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David Anthony Durham


Mapa do Mundo Conhecido
Mapa do Mundo Conhecido2
Section 5
Livro Um
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Livro Dois
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
David Anthony Durham

Ventos do Norte
Acácia

Saída de Emergência
Livro Um

O Idílio Do Rei
Capítulo 1

O assassino saiu da fortaleza de Mein Tahalian pela grande porta principal,


cavalgando através de uma brecha nas vigas de pinho reforçadas, que era larga
apenas o suficiente para lhe permitir a passagem. Partiu ao nascer do Sol, trajado
como um qualquer soldado do Mein. Vestia um manto de pele de alce que o
envolvia completamente. O manto cobria-o até às pernas e aquecia a montada de
cascos largos onde seguia. A proteger-lhe o peito levava uma couraça dupla:
duas placas de ferro moldadas aos contornos do corpo com uma camada de pele
de lontra a servir de estofo. Dirigiu-se para sul através dos campos cobertos de
neve, que resplandeciam com um fulgor gélido.
Naquele inverno o frio era tão intenso que, durante os primeiros dias de
viagem, a respiração do homem cristalizava ao escapar-se-lhe dos lábios. O
vapor aglomerava-se de forma estranha em redor da boca, parecendo o canal de
entrada para uma caverna. O gelo modelara pingentes que lhe pendiam da barba,
chocando uns contra os outros como campânulas de vidro. Cruzava-se com
poucas pessoas, mesmo quando passava pelas aldeias de construções baixas e
abobadadas. Na neve, detetava o rasto de raposas e lebres, mas raramente via os
animais. Uma vez, um gato das neves parou no alto de um penedo para o
observar, olhando-o indeciso, hesitante entre fugir do cavaleiro ou persegui-lo.
Acabou por não fazer nem uma coisa nem outra, e o homem deixou o animal
para trás.
A certa altura chegou ao topo de um cabeço e contemplou a vasta planície
onde as renas abundavam. Desde tempos remotos que raramente se via uma
coisa assim. De início pensou que tinha encontrado uma reunião do mundo dos
espíritos. Depois sentiu o cheiro intenso dos animais. Tal quebrou a sensação de
mistério. Desceu a colina na direção deles, sentindo a alegria invadi-lo ao ver
como a manada se afastava dele, o som dos cascos rufando como um tambor
dentro do seu peito.
Se as terras do Mein pertencessem ao seu povo, talvez tivesse caçado estas
criaturas como os seus antepassados haviam feito. Porém, o seu desejo não
mudava a realidade. A raça denominada Mein, assim como o planalto situado
numa zona mais elevada a norte, com o mesmo nome, a grande fortaleza de
Tahalian e os homens de linhagem real que deveriam governar o território sem
interferências, todos haviam sido reduzidos a servos de Acácia durante os
interferências, todos haviam sido reduzidos a servos de Acácia durante os
últimos quinhentos anos. Haviam sido derrotados e massacrados em grande
número, e desde então eram súbditos de governantes estrangeiros.
Sobrecarregados de impostos injustos, tinham-lhes roubado os guerreiros, muitos
dos quais enviados para servir nos exércitos de Acácia, em terras distantes, fora
do alcance dos antepassados. Era assim, pelo menos, que o cavaleiro via as
coisas — como uma injustiça que não poderia durar para sempre.
Na primeira semana, por duas vezes, desviou-se da estrada principal para
evitar os postos de controlo da Guarda do Norte. Tinha os documentos em
ordem. O mais provável era não o retardarem no caminho, mas não confiava nos
acacianos e abominava a ideia sequer de fingir que reconhecia a sua autoridade.
Cada curva do caminho o aproximava mais das Montanhas Negras, que se
perfilavam paralelas ao caminho que percorria. Os altos cumes despontavam da
neve como enormes lâminas de obsidiana que tivessem sido afiadas como o
gume de uma navalha. A acreditar nas antigas lendas, esses cumes eram as
pontas das lanças atiradas, para o telhado do seu mundo, pelos gigantes furiosos
cujas terras jaziam sob a superfície da Terra.
Depois de dez dias a cavalgar, chegou à beira da cratera de Methalia, no
limite sul das terras do Mein. Parou por instantes, observando, as florestas férteis
que se espraiavam a novecentos metros lá em baixo, consciente de que não
voltaria a respirar aquele ar das terras altas. Retirou o arnês da montada e
deixou-o cair onde estava. Escolheu novas rédeas, mais soltas, que não
revelassem a sua origem. Apesar de ainda fazer frio e de os campos estarem
polvilhados de geada, desapertou o manto e atirou-o ao chão. Pegou num punhal
e cortou a tira em pele que prendia o elmo. Atirou-o para os arbustos e abanou os
cabelos. Liberto da prisão do metal, o cabelo, comprido e castanho, soltou-se,
como que alegre com a nova liberdade. O cabelo era um dos traços que haviam
feito dele o homem indicado para cumprir aquela missão. A cor pouco se parecia
com o tom de palha quebradiça dos cabelos da maioria da raça do Mein e sempre
o embaraçara.
Depois de vestir uma camisa de algodão para esconder a couraça que lhe
protegia o peito, o cavaleiro e a montada começaram a descer lá do alto.
Percorreram um trilho ziguezagueante que ia dar a um terreno completamente
diferente, uma floresta temperada de árvores de madeira dura, salpicada por
pequenas povoações que faziam parte da área norte dos territórios administrados
diretamente por Alecia, a sede burocrática do governo acaciano.
Como o seu domínio da língua do império lhe era repulsivo, raramente
falava com alguém, exceto nas alturas em que não tinha outra escolha. Quando
vendeu o cavalo a um comerciante no limite sul da região dos bosques, mal lhe
vendeu o cavalo a um comerciante no limite sul da região dos bosques, mal lhe
respondeu, tapando a boca com as costas da mão e murmurando as palavras em
voz rude e gutural. Aceitou como pagamento moedas do reino, roupa que não
atrairia a atenção e um par de botas fortes em pele, visto que teria de percorrer o
restante caminho até à costa a pé. Assim, mudou novamente de aspeto.
Seguiu pela estrada principal rumo ao sul, carregando um grande alforge ao
ombro. No saco sobressaía aqui e ali o volume das coisas de que viria a precisar.
Passava as noites abrigado em depressões de terreno, à beira de quintas ou na
clareira de algum bosque. Embora para as populações das redondezas a terra
continuasse dominada pelos rigores do inverno, para ele o clima assemelhava-se
mais ao verão tahaliano, suficientemente quente para o fazer suar.
Não longe do porto de Alecia, desfez-se das vestes mais uma vez. Tirou a
couraça, enterrou-a debaixo das pedras de um rio, e pôs um manto que fora
tecido nos frios aposentos da fortaleza do Mein, esperando que parecesse
genuíno no lugar para onde ia. Com a capa sobre os ombros, parecia ser um dos
membros dos Vadayan. Apesar de muito antiga, a ordem dos Vadayan já não era
a seita religiosa ativa de outrora. Eram eruditos que estudavam e preservavam a
antiga tradição sob a superintendência cerimonial das sacerdotisas de Vada.
Tratava-se de um grupo reservado, que desdenhava as manobras do império.
Como tal, não pareceria estranho que ele pouco falasse com quem ia
encontrando.
Para completar o disfarce, o homem rapou os lados da cabeça e apanhou o
cabelo no alto, com um nó de finas fitas de cabedal. A pele de ambos os lados do
crânio estava tão pálida e rósea como a de um porco. Esfregou-a com uma
tintura usada para tingir madeira. Quando acabou, nem o olhar mais arguto o
tomaria por algo mais do que o sábio por que pretendia fazer-se passar.
Apesar de usar os vários disfarces com toda a compostura, na verdade não
era nenhum daqueles por quem se fazia passar. Chamava-se Thasren Mein.
Nascera de sangue nobre, filho do falecido Heberen Mein. Era o irmão mais
novo de Hanish, o legítimo chefe das tribos do Planalto do Mein, e de Maeander,
chefe dos Punisari, a guarda de elite e orgulhosa alma da tradição marcial do seu
povo. Era uma linhagem de que se orgulhava, mas tudo abandonara para se
tornar num assassino. Pela primeira vez a sua existência fazia realmente sentido
para ele. Nunca estivera tão concentrado num objetivo como agora, nunca se
sentira tão completo, encarregue de uma missão pela qual jurara morrer. Quantos
andarão pela terra sabendo exatamente porque respiram e compreendendo em
pleno o que têm de fazer antes da passagem para a outra vida? Que afortunado
era!
A bordo do barco que o transportava, contemplou a ilha de Acácia
A bordo do barco que o transportava, contemplou a ilha de Acácia
erguendo-se do mar verde pálido numa amálgama retorcida de rochedos. Ao
longe, parecia bastante inofensiva. O ponto mais alto da ilha situava-se no
extremo sul. No centro, as colinas e as serranias tornavam-se mais planas para
voltarem a erguer-se em diversos planaltos, que as gerações povoadoras haviam
talhado para poderem albergar o palácio. As acácias perfilavam-se tão escuras
como os talayanos negros do sul, que usavam grandes plumagens salpicadas aqui
e ali de botões de flor brancos. Apesar da linha da costa da ilha ser comprida e
serpenteante, poucos eram os locais de fácil acesso; as praias eram raras e os
portos escassos.
Quando o barco passou para lá das torres de proteção do porto, Thasren viu
uma bandeira do império, descaída no mastro devido à falta de vento. Sabia
pelas cores o que veria, se a bandeira estivesse desfraldada: um sol amarelo
dentro de um quadrado debruado a vermelho, e no centro a silhueta negra da
árvore que dera o nome àquela terra. Todas as crianças do Mundo Conhecido
reconheceriam aquele estandarte, por mais longe que tivessem nascido. O
assassino teve de conter a vontade que tinha de lhe cuspir com desdém.
Subiu do barco para a doca principal por entre a confusão precipitada dos
outros passageiros, mercadores e jornaleiros, mulheres e crianças, todos saltando
a fenda sobre as águas cristalinas como animais de uma manada. Havia alguns
outros Vadayan entre eles, mas Thasren evitou olhá-los nos olhos. De pé, sobre
as pedras sólidas da doca, enquanto os companheiros de viagem passavam por
ele, percebeu que acabava de entrar no covil do inimigo. Se alguém em seu redor
descobrisse agora o seu nome ou lhe pudesse adivinhar os pensamentos, tornar-
se-ia o alvo de todos os punhais, espadas e lanças existentes na ilha. Aguardou
um momento, demorando-se mais do que pretendia, surpreendido por ver que
ninguém o acusava. Ninguém desatara aos gritos de aviso ou parara sequer para
o ver melhor.
Encarou a grande muralha de pedra rósea com um olhar frio. Para lá dela
despontavam pináculos, torres e cúpulas, pintados de azul escuro, de tons de um
vermelho sombrio ou de castanho cor de ferrugem, por entre alguns edifícios
dourados que cintilavam à luz do sol. As estruturas dispunham-se em terraços
sobrepostos, precipitando-se de forma abrupta, como se de uma montanha
escarpada se tratasse. Era belo de contemplar, até ele reconhecia isso. Em nada
se assemelhava ao aspeto atarracado e lúgubre da terra natal do assassino.
Tahalian fora construída com vigas maciças talhadas dos pinheiros da região,
semi-enterrada no solo como proteção contra o frio, sem quaisquer ornamentos
por estar durante grande parte do ano imersa na escuridão do inverno, com a
neve a acumular-se em todas as superfícies planas. Era doloroso medir as
neve a acumular-se em todas as superfícies planas. Era doloroso medir as
diferenças entre ambas e por isso Thasren afastou esses pensamentos de si.
Dirigiu-se devagar para os portões da baixa da cidade. Talvez levasse
algum tempo, mas encontraria o caminho por entre as ruas do interior da cidade,
adotando o aspeto que fosse sendo necessário até conseguir entrar no palácio. Aí
daria resposta à pergunta colocada, como quem não quer coisa, pelo irmão, um
mês antes. Se queriam matar uma besta com muitos tentáculos, interrogara-se
Maeander, por que não começar por decapitá-la? Depois, dariam conta dos
membros e do corpo enquanto a criatura cambaleava às cegas, sem orientação. O
assassino teria apenas de se aproximar o suficiente dessa cabeça, esperar pelo
momento propício para atacar e fazê-lo em público, para que a notícia de tal ato
se espalhasse, como uma doença, de boca em boca.
Capítulo 2

Para a ajudar a superar o tédio da lenta lição da manhã, Mena Akaran


sentava-se sempre exatamente no mesmo lugar, sobre um tufo de erva atrás dos
irmãos. Acabara de fazer doze anos e, daquele lugar, conseguia ver pelo buraco
de uma espiga em falta na balaustrada de pedra que confinava com o pátio. Este
emoldurava um cenário que começava com os muitos terraços sobrepostos do
palácio. Que descia depois para um espaço amplo para lá da muralha ocidental
da cidade, que dava por sua vez lugar a várias colinas cultivadas. Ao fundo, via-
se a elevação de terreno mais alta: o longínquo promontório conhecido por
Rochedo da Enseada. Estivera lá com o pai e lembrava-se do cheiro fétido e do
vozear cacofónico das aves marinhas que ali abundavam, e das vistas
vertiginosas que se espraiavam a pique, numa descida de quatrocentos metros até
às ondas alterosas. Sentada lá no alto, assistindo à aula ao ar livre que os filhos
do rei tinham com o seu tutor, Mena estava mergulhada num devaneio sonhador.
Esta manhã imaginava ser uma gaivota lançando-se em voo do alto dos
rochedos. Precipitava-se num voo picado e mergulhava na superfície das águas.
Lançava-se por entre as velas das embarcações dos pescadores e em redor das
barcaças dos mercadores que navegavam aqueles mares, rasando as correntes
circulares que as levavam de um lugar para outro. Afastava-se delas e as ondas
erguiam-se mais alterosas ainda. As águas azul turquesa transformavam-se então
num tom azul profundo e depois escureciam, num negrume cerrado. Voava por
cima dos cardumes de anchovas brilhantes e ao longo dos dorsos das baleias,
procurando coisas desconhecidas que ela sabia que acabariam por emergir da
crista espumosa do horizonte...
— Mena? Estais aqui connosco, princesa? — Jason, o tutor real, e ambos os
irmãos e a irmã estavam a olhá-la. As crianças estavam sentadas na erva húmida.
Jason encontrava-se à frente delas, com um velho volume numa mão, a outra
mão descansando na anca: — Ouviu a pergunta?
— Claro que ela não ouviu a pergunta — retorquiu Aliver. Com dezasseis
anos, era o mais velho dos filhos do rei, o suposto herdeiro do trono.
Ultimamente dera um salto, ultrapassara o pai em altura, e a voz mudara. Tinha
uma expressão de tédio infinito, um mal que o atacara havia cerca de um ano e
que ainda não o abandonara.
— Estava outra vez a pensar em peixes. Ou em golfinhos.
— Estava outra vez a pensar em peixes. Ou em golfinhos.
— Nem peixes nem golfinhos são chamados ao tópico de que falávamos —
respondeu Jason. — Por isso, repito: quem foi deposto pelo fundador da dinastia
Akaran, em Galaral?
Fora aquela a pergunta que não ouvira? Qualquer pessoa saberia responder!
Mena detestava ter de responder a perguntas simples. Tinha prazer no
conhecimento apenas quando se destacava dos outros. Dariel, o irmão mais
novo, sabia quem fora o primeiro rei e o que fizera e tinha apenas nove anos.
Manteve o silêncio tanto tempo quanto pôde, mas quando Aliver abriu a boca
para proferir mais um sarcasmo, falou rapidamente.
— Edifus foi o fundador. Nasceu nos Lagos, entre sofrimento e escuridão,
mas venceu uma guerra sangrenta que havia dominado o mundo inteiro.
Encontrou o Falso Rei Tathe, em Galaral, e esmagou as suas forças com a ajuda
dos Profetas Santoth. Edifus foi o primeiro de uma dinastia ininterrupta de vinte
e um reis Akaran, dos quais o meu pai é o mais recente. Os filhos de Edifus,
Thalaran, Tinhadin e Praythos começaram a firmar e a consolidar o império
através de uma série de campanhas chamadas as Guerras da Distribuição...
— Muito bem — retorquiu Jason. — É mais do que pedi...
— Uma gaivota.
— O quê?
— Estava a imaginar que era uma gaivota, e não um peixe ou um golfinho.
— Ela fez um rosto carrancudo e virou-se para Aliver e depois para Corinn.
Algum tempo mais tarde, depois de ter tentado sem sucesso resumir os seus
devaneios sobre aves, Mena contentou-se em seguir a conversa. A discussão
virara-se agora para a Geografia. Corinn nomeou seis províncias e conseguiu
dizer alguma coisa sobre as famílias aí reinantes e as formas de governo: o
continente, no Norte próximo, a satrapia do Mein, no Norte distante, a
Confederação Candoviana, a noroeste, Talay a sul desta, e as tribos da montanha
de Senival, a oeste. As ilhas interligadas, chamadas arquipélago Vumu,
constituíam a última província, embora não tivessem o governo centralizado das
outras.
Jason desenrolou um mapa sobre a erva e pediu às crianças que prendessem
os cantos com os joelhos. Dariel tinha sempre especial prazer nos mapas.
Inclinou-se muito próximo deste e repetiu tudo o que o tutor dissera como se
estivesse a traduzir informação para um outro ouvinte. Houve algo no modo
lento como o fez que levou Mena a interrompê-lo.
— Por que razão está Acácia sempre no centro dos mapas? — perguntou
ela. — Se o mundo curva e não tem fim — como nos ensinou, Jason — como
ela. — Se o mundo curva e não tem fim — como nos ensinou, Jason — como
poderá um lugar ser o centro e não outro?
Corinn achou a pergunta idiota. Olhou para Jason de sobrolho erguido e
lábios franzidos. Com quinze anos, era atraente e ele sabia-o, com a tez cor de
azeitona e o rosto ovalado que caracterizava a beleza acaciana. Adquirira muito
das feições da mãe, que morrera, e continuava a viver nela; pelo menos, era o
que toda a gente parecia pensar.
— É que é o centro, Mena. Toda a gente sabe disso.
— Bem resumido, — respondeu Jason — mas a Mena tem razão. Todos os
povos pensam em si como os primeiros. Primeiros, centrais e acima de tudo, não
é? Hei de mostrar-vos um mapa de Talay um dia. Desenham o mundo de modo
bastante diferente. São uma grande nação também...
Aliver soltou uma gargalhada.
— Está a brincar! Os homens e as mulheres andam meios nus por lá.
Caçam com lanças e veneram deuses que parecem animais. Ainda têm pequenos
governos tribais — com chefes e coisas assim. Não são melhores do que os
brigões de Mein.
— E faz muito calor por lá — acrescentou Corinn. — Dizem que a terra é
tão árida que se desfaz em pó durante metade do ano. Têm de beber de buracos
escavados no chão.
Jason concordou que o clima da Talay era rigoroso, especialmente no Sul
distante. Além disso, sabia que pensariam sempre que os seus modos eram
inferiores aos costumes acacianos. Havia uma razão para Acácia ter o domínio
sobre todo o Mundo Conhecido. Disse-lhes:
— Somos um povo dotado. Mas somos também benevolentes. Não
devemos desprezar os talayanos ou qualquer outro povo...
— Eu não disse que os desprezo. Eles têm os seus costumes e, quando for
rei, tentarei respeitá-los. Agora, porque desenrolámos o mapa? Tem alguma
coisa a ensinar-nos ou não?
Jason, notando o arroubo de impaciência no tom de Aliver, anuiu. Sorriu ao
concordar e desviou a conversa. Sim, era um professor, mas nunca se esquecia
de que era também um servo. Por vezes, aquilo parecia lamentável a Mena.
Como iriam eles aprender verdadeiramente sobre o mundo, se podiam calar os
seus tutores apenas erguendo o tom de voz?
A lição foi retomada e todos escutaram Jason sem mais interrupções.
Porém, não continuaram por muito mais tempo. Alguns minutos depois, o pai, o
Porém, não continuaram por muito mais tempo. Alguns minutos depois, o pai, o
rei Leodan, empurrou a porta, inspirando o ar da manhã. O seu rosto tinha a
textura de pele curtida. Alguns cabelos brancos salpicavam-lhe as têmporas,
realçando o cabelo negro, traindo-lhe tanto a idade como o peso dos seus fardos
reais. Olhou os filhos, acenou ao tutor, e depois contemplou a vista panorâmica
da sua ilha. Disse então:
— Jason, interromperei a tua lição esta manhã. Com a delegação de
Aushenia prestes a chegar, não terei o tempo que gostaria de ter com os meus
filhos durante as próximas semanas. Acordei com vontade de andar a cavalo.
Estou inclinado a ceder ao desejo. Se os meus filhos me quiserem acompanhar, o
assunto estará resolvido...
Os filhos também estavam com vontade, e, em menos de uma hora, saíram
a galope por uma das pequenas portas laterais que desciam do palácio. Todos
eles sabiam montar desde os quatro ou cinco anos, e eram bons cavaleiros, até
mesmo Dariel. Seguia-os uma escolta de dez homens a cavalo, a distância
discreta. Ninguém imaginaria que o rei corresse risco enquanto estivesse em
Acácia, mas, como monarca, cedia muitas vezes às tradições vindas de tempos
mais perigosos.
Cavalgavam apressadamente ao longo da estrada que seguia para oeste. Por
vezes, o caminho atravessava cristas de montes tão finas que se podia ver a vista
de ambos os lados, que desciam em encostas cobertas de zimbro e desabavam
para o mar. As coroas espinhosas das acácias despontavam aqui e além, através
da fina abóbada de folhagem entrelaçada. Fora isto, claro, que dera o nome à
ilha, e, à dinastia Akaran, o seu título informal. Eram um traço distintivo da
paisagem, único entre as outras ilhas do Mar Interior, visto em mais nenhuma
existirem acácias.
De perto, as árvores haviam amedrontado Mena quando era mais nova.
Eram nodosas e cheias de espinhos, sempre tão quietas e, no entanto, habitadas
como que por uma ameaça de vida latente, uma inteligência interior, que ela
suspeitava que as árvores preferiam manter oculta pelas suas próprias razões.
Havia apenas pouco tempo que começara a sentir-se menos inquieta junto delas.
Haviam transplantado um exemplar com muitos anos para o quarto de Dariel,
que depois poliram e podaram, para servir de estrutura para trepar: um
brinquedo. Isto contribuíra bastante para acalmar a sua apreensão. Afinal aquelas
árvores podiam ser cortadas, transplantadas e moldadas, de forma a servirem
para brincadeiras para crianças, sendo assim dificilmente algo a recear.
Os cavaleiros desceram até à praia acidentada do lado sul da costa, uma
estreita faixa deixada no seu estado natural, com vista para a baía entre as
falésias que pululavam de aves. Durante algum tempo cavalgaram num grupo
falésias que pululavam de aves. Durante algum tempo cavalgaram num grupo
desordenado, em redor e por entre grandes troncos embranquecidos pelo sol que
andavam à deriva, ou através das águas verdes transparentes, enquanto os
cavalos varriam a espuma com as patas. Aliver desmontou e começou a atirar
conchas às ondas. Corinn ficou sobre um tronco carcomido de uma enorme
árvore, de braços abertos e o rosto virado à brisa gélida. Dariel perseguia
caranguejos pela areia.
Mena preferiu ficar do lado direito do pai enquanto este caminhava de um
lado para outro, interessado em tudo, rindo, pois parecia haver muitas coisas que
o divertiam quando se encontrava com os filhos. Mena levava na mão um galho
que apanhara, e passava os dedos sobre a patine húmida que o cobria. Era
exatamente assim que a vida devia ser. Ela não se interrogava sobre se aquela
situação — um rei brincando com os filhos — seria invulgar. Era, simplesmente,
o modo como as coisas sempre tinham sido. Não conseguia imaginar outra
possibilidade. Contudo, perguntava-se se mais alguém para além dela via a
tensão que o rosto do pai ocultava. A sua alegria era sincera, mas exigia-lhe
algum esforço. Era-lhe dolorosa, de algum modo, por causa daquela que estava
ausente.
Nessa noite, tendo regressado à quente colmeia do palácio, Mena e Dariel
enroscaram-se no leito da princesa para ouvirem o pai contar-lhes uma história.
Como todos os aposentos do palácio, o quarto de Mena era grande, amplo e de
teto alto, com o chão de mármore branco polido. Não era um quarto onde Mena
tivesse exercido qualquer influência, ao contrário de Corinn, com o seu ninho de
rendas vivamente colorido e repleto de almofadas. O mobiliário era
uniformemente antigo, móveis feitos de madeira nodosa, com estofos que
picavam a pele. Das paredes pendiam tapeçarias representando figuras da
história acaciana. Mena só conseguia nomear os feitos de algumas delas, mas
sentia a sua presença no quarto como uma força protetora. Tomavam conta dela.
Eram, afinal de contas, as pessoas da família de seu pai. Da sua.
Leodan sentou-se num tamborete ao lado deles.
— Então, — proferiu — creio que chegámos à hora em que lhes devo
contar a história dos dois irmãos e de como começou o grande desentendimento
entre eles. É pena que a Corinn e o Aliver sejam crescidos demais para ouvir
histórias; antes, gostavam muito desta, embora seja um pouco triste.
O rei contou-lhes então que um dia, havia muito tempo, tinham existido
dois irmãos, Bashar e Cashen, que eram tão próximos que ninguém os conseguia
separar. A lâmina de um punhal não passaria entre eles, tal era o amor que
sentiam um pelo outro e a alegria que tinham na companhia mútua. Pelo menos,
isto foi verdade até ao dia em que uma delegação de uma aldeia vizinha foi ter
isto foi verdade até ao dia em que uma delegação de uma aldeia vizinha foi ter
com eles e lhes disse que, visto serem dois irmãos tão bons e nobres, lhes
imploravam que um deles se tornasse algo a que se chamava «rei». Um profeta
dos sonhos dissera-lhes que, se tivessem um rei, encontrariam a prosperidade.
De tal precisavam eles bastante, pois havia anos que sofriam de fome e
discórdias. Nenhum deles conseguiu decidir quem de entre eles deveria ser rei,
por isso imploravam a um dos irmãos que aceitasse o papel.
Os dois irmãos perguntaram se poderiam ambos ser reis, mas os aldeões
disseram-lhes que isso não era possível. Só um único homem pode ser rei de um
lugar, explicaram. Fora isso que o profeta lhes dissera. Porém, ainda assim, os
irmãos gostaram da ideia de virem a ser reis. Pediram aos aldeões que
escolhessem entre os dois e que o que não fosse escolhido acataria a decisão. Em
segredo, fizeram um pacto em como, passados cem anos, trocariam de papel e,
aquele que não fora rei, passaria a sê-lo.
Cashen foi então eleito rei. Durante cem anos governou sem incidentes. O
povo prosperava. Bashar estava sempre a seu lado. Porém, no primeiro dia do
centésimo primeiro ano, Bashar pediu a Cashen que lhe passasse a coroa. Cashen
olhou para ele friamente. Habituara-se a ser rei, apaixonado pelo poder que
detinha. Bashar recordou-o do acordo que haviam feito. Cashen retorquiu que
nunca tais palavras haviam sido trocadas entre eles. Ouvindo tal, Bashar encheu-
se de fúria. Agarrou o irmão. Cashen afastou-o com brusquidão para longe de si
e, sentindo subitamente medo e vergonha, saiu a correr da aldeia e foi para as
colinas. Afastou de si qualquer pensamento carinhoso pelo irmão e encheu-se de
amargura. Bashar perseguiu-o pelas colinas e até às montanhas. Então, nuvens
de tempestade aglomeram-se no horizonte e os relâmpagos iluminaram os céus,
e a chuva começou a cair sobre eles.
Dariel tocou no pulso do pai com um dedo.
— Isso é verdade?
Debruçando-se sobre ele, Leodan murmurou:
— Todas as palavras são verdade.
— Eles deviam ter feito turnos — disse Dariel, com um tom fatigado na
voz.
— Quando Bashar encontrou o irmão, bateu-lhe na cabeça com o cetro.
Cashen perdeu as forças nos joelhos por um instante, mas depois recuperou do
golpe e atacou novamente Bashar. Desta vez Bashar girou o seu cetro no ar e
acertou nos joelhos do irmão, fazendo-o cair de costas. Atirou o cetro ao chão e
agarrou o irmão, ergueu-o e caminhou com o corpo dele sobre a sua cabeça
rumo ao precipício. O vento agitava-se e uivava em seu redor, mas, mesmo
rumo ao precipício. O vento agitava-se e uivava em seu redor, mas, mesmo
assim, conseguiu chegar à beira do abismo, de onde atirou o irmão para o vazio.
— Mas Cashen não morreu. Caiu aos trambolhões pela encosta abaixo.
Depois pôs-se novamente em pé e começou a correr. Circundou o vale e foi dar
ao outro lado. Ao chegar ao cume da montanha mais distante, um relâmpago
rompeu os céus. A luz era ofuscante e ele teve de proteger os olhos. Quando
conseguiu voltar a ver, Bashar viu que Cashen fora atingido pelo raio. Porém,
em vez de cair morto no chão, o seu corpo tremia, tomado por uma corrente.
Uma luz azulada percorria-lhe a pele e a carne queimada. Contudo, não morreu.
Começou novamente a correr e agora era mais veloz do que nunca. Dava
passadas enormes, subiu ao pico da montanha mais distante e deu um salto sobre
ela sem um olhar de relance para trás, para o irmão.
Mena deixou que o silêncio durasse um instante e depois perguntou:
— É assim que acaba?
Leodan fê-la calar-se e acenou para Dariel, indicando que este adormecera.
— Não — respondeu, pegando no rapaz ao colo. — Não acaba assim, mas
é o fim da história por esta noite. Bashar compreendeu que algum deus descera e
abençoara o irmão. Soube então que iriam ser inimigos numa longa e difícil
batalha. Para dizer a verdade, ainda hoje combatem.
Leodan pôs-se de pe. Dariel estava aninhado nos seus braços, adormecido.
— Por vezes, se escutarmos com atenção, conseguimos ouvi-los a atirarem
pedras um ao outro nas montanhas.
Observando o pai enquanto este passava pela porta aberta e desaparecia na
direção da luz amarela da lâmpada do átrio, Mena lutou com uma súbita vontade
premente de o chamar. Esta chegou-lhe como uma corrente de ar, como se
tivesse estado a conter a respiração inconscientemente. Era como que a súbita e
terrível certeza de que o pai desapareceria por aquele corredor para nunca mais o
ver. Quando era mais pequena, costumava chamá-lo várias vezes, para que este a
consolasse, com histórias e promessas, até a paciência dele se esgotar ou até ela
adormecer de cansaço. Porém, ultimamente, ficava embaraçada com qualquer
emoção que sentisse ao separar-se dele. Era um fardo que tinha de suportar, e
suportava-o.
Apercebeu-se de que enrolara a roupa da cama nos próprios punhos. Tentou
soltar os dedos e acalmar-se. Era um medo sem substância, disse a si própria.
Leodan dissera-lhe isso mesmo muitas vezes. Nunca a deixaria. Prometera-lhe
isso com a total e inegável certeza de pai. Porque não conseguiria ela
simplesmente acreditar nele? E por que razão o desejo de acreditar nele lhe
simplesmente acreditar nele? E por que razão o desejo de acreditar nele lhe
parecia uma desfeita à sua defunta mãe? Ela sabia que muitas crianças da sua
idade nunca haviam sofrido a perda de um dos pais. Mesmo a dormir, Dariel não
se lembrava da mãe o suficiente para lhe sentir a falta. Nada sabia do que fora
perdido. Que coisa tão boa, aquela ignorância. Se, ao menos, tivesse sido ela a
mais nova a nascer, em vez de Dariel. Não tinha a certeza de aquilo ser um
pensamento mau, injusto para com o irmão, mas ficou muito tempo a pensar
naquilo.
Capítulo 3

Thaddeus Clegg viu, assim que entrou na sala, que a mulher estava prestes
a desmaiar de exaustão. Encontrava-se no meio do aposento iluminado por
tochas, de frente para a parede mais afastada, com a silhueta delineada pelo
brilho alaranjado do fogo da lareira. Balançava-se de um lado para o outro com
os movimentos desajeitados e desequilibrados de alguém profundamente
fatigado. Tinha a roupa tão suja e amarrotada como a de uma camponesa, mas,
por entre a poeira acumulada e o encardido do manto, Thaddeus vislumbrou o
brilho da sua cota de malha. O solidéu apertado do elmo distinguia-se
perfeitamente com o seu único tufo de crina amarela no cimo.
— Mensageira, — pronunciou Thaddeus — perdoa-me por te ter feito
esperar em pé. Os meus criados prendem-se às formalidades mesmo perante os
factos mais óbvios.
Nos olhos da mulher surgiu um fulgor ao fitá-lo.
— Porque me mantiveram aqui, chanceler? A mensagem que trago é para o
rei Leodan, por ordem do general Leeka Alain, da Guarda do Norte.
Thaddeus virou-se para o criado, que o seguira como uma sombra enquanto
ele entrava na sala, e ordenou-lhe que trouxesse um prato de comida à
mensageira. Quando o criado saiu, Thaddeus indicou à mulher que se sentasse
num dos sofás atrás dele. Demorou um pouco a convencê-la, mas, quando ele se
sentou, a mensageira seguiu-lhe o exemplo. Ele explicou-lhe que ela se
encontrava ali precisamente por a mensagem que trazia ser para o rei. Como
chanceler, ele recebia em primeiro lugar todos os comunicados.
— Certamente saberás isso — disse ele, com um leve tom de reprimenda na
voz.
Com cinquenta e seis anos de idade, Thaddeus perdera já a beleza da
juventude. O sol constante dos verões acacianos esculpira-lhe profundas rugas
na pele, que pareciam multiplicar-se de cada vez que se via num espelho de mão.
Contudo, sentado sob a luz tremeluzente da lareira, de braços cruzados sobre o
colo e sob cetim vermelho escuro da capa de inverno que o envolvia, o chanceler
parecia perfeitamente à vontade no seu posto como confidente do governante do
maior império do Reino Conhecido. Nascera alguns meses depois de Leodan
Akaran, numa família quase tão nobre, mas desde cedo que lhe haviam dito que
Akaran, numa família quase tão nobre, mas desde cedo que lhe haviam dito que
a sua missão seria servir o futuro rei e não aspirar a tais alturas para si próprio.
Era um confidente leal, o primeiro a escutar qualquer segredo, os olhos que viam
o monarca como só aos familiares mais chegados do rei era permitido vê-lo.
Tinham-lhe destinado a missão e o estatuto desde a nascença, como fora o caso
das vinte e duas gerações de chanceleres antes dele.
O criado voltou, trazendo uma bandeja com pratos de ostras fumadas e
anchovas, uvas e dois jarros, um com água e o outro com vinho. Thaddeus
indicou à mulher que se servisse.
— Que não haja discórdia entre nós — disse ele. — Vejo que és um
soldado zeloso, e, pelo aspeto do teu traje, tiveste uma viagem difícil. O Mein
deve ser um tormento gelado nesta altura do ano. Bebe. Retempera forças.
Lembra-te de que te encontras no interior das muralhas de Acácia. E depois diz-
me o que tens a dizer.
— O general Alain envia...
— Sim, disseste-me que o Leeka te enviou. Não foi o governador que te
ordenou para vires?
— Esta mensagem vem do general Alain — respondeu a mensageira. —
Ele envia os seus cumprimentos e afeto mais dedicados, ao rei e aos seus quatro
filhos. Que tenham uma longa vida. Jura a sua lealdade, agora como sempre, e
pede ao rei que ouça as suas palavras com atenção. São a pura verdade, mesmo
que a sua mensagem possa parecer inacreditável.
Thaddeus olhou para o criado. Depois de este sair do aposento, o chanceler
disse:
— O rei ouve através de mim.
— Hanish Mein está a planear uma guerra contra Acácia. Thaddeus sorriu.
— Não é provável. Os Mein não são loucos. São poucos. O Império
Acaciano esmagá-los-ia como formigas debaixo de um pé. Quando é que Leeka
se tornou num...
— Senhor, perdoai-me, mas ainda não acabei o meu relato. — A
mensageira parecia triste por este facto. Por um momento, esfregou os olhos. —
Não é apenas com o Mein que teremos de lutar. Hanish Mein firmou uma
aliança com o povo de além dos Campos Gelados. Vieram pelo teto do mundo e
prosseguiram para sul, até ao Mein.
O sorriso do chanceler esmoreceu.
— Isso não é possível.
— Senhor, juro pelo meu braço direito que vieram até ao sul aos milhares.
— Senhor, juro pelo meu braço direito que vieram até ao sul aos milhares.
Pensamos que fizeram isso mediante um apelo de Hanish Mein.
— Ele saiu do Mundo Conhecido?
— Os vigias viram-nos chegar. São um povo estranho, bárbaro e cruel...
— Os estrangeiros são sempre vistos como bárbaros e cruéis.
— São mais altos do que um homem normal em mais de uma cabeça.
Cavalgam criaturas com muito pelo, com cornos, que esmagam os homens com
as patas. Vêm não só com soldados, mas com mulheres e crianças e os seus
idosos, trazendo carros enormes que parecem cidades em movimento, puxados
por centenas e centenas de animais que nunca antes foram descritos por
ninguém. Diz-se que trazem torres de cerco sobre rodas, e outras armas
estranhas, e conduzem grandes manadas de gado....
— Estás a descrever nómadas errantes. São invenções fantasiosas de um
mentiroso.
— Se são nómadas, não se parecem em nada com o que foi visto no nosso
mundo. Saquearam uma cidade chamada Vedus, no norte distante. Digo que
saquearam, mas, na verdade, simplesmente passaram sobre ela. Nada deixaram
atrás, agarrando em tudo o que fosse de algum valor e levaram-no com eles.
— Como sabes que Hanish Mein tem algo a ver com isto?
A mensageira fitou o chanceler nos olhos. Não devia ter mais de vinte e
cinco anos, mas havia mais do que sofrimento e perseverança no seu rosto.
Thaddeus acreditara muitas vezes que isto era patente em todas as mulheres-
soldado. Elas eram, na maioria, talhadas em aço mais fino do que um homem
comum. Ela sabia do que estava a falar, e ele deveria reconhecê-lo.
Thaddeus levantou-se e indicou à mulher um grande mapa do império que
se encontrava na parede mais afastada.
— Mostra-me essas coisas no mapa. Conta-me tudo o que puderes. Durante
a hora seguinte, os dois continuaram a conversar: um fazia as perguntas, cada
vez com mais gravidade, o outro ia respondendo com toda a convicção.
Thaddeus não podia deixar de imaginar a desolação do lugar de que falavam.
Nenhuma outra região do Mundo Conhecido era tão perturbadora como a
Satrapia do Mein. Era um planalto onde a vida era dura, no norte, um território
de invernos de nove meses, habitado por um povo de raça loura que conseguira
ali sobreviver. O planalto tinha o nome do povo que o habitava, mas os Mein
não eram originários daquela região. Haviam sido outrora um clã do Continente,
oriundo do sopé das Montanhas de Senival, não muito diferentes dos antigos
acacianos. Após uma expulsão anterior — às mãos dos antigos Akaran —
acacianos. Após uma expulsão anterior — às mãos dos antigos Akaran —
tinham-se estabelecido ali e haviam sido forçados a chamar àquelas terras o seu
lar, durante vinte e duas gerações, tal como os Akaran tinham feito de Acácia a
sua base durante o mesmo período de tempo.
Os Mein eram um povo tribal, guerreiro e brigão, tão duro e propenso à
crueldade quanto a paisagem que habitavam, com uma cultura erguida em volta
de um panteão de espíritos vingativos chamados Tunishnevre. Mantinham um
orgulho comum na sua ancestralidade partilhada, que protegiam, vivendo uma
existência isolada. Os casamentos ocorriam só dentro da sua raça e condenavam
o cruzamento com outras raças. Devido à sua pureza racial, qualquer homem do
Mein podia reclamar para si o trono, desde que o ganhasse através de um duelo
de morte chamado Maseret.
Este sistema causava mudanças rápidas no poder, com cada novo chefe
tribal a ter de ganhar a aprovação do povo. Uma vez coroado, o novo chefe
tomava o nome da raça para si, o que indicava que representava todo o povo. Por
conseguinte, o atual líder, Hanish, da linhagem Heberen, tornara-se Hanish
Mein, no dia em que combateu no seu primeiro Maseret e garantiu a coroa do
seu falecido pai. O facto de Hanish se roer de ódio por Acácia não era nada de
novo — certamente não o era para o chanceler. Porém, este soldado contava-lhe
acontecimentos que ultrapassavam a sua imaginação.
Instada por Thaddeus, a mensageira comeu toda a comida no prato. Foi-lhe
trazida mais, desta vez com queijo, do género muito duro que tinha de ser
cortado com uma faca afiada. O chanceler cortou fatias para ambos, e depois
recuou com a faca na mão. Contemplou o seu reflexo na lâmina enquanto a
escutava.
A mensageira tentou vencer a sonolência, mas, à medida que a noite se
transformava em madrugada, cerrou as pálpebras.
— Receio ela estar quase a adormecer, — proferiu por fim — mas
expliquei-lhe tudo. Posso agora ter uma audiência com o rei? Estas coisas são
para ele ouvir.
À menção do rei, Thaddeus teve um pensamento inesperado,
completamente diferente do que teria esperado naquele momento. Recordou-se
de um dia, no verão que passara, quando encontrara Leodan no
labirinto dos jardins do palácio. O rei estava sentado num banco de pedra
num recanto, emoldurado de ambos lados pela antiga pedra coberta de videira
que fora a fundação da primeira e mais modesta morada do rei. O filho mais
novo, Dariel, estava sentado ao seu colo. Juntos estudavam um objeto que o
rapaz tinha na mão. Quando Thaddeus se aproximou, o rei olhou para ele com
rapaz tinha na mão. Quando Thaddeus se aproximou, o rei olhou para ele com
uma expressão maravilhada e plena de alegria e disse:
— Thaddeus, anda ver. Descobrimos um inseto com asas pintalgadas.
Dissera aquilo como se fosse a coisa mais importante do mundo, como se
fosse tão criança quanto o seu filho. Thaddeus gostava mais do rei durante estes
momentos, da expressão tranquila, à luz do dia, com os olhos desanuviados da
brama que o atormentava à noite. Nesses noturnos momentos sombrios, podia
ser muito maçador estar perto dele, mas com os filhos... bem, com os filhos era
um louco que se lembrava da juventude. Um louco sábio capaz ainda de se
maravilhar com o mundo...
— Chanceler?
Thaddeus sobressaltou-se. Apercebeu-se de que tinham permanecido os
dois sentados em silêncio. A mensageira distraíra-se por estar tão cansada, tal
como ele fora apanhado no seu devaneio. Sentiu a ponta afiada da faca do queijo
contra um dedo.
— O rei terá de ouvir tudo isto de imediato. Dizes que o general Alain te
enviou diretamente para aqui? Não falaste sobre este assunto com os
governadores?
A mensageira respondeu num tom vivaz.
— A minha mensagem é para o rei Leodan.
— Tal como deve ser. — Thaddeus mexia num dos lóbulos da orelha. —
Fica aqui sentada um momento. Irei tratar de uma audiência com o rei. Fizeste-
nos um grande serviço.
O chanceler levantou-se. Agarrava ainda a faca, mas começou a afastar-se
como se se tivesse esquecido disso, levando-a na mão com ar ausente. Ao passar
pela cadeira da mensageira, parou atrás dela e voltou-se. Deslizou a faca nos
dedos e agarrou no punho com a mão cerrada e branca. No mesmo momento,
agarrou na fronte da mulher e rasgou-lhe a garganta de um lado ao outro. Não
tivera a certeza de que aquela ferramenta servisse para aquele propósito e usou
mais força do que a que teria sido necessária. Mas o trabalho estava feito. A
mensageira tombou para a frente sem uma palavra de protesto. Permaneceu um
instante atrás dela, com a faca apontada para um lado, e do punho que a agarrava
pingava lentamente um fio púrpura. Num esforço consciente abriu a mão. A
arma caiu no chão, tilintando, e depois parou.
Thaddeus não era o servidor inteiramente leal que parecia, e, pela primeira
vez na sua vida, demonstrava-o com um ato sangrento que não poderia anular. A
dura verdade deste facto espantou-o. Lutou por se manter firme e ordenar os
dura verdade deste facto espantou-o. Lutou por se manter firme e ordenar os
pensamentos, por se focar nos pormenores da ação. Teria de mandar embora os
criados, e depois livrar-se do corpo daquela mulher-soldado e arrumar a
confusão da sala. Levaria o resto da noite a fazê-lo, mas nem sequer teria de sair
da sua habitação. Havia um calabouço por debaixo da sala onde se encontrava
agora. Teria apenas de arrastar o corpo da mulher pela escadaria serpenteante
que lá ia dar; atirá-la lá para dentro; fechar a porta; e abandoná-la aos ratos,
insetos e vermes que lhe limpariam os ossos, imperturbados.
Lidar com as ramificações morais do que acabara de começar não seria
assim tão fácil.
Capítulo 4

Como todos os filhos de casas nobres, Aliver Akaran fora criado na


opulência. Ao acordar, encontrava sempre os chinelos arrumados no seu lugar,
no chão, a seu lado, e pétalas de flores na bacia de água perfumada onde lavava
o rosto. Desde o momento em que começara a comer alimentos sólidos, cada
refeição que comia era preparada segundo os mais altos padrões culinários, com
os melhores ingredientes, com o efeito no paladar tomado em conta ao mínimo
pormenor. Nunca entrara numa sala fria em dias de inverno, nunca preparara o
seu próprio banho ou molhara as mãos a lavar roupa. Nunca observara sequer a
lavagem da louça suja de uma refeição. Se lhe perguntassem, teria de recorrer à
imaginação para descrever o processo pelo qual os objetos eram lavados,
remendados, substituídos. Vivia no centro de uma grande ilusão. A mais
agradável das ilusões, na qual o mundo funcionava inteiramente para sua
satisfação. Contudo, aos dezasseis anos, nada disto o impedia de ver o mundo
através de um olhar enfadado.
Ao deixar os seus aposentos privados, uma semana depois do passeio à
beira-mar com o pai e os irmãos, o príncipe pegou nos sapatos de pele com que
treinava e colocou sobre os ombros o colete de esgrima. No corredor fora do seu
quarto passou por entre os guardas que permaneciam como estátuas de ambos os
lados da porta, e depois por uma fileira de manequins autênticos alinhados numa
parede. Estas figuras do tamanho de um homem eram talhadas em pinho até ao
mínimo pormenor humano, e polidas em texturas tão macias como a pele, que
lembrava a carne sobre os ossos. Tinham sido colocadas em posições diferentes
e vestiam trajes militares de várias nações: um batedor talayano, com a madeira
tingida de um tom quase negro para imitar a cor da sua pele, uma lança de em
ferro entre os dedos da mão direita, um soldado de infantaria senivaliano, numa
armadura de escamas, de comprida espada curva à cintura; um cavaleiro do
Mein, com a característica couraça peitoral grossa, envolto em peles que
pendiam em bandas; um guerreiro vumu, adornado com penas de águia, e
acacianos, nos seus variados uniformes aprumados, de braços nus, com calças
largas que fluíam sob uma fina cota de malha.
Os aposentos de Aliver tinham mais objetos de guerra do que o rei gostaria.
O pai observara uma vez que Acácia tinha supervisionado um império
largamente pacífico durante gerações. Porém, sobre este assunto, o príncipe não
dava importância à desaprovação do pai. A sua interação diária com os seus
dava importância à desaprovação do pai. A sua interação diária com os seus
companheiros era uma competição muito mais desafiante do que a sua relação
com o pai. Leodan já não andava na vida no meio de uma multidão de jovens.
Aliver, por outro lado, ainda teria de passar pelos seus desafios da
masculinidade. Do seu ponto de vista, todas as grandes conquistas de que o pai
desfrutava haviam sido possíveis graças à bravura de homens e mulheres
dispostos a empunhar armas. Haviam sido as suas anteriores proezas militares
que tinham permitido aos seus antepassados submeter os diferentes elementos
rivais do Mundo Conhecido e unificá-los num conjunto de nações que
beneficiava a todos. Como, a não ser pela força, poderia isto ter sido alcançado?
Como, a não ser pela ameaça da força, poderia tudo aquilo ser mantido?
Nos momentos de irritação, Aliver imaginava o pai a tentar controlar aquela
ralé do passado para lhes explicar as virtudes da paz e da amizade. Teriam
corrido com ele às gargalhadas, para longe da fogueira do acampamento. Tê-lo-
iam exposto ao frio, cuspido sobre ele e lhe chamado covarde. E depois, teriam
começado a batalha feroz que decidia as coisas neste mundo. Por vezes,
enquanto imaginava estas coisas, Aliver ia em socorro do pai, de espada em
punho; outras vezes mantinha-se simplesmente a observar. Não se tratava de não
amar o pai. Gostava imenso dele. Odiava-se por pensar tais coisas. Estes
pensamentos vinham ter com ele espontaneamente, e não eram mais fáceis de
dominar do que as inexplicáveis pontadas de desejo carnal que o atormentavam
nos últimos anos. Mas não era essa a questão. O que importava era que os
Akaran eram os senhores benevolentes de um reino magnífico. Assim tinham
sido durante vinte e duas gerações, e assim continuariam a ser por muito mais
tempo ainda, se Aliver tivesse uma palavra a dizer no futuro. Era por isso que
levava tão a sério as artes da guerra.
O caminho até ao salão de treino Marah levou apenas alguns minutos, a
maior parte a descer. O edifício do palácio, a cidade lá em baixo, a ilha e o mar
em volta espraiavam-se perante Aliver. Era difícil calcular a escala do que o
rodeava. Os edifícios mais próximos eram estruturas volumosas e maciças de
pura arquitetura acaciana. As estradas escavadas no perfil ziquezagueante que o
declive natural da encosta exigia. Para lá dos portões moviam-se figuras ao
longo do lado visível da estrada principal, minúsculas como alfinetes em marcha
lenta, como carraças percorrendo o braço de um homem. As torres da cidade
baixa eram pouco mais do que agulhas de costura apontando para cima, tão
minúsculas que se poderiam esmagar entre o indicador e o polegar. Era difícil
imaginar que tudo aquilo começara com uma simples fortaleza construída por
Edifus, uma estrutura defensiva empoleirada lá no alto, de modo que o inquieto
monarca pudesse perscrutar os mares em volta, com medo de que os seus recém
monarca pudesse perscrutar os mares em volta, com medo de que os seus recém
conquistados súbditos se pudessem ainda unir contra ele.
Corado devido à rápida caminhada, Aliver entrou no amplo espaço
suportado por pilares. Estava iluminado com candeias penduradas na parede ou
assentes em tripés e por gretas nos tetos que lançavam raios oblíquos de sol na
pedra cinzenta e esbranquiçada do salão. O cheiro do óleo queimado era quase
adocicado, mais forte do que o odor a fumo dos fogões acesos que mantinham o
espaço aquecido. Saudou os seus instrutores, acenou a outros jovens que
entraram com ele, na maioria rapazes, embora algumas raparigas também
frequentassem os treinos. Recebiam treino militar em pé de igualdade com os
seus colegas masculinos. Na verdade, as mulheres constituíam quase uma quarta
parte das forças armadas de Acácia. Contudo, neste treino Marah, eram todos
filhos de aristocratas, destinados a postos de altas patentes como representantes e
funcionários do governo. Muitos deles pertenciam à casta dos Agnate, o grupo
privilegiado que podia atestar ter uma ligação ancestral à árvore genealógica de
Edifus.
O príncipe sabia que os anteriores governantes Akaran haviam formado
laços apertados com os seus jovens companheiros. Dizia-se que o seu avô,
Gridulan, andava sempre com treze companheiros masculinos, jantando e
dormindo com eles, governando e casando num emaranhado cerrado de
relacionamentos. Apesar de os seus companheiros serem deferentes para com
ele, Aliver não encontrara esse sentimento de ligação de grupo. Tentava
desdenhar a ausência dessa relação e valorizar a sua independência de espírito e
posição, mas receava que algo lhe faltasse no carácter, algo que ele parecia
impotente para corrigir.
Aliver sorriu ao ver Melio Sharratt, um jovem da sua idade, entrar. Melio
era o mais próximo de um amigo que o príncipe podia ter. Haviam nascido
apenas com poucas semanas de diferença, e, desde as primeiras aulas que tinham
tido juntos, a inteligência bondosa nos olhos do rapaz atraía Aliver para ele.
Durante algum tempo, quando tinham ambos dez anos, passavam dias e dias a
esconderem-se nos labirintos do palácio, fazendo um jogo em que um deles se
tornava o contador de histórias e o outro o personagem principal, numa
brincadeira que invariavelmente se tornava um conto de guerra e aventura, de
bestas fantásticas chacinadas, e em que o mal era sempre vencido. Aliver sentia-
se bem com Melio, de uma maneira que não se sentia com os outros. Contudo,
apesar do seu apreço pelo rapaz, o príncipe nunca descartou completamente a
sua distância para com ele, ou para qualquer um dos outros. Nem mesmo quando
crescera, à medida que a adolescência mudava e alterava o seu corpo e as suas
emoções. Por isso, o sorriso que outrora teria sido amigável transformara-se em
emoções. Por isso, o sorriso que outrora teria sido amigável transformara-se em
algo difícil de definir.
— Viva, príncipe — saudou Melio. — Espero que este dia te encontre bem.
— Estou bem — respondeu Aliver, olhando para lá dele como se houvesse
algo ao fundo da sala de treinos que o interessasse.
Melio afastou com os dedos as longas madeixas de cabelo negro da testa e,
afavelmente, imitou Aliver na observação dos outros alunos enquanto iam
entrando.
— Tens praticado a tua Quinta Forma? Vi que o Biteran te estava a treinar
na semana passada. Se passaste a prova, poderás começar a treinar com a lança.
— Passei a prova — respondeu Aliver. — Deverias estar é preocupado
contigo. Ajudar-te-ei a passares a Quarta Forma, se precisares.
— Tu? — perguntou Melio, rindo. — O meu tutor real? — Tinha um rosto
que passaria despercebido numa sala, exceto quando sorria. Nessa altura, todos
os traços das suas feições encaixavam como se tivessem sido moldadas apenas
para o júbilo. A alvura dos seus dentes, em contraste com a tez azeitonada,
conferia-lhe um brilho sadio. Ambos os rapazes sabiam que, no que dizia
respeito a artes marciais, havia um desnível entre eles. Aliver poderia estar a
treinar uma Forma Marah mais elevada do que os seus companheiros — tal era a
longa tradição —, mas Melio fora proposto para treinar como Elite. A Elite era
bastante diferente da Marah. Era um grupo ainda mais pequeno escolhido
puramente pela destreza, independentemente da categoria ou estatuto social. A
sugestão de que Melio pudesse juntar-se-lhes era uma honra que significava que
os instrutores viam capacidades invulgares no jovem.
— Olha, lá está Hephron — disse Melio. — Está a tornar-se bastante bom.
Imobilizou o pai do Carver no outro dia. Acredita que o velho homem se
surpreendeu.
Enquanto falava, Melio apontou para o rapaz em questão com o queixo.
Hephron Anthalar era um ano mais velho do que a maioria dos jovens, mais alto
uma cabeça, com cabelo arruivado caindo em caracóis. Os Anthalar eram
também Agnates, uma casta de linhagem que se cruzara por diversas vezes com
os Akaran através de casamentos. Hephron possuía linhagem real. Podia, de
facto, contar os passos entre si e o trono com os dedos das duas mãos.
Caminhava com os seus seguidores muito perto de si; um grupo de bajuladores
que não o largava, porque o estatuto de estar na sua sombra era maior do que o
que qualquer um deles poderia arranjar isoladamente.
Hephron fez uma vénia ao chegar junto do príncipe, um movimento que os
companheiros imitaram com deferência menos fingida e mais autêntica.
companheiros imitaram com deferência menos fingida e mais autêntica.
— Príncipe, — inquiriu ele — estais preparado para combater os
fantasmas?
Aliver percebeu de imediato ao que ele se referia e sentiu a ferroada. Uma
peculiaridade do seu treino era que, após a palestra e as demonstrações iniciais,
Aliver e os outros rapazes separavam-se. Os outros juntavam-se em pares e
combatiam entre si com espadas acolchoadas, por vezes usando outras em
madeira; armas que não possuíam lâmina cortante, mas que, mesmo assim,
podiam causar algum golpe doloroso, ou até partir algum osso, se manejadas
com destreza. Aliver, por outro lado, treinava apenas com um instrutor que lhe ia
ensinado as Formas clássicas, com o professor atento ao mínimo pormenor da
postura e posicionamento do aluno, a respiração, a posição da cabeça ou até o
olhar. Usando as espadas de madeira, esgrimiam juntos em movimentos lentos,
apurados à precisão máxima. Nisto, Aliver considerava-se especial. O seu treino
tinha a pureza que sempre o manteria aparte dos outros. Era um dom de invejar.
Assim o acreditara até Hephron minar tudo com uma simples pergunta.
— Fantasmas? — perguntou Aliver. — Não acredito em fantasmas,
Hephron. Acredito, sim, que os instrutores sabem bem qual é a melhor forma de
treinar o próximo rei da nação.
— Sim — retorquiu o outro. — Creio que sabem. Bastante bem, como
sempre. — Ao afastar-se, lançou um olhar para cima, em sinal para os
companheiros. Pronunciou qualquer coisa ainda, que Aliver não conseguiu
ouvir, e os outros afastaram-se, murmurando divertidos.
Aliver tentou esquecer Hephron nas horas que se seguiram. As lições
começaram com a palestra. Hoje cabia a Edvar dá-la a, um homem de pescoço
taurino, de origem mista, cuja ancestralidade Candoviana era denunciada pela
rudeza do seu tronco em forma de barril. Falou sobre a técnica do bloqueio mole
de espada, uma tática defensiva em que se contrapunha ao ataque do adversário
o mínimo de força necessária. Era arriscado, explicou ele. Não se devia
subestimar a força do adversário, mas era uma manobra valiosa em que se podia
usar a energia do adversário para dar início aos nossos próprios movimentos, por
isso começando o movimento seguinte com um impulso, antes de o inimigo ter
recuperado. Era um método de poupar energia quando enfrentassem um combate
longo, como o de Gerta ao enfrentar os gémeos Talack e Tullus e os seus cães-
lobo.
Depois disto, os alunos dividiram-se para praticarem as Formas. Eram
exercícios de rotina, com origem em reconstruções muito antigas de sequências
específicas, usando movimentos de pessoas célebres em antigas batalhas. A
específicas, usando movimentos de pessoas célebres em antigas batalhas. A
primeira era a de Edifus, em Carni, quando lutara sozinho contra um chefe tribal.
A segunda era Aliss, uma mulher de Aushenia que matara o Louco de Careven
apenas com uma espada curta. Era uma Forma única, na qual nem os habitantes
de Aushenia veneravam tanto Aliss quanto os acacianos o faziam. Na verdade, o
Louco de Careven era tido como um herói pelos povos de Aushenia, visto ter
lutado para proteger as suas antigas religiões contra o movimento secular que
Aliss promovia. A Terceira Forma era a do cavaleiro Bethenri, que fora para a
batalha com as forquilhas do diabo, armas pequenas, semelhantes a adagas, mas
com dentes longos ao longo da lâmina central. As mãos mais hábeis usavam esta
arma para arrebatar as espadas dos adversários.
Seguiam-se outras Formas, cada uma mais complicada que a antecedente,
até chegar à Décima e mais difícil, a de Telamathon contra os Cinco Discípulos
do deus Reelos. Aliver tinha as suas dúvidas sobre se Telamathon, os Cinco
Discípulos ou o deus Reelos teriam realmente existido, mas estava ansioso por
aprender a Forma. Uma grande parte desse exercício, sabia, narrava como
Telamathon lutara sem armas e com um ombro deslocado. Mesmo tão
incapacitado, conseguira derrotar os adversários com um turbilhão deslumbrante
de pontapés desferidos do ar.
Os outros alunos andavam a trabalhar na Quarta Forma. Aliver, por
tradição, praticava a Quinta Forma, aprendendo o método pelo qual o Sacerdote
de Adaval tratara dos vinte guardas com cabeça de lobo, do culto rebelde de
Andar. O príncipe começara agora a estudá-la. Durante a maior parte da lição,
manteve-se a segurar o bastão de madeira de bétula, escutando o que lhe
contavam e tentando imaginar a cena que o seu instrutor lhe descrevia. Como era
habitual, a Forma pormenorizava um triunfo quase impossível, com o velho
sacerdote conseguindo partir cabeça após cabeça de lobo, usando como arma um
mero galho.
Por vezes, Aliver sentia nele os olhares dos outros companheiros. Havia
alturas em que não conseguia evitar olhar para eles, quando se encontravam
entre os pilares, quase uma centena de jovens aos pares, executando os
movimentos sincopados da esgrima. De vez em quando, um dos alunos era
atingido por um golpe mais hábil de outro. Com as espadas acolchoadas, aquilo
era quase um prazer, algo de que se riam, enquanto iam fazendo juramentos e
promessas de vingança. Já não era assim quando as duras espadas de madeira de
freixo atingiam a coxa de alguém ou alguma costela desprotegida. Aliver nunca
era atingido por esse contacto e estava perfeitamente ciente disso de cada vez
que ouvia algum grito de dor.
Quando a lição do dia acabou, os instrutores deixaram os alunos repor as
Quando a lição do dia acabou, os instrutores deixaram os alunos repor as
armas no sítio onde as guardavam. Como filhos e filhas privilegiados que eram,
deveriam ainda aprender a reverenciar os instrumentos de guerra. Aliver, mais
uma vez misturando-se aos outros, fez o seu melhor para trocar piadas de um
modo natural. Tentou proferir comentários casuais, as brincadeiras e anedotas
próprias da juventude. Porém, o que parecia sair perfeitamente à vontade dos
outros, era para Aliver tão difícil e requeria tanto esforço como qualquer outra
coisa no seu treino.
Foi com um sentimento de alívio que calçou as botas de pele, se pôs em pé
e arrumou o seu traje e chinelos de treino. Ao passar por um grupo de rapazes,
junto à saída, Hephron surgiu de repente de um recanto escondido. Começou a
falar baixinho, ostensivamente, com um jovem perto dele, mas suficientemente
alto e no momento exato para que o príncipe ouvisse.
— Interrogo-me como podes perder quando lutas só com o ar, ou como
vences? Estranho como alguns de nós medem forças uns com os outros enquanto
que outros nem sequer são testados.
A saída para o corredor estava apenas a alguns passos. Aliver podia ter
saído por lá em breves segundos. Em vez disso, virou-se para trás.
— O que dissesteis?
— Oh, nada disse, príncipe. Nada de importância.
— Se tendes alguma coisa a dizer-me, falai.
— Apenas vos invejo, claro — respondeu Hephron. — Praticais esgrima,
mas nunca vos batem na cabeça como nos acontece a nós.
— Quereis bater-vos comigo, então? Se achais que o meu treino é
insuficiente...
— Não. Claro que não...— na voz de Hephron surgiu um tom cauteloso.
Olhou para os companheiros, tentando perceber se fora longe demais ou se
poderia ainda ir mais longe. — Não quero ser eu a magoar a carne real. O vosso
pai cortar-me-ia a cabeça por isso.
— O meu pai não quer a vossa cabeça para nada. E quem diz que me
tocaríeis, ou sequer, que me magoaríeis?
Hephron tinha uma expressão triste, algo em que Aliver pensaria mais
tarde, embora mal o notasse no calor na discussão.
— Não precisamos de fazer isso, — retorquiu ele. — Não vos quis ofender.
O vosso treino é justificadamente diferente do nosso. De qualquer modo, nunca
precisareis de combater numa verdadeira batalha. Todos sabemos disso.
Embora Hephron tivesse pronunciado estas palavras com alguma
Embora Hephron tivesse pronunciado estas palavras com alguma
sinceridade, Aliver captou apenas os aspetos que lhe pareceram uma provocação,
um insulto. O príncipe olhou para a prateleira onde se encontrava o
equipamento.
— Bater-nos-emos tal como fazeis com os outros, com espadas de madeira.
Não vos coíbeis de nada. Tocai-me, se conseguirdes. Tendes a minha palavra em
como não me ofendereis.
Alguns momentos depois, equipados a rigor, os dois jovens confrontaram-
se no meio de um círculo silencioso formado pelos outros alunos, muitos deles
olhando por cima do ombro, para trás, receosos de que um instrutor regressasse.
Hephron tinha um estilo de esgrima que iludia o adversário. Nada fazia com um
ritmo claro e previsível. Variava os movimentos e até a direção do golpe em
movimentos quase impercetíveis. Esquivava-se de um certo modo durante algum
tempo, de pulso solto, com a espada a delinear arcos que varriam o ar. No
preciso momento em que Aliver se antecipava e quase se sentia à vontade no
ritmo, Hephron mudava a meio do golpe. Baixava a direção alguns centímetros.
Mudava um golpe de corte para outro de perfuração. O braço mudava tão
depressa de um movimento de recuo, para baixo, para um golpe, que os dois
diferentes movimentos pareciam nada ter a ver um com o outro, nenhum dos
gestos sendo causa ou resultado do outro.
Durante algum tempo, Aliver conseguiu mantê-lo afastado sem ser
atingido. Fazia-o com movimentos ligeiramente mais inquietos do que gostaria,
girando com impulsos rápidos e reviravoltas desajeitadas com os pés, de
respiração ofegante, convoluções do tronco que mal o conseguiam manter fora
de alcance do outro. Sentia-se bastante à vontade empunhando a espada de
freixo, mas apercebia-se de que raramente encontrava ocasião para desferir um
golpe. Só executava golpes defensivos. Ambicionava encontrar um momento
adequado para iniciar a sequência familiar do seu treino. Fixou-se no décimo
segundo movimento da Primeira Forma, em que se afastaria de um golpe vindo
da esquerda, dando um passo em frente e bloqueando o inevitável golpe de
retorno; empurraria a espada do adversário para baixo e depois cortaria o ar, para
cima, diagonalmente, para o lado direito do seu tronco. Fora com este golpe que
Edifus conseguira furar as vísceras do adversário, fazendo o homem parar o
tempo suficiente para a sua cabeça ficar na posição perfeita para ser decepada,
um floreado desnecessário, no fundo, mas que Aliver imaginara muitas vezes.
Por três vezes deu início à sequência, mas de todas as vezes Hephron
esquivou-se e mudou a estratégia de ataque. Na última vez, fê-lo tão velozmente
que Aliver se encolheu, o movimento circular que lhe rasou a coroa da cabeça.
Se o golpe o tivesse atingido diretamente, talvez ele tivesse mesmo tombado
Se o golpe o tivesse atingido diretamente, talvez ele tivesse mesmo tombado
inconsciente. Nenhum instrutor alguma vez o atacara assim. Ouviu um dos
outros murmurar qualquer coisa, um escárnio seguido de gargalhadas surdas.
Apercebeu-se de quanto haviam estado silenciosos até ali, não se ouvindo um
som na sala exceto o do deslizar dos sapatos nas lajes, os grunhidos dos seus
esforços e o som seco das espadas de madeira batendo uma na outra.
Aliver deu por si a recuar cada vez mais, mal conseguindo evitar os golpes
de Hephron, perdendo cada vez mais terreno e mais espaço. Esperava ir de
encontro à parede de jovens atrás de si, mas estes moviam-se com ele, o círculo
mantendo-se fixo à sua volta. Ainda se abriu quando os movimentos os levaram
até junto de um pilar. Bateu com o pé na base deste. Baixou um pouco a espada,
pensando por um instante que era razão bastante para parar. Vislumbrou a
possibilidade de que poderiam mandar parar este exercício, sorrir e brincar com
isso, sem outros danos. Porém, Hephron ganhou balanço e girou, e com a espada
bateu no pilar de pedra, abaixo do queixo de Aliver.
O príncipe cambaleou para trás. Agarrou-se com a mão livre e apoiou-se
nela. De novo em pé, recordou-se da raiva que causara tudo aquilo. Hephron,
que louco arrogante! Parecia absurdo que o atacasse daquela maneira, como se
estivesse desejoso de lhe cortar o pescoço. Viu Melio, que naquele momento
estava num ponto afastado do círculo, de rosto crispado de preocupação. Isso
também o aborreceu. Não queria a condescência de ninguém. Ergueu a espada
acima da cabeça e baixou-a de um golpe, desejando atingir Hephron. Mesmo que
o golpe fosse aparado, desferiu com toda a força, desejando deitá-lo ao chão só
com a fúria.
Contudo, Hephron parecia ter previsto isto. Esquivou-se para o lado ao
pressentir o golpe de Aliver. Empunhou a espada e numa manobra célere
desferiu um golpe rápido que atingiu o príncipe no ombro mesmo na articulação
das omoplatas. Depois disto, o rapaz afastou-se girando o corpo, num círculo
completo, e apanhou Aliver — que estacara paralisado de dor — a meio do outro
braço, com força suficiente para, se fosse uma espada verdadeira, poder ferir o
braço do príncipe gravemente. Aliver soltou um grito, mas Hephron ainda não
acabara. Empunhou a espada e atirou-se para a frente, empurrando com o peso
do corpo e colocando os braços de modo a que a ponta de madeira embotada da
sua espada atingisse Aliver no peito, numa zona mortal. Já convulso com dores
em ambos os braços, a força deste último golpe fez o príncipe girar para trás e
cair sobre o tapete.
O sorriso de Hephron espalhou-se por todo o seu rosto. O olhar brilhava,
repleto de tanta presunção que ninguém poderia conter.
— Ficasteis sem braços, senhor. Para não dizer morto. Que estranho
resultado. Quem diria?
Momentos depois, Aliver levantou-se do chão, ruborizado e furioso, mais
consigo próprio do que com Hephron. Que disparate fizera! Rebaixara-se ao dar
ouvidos às provocações de Hephron, ao desafiá-lo, perder completamente e —
isso era quase o pior de tudo — em mostrar a todos a sua frustração. Além disso,
sabia ter jogado uma cartada de que não tinha necessidade. Todo o mistério da
sua possível destreza desaparecera com alguns golpes. Sabia que todos
rodeavam Hephron agora, dando-lhe palmadinhas nas costas, elogiando-o, rindo
do seu príncipe elegante. Como poderia ali voltar novamente e executar a dança
dos seus movimentos coreografados, enquanto os outros o olhavam pelo canto
do olho, desdenhosos?
Melio foi ao seu encontro quando ele começava a subir uma longa
escadaria.
— Aliver, — chamou, —, espera por mim!
Tocou por duas vezes no cotovelo do príncipe mas este, de ambas as vezes,
o afastou. No cimo da escadaria, Melio deu um salto, colocando-se à frente do
amigo, e pôs-lhe os braços em volta, fazendo-o parar.
— Vá lá. Preocupas-te demasiado com isto. Não faças isso. O Hephron não
é ninguém.
— Não é ninguém? — perguntou Aliver. — Se ele não é ninguém, então o
que serei eu?
— És o filho do rei. Aliver, não te vás embora. Não tenhas pena de ti
próprio. Estás em crer que aquela pequena luta tem importância? Pois vou dizer-
te uma coisa. — Melio recuou um pouco, mas colocou as palmas das mãos nos
ombros do outro, como se querendo dizer que se estava a afastar e, no entanto,
não o fazendo. — Muito bem, então a verdade é que não te igualas ao Hephron.
Ele é bom. Não, espera! Não deixes que isso te aborreça. Aliver, ele inveja-te em
tudo. Não sabes isso? A sua arrogância é mera pretensão. No fundo, gostaria de
estar no teu lugar. Está sempre a seguir-te com o olhar. Escuta qualquer palavra
que digas ou que pronunciem sobre ti. Nas aulas, quando se senta ao fundo da
aula, crava o olhar nas tuas costas tão intensamente como se quisesse perfurar-te.
— O que estás tu a dizer?
— Estou a dizer-te que Hephron é uma pessoa oca. Sabe disso e inveja-te.
És um príncipe e tens uma família maravilhosa. Tens uma irmã linda... Bem,
estou a brincar contigo. É verdade, mas estou a brincar. Hephron poderá vir a
tornar-se um inimigo, mas também poderá vir a ser um grande amigo. Mas, por
tornar-se um inimigo, mas também poderá vir a ser um grande amigo. Mas, por
agora, não lhe dês nenhum sentimento de triunfo. Esquece o que se passou. —
Melio indicou vagamente qualquer coisa atrás dele. — Volta amanhã, como se
nada se tivesse passado. Brinca com isso. Fá-lo ver que as pequenas coisas que
te possa fazer desaparecem num instante como a lama das tuas botas.
O ar tornou-se mais frio com a aproximação do crepúsculo, e ambos os
jovens sentiram o ar gélido preencher o silêncio. Melio retirou as mãos do amigo
e esfregou os braços nus. Aliver olhava para longe, o olhar perdido numa nesga
de céu de tons magenta, emoldurada entre as frias sombras de dois edifícios. As
silhuetas de três pássaros esvoaçaram através do espaço como dardos,
perseguindo-se uns aos outros.
Aliver deu por si a dizer:
— É que faz-me parecer tão idiota. Estou furioso comigo próprio por ter
deixado isto acontecer. Fiz com que... acontecesse. Nem imaginas o que isto é
para mim.
Melio não discordou do amigo. Passaram-se alguns momentos de silêncio e,
depois, os dois rapazes, incitados pelo frio, recomeçaram a subir o próximo
lance de escadas lentamente.
— Toda a gente perde um duelo nem que seja uma vez, e todos eles sabem
disso. Mas quantos deles poderiam...— procurou as palavras que exprimissem
delicadamente o que queria dizer. — Bem, quantos deles poderiam ter
dificultado as coisas, como acabaste de fazer, e ter a coragem de encolher os
ombros e não dar importância? Isso é outro modo de se mostrar força, quer o
admitam quer não. E não faças esse ar de desagrado. A expressão não te fica
bem. Aliver, tu tens destreza ao manejar a espada. E as tuas Formas tradicionais
são mais perfeitas do que as de qualquer um de nós. A questão é que apenas
aprendeste as Formas. O combate verdadeiro tem a ver com o modo como as
adaptamos, como as conseguimos encaixar no combate, forçando-nos a
combinações improvisadas num instante. Tens de as deixar fluir tão rapidamente
de modo a acontecerem num espaço diferente do pensamento consciente. Como
quando derrubas uma faca de uma mesa e a consegues agarrar antes de cair no
chão. Não consegues pensar como o fazes, apenas acontece. É isso que deves
fazer quando lutas. Então o teu espírito estará livre para lidar com outras coisas
— tais como um golpe ascendente que irás dar nos tomates daquele bastardo.
— Como te tornaste tu tão sábio? — perguntou Aliver num tom algo
agreste.
Melio subiu até ao cimo das escadas e virou-se para o amigo. Sorria.
— Li isto num manual. Também conheço bastante poesia. As raparigas
— Li isto num manual. Também conheço bastante poesia. As raparigas
gostam disso. Agora, ouve, poderemos combater os dois algumas vezes. Não te
facilitarei as coisas, claro, mas ensinar-nos-emos um ao outro. Praticaremos a
Quarta Forma, como sugeriste. Há muitas coisas que poderemos ensinar um ao
outro. Que me dizes?
— Talvez — respondeu Aliver, mas já sabia qual a sua verdadeira resposta.
Apenas não estava pronto para ceder tão facilmente.
Capítulo 5

Não se tratava somente de rumores que corriam sobre um exército de


saqueadores à solta. Nem apenas dos relatos da destruição que ocorrera em
Vedus. Esse era o género de histórias exageradas que o general Leeka Alain
ignorara anteriormente. Desta vez, era diferente. Desaparecera uma patrulha
inteira, algures, na vastidão branca do Mein. Isso não era assim tão fácil de
explicar. Havia qualquer coisa a passar-se por lá. Leeka não conseguia dormir,
nem comer, nem pensar em outra coisa que não fosse nas sombras que se
escondiam por trás da brancura agreste. Já enviara um mensageiro ao rei para lhe
comunicar os factos de que tinha conhecimento, mas sabia que não poderia
aguardar por uma resposta. Decidiu tomar as medidas que podia.
Leeka ordenou ao seu exército que partisse do quente casulo da fortaleza de
Cathgergen. Mandou-o marchar sob a luz oblíqua do norte invernoso, através
dos pisos glaciais do Planalto do Mein. Na fronteira leste do Mein existe uma
vasta tundra chamada os Barrens, ondulante e irregular, despida de árvores, tanto
devido à natureza ventosa do lugar como por a floresta que lá existira outrora ter
sido cortada há séculos atrás. Viajar naquela região era difícil, mesmo na melhor
altura do ano. A meio do Inverno, então, era extremamente perigoso. As
matilhas de cães atrelados a trenós seguiam à frente do exército desbravando
trilhos, puxando equipamento de campismo e comida suficientes para manter
quinhentas almas durante pelo menos seis semanas. Os soldados marchavam
arrastando as botas pesadas. Agasalhavam-se com vestes de lã, cobertos por
capas de couro grosso, com as armas presas ao corpo para lhes facilitar os
movimentos. Usavam luvas feitas de pele de coelho.
Haviam chegado ao posto avançado de Hardith sem contratempos
inesperados. Montaram acampamento em volta de uma estrutura térrea durante
dois dias. Tal encantou os soldados ali estacionados, homens cuja missão oficial
era supervisionar o trânsito na estrada, mas cuja verdadeira luta era o esforço
diário pela sobrevivência no extremo isolamento. O posto avançado marcava a
fronteira oeste dos Barrens. Mais para ocidente, a terra transformava-se numa
série de bacias rasas onde ainda persistiam pedaços de floresta.
A três dias de viagem de Hardith, uma tempestade de neve surgiu do norte e
abateu-se sobre o grupo de soldados. O nevão lançou-se sobre eles como uma
matilha esfaimada, pregando-os ao chão, tentando separá-los. Perderam a estrada
matilha esfaimada, pregando-os ao chão, tentando separá-los. Perderam a estrada
e passaram um dia inteiro a tentar encontrá-la novamente, sem sucesso. A neve
acumulava-se em cumes serpenteantes que rolavam como ondas de um mar
revolto tornando impossível qualquer orientação. Não conseguiam seguir o
movimento do Sol nem distinguir as estrelas à noite. Leeka deu ordens aos seus
homens para continuarem, por navegação estimada. Era um processo moroso
que deixava o grosso do exército parado durante longos períodos, o que nunca
era boa coisa em tais condições.
Todas as noites, o general tentava escolher um local para montarem o
acampamento perto de alguma proteção natural, junto a uma serrania ou a
coberto de árvores, visto terem começado a encontrar alguns pinheiros junto a
depressões do terreno. Os soldados cortavam lenha e construíam abrigos contra o
vento. Quando as fogueiras estavam a arder bem, atiravam árvores inteiras para
as chamas. Mantinham-se em volta daquelas fornalhas explosivas, os rostos
vermelhos e suados pelo calor das labaredas, sentindo nos olhos o aguilhão
ardente da fumarada, enquanto o vento uivava contra as suas costas. Por mais
alta que a fogueira estivesse ao escurecer, apagava-se invariavelmente ao longo
da noite, e as cinzas e pedaços queimados de madeira eram varridos através da
paisagem nevada pelo vendaval. Ao romperem a crosta gelada cada manhã, os
soldados passavam horas tentando encontrar-se uns aos outros por entre os
destroços, escavando e estimulando os cães a porem-se em movimento.
Ao vigésimo segundo dia, acordaram sob uma ventania medonha que
soprava de norte. No ar rodopiavam cristais de gelo num redemoinho infernal
que, com a força do vento, se cravavam na pele como estilhaços de vidro. Mal
tinham deixado o anterior acampamento para trás quando um dos batedores
surgiu, cambaleante, junto à coluna principal e pediu para falar com o general.
Na verdade, nada de concreto tinha a relatar. As terras em frente eram planas até
onde pudera ver. Pensava que estariam prestes a sair de uma vertente que os
levaria até Tahalian. Porém, havia algo que o preocupava. Escutara um som
qualquer no ar e no terreno gelado a seus pés. Conseguira ouvi-lo porque estava
sozinho, afastado do barulho do exército em movimento e do ruído dos trenós.
Ao voltar, passando pelos cães dos trenós, percebeu que eles o haviam escutado
também e que se estavam perturbados.
O general falou junto do ouvido do homem para que o vento não lhe
roubasse as palavras.
— Que género de som?
O batedor parecia recear aquela pergunta.
— É como que uma respiração.
Leeka falou num tom zombeteiro.
— Respiração? Não sejas louco. O que é o som de uma respiração num
tempo como este? Estás doente dos ouvidos.
O general aproximou-se da cabeça do homem e tentou retirar-lhe o capuz
como se lhe fosse inspecionar as orelhas ali mesmo. O batedor deixou-o fazer
isto, preocupado, insatisfeito com a sua própria resposta.
— Ou como um coração a bater. Não tenho bem a certeza, senhor. Mas está
lá.
O general não mostrou sinais de achar que a mensagem do homem tivesse
alguma importância, mas, algum tempo depois, afastou-se dos oficiais para
meditar. Mesmo que a história do homem não passasse do efeito de uma doença,
era, ainda assim, um perigo. Os batedores sabem prever mais coisas do que a
configuração dos terrenos. Talvez devessem ficar onde se encontravam ou bater
em retirada até ao último acampamento, onde havia ainda uma larga provisão de
combustível para as fogueiras. Podiam deixar passar as tempestades, até comer
as reservas de alimentos, se necessário. Afinal, encontravam-se perto de
Tahalian. Mesmo que Hanish Mein estivesse a preparar alguma coisa, teriam de
ser recebidos com uma aparência de cordialidade.
Foi por estar no extremo da coluna que ouviu o som, se é que ouvir é a
palavra certa. Com o barulho das tropas atrás de si, o ribombar da marcha e o
raspar de um trenó passando por perto, não ouviu realmente. Antes, sentiu o
som, como se os ossos da caixa torácica captassem uma vibração baixa e a
amplificassem no seu peito. Afastou-se alguns passos da coluna e dobrou um
joelho no chão. Um dos oficiais chamou-o, mas ele acenou-lhe um punho
cerrado e o homem calou-se. Leeka ajoelhou-se para tentar sentir o som que
captara dentro de si, e bloquear o uivo do vento e a fricção do capuz dos dois
lados da cabeça. Quando conseguiu calar tudo isto o melhor que pode, encontrou
o que procurava. Era débil, sim, mas inegável. Precisamente como uma
respiração. Como um bater de coração, sim... o batedor não mentira. Havia um
ritmo naquilo, um latejar regular que se pressentia. Uma razão consciente,
medida, que ocasionava aquilo...
Virou-se sobre o joelho e ordenou às tropas para fazerem formação. Correu
de volta para eles, gritando à coluna para cerrar fileiras, de escudos erguidos em
guarda, armas na mão. Deu ordens aos arqueiros para tirarem as setas das aljavas
e desembainharem as lâminas a coberto do vento e preparem-se para disparar.
Ordenou aos condutores de trenós para fazerem um círculo no meio das tropas e
juntarem os cães. O mesmo oficial que antes o chamara perguntou-lhe o que
descobrira. Fitou o jovem nos olhos e deu-lhe uma resposta simples.
descobrira. Fitou o jovem nos olhos e deu-lhe uma resposta simples.
— Há um tambor de guerra a soar.
Uma vez que o exército formou uma cunha defensiva e quinhentos pares de
olhos estavam fixos na fúria cada vez maior do norte, então, por fim, todos o
ouviram. Durante uma longa hora foi tudo o que fizeram. Ouvia-se o latejar
constante atrás do vento, que era agora mais forte, arrastando consigo grandes
flocos de neve se lhes agarravam à roupa, aos escudos e às peles que os
protegiam, e até à pele gelada dos rostos, transformando os corpos imóveis em
elaboradas esculturas de neve. A certa altura, a reverberação misturou-se ao
bater de coração do general. Foi por isso que ficou sem respiração quando o
barulho parou. Simplesmente parou. Nos momentos a seguir, Leeka
compreendeu que cometera um erro. Fosse qual fosse o rufar de tambor que se
estivera a ouvir, este não estivera a tocar durante horas, mas durante dias. Talvez
tivesse estado a tocar durante semanas antes que o tivessem ouvido. Como
poderia uma coisa daquelas ter-lhe escapado?
No entanto, não permaneceu muito tempo a meditar na questão. Por entre o
manto de neve soprado pela ventania surgiu uma criatura. Um vulto avolumou-
se para a frente, uma besta com cornos, lanosa e enorme, com um ser que parecia
um homem a seu lado, uma figura vestida de peles e couro, empunhando uma
lança soltando um uivo da boca oculta. A besta esmagou as primeiras fileiras de
homens de um dos lados da guarda do general. Rasgou caminho por entre eles
como se os soldados não tivessem importância alguma. Espezinhou alguns e
atirou outros para o lado sem diminuir a velocidade ou alterar o curso do
caminho. Desapareceu na zona mais longínqua das tropas tão depressa como
aparecera. Nos poucos segundos que o general teve para contemplar o cenário
contou dez mortos e mais de vinte homens a contorcerem-se na neve coberta de
sangue.
Uma mão no seu ombro fê-lo voltar-se e viu — como se já o esperasse —
que o cavaleiro não viera sozinho. Os restantes atacantes materializaram-se
todos de uma só vez, como se a neve tivesse abrandado
para lhe melhorar a visão. Havia tantos, uma multidão estranha como nunca
vira antes. Desconfiava que aquele horror seria a última coisa que veria com os
seus olhos vivos, e compreendeu que, mesmo que a sua mensagem tivesse sido
transmitida, fora incapaz de avisar adequadamente o rei e o povo do império da
ameaça hedionda que marchava em massa contra eles.
Capítulo 6

A noite ia alta quando Leodan Akaran ouviu alguém entrar nos seus
aposentos privados. Não ergueu o olhar, mas sabia quem era. Os passos do
chanceler tinham um ritmo único, algo que o rei um dia atribuíra a uma certa
rigidez na perna direita. Um dos criados acabara de acender o seu cachimbo de
água e retirara-se. O cheiro acre da droga, a que chamavam bruma, era, naquela
altura, a única coisa que lhe importava. Ao longo do dia andara com um
fantasma a assombrar-lhe os pensamentos, uma criatura ávida que se lhe
assemelhava a um morcego que esvoaçava sinistro em redor do crânio, de garras
afiadas e finas como agulhas cravadas na sua carne até ao osso. Agarrara-o
durante as reuniões da manhã, deixara-o a sós por uma hora, enquanto estivera
com Corinn, mas regressara à noite com as garras ainda mais afiadas e
malévolas. Aguilhoara-o enquanto jantava e roera-o quando fora deitar Dariel.
Quando Dariel lhe pedira uma história, Leodan fitinha feito uma careta.
Fora somente por um instante, um segundo, em que enrugara a expressão e de
que se arrependera imediatamente. O menino nem sequer reparara, mas
continuava a sentir uma vergonha latente por aquela ânsia pelos seus próprios
vícios enquanto ainda estava na companhia dos filhos. Onde estaria ele sem os
filhos? Sem Mena que ainda — por alguns preciosos meses mais, talvez —
queria que ele lhe contasse histórias? E Dariel, que se agarrava às suas palavras
com uma certeza confiante que o pai sabia que o tempo iria destruir? Sem eles,
seria como uma concha vazia. Que vergonha sentia por deixar que um momento
com eles passasse com o cérebro distraído por outros pensamentos. Contou a
Dariel a história que o menino lhe pedira e, a seguir, permaneceu ainda mais
alguns instantes junto à porta do quarto do filho adormecido, escutando a sua
respiração calma e arrependido das suas fraquezas.
Tudo isso acontecera mais cedo; a sua débil penitência estava completa.
Agora, o cachimbo assentava sobre a mesa baixa à sua frente. Era uma intricada
confusão de tubos de vidro e compartimentos cheios de água e mangueiras de
couro, uma das quais o rei segurava entre as pontas dos dedos de ambas as mãos.
Colocou a parte mais estreita entre os dentes, tocando-lhe com a língua. Primeiro
inalou suavemente. Depois — ao sentir o sabor agridoce e nauseabundo do
vapor — inspirou fundo e as faces encolheram-se de encontro aos ossos do
maxilar. O cachimbo borbulhou e soltou faíscas. Permaneceu encostado para a
frente, de olhos fechados, consciente de que o chanceler se encontrava ao pé de
frente, de olhos fechados, consciente de que o chanceler se encontrava ao pé de
si, mas sem se importar. Isto não era nada que Thaddeus não tivesse visto antes.
Quando se recostou contra as almofadas do sofá, exalou lentamente o fumo
esverdeado. A criatura que o atormentava arrancou as garras do seu corpo uma a
uma. Sucumbiu, desvanecendo-se no nada, levando consigo o peso pardo que
carregara com ele como uma capa de granito ao longo de todo o dia. O opiáceo
entorpecia os limites do mundo. Não lhe sentia as farpas. Em vez disso, sentia-se
pleno de uma tranquilidade opaca, uma sensação quente, de ligação com os
milhões de pessoas por todo o seu império presas à mesma droga. Camponeses e
ferreiros, guardas municipais e coletores do lixo, mineiros, traficantes de
escravos; nesta única coisa, ele era igual a todos eles. Era — raciocinava com o
espírito apaziguado — uma oferenda secreta feita para o seu perdão.
Abriu os olhos, agora toldados e raiados de veias avermelhadas e castanhas.
— Que notícias me traz o chanceler?
Thaddeus sentara-se num divã ali perto. Tinha as pernas cruzadas pelo
joelho e um copo de vinho do Porto entre o dedo indicador e o polegar. O rei
contemplou a pequena taça, espantado por qualquer coisa no movimento do
líquido contra o copo, na mancha que ia deixando enquanto Thaddeus o girava.
Escutou o chanceler enquanto este o informava sobre os preparativos para a
delegação de Aushenia. Estavam preparados, dizia, para convencer os
estrangeiros tanto da sua força como da riqueza e para lhes estender uma mão
cautelosa de boas-vindas. Se os aushenianos confirmassem que reconheciam a
hegemonia de Acácia, tudo estaria no posto para lhes responder positivamente,
se tal fosse o desejo do rei.
Leodan assentiu com a cabeça. Era essa a sua vontade, mas sabia que várias
vezes antes Aushenia tinha quase estabelecido uma aliança com Acácia, apenas
para depois a deixar cair por uma qualquer disputa sem importância. Tudo o que
ouvira até agora dizer sobre o jovem príncipe, Igguldan, era prometedor, mas
ainda existiam aspetos dessa aliança em que ele não queria sequer pensar.
Mudou de assunto, apesar de os seus pensamentos não se desgarrarem das coisas
que o preocupavam.
— No outro dia a Mena perguntou sobre a Retribuição.
— O que lhe dissesteis?
— Nada. Porque teria ela de saber que lhe corre nas veias o sangue de
assassinos em massa? Foi há muito tempo, e já não somos assim.
— Tendes razão ao dizer que já foi há muito tempo — retorquiu Thaddeus.
— Há vinte e duas gerações... que criança conseguiria entender isso?
— Há vinte e duas gerações... que criança conseguiria entender isso?
O rei lembrou-se de que, quando Mena lhe fizera a pergunta, vislumbrara
uma sombra de dúvida nos olhos da filha, como se não aceitasse por completo as
suas explicações. E não fora aquilo astuto da parte dela? Ele, afinal de contas,
acabara por ter proferido outra mentira descarada. A Retribuição não tem
qualquer peso nas nossas vidas? Uma mentira flagrante dita com voz melosa.
Durante quanto tempo mais poderia aguentar estas coisas? Não fora somente
Mena, claro, que começara a fazer perguntas. Aliver andara durante algum
tempo com uma incerteza e desconfiança no olhar que parecia sempre estar
prestes a explodir.
O chanceler disse:
— Devo mencionar que o convénio pediu aos governadores que
intercedessem no caso que os mineiros de Prios levantaram contra...
— Terei de lidar com isso? Detesto tudo o que tenha que ver com as minas.
— Muito bem. Podemos deixar que os governadores tratem disso. Contudo,
há um assunto com o qual eles não podem lidar. — Thaddeus apertou os lábios,
e esperou que o rei o fitasse nos olhos. — Os representantes da Liga querem
confirmar que ireis mesmo rejeitar a exigência dos Lothan Aklun para aumentar
a Quota.
Estas palavras foram suficientes para aclarar a cabeça do rei dos efeitos
entorpecentes da droga. Os Lothan Aklun... O acordo conhecido como a Quota...
Estes dois assuntos eram o grande pecado escondido do império Akaran. Leodan
chupou o cachimbo. Sentiu um desejo momentâneo de que este assunto fosse
tratado pelos governadores. Na verdade, estes representantes das províncias,
sedeados na populosa cidade de Alecia, tratavam da maior parte dos assuntos
práticos do império. Porém, Tinhadin, o antigo rei, que fora, de muitos modos, o
arquiteto do império Akaran, escrevera as linhas orientadoras da Quota de modo
bastante simples e explícito. Controlo, autoridade, responsabilidade — tudo
assentava sobre os ombros do monarca, um segredo conhecido de muitos, mas
possuído apenas por ele. Por essa razão, a resolução deste assunto cabia ao
palácio. Era pago através de um orçamento separado e contabilizado à parte de
qualquer outro braço do governo. Não se falava disso, a não ser em círculos
fechados, e o seu real funcionamento ocorria muito longe dali, sem o rei ver,
embora muitas vezes o imaginasse. Por mais que estudasse os textos antigos, os
pormenores exatos de como o acordo fora alcançado pareciam confusos a
Leodan. A substância, no entanto, conseguia compreender.
Tinhadin, tendo herdado o trono recém-conquistado de seu pai e
sobrevivido aos irmãos, acabou por ter de fazer guerras em várias frentes. As
sobrevivido aos irmãos, acabou por ter de fazer guerras em várias frentes. As
Guerras da Distribuição, como eram chamadas, marcaram uma época tumultuosa
de grande tensão. O seu antigo aliado, Hauchmeinish do Mein, era agora um
inimigo. Já não confiava nos seus fiéis feiticeiros, os Santoth. As rebeliões nas
províncias deflagravam como incêndios nas colinas de Acácia durante o verão.
A sua própria compreensão do mundo era deformada e horrível, e lutava com a
ideia de que qualquer palavra proferida pela sua boca poderia mudar o curso da
existência. Ele era também um Santoth, o maior de todos eles, mas o fardo da
magia na sua língua era agora uma tortura para controlar.
Nisto surgiu uma nova ameaça vinda das Encostas Cinzentas. Existia um
poder, descobrira Tinhadin, maior do que o dele. Chamavam-se Lothan Aklun.
Eram das Terras Distantes, fora do Mundo Conhecido, separadas deste por um
vasto oceano. Constituíam um mistério completo para o antigo rei. Do poder
deles só se sabia que existia, mas Tinhadin não queria ter outro inimigo naquela
altura. Fez então propostas de paz com eles, sugerindo trocas comerciais e
ganhos mútuos em vez de conflitos. Os Lothan Aklun não só aceitaram a oferta
como propuseram especificidades que Tinhadin não teria conseguido sequer
imaginar sozinho.
O acordo devia ter parecido uma pechincha na altura. Os Lothan Aklun
prometeram não atacar os territórios devastados pela guerra e acordaram em
negociar unicamente e sempre com os Akaran. Tudo o que precisavam como
garantia desta preferência era uma remessa anual, por barco, de crianças
escravas, sem se fazerem perguntas, sem condições impostas sobre o que fariam
com elas e sem possibilidade alguma de as crianças alguma vez voltarem a ver
Acácia. Em troca disto, ofereciam a Tinhadin o opiáceo, um instrumento que,
como prometiam, ele iria achar da maior utilidade para sedar os seus rebeldes.
Mais tarde, o tratado viria a ser desenvolvido, mas, em termos gerais, o
acordo foi feito. Desde então, milhares e milhares de crianças do Mundo
Conhecido haviam sido embarcadas para cativeiro e milhões de pessoas sob o
domínio Akaran haviam trocado a vida, o trabalho e os sonhos pelas visões
fugazes trazidas pelo opiáceo. A mesma droga que Leodan consumia todas as
noites. Esta era a verdade de Acácia.
— Exigência? — perguntou por fim Leodan. — Chamas a isso uma
exigência?
— No tom, sim, meu amo, tem o tom de uma firme certeza para o ser.
— A agressividade dos Lothan nada tem de novo — retorquiu Leodan. —
Nada de novo... já possuem a alma do meu povo. Que mais quererão eles? Os
Lothan Aklun não são melhores do que qualquer canalha que nos rodeia: os
mineiros, os mercadores, a própria Liga. Nenhum deles fica contente de um
mineiros, os mercadores, a própria Liga. Nenhum deles fica contente de um
momento para o outro. Posso nunca ter posto os olhos num Lothan, mas
conheço-os bem. Diz à Liga que lhes leve esta mensagem: a Quota permanecerá
a mesma que sempre foi. O acordo foi selado como perpétuo, realizado antes do
meu tempo, há muito; não aceito qualquer mudança, nem agora nem nunca.
Pronunciou isto com determinação, mas não pareceu agradado com o
silêncio com que Thaddeus lhe respondeu.
— Há um outro assunto de que devemos falar — aventou Leodan. —
Recebi esta manhã uma missiva de Leeka Alain, da Guarda do Norte. Enviou-a
por um mercador da cidade baixa, que ma fez chegar através da casa dos criados.
Tudo isto é muito invulgar.
— Sim, é bastante estranho — Thaddeus pigarreou primeiro ligeiramente e
depois foi como que sacudido por vários ataques de tosse. — O que tem o
general a dizer?
— Foi uma carta estranha, cheia de urgência, mas vaga nos pormenores.
Queria saber se eu recebera uma mensageira que ele antes me enviara. A tenente
Szara. Pelo tom da carta, essa mensageira fora-me enviada com uma mensagem
importante.
Thaddeus observou o rei.
— Recebesteis essa mensagem?
— Conheces a resposta a isso. Teria chegado a mim através de ti.
— Claro, mas nada ouvi sobre tal assunto. Leeka revelou os pormenores da
mensagem na carta?
— Não. Ele não tem confiança na palavra escrita.
— E não deve ter. Uma vez escrita, qualquer um a pode ler.
O olhar do rei movimentou-se lento, pesadamente. Fitou o chanceler e
estudou-o, toldado pela bruma, mas, apesar de tudo, capaz de se concentrar. O
rosto do homem estava calmo, embora alguma tensão lhe assomasse na fronte.
— Sim, talvez... Interrogo-me por que razão terá ele escolhido
corresponder-se comigo em vez de através do governador. Sei que ele não nutre
grande afeto por Rialus Neptos, tal como eu próprio. Sabes que Rialus
costumava escrever-me, pelo menos duas vezes por ano, exaltando as suas
virtudes e sugerindo que ele próprio deveria ser chamado do Mein e confiado
qualquer cargo mais elevado aqui, em Acácia? Como se eu o quisesse por aqui
enfadado no palácio. Ele aponta que é de pura linhagem acaciana e diz que o
clima do Mein lhe faz mal à saúde. Não posso discordar disso, no fundo; aquilo
clima do Mein lhe faz mal à saúde. Não posso discordar disso, no fundo; aquilo
é um lugar miserável... De qualquer modo, Leeka desejava comunicar
diretamente comigo e isso desperta-me a curiosidade. Onde está essa Szara?
Thaddeus ergueu os ombros o mais que pôde e depois deixou-os cair.
— Nada sei sobre isso, mas, mesmo nestes tempos de paz, acontecem
coisas más. Estamos no fim do inverno. Isso aqui pouca importância tem, mas
nas terras altas do Mein o tempo deve estar terrível. Como ia ela viajar? Vinha a
cavalo ou pelo rio Ask?
— Não sei — respondeu o rei.
— Deixai-me tratar deste assunto — retorquiu Thaddeus. — Afastai-o do
espírito enquanto tento perceber o que se passa. Enviarei emissários armados ao
norte, ao encontro de Leeka. Com a vossa autorização, dar-lhes-ei carta branca
do rei, para que possam viajar depressa e ter sempre cavalos frescos. Teremos
notícias deles dentro de um mês, talvez menos, se embarcarem para Aushenia e
apanharem um atalho. Vinte e cinco dias, no máximo. Então sabereis tudo o que
se passa. — Thaddeus fez uma pausa e aguardou a resposta do rei. Foi pouco
mais do que um resmungo de afirmação, mas pareceu satisfazer o chanceler. —
E depois vereis que nada de grave se passou com certeza. Leeka sempre foi
desconfiado em relação ao Mein, mas desde quando é que isso já teve alguma
importância?
— As coisas estão diferentes agora — retorquiu o rei. — Heberen Mein era
um homem razoável, mas já morreu. Os seus três filhos são bem diferentes.
Hanish é ambicioso; vi-o nos seus olhos, mesmo quando era um rapazito,
quando visitou a cidade. Maeander é puro despeito e Thasren um mistério. O
meu pai tinha a certeza de que nunca poderíamos confiar neles. Fez-me jurar que
não cairia nunca nessa fraqueza — a confiança. Tu também costumavas dizer-
me que eu não me preocupava o suficiente. Juntos, tu e eu, concebemos planos
contra todo o género de acontecimentos trágicos, lembras-te?
Thaddeus sorriu.
— Claro que me lembro. É o meu trabalho. Quando era jovem via perigo
em todo o lado. Mas Acácia nunca esteve tão forte como agora. Digo-o
sinceramente, meu amigo.
— Sei que sim, Thaddeus. — O rei olhou para o teto. — Dentro em pouco
acordarei todos os meus filhos e levá-los-ei numa viagem. Iremos visitar todas as
províncias do império. Tentarei convencê-las de que sou o seu rei bondoso; elas
tentarão convencer-me de que são minhas leais súbditas. E talvez a ilusão
perdure por algum tempo ainda. Que me dizes?
— Parece-me muito bem — respondeu Thaddeus. — Isso deixará os vossos
— Parece-me muito bem — respondeu Thaddeus. — Isso deixará os vossos
filhos muito contentes.
— Claro que o «tio» deles nos acompanhará também. Eles gostam de ti
tanto como de mim, Thaddeus.
O outro homem levou algum tempo a responder.
— Honrais-me imerecidamente.
O rei permaneceu sentado, repetindo estas palavras na cabeça durante
algum tempo, e encontrando algum consolo nisso, mesmo enquanto se afastava
do seu contexto original. Dissera algo parecido um dia, a Aleera. O que fora?
Tu... amas-me imerecidamente. Fora isso que dissera. Por que razão o dissera?
Porque era verdade, claro. Explicara-lhe tantas coisas, numa noite, alguns dias
antes de casarem. Bebera demasiado vinho e ouvira demasiados discursos que o
louvavam. Já não conseguia suportar mais, por isso levara a noiva para um lado
e confessara-lhe que deveria saber coisas sobre ele antes de se casarem.
Confessara-lhe tudo o que sabia sobre os crimes do império, os antigos e os
novos, ainda feitos em nome de seu pai, os crimes que, provavelmente,
continuariam a ser cometidos em seu nome. Desabafou tudo, choroso, patético e
até agressivo, certo de que ela se encolheria de medo dele, quase esperançoso de
que ela se afastasse dele e o rejeitasse. Certamente que uma boa mulher o faria; e
ele não duvidava da bondade dela.
Que surpreendido ficara com a sua resposta. Ela aproximou-se dele e voltou
aquele rosto lindo de grandes olhos para ele. Não havia surpresa nas suas
feições, nem remorso ou juízos de valor. Respondera-lhe que um rei é o melhor e
o pior dos homens. Claro. Claro. Pousara os seus lábios nos dele de uma
maneira tão doce e ávida que lhe tirou a respiração. Esse, talvez, tenha sido o
momento em que verdadeiramente casaram, o momento em que fora selado o
acordo entre eles. Era difícil para ele decifrar agora qual dos aspetos do amor
dela o tocara mais. Seria o facto de ela lhe poder perdoar tudo isso e amá-lo,
porque compreendia a bondade que, no fundo, existia nele? Ou fora o facto de
ela se ter traído, de que era tão capaz de fazer vista grossa à verdade e viver uma
mentira quanto ele? De qualquer modo, o facto de lhe ter confessado tudo e de
ter tido a sua bênção fê-lo amá-la na plenitude. Nunca teria sido capaz de
cumprir a sua missão como monarca sem a aprovação dela. Isso talvez fosse, ou
não, algo de bom para o mundo, mas, para um homem inseguro como ele, a
devoção dela fora uma grande dádiva.
— Talvez o faça, Thaddeus — respondeu Leodan, algo tardiamente ,à
declaração do outro. — Talvez te honre indevidamente. Cometemos erros desses
por vezes. Mas que mal faz isso?
por vezes. Mas que mal faz isso?
Não ouviu a resposta do chanceler, se é que, de facto, este lhe respondeu.
Fechou os olhos e teve a sensação de estar a ser empurrado de encontro a uma
parede invisível. A bruma tinha-se consolidado nele e preenchia-o Agora o
momento de se afastar do mundo físico era finalmente dele. Este momento
atingia-o sempre como uma pressão, como se o seu peito jazesse plano contra
uma pedra e uma grande força atrás dele gradualmente o empurrasse contra ela.
Precisamente no momento em que sentia não conseguir aguentar mais o peso,
começava a atravessar a pedra, confundindo-se com ela e atravessando-a como
se ela fosse porosa e ele se encontrasse em estado líquido. Do outro lado, Aleera
esperava por ele, a ilusão temporária por que ele ansiava mais do que pela
verdadeira vida. Foi ter com ela com reverência.
Capítulo 7

Rialus Neptos acreditava ter encontrado um método pelo qual conseguia ter
conhecimento de toda a gente que entrava e saía da fortaleza do norte de
Cathgergen. Pensava que esta vigilância era essencial para um governador,
especialmente um governador tão atento ao poder quanto ele era. Pedira que
fabricassem uma única lâmina de vidro nas fornalhas na base da fortaleza.
Deitara abaixo uma parte da parede de granito do seu gabinete e colocara aí o
vidro, de modo a abrir uma enorme janela. A vidraça era mais alta do que um
homem e tão larga como os seus dois braços estreitos abertos de um lado ao
outro. A execução da obra fora imperfeita. Tinha uma espessura desigual, de um
tom leitoso, em algumas áreas, e salpicada de bolhas de ar. Porém, havia alguns
bocados de verdadeira transparência; Rialus localizara todos esses pontos após
longas horas de observação.
A sós nos seus aposentos, encostava a fronte à vidraça. Frequentemente o
toque no vidro fazia-o sentir frio e causava-lhe tosse, um tormento que afetara o
seu peito frágil toda a sua vida. Durante algum tempo chegava até a ter de se
esticar no chão. Uma faixa de vidro na parte inferior da vidraça distorcia o
mundo de tal maneira que ele podia estudar a entrada no quartel-general militar
nas suas horas de lazer e, por conseguinte, saber quem entrava e saía no mundo
de Leeka Alain. O lugar que lhe permitia ver melhor era do alto de um
tamborete, e olhava para baixo com um olho fechado que lhe proporcionava uma
vista de toda a muralha oeste e do portão no centro. Fora deste lugar que
observara as tropas do general Alain marcharem para fora da fortaleza,
desafiando as suas ordens diretas. Fora do mesmo lugar que observara a chegada
do segundo dos irmãos Mein, Maeander .algumas semanas mais tarde.
Rialus afastou-se da vidraça. Estava novamente com frio. A fortaleza era
aquecida através de piscinas de vapor de água quente que borbulhava em jorros
da terra. Uma rede intrincada de canos e de condutas de ar canalizavam o calor
para toda a estrutura labiríntica do forte. Os engenheiros de Cathgergen diziam
que se tratava de uma maravilha de construção, mas, na verdade, o lugar nunca
se encontrava suficientemente quente. Por vezes, desconfiava que os seus
aposentos eram propositadamente deixados com pouco aquecimento, mas não
tinha maneira de o provar.
Andou à volta da secretária e depois dirigiu-se à estante na parede,
Andou à volta da secretária e depois dirigiu-se à estante na parede,
passando um dedo sobre as lombadas dos volumes que ali se encontravam,
tomos poeirentos cheios de registos, documentos de contabilidade e diários
governamentais, mantidos ali desde que a hegemonia de Acácia se estabelecera
pela primeira vez na satrapia. O seu pai tratara estes registos com sóbria
reverência. Tentara incutir o mesmo no filho único, sem ter conseguido. Rialus
era somente a segunda geração da sua família a vigiar o Mein — não se tratava
portanto de muito tempo em funções, pelos padrões de Acácia. Com a extinção
da anterior família de governadores, o seu pai fora enviado para o norte, como
castigo por alguma malfeitoria de que Rialus já nem sequer se recordava. À
medida que os anos passavam, os outros governadores acabaram por ver a
família Neptos ali instalada como um dado adquirido. Os Akarans ignoravam-
nos. Irritava-o que esperassem fazê-lo pagar indefinidamente por um crime que
ninguém conseguia sequer nomear. Atormentava-o que o mundo lá fora não
compreendesse o seu espírito arguto, de algum modo cativo dentro da sua figura
atrofiada, traída em todas as ocasiões pela tendência do seu queixo de enregelar
precisamente nos momentos errados. Se, ao menos, os outros pudessem ver para
além destes defeitos da aparência exterior, compreenderiam que ele estava mal
aproveitado naquele posto.
Rialus gostava de dizer que o Doador recompensa quem valha a pena, mas
tinha ainda de ver alguma prova de que as forças divinas no mundo tinham
notado a sua existência. Após dez anos a ser posto de parte, ignorado, Rialus
tornara-se chão fértil para a intriga. O irmão mais velho dos Mein fora rápido a
aproveitar-se disso. Hanish era um orador eloquente, um homem bonito que
falava com tal compostura nos seus olhos cinzentos que não se conseguia evitar
confiar nele. Vindo da sua boca, o estranho sistema de crenças do Mein não
parecia de todo ridículo. O mundo dos vivos era transitório, explicara Hanish,
mas a força que constituía os Tunishnevre era constante. Os Tunishnevre eram
compostos por todos os homens valorosos da sua raça que tinham outrora vivido
e que já não estavam neste mundo. Era a sua força de vida que se prolongava já
fora dos seus recetáculos mortais. Era a energia palpável da sua raiva, prova de
que os mortos tinham mais importância do que os vivos. A vida era uma
maldição infligida sobre uma alma, antes de esta poder partir para outro plano
mais elevado. Tal como o corpo que é separado do espírito no seu íntimo, e
contudo causa ao espírito todo o género de dores, assim o destino dos vivos
causara ao cerne ancestral um sofrimento sem fim. Os vivos mantinham os
mortos acorrentados a si e, nesta ignorância, faziam da vida após a morte um
fardo, quando deveria ser a doce realização da viagem da vida. Os antepassados,
afirmara Hanish, imploravam-lhe que amenizasse a sua tortura.
Quando o governador perguntara o que era exatamente que queriam os
Quando o governador perguntara o que era exatamente que queriam os
Tunishnevre, e como seriam exatamente libertados deste sofrimento, Hanish
apertara-lhe o ombro como se fossem companheiros íntimos. Tinha um modo
peculiar de mudar de um estilo sério para um tom mais casual de um instante
para o outro.
— Sei que existem mudanças a fazer na ordem do mundo dos vivos. Foi
para essa missão que nasci. E tu, Rialus Neptos, és um agente do meu inimigo.
Isto fora dito também num tom ligeiro, mas a lista de crimes perpetuada
pelo domínio de Acácia parecia longa e imunda quando Hanish a pormenorizou.
Que nação não sofria sob o seu domínio? Dos pálidos homens o norte até aos
povos negros do Sul, de oriente a ocidente, tantos povos diferentes, dezenas de
raças humanas — todas sofriam graves injustiças sob aquele jugo. As gerações
haviam vivido e morrido sob o jugo da «paz» acaciana, mas o Mein nunca
esquecera quem era o seu inimigo. Agora, finalmente, Acácia tinha um rei
tornado tão fraco que poderiam atacar. Hanish acreditava que Leodan era o
herdeiro mais fraco de uma longa cadeia da sua história familiar. Uma nova era
poderia começar, com um novo calendário a assinalar o dia, com novos
conceitos de justiça, com a redistribuição da riqueza, com os privilégios por fim
nas mãos daqueles que haviam, durante tanto tempo, trabalhado para o proveito
de outros homens. Pouco havia nisto que Rialus pudesse refutar. Ele estava,
afinal de contas, numa posição privilegiada para saber a ferocidade com que
Acácia cobrava os impostos aos seus aliados.
Rialus nem sequer se lembrava da altura exata em que os irmãos Mein o
haviam tornado seu confidente, mas recordava-se, sim, da sua incredulidade
perante as afirmações de Hanish. Dissera que a sua liga de aliados era mais
poderosa do que a dos Akaran. Estavam cada vez mais frustrados com os Akaran
e furiosos com Leodan. Acreditavam que o rei queria acabar com a Quota e
abolir o comércio de ópio. Por causa disso, decidiram o seu destino. O rei seria
afastado do cargo e substituído por outro, mais propenso a ir de encontro às suas
necessidades. Hanish dissera que isto acontecera duas vezes antes, nas vinte e
duas gerações desde Tinhadin, mas que, desta vez, era diferente. O rei não seria
meramente afastado do trono de modo a que o filho — mais novo e mais
moldável e fácil de controlar — tomasse o seu lugar. Desta vez, os Lothan Aklun
queriam que toda a linhagem fosse extinta e estabelecida uma nova dinastia, com
os Mein no trono.
Era por isso que Hanish tinha à sua disposição um povo de uma raça
estranha desejosa de marchar através dos Campos Gelados e fazer guerra em
nome dos Mein. Era por isso que possuía armas novas que arremessavam bolas
de fogo como o Sol ou que catapultavam pedregulhos. Acrescentava-se a isto um
de fogo como o Sol ou que catapultavam pedregulhos. Acrescentava-se a isto um
exército escondido dos Mein, que estivera a treinar arduamente nas montanhas a
norte de Tahalian, às escondidas do mundo exterior. Com estes instrumentos e
diversas outras surpresas na manga, Hanish prometia derrubar um mundo que de
nada desconfiava e destroçá-lo totalmente.
Os irmãos tinham aludido a várias posições de relevo que Rialus poderia vir
a ocupar, no mundo remodelado que antecipavam, mas, até à data, ele não vira
recompensa alguma. Esperara poder mostrar-se útil. Infelizmente, este assunto
com Leeka não correra como gostaria. Sabia que o exército do general fora
misteriosamente massacrado, mas não tinha a completa certeza sobre se isto
daria a Maeander o prazer que deveria. Afinal de contas, a missão de Rialus fora
a de deter o general e fazer tudo o que pudesse para ocultar a chegada dos
estrangeiros. Fracassara em ambas as incumbências.
Maeander entrou nos aposentos do governador com visível desdém pelas
formalidades devidas a um funcionário acaciano. Passou pela secretária, que se
preparava para o anunciar, e irrompeu pela sala, com passadas firmes que
pareciam tanto naturais como propositadamente fortes para lascar as lajes sob as
pesadas botas. Maeander era alguns centímetros mais alto do que o seu anfitrião.
Tinha os ombros largos e ostentava força nos movimentos das coxas musculadas
e nas curvas vigorosas dos antebraços e nos contornos do pescoço. Usava o
cabelo comprido, abaixo dos ombros, e lavava as madeixas cor-de-palha dourada
diariamente em água gelada e depois penteava-se — algo invulgar, na maioria
dos homens do Mein, pois estes deixavam o cabelo emaranhar-se e andavam
com ele caído, de modo a parecer uma cascata de serpentes sobre os ombros. Ele
era, em toda a aparência exterior, uma figura modelo para os rudes e viris
homens da sua raça, envoltos em vestes de couro curtido e de pernas cobertas
por calças justas.
Maeander tirou as luvas forradas a pele e atirou-as para uma mesa, onde
caíram com um baque seco. Examinou rapidamente a sala, parando à janela.
— Então é esta a tua janela — disse, inspecionando a vidraça. Falava
acaciano com o sotaque gutural da sua língua materna, sons que sempre haviam
ofendido os ouvidos de Rialus. — Os guardas trocaram galhofas comigo quando
entrei. Quando lhes dei ordem para te avisarem da minha chegada, um deles
disse que já sabias, visto teres sempre um olho pregado a esta vidraça. Um outro
disse que parecias não compreender que tanto se pode ver de dentro para fora
como de fora para dentro. Tal impertinência, governador, não deveria ser
permitida.
Rialus corou. O simples facto de ser visível para as pessoas no exterior
nunca lhe ocorrera. Imaginou o absurdo da sua imagem vista de fora, retorcida
nunca lhe ocorrera. Imaginou o absurdo da sua imagem vista de fora, retorcida
em diferentes contorções, e os lá de baixo a vê-lo pelo canto do olho,
escondendo sorrisos afetados, zombando dele... E assim, daquela maneira, com
algumas palavras casuais, faziam-no sentir completamente idiota. Recordava-se
de uma época em que os irmãos Mein o tratavam como convinha ao seu cargo,
mas tudo isso mudara. Não fazia ideia de como poderia voltar a ganhar o seu
antigo estatuto. De facto, desconfiava cada vez mais de que nunca mais teria
estatuto algum.
Maeander virou-se da janela. Os olhos do homem eram notavelmente
cinzentos. Fixavam-se intensamente nas pessoas. Nunca, pensou o governador,
conhecera alguém que olhasse tão fixamente com tão indisfarçada má vontade.
Tinha o olhar de uma criança a fixar um besouro que estava prestes a esmagar
sob o tacão.
— Sabes o que aconteceu ao exército de Alain?
Rialus não era um conversador fluente. Perante Maeander, embrulhava-se
em graguejos embaraçados, que ele tinha a certeza de darem uma má impressão.
Felizmente, Maeander estava mais interessado em falar ele próprio do que em
fazer uma verdadeira pergunta. Contou então que os batedores de numrek
haviam sido enviados para limpar terreno, antes de o grosso do exército da sua
nação descobrir onde estava a coluna do general. Sem serem vistos, haviam-nos
seguido durante vários dias até encontrarem um sítio que lhes servisse para uma
emboscada. Atacaram-nos após o último vento de uma tempestade que findava e
chacinaram-nos até ao último homem e à última mulher.
— Deves ficar contente por saber que os numrek são tão destros a matar
como afirmam — disse Maeander. — Apreciaram a prova que o exército de
Alain lhes proporcionou. Serviu-lhes de aquecimento, dizem. — Virou-se e
deambulou pela sala, sem destino. Tinha três tranças que lhe pendiam do alto da
cabeça do lado esquerdo. Em duas delas estavam entretecidas fitas azuis e, na
terceira, um fio em cabedal com contas de prata. Rialus sabia que aquilo era uma
espécie de sistema de contagem primitivo: o azul correspondia a dez homens
mortos, a fita em cabedal a vinte. Ou seria ao contrário? O governador não se
lembrava.
— Nunca vi nada igual a este exército numrek. Devoram e cospem tudo o
que encontram. As crianças e as mulheres têm tanto prazer na chacina como os
homens. Duvido muito que as forças combinadas de Acácia se possam igualar a
eles em campo aberto.
— Então foi tudo pelo melhor — retorquiu Rialus. — O Doador ajuda os
valorosos. Um grande sucesso.
valorosos. Um grande sucesso.
Maeander não gostava de ser conduzido.
— Não sejas tão apressado. Fracassaste em manter o general prisioneiro.
Estavas aqui sentado à tua janela enquanto ele se punha em marcha para pôr em
causa tudo o que o meu irmão planeou durante todos estes anos. O resultado não
foi mau, mas forçaste-nos a acelerar os nossos planos. E é verdade que o teu
general enviou mensageiros — vários?
— Sim, enviou, mas não te preocupes. Persegui-os e matei-os a todos.
— Não é verdade. Um deles escapou. Um deles encontrou-se com o
chanceler do rei, Thaddeus Clegg.
— Oh — retorquiu Rialus.
— Sim. «Oh». Contudo, foste novamente salvo por um golpe de sorte. —
Fez uma pausa para deixar que Rialus se contorcesse um momento e depois
disse: — Thaddeus é... ambivalente o suficiente para talvez não ver os seus
interesses alinhados com os de Leodan.
A boca de Rialus formou uma oval.
— Ambivalente?
— Isso mesmo — retorquiu Maeander. Inclinou-se e passou as pontas dos
dedos pelas azeitonas na tigela colocada sobre a secretária de Rialus, iguaria
importada, difícil de encontrar no Mein. Enfiou algumas na boca e observou o
governador.
— Na verdade, Rialus, as razões do seu estado de alma ambivalente estão
relacionados com a tua própria situação. Estarás interessado em que te explique?
Rialus assentiu, hesitante, mas demasiado curioso para recusar. Maeander
foi falando enquanto mastigava. Pediu a Rialus para recuar no tempo com ele e
imaginar Leodan e Thaddeus tal como eram na juventude. Imaginar o jovem
príncipe: sonhador, idealista, indeciso em aceitar o poder para o qual estava a ser
preparado, tomado de amores por uma jovem beldade —Aleera — que parecia
ter mais importância para ele do que o trono. A seu lado, o seu chanceler:
resoluto, confiante, disciplinado, um espadachim talentoso, ambicioso de um
modo que Leodan não o era.
— Leodan nunca foi propriamente um tesouro aos olhos de seu pai — disse
Maeander, com um largo sorriso.
Gridulan, continuou, via o filho como um fraco. Mas um filho é um filho;
Gridulan não tinha outro. Não o podia negar. Foi por isso que Gridulan fez o
melhor que pôde para endurecer Leodan, mesmo quando observava Thaddeus
melhor que pôde para endurecer Leodan, mesmo quando observava Thaddeus
pelo canto do olho. Queria que o filho tivesse um chanceler forte, mas tinha as
suas razões para recear os talentos de Thaddeus. Thaddeus era um Agnate, afinal
de contas. Tinha uma linhagem que remontava ao próprio Edifus. Poderia, em
certas circunstâncias, reclamar legitimamente o trono para si. Isto tornou-se uma
grande ameaça — na perspetiva do velho rei — quando Thaddeus desposou uma
jovem, Dorling, também de uma família Agnate. No primeiro ano de casamento
tiveram um filho, um menino, exatamente dois anos antes de Aleera dar à luz
Aliver. Assim, ali estava o forte Thaddeus, oficial na Marah, com uma jovem
esposa e um filho, uma linhagem aristocrata, a adoração da populaça e o apoio
dos governadores — que viam o chanceler como um arguto defensor das suas
causas. Em resumo, Thaddeus tornara-se uma ameaça que Gridulan não podia
ignorar, mesmo se Leodan não tivesse consciência disso.
— Adivinha o que fez ele em relação a isso — instou Maeander. — Fazes
uma ideia?
Rialus não fazia ideia alguma, apesar de levar alguns instantes a convencer
Maeander disso.
— Então, terei de te contar — prosseguiu o homem do Mein. — Gridulan
conspirou com um dos seus companheiros. Por ordem do rei, este companheiro
adquiriu um veneno raro, do género usado pelos homens da Liga. Mortal.
Certificou-se pessoalmente de que Dorling consumiu uma dose que lhe
administrara no seu chá. O filho — ainda de mama — foi envenenado através do
leite da mãe. Ambos morreram.
— Foram assassinados por ordem do rei? — perguntou Rialus.
— Tal qual. Na altura ninguém soube da origem das mortes. Alguns
suspeitaram de assassínio, mas não se dirigiram acusações a ninguém — pelo
menos, não na direção certa. Gridulan foi o primeiro a apresentar as
condolências a Thaddeus. Leodan permaneceu a seu lado na dor. O próprio
Thaddeus suportou o seu sofrimento admiravelmente, mas nunca mais foi o
mesmo homem depois disso. Gridulan escolhera bem. Conseguira extinguir a
ambição de Thaddeus, embora deixasse o homem vivo para ajudar o filho.
Leodan não soube dos assassinatos até alguns anos mais tarde, depois de o pai
ter morrido e de ter lido os seus diários privados. Porém, que iria ele fazer com o
conhecimento de que o próprio pai matara a mulher e o filho do seu melhor
amigo, tudo a fim de o proteger?
— Talvez um homem moralmente forte tivesse confessado tudo ao amigo
— concluiu Maeander, encolhendo os ombros pois não parecia ter a certeza
desta questão. — Talvez. Em qualquer caso, Leodan manteve a boca calada.
Nada disse a ninguém, apenas dando um castigo ao homem que fora cúmplice de
Nada disse a ninguém, apenas dando um castigo ao homem que fora cúmplice de
seu pai, o homem que administrara o veneno. Fazes alguma ideia de quem era?
Maeander, desta vez, não esperou pela resposta de Rialus.
— Isso mesmo — proferiu. — O teu amado pai, Rethus, foi quem
administrou o veneno! É por isso que te encontras agora aqui à minha frente,
como governador miserável de uma miserável província. Estás a ser castigado —
como o foi teu pai antes de ti —pela lealdade para com Gridulan. Os segredos de
família são profundos, Rialus. Bem vejo pela perplexidade no teu rosto que
acabei, simultaneamente, tanto por te surpreender como por responder a velhas
perguntas.
Rialus precisou de um momento para recobrar ânimo suficiente para
perguntar:
— Como sabes de tudo isto?
Maeander olhou para um lado e cuspiu um caroço de azeitona.
— O meu irmão tem muitos amigos em posição de saber tais coisas. A
Liga, por exemplo, observa tudo isto com interesse, e alegra-se por fornecer
pequenas informações para nos ajudar a deitar achas para a fogueira. Acredita
em mim, Rialus, a história que acabei de te contar é verdadeira. Alguns meses
atrás o meu irmão partilhou a informação com o próprio Thaddeus Clegg. Este
ficou bastante perturbado com as notícias. Por causa disso, creio ser justo dizer
que ele não se encontra já completamente do lado de Leodan. Pensa na vida que
Thaddeus tem levado desde que Dorling e o filho morreram. Pensa no amor que
dedica aos filhos de Leodan e não aos seus. Pensa no modo como ele apoiou o
rei quando este enfrentou a morte — por causas naturais, claro — da sua própria
esposa. Pensa no que sentiria ao descobrir que tudo isso foi baseado numa
mentira, num assassinato, na traição. No seu lugar, não quererias ver os Akaran
castigados? A vingança é a mais fácil das emoções para compreender e
manipular. Não concordas?
Rialus concordou, embora quisesse desesperadamente tempo e solidão para
digerir tudo o que Maeander lhe revelara.
— Em qualquer caso, — disse Maeander, regressando ao assunto que
originara aquele desvio da conversa — não te matarei pelos teus erros, mas
receio que terás de pagar por eles. Prometi Cathgergen aos numrek. Quando
chegarem, entregar-lhes-ás a fortaleza. Confio que não irritarás o chefe deles,
Calrach; pelo que vi dele, não é muito dado ao perdão.
— Não queres dizer...
Maeander olhou-o, afrontado.
Maeander olhou-o, afrontado.
— Estás a protestar? Não quererias que lhes entregasse Tahalian, pois não?
Não há outra maneira. A fortaleza é deles, para descansarem e se reorganizarem.
Se quiseres, poderás deixar que o exército dê alguma luta e depois fugir para
qualquer que seja o destino que te espera. Não olhes assim para mim. Neptos,
nunca vi um homem que se parecesse tanto com um rato em tantos aspetos
diferentes. — Por instantes, a voz de Maeander soou com verdadeira fúria, mas
dominou-se e falou friamente. — Por enquanto podes continuar a viver, mas as
verdadeiras recompensas vão para aqueles que nos servem com eficiência.
— Acabaste de me condenar — contrapôs Rialus.
— Não te condenei. Se estás condenado, as sementes dessa condenação
foram plantadas antes de eu sequer te conhecer. É assim com todos nós. É tudo o
que tenho para ti.
Rialus conseguiu falar somente quando Maeander se voltou para sair.
— Esqueces-te de que eu... eu sou o governador desta fortaleza.
Maeander fitou-o estupefacto. Rialus mudou de tom, afastando-se da
sugestão de ameaça inerente àquela declaração. — Talvez ainda possa provar o
meu valor.
— Ah, és tão traiçoeiro como o teu pai? Como irias tu dar-me provas?
— Se o que tenho para te oferecer te agradar, terei de ter a tua garantia de
que serei recompensado. Posso entregar-te a família real — as suas cabeças,
quero dizer.
— Já tenho agentes preparados para atacar o rei. Talvez já o tenham morto.
Talvez essa notícia já vá a caminho de Hanish.
— Não, não... sei disso — retorquiu Rialus. Tinha quase vontade de sorrir,
sabendo que com toda a probabilidade acabara de encontrar a tábua de salvação
de que precisava. — Não estou a referir-me ao rei. A linhagem Akaran não
começa nem acaba com Leodan.
Capítulo 8

Corinn Akaran compreendia que havia ainda muito que desconhecia sobre o
mundo, muitos nomes e linhagens familiares e acontecimentos históricos que a
sua memória se recusava a reter. Não importava. Pouco daquilo tinha algum
peso na vida do dia-a-dia. O que ela acreditava ser significativo era o facto de ser
a filha mais velha do rei Leodan, a bela Corinn. Não herdaria o controlo do reino
do pai — que iria para Aliver — mas isso até lhe convinha. Não considerava
nada atraente a perspetiva de fazer malabarismos com tão complicado conjunto
de preocupações. Era muito melhor manter-se de fora e exercer a sua influência
na esfera das intrigas da corte. Tinha a certeza de que isso seria muito mais
interessante. O mundo poderia ser algo de muito mais vasto, de facto, mas a
parte que ela ocupava era pequena e, nesse mundo mais pequeno, poucas pessoas
estariam melhor posicionadas do que ela para encarar o futuro com sublime
otimismo.
Guardava, contudo, um segredo que ninguém próximo dela adivinharia.
Embora por natureza fosse uma pessoa jovial, com gosto por roupas sofisticadas,
bisbilhotice e pensamentos românticos juvenis, transportava em si uma
consciência da morte. Era como uma nuvem que pairava sobre o seu espírito,
sempre perto, sempre a ameaçar quando erguia os olhos para absorver coisas
maiores. A mãe morrera quando ela tinha dez anos. Desde então, a condenação
da mortalidade nunca estivera longe do seu espírito. Aleera Akaran deixara a
vida quando a primavera dava lugar ao verão. Fora roída por dentro por uma
doença que começara com uma dor nas costas e se tornara uma sanguessuga
insaciável que lhe sugara a vida.
Corinn recordava-se dos últimos momentos que passara junto da mãe em
doloroso pormenor. Em sonhos, sentava-se muitas vezes ao pé da sua cama
novamente, agarrando as pálidas e magras mãos da mãe. Estava tão devastada
pela doença que o seu corpo parecia fundir-se com o colchão. Por causa de o
tempo estar tão quente, repousava muitas vezes destapada, as pernas nuas
esticadas por debaixo da túnica, com os pés e os dedos destes parecendo
estranhamente grandes, agora que eram a primeira coisa que Corinn via ao entrar
no quarto. As semanas que permanecera presa à cama haviam tornado Aleera tão
fraca que não conseguia chegar ao seu tamborete junto à janela sem a ajuda da
filha. Já não conseguia andar. Corinn apoiava o frágil peso da mãe em cada
passo que ela dava, cambaleante, como o de uma criança que dá os primeiros
passo que ela dava, cambaleante, como o de uma criança que dá os primeiros
passos.
Tudo isto causou na menina a forte impressão de que o mundo guardava em
si, na realidade, coisas muito mais assustadoras do que ela conseguia imaginar
nos seus mais negros pensamentos. Onde, naquele quadro, estava a mãe todo-
poderosa que sabia sempre o que ia na alma da filha antes desta o pronunciar,
que ria dos medos que Corinn tinha de dragões, de cobras gigantes e de
monstros? Onde estava a heroína que afugentava estas criaturas pelo simples
facto de entrar no quarto, só com um sorriso, apenas por chamar por ela? Onde
estava a bela mulher em cujo colo Corinn se sentara enquanto ela se encontrava
atarefada com deveres oficiais, a mulher que a todos servia de exemplo? Ainda a
deixava atónita o modo como as coisas haviam mudado de modo tão célere, sem
sequer uma sugestão velada de que existia um sentido para tudo aquilo.
Por mais doloroso que fosse, agravava-se ainda mais pelo facto de ela se
ver a si própria em cada parte do corpo moribundo da mãe. A mãe dera-lhe a
forma do rosto, o jeito dos lábios, o padrão das linhas da fronte. Tinham as
mesmas mãos: a mesma proporção e comprimento, o mesmo tipo de
articulações, as mesmas unhas finas, a mesma inclinação do dedo mindinho. A
menina de dez anos agarrara entre as mãos uma envelhecida e desvanecida
imagem decadente de si própria, como se fosse uma estranha confluência do
passado e do presente ou do presente com o futuro.
Embora muitas vezes passasse os dias com um otimismo juvenil, parte dela
sentia-se importunada pelo medo de não sobreviver a esse ano. Ou, se
sobrevivesse, seria só para que primeiro ganhasse tudo, depois perdesse tudo e
depois morresse. Sentira-se assim quando tinha dez anos, e depois com onze e
doze anos, e por aí fora, mas o sentimento continuava tão forte como sempre. O
facto de contrabalançar estes pensamentos mórbidos com uma natureza
efervescente era tão confuso para ela própria quanto seria para aqueles que a
viam do exterior. Escondia as suas negras meditações o melhor que podia, tanto
por a alarmarem como por a envergonharem. Lembrava a si própria
frequentemente que todo o ser viva enfrentava a morte, e a poucos era oferecida
uma vida com tão rico potencial como a dela. Mas talvez estivesse enganada.
Talvez viesse a viver uma longa e feliz existência; talvez até encontrasse um
modo de viver para sempre, sem idade e jamais tocada pela doença.
Na manhã em que deveria dar as boas-vindas à delegação da nação de
Aushenia, Corinn olhou durante muito tempo para o espelho do toucador,
contemplando o seu reflexo. Inclinou-se sobre o tampo e pegou numa escova de
crina de cavalo usada para aplicar a maquilhagem. Mergulhou-a num pó feito de
conchas moídas e passou-a sobre as faces. Esperava que o brilho
conchas moídas e passou-a sobre as faces. Esperava que o brilho
complementasse o cintilar das fibras prateadas do vestido, elegante e da cor do
azul do céu, que lhe delineava a figura. Apesar dos pensamentos mórbidos,
estava agradada com as perspetivas dos próximos dias. Não tinha — como
Aliver — de suportar as loucas formalidades dos encontros oficiais. Porém, ao
contrário de Mena e de Dariel, já tinha idade suficiente para exercer funções em
algumas praxes oficiais. Desta vez serviria de anfitriã e guia ao príncipe de
Aushenia, Igguldan.
Apesar dos avisos da sua camareira de que o dia iria estar frio, usava apenas
uma fina combinação sob o vestido. Podia aguentar o frio, dissera; mas não
suportava ver-se deselegante. Como única concessão ao clima, decidiu vestir
uma peça nova que lhe fora enviada de Candovia, uma faixa de pele branca
enrolada ao pescoço e que prendeu com um alfinete. Achava que a écharpe lhe
conferia uma certa elegância. Esperava que sim, pois não era tão apta a vestir-se
para o tempo frio como era em lidar com as três estações quentes que Acácia
proporcionava.
Corinn encontrou-se com o príncipe de Aushenia nos degraus do salão de
Tinhadin. Ela estava de pé, rodeada por vários servidores, um tradutor, e alguns
ajudantes do gabinete do chanceler. Todos eles estavam emoldurados pelos
pilares de granito da fachada do salão, grosseiramente esculpidos e marcados
pela idade e pelas intempéries. Sendo de uma época arquitetónica mais antiga do
que a maior parte da cidade, o salão fora construído quando os líderes da nação
pareciam desdenhar as linhas suaves e os arcos de cidades refinadas, como as da
costa de Talayan, às quais futuras gerações iriam buscar inspiração.
O príncipe estava vestido de modo simples. Corinn talvez tivesse ficado
algo desiludida com isso, mas os modos do príncipe demonstravam tal cortesia
que ela teve de reconhecer que as suas maneiras eram irrepreensíveis. Caminhou
com o olhar baixo, de braços muito juntos ao corpo e palmas das mãos
estendidas na direção dela. Tanto ele como o seu séquito acertavam o passo
enquanto subiam, de modo a moverem-se como se fossem uma única alma.
Quando o jovem príncipe chegou ao degrau abaixo dela, parou. Ergueu os olhos,
encontrou os dela e manteve o olhar apenas ligeiramente mais tempo do que o
apropriado. Sentiu-se inclinada a perdoá-lo, tanto por causa do sorriso timorato
vincado que tinha como por saber que o seu vestido, a écharpe de pele branca ao
pescoço, o intrincado entrançado do seu cabelo e o pó de conchas brilhante que
lhe realçava as faces se combinavam para causar um efeito impressionante.
Os traços fisionómicos de Igguldan eram típicos de Aushenia: o cabelo cor
de palha tingido de acaju, os olhos intensamente azuis, como se fossem contas
de vidro iluminadas por dentro. Corinn pensara um dia que a pele pálida e
de vidro iluminadas por dentro. Corinn pensara um dia que a pele pálida e
sardenta nada era comparada com o tom moreno cremoso dos acácios ou a pele
quase negra dos talayanos, mas, ao olhar para Igguldan, sentiu-se atraída por
aquela tez. Apetecia-lhe estender a mão e tocá-lo, mesmo abaixo dos olhos, e
passar os dedos de sarda em sarda.
Levou o grupo numa visita guiada aos edifícios principais da área superior
da cidade, passando pelas várias alas do palácio, até junto dos campos de treino e
passando em redor dos edifícios governamentais. Os aushenianos ficaram mais
entusiasmados ao depararem com os macacos dourados que percorriam os
terrenos e até mesmo dentro do palácio. No seu reino não existiam tais animais,
explicaram. Corinn assentiu, pouco impressionada. Vira aquelas criaturas todos
os dias da sua vida. Eram pequenos, do tamanho de gatos, com pelo sedoso que
ia do amarelo até quase ao carmesim. Tinham um qualquer significado sagrado,
mas Corinn não se recordava de qual e não o mencionou.
Acabaram por ir dar às antigas ruínas que abrigavam as pedras da fundação
de uma das primeiras torres defensivas de Edifus. Os restos arruinados desta
estrutura estavam protegidos por um edifício moderno, uma espécie de pavilhão
empoleirado em colunas arqueadas e que permitia vistas para três das direções
da bússola. No centro havia uma estátua de Elenet quando jovem. Um dos
ajudantes do chanceler destacou-se do grupo para recitar a história do primeiro
feiticeiro, e que, de muitas formas, era também a história do Doador.
No princípio do mundo, entoou o ajudante, uma figura divina conhecida
como o Doador criara o mundo enquanto manifestação física da alegria. Esse
deus dera forma a todas as criaturas da terra, incluindo os seres humanos,
embora não diferenciasse os seres humanos das outras criaturas. Caminhou pela
terra cantando, enquanto tudo ia criando através do poder da palavra. A sua
língua era o fio, a agulha, o padrão pelo qual o mundo fora tecido. Nessa bem-
aventurança, contudo, penetrou a maldade. Um ser humano, um órfão de sete
anos, Elenet, viu um dia o deus passando pela sua aldeia. Aproximou-se do
Doador e ofereceu-se-lhe como servo, para que pudesse ficar próximo da graça
daquele ser divino. O deus, comovido, acolheu-o. Porém, Elenet não era como
os outros animais que seguiam o Doador. Elenet não podia deixar de ouvir a
canção do deus. Aprendeu as palavras da canção. Veio a compreendê-las e a
reconhecer o seu poder. Deleitava-se na possibilidade de ele próprio as usar.
Quando aprendeu o suficiente, fugiu.
— Tornou-se o primeiro Falante de Deus — explicou o ajudante. —
Ensinou o seu conhecimento a alguns outros escolhidos. Quando o Doador soube
do engano de Elenet, ficou desiludido. Virou as costas ao mundo e ficou
silencioso. Nunca mais foi visto a caminhar pela terra. Nunca mais cantou. É por
silencioso. Nunca mais foi visto a caminhar pela terra. Nunca mais cantou. É por
isso que o mundo agora é como é.
A julgar pelo modo como Igguldan se ajoelhou sobre uma perna e correu as
mãos sobre as fissuras da antiga pedra, murmurando algo para si próprio, o conto
já lhe era bem conhecido e afetava-o bastante. Corinn teve vontade de deitar um
olhar severo perante a sua sinceridade, mas, ao longo da hora seguinte, o
príncipe demonstrou ser um companheiro bastante agradável. Falava um
acaciano quase perfeito, como praticamente todas as pessoas do seu séquito.
Passado algum tempo, o intérprete e os ajudantes do chanceler foram ficando
para trás no grupo, que se dividiu em grupos mais pequenos, como se fossem
crianças nalguma excursão educativa.
— Penso por vezes — disse Igguldan — se será verdade que Edifus terá
sido um dia um dos discípulos de Elenet. Era um feiticeiro, ouvi dizer. Foi por
isso que ele — e Tinhadin a seguir a ele — tiveram um triunfo tão completo. O
que achais, princesa?
— Não pensei muito sobre isso, mas não vejo razão alguma para acreditar
em magia. Se o meu povo tivesse tido tal dom, então por que razão não o teria
ainda?
— Então não o tendes? — inquiriu Igguldan, sorrindo. — Não podeis, por
exemplo, lançar-me um feitiço e obrigar-me a fazer a vossa vontade?
— Dificilmente preciso de magia para fazer isso — respondeu Corinn, em
tom zombeteiro, proferindo estas palavras tão naturalmente mesmo antes de ter
pensado nelas. Sentiu o calor subir-lhe pelo peito até ao pescoço. —Talvez
tenhamos criado contos de magia mais tarde, como forma de explicar tudo o que
Edifus conseguiu. A grandeza é difícil de ser entendida pelas pessoas menores.
— Talvez seja assim... — O príncipe tamborilou com os dedos na pedra
envelhecida pelo tempo, pôs-se na ponta dos pés por um instante e contemplou a
paisagem que se espraiava lá embaixo, até ao oriente. — Creio então que serei
um homem de menor valor, porque amo as Velhas Histórias tal como são. A
vossa erudição, de facto, tem um grande papel nas nossas lendas. Em Aushenia,
não duvidamos de que os homens e as mulheres praticaram magia, outrora, e que
o vosso povo a usou para dominar o mundo. Existe um poema maravilhoso sobre
como os seres humanos adquiriram esse conhecimento. Não o recitarei agora por
receio de me enganar, mas talvez mais tarde venha a ter oportunidade de o
cantar.
— E onde está a magia agora? — perguntou Corinn. — Não vejo nenhum
feiticeiro por aqui.
O príncipe de Aushenia sorriu, mas nada mais disse. Quando saíram das
ruínas de Edifus, seguiram o caminho de volta na sua lenta subida até ao
Descanso do Rei e Corinn admitiu:
— Não conheço muito sobre o vosso povo. Como são os aushenianos?
— Iríeis achar Aushenia muito fria. Não tanto como o Mein — lá mal veem
o sol no inverno e pode nevar em qualquer dia do ano, mesmo no pino do verão.
Em Aushenia não é assim. É verdade que temos um verão curto, mas é vibrante.
Todas as criaturas e plantas aproveitam bem os poucos meses que têm. Na
primavera, os botões de flor e as novas sementeiras despontam de debaixo da
neve, como se por um dia o Doador lhes desse liberdade e, depois, nada os
pudesse deter. No verão, o tempo é bastante quente. Vamos nadar para os lagos,
a norte. Alguns até vão nadar no mar. Em Killintich, temos uma prova de
natação e de corrida, no solstício de verão, todos os anos. Os participantes
nadam do cais do castelo até um ponto do outro lado do porto. Depois, nadam de
volta até ao cais. Leva um dia inteiro.
Os dois pararam um momento junto ao último degrau da escadaria. Os
outros seguiam-nos a alguma distância. Corinn disse:
— É engraçado, num minuto dizeis que é fria e, no seguinte, falais-me em
botões a despontar e em natação. Qual é a verdade, príncipe?
— Num lugar tão a norte como Aushenia, não é o frio que mais nos afeta.
São os momentos em que o frio se afasta.
Corinn respondeu a isto com um aceno de cabeça e os dois permaneceram
alguns momentos em silêncio.
— Mas somos como a vossa nação, em muitos aspetos. O meu povo gosta
de aprender, tal como o vosso. Alguns dos nossos melhores alunos chegam a ter
formação em Alecia. Sabeis disso, tenho a certeza. Aushenia foi o primeiro país
do norte a aliar-se com Edifus contra o Mein. Infelizmente, a aliança não
sobreviveu depois de o conflito ter terminado. É por isso que o meu pai deseja
que o vosso nos honre com a sua presença. O meu pai não se encontra bem,
compreendeis. Não pode viajar, mas passou toda a sua vida a trabalhar para
chegar a uma aliança com o vosso povo. Ele acredita que seríamos mais fortes se
nos uníssemos.
Os outros ainda não os tinham alcançado, mas Igguldan subiu mais um
degrau e Corinn imitou-o. Subiram juntos, preservando a sua solidão um pouco
mais.
— E somos poetas — disse o príncipe.
— Poetas?
— Poetas?
— É desse modo que guardamos a nossa história, em poemas épicos
cantados pelos nossos bardos. Nos nossos tribunais, os casos são discutidos em
verso. É uma formalidade estranha, mas leva multidões aos casos mais
complicados.
— Que estranho — retorquiu Corinn, embora aquilo não lhe parecesse
realmente assim tão estranho. Não tinha paciência para procedimentos oficiais
de todo. Talvez se toda a burocracia governamental fosse falada em verso, ela
conseguisse suportá-la melhor.
— Sois o filho mais velho na vossa família? — perguntou Corinn. Igguldan
assentiu.
— Sou. Tenho três irmãos mais novos, e dois da segunda mulher de meu
pai.
Corinn tentou erguer uma sobrancelha, embora o que acontecesse foi que
ambas divergiram em direções erráticas.
— Uma segunda mulher?
— Bem... sim, o meu pai cumpriu os velhos códigos, tomando duas
mulheres para garantir um herdeiro. Não precisava de se ter dado ao trabalho,
mas... estava apenas a ser cauteloso.
— Compreendo. Também tendes tendência para ser cauteloso?
— Não. Casarei apenas uma vez.
Haviam chegado à varanda alta nas traseiras do Descanso do Rei. Corinn
pousou as pontas dos dedos na balaustrada de pedra e ergueu o queixo,
apontando-o para a vastidão límpida de mar verde-azulado que se espraiava
perante eles.
— Assim o dizeis. Deveis ter muitas beldades no vosso país — tantas que
um homem pode casar com mais do que uma.
— Estais enganada. Trata-se precisamente do modo contrário. As mulheres
têm metade das virtudes das mulheres de Acácia. Acreditai-me... — O príncipe
tocou nas costas da mão de Corinn. — Princesa, no dia em que tiverdes a
gentileza de visitar Aushenia, sereis saudada como a mais bela mulher no país, e
eu serei o primeiro dos vossos admiradores.
O príncipe não podia ter conjurado mais eficiente elogio para cativar o
agrado de Corinn. Com aquela simples frase, fizera-lhe um cumprimento,
aludindo à sua fidelidade duradoura, e prometera-lhe admiração universal. Ela
permaneceu muda durante alguns instantes, sentindo um formigueiro nos dedos,
permaneceu muda durante alguns instantes, sentindo um formigueiro nos dedos,
imaginando a possibilidade de poder passar a sua vida como um cisne rodeado
por patos. Respondeu ao príncipe de forma evasiva, e prosseguiu com a visita,
mas decidiu descobrir tudo o que pudesse sobre Aushenia. Talvez tivesse
acabado de encontrar o seu futuro marido. Toda a gente sabia que Acácia e
Aushenia ansiavam por uma aliança conjunta. O seu casamento poderia ser um
golpe político. Poderia ser princesa de uma nação, rainha de outra. Tal era algo
por que valia a pena ansiar.
Capítulo 9

Leeka Alain não guardara ilusões sobre a sua importância no decurso da


história do império. Nunca nos seus quarenta e oito anos — dos quais mais de
metade passada a servir o exército — se imaginara a ter um destino de particular
relevo. Era somente um soldado, um entre muitos, que haviam marchado em
fileira e anonimato ao longo da névoa da história. Assim pensara até uma
ocasião em particular, na qual abriu os olhos e acordou de um sono vazio. Um
ato simples, realizado milhares de vezes ao longo da sua vida. Porém, desta vez,
era como se nascesse de novo. Num instante, era o vazio. No seguinte, os seus
olhos tremeluziam perante a criação, a existência, um mundo nunca antes
imaginado, que lhe exigia coisas que nunca lhe haviam dito que pudessem ser
possíveis.
De início, esta criação não passava de um quadrado branco e brilhante por
cima dele, numa geometria irregular, de um brilho intenso contra a escuridão
anterior. Esforçou-se por se sentar e tentar sentir os membros que vagamente
compreendia serem as mãos, os braços, as pernas, os pés. Estava preso. Olhou
fixamente durante algum tempo sem compreender, sem ponto de focagem nem
contexto. Somente quando uma forma cortou o espaço — um rápido fulgor que
surgiu e desapareceu no mesmo instante — é que ele se moveu de novo.
Contemplou o quadrado de luz o tempo suficiente para conseguir de novo captar
o movimento. Um pássaro. Era uma ave, um bater de asas visto por entre as
sombras abaixo. Para lá dela, a criação do mundo deslizava, numa superfície
suave que ele reconhecia como um céu ártico, de nuvens altas. Esta última
revelação foi a sua melhor ajuda até àquele momento. Com ela compreendeu a
pressão que sentia à sua volta. Abriu as narinas e absorveu o odor nauseabundo,
percebendo o que significava. Soube onde estava e como tinha ido ali parar.
Aquela primeira criatura com chifres... o ser que a montava... as muitas
outras que a haviam vindo de dentro da tempestade... acontecera realmente,
pensou. Perdi-os, a todos. Levei-os para...para que é que os tinha perdido? Quem
eram aqueles seres pesados, uivantes, que traziam consigo tal carnificina? Nunca
vira diante de si tal disforme horror. Tal como o primeiro cavaleiro, todos se
tinham materializado sedentos de violência. Alguns traziam lanças que
arremessavam enquanto iam avançando, pesadas armas contra as quais as
armaduras acacianas não passavam de fina pele. O soldado perto de si fora
atingido por uma delas no peito e voou com a força do arremesso, agarrando-se
atingido por uma delas no peito e voou com a força do arremesso, agarrando-se
um instante ao ombro do general, desaparecendo depois. Outros inimigos
vinham montados em bestas como — qual seria a palavra para aquilo? Aqueles
animais de Talay... rinocerontes. Eram uma espécie de rinocerontes
domesticados, mas que estavam cobertos por uma pelagem grossa e cinzenta.
Atropelavam os soldados, por vezes parando em algum lugar o tempo suficiente
para pisar um corpo até o desfazer numa pasta sangrenta.
O maior choque surgira quando o grosso daquele exército armado de
espadas e machados atingiu os soldados acacianos ainda reunidos. Eram seres
enormes, de membros compridos e poderosos. Leeka via que se movimentavam
com um prazer em matar que nunca imaginara possível. Era algo quase infantil,
o modo como tiravam a vida. Como quando um menino com uma espada de
brincar finge cortar em pedaços a cabeça, os braços e as pernas dos
companheiros, e depois empunha o braço no ar, sorrindo perante os estragos que
imaginou ter feito. Assim agiam aqueles seres, cortando membros com infinita
satisfação, girando sobre si próprios em golpes grandiosos que, apesar de tudo,
atingiam os seus alvos, enquanto iam dando palmadas nas costas uns dos outros.
Por entre o desgrenhado dos longos cabelos negros, tinham uma tez pálida, como
a neve. Leeka quis olhar um deles nos olhos de perto, mas nunca conseguiu.
Tentou lembrar-se de que ordens teria dado. Por mais que tentasse reagir à
carnificina com alguma resposta razoável, não se conseguia lembrar de qualquer
reação possível nem imaginar o que poderia ter dito durante os poucos instantes
em que a matança se deu. Simplesmente, nada havia a fazer a não ser assistir ao
inimigo a atacar e os seus soldados a morrer, com sangue espalhado por toda a
parte, membros atirados sobre a neve empapada, corpos como bonecas de trapos
estirados em posições impossíveis para os vivos. Em nenhum momento lhe
pareceu que o inimigo se importasse com a sua própria vida. Nada os tocava.
Nada os assustava e o mal que infligiam sobre os soldados de Leeka não passava
para eles de um enorme divertimento.
Leeka vira um dos lanceiros inimigos espetar uma soldado acaciana.
Aquele ser abominável observara a mulher com curiosidade primitiva, e depois
enfiava a ponta da lança mesmo no rosto dela. Isto perturbara Leeka como nunca
antes acontecera. Rugiu. Dirigiu a fúria que lhe vinha do estômago e lançou um
grito através da tundra. O lanceiro ouviu-o, arrancou a arma da mulher e dirigiu-
se a ele. Se a criatura perdesse a lança e falhasse, Leeka prometia a si próprio,
enquanto corria na sua direção, seria esviscerada pelo aço acaciano no momento
seguinte. Contudo, o lanceiro atirou a arma com destreza. A lança veio veloz na
sua direção, numa mancha célere e alongada. Leeka teria morrido, se não fosse
um dos seus soldados, um homem cujo nome não sabia antes e que nem sequer
um dos seus soldados, um homem cujo nome não sabia antes e que nem sequer
ficou a saber depois.
O soldado interpôs-se entre o lanceiro e o general. A lança espetou-se-lhe
em cheio no peito. Atravessou-o e surgiu do outro lado numa explosão de sangue
e pedaços de costelas partidas. A ponta da lança desviou-se mesmo o suficiente
para o lado para passar através do espaço vazio entre o lado de Leeka e o seu
braço. O corpo do soldado chocou contra o seu. A força do impacto empurrou
ambos para trás. O elmo do homem bateu na fronte de Leeka e deixou-o
inconsciente. Ambos terão caído numa massa confusa, um parecendo tão morto
quanto o outro.
Isso, supunha, era a razão por que ele não fora cuidadosamente executado e
abria agora os olhos muitas horas depois para se encontrar no fundo de uma
pilha de corpos. Antes de ter sido atingido, reparara que alguns dos inimigos
agarravam nos corpos dos soldados chacinados pelos tornozelos e os juntavam
em montes, limpando o terreno como se não quisessem que os cadáveres
atravancassem o seu pátio de recreio, e compreendeu que fora atirado para uma
dessas pilhas. Em seu redor havia outros combatentes amontoados. Imóvel,
preso num monte de mortos, os corpos sangrentos dos homens e mulheres do seu
exército emaranhavam-se com o seu; o seu espírito andava à deriva, perdia e
voltava a ter consciência repetidas vezes.
Nos momentos em que despertava compreendeu a existência como algo que
era constituído por sofrimento e um grande calor. Estava tão embalado nessa
sensação que, durante algum tempo, pensou que o calor era apenas fruto dos
cadáveres. Mais tarde foi tragado por uma inacreditável fornalha, a qual não era
apenas provocada por aqueles corpos rígidos. Sentiu os cadáveres à sua volta
dobrarem e tremerem, exalando o cheiro horrível a carne queimada. Foi só
depois de suportar este estado durante horas e horas, num torpor intermitente de
pesadelos, que acordou para compreender, horrorizado, que o calor se propagava
dentro dele assim como por fora. No centro da sua fronte pulsava uma febre
viva. Havia ali um besouro incorporado. Tinha a certeza disso. Um inseto enfiara
o curvo bico no seu crânio, instilando-lhe algum tipo de veneno, com o fundo
redondo e bulboso do corpo ondeando e zumbindo com o esforço. Tentou
alcançá-lo, mas não se conseguia mexer. Suava por todos os poros do corpo.
Uma camada de sal picava-lhe os olhos. Lambeu os cantos da boca, e ficou
assustado com a pele crestada dos seus lábios. Os dentes também tinham
mudado. Eram afiados caninos que lhe cortavam a língua, enchendo a boca de
mercúrio que, por mais que tentasse, não conseguia expelir. Engasgou-se, perdeu
a consciência, acordou ofegante e lembrou-se do calor e do inseto no seu crânio,
e percebeu que a carne começava a largar-se da sua moldura, a carne apodrecida.
e percebeu que a carne começava a largar-se da sua moldura, a carne apodrecida.
Então perdeu novamente a consciência. Sonho. Acordar. Contorcer-se.
Continuou assim por muito tempo.
Tudo isto ocorreu antes da altura em que acordou para o frio e para o
quadrado de luz acima dele e vislumbrou o pássaro cortando as sombras através
do céu. Não fazia ideia de quantos dias haviam passado ao tentar erguer-se do
medonho emaranhado de cadáveres sob os quais se encontrava. Os corpos, que
lhe haviam proporcionado calor durante algum tempo, estavam agora gelados e
rígidos. O monte estava coberto de gelo, mas era suficientemente fácil ver os
restos carbonizados debaixo deste, as cinzas atiradas pelo vento. Tinham deitado
fogo aos corpos. Em redor dele havia pilhas semelhantes.
O monte no qual Leeka fora sepultado ardera menos completamente do que
os outros; talvez fosse este golpe de sorte a razão pela qual ainda respirava. O
campo da tundra encontrava-se repleto de todo o género de detritos —
equipamento partido sujo de sangue, cadáveres de animais de carga e de cães,
partes de corpos de homens e mulheres. Era um cenário de profunda desolação
gelada, nem uma única criatura à vista, exceto algumas aves necrófogas, como
os abutres atarracados de pescoço forte daquele clima gelado. Tinham bicos
enormes, curtos e visivelmente serrilhados. Com uma centelha de esperança,
considerou a possibilidade de estar realmente morto e de tudo o que o rodeava
ser o mundo após a morte. Porém, o mundo era terrivelmente demasiado sólido
para poder acreditar nisso.
Talvez ali tivesse permanecido mais algum tempo, apoiado até às coxas
pelos restos carbonizados, não fosse um abutre pousar ali, perto da sua mão, e
arrancar uma das articulações curvas de um dedo de um dos seus soldados. O
pensamento de matar um ou dois deles deu um alento de finalidade a Leeka. No
espaço de uma hora conseguiu arranjar um arco e várias flechas. Empalou três
deles e fez as outras aves começarem a voar em círculos sobre a sua cabeça,
gritando a sua fúria lá do alto. Não precisou, contudo de muito tempo para
perceber que a tarefa era fútil. Apareciam cada vez mais aves, pousando no chão
sempre que ele lhes virava costas.
Apercebeu-se de que havia outras criaturas em redor: pequenas raposas
brancas, pintalgadas de rosa nas mandíbulas, um animal semelhante a uma
fuinha, com cauda às tiras pretas e brancas, até espécies de insetos de carapaça
dura, que pareciam indiferentes ao frio. Matou vários destes somente por tocar-
lhes. Queimava-os com o calor das pontas dos seus dedos. Calor. Que força tão
poderosa neste lugar inóspito e perdido, instrumento tanto de vida como de
morte, de tortura como de salvação.
Pensando nesta última, começou a reunir material para acender uma
Pensando nesta última, começou a reunir material para acender uma
fogueira. Não foi fácil, fraco como estava. Teve de parar várias vezes e beber
golos de água do cantil que levava junto ao abdómen e mordiscar o pedaço de
pão duro e achatado, o único alimento que tinha. Na luz oblíqua do anoitecer
precoce, conseguiu acender a fogueira, que cresceu, em labaredas cada vez
maiores. Atirou para lá os corpos gelados e chamuscados dos seus soldados.
Aventurou-se na escuridão e no frio e arrastou tudo o que pôde para as chamas,
atirando os corpos como se fossem oferendas às labaredas. Repetiu o gesto vezes
sem conta, sendo cada vez mais uma viagem entre extremos. Sentia-se tonto
quando se movia demasiado depressa. Caiu muitas vezes sobre um joelho, de
olhos fechados, até a tontura passar. Levantara-se novamente vento e, com as
rajadas a mudar de direção, era impossível não respirar o fumo. Tossindo e
coberto de fuligem, realizou a tarefa até a completar. O seu exército não serviria
de alimento aos abutres. Melhor seria que se libertassem, pelo ar, para que se
dispersassem e procurassem paz através da criação desamparada do Doador.
Mais tarde, nessa noite, Leeka acocorou-se junto à fogueira, com os olhos
lacrimosos das cinzas. A poeira agarrara-se aos lábios e prendera-se-lhe nos
dentes. Por várias vezes as rajadas de vento lhe trouxeram como que o som de
vozes de mulheres cantando ao longe. Impossível, e, contudo, ouviu-as quase
com a clareza suficiente para conseguir perceber palavras soltas e para trautear
baixinho a canção para si próprio. Que fazer agora? Tentou diversas vezes
concentrar-se nessa questão. Era um general confrontado com a tragédia; antes
de qualquer outra coisa, tinha de delinear um plano de ação. Mas nunca
conseguia fazer mais do que colocar a questão, antes que a recordação daquele
horror lhe desviasse a atenção. Apesar de o seu espírito se arrepiar com o cenário
da chacina, não conseguia fixar-se numa única imagem em que tivesse visto uma
daquelas criaturas humanas inimigas tombar no solo. Ao longo do trabalho,
durante aquele dia, não vira nenhum dos seus mortos. Todos os membros que
apanhara e atirara para a fogueira pertenciam aos seus homens. Nada encontrou
que provasse que um dos inimigos sequer tivesse sido morto, nada que o levasse
a acreditar que alguns deles teriam sido, sequer, feridos.
O trilho dos invasores era fácil de ver à luz clara da manhã. Apesar de o
vento e a neve terem coberto o rasto, o caminho que haviam deixado era como
um rio seco atravessando a tundra. Fossem quais fossem os veículos que
empurravam ou puxavam, deviam ser maciços, pois o rasto que haviam deixado
na neve enterrava-se vários centímetros no solo. Viu os trilhos entrecruzados das
bestas semelhantes a rinocerontes. Por toda a parte havia milhares de pegadas
deixadas pelo inimigo. O tamanho de algumas era quase o dobro das de um
homem. Outras eram pequenas e deviam pertencer a crianças. Contudo, por entre
homem. Outras eram pequenas e deviam pertencer a crianças. Contudo, por entre
estas, havia também marcas de botas de soldados acacianos. Prisioneiros?
Leeka começou a percorrer o trilho. Marchava com todas as provisões que
conseguira salvar e que puxava num dos pequenos trenós. Transformou os paus
das tendas em bordões para o ajudar na caminhada, enfiando-os bem no gelo a
cada passada. Esforçava-se por manter um ritmo, uma figura isolada correndo
em busca de um exército. Não fazia muito sentido. Apenas tinha de fazer alguma
coisa. Era um soldado do império, afinal de contas, e havia um inimigo à solta,
uma nação que era preciso avisar.
Capítulo 10

Como todos os aushenianos que Aliver vira até então, Igguldan vestia
orgulhosamente o seu traje nacional: calças em pele, compridas, bem justas à
perna, uma túnica verde de mangas compridas tendo por cima um colete azul, e
usava um chapéu de feltro colocado à banda na cabeça. No fundo, era um traje
simples, do género que se veste para uma caçada. Isto condizia com o carácter
nacional. Os aushenianos adoravam as florestas ondulantes do seu país e
gostavam de se imaginar ainda como caçadores, tal como os seus antepassados
haviam sido. Pela compleição robusta e membros compridos do príncipe, Aliver
sentiu que talvez ainda o fossem.
Aliver queixara-se um dia ao pai que as outras nações não deviam ter sido
autorizadas a manter a sua realeza. Que sentido tinha um rei ter domínio sobre
outros reis? Minava a sua autoridade, ameaçava fazer dos outros iguais a eles.
Não deveria haver somente um monarca para todo o império? Leodan
respondera com comedida paciência. Não, dissera, isso não seria vantajoso.
Todas as nações do Mundo Conhecido — para além de Aushenia — lhes eram
subservientes de muitas maneiras, em todos os assuntos de importância. Eram
povos conquistados, mas mantinham o seu orgulho. Manter os seus reis e
rainhas, os seus costumes e características, permitia-lhes manterem o seu
orgulho. Isso era importante porque um povo sem sentido de si próprio era capaz
de tudo.
— Não te custa nada tratar ocasionalmente alguém pelo seu estatuto real —
dissera. — Deixa-os ser o que são, e que o nosso domínio sobre eles seja tão
suave como a mão de um pai sobre os ombros do filho.
Não foi o contingente completo do Conselho do Rei que foi ao encontro do
príncipe ausheniano. Alguns membros de categoria mais elevada enviaram os
secretários em seu lugar — algo que fez Leodan resmungar para si. Thaddeus
encontrava-se ao lado do rei, assim como Sire Dagon, da Liga dos Navios, e
muitos outros dignitários, para conferir ao encontro a devida importância. O
príncipe estrangeiro encontrava-se rodeado por outros representantes da sua
nação, como conselheiros e embaixadores experientes. Aliver sabia que o
príncipe era apenas três anos mais velho do que ele, mas, no cumprimento da sua
missão, parecia um dignitário com muito mais prática. Os homens mais velhos
prestavam-lhe deferência. Antes de lhe dirigirem a palavra, pediam-lhe
prestavam-lhe deferência. Antes de lhe dirigirem a palavra, pediam-lhe
autorização com o olhar. Ele conversava à vontade com Leodan e Thaddeus, e
recitou uma longa saudação do seu pai, Guldan, que mais parecia um poema,
pelo seu ritmo e no uso ocasional de rima. Aliver poderia ter-se sentido posto à
margem, ao ver um jovem mais à-vontade do que ele em tal papel, mas era
difícil não se gostar de Igguldan, com o seu rosto sincero e maneiras sorridentes.
— Gentis conselheiros de Acácia, — proferiu Igguldan —, na verdade,
nunca vi ilha mais bela, e palácio mais impressionante, do que estes. A vossa
nação é abençoada e Acácia é a joia central na mais rica das coroas.
Falou durante algum tempo como se o seu único objetivo fosse cantar
louvores à cultura acaciana. Como amava cada vista que se tinha da cidadela
alta! Como ficara maravilhado com a qualidade do trabalho em pedra, a
funcionalidade artística da arquitetura acaciana, a refinada demonstração de
riqueza despretensiosa. Nunca provara prato tão delicioso quanto o peixe-espada
grelhado da noite anterior, preparado ao lume à sua frente, e embebido num
molho de um qualquer fruto doce que nunca antes imaginara existir. Toda a
gente que ali conhecera agia de modo tão cortês e digno que iria levar para a sua
terra uma nova perceção de modelo de comportamento. Vindo de uma nação
mais pequena, presa das intempéries da natureza e do que isso acarretava no
comportamento humano, ficara incrédulo perante a sublime mescla de poder e
tranquilidade que reinava em Acácia.
Tinha um modo tão cortês de se exprimir que Aliver levou algum tempo a
reparar em que altura o príncipe mudou o foco do discurso para o verdadeiro
assunto da sua visita. Na altura em que se apercebeu, Igguldan declarava que a
nação a que pertencia tinha orgulho na sua longa história como um estado livre e
independente. Sabia que não teria de lembrar a nenhum dos presentes ali
reunidos sobre o papel que Aushenia desempenhara em manter a segurança e a
paz de Acácia. Fora o poder combinado de Aushenia e Acácia que havia
derrotado os seus inimigos comuns há muitos anos atrás. Poderiam ter tido
relações algo turbulentas, numa ocasião ou outra, em épocas distantes, mas era o
espírito da antiga relação que mantinham que o seu pai desejava agora que fosse
lembrado.
— É por isso que venho trazer o pedido de meu pai para que admitam
Aushenia pacificamente no império acaciano, como uma província parceira a par
de Candovia, Senival ou Talay. Se nos aceitarem, Guldan jura que a vossa nação
lucrará com isso e que nunca se virá a arrepender da decisão.
Ali estava ele, pensou Aliver, apresentando de forma mais clara do que
imaginara, o conteúdo da proposta. A resposta acaciana, contudo, não era tão
simples. Os membros do Conselho do Rei crivaram o jovem de perguntas.
simples. Os membros do Conselho do Rei crivaram o jovem de perguntas.
Quando lhe perguntaram sobre se Guldan revogaria o decreto da rainha Elena —
aquela altiva declaração de eterna independência — Igguldan retorquiu que as
palavras da rainha eram verdade para a época em que vivera. Não era possível
voltar ao passado e mudar o rumo das coisas. Guldan nunca contradiria a rainha
Elena, mas falava no presente, deste momento, dos dias e anos vindouros.
Thaddeus perguntou que infortúnio atingira Aushenia para, depois de tanto
tempo, vir suplicar um lugar à mesa do banquete.
— Nenhum grande infortúnio, senhor, mas vivemos há demasiado tempo
fora dos círculos das trocas comerciais do império. Existe um espírito novo entre
o meu povo que prefere olhar para o futuro com um olhar diferente. Vemos
agora oportunidades que antes não vislumbrávamos. O meu pai é o primeiro a
ver isso entre nós.
— Hum — retorquiu Thaddeus, pouco impressionado. — Encontram-se
então numa situação assim tão terrível?
Sentiu-se no tom de voz do príncipe um ligeiro agravo ao refutá-lo.
Aushenia, explicou, era uma nação modesta, mas nunca fora pobre. Eram ricos
em âmbar, uma pedra preciosa conhecida em todo o mundo. Os seus enormes
pinheiros davam a melhor madeira para navios no Mundo Conhecido. E as suas
árvores produziam uma seiva que, através de um processo secreto, gerava um
pez que impermeabilizava os cascos dos navios contra as águas e os danos
causados pelo sal e pelos vermes. Isto, sabia, constituía um benefício para
qualquer nação que navegasse no oceano profundo.
Igguldan parecia tentado a continuar, mas Sire Dagon aclarou a voz para
falar. Até agora mantivera-se silencioso e tranquilo, a uma das extremidades da
mesa, mas Aliver sentira o poder da sua presença durante o tempo todo. A Liga
dos Navios. O seu pai murmurara uma vez que não havia força mais formidável
em todo o império.
— Pensas que domino o mundo? — perguntara, sardónico e misterioso ao
mesmo tempo. A Liga surgira do caos anterior à época de Edifus, como uma
união informal de navegadores, um vago aglomerado de piratas, no fundo. Sob o
domínio de Tinhadin, ganharam o contrato de navegação para as novas trocas
comerciais com os Lothan Aklun. Com esta legitimidade, produziu-se tal riqueza
que evoluíram para um monopólio que controlava todo o comércio marítimo.
Pouco tempo depois, constituíam uma entidade diversificada com influência em
todos os setores do Mundo Conhecido. Uma vez ganho o controlo efetivo sobre
a força naval acaciana — um acordo mediado quando o sétimo monarca Akaran
dissolvera a sua problemática marinha e procurara a Liga como uma alternativa
dissolvera a sua problemática marinha e procurara a Liga como uma alternativa
eficiente — tornaram-se num poder militar, inclusive com um exército privado,
o Inspectorado Ishtat, que, afirmavam, era uma mera força de segurança para
proteger os seus interesses.
Sire Dagon tinha um aspeto tão estranho como qualquer um dos outros
homens da Liga. O seu comportamento era mais o de um sacerdote de alguma
antiga seita do que o de um mercador. O crânio fora de tal modo apertado e
moldado na infância que se tornara alongado, sendo o alto da cabeça parecido
com um ovo. Tinha o pescoço invulgarmente comprido e estreito, efeito
conseguido pelo uso de vários anéis que usava ao pescoço enquanto dormia,
aumentando lentamente de número ao longo da vida. Falava num tom de voz
apenas o suficientemente alta para poder ser ouvida, num timbre estranhamente
atonal, como se cada palavra ansiasse por negar que fora sequer pronunciada.
— A vossa nação tem quantos habitantes?
O jovem príncipe fez um gesto ao seu ajudante e o homem mais velho
respondeu. De cidadãos livres tinham trinta mil homens, quarenta mil mulheres,
quase trinta mil crianças e os velhos eram pouco numerosos, visto os
aushenianos preferirem acabar com a vida assim que se sentiam improdutivos.
Tinham uma ampla população de mercadores estrangeiros no país, de que se não
conhecia o número, e mantinham uma pequena classe de servos que rondaria as
dez mil a quinze mil almas.
Quando o homem acabou, Igguldan proferiu:
— Mas sabeis disto. Há algum tempo que nos apercebemos de que estamos
a ser vigiados por agentes da Liga.
— Tenho a certeza de que estais enganado — retorquiu Sire Dagon, embora
não esclarecesse em que aspeto errara o príncipe. — No passado, o vosso povo
colocou objeções ao nosso sistema de comércio. Deveremos acreditar que isso
mudou? O vosso pai cumpriria todos os nossos requisitos, como cabe a uma
nação com posição no seio do império? Sabeis qual o produto com que fazemos
comércio e o que recebemos em troca?
Na pausa que se seguiu antes da resposta de Igguldan, Aliver transferiu o
olhar do rosto dele para o dos outros membros do conselho, para a expressão do
pai e de novo para a do representante da Liga. Sentiu a pulsação acelerar-se com
uma sensação de perigo, e percebeu sinais da mesma tensão nos outros rostos,
mas em nenhum viu o género de confusão que sentia. A que produto se referia
Sire Dagon? Ao minério das minas, ao carvão de Senival, às mercadorias e
pedras preciosas de Talay, aos produtos exóticos do arquipélago de Vumu: estes
eram os produtos de comércio internacional. As mercadorias que Igguldan
eram os produtos de comércio internacional. As mercadorias que Igguldan
referira também teriam compradores. Porém, se era a estes bens que se referia,
por que razão falara com um tom de tão sinistra importância?
Igguldan respondeu ao homem da Liga com um aceno relutante.
Agradado, Sire Dagon pousou uma das mãos de longos dedos sobre a outra
e colocou-as sobre o tampo da mesa. A joia que trazia num dos enormes dedos
refletiu por um momento um fulgor de luz.
— Com tempo, e sendo razoáveis, todos os povos acabaram por achar o
nosso sistema atrativo. Todos viram os benefícios que oferecemos. Mas, por
causa disso, temos de proteger o que já estabelecemos. Encontrámos um
equilíbrio. Não o queremos perturbar. Por causa disto, os novos partidos não são
inteiramente bem-vindos nesta altura. Tenho a certeza de expressar a vontade do
rei ao mencionar isto. — Sire Dagon fez um gesto a Leodan sem sequer olhar
diretamente para ele. Depois pareceu mudar de atitude. — Por outro lado...
dizei-me, as vossas mulheres são férteis?
Igguldan deu uma gargalhada, mas depois conteve-se, visto ninguém o ter
acompanhado no riso. Olhou em volta e, a seguir, para Sire Dagon novamente. O
seu rosto demonstrava ter compreendido que, fosse qual fosse a piada insinuante
que julgava que o homem da Liga estava a fazer, fora um mal-entendido.
Seguiu-se uma discussão que Igguldan claramente achou tão estranha quanto
Aliver. Os ajudantes de Aushenia vinham preparados para a questão. Citaram
estatísticas sobre as idades em que as mulheres aushenianas atingiam a
maturidade sexual, sobre a frequência com que engravidavam, e a taxa de
mortalidade infantil.
Por instantes, Aliver julgou ver um sorriso esboçar-se nos cantos da boca de
Sire Dagon, mas depois não teve a certeza se seria essa a verdadeira
interpretação da expressão. O homem da Liga guardou fosse qual fosse a
resposta que poderia ter dado e, simplesmente, retirou-se novamente para o
silêncio enigmático que mantivera até ali. A reunião prosseguiu sem mais
nenhuma palavra por parte de Sire Dagon.
Leodan parecia feliz por as conversações mudarem de rumo.
— Ouço a vossa convicção, príncipe, e admiro-a. Mas eu também há muito
que admiro a independência da vossa nação. Sois os últimos no Mundo
Conhecido a permanecerem sozinhos; para alguns de nós o vosso povo foi...
bem, uma inspiração.
— Meu senhor, — disse Igguldan —, não se alimenta, veste e toma conta
de uma nação simplesmente através da inspiração. Nós, aushenianos, nada temos
que nos envergonhe, mas é óbvio para nós que o mundo se afastou do modelo
que nos envergonhe, mas é óbvio para nós que o mundo se afastou do modelo
que durante tanto tempo desejámos.
— E qual é? — perguntou Thaddeus. — Avivai-nos a memória.
— Aushenia foi, durante algum tempo, governada por mulheres de grande
prestígio e sabedoria. A nossa rainha Elena, nos seus decretos, propôs que o
Mundo Conhecido fosse composto por uma federação de nações livres e
independentes, nenhuma subserviente a outra, todas fazendo trocas comerciais
dos bens que melhor produzem, cada uma seguindo os seus costumes e carácter
nacional, honrando as antigas tradições e religiões, embora estendendo a mão da
amizade a outras. Foi isto que Elena propôs a Tinhadin.
Um dos membros do conselho observou que este sistema talvez funcionasse
a um nível de subsistência — cada nação poderia aguentar-se e ficar em grande
parte em igualdade de condições — mas nenhuma alcançaria a riqueza,
estabilidade e a produtividade que a hegemonia acaciana criara com a ajuda do
comércio gerido pela Liga. Teriam permanecido ilhas cheias de fervor nacional,
sempre em escaramuças entre si, tal como haviam sido antes das Guerras da
Distribuição.
Igguldan não tentou contradizê-lo. Fez um gesto de assentimento e apontou
para o palácio à sua volta, demonstrando que tudo aquilo era um testemunho da
verdade daquele argumento.
— A rainha ter-vos-ia respondido dizendo que o que é mais grandioso não é
sempre o melhor, especialmente quando a riqueza é detida por uns poucos e
alimentada pela labuta de muitos. — Igguldan baixou a cabeça e passou uma
mão pelo cabelo. — Mas não foi sobre isso que eu cá vim falar. Elena pertence
ao passado, nós olhamos para o futuro.
— Por vezes, ainda visiono o mundo que a vossa rainha sonhou —
retorquiu Leodan.
— Eu também, — respondeu o príncipe — mas só de olhos fechados. Com
os olhos abertos, o mundo é algo de muito diferente.
Após a reunião ter acabado, uma hora e pouco depois, o rei tomava chá com
Aliver e o chanceler. Os dois homens dialogaram durante algum tempo,
deixando a conversa divagar de um aspeto da reunião para outro. Aliver ficou
surpreendido quando o pai perguntou:
— Que pensas de tudo isto? Fala sinceramente.
— Eu? Penso que... o príncipe me parece ser o género de pessoa razoável.
Nada de mal posso dizer dele ainda. Se representa verdadeiramente o seu povo,
isso é bom para nós, não é? Apenas me interrogo sobre a razão de só agora se
quererem unir a nós, visto nos terem em tão alto apreço?
quererem unir a nós, visto nos terem em tão alto apreço?
— Unirem-se a nós significa muitas coisas boas — respondeu Leodan. —
Têm razão em terem hesitado, mas desde há algum tempo que vêm
demonstrando que serão nossos amigos se nós formos amigos deles.
Thaddeus fez um sinal com a mão de que as coisas não eram assim tão
simples.
— Como sempre, o vosso pai é generoso nas palavras que profere.
— Não, o que digo é mesmo assim. Há muitos anos que eles nos estendem
uma mão de amizade. Simplesmente, nós ainda não a agarrámos.
— E ainda bem que o não fizemos. A nossa paciência valeu a pena. — O
chanceler falou como se estivesse a dirigir-se ao rei, mas os seus olhos fitaram
os de Aliver o tempo suficiente para indicar que estava a delinear os assuntos de
forma mais completa para seu benefício. — O que o príncipe não admite é que
Aushenia deve estar a passar um mau bocado. Admira-me que tenham
permanecido fora do império tanto tempo sem terem sucumbido ao fardo
financeiro que isso implica. Têm alguma riqueza mineral, sim, florestas que
produzem muito, e vários bons portos, e o âmbar e o pez que Igguldan
mencionou, mas, sem a Liga para poderem fazer comércio, pouco têm
conseguido com isso. São um povo orgulhoso, mas foram forçados a vender os
seus bens no mercado negro, a traficar com piratas. Isto não se encaixa bem em
todo aquele idealismo. Estão a fazer esta proposta tão diretamente porque
precisam de nós mais do que nós precisamos deles. Se os aceitarmos, será um
assunto delicado gerir o seu estatuto no seio do império. Existem muitos fardos
sobre um novo Vedel, um membro conquistado de nível inferior. Terão de
aceitar isto sem o considerar um insulto, apesar de, na verdade, entrarem como
um Vedel ser algo insultuoso.
— E se não entrarem como Vedéis? — perguntou o rei.
— Tem de ser assim, contudo. Pelas antigas leis, não existe outra categoria.
Tinhadin foi muito claro de que todo o mundo tinha a opção, na sua época, de se
unir a ele ou lutar contra ele. Quando Aushenia se recusou a aceitar a hegemonia
de Acácia, decidiu o seu destino. — Thaddeus parou apenas para sorver um gole
de chá, e depois ergueu a voz para responder ao argumento que antecipou. — As
gerações entre essa época e o presente nada mudaram. Qualquer líder de
qualquer nação compreende que as suas decisões afetarão todas as gerações
vindouras. Quando a Rainha Elena rejeitou a oferta de Tinhadin, sabia que o seu
povo viveria para sempre com as consequências de tal ato.
Leodan disse:
Leodan disse:
— Thaddeus coloca as coisas a preto e branco num mundo de milhares de
cores. Na verdade, não conquistámos nem derrotámos Aushenia nas antigas
guerras. Não tivessem eles sido também inimigos do Mein e talvez não
tivéssemos prevalecido. Eles têm vivido durante centenas de anos sem ser como
aliados, como vassalos ou como inimigos.
— Sim, centenas de anos — retorquiu Thaddeus — e isso não pode mudar
de um dia para o outro. Na verdade, Aliver, claro que o teu pai acolheria os
aushenianos. Ele é um idealista. Quer um mundo pacífico no qual todos são
bem-vindos à mesa. Não gosta de reconhecer que, para existir uma mesa, muitos
têm de ser excluídos dela. Isto é algo em que a Liga, contudo, baseia todas as
suas decisões. É por isso que será improvável que seja permitido a Aushenia
entrar. A Liga tem um veto em cada expansão do império deste género. Pressinto
que estejam tentados a aceitar Aushenia, mas que, no entanto, hesitam, por
qualquer razão que talvez nunca venham a explicar-nos. Algo que o teu tutor
talvez ainda não te tenha explicado completamente ainda, Aliver, é que o
império é tanto um empreendimento comercial como imperial. Nesta área, a
Liga tem a última palavra. Conhecemos apenas uma parte de como a Liga
conduz os seus assuntos, mas, se eles não quiserem que Aushenia entre, então
Aushenia continuará de fora.
Leodan levou as mãos ao rosto, parecendo fatigado pela conversa.
— E isto, filho, é o assunto reduzido à sua essência.
— A preto e branco — retorquiu Thaddeus.
Capítulo 11

O assassino viajara até Acácia em completo segredo porque não tivera outra
opção. Se alguém tivesse sabido da missão de Thasren, teria havido demasiadas
oportunidades de ser traído. Havia muita gente por todo o império que se
queixava do domínio de Acácia, mas não podia confiar em ninguém fora das
portas da sua cidade-capital. Nem sequer recorreu aos agentes já escondidos
dentro de Acácia, muitos deles agindo há anos, outros há gerações. Quem
poderia ter a certeza de que a vida nestes climas do sul não os tivesse
corrompido? Assim, orientou-se pela cidade baixa e a partir daí passou a porta
principal disfarçado de operário. Passou despercebido pelas ruas repletas de
gente atarefada com uma facilidade que o encheu de repugnância por aquelas
pessoas. Nenhum estranho poderia vaguear assim sem ser notado pelas ruas de
Tahalian. Qual a utilidade de viver em tão formidável fortaleza se um agente
inimigo ali conseguia penetrar tão facilmente? A ilha era um desperdício nas
mãos daquela gente. Sentiu o coração palpitar de antecipação ao olhar em volta
para toda aquela riqueza ostentosa. Sob o controlo do Mein, uma Acácia
rebatizada seria um bastião impenetrável. Alegrou-se ao imaginar isto, apesar de
saber que não viveria para ver esse glorioso dia com os seus próprios olhos.
Fazendo algumas perguntas a um ou outro transeunte de pele escura,
descobriu o caminho que levava ao bairro que albergava os dignitários
estrangeiros. Embora fingindo estar ocupado com qualquer coisa, ficou à espera
do único contacto que planeara fazer. Não demorou muito a encontrá-lo. Na
terceira tarde na cidade, reconhecera o embaixador do seu povo em Acácia. O
cabelo, outrora louro, de Gurnal, adquirira uma tonalidade brilhante metálica,
como muitas vezes acontece aos homens do Mein que passam muito tempo no
sul. De início, vira apenas a sua cabeça por entre a multidão, mas, quando o
embaixador passou perto dele, viu que trajava vestes largas como um acaciano,
sandálias e meias de lã. Somente o medalhão que trazia ao pescoço demonstrava
as suas origens. Maeander tivera razão nas suas suspeitas; Gurnal esquecera-se
de quem era. Porque seria a atração pelo requinte sempre tão poderosa para
enfraquecer os homens? Porque seria uma nação erguida sobre mentiras tão
atrativa às pessoas que deveriam ter mais consciência?
Thasren tinha ainda estas questões a ocupar-lhe o espírito, nessa noite,
quando escalou a muralha de pedra e saltou para o pátio das traseiras da casa do
embaixador. Acreditava, pelas observações que fizera, que sabia exatamente
embaixador. Acreditava, pelas observações que fizera, que sabia exatamente
quantas pessoas viviam ali. Começou a procurar cada uma delas
meticulosamente. Caminhava devagar pela casa adormecida, parando em cada
sala para que os olhos se adaptassem a qualquer mudança de luz ou sombra.
Assegurou-se de que não embatia em nada, uma tarefa difícil, visto a casa estar
repleta de objetos inúteis, urnas decorativas e estátuas de tamanho humano,
cadeiras demasiado pequenas para que alguém se sentasse, animais
embalsamados em posturas vivas. Cada sala possuía uma fragrância diferente.
Apercebeu-se — talvez mais rapidamente do que teria conseguido durante o dia
— de que os cheiros provinham de flores diferentes.
Encontrou a filha do embaixador a dormir e manietou-a sem fazer barulho
algum. Tudo o que a rapariga fez foi erguer a mão por um instante, enquanto ele
lhe tapava a boca aberta com uma fita de tecido, como se não quisesse ser
acordada de um sonho agradável. O filho adolescente do homem tinha o sono
leve e era forte, e os dois lutaram por alguns momentos no escuro. Foi uma luta
estranha e abafada, mais bizarra ainda porque o rapaz não proferiu palavra
durante todo o tempo, mesmo quando o assassino lhe torceu os braços a ponto
quase de os partir. A mãe do rapaz arfou quando a lâmina curva da faca do
assassino lhe tocou na traqueia. Abriu os olhos e fitou-o, balbuciando o nome do
marido, mas, se isto fora uma súplica ou acusação, ele não tinha a certeza.
Amarrou ambos onde os encontrou, perfeitamente consciente do quão piedoso
estava a ser. Os três criados da casa eram outro assunto. Dormiam perto uns dos
outros e acordaram todos para o combater. Foi quase um alívio, uma libertação,
esfaqueá-los e escutar enquanto iam tombando quietos e silenciosos. A rixa
causara algum barulho e Thasren não se mexeu durante algum tempo, atento ao
mínimo movimento ou ruído que indicasse que tinha sido ouvido.
Gurnal deveria ter sentido qualquer coisa no silêncio da noite. Deveria ter
estado a pé, armado e pronto a atacar, mas estes anos em Acácia haviam-no
entorpecido. Mesmo quando o assassino entrou, rolava para um dos lados da
cama e depois para o outro lado, novamente, enredado na roupa do leito como
uma criança. Quando por fim se ergueu nos cotovelos, murmurou qualquer coisa
baixinho. Atirou as pernas por cima da cama, pôs os pés nus no chão e levantou-
se. Saberia que havia algo de errado? Se o sabia, não agiu como tal. Não se
apercebeu de Thasren de pé, nas sombras atrás do canto do guarda-roupa.
Balbuciou qualquer coisa e depois ergueu-se e dirigiu-se para o corredor.
O assassino deslizou do seu esconderijo, agachou-se rente ao chão. Com a
faca atingiu o homem na parte de trás dos joelhos, primeiro numa perna e depois
na outra, dois golpes rápidos como se tivessem sido executados por um talhante.
Quando Gurnal caiu, o assassino agarrou-o pela gola da camisa de dormir e
Quando Gurnal caiu, o assassino agarrou-o pela gola da camisa de dormir e
puxou-o para trás. No momento a seguir já tinha prendido os braços do homem
sob os seus joelhos fortes, com tal pressão que sentiu os músculos dos braços do
adversário deslizarem em redor do osso. Gurnal gritou com todas as forças que
tinha, até o assassino espetar a extremidade sangrenta da faca na ponta do seu
nariz. Isto bastou para o silenciar.
— A quem deves tu lealdade? — perguntou Thasren. Falou na língua
materna, de tons dissonantes, palavras que soavam a seixos do rio a fenderem
sob um cinzel.
O homem fitou, sem reconhecer, os olhos cinzentos do atacante, da mesma
cor que os seus.
— Ao Mein. Ao sangue de Tunishnevre, aos milhares que pereceram, com
quem... sou uno.
— É bom que profiras tais palavras. São as certas, mas serás tu o homem
certo?
— Claro — respondeu Gurnal. — Quem és tu? Por que razão me mutilaste?
Eu sou...
— Cala-te! Eu farei as perguntas. — O assassino mudou a posição em que
estava, de modo a colocar um joelho sobre o peito do homem numa postura que
lhe era mais confortável. — Quando estarás novamente perto do rei?
Gurnal demonstrou o seu desconforto com suspiros e esgares de dor. O
assassino apoiou mais peso em cima do peito do homem, até este cuspir uma
resposta. De início, falou com os olhos esbugalhados de incredulidade, como se,
simplesmente, não fosse possível ter acordado naquela situação, que estivesse
ferido como estava, e que a sua boca conseguisse responder a um inquérito tão
aleatório. O atacante tinha mais perguntas, contudo. Fazia-as como se aquela
situação fosse bastante normal. Gurnal respondia, dando pormenores sobre a sua
vida diária, os deveres que tinha, os lugares onde o esperariam nos dias seguintes
e o que iria lá fazer. Pouco depois parecia obter algum consolo nas suas
respostas, como se todos aqueles vários compromissos lhe garantissem que o seu
lugar no mundo dos vivos continuaria.
O interrogador acabou por voltar ao ponto em que começara.
— Encontrar-te-ás com ele esta noite?
— Sim, claro. Não pessoalmente, entendes, mas deverei estar no salão
quando ele for saudar o séquito de Aushenia. Serei um entre muitos...
— Haverá um banquete?
— No palácio, daqui a duas noites. Estarei lá presente. Seremos apenas um
— No palácio, daqui a duas noites. Estarei lá presente. Seremos apenas um
pequeno grupo. É raro jantar-se à mesa com o rei, mas eu... — O homem
engasgou-se e parou. Nos olhos surgiu-lhe uma expressão de espanto. O queixo
moveu-se antes de conseguir articular as palavras seguintes. — Conheço-te!
Thasren! Thasren...
O assassino silvou para o fazer calar e falou-lhe perto do ouvido, deixando
que os lábios aflorassem a pele macia e a cartilagem do lóbulo da orelha.
— Quem eu sou não te interessa. O que importa é que te tomaste um fraco.
Falas com a boca e não com o coração. — O embaixador protestou, olhando de
um lado para o outro, como se a ajuda estivesse por ali, à espera, e esperasse só
um olhar para agir. — Talvez o Callach, que a todos julga diante das portas das
montanhas, te ouça e te permita a entrada. Mas, neste mundo, respondes perante
um senhor diferente para avaliar o teu valor, e este senhor não está satisfeito
contigo. Hanish Mein já não dá importância à tua vida, mas, visto seres um
Mein, terás uma última oportunidade de provares a tua lealdade.
Durante as horas que se seguiram explicou ao homem e à família como as
coisas se iriam passar. Descreveu os tormentos sem fim que Hanish lhes
infligiria se falhassem em algumas ações que se lhes pedia. Incutiu-lhes o dever
para a sua raça e lembrou-lhes que o alcance dos Tunishnevre era tal que
nenhum Mein podia escapar à sua ira. Bastava que fizessem meia dúzia de coisas
para se salvarem. A mulher e os filhos mostrar-se-iam em público, sem dar sinal
de que alguma coisa mudara. Sorririam afetadamente, bajulariam e adulariam os
acacianos como parecia ser natural neles. Arranjariam desculpas para explicar a
ausência dos criados e não permitiriam a ninguém entrar em casa. Por seu lado,
Gurnal informaria Thasren de tudo o que este precisaria de saber para chegar
junto do rei, que costumes deveriam ser seguidos, quem poderia encontrar, com
que género de segurança se depararia. Resumindo, ajudá-lo-iam a matar o rei.
Quando Thasren deixou a casa naquela tarde, usava uma peruca feita do
cabelo de um dos criados, presa com uma bandolete de crina de cavalo que lhe
atravessava a fronte, um ornamento tradicional em ocasiões importantes. Havia
uma outra razão, além de apenas as suas capacidades como assassino, para ter
sido incumbido daquela missão. A estrutura do seu rosto era muito semelhante à
de Gurnal, tinha os mesmos traços gerais, quase idênticos na harmonia dos olhos
e nos ossos do queixo. Afinal de contas, faziam parte da mesma árvore
genealógica, eram primos em segundo grau do lado materno. A maior diferença
que tinham era o cabelo, mas isso fora remediado.
Encontrou o caminho para o palácio com bastante facilidade. Entrou pelos
portões reais como mais um entre um fluxo enorme de pessoas, não sendo sequer
portões reais como mais um entre um fluxo enorme de pessoas, não sendo sequer
interrogado pelos guardas que, simplesmente, se limitaram a acenar-lhe. Como
nenhuma daquelas pessoas iria estar junto do rei, os guardas não os revistavam à
procura de armas traiçoeiras, apenas os observavam e encaminhavam para
espaços pré-estabelecidos, espetadores mas não participantes. Thasren detestava
o cheiro do lugar, uma amálgama confusa de diferentes odores, colónias e
perfumes de tantas terras estrangeiras. Era exatamente como Hanish dissera que
seria: os representantes de tantas nações, de diversas raças, que agora se
curvavam em vénias e sorrisos perante os senhores acacianos. Teria o mundo
inteiro esquecido o orgulho da raça? Eram como muitas criaturas com cascos —
veados e antílopes — reunindo-se para entoar louvores ao leão que lhes
devorava os filhos. Nada daquilo fazia sentido.
Permaneceu perto da saída durante toda a noite, fingindo sentir-se à vontade
nas estranhas vestes do embaixador, acenando cumprimentos aos outros
visitantes quando havia contacto visual. Desviou-se várias vezes de pessoas que
pareciam prestes a vir falar-lhe. Por duas vezes conversou com homens que
pareciam conhecê-lo bem. Tossia para a mão e explicava o seu mutismo dizendo
que apanhara uma constipação. O humor inerente à situação não escapou aos
acacianos. Estivera demasiado tempo na ilha, brincavam. Estava a tornar-se um
acaciano, diziam-lhe, sujeito à mais ligeira corrente de ar. Ambos os homens se
afastaram sorrindo.
O esforço destes logros fê-lo sentir-se exausto. O coração batia-lhe
furiosamente o tempo todo. Gotas de suor caíam pelo nariz e pelas faces e
escorriam invisíveis debaixo das axilas. Sentia uma película de humidade entre
si e a parte inferior da peruca. Porém, aos olhos que o viam parecia ter a
compostura perfeita. Quando a multidão foi percorrida por um murmúrio de
silêncio e o arauto pediu atenção, Thasren olhava para o monarca a entrar no
recinto, adornado com uma coroa dourada, uma grinalda com espinhos imitando
a árvore que dera origem ao nome da ilha — então, soube que estava perto,
muito perto, de vir a ter o seu lugar na história do seu povo. Nessa noite não
tentaria chegar-se mais perto. Isto não passava de um namorisco, o ataque a sério
seria melhor que se consumasse no dia seguinte.
Capítulo 12

Sem o conhecimento do pai, dos irmãos e até da ama ao cuidado da qual


estava entregue, e com quem, em princípio, deveria passar as tardes, Dariel
Akaran escapava muitas vezes dos aposentos da área do palácio destinada às
crianças a que estava confinado e vagueava horas sem fim pelas entranhas do
palácio. As suas incursões haviam começado no Verão anterior. Quando a antiga
ama adoecera fora substituída por uma mulher idosa. Esta era perfeitamente apta
para o cargo, no seu modo roliço e afável, mas tomava com o chá uma
substância líquida que lhe causava sempre sono. Dariel aproveitou-se disso.
Mesmo quando a mulher, ao acordar, dava pela falta dele, os aposentos
reservados às crianças eram tão vastos que ela bem podia procurá-lo sem
suspeitar de que o menino já não se encontrava no labirinto de salas ligadas entre
si. Quando Dariel aparecia, limitava-se a começar logo a conversar com ela,
exprimindo o seu aborrecimento e suplicando-lhe que jogasse com ele um dos
muitos jogos de tabuleiro ou de dardos, aos soldados do reino, à luta de espadas
com paus... A velha mulher não tinha energia suficiente para tais brincadeiras.
Deixava o rapazito entregue a si próprio por períodos de tempo cada vez mais
longos, tal como ele queria que ela fizesse.
Um dia deparara-se por acaso com uma passagem secreta, ao seguir um
berlinde que rebolara no chão e desaparecera entre o guarda-fatos e a parede
atrás. O guarda-fatos era uma enorme peça de mobiliário. Cobria grande parte da
parede, fora construído em mogno sólido e era tão impossível de deslocar por
parte de um rapazinho, como se fizesse parte das próprias pedras do palácio. O
menino contorcera-se para conseguir passar por detrás do móvel, primeiro com
todo o braço, depois com uma perna, depois com todo o corpo, com o peito
encostado contra a madeira do guarda-fatos, esfregando as costas no granito frio
da parede. Tentou baixar-se com os joelhos torcidos, com os dedos pressionando
para baixo onde pensava estar o berlinde. Estava tão concentrado em alcançá-lo,
e tão aborrecido com os materiais intratáveis que o impediam de o conseguir,
que, quando por fim encontrou espaço para se acocorar e passar os dedos pelo
chão coberto de pó, não parou para pensar como teria conseguido aquilo.
Foi só com o berlinde agarrado na mão outra vez que se apercebeu de que
se encontrava numa espécie de corredor, suficientemente iluminado para
conseguir distinguir o velho reboco das paredes, de arestas ásperas raramente
conseguir distinguir o velho reboco das paredes, de arestas ásperas raramente
vistas dentro do palácio. Havia ali uma quietude, um silêncio mais profundo do
que alguma vez sentira. Sentiu também uma ligeira corrente de ar. Como que
uma respiração que passasse por ele como um suspiro.
Foi assim que começou a sua introdução há muito esquecida rede de
passagens que fora usada pelos criados para se movimentarem de forma invisível
ao longo do palácio, numa época antiga. Era um labirinto de escadarias, túneis,
corredores e becos sem saída, iluminado ocasionalmente por buracos perfurados
na rocha que davam para o exterior. Deambulou por salas abandonadas,
completadas com peças de mobiliário, tapeçarias e tapetes, visíveis apenas como
quadrados geométricos cobertos inteiramente por uma grossa camada de poeira.
Nunca encontrou nenhum ser vivo por aqueles recintos, mas teve bastante medo
ao deparar-se com as figuras ferozes talhadas nos lintéis: bestas de olhos
bolbosos que caminhavam sobre duas patas como os homens e as mulheres, com
partes do corpo de javali e de leão, lagarto e hiena e águia, incluindo uma que
parecia um sapo, exceto que a sua fisionomia violenta nada tinha em comum
com as divertidas criaturas que surgiam do chão durante a primavera. Que
estranho povo teria talhado aquelas coisas! Que época horrível deveria ter sido
essa, quando os seres humanos tinham ainda de se esconder e manter longe de
seres bestiais. Um dia, um dos macacos dourados seguira-o, mas, ao ver as
estátuas horrendas, a criaturinha escapuliu-se, deixando Dariel a pensar se não
deveria fazer o mesmo.
Numa ocasião, desembocou de uma longa e estreita passagem e foi dar a
um espaço à luz do sol brilhante e borrifado pelas ondas do mar mesmo abaixo
dele. Trepou por uma abertura e gatinhou para uma saliência, ofuscado pelo
brilho do dia. Descobrira um caminho escondido que ia dar ao mar e à ponta
norte da ilha, não muito longe do Templo de Vada. Sentiu o cheiro salgado a
maresia o cabelo a esvoaçar com o sopro do vento. À distância de um arremesso
de pedra, um cardume agitava as águas. Grandes aves marinhas de bico aberto
voavam em círculos lá em cima. Observou-as enquanto uma delas abria as asas e
mergulhava em voo picado nas ondas.
Dariel decidiu voltar para trás a fim de encontrar alguma coisa que servisse
de cana de pesca. Quando ia a voltar-se, uma onda alterosa embateu contra a
pedra lá em baixo e enviou um fluxo de água que o atingiu sob o queixo, no
peito, e o fez saltar. Por instantes, a água rodopiou, espumosa e fria, em redor de
Dariel. O rapazito escorregou e desequilibrou-se. Aflito, agarrou-se a uma
saliência da rocha, usando os dedos e pés e apoiando o tronco entre duas pedras.
Por instantes, deixou-se ficar deitado respirando em soluços ofegantes. Poderia
ter sido engolido pelas ondas. Nunca ninguém saberia o que lhe teria acontecido.
Teria simplesmente desaparecido para sempre.
Teria simplesmente desaparecido para sempre.
Ao pensar em tudo isto chorou, soluçando convulsivamente. Não voltou
àquele lugar, nem mencionou o acontecido a ninguém. Por mais que o tivesse
assustado — no fundo, por mais que aquelas deambulações subterrâneas lhe
fizessem palpitar o sangue e causassem formigueiros nas mãos, e apesar de o
respirar fantasmagórico dos corredores lhe pôr os cabelos em pé e o fizesse
tremer como varas verdes ao vento — continuava a gostar imenso do tempo que
passava naqueles lugares secretos. Não queria desistir das suas aventuras, porque
sabia que qualquer dia alguém viria a descobrir.
Alguém, isto é, alguém do mundo da área superior do palácio. Esses seres
da luz eram apenas uma parte da população do palácio. Encontrara vários outros
pontos além do seu quarto de brincar onde as passagens não usadas se ligavam a
outras ainda em uso. Este mundo era também muito interessante de explorar. Na
comunidade subterrânea de trabalhadores, a sociedade invisível de criados e
engenheiros, cozinheiros e técnicos, através de cujos esforços o palácio
funcionava, aí, Dariel era conhecido e gostavam muito dele. Igualmente, era nos
braços destes empregados que encontrava a maior alegria que tivera na
companhia de adultos —com exceção do pai, a quem adorava. Levou algum
tempo a que se habituassem a ele e ultrapassassem os medos de que alguma
coisa pudesse acontecer ao menino e de serem castigados por isso. De facto,
alguns deles nunca eram calorosos para com ele. Desconfiava que discutiam por
sua causa quando se encontrava ausente. Porém, com outros fez amizade
rapidamente. Sentava-se nos carros puxados por burros que eram usados por um
homem chamado Cecil para levar as provisões que se encontravam nos armazéns
em andares inferiores até ao cimo do palácio. Ficava muitas vezes escarranchado
ao colo dos pasteleiros, roubando um a um os bolinhos de chá doces, que eram
os seus preferidos. Sentava-se nos joelhos dos antigos trabalhadores do palácio
que viviam uma reforma frugal, numa rede de cavernas, homens velhos e
mulheres velhas invisíveis à sociedade da realeza palaciana.
Passava dias inteiros a admirar o trabalho de quem alimentava o fogo que
crepitava naquelas salas parecidas com catacumbas, sufocantes e enegrecidas,
situadas abaixo das cozinhas. Os fogões que os cozinheiros reais usavam eram
alimentados por uma série de fornalhas gigantes, a partir das quais saía uma rede
de canos que subiam ao teto e o perfuravam, em tal em tal emaranhado que o
menino nunca conseguiu entender como funcionavam, por mais perguntas que
fizesse. A sala de alimentação era uma caverna semelhante a uma grande
fornalha sombria. Estava enegrecida com a deposição de fuligem de pó de
carvão, e era povoada de homens enegrecidos, muitas vezes nus da cintura para
cima e manchados de suor, com antebraços e ombros musculosos, olhos raiados
cima e manchados de suor, com antebraços e ombros musculosos, olhos raiados
de sangue e dentes amarelos. A sala era aberta de um dos lados, não para a vista
esplêndida do vasto mar que se prolongava para oeste, mas para fornecer algum
alívio ao calor dos fornos e para facilitar a chegada de novos carregamentos de
carvão de Senival, que vinham em grandes barcaças do Continente.
Foi aqui que Dariel se aventurou na manhã do banquete ausheniano.
Aproximava-se, ouvindo o barulho a alguma distância, cheirando a fuligem que
pairava no ar, cada vez mais quente a cada curva das paredes de granito do
corredor. Ao sair do corredor, o calor dos fornos atingiu-o com um rugido, como
se tivesse ido parar à bocarra de uma enorme besta viva. Durante alguns
instantes, o cenário dos homens iluminados pelas brasas brilhantes e vermelhas
tinha um ar horrível. Quando descortinou uma figura particular, contudo, Dariel
dirigiu-se para ela.
Val dizia ser de Candovia. Dizia também que fora um corsário, na
juventude, uma espécie de pirata das Encostas Cinzentas. Dariel desconfiava de
tudo o que ele lhe contava. Val parecia de tal modo fazer parte da pedra e terra
de Acácia que Dariel não conseguia imaginar que o homem fosse oriundo de
outro lugar. O que nunca se punha em questão, contudo, era a sua espantosa
presença física. Tinha um tronco tão largo que, da primeira vez que Dariel o
espiara — movendo-se com uma graciosidade desmedida por entre os fornos,
iluminado e destacado pelo brilho do fogo —, colocara uma mão no seu peito,
certo de que acabara de se deparar com os gigantes que alimentavam os vulcões
do mundo.
Ainda estremecia ao vê-lo agora. Val gritava uma ordem acompanhada de
uma praga a alguém e, depois, inclinou-se para agarrar num pedaço de carvão do
tamanho de uma criança. Foi então que viu Dariel. Endireitou o corpo de gigante
e colocou uma mão enorme na boca, impedindo-se de soltar a blasfémia que ia
proferir.
— Jovem príncipe, o que andas a fazer? — perguntou, aproximando-se e
caindo sobre um joelho. — Esta noite há um banquete. Não sabes disso? O teu
pai honra o príncipe de Aushenia. Não é boa altura para distrações aqui. Ou foi
por isso que vieste? Para tentares causar problemas ao velho Val?
Como sempre, Dariel sentia-se muito tímido ao encontrar este homem
enorme, mesmo apesar de se sentir atraído por ele e gostar de algum modo da
forma como se sentia pequenino perante o seu vulto. Respondeu como sempre o
fazia, com um sorriso intimidado e balbuciando uma afirmação de inocência.
O homem pôs as mãos sobre os ombros do menino e abanou-o, brincalhão.
— Venha daí — disse, erguendo-se do chão com algum esforço. — Está na
— Venha daí — disse, erguendo-se do chão com algum esforço. — Está na
altura do meu intervalo, de qualquer modo. Vamos apanhar ar.
Juntos, afastaram-se das fornalhas. Dariel caminhava atrás de Val, que
atalhara caminho por entre os trabalhadores. Pás arremessavam carvão, os carros
rangiam ao passar, puxados por burros teimosos, enquanto os homens, no seu
labor, soltavam pragas com o esforço do trabalho que faziam: à volta dele, tudo
era movimento, mas, desde que Dariel permanecesse junto de Val, sabia que se
encontrava seguro. Por vezes tropeçava nos contornos ásperos do chão e uma
vez embateu nas pernas de Val quando este parou para deixar passar um carro. O
homem estendeu a mão, pareceu-lhe que lá do alto, e cobriu-lhe o ombro, num
toque momentâneo, e depois prosseguiram caminho novamente.
O céu estava carregado de nuvens, sobrepostas em camadas grossas, mas,
ainda assim, ao saírem da caverna para a manhã de Inverno, sentiram-se
ofuscados. A rápida mudança era como uma sobrecarga para os seus sentidos,
saídos da escuridão, repentinamente, para a luz, do calor para o frio. Surgiram
como se saíssem da fissura de um vulcão, por entre a exalação da fumarola acre,
saudados pelo choque do ar a cheirar a sal. Subiram então por uma escadaria
talhada na pedra e depois percorreram uma rampa inclinada de onde saíam as
aberturas que levavam aos fornos que as fornalhas do andar inferior
alimentavam.
Dariel foi dar ao refeitório a tempo de observar Karan, a mulher que
distribuía as rações dos trabalhadores, endireitando-se de uma posição inclinada.
Acabara de colocar uma bandeja de biscoitos duros no suporte onde iriam
arrefecer. A visão momentânea dos seus seios balançando fê-lo parar; corou com
um embaraço que não compreendia, que pulsava nele quando ela o olhou e
pareceu ler-lhe os pensamentos melhor do que ele próprio os entendia. Os olhos
dela desviaram-se para Val. Colocou as mãos nas ancas, salientes sob o avental,
e fitou o homem com olhar reprovador.
— Vejam só como tu estás — disse ela. — Vires aqui sem sequer passares
água pela cara.
Jovem como era, Dariel sabia que era ele — e não o capataz — o alvo da
sua desaprovação. Ela nunca confiara nele do modo como Val confiava, pensou
Dariel, embora lhe escapasse como e porquê poderia causar mal à mulher.
Pressentiu que apesar do tom de frieza que usara para com Val, ela gostava do
homem, de um modo que parecia embaraçá-la a tal ponto que o tentava
esconder.
— Se eu tivesse alguma razão para me importar com o meu aspeto, podes
ter a certeza de que o faria, mulher — respondeu Val. — Mas vim aqui comer
ter a certeza de que o faria, mulher — respondeu Val. — Mas vim aqui comer
alguns biscoitos e beber um pouco de chá. Será pedir muito? Não sabia que tinha
de me lavar para comer um biscoito e beber um pouco de chá. — Lançou um
olhar a Dariel, pedindo alguma comiseração, e depois, com uma mão, apanhou a
maior parte dos biscoitos de um tabuleiro e passou-os para a outra mão.
— Não lhe ligues — disse Val, um pouco depois. Haviam regressado à
escadaria e sentaram-se, lado a lado, com os biscoitos e o chá entre eles, um
grande par de pernas e umas pernas pequeninas balançando sobre a encosta
rochosa abaixo deles. — Ela está preocupada pois acha que não deverias comer a
comida dos trabalhadores.
Dariel segurou num biscoito entre os dedos, contemplando-o sem grande
interesse em o aproximar da boca, pois era sensaborão e duro. — Mas eu gosto
disto — respondeu. — É difícil dar uma dentada — acrescentou, como se fosse
um elogio compreensível.
— Claro que gostas. É isso que lhe digo, mas alguns fulanos são
engraçados.
Dariel concordava, sem dúvida, com isso.
— Porque não gosta ela de mim?
— O povo dela há gerações que cozinha para o teu. Ela e eu somos criados,
nada temos a ver com a realeza. Ela tem razão, mas eu tenho a minha própria
maneira de pensar. Tu és um bom rapaz. E, de qualquer maneira, daqui a alguns
anos não me darás importância alguma. Deixarás de aparecer por aqui. Digo isto
sem ofensa. Quero dizer apenas que terás coisas melhores para fazer. Estarás
ocupado com o teu treino. Terás de te ocupar da tua formação para te tornares
um príncipe. Agora, a Karan acha que podes significar de algum modo a morte
para mim. Diz que sonhou isso; ao que lhe respondi que ela deve ter andado a
comer a sua comida muito perto da hora de se ir deitar. Mas ela tem uma
maneira de nos fazer pensar. Por isso, permite que te pergunte... para que é tudo
isto então? — Dariel pareceu ficar suficientemente perplexo para Val continuar.
Inclinou-se para muito perto do menino e franziu as sobrancelhas até ficarem um
nó apertado entre os olhos. — Por que razão andas tu cá por baixo comigo,
comendo os meus biscoitos de rocha, partilhando do meu chá preto? És um
príncipe, Dariel, esta comida deve saber-te mal, para não falar na minha inferior
companhia.
Dariel olhou para longe dele. Não era tanto a pergunta em si que o deixava
pouco à vontade, mas mais o tom da voz forte do homem ao perguntar aquilo.
Havia algo de pouco natural nele, como se as suas palavras viessem de outra
coisa que não a sua verdadeira emoção. Dariel conseguia perceber bem a
coisa que não a sua verdadeira emoção. Dariel conseguia perceber bem a
mistificação. Decifrá-la era outra coisa. Já explicara antes como havia
encontrado o caminho para os recintos dos trabalhadores do palácio. Dissera já,
também, que gostava de aventura, que apreciava o perigo, que gostava de
pessoas não tão convencionais e formais como as da corte. Val já ouvira tudo
isso antes, mas, mesmo assim, continuava a colocar-lhe a mesma pergunta, como
se nenhuma das anteriores respostas de Dariel o satisfizesse. Para preencher o
silêncio, Dariel disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
— A mulher velha que toma conta de mim toma uma bebida que a faz
adormecer.
— Isso é assim?
— Sim, por isso é aborrecido ficar lá sentado.
Val meteu um biscoito na boca e falou enquanto mastigava.
— Quem é que quer ficar a ver uma velha a dormir?
Dariel ouviu novamente um vago tom irónico na voz do homem, mas
ignorou-o. Viu uma ocasião rara de poder falar sobre as coisas que o
preocupavam. Explicou que os irmãos mais velhos nem sempre eram simpáticos
para com ele. Imediatamente a seguir corrigiu-se: Mena era quase sempre muito
gentil, mas Corinn pensava que ele era estúpido e Aliver não gostava dele. Um
dia, Aliver gritara-lhe que o deixasse em paz, e Corinn pedira-lhe para que
deixasse de andar sempre de volta dela e que gostaria que ele tivesse nascido
rapariga. Nenhum parecia importar-se por ele nunca ter ninguém com quem
brincar. Pintou um triste quadro de abandono diário, de horas de isolamento, de
uma vida de solidão.
Val escutava tudo isto sem o interromper. Limitava-se a soltar um
resmungo de vez em quando, comia os biscoitos e parecia seguir o movimento
dos barcos no mar. Olhando para cima, para o homem, Dariel fitou por instantes
o movimento das narinas do homem enquanto este respirava, para os pelos lá
dentro cheios de pó de carvão. Por alguma razão, pensou em quando o seu pai
por vezes ia ao seu quarto à noite para o beijar na face, na testa e na boca. Dariel
nunca mostrava estar acordado, embora tivesse o sono leve e abrisse muitas
vezes os olhos, mal sentia o movimento do pai a entrar no quarto. Por vezes
sentira as lágrimas do pai caírem sobre a sua pele.
Então sentiu-se mal por tudo o que acabara de dizer. Porque dissera ele
todas aquelas coisas? A verdade era que amava a família tanto que o assustava.
Os irmãos eram, cada um a seu modo, versões de perfeição que ele adorava.
Receava o dia em que o pai deixaria de lhe prodigalizar o seu afeto, embora
também receasse a incomensurável tristeza que parecia trazer em si. Sabia que a
também receasse a incomensurável tristeza que parecia trazer em si. Sabia que a
mãe morrera, e não se recordava dela. Se aquilo já havia acontecido, algo
igualmente terrível poderia vir a acontecer novamente. Poderia vir a perder outro
ser querido: que pensamento tão terrível... Para mudar de assunto, pediu ao
amigo para lhe falar de quando era um corsário.
Val pareceu hesitar sobre se lhe deveria falar disso, mas pouco depois as
lembranças que tinha venceram-no. Contou então que nascera numa família de
corsários, os Verspines. Desde que se lembrava vivera uma vida errante, a maior
parte a bordo dos velozes navios de pirataria, por vezes acampando numa das
Ilhas Exteriores, onde se escondiam depois de incursões bem sucedidas. Os
corsários navegavam por toda a costa, desde Candovia, a norte, até Talay, a sul.
Atacavam sempre à noite, esgueirando-se às ocultas para o interior das cidades e
acordando os cidadãos aterrorizados. Tomavam o que queriam e tratavam
duramente quem se lhes opusesse. Negociavam o saque pelas provisões de que
precisassem e depois retiravam-se para as ilhas a fim de viverem alguns meses
tranquilamente, pescando e deitando-se perto das praias, bebendo e brigando uns
com os outros, desfrutando da vida até chegar a altura de embarcarem para novas
investidas.
Dariel começava agora a sentir realmente frio, com as rajadas de vento a
atingirem-no, vindas de noroeste, mas não o queria admitir a Val.
— Por que razão já não és corsário?
Val encolheu os ombros. Murmurou qualquer coisa sobre ter de voltar ao
trabalho e pôs-se rapidamente em pé. Uma vez levantado, estacou e admirou a
vista do mar por um momento mais.
— A verdade é que perdi a vontade de ser corsário — disse. — Muitos dos
que conheci morreram de forma errada. Quando era novo, isso não me importava
tanto. Acreditava que merecia ter tudo o que pudesse apanhar e que quem quer
que eu matasse ou magoasse para ter o que queria era apenas um empecilho no
meu caminho. Tens de compreender que o mundo está repleto de homens que
pouco melhores são do que os animais. Agora posso brincar com isto; tu e eu
podemos sentar-nos aqui pensando neles muitas vezes; mas um animal foi o que
eu fui durante quase trinta anos da minha vida. O problema é que um homem é
diferente de um animal. No silêncio que se segue às coisas, sabemos o que
fizemos de errado. Quando deixei essa vida para trás, vim para cá para servir o
teu pai. Pensa em mim apenas como Val, o fogueiro, que costumava ser um
assassino sem coração, há muito tempo. Podes entender isto?
Dariel olhou para as feições rudes do homem, um rosto tão grande, largo e
escurecido; a cabeça estava cravada sobre uns ombros enormes que poderiam ser
uma serra, tão grande era a sombra que projetavam sobre ele. Apesar de tudo,
uma serra, tão grande era a sombra que projetavam sobre ele. Apesar de tudo,
Dariel não conseguia imaginá-lo como um assassino. Por mais vívidas e terríveis
que fossem as recordações do homem, e por mais desejoso que o seu espírito de
menino estivesse por os ouvir, mesmo assim não conseguia acreditar que Val
algum dia tivesse feito mal a alguém. Era simplesmente um trabalhador do
mundo abaixo do palácio, um gigante simpático que herdara provavelmente a
sua posição do pai e que talvez nunca se tivesse aventurado fora da ilha, alguém
que sabia exatamente o género de histórias que devia contar a um menino como
Dariel, e que o fazia por bondade.
Capítulo 13

Leodan Akaran era um homem em guerra consigo próprio. Trazia em si


conflitos silenciosos, lutas interiores que o assolavam dias sem fim sem
resolução. Sabia ser uma fraqueza sua, culpa de ter uma natureza sonhadora,
com algo de poeta, erudito ou humanista; traços dificilmente adequados a um rei.
Envolvia a família na cultura luxuriante de Acácia, apesar de esconder dela o
repugnante comércio que a fundara. Fizera planos para que os filhos nunca
vivessem a violência em primeira mão, embora esse privilégio se alcançasse à
custa da morte de outros. Odiava os números incontáveis de pessoas nos seus
territórios acorrentadas a uma droga que garantia o seu trabalho e a sua
submissão, e, no entanto, permitia-se a ter o mesmo vício. Amava os filhos
apaixonadamente, a tal ponto que, por vezes, acordava aterrorizado com
pesadelos de algum infortúnio que os atingia. Porém, sabia que havia agentes
que agiam em seu nome, arrancando a outros pais os filhos dos braços para
nunca mais serem vistos. Era monstruoso e sentia que, em muitos aspetos, era
culpa sua.
Não fora ele quem instigara muitas dessas coisas; tal como os seus filhos, já
nascera com elas. Fora criado com os mesmos contos que agora partilhava com o
filho mais novo. Aprendera a reverenciar do mesmo modo os mesmos heróis da
nação. Praticara as Formas, olhara com respeito os dignitários de todo o império,
e acreditara ingenuamente que seu pai fora o governante legítimo do mundo
inteiro.
Quando, pela primeira vez, vira as minas de Kidnaban, era um rapazito de
nove anos — as enormes gargantas escavadas na pedra, as hordas de seres
humanos vestidos apenas com tangas a trabalharem como se fossem milhares de
insetos de aspeto humano — simplesmente não entendera aquilo. Não conseguia
compreender a razão de aqueles homens e meninos escolherem tal vida e não
perguntara porque é que o dia lhe deixava uma infinita ansiedade no peito.
Porém, depois de ter feito catorze anos, aprendera rapidamente que aqueles
mineiros eram recrutados de cada uma das províncias, que os chefes das várias
nações que visitavam Acácia eram os poucos privilegiados, aqueles a quem
estava confiada a opressão da maior parte do seu povo.
Sentira-se profundamente chocado ao saber disto, mas fora quando soubera
o que era a Quota que se sentiu incitado à ação. Nos anseios de justiça próprios
o que era a Quota que se sentiu incitado à ação. Nos anseios de justiça próprios
da adolescência, foi falar com o pai, cheio de reprovação. Vinha fresco da lição
em que lhe haviam explicado o que se passava e irrompeu pela sala onde o pai
praticava esgrima. Era verdade, perguntara, que desde a época de Tinhadin
haviam fornecido uma quota anual de escravos para uma nação para lá das
Encostas Cinzentas? Era verdade que agentes em nome da dinastia Akaran
recolhiam centenas de meninos e meninas de todas as províncias, crianças que
eram vendidas não se sabia a quem ou para quê e que nunca mais ninguém os
via? Era verdade que ninguém sequer sabia para que trabalhos ou destino eram
aquelas crianças banidas da sua terra? Era verdade que aqueles estrangeiros —
os Lothan Aklun — pagavam os escravos com um vasto fornecimento de uma
droga que deixava grande parte dos cidadãos do império viciados e dependentes?
Gridulan interrompera o treino de esgrima. Enfiou a ponta da espada nua na
esteira aos seus pés e olhou para o filho por cima do nariz direito. Era um
homem alto — Leodan nunca atingiria a sua altura — com um porte militar
rígido. Os seus companheiros — treze homens que ele conhecia desde os tempos
de rapaz — estavam espalhados pelo salão de treino, alguns praticando esgrima,
a maior parte ao lado de um dos pilares, conversando uns com os outros.
— Essas coisas são verdade, sim — respondera Gridulan. — Os Lothan
Aklun também prometeram que nunca iriam fazer guerra contra nós. Isso é algo
por que devemos estar gratos. Tinhadin escreveu que eles eram como serpentes
com cem cabeças. Estou satisfeito por estares a aprender as realidades do
governo, mas não me interessa...
O jovem Leodan interrompera-o então, num tom de voz baixo e venenoso,
completamente invulgar nele. A ideia de escravatura parecia-lhe um insulto
pessoal, algo tão abominável que não conseguia conter a fúria.
— Como podeis permitir tal abominação em vosso nome? Deveríamos
acabar já com isso, mesmo que significasse a guerra contra esses Lothan. Esse é
o único caminho honroso. Se não o fizerdes, então quando eu...
Leodan talvez tivesse conseguido responder ao gesto do rei se este não
tivesse sido tão inesperado. Gridulan passou a espada para a mão esquerda, deu
um passo em frente e aplicou uma bofetada no filho com tal força que o rapaz
sentiu a cabeça inclinar-se para o teto. Caiu para trás, cambaleando. Quando
Leodan levou a mão à face ardente de dor, o pai dirigiu-se a ele. Disse-lhe, em
voz sibilante, que tudo o que possuíam provinha daquilo. Acabar com aquilo não
só poria em perigo as suas vidas como também denegriria a memória de toda a
dinastia Akaran, que sempre havia visto a Quota como justa. Só um louco daria
valor à liberdade de uns poucos em comparação com o bem-estar de uma nação
inteira.
inteira.
— Há gerações que isto se faz — afirmou Gridulan falando muito perto do
rosto do filho. — O próprio Tinhadin concordou com isto. Quem és tu para
duvidar da sua sabedoria? Se isso não te basta, tem em conta que eu não
comando o exército. Em teoria, sim, mas na verdade as muitas fações do exército
respondem em primeiro lugar aos seus governadores. Os governadores, por sua
vez, curvam-se à vontade da Liga. E a Liga nunca permitiria que a Quota fosse
revogada. Em vez disso, conspirariam nas nossas costas. Arranjariam modo de
nos destruir e colocar outros no trono, compreendes? Então, nada teríamos, e
darias contigo com saudades do tempo em que vivíamos abençoados por esta
abominação. Poderias até ser vendido como escravo. Existem muitos em Alecia
a quem muito agradaria essa ironia.
— Então, nada significa ser rei? — inquiriu Leodan, preparando-se para
mais um golpe.
Gridulan, contudo, não o voltou a atacar. A sua resposta tinha mais tristeza
do que fúria.
— Claro que sou um homem poderoso, mas tenho esse poder porque estou
bem colocado na dança do império. Conheço as regras e ajo de acordo com elas.
Mas o bailado é maior do que eu, Leodan. É maior do que tu. Talvez este seja
um assunto grande demais para compreenderes já. Queres paz, equidade e justiça
para todos, mas o caminho que indicas não levaria a nada disso.
O rei endireitou-se, esticou as pernas e girou a espada displicentemente na
mão. Antes de se virar para o seu parceiro de esgrima, disse ainda:
— Realmente, Leodan, tens ainda de estudar muitos anos antes de me vires
desafiar. Não voltes a falar disto em público, mesmo diante dos meus homens de
confiança.
Leodan, sentado no peitoril de uma das amplas janelas da biblioteca,
interrogava-se sobre se o seu pai, nessa altura, não teria endurecido o coração o
bastante para se tornar no assassino que os anos que se seguiriam viriam a
revelar. Afastou o pensamento da cabeça. Sabia que andava a ocupar demasiado
tempo pensando no passado. Era difícil não o fazer, especialmente numa noite
daquelas, em que a atmosfera parecia carregada de melancolia.
Apesar de Acácia estar situada numa zona temperada, com uma localização
favorável entre os matagais áridos de Talay e a vastidão gélida do Mein, havia
alturas em que a ilha era alvo de um tempo suficientemente frio para chegar a
nevar. Normalmente, tal não passava de uma ligeira queda de flocos de neve
durante o inverno. Um verdadeiro nevão acontecia só de quatro em quatro ou
cinco em cinco anos. Esta noite — a noite do banquete para os aushenianos —
cinco em cinco anos. Esta noite — a noite do banquete para os aushenianos —
era uma dessas alturas, uma tempestade tardia que encerrava uma época de clima
ameno.
O nevão começara com alguns flocos perdidos rodopiando na luz opaca do
fim de tarde. Ao anoitecer, as nuvens estavam tão baixas que roçavam os
pináculos pontiagudos das torres mais altas do palácio. Deixaram então cair um
bombardeamento de bolas brancas e macias, que iam tombando dos céus
perfeitamente a direito, empurradas para baixo por uma aparência de peso
estranha à sua natureza frágil.
No curto período de solidão após as reuniões da tarde, e antes de se
preparar para o banquete, Leodan procurava o recolhimento da biblioteca. Era
um conforto temporário, que sentia já estar a chegar ao fim. Caminhou pelo
aposento deserto, passando os olhos pelos livros, tantos milhares de volumes...
Havia ali um livro que se dizia ter sido escrito na língua que o Doador usara para
criar o mundo. Como sempre acontecia quando ali se encontrava sozinho, sentiu-
se atraído pelo livro.
Olhou em volta alguns instantes, verificando se estaria realmente a sós, e
depois encontrou o livro. Correu os dedos pela lombada do antigo volume, sem
outra marca senão a da idade. Sabia onde se encontrava desde a cerimónia da sua
masculinidade, quando o pai lho mostrara. Naquelas páginas, dissera Gridulan,
havia o conhecimento de tudo o que fazia girar o mundo. Naquelas páginas
estava a linguagem da criação e da destruição. Naquelas páginas encontravam-se
as ferramentas que Tinhadin usara para conquistar o Mundo Conhecido. Um
conhecimento terrível, advertira Gridulan. Fora por isso que Tinhadin banira
todos os que tivessem lido o livro. Proibira também aos seus descendentes de o
lerem, embora lhes impusesse o cargo de serem os guardiães do volume.
Escondera-o num lugar bem à vista; os descendentes haviam continuado a
tradição.
Quando adolescente, Leodan passara horas incontáveis imaginando-se na
posse do divino poder, criando com as palavras da sua língua e refazendo o
tecido da realidade. Nunca abrira o livro, contudo. Nunca acreditara
completamente na sua história, mas esta assustara-o o suficiente para deixar o
livro em paz. Por vezes, havia considerado a hipótese de o retirar da estante e
percorrer-lhe as páginas, ou então rasgá-lo ou queimá-lo ou, simplesmente, rir-se
dele; nunca soubera o que realmente gostaria mais de ter feito. Porém, jamais
abrira a capa antes e também não o faria agora. Havia algum tempo que deixara
de pensar no assunto. Já não acreditava naquelas histórias de magia. Ao fim e ao
cabo, havia tão poucas provas disso, na vida real.
Passou os dedos sobre o livro seguinte, um volume de Os Dois Irmãos.
Retirou-o da estante. Regressou à sua alcova, pensando que talvez encontrasse
inspiração para continuar a história para Mena e Dariel nessa noite. Como
gostava de ainda lhes contar histórias! Como temia o inevitável momento em
que os veria afastarem-se dele, deixarem para trás as coisas de crianças e
passarem a andar com os companheiros. Parte dele desejava os filhos felizes e a
salvo, perto de si, contentes com as coisas mais simples, remanescentes do seu
amor pela esposa falecida que podia continuar a ver crescer.
Porém, também desejava que partissem, um dia, através do mundo, e
estreitassem os laços da amizade por todo o império. Apesar de não gostar de
viajar, isto não mostrava o seu desprezo pelo mundo exterior. Na juventude,
gostara imenso de viajar e fizera muito rapidamente bastantes amigos em terras
distantes. Pelo menos acreditara que eram seus amigos, apesar de, na verdade,
pouco conhecesse da amizade. Nunca fora tão próximo dos seus companheiros
como o pai fora dos dele. Algo no manto da realeza lhe tornara difícil sentir-se à
vontade com homens da sua idade. Somente nas cortes estrangeiras — com
tradutores como intermediários entre ele e os outros, com os gestos de mão e os
risos como ferramentas necessárias à conversa, com as diferenças culturais como
fonte de divertimento e de interesse mútuo — é que encontrara o à-vontade com
os outros que ele acreditava ser amizade. Essa fora uma das alegrias da sua
juventude.
Desde que Aleera morrera que, o mundo lhe parecia um lugar diferente.
Talvez tudo o que havia fossem as cinzas de Aleera espalhadas do alto do
Rochedo da Enseada, num dia em que o vento do norte soprara os restos mortais
da mulher sobre a ilha. Aleera ficara espalhada sobre cada centímetro quadrado
desta. Havia um pedaço dela em cada mão-cheia da terra daquele solo, em cada
rebento que ali nascia, nos nutrientes que alimentavam as acácias, no ar que
respirava. Sentia o toque dela todos os dias. Pensava nela de cada vez que a brisa
soprava no seu rosto, para onde quer que virasse o olhar e apanhasse um
perfume no ar que o fazia lembrar-se dela. Pensava em Aleera até quando
passava os dedos pela poeira de algum recanto remoto da biblioteca. Era por isso
que receava agora deixar Acácia. Receava abandoná-la. Não tinham vivido
muito tempo juntos, mas, pelo menos, se as suas cinzas fossem espalhadas da
mesma maneira, sopradas pela mesma espécie de brisa do norte, talvez
pudessem partilhar o longo silêncio da morte juntos. Além da felicidade e bem-
estar dos filhos, era tudo o que Leodan desejava agora. Quem lhe garantiria isto,
se morresse em alguma terra estrangeira? Quem lhe daria a certeza de que não
passaria a eternidade atormentado pela dor, tal como vivera os anos desde que
Aleera o deixara?
Aleera o deixara?
Leodan desviou o olhar do livro. Estes pensamentos não o ajudavam em
nada. Era um rei; havia um mundo à sua volta que ele poderia influenciar, talvez
para melhor. Havia um percurso que lhe oferecia a melhor oportunidade de
encontrar significado para o resto da sua vida. Uma luta que valia a pena, em
que, se triunfasse, poderia tornar-se um homem completo perante a memória da
sua mulher e perante os filhos. Se pudesse romper o contrato com os Lothan
Aklun... Se o conseguisse, poderia morrer com alguma esperança de que o futuro
traria uma herança nobre para os filhos. Era difícil encarar diretamente essa
possibilidade e amadurecê-la, mas desde o encontro com o príncipe de Aushenia
que sentia o esboçar de uma oportunidade.
Igguldan fora para ele uma revelação completa. O jovem entendia
claramente o fardo de impureza colocado sobre quem era parceiro da Liga.
Embora sentisse que a sua nação tinha de o fazer, podia ver-se que o jovem
ainda tinha estrutura moral suficiente para o abominar. Talvez um jovem assim
fosse a pessoa de que ele precisava a seu lado, uma alma igual com quem
poderia trabalhar para mudar a natureza do império.
O chanceler tinha razão, claro, ao suspeitar de que a Liga não aceitaria
Aushenia de braços abertos. Receava que o adicionar de mais uma nação
pudesse desequilibrar a balança do poder temporariamente para fora do seu
controlo. Queriam os produtos aushenianos — para não falar nos seus corpos
como matéria de comércio — mas queriam-nos enfraquecidos primeiro que
tudo. Até agora, os aushenianos ainda não estavam de joelhos. Eram fortes de
corpo e, na maior parte, intocados pelo vício da droga que estupidificava tantos
habitantes no Mundo Conhecido. Detinham ainda demasiado poder militar — o
que preocupava a Liga, visto esta ter encarado sempre o poder marcial como
uma ameaça, até ao ponto de terem limitado a dimensão das suas próprias forças
de segurança.
Leodan suspeitava que Sire Dagon em breve viria ter com ele com
propostas para uma série de medidas que poderiam tomar para enfraquecer
Aushenia. Poderiam passar clandestinamente mais droga através
das suas fronteiras. Poderiam enviar agentes para fomentar a intriga, ou
para lançar algumas pessoas importantes em escândalos vergonhosos, ou para as
afastar através de meios aparentemente inocentes: um acidente infeliz, uma
febre, uma doença disfarçada para parecer outra. Leodan sentia as mãos
tremerem ao pensar nisso. A sua nação usara tais táticas no passado. Seriam
novamente propostas.
A não ser... E se ele conseguisse trazer Aushenia para o império
A não ser... E se ele conseguisse trazer Aushenia para o império
rapidamente? E se os garantisse como aliados numa intriga só sua? E se os
recebesse como parceiros para o ajudar a revogar a Quota, em tomar o poder de
novo da Liga, em romper os laços com os Lothan Aklun? Poderia significar a
guerra em várias frentes — primeiro, contra a Liga e as forças conservadoras do
conselho e então, talvez, contra os Lothan Aklun, se viessem a cumprir as suas
ameaças seculares — mas talvez nunca mais viesse a existir outro momento tão
oportuno na sua vida.
Ali, na biblioteca, com um livro numa mão e na outra a chávena de chá,
Leodan prometia si próprio que se iria encontrar em privado com Aliver e
Igguldan. Dir-lhes-ia tudo o que sabia sobre os crimes do império. Ao mesmo
tempo que revelava estas coisas a seu filho, pedir-lhe-ia que fosse seu parceiro
para as combater. Daria a Igguldan a oportunidade de alcançar o sonho da sua
rainha Elena, morta havia muito. Se agora não era o momento de mudança,
quando seria? Um homem não pode esperar indefinidamente para se tornar na
pessoa que acredita ser.
Leodan ouviu um criado entrar na biblioteca pela porta mais distante. Sem
se virar, o rei seguiu o seu percurso pelas estantes e depois até à alcova onde se
encontrava sentado, estacando depois a uma certa distância. O homem falou
quase num sussurro. Aproximava-se a hora do banquete. O alfaiate do rei
aguardava-o, se ele quisesse ver se o seu traje de noite lhe ficava bem. Leodan
apertou o livro contra o peito e seguiu o homem.
Durante a hora seguinte, uma equipa de vários homens atarefou-se em seu
redor. O alfaiate pediu-lhe que abrisse os braços e os esticasse para cada lado.
Leodan ficou de pé com o tecido pendendo dos braços como se fossem asas
caídas. Como em todas as ocasiões deste género, o rei tinha de vestir um fato
particular em que até os mínimos pormenores teriam de estar de acordo com a
tradição. Os reis acacianos haviam recebido sempre os dignitários aushenianos
vestindo uma túnica verde larga com intrincados padrões dourados no tecido que
pendia de cada manga. O traje fora feito para causar imagens diferentes e
agradáveis ao olhar. Visto de frente e com os braços esticados, criava um mural
dos terrenos pantanosos da Aushenia central, abrigo de diversas variedades de
aves aquáticas de pescoço comprido e que serviam de inspiração para muita da
antiga tradição poética ausheniana, incluindo a da lenda de Kralith, um deus em
forma de garça branca, nascido da matéria primordial dos pântanos. Contudo,
com os cotovelos dobrados e as mãos cruzadas por cima do peito, o tecido
exposto que caia dos antebraços continha ilustrações de soldados acacianos com
armadura, em posições heroicas. Conseguia, através da colocação cuidadosa de
símbolos nacionais, sugerir a quem via que, fosse qual fosse o conhecimento da
história da outra nação, Acácia tinha ainda a capacidade de abranger tudo isso
história da outra nação, Acácia tinha ainda a capacidade de abranger tudo isso
num só abraço.
As portas duplas ao fundo do aposento abriram-se com estrondo. Mena e
Dariel entraram pela abertura, um por cada porta, numa corrida em que andavam
empenhados havia algumas semanas, para ver qual dos dois tinha o empurrão
mais forte. Corinn irrompeu logo atrás deles, vestida e adornada para a noite.
Aliver e Thaddeus foram os últimos a entrar, entretidos a conversar. Vendo os
filhos a correr para ele — cada um com o seu tamanho e temperamento,
pedacinhos de Aleera revelados em alguns dos seus traços e gestos — o rei
encheu-se de alegria. Tentou não pensar em como e porquê semelhante alegria
fora negada a Thaddeus. Um dia revelar-lhe-ia isso, prometera a si próprio. Um
dia.
Teve de erguer os braços acima do abraço de Mena, que o cingiu pela
cintura. Revirou os olhos ao alfaiate, mas não a dissuadiu. Corinn, com
compostura distante, beijou-o ao de leve na face.
— Pai, está a nevar! — disse Dariel, com o rosto repleto de excitação
infantil. — Está a nevar mesmo ali fora! Já viste? Podemos ir lá fora ver? Vem
connosco. Não podes? Vou ganhar-te a atirar bolas de neve! — Estas últimas
palavras proferiu-as como uma ameaça, de cabeça inclinada, apontando um dedo
de aviso ao pai.
Então seguiu-se toda a espécie de traquinices que muitas vezes o
espantavam, ao observá-los da perspetiva da sua idade, da sua posição
privilegiada, não de monarca, mas simplesmente de pai. Dariel saltou como se as
suas pernas fossem compostas por molas, chamando a si todos os argumentos de
persuasão que conseguira reunir aos nove anos de idade. Aliver explicava que o
rei não tinha tempo para brincar na neve. Era o herdeiro, tinha de ser
responsável, assumindo uma atitude de contenção e uma postura régia que
deveria ter copiado dos bustos dos reis no Salão Grande. Atrás disto, Corinn
proferiu qualquer coisa sobre o banquete a que os adultos iriam assistir. Em tudo
isto ouvia a ambição dela, o tom de voz que a colocava à parte das crianças mais
novas mas que, ao mesmo tempo, tinha algo de próprio de menina suplicando
diretamente ao pai. Mena manteve-se ligeiramente afastada para os ouvir a
todos. Olhava para a balbúrdia agitada dos irmãos e sorria ao pai. Quando fazia
isto, o rei via nela Aleera, não tanto nas feições, mas mais no júbilo paciente e
sabedor do seu olhar.
— O Dariel tem razão — contemporizou Leodan. — Esta é uma noite
especial. Vamos fazer o que ele nos pede. Vamos correr pelos telhados e atirar
bolas de neve uns aos outros. Todos. Vamos brincar às guerras à luz das tochas.
bolas de neve uns aos outros. Todos. Vamos brincar às guerras à luz das tochas.
E depois vamos todos para um dos quartos. De qualquer modo já dormimos
todos longe uns dos outros. Estes antigos edifícios são vastos. Separam-nos. Não
gosto disso, Aliver. Podes dispensar alguns momentos ao teu velho pai. Finge
que és ainda o meu menino pequenino. Finge que nada mais queres a não ser o
meu amor por ti, fica junto de mim a ouvir-me contar histórias até alta noite. Em
breve tu e eu falaremos de coisas mais graves, mas deixem-me ter esta noite
assim.
— Está bem — respondeu Aliver, falando por cima dos gritos de alegria de
Dariel. — Mas não esperes piedade de mim. Antes de a noite acabar, serei
coroado Rei das Neves.
— Assistirei ao banquete desta noite por pouco tempo — disse Leodan.
Corinn quis protestar, mas o rei sorriu-lhe. — Não tão pouco assim. Escapar-me-
ei do salão após ser servido o terceiro prato. Eles mal irão dar pela minha falta, e
depois iremos então brincar às guerras.
Capítulo 14

Tasren Mein permaneceu algum tempo na rua, sentindo os flocos de neve a


caírem-lhe levemente sobre a pele e derreterem-se. Que bom era sentir a neve
beijar-lhe o rosto virado para o céu. Era belo, honesto, e — nesta terra — algo
particularmente estranho de se ver. O ar da noite estava apenas frio o suficiente
para que nevasse, e era tudo tão sossegado, os sons tão abafados, mal se ouvindo
o ruído dos passos dos transeuntes calcando a camada húmida de cristais de
gelo; tudo isto era uma experiência completamente diferente das tempestades no
Planalto do Mein. Contudo, a mensagem e significado daquilo era fácil de ler:
uma bênção de casa, um encorajamento enviado pelos Tunishnevre para lhe
recordar que o que fazia agora fazia-o por muitos. A neve caía sobre Acácia;
assim era a mudança vindoura assinalada pelos céus.
Na altura em que acabou de subir o último lance da escadaria e se
aproximava do salão do banquete do outro lado de um pátio em pedra, os outros
convidados já estavam a entrar. Tocou na peruca com os dedos, sentindo os
ganchos que a prendiam ao seu lugar. O traje estava em ordem, a capa era uma
das mais finas do embaixador. Houvera uma época, sabia, nos antigos tempos de
Acácia, em que a regra mandava que ninguém se aproximasse do rei a menos de
cem passos, quando a realeza olhava do alto para os encontros sociais de longe,
como espetadores de um jogo. Ficavam a salvo atrás de uma barreira de guardas
Marah, soldados empunhando espadas, cada um de joelho no chão, vestidos e
empoeirados com pó de bronze de modo a parecerem estátuas, prontos a voltar à
vida mal surgisse qualquer ameaça. Estes, assim lhe haviam dito, eram treinados
tanto na observação dos movimentos do corpo e na conduta como em artes
marciais. Porém, isso acontecera havia muito tempo. O luxo torna as pessoas
mais moles e desleixadas. Por isso, este banquete onde entrava agora era muito
diferente, era um festim que os primeiros reis mal reconheceriam.
Acenou aos guardas que se encontravam à porta. Saudaram-no com o nome
do embaixador, sem o mais leve tom de desconfiança nos sorrisos. Tal como
Gurnal lhe dissera, tinha de caminhar através de uma comprida sala de receções
para chegar ao seu objetivo. De ambos os lados as paredes estavam decoradas
com pinturas de acacianos antigos. Mais perto, havia estátuas de homens que ele
supunha terem sido reis. Atrás de cada uma destas estátuas encontravam-se
soldados em posturas formais parecidas, de braços junto ao corpo, mãos
cruzadas sobre o punho das espadas. Os soldados permaneciam tão estáticos
cruzadas sobre o punho das espadas. Os soldados permaneciam tão estáticos
quanto as personagens inanimadas que protegiam. Ao fundo do corredor, à
entrada do salão, havia um grupo de homens — o anfitrião oficial e os seus
guardas. Thasren prosseguiu, sabendo que lhe observavam cada passo, cada
movimento das mãos, o seu comportamento, as suas feições. Fizera uma abertura
no traje para ter uma passagem rápida para alcançar a arma escondida. Teve de
dizer uma prece calmante para conter o movimento dos seus dedos, tão
interessados estavam eles em encontrar o punho e rasgar a primeira garganta que
lhe dirigisse alguma queixa.
À entrada do salão, o chefe da guarda Marah sorriu em saudação,
bloqueando a entrada de modo gracioso, com dois soldados de cada lado,
embora estes pouco inclinados a sorrir. Atrás deles, Thasren viu um salão
iluminado por centenas de luzes, repleto de pessoas; o ambiente era preenchido
pelo clamor de vozes e da música de instrumentos de cordas, em que a
fragrância do fausto banquete da noite estava patente por todo o lado. O guarda
Marah tocou-o em dois pontos do corpo, num ombro e na anca do outro lado.
Saudou Thasren com o nome de Gurnal, perguntou-lhe se o tempo lhe agradava,
mas, ao fazer isso, olhou por cima dele para os guardas da câmara exterior.
Enviou-lhes uma mensagem com o olhar e um gesto do queixo, dizendo-lhes que
com o último convidado lá dentro podiam selar as portas exteriores. Virou
novamente a atenção para o homem que abraçava que — apesar da calma
aparente — estava tenso e preparado para saltar, para abrir um caminho de caos
dali para a frente, se necessário fosse.
Antes de o guarda ter começado a revista que poderia ter-lhe custado a vida,
soou uma trombeta ao fundo do salão. Era uma nota alta, seguida de uma
melodia mais suave, que os instrumentos de corda começaram a acompanhar. O
oficial disse qualquer coisa animadamente, palpou-o numa dança rápida dos
dedos que não lhe tocou na arma. Fez um gesto a Thasren para que entrasse.
Deste modo, o maior obstáculo ao seu sucesso já se encontrava para trás das
suas costas. Agora teria apenas de se sentar durante os momentos de abertura do
banquete. Observou o rei a aparecer na festa, com toda a comitiva em seu redor,
o filho e a filha, o príncipe ausheniano, o chanceler Thaddeus Clegg, os guardas
que os flanqueavam. Embora chamassem àquilo uma festa íntima, deveriam
estar presentes cerca de cem pessoas no salão, muitas delas entre ele e o
monarca. Durante os primeiros instantes não se moveu. Sentia os poros a jorrar
suor, mas tentou manter-se calmo e respirar devagar. Tranquilizou a mente e
focou-se no objetivo, como lhe tinham ensinado. Tinha de criar o momento da
morte da sua presa, tinha de reunir uma miríade de forças em movimento no
mundo e rompê-las como uma seta atirada através de anéis lançados ao ar.
mundo e rompê-las como uma seta atirada através de anéis lançados ao ar.
Registou os vários participantes no salão: como se comportavam, para onde
olhavam, a que proximidade estavam do rei e atrás de que limites.
Quando se moveu, fê-lo como se fizesse parte da respiração da multidão,
com outros sendo arrastados com ele para perto da personagem real. Deu um
passo para o lado por duas vezes, desviando-se para território aberto, e daí viu o
momento de que precisava. Leodan respondeu a uma saudação vinda da
multidão. Procurou o homem em questão com o olhar e depois avançou com um
sorriso no rosto, indicador de que reconhecia um velho amigo. O rei esgueirou-
se por entre duas mesas e momentaneamente colocou os guardas em fila indiana
atrás de si. Leodan ergueu os braços para abraçar o outro homem, fazendo
ondular, com o gesto, as aves nas mangas das vestes.
Thasren tirou a adaga do esconderijo. Passou-a diagonalmente junto ao
corpo, num movimento tão rápido que atraiu muitos olhares. A lâmina refletiu a
luz das mil lâmpadas, era um objeto afiado numa mão que não deveria empunhar
um objeto afiado. Avançou os passos que faltavam. O rei olhou para ele, atónito,
com a boca aberta como se fosse proferir o nome do embaixador. Thasren
apontou a lâmina curva da adaga para atingir o homem através da órbita
esquerda. Tê-lo-ia conseguido, não fosse um dos guardas saltar para o tampo da
mesa, girando a espada para cima para cortar a mão do atacante a meio do pulso.
Thasren ergueu o braço e a espada do homem falhou o golpe. Durante um
instante em que o guarda perdeu o equilíbrio, Thasren girou a mão livre e fê-lo
rodopiar no ar segurando-o por um artelho. Fez girar o corpo do homem de tal
modo que este foi tombar sobre outro guarda, que deixou cair a espada
desembainhada.
O amigo do rei colocou-se à frente do monarca, protetor e ao mesmo tempo
com a boca aberta de medo. Thasren deu um salto e bateu com o calcanhar no
joelho do homem. Este caiu redondo no chão. Da esquerda surgiu outro guarda,
de espada empunhada. Thasren atirou a adaga num movimento para o atingir.
Quando o guarda ergueu a arma para se desviar do ataque inesperado que aquilo
pressagiava, Thasren girou sobre si e agachou-se. Deu uma volta completa sobre
si e atingiu com a adaga a carne mole abaixo da axila do homem, enterrado o
gume afiado alguns centímetros na carne. Empurrou com força, abrindo uma
ferida irregular que só terminou no umbigo.
Ouviu uma voz aguda a gritar — era o filho do rei, percebeu. Fosse qual
fosse a ordem que o jovem gritara, não foi obedecida. Thasren ainda não usara a
lâmina da adaga, mas fê-lo então. No breve instante antes que alguém mais o
atacasse, avançou os últimos passos para o rei que recuava. Olhando para o seu
rosto espantado, apunhalou-o na zona superior esquerda do peito, em cheio num
rosto espantado, apunhalou-o na zona superior esquerda do peito, em cheio num
dos olhos de uma das garças aushenianas bordadas. Pouco mais pareceu do que
um movimento de esgrima. Surgiu uma pequena mancha de sangue, coberta
quase imediatamente pela mão do rei. E foi tudo, estava feito. Mais fácil do que
pensara, no fundo, mais rápido do que Thasren imaginara ser.
Parou todas as manobras agressivas. Ergueu-se da posição de combate em
que estava. Ficou de pé no meio do círculo de corpos que o rodeavam agora. Em
poucos segundos, a guarda tinha-o cercado. Tê-lo-iam morto naquele instante,
mas não há nada como a passividade inesperada para confundir soldados
treinados. Estes pararam quando ele parou, e Thasren teve tempo para olhar em
volta. Fixou o olhar no rei que se encontrava agora encostado a uma parede atrás
de uma barreira de guardas. Olhando diretamente para o monarca, disse quem
era na sua língua, falando como se fosse uma personagem das antigas lendas.
Explicou que era Thasren Mein, filho de Heberen, irmão mais novo de Hanish e
de Maeander. Disse que morria com o coração pleno de alegria pois fizera um
ato justo. Assassinara o déspota de Acácia. Este era um gesto sem culpa, há
muito merecido. Por causa disso nada mais desejava na vida.
— Muitos me louvarão — proferiu ainda, pronunciando estas palavras num
acaciano de forte sotaque. — Muitos me hão de louvar e seguir-me-ão.
Pressionou a ponta da adaga contra o próprio pescoço e passou a lâmina
rapidamente pela sua artéria principal. Instantes depois jazia sobre as pedras
lisas, levando consigo uma visão enviesada de um mundo no caos. O corpo ficou
de tal modo contorcido ao cair que o palpitar do seu coração lançou borrifos de
sangue para o ar acima dele, cobrindo-lhe o rosto e o peito com uma névoa
vermelha. Pestanejando, contemplou através da cortina de sangue. O rei foi
levado rapidamente da sala no meio de uma massa compacta de homens, que
pareciam abelhas atarefadas à volta da abelha-mestra. Conduziram-no para fora
do salão, segurando-o entre eles numa posição meio sentada, com todas as mãos
sobre o seu corpo, algumas comprimindo as palmas contra o peito sangrento.
Durante alguns segundos, quando a linha de visão entre eles se aclarou, Thasren
observou a boca aberta do rei. A dor transparecia-lhe nas faces. Os olhos eram
como duas interrogações de espanto, repletas de pavor.
Vendo isto, Thasren pensou no irmão mais velho e desejou que ele tivesse
presenciado este feito, e esperou que a história que aquele viesse a ouvir sobre o
que acontecera o enchesse de orgulho. Sentiu um vazio voraz comendo o seu
corpo, extinguindo-o centímetro a centímetro. Murmurou por entre o sangue que
lhe escorria pela boca, com sabor a metal líquido. Sentia-se possuído por um
enorme deslumbramento. Realizara pelo menos um grande ato na vida. Tendo
cumprido a sua missão, não sentia medo. Desencadeara muito medo no mundo,
cumprido a sua missão, não sentia medo. Desencadeara muito medo no mundo,
mas partia para a vida após a morte sem receios, como um soldado de uma causa
justa deveria sempre partir. Antes de perder a consciência começou a recitar a
Prece da União, o cântico de louvor aos Tunishnevre.
Capítulo 15

Mena nunca mais seria capaz de olhar para o dado de oito lados do jogo
infantil chamado «ratos a correr» sem se sentir mal. Era o jogo que ela e o irmão
mais novo estavam a brincar no momento em que Leodan fora atacado. Dariel
receara que o pai não mantivesse a sua palavra de honra de os entreter depois do
jantar de gala, e a princesa concordara em se sentar perto da porta do salão do
festim com o irmão, de modo a poderem ir a correr ter com ele assim que saísse
do salão. Faziam girar o dado na palma das mãos, olhando vezes sem conta para
o vidro verde octogonal a girar até à imobilidade, aninhados na superfície do
banco de seda. Mena não gostava muito do jogo, nem via a utilidade de se
envolver tanto num simples ato de sorte, mas gostava de sentir os dados a girar
dentro da mão. Muitas vezes chocalhava os dados tanto tempo que Dariel se
tornava impaciente.
Aconteceu pouco depois de as grandes portas se terem encerrado. Mena
registara vagamente o som abafado de agitação no interior do salão, mas
sobressaltou-se quando as portas se escancaram novamente com um grande
empurrão. Estas giraram completamente nos gonzos e embateram contra as
paredes de pedra. A mão de Mena, que estivera prestes a atirar os dados, tremeu
e acabou por deixar caí-los no chão. Por um instante ficou a observar um deles
rolando pela carpete, sentindo-se embaraçada e pronta para dar um salto e
apanhá-lo. Todavia, então viu o grupo de homens a atravessar a porta. Estavam
todos muito juntos, debruçados em redor de algo que carregavam, com as pernas
aos tropeções enquanto tentavam apressar-se, gritando uns para os outros numa
grande algazarra. De entre eles ergueu-se uma voz a gritar para abrirem alas para
o rei ferido! Mena não tinha ainda escutado totalmente as palavras quando
compreendeu que o fardo que levavam era um homem. O pai...
O rei tinha o rosto sem cor, a tez saudável tornara-se pálida como a de um
morto empoado. Os lábios trementes estavam apertados, os olhos vazios de
medo, a coroa de esguelha na cabeça. Uma espuma branca de saliva caíra-lhe
para a barba. Ali, por entre todos aqueles traços irreconhecivelmente distorcidos,
estava a pessoa que ela mais amava no mundo, despojada de tudo o que fazia
dela um homem forte, paternal e sábio. Mena puxou Dariel para si e tapou-lhe os
olhos. Com o irmão apertado fortemente contra ela, virou-se como se através do
movimento conseguisse afastar o que acabara de ver.
Mais tarde, nessa noite, sentada na cama no quarto de Dariel, com os braços
em redor do irmão, embalava o corpinho soluçante do menino. Repetiu muitas
vezes que estava tudo bem. Que o pai iria ficar bem. Ficaria bem, claro. Era
apenas uma picada de agulha, disseram. Acharia ele que uma picada de agulha
poderia fazer mal ao rei de Acácia?
— Vá lá — disse ela —, não sejas pateta. O pai há de ver-te de manhã e rir-
se-á dos olhos inchados com que ficas quando choras antes de adormecer.
Quando a respiração de Dariel entrou no ritmo regular do sono, soltou o
abraço. Encostou-se contra a parede e observou o peito do menino a arfar
lentamente. Estudou as feições descontraídas do seu rosto. Amava-o tanto, tanto!
Ao aperceber-se disso vieram-lhe as lágrimas aos olhos, pela primeira vez
naquela noite. Ele não podia verdadeiramente compreender, pois não? Na
verdade, ela pouco soubera do que acontecera ou se o pai estaria ou não em
perigo de vida, mas os pormenores não pareciam importar. O rosto do pai
explicara-lhe tudo completamente. Fosse o que fosse que viesse a acontecer
amanhã ou no dia seguinte, o olhar de medo que observara não era possível de
erradicar. Vê-lo-ia sempre sob a superfície da sua presença. Sentia-se como se o
tivesse apanhado em algum ato libidinoso, algo tão suficientemente degradante
que ela nunca mais poderia regressar à inocência dos momentos anteriores. O à-
vontade entre eles nunca mais seria o mesmo.
Arrastou-se para fora da cama e caminhou pelo grande quarto durante
algum tempo, enquanto olhava para as lajes do chão, insegura sobre o que fazer,
para onde ir, se haveria de facto alguma coisa a fazer ou algum lugar para onde
ir. Pensou em escapulir-se do quarto do irmão e ir até aos aposentos do pai, mas
com certeza que a impediriam, especialmente àquelas horas altas da noite e
depois daqueles acontecimentos. Não conseguiria de modo algum chegar até
perto dele antes da manhã, e talvez nem nessa altura.
Por fim, atravessou o quarto e trepou para os ramos mais baixos da acácia
que ocupava um dos cantos do quarto. Era uma coisa estranha de se encontrar
dentro de um palácio. Fora um presente de aniversário de Leodan para Dariel, no
Inverno anterior. O rei tivera ele próprio a ideia, falara com os artesãos e
marceneiros, e mandara fazer a obra às escondidas enquanto ele e os filhos
embarcavam para Alecia para uma curta estadia. No regresso, todas as crianças
haviam entrado no quarto de Dariel para descobrir que o tronco nodoso de uma
velha acácia fora resgatado, depois de a árvore ter morrido, e incorporado no
chão de pedra. Os ramos retorcidos para o alto pareciam fundir-se com as
paredes e dar-lhes suporte. A madeira fora lixada, os espinhos embotados de
modo a parecerem maçanetas. A madeira fora corada de um castanho
modo a parecerem maçanetas. A madeira fora corada de um castanho
avermelhado com óleo de sândalo. Estava adornada com laços e folhas verdes
feitas de seda, de modo a que a árvore parecesse eterna. Haviam construído
plataformas entre os troncos com cordas, escadotes, e baloiços para se poder
passar entre eles. Tudo isto apenas para fazer uma surpresa, a um menino, de
uma grande estrutura para brincar. Era uma ideia nunca vista, uma extravagância
estranha numa cultura que, geralmente, ignorava as crianças até estas serem
quase adultos. Houve vários comentários sobre a sanidade do rei.
Sentada no feixe inclinado de uma plataforma, Mena olhou para o quarto.
As lâmpadas de parede espraiavam uma luz alaranjada fraca pelo quarto. Dariel
dormia imperturbável, e a seu lado tinha uma bandeja de comida e chá que as
criadas ali haviam colocado. Estas tinham andado atarefadas em seu redor,
nervosas e de olhos ansiosos, quando as crianças regressaram ao quarto.
Perguntaram vezes sem conta sobre o que precisavam, mas não conseguiam
responder à única pergunta que ambas as crianças consideravam
verdadeiramente importante. Nenhuma delas murmurou uma palavra sobre o
estado do rei. Tudo estaria melhor de manhã, haviam dito. Se não tivessem
repetido isto tantas vezes, Mena talvez tivesse acreditado nelas. Em vez disso,
sabia que nada era como diziam. As criadas haviam sempre murmurado sobre o
rei. Mesmo com ela a ouvir, as mulheres tinham feito insinuações sobre os seus
desejos ou motivos ou atos. Normalmente estavam enganadas, mas agora era
diferente. Estavam com medo. Sentiam-se confusas. E estavam a mentir.
«Mas que importam elas?» perguntou Mena ao vazio do quarto. Eram
mulheres de espírito mesquinho que tratavam as crianças como se fossem... bem,
como se fossem crianças. Mena soubera sempre que algo em si a fazia mais
velha do que os anos que tinha. Compreendia coisas que elas não compreendiam.
Isto era qualquer coisa que tinha em comum com o pai. Sabia que ele estava
longe de ter um espírito fraco. Era lúcido e bondoso e inteligente de uma
maneira que muito poucos o eram, e sabia que não se devia falar com ela como a
uma criança. Por vezes, quando se encontravam a sós e ele estava nessa
disposição, falava com ela como se fosse uma adulta. Ela sabia que isto era algo
invulgar entre eles, uma espécie de entendimento tácito que tinham um com o
outro e que se exprimia apenas em privado.
Por conseguinte, ele falara francamente, meditativo, quando se sentava
naquela mesma árvore com ela e dissera que não se importava se os nobres ou os
servos ou fosse quem fosse pensasse que ele era louco. Quando fora isso? No
início da passada primavera? Nas primeiras semanas de verão? O pai dissera-lhe
que, na verdade, o mundo em si é que estava louco. Estava cheio de ódio, de
maldade, de ganância e duplicidade. Estas coisas eram as componentes do
mundo tais como as letras nos cadernos dela constituíam as chaves que abriam a
mundo tais como as letras nos cadernos dela constituíam as chaves que abriam a
porta da língua que falavam. Levara-lhe algum tempo a compreender isso, mas
sabia agora que era verdade.
— Quando era novo — disse ele, recostando-se no ramo atrás dela,
passando as mãos pela textura suave da madeira — pensava que podia mudar o
mundo. Acreditava nisso quando me tornei rei. Escreveria leis e decretos para
fazer desaparecer o sofrimento das pessoas. Não pensava que podia construir um
mundo perfeito. Não exatamente. Mas faria um mundo tão perto da perfeição
quanto um ser humano pode imaginar.
Ela perguntara-lhe se tinha feito isso. O pai olhou-a com uma expressão
pesarosa, num misto de pena e de amor. Demorou alguns instantes a responder.
Agradeceu-lhe por ter feito a pergunta, por implicar que pensava que ele podia
ser um grande homem e por sugerir que a vida dela fora, até ali, tão feliz que
ainda imaginava tais coisas possíveis. Porém, não, não alcançara nenhum dos
sonhos que tivera quando era jovem. Não sabia apontar porquê ou como, mas
cada uma das suas grandes ideias evaporara-se mesmo à frente dos seus olhos.
Sentia, pensando bem, que as palavras com as quais descrevera essas coisas não
eram mais duradouras do que o bafo que nos sai da boca com a respiração, num
dia de Inverno. Falara, mas as palavras não tinham impacto duradouro. Feneciam
quase no momento em que lhe saíam da boca. Nas reuniões de Conselho
encontrara muitos rostos educados e pacientes. Propusera reformas, mesmo na
grande câmara de Alecia, aos governadores, todos eles homens que lhe haviam
prometido fidelidade. As suas palavras foram escutadas, reconheceram que tinha
razão, louvaram-lhe a sabedoria. Deixava estas reuniões sentindo que o mundo
estaria prestes a mudar, e, no entanto, passava ano após ano e o mundo
continuava como sempre fora, sem se tornar melhor, sem ser afetado por
qualquer um dos
grandes desejos do seu coração. Ninguém lhe negava nunca nada, mas
também nada acontecia. Compreendeu então quão pouco era o poder que tinha.
Entre ele e os afazeres do mundo existiam milhares de outras mãos. Cada uma
delas lhe fingia ser leal, contudo, nenhuma cumpria os seus desejos. Talvez,
admitia ele, tivesse sido por isso que limitara as suas ambições e encontrara
sentido para a vida no amor de uma mulher e nos maravilhosos filhos que
haviam tido.
— Mena, minha filhinha sábia, não sou um homem tão forte como pensas.
— Ergueu a mão e tocou-lhe no queixo. — Não consegui mudar o mundo. Não
pude impedir os outros de cometerem crimes — crimes terríveis — em meu
nome. Não consegui impedir que a tua mãe nos deixasse quando a doença se
apoderou dela. Mas amo os meus filhos. Por isso, agora, vocês são a minha obra,
apoderou dela. Mas amo os meus filhos. Por isso, agora, vocês são a minha obra,
todos os quatro. Pensei: «Porque não construir no meu lar o mundo que gostaria
de ter?» Se vos conseguir educar, até serem adultos, numa felicidade invulgar no
mundo, terei realizado qualquer coisa. Verão um dia a maldade que os homens
fazem uns aos outros, mas, antes disso, porque não conhecer a alegria? Queres
ser uma criança para quem os sonhos se tornam realidade, não queres?
Dariel entrara nessa altura no quarto. O pai chamara-o e os breves
momentos de intimidade entre Mena e o pai foram suspensos até nova
oportunidade. Recordando-se desse momento, Mena chorou de novo. Ela não
chegara a responder-lhe. Não lhe perguntara que horrores do mundo eram
aqueles de que falava. Nunca os vira, e sabia apenas das antigas lutas escritas
com triunfante eloquência nos seus livros de história. Mas gostava de lhe ter
perguntado. Ela queria fervorosamente ser uma criança para quem os sonhos se
tornam realidade.
Tinha a certeza de que não conseguiria dormir, mas, a certa altura, fechou
os olhos, ainda sentada num ramo da árvore, encostando-se ao tronco esculpido
para ficar mais confortável. Sonhou com qualquer coisa que, mesmo enquanto
sonhava, pensou ser uma recordação, apesar de mais tarde não ter a certeza de
ter sido uma memória de algo que acontecera ou se era um sonho já sonhado
antes. Ela e uma menina, cujo nome não se lembrava, trepavam as rochas da
costa a norte e iam dar ao cais de pedra junto ao mar. A menina levava uma rede
de pesca e tinha a ideia infantil de que iriam levar o jantar para casa. Sabiam que
não deveriam estar ali sobre os rochedos pontiagudos, com o mar bramando a
seus pés em vagalhões repletos de algas, de caranguejos azuis e de mexilhões.
Porém, tudo ficaria bem se conseguissem levar para casa um tesouro vivo na sua
rede.
Ao aproximarem-se da ponta do cais, Mena vislumbrou uma estranha
agitação nas águas. Mesmo abaixo da superfície viu um cardume.
Milhares de peixes passava nas águas apressados, e eram tantos que ela não
conseguia ver onde o cardume começava nem onde acabava. Seguiam lado a
lado e em camadas sobrepostas até muito fundo, tendo cada um dos peixes cerca
de sessenta centímetros ou mais. Os que seguiam mais à superfície estavam tão
próximos que as caudas cortavam o ar. Mena conseguia ver por entre eles as
profundezas do mar. Não sabia que o mar era tão fundo, mas as águas eram
insondáveis e fervilhantes de peixe.
A princesa pediu à outra menina a rede, agarrou-a e preparou-se para a
lançar ao mar. A menina sussurrou-lhe que não deveriam pescar aqueles peixes.
— Eles viajam para o deus do mar — disse ela. — Ficaríamos
— Eles viajam para o deus do mar — disse ela. — Ficaríamos
amaldiçoadas se os comêssemos.
Mena não lhe deu importância. Mas que deus do mar? Que disparate.
Lançou a rede às ondas, preparando-se para o impacto da vida a debater-se com
que esperava encher a rede. Um momento depois puxou-a, vazia. Os peixes
continuavam a nadar, abundantes como antes, mas nenhum deles caíra na
armadilha. Voltou a lançar a rede de outro ângulo, puxou-a, gotejante: nada.
Fosse qual fosse a maneira como lançava a rede abaixo da superfície — de lado,
empurrando-a fundo nas águas, puxando-a —, não conseguia pescar nem um
único peixe. O cardume prosseguia veloz, tão perto que ela conseguia ver os
movimentos das barbatanas, e a flexão das grandes escamas ao deslizarem uns
pelos outros. Via-os rolarem os olhos para a observarem a vê-los passar,
manifestando tristeza. Algo nos olhos dos peixes a atraiu. Pousou a rede a seu
lado e deixou-se cair na água, certa de que deste modo, pelo menos, conseguiria
tocar nos peixes, certa de que eles queriam que ela o fizesse. Se avançavam em
resposta à chamada de algum deus do mar, não o faziam voluntariamente. Ela
poderia ajudá-los. Isto parecia-lhe algo de muito importante enquanto caminhava
pelas águas e mergulhava...
Mena despertou. Os seus braços mexeram-se e ela ia quase caindo da
árvore. Por alguns momentos o mundo à sua volta pareceu-lhe irreal. Sentiu o
sonho desvanecer-se e soube que havia algo mais importante de que se deveria
lembrar, mas foi só ao olhar em volta, e passados alguns instantes, que os
acontecimentos da noite lhe voltaram à memória. Ao olhar pela janela alta e
estreita viu que o céu clareara com a madrugada. As nuvens finas tingiam os
céus com tons de salmão róseo. Era um novo dia, pensou. Quanto do mal da
noite anterior seria agora remediado? Quanto desse mal seria exposto à luz
brilhante da manhã como não sendo mais do que truques de sombras e penumbra
noturna?
Começara a descer da árvore quando a porta se abriu. Corinn entrou,
movendo-se com hesitação, olhando para todos os lados como se não conhecesse
bem o quarto. Olhou para Dariel, que dormia. Ergueu uma das mãos e levou-a
aos lábios. Murmurou qualquer coisa como uma camponesa supersticiosa
observando um ato violento da natureza. Na sua quietude tornou-se uma ilha
rodeada de agitação. Entraram os criados atrás dela e abriram as janelas para
prepararem o quarto para o dia, afastando as cortinas e apagando as lanternas,
levando a bandeja com a refeição que não fora comida e substituindo-a por outra
repleta de frutos e sumos.
Corinn despertou quando viu Mena dirigir-se a ela. Tinha o rosto ofegante e
manchado, os lábios fazendo beicinho.
manchado, os lábios fazendo beicinho.
— Ele não vai morrer — disse a irmã. — Ele disse-me que não morreria.
Disse que nunca me deixaria. Prometeu à mãe que o não faria, não o faria até
conhecer todos os meus filhos e eles o conhecerem... Não o faria até eles o
conhecerem e terem ouvido dele tudo o que sabia sobre a mãe. Ele disse que nos
iria falar sobre a mãe. De como ela era quando jovem e de quando eles
casaram...
— Falaste com ele?
Corinn fez um vago gesto com a mão como explicação.
— Não, desde que aquilo aconteceu. Queria dizer, antes, ele prometeu-me.
Queria dizer antes de tudo isto...
Pressentindo que a irmã iria continuar naquele estado, Mena interrompeu-a.
— Mas o que se passa com o pai agora? Diz-me o que sabes. Como está o
pai?
— O que queres saber? — O olhar de Corinn não descansava e percorria o
quarto nervosamente. — O pai foi apunhalado. Um assassino qualquer vindo do
Mein... Dizem que o punhal estava envenenado, mas não acredito. «Que
veneno?», perguntei eu, mas ninguém me respondeu. Não sabem de nada.
Ninguém me diz a verdade. E não me deixam vê-lo. Nem o Thaddeus me quis
ver! Andam todos loucos. Chamaram o Aliver para o conselho, como se o pai já
nos tivesse deixado. Mas ele não morreu. Tenho a certeza de que não morreu!
Mena pensou que a irmã estava mais assustada do que ela. Pegou na mão de
Corinn e apertou-a entre as suas. O toque pareceu consolar Corinn, a tal ponto
que baixou o tom de voz e falou mais devagar, fixando o olhar por instantes no
ombro da irmã, mais perto de a olhar nos olhos do que até ali.
— Mena, foi horrível. Vi tudo. Vi o homem antes de ele se ter revelado. Vi-
o movimentar-se por entre a multidão. Achei-o bonito. Pensei «Aquele é o
Gurnal, não é? Parece mais novo do que aquilo que me lembrava. Que estranho.
Nunca tinha reparado que era gracioso. E depois vi-o tirar a adaga escondida.
Que fazia ele com uma faca num banquete? Se eu tivesse gritado logo no
primeiro momento... Não percebi... Não compreendo nada.
Mena apertou-lhe novamente a mão entre as suas, puxando-a para mais
perto de si. Instintivamente, sabia que era melhor nada dizer em resposta àquela
declaração, mas algo nela a fazia sentir que os papéis que ocupavam já não eram
os mesmos. Pensou no sonho que tivera e numa revelação momentânea
compreendeu que a rapariga com ela nos rochedos afinal não era uma estranha.
Era Corinn, uma versão diferente de Corinn. Como é que isso podia acontecer?
Estivera no sonho com a sua irmã e, no entanto, pensara que era outra pessoa
completamente diferente. Não fazia sentido, mas a mente adormecida raramente
faz. Afastou de si o mundo dos sonhos. Agora, compreendeu, cabia-lhe consolar
a irmã mais velha. O problema era que a não podia confortar com mentiras, e
demorou alguns momentos, num silêncio perturbado, para encontrar o tom certo
para prosseguir.
— Ficaremos bem — respondeu. — Se o pai...
— Para! — disse repentinamente Corinn. Fitava-a com olhos muito abertos
e ferozes. — O pai não irá morrer. Deixa de o desejar! Nem sequer digas que
poderá morrer!
Mena ficou horrorizada. Começara mal. — Eu... eu não disse isso. Não
desejo isso. É tudo tão assustador. É isso que, que...
Por instantes, pareceu-lhe que Corinn a ia atacar, mas, em vez disso,
aproximou-se e puxou a irmã para os seus braços. Aí Mena sentiu o primeiro
momento de consolo desde o banquete. Era triste, realmente, mas havia algo de
tranquilizador na consciência de que ambas sentiam pelo menos o mesmo medo
e tristeza com uma clareza partilhada, que não se refletia em nenhum outro
aspeto da sua relação.
Capítulo 16

Ao longe, a ave parecia pertencer à variedade mais pequena de pombos de


que fora criada. Quando vista de perto, na mão, adquiria outra dimensão. Era do
tamanho de uma jovem águia e com o mesmo tipo de envergadura, com um bico
de predador e olhos que podiam detetar as presas a grande distância. Usava luvas
em pele sobre as garras, com barbelas de aço afiadas na ponta de cada dedo, que
desde jovem fora treinada a usar. Tinha um tubo amarrado ao artelho, dentro do
qual se podiam inserir mensagens enroladas. Era um pássaro-correio, pombo de
nome, talvez, mas uma criatura cuja ferocidade igualava a sua dedicação ao voo.
Quase nunca era apanhada por outras aves de rapina. Por conseguinte, era a ave
escolhida para os mais urgentes despachos, como o que fora enviado na noite em
que Thasren Mein atacara o rei Leodan.
A ave levantou voo do braço do tratador, no bairro de Acácia reservado aos
dignitários estrangeiros. Bateu asas e ergueu-se no céu noturno com cheiro a
maresia. Primeiro voou através da cascata de flocos de neve, sobre o mundo lá
em baixo como um grande manto cinzento e difuso. Algures, sobre o continente,
a oeste de Acácia, os céus clarearam. A ave continuou o voo, determinada, por
entre a escuridão, raramente parando de bater as asas.
Chegou até outro tratador, numa aldeia da costa de Aos, na madrugada da
manhã seguinte. Desceu em voo planado, deixando para trás um céu de um tom
carmesim brilhante. A mensagem na pata foi removida e presa — sem ter sido
lida — a outra ave. Esta voou até à baixa Aushenia nesse mesmo dia, erguendo-
se e pousando na superfície recortada das pradarias. Uma outra ave levou a
mensagem através do estreito de Gradthic e chegou a Cathgergen cerca de uma
hora antes do nascer do Sol, dois dias depois de a viagem se ter iniciado. Desta
vez, a mensagem foi retirada do seu invólucro e levada à pressa através de
corredores gelados do forte e entregue nos aposentos amplos que,
temporariamente, albergavam o irmão mais novo de Hanish Mein, Maeander, e o
seu séquito.
Maeander acordou ao ouvir chamar pelo seu nome. Quem o chamara
manteve-se lá fora, entoando baixinho a prece ritual que tanto pede perdão pela
interrupção como promete que a perturbação diz respeito a assunto de grande
importância. Levantou-se, nu, do calor do leito, e olhou para baixo,
contemplando a confusão de corpos, almofadas e mantas de pele onde dormia.
contemplando a confusão de corpos, almofadas e mantas de pele onde dormia.
De facto, o leito ocupava grande parte do chão acolchoado. Era aquecido por
baixo através do sistema de ventilação que distribuía o vapor quente que vinha
das entranhas da terra por toda a fortaleza. Aqui e ali via-se uma perna ou um
braço macio de mulher, madeixas desgrenhadas de cabelos, um braço em torno
de outro corpo nu, dedos entrelaçados por entre as peles macias de raposa
branca. Cinco, seis, sete mulheres: entrelaçadas numa tal confusão que mal se
distinguiam umas das outras. Quando Maeander dormia com amantes, dormia
com muitas, e queria-as muito parecidas, de modo que se confundiam umas com
as outras sem identidade individual. De pé, o ar gelado do quarto fê-lo
estremecer. Gostava das sensações extremas, do calor ao frio, do prazer à dor,
dos contornos suaves das concubinas, num momento, para a rigidez e
formalidade da sua vida militar, a seguir.
Quando abriu de rompante a porta e estendeu a mão para receber a missiva
estava completamente desperto. Fechou a porta e leu a mensagem. Uma, duas,
três vezes, de tão curta que era. Parecia que esperara uma vida inteira pelas
notícias que lhe trazia. O coração, batendo furiosamente, lembrava-o de todos
esses anos, como se evocasse tantos e tantos dias num único instante.
— Obrigado, pais — murmurou. — Louvo-te, meu irmão. Não serás
esquecido. Mereceste a honra que desejavas da vida.
Ao voltar ao centro do quarto, ouviu um murmúrio por entre os cobertores.
Alguém bocejara alto, rolara sobre si, expondo a curva plena de uma anca.
Maeander sentiu o aguilhão do desejo no corpo. Pensou uns instantes no prazer
de que usufruiria se acordasse as mulheres com gritos de excitação, copulando
com elas para anunciar a sua alegria pelo que estava prestes a acontecer,
partilhando com todas o júbilo que o invadia. Porém, sabia que não se podia
permitir tais diversões, agora que o princípio de tudo estava anunciado. Seria tão
inapropriado como lamentar a morte do irmão. Passou por cima do leito, em
direção à sala seguinte. Havia outra maneira de gozar o dia. Melhor seria que se
apressasse.
Assim, quando Rialus Neptos entrou e o encontrou reclinado num sofá, no
gabinete do governador, Maeander já deitara mãos ao trabalho. Enviara outro
pombo-correio para o vento gélido que soprava do norte. Mandara também um
cavaleiro bem agasalhado para outro destino a norte. Tomara precauções para
que os soldados que o acompanhavam entrassem um a um na fortaleza, tão
impercetivelmente quanto possível, movimentando-se um a um ou aos pares, de
modo a não chamarem a atenção. Os cavalos estavam preparados e selados para
a sua próxima partida. Tinha apenas de falar com o governador para concluir a
sua missão em Cathgergen.
sua missão em Cathgergen.
O governador entrou com ar preocupado, balbuciando qualquer coisa
entredentes, de braços colados ao corpo e ombros encolhidos para se proteger do
ar gélido do aposento. Vendo Maeander, estacou tão abruptamente que entornou
a bebida fumegante que transportava com ambas as mãos.
— Maeander! O que te traz aqui tão cedo?
Maeander fez uma expressão exagerada de ofensa, como se tivesse sido
insultado.
— Que género de saudação é essa? Pensar-se-á que não tens alegria
nenhuma em começar o dia comigo!
Rialus foi imediatamente apanhado desprevenido. Explicou que aquilo nem
lhe passava pela cabeça. Estava apenas surpreendido. Na verdade, ia a caminho
dos banhos. Passara ali só por instantes. Podia nem sequer ter passado no
gabinete, e, nesse caso, teria deixado Maeander à espera. Continuou a tagarelar
sem mostrar sinais de querer terminar tão cedo.
— Basta! — Maeander bateu com toda a força a sua bota negra no chão. —
Tenho várias coisas a dizer-te. Talvez te queiras sentar...
Rialus não pareceu de início inclinado a isso, mas Maeander aguardou,
fitando-o friamente até o obrigar a mudar de ideias.
— Leodan Akaran — proferiu Maeander — foi afastado do trono. Não me
interrompas. Dir-te-ei tudo o que precisas de saber. O meu irmão Thasren
sacrificou-se para acabar com o reinado de Leodan. Recebi notícias que o
confirmam. Espero dentro de um dia ou dois dizer-te que o Akaran partiu deste
mundo. Tem cuidado com o café.
Rialus, atónito perante as palavras de Maeander, deixara o pires tombar
para um lado.
— Pelo seu ato, Thasren anunciou que o povo já não deve honras à dinastia
Akaran. Declarou guerra, e é minha intenção dedicar-me totalmente à causa por
que morreu. Dentro de pouco tempo partirei com um pequeno contingente dos
meus homens. Não mostres alívio, ainda não acabei. Agora, Rialus, o que estou
prestes a dizer-te poderá lançar-te na confusão, mas tenta manter-te firme. Tens
hoje várias responsabilidades importantes. A primeira tem que ver com os
banhos.
— Os... os banhos?
— Precisamente. A segunda companhia da guarda irá usá-los esta manhã,
não é? Bem, o que vais fazer é ordenar à primeira companhia e à terceira para se
lhe juntarem nas águas fumegantes. Será uma grande multidão, homens e
lhe juntarem nas águas fumegantes. Será uma grande multidão, homens e
mulheres, mas tenho a certeza de que não levantarão objeções. Toda aquela
carne a tocar-se, e a esfregar-se... Quem não gosta do quentinho de um banho
cheio de gente? Mas será melhor que não te juntes a eles. Explicarás — se é que
tens de explicar alguma coisa a alguém — que os balneários terão de ser limpos,
que vão tratar da sua manutenção esta tarde, por isso, quem os quiser usar, terá
de o fazer de manhã. Qualquer coisa deste género. — Com um gesto da mão,
indicou que deixava estes pormenores nas mãos hábeis do governador. — E,
depois... darás ordem para se fecharem todos os respiradouros dos balneários.
Quando os fecharem, ordenarás que se abram as válvulas completamente.
Libertarás toda a energia armazenada nos poços.
— Não compreendo... — começou Rialus. — O calor no interior dos
balneários...
— Será considerável. Bem sei. Levará a que as piscinas fervam. Os
soldados ficarão vermelhos como lagostas na panela. Subirão uns para cima dos
outros, tentando sair das águas, mas haverá demasiada gente. O ar ficará cheio
de vapor, o calor encher-lhes-á os pulmões e sufocarão. Sei muito bem o que irá
acontecer, Rialus.
— Mas hão de fugir para os corredores, nus, e... — O governador estava
demasiado perplexo para continuar. — Isto é uma brincadeira?
— Achas que isto tem graça? Que homem estranho és, Rialus. De qualquer
modo, as lagostas não fugirão dos banhos. Deixo soldados suficientes para
barrarem as portas até a cozedura ficar completa. Depois, despacharão quaisquer
outros soldados que encontrarem. Então, deixar-te-ão para se prepararem para o
que virá a seguir. Há algum ponto pouco claro nisto, para ti, até agora?
Rialus respondeu a isto balbuciando a descrição do que aconteceria às
tropas, como se a realidade de tal ato pudesse ter escapado a Maeander. Aquilo
significaria que cerca de três mil soldados, homens e mulheres — quase toda a
Guarda do Norte, desde que a companhia de Alain desaparecera — seria cozida
até à morte. Os seus corpos inchariam, rebentariam e espalhariam todo o género
de fluidos e teriam uma morte horrível. Nunca ouvira uma ideia assim. Tratava-
se de assassínio em massa em grande escala. Uma infâmia, um embuste de
proporções épicas.
— Será uma confusão horrível — disse Rialus, concluindo, com uma
veemência indignada e confundida. — Não poderei...
Pondo-se em pé, Maeander colocou uma mão sobre o ombro do homem
mais baixo, fazendo-o levantar-se. Passou o braço em redor do seu pescoço e
virou Rialus para a sua preciosa vidraça.
virou Rialus para a sua preciosa vidraça.
— De facto será uma confusão horrível, mas não precisas de te preocupar
com isso. Tudo o que precisas de fazer é olhar aqui pela tua janela. Observa
aquele horizonte. Lembra-te de que tens convidados a chegar. Estão quase aqui.
Na verdade, irás recebê-los esta noite. Estarão com fome e desejosos de
conforto. Ficarás feliz, então, meu amigo, por teres tanta carne fresquinha
acabada de cozinhar para lhes oferecer.
Maeander saiu sem mais palavras. Estava tão contente consigo próprio que
receava não poder esconder mais a expressão de contentamento do rosto.
Caminhava batendo com os tacões das botas com força no chão. Era quase
doloroso caminhar assim, mas gozava com o sofrimento da terra sob o castigo
das suas passadas. Sabia que Rialus o observava da janela, boquiaberto de
espanto. Que homenzinho tão pequenino, pensou Maeander. Minúsculo. Mas era
útil e fácil de manipular, não se podia negar isso.
Maeander encontrava-se suficientemente bem-disposto para poder perdoar
àquele ser semelhante a um roedor as suas falhas. Nunca estivera tão contente.
Thasren, agora, era imortal. Em breve Hanish lideraria um exército rumo a
Alecia, através do rio Ask. Pela sua parte, Maeander seguiria à frente de outra
força militar através das montanhas de Candovia. E os seus novos aliados, os
numrek, avançariam sobre Aushenia, num horror como o Mundo Conhecido não
via há séculos. Então, haveria um grande recontro, no qual o grosso do exército
acaciano imploraria pela vida antes sequer de a batalha ter começado...
O presente, pensou Maeander, era um tempo abençoado para se viver.
Capítulo 17

O encontro de Leeka Alain com o guerreiro numrek começou de um modo


surpreendentemente silencioso. Caminhara durante tanto tempo através dos
destroços sujos que assinalavam a passagem da horda, que acabara por se tornar
desatento. Estava exausto. Já não progredia com a impiedosa determinação com
que caminhara nos primeiros dias. O isolamento e a aridez que o rodeavam
pregavam-lhe partidas ao espírito. Parou para observar com calma a
configuração do terreno e os vultos que se destacavam na neve, ao longe. Já vira
miragens na curva do horizonte por várias vezes e nenhuma das sombras
ondulantes chegara a materializar-se. Durante partes cada vez maiores do dia
vivia num mundo imaginário construído a partir do passado. Quase esquecera o
objetivo daquele solitário caminho ártico, esquecera que perseguia um inimigo
muito real e esquecera o recente massacre do seu exército. Já lhe parecia um
pesadelo distante, cuja veracidade era difícil de crer.
Marchou pelos terrenos planos e dirigiu-se para a borda ocidental de
Barrens sem pensar muito no assunto. Os campos à sua frente permaneciam tão
vazios de árvores como sempre, mas agora ondulavam como dobras de uma pele
enrugada. Aqui e ali, leitos gelados cruzavam o terreno, ainda imperturbados
pela primavera que se avizinhava. Perdia a visão da linha do horizonte sempre
que ia dar a um barranco. O rasto da horda era bastante fácil de seguir, no
entanto. Seguia sempre a direito através de toda a área, tão a direito como nunca
vira. Leeka prosseguia o caminho de cabeça baixa.
Assim seguia ele, subindo por uma elevação de terreno, para depois
começar a descer a encosta em direção ao que, dentro de meses, viria a ser um
rio. Vislumbrou os vultos negros contra a brancura da neve, mas foi lento a
erguer o olhar para eles. Não levantou os olhos até ouvir um grunhido. Era a
primeira vez que ouvia uma criatura a fazer barulho, passado tanto tempo. Foi
uma exclamação de alarme e despertou os sentidos de Leeka. O trenó, que
puxava atrás de si, impulsionado pelo balanço da descida, deslizou para a frente
e bateu-lhe nos calcanhares.
À sua frente havia duas criaturas vivas e uma morta. Fora um dos
rinocerontes peludos que emitira o grunhido. Estava a cerca de trinta metros de
distância, absurdamente perto, suficientemente próximo para Leeka conseguir
imaginar a sensação do seu pelo áspero. Conseguia distinguir as estrias de
imaginar a sensação do seu pelo áspero. Conseguia distinguir as estrias de
crescimento que lhe anelavam os cornos e notar as marcas nas fivelas da sua
sela. A criatura enervou-se com a proximidade súbita de Leeka. Moveu-se para
trás, abanando a cabeça de um lado para o outro. A pouca distância atrás dele,
um dos invasores estava agachado perto de uma fogueira improvisada. Olhou
para cima, primeiro para o rinoceronte, enquanto este andava à volta dele, e
depois para Leeka. Por que estaria ali aquele ser — um enviado em alguma
missão oficial, um vagabundo por algum motivo obscuro ou um desertor —,
Leeka nunca o saberia. Não havia hipótese alguma de os dois entrarem em
conversas. O que os seus olhos lhe mostraram, no entanto, deu-lhe uma volta ao
estômago como mais nenhuma carnificina de guerra o fizera.
O numrek estava sentado a banquetear-se com carne humana. O corpo de
um jovem fora colocado sobre um caldeirão que aquecia sobre as brasas do pez
de que Leeka havia encontrado vestígios antes. O corpo estava de costas. Os
braços e as pernas estavam esticados de modo a que as mãos e os pés
assentavam no gelo enquanto o tronco grelhava, cozia e guisava, tudo de uma
vez. O numrek acabara de raspar uma porção de carne e órgãos internos e deitá-
los no caldo borbulhante quando deu por Leeka. Pousou a faca e levantou-se,
esticando os braços para os lados. Dobrou-se, procurando algo durante alguns
instantes, depois endireitou-se, de lança na mão e uma espada curva na outra.
Leeka desatrelou as correias que o ligavam ao trenó. Deixara de envergar a
espada alguns dias antes e arrumara-a no trenó. Desembainhou-a. Tinha um arco
e flechas também, mas o numrek aproximou-se dele demasiado depressa. O
monstro arremessou a lança que se enterrou fundo no pacote de provisões e fez
tombar o trenó. Leeka deu um salto para trás e começou a andar em círculo, à
distância, arrancando as luvas e sentindo o peso da espada contra o ar frígido. O
numrek nem sequer tentara atingi-lo com a lança. Atirara-a como divertimento e
acertara no alvo escolhido, como era óbvio pelo júbilo que transparecia agora
nos seus gestos animados. Encaminhou-se para ele aos saltos, como uma criança
— se criança fosse uma palavra que se pudesse atribuir a uma criatura daquele
tamanho e instintos assassinos. Passava a espada de mão para mão,
demonstrando que era igualmente ágil com ambas. As capas de peles pendiam-
lhe do corpo, balançando com os movimentos e escondendo a forma exata do
corpo. Era difícil ainda distinguir os traços das suas feições atrás do monte de
cabelo e do chapéu que lhe caía até à fronte, mas, na boca, era visível um sorriso
maldoso.
Como se mataria uma coisa daquelas? A pergunta perturbava o espírito de
Leeka. Concentrou-se na luta para conservar a vida. O numrek aproximava-se
dele cada vez mais, em movimentos cada vez maiores que silvavam no ar. Leeka
desviou-se de um golpe na cabeça e a lâmina arrancou alguns caracóis de cabelo
desviou-se de um golpe na cabeça e a lâmina arrancou alguns caracóis de cabelo
que caíram. Na primeira vez que aparou um golpe, o impacto das duas armas
provocou-lhe uma dor no punho, desarticulando-lhe o pulso selvaticamente e
quase o cortando. Só conseguiu manter a espada colocando a outra mão sobre o
pulso para conter a dor que sentia e lutando com a arma agarrada com as duas
mãos. Se é que se poderia chamar luta àquilo. Na verdade, recuava e desviava-
se, tropeçava e voltava a ganhar o equilíbrio, sem chegar propriamente a atacar.
Evitou voltar a bater na arma do monstro, exceto para bloquear um golpe. De
outro modo, era como uma marioneta dançando ao ritmo das contorções que o
outro o obrigava.
Em pouco tempo, Leeka estava ofegante e suava, de olhos marejados de
lágrimas. Parecia que já sobrevivera durante um tempo impossível àquele
adversário. O inimigo ia falando enquanto lutava. Proferia um fluxo contínuo de
sons guturais apenas com a ordem mínima necessária para se parecerem com
palavras. Leeka procurou um modo de ataque, mas o adversário era demasiado
corpulento, demasiado rápido em cada golpe, demasiado parecido com uma
tempestade em movimento. Exalava um cheiro nauseabundo quase doloroso de
inalar, como uma mistura de vinagre, urina e cebolas. Quando se detinha diante
do brilho do Sol poente, tapava o astro inteiramente e tornava-se um guerreiro
sombra. Teria algum dia um homem matado uma coisa daquelas, um gigante
assim?
Então, Leeka lembrou-se. A Oitava Forma. Gerimus contra os guardas da
fortaleza de Tulluck. Aqueles guardas deveriam ter sido gigantes. Era isso que
dizia a antiga tradição. Maiores do que os seres humanos em todos os aspetos.
Mais fortes. Desumanos na indiferença que tinham pela vida. Guerreiros que
viviam para matar. Haviam aterrorizado o Primeiro Reino de Candeva, o
antecessor do Segundo Reino de Candovia. Só quando o herói Gerimus os
encurralou até à fortaleza e atacou os dois guardas é que se descobriu um meio
de os combater. Eram demasiado confiantes, compreendeu Gerimus. Demasiado
fortes e impacientes. Usou contra eles a impaciência com que combatiam,
zombando deles ao lutar puramente à defesa até eles começarem a cometer erros
devido à ansiedade. Dera resultado uma vez, talvez viesse a surtir efeito
novamente.
Assim, no seu bailado defensivo, Leeka ia tentando tecer partes e gestos da
Forma. De início, mal conseguiu fazê-lo sem perder a cabeça, até encontrar uma
fusão entre o que precisava de fazer para sobreviver àquilo e as antigas
manobras de combate de Gerimus. Isso complicava-se pelo facto de que, na
Forma, o herói tinha rechaçado dois adversários, mas Leeka modificou a maior
parte dos movimentos relacionados com o segundo gigante. O inimigo não
parte dos movimentos relacionados com o segundo gigante. O inimigo não
pareceu notar isto de início. Foi só quando Leeka girou no ar num ataque louco
com o gume, que o gigante, aturdido, estacou. Virou a grossa cabeça, estudando
a área que Leeka retalhara com tanta violência. Viu como Leeka afundava a sua
lâmina no pé do inimigo imaginário e como puxava a ponta do gelo, a volteava
no céu e a enfiava na carne mole de um queixo invisível. Feito isto, Leeka
enfrentou-o.
O invasor, fosse o que fosse que tivesse pensado da exibição, deu um passo
em frente, pronto para o ataque. Enquanto lutavam, Leeka entrava cada vez mais
na pele da Forma. Sabia bem. Se iria morrer, pelo menos teria alguma dignidade
nos seus últimos momentos. Neste ligeiro sentimento de confiança havia um leve
indício de controlo. Leeka começava a sentir que, por vezes, não só antecipava
os movimentos do adversário como também os provocava. Sim, pensava, dá um
passo em frente. O outro dava. Impele-te e depois desliza para a direita. De novo
o outro o fazia. Balança, como se fosses cortar-me as pernas. Deu um salto,
mesmo a tempo. Não era uma dança perfeita, mas Leeka conseguiu manobrar as
variações daquele modo de combate cada vez com maior facilidade. O
adversário não dava sinais de perceber o decurso deliberado da luta, mas estava
cada vez mais feroz. Alguma da sua alegria inicial desvaneceu-se. Mantinha-se
silencioso, com exceção de alguns grunhidos de cansaço que soltava. Chegou até
a cuspir para Leeka várias vezes, atirando a saliva tanto como uma arma como
um insulto.
Quando o momento chegou, Leeka ficou surpreendido. O adversário,
impulsionado por um grande acesso de raiva, passou a lâmina de uma mão para
a outra. Movimentou-se para a frente, girando a espada em círculos, com o
ombro tenso pelo movimento, pondo toda a força do braço, ombro e abdómen na
espada rodopiante, o peso inteiro do corpo carregado de puro e impaciente
rancor. A força era inacreditável, mas Leeka desviou-se para o lado. Tal fora a
pressão da lâmina ao atravessar o ar que o seu impacto quase o fez perder o
equilíbrio. A arma estilhaçou-se contra o gelo num jato de cristais.
Ali estava: tal como o último dos gigantes de Tulluck, havia retalhado a
rocha de granito do chão da fortaleza. Leeka saltou sobre a espada do gigante,
um pé na ponta da lâmina e o outro próximo do punho. Ao terceiro golpe atingiu
o monstro no antebraço. Daquela plataforma, Leeka deu um salto floreado para
atacar. A espada zumbia à sua volta, numa mancha rodopiante tão rápida que
nunca mais se lembraria depois do momento preciso em que atingira em cheio o
pescoço do inimigo. Mas lembrou-se sempre do momento a seguir, quando se
apercebeu do que fizera. A cabeça do monstro ficou dependurada sobre um dos
ombros enquanto o corpo caía. Quando, por fim, este tombou, a cabeça foi
ombros enquanto o corpo caía. Quando, por fim, este tombou, a cabeça foi
atirada para a frente, impulsionada, pareceu-lhe, por um jorro de sangue
brilhante e carmesim. Leeka nunca executara a Forma daquela maneira.
Observando o fluido a jorrar sobre o gelo, soltando vapor, disse:
— Bem, então... sempre deu resultado.
Embora mal o conseguisse fazer sem vomitar, puxou o que restava do
cadáver humano para fora do fogo. Deu um pontapé no caldeirão, fazendo-o
tombar. Com o cabo da lança do inimigo revirou os carvões e o pez para atear a
fogueira. Atirou objetos inflamáveis das coisas que levava no trenó para atiçar as
labaredas e depois observou a lenta e desagradável obra de transformação de um
corpo humano em cinzas. Aquele homem era, afinal de contas, um dos seus
soldados. Não conseguiu reconhecer o seu rosto desfigurado pelas úlceras do
gelo ou encontrar qualquer documento que o identificasse, mas proferiu algumas
palavras que lhe ocorreram. Pensou no que poderia fazer para lamentar a sua
morte. Mas a sua tristeza era já real. Vinha do coração mais claramente do que
nunca, e as lágrimas não lhe eram menos embaraçosas em virtude da sua solidão.
Não pensara no jovem enquanto combatera o monstro, mas estava agora feliz ao
pensar nisso, por o ter vingado.
Nesse dia, mais tarde, tudo o que pudera fazer pelo soldado fora feito.
Leeka pôs-se a contemplar o rinoceronte, que permanecia um pouco afastado,
observando. Dirigiu-se para o animal de lança em punho, tentando disfarçar a
lesão que sentia agora no tornozelo. Devia tê-lo torcido a determinada altura da
luta. A dor fazia-se sentir a cada passo que dava, e tinha a articulação rígida e
inchada. Não queria demonstrar fraqueza à criatura, mas, de cada vez que se
aproximava, o animal desviava-se, arrastava as patas, girava sobre si, recuava.
Respondia exatamente a cada movimento que Leeka fazia, mantendo-se sempre
à distância, observando-o fixamente. Leeka olhou em volta à procura de
qualquer pedaço de alimento para lhe dar, mas, obviamente, nada havia.
— Ouve — disse Leeka. — Não tenho tempo para isto. Caso não tenhas
percebido, o teu dono ficou sem cabeça. Mas tu e eu podemos ajudar-nos um ao
outro. Quero chegar depressa a um sítio, o que me será difícil com o tornozelo
assim. E tu... tu pareces precisar de ir também para qualquer lado.
Havia uma espécie de inteligência na atenção que a besta prestava a tudo
isto, mas também não denotava total compreensão. Como resposta, o animal deu
uma patada no gelo. Leeka estava consciente da sua fragilidade, da sua fraca
figura comparada com a corpulência do animal, já de si uma arma natural, e da
espessura das suas defesas. Fitou a besta com com toda a fúria e irritação que
conseguiu reunir. Melhor seria que não passasse pela cabeça do animal que
poderia empalar Leeka com aquele corno e andar por aí com um novo
ornamento. Ou que o poderia derrubar e esmagar a seu bel-prazer. Não podia
haver confronto violento entre eles. O vencedor era bastante óbvio e Leeka rezou
para que o rinoceronte não se pusesse a pensar. Então, lembrou-se de uma coisa.
Virou costas, afastou-se, coxeando, e voltou passados momentos, agarrando
a massa de cabelo do guerreiro morto. Lançou a cabeça para o espaço entre ele e
o animal. A cabeça rolou aos solavancos até parar. O animal estudou-a, andando
à sua volta como se suspeitasse de algum truque. Leeka testou vários possíveis
gracejos. Nenhum se adaptava ao momento. Deixou que o silêncio perdurasse. O
animal já tinha bastante em que matutar com a sua mente embotada. Levaria
algum tempo a entender tudo.
Capítulo 18

Aliver vestia-se para o encontro com uma rigidez militar. Apesar de se


encontrar sozinho no quarto, agarrou ruidosamente nas dobras do seu traje de
conselho, como se todos os seus movimentos estivessem a ser observados por
superiores seus, ansiosos por o acusar de negligência. O aposento estava mal
iluminado porque ele apagara a maior parte das lâmpadas e o ar gélido invadira o
quarto, visto ele ter aberto uma das grandes janelas de sacada. Iria ter a sua
primeira reunião com os conselheiros do rei, marcada abruptamente pela
tentativa de assassinato. Tentativa, fez questão de dizer a si próprio. Tentativa,
apenas. Apesar de não o terem autorizado a ver o pai, nos dois dias depois do
ataque, Thaddeus garantira-lhe que o rei estava vivo e lutava pela sobrevivência
com todas as suas forças. Por agora, dissera, só os médicos o podiam ver. Aquele
facto em si parecia um absurdo. Como poderia a vida de Leodan Akaran e o
destino de um império estar à mercê de tão poucos homens? Um com uma faca,
alguns outros com tónicos e poções...
Não se tratava de Aliver nunca ter sido avisado sobre tais possibilidades,
mas anteriores discussões sobre as regras de ascensão haviam-lhe parecido
noções distantes, que tão cedo não teria de enfrentar na vida. O seu tutor, Jason,
dissera-lhe um dia que um príncipe não conhece tempos de maior perigo do que
os dias ou semanas antes da coroação. Muitas vezes, explicara Jason, os
príncipes eram assassinados pelos conselheiros em quem mais confiavam, por
amigos, até por parentes ávidos de poder. Aliver não se conseguia lembrar das
palavras com que respondera a isto, mas de certeza que negara que tais traições
se abatessem sobre os Akaran. Porém, também para isto Jason tivera resposta.
«Nunca na história o poder de uma nação, por mais forte que fosse, conseguiu
manter o seu poder indefinidamente. Ou os Akaran quebraram a regra, ou então
a história distraiu-se um pouco, antes de vir ao encontro deles.» Jason fizera uma
vénia ao dizer isto, com ar de brincadeira, deferente e amistoso, como era
sempre quando questionava o príncipe. Todavia, ao pensar nisso agora, Aliver
sentiu um arrepio de apreensão.
Uma pancada forte na porta sobressaltou-o. Momentos depois entrou um
escudeiro que lhe estendeu a espada chamada Confiança do Rei. O príncipe
conhecia bem a arma. Era a mesma com que Edifus combatera em Carni. A
mancha negra no punho em couro, dizia-se, era sangue da mão do primeiro rei.
A determinada altura de um duelo com um líder tribal, Edifus tropeçara, perdera
A determinada altura de um duelo com um líder tribal, Edifus tropeçara, perdera
a espada e salvou-se ao agarrar na arma do inimigo com a palma e os dedos da
mão. Um golpe fantástico que, para fins de treino, fora transformado num gesto
de bloqueio, em que se desviava a face da lâmina do adversário com a parte
carnuda da mão. Leodan usara a espada nas raras ocasiões que o exigiam, mas
Aliver procurara muitas vezes o altar onde a arma estava guardada, nos
aposentos de vestir do rei. Passara os dedos sobre o punho manchado e estriado,
e tomara-o nas mãos em concha, na esperança de que os seus dedos se
encaixassem perfeitamente no cabo desgastado da espada.
Uma vez erguera-a da armação onde repousava e empunhara-a à sua frente
com uma mão no punho e a outra na bainha. Quebrou o selo que unia ambas e
fez deslizar a lâmina um centímetro ou dois para a luz. Nada mais fez. Nunca
chegou a ter a certeza, mas pensara, na altura, que a parte exposta da lâmina
cantara, ao ser exposta ao ar e à luz. Não fora um grito de alegria. Era como que
uma tristeza profunda transmitida através do aço temperado. Teve a certeza de
que o aposento se enchera de fantasmas prestes a materializarem-se, irados, à sua
volta. Fizera algo de errado, tocara num objeto que não lhe devia pertencer, algo
que ainda não lhe estava destinado. Aquele momento deixara-o também com a
impressão e o medo de que a história marcial que aquela lâmina conhecia era
horrível, a um ponto que nunca antes lhe haviam ensinado.
Agora, ali estava ele, de braços erguidos, enquanto o escudeiro lhe prendia
a arma à cintura, uma arma considerada sua até o pai se encontrar
suficientemente bem para a empunhar novamente. Tentou usá-la com o
conveniente à-vontade, ignorando o toque contra a coxa a cada passo que dava.
Não esperara tomar o lugar do pai até ter dezassete anos. Alguns dias antes, teria
considerado isto uma enorme honra, sentar-se entre os generais e conselheiros
como estava prestes a fazer. Agora, tinha um grande sentimento de culpa que lhe
pesava como uma pedra áspera. Vira um assassino enterrar uma arma no peito
do pai e nada fizera para o impedir. A vil criatura chamara déspota a seu pai.
Déspota! Que razão haveria naquilo? Sabia que os homens maus distorciam o
mundo conforme os seus objetivos e que não se podia confiar numa única
palavra que proferissem, mas o facto de o assassino ter proferido tal frase, no
meio de tanta gente, com tão aparente certeza... atormentava-o. Deixava-lhe o
sangue a ferver.
Queria tanto voltar a esse momento e agarrar o homem pela garganta. Em
vez disso, tudo o que conseguira fazer fora gritar até mais não poder, pedindo
que alguém impedisse o ato do homem. Poderia ter empurrado os guardas para o
lado, se o tivesse querido. Poderia ter saltado por cima da mesa. Poderia ter feito
tantas coisas de que agora se poderia orgulhar. Mas não fizera. Repetira a cena
tantas coisas de que agora se poderia orgulhar. Mas não fizera. Repetira a cena
na sua mente, assim como todas as variações possíveis, mais de cem vezes, antes
de o sol se erguer no dia seguinte. Nenhuma o fez sentir-se melhor. Apenas o
fazia ter cada vez mais a certeza de que a ferida do pai era mais culpa sua do que
de qualquer outra pessoa.
***
Em comparação com a grandiosidade barroca da maior parte da arquitetura
acaciana, a sala do conselho era um espaço exíguo e claustrofóbico, onde mal
cabia a mesa oval, no centro, uma superfície baixa de granito polido, em redor
da qual se sentavam dez conselheiros do reino do pai. A luz entrava por uma
única janela estreita, na parede sul. Por aí penetrava um dardo de luz que caía de
modo a iluminar o centro da mesa, lançando reflexos que realçavam as feições
do rosto dos conselheiros. O contraste brilhante deste efeito tornava as paredes
em volta numa área sombria, que fazia com que Aliver sentisse aquela sala como
uma espécie de antro de interrogatórios.
O príncipe, após um momento de hesitação enquanto os olhos se adaptavam
à luz, tomou o seu lugar no assento do pai. Interrogou-se se deveria ser ele a dar
início à reunião. Olhou em volta para os rostos enrugados e mal-iluminados dos
anciãos que o fitavam, e para outras pessoas sobre as quais os seus olhos
recaiam. Encarava-os não como os indivíduos que eram, mas como se estivesse a
olhar para bustos. Como dar início a tal reunião?
Não foi necessário fazê-lo. Thaddeus Clegg principiou os trabalhos
invocando os nomes dos primeiros cinco reis acacianos, recordando a todos os
presentes que ali se encontravam para tomarem parte num debate da mais alta
importância. Era a esses reis que deveriam recorrer em busca de sabedoria. Era o
exemplo deles que deveriam seguir, ao enfrentarem o tumulto com que eram
agora confrontados.
— Antes de abordarmos os assuntos que deveremos discutir aqui, tenho a
certeza de que todos desejam saber como se encontra o rei.
Sucedeu-se uma vaga de murmúrios em redor.
— Tudo o que vos posso transmitir foi o que os médicos me disseram.
Neste momento o rei está vivo. Se não estivesse, já teriam vindo ter connosco e
sabê-lo-íamos imediatamente. Mas foi quase com toda a certeza envenenado. Os
médicos pensam que a lâmina que o feriu provém dos Ilhach, a antiga ordem de
assassinos do Mein. Bem sei: foram desmantelados por Edifus e banidos.
Contudo, mesmo assim, pode tratar-se do veneno mortal deles o que lhe está a
tirar a vida.
O chanceler fitou Aliver ao passar o olhar em redor e deteve-se nele por um
O chanceler fitou Aliver ao passar o olhar em redor e deteve-se nele por um
minuto. Desviou o olhar antes de prosseguir.
— Os médicos estão a fazer tudo o que podem. O rei talvez sobreviva, ou
talvez não. Precisamos de estar preparados para qualquer uma das
eventualidades. Como todos podem ver, o príncipe Aliver está sentado no lugar
do pai hoje. Deem-lhe as boas-vindas, mesmo que rezem para que, em breve, ele
volte a dar o lugar ao pai.
Aliver tentou olhar em volta e retribuir os cumprimentos, mas vacilou.
Ouviu algumas das palavras gentis que lhe dirigiram, mantendo os olhos fitos no
tampo da mesa.
Continuou a divagar o olhar pelo padrão da pedra enquanto ouvia o
secretário de Thaddeus a ler o seu relatório. Quase não fora possível encontrar
uma pessoa na ilha que pudesse confirmar a identidade do assassino, disse ele.
Por acaso, um funcionário que vivera um ano em Cathgergen, fazendo uma
auditoria aos livros da satrapia, confirmara que o homem era, de facto, Thasren
Mein. Porém, não havia a certeza absoluta. Comunicando através de pombos-
correio, os representantes do Mein em Alecia haviam emitido um desmentido,
jurando que o assassino não poderia ter sido Thasren. Insistiam que se tratava de
uma intriga por parte de outros conspiradores, mas não da parte do Mein.
Anunciavam até a sua intenção de embarcar imediatamente para Acácia e pugnar
pela sua inocência. Contudo, isto poderia ser um estratagema, pois o único
funcionário do Mein que habitava na ilha desaparecera. Gurnal e a família
haviam fugido, deixando a casa, onde haviam sido encontrados vários criados
mortos. Aquilo era tudo, no mínimo, muito difícil de interpretar.
Quando o secretário acabou, Julian, um dos conselheiros mais velho, disse:
— Isto não constitui suficiente informação para entrarmos em ação.
Algumas vozes, exasperadas já com o velho, sugeriram que ninguém
propusera ainda ação alguma. Julian prosseguiu sem perder o ânimo.
— Hanish Mein teria enviado o seu irmão para a morte... para quê? Para
começar uma guerra que não poderá ganhar? Não acredito em nada do que os
meus olhos viram nem no que me têm dito desde então. Hanish não passa de um
rapazola. Vi-o nos rituais de inverno há alguns anos atrás. Deixara crescer uma
barba rala e mal aparada, como fazem os rapazes ansiosos por serem homens.
Relos, o comandante das forças acacianas e um homem em quem Aliver
sabia que o pai confiava, disse:
— Já não é um rapaz. Creio que andará agora perto dos vinte e nove anos.
O olhar de Julian tocou o de Aliver durante um instante, e depois perguntou
O olhar de Julian tocou o de Aliver durante um instante, e depois perguntou
a todos:
— Se foi Hanish Mein a fazer isto, por que razão o terá feito? O que
pretende ele?
— Não podemos saber o que pretende — retorquiu Chales, outro velho
soldado. — Julian, todos conhecemos o teu amor à paz, mas nem todos têm tão
boas intenções como tu.
— E os rapazes são muitas vezes loucos —aventou Relos. — Cheios de
orgulho. Insensatos.
Thaddeus interrompeu a resposta de Julian.
— Ninguém aqui olha para a noite e lhe chama dia — disse. — Devemos
considerar todas as possibilidades e a questão de Julian é válida. Talvez não seja
obra de Hanish Mein. Talvez, mas vim a descobrir que muitas vezes o culpado
mais óbvio é de facto o verdadeiro culpado. Os Mein são um povo antigo. Os
povos antigos têm uma longa memória. Hanish poderá pensar que age em nome
dos seus antepassados. Ele está em contacto com os antepassados e estes
almejam hoje o sangue de Acácia tanto como sempre o fizeram. Iludem-se desse
modo.
— Somos todos povos antigos, Thaddeus — retorquiu Relos. — Alguns de
nós lembram-se disso e outros não. Alguns conseguem nomear o nome do
tetravô e outros não. Mas o sangue que corre em nós começou no início de tudo
e ainda corre. A idade não é desculpa para a traição.
Seguiu-se um momento de silêncio e hesitação, o que motivou Aliver a
falar.
— Estamos a rodear a questão sem a encararmos de frente — disse. — O
homem, o assassino, alguém duvida de que pertença à raça do Mein? E que falou
a língua deles com facilidade? Não disse ele próprio como se chamava? — Os
presentes responderam com silêncio, todos visivelmente surpreendidos por
ouvirem o jovem falar e sem terem a certeza de como lhe responder. — Então,
porque olham para o céu noturno
e se interrogam se não será o dia disfarçado? Sabemos quem fez isto. Um
homem do Mein cravou uma arma no meu pai! Retribuiremos do mesmo modo,
mas ainda com mais força. E não me importa por que razões o terão feito. Um
ato é um ato, seja qual for a lógica que o impulsionou. Terão de ser punidos.
— É isso precisamente, príncipe — disse Thaddeus. — É por isso que aqui
estamos. Temos de arranjar alguma forma de resposta. Os governadores lá terão
as suas próprias ideias, mas olharão para nós à espera de indicações e, em último
as suas próprias ideias, mas olharão para nós à espera de indicações e, em último
caso, para aprovação de qualquer ação.
— Então encontramo-nos aqui para decidir como atacar? — perguntou
Aliver, ganhando confiança com a sua própria ousadia. — De quanto tempo
precisamos para ter um exército a bater às portas de Tahalian?
Thaddeus deu a palavra a Carver, o único capitão da Marah na ilha, para
saber o que ele pensava sobre uma ação militar. No seu papel como conselheiro,
Carver era o mais jovem dos presentes, com cerca de trinta e poucos anos.
Nascera afortunado, o último de uma longa linhagem de guerreiros, e as suas
capacidades e ambição haviam acelerado a sua ascensão a um lugar
proeminente. Oferecera-se como voluntário para dirigir o exército contra a
Discórdia de Candovia, alguns anos antes. Fora uma rara ação militar, da qual
Aliver acreditava que as histórias que corriam eram mais ficção do que
realidade, mas Carver podia dizer que comandara a batalha. Poucos acacianos
poderiam dizer o mesmo. Contudo, Aliver não se importava com o que ele
pudesse dizer.
Não se deveria apressar nenhum ataque contra o Mein, afirmou. Tinham de
ter em conta a ferocidade bélica do Mein, a sua localização isolada e os
territórios que teriam de atravessar para os alcançar. As forças acacianas estavam
espalhadas por todo o império, de uma forma que lhes permitia policiar os
poderes existentes, mas não em concentração suficientes para lançar uma
campanha militar sem que isso implicasse reorganização e transporte de tropas.
Poderiam começar por mandar chamar as unidades de província, recrutar mais
forças e organizar as tropas em redor de Alecia, em meados da primavera.
Talvez, se Aushenia concedesse, poderiam movimentar tropas para posições
mais avançadas, até perto do Estreito de Gradthic, por volta do equinócio da
primavera. Porém, isto seria uma medida defensiva. Não poderiam, na verdade,
marchar até ao Planalto do Mein até pelo menos um mês depois, e seria difícil
marchar através dos campos alagados e com todas as enchentes dos rios, já para
não falar nos insetos...
— Insetos? — perguntou Aliver. — Estais louco? O meu pai foi
apunhalado por um assassino do Mein e falais-me em insetos?
Carver franziu o sobrolho de um modo que fazia as suas grossas
sobrancelhas quase unirem-se.
— Meu senhor, já viu alguma vez as pequeninas moscas da primavera do
Mein? Enxameiam os campos em nuvens tão espessas que os homens sufocam
apenas por as inalarem. E mordem. Já morreram homens por perda de sangue
das picadas. Mas o pior é que causam doenças, febres, pragas... Há muitas coisas
a ter em conta numa campanha militar, muitas formas de morrerem soldados,
a ter em conta numa campanha militar, muitas formas de morrerem soldados,
para além de uma espada. Os insetos, meu príncipe, são uma delas. Talvez uma
força habituada às condições do inverno do Mein pudesse começar a
movimentar-se mais cedo, antes de o degelo trazer as pestes e assolar o lugar,
mas, com o recente desaparecimento do general Alain, eu não o recomendaria.
Aliver abanou a cabeça, perplexo, ao ouvir tanta relutância na voz de um
soldado. Fora sempre ensinado a pensar em termos de um ataque direto,
especialmente por o seu exército ultrapassar em número as forças de qualquer
província. Quis perguntar o que se passara com o general Alain, mas, pela forma
como Carver o mencionara, era óbvio que já toda a gente da sala estava a par do
assunto. Disse então:
— Os soldados do Mein não ultrapassam os vinte mil homens, e dez mil
deles estão ao nosso serviço por todo o império. Foi esse o decreto. Por isso, a
minha questão é o quão depressa conseguiremos reunir uma força
suficientemente grande para derrotar os dez mil que lá se encontram? Tal não me
parece uma missão difícil.
Carver murmurou que a população do Mein sempre fora difícil de
determinar. Por vezes, o seu número parecia flutuar de um modo que não
correspondia ao censo oficial.
— Se quisermos fazer guerra ao Mein, é provável que consigamos travar
batalha antes de meados do verão. Uma força punitiva enviada mais cedo... Não
tenho a certeza se será possível. Se Hanish fosse escolher o momento do ataque
para nos impedir a resposta imediata, então esta seria a altura ideal. Há também a
natureza inata dos soldados do Mein a considerar. Os homens do Mein matam
por rotina. Eliminam os fracos de modo a que cada geração os faça mais fortes.
Treinam nas condições mais duras. Mantêm costumes secretos que mal
poderemos sequer imaginar. Cada vida do Mein que tiremos será paga bem caro.
A este discurso seguiram-se murmúrios de concordância. Um dos
conselheiros disse que ouvira histórias de que Hanish treinara um exército
secreto num local escondido. Um outro concordou com ele. Julian abanou a
cabeça perante a direção hipotética da conversa. Mas nada tinha a acrescentar
para além da sua desaprovação.
— Hanish pratica o Maseret — retorquiu Carver —, o duelo dançado de
que os Mein tanto gostam. Se o ataque ao rei é obra dele, é como uma adaga
atirada ao rosto. Quer que recuemos, que nos sintamos desequilibrados. Temos
de concordar que já o conseguiu.
— Receio que o próximo golpe já se tenha iniciado — retorquiu Chales.
Relos acenou com a cabeça várias vezes, como sempre fazia para indicar
que estava prestes a falar.
— Eles têm fé, essas pessoas. Falam com os mortos; e os mortos, pelo que
me disseram, são muito bons oradores. A fé é perigosa quando é aplicada a uma
causa.
Aliver olhou em volta. O que se passava com aquela gente? O que
acontecera ao pai era tido como uma simples tática de uma dança qualquer?
Falar com os mortos? Pensar-se-ia pelo tom deles que aquilo não passava de um
jogo de guerra, de uma reunião normal...
— Estão aqui então para assinar os termos de rendição do direito do meu
pai ao trono? — atirou Aliver. — Malditos sejam se não encontrarem uma única
coisa importante para me dizerem!
— Jovem príncipe — proferiu Thaddeus, com uma expressão pesarosa
como se desejasse estar a ter aquela conversa em privado —, não precisa de nos
amaldiçoar. Nem um homem aqui acredita que estamos em verdadeiro perigo.
Eles querem que saiba que o assunto é grave.
— Sei disso — retorquiu Aliver. — Não vi eu o rosto de meu pai? Digam-
me tudo aquilo que desejarem. Mas volto a dizer: digam-me como puniremos
Hanish Mein. É isso que faremos. Teremos apenas de decidir como e em que
dia. Compreendido?
Os outros murmuraram, assentindo, mas ao longo do resto da reunião,
Aliver interrogava-se se a sua explosão fora sensata. A reunião acabou,
deixando-lhe a cabeça repleta de ideias desordenadas que pareciam chocar umas
contra as outras, surgindo e desaparecendo como destroços de um naufrágio.
Não tinha certeza alguma do que se iria passar. Sentia-se como um grumete
agarrado a um destroço, à deriva em correntes que não tinha poder para
controlar.
Capítulo 19

De todas as coisas que atormentavam Thaddeus enquanto permanecia ao


lado do leito do seu velho amigo, o rei, era ver aquele rosto desgastado e flácido
o que mais o entristecia. Mostrava no que se tornara Leodan: um homem que
envelhecera, tão cansado da vida que os músculos do rosto mal tinham forças
para se contraírem ou registarem qualquer emoção. Dizer que estava pálido seria
evitar o âmago da questão. Estava de facto branco como a cal, a cor e a vida
haviam desaparecido para muito mais longe do que a superfície de cera da pele.
Thaddeus pensou momentaneamente que Edifus deveria ter um aspeto muito
parecido no seu leito de morte. E esta morte — como a do primeiro rei, havia
tantas gerações — poderia bem marcar uma reviravolta na ordem do mundo.
Thaddeus mal se conseguia conter para evitar cair ao chão de joelhos,
chorando de tristeza, confessando tudo, negando tudo. Sentia que ambos os
impulsos eram verdadeiros. De certo modo, isto era tudo obra sua. Acreditara na
mensagem que Hanish Mein lhe enviara. Soubera desde o princípio que Gridulan
era culpado dos crimes que Hanish apontara. Como odiara, odiara o filho pelos
pecados do pai. Quisera castigá-lo, desejara do mais fundo do seu ser que os
Akaran sofressem, que o próprio mundo fosse lançado no caos. Por várias vezes,
enquanto observava o rei no seu transe narcotizado, Thaddeus imaginara as suas
mãos a apertarem aquela garganta lentamente até lhe tirarem a vida. Teria sido
fisicamente fácil realizar tal ato, mas nunca fizera nada mais do que imaginar.
Em vez disso, matara aquela pobre mensageira. Não planeara aquilo. Nem tinha
a certeza por que o fizera. Fora uma ideia algo vaga que lhe surgira nessa noite.
Ela trazia notícias sobre ameaças aos Akaran. Thaddeus queria que essas
ameaças se mantivessem vivas e, para isso, ela teria de morrer. Fora uma
cobardia da sua parte, mas, de certa maneira, pedira a Hanish Mein para punir o
rei de um modo que ele não poderia fazer. Então, por que razão se sentia tão
infeliz, agora que Hanish conseguira o que queria?
Enquanto se atarefava para cá e para lá, ocupado em mil assuntos que a
situação exigia de um chanceler fiel, era assaltado vezes sem conta pela imagem
de Leodan, o rosto atónito, a mancha de sangue na roupa, os dedos de uma das
suas mãos que procuravam agarrar-se ao ombro do boquiaberto príncipe
ausheniano. Nem se conseguia libertar da franqueza ousada do assassino, que
dissera quem era. Thaddeus ouviu as palavras pronunciadas na língua do Mein
proferidas pela boca do homem, percebendo rapidamente o seu sentido.
proferidas pela boca do homem, percebendo rapidamente o seu sentido.
Observara o homem a fazer um golpe sangrento no seu próprio pescoço. Havia
tanta certeza no seu rosto, nem um momento de dúvida ou hesitação, sem medo
algum em concretizar por fim os seus atos. Thasren olhara em volta da sala
como se fosse o verdadeiro profeta de um deus desconhecido; todos à sua volta
eram ignorantes, malditos.
Da boca do rei saiu um som débil, pouco mais do que um gemido. Abriu os
olhos. Thaddeus agarrou-lhe na mão e murmurou o seu nome. Leodan virou-se
para ele, mas o olhar não demonstrou a surpresa que esperava. O rei parecia
saber que Thaddeus estivera ali o tempo todo. Só quando abriu a boca para falar
é que transpareceu a dificuldade do corpo em reagir. Thaddeus viu então que ele
tinha a língua branca e seca, inchada e pesada. Era óbvio que não conseguia
falar. Era um sintoma do veneno, um sinal de que estava a viver as suas últimas
horas neste mundo.
Porém, o rei não perdera por completo o uso dos membros. Agitou as mãos,
primeiro com pouca firmeza, até Thaddeus perceber que pedia pergaminho, tinta
e uma pena. Quando os teve na mão — depois de o chanceler o ter erguido no
leito com o apoio de almofadas — Thaddeus ficou a observar o rei, ofegante e
concentrado, colocando a mão em posição para escrever. Fitando a página e os
próprios dedos, fez um esforço para os mover. A mão executou movimentos
bruscos, começando e parando em momentos desajeitados e as letras iam-se
formando e constituindo palavras. A ponta aguçada da pena sobre o pergaminho
seco foi, durante alguns momentos, o único som que se ouviu no quarto.
Thaddeus mexia no lóbulo da orelha enquanto aguardava, o espírito num
turbilhão com as mais improváveis ideias do que o rei poderia estar a escrever-
lhe. Que acusação faria? Que maldição? Perguntou a si próprio como reagiria, se
aquele moribundo o acusasse do crime de que de facto era culpado. Teria ele
ainda em si suficiente raiva para reagir? Não sentia em si nenhuma emoção
desse género.
Embora levasse bastante tempo a escrever, o rosto de Leodan mostrou
alguma satisfação quando ergueu o pergaminho para Thaddeus o ler. Dizia: Diz
aos meus filhos que a sua história está só parcialmente escrita. Diz-lhes para
escreverem o resto e a colocarem ao lado da história dos grandes feitos. Diz-
lhes que a história deles encontra-se ao lado da maior história já contada.
Thaddeus anuiu.
— Claro, senhor.
O rei então escreveu: Tens de fazer isto.
— Que quereis que faça? — perguntou Thaddeus, com um alívio
— Que quereis que faça? — perguntou Thaddeus, com um alívio
indisfarçável no tom de voz. — Dizei-me e fá-lo-ei. — Viu imediatamente a
contradição nas suas palavras e arrependeu-se. Tocou no pulso do rei e indicou-
lhe que queria dizer que o escrevesse. Que o escrevesse e ele o faria.
Leodan escreveu a mensagem seguinte tendo menos cuidado com a
caligrafia. O chanceler mudou de posição enquanto observava de modo a poder
ver a página e decifrar as palavras. Compreendeu o que lhe estava ser pedido
ainda antes de a mensagem estar completa. O rei lembrava-o do plano de acção
que gostaria que fosse agora tomado, porque iria morrer antes de os filhos terem
idade suficiente para tratarem da transição do poder. Era um plano que colocava
o destino da nação nas mãos do chanceler. Os passos a dar eram apenas
conhecidos por ele e envolveriam unicamente algumas pessoas. Thaddeus ficou
espantado ao lembrar-se de que haviam falado de tais assuntos antes. Quando o
haviam feito, parecera-lhe que não era mais do que uma formalidade abstrata.
Pura fantasia, que ele acatava apenas para acalmar os ocasionais acessos de
morbidez de Leodan. Porém, parecia que algumas fantasias não se distinguiam
da vida real.
— Não penso que isso seja necessário — disse, colocando a palma da mão
sobre a mão do rei. — Ainda há muita coisa que não sabemos. Leodan, talvez
consigas sobreviver a isto. Este ataque contra ti pode ser obra de um louco
isolado. O que pedes poderá colocar em perigo os teus filhos em vez de os
proteger. Este plano não passava de conversa fiada, em tempos diferentes...
O rei bateu com o punho no colo, com o rosto tenso de raiva. Com o que
parecia ser um esforço monumental — feições contraídas, a boca bem aberta, a
língua e lábios e olhos e faces a tremer — conseguiu dizer:
— Faz... isto. — Repetiu as duas palavras várias vezes, até perderem forma
e a língua não as poder mais pronunciar.
Tal ordem era impossível de rejeitar. Uma vez que Thaddeus afirmou que o
faria, Leodan acalmou-se. Suspirou fundo e deixou-se afundar mais nas
almofadas. Não tentou falar novamente, mas mantinha o olhar fito no chanceler,
estudando-o intensamente, com os olhos marejados e repletos de bondade.
Thaddeus esteve quase para se virar, mas o olhar do rei impediu-o, sem sombra
de reprovação. Thaddeus sentiu que o amigo lhe pedia para se recordar das
coisas boas que haviam feito no passado, dos sonhos de que haviam falado, dos
momentos que só os dois haviam partilhado. Compreendeu que, apesar da súbita
proximidade da morte em que aquele homem se encontrava, este tinha uma coisa
que o contentava. Estava finalmente livre para desafiar os filhos a lutar pela
causa de que sempre se arrependera de não ter ele próprio lutado. Era um
causa de que sempre se arrependera de não ter ele próprio lutado. Era um
empreendimento enorme, árduo e assustador o que ele pedia ao chanceler para
preparar, mas significava agir. Para Leodan, não havia já outra escolha possível.
Parecia não ter dúvida sobre o que agora importava, e acreditava plenamente em
preparar os filhos para a viagem necessária.
O rei escreveu outra ordem lapidar. Traz-me primeiro as crianças,
escreveu, e depois... a seguir... Thaddeus não precisava de lhe perguntar a que se
referia o último pedido. Faria cumprir ambas a vontades.
Recebeu os filhos do rei meia hora depois. Sentia um frio terrível, apesar de
ter a certeza de que a sensação vinha de dentro de si, pois a sala estava aquecida
normalmente para a época. Encontrava-se encostado firmemente à porta fechada
que dava para os aposentos do rei, com uma mão sobre a outra para acalmar
qualquer tremor que o pudesse trair. Ao ver os quatro rostos dos jovens ficou
satisfeito por se ter colocado naquela posição. Vê-los fê-lo sentir uma vaga de
emoção. Como se fosse ele o pai deles, pensou. Olhem para eles! Olhem para a
magnificência dos meus filhos! Aliver... Por Tinhadin, como mantinha uma
atitude firme! Movia-se com um porte militar e confiante. Como estava bem
treinado, como era diligente e sério, que força demonstrava ao mostrar uma
postura de bravura. Normalmente a beleza do grupo, Corinn estava afogueada,
esbaforida. Parecia que o seu rosto se desfearia a qualquer momento, mas havia
algo de dilacerante na nudez dolorosa das suas emoções. Os olhos de Mena
tinham uma tristeza madura, e mantinha a cabeça baixa como se soubesse com
calma resoluta a razão por que haviam sido convocados. Dariel, de olhos tão
abertos, estava trémulo como um ratinho assustado. Thaddeus teve de reprimir
com esforço a emoção que o invadia. Foi necessária toda a força que tinha para
conseguir falar com calma.
— O vosso pai irá ver-vos agora. Por favor, não o façam esforçar-se.
Saibam que comunicará convosco do único modo que lhe é possível. Não lhe
peçam mais do que o que ele pode dar. Ele não se encontra nada bem. — Não
tinha a certeza de como continuar, de quão claro e específico poderia ser. Queria
que os jovens compreendessem o que se estava a passar, mas não o conseguia
dizer. Em vez disso, ouviu-se a si próprio perguntar:
— Estão prontos?
Que pergunta mais idiota. Soube logo que era um disparate ao ouvir as suas
próprias palavras e olhando para aqueles rostos, decididamente nada preparados
para verem o pai pela última vez. Virou-se e abriu a porta, desviando-se para o
lado para que pudessem entrar. Quando todas as crianças entraram, fechou a
porta, fora de si. Afastou-se dali, tentando não pensar no que se estaria a passar
naquele quarto, entre um verdadeiro pai e os seus filhos.
naquele quarto, entre um verdadeiro pai e os seus filhos.
O seu escritório ficava ao fundo do corredor. Deixou a porta aberta atrás de
si, de modo a poder ouvir as crianças ao saírem e saber quando deveria voltar
para junto do rei. Deu ordens ao secretário para preparar o cachimbo de bruma
de Leodan. Enquanto se preparava para cumprir a ordem, o homem demonstrava
surpresa — ou talvez desprezo — no rosto. Thaddeus não o repreendeu por isso.
Tinha razão em muitos aspetos. Se o rei do império se encontrava às portas da
morte, não deveria ele estar lúcido até ao último suspiro? Não haveria tantas,
tantas coisas a tratar, e, no fundo, não deveria o seu último suspiro ser exalado
ao serviço da nação? Claro que tudo aquilo era verdade, e havia algo de ridículo
na situação. O registo oficial da morte do rei não incluiria menção à droga. Os
registos oficiais nunca o faziam.
Thaddeus permaneceu algum tempo junto à lareira. Pegou no atiçador e
mexeu nos troncos, embora estivessem a arder bem e não precisassem daquilo.
Pensou: deixemos que o velho homem tenha o seu desejo cumprido. Era a
grande dádiva do narcótico. A droga proporcionava a quem a consumia aquilo
que a pessoa mais desejava, que mais precisava para continuar a viver. Leodan
nunca a tomara antes da morte da esposa. Aleera morrera, e, no seu desgosto
posterior, o rei descobrira a droga que tantos milhões dos seus súbditos
conheciam demasiado bem. Os escravos das minas de Kidnaban, os pais das
crianças da Quota, as multidões dos bairros de lata de Alecia, os mercadores que
cortavam as correntes dos mares sem cessar, os soldados estacionados longe de
casa durante anos seguidos, os trabalhadores de mil e um comércios diferentes
haviam aprendido em crianças e continuado ao longo da vida: todos dependiam
do bálsamo da droga para escapar da tortura incessante que viviam. O rei que
tinham não era diferente deles.
Contudo, o tempo que Leodan passava sob a influência da droga era
passado de uma maneira que lhe era única — com a mulher que morrera. Assim
o confessara um dia. Ela esperava por ele por detrás daquele portal da
consciência. Quando ele o transpunha, acolhia-o com simpatia e censura no
olhar, com amor por ele, mas depreciando o seu vício. Passados aqueles
primeiros momentos, dava-lhe a mão, aceitando-o completamente, e
caminhavam juntos, enleados na beleza do seu enamoramento. Deslizavam sem
problemas, de momento glorioso para momento glorioso, pela vida que tinham
tido em conjunto, como marido e mulher, enquanto jovens pais de cada filho que
o Doador lhes dera, vivendo momentos grandiosos, pequenos e íntimos. Os
momentos pequenos, dissera Leodan, surpreendiam-no muitas vezes. Eram
momentos durante os quais a via sob determinada luz, quando se lembrava dos
pormenores dos traços dela e das idiossincrasias do seu rosto, ou voz, ou o seu
pormenores dos traços dela e das idiossincrasias do seu rosto, ou voz, ou o seu
modo de estar... Como a poderia amar tão profundamente e, no entanto, esquecer
tanto do que ela fora, durante as horas em que estava acordado? Eram estes
pormenores que o rei mais procurava, tantas vezes, por detrás do muro da droga.
Aleera levava-o numa caminhada por tudo o que fora maravilhoso, no tempo em
que viviam juntos. Tudo numa simples noite.
A vida, pensava Thaddeus, deveria ter sido um pálido castigo comparada
com tal bem-aventurança. Mas, então, pensou nas crianças. Pelo menos Leodan
tinha filhos, algo que fora negado a Thaddeus. Pelo menos, ele não tivera de
viver sabendo que o seu amor morrera por causa de uma traição. Após a morte
de Dorling, haviam-lhe perguntado mil vezes por que não voltara a casar e a ter
mais filhos. Encolhera sempre os ombros, respondendo vagamente e nunca com
a verdade — porque receava ser a causa de mais mortes. Talvez tivesse sempre
sabido que os seus entes queridos haviam sido mortos para pôr termo às suas
ambições.
Ah! Thaddeus remexeu nos carvões ferozmente, enraivecido por não
conseguir controlar os pensamentos. Eram como os anéis de uma cobra
contorcendo-se na sua cabeça, uma serpente esfomeada que, por vezes, parecia
comer a própria cauda. Voltou a colocar o atiçador no lugar e olhou novamente
para a mensagem do rei, para as palavras rabiscadas, as frases escritas em
espirais irregulares, a letra apenas vagamente semelhante à do rei. Se aquele
documento fosse visto por mais alguém, ninguém acreditaria que tivesse sido
redigido por Leodan Akaran. Poucos compreenderiam a ordem. Apenas ele e o
rei haviam falado sobre o plano que ali se referia. Quão estranho era que algo
que haviam discutido alguns anos antes — enquanto Thaddeus beberricava
vinho e o rei se entorpecia com o cachimbo de bruma — vinha agora a tornar-se
uma possibilidade real. De qualquer modo, aquilo não era para outros verem. O
rei confiava-lhe a sua preocupação mais preciosa. Que estranho que não fizesse
ideia de quem era o seu maior traidor.
A mensagem, que leu por uma última vez, dizia: se for necessário, envia-os
para os quatro ventos. Envia-os para os quatro ventos, tal como falámos, meu
amigo.
Tendo-a lido de novo, deixou-a cair por entre os dedos até ela cair no fogo.
Tombou ao lado dos troncos, e por instantes pensou que teria de a lançar às
chamas com o atiçador. Mas logo a seguir as labaredas apanharam-na, e a carta
enrolou-se e escureceu. Em poucos segundos desapareceu. Saiu de junto da
lareira e contornou a secretária, inseguro sobre o que fazer a seguir, mas
pensando que enfrentaria melhor as coisas se parecesse estar no papel do
chanceler ocupado nos seus deveres. Foi então que viu o envelope.
chanceler ocupado nos seus deveres. Foi então que viu o envelope.
Era um simples quadrado branco, no centro do tampo de madeira polida da
secretária. Não deveria estar ali. Não estava incluída no seu correio anterior, e,
se lhe fosse dirigida pessoalmente, ter-lhe-ia sido normalmente entregue em
mãos. Se antes sentira frio, agora o gelo invadia-o. Não tocou no sobrescrito,
mas baixou-se rigidamente na cadeira. O couro inicialmente protestou sob o seu
peso, mas depois cedeu a acomodá-lo, como fazia há tantos anos. Quebrou o selo
do sobrescrito com uma unha e leu a mensagem.
O rei morreu, começava. Não tiveste nada a ver com isso. O mérito é do
meu irmão. Se fores sensato, não te sentirás nem culpado nem alegre. Porém,
agora, Thaddeus, deverás pensar no teu futuro. Vira a atenção para as crianças.
Quero-as e quero-as vivas. Entrega-mas com vida e terás todas as riquezas a
par da tua vingança. Prometo-te isto. Parou de ler, observando a assinatura no
final da carta, e fitou-a como se não se tratasse de um nome, mas de alguma
palavra de que tivesse esquecido o significado. Estava assinado, Hanish, do
Mein.
Ouviu barulho no corredor. Thaddeus apertou a carta contra a coxa. Viu
dois homens passar do lado de fora, visíveis apenas por um segundo através da
estreita abertura para o corredor. Depois desapareceram. Thaddeus comprimiu os
cantos da mensagem e sentou-se com esta sobre os joelhos.
Deixou-se estar ali sentado, por algum tempo, com o espírito vagueando
por antigas recordações, livre durante algum tempo do conflito que lhe exigiam.
Então sentiu a corrente de ar que significava que a porta do quarto do rei se
abrira. Não podia adiar mais. Levantou-se, atirou a segunda mensagem às
chamas da lareira. Preparou-se, então, para ir ver uma vez mais o velho amigo.
Levar-lhe-ia o cachimbo, despedir-se-ia dele e depois decidiria o destino dos
jovens Akaran.
Capítulo 20

A partir de Cathgergen foram enviados vários pássaros mensageiros de uma


espécie oriunda do norte, de asa curta, e que atravessaram o Mein em pequenos
percursos. Cada um deles seguia até determinadas coordenadas do território, que
pouco mais eram do que picos rochosos por entre o mar de gelo e neve, casebres
baixos dentro dos quais homens solitários se aconchegavam por entre gaiolas,
arrulhando e afagando os pombos de que tratavam, eremitas de cabelo comprido
que só se ligavam ao mundo dos outros seres humanos pelas aves. Era uma velha
rota, estabelecida havia muito e conhecida apenas pelas poucas almas que a
faziam. Funcionava com uma segurança surpreendente. Devido a isto, um
pombo-correio chegava a Tahalian somente quatro dias depois de ter sido
enviado dos climas amenos de Acácia, apenas numa fração do tempo que um ser
humano levaria a percorrer a mesma distância.
Quando o pássaro pousou numa zona de Tahalian, dobrou as asas, curvou
as patas trementes em volta do poleiro e ofereceu a carga que levava ao homem
que a esperava, este encontrava-se sentado num banco de três pés, no fundo de
uma escavação nos campos atrás da fortaleza, num lugar chamado Calathrock. A
estrutura era o resultado do trabalho de centenas de homens ao longo de dezenas
de anos. Construída em troncos de madeira maciça, as vigas do campo militar
entrecruzavam-se em arcos, presos por anéis de ferro, suspensos sobre uma área
de cerca de trezentos e cinquenta metros quadrados. Era suficientemente alto e
amplo para abrigar manobras militares, exercícios de marcha e treino de armas.
Até batalhas inteiras ali eram treinadas, às escondidas, protegidas do olhar de
estranhos e dos temporais. Era um monumento funcional dedicado a uma causa
militar. As instalações eram também o orgulho secreto de uma raça a quem já
não eram permitidos oficialmente nem segredos nem orgulho. Por mais
grandioso que fosse, naquela ocasião o campo de Calathrock abrigava apenas
uma disputa entre dois homens.
Hanish Mein dirigiu-se ao centro do círculo deixado em aberto para ele. Fez
uma vénia perante o homem que jurara matá-lo e acenou para indicar que estava
pronto para começar a dança Maseret. Hanish era de estatura média, esguio,
usava um saiote curto e thalba, uma peça de vestuário feita de um só pedaço de
couro fino que enrolara à volta do tronco com a ajuda de servos, e lhe deixava os
braços livres. Usava o cabelo mais curto do que a maioria dos homens do Mein,
muito curto nos lados da cabeça e sob a nuca. Só as tranças lhe caíam sobre os
muito curto nos lados da cabeça e sob a nuca. Só as tranças lhe caíam sobre os
ombros, três no total, duas delas entretecidas com pele de alce e uma de seda
verde. Os seus traços pareciam esculpidos com o objetivo de atrair a atenção
para os seus olhos: fronte ampla, marcada por rugas finas, maçãs proeminentes,
nariz aquilino algo achatado na cana. Numa das narinas tinha uma pequena
cicatriz. A pele era de um tom leitoso e macio, principalmente na zona das
olheiras. Estas, quando sob determinada luz, brilhavam, realçando o cinzento dos
olhos, conferindo-lhes uma feição que os estranhos muitas vezes confundiam
com alheamento.
O soldado que enfrentava Hanish era mais alto um palmo do que o chefe
tribal, um homem de membros compridos que lhe aguentavam bem o tamanho.
Era fortemente musculado, com o cabelo daquele louro brilhante tão amado pela
sua raça. Usava duas tranças entretecidas com seda verde, indicando que já
dançara aqueles passos anteriormente e que vivera para o contar. Era um
guerreiro muito respeitado que estivera ao lado de Hanish durante os anos de
longa germinação dos seus planos. Supervisionara o treino do exército secreto
sob a orientação de Hanish. Só agora, em vésperas da investida, a sua ambição o
levara a desafiar o líder.
Dispostos em redor das duas figuras, em semicírculo, encontravam-se
alguns espetadores, oficiais do Mein, o principal instrutor de Maseret, um
médico, e um grupo, disposto em círculo, de Punisari, as forças especiais que
serviam como guarda real. Entre eles encontravam-se também dois sacerdotes
dos Tunishnevre, de capuz na cabeça. Um deles aguardava para levar o corpo
daquele que morresse até à câmara sagrada, para que este se pudesse unir
imediatamente aos antepassados. O outro preparava-se para proferir os ritos da
realeza se o desafiador vencesse e, por isso, substituísse Hanish como chefe
tribal. Haleeven, o conselheiro mais próximo de Hanish, mantinha-se ao fundo
do grupo. Era um homem baixo, mas robusto e poderoso como um urso, com um
proeminente nariz minado pela varíola e as maçãs do rosto coradas, recortadas
pelos veios de vasos sanguíneos. Era tio do jovem líder.
Para lá deste círculo, o campo de Calathrock encontrava-se repleto de uma
multidão de guerreiros. Milhares de soldados com armaduras, preparados para a
batalha, de armas na mão ou presas às costas, cerca de dez milhares de pares de
olhos cinzento-azulados. Cada um deles tinha o cabelo loiro entrançado ao estilo
tradicional dos guerreiros do Mein. Este não se tratava de um acontecimento
invulgar, mas nunca deixava de agitar o sangue de todos os homens
suficientemente afortunados para a ele assistirem. Hanish ergueu os braços, em
resposta aos seus apelos. Sabia porque gritavam tão alto, e queria que vissem
que era o primeiro entre todos a acreditar na Maseret. Um povo forte merecia um
que era o primeiro entre todos a acreditar na Maseret. Um povo forte merecia um
líder forte, que não tivesse medo de o porem à prova. Pediu, no seu íntimo, que
os antepassados afastassem dele o seu amor à vida, que lhe arrancassem o medo
e todo o desejo que pudesse sentir. Libertou-se de tudo aquilo que fazia os
homens mais fracos sucumbir aos erros, de modo a poder agir melhor e ter a
bênção de se poder recordar destas coisas mais tarde.
À medida que os dois homens avançavam um para o outro, moviam-se
lentamente, num bailado ondeante, aproximando-se e recuando, depois
desviando-se para o lado. Aos olhos de quem não conhecesse a Maseret, a
primeira parte da dança pareceria algo de lento e entediante, quase efeminado.
Primeiro Hanish, e depois o adversário, ofereciam um ao outro a visão do seu
perfil, e depois recuavam. As pernas cruzavam-se. Um pé deslizava para a frente
alguns centímetros. Faziam um movimento de rotação com as ancas, como se a
parte superior e inferior do corpo pertencessem a espíritos distintos. Embora
nenhum deles o mostrasse mais do que necessário, ambos estavam armados com
uma única arma, uma adaga curta embainhada junto ao abdómen. A lâmina
estreita tinha cerca de quinze centímetros. Era do formato de uma faca para
cortar trutas do rio em filetes, embora se tratasse de uma liga de metal
completamente diferente, de qualidade superior.
O líder dominara os movimentos estabelecidos com tanta mestria que uma
parte inferior da sua consciência os supervisionava. Procurava apresentar uma
postura que sugerisse tranquilidade e divertimento, sem denotar indicação
alguma de como ou quando ou onde iria atacar. Ao mesmo tempo, procurava no
adversário qualquer ponto de fraqueza que pudesse explorar. A parte superior da
sua consciência exigia rapidez. Libertou-a dos mil e um pormenores irrelevantes
do mundo, de modo a concentrar-se nas pequenas coisas agora importantes para
a sua sobrevivência. O seu instrutor Maseret dissera-lhe uma vez para visualizar
duas cobras que se enfrentavam no chão da selva. Conduziam um estranho
bailado, movendo-se lentamente durante algum tempo, nenhuma delas
executando qualquer movimento em falso. Chegado o momento, o golpe surge
num piscar de olhos. Embora nunca tivesse visto uma cobra viva, Hanish nunca
esquecera esta imagem. Já a usara antes, e de cada vez o seu primeiro ataque
surgia tão rapidamente como uma faísca entre duas pedras, num intervalo tão
breve entre a conceção e a ação que só depois compreendia o que fizera.
Os dois homens iniciaram o primeiro contacto com as palmas das mãos.
Debruçaram-se um para o outro, e cruzaram os pescoços lado a lado, com o
queixo apoiado no ombro um do outro, braços e dedos procurando o momento
propício. Rodaram em círculo, empurrando-se com as pernas e o tronco,
medindo o peso e a força um do outro. Em termos de pura musculatura e força,
medindo o peso e a força um do outro. Em termos de pura musculatura e força,
Hanish era inferior, mas em breve se apercebeu de que o outro homem se
apoiava mais na perna direita. Talvez fosse devido a uma ferida antiga, que lhe
deixara o membro fragilizado quando a perna girava sem o apoio do joelho. As
articulações do homem moviam-se mais rapidamente quando avançava do que
quando recuava. Não era alguém que se sentisse confortável a retirar. Apesar dos
seus esforços para o esconder, o homem preferia atacar primeiro. Ansiava pelo
primeiro momento para se lançar ao ataque, especialmente um momento em que
avançasse, com a perna direita na dianteira...
O chefe tribal quebrou o abraço, desviando-se num rodopio. Com o queixo
apontando para a multidão, empunhou a adaga. O soldado fez o mesmo. Hanish
não se surpreendeu quando o adversário contraiu os músculos da perna direita
que dera um passo à frente, girou o tronco, agarrou a arma com a lâmina para
baixo e arremessou o braço na diagonal, varrendo o ar com toda a força do
corpo. Ansiara, de facto, por ser o primeiro a atacar.
No rosto do soldado estampou-se uma expressão de alarme, antes de ter
completado o gesto. Deu-se o momento em que poderia ter atacado Hanish na
zona superior à direita do peito, mas, em vez disso, em nada tocou. Hanish
agachara-se o suficiente para evitar o golpe. Deu uma reviravolta, endireitou-se e
apontou a faca diretamente à zona superior exposta das costas do homem. Soube
pelo modo como o aço se enterrou na carne que a lâmina se enfiara
completamente entre as costelas do guerreiro sem atingir sequer o osso. Girou a
adaga, torcendo-a na estreita linha entre os ossos. Esfaqueou uma parte do
coração através da parte de trás dos pulmões, e puxou a arma através do tecido
denso dos músculos das costas do adversário.
O guerreiro caiu. Os soldados reunidos irromperam em saudações, numa
algazarra ensurdecedora e cacofónica que fez estremecer a neve sobre os
telhados. Entoavam o nome de Hanish. Batiam com os punhos no peito. Uma
parte do exército avançou como uma onda em sua direção, contida com
dificuldade pelos guardas Punisari, que batiam selvaticamente na cabeça dos
homens e lhes espetavam as pontas rombas das lanças. Mesmo em criança,
Hanish exercia um efeito tremendo sobre o seu povo. Pareciam ver nele a
ressurreição dos heróis de outrora, realçada pela precisão mortal e súbita com
que exercia a arte de matar.
Hanish cerrou os olhos e pediu em silêncio aos antepassados para aceitarem
aquele homem no seu seio pelo ser valoroso que fora. Permiti que ele seja agora
um guerreiro entre vós, pensou. Murmurou no seu íntimo as palavras que lhe
haviam ensinado para momentos assim. Que a sua espada seja o vento da noite
e o seu punho o martelo que faz tremer a terra. Que os seus dedos esticados
varram os mares diante de si e que a sua semente caia dos céus sobre o ventre
de mulheres belas... Espontaneamente, o nome do homem soou na sua cabeça e,
com ele, uma imagem do rapaz que um dia fora, uma memória de risos
partilhados entre eles: Hanish apressou-se a fazer voltar estes pensamentos ao
seu lugar.
Abrindo novamente os olhos, virou-se para os sacerdotes. Ambos os
religiosos se aproximaram, retirando o capuz para trás e revelando cabelos de
um louro fantasmagórico com madeixas arrancadas de modo a ver-se o couro
cabeludo pálido e brilhante. Isto aquietou os soldados que se agitavam agora em
murmúrios sussurrados e fortes apelos ao silêncio.
— Assim é a vontade dos Tunishnevre — proferiu um dos sacerdotes.
Falou num tom suave, mas a voz transmitia energia. — Que não fracasseis
perante eles, senhor meu, da próxima vez que fordes posto à prova.
Dito isto, fizeram uma vénia, curvando-se até à cintura, e retiraram-se,
arrastando os pés, com os chinelos em pele deslizando pelo soalho como se fosse
gelo.
Hanish ergueu os braços novamente para a multidão, que retomou o
entusiasmo de um momento antes. Aproximou-se mais da turba entusiasmada,
esticando-se por cima dos guardas e agarrando os homens pelos braços, dando-
lhes murros a brincar, lembrando-os dos grandes feitos que viriam e do poder
intemporal dos Tunishnevre. Só estando unidos seriam fortes, disse. Ele não era
diferente deles. Eles não eram menos do que ele. Qualquer homem ali presente o
poderia pôr à prova para constatar essa verdade. Nenhuma vida importava a não
ser que estivesse comprometida completamente com a nação do Mein. Nisto —
e em muitos outros aspetos — eram diferentes dos seus inimigos Akaran.
— Nós, do Mein, vivemos com o passado — gritou. — O passado respira à
nossa volta e não se pode negar. Não é assim?
A multidão respondeu que era assim.
— E, na verdade, pouco fizemos que nos envergonhe. São os Akaran que
reescrevem o passado do modo que lhes convém. São eles que querem esquecer
que Edifus não tinha só um filho, mas sim três. Eles não conseguem nomeá-los,
mas nós podemos. Thalaran, o mais velho; Praythos, o mais novo, com Tinhadin
entre ambos.
Cada uma destas palavras foi acolhida com resmungos de repugnância,
pragas e cuspidelas para o chão.
— Calma, calma — pediu Hanish. Apaziguou-os até os calar, falando
— Calma, calma — pediu Hanish. Apaziguou-os até os calar, falando
depois num tom mais baixo, de modo a terem de esticar a cabeça para o poderem
ouvir.
— Ambos estes irmãos lutaram ao lado de Tinhadin para expandirem e
garantirem o domínio do seu pai. Fizeram isto com a ajuda de homens do Mein.
Éramos seus aliados. E como fomos recompensados? Dir-vos-ei. Pouco depois
da morte de Edifus, Tinhadin assassinou os irmãos. Chacinou as suas famílias e
todas as mulheres e crianças das fações que os apoiavam. Depois, assassinou a
maior parte da realeza do Mein, quando esta protestou. Sabem bem que isto é
verdade. Nós, do Mein, que fomos tão prontamente aliados de Edifus, fomos
marcados como traidores ao reino. Mas o cerne da disputa foi Hauchmeinish...
Explodiu um rugido da multidão à menção do nome antigo.
— Sim — prosseguiu Hanish —, o nosso amado antepassado abominou a
ideia de comerciar escravos com os Lothan Aklun. Condenou a Liga dos Navios
acusando-a de pirataria e travou uma guerra contra eles. Foi por isso que fomos
chacinados e amaldiçoados. Foi a nossa nobreza ancestral e o nosso sentido de
justiça que Tinhadin traiu. Foi para punir as nossas virtudes que fomos exilados
para este planalto gelado. Mas esse exílio em breve acabará, irmãos, e poderão
ver a liberdade com os vossos próprios olhos!
***
Fora do campo, caminhando por uma passagem sombria, Haleeven falava
com o sobrinho:
— Sabes bem como lhes fazer ferver o sangue. Contudo, estes desafios
enervam-me, Hanish. Não são boa ideia, considerando o momento que
enfrentamos. Poderia estar neste momento a olhar para o teu cadáver.
— Era imperativo — replicou Hanish. — Especialmente tendo em conta o
momento que enfrentamos. Se não posso viver pelos códigos dos nossos
ancestrais, que valor tem a minha vida? São os antigos que abençoam os nossos
corpos na batalha, que aprovam ou rejeitam os nossos talentos. Sabes disto,
Haleeven. De que outro modo que não este poderia eu ter a certeza de que os
Tunishnevre ainda me abençoam? Por vezes surpreendes-me, tio. Nenhuma vida
é importante, apenas o objetivo o é.
O outro homem sorriu com um canto da boca.
— Mas cada homem tem o seu lugar nesse objetivo. Manleith não era teu
amigo. Ambicionava a glória que em breve será tua, é tudo. Não te deveria ter
desafiado agora, especialmente a ti, da vigésima segunda geração...
— Não sou o único filho dessa geração — contrapôs Hanish. — O meu
— Não sou o único filho dessa geração — contrapôs Hanish. — O meu
papel é liderá-los através do exemplo. Foi por isso que dancei com Manleith. Era
um amigo da juventude. Pensa nos homens que se encontram naquela sala. Pensa
em como marcham agora, como treinam para a guerra que virá. Perspicazes, em
forma, nem um deles afetado pela droga. Pensa nisso! Compara os nossos
homens com os milhões no mundo que são escravos da ilusão. Se pensas que os
posso manter leais a mim sem provar a minha lealdade para com eles, estás
enganado.
Com estas palavras, Hanish deixou o tio para ir supervisionar os treinos.
Empurrou as portas em pinho e subiu as escadas para o exterior de Calathrock,
para o ar livre. Um vento selvagem fustigou-o com tanta força que teve de parar
um momento, de pernas abertas, uma mão protegendo o rosto dos finos
estilhaços de gelo que lhe atingiam as faces e os olhos. Embora o tivesse
aguentado ao longo dos seus vinte e nove anos, o rigor do Inverno do Mein
nunca deixava de o impressionar, especialmente quando saía do abrigo maciço
de Calathrock ou do calor do seu interior. Parecia que a noite invernal era uma
criatura viva enraivecida. Quanto mais se fortificavam e tornavam a vida
suportável no planalto, mais a neve tentava cobri-los e escondê-los da existência;
mais o vento os atirava contra os rochedos da montanha, mais o frio encontrava
caminhos para penetrar nas suas defesas. Hanish inclinou-se para a frente e
iniciou o pequeno percurso através do chão gelado, com a sombra do vulto
atarracado do que era Tahalian apenas visível através da tempestade.
Um ajudante, Arsay, encontrou-se com ele no interior da fortaleza.
Entregou-lhe um pequeno rolo.
— Uma mensagem de Maeander — disse. — Thasren atingiu Leodan.
Andou nas ruas, comeu e dormiu sem que o inimigo reparasse nele, e depois foi
ao encontro do rei num banquete e cravou-lhe uma lâmina de Ilhach. O tempo de
idílio do rei acabou.
Hanish pegou na mensagem mas não a leu. Pensara na missão do irmão
todos os dias, desde que Thasren partira, e, contudo, à menção do seu nome,
sentira uma ponta de vergonha por ter passado algumas horas sem ter pensado
nele. Thasren, durante semanas, sozinho, numa terra estranha, rodeado pela
traição vil que era Acácia, com a vida em perigo diariamente de um modo muito
diferente do que era a Maseret. Hanish sabia que Thasren se sentira sempre
como o irmão menor. O mais novo, o menos talentoso na guerra, o mais distante
de poder clamar a linhagem patriarcal do pai. Não era fácil ser um terceiro filho
no Mein. Porém, tal espinho cravado na carne pode ser uma benesse se provocar
a ação. Era isso que dizia a sabedoria tradicional do Mein.
— E o meu irmão?
— E o meu irmão?
Arsay evitou o olhar, à pergunta, e respondeu usando uma fórmula antiga
que indicava uma morte honrosa.
— Ele pede para ser louvado.
— E será — respondeu Hanish, célere. Deu instruções a Arsay para reunir o
conselho de generais pela manhã. Disse-lhe para enviar dois mensageiros, um
para as montanhas, alertando o exército lá escondido de que a altura chegara, um
outro para Maeander, em Cathgergen, dizendo-lhe para soltar os numrek. Quanto
a ele, deveria despertar os oficiais da marinha mercenários, há muito hóspedes
daquelas terras geladas. Haviam bebido bastante grogue, dormido o suficiente,
envoltos nos prazeres que o Mein podia oferecer. Era tempo de fazerem valer as
comissões que haviam recebido. Encontravam-se a milhares de quilómetros do
mar, contudo, a frota estava pronta, um outro projeto secreto havia longos anos
em construção. Em breve estaria à tona e a atravessar um oceano de gelo.
— Encontrar-me-ei com todos eles amanhã — disse Hanish. — E alerta o
meu escrivão de que o chamarei amanhã também. Hoje farei vigília com os
antepassados. Estarão ansiosos para compreender o destino de Thasren. Terei de
lhes explicar. E tenho de me limpar do sangue do meu adversário. Será uma
longa noite.
Arsay baixara a cabeça à menção dos antepassados e não voltou a erguê-la.
Ao afastar-se, Hanish viu o medo estampado no pescoço tenso do homem e na
inclinação da cabeça. Embora criticasse isso — ninguém deveria recear os
antepassados, mesmo que fossem uma fantasmagórica incorporação de ira —
tinha de reconhecer que sentia a garganta apertada, e o peito a explodir de
tensão. Ninguém deveria temer os Tunishnevre, mas todos os receavam. No
interior da câmara sagrada sentia o pulsar da sua energia imortal tão
tangivelmente como sentia o calor ou o frio na pele, a alegria ou o medo no
coração. Eram os antigos do seu povo, preservados em suspensão intemporal.
Esta entidade, contendo a memória dos antepassados, era algo de arrepiante a
enfrentar.
Aguardou sozinho durante muito tempo, reunindo forças, sentindo o
alinhamento das forças há tanto tempo não sincronizadas. A vigésima terceira
geração desde a Retribuição... Era isso o que ele era. Se os Tunishnevre
estivessem certos — e certamente estariam — tudo no mundo estaria prestes a
mudar.
Capítulo 21

Corinn sonharia com o último abraço do pai por muitas noites ainda, tantas
que o momento se tornou uma espécie de maldição, uma armadilha de pesadelo
feita dos braços dos seus irmãos e do corpo moribundo do pai. Não importava
que ela soubesse que o pai não quereria que fosse assim. Não importava que não
existisse mais nada que ele pudesse fazer, que fora um último gesto, sofrido, de
amor. Mesmo assim, desejava que nunca tivesse acontecido. Em vez de o ter
visto naquelas condições, preferiria não ter estado com ele daquela última vez.
Era melhor que algumas coisas permanecessem incompletas, pensava, melhor
seria deixá-las inacabadas para sempre.
O que acontecera no quarto entre o rei e os filhos fora simples. Aquele
esperou por eles no leito, sentado, apoiado nas almofadas. Corinn seguiu atrás
dos irmãos que correram para o pai e caíram de joelhos ao lado da cama. Mesmo
a alguma distância do leito, ela conseguia ver um homem mais devastado do que
poderia imaginar. Pensara no pai ao longo de toda a noite anterior, imaginara-o
cheio de dores, em diferentes posições e condições e até já morto. Porém, vê-lo
daquele modo, por fim...era como se o demónio encoberto que lhe assombrara os
sonhos toda a noite tivesse tirado o capuz à luz do dia; em vez de acalmar os
seus receios, o demónio revelara ser algo ainda mais hediondo do que alguma
vez imaginara. Queria virar costas e fugir. Talvez o tivesse feito, se o olhar do
rei não estivesse cravado nela, no momento em que entrou, parecendo só a ver a
ela.
De início, os irmãos haviam suspirado de alívio ao vê-lo, exprimindo o
horror pelo que acontecera, desejando que recuperasse a saúde depressa. Porém,
ele não conseguira ouvir aquilo durante muito tempo. Fez-lhes sinal para que se
calassem, erguendo um braço e fazendo um gesto lento com os dedos. Os filhos
aguardaram, mas parecia que ele nada mais tinha a oferecer-lhes. Corinn
compreendera, ainda antes dos irmãos, que o pai não conseguia falar, que se
encontrava terrivelmente fraco e, talvez, apenas a algumas horas da morte. Não
poderia fazer-lhes discursos. Não lhes poderia oferecer os derradeiros presentes
ou palavras de sabedoria. Não podia, percebeu Corinn, manter as promessas que
lhe fizera.
Compreendeu também, antes dos outros, o significado dos seus braços
erguidos. Aliver recuou um passo, aparentemente pensando que o rei abria os
erguidos. Aliver recuou um passo, aparentemente pensando que o rei abria os
braços para dar início a uma conversa que exigia o conhecimento da grandeza
das coisas. O rei simplesmente manteve-os abertos até as crianças entenderem o
que era realmente aquele convite. Então, aninharam-se desajeitadamente, juntos,
no abraço que ele oferecia, e Corinn foi a última a aceitar. Parecia que só ela
compreendia o horror de se aninharem de encontro a um moribundo, em
silêncio, a abraçarem-se uns aos outros em lágrimas.
Foi assim que os jovens Akaran passaram os últimos minutos com o pai.
Corinn, ao sair do quarto, correu à frente dos irmãos, ignorando as súplicas de
Mena para que permanecesse junto deles. Não podia. Em vez de sentir os laços
entre os irmãos e ela agora mais fortes, tinha a sensação de que eram tentáculos
que a afligiam. Fugiu assim que pôde. Escondeu-se nos seus aposentos privados
e ordenou aos guardas que não deixassem ninguém perturbá-la.
Foi assim, atrás de uma porta fechada, que soube que o pai morrera, mais
tarde, nesse dia. Primeiro ouviu os sussurros. Então, momentos depois, o enorme
sino colocado numa das torres mais altas começou a soar, em badaladas lentas,
profundas, lamentosas. Ela sabia que o sino estava lá, mas nunca o ouvira tocar.
Era usado com um único propósito: anunciar a morte de um rei Akaran. Por
entre as badaladas, escutou o coro crescente dos serviçais em pranto, uma
manifestação audível de infelicidade que invadiu todo o palácio e chegou à
cidade baixa e até ao porto, de onde seria levada para todo o mundo. Corinn
tapou os ouvidos com as mãos, com força, mas não conseguia deixar de ouvir os
sons.
A semana que se seguiu passou numa névoa lúgubre. Se pudesse, ter-se-ia
trancado no quarto imediatamente e rejeitado o mundo. Mas não tinha essa
escolha. A sua presença era exigida diariamente, a toda a hora, parecia, apesar de
pouco mais fazer do que ocupar espaço, uma concha vazia de si própria, a quem
todos abraçavam ou perante quem faziam uma vénia ou derramavam lágrimas.
Permaneceu junto dos irmãos enquanto as multidões entoavam com eles o
lamento pela morte do pai. Tremia enquanto os tambores rufavam o hino
fúnebre, lento e marcial, tocado apenas para os monarcas que morriam. Ficava
sentada, sem ouvir, os intermináveis discursos fúnebres, os nobres que vinham
de terras longínquas ou próximas, cada um para proferir a sua dor em palavras
que se acumulavam umas sobre as outras e acabavam por perder o seu sentido
individual. Ela sabia que, por detrás do ar sóbrio, havia um burburinho elétrico
de ansiedade que crepitava por toda a parte. Sabia que as pessoas murmuravam
sobre as horríveis possibilidades no horizonte, mas a dor que sentia era mais do
que suficiente para a ocupar. Nada lhe importava o que acontecia no mundo.
No final da semana, a sacerdotisa de Vada e os seus acólitos prepararam o
No final da semana, a sacerdotisa de Vada e os seus acólitos prepararam o
corpo do rei e incineraram-no. Era uma das últimas cerimónias de estado que
exigiam a presença deles e levaram-na a cabo com solenidade. Ao surgirem com
a urna de cinzas do rei, dava-se uma pausa nos rituais. As cinzas do rei não
seriam libertadas, sabia Corinn, até ao final do outono. Não ansiava por essa
cerimónia, mas esta ainda estava longe.
Assim que lhe foi possível, invocou os antigos rituais de luto. Manteve as
janelas fechadas e proibiu até as aias de olharem para ela. A comida e a água
eram-lhe deixadas ao lado da porta do quarto, embora ela mal lhes tocasse. Os
dias passavam, desvanecendo-se uns nos outros sem alterações. Mena foi ter
com ela duas vezes, Aliver uma, e até Dariel mandou um mensageiro para
implorar que fosse ter com ele, mas a todos ela afastou. Alternava entre o sono e
a vigília, entre sonhos e recordações, visões do passado que parecia agora
longínquo. De vez em quando era atingida pela compreensão de quão traiçoeira
era a ilusão do tempo. O que um dia existira não voltaria a existir. Aquilo a que
se agarrara — a mãe, o pai — não possuíam mais substância do que as imagens
conjuradas no seu espírito. E de que lhe serviriam? Não lhes podia tocar. Não
lhes conseguia sentir o peso na palma da mão nem vê-las com os seus
verdadeiros olhos nem ouvi-las no ar. A sua vida iria ser tal como a imaginara
nos momentos sombrios: corria o risco de perder aquilo que amava, uma coisa
após outra. Seria essa a sua vida até ela própria ser tragada pelo abismo sem
fundo do esquecimento. Não conseguia enfrentar aquilo. Por isso, não o fez. Não
o fez, pelo menos até o mundo ir ter com ela de uma forma que ela não queria
ignorar.
Ouviu os sons abafados de gritos da sua sala de espera, o baque de qualquer
coisa grande a cair e o matraquear apressado de tacões nas lajes. Não lhe deu
importância suficiente para se erguer da cama macia em que estava estendida.
Ao primeiro impacto contra a porta limitou-se a levantar a cabeça e a olhar
sonolenta. Porém, quando esta se abriu de rompante, Corinn percebeu finalmente
que alguém estava mesmo decidido a vê-la.
Igguldan entrou, aos tropeções, pela porta aberta, quase caindo no chão.
Caído de joelhos, virou-se, levantou-se do chão e avançou alguns passos no
aposento. Atrás dele vários guardas entraram pela porta. Estavam tão ansiosos
por chegar ao pé dele que ficaram presos na soleira, empurrando-se e
praguejando entre si, com as espadas empunhadas desajeitadamente de modo a
não se ferirem uns aos outros. Igguldan olhou rapidamente o aposento.
Descobriu Corinn junto aos pés da cama com uma mão sobre o coração. Deu um
pequeno passo para ela e depois parou. Os guardas, libertando-se da soleira e
entrando apressados atrás dele, estacaram. Ficaram a olhar para os dois jovens,
sem saber o que fazer a seguir.
sem saber o que fazer a seguir.
— Princesa Corinn — disse Igguldan. — Perdoai-me esta intrusão. É
horrível da minha parte, eu sei, mas tinha de vos ver. Tinha de ver se estáveis
bem...
Um dos guardas interrompeu-o. Começou também por pedir perdão à
princesa, explicando-lhe que o príncipe se lançara como um furacão através
deles, não acatando as ordens para que parasse. Corinn interrompeu-o com um
gesto da mão.
— Deixa-nos — disse.
Uma vez a sós, Igguldan começou de novo a desculpar-se. A princesa
pediu-lhe que o não fizesse. Ele perguntou-lhe como estava de saúde e começou
a exprimir a compaixão que sentia por ela, mas, de novo, Corinn lhe pediu que
parasse. Ele interrompeu-se por um momento como se a decidir o que iria dizer.
Então fê-lo de modo direto:
— Fui chamado de volta a Aushenia — explicou. — O meu pai receia pela
minha vida, penso. Também me pareceu que ele está preocupado com outras
coisas. Umas movimentações que estão em curso no norte. Recebi apenas uma
nota breve enviada por pombo-correio. Mas tenho de partir, Corinn. — Após um
momento de hesitação, acrescentou. — Não vos quero deixar assim.
Corinn torcia as mãos, nervosa, insegura sobre a razão por que o estava a
receber. Sabia que estava desarranjada, com um vestido amarrotado, com o
cabelo despenteado e por lavar. Olhou para baixo e fez um gesto para apontar
alguma coisa lá fora, esperando que ele desviasse dela o olhar.
— Parece que o mundo está num turbilhão.
— E está, mais do que imaginais. Toda a ilha está num alvoroço. Há navios
a chegar e a partir a toda a hora, de e para o Continente. Em Alecia, os
governadores estão em reunião permanente. O tratado entre as nossas nações não
é oficial, mas parece que os governadores nos querem como aliados. Existem
rumores de um exército que montou cerco a Cathgergen. O vosso irmão está a
lidar com tudo corajosamente. Deveis ter orgulho nele, embora ele se encontre
numa posição estranha — deixou de ser apenas um príncipe, mas ainda não é rei.
Corinn perguntou-lhe quando iria partir. Ele respondeu que deveria
embarcar para Alecia no próximo nascer do sol. Lá, iria buscar alguns
representantes com que o seu pai se queria reunir e seguiriam depois diretamente
no navio para Aushenia. Não adiantou mais pormenores, mas, enquanto ambos
pensavam na viagem dele, em silêncio, Corinn não conseguiu evitar sentir a
tristeza das milhas de separação que existiriam entre eles. Recordou as águas
tristeza das milhas de separação que existiriam entre eles. Recordou as águas
frias que o príncipe descrevera, onde tinha nadado, a paisagem ondulante das
florestas densas. Que maravilhoso deveria ser andar a cavalo por entre aquelas
árvores enormes. Imaginou Igguldan a fazê-lo. Viu-o galopar através de campos
varridos pelo vento, numa paisagem completamente diferente da joia trabalhada
do mar que era Acácia. Aushenia ficava tão longe, e não só em termos de
distância. Era um lugar selvagem, onde alguém se poderia perder ou reinventar
de uma forma diferente.
— Achais que poderia ir convosco? — perguntou. — Não seria um fardo
para vós. Eu só quero fugir deste lugar. Quero estar convosco, só convosco. —
Ela não pensara naquilo nem por um instante desde que o pai morrera, mas, ao
pronunciar estas palavras, sentiu-se convencida de que eram verdadeiras. Era
precisamente aquilo que ela queria agora, mais do que tudo.
Igguldan colocou as mãos em redor das dela, agarrando-as com firmeza.
Juntos, sentaram-se à beira da cama lado a lado.
— Quem me dera que o mundo não tivesse enlouquecido e te tivesse
encontrado numa época diferente. O teu pai era um homem especial. Depois de o
ter visto a ser atacado senti-me mal. Mesmo mal! Mas mesmo assim, continuava
a pensar em ti. Tudo o que via ou escutava me fazia lembrar de ti. O mundo está
a desmoronar-se, mas tudo em que penso é em ti. «Isto não está certo. Controla-
te!» Mas não podia. E então pensei, talvez isto seja amor. É o que é. Estás
apaixonado pela princesa Corinn. Sei que não é apropriado da minha parte dizer
isto assim. Mas o tempo é tão curto. Tinha apenas de te ver uma vez mais, antes
de ambos partirmos em direções diferentes. Precisava que soubesses que és
amada. Para onde quer que vás no mundo, levas o meu amor contigo.
Uma vez mais, o príncipe conseguira dizer o que era perfeito. Ela era
amada. Ele — corajoso e lindo e fiel — amava-a. Apertou-lhe a mão e
aproximou-se dele ligeiramente.
— Não vou a lado nenhum — disse Corinn, pensando que ele se enganara
ao dizer aquilo. — Quem me dera ir. Iria contigo, se me pedisses.
O príncipe suavizou o aperto da mão.
Ainda não te disseram? Corinn, tu irás partir amanhã, também. Sei-o apenas
porque o teu irmão mo confidenciou. Estava muito irritado com isso e não
conseguiu guardá-lo para si. Todos os irmãos Akaran devem deixar a ilha e ir
para um refúgio. O chanceler pensa que estarão lá mais seguros do que em
Acácia. Num sítio secreto, algures.
— Num sítio secreto? — murmurou a princesa.
O príncipe, pensando que ela lhe estava a pedir mais informações, admitiu
O príncipe, pensando que ela lhe estava a pedir mais informações, admitiu
não saber mais nada, mas Corinn não esperara realmente que ele lhe
respondesse. Estava apenas a considerar a possibilidade daquele sítio secreto.
Onde seria? Sonhara tantas vezes em viajar para lugares distantes, imaginando
como seria lá recebida, se a achariam bela ou não. Iriam partir para Talay? Para a
costa de Candovia? Embarcariam para as Ilhas Exteriores ou para qualquer outro
lugar longínquo do coração do império? Ou iriam para Alecia? Dificilmente isso
seria um lugar secreto, mas talvez ela estivesse a exagerar. Talvez passasse as
próximas semanas trancada num quarto qualquer, na capital. Embora estas
notícias a surpreendessem, não sentia a necessidade de urgência que poderia
sentir. Pelo menos, significava movimento, mudança, afastar-se do palácio. Não
podia ser uma coisa assim tão má, pois não?
Perguntou a Igguldan para onde iria ele, se quisesse esconder-se algures. O
príncipe surpreendeu-se um pouco com a pergunta, mas começou a pensar no
assunto. Após uma pausa, disse que preferiria isolar-se no norte distante do seu
próprio país, em lugar de ir para qualquer outro lado. Havia um sítio perdido em
Aushenia onde a floresta cobria as encostas da cordilheira do Gradthic. Era um
território gelado, mas o ar era tão saudável que, ao respirá-lo, nos sentíamos
plenos de saúde e vigor. As próprias montanhas eram um local isolado durante a
maior parte do ano, abrigo de grandes ursos castanhos e habitados por uma
espécie de lobos diferente da que abundava nas florestas. Estivera lá apenas uma
vez, anos atrás, mas nunca esquecera o sentimento que tivera ao contemplar o
pôr-do-sol do alto dos rochedos, com as montanhas atrás de si, e a floresta
ancestral espraiando-se até sul, a perder de vista no horizonte, tudo iluminado
por uma paleta maravilhosa de cores, com as florestas ao escurecer tocadas pelo
brilho de fogo do sol, as águias no céu, planando vigilantes no seu alto voo.
Nunca estivera tão consciente da solidão como nesse momento, mas sentira
também um orgulho primordial. Fora daquelas terras que o seu povo nascera.
Eram territórios selvagens e duros, mas constituíam a sua própria carne e o seu
sangue. O seu povo havia partido das florestas para a costa, a sul, para fundar
Aushenia. Haviam deixado para trás lobos e ursos e tomado o seu lugar de
direito como tratadores da terra. Era algo que ele tinha em comum com todos os
aushenianos.
— Deverias ver aquilo — disse ele.
— Gostaria muito — respondeu Corinn. — Diz que me levas e irei contigo.
Poderás tratar de mim e levar-me para esse país selvagem que é o teu. Poderás
caçar para me alimentar e proteger-me dos ursos e de outras criaturas. O mundo
pode continuar sem nós.
As mãos de Igguldan estavam húmidas nas dela. Ela reparou nisso quando
As mãos de Igguldan estavam húmidas nas dela. Ela reparou nisso quando
ele as afastou, permitindo que o ar tocasse a humidade. Que acabara ela de
dizer? Queria-o, mas era uma perspetiva tão desmedida que não a conseguia
apreender. Talvez fosse um erro absurdo; não sabia. De qualquer modo, quando
Igguldan afastou as mãos teve a certeza de que ele rejeitava a proposta. Esperou
que ele lho confirmasse.
O príncipe procurou o bolso junto ao peito e retirou um pequeno envelope,
selado com lacre.
— Escrevi isto para ti — disse. — Não tinha a certeza de ter a coragem de
to dar... bem, mas estou a fazê-lo. — Pressionou o pequenino envelope contra a
palma da mão dela e fechou-lhe os dedos em volta.
— O que é isto?
— Verás quando a leres, mas não o faças agora. — Ele levantou-se e
ajudou-a a erguer-se. — Agora temos de nos preparar para este desafio. Corinn,
eu gostaria imenso de te mostrar o meu país e de tornar realidade tudo o que
disseste, mas esta não é a altura. O meu pai mandou chamar-me porque estamos
sob a ameaça de guerra. Tenho de responder ao seu apelo. E tu, tu deves fazer o
que o chanceler diz. Ele certamente tem razão sobre este assunto. —
Interrompeu os protestos de Corinn, agarrando-lhe os braços, primeiro com
força, depois como uma carícia. — Por favor, Corinn deixa-me primeiro servir o
meu pai e a memória do teu. Depois disso virei buscar-te. Receber-me-ás? Tenho
de saber que irei lutar por ti. Se o souber, ninguém me poderá derrotar.
Corinn conseguiu anuir em silêncio. Igguldan encostou o rosto ao dela e a
rapariga sentiu a pele dele, macia e quente, contra a dela. Ele beijou-a na face.
Depois voltou-se e estugou o passo, saindo pela porta fora.
Capítulo 22

Rialus Neptos fugiu de Cathgergen após aquilo que disse ser um cerco de
vários dias. Num último ato antes de partir, atirou todos os objetos pesados — a
sua cadeira, uma jarra com flores de cobre, um pisa-papéis em forma de urso dos
Campos Gelados, um velho machado oferecido ao pai, outrora, pelos
aushenianos — contra a vidraça que tão amargamente o embaraçara e traíra o
seu ego. Esta não se estilhaçou em mil pedaços como era seu desejo, mas rachou
o suficiente para sentir que alcançara o objetivo. Se a mensagem era dirigida ao
próprio vidro, a alguém que mais tarde visse aquilo, ou a si próprio, foi a questão
que não lhe ocorreu. Levou consigo os poucos funcionários da sua comitiva,
cortesãos e membros da família que conseguira manter na satrapia — e apenas
aqueles tão endividados para com ele que o seu silêncio era garantido. Os
numrek que deixava para trás enchiam-no de tanto terror como aquele que
fingira. Tanto quanto sabia, poucos dos seus acompanhantes estavam num estado
capaz de lhes permitir saber que o próprio governador tivera responsabilidades
no infortúnio que se abatera sobre eles. De facto, enquanto fugia pelo Estreito de
Gradthic, ele próprio se sentia a lutar por salvar a vida.
Deste modo, Rialus chegou a Aushenia com todos os pormenores da sua
mentira preparados. Num encontro urgente com o rei, Guldan, explicou como os
invasores estrangeiros haviam irrompido por entre uma rajada de neve. Havia
algum tempo que andava preocupado, disse Rialus, por vagos rumores sobre
alguma agitação a norte dos Campos Gelados. Fora por isso que enviara o
general Alain para examinar o território e interrogar os irmãos Mein. Não ouvira
mais nada dele e, por isso, receava alguma contrariedade, mas o ataque que
sofrera fora uma verdadeira surpresa.
Os numrek, disse, haviam chegado numa horda maciça, constituída por
criaturas monstruosas, escondidas entre peles e trapos, armadas de lanças do
dobro do tamanho de um homem e com espadas curvas e pesadas. Muitos deles
vinham montados em bestas cornudas, criaturas que possuíam uma armadura
natural e cobertas de pelagem lanuda. Irromperam pelos portões de Cathgergen
antes de o alarme ter sequer soado. Não se explicaram nem se haviam
anunciado, limitaram-se à matança, uma carnificina sem piedade, que
executavam com uma satisfação voraz, urrando enquanto combatiam e
dançavam ao som de um tambor invisível.
Nada disto estava longe da verdade. Os numrek — seus convidados, como
Maeander lhes chamara — haviam chegado numa horda ávida de destruição.
Mesmo havendo pouca resistência militar para lhes oferecer, arranjaram maneira
de encontrar gente para matar, e para a matar com a satisfação que Rialus
descrevia. Não mencionou, claro, a Guldan, que toda a Guarda do Norte
encontrara a morte numa monstruosa armadilha. Em vez disso, contou que as
tropas, em número muito inferior, haviam batido em frenética retirada,
abandonando cada parte da fortaleza, uma a seguir à outra, até a população que
restava ficar encurralada contra o último muro de granito do lugar. Fora então,
contava Rialus, que ele consentira em negociar com a vil criatura que os
liderava.
— Haveis visto o rosto do líder deles? — perguntou Guldan. Este, na
juventude, fora um homem alto. Mesmo agora, sentado nos seus aposentos do
conselho real, e um pouco curvado devido a alguma rigidez nas costas, possuía
ainda um ar de nobreza natural. Tinha feições firmes, apesar de a voz lhe tremer
de alguma ansiedade.
— Que nome tem ele?
— Calrach — respondeu Rialus. — Nunca existiram criaturas mais
estranhas. Não houve nada como aquilo no Mundo Conhecido desde que os
Antigos expulsaram os deuses de Ithem...
— Dizeis que eles são deuses? — interpelou um dos assistentes de Guldan.
Rialus foi apanhado de surpresa.
— Bem, não. Quero apenas dizer que são horríveis de ver. Muito
assustadores.
Tal como acontecia em relação a muita coisa daquela estranha charada,
Rialus podia falar durante algum tempo com total honestidade. Perante a horda
dos numrek, sentia-se como se estivesse a olhar através do vidro deformado de
uma janela para uma era inteiramente diferente, para seres cujo barro tivesse
sido cozido num forno diferente dos seres humanos da terra, criados para habitar
um outro mundo, uma época muito mais antiga. Eram criaturas altas, pelo menos
três ou quatro palmos mais altas do que o normal, de membros compridos,
ombros largos e achatados como se usassem uma espécie de jugo quadrado sob a
pele. Tinham cabelo negro e sobrancelhas espessas. Durante algum tempo Rialus
pensara que tinham a pele empoada ou pintada, de tão pálida era. Quando se
aproximara deles, pouco à vontade, vira que era a cor natural, uma cor
semelhante à mistura cerimonial preparada com leite e sangue de cabra que os
Vadayan bebiam no novo ano. Era uma fina membrana sob a qual pulsava um
padrão intrincado de veias, tão visíveis ao olhar como se tivessem sido
padrão intrincado de veias, tão visíveis ao olhar como se tivessem sido
desenhadas sobre papel e erguidas à luz de uma lâmpada.
Calrach, o líder, demonstrava a sua força nos músculos do pescoço que
pareciam um enredado de cordame. Até as feições transmitiam uma forte e feroz
determinação. Os olhos eram de um castanho tão denso que pareciam de um
preto sólido. As sobrancelhas tinham contornos semelhantes aos dos homens
normais, mas sobressaíam, de forma mais proeminente, parecendo a crista de
ondas do mar no início da rebentação. Estavam perfuradas por vários anéis
grossos em prata, cujo metal estava enterrado tão fundo que pareciam presas ao
osso. Rialus tivera dificuldade em manter o olhar naquele rosto. Porém, mal
desviava os olhos, não conseguia evitar olhá-lo de novo, sentindo sempre o
mesmo horror por a criatura o continuar a olhar fixamente por detrás daquela
máscara assustadora. Era um homem, e, no entanto também não o era.
Rialus explicou que, para traduzir a língua que falavam, haviam usado um
escrivão do Mein, revelação acolhida com murmúrios chocados e suspiros
sobressaltados por parte dos aushenianos.
— Hanish Mein conhece essa raça? — perguntou Guldan.
Rialus supôs que sim, e depois prosseguiu:
— Calrach não pediu desculpas. Não deu explicações nem se justificou.
Disse apenas que teríamos de partir dali. Cathgergen já não nos pertencia.
Haviam prometido a cidadela aos numrek. Libertou-me para que outros
pudessem aprender o que esperar do inimigo que está a caminho e estarem
melhor preparados para lhes proporcionar divertimento.
— Cathgergen fora prometida por quem? — inquiriu um dos representantes
de Aushenia.
Rialus encolheu os ombros magros até às orelhas.
— Não sei, mas não nos encontrávamos em posição para argumentar. Ele
disse-me que deveria voltar para o meu povo e anunciar-lhes que o fim estava
próximo. Que haveriam de nos caçar, só por divertimento, e que nos assariam no
espeto.
— Não estais a falar a sério! — retorquiu o rei. — Rialus Neptos, haveis
enlouquecido? O que dizeis é inacreditável. — O monarca pareceu perder a sua
linha de pensamento, mas voltou a encontrá-la ao perguntar novamente:
— Haveis enlouquecido?
O governador bem podia imaginar que sim. Nunca poderia ter inventado tal
trama a partir das suas mentiras normais. Calrach dissera precisamente aquilo.
Sentara-se, rindo com os seus generais, dizendo as coisas mais vis, como se
Sentara-se, rindo com os seus generais, dizendo as coisas mais vis, como se
Rialus não se encontrasse na sua presença, como se o tradutor não tivesse
murmurado cada palavra ao ouvido tremente do homem. Tivera de apertar os
joelhos um contra o outro para evitar urinar pelas pernas abaixo. Rialus sentiu
um assomo de inveja por aqueles que ainda não haviam presenciado o que ele
vira.
Os aushenianos tinham ainda mais algumas perguntas para lhe fazer.
Sabiam que seriam o óbvio alvo seguinte, e inquiriram o governador exilado
sobre mais pormenores, queriam a sua opinião e conjeturas. Rialus vestiu a pele
do conselheiro de confiança — que era o que ele sempre realmente desejara ser.
Porém, para além da tentação em permanecer e ser uma preciosa ajuda, via as
fisionomias de Maeander e de Calrach. Isso ajudou-o a continuar resoluto.
Assim, Rialus explicou aos aushenianos que o seu dever lhe exigia que viajasse
até Alecia. Guldan deixou-o partir, enviando-o com a mensagem grandiosa de
que fosse qual fosse o intento daquela horda, teria de enfrentar primeiro os
soldados de Aushenia. Que ideias tão nobres!, pensou Rialus. Mas, como
acontecia com muitas ideias nobres, não tinham mais substância do que o ar que
as sustinha. Rialus não duvidava de que Aushenia seria derrotada numa quinzena
de dias, um mês no máximo. Esta avaliação das coisas, claro, guardou-a para si
próprio.
Rialus abandonou o reino a bordo de um navio da frota real, observando a
azáfama dos preparativos militares na costa de que se afastava. Estava satisfeito
consigo próprio, uma emoção que o invadia quase ao ponto de rebentar ao
chegar à capital. Desejara ter ali uma mansão, nas colinas a ocidente de Alecia,
desde a primeira vez que vira o local, numa breve visita quinze anos antes.
Alecia: para ele era o verdadeiro centro do império acaciano, o coração latejante
de onde tudo o que valia a pena no mundo irradiava. Gostava da própria ideia do
lugar, da riqueza que controlava, dos prazeres que oferecia, do poder que
exercia, do labirinto ilimitado de intrigas, dos seus amores clandestinos. Mal
conseguia captar a complexidade dos quadrantes da cidade. Não importava.
Rialus acreditava havia muito que prosperaria no interior dos muros centrais e
cintilantes da cidade, aquecida pelo sol, envolta em videiras que trepavam, e de
onde emanavam doces fragrâncias.
Era lamentável, então, que entrasse pelos portões de Alecia como um
traidor ao povo de que tanto gostava. Tentou não matutar no assunto e conseguiu
em grande parte fixar o pensamento na recompensa, finalmente ao seu alcance.
Tinha, como confessara a Maeander, aliados na capital que partilhavam do seu
desejo de ver a riqueza da cidade redistribuída. Alguns eram membros da família
Neptos, mas muitos outros haviam sido alimentados pela maledicência dos seus
Neptos, mas muitos outros haviam sido alimentados pela maledicência dos seus
agentes, em encontros clandestinos, pessoas reunidas em pequenos grupos e que
mal sabiam dos outros grupos a quem se tentava incentivar com a promessa de
riquezas. Tinha uma promessa a cumprir. Não se deixaria inibir perante o sangue
que outros derramassem em seu nome, desde que, por fim, recebesse parte da
recompensa que há muito merecia. Nos primeiros dias em Alecia, Rialus era um
homem de duas caras. Para o público tinha um rosto cheio de lágrimas de dor
pela guerra que se aproximava. Em privado, o olhar perscrutava as moradias lá
no alto da cidade, procurando uma nova habitação que lhe conviesse. Fiel à sua
antiga crença, parecia que o Doador iria recompensar os seus melhores.
Capítulo 23

O tumulto não se assemelhava em nada ao que alguma vez se ouvira


naquela vastidão estéril e isolada: os grunhidos dos animais acorrentados a
trabalhar, o incessante bombardeio de gritos, o tinir de inumeráveis campainhas,
o ruído de botas e mais botas e mais botas a marchar, e o arrastar, arrastar,
arrastar de grandes objetos impulsionados sobre uma superfície que hesitava
entre auxiliar ou resistir. Tratava-se do arrastar de metal e madeira sobre o gelo,
o som de uma frota de noventa vasos de guerra atravessando um mar gelado.
Eram movidos por centenas de bois lanudos dirigidos por um exército de quinze
mil homens que marchavam com guizos presos às botas. Os anciãos haviam
instruído Hanish de que os homens deveriam usar um badalo preso ao corpo, que
cantaria para eles fosse qual fosse a distância a que se encontrassem. Deveriam
anunciar-se ao mundo com vozes que falassem pelas muitas gerações silenciosas
que haviam lutado para que aquilo fosse possível. Os Tunishnevre deveriam tê-
los ouvido e compreendido, no silêncio que habitavam, como os seus filhos os
honravam.
À medida que iam percorrendo o terreno, Hanish sentia o domínio dos
anciãos a atenuar-se, mas nunca tivera tanta certeza de ser digno da sua
confiança e que alcançaria tudo o que desejavam para ele. Por sua causa, os
boatos que circulavam nas terras amenas de Acácia eram verdade, verdade para
lá da mais extravagante especulação. Os poucos barcos que os pescadores
haviam localizado, semanas antes, eram apenas uma força de patrulha enviada
para verificar a possibilidade de realizar o que Hanish concebera. Hanish dera
ordens ao grupo para que se deixasse ver por todos. Acreditava que,
independentemente do que as pessoas ouviam sobre as movimentações no norte,
nunca acreditariam realmente até se virem frente a frente com o futuro que ele
lhes
levava. Assim, porque não deixá-los a cogitar e a preocuparem-se sobre
fantasmas em que não conseguiam acreditar nem ignorar inteiramente?
— A natureza sempre foi para o Mein como o aguilhão de uma chicotada
para um boi — gritou Haleeven junto ao seu ouvido, por entre o uivar da
ventania. — Nada muda. Atrasa-nos um pouco e mantém-nos agarrados ao
trabalho. Como deve ser. — O tio tivera sempre palavras de sabedoria que
proferia nos momentos certos, e Hanish estava contente com a sua presença.
proferia nos momentos certos, e Hanish estava contente com a sua presença.
Embora nunca o demonstrasse exteriormente, era muitas vezes difícil ser um
pilar de confiança inabalável. Aquele velho homem, tal como o seu pai, era uma
fonte viva de força.
Numa manhã, no final da primeira semana a caminho do sul, o tempo
clareou tão subitamente que os animais ficaram nervosos. O som, o sentimento e
a substância do mundo mudaram e deixaram os homens de olhos semicerrados a
contemplar o horizonte, e mais do que uma cabeça inclinada de modo a melhor
escutar a estranheza de tudo aquilo. O céu, como uma concha gigantesca, tinha
um tom azul pálido. Mal se via o sol, mas a sua luz iluminava o firmamento
uniformemente. Hanish subiu pelo cordame do navio em que se encontrava. Os
nós das cordas feriam-lhe as palmas das mãos, e os pés escorregavam nos
degraus cobertos de gelo. Não era um marinheiro. Quem, que tivesse nascido no
Mein, o seria? Mesmo assim, sentiu a alegria invadi-lo ao inclinar-se de encontro
ao mastro principal no cesto de vigia, com o rosto vermelho da subida, sentindo
a brisa fustigá-lo e levando com ela a névoa da sua respiração.
À sua frente espraiava-se um mundo branco, doloroso de contemplar.
Cobriu os olhos com um vidro fumado. Olhando através daquele crepúsculo
artificial, viu pela primeira vez todo o panorama da sua empresa em movimento.
Ao seu redor havia uma esquadra atravessando um mar sólido e branco. Noventa
embarcações que não balançavam nem se sacudiam com a ondulação das
correntes, que não se erguiam nem afundavam com o movimento das ondas.
Levavam as velas amarradas aos mastros e o cordame brilhava como teias de
aranha húmidas. As embarcações moviam-se sobre corredores de madeira com
calços de ferro, puxados por longas filas de bois, criaturas estas que estavam
escondidas por casacos tão grossos que lhes ocultavam a forma. Cerca de
cinquenta animais em filas duplas puxavam cada um dos vasos de guerra,
chicoteados por homens vestidos de peles que, eles próprios, só pareciam
humanos pelo modo como se moviam e pelo trabalho que faziam.
Atrás deles seguia o exército, a pé ou em trenós, bem preparados para o frio
e lutando pela vida. Não era uma força enorme, mas a maior que haviam
conseguido reunir. Entre eles seguiam alguns velhos de cabelo grisalho, e vários
adolescentes, de faces macias, com treze e catorze anos. No entanto todos
lutariam orgulhosamente, e eram apenas uma das três forças. Um outro exército
de cinco mil homens atravessava uma passagem mais a norte, rumo às terras dos
lagos de Candovia. Levariam a cabo uma muito útil destruição, sob as ordens do
seu irmão. Depois, havia os numrek, que, seguramente, já haveriam tomado
Aushenia nessa altura. Depois havia ainda muitas artimanhas concebidas ao
longo de anos em Tahalian. Espantoso, era espantoso estarem agora em
movimento!
movimento!
Hanish permaneceu no cesto da gávea até ficar com o rosto e as mãos
entorpecidos, e só desceu quando o sol, onde quer que estivesse escondido no
céu, se afundou na terra gelada, o mundo escureceu e a tempestade voltou, como
um muro de estilhaços de vidro soprados em rajadas pelo vento furioso.
Chegaram ao posto avançado de Scatevich, alguns dias depois, para
recolherem grandes quantidades de provisões ali armazenadas. Aí permaneceram
dois dias, a fim de repararem alguns estragos. Em breve continuaram rumo ao
sul, contornando o sopé das montanhas que bordejavam o Planalto do Mein. Aí
havia um vasto vale que consistia num declive gradual até às Florestas de
Eilavan, muito mais fácil de atravessar do que a maior parte da Cordilheira de
Methalia. Desceram por aí em direção a uma paisagem coberta de neve,
salpicada de abetos baixos. Apesar de a temperatura ser abaixo de zero, todas as
noites, e durante grande parte do dia, muitos dos soldados retiraram o capuz de
pele e sacudiram os cabelos que usavam em cascatas de nós, como cordas
pesadas que lhes caíam sobre os ombros. Com a bênção do chefe, alguns grupos
de homens foram adiante das hostes para caçarem veados. O fumo odoroso a
carne assada pairava através da paisagem.
Hanish, de narinas erguidas, atento ao cheiro, recordou-se das velhas
histórias de como os Akaran haviam usurpado o trono através de alianças
duvidosas, de promessas feitas e quebradas, refeitas e de novo quebradas, e
depois se dispuseram a castigar todo o povo corajoso e suficientemente forte que
os enfrentasse e lhes atirasse à cara os crimes cometidos. Fora então que haviam
lançado a maldição sobre a raça chamada dos Mein, os Tunishnevre haviam
surgido e o seu povo fora expulso das terras baixas e banido para lá da
Cordilheira de Methalia. Durante muitos anos haviam seguido as suas manadas
de veados, vivendo delas e com elas de uma maneira não muito diferente da que
viviam os homens de eras esquecidas. Tinham levado várias gerações a
encontrar os territórios de Mein Tahalian, a reconhecerem os usos a dar aos
gases quentes que irrompiam, borbulhantes, da crosta de gelo, e assentarem
novamente numa vida sedentária, cortando as grandes árvores e começando a
construir um refúgio na região mais desolada do Mundo Conhecido. Haviam
ainda passado muitas mais gerações até conseguirem uma aproximação de volta
ao mundo em redor, professando fidelidade a tudo o que era Akaran, fingindo, a
cada palavra, que o passado nunca fora como havia sido, e que apenas
desejavam seguir os passos, apoiar e lutar ao serviço da grandeza da hegemonia
Akaran.
Era em tudo isto que o cheiro a carne de veado no ar gelado fazia pensar
Hanish. Duvidava que as crianças de Acácia alguma coisa soubessem sobre o
Hanish. Duvidava que as crianças de Acácia alguma coisa soubessem sobre o
passado. Havia tantos factos da história do mundo que, propositadamente,
ignoravam. Esqueciam as coisas que os envergonhavam e convenciam-se de que
toda a gente o fizera também. Não que Hanish tivesse pretendido de outro modo.
Assim, ficariam ainda mais chocados com o que viria, desorientados e a tentar
perceber o significado daquilo, demasiado tarde para reconhecerem a verdadeira
forma e substância do mundo de que eram senhores.
O avanço da enorme caravana tornou-se ainda mais fácil ao começarem a
deslizar sobre a superfície despida de árvores e vazia dos Sinks, que, no Verão,
eram um vasto território de lagos e terras pantanosas, o primeiro recetáculo do
grande degelo que jorrava em cada primavera, vinda do norte. Pelo menos era
possível uma viagem mais amena por algum tempo. Andavam há quatro dias
sobre a superfície gelada quando uma das embarcações quebrou o gelo.
Afundou-se alguns centímetros na água gélida, atirando pedaços de gelo a toda a
volta e criando uma fenda serpenteante à sua frente, quase tragando uma dezena
de bois e um homem que tivera a pouca sorte de estar a chicotear os animais
naquele momento. O condutor foi retirado da água gelada e envolveram-no em
peles, e vários dos bois foram puxados aos tropeções para gelo firme, depois de
lhes cortarem os arreios, mas, em redor do infortunado barco, o gelo voltou a
fechar-se rapidamente. Solidificou muito depressa, naquela noite, lascado e
rachado ao longo do casco. Os estragos talvez pudessem ter sido reparados, se
tivessem tempo e os meios à mão, mas não tinham nem uma coisa nem outra.
Hanish ordenou que descarregassem o barco, que lhe retirassem tudo o que
pudesse ser útil, e que o abandonassem sem cerimónia.
O incidente foi um prenúncio do que estava para vir. Por diversos motivos,
a próxima etapa da viagem era a mais traiçoeira. Percorriam camadas de gelo em
que não se podia confiar, sentindo a pulsação do degelo durante o dia e o
reengelar da noite, e percebendo a armadilha que isso era. Hanish mandou
homens à frente para testarem o terreno com grandes barrotes de ferro, algo que
faziam pelo instinto, pelo tato e pelo som. Em algumas ocasiões, ele próprio
avançava à frente das hostes, sozinho, experimentando o terreno e perscrutando
o horizonte. Porque razão fazia isto, não sabia bem. Apenas achava que era o
mais correto. Havia algo de reconfortante em olhar para aquela extensão gelada
e imaginar, por um momento, que se encontrava ali sozinho, que a sua demanda
começava e acabava com ele, com as suas forças ou fraquezas. Claro que nunca
tardava até ouvir os batedores atingir o gelo com as suas barras de ferro, como
pastores estranhos que fustigassem o solo à frente dos seus animais e não atrás.
Não estava só e o pensamento que se lhe repetia na cabeça era ao mesmo tempo
de desapontamento e de renovada segurança.
de desapontamento e de renovada segurança.
Quando chegaram ao gelo partido, tudo mudou novamente. E isso
aconteceu mais depressa do que Hanish esperava. Diante deles desenrolava-se
uma linha negra de água. Esta transformou-se numa massa azul acastanhada
fervilhante, drenando o lago a derreter por onde haviam viajado, deslizando
rumo a sul, até se tornar no rio Ask. O gelo quebrava-se em pedaços a pouco e
pouco. O exército passou a manhã numa atividade frenética, num esforço para
mudar uma viagem através do gelo para uma viagem sobre as águas.
A primeira embarcação mal acomodara homens, cavalos e provisões a
bordo antes de o gelo começar a gemer e a tremer sob esta. Os homens, que
durante dias haviam conduzido os bois, largaram os chicotes e entraram a bordo.
Os bois, havia tanto tempo habituados ao trabalho, andavam de um lado para o
outro, ansiosos, inseguros sobre o que significaria aquele súbito abandono. Foi
só quando a primeira embarcação se lançou para a frente, alçando a proa,
precariamente, no ar, por instantes, com os costados a ranger como se o navio
estivesse prestes a rachar-se ao meio, que os bois se viraram, agitando,
enraivecidos, as suas enormes cabeças cornudas, e começaram a correr em tropel
em direção a norte. Ninguém os parou. Aquele primeiro navio conseguiu
deslizar para a frente e encontrar equilíbrio nas águas, apanhar a corrente e
começar a afastar-se.
A embarcação de Hanish foi a terceira a ser colocada na água a flutuar. Ele
não podia agora parar o trabalho e comunicar as notícias aos Tunishnevre, como
desejara. Falhas entre as tábuas geladas deixavam entrar jatos de água. O seu
capitão, aos gritos, garantia que as tábuas iriam inchar e vedar o barco, por isso
Hanish afastou a ideia do espírito. Também não tinha tempo para fazer nada. O
rio, ali a norte, era dificilmente navegável, tumultuoso como era sempre naquela
altura do ano, devido ao degelo que ganhava força nos Sinks. Hanish desejara
entrar em Acácia na primavera, e parecia que havia preparado as coisas a tempo.
As águas iam altas até às arvores das margens, a corrente acelerando para jusante
como se cada gota de água abrisse caminho para ganhar às suas companheiras a
corrida até ao mar. Por vezes flutuavam sobre ondas tão altas como as de uma
tempestade no mar. Noutros pontos, os redemoinhos, as diversas correntes e os
turbilhões rodopiantes quase viravam as embarcações, sugando os costados,
fazendo tombar os homens para a espuma. Vagas de água que pareciam garras
prendiam os remos e rachavam-nos, fazendo partir mais do que uma cabeça.
Os lugares mais traiçoeiros, contudo, eram aqueles onde o rio fluía sobre
obstáculos que deveriam estar à tona da água. Por vezes tratava-se de ilhas ou
nada mais do que copas de árvores encalhadas, surgindo das profundezas como
dedos de gigantes a afogarem-se. Havia lajes em pedra flutuando na corrente,
dedos de gigantes a afogarem-se. Havia lajes em pedra flutuando na corrente,
que quase romperam o casco de uma embarcação e pedregulhos maciços sobre
os quais as águas tombavam num caos em turbilhão. Um dos navios passou uma
dessas cascatas. Afundou-se em espuma e ergueu-se, de proa no ar,
imobilizando-se um instante como se fosse dar um salto para os céus. Porém,
então — desafortunadamente, apesar dos gritos de protesto daqueles que
observavam — deslizou para trás. A popa apanhou a torrente apressada. Todo o
barco estremeceu, tombando para trás, atirando homens ao ar para todos os
lados, depois caindo sobre a espuma. A embarcação oscilou da proa à popa
durante alguns segundos e a seguir desapareceu. Quando o casco emergiu, o
barco estava perdido. Irrompeu da superfície das águas como um casco sem
vida, como o ventre de um monstro marinho morto.
Foram arrastados. Cavalgavam às costas de uma serpente aquática. Hanish
gostava daquilo. Havia estado tanto tempo inativo! Que maravilhoso era estar
livre, mesmo se aquela liberdade o conduzisse à morte. Não tinha pena dos que
perdera nem os lamentava. Esta serpente cobrava pesada portagem para o
serviço que prestava. Tudo o que importava era que se aproximava do seu
objetivo. Suficientemente perto para tentar algo que antes experimentara apenas
no seu isolamento em Tahalian.
Capítulo 24

Aliver começara a sonhar todas as noites que se batia em duelos com


inimigos sem nome e sem rosto. Ao contrário dos caprichos imaginários do
passado, quando o combate com a espada era um confronto fantasioso com
inimigos míticos, estas visões possuíam uma natureza mais sombria, em que
cada momento era um sopro de medo. Os sonhos começavam sempre de forma
despreocupada, com ele caminhando por entre as avenidas da cidade baixa,
falando com os companheiros sobre o pequeno-almoço, ou procurando um livro
no seu quarto que sabia ter colocado algures. Porém, a determinada altura, os
acontecimentos transformavam-se em violência súbita. Aparecia um soldado ao
fundo de um corredor com a espada desembainhada, chamando-o pelo nome; a
mesa de jantar tombava e, quando conseguia ver para lá do vulto da mesa, o
cenário transformava-se num tropel de guerreiros que invadiam o aposento como
mil aranhas — vinham através das janelas ou suspensos do teto, com as espadas
entre os dentes como enormes sorrisos metálicos. Muitas vezes sentia
simplesmente uma presença maligna sem forma, atrás de si, com a qual, sabia,
teria de se confrontar.
Nesses sonhos combatia bastante bem até ao momento em que tinha de
enterrar a espada. Então, ao compreender que estava prestes a cravar a arma
numa criatura viva igual a ele, parecia que o tempo parava. O movimento
tornava-se mais lento. Perdia a força nos músculos, que se tornavam numa
espécie de trambolhos inúteis debaixo da pele. No pesadelo nunca via a lâmina
enterrar-se na carne de nenhum daqueles inimigos. Em vez disso acordava,
arquejante, o corpo tenso e tremente como se o combate tivesse tido lugar no
mundo real. Só então o odor lento da realidade se apoderava dele. Não acordava
de um pesadelo para um mundo aconchegante; abrira os olhos novamente para
um pesadelo ambulante que, diariamente, resistia aos seus esforços para o negar.
O pai morrera. Isso significava mil e uma coisas para Aliver, todas elas
confusas. Nem sequer a sua ascendência ao trono era simples. Os Akaran eram
monárquicos estritos, mas a situação geral era tão complexa que se havia adiado
a ascensão de Aliver para o lugar do pai. A mesma reverência pelos rituais que
permitia às pessoas aceitar a monarquia, exigia também um respeito rígido pela
tradição. Os novos reis eram coroados somente no outono, na mesma altura em
que se libertariam as cinzas do defunto monarca. Fora nesse dia que Tinhadin
ascendera, e considerava-se necessário que todos os que se lhe seguiam
ascendera, e considerava-se necessário que todos os que se lhe seguiam
imitassem o seu venerável exemplo. Em quase todas as ocasiões, nos anos
anteriores, houvera uma pausa entre a morte do monarca reinante e a coroação
do novo rei. Uma espera de vários meses não era a primeira vez que acontecia. O
ato sem precedentes teria sido coroar um rei numa data que não o solstício de
verão, e fazer isso sem ter todos os governadores reunidos. As sacerdotisas de
Vada consideravam que a altura não era auspiciosa para uma coroação e
recusavam-se a abençoar a cerimónia. Além disso, toda a engrenagem do
governo parecia não ter interesse algum em confiar a um adolescente
inexperiente um papel de tamanha importância. Talvez um outro príncipe tivesse
tomado o poder à mesma. Mas não Aliver. Apesar do que sentia, havia em si
algum alívio por a coroa não lhe ter sido colocada na cabeça de imediato,
embora não o admitisse. Thaddeus estava melhor preparado para servir de voz
real por agora.
As más notícias não paravam de lhe chegar. Mal tinha tempo para
interiorizar uma tragédia e já outra se fazia anunciar. A fortaleza de Cathgergen
fora tomada por uma qualquer horda bárbara, a guarnição que lá estava,
destruída, o governador e o seu séquito haviam sido atirados para o gelo,
transportando uma mensagem que anunciava um cataclismo próximo para o
mundo. Nada disto era fácil de conceber. Para Cathgergen ter caído significava a
derrota de — quantos? Dois mil soldados? Pelo menos esse número. Nada se
sabia da possibilidade de algum ter escapado para contar a sua história, nem
mesmo se alguns estariam prisioneiros. E que acontecera às muitas outras
pessoas que habitavam na fortaleza — artesãos e mercadores, cortesãos e
trabalhadores e os seus filhos, as muitas e muitas pessoas que tornavam um lugar
inóspito como Cathgergen habitável? Haviam simplesmente desaparecido todos
e Aliver gostaria ainda de ouvir alguém explicar-lhe como era aquilo possível.
Vários funcionários importantes de Alecia haviam sido chacinados no leito.
Muitos deles haviam morrido juntamente com as esposas, maridos, filhos,
criados e escravos, os corpos retalhados mais do que seria necessário para lhes
tirar a vida, como se cada um deles tivesse sido vítima de um assassino louco e
delirante. Dois dias depois, acontecera um outro ataque a membros da família
real, quando estes tentavam partir de Manil, a cidade nos penhascos onde se
empoleiravam os mais luxuosos palácios de família. A meia-irmã de Leodan,
Katrina, assim como mais catorze pessoas que tinham nascido com o apelido
Akaran, além de outras que o tinham por via do casamento, foram apanhadas no
cais numa manhã luminosa. Homens disfarçados de trabalhadores das docas
atacaram-nos quando tentavam embarcar, matando-os com espadas curtas que
tinham escondidas na roupa.
tinham escondidas na roupa.
Ninguém sabia como tão grandes conspirações haviam sido mantidas
secretas e os planos postos em prática com uma eficiência tão mortal. Os
zunzuns e os boatos deram lugar à crença de que muitos dos assassinos, em
ambos os ataques, haviam sido criados da casa, jardineiros e trabalhadores
empregados pela aristocracia, muitos deles ao serviço havia anos, sem nunca
terem dado sinais de deslealdade. Outros diziam que uma frota de navios de
guerra vinha descendo para sul do Mein gelado. Haviam sido avistados por
caçadores de peles das margens geladas do rio Ask, mas, como estas pessoas
simples tinham conseguido enviar aquela mensagem de tão remoto lugar, foi
algo que nunca se percebeu, nem fazia muito sentido aquilo que dizia. Alguns
diziam que Rialus Neptos — que desaparecera após o massacre dos oficiais de
Alecia — tinha algum papel na revolta. Outros ainda relatavam que toda a
comitiva dos representantes da Liga havia partido sem uma única palavra.
Aliver queria desesperadamente entender o que se passava e reunir todas as
peças daquele caos, de modo a formarem algo com que se pudesse lidar, mas os
momentos que tinha para pensar com calma eram escassos e perturbadoramente
curtos. Os dias do treino Marah haviam ficado para trás. Os seus oficiais falavam
com os que, ainda há pouco, eram meros alunos como se, de repente, tivessem
subido de estatuto. Aparentemente haviam sido todos promovidos em
simultâneo. Falavam sobre as provas que os aguardavam com uma honestidade
que Aliver não esperara e que não acolhia de bom grado. Homens que haviam
parecido tão confiantes nos seus papéis, dias antes, estavam agora pouco à
vontade, hesitantes e bruscos nas ordens que davam. O futuro que tinham pela
frente, explicavam, já não era só afetado pela dor física dos treinos ou a
humilhação da derrota nos jogos de competição, ou até o descrédito social,
outrora a mais grave possibilidade de fracasso. Esses eram azares que haviam
enfrentado antes. Agora, iriam ter de lutar pela própria vida. Em breve teria de
matar. Só esse pensamento transformava o modo como via o treino na sua
cabeça. Teria em si o instinto de matar? Mal lhe parecia possível. Iria deixar mal
a sua nação logo na primeira prova? Nunca receara tanto alguma coisa como
temia agora esta possibilidade.
O que tornava tudo pior ainda era não saber o que realmente esperavam
dele. A sua posição entre os seus pares apresentava-se mais delicada do que
nunca. Por um lado, receava que lhe poupassem a responsabilidade na batalha,
tal como o haviam mantido sempre à parte dos outros, durante os treinos. Por
outro, continuava a ser verdade que os oficiais apontavam cada vez mais para as
Formas como exemplo de valor numa batalha e, na maior parte delas, fora uma
personagem real que usara a espada, a lança ou o machado. Esperariam que ele
personagem real que usara a espada, a lança ou o machado. Esperariam que ele
tomasse esse lugar lendário e os conduzisse à vitória? Não sabia e ninguém —
nem mesmo Thaddeus — se aproximava dele para o informar.
A poucos dias de os jovens soldados saberem para onde seriam destacados
e se prepararem para isso, Thaddeus Clegg reuniu os oficiais para examinar as
tropas. O local escolhido foi o estádio a que haviam dado o nome da mulher do
sétimo rei, Carmelia. Ficava situado numa planície que se espraiava até ao mar
como um pé meio submerso, abaixo do palácio mas ligeiramente acima da
cidade baixa. O estádio de Carmelia era como uma taça gigantesca escavada na
pedra, com milhares de bancos para os espetadores. O campo, amplo, ao ar livre,
tinha um piso quase tão duro como pedra, preparado em padrões circulares que
pregavam partidas aos olhos de quem os observava.
Perante os oficiais e o chanceler, imóveis, a fina flor dos jovens soldados
que a ilha poderia oferecer teria de marchar no estádio, no alinhamento perfeito
de uma batalhão de infantaria. Movimentavam-se às ordens de uma flauta de
batalha, um instrumento estranhamente melancólico e inesperado, mas que
levava o seu som a todos os ouvidos. Ao longo da hora que se seguiu, alguns
tiveram a honra de combater em duelo diante dos espetadores. Depois disso, a
maior parte dos quinhentos soldados participou de uma encenação elaborada da
Nona Forma, na qual Haden e os Homens das Florestas haviam salvado a noiva
de Tinhadin da Traição de Senival. Depois disto, permaneceram no campo
escutando os seus líderes discursarem tanto sobre glórias passadas como sobre o
conflito que agora enfrentavam.
Mais tarde, o chanceler discursou para eles. Thaddeus afagou a barba
hirsuta e pensou durante algum tempo. Sem o seu traje luxuoso e a faixa do seu
cargo sobre os ombros mal seria reconhecido, tão abatido estava, com o rosto
vincado de preocupação
— Soube hoje mesmo de algo que tenho de partilhar convosco — proferiu.
— Prefiro fazê-lo assim, entre vós, tão perto que podemos ver-nos e tocar uns
nos outros. — Ergueu a mão, e Aliver viu então que agarrava um manuscrito. O
chanceler mostrou-o de vários ângulos de modo que todos os soldados o
pudessem ver, como se conseguissem ler o que dizia do lugar onde se
encontravam. — Esta é uma declaração de guerra de Hanish Mein, filho de
Heberen. Aqui afirma o ódio que nutre por nós e proclama-se o chefe do mundo
que há de vir. Deixámo-nos de adivinhações. Sabemos com quem vamos
combater e porquê. Sabemos que ele quer a nossa destruição completa. Acredita
ter o poder para nos vencer e, por isso, empreendeu os seus covardes ataques.
Esta é a luta que temos pela frente. Esta é a maldade que um documento tão
pequeno como este contém.
pequeno como este contém.
Parecia que Thaddeus iria deixar voar o manuscrito com a brisa. Os
soldados permaneceram em silêncio, tal como os oficiais, supondo que o homem
tivesse algo mais a dizer. O chanceler permaneceu imóvel, sem avançar nem
recuar, sem fixar o olhar em ninguém, apesar das pessoas que o rodeavam.
Aliver apercebeu-se de que ouvia o rebentar das ondas no rochedo abaixo do
estádio. Contou um, dois, e ainda um terceiro impacto, surpreendido por não ter
reparado no som antes, atingido pela intimidade com que o mar tocava a terra.
Sentia aquele fragor sob os pés. Sentia-o também no ar, em que cada
reverberação lhe era transmitida como se uma invisível e cristalina chuva de
espuma lhe caísse sobre o rosto e os ombros. Existia todo um mundo para lá do
que agora via, e todo ele poderia chegar, sem aviso, a qualquer momento.
Thaddeus ergueu a cabeça e pareceu concentrar a atenção nos rostos em seu
redor. Passou o olhar por eles, fitando Aliver por instantes.
— A minha sugestão é que todos aprendamos a amar o caos a partir de
hoje. Pensemos todos que o tumulto é uma característica da nossa vida. Tal
como o sol se movimenta no céu, e o vento sopra sobre a terra, como a noite se
segue ao dia e não pode ser de outro modo... assim todos sofreremos, não pode
também ser de outra forma. Aceitem isto hoje e estarão melhor preparados para
o amanhã. Há momentos fizeram uma demonstração da Nona Forma. Como
todos sabem, existem apenas dez. Não há razão alguma, contudo, para que um
dia não exista uma Décima Primeira. Tenham isto em conta, quando enfrentarem
a luta que se aproxima. — Virou-se, como que para se ir embora, mas pensou
melhor e proferiu uma última advertência. — Preparem-se também para enormes
surpresas. O mundo é um lugar diferente daquele que conhecem. Talvez venham
a pensar que vos preparámos mal para isso.
Na manhã em que receberam a última formação para a guerra, Aliver
encontrou-se com Melio e Hephron, nos terraços mais altos do palácio. O
príncipe acenou-lhes, surpreendido por apreciar a companhia de Hephron. Havia
algo de reconfortante naquilo. Pouco dias antes, sentira intensa aversão por
Hephron. Vira-o como inimigo. Porém, nada disto lhe ocorria agora. Hephron
sofrera já mais do que ele. Perdera duas irmãs, em Manil, um primo e vários
criados que conhecia desde criança. Com a morte de vários outros Akaran de alta
linhagem, estava mais perto do trono. No passado, Aliver talvez tivesse esperado
que tal alegrasse Hephron, mas essas considerações triviais já não tinham
nenhum sentido. O rosto de Hephron nada mais expressava do que uma fadiga
crispada pelas perdas que sofrera e a resolução de enfrentar fosse o que fosse que
estivesse para acontecer.
— Acabei de receber a minha missão — disse Hephron. — Vão enviar-me
— Acabei de receber a minha missão — disse Hephron. — Vão enviar-me
para Alecia. Pedi para me enviarem como reforço para Aushenia. De certeza que
vão enfrentar a horda que tomou Cathgergen, e eu queria estar onde fosse mais
necessário. — Hesitou um instante, caminhando e remoendo os pensamentos
durante alguns passos. Soou um grito de um terraço mais abaixo, mas
encontravam-se a alguma distância e prosseguiram no mesmo passo. — Mas...
não deixa de ter alguma honra. Sou o segundo no comando, sob as ordens do
general Rewlis.
— És o segundo? — perguntou Aliver, estacando.
— Não te faças de tão surpreendido.
— Não... não estou surpreendido.
— Tudo mudou — disse Hephron. — Até a Liga o reconheceu. Reuniram
todos os navios e partiram sem uma palavra. Podemos ainda movimentar tropas,
mas não com tanta facilidade como gostaríamos.
— Eles terão parte nisto? — inquiriu Melio. — A Liga, quero dizer. Sabes
alguma coisa, Aliver?
— Nada de certo — respondeu. — Contudo, duvido. A Liga vive e respira
para lucrar com o comércio. Não se importam com quem o fazem. Estão só a ser
cautelosos, cuidando dos seus interesses.
Hephron sorriu.
— Não são os únicos.
— O que queres dizer com isso? — perguntou Melio.
— Porquê mais tarde? — inquiriu Aliver. — Por minha causa? Há algo que
não ousas dizer à minha frente?
Hephron olhou de relance para Aliver, depois desviou a vista.
— Reprimo sempre o que quero dizer na tua companhia. Toda a gente o
faz. Ninguém quer ofender o futuro rei.
— Parece que estás a tentar — brincou Melio.
— Não devíamos ter brigado antes. Todo este pavonear entre nós é um
disparate, mas sei de algumas coisas que o príncipe não sabe e não consigo
evitar pensar nelas. O meu pai não quis que eu vivesse na ilusão. Disse-me a
verdade sobre as coisas. Talvez isto seja novidade para ti também, Melio. Ele
disse-me sempre que os nossos crimes um dia se voltariam contra nós. Tudo o
que está a acontecer... se soubessem a verdade, nada disto vos surpreenderia. Por
exemplo, como pensam que mantemos a nossa prosperidade? Ninguém vos
ensinou nada disso. Fomos ensinados a acreditar que a riqueza simplesmente
ensinou nada disso. Fomos ensinados a acreditar que a riqueza simplesmente
dura para sempre. Ganhámo-la outrora, por isso será nossa para sempre, não é?
Somos um povo maravilhoso que merece dominar os outros. Toda a gente está
contente com isso. É o melhor, realmente. — Alternou o olhar entre os dois
rapazes, com um sorriso forçado. — Parece-vos que isto faz sentido? Pensem
nisso. Um dia, virão a reconhecer que as coisas não batem certo... Procurem-me
então. Contar-vos-ei tudo o que sei sobre o coração podre de Acácia. Então,
interrogar-se-ão porque é que ninguém nos havia ainda atacado.
Aliver pensou que o deveria castigar. Dar-lhe uma bofetada no rosto e
desafiá-lo a empunhar a espada. Ninguém esperaria menor resposta a tal
condenação da nação. Ou deveria talvez denunciar o seu comportamento. Que os
oficiais o interrogassem. Não era este o seu dever? E se Hephron se preparava
para os trair?
— Peço desculpa se ofendi — proferiu Hephron, sem o mínimo tom de
arrependimento na voz. — Não é contigo que estou furioso. Não passas de um
peão em tudo isto, tal como eu. Mas sou eu que terei de ir arriscar o pescoço por
isto. Eu e aqui o Melio, e outros como nós. — Começou a afastar-se, recuando
alguns passos antes de se virar. — Homens adultos, disse-me o meu pai,
possuem o fôlego para aguentar em si a complexidade das coisas. Só os loucos
se agarram a absolutos. Não és um louco, Aliver, és apenas ingénuo.
Aliver, começando a andar um passo atrás de Hephron, ia repetindo várias
vezes aquelas palavras no seu espírito. Sabia que deveria estar zangado, que se
deveria amaldiçoar pela fraqueza, agora que estavam a ser ameaçados. Porém,
continuou a andar como que puxado pela lucidez do outro. Entretecia na mente
as palavras do jovem com a confissão críptica do chanceler. Pensava ainda na
gravidade das suas implicações, quando alcançaram o cimo das escadas.
Hephron, que lá chegara antes dele, deteve-se. Por um espaço de segundos, no
alto da escadaria, a cena que se desenrolava ao fundo, perante Aliver, não fazia
sentido.
Lá em baixo, a cerca de uns cem passos, a praça agitava-se em profunda
confusão. As pessoas corriam em todas as direções, aos gritos. A primeira
pessoa que reconheceu foi o general Rewlis. Porém, mal descobriu quem era,
viu-o a ser atacado por trás numa perna. Reconhecia a pessoa que empunhava a
espada, e tentou recordar-se do seu nome, mas não conseguiu. Rewlis caiu sobre
um joelho, de cabeça para trás e gritando de dor, silenciado no instante a seguir
pela mesma espada que lhe cortara a perna e que agora o golpeara no pescoço
até à orelha. Um segundo depois, a lâmina foi arrancada do seu pescoço. O
general tombou, com um jorro de sangue saindo da garganta, as pernas
manchando as pedras com o seu último fluxo de vida.
manchando as pedras com o seu último fluxo de vida.
— Hellel? — murmurou Melio.
Hephron percebeu o significado daquilo antes de Aliver.
— Degenerado! Eu podia ter-te morto durante o sono tantas vezes. A
estranheza da declaração não ajudou Aliver, que se esforçava por compreender a
confusão lá em baixo. Hellel? Pertencera ao grupo de Hephron, uma pálida
sombra sempre a seu lado, o género de pessoa capaz de terminar as frases por
ele.
Reparando que Aliver ainda olhava para aquilo, Hephron fez um gesto com
o braço, num movimento que tanto apontava para a cena como se afastava.
— São do Mein! Olha para eles. Hellel, além, junto à paliçada. E Havaran.
E Melish, nas escadas. Traíram-nos! Deveríamos ter esperado isto!
No instante seguinte entrou em ação, precipitando-se pelas escadas abaixo a
correr, quase que caindo com o impulso da saltar cada degrau. Tentou
desembainhar a espada enquanto corria, mas foi só quando parou, por instantes,
no terraço, que a conseguiu libertar da bainha. Começou imediatamente a
combater e dois homens vieram na sua direção de lados opostos. Melio lutava a
seu lado, instantes depois, manejando a espada tão velozmente que parecia uma
mancha no ar.
Aliver tentaria mais tarde ter a certeza do que aconteceu a seguir. Recordar-
se-ia de que desembainhara a espada, cerrando os dentes, e correra pela
escadaria para se embrenhar na batalha... foi isso exatamente o que ele quase
fizera. Queria tanto ter feito isso. Tê-lo-ia feito, não fora uma mão o ter
subitamente agarrado pelo antebraço e feito voltar-se.
Era Carver, o capitão Marah.
— Príncipe — disse —, embainha a espada. Tens de ir para lugar seguro.
— Deu então ordens à ala de guerreiros atrás de si para que levassem Aliver dali
para fora. Os restantes correram escadaria abaixo seguindo Carver. Fora tudo.
Aliver, uma vez retirado dali, nunca soube como a escaramuça acabara. Foi para
um «lugar seguro», enquanto Melio e Hephron se transformavam em guerreiros.
Capítulo 25

Thaddeus Clegg entrou nos seus aposentos, cansado de um longo dia a lutar
com a confusão que lhe ia no íntimo, ao mesmo tempo que trabalhava para que
toda a gente o visse como um chanceler eficiente. A sua gata, Mesha,
desenroscou-se do conforto do cadeirão, esticou uma pata, depois outra,
chamando por ele num miado arrastado. Era de uma raça do sul de Talay, cor de
areia, de pelo curto, com exceção da barriga e do queixo. Tinha quase o dobro do
tamanho dos gatos normais, e, como era comum na sua raça, tinha uma garra a
mais em cada pata, vantagem de que tirava grande prazer quando esmagava os
ratos contra os ladrilhos do palácio. Também tinha ajudado a manter à distância
os macacos dourados, que havia muito tinham percebido ser melhor conceder-
lhe amplo espaço.
Enquanto Thaddeus tirava a capa e a dobrava sobre uma cadeira, Mesha
saltou do cadeirão e aproximou-se dele em passitos rápidos. Ele estendeu a mão
e fez-lhe festas, sentindo a pelagem macia da cabeça dela sob os dedos. Embora
nunca o houvesse revelado a ninguém, Thaddeus tinha grande parte da sua
sensualidade tátil na ponta dos dedos, e reservava o seu toque mais íntimo para
Mesha. Ela era tudo o que ele queria ou de que precisava atualmente como
companhia. Era demasiado orgulhoso e consciente de si próprio para se distrair
com afetos com outras pessoas, e não arriscaria nunca mais um grande amor.
— Mesha, és a minha menina linda. Sabes disso, não sabes? Fora deste
quarto reina a loucura, mas tu não fazes parte disso. Que sorte que tens.
Pouco tempo depois, Thaddeus sentou-se com Mesha enroscadinha no colo.
Bebericava um licor xaroposo que cheirava a pêssegos e tentou criar uma calma
interior que condissesse com a sua aparência de paz. Não conseguiu. O tumulto
constante de uma terra a sofrer golpe após golpe, e agora apressando-se nos
preparativos para a guerra, era mais do que suficiente para lhe manter o espírito
em alvoroço. Passara o dia em conselho de estado com os generais, que se
preparavam para enfrentar as forças de Hanish Mein perto de Alecia, que eles
pensavam que seria o seu primeiro alvo. Haviam analisado todos os pormenores
necessários para reunir o maior exército do Mundo Conhecido, deste os tempos
de Tinhadin. Que tarefa assombrosa, tudo feito à pressa e sem um verdadeiro rei
para controlar a empresa. Sim, Aliver sentava-se nas reuniões do conselho,
contribuindo com o que podia, comportando-se corajosamente perante tudo
contribuindo com o que podia, comportando-se corajosamente perante tudo
aquilo. Mas era a Thaddeus que os generais realmente se dirigiam. E era o ponto
em que este lado da sua vida colidia com o seu próprio desejo de vingança que o
deixava verdadeiramente perplexo.
Não concordara abertamente em apoiar Hanish Mein, mas, ao ler a breve
mensagem do líder, parte dele desejara obedecer. Talvez tivesse servido um rei
demasiado tempo para se sentir confortável em liderar. Ou talvez fosse um sinal
do poder de Hanish, da sua capacidade para vencer grandes distâncias e dominar
a seu bel-prazer o coração dos homens. O que fazer quanto à exigência de
Hanish? Ordenara-lhe que capturasse os jovens Akaran. Tão simples quanto isto.
Que fizesse isto por ele e Thaddeus teria a sua vingança contra os Akaran. Que
fizesse isto por ele e seria recompensado de outras formas também. Thaddeus
interrogava-se sobre se lhe seria possível refazer a sua vida servindo os Mein. O
que lhe dariam como recompensa? Talvez um cargo de governador. Talay servir-
lhe-ia bem, aqueles territórios imensos, a perder de vista, aquelas pradarias
verdejantes. Era uma província suficientemente vasta para se poder perder nela.
Esta ideia parecia-lhe bastante atrativa.
Ou talvez não estivesse a pensar verdadeiramente em grande. Se houvesse
ainda nele a ambição que Gridulan pressentira, anos atrás, teria arranjado
maneira de tomar o trono. Tinha controlo quase absoluto sobre os assuntos da
ilha. Tendo em conta os que já haviam morrido, com a confusão reinante no
Continente e as escaramuças sangrentas mesmo ali, nos pátios da corte de
Acácia, ninguém mais segurava nas rédeas do poder com tanta segurança como
ele. Os filhos do rei tinham-no como homem de confiança e ele tinha acesso
àqueles até nos seus aposentos privados. Poderia ir ter com um após outro e
envenená-los, uma taça de leite morno oferecida pela mão de um tio amado, um
bolo com uma cobertura especial, um unguento no seu dedo que lhes passaria
sobre os olhos, como se lhes limpasse as lágrimas... Conhecia tantos métodos
pelos quais ministrar um veneno. Poderia ter colocado uma almofada sobre a
boca adormecida das crianças, sangrá-las com uma ferida no pescoço, fazer-lhes
parar o coração com o golpe de mão que aprendera a ministrar do ângulo certo e
forçar os órgãos à imobilidade. Poderia acabar com elas e, assim, fazer pagar a
Gridulan a sua traição.
— Que patético é tudo isto, Mesha — proferiu, afagando o dorso da gata. A
felina ergueu os olhos para ele, entediada. — Que grande confusão fiz! Devia
pensar no caminho mais seguro e segui-lo. Nada poderá impedir a mudança que
aí vem. Vejo isso melhor do que ninguém. E estas crianças não são tão inocentes
como parecem. A cria de um chacal não se tornará também num chacal? Não
morderá um dia a mão que a alimentou? Não pode ser de outro modo. É um
disparate pensar que eles ou eu agiremos contra a nossa natureza. Vês, eu bem
disparate pensar que eles ou eu agiremos contra a nossa natureza. Vês, eu bem
posso dizer tudo isto. Mas amo-os. Esse é o problema.
Mesha começara a adormecer novamente quando Thaddeus se levantou e a
pôs no chão. Estava irritado consigo próprio só por ter falado sobre o assunto,
mesmo que fosse para uma gata. Dirigiu-se a um armário embutido numa parede
perto da cama. Daí retirou o cachimbo de bruma que antes pertencera ao rei. Que
estranho ter chegado tão tarde àquele vício. Que estranho ter vivido uma vida
inteira antes de compreender o desejo ávido do esquecimento. Sabia que no dia
seguinte teria de enfrentar novamente decisões tomadas ou a tomar, mas entre o
amanhã e o agora desejava apenas esquecer tudo, ou, pelo menos, atingir aquele
estado em que nada mais importava.
Mais tarde, acordou do negrume do vazio, de uma existência sem sonhos
nem pensamentos, que era mais profunda do que o sono podia ser. A força que o
puxou daquele lugar escolhido era frustrantemente forte. Parecia como que uma
garra de ferro que lhe apertava parte do ser e o empurrava para a consciência.
Deu uma reviravolta no leito, pensando que a mudança de posição lhe facilitaria
novamente o sono, pois o dia ainda não viera exigir que acordasse. Sentiu uma
pressão aos pés da cama e pensou ser Mesha que a causava. Por vezes, ela
cravava as unhas na sua perna, sonhando, talvez, estar a apanhar alguma pedra.
Porém, então, ouviu uma voz dizer:
— Levanta-te e olha para mim.
Thaddeus ia começar a gritar pelos guardas, mas antes que a sua boca
pudesse pronunciar as palavras, o resto do seu ser obedeceu à ordem. Ergueu-se
do leito, enquanto a visão à sua frente vinha ao seu encontro. Exceto... exceto
que o seu corpo de facto não se mexeu. O peito, a cabeça e os braços não o
haviam seguido. Inclinou-se, mas, de algum modo, abandonara a sua concha
corpórea deitada na cama. Era como se tivesse deslizado da sua pele com um
suave impulso. Sentia os órgãos, os músculos e o cérebro a libertarem-lhe o
espírito. O corpo soltava-o, e ali estava ele, sentado, ereto, com a parte inferior
ainda presa às ancas, virilhas e pernas, enquanto o tronco se levantava como um
espírito obediente atento à chamada.
Perante ele, aos pés do leito, pairava a figura vaga de um homem. Tinha em
redor a forma de um corpo, mas Thaddeus conseguia ver através dele o quarto
mal iluminado. O ser produzia a sua própria iluminação. Os olhos cinzentos
pareciam dois pontos brilhantes. Eram a parte mais visível do seu ser, cintilando
nas órbitas em redor das quais todo o ser se compunha. Eram a única parte do
vulto que parecia sólida o suficiente para ser tocada, e, no entanto, a energia que
os iluminava tremeluzia em seu redor em vagas. Diminuía ocasionalmente, mas,
os iluminava tremeluzia em seu redor em vagas. Diminuía ocasionalmente, mas,
depois, emergia novamente, como se dentro deles estivesse a Lua intercetada por
um céu enevoado. Os olhos realçavam as feições do rosto e conferiam alguma
solidez aos ombros e braços, apesar de a parte inferior do corpo se desvanecer no
vazio.
O vulto voltou a falar. A voz parecia enfraquecida pela distância, oca, como
se as palavras fossem proferidas através de um tubo. Apesar do tom
sobrenatural, eram palavras francas que atingiram Thaddeus como uma mão
aberta.
— Thaddeus Clegg, cão, tenho de te dizer umas coisas.
Thaddeus fitou-o, atónito. Como era aquilo possível? Tentou demonstrar
com um trejeito de desprezo nos lábios o seu desdém pela intrusão do homem,
fosse qual fosse a bruxaria que ali o trouxera. Era uma reação instintiva, mas
custava-lhe manter a expressão porque o brilho dos olhos do homem era
profundamente hipnotizante. Porque não gritara pelos guardas? Sabia que era
fácil fazê-lo, contudo algo o impedia e mantinha prisioneiro do feitiço daquele
olhar. Teria primeiro de identificar aquele ser. Era essa a chave, pensou. Sentia
um nome no fundo da garganta, já conhecido dele. Bastaria pronunciá-lo para se
tornar real.
— Hanish? — inquiriu. O outro homem sorriu, aparentemente agradado por
ter sido nomeado. A expressão bastava para confirmar que o palpite fora em
cheio. — Como é isto possível?
— Viajando pelo sonho — respondeu o outro. — Estás a dormir e não
estás, eu estou acordado em espírito e muito distante do meu corpo adormecido.
Consigo sentir o corpo a puxar-me, mesmo agora, tentando fazer-me voltar ao
que é familiar. O nosso espírito não gosta de abandonar o corpo, Thaddeus. É
irónico considerar que, devido aos seus malditos mortos-vivos, o meu povo
deseja apenas escapar a este fardo da carne, mas é verdade. Estou tão
surpreendido como tu que estejamos a falar. Nunca antes estivemos perto, nem
sabia que possuías o dom. Nem toda a gente o tem, sabes. Entre mim e os meus
irmãos houve sempre silêncio. Não podemos compreender a ordem das coisas...
Hanish desvaneceu-se na escuridão e depois a visão voltou, tremeluzindo,
brilhando ainda mais intensamente.
— Estou feliz por me teres reconhecido tão depressa, mas não vim ter
contigo para uma conversa banal.
Algo no tom de voz de Hanish causou estranheza a Thaddeus, a tal ponto
que não só se focou nas palavras do outro mas também no modo como as
entoava. Era difícil entender o que o vulto dizia através da distorção da distância,
entoava. Era difícil entender o que o vulto dizia através da distorção da distância,
mas havia um homem do outro lado deste discurso e Thaddeus fora sempre bom
entendedor de homens.
— As crianças estão a salvo? — perguntou Hanish.
— As crianças? Não precisas de as temer. Não constituem verdadeira
ameaça para ti...
— Não lhes fizeste mal, pois não? — perguntou Hanish, com um tom de
preocupação na voz.
Enquanto o vulto do líder se apagava e voltava a aparecer, Thaddeus teve
alguns instantes para pensar. Ao observar os olhos de Hanish, Thaddeus
apercebeu-se de que ele escondia alguma coisa. Não estava exatamente a mentir,
mas havia alguma coisa importante por trás das suas palavras que,
desesperadamente, ele queria evitar que Thaddeus descobrisse.
— Claro que não — respondeu, quando Hanish ressurgiu, brilhante, à sua
frente. — Mantive-as aqui, perto de mim, protegidas de todos...
— É importante que vivam. Compreendes? A sua vida significa muito para
mim. Estou aqui para te dizer novamente que, quando mas entregares, serás
recompensado. Falaremos sobre isso em tempos mais calmos, e eu recompensar-
te-ei. Acredita em mim quanto a isso. Não sou um Akaran de língua de serpente.
Digo a verdade. O meu povo sempre disse a verdade.
Thaddeus sentiu um forte abalo de entendimento nos seus pensamentos.
Compreendeu o que Hanish escondia. Estava ali, atrás da afirmação de que o seu
povo sempre dissera a verdade. Aquilo não era bazófia. Era uma declaração de
orgulho nacional. Os Mein haviam sempre afirmado que haviam sido banidos
para o norte por causa de dizerem a verdade contra os crimes dos Akaran.
Acreditavam não só que tinham sido banidos mas também amaldiçoados. Os
Tunishnevre... Aquilo era o que Thaddeus ainda não tivera em conta. Não
passava de uma lenda para os Akaran, mas talvez fosse mais do que isso para os
Mein.
Anteriormente, pensara somente no antigo ódio dos Mein por Acácia, de
como haviam cobiçado aqueles territórios amenos, de como seriam ricos se os
governassem, e em como se sentiriam gratificados por, finalmente, vencerem os
inimigos de há tantos séculos. Porém, não alcançara ainda o mais profundo
desejo de Hanish. Não compreendera até agora que aquela não era apenas uma
guerra por coisas terrenas. O Mundo Conhecido era o campo de batalha, mas a
causa por que Hanish lutava cruzava outros planos da existência. Ele devia
acreditar que os seus antepassados se encontravam encurralados num purgatório
sem fim. Queria romper a maldição lançada sobre eles durante a Retribuição e
sem fim. Queria romper a maldição lançada sobre eles durante a Retribuição e
libertar os Tunishnevre. Este feito, dizia a lenda, só poderia ser realizado de uma
forma. Ao recordá-la, Thaddeus pensou que ou Hanish enlouquecera ou o
mundo era um lugar muito mais misterioso do que ele imaginava.
Estes pensamentos passaram rapidamente pela cabeça do chanceler e
Hanish não pareceu reparar na mudança que nele ocorreu.
— Reúne-os — disse. — Guarda-os para mim. Se alguma coisa lhes
acontecer, farei da tua existência um sofrimento sem fim. É um bem que te dou.
Não duvides nem da minha generosidade nem da minha ira.
— Não duvido nem de uma nem de outra — retorquiu Thaddeus. —
Garanto-te que esperarei aqui por ti, com as crianças comigo.
A luz nos olhos de Hanish esmaeceu. O vulto transformou-se e dispersou
como vapor sacudido por uma rajada de vento. Thaddeus sentiu-se regressar ao
corpo novamente. Voltou a descansar dentro da sua concha, deslizando através
da pele e sentindo-a novamente envolvê-lo. Não decidira, pensou para si próprio,
obedecer. Não era um criado. Era livre de agir como queria...
Repetiu isto vezes sem conta, até sentir o torpor terreno invadi-lo, receoso
de se lembrar de uma parte da noite e não de outra, com medo de acordar e errar
no modo de agir. Ordenou a si próprio que acordasse e se lembrasse da sua
revelação, pois aquilo mudava tudo e tratava-se disto: Hanish acreditava poder
pôr fim à maldição sobre os Tunishnevre ao matar um herdeiro da dinastia
Akaran. Só as gotas do sangue puro Akaran despertariam a vida nos seus
antepassados amaldiçoados. Se Hanish conseguisse o que queria, as crianças que
Thaddeus amava — as quatro que protegera toda a sua vida, que gostaria que
fossem suas e a quem dera o afeto que gostaria de ter dado aos seus próprios
filhos — seriam colocadas sobre um altar sacrificial, golpeadas e sangradas até à
morte. Se fosse verdade que a maldição de Tinhadin era real e não um mito, e
que podia ser cancelada, vinte e duas gerações de guerreiros do Mein seriam
trazidos da morte para a vida. Caminhariam novamente sobre a terra e a sua
vingança viraria o mundo ao contrário.
Compreender isto fez com que Thaddeus visse tudo de outro modo. Não
podia tomar o poder como o ogre que o habitava imaginara. Nem poderia
permitir que Hanish soltasse um novo inferno sobre o mundo. Havia uma
súplica, contudo, a que poderia obedecer. Deveria ter feito isso já. Sabia disto
com uma certeza maior e mais completa do que qualquer outra coisa em que
acreditasse, entre as suas lealdades antagónicas. Determinara já que as crianças
teriam de ser enviadas dali para fora. Agora, poria em prática o plano que
Leodan Akaran sonhara para os seus filhos, se a tragédia se abatesse sobre si
Leodan Akaran sonhara para os seus filhos, se a tragédia se abatesse sobre si
antes de eles atingirem a maturidade. Thaddeus conhecia o plano e tinha poder
para o pôr em marcha. Só ele, em todo o mundo vivo, o poderia fazer. Nem
sequer os jovens Akaran sonhavam com isso. Nem se lhes poderia contar a
verdade para os preparar. Aliver odiá-lo-ia por isso. Provavelmente, ficaria
apavorado, encarando isso como o pior dos destinos possíveis e vê-lo-ia como
um traidor.
Que apropriado, pensou Thaddeus: que horrível e apropriado, uma verdade
e uma mentira.
Capítulo 26

Hanish acordou da conversa onírica com o chanceler com uma série de


planos para acompanhar. A sua frota navegava pelo rio Ask até este os despejar
no Mar Interior. Embora ansiasse por atacar a própria Acácia, sabia que teria de
aguardar, fazê-lo apenas na devida altura. Mandou reunir as embarcações que
lhe restavam na foz do rio. Foram-se juntando à medida que podiam, aguardando
retardatários e ajudando-se uns aos outros. Descobriu que o seu exército não
estava tão mal como imaginara — estava até melhor, talvez, porque os homens
nada mais ansiavam do que chegar a terra e começarem a chacina. Era um povo
devoto que ansiava por provar isso pela espada.
Hanish manteve-os embarcados enquanto recebia notícias. Soube então que
a primeira grande batalha na guerra entre Hanish Mein e os Akaran não envolvia
nem tropas do Mein nem acacianas. O príncipe ausheniano, Igguldan,
comandava um exército que enfrentava os numrek na charneca de Aushenguk.
Guerreiros, camponeses, mercadores e sacerdotes de todos os cantos do reino
haviam-se reunido no campo rochoso para defender a sua nação. Igguldan tinha
em campo um exército de quase treze mil almas. O inimigo, por outro lado, não
ultrapassava os seis mil.
Porém, em todos os aspetos, os numrek eram assustadores. Constituíam
uma horda barulhenta e desordeira, que se assemelhava aos seres humanos, mas
também era grotescamente diferente, que deixava os aushenianos que os viam
aproximar profundamente desconcertados. Tinham tosquiado as abomináveis
montadas para se adaptarem ao clima. Dos seus corpos pendiam madeixas de
pelo mal cortado e a pele cinzenta estava repleta de cicatrizes da tosquia.
Pareciam criaturas doentes, e contudo, apesar do aspeto, trotavam com ar altivo,
tão musculadas que pareciam saltar, só em virtude da intensidade da sua força.
Além disto, os numrek tinham posto em uso uma arma que ainda não
haviam revelado: catapultas. Eram construções bizarras que arremessavam bolas
incandescentes com metade do tamanho de um homem. Quando lançadas, as
esferas de fogo passavam sobre o solo, em grandes arcos, cinzelando um rasto
no chão ao caírem. A força dos arremessos era tal que abria, retalhos por entre as
tropas aushenianas. Esmagavam os homens atingidos em cheio e retalhavam os
corpos só parcialmente atingidos, arrancando-lhes a cabeça do corpo. O príncipe
ausheniano foi apanhado desprevenido, tal como o apanhou o astro flamejante
ausheniano foi apanhado desprevenido, tal como o apanhou o astro flamejante
que lhe arrastou o tronco, envolto em chamas, num abraço ardente. Com ele
desapareceu o esforço da sua nação para resistir, eliminado numa única tarde.
Trágico para ele, claro, mas música doce e perfeitamente oportuna para os
ouvidos de Hanish.
A chegada de Maeander a Candovia foi do mesmo modo eficaz. Como
haviam planeado, Maeander atacara clã após clã, coagindo-os à revolta ou
submetendo-os ao seu poder. Tinham plantado a semente desta invasão ao longo
de vários anos, enviando agentes para o meio deles para convocar aliados e criar
o descontentamento no povo. Os candovianos eram lutadores ferozes, irascíveis
e orgulhosos, parecidos com os habitantes do Mein. Eram também facciosos e
facilmente manipuláveis. Os acacianos assim os haviam moldado, favorecendo
um clã em detrimento de outro, fomentando a discórdia entre eles e fazendo com
que, entretidos em brigas internas, nunca se focassem no seu verdadeiro inimigo.
Maeander tinha grande talento para a persuasão, tanto pelas armas como através
de outros métodos, e tirara proveito disso. Prometeu, através de um mensageiro,
levar todos os candovianos consigo a atravessar as montanhas de Senival, uma
força que triplicaria o número de homens com que chegara aos seus territórios.
Talvez precisassem de ser reprimidos depois da guerra, mas, por agora, preferia
pensar neles como aliados.
Até Acácia implodia no seu seio. Hanish não tivera a certeza de até que
ponto os soldados do Mein que serviam os acacianos longe de casa reagiriam à
sua declaração de guerra. Tivera esperanças, sim. Não haviam todos os soldados
do Mein jurado responder à chamada para a guerra da sua nação, fosse quando
fosse e onde quer que estivessem? Contudo, preocupava-o o facto de, depois de
tantos anos afastados da pátria, se pudessem ter tornado menos resolutos. No
entanto, os Tunishnevre nunca tinham duvidado. Tinham-lhe garantido que o seu
domínio sobre todos os soldados do Mein era tão firme como sempre. Tinham
razão. Os guerreiros do Mein, por todo o império, revoltaram-se assim que as
notícias lhes chegaram. Haviam chacinado inimigos a que, instantes antes,
haviam chamado camaradas.
Em Acácia, todos os trinta e três soldados do Mein no regimento acaciano e
mais quatro recém-chegados de Alecia empunharam as espadas e mataram
metade dos oficiais acacianos na ilha, tarefa fácil durante os primeiros instantes
de surpresa. Em Aos, um grupo de cinco homens do Mein pintou o rosto de
vermelho, com sangue, e irrompeu pelo mercado semanal da cidade, matando
toda a gente pelo caminho. Outros haviam envenenado as fontes que forneciam
água aos habitantes das redondezas, nas cidades a leste de Alecia. Um só
soldado, num dos postos avançados do Continente, transformara-se num
assassino, matando os seus oficiais superiores e vários funcionários locais, na
assassino, matando os seus oficiais superiores e vários funcionários locais, na
cama, antes de ser capturado. Todos estes homens se tinham suicidado, pois
nenhum destes rebeldes queria ser aprisionado vivo. Não havia dúvida de que os
Tunishnevre os estimulavam, exigindo-lhes que redimissem pela sua morte a
infâmia de terem servido os Akaran.
Somente em Talay tinham conseguido frustrar a revolta antes de esta
começar. As ordens vindas de Acácia chegaram a Bocoum quase ao mesmo
tempo que as notícias da guerra. Por conseguinte, os soldados do Mein foram
postos a ferros antes de pensarem sequer em pegar em armas. Fora um azar, mas
de pouca monta. No conjunto, Hanish orgulhava-se do seu povo. A acreditar nas
estimativas, as revoltas tinham reduzido o exército do império em quase um
quarto, tanto em vidas que tinham ceifado pela espada como pelo seu simples
afastamento do serviço. Os acacianos haviam fraquejado desde o início, não
tomando ações decisivas. Tanto pior para uma tão grande nação! Apenas poucas
semanas depois de a morte de Leodan Akaran ter espoletado a guerra, o chefe
dos Mein não tinha razão para crer que se enganara ao desencadeá-la. Além
disso, ainda tinha na manga o seu maior trunfo.
A principal contenda teria lugar nos vastos campos que se espraiavam a
leste de Alecia. O solo dessas terras não fora cultivado devido à turbulência dos
tempos. Os acacianos andavam a reunir o que esperavam ser um grande exército.
Os seus meios de transporte tinham drasticamente diminuído quando a Liga dos
Navios zarpara, sem aviso nem explicações, mas outros tinham vindo em auxílio
do império com barcos de pesca, balsas, barcaças e embarcações de recreio,
barcos a remos e canoas. Em terra, os mercadores e os comerciantes
emprestavam as suas carroças, os cavalos e mulas que ainda tinham. Utilizando
estes meios, ou simplesmente a pé, os soldados convergiam para Alecia. Quem
liderava todas estas forças, não se sabia ao certo. Declarações grandiosas
atribuíam tudo aquilo ao príncipe Aliver, mas o jovem rebento estava abrigado
no seu lugar, como convinha a Hanish.
— Que atencioso da parte de quem quer que dá ordens — disse Haleeven
—, reunir tanta gente no mesmo lugar, de modo a podermos tratar de todos ao
mesmo tempo. Talvez, por consideração, lhes devêssemos dar mais tempo para
se reunirem todos.
— A cortesia assim o exige — retorquiu Hanish.
Quando as forças do Mein desembarcaram a poucos dias de marcha do
inimigo, não avançaram na sua direção imediatamente. Montaram um grande
acampamento. Quando este estava praticamente pronto, resolveram descontrair e
divertirem-se. Era um clima tão ameno que os homens despiram as vestes
divertirem-se. Era um clima tão ameno que os homens despiram as vestes
pesadas, sentindo o toque do ar em lugares do corpo que não o sentiam havia
meses. Estavam pálidos como fantasmas, com crostas de pele morta, e
rapidamente ficaram rosados ao sol da primavera do Continente. Entretiveram-se
com jogos de destreza física: corridas e lutas corpo a corpo, treinos de espada e
lança, jogos da corda em que a corda era substituída por dois homens
firmemente agarrados. Dez ou mais homens, por vezes, agarravam um dos
escolhidos e puxavam, com as pernas fincadas no chão, fazendo toda a força que
podiam, para puxar a equipa rival antes que o elo quebrasse. Era, em muitos
aspetos, como os seus festivais do pino do Verão, visto aquele tempo ser
equivalente ao mais ameno que havia em Tahalian. Vários homens até dançaram
o Maseret. Bebiam vinho, cerveja e bebidas refrescantes que iam buscar às
aldeias mais próximas. Apesar de, por vezes, se enfurecerem devido a bebedeira,
acordavam sempre mais vivazes e despertos do que os viciados na droga.
Tudo isto elevava bastante a moral e, quando avançaram para o inimigo,
entoavam cânticos guerreiros. Hanish, que montava um cavalo largo de flancos,
cavalgando junto ao tio, nunca se sentira mais vital na engrenagem do mundo.
Atrás de si, um mar de homens marchava sobre a terra, entoando cânticos de
lendas, todos eles louros cor de palha, a maior parte altos e em perfeita forma,
envoltos em apertadas faixas de pele para proteção. Tantos elmos e tantas pontas
de lança refulgindo ao sol! Tantos pares de olhos azuis acinzentados! Usavam
ainda os guizos e sinos que os Tunishnevre tinham ordenado, que tilintavam uma
música que a todos envolvia. Hanish mal conseguia olhar para trás e contemplá-
los sem sentir uma vaga de emoção invadi-lo. Menor não foi a sua exaltação ao
contemplar pela primeira vez o inimigo.
Que exército incrível os acacianos tinham conseguido reunir! Quarenta,
cinquenta mil, sobre o solo revolvido, como uma estranha sementeira acabada de
despontar. Eram mais do que três vezes os seus homens. Constituíam um
conjunto multicor, homens e mulheres, representantes dos muitos súbditos da
Acácia. O olhar de Hanish passou sobre aquela multidão até à grande muralha de
pedra que se estendia de norte a sul, de uma ponta do mundo até à outra. Alecia
ficava a vários quilómetros de distância, mas, por detrás do exército acaciano,
encontrava-se a primeira barreira, erguida havia muitos anos contra inimigos
como ele próprio. Havia uma beleza irregular na construção da muralha,
construída com blocos de pedra de diferentes cores e tamanhos. Poderia ser
apenas um mosaico tosco e sem ordem, e, contudo, havia algo, no seu vasto
leque de cores, qualidade, tamanho, e forma dos blocos que atraía o olhar de
uma extremidade a outra.
Hanish conhecia a história da construção da muralha. Fora Edifus quem
primeiramente a mandara erguer, apesar de ser difícil encontrar pedra adequada
primeiramente a mandara erguer, apesar de ser difícil encontrar pedra adequada
na área. Como resposta, nação após nação, da miríade de povos subitamente seus
vassalos, enviara-lhe emissários, assim como pedra extraída e pedreiros para a
trabalhar. A notícia espalhou-se e, em breve, até das regiões mais remotas do
império, das mais pequenas tribos, foram enviadas ofertas de pedra e mão-de-
obra para construir a muralha. Por isso, o cenário que tinha em frente
representava o primeiro símbolo de aceitação da ordem do mundo que Hanish
procurava agora derrubar.
Naquele momento, não poderia dizer se a muralha era mais ou menos
impressionante do que imaginara. Parecia ambas as coisas ao mesmo tempo.
Sabia que, algures, entre aqueles blocos, se encontrava uma pedra negra, um
basalto gigantesco talhado no sopé das montanhas perto de Scatevich.
Reconhecê-la-ia quando a visse. O nome de Hauchmeinish fora gravado num
dos cantos do basalto. Procurá-la-ia e ordenaria aos pedreiros que a soltassem
dali. O Mein não a oferecera de livre vontade, e ele ficaria feliz por recuperá-la.
Era tradição que os líderes se encontrassem antes de travarem uma batalha,
falarem cara-a-cara para o caso de as suas diferenças se poderem resolver ainda,
mesmo naquele estádio avançado da situação. Talvez se tivessem compreendido
mal um ao outro. Talvez algum dos lados tivesse agora novos ressentimentos ou
acusações. Hanish não negou aos acacianos esta cerimónia, quando estes
pediram para parlamentar.
Haleeven encontrou-o sentado num banco, numa área circundada por quatro
paredes de tecido, preso a lanças, no seu novo campo. Aquilo bastava ao chefe
como espaço privado, um cubículo para orar e comungar com os Tunishnevre,
apesar de Hanish se sentir bastante afastado dos antepassados desde que
navegara pelo rio Ask abaixo. Pressentia-os como um odor distante que chegava
com a brisa a um homem esfomeado, mas isto nada era comparado com a
portentosa intimidade da presença deles que sentia quando se encontrava em
Tahalian. Sentia a falta da certeza palpável deles, especialmente agora, que
estava tão perto de soltar o inferno na terra.
O tio afastou as abas da tenda improvisada e entrou.
— Estás preparado?
— Estou — respondeu Hanish, controlando a voz de modo a não
demonstrar incerteza. — Estava só a ouvir aquele pássaro a cantar. Já ouviste?
Canta pela manhã, e depois novamente, à tarde. O seu canto é... como cristal a
estilhaçar-se. Com isto quero dizer que tem a pureza, a beleza e a frescura do
cristal a despedaçar-se, mas captada no canto de uma ave e libertada no ar.
Nunca ouvi nada assim.
Nunca ouvi nada assim.
— Os nossos pássaros não têm muito por que cantar — respondeu
Haleeven.
Hanish vestira-se de um modo semelhante ao traje da Maseret. Uma thalba
branca envolvia-lhe o tronco, o que conferia rigidez ao seu porte. Apanhara as
tranças e enrolara-as num carrapito preso com uma fita de pele de boi. Usava a
faca — tal como Haleeven — embainhada na horizontal à cintura. No entanto,
nenhum pensava na lâmina, nem sequer em qualquer outro instrumento de
guerra. Haleeven levava com ele a arma do dia. Agarrava-a entre os dedos e o
polegar, num estojo de prata não mais largo do que um dedo.
— Abro-a? — inquiriu Haleeven. Como não teve resposta negativa, soltou
um pequeno trinco do estojo e abriu-o. Estendeu-o ao sobrinho. Lá dentro, um
pano cobria o metal do estojo. Era comprido, dobrado uma ou duas vezes. O
pano era grosso, parecido com o material do traje nobre de Hanish. Havia um
padrão desbotado natural, mas tinha sido manchado por líquidos, que tinham
gerado os seus próprios padrões. Hanish permaneceu muito tempo a estudá-lo.
— Foi isto que matou o meu avô — proferiu Hanish.
— Que mate agora o teu inimigo — respondeu Haleeven.
Hanish pegou no pedaço de tecido com os dedos e enfiou-o no peito.
Meteu-o sob uma dobra da thalba, entre os músculos do peito do lado direito.
— Lembra-te de adiar a batalha por dois dias — disse Haleeven. Não te
esqueças de fazer as coisas desse modo.
Pouco tempo depois, Hanish encontrava-se diante de um semicírculo de
acacianos de olhos escuros, cada um vestindo o seu melhor traje nacional, em
tons cor de laranja franjados de vermelho, cobertos por armaduras prateadas
como escamas de peixe. Um dos acacianos começou o encontro de modo formal,
invocando a presença do Doador e os nomes dos antigos acacianos. Hanish não
tinha paciência para aquilo.
— Quem de entre vós fala pelos Akaran? — interrompeu.
— Eu — respondeu um homem novo, dando um passo em frente. Era um
nobre muito belo, de físico bem constituído e a atitude descontraída de um
espadachim. — Hephron Anthalar.
— Anthalar? Então não sois um Akaran? Pensei que me iria encontrar com
Aliver Akaran em pessoa, neste dia. Porque não está ele aqui?
Hephron pareceu pouco à vontade com a pergunta e até irritado com ela.
Instintivamente tocou no punho da espada.
— Eu tenho a honra de falar pelo... pelo rei. Garantimos-lhe que não sois
digno da sua presença.
Hanish esperara o próprio príncipe. Imaginara vê-lo com os próprios olhos
e poder tocá-lo com os dedos. Olhou de relance para Haleeven, num gesto tão
impercetível que ninguém se apercebeu de que estavam a comunicar.
Claramente, o tio pensava que deveriam proceder como planeado. Talvez aquilo
fosse de certo modo vantajoso ...
Olhando novamente para Hephron, Hanish franziu os lábios num trejeito de
ironia.
— Então, estais vós aqui em lugar do vosso cobarde monarca para
responder pelos pecados dos Akaran? Que estranho povo é o vosso, liderado por
homens que nem sequer lideram?
— Eu não respondo pelos pecados dos Akaran. Encontro-me aqui para
garantir que sejais castigado pelos vossos. Não sorríeis para mim! Verei esse
sorriso cosido com arame antes de o dia de amanhã acabar.
Hanish apontou para o seu rosto com os dedos, num gesto inocente que
tentava demonstrar que não estava nada jovial.
Um dos outros acacianos apresentou-se como sendo Relos, o chefe militar
das forças acacianas. Era alto e anguloso, com o cabelo cortado curto com
manchas grisalhas. Falou por momentos sobre o poder militar que haviam
reunido. Ultrapassava em muito as hostes de Hanish, disse, e mesmo esta força
era apenas uma parte da que o império tinha ainda à sua disposição.
— Então, que tendes vós para oferecer? Fostes vós que nos haveis trazido
até aqui. Teremos de travar batalha, ou estais pronto a render-vos e a sofrer as
consequências?
— Render-me? Oh, essa ideia não me passa pela cabeça.
— Chamo-me Carver, da família Dervan — acrescentou outro acaciano —
Liderei as nossas forças contra a Discórdia de Candovia, há alguns anos atrás.
Conheço o campo de batalha, e conheço o desempenho das nossas tropas quando
postas à prova. Não podeis esperar que nos vencereis.
Hanish encolheu os ombros.
— Vejo a situação de modo diferente, e tendes a minha declaração de
guerra. Travemos batalha daqui a dois dias.
— Dois dias? — inquiriu Hephron. Olhou para Relos e para os outros
generais. Nenhum deles protestou.
Hanish encolheu os ombros.
Hanish encolheu os ombros.
— Sim, pensámos que isso vos conviria. Não devereis ter objeções, visto
que o vosso número cresce diariamente. Eu não terei mais tropas durante esse
tempo, mas prepararei os meus homens com orações. Vão-nos negar isso?
— Assim seja — respondeu Hephron. — Será daqui a dois dias. — Os
outros acacianos viraram-se para sair, mas Hephron manteve-se imóvel.
Sustentou o olhar de Hanish, relutante em o abandonar, mas inseguro de como
proceder. Por fim, disse:
— Leodan era um bom rei. Haveis cometido um erro desastroso em o
atacar.
— Cometi? — Hanish aproximou-se ligeiramente de Hephron. — Deixai-
me explicar-vos uma coisa. O meu antepassado Hauchmeinish era um homem
nobre. Estava no poder por direito, quando o vosso Tinhadin ardia de loucura
pelo poder. Hauchmeinish falou aos ouvidos de Tinhadin, como amigo, como
um irmão o faria.
Antes de Hephron se aperceber do gesto, Hanish tirou a mão do peito e
colocou a palma gentilmente sobre o ombro do jovem. Hephron vacilou,
retraindo-se, pronto a defender-se. Hanish fez um gesto com os dedos, franziu os
lábios e de algum modo demonstrou com todo o corpo que não constituía
ameaça. A proximidade, transmitiu, era apenas necessária para que a sua
mensagem fosse compreendida.
— Hauchmeinish disse a Tinhadin que este estava possuído por demónios.
Pediu-lhe que compreendesse que matara os seus irmãos e que expulsara a magia
do mundo, que os vendera a todos à escravidão. Mas o vosso rei não quis saber
de nada disto. Virou-se para Hauchmeinish e cortou-lhe a cabeça. Amaldiçoou o
seu povo — o meu povo — e expulsou-nos para o planalto, onde até hoje
vivemos. O que vos estou a contar é a verdade. Hauchmeinish tinha razão. O
vosso império é maléfico e, ao longo de todos estes anos, prosperou à custa do
sofrimento dos povos. Vim acabar com o vosso domínio e — acreditai-me —
que muitos me louvarão por isso. Não vedes que tudo isto é verdade?
Os músculos e tendões do pescoço de Hephron sobressaíam como se todo o
seu corpo se retesasse em grande esforço.
— Não. Não reconheço essa história como verdadeira.
Hanish manteve-se imóvel por instantes. Estudou o jovem, os seus olhos
cinzentos, ávidos, tristes ao modo de alguém que reconhece que a única forma
de enfrentar a tragédia é com humor.
— Respeito a vossa raiva. Acreditai-me, respeito-a. Em breve nos
— Respeito a vossa raiva. Acreditai-me, respeito-a. Em breve nos
enfrentaremos, mas tentarei lembrar-me de vós como vos vejo agora. — Retirou
a mão do ombro de Hephron e passou-a numa carícia rápida pelo seu queixo.
Hephron afastou o rosto, mas não antes de os dedos de Hanish lhe tocarem no
canto dos lábios e pelo esmalte dos dentes. Hephron esteve para desembainhar a
espada, mas Hanish já lhe virara as costas.
— Hei de matar-vos com as minhas próprias mãos! — gritou Hephron. —
Procurai-me no campo de batalha. Se sois homem para isso!
Pobre criança, pensou Hanish enquanto se afastava. Não fazia ideia do
poder de um toque, não tinha noção do que o esperava.
De madrugada, dois dias depois, Hanish caminhava à frente das suas tropas.
Estas moviam-se sobre solo debruado pela neblina. A pálida névoa azulada que
os envolvia ia desaparecendo devagar, à medida que o sol despontava no
horizonte e iluminava o cenário da chacina iminente. Não se via nenhuma fileira
inimiga vindo ao seu encontro, como como ele imaginara. Em vez disso,
caminhavam sem oposição através dos campos, por entre sulcos, ao longo dos
quadrados geométricos que teriam sido o campo de batalha. Atravessaram tudo
aquilo e avançaram sem parar até aos limites do campo acaciano. Ninguém veio
ao seu encontro, nenhuma fileira de soldados ou de projéteis, nenhuma armadura
cintilante, nada da grande hoste que todos haviam visto dois dias antes.
Em seu lugar, o campo jazia numa desolação latente. As fogueiras onde
haviam cozinhado, na noite anterior, resumiam-se a cinzas de onde se evolavam
fios de fumo. Os corvos, sempre atraídos pelo cheiro e desperdício de muita
gente reunida, alinhavam-se, numerosos, no chão e nos topos das tendas ou
sobre objetos vários espalhados pelo campo. Lá no alto dos céus os abutres
voavam em círculos, pacientes, vagarosos, confiantes. Tudo estava envolto numa
atmosfera sombria, mas eram as formas humanas que definiam o horror da cena.
Em redor das fogueiras e nas ruelas por entre as tendas, e em cada espaço,
os corpos contorciam-se no pó. Tantos corpos! Soldados, ajudantes de campo —
todos os que constituíam o exército acaciano. Rebolavam no chão. Jaziam
prostrados numa intimidade contorcida com a terra ou fitavam os céus,
boquiabertos, de rostos lustrosos de suor e contorcidos de angústia, muitos deles
raiados de manchas rubi do tamanho e forma de girinos.
Hanish estacou para observar tudo aquilo. Sobre o campo pairava uma
calma estranha, mas não era silêncio. O ar estava repleto de sons. Porém,
tratava-se de uma cacofonia tão invulgar, contida, que era difícil entender-lhe o
sentido. Os acacianos ofegavam, sufocados. Gemiam e choramingavam, sugando
o ar com as bocas escancaradas. Agonizavam num sofrimento total. Poucos
o ar com as bocas escancaradas. Agonizavam num sofrimento total. Poucos
conseguiam ver para além da sua própria agonia e ver o exército que se
aproximava. A maior parte não reagiu a nada. Hanish compreendia bem o seu
tormento e, naquele momento, era-lhe difícil dizer se estava alegre ou com
vergonha por lhes ter induzido aquele mal.
As tropas do Mein já não se conseguiam conter. Irromperam para a frente,
passando céleres por Hanish, de espadas empunhadas, atirando as lanças
enquanto corriam. O grosso das tropas acacianas jazia no solo, como milhares de
peixes lançados à terra, impotentes. Eram incapazes de resistir àquilo. Os
soldados do Mein moviam-se por entre eles, espetando-os com as lanças ou
cortando-lhes a garganta. Alguns divertiam-se a perseguir os acacianos que
ainda estavam de pé, mas estes eram poucos. Hanish não derramou sangue.
Limitou-se a andar por entre a carnificina, observando a sede de sangue dos seu
homens com frieza nos seus olhos cinzentos. Espalhou a palavra de que
procurava um acaciano em especial, um que não queria que fosse morto antes de
falar com ele. Um soldado acabou por lhe levar a informação que pretendia.
Hanish encontrou-o dentro de uma grande e refinada tenda acaciana.
Hephron não dera mais do que alguns passos da sua esteira. Ainda não
estava sequer completamente vestido. Jazia no chão com os grandes olhos
abertos sem pestanejar, com o rosto molhado do suor que lhe deixara milhares de
sulcos nas faces. Tinha a fronte tão coberta de suor que as moscas que o
rodeavam pousavam nele com cuidado.
— Oh, Hephron... preferiria recordar-vos como éreis, não como estais
agora. Vi bem a força que em vós existia. Assim como a vossa raiva. Curvo-me
perante essas duas coisas e honro-vos. É por isso que vos quero explicar o que
aconteceu. Não compreendeis nada disto, pois não?
Hanish ajoelhou-se a seu lado. Afastou os insetos com a mão.
— Conheceis a história de Elenet e da sua primeira tentativa de criar com a
língua do Doador? Quando o Doador foi ter com ele e o encontrou no pomar,
Elenet estava debruçado sobre a última aberração que criara. As velhas lendas
não nos dizem o que ela era, mas cheguei a uma conclusão. Acredito que a
primeira coisa que Elenet desejou para si próprio foi a vida eterna. Não existe
menção da morte antes de Elenet se tornar um Falante. Porém, ele temia que, se
já não tinha existido uma vez, poderia não voltar a existir novamente. Por isso,
tentou armar-se contra a ira do Doador. Contudo, ao tentar tornar-se imortal,
acabou por soltar as doenças que tiram a vida. Nesse dia criou a doença e
pagamos por isso desde então. Estais agora a pagar por isso. Vedes, esse foi o
problema de os seres humanos falarem a língua do Doador. Não eram deuses
nem nunca poderiam ser. Não possuíam a capacidade completa para articularem
nem nunca poderiam ser. Não possuíam a capacidade completa para articularem
as palavras adequadamente. A corrupção que existia na sua boca e no seu
coração e a intenção enganadora sempre distorceram a magia para o lado errado.
É isto que vos queima agora por dentro.
Hephron pareceu só dar por ele naquele momento. Olhou na sua direção.
Tinha as pupilas dilatadas quase do tamanho da íris, mas algo na frenética
intensidade do olhar denotava que tentava fixar-se em Hanish. Havia agora uma
tonalidade vermelha no seu suor. Hanish descobriu um pano numa bacia ao lado
da cama e limpou a testa de Hephron. Quase instantaneamente a mancha rósea
foi absorvida pelas estrias da pele.
— Há alguns anos... antes sequer de ter nascido, mas quando minha mãe
vivia... o meu povo contactou pela primeira vez com os numrek e, através deles,
com os Lothan Aklun. Estes pioneiros do contato sofreram todos desta doença.
O primeiro grupo que regressou através dos Campos Gelados infetou
praticamente toda a Tahalian. Todos os habitantes da fortaleza ficaram
atormentados pela doença como vocês estão agora. Morreram milhares de
pessoas. Porém, os que sobreviveram aprenderam a nunca mais apanhar a
doença. E a evitar contágio depois de melhorar. De início mantivemos a doença
como um segredo por vergonha; só mais tarde, pelo génio de meu pai,
percebemos que poderia ser também uma arma. O vosso povo nunca soube
disso. De qualquer modo, nunca vos dizíamos qual o número certo dos nossos
habitantes. Após a praga, ficámos contentes por isso. Aprendemos que era
possível transmitir a doença através de uma agulha, na dose suficiente para que a
pessoa que a contraísse não sucumbisse imediatamente ao veneno. Mais tarde
ainda, descobrimos que o espírito da doença pode sobreviver até muito depois de
a febre ter passado. A carícia que vos fiz, jovem Hephron, veio diretamente de
uma amostra do tecido com que o meu avô morreu.
Hanish enfiou a mão no tecido da thalba — tal como fizera antes de ter
tocado em Hephron, dois dias antes — mas, desta vez, mostrou o pedaço de
tecido preso entre os dedos.
— Foi isto que vos derrotou hoje aqui. Contém o contágio de algum modo
aqui embebido. Impossível de acreditar, não é? Eu próprio não acreditaria, se
não o tivesse aprendido com sofrimento. Afinal de contas, não me haveis morto,
Hephron Anthalar. Essa possibilidade nunca esteve ao vosso alcance. Fui eu que
vos matei, com nada mais do que um toque. Muitas pessoas, com o tempo,
recuperam disto, mas não sem passarem pela agonia em que agora vos
encontrais e depois por um período de fraqueza. Então, o que irá acontecer é o
seguinte: esta febre propagar-se-á pelo vosso povo como uma vaga. E, depois da
vaga, iremos nós colher os frutos. Deveis estar gratos por o vosso papel nisto
estar concluído. O idílio dos Akaran acabou; ao morrer, uma nova era começa. É
melhor para vós que não vivais para o ver. Duvido muito que gostásseis da
forma que as coisas adquirirão nos tempos vindouros.
Quando Hanish saiu da tenda, momentos depois, levava a faca
desembainhada numa mão. Estava manchada de sangue. Ergueu os olhos e
contemplou a muralha de Alecia. Teria de encontrar a pedra Scatevich, antes de
prosseguir e passar a muralha. Encostaria nela a face. Era isso que teria de fazer.
Queria muito sentir a pele contra a pedra e ouvi-la murmurar que tudo estava a
correr como devia. Que tudo isto era justo e verdadeiro. Que começara antes
dele e terminaria depois dele. Ele era um simples instrumento de um propósito
muito mais vasto.
Capítulo 27

O navio escolhido era uma das maiores embarcações de pesca da frota, com
duas velas quadradas principais a meio do convés e uma vela bujarrona
triangular que serpenteava à proa como um papagaio de brincar, ondulando e
mudando de direção de modo que a insígnia com o nome do proprietário surgia e
desaparecia constantemente de vista. Quem quer que a observasse da costa
conhecia bem o barco. Navegara em águas acacianas durante mais de trinta anos.
Os tripulantes que trabalhavam no convés eram um pouco mais numerosos do
que o habitual, pois não era invulgar que as embarcações levassem aprendizes
nos últimos meses de inverno, antes de os atuns regressarem dos baixios de
Talay, seguidos pelos barcos do continente em busca de tripulantes para a
primavera. Flutuava muito acima da superfície das águas, como era típico dos
cascos vazios que aguardavam que os carregassem; era o procedimento típico de
um ciclo de cinco dias necessário durante a época da calmaria. Porém, nenhuma
destas coisas era realmente o que parecia.
Os homens vestidos de pescadores eram, na verdade, guardas Marah. A
carga que levavam não se tratava do peixe de cauda amarela que a embarcação
normalmente pescava nos mares de Inverno. Em seu lugar transportava os quatro
jovens Akaran. Estes viajaram escondidos durante a primeira parte da viagem no
porão nauseabundo da embarcação, todos eles taciturnos e de olhar mortiço,
respirando pela boca tanto quanto lhes era possível. Tinham a mesma expressão
preocupada no fundo do rosto, como se fosse um traço genético passado a todos
à nascença mas que só surgira mais tarde. Mena continuava a sentir vontade de
falar, de partilhar o que sentia, de dizer qualquer coisa que quebrasse a tensão.
Porém, parava sempre perante o facto indiscutível de nada ter de razoável a
dizer.
Uma vez fora da curva abrigada do porto a norte, a embarcação navegou
contra o vento e fluiu ao sabor do impulso do seu arcaboiço vazio. Cortava as
ondas gélidas de um azul vítreo, levando atrás um bando de aves, que, com
gritos roucos, pareciam dar ordens umas às outras. O capitão da guarda convidou
os jovens para subirem ao convés, depois de estarem bastante afastados da ilha,
dizendo que já não havia olhos que os pudessem descobrir. Mena observava os
guardas da parte de trás do barco, saboreando o ar salgado na garganta.
Interrogava-se sobre qual dos homens ou das poucas mulheres que via ali já
tinha morto alguém Alguns deles haviam tomado parte no combate para dominar
tinha morto alguém Alguns deles haviam tomado parte no combate para dominar
a revolta dos soldados do Mein. Os rebeldes haviam sido derrotados em menos
de uma sangrenta hora, com os últimos a serem perseguidos escadaria abaixo e,
por fim, capturados e mortos nas ruas da cidade baixa. Aliver, sabia, fora
afastado da refrega. Este não falara sobre isso, mas ela bem via que o irmão se
sentia envergonhado. E não fora o único insulto ao seu orgulho.
Afastou-se dos guardas e observou a esteira do navio. Não tinha a certeza
do que pensar daquela viagem. Thaddeus explicara que iriam fugir da ilha
temporariamente, por uma semana ou duas, não mais do que um mês. Estariam
mais seguros fora das vistas de todos e precisavam de se afastar apenas o tempo
suficiente para que a revolta fosse dominada, punidos os culpados pela morte do
pai, e identificar e acabar com quaisquer outros conspiradores na ilha.
Navegariam até à ponta norte de Kidnaban e ficariam em tranquilo isolamento
com o diretor da mina aí existente. Thaddeus prometera-lhes que regressariam o
mais brevemente possível a Acácia. Por alguma razão, Mena não acreditara nele.
Existia uma qualquer outra verdade por detrás da fachada que mantinha e das
palavras sensatas que lhes dirigia, mas ela não conseguia imaginar o que seria.
Aliver não pareceu duvidar da sinceridade do homem, mas revoltara-se
contra aquele plano com uma raiva maior do que Mena alguma vez vira nele.
Falara, aos gritos, sobre a batalha iminente, berrando que era seu dever liderar o
exército. Ele era o rei! A responsabilidade era sua, mesmo que morresse em
combate! Foi preciso todo o talento persuasivo de Thaddeus só para conseguir
que Aliver baixasse de tom. Thaddeus referiu os seus poderes enquanto
chanceler com responsabilidades interinas. Criticou Aliver, afirmando que as
ordens tinham vindo diretamente do próprio Leodan, dizendo que ambos
estavam obrigados por compromisso de honra a cumpri-las. No fim, contudo,
não foi a persuasão, mas a força que fez o príncipe entrar no navio. Foi
escoltado, como os irmãos, por guardas Marah disfarçados, que tornaram bem
claro que tinham de seguir as ordens do rei transmitidas pelo chanceler. Tudo o
que Aliver podia fazer agora era aceitar o exílio temporário, apesar de o príncipe
rebentar de fúria por encarar aquilo como um insulto.
Mais tarde, no primeiro dia de viagem, avistaram o cabo Fallon. Esta era
uma costa de falésias instáveis, sobre as quais se via uma charneca ondulante de
erva alta salpicada aqui e além pelas cores das flores silvestres do inverno.
Dariel estava sentado ao lado de Mena junto à popa do navio. Partilhavam
algumas sardinhas picantes com bolachas. Dariel desperdiçava mais do que
comia, tentando separar com uma faca as espinhas macias do filete,
amontoando-as numa pilha que, depois, ocasionalmente, lançava com a ponta da
faca para fora da embarcação. Algo naquela atitude a encheu de amor pelo
faca para fora da embarcação. Algo naquela atitude a encheu de amor pelo
menino. O sentimento invadiu-a totalmente com o poder da nostalgia por algo
perdido, como se não estivesse sentada ao pé dele, naquele momento, sendo
ainda irmã dele com todas as fibras do seu corpo, tal como ele era irmão dela
com todas as fibras do seu corpo. Interrogou-se por que olhava para ele com
tanta emoção, pressentindo que as coisas já não eram bem assim.
Aliver caminhava na direção deles, usando ostensivamente a antiga espada
de Edifus, a Confiança do Rei. Parecia demasiado grande para ele, como um
estranho apêndice mais embaraçoso do que útil. Esforçava-se por afastar a raiva
e a expressão carrancuda e aparentar controlo. Mena queria abraçá-lo por isso,
mas sabia que isso não lhe agradaria.
— Estamos a chegar às minas — disse ele, apontando com um gesto da
cabeça. — São criminosos que lá trabalham, como castigo. Há uma ainda maior
em Kidnaban e muitas em Senival.
Mena esticou a cabeça para ver para lá da amurada. Ao contornarem um
promontório, o sol, baixo, coava a luz de sombras e a menina levou alguns
instantes a conseguir descortinar a paisagem. As grandes sombras que avistava
sobre a terra eram enormes crateras. Assim abertas aos céus, ela não conseguia
adivinhar a profundidade que teriam, pois só vislumbrava o paredão lá em baixo
exposto, entrecruzado por linhas e cortes. Aqui e ali brilhavam luzes, grandes
chamas no interior de recipientes de vidro que fraturavam e ampliavam a luz,
atirando raios dardejantes ao céu. Pelo aspeto, o trabalho mineiro não acabaria
ao escurecer. Mena pensava como seria possível haver tantos criminosos, tantos
loucos que roubavam ou faziam mal às outras pessoas. Talvez, quando fosse
mais velha, viesse a fazer alguma coisa quanto a isso. Viajaria em nome de seu
pai e exigiria às pessoas que fizessem melhor uso das oportunidades que lhes
ofereciam, em vez de perderem a longa paz em ações triviais.
Passaram essa noite no abrigo entre Kidnaban e o Continente. Na tarde
seguinte, o navio atracou ao porto de Crall, na costa a norte de Kidnaban. Nessa
noite, no modesto conforto das instalações do diretor, no alto de uma colina com
vista para a vila, encontraram-se com Crenshal Vadal. Este era um homem
apagado. Abaixo do lábio inferior, o rosto acabava abruptamente. O queixo
recuava até ao pescoço numa diagonal simples. Falava com rígida formalidade,
mas, ao mesmo tempo, parecia desejar estar num lugar totalmente diferente,
como se todo o seu corpo ansiasse por fugir e enfiar-se num canto. Mena notou
que o homem demorou alguns minutos até expressar a sua tristeza pelo destino
de Leodan, e desconfiou que fora um dos seus ajudantes a lembrar-lhe para
acompanhar a frase com uma expressão contristado.
Enquanto jantavam, Crenshal deu-lhes mais pormenores sobre o seu
Enquanto jantavam, Crenshal deu-lhes mais pormenores sobre o seu
destino. Iriam, simplesmente, permanecer isolados numa área das instalações do
diretor. Era tudo. Não receberiam visitas, porque ninguém deveria saber onde se
encontravam. Thaddeus iria enviando mensagens regularmente, dando notícias
sobre quaisquer mudanças ou desenvolvimentos da situação. Não receberiam
nem enviariam mais nenhuma correspondência. Teriam de se arranjar sem luxos,
nem comida requintada ou entretenimentos, sem nenhuma extravagância que
pudesse chamar as atenções. Nem seria sensato da parte deles deambularem pela
parte baixa da vila. Levariam uma vida simples, longe da antiga opulência de
Acácia. Tudo o que Crenshal podia oferecer eram os aposentos, toscos, de uma
estrutura construída para albergar o pessoal administrativo e de gestão das
minas, refeições simples e o prazer da sua companhia. Pronunciou a última frase
num tom brincalhão, mas com tão pouco entusiasmo que soou a falso.
Aliver acrescentou que desejava ser mantido ao corrente de tudo o que se
passasse. Falou num tom altivo, como se falasse do alto de uma posição de
autoridade diferente da dos irmãos. Mena olhou em volta, pensando se os outros
teriam notado a mal-disfarçada insegurança dele. Aliver temia estar a ser
afastado do fluxo dos acontecimentos e da tomada de decisões. Encontrava-se
numa espécie de limbo: era mais do que o príncipe que fora, havia algumas
semanas, mas certamente ainda não era o rei que esperara tornar-se. Aos olhos
de Mena, ele ainda teria de aprender a lidar com a sua situação.
Ele aligeirou o tom ao perguntar:
— Tem cavalos que nos possa emprestar? Poderíamos sair e explorar a ilha.
Far-nos-ia muito bem apanhar algum ar.
Dariel também se entusiasmou com a sugestão, mas o diretor interrompeu-
lhes a alegria.
— Receio que não possais passear pela ilha. É... bem, é a vossa segurança
que mais importa, príncipe. Os prazeres como o cavalgar terão de ser
abandonados, por agora. Certamente que o chanceler vos terá explicado tudo
isto.
— E as minas? — perguntou Aliver. — Gostaria de as inspecionar. Não
precisamos de fazer grande espalhafato disso, ou...
— Inspecioná-las? — Manifestamente, Crenshal nunca ouvira tal palavra
antes. — Mas... jovem príncipe, isso é também impossível. As minas pululam de
degenerados. E também não têm nenhum interesse para si, de qualquer maneira.
Haveremos de arranjar alguma coisa para vos entreter nas instalações. Não se
haverão de aborrecer, jovens, prometo-vos.
Ao longo dos dias que se seguiram, contudo, tal revelou-se manifestamente
falso. Pouco viam o diretor. Comia com eles todas as noites, mas, fora isso,
estava sempre ausente e deixava os jovens com poucas oportunidades de
distração. Os oficiais e dirigentes alojados nas instalações haviam sido colocados
noutra área, deixando aqueles aposentos e corredores simples ecoando no vazio.
Mena nunca vira nenhuma daquelas pessoas-fantasma, apesar de ter encontrado
no seu quarto sinais de que alguém o abandonara apressadamente: um frasco
meio vazio de óleo de banho perfumado, uma meia perdida por entre os
cobertores, uma unha do pé no chão, ao lado do toucador.
Nas primeiras tardes entretinham-se com jogos de tabuleiro. Os livros da
coleção do anterior diretor — o próprio Crenshal não se interessava por literatura
— deram-lhes alguma distração, no terceiro dia, quando Dariel convenceu
Aliver a ler alto, para todos, uma coleção de poemas épicos. O menino ficou
encantado, mas Mena não conseguiu evitar lembrar-se do pai. Corinn devia ter
sentido a mesma coisa. Pôs-se de pé e afastou-se, sem explicações. Corinn mal
pronunciara palavra desde que haviam deixado Acácia. Quando o fazia, falava
num tom trivial, monocórdico, como se não visse nada de anormal nas
circunstâncias em que viviam.
Só na terceira tarde é que tiveram uma conversa quase significativa. Corinn
entrou na sala comum, onde passavam a maior parte do dia, e olhou em volta
com os olhos de pálpebras pesadas. Mena foi apanhada de surpresa quando
Corinn foi ter com ela, meio cambaleante, e se atirou para o sofá ali perto,
soltando um profundo suspiro de aborrecimento.
— Ouviste? Um dos soldados contou que foram apanhados dois homens
que tentavam sair da aldeia. Disse que eles foram «tramados por isso» e o outro
disse, rindo, que era o que mereciam. O que achas que isto significa?
— Tenho a certeza de que quer dizer que foram punidos — retorquiu Mena.
— Claro que quer dizer isso! — respondeu Corinn de modo abrupto. —
Dizes sempre as coisas mais óbvias. Punidos como? Era isso que eu estava a
perguntar.
— Não digo as coisas mais óbvias — retorquiu Mena, temendo que aquela
troca inesperada de palavras azedasse. Se alguém dissera as coisas mais óbvias
fora a própria Corinn.
Corinn produziu um som fundo na garganta, uma espécie de protesto
gemente.
— Isto aqui é tão estranho, Mena. Nada é como deveria ser. Não posso
suportar o aspeto que têm as pessoas daqui. Parecem... parecem idiotas, como se
suportar o aspeto que têm as pessoas daqui. Parecem... parecem idiotas, como se
tivessem cérebro de animal em vez de pessoas. Quem me dera ir para casa.
Detesto este limbo. Tenho tantas coisas para fazer. Coisas importantes.
— Tais como? — inquiriu Mena, tentando falar num tom que não
ofendesse a irmã.
De algum modo conseguiu. Corinn olhou para ela de soslaio.
— Tu não compreenderias.
No quarto dia, quando um criado do diretor lhes trouxe dados para jogarem
ao jogo dos ratinhos, Mena desistiu realmente de fingir que se estava a divertir
dentro daquelas paredes nuas do complexo. Contava os dias com tanta precisão
quanto Aliver, cada um deles esperando pelas próximas parcas notícias de
Thaddeus, ansiosos por que os chamasse de regresso a casa. Quando chegou a
primeira missiva, lapidar e críptica, do chanceler, contudo, não alterou nada. A
situação continuava instável, dizia. Deveriam permanecer onde estavam.
Prometia-lhes que os avisaria, logo que houvesse alguma mudança, mas, apesar
de dizer isso, não lhes dava nem a mais ligeira ideia do que acontecera desde o
dia em que haviam partido. Nem uma notícia da guerra. Nem uma indicação de a
situação estar melhor ou pior do que antes.
Mena reparou numa cortina de fumo, um dia, no céu, e temeu que o seu
mau pressentimento se tivesse evolado até aos céus numa forma visível.
Pairavam sombras no ar, nuvens que se aglomeravam, ondulando e fluindo em
correntes de ar. Ao observá-las, da estreita janela do seu quarto, apercebeu-se de
que sempre ali haviam estado. Apenas nunca tinha parado para as contemplar. O
céu não estava somente nublado, como pensara. Por detrás da escuridão em
movimento, havia um tom pálido de azul, uma clareira constante aberta nos
céus. Que estranho, pensou. Ao primeiro olhar, desviou os olhos, aquelas formas
no céu pareciam-se demasiado com arautos do mal, como que redemoinhos e
correntes que se poderiam materializar em algo mais sinistro, se ela os olhasse
por demasiado tempo.
Ao acordar de manhã, a primeira coisa que fazia era dirigir-se à janela. Os
eflúvios sombrios continuavam lá, claros e óbvios, agora que ela se apercebera
da sua presença. Tornavam-se até mais pesados à medida que a noite se
aproximava. Quanto mais os olhava, mais consciente se tornava da presença das
nuvens, em múltiplos aspetos diferentes, à sua volta. A maior parte era
transformada por correntes que ela não sentia, mas, em momentos de quietude,
havia partículas daquela matéria que caíam em volta dela, assentando em
espaços vazios e amontoando-se nos recantos toscos das paredes. Era uma
espécie de poeira, tão leve que se propagava no ar à simples respiração. Sentia o
toque de cristais minúsculos nas faces, sobre as pálpebras e a acumularem-se nas
toque de cristais minúsculos nas faces, sobre as pálpebras e a acumularem-se nas
sobrancelhas. Conseguia sentir-lhes o sabor nos pulmões, como que uma areia
fina que inalava, ao respirar. Estava por toda a parte. Espantou-se com o facto de
ter demorado tanto tempo a aperceber-se daquilo.
Mena perguntou à criada que mudava a roupa da cama se notara aquilo. A
rapariga não pareceu ficar nada satisfeita por estarem a falar com ela. Quase que
saiu do quarto.
— Princesa, o que vedes é a poeira que sai das minas. É do trabalho que lá
fazem, é tudo.
Mena perguntou-lhe se as minas ficavam ali perto e a jovem acenou que
sim. Ficavam mesmo atrás das colinas, do outro lado do complexo, explicou.
Então, onde estavam todos os trabalhadores, perguntou Mena. Por que não vira
ela ainda sequer sinais de que as minas existiam?
— Já haveis visto um sinal. Viste-lo no ar. E vós não tendes de ver mais do
que isso. Os trabalhadores? Não sei, senhora. Talvez não haja trabalhadores. Não
me cabe a mim dizer.
A jovem aproveitou uma pausa, enquanto Mena pensava no assunto, para
desaparecer do quarto. Que comportamento mais irritante. Um criado não devia
ir-se embora quando fora convidado a falar. Por outro lado, a ousadia da jovem
ao escapar-se dali poderá ter sido o que inspirou Mena a agir, algumas horas
depois.
Saiu do complexo já bastante depois de ter anoitecido, envolta num
sobretudo que encontrara no armário. Evitou o guarda colocado à porta do
quarto, esgueirando-se pela janela e indo dar ao pátio que ali havia, e abriu
depois o portão para a liberdade. Não levou nada para a alumiar, mas a Lua ia
alta e, apesar de nervosa e alerta ao mais pequeno som, teve pouca dificuldade
em seguir o caminho de terra batida, de um branco ósseo, que se afastava do
complexo.
Havia ainda um outro guarda a evitar, ao fundo do caminho. Era uma forma
densa na escuridão. Sentiu os pormenores do corpo do homem, a posição da
cabeça e a provável direção do olhar. Havia até um cheiro forte numa brisa que
soprava na sua direção — o odor do homem. Saiu do caminho, não se atrevendo
a ir mais longe por ali. Prosseguiu, agachada rente às ervas, palpando o caminho
com as mãos e os pés até encontrar um declive no terreno por onde passou
escondida do soldado.
Continuava a ouvir sons que lhe faziam palpitar o coração: o roçar do seu
casaco; o entrechocar dos rebentos de erva, que pareciam ossos a partirem-se sob
os pés; o modo como a pressão dos seus passos fazia ranger a areia, o ruído que
os pés; o modo como a pressão dos seus passos fazia ranger a areia, o ruído que
parecia uma explosão, quando algum roedor dava por ela e fugia, espantado.
Nunca deixou de esperar que o homem chamasse por ela. Ouvira antes dizer que
era difícil viajar silenciosamente à noite e que a guarda Marah era treinada para
ouvir o mais ínfimo som irregular oculto na escuridão. Agora tentava lembrar-se
de quem lhe dissera isso. Pois por mais que respirasse ofegante, apesar da
violência que o mais pequeno som era para os seus ouvidos, apesar mesmo de os
músculos das pernas lhe doerem devido ao esforço de andar agachada — na
verdade, a sua fuga não lhe parecia assim tão difícil. Continuou a andar e, em
breve, já ultrapassara o homem e voltara ao caminho principal. Parecia que os
pés, as mãos, os dedos e os músculos sabiam exatamente o que fazer de comum
acordo. Esteve prestes a sentar-se e ponderar naquilo, mas queria ainda atingir o
objetivo que ali a levara.
Havia diversos lances de escadas que era necessário subir para sair do
complexo. Estavam escavadas na encosta de modo que, agachada, poderia
continuar sem a descobrirem. As escadas iam dar a uma estrada em pedra.
Atravessou-a a direito e subiu pela encosta do outro lado, agarrando-se com
força às ervas altas.
A subida acabou por levar só alguns minutos, mas, mesmo assim, que alívio
ver que o ângulo da encosta diminuía e que nada havia à sua frente! Ofegava ao
dar os últimos passos na subida íngreme, pousando-os lentamente, como se faz
ao atingir um objetivo. Endireitou-se completamente, o que a ajudou a perscrutar
a paisagem. Sabia o que, em princípio, deveria existir ali, aquilo por que estava
tão curiosa, a razão — se existia alguma — para aquele passeio noturno. No
entanto, não estava preparada para o que se lhe deparou.
Longe ficara a noite tranquila, do outro lado da encosta, atrás dela. Não se
via a lua em lado algum, nem o céu claro que lhe iluminara o caminho. A terra
parecia envolta em vagalhões carregados de poeira, como que uma nuvem em
movimento fervilhante. Sob aquela nuvem de pó havia uma enorme cratera de
muitas bocas. Ocupava a maior parte da paisagem que tinha pela frente, um
buraco gigantesco e desolado como ela nunca vira nem imaginara antes,
efervescente de uma vida cacofónica, um clamor constante e furioso.
Estava a olhar para a orla norte das minas de Kidnaban. Aquela visão fê-la
sentir um choque de horror, um horror de que ela se esquecera que podia existir,
o mesmo medo que sentira quando uma aia tola lhe contara histórias sobre uma
raça demoníaca que vivia no interior de uma montanha fumegante e alimentava
as suas fogueiras com crianças mal-comportadas roubadas das suas camas. Tal
como na sua imaginação, centenas de fogueiras iluminavam o lugar. Havia
como na sua imaginação, centenas de fogueiras iluminavam o lugar. Havia
placas de vidro curvo em volta de caldeirões de óleo flamejante que atiravam
fagulhas para o céu. Sob aquela luz distinguiu a confusão de linhas
entrecruzadas em diagonal que vira antes, no Cabo Fallon. Porém, agora,
encontrava-se muito mais perto. As linhas mudavam enquanto as olhava,
desfocadas por um movimento que mal era percetível. Pensou que seria efeito da
luz. Demorou alguns momentos a perceber que se tratava de algo mais do que
isso.
As linhas eram escadarias e patamares, trilhos amplos para maquinaria,
rampas e sistemas de escadas com muitos patamares de altura. Os objetos em
movimento não eram nenhuma partida da luz. Tratava-se de pessoas. Centenas
de pessoas. Tão pequenas que não se percebia que eram indivíduos, ganhando
forma apenas pelo seu movimento coletivo, como uma fila de formigas, à
distância, parece um ser único. Talvez ultrapassassem as centenas. Milhares,
seria mais provável. Dezenas de milhares. E talvez isso fosse somente uma
porção ínfima da totalidade. Ela não fazia ideia da extensão das minas, do
quanto estaria oculto à vista.
Avançou para a borda da cratera e deslizou pela rocha, descendo até uma
ponta sólida do rochedo. Teve de avançar deitada sobre a barriga para olhar lá
para baixo. Quando começou a vislumbrar, parou, surpreendida ao ver que, a
cerca de dez metros abaixo, abria-se uma avenida talhada na rocha. Estava
pejada de trabalhadores. Estes carregavam objetos aos ombros, sacos às costas, a
pele e a roupa do mesmo tom cinzento da mina, tingida pelo avermelhado da luz
e cobertos de sombras.
A sul ficava uma torre, e, para lá dela, uma outra. Quadrada e grossa,
coberta por um telhado que parecia vagamente um cogumelo, com o brasão
dourado da dinastia Akaran. Era o símbolo da sua família, a árvore dos Akaran,
com a silhueta de uma acácia contra um sol amarelo a despontar. Era o seu
símbolo. Uma forma que ela tantas vezes rabiscara em tampos de mesa e sobre
guardanapos.
Abaixo do telhado havia varandas onde se movimentavam figuras. Olhando
para sul, ao longo da borda da cratera, viu outra torre de vigia e, mais além desta,
em redor de todo o rebordo da cratera — mais torres de vigia. As figuras eram
guardas, vigias. Muitos eram arqueiros. Conseguia distinguir a silhueta da sua
postura, com os arcos no punho, cada um com uma flecha pronta a atirar. Não
deveria sentir surpresa. Os criminosos têm de estar guardados. Mas eram tantos!
Havia torres e mais torres a perder de vista, e as mais distantes pareciam formas
redondas no horizonte. Os trabalhadores, minúsculos, lá em baixo, não tinham
como escapar dali, nenhuma outra opção a não ser curvarem-se a um labor que
como escapar dali, nenhuma outra opção a não ser curvarem-se a um labor que
prometia ser interminável.
Perdeu a vontade de perscrutar mais a dimensão de tudo aquilo, e desviou o
olhar para as filas intermináveis de formas em movimento mesmo abaixo. Havia
algo de inquietante neles. Ninguém erguia os olhos ao céu. Quanto mais
observava, mais acreditava ver traços e atributos individuais, a forma dos rostos
e a disposição dos ossos junto à pele. Foi por causa desta intimidade crescente
que se apercebeu que o mais medonho daquilo não era o número espantoso de
gente de rosto abatido nem a sua pequenez comparada com o projeto que os
unia. Havia uma outra razão para a linha parecer tão irregular aos seus olhos.
Havia crianças entre os trabalhadores. Em cada três ou quatro pessoas havia uma
criança não mais velha do que ela, algumas nem eram mais altas do que Dariel.
Aquilo era demasiado para o conseguir suportar.
Regressando ao fresco ar da noite, Mena deu alguns passos em direção ao
complexo. Agachou-se. Não podia regressar às instalações sem ter um sinal do
que acabara de presenciar estampado no rosto. Ela não deveria ter visto aquilo.
Nenhum dos irmãos deveria. Claramente, o mundo não era como a haviam
levado a pensar que seria. Pensou no pai, nos momentos em que estava
melancólico. Seria esta a razão? Esta era uma mina acaciana. Pertencia à sua
família. Aquelas pessoas, aquelas crianças... trabalhavam para ela. Havia seres
que arrancavam as crianças da cama para os atirar para ali, para alimentarem os
fogos do mundo. Trabalhavam em seu nome. Interrogou-se sobre se aquela aia
estranha, anos atrás, conhecera aquilo. Seria por isso que se sentira no direito de
a assustar, de a provocar e de lhe corromper os sonhos de criança?
Regressou ao complexo mesmo a tempo. Mal acabara de entrar no quarto e
de tirar o sobretudo quando uma forte pancada na porta quebrou o silêncio que
antecipava a aurora. Tinham de sair dali, disse uma voz, que ela não reconheceu,
do outro lado da porta. Era muito urgente que ela saísse dali.
— Princesa, a vossa segurança depende disso.
Porque não reconheceria aquela voz? Não era nenhum dos Marah que os
haviam escoltado, nem um criado conhecido nem ninguém de que ela se
lembrasse do pessoal de Crenshal. No entanto, tinha a certeza de que falava com
sinceridade. A sua segurança dependia daquilo. Agarrou de novo no sobretudo e
olhou em volta do quarto, indecisa sobre se deveria arranjar as suas coisas para
levar. Pensou em perguntar a quem quer que a tivesse chamado, mas, quando
abriu a porta, sentiu-se estranhamente preparada para sair tal como estava, ainda
afogueada de ter estado lá fora, de casaco no braço, pronta. Simplesmente
pronta.
Não sabia que ao dar um passo para fora daquela porta iria deixar para trás
Não sabia que ao dar um passo para fora daquela porta iria deixar para trás
parte da sua vida para sempre. Não sabia que nos anos vindouros não veria os
irmãos nem a irmã ou ninguém que tivesse conhecido até àquela altura. Não
poderia ter imaginado que passar aquele limiar era o mesmo que dar um passo
para a obscuridade, desaparecendo do mapa, saindo da sua pele, para longe de
casa e do país e do seu nome, rumo a uma vida inteiramente diferente.
Livro Dois

Exílios
Capítulo 28

Poucas pessoas que o tivessem conhecido no seu auge teriam reconhecido o


homem que ia subindo pelo caminho de cascalho da aldeia serrana de Pelos.
Caminhava impregnado do cheiro a cabra, um odor a suor de cavalo na roupa,
com as unhas sujas de imundície de galinhas e penas emaranhadas na sua juba de
cabelo e barba. Ao respirar exalava um halo a vinho. Tratava dos animais, na
taverna da vila. Era um trabalho de pedinte ou de crianças, que podia fazer, de
quando em vez, para sorver alguns tragos de vinho de um alforge, um clarete que
o deixava toldado e o ajudava a passar os dias. Pouco havia na sua aparência que
traísse o homem que um dia fora. Já nem sequer se apresentava pelo próprio
nome; por vezes, a determinada altura do dia, pronunciava-o alto. Precisava de o
ouvir pairar no ar, numa espécie de débil ato de desafio, mas só o fazia quando
mais ninguém estava por perto.
Pela noitinha, parou num afloramento rochoso junto ao trilho por onde
seguia. À frente, o terreno montanhoso espraiava-se em fragas e ravinas,
iluminado pela lua que surgia. Aqui e além, grandes flocos de neblina
deslizavam, lentos, pelos vales, como lesmas fantasmagóricas através da floresta
húmida. Ao longe, um ponto amarelo de luz movia-se pela encosta de um monte.
Era talvez um mercador com o lampião aceso como proteção contra os espíritos.
Aquela gente da montanha era supersticiosa, temia a noite e as criaturas que a
patrulhavam. O homem não tinha tais medos. Parte dele desejava a morte às
garras de um belram ou ser levado como escravo por algum demónio da floresta.
Tanto uma como outra coisa eram um destino, pensava, mais interessante do que
a sua existência diária. Já não vivia para as suas horas conscientes. Se algum
gluturso sentisse o seu cheiro e lhe arrancasse a cabeça, nada lamentaria a não
ser a perda da sua existência nos sonhos.
Estava prestes a virar e voltar ao caminho rumo ao seu abrigo, empurrado
pela fome latente que ultimamente o atacava. Mas antes de se mexer, sussurrou:
— Leeka Alain. Chamo-me Leeka Alain. Não morri. Não fui morto.
Leeka Alain, outrora general na província mais indómita de Acácia. Não
tinha objetivo algum na vida, havia anos. Todos os trabalhos que tivera no norte
gelado, a sua sobrevivência solitária à primeira emboscada dos numrek, o
sofrimento com a febre e o caminho a sós que empreendera atrás da hoste
inimiga: tudo isto ficara para trás. Havia resultado em nada. A ideia de que teria
inimiga: tudo isto ficara para trás. Havia resultado em nada. A ideia de que teria
uma tarefa crucial a cumprir fora errada. Acabara por vir dar à Cordilheira de
Methalia, nove anos antes, montado naquela criatura peluda e de grandes chifres,
acreditando ser o portador de notícias apocalípticas.
Encontrara uma terra já em guerra, a sofrer sucessivos ataques: o seu rei
morto, Aushenia esmagada pelos numrek, os povos de Candovia a revoltarem-se
incitados por Maeander, e a força militar de Acácia destruída por uma doença
que a tornava alvo fácil de chacinas. Hanish garantira a sua vitória nos campos
de Alecia de vários modos diferentes. Leeka não estivera lá, nesse dia, mas
chegara pouco depois, para se deparar com um campo imenso repleto de
cadáveres apodrecidos, rodeados de moscas e abutres e de toda a sorte de
animais necrófagos.
As semanas que decorreram depois do que acontecera nos campos foram
um cenário de uma carnificina galopante que, saindo do campo de batalha, se
abateu sobre todas as estradas e pátios, templos, monumentos e lares. Parecia
que a fúria maligna do Mein não se deteria até à queda do último acaciano sob as
suas espadas. As outras nações, temendo tal destino, foram formando alianças
cada vez mais fortes com o Mein: os clãs de Candovia nunca tinham estado tão
unidos; Senival esboçou uma resistência galante e fugaz antes de arrumar os seus
machados de guerra; e o Arquipélago Vumu pediu paz, antes mesmo de sofrer
qualquer ataque. Em Aushenia pouco restou da resistência inicial. Que um
império havia tanto tempo unido se desmoronasse tão rapidamente foi algo que
deixou Leeka perplexo. Parecia que todos aqueles anos de obediência para nada
haviam servido. Todos os louvores e tributos prestados a Acácia desapareceram
num instante, substituídos pelo fogo de um ódio havia muito contido.
Apenas Talay, com os seus vastos recursos, permanecia em revolta contra o
Mein, mesmo após o Continente e Acácia terem sido derrubados. Se o faziam
pela causa acaciana ou por desejarem forjar a sua própria independência, não era
claro. Talvez tivessem desistido de Acácia — como a maior parte do mundo
fizera — enquanto preferiam lutar por si próprios. Leeka não fizera perguntas
nem se importara. Continuavam a combater Hanish Mein e a horda numrek. Era
o que importava. Apressara-se a juntar-se-lhes. Em particular, ansiava pela
oportunidade de combater os numrek.
Muitos tinham suposto que os numrek não conseguiriam combater fora das
regiões do norte. Pareciam mal preparados até para o calor ameno de Aushenia.
Porém, ao chegarem ao sol intenso de Talay, haviam despido peles e capas e
mostraram os seus corpos grotescamente brancos. Eram mais aterrorizadores
devido aos membros compridos, aos músculos que sobressaíam da pele e à
largura dos pés e das mãos nus. Desde o primeiro dia em que se expuseram ao
largura dos pés e das mãos nus. Desde o primeiro dia em que se expuseram ao
sol intenso, a pele começara a lascar e a cair como acontece com a carne assada
sobre o carvão. Nas primeiras batalhas, parecia que haviam andado sobre
chamas. Caíam-lhes pedaços enormes de pele. O cabelo caía-lhes às madeixas
do crânio.
De certeza, pensara Leeka, que não poderiam andar por aí tão vermelhos e a
desfazerem-se e continuarem vivos. Porém, continuaram. Combatiam como
loucos. Passavam pela mortandade com pior aspeto que os cadáveres que
deixavam à sua volta, mas nunca tombavam, a não ser quando feridos
gravemente. Depois de algumas semanas começaram a recuperar, a pele cresceu
novamente, mas mais escura, agarrada aos músculos. Voltaram a pelar — não
tão selvaticamente como antes — mas, ao curarem-se de novo, tornaram-se
ainda mais rijos. Pouco tempo depois já caminhavam orgulhosamente quase nus,
fora um saiote que era usado tanto pelos homens como pelas mulheres. Para
desânimo dos talayanos em retirada, os numrek nunca tinham parecido tão
saudáveis e fortes como naquela nudez. No solstício de verão, dançaram em
homenagem ao dia mais longo e à força do sol. Começava a espalhar-se uma
nova conjetura. Os numrek não seriam, afinal, criaturas do norte, como toda a
gente pensava. Deveriam ter sido antes uma raça tropical. Talvez tivessem sido
obrigados ao exílio no norte e regressado agora ao seu clima preferido. Perante
as suas investidas devastadoras, Talay rendera-se, tribo a tribo.
As pessoas diziam que Hanish Mein desejava a destruição de tudo o que
fosse acaciano. Diziam que o ódio dos Tunishnevre era tal que Hanish destruiria
todos os sinais da raça que conquistara. Porém, uma vez estabelecida a paz,
Hanish tratou de garantir o seu domínio do império de formas que
surpreenderam pela sua razoabilidade. Não destruiu a arquitetura acaciana.
Deixou Alecia, Manil e Aos revestidas de todo o seu esplendor. Não tocou nem
numa pedra ou estátua da própria Acácia, exceto a estátua de Tinhadin, que
deitou abaixo e despedaçou em cacos. Retirou a pedra negra de Scatevich da
muralha exterior de Alecia, mandando-a transportar para o palácio de Acácia e
colocando como monumento, no local onde antes se homenageava Edifus e
Tinhadin. Fora isso, limitara-se a preencher os lugares de Acácia com o seu
próprio povo, acrescentando as suas relíquias às que já lá estavam. Colocava
tudo o que era do Mein por cima do que era acaciano e parecia não se importar
em manter algumas coisas do império derrotado. Em vez de desmantelar o
sistema acaciano de governo e de comércio, pegou neles e adaptou-os aos seus
propósitos.
Nada disto amansava o ódio de Leeka, mas este acabou por não poder lutar
mais. Todos os seus aliados haviam morrido, baixado as armas ou procurado
mais. Todos os seus aliados haviam morrido, baixado as armas ou procurado
refúgio algures. O inimigo virou-se das conquistas para as tarefas de
reconstrução, consolidação do império e gestão das novas riquezas conquistadas.
Se Leeka tivesse sabido, com alguma certeza, num dia qualquer, no que se
tornaria a sua vida, ter-se-ia matado com a própria espada. Mas não sabia. Os
dias passavam uns a seguir aos outros, trazendo em si um futuro velado, de
modo que a derrota lhe foi chegando aos poucos, acumulando-se dia após dia.
Vagabundeava pelo império. Perdera ou fora abandonando a pompa do seu
estatuto: trocara a roupa por comida, a adaga por vinho, o elmo perdera-o numa
noite de embriaguez, o alforge fora roubado por um jovem mais rápido do que
ele. Não passou muito tempo até ter o aspeto de qualquer veterano de guerra
exausto. Estava mal arranjado, perdido, talvez com o espírito algo confuso, e era
obviamente inofensivo para os militares do Mein que agora policiavam a maior
parte do mundo conhecido. Gostara sempre de beber. Depois da guerra, deixara
de apreciar a bebida — já não sentia a euforia no inebriamento que antes o
invadia — mas bebia álcool como se fosse água. Talvez morresse como um
beberrão, num sítio qualquer, e ficaria contente assim. Foi salvo, ironicamente,
pela introdução de um novo vício.
A bruma abundava agora ainda mais em todo o império dos Mein do que
aquando do reinado dos Akaran. Estava por todo o lado, constante como o pão e
a água, mais barata do que o vinho de Candovia. Inalara um cachimbo, numa
noite em que nada mais tinha à mão. Que revelação! Sob o efeito da droga,
compreendeu que andara enganado. Não era um fracassado. A guerra não estava
acabada. Não, na verdade ele era um apóstolo solitário de sangrenta vingança.
Matara numreks antes e fá-lo-ia novamente. Estendido, viu a imagem perante si,
na tela que era o céu noturno. Encaminhava-se para Aushenia com uma espada
em cada mão. Havia muito que os olhos do mundo não viam nada assim. A
determinada altura a visão deixou de ser apenas imaginação. Era nela que vivia.
Sentia o chão sob os seus pés e combatia até ter o rosto coberto de sangue
numrek, agarrando com tal força as espadas que o aço se tornava parte do seu
ser. Tanto estrago que fez! Quanta sagrada carnificina causara como vingança...
Na primeira manhã acordara angustiado desses sonhos ainda no seu corpo
enfraquecido; não era, afinal, nenhum herói. Poderia ter repelido a droga e
amaldiçoando-a, caso não sentisse o pulsar desta na ressaca, com uma possível
promessa de que havia verdade na sua visão. Os sonhos que provocava eram tão
reais. Tinham pormenores tão íntimos, vívidos como a vida. Não, eram ainda
mais tangíveis e reais do que a vida que levava agora.
Era proibido usar a droga durante o dia, nas horas de trabalho. Ser
encontrado sob o seu efeito por um soldado do Mein dava direito a prisão e
encontrado sob o seu efeito por um soldado do Mein dava direito a prisão e
privação da droga — que era um castigo que todos os viciados receavam. Há
muito que Leeka tratara de arranjar as coisas a seu modo — trabalharia durante o
dia, bêbado, entre os animais, para ganhar algumas moedas necessárias para os
sonhos da bruma, à noite. Ao fazê-lo, tornou-se mais um dos milhões do Mundo
Conhecido que o faziam. Nem sequer reparou que aquilo lhe estava a acontecer,
nunca se interrogou sobre aquele modo de viver. Nem poderia dizer com certeza
em que momento se entregara completamente. A bruma exige total dedicação;
Leeka, não acreditando já em mais nenhum deus, aprendera a adorar num novo
altar.
Era nisto que pensava enquanto se aproximava do abrigo escuro em que
passava as noites. Algum tempo antes, retirara o pacote com droga do bolso ao
peito e prosseguira, acariciando as fibras da bruma com os dedos. Lá dentro,
bastar-lhe-iam alguns minutos de preparação e, depois, inalaria, inalaria,
inalaria...
De súbito, Leeka estacou e ficou imóvel. Pressentira qualquer coisa, a
respiração de um outro ser, próximo, mas escondido. Pensou nos predadores da
noite da montanha e sabia que, se fosse um deles, era provável que não
escapasse à morte.
— Perdoe-me — disse uma voz. — Não o quis assustar. — Das sombras
saiu uma figura encapuçada ao lado do casebre e deu um passo em frente,
ficando iluminada pelo luar, de braços levantados em sinal de inocência. — De
facto, surpreendeu-me ao aproximar-se tão silenciosamente.
O homem tinha um tom de voz gentil, mas Leeka não gostava
particularmente de falar com gente encapuçada, especialmente quando saíam das
sombras do seu abrigo a uma hora tão tardia da noite e lhe barravam o caminho.
Tentou transmiti-lo, fitando o outro com a intensidade total do seu olhar.
— Sois Leeka Alain? — perguntou o homem de capuz.
A pergunta apanhou Leeka desprevenido. Primeiro pensou que o homem o
deveria ter ouvido falar sozinho junto ao rochedo, mas era pouco provável.
Voltou a enfiar as fibras de bruma no bolso.
— Sois Leeka Alain, aquele que comandava o exército de Leodan, no
Mein? Leeka Alain, a quem alguns chamam o Cavaleiro da Besta?
O homem falava um acaciano fluente, como um natural da própria ilha.
Havia algum tempo que Leeka não escutava a língua tão bem falada. Quem faria
tal pergunta naquela língua? Provavelmente só um homem que queria que ele
confirmasse a sua identidade antes de o matar.
— Sois aquele que diz ter sido o primeiro a matar um numrek?
— Sois aquele que diz ter sido o primeiro a matar um numrek?
— Não — proferiu Leeka, falando no dialeto da montanha daquela zona. —
Não sou esse homem.
A figura encapuçada não se moveu. Era como uma estátua quase fundida
nas sombras da noite. Por instantes, Leeka pensou se não estaria a alucinar.
Talvez aquela estátua ali tivesse estado sempre, mas ele acabara por esquecê-la.
Ou talvez não fosse estátua nenhuma, mas uma partida que o seu espírito ansioso
por bruma lhe pregava com o luar.
O estranho voltou a falar, ainda em acaciano.
— Essa notícia desgosta-me. Precisava dos serviços de Leeka Alain. É
verdade que vós não vos pareceis muito com ele. Talvez me tenha enganado.
Desculpai-me ter-vos perturbado. Deixai que vos ofereça uma coisa pelo meu
erro. Eis...
A figura ergueu a mão e dela surgiu o tremeluzir de uma moeda atirada na
sua direção, que brilhava sempre que uma das suas faces refletia o luar. Os olhos
de Leeka não conseguiram evitar segui-la. Um truque de ladrão e ele caíra nela.
Por causa dele não poderia mais tarde ter a certeza se vira realmente o homem a
mover-se. Mas sentiu o impacto de qualquer coisa no seu ventre com força
suficiente para o derrubar. Uma alfinetada no pescoço fê-lo sentir uma dor que o
percorreu como fogo em palha seca. Aceso, depois extinto no momento seguinte.
E com este extinguiu-se também a sua consciência.
***
Abriu os olhos, percebendo que o tempo passara e que o seu lugar no
mundo mudara. Lembrou-se da figura nas sombras, da sua voz, da moeda atirada
ao ar, do impacto que o atingira. Deixou-se ficar estendido com tudo isto no
pensamento por alguns momentos, com os olhos focando-se a pouco e pouco,
fitando um teto de troncos toscos. Estavam iluminados pelo brilho vacilante da
lareira. Conhecia bem o teto, cada irregularidade, o nó que desfigurava um dos
troncos, o rendilhado de teias de aranha antigas que pendia de entre as traves.
Encontrava-se no casebre que lhe servia de refúgio, olhando para o teto. Que
estranho...
O vulto de um homem debruçou-se sobre ele.
— Mentiste-me, Leeka Alain. Não posso dizer que isso me tenha
surpreendido. Não são tempos fáceis para se dizer a verdade a estranhos, mas
talvez tenha pensado que pudesses ser mais convincente.
O homem aproximou uma vela do seu rosto. Leeka olhou-o completamente
confuso. Viu um velho, enrugado como uma casca de árvore, de cabelo grisalho
confuso. Viu um velho, enrugado como uma casca de árvore, de cabelo grisalho
e barba — tão rala era — tecida em tranças à moda de Senival. Se o corpo
condissesse com o rosto, seria um homem escanzelado como qualquer pedinte
por que passasse sem ver, numa rua qualquer. Como pudera aquela carcaça velha
sequer tê-lo tocado? Caíra tão baixo em relação ao que fora?
O velho pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Não estou tão decrépito quanto pareço. Nem tu. Numa luta justa não
teria sorte nenhuma contigo. O que ali aconteceu... que não te magoe a tua
vaidade de soldado. — Interrompeu-se por instantes. — Olha para o meu rosto,
Leeka. Diz que me reconheces. Talvez te lembres de mim, pois encontrámo-nos
uma vez, num tempo e lugar diferentes, no que agora parece ter sido um outro
mundo.
Leeka compreendeu que o reconhecia quando acabou de proferir estas
palavras.
— Sois o chanceler... Thaddeus Clegg!
O homem mais velho sorriu.
— Bom — disse —, ainda existe esperança para ti.
Capítulo 29

Sim, admitiu por fim Corinn a si própria, numa tarde em que andava a
cavalo pelo trilho que serpenteava a montanha rumo ao Rochedo da Enseada, as
mulheres do Mein tinham de facto o potencial para serem belas. Era só
necessário habituar-se às suas feições angulosas e retas. Tinham uma estrutura
óssea e temperamento semelhante aos homens da sua raça, mas o que eram
traços cinzelados austeros e belos nos homens, conferiam alguma estranheza às
feições das mulheres. Pelo menos fora assim que Corinn pensara durante a maior
parte dos anos que passara na sua companhia. Só ultimamente percebera que
muitas vezes se comparava com elas. Quando começara esta alteração dos seus
sentimentos, não sabia dizer, mas as cavalgadas que fazia, ultimamente, com
uma comitiva de raparigas do Mein haviam influenciado a mudança dos seus
sentimentos.
Tudo começara com uma ordem. Hanish Mein, dissera-lhe um mensageiro,
solicitava que a princesa Corinn passasse as tardes de sol com a sua prima,
Rhrenna, e o seu séquito de jovens nobres, amigas e aias. O mensageiro usara a
palavra solicitava, embora ambos soubessem que ordenava se adaptaria com
mais precisão à realidade. E chamara-lhe princesa. Toda a gente lhe chamava
princesa, embora, na verdade, fosse uma prisioneira na ilha que antes pertencera
ao pai. Era mantida num purgatório prolongado pelo homem que havia
orquestrado o assassinato de seu pai e a ruína do império acaciano e da família
Akaran. Caminhava pelos mesmos corredores que percorrera toda a sua vida.
Contemplava as mesmas vistas, do alto do palácio para a cidade baixa e o mar.
Jantava muitas vezes à grande mesa do salão principal. Mas já não pertencia à
família dos anfitriões. Um outro homem se sentava agora no lugar que
pertencera ao pai. A oração do jantar era feita numa outra língua, e apelava à
bênção de uma força coletiva ameaçadora, que Corinn ainda não compreendera
bem o que seria. O seu dia-a-dia passava-se num equilíbrio entre o que fora e o
que era agora, e as fronteiras entre ambas eram diluídas pela realidade presente e
deformadas pela memória. Eram estas as circunstâncias específicas e
desconfortáveis em que vivia, únicas no mundo.
Nessa tarde, Rhrenna cavalgava uma montada de pelagem castanha, que
devia ter escolhido para condizer com o seu traje: uma túnica azul pastel de pele
curtida, com uma saia com racha que, quando em pé, parecia um vestido mas
que se abria ao montar. Era uma rapariga pálida e magra, com feições
que se abria ao montar. Era uma rapariga pálida e magra, com feições
imperfeitas que, felizmente para ela, se combinavam num efeito agradável.
Usava o cabelo comprido, numa trança que Corinn levara algum tempo a
perceber que era diferente da que os homens usavam.
Durante os primeiros anos da ocupação, poucas mulheres do Mein se
tinham aventurado fora de Tahalian. Os homens do Mein, dizia-se, não gostavam
de misturar o seu sangue com outras raças e achavam um grande pecado que as
suas mulheres dessem à luz uma criança mestiça. E não era melhor que as
mulheres do recém-conquistado império tivessem começado a ter filhos mais
pálidos do que elas, de olhos cinzentos e traços rudes. Embora vista com maus
olhos, esta miscigenação era impossível de evitar. Por maiores elogios que
constantemente prestassem às mulheres da sua raça, os homens do Mein
continuavam a misturar-se com as estrangeiras. Pareciam gostar do sabor e
forma da pele e dos traços pelos quais afirmavam indiferença. Até de Maeander,
o irmão de Hanish, se dizia ter gerado uma pequena tribo. A pouco e pouco, cada
vez mais mulheres do Mein vinham desempenhar os papéis de esposas e
concubinas, acrescentando uma maior normalidade doméstica tanto ao palácio,
como aos soldados, a maior parte dos quais vivia agora uma vida de luxo.
Rhrenna estava em Acácia apenas há alguns meses, mas parecia ter-se
adaptado ao lugar. Um dos seus encantos era a voz que tinha, clara e gentil, e
que se adaptava melhor à língua acaciana do que a da maior parte do seu povo.
— Hanish acha que sois bela — disse ela. Usava um chapéu de aba larga
que a protegia do sol. Olhou através das rendas que o cobriam com malícia. —
Mas já deveis saber disso. Entendeis os homens melhor do que eu, não
entendeis?
— Entendi-os muito pouco ao longo da minha vida até agora — respondeu
Corinn. Pouco se interessava em discutir romances ou intrigas de corte. Em
primeiro lugar, não era a sua corte. Mas também, o que lhe era mais doloroso
ainda, estas ideias faziam-lhe recordar aquilo que perdera. Apesar disso, ouviu-
se perguntar:
— Porque dizeis que Hanish me acha bonita?
— É óbvio, princesa — disse a rapariga. — Quando estais numa sala, ele
não consegue tirar os olhos de vós. No baile de Verão haveis sido praticamente o
único par a quem ele deu atenção.
Uma outra jovem, amiga de Rhrenna desde a infância, concordou. Virou-se
na sela para as quatro mulheres atrás delas e incentivou-as a concordar também.
Corinn mal conseguia acreditar naquilo.
Corinn mal conseguia acreditar naquilo.
— Como se eu tivesse impressionado alguém nessa noite! Aos tropeções
como andei... Ele tinha de prestar atenção ou então eu ter-lhe-ia pisado os pés.
As vossas danças não fazem sentido para mim.
Rhrenna pensou sobre aquilo um momento, balançando na sela com o
movimento do cavalo, e depois disse:
— Andais aos tropeções de modo mais gracioso do que a maior parte das
pessoas.
Corinn tentou várias vezes negar os elogios de Rhrenna, mas a jovem
encontrava sempre maneira de lhe contestar os protestos com frases elogiosas.
Corinn acabou por se calar, derrotada na tentativa de se desvalorizar. E que lhe
importaria aquela adoração por ela? Fora admirada durante os anos antes da
guerra por mulheres e homens mais requintados do que qualquer uma destas
raparigas. Compreendia a sua situação melhor do que elas e nunca tinha a
certeza se elas estariam conscientes da falsidade que manchava tudo aquilo que
se passava entre elas. Ela sabia ser um troféu novo do Mein e para edificação dos
súbditos do rei. Eis, dizia a sua presença, a prova incontornável de que o império
anterior ao do Mein fora derrotado. Vejam como esta Akaran se senta à nossa
mesa. Vejam os seus modos, a sua beleza, o seu requinte. Olhem para ela e
lembrem-se quão poderosos eram os Akaran e a forma como foram
completamente derrotados, domados, e domesticados. Era isto que a presença de
Corinn reforçava diariamente. Que infelicidade! A vida que levava tinha poucas
dificuldades materiais, pois vivia no luxo e tinha grande parte dos privilégios
que sempre conhecera. Contudo, sentia-se constantemente posta à parte,
possuída, propriedade de outros — mesmo por aquelas jovens mulheres que
tanto afirmavam adorá-la.
Estavam a aproximar-se do Rochedo da Enseada, pois a brisa que soprava
do mar trazia-lhes o cheiro a dejetos das aves. Uma das donzelas fez um
comentário a propósito, levando a mão ao nariz e perguntando se teriam
realmente de se aproximar mais. Corinn continuou a cavalgar, cerrando os
lábios, consciente de que se ofendia com a mais ligeira alusão à ilha do seu pai,
mesmo que dirigida aos hábitos das aves marinhas. Ela não precisava de fingir
adorar a paisagem que os rodeava. A ilha estava no auge das suas cores de verão.
As colinas, cobertas de erva, tinham agora um tom amarelo metálico e brilhante.
As únicas coisas que faltavam eram as copas verdes das acácias. Tinham sido
todas mandadas cortar, durante o primeiro ano que se seguira à vitória de
Hanish: um ato de desprezo simbólico e algo também que Corinn nunca lhe
poderia perdoar.
Em breve os fogos da estação seca acender-se-iam, enviando nuvens de
Em breve os fogos da estação seca acender-se-iam, enviando nuvens de
fumo negro e atraindo as aves necrófagas a debicar as faixas queimadas rasgadas
ao longo das encostas como feridas. Corinn falou disso ao grupo, dizendo que
em breve teriam de escolher os dias de saída com cuidado. Já tinha havido
pessoas apanhadas pelo rápido movimento das chamas e queimadas no local
onde se encontravam. As raparigas ouviram isto em silêncio, assustadas com o
pensamento de um fogo por combustão espontânea. Aquilo devia ser um
pensamento infernal para um povo habituado a invernos de nove meses e verões
— como Igguldan dissera — nunca isentos da possibilidade de uma súbita
tempestade de neve. Agradava a Corinn que elas receassem aspetos da ilha que
ela conhecera toda a vida, embora também ela sentisse a dor da lembrança que,
muitas vezes, lhe vinha com aqueles pensamentos. Igguldan. Não aguentava
pensar nele, que tortura ter estado tão perto de um grande amor, apenas para este
lhe ser arrancado pelos atos malignos de loucos.
O vento levantou-se ao aproximarem-se das falésias do Rochedo da
Enseada. Quando chegaram lá perto, Rhrenna e as compatriotas agarraram nas
copas dos chapéus para que o vento não os levasse. Corinn, não precisando de
proteção, visto a sua pele ficar bronzeada pelo sol, em vez de ficar queimada e
vermelha, permaneceu sem chapéu e com toda a compostura, como sempre.
Contudo, o seu divertimento durou pouco.
Uma das donzelas disse:
— Olhai, Larken está de volta de Talay. Vede o seu barco, além.
Bastou a Corinn um momento para descortinar o navio. Navegava com uma
vela carmesim ornada com um pequeno machado. Era o símbolo de Larken, que
lhe fora atribuído por Hanish pelos serviços prestados durante a guerra. A visão
daquela mancha vermelha vindo, apressada, rumo a elas, através do mar de um
tom de lilás luminoso, encheu-a imediatamente de rancor.
Larken. Pensar nele lembrava-a sempre dos tempos antes do seu cativeiro.
Fora ele quem batera à porta do seu quarto em Kidnaban, nove anos antes.
Apresentara-se à sua frente, alto e de uma beleza selvagem, nas suas vestes
Marah. Falara com tanta frontalidade, com tanta calma, com uma força como ela
já não tinha há algum tempo. Vinha em nome de Thaddeus Clegg, dissera, tinha
a missão de a levar para um lugar seguro, só ela. Os outros guardas tratariam dos
irmãos, pois iriam para destinos diferentes. Não era sensato que viajassem juntos
para o mesmo lugar. Thaddeus e o pai dela haviam tratado destes preparativos
para eles. Apresentou documentos que assim o diziam, com todos os selos e
assinaturas em ordem, certificados com a marca que ela sabia pertencer ao anel
de Thaddeus.
de Thaddeus.
— Vinde — dissera Larken. — Podeis acreditar em mim. Vivo apenas para
vos proteger.
Ela devia ter desejado acreditar nele com todo o seu ser. Como,
interrogava-se agora, poderia ter consentido em ir com ele, sem primeiro falar
com os irmãos? Tentara fazê-lo, mas ele fora tão convincente e sincero. Os
agentes de Hanish Mein estavam muito próximos, explicara ele. Os traidores
abundavam agora por todo o império. Até no seu anfitrião das minas, Crenshal,
já não se podia confiar, e era por isso que tinham de se apressar. A rapidez era
tudo. Os irmãos e irmã já tinham iniciado as suas viagens. Se ela viesse agora
com ele, poderia ter a certeza de que os veria novamente. Era a única maneira.
Larken fora muito cortês e respeitoso, e também eficiente, imperioso e
decidido, tudo ao mesmo tempo. Sabia tudo o que era necessário fazer e fazia-o
tranquilamente. Ela tinha simplesmente de seguir as suas instruções. E assim viu
o mundo passar em redor deles. Saíram do complexo e desceram até à vila dos
trabalhadores, Crall, percorrendo ruas e becos até às docas, onde embarcaram
numa corveta que Larken lançou ao vento sozinho, com o talento de um
marinheiro de longa data. Quando o sol se ergueu completamente no horizonte,
contornaram o cabo e deixaram de avistar Crall. Ele indicava cada ponto de
referência em Kidnaban e explicava-lhe o que pretendia enquanto se afastavam
da ilha e rumavam ao cabo Fallon. Ao chegarem à tranquila e adormecida cidade
de Danos, nessa noite, já tarde, ela abandonava a sua fatigada pessoa às suas
mãos.
Larken explicara-lhe que iriam encontrar-se com um magistrado a
determinada hora e em certo lugar. Este era o único a saber como continuariam a
partir dali, e podiam confiar nele inteiramente. O homem encontrava-se
exatamente onde Larken dissera que estaria. Cumprimentou Corinn tão
efusivamente que a deixou embaraçada, algo que nunca antes lhe acontecera.
— Aqui estais a salvo — explicou o magistrado enquanto caminhavam. —
Este encontro é completamente secreto. Mais ninguém, a não ser eu, leu as
ordens do chanceler. Os preparativos para cada etapa da vossa segurança foram
feitos separadamente, de modo a que só eu conheço completamente a situação.
Foi assim que Thaddeus ordenou, e segui as suas instruções à letra. Confiai em
mim, princesa Corinn, o pior já passou.
— Ninguém sabe da nossa chegada? — perguntara Larken. — Tem a
certeza?
O homem respondeu que tinha a certeza. Jurava pela sua vida e dos seus
filhos. Tinha em sua posse todos os documentos de que precisariam para
continuar, com instruções escritas sobre quem contactar e as senhas secretas para
continuar, com instruções escritas sobre quem contactar e as senhas secretas para
que confiassem neles. Iriam, acreditasse ou não, para Candovia. Havia lá
súbditos leais aos Akaran que acolheriam Corinn e a manteriam tão bem
escondida que Hanish Mein nunca a encontraria, mesmo se a procurasse durante
cem anos.
Tudo isto pareceu deixar Larken satisfeito. Nada mais disse, e, durante
algum tempo, prosseguiram o seu caminho. O magistrado tagarelava sem parar,
lamentando a situação no império, expressando o seu pesar pela morte de
Leodan, e dando-lhe pormenores fragmentados do que ela poderia esperar, nos
dias que se seguiriam, prometendo que em breve tudo estaria bem. Corinn, em
parte, desejava que ele se calasse e, por outro lado, estava-lhe grata pela sua
tagarelice, querendo agarrar-se ao que lhe dizia e não o largar até a ordem do
mundo estabilizar novamente. Nunca sentira tanta necessidade de se agarrar a
alguém. Sentia-se já a deixar os cuidados de Larken para se entregar aos do
magistrado.
Foi por esta razão, em parte, que o que aconteceu a seguir deixou Corinn
completamente atónita. Por algum tempo, o que viu não foi registado de forma
compreensível pela sua consciência. Ao virarem uma esquina, e entrando numa
área não iluminada pelo luar, Larken murmurara qualquer coisa. O magistrado
virou-se para ele, como se reagindo a um aviso. Assim, ele ali estava de olhos
bem abertos, fitando Larken, quando este se aproximou dele. Larken ergueu
qualquer coisa acima da cabeça e bateu com ela na fronte do magistrado. O
homem ficou preso ao chão, com o corpo parecendo pender do punho de Larken.
Este recuou o braço e o homem caiu. A sua silhueta, traída pelo luar que entrava
no pátio, mostrou a arma, um pequeno machado que Larken usava à cintura.
Corinn reparara nisso antes, sem ter pensado muito no assunto.
Larken agarrou-a pelo cotovelo.
— Não façais barulho. Não vos matarei, a não ser que griteis por socorro.
Nesse caso calar-vos-ei de um modo muito desagradável. — Empurrou-a alguns
passos para a frente, para o limite da sombra. Tinha o rosto junto do dela, a sua
respiração tocava-lhe a pele. — Isto tinha de ser feito, princesa. Não o culpeis a
ele nem a mim. Somos todos atores num drama maior do que nós. Vinde, a nossa
viagem ainda não terminou.
— O que... o que estais a fazer? — Corinn soltou uma exclamação com a
força com que ele agarrava o seu pulso. — Aonde me levais?
Pela primeira vez, Larken ignorou as suas perguntas. Não houve nenhuma
resposta educada. Nenhuma explicação eficiente. Limitou-se a arrastá-la. Para
um esconderijo, sim, mas não para o abrigo que o pai planeara para ela. Larken,
um esconderijo, sim, mas não para o abrigo que o pai planeara para ela. Larken,
percebeu depois, não era nem um Marah fiel nem um traidor assumido. Limitou-
se a manter Corinn prisioneira na cela de um velho monge, esperando vendê-la
ao poder que saísse vitorioso da guerra. O lugar ficava situado no interior de
Danos, por entre as colinas escarpadas, num ponto da margem do rio tão
íngreme e rodeado de pedregulhos que poucos seres humanos se arriscariam a lá
ir. Passavam os dias em longos silêncios, quebrados ocasionalmente por
conversas que Corinn se odiava por permitir. Ele alimentava-a e cuidava dela.
Deixava-a amarrada, por vezes, nos dias em que ia a Danos para saber notícias.
Assim, Corinn ia sabendo o que se passava na guerra através dos seus relatos.
Além disto, Larken tinha imensas coisas a contar-lhe, coisas inacreditáveis em
que ela não conseguia crer, mas que agora eram difíceis de negar.
Saiu da cabana uma pessoa completamente diferente da que entrara. Havia
perdido toda a inocência, toda a noção de poder alguma vez encontrar consolo
em crenças ingénuas e esperançosas. Nunca mais seria apanhada desprevenida,
jurara a si própria. Nunca mais confiaria em ninguém. Nunca mais haveria de
amar. Nunca mais depositaria fé em ser humano algum. Aprenderia tudo o que
pudesse sobre a forma e substância do mundo e encontraria um modo de
sobreviver.
Seis semanas depois de a ter raptado, Larken ofereceu Corinn a Hanish
Mein. Ao fazê-lo, adquiriu um lugar privilegiado no séquito do novo líder.
Corinn viu-se assim entregue ao estranho purgatório no qual ainda vivia, nove
anos depois.
Nada disse enquanto o alegre grupo de mulheres regressava ao palácio.
Chegaram a uma das grandes portas negras. Os guardas, de cabelos louros,
chamaram-nas, na brincadeira, fingindo que precisavam de uma palavra-passe
para as deixar entrar. Corinn não tinha paciência para o jogo. Nem se alegrou ao
ver que a aguardava um mensageiro assim que a porta se abriu. Hanish Mein
desejava vê-la, nessa tarde, a determinada hora. Resmungou baixinho e quase
respondeu que se sentia doente e não o poderia ver. Mas sentiu os olhos das
outras mulheres postos em si, ao mesmo tempo admirados, invejosos e curiosos.
Incerta sobre como reagir, aceitou a mensagem sem comentários, não
demonstrando embaraço por esta.
Quando se encontrou no corredor junto aos aposentos dele — os mesmos
que haviam sido do seu pai —, notou que lhe causava esforço reprimir o rubor
das faces, aquietar o palpitar do coração e manter o rosto inflexível. Lembrou-se,
como sempre fazia ao encontrar-se com ele, do modo como se rira dela no
primeiro encontro. Ela invocara o nome de Igguldan, jurando que este não
suportaria vê-la prisioneira. Hanish rira-se e dissera:
suportaria vê-la prisioneira. Hanish rira-se e dissera:
— Igguldan? O bebé ausheniano? É nele que pensais agora? Muito bem,
entendo que era um rapaz bonito, um poeta, disseram-me. Talvez o vejais de
modo diferente se souberdes que ele liderou o seu exército para a maior derrota
da sua nação. É verdade. Morreram todos... de modo horrível, na verdade. O
nome dele, querida princesa, será lembrado apenas por ignomínia. Mas, se vos
anima, podeis lembrá-lo como quiserdes. Vós, acacianos, sois bons nisso.
Corinn nunca odiara tanto alguém como o odiou naquele momento.
Parecera-lhe o maior dos arrogantes, insensível, repulsivo e irremediavelmente
cruel. Sentia-se terrivelmente frustrada por lhe ser tão difícil tentar lembrar-se
disso em relação a ele. Sabia que demasiadas vezes o olhava com uma emoção
muito diferente da que desejava,
— Corinn? — ouviu-o chamá-la. — Princesa, ouço-vos respirar aí fora.
Entrai e conversemos um momento. Soube de uma coisa que vos poderá
interessar.
Aquilo era outra contrariedade! Hanish parecia ter sentidos realmente
sobrenaturais. Entrou no aposento e encontrou Hanish inclinado sobre a
secretária de seu pai, com um maço de papéis na mão. Acariciava uma das suas
longas tranças, aquela, sabia, que indicava o número de homens que matara na
dança Maseret que os do Mein tanto apreciavam. Ele olhou-a e sorriu-lhe e ela
odiou o modo como o gesto lhe realçava o brilho dos belos olhos cinzentos. Que
olhos tinha ele! Atraíam irresistivelmente o seu olhar. Ele parecia iluminado por
dentro, com o rosto a ser como uma lanterna em forma humana e os olhos a
saída da luz cinzenta que existia dentro dele. Havia paz neles. Afetavam-na tanto
como quando olhava para as águas azul-turquesa de uma das praias de areia
branca, perto de Aos. Algumas coisas foram criadas para serem contempladas.
Os olhos de Hanish Mein — aliás, no fundo, todo o seu rosto — eram uma
dessas coisas. Foi preciso muito esforço a Corinn para compor o rosto na
máscara de fria indiferença que sempre usava perante ele.
— O sol faz-vos muito bem, Corinn — disse Hanish. Falava em acaciano,
como quase sempre fazia com ela. — Uma compleição tão perfeita, tão
adequada aos dias brilhantes de Verão de cá. A propósito, estou contente por
terdes ido montar com a minha prima e o seu séquito.
— Não é um serviço que faça de bom grado — retorquiu Corinn. — Foi,
lembrais-vos, uma ordem que me destes para cumprir.
Hanish sorriu, como se ela tivesse dito algo de bastante agradável.
— Não é fácil ensinar as mulheres do Mein a comportarem-se de acordo
com o padrão de uma corte imperial. Estão tão mal preparadas para isso como
com o padrão de uma corte imperial. Estão tão mal preparadas para isso como
estavam os nossos homens. Contudo, sei que dão valor ao vosso exemplo para
aprenderem.
Corinn nada tinha a dizer a isto. Hanish colocou os papéis sobre a
secretária, virou-se mais para ela e disse:
— Tenho notícias que vos poderão interessar. Larken acabou de regressar
de Talay. Trouxe informações sobre o vosso irmão. — Aguardou um momento,
observando a reação de Corinn. — Não o encontrámos, pelo menos até agora.
Mas não duvido de que o encontraremos. Está algures em Talay, no interior.
Larken acredita que esteve muito perto dele. Passou a pente fino uma aldeia, por
indicação de um dos naturais da terra, mas o acaciano que lá estivera escondido
desapareceu como que por encanto. O vosso irmão Aliver tem-se mostrado
bastante fugidio.
— Como sabeis que era Aliver e não Dariel?
Hanish encolheu os ombros.
— Pensei que me pudésseis elucidar. Será Aliver? Foi para Talay que ele
foi enviado?
— Ajudar-vos-ia saber isso?
— Sim, admito que sim.
Corinn olhou-o diretamente nos olhos e respondeu com honestidade.
— Não faço a mínima ideia.
Hanish já não parecia tão agradado com ela. Pareceu que estava prestes a
empurrar a secretária e avançar para ela, mas acabou por cruzar os braços e falar
na língua do Mein.
— Mudasteis muito, não foi, em relação à rapariguinha que vi há nove
anos. Lembrai-vos de como cuidámos de vós, quando tivesteis as febres? A
praga dos numrek. Acreditai em mim, princesa, sem o nosso conhecimento sobre
a doença, teríeis sofrido muito mais. Talvez os vossos irmãos a tenham contraído
em pleno, sem ninguém que lhes explicasse que acabaria, provavelmente, por
passar. Terão mudado também. Talvez já não os seríeis capaz de reconhecer.
Talvez não vos reconheçam agora. Talvez, Corinn, sejais agora mais uma de nós
do que deles.
Os olhos de Corinn endureceram e esta fitou-o, demonstrando claramente o
seu desdém por aquela sugestão.
— Princesa, onde estão os vossos irmãos? — insistiu Hanish, voltando a
falar em acaciano.
falar em acaciano.
— Já mo haveis perguntado antes.
— E voltarei a perguntar-vos muitas vezes mais. Talvez estejais a dizer a
verdade, mas alegremente vos farei a pergunta cinco vezes por dia, durante os
próximos vinte anos, se isso ajudar.
— Depois disso, parareis?
— Depois disso, perguntar-vos-ei dez vezes por dia, durante os próximos
quarenta anos, se ainda continuar longe dos Tunishnevre por tanto tempo.
Corinn, haveis vivido nove anos na minha casa, como convidada num palácio
que antes foi vosso. Alguma vez vos fiz mal? Arranquei algum cabelo da vossa
cabeça ou forcei-vos a alguma coisa? Então, ajudai-me a encontrar os vossos
irmãos. Como já vos disse antes, quero apenas que regressem ao palácio do
vosso pai e que vivam em paz, como vós tendes vivido. Por que prefereis vós
que vivam no exílio, escondidos nalgum canto das províncias?
— Onde quer que estejam, são livres — retorquiu Corinn. — Não trocaria
nada no mundo por isso. Nem eles.
— Estais tão certa disso, não estais? — Vendo que Corinn não respondia,
Hanish ficou carrancudo. — Muito bem. Não faz mal. Haveremos de os
encontrar. Tenho tempo e poder para tal. Eles poucos amigos e recursos têm.
Quase capturámos um dos vossos irmãos. Tenho a certeza disso. Isto quer dizer
que anda fugido, e que cometerá erros, confiará em alguém que não deve...
Acreditai em mim, Corinn, eles não estão a viver a vida de luxo que aqui tendes.
Tenho pena que tenhamos passado tão pouco tempo juntos. Passaram anos, e
continuais ainda a ser uma desconhecida para mim. Gostaria de mudar isso. Não
viajarei agora tanto como tenho feito. Passaremos mais tempo juntos. Estou
confiante em que, quando me conhecerdes melhor, me apreciareis mais. Talvez
então percebamos aquilo a que estamos destinados. Que vos parece?
— Posso ir-me embora? — inquiriu ela, evitando a questão com ar
desafiador.
— Podeis sempre ir e voltar à vossa vontade, Corinn. Quando percebereis
isso?
Ela voltou costas sem responder. Sabia que o olhar dele a seguiria, fixo na
sua figura. Isto tornava-lhe difícil andar normalmente, mas conseguiu fazê-lo.
Passou pelos aposentos um após outro e depois virou numa esquina do corredor,
deixando Hanish para trás. Acabara de respirar fundo e estava a deixar
descontrair o rosto quando se apercebeu de que ainda não se encontrava liberta
de observação.
Maeander encontrava-se no corredor por onde ela teria de passar. Acabara
de aparecer e dizia qualquer coisa a alguém. Apercebeu-se da presença dela e
estacou. Larken surgiu de trás dele e deu alguns passos para a sala antes de ver a
princesa. Pareceu imediatamente divertido. Embora fosse um acaciano, agora
falava apenas a língua do Mein. Maeander e ele, um ao pé do outro, eram ambos
testamentos altos e esguios da masculinidade das respetivas raças.
Corinn prosseguiu na direção destes. Olhava para lá deles, para o fundo do
corredor, como se o seu olhar estivesse preso a algo lá ao fundo e que a
empurrava para lá. Passou apressadamente por Larken, sem incidentes. Contudo,
ao chegar a Maeander, ele colocou os braços no umbral da porta, barrando-lhe a
passagem. Ela não olhou para o seu rosto, fixando-se no ponto junto ao cotovelo
do seu braço musculado, coberto de longos pelos dourados. Pulsava aí uma
artéria como um verme sob a pele. Sabia que ele tinha os olhos fitos nela,
espreitando sob as sombras das sobrancelhas. O seu toque era familiar. Parecia
que ela o sentia desde sempre, desde a primeira vez que ele pusera os olhos nela,
e que a seguia ao longo dos dias, até nos sonhos. Por vezes, acordava e
perscrutava as sombras no quarto, sentindo que até àquele momento de acordar
não estivera só. Este homem, mais do que qualquer outro, fizera da casa de seu
pai um lugar ameaçador, apesar de nunca ter pronunciado mais do que algumas
palavras para ela.
Como se lhe tivesse pressentido os pensamentos e os tivesse em conta,
Maeander não falou. Inclinou-se para ela e tocou-lhe no queixo com um dedo da
mão livre. Depois de a ter estudado alguns instantes, aproximou o rosto do dela.
Roçou a barba eriçada e áspera pela face da rapariga. Depois pressionou a língua
contra a têmpora de Corinn e lambeu-a com a sua superfície quente.
Corinn afastou rapidamente a cabeça. Deu-lhe uma palmada no braço e
fugiu para o átrio. Ouviu Larken perguntar:
— Sabe bem ou é amarga? Sempre me interroguei sobre isso.
Corinn não ouviu a resposta. Mais tarde, não teve a certeza se tinha mesmo
ouvido o riso de Maeander a segui-la, mas parecia-lhe que sim. Parecia segui-la
por toda a parte. Hanish Mein bem poderia dourar as palavras como quisesse.
Maeander era a verdade por detrás da fachada do Mein. Nunca confiaria neles.
Havia muito que deixara de confiar nos homens. Não seria agora que iria
começar. Não fazia a mínima ideia para onde teriam fugido os irmãos. Tinha,
contudo, a certeza de que se deveriam encontrar numa situação preferível à dela.
Capítulo 30

Obrigue brigue estava prestes a encalhar à velocidade máxima. Ia


desgarrado de encontro ao recife, estando já ali tão perto, que cortava as ondas
em diagonal quando estas se alteavam, oscilando de um lado ao outro como um
monstro inebriado. Spratling conseguia ver tudo perfeitamente da pequena
plataforma que servia de cesto da gávea do Ballan. Estava prestes a ver a presa
que perseguira durante quatro dias a romper o casco e verter o seu conteúdo no
mar. Veria tudo de muito perto e teria de contar tudo a Dovian quando
regressasse de mãos a abanar. Façam qualquer coisa, pensava. Que raios, façam
qualquer coisa, seus idiotas! Não vos persegui até aqui para...
Nineas, o velho piloto, gritou-lhe. O venerável marinheiro tinha maneira de
se fazer ouvir fossem quais fossem as circunstâncias.
— Eles estão a recuar na nossa direção! Queres que continue?
O jovem capitão retorquiu também, aos gritos, que sim, que queria que
continuasse! Claro! A sua presa era um navio da Liga, não um daqueles grandes
navios para navegação em alto mar, mas ainda assim uma pescaria de enorme
valor. Era um dos brigues que usavam para transportar os seus funcionários mais
importantes, da costa até às suas plataformas base, uma cidade flutuante
ancorada no meio do oceano a cerca de cem milhas a noroeste das Ilhas
Distantes. Normalmente, os brigues navegavam escoltados por vários vasos de
guerra, cada um deles manobrado por soldados da força militar privada da Liga,
o Inspetorado Ishtat. Se levasse algum dos seus dirigentes a bordo, teria
carregado riquezas incomensuráveis para um corsário das ilhas, como Spratling.
Porém, teria sido impossível aproximar-se sem uma frota atrás. Nunca ninguém
tentara tal ataque. Este, contudo, navegava praticamente vazio pelos padrões da
Liga, sem nenhum membro sénior a bordo e sem mercadoria suficientemente
valiosa para merecer a proteção do Ishtat.
Spratling sabia isto por um dos espiões de Dovian, a quem chamavam
transformador, um mestre do disfarce, que se havia infiltrado entre os
trabalhadores das docas da base costeira da Liga, e que jurara que aquele barco
seria talvez o único vulnerável que poderiam encontrar o resto do ano. A
mensagem chegara na noite anterior ao barco zarpar, mas Dovian estava
confiante de que o poderiam atacar. Com a sua bênção, Spratling partira na
manhã seguinte. O Ballan era um barco ligeiro e comprido construído para
manhã seguinte. O Ballan era um barco ligeiro e comprido construído para
navegação veloz, com um mastro principal alto e de construção leve. Não era de
modo nenhum um barco de guerra. Devido a isso, a tripulação do brigue não lhes
dera importância no primeiro dia que seguiram na sua esteira. Talvez tenham
notado a estranha geringonça amarrada à proa do barco, uma espécie de
pranchas chapeadas a ferro assentes sobre uma grande dobradiça reforçada. No
topo, projetando-se para a frente, havia uma viga de metal de aspeto traiçoeiro
com mais de dois metros, afiada na ponta, da grossura de um braço em quase
todo o comprimento. Parecia um passadiço que podia ser colocado sobre um
quebra-mar e preso ao lugar, se o barco fosse descarregado pela proa, o que seria
útil nos portos concorridos do Mar Interior. Porém, o propósito da engenhoca
não era assim tão benigno, como Spratling esperava provar. Fora ele que o
concebera, afinal. Era o seu «prego» como gostava de lhe chamar.
Haviam seguido na esteira do brigue atravessando os Baixios e navegando
ao longo da cadeia de ilhas que assinalava a melhor rota através das Ilhas
Distantes. Haviam avistado outros barcos em volta, e Spratling não queria que o
seu ataque fosse visto. Navegava normalmente, parando em vários portos como
se fossem fazer comércio e usando depois a velocidade superior do Ballan para
recuperar o tempo gasto. Era sempre fácil localizarem o brigue, visto ter os lados
pintados de um branco brilhante, luminoso, quase sobrenatural.
Ao terceiro dia, a tripulação do brigue apercebeu-se da perseguição.
Aumentou a velocidade, içando todas as velas, mas foi só na manhã do quarto
dia que o Ballan perseguiu o outro barco até aos bancos de areia de um dos
pequenos atóis a norte das Ilhas Distantes. No horizonte nada se avistava e
Spratling comunicou que estava na altura de o abalroarem. Teriam os tesouros
do brigue nesse dia ou nunca. Perseguiram-no com o vento de popa. Ganhavam
em velocidade, mas não era tarefa fácil manobrar o barco de modo a usar o
prego da proa. Porém, então, o brigue rodopiou, mudando de rumo em torno do
recife, diretamente no sentido do seu ângulo de navegação. O capitão deveria
conhecer o recife melhor do que Spratling imaginara, mas não importava. O
ângulo de ataque estava por fim à mão.
Apesar de ter berrado a plenos pulmões, não teve a certeza de que o
ouviriam no convés. Com as rajadas de vento e o ruído da espuma que saltava
pela proa, as suas palavras provavelmente perdiam-se nos vapores do mar. Com
receio de que o seu piloto optasse, por timidez, por ajustar o rumo, Spratling
agarrou no cordame esticado que ia desde a parte de baixo do cesto de gávea até
ao convés. Usava as luvas sem dedos, que adaptara a este propósito quando era
ainda um rapaz, durante os primeiros anos no mar. Agarrou-se à corda com as
duas mãos, de dedos entrecruzados, e deixou-se escorregar. Deslizou até ao
duas mãos, de dedos entrecruzados, e deixou-se escorregar. Deslizou até ao
convés à velocidade com que o costumava fazer, e momentos depois estava
junto de Nineas.
— Nem sequer penses em mudar de rumo! — gritou aos ouvidos do
homem. — Mantém-te firme rumo a eles. — Ergueu a voz ainda mais alto,
projetando-a através do convés, que estava cheio de homens seus, corsários
fortemente armados de várias raças, cada um com as suas próprias propensões,
as suas próprias armas, os seus agravos e desejos e razões para escolherem a
vida de salteadores. Esguio e de estatura média como era, de rosto bonito e
arrapazado, pouco musculado e ar juvenil, Spratling dificilmente parecia um
homem capaz de dirigir esta companhia. Contudo, não podia estar mais à
vontade no seu papel. Falou com cordialidade irónica:
— Está tudo a correr como combinámos, cavalheiros. Tudo como planeado
e nada antes de eu gritar os sinais.
A proa enorme do brigue fazia com que as linhas velozes do Ballan
parecessem de um brinquedo. Seguia o seu rumo através da água como se
vogasse num mar embriagado. Era tão branco que não parecia ser feito de
madeira, embora tivesse de o ser. Postes presos por arame destacavam-se dos
dois lados da amurada do brigue, em duas filas, uma no convés superior e outra
no inferior. Tinham o tamanho e forma certos para albergar a parte superior do
corpo de um homem ao inclinar-se sobre as águas. Os besteiros debruçaram-se
sobre eles e atiraram uma nuvem de flechas. Era uma defesa fraca, considerando
aquilo de que seria capaz um brigue completamente equipado da Liga. Haveria
duas ou três vezes mais besteiros num barco com defesa adequada. Mesmo
assim, as flechas tinham pez inflamável. Algo no mecanismo que as disparava
também as fazia incendiar. As que atingiam os lados ou o convés do Ballan ou
que caiam sobre as velas ardiam rapidamente. O melhor que a tripulação do
Ballan podia fazer era usar pás para soltar os projéteis, juntá-los com a pez e
atirá-los borda fora. Já esperavam tal ataque.
Os dois barcos prosseguiam na sua rota de colisão. Estavam agora tão
próximos que a velocidade do Ballan parecia obscena e temerária. Spratling
quase gritou para baixarem as velas laterais, mas não havia tempo. De qualquer
modo, uma delas fora atingida em baixo por uma flecha, e as chamas haviam já
consumido boa parte do pano. Em vez disso, gritou aos homens que
manobravam o prego:
— Preparem-se! Aguardem uma ordem minha! — Vendo a distância entre
os dois barcos diminuir, acrescentou: — Homens no convés, talvez seja melhor
agarrarem-se a alguma coisa!
Nos últimos momentos, ordenou uma viragem para acertar o navio com a
Nos últimos momentos, ordenou uma viragem para acertar o navio com a
trajetória do brigue, a fim de diminuir o impacto. O Ballan inclinou-se no
esforço da manobra, mas quando as duas embarcações colidiram, a força do
choque ultrapassou as expetativas do jovem capitão. Foi um estrondo horrendo,
tal como a pressão do impacto. Os homens foram atirados por todo o barco
quando o convés se inclinou para um dos lados. Uma vaga enorme entrou pela
amurada, varrendo o convés e levando consigo dois homens ao escoar borda
fora. Os pequenos fogos atiçaram-se e faiscaram, voltando a arder intensamente.
Spratling conseguira dar a ordem a tempo de soltarem o prego antes de cair de
costas no convés. O grande braço da engenhoca movia-se lentamente, tombando
sob o seu próprio ímpeto. Spratling, observando-o do lugar onde ficara agarrado
à amurada, encharcado e ofegante, pensou que o mecanismo encravara em
algum ponto. Tombava com demasiada lentidão. Talvez nem chegasse a cair
sobre o outro navio.
Porém, a arma lá encontrou equilíbrio e mais velocidade. A ponta metálica
do engenho tombou sobre o convés do outro barco. Funcionara perfeitamente,
fletindo de modo a penetrar fundo e, em seguida dobrou-se instantaneamente sob
o peso dos navios que ficaram presos nele. Soltaram-se estilhaços de ambos os
lados do impacto, cavando um buraco que sugou vários homens da tripulação do
brigue. O gancho cavou uma trincheira ao longo do convés, partindo as vigas em
pedaços ao prosseguir rasgando o ventre do navio. Isto fez o Ballan erguer-se
depressa nas ondas e, por instantes, Spratling não conseguiu proferir palavra.
Eram como um peixe preso precariamente a uma baleia furiosa. Sentiu a ponta
de ferro rasgando as vigas, sentiu-as estalar sob a sua força, uma após outra.
Vários arqueiros foram esmagados entre as duas embarcações, todos os outros
abandonaram os seus postos e deixaram de atacar. Tudo bem, exceto que o prego
não se ia aguentar! Se o não fizesse, o barco poderia virar-se com o impulso de
soltar-se do outro barco, afundando-se no tumulto das ondas e correntes na
esteira do brigue.
Spratling ouviu a voz de Nineas, perguntando-lhe o que fazer. Tinha
alguma ordem? Não tinha, mas felizmente a desorientação momentânea que o
atingira passara despercebida. O prego acabara por fim por se prender ao outro
barco. O Ballan pareceu encontrar alguma paz na sua nova posição e manteve-se
suficientemente firme para que os homens se conseguissem pôr de novo em pé.
Alguns rostos viraram-se para Spratling, enquanto este se punha de pé. A
próxima ordem era óbvia.
— À abordagem! — gritou. — À abordagem, à abordagem!
A subida pela prancha foi feita numa correria louca e imprudente só
possível por agirem por ímpeto, sem pensar no que faziam. Spratling entrou em
possível por agirem por ímpeto, sem pensar no que faziam. Spratling entrou em
ação tal como os outros. Correu, agarrou-se, saltou, tudo tão depressa que foi
feito numa névoa tremente e aos solavancos. Foi surpreendente pôr os pés no
brigue. Tudo em volta estava pintado num branco carregado, lustroso e brilhante
tal como o exterior. A tinta cobria cada contorno e saliência, como se todo o
navio tivesse sido mergulhado em cera e depois pendurado para secar. Spratling
e os homens que entraram a bordo, aos tombos, estacaram de repente,
desnorteados com a aparência do navio. Porém, o espanto não durou muito.
Tinham uma tarefa a fazer. Vários marinheiros vieram ao seu encontro. As
flechas zuniam à sua volta de todos os lados. As espadas, entrechocando-se,
faziam um estrondo atroador. Durante algum tempo haveria sangue, mas esse era
o trabalho dos corsários.
***
Três dias mais tarde, Spratling saiu das docas, esmagando ao andar as
conchas brancas do caminho que levava à vila dos corsários, a que chamavam
Palishdock. Caminhava à frente de uma multidão crescente, como chefe da
tripulação entre eles, mas avançando a passos mais largos à medida que se
juntava mais gente. As crianças, numa algazarra, soltavam exclamações e
gritavam perguntas. Nem os cães da vila podiam conter o seu entusiasmo. O
filho de quem se orgulhavam voltara, triunfante, com o saque que os beneficiaria
a todos! Spratling não conseguia evitar o sorriso. Dava-lhe prazer ser o centro
das atenções, daquela ralé de gente e animais, sentir a sua adoração, sentir que
era importante, amado; gostava de ver o rosto das raparigas, ruborizados, a
admirá-lo. Aquele papel agradava-lhe, mas não o dava como adquirido. Lutava
diariamente para o merecer e dar orgulho a Dovian. Deste modo, era ainda um
rapaz, e Dovian a figura paterna, maior ainda do que o seu vulto pesado.
Palishdock não começara como um lugar fixo. Embora existisse havia seis
anos, notava-se uma preguiça passageira no modo como as toscas cabanas
tinham sido construídas. Eram estruturas erguidas sobre buracos e montículos na
terra arenosa, com frinchas nas tábuas por onde o vento entrava à vontade e
telhados simples feitos com folhas de palmeira. As paredes eram muitas vezes
pedaços de tapume colocados de modo a dar alguma privacidade. Muita gente
cozinhava em fogueiras ao ar livre ao lado dos casebres onde vivia, deixando os
restos aos cães e a uma abundante população de gatos. A vila tinha um ar
provisório, como se todo o lugar pudesse ser abandonado se a confusão se
tornasse insuportável ou a sorte lhes faltasse. Claro, possuía um porto
maravilhoso. As águas aí não eram muito profundas, mas tinham fundo limpo,
com uma entrada estreita que mal se avistava do mar devido à ondulação junto à
linha da costa e às altas dunas que o escondiam. De facto, toda a vila estava
linha da costa e às altas dunas que o escondiam. De facto, toda a vila estava
defendida de olhares indesejáveis. Só o fumo a poderia denunciar, mas a madeira
dura dos arbustos que cresciam por toda a ilha ardia sem muito aparato. Poucos,
navegando por ali perto, teriam pensado que a névoa esbranquiçada que se
evolava do lugar fosse outra coisa que não um manto de neblina. Era um refúgio
perfeito para corsários.
Era ali que Spratling vivia desde a sua fundação, um acontecimento de que
ele bem se lembrava. Estava — ainda criança — escarranchado na anca de
Dovian quando o homenzarrão olhara para o porto, sorrindo, declarando que
aquilo ali era o lugar perfeito para eles, escondido do mundo e muito bem
localizado para o negócio a que se dedicavam, de roubos e saques e raptos ou
outras formas de ladroagem que lhes ocorressem. Ele dissera que assim poderia
ser, e, com o menino a seu lado, inventou um mundo à medida desses sonhos.
Deixando a multidão jubilosa no pátio do Palácio de Dovian, onde Nineas e
os membros mais jovens da tripulação podiam contar a grandiosa história da
captura de um brigue da Liga, Spratling entrou lá para dentro. Levava consigo
uma caixa estreita ornamentada a ouro. O Palácio de Dovian não era, claro, um
verdadeiro palácio. Tratava-se de uma miscelânea desconexa de salas e
corredores apenas ligeiramente mais bem construídos do que os casebres da
aldeia. Aqui e ali viam-se vigas e pranchas ou partes completas de navios
capturados que tinham sido usados na construção. As paredes estavam repletas
de emblemas, placas de identificação e vários aprestos de navio, recordações
conquistadas ao longo dos anos. Acima de tudo, o lugar parecia um forte
labiríntico, mais adequado a jogos de escondidas e a tropelias de rapazes a
brincar aos piratas. Spratling brincara a tudo isso e a muito mais, naqueles
corredores, nunca os amando mais do que nos dias em que Dovian ainda andava
pelo seu pé, ágil apesar do seu tamanho, tão disposto a correr e a brincar como
qualquer menino.
Spratling bateu na ombreira da porta do quarto do homem com o pé.
Ouvindo o convite para entrar, o jovem obedeceu. Não havia luz a não ser a que
penetrava pelas numerosas frinchas nas paredes e no teto, mas o jovem adaptou-
se à penumbra o bastante para poder ver. Dovian encontrava-se exatamente onde
estava há já vários meses, desde que adoecera com dores nos ossos, uma tosse
que lhe atormentava o peito e os membros num formigueiro dormente. A cama
encontrava-se ao fundo do quarto, e Dovian mantinha-se ali estendido, um corpo
enorme amparado por almofadas de penas quase esmagadas pelo seu peso. Tinha
o rosto na sombra, mas Spratling sabia que os olhos do homem estavam fitos
nele.
O jovem capitão parou à entrada e contou os pormenores da investida.
O jovem capitão parou à entrada e contou os pormenores da investida.
Disse o nome dos homens que tinham perdido na refrega, proferindo uma
palavra em louvor de cada um deles. Descreveu a tomada do navio, os estragos
que o Ballan sofrera, o modo como o prego funcionara. Este trabalhara bem,
disse, mas deveriam colocá-lo num barco diferente e usá-lo talvez só para
embarcações mais pequenas. Na verdade, quase destruirá o Ballan. Descreveu a
rixa que se desencadeara no convés imaculadamente branco do brigue e explicou
qual o tesouro que haviam encontrado no porão. Pelos padrões da Liga, o navio
ia sem carga, mas os seus padrões não tinham proporções naturais. Os seus
homens haviam saqueado o navio de todos os objetos de ouro que tinham
encontrado, de todos os talheres de prata, dos espelhos ornados, das tapeçarias,
do mobiliário entalhado, de lindas lanternas de vidro, ou seja, toda a pompa
habitual num navio da Liga. Tinham descoberto um cofre e coagido o capitão a
abri-lo. Ele devia pensar que se encontrava vazio, pois pareceu surpreendido ao
descobrir pequenas bolsas cheias de moedas numa caixa, a mesma que Spratling
trazia agora nas mãos.
— Quantos mataram? — perguntou o homem acamado.
— Dez homens. Dois rapazes. E... uma rapariga. Theo cortou-lhe o pescoço
antes de se aperceber. Não o culpo.
— E que fizeram aos outros?
— Juntámo-los e fechámo-los numa cabina. Têm comida e água suficiente
para duas semanas, mas imagino que a Liga os descobrirá dentro de um dia ou
dois.
— É bom que tenhas demonstrado clemência.
Spratling sorriu.
— Foi assim que me ensinaste, tal como me ensinaste como e quando se
deve matar. De qualquer maneira, um corsário gosta de deixar algumas
testemunhas vivas para espalharem os seus feitos.
Dovian emitiu um som ao ouvir isto. Talvez fosse uma gargalhada ou tosse.
Fez um gesto com uma mão que parecia a pata de um urso. Spratling atravessou
o quarto, pôs um joelho sobre o tapete que cobria o chão e olhou para a face
larga do homem. Dovian fitava-o, o rosto de traços grossos enrugado e curtido
pelo sol, à maneira dos candovianos. Havia semanas que perdia peso, mas era
ainda uma figura formidável. Ergueu uma mão e pousou-a no ombro do jovem.
Apertou com força os músculos magros ao ponto de Spratling sentir dor. Mas
não se tratava de uma repreensão e Spratling não estremeceu.
— Fazes-me sentir orgulhoso, rapaz — disse Dovian. — Sabes disso, não
— Fazes-me sentir orgulhoso, rapaz — disse Dovian. — Sabes disso, não
sabes? Não tinha a certeza se voltarias desta.
Spratling sorriu, irónico, e reconheceu:
— Lá que foi um pouco arriscado, foi.
Dovian estudou-lhe as feições, pesando as implicações da frase, talvez
imaginando a insinuação que aquilo representava.
— Não me alegra nada que o teu trabalho seja tão sangrento como é, mas
quanto a isso nada podemos mudar. Não fomos nós que fizemos o mundo, pois
não? Não lhe demos forma e substância nem pusemos os homens uns contra os
outros. Nada disso foi obra nossa, pois não, moço?
O jovem fez um gesto de assentimento.
Se o fez para deixar o outro homem feliz, não conseguiu. Pareceu causar-
lhe o efeito oposto. O rosto grande e pesadão de Dovian contraiu-se num esgar
como se sentisse dor. Levou um nó dos dedos da outra mão ao olho como se o
quisesse arrancar.
— Creio que o meu trabalho está feito, então. Ensinei-te tudo o que podia.
Olha para ti, agora, com os teus dezoito anos e já um líder. Não me posso
queixar, sei agora que estás um homem capaz de vingar no mundo. É o melhor
que pude fazer. Lamento não ser a vida de um príncipe...
— Para com isso! Vá lá, não ficarei aqui se vais entrar em choradeira como
da última vez. Voltei depois de ter tomado um brigue da Liga e tu começas
novamente a queixar-te do passado? Não quero isso. Queres que me vá embora?
Dovian fitou-o por um longo momento.
— Pelo menos, os homens veem em ti a nobreza. Não, veem sim. E não te
vás embora: ainda não to ordenei! Eles veem em ti sangue real. Não sabem o que
estão a ver, mas possuis sobre eles grande poder. Seguem-te aonde não
seguiriam outro homem. Dei-te o nome de Spratling para que ninguém soubesse
que és um nobre. Apenas um pequeno peixinho como milhões de outros que há
no mar. Mas ninguém nega isso, rapaz, a nobreza derrama-se dos teus olhos, da
tua boca, de cada vez que a abres.
— Mesmo quando praguejo?
— Mesmo nessas alturas... — O homem pareceu afundar-se mais nas
almofadas, agradado com as imagens que lhe acudiam ao espírito. — Mesmo
então, és ainda o meu Dariel, o príncipe que procurava a gente da minha laia nas
cavernas debaixo do palácio. Porque fazias tu aquilo, rapaz? Que coisa tão
estranha para um menino como tu, deambular pelos subterrâneos escuros. Nunca
percebi isso.
percebi isso.
— Não tentes. De qualquer modo, não me lembro já bem para te poder
esclarecer. — Spratling indicou a caixa que colocara à beira da cama. — Queres
ver o que há lá dentro?
— Não te lembras mesmo?
— Não. Tudo o que me lembro e tudo o que me quero lembrar é desta vida.
— Isto, o que aqui temos, é tudo o que importa — retorquiu, infundindo na
declaração toda a certeza que conseguiu reunir.
Era-lhe difícil, pois não era verdade. Pelo menos, não totalmente. Tratava-
se antes de não tirar sentido das memórias anteriores à sua vida com Dovian.
Não conseguia compreender essas recordações com clareza. Bastava um breve
pensamento sobre esses tempos para o enfraquecer. Invadiam-no com uma
melancolia poderosa, que normalmente não sentia. Quando se permitia pensar
nos tempos em que ainda se chamava Dariel Akaran, eram as lembranças da
fuga da guerra e do papel de Val ao salvá-lo que gostava de recordar.
Deixara Kidnaban ao cuidado de um homem que se dizia ser seu guarda.
Este soldado despertara Dariel, uma manhã, e fugira com o menino ao colo.
Explicara-se, enquanto caminhava, embora Dariel estivesse um pouco tonto e,
mais tarde, não se conseguisse lembrar do que dissera o homem para o acalmar.
Tinham embarcado rumo ao Continente, em poucas horas, e caminharam a pé
durante dois dias a partir daí. Ao terceiro dia, o homem comprou um pónei para
Dariel, visto o menino estar exausto e ter os pés feridos. Estava quase sempre a
chorar e perguntara muitas vezes pelo irmão e pelas irmãs, rogando que o
levassem de volta para eles ou então para casa. O guarda não era antipático, mas
parecia pouco à vontade com crianças e olhava muitas vezes para o menino
como se nunca tivesse visto alguém chorar antes e não entendesse o desperdício
das lágrimas.
O homem explicou que o seu pai tratara de o deixar ao cuidado de um
amigo, em Senival. Tudo o que tinham a fazer era ir ter com ele e o martírio do
menino terminaria, deixando tudo a salvo, como explicou. Rumaram a oeste e,
durante muitos dias, prosseguiram caminho através de uma paisagem inóspita,
repleta de cicatrizes como as que vira em redor das minas do Cabo Fallon,
encostas montanhosas escavadas, campos enormes em que toda a terra que se
avistava havia sido mutilada pela brutalidade dos homens. Aquilo, explicara o
guarda, eram as minas de Senival. Por ali andavam trabalhadores cobertos de
poeira, homens e rapazinhos na maioria, mas também mulheres e algumas
raparigas. Andavam andrajosos e pareciam atarefados, embora prestassem pouca
atenção ao seu trabalho habitual. Ouviu-os gritar fragmentos de notícias
atenção ao seu trabalho habitual. Ouviu-os gritar fragmentos de notícias
urgentes, que pareciam ter uma importância que ele não imaginava, embora
nenhuma delas parecesse ser coisa boa.
Dariel não fazia a mais ligeira ideia do significado daquele lugar para o
império do pai, a não ser que o guarda, ao contemplar aquelas terras tingidas de
tom carmesim pelo pôr-do-sol, dissera:
— Que inferno construímos aqui. Um inferno com uma coroa de ouro que
se chama a si própria... — O guarda interrompeu-se ao recordar a presença de
Dariel e disse que era melhor seguirem caminho. Estavam quase a chegar ao seu
destino.
Estavam a descer por uma estrada que serpenteava a montanha, onde ficava
a vila em que Dariel deveria ser entregue, quando o guarda parou:
— Que se passa?
A vila era muito bonita, situada num vale rodeado por altos cumes. Durante
alguns instantes, Dariel contemplou-a com gosto, até notar o silêncio do lugar.
As ruas não tinham ninguém. Não havia nenhum lavrador nos campos nem se
via um único animal. Nenhum fumo saía das chaminés das casas.
— Há aqui qualquer coisa de errado — proferiu o guarda. Dariel não
discordou.
O rapaz nunca veio a saber o que acontecera às pessoas da vila. Tinham
simplesmente desaparecido e, por mais que tentasse, o guarda não encontrou
sinal do homem que procuravam. Sentou-se num banco de madeira, observando
o lugar, e depois enterrou a cabeça nas mãos, permanecendo silencioso, imerso
em pensamentos durante um tempo que lhe pareceram horas. Dariel manteve-se
ali perto, segurando nas rédeas do pónei enquanto este pastava a tenra erva da
montanha.
Quando o guarda ergueu os olhos, estava determinado. Iria até à próxima
vila, declarou. Ficava a um dia de viagem, para oeste. Se partisse agora, chegaria
lá ao nascer do sol, e, se encontrasse as respostas de que precisava, estaria de
volta ao anoitecer. Talvez andasse alguém à sua procura. Era melhor que fosse
ver o que se passava e voltar com uma ideia de como prosseguir. Contudo, teria
de viajar depressa, por isso arranjou uma cabana para deixar Dariel, num ponto
algo afastado da vila. Deixou ao menino o alforge que levava aos ombros e disse
que aquilo era para o bem dele.
O homem partiu. Dariel escutou o trote dos cascos do pónei durante algum
tempo e, quando deixou de o ouvir, sentiu-se aterrorizado. Nem sequer
protestara, não pronunciara palavra. Como poderia tê-lo feito, se sabia que o
homem lhe mentia?
homem lhe mentia?
Passou aquela noite às escuras, tremendo de medo, pequenino e receoso
como um ratinho. Caiu uma chuva forte e gelada durante algumas horas e,
quando amainou, a neblina invadiu o vale como mil espetros. Não acendeu
nenhuma fogueira, não pensou em ir buscar o cobertor que o guarda deixara no
alforge nem sequer se apercebeu da fome que lhe apertava o estômago. Como a
desoladora realidade da sua situação estava tão fora das suas capacidades para a
enfrentar, recusou-se a fazê-lo. No seu íntimo, imaginava que o pai ainda vivia e
vinha a caminho para o salvar. Tecia todo o género de fantasias com uma
esperança voraz. Talvez fosse uma boa coisa também, porque, quando a salvação
chegou, não era mais previsível ou verosímil do que as suas fantasias, mas ele
estava pronto a aceitá-la de braços abertos.
***
Agora, sentado numa cadeira ao lado do leito de doente do seu salvador,
Spratling perguntou:
— Lembras-te da noite em que me encontraste?
— Como se fosse ontem, rapaz.
— Foi aí que comecei a existir, sabes? Eras uma sombra quando abriste a
porta e me descobriste no meu esconderijo...
— Aquele casebre? — interrompeu-o Dovian. — Que desgraça que lá
tivesses passado sequer uma noite.
— Lembro-me perfeitamente das tuas palavras — continuou Spratling. —
Disseste...
***
Quem diria — proferira a sombra, entrando no casebre atrás de uma
lanterna amarela erguida ao alto — que se iria encontrar um príncipe, assim sem
mais nem menos, nos dias que correm? Ora, ora, há mesmo gente com sorte.
Dariel lembrava-se bem das palavras, como afirmara, mas, nessa noite,
levou algum tempo a compreender o que se estava a passar. Havia três dias que
estava escondido. Algo em si ainda lhe dizia que o guarda iria voltar, embora, lá
no fundo, começasse já a desistir de quaisquer esperanças. Que voz tão familiar,
pensara. Mas de quem era, e como estaria ali? Dariel sabia que a reconhecera,
mas por alguns momentos, temeroso, não conseguia situá-la naquele casebre de
montanha.
O vulto aproximou-se.
— Estás bem, meu maroto? Não tenhas medo. Sou o Val. É o Val que te
— Estás bem, meu maroto? Não tenhas medo. Sou o Val. É o Val que te
veio ajudar.
Val? Pensou Dariel. Val, das cavernas subterrâneas do palácio — o que
alimentava os fornos das cozinhas... O seu Val! Pôs-se em pé, trôpego, e atirou-
se de encontro ao peito do homem. Ao sentir o cheiro pungente a fumo e a
maresia daquele corpo enorme, rebentou num choro convulsivo. Agarrou na
túnica de Val com toda a força, esfregando as lágrimas e o nariz, fungando,
contra o tecido, como se fosse um bebé no auge do delírio da febre, cheio de
frio.
— Oh, não faças isso, rapazinho — dissera Val com bondade. — Não faças
isso. Tudo vai correr bem agora.
Assim, fiel à sua palavra, tudo correu bem. Pelo menos, tão bem quanto
possível naquelas circunstâncias. Dera-se o caso de que Val ia a caminho de
Candovia, um dos muitos migrantes empurrados pela guerra. Dera com o guarda
de Dariel por mero acaso, num acampamento improvisado erguido à beira da
estrada por refugiados em fuga. O homem bebera grande parte de uma garrafa de
vinho de ameixa e não se importava de contar a toda a gente que fora o guarda
pessoal de um dos filhos do rei. Val colocara-se num ponto em que conseguia
sentir o cheiro do bafo enjoativo do homem. Incentivou-o a falar, até ele
confessar de quem tomara conta e onde tinha abandonado o seu dever e se
tornara num cobarde. Mas também não conseguira encontrar a pessoa a quem o
menino deveria ser entregue! Desaparecera, talvez estivesse morto, e o guarda
não tinha mais instruções sobre como proceder. E com as notícias que vinham de
toda a parte — Maeander em Candovia, Hanish que destruíra o exército nos
Campos de Alecia — nada mais podia fazer pelo menino. Sim, era verdade que o
abandonara ao seu destino, mas que mais poderia ter feito?
Val nunca lhe contara exatamente o que fizera ao guarda, a não ser vagos
murmúrios sobre como este não poderia mastigar nada mais duro do que queijo
de cabra para o resto da vida, ou algo parecido. Isto não fez qualquer sentido
para o rapaz, mas a imagem que lhe invocara manteve-o perplexo durante grande
parte do longo caminho por onde Val o levou. Conhecia o lugar ideal para eles,
dissera o homenzarrão, um sítio enorme, onde poderiam esconder-se. Durante a
maior parte da viagem, o menino seguiu às cavalitas do candoviano, com uma
perna de cada lado do seu pescoço e os dedos entrelaçados nos cabelos espessos
e encaracolados do homem.
Levaram três dias a sair das montanhas, e, ao quarto dia, Dariel sentiu no ar
o cheiro a maresia. Nessa tarde, meio adormecido aos ombros do amigo, Dariel
ouviu Val dizer:
— Olha, rapaz. Além não é o mar. É um lugar onde uma raça inteira se
— Olha, rapaz. Além não é o mar. É um lugar onde uma raça inteira se
poderia esconder.
Tinham passado por uma ribanceira com vista para todos os territórios a
oeste. Apesar de Dariel ter vivido sempre numa ilha, sabia ver que a massa de
água à sua frente era diferente. Não eram as águas azul-turquesa ou verde-
esmeralda a que estava habituado. Em seu lugar, deparava-se-lhe uma superfície
de um tom ardósia, águas ligeiramente mais claras do que o negro, ondulando
com as correntes que transmitiam a sua força pela massa pesada. Junto ao litoral,
a crista de mil ondas erguia-se como montanhas líquidas, parecendo manter-se
no ar por instantes, enrolando-se depois num caos de espuma. De vez em quando
ouvia o rebentar das ondas, sempre estranhamente ritmado, de um modo que
tornava impossível fazer corresponder o som à vista. Contemplando aquilo do
alto dos ombros do gigante, Dariel nunca vira nada de tão espantoso e de tal
grandiosidade.
— Aquela é a língua das Encostas Cinzentas — explicara Val. — É um
vasto oceano. É além que desaparecerás do mundo do teu pai para emergires no
meu.
Dariel nada respondera. Havia semanas que um vago medo o assombrava,
sempre tão presente como o céu. Algo nele nunca acreditara que poderia
continuara a viver sem a sua família. Sem eles, desapareceria. O mundo tragá-lo-
ia para sempre. Os dedos do Doador arrancá-lo-iam do mundo e atirá-lo-iam ao
vazio. Receava não possuir mais substância do que uma chama e ser tão
facilmente extinguível. Porém, ali estava ele. O mundo continuava como sempre,
e ele ainda se movimentava nele. Continuava; havia qualquer coisa no seu cerne
tão sólida e real como o resto do mundo. Bem que podia desaparecer de um
mundo para surgir noutro, pensou. Desaparecer e ressurgir como novo...
Fora exatamente isso que fizera. Val dera-lhe uma nova vida, um novo
nome, tal como dera a si próprio. Ensinara-lhe que as histórias que lhe contara
sobre ter sido um pirata sanguinário na juventude não eram apenas a fingir,
como o menino pensava. Val — Dovian, como lhe chamavam no seu país — era
oriundo de uma longa linhagem de corsários. Ao regressar às Ilhas Distantes,
não levou muito tempo a restabelecer-se como corsário, a construir uma frota e a
arranjar marinheiros para os seus navios. O mundo estava maduro para o saque.
O Mundo Conhecido encontrava-se à beira do caos, adaptando-se de má vontade
à nova ordem estabelecida por Hanish Mein. Havia muitos grupos que lutavam
para encontrar um lugar na redistribuição de poder que isso implicava. Val
navegava com Dariel sempre sob a sua proteção; ensinara-lhe tudo o que sabia
sobre navegação e pirataria, sobre como comandar os homens; sobre como
sobreviver na mais cruel das existências.
sobreviver na mais cruel das existências.
Tudo o que antes existira — o palácio de Acácia, o seu papel como
príncipe, o império do pai, e os outros três irmãos nascidos deste e da mãe,
Aleera Akaran — bem, parecia tudo mais claro no espírito de Val do que no de
Dariel. Para quê apegar-se a pessoas que nunca mais veria? Era tão novo na
altura que não retivera as recordações com nitidez. Sim, havia imagens. Havia
momentos de emoção que pareciam agarrá-lo pelo pescoço e sufocar-lhe o ar dos
pulmões. Havia alturas em que acordava de sonhos, receando que algo estivesse
terrivelmente errado, mas habituara-se a tolerar esses sentimentos enquanto ia
crescendo. Talvez fosse isso o significado de estar vivo.
Spratling — sim, era esse o seu nome agora e não havia razão para
regressar à criança assustada que fora — abriu o pequeno trinco da caixa e
colocou o conteúdo sobre o leito de Dovian, um monte de moedas de ouro. O
homem contemplou-as, passando os dedos por cima delas, sentiu o seu peso na
palma da mão. Murmurou que era aquilo mesmo. Era precisamente daquilo que
precisavam. Aquilo financiaria tudo...
Pegou num dos objetos entre os dedos e levantou-o contra um raio de sol.
Era ouro — pelo menos revestido a ouro, apesar de a confeção ser quase
demasiado fina e afiada para um metal tão macio. Tinha um formato invulgar.
Era da grossura de uma moeda grande, ligeiramente quadrada, estriada numa
extremidade, com inscrições que poderiam ser letras mas que em nada se
assemelhavam a qualquer língua escrita que vira. Tinha um buraco no meio,
ligeiramente oblongo.
Spratling não reparara nisso antes.
— O que é isso?
Dovian pensou naquilo durante algum tempo. Spratling quase que
conseguia vê-lo procurando algo entre as recordações, um catálogo de uma vida
inteira de tesouros valiosos e inesquecíveis.
— Não faço ideia — proferiu por fim. — Mas é uma obra bem feita, no
entanto. — Encostou-a ao peito do jovem.
— Aqui. Guarda-a aí ao pescoço. Se alguma vez te meteres em sarilhos e
precisares de uma fortuna rapidamente, podes derretê-la e fazer moedas. É tua. O
resto é mais do que suficiente para o que planeámos. Traz-me aqueles mapas e
vamos vê-los.
Spratling assim fez, espalhando as imagens já tão suas conhecidas sobre a
cama e sentando-se à beira. Gostava imenso de momentos assim, quando Val
parecia esquecer-se dos seus males e os dois se perdiam em contemplação, como
parecia esquecer-se dos seus males e os dois se perdiam em contemplação, como
pai e filho, fazendo esquemas, planos, sonhando um mundo de aventuras e
saques. Em muitos aspetos, Spratling continuava a ser o menino que Dariel fora.
Não imaginava ainda a que ponto isso em breve iria mudar.
Capítulo 31

Havia uma acácia de Talay em especial que iria assombrar os sonhos de


Thaddeus. Erguia-se, solitária, na planície. Permanecia de pé como um velho de
pele enegrecida, inclinada para um lado como se suportasse uma enfermidade.
Era precariamente esguia, de troncos retorcidos e decrépitos, com tão poucas
folhas dispersas que Thaddeus não teve a certeza, até se acercar dela, se
continuava a viver. As acácias eram árvores robustas, que cresciam muito
lentamente, com os espinhos apontados contra inimigos, estoicas perante os
caprichos das intempéries. Talvez pudesse haver algo de consolador nisso, mas,
se havia, Thaddeus não o via. Naquele país nada o consolava. Nunca a
grandiosidade silenciosa de uma paisagem o esmagara tanto como quando se
encontrava sob a sombra escassa daquela árvore. A curva da terra parecia mais
gradual do que em qualquer outro lugar, as distâncias maiores, os vultos dos
montes mais imponentes. A abóbada celeste parecia mais alta em Talay do que
noutros lugares. Esticava-se cada vez mais alto, empurrada, nas alturas, por
nuvens brancas tumultuosas, empilhadas como pilares que suportavam um
templo maciço. Para onde quer que olhasse — acima e abaixo dele, em cada
ponto da bússola, próximo ou distante — as criaturas iam surgindo e
desaparecendo de vista. Não conseguia nomeá-las, nem contá-las, nem sequer
categorizar todas elas, mas desconfiava de que cada uma fosse um espião a
observá-lo.
Das seis províncias do antigo Império Akaran, nenhuma era mais complexa
nem mais importante do que Talay. Tratava-se de um vasto território onde
caberiam Candovia, Senival, o Continente e Aushenia. Espraiava-se para sul, em
elevações de terreno banhadas por um sol intenso, estendendo-se por regiões que
não vinham nos mapas, tão vasta que os acacianos nunca a haviam cartografado
completamente, ao longo das vinte e duas gerações da dinastia Akaran. Muitos
desses territórios eram tão áridos que nenhuma chuva caía jamais sobre a terra.
Embora o nome de uma tribo em particular fosse usado para nomear todo o
território, na verdade os talayanos eram apenas a nação favorecida, entre muitas
outras. Alguns defendiam que Edifus era oriundo de Talay, mas Edifus nunca
reivindicara tal ascendência.
Porém, era indiscutível que os talayanos haviam sido o primeiro povo no
continente a aliar-se a Edifus. Em troca, este garantira-lhes o domínio sobre os
povos vizinhos e a responsabilidade de os policiar. O que não era pouco. A
povos vizinhos e a responsabilidade de os policiar. O que não era pouco. A
província era o lar de trinta e cinco chefias tribais, com praticamente o mesmo
número de línguas e quatro grupos raciais tão distintos uns dos outros que não
era possível aplicar generalidades aos povos da província como um todo. Era
verdade que todos tinham a pele escura, mas, mesmo assim, havia grande
variedade de tons entre raças, para não falar numa diversidade fisiológica maior
do que em todo o Mundo Conhecido. Muitas destas nações eram suficientemente
numerosas para serem potências militares de direito próprio. Os Halaly, os
Balbara, os Bethuni, na época Akaran tardia, eram povos que podiam levantar
exércitos de dez mil homens. Os próprios talayanos chegavam a reunir vinte e
cinco mil soldados, e, claro, tinham o direito de recrutar homens noutras tribos.
Se a sua soberania se tivesse aguentado, provavelmente a guerra contra Hanish
Mein teria tomado outro rumo. Contudo, não se mantiveram unidos por razões
enraizadas na sua história ancestral.
Os ódios antigos não morrem, pensava Thaddeus. Aguardam somente uma
oportunidade para se revelarem.
Estes pensamentos ocorriam-lhe espontaneamente, causando-lhe ainda mais
mal-estar. Talvez tivesse estado demasiados anos escondido. Demasiado tempo a
arrastar-se como um verme pelos subterrâneos de Candovia, em lugares
sombrios e húmidos, junto às entranhas da terra, ouvindo resmungos como os
que vêm da barriga de um homem gordo. Porém, não se sentiu tão à vontade
quando começou a tratar do seu trabalho. Sentira-se suficientemente confiante
nas suas capacidades, à medida que ia reunindo informação, enviando espiões
para todo o lado e apreendendo tudo o que lhe contavam. Não duvidara de si
próprio ao procurar o antigo general e o lançar num novo rumo. Por isso, porque
receava apoiar-se nele agora?
Talvez, tentava crer, fosse por se encontrar tão longe de casa, cada vez mais
longe, a cada dia que passava, das latitudes em que passara a vida. Aquelas
terras eram bastante diferentes, mesmo do país luxuriante por onde passara no
norte de Talay. As terras aráveis estendiam-se ao longo de colinas sem fim, tão
longe quanto a sua vista alcançava, salpicadas de filas de árvores que dividiam
os campos, de onde despontava aqui e além uma aldeia. Era uma natureza
tratada, confinada e domada por gerações de labuta humana. Era ainda mais
populosa do que outras. Thaddeus sabia que o número de habitantes diminuíra
com a peste. Fora dizimada pela doença e pela guerra, como a maior parte das
províncias. Havia poucos homens de meia-idade, mas as mulheres pareciam ter
sobrevivido melhor. Havia muitas crianças. Pululavam por todo o lado, o que
deveria ter agradado a Hanish Mein. Este ordenara que todas as mulheres em
idade de ter filhos tivessem filhos. O Mundo Conhecido precisava de ser
repovoado. Era preciso que o número de habitantes aumentasse, que surgissem
novos casais para substituir os perdidos, novos cidadãos para ajudar o mundo a
seguir em frente. Thaddeus compreendia melhor do que ninguém a exata
importância daquilo para Hanish.
O destino do antigo chanceler ficava no ponto mais a sul em que ele jamais
estivera, situado no coração das planícies ressequidas e das colinas suaves do
interior de Talay. Era uma distância de várias centenas de quilómetros, um longo
caminho para um velho como ele. Contudo, preferiu fazê-lo a pé. Não era raro
encontrarem-se vagabundos solitários e tresloucados no mundo. Poderia vaguear
indefinidamente, sem se deparar com um dos soldados do Mein espalhados por
toda a parte. Talvez existisse também algum sentido de penitência na sua marcha
solitária, embora não definisse esse sentimento nem para si próprio.
Chegou, coberto de poeira, ao pátio de Sangae Uluvara. A aldeia de Umae
ficava enfiada num vale que parecia uma tigela rasa entre duas cristas de rocha
vulcânica e era constituída por cinquenta e poucas cabanas, vários armazéns e
silos, um barracão em madeira e colmo no centro, que servia de cobertura ao
mercado, oferecendo sombra para o sol e proteção para quando chovia. O povo
de Sangae rondaria as duas centenas de almas. Como era uma cultura dedicada à
pastorícia, raramente se encontravam todos na aldeia. O lugar ficava numa zona
remota do mundo, não assinalado em mapa algum, talvez completamente
desconhecido do Mein. De facto, teriam tido de procurar tudo a pente fino para
descobrir a aldeia ou um registo do laço de amizade que o rei Leodan tivera, um
dia, com Sangae, havia muito tempo, na sua juventude. Nenhum ser vivente,
além de Thaddeus, conhecia a importância do homem para o destino dos Akaran.
Quando o chamaram do seu abrigo fresco, Sangae saiu para o sol,
pestanejando. Fitou Thaddeus com intensidade, tremendo, como se estivesse a
contemplar uma aparição. Pelas suas feições passou uma torrente de
pensamentos, emoções que pareciam tumultuar debaixo da pele. Thaddeus sabia
que, mesmo estando tão a sul, o homem deveria ter ouvido os rumores que
caluniavam a sua reputação. Sangae devia estar inseguro sobre qual o chanceler
que se encontrava perante ele: o traidor ou o salvador. Isto seria apenas parte da
agitação que o invadia. Sangae fora um pai adotivo havia nove anos. Não podia
senão recear o que a vinda de Thaddeus poderia significar para o seu filho.
Porém, Sangae falou numa atitude formal e controlada:
— Velho amigo, que o sol brilhe sobre vós, mas que tenhais água doce.
— A água é fresca, velho amigo, e translúcida — respondeu Thaddeus.
Tratava-se de uma saudação tradicional do sul de Talay, e agradou a Sangae
Tratava-se de uma saudação tradicional do sul de Talay, e agradou a Sangae
que Thaddeus lhe respondesse num talayano tão cortês. Porém, logo a seguir
mudou para a língua acaciana.
— Há tanto tempo — disse. — Passou tanto tempo que já não sabia se
viríeis. Tanto tempo que tive esperança que não viríeis.
Thaddeus teve mais dificuldade em responder a isto. O chefe não parava de
fitar o chanceler nos olhos. O nariz e os lábios, a fronte ampla e as maçãs do
rosto: cada uma das feições transbordava generosidade pura. Tinha um rosto de
feições amplas, em desacordo com o tronco magro, os ombros estreitos, o peito
ossudo. Os olhos não eram mais claros do que os de Thaddeus nem menos
raiados de veias e amarelados, contudo, contrastavam com a pele cor da noite.
Por instantes, Thaddeus sentiu um arrepio de medo percorrê-lo. Como teria um
nobre filho de Acácia sobrevivido entre aquela gente? Não conseguia sequer
imaginar. Talvez tivesse sido um erro terrível. Afastou o pensamento, pois a
dúvida não tinha lugar no modo como se pretendia apresentar.
— Em nome do rei, amigo — disse —, agradeço-vos pelo que haveis feito.
— Nada vejo — retorquiu Sangae, outra frase peculiar do seu povo, uma
negação de que tivesse feito fosse o que fosse digno de agradecimento.
— Falais a minha língua melhor do que falo a vossa.
— Tive alguém com quem a praticar durante alguns anos. Como foi a vossa
viagem?
Os dois falaram algum tempo sobre este assunto, um tema fácil, pois não
trazia nada de importante sobre a razão da sua presença. Somente pormenores.
Mas tão amável tagarelice não podia durar muito e Thaddeus, apesar de recear a
resposta, perguntou por fim: — O príncipe está bem?
Sangae acenou ligeiramente com a cabeça, embora não fosse propriamente
um gesto de afirmação. Indicou a Thaddeus que entrasse em sua casa e
sentaram-se em frente um do outro, numa grande esteira de cores vivas. Entre
eles, uma rapariga colocou uma cabaça de água. Pouco depois, pousou uma
tigela com tâmaras e retirou-se. As paredes eram abertas a toda a volta. Mesmo
no interior, o povo de Umae gostava de espaço, de vistas abertas e de ar em
movimento. Thaddeus ouvia gente atarefada em todas as direções, mas o espaço
tranquilo que os dois homens ocupavam permitia privacidade. O lugar era
surpreendentemente fresco, tendo em conta o sol intenso que fazia lá fora. Sabia
bem.
— Aliver anda à caça do larix — acabou o chefe por dizer. — Anda fora há
duas semanas. Se Billau quiser, estará de volta a qualquer momento. Mas não
duas semanas. Se Billau quiser, estará de volta a qualquer momento. Mas não
devemos falar disto. Não é bom avisar os espíritos dos animais das suas
intenções. Vós é claro que sois meu convidado até ele regressar. — O homem
pegou numa tâmara com os dedos. Depois, não pareceu interessado em comer o
fruto. — Nove anos. Há nove anos que o rapaz aqui chegou, o tempo bastante
para eu começar a pensar que não viríeis mais, e que Aliver era mesmo meu
filho. Não tenho outro, sabeis disso, é a minha maldição.
Thaddeus esteve quase a responder àquela aparente autocomiseração com
rispidez. Melhor era nunca ter tido um filho do que ter perdido um por traição,
pensou. Mas não queria levar a conversa para esse rumo. Em vez disso, proferiu:
— Não haveis tido problemas com os Mein?
— Nunca — retorquiu Sangae. — Ouvi falar deles, mas eles nunca ouviram
falar de mim, parece. — Sorriu, irónico. — Não tenho um nome tão grandioso
como poderia ter desejado. Bebei água, por favor.
Thaddeus ergueu a cabaça com a palma das mãos e bebeu longamente.
Ofereceu-a ao chefe, que fez o mesmo.
— Foi bom que o tivéssemos enviado para cá, então. Hanish nunca deixou
de perseguir as crianças Akaran. Pelo menos um dos filhos de Leodan cresceu
como o rei desejou.
Sangae comentou então que nada sabia, claro, sobre os outros três filhos.
Mas, sim, o destino de Aliver seguira de acordo com os planos do rei. O
guardião solitário de Aliver tinha conseguido fazê-lo fugir a salvo de Kidnaban.
Haviam embarcado até Bocoum, desembarcado e juntando-se aos refugiados da
guerra. Durante algum tempo haviam viajado a cavalo, depois numa caravana de
camelos e a seguir haviam simplesmente prosseguido a pé pelas planícies que
levavam a Umae. Como tinham de viajar em segredo, haviam demorado muitas
semanas, e o príncipe chegara faminto, confuso e amargurado. Foi preciso algum
esforço da parte de Sangae para o convencer de que aquele exílio não significava
uma derrota. O conflito não estava ainda decidido. Ele era o último de uma
linhagem de grandes líderes. Lembrara-o de que o sangue de grandes heróis
corria nas suas veias. Falou-lhe de Edifus e de Tinhadin, dos obstáculos que
tinham tido de ultrapassar para chegarem ao poder. Não lhes teriam parecido as
dificuldades a enfrentar inultrapassáveis? Contudo, haviam vencido. Aliver faria
o mesmo, prometera Sangae, precisava somente de tempo para crescer e tornar-
se o homem que teria de ser.
Sangae cruzou as mãos grandes sobre um joelho.
— Isso foi o que eu lhe disse. Ele entregou-me a Confiança do Rei para
guardar e eu mantive-a escondida todos estes anos. Tem tido uma boa vida aqui,
guardar e eu mantive-a escondida todos estes anos. Tem tido uma boa vida aqui,
uma verdadeira existência de talayano. Eis a verdade. Sabeis, claro, que já não é
uma criança. Em nenhum aspeto.
— Contai-me a sua vida aqui, então.
Durante os nove anos de exílio em Talay, contou Sangae, Aliver assumira o
papel de qualquer filho de um nobre talayano de família guerreira. Fora treinado
nas artes marciais desta nação, dominando a lança e o tipo de luta corpo a corpo
que os talayanos praticavam, e até se tornara um bom corredor. De início devia
ter sido um esforço tremendo. Talvez estivesse bem treinado nas Formas, mas
isso pouco ajudara a prepará-lo para o treino que recebera em Talay. Até o treino
com a lança era completamente diferente. Ao contrário das Formas, a vida
militar de Talay não permitia gestos que não fossem inteiramente necessários.
Desde o primeiro dia em que usara uma lança talayana, aprendera que aquilo era
uma arma feita para matar. Haviam-lhe ensinado múltiplas maneiras de o fazer,
cada uma delas rápida e eficiente, necessitando de pouco tempo e esforço.
Muitas vezes fora desafiado pela dureza da terra, no uso das artes marciais, no
conhecimento da língua e cultura, pelo facto de ali não possuir estatuto exceto
aquele que poderia adquirir pelos seus atos.
— E ele enfrentou com êxito esses desafios? — inquiriu Thaddeus.
Sangae respondeu que sim. Nunca demonstrara falta de disciplina, de
vontade ou bravura. Não podia imaginar o que ia na cabeça do rapaz, pois pouco
revelava de si próprio, mas era zeloso em todas as ações. Talvez demasiado
zeloso. Tinha ainda de aprender a rir como um talayano. Ganhara a sua primeira
faixa tuvey — que significava que havia participado numa escaramuça com uma
tribo vizinha — com os homens mais jovens da sua idade. Usava-a em redor de
um antebraço. Era por isso que tinha todo o direito de caçar o larix e reivindicar
— se fosse bem sucedido — o seu lugar como homem daquela nação, com idade
suficiente para ter a sua própria propriedade, casar e sentar-se no conselho com
os anciãos.
— É importante pertencer — proferiu Sangae —, e Aliver pertence aqui.
Ninguém na aldeia diria o contrário. Tem aqui companheiros, mulheres que se
deitam com ele. Já ninguém repara na cor da sua pele. Essas diferenças não
querem dizer nada numa família. Ele pertence-nos.
Thaddeus percebeu o duplo sentido daquilo, no tom de leve aspereza da voz
do chefe. Sim, reconheceu em silêncio, era sempre difícil perder um filho,
mesmo que adotado. Pensou novamente naquele que perdera, e interrogou-se por
que razão aquilo que uma pessoa perde — ou pode perder —a define melhor do
que o que ainda possui.
que o que ainda possui.
— Não sei como vos irá ele receber — prosseguiu o chefe tribal —, mas sei
que ele não esqueceu porque foi para cá enviado. Na verdade, acho que ele pensa
sempre no que o futuro lhe reservará. Isto irrita-o, e, contudo... é assim que ele é.
— E que me dizeis da peste?
— O príncipe apanhou-a como a maior parte do meu povo. Superou a
doença, contudo, e não está agora pior por isso. — Sangae manteve-se um
momento silencioso. Desviou o olhar e contemplou um passarito a saltitar numa
vereda a alguma distância. — O que ireis querer dele?
— Não lhe peço nada. O seu pai já o fez e só Aliver poderá responder. Esse
larix é um animal perigoso de caçar?
Sangae voltou o olhar para ele.
— Poucos homens conseguem vencer tão grande prova.
Sangae explicou então que, quando se caçava o larix, no fundo, o caçador
se transformava em presa. Primeiro, havia que irritar o animal ao descobrir a
toca onde se abrigava. O caçador tinha de conspurcar a área, dando pontapés na
erva, urinando nela, cuspindo, pondo-se de cócoras para defecar. Depois disso
teria de aguardar por perto até o animal regressar, captar o cheiro e persegui-lo.
Era então que começava a caçada.
— Estais a ver, o larix não suporta insultos. Uma vez sentido o cheiro,
segue-lhe o rastro até matar o ofensor ou cair de exaustão. O caçador tem de
correr para fugir, mantendo-se contudo perto do animal para que este não lhe
perca o cheiro. Mas não perto demais. Um tornozelo torcido, um caminho mal
escolhido ou o subestimar da sua resistência... qualquer uma destas coisas
significa a morte. A única forma de matar a besta é correr até a deixar exausta e
depois atacá-la com tudo o que o caçador tiver à mão, esperando que seja
suficiente. Se Aliver sair triunfante, terá tido de passar por uma provação física e
mental tão grande que não se pode conceber. Terá vivido com um demónio
arquejante atrás de si durante horas, com a morte à distância de um passo em
falso. Este não foi um desafio que ele tivesse de aceitar. Escolheu-o, e eu tenho
rezado desde então para que estivesse pronto para ele. Há homens que morrem
nesta luta, Thaddeus. Talvez nunca venhais a ter a oportunidade de mo tirardes.
Se tiverdes a bênção de o voltar a ver vivo, podeis ter a certeza de que é forte.
Forte de um modo que nenhum Akaran o foi em muitas gerações.
— Acreditais que ele estava preparado para esta caçada?
— Veremos — retorquiu Sangae.
Esta resposta deixou Thaddeus preocupado ao longo dos três dias que
Esta resposta deixou Thaddeus preocupado ao longo dos três dias que
esperou pelo regresso de Aliver. Que cruel seria, meditava, se o príncipe
morresse agora, precisamente antes de o poder convidar a cumprir o seu destino.
Porém, não precisava de se ter preocupado. Quando Aliver regressou, a
algazarra de júbilo à sua volta só podia anunciar uma vitória. Thaddeus manteve-
se no pequeno aposento que Sangae lhe oferecera, observando a cena através de
uma janela mantida aberta com uma vara. O tumulto de corpos negros era
tremendo. Correram para as ruas como um cardume em frenesim, todos sabendo
do regresso do caçador ao mesmo tempo, largando qualquer atividade em que
estivessem atarefados. Pareciam mais numerosos do que a população da aldeia.
De onde teriam vindo todos? Thaddeus quase saiu para se juntar a eles, mas
sentiu que seria melhor manter-se escondido, observando da sombra através da
janela aberta.
Juntavam-se em redor de um veículo com rodas. Era uma carroça puxada
por vários homens, bastante grande e que normalmente estaria aparelhada a um
dos bois de longos cornos que os aldeões usavam para transportar grandes
cargas. Em vez disso, os homens tinham agarrado nos varais com as mãos nuas.
Thaddeus não conseguiu ver exatamente o que carregavam até passarem mais
perto. Ainda estavam distantes, mas suficientemente próximos para o fazerem
recuar um passo. Era um animal, uma criatura morta, tão grande que de início
pensou se não haveria várias bestas daquelas empilhadas na carroça. O bicho
tinha algo de lobo nas patas muito longas, parecia uma hiena pela grossura do
pescoço, e assemelhava-se vagamente a um javali no focinho, mas não se tratava
de nenhuma destas criaturas. Por entre a pelagem emaranhada, o animal tinha
uma pele púrpura, com pústulas e cicatrizes, seca, com zonas peladas. Era um
bicho horrível, um monstro. Como poderia Aliver ter morto tal coisa apenas com
a lança? Parecia inacreditável.
Um rapazito trepou para a carroça e tocou nas orelhas do bicho. Outros
agarraram-lhe no pelo do pescoço, fazendo girar a cabeça, sob os gritos da
multidão exultante. Outro ainda dependurou-se na mandíbula, abrindo a boca o
suficiente para fingir enfiar a cabeça lá dentro. Porém, pensou melhor e afastou-
se, exagerando o medo, causando ainda mais regozijo na multidão.
Tudo isto nada era comparado com a receção que aguardava o caçador. Era
fácil descortiná-lo. Marchava por entre a multidão como um herói épico
ressuscitado, regressado para colher uma universal adoração. Ou como o
fantasma desse herói, um vulto mais pálido do que os que o rodeavam. Abria
caminho por entre braços que o tocavam, saudando-o, rostos que se
aproximavam do seu, cada um comentando qualquer coisa, as bocas de dentes
brancos sorrindo-lhe. Pareceram, por um estranho instante, criaturas que se
brancos sorrindo-lhe. Pareceram, por um estranho instante, criaturas que se
aproximavam dele para o morderem, mas Thaddeus sabia que isto era uma
ilusão dos seus próprios olhos e que não correspondia à cena que se desenrolava
à sua frente.
Thaddeus ficou surpreendido com a estatura de Aliver. Era bastante mais
alto do que o pai fora. Sob o sol constante e intenso, a sua pele adquirira um
aspeto de couro oleado, embora fosse ainda mais clara do que a dos talayanos.
Tinha o peito nu. Os músculos delineavam-se harmoniosamente, bem
proporcionados. O cabelo ondulado estava tingido com mechas amarelas,
tornando-o mais claro do que jamais teria sido em Acácia. Por causa disto,
poderia parecer fora do lugar naquela aldeia distante no sul de Talay. Contudo,
ao mesmo tempo, nunca tinha parecido tão à vontade consigo mesmo. Era agora
um homem escultural e bronzeado, de musculatura vigorosa, pleno daquela força
exuberante do porte da juventude. Usava a bracelete de ouro — a faixa tuvey —
acima do bíceps esquerdo como se fizesse parte dele e ali tivesse estado sempre.
Recebia bem as atenções, sorrindo e respondendo aos comentários com
gentileza, mas sem um ar de superioridade.
Por instantes Thaddeus pensou se não haveria uma ligeira humildade na sua
expressão, como se, de facto, não tivesse morto aquela besta como aquela gente
pensava. Muitos dos nobres de Acácia ficavam com o mérito das mortes
executadas pelos seus criados. Observando-o um pouco mais, decidiu que o que
quer que Aliver guardasse para si próprio o fazia por razões que nada tinham a
ver com a vergonha. Enviou um mensageiro a Sangae, dizendo que não queria
interromper a receção de boas-vindas de Aliver. Pediu que lhe enviassem Aliver
ao seu encontro mais tarde, depois de toda a agitação ter passado.
Quando se encontraram, nada correu como Thaddeus esperara. Meses antes,
ao imaginar este encontro, Thaddeus pensara cumprimentar Aliver com um
abraço. Abraçaria o rapaz contra si, afastando qualquer distância entre eles,
qualquer recriminação. O laço restabelecer-se-ia imediatamente. Bastaria um
toque para acontecer, e tudo voltaria ao lugar. Porem, quando Aliver percorreu
os últimos passos que os separavam, Thaddeus percebeu que isso não passara de
uma fantasia.
— Olá, Aliver! — disse. Ficou aliviado por ainda manter algum controlo,
por mais débil que fosse. — Venho ver-te para te chamar a cumprir o teu
destino. Chego no momento próprio. Vejo que te tornaste hoje num destruidor de
monstros. Congratulo-te. O teu pai teria ficado orgulhoso.
Que estranho, pensou Thaddeus, que o homem perante si guardasse tanto
das feições de menino — no olhar, na curva do lábio superior e no oval da
cabeça. No entanto, era também o rosto de um estranho. Contemplá-lo era como
cabeça. No entanto, era também o rosto de um estranho. Contemplá-lo era como
ouvir uma nota dissonante numa canção conhecida. Perdera toda a suavidade das
feições, apesar de o efeito ser mais devido à sua atitude severa do que às próprias
feições. Seria desafio aquilo que lhe brilhava nos olhos? Raiva? Surpresa ou
desapontamento? Thaddeus não sabia, embora respeitasse a resposta silenciosa
do príncipe, tentando ler-lhe os pensamentos.
— Foste tu mesmo a matar aquele monstro?
Quando por fim Aliver falou, havia um sotaque talayano na sua voz, a
língua soltava-se nas vogais, mas não perdera a fluência na língua materna.
— Aprendi a fazer muitas coisas. Então não morreste?
Não era a saudação que Thaddeus tivera a esperança de ouvir.
— Senta-te, por favor — convidou. Proferiu as palavras sem pensar, mas
estava contente. Ainda se mantinha calmo. Sabia disso. Ainda tinha algum
controlo. Aguardou até Aliver se sentar, de pernas cruzadas, as costas direitas
como uma tábua.
Thaddeus pegou numa carta que estava sobre a mesa baixa à sua frente.
— Comecemos por isto, príncipe. Lê-a. É importante que o faças.
— Sabes o que diz? Thaddeus assentiu.
— Mas sou o único.
— Isto não é a letra do meu pai — disse Aliver, após uma leitura rápida.
— É a minha mão, mas são as palavras dele. Lê-as e julga por ti.
O jovem inclinou a cabeça para o papel. O olhar percorreu a página até ao
fim e retomou a leitura novamente. Thaddeus desviou o olhar. Não é correto
olhar para quem lê. De qualquer modo, conhecia a mensagem de cor. Conhecia
bem o modo como Leodan expressava o seu amor pelo primogénito. Tentou não
pensar nisso, permitindo a Aliver privacidade. No entanto, não conseguia
esquecer as palavras com que a mensagem acabava, pois teria de as abordar
quando o príncipe erguesse os olhos.
— Isto não pode ser a sério — disse Aliver. Parara de ler. Olhava a página
com ar mortiço, nem levantando os olhos nem continuando a ler.
— Tudo isso é muito sério. De que parte duvidas?
O jovem abanou a folha indicando que tudo aquilo estava em questão.
— Esta conversa sobre os Santoth, os Falantes dos Deuses... Isto não pode
ser levado a sério. O meu pai, se me queria dizer isto, devia estar às portas da
morte. Não pensava claramente. Olha o que aqui diz. Filho, fingiu irreverência
ao citar, agora que cresceste, é tempo de salvares o mundo... e pede-me que faça
isso indo à procura de uns magos místicos e loucos.
— Os Santoth podem ser tão reais como tu e eu.
Aliver fitou o chanceler.
— Podem ser? Já viste algum? Já fizeste magia ou viste fazer?
— Existem relatos — começou Thaddeus, mas baixou a voz perante a
refutação de Aliver. — Existem relatos, dos quais nada sabes, que testemunham
os Santoth com grande pormenor.
— É um mito! — Aliver quase que cuspiu a palavra, como proferindo uma
praga.
— O mito vive, Aliver! Essa é uma verdade tão irrefutável como o sol ou a
lua. Vês a lua neste momento? Não, mas sabes que a verás novamente. O teu pai
diz que os Santoth poderão vir a caminhar novamente sobre o Mundo
Conhecido. Que nos poderão ajudar a ganhar novamente o poder, como antes
fizeram. Precisam apenas que tu — um príncipe Akaran que será rei — lhes
levantes o exílio. Isto faz parte da razão por que foste enviado para Talay, para
estares próximo dos Santoth, para que pudesses conhecer estas terras e ganhares
a destreza para os procurar, para os descobrires onde estão. O teu irmão e as tuas
irmãs foram para outros lugares, embora pouco tenha corrido como se desejava.
Contar-te-ei tudo isso, Aliver. Saberás tudo o que sei. Tudo. Dar-te-ei notícias de
Hanish Mein também. Anda a planear alguma coisa para os antepassados, os
Tunishnevre. Constituem uma outra força que poderás pensar não ser mais do
que um mito, e, no entanto, são eles que concedem o poder a Hanish...
— Quem são esses «nos» que mencionas?
— Há muita gente que aguarda o teu regresso. No fundo, podemos dizer
que todo o mundo te aguarda. Existem razões que só tu poderás...
— Porque me haverei de importar com o teu mundo ou acreditar numa
palavra do que dizes? Encontrei uma nova vida, com pessoas que só dizem a
verdade.
Thaddeus sentiu um nó na garganta. Teve um impulso momentâneo para
lhe bater com a mão, mas controlou-se.
— Houve uma altura em que me chamavas tio. Amavas-me. Disseste-mo
em criança, e eu também te amava. Sou ainda o mesmo homem. E sei que te
preocupas com o destino do mundo. Sempre te preocupaste. Nada te poderia
arrancar isso. Aliver, é isto que o teu pai pretendia. Tudo o que aqui aprendeste...
arrancar isso. Aliver, é isto que o teu pai pretendia. Tudo o que aqui aprendeste...
o homem que te tornaste... — Aliver mantinha uma expressão completamente
indecifrável, o que fez com que Thaddeus se interrompesse. — Vejo que queres
ser um mistério para mim, mas não és — repetiu estas palavras com mais
certeza. — Não és.
— Dizes que o que faço é uma escolha minha?
— Sim.
Aliver retorquiu:
— Então já me disseste meias verdades. Sabes que não tenho escolha. Nem
admitiste que traíste o meu pai. Um homem honesto tê-lo-ia feito logo de início.
Sim, eu sei. Como podia não saber? O mundo conhece a traição de Thaddeus
Clegg. O próprio Hanish Mein a declarou, e ouvi isso ainda antes de ter vindo
para cá, quando viajava na caravana de camelos. Os homens discutiam se serias
mau por natureza ou somente louco. Não me juntei a eles na conversa, mas sei
que na verdade és ambas as coisas. Poderás não ter sido tu a cravar-lhe a faca no
peito, mas — mas é como se o tivesses feito. Se fosses um servidor verdadeiro
de meu pai, cairias de joelhos e implorarias perdão.
O príncipe pôs-se de pé com um movimento ágil, endireitando o corpo
enquanto descruzava as pernas. Tinha acabado. Preparava-se para voltar costas e
sair. Ergueu um pé e preparou-se para se afastar. Thaddeus não estivera
preparado para aquele momento. Não planeara isto. Não imaginava que Aliver
pudesse dizer o que dissera ou que ia responder-lhe daquela maneira.
Levantou-se. Agarrou com uma mão a perna de Aliver. Com a outra mão
puxou-o para si e, num instante, tinha abraçado as pernas do jovem. Não fora
aquilo que pretendera, mas não o largou. Continuou a agarrá-lo, preparado para
sentir o punho do príncipe a abater-se sobre a sua cabeça. Foi só então que
compreendeu completamente que esperara todos aqueles anos por aquilo, fora o
que receara e mais quisera, o que realmente lhe importava com uma urgência
maior do que o destino das nações. Perdão. Precisava de ser perdoado. Para o
ser, precisava de contar toda a verdade. Era o que podia fazer. Por uma vez,
confiaria inteiramente a verdade. E se Aliver era o príncipe de que o Mundo
Conhecido precisava, saberia como enfrentar tudo aquilo.
Capítulo 32

A jovem ia observando a enguia enquanto esta abria um caminho sinuoso


pelas águas azuis transparentes. Estava deitada de barriga para baixo, nua, exceto
o pano que lhe envolvia as ancas, sentindo a rugosidade da madeira seca do
molhe no abdómen, peito e pernas. O sol batia-lhe nas costas com uma
intensidade que queimava. Tinha a pele bronzeada devido à longa exposição ao
sol, pelando em alguns pontos do corpo, e os seus finos pelos louros eram quase
brancos. Deixara de ser menina havia uns anos — daí o pano em volta das ancas
— mas, com vinte e um anos, mantinha ainda um aspeto infantil na sua figura.
Os seios eram suficientemente bonitos para que os sacerdotes tivessem
dificuldades em tirar os olhos deles, mas eram pequenos e não a incomodavam,
o que lhe agradava. Não parecia de modo nenhum a encarnação material de uma
deusa, mas era isso precisamente que era. Era a sacerdotisa de Maeben, a
deidade feminina principal do povo de Vumu, reverenciada em todas as ilhas
conhecidas coletivamente como Arquipélago de Vumu.
A enguia que tão atentamente observava era uma demonstração de curvas e
movimento. Nunca parava, deslizando pelas águas translúcidas até uma distância
que fixara, depois voltava, deslizando pelo mesmo caminho, desenhando e
redesenhando uma forma oblonga, num movimento ritmado. A água era pouco
profunda ali, pouco menos de meio metro, e a enguia nadava à superfície, mas
sob a ondulação via-se a areia macia e esbranquiçada do fundo do mar. A jovem
sacerdotisa poderia ficar a observar o peixe movimentando-se contra aquele
fundo indefinidamente. Algo nele trazia-lhe paz, algo punha uma questão cuja
resposta se assemelhava ao zumbido que o caminho da enguia faria, se se
pudesse ouvir. Teria gostado disso, apesar de até agora ter descoberto que a vida
colocava mais questões do que respostas.
Levantou-se e começou a caminhar através do emaranhado de molhes que
desenhavam um caos geométrico no suave arqueado da baía. Sabia pela posição
do sol que estava na altura de se preparar para a cerimónia da noite. Se não
regressasse depressa ao templo, os sacerdotes viriam à sua procura. Por instantes
pensou em deixá-los fazer isso. Ficavam nervosos, e a dada altura divertira-se a
causar-lhes embaraços. Mas isso fora antes. À medida que o tempo passava,
dava por si mais incapaz de se imaginar numa vida em que não fosse Maeben,
em que as horas do dia não se ordenassem de acordo com aquela função.
Deixando os molhes para trás, tinha de atravessar o centro da vila, que se
chamava Ruinat. Era pouco maior do que uma aldeia de pescadores, de certa
forma semelhante às outras povoações de Vumair, a ilha principal do
arquipélago. Contudo, era ali que se encontrava o Templo de Maeben e, por isso,
tinha uma importância desproporcionada à sua humilde aparência. Galat, na
costa oriental da ilha, servia como grande centro de comércio, mas nada tinha de
sagrado. Ruinat era um lugar de humildade, sossegado agora, pois o calor do
meio-dia banhava o mundo com uma intensidade cintilante e branca. A maioria
dos habitantes encontrava-se no interior fresco das suas casas, descansando,
enquanto as horas lânguidas da tarde passavam, sonhadoras.
A sacerdotisa seguiu em frente pela rua principal coberta de cascalho, de
peito nu e sem nada para se cobrir. A sua identidade terrena não era segredo para
a população comum. Toda a gente na vila a conhecia. Haviam-na visto crescer,
desde que chegara à ilha, em menina, saindo das ondas do mar com uma espada
empunhada, falando uma língua estranha e sem saber ainda o seu verdadeiro
nome. Haviam rido com ela ao longo dos anos, ensinaram-na a falar vumu,
correram atrás dela pelas ruas, contaram-lhe piadas — por vezes até picantes —
para ela se rir. Quando passara a encarnar Maeben, claro, já nenhum deles era
tão atrevido. Mas todas as coisas tinham o seu tempo e lugar.
Ao aproximar-se do templo, a sacerdotisa tinha de passar através de um
passeio com filas de estátuas de deuses. Os totens eram enormes, feitos dos
troncos das maiores árvores da ilha da deusa, tão grandiosas que as imagens do
topo se perdiam de vista. De qualquer modo, não eram para serem vistas da
perspetiva terrena. Eram tributos a Maeben, para serem apreciados de uma visão
divina, que circundava os altos céus lá em cima.
Dizer que a deusa era uma águia-marinha seria um erro crasso, um
sacrilégio. Ela poderia ter essa forma, ter irmãs e primas que eram verdadeiras
criaturas aladas, mas Maeben era superior a todas elas. Os seus olhos claros tudo
viam, perspicazes, capazes de se focarem numa e em todas as pessoas e ver o seu
íntimo. Merecia — exigia — o seu respeito. E possuía o poder de lhes lembrar
isso sempre que o desejava.
Ao longo dos anos, a jovem aprendera que existiam muitos deuses no
panteão vumu. Eram divindades como Cress, que dominava a mudanças das
marés. Uluva nadava à frente dos atuns, orientando-os nas migrações anuais
perto da ilha. Banisha era a deusa-rainha das tartarugas do mar. Era somente
com a sua bênção que as filhas trepavam pelas praias do sul em cada verão e
enterravam os seus ovos na areia quente. Havia o crocodilo, Bessis, que comia a
lua, pedaço a pedaço, todas as noites, até esta desaparecer, só saciado pelo festim
lua, pedaço a pedaço, todas as noites, até esta desaparecer, só saciado pelo festim
até o fruto da lua despontar de novo e ficar complemente cheio. Então, Bessis
saía do torpor em que mergulhara e recomeçava o festim. Era, acabou ela por
compreender, um mundo em que o ciclo natural das coisas estava sempre em
causa, dependendo da boa vontade e bênção de tantas divindades diferentes. Só
dois deuses partilhavam o vértice do panteão vumu, e só um deles era
fundamental na vida dela.
Maeben não era uma deusa com funções no mundo natural como eram
tantos outros. Desde o dia em que nascera que desdenhara de se submeter a tais
labores. Era a deusa da ira, a irmã ciumenta do céu que acreditava ser ofendida
por todos, pelos deuses, pelos seres humanos, pelas criaturas, até pelos
elementos. Maeben, a Furiosa, facilmente se irritava e era feroz na retaliação.
Dos céus atirava tempestades, chuvas e vento, batendo o bico para criar as
faíscas que eram relâmpagos. Observando os seres humanos, há muito que
concluíra que eram orgulhosos demais, demasiado favorecidos pelos outros
deuses. Apenas uma vez achara um ser humano agradável, mas isso apenas
causara tragédia.
O homem chamava-se Vaharinda. Os pais eram simples mortais, mas, por
uma razão qualquer, ele fora abençoado ainda antes de ter saído do ventre da
mãe. Em vez de ser a mãe a cantar-lhe para adormecer, era ele quem lhe cantava
para a acalmar. Em vez de a mãe acariciar o seu ventre para o consolar, era ele
quem a afagava do interior do útero. Vaharinda exercia encanto sobre as
mulheres, a mãe sabia-o ainda antes de ele ter nascido. Quando veio ao mundo,
todos se maravilharam ao contemplá-lo. Era perfeito. Vingou como uma erva
daninha, mas era em tudo de uma perfeição extrema. Quando teria entre seis e
sete anos, havia mulheres feitas que desfaleciam ao vê-lo. Aos onze anos,
conhecera centenas delas sexualmente. Aos quinze anos, mil raparigas lhe
chamavam esposo e diziam ter tido um filho seu. Era também um caçador de
grande destreza e bravura, um guerreiro que nenhum homem conseguia derrotar.
Pegava em armas que os outros homens nem sequer conseguiriam levantar. Os
inimigos, ao contemplá-lo, só conheciam o medo.
Um dia, Maeben viu Vaharinda dar prazer a uma mulher após outra. Viu
como elas gemiam sob o corpo dele, arrebatadas, numa alegria maravilhada.
Ouviu-as chamar os nomes de outros deuses, pedindo-lhes para testemunharem o
êxtase que sentiam. Tudo isto despertou a curiosidade de Maeben. Adquiriu a
forma humana e aproximou-se de Vaharinda. Não esperava deitar-se com ele,
mas assim que o olhou nos olhos, não conseguiu resistir. Que espécimen! Que
instrumento de prazer se encurvava entre as pernas dele! Porque não montá-lo e
ver por si própria que alegrias a carne poderia trazer?
Foi precisamente o que fez. E foi bom. Foi muito bom. Deixou-se ficar
estendida na areia, ofegante, e, a seguir, só muito lentamente se apercebeu de
que Vaharinda não se comovera também. Estava já a conversar com outra
mulher. Furiosa, Maeben chamou-o e exigiu-lhe que a tomasse novamente.
Vaharinda não viu razão para o fazer. Disse-lhe que era bastante bonita, mas não
tanto assim que o fizesse renunciar às outras mulheres. Ela tinha olhos azul
claros como o céu, dissera, mas ele preferia mulheres de olhos castanhos. Ela
tinha o cabelo liso e fino como as nuvens lá muito, muito alto, que assinalam a
mudança de tempo; mas ele preferia o cabelo farto e negro que podia entrelaçar
nos seus grandes dedos. Ela tinha a pele quase branca da cor da areia; era
invulgar, sim, mas o seu gosto estava mais inclinado para tonalidades
bronzeadas pelo calor do sol.
Ouvindo tudo isto, Maeben enraivecia-se cada vez mais. Assim, largou,
rugindo, a sua forma humana e transformou-se numa grande águia-marinha
irada. Tinha as asas tão grandes como nunca se vira, com garras que poderiam
prender um homem pela cintura, afiadas como espadas curvas. Perguntou-lhe se
gostava mais dela assim. As pessoas que presenciaram isto fugiram de medo. Só
Vaharinda ficou. Nunca vira nada que o amedrontasse e não fazia tenções de se
assustar agora. Agarrou numa das suas lanças e travaram uma enorme batalha.
Combateram por toda a ilha e subiram às montanhas. Lutaram nos ramos das
árvores, dando saltos até ao céu e correndo sobre a superfície do mar. Vaharinda
lutava como nunca ninguém lutara, mas, no fim, não conseguiu vencer. Afinal,
era um ser humano; Maeben tinha origem divina. Por fim, ela esmagou-o com as
garras. Sentou-se num ramo onde todo o povo de Vumu a podia ver e comeu-o,
pedaço a pedaço, até nada restar. Depois, voou para longe. Contudo, a história de
Vaharinda não acaba aqui.
A sacerdotisa deixou a avenida dos deuses para trás e apressou-se pelo
caminho que serpenteava até ao complexo do templo. A determinada altura
parou e olhou para o porto, lá atrás. Agora estava bastante animado. Havia várias
embarcações a chegar às docas, trazendo peregrinos desejosos de verem a deusa
em forma humana. Iria recebê-los dentro de poucas horas, como fazia todos os
dias.
Ao aproximar-se das instalações do templo, a jovem parou uma vez mais.
Gostava imenso de contemplar a estátua de Vaharinda, erguida num pedestal ao
lado da entrada, simbolizando quer uma homenagem ao homem quer ao poder
supremo de Maeben. O povo de Vumu decidira honrar o herói. Fora o mais forte
de todos eles, o mais belo de se ver, o mais corajoso, o mais dotado para agradar
às mulheres, o homem a quem os outros homens gostariam de se igualar.
Tinham oferecido riquezas aos povos de Teh, na costa de Talay, e trazido em
Tinham oferecido riquezas aos povos de Teh, na costa de Talay, e trazido em
troca, para as suas terras, um enorme bloco de pedra, com uma textura
completamente diversa das que existiam na ilha. A partir dela talharam a estátua
de Vaharinda. Representaram-no sentado na posição reclinada em que gostava
de descansar, os músculos esculpidos na pedra tal como eram em vida. Estava nu
e — tal como acontecera em grande parte da sua vida — com o pénis ereto,
como um punho fechado erguido ao céu. Era uma estátua maravilhosa, como
nunca houvera no mundo outra assim.
Com tal beleza para contemplar, o povo de Vumu em breve começara a
adorar Vaharinda como deus. Dirigiam-lhe preces, pediam-lhe favores,
ofereciam-lhe flores e joias e queimavam oferendas em seu louvor. Em pouco
tempo as mulheres, vendo na estátua o homem que tinham amado, montavam
sobre o seu pénis e davam prazer a si mesmas. Iam ter com ele, preferindo-o aos
maridos, e muitas diziam que tinham sido insufladas com vida a partir do sémen
do deus de pedra. Vinham ter com ele tantas vezes e em tão grande número que
as estrias e contornos do membro se tornaram mais macios e o comprimento
diminuíra gradualmente. Porém, mesmo assim, continuava a dar prazer e — no
seu modo silencioso — também o recebia.
Maeben detestava tudo aquilo. Irritava-a mais do que o desdém que
Vaharinda tivera por ela. Encarregou-se de as humilhar da forma que mais as
magoaria. Primeiro, pousou sobre a estátua e agarrou o pénis de Vaharinda,
arrancando-o. Levou o pedaço partido até ao mar e aí o largou. Um tubarão viu-a
fazer isto. Pensando que ela lhe atirara um pedaço de comida, o tubarão ergueu-
se das profundezas e engoliu o pénis numa só dentada. Maeben rejubilou.
Vaharinda nunca mais daria prazer às mulheres. Contudo, ela ainda não
concluíra a sua vingança sobre as mortais. Resolveu retirar a dádiva que
Vaharinda dera às mulheres que o haviam amado. Tirou-lhes os filhos. Desceu
em voo rasante dos céus, agarrou nos pequeninos com as garras e bateu, bateu,
bateu as asas até levantar voo, com as crianças aos berros, estrebuchando entre
as suas garras, desesperadas com a ira da deusa.
A jovem sacerdotisa, passando agora pela estátua para entrar no complexo
do templo, não conseguia resistir a olhar para o baixo-ventre danificado da
estátua. Parte dela sabia que não se deveria sentir assim, mas, no fundo, gostaria
de ter conhecido Vaharinda na sua glória. Até sonhava em o montar como se
dizia que outras mulheres tinham feito. No entanto, nesses sonhos, ele não era
apenas de pedra. Estava vivo e os atos que praticavam juntos eram de tão
excessiva sensualidade que ela acordava muitas vezes espantada por ter
imaginado tais coisas. Afinal de contas, era uma virgem. Tinha de ser. Tinha um
papel neste drama. Havia muito tempo os sacerdotes tinham adivinhado que a
papel neste drama. Havia muito tempo os sacerdotes tinham adivinhado que a
única forma de apaziguar Maeben era escolher um símbolo vivo dela, que se
apresentasse todos os dias ao povo para que a não esquecessem. Os sacerdotes
diziam que os seres humanos precisavam de ter cuidado em nunca tomar
demasiada alegria na vida. Deveriam sempre lembrar-se de que viviam e
prosperavam somente pela graça generosa de Maeben. Deveriam olhar sempre
para quem amavam com alguma tristeza. Nunca deveriam gozar de saúde sem se
lembrarem de que a doença estava somente a um passo de distância. Nunca
deveriam cantar louvores à bonança, sabendo que, no fim de cada verão, viriam
as tempestades que causariam destruição, indiferentes ao sofrimento humano.
Todos estes perigos diários da vida eram necessários, diziam os sacerdotes, para
apaziguar a deusa de olhos ciumentos sempre atenta ao que se passava cá em
baixo na terra. E a sacerdotisa, acima de tudo, nunca deveria sucumbir à luxúria
em que Maeben erradamente caíra com Vaharinda.
Talvez devido a esta penitência, as ilhas Vumu eram um lugar abençoado
com tal abundância que enchia as pessoas de confiança na fé que professavam.
As ostras que recolhiam num dos portos abrigados eram abundantes. Os
cardumes de peixe-gato, cada um do tamanho de um homem grande, enchiam os
rios lamacentos vindos das colinas, saltitando pelas águas, tão visíveis que os
pescadores tinham apenas de lhes atirar a lança, a partir das canoas, para os
apanhar. No mar, o atum enchia-lhes as redes até rebentarem, na primavera. No
fim do verão, as árvores nos vales gemiam sob o peso dos frutos. Até mesmo
rapazinhos de oito e nove anos eram considerados aptos para irem aos montes
caçar. Voltavam sempre carregados com carne de macaco, esquilos e com
alguma ave tão roliça que tinham dificuldade em a carregar debaixo do braço.
Na verdade, Maeben tinha muito que invejar e o povo de Vumu muito que
agradecer.
— Sacerdotisa — chamou-a uma voz do alto da escadaria do templo. —
Vinde, vinde, demorais-vos demais. — Era Vandi, o sacerdote responsável por a
preparar para a cerimónia. Gostava de parecer severo, mas, no fundo, tratava-a
com doçura, como um tio que sabe que tem apenas autoridade limitada sobre a
sobrinha. Estendeu-lhe um robe como se ela já estivesse perto dele para o vestir.
A jovem subiu os degraus de pedra de três em três. Eram degraus baixos,
para que quem se aproximasse do templo o pudesse fazer com passos comedidos
e reverentes. Porém, isto aplicava-se aos que vinham adorar, não àquela que era
adorada.
— Tem calma, Vandi — pediu ela. — Lembra-te de quem é que aqui serve
quem.
Vandi, como quase todos os habitantes de Vumu, era de pequena estatura,
Vandi, como quase todos os habitantes de Vumu, era de pequena estatura,
com cabelo negro como a noite, olhos esverdeados e lábios finos. Como era
sacerdote e se encontrava muitas vezes no interior do templo, a pele não estava
tão bronzeada como a de muitos dos aldeões, mas mesmo assim era
impressionante contemplá-lo.
— Todos servimos a deusa — proferiu, zombeteiro.
A jovem vestiu o robe que lhe ofereciam e deixou que ele a levasse
apressadamente para dentro do templo. Nos seus aposentos, repletos de perfumes
de incenso, as servas atarefaram-se à sua volta para a preparar. Ornaram-na com
as várias camadas de penas do seu traje, com dedos hábeis. Outras maquilharam-
na e colocaram a máscara com bico de pássaro sobre a sua boca, com cuidado
para que pudesse respirar à vontade. Em seu redor atarefavam-se os perfumistas,
sorvendo goles de preciosas cabaças e exalando a água perfumada sobre ela,
num sopro delicado que haviam levado anos a aperfeiçoar. Colocaram-lhe garras
nos dedos, apertando-as em redor das mãos e dos pulsos com faixas em pele.
Cada mão levava três garras, duas presas semelhantes e um polegar que
suportava o peso dos outros. Eram relíquias aterradoras de uma verdadeira
águia-marinha, uma ave tão grande que se deveria aproximar da grandeza da
deusa.
A jovem permanecia quieta no meio de toda esta azáfama, de braços
erguidos para os lados, impassível, enquanto eles trabalhavam. Recordava-se de
que o pai, havia muito tempo, estivera por vezes em situação semelhante
enquanto o vestiam. Talvez, pensou, não se tivesse afastado tanto das suas
origens como pensava. Antes de se ter tornado sacerdotisa, dera pelo nome de
Mena. Agora, era Maeben. Não era assim tão diferente. Havia alturas em que se
lembrava da família com uma clareza que a espantava, mas a maior parte das
vezes via-os como imagens imóveis no interior de molduras, como retratos
pendurados nas paredes
do seu espírito. Até a si própria se via assim. A princesa Mena, vestida com
demasiada roupa, com um pingente valioso ao pescoço e ganchos reais no
cabelo. Lembrava-se bem de dois dos irmãos, mas novamente a memória lhos
apresentava em atitudes estáticas: Aliver, muito sério, tão preocupado com o seu
lugar no mundo, e Dariel, de tão bom coração, inocente e desejoso de agradar.
Não conseguia imaginar Corinn inteiramente. Isso perturbava-a. Deveria ter
conhecido a irmã melhor do que aos outros, mas de facto era a mais difícil de
conseguir situar como carácter preciso. Nada disto importava, contudo. Quer
gostasse quer não, deixara essa vida para trás. Tinha agora uma existência
completamente diferente.
Uma manhã, anos antes, acordara, sabendo ainda antes de abrir os olhos
que se encontrava a navegar num pequenino barco a remos. Olhou para o vasto
céu azul e branco. Se erguesse a cabeça, veria em seu redor a mesma crista
branca das ondas que via havia dias e, pela primeira vez, sentiu-se mais exausta
do que com medo. O seu guarda talayano era um homem taciturno. Evitava
ostensivamente olhar para ela, mantendo os olhos escuros fixos no horizonte, ou
na vela ondulante, ou nas amuradas do barco, observando a ondulação.
Não se sentia inibida de olhá-lo fixamente, estudando-lhe o rosto magro,
observando como manobrava o barco tão habilmente, apesar de lhe faltarem dois
dedos na mão esquerda. Usava-a sem hesitação, mas com movimentos forçados
que atraíam o olhar da rapariga, que era incapaz de os desviar. Raramente vira
aquele género de deformidade em Acácia. Nunca entre os criados, certamente, e
os dignitários de visita teriam ocultado tal deformação. Não era tão corpulento
quanto originalmente pensara, mas talvez ela estivesse a perder a perspetiva das
coisas, visto ele ser a única figura à vista, numa embarcação pequena no meio da
vastidão do mar. Corpulento ou não, era um soldado. Usava uma espada curta à
cintura. O punho de uma outra espada, mais comprida, encontrava-se à vista
num compartimento do convés. Parecia-lhe, no lugar em que estava, que talvez
ele a tivesse tentado esconder.
Pela centésima vez, sentiu vontade de abanar a cabeça ao absurdo de tudo
aquilo. Acreditara nele quando ele tentara explicar-lhe que aquele plano fora
delineado pelo pai, mas isso não o tornava mais sensato. Fora o rosto daquele
homem que ela vira, assim que abrira a porta do quarto, em Kidnaban. Fora nele
que confiara, quando, montados em dois póneis, tinham enveredado pela estrada
ao longo da costa. Na floresta, ele tinha-lhe cortado o cabelo com uma tesoura de
tosquiar ovelhas. Vestira-a de roupa rude e explicara-lhe que a história que
contariam — se viessem a precisar — era de que ela era um rapaz que lhe servia
de criado como paga de uma dívida de família. Afinal de contas, ninguém fez
perguntas sobre ela.
Navegavam de porto em porto, reservando passagem sempre que podiam, e
foi somente ao chegarem a Bocoum que o homem optou por adquirir a pequena
embarcação onde seguiam agora. Regateara o barco durante quase uma hora,
enquanto ela observava, perplexa. Perguntara-lhe variadas vezes por que razão
viajavam daquele modo, mas ele respondia sempre para ela ler a carta que lhe
apresentara. Nesta, escrita com a letra de Thaddeus, havia apenas uma
explicação muito breve. A melhor maneira que ela tinha para fugir e se esconder
era fazê-lo sem alarde, sem atrair atenções indesejadas nem pedir luxos.
Ninguém acreditaria que as crianças Akaran viajavam apenas com um único
protetor; assim, poderiam andar escondidos à vista de todos e continuar sem que
protetor; assim, poderiam andar escondidos à vista de todos e continuar sem que
ninguém os importunasse. Era imperioso que não deixassem pistas que alguém
pudesse, mais tarde, juntar e seguir. Isto, raciocinava ela, era a razão por que não
podiam mostrar que poderiam contar com as finanças do reino. Aquele
fingimento, para dizer o mínimo, começava a ser cansativo.
— Aonde me levais? — perguntou Mena.
O guarda virou a cabeça para trás e observou o mar. Mena reparara que ele
fazia isto frequentemente, quase de minuto a minuto, como se fosse um impulso
que a sua maneira reservada não conseguia reprimir.
— Estou a cumprir o que me ordenaram — respondeu.
— Sei disso. Mas para onde vos deram ordem de me levardes?
— Para o Arquipélago Vumu. Tal como vos disse ontem e anteontem,
princesa.
— Porquê?
— Não sei. Estou apenas a cumprir ordens.
— Levar-me-íeis para casa, em vez disso?
Ele fitou-a nos olhos um instante, exprimindo uma emoção que ela não
entendia. Depois olhou novamente para trás.
— Não posso. Mesmo que quisesse... não posso. Compreendo que estejais
com medo, mas tudo o que posso fazer para vos ajudar é isto.
— Quanto tempo demoraremos a lá chegar?
— Mais alguns dias. Depende do vento, das correntes. — Fez um gesto
com a mão, como se desconfiasse destas coisas e nem estivesse bem certo de
onde se encontravam.
Mena fitou-o, sem se mostrar impressionada.
— De qualquer modo, eu não disse que estava assustada. Porque não parais
de olhar para trás? Para onde olhais?
Ele olhou-a, carrancudo, e depois voltou a fixar o olhar em frente, como se
não fosse responder àquilo. Porém, algum respeito que tinha pela família dela —
por mais que se tivesse alterado pelos recentes acontecimentos — fê-lo
arrepender-se.
— Há um barco — proferiu por fim — atrás de nós. E aproxima-se. Assim
era. Ainda mal se via. Mena poderia tê-lo vislumbrado e pensado ser apenas
mais uma crista das ondas. Surgia e desaparecia de vista, quando, tal como eles,
subia e descia nas ondas. De início, Mena não acreditava que vinha no encalço
subia e descia nas ondas. De início, Mena não acreditava que vinha no encalço
deles. Como poderia ele afirmar isso em tal vastidão de mar? Porém, uma hora
mais tarde, pensou que talvez os perseguisse e que poderia estar agora mais
próximo. De cada vez que emergia e rasgava a crista de uma onda parecia
encurtar a distância. Mena perguntou ao talayano se deveriam esperar pelo
barco. Talvez tivesse sido enviado de Acácia para os encontrar. Talvez
pudessem ir ao seu encontro. O guarda não respondeu, não alterou o rumo que
levavam nem baixou a vela. Contudo, não importava muito. A outra embarcação
era mais veloz. Era mais comprida e com uma vela mais ampla. Aproximava-se
paulatinamente, impulsionada pelo vento de uma tempestade que se anunciava.
Ou talvez arrastasse a tempestade atrás de si. Era difícil dizer quem trazia o quê.
As rajadas de vento rasgavam sulcos nas ondas, empurrando o barco como
um brinquedo. As vagas, alterosas, agigantavam-se. Pelo final da tarde, a outra
embarcação alcançara-os e navegava a seu lado, cortando as águas ao mesmo
ritmo, à distância de umas cem milhas e depois menos, cada vez menos. Havia
um único homem a tripular o barco. Mena mal o conseguira vislumbrar e
esforçava-se por descortinar pormenores da sua figura — com esperança ainda
de que fosse um mensageiro do pai — quando ele se pôs em pé. Imóvel uns
instantes, tentou equilibrar-se no convés. Tinha na mão algo que parecia uma
vara. O guarda devia ter reparado nisso também. Sibilou uma praga entredentes.
Fez um gesto a Mena para que viesse para junto dele, dizendo qualquer coisa
que ela não percebeu. Pensou que ele pretendia que ela tomasse conta do leme,
que agarrava preso sob a axila. Ou talvez a corda que tentava agarrar e lhe
escapava. Fosse como fosse, o tom de alarme na voz e expressão do guarda
aterrorizou-a. Nada fez. O barco ergueu-se numa onda e foram atirados para trás,
gritando, com a vela furiosamente enfunada e Mena receou que o barco se
soltasse das águas e levantasse voo como um papagaio solto.
Por um momento, pareciam estar sozinhos num vale de águas. No momento
a seguir, já eram dois novamente. O outro barco descia veloz por uma onda na
direção deles, com a proa sibilando ao cortar as águas. O perseguidor arremessou
a vara — agora obviamente uma lança — com tal força que quase caiu do barco.
Esta voou e foi cravar-se diretamente no peito do guarda como se não existisse
outro lugar no mundo onde pudesse acertar. Este soltou o leme e agarrou na
lança. Não a tentou desenterrar do peito, mas parecia querer aguentar-lhe o peso.
Cuspiu uma golfada de sangue e depois, alcançando a amurada com uma mão,
puxou-se para trás, por cima da amurada. Tombou no mar alteroso e
desapareceu.
O barco oscilava, sem orientação, balançando de um lado para o outro.
Inclinava-se, quase submerso pelas ondas, e depois endireitava-se e rodopiava de
novo nelas. Mena teve de se atirar para o convés para evitar ser atingida pelo lais
novo nelas. Mena teve de se atirar para o convés para evitar ser atingida pelo lais
da verga. O pano da vela agitava-se como um animal frenético, mas não
apanhava o vento de popa como anteriormente. Mena não fazia ideia do que
fazer com o barco. Olhava estarrecida para o alto da vela uivante. Então sentiu
algo que não sentia havia dias — o impacto da embarcação contra algo sólido.
Isso endireitou-a.
O outro barco estava ao seu lado, amurada contra amurada, embatendo um
no outro como se quisessem combater. O marinheiro atacante deu um salto e
veio cair com pés firmes no barco de Mena. Olhou-a rapidamente mas não se
aproximou. Tinha uma corda, com a qual amarrou uma embarcação à outra, com
folga suficiente para conseguirem navegar separadamente. Desapareceu uns
instantes de vista e depois surgiu de novo, vasculhando a sacola do guarda. Que
quereria ele? Que quereria ele dela? Que faria com ela? Não conseguia imaginar,
mas os pormenores pouco importavam. Fosse qual fosse a resposta, seria um
horror. Não se apercebeu logo de que as suas mãos tinham encontrado o punho
da espada comprida do guarda e, no entanto, tinham. Agarrou-a com ambas as
mãos. Conseguiu retirá-la do lugar onde estava. Porém, era demasiado pesada
para a empunhar. Nem sequer conseguia desembainhá-la. Nunca se sentira tão
impotente.
Que estranho, então, que o homem lhe virasse costas. Atarefou-se com a
corda algum tempo e depois saltou da amurada para a embarcação de onde viera.
Rapidamente, o homem soltou um dos nós que ligavam o seu barco ao dela.
Parecia não ter interesse nenhum nela.
— O que estais a fazer? — gritou Mena.
O soldado parou e fitou-a, mantendo ainda os dois barcos juntos com a
corda enrolada num pilar junto dos pés. Claramente preferira evitar falar com
ela, mas, questionado, não podia deixar de responder.
— Não vos quero fazer mal, princesa — retorquiu, gritando, para que ela o
ouvisse por entre a ventania e o fragor das ondas. — O que aqui aconteceu era
entre mim e o homem. Nada tenho contra vós.
— Sabeis quem eu sou?
O homem assentiu com a cabeça.
— Porque haveis morto aquele homem? O que ireis fazer comigo? — Ele e
eu tivemos... uma zanga. Convosco não desejo fazer nada.
Uma grande onda levantou os barcos e por um momento tudo pareceu um
caos. Quando conseguiu ver novamente o rosto do homem, Mena disse.
— Ides deixar-me morrer aqui?
— Ides deixar-me morrer aqui?
O homem abanou a cabeça.
— Não ireis morrer. Estais sobre uma corrente que vos levará para leste.
Passa por Vumu como se passasse por uma peneira. Mesmo que não levanteis a
vela, e flutueis apenas, avistareis terra dentro de alguns dias. Vereis terra firme
de novo. E pessoas. O que se passará entre vós e elas cabe-vos a vós decidir.
— Não compreendo — retorquiu Mena, com emoção crescente na voz.
O homem olhou para ela, algo trocista.
— Não sois a única com uma história para contar. O que aconteceu aqui foi
entre mim e ele. — Fez um gesto desdenhoso apontando as ondas. — Era uma
velha dívida, agora saldada.
— Sois inimigo do meu pai?
— Não.
— Então, sois seu súbdito! Ordeno-vos que não me deixeis aqui!
— O vosso pai morreu e já não aceito mais ordens. — Atirou as pontas
soltas das cordas para o barco dela. — Princesa, não sei o que o vosso pai
pretendia ao mandar-vos para cá, mas o mundo já não é o que era. Fazei da vossa
vida o melhor que puderdes, que eu farei o mesmo.
Depois disto, nada mais disse. Voltou-lhe as costas, cortando uma onda que
vinha na diagonal. Mena viu a embarcação saltar a crista da onda e desaparecer,
sentindo as palavras dele como uma bofetada no rosto. Compreendeu que
acreditara ingenuamente que a engrenagem do mundo girava em volta dela e da
sua família. Nunca antes pensara que a vida de alguém pudesse alterar a sua.
Que disparate. Era isso precisamente o que acabara de acontecer! Não tinham os
atos de Hanish Mein alterado a sua vida? O guarda e o seu assassino tinham
histórias também, vidas, destinos. Compreendeu que o mundo era um bailado de
milhões de destinos. Nesse bailado, ela era apenas uma alma. Seria assim, pelo
menos, que se iria lembrar do que ocorrera ali e do efeito que lhe causara.
Enquanto compreendia isso, fitava o assassino a cada onda que se erguia,
observando-o a desaparecer ao longe. Por fim, deixou de o ver. Estava só, nada
havia à sua volta a não ser um céu sem futuro e montanhas líquidas em
movimento que, naquele momento, constituíam a totalidade do mundo. Assim
permaneceu tudo durante mais cinco dias, até descortinar a ilha que viria a ser o
seu novo lar, o seu destino.
— Ora cá está — disse Vandi, dando um passo atrás para examinar a
sacerdotisa devidamente vestida. — Eis que sois novamente a deusa. Que ela
sacerdotisa devidamente vestida. — Eis que sois novamente a deusa. Que ela
seja louvada perante a nossa humildade.
As servas que a tinham vestido repetiram estas palavras murmurando.
Afastaram-se dela, reverentes. Este momento parecia sempre estranho a Mena.
Aquelas jovens haviam-na transformado. Tinham colocado cada peça do seu
traje sobre o seu corpo nu e, no entanto, quando acabavam o trabalho, ficavam
frágeis e temerosas sobre o que tinham criado. Caminhou por entre elas atrás de
Vandi, em direção aos címbalos e carrilhões que anunciavam a cerimónia. Os
vumu eram um povo estranho, pensou. Porém, apesar disso, gostara sempre
deles e sentia-se algo reconfortada entre aquela gente. Fora assim desde que pela
primeira vez os vira.
A sua chegada à ilha fora tormentosa. Poderia ter morrido; o facto de ter
sobrevivido e o modo como emergira do mar ao chegar à ilha tornou-se a base
de tudo o que se seguiu. Sozinha no barco, com escassas provisões, observara a
ilha a aproximar-se durante dois dias inteiros. O mar estava mais calmo agora,
mas, em redor da ilha, havia uma barreira de recifes onde as ondas batiam
furiosamente contra as rochas. Enquanto se aproximava, Mena pensou que
conseguiria ultrapassar as ondas alterosas em redor dos recifes até chegar às
águas calmas que se espraiavam até à costa a seguir aos rochedos. Mas não seria
assim tão simples, o barco estava prestes a afundar-se. Perdera o controlo do
leme e fora projetada, embatendo com o ombro contra a amurada. A dor era
imensa, completa, quase suficiente para a alhear do turbilhão das águas em seu
redor. Deitou-se de costas, aninhou-se o melhor que pôde e fitou as ondas que
embatiam no barco. Sentia o casco roçar e lascar-se contra os recifes, até se
inclinar e virar. Por momentos ficou suspensa na água borbulhante, com a boca
cheia de espuma, respirando e cuspindo ao mesmo tempo a água do mar. O
mastro deveria ter-se partido, permitindo que o barco voltasse a virar. Mas não
parou quando se virou para cima. Continuou a rolar sobre as ondas, a rolar, a
rolar, até o mundo já não fazer sentido. Foi sugada pelo barco, arrastada e atirada
com o impulso das águas. Bateu com o rosto contra os corais uma vez, com os
braços e as pernas muitas vezes. Agarrou qualquer coisa, um objeto que lhe
revirava os braços. Pensou que era uma parte do barco e não o quis largar. Sem
grande esperança, sentiu que se conseguisse agarrar-se ao barco ou a um remo,
ou a fosse o que fosse, conseguiria sobreviver ao naufrágio. Mudou de ideias
quando, fosse o que fosse que tivesse agarrado, num puxão, quase lhe arrancou o
braço do ombro.
Devia ter ficado inconsciente. Não tinha a certeza, mas, a determinada
altura, acordou, tossindo, engasgada, flutuando em águas tranquilas. Inspirou
furiosamente, com todo o seu ser concentrado na necessidade frenética de
respirar. Só depois de fazer isto durante algum tempo se apercebeu de que havia
respirar. Só depois de fazer isto durante algum tempo se apercebeu de que havia
areia sob os seus pés. As águas em redor eram quentes e tranquilas. As ondas
rebentavam não muito longe, mas ela conseguiu passar por elas e vislumbrou
algumas árvores na costa. Mais ainda, viu o fumo de uma fogueira e os telhados
de cabanas e um barco que se movia ao longo da costa. Lembrou-se da terrível
dor que tinha no ombro, mas o braço estava no seu lugar novamente e mal sentia
a dor na articulação.
Quando começou a avançar para a areia, reparou que o braço direito
arrastava um objeto atrás, um peso estranho nas águas. Tinha uma mão enrolada
numa corda de couro. Na verdade, esta corda dava um nó no seu pulso, de tal
forma que tinha a mão ferida e inchada. Ao erguê-la puxou a comprida espada
do guarda para a superfície. A corda em volta do pulso servia para carregar a
arma às costas. Fora à espada que ela se havia agarrado, não a um destroço do
barco. Talvez a tivesse agarrado durante algum tempo, mas foram as cordas que
lhe permitiram que ficasse com ela, como se a própria arma receasse as
profundezas do mar e se recusasse a afundar.
Assim, Mena chegara à ilha armada com uma espada de guerreiro, ainda
uma menina de doze anos, órfã havia pouco e afastada de toda a gente que
conhecera na vida. O que restava da roupa caía em farrapos. Tinha o cabelo
desgrenhado. Os aldeões que se foram reunindo na costa e a viram encaminhar-
se para eles nunca haviam visto nada assim. Parecia que atravessara os mares
sem embarcação que a transportasse. Quando abriu a boca, falava uma língua
estrangeira. Ninguém a conseguia entender. Assim nascera o mito.
Na altura em que chegou a Ruinat, corria por ali uma lenda para além da
sua imaginação, uma história que só mais tarde iria entender. Parecia que o
tempo da sua aparição era suficientemente fortuito e invulgar para que só
pudesse ser explicado por uma estranha amálgama de lógica e de fé. Os aldeões
tinham começado a murmurar uns com os outros. Não dissera Vaharinda que
Maeben em forma humana tinha olhos azul-claros, tal como aquela rapariga?
Não dissera que o cabelo dela era liso e pouco farto? E não tinha a pele da
menina a cor da areia branca? Muito bem, a menina era mais morena,
ligeiramente, mas, no geral, o efeito era convincente. Precisavam de uma nova
Maeben. Havia algum tempo já que a buscavam, mas os sacerdotes não tinham
conseguido encontrar uma rapariga que se adaptasse. Normalmente era alguém
que tivesse nascido entre eles. Neste caso, a deusa surgia de um modo ainda
mais verdadeiro. A sua chegada não era perfeita na simbologia, mas ignoraram
alguns pormenores, embelezaram outros, outros foram inventados. Acabaria por
aprender a preferir a sua lenda à história que ela sabia ser a verdadeira. Acolheu
de bom grado o poder que aquela situação lhe conferia, o direito à ira, o estatuto
de bom grado o poder que aquela situação lhe conferia, o direito à ira, o estatuto
de uma infeliz filha dos deuses, mal adaptada às alegrias que os outros tinham
como dado adquirido, mas necessárias à manutenção da vida. Especial.
Nove anos depois, ao entrar na plataforma colocada acima da multidão de
adoradores, poucas dúvidas havia de que ela era aquilo que era. Todos ergueram
os olhos para a ver. Ali estava Maeben, esplendorosa à luz das tochas que
iluminavam o recinto. Passeava sobre a plataforma numa glória emplumada,
tingida de cinquenta cores, com os dedos cobertos das garras enormes. Os olhos
que os fitavam, por detrás da máscara com bico, eram intensos e tudo viam.
Erguiam-se espigões do cimo da cabeça, num penteado caótico. Era um pesadelo
de beleza e perigo, que respirava e vivia acima da multidão, um ser parte ave de
rapina, parte humano, parte divino. Ela sabia com toda a certeza que poderia cair
sobre eles e infligir-lhes uma vingança terrível, se o quisesse. Albergava em si a
capacidade da violência, bem no fundo do coração.
O auxiliar do sacerdote principal anunciara a sua chegada. Fez ver aos
adoradores da deusa a sua insignificância de simples mortais. Mena ergueu os
braços acima da cabeça no momento indicado, com o tecido debruado a plumas
ondulando dos lados, simulando asas. Todos baixaram a cabeça até ao chão.
Alguns caíram de joelhos. Pediam a sua misericórdia. Adoravam-na, diziam,
entoando um cântico acompanhado do ritmo dos carrilhões. Amavam-na.
Temiam-na. O sacerdote prosseguia a arenga, admoestando-os, dizendo que nada
eram e lembrando-os das loucuras da humanidade, pedindo-lhes que
compreendessem que a vingança viria dos céus, veloz como um grito de águia.
A música dissonante aumentou de volume e, entre as perguntas e as respostas, os
lamentos e súplicas dos adoradores prostrados no chão, o recinto estremecia e
pulsava.
Olhando por cima das cabeças dos sacerdotes, vendo para lá delas os
nobres, o povo comum logo a seguir, as mulheres e as crianças nas extremidades
da sala — todos curvando-se em vénias reverentes perante ela, em longos atos de
profunda devoção que não terminariam até que ela lhes desse sinal que poderiam
parar —, a rapariga pensava que, no fundo, talvez fosse mesmo Maeben. Fora
sempre a deusa. Apenas levara algum tempo a encontrar-se a si própria. Ali era o
seu lar agora. Aquele era o seu papel. Era Maeben, a que roubava crianças, a
vingança arremessada dos céus. Era a si que o povo confessava os seus receios e
a quem juravam adoração.
Então gritou que os fiéis se poderiam levantar e contemplá-la uma vez
mais. Falou com voz clara, como fazia quando Maeben falava através dela,
abafando todos os outros sons. Nesses momentos nunca fora mais nada. Quando
abria as asas e se erguia gritando no ar, não tinha a menor dúvida de que todas as
abria as asas e se erguia gritando no ar, não tinha a menor dúvida de que todas as
mãos se ergueriam para a agarrar. Se alguém conseguia saltar das alturas sem
medo de cair, não se poderia dizer que possuía o segredo do voo? Tal como uma
ave, tal como uma deusa.
Capítulo 33

Que estranha é esta terra, pensava Hanish, enquanto contemplava da


varanda do seu gabinete o brilho trémulo das ondas do Mar Interior. Nunca lhe
parecera natural que uma terra pudesse ser tão generosa para com os vivos. Via
isso como algo mórbido — de certo modo — que um clima fosse tão ameno, tão
benigno. Eis um território de que as lutas fundamentais que Hanish considerava
necessárias à vida tinham sido afastadas ou nunca haviam sequer existido. Era
possível estar ao ar livre, em qualquer altura do ano, com temperaturas amenas
ou, na pior das hipóteses, com algum frio ou esparsos flocos de neve. O tempo
mais frio que poderia ocorrer em Acácia nada era que uma criança do Mein não
pudesse aguentar, nua, durante uma noite inteira. No planalto no norte, uma
única provisão esquecida na vastidão gelada, um único erro cometido, uma
súbita mudança dos ventos, uma pista deixada às matilhas de lobos... Havia
tantas forças no mundo que poderiam causar mal ao homem que nunca era
possível estar descansado. Nada podia ser feito com bonomia. Acácia era algo de
inteiramente diferente. O conforto, o luxo... bem, talvez existisse algum perigo
nessas coisas. Havia que reconhecer que o perigo possuía uma face mansa assim
como uma mais dura.
— Rei Hanish Mein, surpreende-me como um homem na vossa posição
fique de costas voltadas para uma sala onde qualquer um pode entrar.
Hanish reconheceu a voz atrás de si. Estava à espera dele, mas teria
reconhecido aquela voz entre mil. O tom nasalado, o ar de satisfação consigo
próprio, o espaço deixado entre determinadas palavras, como que ronronadas,
não enganava. Preparou-se para se irritar. Deixou que a emoção o invadisse por
instantes e depois desaparecesse, de modo a não o demonstrar no rosto. Com
homens como Sire Dagon, a capacidade de esconder os pensamentos, enquanto
se mantinha o ceticismo perante tudo o que o outro proferisse, era fundamental.
— Não sou rei — retorquiu Hanish, voltando-se para Sire Dagon. — Por
favor, prefiro continuar a ser um chefe tribal. Acontece que agora sou o líder dos
chefes do Mundo Conhecido. Quanto à minha segurança, nem todos os palácios
são tão perigosos como os da Liga.
— Hum... não foi isso que ouvi dizer — retorquiu o chefe supremo da Liga.
Embora fosse de estatura alta, tinha um corpo estranhamente frágil, como se
tivesse pouca estrutura óssea para o suportar. Trazia um capuz sobre a cabeça
tivesse pouca estrutura óssea para o suportar. Trazia um capuz sobre a cabeça
alongada, mas a luz da tarde brilhante iluminava-lhe o rosto com raro pormenor.
Os olhos estavam raiados de sangue como os de um fumador regular da bruma.
Contudo, estavam alerta, a mente limpa de nuvens. Hanish nunca entendera
como usavam a droga. Aproveitavam-na para propósitos diferentes do efeito
sedativo que tinha sobre o povo.
Os homens da Liga não se tocavam ao cumprimentar-se, por isso limitaram-
se a aproximar-se um do outro e a fazer uma vénia.
— Mas, de qualquer modo — prosseguiu Sire Dagon —, estou contente por
ser convosco que me encontro agora, em lugar de um outro, de algum impostor.
Diz-se por aí que podeis ser chamado a qualquer altura para aquela dança do
vosso povo. Como lhe chamais?
Hanish sabia muito bem que Sire Dagon se lembrava do nome. Os homens
da Liga tinham memórias enciclopédicas.
— Maseret — respondeu.
— Sim, é isso. A Maseret. Perdoai-me por sugerir que esse costume deveria
ser desencorajado. Os vossos feitos são reconhecidos em todo o lado, sim, mas
dizer a qualquer homem da vossa raça que poderá ter para si tudo o que já haveis
ganho é um erro. Porquê acenar com tal possibilidade perante os outros? Tal
pode atiçar a vontade de loucos ambiciosos em vos desafiar.
Muitos já fizeram isso, pensou Hanish. Tivera de executar a dança cinco
vezes desde que viera para o sul viver em Acácia, o que significava que cinco
dos seus homens tinham morrido às suas mãos. Cada um deles desejara o poder
que ele tinha. Cada um deles esperara ganhá-lo através de um simples assassínio.
Hanish sabia que Sire Dagon tinha conhecimento disto também. Não era
necessário trazer a coisa à baila.
— Honrais-me com a sugestão de que a Liga se importa com quem faz
negócios.
— Desteis ao vosso povo o mundo que este agora governa. A Liga não
esquece isto, mesmo que alguns próximos de vós o façam. Pessoalmente, admiro
a vossa capacidade de concentração. Sim, Hanish, isto é um elogio. Na minha
idade já poucas coisas me interessam. Meu amigo, mesmo manter-me de boa
saúde se tornou mais uma força de hábito do que um desejo.
Hanish duvidava que mesmo a proximidade da morte pudesse extinguir a
furiosa ambição de um homem da Liga, mas não deu sinais disso. Também não
demonstrou reconhecer a referência a outros próximos dele. Seria aquilo uma
ameaça ou um aviso? Fez um gesto, indicando que deveriam sair do calor do sol.
Dentro do gabinete, sentaram-se um em frente ao outro em cadeirões em
pele, de espaldar alto, tendo entre ambos uma mesinha ornamentada ao estilo de
Senival. Entraram vários criados transportando bandejas com comida e bebida
nos braços. Os dois homens conversaram durante algum tempo. Ambos
apresentavam semblantes que aparentavam à-vontade na presença um do outro,
como velhos amigos com nada mais de importante para discutir do que a
duração do verão em Acácia, a próxima migração de andorinhas, os efeitos
positivos que o mar tinha na saúde. Hanish acolhia de bom grado a pausa.
Permitia-lhe estudar Sire Dagon, pesar não só as palavras que proferira como a
forma como as dissera, tentando procurar pensamentos denunciados pelo
movimento das mãos ou da ênfase colocada em determinadas palavras. Sabia
que o homem da Liga estava a fazer exatamente a mesma avaliação sobre si.
— Então, Sire Dagon, acabais de chegar recentemente do outro lado do
mundo?
— Acabei de chegar do outro lado do mundo, sim.
Como já tentara antes, em muitas ocasiões, Hanish queria ver se conseguia
obter do homem da Liga informação sobre os estrangeiros, os Lothan Aklun.
Quem era esse povo que moldara tanto o destino do Mundo Conhecido? Tinham,
de certo modo, sido seus aliados na luta contra Leodan Akaran, mas nunca
pusera os olhos neles e nada sabia dos seus costumes ou história. Nunca ouvira
um deles ser nomeado pelo seu nome próprio. Habitavam numa cadeia de ilhas
que se prolongava ao longo de todo o comprimento do continente conhecido
como as Terras Distantes. Não mostravam vontade de interagir com o Mundo
Conhecido, contentando-se com as riquezas que a Quota lhes fornecia. Tanto
quanto Hanish sabia, nenhum deles se aventurara sequer a atravessar as Encostas
Cinzentas: a Liga fazia isso por eles.
Durante os primeiros anos no poder exigira conhecer com quem estava a
lidar. Os representantes da Liga tinham-lhe prometido que lhes transmitiriam o
seu «pedido», mas nada resultara disso. Insistira até com Calrach, chefe dos
numrek, com perguntas sobre eles. O seu povo vinha daquele lado do mundo,
mas pouco lhe disseram que fizesse sentido. Calrach referira-se aos Lothan
Aklun como «sem importância». Não passavam de comerciantes, explicara.
Nove anos no poder e os Lothan Aklun eram uma realidade para Hanish
apenas por causa do seu apetite voraz por crianças escravas e porque produziam
a droga que ajudara a tranquilizar o seu tumultuoso império. Os homens da Liga
garantiram-lhe que era assim que tinha de ser, e ele sabia que Sire Dagon não lhe
daria agora novas respostas. Preferiu não levantar o assunto novamente.
— A propósito — disse Sire Dagon —, os Lothan estão muito contentes por
— A propósito — disse Sire Dagon —, os Lothan estão muito contentes por
terdes feito progressos com os antoks. Eles ofereceram-vo-los acreditando que
arranjaríeis modo de dominar os seus apetites vorazes. Agrada-lhes que tenhais
feito isso.
Hanish fez um gesto de assentimento. Na verdade, pouco tivera a ver com
esses antoks. Eram animais estranhos que apenas vira um dia. Tratava-se de
enormes criaturas, versões vivas dos gigantes cujos ossos eram por vezes
encontrados no solo. Mal os conseguia descrever. Eram uma amálgama do pior
que podia haver no reino animal, com traços entre o suíno e o canino,
insensíveis, brutais, vorazes. Acabara por arranjar um modo prático de os usar
em batalha, mas deixara isso nas mãos de Maeander, para que este tratasse de
domar as criaturas, numas instalações remotas em Senival. Quanto menos
ouvisse falar daqueles animais, melhor.
Sire Dagon não perdeu mais tempo a falar deles.
— Creio que ficareis contente com as notícias que vos trago — disse. — Os
Lothan Aklun estão desejosos de aumentar o seu comércio convosco. Têm sido
pacientes todos estes anos, como sabeis. O escasso tributo que lhes haveis
enviado até agora... Compreendeis que eles consideram isso uma gentileza que
vos fazem, ao aceitá-lo sem reclamar, e que têm fornecido ao império bruma a
crédito, como aconteceu. Foi um período de ajustamento necessário, mas que
agora está a chegar ao fim.
Interrompeu-se, erguendo e baixando uma sobrancelha. Hanish fez um
simples gesto com os dedos para que continuasse.
— Prometemos entregar-lhes um carregamento completo de escravos da
Quota antes do inverno. Será o dobro da quantidade que os Akaran ofereciam,
mas não é mais do que aquilo com que haveis concordado antes da guerra.
Exigem cinco mil corpos de cada província, igualmente distribuídos entre os
sexos, nem mais nem menos, de cada raça. A média de idades talvez tenha de ser
maior do que antes, mas não têm objeções a isso. Em troca, aumentarão o
fornecimento de bruma em um terço. Talvez não pareça muito, mas a droga foi
refinada. Já não é tão incapacitante como antes, e é mais viciante. O corpo
adapta-se a ela de modo que quem a usa, ao ficar privado dela, fica bastante
perturbado — alucinações, febre, dores. A maior parte das pessoas fará qualquer
coisa para a obter. Tudo isto está pormenorizado nos documentos do tratado
revisto. E isso, Hanish Mein, é tudo. Ficareis contente por saber que eles não vos
exigem nada mais do que isto.
Hanish desviou o olhar, pensando que eles não exigiam nada mais do que o
mundo inteiro. Que generosos. Fixou o olhar num macaco dourado dependurado
do corrimão da varanda, com o pelo amarelo laranja cintilante da luz do sol.
Hanish não gostava daqueles animais. Nunca gostara. Tinham um ar sabichão,
barulhentos, como se todo o palácio lhes pertencesse e ele não passasse de um
intrometido. No começo da sua estada em Acácia introduzira outra variedade de
primatas, uns animais robustos, com pelo comprido branco como a neve e um
rosto azul brilhante. Mas estes revelaram-se violentos e conflituosos. Perseguiam
os dourados, atacavam-nos e deixavam corpos sangrentos meio comidos
espalhados pelo chão. Pareciam ter especial prazer em atirar os membros dos
bichos a grupos de mulheres. Hanish acabara por ter de os mandar matar; os
macacos dourados, contudo, conseguiram conquistar a estima das damas. E
assim ficaram.
— Trouxe-vos o tratado revisto — proferiu Sire Dagon. — Vós e os vossos
conselheiros poderão folheá-lo à vontade. No fundo, é tudo. Podereis continuar a
gozar do vosso império, que haveis conquistado. Há apenas um único novo
aspeto do tratado que tereis de ter em conta. — O homem da Liga pareceu
lembrar-se de repente da comida e esticou-se para ver o que havia nas bandejas.
Deixou esta última declaração suspensa por um momento, mas Hanish esperou.
— Como comissão por termos negociado isto, a Liga pede... bem, não exigimos
qualquer mudança na nossa percentagem, nem nenhum bónus monetário... nada
disso. Gostaríamos simplesmente de vos tirar um fardo dos ombros e sermos nós
a carregá-lo.
Hanish passou uma mão sobre a cicatriz que tinha no nariz num movimento
rápido. Com ironia, proferiu:
— Mal posso conter a minha curiosidade.
— Gostaríamos de vos tirar as Ilhas Distantes das mãos. Gostaríamos de ser
nós a ter o seu domínio.
— Nessas ilhas abundam os piratas.
Sire Dagon sorriu.
— Pensámos nisso. Não constituem um problema. Examinámos todos os
aspetos do seu modo de funcionamento e estamos confiantes de que os
poderemos pacificar.
— Eles dificilmente são o tipo de gente que aceite qualquer tipo de
pacificação.
— Têm-vos dado bastantes problemas, não têm? — inquiriu Sire Dagon. —
Tendes tantos problemas sobre os ombros. Talvez não tenhais pensado que
manter a paz fosse mais difícil do que fazer a guerra. Esta é uma lição que se
manter a paz fosse mais difícil do que fazer a guerra. Esta é uma lição que se
aprende apenas por erro e tentativa. É por isso que a Liga prefere sempre estar
em paz, mesmo se os nossos amigos escolhem entrar em guerra uns com os
outros.
Hanish não deixou de concordar que havia sabedoria nesta maneira de ver
as coisas. Quem teria pensado que vencer as batalhas fosse tão fácil em
comparação com o gerir do império? Tinha surgido uma crise, a que se seguiu
outra e ainda mais outra. Alguns dos problemas eram causados por ele próprio.
A febre fora mais virulenta do que imaginara, por exemplo. Não calculara até
que ponto se poderia espalhar e com que rapidez poderia prejudicar os seus
objetivos militares. Simplesmente matara demasiada gente, deixando uma
população fragmentada e enfraquecida para reconstruir após a guerra.
Os numrek também tinham ultrapassado a sua utilidade e a paciência dos
seus anfitriões. Não tinham regressado ao outro lado dos Campos Gelados, como
tinham prometido de início, embora Hanish lhes tivesse pago generosamente
pelos seus serviços. Na confusão após a guerra, enquanto a febre ainda grassava
através das zonas a sul, instalaram-se em Aushenia, reclamando para si todos
aqueles territórios, tomando cidades e aldeias e as propriedades reais,
escravizando as pessoas que tiveram o infortúnio de ser capturadas. Pior ainda,
haviam estabelecido colónias ao longo do extremo ocidental da costa talayana.
Que criaturas do norte gelado, realmente! Tinham percebido que não desejavam
mais do que tomar banhos de sol ardente e nadar nas águas límpidas.
Havia outros problemas que não tinham sido criados por ele. O povo —
talvez por a guerra ter perturbado a distribuição da bruma — tinha todo o género
de ideias na cabeça. Tornara-se indisciplinado, intriguista, rebentando em revolta
aqui e ali, perpetrando atos de sabotagem, como quando tinham incendiado os
celeiros no Continente, destruindo metade do que havia armazenado e causando
a fome durante quase um ano. Espalhavam histórias de profecias sagradas,
diziam que Hanish e a sua peste eram os mensageiros do regresso do Doador.
Desenvolveram um gosto por mártires, malfeitores recalcitrantes para quem a
tortura e a prisão eram uma bênção. Talay nunca fora completamente pacificada,
as Ilhas Distantes fervilhavam de piratas, as suas tropas eram molestadas por
assassinos disfarçados de súbditos leais.
Além disso, as revoltas constantes nas minas eram frustrantes. Precisamente
quando Hanish se preparava para restabelecer o motor do comércio no mundo,
os mineiros meteram na cabeça tentar dirigir as suas próprias vidas. Recusavam-
se a trabalhar. Um louco qualquer entre eles ganhara proeminência ao defender
que os mineiros mereciam uma parte dos lucros do seu labor. Um profeta algo
louco e eloquente, Barack, o Menor, causara perturbações sem fim. Afirmara até
louco e eloquente, Barack, o Menor, causara perturbações sem fim. Afirmara até
ter tido uma visão do regresso de Aliver Akaran. Que importuno. Os seus
esforços apenas tinham causado a miséria à sua volta. Tivera de pôr termo à
revolta com um cerco que Hanish mal conseguia custear. Morrera imensa gente.
Que desperdício de mão-de-obra; tudo para nada.
Os numrek, a Liga e os Lothan Aklun: como tinha ele ficado tão
lastimosamente endividado para com todos eles? Nas terras geladas de
Cathgergen, tão longe de poder e privilégios, cada uma destas parcerias fizera
perfeito sentido. Porque não comprar um exército e pagar-lhe com tesouros das
terras que eles próprios conquistassem? Porque não prometer grandes quantias
aos comerciantes que o ajudassem a enriquecer? Que melhores parceiros de
negócio do que os fornecedores de um mercado ávido pelo produto e com quem
nunca se tinha de lidar diretamente nem se intrometiam? Nenhuma quantia lhe
parecera demasiado grande, se o ajudassem a atingir os seus objetivos. Tinha
agora uma perspetiva diferente, em todos os aspetos.
A última, mas não menos importante, das suas preocupações era que não
tinha conseguido apanhar mais do que uma das crianças Akaran. Corinn
continuava sã e salva e vivia confortavelmente em Acácia. Nada sabia do destino
que continuava a aguardá-la. A sua presença deveria ser um consolo, uma coisa
a menos com que se preocupar. Em vez disso, atormentava-o. Que deveria fazer
com ela? Que quereria ele fazer com ela?
Sire Dagon deu uma dentada numa ameixa. Mordeu-lhe a pele,
interrompeu-se e saboreou-a. Não engoliu o fruto. Aparentemente, só queria
sentir o sumo nos lábios.
— De qualquer modo, em relação a esses bandidos e às suas investidas por
toda a costa, não precisais de vos preocupar com eles. Até nós tivemos algumas
dificuldades com essa gente, mas havemos de os reprimir. Iremos começar a
tratar disso agora, e deixá-los-emos de rastos até ao próximo verão. A Ishtat terá
sucesso onde vós não o tivesteis, temos confiança nisso. Quando acabarmos,
tomaremos tranquilamente posse das ilhas; ficareis cheio de orgulho por terdes
garantido a segurança do litoral contra esses bandidos.
— Para que pretendeis as ilhas, então? — inquiriu Hanish.
Sire Dagon contemplou-o durante alguns instantes. Passou os dedos nos
lábios para limpar o sumo.
— Antes de vos dizer, lembrai-vos de que a Quota duplicada vos tornará
mais rico do que Acácia algum dia foi...
— Como podem eles querer mais? — interrompeu-o Hanish, sem conseguir
conter a incredulidade na voz. — Que fazem eles com todos esses escravos? Mal
conter a incredulidade na voz. — Que fazem eles com todos esses escravos? Mal
podiam pedir mais, mesmo que os comessem.
Sire Dagon franziu o sobrolho e virou a cabeça para o lado, indicando que
tanto a pergunta como a suposição eram de um terrível mau gosto.
— Não é necessário perguntar essas coisas. Farão seja o que for que
quiserem; contentemo-nos com isso. Recordai-vos de que um dos princípios
originais do contrato da Quota era de que a Liga serviria como único
intermediário entre Acácia e os Lothan Aklun. Por isso, nunca traímos os
segredos tanto de um lado como do outro. Nem o faremos agora. Como eu
estava a dizer, os Lothan Aklun juraram nunca alterar este acordo, nem agora
nem nunca. Nem excederíamos a Quota nas províncias. Tal é algo que ocorreu,
por vezes, durante o último reinado, mas que não voltará a acontecer. Quando
tivermos normalizado o aumento da Quota, pacificaremos as Ilhas Distantes.
Limpá-las-emos, tornaremos a região arável e começaremos a produção.
— A produção de quê?
— Da única coisa que os Lothan Aklun pretendem de nós.
A resposta embateu em Hanish como um vulto informe erguendo-se das
profundezas da imaginação.
— Ireis criar lá escravos.
Sire Dagon não demonstrou surpresa nem satisfação perante a declaração
de Hanish. Limitou-se a pegar num bago de uva e falou em tom casual.
— Não reconheço a palavra escravos. Mas, se quereis dizer que criaremos
lá o nosso produto, estais correto. Será um meio de produção muito mais
eficiente. Já planeámos tudo. A ilha de Gillet Major, em especial, dará uma
plantação maravilhosa.
Depois de o homem da Liga ter saído, Hanish encostou-se à secretária e
olhou através das finas cortinas que ondulavam com a brisa da tarde. O mundo
era tão tranquilo em certas alturas, pensou, tão alheado de tudo. Entraram o tio e
o irmão e ele teve de reunir forças para afastar a inquietação que lhe tomara o
rosto.
— Passei por aquele homem esquisito no pátio — disse Haleeven. — Não
gosto nada daquela gente, Hanish. Nada mesmo. — O seu rosto tinha as marcas
dos anos turbulentos por que passara. O tempo de paz parecia ser
particularmente difícil para o homem mais velho. O clima — apesar de nunca se
queixar — não lhe fazia bem. Parecia andar sempre adoentado, de rosto corado
como se tivesse acabado de fazer exercício, afetado por qualquer coisa no ar que
não conseguia entender.
não conseguia entender.
Maeander não tinha problemas desses. Andava com o ar pretensioso de
sempre, confiante no corpo que tinha. Ganhara músculos nos braços e no peito e
um bronzeado superior ao dos outros homens do Mein. O nariz pelado revelava a
sua contínua paixão por atividades no exterior.
— O que foi? — perguntou Maeander, olhando para o irmão. — Não estás
com bom ar, Hanish. Pareces maldisposto. Sentes-te assim tão mal como
pareces?
— Precisamos de mais poder — retorquiu Hanish.
— É o que eu ando sempre a dizer — respondeu Maeander.
— Sinto-me puxado e empurrado por mil mãos, cada uma com os dedos no
meu bolso e outra mão a ameaçar-me com uma faca.
— Entendo-te, irmão. Eu não disse sempre: precisamos de mais poder
Penso nisso todas as manhãs ao acordar. Levanto-me do meio de uma teia de
corpos núbeis e a primeira coisa em que penso é: Poder! Preciso de mais...
— A sério — disse Haleeven abruptamente. — Hanish não está a brincar.
Maeander revirou os olhos. Sentou-se na cadeira que o homem da Liga
usara e pegou numa laranja. Cheirou-a, tocando com o nariz na casca do fruto.
— Precisamos de pôr os Tunishnevre em movimento e completar a cerimónia.
— Sabes que ainda não podemos fazer isso — retorquiu Haleeven.
— Eles estão impacientes. Neste assunto não temos escolha, Hanish. Eles
falam comigo também, e tornaram isso bem claro. Querem pôr-se em
movimento. Querem vir para aqui. Querem descansar os seus corpos no cenário
do crime que foi cometido contra eles e anseiam por algumas gotas do sangue
vivo dos Akaran. Querem libertar-se, irmão, e tu podes oferecer-lhes isso. A
câmara aqui está quase pronta para eles. Não há razão para não começarmos.
— E os outros três? — perguntou Haleeven.
— Claro — proferiu Hanish. — Sem eles, os Tunishnevre não podem
aparecer. Pelo menos estão a salvo agora, e encontram-se bem. Este clima
poderia destruí-los, impedir a sua libertação.
Indiferente, Maeander disse:
— Isso não é necessariamente verdade. Talvez um chegue. Especialmente
se os outros tiverem morrido. Se Corinn é a última da linhagem real, então só
precisam do sangue dela. A rapariga poderá libertá-los. Imagina, Hanish, quão
poderosos seremos! Todos esses problemas triviais que te preocupam tanto
desaparecerão num ápice. — Ergueu uma mão fechada pela ponta dos dedos, até
desaparecerão num ápice. — Ergueu uma mão fechada pela ponta dos dedos, até
ao momento em que a abriu, libertando o que quer que contivesse para o ar;
invisível e inconsequente. — Foi isto que os ancestrais puseram diante de mim.
Deram-me esta verdade.
— A mim nada me disseram sobre precisarem apenas de Corinn.
— Receiam que estejas de algum modo comprometido, que este lugar te
tenha transviado. Jurei-lhes que estavam enganados. Aceitaram a minha palavra.
É a ti que eles amam, mas já não podem esperar muito mais. Estão ansiosos por
libertação, Hanish. E possuem pouca paciência quando sentem que os estão a
impedir. — Falando com a boca cheia de gomos de laranja, acrescentou: —
Pelos deuses, os frutos desta terra são maravilhosos!
Hanish ignorou o último comentário, mas meditou um longo momento
sobre a comunicação de Maeander com os Tunishnevre. Sabia que o irmão fazia
isto havia algum tempo. Era a primeira vez que isto acontecia, pois só o chefe e
alguns dos sacerdotes mais importantes é que conseguiam comunicar com eles.
Hanish permitira isso porque devia muito a Maeander. Fora sempre uma arma
perfeita, um cão pronto a morder quem quer que lhe apontassem. Hanish sabia
que os antepassados o adoravam pela força que sempre tivera. Porém, para
falarem sobre ele com Maeander, sobre o próprio Hanish... Expressarem dúvidas
sobre o seu chefe vivo... isso era algo de muito grave. Ali havia várias
mensagens a interpretar, uma ameaça dentro de outra ameaça. E não poderia
admiti-las até ter compreendido melhor o que se passava.
— Estamos a precipitar-nos — proferiu Haleeven. —Ainda não nos
contaste as novidades que aquele homem bizarro te trouxe.
Então Hanish contou-lhes. Nunca escondera estas coisas daqueles dois
homens, mesmo que guardasse alguma coisa para si quando se reunia com a
Direção dos Conselheiros, a nova organização de homens proeminentes do
Mein, que residia, ironicamente, em Alecia. Hanish sentia-se perturbado ao ver o
modo como o modo acaciano de vida havia já tomado conta deles. Se
conseguisse descobrir outro modo de fazer as coisas, fá-lo-ia, mas, de uma forma
ou de outra, acabava por constatar que o modelo acaciano era a única resposta
razoável.
Quando Hanish acabou de lhes contar tudo, Haleeven disse:
— Detesto que tenhamos de nos curvar aos Lothan Aklun. Nunca vi sequer
nenhum deles. A Liga poderá tê-los inventado, tanto quanto sabemos. Já disse
isto antes, mas deveríamos afastar a Liga e lidar diretamente com os Aklun, se é
que existem.
— Penso o mesmo — retorquiu Maeander —, mas não nos cabe pôr em
— Penso o mesmo — retorquiu Maeander —, mas não nos cabe pôr em
causa os antepassados. Eles abençoaram tudo o que fizemos, e são eles que
querem ser libertados, e libertados agora. Lembra-te que a voz do teu irmão fala
através deles, Haleeven, e a do nosso pai, Hanish.
Hanish hesitou um momento, mas afastou o pensamento que o preocupava
e manteve a compostura de modo a que Maeander não notasse a pausa. Disse:
— Falarei esta noite com os antepassados. Se concordarem, enviaremos
uma mensagem a Tahalian. Dir-lhes-emos que está na altura de se realizar o
transporte. Haleeven, ocupar-te-ás disto.
— Não foi isso que acordámos — retorquiu Maeander. —Hanish, vá lá,
sabes que sou eu que devo ir. Tens um império para governar, não passo de um
instrumento para te ajudar. Não podes sequer imaginar que irei falhar tão
importante missão! Haleeven virá comigo, se isso te dá segurança, mas quando é
que já te deixámos mal?
— Nunca. Nem uma única vez. Trata-se apenas de que isto tem de ser feito
na perfeição, exatamente na perfeição.
Maeander fez uma expressão de afronta e escárnio.
— O que quero dizer — prosseguiu Hanish — é que temos mais do que
uma ação a pôr em marcha. Temos de redobrar os nossos esforços para encontrar
os Akaran. Se estão vivos, temos de os descobrir. É isso que pretendo de ti,
Maeander. Não tens de momento nenhuma outra tarefa em mãos: apenas a de os
descobrir e trazê-los para cá. — Disse isto com determinação, evitando
conscientemente o olhar do irmão, pois não queria ver a revolta no seu rosto. —
Deveria ter-te encarregue de os perseguir em primeiro lugar. Pela minha parte,
assegurar-me-ei de que Corinn continua a salvo, perto de mim e bem guardada.
Movimentou-se ao longo da secretária, retirou uma chave do bolso no peito
e inclinou-se para abrir uma gaveta.
— Tio, lê isto — proferiu, retirando uma caixa em pele e colocando-a sobre
a secretária. — Tens de fazer exatamente isto. Exatamente. Faz tudo seguindo
cada palavra com rigor, como os antigos nos disseram. Há vinte gerações que
não se faz o transporte dos Tunishnevre. Se cometeres um erro...
Haleeven pegou na caixa e sentou-se. Correu os dedos sobre a pele de
veado que a revestia, abriu o trinco e pareceu espantado, de narinas palpitantes,
ao sentir o cheiro seco das folhas.
— Não cometerei erros. Agradeço-te por isto. O planalto, no verão... que
saudades tenho de o ver novamente.
— Vê-lo-ás — respondeu Hanish, sorrindo, sinceramente contente pelo
— Vê-lo-ás — respondeu Hanish, sorrindo, sinceramente contente pelo
homem mais velho. — Talvez até tenhas tempo para uma caçada. Os veados
devem estar bem gordos, agora, e descuidados, visto andares há tanto tempo
afastado. Cumpre bem a tua missão, e que ela te dê novas forças também. —
Poderia ter continuado, mas sentiu o olhar de Maeander nele, tentando atrair-lhe
a atenção. Virou-se e fitou-o.
— Não posso discutir contigo, irmão — disse Maeander. — Se os Akaran
estão vivos, descobri-los-ei e trá-los-ei arrastados pelos cabelos. Quando o fizer,
confio que me darás a honra de ser eu próprio a degolá-los.
Capítulo 34

O homem que deveria acompanhar o príncipe encontrou-o agachado fora da


tenda, na escuridão da madrugada. Sem falar, Aliver reuniu as suas poucas
provisões num alforge em pele de cabra e colocou-o às costas. Ajustou a corda
em couro até sentir a carga firmada da forma que lhe era mais confortável. Além
do alforge usava apenas o saiote curto de caçador. Aquela iria ser uma espécie
de caçada e ele vestira-se em conformidade, exatamente da mesma maneira que
se preparara, semanas atrás, quando se aventurara na caçada ao larix. Pensara,
nessa madrugada, que nunca embarcara em missão mais perigosa, mais
importante. Agora, quase a esquecera.
— Estás pronto? — perguntou Kelis. Tinha um rosto de traços vincados,
que lhe davam um ar de quem parecia estar sempre a julgar os outros, embora
Aliver ultimamente não tivesse a certeza se as feições do homem traiam de facto
o que pensava.
— Claro — respondeu Aliver.
O outro fez um gesto de assentimento e afastou-se. Aliver acompanhou-o.
Manteve o passo ao ritmo do companheiro. Progrediram em passadas lentas,
aumentando o ritmo até chegarem ao passo de corrida por que estes povos do sul
eram famosos. Afastaram-se da aldeia, distanciando-se da sombra das últimas
cabanas. Subiram uma encosta que, se houvesse mais luz, lhes teria permitido
ver uma paisagem ondulante de campos de pasto, salpicada de árvores aqui e ali,
tingida dos tons dourados da estação seca. Teriam ainda de percorrer mais de
cento e cinquenta quilómetros até chegarem aos territórios onde ocorreria a
caçada. Todo este dia e mais algum tempo foram para Aliver de constante
movimento. Mas fora treinado para tais feitos. Cada golfada de ar que respirava
trazia-lhe mais força. Sentia a terra sob os pés descalços e sabia que estava
preparado para aquela vida, para aquele lugar no mundo.
Como fora diferente quando chegara a Talay! A fuga de Kidnaban fora um
suplício, mas pelo menos atingira o seu objetivo. Um guarda escoltara-o durante
todo o caminho até chegar à casa de Sangae Umae. O que pensara ele que lhe
estava a acontecer naquele momento? Mal se recordava. Sentira-se irritado e
com medo — sabia disso. Porém, lembrava-se principalmente de pormenores
dispersos, como o ter visto uma cobra cor de areia na sua bota, na primeira
manhã na aldeia, no tempo em que ainda usava botas. Era venenosa, aprendera, e
manhã na aldeia, no tempo em que ainda usava botas. Era venenosa, aprendera, e
mortal. Era uma das razões por que os talayanos não usavam sapatos. Pensara
nisto muitas vezes, remoendo o facto de ele também ter deixado de usar calçado,
havia anos que não o fazia, e mal conseguia imaginar-se a voltar a usá-lo.
Lembrava-se, por exemplo, de como lhe era difícil equilibrar-se de cócoras
sobre o buraco onde os aldeões defecavam. Uma coisa tão simples, acocorar-se e
aliviar as tripas, mas odiara fazê-lo, detestara não se poder limpar
adequadamente com folhas e pedras, como toda a gente fazia. Recordava-se de
observar os meninos da aldeia a fazerem um jogo que não compreendia.
Consistia simplesmente em que cada um, à vez, levava pauladas com um pau
grosso. Batiam com força uns nos outros, de músculos contraídos sob os golpes,
obviamente com dores. Porém, riam-se, provocando-se mutuamente, com
aqueles dentes muito brancos, de rostos virados para o céu, numa alegria que
parecia não ter fim.
Lembrava-se de como se sentira ameaçado por aqueles jovens negros e
esguios com quem treinara. Era um fraco, comparado com aqueles rapazes.
Perdia o fôlego antes deles. Quando lutavam, eram uma amálgama de superfícies
duras, com joelhadas, cotoveladas e queixos que pareciam facas nas suas costas.
E lembrava-se das raparigas da aldeia, de olhos muito redondos, a observá-lo,
murmurando umas com as outras, por vezes rebentando às gargalhadas, mais
dolorosas para o seu orgulho do que qualquer coisa que os rapazes lhe
infligissem. Lembrava-se da dificuldade que tinha em pronunciar as palavras
talayanas corretamente. Repetira mil e uma vezes exatamente as palavras que
pensava que alguém lhe dissera, apenas para lhe responderem com o aguilhão do
ridículo. Havia algo de feminino na maneira como pronunciava os erres, algo de
infantil nos seus guês, qualquer coisa de imbecil no modo como não dominava
os silêncios que davam a frases idênticas significados completamente diferentes.
Recordava-se de como achava insuportável a brisa de fim de tarde que lhe
soprava areia no rosto. Cobria-lhe o rosto de poeira, deixando à vista os sulcos
das lágrimas, por mais que tentasse limpar, esfregar e tirar para que ninguém
visse.
Porém, tudo fazia agora parte do passado. Por que razão pensar nisso
agora? Era um caçador, fizera-se homem, um talayano. Corria ao lado de um
guerreiro que amava como a um irmão. Respirava com regularidade,
calcorreando quilómetro após quilómetro, enquanto o suor lhe envolvia o corpo
quando o sol nascia. Aqueles rapazinhos ameaçadores eram agora os seus
companheiros, as meninas de olhos grandes mulheres que o olhavam com
agrado, amantes que dançavam para ele, algumas rivalizando para serem a
primeira a ter um filho seu. Falava a língua do povo como se fosse a materna.
primeira a ter um filho seu. Falava a língua do povo como se fosse a materna.
Não tinha bem presente no espírito como operara aquela transformação. O facto
de ter morto o larix assinalara a sua maturidade aos olhos da comunidade. Era
bem verdade que nunca se sentira tão vivo como naquela caçada, nunca tão
consciente da sua mortalidade e da inegável fome de viver. Não apenas de
sobreviver, mas de ganhar glória. Mas mesmo isto não passara de um episódio
entre muitos, muitos outros, mais pequenos, também em que pensar. Quem
poderia explicar como se tornara na pessoa que era? Isso não acontece de um dia
para o outro. É uma evolução gradual que sucede em grande parte sem se
perceber. Ele era simplesmente aquele que era agora.
Bem, isto não era inteiramente verdade. Pensara naqueles primeiros tempos
por causa de Thaddeus e de tudo o que de novo este lhe trouxera. Thaddeus, a
quem amava e odiava de igual modo. As pessoas da aldeia chamavam-lhe o
Acaciano. Aliver, quando falava com eles em talayano, usava também esse
nome. A ninguém parecia ocorrer que aquilo era estranho. Nem lhe parecia
estranho a ele que se pudesse sentir tão em casa com — e desafiado por — um
povo que lhe haviam ensinado em criança que era inferior. Porém, em cada tarde
em que se sentara em frente de Thaddeus e falara a sua língua materna,
compreendera que não era, no fundo, alguém daquele povo, não tão inteiramente
como gostaria. Era, também, o Acaciano. Mais do que isso, a acreditar em
Thaddeus, parecia ser a peça principal em redor da qual o destino do mundo iria
girar.
Aliver e Kelis prosseguiram a corrida durante grande parte do dia, parando
apenas para beber e comer uma refeição frugal, descansando para a comida
assentar e recomeçarem a caminhada. Descansavam à sombra de uma acácia,
dormindo uma sesta durante as horas ardentes da tarde, mas depois prosseguiam
a partir do crepúsculo, continuando ainda um pouco pela noite dentro. Havia
momentos em que Aliver, numa espécie de transe, se esquecia do propósito da
viagem, limitando-se a correr, como que flutuando sobre a força das pernas em
movimento, consciente apenas do movimento e da paisagem que via desenrolar-
se à sua volta.
No entanto, quando pararam para acampar, já noite alta, sentiu o peso das
responsabilidades que Thaddeus colocara sobre ele. Os dois homens fizeram
uma pequena fogueira, somente para lembrar aos animais selvagens que estavam
ali seres humanos e que seria melhor manterem-se afastados. Nada traziam onde
se deitar. Escavaram dois buracos rasos no solo arenoso, lado a lado, com a
cabeceira perto da fogueira. A noite podia ser bastante fria, mas o chão mantinha
calor suficiente para os conservar quentes até de madrugada. Comiam uma pasta
feita com a água preciosa que levavam e alguns grãos de sedi moídos. Não
sabiam a nada mas alimentavam-nos. Aliver usou um bocado de carne seca
sabiam a nada mas alimentavam-nos. Aliver usou um bocado de carne seca
como prato e depois comeu-o. Kelis descobriu o tubérculo a que os talayanos
chamavam raiz punho por causa da sua forma. Cortou-a na ligação e os dois
sentaram-se, chupando o líquido, doce e acre e refrescante.
— Por vezes penso que tudo isto é uma loucura — disse Aliver.
— Não pode ser real, o que estamos a fazer, o que, em princípio, devo
fazer. É uma história para crianças, um mito, como os que me contavam quando
era menino.
Kelis tirou a raiz da boca para dizer:
— Esta é a tua história agora. Tu és o mito.
— Assim me disseram. Achas que somos doidos? — perguntou. — Nós, os
acacianos? Ir à procura de mágicos banidos e coisas do género? Não achas que
damos vontade de rir?
— Rir? — Era difícil ver a expressão do homem à luz fraca da fogueira,
mas a voz não denotava humor algum.
— Kelis, enviaram-me para ir à procura de feiticeiros com quinhentos anos
e convencê-los a ajudar-me a ganhar novamente o império que o meu pai perdeu.
Ele foi o monarca a quem confiscaram o maior império de sempre. E, agora,
fala-me do além para me pedir que o conquiste novamente. Isto não dá para rir?
Em redor deles ouviram a cacofonia dos uivos dos chacais. Os caninos,
pelos vistos, achavam graça àquilo. Kelis continuava a não achar. Atirou fora a
sua raiz e disse:
— Os nossos contadores de histórias também falam dos Falantes de Deus.
São lendas nossas tanto quanto são vossas. Já as ouviste.
— E acreditas nessas lendas?
Kelis não respondeu, mas Aliver sabia o que ele diria, se o pressionasse.
Claro que acreditava. Para os talayanos, a verdade habitava na palavra falada.
Não importava se, por vezes, as lendas falavam de algo improvável ou se se
contradiziam umas às outras. Se alguém as contava
— se tinham passado de boca em boca e chegado até eles — isso bastava
para que um talayano acreditasse neles. Não havia razão para não o fazer. Aliver
escutara muitas das suas lendas ao longo dos anos.
Sabia que os Falantes de Deus teriam marchado através de Talay para o
exílio. Estavam enfurecidos, dizia a lenda, pelo ostracismo a que os votavam.
Haviam ajudado Tinhadin a conquistar o mundo, mas agora ele — o maior deles
— virara-se contra eles e proibira-os de usarem as suas palavras divinas. Tinham
— virara-se contra eles e proibira-os de usarem as suas palavras divinas. Tinham
lançado maldições sussurradas, para que Tinhadin não os ouvisse. Mas até
aquelas maldições murmuradas tinham poder. Haviam arrancado pedaços
inteiros de terra; tinham movido partes da superfície do mundo; haviam lançado
fogos com o movimento dos braços, tinham tocado com os olhos os animais das
planícies, corrompendo-os, tornando-os em criaturas como o larix. Rezavam as
lendas que tinham causado grandes males, mas, felizmente, acabaram por partir
das regiões habitadas rumo às terras áridas e escaldantes do sul. Segundo o mito,
os Santoth ainda lá viviam. Nunca ninguém por ali se aventurara para o
confirmar. Porque haveriam de o fazer? Uma única pessoa poderia algum dia ter
razões para os procurar — um príncipe da dinastia Akaran que fosse quebrar a
sua sentença.
— Queres ouvir a história de outra pessoa em vez da tua? — perguntou
Kelis. — Escuta esta, então. Havia um jovem talayano cujo pai era um homem
muito orgulhoso, um guerreiro. Vivia para a guerra e queria que o filho fizesse o
mesmo. O filho, contudo, era um sonhador, daqueles que preveem quando as
chuvas cairão, se as crianças nascerão saudáveis, daquelas pessoas cuja vida do
sono é tão vívida quanto a vida que têm acordadas. O rapaz sonhava com as
coisas antes de acontecerem. Em sonhos, falava com os animais e, por vezes, ao
acordar, lembrava-se ainda da língua que o animal falava, pelo menos por alguns
momentos. O filho queria muito saber mais sobre o dom que tinha. Talvez
penses que o pai deveria ter ficado muito orgulhoso por o filho ter sido escolhido
para aquilo. Porém, não ficou. O pai, quando dormia, morria para a vida;
somente acordado encontrava sentido, só com a guerra é que tudo se tornava
compreensível para ele. Proibiu o filho de sonhar. E fê-lo com todo o desprezo
que conseguia expressar com o olhar. Fê-lo através do ridículo e usou palavras
mordazes cheias de escárnio para o demover. Ficou ao pé do filho enquanto este
dormia. Sempre que via os olhos do rapaz mexerem-se, sinal de que entrara no
mundo dos sonhos, picava-o com a lança. Com a dor, este acordava vezes sem
conta. Em breve o rapaz tinha medo de adormecer. Os sonhos, por vezes,
vinham ter com ele na mesma, mesmo em pleno dia, quando estava totalmente
desperto. O pai aprendeu a ver os sonhos nos olhos do filho, e batia-lhe quando
desconfiava que o espírito do rapaz divagava. Nada disto impediu o rapaz.
Simplesmente, não podia deixar de ser quem era. Porém, o pai descobriu uma
maneira.
Kelis interrompeu-se para escutar um barulho ali perto, o arranhar de garras
no solo árido. Puseram-se os dois à escuta alguns instantes, até o canto
serrilhado de um grilo preto abafar os sons mais fracos. O arranhar teria sido
provavelmente um lagarto. Nada que os incomodasse Aliver instigou.
provavelmente um lagarto. Nada que os incomodasse Aliver instigou.
— O pai descobriu uma maneira...
Kelis continuou a história.
— Adotou o filho de um homem que morrera e colocou-o à frente do filho.
Chamou-lhe primogénito, o que significava que tudo o que pertencia ao pai — o
nome, os antepassados, os bens — iria para o filho adotivo. Se o filho sonhador
quisesse ter uma vida próspera, só podia fazer uma coisa. Ele chamou o adotado
para o círculo e matou-o. Enfiou a lança no peito do rapaz e viu o seu novo
irmão esvair-se em sangue. Em vez de se zangar, o pai ficou agradado. Tudo
acontecera como pensara. O seu verdadeiro primogénito tinha alma de guerreiro,
quer lhe agradasse ou não. O pai conseguiu o que queria. Depois daquele
episódio, o filho passou a detestar dormir. Quando dormia, ainda sonhava, mas
era sempre o mesmo sonho. Sonhava com o combate que tivera, com o cravar da
lança, com sangue, de ver o rosto de um homem enquanto morre. Assim, o
sonhador morreu e só o guerreiro sobreviveu.
— Nunca tinha ouvido essa história antes — disse Aliver. O outro inclinou
a cabeça para o lado, depois endireitou-a.
— Ninguém escolhe o pai que tem. Nem tu, nem eu, nem ninguém. Mas,
acredita, quando se nasce com uma missão, não a devemos recusar. Não fazer
aquilo para que nascemos é um fardo pesado de suportar.
Na manhã seguinte, Aliver tinha as pernas rígidas, mas em breve se
descontraiu ao entrar em movimento. No segundo dia, seguiram ao ritmo do
primeiro. Corriam por terras com a mesma paisagem salpicada de árvores e
extensas planícies com ligeiras elevações. Mas, ao terceiro dia, uma matilha de
quatro larix sentiu o cheiro dos homens e começou a persegui-los. Os animais
galopavam no seu encalço, emitindo grunhidos e rosnadelas, aproximando-se
tanto que Aliver, ao olhar para trás, conseguia distinguir-lhes os traços
individuais. A um faltava uma orelha. Um outro corria coxeando de uma pata
dianteira. O chefe da matilha era bastante maior do que o animal que Aliver
matara, e o quarto tendia a correr para um lado, como que antecipando o
momento em que lhes barraria o caminho. Se os quatro animais conseguissem
cercar os homens, não haveria esperança de escaparem com vida. O ódio do larix
ao ser humano andava a par do seu medo. Como um leão perseguindo as crias de
felinos menores, pareciam caçar os homens por rancor.
Aliver, fugindo deles a correr, apercebeu-se de como estava diferente de
quando caçara um deles poucas semanas antes. Nessa altura, enfrentara o facto
de que, se falhasse algum movimento, teria uma morte horrível. O estranho era
que, no fundo, este sentimento lhe era perfeitamente familiar. De certa forma,
vivera sempre com medo desde a noite em que o pai fora apunhalado no peito.
vivera sempre com medo desde a noite em que o pai fora apunhalado no peito.
Houvera sempre um monstro invisível a persegui-lo. Enfrentar um monstro real,
à clara luz do dia, libertara qualquer coisa nele. Fizera o bicho correr até ao local
perfeito, depois virara-se de tão perto que conseguia sentir o cheiro do hálito da
criatura. Olhara-o, abarcando todos os pormenores do animal e... fizera aquilo
que deveria fazer. Enterrou a lança no peito do bicho e manteve-a ali presa,
enquanto o larix estrebuchava, soltando grunhidos, com as últimas forças que lhe
restavam. Não sabia exatamente como, mas aquele feito alterara algo nele para
melhor.
Kelis apressou o ritmo da corrida. Não pararam a meio do dia. Continuaram
a correr através do calor ondeante que pairava sobre a planície. Apesar de o larix
conseguir correr durante horas, só o fazia quando verdadeiramente provocado.
Assim, perderam de vista a matilha quando uma presa mais fácil — porcos
verrugosos — chamou a atenção dos animais. Os dois homens continuaram a
correr mal parando para descansar, até muitas horas depois do escurecer.
Ao quinto dia, ao atravessarem uma planície repleta de salinas, depararam
com um bando gigantesco de aves cor de rosa em migração. Havia milhares e
milhares delas naquelas terras; um bando enorme cintilando ao sol, aves de
pescoço longo e graciosas, movimentando-se nas suas altas patas negras com
elegância. Aliver não fazia ideia porque não levantaram voo. Limitaram-se a
afastar-se, abrindo caminho aos dois corredores, observando-os de soslaio e sem
os incomodarem.
No final da sexta manhã chegaram ao grande rio que banhava as colinas a
sul. Tinha um leito largo e raso com mais de um quilómetro de largura. Na
estação das chuvas tornava-se uma barreira formidável. Mesmo agora servia de
fronteira sul da Talay habitada. O rio nesta altura do ano resumia-se a um fio de
água, um veio estreito de líquido a dar pelas coxas, com alguns passos de
largura. Aliver gostou de sentir a lisura dos seixos escorregadios sob os pés
descalços. Não fora o horizonte que os rodeava uma extensão pálida e sem fim
de terras irregulares, com escassa vegetação e crestada pelo sol tórrido, e talvez
Aliver tivesse fechado os olhos e deixado que os seixos e a água lhe suscitassem
recordações de lugares e tempos de outrora.
— Irmão — proferiu Kelis — não irei mais longe do que isto.
Aliver virou-se para ele e observou-o bebendo um gole da cabaça de água.
— O quê?
— O meu povo não se arrisca para sul deste rio. O Doador correrá contigo a
partir daqui. É melhor companheiro que eu.
Aliver fitou-o.
—Esperarei aqui por ti — explicou Kelis. — Acredita-me, Aliver, quando
regressares a este lugar estarei aqui à tua espera.
Aliver ficou tão surpreendido que não contestou. Kelis deixou-o com a lista
de coisas a fazer e a não fazer, avisos de como conservar a água e onde procurar
raízes que contivessem sucos e que animais lhe poderiam fornecer um refresco
de sangue. Aliver já sabia tudo isso, mas escutou-o, desfrutando de cada
momento que lhe adiasse a partida.
— Sangae deu-me uma mensagem para ti — disse Kelis, enquanto ajudava
Aliver a colocar o alforge às costas. — Disse que és um filho para ele. E que és
filho de Leodan Akaran. E que és um príncipe para o mundo. Disse que sabe que
enfrentarás os desafios que te aguardam com bravura. Disse que quando
colocares na cabeça a coroa de Acácia, espera que lhe permitas estar entre os
primeiros a fazer-te uma vénia.
— Sangae não precisa de se curvar perante mim.
— Talvez não precises que ele se curve perante ti. Mas ele precisará... por
si. O respeito flui em dois sentidos e pode significar tanto para quem o oferece
como para quem o recebe. Agora parte. Tens ainda muito que caminhar antes de
o Sol se pôr. Hás de encontrar umas colinas que te servirão de abrigo, perto de
uns afloramentos rochosos. O larix teme tais lugares à noite.
— Como hei de encontrar os Santoth? Ninguém mo disse. Kelis sorriu.
— Ninguém poderia dizer, Aliver. Ninguém sabe.
***
Durante os primeiros dias sozinho, Aliver experimentou ainda momentos de
transe mais intensos do que anteriormente. Não eram tanto os pensamentos sobre
a sua missão ou as recordações do passado que o invadiam, mas mais os
vislumbres que ia tendo da grandeza caótica escondida na carne silenciosa do
mundo, no ar que respirava e nas criaturas que se moviam pela terra. Uma vez
rodeado por uma paisagem de crateras enormes, Aliver observou o céu refletido
num espelho de água. Lá no alto, as nuvens aglomeravam-se, agitadas. Não se
moviam como as nuvens geralmente fazem. Pareciam presas naquele sítio
perdido do mundo, sempre em mutação, mas nunca conseguindo fugir.
Momentos assim pareciam-lhe encerrar uma importância profunda. Não os
via como sinais de uma profecia. O significado estava ali, simplesmente, ao vê-
las, naqueles momentos de contemplação da vida em que os seus olhos estavam
tão abertos e deslumbrados. Quando era mais novo, nunca se detivera muito
tempo a contemplar o pôr-do-sol ou as paisagens, nem dera muita atenção à
tempo a contemplar o pôr-do-sol ou as paisagens, nem dera muita atenção à
mudança das cores da folhagem no Continente. Era, em relação a isso, agora
uma pessoa muito diferente da que fora.
A meio da quarta noite de solidão, Aliver acordou, ao aperceber-se de
qualquer coisa que o levou a despertar. Quando Kelis lhe contara a história do
sonhador a quem o pai negara o destino... estivera a falar sobre si próprio. Kelis
era o sonhador a quem haviam negado o seu destino. Talvez isso tivesse sido
óbvio no tom de voz, mas Kelis nunca revelara nada sobre si próprio
anteriormente. Nunca pedira a piedade de ninguém. Também não fora essa a sua
ideia ao contar a história, sabia Aliver. Porque não compreendera Aliver isso na
altura e dissera qualquer coisa?
Nessa noite, mais tarde, teve um sonho, e passou o dia inteiro seguinte
relembrando-se das conversas que o tinham causado. Durante uma semana ou
mais, passara todas as tardes conversando com Thaddeus, e haviam falado sobre
mais coisas do que apenas os desafios de Aliver. O velho carregava em si o fardo
dos seus enganos. Explicara-lhe a história que Hanish Mein lhe contara sobre
como o avô de Aliver teria matado a esposa e o filho de Thaddeus. Sim, dissera,
apesar da fonte que lhe dera tais notícias, acreditava que Gridulan mandara
matar a sua família. Por causa disso, Thaddeus desejara vingar-se. Tinha, ainda
que por breves momentos, traído os Akaran.
Aliver mal conseguira responder, nem com a fúria nem com o perdão por
que o homem obviamente ansiava. Não tinha a certeza se deveria odiá-lo por
conspirar com Hanish Mein, se lhe deveria pedir desculpas pela traição da sua
própria família ou se deveria agradecer a Thaddeus por ter sido o instrumento da
salvação dele e dos irmãos.
No decurso destas conversas, Thaddeus revelara a complexa teia de crimes
que mantinha o mundo. Por isso, por mais doloroso que fosse, Aliver sentia
gratidão por finalmente saber. Receara sempre o que não era falado, o
inexplicado. Ouvira palavras como Quota e murmúrios sobre os Lothan Aklun
sem conseguir nunca ajustá-los a factos concretos. Agora, contudo, escutara tudo
o que Thaddeus lhe contara. Acácia era um império de escravos. Traficavam
gente e prosperavam à custa de trabalho forçado. Vendiam droga, a bruma, para
acalmar as massas. Os Akaran não eram os líderes benevolentes que sempre lhe
haviam ensinado a acreditar que eram. O que significaria tudo aquilo para ele,
pensava. Poderia ter a a certeza de que um novo domínio Akaran fosse melhor
do que o de Hanish Mein?
Por fim, a paisagem modificou-se. Tornou-se ainda mais árida e o jovem
prosseguia agora através de uma região de solos crestados. A erva, escassa, tinha
prosseguia agora através de uma região de solos crestados. A erva, escassa, tinha
uma brancura quase prateada e contrastava fortemente com as formações
rochosas que se espalhavam pela terra, enegrecidas e de origem vulcânica, que
pareciam excrementos de criaturas antigas de um mundo de outra era. Aliver não
tinha a certeza se pensava naquela comparação por si ou se já a ouvira numa
história qualquer. Parecia-lhe ter uma vaga memória disso, e até uma difusa ideia
de ter observado as criaturas caminhando naquele lugar, com pernas enormes,
perscrutando o horizonte em busca de melhores terras. Por entre os rochedos
cresciam solitárias acácias, uma variante mais pequena da espécie, atrofiadas e
terrivelmente retorcidas. Eram avôs idosos da espécie, ali abandonados em
alguma era, imóveis, de braços erguidos aos céus em súplicas nunca atendidas.
Em lado algum, por entre tudo isto, via sinais humanos. Não havia aldeias,
nenhum traço de terra arada ou de ferramentas abandonadas. Nem sequer havia
animais. Era uma paisagem terrivelmente isolada, mais ainda em cada dia que
passava. Os Santoth haviam sido homens, seres humanos como Edifus, um
homem cujo sangue corria nas veias de Aliver. Se viviam em algum sítio ali
perto, deveria existir algum sinal deles. Porém, nada havia.
Uma manhã, passada uma semana daquela viagem solitária, Aliver
apercebeu-se de que não sobreviveria àquela demanda. Parte de si nunca
esperara encontrar os tais Santoth, mas ainda não lhe ocorrera, até contemplar as
suas magras provisões — uma mão cheia de grãos de sedi e alguns goles de água
choca, um pequeno pacote de ervas secas para fazer sopa — que não tinha
alimento para sobreviver mais do que um dia ou dois. Havia três dias que não via
uma fonte de água. Não vira sinais de tubérculos ou de nenhuma das plantas de
onde poderia extrair algumas gotas de água. Nunca estivera num sítio tão árido.
Ali sentado, sentia o ar quente a sorver-lhe a humidade da pele. Poderia tentar
retomar o caminho de volta à fronteira do rio, mas a quantos dias estaria agora
desse curso de água? Por mais que tentasse, não conseguia dizer, exceto que se
encontrava longe demais para conseguir caminhar até lá.
Levantou-se, com as pernas doridas, e perscrutou a paisagem em redor. A
planície espraiava-se à sua frente numa desolação uniforme, até ao horizonte e
mais além dele. Nada. Nada além de areia e rocha e céu. Deu um passo. Depois
outro. Não tentou correr. Sentia apenas que tinha de se mover, caminhando
devagar, cambaleante. Deixou as provisões no lugar onde estavam. Não o
ajudariam muito mais, e sem o seu peso terminaria aquela provação mais
rapidamente. Observou a posição do Sol e calculou a hora do dia, depois decidiu
que nada disso importava. Os Santoth — como sempre suspeitara — não
passavam de fumos do passado mantidos vivos por mentes supersticiosas. E ele
era um morto em pé. O que era surpreendente é que isso não lhe importava
grande coisa. De certa forma, sentia-se justificado. Tivera sempre razão. Não
grande coisa. De certa forma, sentia-se justificado. Tivera sempre razão. Não
estava destinado a nenhuma grandeza mítica. Talvez tal papel viesse a cair sobre
os ombros de Corinn, ou de Mena ou de Dariel, ou talvez a dinastia Akaran não
merecesse o poder que exercera.
Tudo isto fazia perfeito sentido para ele e, ao aceitá-lo, dava-lhe a calma
que nunca antes sentira. Pensou com carinho nas irmãs e no irmão. Desejou tê-
los visto crescer. Desejou que conseguissem ter êxito em fosse o que fosse que
tentassem fazer. Ele, Aliver, fora sempre o elo fraco, por mais que tivesse
tentado ser de outro modo. O pai depositara demasiada fé nele.
Por volta do meio-dia tropeçou e caiu. Esforçou-se por se pôr de joelhos,
rodeado de uma infinita extensão de areia plana, salpicada aqui e além por
rochedos oblongos da mesma cor de bronze de tudo o resto, de pé ou de lado ou
inclinados uns sobre os outros. Interrogou-se que estranhezas geológicas seriam,
mas sentia a garganta muito seca e isso perturbava-o mais. Deixara de suar havia
algum tempo. A cabeça latejava ao ritmo do coração e, por vezes, aquele palpitar
ofuscava-lhe a visão, numa luminosidade cegante.
Estendeu-se no chão. Nada daquilo seria assim tão mau se não tivesse de
voltar a senti-lo no corpo. Deixou-se ficar assim durante algum tempo, contente
por já não ter um objetivo. Foi por isso que ao primeiro sinal de movimento, de
mudança, a emoção o invadiu, uma espécie de colorido do mundo que sentiu
como... não era medo, como eventualmente esperaria. Nem espanto nem
incredulidade. A emoção era mais difícil de definir. Era algo como
arrependimento. O que causou isso foi o facto de os rochedos em seu redor
despertarem. Despertaram e começaram a caminhar lentamente na sua direção.
Capítulo 35

O chalé de caça de Calfa Ven situava-se num contraforte granítico virado a


sul com vista sobre os vales desérticos e brilhantes da Reserva do Rei. Em parte
talhado na rocha e em parte empoleirado nesta, o chalé era um retiro de recreio
da nobreza acaciana havia mais de duzentos anos. O nome significava «ninho do
condor da montanhas», na língua de Senival. A reserva era uma área densamente
arborizada e rica em caça, protegida por algum pessoal que tratava do chalé e
patrulhava as florestas, protegendo-as dos larápios. Corinn não a visitava desde
menina, mas continuava a ser um sítio de que se lembrava bem.
Os Mein tinham levado alguns anos até conseguir acalmar o império para
conseguirem gozar algum tempo de repouso. A ideia em si era algo estranha para
um povo que caçara para sobreviver, mas ultimamente tinha aprendido a apreciar
o costume. Quando Corinn soube que Hanish requisitava a sua presença no
chalé, com ele, pouca escolha tinha senão aceitar. Não que tivesse recusado, se
pudesse. Embora fizesse questão de demonstrar o seu ressentimento na atitude e
modo de falar, nunca se sentia tão viva como na companhia dele.
Cavalgava a pouca distância atrás de Hanish, com outros nobres do Mein,
quando chegaram ao chalé. Daquele lado era uma estrutura granítica cinzenta,
composta por grandes blocos de pedra num estilo simples, evocando tempos
mais humildes. O pessoal aguardava-os junto às escadas. Corinn reconheceu um
deles, o chefe dos criados, Peter. Quando era menina achava-o bonito, e ficou
espantada ao ver como parecia velho agora. Era o primeiro indício de que o
tempo passara pelo chalé.
Peter mostrou-se efusivo nos cumprimentos. Aproximou-se de Hanish
numa postura meio curvada, tremendo como um cão velho ao tentar abanar a
cauda raquítica.
— Estamos muitos felizes com a vossa visita, senhor. Muito felizes... —
Mal deu tempo a Hanish de responder, emitindo um fluxo de palavras que
testemunhavam há quanto tempo aguardavam a sua vista, como tinham
preparado tudo cuidadosamente, como iria achar a floresta luxuriante, como a
caça iria para além das suas expetativas. — A reserva abunda de todas as
espécies de animais. Não terá problemas...
O criado interrompeu-se a meio da frase. O olhar, que começara a percorrer
o grupo recém-chegado, descobrira Corinn. Olhou-a por instantes, de olhos bem
o grupo recém-chegado, descobrira Corinn. Olhou-a por instantes, de olhos bem
abertos, deixando ver a íris completa no branco das órbitas. Baixou a cabeça e
deu-lhe as boas-vindas pelo nome, entre gaguejos. Depois virou-se, voltando a
atenção para Hanish.
O seu olhar enervou Corinn. Porque parecera receoso? Tinha medo de
Hanish, isso era óbvio, mas o modo como olhara a princesa significava outro
tipo de alerta. Não conseguiu tirar aquela expressão do espírito, apesar de a
experiência de percorrer as salas do chalé a ajudasse a esquecer um pouco. Era
estranho ouvir Peter guiá-los através de salas que ela já conhecia. Falava como
se tudo tivesse sido criado para prazer de Hanish, como se a memória dos
antigos habitantes fosse algo de muito distante.
Os quartos do interior eram estreitos e algo sombrios, iluminados por
lanternas nas paredes e por lareiras acesas. Alguns dos antigos ornamentos
estavam à vista: uma tapeçaria com cenas de caça que percorria todo o
comprimento da sala de jantar, um candelabro talhado em prata contando a
história de Elenet, os frascos e garrafas cheios de ervas perfumadas e especiarias.
Como amara aquele cheiro! Ao aspirá-lo novamente sentia uma vaga de emoção.
Tentou respirar calmamente e observar o que fora mudado ou acrescentado para
agradar aos novos senhores. Tapetes em pele e mobiliário ao estilo do Mein;
algumas mesas baixas de pernas robustas; as insígnias do Mein a colorir as lajes
do chão em frente da lareira da sala de jantar: havia muitos retoques novos, por
mais superficiais que parecessem.
Larken, o Marah acaciano que a traíra anos antes, caminhava ao lado de
Hanish, emproado com o estatuto adquirido e falando quase tanto quanto Peter.
Com Maeander fora, Larken encontrava-se quase sempre ao lado do chefe.
Corinn continuava a odiá-lo, embora tentasse não o demonstrar.
Ouviu as outras mulheres falarem, comentando as coisas que viam, achando
este ou aquele objeto bizarro ou encantador. Rhrenna ia passando os dedos pelos
tampos das mesas, para ver se estariam sujas de pó. Usavam a sua recente
nobreza de modo tão espampanante que se tornavam irritantes para Corinn,
apesar de ela também não demonstrar essa emoção. A principal arma que tinha
contra aquela gente era um desafio interior. Alimentava-se de desdém e cuidava
desse sentimento como um jardineiro trata de uma roseira bela e cheia de
espinhos.
O principal atrativo do chalé era a vista que a sua localização permitia.
Cada sala que dava para a Reserva do Rei tinha uma varanda de onde se
contemplava o tapete luxuriante de árvores de folha caduca, que se espraiava até
norte, a perder de vista, perturbada aqui e além por um penhasco de granito. O
norte, a perder de vista, perturbada aqui e além por um penhasco de granito. O
vento soprava pelas copas das árvores em alguns pontos, como a brisa que
anuncia a tempestade no mar ardente. A beleza agreste da paisagem aturdiu-a.
Nada se parecia com as recordações que tinha de infância. Lembrava-se apenas
do medo sinistro daquele verde que invadia o lugar, das sombras por entre as
árvores que pareciam esconder ogres, demónios da floresta e glutursos. Para
dizer a verdade, ainda pairava por ali a ameaça de todos esses medos, mas sentia
que isso lhe dava forças. Lembrava-a de como imaginara as florestas do norte de
Igguldan.
Nessa noite, jantou à mesa de Hanish no salão principal. O grupo da
comitiva rondaria as trinta pessoas, com quase o mesmo número de criados
atarefados em redor das mesas, percorrendo apressados o corredor que ia dar às
cozinhas. A comida tinha demasiada caça para o gosto de Corinn; era tudo à
base de carne de veado e javali, bolos de sangue e fígados gordos. Pouco mais
fazia do que revolver aquilo no prato. Uma das coisas que mais detestava nessas
ocasiões era a possibilidade sempre presente de ser chamada à conversa, como
uma espécie de exemplo das peculiaridades acacianas. Antes ainda caia na
armadilha e se exaltava, contando os feitos do seu povo, mas isso nunca
alcançava o objetivo que pretendia. Ou se sentia uma idiota por o seu
conhecimento não condizer com os factos verificáveis com que os outros lhe
respondiam, ou acabava por se sentir dolorosamente consciente de que apenas
fizera parecer maior o triunfo do Mein sobre o seu povo. Nessa noite viu-se
quase sempre a ser o centro da conversa. Larken poderia ter respondido melhor a
qualquer das perguntas que lhe dirigiam, mas ninguém parecia lembrar-se de que
ele um dia fora acaciano.
— Corinn, aquele mural no corredor, que história relata?
— Qual?
— O que parece... parece ser o mundo inteiro, tão grande e com tanto
pormenor. Mas todo ele se centra numa pessoa que parece um menino. Sabeis a
que me refiro.
Corinn sabia. Respondeu que era uma representação do mundo nos tempos
de Elenet. Não quis dar mais pormenores, mas, pressionada, acabou por explicar
que aquilo representava o momento a seguir ao Doador se ter afastado do
mundo. Era, disse, tudo o que sabia sobre o mural.
— Que estranho sistema de crenças — retorquiu uma mulher chamada
Halren. — A vossa fé está construída no facto de o vosso deus vos ter
abandonado, não é? Ele abomina-vos. Despreza a vossa devoção e o vosso povo
há séculos que o adora sem esperança. Por um lado, dizem: «Deus existe e
odeia-me» e no instante seguinte encolhem os ombros e continuam a vossa vida,
odeia-me» e no instante seguinte encolhem os ombros e continuam a vossa vida,
sem sequer tentarem de novo ficar nas suas graças. Vedes a loucura disto?
Corinn desviou o olhar, olhou para Larken, desviou-o de novo e murmurou
que não tinha pensado muito no assunto.
— Porque lhe perguntais isso? — disse uma das donzelas de Rhrenna. —
Ela não é uma erudita... pois não, Corinn?
A princesa não tinha a certeza se aquilo fora um gesto de simpatia ou uma
desconsideração. Fosse como fosse, o rubor subiu-lhe ao rosto.
— Se eu tivesse perdido o favor dos Tunishnevre, tudo faria para o ganhar
novamente — aventou Halren, olhando furtivamente para Hanish. — Contudo,
felizmente, acho que estão bastante contentes comigo. Com todos nós, na
verdade, graças ao nosso chefe.
Isto nada ajudou a diminuir o rubor das faces de Corinn. Olhou para Halren,
para as madeixas prateadas na sua fronte e o seu rosto pálido.
— Quanto tempo haveis sido abençoada? Nove anos? Isso não passa de um
espirro comparado com o reinado Akaran. — Corinn poderia ter dito algo ainda
mais mordaz — algo de que se poderia arrepender depois —, mas Hanish
resolveu naquele momento tornar-se o centro das atenções.
— A princesa acaba de dizer algo indiscutível — disse. Pareceu pensar no
assunto um momento, de olhos cinzentos pensativos. — Corinn, já haveis ouvido
a história do Pequeno Kilish? O Pequeno Kilish era um homem gigante,
chamado assim por ironia, entendeis. Era um agricultor que fez uma gadanha tão
grande que só ele lhe conseguia pegar. Gostava de a fazer girar em grandes
golpes, ceifando assim milhões de grãos de trigo. Fez então uma outra gadanha e
pôs-se a dançar pelos campos de trigo, ceifando em grandes círculos e padrões,
cada golpe equivalente ao de dez homens. Tornou-se famoso por todo o lado.
Entrou numa competição com outros homens para ver quem ceifaria mais trigo,
mas era sempre o vencedor. Em breve já ninguém queria competir com ele.
Hanish interrompeu-se enquanto uma criada substituía o prato usado por
um limpo. Continuou então, explicando que, um dia, chegara àquela terra um
estranho, um homem baixo de pele escura e olhos maliciosos. Era um ceifeiro de
almas. Construíra uma espécie de máquina que já ceifara a maior parte do
mundo. Tinha uma grande estrutura que cortava um campo inteiro de extremo a
extremo, movido por rodas. Em cem pontos diferentes colocou manequins,
complexos e articulados como se fossem verdadeiros seres humanos, mas feitos
em carvalho. Cada um agarrava numa foice. Quando as pessoas viram aquilo
riram-se. Que raio de brinquedo enorme era aquele? De que serviriam pessoas
feitas de madeira? Porém, aquele ceifeiro de almas conhecia algumas das
feitas de madeira? Porém, aquele ceifeiro de almas conhecia algumas das
palavras divinas. Murmurou feitiços que roubaram as almas dos que se riam
dele. Colocou cada alma em cada uma das figuras de madeira. Isto trouxe-as à
vida. Começaram a ceifar tal como as pessoas verdadeiras faziam. O ceifeiro de
almas chicoteou a mula e ela pôs-se a puxar o engenho pelo campo fora. Todas
as pessoas de madeira trabalhavam para ele, e, em pouco tempo, ceifara mais do
que o Pequeno Kilish poderia ter ceifado num dia inteiro.
Um outro criado tentou voltar a encher o copo do chefe, mas Hanish
afastou-o, impaciente, parecia, com a insistente atenção.
— As pessoas ficaram espantadas — prosseguiu —, e louvaram o estranho.
Todos concordaram que vencera a competição e que merecia todas as honras.
Contudo, o Pequeno Kilish detestava a máquina e odiava o homem que a
construíra. E todo aquele alarido o aborrecia enormemente. Porque aplaudiriam
as pessoas algo tão vil?
— Por instantes esqueceram-se das suas próprias almas — disse Halren.
— Será que não reparavam nos zombies sem alma que estavam agora entre
eles? Antes de pensar no que fazia, o Pequeno Kilish fez girar a sua foice e
cortou a cabeça do ceifeiro de almas. Esta tombou no chão e tagarelou ainda
alguns minutos até a língua do homem perceber que tudo acabara. O Pequeno
Kilish olhou em redor, temendo que lhe chamassem assassino e criminoso e que
o banissem. Porém, o povo não o baniu. Regozijou-se. Diziam: Deixem o Kilish
ceifar o nosso trigo, pois é forte e não precisa de nos roubar as almas. E assim
foi.
Hanish fez um gesto com a mão, indicando que a narrativa acabava ali.
Levantaram-se várias vozes, elogiando-o pelo modo como contara a história.
Halren estava radiante ao olhar em volta, como se Hanish tivesse contado a
história de propósito para ela. Porém, o chefe mantinha a atenção em Corinn.
— Contámos esta história durante muitos, muitos anos. Compreendeis o seu
significado, não compreendeis?
— Haveis dito que o Pequeno Kilish era um homem gigante, mas desconfio
que pelo menos algo do seu corpo não era assim tão grande — disse Corinn. —
Foi por isso, com certeza, que ganhou esse nome. Não se deveria confiar num
homem chamado Pequeno. Nenhum homem gosta de pensar que qualquer parte
de si é pequena. Isso fá-lo amargo, injusto e mesquinho..
Rhrenna disse:
— Corinn, tendes cá uma maneira de...
— O Pequeno Kilish — explicou Hanish, interrompendo ambas — era da
— O Pequeno Kilish — explicou Hanish, interrompendo ambas — era da
raça do Mein; o ceifeiro de almas nascera em Acácia. É este o significado.
Podemos estar no poder há pouco tempo, princesa, mas não vendemos a nossa
alma para o obter. Levou-nos simplesmente um pouco mais de tempo para
alcançar por meios honestos o que o vosso povo alcançou pela traição.
— Haveis acabado de inventar essa história — disse Corinn — e «meios
honestos»? Sois...
Hanish atirou a cabeça para trás e desatou a rir.
— Irritei a princesa. Duvido que ela admita que o que a surpreendeu foi
como um conto antigo revela tão bem a verdade atual sobre a história dos nossos
dois povos. É quase como uma profecia, não é? A minha felicidade é ter ajudado
a torná-la uma realidade.
A afirmação recebeu murmúrios de aprovação em volta da mesa, mas
Corinn retorquiu:
— Poderá ser a vossa felicidade, mas é a minha tristeza.
— Não acredito nisso — respondeu Hanish. Fitou-a. — Penso que dizeis
essas coisas simplesmente porque pensais que as deveis dizer. Mas, na verdade,
princesa, pouco mal vos fizemos. Sim, há o vosso pai. Não vos peço que me
perdoeis por isso, mas lembrai-vos, por favor, que na mesma altura em que
perdíeis o vosso pai, eu perdia o meu amado irmão. Eram ambos instrumentos de
uma causa, de causas em conflito. É assim o mundo dos homens e não existe
crime nisso. — Hanish calou-se, pegou no copo e bebeu. — Para além disso,
nenhum mal vos fizemos.
— Nenhum mal... — começou Corinn, mas foi interrompida.
— Exatamente. Nunca tocámos num cabelo de nenhum dos vossos irmãos.
Nunca. E nunca o faremos, não para lhes fazer mal, pelo menos. Quisemos, sim,
que voltassem para casa, para o palácio onde pertencem. Podiam viver ao nosso
lado, tal como vós. Olhai para vós, Corinn. Olhai para a vida que tendes. Sois o
centro de uma corte de mulheres e homens que vos adoram, apesar das farpas
que nos atirais. Rodeiam-vos todos os luxos da realeza; sem quaisquer
responsabilidades. Só queria que vos sentísseis melhor na vossa posição.
Gostaria, de facto, de vos ver... contente.
Corinn virou-se abruptamente para o olhar de frente. Sentiu como se ele
estivesse a meter-lhe a língua na orelha. Fora deste modo que a última palavra
que ele proferira a atingira: como uma carícia húmida que atravessasse a mesa e
a tocasse à frente dos olhos de todos. Porém, ele continuava sentado, à vontade,
com o copo junto às narinas, cheirando o vinho. Ninguém, exceto Maeander, a
com o copo junto às narinas, cheirando o vinho. Ninguém, exceto Maeander, a
fizera jamais sentir-se tão desconfortável, aparentemente sem razão óbvia. Disse:
— Então morrei — vós e todo o vosso povo — e dai-me de volta a minha
família.
Halren ia começar a dar uma resposta ofendida, mas Hanish pareceu apenas
divertido.
— Minha querida rapariga, tão sentimental — disse ele a Corinn —, sois
mesmo muito bonita, não é, Larken?
— Um pouco petulante — respondeu o traidor —, mas não é nada má de
contemplar.
Corinn ergueu-se da mesa e deixou a sala, sentindo cada par de olhos dos
presentes fito nela.
Capítulo 36

Não foi fácil para Leeka Alain libertar-se da bruma. Havia dias em que
tinha alucinações. Noites de sonhos horríveis. Dores no corpo que pareciam
choques elétricos que o mantinham rígido e tremente na cama. Por vezes, tinha
lampejos do mundo que vira quando fora presa das febres que sofrera no Mein.
Mas, para além de tudo isto, lembrava-se principalmente do delírio do consumo,
um pesadelo durante o qual era simultaneamente consumido e consumia-se a si
próprio. Por vezes sentia-se corroído por milhares de vermes de dentes afiados,
abrindo caminho por cada ponto do seu corpo. E o pior era que esses vermes
faziam parte dele. Leeka era tanto o devorador como o devorado. Comia-se e era
comido.
O antigo chanceler esteve a seu lado durante todo este período. Desde a
primeira noite em que Thaddeus viera ter com ele no escuro, estivera sempre ali,
a ajudá-lo, como médico, enfermeiro, carcereiro e confidente, tudo ao mesmo
tempo. Thaddeus encerrara-o no seu casebre nos montes acima da vila.
Amarrara-lhe mãos e pés à cama, enrolara-lhe um grande pedaço de pano em
redor do tronco, e sentava-se ao pé dele, explicando-lhe que necessitava imenso
dos seus serviços. No entanto, não podia nem sequer começar a discutir aquilo
com ele enquanto a mente e o corpo de Leeka não se libertassem do vício. Leeka
injuriava-o, confuso como estava e assustado pelo tumulto que lhe atravessava o
corpo.
A certa altura, quando a sua visão se tornou suficientemente clara para ver
quem cuidava de si, afirmou com absoluta certeza de que estava a morrer. Não
conseguia passar por todo aquele sofrimento.
— Vês isto? — perguntou Thaddeus, esticando os dedos para lhe mostrar
uma farpa presa ao dedo mindinho. — Esta agulha foi embebida num veneno tão
poderoso que mata a vítima quase antes de ela sentir a picada. É semelhante à
que usei em ti, na rapidez, mas esta é mortal. Deixo-a aqui a teu lado. Se for
verdade que não consegues viver sem a tua droga nem o teu vinho, então usa-a e
tira a tua própria vida. Ou, se és demasiado egoísta para tal, vem ter comigo
quando eu estiver a dormir e mata-me. Rouba as moedas que tiver comigo e
foge. Deixa que o destino do mundo permaneça nas mãos de Hanish Mein. Não
reivindiques grandeza alguma. Tudo isto está em teu poder se assim o
escolheres. Se me matares, nem sequer será um crime; será uma dádiva. Sabes,
escolheres. Se me matares, nem sequer será um crime; será uma dádiva. Sabes,
também tenho muitos demónios a enfrentar. Podemos ser cobardes em conjunto.
O homem retirou a arma do dedo e colocou-a sobre o tamborete onde
estivera sentado. Desamarrou os pés e as mãos do doente, afrouxou a tira de
pano em volta do seu tronco e afastou-se. Leeka tinha a certeza de que
Thaddeus, por mais sábio que fosse, nunca saberia realmente o quão próximo ele
estivera de pegar naquele alfinete e espetar-lho no pescoço. Tinha tanta vontade
de o fazer. Imaginava cada movimento, cada gesto de juntar as moedas do
homem, cada passo dado na direção da aldeia, todas as transações que teria de
efetuar até colocar novamente os lábios no cachimbo e inalar. Nem pela sua vida
sabia o que o impedira.
Na manhã seguinte acordou a chorar. Sabia sem dúvida que se encontrava
sozinho no mundo. Não culpava ninguém por isso a não ser a si próprio. O
destino de nações talvez lhe tivesse estragado e levado a vida, mas era culpa sua
nunca ter amado verdadeiramente uma mulher, nunca ter tido filhos, nunca ter
olhado o mundo com receio ou esperança pelos netos. Se tivesse feito alguma
dessas coisas, teria dado um sentido melhor à sua vida. Não conseguia abarcar
como vivera tantos anos sem compreender quanta da sua existência fora
destinada ao nada. Talvez devesse usar a libertação daquele alfinete envenenado,
afinal de contas, em si próprio.
— Vejo que ainda não acabaste inteiramente de ter pena de ti próprio —
proferiu Thaddeus, interrompendo-lhe os pensamentos.
Leeka virou-se no leito para ver o homem novamente sentado naquele
tamborete, observando-o, com um pano na mão que lhe estendeu. Leeka pegou
no pano e limpou o rosto, consciente de que se deveria sentir embaraçado, mas
sem o sentir. Thaddeus perguntou-lhe se sentia fome suficiente para comer;
Leeka deu por si a dizer que sim.
— Bom — retorquiu o outro homem. — É a resposta certa. Fiz sopa. Só
legumes e ervas que apanhei nos montes, alguns cogumelos. Partilha-a comigo e
depois podemos falar como deve ser sobre o trabalho que tenho para fazeres.
Pensaria muitas vezes, mais tarde, o quão estranho pode ser alguém que
num momento desejava a morte, mas que depois voltava à vida graças a algumas
palavras amáveis, a um lenço estendido, a um alimento simples que aconchegava
um estômago vazio. Estas coisas, assim como tudo o resto, reanimaram Leeka.
Depois dessa manhã nunca mais lhe foi tão difícil recusar a bruma. Ainda sentia
a angústia da sua antiga fome, certamente. Tinha-a diariamente, quase de hora a
hora. Teve de decidir muitas e muitas vezes que não queria sucumbir ao vício.
Porém, sentia agora que tinha poder para o recusar. O facto de Thaddeus lhe
atribuir uma missão dava-lhe alento.
atribuir uma missão dava-lhe alento.
Abandonou o casebre nos montes com o espírito cheio de instruções, com
esperanças renovada da forma mais inesperada. Levava à cintura uma espada
acaciana, um presente de despedida do chanceler. Anos antes um antigo soldado
do império teria chamado a atenção se andasse armado, mas o mundo mudara
desde os primeiros anos do governo de Hanish. A resistência fora derrotada. As
tropas do Mein, muito disseminadas, pouca atenção davam a indivíduos
isolados, dedicando a sua energia a proteger a segurança da governação de
Hanish e o comércio que a mantinha.
Leeka seguia caminho, apreciando o ar que lhe enchia os pulmões, a dor
nas pernas. No final da primeira semana de caminhada voltara a encontrar a
antiga disciplina. Escolhia de propósito rotas que passavam pelas vias mais
árduas, subindo com dificuldade trilhos através de taludes pedregosos,
caminhando a metade do passo devido ao cascalho que lhe deslizava debaixo dos
pés. Uma tarde, enquanto descansava numa reentrância entre dois picos, sentiu
um espasmo nas pernas. Os tendões ficaram presos numa dor que o tomou por
inteiro. Leeka ergueu os olhos aos céus, chorando de alegria. Estava a recuperar
o seu corpo.
Nunca esqueceria a alegria que sentiu no alto do pico, perto dos cumes
ocidentais das Montanhas de Senival, rodeado apenas pelas nuvens e tendo
abaixo milhares de pináculos que se erguiam por todo o lado, aguçados como os
dentes de um monstro, ou como dedos rebeldes apontados aos céus em acusação.
Dançou então a Décima Forma, a de Telamathon combatendo os Cinco
Discípulos do deus Reelos. Nunca sentira na sua vida um momento tão puro. Era
um tributo coreografado, um ato que o ligava a tudo o que sempre fora e a tudo o
que esperava ser de novo. Talvez se tivesse enganado, talvez iludido, aturdido
pela altitude, por bazófia, não tinha a certeza, mas acreditou, enquanto girava e
movimentava a espada, saltando e girando, que por um instante todas aquelas
montanhas se haviam imobilizado para o observar.
Depois, com demasiada rapidez, saiu da zona montanhosa e foi dar à costa
das Encostas Cinzentas. Foi abrindo caminho por entre a azáfama de
mercadores, comerciantes, e miséria humana que habitava aquelas cidades do
litoral. Poucos o olharam com simpatia. Todos avaliavam se ele constituía um
risco ou uma oportunidade. Havia, sentiu, uma ameaça que pairava no ar,
diferente de tudo o que sentira durante o reinado de Leodan. Foi várias vezes
abordado por vendedores de bruma, todos a garantirem-lhe a qualidade do
produto, a sua pureza, a sua proveniência direta da fonte, a não adulteração e a
limpeza. Leeka não tinha a certeza se algo nos seus gestos ou no rosto o
tornavam alvo de tal gente, ou se o tráfico no mundo se fazia agora daquele
tornavam alvo de tal gente, ou se o tráfico no mundo se fazia agora daquele
modo. Por várias vezes teve de agarrar as mãos de gatunos que tentavam ver o
que trazia na roupa. Por duas vezes foi ameaçado em bares por insultos que não
soubera que tinha dito. Uma vez teve mesmo de empunhar a espada ao ser
encurralado por três jovens assaltantes num beco. Brandiu a espada no ar em
golpes rápidos como Aliss atacara o Louco de Careven. Os outros tiveram a
sensatez de desaparecerem, e ele ficou-lhes grato.
Thaddeus indicara-lhe o nome de um homem que deveria procurar em
determinada vila do litoral. Encontrou-o e conseguiu convencê-lo de que tinha
sido enviado por Thaddeus. O homem entregou-o ao cuidado de um outro, que
lhe deu comida e lhe contou o que podia, que o ajudou a lutar contra a ressaca da
bruma e o encaminhou com uma mensagem a outra pessoa. Veio assim a
compreender que havia uma resistência oculta a funcionar no mundo. 0 velho
chanceler fazia parte de algo muito mais vasto do que ele. Graças a Thaddeus,
também Leeka agora tomava parte daquilo.
Enquanto viajava ia interrogando toda a gente da maneira mais casual que
conseguia. Só conhecia a pessoa que procurava por um único nome.
Mencionava-o com moderação. Enquadrava as perguntas dependendo da pessoa
com quem falava. Passou assim um mês inteiro e metade de outro daquela
maneira, não conseguindo aproximar-se do objetivo, pouco ouvindo que o
ajudasse, mas muito que o incentivava a prosseguir. Contudo, quando surgiu
uma oportunidade, a princípio não se apercebeu dela.
Numa taverna de um porto de pesca cujo nome nem se dera ao trabalho de
perguntar, uma mulher aproximou-se. Trazia uma bebida na mão. Sorriu-lhe, era
jovem e atraente, mas tinha um ar gasto que o fez tomá-la por uma prostituta.
Quando ela falou, contudo, surpreendeu-o com uma pergunta direta:
— Porque andas à procura de um corsário?
Leeka respondeu com uma das suas respostas preparadas. Foi
intencionalmente vago. Aludiu a uma proposta de negócios, a informação que
possuía, na perspetiva de que tanto ele como o corsário beneficiariam em vários
aspetos, todos demasiado delicados para serem revelados a quem quer que fosse
que não o jovem corsário.
— Hum — disse ela. Assentiu com um gesto de cabeça parecendo
satisfeita. Sorveu um gole da bebida e depois, sem qualquer tipo de aviso,
franziu os lábios e cuspiu-lhe, espalhando-lhe no rosto um líquido que queimava.
Perdeu a visão. Sentiu mãos a agarrá-lo, para além das da mulher. Subitamente
parecia que toda a gente que se encontrava na taverna o estivera a aguardar.
Agrediram-no com murros e objetos contundentes, tiraram-lhe as armas,
Agrediram-no com murros e objetos contundentes, tiraram-lhe as armas,
batendo-lhe vezes sem conta com a cabeça na parede até perder a consciência.
Quando acordou, percebeu que se encontrava no mar. Sentia a espuma a
bater-lhe no rosto. Tinha o corpo molhado. Encharcado, na verdade. Sentia-se
constantemente submergir nas ondas. Percebeu que se encontrava amarrado a
uma viga pregada à proa do barco. Tinha os braços, as pernas e o tronco presos e
por vezes o seu corpo cortava o rumo da embarcação através de uma mar verde e
borbulhante. Era uma figura de proa viva.
Foi assim que chegou a Palishdock, num estado miserável, de modo muito
menos secreto do que desejara, sem sinais de quem era para a variegada
multidão de bandidos que se reuniram embasbacados a olhar para ele. Os
homens da tripulação que o retiraram para o molhe não tiveram grandes
cuidados. Deixaram-no de rosto virado para o sol ardente durante algum tempo.
Quando, por fim, o levaram para terra, limitaram-se a pegar na prancha a que
estava preso e carregaram-no assim, enquanto via o chão subir e baixar a cada
passada que davam. Atiraram-no para a areia quente, mas só por um momento.
Depois sentiu a prancha ser levantada e encostaram-na a uma construção
qualquer. Aguardou assim, amarrado, dorido e coberto de areia.
A jovem que tomara por prostituta encontrava-se ali, junto do grupo de
bandidos que com tanta facilidade o haviam agredido e prendido. Andavam por
ali, preguiçosos e indiferentes como quaisquer vagabundos de rua, até surgirem
dois outros homens que saíram de uma das construções toscas do lugar, um
jovem e um homem corpulento. O jovem não parecia satisfeito. Perguntou aos
outros quem trouxera Leeka e depois observou-o de longe, aparentemente a
pensar se iria abordar Leeka ou virar costas. O homem corpulento apoiava-se
com esforço num bastão. Estava pálido e, apesar de ser corpulento, pouco firme,
como um saco meio cheio. Observava Leeka sem proferir palavra, limitando-se a
olhá-lo fixamente.
Por fim, o jovem dirigiu-se a ele, caminhando pela areia. Desembainhou
uma adaga que trazia à anca e empunhou-a entre ele e Leeka, de um modo que
não era bem ameaçador, mas que não andava longe disso.
— Quem és e porque andavas à minha procura?
Olhando para o belo rosto do jovem, quase sem respirar perante a
possibilidade da resposta, Leeka perguntou:
— Sois aquele a quem chamam Spratling?
— Respondo a esse nome. E então?
Leeka desejou não ter os lábios tão inchados e cobertos de sangue seco e
sal. Desejou que o olho inchado não lhe obscurecesse a visão e poder beber um
sal. Desejou que o olho inchado não lhe obscurecesse a visão e poder beber um
gole de água que lhe libertasse as palavras da garganta. Mas nada lhe
ofereceram, por isso disse o que planeara dizer:
— Príncipe Dariel Akaran, alegro-me por pôr a vista...
— Porque me chamas por esse nome? — interrompeu-o o jovem, confuso e
enraivecido.
Para alívio de Leeka, houve alguém que respondeu por ele. O homem
corpulento arrastou-se para a frente.
— Calma, rapaz. Isto é comigo. Isto é comigo.
Capítulo 37

Mena agarrou as argolas de metal enferrujado e fez força para se sentar na


areia. Assim ancorada inclinou a cabeça e olhou para as colunas de moluscos
vivos. Estava sentada, como fazia muitas vezes, no solo arenoso do porto, a uns
dez metros de profundidade, sustendo a respiração. O cabelo flutuava em seu
redor em madeixas sinuosas. À sua volta erguia-se uma floresta de sombras, as
correntes das âncoras suspensas das embarcações ali atracadas. Agarradas a elas,
viam-se milhares de ostras. Quando completamente crescidas, eram do tamanho
da cabeça de uma criança. Embora em grande parte constituídas por concha,
cada uma delas daria para três ou quatro jantares, depois de fervidas em lume
brando, num molho de leite de coco, e servidas com massa transparente. Eram
um acepipe da região, de que o templo detinha o monopólio. O mercado de
exportação de ostras negras enchia os cofres do templo de cada vez que os
mercadores passavam pelo arquipélago.
Começou a sentir os pulmões a estalar. Batiam-lhe de encontro ao peito.
Cada músculo das pontas dos dedos das mãos e pés pulsava, num protesto
furioso contra a pressão da água. Para lá das ostras, a superfície azul turquesa e
brilhante das águas realçava o peso e tamanho dos moluscos, como se o mundo
lá em cima fosse um lugar abençoado pela luz que ela só poderia recuperar após
empreender a mais perigosa das subidas. Deixou de se agarrar e flutuou, livre.
Ao subir na água em direção à luz, ia soltando um rasto de bolhas. Nunca sabia
se era das bolhas ou se as ostras a sentiam aproximar-se, mas uma a uma iam
fechando as conchas, abrindo-lhe a passagem para a superfície. Os últimos
momentos eram os piores, toda ela gritando no íntimo por fugir de si própria,
certa de que aguentara tempo demais.
Irrompeu à superfície de boca escancarada ao ar. O ar envolveu-a, assim
como a luz, o som e o movimento, tal como a vida. Não conseguia explicar a
necessidade que tinha de passar por aquele estranho sofrimento, mas deixava-a
sempre temporariamente certa da pureza da sua alma. Aquilo preocupava-a,
especialmente num dia assim, quando olharia para o rosto de pais atingidos pela
dor e lhes juraria que a morte de uma criança era uma bênção para todos, um
sacrifício necessário, uma oferenda que qualquer pai deveria desejar dar.
Saiu do viveiro de ostras a meio da manhã. Percorreu durante quase meia
hora o labirinto de molhes e docas flutuantes que atravancavam o porto pouco
hora o labirinto de molhes e docas flutuantes que atravancavam o porto pouco
profundo e em semicírculo. A área das docas que pertencia ao templo era um
reino solitário onde Mena passava horas. Mas no porto comercial tinha de passar
por uma multidão atarefada de mercadores e marinheiros, pescadores e gente que
remendava as redes. Havia barracas onde se vendia toda a espécie de comida,
como peixe e crustáceos, fruta das plantações costeiras e carne dos animais da
montanha. Os vendedores apregoava os seus produtos na cadência cantada da
língua vumu. Ela movimentava-se por ali com tranquilidade, aceitando as
saudações e preces murmuradas que aquela gente, curvando a cabeça, lhe dirigia.
Maeben na terra caminhava por entre eles. Normalmente isto dava alegria às
pessoas, mas nessa tarde havia como que uma preocupação velada nos olhos que
a observavam.
Ao percorrer o último troço do molhe, Mena reparou num marinheiro que
interrompera o trabalho para a olhar. Encontrava-se na amurada de uma barcaça
de comércio, agarrado a uma corda com uma das mãos. Mena olhou para ele o
tempo suficiente para ver o tronco nu do homem; tinha um queixo anguloso,
bem barbeado; olhar firme e a cabeça coberta por faixas de tecido branco cujas
pontas lhe caiam sobre os ombros e se colavam ao suor que lhe cobria o peito.
Não era de Vumu, mas os marinheiros eram sempre um grupo poliglota. Nada
havia de terno ou lascivo no seu semblante, mas o silêncio atento do homem fez
com que Mena se sentisse pouco à vontade. Estugou o passo.
Chegada ao templo, vestiram-na com a indumentária de Maeben; garras
presas aos dedos, camadas de vestes emplumadas; o toucado de espigões que lhe
rematava a aparência feroz e exuberante. Ao sentir as mãos que a vestiam e
preparavam, aguardou por sentir a presença divina encarnar no seu corpo,
insuflar-lhe as palavras, usar a sua língua para se pronunciar e instalar no seu
espírito a resolução da completa crença. Mas até àquele momento, contudo, a
deusa recusara-se a entrar nela quando ela mais precisava. Mantinha-se
silenciosa e Mena tinha de se desenvencilhar sozinha em responder por ela o
melhor que podia.
De início, a rapariga pensou que tinha alguma deficiência. O sacerdote mais
velho garantiu-lhe que a deusa estava apenas a pô-la à prova, senhora difícil
como era. Seria somente uma questão de tempo, dissera ele, até que Maeben
encarnasse nela verdadeiramente em todos os momentos — e não apenas durante
o frenesim das cerimónias. Embora isso ainda não tivesse acontecido, Mena
aprendera a sentir-se cada vez mais à vontade no seu papel. Tudo em seu redor
completava a fé, e isso normalmente bastava-lhe. Hoje era diferente, contudo, e
não conseguia evitar o medo pelo encontro que a aguardava.
Pouco depois de se ter vestido, sentou-se numa espécie de trono na
Pouco depois de se ter vestido, sentou-se numa espécie de trono na
antecâmara do templo. O grão-sacerdote da ordem de Maeben, Vaminee,
encontrava-se a seu lado. Era um homem de pele escura. Tinha rosto tão suave
que não denotava traços da idade, apesar de Mena saber que se mantinha naquele
cargo havia mais de quarenta anos. Usava uma túnica muito fina que lhe caía dos
ombros em pregas diáfanas, tão imóvel que parecia uma estátua. Não era a
primeira vez que esperavam o começo de um encontro daquele género. Na
verdade, haviam partilhado aquele mesmo silêncio três vezes nos últimos anos.
O jovem casal entrou, flanqueado por sacerdotes menos graduados. De
cabeça baixa, mãos juntas erguidas, aproximaram-se lentamente. Mena reparou
em como pareciam pequenos. Eles próprios não passavam de crianças! Como
podiam ter dado à luz — e agora perdido — um filho? Ajoelharam-se aos pés do
trono.
Sem mais cerimónias, Vaminee perguntou:
— Quem sois? De onde vêm? O que se passou?
O pai respondeu numa voz muito aguda, embargada de emoção. Vinham do
interior, explicou. Viviam numa aldeia nas montanhas. Ele caçava pássaros para
recolher as penas usadas nas cerimónias do templo, ela fazia cestos e outros
objetos em folhas de palmeira que vendiam no mercado em Galat. A filha, Ria,
fora uma boa menina, de rosto oval como a mãe, muito tímida com as outras
crianças. Amavam-na mais do que à vida. Ele teria trocado a própria alma pelo
filho, sem hesitar um instante. Não conseguia compreender porque...
— Têm outro filho — retorquiu Vaminee. — Um rapaz, gémeo da menina.
Devem estar gratos por isso.
— E tivemos outro filho antes — disse o pai, ansioso se fazer entender. —
Tivemos três filhos de uma vez. Perdemos o primeiro para a oferenda aos
estrangeiros. Levaram-nos o Tan. Por isso, porque há de Maeben castigar-nos
novamente?
Oh, pensou Mena, já tinham dado um filho à Quota então. Perderam agora
um segundo.
Vaminee não se comoveu.
— Três filhos num ventre é recompensa rica demais para passar
despercebida. Mas digam-nos exatamente o que aconteceu à menina.
Tal foi respondido pela mãe. Não demonstrava as mesmas emoções do
marido. A voz era como os olhos, clara e cansada, como se tivesse passado para
além da dor e se encontrasse noutro lugar. Estava a caminhar com a filha por um
desfiladeiro da montanha, disse. Ria seguia atrás, a alguma distância dela, mas
conhecia bem o caminho. Ouvia-a cantarolar, repetindo uns versos simples sem
conhecia bem o caminho. Ouvia-a cantarolar, repetindo uns versos simples sem
cessar. A determinada altura deixou de cantar. Interrompeu-se a meio de uma
frase. Olhou para trás, para o sítio onde a filha deveria estar, mas nada viu.
Quando olhou para o céu, viu as pernas da menina. Viu-a espernear como se
presa do firmamento. Depois viu as asas abertas que a levavam. A seguir, ouviu-
as bater.
O olhar da mulher tocou o de Mena por instantes, antes de se atirar ao chão
à sua frente.
— Percebi então que Maeben a roubara.
— Maeben nada rouba — afirmou Vaminee. — Aquilo que toma torna-se
seu no momento em que lhe toca.
— Pensei — disse a mãe, erguendo os olhos — que a Ria me pertencia. Ela
veio de...
Vaminee ergueu a voz e interrompeu-a.
— Baixa os olhos! Esqueces-te de onde estás. Pensas que a dor é só tua.
Enganas-te! A dor pertence a Maeben. O que sentes é apenas uma parte do que
ela suporta. És como um único grão de areia de todas as praias de Vumu.
Maeben levou a tua filha para lhe fazer companhia em Uvumal. Um dia verás
que isto é uma dádiva — para a menina e para ti própria. Não é assim, ó
Enfurecida?
Era este o sinal que Mena receava, que indicava que teria agora de
participar na conversa. Levantou-se e deu alguns passos na direção deles, de
braços abertos, asas preparadas para voar. Mantinha o rosto tão imóvel quanto
podia, embora o seu íntimo estivesse num turbilhão para encontrar as palavras
exatas que justificassem os feitos de uma divindade irada. Ainda não as
encontrara. Sentia a monstruosidade da máscara com bico. Sentiu-se invadida
pela vergonha.
Estacou em frente dos dois jovens que haviam baixado a cabeça até ao
chão. Viu a tatuagem no braço do homem, as vértebras que sobressaíam da pele
fina das costas da rapariga. Como amava aquela gente — todo o povo de Vumu!
Amava a sua aparência, o cheiro da sua pele e a forma da boca quando riam, a
graciosidade tranquila com que se moviam. Naquele momento, aqueles dois
jovens perante ela representavam todos aqueles que viviam sob a tirania da
deusa que ela encarnava. Desejou que não olhassem. Não tinham de o fazer.
Bastava-lhes manter a cabeça baixa e ouvi-la justificar os atos de Maeben. Tinha
apenas de pronunciar algumas frases, apenas as suficientes para lhes lembrar que
Maeben não respondia perante ninguém, que ainda sentia ira pela desfeita que a
Maeben não respondia perante ninguém, que ainda sentia ira pela desfeita que a
humanidade cometera contra ela. Não tinha de pedir desculpas por nada, e
aqueles dois — assim a haviam ensinado — agradecer-lhe-iam mais tarde por ter
demonstrado força perante a dor deles.
Porém, as palavras que por fim lhe escaparam dos lábios surpreenderam-na.
Não as pronunciou em vumu. Falou na língua em que por vezes sonhava, a
língua da sua quase esquecida infância. Disse-lhes que tinha pena deles. Não
conseguia sequer imaginar a sua tristeza. Se pudesse desfazer aquilo, fá-lo-ia.
Devolver-lhes-ia a sua menina de rostinho oval. Fá-lo-ia de certeza.
— Mas não posso — disse. — Maeben toma agora conta da vossa filha.
Mas devem agora amar duplamente o vosso menino. Ofereceram à deusa. Agora
a vossa vida será abençoada e o vosso filho será sempre uma alegria para ambos.
Mais tarde, ao deixar a câmara, Mena pensou no que lhe faria o sacerdote se
tivesse compreendido a língua em que lhes falara. Já fora mau que a tivesse
ouvido falar outra língua. Iria provavelmente repreendê-la por isso depois, mas
isso nunca a assustava tanto quanto o sacerdote pensava. Por vezes, quando ele
falava, imaginava-se empunhando a velha espada Marah com que chegara à ilha
e a cortar-lhe a cabeça. Via exatamente como o faria, e até imaginava o sangue
que jorraria. Ficava surpreendida por conter em si tal violência, mas talvez isso
fosse por viver há tanto tempo como representante da ira de Maeben.
Pensou se o seu discurso teria feito algum bem ao casal. Certamente que
não tinham entendido as suas palavras. Talvez aquilo não passasse de um ato de
cobardia, de uma confissão incompleta. Porque seria ela levada sempre para
aquela língua quando se encontrava em dificuldades?
Estava ainda imersa nestes pensamentos à noite, ao deixar o principal
edifício do templo e dirigir-se para os seus aposentos privados. Levava apenas
uma roupa simples que a protegia da brisa noturna. Caminhava descalça sobre o
caminho de areia batida iluminado pela luz cinzenta das estrelas, circundado de
um lado por uma sebe de arbustos rasteiros. Sabia o caminho de cor e nunca
levava nada que a alumiasse.
Estacou de repente, pensando ter escutado algum barulho — talvez um
murmúrio, um som que não era ali habitual e que entretanto desaparecera.
Porém, nada mais ouviu a não ser um silêncio quase total, um inseto rastejando
no chão e o arranhar de um qualquer roedor assustado com a sua imobilidade
súbita, o ladrar de um cão na vila e algumas vozes vindas do templo: era tudo.
Quanto mais se punha à escuta mais se convencia de que o som não fora nada de
especial. Estava quase a sossegar pensando nisso quando ouviu um novo
farfalhar nos arbustos perto dela.
Virou-se e viu o vulto de um homem a colocar-se atrás dela. Devia ter
estado escondido nos arbustos até ela passar. Era mais alto que os habitantes de
Vumu. Não devia ser das ilhas, talvez um marinheiro ou corsário, alguém que
pretendia fazer-lhe mal. Por que outra razão apareceria ali sozinho na escuridão?
Calculou a distância até à aldeia, e pensou na possibilidade de o contornar a
correr e voltar para o templo. Podia gritar. Se gritasse, quanto tempo levaria até
alguém vir ter com ela? Cerrou os punhos, sentindo as unhas cravar-se na pele,
invadida por aquela calma latente que sabia ser fúria. Naquele momento sentiu-
se mais como deusa do que havia pouco, quando envergava o traje cerimonial.
— Mena? Sois tu, não sois?
Percebeu-o perfeitamente, e por um momento pensou que o sotaque dele
não era mesmo da ilha. Porém, logo a seguir percebeu outra coisa, ele não lhe
falara em vumu. Falara... falara naquela outra língua. Reconheceu as palavras e o
seu significado apesar de sentir estranheza por as ouvir pronunciadas por outra
pessoa. Chamara-a pelo seu nome, algo que pouca gente sabia na ilha. Pensou se
não teria atraído a si algum demónio. Talvez a deusa tivesse ficado zangada por
ter falado numa língua estrangeira. Talvez ele estivesse ali para a castigar.
— O que queres? — inquiriu, falando de propósito em vumu. — Nada
tenho para ti, por isso deixa-me. Sirvo a deusa. A sua fúria é inescapável.
— Assim ouvi dizer — respondeu o homem. — Mas vós não vos pareceis
com uma águia-marinha gigante que rouba crianças. Não vos pareceis mesmo
nada. — O homem deu um passo, aproximando-se. Ela recuou, e ele ergueu um
braço para a tranquilizar. Ouviu-se um ruído nas instalações do templo. O
estranho inclinou a cabeça, ficando iluminado de perfil o suficiente para ela
reconhecer o marinheiro que a ficara a observar naquela manhã. Por alguma
razão, isso deixou-a mais perplexa do que assustada.
— Falais vumu como uma natural das ilhas, mas não sois de cá pois não?
Sois Mena Akaran, da Arvore de Acácia.
Mena abanou a cabeça, dizendo:
— Sou Maeben na terra. — Disse-o várias vezes, mas não suficientemente
alto para o interromper.
— O vosso irmão era o Aliver. A vossa irmã, Corinn. Dariel era o mais
novo. O vosso pai era Leodan...
— O que queres? — proferiu, abrupta, não como pergunta mas mais como
uma explosão do seu peito, uma necessidade de o fazer calar, porque os nomes
que ele dizia e a língua em que os proferia tão calmamente não a deixavam nada
tranquila.
tranquila.
— Vós sabeis quem eu sou, Mena. Era companheiro do vosso irmão, do
grupo de treinos. O meu pai era Althenos. Tomava conta dos registos no palácio
de vosso pai. Dancei convosco quando tinheis dez anos. Lembrais-vos? Haveis-
me pisado os pés e magoado imenso. Dizei que vos lembrais de mim. Por favor,
Mena.
Enquanto falava ia-se aproximando dela. Apesar da pouca luz, via-lhe agora
melhor as feições. Ela lembrava-se apenas parcialmente das coisas que ele dizia.
Estas giravam num turbilhão na sua mente e protestavam que era impossível ele
encontrar-se ali à sua frente dizendo tais coisas. No entanto, conhecia o seu
rosto. Reconheceu nos olhos dele o rapaz que fora, de rosto tão franco e
tranquilo. Tinha os lábios entreabertos, mas ela lembrou-se de como ficavam
quando sorria, de como a alegria lhe transformava as feições.
— Princesa — disse o homem, caindo de joelhos —, já tinha perdido a
esperança... dizei-me que sois vós e que não estou enganado.
— Como te chamas? — perguntou numa voz mais calma do que aquilo que
sentia. Via a luz das estrelas refletida nos olhos dele. Reparou que algo mudara
neles e compreendeu que eram lágrimas.
Ele disse então:
— Chamo-me Melio.
Capítulo 38

Rialus Neptos acreditara um dia que ter sido governador da satrapia do


Mein fora a maior maldição da sua vida. Odiara aquele lugar gelado repleto de
gente rude e proscrita do império. Sentia-se ferver quando pensava no modo
desdenhoso como os Akaran o tratavam, de tal forma que estivera disposto a
fazer fosse o que fosse para ter outra situação na vida. Por isso se começara a
relacionar com gente de baixo nível entre os seus conhecidos em Alecia —
membros da família, criminosos, oportunistas de todo o tipo — instando-os à
revolta e a causarem todo o género de problemas no momento do ataque de
Hanish Mein. Viu com alegria a cidade transformar-se num caos. Durante alguns
dias vivera em completa euforia, vendo a antiga ordem ser varrida do mundo,
aguardando o novo reino de Hanish Mein, certo de que ganharia um lugar
proeminente.
Que traição fora aquela, então, quando Hanish — numa manobra que o
novo governante devia ter pensado que seria a maior graça do mundo — fez de
Rialus o seu representante pessoal junto de Calrach, o chefe da horda numrek.
Rialus acordava muitas vezes aos gritos, com um pesadelo do momento em que
o líder lhe falara das novas funções. Hanish explicara então que Rialus fora um
dos primeiros acacianos que os numrek tinham encontrado. Dissera que os
numrek ainda lhe falavam da calorosa receção que ele lhes dera em Cathgergen.
Rialus demonstrara bem a sua força moral, o seu talento em lidar com uma raça
tão rude como eram os numrek.
— És o homem ideal, Rialus — explicara. — Mereces bem esta missão.
Rialus protestara nervosamente. Nada sabia dos numrek. Não se adaptaria
às regiões geladas em que os numrek deveriam instalar-se.
Preferiria um cargo perto do coração da nação, em Alecia ou ao longo da
costa, perto de Manil. Talvez pudesse servir Hanish como magistrado principal
de Bocoum? Um cargo desse género. Porém, servir de representante junto dos
numrek? Nem sequer falava a língua deles. Não queria mostrar-se ingrato,
dissera Rialus, mas talvez Hanish pudesse reconsiderar. Afinal de contas,
aquelas bestas comiam carne humana! Dificilmente constituíam companhia que
um aliado valioso devesse manter.
Mais tarde, arrependeu-se de ter protestado. Maeander encontrava-se
presente e parecia ter prazer em ouvir as suas súplicas. A missão manteve-se e
presente e parecia ter prazer em ouvir as suas súplicas. A missão manteve-se e
assim começou um novo período de infelicidade para Rialus.
Havia alguma satisfação no facto de os numrek terem ignorado as
exigências de Hanish sempre que lhes apeteceu. Não ficaram no Mein, nem
sequer em Aushenia, como tinham acordado. Espalharam-se pelo sul. Calrach
instalou-se numa vila na costa de Talay. Aqui, pelo menos, Rialus tinha o clima
quente que tanto apreciava. Porém, o calor do sol revelou-se parca recompensa
para os problemas da sua existência diária.
Com que atividades passavam os numrek o tempo? Que tipo de cultura
tinham e como preferiam gozar dos ganhos que os serviços prestados a Hanish
lhes poderiam proporcionar? Bem, gostavam imenso de se queimar ao sol, como
se isso em si constituísse um objetivo digno de seres sensatos. Nos dias de sol
estendiam-se nus pelas areias da praia, só se movendo para rebolarem de um
lado para o outro, sorvendo bebidas servidas por criados acacianos. Os mais
jovens andavam sempre com os adultos, num instante acarinhados e logo a
seguir levando encontrões, e tendo sempre direito aos melhores lugares para
assistir a qualquer matança que ocorresse.
Quando não estavam estendidos ao sol, andavam à luta uns com os outros,
com varas curvas de madeira que muitas vezes quebravam ossos, usando facas
que só por pouco não davam golpes fatais. Tinham orgulho em ganhar cicatrizes.
Rialus cometeu o erro de demonstrar o seu melindre ao ver feridas, o que apenas
resultou em ser diariamente confrontado com novos golpes e rasgões, enquanto
os numrek o observavam, sempre divertidos com a sua reação, por maior
indiferença que ele tentasse mostrar.
Cometeu outro erro em relação ao jogo de lanças de que os numrek
gostavam. Este implicava porem um escravo a correr à sua frente, através de um
percurso com obstáculos, enquanto o perseguiam atirando-lhe dardos. Rialus
admitira um dia que achava aquilo divertido. Como resposta, Calrach fez o
próprio Rialus participar. Puxou-o do lugar, pegou numa lança e sorriu-lhe.
— O truque — proferiu — é ter sorte.
Rialus nunca correra tanto na sua vida. O coração batera tão depressa que
pensou que os outros o podiam ver a saltar-lhe no peito. A cada instante do
percurso vira a morte à frente dos olhos. Os dardos caíam no solo atrás dele a
cada passo, marcando o seu avanço. Tinha a certeza de que ou morreria ou
passaria o resto da vida a sofrer por causa de um ferimento. Contudo, não foi
atingido por nenhum dardo. Foi só quando o coração se acalmou que conseguiu
ouvir, por cima dos batimentos, que Calrach e os companheiros gritavam de
satisfação. Calrach não o tentara atingir. Para eles era um jogo. Era sempre a
satisfação. Calrach não o tentara atingir. Para eles era um jogo. Era sempre a
mesma coisa e, por mais que tentasse, Rialus não conseguia arranjar coragem
para deixar de fazer papel de idiota.
— Sim, Neptos, sim! — disse um dos tenentes de Calrach. — Muito
divertido. Tens razão!
Não mostravam inclinação para formas de arte mais elevadas. Não
pintavam nem esculpiam, não tinham poesia nem história escrita. Não possuíam
língua escrita. Não viam necessidade disso. De facto, a sua natureza primitiva
ultrapassava tudo o que Rialus tinha visto antes. Não ficavam embaraçados com
nenhuma função do corpo. Comiam, arrotavam, soltavam gases, defecavam,
fornicavam ou até se masturbavam à vista de todos, independentemente do sexo
ou idade ou estatuto. Rialus divertia-os tanto ao procurar isolar-se para as
funções do seu corpo que acabou por ter de desistir da privacidade. Tal tornava-o
alvo de piadas; de facto, baixar as calças e urinar no meio do pátio não
despertava o mínimo interesse. Por vezes pensava se os numrek, de facto, seriam
uma raça de seres humanos. Após nove anos naquele posto ainda não encontrara
resposta definitiva para essa questão.
No entanto, aprendera a língua numrek. Era a mais estranha das línguas.
Mesmo a mais simples palavra era um aglomerado de monstruosidades.
Implicava que a língua se contorcesse em inspirações e inflexões guturais do
fundo da garganta.
A noite em que Calrach decidiu conferir-lhe a sua primeira missão oficial
começou como qualquer outra noite de banquete. Rialus, por irónica iniciativa
de alguém, sem dúvida, encontrava-se entre duas jovens concubinas ainda sem
dono. Na verdade, não eram muito diferentes dos machos. Roçavam-se por ele
frequentemente, debruçando-se sobre Rialus para pegarem na comida,
espicaçando-o, divertidas, com os seus dedos de articulações grossas.
O pior daquilo era que as fêmeas acabaram por excitar Rialus. Odiava
aquilo, sentia-se enojado, não o conseguia compreender, mas, na verdade,
acabava por ficar sentado numa posição desconfortável devido à rigidez do seu
membro. As mulheres possuíam um cheiro, um perfume xaroposo como um
fruto amadurecido que tivesse começado a apodrecer. Não era um odor
agradável, mas havia algo nele que apelava aos excessos carnais. Era uma
espécie de tortura confusa suportar a presença das jovens ao longo da noite.
Calrach parecia perceber o seu incómodo e ter gosto nisso. De facto, o chefe
nunca perdia ocasião de observar e comentar as falhas de Rialus.
— Rialus, ainda não gostas da nossa comida? — perguntou Calrach. —
Como pode isso ser? Tenho um prato para ti. Prova. — Quando o criado colocou
isso à sua frente, Calrach explicou que se tratava de um guisado feito com as
isso à sua frente, Calrach explicou que se tratava de um guisado feito com as
tripas dos seus rinocerontes, fermentado no leite das fêmeas dos mesmos animais
e armazenado durante meses em barris. Punham-lhe grandes doses de álcool em
cima antes de servir.
Observou Rialus levar uma colher de sopa da mistela à boca. Sem ficar
impressionado, disse:
— Talvez o teu estômago seja fraco demais para aguentar, tal como tudo o
resto em ti.
A fêmea a seu lado proferiu:
— Só há uma parte dele que é ligeiramente dura.
— Há muita coisa sobre a minha raça que ainda tens de aprender — disse
Calrach. — Mais um ano e pouco e tornar-te-ás um numrek. E orgulhoso de o
seres. — Deu uma gargalhada com o absurdo daquilo e depois mudou de
assunto: — Rialus, diz-me, achas que o Hanish Mein nos honra? A nós, os
numrek? Nós, os escolhidos? Ele insulta-nos?
Rialus respondeu:
— Não tenho a certeza daquilo a que vos referis.
— Ele insulta-nos?
Calrach tinha aquele hábito: repetir a última frase que dissera como se todas
as respostas possíveis, significados e interpretações estivessem contidas nas
próprias palavras, se Rialus lhes desse mais atenção.
Rialus perguntou:
— Que género de insulto haveis sentido?
Calrach encolheu os ombros, levantou uma mão e coçou o pescoço com
tanta força que arrancou alguns pedaços de pele.
— Não senti. Foi mais um cheiro. Há um cheiro de que não gosto. O meu
avô costumava falar de um cheiro assim. Vinha dos Lothan, antes de se terem
virado contra nós e nos expulsarem do nosso mundo. Costumávamos ser o
exército pessoal deles. Sabes disso, não sabes? Fomos seus aliados por muitas
gerações, mas usaram-nos de modo abominável no fim. Se desejo alguma coisa,
Rialus, é um dia regressar às Terras Distantes e levar aos Lothan um novo
cheiro. Entendes-me.
Rialus detestava quando ele dizia aquilo. Fazia-o frequentemente,
especialmente em ocasiões quando Rialus não o entendia de todo. Não valia a
pena forçar, contudo. Calrach tinha um modo de falar elíptico a que era
necessário adaptar-se. Mais tarde voltaria ao assunto se houvesse alguma coisa
necessário adaptar-se. Mais tarde voltaria ao assunto se houvesse alguma coisa
que lhe interessasse.
Então ouviu-se o rufar de tambores anunciando a chegada do prato
principal. A noite iria trazer um prato que Rialus nunca provara, um
acontecimento que sempre o deixava perturbado. De súbito toda a mesa ergueu-
se, levantada acima das cabeças dos convivas sentados por criados postos em
cada canto. Levantou-se acima de Rialus, deixando-o na sombra. A jovem à sua
direita agarrou-o pelo braço e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido, numa
expressão de prazer antecipado. Quando tinham acabado de retirar a primeira
mesa já estavam a colocar uma segunda.
Perante si estava um acepipe a que os numrek chamavam tilvhecki. Era do
tamanho de um porco adulto e parecia um saco de pele inchado suficientemente
transparente para deixar ver o recheio, uma espécie de miudezas gasosas
multicoloridas. Calrach, falando sobre as delícias que os aguardavam, afirmara
que o aspeto condizia com a verdade. Tilvhecki era o nome que davam ao
cordeiro. Durante o exílio nos Campos Gelados não tinham carneiros e por isso
tinham estado privados daquele prato durante algum tempo. Era cozinhado pelos
métodos tradicionais de fermentação e putrefação dos numrek. Começava
semanas antes a ser preparado, quando a carne e os órgãos internos de um
cordeiro eram deixados vários dias ao ar livre. A carne não era ainda cozinhada,
mas embebida em molhos de sangue, especiarias e vinho. Quando o preparado
estava cheio de larvas, era metido no saco de pele, cosido e deixado a fermentar.
Por fim era cozido e servido como agora, fumegante.
Calrach cortou o saco. À primeira facada o recheio saltou para fora. Quando
Rialus viu a carne a sair da racha, a sua barriga deu uma reviravolta. O cheiro, ao
chegar-lhe às narinas, era de tal força física que parecia que estava a cair numa
latrina. Rialus teria vomitado ali mesmo, mas já aperfeiçoara a sua capacidade de
respirar pela boca. Fez os possíveis por não cheirar, sorvendo grandes golfadas
de ar pela boca.
Os músculos do rosto de Calrach distenderam-se, expondo a dentição
irregular. Sorria, talvez.
— Diz-me, Neptos, achas-nos repugnantes?
Rialus, respondendo como sabia que deveria, disse que era claro que não os
achava repugnantes. Contente por ouvir aquilo, uma das mulheres atirou uma
concha cheia de tilvhecki para o prato dele. A outra gritou qualquer coisa para o
grupo de convivas. Todos se viraram para Rialus à espera que provasse o prato.
Rialus começou por recusar, explicando que já estava cheio. Cheio até mais não
poder. Já não conseguia comer mais. Ia acompanhando estas palavras com
poder. Já não conseguia comer mais. Ia acompanhando estas palavras com
expressões físicas, mas ninguém prestou a menor atenção aos seus protestos.
— Come! Come! Come isso! — gritava alguém. O cântico propagou-se. A
certa altura todos lhe gritavam a mesma coisa. Muitos inclinavam-se para junto
dele, exalando um bafo que parecia hálito pútrido: — Come! Come! Come isso!
Por fim, odiando-se a si próprio tanto quanto aos numrek, Rialus levou a
colher à boca e colocou um bocado daquela carne mole na língua. Tal foi
acolhido com uma explosão de risos. Rialus mantinha-se imóvel, de queixo
tenso, com o bocado como um peso morto na boca. Um outro numrek, irmão do
chefe, pôs-se atrás dele. Agarrou-lhe a cabeça, com uma das grandes mãos na
fronte e a outra no queixo. Obrigou o queixo do homem a mastigar. Tal foi uma
cena a que o grupo não conseguiu resistir. Caíam para o chão, rebolando nas
almofadas como se nunca tivessem visto nada tão divertido.
Depois de se terem acalmado, o chefe optou por falar alguns minutos de
assuntos sérios com o representante. Baixou o tom de voz de uma maneira que,
apesar de ser quase tão alta e rude como sempre, indicava aos outros que deviam
desviar o olhar e falar entre eles.
— Então, Rialus Neptos, ouve agora a mensagem que quero que leves a
Hanish Mein. E prepara-te. Isto talvez não lhe agrade. Nós também pretendemos
uma parte da Quota. Compreendes?
Rialus não tinha a certeza de perceber. Passava ainda a língua contra o céu
da boca, tentando remover o gosto do tilvehcki.
Calrach repetiu.
— Os Lothan Aklun recebem Quota. Os numrek devem receber Quota.
Era o máximo que a sua lógica sobre o assunto conseguia ir. Rialus esteve
quase a perguntar-lhe para que queria mais escravos. Já tinham os suficientes
para tratarem de tudo o que precisavam. No entanto, teve medo da resposta.
Disse então:
— Honorável Calrach, tenho a certeza de que tal não será possível. Já
haveis recebido pagamento mais do que suficiente pelos vossos serviços. Hanish
não irá gostar nada do nosso pedido.
Calrach fez uma expressão de afronta, que imitava a do próprio Rialus.
— Só peço uma coisa — disse, voltando a fitar Rialus. — Apenas uma
coisa. Quem pode recusar uma coisa? — Então, olhando para a mesa em total
confusão, acrescentou com um tom ligeiramente diferente. —Pelo menos é só
uma coisa até pensar noutra.
Isto, manifestamente, era dirigido novamente a todos os presentes e com
Isto, manifestamente, era dirigido novamente a todos os presentes e com
graça suficiente para servir de piada numrek. Rialus sentiu uma palmada nas
costas. Sentou-se, de costas doridas, enquanto as bestas em redor se erguiam de
alegria. Mais uma vez, Rialus Neptos era o alvo das piadas dos outros. Aquilo
não poderia continuar. Tinha de haver um meio de melhorar a sua vida. Tinha de
haver, tinha de haver, tinha mesmo de haver um modo. Descobri-lo-ia ou
morreria ao tentar encontrá-lo. Ah, como odiava Hanish Mein, aquele
rebentozinho presunçoso e ingrato! E Maeander... Nem devia sequer pensar em
Maeander. Não havia palavras — nem sequer na nova língua que falava — que
exprimissem completamente a sua repugnância. Jurou a si próprio que um dia os
dois irmãos se haveriam de arrepender de terem causado a ira de Rialus Neptos.
Capítulo 39

Aliver via a pedra tornar-se um tecido vivo com uma aceitação muda, como
se o facto de o poder observar tornasse algo de tão espantoso numa coisa
mundana. Não sentia terror. Nem confusão. De um lugar que lhe aparecia
afastado do seu próprio corpo via os rochedos graníticos esticarem-se em seres
vagamente antropomórficos. Cada um erguia-se em duas pernas semelhantes a
pilares, com membros oscilando a partir das articulações dos ombros, virando as
cabeças de órbitas negras na sua direção. Moviam-se com uma fluidez rígida e
lenta. Aproximaram-se dele como estranhos cangalheiros de rocha e terra,
chamados para limpar o corpo, para o preparar. Pois era isso que aquilo
significava, não era? Ele estava moribundo, ali desterrado no sul distante,
ressequido pelo sol, vencido. Estava tão seco como a areia sob o seu corpo, e
agora os seres rochosos da terra vinham reclamá-lo. Pensou no facto de ninguém
lhe ter falado nisto antes. Nunca ouvira menção a tal coisa em nenhum
ensinamento espiritual.
As figuras de pedra em movimento rodearam-no, aproximando-se dele. Dos
membros deslizaram varas que se introduziram debaixo dele e o ergueram no ar.
Distribuíram o seu peso entre vários e caminharam com ele suspenso sobre a
terra. Era uma sensação parecida ao flutuar. Tinha a cabeça tombada para trás e
durante algum tempo foi observando um mundo ao contrário. Pensou tê-los
ouvido falar, mas não teve a certeza. Havia algo que passava por entre aqueles
seres, mas pareciam mais suspiros do que qualquer linguagem que conhecesse.
Não tinha ideia de quanto tempo passou e até onde o carregaram. Sentia a
terra girar à sua volta. Viu o sol passar lá no alto, viu as estrelas nascerem e
mudarem de posição, mas não pensava em coisas como a passagem do tempo ou
o significado do movimento. Não era uma experiência que se medisse em
momentos que passavam. Em vez disso, o instante fluía para outro com tanta
suavidade que nada parecia mudar. Não existia futuro nem presente nem
passado. Todas estas coisas eram o mesmo. Esqueceu-se de quem era. Não
sentia fardo algum. A vida que vivera e as pressões que sofrera não tinham
substância. Esta impressão, mais do que qualquer outro pormenor do encontro
com os seus salvadores, persegui-lo-ia mais tarde, como uma promessa pendente
no lado distante da vida.
Quando despertou para a vida foi novamente sob o estímulo de outrem.
Quando despertou para a vida foi novamente sob o estímulo de outrem.
Alguém dizia o seu nome, o nome próprio e depois o seu apelido de família. A
voz perguntava-lhe se iria acordar e explicar-se. Viera ter com eles — porquê?
Sentiu uma pressão no esterno, com força bastante para lhe fazer soltar um
gemido. Abriu os olhos.
Lá no alto viu o céu noturno. Um firmamento negro sob o qual ondulavam
nuvens altas, enquadradas por um aro de pedra vermelha pálida. Queria perceber
onde se encontrava, que mundo era aquele. Afinal de contas, podia ser a morte.
Fazendo um esforço, sentou-se, devagar. Estava alguém sentado a seu lado, de
pernas cruzadas, imóvel. Tinha, à primeira vista, uma forma humana, velha e
desgastada, talhada em pedra e talvez tão antiga que eras e eras de areia soprada
lhe tinha limado as feições e cavado depressões nas partes mais expostas,
fazendo com que pedaços fossem caindo ao longo do tempo. Tinha olhos suaves
de um tom vago, como se antes tivessem sido pintados de cor brilhante e desta
permanecesse ainda algum resíduo. A estátua estava bastante próxima, podia
tocar-lhe e Aliver fletiu os dedos com o desejo latente de o fazer.
Os olhos da figura pestanejaram. Apertou os lábios, como uma carpa
sugando água, e depois voltou a imobilizar-se. Aliver sentiu um pensamento
entrar-lhe na cabeça e levou uns instantes a organizar as palavras e mais alguns
momentos para as ordenar em frases que pudesse compreender. Sabia — sem
perceber porquê — que a mensagem viera da estátua viva perto dele. Disse que
estava satisfeita por ele ter acordado. Os outros viriam agora, pois todos queriam
saber.
Aliver abriu a boca para falar. A figura fez um gesto com um braço no ar,
num movimento rápido, colocando a palma no ar à frente dele, calando-o.
Espera. O sentido e depois a palavra que o confirmava surgiram na cabeça do
rapaz. Deixa que os outros venham.
Aliver sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Observava uma cena irreal
em que mal conseguia acreditar. A câmara rochosa onde estava sentado foi-se
enchendo, a pouco e pouco, com cada vez mais figuras como a que estava a seu
lado. Eram as mesmas que o haviam levado para ali. Sabia disso, embora
também fossem diferentes. Os seus movimentos eram difíceis de distinguir.
Como seres vivos, parecia que nunca se moviam, e, no entanto, o ar estava
repleto de movimento, como se muitos fantasmas andassem por ali nos seus
corpos incorpóreos e apenas se tornassem solidamente visíveis ao imobilizarem-
se. Mesmo quando se sentavam quietos em redor dele, Aliver só conseguia
distinguir a sua forma individual ou rosto quando olhava diretamente para algum
deles. Quando desviava o olhar, no entanto, voltavam a parecer-se com as pedras
lisas que primeiro pensara que eram, de forma oval e muito antigas. Assim,
lisas que primeiro pensara que eram, de forma oval e muito antigas. Assim,
encontrava-se sentado rodeado de seres de pedra fantasmagóricos em
movimento, que só tinham rosto se os olhasse fixamente, máscaras que só
intermitentemente mostravam ter vida.
Perdoa-nos, mas temos de saber... Tens o livro da língua do Doador?
De novo, aquilo formou-se primeiro como um sentido que ele teve de
ordenar em frases para poder interpretar. Veio de um conjunto de vozes, mas
Aliver já começara a perceber um pouco como entendê-las. Começou a
responder. «O livro de...», mas as palavras soaram-lhe monstruosas, como se
fossem pedras a moer, como se as tivesse gritado a plenos pulmões. Percebeu
que as figuras em seu redor pensaram o mesmo. Recuaram, como se fossem
plantas subaquáticas ondulando ao passar por elas uma onda.
O que estivera a seu lado, de início, subitamente colocou a mão sobre o seu
ombro. Nosso rei, por favor, não fales assim. Fala com o teu espírito. Pensa no
que queremos saber, e depois liberta o pensamento até nós.
A parte frontal da sua mente pensou que aquilo era um pedido estranho,
mas Aliver sabia que ele próprio já ouvira os pensamentos deles. Era por isso
que o lugar estava tão silencioso. Era por isso que as palavras deles pareciam ter
origem dentro da sua cabeça. Tentou formular uma resposta, receoso agora de
que cada pensamento, cada erro e confusão, passasse dele para os outros. Que
confusão se revelaria ele! Porém, eles aguardavam, muito calmos, de rostos
inalterados, ávidos. Estavam em branco, e era claro que não tinham acesso aos
pensamentos dele a não ser que ele quisesse.
Por fim, formou uma frase no espírito, pensou-a com clareza e depois
projetou-a. Qual é o livro?
Os rostos olhando para ele movimentaram-se, mas desta vez na sua direção.
Recebeu respostas de mais do que um espírito. O livro, disseram, era A Canção
de Elenet. Era o texto que Elenet escrevera com o seu punho, no qual descrevia
cada palavra da língua do Doador.
Por favor, disseram, revela-nos isso.
Depois disto, Aliver permaneceu sentado em silêncio algum tempo. O que
estava a acontecer ali? Parte dele desejava dar uma bofetada a si próprio e
acordar deste sonho. Outra parte pensava se aqueles seres não seriam o povo
voraz de depois da morte e esta a receção que davam aos recém-chegados.
Parecia que estavam a pedir-lhe o segredo para voltarem à vida, conhecimento
que ele não possuía. Mas, para além de tudo isto, ocorreu-lhe um outro
pensamento. Fez um esforço para afastar tudo o resto e dar-lhe forma:
Sois os Santoth?
Num movimento em uníssono, todas as cabeças — talvez cem ou o dobro,
com o seu número a aumentar a cada momento — fizeram um gesto de
assentimento. Surgiram sorrisos rasgados nos rostos de pedra.
Essa, disseram em coro, é a palavra que nos define.
Muito bem, pensou Aliver. Essa é a palavra que vos define. Mas, por amor
do Doador, o que vos aconteceu? Não deixou que estes pensamentos lhe
escapassem e os rostos sorridentes, imóveis enquanto o fixavam, não denotaram
sinais de o terem compreendido. Simplesmente aguardavam o que se seguiria.
Aliver pensou se teria energia para isso. Não deveria comer? Beber? Mas o
corpo não o incomodava. Já não sentia fome nem estava desidratado, apesar de
não se lembrar da última vez em que tinha ingerido qualquer coisa. Olhou em
volta e continuou o melhor que pôde. Não podia dizer tudo de uma vez. Teria de
começar por algum lado.
A Canção de Elenet. Falai-me mais sobre isso.
Falaram-lhe, muito gratos. Mais tarde, Aliver não saberia dizer quanto
tempo demorara a sua conversa com os Santoth. Não se tratara propriamente de
uma conversa com perguntas e respostas, mas mais uma espécie de comunicação
em espiral. Não aprendeu o que lhe contaram de forma linear. Mas quando
juntou peça a peça, reuniu uma história inimaginável. Era uma história, diria um
dia, entretecida pela fantasia de mentes ociosas para se entreterem a si próprias e
explicarem os males do mundo. Era isso que teria dito na sua juventude. Porém,
a partir do momento em que vira rochas a andar, deixara irrevogavelmente a
infância para trás. Foi isto que os Santoth lhe contaram.
A Canção de Elenet era a enciclopédia da língua do Doador. Era o livro em
que fora escrita a verdade falada do mundo inteiro. Apesar das muitas
imperfeições e dos grandes erros que cometera como praticante de feitiçaria —
esta era a palavra mais apropriada para descrever a usurpação humana da língua
divina —, Elenet tinha um desejo voraz pelo conhecimento e guardava
meticulosamente tudo o que aprendia. Como rezava a lenda, vivera de facto no
tempo em que o Doador caminhava pelo mundo. Seguira a divina pessoa no seu
percurso pela terra. Ouvira e aprendera as canções da língua da criação. Cada
palavra que roubava da
boca do deus anotava-a num pergaminho que preparara. Para os poucos que
poderiam ler o texto, dava instruções precisas para se fazer magia. Era um
manual sobre a forma e conteúdo da criação; por isso nunca antes ou depois
existira documento mais perigoso na história do mundo.
Quando Elenet deixara este mundo para ir explorar outros, deixou o livro ao
cuidado dos seus discípulos Santoth. Nunca disse para onde iria ou porquê, mas
desapareceu da terra, tal como o Doador fizera antes dele. Este livro foi passado
através de gerações, de um Falante para outro. Eram, naqueles tempos, os
guardiães do conhecimento. Reis e príncipes governavam o mundo; os Santoth
urdiam feitiços que mantinham o tecido do mundo unido, esperando aliviar o
caos por que os homens pareciam ansiar. Era uma responsabilidade sagrada, e
durante éons praticaram a fala de deus apenas para o bem do Mundo Conhecido.
Isso acabou, contudo, quando um jovem Santoth chamado Tinhadin acabou por
ficar como guardião do livro.
Guardava-o junto ao peito, contaram os Santoth a Aliver, e não o
partilhava connosco.
Tinhadin amava o poder que o livro continha. Estudou-o exaustivamente,
excluindo cada vez mais os outros. Tornou-se chefe dos Santoth e mais forte do
que qualquer um deles. Por fim tornou-se mais poderoso do que todos eles
juntos. Visto ser ele a possuir o livro, somente Tinhadin tinha acesso a traduções
fiéis, à pronúncia exata e ao significado preciso de cada palavra na língua do
Doador. Qualquer variação ligeira corromperia a magia, enfraquecendo-a e, ou,
transformava-se em algo que o orador não tinha pretendido.
No entanto, os outros Santoth amavam Tinhadin como um dos seus. Ele
partilhava o conhecimento com eles, mas cada vez mais as palavras do Doador
iam ter com eles através dele. Quando se decidiu a reformular o mundo, eles
trabalharam a seu lado. Ele queria trazer paz ao mundo, dizia. Havia demasiado
caos, demasiado sofrimento, a humanidade tinha potencial demais para arruinar-
se e voltar a um estado semelhante ao dos animais selvagens. Os outros
ajudaram Tinhadin na luta para controlar o mundo. Mas, antes de perceberem o
que estava a acontecer, Tinhadin tinha-os banido. Colocou a coroa na cabeça e
afastou-se deles.
Mas isto não foi uma alegria, disseram os Santoth, tornou-se antes o mais
pesado dos fardos.
Como os homens normais antes dele, Tinhadin receava perder o poder que
ganhara. Cada dia se cansava mais com aquilo que incorporara da língua da
criação. Era um feiticeiro com poderes para formar o mundo, bastando-lhe abrir
a boca. Mas, explicaram os Santoth, via que o poder era demasiado difícil de
controlar, de manejar. Imagina, disseram, viver uma existência em que as
palavras que saem da tua boca mudam o tecido do mundo à tua volta.
Tinhadin tornara-se demasiado forte, a magia uma parte demasiado
preponderante do mecanismo da sua mente. Havia alturas em que alterava o
preponderante do mecanismo da sua mente. Havia alturas em que alterava o
mundo só por pensar na língua do Doador. Por vezes falava a língua quando
sonhava e acordava para descobrir os resultados reais à sua volta. Começou a
odiar aquela magia. Queria viver sem ela, mas não o faria num mundo onde
outros feiticeiros ainda lançavam os seus feitiços. Baniu os Santoth do império.
Nem todos partiram de boa vontade. De facto, lutou com bastantes, destruindo-
os. Aos outros mandou-os para o exílio. Então lançou contra eles a sua última
magia, o feitiço que os manteria perpetuamente vivos presos nestas terras do sul,
até que ele ou um descendente decidisse convidá-los a voltar. Isso, claro, nunca
aconteceu, e os Santoth envelheceram e tornaram-se nos seres com que Aliver
agora falava. Eram exatamente os mesmos que Tinhadin expulsara, vivos — se é
que esse era o termo correto — e à espera.
Quando o príncipe perguntou se ainda sabiam magia, responderam que sim,
mas que o seu conhecimento se corrompera tanto ao longo dos tempos que não
sabiam agora o que aconteceria se pronunciassem as palavras do Doador. O
conhecimento que tinham tornara-se uma maldição da qual tinham passado a sua
vida eterna a esconder-se. Sem o verdadeiro conhecimento do livro de Elenet,
arriscavam-se a abrir um buraco no mundo que nunca mais se poderia remendar.
Tinham aprendido a falar como os deuses, mas agora receavam ter-se
transformado em demónios.
Agora que ouviste isto de nós, proferiu a voz coletiva dos Santoth, diz-nos
onde está o livro. Sem a palavra sofremos. Precisamos da palavra do Doador, e
então seremos de novo completos, e bons.
Aliver abanou a cabeça. Não queria dizer aquilo que tinha de dizer. Já
sentia uma certa paz entre os feiticeiros. Sentia o sofrimento deles, mesmo antes
de o terem mencionado. Compreendeu que a sua expulsão fora uma maldição
terrivelmente prolongada, e ele já não tinha a veleidade de duvidar mesmo de
parte das coisas que lhe tinham comunicado. Mas a verdade era simples.
Lamento, proferiu Aliver, mas não tenho esse livro.
Os Santoth foram lentos a responder-lhe. O teu pai... não te falou nele?
Não, não falou.
Capítulo 40

Corinn tentava manter bem patente no rosto a sua aversão a Hanish. Era o
grande inimigo da sua família. Nunca se esqueceria disso, nunca lhe perdoaria.
Detestava-o. Nada do que ele fizesse alteraria isto. Era um vilão de enormes
proporções, um assassino em grande escala, sobre quem algumas pessoas mais
dóceis, no futuro, haveriam de escrever crónicas de infâmia.
Tinha de ter isto sempre presente, porque na tranquilidade de Calfa Ven,
eram os insultos de natureza mais pessoal que mais a afetavam. Resumindo,
Hanish fazia dela um brinquedo, tal como na primeira noite no chalé. Havia
alturas em que parecia exceder-se para lhe agradar — e fazendo-o de modo a que
ela soubesse que estava a exceder-se para lhe agradar, outras vezes tratava-a com
uma indiferença chocante.
Alguns dias depois de se encontrarem no retiro das montanhas, pediu-lhe
que o acompanhasse num passeio a cavalo na tarde seguinte. Fez o convite com
grande aparato perante muitos dos hóspedes. No dia seguinte lá estava ela à hora
marcada — vestida na perfeição num traje de montar de tom creme, com um
chapéu de seda colocado no alto da cabeça, cheia de frio devido ao ar primaveril,
mas certa de que o rubor das faces era devido a isso — só para descobrir que ele
se esquecera dela. Fora montar uma hora mais cedo nessa manhã, numa caçada e
sem manifestar interesse em relação ela. Até Rhrenna, a sua esporádica amiga,
não conseguiu evitar achar graça ao modo como a ele diminuíra.
Porém, que interessava isso? Os Mein eram um povo insignificante que
tinha prazer em humilhar uma raça que havia gerações que provava ser superior.
Ele podia ter os seus pequenos divertimentos, e ela continuaria a odiá-lo. Ódio e
condescendência. Era tudo o que sentia por ele. Felizmente, a estada nas
montanhas estava quase a acabar. Corinn contara os dias, pronta a regressar a
Acácia, onde poderia manter alguma distância daquele bárbaro que se dizia o
governante do Mundo Conhecido.
Estranho, pensou, que, quando uma criada lhe trouxe uma mensagem de
Hanish, sentisse o pulso acelerar-se e uma palpitação no peito que — se a
situação fosse outra — ela teria interpretado como alegria. Ele desejava a sua
companhia naquela tarde, disse a mensageira, para praticar tiro com arco.
Suplicava que não o deixasse sozinho à espera. Isso pareceu-lhe uma ótima
ideia, pensou. Deixá-lo sozinho, abatido e desprezado. No entanto, sabia que isso
ideia, pensou. Deixá-lo sozinho, abatido e desprezado. No entanto, sabia que isso
não resultaria. Hanish não reagia nada bem aos insultos. Arranjaria um modo de
a castigar cruelmente no jantar dessa noite. Decidiu que se não fosse seria mais
facilmente ridicularizada do que se aceitasse o convite.
Encontrou Hanish no campo de tiro com arco. Desta vez estava sem o seu
séquito, acompanhado somente por um escudeiro, que preparava a escolha das
flechas, e por um rapazito, que aguardava na relva, a alguma distância, junto aos
alvos para recuperar as flechas.
— Ah, princesa! — saudou Hanish, cheio de alegria e sorrisos ao vê-la. —
Começava a pensar se... vinde, ensinai-me o que sabeis. Este é um desporto
suave, não é? Ouvi dizer aqui aos criados que em menina fosteis uma arqueira e
tanto!
— Talvez tenha sido outrora, mas agora já não sou arqueira nem menina.
Hanish estendeu-lhe um arco que o escudeiro lhe dera.
— Bem, bem pelo menos em parte tendes razão. Ajuizarei do resto. Corinn
pegou no arco. Gostou de sentir a madeira de freixo polida da arma nas mãos, e
as curvas foram-lhe familiares, leves, como se feitas de ossos de pássaro. Correu
os dedos pela corda tensa. Observou-a algum tempo antes de fazer um gesto a
pedir uma flecha.
Pegou então na seta das mãos do escudeiro e colocou-a em posição no arco,
erguendo-o para apontar ao alvo. Agarrava na arma com facilidade, muito direita
mas à vontade, como lhe haviam ensinado anos atrás. Sabia que Hanish parara
para a observar. Não se importou. Escolheu um alvo triangular, ligeiramente
afastado do lugar onde se encontrava o rapazito. Puxou a corda até ao pescoço,
com a flecha a descansar sobre os seus dedos, e a ponta a apontar um caminho
reto para o mundo. Soltou os dedos. A flecha voou. Desapareceu, parecia, para
aparecer um instante depois cravada quase no centro do alvo.
Hanish soltou uma exclamação. Tocou-lhe no braço e disse qualquer coisa
simpática ao escudeiro, que confirmou o que ele dizia. Corinn não sentia um
prazer tão visceral havia algum tempo. A precisão mortal, o poder de apontar
uma flecha ao mundo, a arma a cravar-se sem erro e depois a quietude, a prova
visível do seu talento cravada no alvo. Sem dar por isso, os dedos estalaram no
ar, a pedir outra seta.
A tarde passou rapidamente. Hanish talvez tenha pensado que fazia avançar
o tempo com os seus gestos e palavras, de perguntas e elogios, mas Corinn sentia
prazer ou desapontamento a cada flecha atirada. O rapazinho das flechas esteve
sempre ocupado, correndo para trás e para a frente. Tinha um sorriso enviesado e
um dos olhos parecia desalinhado do outro. Mas mesmo assim era um rapazinho
um dos olhos parecia desalinhado do outro. Mas mesmo assim era um rapazinho
bonito e parecia estar muito divertido. Corinn decidiu que lhe perguntaria como
se chamava antes de se separar dele.
— Há uma história candoviana sobre um arqueiro — disse Hanish. Tinham
parado alguns momentos enquanto o rapazinho arranjava os alvos e recuperava
as flechas. — Esqueci-me do nome dele. Tinha a fama de ter a melhor pontaria
dessas terras, uma pontaria mortal em quaisquer condições. Nesses tempos
Candovia e Senival andavam em desacordo sobre as fronteiras dos seus
territórios. Um dia as tribos reuniram-se para resolver o assunto e um homem de
Senival desafiou o arqueiro a pôr-se à prova. Era verdade, perguntou escarninho,
que o arqueiro conseguia atingir uma azeitona a cinquenta passos? Claro que era,
retorquiu o candoviano. O de Senival desafiou-o a prová-lo, mas ele recusou.
Disse que nenhuma azeitona jamais o ofendera. No entanto, disse que ficaria
feliz por acertar no olho de um homem de Senival a cem passos. Prometeu que
só lhe acertaria num dos olhos. Se acertasse nem que fosse ligeiramente ao lado
da órbita, renunciaria graciosamente a todos os elogios. Ninguém se candidatou
ao teste.
Um par de aves com crista sobrevoou as árvores, dirigindo-se ao extremo
do campo, esquecidas de tudo, menos uma da outra. Corinn imaginou uma delas
ser derrubada dos céus e presa a uma parede fofa, enquanto a outra continuava a
sua dança.
— Aonde quereis chegar com isso? — perguntou ela.
— Nem sempre é preciso chegar a algum lado. Por vezes a intenção das
histórias é apenas divertir. Sabeis, Corinn, que daria um dedo da minha mão
direita para vos ver mais feliz?
— Não vendo a minha alegria por tão pouco.
Hanish sorriu, irónico, mas de modo que demonstrava respeito pela
constância dela. Mudou de expressão e pegou noutra flecha.
— Maeander, na realidade, provavelmente poderia acertar numa azeitona
de qualquer distância. É excelente em todas as artes marciais. Ele deslumbra-me
e não me importo de o dizer.
Corinn duvidava que Hanish se deslumbrasse com alguém a não ser
consigo próprio, mas reparara na ausência de Maeander no chalé e interrogara-se
sobre isso.
— Onde está o vosso irmão? Anda a chacinar alguém?
— Tem piada que pergunteis. A missão dele relaciona-se convosco. Anda à
procura dos vossos irmãos. Eu sei. Eu sei. Nem sequer admitíeis que ainda se
procura dos vossos irmãos. Eu sei. Eu sei. Nem sequer admitíeis que ainda se
encontrem vivos. Mas, se os encontrar, ele trá-los-á até vós. Com isso, tenho a
certeza de que obteremos um pouco da vossa gratidão.
Ela não tinha a certeza de como responder àquilo. Trá-los-ia enfiados num
espeto? Acorrentados e amarrados? Ou poderia ela voltar a falar e a estar com
eles novamente? Iriam eles partilhar o estranho cativeiro com ela, como Hanish
sempre prometera que eram as suas únicas intenções? Se assim fosse, seria um
cativeiro bem menor. Mas nem sequer queria imaginar a possibilidade. Não
acreditava verdadeiramente naquilo. Hanish troçava dela. Se acreditasse nele,
apenas o ajudaria em mais uma brincadeira cruel. Sabia, desde a doença e morte
da mãe, que não se podia confiar em ninguém. As pessoas que amava eram-lhe
sempre roubadas. Os sonhos sempre desfeitos. Era assim que via a vida.
O rapazinho ainda se encontrava no campo, mas o escudeiro dirigiu-se a
eles, com uma aljava cheia de setas recuperadas na mão. Corinn mudou de
assunto e disse algo que parecia ao acaso, embora fosse algo relacionado com o
facto de estar em Calfa Ven.
— Vi um homem da Liga no palácio — disse ela. — Aquele que usa um
pingente com um peixe azul turquesa.
Hanish atirou, sem grande pontaria. Baixou o arco, carrancudo.
— É um golfinho. Não se trata propriamente de um peixe, disseram-me. De
qualquer modo, é o símbolo da Liga. Chama-se Sire Dagon. É um dos membros
principais da Liga. Só responde a Sire Revek, o presidente.
Sire Dagon. Sim, era esse o nome. Ao ouvi-lo, Corinn recordou-se que o
conhecera em criança. Sempre o desprezara: o aspeto dele, a voz, a arrogância
afetada. Estivera ali um dia, no chalé, quando ela lá estava. Era por isso que
continuara a pensar nele sem conseguir situá-lo precisamente.
— De que falais com ele?
— Falamos de comércio, de negócios. É disso que a Liga vive.
— Eles traíram o meu pai? Incentivaram-vos a atacar-nos? Dizei-me, assim,
da próxima vez que vir Sire Dagon, saberei se devo cuspir-lhe ou não.
Hanish pegou noutra flecha, apontou e voltou a atirar. Com melhor pontaria
agora, perto do centro de um dos alvos mais distantes. O rapazito rejubilou,
erguendo um punho como se fosse um triunfo pessoal. Hanish ignorou-o.
Respondeu a Corinn num tom invulgarmente formal, sem nenhum laivo de
malícia.
— A Liga não tem alianças com nada nem ninguém, Corinn — disse. —
Não têm nenhuma filosofia a não ser a que lhes permite adquirir riqueza. Visto
Não têm nenhuma filosofia a não ser a que lhes permite adquirir riqueza. Visto
que perguntais... No entanto... A Liga teve agravos com o vosso pai durante
quase todo o seu reinado. Alguns anos atrás contactaram o meu pai. Fizeram um
pacto connosco. Se o povo do Mein arquitetasse uma guerra contra Acácia que
pudesse ser bem sucedida, retirariam os seus navios e não dariam apoio
marítimo ao vosso pai. Nós estaríamos preparados para isto e Acácia não. Como
a vossa nação tem sede numa ilha, era uma promessa considerável. Foi um erro,
como vedes, depender de uma entidade comercial para a vossa marinha. Claro
que neste momento não estou em melhor posição, mas em breve resolverei a
situação.
Corinn atirou. A flecha atingiu o alvo mesmo junto da flecha de Hanish.
Tão perto que lhe lascou a vara, deixando uma pena tombada. Fez questão de
não olhar para ele.
— E o que lhes haveis prometido?
— Concordei em duplicar a Quota, duplicado assim os seus lucros.
Recentemente, disse-lhes que se podiam estabelecer nas Ilhas Distantes se
conseguissem varrer da ilha os piratas. Foi isto que discuti com Sire Dagon.
— Hum — proferiu Corinn, com um ar entre o sonhador e o sarcástico. —
Nunca pensei nisso assim. Que vós e alguém como Sire Dagon se sentassem a
discutir casualmente o destino de milhares de pessoas. Quando planeais essas
coisas, ficais entusiasmado?
Hanish inclinou-se ligeiramente para a frente, não propriamente para se
aproximar dela mas indicando que a resposta era apenas dirigida a Corinn.
— Muito — disse ele. — Que mais quereis saber? Quereis saber sobre os
escravos que vendemos para o outro lado do mar? De como distribuímos a
bruma que em troca recebemos? Da forma como sedamos o povo a fim de que
trabalhem para nós sem queixas? Contar-vos-ei tudo, princesa, se vos agrada
ouvir. Até fingirei que fui eu que criei tudo isso e que o vosso pai, o amado
Leodan, não era o maior traficante de escravos do mundo antes sequer de eu ter
nascido.
Hanish manteve um tom sedutor na voz até ao fim, mas depois adotou
alguma frieza. Corinn correspondeu à frieza.
— Já não tenho interesse nisto. Porque não partis e ides matar qualquer
coisa? — Entregou o arco ao escudeiro e começou a afastar-se.
— Quereis caçar? — perguntou Hanish agarrando-a por um cotovelo. —
Podemos fazê-lo já. — Pegou numa flecha, esticou a corda do arco e ergueu-a,
apontando. Mas não apontou para nenhum dos alvos triangulares. O rapazinho,
reparando que a arma lhe estava apontada, remexeu-se, nervoso. Olhou de um
reparando que a arma lhe estava apontada, remexeu-se, nervoso. Olhou de um
lado para outro para ver se havia algum alvo razoável perto, algo em que não
tivesse reparado.
— Dais-lhe um grito para que corra ou dou eu?
— Não vos atreveríeis — disse Corinn.
— Porque não? Ele não passa de um escravo meu. Se ele morrer, sou eu
que perco.
Os músculos do antebraço de Hanish sobressaíam e estremeciam com o
esforço, as articulações do punho estavam brancas da força com que agarrava no
arco. Que braço cruel era aquele. Cruel em cada poro e cada tecido.
— Não, Hanish — pediu Corinn, sabendo que ele o faria. Estava prestes a
fazê-lo. Era uma brincadeira e não era uma brincadeira; era ambas as coisas ao
mesmo tempo.
— Dizeis isso, mas no fundo quereis que eu o faça. Quereis vê-lo com a
flecha cravada e ouvi-lo gritar. Não quereis?
Ela levou um momento a responder. Não compreendeu porque hesitava.
Não estava a ponderar em diferentes respostas. Havia apenas uma. Mas era
difícil de pronunciar.
— Não — disse por fim —, não quero.
— Rapaz — gritou Hanish. — Levanta uma mão!
O rapazinho não entendia. Hanish baixou o arco e mostrou o que pretendia
com a sua própria mão. O rapaz imitou-o. Hanish disse-lhe para abrir os dedos,
deixando espaços entre eles.
— Muito bem, agora não te mexas. — Ergueu o arco e voltou a apontar.
— Parai com isso! — pediu Corinn, mais num murmúrio do que no grito
que pretendera dar.
Ele atirou. O rapaz não se moveu, felizmente, pois a flecha passou
exatamente entre o dedo do meio e o anelar. Passou célere e cravou-se na erva
atrás dele. Assim mesmo, estava feito.
— Havia alguma moral a tirar disto ou não? — perguntou Hanish, baixando
o arco. — A decisão é vossa. — Voltou-lhe as costas e afastou-se, deixando cair
a arma poucos passos depois.
Corinn observou-o a ir-se embora. Ficou a olhar o seu vulto enquanto se
embrenhava na floresta de troncos claros, com a folhagem a aplaudi-lo num
entusiasmo cintilante. Ele tinha razão em relação a ela, pensou. Sentiu a verdade
entusiasmo cintilante. Ele tinha razão em relação a ela, pensou. Sentiu a verdade
a vir à superfície do seu consciente e olhá-la no rosto. Parte dela quisera que ele
atingisse o rapaz. Porque o quisera, não sabia. Só para provar que se podia fazer?
Para provar que a aparente bondade do rapaz não era proteção contra nada? Só
para observar o sofrimento causado por uma seta lançada célere pelos ares,
disparada por uma pessoa a outra apenas por um soltar de dedos? Para ver a
prova da crueldade de Hanish? Talvez fosse por isso. Para ver a prova com os
seus próprios olhos. Sentiu um aperto no estômago ao pensar nisso, um
sentimento de aversão entretecido com atração. O que lhe estaria Hanish a fazer?
Com esforço, afastou o olhar das árvores e olhou para o rapaz, que se
encontrava ainda no mesmo lugar. Baixara a mão, mas parecia inseguro sobre
que mais lhe iriam pedir. Era bom que ela não lhe tivesse perguntado o nome.
Porém, já no chalé, envolta nos seus pensamentos, ficou surpreendida
quando Peter, o chefe dos criados, surgiu a seu lado num dos patamares. Foi ter
com ela como um atacante, saltando do lugar onde a esperara.
— Princesa — proferiu —, não sois a menina de que me lembro. —
Interrompeu-se a alguns centímetros dela. Ainda não estivera tão próxima dele
durante aquela estada e nunca a sós. As sobrancelhas do homem tremiam com
uma emoção que ela não entendia. Quase soltou um grito.
— O vosso pai — disse ele — teria ficado orgulhoso da vossa altura. Ouvi
falar do vosso destino, mas não conseguia acreditar até vos ver chegar aqui. —
Por instantes pareceu mergulhado em profunda tristeza. — Quando virá ele,
princesa? Dizei-me e estaremos prontos para nos juntarmos a ele. Todos aqui lhe
são ainda leais.
Corinn perguntou, abrupta:
— Quando virá quem?
— O vosso irmão, é claro! Todos nós rezamos ao Doador para que Aliver
regresse depressa e com uma vingança que varra Hanish Mein da face da terra.
Table of Contents
Table of Contents
David Anthony Durham
Mapa do Mundo Conhecido
Mapa do Mundo Conhecido2
Section 5
Livro Um
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Livro Dois
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40

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