse
acabado de encontrar o seu futuro marido. Toda a gente sabia que Acácia e
Aushenia ansiavam por uma aliança conjunta. O seu casamento poderia ser um
golpe político. Poderia ser princesa de uma nação, rainha de outra. Tal era algo
por que valia a pena ansiar.
Capítulo 9
Como todos os aushenianos que Aliver vira até então, Igguldan vestia
orgulhosamente o seu traje nacional: calças em pele, compridas, bem justas à
perna, uma túnica verde de mangas compridas tendo por cima um colete azul, e
usava um chapéu de feltro colocado à banda na cabeça. No fundo, era um traje
simples, do género que se veste para uma caçada. Isto condizia com o carácter
nacional. Os aushenianos adoravam as florestas ondulantes do seu país e
gostavam de se imaginar ainda como caçadores, tal como os seus antepassados
haviam sido. Pela compleição robusta e membros compridos do príncipe, Aliver
sentiu que talvez ainda o fossem.
Aliver queixara-se um dia ao pai que as outras nações não deviam ter sido
autorizadas a manter a sua realeza. Que sentido tinha um rei ter domínio sobre
outros reis? Minava a sua autoridade, ameaçava fazer dos outros iguais a eles.
Não deveria haver somente um monarca para todo o império? Leodan
respondera com comedida paciência. Não, dissera, isso não seria vantajoso.
Todas as nações do Mundo Conhecido — para além de Aushenia — lhes eram
subservientes de muitas maneiras, em todos os assuntos de importância. Eram
povos conquistados, mas mantinham o seu orgulho. Manter os seus reis e
rainhas, os seus costumes e características, permitia-lhes manterem o seu
orgulho. Isso era importante porque um povo sem sentido de si próprio era capaz
de tudo.
— Não te custa nada tratar ocasionalmente alguém pelo seu estatuto real —
dissera. — Deixa-os ser o que são, e que o nosso domínio sobre eles seja tão
suave como a mão de um pai sobre os ombros do filho.
Não foi o contingente completo do Conselho do Rei que foi ao encontro do
príncipe ausheniano. Alguns membros de categoria mais elevada enviaram os
secretários em seu lugar — algo que fez Leodan resmungar para si. Thaddeus
encontrava-se ao lado do rei, assim como Sire Dagon, da Liga dos Navios, e
muitos outros dignitários, para conferir ao encontro a devida importância. O
príncipe estrangeiro encontrava-se rodeado por outros representantes da sua
nação, como conselheiros e embaixadores experientes. Aliver sabia que o
príncipe era apenas três anos mais velho do que ele, mas, no cumprimento da sua
missão, parecia um dignitário com muito mais prática. Os homens mais velhos
prestavam-lhe deferência. Antes de lhe dirigirem a palavra, pediam-lhe
prestavam-lhe deferência. Antes de lhe dirigirem a palavra, pediam-lhe
autorização com o olhar. Ele conversava à vontade com Leodan e Thaddeus, e
recitou uma longa saudação do seu pai, Guldan, que mais parecia um poema,
pelo seu ritmo e no uso ocasional de rima. Aliver poderia ter-se sentido posto à
margem, ao ver um jovem mais à-vontade do que ele em tal papel, mas era
difícil não se gostar de Igguldan, com o seu rosto sincero e maneiras sorridentes.
— Gentis conselheiros de Acácia, — proferiu Igguldan —, na verdade,
nunca vi ilha mais bela, e palácio mais impressionante, do que estes. A vossa
nação é abençoada e Acácia é a joia central na mais rica das coroas.
Falou durante algum tempo como se o seu único objetivo fosse cantar
louvores à cultura acaciana. Como amava cada vista que se tinha da cidadela
alta! Como ficara maravilhado com a qualidade do trabalho em pedra, a
funcionalidade artística da arquitetura acaciana, a refinada demonstração de
riqueza despretensiosa. Nunca provara prato tão delicioso quanto o peixe-espada
grelhado da noite anterior, preparado ao lume à sua frente, e embebido num
molho de um qualquer fruto doce que nunca antes imaginara existir. Toda a
gente que ali conhecera agia de modo tão cortês e digno que iria levar para a sua
terra uma nova perceção de modelo de comportamento. Vindo de uma nação
mais pequena, presa das intempéries da natureza e do que isso acarretava no
comportamento humano, ficara incrédulo perante a sublime mescla de poder e
tranquilidade que reinava em Acácia.
Tinha um modo tão cortês de se exprimir que Aliver levou algum tempo a
reparar em que altura o príncipe mudou o foco do discurso para o verdadeiro
assunto da sua visita. Na altura em que se apercebeu, Igguldan declarava que a
nação a que pertencia tinha orgulho na sua longa história como um estado livre e
independente. Sabia que não teria de lembrar a nenhum dos presentes ali
reunidos sobre o papel que Aushenia desempenhara em manter a segurança e a
paz de Acácia. Fora o poder combinado de Aushenia e Acácia que havia
derrotado os seus inimigos comuns há muitos anos atrás. Poderiam ter tido
relações algo turbulentas, numa ocasião ou outra, em épocas distantes, mas era o
espírito da antiga relação que mantinham que o seu pai desejava agora que fosse
lembrado.
— É por isso que venho trazer o pedido de meu pai para que admitam
Aushenia pacificamente no império acaciano, como uma província parceira a par
de Candovia, Senival ou Talay. Se nos aceitarem, Guldan jura que a vossa nação
lucrará com isso e que nunca se virá a arrepender da decisão.
Ali estava ele, pensou Aliver, apresentando de forma mais clara do que
imaginara, o conteúdo da proposta. A resposta acaciana, contudo, não era tão
simples. Os membros do Conselho do Rei crivaram o jovem de perguntas.
simples. Os membros do Conselho do Rei crivaram o jovem de perguntas.
Quando lhe perguntaram sobre se Guldan revogaria o decreto da rainha Elena —
aquela altiva declaração de eterna independência — Igguldan retorquiu que as
palavras da rainha eram verdade para a época em que vivera. Não era possível
voltar ao passado e mudar o rumo das coisas. Guldan nunca contradiria a rainha
Elena, mas falava no presente, deste momento, dos dias e anos vindouros.
Thaddeus perguntou que infortúnio atingira Aushenia para, depois de tanto
tempo, vir suplicar um lugar à mesa do banquete.
— Nenhum grande infortúnio, senhor, mas vivemos há demasiado tempo
fora dos círculos das trocas comerciais do império. Existe um espírito novo entre
o meu povo que prefere olhar para o futuro com um olhar diferente. Vemos
agora oportunidades que antes não vislumbrávamos. O meu pai é o primeiro a
ver isso entre nós.
— Hum — retorquiu Thaddeus, pouco impressionado. — Encontram-se
então numa situação assim tão terrível?
Sentiu-se no tom de voz do príncipe um ligeiro agravo ao refutá-lo.
Aushenia, explicou, era uma nação modesta, mas nunca fora pobre. Eram ricos
em âmbar, uma pedra preciosa conhecida em todo o mundo. Os seus enormes
pinheiros davam a melhor madeira para navios no Mundo Conhecido. E as suas
árvores produziam uma seiva que, através de um processo secreto, gerava um
pez que impermeabilizava os cascos dos navios contra as águas e os danos
causados pelo sal e pelos vermes. Isto, sabia, constituía um benefício para
qualquer nação que navegasse no oceano profundo.
Igguldan parecia tentado a continuar, mas Sire Dagon aclarou a voz para
falar. Até agora mantivera-se silencioso e tranquilo, a uma das extremidades da
mesa, mas Aliver sentira o poder da sua presença durante o tempo todo. A Liga
dos Navios. O seu pai murmurara uma vez que não havia força mais formidável
em todo o império.
— Pensas que domino o mundo? — perguntara, sardónico e misterioso ao
mesmo tempo. A Liga surgira do caos anterior à época de Edifus, como uma
união informal de navegadores, um vago aglomerado de piratas, no fundo. Sob o
domínio de Tinhadin, ganharam o contrato de navegação para as novas trocas
comerciais com os Lothan Aklun. Com esta legitimidade, produziu-se tal riqueza
que evoluíram para um monopólio que controlava todo o comércio marítimo.
Pouco tempo depois, constituíam uma entidade diversificada com influência em
todos os setores do Mundo Conhecido. Uma vez ganho o controlo efetivo sobre
a força naval acaciana — um acordo mediado quando o sétimo monarca Akaran
dissolvera a sua problemática marinha e procurara a Liga como uma alternativa
dissolvera a sua problemática marinha e procurara a Liga como uma alternativa
eficiente — tornaram-se num poder militar, inclusive com um exército privado,
o Inspectorado Ishtat, que, afirmavam, era uma mera força de segurança para
proteger os seus interesses.
Sire Dagon tinha um aspeto tão estranho como qualquer um dos outros
homens da Liga. O seu comportamento era mais o de um sacerdote de alguma
antiga seita do que o de um mercador. O crânio fora de tal modo apertado e
moldado na infância que se tornara alongado, sendo o alto da cabeça parecido
com um ovo. Tinha o pescoço invulgarmente comprido e estreito, efeito
conseguido pelo uso de vários anéis que usava ao pescoço enquanto dormia,
aumentando lentamente de número ao longo da vida. Falava num tom de voz
apenas o suficientemente alta para poder ser ouvida, num timbre estranhamente
atonal, como se cada palavra ansiasse por negar que fora sequer pronunciada.
— A vossa nação tem quantos habitantes?
O jovem príncipe fez um gesto ao seu ajudante e o homem mais velho
respondeu. De cidadãos livres tinham trinta mil homens, quarenta mil mulheres,
quase trinta mil crianças e os velhos eram pouco numerosos, visto os
aushenianos preferirem acabar com a vida assim que se sentiam improdutivos.
Tinham uma ampla população de mercadores estrangeiros no país, de que se não
conhecia o número, e mantinham uma pequena classe de servos que rondaria as
dez mil a quinze mil almas.
Quando o homem acabou, Igguldan proferiu:
— Mas sabeis disto. Há algum tempo que nos apercebemos de que estamos
a ser vigiados por agentes da Liga.
— Tenho a certeza de que estais enganado — retorquiu Sire Dagon, embora
não esclarecesse em que aspeto errara o príncipe. — No passado, o vosso povo
colocou objeções ao nosso sistema de comércio. Deveremos acreditar que isso
mudou? O vosso pai cumpriria todos os nossos requisitos, como cabe a uma
nação com posição no seio do império? Sabeis qual o produto com que fazemos
comércio e o que recebemos em troca?
Na pausa que se seguiu antes da resposta de Igguldan, Aliver transferiu o
olhar do rosto dele para o dos outros membros do conselho, para a expressão do
pai e de novo para a do representante da Liga. Sentiu a pulsação acelerar-se com
uma sensação de perigo, e percebeu sinais da mesma tensão nos outros rostos,
mas em nenhum viu o género de confusão que sentia. A que produto se referia
Sire Dagon? Ao minério das minas, ao carvão de Senival, às mercadorias e
pedras preciosas de Talay, aos produtos exóticos do arquipélago de Vumu: estes
eram os produtos de comércio internacional. As mercadorias que Igguldan
eram os produtos de comércio internacional. As mercadorias que Igguldan
referira também teriam compradores. Porém, se era a estes bens que se referia,
por que razão falara com um tom de tão sinistra importância?
Igguldan respondeu ao homem da Liga com um aceno relutante.
Agradado, Sire Dagon pousou uma das mãos de longos dedos sobre a outra
e colocou-as sobre o tampo da mesa. A joia que trazia num dos enormes dedos
refletiu por um momento um fulgor de luz.
— Com tempo, e sendo razoáveis, todos os povos acabaram por achar o
nosso sistema atrativo. Todos viram os benefícios que oferecemos. Mas, por
causa disso, temos de proteger o que já estabelecemos. Encontrámos um
equilíbrio. Não o queremos perturbar. Por causa disto, os novos partidos não são
inteiramente bem-vindos nesta altura. Tenho a certeza de expressar a vontade do
rei ao mencionar isto. — Sire Dagon fez um gesto a Leodan sem sequer olhar
diretamente para ele. Depois pareceu mudar de atitude. — Por outro lado...
dizei-me, as vossas mulheres são férteis?
Igguldan deu uma gargalhada, mas depois conteve-se, visto ninguém o ter
acompanhado no riso. Olhou em volta e, a seguir, para Sire Dagon novamente. O
seu rosto demonstrava ter compreendido que, fosse qual fosse a piada insinuante
que julgava que o homem da Liga estava a fazer, fora um mal-entendido.
Seguiu-se uma discussão que Igguldan claramente achou tão estranha quanto
Aliver. Os ajudantes de Aushenia vinham preparados para a questão. Citaram
estatísticas sobre as idades em que as mulheres aushenianas atingiam a
maturidade sexual, sobre a frequência com que engravidavam, e a taxa de
mortalidade infantil.
Por instantes, Aliver julgou ver um sorriso esboçar-se nos cantos da boca de
Sire Dagon, mas depois não teve a certeza se seria essa a verdadeira
interpretação da expressão. O homem da Liga guardou fosse qual fosse a
resposta que poderia ter dado e, simplesmente, retirou-se novamente para o
silêncio enigmático que mantivera até ali. A reunião prosseguiu sem mais
nenhuma palavra por parte de Sire Dagon.
Leodan parecia feliz por as conversações mudarem de rumo.
— Ouço a vossa convicção, príncipe, e admiro-a. Mas eu também há muito
que admiro a independência da vossa nação. Sois os últimos no Mundo
Conhecido a permanecerem sozinhos; para alguns de nós o vosso povo foi...
bem, uma inspiração.
— Meu senhor, — disse Igguldan —, não se alimenta, veste e toma conta
de uma nação simplesmente através da inspiração. Nós, aushenianos, nada temos
que nos envergonhe, mas é óbvio para nós que o mundo se afastou do modelo
que nos envergonhe, mas é óbvio para nós que o mundo se afastou do modelo
que durante tanto tempo desejámos.
— E qual é? — perguntou Thaddeus. — Avivai-nos a memória.
— Aushenia foi, durante algum tempo, governada por mulheres de grande
prestígio e sabedoria. A nossa rainha Elena, nos seus decretos, propôs que o
Mundo Conhecido fosse composto por uma federação de nações livres e
independentes, nenhuma subserviente a outra, todas fazendo trocas comerciais
dos bens que melhor produzem, cada uma seguindo os seus costumes e carácter
nacional, honrando as antigas tradições e religiões, embora estendendo a mão da
amizade a outras. Foi isto que Elena propôs a Tinhadin.
Um dos membros do conselho observou que este sistema talvez funcionasse
a um nível de subsistência — cada nação poderia aguentar-se e ficar em grande
parte em igualdade de condições — mas nenhuma alcançaria a riqueza,
estabilidade e a produtividade que a hegemonia acaciana criara com a ajuda do
comércio gerido pela Liga. Teriam permanecido ilhas cheias de fervor nacional,
sempre em escaramuças entre si, tal como haviam sido antes das Guerras da
Distribuição.
Igguldan não tentou contradizê-lo. Fez um gesto de assentimento e apontou
para o palácio à sua volta, demonstrando que tudo aquilo era um testemunho da
verdade daquele argumento.
— A rainha ter-vos-ia respondido dizendo que o que é mais grandioso não é
sempre o melhor, especialmente quando a riqueza é detida por uns poucos e
alimentada pela labuta de muitos. — Igguldan baixou a cabeça e passou uma
mão pelo cabelo. — Mas não foi sobre isso que eu cá vim falar. Elena pertence
ao passado, nós olhamos para o futuro.
— Por vezes, ainda visiono o mundo que a vossa rainha sonhou —
retorquiu Leodan.
— Eu também, — respondeu o príncipe — mas só de olhos fechados. Com
os olhos abertos, o mundo é algo de muito diferente.
Após a reunião ter acabado, uma hora e pouco depois, o rei tomava chá com
Aliver e o chanceler. Os dois homens dialogaram durante algum tempo,
deixando a conversa divagar de um aspeto da reunião para outro. Aliver ficou
surpreendido quando o pai perguntou:
— Que pensas de tudo isto? Fala sinceramente.
— Eu? Penso que... o príncipe me parece ser o género de pessoa razoável.
Nada de mal posso dizer dele ainda. Se representa verdadeiramente o seu povo,
isso é bom para nós, não é? Apenas me interrogo sobre a razão de só agora se
quererem unir a nós, visto nos terem em tão alto apreço?
quererem unir a nós, visto nos terem em tão alto apreço?
— Unirem-se a nós significa muitas coisas boas — respondeu Leodan. —
Têm razão em terem hesitado, mas desde há algum tempo que vêm
demonstrando que serão nossos amigos se nós formos amigos deles.
Thaddeus fez um sinal com a mão de que as coisas não eram assim tão
simples.
— Como sempre, o vosso pai é generoso nas palavras que profere.
— Não, o que digo é mesmo assim. Há muitos anos que eles nos estendem
uma mão de amizade. Simplesmente, nós ainda não a agarrámos.
— E ainda bem que o não fizemos. A nossa paciência valeu a pena. — O
chanceler falou como se estivesse a dirigir-se ao rei, mas os seus olhos fitaram
os de Aliver o tempo suficiente para indicar que estava a delinear os assuntos de
forma mais completa para seu benefício. — O que o príncipe não admite é que
Aushenia deve estar a passar um mau bocado. Admira-me que tenham
permanecido fora do império tanto tempo sem terem sucumbido ao fardo
financeiro que isso implica. Têm alguma riqueza mineral, sim, florestas que
produzem muito, e vários bons portos, e o âmbar e o pez que Igguldan
mencionou, mas, sem a Liga para poderem fazer comércio, pouco têm
conseguido com isso. São um povo orgulhoso, mas foram forçados a vender os
seus bens no mercado negro, a traficar com piratas. Isto não se encaixa bem em
todo aquele idealismo. Estão a fazer esta proposta tão diretamente porque
precisam de nós mais do que nós precisamos deles. Se os aceitarmos, será um
assunto delicado gerir o seu estatuto no seio do império. Existem muitos fardos
sobre um novo Vedel, um membro conquistado de nível inferior. Terão de
aceitar isto sem o considerar um insulto, apesar de, na verdade, entrarem como
um Vedel ser algo insultuoso.
— E se não entrarem como Vedéis? — perguntou o rei.
— Tem de ser assim, contudo. Pelas antigas leis, não existe outra categoria.
Tinhadin foi muito claro de que todo o mundo tinha a opção, na sua época, de se
unir a ele ou lutar contra ele. Quando Aushenia se recusou a aceitar a hegemonia
de Acácia, decidiu o seu destino. — Thaddeus parou apenas para sorver um gole
de chá, e depois ergueu a voz para responder ao argumento que antecipou. — As
gerações entre essa época e o presente nada mudaram. Qualquer líder de
qualquer nação compreende que as suas decisões afetarão todas as gerações
vindouras. Quando a Rainha Elena rejeitou a oferta de Tinhadin, sabia que o seu
povo viveria para sempre com as consequências de tal ato.
Leodan disse:
Leodan disse:
— Thaddeus coloca as coisas a preto e branco num mundo de milhares de
cores. Na verdade, não conquistámos nem derrotámos Aushenia nas antigas
guerras. Não tivessem eles sido também inimigos do Mein e talvez não
tivéssemos prevalecido. Eles têm vivido durante centenas de anos sem ser como
aliados, como vassalos ou como inimigos.
— Sim, centenas de anos — retorquiu Thaddeus — e isso não pode mudar
de um dia para o outro. Na verdade, Aliver, claro que o teu pai acolheria os
aushenianos. Ele é um idealista. Quer um mundo pacífico no qual todos são
bem-vindos à mesa. Não gosta de reconhecer que, para existir uma mesa, muitos
têm de ser excluídos dela. Isto é algo em que a Liga, contudo, baseia todas as
suas decisões. É por isso que será improvável que seja permitido a Aushenia
entrar. A Liga tem um veto em cada expansão do império deste género. Pressinto
que estejam tentados a aceitar Aushenia, mas que, no entanto, hesitam, por
qualquer razão que talvez nunca venham a explicar-nos. Algo que o teu tutor
talvez ainda não te tenha explicado completamente ainda, Aliver, é que o
império é tanto um empreendimento comercial como imperial. Nesta área, a
Liga tem a última palavra. Conhecemos apenas uma parte de como a Liga
conduz os seus assuntos, mas, se eles não quiserem que Aushenia entre, então
Aushenia continuará de fora.
Leodan levou as mãos ao rosto, parecendo fatigado pela conversa.
— E isto, filho, é o assunto reduzido à sua essência.
— A preto e branco — retorquiu Thaddeus.
Capítulo 11
O assassino viajara até Acácia em completo segredo porque não tivera outra
opção. Se alguém tivesse sabido da missão de Thasren, teria havido demasiadas
oportunidades de ser traído. Havia muita gente por todo o império que se
queixava do domínio de Acácia, mas não podia confiar em ninguém fora das
portas da sua cidade-capital. Nem sequer recorreu aos agentes já escondidos
dentro de Acácia, muitos deles agindo há anos, outros há gerações. Quem
poderia ter a certeza de que a vida nestes climas do sul não os tivesse
corrompido? Assim, orientou-se pela cidade baixa e a partir daí passou a porta
principal disfarçado de operário. Passou despercebido pelas ruas repletas de
gente atarefada com uma facilidade que o encheu de repugnância por aquelas
pessoas. Nenhum estranho poderia vaguear assim sem ser notado pelas ruas de
Tahalian. Qual a utilidade de viver em tão formidável fortaleza se um agente
inimigo ali conseguia penetrar tão facilmente? A ilha era um desperdício nas
mãos daquela gente. Sentiu o coração palpitar de antecipação ao olhar em volta
para toda aquela riqueza ostentosa. Sob o controlo do Mein, uma Acácia
rebatizada seria um bastião impenetrável. Alegrou-se ao imaginar isto, apesar de
saber que não viveria para ver esse glorioso dia com os seus próprios olhos.
Fazendo algumas perguntas a um ou outro transeunte de pele escura,
descobriu o caminho que levava ao bairro que albergava os dignitários
estrangeiros. Embora fingindo estar ocupado com qualquer coisa, ficou à espera
do único contacto que planeara fazer. Não demorou muito a encontrá-lo. Na
terceira tarde na cidade, reconhecera o embaixador do seu povo em Acácia. O
cabelo, outrora louro, de Gurnal, adquirira uma tonalidade brilhante metálica,
como muitas vezes acontece aos homens do Mein que passam muito tempo no
sul. De início, vira apenas a sua cabeça por entre a multidão, mas, quando o
embaixador passou perto dele, viu que trajava vestes largas como um acaciano,
sandálias e meias de lã. Somente o medalhão que trazia ao pescoço demonstrava
as suas origens. Maeander tivera razão nas suas suspeitas; Gurnal esquecera-se
de quem era. Porque seria a atração pelo requinte sempre tão poderosa para
enfraquecer os homens? Porque seria uma nação erguida sobre mentiras tão
atrativa às pessoas que deveriam ter mais consciência?
Thasren tinha ainda estas questões a ocupar-lhe o espírito, nessa noite,
quando escalou a muralha de pedra e saltou para o pátio das traseiras da casa do
embaixador. Acreditava, pelas observações que fizera, que sabia exatamente
embaixador. Acreditava, pelas observações que fizera, que sabia exatamente
quantas pessoas viviam ali. Começou a procurar cada uma delas
meticulosamente. Caminhava devagar pela casa adormecida, parando em cada
sala para que os olhos se adaptassem a qualquer mudança de luz ou sombra.
Assegurou-se de que não embatia em nada, uma tarefa difícil, visto a casa estar
repleta de objetos inúteis, urnas decorativas e estátuas de tamanho humano,
cadeiras demasiado pequenas para que alguém se sentasse, animais
embalsamados em posturas vivas. Cada sala possuía uma fragrância diferente.
Apercebeu-se — talvez mais rapidamente do que teria conseguido durante o dia
— de que os cheiros provinham de flores diferentes.
Encontrou a filha do embaixador a dormir e manietou-a sem fazer barulho
algum. Tudo o que a rapariga fez foi erguer a mão por um instante, enquanto ele
lhe tapava a boca aberta com uma fita de tecido, como se não quisesse ser
acordada de um sonho agradável. O filho adolescente do homem tinha o sono
leve e era forte, e os dois lutaram por alguns momentos no escuro. Foi uma luta
estranha e abafada, mais bizarra ainda porque o rapaz não proferiu palavra
durante todo o tempo, mesmo quando o assassino lhe torceu os braços a ponto
quase de os partir. A mãe do rapaz arfou quando a lâmina curva da faca do
assassino lhe tocou na traqueia. Abriu os olhos e fitou-o, balbuciando o nome do
marido, mas, se isto fora uma súplica ou acusação, ele não tinha a certeza.
Amarrou ambos onde os encontrou, perfeitamente consciente do quão piedoso
estava a ser. Os três criados da casa eram outro assunto. Dormiam perto uns dos
outros e acordaram todos para o combater. Foi quase um alívio, uma libertação,
esfaqueá-los e escutar enquanto iam tombando quietos e silenciosos. A rixa
causara algum barulho e Thasren não se mexeu durante algum tempo, atento ao
mínimo movimento ou ruído que indicasse que tinha sido ouvido.
Gurnal deveria ter sentido qualquer coisa no silêncio da noite. Deveria ter
estado a pé, armado e pronto a atacar, mas estes anos em Acácia haviam-no
entorpecido. Mesmo quando o assassino entrou, rolava para um dos lados da
cama e depois para o outro lado, novamente, enredado na roupa do leito como
uma criança. Quando por fim se ergueu nos cotovelos, murmurou qualquer coisa
baixinho. Atirou as pernas por cima da cama, pôs os pés nus no chão e levantou-
se. Saberia que havia algo de errado? Se o sabia, não agiu como tal. Não se
apercebeu de Thasren de pé, nas sombras atrás do canto do guarda-roupa.
Balbuciou qualquer coisa e depois ergueu-se e dirigiu-se para o corredor.
O assassino deslizou do seu esconderijo, agachou-se rente ao chão. Com a
faca atingiu o homem na parte de trás dos joelhos, primeiro numa perna e depois
na outra, dois golpes rápidos como se tivessem sido executados por um talhante.
Quando Gurnal caiu, o assassino agarrou-o pela gola da camisa de dormir e
Quando Gurnal caiu, o assassino agarrou-o pela gola da camisa de dormir e
puxou-o para trás. No momento a seguir já tinha prendido os braços do homem
sob os seus joelhos fortes, com tal pressão que sentiu os músculos dos braços do
adversário deslizarem em redor do osso. Gurnal gritou com todas as forças que
tinha, até o assassino espetar a extremidade sangrenta da faca na ponta do seu
nariz. Isto bastou para o silenciar.
— A quem deves tu lealdade? — perguntou Thasren. Falou na língua
materna, de tons dissonantes, palavras que soavam a seixos do rio a fenderem
sob um cinzel.
O homem fitou, sem reconhecer, os olhos cinzentos do atacante, da mesma
cor que os seus.
— Ao Mein. Ao sangue de Tunishnevre, aos milhares que pereceram, com
quem... sou uno.
— É bom que profiras tais palavras. São as certas, mas serás tu o homem
certo?
— Claro — respondeu Gurnal. — Quem és tu? Por que razão me mutilaste?
Eu sou...
— Cala-te! Eu farei as perguntas. — O assassino mudou a posição em que
estava, de modo a colocar um joelho sobre o peito do homem numa postura que
lhe era mais confortável. — Quando estarás novamente perto do rei?
Gurnal demonstrou o seu desconforto com suspiros e esgares de dor. O
assassino apoiou mais peso em cima do peito do homem, até este cuspir uma
resposta. De início, falou com os olhos esbugalhados de incredulidade, como se,
simplesmente, não fosse possível ter acordado naquela situação, que estivesse
ferido como estava, e que a sua boca conseguisse responder a um inquérito tão
aleatório. O atacante tinha mais perguntas, contudo. Fazia-as como se aquela
situação fosse bastante normal. Gurnal respondia, dando pormenores sobre a sua
vida diária, os deveres que tinha, os lugares onde o esperariam nos dias seguintes
e o que iria lá fazer. Pouco depois parecia obter algum consolo nas suas
respostas, como se todos aqueles vários compromissos lhe garantissem que o seu
lugar no mundo dos vivos continuaria.
O interrogador acabou por voltar ao ponto em que começara.
— Encontrar-te-ás com ele esta noite?
— Sim, claro. Não pessoalmente, entendes, mas deverei estar no salão
quando ele for saudar o séquito de Aushenia. Serei um entre muitos...
— Haverá um banquete?
— No palácio, daqui a duas noites. Estarei lá presente. Seremos apenas um
— No palácio, daqui a duas noites. Estarei lá presente. Seremos apenas um
pequeno grupo. É raro jantar-se à mesa com o rei, mas eu... — O homem
engasgou-se e parou. Nos olhos surgiu-lhe uma expressão de espanto. O queixo
moveu-se antes de conseguir articular as palavras seguintes. — Conheço-te!
Thasren! Thasren...
O assassino silvou para o fazer calar e falou-lhe perto do ouvido, deixando
que os lábios aflorassem a pele macia e a cartilagem do lóbulo da orelha.
— Quem eu sou não te interessa. O que importa é que te tomaste um fraco.
Falas com a boca e não com o coração. — O embaixador protestou, olhando de
um lado para o outro, como se a ajuda estivesse por ali, à espera, e esperasse só
um olhar para agir. — Talvez o Callach, que a todos julga diante das portas das
montanhas, te ouça e te permita a entrada. Mas, neste mundo, respondes perante
um senhor diferente para avaliar o teu valor, e este senhor não está satisfeito
contigo. Hanish Mein já não dá importância à tua vida, mas, visto seres um
Mein, terás uma última oportunidade de provares a tua lealdade.
Durante as horas que se seguiram explicou ao homem e à família como as
coisas se iriam passar. Descreveu os tormentos sem fim que Hanish lhes
infligiria se falhassem em algumas ações que se lhes pedia. Incutiu-lhes o dever
para a sua raça e lembrou-lhes que o alcance dos Tunishnevre era tal que
nenhum Mein podia escapar à sua ira. Bastava que fizessem meia dúzia de coisas
para se salvarem. A mulher e os filhos mostrar-se-iam em público, sem dar sinal
de que alguma coisa mudara. Sorririam afetadamente, bajulariam e adulariam os
acacianos como parecia ser natural neles. Arranjariam desculpas para explicar a
ausência dos criados e não permitiriam a ninguém entrar em casa. Por seu lado,
Gurnal informaria Thasren de tudo o que este precisaria de saber para chegar
junto do rei, que costumes deveriam ser seguidos, quem poderia encontrar, com
que género de segurança se depararia. Resumindo, ajudá-lo-iam a matar o rei.
Quando Thasren deixou a casa naquela tarde, usava uma peruca feita do
cabelo de um dos criados, presa com uma bandolete de crina de cavalo que lhe
atravessava a fronte, um ornamento tradicional em ocasiões importantes. Havia
uma outra razão, além de apenas as suas capacidades como assassino, para ter
sido incumbido daquela missão. A estrutura do seu rosto era muito semelhante à
de Gurnal, tinha os mesmos traços gerais, quase idênticos na harmonia dos olhos
e nos ossos do queixo. Afinal de contas, faziam parte da mesma árvore
genealógica, eram primos em segundo grau do lado materno. A maior diferença
que tinham era o cabelo, mas isso fora remediado.
Encontrou o caminho para o palácio com bastante facilidade. Entrou pelos
portões reais como mais um entre um fluxo enorme de pessoas, não sendo sequer
portões reais como mais um entre um fluxo enorme de pessoas, não sendo sequer
interrogado pelos guardas que, simplesmente, se limitaram a acenar-lhe. Como
nenhuma daquelas pessoas iria estar junto do rei, os guardas não os revistavam à
procura de armas traiçoeiras, apenas os observavam e encaminhavam para
espaços pré-estabelecidos, espetadores mas não participantes. Thasren detestava
o cheiro do lugar, uma amálgama confusa de diferentes odores, colónias e
perfumes de tantas terras estrangeiras. Era exatamente como Hanish dissera que
seria: os representantes de tantas nações, de diversas raças, que agora se
curvavam em vénias e sorrisos perante os senhores acacianos. Teria o mundo
inteiro esquecido o orgulho da raça? Eram como muitas criaturas com cascos —
veados e antílopes — reunindo-se para entoar louvores ao leão que lhes
devorava os filhos. Nada daquilo fazia sentido.
Permaneceu perto da saída durante toda a noite, fingindo sentir-se à vontade
nas estranhas vestes do embaixador, acenando cumprimentos aos outros
visitantes quando havia contacto visual. Desviou-se várias vezes de pessoas que
pareciam prestes a vir falar-lhe. Por duas vezes conversou com homens que
pareciam conhecê-lo bem. Tossia para a mão e explicava o seu mutismo dizendo
que apanhara uma constipação. O humor inerente à situação não escapou aos
acacianos. Estivera demasiado tempo na ilha, brincavam. Estava a tornar-se um
acaciano, diziam-lhe, sujeito à mais ligeira corrente de ar. Ambos os homens se
afastaram sorrindo.
O esforço destes logros fê-lo sentir-se exausto. O coração batia-lhe
furiosamente o tempo todo. Gotas de suor caíam pelo nariz e pelas faces e
escorriam invisíveis debaixo das axilas. Sentia uma película de humidade entre
si e a parte inferior da peruca. Porém, aos olhos que o viam parecia ter a
compostura perfeita. Quando a multidão foi percorrida por um murmúrio de
silêncio e o arauto pediu atenção, Thasren olhava para o monarca a entrar no
recinto, adornado com uma coroa dourada, uma grinalda com espinhos imitando
a árvore que dera origem ao nome da ilha — então, soube que estava perto,
muito perto, de vir a ter o seu lugar na história do seu povo. Nessa noite não
tentaria chegar-se mais perto. Isto não passava de um namorisco, o ataque a sério
seria melhor que se consumasse no dia seguinte.
Capítulo 12
Mena nunca mais seria capaz de olhar para o dado de oito lados do jogo
infantil chamado «ratos a correr» sem se sentir mal. Era o jogo que ela e o irmão
mais novo estavam a brincar no momento em que Leodan fora atacado. Dariel
receara que o pai não mantivesse a sua palavra de honra de os entreter depois do
jantar de gala, e a princesa concordara em se sentar perto da porta do salão do
festim com o irmão, de modo a poderem ir a correr ter com ele assim que saísse
do salão. Faziam girar o dado na palma das mãos, olhando vezes sem conta para
o vidro verde octogonal a girar até à imobilidade, aninhados na superfície do
banco de seda. Mena não gostava muito do jogo, nem via a utilidade de se
envolver tanto num simples ato de sorte, mas gostava de sentir os dados a girar
dentro da mão. Muitas vezes chocalhava os dados tanto tempo que Dariel se
tornava impaciente.
Aconteceu pouco depois de as grandes portas se terem encerrado. Mena
registara vagamente o som abafado de agitação no interior do salão, mas
sobressaltou-se quando as portas se escancaram novamente com um grande
empurrão. Estas giraram completamente nos gonzos e embateram contra as
paredes de pedra. A mão de Mena, que estivera prestes a atirar os dados, tremeu
e acabou por deixar caí-los no chão. Por um instante ficou a observar um deles
rolando pela carpete, sentindo-se embaraçada e pronta para dar um salto e
apanhá-lo. Todavia, então viu o grupo de homens a atravessar a porta. Estavam
todos muito juntos, debruçados em redor de algo que carregavam, com as pernas
aos tropeções enquanto tentavam apressar-se, gritando uns para os outros numa
grande algazarra. De entre eles ergueu-se uma voz a gritar para abrirem alas para
o rei ferido! Mena não tinha ainda escutado totalmente as palavras quando
compreendeu que o fardo que levavam era um homem. O pai...
O rei tinha o rosto sem cor, a tez saudável tornara-se pálida como a de um
morto empoado. Os lábios trementes estavam apertados, os olhos vazios de
medo, a coroa de esguelha na cabeça. Uma espuma branca de saliva caíra-lhe
para a barba. Ali, por entre todos aqueles traços irreconhecivelmente distorcidos,
estava a pessoa que ela mais amava no mundo, despojada de tudo o que fazia
dela um homem forte, paternal e sábio. Mena puxou Dariel para si e tapou-lhe os
olhos. Com o irmão apertado fortemente contra ela, virou-se como se através do
movimento conseguisse afastar o que acabara de ver.
Mais tarde, nessa noite, sentada na cama no quarto de Dariel, com os braços
em redor do irmão, embalava o corpinho soluçante do menino. Repetiu muitas
vezes que estava tudo bem. Que o pai iria ficar bem. Ficaria bem, claro. Era
apenas uma picada de agulha, disseram. Acharia ele que uma picada de agulha
poderia fazer mal ao rei de Acácia?
— Vá lá — disse ela —, não sejas pateta. O pai há de ver-te de manhã e rir-
se-á dos olhos inchados com que ficas quando choras antes de adormecer.
Quando a respiração de Dariel entrou no ritmo regular do sono, soltou o
abraço. Encostou-se contra a parede e observou o peito do menino a arfar
lentamente. Estudou as feições descontraídas do seu rosto. Amava-o tanto, tanto!
Ao aperceber-se disso vieram-lhe as lágrimas aos olhos, pela primeira vez
naquela noite. Ele não podia verdadeiramente compreender, pois não? Na
verdade, ela pouco soubera do que acontecera ou se o pai estaria ou não em
perigo de vida, mas os pormenores não pareciam importar. O rosto do pai
explicara-lhe tudo completamente. Fosse o que fosse que viesse a acontecer
amanhã ou no dia seguinte, o olhar de medo que observara não era possível de
erradicar. Vê-lo-ia sempre sob a superfície da sua presença. Sentia-se como se o
tivesse apanhado em algum ato libidinoso, algo tão suficientemente degradante
que ela nunca mais poderia regressar à inocência dos momentos anteriores. O à-
vontade entre eles nunca mais seria o mesmo.
Arrastou-se para fora da cama e caminhou pelo grande quarto durante
algum tempo, enquanto olhava para as lajes do chão, insegura sobre o que fazer,
para onde ir, se haveria de facto alguma coisa a fazer ou algum lugar para onde
ir. Pensou em escapulir-se do quarto do irmão e ir até aos aposentos do pai, mas
com certeza que a impediriam, especialmente àquelas horas altas da noite e
depois daqueles acontecimentos. Não conseguiria de modo algum chegar até
perto dele antes da manhã, e talvez nem nessa altura.
Por fim, atravessou o quarto e trepou para os ramos mais baixos da acácia
que ocupava um dos cantos do quarto. Era uma coisa estranha de se encontrar
dentro de um palácio. Fora um presente de aniversário de Leodan para Dariel, no
Inverno anterior. O rei tivera ele próprio a ideia, falara com os artesãos e
marceneiros, e mandara fazer a obra às escondidas enquanto ele e os filhos
embarcavam para Alecia para uma curta estadia. No regresso, todas as crianças
haviam entrado no quarto de Dariel para descobrir que o tronco nodoso de uma
velha acácia fora resgatado, depois de a árvore ter morrido, e incorporado no
chão de pedra. Os ramos retorcidos para o alto pareciam fundir-se com as
paredes e dar-lhes suporte. A madeira fora lixada, os espinhos embotados de
modo a parecerem maçanetas. A madeira fora corada de um castanho
modo a parecerem maçanetas. A madeira fora corada de um castanho
avermelhado com óleo de sândalo. Estava adornada com laços e folhas verdes
feitas de seda, de modo a que a árvore parecesse eterna. Haviam construído
plataformas entre os troncos com cordas, escadotes, e baloiços para se poder
passar entre eles. Tudo isto apenas para fazer uma surpresa, a um menino, de
uma grande estrutura para brincar. Era uma ideia nunca vista, uma extravagância
estranha numa cultura que, geralmente, ignorava as crianças até estas serem
quase adultos. Houve vários comentários sobre a sanidade do rei.
Sentada no feixe inclinado de uma plataforma, Mena olhou para o quarto.
As lâmpadas de parede espraiavam uma luz alaranjada fraca pelo quarto. Dariel
dormia imperturbável, e a seu lado tinha uma bandeja de comida e chá que as
criadas ali haviam colocado. Estas tinham andado atarefadas em seu redor,
nervosas e de olhos ansiosos, quando as crianças regressaram ao quarto.
Perguntaram vezes sem conta sobre o que precisavam, mas não conseguiam
responder à única pergunta que ambas as crianças consideravam
verdadeiramente importante. Nenhuma delas murmurou uma palavra sobre o
estado do rei. Tudo estaria melhor de manhã, haviam dito. Se não tivessem
repetido isto tantas vezes, Mena talvez tivesse acreditado nelas. Em vez disso,
sabia que nada era como diziam. As criadas haviam sempre murmurado sobre o
rei. Mesmo com ela a ouvir, as mulheres tinham feito insinuações sobre os seus
desejos ou motivos ou atos. Normalmente estavam enganadas, mas agora era
diferente. Estavam com medo. Sentiam-se confusas. E estavam a mentir.
«Mas que importam elas?» perguntou Mena ao vazio do quarto. Eram
mulheres de espírito mesquinho que tratavam as crianças como se fossem... bem,
como se fossem crianças. Mena soubera sempre que algo em si a fazia mais
velha do que os anos que tinha. Compreendia coisas que elas não compreendiam.
Isto era qualquer coisa que tinha em comum com o pai. Sabia que ele estava
longe de ter um espírito fraco. Era lúcido e bondoso e inteligente de uma
maneira que muito poucos o eram, e sabia que não se devia falar com ela como a
uma criança. Por vezes, quando se encontravam a sós e ele estava nessa
disposição, falava com ela como se fosse uma adulta. Ela sabia que isto era algo
invulgar entre eles, uma espécie de entendimento tácito que tinham um com o
outro e que se exprimia apenas em privado.
Por conseguinte, ele falara francamente, meditativo, quando se sentava
naquela mesma árvore com ela e dissera que não se importava se os nobres ou os
servos ou fosse quem fosse pensasse que ele era louco. Quando fora isso? No
início da passada primavera? Nas primeiras semanas de verão? O pai dissera-lhe
que, na verdade, o mundo em si é que estava louco. Estava cheio de ódio, de
maldade, de ganância e duplicidade. Estas coisas eram as componentes do
mundo tais como as letras nos cadernos dela constituíam as chaves que abriam a
mundo tais como as letras nos cadernos dela constituíam as chaves que abriam a
porta da língua que falavam. Levara-lhe algum tempo a compreender isso, mas
sabia agora que era verdade.
— Quando era novo — disse ele, recostando-se no ramo atrás dela,
passando as mãos pela textura suave da madeira — pensava que podia mudar o
mundo. Acreditava nisso quando me tornei rei. Escreveria leis e decretos para
fazer desaparecer o sofrimento das pessoas. Não pensava que podia construir um
mundo perfeito. Não exatamente. Mas faria um mundo tão perto da perfeição
quanto um ser humano pode imaginar.
Ela perguntara-lhe se tinha feito isso. O pai olhou-a com uma expressão
pesarosa, num misto de pena e de amor. Demorou alguns instantes a responder.
Agradeceu-lhe por ter feito a pergunta, por implicar que pensava que ele podia
ser um grande homem e por sugerir que a vida dela fora, até ali, tão feliz que
ainda imaginava tais coisas possíveis. Porém, não, não alcançara nenhum dos
sonhos que tivera quando era jovem. Não sabia apontar porquê ou como, mas
cada uma das suas grandes ideias evaporara-se mesmo à frente dos seus olhos.
Sentia, pensando bem, que as palavras com as quais descrevera essas coisas não
eram mais duradouras do que o bafo que nos sai da boca com a respiração, num
dia de Inverno. Falara, mas as palavras não tinham impacto duradouro. Feneciam
quase no momento em que lhe saíam da boca. Nas reuniões de Conselho
encontrara muitos rostos educados e pacientes. Propusera reformas, mesmo na
grande câmara de Alecia, aos governadores, todos eles homens que lhe haviam
prometido fidelidade. As suas palavras foram escutadas, reconheceram que tinha
razão, louvaram-lhe a sabedoria. Deixava estas reuniões sentindo que o mundo
estaria prestes a mudar, e, no entanto, passava ano após ano e o mundo
continuava como sempre fora, sem se tornar melhor, sem ser afetado por
qualquer um dos
grandes desejos do seu coração. Ninguém lhe negava nunca nada, mas
também nada acontecia. Compreendeu então quão pouco era o poder que tinha.
Entre ele e os afazeres do mundo existiam milhares de outras mãos. Cada uma
delas lhe fingia ser leal, contudo, nenhuma cumpria os seus desejos. Talvez,
admitia ele, tivesse sido por isso que limitara as suas ambições e encontrara
sentido para a vida no amor de uma mulher e nos maravilhosos filhos que
haviam tido.
— Mena, minha filhinha sábia, não sou um homem tão forte como pensas.
— Ergueu a mão e tocou-lhe no queixo. — Não consegui mudar o mundo. Não
pude impedir os outros de cometerem crimes — crimes terríveis — em meu
nome. Não consegui impedir que a tua mãe nos deixasse quando a doença se
apoderou dela. Mas amo os meus filhos. Por isso, agora, vocês são a minha obra,
apoderou dela. Mas amo os meus filhos. Por isso, agora, vocês são a minha obra,
todos os quatro. Pensei: «Porque não construir no meu lar o mundo que gostaria
de ter?» Se vos conseguir educar, até serem adultos, numa felicidade invulgar no
mundo, terei realizado qualquer coisa. Verão um dia a maldade que os homens
fazem uns aos outros, mas, antes disso, porque não conhecer a alegria? Queres
ser uma criança para quem os sonhos se tornam realidade, não queres?
Dariel entrara nessa altura no quarto. O pai chamara-o e os breves
momentos de intimidade entre Mena e o pai foram suspensos até nova
oportunidade. Recordando-se desse momento, Mena chorou de novo. Ela não
chegara a responder-lhe. Não lhe perguntara que horrores do mundo eram
aqueles de que falava. Nunca os vira, e sabia apenas das antigas lutas escritas
com triunfante eloquência nos seus livros de história. Mas gostava de lhe ter
perguntado. Ela queria fervorosamente ser uma criança para quem os sonhos se
tornam realidade.
Tinha a certeza de que não conseguiria dormir, mas, a certa altura, fechou
os olhos, ainda sentada num ramo da árvore, encostando-se ao tronco esculpido
para ficar mais confortável. Sonhou com qualquer coisa que, mesmo enquanto
sonhava, pensou ser uma recordação, apesar de mais tarde não ter a certeza de
ter sido uma memória de algo que acontecera ou se era um sonho já sonhado
antes. Ela e uma menina, cujo nome não se lembrava, trepavam as rochas da
costa a norte e iam dar ao cais de pedra junto ao mar. A menina levava uma rede
de pesca e tinha a ideia infantil de que iriam levar o jantar para casa. Sabiam que
não deveriam estar ali sobre os rochedos pontiagudos, com o mar bramando a
seus pés em vagalhões repletos de algas, de caranguejos azuis e de mexilhões.
Porém, tudo ficaria bem se conseguissem levar para casa um tesouro vivo na sua
rede.
Ao aproximarem-se da ponta do cais, Mena vislumbrou uma estranha
agitação nas águas. Mesmo abaixo da superfície viu um cardume.
Milhares de peixes passava nas águas apressados, e eram tantos que ela não
conseguia ver onde o cardume começava nem onde acabava. Seguiam lado a
lado e em camadas sobrepostas até muito fundo, tendo cada um dos peixes cerca
de sessenta centímetros ou mais. Os que seguiam mais à superfície estavam tão
próximos que as caudas cortavam o ar. Mena conseguia ver por entre eles as
profundezas do mar. Não sabia que o mar era tão fundo, mas as águas eram
insondáveis e fervilhantes de peixe.
A princesa pediu à outra menina a rede, agarrou-a e preparou-se para a
lançar ao mar. A menina sussurrou-lhe que não deveriam pescar aqueles peixes.
— Eles viajam para o deus do mar — disse ela. — Ficaríamos
— Eles viajam para o deus do mar — disse ela. — Ficaríamos
amaldiçoadas se os comêssemos.
Mena não lhe deu importância. Mas que deus do mar? Que disparate.
Lançou a rede às ondas, preparando-se para o impacto da vida a debater-se com
que esperava encher a rede. Um momento depois puxou-a, vazia. Os peixes
continuavam a nadar, abundantes como antes, mas nenhum deles caíra na
armadilha. Voltou a lançar a rede de outro ângulo, puxou-a, gotejante: nada.
Fosse qual fosse a maneira como lançava a rede abaixo da superfície — de lado,
empurrando-a fundo nas águas, puxando-a —, não conseguia pescar nem um
único peixe. O cardume prosseguia veloz, tão perto que ela conseguia ver os
movimentos das barbatanas, e a flexão das grandes escamas ao deslizarem uns
pelos outros. Via-os rolarem os olhos para a observarem a vê-los passar,
manifestando tristeza. Algo nos olhos dos peixes a atraiu. Pousou a rede a seu
lado e deixou-se cair na água, certa de que deste modo, pelo menos, conseguiria
tocar nos peixes, certa de que eles queriam que ela o fizesse. Se avançavam em
resposta à chamada de algum deus do mar, não o faziam voluntariamente. Ela
poderia ajudá-los. Isto parecia-lhe algo de muito importante enquanto caminhava
pelas águas e mergulhava...
Mena despertou. Os seus braços mexeram-se e ela ia quase caindo da
árvore. Por alguns momentos o mundo à sua volta pareceu-lhe irreal. Sentiu o
sonho desvanecer-se e soube que havia algo mais importante de que se deveria
lembrar, mas foi só ao olhar em volta, e passados alguns instantes, que os
acontecimentos da noite lhe voltaram à memória. Ao olhar pela janela alta e
estreita viu que o céu clareara com a madrugada. As nuvens finas tingiam os
céus com tons de salmão róseo. Era um novo dia, pensou. Quanto do mal da
noite anterior seria agora remediado? Quanto desse mal seria exposto à luz
brilhante da manhã como não sendo mais do que truques de sombras e penumbra
noturna?
Começara a descer da árvore quando a porta se abriu. Corinn entrou,
movendo-se com hesitação, olhando para todos os lados como se não conhecesse
bem o quarto. Olhou para Dariel, que dormia. Ergueu uma das mãos e levou-a
aos lábios. Murmurou qualquer coisa como uma camponesa supersticiosa
observando um ato violento da natureza. Na sua quietude tornou-se uma ilha
rodeada de agitação. Entraram os criados atrás dela e abriram as janelas para
prepararem o quarto para o dia, afastando as cortinas e apagando as lanternas,
levando a bandeja com a refeição que não fora comida e substituindo-a por outra
repleta de frutos e sumos.
Corinn despertou quando viu Mena dirigir-se a ela. Tinha o rosto ofegante e
manchado, os lábios fazendo beicinho.
manchado, os lábios fazendo beicinho.
— Ele não vai morrer — disse a irmã. — Ele disse-me que não morreria.
Disse que nunca me deixaria. Prometeu à mãe que o não faria, não o faria até
conhecer todos os meus filhos e eles o conhecerem... Não o faria até eles o
conhecerem e terem ouvido dele tudo o que sabia sobre a mãe. Ele disse que nos
iria falar sobre a mãe. De como ela era quando jovem e de quando eles
casaram...
— Falaste com ele?
Corinn fez um vago gesto com a mão como explicação.
— Não, desde que aquilo aconteceu. Queria dizer, antes, ele prometeu-me.
Queria dizer antes de tudo isto...
Pressentindo que a irmã iria continuar naquele estado, Mena interrompeu-a.
— Mas o que se passa com o pai agora? Diz-me o que sabes. Como está o
pai?
— O que queres saber? — O olhar de Corinn não descansava e percorria o
quarto nervosamente. — O pai foi apunhalado. Um assassino qualquer vindo do
Mein... Dizem que o punhal estava envenenado, mas não acredito. «Que
veneno?», perguntei eu, mas ninguém me respondeu. Não sabem de nada.
Ninguém me diz a verdade. E não me deixam vê-lo. Nem o Thaddeus me quis
ver! Andam todos loucos. Chamaram o Aliver para o conselho, como se o pai já
nos tivesse deixado. Mas ele não morreu. Tenho a certeza de que não morreu!
Mena pensou que a irmã estava mais assustada do que ela. Pegou na mão de
Corinn e apertou-a entre as suas. O toque pareceu consolar Corinn, a tal ponto
que baixou o tom de voz e falou mais devagar, fixando o olhar por instantes no
ombro da irmã, mais perto de a olhar nos olhos do que até ali.
— Mena, foi horrível. Vi tudo. Vi o homem antes de ele se ter revelado. Vi-
o movimentar-se por entre a multidão. Achei-o bonito. Pensei «Aquele é o
Gurnal, não é? Parece mais novo do que aquilo que me lembrava. Que estranho.
Nunca tinha reparado que era gracioso. E depois vi-o tirar a adaga escondida.
Que fazia ele com uma faca num banquete? Se eu tivesse gritado logo no
primeiro momento... Não percebi... Não compreendo nada.
Mena apertou-lhe novamente a mão entre as suas, puxando-a para mais
perto de si. Instintivamente, sabia que era melhor nada dizer em resposta àquela
declaração, mas algo nela a fazia sentir que os papéis que ocupavam já não eram
os mesmos. Pensou no sonho que tivera e numa revelação momentânea
compreendeu que a rapariga com ela nos rochedos afinal não era uma estranha.
Era Corinn, uma versão diferente de Corinn. Como é que isso podia acontecer?
Estivera no sonho com a sua irmã e, no entanto, pensara que era outra pessoa
completamente diferente. Não fazia sentido, mas a mente adormecida raramente
faz. Afastou de si o mundo dos sonhos. Agora, compreendeu, cabia-lhe consolar
a irmã mais velha. O problema era que a não podia confortar com mentiras, e
demorou alguns momentos, num silêncio perturbado, para encontrar o tom certo
para prosseguir.
— Ficaremos bem — respondeu. — Se o pai...
— Para! — disse repentinamente Corinn. Fitava-a com olhos muito abertos
e ferozes. — O pai não irá morrer. Deixa de o desejar! Nem sequer digas que
poderá morrer!
Mena ficou horrorizada. Começara mal. — Eu... eu não disse isso. Não
desejo isso. É tudo tão assustador. É isso que, que...
Por instantes, pareceu-lhe que Corinn a ia atacar, mas, em vez disso,
aproximou-se e puxou a irmã para os seus braços. Aí Mena sentiu o primeiro
momento de consolo desde o banquete. Era triste, realmente, mas havia algo de
tranquilizador na consciência de que ambas sentiam pelo menos o mesmo medo
e tristeza com uma clareza partilhada, que não se refletia em nenhum outro
aspeto da sua relação.
Capítulo 16
Corinn sonharia com o último abraço do pai por muitas noites ainda, tantas
que o momento se tornou uma espécie de maldição, uma armadilha de pesadelo
feita dos braços dos seus irmãos e do corpo moribundo do pai. Não importava
que ela soubesse que o pai não quereria que fosse assim. Não importava que não
existisse mais nada que ele pudesse fazer, que fora um último gesto, sofrido, de
amor. Mesmo assim, desejava que nunca tivesse acontecido. Em vez de o ter
visto naquelas condições, preferiria não ter estado com ele daquela última vez.
Era melhor que algumas coisas permanecessem incompletas, pensava, melhor
seria deixá-las inacabadas para sempre.
O que acontecera no quarto entre o rei e os filhos fora simples. Aquele
esperou por eles no leito, sentado, apoiado nas almofadas. Corinn seguiu atrás
dos irmãos que correram para o pai e caíram de joelhos ao lado da cama. Mesmo
a alguma distância do leito, ela conseguia ver um homem mais devastado do que
poderia imaginar. Pensara no pai ao longo de toda a noite anterior, imaginara-o
cheio de dores, em diferentes posições e condições e até já morto. Porém, vê-lo
daquele modo, por fim...era como se o demónio encoberto que lhe assombrara os
sonhos toda a noite tivesse tirado o capuz à luz do dia; em vez de acalmar os
seus receios, o demónio revelara ser algo ainda mais hediondo do que alguma
vez imaginara. Queria virar costas e fugir. Talvez o tivesse feito, se o olhar do
rei não estivesse cravado nela, no momento em que entrou, parecendo só a ver a
ela.
De início, os irmãos haviam suspirado de alívio ao vê-lo, exprimindo o
horror pelo que acontecera, desejando que recuperasse a saúde depressa. Porém,
ele não conseguira ouvir aquilo durante muito tempo. Fez-lhes sinal para que se
calassem, erguendo um braço e fazendo um gesto lento com os dedos. Os filhos
aguardaram, mas parecia que ele nada mais tinha a oferecer-lhes. Corinn
compreendera, ainda antes dos irmãos, que o pai não conseguia falar, que se
encontrava terrivelmente fraco e, talvez, apenas a algumas horas da morte. Não
poderia fazer-lhes discursos. Não lhes poderia oferecer os derradeiros presentes
ou palavras de sabedoria. Não podia, percebeu Corinn, manter as promessas que
lhe fizera.
Compreendeu também, antes dos outros, o significado dos seus braços
erguidos. Aliver recuou um passo, aparentemente pensando que o rei abria os
erguidos. Aliver recuou um passo, aparentemente pensando que o rei abria os
braços para dar início a uma conversa que exigia o conhecimento da grandeza
das coisas. O rei simplesmente manteve-os abertos até as crianças entenderem o
que era realmente aquele convite. Então, aninharam-se desajeitadamente, juntos,
no abraço que ele oferecia, e Corinn foi a última a aceitar. Parecia que só ela
compreendia o horror de se aninharem de encontro a um moribundo, em
silêncio, a abraçarem-se uns aos outros em lágrimas.
Foi assim que os jovens Akaran passaram os últimos minutos com o pai.
Corinn, ao sair do quarto, correu à frente dos irmãos, ignorando as súplicas de
Mena para que permanecesse junto deles. Não podia. Em vez de sentir os laços
entre os irmãos e ela agora mais fortes, tinha a sensação de que eram tentáculos
que a afligiam. Fugiu assim que pôde. Escondeu-se nos seus aposentos privados
e ordenou aos guardas que não deixassem ninguém perturbá-la.
Foi assim, atrás de uma porta fechada, que soube que o pai morrera, mais
tarde, nesse dia. Primeiro ouviu os sussurros. Então, momentos depois, o enorme
sino colocado numa das torres mais altas começou a soar, em badaladas lentas,
profundas, lamentosas. Ela sabia que o sino estava lá, mas nunca o ouvira tocar.
Era usado com um único propósito: anunciar a morte de um rei Akaran. Por
entre as badaladas, escutou o coro crescente dos serviçais em pranto, uma
manifestação audível de infelicidade que invadiu todo o palácio e chegou à
cidade baixa e até ao porto, de onde seria levada para todo o mundo. Corinn
tapou os ouvidos com as mãos, com força, mas não conseguia deixar de ouvir os
sons.
A semana que se seguiu passou numa névoa lúgubre. Se pudesse, ter-se-ia
trancado no quarto imediatamente e rejeitado o mundo. Mas não tinha essa
escolha. A sua presença era exigida diariamente, a toda a hora, parecia, apesar de
pouco mais fazer do que ocupar espaço, uma concha vazia de si própria, a quem
todos abraçavam ou perante quem faziam uma vénia ou derramavam lágrimas.
Permaneceu junto dos irmãos enquanto as multidões entoavam com eles o
lamento pela morte do pai. Tremia enquanto os tambores rufavam o hino
fúnebre, lento e marcial, tocado apenas para os monarcas que morriam. Ficava
sentada, sem ouvir, os intermináveis discursos fúnebres, os nobres que vinham
de terras longínquas ou próximas, cada um para proferir a sua dor em palavras
que se acumulavam umas sobre as outras e acabavam por perder o seu sentido
individual. Ela sabia que, por detrás do ar sóbrio, havia um burburinho elétrico
de ansiedade que crepitava por toda a parte. Sabia que as pessoas murmuravam
sobre as horríveis possibilidades no horizonte, mas a dor que sentia era mais do
que suficiente para a ocupar. Nada lhe importava o que acontecia no mundo.
No final da semana, a sacerdotisa de Vada e os seus acólitos prepararam o
No final da semana, a sacerdotisa de Vada e os seus acólitos prepararam o
corpo do rei e incineraram-no. Era uma das últimas cerimónias de estado que
exigiam a presença deles e levaram-na a cabo com solenidade. Ao surgirem com
a urna de cinzas do rei, dava-se uma pausa nos rituais. As cinzas do rei não
seriam libertadas, sabia Corinn, até ao final do outono. Não ansiava por essa
cerimónia, mas esta ainda estava longe.
Assim que lhe foi possível, invocou os antigos rituais de luto. Manteve as
janelas fechadas e proibiu até as aias de olharem para ela. A comida e a água
eram-lhe deixadas ao lado da porta do quarto, embora ela mal lhes tocasse. Os
dias passavam, desvanecendo-se uns nos outros sem alterações. Mena foi ter
com ela duas vezes, Aliver uma, e até Dariel mandou um mensageiro para
implorar que fosse ter com ele, mas a todos ela afastou. Alternava entre o sono e
a vigília, entre sonhos e recordações, visões do passado que parecia agora
longínquo. De vez em quando era atingida pela compreensão de quão traiçoeira
era a ilusão do tempo. O que um dia existira não voltaria a existir. Aquilo a que
se agarrara — a mãe, o pai — não possuíam mais substância do que as imagens
conjuradas no seu espírito. E de que lhe serviriam? Não lhes podia tocar. Não
lhes conseguia sentir o peso na palma da mão nem vê-las com os seus
verdadeiros olhos nem ouvi-las no ar. A sua vida iria ser tal como a imaginara
nos momentos sombrios: corria o risco de perder aquilo que amava, uma coisa
após outra. Seria essa a sua vida até ela própria ser tragada pelo abismo sem
fundo do esquecimento. Não conseguia enfrentar aquilo. Por isso, não o fez. Não
o fez, pelo menos até o mundo ir ter com ela de uma forma que ela não queria
ignorar.
Ouviu os sons abafados de gritos da sua sala de espera, o baque de qualquer
coisa grande a cair e o matraquear apressado de tacões nas lajes. Não lhe deu
importância suficiente para se erguer da cama macia em que estava estendida.
Ao primeiro impacto contra a porta limitou-se a levantar a cabeça e a olhar
sonolenta. Porém, quando esta se abriu de rompante, Corinn percebeu finalmente
que alguém estava mesmo decidido a vê-la.
Igguldan entrou, aos tropeções, pela porta aberta, quase caindo no chão.
Caído de joelhos, virou-se, levantou-se do chão e avançou alguns passos no
aposento. Atrás dele vários guardas entraram pela porta. Estavam tão ansiosos
por chegar ao pé dele que ficaram presos na soleira, empurrando-se e
praguejando entre si, com as espadas empunhadas desajeitadamente de modo a
não se ferirem uns aos outros. Igguldan olhou rapidamente o aposento.
Descobriu Corinn junto aos pés da cama com uma mão sobre o coração. Deu um
pequeno passo para ela e depois parou. Os guardas, libertando-se da soleira e
entrando apressados atrás dele, estacaram. Ficaram a olhar para os dois jovens,
sem saber o que fazer a seguir.
sem saber o que fazer a seguir.
— Princesa Corinn — disse Igguldan. — Perdoai-me esta intrusão. É
horrível da minha parte, eu sei, mas tinha de vos ver. Tinha de ver se estáveis
bem...
Um dos guardas interrompeu-o. Começou também por pedir perdão à
princesa, explicando-lhe que o príncipe se lançara como um furacão através
deles, não acatando as ordens para que parasse. Corinn interrompeu-o com um
gesto da mão.
— Deixa-nos — disse.
Uma vez a sós, Igguldan começou de novo a desculpar-se. A princesa
pediu-lhe que o não fizesse. Ele perguntou-lhe como estava de saúde e começou
a exprimir a compaixão que sentia por ela, mas, de novo, Corinn lhe pediu que
parasse. Ele interrompeu-se por um momento como se a decidir o que iria dizer.
Então fê-lo de modo direto:
— Fui chamado de volta a Aushenia — explicou. — O meu pai receia pela
minha vida, penso. Também me pareceu que ele está preocupado com outras
coisas. Umas movimentações que estão em curso no norte. Recebi apenas uma
nota breve enviada por pombo-correio. Mas tenho de partir, Corinn. — Após um
momento de hesitação, acrescentou. — Não vos quero deixar assim.
Corinn torcia as mãos, nervosa, insegura sobre a razão por que o estava a
receber. Sabia que estava desarranjada, com um vestido amarrotado, com o
cabelo despenteado e por lavar. Olhou para baixo e fez um gesto para apontar
alguma coisa lá fora, esperando que ele desviasse dela o olhar.
— Parece que o mundo está num turbilhão.
— E está, mais do que imaginais. Toda a ilha está num alvoroço. Há navios
a chegar e a partir a toda a hora, de e para o Continente. Em Alecia, os
governadores estão em reunião permanente. O tratado entre as nossas nações não
é oficial, mas parece que os governadores nos querem como aliados. Existem
rumores de um exército que montou cerco a Cathgergen. O vosso irmão está a
lidar com tudo corajosamente. Deveis ter orgulho nele, embora ele se encontre
numa posição estranha — deixou de ser apenas um príncipe, mas ainda não é rei.
Corinn perguntou-lhe quando iria partir. Ele respondeu que deveria
embarcar para Alecia no próximo nascer do sol. Lá, iria buscar alguns
representantes com que o seu pai se queria reunir e seguiriam depois diretamente
no navio para Aushenia. Não adiantou mais pormenores, mas, enquanto ambos
pensavam na viagem dele, em silêncio, Corinn não conseguiu evitar sentir a
tristeza das milhas de separação que existiriam entre eles. Recordou as águas
tristeza das milhas de separação que existiriam entre eles. Recordou as águas
frias que o príncipe descrevera, onde tinha nadado, a paisagem ondulante das
florestas densas. Que maravilhoso deveria ser andar a cavalo por entre aquelas
árvores enormes. Imaginou Igguldan a fazê-lo. Viu-o galopar através de campos
varridos pelo vento, numa paisagem completamente diferente da joia trabalhada
do mar que era Acácia. Aushenia ficava tão longe, e não só em termos de
distância. Era um lugar selvagem, onde alguém se poderia perder ou reinventar
de uma forma diferente.
— Achais que poderia ir convosco? — perguntou. — Não seria um fardo
para vós. Eu só quero fugir deste lugar. Quero estar convosco, só convosco. —
Ela não pensara naquilo nem por um instante desde que o pai morrera, mas, ao
pronunciar estas palavras, sentiu-se convencida de que eram verdadeiras. Era
precisamente aquilo que ela queria agora, mais do que tudo.
Igguldan colocou as mãos em redor das dela, agarrando-as com firmeza.
Juntos, sentaram-se à beira da cama lado a lado.
— Quem me dera que o mundo não tivesse enlouquecido e te tivesse
encontrado numa época diferente. O teu pai era um homem especial. Depois de o
ter visto a ser atacado senti-me mal. Mesmo mal! Mas mesmo assim, continuava
a pensar em ti. Tudo o que via ou escutava me fazia lembrar de ti. O mundo está
a desmoronar-se, mas tudo em que penso é em ti. «Isto não está certo. Controla-
te!» Mas não podia. E então pensei, talvez isto seja amor. É o que é. Estás
apaixonado pela princesa Corinn. Sei que não é apropriado da minha parte dizer
isto assim. Mas o tempo é tão curto. Tinha apenas de te ver uma vez mais, antes
de ambos partirmos em direções diferentes. Precisava que soubesses que és
amada. Para onde quer que vás no mundo, levas o meu amor contigo.
Uma vez mais, o príncipe conseguira dizer o que era perfeito. Ela era
amada. Ele — corajoso e lindo e fiel — amava-a. Apertou-lhe a mão e
aproximou-se dele ligeiramente.
— Não vou a lado nenhum — disse Corinn, pensando que ele se enganara
ao dizer aquilo. — Quem me dera ir. Iria contigo, se me pedisses.
O príncipe suavizou o aperto da mão.
Ainda não te disseram? Corinn, tu irás partir amanhã, também. Sei-o apenas
porque o teu irmão mo confidenciou. Estava muito irritado com isso e não
conseguiu guardá-lo para si. Todos os irmãos Akaran devem deixar a ilha e ir
para um refúgio. O chanceler pensa que estarão lá mais seguros do que em
Acácia. Num sítio secreto, algures.
— Num sítio secreto? — murmurou a princesa.
O príncipe, pensando que ela lhe estava a pedir mais informações, admitiu
O príncipe, pensando que ela lhe estava a pedir mais informações, admitiu
não saber mais nada, mas Corinn não esperara realmente que ele lhe
respondesse. Estava apenas a considerar a possibilidade daquele sítio secreto.
Onde seria? Sonhara tantas vezes em viajar para lugares distantes, imaginando
como seria lá recebida, se a achariam bela ou não. Iriam partir para Talay? Para a
costa de Candovia? Embarcariam para as Ilhas Exteriores ou para qualquer outro
lugar longínquo do coração do império? Ou iriam para Alecia? Dificilmente isso
seria um lugar secreto, mas talvez ela estivesse a exagerar. Talvez passasse as
próximas semanas trancada num quarto qualquer, na capital. Embora estas
notícias a surpreendessem, não sentia a necessidade de urgência que poderia
sentir. Pelo menos, significava movimento, mudança, afastar-se do palácio. Não
podia ser uma coisa assim tão má, pois não?
Perguntou a Igguldan para onde iria ele, se quisesse esconder-se algures. O
príncipe surpreendeu-se um pouco com a pergunta, mas começou a pensar no
assunto. Após uma pausa, disse que preferiria isolar-se no norte distante do seu
próprio país, em lugar de ir para qualquer outro lado. Havia um sítio perdido em
Aushenia onde a floresta cobria as encostas da cordilheira do Gradthic. Era um
território gelado, mas o ar era tão saudável que, ao respirá-lo, nos sentíamos
plenos de saúde e vigor. As próprias montanhas eram um local isolado durante a
maior parte do ano, abrigo de grandes ursos castanhos e habitados por uma
espécie de lobos diferente da que abundava nas florestas. Estivera lá apenas uma
vez, anos atrás, mas nunca esquecera o sentimento que tivera ao contemplar o
pôr-do-sol do alto dos rochedos, com as montanhas atrás de si, e a floresta
ancestral espraiando-se até sul, a perder de vista no horizonte, tudo iluminado
por uma paleta maravilhosa de cores, com as florestas ao escurecer tocadas pelo
brilho de fogo do sol, as águias no céu, planando vigilantes no seu alto voo.
Nunca estivera tão consciente da solidão como nesse momento, mas sentira
também um orgulho primordial. Fora daquelas terras que o seu povo nascera.
Eram territórios selvagens e duros, mas constituíam a sua própria carne e o seu
sangue. O seu povo havia partido das florestas para a costa, a sul, para fundar
Aushenia. Haviam deixado para trás lobos e ursos e tomado o seu lugar de
direito como tratadores da terra. Era algo que ele tinha em comum com todos os
aushenianos.
— Deverias ver aquilo — disse ele.
— Gostaria muito — respondeu Corinn. — Diz que me levas e irei contigo.
Poderás tratar de mim e levar-me para esse país selvagem que é o teu. Poderás
caçar para me alimentar e proteger-me dos ursos e de outras criaturas. O mundo
pode continuar sem nós.
As mãos de Igguldan estavam húmidas nas dela. Ela reparou nisso quando
As mãos de Igguldan estavam húmidas nas dela. Ela reparou nisso quando
ele as afastou, permitindo que o ar tocasse a humidade. Que acabara ela de
dizer? Queria-o, mas era uma perspetiva tão desmedida que não a conseguia
apreender. Talvez fosse um erro absurdo; não sabia. De qualquer modo, quando
Igguldan afastou as mãos teve a certeza de que ele rejeitava a proposta. Esperou
que ele lho confirmasse.
O príncipe procurou o bolso junto ao peito e retirou um pequeno envelope,
selado com lacre.
— Escrevi isto para ti — disse. — Não tinha a certeza de ter a coragem de
to dar... bem, mas estou a fazê-lo. — Pressionou o pequenino envelope contra a
palma da mão dela e fechou-lhe os dedos em volta.
— O que é isto?
— Verás quando a leres, mas não o faças agora. — Ele levantou-se e
ajudou-a a erguer-se. — Agora temos de nos preparar para este desafio. Corinn,
eu gostaria imenso de te mostrar o meu país e de tornar realidade tudo o que
disseste, mas esta não é a altura. O meu pai mandou chamar-me porque estamos
sob a ameaça de guerra. Tenho de responder ao seu apelo. E tu, tu deves fazer o
que o chanceler diz. Ele certamente tem razão sobre este assunto. —
Interrompeu os protestos de Corinn, agarrando-lhe os braços, primeiro com
força, depois como uma carícia. — Por favor, Corinn deixa-me primeiro servir o
meu pai e a memória do teu. Depois disso virei buscar-te. Receber-me-ás? Tenho
de saber que irei lutar por ti. Se o souber, ninguém me poderá derrotar.
Corinn conseguiu anuir em silêncio. Igguldan encostou o rosto ao dela e a
rapariga sentiu a pele dele, macia e quente, contra a dela. Ele beijou-a na face.
Depois voltou-se e estugou o passo, saindo pela porta fora.
Capítulo 22
Rialus Neptos fugiu de Cathgergen após aquilo que disse ser um cerco de
vários dias. Num último ato antes de partir, atirou todos os objetos pesados — a
sua cadeira, uma jarra com flores de cobre, um pisa-papéis em forma de urso dos
Campos Gelados, um velho machado oferecido ao pai, outrora, pelos
aushenianos — contra a vidraça que tão amargamente o embaraçara e traíra o
seu ego. Esta não se estilhaçou em mil pedaços como era seu desejo, mas rachou
o suficiente para sentir que alcançara o objetivo. Se a mensagem era dirigida ao
próprio vidro, a alguém que mais tarde visse aquilo, ou a si próprio, foi a questão
que não lhe ocorreu. Levou consigo os poucos funcionários da sua comitiva,
cortesãos e membros da família que conseguira manter na satrapia — e apenas
aqueles tão endividados para com ele que o seu silêncio era garantido. Os
numrek que deixava para trás enchiam-no de tanto terror como aquele que
fingira. Tanto quanto sabia, poucos dos seus acompanhantes estavam num estado
capaz de lhes permitir saber que o próprio governador tivera responsabilidades
no infortúnio que se abatera sobre eles. De facto, enquanto fugia pelo Estreito de
Gradthic, ele próprio se sentia a lutar por salvar a vida.
Deste modo, Rialus chegou a Aushenia com todos os pormenores da sua
mentira preparados. Num encontro urgente com o rei, Guldan, explicou como os
invasores estrangeiros haviam irrompido por entre uma rajada de neve. Havia
algum tempo que andava preocupado, disse Rialus, por vagos rumores sobre
alguma agitação a norte dos Campos Gelados. Fora por isso que enviara o
general Alain para examinar o território e interrogar os irmãos Mein. Não ouvira
mais nada dele e, por isso, receava alguma contrariedade, mas o ataque que
sofrera fora uma verdadeira surpresa.
Os numrek, disse, haviam chegado numa horda maciça, constituída por
criaturas monstruosas, escondidas entre peles e trapos, armadas de lanças do
dobro do tamanho de um homem e com espadas curvas e pesadas. Muitos deles
vinham montados em bestas cornudas, criaturas que possuíam uma armadura
natural e cobertas de pelagem lanuda. Irromperam pelos portões de Cathgergen
antes de o alarme ter sequer soado. Não se explicaram nem se haviam
anunciado, limitaram-se à matança, uma carnificina sem piedade, que
executavam com uma satisfação voraz, urrando enquanto combatiam e
dançavam ao som de um tambor invisível.
Nada disto estava longe da verdade. Os numrek — seus convidados, como
Maeander lhes chamara — haviam chegado numa horda ávida de destruição.
Mesmo havendo pouca resistência militar para lhes oferecer, arranjaram maneira
de encontrar gente para matar, e para a matar com a satisfação que Rialus
descrevia. Não mencionou, claro, a Guldan, que toda a Guarda do Norte
encontrara a morte numa monstruosa armadilha. Em vez disso, contou que as
tropas, em número muito inferior, haviam batido em frenética retirada,
abandonando cada parte da fortaleza, uma a seguir à outra, até a população que
restava ficar encurralada contra o último muro de granito do lugar. Fora então,
contava Rialus, que ele consentira em negociar com a vil criatura que os
liderava.
— Haveis visto o rosto do líder deles? — perguntou Guldan. Este, na
juventude, fora um homem alto. Mesmo agora, sentado nos seus aposentos do
conselho real, e um pouco curvado devido a alguma rigidez nas costas, possuía
ainda um ar de nobreza natural. Tinha feições firmes, apesar de a voz lhe tremer
de alguma ansiedade.
— Que nome tem ele?
— Calrach — respondeu Rialus. — Nunca existiram criaturas mais
estranhas. Não houve nada como aquilo no Mundo Conhecido desde que os
Antigos expulsaram os deuses de Ithem...
— Dizeis que eles são deuses? — interpelou um dos assistentes de Guldan.
Rialus foi apanhado de surpresa.
— Bem, não. Quero apenas dizer que são horríveis de ver. Muito
assustadores.
Tal como acontecia em relação a muita coisa daquela estranha charada,
Rialus podia falar durante algum tempo com total honestidade. Perante a horda
dos numrek, sentia-se como se estivesse a olhar através do vidro deformado de
uma janela para uma era inteiramente diferente, para seres cujo barro tivesse
sido cozido num forno diferente dos seres humanos da terra, criados para habitar
um outro mundo, uma época muito mais antiga. Eram criaturas altas, pelo menos
três ou quatro palmos mais altas do que o normal, de membros compridos,
ombros largos e achatados como se usassem uma espécie de jugo quadrado sob a
pele. Tinham cabelo negro e sobrancelhas espessas. Durante algum tempo Rialus
pensara que tinham a pele empoada ou pintada, de tão pálida era. Quando se
aproximara deles, pouco à vontade, vira que era a cor natural, uma cor
semelhante à mistura cerimonial preparada com leite e sangue de cabra que os
Vadayan bebiam no novo ano. Era uma fina membrana sob a qual pulsava um
padrão intrincado de veias, tão visíveis ao olhar como se tivessem sido
padrão intrincado de veias, tão visíveis ao olhar como se tivessem sido
desenhadas sobre papel e erguidas à luz de uma lâmpada.
Calrach, o líder, demonstrava a sua força nos músculos do pescoço que
pareciam um enredado de cordame. Até as feições transmitiam uma forte e feroz
determinação. Os olhos eram de um castanho tão denso que pareciam de um
preto sólido. As sobrancelhas tinham contornos semelhantes aos dos homens
normais, mas sobressaíam, de forma mais proeminente, parecendo a crista de
ondas do mar no início da rebentação. Estavam perfuradas por vários anéis
grossos em prata, cujo metal estava enterrado tão fundo que pareciam presas ao
osso. Rialus tivera dificuldade em manter o olhar naquele rosto. Porém, mal
desviava os olhos, não conseguia evitar olhá-lo de novo, sentindo sempre o
mesmo horror por a criatura o continuar a olhar fixamente por detrás daquela
máscara assustadora. Era um homem, e, no entanto também não o era.
Rialus explicou que, para traduzir a língua que falavam, haviam usado um
escrivão do Mein, revelação acolhida com murmúrios chocados e suspiros
sobressaltados por parte dos aushenianos.
— Hanish Mein conhece essa raça? — perguntou Guldan.
Rialus supôs que sim, e depois prosseguiu:
— Calrach não pediu desculpas. Não deu explicações nem se justificou.
Disse apenas que teríamos de partir dali. Cathgergen já não nos pertencia.
Haviam prometido a cidadela aos numrek. Libertou-me para que outros
pudessem aprender o que esperar do inimigo que está a caminho e estarem
melhor preparados para lhes proporcionar divertimento.
— Cathgergen fora prometida por quem? — inquiriu um dos representantes
de Aushenia.
Rialus encolheu os ombros magros até às orelhas.
— Não sei, mas não nos encontrávamos em posição para argumentar. Ele
disse-me que deveria voltar para o meu povo e anunciar-lhes que o fim estava
próximo. Que haveriam de nos caçar, só por divertimento, e que nos assariam no
espeto.
— Não estais a falar a sério! — retorquiu o rei. — Rialus Neptos, haveis
enlouquecido? O que dizeis é inacreditável. — O monarca pareceu perder a sua
linha de pensamento, mas voltou a encontrá-la ao perguntar novamente:
— Haveis enlouquecido?
O governador bem podia imaginar que sim. Nunca poderia ter inventado tal
trama a partir das suas mentiras normais. Calrach dissera precisamente aquilo.
Sentara-se, rindo com os seus generais, dizendo as coisas mais vis, como se
Sentara-se, rindo com os seus generais, dizendo as coisas mais vis, como se
Rialus não se encontrasse na sua presença, como se o tradutor não tivesse
murmurado cada palavra ao ouvido tremente do homem. Tivera de apertar os
joelhos um contra o outro para evitar urinar pelas pernas abaixo. Rialus sentiu
um assomo de inveja por aqueles que ainda não haviam presenciado o que ele
vira.
Os aushenianos tinham ainda mais algumas perguntas para lhe fazer.
Sabiam que seriam o óbvio alvo seguinte, e inquiriram o governador exilado
sobre mais pormenores, queriam a sua opinião e conjeturas. Rialus vestiu a pele
do conselheiro de confiança — que era o que ele sempre realmente desejara ser.
Porém, para além da tentação em permanecer e ser uma preciosa ajuda, via as
fisionomias de Maeander e de Calrach. Isso ajudou-o a continuar resoluto.
Assim, Rialus explicou aos aushenianos que o seu dever lhe exigia que viajasse
até Alecia. Guldan deixou-o partir, enviando-o com a mensagem grandiosa de
que fosse qual fosse o intento daquela horda, teria de enfrentar primeiro os
soldados de Aushenia. Que ideias tão nobres!, pensou Rialus. Mas, como
acontecia com muitas ideias nobres, não tinham mais substância do que o ar que
as sustinha. Rialus não duvidava de que Aushenia seria derrotada numa quinzena
de dias, um mês no máximo. Esta avaliação das coisas, claro, guardou-a para si
próprio.
Rialus abandonou o reino a bordo de um navio da frota real, observando a
azáfama dos preparativos militares na costa de que se afastava. Estava satisfeito
consigo próprio, uma emoção que o invadia quase ao ponto de rebentar ao
chegar à capital. Desejara ter ali uma mansão, nas colinas a ocidente de Alecia,
desde a primeira vez que vira o local, numa breve visita quinze anos antes.
Alecia: para ele era o verdadeiro centro do império acaciano, o coração latejante
de onde tudo o que valia a pena no mundo irradiava. Gostava da própria ideia do
lugar, da riqueza que controlava, dos prazeres que oferecia, do poder que
exercia, do labirinto ilimitado de intrigas, dos seus amores clandestinos. Mal
conseguia captar a complexidade dos quadrantes da cidade. Não importava.
Rialus acreditava havia muito que prosperaria no interior dos muros centrais e
cintilantes da cidade, aquecida pelo sol, envolta em videiras que trepavam, e de
onde emanavam doces fragrâncias.
Era lamentável, então, que entrasse pelos portões de Alecia como um
traidor ao povo de que tanto gostava. Tentou não matutar no assunto e conseguiu
em grande parte fixar o pensamento na recompensa, finalmente ao seu alcance.
Tinha, como confessara a Maeander, aliados na capital que partilhavam do seu
desejo de ver a riqueza da cidade redistribuída. Alguns eram membros da família
Neptos, mas muitos outros haviam sido alimentados pela maledicência dos seus
Neptos, mas muitos outros haviam sido alimentados pela maledicência dos seus
agentes, em encontros clandestinos, pessoas reunidas em pequenos grupos e que
mal sabiam dos outros grupos a quem se tentava incentivar com a promessa de
riquezas. Tinha uma promessa a cumprir. Não se deixaria inibir perante o sangue
que outros derramassem em seu nome, desde que, por fim, recebesse parte da
recompensa que há muito merecia. Nos primeiros dias em Alecia, Rialus era um
homem de duas caras. Para o público tinha um rosto cheio de lágrimas de dor
pela guerra que se aproximava. Em privado, o olhar perscrutava as moradias lá
no alto da cidade, procurando uma nova habitação que lhe conviesse. Fiel à sua
antiga crença, parecia que o Doador iria recompensar os seus melhores.
Capítulo 23
Thaddeus Clegg entrou nos seus aposentos, cansado de um longo dia a lutar
com a confusão que lhe ia no íntimo, ao mesmo tempo que trabalhava para que
toda a gente o visse como um chanceler eficiente. A sua gata, Mesha,
desenroscou-se do conforto do cadeirão, esticou uma pata, depois outra,
chamando por ele num miado arrastado. Era de uma raça do sul de Talay, cor de
areia, de pelo curto, com exceção da barriga e do queixo. Tinha quase o dobro do
tamanho dos gatos normais, e, como era comum na sua raça, tinha uma garra a
mais em cada pata, vantagem de que tirava grande prazer quando esmagava os
ratos contra os ladrilhos do palácio. Também tinha ajudado a manter à distância
os macacos dourados, que havia muito tinham percebido ser melhor conceder-
lhe amplo espaço.
Enquanto Thaddeus tirava a capa e a dobrava sobre uma cadeira, Mesha
saltou do cadeirão e aproximou-se dele em passitos rápidos. Ele estendeu a mão
e fez-lhe festas, sentindo a pelagem macia da cabeça dela sob os dedos. Embora
nunca o houvesse revelado a ninguém, Thaddeus tinha grande parte da sua
sensualidade tátil na ponta dos dedos, e reservava o seu toque mais íntimo para
Mesha. Ela era tudo o que ele queria ou de que precisava atualmente como
companhia. Era demasiado orgulhoso e consciente de si próprio para se distrair
com afetos com outras pessoas, e não arriscaria nunca mais um grande amor.
— Mesha, és a minha menina linda. Sabes disso, não sabes? Fora deste
quarto reina a loucura, mas tu não fazes parte disso. Que sorte que tens.
Pouco tempo depois, Thaddeus sentou-se com Mesha enroscadinha no colo.
Bebericava um licor xaroposo que cheirava a pêssegos e tentou criar uma calma
interior que condissesse com a sua aparência de paz. Não conseguiu. O tumulto
constante de uma terra a sofrer golpe após golpe, e agora apressando-se nos
preparativos para a guerra, era mais do que suficiente para lhe manter o espírito
em alvoroço. Passara o dia em conselho de estado com os generais, que se
preparavam para enfrentar as forças de Hanish Mein perto de Alecia, que eles
pensavam que seria o seu primeiro alvo. Haviam analisado todos os pormenores
necessários para reunir o maior exército do Mundo Conhecido, deste os tempos
de Tinhadin. Que tarefa assombrosa, tudo feito à pressa e sem um verdadeiro rei
para controlar a empresa. Sim, Aliver sentava-se nas reuniões do conselho,
contribuindo com o que podia, comportando-se corajosamente perante tudo
contribuindo com o que podia, comportando-se corajosamente perante tudo
aquilo. Mas era a Thaddeus que os generais realmente se dirigiam. E era o ponto
em que este lado da sua vida colidia com o seu próprio desejo de vingança que o
deixava verdadeiramente perplexo.
Não concordara abertamente em apoiar Hanish Mein, mas, ao ler a breve
mensagem do líder, parte dele desejara obedecer. Talvez tivesse servido um rei
demasiado tempo para se sentir confortável em liderar. Ou talvez fosse um sinal
do poder de Hanish, da sua capacidade para vencer grandes distâncias e dominar
a seu bel-prazer o coração dos homens. O que fazer quanto à exigência de
Hanish? Ordenara-lhe que capturasse os jovens Akaran. Tão simples quanto isto.
Que fizesse isto por ele e Thaddeus teria a sua vingança contra os Akaran. Que
fizesse isto por ele e seria recompensado de outras formas também. Thaddeus
interrogava-se sobre se lhe seria possível refazer a sua vida servindo os Mein. O
que lhe dariam como recompensa? Talvez um cargo de governador. Talay servir-
lhe-ia bem, aqueles territórios imensos, a perder de vista, aquelas pradarias
verdejantes. Era uma província suficientemente vasta para se poder perder nela.
Esta ideia parecia-lhe bastante atrativa.
Ou talvez não estivesse a pensar verdadeiramente em grande. Se houvesse
ainda nele a ambição que Gridulan pressentira, anos atrás, teria arranjado
maneira de tomar o trono. Tinha controlo quase absoluto sobre os assuntos da
ilha. Tendo em conta os que já haviam morrido, com a confusão reinante no
Continente e as escaramuças sangrentas mesmo ali, nos pátios da corte de
Acácia, ninguém mais segurava nas rédeas do poder com tanta segurança como
ele. Os filhos do rei tinham-no como homem de confiança e ele tinha acesso
àqueles até nos seus aposentos privados. Poderia ir ter com um após outro e
envenená-los, uma taça de leite morno oferecida pela mão de um tio amado, um
bolo com uma cobertura especial, um unguento no seu dedo que lhes passaria
sobre os olhos, como se lhes limpasse as lágrimas... Conhecia tantos métodos
pelos quais ministrar um veneno. Poderia ter colocado uma almofada sobre a
boca adormecida das crianças, sangrá-las com uma ferida no pescoço, fazer-lhes
parar o coração com o golpe de mão que aprendera a ministrar do ângulo certo e
forçar os órgãos à imobilidade. Poderia acabar com elas e, assim, fazer pagar a
Gridulan a sua traição.
— Que patético é tudo isto, Mesha — proferiu, afagando o dorso da gata. A
felina ergueu os olhos para ele, entediada. — Que grande confusão fiz! Devia
pensar no caminho mais seguro e segui-lo. Nada poderá impedir a mudança que
aí vem. Vejo isso melhor do que ninguém. E estas crianças não são tão inocentes
como parecem. A cria de um chacal não se tornará também num chacal? Não
morderá um dia a mão que a alimentou? Não pode ser de outro modo. É um
disparate pensar que eles ou eu agiremos contra a nossa natureza. Vês, eu bem
disparate pensar que eles ou eu agiremos contra a nossa natureza. Vês, eu bem
posso dizer tudo isto. Mas amo-os. Esse é o problema.
Mesha começara a adormecer novamente quando Thaddeus se levantou e a
pôs no chão. Estava irritado consigo próprio só por ter falado sobre o assunto,
mesmo que fosse para uma gata. Dirigiu-se a um armário embutido numa parede
perto da cama. Daí retirou o cachimbo de bruma que antes pertencera ao rei. Que
estranho ter chegado tão tarde àquele vício. Que estranho ter vivido uma vida
inteira antes de compreender o desejo ávido do esquecimento. Sabia que no dia
seguinte teria de enfrentar novamente decisões tomadas ou a tomar, mas entre o
amanhã e o agora desejava apenas esquecer tudo, ou, pelo menos, atingir aquele
estado em que nada mais importava.
Mais tarde, acordou do negrume do vazio, de uma existência sem sonhos
nem pensamentos, que era mais profunda do que o sono podia ser. A força que o
puxou daquele lugar escolhido era frustrantemente forte. Parecia como que uma
garra de ferro que lhe apertava parte do ser e o empurrava para a consciência.
Deu uma reviravolta no leito, pensando que a mudança de posição lhe facilitaria
novamente o sono, pois o dia ainda não viera exigir que acordasse. Sentiu uma
pressão aos pés da cama e pensou ser Mesha que a causava. Por vezes, ela
cravava as unhas na sua perna, sonhando, talvez, estar a apanhar alguma pedra.
Porém, então, ouviu uma voz dizer:
— Levanta-te e olha para mim.
Thaddeus ia começar a gritar pelos guardas, mas antes que a sua boca
pudesse pronunciar as palavras, o resto do seu ser obedeceu à ordem. Ergueu-se
do leito, enquanto a visão à sua frente vinha ao seu encontro. Exceto... exceto
que o seu corpo de facto não se mexeu. O peito, a cabeça e os braços não o
haviam seguido. Inclinou-se, mas, de algum modo, abandonara a sua concha
corpórea deitada na cama. Era como se tivesse deslizado da sua pele com um
suave impulso. Sentia os órgãos, os músculos e o cérebro a libertarem-lhe o
espírito. O corpo soltava-o, e ali estava ele, sentado, ereto, com a parte inferior
ainda presa às ancas, virilhas e pernas, enquanto o tronco se levantava como um
espírito obediente atento à chamada.
Perante ele, aos pés do leito, pairava a figura vaga de um homem. Tinha em
redor a forma de um corpo, mas Thaddeus conseguia ver através dele o quarto
mal iluminado. O ser produzia a sua própria iluminação. Os olhos cinzentos
pareciam dois pontos brilhantes. Eram a parte mais visível do seu ser, cintilando
nas órbitas em redor das quais todo o ser se compunha. Eram a única parte do
vulto que parecia sólida o suficiente para ser tocada, e, no entanto, a energia que
os iluminava tremeluzia em seu redor em vagas. Diminuía ocasionalmente, mas,
os iluminava tremeluzia em seu redor em vagas. Diminuía ocasionalmente, mas,
depois, emergia novamente, como se dentro deles estivesse a Lua intercetada por
um céu enevoado. Os olhos realçavam as feições do rosto e conferiam alguma
solidez aos ombros e braços, apesar de a parte inferior do corpo se desvanecer no
vazio.
O vulto voltou a falar. A voz parecia enfraquecida pela distância, oca, como
se as palavras fossem proferidas através de um tubo. Apesar do tom
sobrenatural, eram palavras francas que atingiram Thaddeus como uma mão
aberta.
— Thaddeus Clegg, cão, tenho de te dizer umas coisas.
Thaddeus fitou-o, atónito. Como era aquilo possível? Tentou demonstrar
com um trejeito de desprezo nos lábios o seu desdém pela intrusão do homem,
fosse qual fosse a bruxaria que ali o trouxera. Era uma reação instintiva, mas
custava-lhe manter a expressão porque o brilho dos olhos do homem era
profundamente hipnotizante. Porque não gritara pelos guardas? Sabia que era
fácil fazê-lo, contudo algo o impedia e mantinha prisioneiro do feitiço daquele
olhar. Teria primeiro de identificar aquele ser. Era essa a chave, pensou. Sentia
um nome no fundo da garganta, já conhecido dele. Bastaria pronunciá-lo para se
tornar real.
— Hanish? — inquiriu. O outro homem sorriu, aparentemente agradado por
ter sido nomeado. A expressão bastava para confirmar que o palpite fora em
cheio. — Como é isto possível?
— Viajando pelo sonho — respondeu o outro. — Estás a dormir e não
estás, eu estou acordado em espírito e muito distante do meu corpo adormecido.
Consigo sentir o corpo a puxar-me, mesmo agora, tentando fazer-me voltar ao
que é familiar. O nosso espírito não gosta de abandonar o corpo, Thaddeus. É
irónico considerar que, devido aos seus malditos mortos-vivos, o meu povo
deseja apenas escapar a este fardo da carne, mas é verdade. Estou tão
surpreendido como tu que estejamos a falar. Nunca antes estivemos perto, nem
sabia que possuías o dom. Nem toda a gente o tem, sabes. Entre mim e os meus
irmãos houve sempre silêncio. Não podemos compreender a ordem das coisas...
Hanish desvaneceu-se na escuridão e depois a visão voltou, tremeluzindo,
brilhando ainda mais intensamente.
— Estou feliz por me teres reconhecido tão depressa, mas não vim ter
contigo para uma conversa banal.
Algo no tom de voz de Hanish causou estranheza a Thaddeus, a tal ponto
que não só se focou nas palavras do outro mas também no modo como as
entoava. Era difícil entender o que o vulto dizia através da distorção da distância,
entoava. Era difícil entender o que o vulto dizia através da distorção da distância,
mas havia um homem do outro lado deste discurso e Thaddeus fora sempre bom
entendedor de homens.
— As crianças estão a salvo? — perguntou Hanish.
— As crianças? Não precisas de as temer. Não constituem verdadeira
ameaça para ti...
— Não lhes fizeste mal, pois não? — perguntou Hanish, com um tom de
preocupação na voz.
Enquanto o vulto do líder se apagava e voltava a aparecer, Thaddeus teve
alguns instantes para pensar. Ao observar os olhos de Hanish, Thaddeus
apercebeu-se de que ele escondia alguma coisa. Não estava exatamente a mentir,
mas havia alguma coisa importante por trás das suas palavras que,
desesperadamente, ele queria evitar que Thaddeus descobrisse.
— Claro que não — respondeu, quando Hanish ressurgiu, brilhante, à sua
frente. — Mantive-as aqui, perto de mim, protegidas de todos...
— É importante que vivam. Compreendes? A sua vida significa muito para
mim. Estou aqui para te dizer novamente que, quando mas entregares, serás
recompensado. Falaremos sobre isso em tempos mais calmos, e eu recompensar-
te-ei. Acredita em mim quanto a isso. Não sou um Akaran de língua de serpente.
Digo a verdade. O meu povo sempre disse a verdade.
Thaddeus sentiu um forte abalo de entendimento nos seus pensamentos.
Compreendeu o que Hanish escondia. Estava ali, atrás da afirmação de que o seu
povo sempre dissera a verdade. Aquilo não era bazófia. Era uma declaração de
orgulho nacional. Os Mein haviam sempre afirmado que haviam sido banidos
para o norte por causa de dizerem a verdade contra os crimes dos Akaran.
Acreditavam não só que tinham sido banidos mas também amaldiçoados. Os
Tunishnevre... Aquilo era o que Thaddeus ainda não tivera em conta. Não
passava de uma lenda para os Akaran, mas talvez fosse mais do que isso para os
Mein.
Anteriormente, pensara somente no antigo ódio dos Mein por Acácia, de
como haviam cobiçado aqueles territórios amenos, de como seriam ricos se os
governassem, e em como se sentiriam gratificados por, finalmente, vencerem os
inimigos de há tantos séculos. Porém, não alcançara ainda o mais profundo
desejo de Hanish. Não compreendera até agora que aquela não era apenas uma
guerra por coisas terrenas. O Mundo Conhecido era o campo de batalha, mas a
causa por que Hanish lutava cruzava outros planos da existência. Ele devia
acreditar que os seus antepassados se encontravam encurralados num purgatório
sem fim. Queria romper a maldição lançada sobre eles durante a Retribuição e
sem fim. Queria romper a maldição lançada sobre eles durante a Retribuição e
libertar os Tunishnevre. Este feito, dizia a lenda, só poderia ser realizado de uma
forma. Ao recordá-la, Thaddeus pensou que ou Hanish enlouquecera ou o
mundo era um lugar muito mais misterioso do que ele imaginava.
Estes pensamentos passaram rapidamente pela cabeça do chanceler e
Hanish não pareceu reparar na mudança que nele ocorreu.
— Reúne-os — disse. — Guarda-os para mim. Se alguma coisa lhes
acontecer, farei da tua existência um sofrimento sem fim. É um bem que te dou.
Não duvides nem da minha generosidade nem da minha ira.
— Não duvido nem de uma nem de outra — retorquiu Thaddeus. —
Garanto-te que esperarei aqui por ti, com as crianças comigo.
A luz nos olhos de Hanish esmaeceu. O vulto transformou-se e dispersou
como vapor sacudido por uma rajada de vento. Thaddeus sentiu-se regressar ao
corpo novamente. Voltou a descansar dentro da sua concha, deslizando através
da pele e sentindo-a novamente envolvê-lo. Não decidira, pensou para si próprio,
obedecer. Não era um criado. Era livre de agir como queria...
Repetiu isto vezes sem conta, até sentir o torpor terreno invadi-lo, receoso
de se lembrar de uma parte da noite e não de outra, com medo de acordar e errar
no modo de agir. Ordenou a si próprio que acordasse e se lembrasse da sua
revelação, pois aquilo mudava tudo e tratava-se disto: Hanish acreditava poder
pôr fim à maldição sobre os Tunishnevre ao matar um herdeiro da dinastia
Akaran. Só as gotas do sangue puro Akaran despertariam a vida nos seus
antepassados amaldiçoados. Se Hanish conseguisse o que queria, as crianças que
Thaddeus amava — as quatro que protegera toda a sua vida, que gostaria que
fossem suas e a quem dera o afeto que gostaria de ter dado aos seus próprios
filhos — seriam colocadas sobre um altar sacrificial, golpeadas e sangradas até à
morte. Se fosse verdade que a maldição de Tinhadin era real e não um mito, e
que podia ser cancelada, vinte e duas gerações de guerreiros do Mein seriam
trazidos da morte para a vida. Caminhariam novamente sobre a terra e a sua
vingança viraria o mundo ao contrário.
Compreender isto fez com que Thaddeus visse tudo de outro modo. Não
podia tomar o poder como o ogre que o habitava imaginara. Nem poderia
permitir que Hanish soltasse um novo inferno sobre o mundo. Havia uma
súplica, contudo, a que poderia obedecer. Deveria ter feito isso já. Sabia disto
com uma certeza maior e mais completa do que qualquer outra coisa em que
acreditasse, entre as suas lealdades antagónicas. Determinara já que as crianças
teriam de ser enviadas dali para fora. Agora, poria em prática o plano que
Leodan Akaran sonhara para os seus filhos, se a tragédia se abatesse sobre si
Leodan Akaran sonhara para os seus filhos, se a tragédia se abatesse sobre si
antes de eles atingirem a maturidade. Thaddeus conhecia o plano e tinha poder
para o pôr em marcha. Só ele, em todo o mundo vivo, o poderia fazer. Nem
sequer os jovens Akaran sonhavam com isso. Nem se lhes poderia contar a
verdade para os preparar. Aliver odiá-lo-ia por isso. Provavelmente, ficaria
apavorado, encarando isso como o pior dos destinos possíveis e vê-lo-ia como
um traidor.
Que apropriado, pensou Thaddeus: que horrível e apropriado, uma verdade
e uma mentira.
Capítulo 26
O navio escolhido era uma das maiores embarcações de pesca da frota, com
duas velas quadradas principais a meio do convés e uma vela bujarrona
triangular que serpenteava à proa como um papagaio de brincar, ondulando e
mudando de direção de modo que a insígnia com o nome do proprietário surgia e
desaparecia constantemente de vista. Quem quer que a observasse da costa
conhecia bem o barco. Navegara em águas acacianas durante mais de trinta anos.
Os tripulantes que trabalhavam no convés eram um pouco mais numerosos do
que o habitual, pois não era invulgar que as embarcações levassem aprendizes
nos últimos meses de inverno, antes de os atuns regressarem dos baixios de
Talay, seguidos pelos barcos do continente em busca de tripulantes para a
primavera. Flutuava muito acima da superfície das águas, como era típico dos
cascos vazios que aguardavam que os carregassem; era o procedimento típico de
um ciclo de cinco dias necessário durante a época da calmaria. Porém, nenhuma
destas coisas era realmente o que parecia.
Os homens vestidos de pescadores eram, na verdade, guardas Marah. A
carga que levavam não se tratava do peixe de cauda amarela que a embarcação
normalmente pescava nos mares de Inverno. Em seu lugar transportava os quatro
jovens Akaran. Estes viajaram escondidos durante a primeira parte da viagem no
porão nauseabundo da embarcação, todos eles taciturnos e de olhar mortiço,
respirando pela boca tanto quanto lhes era possível. Tinham a mesma expressão
preocupada no fundo do rosto, como se fosse um traço genético passado a todos
à nascença mas que só surgira mais tarde. Mena continuava a sentir vontade de
falar, de partilhar o que sentia, de dizer qualquer coisa que quebrasse a tensão.
Porém, parava sempre perante o facto indiscutível de nada ter de razoável a
dizer.
Uma vez fora da curva abrigada do porto a norte, a embarcação navegou
contra o vento e fluiu ao sabor do impulso do seu arcaboiço vazio. Cortava as
ondas gélidas de um azul vítreo, levando atrás um bando de aves, que, com
gritos roucos, pareciam dar ordens umas às outras. O capitão da guarda convidou
os jovens para subirem ao convés, depois de estarem bastante afastados da ilha,
dizendo que já não havia olhos que os pudessem descobrir. Mena observava os
guardas da parte de trás do barco, saboreando o ar salgado na garganta.
Interrogava-se sobre qual dos homens ou das poucas mulheres que via ali já
tinha morto alguém Alguns deles haviam tomado parte no combate para dominar
tinha morto alguém Alguns deles haviam tomado parte no combate para dominar
a revolta dos soldados do Mein. Os rebeldes haviam sido derrotados em menos
de uma sangrenta hora, com os últimos a serem perseguidos escadaria abaixo e,
por fim, capturados e mortos nas ruas da cidade baixa. Aliver, sabia, fora
afastado da refrega. Este não falara sobre isso, mas ela bem via que o irmão se
sentia envergonhado. E não fora o único insulto ao seu orgulho.
Afastou-se dos guardas e observou a esteira do navio. Não tinha a certeza
do que pensar daquela viagem. Thaddeus explicara que iriam fugir da ilha
temporariamente, por uma semana ou duas, não mais do que um mês. Estariam
mais seguros fora das vistas de todos e precisavam de se afastar apenas o tempo
suficiente para que a revolta fosse dominada, punidos os culpados pela morte do
pai, e identificar e acabar com quaisquer outros conspiradores na ilha.
Navegariam até à ponta norte de Kidnaban e ficariam em tranquilo isolamento
com o diretor da mina aí existente. Thaddeus prometera-lhes que regressariam o
mais brevemente possível a Acácia. Por alguma razão, Mena não acreditara nele.
Existia uma qualquer outra verdade por detrás da fachada que mantinha e das
palavras sensatas que lhes dirigia, mas ela não conseguia imaginar o que seria.
Aliver não pareceu duvidar da sinceridade do homem, mas revoltara-se
contra aquele plano com uma raiva maior do que Mena alguma vez vira nele.
Falara, aos gritos, sobre a batalha iminente, berrando que era seu dever liderar o
exército. Ele era o rei! A responsabilidade era sua, mesmo que morresse em
combate! Foi preciso todo o talento persuasivo de Thaddeus só para conseguir
que Aliver baixasse de tom. Thaddeus referiu os seus poderes enquanto
chanceler com responsabilidades interinas. Criticou Aliver, afirmando que as
ordens tinham vindo diretamente do próprio Leodan, dizendo que ambos
estavam obrigados por compromisso de honra a cumpri-las. No fim, contudo,
não foi a persuasão, mas a força que fez o príncipe entrar no navio. Foi
escoltado, como os irmãos, por guardas Marah disfarçados, que tornaram bem
claro que tinham de seguir as ordens do rei transmitidas pelo chanceler. Tudo o
que Aliver podia fazer agora era aceitar o exílio temporário, apesar de o príncipe
rebentar de fúria por encarar aquilo como um insulto.
Mais tarde, no primeiro dia de viagem, avistaram o cabo Fallon. Esta era
uma costa de falésias instáveis, sobre as quais se via uma charneca ondulante de
erva alta salpicada aqui e além pelas cores das flores silvestres do inverno.
Dariel estava sentado ao lado de Mena junto à popa do navio. Partilhavam
algumas sardinhas picantes com bolachas. Dariel desperdiçava mais do que
comia, tentando separar com uma faca as espinhas macias do filete,
amontoando-as numa pilha que, depois, ocasionalmente, lançava com a ponta da
faca para fora da embarcação. Algo naquela atitude a encheu de amor pelo
faca para fora da embarcação. Algo naquela atitude a encheu de amor pelo
menino. O sentimento invadiu-a totalmente com o poder da nostalgia por algo
perdido, como se não estivesse sentada ao pé dele, naquele momento, sendo
ainda irmã dele com todas as fibras do seu corpo, tal como ele era irmão dela
com todas as fibras do seu corpo. Interrogou-se por que olhava para ele com
tanta emoção, pressentindo que as coisas já não eram bem assim.
Aliver caminhava na direção deles, usando ostensivamente a antiga espada
de Edifus, a Confiança do Rei. Parecia demasiado grande para ele, como um
estranho apêndice mais embaraçoso do que útil. Esforçava-se por afastar a raiva
e a expressão carrancuda e aparentar controlo. Mena queria abraçá-lo por isso,
mas sabia que isso não lhe agradaria.
— Estamos a chegar às minas — disse ele, apontando com um gesto da
cabeça. — São criminosos que lá trabalham, como castigo. Há uma ainda maior
em Kidnaban e muitas em Senival.
Mena esticou a cabeça para ver para lá da amurada. Ao contornarem um
promontório, o sol, baixo, coava a luz de sombras e a menina levou alguns
instantes a conseguir descortinar a paisagem. As grandes sombras que avistava
sobre a terra eram enormes crateras. Assim abertas aos céus, ela não conseguia
adivinhar a profundidade que teriam, pois só vislumbrava o paredão lá em baixo
exposto, entrecruzado por linhas e cortes. Aqui e ali brilhavam luzes, grandes
chamas no interior de recipientes de vidro que fraturavam e ampliavam a luz,
atirando raios dardejantes ao céu. Pelo aspeto, o trabalho mineiro não acabaria
ao escurecer. Mena pensava como seria possível haver tantos criminosos, tantos
loucos que roubavam ou faziam mal às outras pessoas. Talvez, quando fosse
mais velha, viesse a fazer alguma coisa quanto a isso. Viajaria em nome de seu
pai e exigiria às pessoas que fizessem melhor uso das oportunidades que lhes
ofereciam, em vez de perderem a longa paz em ações triviais.
Passaram essa noite no abrigo entre Kidnaban e o Continente. Na tarde
seguinte, o navio atracou ao porto de Crall, na costa a norte de Kidnaban. Nessa
noite, no modesto conforto das instalações do diretor, no alto de uma colina com
vista para a vila, encontraram-se com Crenshal Vadal. Este era um homem
apagado. Abaixo do lábio inferior, o rosto acabava abruptamente. O queixo
recuava até ao pescoço numa diagonal simples. Falava com rígida formalidade,
mas, ao mesmo tempo, parecia desejar estar num lugar totalmente diferente,
como se todo o seu corpo ansiasse por fugir e enfiar-se num canto. Mena notou
que o homem demorou alguns minutos até expressar a sua tristeza pelo destino
de Leodan, e desconfiou que fora um dos seus ajudantes a lembrar-lhe para
acompanhar a frase com uma expressão contristado.
Enquanto jantavam, Crenshal deu-lhes mais pormenores sobre o seu
Enquanto jantavam, Crenshal deu-lhes mais pormenores sobre o seu
destino. Iriam, simplesmente, permanecer isolados numa área das instalações do
diretor. Era tudo. Não receberiam visitas, porque ninguém deveria saber onde se
encontravam. Thaddeus iria enviando mensagens regularmente, dando notícias
sobre quaisquer mudanças ou desenvolvimentos da situação. Não receberiam
nem enviariam mais nenhuma correspondência. Teriam de se arranjar sem luxos,
nem comida requintada ou entretenimentos, sem nenhuma extravagância que
pudesse chamar as atenções. Nem seria sensato da parte deles deambularem pela
parte baixa da vila. Levariam uma vida simples, longe da antiga opulência de
Acácia. Tudo o que Crenshal podia oferecer eram os aposentos, toscos, de uma
estrutura construída para albergar o pessoal administrativo e de gestão das
minas, refeições simples e o prazer da sua companhia. Pronunciou a última frase
num tom brincalhão, mas com tão pouco entusiasmo que soou a falso.
Aliver acrescentou que desejava ser mantido ao corrente de tudo o que se
passasse. Falou num tom altivo, como se falasse do alto de uma posição de
autoridade diferente da dos irmãos. Mena olhou em volta, pensando se os outros
teriam notado a mal-disfarçada insegurança dele. Aliver temia estar a ser
afastado do fluxo dos acontecimentos e da tomada de decisões. Encontrava-se
numa espécie de limbo: era mais do que o príncipe que fora, havia algumas
semanas, mas certamente ainda não era o rei que esperara tornar-se. Aos olhos
de Mena, ele ainda teria de aprender a lidar com a sua situação.
Ele aligeirou o tom ao perguntar:
— Tem cavalos que nos possa emprestar? Poderíamos sair e explorar a ilha.
Far-nos-ia muito bem apanhar algum ar.
Dariel também se entusiasmou com a sugestão, mas o diretor interrompeu-
lhes a alegria.
— Receio que não possais passear pela ilha. É... bem, é a vossa segurança
que mais importa, príncipe. Os prazeres como o cavalgar terão de ser
abandonados, por agora. Certamente que o chanceler vos terá explicado tudo
isto.
— E as minas? — perguntou Aliver. — Gostaria de as inspecionar. Não
precisamos de fazer grande espalhafato disso, ou...
— Inspecioná-las? — Manifestamente, Crenshal nunca ouvira tal palavra
antes. — Mas... jovem príncipe, isso é também impossível. As minas pululam de
degenerados. E também não têm nenhum interesse para si, de qualquer maneira.
Haveremos de arranjar alguma coisa para vos entreter nas instalações. Não se
haverão de aborrecer, jovens, prometo-vos.
Ao longo dos dias que se seguiram, contudo, tal revelou-se manifestamente
falso. Pouco viam o diretor. Comia com eles todas as noites, mas, fora isso,
estava sempre ausente e deixava os jovens com poucas oportunidades de
distração. Os oficiais e dirigentes alojados nas instalações haviam sido colocados
noutra área, deixando aqueles aposentos e corredores simples ecoando no vazio.
Mena nunca vira nenhuma daquelas pessoas-fantasma, apesar de ter encontrado
no seu quarto sinais de que alguém o abandonara apressadamente: um frasco
meio vazio de óleo de banho perfumado, uma meia perdida por entre os
cobertores, uma unha do pé no chão, ao lado do toucador.
Nas primeiras tardes entretinham-se com jogos de tabuleiro. Os livros da
coleção do anterior diretor — o próprio Crenshal não se interessava por literatura
— deram-lhes alguma distração, no terceiro dia, quando Dariel convenceu
Aliver a ler alto, para todos, uma coleção de poemas épicos. O menino ficou
encantado, mas Mena não conseguiu evitar lembrar-se do pai. Corinn devia ter
sentido a mesma coisa. Pôs-se de pé e afastou-se, sem explicações. Corinn mal
pronunciara palavra desde que haviam deixado Acácia. Quando o fazia, falava
num tom trivial, monocórdico, como se não visse nada de anormal nas
circunstâncias em que viviam.
Só na terceira tarde é que tiveram uma conversa quase significativa. Corinn
entrou na sala comum, onde passavam a maior parte do dia, e olhou em volta
com os olhos de pálpebras pesadas. Mena foi apanhada de surpresa quando
Corinn foi ter com ela, meio cambaleante, e se atirou para o sofá ali perto,
soltando um profundo suspiro de aborrecimento.
— Ouviste? Um dos soldados contou que foram apanhados dois homens
que tentavam sair da aldeia. Disse que eles foram «tramados por isso» e o outro
disse, rindo, que era o que mereciam. O que achas que isto significa?
— Tenho a certeza de que quer dizer que foram punidos — retorquiu Mena.
— Claro que quer dizer isso! — respondeu Corinn de modo abrupto. —
Dizes sempre as coisas mais óbvias. Punidos como? Era isso que eu estava a
perguntar.
— Não digo as coisas mais óbvias — retorquiu Mena, temendo que aquela
troca inesperada de palavras azedasse. Se alguém dissera as coisas mais óbvias
fora a própria Corinn.
Corinn produziu um som fundo na garganta, uma espécie de protesto
gemente.
— Isto aqui é tão estranho, Mena. Nada é como deveria ser. Não posso
suportar o aspeto que têm as pessoas daqui. Parecem... parecem idiotas, como se
suportar o aspeto que têm as pessoas daqui. Parecem... parecem idiotas, como se
tivessem cérebro de animal em vez de pessoas. Quem me dera ir para casa.
Detesto este limbo. Tenho tantas coisas para fazer. Coisas importantes.
— Tais como? — inquiriu Mena, tentando falar num tom que não
ofendesse a irmã.
De algum modo conseguiu. Corinn olhou para ela de soslaio.
— Tu não compreenderias.
No quarto dia, quando um criado do diretor lhes trouxe dados para jogarem
ao jogo dos ratinhos, Mena desistiu realmente de fingir que se estava a divertir
dentro daquelas paredes nuas do complexo. Contava os dias com tanta precisão
quanto Aliver, cada um deles esperando pelas próximas parcas notícias de
Thaddeus, ansiosos por que os chamasse de regresso a casa. Quando chegou a
primeira missiva, lapidar e críptica, do chanceler, contudo, não alterou nada. A
situação continuava instável, dizia. Deveriam permanecer onde estavam.
Prometia-lhes que os avisaria, logo que houvesse alguma mudança, mas, apesar
de dizer isso, não lhes dava nem a mais ligeira ideia do que acontecera desde o
dia em que haviam partido. Nem uma notícia da guerra. Nem uma indicação de a
situação estar melhor ou pior do que antes.
Mena reparou numa cortina de fumo, um dia, no céu, e temeu que o seu
mau pressentimento se tivesse evolado até aos céus numa forma visível.
Pairavam sombras no ar, nuvens que se aglomeravam, ondulando e fluindo em
correntes de ar. Ao observá-las, da estreita janela do seu quarto, apercebeu-se de
que sempre ali haviam estado. Apenas nunca tinha parado para as contemplar. O
céu não estava somente nublado, como pensara. Por detrás da escuridão em
movimento, havia um tom pálido de azul, uma clareira constante aberta nos
céus. Que estranho, pensou. Ao primeiro olhar, desviou os olhos, aquelas formas
no céu pareciam-se demasiado com arautos do mal, como que redemoinhos e
correntes que se poderiam materializar em algo mais sinistro, se ela os olhasse
por demasiado tempo.
Ao acordar de manhã, a primeira coisa que fazia era dirigir-se à janela. Os
eflúvios sombrios continuavam lá, claros e óbvios, agora que ela se apercebera
da sua presença. Tornavam-se até mais pesados à medida que a noite se
aproximava. Quanto mais os olhava, mais consciente se tornava da presença das
nuvens, em múltiplos aspetos diferentes, à sua volta. A maior parte era
transformada por correntes que ela não sentia, mas, em momentos de quietude,
havia partículas daquela matéria que caíam em volta dela, assentando em
espaços vazios e amontoando-se nos recantos toscos das paredes. Era uma
espécie de poeira, tão leve que se propagava no ar à simples respiração. Sentia o
toque de cristais minúsculos nas faces, sobre as pálpebras e a acumularem-se nas
toque de cristais minúsculos nas faces, sobre as pálpebras e a acumularem-se nas
sobrancelhas. Conseguia sentir-lhes o sabor nos pulmões, como que uma areia
fina que inalava, ao respirar. Estava por toda a parte. Espantou-se com o facto de
ter demorado tanto tempo a aperceber-se daquilo.
Mena perguntou à criada que mudava a roupa da cama se notara aquilo. A
rapariga não pareceu ficar nada satisfeita por estarem a falar com ela. Quase que
saiu do quarto.
— Princesa, o que vedes é a poeira que sai das minas. É do trabalho que lá
fazem, é tudo.
Mena perguntou-lhe se as minas ficavam ali perto e a jovem acenou que
sim. Ficavam mesmo atrás das colinas, do outro lado do complexo, explicou.
Então, onde estavam todos os trabalhadores, perguntou Mena. Por que não vira
ela ainda sequer sinais de que as minas existiam?
— Já haveis visto um sinal. Viste-lo no ar. E vós não tendes de ver mais do
que isso. Os trabalhadores? Não sei, senhora. Talvez não haja trabalhadores. Não
me cabe a mim dizer.
A jovem aproveitou uma pausa, enquanto Mena pensava no assunto, para
desaparecer do quarto. Que comportamento mais irritante. Um criado não devia
ir-se embora quando fora convidado a falar. Por outro lado, a ousadia da jovem
ao escapar-se dali poderá ter sido o que inspirou Mena a agir, algumas horas
depois.
Saiu do complexo já bastante depois de ter anoitecido, envolta num
sobretudo que encontrara no armário. Evitou o guarda colocado à porta do
quarto, esgueirando-se pela janela e indo dar ao pátio que ali havia, e abriu
depois o portão para a liberdade. Não levou nada para a alumiar, mas a Lua ia
alta e, apesar de nervosa e alerta ao mais pequeno som, teve pouca dificuldade
em seguir o caminho de terra batida, de um branco ósseo, que se afastava do
complexo.
Havia ainda um outro guarda a evitar, ao fundo do caminho. Era uma forma
densa na escuridão. Sentiu os pormenores do corpo do homem, a posição da
cabeça e a provável direção do olhar. Havia até um cheiro forte numa brisa que
soprava na sua direção — o odor do homem. Saiu do caminho, não se atrevendo
a ir mais longe por ali. Prosseguiu, agachada rente às ervas, palpando o caminho
com as mãos e os pés até encontrar um declive no terreno por onde passou
escondida do soldado.
Continuava a ouvir sons que lhe faziam palpitar o coração: o roçar do seu
casaco; o entrechocar dos rebentos de erva, que pareciam ossos a partirem-se sob
os pés; o modo como a pressão dos seus passos fazia ranger a areia, o ruído que
os pés; o modo como a pressão dos seus passos fazia ranger a areia, o ruído que
parecia uma explosão, quando algum roedor dava por ela e fugia, espantado.
Nunca deixou de esperar que o homem chamasse por ela. Ouvira antes dizer que
era difícil viajar silenciosamente à noite e que a guarda Marah era treinada para
ouvir o mais ínfimo som irregular oculto na escuridão. Agora tentava lembrar-se
de quem lhe dissera isso. Pois por mais que respirasse ofegante, apesar da
violência que o mais pequeno som era para os seus ouvidos, apesar mesmo de os
músculos das pernas lhe doerem devido ao esforço de andar agachada — na
verdade, a sua fuga não lhe parecia assim tão difícil. Continuou a andar e, em
breve, já ultrapassara o homem e voltara ao caminho principal. Parecia que os
pés, as mãos, os dedos e os músculos sabiam exatamente o que fazer de comum
acordo. Esteve prestes a sentar-se e ponderar naquilo, mas queria ainda atingir o
objetivo que ali a levara.
Havia diversos lances de escadas que era necessário subir para sair do
complexo. Estavam escavadas na encosta de modo que, agachada, poderia
continuar sem a descobrirem. As escadas iam dar a uma estrada em pedra.
Atravessou-a a direito e subiu pela encosta do outro lado, agarrando-se com
força às ervas altas.
A subida acabou por levar só alguns minutos, mas, mesmo assim, que alívio
ver que o ângulo da encosta diminuía e que nada havia à sua frente! Ofegava ao
dar os últimos passos na subida íngreme, pousando-os lentamente, como se faz
ao atingir um objetivo. Endireitou-se completamente, o que a ajudou a perscrutar
a paisagem. Sabia o que, em princípio, deveria existir ali, aquilo por que estava
tão curiosa, a razão — se existia alguma — para aquele passeio noturno. No
entanto, não estava preparada para o que se lhe deparou.
Longe ficara a noite tranquila, do outro lado da encosta, atrás dela. Não se
via a lua em lado algum, nem o céu claro que lhe iluminara o caminho. A terra
parecia envolta em vagalhões carregados de poeira, como que uma nuvem em
movimento fervilhante. Sob aquela nuvem de pó havia uma enorme cratera de
muitas bocas. Ocupava a maior parte da paisagem que tinha pela frente, um
buraco gigantesco e desolado como ela nunca vira nem imaginara antes,
efervescente de uma vida cacofónica, um clamor constante e furioso.
Estava a olhar para a orla norte das minas de Kidnaban. Aquela visão fê-la
sentir um choque de horror, um horror de que ela se esquecera que podia existir,
o mesmo medo que sentira quando uma aia tola lhe contara histórias sobre uma
raça demoníaca que vivia no interior de uma montanha fumegante e alimentava
as suas fogueiras com crianças mal-comportadas roubadas das suas camas. Tal
como na sua imaginação, centenas de fogueiras iluminavam o lugar. Havia
como na sua imaginação, centenas de fogueiras iluminavam o lugar. Havia
placas de vidro curvo em volta de caldeirões de óleo flamejante que atiravam
fagulhas para o céu. Sob aquela luz distinguiu a confusão de linhas
entrecruzadas em diagonal que vira antes, no Cabo Fallon. Porém, agora,
encontrava-se muito mais perto. As linhas mudavam enquanto as olhava,
desfocadas por um movimento que mal era percetível. Pensou que seria efeito da
luz. Demorou alguns momentos a perceber que se tratava de algo mais do que
isso.
As linhas eram escadarias e patamares, trilhos amplos para maquinaria,
rampas e sistemas de escadas com muitos patamares de altura. Os objetos em
movimento não eram nenhuma partida da luz. Tratava-se de pessoas. Centenas
de pessoas. Tão pequenas que não se percebia que eram indivíduos, ganhando
forma apenas pelo seu movimento coletivo, como uma fila de formigas, à
distância, parece um ser único. Talvez ultrapassassem as centenas. Milhares,
seria mais provável. Dezenas de milhares. E talvez isso fosse somente uma
porção ínfima da totalidade. Ela não fazia ideia da extensão das minas, do
quanto estaria oculto à vista.
Avançou para a borda da cratera e deslizou pela rocha, descendo até uma
ponta sólida do rochedo. Teve de avançar deitada sobre a barriga para olhar lá
para baixo. Quando começou a vislumbrar, parou, surpreendida ao ver que, a
cerca de dez metros abaixo, abria-se uma avenida talhada na rocha. Estava
pejada de trabalhadores. Estes carregavam objetos aos ombros, sacos às costas, a
pele e a roupa do mesmo tom cinzento da mina, tingida pelo avermelhado da luz
e cobertos de sombras.
A sul ficava uma torre, e, para lá dela, uma outra. Quadrada e grossa,
coberta por um telhado que parecia vagamente um cogumelo, com o brasão
dourado da dinastia Akaran. Era o símbolo da sua família, a árvore dos Akaran,
com a silhueta de uma acácia contra um sol amarelo a despontar. Era o seu
símbolo. Uma forma que ela tantas vezes rabiscara em tampos de mesa e sobre
guardanapos.
Abaixo do telhado havia varandas onde se movimentavam figuras. Olhando
para sul, ao longo da borda da cratera, viu outra torre de vigia e, mais além desta,
em redor de todo o rebordo da cratera — mais torres de vigia. As figuras eram
guardas, vigias. Muitos eram arqueiros. Conseguia distinguir a silhueta da sua
postura, com os arcos no punho, cada um com uma flecha pronta a atirar. Não
deveria sentir surpresa. Os criminosos têm de estar guardados. Mas eram tantos!
Havia torres e mais torres a perder de vista, e as mais distantes pareciam formas
redondas no horizonte. Os trabalhadores, minúsculos, lá em baixo, não tinham
como escapar dali, nenhuma outra opção a não ser curvarem-se a um labor que
como escapar dali, nenhuma outra opção a não ser curvarem-se a um labor que
prometia ser interminável.
Perdeu a vontade de perscrutar mais a dimensão de tudo aquilo, e desviou o
olhar para as filas intermináveis de formas em movimento mesmo abaixo. Havia
algo de inquietante neles. Ninguém erguia os olhos ao céu. Quanto mais
observava, mais acreditava ver traços e atributos individuais, a forma dos rostos
e a disposição dos ossos junto à pele. Foi por causa desta intimidade crescente
que se apercebeu que o mais medonho daquilo não era o número espantoso de
gente de rosto abatido nem a sua pequenez comparada com o projeto que os
unia. Havia uma outra razão para a linha parecer tão irregular aos seus olhos.
Havia crianças entre os trabalhadores. Em cada três ou quatro pessoas havia uma
criança não mais velha do que ela, algumas nem eram mais altas do que Dariel.
Aquilo era demasiado para o conseguir suportar.
Regressando ao fresco ar da noite, Mena deu alguns passos em direção ao
complexo. Agachou-se. Não podia regressar às instalações sem ter um sinal do
que acabara de presenciar estampado no rosto. Ela não deveria ter visto aquilo.
Nenhum dos irmãos deveria. Claramente, o mundo não era como a haviam
levado a pensar que seria. Pensou no pai, nos momentos em que estava
melancólico. Seria esta a razão? Esta era uma mina acaciana. Pertencia à sua
família. Aquelas pessoas, aquelas crianças... trabalhavam para ela. Havia seres
que arrancavam as crianças da cama para os atirar para ali, para alimentarem os
fogos do mundo. Trabalhavam em seu nome. Interrogou-se sobre se aquela aia
estranha, anos atrás, conhecera aquilo. Seria por isso que se sentira no direito de
a assustar, de a provocar e de lhe corromper os sonhos de criança?
Regressou ao complexo mesmo a tempo. Mal acabara de entrar no quarto e
de tirar o sobretudo quando uma forte pancada na porta quebrou o silêncio que
antecipava a aurora. Tinham de sair dali, disse uma voz, que ela não reconheceu,
do outro lado da porta. Era muito urgente que ela saísse dali.
— Princesa, a vossa segurança depende disso.
Porque não reconheceria aquela voz? Não era nenhum dos Marah que os
haviam escoltado, nem um criado conhecido nem ninguém de que ela se
lembrasse do pessoal de Crenshal. No entanto, tinha a certeza de que falava com
sinceridade. A sua segurança dependia daquilo. Agarrou de novo no sobretudo e
olhou em volta do quarto, indecisa sobre se deveria arranjar as suas coisas para
levar. Pensou em perguntar a quem quer que a tivesse chamado, mas, quando
abriu a porta, sentiu-se estranhamente preparada para sair tal como estava, ainda
afogueada de ter estado lá fora, de casaco no braço, pronta. Simplesmente
pronta.
Não sabia que ao dar um passo para fora daquela porta iria deixar para trás
Não sabia que ao dar um passo para fora daquela porta iria deixar para trás
parte da sua vida para sempre. Não sabia que nos anos vindouros não veria os
irmãos nem a irmã ou ninguém que tivesse conhecido até àquela altura. Não
poderia ter imaginado que passar aquele limiar era o mesmo que dar um passo
para a obscuridade, desaparecendo do mapa, saindo da sua pele, para longe de
casa e do país e do seu nome, rumo a uma vida inteiramente diferente.
Livro Dois
Exílios
Capítulo 28
Sim, admitiu por fim Corinn a si própria, numa tarde em que andava a
cavalo pelo trilho que serpenteava a montanha rumo ao Rochedo da Enseada, as
mulheres do Mein tinham de facto o potencial para serem belas. Era só
necessário habituar-se às suas feições angulosas e retas. Tinham uma estrutura
óssea e temperamento semelhante aos homens da sua raça, mas o que eram
traços cinzelados austeros e belos nos homens, conferiam alguma estranheza às
feições das mulheres. Pelo menos fora assim que Corinn pensara durante a maior
parte dos anos que passara na sua companhia. Só ultimamente percebera que
muitas vezes se comparava com elas. Quando começara esta alteração dos seus
sentimentos, não sabia dizer, mas as cavalgadas que fazia, ultimamente, com
uma comitiva de raparigas do Mein haviam influenciado a mudança dos seus
sentimentos.
Tudo começara com uma ordem. Hanish Mein, dissera-lhe um mensageiro,
solicitava que a princesa Corinn passasse as tardes de sol com a sua prima,
Rhrenna, e o seu séquito de jovens nobres, amigas e aias. O mensageiro usara a
palavra solicitava, embora ambos soubessem que ordenava se adaptaria com
mais precisão à realidade. E chamara-lhe princesa. Toda a gente lhe chamava
princesa, embora, na verdade, fosse uma prisioneira na ilha que antes pertencera
ao pai. Era mantida num purgatório prolongado pelo homem que havia
orquestrado o assassinato de seu pai e a ruína do império acaciano e da família
Akaran. Caminhava pelos mesmos corredores que percorrera toda a sua vida.
Contemplava as mesmas vistas, do alto do palácio para a cidade baixa e o mar.
Jantava muitas vezes à grande mesa do salão principal. Mas já não pertencia à
família dos anfitriões. Um outro homem se sentava agora no lugar que
pertencera ao pai. A oração do jantar era feita numa outra língua, e apelava à
bênção de uma força coletiva ameaçadora, que Corinn ainda não compreendera
bem o que seria. O seu dia-a-dia passava-se num equilíbrio entre o que fora e o
que era agora, e as fronteiras entre ambas eram diluídas pela realidade presente e
deformadas pela memória. Eram estas as circunstâncias específicas e
desconfortáveis em que vivia, únicas no mundo.
Nessa tarde, Rhrenna cavalgava uma montada de pelagem castanha, que
devia ter escolhido para condizer com o seu traje: uma túnica azul pastel de pele
curtida, com uma saia com racha que, quando em pé, parecia um vestido mas
que se abria ao montar. Era uma rapariga pálida e magra, com feições
que se abria ao montar. Era uma rapariga pálida e magra, com feições
imperfeitas que, felizmente para ela, se combinavam num efeito agradável.
Usava o cabelo comprido, numa trança que Corinn levara algum tempo a
perceber que era diferente da que os homens usavam.
Durante os primeiros anos da ocupação, poucas mulheres do Mein se
tinham aventurado fora de Tahalian. Os homens do Mein, dizia-se, não gostavam
de misturar o seu sangue com outras raças e achavam um grande pecado que as
suas mulheres dessem à luz uma criança mestiça. E não era melhor que as
mulheres do recém-conquistado império tivessem começado a ter filhos mais
pálidos do que elas, de olhos cinzentos e traços rudes. Embora vista com maus
olhos, esta miscigenação era impossível de evitar. Por maiores elogios que
constantemente prestassem às mulheres da sua raça, os homens do Mein
continuavam a misturar-se com as estrangeiras. Pareciam gostar do sabor e
forma da pele e dos traços pelos quais afirmavam indiferença. Até de Maeander,
o irmão de Hanish, se dizia ter gerado uma pequena tribo. A pouco e pouco, cada
vez mais mulheres do Mein vinham desempenhar os papéis de esposas e
concubinas, acrescentando uma maior normalidade doméstica tanto ao palácio,
como aos soldados, a maior parte dos quais vivia agora uma vida de luxo.
Rhrenna estava em Acácia apenas há alguns meses, mas parecia ter-se
adaptado ao lugar. Um dos seus encantos era a voz que tinha, clara e gentil, e
que se adaptava melhor à língua acaciana do que a da maior parte do seu povo.
— Hanish acha que sois bela — disse ela. Usava um chapéu de aba larga
que a protegia do sol. Olhou através das rendas que o cobriam com malícia. —
Mas já deveis saber disso. Entendeis os homens melhor do que eu, não
entendeis?
— Entendi-os muito pouco ao longo da minha vida até agora — respondeu
Corinn. Pouco se interessava em discutir romances ou intrigas de corte. Em
primeiro lugar, não era a sua corte. Mas também, o que lhe era mais doloroso
ainda, estas ideias faziam-lhe recordar aquilo que perdera. Apesar disso, ouviu-
se perguntar:
— Porque dizeis que Hanish me acha bonita?
— É óbvio, princesa — disse a rapariga. — Quando estais numa sala, ele
não consegue tirar os olhos de vós. No baile de Verão haveis sido praticamente o
único par a quem ele deu atenção.
Uma outra jovem, amiga de Rhrenna desde a infância, concordou. Virou-se
na sela para as quatro mulheres atrás delas e incentivou-as a concordar também.
Corinn mal conseguia acreditar naquilo.
Corinn mal conseguia acreditar naquilo.
— Como se eu tivesse impressionado alguém nessa noite! Aos tropeções
como andei... Ele tinha de prestar atenção ou então eu ter-lhe-ia pisado os pés.
As vossas danças não fazem sentido para mim.
Rhrenna pensou sobre aquilo um momento, balançando na sela com o
movimento do cavalo, e depois disse:
— Andais aos tropeções de modo mais gracioso do que a maior parte das
pessoas.
Corinn tentou várias vezes negar os elogios de Rhrenna, mas a jovem
encontrava sempre maneira de lhe contestar os protestos com frases elogiosas.
Corinn acabou por se calar, derrotada na tentativa de se desvalorizar. E que lhe
importaria aquela adoração por ela? Fora admirada durante os anos antes da
guerra por mulheres e homens mais requintados do que qualquer uma destas
raparigas. Compreendia a sua situação melhor do que elas e nunca tinha a
certeza se elas estariam conscientes da falsidade que manchava tudo aquilo que
se passava entre elas. Ela sabia ser um troféu novo do Mein e para edificação dos
súbditos do rei. Eis, dizia a sua presença, a prova incontornável de que o império
anterior ao do Mein fora derrotado. Vejam como esta Akaran se senta à nossa
mesa. Vejam os seus modos, a sua beleza, o seu requinte. Olhem para ela e
lembrem-se quão poderosos eram os Akaran e a forma como foram
completamente derrotados, domados, e domesticados. Era isto que a presença de
Corinn reforçava diariamente. Que infelicidade! A vida que levava tinha poucas
dificuldades materiais, pois vivia no luxo e tinha grande parte dos privilégios
que sempre conhecera. Contudo, sentia-se constantemente posta à parte,
possuída, propriedade de outros — mesmo por aquelas jovens mulheres que
tanto afirmavam adorá-la.
Estavam a aproximar-se do Rochedo da Enseada, pois a brisa que soprava
do mar trazia-lhes o cheiro a dejetos das aves. Uma das donzelas fez um
comentário a propósito, levando a mão ao nariz e perguntando se teriam
realmente de se aproximar mais. Corinn continuou a cavalgar, cerrando os
lábios, consciente de que se ofendia com a mais ligeira alusão à ilha do seu pai,
mesmo que dirigida aos hábitos das aves marinhas. Ela não precisava de fingir
adorar a paisagem que os rodeava. A ilha estava no auge das suas cores de verão.
As colinas, cobertas de erva, tinham agora um tom amarelo metálico e brilhante.
As únicas coisas que faltavam eram as copas verdes das acácias. Tinham sido
todas mandadas cortar, durante o primeiro ano que se seguira à vitória de
Hanish: um ato de desprezo simbólico e algo também que Corinn nunca lhe
poderia perdoar.
Em breve os fogos da estação seca acender-se-iam, enviando nuvens de
Em breve os fogos da estação seca acender-se-iam, enviando nuvens de
fumo negro e atraindo as aves necrófagas a debicar as faixas queimadas rasgadas
ao longo das encostas como feridas. Corinn falou disso ao grupo, dizendo que
em breve teriam de escolher os dias de saída com cuidado. Já tinha havido
pessoas apanhadas pelo rápido movimento das chamas e queimadas no local
onde se encontravam. As raparigas ouviram isto em silêncio, assustadas com o
pensamento de um fogo por combustão espontânea. Aquilo devia ser um
pensamento infernal para um povo habituado a invernos de nove meses e verões
— como Igguldan dissera — nunca isentos da possibilidade de uma súbita
tempestade de neve. Agradava a Corinn que elas receassem aspetos da ilha que
ela conhecera toda a vida, embora também ela sentisse a dor da lembrança que,
muitas vezes, lhe vinha com aqueles pensamentos. Igguldan. Não aguentava
pensar nele, que tortura ter estado tão perto de um grande amor, apenas para este
lhe ser arrancado pelos atos malignos de loucos.
O vento levantou-se ao aproximarem-se das falésias do Rochedo da
Enseada. Quando chegaram lá perto, Rhrenna e as compatriotas agarraram nas
copas dos chapéus para que o vento não os levasse. Corinn, não precisando de
proteção, visto a sua pele ficar bronzeada pelo sol, em vez de ficar queimada e
vermelha, permaneceu sem chapéu e com toda a compostura, como sempre.
Contudo, o seu divertimento durou pouco.
Uma das donzelas disse:
— Olhai, Larken está de volta de Talay. Vede o seu barco, além.
Bastou a Corinn um momento para descortinar o navio. Navegava com uma
vela carmesim ornada com um pequeno machado. Era o símbolo de Larken, que
lhe fora atribuído por Hanish pelos serviços prestados durante a guerra. A visão
daquela mancha vermelha vindo, apressada, rumo a elas, através do mar de um
tom de lilás luminoso, encheu-a imediatamente de rancor.
Larken. Pensar nele lembrava-a sempre dos tempos antes do seu cativeiro.
Fora ele quem batera à porta do seu quarto em Kidnaban, nove anos antes.
Apresentara-se à sua frente, alto e de uma beleza selvagem, nas suas vestes
Marah. Falara com tanta frontalidade, com tanta calma, com uma força como ela
já não tinha há algum tempo. Vinha em nome de Thaddeus Clegg, dissera, tinha
a missão de a levar para um lugar seguro, só ela. Os outros guardas tratariam dos
irmãos, pois iriam para destinos diferentes. Não era sensato que viajassem juntos
para o mesmo lugar. Thaddeus e o pai dela haviam tratado destes preparativos
para eles. Apresentou documentos que assim o diziam, com todos os selos e
assinaturas em ordem, certificados com a marca que ela sabia pertencer ao anel
de Thaddeus.
de Thaddeus.
— Vinde — dissera Larken. — Podeis acreditar em mim. Vivo apenas para
vos proteger.
Ela devia ter desejado acreditar nele com todo o seu ser. Como,
interrogava-se agora, poderia ter consentido em ir com ele, sem primeiro falar
com os irmãos? Tentara fazê-lo, mas ele fora tão convincente e sincero. Os
agentes de Hanish Mein estavam muito próximos, explicara ele. Os traidores
abundavam agora por todo o império. Até no seu anfitrião das minas, Crenshal,
já não se podia confiar, e era por isso que tinham de se apressar. A rapidez era
tudo. Os irmãos e irmã já tinham iniciado as suas viagens. Se ela viesse agora
com ele, poderia ter a certeza de que os veria novamente. Era a única maneira.
Larken fora muito cortês e respeitoso, e também eficiente, imperioso e
decidido, tudo ao mesmo tempo. Sabia tudo o que era necessário fazer e fazia-o
tranquilamente. Ela tinha simplesmente de seguir as suas instruções. E assim viu
o mundo passar em redor deles. Saíram do complexo e desceram até à vila dos
trabalhadores, Crall, percorrendo ruas e becos até às docas, onde embarcaram
numa corveta que Larken lançou ao vento sozinho, com o talento de um
marinheiro de longa data. Quando o sol se ergueu completamente no horizonte,
contornaram o cabo e deixaram de avistar Crall. Ele indicava cada ponto de
referência em Kidnaban e explicava-lhe o que pretendia enquanto se afastavam
da ilha e rumavam ao cabo Fallon. Ao chegarem à tranquila e adormecida cidade
de Danos, nessa noite, já tarde, ela abandonava a sua fatigada pessoa às suas
mãos.
Larken explicara-lhe que iriam encontrar-se com um magistrado a
determinada hora e em certo lugar. Este era o único a saber como continuariam a
partir dali, e podiam confiar nele inteiramente. O homem encontrava-se
exatamente onde Larken dissera que estaria. Cumprimentou Corinn tão
efusivamente que a deixou embaraçada, algo que nunca antes lhe acontecera.
— Aqui estais a salvo — explicou o magistrado enquanto caminhavam. —
Este encontro é completamente secreto. Mais ninguém, a não ser eu, leu as
ordens do chanceler. Os preparativos para cada etapa da vossa segurança foram
feitos separadamente, de modo a que só eu conheço completamente a situação.
Foi assim que Thaddeus ordenou, e segui as suas instruções à letra. Confiai em
mim, princesa Corinn, o pior já passou.
— Ninguém sabe da nossa chegada? — perguntara Larken. — Tem a
certeza?
O homem respondeu que tinha a certeza. Jurava pela sua vida e dos seus
filhos. Tinha em sua posse todos os documentos de que precisariam para
continuar, com instruções escritas sobre quem contactar e as senhas secretas para
continuar, com instruções escritas sobre quem contactar e as senhas secretas para
que confiassem neles. Iriam, acreditasse ou não, para Candovia. Havia lá
súbditos leais aos Akaran que acolheriam Corinn e a manteriam tão bem
escondida que Hanish Mein nunca a encontraria, mesmo se a procurasse durante
cem anos.
Tudo isto pareceu deixar Larken satisfeito. Nada mais disse, e, durante
algum tempo, prosseguiram o seu caminho. O magistrado tagarelava sem parar,
lamentando a situação no império, expressando o seu pesar pela morte de
Leodan, e dando-lhe pormenores fragmentados do que ela poderia esperar, nos
dias que se seguiriam, prometendo que em breve tudo estaria bem. Corinn, em
parte, desejava que ele se calasse e, por outro lado, estava-lhe grata pela sua
tagarelice, querendo agarrar-se ao que lhe dizia e não o largar até a ordem do
mundo estabilizar novamente. Nunca sentira tanta necessidade de se agarrar a
alguém. Sentia-se já a deixar os cuidados de Larken para se entregar aos do
magistrado.
Foi por esta razão, em parte, que o que aconteceu a seguir deixou Corinn
completamente atónita. Por algum tempo, o que viu não foi registado de forma
compreensível pela sua consciência. Ao virarem uma esquina, e entrando numa
área não iluminada pelo luar, Larken murmurara qualquer coisa. O magistrado
virou-se para ele, como se reagindo a um aviso. Assim, ele ali estava de olhos
bem abertos, fitando Larken, quando este se aproximou dele. Larken ergueu
qualquer coisa acima da cabeça e bateu com ela na fronte do magistrado. O
homem ficou preso ao chão, com o corpo parecendo pender do punho de Larken.
Este recuou o braço e o homem caiu. A sua silhueta, traída pelo luar que entrava
no pátio, mostrou a arma, um pequeno machado que Larken usava à cintura.
Corinn reparara nisso antes, sem ter pensado muito no assunto.
Larken agarrou-a pelo cotovelo.
— Não façais barulho. Não vos matarei, a não ser que griteis por socorro.
Nesse caso calar-vos-ei de um modo muito desagradável. — Empurrou-a alguns
passos para a frente, para o limite da sombra. Tinha o rosto junto do dela, a sua
respiração tocava-lhe a pele. — Isto tinha de ser feito, princesa. Não o culpeis a
ele nem a mim. Somos todos atores num drama maior do que nós. Vinde, a nossa
viagem ainda não terminou.
— O que... o que estais a fazer? — Corinn soltou uma exclamação com a
força com que ele agarrava o seu pulso. — Aonde me levais?
Pela primeira vez, Larken ignorou as suas perguntas. Não houve nenhuma
resposta educada. Nenhuma explicação eficiente. Limitou-se a arrastá-la. Para
um esconderijo, sim, mas não para o abrigo que o pai planeara para ela. Larken,
um esconderijo, sim, mas não para o abrigo que o pai planeara para ela. Larken,
percebeu depois, não era nem um Marah fiel nem um traidor assumido. Limitou-
se a manter Corinn prisioneira na cela de um velho monge, esperando vendê-la
ao poder que saísse vitorioso da guerra. O lugar ficava situado no interior de
Danos, por entre as colinas escarpadas, num ponto da margem do rio tão
íngreme e rodeado de pedregulhos que poucos seres humanos se arriscariam a lá
ir. Passavam os dias em longos silêncios, quebrados ocasionalmente por
conversas que Corinn se odiava por permitir. Ele alimentava-a e cuidava dela.
Deixava-a amarrada, por vezes, nos dias em que ia a Danos para saber notícias.
Assim, Corinn ia sabendo o que se passava na guerra através dos seus relatos.
Além disto, Larken tinha imensas coisas a contar-lhe, coisas inacreditáveis em
que ela não conseguia crer, mas que agora eram difíceis de negar.
Saiu da cabana uma pessoa completamente diferente da que entrara. Havia
perdido toda a inocência, toda a noção de poder alguma vez encontrar consolo
em crenças ingénuas e esperançosas. Nunca mais seria apanhada desprevenida,
jurara a si própria. Nunca mais confiaria em ninguém. Nunca mais haveria de
amar. Nunca mais depositaria fé em ser humano algum. Aprenderia tudo o que
pudesse sobre a forma e substância do mundo e encontraria um modo de
sobreviver.
Seis semanas depois de a ter raptado, Larken ofereceu Corinn a Hanish
Mein. Ao fazê-lo, adquiriu um lugar privilegiado no séquito do novo líder.
Corinn viu-se assim entregue ao estranho purgatório no qual ainda vivia, nove
anos depois.
Nada disse enquanto o alegre grupo de mulheres regressava ao palácio.
Chegaram a uma das grandes portas negras. Os guardas, de cabelos louros,
chamaram-nas, na brincadeira, fingindo que precisavam de uma palavra-passe
para as deixar entrar. Corinn não tinha paciência para o jogo. Nem se alegrou ao
ver que a aguardava um mensageiro assim que a porta se abriu. Hanish Mein
desejava vê-la, nessa tarde, a determinada hora. Resmungou baixinho e quase
respondeu que se sentia doente e não o poderia ver. Mas sentiu os olhos das
outras mulheres postos em si, ao mesmo tempo admirados, invejosos e curiosos.
Incerta sobre como reagir, aceitou a mensagem sem comentários, não
demonstrando embaraço por esta.
Quando se encontrou no corredor junto aos aposentos dele — os mesmos
que haviam sido do seu pai —, notou que lhe causava esforço reprimir o rubor
das faces, aquietar o palpitar do coração e manter o rosto inflexível. Lembrou-se,
como sempre fazia ao encontrar-se com ele, do modo como se rira dela no
primeiro encontro. Ela invocara o nome de Igguldan, jurando que este não
suportaria vê-la prisioneira. Hanish rira-se e dissera:
suportaria vê-la prisioneira. Hanish rira-se e dissera:
— Igguldan? O bebé ausheniano? É nele que pensais agora? Muito bem,
entendo que era um rapaz bonito, um poeta, disseram-me. Talvez o vejais de
modo diferente se souberdes que ele liderou o seu exército para a maior derrota
da sua nação. É verdade. Morreram todos... de modo horrível, na verdade. O
nome dele, querida princesa, será lembrado apenas por ignomínia. Mas, se vos
anima, podeis lembrá-lo como quiserdes. Vós, acacianos, sois bons nisso.
Corinn nunca odiara tanto alguém como o odiou naquele momento.
Parecera-lhe o maior dos arrogantes, insensível, repulsivo e irremediavelmente
cruel. Sentia-se terrivelmente frustrada por lhe ser tão difícil tentar lembrar-se
disso em relação a ele. Sabia que demasiadas vezes o olhava com uma emoção
muito diferente da que desejava,
— Corinn? — ouviu-o chamá-la. — Princesa, ouço-vos respirar aí fora.
Entrai e conversemos um momento. Soube de uma coisa que vos poderá
interessar.
Aquilo era outra contrariedade! Hanish parecia ter sentidos realmente
sobrenaturais. Entrou no aposento e encontrou Hanish inclinado sobre a
secretária de seu pai, com um maço de papéis na mão. Acariciava uma das suas
longas tranças, aquela, sabia, que indicava o número de homens que matara na
dança Maseret que os do Mein tanto apreciavam. Ele olhou-a e sorriu-lhe e ela
odiou o modo como o gesto lhe realçava o brilho dos belos olhos cinzentos. Que
olhos tinha ele! Atraíam irresistivelmente o seu olhar. Ele parecia iluminado por
dentro, com o rosto a ser como uma lanterna em forma humana e os olhos a
saída da luz cinzenta que existia dentro dele. Havia paz neles. Afetavam-na tanto
como quando olhava para as águas azul-turquesa de uma das praias de areia
branca, perto de Aos. Algumas coisas foram criadas para serem contempladas.
Os olhos de Hanish Mein — aliás, no fundo, todo o seu rosto — eram uma
dessas coisas. Foi preciso muito esforço a Corinn para compor o rosto na
máscara de fria indiferença que sempre usava perante ele.
— O sol faz-vos muito bem, Corinn — disse Hanish. Falava em acaciano,
como quase sempre fazia com ela. — Uma compleição tão perfeita, tão
adequada aos dias brilhantes de Verão de cá. A propósito, estou contente por
terdes ido montar com a minha prima e o seu séquito.
— Não é um serviço que faça de bom grado — retorquiu Corinn. — Foi,
lembrais-vos, uma ordem que me destes para cumprir.
Hanish sorriu, como se ela tivesse dito algo de bastante agradável.
— Não é fácil ensinar as mulheres do Mein a comportarem-se de acordo
com o padrão de uma corte imperial. Estão tão mal preparadas para isso como
com o padrão de uma corte imperial. Estão tão mal preparadas para isso como
estavam os nossos homens. Contudo, sei que dão valor ao vosso exemplo para
aprenderem.
Corinn nada tinha a dizer a isto. Hanish colocou os papéis sobre a
secretária, virou-se mais para ela e disse:
— Tenho notícias que vos poderão interessar. Larken acabou de regressar
de Talay. Trouxe informações sobre o vosso irmão. — Aguardou um momento,
observando a reação de Corinn. — Não o encontrámos, pelo menos até agora.
Mas não duvido de que o encontraremos. Está algures em Talay, no interior.
Larken acredita que esteve muito perto dele. Passou a pente fino uma aldeia, por
indicação de um dos naturais da terra, mas o acaciano que lá estivera escondido
desapareceu como que por encanto. O vosso irmão Aliver tem-se mostrado
bastante fugidio.
— Como sabeis que era Aliver e não Dariel?
Hanish encolheu os ombros.
— Pensei que me pudésseis elucidar. Será Aliver? Foi para Talay que ele
foi enviado?
— Ajudar-vos-ia saber isso?
— Sim, admito que sim.
Corinn olhou-o diretamente nos olhos e respondeu com honestidade.
— Não faço a mínima ideia.
Hanish já não parecia tão agradado com ela. Pareceu que estava prestes a
empurrar a secretária e avançar para ela, mas acabou por cruzar os braços e falar
na língua do Mein.
— Mudasteis muito, não foi, em relação à rapariguinha que vi há nove
anos. Lembrai-vos de como cuidámos de vós, quando tivesteis as febres? A
praga dos numrek. Acreditai em mim, princesa, sem o nosso conhecimento sobre
a doença, teríeis sofrido muito mais. Talvez os vossos irmãos a tenham contraído
em pleno, sem ninguém que lhes explicasse que acabaria, provavelmente, por
passar. Terão mudado também. Talvez já não os seríeis capaz de reconhecer.
Talvez não vos reconheçam agora. Talvez, Corinn, sejais agora mais uma de nós
do que deles.
Os olhos de Corinn endureceram e esta fitou-o, demonstrando claramente o
seu desdém por aquela sugestão.
— Princesa, onde estão os vossos irmãos? — insistiu Hanish, voltando a
falar em acaciano.
falar em acaciano.
— Já mo haveis perguntado antes.
— E voltarei a perguntar-vos muitas vezes mais. Talvez estejais a dizer a
verdade, mas alegremente vos farei a pergunta cinco vezes por dia, durante os
próximos vinte anos, se isso ajudar.
— Depois disso, parareis?
— Depois disso, perguntar-vos-ei dez vezes por dia, durante os próximos
quarenta anos, se ainda continuar longe dos Tunishnevre por tanto tempo.
Corinn, haveis vivido nove anos na minha casa, como convidada num palácio
que antes foi vosso. Alguma vez vos fiz mal? Arranquei algum cabelo da vossa
cabeça ou forcei-vos a alguma coisa? Então, ajudai-me a encontrar os vossos
irmãos. Como já vos disse antes, quero apenas que regressem ao palácio do
vosso pai e que vivam em paz, como vós tendes vivido. Por que prefereis vós
que vivam no exílio, escondidos nalgum canto das províncias?
— Onde quer que estejam, são livres — retorquiu Corinn. — Não trocaria
nada no mundo por isso. Nem eles.
— Estais tão certa disso, não estais? — Vendo que Corinn não respondia,
Hanish ficou carrancudo. — Muito bem. Não faz mal. Haveremos de os
encontrar. Tenho tempo e poder para tal. Eles poucos amigos e recursos têm.
Quase capturámos um dos vossos irmãos. Tenho a certeza disso. Isto quer dizer
que anda fugido, e que cometerá erros, confiará em alguém que não deve...
Acreditai em mim, Corinn, eles não estão a viver a vida de luxo que aqui tendes.
Tenho pena que tenhamos passado tão pouco tempo juntos. Passaram anos, e
continuais ainda a ser uma desconhecida para mim. Gostaria de mudar isso. Não
viajarei agora tanto como tenho feito. Passaremos mais tempo juntos. Estou
confiante em que, quando me conhecerdes melhor, me apreciareis mais. Talvez
então percebamos aquilo a que estamos destinados. Que vos parece?
— Posso ir-me embora? — inquiriu ela, evitando a questão com ar
desafiador.
— Podeis sempre ir e voltar à vossa vontade, Corinn. Quando percebereis
isso?
Ela voltou costas sem responder. Sabia que o olhar dele a seguiria, fixo na
sua figura. Isto tornava-lhe difícil andar normalmente, mas conseguiu fazê-lo.
Passou pelos aposentos um após outro e depois virou numa esquina do corredor,
deixando Hanish para trás. Acabara de respirar fundo e estava a deixar
descontrair o rosto quando se apercebeu de que ainda não se encontrava liberta
de observação.
Maeander encontrava-se no corredor por onde ela teria de passar. Acabara
de aparecer e dizia qualquer coisa a alguém. Apercebeu-se da presença dela e
estacou. Larken surgiu de trás dele e deu alguns passos para a sala antes de ver a
princesa. Pareceu imediatamente divertido. Embora fosse um acaciano, agora
falava apenas a língua do Mein. Maeander e ele, um ao pé do outro, eram ambos
testamentos altos e esguios da masculinidade das respetivas raças.
Corinn prosseguiu na direção destes. Olhava para lá deles, para o fundo do
corredor, como se o seu olhar estivesse preso a algo lá ao fundo e que a
empurrava para lá. Passou apressadamente por Larken, sem incidentes. Contudo,
ao chegar a Maeander, ele colocou os braços no umbral da porta, barrando-lhe a
passagem. Ela não olhou para o seu rosto, fixando-se no ponto junto ao cotovelo
do seu braço musculado, coberto de longos pelos dourados. Pulsava aí uma
artéria como um verme sob a pele. Sabia que ele tinha os olhos fitos nela,
espreitando sob as sombras das sobrancelhas. O seu toque era familiar. Parecia
que ela o sentia desde sempre, desde a primeira vez que ele pusera os olhos nela,
e que a seguia ao longo dos dias, até nos sonhos. Por vezes, acordava e
perscrutava as sombras no quarto, sentindo que até àquele momento de acordar
não estivera só. Este homem, mais do que qualquer outro, fizera da casa de seu
pai um lugar ameaçador, apesar de nunca ter pronunciado mais do que algumas
palavras para ela.
Como se lhe tivesse pressentido os pensamentos e os tivesse em conta,
Maeander não falou. Inclinou-se para ela e tocou-lhe no queixo com um dedo da
mão livre. Depois de a ter estudado alguns instantes, aproximou o rosto do dela.
Roçou a barba eriçada e áspera pela face da rapariga. Depois pressionou a língua
contra a têmpora de Corinn e lambeu-a com a sua superfície quente.
Corinn afastou rapidamente a cabeça. Deu-lhe uma palmada no braço e
fugiu para o átrio. Ouviu Larken perguntar:
— Sabe bem ou é amarga? Sempre me interroguei sobre isso.
Corinn não ouviu a resposta. Mais tarde, não teve a certeza se tinha mesmo
ouvido o riso de Maeander a segui-la, mas parecia-lhe que sim. Parecia segui-la
por toda a parte. Hanish Mein bem poderia dourar as palavras como quisesse.
Maeander era a verdade por detrás da fachada do Mein. Nunca confiaria neles.
Havia muito que deixara de confiar nos homens. Não seria agora que iria
começar. Não fazia a mínima ideia para onde teriam fugido os irmãos. Tinha,
contudo, a certeza de que se deveriam encontrar numa situação preferível à dela.
Capítulo 30
Não foi fácil para Leeka Alain libertar-se da bruma. Havia dias em que
tinha alucinações. Noites de sonhos horríveis. Dores no corpo que pareciam
choques elétricos que o mantinham rígido e tremente na cama. Por vezes, tinha
lampejos do mundo que vira quando fora presa das febres que sofrera no Mein.
Mas, para além de tudo isto, lembrava-se principalmente do delírio do consumo,
um pesadelo durante o qual era simultaneamente consumido e consumia-se a si
próprio. Por vezes sentia-se corroído por milhares de vermes de dentes afiados,
abrindo caminho por cada ponto do seu corpo. E o pior era que esses vermes
faziam parte dele. Leeka era tanto o devorador como o devorado. Comia-se e era
comido.
O antigo chanceler esteve a seu lado durante todo este período. Desde a
primeira noite em que Thaddeus viera ter com ele no escuro, estivera sempre ali,
a ajudá-lo, como médico, enfermeiro, carcereiro e confidente, tudo ao mesmo
tempo. Thaddeus encerrara-o no seu casebre nos montes acima da vila.
Amarrara-lhe mãos e pés à cama, enrolara-lhe um grande pedaço de pano em
redor do tronco, e sentava-se ao pé dele, explicando-lhe que necessitava imenso
dos seus serviços. No entanto, não podia nem sequer começar a discutir aquilo
com ele enquanto a mente e o corpo de Leeka não se libertassem do vício. Leeka
injuriava-o, confuso como estava e assustado pelo tumulto que lhe atravessava o
corpo.
A certa altura, quando a sua visão se tornou suficientemente clara para ver
quem cuidava de si, afirmou com absoluta certeza de que estava a morrer. Não
conseguia passar por todo aquele sofrimento.
— Vês isto? — perguntou Thaddeus, esticando os dedos para lhe mostrar
uma farpa presa ao dedo mindinho. — Esta agulha foi embebida num veneno tão
poderoso que mata a vítima quase antes de ela sentir a picada. É semelhante à
que usei em ti, na rapidez, mas esta é mortal. Deixo-a aqui a teu lado. Se for
verdade que não consegues viver sem a tua droga nem o teu vinho, então usa-a e
tira a tua própria vida. Ou, se és demasiado egoísta para tal, vem ter comigo
quando eu estiver a dormir e mata-me. Rouba as moedas que tiver comigo e
foge. Deixa que o destino do mundo permaneça nas mãos de Hanish Mein. Não
reivindiques grandeza alguma. Tudo isto está em teu poder se assim o
escolheres. Se me matares, nem sequer será um crime; será uma dádiva. Sabes,
escolheres. Se me matares, nem sequer será um crime; será uma dádiva. Sabes,
também tenho muitos demónios a enfrentar. Podemos ser cobardes em conjunto.
O homem retirou a arma do dedo e colocou-a sobre o tamborete onde
estivera sentado. Desamarrou os pés e as mãos do doente, afrouxou a tira de
pano em volta do seu tronco e afastou-se. Leeka tinha a certeza de que
Thaddeus, por mais sábio que fosse, nunca saberia realmente o quão próximo ele
estivera de pegar naquele alfinete e espetar-lho no pescoço. Tinha tanta vontade
de o fazer. Imaginava cada movimento, cada gesto de juntar as moedas do
homem, cada passo dado na direção da aldeia, todas as transações que teria de
efetuar até colocar novamente os lábios no cachimbo e inalar. Nem pela sua vida
sabia o que o impedira.
Na manhã seguinte acordou a chorar. Sabia sem dúvida que se encontrava
sozinho no mundo. Não culpava ninguém por isso a não ser a si próprio. O
destino de nações talvez lhe tivesse estragado e levado a vida, mas era culpa sua
nunca ter amado verdadeiramente uma mulher, nunca ter tido filhos, nunca ter
olhado o mundo com receio ou esperança pelos netos. Se tivesse feito alguma
dessas coisas, teria dado um sentido melhor à sua vida. Não conseguia abarcar
como vivera tantos anos sem compreender quanta da sua existência fora
destinada ao nada. Talvez devesse usar a libertação daquele alfinete envenenado,
afinal de contas, em si próprio.
— Vejo que ainda não acabaste inteiramente de ter pena de ti próprio —
proferiu Thaddeus, interrompendo-lhe os pensamentos.
Leeka virou-se no leito para ver o homem novamente sentado naquele
tamborete, observando-o, com um pano na mão que lhe estendeu. Leeka pegou
no pano e limpou o rosto, consciente de que se deveria sentir embaraçado, mas
sem o sentir. Thaddeus perguntou-lhe se sentia fome suficiente para comer;
Leeka deu por si a dizer que sim.
— Bom — retorquiu o outro homem. — É a resposta certa. Fiz sopa. Só
legumes e ervas que apanhei nos montes, alguns cogumelos. Partilha-a comigo e
depois podemos falar como deve ser sobre o trabalho que tenho para fazeres.
Pensaria muitas vezes, mais tarde, o quão estranho pode ser alguém que
num momento desejava a morte, mas que depois voltava à vida graças a algumas
palavras amáveis, a um lenço estendido, a um alimento simples que aconchegava
um estômago vazio. Estas coisas, assim como tudo o resto, reanimaram Leeka.
Depois dessa manhã nunca mais lhe foi tão difícil recusar a bruma. Ainda sentia
a angústia da sua antiga fome, certamente. Tinha-a diariamente, quase de hora a
hora. Teve de decidir muitas e muitas vezes que não queria sucumbir ao vício.
Porém, sentia agora que tinha poder para o recusar. O facto de Thaddeus lhe
atribuir uma missão dava-lhe alento.
atribuir uma missão dava-lhe alento.
Abandonou o casebre nos montes com o espírito cheio de instruções, com
esperanças renovada da forma mais inesperada. Levava à cintura uma espada
acaciana, um presente de despedida do chanceler. Anos antes um antigo soldado
do império teria chamado a atenção se andasse armado, mas o mundo mudara
desde os primeiros anos do governo de Hanish. A resistência fora derrotada. As
tropas do Mein, muito disseminadas, pouca atenção davam a indivíduos
isolados, dedicando a sua energia a proteger a segurança da governação de
Hanish e o comércio que a mantinha.
Leeka seguia caminho, apreciando o ar que lhe enchia os pulmões, a dor
nas pernas. No final da primeira semana de caminhada voltara a encontrar a
antiga disciplina. Escolhia de propósito rotas que passavam pelas vias mais
árduas, subindo com dificuldade trilhos através de taludes pedregosos,
caminhando a metade do passo devido ao cascalho que lhe deslizava debaixo dos
pés. Uma tarde, enquanto descansava numa reentrância entre dois picos, sentiu
um espasmo nas pernas. Os tendões ficaram presos numa dor que o tomou por
inteiro. Leeka ergueu os olhos aos céus, chorando de alegria. Estava a recuperar
o seu corpo.
Nunca esqueceria a alegria que sentiu no alto do pico, perto dos cumes
ocidentais das Montanhas de Senival, rodeado apenas pelas nuvens e tendo
abaixo milhares de pináculos que se erguiam por todo o lado, aguçados como os
dentes de um monstro, ou como dedos rebeldes apontados aos céus em acusação.
Dançou então a Décima Forma, a de Telamathon combatendo os Cinco
Discípulos do deus Reelos. Nunca sentira na sua vida um momento tão puro. Era
um tributo coreografado, um ato que o ligava a tudo o que sempre fora e a tudo o
que esperava ser de novo. Talvez se tivesse enganado, talvez iludido, aturdido
pela altitude, por bazófia, não tinha a certeza, mas acreditou, enquanto girava e
movimentava a espada, saltando e girando, que por um instante todas aquelas
montanhas se haviam imobilizado para o observar.
Depois, com demasiada rapidez, saiu da zona montanhosa e foi dar à costa
das Encostas Cinzentas. Foi abrindo caminho por entre a azáfama de
mercadores, comerciantes, e miséria humana que habitava aquelas cidades do
litoral. Poucos o olharam com simpatia. Todos avaliavam se ele constituía um
risco ou uma oportunidade. Havia, sentiu, uma ameaça que pairava no ar,
diferente de tudo o que sentira durante o reinado de Leodan. Foi várias vezes
abordado por vendedores de bruma, todos a garantirem-lhe a qualidade do
produto, a sua pureza, a sua proveniência direta da fonte, a não adulteração e a
limpeza. Leeka não tinha a certeza se algo nos seus gestos ou no rosto o
tornavam alvo de tal gente, ou se o tráfico no mundo se fazia agora daquele
tornavam alvo de tal gente, ou se o tráfico no mundo se fazia agora daquele
modo. Por várias vezes teve de agarrar as mãos de gatunos que tentavam ver o
que trazia na roupa. Por duas vezes foi ameaçado em bares por insultos que não
soubera que tinha dito. Uma vez teve mesmo de empunhar a espada ao ser
encurralado por três jovens assaltantes num beco. Brandiu a espada no ar em
golpes rápidos como Aliss atacara o Louco de Careven. Os outros tiveram a
sensatez de desaparecerem, e ele ficou-lhes grato.
Thaddeus indicara-lhe o nome de um homem que deveria procurar em
determinada vila do litoral. Encontrou-o e conseguiu convencê-lo de que tinha
sido enviado por Thaddeus. O homem entregou-o ao cuidado de um outro, que
lhe deu comida e lhe contou o que podia, que o ajudou a lutar contra a ressaca da
bruma e o encaminhou com uma mensagem a outra pessoa. Veio assim a
compreender que havia uma resistência oculta a funcionar no mundo. 0 velho
chanceler fazia parte de algo muito mais vasto do que ele. Graças a Thaddeus,
também Leeka agora tomava parte daquilo.
Enquanto viajava ia interrogando toda a gente da maneira mais casual que
conseguia. Só conhecia a pessoa que procurava por um único nome.
Mencionava-o com moderação. Enquadrava as perguntas dependendo da pessoa
com quem falava. Passou assim um mês inteiro e metade de outro daquela
maneira, não conseguindo aproximar-se do objetivo, pouco ouvindo que o
ajudasse, mas muito que o incentivava a prosseguir. Contudo, quando surgiu
uma oportunidade, a princípio não se apercebeu dela.
Numa taverna de um porto de pesca cujo nome nem se dera ao trabalho de
perguntar, uma mulher aproximou-se. Trazia uma bebida na mão. Sorriu-lhe, era
jovem e atraente, mas tinha um ar gasto que o fez tomá-la por uma prostituta.
Quando ela falou, contudo, surpreendeu-o com uma pergunta direta:
— Porque andas à procura de um corsário?
Leeka respondeu com uma das suas respostas preparadas. Foi
intencionalmente vago. Aludiu a uma proposta de negócios, a informação que
possuía, na perspetiva de que tanto ele como o corsário beneficiariam em vários
aspetos, todos demasiado delicados para serem revelados a quem quer que fosse
que não o jovem corsário.
— Hum — disse ela. Assentiu com um gesto de cabeça parecendo
satisfeita. Sorveu um gole da bebida e depois, sem qualquer tipo de aviso,
franziu os lábios e cuspiu-lhe, espalhando-lhe no rosto um líquido que queimava.
Perdeu a visão. Sentiu mãos a agarrá-lo, para além das da mulher. Subitamente
parecia que toda a gente que se encontrava na taverna o estivera a aguardar.
Agrediram-no com murros e objetos contundentes, tiraram-lhe as armas,
Agrediram-no com murros e objetos contundentes, tiraram-lhe as armas,
batendo-lhe vezes sem conta com a cabeça na parede até perder a consciência.
Quando acordou, percebeu que se encontrava no mar. Sentia a espuma a
bater-lhe no rosto. Tinha o corpo molhado. Encharcado, na verdade. Sentia-se
constantemente submergir nas ondas. Percebeu que se encontrava amarrado a
uma viga pregada à proa do barco. Tinha os braços, as pernas e o tronco presos e
por vezes o seu corpo cortava o rumo da embarcação através de uma mar verde e
borbulhante. Era uma figura de proa viva.
Foi assim que chegou a Palishdock, num estado miserável, de modo muito
menos secreto do que desejara, sem sinais de quem era para a variegada
multidão de bandidos que se reuniram embasbacados a olhar para ele. Os
homens da tripulação que o retiraram para o molhe não tiveram grandes
cuidados. Deixaram-no de rosto virado para o sol ardente durante algum tempo.
Quando, por fim, o levaram para terra, limitaram-se a pegar na prancha a que
estava preso e carregaram-no assim, enquanto via o chão subir e baixar a cada
passada que davam. Atiraram-no para a areia quente, mas só por um momento.
Depois sentiu a prancha ser levantada e encostaram-na a uma construção
qualquer. Aguardou assim, amarrado, dorido e coberto de areia.
A jovem que tomara por prostituta encontrava-se ali, junto do grupo de
bandidos que com tanta facilidade o haviam agredido e prendido. Andavam por
ali, preguiçosos e indiferentes como quaisquer vagabundos de rua, até surgirem
dois outros homens que saíram de uma das construções toscas do lugar, um
jovem e um homem corpulento. O jovem não parecia satisfeito. Perguntou aos
outros quem trouxera Leeka e depois observou-o de longe, aparentemente a
pensar se iria abordar Leeka ou virar costas. O homem corpulento apoiava-se
com esforço num bastão. Estava pálido e, apesar de ser corpulento, pouco firme,
como um saco meio cheio. Observava Leeka sem proferir palavra, limitando-se a
olhá-lo fixamente.
Por fim, o jovem dirigiu-se a ele, caminhando pela areia. Desembainhou
uma adaga que trazia à anca e empunhou-a entre ele e Leeka, de um modo que
não era bem ameaçador, mas que não andava longe disso.
— Quem és e porque andavas à minha procura?
Olhando para o belo rosto do jovem, quase sem respirar perante a
possibilidade da resposta, Leeka perguntou:
— Sois aquele a quem chamam Spratling?
— Respondo a esse nome. E então?
Leeka desejou não ter os lábios tão inchados e cobertos de sangue seco e
sal. Desejou que o olho inchado não lhe obscurecesse a visão e poder beber um
sal. Desejou que o olho inchado não lhe obscurecesse a visão e poder beber um
gole de água que lhe libertasse as palavras da garganta. Mas nada lhe
ofereceram, por isso disse o que planeara dizer:
— Príncipe Dariel Akaran, alegro-me por pôr a vista...
— Porque me chamas por esse nome? — interrompeu-o o jovem, confuso e
enraivecido.
Para alívio de Leeka, houve alguém que respondeu por ele. O homem
corpulento arrastou-se para a frente.
— Calma, rapaz. Isto é comigo. Isto é comigo.
Capítulo 37
Aliver via a pedra tornar-se um tecido vivo com uma aceitação muda, como
se o facto de o poder observar tornasse algo de tão espantoso numa coisa
mundana. Não sentia terror. Nem confusão. De um lugar que lhe aparecia
afastado do seu próprio corpo via os rochedos graníticos esticarem-se em seres
vagamente antropomórficos. Cada um erguia-se em duas pernas semelhantes a
pilares, com membros oscilando a partir das articulações dos ombros, virando as
cabeças de órbitas negras na sua direção. Moviam-se com uma fluidez rígida e
lenta. Aproximaram-se dele como estranhos cangalheiros de rocha e terra,
chamados para limpar o corpo, para o preparar. Pois era isso que aquilo
significava, não era? Ele estava moribundo, ali desterrado no sul distante,
ressequido pelo sol, vencido. Estava tão seco como a areia sob o seu corpo, e
agora os seres rochosos da terra vinham reclamá-lo. Pensou no facto de ninguém
lhe ter falado nisto antes. Nunca ouvira menção a tal coisa em nenhum
ensinamento espiritual.
As figuras de pedra em movimento rodearam-no, aproximando-se dele. Dos
membros deslizaram varas que se introduziram debaixo dele e o ergueram no ar.
Distribuíram o seu peso entre vários e caminharam com ele suspenso sobre a
terra. Era uma sensação parecida ao flutuar. Tinha a cabeça tombada para trás e
durante algum tempo foi observando um mundo ao contrário. Pensou tê-los
ouvido falar, mas não teve a certeza. Havia algo que passava por entre aqueles
seres, mas pareciam mais suspiros do que qualquer linguagem que conhecesse.
Não tinha ideia de quanto tempo passou e até onde o carregaram. Sentia a
terra girar à sua volta. Viu o sol passar lá no alto, viu as estrelas nascerem e
mudarem de posição, mas não pensava em coisas como a passagem do tempo ou
o significado do movimento. Não era uma experiência que se medisse em
momentos que passavam. Em vez disso, o instante fluía para outro com tanta
suavidade que nada parecia mudar. Não existia futuro nem presente nem
passado. Todas estas coisas eram o mesmo. Esqueceu-se de quem era. Não
sentia fardo algum. A vida que vivera e as pressões que sofrera não tinham
substância. Esta impressão, mais do que qualquer outro pormenor do encontro
com os seus salvadores, persegui-lo-ia mais tarde, como uma promessa pendente
no lado distante da vida.
Quando despertou para a vida foi novamente sob o estímulo de outrem.
Quando despertou para a vida foi novamente sob o estímulo de outrem.
Alguém dizia o seu nome, o nome próprio e depois o seu apelido de família. A
voz perguntava-lhe se iria acordar e explicar-se. Viera ter com eles — porquê?
Sentiu uma pressão no esterno, com força bastante para lhe fazer soltar um
gemido. Abriu os olhos.
Lá no alto viu o céu noturno. Um firmamento negro sob o qual ondulavam
nuvens altas, enquadradas por um aro de pedra vermelha pálida. Queria perceber
onde se encontrava, que mundo era aquele. Afinal de contas, podia ser a morte.
Fazendo um esforço, sentou-se, devagar. Estava alguém sentado a seu lado, de
pernas cruzadas, imóvel. Tinha, à primeira vista, uma forma humana, velha e
desgastada, talhada em pedra e talvez tão antiga que eras e eras de areia soprada
lhe tinha limado as feições e cavado depressões nas partes mais expostas,
fazendo com que pedaços fossem caindo ao longo do tempo. Tinha olhos suaves
de um tom vago, como se antes tivessem sido pintados de cor brilhante e desta
permanecesse ainda algum resíduo. A estátua estava bastante próxima, podia
tocar-lhe e Aliver fletiu os dedos com o desejo latente de o fazer.
Os olhos da figura pestanejaram. Apertou os lábios, como uma carpa
sugando água, e depois voltou a imobilizar-se. Aliver sentiu um pensamento
entrar-lhe na cabeça e levou uns instantes a organizar as palavras e mais alguns
momentos para as ordenar em frases que pudesse compreender. Sabia — sem
perceber porquê — que a mensagem viera da estátua viva perto dele. Disse que
estava satisfeita por ele ter acordado. Os outros viriam agora, pois todos queriam
saber.
Aliver abriu a boca para falar. A figura fez um gesto com um braço no ar,
num movimento rápido, colocando a palma no ar à frente dele, calando-o.
Espera. O sentido e depois a palavra que o confirmava surgiram na cabeça do
rapaz. Deixa que os outros venham.
Aliver sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Observava uma cena irreal
em que mal conseguia acreditar. A câmara rochosa onde estava sentado foi-se
enchendo, a pouco e pouco, com cada vez mais figuras como a que estava a seu
lado. Eram as mesmas que o haviam levado para ali. Sabia disso, embora
também fossem diferentes. Os seus movimentos eram difíceis de distinguir.
Como seres vivos, parecia que nunca se moviam, e, no entanto, o ar estava
repleto de movimento, como se muitos fantasmas andassem por ali nos seus
corpos incorpóreos e apenas se tornassem solidamente visíveis ao imobilizarem-
se. Mesmo quando se sentavam quietos em redor dele, Aliver só conseguia
distinguir a sua forma individual ou rosto quando olhava diretamente para algum
deles. Quando desviava o olhar, no entanto, voltavam a parecer-se com as pedras
lisas que primeiro pensara que eram, de forma oval e muito antigas. Assim,
lisas que primeiro pensara que eram, de forma oval e muito antigas. Assim,
encontrava-se sentado rodeado de seres de pedra fantasmagóricos em
movimento, que só tinham rosto se os olhasse fixamente, máscaras que só
intermitentemente mostravam ter vida.
Perdoa-nos, mas temos de saber... Tens o livro da língua do Doador?
De novo, aquilo formou-se primeiro como um sentido que ele teve de
ordenar em frases para poder interpretar. Veio de um conjunto de vozes, mas
Aliver já começara a perceber um pouco como entendê-las. Começou a
responder. «O livro de...», mas as palavras soaram-lhe monstruosas, como se
fossem pedras a moer, como se as tivesse gritado a plenos pulmões. Percebeu
que as figuras em seu redor pensaram o mesmo. Recuaram, como se fossem
plantas subaquáticas ondulando ao passar por elas uma onda.
O que estivera a seu lado, de início, subitamente colocou a mão sobre o seu
ombro. Nosso rei, por favor, não fales assim. Fala com o teu espírito. Pensa no
que queremos saber, e depois liberta o pensamento até nós.
A parte frontal da sua mente pensou que aquilo era um pedido estranho,
mas Aliver sabia que ele próprio já ouvira os pensamentos deles. Era por isso
que o lugar estava tão silencioso. Era por isso que as palavras deles pareciam ter
origem dentro da sua cabeça. Tentou formular uma resposta, receoso agora de
que cada pensamento, cada erro e confusão, passasse dele para os outros. Que
confusão se revelaria ele! Porém, eles aguardavam, muito calmos, de rostos
inalterados, ávidos. Estavam em branco, e era claro que não tinham acesso aos
pensamentos dele a não ser que ele quisesse.
Por fim, formou uma frase no espírito, pensou-a com clareza e depois
projetou-a. Qual é o livro?
Os rostos olhando para ele movimentaram-se, mas desta vez na sua direção.
Recebeu respostas de mais do que um espírito. O livro, disseram, era A Canção
de Elenet. Era o texto que Elenet escrevera com o seu punho, no qual descrevia
cada palavra da língua do Doador.
Por favor, disseram, revela-nos isso.
Depois disto, Aliver permaneceu sentado em silêncio algum tempo. O que
estava a acontecer ali? Parte dele desejava dar uma bofetada a si próprio e
acordar deste sonho. Outra parte pensava se aqueles seres não seriam o povo
voraz de depois da morte e esta a receção que davam aos recém-chegados.
Parecia que estavam a pedir-lhe o segredo para voltarem à vida, conhecimento
que ele não possuía. Mas, para além de tudo isto, ocorreu-lhe um outro
pensamento. Fez um esforço para afastar tudo o resto e dar-lhe forma:
Sois os Santoth?
Num movimento em uníssono, todas as cabeças — talvez cem ou o dobro,
com o seu número a aumentar a cada momento — fizeram um gesto de
assentimento. Surgiram sorrisos rasgados nos rostos de pedra.
Essa, disseram em coro, é a palavra que nos define.
Muito bem, pensou Aliver. Essa é a palavra que vos define. Mas, por amor
do Doador, o que vos aconteceu? Não deixou que estes pensamentos lhe
escapassem e os rostos sorridentes, imóveis enquanto o fixavam, não denotaram
sinais de o terem compreendido. Simplesmente aguardavam o que se seguiria.
Aliver pensou se teria energia para isso. Não deveria comer? Beber? Mas o
corpo não o incomodava. Já não sentia fome nem estava desidratado, apesar de
não se lembrar da última vez em que tinha ingerido qualquer coisa. Olhou em
volta e continuou o melhor que pôde. Não podia dizer tudo de uma vez. Teria de
começar por algum lado.
A Canção de Elenet. Falai-me mais sobre isso.
Falaram-lhe, muito gratos. Mais tarde, Aliver não saberia dizer quanto
tempo demorara a sua conversa com os Santoth. Não se tratara propriamente de
uma conversa com perguntas e respostas, mas mais uma espécie de comunicação
em espiral. Não aprendeu o que lhe contaram de forma linear. Mas quando
juntou peça a peça, reuniu uma história inimaginável. Era uma história, diria um
dia, entretecida pela fantasia de mentes ociosas para se entreterem a si próprias e
explicarem os males do mundo. Era isso que teria dito na sua juventude. Porém,
a partir do momento em que vira rochas a andar, deixara irrevogavelmente a
infância para trás. Foi isto que os Santoth lhe contaram.
A Canção de Elenet era a enciclopédia da língua do Doador. Era o livro em
que fora escrita a verdade falada do mundo inteiro. Apesar das muitas
imperfeições e dos grandes erros que cometera como praticante de feitiçaria —
esta era a palavra mais apropriada para descrever a usurpação humana da língua
divina —, Elenet tinha um desejo voraz pelo conhecimento e guardava
meticulosamente tudo o que aprendia. Como rezava a lenda, vivera de facto no
tempo em que o Doador caminhava pelo mundo. Seguira a divina pessoa no seu
percurso pela terra. Ouvira e aprendera as canções da língua da criação. Cada
palavra que roubava da
boca do deus anotava-a num pergaminho que preparara. Para os poucos que
poderiam ler o texto, dava instruções precisas para se fazer magia. Era um
manual sobre a forma e conteúdo da criação; por isso nunca antes ou depois
existira documento mais perigoso na história do mundo.
Quando Elenet deixara este mundo para ir explorar outros, deixou o livro ao
cuidado dos seus discípulos Santoth. Nunca disse para onde iria ou porquê, mas
desapareceu da terra, tal como o Doador fizera antes dele. Este livro foi passado
através de gerações, de um Falante para outro. Eram, naqueles tempos, os
guardiães do conhecimento. Reis e príncipes governavam o mundo; os Santoth
urdiam feitiços que mantinham o tecido do mundo unido, esperando aliviar o
caos por que os homens pareciam ansiar. Era uma responsabilidade sagrada, e
durante éons praticaram a fala de deus apenas para o bem do Mundo Conhecido.
Isso acabou, contudo, quando um jovem Santoth chamado Tinhadin acabou por
ficar como guardião do livro.
Guardava-o junto ao peito, contaram os Santoth a Aliver, e não o
partilhava connosco.
Tinhadin amava o poder que o livro continha. Estudou-o exaustivamente,
excluindo cada vez mais os outros. Tornou-se chefe dos Santoth e mais forte do
que qualquer um deles. Por fim tornou-se mais poderoso do que todos eles
juntos. Visto ser ele a possuir o livro, somente Tinhadin tinha acesso a traduções
fiéis, à pronúncia exata e ao significado preciso de cada palavra na língua do
Doador. Qualquer variação ligeira corromperia a magia, enfraquecendo-a e, ou,
transformava-se em algo que o orador não tinha pretendido.
No entanto, os outros Santoth amavam Tinhadin como um dos seus. Ele
partilhava o conhecimento com eles, mas cada vez mais as palavras do Doador
iam ter com eles através dele. Quando se decidiu a reformular o mundo, eles
trabalharam a seu lado. Ele queria trazer paz ao mundo, dizia. Havia demasiado
caos, demasiado sofrimento, a humanidade tinha potencial demais para arruinar-
se e voltar a um estado semelhante ao dos animais selvagens. Os outros
ajudaram Tinhadin na luta para controlar o mundo. Mas, antes de perceberem o
que estava a acontecer, Tinhadin tinha-os banido. Colocou a coroa na cabeça e
afastou-se deles.
Mas isto não foi uma alegria, disseram os Santoth, tornou-se antes o mais
pesado dos fardos.
Como os homens normais antes dele, Tinhadin receava perder o poder que
ganhara. Cada dia se cansava mais com aquilo que incorporara da língua da
criação. Era um feiticeiro com poderes para formar o mundo, bastando-lhe abrir
a boca. Mas, explicaram os Santoth, via que o poder era demasiado difícil de
controlar, de manejar. Imagina, disseram, viver uma existência em que as
palavras que saem da tua boca mudam o tecido do mundo à tua volta.
Tinhadin tornara-se demasiado forte, a magia uma parte demasiado
preponderante do mecanismo da sua mente. Havia alturas em que alterava o
preponderante do mecanismo da sua mente. Havia alturas em que alterava o
mundo só por pensar na língua do Doador. Por vezes falava a língua quando
sonhava e acordava para descobrir os resultados reais à sua volta. Começou a
odiar aquela magia. Queria viver sem ela, mas não o faria num mundo onde
outros feiticeiros ainda lançavam os seus feitiços. Baniu os Santoth do império.
Nem todos partiram de boa vontade. De facto, lutou com bastantes, destruindo-
os. Aos outros mandou-os para o exílio. Então lançou contra eles a sua última
magia, o feitiço que os manteria perpetuamente vivos presos nestas terras do sul,
até que ele ou um descendente decidisse convidá-los a voltar. Isso, claro, nunca
aconteceu, e os Santoth envelheceram e tornaram-se nos seres com que Aliver
agora falava. Eram exatamente os mesmos que Tinhadin expulsara, vivos — se é
que esse era o termo correto — e à espera.
Quando o príncipe perguntou se ainda sabiam magia, responderam que sim,
mas que o seu conhecimento se corrompera tanto ao longo dos tempos que não
sabiam agora o que aconteceria se pronunciassem as palavras do Doador. O
conhecimento que tinham tornara-se uma maldição da qual tinham passado a sua
vida eterna a esconder-se. Sem o verdadeiro conhecimento do livro de Elenet,
arriscavam-se a abrir um buraco no mundo que nunca mais se poderia remendar.
Tinham aprendido a falar como os deuses, mas agora receavam ter-se
transformado em demónios.
Agora que ouviste isto de nós, proferiu a voz coletiva dos Santoth, diz-nos
onde está o livro. Sem a palavra sofremos. Precisamos da palavra do Doador, e
então seremos de novo completos, e bons.
Aliver abanou a cabeça. Não queria dizer aquilo que tinha de dizer. Já
sentia uma certa paz entre os feiticeiros. Sentia o sofrimento deles, mesmo antes
de o terem mencionado. Compreendeu que a sua expulsão fora uma maldição
terrivelmente prolongada, e ele já não tinha a veleidade de duvidar mesmo de
parte das coisas que lhe tinham comunicado. Mas a verdade era simples.
Lamento, proferiu Aliver, mas não tenho esse livro.
Os Santoth foram lentos a responder-lhe. O teu pai... não te falou nele?
Não, não falou.
Capítulo 40
Corinn tentava manter bem patente no rosto a sua aversão a Hanish. Era o
grande inimigo da sua família. Nunca se esqueceria disso, nunca lhe perdoaria.
Detestava-o. Nada do que ele fizesse alteraria isto. Era um vilão de enormes
proporções, um assassino em grande escala, sobre quem algumas pessoas mais
dóceis, no futuro, haveriam de escrever crónicas de infâmia.
Tinha de ter isto sempre presente, porque na tranquilidade de Calfa Ven,
eram os insultos de natureza mais pessoal que mais a afetavam. Resumindo,
Hanish fazia dela um brinquedo, tal como na primeira noite no chalé. Havia
alturas em que parecia exceder-se para lhe agradar — e fazendo-o de modo a que
ela soubesse que estava a exceder-se para lhe agradar, outras vezes tratava-a com
uma indiferença chocante.
Alguns dias depois de se encontrarem no retiro das montanhas, pediu-lhe
que o acompanhasse num passeio a cavalo na tarde seguinte. Fez o convite com
grande aparato perante muitos dos hóspedes. No dia seguinte lá estava ela à hora
marcada — vestida na perfeição num traje de montar de tom creme, com um
chapéu de seda colocado no alto da cabeça, cheia de frio devido ao ar primaveril,
mas certa de que o rubor das faces era devido a isso — só para descobrir que ele
se esquecera dela. Fora montar uma hora mais cedo nessa manhã, numa caçada e
sem manifestar interesse em relação ela. Até Rhrenna, a sua esporádica amiga,
não conseguiu evitar achar graça ao modo como a ele diminuíra.
Porém, que interessava isso? Os Mein eram um povo insignificante que
tinha prazer em humilhar uma raça que havia gerações que provava ser superior.
Ele podia ter os seus pequenos divertimentos, e ela continuaria a odiá-lo. Ódio e
condescendência. Era tudo o que sentia por ele. Felizmente, a estada nas
montanhas estava quase a acabar. Corinn contara os dias, pronta a regressar a
Acácia, onde poderia manter alguma distância daquele bárbaro que se dizia o
governante do Mundo Conhecido.
Estranho, pensou, que, quando uma criada lhe trouxe uma mensagem de
Hanish, sentisse o pulso acelerar-se e uma palpitação no peito que — se a
situação fosse outra — ela teria interpretado como alegria. Ele desejava a sua
companhia naquela tarde, disse a mensageira, para praticar tiro com arco.
Suplicava que não o deixasse sozinho à espera. Isso pareceu-lhe uma ótima
ideia, pensou. Deixá-lo sozinho, abatido e desprezado. No entanto, sabia que isso
ideia, pensou. Deixá-lo sozinho, abatido e desprezado. No entanto, sabia que isso
não resultaria. Hanish não reagia nada bem aos insultos. Arranjaria um modo de
a castigar cruelmente no jantar dessa noite. Decidiu que se não fosse seria mais
facilmente ridicularizada do que se aceitasse o convite.
Encontrou Hanish no campo de tiro com arco. Desta vez estava sem o seu
séquito, acompanhado somente por um escudeiro, que preparava a escolha das
flechas, e por um rapazito, que aguardava na relva, a alguma distância, junto aos
alvos para recuperar as flechas.
— Ah, princesa! — saudou Hanish, cheio de alegria e sorrisos ao vê-la. —
Começava a pensar se... vinde, ensinai-me o que sabeis. Este é um desporto
suave, não é? Ouvi dizer aqui aos criados que em menina fosteis uma arqueira e
tanto!
— Talvez tenha sido outrora, mas agora já não sou arqueira nem menina.
Hanish estendeu-lhe um arco que o escudeiro lhe dera.
— Bem, bem pelo menos em parte tendes razão. Ajuizarei do resto. Corinn
pegou no arco. Gostou de sentir a madeira de freixo polida da arma nas mãos, e
as curvas foram-lhe familiares, leves, como se feitas de ossos de pássaro. Correu
os dedos pela corda tensa. Observou-a algum tempo antes de fazer um gesto a
pedir uma flecha.
Pegou então na seta das mãos do escudeiro e colocou-a em posição no arco,
erguendo-o para apontar ao alvo. Agarrava na arma com facilidade, muito direita
mas à vontade, como lhe haviam ensinado anos atrás. Sabia que Hanish parara
para a observar. Não se importou. Escolheu um alvo triangular, ligeiramente
afastado do lugar onde se encontrava o rapazito. Puxou a corda até ao pescoço,
com a flecha a descansar sobre os seus dedos, e a ponta a apontar um caminho
reto para o mundo. Soltou os dedos. A flecha voou. Desapareceu, parecia, para
aparecer um instante depois cravada quase no centro do alvo.
Hanish soltou uma exclamação. Tocou-lhe no braço e disse qualquer coisa
simpática ao escudeiro, que confirmou o que ele dizia. Corinn não sentia um
prazer tão visceral havia algum tempo. A precisão mortal, o poder de apontar
uma flecha ao mundo, a arma a cravar-se sem erro e depois a quietude, a prova
visível do seu talento cravada no alvo. Sem dar por isso, os dedos estalaram no
ar, a pedir outra seta.
A tarde passou rapidamente. Hanish talvez tenha pensado que fazia avançar
o tempo com os seus gestos e palavras, de perguntas e elogios, mas Corinn sentia
prazer ou desapontamento a cada flecha atirada. O rapazinho das flechas esteve
sempre ocupado, correndo para trás e para a frente. Tinha um sorriso enviesado e
um dos olhos parecia desalinhado do outro. Mas mesmo assim era um rapazinho
um dos olhos parecia desalinhado do outro. Mas mesmo assim era um rapazinho
bonito e parecia estar muito divertido. Corinn decidiu que lhe perguntaria como
se chamava antes de se separar dele.
— Há uma história candoviana sobre um arqueiro — disse Hanish. Tinham
parado alguns momentos enquanto o rapazinho arranjava os alvos e recuperava
as flechas. — Esqueci-me do nome dele. Tinha a fama de ter a melhor pontaria
dessas terras, uma pontaria mortal em quaisquer condições. Nesses tempos
Candovia e Senival andavam em desacordo sobre as fronteiras dos seus
territórios. Um dia as tribos reuniram-se para resolver o assunto e um homem de
Senival desafiou o arqueiro a pôr-se à prova. Era verdade, perguntou escarninho,
que o arqueiro conseguia atingir uma azeitona a cinquenta passos? Claro que era,
retorquiu o candoviano. O de Senival desafiou-o a prová-lo, mas ele recusou.
Disse que nenhuma azeitona jamais o ofendera. No entanto, disse que ficaria
feliz por acertar no olho de um homem de Senival a cem passos. Prometeu que
só lhe acertaria num dos olhos. Se acertasse nem que fosse ligeiramente ao lado
da órbita, renunciaria graciosamente a todos os elogios. Ninguém se candidatou
ao teste.
Um par de aves com crista sobrevoou as árvores, dirigindo-se ao extremo
do campo, esquecidas de tudo, menos uma da outra. Corinn imaginou uma delas
ser derrubada dos céus e presa a uma parede fofa, enquanto a outra continuava a
sua dança.
— Aonde quereis chegar com isso? — perguntou ela.
— Nem sempre é preciso chegar a algum lado. Por vezes a intenção das
histórias é apenas divertir. Sabeis, Corinn, que daria um dedo da minha mão
direita para vos ver mais feliz?
— Não vendo a minha alegria por tão pouco.
Hanish sorriu, irónico, mas de modo que demonstrava respeito pela
constância dela. Mudou de expressão e pegou noutra flecha.
— Maeander, na realidade, provavelmente poderia acertar numa azeitona
de qualquer distância. É excelente em todas as artes marciais. Ele deslumbra-me
e não me importo de o dizer.
Corinn duvidava que Hanish se deslumbrasse com alguém a não ser
consigo próprio, mas reparara na ausência de Maeander no chalé e interrogara-se
sobre isso.
— Onde está o vosso irmão? Anda a chacinar alguém?
— Tem piada que pergunteis. A missão dele relaciona-se convosco. Anda à
procura dos vossos irmãos. Eu sei. Eu sei. Nem sequer admitíeis que ainda se
procura dos vossos irmãos. Eu sei. Eu sei. Nem sequer admitíeis que ainda se
encontrem vivos. Mas, se os encontrar, ele trá-los-á até vós. Com isso, tenho a
certeza de que obteremos um pouco da vossa gratidão.
Ela não tinha a certeza de como responder àquilo. Trá-los-ia enfiados num
espeto? Acorrentados e amarrados? Ou poderia ela voltar a falar e a estar com
eles novamente? Iriam eles partilhar o estranho cativeiro com ela, como Hanish
sempre prometera que eram as suas únicas intenções? Se assim fosse, seria um
cativeiro bem menor. Mas nem sequer queria imaginar a possibilidade. Não
acreditava verdadeiramente naquilo. Hanish troçava dela. Se acreditasse nele,
apenas o ajudaria em mais uma brincadeira cruel. Sabia, desde a doença e morte
da mãe, que não se podia confiar em ninguém. As pessoas que amava eram-lhe
sempre roubadas. Os sonhos sempre desfeitos. Era assim que via a vida.
O rapazinho ainda se encontrava no campo, mas o escudeiro dirigiu-se a
eles, com uma aljava cheia de setas recuperadas na mão. Corinn mudou de
assunto e disse algo que parecia ao acaso, embora fosse algo relacionado com o
facto de estar em Calfa Ven.
— Vi um homem da Liga no palácio — disse ela. — Aquele que usa um
pingente com um peixe azul turquesa.
Hanish atirou, sem grande pontaria. Baixou o arco, carrancudo.
— É um golfinho. Não se trata propriamente de um peixe, disseram-me. De
qualquer modo, é o símbolo da Liga. Chama-se Sire Dagon. É um dos membros
principais da Liga. Só responde a Sire Revek, o presidente.
Sire Dagon. Sim, era esse o nome. Ao ouvi-lo, Corinn recordou-se que o
conhecera em criança. Sempre o desprezara: o aspeto dele, a voz, a arrogância
afetada. Estivera ali um dia, no chalé, quando ela lá estava. Era por isso que
continuara a pensar nele sem conseguir situá-lo precisamente.
— De que falais com ele?
— Falamos de comércio, de negócios. É disso que a Liga vive.
— Eles traíram o meu pai? Incentivaram-vos a atacar-nos? Dizei-me, assim,
da próxima vez que vir Sire Dagon, saberei se devo cuspir-lhe ou não.
Hanish pegou noutra flecha, apontou e voltou a atirar. Com melhor pontaria
agora, perto do centro de um dos alvos mais distantes. O rapazito rejubilou,
erguendo um punho como se fosse um triunfo pessoal. Hanish ignorou-o.
Respondeu a Corinn num tom invulgarmente formal, sem nenhum laivo de
malícia.
— A Liga não tem alianças com nada nem ninguém, Corinn — disse. —
Não têm nenhuma filosofia a não ser a que lhes permite adquirir riqueza. Visto
Não têm nenhuma filosofia a não ser a que lhes permite adquirir riqueza. Visto
que perguntais... No entanto... A Liga teve agravos com o vosso pai durante
quase todo o seu reinado. Alguns anos atrás contactaram o meu pai. Fizeram um
pacto connosco. Se o povo do Mein arquitetasse uma guerra contra Acácia que
pudesse ser bem sucedida, retirariam os seus navios e não dariam apoio
marítimo ao vosso pai. Nós estaríamos preparados para isto e Acácia não. Como
a vossa nação tem sede numa ilha, era uma promessa considerável. Foi um erro,
como vedes, depender de uma entidade comercial para a vossa marinha. Claro
que neste momento não estou em melhor posição, mas em breve resolverei a
situação.
Corinn atirou. A flecha atingiu o alvo mesmo junto da flecha de Hanish.
Tão perto que lhe lascou a vara, deixando uma pena tombada. Fez questão de
não olhar para ele.
— E o que lhes haveis prometido?
— Concordei em duplicar a Quota, duplicado assim os seus lucros.
Recentemente, disse-lhes que se podiam estabelecer nas Ilhas Distantes se
conseguissem varrer da ilha os piratas. Foi isto que discuti com Sire Dagon.
— Hum — proferiu Corinn, com um ar entre o sonhador e o sarcástico. —
Nunca pensei nisso assim. Que vós e alguém como Sire Dagon se sentassem a
discutir casualmente o destino de milhares de pessoas. Quando planeais essas
coisas, ficais entusiasmado?
Hanish inclinou-se ligeiramente para a frente, não propriamente para se
aproximar dela mas indicando que a resposta era apenas dirigida a Corinn.
— Muito — disse ele. — Que mais quereis saber? Quereis saber sobre os
escravos que vendemos para o outro lado do mar? De como distribuímos a
bruma que em troca recebemos? Da forma como sedamos o povo a fim de que
trabalhem para nós sem queixas? Contar-vos-ei tudo, princesa, se vos agrada
ouvir. Até fingirei que fui eu que criei tudo isso e que o vosso pai, o amado
Leodan, não era o maior traficante de escravos do mundo antes sequer de eu ter
nascido.
Hanish manteve um tom sedutor na voz até ao fim, mas depois adotou
alguma frieza. Corinn correspondeu à frieza.
— Já não tenho interesse nisto. Porque não partis e ides matar qualquer
coisa? — Entregou o arco ao escudeiro e começou a afastar-se.
— Quereis caçar? — perguntou Hanish agarrando-a por um cotovelo. —
Podemos fazê-lo já. — Pegou numa flecha, esticou a corda do arco e ergueu-a,
apontando. Mas não apontou para nenhum dos alvos triangulares. O rapazinho,
reparando que a arma lhe estava apontada, remexeu-se, nervoso. Olhou de um
reparando que a arma lhe estava apontada, remexeu-se, nervoso. Olhou de um
lado para outro para ver se havia algum alvo razoável perto, algo em que não
tivesse reparado.
— Dais-lhe um grito para que corra ou dou eu?
— Não vos atreveríeis — disse Corinn.
— Porque não? Ele não passa de um escravo meu. Se ele morrer, sou eu
que perco.
Os músculos do antebraço de Hanish sobressaíam e estremeciam com o
esforço, as articulações do punho estavam brancas da força com que agarrava no
arco. Que braço cruel era aquele. Cruel em cada poro e cada tecido.
— Não, Hanish — pediu Corinn, sabendo que ele o faria. Estava prestes a
fazê-lo. Era uma brincadeira e não era uma brincadeira; era ambas as coisas ao
mesmo tempo.
— Dizeis isso, mas no fundo quereis que eu o faça. Quereis vê-lo com a
flecha cravada e ouvi-lo gritar. Não quereis?
Ela levou um momento a responder. Não compreendeu porque hesitava.
Não estava a ponderar em diferentes respostas. Havia apenas uma. Mas era
difícil de pronunciar.
— Não — disse por fim —, não quero.
— Rapaz — gritou Hanish. — Levanta uma mão!
O rapazinho não entendia. Hanish baixou o arco e mostrou o que pretendia
com a sua própria mão. O rapaz imitou-o. Hanish disse-lhe para abrir os dedos,
deixando espaços entre eles.
— Muito bem, agora não te mexas. — Ergueu o arco e voltou a apontar.
— Parai com isso! — pediu Corinn, mais num murmúrio do que no grito
que pretendera dar.
Ele atirou. O rapaz não se moveu, felizmente, pois a flecha passou
exatamente entre o dedo do meio e o anelar. Passou célere e cravou-se na erva
atrás dele. Assim mesmo, estava feito.
— Havia alguma moral a tirar disto ou não? — perguntou Hanish, baixando
o arco. — A decisão é vossa. — Voltou-lhe as costas e afastou-se, deixando cair
a arma poucos passos depois.
Corinn observou-o a ir-se embora. Ficou a olhar o seu vulto enquanto se
embrenhava na floresta de troncos claros, com a folhagem a aplaudi-lo num
entusiasmo cintilante. Ele tinha razão em relação a ela, pensou. Sentiu a verdade
entusiasmo cintilante. Ele tinha razão em relação a ela, pensou. Sentiu a verdade
a vir à superfície do seu consciente e olhá-la no rosto. Parte dela quisera que ele
atingisse o rapaz. Porque o quisera, não sabia. Só para provar que se podia fazer?
Para provar que a aparente bondade do rapaz não era proteção contra nada? Só
para observar o sofrimento causado por uma seta lançada célere pelos ares,
disparada por uma pessoa a outra apenas por um soltar de dedos? Para ver a
prova da crueldade de Hanish? Talvez fosse por isso. Para ver a prova com os
seus próprios olhos. Sentiu um aperto no estômago ao pensar nisso, um
sentimento de aversão entretecido com atração. O que lhe estaria Hanish a fazer?
Com esforço, afastou o olhar das árvores e olhou para o rapaz, que se
encontrava ainda no mesmo lugar. Baixara a mão, mas parecia inseguro sobre
que mais lhe iriam pedir. Era bom que ela não lhe tivesse perguntado o nome.
Porém, já no chalé, envolta nos seus pensamentos, ficou surpreendida
quando Peter, o chefe dos criados, surgiu a seu lado num dos patamares. Foi ter
com ela como um atacante, saltando do lugar onde a esperara.
— Princesa — proferiu —, não sois a menina de que me lembro. —
Interrompeu-se a alguns centímetros dela. Ainda não estivera tão próxima dele
durante aquela estada e nunca a sós. As sobrancelhas do homem tremiam com
uma emoção que ela não entendia. Quase soltou um grito.
— O vosso pai — disse ele — teria ficado orgulhoso da vossa altura. Ouvi
falar do vosso destino, mas não conseguia acreditar até vos ver chegar aqui. —
Por instantes pareceu mergulhado em profunda tristeza. — Quando virá ele,
princesa? Dizei-me e estaremos prontos para nos juntarmos a ele. Todos aqui lhe
são ainda leais.
Corinn perguntou, abrupta:
— Quando virá quem?
— O vosso irmão, é claro! Todos nós rezamos ao Doador para que Aliver
regresse depressa e com uma vingança que varra Hanish Mein da face da terra.
Table of Contents
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David Anthony Durham
Mapa do Mundo Conhecido
Mapa do Mundo Conhecido2
Section 5
Livro Um
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Livro Dois
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40