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SUMÁRIO

Prelúdio para Os Arquivos de Luz-Tempesta

Livro Um - O Caminho dos Reis

Prólogo - Matar

Parte Um - Acima do Silêncio


Capítulo 1 - Benetempeste
Capítulo 2 - Honra Morreu
Capítulo 3 - Cidade dos Sinos
Capítulo 4 - As Planícies Estilhaçadas
Capítulo 5 - Herege
Capítulo 6 - Ponte Quatro
Capítulo 7 - Qualquer Coisa Razoável
Capítulo 8 - Mais Perto da Chama
Capítulo 9 - Condenação
Capítulo 10 - Histórias de Cirurgiões
Capítulo 11 - Gotículas

INTERLÚDIOS
I-1: Ishikk
I-2: Nan Balat
I-3: A Glória da Ignorância

Parte Dois - As Tempestades Iluminadoras


Capítulo 12 - Unidade
Capítulo 13 - Dez Batidas de Coração
 
   
Prelúdio para  
Os Arquivos de Luz-Tempesta  
 
Kalak  rodeou  uma  encosta  pedregosa  e  hesitou  diante  do  corpo  de  um 
trovoclasto  moribundo.  A  enorme  besta  de  pedra  jazia  de  lado,  com  protusões no 
peito  que  se  assemelhavam  a  costelas  quebradas  e  rachadas.  A  monstruosidade 
tinha  uma  forma  vagamente  esqueletal,  com  membros  anormalmente  longos  que 
brotavam  de  ombros  de  granito.  Os  olhos eram pontos de um vermelho profundo 
na  face  pontuda,  como  que  criados por uma chama que queimava intensamente na 
rocha. Eles desvaneceram. 
Mesmo  após  tantos  séculos,  ver  um  trovoclasto  de  tão  perto  fez  Kalak 
estremecer.  A  mão  da  besta  era  tão  grande  quanto  um  homem.  Ele  já  fora  morto 
por mãos como aquela antes, e a experiência não tinha sido prazerosa. 
É claro, morrer raramente era.  
Ele  rodeou  a  criatura,  escolhendo  seu  caminho  mais  cuidadosamente  entre  o 
campo  de  batalha.  A  planície  era  um  lugar  de  pedras  e  rochas  deformadas.  Pilares 
naturais  erguiam-se  ao  seu  redor,  corpos  espalhavam-se  pelo  chão.  Poucas  plantas 
viviam aqui. 
As  encostas  e  montes  carregavam  inúmeras  cicatrizes.  Algumas  eram 
estilhaçadas,  com  partes  destruídas  onde  Potenciadores  haviam  batalhado.  Com 
menos  frequência,  Kalak  passou  por  estranhas  cavidades  rachadas,  onde 
trovoclastos tinham se libertado da pedra para se juntarem ao combate.  
Muitos  dos  corpos  ao  seu  redor  eram  humanos;  muitos  não  eram.  Sangue  se 
misturava.  Vermelho.  Laranja.  Violeta.  Embora  nenhum  dos  corpos  ao  seu  redor 
se  mexesse,  uma  vaga  névoa  de  sons  pairava  no  ar.  Gemidos  de  dor,  choros  de 
sofrimento.  Aqueles  não  pareciam  os  sons  de  uma  vitória.  Fumaça  se  erguia  dos 
ocasionais  trechos  com  vegetação  ou  pilhas  de  corpos  queimando.  Até  mesmo 
algumas  seções  de  rocha  ardiam  sem  chama.  Os  Augúrios  das Cinzas haviam feito 
um bom trabalho.  
Mas  eu  sobrevivi,​   Kalak  pensou,  mão  ao  peito  enquanto  se  apressava  para  o local 
de encontro. ​Eu realmente sobrevivi desta vez. 
Isso  era perigoso. Quando ele morria, era mandado de volta. Não havia escolha. 
Quando  sobrevivia  à  Desolação,  deveria  supostamente  voltar  também.  Voltar  ao 
lugar  que  temia.  Voltar  para  aquele  lugar  de  dor  e  fogo.  E  se  ele  simplesmente 
decidisse… não voltar?  
Pensamentos perigosos, talvez até mesmo traidores. Ele acelerou o passo.  
O  local  de  encontro  ficava  nas  sombras  de uma grande formação rochosa, uma 
espiral  que  se  erguia  majestosamente  aos  céus.  Como  sempre,  os  dez  tinham 
decidido  isso  antes  da  batalha.  Os  sobreviventes  retornariam  para  cá. 
Curiosamente,  apenas  um  dos  demais  esperava  por  ele.  Jezrien.  Teriam  todos  os 
outros  oito  morrido?  Era  uma  possibilidade.  A  batalha havia sido tão intensa desta 
vez, uma das piores. O inimigo estava se tornando cada vez mais tenaz.  
Mas  não.  Kalak  observou  ao  chegar  na  base  da  espiral.  Sete espadas magníficas 
se  erguiam  orgulhosamente,  suas  pontas  cravadas  no  chão  de  pedra.  Cada  uma 
delas  era uma magistral obra de arte, suas formas harmônicas gravadas com glifos e 
símbolos.  Ele  reconhecia  cada  uma  delas.  Se  seus  mestres  tivessem  morrido,  as 
Lâminas teriam desaparecido também.  
Essas  Lâminas  eram  armas  de  poder  além  até  mesmo  que  Lâminas-fractas. 
Eram  únicas.  Preciosas. Jezrien se encontrava fora do anel de espadas, encarando o 
leste.  
“Jezrien?” 
A  figura  de  branco  e  azul  olhou  em  sua  direção.  Mesmo  após  tantos  séculos, 
Jezrien  parecia  jovem,  como  um  homem  na  casa  de  seus  trinta  anos.  Sua  curta 
barba  preta  estava  diligentemente  aparada,  embora  suas  já  finas  vestes  estivessem 
chamuscadas  e  manchadas  de  sangue.  Ele  cruzou  os  braços  para  trás  enquanto  se 
dirigia a Kalak.  
“O que é isso, Jezrien?” Kalak perguntou. “Onde estão os outros?” 
“Partiram.”  A  voz  de  Jezrien  era  calma,  profunda,  majestosa.  Embora  não 
tivesse  usado uma coroa em séculos, seus maneirismos reais persistiam. Ele sempre 
parecia  saber  o  que  fazer.  “Você  pode  considerar  isso  um  milagre.  Apenas  um  de 
nós morreu desta vez.” 
“Talenel,” Kalak disse. Sua Lâmina era a única ausente.  
“Sim. Ele morreu defendendo o canal ao nordeste.” 
Kalak  assentiu.  Taln  tinha  a  tendência  de  escolher lutas impossíveis e vencê-las. 
Ele  também  tinha  uma  tendência  em  morrer  no  processo.  A  essa  altura,  ele  já 
deveria  estar  de  volta  ao  lugar  em  que  iam  durante  as  Desolações.  Aquele  lugar 
repleto de pesadelos.   
Kalak percebeu que tremia. Quando foi que tinha se tornado tão fraco? 
“Jezrien,  eu  não  posso  voltar  novamente.”  Kalak  sussurrou  as  palavras, 
aproximando-se e agarrando o braço do outro homem. “​Não posso.​ ”   
Kalak  sentiu  algo  dentro  de  si  quebrar  com  a confissão. Quanto tempo já havia 
se  passado?  Séculos  —  talvez  milênios  —  de  tortura.  Era  tão  difícil  de 
acompanhar.  Aquelas  chamas,  aqueles  ganchos,  perfurando  sua  carne  a  cada  dia. 
Tostando  a  pele  de  seu  braço,  queimando  então  a  gordura  e  chegando  até  o  osso. 
Ele podia sentir o cheiro. Todo-Poderoso, ele podia ​sentir! 
“Deixe sua espada,” Jezrien disse.  
“O quê?” 
Jezrien  acenou  para  o  anel  de  espadas.  “Eu  fui  escolhido  para  aguardar  por 
você.  Não  tínhamos  certeza  de  que  havia  sobrevivido.  Uma…  decisão foi tomada. 
É hora de encerrar o Pacto de Juramentos.” 
Kalak sentiu uma pontada aguda de horror. “O que isso irá fazer?” 
“Ishar  acredita que enquanto ao menos um de nós estiver preso ao Pacto, talvez 
seja o bastante. Existe a chance de que possamos encerrar o ciclo de Desolações.” 
Kalak  encarou  os  olhos  do  rei  imortal.  Fumaça  negra  se  erguia  de  um pequeno 
trecho  à  sua  esquerda.  Gemidos  de  moribundos  os  assombravam pelas costas. Ali, 
nos  olhos  de  Jezrien,  Kalak  viu  angústia  e  sofrimento. Talvez até mesmo covardia. 
Aquele era um homem que estava a um fio do desespero.   
​ alak  pensou.  ​Você  está  quebrado  também,  não  está?  Todos  eles 
Ó,  Todo-Poderoso,  K
estavam.  
Kalak  se  virou,  andando  para  o lado, onde uma baixa encosta encobria parte do 
campo de batalha.  
Havia  tantos  corpos,  e  entre  eles  caminhavam  os  vivos.  Homens  em  trapos 
primitivos,  carregando  lanças  com  pontas  de  bronze.  Justapostos  a  eles  estavam 
outros  em  brilhantes  armaduras  completas.  Um  dos  grupos  caminhou  adiante, 
quatro  homens  em  suas  desgastadas  vestes  e  cotas  de  má  qualidade,  juntando-se  a 
uma  figura  poderosa  em  uma  linda  armadura  de  prata,  incrivelmente  intrincada. 
Um contraste surreal.  
Jezrien se aproximou. 
“Eles  nos  veem  como  divindades,”  Kalak  suspirou.  “Confiam  em  nós,  Jezrien. 
Somos tudo o que lhes restam.”  
“Eles tem os Radiantes. Isso será o suficiente.” 
Kalak  discordou  com  a  cabeça.  “Ele  não  se  manterá  preso  a  isso.  O  inimigo. 
Ele irá dar um jeito de contornar essa situação. Você sabe que sim.” 
“Talvez.” O rei dos Arautos não deu mais explicações.  
“E  Taln?”  Kalak perguntou. ​A carne queimando. As chamas. A dor de novo e de novo e 
de novo… 
“É melhor que um homem sofra do que dez,” Jezrien sussurrou. Ele parecia tão 
frio.  Como  uma  sombra  causada  por  calor  e  luz,  caindo  sobre  alguém honorável e 
verdadeiro, projetando essa imitação negra como resultado.  
Jezrien  caminhou  de  volta  até  o  anel de espadas. Sua própria Lâmina se formou 
em  suas  mãos,  surgindo  da  bruma,  úmida  em  condensação.  “Foi  decidido,  Kalak. 
Nós  tomaremos  nossos  caminhos,  e  não  iremos  procurar  uns  aos  outros.  Nossas 
Lâminas  devem  ser  deixadas  para  trás.  O  Pacto  de  Juramentos  acaba  agora.”  Ele 
ergueu sua espada e a cravou na pedra junto às outras sete.  
Jezrien  hesitou,  olhando  para  a  espada,  então  curvou  sua  cabeça  e  se  virou. 
Como  que  envergonhado.  “Nós  escolhemos  este  fardo voluntariamente. Bem, nós 
podemos escolher deixá-lo, se assim desejarmos.” 
“O  que  falaremos  ao  povo,  Jezrien?”  Kalak  perguntou.  “O  que  eles  irão  dizer 
sobre este dia?” 
“É  simples,”  Jezrien  respondeu,  afastando-se.  “Diremos  que  finalmente 
venceram.  É  uma  mentira  fácil  o  suficiente.  Quem  sabe?  Talvez  isso possa vir a se 
concretizar.” 
Kalak  assistiu  Jezrien  partir  pela  paisagem  queimada.  Finalmente,  ele  invocou 
sua  própria  Lâmina  e  a  cravou  na  pedra  junto  às  outras  oito.  Ele  se  virou  e 
caminhou na direção oposta de Jezrien.  
E  ainda  assim,  não  pôde  evitar  de  olhar  de  volta  para  o  anel  de  espadas  e  o 
único espaço vazio. O lugar onde a décima espada deveria repousar.  
Aquele que havia sido perdido. Aquele que haviam abandonado.  
Perdoe-nos​, Kalak pensou, e então partiu. 
 
 
 
LIVRO  
UM 
 
 
O CAMINHO DOS REIS 
4,500 anos depois   
PRÓLOGO  
MATAR 
 
“O  amor  dos  homens  é  algo  frígido,  uma  corrente  montanhosa  a  apenas  três  passos  do 
gelo.  Nós  somos  dele.  Ó,  Pai-Tempesto…  nós  somos  dele.  Faltam  apenas  mil  dias,  e a 
Tormenta-Eterna se aproxima.” 
 
—  Coletado  no  primeiro  dia  da  semana  Palah  do  mês  Shash  do  ano  1171,  trinta  e  um 
segundos  antes  da  morte.  O  exemplar  era uma olhos-escuros grávida de idade mediana. 
A criança não sobreviveu. 
 
Szeth-filho-filho-Vallano,  Delusório  de  Shinovar,  vestia  branco  no  dia  em  que 
mataria  um  rei.  A  vestuária branca era uma tradição Parshendi, estrangeira para ele, 
mas o fez como seus mestres ordenaram e não pediu por explicações. 
Ele  sentou  em  um  largo  salão  de  pedra,  iluminado  por  enormes  fogueiras  que 
projetavam  uma  luz  vibrante  nos  foliões,  fazendo  gotas  de  suor  se  formarem  em 
suas  peles  enquanto  dançavam,  e  bebiam,  e  gritavam,  e  cantavam,  e  aplaudiam. 
Alguns  caíam sobre o chão com rostos vermelhos, a festança demais para eles, seus 
estômagos  se  provando  serem  odres  de  vinho  inferiores.  Eles  pareciam  estar 
mortos,  ao  menos  até  seus amigos os carregarem para fora do salão de festas até as 
camas.  
Szeth  não  balançou  ao  som  dos  tambores,  bebeu  o  vinho  safira,  ou  levantou 
para  dançar.  Ele  se  sentou  num  banco  ao  fundo,  um  servo  imóvel  em  túnicas 
brancas.  Poucos  na  celebração  de  assinatura  do  acordo  o  perceberam.  Ele  era 
apenas  um  servo,  e  Shins  eram  fáceis  de  se  ignorar.  A  maioria  daqueles  aqui  no 
oriente  julgavam  a  espécie  de  Szeth  como  dócil  e  inofensiva.  Eles  geralmente 
estavam certos.  
Os  percussionistas  iniciaram  um  novo  ritmo.  As  batidas  chacoalharam  Szeth 
como  um  quarteto  de  corações  pulsantes,  bombeando  ondas  de  sangue  invisível 
através  do  salão.  Os  mestres  de  Szeth  —  que  eram  taxados  como  selvagens  por 
aqueles  em  reinos  mais  civilizados  —  sentavam em suas próprias mesas. Eles eram 
homens  com  pele  negra  mesclada  ao  vermelho.  Parshendi,  como  eram  chamados 
—  primos  do  povo  mais  dócil  e  servil  conhecidos como parshimem na maioria do 
mundo.  Uma  excentricidade.  Eles  não  chamavam  a  si  mesmos  de  Parshendi;  esse 
era  o  nome  Aléthi  para  eles.  Significava,  aproximadamente,  “parshimem  que 
consegue pensar.” Nenhum dos lados parecia ver isso como um insulto.  
Os  Parshendi trouxeram os músicos. A princípio, os olhos-claros Aléthi ficaram 
hesitantes.  Para  eles,  tambores  eram  instrumentos  básicos  dos  plebeus 
olhos-escuros.  Mas  vinho  era  o  grande  assassino  de  ambas  tradição  e  decência,  e 
agora a elite Aléthi dançava com negligência.  
Szeth  se  levantou,  começando  a  se  distanciar  do  salão.  A  festança  tinha durado 
bastante;  até  mesmo  o  rei  tinha  se  retirado  horas  antes,  mas  muitos  ainda 
celebravam.  Enquanto  andava,  Szeth  foi  forçado  a  desviar  de  Dalinar Kholin — o 
irmão  do  próprio  rei  —  que  jazia  bêbado  em  uma  pequena  mesa.  O  envelhecido 
mas  poderoso  homem  continuava  a  afastar  aqueles  que  tentavam  encorajá-lo  até 
uma  cama.  Onde  estava  Jasnah,  a  filha  do  rei?  Elhokar,  o  filho  e  herdeiro, 
sentava-se  na  grande  mesa,  dirigindo  o  banquete  na  ausência  de  seu  pai.  Ele 
conversava  com  duas  pessoas,  um  homem  Azishi  de  pele  escura  que  tinha  uma 
estranha  área  de  pele  pálida  em  sua  bochecha,  e  um  homem  de  aparência  Aléthi 
que espiava os arredores constantemente.  
Os  companheiros  de  banquete  do  herdeiro  não  importavam.  Szeth  se  manteve 
longe  do príncipe, rodeando as extremidades do salão, passando os percussionistas. 
Melodisprens  dispararam  pelo  ar  ao  redor  deles,  os  minúsculos  espíritos  girando 
em  forma  de  laços  translúcidos.  Os  percussionistas  notaram  Szeth  assim  que  ele 
passou. Eles se retirariam em breve, juntamente a todos os demais Parshendi.  
Eles  não  pareciam  ofendidos.  Não  pareciam  zangados.  E  mesmo  assim,  iriam 
quebrar  o  tratado  de  apenas  algumas  horas.  Não  fazia  sentido  algum.  Mas  Szeth 
não fazia perguntas.  
No  extremo  do  salão,  ele  passou  por  filas  de  inabaláveis  luzes azul-celestes que 
brotavam  onde  parede  e  chão  se  encontravam.  Eles  mantinham  safiras  infundidas 
com  Luz-tempesta.  Profano.  Como  os  homens  destas  terras  podiam  usar  algo  tão 
sagrado  para  mera  iluminação?  Pior,  os  acadêmicos Aléthi diziam estarem perto de 
criar  novas  Lâminas-fractas.  Szeth  esperava  que  estivessem  apenas  se  gabando. 
Pois,  se  ​isso  viesse  de  fato  a  acontecer,  o  mundo  mudaria.  Provavelmente  de  uma 
maneira  com  que  pessoas  de  todos  os  países  —  da  distante  Thaylenah  até  a 
gigantesca Jah Keved — acabassem falando Aléthi para suas crianças.  
Eles  eram  um  povo  grandioso,  esses  Aléthi.  Até mesmo bêbados, parecia haver 
uma  nobreza  natural  neles.  Altos  e  formosos,  os  homens  vestiam  casacos  de  seda 
escura,  que  abotoavam  o  peito  de  cima  a  baixo,  e  eram  elaboradamente  bordados 
em prata ou ouro. Cada um deles parecia um general em campo. 
As  mulheres  eram  ainda  mais  esplêndidas.  Elas  vestiam  grandes  vestidos  de 
seda,  incrivelmente  justos,  as  cores  coloridas  um  contraste  aos  tons  escuros 
preferidos  pelos  homens.  A  manga  esquerda  de  cada  vestido  era  mais  longa  que  a 
direita, cobrindo a mão. Aléthis tinham um estranho senso de decoro.  
Seus  cabelos  puramente  negros  eram  presos  em  coques  no  topo  das  cabeças, 
entre  intrincadas  tranças  ou  em  frouxos  amontoados.  Eram  geralmente 
entrelaçados  com  fitas  douradas  ou  ornamentos,  juntamente  a  gemas  que 
brilhavam com Luz-tempesta. Lindo. Profano, mas lindo.  
Szeth  deixou  o  salão  de  banquetes  para  trás.  Logo  afora,  passou  pela  entrada 
para  o  Banquete  dos  Pedintes.  Era  uma  tradição  Aléthi,  um  salão  onde  alguns dos 
mais  pobres  homens  e  mulheres  na  cidade  eram  presenteados  com  um  banquete 
complementar  àquele  do  rei  e  seus  convidados.  Um  homem com uma longa barba 
negra  e  grisalha  esbarrou  na  entrada,  sorrindo  tolamente  —  se  por conta do vinho 
ou uma mente fraca, Szeth não soube afirmar.  
“Você  me  viu?”  o  homem  perguntou  com  uma  fala  arrastada.  Ele  riu,  e  então 
começou  a  balbuciar  algo,  alcançando  um  odre  de  vinho.  Então  era  bebida,  afinal 
de  contas.  Szeth  seguiu  adiante,  passando  por  uma  fila  de  estátuas  retratando  os 
Dez  Arautos  da  antiga  teologia Vorin. Jezerezeh, Ishi, Kelek, Talenelat. Ele contou 
cada  um  deles,  e  percebeu  que  havia  apenas  nove  ali.  Um  estava  conspicuamente 
faltando.  Por  que  a  estátua  de  Shalash  tinha  sido  removida?  Rei  Gavilar  era 
conhecido  por  ser  muito  devoto  em  sua  veneração  Vorin.  Devoto  demais,  para  o 
padrão de algumas pessoas.  
O  corredor,  aqui,  curvava-se  para  a  direita, contornando o perímetro do domo 
do  palácio.  Ele  estava  no  andar  do  rei,  dois  pisos  para  cima, cercados por paredes, 
teto  e  chão  de  rocha.  Aquilo  era  profano.  Pedra  não  era  algo  a  ser  pisado.  Mas  o 
que poderia fazer? Ele era Delusório. Fazia o que seus mestres ordenavam. 
Hoje,  isso  incluía  vestir  branco.  Calças  brancas  e  folgadas,  presas  na  cintura 
com  uma  corda,  e  sobre  elas  uma  camisa  translúcida  de  mangas  longas,  aberta  na 
frente.  Vestes  brancas  para  um  assassino  era  uma  tradição  Parshendi.  Embora 
Szeth não tivesse perguntado, seus mestres haviam explicado o porquê. 
Branco  para  ser  ousado.  Branco  para  não  se  misturar  com  a  noite. Branco para 
dar um sinal. 
Pois se iria matar um homem, ele tinha o direito de vê-lo chegando. 
Szeth  virou  a  direita,  pegando  o  corredor  diretamente  para  a  câmara  do  rei. 
Tochas queimavam nas paredes, suas luzes insatisfatórias para ele, como uma breve 
refeição  após  um  longo  jejum.  Chamasprens  dançavam  ao  redor,  como  grandes 
insetos  feitos  exclusivamente  de  luz  congelada.  As  tochas  eram  inúteis  para  Szeth. 
Ele  alcançou  sua  pequena  bolsa  e  as  esferas  que  ela  continha,  mas  então  hesitou 
quando  viu mais daquelas luzes azuis adiante: um par de lâmpadas de Luz-tempesta 
penduradas  na  parede,  com  safiras  brilhantes  reluzindo  bem  no  centro.  Szeth  se 
aproximou  de  uma  delas,  colocando  suas mãos em torno da preciosa gema envolta 
em vidro.  
“Você  aí!”  uma  voz  advertiu  em  Aléthi.  Dois  guardas  estavam na interseção do 
corredor.  Guarda  dobrada,  pois  havia  bárbaros  em  Kholinar  nesta  noite.  De  fato, 
esses  bárbaros  deveriam  supostamente  ser  aliados  agora.  Mas  alianças  podiam  ser 
coisas frágeis no fim das contas.  
A desta noite não duraria até a próxima hora.  
Szeth  observou  enquanto  os  dois  guardas  se  aproximavam.  Eles  carregavam 
lanças;  não  eram  olhos-claros,  e  eram,  portanto,  proibidos  à  espada. Suas couraças 
azuis,  no  entanto,  eram  ornadas,  assim  como  seus  elmos.  Eles  podiam  ser 
olhos-escuros,  mas  eram  cidadãos  de  alto  cargo  com  honoráveis  posições  na 
guarda real.  
O  guarda  da  frente  parou a apenas alguns passos de distância, gesticulando com 
sua  lança.  “Vamos  logo.  Você  não  deveria  estar  aqui.”  Ele  tinha  uma  pele  Aléthi 
bronzeada  e  um  bigode  fino  que  percorria  em  torno  de  toda  a  boca,  tornando-se 
uma barba logo abaixo.  
Szeth não se moveu.  
“E então?” O guarda indagou. “O que está esperando?” 
Szeth inspirou profundamente, extraindo a Luz-tempesta. 
Ela  fluiu  até  ele,  rodopiando  do  par  de  lanternas  de  safira  na  parede,  sugadas 
como que por sua profunda inalação.  
A  Luz-tempesta  se  agitou  dentro  dele,  e  o  corredor  escureceu  repentinamente, 
tomado  pelas  sombras,  como  uma  colina  sendo  negada  ao  sol  por  uma  nuvem 
passageira.  
Szeth  podia  sentir  o  calor  da  Luz,  sua  fúria, como uma tempestade diretamente 
injetada  em  suas  veias.  Seu  poder  era revigorante, mas perigoso. Ele o estimulava a 
agir. A se mover. A atacar. 
Prendendo  o  fôlego,  Szeth  reteu  a  Luz-tempesta.  Ele  ainda  podia  senti-la 
vazando.  Luz-tempesta  podia  ser  mantida  apenas  por  um  curto  período de tempo, 
alguns  minutos  no  máximo.  Ela  vazava,  o  corpo  humano  provando-se  um 
recipiente  poroso  demais.  Ele  ouvira  que  os  Augúrios  do  Vazio  podiam  mantê-la 
perfeitamente.  Mas,  então,  eles  existiam  de  fato?  Sua  punição  declarava  que  não. 
Sua honra demandava o contrário.  
Ardendo  em  energia  sagrada,  Szeth  se  direcionou  aos  guardas. Eles podiam ver 
a  Luz-tempesta  vazando  dele,  lampejos  ondulando  de  sua  pele  como  uma  fumaça 
luminosa. O guarda da frente piscou, franzindo o cenho. Szeth tinha certeza de que 
o  homem  jamais  havia  visto  algo  parecido  antes.  Até  onde  lembrava,  Szeth  tinha 
eliminado  cada  caminhante  de  pedra  que  teve  a  oportunidade  de  ver  suas 
habilidades.  
“O  que…  o  que  é  você?”  A voz do guarda tinha perdido a segurança. “Espírito 
ou homem?” 
“O  que  sou  eu?”  Szeth  sussurrou,  um  pouco  de  Luz  vazando  de  seus  lábios 
enquanto ele encarava o longo corredor além do guarda. “Eu… lamento.” 
Szeth  piscou,  Amarrando-se  àquele  ponto  distante  no  fundo  do  corredor.  A 
Luz-tempesta  irrompeu  dele  em  um  lampejo,  arrepiando  sua  pele,  e  o  chão 
imediatamente  parou  de  puxá-lo  para  baixo.  Em  vez  disso,  ele  foi  puxado  para 
aquele  ponto  distante  —  como  se  repentinamente,  para  ele,  aquela  direção  tivesse 
se tornado ​baixo. 
Aquela  era  uma  ​Amarra  Básica,  ​a primeira dentre seus três tipos de Amarras. Ela 
lhe  dava  a  habilidade  de  manipular  qualquer  fosse  a  força  —  espren  ou  deus  — 
que  mantinha  os homens presos ao chão. Com essa Amarra, ele podia ligar pessoas 
ou objetos a diferentes superfícies ou a diferentes direções.  
Da  perspectiva  de  Szeth,  o  corredor  era  agora  um  enorme  poço  do  qual  ele 
estava  caindo,  e  os  dois  guardas  se  encontravam  em  uma  das  laterais.  Eles  se 
surpreenderam  quando  os  pés  de  Szeth  os  atingiram,  um  para  cada  face, 
arremessando-os  para  trás.  Szeth  ajustou  sua  visão  e  se  Amarrou  até  o  piso.  Luz 
extravasou  de  seu  corpo.  O  chão  do  corredor  se  tornou  ​baixo  ​novamente,  e  Szeth 
aterrissou  entre  os  dois  guardas,  suas  vestes  brancas  trincando e derrubando lascas 
congeladas. Ele levantou, iniciando o processo de invocar sua Lâmina-fracta.  
Um  dos  guardas  se  estabanou  até  sua  lança.  Szeth  se  esticou  para  baixo, 
tocando  o  ombro  do  soldado  enquanto  olhava  para  cima.  Ele focou em um ponto 
no  topo  enquanto  comandava  a  Luz  de  seu  corpo  até  o  guarda,  Amarrando  o 
pobre homem até o teto.  
O  guarda  ganiu  em  choque,  enquanto  ​cima  se  tornava  ​baixo  para  ele.  Luz 
desvanecendo  de  sua  figura,  ele  colidiu  com  o  teto  e  derrubou  sua  lança.  Ela  não 
estava Amarrada diretamente, e tiniu ao cair próximo a Szeth.  
Matar.  Esse  era  o  maior  dos  pecados.  E  mesmo  assim,  aqui  estava  Szeth, 
Delusório,  caminhando  profanamente  sobre  pedras  usadas  para construção. E não 
iria  acabar  ali.  Como  Delusório,  havia  apenas  uma  vida  da  qual  ele era proibido de 
tomar.  
A sua própria.  
Na  décima  batida  de  seu  coração,  a  Lâmina-fracta  surgiu  em  suas  mãos.  Ela  se 
formou  como  que  condensada  da  bruma,  água  correndo  ao  longo  do  metal.  Sua 
Lâmina  era  longa  e  fina,  afiada  nos  dois  lados,  menor  que  a  maioria  das  outras. 
Szeth  golpeou,  talhando  uma  linha  no  chão  de  pedra,  atravessando  o  pescoço  do 
segundo guarda.  
Como  de  costume,  a  Lâmina  matou  de  forma  curiosa;  embora  cortasse 
facilmente  através  de  pedra,  aço  ou  qualquer  coisa  inanimada,  o  metal  tremulava 
quando  tocava  carne  viva.  Ela  percorreu  pelo  pescoço  do  guarda  sem  deixar 
rastros,  mas  assim  que  feito,  os  olhos  do  homem  se  incendiaram.  Eles 
enegreceram,  enrugando-se  em  seu  rosto,  e  ele  tombou  adiante,  morto.  Uma 
Lâmina-fracta não cortava carne viva; ela rompia a própria alma.  
Acima,  o  primeiro  guarda  arfou.  Ele  conseguiu  se  levantar,  embora  seus  pés 
estivessem  plantados  no  teto  do  corredor.  “Portador!”  ele  gritou.  “Um 
Portador-fracto invade o salão do rei! Avante, homens!” 
Finalmente​,  Szeth  pensou.  Seu  uso  de  Luz-tempesta  não  era  familiar  para  os 
guardas, mas eles reconheciam uma Lâmina-fracta quando diantes de uma.  
Szeth  se  abaixou  e  agarrou  a  lança  que  tinha  caído  a  pouco.  Ao  fazê-lo,  ele 
liberou  o  fôlego  que  estava  prendendo desde que consumira a Luz-tempesta. Ela o 
sustentou  enquanto  Szeth  a  conteve,  mas  não havia muito naquelas duas lanternas, 
então  ele  precisaria  inalar  novamente  em  breve.  A  Luz  começou  a  vazar  mais 
rapidamente, agora que ele não estava mais segurando o fôlego. 
Szeth  posicionou  o  cabo  da  lança  contra  o  chão,  e  então  olhou  para  cima.  O 
guarda  no  topo  parou  de  gritar,  seus  olhos  se  arregalando  enquanto  as  costas  de 
sua  camisa  começavam  a  escorregar  e  descender,  a  terra  abaixo  reafirmando  sua 
dominância. A Luz exalando de seu corpo minguou.  
Ele  fitou  Szeth,  então  olhou  para  a  ponta  da  lança  mirada diretamente para seu 
coração. Medosprens rastejaram do teto de pedra ao seu redor.   
A Luz se esgotou. O guarda caiu. 
Ele  gritou  com  o  impacto,  a  lança  empalando  seu  peito.  Szeth  deixou  a  lança 
tombar,  guiada  até  o  chão  por  um  baque  abafado  do  corpo se contraindo na outra 
extremidade.  Lâmina  em  mãos,  ele  dobrou  um  corredor  lateral,  seguindo  o  mapa 
ao  qual  tinha  memorizado. Ele se esquivou em um canto, pressionando-se contra a 
parede no momento em que uma tropa de guardas chegou até o homem morto. Os 
recém-chegados começaram a gritar imediatamente, continuando o alarme.  
Suas  instruções  eram  claras.  Mate  o  rei,  mas  seja  visto  o  fazendo.  Deixe  os 
Aléthi  saber  que  estava  a  caminho  e  o  que  estava  por  vir.  Por  quê?  Por  que  os 
Parshendi  tinham  aceitado  esse  acordo,  apenas  para  enviar  um  assassino  na  noite 
de sua assinatura?  
Mais  gemas  brilhavam  nas  paredes  deste  corredor.  Rei  Gavilar  prezava  por 
ostentação,  e  ele  jamais  imaginaria  que  estava  deixando fontes de poder para Szeth 
usar  em  suas  Amarras.  Essas  eram  habilidades  não  vistas  há  milênios.  Histórias 
dessas  épocas  eram  praticamente  inexistentes,  e  as  lendas  eram  horrivelmente 
imprecisas.  
Szeth  espiou  de  volta  no  corredor.  Um  dos  guardas  na  interseção  o  avistou, 
apontando e gritando. Szeth se certificou de que tinham dado uma boa olhada nele, 
e  então  deslizou  para  longe.  Ele inspirou profundamente enquanto corria, atraindo 
a  Luz-tempesta  das  lanternas.  Seu  corpo  se  tornou  vívido,  e  sua  velocidade 
aumentou,  seus  músculos  explodindo  com  energia.  Luz se tornou uma tempestade 
dentro  de  si;  seu  sangue  trovejava  em  seus  ouvidos.  Era  horrível  e  maravilhoso ao 
mesmo tempo.  
Dois  corredores  para  baixo,  um  para  o  lado.  Ele  escancarou  a  porta  de  um 
depósito,  e  então  hesitou  por  um  momento  — apenas o suficiente para um guarda 
virar  a  esquina  e  avistá-lo  —  antes de adentrar o cômodo. Preparando-se para uma 
Amarra  Completa,  ele  levantou  seu  braço  e  comandou  a  Luz-tempesta  a  se 
despejar,  causando  uma explosão de brilho radiante em sua pele. Ele então agitou a 
mão  em  direção  à  guarnição  da  porta,  borrifando  o  brilho  branco  e  luminescente 
tal  como  uma  tinta.  Ele  bateu  a  porta  bem  no  momento  em  que  os  guardas 
chegaram.  
A  Luz-tempesta  manteve a porta na moldura com a força de cem homens. Uma 
Amarra  Completa  unia  dois  objetos,  segurando-os  até  que  a  Luz  se  esgotasse.  Era 
mais  demorada  de  se  criar  —  e  drenava  Luz-tempesta muito mais depressa — que 
uma  Amarra Básica. A maçaneta estremeceu, e então a madeira começou a se partir 
enquanto  os  guardas  atiravam  seus  pesos contra a porta, um deles pedindo por um 
machado.  
Szeth  cruzou  o  quarto  a  passos  largos,  gingando  em torno da mobília que tinha 
sido  guardada  ali.  Ela  era  feita  de  uma  madeira  pura  e  rica,  coberta  com  tecidos 
vermelhos.  Ele  alcançou  a  parede  do  fundo  e  —  preparando-se  para  mais  uma  de 
suas  blasfêmias  —  ergueu  sua  Lâmina, cortando horizontalmente através da escura 
pedra  cinzenta.  A  rocha  se  partiu  com  facilidade;  uma  Lâmina-fracta  podia  cortar 
qualquer  objeto  inanimado.  Dois  cortes  verticais  deram  sequência,  e  então  um 
abaixo,  talhando  um  largo  bloco  quadrado.  Szeth  pressionou  sua  mão  contra  ele, 
comandando a Luz-tempesta até a pedra.  
Atrás  dele,  a  porta  do  quarto  começou  a  ceder.  Szeth  espiou  cautelosamente  e 
focou  na  porta  tremediça,  Amarrando  o  bloco  naquela  direção.  Gelo  se cristalizou 
em  suas  vestes  —  Amarrar  algo  tão  grande  requeria  uma  quantidade  considerável 
de  Luz-tempesta.  A  tempestade  em  seu  interior  se  acalmou,  como  uma  tormenta 
reduzida a uma garoa.  
Ele  desviou  para  o  lado.  O  largo bloco de pedra estremeceu, escorregando pelo 
cômodo.  Normalmente,  mover  o  objeto  teria  sido  impossível.  Seu  próprio  peso  o 
manteria  preso  às  pedras  abaixo.  No  entanto,  agora,  aquele  mesmo  peso  o 
colocava  em  movimento;  para  o  bloco,  a  direção  da  porta  era  ​baixo​.  Com  um 
profundo  som triturador, o bloco se livrou da parede e tombou pelo ar, esmagando 
a mobília.  
Os  guardas finalmente venceram a porta, adentrando o recinto no momento em 
que o enorme bloco se chocou contra eles.  
Szeth  ignorou  os  terríveis  sons  de  gritos,  da  madeira  partindo,  de  ossos 
quebrando.  Ele  deslizou,  cruzando  o  recém  formado  buraco,  pisando  no  corredor 
do outro lado.  
Ele  caminhou  lentamente,  extraindo  Luz-tempesta  das  lâmpadas  pelas  quais 
passava,  a  energia  rodopiando  até  ele  e  renovando  a  tempestade  interior.  As 
lâmpadas  se  ofuscaram,  escurecendo  o  corredor.  Uma  grossa  porta  de  madeira  se 
encontrava  no  final,  e  conforme  se  aproximava,  pequenos  Medosprens  —  com  a 
aparência  de  viscosas  bolhas  roxas  —  começaram  a  se  esgueirar  da  alvenaria, 
apontando  em  direção  à  porta.  Eles  foram  atraídos  pelo  terror  sentido  do  outro 
lado.  
Szeth  abriu  a  porta,  adentrando  o  último  corredor  que  levava  até  a  câmara  do 
rei.  Grandes  vasos  de  cerâmica  vermelha  se  enfileiravam  pelo  caminho, 
intercalados  com  soldados  nervosos.  Eles  flanquearam  o  longo  e  estreito  tapete 
vermelho no chão, que se estendia como um rio de sangue.  
Os  lanceiros  da  frente  não  esperaram  com  que  Szeth  se  aproximasse.  Eles 
trotaram,  erguendo  suas  curtas  lanças  de  arremesso.  Szeth  bateu  sua  mão  para  o 
lado,  conduzindo  Luz-tempesta  até  a  guarnição  da  porta,  usando  o  terceiro  e 
último  tipo  de  Amarra,  uma  Amarra  Reversa.  Esta  funcionava  de  uma  forma 
diferente  das  demais.  Ela  não  fez  com  que  a  moldura  emitisse  Luz-tempesta;  de 
fato,  parecia  fazer  com  que  sugasse  luz  ​até  ela,  proporcionando  uma  estranha 
penumbra.  
Os  lanceiros  arremessaram,  e  Szeth  manteve-se  parado,  sua  mão  na  guarnição. 
Uma  Amarra  Reversa  exigia  toque  constante,  mas  consumia  significantemente 
menos  Luz-tempesta.  Durante  uma,  qualquer  coisa  que  se  aproximasse  dele  — 
particularmente  objetos  mais  leves  —  era  consequentemente  puxada  para  a 
Amarra.  
As  lanças  dobraram  em  pleno  ar,  separando-se  ao  seu  redor  e  pousando  na 
moldura  de  madeira.  Ao  sentir  o  impacto,  Szeth  saltou  e  se  Amarrou  na  parede 
direita, seus pés batendo na pedra com um estalo.  
Ele  imediatamente  reorientou  sua  perspectiva.  Na  sua  visão,  ele  não  estava  de 
pé  na  parede,  mas  sim  os  soldados,  o carpete vermelho-sangue correndo entre eles 
como  uma  longa  tapeçaria  de  parede.  Szeth  disparou  pelo  corredor,  golpeando 
com  sua  Lâmina,  e  tosou  através  dos  pescoços de dois homens que tinham atirado 
lanças contra ele. Seus olhos queimaram, e os corpos tombaram no chão.  
Os  demais  guardas  no  corredor  começaram  a  entrar  em  pânico.  Alguns 
tentaram  atacá-lo,  outros  chamaram  por  mais  ajuda,  e  outros  o  evitaram 
apavorados.  Os  agressores  estavam  tendo  dificuldades  —  estavam  desorientados 
pela  estranheza  de  golpear  alguém  que  se  pendurava  na  parede.  Szeth  cortou 
alguns,  então  girou  em  pleno  ar,  transitando  para  uma  cambalhota,  Amarrando-se 
de volta ao piso.  
Ele  aterrissou  no  meio  dos  soldados.  Completamente  cercado,  mas  carregando 
uma Lâmina-fracta. 
De  acordo  com  as lendas, As Lâminas-fractas foram originalmente usadas pelos 
Cavaleiros  Radiantes  há  incontáveis  eras  atrás.  Presentes  de  seu  deus,  concedidas 
para  possibilitar  que  lutassem  contra  imensos  horrores  de  rocha  e  fogo,  inimigos 
aos  quais  os  olhos  ardiam  em  ódio.  Os  Augúrios  do  Vazio.  Quando seu oponente 
tinha  a  pele  tão  dura  quanto  as  próprias  rochas,  aço  era  inútil.  Algo  superno  era 
necessário.  
Szeth  levantou,  suas  folgadas  vestes  brancas  tremulando,  sua  mandíbula 
pressionada  contra  seus  pecados.  Ele  golpeou,  sua  arma  brilhando  com  o  reflexo 
da  luz  das  tochas.  Longos,  elegantes  cortes.  Três  deles,  um  em  seguida  do  outro. 
Ele  não  pôde  fechar  os  ouvidos  para  os  gritos  que  sucederam  ou  evitar  ver  os 
homens  tombando.  Eles  caíram  ao  seu  redor  como brinquedos esparramados pelo 
chute  de  uma criança descuidada. Se a Lâmina tocasse a espinha de um homem, ele 
morria,  seus  olhos  queimando.  Se  cortasse  através  do  centro  de  um  membro,  ela 
matava  aquele  membro  em  questão.  Um  dos  guardas  tombou para longe de Szeth, 
com um dos braços pendendo inutilmente em seu ombro. Ele jamais seria capaz de 
senti-lo ou usá-lo novamente.  
Szeth  abaixou  sua  Lâmina,  parado  em  meio  aos  cadáveres  com  olhos 
queimados.  Aqui,  em  Alethkar,  as  pessoas  falavam  com  frequência  das  lendas  — 
da  suada  vitória  contra  os  Augúrios  do  Vazio.  Mas  quando  armas  criadas  para 
enfrentar  pesadelos  eram  usadas  contra  soldados  comuns,  a  vida  de  homens 
acabava por se tornar algo barato, de fato.  
Szeth  se  virou  e  continuou  seu  trajeto,  suas  sapatilhas  caindo  sobre  o  macio 
tapete  vermelho.  A  Lâmina-fracta,  como  sempre,  mantinha-se  limpa  e  reluzente. 
Não  havia  sangue  quando  alguém  matava  usando  uma  Lâmina.  Aquilo  parecia um 
sinal.  A  Lâmina  era  apenas  uma  ferramenta;  ela  não  poderia  ser  culpada  pelas 
mortes.  
A  porta  no  final  do  corredor  se  escancarou.  Szeth  congelou  enquanto  um 
pequeno  grupo  de  soldados  se  apressava  para  fora,  conduzindo  um  homem  em 
vestes  majestosas,  sua  cabeça  abaixada  como  que  para  evitar  flechas.  Os  soldados 
vestiam  azul  escuro,  as  cores  da  Guarda Real, e os cadáveres não foram capazes de 
titubea-los.  Eles  estavam  preparados  para  o  que  um  Portador-fracto  era  capaz  de 
fazer.  Os  guardas  abriram  uma  porta  lateral  e  empurraram  seu  protegido  adiante, 
muitos deles erguendo lanças contra Szeth enquanto recuavam.   
Mais  uma  figura  pisou  para  fora  do  cômodo  real;  ele  vestia  uma  brilhante 
armadura  azul  feita  de  harmônicas  placas  interligadas.  Diferente  das  demais,  no 
entanto,  essa  armadura  não  contava  com tecido ou malha visível em suas juntas — 
apenas  placas  menores,  encaixando-se  umas  às  outras  com  intrincada  precisão.  A 
armadura  era  linda,  o  azul  incrustado  com  bandas  douradas  ao  redor  das 
extremidades  de  cada  pedaço  de  placa,  o  elmo  ornamentado  com  três  sequências 
de pequenas asas pontudas.  
Armadura-fracta,  o  habitual  complemento  para  as  Lâminas-fractas.  O  recém 
chegado  também  carregava  uma  espada,  uma  enorme  Lâmina  de  um  pouco  mais 
de  um  metro  e  meio  de  comprimento,  com  um  acabamento  em  forma  de  chamas 
ao  longo  da  folha,  uma  arma  de  metal  prateado  que  reluzia  e  quase  brilhava por si 
só.  Uma  arma  concebida  para  derrubar  deuses  sombrios,  uma  grande  contraparte 
para aquela que Szeth carregava.  
Szeth  hesitou.  Ele  não  reconheceu  a  armadura;  como  não tinha sido avisado de 
que  seria  encubido  para  essa  missão,  não  teve  tempo  de  memorizar  os  vários 
conjuntos  de  Armadura  e  Lâmina  possuídos  pelos  Aléthi.  Mas  ele  teria  que  lidar 
com  o  Portador-fracto  antes  de  perseguir  o  rei;  não  poderia  deixar  tamanho 
oponente para trás.  
Além  disso,  talvez  um  Portador  fosse  capaz  de  o  derrotar,  matando-o  e 
encerrando  sua  vida  miserável.  Suas  Amarras  não  iriam  funcionar  diretamente  em 
alguém  vestindo  uma  Armadura,  e  ela  iria  aprimorar  o  oponente,  fortalecê-lo.  A 
honra  de  Szeth  não  permitiria  trair  sua  missão  ou  buscar  a  própria  morte.  Mas  se 
essa morte ocorresse, ele a aceitaria de bom grado.   
O  Portador  golpeou,  e  Szeth  se  Amarrou  na  lateral  do  corredor,  saltando  em 
um  giro  e  aterrissando  na  parede.  Ele  gingou  para  trás,  Lâmina  em  punhos.  O 
Portador-fracto  se  colocou  em  uma  pose  agressiva,  usando  uma  das  posturas  de 
esgrima  mais  preferidas  aqui  no  Oriente.  Ele  se  movia  de  maneira  muito  mais  ágil 
do  que  se  esperaria  de  um  homem  em  tamanha  armadura.  Armadura-fracta  era 
especial, tão antigas e mágicas quanto as Lâminas as quais complementavam.  
O  Portador-fracto  atacou.  Szeth  desviou  para  o  lado  e  se  Amarrou  no  teto 
enquanto  a  Lâmina  do  Portador  atingia  a  parede.  Sentindo  uma  adrenalina  pela 
ação,  Szeth  disparou  adiante  e  atacou  logo  abaixo  com  uma  estocada,  tentando 
acertar  o  elmo  do Portador. O oponente desviou, ajoelhando-se, fazendo a Lâmina 
de Szeth cortar apenas o ar.  
Szeth  saltou  para  trás  no  momento  em  que  o  Portador  golpeou  verticalmente 
com  sua  Lâmina,  atingindo  o  teto.  Szeth  não  possuía um conjunto de Armadura, e 
tão  pouco  se  importava  com  isso.  Suas  Amarras  interferiam  nas  gemas  que 
energizavam a Armadura, então teria que escolher entre uma ou outra.  
No  momento  em  que  o  Portador  virou,  Szeth  disparou  adiante através do teto. 
Como  esperado,  o  Portador  golpeou  novamente,  e  Szeth  saltou  para  o  lado, 
rolando.  Ele  transitou  de  sua  cambalhota  para  um salto, Amarrando-se novamente 
até  o  piso.  Ele  girou  para  aterrissar  no  chão  logo  atrás  do  Portador.  Szeth  cravou 
sua Lâmina nas costas de seu oponente.  
Infelizmente,  havia  uma  enorme  vantagem  a  qual  uma  Armadura  oferecia:  ela 
podia  bloquear  uma  Lâmina-fracta.  A  arma  de  Szeth  acertou  em  cheio,  causando 
uma  teia  de  linhas  brilhantes  a  se  espalhar  no  decorrer  das  costas  da  armadura,  e 
Luz-tempesta  começou  a  vazar  dentre  elas.  Armadura-fracta  não  se  amassava  ou 
dobrava  como  metal  comum.  Szeth  teria  que  acertar  o  Portador  no  mesmo  local 
pelo menos mais uma vez para vencer a armadura.  
Szeth  dançou  fora  de  alcance  enquanto  o  Portador  golpeava  raivosamente, 
tentando  cortar  seus  joelhos.  Sua  tempestade  interior  o  proporcionava  inúmeras 
vantagens  —  incluindo  a  habilidade  de  se  recuperar  rapidamente  de  pequenas 
feridas. Mas ela não conseguiria restaurar membros mortos por uma Lâmina-fracta. 
Ele  rodeou  o  Portador,  então  aguardou  um  momento  e  disparou  adiante.  O 
Portador  atacou  novamente,  mas  Szeth  se  Amarrou  momentaneamente  no  teto 
para  ganhar  impulso.  Ele  alçou  no  ar,  circundando  o  corte,  Amarrando-se 
novamente  até  o  chão  imediatamente  em  seguida.  Ele  golpeou  enquanto  pousava, 
mas  o  Portador  se  recuperou  rapidamente  e  emendou  um  perfeito  golpe  em 
sequência, passando a um triz de acertar Szeth.  
O homem era perigosamente habilidoso com aquela Lâmina. Muitos Portadores 
dependiam  demais  do  poder  da  própria  arma  e  armadura.  Esse  homem  era 
diferente.  
Szeth  pulou  até  a  parede  e  atacou  o Portador com golpes rápidos e sucintos, tal 
como uma enguia-mordedora. O Portador o interceptou com contra-ataques largos 
e abrangentes. O comprimento de sua Lâmina forçava Szeth a manter distância.  
Isso  está  demorando  demais!  Szeth  pensou.  Se  o  rei  conseguisse  se  refugiar,  ele 
falharia  em  sua  missão  independente  de  quantas  pessoas  matasse.  Ele  se  preparou 
para  mais um ataque, mas o Portador o forçou a recuar. Cada segundo a mais nessa 
batalha era um a mais para a fuga do rei. 
Era  hora  de  ser  imprudente. Szeth se lançou no ar, Amarrando-se à outra ponta 
do  corredor  e  caindo  de  pés  na  direção  de  seu  adversário.  O Portador não hesitou 
em  golpear,  mas Szeth se Amarrou para baixo em ângulo, caindo imediatamente. A 
Lâmina-fracta ceifou o ar acima de Szeth.  
Ele  aterrissou  de  cócoras,  usando  o  impulso  para  se jogar adiante, e golpeou na 
lateral  do  Portador,  onde  a  Armadura  tinha  rachado.  Szeth  acertou  em  cheio. 
Aquele  pedaço  da  Armadura  se  estilhaçou,  fragmentos  de  metal  fundido 
esparramando-se  ao  redor.  O  Portador  grunhiu,  ajoelhando-se  e  erguendo  uma 
mão  para  o lado. Szeth ergueu o pé até uma das laterais do homem, e o arremessou 
para trás com um chute fortalecido por Luz-tempesta.  
O  pesado  Portador  bateu  na porta do cômodo do rei, quebrando-a e tombando 
parte  de  seu  corpo  para  dentro  do  quarto.  Szeth  o  deixou  para trás, esquivando-se 
pela  porta  lateral,  seguindo  o  caminho ao qual o rei havia tomado. O corredor aqui 
tinha  o  mesmo  tapete  vermelho,  e  lâmpadas  de  Luz-tempesta  nas paredes deram a 
Szeth a chance de recarregar sua tempestade interior.  
Energia  tomou  conta  de  seu  corpo  novamente,  e  ele  acelerou.  Se  conseguisse 
avançar  o  suficiente,  poderia  lidar  com  o  rei,  e  então  voltar  para  enfrentar  o 
Portador.  Não  seria  fácil.  Uma  Amarra  Completa  na  porta  não  seria  o  suficiente 
para  deter  um  Portador,  e  aquela  Armadura  permitiria  que  o  homem  corresse 
sobrenaturalmente rápido. Szeth olhou para trás, curiosamente.  
O Portador não estava o seguindo. O homem, ainda de armadura, tinha sentado 
e  parecia  aturdido.  Szeth  mal  podia  vê-lo,  sentado  na  entrada,  cercado  por 
pequenas  lascas  de  madeira.  Talvez  Szeth  tivesse  o  ferido  mais  do  que  havia 
imaginado. 
Ou talvez… 
Szeth  congelou.  Ele pensou na figura do homem encolhido que havia escapado, 
sua  face  não  visível.  O  Portador  ​ainda  não  estava  o  seguindo.  Ele  era  tão 
habilidoso.  Era  dito  que  pouquíssimos  homens  podiam  rivalizar  a  esgrima  de 
Gavilar Kholin. Seria possível? 
Szeth  se virou e disparou em frente, confiando em seus instintos. O Portador se 
levantou  energeticamente  no  momento  em  que  o  avistou.  Szeth  correu  mais 
depressa.  Qual  era  o  lugar  mais  seguro  para  seu  rei?  Nas  mãos  de  alguns  guardas, 
fugindo?  Ou  protegido  em  um  conjunto  de  Armadura-fracta,  deixado  para  trás, 
dispensado como um guarda costas? 
Inteligente​,  ele  pensou,  enquanto  o  até então vagaroso Portador entrava em outra 
postura de batalha. Szeth atacou com vigor renovado, empunhando sua Lâmina em 
uma  sequência  de  golpes.  O  Portador  —  o  rei  —  atacou  agressivamente  com 
largos  e  abrangentes  cortes.  Szeth  se  afastou  de  um  deles,  sentindo  o  vento 
causado  pelo  golpe  passando  a  apenas centímetros de si. Ele planejou seu próximo 
movimento, então avançou, passando por baixo do contra-ataque do Portador.   
O  rei,  esperando  outro  golpe  em  sua  lateral,  girou  com  os  braços  posicionados 
de  modo  defensivo  para  bloquear  o  buraco  em  sua  Armadura.  Aquilo  deu  a Szeth 
espaço para passar por ele e adentrar a câmara real.  
O  rei  girou  e  o  seguiu,  mas  Szeth  correu  entre  a  câmara  luxuosamente 
mobiliada,  agitando  as  mãos,  tocando  peças  de  mobília  por  onde  passava.  Ele  as 
infundiu  com  Luz-tempesta,  Amarrando-as  para  um  ponto atrás do rei. Os móveis 
tombaram,  como  se  o  quarto  tivesse  sido  virado  de  lado,  sofás,  cadeiras  e  mesas 
caindo  em  direção  do  rei  surpreso.  Gavilar  cometeu  o  erro  de  as  fatiar  com  sua 
Lâmina-fracta.  A  arma podia facilmente atravessar um grande sofá, mas os pedaços 
ainda  o  acertavam,  fazendo-o  tropeçar.  Um  escabelo  o  atingiu  em  seguida, 
atirando-o até o chão.  
Gavilar  rolou  para  longe  da  mobília  e  avançou,  sua  Armadura  vazando  rastros 
de  luz  nas  seções  rachadas.  Szeth  se  concentrou, então saltou no ar, Amarrando-se 
para  trás  e  para  a  direita  enquanto  o  rei  se  aproximava.  Ele  se  esquivou 
completamente  do  golpe  do  rei,  então  se  Amarrou  para  frente  com  duas  Amarras 
Básicas  consecutivas.  Luz-tempesta  erodiu  dele,  vestes  congelando  enquanto  ele 
era puxado em direção ao rei com o dobro de velocidade de uma queda normal. 
A  postura  do  rei  indicou  surpresa  quando  Szeth guinou em pleno ar e girou em 
sua  direção,  golpeando.  Ele  bateu  sua  Lâmina  no  elmo  do  rei,  então  se  Amarrou 
imediatamente  no  teto  e  caiu  para  cima,  chocando-se  desajeitadamente  contra  a 
pedra.  Ele  tinha  se  Amarrado  em  muitas  direções  diferentes  ao  mesmo  tempo,  e 
seu  corpo  tinha  perdido  o  compasso,  tornando  difícil  uma  aterrissagem  graciosa. 
Ele voltou a se levantar.  
Abaixo,  o  rei  recuou,  tentando  se  posicionar  para  golpear  Szeth  logo  acima.  O 
elmo  do  homem  estava  rachado,  vazando  Luz-tempesta,  e  ele  se  mantinha 
defensivo,  protegendo  o  lado  com  a  placa  quebrada.  O  rei  golpeou  com  uma  só 
mão,  em  direção  ao  teto.  Szeth  imediatamente  se  Amarrou  para  baixo,  julgando 
que o ataque impediria o rei de retomar a espada a tempo.  
Szeth  subestimou  seu  oponente.  O  rei  adentrou  o  golpe  dele,  confiando  no 
próprio  elmo  para  absorver  a  pancada.  No  momento  em  que  Szeth atingiu o elmo 
uma  segunda  vez  —  estilhaçando-o  —  Gavilar  o  socou  com  o  outro  punho, 
enfiando sua manopla no rosto de Szeth.  
Uma  luz  cegante  brilhou  em  seus  olhos,  um  complemento  à  dor  repentina  que 
tomou conta de sua face. Tudo se desfocou, sua visão esmaecendo.   
Dor. ​Tanta dor! 
Ele  gritou,  Luz-tempesta  vazando  de  si  apressadamente,  e  então  colidiu  contra 
algo  duro.  As  portas  da  sacada.  Mais  dor  correu  em  seus ombros, como se alguém 
o  tivesse  estocado  com  cem  adagas,  e  ele  então  se  chocou  ao  chão,  rolando,  até 
parar, seus músculos estremecendo. A pancada teria matado um homem normal.  
Não há tempo para dor. Não há tempo para dor. Não há tempo para dor! 
Ele  piscou,  balançando  a  cabeça,  o  mundo  ao  seu  redor  borrado  e  escurecido. 
Tinha  ficado  cego?  Não.  Estava  escuro do lado de fora. Ele estava numa sacada de 
madeira,  a  força  do  golpe  o  arremessara  além  das  portas.  Algo  estava  se 
aproximando. Passos pesados. O Portador! 
Szeth  se  levantou,  sua  visão  vacilando.  Sangue  corria  na  lateral  de  seu  rosto,  e 
Luz-tempesta  erguia-se  de  sua  pele,  cegando  seu  olho  esquerdo.  A  Luz.  Ela  o 
curaria,  se  possível.  Sua  mandíbula  parecia  desconecta.  Quebrada?  Ele  tinha 
derrubado sua Lâmina-fracta. 
Uma  grande  sombra  se  moveu  adiante;  a  armadura do Portador já tinha vazado 
bastante  Luz,  a  ponto do rei ter problemas para caminhar. Mas ele estava vindo, de 
todo modo. 
Szeth  gritou,  ajoelhando-se,  infundindo  Luz-tempesta  na  sacada  de  madeira, 
Amarrando-a para baixo. O ar congelou ao seu redor. A tempestade rugiu, viajando 
através  de  seus  braços  até  a  madeira.  Ele  a  Amarrou  para  baixo,  e  então  repetiu. 
Ele  Amarrou  uma  quarta  vez  enquanto  Gavilar  pisava  na sacada. Ela guinou sob o 
peso extra. A madeira tencionou, partindo.  
O Portador hesitou. 
Szeth  Amarrou a sacada uma quinta vez. Os suportes se romperam e a estrutura 
toda  se  separou  da  construção  do  palácio.  Szeth  gritou  com  uma  mandíbula 
quebrada  e  usou  seu  resquício  de  Luz-tempesta  para  se  Amarrar  na  lateral  da 
construção.  Ele  caiu  para  o  lado,  passando  pelo  Portador  aturdido,  atingindo  a 
parede e rolando.  
A  sacada  tombou,  o  rei  olhava  para  cima enquanto perdia o equilíbrio. A queda 
foi  breve.  No  luar,  Szeth  assistiu  solenemente  —  sua  visão  ainda  turva,  cego  em 
um  dos  olhos  —  enquanto  a  estrutura  se  chocava  no  chão  de  pedra  abaixo.  A 
parede  do  palácio  estremeceu,  e  o  impacto  da  madeira  ecoou  nas  construções 
próximas. 
Ainda  deitado  no  lado  da  parede,  Szeth  grunhiu,  levantando-se.  Ele  se  sentia 
fraco;  tinha  usado  sua  Luz-tempesta  muito  depressa,  esgotando  seu  corpo.  Ele 
desceu  pela  lateral  da  construção,  aproximando-se dos destroços, mal conseguindo 
se manter em pé. 
O  rei  ainda  se  movia.  Armadura-fracta  protegeria  um  homem  de  tamanha 
queda,  mas  um  longo  toco  de  madeira  manchada  de  sangue  se  erguia  da  lateral  de 
Gavilar, perfurando-o onde Szeth tinha quebrado a Armadura anteriormente. Szeth 
se  ajoelhou,  inspecionando  o  rosto  repleto  de  dor  do  homem.  Traços  fortes, 
queixo  quadrado,  uma  barba  negra  salpicada  com  branco,  e  olhos  verdes 
incrivelmente claros. Gavilar Kholin.  
“Eu… imaginei… que viria,” o rei disse entre arfadas.  
Szeth  alcançou  as  alças  abaixo  do peitoral de armadura do homem, soltando-as. 
Elas  cederam,  e  ele  puxou  a  parte  frontal  do  peitoral  para  fora,  expondo  as gemas 
em  seu  interior.  Três  ainda  brilhavam.  Letárgico,  Szeth  respirou  profundamente, 
absorvendo a Luz.  
A  tempestade  começou  a  se  formar  novamente.  Mais  Luz  se ergueu no lado de 
seu  rosto,  restaurando  sua  pele e ossos danificados. A dor ainda era enorme; a cura 
da  Luz-tempesta  estava  longe  de  ser  instantânea.  Levariam  horas  até  que  se 
recuperasse por completo. 
O rei tossiu. “Diga a… Thaidakar… que já é tarde demais…” 
“Eu  não  faço  ideia  de  quem seja esse,” Szeth disse, levantando-se, suas palavras 
arrastadas  devido  a  mandíbula  quebrada.  Ele  esticou  o  braço,  reinvocando  sua 
Lâmina-fracta. 
O  rei  franziu  o  cenho.  “Então  quem…?  Restares?  Sadeas?  Eu  nunca 
imaginei…” 
“Meus  mestres  são  os  Parshendi,”  Szeth  respondeu.  Dez  batidas  de  coração  se 
passaram, e a Lâmina se formou em sua mão, úmida em condensação.  
“Os  Parshendi...?  Isso  não  faz  sentido.”  Gavilar  tossiu,  suas  mãos  trêmulas 
alcançando  um  pequeno  bolso  em  seu  peito.  Ele  tirou  uma  pequena  esfera 
cristalina  de  dentro,  presa  em  uma  corrente.  “Você  deve  pegar  isto.  Eles  não 
podem  tomá-la.”  Ele  parecia  atordoado.  “Diga…  a  meu  irmão…  que  ele  precisa 
encontrar... as palavras mais importantes que um homem pode proferir…” 
Gavilar parou de se mover.  
Szeth  hesitou,  então  se  ajoelhou  e  pegou  a  esfera.  Era  estranha,  diferente  de 
todas  as  outras  que  já  tinha  visto.  Embora  fosse  completamente  negra,  parecia 
brilhar de alguma forma. Com uma luz que era preta.  
Os Parshendi?​ Gavilar havia dito. ​Isso não faz sentido. 
“Nada  mais faz sentido,” Szeth sussurrou, embolsando a estranha esfera. “Tudo 
está  se  desencadeando.  Eu  sinto  muito,  Rei  dos  Aléthi.  Eu  dúvido que se importe. 
Ao menos, não mais.” Ele se levantou. “Ao menos, você não terá que ver o mundo 
acabar junto ao restante de nós.” 
A  Lâmina-fracta  do  rei  se  materializou  da  bruma,  ao  lado de seu corpo, tinindo 
contra  as  pedras  agora  que  seu  mestre  estava  morto.  Ela  valia  uma  fortuna;  reinos 
haviam sucumbido pelo desejo de homens de possuir uma única Lâmina-fracta. 
Gritos de alarme surgiram de dentro do palácio. Szeth precisava partir. 
Mas… 
Diga a meu irmão… 
Para  o povo de Szeth, um desejo de morte era sagrado. Ele tomou a mão do rei, 
molhando-a  no  sangue  do  próprio  homem,  e  então  a  usou  para  rabiscar  na 
madeira:  ​Irmão.  Você  precisa  encontrar  as  palavras  mais  importantes  que  um  homem  pode 
proferir.  
Feito  isso,  Szeth  escapou  noite  adentro.  Ele  deixou  a  Lâmina  do  rei  para  trás; 
não havia uso para ela. A Lâmina que Szeth carregava já era fardo suficiente.   
 
 
 
PARTE  
UM 
 
 
ACIMA DO SILÊNCIO 
 
KALADIN • SHALLAN   
1  
BENETEMPESTE 
 
“Vocês  me  mataram.  Bastardos,  vocês  me  mataram!  Enquanto  o  sol  ainda  está  quente, 
eu morro!” 
 
—  Coletado  no  quinto  dia  da  semana  Chach  do  mês  Betab  do  ano  1171,  dez  segundos 
antes  da  morte. O exemplar era um soldado olhos-escuros de trinta e um anos de idade. 
A amostra é considerada questionável. 
 
 
CINCO ANOS DEPOIS  
 
“Eu vou morrer, não é mesmo?” Cenn perguntou. 
O  desgastado  veterano  ao  seu  lado  se  virou,  inspecionando-o.  O  homem  tinha 
uma barba cheia, bem aparada. Dos lados, os pelos pretos começavam a dar espaço 
para os grisalhos. 
Eu  vou  morrer​,  Cenn  pensou,  apertando  sua  lança  — o cabo escorregadio com o 
suor. ​Eu vou morrer. Ó, Pai-Tempesto. Eu vou morrer...  
“Quantos  anos  você  tem,  filho?”  o  veterano  perguntou.  Cenn  não  lembrava  o 
nome  dele.  Era  difícil  de  recordar qualquer coisa enquanto assistia o outro exército 
formar  fileiras através do campo de batalha pedregoso. Aquele alinhamento parecia 
tão  civilizado.  Limpo,  organizado.  Lanças  curtas  nas  posições  da  frente,  lanças 
longas  e  de  arremesso  em  seguida,  arqueiros  nas  laterais.  Os  lanceiros 
olhos-escuros  se  vestiam  como  Cenn:  gibão  de  couro  e  uma  saia  de  bandas  que  ia 
até a altura dos joelhos, um simples capacete de aço e um peitoral complementar.   
Muitos  dos  olhos-claros  tinham  conjuntos  completos  de  armadura.  Eles 
cavalgavam,  suas  guardas  de  honra  se  agrupando  ao  redor,  com  peitorais  que 
brilhavam  em  tons  púrpura  e  verde  escuro.  Haveria  Portadores-fractos  entre  eles? 
Lorde-Brilhante  Amaram  não  era  um  Portador.  Algum  de  seus  homens  era?  E  se 
Cenn  tivesse  que  lutar  contra  um?  Homens  comuns  não  matavam  Portadores. 
Acontecia tão infrequentemente que cada ocorrência havia se tornado lendária.  
Está  realmente  acontecendo,​   ele  pensou  com  terror  crescente.  Isso  não  era  um 
exercício  no  acampamento.  Não  era  treinar  nos  campos,  empunhando  pedaços  de 
madeira.  Isso  era  ​real.​   Encarando  esse  fato  —  seu  coração  palpitando  como  um 
animal  acuado,  suas  pernas  bambas  —  Cenn  subitamente  se  deu  conta  de  que  era 
um covarde. Ele não deveria ter deixado os rebanhos! Ele jamais deveria— 
“Garoto?” o veterano disse, sua voz firme. “Quantos anos você têm?” 
“Quinze, senhor.” 
“E qual é o seu nome?” 
“Cenn, senhor.” 
O montanhoso homem barbado assentiu. “Eu sou Dallet.” 
“Dallet,”  Cenn  repetiu,  ainda  encarando  o  outro  exército.  Havia  tantos  deles! 
Milhares. “Eu vou morrer, não é mesmo?” 
“Não.”  Dallet  tinha  uma  voz  áspera,  mas  aquilo  era  reconfortante,  de  certa 
forma. “Vai ficar tudo bem. Mantenha o foco. Fique com o esquadrão.” 
“Mas  eu  tive  apenas  três  meses  de  treinamento!”  Ele  jurava  que  podia  ouvir 
leves  tinidos  das  armaduras  e  escudos  inimigos.  “Mal  consigo  segurar  esta  lança! 
Pai-Tempesto, estou morto. Eu não—” 
“Filho,”  Dallet  interrompeu,  gentil  mas  firme.  Ele  levou  uma  das  mãos  até  o 
ombro  do  garoto.  A  luz  refletia  na  borda  do  grande  escudo  redondo  que  Dallet 
carregava nas costas. “Vai ficar tudo bem.” 
“Como sabe?” As palavras soavam como uma súplica. 
“Porque,  garoto,  você  está  no  esquadrão  de  Kaladin Benetempeste.” Os outros 
soldados ao redor concordaram com as cabeças. 
Atrás  deles,  ondas  e  ondas  de  soldados  estavam se alinhando — milhares deles. 
Cenn  estava  bem  na  parte  da  frente, junto ao esquadrão de Kaladin, composto por 
aproximadamente  trinta  homens.  Por  que  ele  fora  enviado  para  um  novo 
esquadrão de última hora? Parecia ter algo a ver com políticas de acampamento.   
Por  que  este  esquadrão  estava  tão  na  frente,  onde  as  casualidades  eram 
normalmente  muito  maiores?  Pequenos medosprens — com aparência de viscosos 
glóbulos  roxos  —  começaram  a  se  erguer  do chão, reunindo-se nos pés do garoto. 
Em  um  momento  de  puro  pânico,  Cenn quase derrubou sua lança e tropeçou para 
trás.  A  mão  de  Dallet  apertou  em  seu  ombro.  Cenn  hesitou  ao  olhar  para  cima  e 
ver os confiantes olhos negros do grande homem.  
“Você mijou antes de montarmos as formações?” Dallet perguntou. 
“Eu não tive tempo par—” 
“Faça agora.” 
“Aqui?” 
“Se  não  fizer,  vai  acabar  escorrendo  nas  suas  pernas  durante  a  batalha,  te 
distraindo, talvez até o matando. Faça agora.”  
Envergonhado,  Cenn  entregou  sua  lança  para  Dallet  e  se  aliviou  nas  rochas. 
Quando  acabou,  observou  aqueles  que  estavam  ao  seu  redor.  Nenhum  dos 
soldados  de  Kaladin  debochava.  Eles  estavam  firmes,  lanças  em  suas  laterais, 
escudos nas costas.  
O  exército  inimigo  estava  quase  pronto.  O  campo  entre  as  duas  forças  era 
descoberto,  notavelmente  uniforme  e  nivelado,  formado  por  pedras  planas  e 
escorregadias,  e  quebrado  apenas  por  ocasionais  botões-de-pedra.  Teria  sido  um 
bom  pasto.  O  vento  quente  soprou  no  rosto  do  garoto,  carregado  com  os  odores 
aquosos da tormenta da noite anterior. 
“Dallet!” uma voz chamou. 
Um  homem  cruzou  as fileiras, carregando uma lança curta com duas bainhas de 
couro  para  facas,  amarradas  na  haste.  O  recém-chegado  era  um  rapaz  —  talvez 
quatro  anos  mais  velho  que  Cenn,  com  quinze  —  mas  que  era  vários  dedos  mais 
alto  até  mesmo  que  Dallet.  Ele  usava  as  usuais  vestes de um lanceiro, mas sob elas 
estava um par de calças escuras. Aquilo não era supostamente permitido. 
Seu  escuro  cabelo  Aléthi  era  ondulado,  na  altura  dos  ombros,  seus  olhos  um 
castanho  escuro.  Ele  também  tinha  nós  de  cordões  brancos  nos  ombros  de  seu 
gibão, marcando-o como líder de esquadrão.  
Os  trinta  homens  em  torno  de  Cenn se prontificaram, erguendo suas lanças em 
continência. ​Esse é Kaladin Benetempeste?​ Cenn pensou, incrédulo. ​Esse rapaz?   
“Dallet,  nós  teremos  um  novo  recruta  em  breve,”  Kaladin  disse.  Ele tinha uma 
voz forte. “Eu preciso que você…” ele pausou ao notar Cenn. 
“Ele  chegou  há  apenas  alguns  minutos,  senhor.”  Dallet  disse  com  um  sorriso. 
“Eu já estava o preparando.” 
“Bom  trabalho.”  Kaladin  respondeu.  “Eu paguei um bom dinheiro para manter 
esse  garoto  longe  de  Gare.  Aquele  homem  é  tão  incompetente  que  poderia  muito 
bem estar lutando para o inimigo.” 
O quê?​ Cenn pensou. ​Por que alguém pagaria por mim? 
“O  que  acham  do  campo  de  batalha?”  Kaladin  perguntou.  Vários  dos  outros 
lanceiros  ao  seu redor levaram as mãos até o rosto, tampando o sol, examinando as 
rochas. 
“Aquela descida perto dos rochedos bem a direita?” Dallet perguntou. 
Kaladin negou com a cabeça. “Íngreme demais.” 
“É.  Talvez  seja.  Que  tal  aquela  colina  baixa  logo  ali?  Longe  o  suficiente  para 
evitar a primeira queda, perto o suficiente para não acabar muito adiante.” 
Kaladin  assentiu,  embora  Cenn  não  conseguisse  ver  o  que  estivessem  vendo. 
“Parece bom.” 
“Ouviram isso, todos vocês?” Dallet gritou. 
Os homens ergueram suas lanças.  
“Fique  de  olho  no  novo  garoto,  Dallet.”  Kaladin  disse.  “Ele  não  irá  saber  os 
sinais.” 
“É  claro,”  Dallet  respondeu,  sorrindo.  Sorrindo!  Como  o  homem  conseguia 
sorrir?  O  exército  inimigo  estava  tocando  suas  trombetas.  Isso  significava  que 
estavam  prontos?  Apesar  de Cenn ter se aliviado a pouco, sentiu uma gota de urina 
descer por sua perna.  
“Mantenham-se  firmes,”  Kaladin  disse,  então  trotou  pela  linha  de  frente  para 
falar  com  o  próximo  líder  de  esquadrão.  Atrás  de  Cenn  e  os  demais,  as  dúzias  de 
formações  continuavam  a  crescer.  Os  arqueiros  nas  laterais  estavam  preparados 
para atirar.  
“Não  se  preocupe,  filho,”  Dallet  disse.  “Ficaremos  bem.  O  líder  Kaladin  é 
sortudo.” 
O  soldado  do  outro  lado  de  Cenn  concordou.  Ele  era  um  Veden  ruivo  e 
magricelo,  de  pele  mais  escura  que  os  Aléthi.  Por  que  ele  estava  servindo  em  uma 
tropa  Aléthi?  “Isso  mesmo.  Kaladin,  ele  é Benetempeste, pode ter certeza que sim. 
Nós perdemos apenas… o que, um homem na última batalha?” 
“Mas alguém ​morreu​,” Cenn observou. 
Dallet  deu  de  ombros.  “Pessoas  sempre  morrem.  Nosso  esquadrão  é  o  que 
perde menos. Você verá.” 
Kaladin  terminou  de consultar o outro líder de esquadrão e correu de volta para 
sua  equipe. Embora ele carregasse uma lança curta — feita para ser empunhada em 
uma  mão,  com  um  escudo  na  outra  —  a  sua  era  um  palmo  mais  longa  que  a  dos 
outros soldados. 
“Preparem-se,  homens!”  Dallet  chamou.  Diferente  dos  demais  líderes,  Kaladin 
não se retirou das formações, mantendo-se na frente de seu esquadrão.  
Os  homens  ao  redor  de  Cenn  arrastavam  os  pés,  excitados.  Os  sons  se 
repetiram  através  do  vasto  exército,  quietude  dando  lugar  para  a  ansiedade. 
Centenas  de  pés  se  arrastando,  escudos  batendo,  engates  fechando.  Kaladin 
permaneceu imóvel, encarando o exército inimigo. “Firme, homens,” ele disse, sem 
se virar. 
Logo  atrás,  um  oficial  olhos-claros  passou  a  cavalo.  “Estejam  prontos  para 
lutar! Eu quero o sangue deles, homens. Lutem e matem!” 
“Firmes,” Kaladin disse novamente, após o homem ir embora.  
“Prepare-se para correr,” Dallet disse para Cenn. 
“Correr?  Mas  nós fomos treinados para marchar em formação! Para nos manter 
em fileiras!” 
“Claro,”  Dallet  disse.  “Mas  a  maioria  dos  homens  não  tem  muito  mais 
treinamento  do  que  você.  Aqueles  que  lutam  bem  acabam  sendo  enviados  até  às 
Planícies  Estilhaçadas,  para  batalhar  contra  os  Parshendi.  Kaladin  está  tentando 
nos  colocar  em  forma para chegarmos até lá, para lutar pelo rei.” Dallet acenou em 
direção  às  fileiras.  “A  maioria  deles  irá  romper  e  avançar;  os  olhos-claros  não  são 
comandantes  bons  o  suficiente  para mantê-los em formação. Então, fique conosco 
e corra.” 
“Eu  deveria  ter  tirado  meu  escudo?”  Ao  redor  do  time  de  Kaladin,  as  outras 
tropas  começavam  a  desengatar  seus  escudos,  embora  seu  esquadrão  ainda  os 
mantivessem nas costas. 
Antes que Dallet conseguisse responder, uma trombeta soou em suas costas. 
“Vá!” Dallet disse. 
Cenn  não teve muita escolha. O exército todo começou a se mover num clamor 
de  botas  em  marcha.  Como  Dallet  tinha  previsto,  a  marcha  organizada  não  havia 
durado  muito.  Alguns  homens  começaram  a  gritar,  seus  rugidos  contagiando 
outros.  Os  olhos-claros  ordenaram  que  fossem,  corressem,  lutassem.  A  fileira  se 
desintegrou.  
Assim  que  isso  aconteceu,  o  esquadrão  de  Kaladin  partiu  em  disparada, 
correndo  na  frente a toda velocidade. Cenn mal conseguiu se manter em equilíbrio, 
em  pânico  e  aterrorizado.  O  chão  não  era  tão  uniforme  quanto  parecia,  e  por 
pouco  não  tropeçou  em  um  botão-de-pedra  escondido,  as  raízes  se  retraindo até a 
concha da planta.   
Ele  se  endireitou  e  seguiu  em  frente,  segurando  sua  lança  em  uma  mão,  seu 
escudo  batendo  contra  as  costas.  O  exército  distante  estava  em  movimento 
também,  os  soldados  inimigos  avançando  pelo  campo.  Não  havia  qualquer 
semblante  de  uma  formação  de  batalha  ou  uma  fileira  organizada.  Isso  não  se 
parecia em nada com o que os treinos diziam que seria. 
Cenn  nem  ao  menos  sabia  quem  era  o  inimigo.  Um  senhor  feudal  estava 
invadindo  o  território  de  Lorde-Brilhante  Amaram  —  as  terras  pertencidas, 
ultimamente,  pelo  Alto-Príncipe  Sadeas.  Era  um  conflito  de  fronteiras,  e  Cenn 
imaginou  que  fosse  contra  outro  principado  Aléthi.  Por  que  estavam  lutando  uns 
contra  os  outros?  Talvez  o  rei  pudesse  colocar  um  basta  nisso,  mas  ele  estava  nas 
Planícies  Estilhaçadas,  buscando vingança pelo assassinato de Rei Gavilar, há cinco 
anos atrás.  
O  inimigo  contava  com  muitos  arqueiros.  O  pânico  de Cenn atingiu o ápice no 
momento  em  que  a  primeira  saraivada  voou  pelo  ar.  Ele  tropeçou  novamente, 
coçando-se  para  pegar  seu  escudo.  Mas  Dallet  agarrou  seu  braço  e  o  empurrou 
para frente. 
Centenas de flechas repartiram o céu, ofuscando o sol. Elas arquearam e caíram, 
despencando  como  enguias-celestes  sobre  sua  presa.  Os  soldados  de  Amaram 
ergueram seus escudos. Mas não o esquadrão de Kaladin. Sem escudos para eles. 
Cenn gritou. 
E  as  flechas  aterrissaram  nas  fileiras  médias  das  tropas  de  Amaram,  logo  atrás. 
Cenn  espiou  por  cima  do  ombro,  ainda  correndo.  As  flechas  caíram  ​atrás  dele. 
Soldados  gritavam,  flechas  penetrando  contra  escudos;  apenas  algumas  flechas 
dispersas chegaram a cair perto das posições dianteiras. 
“Por quê?” ele berrou para Dallet. “Como você sabia?” 
“Eles  querem  que  as  flechas  acertem  onde  os  homens  estiverem  mais 
abarrotados,”  o  grande  homem  respondeu.  “Onde  terão  uma  chance  maior  de 
encontrar um corpo.” 
Diversos  dos  outros  grupos  na  dianteira  deixaram  os  escudos  de  lado,  mas  a 
maioria  corria  de  maneira  desajeitada,  com  seus  escudos  levantados  para  cima, 
preocupados  com  flechas  que  nem  sequer  iriam  os  acertar.  Aquilo  os  atrasava,  e 
eles  arriscavam serem pisoteados pelos homens de trás que ​estavam sendo atingidos. 
Cenn  se  coçou  para  levantar  seu  escudo  de  toda  forma;  parecia  tão  errado  correr 
sem ele. 
A  segunda  saraivada  caiu,  e  homens  gritaram  em  dor.  O  esquadrão  de  Kaladin 
se  apressou  em  direção  aos  soldados  inimigos, alguns dos quais estavam morrendo 
para  flechas  dos  arqueiros  de  Amaram.  Cenn  podia  ouvir  os  soldados  inimigos 
bramindo  gritos  de  guerra,  podia  identificar  faces  individuais.  De  súbito,  o 
esquadrão  de  Kaladin  freou,  formando  um  grupo apertado. Eles haviam alcançado 
a pequena inclinação que Kaladin e Dallet tinham escolhido anteriormente. 
Dallet  agarrou  Cenn  e  o  empurrou  para  o  centro  da  formação.  Os  homens  de 
Kaladin  abaixaram  suas  lanças,  puxando  seus  escudos  enquanto  o  inimigo  se 
aproximava  perigosamente.  O  oponente  não  usava  nenhuma  formação  cuidadosa; 
eles  não  mantinham  as  tropas  de  lanças  longas  na  traseira  e  lanças  curtas  na 
dianteira. Apenas corriam em frente, gritando em frenesi.   
Cenn  teve  dificuldades  para  desengatar  o  escudo  de  suas  costas.  O  som  de 
lanças  colidindo  percorria  pelo  ar  enquanto  esquadrões  enfrentavam  uns  aos 
outros.  Um  grupo  de  lanceiros  inimigos  se  apressou  até  o  esquadrão  de  Kaladin, 
talvez  cobiçando  o  terreno  elevado.  As  três  dúzias  de  agressores  tinham  alguma 
coesão, embora não tivessem uma formação tão justa quanto a de Kaladin. 
Os  inimigos  pareciam  determinados  a compensar isso em paixão; eles berravam 
e  gritavam  em  fúria,  avançando  contra  as  fileiras  de  Kaladin.  Seu  esquadrão 
segurou  a  posição,  defendendo  Cenn  como  se  ele fosse algum olhos-claros e eles a 
sua  guarda  de  honra. As duas forças colidiram em um choque de metal na madeira, 
escudos batendo em conjunto. Cenn se encolheu. 
Estava  acabado  em  algumas  piscadas.  O  esquadrão  inimigo  bateu  em  retirada, 
deixando  dois  mortos  sobre  a  pedra.  Ninguém  havia  caído  no  time  de  Kaladin. 
Eles  mantiveram  a  agressiva  formação  em  V,  embora  um  homem  tenha  recuado 
para  aplicar  uma  bandagem  em  uma  de  suas  feridas.  O  restante  dos  homens  se 
mobilizou  para  fechar  o  espaço  vazio.  O  homem  ferido  era  robusto  e  de  braços 
fortes;  ele  xingou,  mas  a  ferida  não  parecia  grave.  Estava  de  pé  novamente  em 
pouco  tempo,  mas  não  retornou  para  o lugar de antes. Ao invés disso, recuou para 
um dos finais da formação em V, para uma posição mais protegida. 
O  campo  de  batalha  era  puro caos. Os dois exércitos se misturavam de maneira 
indistinta;  sons  tinidos  e  trituradores  acompanhados  de  gritos  se  agitavam  pelo  ar. 
Muitos  dos  esquadrões  se  dividiram,  seus  membros se apressando de um encontro 
para  outro.  Eles  se  moviam  como  caçadores,  grupos  de  três  ou  quatro  buscando 
por indivíduos solitários, caindo então brutalmente sobre as vítimas.   
O time de Kaladin segurou sua posição, enfrentando apenas tropas inimigas que 
chegavam  perto  demais.  Assim era uma batalha de verdade? Os exercícios de Cenn 
o  treinaram  para  longas  formações  de  homens,  ombro  a  ombro.  Não  a  essa 
mistura  frenética,  esse  pandemônio  brutal.  Por  que  não  havia  mais  homens 
mantendo formações?  
Os  verdadeiros  soldados  já  se  foram​,  Cenn  pensou.  ​Lutando  em  uma  batalha  de  verdade 
nas  Planícies  Estilhaçadas. Não é surpreendente que Kaladin queira mandar seu esquadrão para 
lá. 
Flechas  reluziam  por  todos  os  lados;  era  difícil  de  diferenciar aliado de inimigo, 
apesar  dos  emblemas  nos  peitorais  e  a  pintura  colorida  nos  escudos.  O  campo  de 
batalha  se  partiu  em  centenas  de  grupos menores, como milhares de guerras sendo 
travadas ao mesmo tempo.  
Após  as  primeiras  poucas  trocas  de  ataques,  Dallet  agarrou  Cenn pelo ombro e 
o  colocou  bem  ao  fundo  da  formação  em  V.  Cenn,  no entanto, era inútil. Quando 
o  esquadrão  de  Kaladin  enfrentava  as  tropas  inimigas,  todo  seu  treinamento  se 
esvaía.  Ele  precisava  de  tudo  o  que  tinha  apenas  para  se  manter  ali,  segurando sua 
lança e tentando parecer ameaçador.  
Pela  maior  parte  de  uma  hora,  o  esquadrão  de  Kaladin  manteve  sua  pequena 
encosta,  trabalhando  em  equipe,  ombro  a  ombro,  correndo  para  lá  e  para  cá, 
batendo as lanças em seus escudos num ritmo estranho. 
São  sinais,​   Cenn  percebeu,  enquanto  o  esquadrão  de  Kaladin  transitava  da 
formação  em  V  para  uma  em  anel.  Com  o  grito  dos  moribundos  e  os  milhares  de 
homens  berrando  uns aos outros, era praticamente impossível ouvir a voz de quem 
quer  que  fosse.  Mas  o  tinido  afiado  da  lança  contra  o  escudo  de Kaladin era claro. 
A  cada  vez  que  mudavam  de  formação,  Dallet  agarrava  Cenn  pelos  ombros  e  o 
manobrava.   
O  time  de  Kaladin  não  perseguia  os  que  ficavam  para  trás.  Mantinham-se  na 
defensiva.  E,  embora  vários dos homens do esquadrão estivessem feridos, nenhum 
deles  tombou.  Suas  tropas  eram  intimidadoras  demais  para  os  grupos  menores,  e 
unidades  de  inimigos  maiores  recuavam  após  algumas  trocas,  buscando  por  alvos 
mais fáceis. 
Eventualmente,  algo  mudou.  Kaladin  se  virou,  assistindo  o  decorrer  da  batalha 
com  perspicazes  olhos  castanhos.  Ele ergueu a lança e a socou em seu escudo num 
ritmo  rápido  que  não  tinha usado ainda. Dallet agarrou Cenn pelo braço e o puxou 
para fora da pequena encosta. Por que abandoná-la agora? 
Nesse  momento,  as  porções  maiores  das  tropas  de  Amaram  se  quebraram,  os 
homens  se  dispersando.  Cenn  não  tinha  percebido  o  quão  ruim  a  batalha  nessa 
seção  estava  sendo  para  o  seu  lado.  O  esquadrão  de  Kaladin  passou  por inúmeros 
mortos  e  feridos  enquanto  recuava,  fazendo  Cenn  se sentir nauseado. Os soldados 
estavam cortados e abertos, suas entranhas derramando-se para fora.  
Ele  não  teve  tempo  para  o  horror;  a  retirada  rapidamente  se  tornou  um 
tumulto.  Dallet  praguejou,  e  Kaladin  bateu  em  seu  escudo  novamente.  O 
esquadrão  mudou  de  direção,  sentido  leste.  Ali, Cenn notou, um grande grupo dos 
soldados de Amaram defendia.  
Mas  o  inimigo  tinha  visto  as  formações  se  quebrarem,  e  aquilo  os  fez  ousados. 
Eles  avançaram  em  conjuntos,  como  lebréis-marculatos  selvagens  caçando 
vira-latas.  Antes  que  o  esquadrão  de  Kaladin  estivesse  na  metade  do  caminho  do 
campo  de  batalha  repleto  de  mortos  e  moribundos,  um  grande  grupo  de  inimigos 
os  interceptou.  Kaladin  relutantemente  bateu  em  seu  escudo;  seu  esquadrão 
desacelerou.  
Cenn  sentiu  o  coração  bater  cada  vez  mais  depressa.  Próximo  a  eles,  um 
esquadrão  de  soldados  de  Amaram  fora  consumido;  homens  tropeçavam  e  caíam, 
gritando,  tentando  escapar.  Os  inimigos  usavam  suas  lanças  como  espetos, 
matando homens no chão como se fossem cremilins. 
O  esquadrão  de  Kaladin  se  encontrou  ao  inimigo  num  choque  de  lanças  e 
escudos.  Corpos  se  empurraram  para  todos  os  lados,  e  Cenn  girou.  Na  confusão 
entre  aliado  e  inimigo,  matar  e  morrer,  o  garoto  acabou  sobrecarregado.  Tantos 
homens correndo em tantas direções! 
Ele  entrou  em  pânico,  buscando  por  proteção.  Um  dos  grupos  de  soldados  ao 
redor  vestia  uniformes  Aléthi.  O  esquadrão  de  Kaladin.  Cenn  correu  até  eles,  mas 
quando  alguns  se  viraram  em  sua  direção,  aterrorizou-se  ao  perceber  que  não  os 
reconhecia.  Este  ​não  ​era  o  esquadrão  de  Kaladin,  mas  sim  um  pequeno  grupo  de 
soldados  não  familiares,  protegendo  uma  fileira  disforme  e  quebrada.  Feridos  e 
aterrorizados,  eles  se  espalharam  no  instante  em  que  as  tropas  inimigas  se 
aproximaram.  
Cenn  congelou,  segurando  sua  lança  com  mãos  suadas.  Os  soldados  inimigos 
avançaram  bem  em  sua  direção.  Seus  instintos  o  impulsionaram  a  fugir,  mas  em 
retrospecto,  ele  vira  tantos  homens  sendo  pegos,  um  de  cada  vez. Ele tinha que se 
manter firme! Enfrentá-los! Ele não podia fugir, não podia— 
Ele  berrou,  golpeando  sua  lança  no  soldado  da  frente.  O  homem  casualmente 
derrubou  a  arma  para  o  lado  usando  um  escudo,  e  então  cravou  sua  própria  lança 
curta  na  coxa  de  Cenn.  A  dor  era  quente,  tão  quente  que  o  sangue  jorrando  para 
fora de sua perna parecia frio em comparação. Cenn arfou.  
O  soldado  puxou  sua  arma  para  fora.  Cenn  tropeçou  para  trás, derrubando sua 
lança  e  escudo.  Ele  caiu  no  chão  rochoso,  respingando  no  sangue  de  alguém.  Seu 
oponente  ergueu  a  lança  até  o  alto,  uma  silhueta  amedrontadora  em  contraste  ao 
céu azul, pronto para enfiá-la no coração do garoto. 
E então, ​ele​ estava lá.   
Líder  de  esquadrão.  Benetempeste.  A  lança  de  Kaladin  surgiu  como  que  do 
nada,  desviando  por  pouco  o  golpe  que  deveria  ter  matado  Cenn.  Kaladin  se 
colocou  diante  do  garoto,  sozinho,  contra  seis  lanceiros.  Ele  não  hesitou.  Ele 
avançou​.   
Aconteceu  tão  depressa.  Kaladin  varreu  os  pés  do  homem  que  tinha  acertado 
Cenn.  Mesmo  após  o  soldado  cair,  Kaladin  sacou  uma  das  facas  presas  às  bainhas 
amarradas  em  sua  lança.  Sua  mão  estalou,  a  faca  reluzindo  e  acertando  a  coxa  de 
um segundo oponente, que caiu de joelhos, gritando.  
Um  terceiro  homem  congelou,  olhando  para  seus  companheiros  caídos. 
Kaladin  deixou  um  inimigo  ferido  para  trás  e  cravou  sua  lança  no  estômago  do 
terceiro  homem.  Um  quarto  tombou  com  uma  facada  no  olho.  Quando  foi  que 
Kaladin  tinha  pego  aquela  faca?  Ele girou em torno dos últimos dois, sua lança um 
borrão,  empunhada  como  se  fosse  um  bastão.  Por  um  instante,  Cenn  pensou  ter 
visto  algo  rodeando  o  líder  de  esquadrão.  Uma  distorção no ar, como se o próprio 
vento estivesse se tornando visível.  
Perdi muito sangue. Está vazando tão depressa...  
Kaladin  girou,  defletindo  golpes,  e  os  últimos  dois  homens  tombaram  com 
gorgolejos  que  Cenn  pensou  terem  soado  surpresos.  Com  todos  os  inimigos 
caídos,  Kaladin  se  virou  e  ajoelhou  ao  lado  de  Cenn.  O  líder  de  esquadrão  deixou 
sua  lança  de  lado,  e  tirou  uma  faixa  de  tecido  branco  de  seu  bolso,  amarrando-o 
eficientemente  ao  redor  da  perna  do  garoto.  Kaladin trabalhou com a facilidade de 
alguém que já tinha atado feridas dezenas de vezes antes.  
“Kaladin,  senhor!”  Cenn  alertou,  apontando  para um dos soldados que Kaladin 
tinha  ferido.  O  homem  segurava  uma  das  pernas  enquanto  se  levantava  do  chão. 
Em  um  segundo,  no  entanto,  o  montanhoso  Dallet  estava  lá,  empurrando  o  alvo 
usando  seu  escudo.  Dallet  não  matou  o  homem  ferido,  deixando-o  tropeçar  para 
longe, desarmado.  
O  resto  do  esquadrão  chegou,  formando um anel ao redor de Kaladin, Dallet, e 
Cenn.  Kaladin  se  levantou,  erguendo  sua  lança  até  os  ombros;  Dallet lhe devolveu 
suas facas, recuperadas dos inimigos caídos.  
“Me deixou receoso ali, senhor,” Dallet disse. “Avançando daquele jeito.” 
“Sabia  que  viria,”  Kaladin  respondeu.  “Sinalize  a  bandeira  vermelha.  Cyn, 
Korater,  vocês  irão  voltar  com  o  garoto.  Dallet,  segure  aqui.  A  fileira  de  Amaram 
está convergindo para cá. Deveremos estar a salvo em breve.” 
“E quanto a você, senhor?” Dallet perguntou. 
Kaladin  olhou  através  do  campo  de  batalha.  Um  bolsão  se  abriu  nas  forças 
inimigas,  revelando  um  homem  montado  em  um  cavalo  branco,  balançando  uma 
maça  perversa  ao  seu  redor.  Ele  vestia  um  conjunto  completo  de  armadura 
prateada, polida e brilhante.  
“Um Portador-fracto,” Cenn disse. 
Dallet  bufou.  “Não,  graças  ao  Pai-Tempesto.  Apenas  um  oficial  olhos-claros. 
Portadores  são  preciosos  demais  para  serem  desperdiçados  em  uma  pequena 
disputa de fronteiras.” 
Kaladin  observava  o  olhos-claros  com  um  ódio  fervente.  Era  o  mesmo  ódio 
que  o  pai  de  Cenn  expressava  ao  falar  sobre  ladrões  de  chulls,  ou  o  ódio  que  sua 
mãe  mostraria  quando  alguém  mencionava Kusiri, que tinha fugido com o filho do 
sapateiro.  
“Senhor?” Dallet perguntou, hesitante.  
“Sub-tropas  Dois  e  Três,  formação  de  pinça,”  Kaladin  comandou,  sua  voz 
rígida. “Nós iremos derrubar um lorde-brilhante de seu trono.” 
“Tem certeza de que isso é sensato, senhor? Nós temos feridos.” 
Kaladin  se  virou  até  Dallet.  “Aquele  é  um  dos  oficiais  de  Hallaw.  Pode  ser  que 
seja o próprio.” 
“Não tem certeza disso, senhor.” 
“De  toda  forma,  ele  é  um  lorde  de  batalhão.  Se  matarmos  um  oficial  tão  alto, 
estamos  todos  garantidos  a  estar  no  próximo  grupo  enviado  para  as  Planícies 
Estilhaçadas.  Nós  vamos  derrubá-lo.”  Seus  olhos  se  distanciaram.  “Apenas 
imagine,  Dallet.  Soldados  reais.  Um  acampamento  de  batalha  com  disciplina  e 
olhos-claros de integridade. Um lugar onde nossa batalha vai ​significar​ algo.”  
Dallet  suspirou,  mas  assentiu.  Kaladin  acenou  para  um  grupo de seus soldados; 
eles  cruzaram  o  campo  de  batalha.  Um  grupo  menor,  incluindo  Dallet,  ficou  para 
trás  com  os  feridos.  Um  deles  —  um  homem  magro  de  cabelo  Aléthi  escuro, 
salpicado  com  um  punhado  de  fios  loiros,  indicando  algum  sangue  estrangeiro  — 
puxou  uma  longa  fita  vermelha  de  seu  bolso  e  a  amarrou  em  sua  lança.  Ele  a 
segurou ao alto, deixando a fita sacudir com o vento. 
“É  um  chamado  para  os  corredores  retirarem  nossos  feridos  do  campo  de 
batalha,”  Dallet  explicou  para  Cenn. “Nós iremos te tirar daqui em breve. Você foi 
corajoso, enfrentando aqueles seis.” 
“Fugir  pareceu  estúpido,”  Cenn  disse,  tentando  distrair  sua  mente  da  perna 
latejante.  “Com  tantos  feridos  pelo  campo,  como  podemos  saber  que  os 
corredores virão até nós?” 
“Kaladin  os  suborna,”  Dallet  respondeu.  “Eles  geralmente  carregam  apenas 
olhos-claros,  mas  há  mais  corredores  do  que  olhos-claros  feridos.  Ele  dedica  a 
maioria do seu pagamento nas propinas.” 
“Esse esquadrão é diferente,” Cenn disse, sentindo-se tonto. 
“Eu avisei.” 
“Não por causa da sorte. Pelo treinamento.” 
“Isso  é  parte.  Parte  disso  é  porque  sabemos  que  se  nos  ferirmos,  Kaladin  irá 
nos  tirar  do  campo  de  batalha.”  Ele  pausou,  espiando  suas  costas.  Como  Kaladin 
tinha previsto, a fileira de Amaram estava convergindo, recuperando-se. 
O  olhos-claros  inimigo  de  antes  estava  golpeando  energeticamente  com  sua 
maça.  Um  grupo  de  sua  guarda  de  honra  se  moveu  para  um  lado,  enfrentando  as 
sub-tropas  de  Kaladin.  O  olhos-claros  virou  seu  cavalo.  Ele usava um elmo aberto 
na  frente,  com  laterais  inclinadas  e  um  grande  conjunto  de  plumas  no  topo.  Cenn 
não  conseguia  identificar  a  cor  dos  olhos  dele,  mas  sabia  que  seriam  azuis  ou 
verdes,  talvez  amarelos  ou  cinza  claros.  Ele  era  um  lorde-brilhante,  escolhido  de 
nascença pelos Arautos, marcado para governar. 
Ele  desconsiderava  impassivelmente  aqueles  que  lutavam  ao  seu  redor.  Então, 
uma das facas de Kaladin o acertou no olho direito. 
O  lorde-brilhante  gritou,  caindo  de  sua  cela  enquanto  Kaladin  de  alguma 
maneira  atravessava  as  fileiras,  saltando  na  direção  do  homem  com  sua  lança 
erguida.  
“Sim,  é  parte  treinamento,”  Dallet  disse, sacudindo a cabeça. “Mas é em grande 
parte ele. Ele luta como uma tempestade, aquele ali, e pensa duas vezes mais rápido 
que os outros homens. O jeito que ele se move às vezes…” 
“Ele  atou  minha  perna,”  Cenn  disse,  percebendo  que  começara  a  falar 
incoerências  devido  ao  sangue  perdido.  Por  que  apontar  a  perna  atada?  Era  uma 
coisa simples. 
Dallet  apenas  concordou.  “Ele  sabe  um  bocado  sobre  feridas.  E  consegue  ler 
glifos  também.  Ele  é  um  homem  estranho,  para  um  mero  lanceiro  olhos-escuros, 
pode  ter certeza que sim.” Ele se virou até Cenn. “Mas você deveria conservar suas 
forças,  filho.  O  líder  não  ficará contente se o perdermos, não após o que ele pagou 
por você.” 
“Por  quê?”  Cenn  perguntou.  O  campo  de  batalha  estava  começando  a  se 
silenciar,  como  se  a  maioria  dos  moribundos  já  tivesse  gritado  até  a  rouquidão. 
Quase  todos  ao seu redor eram aliados, mas Dallet ainda vigiava para ter certeza de 
que nenhum inimigo tentaria atacar os feridos de Kaladin. 
“Por  que,  Dallet?”  Cenn  repetiu,  sentindo  urgência.  “Por  que  me  trazer  até  o 
esquadrão? Por que ​eu​?” 
Dallet  balançou a cabeça. “É apenas como ele é. Odeia a ideia de garotos jovens 
como  você,  praticamente  despreparados,  indo  para  a  batalha.  Volta  e  meia,  ele 
arranja  um  e  o  traz  para  o  esquadrão.  Uma  boa  meia  dúzia  de  nossos  homens  já 
foram  como  você.”  Os  olhos  de  Dallet  pareciam  distantes.  “Eu  acho  que  vocês 
todos o lembram de alguém.” 
Cenn  fitou  a  própria  perna.  Dolorisprens  —  na  aparência  de  pequenas  mãos 
laranjas  com  dedos  exageradamente  compridos  —  rastejavam  ao  seu  redor, 
reagindo  à  sua  agonia.  Eles  começaram  a  se  virar,  correndo  em  outras  direções, 
buscando  outros  feridos.  Sua  dor estava passando, sua perna — seu corpo todo — 
estava dormente.  
Ele  se  reclinou,  encarando  o  céu.  Podia  ouvir  leves  trovoadas.  Aquilo  era 
estranho. O céu estava limpo. 
Dallet praguejou. 
Cenn  se  virou,  saindo  de  seu  estupor.  Um  enorme  cavalo  negro  galopava 
diretamente  em  sua  direção,  carregando  um  cavaleiro  em  armadura  brilhante  que 
parecia  irradiar  luz.  A  armadura  era  uniforme,  sem  cotas  por  baixo,  apenas  placas 
menores,  incrivelmente  intrincadas.  A  figura  usava  um  elmo  completo,  sem 
ornamento,  e  a  armadura  era  dourada.  Ele  carregava  uma  massiva  espada  em  uma 
das  mãos,  tão  longa  quanto  um  homem.  Não  era  uma  simples  espada  reta  —  era 
curva,  e  seu  lado  sem  corte  era  sulcado,  como  ondas  fluidas.  Gravuras  se 
espalhavam no decorrer da grande espada. 
Era  linda.  Como  uma  obra  de  arte. Cenn nunca tinha visto um Portador-fracto, 
mas  soube  imediatamente  o  que  aquilo  era.  Como  podia  ter  confundido  um 
simples olhos-claros de armadura com uma ​dessas​ criaturas majestosas? 
Dallet  não  tinha  dito  que  não  haveria  Portadores  neste  campo  de  batalha?  O 
grande  homem  se  levantou  aos  tropeços,  gritando  para  que  as  sub-tropas  se 
formassem.  Cenn  apenas  ficou  onde  estava.  Ele não conseguiria levantar, não com 
aquele ferida na perna. 
Ele  se  sentia  tão  tonto.  Quanto  sangue  tinha  perdido?  Ele  mal  conseguia 
pensar.  
De  toda  forma,  não  poderia  lutar.  Não  se  enfrentava  algo  como  aquilo.  O  sol 
brilhou  contra  a  armadura.  E  aquela  deslumbrante,  intrincada,  sinuosa  espada. Era 
como…  como  se  o  próprio  Todo-Poderoso  tivesse tomado forma para andar pelo 
campo de batalha. 
E por que ele iria querer enfrentar o Todo-Poderoso? 
Cenn fechou os olhos.   
2  
HONRA MORREU 
 
“Dez  ordens.  Nós  fomos  amados,  outrora.  Por  que  nos  abandonou,  Todo-Poderoso? 
Fragmento da minha alma, para onde você foi?” 
 
—  Coletado  no  segundo  dia  de  Kakash,  ano  1171,  cinco  segundos  antes  da  morte.  O 
exemplar era uma mulher olhos-claros em sua terceira década. 
 
 
OITO MESES DEPOIS  
 
Kaladin  se  esticou através das barras, seu estômago roncando enquanto aceitava 
a  tigela  de  lavagem.  Ele  puxou  a  pequena tigela — que era mais como um copo — 
cheirou,  e  fez  uma  careta  enquanto  o  vagão  enjaulado  começava  a  andar 
novamente.  A  gosmenta  gororoba  era  cinza,  feita  com  um  grão  seboso,  cozido 
além  do  ponto,  e  essa  remessa  estava  manchada  com  crostas  restantes  da  refeição 
do dia anterior.  
Embora  fosse  revoltante,  era  tudo  o  que teria. Ele começou a comer, assistindo 
a  paisagem  passar,  suas  pernas  penduradas  por  entre  as  barras. Os outros escravos 
na  jaula  agarravam  suas  tigelas  protetoramente,  temerosos  de  que  alguém  as 
pudesse  roubar.  Um  deles  tinha  tentado  afanar  sua  comida  no  primeiro  dia. 
Kaladin quase quebrou o braço do homem. Agora todos o deixavam sozinho.  
Kaladin não via problema nisso.  
Ele  comeu  usando  os  dedos,  não  se  importando  com  a  sujeira.  Já  tinha  parado 
de  a  perceber  há  meses  atrás.  Ele  odiava  o  fato  de  que  sentia  um  pouco  daquela 
mesma  paranóia que os outros demonstravam. Como não poderia, após oito meses 
de surras, privações e brutalidade?  
Kaladin  lutou  contra  a  paranóia.  Ele  ​não  iria  se  tornar  como  os  outros.  Mesmo 
que  tivesse  desistido  de  tudo  —  mesmo  que  tudo  tivesse  sido  tirado  dele,  mesmo 
que  não  houvesse  mais  esperanças  de  escapar.  Essa  única coisa ele iria manter. Ele 
era um escravo. Mas não precisava pensar como um.  
Ele terminou a lavagem depressa. Perto dali, um dos outros escravos começou a 
tossir  levemente.  Havia  dez  escravos  no  vagão,  todos  homens,  sujos  e com barbas 
desgrenhadas.  Aquele  era  um  dos  três  vagões  em  sua  caravana  para  as  Colinas 
Devolutas.  
O  sol  ardia  no  horizonte,  uma  mistura  de  vermelho  e  branco,  como  a  parte 
mais  quente  de  um  fogo  de  forja.  A  luz  pintou  as  nuvens  enquadradas  com  um 
borrifo  de  cor,  como  tinta  jogada  descuidadamente  sobre  uma  tela.  Cobertas  pela 
alta  e  monótona  grama  verde,  as  colinas  pareciam  infinitas.  Em  um  monte 
próximo,  uma  pequena  figura  esvoaçava  por  entre  as  plantas,  dançando  como  um 
inseto  agitado.  A  figura  era  amorfa,  vagamente  translúcida.  Ventisprens  —  os 
esprens  do  vento  —  eram  espíritos  travessos  que  tinham  uma  propensão  em  se 
enfiar  onde  não  eram  bem  vindos.  Kaladin  desejou  que  aquele  ali  ficasse 
aborrecido  e  partisse,  mas ao tentar colocar sua tigela de madeira de lado, percebeu 
que ela estava presa em seus dedos.  
O  vestispren  riu, zunindo, nada mais do que um laço de luz sem forma. Kaladin 
xingou,  puxando  a  tigela.  Ventisprens  geralmente  pregavam  peças  como  aquela. 
Ele  fitou  a  tigela,  que  eventualmente  se  soltou.  Resmungando,  ele  a  arremessou 
para  um  dos  outros  escravos.  O  homem  rapidamente  começou  a  lamber  os  restos 
da gororoba.  
“Ei,” uma voz sussurrou.  
Kaladin  olhou  para  o  lado.  Um  escravo  de  pele  escura  e  cabelo  emaranhado  se 
arrastava  até  ele,  tímido,  como  se  esperasse  Kaladin  ficar  com  raiva.  “Você  não  é 
como  os  outros.”  Os  olhos  negros  do  escravo  olharam  para  cima,  para  a  testa  de 
Kaladin,  que  carregava  três  marcas.  As  duas  primeiras  formavam  um par de glifos, 
dadas  a  ele  oito  meses  atrás,  em  seu  último  dia  no  exército  de  Amaram. A terceira 
era nova, recebida de seu mestre mais recente. ​Shash,​ o último glifo dizia. Perigoso.  
O  escravo  escondia  uma  mão  atrás  das  costas.  Uma  faca?  Não,  aquilo  era 
ridículo.  Nenhum  dos  escravos  conseguiria  esconder  uma  arma;  as  folhas 
escondidas  no  cinto  de  Kaladin  eram o máximo que alguém conseguiria fazer. Mas 
velhos  instintos  não  podiam  ser  banidos  facilmente,  então  Kaladin  vigiou  aquela 
mão. 
“Eu  ouvi  os  guardas  conversando,”  o  escravo  continuou,  arrastando-se  um 
pouco  mais  perto.  Ele  tinha  espasmos  que  o  faziam  piscar  muito  frequentemente. 
“Você tentou escapar antes, eles disseram. Você ​escapou​ antes.” 
Kaladin não respondeu. 
“Veja,”  o  escravo  disse,  tirando  a  mão  das  costas  e  revelando  sua  tigela  de 
lavagem.  Estava  pela  metade.  “Me  leve  junto  da  próxima  vez,”  ele  sussurrou.  “Eu 
lhe  darei  isto.  Metade  da  minha  comida  a  partir  de  agora  até fugirmos. Por favor.” 
Ele  atraiu  alguns  fomesprens  enquanto  falava.  Eles  pareciam  pequenas  moscas 
marrons,  que  pairavam  ao  redor  da  cabeça  do  homem,  quase  pequenos  demais 
para serem enxergados.  
Kaladin  se  virou,  olhando  para  as  infinitas  colinas  e  a  inconstante  grama 
movediça.  Ele repousou um dos braços entre as barras e colocou sua cabeça contra 
ele, as pernas ainda penduradas para fora.  
“E então?” o escravo perguntou. 
“Você  é  um  idiota.  Se  me  der  metade  da  sua  comida,  você  estaria  fraco demais 
para fugir ​caso​ eu fosse tentar escapar. O que não vou. Não funciona.” 
“Mas—” 
“Dez  vezes,”  Kaladin  sussurrou.  “Dez  tentativas  de  fuga  em  oito  meses, 
fugindo de oito mestres diferentes. E quantas delas deram certo?” 
“Bom… quero dizer… você ainda está aqui…” 
Oito  meses.  Oito  meses  como  um  escravo,  oito  meses  de  lavagem  e  surras. 
Parecia  ser  uma  eternidade.  Ele  mal se lembrava mais do exército. “Você não pode 
se  esconder  como  um  escravo,”  Kaladin  disse.  “Não  com essa marca em sua testa. 
Ah,  eu  escapei  algumas vezes. Mas eles sempre me encontravam. E então, lá estava 
eu de volta.” 
Outrora, homens o chamaram de sortudo. Benetempeste. Aquilo era mentira — 
de  fato,  Kaladin  tinha ​má sorte. Soldados costumavam ser supersticiosos, e embora 
ele  inicialmente  tivesse  resistido  a  essa  maneira  de  pensar,  estava  se  tornando cada 
vez  mais  difícil.  Toda  e  qualquer  pessoa  que  Kaladin  já  tivesse  tentado  proteger 
acabou  morta.  De  novo  e de novo. E agora, aqui estava ele, em uma situação ainda 
pior  daquela  a  qual  havia  começado.  Era  melhor  não  resistir.  Esta  era  sua  vida,  e 
estava conformado com isso. 
Existia  um  certo  poder  naquilo,  uma  liberdade.  A  liberdade  de  não  ter  que  se 
importar. 
O  escravo  eventualmente  percebeu  que  Kaladin  não  diria  mais  nada, e então se 
afastou,  comendo  o  resto de sua lavagem. Os vagões continuavam a rodar, campos 
verdes  se  estendendo  por  todas  as  direções.  A  área  ao  redor  das  barulhentas 
carroças,  no entanto, era descampado. Quando se aproximavam, a grama se retraía, 
cada  talo  individual  se  recolhendo  em  um  pequenino  buraco  na  pedra.  Após  as 
carroças  passarem,  a  grama  voltava  a  brotar  timidamente  para  fora,  estendendo 
suas  folhas  para  o  ar.  E  dessa  forma,  os  vagões  se  moviam  por  aquilo  que  parecia 
uma rochosa estrada aberta, limpa especialmente para eles.  
Aqui,  tão  adentro  das  Colinas  Devolutas,  as  tormentas  costumavam  ser 
incrivelmente  poderosas.  As  plantas  tinham  aprendido a sobreviver. Era isso o que 
tinha que ser feito, aprender a sobreviver. Preparar-se para o pior. 
Kaladin  sentiu  a  lufada de mais um corpo sujo e suado, e ouviu o som de pés se 
arrastando. Ele espiou para o lado, esperando ver aquele mesmo escravo de volta. 
Era  um  homem  diferente  desta  vez,  no  entanto.  Ele  tinha  uma  longa  barba 
preta  que  carregava  restos  de  comida  e  sujeira.  Kaladin  mantinha  a  própria  barba 
curta,  permitindo  que  os  mercenários  de  Tvlakv  a  aparassem  periodicamente. 
Como  Kaladin,  o  escravo  vestia  os  restos  de  um  saco  marrom  amarrado  com  um 
trapo,  e  ele  era  olhos-escuros,  obviamente  —  talvez  um  verde  muito  denso, 
embora  fosse  difícil  de  afirmar  se  tratando  de  olhos-escuros.  Todos  eles  pareciam 
marrons ou pretos a não ser que os visse contra a luz. 
O  recém-chegado  se  encolheu,  levantando  as  mãos.  Ele  tinha  uma  irritação 
numa  delas,  a  pele  levemente  descolorida.  Ele  provavelmente  tinha se aproximado 
porque  viu  Kaladin  responder  ao  outro  homem.  Os  escravos  estavam  com  medo 
dele desde o primeiro dia, embora também estivessem obviamente curiosos.  
Kaladin  suspirou,  virando-se.  O  escravo  se  sentou  hesitantemente.  “Se importa 
se  eu perguntar como se tornou um escravo, amigo? Não posso deixar de imaginar. 
Estamos todos curiosos.” 
Julgando  pelo  sotaque  e  pelo  cabelo  escuro,  o  homem  era  Aléthi,  como 
Kaladin. A maioria dos escravos era. Kaladin não respondeu a pergunta. 
“Quanto  a  mim,  roubei  um  rebanho  de  chulls,”  o  homem  disse.  Ele  tinha uma 
voz  áspera,  como  folhas  de  papel  esfregando  umas  nas  outras.  “Se eu tivesse pego 
apenas  um  chull,  talvez  tivessem  só  me  espancado.  Mas  um  rebanho  todo. 
Dezessete cabeças…” Ele riu para si mesmo, admirando a própria audácia.  
No  canto  mais  distante  da  carroça,  alguém  tossiu  novamente.  Eles  eram  um 
bando  deplorável,  até  mesmo  para  escravos.  Fracos,  doentes,  desnutridos.  Alguns, 
como  Kaladin,  eram  fugitivos  de  segunda  viagem  —  embora  apenas  ele  tivesse 
uma  marca  de  shash.  Eles  eram  os  mais inúteis dentre uma casta inútil, comprados 
com  um  enorme  desconto.  Estavam  provavelmente  sendo  levados  para  revenda 
em  algum  lugar  remoto,  onde  homens  estivessem  desesperados  por  mão  de  obra. 
Existiam  várias  pequenas  cidades  independentes  no  decorrer  da  costa  das  Colinas 
Devolutas,  lugares  onde  as  regras  Vorin  regulando  o  uso  de  escravos  eram  apenas 
rumores distantes. 
Vir  por  este  caminho  era  perigoso.  Estes  territórios  não  eram  governados  por 
ninguém, e cortando através da terra aberta, mantendo-se longe de rotas comerciais 
estabelecidas,  Tvlakv  podia  facilmente  acabar  com  um  punhado  de  mercenários 
desempregados.  Homens  que  não  tinham  honra  alguma e nenhum medo de abater 
um  senhor  de  escravos  e  sua  mercadoria  em  ordem  de  roubar  algumas  carroças 
com chulls.  
Homens que não tinham honra. Existiriam homens que ​tinham h ​ onra? 
Não,​ Kaladin pensou. ​Honra morreu oito meses atrás​.  
“Então?”  perguntou  o  homem  de  barba  desgrenhada.  “O  que  você  fez  para  se 
tornar um escravo?” 
Kaladin levantou o braço contra as barras novamente. “Como você foi pego?” 
“Ah,  uma  peculiaridade,”  o  homem  disse.  Kaladin  não  tinha  respondido  sua 
pergunta,  mas  ele  ​tinha  respondido.  Aquilo  pareceu  o  suficiente.  “Foi uma mulher, 
é claro. Deveria saber que me venderia.” 
“Não deveria ter roubado chulls. Muito lentos. Cavalos seriam melhores.” 
O  homem  gargalhou  energicamente.  “Cavalos?  O  que  acha  que  eu  sou,  um 
lunático?  Se  eu  tivesse  sido  pego roubando ​cavalos​, teriam me enforcado. Chulls, ao 
menos, apenas me renderam uma marca de escravo.” 
Kaladin  olhou para o lado. A marca na testa do homem era mais antiga que a de 
Kaladin,  com  a  pele  já  branca  ao  redor  da  cicatriz.  O  que  era  aquele  par  de glifos? 
“Sas  morom,”  Kaladin  leu.  Era  o  distrito  do  alto-lorde  em  que  o  homem  fora 
originalmente marcado.  
O  escravo  o  encarou  em  choque.  “Ei!  Você  sabe  glifos?”  Vários  dos  escravos 
por  perto  se  remexeram  perante  a  excentricidade.  “Deve  ter  uma  história  ainda 
melhor do que imaginei, amigo.”  
Kaladin  encarou  os  gramados  sendo  soprados  pela  brisa  leve.  Sempre  que  o 
vento  batia,  os  talos  de  grama  mais  sensíveis  se  enterravam  em  seus  buracos, 
deixando  a  paisagem  irregular,  como  a  pelagem  de  um  cavalo  doente.  Aquele 
ventispren  ainda  estava  ali,  movendo-se entre trechos de grama. Por quanto tempo 
estava  o  seguindo?  Já  deveriam  fazer  alguns  meses.  Aquilo  era  muito  estranho. 
Talvez não fosse o mesmo espren. Eles eram impossíveis de diferenciar.  
“Bem?” o homem encorajou. “Por que está aqui?” 
“São  muitas  as  razões  para  eu  estar  aqui,”  Kaladin  respondeu.  “Fracassos. 
Crimes. Traições. Provavelmente o mesmo para a maioria de nós.” 
Ao  seu  redor,  vários  dos  homens  resmungaram  em  concordância;  um  deles 
piorando  em  uma  crise  de  tossidas.  ​Tosse  persistente,​   uma  parte da mente de Kaladin 
pensou,  ​acompanhada  de  um  excesso  de  catarro  e  febre  balbuciante  a  noite.  Parece  ser  as 
chirrias.​   
“Bem,”  disse  o  homem  tagarela,  “talvez  eu  deva  fazer  uma  pergunta  diferente. 
Seja mais específico, era o que minha mãe sempre falava. Explique o que quer dizer 
e pergunte o que quer escutar. Qual a história por trás dessa sua primeira marca?” 
Kaladin  sentou,  sentindo  o  vagão  pular  e  rodar  abaixo  dele.  “Eu  matei  um 
olhos-claros.” 
Seu  companheiro  sem  nome  assobiou  novamente,  desta  vez  ainda  mais 
apreciativo que antes. “Estou surpreso que tenham o deixado vivo.” 
“Matar  o  olhos-claros  não  foi  a  razão  de me tornar um escravo,” Kaladin disse. 
“Foi aquele que eu não matei o problema.” 
“Como assim?” 
Kaladin  balançou  a  cabeça, e então parou de responder às perguntas do homem 
tagarela,  que  eventualmente  vagou  até  a  frente  da  jaula  do  vagão  e  se  sentou, 
encarando os próprios pés. 
 
— 
 
Horas  depois,  Kaladin  ainda  sentava  em  seu  lugar,  ociosamente  dedilhando  os 
glifos  em  sua  testa.  Esta  era sua vida, dia a dia, carregado por aquelas amaldiçoadas 
carroças. 
Suas  primeiras  marcas  tinham  sarado  há  tempos,  mas  a  pele  em  volta  do 
estigma  shash  estava  vermelha,  irritada,  e  coberta  de  crostas.  Ela  pulsava,  quase 
como  um  segundo  coração.  Doía  mais  do  que  sua  queimadura  tinha  doído,  de 
quando agarrara o cabo quente de uma panela de cozinha quando era criança. 
Lições enraizadas em Kaladin por seu pai sussurravam no fundo de seu cérebro, 
dando  a  maneira  apropriada  de  se  tratar  uma  queimadura.  Aplique  uma  pomada 
para  prevenir  infecção,  lave  uma  vez  ao  dia.  Aquelas  memórias  não  eram  um 
conforto;  eram  um  incômodo.  Ele  não  tinha  seiva  de  trevo  ou  óleo  listerino;  ele 
sequer tinha água para a lavagem.  
As  partes  da  ferida  que  tinham  cicatrizado  puxavam  sua  pele,  fazendo sua testa 
se  sentir  justa.  Ele  mal  conseguia  passar  alguns  minutos  sem  apertar  sua 
sobrancelha  e  irritar  a  ferida.  Já  tinha  se  acostumado  a  limpar  os  ocasionais 
sangramentos  que  escorriam  das  cicatrizes;  seu  antebraço  direito  já  estava 
manchado  de  sangue.  Se  tivesse  um  espelho,  poderia  provavelmente  avistar 
putrisprens — pequeninos e vermelhos — reunindo-se ao redor da ferida.  
O  sol  se  pôs  ao  oeste  mas  as  carroças  continuaram  a  andar.  A  violeta  Salas 
surgiu  no  horizonte  pelo  leste,  parecendo  hesitante  a  princípio,  como  se  quisesse 
ter  certeza  de  que  o  sol  já  havia  desaparecido.  Era  uma  noite  limpa,  e  as  estrelas 
estremeciam bem ao alto.  
A  Cicatriz  de  Taln  —  uma  faixa  de  profundas  estrelas  vermelhas  que  se 
destacavam  brilhantemente  das  que  cintilavam  em  branco  — estava bem acima no 
céu nesta temporada. 
Aquele escravo que estava tossindo mais cedo voltou a fazê-lo novamente. Uma 
tossida  áspera  e molhada. Outrora, Kaladin teria se apressado para ajudar, mas algo 
nele  havia  mudado.  Tantas  pessoas  as  quais  tinha  tentado  ajudar  estavam  agora 
mortas.  Parecia-lhe  que  —  irracionalmente  —  o  homem  ficaria  melhor  sem  sua 
interferência.  Após  fracassar  com  Tien,  então  Dallet  e  seu  time,  então  dez  grupos 
seguidos de escravos, era difícil encontrar a vontade de tentar novamente. 
Após  duas  horas  da  Primeira  Lua,  Tvlakv  finalmente  decidiu  fazer  uma parada. 
Seus  dois  brutos  mercenários  desceram  de  seus  lugares  acima  da  carroça, 
movendo-se  para  acender  um  fogo.  O  magricelo  Taran  —  o  garoto  servente  — 
cuidava  dos  chulls.  Os  enormes  crustáceos  eram  quase  tão  grandes  quanto  as 
próprias  carroças.  Eles  sentaram,  retirando-se  em suas conchas pelo resto da noite. 
Em  alguns  instantes,  não  passavam  de  três  amontoados  no  escuro,  quase 
indistinguíveis  das  pedras.  Finalmente,  Tvlakv  começou  a  checar  os  escravos,  um 
de  cada  vez,  dando  a  cada  um  deles  uma  concha  de  água,  certificando-se  de  que 
seus  investimentos  estivessem  saudáveis.  Ou,  ao  menos, o quão saudáveis se podia 
esperar desse pobre grupo.  
Tvlakv  começou  pelo  primeiro  vagão,  e  Kaladin  —  ainda  sentado  —  levou  os 
dedos  até  seu  cinto  improvisado,  checando  as  folhas  que  tinha  escondido  ali.  Elas 
estralaram  de  maneira satisfatória, as superfícies rígidas e secas raspando contra sua 
pele.  Ele  ainda  não  tinha  certeza  do  que  faria  com  elas.  Tinha  pego  as  folhas 
impulsivamente,  durante uma das sessões em que fora permitido sair do vagão para 
esticar  as  pernas.  Ele  duvidava  que  mais  alguém  na  caravana  soubesse  como 
identificar  perdição-negra  —  folhas  estreitas  presas  em  um  trifólio  —  então  não 
tinha sido tão arriscado.  
Distraidamente,  ele  pegou  as  folhas  e  as  esfregou  entre  seu  dedo  indicador  e  a 
palma  da mão. Elas tinham que secar antes de alcançarem sua potência. Por que ele 
as  carregava?  Pretendia  usá-las  em  Tvlakv  e  se  vingar?  Ou  seriam  elas  uma 
contingência, retidas caso a situação se tornasse muito pior, muito insuportável?  
Certamente  não  sucumbi  a  esse  ponto​,  ele  pensou.  Era  mais  provável  que  fosse 
apenas  seu  instinto  de  assegurar  uma  arma  quando  via uma, não importava o quão 
incomum  ela  fosse.  A  paisagem  estava  escura.  Salas  era  a  menor  e  mais  fosca  das 
luas,  e  embora  sua  coloração  violeta tivesse inspirado muitos poetas, ela não era de 
grande ajuda quando se queria ver a mão diante do próprio rosto.  
“Oh!” disse uma suave voz feminina. “O que é isso?” 
Uma  figura  translúcida  —  com  apenas  um  palmo  de  altura  —  espiou  da 
extremidade  do piso perto de Kaladin. Ela subiu até o vagão, como se escalasse um 
grande  platô. O ventispren tinha tomado a forma de uma jovem mulher — esprens 
maiores  podiam  mudar  de  forma e tamanho — com um rosto angular e um cabelo 
longo  e  ondulante,  que  se  dissipava  na  névoa  atrás  de  sua  cabeça.  Ela  —  Kaladin 
não  podia  deixar  de  pensar  no  ventispren  como  “ela”  —  era  formada  de  lívidos 
azuis  e  brancos,  e  vestia  um simples e ondulante vestido branco de corte feminino, 
que  descia  até  a  metade  da  panturrilha.  Assim  como  o  cabelo,  o  vestido  se 
desvanecia  até  a  névoa  bem  nas  pontas.  Seus  pés,  mãos  e  rosto  eram  nitidamente 
distintos, e ela tinha a cintura e busto de uma mulher esguia.  
Kaladin  franziu  para  o espírito. Esprens estavam por toda parte; você apenas os 
ignorava  na  maioria  do  tempo.  Mas  esta  aqui  era  uma  peculiaridade.  A  ventispren 
andou  para  cima,  como  se  subisse  uma escadaria invisível. Ela subiu até uma altura 
de  onde  conseguia  ver  a  mão  de  Kaladin,  e  ele  então  fechou  os  dedos  ao redor da 
perdição-negra.  Ela  contornou  o  punho  dele  num  círculo.  Embora brilhasse como 
uma  pós-imagem  após  se  olhar  para  o  sol,  sua  forma  não  provia  iluminação  de 
verdade.  
Ela  se  abaixou,  olhando  para  as  mãos  de  Kaladin  de  diferentes  ângulos,  como 
uma  criança  esperando  encontrar  um  pedaço  de  doce  escondido.  “O  que  é?”  sua 
voz  era  como um sussurro. “Você pode me mostrar. Não vou contar a ninguém. É 
um  tesouro?  Você  cortou  um  pedaço  do  manto  da  noite  e  o  dobrou  para  si?  É  o 
coração de um besouro, tão pequenino mas poderoso?” 
Ele nada disse, fazendo a espren reagir com um beicinho. Ela flutuou para cima, 
pairando  embora  não  tivesse  asas,  e  o  olhou  nos  olhos.  “Kaladin,  por  que  me 
ignora?” 
Kaladin estremeceu. “O que foi que disse?” 
Ela  sorriu  de  forma  travessa,  então  zuniu para longe, sua figura se borrando em 
um  longo  laço  branco  de  luz  azul-esbranquiçada.  Ela  decolou  por  entre  as  barras 
—  girando  e  distorcendo-se  no  ar,  como  um  pedaço  de tecido pego pelo vento — 
e disparou para baixo do vagão.  
“Tormentas  a  partam!”  Kaladin  disse,  ficando  de  pé.  “Espírito!  O  que  foi  que 
disse?  Repita!”  Esprens  não  usavam  nomes  de  pessoas.  Esprens  não  eram 
inteligentes.  Os  maiores  —  como  ventisprens  ou  fluvisprens  —  podiam  imitar 
vozes e expressões, mas eles não pensavam de fato. Eles não… 
“Algum  de  vocês  ouviu  isso?”  Kaladin  perguntou,  virando-se  para  os  demais 
ocupantes  da  jaula.  O  teto  era  alto  o  suficiente  apenas  a  ponto  de  permitir  que 
Kaladin  ficasse  de  pé.  Os  demais  estavam  deitados,  esperando  para  receber  suas 
conchas  de  água.  Ele  não  obteve  resposta  além  de  alguns  resmungões  para  que 
ficasse  quieto  e  algumas  tossidas  do  homem  doente  no  canto.  Até  mesmo  seu 
“amigo”  de  mais cedo o ignorou. O homem tinha entrado num estupor, encarando 
os próprios pés, mexendo os dedos periodicamente.  
Talvez  não  tivessem  visto  a  espren.  Muitos  dos  maiores  eram  invisíveis,  exceto 
para  a  pessoa  a  qual  estavam  atormentando.  Kaladin voltou a se sentar no chão do 
vagão,  pendurando  suas  pernas  para  fora.  A  ventispren  ​tinha  dito o seu nome, mas 
estava  provavelmente  apenas  repetindo  o  que  já  ouvira  anteriormente.  Mas… 
nenhum dos homens na jaula sabia seu nome. 
Talvez  eu  esteja  enlouquecendo,​  Kaladin pensou. ​Vendo coisas que não estam ali. Ouvindo 
vozes.​  
Ele  respirou  fundo,  e  então  abriu  sua  mão.  Seu  aperto  tinha  rachado  as  folhas, 
quebrando-as. Ele precisava escondê-las para prevenir qualquer— 
“Essas  folhas  parecem  interessantes,”  disse  aquela  mesma  voz  feminina. “Você 
gosta muito delas, não é mesmo?” 
Kaladin  pulou,  virando-se  para  o  lado. A ventispren estava no ar, logo acima de 
sua  cabeça,  seu  vestido  branco  ondulando  com  um  vento  ao  qual  Kaladin  não 
conseguia sentir. 
“Como sabe o meu nome?” ele demandou.  
A  espren  não  respondeu.  Ela  caminhou  no  ar  até  as  barras,  então  colocou  a 
cabeça  para  fora,  assistindo  o  escravizador  Tvlakv  administrar  bebidas  para  os 
poucos  escravos  restantes  do  primeiro  vagão.  Ela  olhou  de  volta  para  Kaladin. 
“Por que não luta? Já fez isso antes. Mas agora parou.” 
“Por que se importa, espírito?” 
Ela  levantou  a  cabeça.  “Eu  não  sei,”  respondeu,  como  que  surpresa  consigo 
mesma. “Mas me importo. Não é estranho?” 
Era  mais  do que estranho. O que ele faria com um espren que não apenas usava 
seu nome, mas parecia ​lembrar​ de coisas que Kaladin tinha feito semanas atrás?  
“Pessoas  não  comem  folhas,  sabe,  Kaladin,”  ela  disse,  cruzando  os  braços 
translúcidos.  Ela  então  espichou  a  cabeça.  “Ou  comem?  Não  me  lembro.  Vocês 
são  tão  estranhos,  empanturrando  algumas  coisas  em  suas  bocas,  despejando 
outras quando ninguém está vendo.” 
“Como sabe o meu nome?” ele sussurrou. 
“Como ​você​ sabe?”  
“Eu sei porque… porque é meu. Meus pais o contaram para mim. Eu sei lá.” 
“Bom,  eu  também  não,”  ela  respondeu,  assentindo  com  a  cabeça  como  se 
tivesse vencido alguma grande discussão.  
“Certo,” ele disse. “Mas por que você está usando o meu nome?” 
“Porque é educado. E você é mal-educado.”  
“Esprens não sabem o que isso significa!” 
“Viu só”, ela disse, apontando para ele. “Mal-educado.” 
Kaladin  piscou.  Bom,  ele  estava  bem  longe  de  onde  crescera,  percorrendo 
pedras  estrangeiras  e  comendo  comidas  estrangeiras.  Talvez  os  esprens  que 
vivessem aqui fossem diferentes daqueles de sua terra natal. 
“Então,  por  que  não  luta?”  ela  perguntou,  esvoaçando  para  baixo  para  pousar 
na  perna  dele,  olhando  para  cima,  no  rosto  de  Kaladin.  Ela não tinha peso ao qual 
conseguisse sentir. 
“Eu não posso lutar,” ele disse suavemente. 
“Você já lutou antes.” 
Ele  fechou  os  olhos  e repousou a cabeça contra as barras. “Estou tão cansado.” 
Ele  não  se  referia  à  fadiga  física,  embora  oito  meses  comendo  restos  tivessem 
tomado  muito  de  sua  força cultivada guerreando. Ele se ​sentia cansado. Até mesmo 
quando  dormia  o  suficiente.  Até  mesmo  naqueles  raros  dias  em  que  não  estava 
faminto, com frio ou dolorido de uma surra. Tão cansado… 
“Você já esteve cansado antes.” 
“Eu  fracassei,  espírito,”  ele  respondeu,  apertando  os  olhos.  “Deve  ainda  me 
atormentar?” 
Eles  estavam  todos  mortos.  Cenn  e  Dallet,  e  antes  disso  Tukks  e  os  Takers. 
Antes  disso,  Tien.  Antes  disso,  sangue  em  suas  mãos  e  o  corpo  de  uma  jovem 
garota de pele pálida. 
Alguns  dos  escravos  ao  redor  resmungaram,  provavelmente  achando  que  ele 
estivesse  louco.  Qualquer  um  podia  acabar  atraindo  um  espren,  mas  aprendia-se 
cedo  que  falar  com  um  era  inútil.  Estaria  ele  enlouquecendo?  Talvez  devesse 
desejar  isso  —  loucura  era  uma  escapatória  da  dor.  Mas  ao  invés  disso,  ela  o 
amedrontava.  
Ele  abriu  os  olhos.  Tvlakv  estava  finalmente  andando  em  direção  ao  vagão  de 
Kaladin,  carregando  seu  balde  de  água.  O  corpulento  homem  de  olhos  castanhos 
caminhava  com  um  leve  mancar;  resultado  de  uma  perna  quebrada,  talvez. Ele era 
Thaylenês,  e  todos  os  homens  Thayleneses  tinham  as  mesmas  barbas  e 
sobrancelhas  brancas  e  vibrantes,  independente  da  idade  ou  da  cor  do  cabelo  em 
suas  cabeças.  Aquelas  sobrancelhas  cresciam  compridamente,  e  os  Thayleneses  as 
usavam presas atrás das orelhas. Aquilo fazia Tvlakv parecer ter duas faixas brancas 
em seu cabelo que era, na verdade, preto. 
Suas  vestes  —  calças  listradas  em preto e vermelho e um suéter azul escuro que 
casava  com  a  cor  de  seu  gorro  —  que  já  foram  finas  um  dia,  estavam  agora  em 
farrapos.  Teria  ele  algum  dia  sido  algo  além  de  um  vendedor  de  escravos?  Essa 
vida  —  a  casual  compra  e  venda  de  carne  humana  —  parecia  ter  um  efeito  nos 
homens. Ela desgastava a alma, embora enchesse os bolsos com dinheiro. 
Tvlakv  manteve  distância  de  Kaladin,  carregando  uma  lanterna  de  óleo  para 
inspecionar  o  escravo  que  tossia  na  frente  da  jaula.  Ele  chamou  seus  mercenários. 
Bluth  —  Kaladin  não  sabia  porque  tinha  se  dado  ao  trabalho  de  aprender  seus 
nomes  —  se  aproximou.  Tvlakv  falou  baixo,  apontando  para  o  escravo.  Bluth 
assentiu,  seu  rosto  inexpressivo  sombreado  na  luz  da  lanterna,  sacando  então  o 
porrete de seu cinto.  
A  ventispren  tomou  a  forma  de  uma  fita,  e  então  zuniu  em  direção  ao  homem 
doente.  Ela  rodou  e  girou  algumas  vezes  antes  de  pousar  no  chão,  tornando-se 
uma  garota  novamente.  Ela  se  inclinou  para  inspecionar  o  homem.  Como  uma 
criança curiosa.  
Kaladin  se  virou  e  fechou  os  olhos,  mas  ele  ainda  podia  ouvir  as  tossidas.  Em 
sua  mente,  a  voz  de  seu  pai  respondeu.  ​Para  curar  a  tosse  chirriante,  disse  o  tom 
cuidadoso  e  preciso,  ​administre  dois  punhados  de  hera-sangrenta  todo  dia,  trituradas  em 
forma de pó. Se não tiver isso, certifique-se de dar muito líquido ao paciente, preferencialmente com 
açúcar  misturado.  Desde  que  o  enfermo  se  mantenha  hidratado,  irá  provavelmente  sobreviver.  A 
doença parece muito pior do que realmente é.   
Provavelmente sobreviver… 
As  tossidas  continuaram.  Alguém  tinha  destravado  a  porta  da  jaula.  Eles 
saberiam  como  ajudar  o  homem?  Uma  solução  tão  simples.  Dê  a ele água, e então 
sobreviveria. 
Não importava. Era melhor não se envolver. 
Homens  morrendo  no  campo  de  batalha.  Um  rosto  jovem,  tão  querido  e 
familiar,  olhando  para  Kaladin  por  salvação.  Uma  espada  abrindo  a  lateral  de  um 
pescoço  com  um  corte.  Um  Portador-fracto  avançando  através  das  tropas  de 
Amaram. 
Sangue. Morte. Fracasso. Dor. 
E  a  voz  de  seu  pai.  ​Você  pode  realmente  deixá-lo,  filho? Deixá-lo morrer enquanto podia 
ter ajudado? 
Tormentas!  
“Pare!” Kaladin disse, levantando-se.  
Os  demais  escravos  se  afastaram.  Bluth  pulou,  batendo  a  porta  da  jaula 
enquanto  segurava  seu  porrete.  Tvlakv  se  protegeu  atrás  do  mercenário,  usando-o 
como um escudo. 
Kaladin  respirou  fundo,  fechando  sua  mão  ao  redor  das  folhas  e  erguendo  a 
outra  até  a  cabeça,  limpando  um  rastro  de  sangue.  Ele  atravessou  a  pequena  jaula, 
pés  descalços  batendo  sobre  a  madeira.  Bluth  encarou  enquanto  Kaladin  se 
ajoelhava  ao  lado  do  homem  doente.  A  luz  oscilante  iluminou  um  rosto  longo  e 
tenso,  com  lábios  quase  sem  cor.  O  homem  tinha  expelido  catarro;  ele era verde e 
sólido.  Kaladin  sentiu  a  garganta  do  escravo,  procurando  por  inchaços,  e  então 
checou os escuros olhos castanhos. 
“É  chamada  tosse  chirriante,”  Kaladin  disse.  “Ele  irá  viver,  se  receber  uma 
concha  extra  de  água  a  cada  duas  horas  por  mais  ou  menos  cinco  dias.  Terá  que 
forçar pela garganta. Misture com açúcar, se tiver algum.”  
Bluth coçou o largo queixo, então olhou de relance para o baixo escravizador. 
“Traga ele para fora,” Tvlakv disse. 
O  escravo  doente  acordou  enquanto  Bluth  destrancava  a  jaula.  O  mercenário 
afastou  Kaladin  usando  o  porrete,  e  o  rapaz  recuou  relutantemente.  Após  guardar 
sua  arma,  Bluth  agarrou  o  escravo  por  baixo  dos  braços  e  o  arrastou  para  fora, 
enquanto  tentava  manter  um  olhar  nervoso  em  Kaladin.  Sua  última  tentativa  de 
fuga  tinha  envolvido  vinte  escravos  armados.  Seu  mestre  deveria  ter lhe executado 
por  conta  disso,  mas  ele  afirmou  que  Kaladin  era  “intrigante”  e  o  marcou  com 
shash,​ vendendo-o por uma mixaria. 
Parecia  sempre  existir  uma  razão  para  Kaladin  sobreviver  enquanto  aqueles  a 
quem  tentava  ajudar  morriam.  Alguns  homens  podiam  encarar  aquilo  como  uma 
bênção, mas ele via aquilo como uma irônica forma de tormento. Ele tinha passado 
algum  tempo  sob  seu  antigo  mestre  conversando  com  um  escravo  do  Oeste,  um 
homem  Selayano  que  falava  sobre  a  Velha  Magia  das  lendas  e  sua  capacidade  de 
amaldiçoar pessoas. Poderia ser isso o que estava acontecendo com Kaladin? 
Não seja tolo,​ ele disse para si mesmo. 
A  porta  da  jaula  se  fechou  novamente,  trancando-se. As jaulas eram necessárias 
—  Tvlakv  tinha  que  proteger  seus  frágeis  investimentos  das  tormentas.  Elas 
tinham  lados  de  madeira  que  podiam  ser  puxados  para  cima  e  travados  durante  as 
ventanias furiosas.  
Bluth  arrastou  o  escravo  até  o fogo, ao lado do barril de água já aberto. Kaladin 
relaxou.  ​Pronto,​   ele  disse  para  si  mesmo.  ​Talvez  você  ainda  possa  ajudar.  Talvez  ainda 
haja uma razão para se importar.​  
Kaladin abriu a mão e examinou as quebradiças folhas negras em sua palma. Ele 
não  precisava  delas.  Colocá-las  sorrateiramente  na  bebida  de  Tvlakv  não  seria 
apenas  difícil,  mas  inútil.  Ele  realmente  queria  o  escravizador  morto?  De  que 
adiantaria?  
Um  leve  som  rachadiço  correu  pelo  ar,  seguido  de  um  segundo,  mais  abafado, 
como  alguém  derrubando  um  saco  de  grãos.  Kaladin  reflexivamente  levantou  a 
cabeça,  olhando  para  onde  Bluth  tinha  colocado  o  escravo  doente.  O  mercenário 
ergueu  seu  porrete  uma  última  vez,  golpeando-o  para  baixo,  a  arma  fazendo  um 
som estalante enquanto acertava o crânio do escravo.  
O  homem  não  proferiu  nenhum  choro  ou  protesto.  Seu  corpo  permaneceu 
caído  na  escuridão;  Bluth  casualmente  o  pegou  mais uma vez, arremessando-o por 
cima do ombro. 
“Não!”  Kaladin  berrou,  saltando  através  da  jaula  e  batendo  as  mãos  contra  as 
barras. 
Tvlakv continuou se aquecendo no fogo. 
“Tormentas o partam!” Kaladin gritou. “Ele podia ter vivido, seu bastardo!” 
Tvlakv  olhou  em  sua  direção.  Então,  o  escravizador  caminhou  vagarosamente, 
ajeitando seu gorro azul. “Ele ia acabar adoecendo todos vocês, veja bem.” Sua voz 
carregava  um  leve  sotaque,  misturando  palavras  em  conjunto,  não  dando  a  ênfase 
apropriada  para  as  sílabas.  Para  Kaladin,  Thayleneses  sempre  soavam  como  se 
estivessem  resmungando.  “Eu não arriscaria perder um vagão inteiro por um único 
homem.” 
“Ele  já  tinha  passado  da  fase  de  contágio!”  Kaladin  disse,  batendo  as  mãos 
contra  as  barras  novamente.  “Se  algum  de  nós  tivesse  que  ter  pego,  já  teríamos 
feito a essa altura.” 
“Torça para que não. Eu acho que ele estava além da salvação.” 
“Eu lhe disse o contrário!” 
“E  eu  deveria  acreditar  em  você,  desertor?”  Tvlakv  disse,  entretido.  “Um 
homem  com  olhos  que  fervem  em  ódio?  Você  me  mataria.”  Ele  deu  de  ombros. 
“Eu  não  me  importo,  desde  que  estejam fortes na hora da venda. Você deveria me 
agradecer por salvá-lo da doença daquele homem.” 
“Eu  vou  agradecer  ao  seu  túmulo  quando  eu  mesmo  o  cavar,”  Kaladin 
respondeu.  
Tvlakv  sorriu,  voltando  para  o  fogo.  “Mantenha  essa  fúria,  desertor,  e  essa 
força. Elas irão me pagar bem quando chegarmos ao nosso destino.” 
Não  se  você  não  viver  até  lá​,  Kaladin  pensou.  Tvlakv  sempre  fervia o resto da água 
do  balde  que  usava  para  os  escravos.  Ele a usava para fazer chá, mantendo-a sobre 
o  fogo.  Se  Kaladin  se  certificasse  de  receber  água  por  último,  triturasse  as folhas e 
as despejasse no— 
Kaladin  congelou,  olhando  para  suas  mãos.  Na  sua  pressa,  tinha  esquecido  de 
que  segurava  a  perdição-negra.  Ele  tinha  derrubado  as folhas no momento em que 
bateu  as  mãos  contra  as  barras.  Apenas  alguns  farelos  permaneciam  em  sua  mão, 
não o bastante para ser potente.  
Ele  se  virou,  olhando  para  trás;  o  piso  da  jaula  estava  sujo  e  encardido.  Se  os 
farelos  tivessem  caído ali, não haveria maneira de coletá-los. O vento se aproximou 
repentinamente,  soprando  poeira,  restos  e  sujeira  para  fora  do  vagão  em  direção  à 
noite. 
Até mesmo nisso, Kaladin havia falhado. 
Ele  afundou,  suas  costas  contra  as  barras,  abaixando  a  cabeça.  Derrotado. 
Aquela maldita ventispren continuava a pairar ao seu redor, parecendo confusa.   
3  
CIDADE DOS SINOS 
 
"Um  homem  parou  num  penhasco  e  assistiu  seu  lar  transformar-se  em  cinzas.  As  águas 
surgiram  abaixo,  tão  abaixo.  E  ele  ouviu  uma  criança  chorando.  Eram  as  suas  próprias 
lágrimas.” 
 
—  Coletado  em  4  de Tanates, ano 1171, trinta segundos antes da morte. O exemplar era 
um sapateiro de certo renome.  
 
 
Kharbranth,  Cidade  dos  Sinos,  era  um  lugar  ao  qual  Shallan  sequer  imaginou 
visitar  um  dia.  Embora  frequentemente  sonhasse  em  viajar,  ela  esperava  passar  a 
juventude  sequestrada  na  mansão  de  sua  família,  escapando  apenas  através  dos 
livros  da  biblioteca  de  seu  pai.  Ela  então  esperava  se  casar  com  um  dos  aliados 
dele, e passar o resto de sua vida sequestrada na mansão do marido. 
Mas  expectativas  eram  como  cerâmica  fina.  Quanto  mais  as  segurasse,  mais 
provável era que partissem.  
Ela  se  deparou  sem  fôlego,  abraçando  seu  caderno  de  desenhos  em  seu  peito, 
enquanto  os  estivadores  puxavam  o  navio  até  a  doca.  Kharbranth  era  enorme. 
Erguida  na  lateral  de  um  íngreme  declive,  a  cidade  tinha  um  formato  de  cunha, 
como  se  tivesse  sido construída em uma larga fenda, com o lado aberto em direção 
ao  oceano.  Os  edifícios  eram  em  blocos,  com  janelas  quadradas,  e  aparentavam 
serem  construídos  com  algum  tipo  de  barro  ou  massa.  Crem,  talvez?  Eles  eram 
pintados  em  cores  vibrantes,  vermelhos  e  laranjas  mais  frequentemente,  mas  em 
ocasionais azuis e amarelos também. 
Shallan  já podia ouvir os sinos, tilintando no vento, ressoando com vozes puras. 
Ela  precisou  esticar  o  pescoço  para  olhar  em  direção  da  borda  mais  elevada  da 
cidade;  Kharbranth  era  como  uma  montanha  se  erguendo  contra  ela.  Quantas 
pessoas  viviam  em  um  lugar  como  este?  Milhares?  Dezenas  de  milhares?  Ela  se 
arrepiou  novamente  —  assustada,  embora excitada — então piscou objetivamente, 
fixando a imagem da cidade em sua memória. 
Os  marujos  se  apressaram.  O  ​Prazer  do  Vento  era  uma  embarcação  estreita  de 
apenas  um  mastro,  grande  o  bastante  apenas  para  ela,  o  capitão e sua esposa, além 
de  meia  dúzia  da  tripulação.  O  navio  aparentou  ser  tão  pequeno  a  princípio,  mas 
Capitão  Tozbek  era  um  homem  calmo  e  cauteloso,  um  excelente  marujo,  mesmo 
que  fosse  um  pagão.  Ele  guiou  o  navio  com  cuidado  pela  costa,  sempre 
encontrando uma enseada abrigada para evitar as tormentas.  
O  capitão  supervisionava  o  trabalho  enquanto  os  homens  garantiam  a 
atracagem.  Tozbek  era  um  homem  baixo,  seus  ombros  batiam  na  altura  dos  de 
Shallan,  e  ele  usava  suas  longas  sobrancelhas  Thaylenesas  em  um  curioso  padrão 
espetado.  Era  como  se  tivesse  dois  leques  de  abano  no  topo  dos  olhos,  cada  um 
com  um  pé  de  tamanho.  Ele  usava um gorro simples e um casaco preto, de botões 
prateados.  Shallan  imaginara  o  capitão  conseguindo  aquela  cicatriz  em  seu  queixo 
numa  furiosa  batalha  marítima  contra  piratas.  No  dia  anterior,  se  desapontou  em 
ouvir que tinha sido causada por uma roldana frouxa durante águas agitadas. 
Sua  esposa,  Ashlv,  já  estava  descendo  pela prancha para registrar a embarcação. 
O capitão viu Shallan o inspecionando, e então se aproximou. Ele era uma conexão 
de  negócios  de  sua  família,  confiado  de  seu  pai.  Isso  era  bom,  já  que  o  plano  que 
ela  e  seus  irmãos  tinham  bolado  não  continha  espaço  para  que  ela  trouxesse  uma 
dama de companhia ou enfermeira.  
O  plano  deixava  Shallan  nervosa.  Muito,  ​muito  nervosa.  Ela  odiava  ser 
desonesta.  Mas  a  condição  financeira  de  sua  casa…  Eles  precisariam  de  uma 
espetacular  infusão  de  riquezas,  ou  alguma  outra  vantagem  nas  políticas  locais  das 
casas Veden. Do contrário, não durariam até o fim do ano. 
Mas  antes,  as  prioridades​,  Shallan  pensou, forçando-se a se acalmar. ​Encontre Jasnah 
Kholin. Assumindo que ela não tenha partido sem você novamente.​  
“Eu  enviei  um  rapaz  em  seu  nome,  Brilhanteza,”  disse  Tozbek.  “Se  a  princesa 
ainda estiver aqui, saberemos em breve.” 
Shallan  assentiu,  agradecida,  ainda  abraçando  seu  caderno  de  desenho.  Cidade 
adentro,  as  pessoas  estavam  por  ​toda  parte.​   Algumas  vestiam  roupas  familiares  — 
calças  e  camisas  que  se  amarravam  na  frente  para  os  homens,  saias  e  blusas 
coloridas  para  as  mulheres.  Aquelas  vestes  poderiam  ser  de  sua  terra  natal,  Jah 
Keved.  Mas  Kharbranth  era  uma  cidade  livre.  Uma  pequena  cidade  estado,  frágil 
politicamente,  que  contava  com  pouco  território,  mas que tinha docas abertas para 
todos  os  navios  que  passavam,  e  que  não  fazia  perguntas  sobre  nacionalidade  ou 
status. As pessoas fluíam até ela. 
Isso  significava  que  muitas  das  pessoas  que  Shallan  via  eram  exóticas.  Aqueles 
xales  de  pedaços  únicos  de  tecido  marcariam  um  homem  ou  mulher  como  vindos 
de  Tashikk,  longe  ao  oeste.  Os  casacos  compridos,  que  cobriam até os tornozelos, 
mas  abertos  na  frente  como  capas…  de  onde  vinham  aqueles?  Ela  raramente  vira 
tantos  parshimen,  notando-os,  trabalhando  nas  docas,  carregando  bagagem  em 
suas  costas.  Como  os  parshimen  que  seu  pai  possuía,  estes  eram  robustos  e  com 
membros  grossos,  com  suas  estranhas peles mármore — algumas partes pálidas ou 
pretas,  outras  um  carmesim  profundo.  O  padrão  manchado  era  único  em  cada 
indivíduo.  
Após  perseguir  Jasnah  Kholin  de  cidade  em  cidade  pela  grande  parte  de  seis 
meses,  Shallan  começava  a  achar  que  jamais  pegaria  a  mulher.  A  princesa  estava  a 
evitando?  Não,  isso  não  parecia  provável  —  Shallan  apenas  não  era  importante  o 
suficiente  para  ser  esperada.  Brilhanteza  Jasnah  Kholin  era  uma das mulheres mais 
poderosas  do  mundo.  E  uma  das  mais  infames.  Ela  era  a  única  membra 
declaradamente herege dentre uma fiel casa real. 
Shallan  tentou não ficar ansiosa. Muito provavelmente, descobririam que Jasnah 
tinha  partido  novamente.  O  ​Prazer  do  Vento  iria  ancorar  pela  noite,  e  Shallan 
negociaria  um  valor  com  o  capitão  —  com  um  grande  desconto,  devido  aos 
investimentos  de  sua  família  nos  serviços  de  carga  de  Tozbek  — para levá-la até o 
próximo porto. 
Eles  já  estavam  meses  à  frente do tempo em que Tozbek esperara se livrar dela. 
Shallan  nunca  sentiu  ressentimento  dele;  a  honra  e  lealdade  o  mantiveram 
aceitando  seus  pedidos.  Entretanto,  a  paciência  do  capitão  não  duraria  para 
sempre,  e  nem  o  dinheiro  de  Shallan.  Ela  já  tinha  usado  metade  das  esferas  que 
trouxera  consigo.  Tozbek  não  a  abandonaria em uma cidade desconhecida, é claro, 
mas ele poderia lamentavelmente insistir em levá-la de volta para Vedenar.  
“Capitão!”  um  marujo  exclamou,  subindo  apressadamente  pela  prancha.  Ele 
vestia  apenas  um  colete  com  calças  largas  e  folgadas,  e  tinha  a  escura  pele 
bronzeada  de  alguém  que  trabalhava  sob  o  sol.  “Nenhuma  mensagem,  senhor.  A 
escrivã da doca disse que Jasnah não partiu ainda.” 
“Há!” disse o capitão, virando-se para Shallan. “A caçada chegou ao fim!” 
“Graças aos Arautos,” Shallan disse suavemente. 
O  capitão  sorriu,  as sobrancelhas exuberantes parecendo faixas de luz vindas de 
seus  olhos.  “Deve  ter  sido  o  seu  lindo  rosto  que  nos  trouxe  este  vento  favorável! 
Os  próprios  ventisprens  se  encantaram  com  você,  Brilhanteza  Shallan,  e  nos 
trouxeram até aqui!” 
Shallan  corou,  considerando  uma  resposta  que  não  era  particularmente 
apropriada. 
“Ah!”  o  capitão  disse,  apontando  para  ela.  “Posso  ver  que  tem  uma 
resposta—Vejo  nos  seus  olhos,  senhorita!  Desembuche.  Palavras  não  foram  feitas 
para  serem  mantidas  por  dentro,  veja  bem.  Elas  são  criaturas  livres,  e  se  forem 
trancadas irão revirar o estômago.” 
“Não é algo educado,” Shallan protestou. 
Tozbek  soltou  uma  gargalhada.  “Meses  de  viagem,  e você ainda afirma isso! Eu 
continuo  a  lhe  dizer  que  somos  marujos!  Esquecemos  como  ser  educados  no 
momento  em  que  pisamos  num  navio  pela  primeira  vez;  estamos  muito  além  da 
salvação agora.” 
Shallan  sorriu.  Ela  fora  treinada  por  tutoras  severas  e  enfermeiras  para  segurar 
sua  língua  —  infelizmente,  seus  irmãos  foram  ainda  mais  determinados  em 
encorajá-la  a  fazer  o  oposto.  Ela  tinha  criado  um  hábito  de  entretê-los  com 
comentários  espirituosos  quando  mais  ninguém  estava  por  perto.  Shallan  lembrou 
com  ternura  das  horas  passadas  em  frente  da  estalante  lareira  do  grande  salão,  os 
três  mais  jovens  dentre  seus  quatro  irmãos  amontoados  ao  seu  redor,  ouvindo 
enquanto  ela  fazia  graça  a  respeito  do  novo  adulador  de  seu  pai  ou  um  ardente 
itinerante.  Ela  frequentemente fabricou versões bobas de conversas para preencher 
as bocas de pessoas as quais podiam ver, mas não ouvir. 
Isso  estabeleceu  nela  o  que  as  enfermeiras  se  referiam  como  um  “traço  de 
insolência”.  E  os  marujos  eram  ainda  mais  apreciativos  de  um  comentário 
espirituoso do que seus irmãos haviam sido.  
“Bem,”  Shallan  disse  ao  capitão,  corando  mas  ainda  ansiosa  para  responder, 
“Eu  estava  apenas  pensando  o  seguinte:  você  diz  que  minha  beleza  persuadiu  os 
ventos  a  nos  entregar  até Kharbranth rapidamente. Mas isso não implicaria que em 
outras viagens, minha falta de beleza foi a culpada por nossas chegadas tardias?”  
“Bem… er…” 
“Então,  na  realidade,”  Shallan  continuou,  “está  me  dizendo  que  sou  bonita 
precisamente por um sexto do tempo.” 
“Besteira! Senhorita, você é como um raiar do dia, é sim!” 
“Como  um  raiar?  Com isso quer dizer inteiramente vermelha” — ela puxou seu 
longo cabelo ruivo — “tornando os homens irritadiços ao me verem?” 
Ele  riu,  e  vários  dos  marujos  por  perto  o  acompanharam.  “Tudo  bem  então,” 
disse o Capitão Tozbek, “você é como uma flor.” 
Ela fez uma careta. “Sou alérgica a flores.” 
Ele ergueu uma sobrancelha. 
“Não,  de  verdade,”  ela  admitiu.  “Eu  as  acho  muito  cativantes.  Mas  se  viesse  a 
me  dar  um  buquê,  em  breve  me  encontraria  em  meio  a  um  ataque  tão  energético, 
que  logo  estaria  procurando  pelas  paredes  atrás de possíveis sardas perdidas, soltas 
através da força de meus espirros.” 
“Bem, mesmo sendo verdade, eu ainda afirmo que você é ​linda​ como uma flor.” 
“Se  for  o  caso,  então  jovens  rapazes  da  minha  idade  devem  sofrer  da  mesma 
alergia,  pois  se  mantêm  notavelmente  distantes  de  mim.”  Ela  fez  uma  careta. 
“Agora,  veja,  eu  lhe  disse  que  não  era  algo  educado.  Jovens  mulheres  não  devem 
agir de maneira tão irritável.” 
“Ah,  senhorita,”  o  capitão  disse,  espichando  seu  gorro  em  direção  a  ela.  “Os 
garotos  e  eu  iremos  sentir  falta  da  sua  língua  astuta.  Não  tenho  certeza  do  que 
faremos sem você.” 
“Velejar,  provavelmente,”  disse  ela.  “E  comer,  e  beber,  e  assistir  as  ondas. 
Todas  coisas  que  já fazem agora, exceto apenas que terão ​mais tempo de fazê-las, já 
que  não  vão  estar  esbarrando  em  uma  garota  enquanto  ela  senta  no  seu  deque, 
desenhando  e  murmurando  consigo  mesma.  Mas  você  tem  minha  gratidão, 
Capitão,  por  uma  viagem  que  foi  maravilhosa—embora  um  tanto  exagerada  em 
duração.” 
Ele espichou o gorro a ela em reconhecimento. 
Shallan  esboçou  um  grande  sorriso  —  ela  não  esperava  que  estar  por  conta 
própria  fosse  tão  libertador.  Seus  irmãos  se  preocuparam  de  que  ela  ficasse 
amedrontada.  Eles  a  viam  como  tímida,  pois  não gostava de discutir e se mantinha 
em  silêncio  quando  grandes  grupos  estavam  conversando.  E  talvez  ela  ​fosse  tímida 
—  estar  longe  de  Jah  Keved  era  assustador.  Mas  era  também  maravilhoso.  Ela 
tinha  preenchido  três  cadernos  de  desenho  com figuras das criaturas e pessoas que 
tinha  visto,  e  embora  sua  preocupação  com  as  finanças  de  sua  casa  fosse  uma 
nuvem perpétua, era balanceada pelo puro prazer da experiência. 
Tozbek  começou  a  fazer  os  preparativos  para  aportar  seu  navio.  Ele  era  um 
bom  homem.  Quanto  ao  seu  apreço  pela  suposta  beleza  de  Shallan,  ela  encarava 
aquilo  pelo  que  realmente  era.  Uma  gentil,  embora  exagerada,  marca  de  afeto.  Ela 
tinha  a  pele  pálida  em uma era onde o bronzeado Aléthi era visto como a marca da 
verdadeira  beleza,  e embora tivesse olhos azuis claros, a linha impura de sua família 
se  manifestava  em  seus  escuros  cabelos  ruivos.  Nem  sequer  uma  simples  madeixa 
do preto adequado. Suas sardas tinham desaparecido enquanto atingia a maioridade 
—  graças  aos  Arautos  —  mas  ainda  havia  algumas  visíveis,  salpicando  suas 
bochechas e nariz. 
“Senhorita,”  o  capitão  disse  a  ela  após  conferir  com  seus  homens,  “Vossa 
Brilhanteza Jasnah, ela sem dúvida estará no Conclave, veja bem.” 
“Oh, é onde fica o Palanium?” 
“Sim,  sim.  E  o  rei  vive  lá  também.  É  o  centro  da  cidade,  de  certa  forma. 
Embora  fique  no  topo.”  Ele  coçou  o  queixo.  “Bem,  de  toda  forma,  Brilhanteza 
Jasnah  Kholin  é  irmã  de  um  rei;  ela  não  ficará  em  qualquer  outro  lugar,  não  em 
Kharbranth.  O  Yalb  aqui  vai  lhe  mostrar  o  caminho.  Nós  podemos  entregar  seu 
baú mais tarde.” 
“Muito  agradecida,  Capitão,”  disse  ela.  “​Shaylor  mkabat  nour​.”  ​Os  ventos  nos 
trouxeram com segurança​. Uma frase de agradecimento no idioma Thaylenês. 
O capitão esboçou um grande sorriso. “​Mkai bade fortenthis!​ ” 
Ela  não  fazia  ideia  do  que  aquilo  significava.  Seu  Thaylenês  era  muito  bom 
enquanto  lia,  mas  ouvi-lo  sendo  falado  era  algo  completamente  diferente.  Ela 
sorriu  para  ele,  o  que  pareceu  a  resposta  apropriada,  pois ele riu, gesticulando para 
um de seus marujos. 
“Nós  iremos  esperar  nesta  doca  por  dois  dias,”  ele  disse.  “Tem  uma  tormenta 
vindo  amanhã,  veja  bem,  então  não  podemos  partir. Se a situação com Brilhanteza 
Jasnah não se sair como esperado, nós a levaremos de volta para Jah Keved.” 
“Obrigada novamente.” 
“Não  há  diquê,  senhorita,”  ele  disse.  “Nada além do que estaríamos fazendo de 
toda  forma.  Nós  podemos  adquirir  mercadorias  aqui  e  tudo  mais.  Além  disso,  foi 
um  baita  de  um  retrato  de  minha  esposa  aquele  que  desenhou  para  minha  cabine. 
Um baita retrato.” 
Ele  andou  até  Yalb,  dando-lhe  instruções.  Shallan  esperou,  guardando  seu 
caderno  de  desenhos  de  volta  em  seu  portfólio  de  couro.  Yalb.  O  nome  era difícil 
para  sua  língua  Veden  pronunciar.  Por  que  os  Thayleneses  eram  tão  apegados  em 
misturar letras dessa forma, sem as vogais apropriadas? 
Yalb acenou para ela e Shallan se moveu para acompanhar.  
“Tenha  cuidado, moçinha,” o capitão avisou enquanto ela passava. “Até mesmo 
uma  cidade  segura  como  Kharbranth  esconde  perigos.  Mantenha  seu  juízo  em 
mãos.” 
“Eu  acho  que  prefiro  manter  meu  juízo  em  minha  cabeça,  Capitão,”  ela 
respondeu,  pisando  cuidadosamente  na  prancha.  “Se  ao  invés  disso  eu  o  manter 
em  mãos,  significa  que  alguém  se  aproximou  demais  de  minha  cabeça  usando  um 
porrete.” 
O  capitão  riu,  acenando  em  despedida  enquanto  ela  descia  pela  prancha, 
segurando  o  balaústre  usando  sua  mão-livre.  Como  todas  as  mulheres  Vorin,  ela 
mantinha  a  mão  esquerda  —  sua  mão-modesta  —  coberta,  expondo  apenas  sua 
mão-livre.  Mulheres  olhos-escuros  comuns  usariam  uma  luva,  mas  uma  mulher de 
sua  estatura  era  esperada  a  mostrar  mais  modéstia  do  que  isso.  No  seu  caso, 
mantinha  sua  mão-modesta  coberta  com  o  grande  punho  de  sua  manga  esquerda, 
que era fechada por abotoaduras.  
O  vestido  era de um corte tradicional Vorin, rente ao corpo no busto, ombros e 
cintura,  com  uma  saia  esvoaçante  em  baixo.  Ele  era  de  seda  azul,  com  botões  de 
conchas  de  chull  nas  laterais,  e  Shallan  carregava  sua  bolsa  pressionada  contra  o 
peito usando sua mão-modesta, enquanto segurava o balaústre com sua mão-livre. 
Ela  pisou  para  fora  da  prancha,  adentro  à  furiosa  atividade  nas  docas, 
mensageiros  correndo  para  lá  e  para  cá,  mulheres  em  casacos vermelhos checando 
carregamentos  em  registros.  Kharbranth  era  um  reino  Vorin,  como  Alethkar  e  a 
própria  Jah  Keved  de  Shallan.  Eles  não  eram  pagãos  aqui,  e  a  escrita  era  uma  arte 
feminina;  homens  aprendiam  apenas  glifos,  deixando  letras  e  leitura  por  conta  de 
suas esposas e irmãs. 
Ela  não  havia  perguntado,  mas  tinha  certeza  de  que  Capitão  Tozbek  sabia  ler. 
Ela  tinha  o  visto  segurando  livros;  isso  a  deixou  desconfortável.  Leitura  era  um 
traço impróprio para homens. Ao menos, homens que não eram ardentes.   
“Você  quer  um  transporte?”  Yalb  perguntou  a  ela,  seu  dialeto  rural  Thaylenês 
tão forte que ela quase não conseguiu distinguir as palavras. 
“Sim, por favor.” 
Ele  acenou  com  a  cabeça  e  se  apressou,  deixando-a  nas  docas,  cercada  por  um 
grupo  de  parshimens  que  estavam  laboriosamente  movendo  caixas  de  madeira  de 
um  píer  para  o  outro.  Parshimens  eram  cabeças-duras,  mas  davam  excelentes 
trabalhadores.  Nunca reclamavam, sempre fazendo conforme eram ordenados. Seu 
pai preferia eles ao invés de escravos regulares.  
Estariam  os  Aléthi  realmente  lutando  contra  ​parshimens  nas  Planícies 
Estilhaçadas?  Isso  parecia  tão  estranho para Shallan. Parshimens não lutavam. Eles 
eram  dóceis  e  praticamente  mudos.  É  claro,  até  onde  sabia,  aqueles  nas  Planícies 
Estilhaçadas  —  os  Parshendi,  como  eram  chamados  —  eram  fisicamente 
diferentes  de  parshimens  regulares.  Mais  fortes,  mais  altos,  com  mentes  mais 
astutas.  Talvez  realmente  não  fossem  parshimens  no  fim  das contas, apenas algum 
tipo de parente distante. 
Para  sua  surpresa,  era  possível  ver  sinais  de  vida  animal  por  toda  a  doca. 
Algumas  enguias-celestes  ondulavam  pelo  ar,  em  busca  de  ratos  ou  peixes. 
Pequeninos  caranguejos  se  escondiam  entre  as  lacunas  das  tábuas  no  chão,  e  um 
aglomerado  de  haspers  se  agarravam  nas  grossas  toras das laterais. Em uma rua no 
interior  das  docas,  uma  marta  sorrateira  se  movia  nas  sombras,  aguardando  por 
pedaços que talvez fossem derrubados. 
Ela  não  pôde  resistir  em  abrir  seu  portfólio  e  começar  um  rascunho  de  uma 
enguia-celeste  dando  o  bote.  A  criatura  não  estava  com medo de tantas pessoas ao 
redor?  Ela  segurou  seu  caderno  usando  a  mão-modesta,  os  dedos  escondidos 
contornando  pelo  topo  enquanto  usava  um  lápis  de  carvão  para  desenhar.  Antes 
que  pudesse  terminar,  seu  guia  estava  de  volta  com  um  homem  puxando  uma 
curiosa  engenhoca,  com  duas  grandes  rodas  e  um  assento  coberto  por  um  dossel. 
Shallan hesitantemente abaixou seu caderno. Ela esperava por um palanquim.  
O  homem  puxando  o aparelho era baixo e de pele escura, com um sorriso largo 
e  lábios  cheios.  Ele  gesticulou  para  que  Shallan  sentasse,  e  ela  assim  o  fez,  com  a 
graça  modesta  à  qual  suas  enfermeiras  tinham  lhe  treinado.  O  motorista a fez uma 
pergunta em um idioma truncado e conciso ao qual ela não reconheceu. 
“O que foi isso?” ela perguntou para Yalb. 
“Ele  quer  saber  se  você  prefere  ser  puxada  pelo  caminho  longo  ou  pelo 
caminho  curto.”  Yalb  coçou  a  cabeça.  “Eu  não  tenho  bem  certeza  qual  é  a 
diferença.” 
“Suspeito que um deles leve mais tempo,” Shallan observou. 
“Oh,  você  ​é  esperta  mesmo.”  Yalb  disse  algo para o carregador naquele mesmo 
idioma desconhecido, e o homem respondeu. 
“O  caminho  mais  longo  dá  uma  boa  visão  da  cidade,”  Yalb  disse.  “O  caminho 
curto  vai  direto  para  o  Conclave.  Sem  muitas  paisagens  boas,  diz  ele.  Acho  que 
percebeu que é nova na cidade.” 
“Me destaco tanto assim?” Shallan perguntou, ruborescendo. 
“Eh, não, claro que não, Brilhanteza.” 
“E  com  isso  quer  dizer  que  sou  tão  obviamente chamativa quanto uma verruga 
no nariz de uma rainha.” 
Yalb riu. “Temo que sim. Mas não se pode ir a algum lugar uma segunda vez até 
se  estar  lá  pela  primeira,  penso  eu.  Todo  mundo  acaba  tendo  que  se  destacar 
alguma vez, então que seja de uma maneira bonita como você!” 
Ela  teve que se acostumar com flertes gentis dos marujos. Eles nunca chegavam 
a  ser  muito  intrusivos,  e  ela  suspeitava  que  a  esposa  do  capitão  tinha  conversado 
severamente  com  eles,  quando  percebeu  como  aquilo  fazia  Shallan  corar.  Na 
mansão  de  seu  pai,  servos  —  até  mesmo  aqueles  que  eram cidadãos completos — 
tinham medo de serem inadequados às suas posições.  
O  carregador  ainda  estava  esperando  por  uma  resposta.  “O  caminho  mais 
curto,  por  favor,”  ela  disse  a  Yalb,  embora  ansiasse  tomar  o  caminho  repleto  de 
paisagens.  Ela  finalmente  estava  em  uma  cidade  de  ​verdade  e  tinha  escolhido  a rota 
direta?  Mas  Brilhanteza  Jasnah  tinha  se  provado  ser  tão  elusiva  quanto  um 
cantarim. Era melhor ser rápida. 
A  estrada  principal  cruzava  a  encosta  em  várias  subidas  e  descidas,  então  até 
mesmo  o  caminho  mais  curto  a  dava  tempo  para  ver muito da cidade. Kharbranth 
se  provou  intoxicante  em  sua  riqueza,  com  pessoas  exóticas,  paisagens,  e  sinos 
vibrantes.  Shallan  se  recostou e absorveu aquilo tudo. Construções eram agrupadas 
por  cor,  e  esta  parecia  indicar um propósito. Lojas vendendo os mesmo itens eram 
pintadas  nos  mesmos  tons  — violeta para vestimentas, verde para alimentos. Lares 
tinham  seus  próprios  padrões,  embora  Shallan  não  conseguisse  interpretá-los.  As 
cores eram suaves, com uma tonalidade lavada e fosca. 
Yalb  caminhava  ao  lado  do  carte,  e  o  carregador  começou  a  falar  algo  para  ela. 
Yalb  traduziu,  com  suas  mãos  nos  bolsos  do  colete.  “Ele  diz  que  a  cidade  é 
especial por conta do laite daqui.” 
Shallan  concordou  com  a  cabeça.  Muitas  cidades  eram  construídas  em laites — 
áreas protegidas das tormentas por formações rochosas próximas. 
“Kharbranth  é  uma  das  maiores cidades abrigadas no mundo,” Yalb continuou, 
traduzindo  “e  os  sinos  são  um  símbolo  disso.  É  dito  que eles foram originalmente 
erguidos  para  avisar  que  uma  tormenta  estava  soprando,  pois  os  ventos  eram  tão 
amenos  que  as  pessoas  nem  sempre  acabavam  notando.”  Yalb  hesitou.  “Ele  está 
apenas  dizendo  coisas  porque  quer  uma  boa  gorjeta,  Brilhanteza.  Eu  já  ouvi  essa 
história,  mas  eu  a  acho  tempestuosamente  ridícula.  Se  os  ventos  sopravam  forte  o 
suficiente  para  mover  sinos,  então  as  pessoas  notariam.  Além  disso,  elas  não 
percebiam que estava ​chovendo​ em suas tempestuosas cabeças?”  
Shallan sorriu. “Está tudo bem. Ele pode continuar.” 
O  carregador  conversou  em  sua  voz  truncada  —  que  idioma  ​era  aquele,  afinal 
de  contas?  Shallan  ouvia  a  tradução  de  Yalb,  absorvendo  as  paisagens,  sons,  e  — 
infelizmente  —  aromas.  Ela  havia  se  acostumado  com  o  cheiro  fresco  da  mobília 
recém  limpa  e  de  pão  ázimo  sendo  assado  nas  cozinhas.  Sua  aventura  oceânica 
tinha lhe ensinado novos aromas, de salmoura e do limpo ar marítimo. 
Não  havia  nada de limpo no que ela tinha cheirado aqui. Cada beco que passava 
tinha  seu  próprio  conjunto  de  fedores  revoltantes. Eles alternavam com os aromas 
picantes  das  comidas  dos  vendedores  de  rua,  e  a  justaposição  era  ainda  mais 
nauseante.  Felizmente,  seu  carregador  se  moveu  para  a  parte  central  da  estrada,  e 
os  fedores  se  abateram,  embora  isso os tenha atrasado, pois tiveram que contender 
com  tráfego  mais  movimentado.  Ela  observou  boquiaberta  as  pessoas  que 
passavam.  Aqueles  homens  com  mãos  enluvadas  e  pele  levemente  azuis  eram  de 
Natanatan.  Mas  quem  eram  aquelas  pessoas  altas  e  imponentes,  vestidas  em 
mantos  pretos?  E  os  homens  com  suas  barbas  presas  a  cordas,  em  formatos 
cilíndricos? 
Os  sons lembraram Shallan dos coros competitivos de cantarins selvagens perto 
da  sua  casa,  apenas  multiplicados  em  variedade  e  volume.  Uma  centena  de  vozes 
chamavam  umas  às  outras,  misturando-se  com  portas  batendo,  rodas  passando 
sobre  a  pedra,  ocasionais  enguias-celestes  sibilando.  Os  sempre  presentes  sinos 
badalavam  ao  fundo,  mais  altos  quando  o  vento  soprava.  Eles  ficavam  à  mostra 
nas  janelas  de  lojas,  pendurados  em  caibros.  Cada  poste  no  decorrer  da  rua  tinha 
um  sino  pendurado  sob  a  lanterna,  e  seu  carte  também  tinha  um,  pequeno  e 
prateado,  na  extremidade  da  cobertura.  Quando  estavam  por  volta  da  metade  do 
trajeto,  uma  rolante  onda  de  barulhentos  sinos-relógio  tocou  as  horas.  As 
badaladas variadas e fora de sincronia fizeram uma estardalhaço ressoante. 
As  multidões  diminuíram  quando  chegaram  na  parte  superior  da  cidade,  e 
eventualmente  seu  carregador  a  puxou  até  uma  enorme  construção  bem  no  ápice 
de  Kharbranth.  Pintado  de  branco,  o  edifício  era  esculpido  na  própria  face  da 
rocha,  ao  invés  de  erguida  com  tijolos  e  argila.  Os  pilares  dianteiros  cresciam 
perfeitamente  da  pedra,  e  o  lado  de  trás  da  construção  se  encaixava 
harmonicamente  na  falésia.  Os  afloramentos  do  teto  tinham  domos  achatados  no 
topo,  e  eram  pintados  em  cores  metálicas.  Mulheres  olhos-claros  passavam  aqui  e 
acolá,  carregando utensílios de escrita e usando vestidos como o de Shallan, com as 
mãos  esquerdas  apropriadamente  cobertas.  Os  homens  entrando  e  saindo  da 
construção  vestiam  calças  rígidas  e casacos em estilo militar Vorin, com botões nas 
laterais  e  terminando  em  um  austero  colarinho  que  circulava  todo  o  pescoço. 
Muitos  carregavam  espadas  nas  cinturas,  os  cintos  contornando  em  volta  dos 
casacos que iam até a altura dos joelhos. 
O  carregador  parou  e  fez  um  comentário  para  Yalb.  O  marujo  começou  a 
discutir  com  ele,  suas  mãos  na  cintura.  Shallan  sorriu  para  a  expressão severa dele, 
e  então  piscou  objetivamente,  fixando  a  cena em sua memória para desenhar mais 
tarde. 
“Ele  está  oferecendo  dividir a diferença comigo, se eu o deixar inflar o preço da 
viagem,”  Yalb  disse,  balançando  a  cabeça  e  oferecendo  uma  mão  para  ajudar 
Shallan  a  descer  do  carte.  Ela  pisou  para  fora,  olhando  para  o  carregador,  que deu 
de ombros, sorrindo como uma criança que tinha sido pega roubando doces. 
Ela  agarrou  a  bolsa  de  couro  com  sua  mão  coberta,  procurando  pelo  saquinho 
de  dinheiro  dentro  dela  com  sua  mão-livre.  “Quanto  eu  supostamente  devo  dar  a 
ele?” 
“Duas  lascas  transparentes  devem  ser  mais  do  que  o  suficiente.  Eu  ofereceria 
uma. O ladrão queria cobrar por ​cinco.​ ” 
Shallan  nunca  tinha  usado  dinheiro  antes  desta  viagem;  ela  apenas  admirava  as 
esferas  pela  pura  beleza  dos  objetos.  Cada  uma  era  composta  por  uma  esfera  de 
vidro  um  pouco  maior  que  um  dedão,  com  uma  gema  muito  menor  colocada  ao 
centro.  As  pedras  preciosas  podiam  absorver  Luz-tempesta,  e  isso  fazia  as  esferas 
brilharem.  Quando  ela  abriu  seu  saquinho  de  dinheiro,  fragmentos  de  rubi, 
esmeralda,  diamante,  e  safira  brilharam  em  seu  rosto.  Ela  pegou  três  lascas  de 
diamante,  a  menor  das  denominações.  Esmeraldas  eram  as  mais  valiosas,  pois 
podiam ser usadas por Mold’almas para criar comida.  
A  parte  de  vidro  da  maioria  das  esferas  era  do  mesmo  tamanho;  o  tamanho  da 
gema  no  centro  determinava  a  denominação.  As  três  lascas,  por  exemplo, 
continham  apenas  um  pequeno  estilhaço  de  diamante  em  seu  interior. Mesmo isto 
era  suficiente  para  brilhar  com  Luz-tempesta,  bem  mais  fraca  que  uma  lampião, 
mas  ainda  visível.  Um  marco  —  a  denominação  média  de  esfera  —  era um pouco 
menos  brilhante  que  uma  vela,  e  eram  necessárias  cinco  lascas  para  equivaler  um 
marco. 
Ela  tinha  trazido  apenas  esferas  infundidas,  já  que  ouvira  que  as  foscas  eram 
consideradas  suspeitas,  e  volta  e  meia  um  prestamista  precisaria  ser  chamado  para 
julgar  a  autenticidade  da  gema.  Ela  mantinha  as  esferas  mais preciosas que possuía 
em sua bolsa-modesta, é claro, que era abotoada dentro de sua manga esquerda.   
Ela  entregou  as  três  lascas  para  Yalb,  que  espichou  a cabeça. Ela acenou para o 
carregador,  corando,  percebendo  que  tinha  inconscientemente  usado  Yalb  como 
um servo-mestre intermediário. Ele ficaria ofendido? 
Yalb  riu  e  se  espichou  rigidamente,  como  que  imitando  um  servo-mestre, 
pagando  o  carregador  com  uma  expressão  severa,  mas  zombeteira.  O  carregador 
riu, curvando-se para Shallan, então partiu puxando o carrinho.  
“Isto  é  para  você,”  Shallan  disse,  pegando  um  marco  de  rubi  e  o  entregando 
para Yalb. 
“Brilhanteza, isso é além da conta!” 
“É  parcialmente  em  agradecimento,”  disse  ela,  “mas  é  também  como 
pagamento, para que fique aqui e aguarde por algumas horas, caso eu retorne.” 
“Espere,  algumas  horas  por  um  marco  de  fogo?  Isso  é  o  salário  de  semanas 
velejando!” 
“Então deve ser o bastante para assegurar que não se afaste demais.” 
“Vou  estar  bem  aqui!”  Yalb  disse, dando a ela uma elaborada reverência que foi 
surpreendentemente bem executada.  
Shallan  respirou  fundo  e  subiu  pelos  degraus  em  direção  à  imponente  entrada 
do  Conclave.  A  rocha  talhada  era  realmente  extraordinária  — a artista dentro de si 
queria  parar  e  estudá-la,  mas  ela  não  ousou  fazer  isso.  Adentrar  a  grande 
construção  era  como  ser  engolida.  O  pátio  do  lado  de  dentro  era  enfileirado  com 
lâmpadas  de  Luz-tempesta  que  brilhavam  com  luz  branca.  Contas  de  diamante 
tinham provavelmente sido colocadas no interior delas; muitos dos edifícios de fina 
construção  usavam  Luz-tempesta  para  prover  iluminação.  Uma  conta  —  a  maior 
denominação de esfera — brilhava com a mesma intensidade que várias velas.  
Suas  luzes  brilharam  de  maneira  suave  e  uniforme  nos  vários  atendentes, 
escribas,  e  olhos-claros  se  locomovendo  através  do  salão.  O  edifício  parecia  ser 
construído  como  um  grande  túnel,  alto  e  longo,  cavado  diretamente  na  rocha. 
Grandes  câmaras  se  enfileiravam  nas  laterais,  e  corredores  subsidiários  se 
ramificavam  da  grande  esplanada central. Ela se sentiu muito mais confortável aqui 
do  que  do  lado  de  fora.  Este  lugar  —  com  os  servos  atarefados,  os  lordes  e 
senhoras menores — era familiar. 
Ela  levantou  sua  mão-livre  em  sinal  de  necessidade,  e  prontamente,  um 
servo-mestre  em  uma  nítida  camisa  branca  e  calças  pretas  se  apressou  até  ela. 
“Brilhanteza?”  ele  perguntou,  falando  o  nativo  Veden  de  Shallan,  provavelmente 
por conta da cor do cabelo dela. 
“Procuro  por  Jasnah  Kholin,”  Shallan  disse.  “Tenho  conhecimento  de  que  ela 
se encontra dentro destas paredes.” 
O  servo-mestre  se  curvou  impecavelmente.  A  maioria  deles  se  orgulhava  de 
seus  serviços  refinados  —  a  mesma  atitude  que  Yalb  tinha  zombado  momentos 
antes.  “Voltarei  em  breve,  Brilhanteza.”  Ele  seria  de  segundo  nahn,  um  cidadão 
olhos-escuros  de  estatura  muito  elevada.  Na  crença  Vorin,  o  Chamado  de  alguém 
—  a  tarefa  a  qual  uma  pessoa  dedicava  sua  vida  —  era  de  vital  importância. 
Escolher  uma  boa  profissão  e  trabalhar  duro  nela  era  a  melhor  maneira  de 
assegurar  uma  boa  posição  na  vida  após  a  morte.  Os  devotários  específicos  que 
uma  pessoa  visitava  para  cultuar  eram  frequentemente  ligados  com  a  natureza  de 
seu Chamado de escolha. 
Shallan  cruzou  os  braços,  aguardando.  Ela  tinha pensado bastante a respeito do 
seu  próprio  Chamado.  A  escolha  óbvia  era  sua  arte,  e  ela  de  fato  amava  desenhar. 
Mas  era  mais  do  que  apenas  o  desenho  que  a  atraía  —  era  o  ​estudo​,  as  questões 
feitas  a  partir  da  observação.  Por  que  as  enguias-celestes  não  tinham  medo  das 
pessoas?  Do  que  os  haspers  se  alimentavam?  Por  que  uma  população  de  ratos 
prosperou  em  uma  área,  mas  falhou  em  outra?  Ela tinha então optado por história 
natural ao invés disso. 
Ela  ansiava  ser  uma  verdadeira  acadêmica,  a  receber  instruções  de  verdade,  a 
investir  tempo  em  estudos  profundos  e  pesquisas. Seria isso parte da razão dela ter 
sugerido  esse  ousado  plano  de  encontrar  Jasnah  e  se  tornar  sua  aprendiz?  Talvez. 
Entretanto,  ela  precisava  manter  o  foco.  Tornar-se  a  aprendiz  de  Jasnah  —  e 
portanto estudante — era apenas um passo. 
Ela  considerou  isso  enquanto  andava  ociosamente  até  um  pilar,  usando  sua 
mão-livre  para  sentir  a  pedra  polida.  Como  a  maioria  de  Roshar  —  exceto  por 
algumas  regiões  costeiras  —  Kharbranth  era  construída  em  pedra  pura  e  intacta. 
Os  edifícios  do  lado  de fora tinham sido erguidos diretamente na pedra, e este aqui 
fora  cortado  adentro.  O  pilar  era  de  granito,  ela  imaginou,  embora  seu 
conhecimento geológico fosse superficial. 
O  piso  era  coberto  com  longos  tapetes  laranja-queimados.  O  material  era 
denso,  projetado  para  parecer  rico  mas  suportar  tráfego  pesado.  O  pátio  largo  e 
retangular  transparecia  um  sentimento  de  ​idade.​   Um  livro  ao  qual  tinha  lido 
afirmava  que  Kharbranth  fora fundada muito tempo atrás, nos dias sombrios, anos 
antes  da  Última  Desolação.  Isso  o  faria  velho,  de  fato.  Milhares  de  anos 
precisamente,  criado  antes  dos  terrores  da  Hierocracia,  muito  antes  —  até  mesmo 
—  da  Apóstase.  Nos  tempos  aos  quais  eram  ditos  que  Augúrios  do  Vazio  com 
corpos de pedra percorriam pela terra. 
“Brilhanteza?” uma voz perguntou. 
Shallan se virou, percebendo que o servo estava de volta. 
“Por aqui, Brilhanteza.” 
Ela  assentiu  para  o  servo,  e  ele  a  guiou  rapidamente  através  do  pátio 
movimentado.  Ela  recapitulou  como  iria  se  apresentar  para  Jasnah.  A  mulher  era 
uma  lenda.  Até  mesmo  Shallan  —  que  vivia  nos estados remotos de Jah Keved — 
tinha  ouvido  a  respeito  da  brilhante  e  herética  irmã  do  rei  Aléthi.  Jasnah  tinha 
apenas  trinta  e  quatro  anos,  e  ainda  assim,  muitos  sentiam  que ela já teria obtido o 
título  de  acadêmica-mestra,  não fossem por suas vocais denúncias contra a religião. 
Mais  especificamente,  ela  denunciava  os  devotários,  as  várias  congregações 
religiosas que adequadas pessoas Vorin se juntavam.  
Sofismas  impróprios  não  seriam  de  ajuda  aqui.  Ela  teria  que  ser  genuína. 
Tutelagem  sob  uma  mulher  de  grande  renome  era  a  melhor  maneira  de  se receber 
educação  nas  artes  femininas:  música,  pintura,  escrita,  lógica,  e  ciência.  Se 
assemelhava  muito  em  como  um  jovem  rapaz  treinaria  na  guarda  de  honra  de 
algum lorde-brilhante ao qual respeitasse.  
Shallan  tinha  originalmente  escrito  para  Jasnah  pedindo  em  desespero  por  sua 
tutelagem;  ela  não  esperava  de  fato  que  a  mulher  respondesse  afirmativamente. 
Quando  feito  —  via  uma  carta  ordenando  Shallan  a  encontrá-la  em  Dumadari  em 
duas  semanas  —  Shallan  entrara  em  choque.  Ela  estava  perseguindo  a  mulher 
desde então.  
Jasnah  era  uma  herege.  Ela  demandaria  que  Shallan  renunciasse  a  própria  fé? 
Ela  duvidava  que  a  mulher  pudesse  fazer  tal  coisa.  Os  ensinamentos  Vorin  a 
respeito  da  Glória  e  Chamado  de  uma  pessoa  foram  um  de  seus  poucos  refúgios 
durante os tempos difíceis, quando seu pai estava em seus piores dias.  
Eles  dobraram  um  pátio  mais  estreito,  entrando  em  corredores  incrivelmente 
distantes  da  caverna  principal. Finalmente, o servo-mestre parou em uma esquina e 
gesticulou para que Shallan continuasse. Havia vozes vindas do corredor na direita. 
Shallan  hesitou.  Às  vezes,  ela  se  imaginava  como  tinha  chegado  a  este  ponto. 
Ela  era  a  quieta,  a  tímida,  a  mais  nova  dentre  cinco  irmãos  e  a  única  garota. 
Abrigada,  protegida  por  toda  sua  vida.  E  agora  as  esperanças  de  toda  sua  casa 
repousavam em seus ombros.  
Seu pai estava morto. E era vital que isso se mantivesse em segredo. 
Ela não gostava de pensar naquele dia — ela tinha bloqueado isso de sua mente, 
e  treinou  a  si  mesma para pensar em outras coisas. Mas os efeitos de sua perda não 
podiam  ser  ignorados.  Seu  pai  havia  feito  muitas  promessas  —  algumas  eram 
acordos  de  negócios,  outras  subornos,  algumas  desta  última  disfarçadas  como 
sendo  a  primeira.  A  Casa  Davar  devia  enormes  quantias  de  dinheiro para enormes 
quantias  de  pessoas,  e  sem  seu  pai  para  manter  todas elas apaziguadas, os credores 
logo estariam fazendo demandas.  
Não  havia  ninguém  com  quem contar. Sua família, principalmente por conta de 
seu  pai,  era  odiada  até  mesmo  pelos  próprios  aliados.  Alto-Príncipe  Valam  —  o 
lorde-brilhante  ao  qual  sua  família  tinha  jurado  lealdade  —  estava  adoecido,  e  não 
os  oferecia  mais  a  proteção  que  um  dia  fizera.  Assim  que  viesse a tona que seu pai 
estava  morto  e  sua  família  falida,  seria  o  fim  da  Casa  Davar.  Eles  seriam 
consumidos e subjugados para outra casa.  
Eles  trabalhariam  até  o  osso  como  punição  —  de  fato,  podiam  até  mesmo 
sofrer  assassinato  por  um  credor  descontente.  Precaver  isso dependia de Shallan, e 
o primeiro passo veio com Jasnah Kholin.  
Shallan respirou fundo, contornando então a esquina do corredor.   
4  
AS PLANÍCIES ESTILHAÇADAS 
 
"Estou  morrendo,  não  estou?  Curandeiro,  por  que  tira  meu  sangue?  Quem  é  aquele  ao 
seu  lado,  com  sua  cabeça  de  linhas?  Eu  posso  ver  um  sol  distante,  escuro  e  frio, 
brilhando em um céu negro.” 
 
—  Coletado  em 3 de Jesnan, 1172, 11 segundos pré-morte. O exemplar era um treinador 
de chulls Reshi. A amostra é de particular importância. 
 
 
“Por que você não chora?” perguntou a ventispren. 
Kaladin  sentava  de  costas  para  o  canto  da  jaula,  olhando  para  baixo.  As  tábuas 
do  chão  à  sua frente estavam lascadas, como se alguém as tivesse cavado com nada 
além  do  que  unhas.  A  seção  lascada  tinha  uma mancha escura onde a seca madeira 
cinzenta absorvera sangue. Uma fútil, ilusória tentativa de fuga.  
O  vagão  continuou  a  rodar.  A mesma rotina todos os dias. Acordar machucado 
e  dolorido  de  uma  noite  agitada,  passada  sem  um  colchão  ou  cobertor.  Um  vagão 
de  cada  vez,  os  escravos  eram  liberados,  mancando  com  ferros  nas  pernas, 
recebendo  tempo  para  andar  um  pouco  e  se  aliviarem.  Eles  eram  então  reunidos 
para  a  tigela  de  lavagem  da  manhã,  e  os  vagões  rodavam  até  a  lavagem  da  tarde. 
Continuavam  a  rodar.  Até  a  lavagem  da  noite,  seguida  de  uma  concha  de  água 
antes de dormir. 
A  marca  shash  de  Kaladin  ainda  estava  rachada  e  sangrando.  Ao menos o topo 
da jaula proporcionava sombra do sol. 
A  ventispren  se  transformou  em  névoa,  flutuando  como  uma  pequena  nuvem. 
Ela  se  moveu  para  perto  de  Kaladin,  o  movimento  delineando  seu  rosto  na frente 
da  nuvem,  como  se  soprasse  a  neblina  e  revelasse  algo  mais  substancial por baixo. 
Vaporoso,  feminino,  e  angular.  Com  olhos  tão  curiosos.  Como  nenhum  outro 
espren já visto por ele.  
“Os outros choram de noite,” ela disse. “Mas você não.” 
“Por  que  chorar?”  disse  ele,  inclinando  a  cabeça  contra  as  barras.  “O  que  isso 
mudaria?” 
“Eu não sei. Por que homens choram?” 
Ele  sorriu,  fechando  os  olhos.  “Pergunte  ao  Todo-Poderoso  porque  homens 
choram,  pequena espren. Não a mim.” Sua testa pingou com o suor da umidade do 
verão  Leste,  ardendo  quando  penetrou  na  ferida.  Esperançosamente,  teriam 
algumas  semanas  de  primavera  de  novo  em  breve.  As  estações  e  climas  eram 
imprevisíveis.  Nunca  se  sabia por quanto tempo ficariam, embora tipicamente cada 
uma durasse algumas poucas semanas. 
O  vagão  prosseguiu.  Após  algum  tempo,  Kaladin sentiu o sol em seu rosto. Ele 
abriu  os  olhos.  O  sol  brilhou  através  do  lado  de  cima  da  jaula.  Eram  duas  ou  três 
horas  após  o  meio  dia,  então.  E  a  refeição  da  tarde? Kaladin levantou, puxando-se 
para  cima  com  uma  mão  na  barra  de  aço.  Ele  não  conseguia  distinguir  Tvlakv 
dirigindo  a  carroça  à  frente,  apenas  o  rosto  achatado  de  Bluth  logo  atrás.  O 
mercenário  vestia  uma  camisa  suja,  que  se  amarrava  na  frente,  e usava um chapéu 
de  abas  largas  contra  o sol, sua lança e porrete repousavam no banco da carroça ao 
seu  lado.  Ele  não  carregava  uma espada - nem mesmo Tvlakv o fazia, não perto de 
território Aléthi. 
A  grama  continuava  a  se  separar  para  as  carroças,  desaparecendo  logo  em 
frente,  rastejando  então  para  fora  após  os  vagões  passarem.  A  paisagem  aqui  era 
pontilhada  com  estranhos  arbustos  aos quais Kaladin não reconheceu. Eles tinham 
caules  e  talos  grossos,  além de espinhosas agulhas verdes. Sempre que os vagões se 
aproximavam  demais,  as  agulhas  se  retraíam  para  dentro  dos  talos,  deixando  para 
trás  troncos  distorcidos  com  galhos  nodosos.  Eles  marcavam  a  paisagem 
montanhosa,  erguendo-se  das  rochas  cobertas  de  grama,  como  sentinelas 
diminutas. 
Os  vagões  continuaram,  bem  além  do  meio-dia.  ​Por  que  não  estamos  parando  para 
comer? 
O  vagão  da  frente  finalmente  parou.  Os  outros  dois  se detiveram logo atrás, os 
chulls  de  carapaça  vermelha  se  remexendo inquietos, suas antenas balançando para 
frente  e  para  trás.  Os  animais  em  formato  de  caixa  tinham  protuberantes  conchas 
pedregosas,  além  de  grossas  e  nodosas  pernas  vermelhas.  Pelo que Kaladin ouvira, 
suas  garras  podiam  arrancar  o  braço  de  um  homem.  Mas  chulls  eram  dóceis, 
principalmente  os  domesticados,  e  ele  nunca  conheceu  ninguém  no  exército  que 
tivesse recebido mais do que uma leve beliscada de uma das criaturas.  
Bluth  e  Tag  desceram  de  suas  carroças  e caminharam para encontrar Tvlakv. O 
mestre  de escravos continuou em seu assento, protegendo os olhos contra a branca 
luz  do  sol  e  segurando  uma  folha  de  papel  em  sua  mão.  Uma  discussão  se  seguiu. 
Tvlakv  continuou  acenando  na  direção  em  que  estavam  indo,  apontando  então 
para sua folha de papel. 
“Perdido,  Tvlakv?”  exclamou  Kaladin.  “Talvez  devesse orar ao Todo-Poderoso 
pedindo  por  direção.  Ouvi  que  ele  tem  uma  predileção  por  escravizadores.  Ele 
guarda uma sala especial na Condenação especialmente para você.” 
À  esquerda  de  Kaladin,  um  dos  escravos  —  o  homem  de  barba  longa  com 
quem  tinha  conversado  alguns  dias  atrás  —  se  afastou,  não  desejando  estar  perto 
de alguém que estivesse provocando o traficante de escravos. 
Tvlakv  hesitou,  então  acenou  bruscamente  para  seus  mercenários, 
silenciando-os.  O  homem  corpulento  desceu  da  carroça  e  andou  até  Kaladin. 
“Você,”  ele  disse.  “Desertor.  Os  exércitos  Aléthi  viajam  por  estas  terras  para  a 
guerra. Você conhece alguma coisa da área?” 
“Me  deixe  ver  o  mapa,”  disse  Kaladin.  Tvlakv  hesitou,  então  o  estendeu  para 
ele. 
Kaladin  se  esticou  através  das barras e tomou o papel. Então, o rasgou em dois, 
sem  nem  ao  menos  lê-lo.  Em  segundos,  tinha  picado  o  papel  em  centenas  de 
pedaços diante dos olhos horrorizados de Tvlakv. 
Tvlakv  chamou por seus mercenários, mas quando eles chegaram, Kaladin tinha 
dois  punhados  de  confete  para  jogar  neles.  “Feliz  Meia-festa,  bastardos,”  Kaladin 
disse  enquanto  os pequenos pedaços de papel flutuavam ao redor dos mercenários. 
Ele se virou e caminhou até o outro lado da jaula, sentando-se, e os encarou. 
Tvlakv  ficou  parado,  sem  palavras.  Então, com o rosto vermelho, apontou para 
Kaladin  e  sibilou  algo  para  os  mercenários. Bluth deu um passo em direção à jaula, 
mas  então  pensou  melhor.  Ele  olhou  para  Tvlakv,  então  deu  de  ombros  e  se 
afastou.  Tvlakv  se  virou  para  Tag,  mas  o  outro  mercenário  apenas  balançou  a 
cabeça, dizendo algo em voz baixa. 
Depois  de  alguns  minutos  insultando  os  mercenários  covardes,  Tvlakv 
contornou  a  jaula  e  se  aproximou  de  onde  Kaladin  estava  sentado.  Sua  voz  estava 
surpreendentemente  calma  quando  falou.  “Vejo  que  é  esperto,  desertor.  Você  se 
mostrou  inestimável.  Meus  outros  escravos,  eles  não  são  desta  área,  e eu nunca fiz 
este  trajeto.  Você  pode  barganhar.  O que deseja em troca de nos liderar? Posso lhe 
prometer uma refeição extra todos os dias, caso me faça esse favor.” 
“Quer que eu lidere a caravana?” 
“Instruções serão aceitáveis.” 
“Certo. Primeiro, encontre um penhasco.” 
“Isso vai te ajudar a ver a área?” 
“Não,” Kaladin disse. “Isso vai me dar algo de onde te jogar.” 
Tvlakv  ajeitou  seu  gorro  em  frustração,  afastando  uma  de  suas  longas 
sobrancelhas  brancas.  “Você  me  odeia.  Isso  é  bom.  O  ódio  o  manterá  forte,  fará 
com  que  seja  vendido  por muito. Mas você não encontrará vingança contra mim, a 
menos  que  eu  tenha  a  chance  de  levá-lo  ao  mercado.  Eu  não  irei  deixá-lo  escapar. 
Mas talvez outro alguém o faria. Você quer ser vendido, entende?” 
“Não  quero  vingança,”  disse  Kaladin.  A  ventispren  retornou  —  tinha  se 
afastado  por  um  tempo  para  inspecionar  um  dos  estranhos  arbustos.  Ela  pousou 
no  ar  e  começou  a  andar  ao  redor  do  rosto  de  Tvlakv,  inspecionando-o.  Ele  não 
parecia ser capaz de vê-la. 
Tvlakv franziu o cenho. “Não busca vingança?” 
“Não funciona,” Kaladin disse. “Aprendi essa lição há muito tempo.” 
“Há muito tempo? Você não pode ter mais do que dezoito anos, desertor.” 
Era  um  bom  palpite.  Ele  tinha  dezenove.  Tinham  realmente  se  passado apenas 
quatro  anos  desde  que  se  juntara  ao  exército  de  Amaram?  Kaladin  sentia  como  se 
tivesse envelhecido pelo menos uma dúzia. 
“Você  é  jovem,”  continuou  Tvlakv.  “Poderia  escapar  desse  seu  destino.  É 
sabido  que  homens  vivem  apesar  da  marca  de  escravidão  —  você  poderia  pagar 
por  seu  preço de escravo, entende? Ou convencer um de seus mestres a lhe dar sua 
liberdade.  Você  poderia  se  tornar  um  homem  livre  novamente.  Não  é  tão 
improvável.” 
Kaladin  bufou.  “Eu  nunca  serei  livre  destas  marcas,  Tvlakv.  Você  deve  saber 
que  tentei  —  e falhei — escapar mais de dez vezes. Não são apenas esses glifos em 
minha cabeça que deixam seus mercenários cautelosos.” 
“Erros passados não significam que não existem chances no futuro, sim?” 
“Estou  acabado.  Eu  não  ligo.”  Ele  olhou  para  o  escravizador.  “Além  disso, 
você  não acredita realmente no que está dizendo. Eu duvido que um homem como 
você  seria  capaz  de  dormir  a  noite  se  pensasse  que  os  escravos  que vendeu seriam 
livres para procurá-lo um dia.” 
Tvlakv  riu.  “Talvez,  desertor.  Talvez  esteja  certo.  Ou  talvez  eu  simplesmente 
pense  que,  caso  ​fosse  libertado,  caçaria  o  primeiro  homem  que  o  vendeu  para  a 
escravidão,  entende?  Lorde-Brilhante  Amaram,  não  foi? A morte dele me daria um 
aviso para que eu pudesse fugir.” 
Como  ele  sabia?  Como  tinha  ouvido  sobre  Amaram?  ​Vou  encontrá-lo​,  Kaladin 
pensou.  ​Vou  estripá-lo  com  minhas  próprias  mãos​.  ​Vou  torcer  sua  cabeça  em  seu  pescoço,  eu 
vou​— 
“Sim,”  Tvlakv  disse,  estudando  a  face  de  Kaladin,  “então  você  não  foi  tão 
honesto quando disse não ter sede por vingança. Compreendo.” 
“Como  sabe  sobre  Amaram?”  Kaladin  perguntou,  fazendo  uma  carranca. 
“Mudei de mãos uma meia dúzia de vezes desde então.” 
“Homens  falam.  Escravizadores  mais  do  que  a  maioria.  Devemos  ser  amigos 
um dos outros, veja bem, pois ninguém mais nos apoiará.” 
“Então sabe que não consegui esta marca por deserção.” 
“Ah,  mas  é  o  que  devemos  fingir,  entende?  Homens  culpados  de  grandes 
crimes,  estes  não  vendem  tão  bem.  Com  esse  glifo  shash  em  sua  cabeça,  já  vai ser 
difícil  o  bastante  conseguir  um  bom  preço  por  você.  Se  eu  não  não  conseguir 
vendê-lo,  então  você...  bom,  você  não  irá  desejar  por  essa  situação.  Então  vamos 
jogar  um  jogo  juntos.  Direi  que  você  é  um  desertor.  E  você  ficará  quieto.  É  um 
jogo simples, penso eu.” 
“É ilegal.” 
“Não  estamos  em  Alethkar,”  Tvlakv  disse,  “então  não  há  lei.  Além  disso, 
deserção  foi  o  motivo  oficial  de  sua venda. Diga o contrário, e não irá ganhar nada 
além do que uma reputação de desonestidade.” 
“Nada além de uma dor de cabeça para você.” 
“Mas acabou de dizer que não deseja vingança contra mim.” 
“Eu posso aprender a desejar.” 
Tvlakv  riu.  “Ah,  se  ainda  não  aprendeu  isso,  então  provavelmente  nunca  irá. 
Além  disso,  não  ameaçou  me  atirar  de  um  penhasco?  Acho  que  você  já  aprendeu. 
Mas  agora,  devemos  discutir  como  proceder.  Meu  mapa  encontrou  uma  morte 
prematura, veja bem.” 
Kaladin  hesitou,  suspirando.  “Eu  não  sei,”  ele  disse  honestamente.  “Eu  nunca 
estive por aqui também.” 
Tvlakv  franziu  o  cenho.  Ele  se  inclinou  mais  perto  da  jaula,  inspecionando 
Kaladin,  embora  ainda  mantivesse  distância.  Após  um  momento,  Tvlakv  balançou 
a  cabeça.  “Eu  acredito  em  você,  desertor.  Uma  pena.  Bom,  terei  que  confiar  na 
minha  memória.  O  mapa  era  mal  desenhado,  de  toda  forma. Estou quase feliz por 
tê-lo  rasgado,  pois  eu estava prestes a fazer o mesmo. Se eu me deparar com algum 
retrato  de minhas antigas esposas, verei uma maneira de que cruzem seu caminho e 
tomem vantagem de seus talentos singulares.” Ele passeou para longe. 
Kaladin o assistiu se afastar, então praguejou para si mesmo. 
“Por  que  ele  fez  aquilo?,”  perguntou  a  ventispren,  caminhando  até  ele  com  a 
cabeça inclinada. 
“Quase  começo  a  gostar  dele,”  Kaladin  disse, batendo a cabeça para trás contra 
as grades. 
“Mas... depois do que ele fez...” 
Kaladin  deu  de  ombros.  “Eu  não  disse  que  Tvlakv  não é um bastardo. Ele só é 
um  bastardo  simpático.”  Ele  hesitou,  então  fez  uma  careta.  “Esses  são  os  piores. 
Quando você os mata, no fim, acaba se sentindo culpado por isso.” 
 
— 
 
O  vagão  vazava  durante  as  tormentas.  Isso  não  era  surpreendente;  Kaladin 
suspeitava  que  Tvlakv  fora  levado  a  escravizar  devido  a  má  sorte.  Ele  preferiria 
negociar  outros  bens,  mas  algo  —  falta  de  fundos,  a  necessidade  de  deixar  seus 
antigos  arredores  rapidamente  —  o  forçara  a  escolher  esta  menos  respeitável  das 
carreiras. 
Homens como ele não podiam pagar pela luxúria, ou até mesmo qualidade. Eles 
mal  conseguiam  liquidar  as  próprias  dívidas.  Nesse  caso,  isso  significava  vagões 
que  vazavam.  Os  lados  reforçados  com  madeira  eram  fortes  o  suficiente  para 
suportar os poderosos ventos da tormenta, mas eles não eram confortáveis. 
Tvlakv  quase deixara de se preparar para esta tormenta. Aparentemente, o mapa 
que  Kaladin  tinha  rasgado  também  incluía  uma  lista  de  datas  das  tempestades, 
comprado  de  um  vigia-tempesto  itinerante.  As  tempestades  podiam  ser  previstas 
matematicamente;  o  pai  de Kaladin havia feito disso um passatempo. Ele era capaz 
de escolher o dia certo oito em cada dez vezes. 
As  tábuas  chacoalharam  contra  as  barras  da  jaula  enquanto  o  vento  atingia  o 
veículo,  sacudindo-o,  fazendo-o  balançar  como  o  brinquedo  de  um  gigante 
desajeitado.  A  madeira  rangeu,  e  jatos  de  água  da  chuva  gelada  borrifaram  através 
das  lacunas.  Clarões  dos  relâmpagos  também  passavam  entre  elas,  acompanhados 
de trovões. Aquela foi a única luz que receberam. 
Ocasionalmente,  a  luz  lampejava  sem  o  trovão.  Os  escravos  gemiam  de  terror 
com  isso, pensando no Pai-Tempesto, nas sombras dos Radiantes Perdidos, ou nos 
Augúrios  do  Vazio  —  todos  aos  quais  diziam-se  assombrar  as  mais  violentas  das 
tempestades.  Eles  se  amontoaram  no  lado  mais  ao  fundo  do  vagão, 
compartilhando  calor.  Kaladin  deixou  que  o  fizessem,  sentando  sozinho  de  costas 
para as barras. 
Kaladin  não  temia  histórias  de  coisas  que  caminhavam  pelas  tempestades.  No 
exército,  ele  fora  forçado  a  resistir  uma  tormenta  ou  duas  sob  a  curva  de  uma 
saliência  de  pedra  ou  outro  abrigo  improvisado.  Ninguém  gostava  de  estar  para 
fora  durante  uma  tempestade,  mas  às  vezes  não  havia  como  evitar.  As  coisas  que 
andavam  pelas  tempestades  —  talvez  até  o  próprio  Pai-Tempesto  —  não  eram 
nem  de  longe  tão  mortais  quanto as pedras e galhos arremessados pelo ar. De fato, 
a  tempestade  inicial,  aquela  de  água  e  vento  —  a  muralha-tempesta  —  era  a  parte 
mais  perigosa.  Quanto  mais tempo se resistia depois desta, mais fraca a tempestade 
ficava, até se tornar nada além do que um chuvisco. 
Não,  ele  não  estava  preocupado  com  Augúrios  procurando  por  carne  para  se 
deleitar.  Ele  estava  preocupado  que  algo  acontecesse  com  Tvlakv.  O  mestre  de 
escravos  esperava  a  tempestade  passar  em  um  apertado  gabinete  de  madeira, 
embutido  no  fundo  de  sua  carroça.  Aquele era ostensivamente o lugar mais seguro 
da  caravana,  mas  uma  reviravolta  infeliz  do  destino  —  uma  pedra  lançada  pela 
tempestade,  a  queda  do  vagão  —  poderia  deixá-lo  morto.  Nesse  caso,  Kaladin 
podia  imaginar  Bluth e Tag fugindo, deixando todos presos nas jaulas, os cantos de 
madeira  trancados.  Os  escravos morreriam lentamente por inanição e desidratação, 
assando sob o sol nessas caixas. 
A  tempestade  continuou  a  soprar,  sacudindo  o  vagão. Aqueles ventos pareciam 
vivos  às  vezes.  E  quem  diria  o  contrário?  Os  ventisprens  eram  atraídos  pelas 
rajadas  de  vento,  ou  ​eram  eles  as  rajadas  de  vento?  As  almas  da  força  que  tanto 
queriam destruir o vagão de Kaladin agora? 
Aquela  força  —  consciente  ou  não  —  falhou.  Os  vagões  tinham  sido 
acorrentados  a  rochedos  próximos,  com  suas  rodas  travadas.  As  rajadas  de  vento 
ficaram  mais  letárgicas.  Raios  pararam  de  lampejar,  e  o  tamborilar  enlouquecedor 
da  chuva  se  tornou um silencioso dedilhar. Apenas uma vez durante toda a jornada 
um  dos  vagões  chegou  a  ser  derrubado  durante  uma  tormenta.  Tanto  o  vagão 
quanto os escravos dentro dele sobreviveram com algumas marcas e contusões. 
O  lado  de  madeira  à  direita  de  Kaladin  tremeu  repentinamente,  abrindo-se 
enquanto  Bluth desfazia os fechos. O mercenário usava um casaco de couro contra 
a  umidade, correntes de água caindo da aba de seu chapéu enquanto ele expunha as 
barras  —  e  seus  ocupantes  —  à  chuva.  Estava  fria,  embora  não  tão  penetrante 
como  durante  o  ápice  da  tempestade.  Ela  borrifou  até  Kaladin  e  os  escravos 
amontoados.  Tvlakv sempre ordenava que os vagões fossem descobertos antes que 
a chuva parasse; ele dizia ser a única maneira de lavar o fedor dos escravos. 
Bluth  deslizou  o  lado  de  madeira  de  volta  ao  seu  lugar,  abaixo  do  vagão,  então 
abriu  os  outros  dois  lados.  Somente  a  parede  na  frente  do  vagão  —  logo  atrás  do 
assento do condutor — não podia ser abaixada. 
“Um  pouco  cedo  para  abaixar  os  lados, Bluth,” disse Kaladin. Não era sequer a 
rabeira  ainda  —  o  período  próximo  ao  final  de  uma  tormenta  quando  a  chuva 
borrifava  suavemente.  Esta  chuva  ainda  estava  pesada,  o  vento  ainda  soprava 
ocasionalmente. 
“O mestre quer vocês bem limpos hoje.” 
“Por  quê?”  Kaladin  perguntou,  levantando-se,  a  água  escorrendo  por  suas 
esfarrapadas vestes marrons. 
Bluth  o  ignorou.  ​Talvez  estejamos  próximos  de  nosso  destino,​   Kaladin  pensou 
enquanto esquadrinhava a paisagem. 
Durante  os  últimos  dias,  as  colinas  deram  lugar  a  irregulares  formações 
rochosas  —  lugares  onde  ventos  desgastantes  tinham  deixado  para  trás  falésias 
desmoronadas  e  formas  irregulares.  Grama  crescia  nos  lados  rochosos  que 
recebiam  mais  sol,  e  outras  plantas  eram  abundantes  na  sombra.  O  tempo  logo 
após  uma  tormenta  era  quando  a  terra  estava  mais  vívida.  Os  pólipos  de 
botões-de-pedra  se  abriam,  exibindo  suas  videiras.  Outros  tipos  de  vinhas 
rastejavam  das  fendas,  lambendo  a  água.  Folhas  se  desdobravam  dos  arbustos  e 
árvores.  Cremilins  de  todos  os  tipos  deslizavam  através  de  poças,  apreciando  o 
banquete.  Insetos  zumbiam  no  ar;  crustáceos  maiores  —  caranguejos  e  pernosos 
— deixavam seus esconderijos. As próprias pedras pareciam ganhar vida. 
Kaladin  notou  meia  dúzia  de  ventisprens  voando  logo  acima,  suas  formas 
translúcidas  perseguindo  —  ou  talvez  migrando  com  —  as  últimas  rajadas  da 
tormenta.  Pequeninas  luzes  surgiram  em  volta  das  plantas.  Vidasprens.  Eles 
pareciam  ciscos  de  poeira  verde  brilhante  ou  enxames  de  minúsculos  insetos 
translúcidos. 
Um  pernoso  —  com  seus  espinhos  peludos  erguidos  no  ar  para  alertar  sobre 
mudanças  no  vento  —  subia  ao  longo  da  lateral  do  vagão,  seu  corpo  comprido 
forrado  com  dezenas  de  pares  de  pernas.  Aquilo  era  suficientemente  familiar,  mas 
Kaladin  nunca  tinha visto um pernoso com uma carapaça tão profundamente roxa. 
Para  onde  Tvlakv  estava levando a caravana? Aquelas encostas não cultivadas eram 
perfeitas  para  a  agricultura.  Era  possível  espalhar  seiva-de-tronco  sobre  elas  — 
misturada  com  sementes  de  lavis  —  durante  as  temporadas  de  tempestades  mais 
fracas  após  O  Lamento.  Em  quatro  meses,  teriam-se  pólipos  maiores  do  que  a 
cabeça  de  um  homem,  crescendo  ao  longo  de  toda  a  colina,  prontos  para  abrirem 
para o grão em seu interior. 
Os  chulls  andavam  pesadamente,  banqueteando-se  com  botões-de-pedra, 
lesmas  e  pequenos  crustáceos  que  apareceram  após  a  tempestade.  Tag  e  Bluth 
silenciosamente  engataram  as  bestas  em  seus  arreios,  enquanto  um  Tvlakv  de 
aparência  rabugenta  rastejava  para fora  de seu refúgio à prova d’água. O mestre de 
escravos  puxou  um  chapéu  e  uma  capa  preta  contra  a  chuva.  Ele  raramente  saía 
antes  que  a  tempestade  passasse  completamente;  devia  estar  ​muito  ansioso  para 
chegar  ao  seu  destino.  Estavam  eles  tão  perto  da  costa?  Esse  era  um  dos  únicos 
lugares no qual encontrariam cidades nas Colinas Devolutas. 
Em  questão  de  minutos,  os  vagões  prosseguiam  novamente  pelo  terreno 
irregular.  Kaladin  se  recostou  enquanto  o  céu  clareava,  a  tormenta  agora  uma 
mancha  de  escuridão  no  horizonte  a  oeste.  O  sol  trouxe  o  calor  bem-vindo,  e  os 
escravos  se  deliciaram  com  a  luz,  fios  de  água  pingando  de  suas  roupas  e 
escorrendo atrás do vagão que sacolejava. 
Em  um  instante,  uma  faixa  translúcida  de  luz  zuniu  até  Kaladin.  Ele  estava 
passando  a  se  acostumar  com  a  presença  da  ventispren.  Ela  tinha  saído  durante  a 
tempestade, mas estava de volta. Como sempre. 
“Eu vi outros como você,” Kaladin comentou. 
“Outros?”  ela  perguntou,  tomando  a  forma  de  uma  jovem  mulher.  Ela 
começou  a  caminhar  ao redor dele no ar, girando ocasionalmente, dançando a uma 
batida não ouvida. 
“Ventisprens,”  Kaladin  disse.  “Perseguindo  a  tempestade.  Tem  certeza  de  que 
não quer ir com eles?” 
Ela  olhou  para  oeste,  demoradamente.  “Não,”  ela  finalmente  disse, 
continuando sua dança. “Eu gosto daqui.” 
Kaladin  deu  de  ombros.  Ela  tinha  parado  de  pregar  tantas  peças  como  fizera 
antes, e ele então parou de deixar que a presença dela o aborrecesse. 
“Outros estão por perto,” ela disse. “Outros como você.” 
“Escravos?” 
“Eu não sei. Pessoas. Não as que estão aqui. Outras.” 
“Onde?” 
Ela  apontou  um  dedo  branco  e  translúcido  para  o  leste.  “Lá.  Vários  deles. 
Muitos e muitos.” 
Kaladin  se  levantou.  Ele  não  conseguia  imaginar  se  um  espren  teria  uma  boa 
maneira  de  medir  distância  e  números.  ​Sim​...  Kaladin  apertou  os  olhos,  estudando 
o  horizonte.  ​Aquilo é fumaça. De chaminés? Ele pegou uma lufada no vento; não fosse 
pela chuva, provavelmente teria sentido o cheiro antes. 
Ele  deveria  se  importar?  Não  faria  diferença  onde  fosse  escravo;  ele ainda seria 
um  escravo.  Ele  aceitou  essa  vida.  Esse  era  seu  caminho  agora.  Não  se  importar, 
não se incomodar. 
Ainda  assim, ele assistiu com curiosidade enquanto seu vagão subia a encosta de 
uma  colina  e  dava  aos  escravos  uma  boa  visão  do  que  estava  pela  frente.  Não  era 
uma cidade. Era algo maior, algo mais vasto. Um enorme acampamento militar. 
“Grande Pai das Tempestades…” Kaladin sussurrou. 
Dez  massas  de  tropas  acampavam  em  familiares  padrões  Aléthi  —  circulares, 
por  classificação  de  companhias,  com  seguidores  de  acampamento  nos  arredores, 
mercenários  em  um  anel  mais  adentro,  soldados  cidadãos  perto  do  meio,  oficiais 
olhos-claros  bem  ao  centro.  Eles  estavam  acampados  em  uma  série  de  enormes 
formações  rochosas,  semelhantes  a  crateras,  mas  com  as  laterias  mais  irregulares, 
mais escarpadas. Como cascas de ovos quebradas. 
Kaladin  havia  deixado  um  exército  bem  parecido  a  este  oito  meses  atrás, 
embora  a  força  de  Amaram  fosse  muito  menor.  Este  aqui  cobria  quilômetros  de 
pedra,  estendendo-se  tanto  para  o  norte  quanto  para  o  sul.  Mil  bandeiras 
carregando  mil  diferentes  pares de glifos de clãs se agitavam orgulhosamente no ar. 
Havia  algumas  tendas  —  principalmente  do  lado  de  fora  dos  exércitos  —  mas  a 
maioria  das  tropas  estavam  alojadas  em  grandes  quartéis  de  pedra.  Isso  significava 
Mold’almas. 
Aquele  acampamento  diretamente  à  frente  deles  exibia  uma  bandeira  que 
Kaladin  vira  em  livros.  Azul  escuro  com  glifos  brancos  —  ​khokh  e ​linil​, estilizados 
e pintados como uma espada diante de uma coroa. Casa Kholin. A casa do rei. 
Assustado,  Kaladin  olhou  além  dos  exércitos.  A  paisagem ao leste era como ele 
ouvira ser descrita em uma dúzia de histórias diferentes, detalhando a campanha do 
rei  contra  os  traidores  Parshendi.  Era  uma  enorme  planície  de  pedra  dividida  — 
tão  larga que ele não conseguia ver o outro lado — repartida e cortada por abismos 
absolutos,  fendas  de  seis  a  nove  metros  de  largura.  Elas  eram  tão  profundas  que 
desapareciam  na  escuridão  e  formavam  um  mosaico  irregular  de  planaltos 
desiguais.  Alguns  grandes,  outros  minúsculos.  A  planície  expansiva  parecia  um 
prato  que  tinha sido quebrado, suas peças então remontadas com pequenas lacunas 
entre os fragmentos. 
“As Planícies Estilhaçadas,” Kaladin sussurrou. 
“O quê?” a ventispren perguntou. “O que aconteceu?” 
Kaladin  balançou  a  cabeça,  perplexo.  “Passei  anos  tentando  chegar  neste  lugar. 
É o que Tien queria, ao menos no fim. Vir aqui, lutar no exército do rei…” 
E  agora  Kaladin  estava  aqui.  Finalmente.  ​Acidentalmente​.  Ele  sentiu  vontade  de 
rir do quão absurdo era. ​Eu deveria ter percebido​, ele pensou. ​Eu deveria saber.​  ​Nós nunca 
estivemos indo em direção à costa e suas cidades. Nós estávamos vindo para cá. Para a guerra. 
Este  lugar  estaria  sujeito às leis e regras Aléthi. Ele achava que Tvlakv preferisse 
evitar  essas  coisas.  Mas  aqui,  ele  provavelmente  também  encontraria  os  melhores 
preços. 
“As Planícies Estilhaçadas?” indagou um dos escravos. “Mesmo?” 
Outros  se  aglomeraram  em  volta,  espiando.  Em  sua  repentina  excitação,  eles 
pareceram esquecer o medo que sentiam de Kaladin. 
“São  as  Planícies  Estilhaçadas!”  outro  homem  disse.  “Aquele  é  o  exército  do 
rei!” 
“Talvez encontremos justiça aqui,” disse outro. 
“Ouvi  dizer  que  os  servos  da  casa  do  rei  vivem  tão  bem  quanto  os  melhores 
mercantes,”  disse  mais  um.  “Seus  escravos  também  devem  estar  em  melhores 
condições. Estaremos em terras Vorin; ganharemos até salários!” 
Isso  era  verdade.  Quando  trabalhavam,  os  escravos  recebiam  um  pequeno 
salário  —  metade  do  que  um  não-escravo  seria  pago,  o  que  já  era  muitas  vezes 
inferior  a  o  que um cidadão completo ganharia pelo mesmo trabalho. Mas era algo, 
e  a  lei  Aléthi  exigia  isso.  Somente  Ardentes  —  que  não  podiam  possuir  nada  de 
qualquer  maneira  —  não  tinham  de  ser  pagos.  Bem,  eles  e  parshimens.  Mas  os 
parshimens eram mais animais do que qualquer outra coisa. 
Um  escravo poderia aplicar seus ganhos em sua dívida escrava e, depois de anos 
de  trabalho,  ganhar  sua  liberdade.  Teoricamente.  Os  outros  continuaram  a 
conversar  enquanto  os  vagões seguiram pela encosta, mas Kaladin se retirou para a 
parte  de  trás  do  vagão.  Ele  suspeitava  que  a  opção  de  pagar  o preço de escravidão 
fosse  uma  farsa,  planejada  para  manter  os  escravos  dóceis.  O  valor  da  dívida  era 
enorme,  muito  maior  do  que  aquele  ao  qual  um  escravo  era  vendido,  e 
praticamente impossível de arrecadar. 
Sob  mestres  anteriores,  Kaladin  exigiu  que  seus  salários  fossem  dados  a  ele. 
Eles  sempre  encontravam  maneiras  de  enganá-lo  —  cobrando  por  sua  moradia, 
sua  comida.  Assim  eram  os  olhos-claros.  Roshone,  Amaram,  Katarotam…  Cada 
olhos-claros  que  Kaladin  conheceu,  fosse  como um escravo ou homem livre, tinha 
se  mostrado  corrupto  até  o  âmago,  apesar  de  todo  o  porte  e  beleza  exteriores  que 
apresentavam. Eles eram como cadáveres apodrecidos, vestidos em seda refinada.  
Os  outros  escravos  continuaram falando sobre o exército do rei, e sobre justiça. 
Justiça?​   Kaladin  pensou,  descansando  contra  as  barras.  ​Não  estou  convencido  de  que 
exista  algo  como  justiça.​   Ainda  assim,  ele  se  pegou  imaginando.  Aquele  era  o  exército 
do  rei  —  os  exércitos  de  todos  os  dez  Alto-Príncipes  —  vindo  para  cumprir  o 
Pacto de Vingança. 
Se  existia  algo  por  qual  ainda  ansiava,  era  a  chance  de  segurar  uma  lança. Lutar 
novamente,  tentar  encontrar  o  caminho  de  volta  ao  homem  que  ele  fora  outrora. 
Um homem que se importava. 
Se fosse encontrar isso em algum lugar, seria aqui.   
5  
HEREGE 
 
"Eu  vi  o  fim,  e o ouvi sendo nomeado. A Noite das Mágoas, a verdadeira Desolação. A 
Tormenta-Eterna.” 
 
—  Coletado  em  1  de  Nanes,  1172,  15  segundos  pré-morte.  O  exemplar  era  um  jovem 
olhos-escuros de origem desconhecida.  
 
 
Shallan não esperava que Jasnah Kholin fosse tão linda. 
Era  uma  beleza  imponente  e  madura  —  como  a  que  alguém  encontraria  no 
retrato  de  alguma  acadêmica  histórica.  Shallan  percebeu  que  ingenuamente 
esperava  que  Jasnah  fosse  uma  solteirona  feia,  como  as  severas  matronas  que 
tinham  lhe  tutorado  anos  atrás.  De  que  outra  maneira  alguém  imaginaria  uma 
herege na casa dos seus trinta anos e que não tinha casado ainda? 
Jasnah  não  era  nada  disso.  Ela  era  alta  e  esguia,  com  pele  limpa,  estreitas 
sobrancelhas  pretas,  e  um  denso,  profundo  cabelo  ônix.  Ela  o  usava  parcialmente 
para  cima,  amarrado  em  volta  de  um  pequeno  ornamento  dourado  em  forma  de 
pergaminho,  com  dois  grandes  grampos  de  cabelo  o  segurando  no  lugar.  O 
restante  tombava  atrás do pescoço em cachos pequenos e firmes. Mesmo retorcido 
e  cacheado  do  jeito  que  estava,  o  cabelo  caía  até  os  ombros  de  Jasnah  —  se 
deixado  solto,  seria  tão  longo  quanto  o  de  Shallan,  ultrapassando  a  metade  das 
costas. 
Ela  tinha  um  rosto  quadrado  e  olhos  violetas,  claros  e  distintos.  Jasnah  estava 
ouvindo  um  homem  vestido  em  mantos  brancos  e  laranja-queimados,  as  cores 
reais  de  Kharbranth.  Brilhanteza  Kholin  era  vários  dedos  mais  alta  que  o  homem 
—  aparentemente,  a  reputação  Aléthi  para  altura  não  era  exagero.  Jasnah  olhou 
para Shallan, percebendo-a, então retornou para sua conversa.  
Pai-Tempesto!  Essa  mulher  ​era  irmã  de  um  rei.  Reservada,  escultural,  vestida 
imaculadamente  em  azul  e  prata.  Assim  como  o  vestido  de  Shallan,  o  de  Jasnah 
abotoava  nas  laterais  e  tinha  um  colarinho alto, embora ela tivesse um busto muito 
mais  cheio  que  o  de  Shallan.  As  saias  eram  folgadas  abaixo  da  cintura,  caindo 
generosamente  até  o piso. Suas mangas eram longas e imponentes, e a esquerda era 
abotoada para esconder sua mão-modesta. 
Em  sua  mão-livre,  encontrava-se  uma  distinta  peça  de  jóia:  dois  anéis  e  um 
bracelete,  conectados  por  várias  correntes,  segurando  um  grupo  triangular  de 
gemas  no  decorrer das costas da mão. Uma Mold’alma — a palavra era usada tanto 
para as pessoas que realizavam o processo quanto a fabrial que o tornava possível. 
Shallan  deslizou  para  dentro  do  quarto,  tentando  ter  uma  visão  melhor  das 
gemas  grandes  e brilhantes. Seu coração começou a bater um pouco mais depressa. 
A  Mold’alma  parecia  idêntica  àquela  que  ela  e  seus  irmãos  tinham  encontrado 
dentro do bolso do casaco de seu pai. 
Jasnah  e  o  homem  em  mantos  começaram  a  andar  em  sua  direção,  ainda 
conversando.  Como  Jasnah  iria  reagir,  agora  que  sua  aprendiz  tinha  finalmente  a 
alcançado?  Ficaria  zangada  pela  demora  de  Shallan?  Ela  não  poderia  ser  culpada 
por isso, mas pessoas geralmente esperavam coisas irracionais de seus inferiores.  
Como  a  grande  caverna  do  lado  de  fora,  o  corredor  aqui  tinha  sido  cortado 
direto  da  rocha,  mas  era  mais  ricamente  polido,  com  lustres  pendurados,  feitos 
com  gemas  de Luz-tempesta. A maioria delas eram granates de roxo profundo, que 
estavam  entre  as  menos  preciosas  das  pedras.  Mesmo  assim,  o  número  total  das 
gemas  penduradas,  brilhando  em  luz  violeta,  faria  o  lustre  valer  uma  pequena 
fortuna.  Mais  do  que  isso, no entanto, Shallan estava impressionada com a simetria 
no design e a beleza do padrão de cristais pendurados nas laterais do lustre. 
Conforme  Jasnah  se  aproximava,  Shallan  pôde  ouvir  partes  daquilo  que  estava 
sendo falado. 
“...percebe  que  esta  ação pode incitar uma reação desfavorável dos devotários?” 
a  mulher  disse,  falando  em Aléthi. Era muito próximo do nativo Veden de Shallan, 
e ela fora bem ensinada ao idioma durante a infância. 
“Sim,  Brilhanteza,”  disse  o  homem  em  mantos.  Ele  era  idoso,  com  uma  fina 
barba  branca,  e  tinha  olhos  claros  e  cinzas.  Seu  rosto  franco  e gentil parecia muito 
preocupado,  e  ele  usava  um  chapéu cilíndrico e achatado, que casava com o laranja 
e  branco  de  seus  mantos.  Mantos  ricos.  Seria  ele  algum  tipo  de  mordomo  real, 
talvez? 
Não.  Aquelas  gemas  em  seus  dedos,  sua  postura,  o  jeito  com  que  os  outros 
atendentes  olhos-claros  se  deferiam  a  ele…  ​Pai-Tempesto!  Shallan  pensou.  ​Este  deve 
​ ão  o  irmão  de  Jasnah,  Elhokar,  mas  o  rei  de  Kharbranth. 
ser  o  rei  em  pessoa!  N
Taravangian. 
Shallan  apressadamente  realizou  uma  reverência  apropriada,  a  qual  Jasnah 
notou. 
“Os  ardentes  têm  muita  influência  aqui,  Vossa  Majestade,”  Jasnah  disse  com 
uma voz suave. 
“Assim como eu,” disse o rei. “Não precisa se preocupar quanto a mim.” 
“Muito  bem,”  Jasnah  respondeu.  “Seus  termos  são  aceitáveis.  Me  leve  até  o 
local,  e  verei  o  que  pode  ser  feito.  Se  me  der  licença  enquanto  caminhamos,  no 
entanto,  tenho  alguém  a  quem  devo  atender.”  Jasnah  fez  um  movimento  brusco 
em direção a Shallan, sinalizando para que ela se juntasse a eles. 
“É  claro,  Brilhanteza,”  disse  o  rei.  Ele  parecia  deferir  a  Jasnah.  Kharbranth  era 
um  reino  bem  pequeno  —  apenas  uma  única  cidade  — enquanto Alethkar era um 
dos  mais  poderosos  do  mundo.  Uma  princesa  Aléthi  poderia  muito  bem 
ultrapassar  um  rei  Kharbranthiano  em  termos  reais,  porém  o  protocolo  se 
mantinha. 
Shallan  se  apressou  para  alcançar  Jasnah,  que  andava  um  pouco  atrás  do  rei, 
enquanto  ele  começava  a  falar  com  seus  atendentes.  “Brilhanteza,”  Shallan  disse. 
“Sou  Shallan  Davar,  a  quem  pediu  que  a  encontrasse.  Eu  me  arrependo 
profundamente de não conseguir encontrá-la em Dumadari.” 
“A  culpa  não  foi  sua,”  Jasnah  disse  com  uma  jogada  de  dedos.  “Não  esperava 
que  fosse  conseguir  chegar  a  tempo.  Eu  não  tinha  certeza  de para onde iria depois 
de Dumadari quando a enviei aquela nota, no entanto.” 
Jasnah  não  estava  zangada;  isso  era  um  bom  sinal.  Shallan  sentiu  um  pouco  de 
sua ansiedade recuar. 
“Estou  impressionada  com  sua  tenacidade,  filha,”  Jasnah  continuou.  “Eu 
honestamente  não  esperava  que  fosse  me  seguir  até  tão  longe.  Depois  de 
Kharbranth,  eu  iria  parar  de  lhe  deixar  notas,  presumindo  que  teria  desistido.  A 
maioria o faz após as primeiras poucas paradas.” 
Maioria? Então era um tipo de ​teste​? E Shallan tinha passado? 
“Sim,  de  fato,”  Jasnah  continuou,  sua  voz  pensativa.  “Talvez  eu  realmente  a 
permita me peticionar por uma vaga como minha aprendiz.” 
Shallan  quase  tropeçou  em  choque.  ​Peticioná-la?  Isso  não  era  o  que  já tinha sido 
feito? “Brilhanteza,” Shallan disse, “Eu pensei que… Bem, sua carta…” 
Jasnah  a  fitou.  “Eu  lhe  dei  permissão para se ​encontrar comigo, Senhorita Davar. 
Eu  não  a  prometi  acolhê-la.  O  treinamento  e  cuidado  para  uma  aprendiz  é  uma 
distração  da  qual  eu  tenho  pouca  tolerância ou tempo atualmente. Mas você viajou 
até  longe.  Eu  levarei  seu  pedido  em  consideração,  no  entanto,  compreenda  que 
meus requerimentos são estritos.” 
Shallan cobriu uma careta. 
“Nenhuma petulância,” Jasnah observou. “Isso é um bom sinal.” 
“Petulância, Brilhanteza? De uma mulher olhos-claros?” 
“Você  ficaria  surpresa,”  Jasnah  respondeu  secamente.  “Mas  apenas  atitude  por 
si só não irá garantir sua vaga. Diga-me, quão extensa é sua educação?” 
“Extensa  em  algumas  áreas,”  Shallan  disse.  Então,  adicionou  hesitantemente, 
“Extensivamente em falta em outras”. 
“Muito  bem,”  disse  Jasnah.  O  rei parecia estar com pressa logo adiante, mas ele 
era  velho  o  bastante  para  até  mesmo  uma  caminhada  urgente  ainda  ser  devagar. 
“Então  faremos  uma  estimativa.  Responda  sinceramente  e  não  exagere,  pois 
descobrirei  suas  mentiras  depressa.  Também  não  finja  falsa  modéstia.  Não possuo 
a paciência para uma dissimulada.”  
“Sim, Brilhanteza.” 
“Começaremos com música. Como julgaria suas habilidades?” 
“Eu  tenho  um  bom  ouvido,  Brilhanteza,”  Shallan  disse  honestamente.  “Sou 
melhor  com  a  voz,  embora  tenha  sido  treinada  na  cítara  e  nos  instrumentos  de 
sopro.  Eu  seria  longe  da  melhor  a  qual  já  ouviu,  mas  também  longe  da  pior.  Sei  a 
maioria das baladas históricas de cór.”  
“Me dê o refrão de Cadenciosa Adrene.” 
“Aqui?” 
“Eu não gosto de me repetir, criança.” 
Shallan  corou,  mas  começou  a  cantar.  Não  foi  a  mais  fina  de  suas 
performances, mas seu tom era puro e ela não tropeçou em nenhuma das palavras.  
“Bom,” Jasnah disse enquanto Shallan pausava para respirar. “Idiomas?” 
Shallan  se  atrapalhou  por  um  instante, puxando sua atenção para além de tentar 
lembrar  o  próximo  verso  freneticamente.  Idiomas?  “Posso  falar  seu  Aléthi  nativo, 
obviamente,”  Shallan  disse.  “Eu  tenho  um  conhecimento  passável  em  leitura 
Thaylenesa  e  uma  boa  fala  Azishi.  Posso  me  fazer  ser  entendida em Selayano, mas 
não ler.” 
Jasnah não fez comentário algum. Shallan começou a ficar nervosa. 
“Escrita?” Jasnah perguntou. 
“Conheço  todos  os  glifos  menores,  maiores  e  modernos,  e  posso  pintá-los  de 
forma caligráfica.” 
“Assim como a maioria das crianças.” 
“Os  glifos  protetores  que  pinto  são  considerados  como  muito  impressionantes 
por aqueles que me conhecem.” 
“Glifos  protetores?”  Jasnah  disse.  “Eu  tinha  razões  para  acreditar que queria se 
tornar uma acadêmica, não uma fornecedora de bobagens supersticiosas.” 
“Eu mantenho um diário desde que era criança,” Shallan continuou, “em ordem 
a praticar minhas habilidades de escrita.” 
“Meus  parabéns,”  Jasnah  desdenhou.  “Caso  eu  precise  de alguém para escrever 
um tratado no próprio pônei de pelúcia ou um relatório a respeito de uma pedrinha 
interessante  que  encontrou,  devo  convocá-la.  Não  há  nada  que  possa  oferecer  a 
qual demonstre que tenha verdadeira habilidade?” 
Shallan  corou.  “Com  todo  o  respeito,  Brilhanteza,  tens  uma  carta  de  minha 
pessoa, e ela foi persuasiva o suficiente para que me concedesse esta audiência.”  
“Um  ponto  válido,”  Jasnah  disse,  concordando  com  a  cabeça.  “Demorou  mais 
que  o  esperado para trazê-lo à tona. Como é seu treinamento em lógica e suas artes 
relacionadas?” 
“Sou  habilidosa  em  matemática  básica,”  Shallan  respondeu,  ainda  atrapalhada, 
“e  eu  geralmente  ajudo  com  balancetes  menores  para  meu  pai.  Eu  li  os  trabalhos 
completos de Tormas, Nashan, Niali O Justo, e — é claro — Nohadon.” 
“Placini?” 
Quem? “Não.” 
“Gabrathin, Yustara, Manaline, Syasikk, Shauka-filha-Hasweth?” 
Shallan  se  encolheu  e  balançou  a  cabeça  novamente.  Aquele  último  nome  era 
obviamente  Shin.  O  povo  Shin  ​tinha  mestras  da  lógica  afinal  de  contas?  Jasnah 
realmente esperava que suas aprendizes tivessem estudado textos tão obscuros? 
“Entendo,” Jasnah disse. “Bem, e quanto a história?” 
História.  Shallan  se  encolheu  ainda  mais.  “Eu…  Essa  é  uma  das  áreas  em  que 
sou  obviamente  deficiente,  Brilhanteza.  Meu  pai nunca foi capaz de encontrar uma 
tutora adequada para mim. Eu li os livros de história que ele possuía…” 
“Que eram?” 
“O conjunto completo dos Tópicos de Barlesha Lhan, basicamente.” 
Jasnah  sacudiu  sua  mão-livre  com  desdém.  “Mal  valem  o  tempo  que  foi  gasto 
os escrevendo. Uma pesquisa popular de eventos históricos, no melhor dos casos.” 
“Peço desculpas, Brilhanteza.” 
“Essa  é  uma  lacuna  vergonhosa.  História  é  a  ​mais  importante  das  sub-artes 
literárias.  Seria  de  se  esperar  que  seus  pais  teriam  tido  um cuidado específico nesta 
área,  se  desejassem  submetê-la  a  estudar  sob  os  cuidados  de  uma  historiadora 
como eu.” 
“Minhas circunstâncias são incomuns, Brilhanteza.” 
“Ignorância  raramente  é  incomum,  Senhorita  Davar.  Quanto  mais  vivo,  mais 
percebo  que  ela  é  o  estado  natural  da  mente  humana.  Existem  muitas  pessoas que 
irão  lutar  para defender sua santidade e então esperar que fique impressionada com 
seus esforços.” 
Shallan  corou  novamente.  Ela  sabia  que  tinha  algumas  falhas,  mas  Jasnah tinha 
expectativas  absurdas.  Shallan  nada  disse,  continuando  a  andar  ao  lado  da  mulher 
mais  alta.  Quão  longo  era  este  corredor,  afinal  de  contas?  Ela  estava  tão  nervosa 
que  nem  sequer  olhou  as  pinturas  pelas  quais  passaram.  O  grupo  virou  uma 
esquina, caminhando mais afundo da formação rochosa.  
“Bem,  prossigamos  para  ciência,  então,”  Jasnah  disse,  seu tom descontente. “O 
que pode dizer de si mesma quanto a isso?” 
“Eu  tenho  fundações  razoáveis  nas  ciências,  as  quais  se esperam de uma jovem 
mulher de minha idade,” Shallan disse, mais rigidamente do que gostaria.  
“Que significa?” 
“Posso  falar  com  habilidade  sobre  geografia,  geologia,  física,  e  química.  Eu  fiz 
estudos  particulares  em  biologia  e  botânica,  pois  fui  capaz  de  buscá-los  com  um 
nível  razoável de independência nas propriedades de meu pai. Mas se espera que eu 
seja capaz de resolver o Enigma de Fabrisan com um estalar de dedos, suspeito que 
ficará desapontada.” 
“Não  tenho  o  direito  de  fazer  demandas  razoáveis  de  minhas  potenciais 
estudantes, Senhorita Davar?” 
“Razoáveis?  Suas demandas são tão ​razoáveis quanto as que foram feitas aos Dez 
Arautos  no  Dia  da  Provação!  Com  todo o respeito, Brilhanteza, mas parece querer 
que  potenciais  estudantes  já  sejam  acadêmicas  mestres.  Eu  sou  capaz de encontrar 
um  par  de  ardentes  de  oitenta  anos  de  idade  na  cidade  que  ​talvez  se  encaixem  em 
seus  requerimentos.  Eles  poderiam  ser  entrevistados  para  a  posição,  embora 
possam ter dificuldades de audição para responder suas perguntas.” 
“Entendo,”  Jasnah  respondeu.  “E  você  fala  com  tamanho  ressentimento  com 
seus pais também?” 
Shallan  se  encolheu.  Seu  tempo  passado  com  os  marujos  tinha  soltado  sua 
língua  demasiadamente.  Teria  ela  viajado  até  aqui  apenas  para  ofender  Jasnah? Ela 
pensou  em  seus  irmãos,  destituídos,  mantendo  uma  tênue  fachada  em  casa.  Teria 
ela  que  voltar  até  eles  derrotada,  tendo  desperdiçado  esta  oportunidade?  “Eu  não 
falo  com  eles  desta  maneira,  Brilhanteza.  E  não  deveria  fazê-lo  com  a  senhora. 
Peço desculpas.” 
“Bem,  ao  menos  é  humilde  o  suficiente  para  admitir  culpa.  De  toda  forma, 
ainda  estou  desapontada.  Como  foi  que  sua  mãe  a  considerou  pronta  para 
tutelagem?” 
“Minha mãe faleceu quando eu era apenas uma criança, Brilhanteza.” 
“E seu pai se casou novamente em pouco tempo. Malise Gevelmar, creio eu.” 
Shallan  se  espantou  com  o  conhecimento  da  mulher.  A  Casa  Davar  era  antiga, 
mas  de  poderes  e  importância  medíocres.  O  fato  de  Jasnah  saber  o  nome  de  sua 
madrasta  dizia  muito  sobre  a  princesa.  “Minha  madrasta faleceu recentemente. Ela 
não me enviou para ser sua aprendiz. Eu tomei esta iniciativa por conta própria.” 
“Minhas  condolências,”  Jasnah  disse.  “Talvez  devesse  estar  com  seu  pai, 
cuidando  de  suas  propriedades  e  o  reconfortando,  ao  invés  de  desperdiçando meu 
tempo.” 
Os  homens  andando  adiante  dobraram  mais  uma  passagem  lateral.  Jasnah  e 
Shallan  seguiram,  entrando  em  um  corredor  menor  com  um  ornado  tapete 
vermelho e amarelo, e espelhos pendurados nas paredes. 
Shallan  se  virou  para  Jasnah.  “Meu  pai  não  precisa  de  mim.”  Bom,  aquilo  era 
verdade.  “Mas  eu  preciso  demasiadamente  de  você,  como  esta  entrevista  em  si 
provou.  Se  ignorância  a  incomoda  tanto,  poderia  em  sã  consciência  passar  a 
oportunidade de me livrar da minha?” 
“Eu  já  fiz  isso  antes,  Senhorita  Davar.  Você  é  a  décima  segunda  jovem  a  me 
pedir por tutelagem neste ano.” 
Doze?  Shallan  pensou.  ​Em  um  ano?  E  ela  assumira  que  mulheres  ficariam  longe 
de Jasnah por conta de seu antagonismo contra os devotários.  
O  grupo  chegou  ao  final  do  estreito  corredor,  dobrando  uma  esquina  para 
encontrar  —  para  a  surpresa  de  Shallan  —  um  lugar  onde  um  grande  pedaço  de 
rocha  tinha  caído  do  teto.  Uma  meia  dúzia de atendentes estavam em volta, alguns 
parecendo ansiosos. O que estava acontecendo? 
Muitos dos detritos tinham evidentemente sido removidos, embora o buraco no 
teto  se  escancarasse  de  forma  agourenta.  Ele  não  se  abria  ao  céu;  eles  vinham 
prosseguindo  para  baixo,  e  estavam  provavelmente  bem  fundo  no  subsolo.  Uma 
pedra  massiva,  mais  alta  que  um  homem,  tinha  caído  numa  entrada  à  esquerda. 
Não  havia  maneira  de  contorná-la  para  entrar  no  cômodo.  Shallan  pensou  ter 
ouvido  sons  vindos  do  outro  lado.  O  rei  se  aproximou  da  pedra,  falando  em  uma 
voz reconfortante. Ele puxou um lenço de seu bolso e limpou a testa envelhecida.  
“Os  perigos  de  se  viver  em  uma  construção  cortada  diretamente  na  pedra,” 
Jasnah  disse,  caminhando  adiante.  “Quando  foi  que  isso  aconteceu?” 
Aparentemente  ela  não  tinha  sido  convocada  na  cidade  especificamente  para  este 
propósito; o rei estava apenas tomando vantagem da presença dela ali. 
“Durante  a  tormenta  recente,  Brilhanteza,”  o  rei  respondeu.  Ele  balançou  a 
cabeça,  fazendo  seu  fino  e  pendente  bigode  tremer.  “Os  arquitetos  do  palácio 
talvez  sejam  capazes  de  cortar  um  caminho  para  o  quarto,  mas  levaria  tempo,  e  a 
próxima  tormenta  está  agendada  para  soprar  em  apenas  alguns  dias.  Além  disso, 
cortar adentro pode acabar cedendo mais do telhado.” 
“Eu  achei  que  Kharbranth  fosse  protegida  das  tormentas,  Vossa  Majestade,” 
Shallan disse, causando uma encarada de Jasnah.  
“A  cidade  é  abrigada,  minha  jovem,”  disse o rei. “Mas a montanha de pedra em 
nossas  costas  é  soprada  com  muita  força.  De  vez  em  quando  ela  causa  avalanches 
daquele  lado,  e  isto  pode  causar  toda a superfície da montanha a tremer.” Ele fitou 
o  teto.  “Desmoronamentos  são  muito  raros,  e  achávamos  que  esta  área  era  bem 
segura, mas…” 
“Mas  trata-se  de  rocha,”  Jasnah  disse,  “e  não  há  como  prever  se  um  veio frágil 
espreita  por  baixo  da  superfície.”  Ela  inspecionou  o  monólito  que  caiu  do  teto. 
“Isso vai ser difícil. Eu provavelmente perderei uma pedra focal muito valiosa.” 
“Eu—”  o  rei  começou,  limpando  sua  testa  novamente.  “Se  ao  menos 
tivéssemos uma Lâmina-fracta—” 
Jasnah  o  interrompeu  com  uma  jogada  de  mão.  “Eu  não  estava  buscando 
renegociar  nossa  barganha,  Vossa  Majestade.  Acesso  ao  Palanium  vale o sacrifício. 
Recomendo  enviar  alguém  em  busca  de  panos  molhados.  Faça  a  maioria  dos 
servos  se  deslocarem  até  a  outra  ponta  do  corredor.  Talvez  queira  esperar  lá 
também.” 
“Ficarei  aqui,”  disse  o  rei,  fazendo  seus  atendentes  contestar,  incluindo  um 
grande  homem  vestindo  uma  couraça  preta,  provavelmente  seu  guarda-costas.  O 
rei  os  silenciou  erguendo  sua  mão  enrugada.  “Não  irei  me  esconder  como  um 
covarde enquanto minha neta está presa.” 
Não  era  de  se  estranhar  que  estivesse  tão  ansioso.  Jasnah  não  contestou,  e 
Shallan  podia  ver  nos  olhos  dela  que  não  seria  de  consequência  de  Jasnah  se  o  rei 
arriscasse  sua  vida.  O  mesmo  aparentemente  valia  para  Shallan,  pois  a  mulher não 
ordenou  que  se  afastasse.  Servos  se  aproximaram  com  tecidos  molhados  e  os 
distribuiram.  Jasnah  recusou  o  dela.  O  rei  e  seu  guarda-costas  levaram  os deles até 
o rosto, cobrindo boca e nariz.  
Shallan  pegou  o  dela.  Qual  era  o  propósito  daquilo?  Alguns  servos  passaram 
panos  molhados  num  espaço  entre  a  rocha  e  a  parede  para  aqueles  que  estavam 
dentro  do  cômodo  bloqueado.  Os  servos  então  se  apressaram  até  o  fim  do 
corredor.  
Jasnah cutucou o grande pedregulho. “Senhorita Davar,” disse ela, “que método 
utilizaria para determinar a massa desta pedra?” 
Shallan  piscou.  “Bem,  suponho  que  eu  perguntaria  para  Sua  Majestade.  Seus 
arquitetos provavelmente calcularam isso.” 
Jasnah  espichou  a  cabeça.  “Uma  resposta  elegante.  Eles  fizeram  isso,  Vossa 
Majestade?”  
“Sim,  Brilhanteza Kholin,” o rei respondeu. “É de aproximadamente quinze mil 
kavals.” 
Jasnah  olhou  para  Shallan.  “Um  ponto  em  seu  favor,  Senhorita  Davar.  Uma 
acadêmica  sabe  não  desperdiçar  tempo  redescobrindo  informação  já  conhecida.  É 
uma lição da qual me esqueço algumas vezes.” 
Shallan  se  sentiu  otimista com as palavras. Ela tinha uma suspeita de que Jasnah 
não  distribuía  elogios  da  boca  para  fora.  Isso  significava  que  a  princesa  ainda  a 
estava considerando como aprendiz? 
Jasnah  ergueu  sua  mão-livre,  Mold’alma  brilhando  contra  a  pele.  Shallan  sentiu 
o  coração  bater  mais  depressa.  Ela  nunca  tinha  visto  Moldagem  de  Alma  sendo 
feita  pessoalmente.  Os  ardentes  eram  muito  reservados  em  usar  suas  fabriais, e ela 
nem  sequer  sabia  que  seu  pai  possuía  uma,  até  que  ela  e  seus  irmãos  tivessem 
encontrado  o  dispositivo  com  ele.  É  claro,  a  dele  não  funcionava  mais.  Essa  era 
uma das principais razões dela estar aqui. 
As  gemas  colocadas  na  Mold’alma  de  Jasnah  eram  enormes,  algumas  das 
maiores  que  Shallan  já  vira,  cada  uma  delas  valendo  muitas  esferas.  A  primeira  era 
uma  pedra-esfumaçadora,  uma  pura  e  vidrosa  gema  preta.  A  segunda  era  um 
diamante.  A  terceira,  um  rubi.  Todas  as  três  eram  talhadas  —  uma  pedra  talhada 
podia carregar mais Luz-tempesta — em brilhantes formatos ovais de várias faces. 
Jasnah  fechou  os  olhos,  pressionando  sua  mão  contra  o  pedregulho  caído.  Ela 
levantou  a  cabeça,  inalando  lentamente. As jóias nas costas de sua mão começaram 
a  brilhar  mais  ferozmente,  a  pedra-esfumaçadora  em  particular  brilhando  tão forte 
que tornava difícil de se olhar.  
Shallan prendeu o fôlego. A única coisa que ousou fazer foi piscar, cometendo a 
cena em sua memória. Por um longo e extenso momento, nada aconteceu.  
E  então,  brevemente,  Shallan  ouviu  um  som.  Um  zumbido  baixo,  como  um 
grupo de vozes distantes, cantarolando uma única nota pura em uníssono.  
A mão de Jasnah ​afundou​ na rocha.  
A pedra desapareceu.  
Uma  explosão  de  fumaça  densa  e  negra  brilhou  no  corredor.  O  bastante  para 
cegar  Shallan;  parecia  como  o  resultado  de  mil  incêndios,  e  cheirava  a  madeira 
queimada.  Shallan  rapidamente  levou  o  pano  molhado  até  o  rosto,  caindo  de 
joelhos.  Curiosamente,  seus  ouvidos  pareciam  entupidos,  como  se  ela  tivesse 
descido de um lugar bem alto. Ela teve que engolir para abri-los.  
Ela  fechou  os  olhos  com  força  quando  começaram  a  lacrimejar,  e  prendeu  a 
respiração. Seus ouvidos se encheram com um som sibilante.  
Aquilo  passou.  Ela  abriu  os  olhos,  piscando,  para  encontrar  o  rei  e  seu 
guarda-costas  amontoados  contra  a  parede  ao  seu  lado.  Fumaça  ainda  se 
aglomerava  no  teto;  o  corredor  carregando  seu  forte  cheiro.  Jasnah  se  levantou, 
olhos  ainda  fechados,  indiferente  à  fumaça  —  embora  fuligem  agora  se espalhasse 
em seu rosto e vestes. A substância marcava as paredes também. 
Shallan  tinha  lido  sobre  isso,  mas  ainda  estava  atônita.  Jasnah  tinha 
transformado  o  pedregulho  em  fumaça,  e  como  esta  era  muito menos densa que a 
pedra, a mudança acabou a empurrando numa reação explosiva.   
Era  verdade;  Jasnah  realmente  ​tinha  uma  Mold’alma funcional. E uma poderosa 
também.  Nove  a  cada  dez  Mold’almas  eram  capazes  de  algumas  transformações 
limitadas:  criar  água  ou  grão  da  pedra;  formar  genéricas  construções  de  pedra,  de 
cômodo  único,  a  partir  do  ar  ou  tecido.  Uma  maior,  como  a  de  Jasnah,  podia 
efetuar  qualquer  transformação.  Literalmente  mudar  qualquer  substância  para 
qualquer  outra.  Como  devia  ofender  os  ardentes  que  uma  relíquia  tão  poderosa  e 
sagrada  estivesse  em  mãos  de  alguém  fora  da  ardentia.  E  uma  herege,  além  do 
mais! 
Shallan  se  levantou,  cambaleando,  mantendo  o  tecido  em  sua  boca,  respirando 
um  ar  úmido  mas  livre  de  poeira.  Ela  engoliu,  seus  ouvidos  destrancando 
novamente  enquanto  a  pressão  do  corredor  voltava  ao  normal.  Um  momento 
depois,  o  rei se apressou até o agora acessível quarto. Uma pequena garota — junta 
de  várias  cuidadoras  e  outro  servos  do  palácio  —  sentava  do  outro lado, tossindo. 
O  rei  puxou  a  garota  em  seus  braços.  Ela  era  nova  demais  para  ter  uma  manga 
modesta.  
Jasnah  abriu  os olhos, piscando, como que momentaneamente confusa com sua 
localização.  Ela  respirou  fundo,  e  não  tossiu.  De  fato,  ela  na  verdade  ​sorriu​,  como 
se estivesse apreciando o aroma da fumaça. 
Jasnah  se  virou  para  Shallan,  focando-a.  “Você  ainda  está  esperando  por  uma 
resposta. Eu temo que não irá gostar do que direi.” 
“Mas  você  ainda  não  terminou  de  me  testar,”  Shallan  disse,  forçando-se  a  ser 
ousada. “Certamente não dará um julgamento até que tenha terminado.” 
“Não terminei?” Jasnah perguntou, franzindo o cenho.  
“Você  não  me  perguntou  a respeito de todas as artes femininas. Deixou pintura 
e desenho de lado.” 
“Eu nunca tive muito uso para essas.”  
“Mas  ​fazem  parte  das  artes,”  Shallan  disse,  sentindo-se  desesperada.  Era  nisso 
que  era  mais  talentosa!  “Muitos  consideram  as  artes  visuais  as  mais  refinadas  de 
todas as demais. Eu trouxe meu portfólio. Posso mostrar do que sou capaz.” 
Jasnah  apertou  os  lábios.  “As  artes  visuais  são  frivolidades.  Eu  pesei  os  fatos, 
filha, e não posso aceitá-la. Eu lamento.” 
O coração de Shallan afundou. 
“Vossa Majestade,” Jasnah disse ao rei, “Eu gostaria de ir até o Palanium.” 
“Agora?”  disse  ele,  balançando  sua  neta  em  seu  colo.  “Mas  nós  teremos  um 
banquete—” 
“Aprecio  a  oferta,”  Jasnah  interrompeu,  “mas  me  encontro  com  uma 
abundância de tudo, ​exceto​ tempo.” 
“É  claro,”  disse  o  rei.  “Eu  a  levarei  pessoalmente.  Obrigado  pelo  que  fez. 
Quando  ouvi  que  você  tinha  requerido  acesso…”  Ele  continuou  a  balbuciar  para 
Jasnah, que o seguiu em silêncio através do corredor, deixando Shallan para trás. 
Ela  agarrou  sua  bolsa  no  peito,  abaixando  o  tecido  de  sua  boca.  Seis  meses  de 
perseguição,  para  isso. Ela apertou o pano em frustração, torcendo água coberta de 
fuligem  entre  os  dedos.  Ela  queria chorar. Isso era o que provavelmente teria feito, 
se ainda fosse aquela mesma criança que era há seis meses atrás. 
Mas  as  coisas  tinham  mudado.  ​Ela  tinha  mudado.  Se  falhasse,  a  Casa  Davar 
cairia.  Shallan  sentiu  sua  determinação  redobrar,  embora  não  pudesse  evitar  que 
algumas  lágrimas  de  frustração  escorressem  pelos  cantos  dos  olhos.  Ela  não  iria 
desistir  até  que  Jasnah  fosse  forçada  a  amarrá-la  em  correntes,  fazendo  as 
autoridades arrastarem Shallan para longe.  
Com  o  passo  surpreendentemente  firme,  ela  andou  na  direção  em  que  Jasnah 
tinha  partido.  Seis  meses  atrás,  ela  explicara  um  plano  desesperado  para  seus 
irmãos.  Ela  se  tornaria  aprendiz  de  Jasnah  Kholin,  acadêmica,  herege.  Não  pela 
educação.  Não  pelo  prestígio.  Mas  para  aprender  onde  ela  mantinha  sua 
Mold’alma. 
E então, Shallan a roubaria.   
6  
PONTE QUATRO 
 
"Sinto frio. Mãe, sinto frio. Mãe? Por que ainda consigo ouvir a chuva? Ela vai parar?” 
 
—  Coletado  em  Vevishes,  1172,  32  segundos  pré-morte.  O  exemplar  era  uma  garota 
olhos-claros de aproximadamente seis anos de idade.  
 
 
Tvlakv soltou os escravos das jaulas, todos ao mesmo tempo. Desta vez, ele não 
temia  por  fugas  ou  uma  rebelião  —  não  com  nada  além  de  terreno  inóspito  em 
suas costas e mais de cem mil soldados armados logo avante. 
Kaladin  pisou  para  fora  do  vagão.  Eles  estavam  dentro  de  uma  das  formações 
em  formato  de  cratera,  sua  parede  de  pedra  escarpada  se  elevando  em  direção  ao 
leste.  O  chão  tinha  sido  limpo  de vida vegetal, e a rocha estava lisa abaixo dos seus 
pés  descalços.  Poças  de  água  da  chuva  se  acumulavam  em  depressões.  O ar estava 
fresco  e  limpo,  e  o  sol  brilhava  forte  logo  acima,  embora  Kaladin  sempre  se 
sentisse suado com essa umidade do Leste. 
Ao  redor  deles,  espalhavam-se  os  sinais  de  um  exército  acampado  há  muito 
tempo;  esta  guerra  estava  em  andamento  desde  a  morte  do  velho  rei,  quase  seis 
anos  atrás.  Todos  contavam  histórias  daquela  noite,  a noite onde a tribo Parshendi 
tinha assassinado Rei Gavilar. 
Esquadrões  de  soldados  marchavam,  seguindo  direções  indicadas  por  círculos 
pintados  a  cada  interseção.  O  acampamento estava lotado com grandes quartéis de 
pedra,  e  havia  mais  tendas  do  que  Kaladin  tinha  identificado  do  alto.  Mold’almas 
não  podiam  ser  usadas  para criar todos os abrigos. Depois do fedor da caravana de 
escravos,  o  lugar  parecia  cheirar  bem,  transbordando  com  aromas familiares como 
o  do  couro  trabalhado  e  armas  lubrificadas.  No  entanto,  muitos  dos  soldados 
tinham  um  olhar  desordenado.  Eles  não  eram  sujos,  mas  não  pareciam 
particularmente  disciplinados  também.  Eles  percorriam  o  acampamento  em 
grupos,  com  os  casacos  desabotoados.  Alguns  apontavam  e  zombavam  dos 
escravos.  Este  era  o  exército  de  um  Alto-príncipe?  A  força  de  elite  que lutava pela 
honra de Alethkar? Era isso a que Kaladin tinha almejado se juntar? 
Bluth  e  Tag  vigiaram  cautelosamente  enquanto  Kaladin  se  alinhava  com  os 
outros  escravos,  mas  ele  não  tentou  nada.  Agora  não  era  a hora de provocá-los — 
Kaladin  tinha  visto  como  mercenários  agiam  quando  estavam  em  torno  de  tropas 
comissionadas.  Bluth  e  Tag  fizeram  suas  partes,  andando  de  peito  estufado  e  com 
as  mãos  em  suas  armas.  Eles  alinharam  alguns  dos  escravos,  empurrando-os, 
enfiando  um  porrete  na  barriga  de  um  dos  homens  e  o  xingando  de  forma 
rabugenta.  
Eles se mantiveram longe de Kaladin.   
“O  exército  do  rei,”  disse  o  escravo  ao  seu  lado.  Era  o  homem  de  bronzeado 
escuro  que  tinha  conversado  com  ele  sobre  escapar.  “Achei  que  estávamos 
destinados  a  trabalho  nas  minas.  Ora,  isso  não  vai  ser  tão  ruim,  afinal  de  contas. 
Vamos limpar latrinas ou cuidar de estradas.” 
Curioso,  ansiar  por  trabalho  em  latrinas  ou  labor  sob  o  sol  quente.  Kaladin 
esperava  por  outra  coisa.  Esperava.  Sim,  ele  descobrira  que  ainda  podia  ter 
esperanças. Uma lança em suas mãos. Um inimigo para enfrentar. Ele poderia viver 
assim. 
Tvlakv  falou  com  uma  mulher  olhos-claros  de  aparência  importante.  Ela  usava 
o  cabelo  negro  para  cima,  em  um  complexo  entrelaçado,  brilhando  com  ametistas 
infundidas, e seu vestido era de um carmesim profundo. Ela se parecia muito como 
Laral  tinha  sido,  no  fim.  A  mulher  era  provavelmente  de  quarto  ou  quinto  dahn, 
esposa e escriba de um dos oficiais do acampamento.  
Tvlakv  começou  a  se gabar de sua mercadoria, mas a mulher levantou uma mão 
delicada.  “Posso  ver  o  que  estou comprando, escravizador,” ela disse em um suave 
sotaque aristocrático. “Irei inspecioná-los por conta própria.” 
Ela  começou  a  passar  pela  fila,  acompanhada  de  vários  soldados.  Seu  vestido 
era  de  um  corte  da  moda  nobre Aléthi — uma sólida faixa de seda, justa e rente ao 
corpo  na  parte  superior,  com  saias  lustrosas  abaixo.  O  vestido  abotoava  as laterais 
do  torso  da  cintura  até  o  pescoço,  onde  acabava  em  um  pequeno  colarinho 
bordado  a  ouro.  A manga esquerda, mais longa, escondia sua mão-modesta. A mãe 
de  Kaladin  sempre  costumou  usar  apenas  uma  luva,  o  que  parecia  muito  mais 
prático para ele. 
Julgando  pelo  rosto  da  mulher,  ela  não  estava  particularmente  impressionada 
com  o  que  vira.  “Esses  homens  estão  famintos  e doentes,” ela disse, pegando uma 
varinha  com  uma  assistente.  Ela  usou  o objeto para erguer o cabelo da testa de um 
dos  homens,  inspecionando  sua  marca.  “Você  está  pedindo  por  duas  contas  de 
esmeralda por cabeça?” 
Tvlakv começou a suar. “Talvez uma e meia?” 
“E  no  que  eu  os  usaria?  Não  confiaria  homens  tão  sujos  próximos  a  comida,  e 
nós temos parshimens para fazer a maioria dos outros trabalhos.” 
“Se  Vossa  Senhoria  não  estiver  satisfeita,  eu  poderia  abordar  outros  altos 
príncipes…” 
“Não,”  ela  disse,  batendo  no  escravo  ao qual se referiu enquanto ele se afastava 
dela.  “Um  e  um  quarto.  Eles  podem  ajudar  cortando  lenha  para  nós  nas  florestas 
ao  norte…”  Ela  hesitou  enquanto  notava  Kaladin.  “Bem  aqui.  Este  é  mercadoria 
muito melhor do que os outros.” 
“Achei  que  pudesse  gostar  desse  ai,”  Tvlakv  disse,  se  aproximando  dela.  “Ele  ​é 
bem—” 
Ela  ergueu  a  vara  e  o  silenciou.  A  mulher  tinha uma pequena ferida em um dos 
lábios. Um pouco de raiz de erva-maldita poderia dar um jeito naquilo. 
“Tire a camisa, escravo,” ela comandou. 
Kaladin  a  encarou bem no fundo de seus olhos azuis e sentiu um impulso quase 
irresistível  de  cuspir  nela.  Não.  Não, ele não podia fazer isso. Não enquanto existia 
uma  chance.  Ele  puxou  os  braços  para  fora  da  veste  que  mais  parecia  um  saco, 
deixando-a cair até a cintura, expondo seu peito. 
Apesar  de  oito  meses  como  um  escravo,  ele  tinha  uma  musculatura  muito 
melhor  que  os  demais.  “Uma  grande  quantidade  de  cicatrizes  para  alguém  tão 
jovem,” a nobre disse, pensativa. “Você é um militar?” 
“Sim.” Sua ventispren zuniu até a mulher, inspecionando o rosto dela.  
“Mercenário?” 
“Exército de Amaram,” Kaladin disse. “Um cidadão, segundo nahn.” 
“​Um dia​ cidadão,” Tvlakv complementou rapidamente. “Ele era—” 
Ela  o  silenciou  novamente  com  sua  vara,  encarando-o.  Então,  usou  o  objeto 
para afastar o cabelo de Kaladin para o lado e inspecionar sua testa.  
“Glifo  shash,”  ela  disse,  estalando  a  língua.  Muitos  dos  soldados  ao  redor  se 
aproximaram,  mãos  em  suas espadas. “De onde venho, escravos que merecem este 
glifo são simplesmente executados.” 
“Eles tem sorte,” Kaladin disse. 
“E como foi que acabou aqui?” 
“Eu  matei  alguém,”  ele  respondeu,  preparando  suas  mentiras  cuidadosamente. 
Por  favor,​   ele  pensou  para  os  Arautos.  ​Por  favor.​   Já  fazia  muito  tempo  desde  que 
tinha orado por algo. 
A mulher ergueu uma sobrancelha.  
“Sou  um  homicida,  Brilhanteza,”  Kaladin  continuou.  “Fiquei  bêbado,  cometi 
alguns  erros.  Mas  posso  empunhar  uma  lança  tão  bem  quanto  qualquer  homem. 
Me  coloque  no  exército  de  seu  lorde-brilhante.  Posso  lutar  novamente.”  Era  uma 
mentira  estranha  de  se  contar,  mas  a  mulher  jamais  permitiria  que  Kaladin  lutasse 
caso  soubesse  que ele era um desertor. Neste caso, era melhor ser conhecido como 
um assassino acidental. 
Por  favor…  ele  pensou.  Ser  um  soldado  novamente.  Pareceu, por um momento, 
a  coisa  mais  gloriosa  que  ele  já  tivesse  desejado.  Quão  melhor seria morrer em um 
campo de batalha ao invés de desperdiçado, esvaziando penicos.  
Na  lateral,  Tvlakv  andou  até  o  lado  da  mulher  olhos-claros.  Ele  olhou  para 
Kaladin, então suspirou. “Ele é um desertor, Brilhanteza. Não dê ouvidos a ele.” 
Não!  Kaladin  sentiu  uma  ardente  explosão de raiva consumir sua esperança. Ele 
levantou as mãos em direção a Tvlakv. Ele iria estrangular o rato, e— 
Alguma coisa o açoitou nas costas. Ele grunhiu, tropeçando e caindo de joelhos. 
A  mulher  nobre  se  afastou,  levando  sua  mão-modesta  até  o  peito  em  alarme.  Um 
dos soldados do exército agarrou Kaladin e o colocou de pé novamente.  
“Bem,” ela finalmente disse. “Isso é lamentável.” 
“Eu ​posso​ lutar,” Kaladin grunhiu contra a dor. “Me dê uma lança, deixe eu—” 
Ela levantou sua vara, interrompendo-o.  
“Brilhanteza,”  Tvlakv  disse,  sem  encontrar  os  olhos  de  Kaladin.  “Eu  não  o 
confiaria  a  uma  arma.  É  verdade  que  é um homicida, mas ele também é conhecido 
por  desobedecer  e  liderar  rebeliões  contra  seus  mestres.  Eu  não  poderia  vendê-lo 
como  um  soldado  para  você.  Minha  consciência,  ela  não  me  permitiria.”  Ele 
hesitou.  “Os  homens  em  seu  vagão,  ele  talvez  possa  ter  corrompido  a  todos  com 
conversas sobre fuga. Minha honra demanda que eu a informe disso.” 
Kaladin  cerrou  os  dentes.  Ele  estava  tentado  a  derrubar  o  soldado  em  suas 
costas,  agarrar  aquela  lança  e  gastar  seus  últimos  momentos  enfiando-a  através  da 
corpulenta  barriga  de  Tvlakv.  Por  quê?  De  que  importava  para  Tvlakv  como 
Kaladin seria tratado neste exército?  
Eu  nunca  deveria  ter  picotado  o  mapa​,  Kaladin  pensou.  ​A  amargura  é  retribuída  com 
mais frequência que a gentileza​. Um dos dizeres de seu pai. 
A  mulher concordou com a cabeça, prosseguindo. “Mostre-me quais,” disse ela. 
“Eu  ainda  os  levarei,  por  conta  de  sua  honestidade.  Nós  precisamos  de  alguns 
novos ponteneiros.”   
Tvlakv  assentiu  avidamente.  Antes  de  prosseguir,  ele  parou  e  se  esticou  até 
Kaladin.  “Eu  não  posso  contar  com  que  se  comporte.  As  pessoas  deste  exército, 
elas  irão  culpar  um  mercador  por  não  revelar  tudo  o que sabe. Eu… sinto muito.” 
Feito isso, Tvlakv se apressou para longe.  
Kaladin  rosnou  no  fundo  da  garganta,  então  se  libertou  dos  soldados,  mas 
permaneceu  em  fila.  Que  seja.  Cortando  árvores,  construindo  pontes,  lutando  no 
exército.  Nada  disso  importava.  Ele  iria  apenas  continuar  vivendo.  Eles  tinham 
tomado  sua  liberdade,  sua  família,  seus  amigos,  e  —  o  mais  precioso  de  todos  — 
seus sonhos. Eles não podiam fazer mais nada contra ele.  
Após  a  inspeção,  a mulher nobre pegou um bloco de notas com sua assistente e 
fez  algumas  rápidas  anotações  no  papel.  Tvlakv  a  entregou  um  balancete 
detalhando  o  quanto  cada  escravo  já  tinha  pago  de  suas  dívidas  escravas.  Kaladin 
conseguiu  fisgar  um  vislumbre;  o  documento  dizia  que  nenhum  dos homens tinha 
pago  coisa  alguma. Talvez Tvlakv tivesse mentido sobre os valores. Não seria de se 
estranhar.  
Kaladin  provavelmente  iria  apenas deixar todos os seus pagamentos irem para a 
dívida  desta  vez.  Iria  deixar  os  olhos-claros  se  contorcerem  enquanto  o  viam 
aceitar  o  blefe.  O  que  eles  fariam  se  Kaladin  chegasse  perto  de  quitar  sua  dívida? 
Ele  provavelmente  nunca  descobriria  —  dependendo  do  quanto  esses  tais 
ponteneiros ganhassem, poderia chegar a levar entre dez a quinze anos até lá. 
A  mulher  olhos-claros  designou  a  maioria  dos  escravos  para  tarefas na floresta. 
Meia  dúzia  dos  mais  magrelos  foram  enviados  para  trabalharem  nos  refeitórios, 
apesar  do  que  fora  dito  anteriormente.  “Estes  dez,”  a  mulher  nobre  disse, 
erguendo  a  varinha  para  apontar  até  Kaladin  e  os  demais  de  seu  vagão.  “Leve-os 
para  os  esquadrões  de  pontes.  Diga  a  Lamaril  e  Gaz  que  o rapaz alto deve receber 
tratamento especial.” 
Os  soldados  riram,  e  um  deles  começou  a  empurrar  o  grupo  de  Kaladin  ao 
longo  do  caminho. Kaladin suportou; estes homens não tinham motivo algum para 
serem  gentis,  e  ele  não  os  daria  uma  razão  para  serem  mais severos. Se existia um 
grupo  ao  qual  soldados  cidadãos  odiavam  mais  do  que  mercenários,  eram  os 
desertores.  
Enquanto  andava,  ele  não  pôde  deixar  de perceber a bandeira ondulando acima 
do  campo.  Ela  carregava  o  mesmo  símbolo  estampado  nos  casacos  de  uniforme 
dos  soldados:  um  par  de  glifos  amarelos  no  formato  de  uma  torre  e  um  martelo 
num  campo  de  verde  profundo.  Aquela  era  a  bandeira  do  Alto-Príncipe  Sadeas,  o 
soberano  absoluto  do  próprio  distrito  lar  de  Kaladin.  Seria  ironia  ou  destino  que 
tinha mandado Kaladin até aqui? 
Soldados  relaxavam  ociosamente,  até  mesmo aqueles que aparentavam estar em 
serviço,  e  as  ruas  do  acampamento  estavam  cobertas  de  lixo.  Havia  muitos 
seguidores  de acampamento: prostitutas, operárias, tanoeiros, tendeiros, cuidadores 
de  estábulos.  Havia  até  mesmo  crianças  correndo  através  das  ruas  daquilo  que  era 
meio cidade, meio acampamento de guerra. 
Havia  também  parshimens.  Carregando  água,  trabalhando  em  trincheiras, 
levantando  sacos.  Aquilo  o  surpreendeu.  Eles  não  estavam  lutando  contra 
parshimens?  Não  estavam  preocupados  de  que  estes  acabassem  se  rebelando? 
Aparentemente  não. Os parshimens aqui trabalhavam com a mesma docilidade que 
aqueles  em  Pedra  do  Lar.  Talvez  fizesse  sentido.  Aléthis  lutaram  contra  Aléthis 
antes,  nos  exércitos  de  sua  terra  natal,  então  por  que  não  se  teria  parshimens  em 
ambos os lados deste conflito? 
Os  soldados  conduziram  Kaladin  por  todo  o  caminho  através  do  quadrante 
nordeste  do  acampamento,  uma  caminhada  que  levou  algum  tempo. Embora cada 
quartel  de  pedra  de  Mold’alma  se  parecesse  exatamente  o  mesmo,  a  borda  do 
acampamento  era  distintivamente  quebrada,  como  montanhas  irregulares.  Velhos 
hábitos  o  fizeram  memorizar  o  caminho.  Aqui,  as  enormes  paredes  circulares 
tinham  se  desgastado  devido  a  incontáveis  tormentas,  dando  uma  visão  ampla  do 
leste.  Aquele  trecho  de  terra  aberto  daria  uma  boa  área  de  preparo  para  um 
exército  se  reunir  antes  de  marchar  inclina  abaixo,  em  direção  das  próprias 
Planícies Estilhaçadas.  
A  extremidade  norte  do  terreno  continha  um  sub-acampamento  repleto  de 
dúzias  de  quartéis,  e  em  seu  centro  um  depósito  de  madeira  cheio  de  carpinteiros. 
Eles  estavam  partindo  algumas  das  árvores  robustas  que  Kaladin  tinha  visto  nas 
planícies  afora:  arrancando  suas  cascas  fibrosas,  serrando-as  em  tábuas.  Um  outro 
grupo de carpinteiros reunia as tábuas em grandes geringonças. 
“Seremos marceneiros?” Kaladin perguntou. 
Um  dos  soldados  gargalhou.  “Vocês  vão  se  juntar  aos  esquadrões  de  pontes.” 
Ele  apontou  até  um  grupo  de  homens  lamentáveis  sentados  nas  pedras,  sob  a 
sombra  de  um  quartel,  pegando  comida  com  os  dedos  em  tigelas  de  madeira.  A 
gororoba  se  parecia  depressivamente  similar  com  a  lavagem  a  qual  Tvlakv  os 
alimentara.  
Um  dos  soldados  empurrou  Kaladin  adiante  novamente,  que  tropeçou  abaixo 
pela  pequena  inclinação,  cruzando  o  terreno.  Os  outros  nove  escravos  seguiram, 
guiados  pelos  soldados.  Nenhum  dos  homens  sentados  ao  redor do quartel sequer 
olhou  para  eles.  Eles usavam coletes de couro e calças simples, alguns com camisas 
sujas,  outros  de  peito  nu.  O  grupo  deplorável  e  depressivo  não  era  muito  melhor 
que  os  escravos,  embora  seus  homens  parecessem  estar  levemente  em  melhores 
condições físicas.  
“Novos recrutas, Gaz,” um dos soldados chamou.  
Um  homem  relaxava  na  sombra,  distante  daqueles  que  estavam  comendo.  Ele 
se  virou,  revelando  um  rosto  com  tantas  cicatrizes  que  sua  barba  crescia  em 
trechos.  Nos  ombros,  alguns  nós  brancos  o  demarcavam  como  sargento,  e  ele 
tinha  a  sútil  dureza  que  Kaladin  tinha  aprendido  a  associar  com  alguém  que 
conhecia o próprio caminho em um campo de batalha. 
“Essas  coisas  magricelas?”  Gaz  indagou,  mastigando  algo  enquanto  se 
aproximava. “Eles mal vão parar uma flecha.”   
O  soldado  ao  lado  de  Kaladin  deu  de  ombros,  empurrando-o  para  frente  mais 
uma  vez  para  não  perder  o  costume.  “Brilhanteza  Hashal  disse  para  fazer  algo 
especial  com  este  aqui.  O  resto  é  por  sua  conta.”  O  soldado  acenou  para  seus 
companheiros, e eles então começaram a trotar para longe.  
Gaz inspecionou os escravos. Ele focou em Kaladin por último. 
“Eu  tenho  treinamento  militar,”  Kaladin  disse.  “No  exército  de  Alto-Lorde 
Amaram.” 
“Eu  particularmente  não  me  importo,”  Gaz  disse,  cuspindo  algo  escuro  para  o 
lado. 
Kaladin hesitou. “Quando Amaram—” 
“Você  continua  mencionando  esse  nome,”  Gaz  vociferou.  “Aposto  que  na 
verdade  serviu  sob  um  senhor  de  feudo  irrelevante,  não  é  mesmo?  Espera  que  eu 
me impressione?” 
Kaladin  suspirou.  Ele  já  tinha  se  deparado  com  esse  tipo  de  homem  antes,  um 
sargento  menor  sem  esperanças  de  promoção.  Seu  único  prazer  na  vida  vinha  de 
sua autoridade sobre aqueles ainda mais lamentáveis que si mesmo. Bem, que seja. 
“Você  tem  uma  marca  de  escravo,”  Gaz  disse,  bufando.  “Dúvido  que  já  tenha 
sequer segurado uma lança. De toda forma, terá que se juntar a nós, Fidalgote.”  
A  ventispren  de  Kaladin  esvoaçou  para  baixo  e  inspecionou  Gaz, então fechou 
um  dos  olhos,  imitando-o.  Por  algum  motivo,  vê-la  fez  Kaladin  sorrir.  Gaz 
interpretou  o  sorriso  erroneamente.  O  homem  fez  uma  carranca  e  avançou, 
apontando. 
Neste  momento,  um  barulhento  coral  de  trombetas  ecoou  pelo  acampamento. 
Carpinteiros  olharam  para  cima,  e  os  soldados  que  tinham  guiado  Kaladin 
correram  de  volta  para  o  centro  do  acampamento.  Os  escravos  atrás  de  Kaladin 
olhavam em volta, ansiosos.  
“Pai-Tempesto!”  Gaz  praguejou.  “Ponteneiros!  De  pé,  de  pé,  seus  sarnentos!” 
Ele  começou  a  chutar  alguns  dos  homens que estavam comendo. Eles derrubaram 
suas  tigelas,  levantando  aos  tropeços.  Os  homens  usavam  sandálias  simples  ao 
invés de botas apropriadas.  
“Você, Fidalgote,” Gaz disse, apontando para Kaladin. 
“Eu não disse—” 
“Eu  não  me  importo  com  que  Condenação  você  disse!  Você  está  na  Ponte 
Quatro.”  Ele  apontou  para  um  grupo  de  ponteneiros  prestes  a  partir.  “O  restante 
de  vocês,  esperem  logo  ali.  Eu  os  dividirei  depois.  Mexam-se,  ou  providenciarei 
que sejam pendurados pelos calcanhares.” 
Kaladin  deu  de  ombros  e  trotou  atrás  do  grupo  de  ponteneiros.  Era  uma  das 
muitas  tropas  de  homens  que  estavam  saindo  dos  quartéis  ou  se  retirando  dos 
becos.  Parecia  haver  muitos  deles.  Aproximadamente  cinquenta  abrigos,  com  — 
talvez  —  vinte  ou  trinta  homens  em  cada  um…  isso  faria  com  que  este  exército 
tivesse  tantos  ponteneiros  quanto  o  número  de  soldados  que  a  força  inteira  de 
Amaram contara. 
A  tropa  de  Kaladin atravessou o terreno, desviando em torno de tábuas e pilhas 
de  serragem,  aproximando-se  de  uma  grande  engenhoca  de  madeira.  Ela  tinha 
obviamente  passado  por  algumas  tormentas  e  batalhas.  As  mossas  e  buracos 
espalhados  em  seu  comprimento  se  pareciam  com  lugares  onde  flechas  tinham  se 
cravado. A ponte em ponteneiros, talvez? 
Sim,  Kaladin  pensou.  Era  uma  ponte  de  madeira,  de  aproximadamente  nove 
metros  de  comprimento  e  oito  de  largura.  Ela  se  inclinava  para  baixo  na  parte  da 
frente  e  de trás, e não contava com corrimãos. A madeira era grossa, com as tábuas 
maiores  para  suporte  no  centro.  Havia  entre  quarenta  a  cinquenta  pontes 
enfileiradas  aqui.  Talvez  uma para cada quartel, fazendo com que fosse uma equipe 
para  cada  ponte?  Aproximadamente  vinte  esquadrões  de  ponte  estavam  se 
reunindo a essa altura.  
Gaz  tinha  pego  um  escudo  de  madeira  e  uma  maça  reluzente,  mas  não  havia 
equipamento  algum  para  os  demais.  Ele  inspecionou  rapidamente  cada  time, 
parando  então  ao  lado  da  Ponte  Quatro,  hesitando.  “Onde  está  seu  líder  de 
ponte?” ele demandou.  
“Morto,”  um dos ponteneiros respondeu. “Se atirou no Abismo da Honra noite 
passada.” 
Gaz  praguejou.  “Não  conseguem  manter  um  líder  de  ponte  nem  por  uma 
semana  sequer?  Tormentas!  Em  fila;  eu  irei correr perto de vocês. Ouçam os meus 
comandos.  Vamos  arranjar  um  novo  líder  depois  de  vermos  quem  sobreviver.” 
Gaz  apontou  para  Kaladin.  “Você  fica  no  fundo,  fidalgote.  O  restante  de  vocês, 
movam-se!  Tormentas  os  partam,  eu  não  irei sofrer outra reprimenda por causa de 
vocês, idiotas! Mexam-se, mexam-se!”  
Os  homens  começaram  a  erguer.  Kaladin  não  teve  escolha  além  de  ir  até  o 
espaço  vazio  bem  no  final  da  ponte.  Ele  tinha  calculado  baixo  em  sua  estimativa; 
parecia  que  eram  trinta  e  cinco  a  quarenta  homens  por  ponte.  Havia  espaço  para 
cinco  homens  no  decorrer  da  largura  —  três  embaixo  da  ponte  e  um  em  cada 
lateral  —  e  oito  homens  no  decorrer  do  comprimento,  embora  esta  equipe  não 
contasse com um homem para cada posição. 
Ele  ajudou  a  erguer  a  ponte  até  o  ar.  Estavam  provavelmente  usando  uma 
madeira  bem  leve  para  as  pontes,  mas  a  coisa  ainda  era tempestuosamente pesada. 
Kaladin  grunhiu  enquanto  lutava  contra  o  peso,  içando  a ponte para o alto e então 
entrando  embaixo  dela.  Homens  correram  para  preencher  os  espaços  do  meio, 
abaixo  do  comprimento  da  estrutura,  e  lentamente  todos  eles  abaixaram  a  ponte 
até  os  ombros.  Ao  menos  havia  hastes  na  parte  de  baixo  para  serem  usadas  como 
apoio.  
Os  outros  homens  tinham  acolchoados  nos  ombros  de  seus  coletes  para 
amortecer  o  peso,  e  ajustar  suas  alturas  para  que  se  adequassem  aos  suportes. 
Kaladin  não  tinha  recebido  um  dos  coletes,  então  os  suportes  de  madeira 
afundavam  diretamente  em  sua  pele.  Ele  não  via  coisa  alguma;  havia  uma 
indentação  para  sua  cabeça,  mas  a madeira bloqueava sua visão por todos os lados. 
Os  homens nas laterais tinham uma visão melhor; ele suspeitava que essas posições 
fossem mais cobiçadas.  
A madeira cheirava a óleo e suor. 
“Vão!” Gaz disse de fora, sua voz abafada. 
Kaladin  gruniu  enquanto  o  grupo  começou  um  trote  lento.  Ele  não  conseguia 
ver  para  onde  estava  indo,  e  teve  dificuldades  em  evitar  de  tropeçar  enquanto  o 
esquadrão  de  ponte  marchava  encosta  leste  abaixo,  em  direção  às  Planícies 
Estilhaçadas.  Em  pouco  tempo,  Kaladin  suava  e  praguejava  para  si  mesmo,  a 
madeira  se  esfregando  e  cavando  na pele de seus ombros. Ele já estava começando 
a sangrar. 
“Pobre tolo,” uma voz disse ao lado. 
Kaladin  olhou  para  sua  direita,  mas  as  hastes  de  madeira  obstruíam  sua  visão. 
“Você está…” Kaladin ofegou. “Está falando comigo?” 
“Você  não  deveria  ter  insultado  Gaz,”  o  homem  disse.  Sua  voz  soava  vazia. 
“Ele às vezes deixa novos recrutas correrem numa fila externa. Às vezes.” 
Kaladin  tentou  responder,  mas ele já estava sem fôlego. Ele achou que estivesse 
em  melhor  forma  que  isso,  mas  tinha  passado  oito  meses  sendo  alimentado  com 
lavagem,  recebendo  surras  e  esperando  por  tormentas  passarem  em  porões  que 
vazavam, estábulos sujos, e jaulas. Ele dificilmente era o mesmo homem de antes.  
“Respire  e  expire  profundamente,”  disse  a  voz  abafada.  “Foque  nos  passos. 
Conte eles. Isso ajuda.” 
Kaladin  seguiu  o  conselho.  Ele  podia  ouvir  outros  esquadrões  de  pontes 
correndo  por  perto. Atrás deles vinham os familiares sons de homens em marcha e 
de cascos na pedra. Eles estavam sendo seguidos por um exército. 
Abaixo,  botões-de-pedra  e  pequenos  cumes  de  rocharbórea  cresciam  no  solo, 
fazendo-o  tropeçar.  A  paisagem  das  Planícies  Estilhaçadas  aparentava  ser  partida, 
desnivelada,  e  esburacada,  coberta  por  afloramentos  e  plataformas  de  pedra.  Isso 
explicava  o  porquê  de  não  usarem  rodas  nas  pontes  —  carregadores  eram 
provavelmente muito mais rápidos em um terreno tão acidentado.  
Em  pouco  tempo,  seus  pés  estavam  ásperos  e  machucados.  Não  podiam  ao 
menos  terem  dado  calçados  para  ele?  Kaladin  cerrou  os  dentes  contra  a  agonia  e 
continuou indo. Apenas outro trabalho. Ele continuaria, e iria sobreviver.  
Um  som  de  baque.  Seus  pés  tocaram  na  madeira.  Uma  ponte,  permanente, 
cruzando  um  abismo  entre  platôs  nas  Planícies  Estilhaçadas.  Em  segundos,  o 
esquadrão  de  ponte  tinha  atravessado,  e  seus  pés  caíram  sobre  o  chão  de  pedra 
novamente.  
“Mexam-se,  mexam-se!”  Gaz  berrava.  “Tormentas  os  partam,  continuem  em 
frente!” 
Eles  continuaram  a  trotar  enquanto  o  exército  cruzava  a  ponte  permanente 
atrás  deles,  centenas  de  botas  ressoando  na  madeira.  Eventualmente,  sangue 
começou  a  descer  pelos  ombros de Kaladin. Sua respiração era tortuosa, sua lateral 
latejava  dolorosamente.  Ele  podia  ouvir  os  outros  arfando,  os  sons  carregados 
através  do  espaço  confinado  abaixo  da  ponte.  Então  ele  não  era  o  único. 
Esperançosamente, chegariam ao destino depressa.  
Ele esperou em vão.  
A  próxima  hora  foi  de  tortura.  Era  pior  do  que  qualquer  surra  que  já  tinha 
sofrido  como  escravo,  pior  do  que  qualquer  ferida  no  campo  de  batalha.  Parecia 
não  haver fim para a marcha. Kaladin se lembrava vagamente de ter visto as pontes 
permanentes,  quando  tinha  olhado  para  as  planícies através do vagão escravo. Elas 
conectavam  os  platôs  onde  os  abismos  eram  mais  fáceis  de se intercalar, não onde 
seria  mais  eficiente  para  se  viajar. Isso geralmente significava desvios para norte ou 
sul antes que pudessem continuar em direção ao leste.  
Os  ponteneiros  resmungavam,  praguejavam,  grunhiam,  e  então  ficavam  em 
silêncio.  Eles  cruzavam  ponte  após  ponte,  platô  após  platô.  Kaladin  nunca  teve 
uma  boa  visão  de  um  dos  abismos.  Ele  apenas  continuava  correndo.  E  correndo. 
Não  conseguia  mais  sentir  os  próprios  pés.  Continuou  correndo.  Ele  sabia,  de 
alguma  forma, que seria espancado se parasse. Kaladin sentia como se seus ombros 
tivessem  sido  esfregados  até  o  osso.  Ele  tentou  contar  os  passos,  mas  estava 
exausto demais até mesmo para isso. 
Mas não parou de correr.   
Finalmente,  piedosamente,  Gaz  ordenou  com  que  parassem.  Kaladin  piscou, 
cambaleando até uma parada e quase desmaiando.  
“Ergam!” Gaz berrou. 
Os  homens  ergueram,  os  braços  de  Kaladin  tensionando  com  o  movimento 
após passarem tanto tempo segurando a ponte no mesmo lugar. 
“Abaixem!” 
Eles  se  deslocaram  para  o  lado,  os  ponteneiros  na  parte  de  baixo  pegando  em 
hastes  nas  laterais.  Era  desengonçado  e  difícil,  mas  os  homens  tinham  prática, 
aparentemente.  Eles  impediram  que  a  ponte  tombasse  enquanto  a  colocavam  no 
chão.  
“Empurrem!” 
Kaladin  cambaleou  para  trás,  confuso,  enquanto  os  homens  empurravam 
usando  as  hastes  nas  laterais  ou  no  fundo  da  ponte.  Eles  estavam  na  extremidade 
de  um  abismo  sem  uma  ponte  permanente.  Ao  redor,  os  outros  esquadrões 
empurravam suas próprias pontes adiante. 
Kaladin  espiou  logo  atrás.  O  exército  era  de  dois mil homens em verde floresta 
e  branco  puro.  Mil  e  duzentos  lanceiros  olhos-escuros  e  várias  centenas  de 
cavalarias  em  cima  de  raros,  preciosos  cavalos.  Atrás  deles,  um  grande  grupo  de 
apressados  homens  olhos-claros  em  armaduras  grossas,  carregando  grandes  maças 
e escudos quadrados de aço.  
Parecia  que  tinham  intencionalmente  escolhido  um  ponto  onde  o  abismo  era 
mais  estreito  e  o  primeiro  platô  fosse  um  pouco  mais alto que o segundo. A ponte 
era  duas  vezes  mais  longa  que  a  largura  do  abismo  aqui.  Gaz  praguejou  para  ele, 
então  Kaladin  se  juntou  aos  demais,  empurrando  a  ponte  pelo  terreno  acidentado 
com  um  som  estridente.  Quando  a  ponte  bateu  em  posição  no  outro  lado  do 
abismo,  o  esquadrão  de  ponte  recuou  para  permitir  que  a  cavalaria  cruzasse  aos 
galopes.  
Kaladin  estava  exausto  demais  para  assistir.  Ele  desabou  nas  pedras  e  deitou, 
ouvindo  o  som  dos  soldados  a  pé  marchando  enquanto  cruzavam  a  ponte.  Ele 
rolou  a  cabeça  para  o  lado.  Os  demais  ponteneiros  tinham  deitado  também.  Gaz 
andou  através  das  várias  equipes,  balançando  a  cabeça,  com  o  escudo  em  suas 
costas enquanto ele resmungava sobre a inutilidade dos homens.  
Kaladin  ansiava  ficar  ali  deitado,  encarando  o  céu,  indiferente  ao  mundo.  Seu 
treinamento,  no  entanto,  o  alertou  que  aquilo  poderia  o  deixar com câimbras. Isso 
faria  a viagem de volta ainda pior. Aquele treinamento… pertencia a outro homem, 
de  outra  época.  Quase  que  como  dos  dias  sombrios.  Mas  embora  Kaladin  talvez 
não ​fosse​ mais aquele homem, ele ainda podia levá-lo em ​consideração.​  
E  então,  com  um  grunhido,  Kaladin  se  forçou  a  sentar  e  começou  a massagear 
seus  músculos.  Soldados  atravessavam  a  ponte  em  fileiras  de  quatro  homens, 
lanças  erguidas  ao  alto,  escudos  na  dianteira.  Gaz  os  assistiu  com  uma  inveja 
notável,  e  a  ventispren  de  Kaladin dançava em torno da cabeça do homem. Apesar 
da  fadiga,  Kaladin  sentiu  uma  pontada  de  ciúme.  Por  que  ela estava atormentando 
aquele imbecil ao invés dele? 
Após alguns minutos, Gaz percebeu Kaladin e o encarou com uma carranca.  
“Ele está se perguntando porque você não está deitado,” disse uma voz familiar. 
O  homem  que  estava  correndo  ao lado de Kaladin deitava no chão a uma pequena 
distância,  encarando  o  céu.  Ele  era  mais  velho, com cabelo grisalho, e ele tinha um 
rosto  longo  e  enrugado  para  complementar  sua  voz  gentil.  Ele  parecia tão exausto 
quanto Kaladin se sentia.  
Kaladin  continuou  esfregando  as  pernas,  claramente  ignorando  Gaz.  Então  ele 
arrancou  algumas  porções  de  sua  veste-saca  e  atou  os  pés  e  ombros.  Felizmente, 
estava acostumado a andar descalço como um escravo, então o dano não tinha sido 
tão ruim. 
Enquanto  terminava,  os  últimos  dos  soldados  a  pé  atravessaram  a  ponte.  Eles 
foram  seguidos  por  vários  olhos-claros  montados,  usando  armaduras  brilhantes. 
No  centro  deles  cavalgava  um  homem  usando  uma  majestosa  Armadura-fracta 
vermelha  incandescente.  Ela  era  distinta  daquela  outra  que  Kaladin  tinha  visto  — 
cada  conjunto  era  dito  ser  uma  individual  obra  de  arte  —  mas  carregava  a  mesma 
sensação​. Ornada, intercalada, completa por um lindo elmo com um visor aberto.  
A  armadura  parecia  alienígena  de  certa  forma.  Fora  forjada  em  outra  era,  um 
tempo onde deuses percorriam por Roshar.  
“Aquele é o rei?” Kaladin perguntou. 
O outro ponteneiro riu cansadamente. “Ele bem que podia ser.” 
Kaladin se virou até ele, franzindo o cenho. 
“Se  aquele  fosse  o  rei,”  o  ponteneiro  explicou,  “então  ia  significar  que 
estaríamos no exército de Lorde-Brilhante Dalinar.” 
O  nome  era  vagamente  familiar para Kaladin. “Ele é um alto-príncipe, certo? O 
tio do rei?” 
“Sim.  O  melhor  dos  homens,  o  Portador-fracto  mais  honorável  no  exército do 
rei. Dizem que ele nunca quebrou sua palavra.” 
Kaladin fungou com desdém. Muito do mesmo tinha sido dito sobre Amaram. 
“Você  deveria desejar estar na força do Alto-Príncipe Dalinar, rapaz,” o homem 
mais velho disse. “Ele não usa esquadrões de pontes. Ao menos, não como estes.” 
“Muito bem, seus cremilins!” Gaz berrou. “De pé!” 
Os  ponteneiros  grunhiram,  levantando-se  aos  tropeços.  Kaladin  suspirou.  O 
breve  descanso  fora  apenas  o  suficiente  para  mostrar  o  quão  exausto  ele  estava. 
“Estarei feliz em voltar,” ele murmurou. 
“Voltar?” o ponteneiro enrugado indagou. 
“Não estamos voltando?” 
Seu  amigo  sorriu  ironicamente.  “Rapaz,  não estamos ​nem perto de chegar ainda. 
Fique feliz de não estarmos. Chegar é a pior parte.” 
E  então,  o  pesadelo  começou  sua  segunda  fase.  Eles  atravessaram  a  ponte,  a 
puxaram  logo  atrás,  então  a  ergueram  nos  ombros  doloridos  mais  uma  vez.  Eles 
cruzaram  o  platô  a  trotes.  Do  outro  lado,  abaixaram  a  ponte  novamente  para 
conectar  outro  abismo.  O  exército  atravessou,  e  era  hora  de  carregar  a  ponte 
novamente. 
Eles  repetiram  isso  uma  boa  dúzia  de  vezes.  Os  ponteneiros  conseguiam 
descansar  entre  as  carregadas,  mas  Kaladin  estava  tão  dolorido  e  sobrecarregado 
que  as  breves  pausas  não eram o suficiente. Ele mal conseguia recuperar o fôlego a 
cada vez, antes de ser forçado a pegar a ponte novamente.  
Era  esperado  que  fossem  rápidos  quanto  a  isso.  Os  ponteneiros  conseguiam 
descansar  enquanto  o  exército  fazia  a  travessia,  mas  tinham  que  compensar  pelo 
tempo  perdido  correndo  através  dos  platôs — ultrapassando as tropas de soldados 
—  para  que  conseguissem  chegar  no  próximo  abismo  antes  do  exército.  Em  um 
ponto,  seu  amigo  de  rosto  enrugado o avisou de que se não posicionassem a ponte 
rápido  o  suficiente,  seriam  punidos  com  chibatadas  quando  retornassem  ao 
acampamento. 
Gaz  dava  ordens,  xingando  os  ponteneiros,  chutando-os  quando  se  moviam 
muito  devagar,  jamais  fazendo algum trabalho de verdade. Não levou muito tempo 
para  que  Kaladin  nutrisse  um  ódio  fervente  pelo  homem  magrelo  e  repleto  de 
cicatrizes.  Aquilo  era  estranho;  ele  nunca  sentira  ódio  por  seus  outros  sargentos. 
Era o ​trabalho​ deles xingar os homens e mantê-los motivados.  
Isso  não  era  o  que  queimava  Kaladin.  Gaz  tinha  o  mandado  para  esta  viagem 
sem  sandálias  ou  colete.  Apesar de suas ataduras, Kaladin iria carregar cicatrizes do 
trabalho  deste  dia.  Ele  estaria  tão  machucado  e  duro  pela  manhã  que  não  seria 
capaz de andar.  
O  que  Gaz  tinha  feito  era  a  marca  de  um  valentão  mesquinho.  Ele  arriscou  a 
missão perdendo um carregador, tudo por causa de um rancor precipitado.  
Homem  tempestuoso,​   Kaladin  pensou,  usando  seu  ódio  por  Gaz  para  sustentá-lo 
através  da  provação.  Kaladin  colapsou  várias  vezes  após  empurrar  a  ponte  no 
lugar,  estando  certo  de  que  nunca  seria  capaz  de  ficar  de  pé  novamente.  Mas 
quando  Gaz  os  mandava  se  levantar,  Kaladin  de  alguma  maneira  lutava  para  se 
erguer. Era isso ou deixar que Gaz vencesse.  
Por  que  estavam  passando  por  tudo  isso?  Qual  era  o  propósito?  Por  que 
estavam  correndo  tanto?  Eles  tinham  que  proteger  a  ponte,  o  peso  precioso,  a 
carga. Eles tinham que segurar o céu e correr, tinham que… 
Ele estava começando a delirar. Pés, correndo. Um, dois, um, dois, um, dois. 
“Parem!” 
Ele parou. 
“Ergam!” 
Ele ergueu as mãos. 
“Abaixem!” 
Ele pisou para trás, então abaixou a ponte. 
“Empurrem!” 
Ele empurrou a ponte. 
Morram.  
Aquele  último  comando  vinha  de  si  mesmo,  adicionado  a  cada  vez. Ele caiu de 
costas  para  o  chão  rochoso,  um  botão-de-pedra  retraindo  as  vinhas  rapidamente 
quando ele as tocou. Kaladin fechou os olhos, sem conseguir mais se importar com 
câimbras.  Ele  entrou  em  um  transe,  uma  espécie  de  meio  sono,  pelo  que  pareceu 
durar por apenas uma batida de coração.  
“Levantem!” 
Ele se ergueu, cambaleando com pés que sangravam. 
“Atravessem!” 
Ele  atravessou,  não  se  importando  em  olhar  para  a  queda  mortal  em  ambos  os 
lados. 
“Puxem!” 
Ele agarrou uma haste e puxou a ponte através do abismo atrás dele. 
“Troquem!” 
Kaladin  travou,  em  silêncio.  Ele  não  compreendeu aquele comando; Gaz não o 
tinha  dado até então. As tropas estavam formando fileiras, movendo-se com aquela 
mistura  de  nervosismo  e  relaxamento  forçado  que  homens  geralmente  passam 
antes  de  uma  batalha.  Alguns  inquietisprens  —  em  forma  de  serpentinas 
vermelhas,  surgindo  do  chão  e  se  contorcendo  ao  vento  —  começaram  a  brotar 
da rocha e ondular entre os soldados. 
Uma batalha? 
Gaz  agarrou  o  ombro  de  Kaladin e o empurrou para a parte da frente da ponte. 
“Recém-chegados  vão  por  primeiro  nesta  parte,  Fidalgote.”  O  sargento  sorriu 
perversamente.  
Kaladin  silenciosamente  pegou  a  ponte  com  os  demais,  erguendo-a  sobre  sua 
cabeça.  As  hastes  para  segurar  eram  as  mesmas  aqui,  mas  esta  fila  dianteira  tinha 
uma  abertura  entalhada  na  frente  do  seu  rosto,  permitindo que enxergasse adiante. 
Todos  os  ponteneiros  tinham  trocado  de  posição;  os  homens  que  vinham 
correndo  na  frente  foram  para  trás,  e  aquelas  atrás  —  incluindo  Kaladin  e  o 
ponteneiro de rosto enrugado — foram para a frente. 
Kaladin  não  perguntou  o  motivo.  Ele  não  se  importava.  Gostava  da  parte  da 
frente, no entanto; correr era mais fácil agora que podia ver para onde estava indo.  
A  paisagem  nos  platôs  era  a  de  acidentadas  terras-tempestas;  havia  trechos  de 
grama  espalhados,  mas  a  pedra  aqui  era  dura  demais  para  que  as  sementes  se 
enterrassem  completamente.  Botões-de-pedra  eram mais comuns, crescendo como 
bolhas  no  decorrer  de  todo  o  platô,  imitando  rochas do tamanho da cabeça de um 
homem.  Muitos  dos  botões  eram  partidos,  despejando  suas vinhas para fora como 
grossas línguas verdes. Alguns estavam até mesmo florescendo.   
Após  tantas  horas  respirando  nos  confinamentos  abafados  debaixo  da  ponte, 
correr  na parte da frente era quase relaxante. Por que tinham dado uma posição tão 
maravilhosa para um recém-chegado? 
“Talenelat’Elin,  portador  de  todas  as  agonias,”  disse  o homem à sua direita, sua 
voz horrorizada. “Vai ser bem feio. Eles já estão alinhados! Vai ser bem feio!”   
Kaladin  piscou,  focando  no  abismo  ao  qual  se  aproximavam.  Do outro lado da 
fenda  estava  uma  fileira  de  homens  de  pele  negra  mesclada  ao  escarlate.  Eles 
vestiam  uma  estranha  armadura  laranja  e  enferrujada  que  cobria  os  antebraços, 
peitos,  cabeças,  e  pernas.  Levou  um  momento  para  que  sua  mente  entorpecida 
compreendesse.  
Os Parshendi. 
Eles  não  eram  como  trabalhadores  parshimens  comuns.  Eram  bem  mais 
musculosos,  muito  mais  ​sólidos​.  Eles  tinham o porte fortalecido de soldados, e cada 
um  deles  carregava  uma  arma  amarrada  nas  costas.  Alguns  usavam barbas pretas e 
vermelho-escuro,  amarradas  com  pequenos  pedaços  de  pedra,  enquanto  outros 
não contavam com barba alguma. 
Enquanto  Kaladin  assistia,  a  fileira  de  Parshendis  da  frente  se  ajoelhou.  Eles 
seguravam  arcos  curtos,  as  flechas  preparadas. Não arcos longos, feitos para lançar 
flechas  para  alto  e  longe.  Arcos  curtos,  recurvados,  para  dispararem  reto,  rápido  e 
forte.  Um  arco  excelente  de  se  usar para matar um grupo de ponteneiros antes que 
pudessem abaixar sua ponte.  
Chegar é a pior parte… 
Agora, finalmente, o ​verdadeiro​ pesadelo começava.  
Gaz  ficou  para  trás,  berrando  para  que  os  esquadrões  de  ponte  continuassem 
em  frente.  Os  instintos  de  Kaladin  gritavam  para  que  ele  saísse  da  linha  de  fogo, 
mas  o  impulso  da  ponte  o  forçou  adiante.  Forçou-o  a descer a garganta da própria 
besta, com os dentes prestes a se fecharem.  
A  exaustão  e  a  dor  de  Kaladin  sumiram.  Ele  estava  em  choque,  alerta.  As 
pontes  dispararam  em  frente,  os  homens  atrás  delas  gritando  enquanto  corriam. 
Corriam em direção à morte. 
Os arqueiros atiraram.  
A  primeira  onda  matou  o  amigo com rosto enrugado de Kaladin, derrubando-o 
com  três  flechas  distintas.  O  homem  à  esquerda  de  Kaladin  tombou  também  — 
Kaladin  nem  sequer  tinha  visto  seu  rosto.  O  homem  gritou  enquanto  caía,  não 
instantaneamente  morto,  mas  acabou sendo pisoteado pelo esquadrão de ponte . A 
ponte se tornava notavelmente mais pesada conforme homens morriam. 
Os  Parshendi  calmamente  prepararam  uma  segunda  saraivada  e  atiraram.  Ao 
lado,  Kaladin  mal  notou  outro  esquadrão  de  ponte  se  debatendo.  Os  Parshendi 
pareciam  focar  seus  disparos  em  certas  equipes.  Aquela  ali  recebeu  uma  onda 
completa  de  flechas  de  dúzias  de  arqueiros,  e  as  três  primeiras  fileiras  de 
ponteneiros  caíram,  fazendo  aqueles  logo  atrás  tropeçarem.  A  ponte  deles  guinou, 
derrapando  pelo  chão  e  emitindo  um  repugnante  som  triturador  enquanto  as 
massas de corpos caíam umas sobre as outras.  
Flechas  zuniram,  passando  por  Kaladin,  matando  os  outros  dois  homens  que 
estavam  na  fileira  da  frente  com  ele.  Várias  outras  flechas  se  cravaram  na  madeira 
ao seu redor, uma delas cortando a pele de sua bochecha.  
Ele  gritou.  Em  horror,  em  choque,  em  dor,  em  puro  espanto.  Jamais  tinha  se 
sentido  tão  impotente  em  uma  batalha.  Ele  já  havia  investido  contra  fortificações 
inimigas,  já havia corrido sob saraivadas de flechas, mas ele sempre sentiu um certo 
nível de controle. Ele tinha sua lança, tinha seu escudo, ele podia revidar. 
Não  desta  vez.  Os  esquadrões  de  pontes  eram  como  porcos  correndo  para  o 
abate. 
Uma  terceira  saraivada  voou,  e  outro esquadrão dentre os vinte caiu. Chuvas de 
flechas  vinham  do  lado  Aléthi  também,  caindo  e  atingindo  os  Parshendi.  A  ponte 
de  Kaladin  estava  quase  no  abismo.  Ele  conseguia  ver  os  olhos  negros  dos 
Parshendi  do  outro  lado,  podia  notar os traços faciais em seus rostos finos. Ao seu 
redor,  ponteneiros  gritavam  em  dor,  as  flechas os cortando abaixo das pontes. Um 
som estrondoso ecoou enquanto outra ponte caía, seus ponteneiros dizimados. 
Atrás, Gaz gritava. “Ergam e abaixem, seus idiotas!” 
O  esquadrão de ponte freou enquanto os Parshendi disparavam outra saraivada. 
Homens  atrás  de  Kaladin  gritaram.  Os  disparos  Parshendi  foram  interrompidos 
por  uma  contra-saraivada  do  exército  Aléthi.  Embora  estivesse  chocado  e 
desorientado,  os  reflexos  de  Kaladin  sabiam  o  que  fazer.  Abaixar  a  ponte,  entrar 
em posição para empurrar. 
Isso  expôs  os  ponteneiros  que  estavam  a  salvo  nas  posições  traseiras.  Os 
arqueiros  Parshendi  obviamente  sabiam  que  isso  aconteceria;  eles  prepararam  e 
lançaram  uma  última  saraivada.  Flechas  atingiram  a  ponte  em  uma  onda, 
derrubando  uma  meia  dúzia de homens, borrifando sangue sobre a madeira escura. 
Medosprens  —  violetas  e  tremulantes  —  brotaram  através  da  madeira  e  se 
contorceram  no  ar.  A  ponte  balançou,  tornando-se  muito  mais  difícil  de  ser 
empurrada quando tinham subitamente perdido tantos homens. 
Kaladin  vacilou,  suas  mãos  escorregadias.  Ele  caiu  de  joelhos,  sendo 
arremessado em direção ao abismo, conseguindo se segurar por pouco. 
Ele  balançou,  uma  das  mãos  pendendo  acima  do  vazio,  a  outra  agarrando  a 
extremidade  do  platô.  Sua  mente  além  do  limite  se arrepiou em vertigo quando ele 
encarou  abaixo  do  penhasco,  através  da  escuridão.  A  altura  era  linda;  ele  sempre 
amou escalar grandes formações rochosas com Tien. 
Por  reflexo,  ele  se  empurrou  de  volta  para  o  platô,  escalando.  Um  grupo  de 
soldados,  protegidos  por  escudos,  tinha  tomado  posições empurrando a ponte. Os 
arqueiros  do  exército  trocavam  flechadas  com  os  Parshendi  enquanto  os  soldados 
empurraram  a  ponte  em  posição,  a  cavalaria  pesada  cruzando  então  em  disparada, 
colidindo  com  os  Parshendi.  Quatro  pontes  tinham  caído,  mas  dezesseis  tinham 
sido posicionadas em sequência, permitindo uma investida efetiva. 
Kaladin  tentou  se  mover,  tentou  rastejar  para  longe  da  ponte.  Mas  ele  apenas 
desabou  onde  estava,  seu  corpo  se  recusando  a  obedecer.  Ele  sequer  conseguia 
ficar de bruços.  
Eu  deveria  ir…  ele  pensou  em  exaustão.  ​Ver  se  aquele  homem  enrugado  ainda  está 
vivo… Atar suas feridas… Salvar...    
Mas  ele  não  pôde.  Não  conseguia  se  mover.  Não  conseguia  pensar.  Para  seu 
vexame,  ele  apenas  deixou  que  seus  olhos  se  fechassem,  entregando-se  para  a 
inconsciência.  
 
— 
 
“Kaladin.” 
Ele  não  queria  abrir  os  olhos.  Acordar  significava  retornar  para  aquele  terrível 
mundo  de  dor.  Um  mundo  onde  homens  exaustos  e  indefesos  eram  forçados  a 
investir contra fileiras de arqueiros. 
Aquele mundo era um pesadelo. 
“Kaladin!”  A  voz  feminina  era  suave,  como  um  sussurro,  mas  ainda  urgente. 
“Eles vão te deixar. Levante-se! Você vai morrer!” 
Eu não posso… Eu não posso voltar… 
Me deixe. 
Algo  bateu  contra  seu  rosto,  um  leve  ​tapa  de  energia  que  pareceu  picar.  Ele  se 
encolheu.  Não  era  nada  comparado  a  suas  outras  dores,  mas  era  de  alguma  forma 
muito  mais  exigente.  Ele  levantou  uma  das  mãos,  golpeando,  como  que  para 
afastar um inseto. O movimento foi o suficiente para dispensar os últimos vestígios 
de estupor.  
Ele  tentou  abrir  os  olhos.  Um  deles  se  recusou,  o  sangue  de  um  corte  em  sua 
bochecha  tendo  deslizado  e  secado  ao  redor  da  pálpebra.  O  sol  tinha  se  movido. 
Horas  se  passaram.  Ele  gemeu  —  sentando-se,  esfregando  o  sangue  seco  em  seu 
olho.  O chão ao seu redor estava repleto de corpos. O ar cheirava a sangue e coisas 
piores.  
Um  par  de  lamentáveis  ponteneiros  chacoalhava  cada  homem  em  turnos, 
checando  por  sinais  de  vida,  tomando  então  os  coletes  e  sandálias  dos  corpos, 
afastando  para  longe  os  cremilins  que  se  alimentavam  dos  cadáveres.  Os  homens 
jamais  teriam  checado  por  Kaladin.  Ele  não  tinha nada que pudessem levar. Eles o 
teriam deixado com os corpos, abandonado no platô.  
A  ventispren  de  Kaladin  esvoaçou  pelo  ar  logo  acima,  movendo-se 
ansiosamente.  Ele  esfregou  sua  maxila  onde  ela  tinha o golpeado. Esprens grandes 
como  ela  podiam  mover  pequenos  objetos  e  dar leves beliscões de energia. Isso os 
tornava ainda mais irritantes.  
Desta  vez,  isso  tinha  provavelmente  salvado  sua  vida.  Ele  gemeu  para todos os 
lugares  que  lhe  doíam.  “Você  tem  um  nome, espírito?” ele perguntou, forçando-se 
a levantar com seus pés machucados.  
No  platô  para  o  qual  o  exército  tinha  atravessado,  soldados  revistavam  os 
corpos  dos  Parshendi  mortos,  procurando  por  algo.  Coletando  equipamento, 
talvez?  Parecia  que  a  força  de  Sadeas  tinha  vencido.  Ao  menos,  não  parecia  haver 
nenhum Parshendi ainda vivo. Eles tinham sido mortos ou fugido. 
O  platô  ao  qual  eles  tinham  lutado  se  parecia  exatamente  como  os  outros  aos 
quais  haviam  atravessado.  A  única  coisa  diferente  aqui  era  que  havia  um  grande 
amontoado  de…  algo  no  centro  do  platô.  Parecia-se  como  um  enorme 
botão-de-pedra,  talvez  algum  tipo  de  crisálida  ou  concha,  com  uns  bons  seis 
metros  de  altura.  Um  dos  lados  tinha  sido  aberto  aos  cortes,  expondo  entranhas 
gosmentas.  Ele  não tinha percebido a coisa na investida inicial; os arqueiros tinham 
demandado toda a sua atenção. 
“Um  nome,”  a  ventispren  falou, sua voz distante. “Sim, eu ​tenho um nome.” Ela 
parecia surpresa ao olhar para Kaladin. “Por que eu tenho um nome?” 
“Como eu deveria saber?” Kaladin respondeu, forçando-se a se mover. Seus pés 
arderam em dor. Ele mal conseguia mancar.  
Os  ponteneiros  por  perto  o  olharam  com  surpresa,  mas  ele  os  ignorou, 
mancando  pelo  platô  até  encontrar  o  corpo  de  um  ponteneiro  que  ainda  tinha  o 
colete  e  calçados.  Era  o  homem  de  rosto  enrugado  que  tinha  sido  tão  gentil  com 
ele,  morto  com  uma  flecha  através  do  pescoço.  Kaladin  ignorou  aqueles  olhos 
chocados  e  sem  expressão  que  encaravam  o  céu, e coletou as vestes do homem — 
colete  e  sandálias  de  couro,  e  uma  camisa  manchada  de  vermelho  com  sangue. 
Kaladin  sentiu  nojo  de  si  mesmo,  mas ele não podia contar com que Gaz fosse lhe 
dar vestes.  
Kaladin  se  sentou  e  usou  as  partes  mais  limpas  da  camisa  para  trocar  suas 
bandagens  improvisadas,  então  vestiu  o  colete  e  calçou  as  sandálias,  tentando  não 
se  mexer  muito.  Uma  brisa  soprava  agora,  carregando  para  longe  os  cheiros  de 
sangue  e  os  sons  de  soldados  chamando  uns  aos  outros.  A  cavalaria  já  estava 
entrando em posição, como que ansiosos para retornar.  
“Um  nome,”  a  ventispren  disse,  andando  pelo  ar  para  ficar  ao lado do rosto de 
Kaladin.  Ela  estava  na  forma  de  uma  jovem  mulher,  completa  com  uma  saia 
esvoaçante e pés delicados. “Sylphrena.” 
“Sylphrena,” Kaladin repetiu, amarrando as sandálias. 
“Syl,”  o  espírito  disse.  Ela  espichou  a  cabeça.  “Isso  é  interessante.  Parece  que 
tenho um apelido.” 
“Parabéns.” Kaladin se levantou novamente, cambaleando.  
Ao  lado,  Gaz  se  encontrava  com  as  mãos  na  cintura,  escudo  amarrado  nas 
costas.  “Você,”  ele  disse,  apontando para Kaladin. Ele então gesticulou em direção 
a ponte.  
“Só  pode  estar  de  brincadeira,”  Kaladin  disse,  olhando  para  os  remanescentes 
da  equipe  —  restava  menos  da  metade  de  seu  número inicial — reunidos ao redor 
da ponte.  
“Ou  carrega,  ou  fica  para  trás,”  Gaz  disse.  Ele  parecia  irritado  com  alguma 
coisa. 
Eu  devia  supostamente  ter  morrido​,  Kaladin  percebeu.  ​É  por isso que ele não se importou 
se  eu  tinha  um  colete  ou  sandálias.  ​Eu  estava  na  parte  da  frente.  Kaladin  foi  o  único  da 
primeira fileira que conseguiu sobreviver.  
Kaladin  quase  se  sentou  para  deixar  irem  embora  sem  ele.  Mas  morrer  de  sede 
em  um  platô  solitário  não  era  a  maneira  que  tinha  escolhido  para  partir.  Ele 
cambaleou até a ponte. 
“Não  se  preocupe,”  disse  um  dos  outros  ponteneiros.  “Eles  vão  nos  deixar  ir 
devagar  desta  vez,  com  várias  pausas.  E  teremos  alguns  soldados  para  ajudar  — 
precisamos de pelo menos uns vinte homens para levantar a ponte.” 
Kaladin  suspirou, colocando-se em posição enquanto alguns soldados sem sorte 
se  juntavam  a  eles.  Juntos,  eles  levaram  a  ponte  até  o  ar.  Estava  terrivelmente 
pesada, mas eles conseguiram, de alguma forma.  
Kaladin  andou,  sentindo-se  entorpecido.  Ele  achou  que  não  existia  mais  nada 
que  a  vida  pudesse  fazer  com  ele,  nada  pior  do  que  uma  marca  escrava  com ​shash, 
nada  pior  do  que  perder  tudo  o que já teve para a guerra, nada mais terrível do que 
fracassar com aqueles aos quais tinha jurado proteger.  
Aparentemente, tinha se enganado. ​Havia algo a mais que podiam fazer com ele. 
Um tormento final que o mundo reservou especialmente para Kaladin. 
E ele se chamava Ponte Quatro.   
7  
QUALQUER COISA RAZOÁVEL 
 
"Eles  ardem.  Eles  queimam.  Eles  trazem  a  escuridão  quando  chegam,  e  então  tudo  o 
que se pode ver é que suas peles estão em chamas. E queima, queima, queima…” 
 
—  Coletado  em  Palahishev,  1172,  21  segundos  pré-morte.  O  exemplar  era um aprendiz 
de padeiro.  
 
 
Shallan  se  apressou  pelo  corredor  de  coloração  laranja-queimado,  o  teto  e  a 
parte  superior  das  paredes  agora  manchadas  pela  passagem  da  fumaça  negra  da 
Moldagem  de  Alma  de  Jasnah.  Esperançosamente,  as  pinturas  nas  paredes  não 
seriam arruinadas. 
Logo  adiante,  um  pequeno  grupo  de  parshimens  chegou,  carregando  trapos, 
baldes,  e  escadas  para  serem  usados  na  limpeza  da  fuligem.  Eles  se  curvaram 
enquanto  ela  passava,  sem  proferirem  palavra  alguma.  Parshimens  podiam  falar, 
mas  raramente  o  faziam.  Muitos  pareciam  mudos.  Quando  criança, Shallan achava 
lindos  os  padrões  mármores  de  suas  peles.  Aquilo  tinha  sido  antes  de  seu  pai 
proibi-la de passar tempo com os parshimens. 
Ela  focou sua mente para a tarefa. Como iria convencer Jasnah Kholin, uma das 
mulheres  mais  poderosas  do  mundo,  a  mudar  de  ideia  sobre  aceitar  Shallan  como 
aprendiz?  A  mulher  era  obviamente  obstinada;  ela  passou  anos  resistindo  às 
tentativas de reconciliação dos devotários.  
Shallan  reentrou  na  larga  caverna  principal,  com  seu  sublime  teto  de  pedra  e 
numerosos  ocupantes  bem  vestidos.  Ela  se  sentiu  assustada,  mas  aquele  breve 
vislumbre  da  Mold’alma  a  seduziu.  Sua  família,  Casa  Davar,  tinha prosperado nos 
anos  recentes,  saindo  da  obscuridade.  Isso tinha sido principalmente por conta das 
habilidades  políticas  de  seu  pai  —  ele  fora  odiado  por  muitos,  mas  sua  crueldade 
tinha  o  carregado  até  longe.  Assim  como  a  riqueza  provinda  da  descoberta  de 
vários novos e importantes depósitos de mármore nas terras Davar. 
Shallan  nunca  soube  o  suficiente  para  suspeitar  das  origens  daquela  riqueza. 
Cada vez que a família esgotava uma das pedreiras, seu pai saía com seu agrimensor 
e  descobria  uma  nova.  Apenas  após  interrogar  o  agrimensor  foi que Shallan e seus 
irmãos  descobriram  a  verdade:  seu  pai,  usando  a  Mold’alma  proibida,  estivera 
criando  novos  depósitos  numa  frequência  cautelosa.  Não  o  suficiente  para  ser 
suspeito.  Apenas  o  bastante  para  lhe  dar  o  dinheiro  que  precisava  para  continuar 
suas investidas políticas. 
Ninguém  sabia  onde  ele  tinha  conseguido  a  fabrial,  a  qual  Shallan  agora 
carregava  em  sua  bolsa-modesta.  Estava  inutilizada,  danificada  na  mesma  noite 
desastrosa  em  que  seu  pai  tinha  falecido.  ​Não  pense  sobre  aquilo,​   ela  falou  para  si 
mesma forçadamente. 
Eles  tinham  pedido  a  um  joalheiro  para  reparar  a  Mold’alma  quebrada,  mas  ela 
não  funcionava  mais. O mordomo da casa — um dos confidentes próximos de seu 
pai  e  assessor  chamado  Luesh  —  tinha  sido  treinado  para  usar  o  dispositivo,  e  ele 
não conseguia mais fazê-lo funcionar.  
As  dívidas  e  promessas  de  seu  pai  eram  ultrajantes. As escolhas da família eram 
limitadas.  Eles  tinham  algum  tempo  —  talvez  em  torno  de  um  ano  — antes que a 
inadimplência  dos  pagamentos  se  tornassem  escandalosas,  e  que  a  ausência  de  seu 
pai  se  tornasse  óbvia.  Pela  primeira  vez,  as  propriedades  de  sua  família,  isoladas  e 
localizadas  no  interior,  eram  uma  vantagem,  provendo  uma  razão  para  que 
comunicados  estivessem  sendo  atrasados.  Seus  irmãos  estavam  aos  tropeços, 
escrevendo  cartas  em  nome  do  pai,  fazendo  algumas  aparições  e  espalhando 
rumores de que Lorde-Brilhante Davar estava planejando algo grande.  
Tudo  para  dar  tempo  a  ela,  para  que  conseguisse  executar  seu  ousado  plano. 
Encontrar  Jasnah  Kholin. Tornar-se sua aprendiz. Aprender onde ela mantinha sua 
Mold’alma. E então substituí-la pela outra que não mais funcionava.  
Com  a  fabrial,  eles  seriam  capazes  de  fazer  novas  pedreiras  e  restaurar  suas 
riquezas.  Seriam  capazes  de  fazer  comida  para  alimentar  os  soldados  de  sua  casa. 
Com  fortuna  o  suficiente  em  mãos  para  pagar  dívidas  e  fazer  subornos,  eles 
poderiam anunciar a morte de seu pai e não sofrer destruição. 
Shallan  hesitou  no  pátio  de  entrada,  considerando  seu  próximo  passo.  O  que 
tinha  planejado  fazer  era  muito  arriscado.  Ela  teria  que  escapar  sem  implicar  a  si 
mesma  no  roubo.  Embora  tivesse  pensado  muito  a  respeito,  ela  ainda  não  sabia 
como  conseguiria  fazer  isso.  Mas  Jasnah  era  conhecida  por  ter  muitos  inimigos. 
Deveria existir uma maneira de atribuir a culpa da “danificação” da fabrial até eles. 
Esse  passo  viria  depois.  Por  hora, Shallan ​tinha que convencer Jasnah a aceitá-la 
como aprendiz. Qualquer outro resultado era inaceitável. 
Nervosamente,  Shallan  segurou  os  braços  em  sinal  de  necessidade,  sua 
mão-modesta  coberta  cruzando  o  peito  e  tocando  o  cotovelo  do  outro  braço,  a 
mão-livre  erguida  com  os  dedos estendidos. Uma mulher se aproximou, vestindo a 
camisa  de  rendas  bem  passada  e  saia  preta  que  eram  as  marcas  universais  de  uma 
serva-mestra. 
A mulher robusta fez uma reverência. “Brilhanteza?” 
“O Palanium,” Shallan disse. 
A  mulher  se  curvou  e  guiou  Shallan  mais  afundo  do  longo  corredor. A maioria 
das  mulheres  aqui  —  servas  inclusas  —  usavam  o cabelo preso, e Shallan se sentiu 
conspícua com o seu solto. A escura cor vermelha a fazia se destacar ainda mais. 
Após  alguns  momentos,  o  grande corredor começou a abruptamente se inclinar 
para  baixo.  Mas  quando  a  meia-hora  chegou,  Shallan  ainda  pôde  ouvir  sinos 
distantes  badalando  atrás  dela.  Talvez  fosse  essa  a razão das pessoas aqui gostarem 
tanto  deles;  até  mesmo  nas  profundidades  do  Conclave  ainda  se conseguia ouvir o 
mundo exterior.  
A  serva  a  guiou  até  um  par  de  grandiosas  portas  de  metal.  Ela  se  curvou  e 
Shallan a dispensou com um aceno de cabeça.  
Shallan  não  pôde  evitar  de  admirar  a  beleza  das  portas;  o  exterior  delas  era 
esculpido  em  um  intrincado  padrão  geométrico  com  círculos  e  linhas  e  glifos.  Era 
algum  tipo  de  diagrama,  metade  em  cada  porta.  Não  havia  tempo  para  se  estudar 
os detalhes, infelizmente, e ela os deixou para trás.  
Para  além  das  portas,  encontrava-se  um  grande salão de tirar o fôlego. Os lados 
eram  de  pedra  suave  e  eles  se  erguiam  para  o  alto;  a  iluminação  fosca  tornava 
impossível  de  se  dizer  o  quão  alto,  mas  ela  viu  tremulações de luzes distantes. Nas 
paredes,  encontravam-se  dúzias  de  pequenas  sacadas,  muito  parecidas  com 
camarotes  privados  de  um  teatro.  Luz  suave  brilhava  de  muitos  destes.  Os  únicos 
sons  presentes  eram  de  páginas  virando  e  leves  sussurros.  Shallan  levou  sua 
mão-modesta ao peito, sentindo-se diminuída pela magnífica câmara. 
“Brilhanteza?”  um  jovem  servo-mestre  perguntou,  aproximando-se.  “Do  que 
precisa?” 
“Um  novo  senso  de  perspectiva,  aparentemente,”  Shallan  respondeu 
distraidamente. “Como…” 
“Este salão é chamado de Véu,” o servo explicou suavemente. “Aquele que veio 
antes  do  próprio  Palanium.  Ambos  estavam  aqui  quando  a  cidade  foi  fundada. 
Algumas  pessoas  acham  que estas câmaras possam ter sido cortadas pelos próprios 
Cantores da Alvorada.” 
“Onde estão os livros?” 
“O  Palanium  propriamente  fica  nesta  direção.”  O  servo  gesticulou,  guiando-a 
até  um  par  de  portas  no  outro  lado  do  salão.  Através  delas,  ela  adentrou  uma 
câmara  menor  que  era  particionada  com  paredes  de  cristal  grosso.  Shallan  se 
aproximou  da  mais  próxima,  sentindo-a.  A  superfície  do  cristal  era  áspera  como 
rocha talhada. 
“Moldagem de Alma?” ela perguntou.  
O  servo  concordou  com  a  cabeça.  Atrás  dele,  um  outro  servo  passou  guiando 
um  ardente  idoso.  Como  a  maioria  dos  ardentes,  o  envelhecido homem tinha uma 
cabeça  raspada e barba longa. Sua simples túnica cinza era amarrada com uma faixa 
marrom.  O  servo  o  guiou  até  um  canto,  e  Shallan  conseguia  vagamente  distinguir 
suas formas do outro lado, as sombras nadando através do cristal.  
Ela  deu  um  passo  adiante,  mas  seu  servo  limpou  a  garganta.  “Precisarei  de  seu 
memorando de entrada, Brilhanteza.” 
“Quanto custa um?” Shallan perguntou hesitantemente.  
“Mil contas de safira.” 
“Tanto assim?” 
“Os  vários  hospitais  do  rei  requerem  muita  manutenção,”  o  homem  disse,  se 
desculpando.  “As  únicas  coisas  que  Kharbranth  possui  para  vender  são  peixe, 
sinos,  e  informação.  As  duas  primeiras  dificilmente  nos  são  exclusivas.  Mas  a 
terceira…  bom,  o  Palanium  conta  com  a  mais  fina  coleção  de  tomos  e 
pergaminhos  em  Roshar.  Mais,  até,  que  o  Santo  Enclave  em  Valath.  Na  última 
contagem, havia mais de setecentos mil textos distintos em nosso acervo.” 
O  pai de Shallan tinha possuído exatamente oitenta e sete livros. Ela tinha lido a 
todos  várias  e  várias  vezes.  O  quanto  podia  ser  contido  em  ​setecentos  mil  livros?  O 
peso  de  tanta  informação  a  deslumbrou.  Ela  se  deparou  faminta  para  vasculhar 
aquelas estantes escondidas. Ela poderia passar meses apenas lendo seus títulos.  
Mas  não.  Talvez assim que se certificasse de que seus irmãos estavam a salvo — 
assim  que as finanças de sua casa tivessem sido restauradas — ela pudesse retornar. 
Talvez.  
Ela  sentiu  como  se  estivesse  morrendo  de  fome,  mas  deixando  uma  torta  de 
frutas  quentinha  para  trás,  sem  nem  ao  menos  mordê-la. “Onde eu devo esperar?” 
ela perguntou. “Se alguém que eu conheço estiver aí dentro.” 
“Poderá  usar  uma  das  alcovas  de  leitura,”  o  servo  disse,  relaxando.  Talvez  ele 
tivesse  temido  que  ela  acabasse  fazendo  um  escândalo.  “Nenhum  memorando  é 
exigido  para  que  se  sente  em  uma  delas.  Temos  carregadores  parshimem  que  a 
levantarão até os níveis superiores, se assim desejar.” 
“Obrigada,”  Shallan  disse,  dando  as  costas para o Palanium. Ela se sentiu como 
uma  criança  novamente,  trancada  em  seu  quarto,  proibida  de  correr  pelos  jardins 
por  causa  dos  medos  paranoicos  de  seu  pai.  “Brilhanteza  Jasnah  já  tem  uma 
alcova?” 
“Posso  verificar,”  o  servo  disse,  retornando  pelo  caminho  para o Véu, com seu 
teto  distante  e  pouco  visível.  Ele  se  apressou  para  falar  com  alguns  outros, 
deixando Shallan parada ao lado da entrada para o Palanium.  
Ela podia correr para dentro. Passar despercebida— 
Não.  Seus  irmãos  a provocavam por ser tímida demais, mas não foi timidez que 
a  impediu.  Haveria  guardas,  sem  dúvidas;  entrar  sem  permissão  não  seria  apenas 
inútil,  mas  iria  também  arruinar  qualquer chance que tivesse de fazer Jasnah mudar 
de ideia.  
Fazê-la  mudar  de  ideia,  provar  a  si  mesma.  Considerar  isso fez Shallan se sentir 
nauseada.  Ela  ​odiava  confrontações.  Durante  sua  juventude,  ela  se  sentira  como 
uma  peça  delicada  de  louça  de  cristal,  trancada  em  um  armário  para  ser  exibida, 
mas  nunca  tocada.  A  única  filha,  a  última  lembrança  da  amada  esposa  de 
Lorde-Brilhante  Davar.  Ainda  lhe  parecia  estranho  ser  ​ela  aquela  a tomar as rédeas 
após… Após o incidente… Após…  
Memórias  a  atacaram.  Nan  Balat  machucado,  seu  casaco  rasgado.  Uma  longa 
espada  prateada  nas  mãos  dela,  afiada  o  suficiente  para  cortar  pedras  como  se 
fossem água. 
Não​,  Shallan  pensou,  suas  costas  contra  a  parede  de  pedra,  agarrando  sua bolsa 
de couro. ​Não. Não pense no passado.   
Ela  buscou  por  consolo  no  desenho,  levando  seus  dedos  até  a  bolsa  e 
alcançando  os  papéis  e  lápis.  No  entanto,  o  servo  retornou  antes  que  ela  tivesse  a 
chance  de  tirá-los  da  bolsa.  “Brilhanteza  Jasnah  Kholin  de  fato  solicitou  que  uma 
alcova  de  leitura  fosse  preparada  para  ela,”  ele  disse.  “Poderá  esperar  por  ela lá, se 
assim desejar.” 
“Aceitarei,” Shallan disse. “Obrigada.” 
O  servo  a  guiou  até  um  invólucro  nas  sombras,  dentro  do  qual  quatro 
parshimens  se  encontravam  sobre  uma  robusta  plataforma  de  madeira.  O  servo  e 
Shallan  subiram  na  plataforma,  e  os  parshimens  puxaram  cordas  que  estavam 
presas  a uma roldana acima, erguendo a plataforma para cima da abertura de pedra. 
A  única  luz vinha de esferas colocadas em cada um dos cantos no teto do elevador. 
Ametistas, que tinham uma suave luz violeta. 
Ela  precisava  de  um  plano.  Jasnah  Kholin  não  parecia  ser  do  tipo  que  mudava 
de ideia facilmente. Shallan precisaria a surpreender, impressioná-la. 
Eles  alcançaram  um  andar  a  aproximadamente  doze  metros de altura do solo, e 
o  servo  acenou  para  que  os  carregadores  parassem.  Shallan  seguiu  o  servo-mestre, 
descendo  por  um  escuro  corredor  até  uma  das  pequenas  sacadas que se estendiam 
para  fora  do  Véu.  Era  redonda,  como  uma  torre,  e  tinha  uma  borda  de  pedra  na 
altura  da  cintura  com  uma  balaustrada  logo  acima.  Outras  alcovas  ocupadas 
brilhavam  em  diferentes cores de esferas sendo usadas para iluminá-las; a escuridão 
do enorme espaço fazia parecer que estavam pairando sobre o ar.  
Esta  alcova  tinha  uma  mesa  longa  e  curvada,  que  se  conectava  diretamente  na 
borda  da  sacada.  Havia  uma  única  cadeira  e  uma  bacia  de  cristal,  em  forma  de 
cálice.  Shallan  acenou  com  a  cabeça  em  agradecimento  ao  servo,  que  se  retirou,  e 
ela  então  pegou  um  punhado  de  esferas  e  as  despejou  na  bacia,  iluminando  a 
alcova. 
Shallan  suspirou,  sentando-se  na  cadeira  e  colocando  sua  bolsa  na  mesa.  Ela 
desfez  os  laços  da  bolsa,  ocupando-se  enquanto  tentava  pensar  em  algo  — 
qualquer coisa — que pudesse persuadir Jasnah. 
Primeiro,​ ela decidiu, ​preciso limpar minha mente. 
De  sua  bolsa,  ela  retirou  um  maço  de  papel  grosso  para  desenho,  um  conjunto 
de  lápis  de  carvão  de  diferentes  diâmetros,  alguns  pincéis  e  canetas de metal, tinta, 
e  aquarelas.  Finalmente,  ela  retirou  seu  caderno  menor,  amarrado  em  forma  de 
códex, que continha os rascunhos de natureza que tinha feito durante suas semanas 
a bordo do ​Prazer do Vento.​   
Estas  eram  coisas  simples,  de  fato,  mas  que  para  ela  valiam  mais  que  um  baú 
repleto de esferas. Ela pegou uma folha da pilha, então escolheu um lápis de carvão 
bem  apontado,  rolando-o  por  entre  os  dedos.  Ela  fechou  os  olhos  e  fixou  uma 
imagem  em  sua  mente:  Kharbranth,  tal  como  ela  tinha  memorizado  naquele 
momento  pouco  antes  de  atracar  nas  docas.  Ondas  batendo  contra  os  postes  de 
madeira,  um  aroma  salgado no ar, homens subindo, puxando cordames, chamando 
uns  aos  outros  com  animação.  E  a  própria  cidade,  erguendo-se  da  encosta,  casas 
empilhadas  em  cima de casas, nenhum vestígio sequer de terra desperdiçada. Sinos, 
distantes, tilintando suavemente no ar. 
Ela  abriu  os  olhos  e  começou  a  desenhar.  Seus  dedos  se  moviam  por  conta 
própria,  rascunhando  linhas  abrangentes  primeiro.  O vale rachado ao qual a cidade 
se situava. O porto. Aqui, quadrados para as casas, ali, um traço para marcar o sobe 
e  desce  da  grande  estrada  que  levava  até  o  Conclave.  Lentamente,  pouco  a pouco, 
ela  adicionou  os  detalhes.  Sombras  como  janelas.  Linhas  para  preencher  as 
estradas. Menções de pessoas e cartes para mostrar o caos das vias.  
Ela  tinha  lido  sobre  como  escultores  trabalhavam.  Muitos  pegavam  um  bloco 
de  pedra  básico  e  o  trabalhavam  até  um  formato  vago  de  início.  Então,  eles  o 
trabalhavam  de novo, talhando mais detalhes a cada passada. Era o mesmo com ela 
no  desenho.  Linhas  largas  primeiro,  então  alguns  detalhes,  então  mais  deles,  até 
chegar  nas  mais  finas  das  linhas. Shallan não tinha treinamento formal com o lápis; 
ela apenas fazia o que parecia correto.  
A  cidade  tomou  forma  abaixo  de  seus  dedos.  Ela  a  montou,  libertando-a, linha 
por  linha,  risco  por  risco.  O  que  ela  faria  sem  isso?  Tensão  vazou  de  seu  corpo, 
como que liberada de seus dedos até o lápis.  
Ela  perdeu  a  noção  do  tempo  enquanto  trabalhava.  De  vez  em  quanto,  sentia 
como  se  estivesse  entrando  em  um  transe,  todo  o  resto  se  esvaindo.  Seus  dedos 
quase  pareciam  desenhar  por  conta  própria.  Era  tão  mais  fácil  de pensar enquanto 
desenhava. 
Em  pouco  tempo,  tinha  copiado  sua  Memória  para  a  página.  Ela  levantou  a 
folha,  satisfeita,  relaxada,  sua  mente  limpa.  A  imagem  memorizada  de  Kharbranth 
desapareceu  de  sua  cabeça;  ela  tinha  a  liberado  no  esboço.  Havia  uma sensação de 
relaxamento  nisso  também.  Como  se  sua  mente fosse posta sob tensão, segurando 
Memórias até que pudessem ser usadas.  
Ela  fez  Yalb  em  seguida,  de  pé,  com  o  peito  desnudo  em  seu  colete  e 
gesticulando  para  o  carregador  baixinho  que  tinha  a  puxado  até  o  Conclave.  Ela 
sorriu  enquanto  trabalhava,  relembrando  a  voz  afável  de  Yalb.  Ele  provavelmente 
teria  retornado  ao  ​Prazer  do  Vento  a  essa  altura.  Já  teriam  se  passado  duas  horas? 
Possivelmente.  
Ela  sempre  se  entusiasmava  mais  em  desenhar  animais  e  pessoas  ao  invés  de 
coisas.  Existia  algo  energizante  em  colocar  um  criatura  viva  numa  página.  Uma 
cidade  era  linhas  e  caixas,  mas  uma  pessoa  era  círculos  e  curvas.  Ela  conseguiria 
retratar  aquele  sorrisinho  do  rosto  de  Yalb  da  maneira  certa?  Conseguiria  mostrar 
sua  satisfação  preguiçosa,  a  maneira  com  que  ele  flertaria  com  uma  mulher  muito 
acima  de  sua  própria  estatura?  E  o  carregador,  com  seus  dedos  finos  e  pés  com 
sandálias,  seu  longo  casaco  e  calças  folgadas.  Seu  estranho  idioma,  seus  olhos 
astutos,  seu  plano  de  aumentar  a  própria  gorjeta  ao  oferecer  não  apenas  uma 
corrida, mas uma viagem. 
Quando  ela  desenhava,  sentia  como  se  não  trabalhasse  apenas  com  carvão  e 
papel.  Ao  desenhar  um  retrato, seu intermédio era a própria alma. Existiam plantas 
a  quais  se  podia  remover  um  pequeno  pedaço  — uma folha, ou um pouquinho do 
caule  —  e  então  plantá-lo  e  criar  uma  réplica.  Quando  coletava  a  Memória  de 
alguém,  ela  estava  retirando  um  broto  da alma da pessoa, cultivando-o e o fazendo 
crescer  na  página.  Carvão  para  os  tendões,  polpa  de  papel para os ossos, tinta para 
o  sangue,  a  textura  da  página  para  a  pele.  Ela  caía  em  um  ritmo,  uma  cadência,  o 
rabiscar de seu lápis como o som da respiração daqueles que ela retratava. 
Criativisprens  começaram  a  se  reunir  em  volta  de  seu  caderno,  olhando  para  o 
trabalho  dela.  Assim  como  outros  esprens,  eram  ditos  estarem  sempre  por  perto, 
mas  geralmente  invisíveis.  Algumas  vezes  você  os  atraía.  Algumas  vezes  não.  Em 
se tratando de desenho, habilidade parecia fazer diferença. 
Criativisprens  tinham  tamanho  médio,  tão  grandes  quanto  um  dedo,  e  eles 
brilhavam  com  uma  leve  luz  prateada.  Eles  se  transformavam  constantemente, 
tomando  novas  formas.  Geralmente,  as  formas  eram  coisas  que  tinham  visto 
recentemente.  Uma  urna,  uma  pessoa,  uma  mesa,  uma  roda,  um  prego.  Sempre 
com  a  mesma  cor prateada, sempre do mesmo tamanho diminutivo. Eles imitavam 
formatos  com  exatidão,  mas  os  moviam  de  maneiras  estranhas.  Uma  mesa  rolaria 
como uma roda, uma urna quebraria e repararia a si mesma.  
O  desenho  dela  atraiu  uma  meia  dúzia  deles,  puxando-os  com  o  ato  de  criação 
da  mesma  forma  que  um  fogo  brilhante  atrairia  chamasprens.  Ela  tinha  aprendido 
a ignorá-los. Eles não tinham substância — se ela movesse um braço através de um 
deles,  a  figura  se  tornaria  um  borrão,  como  areia  esparramada,  e  então  se 
reformaria. Ela nunca sentiu alguma coisa ao tocar um deles. 
Shallan  eventualmente  levantou  a  página,  satisfeita.  A  folha  retratava  Yalb  e  o 
carregador  em  detalhes,  com  pistas  da  ocupada  cidade  logo  atrás.  Ela  tinha 
acertado  os  olhos  deles.  Isso  era  o  mais  importante.  Cada  uma  das  Dez  Essências 
tinha  uma  parte  análoga  ao  corpo  humano  —  sangue  para  líquido,  cabelo  para 
madeira,  e  daí  em  diante.  Os  olhos  eram  associados  com  cristal  e vidro. As janelas 
para a mente e espírito de uma pessoa. 
Ela  deixou  a  página  de  lado.  Alguns  homens  colecionavam  troféus.  Outros, 
colecionavam armas ou escudos. Muitos colecionavam esferas.  
Shallan  colecionava  pessoas.  Pessoas,  e  criaturas  interessantes.  Talvez  fosse 
porque  tivesse  passado  tanto  tempo  de  sua  juventude  no  que  fora  praticamente 
uma  prisão.  Ela  tinha  desenvolvido  o  hábito  de  memorizar  rostos,  então 
desenhá-los  mais  tarde,  após  seu  pai  ter  descoberto  os  rascunhos  dos  jardineiros 
que  ela  fizera.  Sua  filha?  Desenhando  imagens  de  olhos-negros?  Ele  ficou  furioso 
com  ela  —  uma  das  infrequentes  vezes  em  que  tinha  direcionado  seu  infame 
temperamento contra a filha.   
Depois  daquilo,  ela  começou  a  desenhar  pessoas  apenas  quando  em  privado, 
usando,  ao  invés  disso,  seu  tempo  de  desenho  livre  para  rascunhar  insetos, 
crustáceos,  e  plantas dos jardins da mansão. Seu pai não se importava com estes — 
zoologia  e  botânica  eram  atividades  femininas  apropriadas  —  e  tinha a encorajado 
a escolher história natural como Chamado.  
Ela  pegou  uma  terceira  folha  em  branco.  O  papel  parecia  implorar  para  que 
Shallan  o  preenche-se.  Uma  página  em  branco  nada  mais  era  do  que  potencial, 
insípida  até  que  fosse  usada.  Como  uma  esfera  completamente  infundida, 
enclausurada dentro de uma bolsa, impedida de fazer com que sua luz fosse útil. 
Preencha-me.  
Os  criativisprens  se  reuniram  ao  redor  da  página.  Eles  estavam  parados,  como 
que  curiosos,  em  antecipação.  Shallan  fechou  os  olhos  e  imaginou  Jasnah  Kholin, 
parada  diante  da  porta bloqueada, A Mold’alma brilhando em sua mão. O corredor 
se  calou,  salvo  os  fungados  de  uma  criança.  Atendentes  prendendo  a  respiração. 
Um rei ansioso. Uma reverência silenciosa.  
Shallan  abriu  os  olhos  e  começou  a  desenhar  com  vigor,  perdendo  a  si  mesma 
propositalmente.  Quanto  menos  estivesse  no  ​agora  e  mais  estivesse  no  ​quando,​  
melhor  seria  o  rascunho.  Os  outros  dois  desenhos  tinham  sido aquecimentos, esta 
seria  a  obra  prima  do  dia.  Com  o  papel  preso  ao  bloco  —  a  mão-modesta  o 
segurando — sua mão livre voou pela página, ocasionalmente trocando para outros 
lápis.  Carvão  mais  macio  para  pretos  profundos  e  espessos,  como  o  lindo  cabelo 
de  Jasnah.  Carvão  mais  duro  para  cinzas  claros,  como  as  poderosas  ondas  de  luz 
vindas das gemas da Mold’alma.  
Por  alguns  momentos  estendidos,  Shallan  estava  de  volta  a  aquele  corredor, 
assistindo  algo  que  não  deveria  ser  real:  uma  herege  manejando  um  dos  poderes 
mais  sagrados  no  mundo.  O  poder  da  própria  mudança,  o  poder  ao  qual  o 
Todo-Poderoso  havia  criado  Roshar.  Ele  tinha  outro  nome,  permitido  passar 
apenas pelos lábios dos ardentes. ​Elithanathile.​ Aquele Que Transforma.  
Shallan  podia  cheirar  o  corredor  mofado.  Ela  podia  ouvir  a  criança 
choramingando.  Podia  sentir  seu  próprio  coração  batendo  em  antecipação.  O 
pedregulho  iria  mudar  em  breve.  Sugando  a  Luz-tempesta  na  gema  de  Jasnah,  ele 
iria  abrir  mão  de  sua  essência,  tornando-se  algo  novo.  O  fôlego  de  Shallan  se 
conteve na garganta. 
E  então  a  memória  desapareceu,  retornando  Shallan  para  a  quieta  e  escura 
alcova.  A  página  agora  continha  uma  perfeita  retratação  da  cena,  trabalhada  em 
pretos  e  cinzas.  A  figura  orgulhosa  da  princesa  observando  a  pedra  caída, 
demandando  que  abrisse  caminho  para  sua  vontade.  ​Era  ela.  Shallan  soube, com a 
certeza  intuitiva  de  uma  artista,  que  essa  era  uma  das  peças  mais  finas  a  qual  já 
tinha  feito.  De  uma  pequenina  maneira,  ela  tinha  capturado  Jasnah  Kholin,  algo 
que  os  devotários  jamais  haviam  conseguido.  Aquilo  a  excitou  euforicamente. 
Mesmo  que  a  mulher  rejeitasse  Shalan  novamente,  um  fato  não  mudaria.  Jasnah 
Kholin havia se juntado à coleção de Shallan.  
Shallan  esfregou os dedos em seu tecido de limpeza, e então ergueu o papel. Ela 
notou,  distraidamente,  que  atraira  umas  duas  dúzias  de  criativisprens  agora.  Teria 
que  laquear  a  página  com  seiva  de  pleárvore  para  assentar  o carvão e protegê-la de 
manchas.  Ela  tinha  um  pouco  em  sua  bolsa.  Primeiro,  queria  estudar  a  página  e  a 
figura  que  ela  continha.  Quem  ​era  Jasnah  Kholin?  Ninguém  a  ser  intimada, 
certamente.  Ela  era  uma  mulher  até  o  osso,  mestra  das  artes  femininas,  mas  não 
delicada, de forma alguma.  
Tal  mulher  apreciaria  a  determinação  de  Shallan.  Ela  ​ouviria  a  outro  pedido  por 
tutelagem, assumindo que fosse apresentado devidamente. 
Jasnah  era  também  uma  racionalista,  uma  mulher  com  a  audacidade  de  negar  a 
existência  do  próprio  Todo-Poderoso  baseada  em  seu  próprio  raciocínio.  Jasnah 
apreciaria força, mas apenas se esta fosse moldada por lógica. 
Shallan  assentiu  para  si  mesma,  pegando  uma  quarta  folha  de  papel  e  uma  fina 
caneta-pincel  tinteira,  chacoalhando  então  seu  pote  de  tinta,  abrindo-o.  Jasnah 
tinha  demandado  prova  de  suas  habilidades  lógicas  e  de  escrita.  Bem,  que maneira 
melhor de fazer isso do que suplicar para a mulher usando palavras? 
Brilhanteza  Jasnah  Kholin,  Shallan  escreveu,  pintando  as  letras  da  maneira  mais 
caprichosa e bonita que conseguia. Ela poderia ter usado um cálamo ao invés disso, 
mas  uma  caneta-pincel  era  feita  para  obras  de  arte.  Ela  pretendia  que  essa  página 
fosse  exatamente  isso.  ​Rejeitaste  minha  petição.  Eu  aceito  isso.  No  entanto,  como  qualquer 
pessoa  treinada  em  inquérito  formal  bem  sabe,  nenhuma  suposição  deve  ser  tratada  como 
axiomática​.  O  argumento  em  questão  geralmente  lia-se  “nenhuma  suposição  — 
salvo  a  existência  do  próprio Todo-Poderoso — deve ser considerada axiomática.” 
Mas Jasnah gostaria dessa versão.  
Uma  cientista  deve estar disposta a mudar suas teorias, se refutadas por experimentos. Eu me 
agarro  à  esperança  de  que  tratas  decisões  de  uma  maneira  semelhante:  como  resultados 
preliminares pendentes à informações adicionais. 
A  partir de nossa breve interação, posso ver que aprecias tenacidade. Elogiou-me em continuar 
a  buscá-la.  Portanto,  presumo  que  não  irá  considerar  esta  carta  como  uma  quebra  de  bons 
costumes.  Tome-a  como  uma  prova do meu ardor em ser sua aprendiz, e não como um desdenho à 
sua decisão expressa. 
Shallan  ergueu  a  ponta  de  sua  caneta-pincel  até  os  lábios  enquanto  considerava 
o  próximo  passo.  Os  criativisprens  lentamente  se  afastaram,  desaparecendo.  Era 
dito  que  existiam  lógisprens  —  no  formato  de  pequeninas  nuvens  de  tempestade 
— que eram atraídos por grandes argumentos, mas Shallan jamais tinha os visto. 
Esperas  por prova de meu valor, Shallan continuou. ​Eu desejo que pudesse demonstrar que 
minhas  formações  são  mais  completas  do  que  nossa  entrevista  revelou.  Infelizmente,  não tive base 
para  tal  argumento.  Tenho  fraqueza  em  minha  compreensão.  Isso  é  claro  e  não está sujeito a um 
debate razoável. 
Mas  as vidas de homens e mulheres são mais do que quebra-cabeças lógicos; o contexto de suas 
experiências  é  inestimável  para  se  tomar  boas  decisões.  Meus  estudos  em  lógica  não  se  elevam até 
seus  padrões,  mas  até  mesmo  eu  sei  que  racionalistas  têm  uma  regra:  não  se  pode  aplicar  lógica 
como  um  absoluto  onde  seres  humanos  estiverem  envolvidos.  Nós  não  somos seres feitos apenas de 
pensamentos. 
Portanto,  a  alma  do  meu  argumento  aqui  é  de  dar  perspectiva  para  minha  ignorância.  Não 
como  uma  forma  de  desculpa,  mas  de  explicação.  Expressaste  desprazer  com  o  fato  de  alguém 
como  eu  ter  sido  treinada  tão  inadequadamente.  E  quanto  a  minha  madrasta?  E  as  minhas 
tutoras? Por que minha educação foi manejada de forma tão pobre? 
Os  fatos  são  embaraçosos.  Eu  tive  poucas  tutoras  e  praticamente  nenhuma  educação.  Minha 
madrasta  tentou,  mas  nem  mesmo  ela  tinha  formação.  É  um  segredo  cuidadosamente  guardado, 
mas muitas das casas rurais Veden ignoram o treinamento apropriado de suas mulheres.  
Eu  tive  três  diferentes  tutoras  quando  era  bem  jovem,  mas  cada  uma  partiu  após  alguns 
meses,  citando  o  temperamento  ou  a  rudeza  de  meu  pai  como  motivo.  Eu  fui  deixada  aos  meus 
próprios  cuidados  quanto  à  educação.  Aprendi  o  que  pude  através  da  leitura,  preenchendo  as 
lacunas  ao  tomar  vantagem  de  minha  natureza  curiosa.  Porém,  não  serei  capaz  de  equiparar 
conhecimento com alguém a quem foi dado o benefício de educação formal — e expressiva. 
Por  que  este  é  um  argumento  de  que  deveria  me  aceitar?  Porque  tudo  o  que  aprendi  veio  por 
conta  de  grandes  esforços  pessoais.  O  que  para  outras  foi entregue, para mim foi conquistado. Eu 
acredito  que  por  conta  disso,  minha  educação  —  mesmo  limitada  como  é  —  tem  valor  e  mérito 
extra.  Eu  respeito  vossa  decisão,  mas  peço  que  reconsidere.  O  que  preferiria  ter?  Uma  aprendiz 
que é capaz de repetir as respostas corretas por que uma tutora acima do preço as enraizou em sua 
cabeça, ou uma aprendiz a qual teve que se esforçar e lutar por tudo o que aprendeu? 
Eu lhe asseguro que uma destas duas irá apreciar seus ensinamentos muito mais que a outra.  
Ela  levantou  o  pincel.  Seus  argumentos  pareciam  imperfeitos  agora  que  ela  os 
considerava.  Ela  tinha  exposto  sua  ignorância,  e  então  esperava  que  Jasnah  fosse 
recebê-la?  Ainda  assim,  parecia  a  coisa  certa  a  se  fazer,  pelo  simples  fato  de  que 
esta  carta  era  uma mentira. Uma mentira feita de verdades. Ela não tinha realmente 
vindo  para  tomar  parte  do  conhecimento  de  Jasnah.  Ela  tinha  vindo  como  uma 
ladra.  
Aquilo  fez  sua  consciência  coçar,  e  ela  quase  pegou  o  papel  para  amassá-lo. 
Passos  no  corredor  do  lado  de  fora  a  fizeram  congelar.  Ela  pulou,  girando, 
mão-modesta  levada  ao  peito.  Ela  se  atrapalhou  atrás  de  palavras  para explicar sua 
presença para Jasnah Kholin.  
Luz  e  sombras tremularam no corredor, e então uma figura olhou para a alcova, 
hesitante,  uma  única  esfera  branca  carregada  em  uma  das  mãos  para  prover  luz. 
Não  era  Jasnah.  Era  uma  homem  na  casa  dos  vinte  anos,  vestindo  uma  simples 
túnica cinza. Um ardente. Shallan relaxou. 
O  rapaz a percebeu. Seu rosto era fino, seus olhos azuis eram astutos. Sua barba 
era  aparada,  curta  e  quadrada,  e  a cabeça raspada. Quando falou, sua voz carregava 
um  tom  culto.  “Ah,  perdão,  Brilhanteza.  Eu  pensei  que  esta  fosse  a  alcova  de 
Jasnah Kholin.” 
“E é,” Shallan disse. 
“Oh. Está aguardando por ela também?” 
“Sim.” 
“Se  importaria  muito  se  eu  aguardasse  com  você?”  Ele  tinha  um  leve  sotaque 
Herdaziano. 
“Claro  que  não,  Ardente.”  Ela  acenou  com  a  cabeça  em  respeito,  então 
recolheu suas coisas com pressa, preparando o assento para ele. 
“Eu não posso tomar seu assento, Brilhanteza! Providenciarei outro para mim.” 
Ela  ergueu  uma  mão  em  protesto,  mas  ele  já  tinha  se  retirado.  Ele  retornou 
alguns  momentos  depois,  carregando  uma  cadeira  de  uma  outra  alcova.  O ardente 
era  alto  e  magro,  e  —  ela  decidiu com leve desconforto — deveras bonito. Seu pai 
possuiu  apenas  três  ardentes,  todos  homens  de  idade.  Eles viajaram pelas terras da 
família,  visitando  vilas,  ministrando  as  pessoas,  ajudando-as  a  alcançar  Pontos  em 
suas Glórias e Chamados. Ela tinha os rostos deles em sua coleção de retratos.  
O  ardente  sentou  na  cadeira.  Ele  hesitou  antes  de  fazê-lo,  encarando  a  mesa. 
“Minha nossa,” ele disse, surpreso. 
Por  um  momento,  Shallan  pensou  que  ele  estivesse  lendo  a  carta,  e  ela  sentiu 
uma  irracional  onda  de  pânico.  O  ardente,  no  entanto,  estava  se  referindo aos três 
desenhos que repousavam na superfície da mesa, aguardando laqueamento.  
“Você os fez, Brilhanteza?” ele perguntou. 
“Sim, Ardente,” Shallan respondeu, abaixando os olhos. 
“Não  precisa  ser  tão  formal!”  o  ardente  disse,  inclinando-se  e  ajustando  seu 
óculos  enquanto  estudava  o  trabalho  dela.  “Por  favor,  eu  sou  Irmão  Kabsal,  ou 
apenas Kabsal. De verdade, não tem problema. E você é?” 
“Shallan Davar.” 
“Pelas  chaves  douradas  de  Vedeledev,  Brilhanteza!”  Irmão  Kabsal  disse, 
sentando-se. “Foi Jasnah Kholin quem a ensinou esta habilidade com o lápis?” 
“Não, Ardente,” ela respondeu, ainda de pé. 
“Ainda  tão  formal,”  ele  disse,  sorrindo  para  ela.  “Diga,  sou  tão  intimidador 
assim?” 
“Eu fui ensinada a mostrar respeito para com ardentes.” 
“Bem,  eu  particularmente  acho  que  respeito  é  como  esterco.  Use-o  onde  é 
necessário,  e  cultivações  irão  florescer.  Espalhe-o  demais,  e  as  coisas  irão  apenas 
começar a feder.” Seus olhos brilharam.  
Teria  um  ardente  —  um  servo  do  Todo-Poderoso  —  acabado  de  falar  sobre 
esterco?  “Um  ardente  é  representante  do  próprio  Todo-Poderoso,”  ela  disse. 
“Tratá-lo com falta de respeito seria o mesmo que fazê-lo com o Todo-Poderoso.” 
“Entendo.  E  é  assim  que  responderia  se  o  próprio  Todo-Poderoso  aparecesse 
diante de você aqui? Com toda essa formalidade e reverência?”  
Ela hesitou. “Bem, não.” 
“Ah, e ​como​ reagiria?”  
“Suspeito  que  com  gritos  de  dor,”  ela  disse,  deixando  seu  pensamento  escapar 
muito  facilmente.  “Já  que  é  escrito  que  a  glória do Todo-Poderoso é tamanha, que 
qualquer um que o olhar seria imediatamente queimado até as cinzas.” 
O ardente riu com aquilo. “Sábias palavras, de fato. Mas por favor, sente-se.” 
Ela o fez, hesitante. 
“Você  ainda  parece  em  conflito,”  ele  disse,  erguendo  o  retrato  de  Jasnah.  “O 
que  eu  devo  fazer  para  acalmá-la?  Devo  subir  nesta  mesa  aqui  e  começar  a 
dançar?” 
Ela piscou em surpresa. 
“Sem  objeções?”  Irmão  Kabsal  disse.  “Bem,  então…”  Ele  abaixou  o  retrato  e 
começou a subir em sua cadeira. 
“Não, por favor!” Shallan disse, estendendo a mão-livre. 
“Tem certeza?” ele olhou para a mesa, examinando-a. 
“Sim,”  Shallan  respondeu,  imaginando  o  ardente  oscilando  e  dando  um  passo 
em  falso,  despencando  pela  sacada  e  mergulhando  dúzias  de  metros  até  o  chão 
abaixo. “Por favor, eu prometo não continuar lhe respeitando!” 
Ele  riu,  regressando  e  sentando-se.  Ele  se  esticou  para  mais  perto  dela,  como 
que  conspiratório.  “A  ameaça  da  dança  na  mesa  quase  sempre  funciona.  Eu  tive 
que  cumpri-la  apenas  uma  vez,  devido  a  uma  aposta  contra  o  Irmão  Lhanin.  O 
ardente mestre de nosso monastério quase desmaiou em choque.” 
Shallan  percebeu  que  sorria.  “Você  é  um  ardente;  é  proibido  de  ter  posses.  O 
que apostou?” 
“Duas  inalações  de  uma  fragrância  de  rosa  do  inverno,” disse Irmão Kabsal, “e 
o  calor  da  luz  do  sol  sobre  a  pele.”  Ele  sorriu.  “Nós  podemos  ser  bem  criativos, 
ocasionalmente.  Anos  passados  marinando  em  um  monastério  podem  fazer  isso 
com  um  homem.  Agora,  você  estava  prestes  a  me  explicar  onde  foi  que  aprendeu 
tamanha habilidade com o lápis.” 
“Prática,”  Shallan  disse.  “Suspeito  que  é  como  todos  aprendem, 
eventualmente.” 
“Sábias  palavras  novamente. Estou começando a me perguntar qual de nós dois 
é o ardente. Mas você certamente teve um mestre para lhe ensinar.” 
“Dandos, o Jurado do Óleo.” 
“Ah,  um  verdadeiro  mestre  do  lápis,  se  já  houve  algum.  Agora,  não  que  eu 
duvide  de  sua  palavra,  Brilhanteza,  mas  estou  levemente  intrigado  em  como 
Dandos  Heraldin  pudesse  ter  lhe  treinado  em  suas  artes,  já  que  —  da  última  vez 
que  chequei  —  ele  estava  sofrendo  de  uma  doença  um  tanto  quanto  perpétua  e 
terminal. Expressamente, aquela de se estar ​morto​. Por três séculos.”  
Shallan ruboresceu. “Meu pai tinha um livro de suas instruções.” 
“Você  aprendeu  isto,”  Kabsal  disse,  levantando  o  desenho  dela  de  Jasnah,  “de 
um ​livro.​ ”  
“Er… sim?” 
Ele olhou novamente para a imagem. “Eu preciso ler mais.” 
Shallan  se  deparou  sorrindo  com  a  expressão  do  ardente,  e  ela  tomou  uma 
Memória  dele  sentado  ali,  admiração  e  perplexidade  se  misturando  em  seu  rosto 
enquanto estudava a imagem, esfregando seu queixo barbado com um dedo.  
Ele sorriu agradavelmente, abaixando o desenho. “Você tem laquê?” 
“Sim,”  ela  disse,  retirando-o  de  sua  bolsa.  Estava  contido  num  borrifador 
bulboso geralmente usado para perfumes.  
Ele  aceitou  o  pequeno  jarro  e  virou  o  fecho  da  frente,  então  deu  uma 
chacoalhada  no  recipiente  e  testou  o  laquê  nas  costas de sua mão. Ele acenou com 
a  cabeça  em  satisfação  e  alcançou  o  desenho.  “Uma  peça  como  esta  não  deve  ser 
permitida arriscar ser manchada.” 
“Eu  posso  aplicar  o  laquê,”  Shallan  disse.  “Não  precisa  se  incomodar  com 
isso.” 
“Não  é  incomodo;  é  uma  honra.  Além  disso,  sou  um  ardente.  Não  sabemos  o 
que  fazer  com  nós  mesmos  quando  não  estamos atarefados, fazendo coisas que os 
outros  poderiam  fazer  por  conta  própria.  É  melhor  assim,  para  que  eu  possa  me 
alegrar.”  Ele  começou  a  aplicar  o  laquê,  cobrindo  a  página  com  borrifos 
cuidadosos.  
Ela  teve  dificuldades  em  impedir  a  si  mesma  de  alcançar  o  desenho  para 
tomá-lo.  Felizmente,  as  mãos  do  ardente  eram  cuidadosas,  e  o  laquê  assentou 
niveladamente. Ele obviamente já tinha feito isso antes. 
“Você é de Jah Keved, eu pressumo?” ele perguntou. 
“Pelo  cabelo?”  ela  indagou,  levando  uma  das  mãos  até  suas  madeixas 
vermelhas. “Ou pelo sotaque?” 
“Pela  maneira  com  que  trata  ardentes.  A  Igreja  Veden  é  de  longe  a  mais 
tradicional.  Eu  visitei  seu  amável  país  em  duas  ocasiões;  embora sua comida caísse 
bem  no  estômago,  a  quantidade  de  reverências  que  fazem  aos  ardentes  me  deixou 
desconfortável.” 
“Talvez devesse ter dançado em algumas mesas.” 
“Eu  considerei  isso,”  ele  disse,  “mas  meus  irmãos  e  irmãs  ardentes  de  seu  país 
teriam  provavelmente  caído  mortos  de  vergonha.  Eu  odiaria  ter  isso  na  minha 
consciência.  O  Todo-Poderoso  não  é  bondoso  com  aqueles  que  matam  seus 
sacerdotes.”  
“Eu  acho  que  matar  no  geral  seria  mal  visto,”  ela  respondeu,  ainda  assistindo 
ele aplicar o laquê. Parecia estranho deixar mais alguém trabalhar em sua arte. 
“O  que  Brilhanteza  Jasnah  pensa  de  sua  habilidade?”  ele  perguntou  enquanto 
trabalhava. 
“Eu  não  acho  que  ela  se  importe,”  Shallan  disse,  fazendo  uma  careta  e 
relembrando  sua  conversa  com  a  princesa.  “Ela  não  parece  particularmente 
apreciativa das artes visuais.” 
“Eu ouvi dizer. É um de seus poucos defeitos, infelizmente.” 
“Outro além daquela pequena questão da heresia?” 
“De  fato,”  Kabsal  disse,  sorrindo.  “Eu  devo  admitir,  entrei  aqui  esperando 
indiferença, não deferência. Como veio a se tornar parte do séquito dela?” 
Shallan  se  sobressaltou,  percebendo  pela  primeira  vez  que  Irmão  Kabsal  devia 
ter  assumido  que  ela  fosse  uma  das  atendentes  de  Senhora-Brilhante  Kholin. 
Talvez uma aprendiz. 
“Irmão,” ela disse para si mesma. 
“Hum?” 
“Parece  que  eu  o  confundi  inadvertidamente,  Irmão  Kabsal.  Eu  não  sou 
associada  de  Brilhanteza  Jasnah.  Não  ainda,  de  toda  forma.  Eu  estive  tentando 
fazê-la me aceitar como aprendiz.” 
“Ah,” ele disse, finalizando a laqueadura.  
“Me desculpe.” 
“Pelo  quê?  Não  fez  nada  de  errado.”  Ele  soprou  o desenho, então o virou para 
que  ela  o  visse.  Estava  perfeitamente  laqueado,  sem  nenhum  vinco.  “Se  puder  me 
fazer um favor, filha?” ele disse, deixando a página de lado. 
“Qualquer coisa.” 
Ele ergueu uma sobrancelha para aquilo. 
“Qualquer coisa razoável,” ela corrigiu. 
“Segundo quem?” 
“Segundo eu, acho.” 
“Que  pena,”  ele  disse,  levantando-se.  “Então  irei  me  limitar.  Se  puder 
amavelmente deixar Brilhanteza Jasnah saber que eu busquei por ela?” 
“Ela  o  conhece?”  Que  assuntos  tinha  um ardente Herdaziano com Jasnah, uma 
atéia confirmada? 
“Oh,  eu  não  diria  isso,”  ele  respondeu.  “Eu  espero  que  ela  tenha  ouvido  meu 
nome, no entanto, já que eu solicitei uma audiência com ela inúmeras vezes.” 
Shallan  concordou  com  a  cabeça,  levantando-se.  “Você quer tentar convertê-la, 
presumo?” 
“Ela  apresenta um desafio único. Não acho que eu poderia viver em paz se nem 
ao menos ​tentasse​ persuadi-la.”  
“E  nós  não  iríamos  desejar  que  não  fosse  capaz  de  viver  em  paz,”  Shallan 
notou,  “já  que  a  alternativa  volta  para  o  seu  desagradável  hábito  de  quase  matar 
ardentes.” 
“Exatamente.  De  toda  forma,  acho  que  uma  mensagem  pessoal  vinda  de  você 
possa ajudar onde solicitações escritas foram ignoradas.” 
“Eu… duvido disso.” 
“Bem,  se  ela  recusar,  significa  apenas  que  estarei  de  volta.”  Ele  sorriu.  “Isso 
significaria  —  esperançosamente  —  que  nos  encontraríamos  novamente.  Então, 
anseio por isso.” 
“Eu também. E lamento novamente pelo desentendido.” 
“Brilhanteza! Por favor. Não tome responsabilidade por ​minhas​ suposições.” 
Ela  sorriu.  “Eu  deveria  hesitar  em  tomar  responsabilidade  por  você  em 
qualquer maneira ou consideração, Irmão Kabsal. Mas ainda me sinto mal.” 
“Vai  passar,”  ele  observou,  os  olhos  azuis  brilhando.  “Mas  darei  meu  melhor 
para  fazer  com  que  se  sinta  bem  novamente.  Tem  algo  de  que  goste?  Além  de 
respeitar ardentes e desenhar incríveis imagens, digo?” 
“Geléia.” 
Ele espichou a cabeça. 
“Eu  gosto,”  ela  disse,  dando  de  ombros.  “Você  perguntou  do  que  eu  gosto. 
Geléia.” 
“Então  assim  será.”  Ele  se  retirou  pelo  escuro  corredor,  pescando  no  bolso  de 
sua  túnica  pela  esfera  para  lhe  prover  luz.  Em  questão  de  segundos,  já  havia 
partido.  
Por  que  ele  não  esperou  por  conta  própria  que  Jasnah  retornasse?  Shallan 
balançou  a  cabeça,  então  laqueou  seus  outros  dois  desenhos.  Ela  tinha  recém 
terminado  de  deixá-los secar — guardando-os na bolsa — quando ouviu passos no 
corredor novamente e reconheceu a voz de Jasnah falando. 
Shallan  se  apressou  para  reunir  suas  coisas,  deixando  a  carta  na  mesa,  então 
parou  ao  lado  da  alcova  para aguardar. Jasnah Kholin entrou um momento depois, 
acompanhada de um pequeno grupo de servos. 
Ela não parecia contente.   
8  
MAIS PERTO DA CHAMA 
 
"Vitória!  Estamos  no  topo  do  monte!  Eles  se  dispersam  diante  de  nós!  Seus  lares  se 
tornam  nossos  covis,  suas  terras  são  agora  nossas  fazendas!  E  eles  irão  queimar,  como 
fizemos outrora, em um lugar vazio e abandonado.” 
 
—  Coletado  em  Ishashan,  1172,  18  segundos pré-morte. O exemplar era uma celibatária 
olhos-claros de oitavo dahn.  
 
 
Os  temores  de  Shallan  se  confirmaram  quando  Jasnah  olhou  diretamente  para 
ela, levando a mão-livre até a lateral em sinal de frustração. “Então você ​está​ aqui.” 
Shallan se encolheu. “Os servos lhe contaram, então?” 
“Você  achou  que  eles  deixariam  alguém  em  minha  alcova  sem  me  avisar?” 
Atrás  de  Jasnah,  um  pequeno  grupo  de  parshimens  hesitava  no  corredor,  cada um 
deles carregando pilhas de livros nos braços. 
“Brilhanteza Kholin,” Shallan disse. “Eu apenas—” 
“Eu  já  desperdicei  tempo  demais  com  você,”  disse  Jasnah,  seus  olhos  furiosos. 
“Você  irá  se  retirar,  Senhorita  Davar.  E  eu  não  a  verei  novamente  durante  minha 
estadia aqui. Fui ​clara?​ ” 
As  esperanças  de Shallan desmoronaram, fazendo-a se encolher para trás. Havia 
uma  gravidade  na  princesa.  Não  se  desobedecia  Jasnah  Kholin.  Era  necessário 
apenas um vislumbre naqueles olhos para compreender isso. 
“Eu  lamento  por  tê-la  incomodado,”  Shallan  sussurrou,  agarrando  sua  bolsa  e 
partindo  com  o  máximo  de  dignidade  que  conseguiu.  Ela  conteve  por  pouco  as 
lágrimas  de  vexame  e  desapontamento  em  seus  olhos,  enquanto  se  apressava  pelo 
corredor, sentindo-se como uma completa idiota.  
Ela  chegou  até  o  elevador,  embora  os  carregadores  já  tivessem  retornado  para 
baixo,  após  terem  trazido  Jasnah  para  cima.  Shallan  não  puxou  o  sino  para 
convocá-los.  Ao invés disso, colocou as costas na parede e afundou até o piso, seus 
joelhos  contra  o  peito,  a  bolsa  em  seu  colo.  Ela  cruzou  os  braços  ao  redor  das 
pernas,  respirando  silenciosamente,  sua  mão-livre  apertando  a  mão-modesta 
através do tecido da manga.   
Pessoas  raivosas  a  perturbavam.  Ela  não  conseguiu  evitar  de pensar no próprio 
pai,  em  um  de  seus  ataques  de  cólera,  não  pôde  evitar  de  ouvir  gritos,  berros,  e 
sussurros.  Seria  ela  fraca  pelo  fato  de  confrontações  a  perturbarem  tanto?  Ela 
sentia que sim.  
Garota  tola e idiota​, ela pensou, alguns dolorispren rastejando para fora da parede, 
perto  de  sua  cabeça.  ​O  que  a  fez  pensar  que  conseguiria fazer isso? Você pisou para fora dos 
terrenos da família apenas meia dúzia de vezes durante sua vida. Idiota, idiota, idiota!  
Ela  tinha  persuadido  seus  irmãos  a  acreditarem  nela,  a  depositarem  esperanças 
em  seu  plano  ridículo.  E o que tinha feito agora? Desperdiçado seis meses, durante 
os quais os inimigos da família fechavam cada vez mais o cerco.  
“Brilhanteza Davar?” perguntou uma voz hesitante. 
Shallan  olhou  para  cima,  percebendo  que  estivera  tão  absorta  em  sua  própria 
miséria  que não percebeu o servo se aproximando. Ele era um homem mais jovem, 
vestindo  um  uniforme  inteiramente  preto,  sem  emblema  no  peito.  Não  um 
servo-mestre, mas talvez um em treinamento. 
“Brilhanteza  Kholin  gostaria  de  falar  com  você.”  O  jovem  gesticulou  de  volta 
para o corredor.  
Para  me  repreender  ainda  mais?  Shallan  pensou  com  uma  careta.  Mas  uma 
alta-dama  como  Jasnah  tinha  o  que  queria.  Shallan  se  forçou  a  parar  de  tremer, 
levantando-se.  Ao  menos  conseguira  impedir  as  lágrimas;  a  maquiagem  não  tinha 
sido arruinada. Ela seguiu o servo de volta para a alcova iluminada, a bolsa agarrada 
em sua frente como um escudo no campo de batalha. 
Jasnah  Kholin  sentava-se  na  cadeira  a  qual  Shallan  estivera  usando,  pilhas  de 
livros  sobre  a  mesa.  A  mulher  estava  esfregando  a  testa  usando  a  mão-livre.  A 
Mold’alma  repousava  contra  a  pele,  a  pedra-esfumaçadora  partida  e  rachada. 
Embora  Jasnah  parecesse  cansada,  sentava-se  com  postura  perfeita,  seu  fino 
vestido de seda cobrindo os pés, a mão-modesta repousando em seu colo.  
Jasnah  focou  Shallan,  abaixando  a  mão-livre.  “Eu  não deveria tê-la tratado com 
tamanha  raiva, Senhorita Davar,” disse com uma voz cansada. “Você estava apenas 
mostrando  persistência,  um  traço  ao  qual  normalmente  encorajo.  Pelas 
tempestades iluminadoras, eu mesma já fui frequentemente culpada de teimosia. Às 
vezes,  achamos  mais  difícil  aceitar  nos  outros  aquilo  a  que  buscamos  para  nós 
mesmos.  Minha  única  desculpa  é  que,  recentemente,  tenho  me  colocado  sob  uma 
quantidade de tensão fora do normal.” 
Shallan  acenou  com  a  cabeça  em  gratidão,  embora  se  sentisse  terrivelmente 
desconfortável. 
Jasnah  se  virou  para  olhar  além  da  sacada,  até  o  espaço  escuro  do  Véu.  “Sei  o 
que  as  pessoas  falam  de  mim.  Eu  gostaria  de  não  ser  tão  dura  quanto  muitos 
dizem,  embora  uma  reputação  de  severidade  não  seja  a  pior  das  coisas  que  uma 
mulher possa ter. Pode vir a ser útil.” 
Shallan  estava  contendo-se  para  não  começar  a  se  remexer  de  impaciência. 
Deveria se retirar? 
Jasnah  balançou  a  cabeça  para  si  mesma,  embora  Shallan  não  conseguisse 
imaginar quais pensamentos tivessem causado o gesto inconsciente. Finalmente, ela 
se  virou  novamente  para  Shallan,  gesticulando  em  direção  da  grande  bacia  em 
forma de cálice na mesa. O recipiente continha uma dúzia das esferas de Shallan.  
Shallan  levou  a  mão-livre  aos  lábios,  surpresa.  Esquecera  completamente  do 
dinheiro.  Ela  se  curvou  para  Jasnah  em  agradecimento,  coletando  as  esferas 
apressadamente.  “Brilhanteza,  antes  de  que  me  esqueça,  devo  mencionar  que  um 
ardente  —  Irmão  Kabsal  —  veio  à  sua  procura  enquanto  eu  aguardava  aqui.  Ele 
pediu para que eu transmitisse o desejo dele em falar com você.” 
“Nada  inesperado,”  disse  Jasnah.  “Você  parece  surpresa  sobre  as  esferas, 
Senhorita  Davar.  Eu  assumi  que  estivesse  aguardando  do  lado  de  fora  para 
recuperá-las. Não foi por isso que estava tão perto?” 
“Não, Brilhanteza. Eu estava apenas colocando a cabeça no lugar.” 
“Ah.” 
Shallan  mordeu  o  lábio.  A  princesa  parecia  ter  superado  o  sermão  inicial. 
Talvez…  “Brilhanteza,”  Shallan  disse,  encolhendo-se  perante  a  ousadia,  “o  que 
achou da minha carta?” 
“Carta?” 
“Eu…” Shallan olhou para a mesa. “De baixo da pilha de livros, Brilhanteza.” 
Um  servo  rapidamente  afastou  a  pilha;  o  parshimem  devia  ter  colocado  os 
livros  em  cima  do  papel  sem  perceber.  Jasnah  pegou  a  carta,  erguendo  uma 
sobrancelha,  e  Shallan  rapidamente  abriu  sua  bolsa,  guardando  as  esferas  em  seu 
saquinho  de  dinheiro.  Então  amaldiçoou  a  si  mesma  por ter sido tão rápida, já que 
agora  não  tinha  mais  nada  para  fazer  além  de  ficar  ali  de pé, esperando que Jasnah 
terminasse de ler. 
“Isto é verdade?” Jasnah olhou do papel para ela. “Você é autodidata?” 
“Sim, Brilhanteza.” 
“Impressionante.” 
“Obrigada, Brilhanteza.”  
“E  esta  carta  foi  uma  manobra  astuta.  Você  assumiu  corretamente  que  eu  iria 
responder  um  apelo  em  escrito.  Isto  mostra  sua  habilidade  com  as  palavras.  A 
retórica  da  carta  é  prova  de  que  consegue  pensar  logicamente  e  fazer  um  bom 
argumento.” 
“Obrigada,  Brilhanteza,”  Shallan  disse,  sentindo  outra  onda  de  esperança, 
misturada  ao  cansaço.  Suas  emoções  tinham  sido  arremessadas  de  um  lado  para  o 
outro, como uma corda usada em um cabo de guerra. 
“Deveria ter deixado a nota para mim, e se retirado antes que eu retornasse.” 
“Mas então ela teria sido perdida embaixo daquela pilha de livros.” 
Jasnah  ergueu  uma  sobrancelha  para  ela,  como  que  para  mostrar  que  não 
apreciava  ser  corrigida.  “Muito  bem.  O  contexto  da  vida  de  uma  pessoa  ​é 
importante.  Suas  circunstâncias  não  justificam  sua  falta  de  educação  em  história  e 
filosofia,  mas  leniência  será  providenciada.  Irei  permitir  que  me  peticione 
novamente  em  uma  data  futura,  um  privilégio  que  nunca  concedi  a  nenhuma 
aspirante  a  aprendiz.  Assim  que  tiver  fundamento  suficiente  nestas  duas  matérias, 
venha até mim novamente. Se tiver melhorado adequadamente, irei aceitá-la.” 
As  emoções  de  Shallan  afundaram.  A  oferta  de  Jasnah  ​era  gentil,  mas  levaria 
anos  de  estudo  para  alcançar  o  que  fora  pedido. A Casa Davar teria caído até lá, as 
terras  de  sua  família  dividida  entre  os  credores,  ela  e  seus  irmãos  despojados  de 
títulos e talvez escravizados. 
“Obrigada, Brilhanteza,” Shallan disse, curvando a cabeça. 
Jasnah assentiu, como que considerando o assunto encerrado. Shallan se retirou, 
andando  silenciosamente  até  o  elevador  e  puxando  a  corda  do  sino  para  dar  sinal 
aos carregadores. 
Jasnah  tinha  apenas  prometido  aceitar  Shallan  em  uma  ocasião  futura.  Para 
muitas,  aquilo  teria  sido  uma  grande  vitória.  Ser  treinada  por  Jasnah  Kholin  — 
considerada  por  alguns  como  a  mais  fina  acadêmica  viva  —  teria  garantido  um 
futuro  brilhante.  Shallan  teria  se  casado  extremamente  bem,  possivelmente  com  o 
filho de um alto-princípe, e teria encontrado novos círculos sociais abertos para ela. 
De  fato,  se  Shallan  tivesse  o  tempo  para  treinar  sob  os cuidados de Jasnah, o puro 
prestígio de uma afiliação Kholin talvez teria sido o suficiente para salvar sua casa.  
Quem dera. 
Eventualmente,  Shallan fez seu trajeto para fora do Conclave; não havia portões 
na  parte  da  frente,  apenas  pilares  colocados  diante  da  bocarra  aberta.  Ela  se 
surpreendeu  em  perceber  o  quanto  já  havia  escurecido  do  lado  de  fora.  Shallan 
desceu  os  grandes  degraus,  tomando  então  um  caminho  lateral,  menor  e  mais 
cultivado,  afastado  da  calçada  principal.  Pequenas  plataformas  de  rocharbórea 
tinham  sido  plantadas  nesta  passarela,  e várias das espécies expunham gavinhas em 
forma  de  leques  para  balançarem  com  a  brisa  noturna.  Alguns  preguiçosos 
vidasprens  —  como  partículas  de  poeira  verde  e  brilhante  —  esvoaçavam  de  uma 
fronda para outra.  
Shallan  se  reclinou  contra  a  planta  rochosa,  fazendo  com  que  as  gavinhas  se 
retraíssem,  escondendo-se.  Aqui  onde  estava,  ela  conseguia  olhar  através  de  toda 
Kharbranth,  luzes  brilhando  logo  abaixo  como  uma  catarata  de  fogo,  fluindo 
através  da  queda  do  penhasco.  A  única  opção  que  restava  a  ela  e  seus  irmãos  era 
fugir.  Abandonar  as  propriedades  da  família  em  Jah  Keved  e  buscar  asilo.  Mas 
onde? Ainda existiriam antigos aliados aos quais seu pai ​não​ tivesse alienado? 
Havia  também  aquela  questão  da  estranha  coleção  de  mapas  que  tinham 
encontrado  no  estúdio  de  seu  pai.  O  que  significavam?  Ele  raramente falava sobre 
seus  planos  com  os  filhos. Até mesmo seus assessores sabiam bem pouco. Helaran 
—  o  irmão  mais  velho  —  soubera  mais,  mas  tinha  desaparecido  há  mais  de  um 
ano, e seu pai tinha o dado como morto. 
Como  sempre,  pensar  em  seu  pai  fez  Shallan sentir-se doente, e a dor começou 
a  apertar seu peito. Ela levou a mão-livre até a cabeça, subitamente sufocada com o 
peso da situação da Casa Davar, sua parte naquilo, e o segredo que agora carregava, 
escondido à dez batidas de coração.  
“Ho,  senhorita!”  uma  voz  chamou.  Ela  se  virou,  chocada  em  ver  Yalb  parado 
em  uma  plataforma  de  pedra  ​a  uma  curta  distância  da  entrada  do  Conclave.  Um 
grupo de homens em uniformes de guarda sentava na rocha ao redor dele.  
“Yalb?”  ela  disse,  atônita.  Ele  deveria  ter  voltado  para  o  navio  há  horas  atrás. 
Ela  se  apressou  para  chegar  na  parte  de  baixo  da  curta  plataforma  de  pedra.  “Por 
que ainda está aqui?” 
“Oh,”  disse  ele,  sorrindo,  “Eu  encontrei  uma  partida  de  kabers  aqui  com  estes 
finos  e  respeitáveis  cavalheiros  da  guarda  da  cidade.  Presumi  que  oficiais  da  lei 
dificilmente  tentariam  me  passar  a  perna,  então  entramos  em  um  jogo  amistoso 
enquanto eu esperava.” 
“Mas não ​precisava​ esperar.”  
“Nem  ganhar  oito  lascas  destes  camaradas  aqui,”  Yalb  disse  com  uma  risada. 
“Mas fiz os dois!” 
Os  homens  sentados  ao  redor  dele  pareciam  muito menos entusiasmados. Seus 
uniformes eram tabardos laranjas, amarrados com faixas brancas perto da cintura. 
“Bom,  suponho  que  devo  guiá-la  de  volta  ao  navio,  então,”  Yalb  disse, 
relutantemente  reunindo  as  esferas  na  pilha  em  seus  pés.  Elas  brilhavam com uma 
variedade  de  tonalidades.  Suas  luzes  eram  pequenas  —  cada  uma  delas  era  apenas 
uma lasca — mas eram ganhos impressionantes.  
Shallan  se  afastou  enquanto  Yalb  saltava  da  plataforma  de  pedra.  Seus 
companheiros  contestaram  a  saída,  mas  ele  gesticulou  em  direção  de  Shalan. 
“Vocês  me  deixariam  fazer  uma  mulher  olhos-claros  da  estatura  dela  voltar  para o 
navio por conta própria? Eu achei que fossem homens de honra!” 
Aquilo aquietou os protestos.  
Yalb  riu para si mesmo, curvando-se para Shallan e a guiando para longe através 
do  caminho.  Ele  carregava  um  brilho  nos  olhos.  “Pai-Tempesto,  como é divertido 
ganhar de homens da lei. Vou ter drinques de graça nas docas quando isso acabar.” 
“Você  não  deveria  apostar,”  Shallan  disse.  “Não  deveria  tentar  adivinhar  o 
futuro. Eu não lhe dei aquela esfera para que a gastasse com tais práticas.” 
Yalb gargalhou. “Não é uma aposta se souber que vai ganhar, senhorita.” 
“Você  ​trapaceou​?”  ela  sibilou,  horrorizada.  Shallan  olhou  de  volta  para  os 
guardas,  que  tinham sentado para continuar a jogatina, iluminados pelas esferas nas 
pedras diante deles.  
“Não  fale  tão  alto!”  advertiu  Yalb  em  voz  baixa.  No  entanto,  ele  parecia muito 
satisfeito  consigo  mesmo.  “Trapacear  quatro  guardas,  agora  isso  sim  é  um  feito. 
Quase não acredito que consegui!” 
“Estou desapontada com você. Isso ​não é​ comportamento apropriado.” 
“É  se  for  um  marujo,  senhorita.”  Ele  deu  de  ombros.  “É  o  que  eles 
corretamente  esperavam  de  mim.  Me  vigiaram  como  treinadores  de 
enguias-celestes  venenosas,  vigiaram  sim.  O  jogo  não  era  sobre  as  cartas  —  era 
sobre  eles  tentando descobrir como eu estava trapaceando, e eu tentando descobrir 
como  impedi-los  de  me  dar  uma  surra.  Acho  que  não  teria  conseguido  sair  de  lá 
inteiro se você não tivesse aparecido!” Aquilo não pareceu o preocupar muito.  
A  estrada  até  as  docas  não  estava  nem  de  perto  tão  ocupada  quanto  estivera 
mais  cedo,  mas  ainda  havia  um  número  surpreendente  de  pessoas  em  volta.  A rua 
era  iluminada  por  lanternas  a  óleo  —  esferas  corriam  o risco de serem embolsadas 
por  alguém  —  mas  muitas  das  pessoas  ao  redor  carregavam  lanternas  de  esferas, 
projetando  um  arco-íris  de  luz  colorida  na  estrada.  As  pessoas  eram  quase  como 
esprens, cada uma em um tom diferente, movendo-se aqui e acolá.  
“Então,  senhorita,”  Yalb  disse,  guiando-a  cuidadosamente  através  do  tráfego. 
“Quer realmente voltar? Eu só disse aquilo para conseguir sair daquele jogo.” 
“Sim, quero voltar, por favor.” 
“E a sua princesa?” 
Shallan fez uma careta. “O encontro foi… improdutivo.” 
“Ela não te aceitou? Qual o problema dela?” 
“Competência  crônica,  imagino.  Ela  foi  tão  bem  sucedida  na  vida  que  tem 
expectativas absurdas quanto aos outros.” 
Yalb  franziu  a  testa,  guiando  Shallan  em  torno  de  um  grupo  de  foliões  que 
cambaleava  de  forma  embriagada  na  estrada.  Não  estava  meio  cedo  ainda  para 
isso?  Yalb  avançou  alguns  passos  na  frente,  virando-se  e  andando  de  costas, 
olhando  para  ela.  “Isso  não  faz  sentido,  senhorita.  O  que  mais  ela  poderia  querer 
além de você?” 
“Muito mais, aparentemente.” 
“Mas você é perfeita! Perdoe minha investida.” 
“Você está andando para trás.” 
“Perdoe  meu  recuo,  então.  Você  é  bonita  em  todas  as  direções,  senhorita,  isso 
você é.” 
Shallan  percebeu  que  sorria.  Os  marujos  de  Tozbek  tinham  uma  opinião 
elevada demais quanto a ela.  
“Você  daria  uma  aprendiz  ideal,” ele continuou. “Requintada, bonita, refinada e 
tudo  mais.  Não  gosto  muito  de  sua  opinião  quanto  a  apostas,  mas  isso  era  de  se 
esperar.  Não  seria  certo  uma  mulher  adequada  não  repreender  um  rapaz  por 
apostar. Seria como o sol se recusando a nascer ou o mar se tornando branco.” 
“Ou Jasnah Kholin sorrindo.” 
“Exato! De toda forma, você é perfeita.” 
“É gentil de sua parte dizer isso.” 
“Bom,  é  verdade,”  ele  disse,  parando  e  colocando  as mãos na cintura. “Então é 
isso? Vai desistir?” 
Ela  o encarou perplexamente. Yalb ficou ali na estrada movimentada, iluminado 
do  topo  por  uma  lanterna  que  brilhava  em  amarelo-laranja,  mãos  na  cintura,  as 
brancas  sobrancelhas  Thaylenesas  pendendo  ao  longo  das  laterais  de  seu  rosto,  o 
peito  nu  abaixo  de  seu  colete  aberto.  Aquela  era  uma  postura  que,  enquanto  na 
mansão  de  seu  pai,  cidadão  algum  sequer  imaginou  tomar,  independente  do  quão 
nobre fosse.  
“Eu  tentei  persuadi-la,”  Shallan  disse,  corando.  “Fui  até  ela  uma segunda vez, e 
ela me rejeitou novamente.” 
“Duas  vezes,  é?  Com  cartas,  tem  sempre  que  tentar  uma  terceira  mão.  É  a  que 
mais ganha, geralmente.”  
Shallan  franziu  a  testa.  “Mas  isso  não  é  realmente  verdade.  As  leis  da 
probabilidade e estatística—” 
“Não  sei  muito  sobre  essa  tempestuosa  matemática,”  Yalb  disse,  cruzando  os 
braços. “Mas eu conheço as Paixões. Você ganha quando mais precisa, veja bem.” 
As  Paixões.  Uma  superstição  pagã.  É  claro,  Jasnah  tinha  referido  os  glifos 
protetores  como  pagãos  também,  então  talvez  tudo  fosse  uma  questão  de 
perspectiva.  
Tentar  uma  terceira  vez…  Shalan  se  arrepiou  ao  considerar a fúria de Jasnah se 
ela  a incomodasse mais uma vez. A princesa certamente retiraria a oferta de estudar 
com ela no futuro.  
Mas  Shallan  nunca  teria  a  oportunidade  de  aceitar  tal  proposta.  A  oferta  era 
como  uma  esfera  de  vidro  sem  uma  gema  em  seu  centro.  Bonita,  mas  inútil.  Não 
seria  melhor  agarrar  uma  última  chance  de  conseguir  a  posição  da  qual  precisava 
agora?  
Não  funcionaria.  Jasnah  tinha  deixado  bem  claro  que  Shallan  não  tinha 
educação o suficiente ainda. 
Não tinha educação o suficiente ainda… 
Uma  ideia  faiscou  em  sua  cabeça.  Ela  levou  a  mão-livre  ao  peito,  parada  na 
estrada,  considerando  a  audácia  do  pensamento.  Ela  provavelmente  seria  expulsa 
da cidade por ordens de Jasnah. 
Ainda  assim,  se  voltasse  para  casa  sem  ter  tentado  todas  as  alternativas, 
conseguiria  encarar  seus  irmãos?  Eles  dependiam  de  Shallan.  Pela  primeira vez em 
sua  vida,  alguém  ​precisava  dela.  Aquela  responsabilidade  a  excitava.  E  a 
amedrontava.  
“Preciso  de  um  vendedor  de  livros,”  ela  percebeu  dizer,  a  voz  oscilando 
levemente. 
Yalb ergueu uma sobrancelha para ela. 
“A terceira mão é a que mais ganha. Acha que consegue encontrar um vendedor 
de livros que esteja aberto a essas horas?” 
“Kharbranth  é  um  grande  porto,  senhorita,”  ele  disse  com  um  riso.  “Lojas 
ficam  abertas  até  tarde.  Espere  aqui  um  pouquinho.”  Ele  disparou  multidão 
adentro, deixando-a com um protesto ansioso nos lábios.  
Shallan  suspirou,  sentando-se  com  uma  postura  acanhada  na  base  de  pedra  de 
um  poste  iluminado.  Estaria  segura. Ela viu outras mulheres olhos-claros passando 
pela  rua,  embora  elas  estivessem  geralmente  sendo  carregadas  em  palanquins  ou 
aqueles  pequenos  veículos  puxados  a  mão.  Ela  até  mesmo  viu  ocasionais 
carruagens  reais, embora apenas os muito afortunados tivessem condições de pagar 
para ter cavalos.  
Alguns  minutos  depois,  Yalb  surgiu  da  multidão  como  que  do  nada,  acenando 
para que ela o seguisse. Ela se levantou, apressando-se até ele.  
“Devemos  chamar  um  carregador?”  ela  perguntou  enquanto  Yalb  a  guiava  até 
uma  grande  rua  secundária,  que  corria  lateralmente  pela  encosta  da cidade. Shallan 
pisava  cuidadosamente;  sua  saia  era  bem  longa,  e  ela  se  preocupou  em  acabar 
rasgando  a  borda  do  tecido  na  pedra.  A  tira  na  ponta  da  vestimenta  era  feita  para 
ser  facilmente  substituída,  mas  Shallan  não  tinha  o  luxo  de  gastar  esferas  com  tais 
coisas. 
“Nah,”  disse  Yalb.  “É  bem  aqui.”  Ele  apontou  através  de  outro  cruzamento. 
Este  tinha  uma  fileira  de  lojas  no  decorrer  da  íngreme  subida, cada uma delas com 
uma  placa  pendurada  para fora, carregando o par de glifos para ​livro​, os ideogramas 
geralmente  estilizados no formato do objeto. Servos iletrados que acabassem sendo 
enviados para uma das lojas precisavam ser capazes de reconhecê-las. 
“Vendedores  do  mesmo  tipo  gostam  de  ficar  amontoados,”  Yalb  disse, 
esfregando  o  queixo.  “Me  parece  meio  burro,  mas  acho que vendedores são como 
peixes. Onde encontrar um, encontrará vários.” 
“O  mesmo  pode  ser  dito  de  ideias,”  disse  Shallan,  contando.  Seis  diferentes 
lojas. Todas eram iluminadas com Luz-tempesta nas janelas, fria e constante.  
“A  terceira  da  esquerda,”  Yalb  disse,  apontando.  “O  nome  do  vendedor  é 
Artmyrn.  Minhas  fontes  dizem  que ele é o melhor.” Era um nome Thaylenês. Yalb 
provavelmente tinha perguntado para pessoas de sua terra natal, e eles o apontaram 
para cá.  
Ela  acenou  com  a  cabeça  para  Yalb  e  eles  subiram a íngreme rua de pedra até a 
loja.  Yalb  não  entrou com ela; Shallan tinha percebido que muitos homens ficavam 
desconfortáveis  ao  redor  de  livros  e  leitura,  até  mesmo  aqueles  que  não  eram 
Vorin. 
Ela  empurrou  a  porta  —  feita  de  madeira  robusta  com  dois  painéis  de  cristais 
—  e  entrou  em  um  cômodo  aquecido,  incerta  do  que  esperar.  Ela nunca tinha ido 
até  uma  loja  para  comprar  algo;  sempre  enviara  servos,  ou  os  vendedores 
acabavam vindo até ela. 
O  interior  do  aposento  parecia  muito  convidativo,  com  poltronas  grandes  e 
confortáveis  ao  lado de uma lareira. Chamasprens dançavam na lenha queimada ali, 
e  o  piso  era  de  madeira.  Madeira  uniforme;  tinha  provavelmente  sido  Moldada 
daquela forma diretamente da pedra abaixo. Luxuoso, de fato. 
Uma  mulher  se  encontrava  atrás  de  um balcão no fundo do cômodo. Ela vestia 
uma  saia  bordada  e  uma  blusa,  em  contraste  da  lustrosa  havah  de  peça única, feita 
de  seda,  que  Shallan  estava  usando.  A  mulher  era  olhos-negros,  mas  era 
obviamente  abastada.  Em  reinos  Vorin,  ela  seria  possivelmente  de  primeiro  ou 
segundo  nahn.  Thayleneses  tinham  seu  próprio  sistema  de  posições.  Ao  menos, 
não  eram  completamente  pagãos  —  respeitavam  a  cor  dos  olhos,  e  as  mulheres 
usavam luvas nas mãos-modestas. 
Não  havia  muitos  livros  no  lugar.  Alguns  no  balcão,  um  numa  estante  ao  lado 
das  cadeiras.  Um  relógio  fazia  seu  tic-tac  na  parede,  seu  lado  de  baixo  pendurado 
com  uma  dúzia  de  cintilantes  sinos  de  prata. Isto se parecia mais com o lar de uma 
pessoa do que uma loja.  
A  mulher  deslizou  um  marcador  em  seu  livro,  sorrindo  para  Shallan.  Era  um 
sorriso  suave,  ansioso.  Quase  predatório.  “Por  favor,  Brilhanteza,  sente-se,”  ela 
disse,  apontando  para  as  cadeiras.  A  mulher  tinha  enrolado  suas  longas  e  brancas 
sobrancelhas  Thaylenesas,  fazendo-as  penderem  ao  lado  de  seu  rosto  como 
madeixas da sua franja.  
Shallan  sentou  hesitantemente  enquanto  a  mulher  tocava  um  sino  na  parte  de 
baixo  do  balcão.  Logo  em  seguida,  um  homem  corpulento  bamboleou  até  o 
cômodo,  vestindo  um  colete  que  parecia  prestes  a  explodir  com  o  estresse  de 
segurar  tamanha  circunferência.  Seu  cabelo  já  estava  agrisalhando,  e  ele  mantinha 
as sobrancelhas penteadas para trás, presas nas orelhas.  
“Ah,”  ele  disse,  batendo  as  grandes  mãos,  emitindo  uma  palma,  “querida 
jovenzinha.  Está  em  busca  de  uma  bela  novela?  Uma  leitura  prazerosa  para passar 
as  horas  cruéis enquanto está separada de um amor perdido? Ou talvez um livro de 
geografia,  com  detalhes  de  lugares  exóticos?”  Ele  tinha  um  leve  tom 
condescendente e falava no Veden nativo de Shallan.  
“Eu—não,  obrigada.  Preciso  de  um  extensivo  conjunto  de  livros  de  história  e 
três  de  filosofia.”  Ela  puxou  na  memória,  tentando  lembrar  os  nomes  que  Jasnah 
tinha  usado.  “Algo  por  Placini,  Gabrathin,  Yustara,  Manaline,  ou 
Shauka-filha-Hasweth.” 
“Leituras  pesadas  para  alguém  tão  jovem,”  o  homem  disse,  acenando  com  a 
cabeça  para  a  mulher,  que  era  provavelmente  sua  esposa.  Ela  se  esgueirou  até  o 
quarto  dos  fundos.  Ele  a  usaria  para ler; mesmo que pudesse ler por conta própria, 
não  iria  gostar  de afugentar clientes ao fazê-lo em suas presenças. Ele iria cuidar do 
dinheiro; comércio era uma arte masculina na maioria das situações. 
“Agora,  por  que  uma  jovem  flor  como  você  está  se  incomodando  com  tais 
tópicos?”  disse  o  mercador,  sentando  com  cuidado  na  cadeira  que  cruzava  a  dela. 
“Eu  não  conseguiria  interessá-la  em  uma  boa  novela  romântica?  Estas  são  minha 
especialidade,  veja  bem.  Jovens  mulheres  de  toda  a  cidade  veem  até  mim,  e  eu 
sempre tenho as melhores histórias.” 
O  tom  dele  a  irritou  profundamente.  Era  petulante  o  suficiente  para  ​saber  que 
ela  era  uma  criança  protegida.  Era  realmente  necessário  lembrá-la  disso?  “Uma 
novela  romântica,”  Shallan  disse,  segurando  sua  bolsa  perto  do  peito.  ‘Sim,  talvez 
isso seja bom. Por algum acaso, tens uma cópia de ​Mais Perto da Chama?​” 
O  vendedor  piscou.  ​Mais  Perto  da  Chama  fora  escrito  do  ponto  de  vista  de  um 
homem,  que  tinha  lentamente  sucumbido  a  loucura  após  ver seus filhos morrerem 
de fome. 
“Tem certeza de que quer algo tão, er, ambicioso?” o homem perguntou. 
“A ambição é um atributo tão impróprio numa jovem mulher?” 
“Bem,  não,  eu  suponho  que  não.”  Ele  sorriu  novamente  —  o  sorriso  denso  e 
dentudo  de  um  vendedor  tentando  relaxar  um  cliente.  “Posso  ver  que  é  uma 
mulher de gosto discriminador.” 
“Sim,  sou,”  Shallan  disse,  a  voz  firme  embora  o  coração  se  agitasse.  Estaria  ela 
destinada  a entrar numa discussão com todo mundo que encontrasse? “Eu ​gosto das 
minhas  refeições  preparadas  cuidadosamente,  pois  meu  paladar  é  deveras 
delicado.” 
“Perdão. Eu quis dizer que tem um gosto discriminador para ​livros.​ ” 
“Nunca comi um, para falar a verdade.” 
“Brilhanteza, creio que esteja caçoando de minha pessoa.” 
“Não estou, não ainda. Eu nem cheguei a começar.” 
“Eu—” 
“Agora,” ela interrompeu, “estava certo em comparar a mente ao estômago.” 
“Mas—” 
“Muitos  de  nós,”  continuou,  “tomam  grandes dores com o que ingerimos pelas 
nossas  bocas,  e muito menos pelo que passa através dos olhos e ouvidos. Não diria 
o mesmo?” 
Ele  concordou  com  a  cabeça,  talvez  não  confiando  que  pudesse  falar  sem  ser 
interrompido.  Shallan  sabia,  no  fundo  de  sua  mente,  que  estava  se  deixando  ir 
longe demais — que estava tensa e frustrada após suas interações com Jasnah. 
Ela  não  se  importava  com  isso  no  momento.  “Discriminador,”  ela  disse, 
testando  a  palavra.  “Não estou certa de que concordo com sua escolha de palavras. 
Discriminar  é  preconceber.  Ser  exclusivo.  Uma  pessoa  é  capaz  de  ser  exclusiva 
com o que ingere? Quer seja com comida ou com pensamentos?” 
“Creio que sim,” disse o vendedor. “Não é isso o que acabou de dizer?” 
“Eu  disse  que  devemos  considerar  aquilo  que  lemos  ou  comemos.  Não  que 
devemos  ser  exclusivos.  Diga,  o  que  acha  que  aconteceria  com  uma  pessoa  que 
come apenas doces?” 
“Sei  muito  bem,”  ele  respondeu.  “Tenho  uma  cunhada  que  revira  o  estômago 
periodicamente por conta disso.”   
“Vê,  ela  foi  discriminadora  ​demais.​   O  corpo  precisa  de  muitas  comidas 
diferentes  para  se  manter  saudável.  E  a  mente  precisa  de  muitas  ideias  diferentes 
para  se  manter  afiada.  Não  concorda?  E  então,  se  eu  fosse  ler  apenas  esses 
romances  bobos  aos  quais  presume  que  minha  ambição  pode  dar  conta,  minha 
mente  adoeceria,  tão  certamente  quanto o estômago de sua cunhada. Sim, vejo que 
a metáfora é sólida. És muito esperto, Mestre Artmyrn.” 
O homem voltou a sorrir. 
“É  claro,”  ela  observou,  não  devolvendo  o  sorriso,  “ser  palestrado  tende  a 
revirar  tanto  a  mente  ​quanto  o  estômago.  Muito  gentil  de  sua  parte  em  dar  uma 
lição  tão  objetiva  e  mordaz  para  acompanhar  sua  brilhante  metáfora.  Trata  todos 
os seus clientes desta maneira?”   
“Brilhanteza… creio que esteja se desviando para o sarcasmo.” 
“Engraçado.  Pensei  ter  corrido  diretamente  até  ele,  gritando  com  toda  a  força 
de meus pulmões.”  
Ele  corou,  levantando-se.  “Irei  ajudar  minha  esposa.”  Com  isso,  o  homem  se 
retirou rapidamente. 
Shallan  sentou,  percebendo  que  estava  irritada  consigo  mesma  por  deixar  sua 
frustração  ferver.  Era  exatamente  o  que  suas  enfermeiras tinham lhe avisado. Uma 
jovem  mulher  deve medir suas palavras. A língua imoderada de seu pai tinha ganho 
uma reputação deplorável para a casa; Faria ela o mesmo?  
Ela  se  acalmou,  apreciando  o  calor  e assistindo os chamasprens dançantes até o 
vendedor  e  sua  esposa  retornarem,  carregando  várias  pilhas  de  livros.  O  vendedor 
tomou  seu  assento  novamente,  e  a  esposa  puxou  um  banquinho,  colocando  os 
tomos no chão e os mostrando um por vez, enquanto seu marido falava.  
“Para  história,  temos  duas  opções,”  disse  o  vendedor,  sem  mais 
condescendência  ou  amizade.  “​Tempos  e  Passagens,​   por  Rencalt,  é  um  volume  único 
de  pesquisas  da  história  Roshariana  desde  a  Hierocracia.”  Sua  esposa  levantou  um 
volume  vermelho,  encadernado  com  tecido.  “Eu  disse  a  minha  esposa  que  você 
provavelmente se sentiria insultada com uma opção tão rasa, mas ela insistiu.” 
“Obrigada,”  Shallan  disse.  “Não  me  sinto  insultada,  mas  necessito de algo mais 
detalhado.”  
“Então,  talvez,  ​Eternathis  irá  lhe  servir,”  ele  disse  enquanto  a  esposa  levantava 
um  conjunto  de  quatro  volumes  azuis-acinzentado.  “É  um  trabalho  filosófico  que 
examina  o  mesmo  período  de  tempo,  focando-se  apenas  nas  interações  dos  cinco 
reinos Vorin. Como pode ver, o trabalho é completo.” 
Os  quatro  volumes  eram  grossos.  Os  ​cinco  reinos  Vorin?  Ela  pensou  que 
existissem  apenas  quatro.  Jah  Keved,  Alethkar,  Kharbranth,  e  Natanatan.  Unidos 
pela  religião,  eles  foram  fortes  aliados  durante  os  anos  que  sucederam  a  Apóstase. 
Qual era o quinto reino? 
Os volumes a intrigaram. “Eu vou levá-los.” 
“Excelente,”  disse  o  vendedor,  um  pouco  do  brilho  voltando  em  seus  olhos. 
“Das  obras  filosóficas  que  listou,  não  tínhamos  nada  de  Yustara.  Temos  uma  de 
Placini  e  uma  de  Manaline;  ambas  são  coletâneas  com  trechos  de  seus  textos  mais 
famosos. Eu tive o livro de Placini lido para mim; é muito bom.” 
Shallan concordou. 
“Quanto  a  Gabranthin,”  ele  disse,  “temos  quatro  diferentes  volumes.  Ora,  este 
era  um  prolífico!  Oh,  e  temos  um  único  livro  de Shauka-filha-Hasweth.” A esposa 
ergueu  um  fino  volume  verde.  “Tenho  que  admitir,  nunca  tive  nenhuma  de  suas 
obras lidas para mim. Eu não sabia que existiam filósofas Shin dignas de nota.”  
Shallan  olhou  para  os  quatro  livros  de  Gabranthin.  Ela  não  fazia  ideia  de  qual 
levar,  então  evitou  a  questão,  apontando  para  as  duas  coleções  que  tinham  sido 
mencionadas  antes  e  o  único  volume  de  Shauka-filha-Hasweth.  Uma  filósofa  da 
distante  Shin,  onde  pessoas  viviam  no  barro  e  veneravam  rochas.  O  homem  que 
assassinara  o  pai  the  Jasnah,  há  quase  seis  anos  atrás  —  ocasionando  a  guerra 
contra  os  Parshendi  em  Natanatan  —  era  Shin.  O  Assassino  de  Branco,  como era 
chamado.  
“Levarei aqueles três,” Shallan disse, “junto com os de história.” 
“Excelente!”  o  vendedor  repetiu.  “Por  comprar  tantos,  lhe  darei  um  bom 
desconto. Digamos, dez contas de esmeralda?” 
Shallan  quase  engasgou.  Uma  conta  de  esmeralda  era  a  maior  denominação  de 
esfera,  equivalente  a  mil  lascas de diamante. Dez delas eram muito mais do que sua 
viagem para Kharbranth tinha custado! 
Ela  abriu  a  bolsa,  olhando  para  seu  saquinho  de  dinheiro.  Tinha  em  torno  de 
oito  contas  de  esmeralda  restantes.  Ela  precisaria  levar  menos  livros,  óbviamente, 
mas quais? 
A  porta  se  escancarou  subitamente.  Shallan  deu  um  pulo,  surpreendendo-se  ao 
ver  Yalb  parado  ali,  segurando  seu  gorro  nas  mãos,  nervoso.  Ele  se  apressou  até a 
cadeira  dela,  levando  um  joelho  ao  chão.  Ela  estava  atônita demais para dizer algo. 
Por que ele estava tão preocupado? 
“Brilhanteza,”  ele  disse,  curvando  a  cabeça.  “Meu  mestre  pede que retorne. Ele 
reconsiderou  sua  oferta.  Nós  sinceramente  podemos  aceitar  o  preço  ao  qual 
propôs.”  
Shallan abriu a boca, mas se deparou estupefata. 
Yalb  olhou para o vendedor. “Não compre deste homem, Brilhanteza. Ele é um 
mentiroso  e enganador. Meu mestre pode lhe vender livros muito mais requintados 
a um preço muito mais em conta.” 
“Agora,  o  que  é  isso?”  Artmyrn  indagou,  levantando-se.  “Como  ousa!  Quem  é 
seu mestre?” 
“Barmest,” Yalb disse defensivamente. 
“Aquele  rato!  Ele  manda  um  garoto  até  ​minha  loja  tentando  roubar  ​meus 
clientes? Ultrajante!” 
“Ela veio até nossa loja primeiro!” Yalb rebateu. 
Shallan  finalmente  se  deu  conta  do  que  acontecia.  ​Pai-Tempesto!  Ele  é  um  ator  e 
tanto.​   “Você  teve  sua  chance,”  ela  disse  para  Yalb.  “Corra  e  diga  a  seu  mestre  que 
eu  me  recuso  a  ser  roubada.  Visitarei  cada  livraria  na  cidade  se  for  preciso  para 
encontrar alguém sensato.” 
“Artmyrn  não  é  sensato,”  disse  Yalb,  cuspindo  para  o  lado.  Os  olhos  do 
vendedor se arregalaram em fúria. 
“Veremos,” Shallan disse. 
“Brilhanteza,”  Artmyrn  disse,  seu  rosto  vermelho.  “Certamente  não  acredita 
nessas alegações!” 
“E quanto você pretendia cobrar dela?” Yalb perguntou. 
“Dez contas de esmeralda,” Shallan disse. “Por aqueles sete livros.” 
Yalb  riu.  “Deveria  ter  saído  no  mesmo  instante! Brilhanteza, você praticamente 
tinha  a  orelha  de  meu  mestre,  e ele lhe ofereceu uma proposta melhor do que essa! 
Por favor, volte comigo. Estamos prontos para—” 
“Dez  era  apenas  um  orçamento,”  Artmyrn  disse.  “Eu  não  esperava  que  ela 
aceitasse.” Ele olhou para Shallan. “É claro, ​oito​…” 
Yalb  riu  novamente.  “Tenho  certeza  de  que  temos  esses  mesmos  livros, 
Brilhanteza. Aposto que meu mestre os vende por duas esmeraldas.” 
Artmyrn  ficou  ainda  mais  vermelho,  balbuciando.  “Brilhanteza, certamente não 
compraria  de  alguém tão crasso a ponto de enviar um servo na loja de outra pessoa 
para roubar seus clientes!” 
“Talvez  eu  faça  isso,”  Shallan  disse.  “Ao  menos,  ele  não  insultou  minha 
inteligência.”  
A  esposa  de  Artmyrn  lançou  um  olhar  penetrante  no  marido, e o homem ficou 
ainda  mais  vermelho.  “Duas  esmeraldas,  três  safiras.  É  o  menor  que  posso  fazer. 
Se  quiser  mais barato que isso, então que compre daquele patife Barmest. Os livros 
provavelmente terão páginas faltando, no entanto.” 
Shallan  hesitou,  olhando  de  relance  para  Yalb;  ele  ainda  estava  curvado, 
focando-se  no  personagem.  Ela  encontrou  os  olhos  dele,  e  o  rapaz  apenas  deu  de 
ombros. 
“Feito,”  ela  disse  para  Artmyrn,  instigando  um  grunhido  de  Yalb,  que  saiu  de 
fininho  com  um  xingão  da  esposa  de  Artmyrn.  Shallan  se  levantou  e  contou  as 
esferas; as contas de esmeralda que tinha pego de sua bolsa-modesta. 
Em  pouco  tempo,  ela  saía  da  loja  carregando  um  pesado  sacolão.  Ela  desceu  a 
rua  íngreme,  e  encontrou  Yalb  encostado  no  lado  de  um  poste.  Ela  sorriu 
enquanto  ele  pegava  a  sacola  de  compras.  “Como  sabia  o  preço  justo  para  um 
livro?” ela perguntou. 
“Preço  justo?”  ele  disse,  jogando  a  sacola  pelo  ombro.  “Por  um  livro?  Não 
tenho  ideia.  Eu  apenas  imaginei  que  ele  tentaria  te  extorquir  o  máximo  possível. 
Foi  por  isso  que  perguntei  por aí quem era seu maior rival, então voltei para ajudar 
que seus preços fossem mais realistas.”  
“Era  tão  óbvio  que  eu  fosse  deixar  me  passarem  a  perna?”  ela  perguntou  com 
um ruborescer enquanto ambos se afastavam da rua secundária. 
Yalb  riu. “Só um pouquinho. De toda forma, enganar homens como ele é quase 
tão  divertido  quanto  trapacear  guardas.  Você  provavelmente  conseguiria  ter  feito 
ele  abaixar  mais  o  preço  se  tivesse  realmente  saído  comigo,  voltando  depois  para 
dar outra chance a ele.” 
“Isso soa complicado.” 
“É  como minha velha sempre dizia: mercadores são como mercenários. A única 
diferença  é  que  o  mercador  irá  lhe  tirar  a  cabeça,  e  então  fingir  que  ainda  é  seu 
amigo.”  
Isso  vindo  de  um  homem  que  tinha  passado  a  tarde  trapaceando  um  grupo  de 
guardas nas cartas. “Bom, de toda forma, tem minha gratidão.” 
“Por  nada.  Foi  divertido,  embora  eu  não  consiga  acreditar  que  pagou  aquela 
fortuna.  É  apenas  um  monte  de  madeira.  Eu  poderia  ir  até  praia,  achar  um  pouco 
de  madeira  carregada  pelo  mar,  e  colocar  alguns  símbolos  engraçados  nela.  Você 
me pagaria em esferas vivas por isso também?” 
“Não  posso  te  oferecer  isso,”  ela  disse,  procurando  em  sua  bolsa.  Ela  tirou  o 
desenho  que  tinha  feito  de  Yalb  e  o  carregador.  “Mas  por  favor,  aceite  isso, como 
agradecimento.” 
Yalb  pegou  a  folha  e  andou  até  um  poste  para  dar  uma  boa  olhada.  Ele  riu, 
espichando  a  cabeça,  sorrindo  de  orelha  a  orelha.  “Pai-Tempesto!  Que  baita 
desenho!  Parece  até  que  estou  me  vendo  no  reflexo  de  um  prato  polido,  parece 
sim. Não posso aceitar isso, Brilhanteza!” 
“Por  favor.  Eu  insisto.”  Ela  então  piscou  os  olhos,  tirando  uma  Memória  dele 
parado  ali,  com  uma  mão  no  queixo  enquanto estudava o retrato de si mesmo. Ela 
iria  o  redesenhar  mais  tarde.  Depois  de  tudo  que  fizera  por  ela,  Shallan 
carinhosamente o queria em sua coleção. 
Yalb  colocou  o  desenho  cuidadosamente  entre  as  páginas  de  um  livro,  então 
ergueu a sacola e continuou. Eles estavam de volta à estrada principal. Nomon — a 
lua  do  meio  —  tinha  começado  a  nascer,  banhando  a  cidade  com  uma  luz lívida e 
azulada.  Ficar  acordada  até  essas  horas  tinha  sido  um  privilégio  raro  para  ela  na 
mansão  de  seu  pai,  mas  as  pessoas  desta  cidade  mal  pareciam  perceber  o  quão 
tarde estava. Kharbranth era um lugar estranho. 
“De volta ao navio, então?” Yalb perguntou. 
“Não,” ela respondeu, respirando profundamente. “De volta ao Conclave.”   
Ele  ergueu  uma  sobrancelha,  mas  a  guiou  novamente.  Assim  que  chegaram, 
Shallan  se  despediu  de  Yalb,  lembrando-o  de  levar  o  desenho.  Ele  assim  o  fez, 
desejando-a  sorte  antes  de  se  apressar  para  longe  do  Conclave,  provavelmente 
preocupado em encontrar os guardas que tinha trapaceado mais cedo. 
Shallan  arrumou  um  servo  para  carregar  os  livros,  e  fez  seu  trajeto  pelo 
corredor,  de  volta  para  o  Véu.  Ela  solicitou  a  atenção  de  um  servo-mestre  assim 
que passou pelas ornadas portas de metal.  
“Sim,  Brilhanteza?”  perguntou  o  homem.  Muitas  das  alcovas  estavam  escuras 
agora,  e  servos  pacientes  retornavam  os  tomos  para  seus  locais  seguros,  para  além 
das paredes de cristal. 
Deixando  o  cansaço  de  lado,  Shallan  contou  as  fileiras.  Ainda  havia uma luz na 
alcova  de  Jasnah.  “Eu  gostaria  de  usar  aquela  alcova ali,” ela disse, apontando para 
a alcova vizinha. 
“Tens um memorando de admissão?”  
“Temo que não.” 
“Então  terá  que  alugar  o  espaço  se  deseja  usá-lo  regularmente.  Dois 
marcos-celestes.” 
Shallan  fez  uma  careta  para  o  preço,  alcançando  as  esferas  de  safira  e  pagando. 
Seus  saquinhos  de  dinheiro  estavam  depressivamente  vazios.  Ela  permitiu  que  os 
carregadores  parshimens  a  levantassem  até  o  andar  apropriado,  e  então  andou 
silenciosamente  até  sua  alcova.  Adentro,  ela  usou  todas  as  esferas  restantes  para 
encher  o  grande  cálice  que  servia  de  lâmpada.  Para  conseguir  luz  o  suficiente,  foi 
obrigada  a  usar  esferas  de  todas  as  nove  cores  e  dos  três  tamanhos,  fazendo  com 
que a iluminação ficasse desigual e variada.  
Shallan  espiou  para  o  lado  de  sua  alcova,  até  a  sacada  vizinha.  Jasnah  estava 
sentada, estudando, desatenta quanto à hora, seu cálice preenchido até a borda com 
contas  de  diamante  puro.  Elas  eram  melhores  para  iluminação,  mas  menos  úteis 
para Moldagem de Alma, então não eram tão valiosas.  
Shallan  investigou  a  própria  alcova.  Havia  um  lugar  bem  no  extremo  da  mesa 
do  aposento  onde  poderia  sentar,  escondida  pela  parede  de  Jasnah,  então  ela  se 
moveu  até  ali,  sentando-se.  Talvez  devesse  ter  escolhido  uma  alcova  em  outro 
andar,  mas  ela  queria  ficar  de  olho  na  mulher.  Esperançosamente,  Jasnah  passaria 
semanas  estudando  aqui.  Tempo  suficiente  para  Shallan  se  dedicar  ferozmente  a 
estudos  de  última  hora.  Sua  habilidade  de  memorizar  imagens  e  cenas  não 
funcionava  tão  bem  com  textos,  mas  ela  podia  aprender  listas  e  fatos  em  uma 
velocidade que suas tutoras tinham considerado impressionantes.  
Shallan  se  ajeitou  na  cadeira,  pegando  os  livros  e  os  organizando.  Ela  esfregou 
os  olhos.  Estava  bem  tarde,  mas  não  havia  tempo  a  perder.  Jasnah  tinha  dito  que 
Shallan  poderia  fazer  outra  petição  quando  as  lacunas  de  seus  estudos  fossem 
preenchidas.  Bem,  Shallan  pretendia  preencher  essas  lacunas  em  tempo  recorde,  e 
então  se  apresentar  novamente.  Ela  faria  isso  assim  que  Jasnah  estivesse  pronta 
para partir de Kharbranth. 
Era  uma  última  esperança,  desesperada,  tão  frágil  que  uma  forte  rajada  de 
circunstâncias  parecia  suficiente  para  derrubá-la.  Respirando  profundamente, 
Shallan abriu o primeiro dos livros de história.  
“Eu  nunca  vou  me  livrar  de você, não é mesmo?” perguntou uma voz feminina 
e suave.  
Shallan  deu um pulo, quase derrubando os livros quando se virou em direção da 
entrada.  Jasnah  estava  ali  parada,  com  seu  vestido  de  azul  profundo,  bordado  a 
prata,  o  brilho  sedoso  de  sua  superfície  refletindo  a  luz  das  esferas  de  Shallan.  A 
Mold’alma  estava  coberta  por  uma  luva  sem  dedos,  preta,  para  bloquear  o  brilho 
das gemas. 
“Brilhanteza,”  Shallan  disse,  levantando-se  e  rapidamente  fazendo  uma 
reverência desengonçada. “Eu não pretendia perturbá-la. Eu—” 
Jasnah  a  aquietou  com  uma  jogada  de  mão.  Ela pisou para o lado enquanto um 
parshimem  entrava  na  alcova,  carregando  uma  cadeira.  Ele  a  colocou  ao  lado  da 
mesa de Shallan, e Jasnah deslizou para dentro, sentando-se. 
Shallan  tentou  julgar  o  humor  de  Jasnah,  mas  as  emoções  da  mulher  eram 
impossíveis de se ler. “Eu realmente não queria perturbá-la.” 
“Eu  paguei  os  servos  para  que  me  avisassem  caso  retornasse  para  o  Véu,” 
Jasnah  disse  ociosamente,  pegando  um  dos  tomos  de  Shallan,  lendo  o  título.  “Eu 
não queria ser interrompida novamente.” 
“Eu—” Shallan olhou para baixo, corando furiosamente. 
“Não  se  dê ao trabalho de se desculpar,” disse Jasnah. Ela parecia cansada; mais 
cansada  do  que  Shallan  se  sentia.  Jasnah  examinou  os  livros.  “Uma  boa  seleção. 
Escolheu bem.”  
“Não  houve  muita  escolha,”  Shallan  disse.  “Eram  tudo  o  que  o  vendedor 
tinha.” 
“Você  ia  tentar  estudar  os  conteúdos  rapidamente,  presumo?”  Jasnah 
perguntou,  pensativa.  “Tentar  me  impressionar  uma  última  vez  antes  que  eu 
partisse de Kharbranth?” 
Shallan hesitou, e então concordou.  
“Um  plano  inteligente.  Eu  deveria  ter  colocado  uma  restrição  de  tempo  para 
sua  reaplicação.”  Ela  olhou  para  Shallan,  examinando-a.  “Você  é  muito 
determinada.  Isso  é  bom.  E  eu  sei  porque  deseja  tão  desesperadamente  ser  minha 
aprendiz.” 
Shallan congelou. ​Ela sabia?  
“Sua  casa  tem  muitos  inimigos,”  Jasnah  continuou,  “e  seu  pai  é  recluso.  Será 
difícil que você consiga se casar bem sem uma aliança estratégica.” 
Shallan relaxou, embora tenha tentado não demonstrar. 
“Deixe-me ver sua bolsa,” Jasnah disse. 
Shallan  franziu  o  cenho,  resistindo  ao  impulso  de puxar a bolsa para perto dela. 
“Brilhanteza?” 
Jasnah estendeu a mão. “Lembra do que eu disse sobre me repetir?” 
Shallan  entregou  a  bolsa,  relutantemente.  Jasnah  removeu  o  conteúdo  com 
cuidado,  diligentemente  alinhando  os  pincéis,  lápis, canetas, jarros de laquê, tinta, e 
solvente.  Ela  enfileirou  as  pilhas  de  papel,  os  cadernos,  e  os  desenhos  finalizados. 
Então  retirou  os  saquinhos  de  dinheiro  de  Shallan,  notando  o  vazio  deles.  Ela 
olhou para o cálice-lâmpada, contando as esferas, e ergueu uma sobrancelha.  
Em  seguida,  começou  a  olhar  através  das  imagens de Shallan. Primeiro, aquelas 
em  folhas  soltas,  onde  se  demorou  no  desenho  de  si  mesma  feito  pela  garota. 
Shallan  examinou  o  rosto  da  mulher.  Ela  estava  satisfeita?  Surpresa?  Descontente 
com a quantidade de tempo gasto desenhando marujos e servas? 
Finalmente,  Jasnah  passou  para  o  caderno  repleto  de  desenhos  de  plantas  e 
animais  que  Shallan  tinha  observado  durante  sua  viagem.  Jasnah  passou  mais 
tempo  neste,  lendo  a  cada  uma  das  anotações.  “Por  que  fez  estes  desenhos?” 
Jasnah perguntou no fim. 
“Por  que,  Brilhanteza?  Bom,  porque  eu  quis.”  Ela  fez  uma  careta.  Deveria  ter 
dito algo profundo ao invés disso? 
Jasnah  concordou  lentamente  com  a  cabeça, então se levantou. “Tenho quartos 
no  Conclave,  concedidos  a  mim  pelo  rei.  Junte  suas  coisas  e  vá  para  lá.  Você 
parece exausta.” 
“Brilhanteza?”  Shallan  perguntou,  levantando-se,  uma  onda  de  excitação 
percorrendo-a.  
Jasnah  hesitou  na  entrada  da  alcova.  “A  princípio,  assumi  que  fosse  uma 
oportunista  rural,  em  busca  apenas  de  se  aproveitar  do  meu  nome  para  alcançar 
riquezas maiores.” 
“E mudou de ideia?” 
“Não,”  Jasnah  respondeu,  “sem  dúvida  existe  um  pouco  disso  em  você.  Mas 
somos  pessoas  diferentes,  cada  um  de  nós,  e  é  possível  dizer  muito  a  respeito  de 
alguém  a  partir  das  coisas  as  quais  carrega.  Se  aquele  caderno  é  alguma  indicação 
disso,  você  usa  seu  tempo livre para buscar conhecimento em sua forma pura. Isso 
é encorajador. É, talvez, o melhor argumento que poderia fazer em seu favor.  
Se  eu  não puder me livrar de você, então ao menos tomarei proveito disso. Vá e 
durma.  Começaremos  cedo  amanhã,  e  dividirá  seu  tempo  entre  seus  estudos  e  me 
ajudando com minhas pesquisas.” 
Dito isso, Jasnah se retirou. 
Shallan  sentou,  confusa,  piscando  olhos  cansados.  Ela  pegou  uma  folha  de 
papel  e  escreveu  uma  rápida  oração de agradecimento, a qual queimaria mais tarde. 
Juntou  então  seus  livros  rapidamente  e  procurou  por um servo, para enviá-lo até o 
Prazer do Vento​ atrás de seu baú.   
Tinha  sido  um  dia  muito,  ​muito  longo.  Mas  ela  tinha vencido. O primeiro passo 
estava completo. 
Sua verdadeira tarefa começava agora.   
9  
CONDENAÇÃO 
 
"Dez  pessoas,  com  Lâminas-fractas  incandescentes,  paradas  diante  de  um  muro  de 
preto e branco e vermelho” 
 
—  Coletado:  Jesachev,  1173,  12  segundos  pré-morte Exemplar: um dos nossos próprios 
ardentes, ouvido durante seus últimos momentos.  
 
 
Kaladin  não  tinha  sido  alocado  para  a  Ponte  Quatro  por  mero  acaso.  Dentre 
todos  os  esquadrões  de  ponte,  aquele  era  o  que  tinha a maior taxa de casualidades. 
Isso  era  particularmente  notável,  considerando  que  a  média  dos  esquadrões 
geralmente  perdiam  de  um  terço  a  um  quarto  de  seus  números  em  uma  única 
corrida. 
Kaladiu  sentava  do  lado  de  fora,  as  costas  contra  a  parede  do  quartel,  um 
borrifo  de  chuva  caindo  sobre  ele.  Não  era  uma  tormenta.  Apenas  uma  ordinária 
chuva de primavera. Suave. Uma prima tímida das grandes tempestades.  
Syl  sentava  em  seu  ombro.  Ou  pairava  sobre  ele.  Não  importava.  Ela  não 
aparentava  ter  algum  peso.  Kaladin  sentava  encolhido,  com  o  queixo  contra  o 
peito, encarando uma goteira na pedra, que lentamente acumulava água da chuva.  
Ele  deveria  ter entrado no quartel da Ponte Quatro. Era frio e sem mobília, mas 
impediria  a  chuva.  Mas  ele  apenas…  não  se  importava.  Quanto tempo já fazia que 
estava na Ponte Quatro? Duas semanas? Três? Uma eternidade? 
Dos  vinte  e  cinco  homens  que  tinham  sobrevivido  a  primeira  corrida  que 
participou,  vinte  e  três  estavam  mortos  agora.  Dois  tinham  sido  transferidos  para 
outro  esquadrão,  pois tinham feito algo que agradou Gaz, mas acabaram morrendo 
lá. Restavam apenas mais um homem e Kaladin. Dois dentre quase quarenta.  
Os números dos esquadrões foram reabastecidos com mais infelizes, e a maioria 
deles  morreu  também.  Eles  foram  substituídos.  Muitos  destes  também  morreram. 
Tinham  nomeado  um  líder  de  ponte  após  o  outro.  Era,  supostamente,  um  cargo 
privilegiado  nos  esquadrões,  sempre  permitido  correr  nos  melhores  lugares.  Não 
importava para a Ponte Quatro. 
Algumas  das  corridas  não  eram  tão  ruins.  Se  os  Aléthi  chegassem  antes  dos 
Parshendi,  nenhum  dos  ponteneiros  morria.  E  às  vezes,  se  chegassem  tarde 
demais,  um  dos  outros  alto-príncipes  já  estaria  por  lá.  Sadeas  não  se  incomodaria 
neste  caso;  pegaria  seu  exército  e  voltaria  para  o  acampamento.  Mesmo  em  uma 
corrida  ruim,  os  Parshendi  geralmente  escolhiam  focar  suas  flechas  em  certos 
esquadrões,  tentando  derrubá-los  um  por  vez.  Volta  e  meia,  dúzias de ponteneiros 
cairiam, mas nenhum sequer da Ponte Quatro.  
Aquilo  era  raro.  Por  algum  motivo,  a  Ponte  Quatro  parecia  sempre  ser  focada. 
Kaladin  não  se  dava o trabalho de aprender os nomes dos companheiros. Nenhum 
dos  ponteneiros  o  fazia,  na  verdade.  Qual  era  o  ponto?  Aprender  o  nome  de  um 
homem,  para  que  você  ou  ele  acabassem  mortos  antes  da  semana  acabar.  As 
chances  eram  de  que  ambos  morreriam.  Talvez  ele  ​devesse  aprender  os  nomes. 
Assim, teria alguém com quem conversar na Condenação. Eles poderiam relembrar 
o  quão  terrível  era a Ponte Quatro, e concordar que chamas eternas era muito mais 
agradáveis. 
Ele  sorriu  estupidamente,  ainda  encarando  a  rocha  logo  adiante.  Gaz  viria 
pegá-los  em  breve,  mandá-los  para  o trabalho. Esfregar latrinas, varrer ruas, limpar 
estábulos, coletar rochas. Algo para distrair suas mentes de seus destinos.  
Ele  ainda  não  sabia  porque  lutavam  naqueles  tempestuosos  platôs.  Parecia  ter 
algo  a  ver  com  aquelas  grandes  crisálidas.  Elas  carregavam  gemas  em  seu  centro, 
aparentemente. Mas o que aquilo tinha a ver com o Pacto de Vingança? 
Outro  ponteneiro  —  um  jovem  Veden  com  cabelo  meio  ruivo,  meio  loiro  — 
deitava  por  perto,  encarando  o  céu  garoento.  A  água  da  chuva  pingava  nos cantos 
de suas sobrancelhas marrons, percorrendo então seu rosto. Ele não piscava.  
Eles  não  podiam  fugir.  O  acampamento  era  praticamente  uma  prisão.  Os 
ponteneiros  podiam  ir  até  os  mercadores  e  gastar  seus  ganhos  pífios  em  vinho  ou 
prostitutas,  mas  não  podiam  deixar  o  acampamento.  O  perímetro  era  protegido. 
Isso  era  parcialmente  para  impedir  soldados  dos  outros  acampamentos  —  sempre 
existiam  rivalidades  onde  exércitos  se  encontravam.  Mas  era,  em  maior  parte, para 
impedir que ponteneiros e escravos fugissem.  
Por  quê?  Por  que  tudo  tinha  que  ser  tão  horrível?  Nada  disso  fazia  ​sentido.  Por 
que  não  deixar  alguns  dos  ponteneiros  correrem  na  frente  com  escudos  para 
bloquear  as  flechas?  Kaladin  tinha  perguntado,  e  foi  respondido  de  que  aquilo  os 
atrasaria  demais.  Ele  perguntou  novamente,  e  desta  vez  disseram  que  ele  seria 
amarrado se não fechasse a boca.  
Os  olhos-claros  agiam  como  se  essa  bagunça  toda  fosse  algum  tipo  de  jogo 
grandioso.  Se  fosse  o caso, as regras eram escondidas dos ponteneiros, como peças 
em um tabuleiro que não tinham ideia da estratégia do jogador.   
“Kaladin?”  Syl  perguntou,  flutuando  para  baixo  e  pousando  na  perna  dele, 
usando  a  forma  de  garota  com  um  vestido  longo  que  desaparecia  na  bruma. 
“Kaladin? Faz dias que não fala nada.” 
Ele  continuou  encarando,  encolhido.  ​Havia  uma  saída.  Ponteneiros  podiam 
visitar  o  abismo  perto  do  acampamento.  Existiam  regras  proibindo  isso,  mas  os 
sentinelas  as  ignoravam.  Este  era  o  único  ato  de  misericórdia  permitido  aos 
ponteneiros.  
Aqueles que tomavam o caminho jamais retornavam. 
“Kaladin?” Syl chamou, sua voz suave, preocupada. 
“Meu  pai  costumava  dizer  que  existem  dois  tipos  de  pessoas  no  mundo,” 
Kaladin sussurrou, sua voz rouca. “Ele dizia que existem aqueles que tiram vidas. E 
existem aqueles que salvam vidas.” 
Syl  franziu  o  cenho,  espichando  a  cabeça.  Esse  tipo  de  conversa  era  confusa 
para ela; não era boa com abstrações.  
“Eu  costumava  achar  que  ele  estava  errado.  Eu  pensava que existia um terceiro 
grupo.  Pessoas  que  matavam  para  salvar.” Ele balançou a cabeça. “Eu era um tolo. 
Existe um terceiro grupo, um bem grande, mas não é o que eu tinha pensado.” 
“Qual grupo?” ela perguntou, sentando-se no joelho dele, sua testa franzindo.  
“As  pessoas  que  existem  para  serem  salvas ou serem mortas. O grupo no meio. 
Aqueles  que  não  podem  fazer  nada  além  de  morrerem  ou  serem  protegidas.  As 
vítimas. Isso é tudo o que eu sou.” 
Ele  olhou  através  do  depósito  de  madeira  molhado.  Os  carpinteiros  tinham  se 
retirado,  jogando  lonas  por  cima  de  madeiras  sem  tratamento  e  levando 
ferramentas  que  pudessem  enferrujar.  Os  quartéis  dos  ponteneiros  se  estendiam 
pelos  lados  norte  e  oeste  do  pátio.  A  Ponte  Quatro  era  colocada  um  pouco 
separada  das  demais,  como  se  sua  má  sorte  fosse  uma  doença  que  pudesse  ser 
contraída. Contagiosa por proximidade, como o pai de Kaladin diria.  
“Nós  existimos  para  sermos  mortos,”  Kaladin  disse.  Ele  piscou,  observando 
alguns  dos  outros  membros  da  Ponte Quatro sentados apaticamente na chuva. “Se 
já não estivermos mortos.” 
 
—  
 
“Eu  odeio  te  ver  desse  jeito,”  Syl  disse,  zunindo  sobre  a  cabeça  de  Kaladin 
enquanto  sua  equipe  de  ponteneiros  arrastava  um  tronco  até  o  depósito  de 
madeira.  Os  Parshendi  geralmente  ateavam  fogo  nas  pontes  mais  distantes,  então 
os engenheiros e carpinteiros do Alto-Príncipe Sadeas estavam sempre ocupados. 
O  antigo  Kaladin  se  perguntaria  o  porquê dos exércitos não se esforçarem mais 
em  defender  as  pontes.  ​Há  algo  errado  aqui!  Uma voz dentro dele disse. ​Está faltando 
uma  parte  do  quebra-cabeça.  Eles  gastam  recursos  e  vidas  de  ponteneiros.  Não  parecem  se 
importar  em  avançar  território  adentro para atacar os Parshendi. Eles apenas lutam em batalhas 
triviais nos platôs, e então voltam para os acampamentos e celebram. Por quê? POR QUÊ? 
Ele ignorou a voz. Ela pertencia ao homem que fora outrora. 
“Você  costumava  ser  cheio  de  energia,”  Syl  disse.  “Tantas  pessoas  o 
admiravam,  Kaladin.  Seu  esquadrão  de  soldados.  Os  inimigos  que  enfrentava.  Os 
outros escravos. Até mesmo alguns olhos-claros.” 
Logo  seria  hora  do  almoço. Ele então poderia dormir até que seu líder de ponte 
o acordasse para o trabalho da tarde. 
“Eu  costumava  ver  você  lutar,”  Syl  insistiu.  “Mal  consigo  recordar.  Minhas 
memórias  daquela  época  são  borradas.  Como  se  eu  estivesse  olhando  para  você 
através de uma tempestade.” 
Espere.  Aquilo  era  estranho.  Syl  não  tinha  começado  a  segui-lo  até  sua  queda 
no  exército.  E  ela  se  comportava  apenas  como  um  ventispren  regular  naquela 
época.  Ele  hesitou,  recebendo  uma  chibatada  nas  costas  e  um  xingão  de  um  dos 
capatazes.  
Ele  começou  a  puxar novamente. Ponteneiros que fossem morosos no trabalho 
eram  chicoteados,  e  aqueles  que  fossem  morosos  nas  corridas eram executados. O 
exército  era  bem  sério  quanto  a  isso.  Recuse  investir  contra  os  Parshendi,  tente 
ficar  para  trás  das  outras  pontes,  e  acabaria  tendo  a  cabeça  cortada.  De  fato,  eles 
reservavam tal destino para este crime em específico. 
Existiam  inúmeras  maneiras  de  ser  punido  quando  se  era  um  ponteneiro. 
Ganhar  trabalho  extra,  ser  chicoteado,  ter  o  pagamento  reduzido.  Se  fizesse  algo 
muito  grave,  eles  o  pendurariam  para  o  julgamento  do  Pai-Tempesto,  deixando-o 
amarrado  em  um  poste  ou  parede  para  enfrentar  uma  tormenta.  Mas  a única coisa 
que  podia  ser  feita  para  ser  executado  diretamente  era  recusar  a  correr  contra  os 
Parshendi. 
A  mensagem  era  clara.  Investir  com  sua  ponte  ​talvez  o  mate,  mas  recuse  e 
morrerá com certeza. 
Kaladin  e  seu  esquadrão  ergueram  o  tronco  até  uma  pilha,  desengatando  então 
as  cordas  usadas  para  arrastá-lo.  Eles  começaram  a  voltar  até  a  extremidade  do 
depósito, onde mais troncos aguardavam. 
“Gaz!”  uma  voz  chamou.  Um  soldado  alto,  de  cabelo  loiro  misturado  com 
preto,  se  encontrava  na  extremidade  do  pátio  das  pontes,  acompanhado  de  um 
grupo  miserável  de  homens  atrás  dele.  Aquele  era  Laresh,  um  dos  soldados  que 
trabalhava  na  barraca  de  tarefas.  Ele  estava  trazendo  novos  ponteneiros  para 
substituir aqueles que foram mortos.  
O  dia  estava  claro,  sem  um  traço  de  nuvens  sequer,  e  Kaladin  sentia  o  sol 
quente  em  suas  costas.  Gaz  se  apressou  para  encontrar  os  novos  recrutas,  e  por 
acaso, Kaladin e os demais estavam indo na mesma direção para pegar um tronco.  
“Que  bando  deplorável,”  Gaz  disse,  observando  os  recrutas.  “É  claro,  se  não 
fossem, não teriam sido mandados para cá.” 
“Realmente,”  Laresh  concordou.  “Esses  dez  na  frente  foram  pegos 
contrabandeando. Já sabe o que fazer.” 
Novos  ponteneiros  estavam  sempre  em  demanda,  mas  sempre  havia  corpos  o 
suficiente.  Escravos  eram  comuns,  assim como ladrões ou outros malfeitores entre 
os  seguidores  de  acampamento.  Nunca  parshimens.  Eles  eram  valiosos  demais. 
Além  disso,  os  Parshendi  eram  como  uma espécie de primos para eles. Era melhor 
não deixar que os trabalhadores parshimem vissem outros de sua raça lutando.  
Volta  e  meia,  um  soldado  era  enviado  para  um  esquadrão  de  ponte.  Isso  só 
acontecia  se  tivesse  feito  algo  extremamente  grave,  como  violentado  um  oficial. 
Atos  que  renderiam  um  enforcamento  em  muitos  exércitos,  eram,  aqui,  punidos 
com  um  alocamento  para  os  esquadrões  de pontes. Diziam que, supostamente, era 
possível  ser  libertado,  se  sobrevivesse  a  cem  corridas.  Aconteceu  uma  ou  duas 
vezes,  segundo  as  histórias.  Eram  provavelmente  apenas  mitos,  feitos  para  darem 
uma pequena esperança de sobrevivência para os ponteneiros.   
Kaladin  e  os  demais  passaram  pelos  recém-chegados,  com  o  olhar  no  chão, 
abaixando-se e começando a engatar suas cordas no próximo tronco.  
“A Ponte Quatro precisa de alguns homens,” Gaz disse, coçando o queixo.  
“A  Quatro  sempre  precisa  de  homens,”  disse  Laresh.  “Não  se  preocupe. 
Trouxe  uma  leva  especial para ela.” Ele acenou em direção a um segundo grupo de 
recrutas que vinha logo atrás, com homens muito mais acabados.  
Kaladin  levantou  lentamente. Um dos prisioneiros daquele grupo era um garoto 
com  nada  mais  do  que  quatorze  ou  quinze  anos.  Baixo,  magricelo,  com  um  rosto 
redondo. “Tien?” ele sussurrou, dando um passo para frente.  
Ele  parou,  balançando  a  cabeça.  Tien  estava  morto.  Mas  o  recém-chegado  era 
tão  familiar,  com  aqueles  olhos  pretos  e  assustados.  Eles  faziam  Kaladin  querer 
acolher o garoto. Protegê-lo.  
Mas…  tinha  fracassado.  Todas  as  pessoas  que  tentou  proteger  —  de  Tien  até 
Cenn — acabaram mortas. De que adiantava? 
Ele se virou para voltar a puxar o tronco.  
“Kaladin,” Syl chamou, pousando na madeira, “Estou indo embora.” 
Ele  piscou  em  choque.  Syl.  Embora?  Mas…  ela  era  a  única  coisa  que  lhe 
restava. “Não,” ele sussurrou, o som saindo como um soluço.  
“Eu  vou  tentar  voltar,” ela disse. “Mas não sei o que vai acontecer quando eu te 
deixar.  Está  tudo  esquisito.  Minhas  memórias  são  estranhas.  Não,  muitas  delas 
sequer  são  memórias.  São  instintos.  Um  deles  me  diz  que  se  eu  te  deixar,  posso 
acabar me perdendo.” 
“Então não vá,” ele disse, sentindo-se mais aterrorizado. 
“Eu preciso,” disse ela, encolhendo-se. “Não posso mais ver isso. Eu vou tentar 
retornar.”  Ela  parecia  tristonha.  “Adeus.”  E  com  isso,  ela  zuniu  para  longe, 
tomando a forma de um pequenino grupo de folhas translúcidas que caíam pelo ar. 
Kaladin a assistiu partir, estarrecido.  
Então se virou para continuar o trabalho. O que mais podia fazer? 
 
—   
 
O  jovem,  aquele  que  o  lembrara  de  Tien,  morreu  durante  a  corrida  do  dia 
seguinte. 
Foi  uma  bem  feia.  Os  Parshendi  estavam  em  posição,  esperando  por  Sadeas. 
Kaladin  avançou  em  direção  ao  abismo,  sem  nem  ao  menos  titubear  enquanto 
homens  eram  mortos  ao  seu  redor.  Não  era  bravura  que  o  movia;  tampouco  um 
desejo  de  que  as  flechas  o  consumissem  para  que  tudo  aquilo  acabasse. Ele corria. 
Era  isso  o  que  fazia.  Como  uma  pedra  rolando  colina  abaixo,  ou  como  a  chuva 
caindo  do  céu.  Elas  não  tinham  escolha.  Kaladin  também  não.  Ele  não  era  um 
homem; era uma coisa, e coisas apenas faziam o que faziam.  
Os  ponteneiros  abaixaram  suas  pontes,  próximas  umas  às  outras.  Quatro 
esquadrões  tinham  tombado.  O  próprio  time  de  Kaladin  tinha  perdido  homens  o 
suficiente para quase impedi-los de continuar.  
Com  a  ponte  posicionada,  Kaladin  se  afastou,  o  exército  investindo  através  da 
madeira  para  começarem  a  verdadeira  batalha.  Ele  cambaleou  pelo  platô.  Após 
alguns momentos, encontrou o que procurava. O corpo do garoto. 
Kaladin  ficou  parado,  o  vento  soprando  em  seu  cabelo  enquanto olhava para o 
corpo  no  chão.  O  cadáver  jazia  com  o  rosto  para  cima,  em uma pequena cavidade 
na  pedra.  Kaladin  se  lembrava  de  já  ter estado em um lugar semelhante, segurando 
um corpo parecido.  
Outro  ponteneiro tombou nas proximidades, repleto de flechas no corpo. Era o 
homem  que  tinha  sobrevivido  a  primeira  corrida  de  Kaladin  semanas  atrás.  O 
corpo  caiu  na  lateral,  em  cima  de  uma  elevação  na  rocha,  um  pouco  acima  do 
corpo  do  garoto.  Sangue  escorreu  da  ponta  de  uma  flecha  presa  nas  costas  do 
homem.  O  líquido  caiu, uma gota rubi de cada vez, pingando no olho aberto e sem 
vida  do  garoto.  Uma  pequena  trilha  de  vermelho  percorreu do olho até a lateral de 
seu rosto. Como se fossem lágrimas vermelhas. 
Naquela  noite,  Kaladin  se  encolheu  no  quartel,  ouvindo  uma  tormenta  soprar 
contra  a  parede.  Ele se recostou contra a pedra fria. Trovões partiam o céu do lado 
de fora.  
Não  posso  continuar  assim,​   ele  pensou.  ​Estou  morto,  tão  morto  quanto  se  tivesse  sido 
perfurado por uma lança no pescoço.  
A  tempestade  continuava  a  soprar.  E,  pela  primeira  vez  em  um  ano,  Kaladin 
percebeu que chorava.   
10  
HISTÓRIAS DE CIRURGIÕES 
 
 
NOVE ANOS ATRÁS  
 
 
Kal  adentrou  o  quarto  de  cirurgias,  a  luz  brilhante  do  sol  passando  graças  a 
porta  aberta.  Com  dez  anos  de  idade,  ele  já  começava  a  mostrar  sinais  de  que  se 
tornaria  alto  e  esguio.  Ele  sempre  preferiu  Kal  do  que  seu  nome  completo, 
Kaladin.  Era  mais  fácil  de  se  enturmar  com  o  apelido.  Kaladin  soava  como  um 
nome de olhos-claros. 
“Me desculpe, Pai,” ele disse. 
O  pai  de  Kaladin,  Lirin,  apertou  cuidadosamente  o  tecido ao redor do braço da 
jovem,  que  repousava  sobre  a  estreita  mesa  de  operações.  Os  olhos  dela  estavam 
fechados;  Kal  tinha  perdido  a  dosagem  do  medicamento.  “Iremos  discutir  seu 
atraso mais tarde,” Lirin disse, atando a outra mão da mulher. “Feche a porta.” 
Kal  se  encolheu,  obedecendo.  A  janelas  estavam  escuras,  as  cortinas 
devidamente  fechadas,  e  a  única  iluminação  vinha  da  Luz-tempesta  brilhando  em 
um  grande  pote,  preenchido  com  esferas.  Eram  contas,  cada  uma  delas,  que 
somavam  um  incrível  total,  providas  de  um  empréstimo  do  senhor  de  Pedra  do 
Lar.  Lampiões  tremulavam,  mas  Luz-tempesta  era  sempre  constante.  Isso  podia 
salvar vidas, dissera seu pai.   
Kal  se  aproximou  da  mesa,  ansioso.  A  moça,  Sani,  tinha  um  cabelo  preto  e 
lustroso,  sem  nem  sequer  uma  madeixa  loira  ou  marrom.  Ela  tinha  quinze  anos,  e 
sua  mão-modesta  estava  amarrada,  com  uma  atadura  de  tecido  velho  e  manchado 
de  vermelho.  Kaladin  fez  uma  careta  para  o  curativo  feito  de forma desajeitada — 
parecia que o tecido tinha sido rasgado da camisa de alguém e amarrado às pressas. 
A  cabeça  de Sani rolou para o lado, e ela murmurou algo, anestesiada. Ela vestia 
apenas  uma  chemise  branca  de  algodão,  sua  mão-modesta  exposta.  Garotos  mais 
velhos  na  cidade  se  gabavam  das  chances  que  tinham  tido  — ou ​diziam ter tido — 
de  ver  garotas  em  suas  chemises,  mas  Kal  não  entendia  de  onde  vinha  tanto 
entusiasmo.  Ele  ​estava  preocupado  com  Sani,  no  entanto.  Ele  sempre  se 
preocupava quando alguém se machucava.  
Felizmente,  a  ferida  não  parecia  tão  grave. Se fosse algo que colocasse a vida da 
garota  em  risco,  seu  pai já teria começado a trabalhar nela, usando a mãe de Kal — 
Hesina — como assistente.  
Lirin  andou  até  o  lado  do  aposento  e  reuniu  alguns  frascos  pequenos  e 
transparentes.  Ele  era  um  homem  baixo,  que  já  começara  a  ficar  careca  apesar  da 
idade.  Estava  usando  os  óculos,  que  afirmava  ser  o  presente  mais  precioso  que  já 
recebera.  Ele  raramente  os  usava,  exceto  nas  cirurgias,  pois  eram  valiosos  demais 
para  acabarem  desgastados.  E  se  acabassem  arranhando  ou  quebrando?  Pedra  do 
Lar  era  uma  cidade  grande,  mas  sua  localização  remota  ao  norte  de  Alethkar 
tornaria difícil substituí-los.  
O  cômodo  era  mantido  organizado,  a  mesa  e  prateleiras  lavadas  toda  manhã, 
tudo  em  seus  devidos  lugares.  Lirin  dizia  que  era  possível  dizer  muito  sobre  uma 
pessoa  baseado  em  como  ela  mantinha  sua  área  de  trabalho.  Era  desajeitada  ou 
organizada?  Ela  respeitava  suas  ferramentas  ou  as  deixava  largadas  por  aí? A única 
fabrial  relógio  da  cidade  repousava aqui, no balcão. O pequeno dispositivo contava 
com  um  único  disco  no  centro,  e  uma  brilhante  Pedra-esfumaçadora  em  seu 
núcleo;  ela  tinha  que  estar  infundida  para  que  a  fabrial  funcionasse.  Mais  ninguém 
na cidade se importava com horas e minutos como Lirin fazia.  
Kal  puxou  um  banquinho  para  ter  uma  visão  melhor.  Não  precisaria mais dele, 
em breve; o garoto ficava mais alto a cada dia. Kal inspecionou a mão da moça. ​Ela 
vai  ficar  bem,  disse  para  si  mesmo,  como  seu  pai tinha o treinado. ​Um cirurgião precisa 
ser calmo. Preocupação apenas desperdiça tempo.  
Era um conselho difícil de seguir.  
“Mãos,” Lirin disse, sem se virar de suas ferramentas reunidas.  
Kal  suspirou,  pulando  de  seu  banquinho  e  se  apressando  até  a  bacia  de  água 
morna  e  ensaboada  na  porta.  “Que  diferença  faz?”  Ele  queria  trabalhar,  ajudar 
Sani.  
“Sabedoria  dos  Arautos,”  Lirin  disse  distraidamente,  repetindo uma lição que já 
tinha  dado  várias  vezes.  “Mortespren  e  putrispren  odeiam  água.  Ela  os  manterá 
afastados.” 
“Hammie  diz  que  isso  é  bobagem,”  disse  Kal.  “Ele  diz  que  mortesprens  são 
muito bons em matar pessoas, então por que teriam medo de um pouco de água?” 
“A sabedoria dos Arautos vai além da nossa compreensão.” 
Kal  fez  uma  careta.  “Mas  eles  são  ​demônios,  pai.  Eu  ouvi  isso  daquele  ardente 
que veio nos ensinar na última primavera.” 
“Ele  disse  isso  sobre  os  Radiantes,”  Lirin falou secamente. “Está misturando as 
coisas de novo.”  
Kal suspirou. 
“Os  Arautos  foram enviados para ensinar a humanidade,” Lirin disse. “Eles nos 
lideraram  contra  os  Augúrios  do  Vazio  depois  de  sermos  banidos  do  paraíso.  Os 
Radiantes eram as ordens de cavaleiros a quais fundaram.”  
“Que eram demônios.” 
“Que  nos  traíram,”  Lirin  corrigiu,  “quando  os  Arautos  partiram.”  Ele  ergueu 
um  dedo.  “Eles  não  eram  demônios,  eram  apenas  homens  que  tinham  muito 
poder,  mas  nem  tanto  juízo.  De  toda  forma,  tem  ​sempre  q​ ue  lavar  as  mãos.  É 
possível  ver  o  efeito  que  isso  tem  nos  putrisprens  com  os  próprios  olhos,  mesmo 
que os mortesprens sejam invisíveis.”  
Kal  suspirou  mais  uma  vez,  mas  obedeceu.  Lirin  andou  até  a  mesa  novamente, 
carregando  uma  bandeja  com  facas  enfileiradas  e  pequenos  frascos  de  vidro.  Seus 
maneirismos  eram  estranhos  —  embora  Lirin  se  certificasse  de  que  o  filho  não 
misturasse  os  Arautos  com  os  Radiantes  Perdidos,  Kal  ouvira  o  pai  dizer  que  não 
acreditava  nos  Augúrios  do  Vazio.  Ridículo.  Quem  mais  poderia  ser  culpado 
quando  coisas  desapareciam  na  noite,  ou  quando  uma plantação era infectada com 
minhocas-cavouqueiras?  
Os  outros  na  cidade  achavam  que  Lirin  gastava  tempo  demais  com  livros  e 
pessoas  doentes,  e  aquilo  o  tornava  estranho.  Eles  não  se  sentiam  confortáveis  ao 
seu  redor,  e  de  Kal  por  associação.  Kal  estava  apenas  começando  a  perceber quão 
doloroso era ser diferente.  
Com  as  mãos  lavadas,  o  garoto  subiu  então  no  banquinho  mais  uma  vez.  Ele 
começou  a  se  sentir  nervoso novamente, torcendo para que nada desse errado. Seu 
pai  usava  um  espelho  para  focar  a  luz  das  esferas  até  a  mão  de  Sani.  Ele 
cautelosamente  cortou a bandagem improvisada com uma faca de cirurgia. A ferida 
não  era  mortal,  mas  a  mão  estava  ​bem  mutilada.  Quando  seu  pai  começou  a 
treiná-lo,  dois  anos  atrás,  visões  como  essa  costumavam embrulhar o estômago do 
garoto. Agora, Kal já estava acostumado com carne viva.  
Isso  era  bom.  Kal  percebeu  que  isso  seria  útil  quando  fosse  para  a  guerra  um 
dia, para lutar pelos alto-príncipes e os olhos-claros.   
Sani  estava  com  três  dedos  quebrados,  e  a  pele  de  sua  mão  estava  raspada  e 
aberta,  a  ferida  repleta  de  pedacinhos  de  madeira  e  sujeira.  O  terceiro  dedo  era  o 
pior,  despedaçado  e  contorcido  de  maneira  repulsante,  lascas  de  osso  salientes 
através  da  pele.  Kal  examinou  o  dedo,  notando  os  ossos  fraturados,  a  pretidão  da 
pele.  Ele  limpou  cuidadosamente  o  sangue  seco  e  a sujeira com um tecido úmido, 
retirando madeira e pedrinhas enquanto seu pai cortava linha para a costura.  
“O  terceiro  dedo  vai  ter  que  ser  amputado,  não  é  mesmo?”  Kal  perguntou, 
atando uma bandagem ao redor da base do dedo para estancar o sangramento. 
Seu  pai  concordou  com  a  cabeça,  uma  pitada  de  sorriso  em  seu  rosto.  Ele 
esperava  que  Kal  chegasse  a  essa  conclusão.  Lirin  sempre  dizia  que  um  cirurgião 
inteligente  precisava  saber  o  que  deve  ser  removido  e  o  que  deve  ser  salvo.  Se 
aquele  terceiro  dedo  tivesse  sido  ajeitado  apropriadamente  a  princípio…  mas  não, 
estava além da salvação. Costurá-lo de volta significaria deixá-lo apodrecer. 
Seu  pai  cuidou  da  amputação.  Ele tinha mãos tão cuidadosas e precisas. Treinar 
como  um  cirurgião  levava  mais  de  dez  anos,  e  levaria  algum  tempo ainda para que 
Lirin  deixasse  Kal  segurar  uma  faca.  Ao  invés  disso,  Kal  limpava  o  sangue, 
alcançava  facas  para  seu  pai,  e  segurava  o  tendão  para  impedir  que  se  contorcesse 
enquanto  Lirin  costurava.  Eles  restauraram  a  mão  o  melhor  que  puderam, 
trabalhando com uma velocidade deliberada.  
Lirin  terminou  a  última  sutura,  obviamente  satisfeito  em  ter  conseguido  salvar 
quatro  dedos.  Os pais de Sani não veriam da mesma forma. Ficariam desapontados 
de  que  sua  linda  filha  agora  tinha  uma  mão  desfigurada.  Quase  sempre  acontecia 
daquele  jeito  —  terror  na  ferida  inicial,  e  então  raiva  com  a  inabilidade  de  Lirin 
para  realizar  milagres.  Seu  pai  dizia  que  era  porque  os  moradores  tinham  se 
acostumado  em  ter  um  cirurgião.  Para  eles,  a  cura  tinha  se  tornado  uma 
expectativa, ao invés de um privilégio.   
Mas  os  pais  de  Sani  eram  boas  pessoas.  Eles  fariam  uma  pequena  doação,  e  a 
família  de  Kal  —  seus  pais,  ele,  e  seu  irmão  mais  novo  Tien  —  seriam  capazes  de 
continuar  a  comer.  Curioso,  como  sobreviviam  por  conta  da  desgraça  dos  outros. 
Talvez isso fosse parte do que fazia os moradores ressenti-los.  
Lirin  finalizou usando uma pequena vara quente para cauterizar onde sentiu que 
os  pontos  não  seriam  o  suficiente.  Finalmente,  espalhou  o  pungente  óleo  listerino 
pela  mão  para  prevenir infecções — o óleo afastava putrisprens melhor até mesmo 
do  que  água  e  sabão.  Kal  enrolou  bandagens  limpas,  com  cuidado  para  não 
perturbar os ossos lascados.  
Lirin se livrou do dedo amputado, e Kal começou a relaxar. Ela estaria a salvo. 
“Ainda  precisa  dar  um  jeito  nessa  sua  mentalidade,  filho,”  Lirin  disse 
suavemente, lavando o sangue das mãos. 
Kal olhou para baixo. 
“É  bom  se  importar,”  Lirin  disse.  “Mas  isso  —  como  tudo  mais  —  pode  ser 
um problema se atrapalhar sua habilidade de realizar uma cirurgia.” 
Se  importar  demais  pode  ser  um  problema? Kal pensou em resposta ao pai. ​E quanto a 
ser  tão  caridoso  a  ponto  de  nem  sequer  cobrar  pelo  seu  trabalho?  Ele  não  ousava  dizer  tais 
palavras. 
Limpar  o  cômodo  vinha  em  seguida.  Parecia  que  metade  da  vida  de  Kal  seria 
gasta  limpando,  mas  Lirin  não  o  deixaria  ir  até  que  tivessem  terminado.  Ele  ao 
menos  abriu  as  cortinas, deixando a luz do sol entrar. Sani continuava a repousar; a 
erva-invernal ainda a manteria inconsciente por horas.  
“Então,  onde  esteve?”  Lirin  perguntou,  os  frascos  de  óleo  e  álcool  vibrando 
enquanto ele os guardava. 
“Com o Jam.” 
“Jam  é  dois  anos  mais  velho,”  disse  Lirin.  “Eu  dúvido  que ele tenha apreço em 
passar tempo com aqueles bem mais novos que ele.” 
“O  pai  dele  começou  a  treiná-lo  com  o  bastão,”  Kal  disse  rapidamente.  “Eu  e 
Tien  fomos  ver  o  que  ele  tinha  aprendido.”  O  garoto  se  encolheu,  esperando  o 
sermão.  
Seu  pai  apenas  continuou,  limpando  cada  uma  de  suas  facas  de  cirurgia  com 
álcool,  e  então  óleo,  como  as  velhas  tradições ditavam. Ele não se virou na direção 
de Kal. 
“O  pai  de  Jam  era  um  soldado  no  exército  de  Lorde-Brilhante  Amaram,”  Kal 
disse,  tentativamente.  Lorde-Brilhante  Amaram!  O  nobre  general  olhos-claros  que 
cuidava  da  região  norte  de  Alethkar.  Kal  queria  tanto  ver  um  olhos-claros  de 
verdade​,  não  o  velho  e  rabugento  Wistiow.  Um  soldado,  como  todos  diziam,  como 
as histórias contavam. 
“Eu  sei  sobre  o  pai  dele,”  Lirin  disse.  “  Já  tive  que  operar  aquela  perna  coxa 
dele três vezes. Um presente de seus tempos gloriosos como soldado.”   
“Nós  ​precisamos  de  soldados,  pai.  Preferia  ter  nossas  fronteiras  violadas  pelos 
Thayleneses?” 
“Thailenah  é  um  reino  insular,”  Lirin  disse  calmamente.  “Eles  não  fazem 
fronteira conosco.” 
“Bom, então, poderiam atacar pelo mar!” 
“Eles  são  em  grande  maioria  comerciantes  e  mercadores.  Todos  que  já 
encontrei  tentaram  me  passar  a  perna,  mas  isso  dificilmente  é  o  mesmo  que 
invasão.” 
Todos  os  garotos  gostavam  de  contar  histórias  sobre  lugares  distantes.  Era 
difícil  de  lembrar  que  o  pai  de  Kal  —  o  único  homem  de  segundo nahn na cidade 
— tinha viajado tão longe, até Kharbranth, durante sua juventude.  
“Bom, lutamos com ​alguém,​” Kal continuou, começando a esfregar o chão. 
“Sim,”  seu  pai  disse  depois  de  uma  pausa.  “Rei  Gavilar  sempre  encontra 
inimigos para enfrentarmos. Isso é bem verdade.” 
“Então precisamos de soldados, como eu disse.” 
“E  mais  ainda  de  cirurgiões.”  Lirin  suspirou  nitidamente,  virando-se  para  o 
garoto.  “Filho,  você  quase chora cada vez que alguém é trazido até nós; você range 
os  dentes,  ansioso,  até  mesmo  durante  as  operações  mais  simples.  O  que  o  faz 
pensar que realmente conseguiria ​machucar​ alguém?” 
“Vou ficar mais forte.” 
“Isso  é  bobagem.  Quem  põe  essas  ideias  na  sua  cabeça?  ​Por  qual  ​motivo  iria 
querer aprender a bater em outros meninos com gravetos?”  
“Por  honra,  Pai,”  Kal  respondeu.  “Quem  é  que  conta  histórias  sobre  ​cirurgiões,​  
pelo amor dos Arautos!” 
“Os  filhos  dos  homens  e  mulheres  que  salvamos,”  Lirin  disse  calmamente, 
encontrando o olhar de Kal. “São estes que contam histórias de cirurgiões.” 
Kal corou, encolhendo-se, então finalmente voltou a esfregar. 
“Existem  dois  tipos  de  pessoas  no  mundo,  filho,”  seu  pai  disse  seriamente. 
“Aqueles que salvam vidas. E aqueles que tiram vidas.” 
“E  quanto  aos  que  protegem  e  defendem?  Aqueles  que  salvam  vidas  ​tirando 
vidas?” 
Seu  pai  bufou.  “Isso  é  como  tentar  parar  uma tempestade soprando mais forte. 
É ridículo. Não se pode proteger matando.” 
Kal continuou a esfregar. 
Finalmente,  seu  pai  suspirou,  aproximando-se  e  ajoelhando  ao  lado  dele, 
ajudando com a limpeza. “Quais são as propriedades da erva-invernal?” 
“Gosto  amargo,”  Kal  disse  imediatamente,  “o  que  a  torna  segura  de se manter, 
pois  as  pessoas  não  vão  acabar  comendo  por  acidente.  Triture  em  forma  de  pó, 
misture  com  óleo,  use  meia  colher  para  cada  dez  quilos  da  pessoa  que  está 
medicando.  Ela  vai  ser  induzida  a  um  sono  profundo  de  aproximadamente  cinco 
horas.”  
“E como pode identificar se uma pessoa tem a varíola-nervosa?” 
“Estresse,”  Kaladin  disse,  “sede,  dificuldades  para  dormir,  e  inchaços  na  parte 
de baixo dos braços.” 
“Você  tem  uma  mente  tão  boa,  filho,”  Lirin  disse  suavemente.  “Levou  anos 
para  que  eu  aprendesse  o  que  você  conseguiu  em meses. Eu estive economizando. 
Quero  te  mandar  para  Kharbranth  quando  fizer  dezesseis,  para  treinar  com 
cirurgiões de verdade.”  
Kal  sentiu  uma  pontada  de  animação.  Kharbranth?  Isso  ficava  em  um  reino 
completamente  diferente!  Seu  pai  tinha  viajado  até  lá  como  um  entregador,  mas 
não  chegou  a  treinar  como  cirurgião.  Ele  aprendeu  com  o velho Vathe em Shorse, 
a única cidade mais próxima.  
“Você  tem  um  dom  dos  Arautos,”  Lirin  disse,  levando  uma  mão  até  o  ombro 
do  filho.  “Poderia  ser  um  cirurgião  dez  vezes  melhor  do  que  eu.  Não  sonhe  os 
pequenos  sonhos  dos  outros  homens.  Nossos  avós  trabalharam  duro  para  que 
tivéssemos  o  segundo  nahn,  e  pudessemos  ser  cidadãos  completos  com  direito  a 
viagem. Não desperdice isso matando.” 
Kal hesitou, mas finalmente concordou com a cabeça.   
11  
GOTÍCULAS 
 
"Três dentre dezesseis governavam, mas agora O Quebrado reina. ” 
 
—  Coletado:  Chachanan,  1173,  84  segundos  pré-morte.  Exemplar:  um  batedor  de 
carteira com a doença assoladora, de descendência parcialmente Iriali.  
 
 
A  tormenta  eventualmente  cessou.  Era  o  crepúsculo  do  dia  em  que  o  garoto 
tinha  morrido,  o  dia  que  Syl  o  deixara.  Kaladin  calçou  as  sandálias  —  as  mesmas 
que  tinha  pego  do  homem  de  rosto  enrugado  no  primeiro  dia  —  e  se  levantou, 
atravessando o quartel lotado.  
Não  havia  camas,  apenas  uma  coberta  fina  para  cada  ponteneiro.  Era  preciso 
decidir  se  a  usaria  como  forro  ou  para  aquecimento.  Congelar  ou  ficar  dolorido. 
Estas  eram  as  opções  dos  ponteneiros,  embora  muitos  deles  tivessem  encontrado 
um  terceiro  uso  para  as  cobertas.  Eles  as  enrolavam  ao redor da cabeça, como que 
para bloquear a visão, som, e cheiro. Para se esconderem do mundo.  
O mundo os encontraria de toda forma. Ele era bom nesse tipo de jogo. 
A  água  caía  em  cascatas  do  lado  de  fora,  o  vento  ainda  estava  forte.  Clarões 
iluminavam  o  horizonte  oeste,  para onde o centro da tempestade tinha voado. Isso 
era  aproximadamente  uma  hora  antes  da  rabeira,  e  ninguém  se  atreveria  a  sair 
numa tormenta antes disso. 
Bem,  ninguém  ​realmente  gostaria  de  sair  numa  tormenta.  Mas  esse  era  o  único 
período  antes  da  rabeira  em  que  se  era  ​seguro  sair.  Os  relâmpagos  tinham  cessado; 
os ventos eram manejáveis.  
Ele  passou  pelo  depósito  de madeira escurecido, encolhendo-se contra o vento. 
Galhos  espalhavam-se  pelo  chão  como  ossos  no  covil  de  um  espinhoso-branco. 
Folhas  grudavam-se  nas  laterais  das  barracas  por  conta  da  água  da  chuva.  Kaladin 
foi  pisando  através  de  poças  que  gelaram  e  amorteceram  seus  pés.  Ele  gostou 
daquilo; eles ainda estavam doloridos da corrida de mais cedo.  
Ondas  de  chuva  congelante  sopraram  contra  ele,  molhando  seu  cabelo, 
pingando  pelo  rosto  e  até  sua  barba  desgrenhada.  Ele  odiava  ter  uma  barba, 
particularmente  do  jeito  com  que  os  pelos  coçavam  nos  cantos  da  boca.  Barbas 
eram  como  filhotes  de  lebréis-marculatos.  Garotos  sonhavam  com  o  dia  em  que 
conseguiriam um, sem nunca se darem conta do quão irritantes podiam ser.  
“Dando um pequeno passeio, Fidalgote?” uma voz disse. 
Kaladin  ergueu  o  olhar  para  encontrar  Gaz  encolhido  em  uma  cavidade  perto 
de dois quartéis. Por que ele estava aqui fora, na chuva? 
Ah.  Gaz  tinha  prendido  um pequeno cesto de metal na parede sotavento de um 
dos  quartéis,  uma  suave  luz  brilhante  vindo  do  compartimento.  Ele  tinha  deixado 
suas esferas na tempestade, então veio mais cedo para recuperá-las.  
Era  arriscado.  Até  mesmo  um  cesto  protegido  podia  acabar  se  soltando. 
Algumas  pessoas  acreditavam  que  as  sombras  dos  Radiantes  Perdidos 
assombravam  as  tempestades,  roubando  esferas.  Talvez  fosse  verdade.  Mas 
durante  seu  tempo  no  exército,  Kaladin  conhecera  mais  de  um  homem  que  tinha 
se  machucado  ao  se  esgueirar  através  de  uma  tempestade  ainda  forte,  procurando 
por  esferas.  Não  havia  dúvidas  de  que  a  superstição  tinha  uma  origem  muito  mais 
mundana, como ladrões nas tempestades. 
Existiam  maneiras  mais  seguras  de  infundir  esferas.  Cambistas  podiam  trocar 
esferas  foscas  por  aquelas  infundidas,  ou  podiam  ser  pagos  para  que  as 
infundissem em um de seus ninhos devidamente seguros. 
“O  que  está  fazendo?”  Gaz  demandou.  O  homem  baixo  e  de  um  olho  só 
agarrou o cesto. “Vou fazer que o pendurem se tiver roubado esferas de alguém.” 
Kaladin deu as costas para ele.  
“Tormentas  o  partam! Eu farei com que o pendurem de toda forma! Não pense 
que pode fugir; temos sentinelas. Você—” 
“Estou  indo  para  o  Abismo  da  Honra,”  Kaladin  disse silenciosamente. Sua voz 
seria quase inaudível na tempestade.  
Gaz  se  calou.  O  Abismo da Honra. Ele abaixou o cesto de metal e não fez mais 
objeções.  Havia  uma  certa  deferência  dada  a  homens  que  escolhiam  tomar  aquele 
caminho.  
Kaladin continuou a cruzar o pátio. 
“Fidalgote,” Gaz chamou. 
Kaladin se virou. 
“Deixe  as  sandálias  e  colete,”  disse  Gaz.  “Não  quero  ter  que  enviar  alguém  lá 
em baixo para buscá-los.” 
Kaladin  tirou  o  colete  de couro e o jogou no chão, fazendo-o respingar, e então 
deixou  as  sandálias  numa  poça.  Aquilo  o  deixou  apenas  com  uma  simples  camisa 
suja e calças marrons, ambas tiradas de um homem morto. 
Kaladin  atravessou  a  tempestade  até  o  lado  leste  do  depósito  de  madeira.  Um 
leve  trovoar  ressoava  no  oeste.  O  caminho  descendo  até  as  Planícies  Estilhaçadas 
era  familiar  para  ele  agora.  Ele  já  tinha  feito  o  trajeto  uma  dúzia  de  vezes  com  os 
esquadrões  de  ponte. Não havia uma batalha todo dia — talvez uma a cada dois ou 
três  — e nem todo esquadrão tinha que ir a cada corrida. Mas tantas delas eram tão 
desgastantes,  tão  horríveis,  que  deixavam  os  ponteneiros  paralisados,  quase 
comatosos, pelos dias seguintes.   
Muitos  ponteneiros  tinham  dificuldades  em  tomar  decisões.  O  mesmo 
acontecia  com  homens  traumatizados  em  batalhas.  Kaladin  sentia  esses  efeitos em 
si mesmo. Até mesmo decidir ir até o abismo tinha sido difícil.  
Mas  os  olhos  sangrentos  daquele  garoto  sem  nome  o  assombravam. Ele não se 
obrigaria a passar por algo como aquilo novamente. Não ​conseguiria.​    
Ele  chegou  na  base  da  inclinação,  a  chuva  soprando  em  seu  rosto,  como  que 
tentando  empurrá-lo  de  volta  para  o  acampamento.  Ele  continuou,  andando  em 
direção  ao  abismo.  O  Abismo  da  Honra,  era  como  os  ponteneiros  o  chamavam, 
pois  era  onde  podiam  fazer  a única decisão que lhes restava. A “honrável” decisão. 
Morte. 
Os abismos não eram naturais. Este aqui começava estreito, mas ficava cada vez 
mais  largo  —  e  profundo  —  conforme  se  estendia  em  direção  ao  leste.  Com 
apenas  três  metros  de  largura,  a  fenda  já  era  grande  o  suficiente  para  dificultar um 
salto.  Um  conjunto  de  seis  escadas  de  corda  —  com  degraus  de  madeira  — 
pendurava-se  aqui,  fixadas  com  estacas  na  rocha,  usadas  pelos  ponteneiros 
enviados  para  revistar  e  coletar  dos  corpos  que  tinham  caído  nos  abismos durante 
as corridas e batalhas.  
Kaladin  olhou  para as planícies. Não conseguia ver muito através da escuridão e 
da  chuva.  Não,  este  lugar  não  era  natural.  A  terra  tinha  sido  quebrada.  E  agora, 
quebrava  as  pessoas  que  vinham  até  ela.  Kaladin  passou  as  escadas,  andando  um 
pouco  mais  adiante,  até  a extremidade do abismo. Ele se sentou, pernas pendendo, 
olhando  para  baixo  enquanto  a  chuva  caía  ao  seu  redor,  as  gotículas  mergulhando 
nas profundezas escuras.  
Pelos  lados,  os  cremilins  mais  destemidos  já  começavam  a  deixar  suas  tocas, 
correndo  aqui  e  acolá,  se  banqueteando  nas  plantas  que  acumulavam  água  da 
chuva.  Lirin  uma  vez  tinha  explicado  que  as  chuvas  das  tormentas  eram  ricas  em 
nutrientes.  Vigias-tempestos  em  Kholinar  e  Vedenar  tinham  provado  que  plantas 
que  recebiam  água  das  tempestades  cresciam  melhor  do  que  aquelas  que  recebiam 
água  de  lagos  ou  rios.  Por  que  cientistas  ficavam  tão  animados  em  descobrir  fatos 
que fazendeiros já sabiam há gerações e gerações?  
Kaladin  assistiu  os  pingos  de  chuva  caírem  na  fenda,  em  direção  ao 
esquecimento.  Pequenos  saltadores  suicídas.  Milhares  de  milhares  deles.  Milhões  e 
milhões.  O  que  será  que  os  aguardava  naquela  escuridão?  Ele  não  conseguiria  ver, 
nem  mesmo  saber,  até  que  se  juntasse  a  eles.  Saltar  em  direção  ao vazio e deixar o 
vento carregá-lo para baixo...  
“Você  estava  certo,  Pai,”  Kaladin  sussurrou.  “Não  se  pode  parar  uma 
tempestade  soprando  mais  forte.  Não  se  salva  vidas  tirando  outras.  Deveríamos 
todos nos tornar cirurgiões. Até o último de nós…” 
Ele  estava  divagando.  Mas,  curiosamente,  sentia sua mente mais limpa agora do 
que  sentira  em  semanas.  Talvez  fosse  a  clareza  da  perspectiva.  A  maioria  dos 
homens  passam  a  vida  toda  imaginando  o  futuro.  Bom,  seu  futuro  estava  vazio 
agora. Então ele regressou, pensando em seu pai, em Tien, em decisões.  
Outrora,  sua  vida  parecera  simples.  Isso  foi  antes  de perder seu irmão, antes de 
ser  traído  no  exército  de  Amaram.  Se  tivesse  a  oportunidade,  voltaria  para  aqueles 
dias inocentes? Preferiria fingir que tudo era mais simples?   
Não.  Ele  não  teria  uma  queda  fácil  como  aquelas  gotas.  Kaladin  ganhou  suas 
cicatrizes.  Ricocheteou  em  paredes.  Matou  homens  inocentes  por  acidente.  Ele 
andou  ao  lado  daqueles  com  corações  negros  como  o  carvão,  adorando-os.  Ele 
subiu e escalou e caiu e tropeçou.  
E  agora  aqui  estava.  No  fim  de tudo. Compreendendo tão mais, mas de alguma 
forma  não  sentindo-se  mais  sábio.  Ele  levantou  na extremidade do abismo, e pôde 
sentir  o  desapontamento  de  seu  pai  pairando  sobre  si,  tal  como  as  nuvens 
trovejantes no céu.  
Ele levou um dos pés até o vazio. 
“Kaladin!” 
Ele  congelou  ao  ouvir  a  voz,  suave  porém  penetrante.  Uma  forma  translúcida 
sacudia  pelo  ar,  aproximando-se  através  da  chuva  enfraquecida.  A  figura  se 
empurrou  para  frente,  caindo  em  seguida,  e  então  se  arremessando  para  cima 
novamente,  como  se  estivesse  carregando  algo  pesado.  Kaladin  recuou  o  pé  e 
estendeu  uma  das  mãos.  Syl  pousou  bruscamente  em  sua  palma.  Ela  estava  na 
forma de uma enguia-celeste, segurando algo escuro na boca.  
Ela  se  transformou  na  familiar  figura  da  moça  de  vestido,  o  tecido  esvoaçando 
ao  redor  das  pernas.  Em  suas  mãos,  carregava  uma  folha  escura  e  fina,  com  uma 
ponta que se dividia em três. Perdição-negra.  
“O que é isso?” Kaladin perguntou. 
Ela  parecia  exausta.  “Essas  coisas  são  pesadas!”  disse,  erguendo  a  folha.  “Eu 
trouxe para você!” 
Ele  pegou  a  folha  com  um  pinçar  de  dedos.  Perdição-negra.  Veneno.  “Por que 
me trouxe isso?” ele perguntou rispidamente. 
“Eu  pensei…”  Syl  disse,  encolhendo-se.  “Bom,  você  guardava  aquelas  outras 
folhas  com  tanto  cuidado.  Então  as  perdeu,  quando  tentou  ajudar  aquele  homem 
na jaula dos escravos. Eu pensei que ficaria feliz em ganhar mais uma.”  
Kaladin  quase  riu.  Ela  não  conseguia  conceber  o  que  tinha  feito,  arranjando 
uma  folha  de  um  dos  venenos  mais  mortais  de  Roshar,  apenas  porque  queria 
alegrá-lo. Era rídiculo. E amável.  
“Tudo  pareceu  dar  errado  desde  que  perdeu  aquela  folha,”  disse  Syl  em  uma 
voz suave. “Você lutava antes daquilo acontecer.” 
“Eu fracassei.” 
Ela  se  encolheu,  ajoelhando  na  palma  de  Kaladin,  saias  brumosas  ao  redor  das 
pernas,  as  gotas  de  chuva  caindo  através  dela  e  distorcendo  sua  forma.  “Não 
gostou,  então?  Eu  voei  até  tão  longe…  quase  esqueci  de  mim  mesma.  Mas  eu 
voltei. Eu ​voltei,​ Kaladin.” 
“Por quê?” ele suplicou. “Por que se importa?” 
“Porque  sim,”  ela  disse,  espichando  a  cabeça.  “Eu  o  assistia,  sabe. No exército. 
Você  sempre  encontrava  os  garotos  jovens  e  despreparados  e  os  protegia,  mesmo 
que isso o colocasse em perigo. Eu consigo me lembrar. Por pouco, mas consigo.” 
“Eu falhei com eles. Estão mortos agora.” 
“Eles  teriam  morrido  antes  sem  sua  ajuda.  Você  fez  com  que  tivessem  uma 
família  no  exército.  Eu  me  lembro  da  gratidão  que  sentiam.  Foi  o  que  me  atraiu  a 
princípio. Você os ajudou.” 
“Não,”  ele disse, apertando as folhas entre os dedos. “Tudo o que toco esmaece 
e morre.” Ele cambaleou na saliência. Trovões ressoavam ao longe. 
“Aqueles  homens  no  esquadrão  de  ponte,”  Syl  sussurrou.  “Você  podia 
ajudá-los.” 
“Tarde  demais.”  Ele  fechou  os  olhos,  pensando  no  garoto  que  morreu  mais 
cedo.  “Já  é  tarde  demais.  Eu  fracassei.  Eles  estão  mortos.  Vão  todos  morrer,  não 
tem como escapar.” 
“O  que  é  mais  uma  tentativa,  então?”  Sua  voz  era  suave,  mas  de  alguma forma 
mais forte que a tempestade. “Que mal faria?” 
Kaladin hesitou. 
“Não  pode  falhar desta vez, Kaladin. Você mesmo disse. Eles vão todos morrer 
de qualquer forma.” 
Ele pensou em Tien, seus olhos mortos encarando o céu acima.  
“Na  maioria  das  vezes,  quando  fala,  não  consigo  entender  o  que  quer  dizer,” 
disse  ela.  “Minha  mente  está  tão  embaçada.  Mas  se  você  se  preocupa  tanto  em 
acabar  machucando  os  outros,  acho  que  não  deveria  ter  medo  de  ajudar  os 
ponteneiros. O que mais pode acontecer com eles?” 
“Eu…” 
“Mais uma tentativa, Kaladin,” Syl sussurrou. “Por favor.” 
Mais uma tentativa… 
Os  homens  encolhidos  no  quartel,  com  apenas  uma  coberta  que  mal  podiam 
chamar  de  suas.  Assustados  com  a  tempestade.  Assustados  uns  com  os  outros. 
Assustados com o que o dia seguinte os traria.  
Mais uma tentativa… 
Ele  pensou  nele  mesmo,  chorando  pela  morte  de  um  garoto  que não conhecia. 
Um garoto ao qual nem sequer tentou ajudar.  
Mais uma tentativa. 
Kaladin  abriu  os  olhos.  Ele  estava  com  frio  e  molhado,  mas  sentiu  uma 
pequenina  e  calorosa  chama  de  determinação  acender  dentro  de  si.  Ele  apertou  a 
mão,  esmagando  as  folhas  de  veneno  que  segurava,  e  então  as  jogou  para  o  lado, 
no abismo. Ele abaixou a outra mão, a que esteve segurando Syl.  
Ela zuniu até o ar, ansiosa. “Kaladin?” 
Ele  se  afastou  do  abismo,  os  pés  descalços  afundando  em  poças  e  pisando 
distraidamente  em  vinhas  de  botões-de-pedra.  A  inclinação  a  qual  tinha  descido 
estava  coberta  com  plantas  lisas  e  achatadas,  que  se  abriam  como  livros  para  a 
chuva,  com  folhas  rendadas,  vermelhas  e  verdes,  conectando  as  duas  metades. 
Vidasprens  —  pequenos  pontinhos  de  luz,  mais  brilhantes  do  que  Syl,  mas 
pequeninos  como  esporos  —  dançavam  entre  as  plantas,  desviando  de  gotas  da 
chuva. 
Kaladin  subiu,  a  água  correndo  encosta  abaixo  como  pequenos  rios. Ao chegar 
no  topo,  retornou  para  o  pátio  das  pontes.  O  lugar  ainda  estava  vazio,  com 
exceção de Gaz, que estava amarrando uma lona solta de volta ao lugar.  
Kaladin  atravessou  a  maior  parte  do  trajeto  até  o  homem  antes  que  Gaz  o 
percebesse.  O  esguio  sargento  fez  uma  carranca.  “Covarde  demais  para  ir  até  o 
final, Fidalgote? Bom, se pensa que vou lhe devolver—” 
Ele  foi  interrompido  com  um  gorgolejo  quando  Kaladin  investiu,  agarrando-o 
pelo  pescoço.  O  sargento  ergueu  um  braço  em  surpresa,  mas  Kaladin  defletiu  o 
golpe  para  o  lado,  dando-lhe  uma  rasteira  e  o  pregando  no  chão  de  pedra, 
causando  um  grande  respingar  de  água.  Gaz  arregalou  os  olhos  em  espanto  e  dor, 
começando a sufocar sob a pressão da mão de Kaladin em sua garganta. 
“O  mundo  acaba  de  mudar, Gaz,” Kaladin disse, inclinando-se para mais perto. 
“Eu  morri  no  fundo  daquele  abismo.  Agora  terá  que  lidar  com  meu  espírito 
vingativo.” 
Contorcendo-se,  Gaz  olhou  freneticamente  ao  redor  em  busca  de  ajuda 
inexistente.  Kaladin  não  teve  problemas  em  segurá-lo  no  chão.  Existia  uma 
vantagem  em  ter  que  carregar  pontes:  se  sobrevivesse  o  bastante,  acabaria  criando 
músculos. 
Kaladin  relaxou  levemente  sua  mão  em  volta  da  garganta  do  sargento, 
deixando-o  respirar  brevemente.  Ele  então  se  aproximou  mais um pouco. “Vamos 
começar  do  zero,  eu e você. Limpos. E quero que entenda algo desde já. Eu ​já estou 
morto. Não pode me machucar. Compreende?” 
Gaz  concordou  lentamente  e  Kaladin  lhe  permitiu  outra  arfada  de  ar  frígido  e 
úmido.  
“A  Ponte  Quatro  é  minha,”  Kaladin  disse.  “Pode  nos  designar  tarefas,  mas  eu 
serei  líder  de  ponte.  O  outro  morreu  hoje,  então  vai  ter  que  escolher  um  novo  de 
toda forma. Compreende?” 
Gaz concordou novamente. 
“Você aprende rápido,” Kaladin disse, soltando o homem. Ele se afastou, e Gaz 
levantou  hesitantemente.  Havia  ódio  em  seus  olhos,  mas  era  velado.  Ele  parecia 
preocupado com algo — algo além das ameaças de Kaladin.   
“Eu  quero  parar  de  pagar  minha  dívida  escrava,”  disse  Kaladin.  “Quanto 
ganham os ponteneiros?” 
“Dois  marcos  transparentes  por  dia,”  Gaz  disse,  fazendo  uma  carranca  e 
esfregando o pescoço. 
Então  um  escravo  ganharia  metade  daquilo.  Um  marco  de  diamante.  Uma 
mixaria,  mas  Kaladin  precisaria  de  toda  forma.  Ele  também  precisaria  manter  Gaz 
na  linha.  “Vou começar a pegar meus pagamentos,” Kaladin disse, “mas você pode 
ficar com um marco a cada cinco.” 
Gaz se sobressaltou, olhando para Kaladin sob a luz fosca e escurecida. 
“Pelos seus esforços,” Kaladin adicionou. 
“Que esforços?” 
Kaladin  se  aproximou.  “Seus  esforços  em  ficar  Condenações  fora  do  meu 
caminho. Entendido?” 
Gaz  concordou  com  a  cabeça  novamente  e  Kaladin  o  deixou  para  trás.  Ele 
odiava  gastar  dinheiro  em  subornos,  mas  Gaz  precisaria  de  um  lembrete 
consistente  e  repetitivo  do  porque  deveria  evitar  fazer  com  que  Kaladin  acabasse 
morto.  Um  marco  a  cada  cinco  dias  não  era  nada  digno  de  nota  —  mas  talvez 
fosse  o  suficiente  para  um  homem  que  estava  disposto  a  sair  no  meio  de  uma 
tormenta, apenas para proteger as próprias esferas.   
Kaladin  retornou  até  o  pequeno  quartel  da  Ponte  Quatro,  abrindo  a  grossa 
porta  de  madeira.  Os  homens  ainda  se  encolhiam  no  lado  de  dentro,  tal  como 
Kaladin  os  deixara.  Mas  algo  havia  mudado.  Eles  sempre  pareceram  tão  patéticos 
assim? 
Sim.  Sempre  foram  desse  jeito.  Era  Kaladin  que  tinha  mudado,  não  eles.  Ele 
sentiu  uma  estranha  deslocação,  como se tivesse permitido a si mesmo de esquecer 
—  mesmo  que  em  partes  —  os  últimos  nove  meses.  Ele  regressou  no  tempo, 
estudando  o  homem  que  fora  outrora.  O  homem  que  ainda  tinha  lutado,  e  lutado 
bem. 
Ele  não  podia  ser  aquele  homem  novamente  —  não  podia  apagar  as  cicatrizes 
—  mas  poderia aprender com ele, como um novo líder de esquadrão aprenderia de 
generais  que  venceram  no  passado.  Kaladin  Benetempeste  estava  morto,  mas 
Kaladin Ponteneiro tinha o mesmo sangue. Um descendente com potencial.  
Ele  andou  até  a  primeira  das  figuras  encolhidas.  O  homem  não  estava 
dormindo  —  quem  conseguiria  durante  uma  tormenta?  Ele  se  encolheu  quando 
Kaladin ajoelhou ao seu lado. 
“Qual  o  seu  nome?”  Kaladin  perguntou,  enquanto  Syl  voava  para  baixo  e 
estudava o rosto do homem. Ele não era capaz de vê-la.  
O  homem  era  mais  velho,  com  bochechas  caídas,  olhos  marrons, e cabelo ralo, 
salpicado  com  fios  brancos.  Sua  barba  era  curta  e  ele  não  carregava  uma marca de 
escravo. 
“Seu nome?” Kaladin repetiu com firmeza. 
“Relampeie daqui,” o homem disse, rolando para o lado. 
Kaladin  hesitou,  então  aproximou-se,  falando  em  voz  baixa.  “Escute,  amigo. 
Você  pode  me  contar  seu  nome  ou  deixar  que  eu  continue  o  importunando. 
Continue  a  recusar,  e irei te arrastar através daquela tempestade, te agarrar por uma 
das  pernas  e  o  colocar  de  ponta  cabeça  sobre  um  daqueles  abismos  até  que  diga 
seu nome.” 
O  homem  espiou  por  cima  do  ombro.  Kaladin  assentiu  lentamente  com  a 
cabeça, olhando-o nos olhos. 
“Teft,” o homem finalmente disse. “Meu nome é Teft.” 
“Viu  só,  não  foi  tão  difícil,”  Kaladin  disse,  esticando  a  mão.  “Eu  sou  Kaladin. 
Seu líder de ponte.” 
O  homem  hesitou,  então  apertou  a  mão  de  Kaladin  com  uma confusa franzida 
de  sobrancelhas.  Kaladin  se  lembrava  vagamente  dele.  O  homem  estava  no 
esquadrão  há  algum  tempo,  algumas  semanas  no  mínimo.  Antes disso, estivera em 
outro  esquadrão.  Transferência  para  a  Ponte  Quatro  era  uma  das  punições  para 
ponteneiros que infringiam as leis do acampamento. 
“Descanse  um  pouco,”  Kaladin  disse,  soltando  a  mão  do  homem.  “Teremos 
um dia difícil amanhã.” 
“Como sabe?” Teft perguntou, coçando o queixo barbado.  
“Somos ponteneiros,” Kaladin respondeu, levantando-se. “​Todo​ dia é difícil.”  
Teft hesitou, então deu um leve sorriso. “Kelek sabe que isso é verdade.” 
Kaladin  o  deixou,  movendo-se  pela  fila  de homens encolhidos. Ele visitou cada 
um  deles,  cutucando  ou  ameaçando  até  que  eles  dessem  seus  nomes.  Todos  eles 
resistiram.  Era  como  se  os  nomes  fossem  a  única  coisa  que  ainda  possuíssem,  e 
eles  não  os  entregariam  de  graça,  embora  parecessem  surpresos  —  talvez  até 
animados — que alguém se importasse em perguntar.  
Kaladin  se  agarrou  aos  nomes,  repetindo  cada  um  deles  em  sua  cabeça, 
segurando-os  como  gemas  preciosas.  Os  nomes  importavam.  Os  homens 
importavam.  Talvez  ele  viesse  a  morrer  na  próxima  corrida,  ou  talvez  acabasse 
cedendo  ao  desespero,  dando a Amaram uma última vitória. Mas enquanto sentava 
no  chão  para  planejar,  Kaladin  pôde  sentir  aquela  pequena  e  calorosa  chama 
queimar constantemente dentro de si.  
Era  o  calor  de  decisões  tomadas  e  de  propósito  conquistado.  Era 
responsabilidade.  
Syl  pousou em sua perna, enquanto ele sussurrava os nomes dos homens para si 
mesmo.  Ela  parecia  animada.  Brilhante.  Feliz.  Ele  não  sentia  nada  daquilo. 
Sentia-se  soturno,  cansado,  e  molhado.  Mas  se  entregou  à  responsabilidade  que 
tinha  tomado,  a  responsabilidade  por  estes  homens.  Ele  se  agarrou  àquilo  como 
um homem agarraria a beira de um penhasco ao cair. 
Ele iria encontrar uma maneira de protegê-los.  
 
  
 
 
FIM DA 
 
PARTE UM   
 
 
 
INTERLÚDIOS 
 
ISHIKK • NAN BALAT • SZETH   
I-1  
ISHIKK 
 
Ishikk  caminhava  aos  respingos  para  o  encontro  dos  estranhos  forasteiros, 
assobiando  suavemente  para  si  mesmo,  sua  vara  com  baldes  em  cada  uma  das 
pontas  repousando  sobre  os  ombros.  Ele  calçava  sandálias em seus pés submersos 
e  vestia  uma  tanga  que  descia  até  a  altura  dos  joelhos. Sem camisa. Nu Ralik que o 
livre!  Um  bom  Lago-purense  jamais  cobria  os  ombros  enquanto  o  sol  estava  a 
brilhar. Era possível adoecer desse jeito, caso não tomasse luz do sol o suficiente.   
Ele  assobiou,  mas  não  por  estar  tendo  um  dia  agradável. De fato, o dia que Nu 
Ralik  tinha  providenciado  estava  muito  próximo  do  terrível.  Apenas  cinco  peixes 
tinham  nadado  até  seus  baldes,  e  quatro  eram  da  variedade  mais  comum  e  sem 
graça.  As  marés estavam irregulares, como se o próprio Lago-Puro estivesse de mal 
humor.  Dias  ruins  estavam  a  caminho;  tão  certamente  quanto  o  sol  e  as  ondas, 
estavam sim. 
O  Lago-Puro  se estendia por todas as direções, com milhares de quilômetros de 
largura,  sua  superfície  vítrea  perfeitamente  transparente.  Até  mesmo em seu ponto 
mais  profundo,  nunca  chegava  a  ter  mais  do  que  dois  metros  entre  a  superfície 
brilhante  e  o  fundo  —  e  na  maioria  dos  lugares,  a  água  calma  e  morna  chegava 
apenas  até  a  altura  da  panturrilha.  O  território  era  repleto  de  pequenos  peixes, 
cremilins coloridos, e fluvisprens em formas de enguia. 
O  Lago-Puro  era  a  própria  vida.  Outrora,  esta  terra  tinha  sido  conquistada  por 
um  rei.  Sela  Tales,  se  chamara  a  nação,  um  dos Reinos Epocais. Bom, eles podiam 
chamá-lo  como  quisessem,  mas  Nu  Ralik  sabia  que  as  fronteiras  da  natureza  eram 
muito  mais  importantes  que  as  fronteiras  de  nações.  Ishikk era, acima de tudo, um 
Lago-purense. Pela maré e pelo sol, ele era sim.  
Ele  caminhou  confiante  através  da  água,  embora  a pisada pudesse ser traiçoeira 
às  vezes.  A  agradável  água  morna  batia  em  suas  pernas,  bem  abaixo  dos joelhos, e 
seus  movimentos  faziam  poucos  respingos.  Ishikk  sabia  como  se  mover  devagar, 
com  cuidado  para  não  colocar  todo seu peso na pisada, até que tivesse a certeza de 
que não pisaria em um juba-espinhosa ou uma saliência de rocha afiada. 
Logo  adiante,  a  vila  de  Fu Abra quebrou a perfeição vidrosa, um amontoado de 
construções  erguidas  em  blocos  abaixo  da  água.  Os  tetos  em  forma  de  domo 
faziam  as  casas parecerem como botões-de-pedra que brotavam no chão, e eram as 
únicas  coisas  em  quilômetros  que  interrompiam  a  superfície  uniforme  do 
Lago-Puro.   
Mais  pessoas  andavam  por  aqui,  movendo-se  de  maneira  igualmente  lenta.  Era 
possível  correr  através  da  água,  mas  raramente  justificável.  O  que  poderia  ser  tão 
importante a ponto de respingar e tumultuar por todo o caminho? 
Ishikk  balançou  a  cabeça  para  a  ideia.  Apenas  forasteiros  eram  tão  apressados. 
Ele  acenou  para  Thaspic,  um  homem  de  pele  escura  que  passou  por  ele,  puxando 
uma  pequena  jangada  que  carregava  algumas  pilhas  de  roupa;  ele  provavelmente 
esteve às lavando.  
“Ho, Ishikk,” o homem magrelo disse. “Como foi a pescaria?” 
“Terrível,”  ele  respondeu.  “Vun  Makak  me  arruinou  completamente  hoje.  E 
você?” 
“Perdi uma camisa enquanto lavava,” Thaspic respondeu com sua voz amigável. 
“Ah, a vida é assim mesmo. Meus forasteiros estão aqui?” 
“Estão sim. Na casa da Maib.” 
“Que  Vun  Makak  faça  com  que  não  devorem  a  dispensa  inteira  dela,”  Ishikk 
disse,  continuando  seu  trajeto.  “Ou  que  acabem  a  contaminando  com  suas 
preocupações constantes.” 
“Pelo sol e pelas marés!” Thaspic disse com um sorriso, afastando-se.  
A  casa  de  Maib  ficava  perto  do  centro  da  vila.  Ishikk  não  sabia  ao  certo  o  que 
fez  a  mulher  querer  viver  dentro  da  construção.  Na  maioria  das  noites,  ele 
conseguia  dormir  em  sua  jangada  tranquilamente.  Nunca  esfriava  no  Lago-Puro, 
exceto  durante  as  tormentas,  e  era  possível  aguentá-las  muito  bem,  graças  a  Nu 
Ralik.  
O  Lago-Puro  drenava  quando  as  tempestades  vinham,  deixando  fossos  e 
buracos  para  trás,  tornando  possível  empurrar  a  jangada  até  uma  fenda  entre  dois 
cumes  de  pedra  e  usá-la  para  barrar  a  fúria  da  tempestade.  As tormentas não eram 
tão  ruins  aqui  como  no  Leste,  onde  sopravam  rochas  e  derrubavam  construções. 
Ah,  ele  tinha  ouvido  histórias  sobre  esse  tipo  de  vida.  Que  Nu  Ralik  fizesse  com 
que Ishikk jamais tivesse que ir até um lugar tão horrível.   
Além  disso,  provavelmente  fazia  frio  por  lá.  Ishikk  sentia  pena  daqueles  que 
precisavam viver no frio. Por que eles não vinham até o Lago-Puro? 
Que  Nu  Ralik  faça  que  não  venham​,  ele  pensou,  aproximando-se  da  casa  de  Maib. 
Se  todo  mundo  soubesse  o  quão  bom  era  viver  no  Lago-Puro,  certamente  todos 
iriam  querer  viver  aqui,  e  não  se  teria  um  lugar  sequer  onde  andar  sem  esbarrar 
com algum forasteiro! 
Ele  adentrou  a  construção,  expondo  suas  panturrilhas  ao ar. O piso era baixo o 
suficiente,  coberto  por  alguns  centímetros  de  água;  os  Lago-purenses  gostavam 
daquele  jeito.  Era  natural,  embora  as  construções  pudessem  acabar  drenando  às 
vezes, caso as marés abaixassem.  
Peixinhos  nadaram  em  disparada  ao  redor  de  seus  dedos.  Dos  tipos  comuns, 
sem  nenhum  valor  verdadeiro.  Maib  estava do lado de dentro. Ela acenou para ele, 
enquanto  consertava  uma  panela  de  sopa  de  peixe.  Ela  era  uma  mulher  robusta  e 
estava atrás Ishikk há anos, sempre usando seus dotes culinários para tentar fisgá-lo 
em um casamento. Ele provavelmente se deixaria ser pego algum dia.  
Os  forasteiros  estavam  no  canto,  numa  mesa  que  apenas  eles  escolheriam  — 
uma  que  estava  um  pouco  mais  erguida,  com  descansos  de  pés  para  que  não 
acabassem  molhando  os  dedos.  ​Nu  Ralik,  que  idiotas!  ele  pensou  curiosamente. 
Longes  da  luz,  vestindo  camisas  contra  o  calor  do  sol,  pés  fora  da  maré.  Não  é  de  se  estranhar 
que suas ideias sejam tão esquisitas.   
Ele abaixou os baldes, acenando para Maib. 
“A pescaria foi boa?” ela perguntou, olhando para ele. 
“Terrível.” 
“Ah,  bom,  sua  sopa  é  de  graça  hoje,  Ishikk.  Para  compensar  pela  maldição  de 
Vun Makak.” 
“Muito  agradecido,”  ele  disse,  pegando  uma  tigela  fumegante  das  mãos  dela. 
Maib sorriu. Agora ele estava devendo. Tigelas o suficiente e logo seria forçado a se 
casar com ela.  
“Tem um kolgril no balde para você,” ele disse. “Eu o peguei hoje de manhã.” 
O  rosto  robusto  de  Maib  se  tornou  duvidoso.  Um  kolgril  era  um  peixe  ​muito 
sortudo.  Curava  dores  nas  juntas  por  um mês após comê-lo, e algumas vezes, fazia 
com  que  se  pudesse  adivinhar  quando  amigos  viriam  lhe  visitar  ao  ler  formas  nas 
nuvens.  Maib  tinha  uma  preferência  especial  por  eles,  devido  a  suas  dores  nos 
dedos  que  Nu  Ralik  providenciou.  Um  kolgril  seria  equivalente  a  duas  semanas de 
sopa, e faria com que ​ela​ ficasse devendo para ele.   
“Que  Vun  Makak  fique  de  olho  em  você,”  ela  resmungou  em  aborrecimento 
enquanto  andava  até  o  balde  para  checar.  “Tudo  bem,  é  um kolgril mesmo. Como 
é que vou conseguir te fisgar um dia, homem?” 
“Sou  um  pescador,  Maib,”  ele  disse  dando  um  chupão barulhento na sopa — a 
tigela  tinha  um  formato  para  facilitar  que  fosse  tomada  daquele  jeito.  “É  difícil 
fisgar  um  pescador.  Sabe  bem  disso.”  Ele  riu  para  si  mesmo,  andando  até  os 
forasteiros enquanto ela retirava o kolgril do balde. 
Eram  três  homens.  Dois  eram  Makabakis  de  pele  escura,  embora  fossem  os 
Makabakis  mais  estranhos  que  já tivesse visto. Um deles era careca, e robusto onde 
a  maioria  de  sua  raça  era  pequena  e  delicada.  O  outro  era  mais  alto,  com  cabelo 
escuro  e  curto,  músculos  esguios,  e  ombros  largos.  Ishikk,  em sua própria cabeça, 
os chamava de Rabujão e Broncão, devido às personalidades dos homens.  
O  terceiro  forasteiro tinha uma pele levemente bronzeada, como um Aléthi. Ele 
não  parecia  bem  certo  também,  no  entanto.  Os  olhos  tinham  o  formato  errado,  e 
seu  sotaque ​certamente não era Aléthi. Ele falava a língua Selayana pior que os outros 
dois,  e  geralmente  permanecia  quieto.  Ele  aparentava  ser  pensativo,  no  entanto. 
Ishikk o chamava de Pensador. 
Me  pergunto  como  foi  que  ele  ganhou  aquela  cicatriz  no  escalpo,  Ishikk  pensou.  A  vida 
fora do Lago-Puro era muito perigosa. Muitas guerras, particularmente para o leste. 
“Está  atrasado,  viajante,” disse o alto e rígido Broncão. Ele tinha o porte e ar de 
um soldado, embora nenhum dos três carregassem armas. 
Ishikk  franziu  o  cenho,  sentando-se  e  relutantemente  tirando  os  pés  da  água. 
“Hoje não é o dia-warli?” 
“O  dia  está  certo,  amigo”  disse  Rabujão.  “Mas  o  encontro  era  ao  meio-dia. 
Compreende?” Ele era o que geralmente falava mais.  
“Não  estamos  muito  longe  disso,”  Ishikk  disse.  Sinceramente.  Quem  é  que 
prestava atenção nas horas? Forasteiros. Sempre tão ocupados. 
Rabujão  apenas  balançou  a  cabeça,  enquanto  Maib  trazia  um  pouco  de  sopa 
para  eles.  A  casa  dela  era  o  mais  próximo  que  a  vila  tinha  de  uma  pousada.  Ela 
deixou  um  guardanapo  de  tecido  macio  e  um  copo  de  vinho  doce  para  Ishikk, 
tentando balancear aquele peixe o mais rápido possível. 
“Muito bem,” disse Rabujão “Vamos ouvir seu relatório então, amigo.” 
“Estive  em  Fu  Ralis,  Fu  Namir,  Fu  Albast,  e  Fu  Moorin  neste  mês,”  Ishikk 
disse, dando um gole na sopa. “Ninguém avistou esse homem ao qual procuram.” 
“Você fez as perguntas certas?” Broncão indagou. “Tem certeza?”  
“É  claro  que  tenho  certeza,”  Ishikk  respondeu.  “Eu  já  venho  fazendo  isso  há 
eras.”  
“Cinco meses,” Broncão corrigiu. “E sem resultados.”  
Ishikk  deu  de  ombros.  “Quer  que  eu  invente  histórias?  Vun  Makak  ficaria 
contente com isso.” 
“Não, amigo, sem histórias,” Rabujão disse. “Queremos apenas a verdade.” 
“Bom, foi o que eu lhes dei.” 
“Jura em nome daquele seu deus, Nu Ralik?” 
“Quieto!” Ishikk advertiu. “Não diga seu nome. Vocês são idiotas?” 
Rabujão  franziu  o  cenho.  “Mas  ele  é  seu  deus.  Certo?  O  nome  dele  é  sagrado? 
Não deve ser proferido?” 
Forasteiros  eram  tão  estúpidos.  É  claro  que  Nu  Ralik  era  o  deus  deles,  mas 
sempre  ​fingia-se  que  não.  Vun  Makak  —  seu  irmão  mais  novo  e  maldoso  —  tinha 
que  pensar  que  era  a  ele  que  estavam  louvando,  do  contrário,  ficaria  com  ciúmes. 
Só era seguro falar sobre essas coisas em terreno sagrado.  
“Eu  juro  por  Vun  Makak,”  Ishikk  disse  prontamente.  “Que  ele  me  vigie  e  me 
amaldiçoe  como  bem  desejar.  Eu  procurei  cuidadosamente.  Sem  sinais  desse 
forasteiro que procuram — de cabelo branco, língua astuta, e face pontuda.” 
“Ele pinta o cabelo volta e meia,” Rabujão disse. “E usa disfarces.” 
“Eu  perguntei  usando  os  nomes  que  me  deram,”  disse  Ishikk.  “Ninguém  o 
avistou.  Agora,  talvez  eu  pudesse  encontrar  um  ​peixe  que  conseguiria  localizá-lo.” 
Ele  coçou  o queixo barbado. “Eu aposto que um córto-achatado conseguiria. Pode 
levar um tempo até que eu consiga um, no entanto.” 
Os  três  olharam  para  ele.  “Hmm,  talvez  tenha  coisa  nesses  peixes,”  Broncão 
disse. 
“Superstição,”  Rabujão  respondeu.  “Você  sempre  procura  por  superstições, 
Vao.” 
Aquele  não  era  o  nome  verdadeiro  do  homem;  Ishikk  tinha  certeza  de que eles 
usavam  nomes  falsos.  Era  por  isso  que  dava  nomes  próprios  para  eles.  Se  eles 
fossem dar nomes falsos, ele devolveria nomes falsos. 
“E  você,  Temoo?”  Broncão  perguntou.  “Não  podemos  declamar  nosso 
caminho para—” 
“Cavalheiros,”  disse  o  Pensador.  Ele  acenou  para  Ishikk,  que  ainda  estava 
tomando a sopa. Os três trocaram para outro idioma e continuaram a discussão.  
Ishikk  ouviu  por  um  ouvido,  tentando  determinar  que  idioma  estavam  usando. 
Ele  nunca  foi  bom  com  outros  tipos  de  língua.  Por  que  precisaria?  Isso  não 
ajudava a pescar ou vender peixes. 
Ele  t​inha  procurado  pelo  homem  deles.  Ele  se  aventurou  bastante,  visitando 
muitos  lugares  ao  redor  do  Lago-Puro.  Essa  era  uma  das  razões  pela  qual  não 
queria  ser  fiscado  por  Maib.  Ele  teria  que  sossegar,  e  isso  não  era  bom  para  pegar 
peixes. Ao menos, não os raros.  
Ele  não  se  incomodou  em  imaginar porque os homens estavam em busca desse 
tal  Hoid,  seja  lá  quem  fosse.  Forasteiros  estavam  sempre  procurando  coisas  que 
não  podiam  ter.  Ishikk  se  recostou,  afundando  os  dedos  do pé na água. Aquilo era 
gostoso.  Os  forasteiros  eventualmente  terminaram a discussão. Eles deixaram mais 
algumas  instruções,  entregaram-lhe  uma  bolsinha  de  esferas,  e  pisaram  na  água, 
retirando-se da mesa.  
Como  a  maioria  dos  forasteiros,  eles  calçavam  botas  grossas  que  subiam  até  a 
altura  dos  joelhos.  Eles  respingaram  água  durante  o  trajeto  até  a  entrada.  Ishikk 
deu  sequência,  acenando  para  Maib  e  pegando  os  baldes.  Ele  voltaria  mais  tarde, 
para outra refeição. 
Talvez eu devesse deixá-la me fisgar​, ele pensou, pisando para fora novamente, para a 
luz  do  sol  e  dando  um  suspiro  de  alívio.  ​Nu  Ralik  sabe  que  estou  ficando  velho.  Talvez 
fosse bom relaxar.   
Os  forasteiros  cruzaram  o  Lago-Puro  aos  respingos.  Rabujão  ficou  para  trás. 
Ele  parecia  muito  descontente.  “Onde  você  está,  Andarilho?  Parece  tolice 
continuar  nessa  busca.”  Então,  adicionou  em  seu  próprio  idioma,  “Alavanta 
kamaloo kayana.” 
Ele cruzou as águas para alcançar os companheiros.  
“Bom,  você  acertou  na  parte  da  tolice,”  Ishikk  disse  com  um  sorriso,  tomando 
o próprio caminho e partindo para checar suas armadilhas de pesca.   
I-2  
NAN BALAT 
 
Nan Balat gostava de matar coisas. 
Não pessoas. Nunca pessoas. Mas animais, estes ele podia matar. 
Particularmente  os  pequenos.  Ele  não  sabia  ao  certo  porque  isso  o  fazia  se 
sentir melhor; apenas que fazia. 
Ele  se  sentou  na  varanda  da  mansão,  puxando  as  pernas  de  um  pequeno 
caranguejo,  uma  de  cada  vez.  Havia  uma  sensação  satisfatória  em  cada  uma — ele 
puxava  devagar  a  princípio,  e  o  animal  ficava  rígido.  Então,  puxava  mais forte, e o 
pobrezinho  começava  a  se  contorcer.  Os  ligamentos  resistiam, começando então a 
partir,  seguidos  por  um  breve  estalo.  O  caranguejo  se  contorcia  mais  um  pouco,  e 
Nan  Balat  levantava  a  perninha,  pinçando  a  besta  com  dois  dedos  de  sua  outra 
mão.  
Ele  suspirou,  satisfeito.  Arrancar  uma  perna o acalmava, fazia com que as dores 
de  seu  corpo  recuassem.  Ele  jogou  a  perna  por cima do ombro e continuou com a 
seguinte. 
Ele  não  gostava  de  falar  sobre  este  hábito.  Ele  não  falava  sobre  isso  nem 
mesmo  com  Eylita.  Era  apenas  algo  que  fazia.  Era  preciso  manter  a  sanidade,  de 
alguma forma.  
Ele  finalizou,  levantando-se  e  se  apoiando  em  sua  bengala,  olhando  para  os 
jardins  Davar,  que  eram  formados  por  paredes  trabalhadas  em  pedra  e  cobertos 
com  vinhas  de  todos  os  tipos.  Eram  lindas,  embora  Shallan  fosse  a  única  que 
tivesse  realmente  as  apreciado.  Esta  área  de  Jah  Keved  —  para  o  oeste  e  sul  de 
Alethkar,  de  maior  elevação  e  partida  por  montanhas  como  os  Picos  dos 
Come-chifres  —  era  exuberante  em  vinhas.  Elas  cresciam  por  todos  os  lados, 
cobrindo  a  mansão,  e  até  mesmo  os  degraus.  Em  terrenos  mais  selvagens,  elas 
pendiam  de  árvores,  e  cresciam  sobre  vastidões  rochosas,  tão  onipresentes  quanto 
a grama em outras áreas de Roshar.  
Balat  caminhou  até  a  extremidade  da  varanda.  Alguns  cantarins  selvagens 
começaram  a  cantar  ao  longe,  raspando  suas  conchas  fragosas.  Cada  um  deles 
tocava  batidas  e  notas  diferentes,  embora  os  sons  não  pudessem  realmente  serem 
chamados  de  melodias.  Melodias  eram  coisas  de  humanos,  não  animais.  Mas  cada 
canto era uma música, e às vezes, pareciam estar cantando uns para os outros. 
Balat  desceu  as  escadas,  um  degrau  de  cada  vez,  as  vinhas  estremecendo  e 
retraindo  antes  que  seus  pés  pudessem  pisar  nelas.  Já  fazia  quase  seis  meses  desde 
que  Shallan  partira.  Nesta  manhã,  tinham  recebido  notícias  dela  via 
cálamo-conector,  dizendo  que  tinha  sucedido  na  primeira  parte  do  plano, 
tornando-se  aprendiz  de  Jasnah  Kholin.  E  assim,  sua  irmãzinha  caçula  —  que 
nunca  tinha  saído  das  propriedades  da  família  antes  disso  —  começava  a  se 
preparar para roubar a mulher mais importante do mundo.   
Descer  os  degraus  era  um  trabalho  depressivamente  difícil  para  ele.  ​Vinte  e  três 
anos  de  idade,​   ele  pensou,  ​e  já  estou  decrépito.  Ele  ainda  sentia  uma  dor  constante  e 
latente.  A  fratura  tinha  sido  grave,  e  o  cirurgião  quase  decidira  amputar  a  perna 
inteira.  Talvez  ele  devesse  ser  grato  que  aquilo  não  tenha  sido  necessário,  embora 
fosse precisar de uma bengala pelo resto da vida. 
Scrak  estava  brincando  com  algo  no  chão  verde,  um  lugar  onde  a  grama 
cultivada  era  tratada  e  livre  de  vinhas.  O  grande  lebréu-marculato  rolava  para  os 
lados, roendo o objeto, suas antenas batendo contra as costas da cabeça.  
“Scrak,” Balat disse, mancando para frente, “o que você pegou aí, garota?” 
A  lebréu  olhou  para  seu  mestre,  as  antenas  se  espichando  para  cima.  O  animal 
trompetou  com  duas  vozes  ecoantes  que  sobrepunham  uma  à  outra,  voltando 
então a brincar.  
Maldita  criatura,​   Balat  pensou  carinhosamente,  ​nunca  me  obedece  como  devia​.  Ele 
vinha  criando  lebréis-marculatos  desde  sua  juventude,  e tinha descoberto — como 
muitos  antes  dele  —  que  quanto  mais  inteligente  um  animal  era,  mais  provável 
seria  que  fosse  desobediente.  Ah,  Scrak  era  leal,  mas  ela  o  ignoraria  nas  pequenas 
coisas. Como uma pequena criança tentando provar sua independência.   
Enquanto  se  aproximava,  Balat  percebeu  que  Scrak  tinha  pego  um  cantarim.  A 
criaturinha  com  um  palmo  de  tamanho  tinha  o  formato  de  um  disco  pontiagudo, 
com  quatro  braços  que  saíam  pelos  lados  e  que  raspavam  rítmos  no  topo  de  sua 
concha.  As  quatro  pernas  achatadas  logo  abaixo  eram  normalmente  usadas  para 
prender  o  animal  em  alguma  parede  de  pedra.  Scrak  tinha  arrancado  as  pernas  do 
animalzinho,  assim  como  dois  braços,  além  de  ter  partido  sua  concha.  Balat  quase 
o  tomou  dela  para  arrancar  os  dois  braços  restantes,  mas  decidiu  que  seria melhor 
deixar Scrak ter sua diversão.  
A  lebréu  abaixou  o  cantarim  e  olhou  para  Balat,  suas  antenas  erguendo-se 
inquisitivamente.  Ela  era  esguia  e  lustrosa,  com  suas  seis  pernas  estendidas  para 
frente  enquanto  sentava-se  sobre  os  calcanhares.  Lebréis-marculatos  não  tinham 
conchas  ou  pele;  ao  invés  disso,  seus  corpos  eram  cobertos  com  uma  fusão  de 
ambos,  suave  ao  toque  e  mais  maleável  que  uma  carapaça  de  verdade,  mas  mais 
dura  que  uma  pele,  feita  com  sessões  intercaladas.  O  rosto  angular  da  lebréu 
parecia  curioso,  os  olhos  de  preto  profundo  encarando  Balat.  Ela  trompetou 
suavemente.  
Balat  sorriu,  alcançando  a  lebréu  para  acariciá-la  atrás  das  orelhas.  O  animal  se 
recostou  nele  —  ela  provavelmente  pesava  tanto  quanto  o  rapaz.  Os 
lebréis-marculatos  mais  grandes  chegavam  até  a  cintura  de  um  homem,  embora 
Scrak fosse de uma raça menor e mais rápida.  
O  cantarim  estremeceu,  fazendo  com  que  Scrak  saltasse  até  ele  alegremente, 
abocanhando a concha com suas fortes mandíbulas exteriores.  
“Sou  um  covarde, Scrak?” Balat perguntou, sentando-se num banco. Ele deixou 
sua  bengala  de  lado  e  pegou  um  pequeno  caranguejo  que  se  escondia  na lateral do 
banco.  Sua  concha  tinha  se  tornado  branca  para  que  conseguisse  se  camuflar  na 
pedra. 
Ele  ergueu  o  animal  que  se  contorcia.  A  grama verde tinha sido criada para que 
fosse  menos  tímida,  saindo  dos  buracos  poucos  segundos  depois  de  Balat  ter 
passado  por  ela.  Outras  plantas  exóticas  floresceram,  saíndo  de  conchas  ou 
buracos  no  chão,  e  logo,  trechos  de  vermelho,  laranja,  e  azul  ondulavam  no  vento 
ao  seu  redor.  A  área  em  volta  da  lebréu  permanecia  descoberta,  é  claro.  Scrak 
estava  se  divertindo  além  da  conta  com  sua  presa,  fazendo  com  que  até mesmo as 
plantas cultivadas continuassem a se esconder em seus buracos.  
“Eu não poderia ter ido em busca de Jasnah,” Balat disse, começando a arrancar 
as  pernas  do  caranguejo.  “Apenas  uma  mulher  conseguiria  chegar  perto  o 
suficiente  dela  para  roubar  a  Mold’alma.  Nós  decidimos  isso.  Além  disso,  alguém 
precisava ficar para trás e tomar conta das necessidades da casa.”  
As  desculpas  eram  vazias.  Ele  ​se  sentia  ​como  um  covarde.  Balat  arrancou  mais 
algumas  pernas,  mas  elas  eram  insatisfatórias.  O  caranguejo  era  pequeno demais, e 
as pernas saíam com muita facilidade. 
“Esse  plano provavelmente nem vai chegar a funcionar,” ele disse, arrancando a 
última  das  pernas.  Curioso,  olhar  para uma criatura como esta quando não se tinha 
mais  as  pernas.  O  caranguejo  ainda  estava  vivo.  Mas  como  poderia  saber?  Sem  as 
pernas para remexer, a criatura parecia tão morta quanto uma pedra. 
Os  braços,  ele  pensou,  ​nós  os  agitamos para parecermos vivos. É para isso que servem. Ele 
colocou  os  dedos  no  espaço entre as conchas do caranguejo, começando a abri-las. 
Isso, ao menos, tinha uma sensação prazerosa de resistência.  
Eles  eram  uma  família  quebrada.  Anos  de  sofrimento  sob  o  temperamento 
brutal  de  seu  pai  tinham  levado  Asha  Jushu  ao  vício  e  Tet  Wikim  ao  desespero. 
Apenas  Balat  tinha  escapado  ileso.  Balat  e  Shallan.  Ela  tinha  sido  deixada  sozinha, 
intocada.  Por  algumas  vezes,  Balat  chegou  a  odiá-la  por  isso,  mas  como  era 
possível realmente odiar alguém como ela? Tímida, quieta, delicada.  
Eu  nunca  deveria  tê-la  deixado  partir,  ele  pensou.  ​Devia  existir  outra  maneira.  Ela 
nunca  tinha  ficado  por  conta  própria;  estaria  provavelmente  apavorada.  Era  um 
milagre ela ter conseguido fazer o que fizera até então;  
Ele  jogou  os  pedaços  do  crustáceo  por  cima  do  ombro.  ​Se  ao  menos  Helaran 
tivesse  sobrevivido.  O  irmão  mais  velho  —  conhecido  até  então  como  Nan  Helaran, 
pois  tinha  sido  o  primeiro  filho  —  tinha  se  colocado  contra  o  pai  repetidamente. 
Bom,  ele  estava  morto  agora,  assim  como  seu  pai.  Eles  deixaram  uma  família  de 
decrépitos para trás.  
“Balat!”  uma  voz  chamou.  Wikim  apareceu  na sacada. O rapaz mais novo tinha 
superado seu recente ataque de melancolia, aparentemente.  
“O quê?” Balat disse, levantando-se. 
Wikim  se  apressou  pelos  degraus,  correndo  até  ele,  vinhas — e então grama — 
se retraindo enquanto passava. “Temos um problema.” 
“Quão grande é o problema?” 
“Bem grande, eu diria. Venha.”   
I-3  
A GLÓRIA DA IGNORÂNCIA 
 
Szeth-filho-filho-Vallano,  Delusório  de Shinovar, sentava-se no piso de madeira 
de uma taverna, com cerveja de lavis lentamente encharcando suas calças marrons. 
Encardidas,  desgastadas,  e  desfiadas,  suas  vestimentas  eram  muito  diferentes 
dos  simples  —  mas  ainda  elegantes  —  brancos  que  vestira  há  cinco  anos  atrás, 
quando assassinou o rei de Alethkar.  
Cabeça  raspada,  mãos  sobre  o  colo,  sem  carregar  arma  alguma.  Ele  não  tinha 
invocado  sua  Lâmina-fracta  em  anos,  e  sentia  como  se  tivesse  passado  o  mesmo 
tempo  sem  tomar  um  banho.  Szeth  não  reclamava.  Se  ele  parecesse  um miserável, 
todos  o  tratariam  como  um  miserável.  Ninguém  pedia  a  um  miserável  para  que 
assassinasse pessoas.  
“Então  ele  vai  fazer  tudo  o  que  mandar?”  perguntou  um  dos  operários  das 
minas  sentado  à  mesa.  As  vestes  do  homem  eram  pouca  coisa  melhores  das  de 
Szeth,  cobertas  com  tanta  sujeira  e  poeira  que  era  difícil  distinguir  pele  encardida 
de  tecido  encardido.  Havia  quatro  operários,  segurando  copos  de  cerâmica.  O 
cômodo  cheirava  a  lama  e  suor.  O  teto  era  baixo,  as  janelas  —  apenas  no  lado 
sotavento  —  eram  meros  buracos.  A  mesa  era  precariamente  segurada  por  várias 
faixas de couro, pois a madeira estava partida bem no meio.  
Took  —  o  mestre  atual  de  Szeth  —  abaixou  seu  copo  no  lado  empinado  da 
mesa,  que  baixou  com  o  peso  de  seu  braço.  “Sim,  é  claro  que  sim.  Ei,  kurp,  olhe 
pra mim.” 
Szeth  olhou  para  ele.  “Kurp”  significava  criança  no  dialeto  Bav  local.  Szeth 
estava  acostumado  com  tais  termos  pejorativos.  Embora  estivesse  em  seu 
trigésimo  quinto  ano  —  e  seu  décimo  sétimo  desde  que  tinha  sido  nomeado 
Delusório  —  os  olhos  grandes  e  redondos  de  seu  povo,  a  estatura  pequena,  e  a 
tendência  à  cabeça  raspada  faziam  com  que  os  Orientais  os  comparassem  a 
crianças.  
“Levante,” disse Took. 
Szeth assim o fez. 
“Pule pra cima e pra baixo.” 
Szeth obedeceu. 
“Despeje a cerveja do Ton em sua cabeça.”  
Szeth alcançou a cerveja. 
“Ei!”  Ton  disse,  puxando  o  copo  de  volta.  “Nada  disso,  não  senhor!  Eu  num 
terminei ainda não!” 
“Se tivesse,” disse Took, “ele não ia conseguir despejar na cabeça, certo?” 
“Manda ele fazê outra coisa, Took,” Ton resmungou.  
“Tudo  bem.”  Took  puxou  sua  faca  de  bota  e  a  atirou  para  Szeth.  “Kurp,  corte 
seu braço.” 
“Took…”  disse  um  dos  outros  operários,  um  homem  funguento  chamado 
Amark. “Isso num tá certo, tu sabe disso.”   
Took  não  retirou  a  ordem,  então  Szeth  obedeceu,  pegando  a  faca  e  cortando  a 
carne de seu braço. Sangue escorreu ao redor da lâmina suja. 
“Corte a garganta,” Took ordenou. 
“Ei, Took!” Amark exclamou, levantando-se. “Eu num—” 
“Ah,  quieto!”  disse  Took.  Vários  grupos  das  outras  mesas  estavam  assistindo 
agora. “Tu vai ver. Kurp, corte a garganta.” 
“Não  tenho  permissão  de  tirar  minha  própria  vida,” Szeth disse suavemente no 
idioma  Bav.  “Como  Delusório,  é  a  natureza  do  meu  sofrimento  ser  privado  do 
gosto da morte por minhas próprias mãos.” 
Amark se recostou, parecendo acanhado.  
“Mãe das Cinzas,” Ton disse, “ele sempre fala assim?” 
“Assim como?” Took perguntou, tomando um gole de sua caneca. 
“Palavras bonitas, tão suaves e certinhas. Como um olhos-claros.” 
“Sim,”  Took  disse.  “Ele  é  como  um  escravo,  só  que  melhor,  pois  é  um  Shin. 
Ele  não  foge  ou  te  responde  nem  nada  do  tipo.  Não  precisa  de  pagamento 
também.  Ele  é  como  um  parshimem,  só  que  mais  esperto.  Vale  um  bom  bocado 
de  esferas,  digo  eu.”  Ele  espiou  os  outros  homens.  “Dá  pra  levar  ele  até  as  minas 
para  trabalhar,  e  ficar  com  o  pagamento  dele.  Ele  pode  cuidar  dos  trabalhos 
xaropes. Limpar a latrina ou a casa, por exemplo. Qualquer tipo de coisa útil.” 
“Bom,  como  tu  encontrou  ele,  então?”  um  dos  outros  homens  perguntou, 
coçando  o  queixo.  Took  era  um  operário  passageiro,  que  viajava  de  cidade  em 
cidade. Exibir Szeth era uma de suas maneiras de fazer amigos rapidamente. 
“Ah,  bom,  essa  é  uma  baita  história,”  Took  disse.  “Eu  tava  viajando  nas 
montanhas  do  sul,  sabe,  e  daí  ouvi  esse  uivo  estranho.  Não  era  o  vento,  não 
senhor, e daí…” 
A  lenda  era  uma  completa  invenção;  O  mestre  anterior  de  Szeth  —  um 
fazendeiro  de  uma  vila  próxima  —  tinha  o  entregado a Took em troca de um saco 
de  sementes.  O  fazendeiro  tinha  conseguido  Szeth  com  um  mercador  itinerário, 
que  tinha  o  conseguido  com um sapateiro, que o conseguira vencendo uma partida 
de um jogo de azar ilegal. Existiram dúzias antes dele.  
A princípio, os plebeus olhos-escuros gostavam da novidade de possuir Szeth. 
Escravos  eram  caros  demais  para  a  maioria,  e  parshimens  eram  ainda  mais 
valiosos.  Então,  ter  alguém  como  Szeth  para  comandar  era algo muito refrescante. 
Ele  limpava  o  piso,  cortava  madeira,  ajudava  nos  pastos,  e  tomava  as  culpas. 
Alguns o tratavam bem, outros nem tanto.  
Mas todos eventualmente se livravam dele.  
Talvez  eles  pudessem  sentir  a  verdade,  de  que  Szeth  era  capaz  de  tão  mais  do 
que  os  meros  afazeres  que  ousavam  empurrar  para  ele.  Ter  um  escravo  era  uma 
coisa.  Mas  quando  o  suposto  escravo  falava  como  um  olhos-claros  e  tinha  mais 
conhecimento do que você? Isso deixava os mestres desconfortáveis.  
Szeth  tentava  disfarçar,  tentava  agir  de  forma  menos  refinada.  Era  muito  difícil 
para  ele.  Talvez  até  mesmo  impossível.  O  que  esses  homens  diriam,  se soubessem 
que  o  escravo  que  limpava  suas  latrinas  era  um Portador-fracto e um Potenciador? 
Um  Corredor  do  Vento,  como  os  Radiantes  de  outrora?  No  momento  em  que 
Szeth  invocasse  sua Lâmina, seus olhos iriam do verde escuro ao safira claro, quase 
que brilhante, um efeito único provindo de sua arma particular.  
Era  melhor  que  jamais descobrissem. Szeth se vangloriava em ser desperdiçado; 
cada  dia  em  que  era  forçado  a  limpar  ou  cavar  ao  invés  de  matar  era  uma  vitória. 
Aquela  noite  há  cinco  anos  atrás  ainda  o  assombrava.  Ele  já tinha sido ordenado a 
matar  antes  daquilo  —  mas  sempre  em  segredo,  furtivamente.  Nunca  até  então 
tinha recebido instruções tão terríveis e deliberadas.  
Mate,  destrua,  e  corte  seu  caminho  até  o  rei.  Seja  visto  o  fazendo.  Deixe  testemunhas. 
Feridos, mas vivos… 
“...  e  foi  aí  que  ele  jurou  me  servir  pela  vida  toda,”  Took  finalizou.  “Ele  viaja 
comigo desde então.” 
Os  homens  que  ouviam  se  viraram  para  Szeth.  “É  verdade,”  ele  disse,  como 
tinha sido instruído mais cedo. “Cada palavra.” 
Took sorriu. Szeth não o deixava desconfortável; ele aparentemente considerava 
natural  que  Szeth  o  obedecesse. Talvez, como resultado, acabaria sendo seu mestre 
por mais tempo que os demais.  
“Bom,”  Took  disse,  “Vou  me  indo.  Tenho  que  começar  cedo  amanhã.  Mais 
lugares para ver, mais caminhos desconhecidos para explorar…” 
Took  gostava  de  pensar  em  si  mesmo  como  um  viajante  professo,  embora,  até 
onde  Szeth  sabia,  ele  apenas  viajasse  em um grande círculo. Existiam muitas minas 
pequenas  —  e  consequentemente,  pequenas  vilas  —  nessa  parte  de  Bavilândia. 
Took  provavelmente  já  estivera  nesta  mesma  vila  anos  atrás,  mas  as  minas  faziam 
com  que  muitos  dos  operários  fossem  passageiros.  Era  pouco  provável  que  Took 
fosse  lembrado,  a  não  ser  que  alguém  tivesse  notado  suas  histórias  terrivelmente 
exageradas.  
Terríveis  ou  não,  os  demais  operários  pareciam  sedentos  por  mais.  Eles 
chamaram Took, oferecendo outro drinque, e ele aceitou modestamente.  
Szeth  sentou  silenciosamente,  pernas  dobradas,  mãos  sobre  o  colo,  o  sangue 
correndo  pelo  seu  braço.  Será  que  os  Parshendi  sabiam  o  que  estavam  fazendo 
com  Szeth  ao  jogarem  sua  Pedra-Juramentada  fora,  enquanto  fugiam  de  Kholinar 
naquela  fatídica  noite?  Szeth  precisou  encontrá-la,  e  então  ficar  ali,  parado  ao  lado 
da  estrada,  imaginando  se  seria  pego  e  executado  —  ​torcendo  para  que  fosse pego e 
executado  —  até  que  um  mercador  passageiro  se  importou  o  suficiente  para 
investigar.  Até  então,  Szeth estivera vestindo apenas uma tanga. Sua honra fez com 
que  jogasse  fora  suas  vestes  brancas,  pois  elas  fariam  com  que  fosse  reconhecido 
mais facilmente. Ele devia preservar a si mesmo, para que pudesse sofrer.  
Depois  de  uma  breve  explicação  que  deixou  detalhes  incriminadores  de  fora, 
Szeth  se  encontrou  viajando  no  fundo  de  um  carte  mercantil.  O  mercador  —  um 
homem  chamado  Avado — tinha sido esperto o bastante para perceber que, com a 
morte  do  rei,  estrangeiros  estariam  à  mercê  de  dias  difíceis.  Ele  viajou  até  Jah 
Keved,  jamais  sabendo  que  o  servo  que  tinha  acolhido  fora  o  assassino  de  rei 
Gavilar.  
Os  Aléthi  não  procuraram  por  Szeth.  Eles  assumiram  que  o infame “Assassino 
de  Branco”  tivesse  escapado  com  os  Parshendi.  Eles  provavelmente  esperavam 
encontrá-lo no meio das Planícies Estilhaçadas.  
Os  mineradores  eventualmente  se  cansaram  das histórias esfarrapadas de Took. 
Eles  se  despediram  dele,  ignorando  suas  cutucadas  de  que  outro  copo  de  cerveja 
faria  com  que  ele  contasse  sua  lenda  mais  grandiosa:  a  de  quando  viu  a  própria 
Sentinela  da  Noite,  e  roubou  uma  esfera  que  brilhava  com  uma  luz  negra.  Aquela 
história  sempre  deixava  Szeth  desconfortável,  pois  o  lembrava  da  estranha  esfera 
preta  que  Gavilar  entregara  a  ele.  Ele  a  tinha  escondido  cuidadosamente  em  Jah 
Keved.  Szeth  não  sabia  o  que  era,  mas  não  queria  arriscar  que  um de seus mestres 
acabasse a tomando.  
  Percebendo que mais ninguém lhe ofereceria um drinque, Took relutantemente 
cambaleou  de  sua  cadeira,  acenando  para  que  Szeth o seguisse. A rua estava escura 
do  lado  de  fora.  Esta  cidade, Caminho Férreo, contava com uma praça apropriada, 
várias  centenas  de  casas,  e  três  diferentes  tavernas.  Isso  a  tornava  praticamente 
uma  metrópole  para  os  padrões  de  Bavilândia  —  o  menor  e  mais  ignorado  dos 
pedaços  de  terra,  localizada  bem  ao  sul  dos  Picos  Come-Chifres.  A  área 
tecnicamente  fazia  parte  de  Jah  Keved,  mas  até  mesmo  seu  alto-príncipe  tendia  a 
manter distância dali.   
Szeth  seguiu  seu  mestre  pelas  ruas,  em  direção ao distrito mais pobre. Took era 
ralé  demais  para  pagar  por  um  quarto  nas  áreas  boas,  ou  até  mesmo  modestas,  da 
cidade.  Szeth  espiou  sobre  o  ombro,  desejando  que  a  Segunda  Irmã  —  conhecida 
como  Nomon  entre  os  Ocidentais  —  tivesse  nascido  para  lhe  prover  um  pouco 
mais de luz.  
Took  cambaleou  bêbado,  caindo  no  meio  da  rua.  Szeth  suspirou.  Não  seria  a 
primeira  noite  em  que  precisaria  carregar  seu  mestre  até  a  cama.  Ele  se  abaixou 
para erguer Took. 
Szeth  congelou.  Um  líquido  quente  formava  uma  poça  embaixo  do  corpo  de 
seu mestre. Foi apenas então que Szeth percebeu a faca no pescoço de Took. 
Szeth  imediatamente  ficou  alerta  no  momento  em que um grupo de salteadores 
deslizou  para  fora  dos  becos.  Um  deles  ergueu  a mão, fazendo a faca que segurava 
refletir  com  a  luz  das  estrelas,  preparando  para  arremessá-la  em  Szeth.  Ele  ficou 
tenso. Took tinha esferas infundidas no bolso das quais Szeth poderia inspirar.  
“Espere,” sibilou um dos salteadores.  
O  homem com a faca hesitou. Outra figura se aproximou, inspecionando Szeth. 
“Ele é Shin. Não machucaria um cremilim.” 
Os  demais  salteadores  puxaram  o  corpo  até  o  beco.  O  homem  com  a  faca 
levantou a arma novamente. “Ele ainda pode gritar.” 
“Então  porque  não  gritou  ainda?  Eu  tô falando, eles são inofensivos. São quase 
como parshimens. Podemos vender ele.” 
“Talvez,” disse o segundo homem. “Ele tá se borrando. Olha só pra ele.” 
“Venha cá,” disse o primeiro salteador, acenando para Szeth. 
Ele  obedeceu,  andando  até  o  beco,  que  se  iluminou  subitamente  quando  os 
outros salteadores abriram o saquinho de dinheiro de Took. 
“Kelek,”  um  deles  disse,  “mal  vale  o  esforço.  Um  punhado  de  lascas  e  dois 
marcos, nem uma continha sequer.” 
“Eu  tô  falando,”  o  primeiro  homem  disse.  “Podemos  vender  esse  aqui  como 
escravo. As pessoas gostam de servos Shin.” 
“Ele é só uma criança.” 
“Nah.  Eles  se  parecem  todos  assim.  Ei,  o  que  tu  pegou  aí?”  O  homem  tomou 
um  pedaço  de  pedra  brilhante,  do  tamanho  de  uma  esfera,  das  mãos  do outro que 
estava  contando  o  dinheiro.  Ela  era  bem  ordinária,  uma  pedra  simples com alguns 
cristais  de  quartzo  incrustados  e  veios  enferrujados  em  um  dos  lados.  “O  que  é 
isso?” 
“É inútil,” um dos homens respondeu. 
“Eu  tenho  o  dever  de  lhe  informar,”  Szeth  disse  silenciosamente,  “que  o  que 
tem  em  mãos  é  a  minha  Pedra-Juramentada.  Você  é  meu  mestre,  enquanto estiver 
em posse dela.” 
“Como assim?” um dos salteadores disse, levantando-se. 
O  primeiro  homem  fechou  a  mão  ao  redor  da  pedra,  lançando  um  olhar 
desconfiado  nos  demais.  Ele  olhou  novamente  para  Szeth.  “Seu  mestre?  O  que 
isso significa exatamente, em termos precisos e tudo mais?” 
“Eu  devo  obedecê-lo,”  Szeth  disse.  “Em  qualquer  coisa,  embora  eu  não  possa 
seguir  uma  ordem  de  tirar  minha  própria  vida.”  Ele  também  não  podia  ser 
ordenado  para  que  entregasse  sua  Lâmina,  mas  não  havia  necessidade  de 
mencionar isso no momento. 
“Tu  vai  me  obedecer?”  o  salteador  perguntou.  “Quer  dizer  que  vai  fazer  o  que 
eu mandar?” 
“Sim.” 
“​Qualquer coisa​ que eu mandar?”  
Szeth fechou os olhos. “Sim.” 
“Ora,  ora,  mas  isso  sim  é  interessante,”  o  homem  disse,  pensativo. 
“Interessante, de fato…”   
 
 
 
PARTE  
DOIS 
 
 
AS TEMPESTADES 
ILUMINADORAS 
 
DALINAR • KALADIN • ADOLIN   
12  
UNIDADE 
 
Velho  amigo,  espero  que  esta  missiva  o  encontre  com  saúde.  Embora,  tendo  em  vista 
de  que  você  agora  é  praticamente  imortal,  imagino  que  saúde  de  sua  parte  seja  algo 
esperado. 
 
 
“Hoje,”  Rei  Elhokar  anunciou,  cavalgando  sob  o vasto céu brilhante, “é um dia 
excelente para se matar um deus. Não diriam o mesmo?” 
“Sem  dúvidas,  Vossa  Majestade.”  A  resposta  de  Sadeas  foi  suave,  rápida,  e dita 
com  um  sorriso  sugestivo.  “Não  seria  incorreto  dizer  que  deuses,  como  regra, 
devem temer a nobreza Aléthi. Ou a maioria de nós, ao menos.” 
Adolin  apertou  as  rédeas  com  um  pouco  mais  de  força;  ele  ficava  no  limite  a 
cada vez que o Alto-Príncipe Sadeas falava algo. 
“Temos mesmo que cavalgar aqui na frente?” Renarin sussurrou.  
“Eu quero ouvir,” Adolin respondeu suavemente. 
Ele  e  seu  irmão  cavalgavam  perto  da  coluna  dianteira,  próximos  do  rei  e  seus 
alto-príncipes.  Atrás  deles,  uma  grande  procissão  se  estendia: mil soldados em azul 
Kholin,  dúzias  de  servos,  e  até  mesmo  mulheres  em  palanquins  para  escreverem 
registros da caçada. Adolin os observou enquanto alcançava seu cantil d’água.  
Ele  estava  vestindo  sua  Armadura-fracta,  logo,  precisava  ser  cuidadoso  para 
agarrar  o  cantil.  Do  contrário,  acabaria  o  quebrando.  Os  músculos  reagiam  com 
velocidade,  força  e  destreza  amplificadas  ao  vestir  a  Armadura,  e  era  preciso  ter 
prática  para  usá-la  corretamente.  Adolin  ainda  era  pego  de  surpresa  volta  e  meia, 
embora  usasse  o  conjunto  de  armadura  —  que  herdou  da  parte  da  família  de  sua 
mãe — desde seu décimo-sexto aniversário. Já fazia sete anos desde então. 
Ele  se  virou,  tomando  um  grande  gole  de  água  morna.  Sadeas  cavalgava  à 
esquerda  do  rei,  e  Dalinar  —  pai  de  Adolin  —  era  uma  figura  sólida  cavalgando  à 
direita.  O  último  alto-príncipe  na  caçada  era  Vamah,  que  não  era  um 
Portador-fracto. 
O  rei  resplandecia  em  sua  Armadura  dourada.  É  claro,  Armadura-fracta  fazia 
qualquer  homem  parecer  majestoso.  Até  mesmo  Sadeas  parecia  impressionante 
vestindo  sua  Armadura  vermelha,  embora  seu  rosto  bulboso  e  corado 
enfraquecesse  o  efeito.  O  rei  e  Sadeas  ostentavam  as  Armaduras.  E...bom,  talvez 
Adolin  o  fizesse  também.  A  sua  era  tingida  de  azul,  com  alguns  ornamentos 
soldados  no  elmo  e  ombreiras  para  dar  uma  aparência  intimidadora  extra.  Como 
era  possível  ​não  ostentar  quando  se  vestia  algo  tão  grandioso  quanto 
Armadura-fracta?  
Adolin  tomou  outro  gole,  ouvindo  enquanto  o  rei  falava  sobre  sua  excitação 
quanto  à  caçada.  Apenas  um  Portador  na  procissão  —  de  fato,  apenas  um 
Portador  em  todos  os  dez  exércitos  —  não  pintava  ou  usava  ornamentos  em  sua 
própria  Armadura.  Dalinar  Kholin.  O  pai  de  Adolin  preferia  deixá-la  em  sua  cor 
cinza-ardósia natural.  
Dalinar  cavalgava  ao  lado  do  rei,  sua  face  sombria.  Ele  mantinha  o  elmo  preso 
na  sela,  expondo  um  rosto  quadrado,  coberto  por  cabelo  negro  e  curto  que  tinha 
esbranquiçado  nas  têmporas. Dalinar Kholin poucas vezes fora descrito como belo 
pelas  mulheres;  seu  nariz  tinha  o  formato  errado,  seus  traços  eram  duros  ao  invés 
de delicados. Aquela era a face de um guerreiro.  
Ele  cavalgava  montado  em  um  enorme  garanhão  Ryshadio  preto,  um  dos 
maiores  cavalos que Adolin já vira. E embora o rei e Sadeas parecessem majestosos 
em  suas  armaduras,  Dalinar  de  alguma  maneira  conseguia  se  parecer  como  um 
soldado.  Para  ele,  a  Armadura  não  era  um  ornamento,  mas  sim  uma  ferramenta. 
Ele nunca parecia ser pego de surpresa pela força ou velocidade que a armadura lhe 
concedia.  Era  como  se,  para  Dalinar  Kholin,  vestir  a  Armadura  fosse  seu  estado 
natural  —  eram  as  ocasiões  sem  ela  as  anormais.  Talvez  essa fosse uma das razões 
que  o  levou  a  ganhar  sua  reputação  como  um  dos  maiores  guerreiros  e  generais 
que já viveu até então.  
Adolin  se  deparou  desejando,  passionalmente,  que  seu  pai  se  esforçasse  um 
pouco mais para justificar tal reputação hoje em dia.  
Ele  está  pensando  sobre  os delírios​, Adolin ponderou, notando a expressão distante e 
os  olhos  perturbados  de  seu pai. “Aconteceu de novo ontem à noite,” Adolin disse 
suavemente para Renarin. “Durante a tormenta.” 
“Eu  sei.” disse Renarin. Sua voz era calculada, controlada. Ele sempre fazia uma 
pausa  antes  de  responder  alguma  pergunta,  como  se  estivesse  testando  as  palavras 
em  sua  mente.  Alguns  das  mulheres  que  Adolin  conhecia  diziam  que  o  jeito  de 
Renarin  as  incomodavam.  Que  sentiam  como  se  ele  estivesse  as  dissecando 
mentalmente.  Elas  se  arrepiavam  ao  falar  sobre  ele,  embora  Adolin  nunca  tivesse 
considerado a presença de seu irmão caçula desconfortável.  
“O  que  acha  que  significam?” Adolin perguntou, falando baixo para que apenas 
Renarin ouvisse. “Os… episódios do pai.” 
“Eu não sei.” 
“Renarin,  ​não  podemos  continuar  ignorando  isso.  Os  soldados  estão  falando. 
Rumores estão se espalhando por todos os dez exércitos!” 
Dalinar  Kholin  estava  ficando  louco.  Sempre  que  uma  tormenta  soprava,  ele 
caía  no  chão  e  começava  a  tremer,  começando então a balbuciar baboseiras. Ele se 
levantava  com  frequência,  com  seus  olhos  azuis  delusionais  e  selvagens  enquanto 
golpeava  e  se  remexia.  Adolin  tinha  que  o  restringir  para  que  seu  pai  não acabasse 
machucando a si mesmo ou a outras pessoas.   
“Ele vê coisas,” Adolin disse. “Ou pensa que vê.” 
O  avô  de  Adolin  tinha  sofrido  com  delírios.  Quando  velho,  começou  a  achar 
que  estava  de  volta  à  guerra.  Era  isso  o  que  estava  acontecendo  com  Dalinar? 
Estaria  ele  revivendo  batalhas  da  juventude, dias em quando forjara sua reputação? 
Ou  era  talvez  aquela  terrível  noite que estava vendo de novo e de novo, a noite em 
que  seu  irmão  fora  assassinado  pelo  Assassino  de  Branco?  E  por  que  ele 
mencionava os Cavaleiros Radiantes tão frequentemente após um dos episódios?  
Tudo  aquilo  fazia  Adolin  se  sentir  doente.  Dalinar  era  o  Espinho-Negro,  um 
gênio  do  campo  de  batalha  e  uma  lenda  viva.  Juntos,  ele  e  seu  irmão  tinham 
reunificado  os  alto-príncipes  rivais  de  Alethkar  após  séculos  de  conflito.  Ele  tinha 
derrotado  incontáveis  desafiantes  em  duelos,  vencido  dúzias  de  batalhas.  O  reino 
todo o admirava. E agora isto. 
O  que  ele  deveria  fazer,  como  filho,  quando  o  homem  que  amava  —  o  maior 
dos homens vivos — começava a perder o juízo? 
Sadeas  estava  falando  sobre  um  vitória  recente.  Ele  tinha  conquistado  outra 
gema-coração  dois  dias  atrás,  e o rei, aparentemente, não tinha ouvido as notícias a 
respeito. Adolin se enfezou com as vanglórias. 
“Deveríamos nos afastar,” Renarin disse. 
“Nós temos estatura o suficiente para estarmos aqui,” disse Adolin. 
“Eu não gosto de como fica quando está por perto de Sadeas.” 
Nós  temos  que  ficar  de  olho  no  homem,  Renarin​,  Adolin  pensou.  ​Sadeas  sabe  que  o  pai 
está  enfraquecendo.  Ele  vai  tentar  dar  o  bote.  No  entanto,  Adolin  se  forçou  a  sorrir.  Ele 
tentava  ser  relaxado  e  confiante  para  Renarin.  Não  era  difícil,  geralmente.  Ele 
passara  a  vida  inteira  alegremente  duelando,  ficando  de  barriga  para  cima,  e 
paquerando  as  ocasionais  garotas  bonitas.  Ultimamente,  no  entanto,  a  vida  não 
parecia contente em deixá-lo apreciar seus simples prazeres.   
“...um  modelo  de  coragem  ultimamente,  Sadeas,”  o  rei  dizia.  “Vem  se  saindo 
muito bem capturando gemas-coração. Merece congratulações.”  
“Obrigado,  Vossa  Majestade.  No entanto, a competição tenha começado a ficar 
desinteressante,  visto  que  algumas  pessoas não parecem interessadas em participar. 
Creio que até mesmo as melhores das armas acabe se enferrujando.” 
Dalinar,  que  poderia  ter  respondido  ao  insulto  velado  outrora,  não  proferiu 
palavra  alguma.  Adolin  cerrou  os  dentes.  Era  simplesmente  desconsiderável  da 
parte  de  Sadeas  estar  dando  alfinetadas  em  Dalinar  no  seu  estado presente. Talvez 
Adolin  devesse  propor  um  desafio  ao  pomposo  bastardo.  Não  se  duelava  com 
alto-príncipes  —  não  era  algo  a  ser feito, a menos que estivesse pronto para causar 
uma grande tempestade. Mas talvez Adolin estivesse. Talvez— 
“Adolin…” Renarin alertou. 
Adolin  olhou  para  o  lado.  Ele  tinha  estendido  a  mão,  como  que  para  invocar 
sua  Lâmina-fracta.  Ele  pegou  as  rédeas  ao  invés  disso.  ​Homem  tempestuoso,  pensou. 
Deixe meu pai em paz. 
“Por  que  não  conversamos  sobre  a  caçada?”  disse  Renarin.  Como  de  costume, 
o  caçula  Kholin  cavalgava  com  as  costas  retas  e  uma  postura  perfeita,  os  olhos 
escondidos  por  trás  dos  óculos,  um  modelo  de  decoro  e  solenidade.  “Não  está 
animado?” 
“Bah,”  Adolin  resmungou.  “Eu  nunca  acho  caçadas  tão  interessantes  quanto 
dizem  que  são.  Não  me  importo  com  o  quão  grande  é  a  besta.  No  fim,  acaba 
apenas sendo uma chacina.” 
Agora,  duelar,  ​isso  sim  era  interessante.  A  sensação  da  Lâmina-fracta  em  mãos, 
de  enfrentar  alguém  astuto,  habilidoso,  e cuidadoso. Homem contra homem, força 
contra  força,  mente  contra  mente.  Caçar  uma  besta  qualquer  simplesmente  não 
conseguia se comparar a isso.   
“Talvez devesse ter convidado Janala para vir junto,” disse Renarin. 
“Ela  não  teria  aceitado.  Não  depois  de…  bom,  você  sabe.  Rilla  foi  bem  vocal 
ontem. É melhor deixar para lá.” 
“Você  realmente  deveria  ter  sido  mais  inteligente  em  como  tratá-la,”  Renarin 
disse, soando desaprovador. 
Adolin  resmungou  uma  resposta  descomprometida.  Não  era  culpa  ​sua  de  que 
seus  relacionamentos  geralmente  se  desgastassem  tão  depressa.  Bom, 
tecnicamente,  desta  vez  ​tinha  ​sido  sua  culpa.  Mas não usualmente. Fora apenas uma 
peculiaridade desta vez. 
O  rei  começou  a  reclamar  sobre  algo.  Os  irmãos  tinham  ficado  para  trás,  e 
Adolin não conseguia mais ouvir o que estava sendo dito. 
“Vamos para mais perto,” Adolin disse, avançando com sua montaria.  
Renarin revirou os olhos, mas seguiu. 
 
— 
 
Uni-los. 
As  palavras  sussurraram  na  mente  de  Dalinar.  Ele não conseguia se livrar delas. 
Elas  o  consumiam  enquanto  ele  montava  Galante  no decorrer do platô coberto de 
rochas nas Planícies Estilhaçadas. 
“Já não devíamos ter chegado ao destino?” o rei perguntou. 
“Ainda  estamos  a  dois  ou  três  platôs  de  distância  da  área  de  caça,  Vossa 
Majestade,”  Dalinar  respondeu  distraidamente.  “Ainda  levará  uma  hora,  talvez, 
levando  em  conta  os  protocolos  apropriados.  Se  tivéssemos  um  bom  ponto  de 
visão, poderíamos provavelmente pedir ao pavilhão para—” 
“Ponto de visão? Aquela formação rochosa logo adiante serviria?” 
“Imagino  que  sim,”  Dalinar  respondeu,  inspecionando  a  formação  rochosa  em 
forma de torre. “Poderíamos enviar batedores para checar.” 
“Batedores?  Bah.  Eu  preciso  de  uma  corrida,  Tio.  Aposto  cinco  contas  inteiras 
de  que  chego  no  topo  antes  que  você.”  E  com  isso,  o  rei  disparou  a  galope  com 
um  trovejar  de  sons  de  casco  batendo  na  rocha,  deixando  um  grupo  de 
olhos-claros, atendentes, e guardas chocados para trás. 
“Tormentas!”  Dalinar  praguejou, acelerando com seu cavalo. “Adolin, você está 
no comando! Assegure o próximo platô, por garantia.” 
Seu  filho,  que  estivera  cavalgando  mais  para  trás, assentiu com firmeza. Dalinar 
cavalgou  atrás  do  rei,  uma  figura  em  armadura  dourada  e  uma  longa  capa azul. Os 
cascos da montaria batiam contra a pedra, as formações rochosas ficavam para trás. 
Logo  adiante,  o  íngreme  pináculo  de  pedra  se erguia na extremidade do platô. Tais 
formações eram comuns nas Planícies Estilhaçadas. 
Maldito  seja  aquele  garoto.  Dalinar  ainda  pensava  em  Elhokar  como  um  garoto, 
embora  o  rei  estivesse  em  seu  vigésimo-sétimo  ano.  Mas  volta  e  meia,  ele  ainda 
agia  como  tal. Por que não podia ser mais considerável antes de mergulhar em uma 
de suas loucuras? 
Ainda assim, enquanto cavalgava, Dalinar admitiu para si mesmo que a sensação 
de  avançar  livremente,  sem  elmo,  com o vento em seu rosto era realmente ​boa.​  Seu 
pulso  acelerou  enquanto  era  tomado  pela  corrida,  e  ele  perdoou  o  ímpeto  inicial 
que  resultou  nela.  Por  hora,  Dalinar  permitiu  se  esquecer  de seus problemas, e das 
palavras que estiveram ecoando em sua cabeça. 
O rei queria uma corrida? Bom, Dalinar o daria uma. 
Ele  ultrapassou  Elhokar.  O  garanhão  do  rei  era  de  uma  boa  linhagem,  mas 
jamais  conseguiria  se  equiparar  a  Galante,  que  era  um  Ryshadio  completo,  dois 
palmos  maior  e  muito  mais  forte  que  um  cavalo  comum.  Os animais escolhiam os 
próprios  cavaleiros,  e  apenas  um  dúzia  de  homens  em  todo  o  acampamento  de 
guerra  foram  afortunados  o  suficiente  para  tal.  Dalinar  era  um  deles,  e  Adolin 
outro. 
Dalinar  chegou  na  base  da  formação  em  questão  de  segundos.  Ele  se  atirou  da 
sela  enquanto  Galante  ainda  corria.  Dalinar  caiu  com  tudo, mas a Armadura-fracta 
absorveu  o  impacto,  as  pedras  se  esmigalhando  abaixo  de  suas  botas  de  metal 
enquanto  ele  derrapava  até  uma  parada.  Homens  que  nunca  vestiram  uma 
Armadura  —  particularmente  aqueles  que  estavam  acostumados  com  suas  primas 
inferiores,  cotas  e  malhas  comuns  —  jamais  compreenderiam.  Armadura-fracta 
não era uma armadura qualquer. Ela ia muito além disso. 
Ele  correu  até  a  parte  de  baixo  da  base  enquanto  Elhokar  galopava  logo  atrás. 
Dalinar  saltou  —  as  pernas  fortalecidas  pela Armadura o mandando uns bons dois 
metros  e  meio  para  cima  —  e  agarrou  uma  saliência  de  pedra.  Ele  subiu  com  um 
puxão,  a  Armadura  lhe  fornecendo a força de vários homens. A Euforia da disputa 
começou  a  se  agitar  dentro  de  si.  Ela  não  era  nem  de  longe  tão  aguda  quanto  a 
Euforia da batalha, mas era uma substituta digna de toda forma.  
Rocha  raspou  logo  abaixo.  Elhokar  tinha  começado  a  escalar  também.  Dalinar 
não  olhou  para  baixo.  Ele  manteve  os  olhos  fixos  na  pequena  plataforma  natural 
no  topo  da  formação  de  doze  metros  de  altura.  Ele  agarrou  com  dedos  cobertos 
pelo  metal,  encontrando  outra  saliência.  As  manoplas  cobriam  suas  mãos,  mas  a 
armadura  anciã  de  alguma  forma  transmitia  sensação  até  seus  dedos.  Era  como  se 
estivesse usando luvas finas de couro. 
Um  barulho  de  raspão  soou  na  direita,  acompanhado  de  uma  voz  praguejando 
baixo.  Elhokar  tinha tomado um caminho diferente, esperando ultrapassar Dalinar, 
mas  o  rei  se encontrou em um seção sem saliências acima que pudesse segurar. Seu 
progresso estava impedido. 
A  Armadura  dourada  do  rei  reluziu  quando  ele  olhou  para  Dalinar.  Elhokar 
cerrou  os  dentes  e  olhou  para  cima,  lançando-se  então  com um poderoso salto até 
um afloramento de rocha.  
Garoto  tolo,  Dalinar  pensou,  vendo  o  rei  parecer  pairar  no  ar  por  um  instante, 
antes  que  conseguisse  agarrar  a  projeção  de  rocha,  pendurando-se.  O  rei  então  se 
puxou para cima e continuou a escalar. 
Dalinar  se  moveu  furiosamente,  a  pedra  se  esmigalhando  abaixo  de  seus  dedos 
metalizados,  os  fragmentos  caindo  logo  abaixo.  O  vento  batia  em  sua  capa.  Ele 
alçou,  rígido,  puxando-se  para  cima,  conseguindo  se  manter  um  pouco  afrente  do 
rei.  O  topo  estava  a  apenas  alguns  metros  de  distância. A Euforia cantava para ele. 
Ele  se  esticou  até  a  chegada,  determinado  a  vencer.  Não  podia  ser  derrotado.  Ele 
tinha que— 
Uni-los. 
Ele hesitou, não certo do porquê, deixando seu sobrinho ultrapassá-lo.  
Elhokar  se  puxou  até  o  topo  da  formação  rochosa,  levantando-se  e  rindo  em 
triunfo.  Ele  se  virou  para  Dalinar,  oferecendo  uma  mão.  “Pelos  ventos  da 
tormenta,  Tio,  essa  foi  uma  corrida  e  tanto!  Tive  certeza  de  que  ia  me  derrotar  ali 
no final.”  
O  triunfo  e  alegria  no  rosto  de  Elhokar  trouxeram  um  sorriso  aos  lábios  de 
Dalinar.  O  rapaz  estava  precisando  de  vitórias  ultimamente.  Até  mesmo  as 
pequenas  fariam  bem  a  ele.  Glorisprens  —  em  forma  de  pequeninos  glóbulos 
translúcidos  de  luz  —  começaram  a  surgir  ao  redor  do  rei,  atraídos pelo seu senso 
de  vitória.  Dalinar  agradeceu  a  si  mesmo  por  ter  hesitado,  aceitando  então  a  mão 
do  rei,  deixando  Elhokar  o  puxar  para  cima.  O  topo  da  torre,  por  pouco, fornecia 
espaço o suficiente para ambos.  
Dalinar  respirou  profundamente,  dando  um  tapa  nas  costas  do rei num choque 
de  metal  no  metal.  “Foi  uma  disputa  e  tanto,  Vossa  Majestade.  E  você  competiu 
muito bem.” 
O  rei  irradiou.  Sua Armadura dourada brilhava sob o sol do meio-dia; ele estava 
com  seu  visor  aberto,  revelando  olhos  amarelos  claros,  um  nariz  forte,  e  um rosto 
sem  barba  que  era  quase belo demais, com lábios cheios, testa larga e queixo firme. 
Gavilar  se  parecera  assim  também,  antes  de  sofrer  uma  fratura  no  nariz  e  aquela 
terrível cicatriz em seu queixo.  
Abaixo  deles,  a  Guarda  Cobalta  e  alguns  dos  atendentes  de  Elhokar  se 
aproximavam,  incluindo  Sadeas.  A  Armadura  do  alto-príncipe  reluzia  em 
vermelho,  embora  ele  não  fosse  um  Portador-fracto  completo.  Sadeas  possuía  a 
Armadura, mas não a Lâmina. 
Dalinar  olhou  adiante.  Desta  altura, conseguia examinar uma grande porção das 
Planícies  Estilhaçadas,  e  sentiu  uma  estranha  sensação  de  familiaridade.  Ele  sentia 
como  se  já  tivesse  observado  a  paisagem  quebrada  deste  ponto  de  vista 
anteriormente. 
A sensação desapareceu em um instante. 
“Ali,”  Elhokar  disse,  apontando  com  a  mão  coberta  pela  manopla  dourada. 
“Posso ver nosso destino.” 
Dalinar  sombreou  os  olhos  com  a  mão,  identificando  um  pavilhão  de  lona  a 
três  platôs  de  distância,  tremulando  a  bandeira  do  rei.  Largas  pontes  permanentes 
conectavam  o  caminho  até  lá.  Ficava  relativamente  perto  do  lado  Aléthi  das 
Planícies  Estilhaçadas,  em  platôs  que  estavam  sob  os  cuidados  de  Dalinar.  Um 
abissal  adulto vivendo aqui significava que Dalinar possuía o privilégio de caçá-lo, a 
riqueza provinda pelo coração da criatura sua por direito.  
“Estava certo novamente, Tio,” Elhokar disse. 
“Eu tento fazer disso um hábito.” 
“Creio  que  não  posso  culpá-lo  por  isso,  embora  eu  consiga  vencer  você  numa 
corrida volta e meia.” 
Dalinar  sorriu. “Me senti como um jovem novamente, correndo atrás de seu pai 
em algum desafio ridículo.”  
Os  lábios  de  Elhokar  formaram  uma  linha,  e  os  glorisprens  desvaneceram. 
Mencionar  Gavilar  causava  um  impacto  em  seu  humor;  ele  sentia  que  os  outros  o 
comparavam  desfavoravelmente  ao  velho  rei.  Infelizmente,  Elhokar  estava 
geralmente correto.  
Dalinar  mudou  de  assunto  rapidamente.  “Devemos  ter  parecido  como  os  dez 
tolos,  avançando  daquele  jeito.  Eu  gostaria  que  tivesse  me  notificado  de  antemão 
para preparar sua guarda de honra. Isto ​é​ uma zona de guerra.”  
“Bah.  Você  se  preocupa  demais,  tio.  Já  faz  anos  que  os  Parshendi  não  atacam 
tão perto do nosso lado das Planícies.” 
“Bom, você parecia preocupado com sua segurança duas noites atrás.” 
Elhokar  suspirou  nitidamente.  “Tio,  quantas  vezes  preciso  lhe  explicar?  Eu 
posso  enfrentar  soldados  inimigos  com  uma  Lâmina  em  punho.  Deveria  estar 
tentando  me  proteger  do  que  podem  enviar  quando não estamos olhando, quando 
tudo está escuro e quieto.” 
Dalinar não respondeu. O nervosismo quase paranóico de Elhokar quanto a um 
assassinato  era  forte.  Mas  quem  poderia  culpá-lo,  considerando  o  que  acontecera 
com seu pai? 
Me  desculpe,  irmão​,  ele  pensou,  como  fazia  toda vez que pensava na noite em que 
Gavilar tinha morrido. Sozinho, sem seu irmão para protegê-lo.  
“Eu  dei  uma  olhada  no  que  me  pediu,”  Dalinar  disse,  forçando  as  memórias 
ruins para longe. 
“É mesmo? Descobriu alguma coisa?” 
“Temo  que  não  muito.  Não  havia  traços  de  invasores  em  sua  varanda,  e 
nenhum dos servos reportou ter visto alguém desconhecido pelas proximidades.” 
“​Havia​ alguém me vigiando no escuro naquela noite.” 
“Se  for  o  caso,  ele  não  retornou,  Vossa  Majestade.  E  não  deixou  pistas  para 
trás.” 
Elhokar  não  parecia  satisfeito,  e  o  silêncio  entre  eles  se  tornou  evidente. 
Abaixo,  Adolin  tinha  se  encontrado  com  os  batedores  e  se  preparava  para  a 
travessia  em  grupo.  Elhokar  tinha  protestado  quanto  ao  número  de  homens  que 
Dalinar  trouxera.  A  maioria  deles  não  seriam  necessários  na  caçada.  Os 
Portadores-fractos  matariam  a  besta,  não  os  soldados.  Mas  Dalinar  ​garantiria  a 
proteção  de  seu  sobrinho.  Os  ataques  Parshendi  tinham se tornado menos tenazes 
no  decorrer  dos  anos de luta — escribas Aléthi presumiam que seus números eram 
agora  um  quarto  de  sua  força  original,  embora  fosse  difícil  de  julgar  —  mas  a 
presença  do  rei  em  pessoa  podia  ser  o  suficiente  para  incitá-los  a  um  ataque 
imprudente. 
Os  ventos  passaram  por  Dalinar,  carregando  aquela  leve  familiaridade  que 
sentira  minutos  atrás.  Parado  no  topo  do  pico,  olhando  em  desolação.  A sensação 
de uma perspectiva terrível e maravilhosa.  
É isso,​ ele pensou. ​Eu estive no topo de uma formação como esta. Aconteceu durante— 
Durante uma de suas visões. A primeira de todas. 
Você  deve  uni-los,​   disseram  as  estranhas  e  reverberantes  palavras.  ​Você  deve  se 
preparar.  Transforme  seu  povo  em  uma  fortaleza  de  força  e  paz,  uma  muralha  para  resistir  os 
ventos. Cessem as indiferenças e se unam. A Tormenta-Eterna se aproxima. 
“Vossa  Majestade,”  Dalinar  percebeu  ter  dito.  “Eu…”  Ele  desistiu  tão  rápido 
quanto  começara.  O  que podia dizer? Que estava tendo visões? Que — em desafio 
a  todas  as  doutrinas  e  senso  comum  —  ele  achava  que  aquelas  visões  podiam  vir 
do  Todo-Poderoso?  Que  pensava  que  deveriam  se  retirar  do  campo  de  batalha  e 
retornar para Alethkar? 
Tolice pura. 
“Tio?” o rei perguntou. “O que foi?” 
“Nada. Venha, vamos voltar para os demais.” 
 
—   
 
Adolin  enrolou  uma  de  suas  rédeas  ao  redor  dos  dedos  enquanto  montava  seu 
cavalo,  aguardando  a  próxima  leva  de  relatórios  dos  batedores.  Ele  tinha 
conseguido  distrair  sua mente quanto a seu pai e Sadeas, e estava agora imaginando 
como  conseguiria  explicar  sua  briga  com  Rilla  de  uma  maneira  que  fosse  lhe 
conseguir alguma simpatia de Janala.  
Janala  amava  antigos  poemas  épicos.  Poderia  recitar  a  briga  em  termos 
dramáticos?  Ele  sorriu,  pensando  no  luxuoso  cabelo  preto  e  no  sorriso  manhoso 
da  moça.  Ela  fora  ousada,  provocando-o  enquanto  era  sabido  que  ele  estava 
cortejando  outra  pessoa.  Ele  poderia  usar  isso  também.  Talvez  Renarin  estivesse 
certo,  talvez  ele  devesse  tê-la  convidado  para  a  caçada.  A  ideia  de  lutar  contra  um 
grã-conchado  teria  sido  muito  mais  interessante  para  ele  se uma donzela linda e de 
cabelos longos estive assistindo… 
“Novos  relatórios  dos  batedores,  Lorde-Brilhante  Adolin,”  disse  Tarilar, 
correndo enquanto se aproximava. 
Adolin  voltou  a  se  focar  na  tarefa.  Ele  tinha  tomado  posição  com  alguns 
membros  da  Guarda  Cobalta,  ao  lado da base da grande formação rochosa em que 
seu  pai  e  o  rei  ainda  estavam conversando. O lorde-batedor Tarilar era um homem 
de  rosto  magro,  com  peito  e  braços  grossos.  Sua  cabeça  parecia  tão  relativamente 
pequena de alguns ângulos que parecia ter sido esmagada.  
“Prossiga,” disse Adolin.  
“Os  corredores  de  antemão  se  encontraram  com  o  mestre-de-caça  e  já 
retornaram.  Não  há  sinal  algum  dos  Parshendi  em  nenhum  dos  platôs  próximos. 
As  Companhias  Dezoito  e  Vinte-um  estão  em  posição,  embora  ainda  faltem  oito 
delas.” 
Adolin  assentiu.  “Faça  a  Companhia  Vinte-um  enviar  alguns  batedores  para 
vigiarem  dos  platôs  quatorze  a  dezesseis.  E  dois  em  cada  um  dos  platôs  seis  e 
oito.” 
“Seis e oito? Atrás de nós?” 
“Se  eu  fosse  emboscar  o  grupo,  contornaria  por  esse  caminho  para  bloquear  a 
retirada. Entregue as ordens.” 
Tarilar  bateu  continência.  “Sim,  Brilhantíssimo.”  Ele  se  apressou  para  passar as 
ordens adiante. 
“Acha  que  isso  é  realmente  necessário?”  Renarin  perguntou,  cavalgando  até  o 
lado de Adolin. 
“Não. Mas o Pai vai querer que seja feito, de toda forma. Você sabe que sim.”  
Havia  uma  movimentação  logo  acima. Adolin levantou o olhar bem a tempo de 
ver  o  rei  saltar  da  formação  rochosa,  a  capa  ondulando  em  suas  costas  enquanto 
caía  uns  bons  doze  metros  até  o  chão  de  pedra.  O  pai  de  Adolin  se encontrava na 
beirada  do  topo,  e  o  rapaz  podia  imaginá-lo  praguejando,  considerando  o  que 
acabara  de  ver  como  uma  manobra  imprudente.  Armadura-fracta  podia  suportar 
tamanha queda, mas a altura era grande o suficiente para ser perigosa.  
Elhokar  pousou  com  um  audível  som  rachadiço,  espalhando migalhas de pedra 
e  uma  breve  explosão  de  Luz-tempesta.  Ele  tinha  conseguido  se  manter  em  pé. O 
pai  de  Adolin  tomou  um  caminho  mais  seguro,  descendo  até  uma  saliência  mais 
baixa antes de saltar.  
Ele  parece  tomar  o  caminho  mais  seguro  cada  vez  mais  ultimamente,  Adolin  pensou, 
ocioso.  ​E  ele  geralmente  acha  motivos  para  me  entregar  o  comando  também.  Pensativo, 
Adolin  trotou  seu  cavalo  para  fora  da  sombra  da  formação  rochosa.  Ele  precisava 
coletar o relatório da retaguarda; seu pai iria querer as informações.  
Seu  trajeto  o  levou  para  além de um grupo de olhos-claros da equipe de Sadeas. 
Cada  um  deles  —  o  rei,  Sadeas  e  Vamah  —  tinha  uma  porção  de  atendentes, 
assessores,  e  aduladores  os  acompanhando.  Ver  eles  cavalgando  em  suas  sedas 
confortáveis,  casacos abertos na frente, e palanquins protegidos do sol fez com que 
Adolin  percebesse  sua  armadura,  grande  e  suada.  Armadura-fracta  era maravilhosa 
e  fortalecedora,  mas  conseguia  fazer  um  homem  desejar  algo menos enclausurante 
sob o sol quente.   
Mas,  é  claro,  ele  não  poderia  ter  usado  vestes  casuais  como  os  demais.  Adolin 
tinha  que  estar  de  uniforme,  até  mesmo  em  uma  caçada.  Os  Códigos  de  Guerra 
Aléthi  exigiam  isso.  Pouco  importava  que  mais  ninguém  sequer  seguisse  tais 
Códigos  há  séculos.  Ou  ao  menos,  ninguém  além  de  Dalinar  Kholin  e,  por 
extensão, seus filhos.  
Adolin  passou  por  um  par  de  olhos-claros  repousando,  Vartian  e Lomard, dois 
dos  recentes  bajuladores  de  Sadeas. Eles estavam falando alto o suficiente para que 
Adolin  conseguisse  ouvir.  Provavelmente  de  propósito.  “Correndo  atrás  do  rei 
novamente,”  Vartian  disse,  balançando  a  cabeça.  “Como  lébreis-marculatos  de 
estimação mordendo os calcanhares de seu mestre.” 
“Vergonhoso,” disse Lomard. “Quando foi a última vez que Dalinar conquistou 
uma  gema-coração?  A  única  ocasião  em  que  consegue  uma  é  quando  o  rei  o 
permite caçar sem competição.”  
Adolin  cerrou  os  dentes  e  prosseguiu.  A  interpretação  de  seu  pai  dos  Códigos 
não  permitiria  que  Adolin  desafiasse  um  homem  para  um  duelo  enquanto  o  rapaz 
estivesse  em  serviço  ou  no  comando.  Ele  se  contorcia  perante  as  restrições 
desnecessárias,  mas  Dalinar  tinha  as  dado  como  o  oficial  comandante  de  Adolin. 
Isso  significava  que  não  havia  espaço  para  argumentos.  Ele  teria  que  encontrar 
uma  maneira  de  duelar  com  os  dois  bajuladores  em  outra  situação,  colocá-los  em 
seus  devidos  lugares.  Infelizmente,  ele  não  poderia  duelar  contra  todos  que  se 
manifestassem contra seu pai.   
A  pior  parte  era  que  havia  um  pouco  de  verdade  nas  coisas  que  diziam.  Os 
principados  Aléthi  eram  como  reinos  em  essência,  em  grande  parte  autônomos 
apesar  de  terem  aceitado  Gavilar  como  rei.  Elhokar  tinha  herdado  o  trono,  e 
Dalinar, por direito, tinha tomado o principado Kholin para si. 
No  entanto,  a  maioria  dos principados oferecia apenas suporte simbólico para a 
soberania  do  rei.  Aquilo  deixava  Elhokar  desprovido  de  territórios  que  pudesse 
chamar  de  seus.  Ele  tendia  a  agir  como  um  alto-príncipe  do  principado  Kholin, 
tomando  grande  interesse  em  sua  administração  do  dia-a-dia.  Então,  embora 
Dalinar  devesse  ser  um  legítimo  governante,  ele  ao  invés  disso  se  curvava  para  os 
caprichos  de  Elhokar,  dedicando  seus  recursos  para  proteger  o sobrinho. Aquilo o 
tornava fraco aos olhos dos demais, nada além de um guarda-costas glorificado. 
Outrora,  quando  Dalinar  fora  temido,  ninguém  sequer  cogitaria  sussurrar  essas 
coisas.  Mas  agora?  Dalinar  participava  cada  vez  menos  dos  ataques  nos  platôs,  e 
suas  forças  ficavam  para  trás  na  corrida  em  capturar  as  preciosas  gemas-coração. 
Enquanto  os  demais  lutavam  e  venciam,  Dalinar  e  seus  filhos gastavam suas horas 
em administrações burocráticas.  
Adolin  ansiava  estar  lutando  afora,  matando  os  Parshendi. Qual era a vantagem 
de  se  seguir  os  Códigos  de  Guerra  quando  ele  raramente  ia  para  a  guerra?  ​É  culpa 
daqueles  delírios.  Dalinar  não  era  fraco,  e  ele  certamente  não  era  um  covarde,  não 
importava o que todos dissessem. Ele estava apenas conturbado. 
Os  capitães  da  retaguarda  não  estavam  prontos  ainda,  então  Adolin  decidiu 
entregar  um  relatório  para  o  rei.  Ele  trotou  em  direção  dele,  juntando-se  a  Sadeas, 
que  estava  fazendo  o  mesmo.  Não  surpreendentemente,  Sadeas  franziu  o  cenho 
para  ele.  O  alto-príncipe  odiava  o  fato  de  que  Adolin  possuía  uma  Lâmina 
enquanto Sadeas não; ele cobiçava uma há anos.  
Adolin  encontrou  o  olhar  do  alto-príncipe,  sorrindo.  ​Se  quiser  um  duelo por minha 
Lâmina,  Sadeas,  basta  dar  a  palavra.  O  que  Adolin  não  daria  para  colocar  aquela 
enguia traiçoeira em um ringue de duelo.  
Quando  Dalinar  e  o  rei  avançaram,  Adolin falou rapidamente, antes que Sadeas 
conseguisse fazer o mesmo. “Vossa Majestade, trago relatórios dos batedores.” 
O  rei  suspirou.  “Mais  do  mesmo,  presumo.  Sinceramente,  Tio,  precisamos 
mesmo de um relatório para cada pequeno detalhe do exército?” 
“Estamos em guerra, Vossa Majestade,” disse Dalinar. 
Elhokar suspirou copiosamente. 
Você  é um homem estranho, primo. pensou Adolin. Elhokar enxergava assassinos em 
cada  sombra,  mas  frequentemente  descartava  a  ameaça  Parshendi.  Ele  avançaria 
como  fizera  hoje,  sem  guarda  de  honra,  saltando  de  uma  formação  rochosa  com 
mais  de  dez  metros  de  altura.  E  ainda  assim,  passaria  noites em claro, aterrorizado 
com a possibilidade de ser assassinado. 
“Dê o relatório, filho,” Dalinar disse. 
Adolin  hesitou,  sentindo-se  tolo  com  a  falta  de  substância  no  que  dizer.  “Os 
batedores  não  viram  sinais  dos  Parshendi.  Eles  se  encontraram  com  o 
mestre-de-caça.  Duas companhias garantiram o próximo platô, e as outras oito irão 
precisar de algum tempo para a travessia. Estamos perto, no entanto.” 
“Sim,  nós  vimos  lá  de  cima,”  Elhokar  disse.  “Talvez  alguns de nós pudessem ir 
mais a frente…”  
“Vossa  Majestade,”  Dalinar  disse.  “O  ponto  de  trazer  minhas  tropas  seria 
invalidado se você as deixasse para trás.” 
Elhokar  revirou  os  olhos.  Dalinar  não  cedeu,  sua  expressão  tão  imóvel  quanto 
as  rochas  ao  redor  deles.  Vê-lo  daquele  jeito  —  firme,  obstinado  perante  um 
desafio  —  fez  Adolin sorrir com orgulho. Por que ele não podia ser assim o tempo 
todo?​ Por que ele recuava tão frequentemente perante insultos ou desafios? 
“Muito  bem,”  disse  o  rei.  “Faremos  uma  pausa  para  esperar  enquanto  o 
exército faz a travessia.”  
Os  atendentes  do  rei  responderam  imediatamente,  homens  descendo  de  seus 
cavalos,  mulheres  fazendo  com  que  os  carregadores  abaixassem  os  palanquins. 
Adolin  se  retirou  para  receber  o  relatório  da  retaguarda.  Quando  voltou,  Elhokar 
parecia  estar  em  plena  corte.  Seus  atendentes  tinham  providenciado  uma  pequena 
tenda  para  lhe  fornecer  sombra,  enquanto  outros  serviam  vinho.  Gelado,  usando 
uma das novas fabriais que tinha a capacidade de resfriar coisas. 
Adolin  retirou  o  elmo  e  limpou  as  sobrancelhas  com  um lenço, desejando mais 
uma  vez  que pudesse se juntar aos demais e saborear um pouco de vinho. Ao invés 
disso,  ele  desceu  da  montaria  e  foi em busca de seu pai. Dalinar se encontrava fora 
da tenda, com os braços cruzados atrás das costas, olhando para o leste, em direção 
da  Origem  —  o  lugar distante e desconhecido onde as tormentas nasciam. Renarin 
estava  ao  seu  lado,  observando  também,  como  se  tentasse  identificar  o  que  é  que 
tinha prendido a atenção de seu pai. 
Adolin  levou  uma  das  mãos  até  o  ombro  do  caçula,  e  Renarin  sorriu  para  ele. 
Adolin  sabia  que  seu  irmão  —  com  dezenove  anos  agora  —  sentia-se  deslocado. 
Embora  Renarin  carregasse  uma  espada  na  cintura,  o  rapaz  mal  sabia  usá-la.  A 
fraqueza  em seu sangue tornava difícil praticar por qualquer quantidade razoável de 
tempo.  
“Pai,”  Adolin  disse.  “Talvez  o  rei  estivesse  certo.  Talvez  devêssemos  ter  ido 
mais depressa. Eu preferiria que essa caçada acabasse logo.” 
Dalinar  olhou  para  ele.  “Quando  eu  tinha  sua  idade,  costumava  esperar 
ansiosamente  por  uma  caçada  como  esta.  Abater  um  grã-conchado  era  o  ponto 
alto no ano de qualquer jovem.” 
De novo com isso, Adolin pensou. Por que todos pareciam ficar tão ofendidos com 
o fato dele não achar caçadas excitantes? “Pai, é só um chull grandinho.” 
“Esses  ‘chulls  grandinhos’  podem  crescer  até  quinze  metros  de  altura  e  são 
capazes de esmagar até mesmo um homem em Armadura-fracta.” 
“Sim,”  Adolin disse, “e por isso vamos atraí-lo por horas enquanto assamos sob 
o  sol.  Se  a  criatura  decidir  aparecer,  iremos  enchê-lo  de  flechadas,  nos 
aproximando  apenas  quando  ele  estiver tão fraco a ponto de mal conseguir resistir, 
enquanto o cortamos até a morte com nossas Lâminas-fractas. Muito honorável.”  
“Não é um duelo,” Dalinar disse, “é uma caçada. Uma grande tradição.” 
Adolin ergueu uma sobrancelha para ele. 
“E sim,” Dalinar adicionou. “Pode ser tedioso. Mas o rei foi insistente.” 
“Você  está  apenas ventilando seus problemas com Rilla, Adolin,” Renarin disse. 
“Estava animado semana passada. Você realmente deveria ter convidado Janala.” 
“Janala odeia caçadas. Ela as acha cruéis.” 
Dalinar franziu o cenho. “Janala? Quem é Janala?” 
“Filha de Lorde-Brilhante Lustow,” respondeu Adolin. 
“E você está a cortejando?” 
“Ainda não, mas eu com certeza estive tentando.” 
“O  que  aconteceu  com  aquela  outra  garota?  A  baixinha,  que  gostava  de  laços 
prateados para cabelo?” 
“Deeli?” Adolin disse. “Pai, eu parei de cortejá-la já faz mais de dois meses!” 
“É mesmo?” 
“Sim.” 
Dalinar coçou o queixo. 
“Tiveram  duas  entre  ela  e  Janala,  Pai,”  Adolin  explicou.  “Você  realmente 
precisa prestar mais atenção.” 
“Que  o  Todo-Poderoso  ajude  o  homem  que  tenta  acompanhar  seus  cortejos 
passageiros, filho.” 
“O mais recente foi com Rilla,” disse Renarin. 
Dalinar franziu o cenho. “E vocês dois…” 
“Tivemos  alguns  problemas  ontem,”  disse  Adolin.  Ele  tossiu,  determinado  a 
mudar  de  assunto.  “De  toda  forma,  não acha estranho que o rei tenha insistido em 
vir caçar o abissal pessoalmente?” 
“Não  particularmente.  Não  é  sempre  que  um  um  abissal  adulto  dá  as caras por 
aqui,  e  o  rei  raramente  participa  dos  ataques  nos  platôs.  Esta  é  uma  maneira  para 
que consiga batalhar.” 
“Mas  ele  é  tão  paranóico!  Por  que  agora  ele  quer  sair  e  caçar,  se  expondo  nas 
Planícies?” 
Dalinar  olhou  em  direção  à  tenda  do  rei.  “Eu  sei que ele parece estranho, filho. 
Mas  o rei é um homem mais complexo do que muitos dão crédito. Ele se preocupa 
de  que seus súditos o vejam como um covarde, pelo fato de temer tanto assassinos, 
e  então  ele encontra maneiras de provar sua coragem. Maneiras tolas, às vezes, mas 
ele  não  seria  o  primeiro  homem  que  conheci  que  enfrentaria  uma  batalha  sem 
medo,  e  ainda  assim  se  encolheria  em  pavor,  temendo  facas nas sombras. A marca 
da insegurança é a ousadia. 
O  rei  está  aprendendo  a  liderar.  Ele  precisa  desta  caçada.  Ele  precisa  provar 
para  si  mesmo,  e  para  os  demais,  que  ainda  é  forte  e  merecedor  de  comandar  um 
reino  em  guerra.  Foi  por  isso  que  eu  o  encorajei.  Uma  caçada  bem  sucedida,  sob 
circunstâncias controladas, poderia içar sua reputação e confiança.” 
Adolin  fechou  a  boca  lentamente,  as  palavras  de  seu  pai  cortando  suas 
reclamações.  Estranho,  o  quanto  as  ações  do  rei  faziam  sentido quando explicadas 
daquela  maneira.  Adolin  olhou  para  seu  pai.  ​Como  os  outros  podem  sussurrar  que  é  um 
covarde? Não conseguem ver sua sabedoria? 
“Sim,”  Dalinar  disse,  seu  olhar  se  distanciando.  “Seu  primo  é  um  homem 
melhor  do  que  muitos  o  consideram,  e  um  rei  mais  forte  também.  Ao  menos, 
poderia  ser.  Eu  só  tenho  que  pensar  numa  maneira  de  persuadi-lo  a  deixar  as 
Planícies Estilhaçadas.”   
Adolin sobressaltou. “O quê?” 
“Eu  não  entendi  a  princípio,”  Dalinar  continuou.  “Uni-los.  Eu  devo 
supostamente  uni-los.  Mas  eles  já  não  estão  unidos?  Nós  lutamos  juntos  aqui  nas 
Planícies  Estilhaçadas.  Temos  um  inimigo  em  comum  nos  Parshendi.  Começo  a 
ver  que  estamos  unidos  apenas  no  nome.  Os  alto-príncipes  se  dizem  apoiar 
Elhokar,  mas  esta  guerra  —  esse  cerco  —  é  um  jogo  para  eles.  Estão competindo 
uns contra os outros. 
Não  podemos  uni-los  aqui.  Temos  que  voltar  para  Alethkar  e  estabilizar  nossa 
terra  natal,  aprender  como  trabalhar  juntos  como  uma  só  nação.  As  Planícies 
Estilhaçadas  nos  dividem.  Os  outros  se  preocupam  demais  em  ganhar  riquezas  e 
prestígio.”   
“Riqueza  e  prestígio  é  o  que  ​resume  s​ er  Aléthi,  Pai!”  Adolin  disse.  Ele  estava 
realmente  ouvindo  aquilo?  “E  quanto  ao  Pacto  de  Vingança?  Os  alto-príncipes 
juraram punir os Parshendi!” 
“E  nós  ​estivemos  fazendo  isso.”  Dalinar  olhou  para  Adolin.  “Eu  sei  que  soa 
terrível, filho, mas algumas coisas são mais importantes do que vingança. Eu amava 
Gavilar.  Sinto  sua  falta  imensamente,  e  odeio  os  Parshendis  pelo que fizeram. Mas 
a  obra  de  vida  de  Gavilar  foi reunificar Alethkar, e eu prefiro ir para a Condenação 
antes de deixar que isso se desfaça.”   
“Pai,”  Adolin  disse,  sentindo-se  pesaroso,  “se  há  algo  de  errado  aqui,  é  de  que 
não  estamos  tentando  o  suficiente.  Você  acha que os alto-príncipes estão jogando? 
Bom,  mostre  para  eles  como  deve  ser  feito!  Ao  invés  de  falarmos  sobre  retirada, 
devíamos  estar  falando  sobre  como  avançar,  atacando  os  Parshendi  ao  invés  de 
cercá-los.” 
“Talvez.” 
“De  toda  forma,  não  podemos  falar  sobre  bater  em  retirada,”  Adolin  disse.  Os 
homens  ​já  falavam  em  como  Dalinar  vinha  perdendo  o  pulso.  O  que  diriam  se 
soubessem disso? “Você não trouxe isso à tona para o rei ainda, trouxe?” 
“Ainda não. Não encontrei uma boa maneira.” 
“Por favor, não fale com ele sobre isso.” 
“Veremos.”  Dalinar  se  virou  em  direção  às  Planícies  Estilhaçadas,  seu  olhar  se 
distanciando novamente.  
“Pai…” 
“Você  deu  sua  opinião,  filho,  e  eu lhe dei uma resposta. Não insista na questão. 
Você obteve o relatório da retaguarda?” 
“Sim.” 
“E quanto a vanguarda?” 
“Eu  acabei  de  checar  com  eles  e…”  Ele  divagou.  Maldição. Já tinha se passado 
tempo  o  suficiente.  Era  provavelmente  hora  de  mover  o  grupo  do  rei  adiante.  O 
restante  das  tropas  não  poderiam  deixar  este  platô  até  que  o  rei  estivesse  em 
segurança no outro lado. 
Adolin  suspirou  e  saiu  para  coletar  o  relatório.  Eventualmente,  estavam  todos 
atravessando  o  abismo  e  se  direcionando  para  o  próximo platô. Renarin trotou até 
Adolin  e  tentou  entrete-lo  com  conversas,  mas  Adolin  deu  apenas  respostas 
distraídas. 
Ele  estava  começando  a  sentir  um  estranho  anseio.  A  maioria  dos  outros 
homens  no  exército  —  até  mesmo  aqueles  apenas  alguns  anos  mais  velhos  que 
Adolin  —  tinham  lutado  ao  lado  de  seu  pai,  durante  seus  dias  de  glória.  Adolin 
percebeu  que  invejava  todos  aqueles  que  conheceram  seu  pai  e  o  viram  lutar 
quando ele ainda não estava tão absorto nos Códigos.  
As  mudanças  em  Dalinar  começaram  com  a  morte  de  seu  irmão.  Foi  naquele 
dia  terrível  que  tudo  começou  a  dar  errado.  A  perda  de  Gavilar  quase  esmagou 
Dalinar,  e  Adolin  ​jamais  perdoaria  os  Parshendi  por  trazer  tanta  dor  para  seu  pai. 
Jamais.  Homens  lutavam  nas  planícies  por  razões  diversas,  mas  foi  para  isso  que 
Adolin  tinha  vindo.  Talvez,  se  derrotassem  os  Parshendi,  seu  pai  pudesse  voltar  a 
ser  o  homem  que  tinha  sido.  Talvez  aqueles  delírios  fantasmagóricos  que  o 
assombravam acabassem indo embora. 
Logo  adiante,  Dalinar  conversava  em  voz  baixa  com  Sadeas.  Ambos  estavam 
franzindo  o  cenho.  Eles  mal  conseguiam  tolerar  um  ao  outro,  embora  já  tivessem 
sido  amigos.  Isso  também  tinha  mudado  na  noite  em  que  Gavilar  morreu.  O  que 
tinha acontecido entre eles? 
O  dia  prosseguiu,  e  eles  eventualmente  chegaram  até  o  local  de caça — um par 
de  platôs,  um  onde  a  criatura  seria  atraída  para  atacar,  e  outro  em  uma  distância 
segura  para  aqueles  que  iriam  assistir.  Como  a  maioria  dos  demais,  estes  platôs 
tinham  uma  superfície  irregular,  habitada  por  plantas  resistentes,  adaptadas  pela 
exposição  nas  tempestades.  Plataformas  pedregosas,  depressões,  e  terreno 
acidentado tornavam as batalhas sob os platôs traiçoeiras.   
Adolin  se  juntou  ao  seu  pai,  que  aguardava  ao  lado da última ponte enquanto o 
rei  se  deslocava  até  o  platô  dos  espectadores,  acompanhado de uma companhia de 
soldados. Os atendentes seriam os próximos. 
“Está  indo  bem  no  comando,  filho,” Dalinar disse, acenando para um grupo de 
soldados que bateram continência ao passar. 
“Eles  são bons homens, Pai. Mal precisam de alguém para os comandar durante 
uma marcha de platô a platô.”  
“Sim,”  Dalinar  disse.  “Mas  você  precisa  de  experiência  liderando,  e  eles 
precisam  aprender  a  vê-lo como um comandante.” Renarin trotou até eles com seu 
cavalo;  era  provavelmente  hora  de  atravessar  para  o  platô  dos  espectadores. 
Dalinar acenou para que seus filhos fossem primeiro. 
Adolin  se  virou  para  ir,  mas  hesitou  ao  notar  algo  no  platô  atrás  deles.  Um 
cavaleiro,  movendo-se  rapidamente  para  alcançar  o  grupo  de  caça,  vindo  da 
direção dos acampamentos de guerra. 
“Pai,” Adolin disse, apontando. 
Dalinar  se  virou  imediatamente,  seguindo  o  gesto.  No  entanto,  Adolin  logo 
reconheceu o recém-chegado. Não era um mensageiro, como ele esperava. 
“Sagaz!” Adolin chamou, acenando.  
O  recém-chegado  trotou  até  eles.  Alto  e  magro,  o  Sagaz  do  Rei  cavalgava  com 
facilidade  acima  de  um  capão  preto.  Ele  vestia  um  casaco  grosso  e  preto,  e  calças 
igualmente  negras,  a  cor  casando  com  seu  escuro  cabelo  ônix.  Embora  ele 
carregasse  uma  espada  longa  e  fina  na  cintura,  até  onde  Adolin  sabia,  o  homem 
jamais  tinha  chegado  a  usá-la.  Era  mais  uma  arma  de  duelo  do  que  uma  lâmina 
militar, simbólica em grande parte. 
Sagaz  acenou  para  eles  enquanto  se  aproximava,  dando  um  daqueles  seus 
sorrisos  astutos.  Ele  tinha  olhos  azuis,  mas não era bem um olhos-claros. Nem um 
olhos-escuros.  Ele era… bem, ele era o Sagaz do Rei. Aquela era uma categoria por 
si só. 
“Ah,  jovem  Príncipe  Adolin!”  Sagaz  exclamou.  “Você  realmente  conseguiu  se 
afastar  das  donzelas  do  acampamento  por  tempo  o  suficiente  para  participar desta 
caçada? Estou impressionado.” 
Adolin  riu  desconfortavelmente.  “Bom,  isso  vem  sendo  um  tópico  de  certa 
discussão ultimamente…” 
Sagaz ergueu uma sobrancelha.  
Adolin  suspirou.  Sagaz  iria  descobrir  eventualmente,  de  toda  forma  —  era 
virtualmente  impossível  esconder  qualquer  coisa  do  homem.  “Eu  marquei  um 
compromisso  com  uma  mulher  ontem,  mas eu… bom, eu estava cortejando outra. 
E ela é do tipo ciumento. Então agora nenhuma das duas quer falar comigo.”  
“Suas  confusões  são  uma fonte constante de entretenimento, Adolin. Cada uma 
delas é mais emocionante que a anterior!” 
“Er, sim. Emocionante. É ​exatamente​ como eu as vejo.” 
Sagaz  riu  novamente,  embora  mantivesse  um  senso  de  dignidade  em  sua 
postura.  O  Sagaz  do  Rei  não  era  um  bobo  da  corte  qualquer  como  alguns 
encontrados  em  outros  reinos.  Ele  era  uma  espada,  uma  ferramenta  mantida  pelo 
rei.  Insultar  os  outros  estava  abaixo  da  dignidade  do  monarca,  então  da  mesma 
forma  que  alguém  usaria  luvas  para  lidar  com  algo  sujo,  o  rei  mantinha  um  Sagaz 
para que não precisasse se rebaixar ao nível das rudezas ou ofensas. 
Esse  novo  Sagaz  já  estava  com  eles  há  alguns  meses,  e  havia  algo…  diferente 
nele. Ele parecia saber coisas que não deveria, coisas importantes. Coisas úteis.  
Sagaz acenou para Dalinar. “Alteza.” 
“Sagaz,” Dalinar disse, rígido.  
“E jovem Príncipe Renarin!” 
Renarin manteve o olhar baixo.  
“Sem cumprimentos para mim, Renarin?” Sagaz perguntou, entretido.  
Renarin nada disse. 
“Ele  acha  que  você  vai  caçoa-lo  se  falar  com  você,  Sagaz,”  Adolin  explicou. 
“Ele  me  disse  hoje  mais  cedo  que  tinha  decidido  não  falar  nada  quando  você 
estivesse por perto.” 
“Maravilha!”  Sagaz  exclamou.  “Então  posso  dizer  o  que  bem  desejar,  e  ele não 
irá contestar?” 
Renarin hesitou.  
Sagaz  se  inclinou  até  Adolin.  “Eu  lhe  contei  sobre  a  noite  que  eu  e  Príncipe 
Renarin  tivemos  dois  dias  atrás,  andando  pelas  ruas  do  acampamento  de  guerra? 
Nós acabamos esbarrando com essas duas irmãs, veja bem, de olhos azuis e—” 
“Isso é mentira!” Renarin contestou, corando. 
“Muito  bem,”  Sagaz  disse  sem  pestanejar,  “Eu  confesso  que  eram  na  verdade 
três  irmãs,  mas  Príncipe  Renarin  acabou  muito  injustamente  ficando  com  duas 
delas, e eu não desejei diminuir minha reputação ao—” 
“Sagaz.” Dalinar interrompeu severamente.  
O homem envolto em preto olhou para ele. 
“Talvez devesse restringir sua zombaria para aqueles que a merecem.”  
“Lorde-Brilhante Dalinar. Creio que fosse isso o que eu estivesse fazendo.”  
O  franzir  de  Dalinar  se  aprofundou.  Ele  nunca  gostou  de  Sagaz,  e  cutucar 
Renarin  era  uma  maneira  certeira  de  elevar  sua  ira.  Adolin  podia  compreender 
aquilo, mas Sagaz era quase sempre amigável com Renarin. 
Sagaz  se  moveu  para  ir  embora,  passando  por  Dalinar.  Adolin  mal  conseguiu 
ouvir  o  que  fora  dito  quando  Sagaz  se  inclinou  para  sussurrar  algo.  “Aqueles  que 
‘merecem’  minha  zombaria  são  aqueles  que  podem  se  beneficiar  dela, 
Lorde-Brilhante  Dalinar.  Aquele  ali  é  menos  frágil  do  que  você  pensa.”  Ele  deu 
uma piscadela, então virou seu cavalo para atravessar a ponte.  
“Pelos  ventos da tormenta, como eu gosto daquele homem,” Adolin disse. “É o 
melhor Sagaz que já tivemos em eras!” 
“Eu o acho enervante,” Renarin disse suavemente.  
“Isso faz parte da diversão!” 
Dalinar  nada  disse.  Os  três  atravessaram  a  ponte,  passando  pelo  Sagaz,  que 
tinha  parado  para  atormentar  um  grupo  de  oficiais  —  olhos-claros  de  estaturas 
baixas  o  suficiente  para  que  precisassem  servir  ao  exército  por  um  salário.  Vários 
deles riram enquanto Sagaz zombava de um outro.  
Os  três  se  juntaram  ao  rei,  e  foram  imediatamente  abordados  pelo 
mestre-de-caça  do  dia.  Bashin  era  uma  homem  baixinho  e  de  barriga  cheia;  ele 
usava  vestes  resistentes,  com  um  sobretudo  de  couro  e  um  chapéu  de  abas  largas. 
Ele  era  um  olhos-escuros  de primeiro nahn, a maior e mais prestigiosa posição que 
um  olhos-escuros  podia  obter,  digno  de  até  mesmo  se  casar  em  uma  família 
olhos-claros.  
Bashin  se  curvou  para  o  rei.  “Vossa  Majestade!  Bem  na  hora!  Acabamos  de 
atirar a isca.” 
“Excelente,”  disse  Elhokar,  descendo  da  sela.  Adolin  e  Dalinar  fizeram  o 
mesmo,  as  Armaduras ressoando levemente enquanto Dalinar desprendia seu elmo 
da sela. “Quanto tempo irá levar?” 
“Duas  ou  três  horas,  provavelmente,”  Bashin  disse,  pegando  as  rédeas  do 
cavalo  do  rei.  Cuidadores  pegaram  os  dois  Ryshadios.  “Nós nos organizamos bem 
ali.” 
Bashin  apontou  em  direção  ao  platô  de  caça,  o  platô  menor  onde  a  batalha 
aconteceria,  longe  dos  atendentes  e  da  maioria  dos  soldados.  Um  grupo  de 
soldados  guiava  um  chull  ao  redor  do perímetro, puxando uma corda que caía pela 
lateral do penhasco. Aquela corda estaria segurando a isca. 
“Estamos  usando  carcaças  de  porcos,”  Bashin  explicou.  “E  espalhamos  o 
sangue  pelas  laterais.  O  abissal  foi  avistado  por  aqui pelas patrulhas uma boa dúzia 
de  vezes.  Seu  ninho  deve  ser  por  perto,  certamente.  Ele  não  está  aqui  para  pupar. 
Já  está  grande  demais  para  isso,  e  se  manteve  pela  área  por  muito  tempo.  Vai 
providenciar  uma  bela  caçada!  Assim  que  aparecer,  vamos  soltar  um  grupo  de 
porcos  selvagens  como  distração,  e  vocês  podem  começar  a  enfraquecê-lo  com  as 
flechas.” 
Eles  tinham  trazido  grão-arcos:  longos  arcos  de metal com cordas grossas, com 
um  potencial  de  impulso  tão  grande  que  apenas  um  Portador-fracto  conseguia 
usá-los,  capazes  de  disparar  setas  da  grossura  de  três  dedos.  Eles  eram  invenções 
recentes,  desenvolvidos  por  engenheiros  Aléthi  através  do  uso  de  tecnologia 
fabrial,  e  cada  um  deles  requeria  uma  pequena  gema infundida para manter a força 
de  impulso  sem  que  acabassem  distorcendo  o  metal.  A  tia  de  Adolin,  Navani  — a 
viúva  de  Rei  Gavilar,  mãe  de  Elhokar  e  sua  irmã  Jasnah  —  tinha  liderado  as 
pesquisas para o desenvolvimento dos arcos. 
Teria  sido  ótimo  se  ela  não  tivesse  partido,  Adolin  pensou  ociosamente.  Navani  era 
uma mulher interessante. As coisas nunca eram entediantes ao redor dela. 
Algumas  pessoas  tinham  começado  a  chamar  os  arcos  de  Arcos-fractos,  mas 
Adolin  não  gostava  do  termo.  Lâmina-fracta e Armadura-fracta eram algo especial. 
Relíquias  de  um  outro  tempo,  de  quando  Radiantes  andavam  sobre  Roshar. 
Nenhuma quantidade de tecnologia fabrial sequer chegou perto de recriá-las.  
Bashin  guiou  o  rei  e  seus  alto-príncipes  até  um pavilhão no centro do platô dos 
espectadores.  Adolin  se  juntou  ao  seu  pai,  pretendendo  dar  um  relatório  sobre  a 
travessia.  Cerca  de  metade  dos  soldados  estavam  a  postos,  mas  muitos  dos 
atendentes  ainda  estavam  atravessando  a  grande  ponte  permanente  que  levava  até 
o  platô  dos  espectadores.  A  bandeira  do  rei  tremulava  acima  do  pavilhão,  e  uma 
pequena  estação  de  descanso  tinha  sido  levantada.  Um  soldado  logo  atrás  estava 
organizando  um  conjunto  de  quatro grão-arcos. Eles eram lustrosos e de aparência 
perigosa, com suas flechas grossas e pretas em quatro aljavas ao lado deles.  
“Creio  que  terão  um  dia  e  tanto  com  a  caçada,”  Bashin  disse  para  Dalinar. 
“Julgando  pelos  relatórios,  a besta é uma das grandes. Maior do que qualquer outra 
que já tenha derrubado antes, Brilhantíssimo.” 
“Gavilar  sempre  quis  pegar  um  desses,”  Dalinar  disse  melancolicamente.  “Ele 
amava  caçar  grã-conchados,  embora  nunca  tenha  conseguido  um  abissal.  É 
estranho que agora eu já tenha matado tantos.” 
O chull que puxava a isca soltou um balido distante. 
“Vocês  precisam  almejar  as  pernas  da  criatura,  Brilhantíssimos,”  Bashin  disse. 
Dar  conselhos  antes  da  caçada  era  uma  das  responsabilidades  do  homem,  e  ele 
levava  aquilo  muito  a  sério.  “Abissais,  bom,  vocês  estão  acostumados  a  atacá-los 
quando  eles  estão  nas  crisálidas.  Não  se  esqueçam  do  quão  perigosos  são  quando 
não  estão  pupando.  Para  um  tão  grande  quanto  este,  usem  uma  distração  e 
almejem…”  Ele  divagou,  então  resmungou,  praguejando  baixinho.  “Tormentas 
tomem aquele animal. Eu juro, o homem que o treinou devia ser surdo.”   
Ele  estava  olhando  para  o  próximo  platô.  Adolin  seguiu  seu  olhar.  O  chull 
caranguejoso que estivera puxando a isca estava agora se afastando do abismo, com 
seu  andar  pesado,  devagar,  embora  determinado.  Os  cuidadores  estavam  gritando, 
correndo atrás do animal.  
“Peço  desculpas,  Brilhantíssimos,”  Bashin  disse.  “Ele  esteve  fazendo  isso  o  dia 
inteiro.” 
O chull soltou um balido com sua voz ruidosa. Algo parecia errado para Adolin.  
“Podemos pedir outro,” Elhokar disse. “Não deve demorar muito para—” 
“Bashin?”  Dalinar  disse,  sua  voz  soando  alarmante  de  súbito.  “Não  deveria  ter 
isca no final daquela corda do animal?” 
O  mestre-de-caça  congelou.  A  corda  que  o  chull  carregava  estava  roída  na 
ponta. 
Algo  escuro  —  algo descomunalmente enorme — subiu do abismo com pernas 
grossas  e  quitinosas.  A  criatura  escalou  até  o  platô,  não  o  pequeno  onde  a  caçada 
supostamente  deveria ocorrer, mas o platô dos espectadores onde Dalinar e Adolin 
estavam.  O  platô  repleto  de  atendentes,  convidados  desarmados,  mulheres 
escribas, e soldados despreparados. 
“Ah, Condenação,” disse Bashin.   
13  
DEZ BATIDAS DE CORAÇÃO 
 
Imagino  que  você  provavelmente  ainda  esteja  zangado.  Me  alegro  em  saber  disso. 
Assim  como  sua  saúde  perpétua,  acabei  por  me  acostumar  com  seu  descontentamento 
para comigo. Creio que essa seja uma das grandes constantes da cosmere. 
 
 
Dez batidas de coração. 
Um. 
Era  esse  o  tempo  necessário  para  se  invocar  uma  Lâmina-fracta.  Se  o  coração 
de  Dalinar  estivesse  pulando,  o  tempo  era  menor.  Se  estivesse  relaxado, seria mais 
demorado.  
Dois. 
No  campo  de  batalha,  o  passar  dessas  batidas  podia  se  estender  como  uma 
eternidade. Ele colocou seu elmo enquanto corria. 
Três. 
O abissal golpeou para baixo com um dos membros, esmagando a ponte repleta 
de  atendentes  e  soldados.  Pessoas  gritaram,  mergulhando  no  abismo.  Dalinar 
disparou adiante com pernas fortalecidas pela Armadura, seguindo o rei. 
Quatro. 
O  abissal  se  ergueu  como  uma  montanha  de  carapaças  intrincadas,  violetas, 
como  uma  tinta  escura.  Dalinar  compreendia  o  porquê  dos  Parshendi  chamarem 
aquelas  coisas  de  deuses.  A  criatura  tinha  uma  face distorcida e pontuda, com uma 
boca  repleta  de  mandíbulas  farpadas.  Embora fosse vagamente crustáceo, o abissal 
não  era  como  um  chull,  robusto  e  plácido.  Ele  tinha  quatro  garras  frontais 
perversas, localizadas em ombros largos, cada uma delas no tamanho de um cavalo, 
e uma dúzia de pernas menores que se agarravam na lateral do platô. 
Cinco. 
A  quitina  contra  a  pedra  produziu  um  som  triturador,  enquanto  a  criatura 
terminava  de  se  puxar  para  cima  do  platô,  rapidamente  arrebatando  um  chull  de 
carga com uma das garras. 
Seis. 
“Avante, avante!” Elhokar berrava à frente de Dalinar. “Arqueiros, fogo!” 
Sete. 
“Distraia a criatura dos desarmados!” Dalinar gritou para seus soldados. 
O  abissal  partiu a concha do chull — os fragmentos do tamanho de travessas se 
esparramaram  pelo  platô  —  e  abocanhou  a  besta,  começando  então  a  olhar  para 
baixo,  para  os  escribas  e  atendentes  que  estavam  a  fugir.  O  chull  cessou  seus 
balidos conforme o monstro o mastigava goela abaixo.  
Oito. 
Dalinar  saltou  de  uma  plataforma  rochosa  e  voou cinco metros até pousar com 
força, atirando pedaços de pedra ao redor. 
Nove. 
O  abissal  berrou  com  um  terrível  som estridente. Ele bramiu com quatro vozes 
que se sobrepunham umas às outras.  
Os  arqueiros  puxaram as cordas. Elhokar gritou ordens logo adiante de Dalinar, 
sua capa azul tremulando. 
A mão de Dalinar formigou em antecipação. 
Dez! 
Sua  Lâmina-fracta  —  Juramentada  —  se  formou  em  sua  mão,  coalescendo  da 
bruma,  surgindo  enquanto  a  décima  batida  de  seu  coração  palpitava  em  seu  peito. 
Com  quase  dois  metros  da  ponta  até  o  cabo,  a  Lâmina  não  seria  manejável  nas 
mãos  de  um  homem  que  não  estivesse vestindo Armadura-fracta. Para Dalinar, ela 
parecia  perfeita.  Ele  carregava  Juramentada  desde  sua  juventude,  Vinculando-a 
quando  ele  tinha  vinte  Lamentos  de idade. Ela era longa e levemente curvada, com 
um  palmo  de  largura,  e  serrações  em  forma  de  ondas  perto  do  cabo.  A  espada  se 
curvava na ponta como um anzol de pescador, e estava úmida com orvalho gélido. 
Esta  espada  era  uma  parte  dele.  Ele  podia  sentir  uma  energia  percorrendo  sua 
lâmina,  como  se  ela  estivesse  ansiosa.  Um  homem  nunca  conhecia 
verdadeiramente  a  vida  até  que  avançasse  numa  batalha  usando  uma  Armadura  e 
Lâmina. 
“Enfureçam-o!” Elhokar berrou, sua Lâmina-fracta —  Alvoradora — surgiu da 
bruma  até  sua  mão.  Era  longa  e  fina,  com  uma  guarda-mão  larga,  gravada  nas 
laterias  com  os  dez  glifos  fundamentais.  Ele  não  queria  que  o  monstro  escapasse. 
Dalinar  podia perceber isso em sua voz, embora estivesse mais preocupado com os 
soldados  e  atendentes.  Esta  caçada  já  tinha  se  saído  terrivelmente  errado.  Talvez 
devessem  distrair  o  monstro  o  suficiente  para  que  todos  escapassem,  e  então 
recuar, deixando que ele se deleitasse com chulls e porcos. 
A  criatura  gritou  com  seu  rugido  de  multivozes  novamente,  golpeando  com 
uma  garra  entre  os  soldados  abaixo.  Homens  gritaram,  ossos  se  partiram  e  corpos 
foram esmagados. 
Os  arqueiros  dispararam,  mirando  a  cabeça.  Uma  centena  de  flechas  zuniram 
no  ar,  mas  apenas  algumas  acertaram  o  músculo  entre  as  placas  de  quitina.  Atrás 
deles,  Sadeas  pedia  por  seu  grão-arco.  Dalinar  não  podia  esperar  por  isso  —  a 
criatura  estava  aqui,  ameaçadora,  matando  seus  homens.  O  arco  seria  muito  lento. 
Este era um trabalho para a Lâmina.   
Adolin  os  ultrapassou,  cavalgando Sangue-Certeiro. O rapaz tinha ido em busca 
de  seu  cavalo,  ao  invés  de  investir  como Elhokar fizera. Dalinar tinha sido forçado 
a  ficar  com  o  rei.  Os  demais  cavalos  —  até  mesmo  os  cavalos  de  guerra  — 
entraram em pânico, mas o garanhão Ryshadio branco de Adolin se manteve firme. 
Galante  surgiu  repentinamente,  trotando  ao  lado  de  Dalinar, que agarrou as rédeas 
e  se  impulsionou  para  cima  com  pernas amplificadas pela Armadura, pulando até a 
sela.  A  força  de  seu  pouso  poderia  ter  machucado  as  costas  de  um  cavalo  regular, 
mas Galante era feito de pedra mais dura do que isso. 
Elhokar fechou seu elmo, as laterais embrumando. 
“Espere,  Vossa  Majestade,”  Dalinar  chamou,  ultrapassando-o.  “Aguarde  até 
que  Adolin  e  eu  o  enfraqueça.”  Dalinar  alcançou  seu visor, fechando-o. As laterais 
embrumaram,  conectando-se,  e  os  lados  do  elmo  se  tornaram  translúcidos  para 
Dalinar.  A  abertura  para  os  olhos  ainda  era  necessária  —  olhar  através  dos  lados 
era  como  olhar  através  de  vidro  sujo  —  mas  a  translucência  era  uma  das  partes 
mais maravilhosas da Armadura-fracta. 
Dalinar  cavalgou  até  a  sombra  do  monstro.  Soldados  se  espalhavam  ao  redor, 
agarrando  lanças. Não tinham sido treinados para enfrentarem bestas gigantescas, e 
o  fato  de  terem  entrado  em  formação  era  um  testamento  de  seus  valores.  Eles 
estavam tentando chamar a atenção para longe dos arqueiros e atendentes em fuga.  
Flechas  zuniram,  quicando  na  carapaça  e  se  tornando  mais  mortais  para  as 
tropas  abaixo  do  que  para  o  abissal.  Dalinar  sombreou  o  visor  com  sua  mão  livre 
enquanto uma flecha retinia contra seu elmo. 
Adolin  recuou  quando  a  besta  golpeou  um  grupo  de  arqueiros,  esmagando-os 
com  uma  de  suas  garras.  “Tomarei  a  esquerda!”  ele  berrou,  sua  voz  abafada  pelo 
elmo.  
Dalinar  assentiu,  cortando  pela  direita,  galopando  além  de  um  grupo  de 
soldados  atordoados,  emergindo  novamente  até  a  luz  do  sol  enquanto  o  abissal 
erguia  uma  garra  frontal  para  outro  golpe.  Dalinar  correu  por  baixo  do  membro, 
transferindo  Juramentada para sua mão esquerda e segurando-a na lateral, cortando 
através de uma das pernas troncudas da criatura. 
A  Lâmina  ceifou  a  grossa  quitina  quase  sem  nenhuma  resistência.  Como 
sempre,  ela  não  cortou  a  carne  viva,  embora  tenha  matado  a  perna tão certamente 
quanto  se  tivesse  sido  amputada.  O  grande  membro  escorregou,  caindo, 
amortecido e inutilizado.  
O  monstro  rugiu  com  sua  voz  profunda,  sobreposta  e  retumbante.  Do  outro 
lado, Dalinar podia distinguir Adolin cortando uma das pernas.  
A  criatura  tremeu,  virando-se  em  direção  de Dalinar. As duas pernas que foram 
cortadas  se  arrastavam  sem  vida.  O  monstro  era  longo  e  estreito  como  uma 
lagosta,  além  de  ter  uma  cauda  achatada  e  andar  sobre  quatorze  pernas.  Quantas 
seriam necessárias perder para que colapsasse?  
Dalinar  contornou  com  Galante,  encontrando-se  com  Adolin,  que irradiava em 
sua  Armadura  azul,  sua  capa  tremulando  logo  atrás.  Eles  trocaram  de  lado 
enquanto  contornavam  em  longos  arcos,  cada  um  deles  indo  em  direção  de  outra 
perna.  
“Cá está seu inimigo, monstro!” Elhokar berrou. 
Dalinar  se  virou.  O  rei  tinha  conseguido encontrar sua montaria e a manter sob 
controle.  Vingança  não  era  um  Ryshadio,  mas  o  animal  era  da  melhor  linhagem 
Shin. Elhokar investiu com sua montaria, a Lâmina erguida sobre a cabeça. 
Bom,  não  havia  porquê  impedi-lo  de  lutar.  Ele  ficaria  bem  em  sua  Armadura, 
desde que se mantivesse em movimento. “As pernas, Elhokar!” Dalinar gritou. 
Elhokar  o  ignorou,  avançando  direto  para  o  peito  da  besta.  Dalinar  praguejou, 
esporeando  Galante  quando  o  monstro golpeou horizontalmente. Elhokar desviou 
no  último  instante,  abaixando-se  sob  o  golpe.  A  garra  do  abissal  se  chocou  na 
pedra  com  um  estrondo.  Ele  rugiu  em  fúria  ao  errar  Elhokar,  o  som  ecoando 
através dos abismos. 
O  rei  guinou  em  direção  de  Dalinar,  ultrapassando-o  em  um  piscar  de  olhos. 
“Eu estou o distraindo, seu tolo! Continuem atacando!” 
“Eu  tenho  o  Ryshadio!”  Dalinar  berrou  em  resposta.  “Eu  cuido  da  distração, 
sou mais rápido!”  
Elhokar  o  ignorou  novamente. Dalinar suspirou. O rei, caracteristicamente, não 
podia  ser  contido.  Discutir  iria  apenas  custar  mais  tempo  e  mais  vidas,  então 
Dalinar  fez  como  fora  dito.  Ele  contornou  até  a  lateral  para  outra  investida,  os 
cascos  de  Galante  batendo  contra  o  chão  de  pedra.  O  rei  tomou  a  atenção  do 
monstro,  e  Dalinar conseguiu avançar, golpeando com sua Lâmina através de outra 
perna. 
A  besta  emitiu  quatro  gritos  sobrepostos  e  se  virou em direção de Dalinar. Mas 
assim  que  o  fez,  Adolin  avançou  do  outro  lado,  cortando  outra  perna  com  um 
golpe  certeiro.  A  perna  pendeu,  e  flechas  caíram  enquanto  os  arqueiros 
continuavam a atirar. 
A  criatura  estremeceu,  confusa  pelos  ataques  vindos  de  todos  os  lados.  Estava 
ficando  fraca,  e  Dalinar  ergueu  o  braço,  gesticulando.  O  comando  ordenava que o 
restante  dos  soldados  a  pé  recuassem  até  o  pavilhão.  Feito  isso,  ele  avançou 
sorrateiramente  e  matou  mais  uma  das  pernas.  Aquela  era  a  quinta.  Talvez  fosse 
hora  de  deixar  a  besta  mancar  para  longe.  Não  valeria  a  pena  arriscar  mais  vidas 
para matá-la agora. 
Ele  chamou  pelo  rei,  que  cavalgava  a  uma  curta  distância,  com  sua  Lâmina 
empunhada  na  lateral.  O  rei  olhou  para  Dalinar,  mas  obviamente  não  conseguiu 
ouvi-lo.  Elhokar  esporeou  Vingança  para  uma  virada  ligeira  na  direção  de  Dalinar 
no momento em que o abissal emergiu adiante. 
Houve  um  breve  estalo,  e  o  rei  —  e  sua  sela  —  foram  subitamente  lançados 
para  o  ar.  A  virada  ligeira  do  cavalo  tinha  causado  a  cinta  que  prendia  a  sela  a  se 
romper.  Um  homem  em  Armadura-fracta  era  pesado  e colocava uma grande carga 
tanto sob a montaria quanto a sela. 
Dalinar  sentiu  uma  pontada  de  medo,  puxando  as  rédeas  de  Galante.  Elhokar 
caiu  no  chão,  derrubando  sua  Lâmina-fracta.  A  arma  se  reverteu  em  bruma, 
desaparecendo.  Era  um tipo de proteção para impedir que fosse pega por inimigos. 
As  Lâminas  desapareciam  a  menos  que  fossem  comandadas  a  permanecerem  ao 
serem largadas. 
“Elhokar!”  Dalinar  berrou.  O  rei  rolou,  a  capa se enrolando ao redor do corpo, 
até  uma  súbita  parada.  Ele  permaneceu  deitado  e  atordoado  por  um  momento.  A 
armadura  estava  rachada  em  um dos ombros, vazando Luz-tempesta, mas ela tinha 
amortecido a queda. Ele estaria a salvo. 
A não ser que— 
Uma garra surgiu acima do rei. 
Dalinar  sentiu  uma  pontada  de  pânico,  virando  Galante  para  avançar  até  o  rei. 
Não daria tempo! A besta iria— 
Um  flecha  enorme  perfurou  a  cabeça  do  abissal,  rachando  a  quitina.  Sangue 
roxo  esguichou  para  fora,  causando  a  besta  a  bramir  em  agonia.  Dalinar  se  virou 
sobre a sela. 
Lá  estava  Sadeas  em  sua  Armadura  vermelha,  pegando  outra  flecha  massiva 
com  um  atendente.  Ele  puxou,  disparando  o  grande  dardo  até  o  ombro  do abissal 
com um impacto nítido.  
Dalinar  ergueu  Juramentada  em  saudação.  Sadeas  fez  o  mesmo,  erguendo  seu 
arco. Eles não eram amigos, nem gostavam um do outro. 
Mas ​iriam​ proteger o rei. Aquele era o elo que os unia.  
“Recue!”  Dalinar  gritou  para  o  rei  enquanto  ultrapassava,  deixando-o  para  trás. 
Elhokar se levantou aos tropeços e assentiu.  
Dalinar  avançou.  Ele  ​tinha  que  distrair  a  besta  por  tempo  o  suficiente  para  que 
Elhokar  recuasse.  Mais  das  flechas  de  Sadeas  zuniram,  mas  o  monstro  começou  a 
ignorá-las.  Sua  vagarosidade  tinha  desaparecido,  e  seus  berros  se  tornaram 
raivosos, selvagens, enlouquecidos. A criatura estava ficando realmente irritada. 
Aquela  era  a  parte  mais  perigosa.  Não  haveria  mais  como  recuar.  O  abissal  os 
seguiria até que os matasse ou que fosse morto.  
Uma  garra  esmagou  o  chão  bem  ao  lado  de  Galante,  atirando  lascas  de  pedra 
pelo  ar.  Dalinar  se  manteve  inclinado  para  baixo,  cuidadoso  para  manter  sua 
Lâmina-fracta  em  punho,  cortando  então  mais  uma  das  pernas.  Adolin  fez  o 
mesmo  do  outro  lado.  Sete  pernas  caíram,  metade  do  total.  Quão  mais  até  que  a 
besta  sucumbisse?  Normalmente,  a  essa  altura,  eles  já  teriam  disparado  várias 
dúzias  de  flechas  no  animal. Era difícil de imaginar o que poderia ser feito sem que 
enfraquecessem  a  besta  primeiro.  Além  disso,  Dalinar nunca tinha enfrentado uma 
tão grande quanto esta. 
Ele  virou  Galante,  tentando  chamar  a  atenção  da  criatura.  Esperançosamente, 
Elhokar teria— 
“Você é um deus?” Elhokar gritou. 
Dalinar  resmungou,  olhando  sobre  o  ombro.  O  rei  ​não  tinha  recuado.  Ele 
avançava em direção da besta, a mão estendida na lateral. 
“Eu  a  desafio,  criatura!”  Elhokar  gritou.  “Eu  reivindico  sua  vida!  Eles  irão  ver 
seus  deuses  esmagados,  assim  como  verão  seu  rei  morto  sob  os  meus  pés!  Eu  a 
desafio!”​   
Tolo da Condenação!​ Dalinar pensou, contornando com Galante.  
A  Lâmina-fracta  de  Elhokar  se  formou  novamente  em  sua  mão,  e  ele  investiu 
contra  o  peito  da  criatura,  seu  ombro  rachado  vazando  Luz-tempesta.  Ele  chegou 
perto  e  golpeou  o  torso  da  besta,  cortando um pedaço de quitina para fora. Aquilo 
podia  ser  cortado  pela  Lâmina,  assim  como  os  cabelos  e  unhas  de  uma  pessoa. 
Elhokar então enfiou sua arma no peito do abissal, mirando o coração.  
A  besta  rugiu  e  estremeceu,  golpeando  Elhokar  para  longe.  O  rei  segurou  sua 
Lâmina  por  pouco.  A  besta girou. Infelizmente, o movimento trouxe sua cauda até 
Dalinar.  Ele  praguejou,  puxando  Galante  para  uma  virada  apertada,  mas  a  cauda 
veio  muito  depressa.  Ela  se  chocou  contra  Dalinar,  que  se  deparou  rolando, 
Juramentada  escapando  de seus dedos e cravando um talho no chão de pedra antes 
de desaparecer em bruma. 
“Pai!” uma voz distante gritou. 
Dalinar  jazia  nas  pedras,  atordoado.  Ele  ergueu  a  cabeça  e  viu  Galante  se 
levantando  aos  tropeços.  Afortunadamente,  o  cavalo  não  teria  quebrado  uma 
perna,  embora  o  animal  sangrasse  devido  aos  arranhões  e  evitasse  colocar  muito 
peso sobre uma das patas. 
“Embora!”  Dalinar  disse.  A  palavra  de  comando  faria  o  cavalo  voltar  em 
segurança. Ao contrário de Elhokar, Galante ​iria​ obedecer.   
Dalinar  se  levantou,  desengonçado. Algo soou em sua esquerda, e Dalinar girou 
bem a tempo da cauda do abissal o acertar no peito, arremessando-o para trás. 
O  mundo  virou  de  ponta-cabeça  novamente,  e  metal  colidiu  com  a  pedra  em 
uma cacofonia enquanto ele derrapava.  
Não!  ele  pensou,  levando  uma  das  mãos  para baixo de si e empurrando, usando 
o  impulso  de  seu  derrapão  para  se  atirar,  ficando  de  pé.  Enquanto  o  céu  girava, 
algo  pareceu  fazer  ​sentido​,  como  se  a  própria  Armadura  soubesse  qual  era  o  lado 
certo, para cima. Ele pousou, ainda se movendo, seus pés esmigalhando as pedras. 
Ele  recuperou  o  equilíbrio  e  avançou  em  direção  ao  rei, começando o processo 
de invocar sua Lâmina-fracta novamente. Dez batidas de coração. Uma eternidade. 
Os  arqueiros  continuavam  a  disparar,  e  várias  das  flechas  estavam  agora 
cravadas  no  rosto  do  abissal.  A  criatura  as  ignorava,  embora  as  flechas  maiores  de 
Sadeas  ainda  parecessem  capazes  de  distraí-la.  Adolin  ceifou  mais  uma  perna,  e  o 
abissal  ficou  vagaroso,  incerto,  oito  de  suas  quatorze  pernas  se  arrastando 
inutilizadas.  
“Pai!” 
Dalinar  se  virou para ver Renarin — vestido em um uniforme azul Kholin, com 
um  longo  casaco  que  abotoava  até  o  pescoço  —  cavalgando  através  do  chão 
pedregoso. “Pai, você está bem? Posso ajudar?” 
“Garoto idiota!” Dalinar disse, apontando. “Volte!” 
“Mas—” 
“Você  está  desprotegido  e  desarmado!”  Dalinar  berrou.  “Volte  antes que acabe 
morrendo!”  
Renarin puxou seu cavalo ruão, parando. 
“VOLTE!” 
Renarin  galopou  para  longe.  Dalinar  se  virou  e  correu  em  direção  de  Elhokar, 
Juramentada  surgindo  da  bruma  até  sua  mão  que  aguardava.  Elhokar continuava a 
golpear  a  parte  de  baixo  do  torso  da  criatura,  e  seções  da  carne  morriam  e  se 
escureciam  conforme  a  Lâmina-fracta  acertava.  Se  ele  a  enfiasse  no  local  certo, 
poderia  paralisar  o  coração  ou  pulmões,  mas  isso  seria  difícil  enquanto  a  besta 
ainda estivesse de pé.   
Adolin  —  fidedigno  como  sempre  —  tinha  desmontado  ao  lado  do  rei.  Ele 
tentou  parar  as  garras,  golpeando-as  conforme  caíam.  Infelizmente,  havia  quatro 
garras  e  apenas  um  Adolin.  Duas  delas  o  golpearam  ao  mesmo  tempo,  e  embora 
Adolin  tenha  cortado um pedaço de uma delas, não percebeu as outras que vinham 
pelas costas. 
Dalinar  alertou  tarde  demais.  A  Armadura-fracta  ​estalou  no  momento  que  a 
garra  atirou  Adolin  no  ar.  Ele  arqueou,  colidindo  na  queda.  Sua  Armadura  não  se 
estilhaçou,  graças  aos  Arautos,  mas  o  peitoral  e  a  lateral  estavam  bem  rachados, 
vazando rastros de fumaça branca. 
Adolin rolou letargicamente, movendo as mãos. Estava vivo. 
Não havia tempo para se preocupar com ele. Elhokar estava sozinho. 
A  besta  golpeou,  macetando  o  chão  ao  lado  do  rei,  derrubando-o.  Sua  Lâmina 
desapareceu e Elhokar caiu de cara nas pedras. 
Algo  mudou  dentro  de  Dalinar.  Limitações  desapareceram.  As  outras 
preocupações perderam o significado. O filho de seu irmão estava em perigo. 
Ele  tinha  falhado  com  Gavilar,  tinha  jazido  bêbado  em  vinho  enquanto  seu 
irmão  lutava  pela  própria  vida.  Dalinar  deveria  ter  estado  lá  para  protegê-lo. 
Restavam  apenas  duas  coisas  de  seu  amado  irmão Gavilar, duas coisas que Dalinar 
poderia  proteger  na  esperança  de  conseguir  alguma forma de redenção: seu reino e 
seu filho. 
Elhokar estava sozinho e em perigo. 
Nada mais importava. 
—   
 
Adolin  balançou  a  cabeça,  aturdido. Ele ergueu o visor de seu elmo, dando uma 
arfada de ar limpo para clarear a mente. 
Lutando.  Eles  estavam  lutando.  Ele  podia  ouvir  homens  gritando,  pedras 
tremendo,  um  enorme  som  bestial.  Ele  cheirou  algo  mofado.  Sangue  de 
Grã-conchado.   
O  abissal!  ele  pensou.  Antes  que  pudesse  limpar  a  mente,  Adolin  começou  a 
invocar sua Lâmina novamente, forçando-se a ficar de pé. 
O  monstro  se  encontrava a uma curta distância, uma sombra negra sobre o céu. 
Adolin  tinha  caído perto do lado direito da criatura. Conforme sua visão se tornava 
menos  embaçada,  viu  que  o  rei  estava  caído,  e  que  sua  armadura  estava  rachada 
devido ao impacto que tinha sofrido pouco antes.  
O  abissal  levantou  uma  garra  enorme,  preparando-se  para  afundá-la  logo 
abaixo.  Adolin  soube,  subitamente,  que  algo  desastroso  estava  prestes  a acontecer. 
O  rei  seria  morto  em  uma  simples  caçada. O reino se estilhaçaria, os alto-príncipes 
se dividiriam, o único e tênue fio que os mantinha juntos agora cortado. 
Não!​ Adolin pensou, paralisado, ainda aturdido, tentando cambalear em frente.  
E então ele viu seu pai. 
Dalinar  disparou  em  direção  ao  rei,  movendo-se  com  uma  velocidade  e  graça 
que  homem  algum  —  nem  mesmo  um  vestindo  Armadura-fracta  —  deveria  ser 
capaz  de  manejar.  Ele  pulou  por cima de uma plataforma de pedra, se agachando e 
deslizando  abaixo  de  uma  garra  que  tentava  o  golpear.  Outros  homens  achavam 
que  compreendiam  Lâminas  e  Armaduras-fractas,  mas  Dalinar  Kholin…  às  vezes, 
fazia-os parecerem como crianças.  
Dalinar  se  endireitou  e  saltou,  ainda  movendo-se  em  frente,  desviando  por 
poucos  centímetros  de  uma  segunda  garra  que  acabou  despedaçando  a  plataforma 
de pedra logo atrás dele. 
Aconteceu  tudo  em  um  momento.  Um  suspiro.  A  terceira  garra  estava  caindo 
em  direção  ao  rei,  e  Dalinar  rugiu,  saltando  para  frente. Ele derrubou Juramentada 
—  a  lâmina  acertou  o  chão  e  desapareceu  —  enquanto  derrapava  abaixo  da  garra 
que caía. Ele ergueu suas mãos e— 
E  ele  a  segurou.  Dalinar  se  curvou sob o golpe, um dos joelhos levado ao chão, 
e o ar ecoou com o estrondo retumbante de carapaça contra metal.   
Mas ele a ​segurou.​    
Pai-Tempesto!  Adolin  pensou,  assistindo  seu  pai  se  mantendo  em  frente  ao  rei, 
curvado  perante  o  peso enorme de um monstro muito maior do que ele. Arqueiros 
chocados hesitaram. Sadeas abaixou seu grão-arco. Adolin mal ousava respirar. 
Dalinar  bloqueou  a garra e equiparou sua força, uma figura em metal prateado e 
escuro  que  quase  parecia  brilhar.  A  besta  bramiu  logo  acima,  e  Dalinar  emitiu  um 
poderoso berro de desafio em resposta. 
Naquele  momento,  Adolin  soube  que  estava  vendo  ​ele.​   O  Espinho-Negro,  o 
homem  que  ele  tanto  desejara  ter  lutado  lado  a  lado.  As  manoplas  e  ombreiras  da 
Armadura  de  Dalinar começaram a trincar, teias de luz se movendo no decorrer do 
metal ancião. Adolin finalmente saiu de seu estupor. ​Tenho que ajudar! 
Sua  Lâmina-fracta  se  formou  em  sua  mão  e  ele  se  moveu  para  o lado, ceifando 
através  da  perna  mais  próxima.  Um  estalo  soou  no  ar.  Com  tantas  pernas 
inutilizadas,  o  restante  delas  não  conseguiram  mais  conter  o  peso  da  besta, 
principalmente  enquanto  ela  tentava  esmagar  Dalinar  tão  fervorosamente.  As 
pernas  restantes  em  seu  lado  direito  se  partiram  com  um  ruído  repugnante, 
borrifando um icor violeta, fazendo a besta cair de lado.  
O  chão  tremeu,  quase  derrubando  Adolin.  Dalinar  atirou  para  o  lado  a  garra 
agora  inutilizada.  A  Luz-tempesta  das  muitas  rachaduras  fluía  logo  acima  dele,  e 
perto  dali,  o  rei  se  levantava  do  chão.  Tinham  se  passado  meros  segundos  desde 
que tinha caído. 
Elhokar  levantou  aos  tropeços,  olhando  para  a  besta  caída.  Ele  então  se  virou 
para seu tio, o Espinho-Negro. 
Dalinar  assentiu  agradecidamente  para  Adolin,  então  gesticulou  objetivamente 
em  direção  ao  pescoço  da  besta.  Elhokar  assentiu,  invocando  sua  Lâmina  e  a 
cravando  na  carne  do  abissal.  Os  olhos  verdes  e  uniformes  da  criatura  se 
enegreceram, enrugando-se, a fumaça rodopiando até o ar.  
Adolin  se  aproximou  para  se  juntar  ao  seu  pai,  assistindo  enquanto  Elhokar 
afundava  sua  Lâmina  no  peito  do  abissal.  Ela  conseguia  cortar  a  carne agora que a 
criatura  estava  morta.  Um  icor  violeta  esguichou  para  fora,  e  Elhokar  largou  sua 
lâmina,  esticando-se  até  a  ferida,  procurando  com  braços  amplificados  pela 
Armadura até agarrar algo. 
Ele  arrancou  a  gema-coração  da  besta,  a  enorme  gema  que  crescia  dentro  dos 
abissais.  Ela  era  bruta  e  grumosa,  mas  era  uma  esmeralda  pura,  tão  grande  quanto 
uma  cabeça.  Era  a  maior  gema  que  Adolin  já  vira,  e  até mesmo as menores valiam 
uma fortuna. 
Elhokar  ergueu  o  formidável  prêmio,  glorisprens  dourados  aparecendo  ao  seu 
redor, e os soldados gritaram em triunfo.   
  
   
 
  
 
   
  
  
 
 
   
  
   
 
   
  
 
 
  
 
 
 
 
 
 
 

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